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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
DOUTORADO
CLARICE LISPECTOR E JULIA KRISTEVA:
DOIS DISCURSOS SOBRE O CORPO
LUCIANA ABREU JARDIM
Profª Dr. Maria Eunice Moreira
Orientadora
Porto Alegre
2008
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LUCIANA ABREU JARDIM
CLARICE LISPECTOR E JULIA KRISTEVA:
DOIS DISCURSOS SOBRE O CORPO
Tese apresentada como requisito parcial pa-
ra a obtenção do grau de Doutor, pelo Pro-
grama de Pós-Graduação em Letras da Pon-
tifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, área de concentração: Teoria da Lite-
ratura
Orientadora
Profª Dr. Maria Eunice Moreira
Instituição depositária:
Biblioteca Central Irmão José Otão
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Porto Alegre
2008
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LUCIANA ABREU JARDIM
CLARICE LISPECTOR E JULIA KRISTEVA:
DOIS DISCURSOS SOBRE O CORPO
Tese apresentada como requisito parcial pa-
ra a obtenção do grau de Doutor, pelo Pro-
grama de Pós-Graduação em Letras da Pon-
tifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, área de concentração: Teoria da Lite-
ratura
Aprovada em 03 de janeiro de 2008
BANCA EXAMINADORA:
---------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Profª Dr. Maria Eunice Moreira – PUCRS
--------------------------------------------------------------------------------------------------
Profª Dr. Ruth Junqueira Silviano Brandão – UFMG
--------------------------------------------------------------------------------------------------
Profª Dr. Zília Mara Pastorello Scarpari – UFSM
--------------------------------------------------------------------------------------------------
Prof. Dr. Juremir Machado da Silva – PUCRS
--------------------------------------------------------------------------------------------------
Profª Dr. Ana Maria Lisboa de Mello – PUCRS
Às pessoas da sala de jantar
AGRADECIMENTOS
Ao CNPq agências de fomento, pela bolsa de estudos.
À Profª Dr. Maria da Glória, modelo acadêmico luminoso e fundamental, com quem
aprendi que a literatura é apenas uma fatia da experiência vivida. Dos nossos cami-
nhos cruzados e de aulas ministradas pela Profª Bordini surgiu e se desenvolveu este
trabalho. Revolution in poetic language.
À Profª Dr. Maria Eunice Moreira, orientadora claricianamente intuitiva e fundamen-
tal. Elegância e delicadeza incansáveis no compartilhamento de costuras finas e fecho
de presença atenta.
À minha família adorável: Paulo, Maria de Lourdes, Beth e Camila.
Aos professores da banca examinadora: Profª Dr. Ana Maria Lisboa de Mello, Profª
Dr. Ruth Junqueira Silviano Brandão, Profª Dr. Zília Mara Pastorello Scarpari e Prof.
Dr. Juremir Machado da Silva. Pelo incentivo e material clariciano, aos professores
do Programa de Pós-graduação em Letras da PUCRS: Maria Luíza Ritzel Remédios,
Alice Campos Moreira, Vera Aguiar. À Profª Dr. Regina Zilberman, pelas aulas ines-
quecíveis. À Profª Dr. Maria Carolina dos Santos Rocha. Aos professores que partici-
param da qualificação da Tese, pelas sugestões importantes: Profª Dr. Maria Luíza
Ritzel Remédios e Prof. Dr. Nythamar H.F. de Oliveira Jr.. Ao Acervo Literário Erico
Verissimo. Aos colegas e também amigos: Maria Alice da Silva Braga, Evandro Wei-
gert Caldeira, Daniela Aspis, Daniela Kern, Luciana Balbueno, Monsieur Mitidieri.
Às funcionárias da secretaria: Mara do Nascimento e Isabel Lemos.
Somebody calls you, you answer quite slowly, a girl with
Kaleidoscope eyes.
(Lennon e McCartney, Lucy in the sky with diamonds)
Sei que, assim falando, pensas
Que esse desespero é moda em 76.
... E eu quero é que este canto torto,
feito faca, corte a carne de vocês.
(Belchior, A palo seco)
I like to watch things on TV
(Lou Reed, Satellite of love)
RESUMO
Propomos o exame das representações dos corpos de personagens nos
romances de Clarice Lispector e de Julia Kristeva. Escolhemos três textos de
Clarice Lispector – Perto do coração selvagem, A paixão segundo G.H. e Água viva
– para sustentar o argumento do desaparecimento corporal que se esboça a
partir da redução dos nomes próprios das protagonistas: Joana, G.H. e a per-
sonagem-narradora sem referência nominal. Esse processo de redução parece
habitar a composição romanesca de Kristeva, já que a autora escreve romances
policiais como exercício de trabalhar a violência sobre um corpo destinado ao
apagamento produzido pelo crime. O velho e os lobos (1991) e Possessões (1996)
participam de um segundo discurso sobre o corpo que repercute sobre o pen-
samento teórico de Kristeva, sobretudo quando a autora desenvolve a relação
do sujeito falante diante da técnica. O fio condutor de nossa análise sobre os
destinos do corpo será a técnica, de acordo com as idéias de Kristeva expostas
em Sentido e contra-senso da revolta (1996) e A revolta íntima (1997). No questio-
namento se é (ou não) pertinente falar sobre esse movimento em direção à
perda do corpo, proporemos o exame da reação das escritoras de acordo com
as alternativas possíveis. Trata-se de responder se Lispector e Kristeva são ca-
pazes de recriar o conceito-corpo para além da esfera intimista ou se elas pra-
ticam uma escrita ligada exclusivamente a interesses pessoais, sem produzir
interferências efetivas no destino do pensamento ocidental.
Palavras-chave: Clarice Lispector, Julia Kristeva, Corpo
RÉSUMÉ
Nous nous proposons l’examen des représentations du corps des personnages
dans les romans de Clarice Lispector et de Julia Kristeva. Nous avons choisi trois tex-
tes de Lispector – Perto do coração selvagem, A paixão segundo G.H. et Água Viva – pour
soutenir l’argument de la disparition des corps qui s’ébauche à partir de la réduction
des noms propres des protagonistes: Joana, G.H. et le personnage-narrateur sans ré-
férence nominale. Ce processus de réduction apparaît également dans la composition
romanesque de Kristeva, puisqu’elle écrit des romans policiers comme exercice de la
violence sur un corps destiné à l’effacement produit par le crime. Le vieil homme et les
loups (1991) et Possessions (1996) participent à un second discours sur le corps qui
renvoie à la pensée théorique de Kristeva, surtout lorsqu’elle développe la relation
du sujet parlant avec la technique. Le fil conducteur de notre analyse sur le destin
des corps sera le concept de la technique selon les idées de Kristeva exposées dans
Sens et non-sens de la révolte (1966) et La révolte intime (1997). En nous demandant s’il
est (ou non) pertinent de parler de ce mouvement vers la perte du corps, notre pro-
pos est celui d’examiner la réaction des écrivains selon les choix possibles. Il s’agit
donc de répondre si Lispector et Kristeva sont capables de recréer le concept-corps
au-delà de la sphère intimiste ou si elles pratiquent l’écriture exclusivement attachées
aux intérêts personnels, sans produire des interférences effectives sur l’avenir de la
pensée occidentale.
Mots-clés: Clarice Lispector, Julia Kristeva, Corps.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................... 11
1 O CORPO............................................................................... 24
1.1 Nota sobre A revolução da linguagem poética............................ 24
1.2 O semiótico e o simbólico …................................................. 26
1.3 O genotexto e o fenotexto ...................................................... 37
1.4 A negatividade e a rejeição ................................................... 50
1.5 O sagrado............................................................................... 65
1.6 Mallarmé................................................................................. 76
1.7 Lautréamont........................................................................... 87
1.8 Outras leituras do corpo........................................................ 98
2. DOIS MOVIMENTOS DO CORPO CLARICIANO............... 118
2.1 Perto do coração selvagem ......................................................... 118
2.2 A paixão segundo G.H. ............................................................. 169
3 O CORPO ATRAVESSADO PELA TÉCNICA........................... 218
3.1 Nota sobre a Tel Quel.............................................................. 218
3.2 O velho e os lobos...................................................................... 228
3.3 Possessões................................................................................. 280
4 CAMINHO PARA O TERCEIRO MOVIMENTO DO CORPO
CLARICIANO........................................................................
392
4.1 Meditações claricianas........................................................... 392
4.2 Nota sobre o flash de sangue................................................. 445
4.3 Mortes claricianas: contra a estética do desaparecimento.... 470
4.4 O gosto: uma forma de pertencimento................................... 498
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................... 536
REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS......................................... 551
11
INTRODUÇÃO
Sustentamos a tese de que a representação dos corpos ficcionais de persona-
gens criados pelas escritoras Clarice Lispector e Julia Kristeva evidencia o flagrante
de modificações em direção ao apagamento da importância do corpo em decorrência
de transformações advindas da complexidade dos meios técnicos disponíveis em
nossa sociedade. Elegemos como corpus referente à obra de Clarice Lispector três ro-
mances dessa escritora: Perto do coração selvagem, A paixão segundo G.H. e Água viva.
Centralizamos a análise sobre o pensamento de Julia Kristeva em seus romances po-
liciais, os quais são parte do nosso corpus: O velho e os lobos (Le vieil homme et les loups)
e Possessões (Possessions).
A primeira parte do nosso primeiro capítulo tem a finalidade de realçar o pa-
pel do corpo na teoria da linguagem engendrada por Kristeva, por isso buscamos re-
ferências ao corpo no cipoal de conceitos tecidos pela teórica: semiótico, simbólico,
genotexto, fenotexto, negatividade, rejeição. Em La révolution du langage poétique:
L’avant-garde à la fin du XIXe. siècle. Lautréamont et Mallarmé, tese de doutorado
de Kristeva, entramos em contato com todas esses conceitos e também com a neces-
sidade de analisá-los isoladamente. Embora a autora em seu título restrinja a sua teo-
ria da linguagem para o texto poético (A revolução da linguagem poética), as etapas de
aquisição da linguagem do futuro sujeito falante (aí estão as modalidades lingüísticas
do semiótico e do simbólico) são necessárias e indispensáveis a todos que chegam à
linguagem. Mas o que é o corpo segundo Kristeva? Seguiremos uma definição, de
base freudiana, oferecida pela própria autora. O corpo entrelaça-se ao domínio psí-
12
quico e a sua complexa rede fantasmática, distanciando-se assim de um mero amon-
toado de órgãos. Em todos os conceitos expostos em nosso primeiro capítulo, o obje-
tivo é a captura de uma estrutura copresente a ser sintetizada por Kristeva somente
em Sentido e contra-senso da revolta (1996). Observaremos que, mesmo o conceito da
negatividade (négativité), de inspiração hegeliana, é logo retomado pelo seu viés cor-
póreo, sendo assim chamado rejeição (rejet). Em linhas gerais, o texto existe em sua
formação de genotexto e fenotexto porque estamos subordinados àquelas modalida-
des iniciais que estão na base de nossa formação – semiótico e simbólico – as quais
obedecem à estrutura formulada por Kristeva.
O segundo capítulo, “Dois movimentos do corpo clariciano”, dedica-se à in-
vestigação da representação do corpo em textos de Clarice Lispector. É nesse capítulo
que inicia o possível desenvolvimento da redução corpórea dos personagens clarici-
anos. Elegemos os personagens que compõem duas obras da escritora – Perto do cora-
ção selvagem (1943) e A paixão segundo G.H. (1964) – para fundamentar o que se confi-
gura em um movimento de redução do corpo das protagonistas. A primeira evidên-
cia desse processo situa-se no nome dos personagens: de Joana para a forma sintética
G.H., a cujo significado jamais temos acesso. Ressalta-se o fato de que a escritora Cla-
rice Lispector se inscreve no meio literário antes das análises teóricas de Julia Kriste-
va. Dessa forma, não nos interessa a aplicação das noções propostas por Kristeva,
mas antes um diálogo, sempre que necessário, entre o pensamento dessas duas auto-
ras. Por isso, o enfoque do segundo capítulo não será o de aplicação das noções re-
tomadas no capítulo anterior. O nosso objetivo sustenta-se no exercício de escrita que
Clarice Lispector e Julia Kristeva fazem para a retomada e valorização da representa-
ção de um corpo que se apresenta em seus textos em um movimento de descrédito.
A primeira opção, nesse corpus, deve-se ao fato de Perto do coração selvagem ser
o livro inaugural de Clarice Lispector, publicado em 1943, no qual encontramos o de-
senvolvimento das primeiras idéias da escritora. Entre as críticas iniciais a esse ro-
mance, cujo reflexo se manifesta na reprodução ou na indispensável referência para
textos da crítica contemporânea, situamos o artigo de Antonio Candido intitulado “O
raiar de Clarice Lispector”, no qual se estabelece uma espécie de paradigma para os
intérpretes subseqüentes. É provável que o descaso com a representação corpórea
13
dos personagens claricianos esteja no elogio que o crítico tece a respeito do trabalho-
so exercício romanesco da escritora, uma vez que ela se mostra “capaz de nos fazer
penetrar em alguns dos labirintos mais retorcidos da mente” (1970: 127), além de nos
proporcionar um “tom mais ou menos raro em nossa língua moderna” (1970: 127).
No entanto, a descrição de Joana, a protagonista, é marcada pela disforia do silêncio,
que prenuncia um estado negativo no qual o corpo, silenciado pela leitura de Candi-
do, é descartado do núcleo temático privilegiado pelo crítico. Candido focaliza seu
estudo sobretudo no silêncio da protagonista e o modo como esse se relaciona ao iso-
lamento dela do mundo, sugerindo, assim, o descompasso da personagem com a rea-
lidade:
Em torno dela, o silêncio, porque ela é a única e, portanto, só. Acima
dela, o coração selvagem da vida, do qual apenas se aproximam os
solitários, que encontram a suprema felicidade no supremo antago-
nismo com o mundo (Vários escritos, 1970: 130).
Os ensaios de Benedito Nunes desempenham papel fundamental no que se re-
fere à crítica disponível sobre a obra clariciana. No volume O dorso do tigre (1976), o
crítico dedica um capítulo à temática iniciada por Antonio Candido: trata-se do item
“Linguagem e silêncio”. No mesmo livro, Nunes reúne outros escritos que incidem,
ainda que de forma indireta, sobre esse objeto de estudo. No artigo “A náusea”
(1976), o crítico aproxima as filosofias existenciais de Sartre, Kierkegaard e de Hei-
degger a uma espécie de esfacelamento da linguagem, que, por conseguinte, leva ao
silêncio. Para ilustrar o sentido da angústia desenvolvido nos textos de Kierkegaard e
o mal-estar característico da náusea sartriana vivido por Roquentin, Benedito Nunes
recorre a três personagens de Clarice Lispector: Ana, a protagonista do conto “A-
mor”, de Laços de família; Martim, de A maçã no escuro e G.H., de A paixão segundo G.H.
Chegamos, portanto, ao nosso segundo texto a ser investigado: A paixão segundo G.H.,
publicado em 1964. Apesar de essa obra aludir ao papel do corpo em seu enredo, o
qual se resume a poucos personagens cujas ações se condensam em descrições cen-
tradas sobre o corpo da protagonista, da barata e da empregada Janair, não é a análi-
se dedicada ao corpo dessas personagens que é salientada no desenvolvimento inter-
pretativo do crítico. Decorre daí que, no segundo ensaio da mesma obra, “A experi-
14
ência mística de G.H.”, Benedito Nunes centraliza a investigação sobre o mistério re-
ligioso que a atitude de G.H. suscita. O conteúdo transcendental da personagem a-
cha-se atravessado por um poema de São João da Cruz no qual o corpo, outrora in-
terpretado pelas funções de abjeção contidas na náusea de inspiração sartriana, perde
espaço de investigação na medida em que se evade para o processo cujo interesse re-
cai para além da matéria. Nesse momento, observamos a consolidação do tema refe-
rente ao silêncio, mantendo-se a notação negativa: “O silêncio, desistência da com-
preensão e da linguagem, é o termo final da aventura espiritual de G.H., que princi-
pia pela náusea e culmina no êxtase do Absoluto, indiscernível do Nada” (O dorso do
tigre, 1976: 112).
Para dar movimento aos corpos desses personagens silenciados, realçamos
que, em Perto do coração selvagem, existem uma série de personagens secundários que
se deixam observar, através do narrador, em situações nas quais as referências ao
corpo sugerem a atmosfera íntima que os habita. É o caso de personagens que retra-
tam a velhice em suas texturas encorpadas, distantes de descrições estereotipadas
sobre o envelhecimento. Todavia, o narrador clariciano não os poupa da decrepitude
advinda do desgaste do corpo, apesar de simultaneamente situá-los em oposição a
essa condição, dado que, paradoxalmente, são descritos em vivas cores de sua traje-
tória de vida que é a de um corpo em decadência física. Joana, que deveria ser a es-
trela da obra por seu ânimo revoltado – campo profícuo de estudos para a crítica fe-
minista – possui, para ficar na palavras do narrador, uma natureza fluida, por isso é
preciso investigá-la sob o olhar de outros personagens. Da mesma forma procedemos
na seqüência do segundo capítulo ao voltar a nossa atenção para os deslocamentos
corpóreos da protagonista de A paixão segundo G.H. Nesse romance, os personagens
secundários são escassos e se resumem a atenção dedicada à empregada Janair e à
barata. Pode-se dizer que a ação está centrada sobre os minúsculos movimentos cal-
culados de sua protagonista, uma escultora que vive intensamente um delicado perí-
odo de angústia e reflexão desencadeado por um ato banal – a limpeza do quarto da
empregada.
No terceiro capítulo, “O corpo atravessado pela técnica, abrimos com a análise
de O velho e os lobos (Le vieil homme et les loups), texto publicado em 1991 na França e
15
somente no ano de 1999 no Brasil. Nesse livro, a autora expõe seus personagens à
fragilidade da existência banalizada pelo imperativo da técnica e o absurdo de tal si-
tuação na medida em que, por exemplo, pelo intertexto das Metamorfoses de Ovídio,
seu narrador traz à luz um universo ficcional supostamente decalcado da realidade
que nos é, entretanto, estranhamente familiar. Os personagens desaparecem como na
seqüência onírica narrada por Ovídio, que condensa e adapta os mitos gregos para a
esfera romana com alguma semelhança ao fluxo imagético denunciado pela socieda-
de do espetáculo. Kristeva elege o texto de Ovídio para compor a epígrafe de seu tex-
to contemporâneo, fazendo-nos pensar sobre o espetáculo muito antes do surgimento
dos televisores. Sem estabelecer o peso que está contido na descrição das vidas ou de
aspectos dessas construções ficcionais que criariam vínculos entre os personagens da
história no plano intertextual ou com os possíveis receptores, no domínio extratextu-
al, a autora promove o apagamento desses seres de papel.
Como exemplo de manifestação da técnica, Kristeva oferece a televisão e o es-
paço em acelerada transformação que é a cidade de Santa Bárbara e cujo pano de
fundo histórico pode ser a queda do muro de Berlim, uma vez que o romance é tam-
bém uma homenagem ao pai da escritora que vivia na Bulgária e durante toda a vida
sofreu os abusos irreparáveis de uma ditadura. Santa Bárbara, conforme uma série de
entrevistas de Kristeva, representa qualquer cidade sob as influências da globaliza-
ção. Nesse sentido, a escritora ultrapassa o romance biográfico para ampliar a cum-
plicidade com seus possíveis leitores espalhados pelas grandes ou pequenas cidades
e possivelmente influenciados pela rede de contatos e referências diversas transmiti-
das pelas telas artificiais.
A segunda parte do terceiro capítulo trata da obra de Kristeva intitulada Pos-
sessões, publicada na França em 1996 e no Brasil somente no ano de 2003. A história
gira em torno de uma personagem ausente chamada Gloria Harrison. Nesse roman-
ce, Kristeva conduz-nos à reflexão sobre imagens diversas (desde o impacto de pro-
dutos desejados e interessantes do consumo até as pinturas expostas no Louvre) e su-
as modificações para o campo das relações sociais. As diversas referências a pintores
consagrados levaram-nos a buscar em Visões capitais, posteriormente publicado pela
16
escritora (1998), um crucial intertexto, uma espécie de continuação de suas idéias a-
cerca das imagens desenvolvidas em Possessões.
Se compararmos as primeiras publicações da psicanalista às suas obras mais
recentes, entre elas Les nouvelles maladies de l’âme (As novas doenças da alma), Sens et
non-sens de la révolte: pouvoirs et limites de la psychanalyse I (Sentido e contra-senso da
revolta: poderes e limites da psicanálise I, de 1996) e La révolte intime: pouvoirs et limi-
tes de la psychanalyse (A revolta íntima: poderes e limites da psicanálise II, de 1997),
observaremos o espaço que Kristeva destina a críticas contra a superabundância i-
magética da qual somos vítimas. A autora constata a ineficácia da manifestação artís-
tica da atualidade e considera que atravessamos um período de crise, no qual as con-
tribuições das neurociências, aliadas à televisão, estimulam um quadro de “perda de
alicerces”, pois:
Quando não está sob os cuidados da droga, você tem nas imagens o
“curativo”. Afoga no fluxo da mídia seus estados de alma, antes que
se formulem em palavras. A imagem tem o extraordinário poder de
captar suas angústias e seus desejos, de controlar-lhes a intensidade
e suspender-lhes o sentido. A coisa anda sozinha. A vida psíquica do
homem moderno situa-se entre os sintomas somáticos (doença, hos-
pital) e a transformação dos desejos em imagens (devaneio diante da
televisão) (As novas doenças da alma, 2002: 15).
Sob a influência do movimento dos capítulos anteriores tecemos o último capí-
tulo, cujo título – “Caminho para o terceiro movimento do corpo clariciano” – denun-
cia essa intenção de trajetória. Água viva, publicado em 1973, apresenta-se sob a for-
ma de fragmentos, “mutações caleidoscópicas”, segundo a síntese persuasiva de sua
pintora-escritora. A crítica clariana a interpreta no rastro de todos os esfacelamentos
produzidos pela força protagonal – desde a forma de apresentação entrecortada do
relato até as descrições parcas e esparsas do próprio corpo da personagem-narradora.
A nossa intenção é a reunião desses estilhaços, dos instantes que compõem tal fluxo
aquoso, com a finalidade de oferecer assim um sentido para o discurso dessa perso-
nagem que sequer possui um nome e no entanto encerrou a sua autora em um traba-
lhoso esquema de composição durante três anos. Para responder a essa ausência do
nome, voltamos à coleta dos possíveis elementos da ordem técnica que teriam levado
a autora Clarice Lispector ao apagamento do corpo da protagonista de Água viva. Pa-
17
ra tanto, retornamos às personagens Joana e G.H. com o objetivo de investigar a re-
lação entre essas criaturas e a técnica.
Se na produção de Kristeva não existe dúvida de que a técnica invade seu
campo de estudo, que acomoda uma série de cruzamentos teóricos, o mesmo não se
pode afirmar sobre a recepção dos textos de Clarice. A nossa opção pela técnica como
fio condutor de análise do corpo sustenta-se na ausência de trabalhos sobre esse tema
e sobretudo no interesse da própria escritora pelos avanços tecnológicos. Entre os di-
versos assuntos abordados por Clarice Lispector nas cartas, chama-nos a atenção, por
exemplo, o interesse da escritora pelo cinema. Na carta de 19 de agosto de 1946, em
Cartas perto do coração, endereçada às irmãs Elisa Lispector e Tania Kaufmann, perío-
do em que a escritora estava em Argel, ela faz um comentário sobre a cidade de Ca-
sablanca e, em seguida, a liga ao filme hollywoodiano: “Casablanca é bonitinho, mas
bem diferente do filme Casablanca... As mulheres mais do povo não carregam véu. É
engraçado vê-las com manto, véu, e vestido às vezes curto, aparecendo sapatos (e so-
quete) tipo Carmem Miranda” (2002: 49). No meio de outras informações e outros
pedidos de notícias sobre familiares, Clarice mais uma vez retoma o assunto cinema:
Estou como antes de ter aquela sensibilidade chata. Temos ido ao ci-
nema. Revi a Estranha passageira e realmente o filme, que não é novo
em técnica ou em originalidade especial, tem uma linha histórica,
cheia de sugestões e de conselhos discretos. Em Casablanca fui com o
Cônsul americano ao cinema da Cruz Vermelha e vi Ladies in Wa-
shington (Cartas perto do coração, 2002: 50).
Ainda na década de 1940, uma carta sem a data precisa e endereçada a Lúcio
Cardoso, o grande amigo da escritora, toca novamente no tema cinema. Ela menciona
ter passado um dia e uma noite em Casablanca (pela carta anterior sabemos que ela
aproveitou a tarde para ir ao cinema), além de ter ficado durante doze dias em Argel.
Cansada dos constantes deslocamentos, ela se vale do cinema, ainda que de forma i-
rônica, para sustentar que “as coisas são iguais em toda parte”: “Os cinemas do
mundo inteiro se chamam Odeon, Capitólio, Império, Rex, Olímpia; as mulheres u-
sam sapato Carmem Miranda, mesmo quando usam véu no rosto” (2002: 55). Na dé-
cada de 50, precisamente no dia 23 de outubro do mesmo ano, uma carta de Torquay,
18
cidade pequena do interior da Inglaterra, para a irmã Tania Kaufmann, revela o en-
tusiasmo da escritora ao assistir a um filme que se tornaria um clássico mais adiante:
Em cidade pequena até os filmes são ordinários, de far-west e comé-
dias, de um modo geral. Fiquei radiante de ter visto Ladrões de bicicle-
ta. Não é mesmo um dos melhores filmes que já fizeram? Talvez
mesmo o maior. Imagine que entramos no cinema para vê-lo sem ne-
nhuma referência anterior, apenas porque o diretor era bom. Imagine
o choque e a surpresa (Cartas perto do coração, 2002: 191).
No final da década de 1960, já separada do marido, o diplomata Maury Gurgel
Valente, Clarice escreve ao filho – Paulo Gurgel Valente – que havia viajado para os
Estados Unidos na intenção de fazer uma espécie de intercâmbio. Na carta datada de
26 de janeiro de 1969, entre outras perguntas maternais sobre a estada do filho em
terra estrangeira, ela finaliza com a seguinte questão: “Conte-me tudo por favor. (Es-
ta carta só poderá seguir na segunda-feira, amanhã.) Como é sua família de emprés-
timo? Quantas pessoas estão na casa? Quantos cinemas tem a cidadezinha?” (2002:
261, grifo nosso). No final da carta, ela dá notícias do filho que está no Brasil, Pedro:
“Hoje felizmente Pedro foi ao cinema com tia Elisa. Imagine você que ele tinha inven-
tado tantas coisas más a respeito de cinema que não queria mais ir. Mas, se Deus qui-
ser, de agora em diante ele perderá o medo” (2002: 262, grifos nossos).
Em outra carta a Paulo Gurgel Valente, de 10 de março de 1969, ela comenta
sobre um romance que acaba de entregar à editora Sabiá (de acordo com a nota de
rodapé, trata-se de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres). No meio de perguntas
que giram em torno do que ela chama ironicamente de adaptação ao American way of
life, há mais uma curiosidade cinematográfica: “Que filmes você tem visto?” (2002:
264). Na carta do dia 25 de abril de 1969, no lugar de perguntar ao filho sobre os fil-
mes ou cinemas das cidades americanas, ela narra uma tentativa frustrada de ida ao
cinema: “Aqui tudo igual. Estou esperando um filme chamado Theorema, com o dire-
tor italiano Pasolini. Você viu? Houve um festival de cinema aqui no Rio, mas a mul-
tidão era tal que se tornava impossível chegar perto dos cinemas. Espero vê-los em
circuito normal” (2002: 268). Numa carta de maio de 1969, também destinada a Pau-
lo, sem esboçar qualquer comentário sobre o filme de Pasolini e depois de esgotar as
novidades, Clarice comenta uma trama cinematográfica que necessita de atenção do
19
espectador: “Fui ver um filme impressionante: O bebê de Rosemary. É de arrepiar os
cabelos. Mas se você for, tem que ir bem no princípio” (2002: 270).
Outro tema recorrente nas cartas claricianas que diz respeito à técnica é o dos
retratos. O emprego aqui não é metafórico, tal como aparece em muitos dos roman-
ces da escritora, uma vez que existem reflexões diretas sobre a materialidade das
máquinas fotográficas
1
. Nas cartas, a preocupação do narrador passa para a turista
preocupada em guardar as recordações das cidades visitadas. Numa carta incomple-
ta a Lúcio Cardoso escrita em Nápoles, em 1944, ela narra ao amigo: “Compramos
uma máquina fotográfica. Vamos tirar milhões de pequenos retratos” (2002: 58). Para
o filho Paulo, ela escreve do Brasil (10 de março de 1969) e finaliza do seguinte modo:
“Tirei um retrato pra mandar pra você, mas saiu horrível” (2002: 265).
Sob a perspectiva da técnica, o telefone é o meio de comunicação que ganha
bastante expressão em muitos romances da escritora, especialmente no volume pós-
tumo Pulsações (1978), cujo arranjo fragmentário instiga interpretações de ares “pós-
modernos”, motivando a pesquisa para a coleta de determinados índices da comuni-
cação de massa. Desde Água viva (1973), as reflexões sobre esses recursos que possibi-
litam comunicação “à distância” (a recorrente alusão ao prefixo Tele) dividem espaço
ou se plasmam à cena lírica produzida por Clarice Lispector. Na carta ao filho Paulo,
de 22 de abril de 1969, o telefone viabiliza um tipo de encontro entre os dois: “foi tão
bom ouvir tua voz pelo telefone, que valeu plenamente a pena. Logo no dia seguinte
recebi carta tua, e é sempre uma alegria” (2002: 267). Em outra carta do mesmo ano,
ela toca em questões financeiras:
Eu telefonei porque não agüentei de saudade. Se não fosse caro, eu
todas as semanas falaria com você. Estou muito orgulhosa de você. A
fotografia em cores foi ótima, e aquela paisagem desolada de inverno
que você tirou está muito bonita. Na primavera não se esqueça de ti-
rar uma fotografia do mesmo lugar (Cartas perto do coração, 2002: 276,
grifos nossos).
1
Desenvolvemos este ponto na nossa dissertação de Mestrado, Revolução poética em Água Vi-
va, no capítulo intitulado “Personagens fotográficas”, no qual recolhemos passagens de
grande parte da produção romanesca de Clarice Lispector e suas respectivas referências
às máquinas fotográficas. O nosso objetivo assentou-se na imbricação proposta pela escri-
tora entre o instantâneo e a construção também fotográfica dos personagens.
20
Os problemas financeiros da escritora surgem a partir de sua separação do di-
plomata Maury Gurgel Valente. O retorno da romancista para o Brasil, embora feste-
jado por ela, trouxe a necessidade de um amparo financeiro para além da pensão do
ex-marido. Essa situação econômica desfavorável vivida por Clarice Lispector apare-
ce claramente exposta na obra de Nádia Battella Gotlib, Clarice: uma vida que se con-
ta. Gotlib realça o lado prático da vida da escritora considerada hermética. A partir
disso, percebemos que o próprio trabalho de cronista no Jornal do Brasil não foi parte
de uma escolha vocacional e representou antes uma oportunidade de emprego ofere-
cida pelo amigo e jornalista Alberto Dines. No Jornal do Brasil, Clarice ganha oportu-
nidade única: uma coluna semanal. Ela escreveu de 19 de agosto de 1967 a 29 de se-
tembro de 1973, ano em que Dines é demitido juntamente com o núcleo de jornalistas
que havia sido contratado para o JB por intermédio dele.
Nessas crônicas, aparentemente despretensiosas, as quais cobrem um período
político de alta repressão
1
, Clarice Lispector inclui muitos dos assuntos que serão a-
bordados também em seus romances. Nelas a tonalidade afetiva característica das
cartas da romancista se mistura a temas que, de modo semelhante às cartas, desta-
cam o mundo da técnica, sua relação com as imagens e o aspecto mágico de uma so-
ciedade capaz de se comunicar à distância. No meio de uma seqüência de crônicas
que realçam memórias da infância vivida em Recife ou lembranças de viagens pas-
sadas em países europeus, ecoam os telefones, sob títulos que destoam do lirismo in-
timista atribuído largamente à escritora e causam estranhamento. São crônicas tais
como “Um telefonema” (de 4 de fevereiro de 1968), “Maria chorando ao telefone” (23
de março de 1968) e “Conversa telefônica” (de 30 de novembro de 1968), que fazem
parte do volume A descoberta do mundo.
Assim como os telefones, as máquinas fotográficas e o cinema, a televisão
também se manifesta na correspondência da escritora de tal modo que redireciona a
reflexão a respeito do silêncio clariciano, que é reconhecidamente rotulado de “epifâ-
nico”
2
ou metafísico
1
. Para o amigo Fernando Sabino, em tom de brincadeira, ela fala
1
Clarice Lispector atua como cronista nos mandatos do Marechal Costa e Silva (1967-1969) e
do General Emílio Garrastazu Médici (1969-1974).
2
Referimo-nos às importantes interpretações de Olga de Sá (A escritura de Clarice Lispector) e
21
sobre a vida em Washington, na carta de 2 de fevereiro de 1953: “Maury trabalha bas-
tante, eu faço compras no mercado; de noite vejo programas de mistério na televisão;
tudo calmo, como você vê” (2001: 92). Uma interessante referência indireta à televi-
são (trata-se de uma telenovela) está na carta escrita ao filho Paulo. A carta data do
período em que Paulo havia viajado para os Estados Unidos, 12 de junho de 1969, e,
curiosamente, a notícia que nos interessa, apesar de escrita por Clarice, é um recado
de Silea, a enfermeira que vivia na casa da escritora desde a época do acidente que
incendiou parte do apartamento de Clarice:
Silea mandou dizer a você que d. Elvira casou-se com seu Júlio. Ana
Lucia já está andando. O tio Paulo é filho do barão de Damasceno;
isso foi descoberto agora. Heitor morreu. Veridiana está presa por
diversos crimes e está aguardando julgamento. Ela diz que tem uma
grande revelação a fazer quando for julgada. Continua sendo a gran-
de Veridiana Albuquerque Medeiros, e com a revelação ela vai ficar
mais afamada ainda do que antes. Roberto e Maria Cristina chegam
para assistir o julgamento de Veridiana. Esta pôs fogo na mansão, dr.
Jorge Antônio perdeu tudo e está vivendo modestamente na casa de
d. Elvira. A Márcia é filha do Jorge Antônio, mais ainda não se sabe
quem é a mãe (Veridiana não é). O Tony não é filho de Márcia. Tio
Paulo está muito mal; ele diz que antes de morrer (ele está à morte)
há de destruir a sua irmã Sandra (Cartas perto do coração, 2002: 273).
Na crônica do dia 7 de outubro de 1967, para o Jornal do Brasil, uma das pri-
meiras de Clarice Lispector, ela discorre sobre a televisão por meio de um programa
popular e muito comentado em sua época. A crônica chama-se “Chacrinha?!” e, neste
espaço de crítica social vigiada pelos censores do regime ditatorial, Clarice faz uma
descrição minuciosa do programa de auditório: ela sintetiza os momentos do show,
esmiuçando os mecanismos que operam supostamente por trás das câmeras. Eis o
ponto de vista da cronista a respeito do comunicador:
De tanto falarem em Chacrinha, liguei a televisão para seu programa
que pareceu durar mais de uma hora.
E fiquei pasma. Dizem-me que esse programa é atualmente o mais
popular. Mas como? O homem tem qualquer coisa de doido, e estou
usando a palavra doido no seu verdadeiro sentido. O auditório tam-
bém cheio. É um programa de calouros, pelo menos o que eu vi. Ocu-
pa a chamada hora nobre da televisão. O homem se veste com roupas
Affonso Romano de Sant’Anna (A análise estrutural da narrativa).
1
Referimo-nos às consistentes interpretações de Benedito Nunes (O drama da linguagem e O
dorso do tigre).
22
loucas, o calouro apresenta o seu número e, se não agrada, a buzina
do Chacrinha funciona, despedindo-o. Além do mais, Chacrinha tem
algo de sádico: sente-se o prazer que tem em usar a buzina. E suas
gracinhas se repetem a todo o instante – falta-lhe imaginação ou ele é
obcecado.
E os calouros? Como é deprimente. São de todas as idades. E em to-
das as idades vê-se a ânsia de aparecer, de se mostrar, de se tornar
famoso, mesmo à custa do ridículo ou da humilhação. Vêm velhos
até de setenta anos. Com exceções, os calouros, que são de origem de
humilde, têm ar de subnutridos. E o auditório aplaude. Há prêmios
em dinheiro para os que acertarem através de cartas o número de
buzinadas que Chacrinha dará; pelo menos foi assim no programa
que vi. Será pela possibilidade da sorte de ganhar dinheiro, como em
loteria, que o programa tem tal popularidade? Ou será por pobreza
de espírito de nosso povo? Ou será que os telespectadores têm em si
um pouco de sadismo que se compraz no sadismo de Chacrinha?
Não entendo. Nossa televisão, com exceções, é pobre, além de super-
lotada de anúncios. Mas Chacrinha foi demais. Simplesmente não en-
tendi o fenômeno. E fiquei triste, decepcionada: eu quereria um povo
mais exigente (A descoberta do mundo, 1999: 36-37).
Essa crônica nos parece uma espécie de síntese de muitos dos assuntos sociais
contemporâneos. A sociedade de espetáculo contestada por Julia Kristeva, por exem-
plo, encontra perfeita adequação nos calouros do animador, os quais, conforme a
descrição da cronista, padecem da “ânsia de aparecer”, de “se tornar famoso” às cus-
tas de uma exposição que solapa interesses mercadológicos cujos objetos de venda
são figuras opacas, carentes de uma consciência de si. Seriam esses personagens ca-
louros o embrião de Macabéa, a mulher que, segundo o narrador Rodrigo S.M., esta-
ria “teleguiada”? A crônica em questão parece menos esperançosa do que A hora da
estrela, pois Macabéa, embora vítima de inconsciência cortante, é capaz de nuanças
emocionais de extrema complexidade. Reportamo-nos ao episódio no qual a prota-
gonista, que dividia um quarto com outras três conhecidas, se vê excepcionalmente
sozinha diante de uma situação de delicada exploração existencial – ela aproveita to-
dos os escassos momentos para esboçar a sua subjetividade apagada pela pobreza.
Cabe-nos, portanto, a investigação da representação corpórea dos personagens
de Perto do coração selvagem, A paixão segundo G.H. e Água viva no contexto da técnica.
Para tanto, disporemos, em tom dialogal, das teses e dos romances de Julia Kristeva,
já que ela, além de pensar sobre a relação do corpo na sociedade, também reflete so-
bre a condição da mulher no tecnicismo da contemporaneidade ao se ocupar da ne-
23
cessidade de uma “cultura-revolta”. Trata-se, portanto, de uma manifestação que se-
rá comparada às idéias subjacentes à composição ficcional clariciana.
Ao longo das capítulos, procuraremos responder se existe efetivamente esse
apagamento da representação do corpo desses personagens que participam do nosso
corpus e quais são as alternativas construídas pelas autoras para mantê-los no domí-
nio de um texto que é parte, para usar um termo de Kristeva, da cultura-revolta. Em
termos acadêmicos, esta pesquisa procurará contribuir para os estudos claricianos,
que se desenvolvem em ritmo crescente no País e especialmente no Exterior, propon-
do uma alternativa de leitura até agora não plenamente desenvolvida. Além disso, no
plano teórico, uma vez que focaliza uma linha de trabalho da Escola Francesa – a de
Julia Kristeva –, não muito freqüentada nas universidades brasileiras, esta tese per-
mitirá ampliar, através de um ponto de vista nacional, a discussão de seus limites e
latitude na área da análise literária.
A maior parte dos textos não está traduzida para a língua portuguesa, por isso
disponibilizamos em notas de pé de página a versão original dos textos de Kristeva.
Traduzimos referências à bibliografia sobre Kristeva e as citações dos seguintes tex-
tos de Julia Kristeva: La révolution du langage poétique; La révolte intime; La haine et le
pardon; Visions capitales; L’avenir d’une révolte; Contre la dépression nationale; Chroniques
du temps sensible; Au risque de la pensée, Psychanalyse et foi e Handicap: le temps des en-
gagements. Segue a referência aos tradutores empregados nos demais textos citados
de Kristeva: O velho e os lobos (Maria Helena Franco Martins); Possessões (Maria Hele-
na Franco Martins); Os samurais (Ana Maria Scherer); Sol negro: depressão e melanco-
lia (Carlota Gomes); As novas doenças da alma (Joana Angélica D’Avila Melo); O gênio
feminino. Hannah Arendt (Eduardo Francisco Alves); O gênio feminino. Melanie Klein
(José Laurenio de Melo); O gênio feminino. Colette (Rejane Janowitzer); Histórias de
amor (Leda Tenório da Motta) e Sentido e contra-senso da revolta (Ana Maria Scherer).
24
1 O CORPO
1.1 Nota sobre A revolução da linguagem poética
Parte expressiva da composição que nos conduz, por exemplo, à análise de O
velho e os lobos – o primeiro texto de Kristeva pertencente ao nosso corpus e que está
somente no terceiro capítulo – deve-se à observação de algumas leituras periféricas
realizadas por Kristeva. Para analisá-lo, portanto, antes nos detivemos sobre a tese de
doutorado da autora, intitulada A revolução da linguagem poética. A vanguarda no fim do
século XIX: Lautréamont e Mallarmé. Publicada em 1974, a tese de Kristeva apresenta
a efervescência do grupo Tel Quel, do qual ela participou ao lado do marido e grande
idealizador dessa revista de vanguarda literária, além de membro do comitê da revis-
ta, o escritor Philippe Sollers. A Tel Quel extrapolou a divulgação de novos autores,
de novas formas de pensar e escrever sobre a literatura, servindo de paradigma no
campo da interpretação textual.
Em Sentido e contra-senso da revolta, a própria autora chama a atenção para a re-
levância dessa revista, na medida em que pôs em cena uma série de pensadores de
distintas áreas do conhecimento, atravessando períodos históricos e até mesmo to-
mando posições políticas que depois foram reavaliadas pelo grupo. Recorremos com
freqüência à história da revista contada no extenso trabalho de pesquisa de Philippe
Forest – História da Tel Quel (1995) – na intenção de flagrar uma espécie de configura-
ção das leituras daquele período, de modo que houvesse ressonâncias com a nossa
inspeção voltada à procura de referências estéticas na tese de Kristeva. Percebemos
25
que autores como Artaud e Bataille eram constantemente citados por diversos com-
ponentes da revista; inclusive Bataille deixou textos inéditos, ainda sob a forma de
rascunhos, a serem publicados inicialmente pela Tel Quel. Além disso, até mesmo um
colóquio em homenagem a esses escritores foi feito, atitude que representou naquela
época um gesto de revolta, pois eles, de acordo com Forest, atuavam em segundo
plano na cena literária da década de 1960. O colóquio, intitulado “Rumo a uma revo-
lução cultural: Artaud e Bataille (Vers une révolution culturelle” Artaud et Bataille), a-
conteceu no verão de 1972. No evento, Kristeva aproveita para lançar o conceito su-
jeito em processo, o qual rechaça a concepção defendida por Louis Althusser, no final
dos anos 60, em que a História é definida como um “processo sem sujeito”. O grupo
Tel Quel julga a interpretação de viés marxista promovida por Althusser insuficiente
para a compreensão do mundo moderno. Temas como o culto da personalidade ou o
surgimento do fascismo, de acordo com a crítica de Sollers recuperada por Forest,
não se explicam quando o sujeito se apaga da história. Segundo Forest, a teoria do
sujeito em processo desenvolvida por Kristeva leva em consideração a subjetividade.
Trata-se assim de um momento em que o movimento vanguardista da revista con-
templa, ao lado do marxismo, os conceitos da psicanálise. As idéias de Lacan tornar-
se-ão populares aos integrantes do movimento durante esse período em que o sujeito
em processo, articulado por Kristeva, entra em cena.
Essa breve observação de fundo histórico torna-se indispensável para compre-
endermos a atmosfera intelectual na qual Kristeva circulava
1
. Para a nossa pesquisa,
a recuperação desse movimento literário confere intertextualidade às escolhas da au-
tora. Ao lado de Lautréamont e Mallarmé – poetas reconhecidos – a autora dá espaço
a outros que, naquele período, perambulavam pelo pensamento francês ainda sob o
epíteto de malditos, à margem dos grandes poetas efetivamente revolucionários, isto
1
Para um percurso detalhado do início do pensamento de Kristeva no cenário intelectual
parisiense, sugerimos a introdução de Toril Moi, em The Kristeva reader, no qual se entra
em contato com a produção francesa à época dos primeiros trabalhos divulgados por
Kristeva no ano de 1966, ano da publicação dos Escritos, de Jacques Lacan, e de As pala-
vras e as coisas, de Michel Foucault. Para Cecília Sjöholm, no artigo “A revolution betwe-
en pleasure and sacrifice”, a teoria de Kristeva relaciona-se a um momento histórico em
que a política, a filosofia e o modo de vida em geral propiciavam a experimentação e é a
partir desse recorte em movimento que deve ser interpretada.
26
é, consagrados em virtude de suas rupturas poéticas. Ao compor o nosso primeiro
capítulo, cujo objetivo é o de localizar o tema sobre corpo na tese de Kristeva – o pri-
meiro trabalho da autora estruturado com a finalidade de construir uma rede concei-
tual –, resgatamos alguns autores, entre eles Antonin Artaud e Georges Bataille, os
quais ocupam as margens de seu projeto revolucionário e no entanto constituem um
ponto de apoio tão importante quanto Lautréamont e Mallarmé (protagonistas em
sua busca) para a nossa leitura de coleta dos índices sobre o corpo nos textos da escri-
tora. No exemplo de Artaud, cuja influência se desenha como a mais significativa em
nosso estudo sobre autores periféricos no texto de Kristeva, observamos que os textos
do dramaturgo foram fundamentais para a elaboração do conceito do sujeito em pro-
cesso. A subjetividade desse artista liga-se ao fato de ele ter passado por experiências
de descompasso com o seu tempo, por isso foi levado a sanatórios diversas vezes.
Kristeva, entretanto, observa na produção de Artaud uma capacidade extraordinária
e muito particular do uso da linguagem. A autora respeita a forma de expressão li-
bertária de Artaud, um tanto afastada do simbólico e possivelmente reside nessa sua
escolha poética marginal uma forte inspiração artística para a composição do semió-
tico – conceito que permanecerá central e indispensável ao longo de suas análises tex-
tuais. Incluímos, na série de estrangeiros estudados pela autora (Hannah Arendt, Me-
lanie Klein, Mallarmé, só para citar alguns), o nome de Artaud como umas das prin-
cipais referências ao estrangeirismo, condição indispensável que corta todo o pensa-
mento de Kristeva. A falta de adequação entre o que é dito e o que é supostamente
pensado e/ou sentido pelo dramaturgo constitui o caminho de inspeção de Kristeva
de fundo claramente freudiano. No entanto, ela inclui outras linhas do pensamento
psicanalítico as quais destacamos no item destinado às leituras da autora: André
Green e Wilhelm Reich. A seguir, estabeleceremos a relação entre a teoria de Kristeva
e a temática do corpo.
1.2 O semiótico e o simbólico
Na formação da linguagem e, por conseguinte na formação do poético, atuam
duas noções que Julia Kristeva considera essenciais para o funcionamento lingüístico
27
do sujeito falante: o semiótico e o simbólico
1
. A primeira delas encontra-se ancorada
no diálogo de Platão – Timeu. A chora semiótica interpretada pela teórica é de difícil
compreensão, pois pouco podemos inferir acerca de sua funcionalidade. Em primeiro
lugar, a psicanalista restringe as possibilidades interpretativas da chora chamando-a
de articulação (articulation) incerta e indeterminada para afastá-la de termos que a le-
variam a uma disposição ou a uma representação, os quais estariam mais próximos
da intuição fenomenológica espacial e, por conseguinte, de uma geometria. Para
Kristeva, a chora caracteriza-se por uma “articulação provisória”, “essencialmente
móvel”, constituída de movimentos e de estases efêmeros” (1974: 23). Em função
desses constantes movimentos, a chora aproxima-se de um ritmo, sendo anterior à
espacialidade e à temporalidade. A chora não serve como posição para algo ou al-
guém, não está sujeita a axiomatizações, também não é significante, apesar de ter a
capacidade de engendramento em direção a uma posição significante. O complicado
acesso à chora semiótica, uma vez que ela se constrói em larga medida pela negação,
abre margem para duas analogias que tornam um tanto familiares a sua escorregadia
apreensão. A chora admite – na verdade ela apenas tolera – analogias com o ritmo vo-
cal ou cinético. Kristeva também expõe, com base no texto platônico, um aspecto fe-
minino e maternal da chora: ”ele designa esse receptáculo como nutritivo e materno
2
(1974: 25). Não apenas maternal e acolhedora, a chora também se caracteriza pelo fato
de não constituir unidade, logo fica privada da idéia de Deus, da idéia de identidade.
Cabe a ela, entretanto, a capacidade de manter constante renovação, dado que articu-
la provisoriamente quantidades discretas de energia. Tal movimento percorre o cor-
po daquele que será, passado esse processo dos primeiros meses de vida, um sujeito
falante.
1
Kelly Oliver, no artigo “The flesh become body”, observa, no conjunto do pensamento de
Kristeva, a negociação entre a linguagem e o pensamento (como acontece na formação
copresente do semiótico e do simbólico) na medida em que Kristeva leva o corpo para a
linguagem e essa também é levada para o corpo em um processo que reconecta o corpo
pulsional à linguagem (1999: 348).
2
“il désigne ce réceptacle comme nourricier et maternel” (La révolution du langage poétique,
1974: 25). Todas as traduções referentes à obra La révolution du langage poétique são nos-
sas.
28
Por esses motivos, o corpo aparece duplamente na constituição da chora semió-
tica. Primeiramente, ao eleger o texto platônico no que esse induz ao feminino, ao
maternal. Os comentários de Jacques Derrida a respeito da chora platônica evidenci-
am o aspecto feminino, ao mesmo tempo em que, na esteira do pensamento de Jean
Pierre Vernant, está para o que se afasta do logos mas não pertence ao mythos stricto
sensu
1
. Como conseqüência do texto de Platão nota-se, portanto, o destaque para o
corpo feminino ligado à mobilidade, à maternidade e à capacidade de renovação. Em
segundo lugar, e talvez o mais significativo, está o fato de a chora necessitar do corpo
humano para a sua sutil manifestação. Kristeva reafirma esse ponto sobre a relação
da chora semiótica e o semiótico numa discreta nota de fim de página presente no ca-
pítulo que antecede a conclusão de A revolução da linguagem poética quando diz:
“Lembremos que, retomando a reflexão democritiana sobre o ritmo, Platão, no Timeu,
atribui a este um lugar – a chora (...) de conotação feminina
2
” (1974: 597).
Embora diferente da lei que rege o simbólico, a chora semiótica também é
submissa a certa ordenação oriunda das leis naturais ou sócio-históricas; Kristeva dá
o exemplo da estrutura biológica dos sexos e da estrutura familiar, respectivamente.
A organização da chora liga-se, muito diversamente da lei do simbólico, ao apelo pul-
sional desenvolvido por Melanie Klein:
Trata-se de funções semióticas pré-edipianas, de descargas de ener-
gias que ligam e orientam o corpo referidas à mãe. (...) as pulsões o-
rais e anais, dirigidas e estruturadas todas as duas em relação ao
corpo da mãe, dominam essa organização sensório-motriz. Pode-se
dizer que é o corpo materno que mediatiza a lei simbólica organiza-
dora das relações sociais, e que se torna o princípio de ordenamento
1
Para Derrida, a chora “parece” determinada em relação ao gênero sexual: “Timeu fala, a seu
respeito, de ‘mãe’ e de ‘ama’” (Khôra, 1995: 14). Em outro fragmento, ele volta à constitu-
ição da chora e sugere inconsistência na opção do feminino platônico “Mas, se dizemos
Khôra e não a Khôra, ainda fazemos dela um nome. (...) Por outro lado, o nome próprio
parece, como sempre, atribuído a uma pessoa, aqui a uma mulher. Talvez a uma mulher,
de preferência a uma mulher. Será que isso não agrava os riscos de antropomorfismo
contra os quais gostaríamos de nos proteger? O próprio Platão parece não correr esses
riscos, quando parece “comparar”, como se diz, Khôra a uma mãe ou a uma ama? O valor
de receptáculo não está também associado, como a matéria passiva e virgem, ao elemento
feminino, e precisamente na cultura grega?” (Khôra, 1995: 22). O resultado desses questi-
onamentos apenas realça o aspecto feminino e corporal do texto de Platão.
2
“Rappelons qu’en reprenant la réfléxion démocritéenne sur le rythme, Platon, dans le Ti-
mée, attribue à celui-ci un lieu – la chora (...) à connotation féminine” (La révolution du
langage poétique, 1974: 597).
29
da chora semiótica, sobre a via de destruição, da agressividade e da
morte
1
(A revolução da linguagem poética, 1974: 26-27).
Os materiais semiotizáveis, que se constituem na voz, nos gestos e nas cores,
dependem de um suporte material, no caso, o corpo, para a sua realização. O conjun-
to de unidades e diferenças proporcionado pelos materiais semiotizáveis formam as
marcas dessas estases da pulsão (1974: 26-27). Essas descontinuidades contínuas de-
pendem da influência da chora que, no processo de engendramento semiótico do su-
jeito, tem por característica ser um lugar de negação. Para distingui-lo da negação
como ato do sujeito judicativo, Kristeva nomeia tal processo de engendramento do
sujeito de negatividade (1974: 26). Mais adiante, a negatividade terá um papel essen-
cial na análise de textos revolucionários como os de Lautréamont, pois a autora a-
crescenta a essa noção fundamentos da teoria hegeliana e freudiana.
Kristeva explica que o semiótico se liga à teoria do sujeito no plano do incons-
ciente, além disso é anterior à significação, atua no que ela chama de pré-tético. Essa
função é por ela assim definida: “Isso que chamamos de uma função tética não é ou-
tra coisa senão a posição da enunciação de um sujeito falante através de um sintagma
ou uma proposição: as distinções nome/verbo etc. são posteriores a esta função (...)
2
(1974: 54). Dado que o semiótico é anterior à significação, Kristeva resume esse fun-
cionamento na ordem do que antecede à instauração do simbólico e tem como condi-
ções as sujeições da organização biológica e social (1974: 35). Para melhor apreendê-
lo, são inevitáveis algumas considerações sobre a organização do simbólico. Nessa
medida, retomaremos os três modelos da linguagem propostos por Freud na inter-
1
“Il s’agit donc de fonctions sémiotiques pré-oedipiennes, de décharges d’énergie qui lient
et orientent le corps par rapport à la mère. (...) Les pulsions orales et anales, dirigées et
structurées toutes deux par rapport au corps de la mère, dominent cette organisation
sensori-motrice. On dira donc que c’est ce corps maternel qui médiatise la loi symbolique
organisatrice des rapports sociaux, et qui devient le principe d’ordonnancement de la
chora sémiotique, sur la voie de destruction, de l’agressivité et de la mort” (La révolution
du langage poétique, 1974: 26-27).
2
“Ce que nous appelons une fonction thétique n’est rien d’autre que la position de
l’énonciation d’un sujet parlant à travers une syntagme ou une proposition: les distincti-
ons nom/verb etc., sont postérieures à cette fonction (...)” (La révolution du langage poéti-
que, 1974: 54).
30
pretação de Kristeva que leva em conta, novamente, o papel do corpo na sua consti-
tuição.
Em Sentido e contra-senso da revolta (1996), a psicanalista retoma as “metamor-
foses” que o percurso freudiano sofre em busca dos desvendamentos do sujeito fa-
lante, seguindo, para tal fim, a cronologia dos trabalhos de Freud. O primeiro modelo
freudiano da linguagem está em Contribuição à concepção das afasias, de 1881, e em
“Esboço de uma psicologia científica”, de 1895. Nessa fase, Kristeva ressalta o aspec-
to de que estamos diante de um Freud neurologista, logo ainda não é perspectiva da
psicanálise (centrada sobretudo sobre a escuta das histórias dos pacientes) que ele
contempla a sua teoria. Fica, portanto, manifesta a inadequação no que se refere à
possibilidade de se amalgamar o pensamento e o corpo (no caso, a sexualidade): “um
desequilíbrio entre o sexual e o verbal. O que o ser falante diz não expressa a sexuali-
dade
1
” (2000: 62). Em “Esboço de uma psicologia científica”, ele mantém a posição
dualista sexualidade/pensamento na qual o corpo participa do sistema phi exterior,
ao passo que o pensamento atua no sistema psy, interno:
o sistema fi, exterior, e o sistema psi, interior, que podem se unir ou
se dissociar a partir da passagem da carga quantitativa Q, que se
transforma em carga qualitativa ou psíquica. A luz bate no meu olho:
“eu” vejo; minha pele está queimada: “eu” toco; meu tímpano vibra:
“eu” ouço etc. A quantidade energética que jorra no sistema percep-
tual se propaga ao longo dos nervos para chegar ao cérebro e, graças
a um sistema de filtragens, de resistências ou de proteções, consegue
inscrever nele um vestígio – traço da memória (Sentido e contra-senso
da revolta, 2000: 65-66)
2
.
Apesar da posição dualista, desde este texto de 1895, tem início, na constitui-
ção da linguagem, um tipo de associação entre o físico (phi) e o psíquico (psy). Obser-
1
Utilizaremos para todas as referências de Sens et non-sens de la révolte a tradução de Ana
Maria Scherer em Sentido e contra-sentido da revolta. “une déséquilire entre le sexuel et le
verbal. Ce que l’être parlant dit ne subsume pas la sexualité” (Sens et non-sens de la révol-
te, 1996: 51).
2
“le système phi extérieur et le système psy intérieur, qui peuvent se joindre ou se dissocier
à partir du passage de la charge quantitative Q, laquelle se mue en charge qualitative ou
psychique. La lumière frappe mon oeil: ‘je’ vois; ma peau est brûlée: ‘je’ touche; mon
tympan vibre: ‘j’ ‘entends, etc. La quantité énergétique qui déferle dans le système per-
ceptuel se propage le long des nerfs pour parvenir jusqu’au cerveau et, grâce à un
système de filtrages, de résistances ou de protections, parvient à inscrire une trace – fon-
dement de la mémoire” (Sens et non-sens de la révolte, 1996: 55).
31
va-se que o lado físico é simultâneo ao psíquico e se manifesta por meio de uma arti-
culação sustentada numa fala dependente dos sentidos, visto que é descrita em fun-
ção de sua potencialidade sonora e visual, entre outros sentidos que Kristeva não e-
numera, mas que ficam subentendidos. O lado psíquico envolve-se com a carga
quantitativa de excitação. “Essa dupla natureza lhe permite estar na encruzilhada do
corpo e do espírito
1
” (2000: 67). A partir deste texto de Freud tem início a busca de
Kristeva pela copresença da sexualidade/pensamento e, por conseguinte, do corpo.
Portanto, a nossa investigação não se restringe à análise das ocorrências corpóreas no
texto da psicanalista; interessamo-nos antes pela possibilidade de percorrer os cami-
nhos do corpo e a espessura suscitada por Kristeva no que este apresenta de imbrica-
ção com o pensamento. Trata-se de uma linguagem que abarca simultaneamente o
pensamento e a percepção. A psicanalista situa o trabalho desenvolvido em A revolu-
ção da linguagem poética na esteira desse primeiro modelo de linguagem, ou seja, algo
que não reduz o psiquismo à linguagem.
O segundo modelo da linguagem freudiano encontra-se desenvolvido em A
interpretação dos sonhos, texto de 1900, e tem como revelação fundamental a inexistên-
cia da negação ou da contradição na linguagem do inconsciente, bem como a suspen-
são do tempo no inconsciente. Este segundo modelo Kristeva chama de “modelo o-
timista” da linguagem, não sem ironia, pois sustenta que o pensamento freudiano é
um tanto mais complexo do que se apresentava até os anos de 1910 a 1912, de modo
a consagrar-se entre os estruturalistas. O otimismo assenta-se na viabilidade de um
inconsciente articulado como uma linguagem, no desvelamento de regras até então
invisíveis da comunicação humana. Kristeva, no entanto, segue a cronologia textual
do psicanalista, na direção de algo que ela defende ser um tanto mais complexo do
que isso.
A teórica observa a influência do contexto social no terceiro modelo da lin-
guagem freudiano e no conseqüente papel do simbólico. Totem e tabu, de 1912, o texto
responsável pela transformação da linguagem, põe em evidência o contexto da Pri-
meira Guerra Mundial. Para a nossa inspeção acerca do corpo, esse texto reproduz o
1
“Cette double nature lui permet d’être au carrefour du corps et de l’esprit” (Sens et non-sens
32
papel do masculino, mais precisamente, do corpo do homem, para a formação da
linguagem. Não se trata apenas da formação individual da linguagem, pela qual to-
dos passamos, mas o texto participa historicamente da formação da nossa cultura.
Assim como a representação do corpo feminino – sempre móvel e motivada pela re-
novação – que aparece no semiótico, no receptáculo materno e nutritivo, incitado pe-
lo texto platônico, a representação do corpo masculino – respeitado e regido pela lei –
depende do simbólico localizado na fábula totêmica recuperada por Freud.
Em linhas gerais, Totem e tabu é a história de obediência à figura paterna. É o
corpo do pai que os filhos poupam quando impedem o livre jogo das relações sexuais
com as mulheres do mesmo clã. A experiência mostra que a violação desse tabu im-
plica a morte prematura desses filhos que um dia se tornarão pais e também serão
assassinados pelos próprios filhos. Outro texto freudiano que acentua o papel do pai
é Moisés e o monoteísmo na medida em que essa obra sublinha que a sociedade é fun-
dada sobre um crime cometido em comum, tal como Kristeva sustenta em A revolu-
ção da linguagem poética (1974: 69). A pulsão de morte atua, portanto, no semiótico e
no simbólico. Para a teórica, a arte assume e atravessa o assassinato: uma vez que se
vê em contato com a possibilidade da morte, o artista é capaz de uma espécie de “se-
gundo nascimento”. Contribuem para as obras de arte dos artistas o conjunto temáti-
co, ideológico que eles carregam – expressões a que temos acesso pela ordem simbó-
lica e permitem o extravasamento de pulsões associais, isto é, ainda não captadas pe-
lo tético (1974: 69). A psicanalista chama a atenção para dois eventos referentes à or-
dem social que estão em oposição ao momento tético instaurador do simbolismo. O
primeiro deles diz respeito ao sacrifício:
O sacrifício instaura o símbolo e a ordem simbólica simultaneamen-
te, e o símbolo “primeiro” que é a vítima de um assassinato serve pa-
ra representar a violência estrutural da irrupção da linguagem como
assassinato do soma, alteração do corpo, captação da pulsão (A revo-
lução da linguagem poética, 1974: 72)
1
.
de la révolte, 1996: 56).
1
“Le sacrifice instaure le symbole en même temps que l’ordre symbolique, et ce symbole
‘premier’ qui est la victime d’un meurtre, ne fait que représenter la violence structurale
de l’irruption du langage comme meurtre du soma, altération du corps, captation de la
33
Em sua tese de doutorado, Kristeva vale-se das idéias da antropologia clássica
em relação ao caráter dicotômico que essa empresta ao sacrifício, desenvolvidas por
René Girard em A violência e o sagrado. O sacrifício, nessa medida, é ao mesmo tempo
violento e regulador (1974: 73). Com base no pensamento de Mauss e Henri Hubert, a
psicanalista observa o fato de o sacrifício humano ser possivelmente posterior, no
âmbito da cronologia, ao sacrifício animal e vegetal. Nessa perspectiva, o sacrifício de
um deus aparece ainda mais tardiamente do que o sacrifício humano, levando-nos ao
que Kristeva considera um revestimento semântico muito recente desse momento té-
tico celebrado pelos ritos. Entre as conclusões de Mauss e Hubert (1974: 74), Kristeva
inclui aquela que faculta ao desenvolvimento dos diferentes meios de produção e de
forças produtivas a influência sobre a estrutura sacrificial. Assim, o sacrifício, que ela
também chama de sagrado, participa de toda a sociedade humana e recebe esse adje-
tivo porque se liga a um ato religioso cujo pano de fundo é o respeito às interdições
do corpo (no caso de Totem e tabu); o sacrifício é por ela entendido como uma “teolo-
gização do tético” - thélogisation du thétique (1974: 76). Essa não se limita à forma reli-
giosa mais evidente da devoção a um deus, uma vez que tal teologização, conforme o
desenvolvimento das forças produtivas da sociedade, é capaz de adquirir diversas
formas, as quais dependem das forças naturais, ou do sistema ecológico ambiente, ou
das relações de parentesco e até mesmo das relações sociais e suas hierarquias. Em-
bora exista essa maleabilidade das formas de manifestação da teologização, é flagran-
te, para a nossa cultura ocidental, o impacto do assassinato do pai para a instauração
do simbólico, da linguagem. Por isso, Kristeva reiteradamente evoca a fábula da re-
feição totêmica descrita em Totem e tabu, na qual o corpo do pai morto serve como
meio para reflexão da permanência da vida:
O parricida, portanto, que Freud evoca na origem do contrato social
(cf. Totem e Tabu) pode ser pensado como uma das formas que reves-
te o momento tético, e certamente ele é a forma que melhor designa a
instauração do simbolismo e visa à interdição do prazer (e com isso,
simultaneamente, o permite) (A revolução da linguagem poética, 1974:
76)
1
.
pulsion” (La révo1ution du langage poétique, 1974: 72).
1
“Ainsi, le parricide que Freud évoque à l’origine du contrat social (cf. Totem et Tabou) peut
être pensé comme une des formes que revêt ce moment thétique, et sans doute est-il la
forme désignant le mieux que l’instauration du symbolisme tend à interdire la jouissance
34
A copresença da sexualidade/pensamento evidencia-se no fragmento supraci-
tado. A figura do parricida abre espaço para a instauração da linguagem (pensamen-
to), já que os filhos, segundo Freud, se arrependem pela morte do pai e, sob um as-
pecto até mesmo mais egoísta do que moral, tais filhos também temem pelas próprias
vidas, pois se vêem refletidos na representação daquele corpo sem vida, o corpo do
pai impotente. O parricida também reflete a vitalidade do corpo vivo, capaz de múl-
tiplos relacionamentos sexuais. Na nota 115 de A revolução da linguagem poética (1974:
76-77), Kristeva partilha a idéia de Girard acerca da existência de uma verdade de
ordem religiosa que escapa às correntes de pensamento não religiosos. Entretanto,
discorda de Girard justamente no ponto em que ele recusa a violência de base sexual
que o engendramento freudiano sugere para a constituição do ser falante.
O segundo evento para a instauração do social, do simbólico, diz respeito a
uma representação precedente ao sacrifício e serve de “laboratório” para as mais di-
versas manifestações artísticas. Não apenas a literatura e a poesia, mas também o tea-
tro, a dança e qualquer prática artística participam desse estado sensorial que remete
às vocalizações, às gestualidades e às verbalizações e indica um caminho para a chora
semiótica. Nesse segundo evento também se esboça a copresença da sexualida-
de/pensamento na formação do social: “A arte – essa semiotização do simbólico –
representa, portanto, o afluxo da fruição na linguagem
1
” (1974: 77). O processo de
exposição do artístico consiste na ruptura, na mudança do vocabulário, da sintaxe, de
forma que o conteúdo vocálico e cinético adquiram vazão na ordem simbólica. Por
meio dessa experiência-revolta, Kristeva anuncia uma teoria da arte ancorada sobre a
contestação da ordem estabelecida, o que não implica a recusa radical das conven-
ções sedimentadas. A arte, segundo sua concepção, estrutura-se a partir da oposição
às interdições impostas pela religião, essa que se apodera da ordem simbólica. Cabe à
arte, portanto, o duplo movimento de assimilação e refutação do tético com a finali-
dade de transpor para a esfera da linguagem uma parcela de prazer. Trata-se do que
(et que, simultanément, il la permet)” (La révolution du langage poétique, 1974: 76).
1
“L’art – cette sémiotisation du symbolique – représente ainsi l’afflux de la jouissance dans
le langage” (La révolution du langage poétique, 1974: 77).
35
a psicanalista chama de jouissance trans-symbolyque (1974: 78). Em O futuro de uma re-
volta (L’avenir d’une révolte
1
), Kristeva insiste na apreensão da transverbalidade. Esta
não tem a ver com o pré-verbal, pois a autora não tem a pretensão de conceitualizar o
pré-verbal; o semiótico, portanto, não descarta a linguagem – ele antes constrói-se
por um movimento que leva em consideração outros dispositivos de sentido, tais
como as articulações melódicas e rítmicas, as quais não constituem significações, mas
que se somam à estrutura do simbólico para serem viabilizadas socialmente. É nesse
fluxo, um jogo do pulsional e do pensamento, que algo de novo acontece. Mas onde e
como temos acesso a este lado pulsional – jouissance pelo qual todos os seres falan-
tes passam?
A aquisição da linguagem marca o final desse estado prazeroso e depende ir-
revogavelmente do contato com o corpo materno. A formação da linguagem traz à
luz o primeiro luto do futuro ser falante e como conseqüência desse sofrimento o
corpo da mãe surge em primeiro plano como fonte inesgotável de fruição do bebê,
ainda que seja de curta duração:
Antes de começar a falar toda a criancinha se torna irremediavel-
mente triste. Esse estado passageiro, que foi designado como uma
“posição depressiva”, corresponde à experiência de um luto precoce
e constitutivo: ele transforma o bebê auto-erótico, que goza de seu
corpo fragmentado, dos mamilos de sua mãe, de um pano ou de uma
boneca, em ser falante
2
(Visões capitais, 1998: 14).
O processo de aquisição da linguagem participa dos primeiros meses de vida
do futuro ser falante e é paralelo ao estádio do espelho
3
do qual Lacan fala em sua
1
O desenvolvimento da importância da transverbalidade encontra-se no artigo “Europhilie-
Europhobie” (L’avenir d’une révolte, 1998: 87-110) e é resultado de colóquio sobre Teoria
francesa, na New York University, em novembro de 1997.
2
“Avant de commencer à parler, le tout petit enfant devient irrémédiablement triste. Cet
état passager, qui a été désigné comme une “position dépressive”, correspond à
l’expérience d’un deuil précoce et constitutif: il transforme le bébé auto-érotique qui jouit
de son corps morcelé, des mamelons de sa mère, d’un chiffon ou d’une poupée, en être
parlant” (Visions capitales, 1998: 14-15).
3
Conforme Roudinesco e Plon, o estádio do espelho “serve para designar um momento psí-
quico e ontológico da evolução humana, situado entre os primeiros seis e dezoito meses
de vida, durante o qual a criança antecipa o domínio sobre sua unidade corporal através
de uma identificação com a imagem do semelhante e da percepção de sua própria ima-
gem num espelho” (Dicionário de psicanálise, 1998: 194).
36
teoria psicanalítica. Trata-se de um curto período na vida do sujeito em formação –
entre os seis e os dezoito meses de idade – e supõe a supressão da analidade, uma
vez que a aquisição da linguagem implica a separação definitiva do objeto rejeitado.
Na fase adulta, o retorno da analidade “não sublimada”, “não simbolizada”, se mani-
festa sob a forma de ruptura na cadeia significante, ou seja, o excesso deste material
rompe a linearidade dessa sob a forma de glossolalias, paragramatizações. A psicana-
lista vale-se de uma noção essencial para a sua teoria, qual seja, a da rejeição (le rejet)
e a define da seguinte forma: “O que designamos por rejeição não é nada mais do
que o modo semiótico dessa agressividade permanente, e a possibilidade de sua posi-
ção, portanto de sua renovação
1
(1974: 137). Para a sobrevivência dessa rejeição (du re-
jet) atuam duas modalidades. A primeira delas é a oralização, na qual o reencontro
com o corpo da mãe não é mais o de uma cavidade invaginada mas o de um corpo
vocálico onde se destacam a garganta, a voz e os seios – configuração, portanto, da
música, do ritmo, da prosódia, dos paragramas. Esta modalidade recebe o nome de
“poética” (poétique). A segunda modalidade é chamada de “dominante” (maîtrisant),
sendo inseparável da primeira, e diz respeito ao reencontro com o corpo dos irmãos
para a reconstrução de uma sólida fratria homossexual.
A partir das marcas dos trajetos da rejeição, Kristeva oferece exemplos da ma-
nifestação dessas modalidades em textos de Lautréamont e Mallarmé. As escansões
de frases ao ritmo do piano nos Chants de Maldoror, exercício reconhecidamente lau-
treamoniano, remetem à música característica da modalidade poética. A respeito de
Mallarmé, a teórica seleciona a articulação de tonalidade gélida presente em “Héro-
diade” para acentuar um movimento que faz uso do aparelho vocálico causando a
impressão de frieza: “(...) até o espasmo da glote
2
” (1974: 140). Kristeva busca na glo-
te, que corresponde a uma abertura nas cordas vocais situada na parte superior da
laringe, o meio para a expressão do poético, da arte. As intertextualidades com a filo-
sofia hegeliana em “Un coup de dés” e “Igitur”, ou o aspecto, chamado pela autora,
1
“Ce que nous désignons par rejet n’est rien d’autre que le mode sémiotique de cette agres-
sivité permanente, et la possibilité de sa position, donc de son renouvellement” (La révoluti-
on du langage poétique, 1974: 137).
2
“(...) jusqu’au spasme de la glotte” (La révolution du langage poétique, 1974: 140).
37
de ritualístico do “Livre”, todos textos de Mallarmé, ao lado Poésies, de Lautréamont,
evocam a segunda modalidade. A criação dessas modalidades e suas exemplificações
ressaltam a codependência do poético/dominante – poétique/maîtrisant e ratificam o
ponto central que a teórica sustenta sobre a formação da linguagem, no qual afirma a
copresença da sexualidade/pensamento. A respeito da referência à glote no poesia
de Mallarmé faz-se necessário um retorno à função da cavidade oral. Esta, como des-
taca Kristeva, “é o órgão perceptivo mais cedo desenvolvido e que assegura para o
lactente o primeiro contato com o exterior mas também com o outro
1
” (1974: 140).
Dessa forma, o trabalho da glote que a psicanalista expõe no texto de Mallarmé não é
isolado de uma estrutura que torna viável a sua representação.
Nessa medida, quando interpretamos o corpo nesse conjunto de textos que
apontam diversos caminhos sobre esse tema carregado de historicidade, não é o cor-
po isolado de órgãos e suas respectivas funções que buscamos: pretendemos inter-
pretá-lo no que esse apresenta de codependente ao campo psíquico.
1.3 O genotexto e o fenotexto
O semiótico e o simbólico designam duas modalidades que constituem o pro-
cesso da significância (procès de la signifiance), conforme a terminologia empregada
por Kristeva em A revolução da linguagem poética (1974: 22). A significância é definida
como um funcionamento em constante renovação da linguagem, portanto, é com ba-
se nesses parâmetros que devemos pensá-la:
Isso que designamos por significância é precisamente esse engen-
dramento ilimitado e jamais fechado, esse funcionamento sem para-
da de pulsões em direção, na e através da linguagem, em direção,
nas e através das trocas e dos seus protagonistas: o sujeito e suas ins-
tituições. Esse processo heterogêneo nem funda uma anarquia frag-
mentada, nem um bloco esquizofrênico, é uma prática de estrutura-
ção e desestruturação, passagem ao limite subjetivo e social, e – nesta
condição somente – fruição e revolução
2
(A revolução da linguagem po-
1
“(...) est l’organe percetif le plus tôt developpé et qui assure chez le nourrisson le premier
contact avec l’extérieur mais aussi avec l’autre” (La révolution du langage poétique, 1974:
140).
2
“Ce que nous désignons par signifiance est précisément cet engendrement ilimité et jamais
clos, ce fonctionnement sans arrêt des pulsions vers, dans et à travers le langage, vers,
dans et à travers l’échange et ses protagonistes: le sujet et ses institutions. Ce procès
38
ética, 1974: 15).
A significância é o nome que Kristeva dará ao terceiro modelo freudiano da
linguagem. Depois de Contribuição à concepção das afasias (1881), “Esboço de uma psi-
cologia científica” (1985), textos do primeiro modelo; A interpretação dos sonhos, refe-
rente ao segundo modelo, surge a significância, esta é chamada por Freud de “traba-
lho do pensamento” ou de “intelectualização” (1996: 98). Kristeva afirma, em Sentido
e contra-senso da revolta (2000: 86), que Freud nunca abandonou os princípios de sua
teoria alicerçada no método da associação livre –, ele apenas percebeu a sua insufici-
ência no confronto com a psicose. É uma situação na qual as bases lingüísticas frus-
tram as expectativas do psicanalista, pois “as palavras, constata ele, não são sim-
plesmente garantias da nossa possibilidade de reencontrar as percepções ou os vestí-
gios mnésicos reais”
1
(2000: 88).
Na elaboração desse terceiro modelo de linguagem, o artigo de Freud – “A
denegação” (1925)é comparado por Kristeva ao texto O ego e o id. Em Histórias de
amor, Kristeva resume esse ponto. A denegação, nessa medida, corresponde ao papel
da negação no inconsciente e é demonstrada por Freud na medida em a negação de
um enunciado pode significar, a partir do inconsciente, a confissão explícita do seu
recalcamento. Através do exemplo retomado por Kristeva do próprio Freud, “eu não
amo minha mãe”, estabelece-se justamente seu inverso – eu amo minha mãe. Ela
constata que Freud postula uma “rejeição pulsional” cuja repetição leva à denegação
(Sentido e contra-senso da revolta, 2000: 99). Esse processo, que ela estabelece como
“trabalho do negativo”, estrutura o terceiro modelo de linguagem – a significância. O
papel da sublimação, decorrente desse trabalho do negativo, também participa do
modelo, sem atuar, no entanto, no campo da linguagem:
Não foi um fantasma de assassinato ou de devoração do pai que os
hétérogéne, ni fond morcelé anarchie, ni blocage schizophrène, est une pratique de struc-
turation et de déstructuration, passage à la limite sujective et sociale, et – à cette condi-
tion seulement – il est jouissance et révolution” (La révolution du langage poétique, 1974:
15).
1
“les mots, constate-t-il, ne sont pas simplement les garants de notre possibilité de retrou-
ver les perceptions ou les traces mnésiques réelles” (Sens et non-sens de la révolte, 1996:
77).
39
irmãos tiveram, sustenta Freud contra seus amigos e discípulos pru-
dentes, que o tentavam convencer a abandonar essa hipótese; eles re-
almente mataram e comeram (Sentido e contra-senso da revolta, 2000:
101)
1
.
É o corpo do pai que está em questão nesse aspecto, antes de qualquer tentati-
va de desvendamento de um impasse lingüístico, de qualquer inconsistência entre a
fala e a convenção. Eis o ponto religioso que nos leva à significação. Totem e tabu con-
fere ao terceiro modelo freudiano da linguagem uma aura de religiosidade, na medi-
da em que suscita o respeito ao pai, o arrependimento pelo assassinato desse pai. Por
outro lado, a fábula realça a violência na figura do parricida, o filho incestuoso e vio-
lento. Kristeva interpreta esse acontecimento na esfera do extrapsíquico, condição
que implica a interferência de uma terceira cena que se acrescenta ao consciente e ao
inconsciente. O ser humano, constituído de Eros e de Tanatos, teria, por conseguinte, a
significância na sua constituição: “terceiro componente que não é linguagem nem
pulsão, mas que sobredetermina as duas primeiras
2
” (2000: 104). Segundo ela, outras
temáticas da psicanálise (ela oferece os exemplos das pulsões e dos fantasmas origi-
nários) não viabilizam o mesmo campo de investigação que está disponível na análi-
se da significância, que é ainda pouco explorada. Segundo Kristeva, a significância se
caracteriza pela sua abertura a amplas investigações.
A sublimação
3
, central no terceiro modelo freudiano da linguagem, não atua
apenas no campo da estética, embora, segundo Kristeva, esteja no papel do escritor o
exercício mais intenso desse processo. Em Sentido e contra-senso da linguagem, a psica-
nalista chama a atenção para a presença do processo sublimatório em todo o ser fa-
lante. Totem e tabu, a fábula do assassinato do pai que Kristeva localiza no centro da
1
“Ce n’est pas un fantasme de meurtre ou de dévoration du père que les frères ont eu, sou-
tient Freud contre ses amis disciples prudents qui essaient de lui faire abandonner cette
hypothèse; ils ont réellement tué et mangé” (Sens et non-sens de la révolte, 1996: 91).
2
“troisième composante qui n’est ni langage ni pulsion, mais qui surdétermine les deux
premières” (Sens et non-sens de la révolte, 1996: 94).
3
Conforme Laplanche e Pontalis, a sublimação compreende um “processo elaborado por
Freud para explicar as atividades humanas sem qualquer relação aparente com a sexuali-
dade, mas que encontram o seu elemento propulsor na força da pulsão sexual. Freud
descreveu como atividades de sublimação principalmente a atividade artística e a inves-
tigação intelectual” (Vocabulário de psicanálise, 2001: 495).
40
formação da significância, e que está no relevante âmbito do extrapsíquico, se ressal-
ta pelo que apresenta de religioso na formação do sujeito social. Em determinado
momento da construção do terceiro modelo, Kristeva estabelece a ligação entre su-
blimação, arte e linguagem. Muito antes de Édipo, no período de aquisição da lin-
guagem, existe a figura do pai da pré-história individual. Essa figura simbólica (mas
carregada de simbologia masculina) atua entre a mãe e o filho, promovendo certo es-
paçamento indispensável para a formação saudável do futuro ser falante, de modo
que impede a osmose do bebê com a mãe que poderia levar a uma psicose infantil
(2000: 96). Kristeva atesta que a figura desse “pai” repercute sobre a experiência esté-
tica, uma vez que, por meio da celebração da figura do “pai amoroso” (2000: 96) se
concentra a base de negação da realidade edipiana do sujeito. Em linhas gerais, a psi-
canalista constata a existência desse pai da pré-história individual no processo su-
blimatório por meio da observação de telas ou de textos. Curiosamente, não são os
traços dele que ela encontra pintados ou descritos, pois o “pai amoroso” retorna sob
a representação da mulher – “a figura demoníaca ou abjeta da mulher-mãe da qual é
vital se separar
1
” (2000: 96).
Segundo Kristeva, em Sentido e contra-senso da revolta, as religiões, com ênfase
na religião cristã, têm essa função da representação estética do “pai amoroso” (que
seria o pai da pré-história individual). As religiões permitem uma espécie de “esque-
cimento” da guerra de Édipo contra Laio, na medida em que “negam” a “revolta do
filho contra a lei” (2000: 96). A virtualidade da representação desse “pai amoroso” faz
com que a psicanalista desloque a sua representação para as figuras femininas. O
corpo masculino, sob o viés do mistério, surge nas investigações da teórica não ape-
nas pelo lado catequético do cristianismo, mas Kristeva busca nas leituras freudianas
o interesse do psicanalista pelo mistério. Ela alude a algumas referências mitológicas
que dizem respeito à história das religiões, situando a obra O culto de Priapo e suas re-
lações com a teologia mítica dos antigos, de Richard Knight, do século XVIII, como item
da biblioteca de Freud. “Nela o autor afirma que na origem de todo mito, e portanto
na base de cada teologia e até no coração do cristianismo, se encontra o culto primiti-
1
“la figure démoniaque ou abjecte d’une femme-mère dont il lui est vital de se séparer”
41
vo do falo
1
” (2000: 147). É interessante observar que a representação do “pai amoro-
so”, presente na formação arcaica do sujeito falante, se apaga sob a imagem da mu-
lher má, abjeta. Aparentemente, a inclusão que a teórica faz desses cultos fálicos a
partir do livro Knight induz-nos a outro tom, um tanto distante da influência do cris-
tianismo e a atmosfera de “culpa” que a circunda. Em certa medida, ao mencionar os
ritos fálicos, Kristeva reconhece a importância de inúmeros estudos que legitimam a
constatação de que toda forma de sagrado, toda celebração ritual pode se referir a um
culto fálico. Entre eles, ela menciona os mistérios de Elêusis, os mistérios órficos e os
mistérios dionisíacos em Roma. Em alguns, chama a atenção para o “rito de cobertu-
ra e descoberta de falo” como forma de estabelecimento do laço social (2000: 147). Es-
sa investigação antropológica traz à tona a representação do corpo masculino pela
sua genitalidade, o que difere de sua representação deslocada na figura de uma mãe-
mulher odiada. Essa representação, no entanto, já encontra nos ritos fálicos os traços
que conduzem o corpo masculino ao pudor, ao respeito que lhe conferem as religi-
ões, fazendo-o até mesmo desaparecer sob a imagem de uma mulher. O corpo, por-
tanto, nesses cultos assume a dupla função de aparecimento e desaparecimento; des-
velamento, velamento.
Kristeva ilustra aos alunos do curso que deu origem à obra Sentido e contra-
senso da revolta, de 1996, essa questão com algumas fotografias de sua viagem a Ná-
poles. Uma das fotos traz a imagem de uma escultura de Guiseppe Sammartino
(1729-1793) – O Cristo velado, na capela Sansevero, em Nápoles. As outras duas re-
produções são de Antonio Corradini (1668-1752), autor de O pudor (1751) e A pureza.
Todas essas fotografias evidenciam véus esculpidos sobre corpos de imagens religio-
sas. A inspiração desses escultores, segundo ela, está na celebração dos ritos fálicos
de cobertura e descoberta do falo na Vila dos Mistérios, ao norte da Pompéia, situada
próxima a Nápoles. A respeito da Vila dos Mistérios, há uma nota de pé de página que
(Sens et non-sens de la révolte, 1996: 86).
1
“L’auteur y soutient qu’à l’origine de tout mythe, et donc au fondement de chaque théolo-
gie et jusqu’au coeur du christianisme, se trouve le culte primitif du phallus” (Sens et
non-sens de la révolte, 1996: 137).
42
realça o legado das civilizações antigas para as representações do corpo que encon-
tramos nos retratos selecionados pela teórica:
Construída na metade do século II a.C; seu solo e suas paredes estão
decorados com paisagens do vale do Nilo, miniaturas de silhuetas
egípcias, personagens do ciclo dionisíaco e cenas mostrando os ritos
de iniciação aos mistérios dionisíacos ou órficos, calcados no modelo
helenístico do século IV ou III a.C.
1
(Sentido e contra-senso da revolta,
2000: 152).
Kristeva relaciona, em Sentido e contra-senso da revolta, a transfiguração desses
ritos fálicos a que temos acesso pela Vila dos Mistérios ou pelas figuras religiosas à e-
timologia da palavra mistério, na qual ela busca na raiz grega muo a significação de
algo escondido, fechado. A investigação também passa pelo sânscrito, no qual mu-
kham remete à boca, buraco, fechadura e tem por conseqüência a formação muka nas
línguas eslavas, que significa dor, mistério (2000: 152): “Essa prática acompanha o
campo sagrado da humanidade em diferentes configurações que escondem e mos-
tram não apenas o falo, mas ainda toda espécie de objetos desejáveis, ou que só se
tornam assim pela cobertura/descoberta
2
” (2000: 152).
O jogo com o verbo “voiler”– voilé/devoilé, do original – que a tradutora op-
tou por coberto/descoberto, pode ser lido como velado/ desvelado e dessa forma
suscita a importância destinada ao véu como participante de uma das formas já afas-
tadas dos ritos fálicos. As imagens sacras, segundo Kristeva, (refere-se àquelas en-
contradas nos evangelhos e também nas alegorias, citando entre elas o “pudor”, a
“pureza”, a “prudência”), distanciam-se das formas fálicas porque adquirem formas
humanas. De acordo com Laplanche e Pontalis (2001: 166-68), o uso do termo falo em
psicanálise sublinha a função simbólica desempenhada pelo pênis. Na Antigüidade
greco-latina, o falo, que exercia um papel nas cerimônias de iniciação, já era também
1
“Construite dans la première moitié du IIe. siècle av. J-C. son pavement et ses parois sont
décorés de paysages de la vallée du Nil, de miniatures de figurines égyptiennes, de per-
sonnages du cycle dionysiaque et de scènes montrant des rites d’iniciation aux mystères
dionysiaques ou orphiques sur le modèle hellénistique du IVe. ou du IIIe. avant J.-C.”
(Sens et non-sens de la révolte, 1996: 138).
2
“Cette pratique accompagne le champ sacré de l’humanité dans différentes configurations
qui cachent et montrent non seulement le phallus, mais encore toutes sortes d’autres ob-
jets désirables, ou qui ne le deviennent qu’en étant voilés/dévoilés” (Sens et non-sens de la
43
uma representação figurada do órgão anatômico
1
. O parâmetro da sexualidade, nes-
sa perspectiva, assentado nas restrições das práticas sexualizadas assumidas pela re-
presentação do corpo, encontra-se no eixo da significação que esse recebe a partir do
monoteísmo. Assim, temos no critério do antropomorfismo a distinção entre os cul-
tos fálicos (no qual se observa a representação inexistente do corpo) e as imagens
barrocas (nas quais se observa a estruturação do corpo e suas respectivas formas
humanas):
Vocês podem ver que o escultor barroco não nos apresenta falos, co-
mo seu antecessor, o pintor da Vila dos Mistérios, e sim personagens,
formas encarnadas, corpos. No entanto, ele lhes vela como em Pom-
péia se velava... o falo
2
(Sentido e contra-senso da revolta, 1996: 152-
153).
A semelhança entre os ritos fálicos e as esculturas barrocas, ou, de forma mais
ampla, as representações sacras, reside no exercício oscilatório de velamen-
to/desvelamento da tradição. Segundo a psicanalista, a curiosidade despertada pelo
véu é da mesma ordem daquela do falo, apesar de se tratarem de dois elementos di-
ferentes. Essa cobertura proporcionada pelo véu/falo é uma forma de melhor mos-
trar aquilo que se esconde sob a opacidade desse movimento alternado. No caso das
formas sacras, é o conjunto dessas personagens antropomorfas que ganha relevo. Di-
to de outra forma, o corpo aparece retomado sob um tema psicanalítico da ordem da
presença e da ausência. O corpo que a teórica deixa em cena leva-nos ao fantasma da
castração. Esse é construído a partir de algumas características do pênis: além de sua
visibilidade, está a possibilidade sua tumescência/destumescência (podemos arriscar
que se trata de uma variação do velamento/desvelamento) que gera esse complexo
révolte, 1996: 138).
1
Roudinesco e Plon, na definição do verbete falo, divulgam um ponto importante de afas-
tamento dos cultos fálicos em direção a outras práticas religiosas: “Investidos de supre-
ma potência, tanto na celebração dos mistérios quanto em diversas religiões pagãs ou o-
rientais, os deuses itifálicos e o falo foram rejeitados pela religião monoteísta, que consi-
derava que eles remetiam a um período bárbaro da humanidade, caracterizado por práti-
cas orgíacas” (Dicionário de psicanálise, 1998: 221).
2
“Vous voyez que le sculpteur baroque ne nous présente pas de phallus, comme son prédé-
cesseur, le peintre de la Villa des mystères, mais des personnages, des formes incarnées,
des corps. Cependant, il les voile comme on voilait à Pompéi... le phallus (...)” (Sens et
non-sens de la révolte, 1996: 139).
44
tanto em meninos quanto em meninas. Na teoria psicanalítica, o pênis deixa de ser
um órgão e passa a ser denominado de falo: aqui estamos novamente numa das in-
terpretações possíveis da copresença sexualidade/pensamento. Kristeva, no entanto,
questiona a sedimentação das lógicas binárias simbolizadas pelo falo.
Cabe ressaltar o aspecto inovador proporcionado pela significância, pois a psi-
canalista está em busca de algo alternativo à configuração dicotômica da presença-
ausência incrustada no complexo de castração. Kristeva, nessa medida, em Sentido e
contra-senso da revolta, desafia a constatação tradicional de pesquisadores na qual “to-
da forma de sagrado, toda celebração ritual pode se referir a um culto fálico
1
” (2000:
147). Baseada nas sociedades ocidentais, que se estruturam pela escrita e são herdei-
ras do helenismo e da Bíblia, a teórica confere às práticas estéticas, às práticas artísti-
cas, certa experiência capaz de redistribuição da ordem significante fálica.
O processo da significância (procès de la signifiance), que se desenvolve em A
revolução da linguagem poética, constituído por duas modalidades dependentes – se-
miótico, simbólico – encontra na atividade política, que ambiciona uma transforma-
ção radical das estruturas sociais, uma das suas manifestações mais claras (1974: 98-
99). A prática revolucionária que tal processo instiga é o questionamento das certezas
do sujeito que dela participa. O sujeito, portanto, entra em conflito com objetos e ou-
tros sujeitos do seu meio social. Esse movimento contraditório, apesar de ser exterior
ao sujeito, tem a capacidade de deslocá-lo, torná-lo ex-cêntrico. Assim, o sujeito fica
suspenso, torna-se um lugar de passagem (lieu de passage), um não-lugar (non-lieu),
depositário de um jogo de posições que dizem respeito à articulação das pulsões e de
suas estases (1974: 179-180):
É ela, a prática, que compreende a contradição heterogênea como
motor de um movimento dialético – material e significante – infinito.
É na prática que se realiza o processo de significância, já que a práti-
ca se determina por esse momento de pulverização da unidade da
consciência para um exterior não-simbolizado, a partir de contradi-
ções objetivas, das quais a rejeição pulsional fará brotar o novo obje-
to com suas determinações objetivamente existentes no material exte-
rior
2
(A revolução da linguagem poética, 1974: 180).
1
“toute forme de sacré, toute célébration rituelle peut être référée à un culte phallique”
(Sens et non-sens de la révolte, 1996: 136).
2
“C’est elle, la pratique, qui comprend la contradiction hétérogène comme moteur d’un
45
A investigação da prática significante em A revolução da linguagem poética não
se reduz ao interesse pelo procedimento individual dessa prática, denominada pela
psicanalista de “experiência individual” – expérience individuelle (1974: 187). Kristeva
interessa-se pela manifestação da significância na escala que compreende a socieda-
de. Esse procedimento ela observa em textos de vanguarda do final do século XIX.
Para tanto, compõe um quadro da construção da ritmicidade que tem início com o
metro clássico. Esse representa uma transposição de uma regularidade musical pre-
sente no canto ou na dança que funciona dentro de um sistema lingüístico. O exercí-
cio da versificação silábica, que tinha por função revelar as particularidades das lín-
guas melódicas, agia, em contrapartida, de forma a padronizá-las em matrizes musi-
cais extralingüísticas. O choque social estabelece-se quando essas matrizes musicais,
carregadas de ideologias de outras línguas, entram em contato com as línguas roma-
nas, germânicas e eslavas. Em conseqüência disso, o modelo passa do metro para o
logometro. O logometro é um sistema métrico estabelecido pelos formalistas russos e
tem na palavra, não mais no pé (modelo musical), a sua unidade métrica fundamen-
tal. No Romantismo e em línguas como o inglês, o alemão e o russo, que se caracteri-
zam pela variação do acento silábico, ocorre um retorno à versificação própria dos
cantos e das epopéias populares, isto é, a versificação tônica aliterante. Esse movi-
mento liga-se, de acordo com Kristeva, à necessidade de manifestação das particula-
ridades das línguas nacionais. Nessa medida, ela realça a necessidade de se levar em
conta aquilo que subjaz ao sistema lingüístico, isto é, que diz respeito às bases pulsi-
onais da fonação (1974: 210-211). O diferencial significante (différentielle signifiante),
capaz de articular um dispositivo pulsional, surge, portanto, depois do Romantismo
e do Simbolismo e sucede o pé e o logometro.
mouvement dialectique – matériel et signifiant – infini. C’est dans la pratique que se réa-
lise le procès de la signifiance, puisque la pratique se détermine par ce moment de
pulvérisation de l’unité de la conscience par un dehors non-symbolisé, à partir des con-
tradictions objectives, desquelles le rejet pulsionnel fera jaillir le nouvel objet avec ses
déterminations objectivement existantes dans le dehors matériel” (La révolution du langage
poétique, 1974: 180).
46
No exemplo da língua francesa, a característica marcante de um acento pontu-
ado pela monotonia, sob o revestimento do diferencial significante passa a ser um
sistema melódico que leva instantaneamente à cultura francesa e à exposição que a
psicanalista chama de um ritmo “inconsciente”, “pulsional”, “translingüístico” (1974:
212). Os textos de vanguarda do final do século XIX têm na sua constituição o corpo
pelo qual se expressa toda a sorte de pulsionalidade indispensável ao discurso revo-
lucionário. A alusão ao trabalho da“glote”, outrora referida no trabalho poético de
Mallarmé, é parte integrante do aparelho fonador que viabiliza a renovação ideológi-
ca preconizada pela psicanalista:
Tal é, em suma, a mudança radical sobrevinda nas “letras” a partir
da segunda metade do século passado. Libertos de constrições métri-
cas, os textos dispõem, para formar o processo de significância, de
algumas constrições “naturais” (específicas da própria língua) e i-
nobservadas no uso normativo da linguagem. Poder-se-ia chamá-las
de constrições rítmicas, pois elas manifestam as particularidades se-
mióticas das diferenças sonoras: através das bases pulsionais da fo-
nação, os vestígios distintivos do sistema fonêmico, os deslocamen-
tos, as condensações, as transposições e as repetições articulam uma
rede de sentido constituído de diferenciais fônicos e significantes
1
(A revo-
lução da linguagem poética, 1974: 212-213).
Em A revolução da linguagem poética, Kristeva retoma as observações de Lafor-
gue e Gustave Kahnn, em “Prefácio sobre o verso livre”, no qual eles reconhecem em
Mallarmé o talento poético desinteressado em liberar o verso (cf. nota três, 1974: 213).
Os críticos atribuem à polonesa Marie Krysinska a divulgação do autêntico verso li-
vre no que esse revela de mobilidade, “duração do sentimento evocado” ou da “sen-
sação a traduzir”. Para Kristeva, no entanto, o verdadeiro verso livre é tributário da
crise do verso, que “evidencia tanto as propriedades semióticas virtuais do sistema
fônico de uma língua quanto os arranjos incomuns ou imprevistos dos constituintes
1
“Tel est, en somme, le changement radicale survenu dans les ‘lettres’ à partir de la
deuxième moitié du siècle passé. Libérés des contraintes métriques, les textes disposent,
pour former le procès de la signifiance, de certaines contraintes ‘naturelles’ (spécifiques
au langage lui-même) et inobservables dans l’usage normatif du langage. On pourra les
appeler des contraintes rythmiques puisqu’elles mettent en jeu les particularités sémioti-
ques des différences sonores: à travers les bases pulsionnelles de la phonation, les traits
distinctifs du système phonémique, les déplacements, les condensations, les transposi-
tions et les répétitions articulent un réseau de sens constitué de différentielles phoniques et
signifiantes“ (La révolution du langage poétique, 1974: 212-213).
47
sintáticos
1
” (1974: 213). Nesse sentido, cabe a Mallarmé o início do verdadeiro verso
livre. Essa poesia de tonalidade revolucionária, exercida pelo poeta do final do século
XIX, participa de uma prática significante delimitada por Kristeva. A narração, a me-
talinguagem, a contemplação e o texto também constituem práticas significantes.
Destaca-se, entretanto, aquilo que a psicanalista denomina texto (texte) como prática
significante e corresponde a toda a “experiência de vanguarda, desde o final do sécu-
lo XX, do poeta maldito à esquizofrenia
2
” (1974: 166), na qual não estão em questão
elaborações conceituais voltadas à unificação do seu iminente “sentido”. Segundo a
teórica, a poesia como prática significante do final do século XIX tem a função de
promover um “balanço entre a sociabilidade e a loucura
3
” (1974: 188). É nesse con-
junto epistêmico que privilegia o questionamento, a dialética de base explicitamente
hegeliana, que as noções de acesso ao texto poético se tornam menos flutuantes. Os
dois conceitos aos quais nos referimos são o fenotexto e o genotexto e estão desen-
volvidas em A revolução da linguagem poética.
O genotexto (géno-texte) forma-se a partir dos processos semióticos. Entre eles,
Kristeva destaca os seguintes: “(as pulsões, suas disposições, o recorte que elas im-
primem sobre o corpo, e o sistema ecológico e social que rodeia o organismo: os obje-
tos circundantes, as relações pré-edipianas parentais)
4
” (1974: 83). No que se refere
aos processos semióticos, é importante sublinhar a participação do corpo tanto na sua
materialidade pertencente à constituição do sujeito quanto no seu contato social.
Quanto à análise do dispositivo fonemático, a teórica dá o exemplo da acumulação e
repetição dos fonemas, da rima. No dispositivo melódico, ela localiza a entonação e
ritmo. Kristeva também inclui as disposições dos campos semânticos – todo esse con-
junto corresponde ao acesso ao genotexto. O simbólico também é indispensável para
1
“met en évidence aussi bien les propriétés sémiotiques virtuelles du système phonique
d’une langue, que des agencements inusuels ou imprévus des constituants syntaxiques”
(La révolution du langage poétique, 1974: 213).
2
“l’expérience de l’avant garde, depuis la fin du XXe. siècle, du poète maudit à la schi-
zophrènie” (La révolution du langage poétique, 1974: 166).
3
“balance entre la socialité et la folie” (La révolution du langage poétique, 1974: 188).
4
“(les pulsions, leurs dispositions, le découpage qu’elles impriment sur le corps, et le
système écologique et social qui entourent l’organisme: les objets environnants, les rap-
ports pré-oedipiens aux parents)” (La révolution du langage poétique, 1974: 83).
48
a formação do genotexto, condição que implica a existência do objeto e do sujeito. Na
definição do genotexto fica bastante evidente o seu papel de transportador de energi-
as pulsionais. De forma sucinta, Kristeva expõe a atuação do genotexto dividindo-a
em seis itens:
Dir-se-á que ele é um processo que tende a articular em estruturas e-
fêmeras (lábeis, ameaçadas pelas cargas pulsionais “quanta” mais do
que “marcas”) e não-significantes (dispositivos sem dupla articula-
ção) as seguintes séries: a) as díades pulsionais; b) o continuum cor-
poral e ecológico; c) o organismo social e as estruturas familiares
tradutoras das restrições do modo de produção; d) as matrizes de
enunciação que dão lugar aos “gêneros” do discurso (segundo a his-
tória da literatura), as “estruturas psíquicas” (segundo a psiquiatria
e a psicanálise) ou as diferentes distribuições de protagonistas da
enunciação (segundo a lingüística do discurso no sentido que lhe dá
Jakobson)
1
(A revolução da linguagem poética, 1974: 83-84).
As díades pulsionais, de acordo com Kristeva (1974: 86), constituem pares que
se caracterizam pela sua não disjunção. A teórica reconhece a diferença, a oposição
entre termos como “positivo/negativo”, “pulsão de vida/pulsão de morte”, “afirma-
ção/negação”, mas as díades se formam pela negação dessa oposição e essa recusa
leva à construção de uma identidade. O continuum corporal é uma estrutura dicotô-
mica que atravessa o núcleo pulsional e se choca com a descontinuidade material,
que é marcada por relações de oposições como “alto-baixo”, “bom-mau”, “exterior-
interior” – aspectos que desenham, entre outras funções que Kristeva não explicita, a
geografia, a temporalidade, a intriga. Quanto ao organismo social, ele é dependente
das relações familiares. A matriz da enunciação localiza-se sobre um ponto axial que
recebe o nome de “eu” ou “autor”, podendo estar implícito ou explícito na narrativa.
Tal nomeação significa a projeção do papel paterno na família. Kristeva alude à mo-
bilidade desse ponto, embora reconheça certa fixidez que reside no caráter axial do
1
“On dira qu’il est un procès qui tend à articuler dans des structures éphémères (labiles,
menacées par les charges pulsionnelles, ‘quanta’ plutôt que ‘marques’) et non-
signifiantes (dispositifs sans double articulation) les séries suivantes: a) les dyades pul-
sionnelles; b) le continuum corporel et écologique; c) l’organisme social et les structures
familiales traduisant les contraintes du mode de production; d) les matrices
d’énonciation qui donnent lieu à des ‘genres’ de discours (selon l’histoire de la littératu-
re), à des ‘structures psychiques’ (selon la psychiatrie et la psychanalyse) ou à différents
distributions des protagonistes de l’énonciation (selon la linguistique du discours au
sens de Jakobson)” (La révolution du langage poétique, 1974: 83-84).
49
mesmo. Esse ponto axial, tal como a máscara do teatro grego, é capaz de ocupar “to-
dos os papéis possíveis nas relações interpessoais que são intra e inter-familiares
1
(1974: 87). Já as matrizes de enunciação são resultado de cargas pulsionais (a) sobre
estruturas sociais antecedentes ao sujeito e suas pulsões individuais (b e c). O conflito
entre esses elementos viabiliza algumas simbolizações através de estases, isto é, pe-
quenas fixações desse exercício tenso entre o particular e o universal no qual algo de
diferente, de renovador, surge. O genotexto, nessa medida, atua na base pulsio-
nal/simbólica dessa mudança e a psicanalista chama a atenção para a subjacência
dessa noção.
O fenotexto (phéno-texte), por sua vez, é o que atua na superfície. Não se refere
a um processo (procès), como é o caso do genotexto, e sim a uma estrutura que segue
as regras da comunicação, razão pela qual Kristeva o aproxima das bases da gramáti-
ca gerativa. Está na formação do fenotexto a existência de um sujeito da enunciação e
de um destinatário (1974: 84). É através do fenotexto que temos acesso à ruptura, à
renovação no campo lingüístico proporcionada pela mobilidade das pulsões que atu-
am no genotexto. Sem a gramaticalidade própria dessa noção, as expressões poéticas
inovadoras, capazes de interpretar esteticamente a historicidade de um período, seri-
am inacessíveis aos leitores da contemporaneidade.
Em suma, o fenotexto e genotexto compõem o processo da significância (procès
de la signifiance) e é nessa base que se estrutura qualquer funcionamento significante,
inclusive para realizações que não se valem do material lingüístico (1974: 84). Tais re-
lações de dependência remetem à articulação de base que está contida na codepen-
dência do semiótico/simbólico. A proposta kristevaniana, portanto, novamente refle-
te acerca da copresença da sexualidade/pensamento.
1
“tous les rôles possibles dans les relations interpersonnelles qui sont intra et inter-
familiales” (La révolution du langage poétique, 1974: 87).
50
1.4 A negatividade e a rejeição
Em A revolução da linguagem poética, Kristeva retoma o pensamento hegeliano a
respeito da noção de negatividade
1
para articulá-lo, posteriormente, com a teoria
freudiana no que essa tem de semelhante. Com base nas idéias de Hegel, a teórica
distingue a negatividade da negação (Négation) (1974: 101). Segundo Kristeva, a nega-
tividade, embora pertencente a um sistema teórico, “é a mediação, a ultrapassagem
de ‘abstrações puras’ que são o ser e o nada, sua supressão no concreto onde os dois
não passam de momentos
2
” (1974: 101). A negatividade produz uma lei móbil, que é
capaz de dissolver e ligar os “termos estáticos da abstração pura”, sendo, em conse-
qüência disso, possível refletir sobre categorias do sistema abstrato, tais como “o u-
niversal e o singular”, “o indeterminado”, “a qualidade e a quantidade”, “a negação
e a afirmação” (1974: 101). Não se trata, portanto, de uma negação dupla, pois a nega-
tividade proposta por Hegel não se inclui nesse processo, ela participa de uma articu-
lação que visa ao funcionamento do processo de negação: “Ela é a impulsão lógica
que pode se apresentar sob as teses da negação e da negação da negação, mas que
não se identifica com elas, pois é outra coisa diferente dessas teses: o funcionamento
lógico do movimento que as produz
3
” (1974: 101).
1
Conforme o Dicionário Hegel, de Michael Inwood, “o vernáculo alemão para ‘negação’ é
Verneinung, de vernein (responder Não (nein) a uma pergunta, ou contradizer uma asser-
ção).” No entanto, Hegel prefere o termo Negation, oriundo do latim negare (negar) e su-
as formas derivadas, por exemplo a negatividade. Afastando-se do sentido corrente em
que aplicamos a negação, por exemplo, “A rosa não é vermelha” ou –a, -6 em contraste
com +a, +6, a negação/negatividade, segundo Hegel, não se liga a um juízo ou proposi-
ção negativa, pois: “Hegel discute juízos positivos e negativos, mas não está muito inte-
ressado na negação como uma característica de juízos. Tal como as noções de contradi-
ção, inferência e do próprio juízo, a negação é primordialmente uma característica de
conceitos e de coisas. Mas Negation e Negativität retêm a fragrância ativa da negação judi-
catória. Coisas e conceitos não são simplesmente excludentes; eles negam-se ativa e mu-
tuamente” (Dicionário Hegel, 1997: 238).
2
“est la médiatisation, le dépassement des ‘abstrations pures’ que sont l’être et le néant,
leur suppression dans le concret où tous les deux ne sont que des moments” (La révolu-
tion du langage poétique, 1974: 101).
3
“Elle est l’impulsion logique qui peut se présenter sous les thèses de la négation et de la
négation de la négation, mais qui ne s‘identifie pas avec elles, puisqu’elle est autre chose
que ces thèses: le fonctionnement logique du mouvement les produisant” (La révolution
du langage poétique, 1974: 101).
51
Kristeva reconhece na negatividade um conceito intra-especulativo, o qual de-
sencadeia construções reconhecidamente hegelianas, as do “real” e do “conceitual”,
que ela não desdobra, mas justapõe a elementos da ordem objetiva e subjetiva. Eclo-
dindo desse encadeamento/desencadeamento entre o particular e o universal, a ne-
gatividade se configura uma representação que a psicanalista denomina de “ordem
ética” (l’ordre éthique). O fato de a negatividade constituir essa “objetividade própria”
(l’objectivité même) implica a formação do “sujeito livre” (sujet libre). Kristeva reconhe-
ce a elaboração de uma ética a partir do conceito de negatividade, mas faz questão de
distingui-la de uma ética de matriz hegeliana voltada ao cumprimento de leis. Apoi-
ada no capítulo “A religião estética”, da Fenomenologia do espírito, a teórica busca na
ética hegeliana, por conseguinte na negatividade, a sua ligação com a estética, com a
arte. Em seguida, Kristeva recorta um trecho da Ciência da lógica, “Enciclopédia das
ciências filosóficas”, no qual reconhece “a definição lógica dessa negatividade
1
(1974: 102), que é a liberdade: “‘A forma’, a mais elevada do nada (tomada) por ela
mesma é a liberdade, mas ela é a negatividade na medida em que ela se aprofunda em
si mesma até a mais elevada intensidade, e que é ela própria também afirmação
2
’”
(1974: 102-103).
Cabe, nessa medida, à negatividade a produção do que Kristeva denomina de
sujeito em processo (sujet en procès) (1974: 103). Trata-se de um sujeito que se forma a
partir da lei dessa negatividade, o que significa que ele sofre a ação de uma realidade
objetiva, além de ser atravessado pelos movimentos de negação de um papel fixo na
cadeia significante. Em decorrência dessa objetividade móbil, o sujeito caracteriza-se
pelo seu não-assujeitamento, pela sua liberdade
3
. O sujeito em processo constitui
uma noção que a teórica menciona reiteradamente. Em Polylogue, de 1997 (pp. 55-
1
“la définition logique de cette négativité” (La révolution du langage poétique, 1974: 102).
2
La forme’ la plus haute du néant (pris) pour lui-même est la liberté, mais elle est la néga-
tivité en tant qu’elle s’approfondit en elle-même jusqu’à plus haute intensité, et qu’elle
est elle-même aussi affirmation’” (La révolution du langage poétique, 1974: 102-103).
3
Megan Becker-Leckrone, no artigo “Objects, objetives and objectivity”, observa que a teo-
ria de Kristeva não oferece modelos a serem aplicados na análise de textos, pois Kristeva
vale-se de exemplos literários que fogem a uma pretensa “objetividade” teórica. Apesar
disso, segundo Leckrone, é comum, em discussões literárias ou até mesmo em trabalhos
acadêmicos, o mero emprego de fragmentos conceituais formulados por Kristeva.
52
106), Kristeva dedica um artigo ao sujeito em processo, de modo a aproximá-lo do
texto contestador de Antonin Artaud. Chama-se “O sujeito em processo” (Le sujet en
procès) onde realça nas glossolalias e nas “éructations” artaudianas exemplos notá-
veis de dissolução da sintaxe
1
. No artigo sobre Artaud, há uma série de trechos de
seus poemas que ilustram a questão do corpo fragmentado (morcelé) – prática que
podemos associar à construção da negatividade no que esta apresenta de mobilidade
na sua constituição em permanente movimento. A psicanalista seleciona para a e-
xemplificação do sujeito em processo trechos de Notes pour une Lettre aux Balinais :
...a rotação
vertical
de um corpo desde sempre constituído,
e que num estado além da consciência
não cessa de endurecer e de se tornar mais pesado
pela opacidade de sua espessura e de sua massa
O critério é o chumbo inerte da contradição plena de um estado puro
de distanciamento, de desinteresse, ferozes, que não permitem nada
sentir de nenhuma idéia, sentimento, percepção
2
(Artaud apud Kris-
teva, Polylogue, 1977: 81).
Este é apenas um dos vários textos de Artaud que ilustra a maleabilidade ine-
rente ao sujeito em processo, que aparece em artigo de Kristeva de 1998, no qual re-
toma brevemente alguns pontos centrais de sua complexa teoria. Em “Europhilie, eu-
rophobie”, presente em L’avenir d’une révolte (1998), o sujeito em processo ganha rele-
vo no papel do escritor, pois esse é chamado à função de incitador da liberdade: “O
escritor é um ‘sujeito em processo’, um carnaval, uma polifonia, sem reconciliação
possível, uma revolta permanente
3
” (1998: 92).
1
Veremos no final desse capítulo o quanto o corpo será necessário para a escrita de Artaud
e também enfatizamos como Kristeva se vale dessa escrita corpórea para o engendramen-
to de sua teoria.
2
‘“ ...la rotation/verticale/d’un corps depuis toujours constitué,/ et qui dans un état au-delà
de la conscience/ ne cesse de se durcir et de s’appesantir/par l’opacité de son épaisseur
et de sa masse/Le critérium est le plomb inerte de la contradiction plénière d’un pur état
de détachement, de désintéressement, féroces, qui permettent de ne rien sentir d’aucune
idée, sentiment, perception/ ‘“(Artaud apud Kristeva, Polylogue, 1977: 81).
3
“l’écrivain est un ‘sujet en procès’, un carnaval, une polyphonie, sans réconciliation possi-
ble, une révolte permanente” (L’avenir d’une révolte, 1998: 92).
53
A consolidação do caráter revoltado do sujeito em processo, e por conseguinte
da negatividade que atua na sua estrutura, assemelha-se ao que já se esboçava na
construção do semiótico, no qual a chora semiótica abria espaço para se pensar a via-
bilidade da dissolução das últimas certezas. É por essa via que Kristeva interpreta a
negatividade hegeliana em A revolução da linguagem poética: “a negatividade hegelia-
na impede a fixação do tético, desordena a doxa, e permite que se introduza nela essa
motilidade semiótica que a prepara e a excede
1
” (1974: 105). Segundo a autora, a ne-
gatividade desenvolvida por Hegel, em A fenomenologia do espírito, é a construção que
mais se assemelha à chora semiótica e evoca a chora semiótica enquanto esta se consti-
tui de cargas energéticas e do funcionamento dessas cargas, ou seja, enquanto ela se
apresenta como “força” (Kraft). Kristeva observa (1974: 105) nessa negatividade a de-
finição do quarto termo do processo dialético.
Em A revolução da linguagem poética (1974: 108), a autora insiste na diferença en-
tre a construção da negatividade hegeliana e a negação interior ao julgamento, pois,
segundo ela, o ponto de Hegel consiste na formação de um lugar transversal ao en-
tendimento (Verstand) kantiano. Apesar de diferenciá-la da negação desenvolvida
vinte anos antes por Kant, em Crítica da razão pura, Kristeva considera o termo nega-
tividade ainda “bastante próximo” da construção kantiana que encerra a negação no
sentido da oposição real e da oposição lógica. Por isso, em determinado momento da
sua construção teórica, com vistas às constantes rupturas e renovações, ela abandona
a negatividade hegeliana em prol de uma terminologia mais próxima da teoria da
pulsionalidade presente na base da renovação que propugna o seguinte:
O termo de dispêndio ou rejeição é, dessa forma, mais apto a especifi-
car o movimento de contradições materiais que engendram a função
semiótica: as implicações pulsionais e geralmente analíticas que ele
contém o tornam sem dúvida preferível à negatividade
2
(A revolução
da linguagem poética, 1974: 109).
1
“la négativité hégélienne empêche la fixation du thétique, bouscule la doxa, et permet
d’introduire en elle toute cette motilité sémiotique que la prépare et qui l’excède” (La
révolution du langage poétique, 1974: 105).
2
“Le terme de dépense ou de rejet est alors plus apte à spécifier ce mouvement des contradic-
tions matérielles qui engendrent la fonction sémiotique: les implications pulsionnelles et
généralement analytiques qu’il contient, le rendent sans doute préférable à celui de néga-
tivité” (La révolution du langage poétique, 1974: 109).
54
O conceito dispêndio (dépense) leva-nos, inevitavelmente, ao uso que Georges
Bataille dele faz em A parte maldita (La part maudite). Subjaz um discurso que eviden-
cia as relações entre o corpo e as bases sociais, ideológicas que o delimitam. Todos os
fragmentos a respeito de Bataille, que mostraremos no final deste capítulo, ecoam na
apreensão da noção da negatividade – essa que não é mais exclusivamente colada ao
pensamento hegeliano. Embora reconheça a contribuição inestimável de Hegel com a
formulação da negatividade, Kristeva a desloca sutilmente para o campo semântico
que privilegia a carga pulsional e corpórea trabalhada por Bataille. Na definição mais
acabada da negatividade, o dispêndio – que aparecerá sob a forma de excedente (sur-
plus) no item destinado às alusões a Georges Bataille que localizaremos no texto de
Kristeva – provoca uma ligação na qual o “excesso” sobressai. Esse “excesso” – que
surge intensamente destacado em sua tese de doutorado pelo itálico que a autora lhe
oferece – reaparece não mais como pano de fundo da sua teoria poética, mas atua na
formação da noção que estrutura o texto como revolta, sempre em estado de ruptura
com as possíveis cristalizações do sentido: “O termo negatividade, assim, na acepção que
lhe damos, não tem outra função que indicar esse processo excedendo o sujeito significante pa-
ra ligá-lo às leis das lutas objetivas da natureza e da sociedade
1
” (1974: 110).
A opção pelo termo rejeição (rejet) no lugar de negatividade baseia-se no fato
de que esse leva ao equívoco de se pensar o processo em questão como próprio (ori-
ginado) da consciência lógica do sujeito. Como Kristeva está em busca de constru-
ções que se relacionem com o meio circundante e a natureza, o termo “rejeição” torna
mais acessível a consolidação de algo na constituição do sujeito que o atravessa do
que “negatividade”, na medida em que se caracteriza pela “objetividade de contra-
dições da natureza e da sociedade
2
” (1974: 110).
Em A revolução da linguagem poética, a partir de Frege (1974: 111), a mudança de
terminologia ganha espessura e a rejeição (rejet) se impõe. Segundo a teórica, Frege
1
Le terme de négativité n’a donc, dans l’acception que nous lui donnons, pas d’autre fonction que
d’indiquer ce procès excédant le sujet signifiant pour le lier aux lois des luttes objectives de la
nature et de la société” (La révolution du langage poétique, 1974: 110).
2
“l’objectivi des contradictions de la nature et de la société” (La révolution du langage poéti-
55
elaborou um complexo estatuto da negação lógica para marcar a sua inutilidade,
uma vez que “só há negação fora da consciência do sujeito, mas esse exterior não e-
xiste porque o pensamento e a consciência são indestrutíveis
1
” (1974: 111). A partir
daí, Kristeva encontrará na teoria freudiana o recurso para pensar a sua concepção de
negatividade. Somente na teoria freudiana do inconsciente é possível a existência de
uma negação exterior ao julgamento. Dessa forma, Kristeva encontra no artigo de
Freud, “Da denegação” (Verneinung), o espaço para a negatividade que necessita do
inconsciente. Sob essa perspectiva, ela investiga a negação interna ao julgamento e a
localiza, com base em Frege, ligada à função de predicação, ou seja, a negação interna
ao julgamento só ocorre no interior da “função sintático-tética”. A leitura de Do nas-
cimento à fala, de Spitz, chama a atenção para um ponto importante a respeito da a-
quisição da negação nos bebês: ela se manifesta por volta do décimo-quinto mês de
vida. Esse processo de aquisição da linguagem coincide com o que Kristeva classifica
de o “apogeu” do estádio do espelho lacaniano e a formação de uma “linguagem ho-
lofrástica”, na qual já se encontram algumas “ligações sintáticas”. A indicação dessa
estrutura de negação passa pelo corpo do bebê e pelo corpo da mãe, sustenta a psica-
nalista: “A cavidade oral é o órgão perceptivo que mais cedo se desenvolve e assegu-
ra para o lactente o primeiro contato com o exterior, mas também com o outro
2
(1974: 140). A cavidade oral, portanto, promove um contato de fusão do bebê com o
corpo materno, participando de um momento-chave para a formação do futuro ser
falante. Kristeva considera esse contato fusional com o corpo materno na ordem do
“biologicamente indispensável
1
” (1974: 140). Recuperando as noções de Spitz, Kriste-
va sublinha o corpo como mediador dessa história arcaica da negação no sujeito, uma
vez que, em Do nascimento à fala, Spitz observa que a negação tem início pela rotação
da cabeça do bebê, a partir do sexto mês de vida: “nessa idade a rotação da cabeça
que, 1974: 110).
1
“il n’y a pas de négation qu’en dehors de la conscience du sujet, mais ce dehors n’existe
pas puisque la pensée et la conscience sont indestructibles” (La révolution du langage poé-
tique, 1974: 111).
2
“La cavité orale est l’organe perceptif le plus tôt développé et qui assure chez le nourris-
son le premier contact avec l’extérieur mais aussi avec l’autre (La révolution du langage
poétique, 1974: 140).
56
indica uma recusa antes de apresentar um “não” abstrato, “semântico”, no 15º mês
2
(1974: 140).
Kristeva constata que, em A revolução da linguagem poética, a formação da nega-
ção no sujeito se confunde com a função simbólica, a qual já faz parte de uma função
sintática. Nesse sentido, não há avanço em relação à teoria de Frege: trata-se apenas
de uma confirmação do que ele já havia proposto, pois a negação assume uma “vari-
ante da predicação interna ao julgamento
3
” (1974: 113). Para sair da encruzilhada,
Kristeva investiga na teoria freudiana aspectos que antecedem o caráter de estatici-
dade presente na sintaxe e do qual ela pretende, se possível, afastar-se. Diversamente
da fixidez dos “termos-símbolos” (termes-symboles) constituintes da sintaxe, ela reco-
nhece na maleabilidade da “gestualidade pré-verbal” (gestualité pré-verbal) uma saída
para a reflexão acerca da negatividade (1974: 113). Na ausência da figura materna, a
criança a constrói na imaginação. No exercício do aparecimento/desaparecimento da
figura materna – o jogo do Fort-Da - o lá e o aqui freudianos – reside a “gestualidade
pré-verbal” almejada por Kristeva:
É nesse nível de “operações concretas” prévias à aquisição da lin-
guagem que Freud percebe, no “Fort-Da” do lactente, a pulsão da re-
jeição, (...) que indica uma operação biológica de base – aquela da ci-
são, da separação, da divisão – ao mesmo tempo que opera a relação
do corpo sempre já em divisão com a estrutura familiar e o conti-
nuum natural, como uma relação de rejeição
4
(A revolução da lingua-
gem poética, 1974: 113).
Kelly Oliver, no artigo “The prodigal child”, em Reading Kristeva: Unraveling
the Double-bind (1993: 18-47), encontra nesse processo de negatividade kristevania-
1
“biologiquement indispensable” (La révolution du langage poétique, 1974: 140).
2
”à cet âge la rotation de la tête indique le refus avant de présenter un ‘non’ abstrait,
‘sémantique’, au 15º mois” (La révolution du langage poétique, 1974: 140).
3
“une variante de la prédication interne au jugement” (La révolution du langage poétique,
1974: 113).
4
“C’est à ce niveau d’opérations concrètes’ préalable à l’acquisition du language que Freud
aperçoit, dans le ‘Fort-Da’ du nourrisson, la pulsion du rejet, (...) qui indique une opéra-
tion biologique de base – celle de la scission, de la séparation, de la division – en même
temps qu’elle opère le rapport du corps toujours déjà divisant avec la structure familiale
et le continuum naturel, comme un rapport de rejet (La révolution du langage poétique,
1974: 113).
57
no, que preconiza a terminologia “rejeição”, um contraponto importante às teorias de
Lacan: “Enquanto Lacan observa uma negatividade no Fort/Da que funciona por
metonímia, a qual marca os inícios da simbolização, Kristeva observa uma negativi-
dade que é primariamente gestual e cinética
1
” (1993: 44). Essa diferença coaduna-se
com os passos teóricos que seguimos da própria Kristeva, assim como os percorre-
mos. O ponto de Oliver sustenta-se na afirmação de que a teoria de Kristeva desafia
um aspecto central e tradicional da psicanálise não apenas lacaniana, mas que se an-
cora na base dos fundamentos da psicanálise freudiana, qual seja, o da negação su-
bordinada primordialmente ao corpo da mãe. Devemos ter em mente, no entanto,
que o corpo materno não atua de modo isolado na formação do futuro ser falante. Foi
por este motivo que realçamos a importância histórica da fábula do pai assassinado
em Totem e tabu para a aquisição da linguagem. Não nos interessa aquele aspecto da
crítica feminista concentrado em vestígios obsessivos pelo corpo materno. No que se
refere à análise quantitativa dessa temática, há uma profusão de exemplos nos diver-
sos textos teóricos e ficcionais de Kristeva, evidência que repercute, evidentemente,
sobre a esfera qualitativa. Por outro lado, o desafio que Oliver percebe na construção
teórica de Kristeva é o abalo que esta causa num dos fundamentos da identidade na-
cional francesa
2
– na negação. É em função dessa perspectiva da rejeição (rejet) que a
espessura conferida ao “feminino” – corpo feminino – transfigura o que poderia ser
exagero em transgressão.
1
“While Lacan sees a negativity in the Fort/Da that functions through metonymy that
marks the beginnings of symbolization, Kristeva sees a negativity that is still primarily
gesturel and kinetic” (Unraveling Double-bind 1993: 44).
2
Referimo-nos, inicialmente, ao pensamento hegeliano a respeito da negatividade, este que
é retomado e questionado por Kristeva em La révolution du langage poétique. Há também o
retrospecto das idéias hegelianas que influenciaram a psicanálise francesa, sobretudo a
de base lacaniana, assim como desenvolve Roudinesco em Jacques Lacan: esboço de uma
vida, história de um sistema de pensamento, no qual pensadores como Alexandre Koyré,
Jean Wahl e Alexandre Kojève fornecem uma feição nova às idéias hegelianas que de iní-
cio circulavam de forma clandestina ou marginal por meio de poetas como Mallarmé e
Breton ou de autodidatas como Proudhon (1994: 108). Ainda sobre o campo da nega-
ção/negatividade, destacamos os apontamentos de André Green em Le travail du négatif,
onde o psicanalista chama a atenção para as diversas facetas assumidas pela negação, a-
lém de retomar a ligação entre a Fenomenologia do espírito e o pensamento freudiano, de
acordo com os artigos “Pour introduire le gatif en psychanalyse” (1993, p. 9-26) e “He-
gel e Freud: éléments pour une comparaison qui ne va pas de soi” (1993: 43-72).
58
Outra das abordagens que leva à mudança de terminologia da “negatividade”
diz respeito à fase anal, que antecede o conflito edipiano. A psicanalista baseia-se no
artigo de Freud, “Da denegação” (Verneinung), que postula o recalcamento do prazer,
das pulsões eróticas no processo de simbolização. A interpretação de Kristeva desse
artigo trabalha no intuito de resgatar certo prazer que é recalcado pela função simbó-
lica, um prazer que subjaz à função simbólica, pois no próprio artigo, ao afirmar que
o recalcamento não é total, Freud abre espaço para se refletir sobre essa espécie de
“excesso”. Trata-se de um prazer, conforme Kristeva sustenta em A revolução da lin-
guagem poética (1974: 136), anterior à função simbólica, mas que atua nessa função,
necessitando para tanto da intervenção do prazer oral e o acréscimo da pulsão anal.
O retorno dessa pulsão no simbólico tem a capacidade de “corromper” a função sim-
bólica e acionar o que ela chama de “dispositivo semiótico” (dispositif sémiotique) –
mecanismo que se desdobra na “chora móbil” (chora mobile) (1974: 136). Kristeva, por-
tanto, insere o excesso característico da analidade no centro da liberdade discursiva
do sujeito. Segundo a psicanalista, o processo do sujeito é o processo de sua lingua-
gem, condição que implica a função simbólica e por conseguinte a “reativação dessa
analidade” (réactivation de cette analité) (1974: 136). Para marcar a relevância dessa
função impregnada de corporalidade, a autora retoma o desenvolvimento da fase
anal, caracterizado sobretudo pelo domínio da musculatura
1
:
Trata-se de uma fase que encerra todo um período extenso e funda-
mental para a libido infantil, o período chamado de sadismo domi-
nante antes do início do Édipo (um sadismo oral, muscular, uretral e
anal). Sob todas essas formas das quais a anal é a última a ser recal-
cada e nesse sentido a mais importante, se manifesta uma erotização
dos esfíncteres glótico, uretral e anal tanto quanto do sistema cinéti-
co, produzido por impulsos de cargas energéticas. Essas pulsões a-
travessam os esfíncteres e suscitam prazer no mesmo momento em
que se destacam do corpo substâncias que antes lhe pertenceram e
que foram rejeitadas para fora. Prazer agudo que coincide com uma
59
Os textos de Ducasse, de Jarry e de Artaud – a psicanalista reconhece a exis-
tência de outros, apesar de citar apenas alguns autores – exemplificam o retorno des-
sa analidade, pois explicitam a ação da função anal sobre o corpo do sujeito na medi-
da em que subvertem a função simbólica (1974: 136). Em Lautréamont (Chants de
Maldoror), a rejeição se manifesta pela expressiva quantidade de enunciados negati-
vos; em Mallarmé, a rejeição se apóia nas distorções sintáticas de “Un coup de dés”.
Tais textos permitem a manifestação do sujeito em processo, esse que depende de
circunstâncias históricas e biográficas – e tem por função remodelar determinada es-
trutura significante, dispositivo significante (dispositif signifiant), de forma a propor
uma representação alternativa, ou seja, uma “outra relação com os objetos da nature-
za, com os aparelhos sociais e com o próprio corpo
1
” (1974: 116, grifo nosso). A respei-
to desse sujeito que promove o dispêndio (la dépense), Kristeva o distingue daquele
que ocupa um lugar pontual, o que poderia ser confundido com “um sujeito da e-
nunciação” (sujet de l’énunciation). Tal sujeito se manifesta, portanto, através da estru-
tura do texto, permitindo a fruição da chora. Algumas metáforas surgem para melhor
compreendê-lo: “Uma música, uma arquitetura são metáforas que designam melhor
essa ritmicidade transversal do que as categorias gramaticais que ela redistribui
2
”.
Assenta-se, portanto, na formulação da negatividade em rejeição (rejet) a copresença
sexualidade/pensamento: “a rejeição (...) é da ordem heterogênea, pois é, na perspec-
oral, musculaire, urétral et anal). Sous toutes ces formes dont l’anale est la dernière à être
refoulée et en ce sens la plus importante, se manifeste une érotisation des sphincters glot-
tique, urétral et anal aussi bien que du système kinésique, produite par de poussées des
charges énergétiques. Ces pulsions traversent les sphincters, et suscitent le plaisir au
moment même où se détachent du corps des substances lui ayant appartenu et désormais
rejetées en dehors. Plaisir aigu coïncidant avec une perte, avec la séparation du corps et
l’isolation d’objets hors de lui” (La révolution du langage poétique, 1974: 137).
1
“un autre rapport aux objets naturels, aux appareils sociaux et au corps propre” (La révolu-
tion du langage poétique, 1974: 116, grifo nosso).
2
“Une musique, une architecture sont des métaphores qui désignent mieux cette rythmicité
transversale que les catégories grammaticales qu’elle redistribue” (La révolution du lan-
gage poétique, 1974: 116).
60
tiva freudiana, pulsional, o que significa que ela é uma articulação entre o ‘psíquico’
e o ‘somático
1
’” (1974: 147).
Ao lado da liberdade criativa que o conceito do sujeito em processo instiga,
Kristeva – após o percurso hegeliano da construção do conceito de negatividade –
parte para o que considera uma espécie de desenvolvimento do tema. Nessa medida,
tece algumas considerações acerca da “preocupação existencial” (souci existentiel)
proposta por Heidegger. Em A revolução da linguagem poética, o souci heideggeriano
“arranja até as divisões mais caras à metafísica existencial, o ‘corpo’ e o ‘espírito’ uni-
ficados no ‘homem’
2
” (1974: 118). Aqui está a procura da teórica pela copresença se-
xualidade/pensamento que extrapola as perquirições na doutrina freudiana. Kriste-
va vasculha no texto de Heidegger – Ser e tempo – vestígios dessa unificação entre
corpo e espírito e o encontra no empréstimo que o filósofo faz de uma fábula latina,
na qual o homem surge como criação de Júpiter, da Terra e do Sol, além de mencio-
nar a última carta de Sêneca (1974: 118) e localiza no interesse do filósofo pelo cor-
po/espírito algo de tonalidade anacrônica. É possível perceber na interpretação da
psicanalista o relevo que confere à permanência do corpo, nas suas formas humanas,
a despeito da interceptação das formas míticas, as quais se caracterizam, curiosamen-
te, também pelas formas humanas:
Observa-se que a proeza da articulação estrutural fenomenológica é
revestida de um valor semântico e de uma ideologia mítica antropomór-
ficos e, mais do que isso, de um mito datando da extenuação desse
sistema significante, o período romano pré-cristão
3
(A revolução da
linguagem poética, 1974: 118, grifos nossos).
A diferença da corporalidade heideggeriana que Kristeva questiona está no
apelo cronologicamente regressivo do qual o filósofo se vale para a formação do seu
1
“Le rejet (...) est d’ordre hétérogène puisqu’il est, dans la perspective freudienne, pulsion-
nel, ce qui veut dire qu’il est une charnière entre le ‘psychique’ et le ‘somatique’” (La
révolution du langage poétique, 1974: 147).
2
“il agence jusqu’aux divisions les plus chères à la métaphysique existentielle, ‘le corps’ et
‘l’esprit’ unifiés dans l’ ‘homme’” (La révolution du langage poétique, 1974: 118).
3
“On voit que la prouesse de l’articulation structurelle phénoménologique est revêtue d’une
valeur sémantique et d’une idéologie mythique anthropomorphes et, qui plus est, d’un mythe
datant d’exténuation de ce système signifiant, la période romaine pré-chrétienne” (La
révolution du langage poétique, 1974: 118, grifos nossos).
61
souci fenomenológico. A teórica explica a dependência das idéias de Heidegger à
proposta de Hegel. Essa, que respeita a cronologia, encontra no sujeito livre uma
constituição contínua da democracia grega até à religião revelada e está ligada aos
acontecimentos da Revolução Francesa, de acordo com as idéias de Kristeva que bus-
cam a imbricação entre o social/teórico. O exercício de Heidegger com a souci feno-
menológica, entretanto, promove um “curto-circuito” da história e da história do co-
nhecimento (1974: 118). O elemento mítico dá margem para a formação de um abrigo
religioso desse sujeito angustiado, algo da ordem de uma angústia ou transcendência
consideradas pela teórica como “inacessíveis” (1974: 119). Nessa medida, a prática da
negatividade torna-se domesticada (apprivoisée); no lugar da negatividade atua uma
ética “reparadora, securitária e médica” (1974: 119).
Se existe uma crítica ao souci proposto por Heidegger, há, em contrapartida, o
reconhecimento da psicanalista de conceitos do existencialismo úteis para as refle-
xões da psicanálise. A respeito da noção de desejo, amplamente explorada pelos es-
tudos psicanalíticos e no caminho de elaborações conceituais pós-fenomenológicas,
Kristeva encontra na teoria de Hegel as bases para o seu desenvolvimento, conforme
defende em A revolução da linguagem poética (1974: 119-120). De acordo com Kristeva,
o termo desejo, inicialmente, se impôs como da ordem de uma “negatividade”. Em
seguida, cita várias referências lacanianas a respeito da noção do desejo, e entre elas a
que vincula, equivocadamente, o pensamento do psicanalista à instauração da alteri-
dade, qual seja, “O desejo é o desejo do Outro” – “Le désir est le désir de l’Autre”
(1974: 120). Subjaz a essa afirmação o legado hegeliano do qual Kristeva reproduz a
noção de desejo que inspira Lacan: “Para Hegel o desejo (Begierde) é um dos momen-
tos que constitui a noção da consciência de si: ele é, portanto, uma particularização e
uma concretização da negatividade
1
” (1974: 122). Ela refaz o trajeto da formação do
desejo segundo Hegel:
A consciência de si começa a se articular quando perde o objeto – o
outro – em relação ao qual ela se formula e que é a “substância sim-
ples e independente”, fundamento da certeza sensível. Ela o nega pa-
1
“Chez Hegel le désir (Begierde) est l’un des moments qui constituent la notion de conscience
de soi: il est donc une particularisation et une concrétisation de la négativité” (La révolu-
tion du langage poétique, 1974: 122).
62
ra retornar a si, e só o perde como substância simples para realizar
sua própria unidade consigo mesma
1
(A revolução da linguagem poéti-
ca, 1974: 122).
No artigo freudiano “Da denegação”, Kristeva reconhece as etapas desenvol-
vidas no discurso hegeliano. Como conseqüência, “a consciência de si é segura de si
mesma, somente pela supressão desse Outro que se apresenta a ela como via inde-
pendente; ela é desejo
2
” (1974: 122). Um contraponto à posição hegeliana, e seu eleva-
do teor de abstração, está numa alusão que a psicanalista faz ao pensamento de Feu-
erbach (“Crítica da filosofia de Hegel” e “A consciência de si”, em Manifestos filosófi-
cos), em que o filósofo reverte a dinâmica de objetividade em subjetividade. Kristeva
denomina essa subjetivação de “antropomorfização” (anthropomorphisation) da nega-
tividade hegeliana (1974: 122-127). Tal procedimento, segundo ela, desloca o ponto
de atenção da teologia para o domínio social, servindo de base para os filósofos co-
munistas da segunda metade do século XIX. Além disso, a qualidade antropomórfica
instaurada por Feuerbach é uma das heranças para a doutrina marxista, algo que o-
pera no sentido da subjetivação da negatividade hegeliana (1974: 126). Afastando-se
das determinações do Estado, Marx propõe uma reversão do “sujeito” e sua relação
com o “desejo”. Kristeva resume assim a noção de desejo marxista: “é o sujeito do de-
sejo (incompleto, sofredor) que se tornará o agente real da família, das relações civis e
do Estado
3
” (1974: 125). A lógica marxista não dá espaço para a constituição do sujei-
to em processo (sujet en procès), pois, como observa a teórica, a respeito de Marx: “Na
máquina de contradições e de conflitos sociais, de produção e de classe, o homem
1
“La conscience de soi commence à s’articuler lorsqu’elle perd l’objet – l’autre – par rapport
auquel elle se pose et qui est la ‘substance simple et indépendante’, fondement de la cer-
titude sensible. Elle le nie pour revenir à soi, et ne le perd que comme substance simple
pour réaliser sa propre unité avec elle-même”(La révolution du langage poétique, 1974: 122).
2
“la conscience de soi est certaine de soi-même, seulement par la suppression de cet autre
qui se présente à elle comme vie indépendante; elle est désir (La révolution du langage poé-
tique, 1974: 122).
3
“c’est le sujet du désir (manquant, souffrant) qui deviendra l’agent réel de la famille, des
relations civiles et de l’État” (La révolution du langage poétique 1974: 125).
63
permanece uma unidade intocável, em conflito com os outros, mas nunca em conflito
‘consigo’ e permanece, em um sentido, neutro
1
” (1974: 127).
Kristeva reconhece, nos movimentos sócio-políticos que têm início no final do
século XIX, a necessidade de mudança nas estruturas próprias do Estado e até mes-
mo nas relações entre os homens, visto que é intrínseco ao homem a sociabilidade:
“O homem é sempre o homem social
2
” (1974: 128). Apesar de considerar idéias de
Feuerbach e de Marx, as quais efetuam a antropomorfização em detrimento de um
suposto apagamento da subjetividade em função de um interesse voltado à objetivi-
dade, a teórica afirma a influência das idéias hegelianas. Segundo Kristeva, o discur-
so que eleva o homem a uma posição de destaque não passa de um outro aspecto da
negatividade hegeliana:
Mas não se falará de outro aspecto que a filosofia especulativa havia
tocado: da negativização da unidade, do conflito que ameaça a uni-
dade, da cisão do sujeito unitário no processo de sua constituição-
desconstituição, do momento que dissolve a sociedade questionando
a unidade do sujeito
3
(A revolução da linguagem poética, 1974: 128).
É na lógica da negatividade e do seu contexto posterior, portanto, que Kristeva
inclui os textos de Lautréamont e de Mallarmé. Nessa medida, percorre as inquieta-
ções dos poetas, as quais se revelam um tanto distantes da luta revolucionária que
poderia tê-los motivado a um comportamento menos individualizado. Referimo-nos
aos comportamentos desses poetas em relação à vida política e social de seu tempo.
A psicanalista comenta em A revolução da linguagem poética (1974: 405), não sem ironi-
a, a descrição que Mallarmé faz dos movimentos de sua gata Lilith ou de sua ativi-
dade como secretário de uma “dama elegante”. A respeito de Lautréamont, oferece-
1
“Dans la machine des contradictions et des conflits sociaux, de production et de classe,
l’homme reste une unité intouchable, en conflit avec d’autres mais jamais conflit ‘lui-
même’ et il reste, en un sens, neutre” (La révolution du langage poétique, 1974: 127).
2
“l’homme est toujours l’homme social” (La révolution du langage poétique, 1974: 128).
3
“Mais on ne parlera pas de l’autre aspect que la philosophie spéculative avait touché: de la
négativation de l’unité, du conflit menaçant l’unité, de la scission du sujet unitaire dans
le procès de sa constitution-déconstitution, du moment dissolvant la société et mettant en
jeu l’unité du sujet” (La révolution du langage poétique, 1974: 128).
64
nos ainda uma informação não menos prática: os pequenos detalhes na área das fi-
nanças que “entretinham” o poeta no contato com o editor ou com o banqueiro.
Os acontecimentos históricos como a catástrofe nacional de 1870 ou o caso de
Panamá (1888-1889) contribuíram, conforme Kristeva escreve em A revolução da lin-
guagem poética (1974: 430), para a instauração da descrença em Mallarmé. A fragilida-
de do sistema social fez com que o poeta se desinteressasse pelas questões da atuali-
dade. O interesse de Mallarmé pela língua inglesa é visto como um “momento” da
negatividade (moment de la négativité), o qual “reenvia não a um conjunto étnico, lin-
güístico e cultural, mas antes a um descentramento da língua nacional – da língua
materna
1
” (1974: 540).
O estrangeirismo de Mallarmé ilustra mais uma das faces da negatividade en-
gendrada por Kristeva via Hegel e Freud. Junto a essa atitude individualizada do po-
eta, ela localiza (1974: 373) mudanças no campo macro – o do Estado. Segundo Kris-
teva, o projeto esperado por Hegel e depois por Lênin, no qual, depois da Revolução
de 1789, o Estado seriam as massas tornadas sujeitos, não tem êxito. O Estado tam-
bém não é a representação de um “pai autoritário”, ou seja, as figuras despóticas de
Napoleão, Stálin ou Hitler não configuram para Kristeva o Estado. Desde o contexto
de Mallarmé, o Estado aparece como formação de substituição (formation substitutive),
tal como acontece na lógica fetichista presente na psicanálise. Assim, o Estado, se-
gundo Kristeva, “é um fetiche” (1974: 373). E o texto, que participa do que a psicana-
lista frisa com aspas de “formação sócio-econômica” (formation socio-économique), par-
ticipa, extensivamente, dessa mesma lógica de substituição: “Lautréamont e Mallar-
mé não procuram o povo, é a lógica de estruturas familiares e estatais e seus valores
adjacentes que eles problematizam
2
” (1974: 373).
1
“renvoie non pas à un ensemble ethnique, linguistique et culturel, mais plutôt à un décen-
trement de la langue nationale – de la langue maternelle” (La révolution du langage poéti-
que, 1974: 540).
2
“Lautréamont et Mallarmé ne cherchent pas le peuple, c’est la logique des structures fami-
liales et étatiques et de leurs valeurs adjacentes qui leur font problème” (La révolution du
langage poétique, 1974: 373).
65
1.5 O sagrado
A idéia de sagrado aparece contígua à de mistério e o caminho para ela passa
pela organização estatal segundo Marx. Kristeva vale-se da aplicação da teoria dos
conjuntos que Marx utiliza para a análise do Estado, na qual o pensador frustra as i-
lusões de um Estado com a característica de abarcamento da totalidade das vontades
individuais. Conforme a teoria dos conjuntos, cada indivíduo ou organismo social
responde por um conjunto, e o Estado deveria ser o conjunto de todos os conjuntos.
De acordo com Kristeva, o pensador reconhece a impossibilidade de um Estado co-
mo conjunto de todos os conjuntos, assim como não existe o conjunto de todos os
conjuntos na própria teoria dos conjuntos. A influência das idéias marxistas, e aqui
está o ponto em que a teórica dá um passo em direção ao sagrado, reside no fato de
propor, ao mesmo em que se reconhece a impossibilidade dos conjuntos totais, a e-
xistência do infinito. A postulação desse infinito remete ao processo da significância e
para tanto necessita do funcionamento do inconsciente e da linguagem poética para a
sua concretização. Dessa forma, não cabe à consciência de classe, que participa dos
conjuntos finitos, o encargo de um infinito-suporte, mas a teórica acredita no funcio-
namento de prática para a consolidação desse “infinito”:
para que uma prática social funcione como um infinito-suporte da
lógica social dos conjuntos, é preciso que esta prática se marque, por
uma ruptura, num outro significante – na qualidade de “desejo” (no
sentido de W. Reich), ou por um outro estatuto, mas sempre radi-
calmente diferente daquele do código estatal e das estruturas de
produção que ele gera. Este é precisamente o papel do “sagrado” e
da prática textual rompendo com preocupações sociais mas que, ob-
jetivamente, sustentam recursivamente o sistema estatal e lhes são
co-extensivos
1
” (A revolução da linguagem poética, 1974: 380).
Os textos do final do século XIX constituem, assim, para Kristeva, conjuntos de
infinitos-suportes (1974: 381). O papel da arte, nessa medida, que tem no mistério o
1
“pour qu’une pratique sociale fonctionne comme infini-support de la logique sociale en-
sembliste, il faut que cette pratique se marque, par une rupture, dans un autre signifiant
– en tant que ‘désir’ (au sens de W. Reich) ou par un autre statut, mais toujours radi-
calement distinct de celui du code étatique et de ces structures de production qu’il gère.
C’est précisément le rôle du ‘sacré’ et de la pratique textuelle en rupture de préoccupa-
tions sociales mais qui, objectivement, soutiennent récursivement le système étatique et
lui sont co-extensifs” (La révolution du langage poétique, 1974: 380).
66
denominador comum, é o de manifestar, assegurar a expressão dos sujeitos que estão
isolados sob o domínio estatal. Isso é o que faz Mallarmé na medida em que critica as
instituições sociais (as mais diversas, desde os cultos populares até à República bur-
guesa) estabelecidas na base do poder e não na base da lei como um princípio simbó-
lico aberto aos mais variados sistemas significantes (1974: 435). A contestação de Mal-
larmé, conforme Kristeva, diz respeito à “abolição do gozo” (l’abolition de la jouissan-
ce) - situação que leva à formulação de que “as sociedades atuais são necrópoles
1
(1974: 435). Kristeva investiga o mistério mallarmeano a partir do funcionamento ma-
leável da atuação da chora no sistema semiótico. Esse procedimento liga à temática do
mistério trabalhada pelo poeta explorações que dizem respeito ao “enigma femini-
no”. A teórica reconhece que privilegia aspectos da poesia de Mallarmé do feminino
e do mistério, os quais também já foram investigados pela crítica desse poeta; entre-
tanto Kristeva se descola do caso individual para refletir a propósito do papel do fe-
minino no que esse toca às estruturas sociais mais diversificadas.
Kristeva observa o caminho do mistério como prática significante. Dessa for-
ma, a acepção de mistério a que ela recorre alude aos cultos secretos de iniciação aos
quais temos acesso pelos textos gregos. Em A revolução da linguagem poética, seu inte-
resse é voltado para a história das religiões, por isso a psicanalista também entra no
campo dos estudos antropológicos preocupados com a formação das sociedades que
são reconhecidas pela sua selvageria. Kristeva menciona o trabalho de Geza Roheim,
Psicanálise e antropologia, que se ocupa das sociedades australianas e a relação de so-
frimento do filho na experiência de separação de sua mãe de forma a entrar no mun-
do simbólico pela prática da circuncisão (1974: 474). Outra perspectiva da qual a teó-
rica se vale é a de Lévi-Strauss, em As estruturas elementares do parentesco, em que há
inclusão de heranças maternas e paternas, mas em que a estrutura conserva a refe-
rência paterna no que se refere à transmissão do nome da família (1974: 456). Trata-se
de um hábito que se mantém até os dias de hoje. A lógica subjacente a esses e a ou-
tros espaços de iniciação é do jogo de dois “poderes”: “um, representado pela mãe, se
liga ao que chamamos de ‘o semiótico’ e concerne à economia pulsional do sujeito; o
1
“les sociétés actuelles sont des nécropoles” (La révolution du langage poétique, 1974: 435).
67
outro, representado pelos homens, se liga àquilo que chamamos ‘o simbólico’ e con-
cerne à inserção do sujeito nas leis do grupo social
1
” (1974: 475). Sobre o poder semi-
ótico, Kristeva o reconhece no estudo de fundo psicanalítico de Roheim. Quanto ao
poder simbólico, a teórica o vê representado na teoria de Lévi-Strauss.
O jogo de poderes entre o semiótico e o simbólico – o feminino e o masculino –
é enriquecido quando insere o pensamento hegeliano na tentativa do estabelecimento
de uma confrontação, que ela denomina de sintética e idealista, do sujeito com o seu
meio. Retornando à Fenomenologia do espírito, a psicanalista define o estatuto do mis-
tério para Hegel:
para ele, os “mistérios” são uma tentativa de unificação do “Si” e da
“essência” e parece bem que a condição política para a sua efetuação
seja dada por uma organização política (um “Estado”) que não se a-
presenta somente como um princípio de autoridade, mas que solicite
a seus sujeitos que se identifiquem com ele em sua singularidade
2
(A revolução da linguagem poética, 1974: 476).
A respeito dessa citação que toca na acepção dos mistérios para o pensamento
hegeliano, a psicanalista oferece em nota de final de página outras informações que a
definem com mais propriedade. Segundo ela, a Grécia, no entendimento hegeliano,
assim como a Mesopotâmia e o Egito, dispõem de cultos religiosos, os quais são tam-
bém expressões estéticas. Isso é distinto do Estado tirânico, no qual não há celebração
dos mistérios, mas apenas “o culto de uma potência luminosa” (le culte d’une puissance
lumineuse) (1974: 476). Por intermédio de Hegel, Kristeva põe em cena a importância
das celebrações para a instauração dos mistérios e, por conseguinte, das relações so-
ciais. É no contexto democrático que a teórica localiza os mistérios de Ísis e de Osíris
no Egito (2000 a.C), pois eles decorrem da democratização que viabilizou a participa-
1
“l’un représenté par la mère, tient à ce que nous avons appelé “le sémiotique” et concerne
l’économie pulsionnelle du sujet; l’autre, représenté par les hommes, tient à ce que nous
avons appelé “le symbolique” et concerne l’insertion du sujet dans les lois de son groupe
social” (La révolution du langage poétique, 1974: 475).
2
“pour lui, les ‘mystères’ sont une tentative d’unification du ‘Soi’ et de l’ ‘essence’, et il
semble bien que la condition politique de leur effectuation soit donnée par une organisa-
tion politique (un ‘État’) qui ne présente pas seulement comme un principe d’autorité,
mais qui sollicite ses sujets s’identifier avec lui dans leur singularité” (La révolution du
langage poétique, 1974: 476).
68
ção do povo na ressurreição de Osíris
1
(1974: 477). De forma análoga, os mistérios de
Elêusis, os quais repercutem sobre a filosofia platônica, localizam-se na transição da
tirania para a república.
Em A revolução da linguagem poética, Kristeva chama a atenção para a celebra-
ção dos mistérios porque essa prática permite a inserção dos sujeitos no sistema polí-
tico, o que implica: “assumir a lei dessa ordem, e se confundir com ela, nela identifi-
cando os diversos aspectos da experiência significante individual
2
” (1974: 477). Esta-
belecem-se, portanto, duas condições para a identificação do sujeito à lei estatal. A
primeira é a lei real, que a teórica também convenciona de fálica e a outra é uma fun-
ção que ela denomina de genital. Esta diz respeito à mulher em alguns papéis como a
mãe, a irmã, a esposa. Chegamos, nessa medida, ao corpo feminino na sua condição
de mistério e via para o político. Na função genital, Kristeva inclui os papéis femini-
nos como a maternidade, de suma relevância, pois contém o destino das sociedades
humanas. Enquanto o papel masculino está delimitado pela função de regulamenta-
ção que exerce sobre o simbólico (Kristeva alude à riqueza da documentação antro-
pológica e das teorias, como a de Lévi-Strauss), a psicanalista observa, entretanto,
considerável descaso a respeito da representação da figura feminina:
Os homens tomam assim um poder social – fálico – do qual eles “sa-
bem” inconscientemente que depende da genitalidade na qual o po-
der fálico é excedido, onde o simbólico se abre em direção à biologia
e à história – em direção à morte, na qual é a fruição da mãe que re-
presenta este excesso
3
(A revolução da linguagem poética, 1974: 457).
Kristeva atribui à arte (especifica nesse aspecto a poesia, a música e o teatro) e
a seu vínculo com o feminino o estreitamento de uma ligação da ordem “genética” ao
mistério. Para tanto, volta ao Estado grego, de forma a questionar seu universalismo
1
Kristeva utiliza a obra de S. Mayassis, Mystères et initiations de l’Égypte ancienne, para essas
informações a respeito do Egito.
2
“assumer la loi de cet ordre, et de se confondre avec elle en y identifiant les divers aspects
de l’expérience signifiante individuelle” (La révolution du langage poétique 1974: 477).
3
“Les hommes prennent ainsi un pouvoir social – phallique – dont ils ‘savent’ inconsciem-
ment qu’il dépend de la génitalité dans lequelle la puissance phallique est excédée, où le
symbolique s’ouvre vers la biologie et l’histoire – vers la mort, où c’est la jouissance de la
mère qui représente cet excès” (La révolution du langage poétique, 1974: 457).
69
em meio a uma série de excluídos: cidadãos pobres, não-cidadãos, escravos e mulhe-
res. Durante a época clássica e republicana na Grécia, a arte atuava entre o mistério e
o poder estatal, cabendo, portanto, à arte (em que ela também inclui a literatura) o
questionamento da clivagem entre o que Kristeva denomina de “representação das
relações de reproduções” (trata-se do mistério) e a “representação das relações de
produção” (aspectos que dizem respeito às leis, ao Estado) (1974: 461). O choque en-
tre essas representações encontra no discurso literário (desdobrado em tragédia, co-
média, epopéia e hino) espaço para a expressão do sujeito em processo que “escapa à
superstição misteriosa que Demócrito combatia em Platão, e se desenvolve numa
pluralidade ficcional que é a própria marca de um sujeito em processo
1
” (1974: 461).
Eis uma noção central desenvolvida por Kristeva entretecida pelo feminino/mistério
e o simbólico/Estado.
A separação entre o poder político e o poder religioso só se configura com o
Estado burguês (1974: 462). Possivelmente esteja nessa ruptura o problema que Kris-
teva observa acerca da posição da mulher no código social. Trata-se de um problema
que, segundo a psicanalista (1974: 462), não se esgota sobre o que ela classifica de
uma “misteriosa discussão sobre o gozo feminino (senão como conseqüência e por
derivação), mas profunda, social e simbolicamente, sobre a discussão da reprodução
e do gozo que nela se articula
2
” (1974: 462). Kristeva enfatiza nesse processo a mulher
que é excluída da atividade simbólica e perde, portanto, a representatividade social.
Todavia, esse apagamento não compreende todas as mulheres. Trata-se de uma ex-
clusão que incide em especial sobre as mulheres-esposas, as parceiras sexuais, aque-
las que geram filhos. Aqui se desenrola o impacto das relações de reprodução sobre o
processo significante. Enquanto a lei simbólica, fálica, se mostra pelo cumprimento
das suas determinações, o poder genital se esconde sob o véu do mistério. Kristeva,
entretanto, credita ao feminino a constatação de efeitos concretos. O exemplo que ela
1
“il échappe à la superstition mystérieuse que Démocrite combattait contre Platon, et se
déploie dans une pluralité fictionnelle qui est la marque même d’un sujet en procès” (La
révolution du langage poétique, 1974: 461).
2
“une mystérieuse question de la jouissance féminine (sinon comme conséquence et par
dérivation), mais profondément, socialement et symboliquement, sur la question de la
reproduction et de la jouissance qui s’y articule” (La révolution du langage poétique, 1974:
70
nos oferece é o de Ísis, mãe, esposa e irmã, aquela que ressuscita Osíris. Por meio de
mistérios arcaicos, a psicanalista enreda-nos na malha dialética do feminino “inaces-
sível”: “Os mistérios mesopotâmicos, egípcios, mas também gregos, atribuem o po-
der de ressurreição à mulher mãe-irmã-esposa e parecem representar a ressurreição
como um retorno à união com o corpo feminino
1
” (1974: 485, grifos nossos).
A compreensão do corpo feminino, potencialmente gerador da vida, encontra
na religião a sua formação. Kristeva volta-se para a relação básica dos relacionamen-
tos humanos, os quais se resumem em trocas de reprodução e de produção. Baseada
em textos da tradição judaica, a psicanalista realça a figura do pai morto pelo filho.
Na medida em que a religião substitui os cultos pagãos, atenuam-se os efeitos pro-
duzidos outrora pelo corpo da mãe. O aspecto semiótico, misterioso envolto na res-
surreição de Osíris via Ísis (o corpo feminino), cede espaço à ressurreição do corpo
masculino, simbólico. Na religião cristã, o filho retorna, ressuscita no corpo do pai.
Segundo Kristeva, “o ato sexual do mistério pagão (pai-mãe, filho-mãe) é substituído
pela união simbólica (pai-filho) no qual o papel da mãe é apagado, ou melhor, libe-
rado pelo filho que ressuscita assim no pai
2
” (1974: 487). Permanece a essência do
mistério da ressurreição, entretanto o corpo materno desaparece de cena. Kristeva i-
lustra a permanência do mistério da reprodução pelo ensaio freudiano Moisés e o mo-
noteísmo, no qual se destaca o papel simbólico paterno. É por intermédio deste texto
que ela reflete sobre a ausência do corpo feminino no que se refere ao silêncio repre-
sentado na figura da Virgem Maria. Embora relegada a uma condição de apagamen-
to, a “Mãe-Virgem
3
” (la Mère-Vierge) marca um espaço que diz respeito à absorção do
462).
1
“Les mystères mésopotamiens, égyptiens, mais aussi grecs, attribuent le pouvoir résurrec-
tionnel à la femme mère-soeur-épouse et semblent représenter la résurrection comme un
retour à l’union avec le corps féminin” (La révolution du langage poétique, 1974: 485, grifos
nossos).
2
“l’acte sexuel du mystère païen (père-mère, fils-mère) est remplacé par l’union symbolique
(père-fils) où le rôle de la mère est effacé ou, mieux, relevé par le fils qui réssuscite ainsi
dans le père” (La révolution du langage poétique, 1974: 487).
3
Sobre o tema da maternidade ligado a aspectos religiosos, consultamos o artigo “Situating
Kristeva differently”, de Diane Jonte-Pace, no qual a crítica aproxima esses dois temas
com base na característica chave de ausência que os une: a ausência. A maternidade, no
entanto, para Kristeva, conforme veremos em nosso terceiro capítulo, está relacionada ao
ato de produção, de dar corpo a algo.
71
gozo no simbólico. Estamos, novamente, na codependência do semiótico e do simbó-
lico:
Assim, através dessa absorção do gozo no simbólico, o poder que o
Pai simbólico representava, se transforma em uma possibilidade de
ressurreição do filho, na qual se pode ver a metáfora da contestação
e da renovação permanente das estruturas sociais de produção
1
(A
revolução da linguagem poética, 1974: 487).
A concepção hegeliana acerca do mistério e suas relações com o feminino que
a psicanalista vasculha em A fenomenologia do espírito veicula a representação da mãe
(no que essa remete ao princípio feminino da nutrição) em oposição ao “poder do
‘povo ético’“ (pouvoir du “peuple éthique”) (1974: 486). Subjaz a essa composição hege-
liana a lei que é própria da constituição do Estado. A lei social, de acordo com a psi-
canalista (1974: 489), conforme condições naturais e econômicas, incide sobre a so-
brevivência da sociedade, de forma que é definida como “a articulação entre a ‘natu-
reza’ e a ‘cultura’”
2
(1974: 488). O papel da mulher está consideravelmente localizado
no corpo, pois a função da figura feminina da sociedade estatal é a de procriação, se-
gundo Kristeva: “a mulher também representa esta articulação entre o biológico e o
social
3
” (1974: 488-489). A teórica, entretanto, localiza na constituição do feminino um
traço de “estrangeiridade”, esboçado no exemplo da mulher que não é relacionada
imediatamente ao poder da procriação, sendo assim localizada às margens da manu-
tenção estatal – “a mulher que delira” (la femme qui délire). A ilustração na figura das
bacantes, que Kristeva recolhe da mitologia grega, recebe uma capa de atualização a
partir das histéricas observadas por Freud. É a respeito dessa mulher, a quem a psi-
canalista chama, ironicamente, de produtora da harmonia do código social, que são
tecidas algumas reflexões sobre a condição feminina mais ampla (ele estende essa
condição a todas às mulheres) e suas relações com a sociedade estatal. A mulher des-
1
“Alors, par cette absorption de la jouissance dans le symbolique, le pouvoir que le Père
symbolique représentait, se transforme en une possibilité de résurrection du fils, dans la-
quelle on peut voir la métaphore même de la contestation et du renouvellement perma-
nent des structures sociales de production” (La révolution du langage poétique, 1974: 487).
2
“la charnière de la ‘nature’ à la ‘culture’(La révolution du langage poétique, 1974: 488).
3
“la femme représente aussi cette charnière entre le biologique et le social” (La révolution du
langage poétique, 1974: 488-489).
72
provida de razão, a mulher capaz de delirar, portanto, ameaça o código social e ins-
taura a loucura, sendo capaz tanto de gerar quanto de interromper o ciclo da vida.
Kristeva escolhe em A revolução da linguagem poética um fragmento da Fenome-
nologia do espírito no qual o filósofo se refere ao “delírio indomado” com “consciência
de si” e o aproxima de “mulheres exaltadas” (1974: 489). Esta observação, que está na
base dos mistérios pagãos, a psicanalista estende a todas religiões. O princípio reside
na mulher como uma figura inacessível, proibida à racionalização, ou seja, sem aces-
so ao simbólico:
Essa posição, que é a de Hegel no fim do capítulo sobre a religião re-
velada, o cristianismo, se pode interpretar assim: existe religião con-
tanto que a relação com a mãe permaneça uma relação de fusão, con-
tanto que o corpo da mãe não seja problematizado como objeto de dis-
curso, contanto que o gozo dessa fusão não seja submetido à lógica
1
(A revolução da linguagem poética, 1974: 489-490, grifos nossos).
Com base nas idéias hegelianas, Kristeva atribui ao corpo feminino, em parte
impermeável à esfera da razão e reconhecido pelo atributo do prazer e também pela
capacidade reprodutiva, a característica de tenacidade do poder. Todos os fatores
mencionados acerca do corpo feminino impedem (Kristeva usa o verbo frear) ao su-
jeito um acesso que seria da ordem do saber absoluto. Ela realça o fato de que é no
corpo feminino, no prazer advindo dele e na sua potencialidade reprodutiva que se
“refugia” a transcendência: “Édipo fica cego depois de ter tocado na mãe, é melhor
que ele não veja mais, é essa cegueira que reinstaura o mistério e que assegura ao
mesmo tempo a vida futura do Estado
2
” (1974: 490).
Kristeva constrói esta transcendência por meio de um caminho mítico que
sublinha a prática do castigo resultado da infração de um tabu. Observamos a este
respeito semelhanças com a construção freudiana do terc6 -lida,ção da linguag,te
73
em que as obras freudianas vão cronologicamente conduzindo a Totem e tabu e ao
conseqüente respeito ao corpo paterno. Para a exploração da transcendência, a psica-
nalista vale-se do mito de Édipo, que transgrediu a lei ao desrespeitar o corpo mater-
no. Excetuando o ponto de que Édipo se torna vítima das circunstâncias do destino,
as duas narrativas trabalham com a punição em relação direta com o desrespeito ao
corpo, uma vez que esse corpo viola a interdição ao incesto. Observamos que sob es-
sa estrutura corpórea a reflexão acerca do corpo deixa de levar em conta apenas a es-
trutura física do humano em desconexão com a linguagem, ou o pensamento. Refe-
rimo-nos à copresença da sexualidade/pensamento via análise da transcendência, ou
pelo feminino (corpo feminino). É o corpo morto de Jocasta (ela está fora das breves
referências que a psicanalista desenvolve a respeito de Édipo no ponto sobre a trans-
cendência), morto mas outrora pleno de vida e sexualizado, que conduz à cegueira
de Édipo. A transcendência referida por Kristeva, como parte de uma nota sobre as
observações hegelinas, constitui a impossibilidade de um feminino fusional, por isso
este poder materno encontra refúgio no simbólico: “na autoridade do Estado sob to-
das as suas formas
1
” (1974: 490). Em contrapartida, o sujeito falante não se firma a-
penas como um instrumento de organização e manutenção da lei; ele atua no âmbito
do simbólico, da linguagem, salvaguardando vestígios da influência das bacantes na
sua linguagem:
ele fala a mesma língua que a horda de mulheres em delírio que o
levam à morte, mas ele faz disso um dispositivo semiótico, um canto
– como Dionísio ou Orfeu; sua comunidade ilegal é a das mênades,
mas ele lhe dá uma linguagem. Dessa forma, entre o delírio e o código
social jurídico, este canto representa a emergência da lei na articulação
entre a natureza e sociedade, a loucura e a lógica (...)
2
(A revolução da
linguagem poética, 1974: 490).
1
“dans l’autorité de l’État sous toutes ses formes” (La révolution du langage poétique, 1974:
490).
2
“il parle la même langue que la horde des femmes en délire qui le mettent à mort, mais il
en fait un dispositif sémiotique, un chant – comme Dyonisos ou Orphée; sa communauté
illégale est celle des ménades mais il lui donne un langage. Ainsi, entre le délire et le code
social juridique, ce chant représente l’émergence de la loi à la charnière de la nature et de la
société, de la folie et de la logique (...)” (La révolution du langage poétique, 1974: 490).
74
A linguagem, que tem influência na força imagética e expressiva das mulheres
delirantes, serve para incluir no sistema lingüístico a loucura. O código social engen-
drado pela teórica, portanto, se mostra atravessado pela fala truncada da psicose.
Trata-se de uma linguagem carregada de fruição (jouissance) feminina delirante, dife-
rente da comunicação corrente. Por isso, tal linguagem, segundo Kristeva, em A revo-
lução da linguagem poética (1974: 491), encontra espaço no hermetismo e no ocultismo
para a sua consolidação, uma vez que ambos constituem práticas de questionamento
do poder eclesiástico e, por conseguinte, geram instantâneas reações contra a norma-
tividade da linguagem. Na mesma linha do ocultismo e do hermetismo, a psicanalis-
ta enquadra os movimentos de vanguarda do século XIX. Tais movimentos promo-
vem a redistribuição de componentes próprios da fonética e da gramática da lingua-
gem, implicando contato com “mecanismos inconscientes da língua e tendendo a
constituir um novo código universal
1
” (1974: 491). A transcendência da qual a psica-
nalista nos fala no processo de irrupção da fruição na linguagem não é absolutamen-
te reportada ao pré-sígnico ou ao exterior do signo. Kristeva faz questão de defini-la
nos moldes da trans-sociabilidade e da trans-historicidade – procedimento coerente
com a constituição do genotexto. O processo de transversalidade do feminino, da fru-
ição, é mais evidente nas vanguardas do século XIX do que no ocultismo ou no her-
metismo. As vanguardas trabalharam de forma explícita as questões referentes à se-
xualidade, o que levou a um reconhecimento do conteúdo pulsional na esfera da lin-
guagem.
Ao retomar historicamente o contexto das vanguardas do século XIX, Kristeva
observa nos antecedentes da burguesia a consolidação de uma base familiar herdada
da Idade Média que o Estado burguês precisava desmantelar. Por isso a crítica dos
poetas vanguardas incide sobre a sexualidade e, extensivamente, sobre a estrutura
familiar. É nesse terreno que se cria a psicanálise, e Kristeva realça a contemporanei-
dade entre o Freud preocupado com a histeria, de 1895 e Mallarmé, autor de La musi-
que et les lettres. Nesse estágio de desenvolvimento social, cabe ao Estado a organiza-
ção das forças produtivas e toda a sorte de funcionamento econômico. Todavia, a
1
“mécanismes inconscients de la langue et tend à constituer un nouveau code universel” (La
75
psicanalista lança a pergunta: “Quem assegura a preservação do mistério?
1
” (1974:
492) e ela mesma oferece uma saída: trata-se da arte. Compete, portanto, à arte a ma-
nutenção da fruição, do mistério. Mas ela procede “nas margens da lei estatal e ver-
bal, como seu segredo ou sua anomalia, e não quer nada saber sobre esta cumplici-
dade misteriosa
2
” (1974: 493).
Os poemas de Lautréamont e de Mallarmé repercutem sobre uma matriz que
a psicanalista denomina de “social-subjetiva-simbólica” (sociale-subjective-symbolique),
com a finalidade de modificá-la, nas palavras da teórica: “reformulá-la” (1974: 493).
Les chants de Maldoror, de Lautréamont, retomados pela autora em A revolução
da linguagem poética, representam uma das possibilidades de mudança, na qual a teó-
rica constata a influência da doutrina cristã na imagem de um filho que traz à cena
um caráter negativo, assassino e até mesmo satânico. Os Cantos de Maldoror, segundo
Kristeva, participam, no que toca à figura do filho voltado para o mal, das mesmas
intenções que podemos encontrar em poemas de Charles Baudelaire ou de Edgar Al-
lan Poe. Quanto à mãe, a psicanalista a eleva ao status de “suporte da célula famili-
ar”, tal como induz o Canto Segundo de Lautréamont. Todavia, a psicanalista também
a localiza no papel de oprimida por um pai insano, na medida em que lhe confere ad-
jetivos depreciativos tais como “apagada” e “submissa” pela interferência de um pai,
enlouquecido que é réplica (père-réplique) de um “Criador grotesco” (Créateur grotes-
que) (1974: 493). Nessa medida, a mãe dos cantos lautreamonianos encontra apoio no
filho, caracterizado pela revolta contra o Criador.
São diferentes, segundo Kristeva, as reformulações advindas dos escritos de
Mallarmé. A família, que aparece em constante processo de fragmentação para Lau-
tréamont, ganha espaço central para Mallarmé, uma vez que nela se desenvolve o
mistério articulador das inovações gramaticais sugeridas pelo poeta. No universo
mallarmeano, a psicanalista designa dois componentes, os quais representam o mis-
tério inacessível a qualquer significado, quais sejam, o gozo e a mulher. Se temos a-
révolution du langage poétique, 1974: 491).
1
“Qui assure ce maintien du mystère?” (La révolution du langage poétique, 1974: 492).
2
“dans les marges de la loi étatique et verbale, comme son secret ou son anomalie, et ne
veut rien savoir de cette complicité mystérieuse” (La révolution du langage poétique, 1974:
76
cesso à musicalidade de seus poemas, é porque, em certa medida, somos tocados pe-
la magicidade da transcendência misteriosa de base feminina, pulsional; todavia esse
processo não é exterior ao signo. Nesse sentido, ao sublinhar a musicalidade presente
nos poemas de Mallarmé, Kristeva, prudentemente, marca a transversalidade que ca-
racteriza a irrupção do feminino no simbólico: “Somente a música nas letras, o jogo
hermético, devem sugerir, de viés, ritmicamente, a possibilidade dessa fruição
1
(1974: 494) .
1.6 Mallarmé
A concepção do corpo feminino em poemas de Mallarmé, segundo a análise
de Kristeva em A revolução da linguagem poética, atua diretamente sobre a matriz só-
cio-simbólica-subjetiva. Diversamente da representação lautreamoniana acerca do
feminino, ancorada no rebaixamento deste em prol da força protetora do filho revol-
tado contra o pai desmedido, o feminino para Mallarmé constitui uma espécie de a-
77
(morphophonémique) e sintático. Kristeva faculta ao poeta a organização de uma nova
ritmicidade textual sobre a base de distinções acústico-pulsionais. A psicanalista ob-
serva no texto do poeta certa repetição e distribuição de potencialidades fônicas e
semânticas que recebem do poeta um novo arranjo capaz de modificar as antigas es-
truturas de significação (1974: 221). A respeito da ultrapassagem de limites do código
fonemático, que ela também denomina de morfofonêmico, Kristeva a condensa em
dois movimentos. Ao primeiro, aproxima o exemplo das crianças em fase de apren-
dizagem da língua, momento em que elas esboçam uma riqueza de sons (Kristeva
também inclui aí os sons não-lingüísticos). Trata-se de um estado por ela denomina-
do de pré-fonemático, no sentido de que falta à criança a aquisição dos sons da lín-
gua. Assim a autora descreve os passos dessa ultrapassagem:
A freqüência aumentada de tal ou tal fonema, ou a acumulação de
fonemas de um mesmo grupo, ou o deslizamento entre fonemas de
grupos vizinhos, produzem um efeito estranho aos hábitos da língua
natural e tendem a se aproximar não de um fonetismo universal, englo-
bando todas as línguas, mas de um estado pré-fonemático
1
(A revolu-
ção da linguagem poética, 1974: 221).
O outro aspecto da ultrapassagem do código fonemático está na existência dos
semas que constituem cada um desses fonemas, o que leva ao deslocamento dos
morfemas ou lexemas e à semantização do fonema, que constitui, conforme Kristeva,
uma constelação semântica. Este funcionamento desenvolve-se em duas etapas. Na
primeira, ocorre um esvaziamento do caráter fonemático do fonema, o que implica
aproximação com a fonética e, por conseguinte, com o corpo articulador (corps articu-
lant). A psicanalista desdobra esse corpo primeiramente em aparelho articulatório
(appareil articulatoire) e, com a inclusão das pulsões, o denomina de “conjunto corpo-
ral” (ensemble corporel) (1974: 222). A segunda etapa consiste na utilização do que foi
negado na anterior; vale-se, portanto, do caráter distintivo, dos sons da língua – da
quement, la possibilité de cette jouissance” (La révolution du langage poétique, 1974: 494).
1
“la fréquence augmentée de tel ou tel phonème, ou l’accumulation de phonèmes d’un
même groupe, ou le glissement entre phonèmes de groupes voisins, produisent un effet
étranger aux habitudes de la langue naturelle et tendent à s’approcher, non pas d’un
phonétisme universel, englobant toutes les langues, mais d’un état pré-phonématique” (La
révolution du langage poétique, 1974: 221).
78
fonemática. Kristeva resume o conjunto desse funcionamento com base nas funções
corpóreas:
O funcionamento misto desses dois mecanismos abre o uso normati-
vo da liguagem de um lado em direção ao corpo e à chora semiótica
subjacentes e recalcados; de outro lado, em direção a múltiplos des-
locamentos e condensações que produzem uma semântica fortemente
ambivalente senão poliforme. Dir-se-á então que, num texto, os sons da
linguagem são mais que de fonemas. (...) os fonemas retomam aquilo
que os sons perderam ao se tornarem sons de uma língua dada: eles
retomam a topografia do corpo que lá se reproduziu
1
(A revolução da
linguagem poética, 1974: 222).
Kristeva sublinha as possibilidades semânticas desse funcionamento, mas ele-
gemos, a partir de sua análise, em primeiro plano a materialidade corpórea que via-
biliza essa abertura de sentidos. Cabe à ação do corpo – o corpo como mediador de
uma noção cara à teórica: referimo-nos aos diferenciais significantes (différentielles
significantes). Ela afirma tê-los evocado em Recherches pour une sémanalyse, no qual os
diferenciais constituem os “elementos ou grupo de elementos fonêmico-fonéticos”
cuja organização não é da mesma ordem do fenotexto, tal qual ocorre com morfemas
ou lexemas (1974: 222). Na sua tese de doutorado, Kristeva oferece aos diferenciais
significantes algo diverso de uma comparação com fonemas: “Os diferenciais signifi-
cantes são, portanto, mais do que fonemas
2
”, uma vez que permitem ao fenotexto
formações diversas, as quais ela chama de transgramaticais (e até mesmo de agrama-
ticais)
3
(1974: 223).
1
“Le fonctionnement mixte de ces deux mécanismes ouvre l’usage normatif du langage
d’une part vers le corps et le chora sémiotique sous-jacents et refoulés, d’autre part vers
de multiples déplacements et condensations que produisent une sémantique fortement am-
bivalente sinon polyphorme. On dira donc que, dans un texte, les sons du langage sont plus
que des phonèmes. (...) les phonèmes reprennent ce que les sons ont perdu en devenant
sons d’une langue donné: ils reprennent la topographie du corps qui s’y reproduit” (La
révolution du langage poétique, 1974: 222).
2
“Les différentielles signifiantes sont donc plus que des phonèmes“ (La révolution du langage
poétique, 1974: 223).
3
A respeito dos diferenciais significantes, a psicanalista os aproxima das posssilidades infi-
nitas que dizem respeito à transgramaticalidade, essa que é dependente da linguagem
(assim como vimos na formação do genotexto); entretanto, a teórica – nesse ponto locali-
zado – relaciona a transgramaticalidade à agramaticalidade. Tal aproximação com uma
espécie de recusa da gramática parece romper com o jogo das modalidades lingüísticas,
se levarmos em conta o estatuto do fenotexto e a sintaxe decorrente dele. Poderemos, no
entanto, considerar que a psicanalista liga, imediatamente, as transformações morfo-
79
O que nos interessa, na retomada das estruturas lingüísticas, é a atenção dada
ao corpo. Após o desenvolvimento das estruturas técnicas que participam do jogo
poético criador mallarmeano, Kristeva localiza o poeta na mesma linha daqueles que
analisaremos no final deste capítulo, ou seja, o poeta em questão traz à tona um cor-
po material à escrita que será também desenvolvido por escritores como Artaud, Ba-
taille, e por psicanalistas como Reich e Green: “Entre os poetas de seu tempo, Mal-
larmé é um daqueles que indicaram mais claramente o papel ‘corporal’, trans-
simbólico dos sons da linguagem
1
” (1974: 226).
A temática do corpo à qual os escritores supracitados recorrem para a constru-
ção de seus textos, no caso específico dos poetas, trabalha inclusive com o corpo do
leitor, dado que este é solicitado a articular, a movimentar seu próprio aparelho fo-
nador no momento do contato com o texto. Em sua tese, Kristeva recorta um trecho
de Mots anglais, no qual Mallarmé entra em contato com a musicalidade da lingua-
gem – fato que ela aproxima convenientemente da estrutura corpórea: “Mallarmé ca-
racteriza nas suas Mots anglais os diferentes ‘sons’ da linguagem em relação ao fun-
cionamento do corpo
2
” (1974: 226). Eis o fragmento de Mots anglais que Kristeva ele-
ge: “’A toda natureza aparentada e assim se aproximando do organismo depositário
da vida, a Palavra apresenta, em suas vogais e ditongos, como uma carne; e, nas suas
consoantes, como uma ossatura delicada a dissecar. Etc., etc., etc’
3
” (1974: 226). Outro
texto sobre a composição poética por ela examinado diz respeito à correspondência
do poeta com Cazalis e se encontra em uma carta de 1864. Trata-se de um comentário
sobre o poema “Hérodiade”, um aspecto, portanto, que confirma a caracterização
voltada ao corpóreo que a teórica percorre não apenas nos temas mallarmeanos, mas
sintáticas ao funcionamento pulsional do sujeito – e isso atenua a contradição. Todavia,
ela enfatiza impossibilidade de abarcar pela linguagem todos os movimento do corpo.
1
“Parmi les poètes de son temps, Mallarmé est un de ceux qui ont le plus nettement indiqué
le rôle ‘corporel’, trans-symbolique des sons du langage” (La révolution du langage poéti-
que, 1974: 226).
2
“Mallarmé caractérise dans ses Mots anglais les différents ‘sons’ du langage par rapport au
fonctionnement du corps” (La révolution du langage poétique, 1974: 226).
3
“’A toute la nature apparenté et se rapprochant ainsi de l’organisme dépositaire de la vie,
le Mot présente, dans ses voyelles et ses diphtongues, comme une chair; et, dans ses con-
sonnes, comme une ossature délicate à disséquer. Etc., etc., etc’” (La révolution du langage
poétique, 1974: 226).
80
em diversos autores. De Mallarmé, seleciona um trecho de uma carta em que o poeta
explicita a importância dos sentidos, das sensações – os quais são dependentes do in-
vólucro corporal – para o processo criativo: ‘“O verso não deve, lá, se compor de palavras;
mas de intenções, e todas as palavras se apagar diante as sensações’
1
” (1974: 227).
Constatamos que a teórica interpreta o “apagamento” desse exercício lingüístico não
como o que poderia ser um visível desleixo do poeta frente a um trabalho atento a
questões referentes à “gramaticalidade”, mas como um funcionamento que orienta
um complexo desenvolvimento da língua e da própria prática artística no qual o cor-
po ganha relevo. Sobre o ritmo translingüístico, a psicanalista o retoma sob a pers-
pectiva dos poemas de Mallarmé, estendendo-o também aos poemas de Lautréa-
mont, que tinha o piano como acompanhamento rítmico:
O mecanismo da transposição, da condensação e sobretudo da repe-
tição não somente permite o exercício de contração e relaxamento dos
músculos do tórax, do abdômen assim como dos esfíncteres e eviden-
temente do próprio aparelho fonador, mas, ao fazer isso, ele absorve
a rejeição, a desvia do próprio corpo e a orienta em direção à função
simbólica para renová-la
2
(A revolução da linguagem poética, 1974:
258).
Nessa passagem, Kristeva ressalta alusão importante à rejeição (rejet). Pode-
mos vê-la sob a dependência de um corpo formado pela copresença da sexualidade
(o caráter pulsional)/pensamento (procedimentos lingüísticos) do sonho. Nesse sen-
tido, a psicanalista alude à repetição como forma de análise poética que funciona nos
poemas de Mallarmé, já que ele emprega significativamente esse recurso. Kristeva
aproxima o procedimento da repetição encontrado na poesia ao trabalho do sonho
proposto por Freud em A interpretação dos sonhos, em que a interpretação depende do
discurso do analisado, no qual se oferecem histórias ao psicanalista, as quais passam
por processos de condensação e de deslocamento. Segundo ela, as patologias da lin-
1
‘“Le vers ne doit pas, là, se composer de mots; mais d’intentions, et toutes les paroles s’effacer
devant les sensations’” (La révolution du langage poétique, 1974: 227).
2
“Le mécanisme de la transposition, de la condensation et surtout de la répétition, non
seulement permet l’exercice de contraction et de relâchement des muscles du thorax, de
l’abdomen aussi bien que des sphincters et évidemment de l’appareil phonatoire lui-
même, mais, ce faisant, il absorbe le rejet, le détourne du corps propre et l’oriente vers la
fonction symbolique pour la renouveler” (La révolution du langage poétique, 1974: 258).
81
guagem têm por característica (Kristeva não generaliza esse ponto) a repetição de fo-
nemas, morfemas, lexemas. Isto faz com que aconteça o bloqueio da carga pulsional e
implica a sua possibilidade de significação. Por isso, sustenta, em A revolução da lin-
guagem poética, a necessidade de se conhecerem “as especificidades fonéticas próprias
de uma época histórica ou de diversos leitores
1
” (1974: 259).
No caso específico dos textos de Mallarmé, Kristeva localiza em “Conflit” o
surpreendente uso da palavra sexual (sexuel), que, segundo ela, é rara no léxico do
poeta (1974: 391). O uso dessa palavra recebe a conotação de sociabilidade (socialité).
Kristeva esclarece-nos acerca desse matiz social ao afirmar que o texto do poeta não é
destinado aos proletários, os quais “se fingem de camponeses vencidos numa guerra,
caídos num estreito campo de batalha
2
” (1974: 391). Ela recorre a algumas citações de
Mallarmé as quais se misturam à interpretação que ela confere à sociabilidade no tex-
to do poeta, tal como o fragmento que evidencia a passividade do corpo inerte, sem
motivação política: “Que sono de corpo contra a terra surda!
3
”. É sobre o corpo alie-
nado do sujeito, cuja consciência de si toma ares de ausência, que a autora se debruça
ao interpretar “Conflit”:
Esses corpos pesados de camponeses entregues às máquinas só re-
produzem o sono da sociabilidade ou, da melhor maneira, eles dela
sofrem o esclarecimento crítico – dir-se-ia logo esquizofrênico – sem
que haja alguém para dizê-lo – para musicá-lo
4
(A revolução da lin-
guagem poética, 1974: 392).
Kristeva reconhece no jogo lingüístico mallarmeano a intenção de tocar na te-
mática do corpo embotado do camponês pela via transversal, classificando-a nesse
caso específico de transnacional, trans (social) – procedimento que reenvia ao traba-
1
“les spécificités phonétiques propres à une époque historique ou à divers lecteurs” (La ré-
volution du langage poétique, 1974: 259).
2
“font mine de paysans vaincus dans une guerre, tombés dans un étroit champ de bataille”
(La révolution du langage poétique, 1974: 391).
3
quel sommeil de corps contre la motte sourde! (La révolution du langage poétique, 1974:
392).
4
“Ces corps lourds de paysans livrés aux machines ne font que reproduire le sommeil de la
socialité ou, au mieux, ils en souffrent l’éclatement critique – on dira bientôt schizophré-
nique – sans sans qu’il y ait personne pour le dire – pour le musiquer” (La révolution du
langage poétique, 1974: 392).
82
lho do inconsciente e tem como resultado a riqueza sonora para cuja configuração já
indicamos o papel do corpo (1974: 393). A psicanalista reconhece, todavia, a falta de
engajamento do poeta. Ela comenta, por exemplo, que, em plena guerra de 1870-1871
e durante a Comuna de Paris, a preocupação de Mallarmé consistia unicamente em
como se deslocar de Avignon a Paris e na possibilidade de ser ajudado por funcioná-
rios republicanos. Sobre esses acontecimentos políticos, Kristeva elucida que a única
observação contundente acerca da existência da turbulência política daquela época se
assenta no assassinato do amigo Henri Regnault (1974: 405). Vejamos a retomada de
Kristeva do trabalho de Mondor sobre a vida de Mallarmé:
“a política começa a se tornar intrusiva e insuportável”, trata-se de
conservar a saúde preservando aquilo que a põe em risco: “... mais
difícil de conservar um sabor mórbido necessário sob uma explosão
de vã riqueza
1
(A revolução da linguagem poética, 1974: 407).
A referência acima trata sobretudo da preocupação de Mallarmé com o corpo
– o próprio corpo. Se ele se afasta dos movimentos estéticos para os quais contribui,
tais como o Parnasianismo e o Simbolismo, é porque, segundo Kristeva, está em jogo
um cuidado com o corpo, que pode ser interpretado pela sua paradoxalidade: “Mal-
larmé se serve deles para assegurar um equilíbrio médico de seu corpo e de seu fun-
cionamento significante, mas pelo mesmo gesto – (...) – ele marca de inanidade essas
arestas e os próprios abrigos
2
” (1974: 411). A psicanalista flagra a ironia do gesto mal-
larmeano, pois ele rejeita o sistema corporativista que lhe seria benéfico em prol do
que poderíamos denominar de liberdade criativa. É nesse período que recebe o título
de “Príncipe dos poetas”, além de ser chamado de o “Sábio da rua Rome”. Se Mal-
larmé se afasta para se proteger, é necessário ler este cuidado em relação ao corpo
individual não de forma egoísta, mas como um exercício que diz respeito à revolta
em termos sociais mais amplos. Sendo a revolta um tema de extremo interesse de
1
‘”la politique commence à devenir envahissante et insuportable’ (...), il s’agit de garder la
santé tout en préservant ce qui la met en danger: ‘... plus difficile de conserver une sau-
veur morbide nécessaire sous une explosion de vaine richesse’” (La révolution du langage
poétique, 1974: 407)
2
“Mallarmé s’en sert pour assurer un équilibre ‘médical’ de son corps et de son fonction-
nement signifiant, mais par le même geste – (...) – il marque d’inanité ces arêtes et ces a-
bris mêmes” (La révolution du langage poétique, 1974: 411).
83
Kristeva, talvez nos gestos revoltados de Mallarmé esteja o esboço para se refletir so-
bre a dimensão que esse tema adquire em textos subseqüentes da teórica.
No longo poema “Hérodiade”, Mallarmé, de acordo com Kristeva, não se pre-
ocupa com a correspondência entre a sua personagem Hérodiade e a da história, em-
bora os vestígios da Hérodiade histórica apareçam na malha semiótica, pulsional, ou
seja, na musicalidade característica da poética mallarmeana (1974: 445). A represen-
tação do corpo feminino nesse poema remete à sua inacessibilidade, e aqui a compo-
sição de Hérodiade se parece com a da personagem histórica, isto é, na medida em
que se observa a renúncia às pulsões, que implica “a renúncia à mãe e ao corpo, por
uma espiritualidade figurada pelo nome-do-pai morto ou assassino
1
” (1974: 445).
Kristeva recolhe de Hérodiade, a “rainha virgem da Judéia”, certa constituição, a
qual se sustenta na esterilidade e na frigidez, características que motivam o epíteto de
“anti-mãe” destinado a Hérodiade: “a mulher proibida e fetichizada, a anti-mãe que
é a Hérodiade assassina de São João, representa o poder fálico
2
” (1974: 448). Kristeva
reconhece na poesia de Mallarmé a busca por um equilíbrio libidinal, a lei simbólica
entrelaçada ao extravasamento semiótico. Para Mallarmé, conforme a psicanalista, a
permanência da família depende da experiência da genitalidade (l’expérience de la gé-
nitalité). Assim, Kristeva vê no poder fálico concedido à Hérodiade o recurso da iro-
nia mallarmeana. São João profetiza e anuncia um filho a uma mulher virgem, o que
determina não apenas o assassinato dele, mas também a concessão de um poder fáli-
co a Hérodiade, que não tem o poder misterioso de gerar filhos. Em carta a Cazalis,
Mallarmé distingue o que a teórica denomina de “procriação útil” (procréation utile)
de “produção imaginativa solitária e gloriosa”. O poeta, que não pode gerar crianças,
se insere na segunda, ao confessar ao amigo Cazalis que “nós só somos pais de nossas
produções imaginativas
3
(1974: 449).
1
“un renoncement à la mère et au corps, pour une spititualité figurée par le non-du-père
mort ou meurtrier (La révolution du langage poétique, 1974: 445).
2
“la femme interdite et fétichisée, l’anti-mère qu’est Hérodiade meurtrière de saint Jean, re-
présente ce pouvoir phallique” (La révolution du langage poétique, 1974: 448).
3
“nous ne sommes les pères que de nos productions imaginatives” (La révolution du langage
poétique, 1974: 449).
84
A representação da mulher nos poemas de Mallarmé, para Kristeva, a despeito
da posição fálica e estéril que recobre Hérodiade, mantém uma atmosfera própria de
mistério, o qual, como já mencionamos antes, alude à capacidade (potencialidade)
reprodutiva da mulher (1974: 496). No fragmento abaixo de “Le phénomène futur” o
discurso da teórica se justapõe ao do poeta, marcando um lugar corporal da mulher
que parece sobressair da frivolidade atribuída ao universo feminino quanto a sua li-
gação ao vestuário:
Abrigado nos movimentos contraditórios de um corpo velado, inco-
municável, a fruição – e se a mulher o representa, dir-se-á: a mulher
– se torna um valor; ainda mais: ela é uma solução da aflição social
que representam a sociedade atual, as famílias, as esposas. Tal é “o
Fenômeno futuro”: de uma parte uma mulher que “no lugar da veste
vã [...] tem um corpo”, “o olhar que sai de sua carne feliz”, “de per-
nas lisas que guardam o sal do mar primeiro”, com, ao lado dela, os
poetas, “o cérebro inebriado um instante de uma glória confusa, as-
sombrados de Ritmo”, de outra parte, as “pobres esposas, carecas,
mórbidas e cheias de horror, os maridos [...]
1
” (A revolução da lingua-
gem poética, 1974: 499).
Kristeva reconhece em Mallarmé o que ela chama de fascinação pela “perspec-
tiva mortal da fruição materna
2
”, que o texto do poeta semiotiza como genitalidade
3
(1974: 500). Mallarmé é o único que discorre sobre as diversas facetas femininas, o
que o leva à redação de uma publicação chamada A Última Moda (La Dernière Mode):
Com um ar de viés, irônico e cúmplice, sempre ambíguo, Mallarmé
preenche sua revista de conselhos aos burgueses: o objeto furtado, o
falo materno, é então localizado no fetiche da vestimenta, circunscri-
1
“Retranchée dans les mouvements contradictoires d’un corps volé, incommunicable, la jou-
issance – et si la femme la représente, on dira: la femme – devient un valeur; plus encore:
elle est une solution de la détresse sociale que représentent la société actuelle, les fami-
lles, les épouses. Tel est le ‘Phénomène futur’: d’une part une femme qui à la place du
vêtement vain [...] a un corps’, ‘ce regard qui sort de sa chair heureuse’, “aux jambes lis-
ses qui gardent le sel de la mer première’, avec à côté d’elle les poètes, ‘le cerveau ivre un
instant d’une gloire confuse, hantés du Rythme’; d’autre part, les ‘pauvres épouses,
chauves, morbides et pleines d’horreur, les maris [...]’“ (La révolution du langage poétique,
1974: 499).
2
“perspective mortelle de la jouissance maternelle” (La révolution du langage poétique, 1974:
500).
3
Esta semiotização é diferente do que seria uma simbolização, pois, para Kristeva, do texto
mallarmeano, reconhecidamente musical: “(não dizemos simboliza)”; (nous ne disons
pas: symbolise)” (La révolution du langage poétique, 1974: 500).
85
to, dominado, domesticado por uma ironia doce
1
(La révolution du
langage poétique, 1974: 500).
Kristeva afirma que Mallarmé “vestirá o enigma feminino
2
” (1974: 500) nessas
páginas femininas para melhor guardar o segredo que ele é capaz de revelar do uni-
verso das mulheres. A roupa, portanto, serve de cobertura ao mistério genital e ao
gozo – elementos que estão sempre presentes na esfera do feminino. O revestimento
das vestes atua na mesma linha do mistério antigo, mas “assegura à mulher sua par-
ticipação na ordem estatal na qualidade de fetiche
3
” (1974: 501). Kristeva reconhece
no poeta o exercício de proteção à virtualidade do gozo. Por isso conjecturamos que a
escassez do léxico “sexual” em seus poemas seja um caminho que leva a preservá-lo
– ainda que enviesadamente. Para Kristeva, há uma recusa de Mallarmé no que diz
respeito ao tratamento da sexualidade em suas formas mais diretas, explícitas. Até
mesmo o romance naturalista ou a pornografia, os quais têm por objeto a explicitação
da sexualidade, mostram que “o gozo não é uma descrição de órgãos
4
”. Atingimos,
novamente, mas agora pela rota poética de Mallarmé, a copresença da sexualida-
de/pensamento. A psicanalista oferece ao poeta uma posição diferente da organicis-
ta, na qual a musicalidade do texto permite (viabiliza) o direito à fruição:
Pode-se dizer nesse sentido que o texto mallarmeano é a primeira
grande tentativa moderna de significar a fruição – feminino ou não –
do sujeito, e que ele corresponde assim à emancipação cada vez mais
ousada da burguesia, mas também à liberação de qualquer sujeito
que anuncia já a “revolução sexual”
5
(A revolução da linguagem poéti-
ca, 1974: 504).
1
“D’un air à côté, ironique et complice, toujours ambigu, Mallarmé remplit sa revue de con-
seils aux bourgeoises: l’objet qui se dérobait, le phallus maternel, est ainsi localisé dans
le fétiche vestimentaire, circonscrit, maîtrisé, apprivoisé, dominé par une ironie douce”
(La révolution du langage poétique, 1974: 500).
2
“habillera l’énigme féminine” (La révolution du langage poétique, 1974: 500).
3
“assure à la femme sa participation à l’ordre étatique en tant que fétiche” (La révolution du
langage poétique, 1974: 501).
4
“la jouissance n’est pas une description d’organes” (La révolution du langage poétique, 1974:
504 ).
5
“On peut dire en ce sens que le texte mallarméen est la première grande tentative moderne
de signifier la jouissance – féminine ou non – du sujet, et qu’il correspond ainsi à
lémancipation de plus en plus hardie de la bourgeoise, mais aussi à la libération de tou-
te sujet qui annonce déjà la ‘révolution sexuelle’” (La révolution du langage poétique, 1974:
504).
86
À época de Mallarmé, Kristeva retoma a influência das idéias kantianas no
meio universitário, o que significa, para ela, uma Universidade moralista e racionalis-
ta (1974: 534). A filosofia hegeliana, entretanto, foi a mais próxima do poeta
1
, e cria-
ções como “Un coup de dés”, “Igitur” e o “Livre” apresentam vestígios hegelianos.
Para a teórica, a “Idéia” mallarmeana está fora do campo da “inteligibilidade”. Trata-
se de uma encenação ou de uma “dramatização especulativa” (dramatisation spécula-
tive) que se relaciona ao nada, ao vazio (1974: 537). No que diz respeito ao vazio, re-
corta dois fragmentos de diferentes poemas de Mallarmé; no primeiro deles, “Re-
nouveau”, há uma clara referência corporal: ‘“Os crepúsculos brancos se arrefecem
sob meu crânio’
2
”. No segundo fragmento, do poema “Tristesse d’été”, que está ime-
diatamente colado à alusão corpórea, temos acesso ao “nada” mallarmeano: “’E en-
contrar esse Nada que tu não conheces’
3
”. A afinidade teórica do poeta, no entanto, a
psicanalista tributa à lingüística. Trata-se de um interesse do poeta que, segundo
Kristeva, antecipa a descoberta freudiana do inconsciente (1974: 571). Em carta ao
amigo Cazalis, de 14 de maio de 1867, Mallarmé confere à poesia o status de perfei-
ção. A poesia consolida-se como o produto da copresença sexualidade/pensamento:
“’Só existe a Beleza – e ela só tem uma expressão perfeita, a Poesia. Todo o resto é
mentira – à exceção daqueles que vivem do corpo, do amor, e esse amor do espírito,
da amizade’
4
” (1974: 583).
1
Kristeva menciona o importante trabalho de Jean Hyppolyte sobre o poeta: “Le coup de
dés de Sttéphane Mallarmé et le message”, em Les études philosophiques (La révolution du
langage poétique, 1974: 535).
2
“’Des crépuscules blancs tiédissent sous mon crâne’” (La révolution du langage poétique,
1974: 569).
3
“’Et trouver ce Néant que tu ne connais pas’” (La révolution du langage poétique, 1974: 569).
4
”-‘Il n’y a que la Beauté – et elle n’a qu’une expression parfaite, la Poësie. Tout le reste est
mensonge – excepté pour ceux qui vivent du corps, l’amour, et cet amour de l’esprit, de
l’amitié’” (La révolution du langage poétique, 1974: 583).
87
1.7 Lautréamont
Kristeva centra a investigação textual de Mallarmé no dispositivo semiótico re-
ferente aos níveis morfofonêmico e sintático. Para não cair em redundância, explora,
na poética lautreamoniana, também em A revolução da linguagem poética, as instâncias
subjetivas do discurso e suas relações contextuais. Segundo Kristeva, existem moti-
vações históricas e biográficas que modificam o dispositivo significante e interferem
nas relações com os objetos naturais, com os aparelhos sociais e com o próprio corpo
(1974: 116). No caso específico de Lautréamont, a psicanalista ressalta a orientação
em direção à “verdade prática” (vérité pratique) - procedimento que tem por função a
ligação entre o que o poeta chama de “os primeiros princípios” (les premiers principes)
e “as verdades secundárias da vida” (les vérités secondaires de la vie). Assim, enquadra
os “primeiros princípios” no que designa por “processos semióticos” e as “verdades
secundárias” constituem o que ela inclui na ordem dos “processos simbólicos” (pro-
cessus symboliques) (1974: 189). Os Cantos de Maldoror e as Poesias são obras que traba-
lham nesses dois domínios articulados pela autora. Nos Cantos, Kristeva observa
uma narração marcada pelos processos semióticos, semelhante a alucinações, tendo
em vista os recursos poéticos transgressores dos quais o poeta se vale. Nas Poesias, es-
tá a afirmação do tético, o que implica a fuga ao quadro psicótico e, conseqüentemen-
te, a inserção no âmbito social – trata-se, portanto, do processo simbólico (1974: 192).
A luta contra o nome-do-pai, herança paterna do autor dos Cantos de Maldoror,
constitui um destacado ponto biográfico do poeta que a autora põe em evidência ao
tecer conjecturas a respeito da obra de Lautréamont. A mudança de Ducasse para
Lautrémont não é um ato isolado e extravagante do poeta, pois está imersa no sujeito
em processo que o poeta evoca ao produzir textos de desagregação familiar, próxi-
mos aos processos de totalização psicótica. A psicanalista, como evidenciaremos a
respeito dos textos de Artaud, recorre ao termo tanatografia, referido por Phillipe
Sollers, para marcar esse momento de limite do simbólico, no qual a instância pater-
na é violada.
Kristeva reconhece o peso por trás da transgressão dos limites impostos pelo
simbólico. A forma lautreamoniana de escapar ao fardo do desrespeito à esfera sim-
88
bólica ancora-se num gesto mediado pelo rosto e seus músculos. A psicanalista, des-
sa forma, busca nos vestígios textuais que levam ao riso uma prática de abrandamen-
to da culpa pela ultrapassagem do nome do pai. A teórica inclui alguns fragmentos
dos Cantos de Maldoror em que o riso recebe conotação negativa: “rir como um galo;
ou Maldoror terminando com uma gargalhada. Era mais forte do que ele! [...] ele ria
como fazem as ovelhas’
1
” (1974: 196). Nesse sentido, a poesia está em “oposição” ao
riso: “Mas sabeis que a poesia se encontra em toda parte onde não há sorriso, estupi-
damente galhofeiro, do homem, de cara de pato
2
” (1974: 197), resumindo o riso para
Lautréamont como um exercício de revolta: “Lautréamont faz do riso o sintoma da
ruptura, da contradição heterogênea interna à prática significante
3
” (1974: 195). O
poeta concede ao riso a possibilidade de mudança, de renovação, na medida em que
pode ser substituído pela produção de novos dispositivos. Por isso, Kristeva relacio-
na imediatamente a mudança ao riso: “Toda prática que produz o novo (dispositivo
significante) pertence ao riso (...) onde a prática não é riso, não há o novo
4
” (1974:
197).
O riso afronta o poder do pai, do criador. Por isso Lautreámont oferece-nos, de
acordo com os Cantos, um sujeito lírico cindido que a psicanalista localiza pela ritmi-
cidade móbil: ‘“eu’ é um movimento rítmico, uma dinâmica ondulatória
5
” (1974:
320). Enquanto a narração clássica utiliza personagens para encobrir os fantasmas, o
texto moderno faz questão de explicitá-lo. Esse procedimento, segundo Kristeva, o
aproxima de romance fantástico ou do romance noir. Kristeva observa correspondên-
cia entre os Cantos de Maldoror com romance noir inglês e também com o romance
popular (1974: 318). A luta de fragmentação presente no sujeito lírico dos Cantos de
1
“’rire comme un coq’ ou Maldoror finissant ‘par éclater de rire. C’était plus fort que lui!
[...] il riait ainsi que font les brebis’” (La révolution du langage poétique, 1974: 196).
2
“Mais sachez que la poésie se trouve partout où n’est pas le sourire, stupidement railleur,
de l’homme, à la figure de canard” (La révolution du langage poétique, 1974: 197).
3
Lautamont fait du rire le symptôme de la rupture, de la contradiction hétérone inter-
ne à la pratique signifiante” (La révolution du langage poétique, 1974: 195).
4
“Toute pratique qui produit du nouveau (dispositif signifiant) est du rire: (...) Là où la
pratique n’est pas rire, il n’y a pas de nouveau” (La révolution du langage poétique, 1974:
197).
5
“’je’ est un mouvement rythmique, une dynamique ondulatoire” (La révolution du langage
89
Maldoror evidencia o tom fantasmático de sua poética, tal como a teórica expõe no re-
corte que faz dos Cantos: ‘”... sou eu mesmo que falo. [...] sou eu mesmo, a menos que
me engane [...]’
1
” (1974: 320).
A ruptura identitária sofrida pelo sujeito lírico deve-se à ameaça de um pai to-
do-poderoso (1974: 320). Assim, a fragmentação do sujeito lírico repercute sobre a
constituição corporal dele: “Este esclarecimento da identidade dá-se diretamente co-
mo produzido sob a ameaça de um pai todo-poderoso, esmagador, privando o ‘eu’
de seu corpo, de sua pele, do seu escalpo (deslocamento da castração), que o arrasta
ao circuito das alucinações
2
” (1974: 321). Vejamos como a psicanalista situa o corpo
do sujeito lírico transgressor da lei paterna:
A paralisia, o corpo catatônico, a dor, e uma metamorfose nos limites
do humano: eis o extremo que chega a rejeição atacando o julgamen-
to e a instância subjetiva. – “As articulações ficam paralisadas, desde
que começa o meu trabalho”. Mas ele continua escrever “destilando
sua baba de (sua) boca quadrada”: “Não tinha nada a agradecer ao
Todo-Poderoso de seu endereço notável; ele enviou o raio de modo a
cortar precisamente meu rosto em dois [...]”
3
(A revolução da lingua-
gem poética, 1974: 322).
Trata-se de um corpo metamorfoseado em sofrimento. O endurecimento das
articulações até a paralisia dos movimentos poupa, curiosamente, a possibilidade da
narração, da escrita. A mão, via da linguagem escrita, entretanto, não é referida por
Lautréamont (melhor dizer que não é também privilegiada pela psicanalista, uma
vez que ela efetua os recortes do texto do poeta), mas ela se fixa na face – boca. Isto
leva-nos a refletir sobre o peso da oralidade no discurso lautreamoniano, e também
poétique, 1974: 320).
1
”’... c’est moi-même qui parle. [...] c’est moi-même, à moins qui je ne trompe [...]’” (La révo-
lution du langage poétique, 1974: 320).
2
Cet éclatement de lidentité se donne directement comme produit sous la menace dun
père tout puissant, écrasant, privant le ‘je’ de son corps, de sa peau, de son scalp (dépla-
cement de la castration) et qui l’entraîne ainsi dans le circuit des hallucinations” (La révo-
lution du langage poétique, 1974: 321).
3
“La paralysie, le corps catatonique, la douleur, et une métamorphose aux limites de
l’humain: voilà le bord qu’atteint le rejet attaquant le jugement et l’instance subjective. –
‘Les articulations demeurent paralysées, dès que commence mon travail’. Mais il conti-
nue à écrire ‘en distillant sa bave de (sa) bouche carrée’: ‘Je n’ai pas à remercier le Tout-
Puissant de son adresse remarquable; il a envoyé le foudre de manière à couper précisé-
ment mon visage en deux [...]”’ (La révolution du langage poétique, 1974: 322).
90
remete-nos aos contatos arcaicos do futuro ser falante com a figura materna. O conta-
to entre o par mãe-bebê e a riqueza dos elementos semiotizáveis que a criança recebe
dessa experiência de proximidade/laço corpóreo encontra na boca uma espécie de
metáfora para as trocas dos primeiros contatos sensoriais da criança. Além disso, o
rosto fragmentado do final do segmento metaforiza o processo de desestruturação do
sujeito na aquisição da linguagem, na medida em que há a intervenção necessária do
pai da pré-história individual entre a mãe e o bebê.
A respeito da negatividade, da qual já refizemos o trajeto de constituição ela-
borado pela psicanalista, essa ganha espaço ilustrativo no texto de Lautréamont: “A-
perta-me contra ti, e não temas me fazer mal; estreitemos progressivamente as liga-
ções de nossos músculos. Por mais tempo. Sinto que é inútil insistir; a opacidade (...)
desta folha de papel é um impedimento dos mais consideráveis à operação da nossa
completa junção
1
” (1974: 325). Kristeva estende a dimensão da carnalidade lautrea-
moniana aos destinatários. Os leitores dos Cantos são seres cuja ficcionalização impli-
ca um significativo grau de corporalidade.
Logo no Canto Primeiro, o leitor é simultaneamente desafiado e enaltecido pe-
lo poeta: “Não convém que qualquer um leia as páginas que vêm a seguir; somente
alguns saborearão este fruto amargo sem perigo
2
” (Os cantos de Maldoror, 2005: 73).
Esse convite é seguido de um conselho que reconhece no leitor considerável natureza
corpórea e, por extensão, limitada, pois o autor antecipa o fato de que nem todos su-
portarão o relato anunciado: “Escuta bem o que te digo: dirige teus calcanhares para
trás e para frente, e como os olhos de um filho que se desviam respeitosamente da
contemplação augusta do rosto materno
3
” (2005: 73). É nessa perspectiva ambivalen-
te, de afastamento mas também de aproximação do texto, que o leitor se constrói e é
1
Serre-moi contre toi, et ne crains pas de me faire du mal; rétrécissons progressivement
les liens de nos muscles. Davantage. Je sens qu’il est inutile d’insister; l’opacité (...) de
cette feuille de papier, est un empêchement des plus considérables à l’opération de notre
complète jonction’” (La révolution du langage poétique, 1974: 325).
2
Il ‘n’est pas bon que tout le monde lise les pages qui vont suivre: quelqu’uns seuls savou-
reront ce fruit amer sans danger (Chants de Maldoror, Chant Premier, 2005: 17).
3
“Écoute bien ce que je te dis: dirige tes talons en arrière et non en avant, comme les yeux
d’un fils qui se détourne respectueusement de la contemplation auguste de la face ma-
ternelle;” (Chants de Maldoror, Chant Premier, 2005: 17-18).
91
construído (temos de levar em conta a ficcionalização desse por parte do poeta) en-
quanto um ser que possui um corpo. Além disso, trata-se de um corpo tributário, em
certa medida, da figura materna. Logo no início do Canto Primeiro, o sujeito-lírico
define algumas características desse leitor: narinas orgulhosas, sujeitas à dilatação,
ventre semelhante a um tubarão. No Canto Quinto, fica explícito o que já se esboçava
no Canto Primeiro, ou seja, o leitor em questão é dotado de sentidos: “Depois de te-
res tomado ar, volta para encontrar-me: teus sentidos estarão mais descansados
1
(2005: 216). Esses predicados humanos contribuem para a atenuação da maldade do
próprio Maldoror, que, embora tenha sido bom nos primeiros anos de vida, se viu
enredado na carreira do mal. A crueldade de Maldoror, curiosamente, liga-se à cabe-
ça: “todo dia o sangue lhe subia à cabeça
2
” (2005: 75). Aos leitores, portanto, que são
cúmplices do poeta no que se refere à existência de um corpo que os encobre e limita,
cabe também a proximidade com a esfera do mal. Maldoror, este que habita um cor-
po como o leitor que necessita de coragem para continuar lendo o texto, sob outro
aspecto, é apresentado a partir de uma fragilidade que lhe escapa: “por causa dessa
concentração que não lhe era natural, todo dia o sangue lhe subia à cabeça; até que,
não podendo mais suportar uma vida dessas, lançou-se resolutamente na carreira do
mal...
3
”.
É nesse desfile de informantes que conduzem a uma possível leitura do corpo
dos textos de Lautréamont que localizamos os Chants de Maldoror. Trata-se de uma
profusão de fragmentos que remetem ao corpo: unhas, lábios, olhos, cabeça, cabelos,
lábios, mãos, dentes, dedos, bocas, peitos, coxas, pernas, língua, garganta, pálpebras,
glote – enfim, uma série de imagens que se entrelaçam em cenas fantásticas de sel-
vageria, mal-estar e maravilhamento dos sentidos. Tais informantes levam a índices
que atuam no mesmo campo de fragmentação corpórea, de forma a contribuir para o
esvaziamento daquele que habita um corpo sujeito ao desaparecimento inexorável
1
“Lorsque tu aura pris l’air, reviens me trouver: tes sens seront plus reposés” (Chants de
Maldoror, Chant cinquième, 2005: 190).
2
“chaque jour le sang lui montait à la tête” (Chants de Maldoror, Chant premier, 2005: 19).
3
“à cause de cette concentration qui ne lui était pas naturelle, chaque jour le sang lui mon-
tait à la tête; jusqu’à ce que, ne pouvant plus supporter une pareille vie, il se jeta résolû-
ment dans la carrière du mal...” (Chants de Maldoror, Chant premier, 2005: 19).
92
proporcionado pela morte. Nessa medida, localizamos a série que contempla o san-
gue, os nervos, as veias, as artérias, as rugas, os glóbulos, as entranhas – índices que
remetem a um estado interno do corpo, ao mesmo tempo invisível e indispensável
para o seu funcionamento.
Para Kristeva, em sua A revolução da linguagem poética, existe uma barreira de
papel que separa o sujeito lírico do seu destinatário, funcionando como impedimento
da relação fusional entre o “eu” do texto e o “tu” exterior. O texto, nessa medida,
produz a negatividade, fato que promove a formação de um novo processo-
identidade (identité-procès) (1974: 325).
Kristeva estende a diferença entre o “eu e o “tu” à diferença sexual. Daí decor-
re a presença do “outro” como sendo o outro sexo. Conforme a autora desenvolve
em A revolução da linguagem poética, o primeiro outro na vida de um sujeito com o
qual se estabelece um diálogo, é a mãe (1974: 326). Curiosamente, entre os destinatá-
rios à dedicatória da obra de Lautréamont, Kristeva ressalta o nome do amigo do po-
eta – Dazet. A psicanalista chama a atenção para a semelhança fônica e gráfica que se
estabelece com o nome da mãe de Ducasse: Jacquette-Célestine Davezac (1974: 327).
Não é o aniquilamento do outro (alusão ao outro sexo) que observa nos textos de
Lautréamont. Ela reconhece neste papel o acionamento da negatividade do “eu”, o
qual é submetido ao processo de descentramento. Em um dos exemplos que retira da
poética lautreamoniana para enfatizar o “descentramento” do sujeito lírico, recorre à
voz e, por conseguinte, a elementos do aparelho fonador: “’As notas da tua voz jor-
ravam, da tua laringe sonora, como pérolas diamantinas, e dissolviam suas persona-
lidade coletivas na agregação vibrante de um longo hino de adoração’
1
” (1974: 327).
Entre os personagens de Lautréamont, Kristeva destaca animais como aranhas, pio-
lhos, águias; seres imaginários tais como anjos e dragões e figuras duplas ilustradas
pela representação dos gêmeos. Esses personagens conotam, segundo a autora, a
fragmentação corporal (morcellement corporel). Aspectos de um corpo em processo de
fragmentação também aparecem em exemplos que retira dos Cantos para a análise da
1
“’Les notes de ta voix jaillissaient, de ton larynx sonore, comme des perles diamantines, et
résolvaient leurs collectives personnalités, dans l’agrégation vibrante d’un long hymne
d’adoration’” (La révolution du langage poétique, 1974: 331).
93
negatividade-rejeição: “essa negação explicita a negatividade-rejeição-agressividade
que separa o corpo próprio do corpo da mãe e que constitui assim as condições da
simbolização
1
” (1974: 353). A negatividade-rejeição manifesta-se sob o retorno da re-
jeição pelas oposições indefinidas. No primeiro exemplo, que ela denomina de “vari-
ante da denegação”, sobressai-se um corpo, ainda que sem vida, no discurso do poe-
ta: “’Aqui nasceu um adolescente que morreu tísico: você sabe porque. Não reze por
ele’
2
” (1974: 353). No exemplo referente ao que denomina de “identificação de con-
trários”, o corpo se mostra sob a perspectiva da vida, acionando os sentidos do tato e
do gosto: “’Nada é tão bom quanto o seu sangue, extraído, como acabo de dizer, e
quente ainda, senão as suas lágrimas, amargas como o sal’
3
” (1974: 354). Kristeva re-
conhece na oposição corrente entre bom e amargo o trabalho de identificação que o
poeta promove entre eles, tendo em vista a estrutura sintática do enunciado. Segun-
do a teórica, “A ambigüidade semântica que se segue conduz a um eclipse da deno-
tação
4
” (1974: 354). É esse mesmo processo de mobilidade semântica característico da
negatividade-rejeição que a psicanalista confere aos efeitos causados por outro trecho
dos Cantos: “’Homem, tu nunca provaste do teu sangue quando por acaso cortaste o
dedo? Como é bom, não é? pois não há nenhum gosto’
5
” (1974: 354). Novamente, a-
inda que pelo jogo de superposições de negações, são os sentidos que Lautréamont
aciona. Ainda sobre a negatividade, Kristeva localiza nesse mesmo espectro as
“comparações contrastivas”, nas quais o poeta dos Cantos aproxima elementos inco-
muns – ‘“um verso resplandecente, grande como uma casa’
6
”. Nesse segundo exem-
1
“cette négation explicite la negativité-rejet-agressivité qui sépare le corps propre du corps
de la mère et qui constitue ainsi les conditions de la symbolisation” (La révolution du lan-
gage poétique, 1974: 353).
2
“’Ci-gît un adolescent qui mourut poitrinaire: vous savez pourquoi. Ne priez pas pour
lui’”(La révolution du langage poétique, 1974: 353).
3
“’Rien n’est si bon que son sang, extrait comme je viens de le dire, et tout chaud encore, si
ce ne sont ses larmes, amères comme le sel’” (La révolution du langage poétique, 1974: 354).
4
“L’ambigüité sémantique qui s’ensuit conduit à une éclipse de la dénotation” (La révolution
du langage poétique, 1974: 354).
5
“’Homme, n’as tu jamais goûté de ton sang, quand par hasard tu t’es coupé le doigt?
Comme il est bon, n’est-ce pas; car, il n’a aucun goût’” (La révolution du langage poétique,
1974: 354).
6
‘“un vers luisant, grand comme une maison”’ (La révolution du langage poétique, 1974: 354).
94
plo que segue, o corpo é retratado pela dupla perspectiva de vivacidade para além
do humano e de mortalidade da não-aceitação da vida: ‘“... tu és uma figura mais do
que humana [...] bela como o suicida’
1
” (1974: 354).
Kristeva observa nas Poésies de Lautréamont certo silêncio no que se relaciona
às questões da sexualidade. O corpo, nessa medida, não é o enfoque do poeta; toda-
via, a negatividade se mantém na medida em que a teórica desenvolve o exercício
lautreamoniano de transformação do uso do texto de Pascal. Trata-se de uma reno-
vação das matrizes de enunciação, assim como acontece na ênfase ao apelo corpóreo
que apreendemos via Os Cantos de Maldoror.
Se em Poésies o tom de moralidade se impõe, a começar pelo nome adotado
pelo poeta – Ducasse – o que pode ser lido como respeito ao nome-do-pai, nos Cantos
o poeta transgride a influência paterna. O exercício dessa violação, entretanto, não
significa a supressão do pai. O afastamento de Lautréamont se liga ao pai de família,
segundo Kristeva, o que é bastante diferente de um desvio da função paterna (foncti-
on paternelle). Tal função permanece no texto do poeta, a despeito das transgressões
lingüísticas que o texto venha a sofrer, além de ser condição para a realização da
“função poética” (fonction poétique) (1974: 465). A importância que a teórica concede à
função paterna pode ser avaliada em passagem que retira dos Cantos e comenta:
A posição vacilante embora freqüentemente assassina do pai é man-
tida ao longo dos Cantos: (...); o pai de Mervyn é separado de seu fi-
lho por uma barreira lingüística (“... (ele) se adianta [...] em direção
ao corpo imóvel de seu recém-nascido. Ele fala numa língua estran-
geira [...]”)
2
(A revolução da linguagem poética, 1974: 466).
O hiato na comunicação entre pai e filho é natural para os recém-nascidos, já
que cabe à mãe o papel fusional com o filho. Nesse sentido, Kristeva outorga ao pai
um grau de estrangeiridade em relação aos primeiros contatos com o bebê. A barrei-
ra lingüística decorrente desse relacionamento faz do canto de Lautréamont um lugar
1
‘“... tu es une figure plus qu’humaine, [...] belle comme le suicide’” (La révolution du lan-
gage poétique, 1974: 354).
2
“La position vacillante quoique souvent meurtrière du père est maintenue tout au long des
Chants: (...); le père de Mervyn est séparé de son fils par une barrière linguistique (‘... (il)
s’avance [...] vers le corps immobile se son premier-né. Il parle dans une langue étrangère
[...]’)” (La révolution du langage poétique, 1974: 466).
95
de luta. Para Kristeva, é um lugar de conflito no qual “a guerra de Maldoror contra o
Nome-do-Pai representa na narração a irrupção da pulsão no simbólico
1
” (1974: 467).
É nesse momento que a psicanalista evoca o “teatro da crueldade” de Artaud para
caracterizar o canto não pela sua neutralidade, mas pelo constante deslocamento de
posições. Sob o pano de fundo da teatralidade artaudiana, age a estrutura da função
paterna, caminho para as mudanças da língua:
o conjunto Lautréamont-Ducasse é o limite no processo de signifi-
cância onde a célula familiar e a regra da filiação se esboroam, mas
onde, sem que esse esboroamento dê lugar a uma interrupção ou a
uma hipóstase da função simbólica, ele é a condição de sua re-
estruturação, de sua re-novação
2
(A revolução da linguagem poética,
1974: 467).
É sobre o corpo materno que Lautréamont se ancora no intuito de produzir o
efeito de luta corpórea contra a figura paterna. De acordo com Kristeva, esse ato vio-
lento liga-se a gestos de agressividade contra o corpo da mãe (1974: 469), assim como
evidencia o trecho a seguir de Cantos de Maldoror por ela recortado:
“Como comida adstringente e tônica, tu arrancarás primeiramente os
braços de tua mãe (se ela existe ainda) [...] Se a tua mãe for muito ve-
lha, escolhe [...] tua irmã, por exemplo”; mas simultaneamente trata-
se de uma identificação com a geratriz: “alguns suspeitam que eu
amo a humanidade como se fosse sua própria mãe, e que tivesse ge-
rado, nove meses, nos meus flancos perfumados; é porque, não volto
a passar mais no vale onde se erguem as duas unidades do multipli-
cador”
3
(A revolução da linguagem poética, 1974: 469-470).
1
la guerre de Maldoror contre le Nom-du-Père représente dans le récit l’irruption de la
pulsion dans le symbolique” (La révolution du langage poétique, 1974: 467).
2
“l’ensemble Lautréamont-Ducasse est cette limite dans le procès de la signifiance où la ce-
llule familiale et la règle de la filiation s’effritent mais où, sans que cet effritement donne
lieu à une interruption ou à une hypostase de la fonction symbolique, il est la condition
de sa re-structuration, de son re-nouvellement” (La révolution du langage poétique, 1974:
467).
3
96
O sujeito lírico da passagem em questão sofre um exercício de multiplicação
na faculdade da imaginação, conforme sustenta a psicanalista a partir da luta que se
estabelece com a referência materna (1974: 470). Kristeva relaciona esse processo à
negatividade do Pai, ou seja, do Criador, situação que leva o sujeito a atitudes de
ruptura com a esfera do simbólico. Assim, a psicanalista recorta dos Cantos referên-
cias ao homossexualismo e ao recalcamento religioso. A identificação com a figura
materna serve de base para explicar a duplicidade evocada pelo poeta, que também
se duplica no nome Ducasse-Lautréamont. Dessa forma, todos os pares recebem uma
interpretação que também extrapola o âmbito do simbólico.
Kristeva também traz à tona, a partir dos Cantos lautreamonianos, o horror de-
sencadeado pelo órgão sexual feminino, uma vez que esse é retratado pelo poeta pelo
viés da mutilação do órgão sexual masculino (1974: 471-472). A psicanalista distingue
o tratamento que Lautréamont dispensa à genitalidade daquele trabalhado por Mal-
larmé. Enquanto nesse a genitalidade assume a roupagem do “mistério inacessível e
fascinante”, para o outro ela se reveste de horror e encontra na possessão fálico-
sádica um meio de dominar esse temor. Para Kristeva, a genitalidade explorada por
Ducasse-Lautréamont e, em conseqüência disso, a sexualidade em linhas amplas, não
se liga a gestos em busca do prazer. Trata-se, portanto, em primeiro plano, de algo
“perigoso”, ameaçador” e do qual se deve tomar distância: “o acasalamento de Mal-
doror com a fêmea do tubarão é ‘longo, casto e torpe’
1
”(1974: 471). Existem, assim,
dois procedimentos para a conduta masculina nos Cantos: “a posição do macho é ora
sádica (‘eu teria cravado minha vara, através do seu esfíncter ensangüentado’); (...)
ora de castração: ‘Uma víbora má devorou minha vara e tomou o seu lugar: ela me
tornou eunuco, esta infame’
2
” (1974: 471-472).
Diversamente dos textos de Mallarmé – nos quais se destaca a representação
da “mulher absoluta”, “mãe fascinante” em contraponto ao pai apagado, ausente,
1
“l’accouplement de Maldoror avec la femelle du requin estlong, chaste et hideux (La
révolution du langage poétique, 1974: 471).
2
“la position du mâle est soit sadique (‘j’aurais enfoncé ma verge, à travers son sphyncter
sanglant’); (...) soit de castration: ‘Une vipère méchante a dévoré ma verge et a pris sa
place: elle m’a rendu eunuque, cette infâme’” (La révolution du langage poétique, 1974: 471-
472).
97
fruto da imaginação – na produção textual de Lautréamont o pai ganha a cena, ainda
que seja constantemente desafiado pelo sujeito lírico. A representação da mãe, entre-
tanto, não é tão expressiva quanto nos textos de Mallarmé. A psicanalista, todavia, a
localiza no papel de suporte da célula familiar, com base no “Canto Segundo”, situa-
ção que não retira a mãe de sua submissão ao “pai-réplica” de um “Criador grotes-
co”. Assim, Kristeva se volta à representação paterna nos Cantos e encontra ecos dos
discursos de Poe e de Baudelaire (1974: 493). Nessa medida, a dicotomia que flagra
nos cantos de Lautréamont é a do Todo-Poderoso/Maldoror. Tal dicotomia está pre-
sente na literatura romântica de Blake a Goethe (ela se restringe a esses autores, mas
reconhece a existência de outros tantos). Ao evocar o personagem Mefistófeles, de
Goethe, a psicanalista evidencia o corpo como parte de uma totalidade que não se
reduz à organicidade: “Mefistófeles é uma parte da totalidade, ele é o corpo, ligado à
noite e à mãe, mas necessário ao jorro da luz
1
” (1974: 573). Na configuração da copre-
sença sexualidade/pensamento atua a negatividade que Kristeva observa em textos
diferentes como os Goethe e os de Lautréamont. O corpo, no fragmento referente à
negatividade goethiana, lança a perspectiva da vazão do semiótico, que pode ser lida
como materna, sexualizada: “Uma parte corporal, que nega – uma irrupção da nega-
tividade no simbolismo: ‘Ich bin der Geist der stets verneint’ – ‘Eu sou o espírito que
sempre nega’ – assim se apresenta essa oposição à lei simbólica
2
” (1974: 573). A valo-
rização da negatividade é comum aos dois poetas, todavia em Lautréamont não exis-
te simetria entre o Todo-poderoso e Maldoror, de acordo com a argumentação da te-
órica. Maldoror adquire um caráter que Kristeva denomina de inumano (inhuman),
mineral (minéral), mecânico (mécanique) inanimado (inanimé), negativo (négatif). De-
corrente dessas possibilidades metamorfoseadas surge um personagem que não ab-
dica de seu corpo, assim como ilustram os fragmentos coletados por Kristeva na ca-
racterização híbrida de Maldoror: “seu rosto de platina”, “o homem de lábios de
1
“Méphistophèles est une partie de la totalité, il est le corps, lié à la nuit et à la mère, mais
nécessaire au jaillissement de la lumière” (La révolution du langage poétique, 1974: 573).
2
“Une partie, corporelle, qui nie – une irruption de la négativité dans le symbolisme: ‘Ich
bin der Geist der stets verneint’ – ‘Je suis l’esprit qui nie toujours’ –, ainsi se présente cette
opposition à la loi symbolique” (La révolution du langage poétique, 1974: 573).
98
bronze”, “o homem da pupila de jaspe”, “o homem de lábios de safira”, “o corsário
de cabelos de ouro”, o homem de lábios de enxofre
1
” (1974: 577).
1.8 Outras leituras do corpo
O estudo da representação do corpo em textos de Kristeva torna-se viável a
partir das leituras da teórica. No entanto, a análise sobre as leituras de Kristeva frus-
tra expectativas de resultados exaustivos: em primeiro lugar está o fato de que ela
mantém, na atualidade, uma produção rica em referências diversas, as quais con-
templam a teoria literária, a lingüística, a psicanálise e inclusive a criação literária no
gênero romance; em segundo, ressaltamos, a partir da própria leitura da obra da
pensadora, o fato de que ela desmotiva interpretações fechadas em esquemas totali-
zantes e absolutos. A leitura de La révolution du poétique. L’avant-garde à la fin du XIXe.
siècle: Lautréamont et Mallarmé, resultado de sua tese de doutorado, evidencia um
leque de possibilidades interpretativas e fornece pistas para a compreensão de outros
textos mais recentes da escritora. Esse trabalho, que se centraliza na produção de po-
etas importantes, os quais ganham espaço no título da obra – Lautréamont e Mallar-
mé – não se esgota nessas duas referências centrais para o empreendimento de Kris-
teva. Cabe-nos, portanto, com base em algumas referências situadas às margens dos
textos centrais preconizados pela teórica, localizar o “corpo” em algumas leituras
propostas por Kristeva, iniciando pelo escritor Georges Bataille.
As referências a Georges Bataille
2
, pensador caracterizado sob o epíteto de po-
eta maldito, são periféricas e metafóricas. O trecho a seguir evidencia noções que es-
tão presentes em obras de Bataille, assim como sinaliza a palavra “dépense”, que tra-
duzimos como “dispêndio” no sentido de excesso, gasto. Trata-se de um conceito
central para Bataille e aparece, sobretudo, em sua obra La part maudite. É interessante
constatar como Kristeva se vale desse conceito com a finalidade de relacioná-lo as
1
‘“sa figure de platine’, ‘l’homme aux lèvres de bronze’, ‘l’homme à la prunelle de jaspe’,
‘l’homme aux lèvres de saphir’, ‘le corsaire aux cheveaux d’or’, ‘l’homme aux lèvres de
soufre’” (La révoltion du langage poétique, 1974: 577).
2
Georges Bataille foi um importante colaborador da Revista Tel Quel da qual Kristeva fez
parte. Segundo Forest (1995:113), Bataille deixou seus últimos textos em estado de rascu-
nho para serem revisados e publicados pelo comitê da Tel Quel.
99
suas próprias criações conceituais. É o caso do procès de signifiance (processo de signi-
ficância), recorrente no pensamento de Kristeva, que surge ao lado de um verbo que
chama a atenção para uma possível construção de Bataille – ainda que essa apareça
sob forma verbal (En dépensant). A palavra experiência (l’expérience), ao se referir à
experiência textual, toma por referência os textos dos poetas que ganham destaque
de capa do livro – Lautréamont e Mallarmé , entretanto é possível retomá-la no fe-
chamento do fragmento recortado. A experiência textual a que a psicanalista se refere
é próxima da experiência interior (l’expérience intérieure), ou seja, título de uma obra
de Bataille. Existe, portanto, uma sutil alusão ao texto e às idéias centrais desse pen-
sador sem mencioná-los diretamente:
Toda a experiência de vanguarda, desde o fim do século XX, do poe-
ta maldito à esquizofrenia, demonstra, ao contrário, a possibilidade
de um processo de significância diferente daquele do pensamento
conceitual unificador. (...) a experiência textual deixa entrar a morte
no dispositivo significante. Entretanto ela não se imobiliza numa i-
nércia do pensamento, mas ilumina a unidade conceitual em ritmos,
distorções lógicas (Lautréamont), paragramas e inversões sintáticas
(Mallarmé), que registram, através do significante, a ultrapassagem
do seu limite. (...) Pode-se dizer que o texto de vanguarda, desde o
fim do século XIX, estava essencialmente ligado a deixar passar, num
não-pensamento, pelo processo de linguagem, a violência da rejeição
que aparece como uma morte ao sujeito unário, como uma castração
ao analista (...). Gastando o pensamento pelo processo de significân-
cia, o texto inscreve a negatividade que a sociedade (capitalista) e
sua ideologia oficial recalcam. Se ele entra, no entanto, em contradi-
ção com o sistema econômico e ideológico dominante, o texto parti-
cipa do jogo; através dele, o sistema se dá o que lhe falta: a rejeição,
mas a conserva num domínio à parte, circunscrito ao “eu”, à “experi-
ência interior” de uma elite e ao esoterismo. O texto se torna o agen-
te de uma nova religião que não será mais universal, mas elitista e
esotérica (A revolução da linguagem poética, 1974: 166)
1
.
1
“Toute l’expérience de l’avant garde, depuis la fin du XXe. siècle, du poète maudit à la
schizophrènie, démontre au contraire la possibilité d’un procès de la signifiance différent
de celui de la pensée conceptuelle unifiante. (...) l’expérience textuelle fait entrer la mort
dans le dispositif signifiant. Elle ne s’immobilise pas pour autant dans une inertie de la
pensée, mais fait éclater l’unité conceptuelle en rythmes, distorsions logiques (Lautréa-
mont), paragrammes et inventions syntaxiques (Mallarmé), qui enrigestrent, à travers le
signifiant, l’outrepassement de sa limite. (....) On pourrait dire que le texte d’avant-garde
depuis la fin du XIXe. siècle s’est essentiellement attaché à faire passer, dans une non-
pensée, par le procès du langage, la violence du rejet qui apparaît comme une mort au
sujet unaire, comme une castration à l’analyste (...). En dépensant la pensée par le procès
de la signifiance, le texte inscrit la négativité que la société (capitaliste) et son idéologie
officielle refoulent. Pourtant, s’il entre ainsi en contradiction avec le système économique
et idéologique dominant, en texte en joue le jeu; à travers lui, le système se donne ce qui
lui manque: le rejet, mais le conserve dans une domaine à part, circonscrit au ‘moi’, à l’
100
Em outra passagem, Kristeva menciona a polêmica entre Bataille e Sartre a
respeito do poeta Charles Baudelaire, na qual, segundo a teórica, “Bataille reconhece
a atitude menor do poeta, sua miséria infantil” (1974: 186). A partir do texto de Ba-
taille, que nessa passagem ganha uma ampla citação de uma obra reconhecida – A li-
teratura e o mal –, Kristeva critica o posicionamento sartriano calcado na defesa do su-
jeito pleno, nunca aberto ou negativizado na sua economia. Novamente o pensamen-
to de Bataille serve para que ela realce pontos de sua própria intenção de construção
poética:
“A poesia pode verbalmente pisotear a ordem estabelecida, mas não
pode substituí-la. Quando o horror de uma liberdade impotente en-
gaja de forma viril o poeta para a ação política, ele abandona a poe-
sia. Mas desde esse momento ele assume a responsabilidade da or-
dem por vir, ele reivindica a direção da atividade, a atitude maior: e
nós não podemos deixar de apreender, de ver, que a existência poéti-
ca, onde percebemos a possibilidade de uma atitude soberana, é ver-
dadeiramente a atitude menor, ela não passa de uma atitude de crian-
ça, de um jogo gratuito” (A literatura e o mal, Gallimard, 1957, p. 38-
39 texto de Bataille, In: A revolução da linguagem poética, 1974: 186-
187)
1
.
Há também certo afastamento no que diz respeito a essa “experiência interi-
or”. Para ela, a questão está em introduzir o processo da significância não mais so-
mente no interior de uma “experiência individual”, mas no processo objetivo da ci-
ência, da técnica e das relações sociais da atualidade. Esse foi o empreendimento que
os textos do fim do século XIX inauguraram.
‘expérience intérieure’ d’un élite, et à l’ésotérisme. Le texte devient l’agent d’une nouve-
lle religion qui ne sera plus universelle, mais élitiste et ésotérique” (La révolution du lan-
gage poétique, 1974: 166).
1
“’La poésie peut verbalement fouler aux pieds l’ordre établi, mais elle ne peut pas se subs-
tituer à lui. Quand l’horreur d’une liberté impuissante engage virilement le poète dans
l’action politique, il abandonne la poésie. Mais dès lors il assume la responsabilité de
l’ordre à venir, il revendique la direction de l’activité, l’attitude majeure: et nous ne pou-
vons manquer de saisir, à le voir, que l’existence poétique, où nous apercevons la possi-
bilité d’une attitude souveraine, est vraiment l’attitude mineure, qu’elle n’est qu’une attitu-
de d’enfant, qu’un jeu gratuit’” (La littérature et le mal, Gallimard, 1957, p. 38-39 texto de
Bataille, in La révolution du langage poétique, 1974: 186-187).
101
Outra referência a Bataille encontra-se em “L’acte Bataille”
1
, de Philippe Sol-
lers. O estudioso de Bataille e marido de Kristeva aborda a constituição de um sujeito
dividido no que chama de causalidade duplicada, simultaneamente interna e externa
ao sujeito. Tal processo faz com que a unidade subjetiva seja despendida (dépensée).
Tornando-se irredutível ao conhecimento, ela escapa através do riso, do erotismo ou
do sagrado. Todas essas manifestações da “dépense”, é importante ressaltar, são te-
máticas exploradas por Bataille. Essa exposição participa de um capítulo destinado à
prática – o subcapítulo em questão se chama La pratique
2
. Para Kristeva, o sujeito de
uma experiência prática é um excesso (excès), no entanto é de extrema necessidade
para as renovações sociais e, conseqüentemente, artísticas.
O texto, segundo Kristeva, é uma prática na qual se constitui e se destrói uma
“formação econômica e social”. Trata-se de um lugar de relações sociais e também
associais, em que noções importantes como a rejeição (rejet) e o dispêndio (dépense)
(1974: 371) exemplificam as relações associais. O fragmento a seguir é antecedido de
uma referência a Marx como sendo o articulador da noção de formação econômica e
social. Tal noção marxista presume análises e posições precisas sobre diferentes mo-
dos de produção imbricados em uma mesma sociedade, sobre as diferentes superes-
truturas e sobre as articulações específicas de cada um desses domínios, assim como
resume Kristeva em A revolução da linguagem poética (1974: 368-369). Kristeva, todavia,
propõe algo além de uma análise da superestrutura, e para tanto ela se vale, explici-
tamente, de uma obra de Bataille – A parte maldita, na qual o autor discorre acerca
da função do “dispêndio”:
Parece-nos que uma definição sintética de uma sociedade suporia i-
gualmente levar em conta os modos de reprodução e, com eles, as re-
lações, por assim dizer, associais, de forma a pôr à prova a coesão
social, constituindo os lugares de seu dispêndio* (dépense) [nesta pa-
lavra há uma nota de rodapé: “Que Georges Bataille examinou na
Part maudite”] e localizando, tanto na prática sexual quanto nos ritos,
e em geral, as práticas significantes (poesia, dança etc) das quais elas
1
Philippe Sollers, “L’acte Bataille”, in Tel Quel, n. 52, hiver 1972, p. 44. Cf Kristeva, La révo-
lution du langage poétique, 1974, nota 13, p. 181.
2
Julgamos conveniente marcar a distinção que ela promove entre experiência e prática. A
recusa, por exemplo, de Mallarmé de engajamento em atividades políticas não o afasta de
crucial importância para mudanças sociais que os textos do poeta instigam.
102
são inseparáveis (A revolução da linguagem poética, 1974: 369)
1
.
Em linhas gerais, Kristeva não se contenta com uma dicotomia simples entre
infraestrutura/superestrutura, mas em práticas que podem aparecer como plurifun-
cionais ou plurideterminadas. Para ela, sem a possibilidade da existência supérflua
do “dispêndio” (dépense), o qual é representado na sociedade burguesa pela política,
pela cultura ou, mais especificamente, pela contestação e subversão políticas e cultu-
rais, seria impossível a formação do sujeito, sustentado pelo materialismo dialético,
por uma “consciência de classe” (1974: 338).
A literatura e o mal, já mencionada, volta à cena em nota de rodapé, justapon-
do-se à poesia de Mallarmé: “A experiência de Mallarmé participa de um processo
histórico que desafoga o dispêndio (dépense) de seus compromissos com os valores
burgueses, mas o cumprimento deste processo ainda não nos parece efetuado em
nossos dias” (cf. n. 41, In: A revolução da linguagem poética, 1974: 435)
2
. Curiosamente,
a psicanalista retoma a polêmica de Sartre com Bataille sobre Baudelaire nessa mes-
ma nota. Kristeva reitera o fato de Bataille ter assumido certo posicionamento que a-
tribui à atividade literária o papel de oposição a uma sociedade do proveito e da ne-
cessidade. Logo depois, a teórica retoma a temática da procriação, da filiação, já es-
boçada na referência à obra A parte maldita, e menciona outro texto central de Geor-
ges Bataille: O erotismo
3
. A partir dessa obra de Bataille, Kristeva tece algumas consi-
derações que nortearão a importância que a psicanalista faculta à figura materna e
suas implicações misteriosas. É em função de O erotismo que Kristeva sustenta uma
espécie de ruptura nas relações familiares e, por conseguinte, nas relações de poder:
“A sexualidade como dispêndio (dépense) ou como erotismo não tem lugar dentro da
1
“Il nous semble qu’une définition synthétique d’une société supposerait également la prise
en considération des modes de reproduction et, avec eux, des rapports pour ainsi dire a-
sociaux mettant à l’épreuve la cohésion sociale, constituant les lieux de sa dépen-
se*(Bataille examina em La part maudite, cf. nota de rodapé), et se situant aussi bien dans
la pratique sexuelle que dans les rites, et en général les pratiques signifiantes (poésie,
danse, etc.) dont ils sont inséparables” (La révolution du langage poétique, 1974: 369).
2
“L’expérience de Mallarmé fait partie d’un processus historique qui dégage la dépense de
ses compromis avec les valeurs bourgeoises, mais l’accomplissement de ce processus ne
nous paraît pas effectué jusqu’à nos jours” (La révolution du langage poétique, 1974: 435).
3
Ver nota 21 em La révolution du langage poétique (La révolution du langage poétique, 1974: 482).
103
Santa Família, e só encontrará refúgio fora da família, na mística: no século III, Cle-
mente de Alexandria introduz explicitamente os mistérios – o mistério – no culto cris-
tão
1
(1974: 488).
A aceitação do excedente característico do erotismo muda a acepção de família
na medida em que oferece espaço para algo além da procriação. É a partir dessa
perspectiva que Kristeva sugere modificações no âmbito da arte. O movimento sim-
bolista, por exemplo, substitui a figura do Soberano pela imagem da Mãe carregada
de mistério. Com base na obra O erotismo de Bataille, evidenciamos a espessura que a
teórica oferece ao corpo feminino. Apesar de ressaltar o poder feminino, esse nunca é
reconhecido pela lei simbólica ou, em outras palavras, pelo domínio fálico. O poder
da geratriz permanece misterioso, sendo possível percebê-lo por meio de seus efeitos
concretos. Valendo-se da figura mitológica de Ísis Kristeva frisa a plurifuncionalida-
de da deusa que é mãe, esposa e irmã, além de ser aquela que ressuscita Osíris. Se o
texto de Bataille sobre o erotismo nos leva a refletir sobre o mistério do excedente,
que não está restrito à procriação, ele também faz uma ponte para outra leitura cen-
tral de Kristeva que se soma a essa. Trata-se do Timeu de Platão, obra da qual a psi-
canalista se utiliza para elucidar a noção central chamada de chora semiótica. A chora,
apesar da dificuldade que impõe de ser apreendida, tal como ela recorta do texto de
Platão, constitui um receptáculo nutritivo e materno. Novamente estamos em contato
com o domínio do corpo: “O espaço-receptáculo platônico é uma mãe e um alimen-
to”
2
(cf. n. 17 In: A revolução da linguagem poética, 1974: 25).
Outra referência presente em A revolução da linguagem poética é sobre o poeta e
dramaturgo Antonin Artaud
3
. Em suas notas preliminares, que estruturam os objeti-
1
“La sexualité comme dépense ou comme érotisme n’a pas lieu dans la Sainte Famille, et ne
trouvera refuge qu’en dehors de la famille, dans la mystique: au III e. siècle, Clément
d’Alexandrie introduit explicitement les mystères – le mystère – dans le culte chrétien”
(La révolution du langage poétique, 1974: 488).
2
“L’espace-réceptacle platonicien est une mère et une nourrice” (n. 17, In La révolution du
langage poétique, 1974: 25).
3
O número 20 da revista é dedicado a Artaud; decore disso uma configuração estética da
revista que contempla não somente autores tradicionais franceses como Flaubert, mas
também aqueles que estão à margem dos grandes autores e circulam sob o epíteto de
malditos. Conforme Forest (1994: 437), Artaud e Bataille, na década de 60, atuavam na
cena literária em plano secundário como uma espécie de “curiosidade” literária. Como
104
vos do longo trabalho desenvolvido em sua tese, Kristeva sustenta que a sua orienta-
ção consistirá numa espécie de renúncia às totalizações típicas de discursos positivis-
tas que reduzem as práticas significantes a meros formalismos ou ao que ela conside-
ra “uma identificação redutora a outras ilhotas (discursiva, ideológica e econômica)
do conjunto social” (1974: 13). É nesse contexto de inovações interpretativas que sur-
ge a primeira alusão a Artaud. Ao lado de Lautréamont e de Mallarmé – os persona-
gens centrais da análise maior – o nome do dramaturgo francês aparece praticamente
por acaso ao lado do escritor James Joyce. Esses autores compartilham a experiência
de terem modificado substancialmente a linguagem de forma inovadora em suas
respectivas épocas. Ao longo de outros trabalhos, Kristeva volta recorrentemente a
Joyce
1
, o mesmo sendo observado às referências que faz de Artaud, em La révolution:
com Lautréamont, Mallarmé, Joyce, Artaud, para só citar alguns, se
trata de um fenômeno novo. – O modo de produção capitalista pro-
duz, separa, mas ao mesmo tempo explora, para se regenerar, uma
das manifestações das mais espetaculares do discurso, a qual, sendo
uma manifestação do sujeito e dos seus limites ideológicos, provoca
um triplo efeito e lança três séries de questões (A revolução da lingua-
gem poética, 1974: 13)
2
.
Ao retornar a Artaud, curiosamente a autora o situa ao lado dos protagonistas
– Lautréamont e Mallarmé. James Joyce, como na citação anterior, também divide a
cena com o dramaturgo. A experiência da leitura desses escritores é descrita com
cautela, pois requer significativo desprendimento das normas gramaticais, uma espé-
cie de descolamento sígnico que atiça um lado obscuro daquele que se aventura em
tal empreendimento. Não é sem o sofrimento de um leitor experiente que Kristeva
adverte sobre as possíveis perturbações que tais textos imprimem naqueles que se
forma de inseri-los entre os autores consagrados, no verão de 1972, a revista organiza um
colóquio chamado “Rumo a uma revolução cultural: Artaud e Bataille (“Vers une révolu-
tion culturelle: Artaud et Bataille”).
1
Referimo-nos a Pouvoirs de l´horreur. Essais sur l’abjection. Paris: Seuil, 1980.
2
“avec Lautréamont, Mallarmé, Joyce, Artaud pour ne citer que quelques-uns, il s’agit
d’un phénomène nouveau. – Le mode de production capitaliste produit, écarte, mais en
même temps exploite, pour s’en régénérer, un des éclatements les plus spetaculaires du
discours, lequel, étant un éclatement du sujet et de ses limites idéologiques, provoque un
triple effet et pose trois séries de questions” (La révolution du langage poétique, 1974: 13).
105
deixam tocar pelo esfacelamento do significante em busca de uma experiência mais
próxima com tais textos:
Com Lautréamont, Mallarmé, Joyce, Artaud, ler significa abandonar
a operação léxico-sintático-semântica do deciframento e refazer o
trajeto da produção deles. Quantos são capazes? Nós lemos a partir do
significante, tecemos vestígios, reproduzimos narrações, sistemas,
derivas, mas nunca o vazio perigoso e violento dos quais esses textos
são a única testemunha (A revolução da linguagem poética, 1974: 98,
grifos nossos)
1
.
Em outra passagem referente ao capítulo sobre a negatividade e a rejeição, en-
tre o pensamento hegeliano (Fenomenologia do espírito; Ciência da lógica) e alguns apon-
tamentos acerca de idéias de Kant e de Frege, acha-se uma citação pequena, entretan-
to de forte apelo visual, de Antonin Artaud. Para ilustrar o choque de forças caracte-
rístico da negatividade, Kristeva se vale de um fragmento do texto O autômato pessoal
(L’automate personnel
2
), de Artaud: “Sente-se lá uma trituração de represas, um tipo
de horrível choque vulcânico onde a luz está dissociada do dia. E desse choque, e
desse rasgo de dois princípios nascem todas as imagens em potência, num choque
mais vivo do que a lama profunda”
3
(1974: 107). Na citação que segue, com o objetivo
de ilustrar a construção do que chama de “significância” (signifiance), nota-se algo
mais complexo do que a negatividade hegeliana na medida em que se apresenta an-
terior e interior a esta, a teórica, novamente, fecha o pensamento com um trecho de
“As novas revelações do ser” (“Les nouvelles révélations de l’être”), de Antonin Ar-
taud:
É em tecnologia e em política, mas também em arte, que se parece
encontrar os domínios onde o desejo é excedido por um “movimen-
1
“Avec Lautréamont, Mallarmé, Joyce, Artaud, lire signifie abandonner l’opération lexicale-
syntaxique-sémantique du déchiffrement, et refaire le trajet de leur production. Combien
en sont capables? Nous lisons du signifiant, tissons des traces, reproduisons des narrati-
ons, des systèmes, des dérives, mais jamais le creuset dangereux et violente dont ces tex-
tes ne sont que le témoin” (La révolution du langage poétique, 1974: 98).
2
Cf. Guinzburg, em Linguagem e vida. Antonin Artaud, O autômato pessoal seria o resultado
da opinião de Artaud a respeito de um retrato que o amigo Boschére havia pintado do
poeta na véspera e de memória (2004: 197).
3
‘“On y sent un broiement d’éclus6(dea(taud: y99.2216814 0 TD.048 T0191364 Twes, )-’de hiapanum c récanantiqoù s’ a stá dissée do )]TJ-22.1557 -1.2395 TD48 055 Tw[(ao)15lumièrique jourdiata e cdadeurment, e cdud: y90.7302335 0 TD.0477 Tc.0257 Twdu dérroiemenra eereis prips desá diemetouw(tdo )]TJ0.7302398 -1.2395 TD.0485 Tc18.079 Twpab as imgenn prodsifia,set s6(deap? Nslle)]TJ8683713 0 TD674015 Tc0 Tw.8(9t)4e8(9t)49(a 5 -(l)J-1(u)J-7)15(8)16.va 5 va 5 9ttuu9ta7(t)a9t9t9t9t”7(t)a
106
to” que ultrapassa as estases da estruturação desejante e desloca os
quadros de dispositivos intersubjetivos onde coagulam as identifica-
ções fantasmáticas. Dessa forma, nos aproximamos de uma noção
que se revela essencial para os funcionamentos-limite, produtores,
de inovações sociais e culturais, mas que ainda aparece no funda-
mento da significância. Trata-se de designar um acontecimento logi-
camente anterior e interior ao trajeto da negatividade hegeliana; in-
termediário e subjacente à distinção psicanalítica entre “desejo” e
“necessidade”; transversal e inerente ao desenvolvimento biológico e
significante, mas os religando entre si. Poderemos nomeá-lo cisão, se-
paração, rejeição: “... não estou morto, mas estou separado”
1
(A revolu-
ção da linguagem poética, 1974: 134).
A referência ao texto de Artaud aparece em nota de rodapé (cf. n. 82, “Les
nouvelles révélations de l’être”, In: Oeuvres complètes, t. VIII, p. 151). Trata-se, no en-
tanto, de uma alusão, no mínimo audaz, se levarmos em consideração o fato de Ar-
taud ter passado por instituições psiquiátricas e ser reconhecido pela sua inconstân-
cia temperamental. Não podemos deixar de sublinhar o impacto argumentativo pro-
porcionado pela leitura de Kristeva ao justapor à metódica teoria de Hegel o pensa-
mento visceral de Artaud. As idéias de Artaud, no que elas estão impregnadas de
corporalidade, também permitem aproximações com o pensamento freudiano. O
dramaturgo entrará, entre outras funções que ela subentende, para suprir ilustrati-
vamente a necessidade de estabelecimento de um prazer subjacente à função simbó-
lica (à linguagem), ou seja, para realçar um prazer de difícil apreensão porque é re-
calcado por essa mesma função responsável pela linguagem, por conseguinte pela
exposição do poético. É o prazer pela repulsão que fica recalcado pela função simbó-
lica, mas que também pode deslocá-la, perturbá-la:
A pulsão da qual se trata é a pulsão anal: a rejeição anal, a analidade
da qual Freud vê o componente sádico do instinto sexual e que ele
1
“C’est en technologie et en politique, mais aussi en art, qu’on semble trouver des domaines
où le désir est excédé par un ‘mouvement’ qui surpasse les stases de la structuration
désiderante et déplace les cadres des dispositifs intersubjectifs où coagulent les identifi-
cations fantasmatiques. Nous approchons ainsi d’une notion qui s’avère essentielle pour
des fonctionnements-limites, producteurs, d’innovations sociales et culturelles, mais que
plus encore apparaît au fondement du fonctionnement de la signifiance. Il s’agit de
désigner un événement logiquement antérieur et intérieur au trajet de la négativi
hégélienne; intermédiaire et sous-jacent à la distinction psychanalytique entre ‘a linu8tuntsiovroducialyt’lbesoin’; essidade”; d8623/TT8 1 Tf.7006 5 T6.0003 Tccime i
107
identifica com a pulsão de morte. Gostaríamos de sublinhar a impor-
tância dessa rejeição anal, dessa analidade: anterior à instauração do
simbólico, é sua condição e seu recalque. O processo do sujeito, sen-
do o processo de sua linguagem e/ou da função simbólica ela mes-
ma, supõe – na economia do corpo que é seu suporte – uma reativa-
ção desta analidade. Os textos de Lautréamont, Jarry, Artaud – só
para citar esses – designam explicitamente a pulsão anal agitando o
corpo do sujeito na sua subversão da função simbólica
1
(A revolução
da linguagem poética, 1974: 136).
Artaud, que divide a cena com Lautréamont e Jarry, esse também dramaturgo,
desafia os impasses da psicanálise, pois Kristeva critica o silêncio de Freud diante da
analidade que se compara ao mesmo silêncio do psicanalista frente à literatura e ao
fazer literário. A função literária opera como subversão da função simbólica e consis-
te na manifestação do sujeito, este que age política e esteticamente a partir das sutile-
zas e do exercício da língua. No mesmo campo psicanalítico, Kristeva evoca a teoria
lacaniana a respeito da aquisição da linguagem, aludindo ao estádio do espelho. Tal
aquisição demanda a supressão da analidade; ou seja, a analidade liga-se a uma ca-
pacidade de simbolização através do afastamento definitivo do objeto rejeitado, atra-
vés do seu recalcamento sob a manifestação do signo (1974: 139):
Para o adulto, o retorno da analidade não sublimada, não simboliza-
da, quebra a linearidade da cadeia significante, a paragramatiza, a
glossolaliza. O sentido, as interjeições, os dipositivos semióticos
transversais aos fenotextos modernos que, para Artaud, se tornam ex-
pectorações ritmadas, traduzem a luta contra o supereu de uma anali-
dade não sublimada; ideologicamente, uma tal transformação da ca-
deia significante ataca, provoca e desvela o sadismo recalcado, a ana-
lidade subjacente aos aparelhos sociais
2
(A revolução da linguagem poé-
1
“La pulsion dont il s’agit est la pulsion anale: le rejet anal, l’analité dans laquelle Freud
voit la composante sadique de l’instinct sexuel et qu’il identifie avec la pulsion de mort.
Nous voudrions souligner l’importance de ce rejet anal, de cette analité: préalable à
l’instauration du symbolique, il en est la condition et le refoulé. Le procès du sujet étant
le procès de son langage et/ou de la fonction symbolique elle-même, suppose – dans
l’économie du corps qui en est le support – une réactivation de cette analité. Les textes de
Lautréamont, Jarry, Artaud – pour ne citer que ceux-là – désignent explicitement la pul-
sion anale agitant le corps du sujet dans sa subversion de la fonction symbolique” (La
révolution du langage poétique, 1974: 136).
2
“Chez l’adulte, ce retour de l’analité non sublimée, non symbolisée, casse la linéarité de la
chaîne signifiante, la paragrammatise, la glossolalise. Ce sens, les interjections, les dispo-
sitifs sémiotiques transverseaux aux phéno-textes modernes qui, chez Artaud, devien-
nent des expectorations rythmées, traduisent la lutte contre le surmoi d’une analité non
sublimée; idéologiquement, une telle transformation de la chaîne signifiante attaque,
provoque et dévoile le sadisme refoulé, l’analité sous-jacente des appareils sociaux” (La
108
tica, 1974: 139, grifos nossos).
As caracterizações que ela faculta a Artaud sublinham as marcas corpóreas
que percebemos em vários textos do pensador. As “expectorações ritmadas” reme-
tem ao ritmo semiótico do escritor que, numa luta extrema entre a experiência e a
linguagem, mescla as duas de modo a torná-las indistintas
1
. Dessa form5.08r8tos mas
109
“Ducasse”, mas tal cisão aponta para a condição que nega a função simbólica. Trata-
se, como ela enfatiza, do recurso a outra referência diferente daquela da herança pa-
terna. Nessa ruptura do simbólico, a psicanalista acrescenta um fragmento de texto
de Artaud. Ele radicaliza esse rompimento com a função simbólica ao extremo, assim
como Kristeva o ilustra com um recorte que aparece entre parênteses, sem oferecer a
referência: “Segundo parto, auto parto, eliminação da família e usurpação de todos
os seus papéis (como fará mais tarde Artaud: “eu sou meu filho, meu pai, minha
mãe/e eu”; e como o faz Mallarmé em Tombeau d’Anatole). Pode-se ler lá o processo
da totalização psicótica. Trata-se, no entanto, de outra coisa
1
” (1974: 192-193).
Os Cantos de Maldoror, objeto de análise de Kristeva, estão repletos de trans-
gressões, todavia eles nunca abolem a lei simbólica que os atravessa. Para melhor
compreender outro texto de Lautréamont-Ducasse, Poésies, a psicanalista recorre a
um termo presente num texto de Philippe Sollers (“La science de Lautréamont”, In:
Logiques, Éd. du Seuil, 1968: 254-255), qual seja, a “tanatografia” (thanatographie), que
significa uma escrita no limite do nome paterno, no limite do simbólico. Surgem, por-
tanto, outras leituras que a auxiliam na explicitação da experiência-revolta que passa
pelos textos centrais de Lautréamont e de Mallarmé, mas que também oferece espaço
para uma referência a outros escritores, como é o caso de Artaud. Em outra alusão ao
dramaturgo, ela retorna aos personagens dos Chants de Lautréamont que, pela sua
diversidade – uma vez que podem ser objetos, seres imaginários, animais, denota-
ções miméticas, figuras duplas ou até mesmo responderem por nomes próprios de
tonalidade romântica – tocam no que se aproxima da escrita corpórea de Antonin Ar-
taud, na medida em que Kristeva caracteriza tais personagens na qualidade de esta-
dos de “fragmentação corporal”:
Mais ainda, os personagens assim estruturados na instância de um
“ele”, representam ideologias anticonformistas: anti-religiosas até
mesmo anti-sociais. Eles são seus “heróis” no sentido de que não e-
nunciam essas ideologias como credos filosóficos (...). Pela estrutura
155).
1
“Second enfantement, auto-enfantement, élimination de la famille et usurpation de tous
ses rôles (comme le fera plus tard Artaud: ‘Je suis mon fils, mon père, ma mère/et moi’;
et comme le fait Mallarmé dans le Tombeau d’Anatole). On peut y lire le processus de la
totalisation psychotique. Pourtant il s’agit d’autre chose” (La révolution du langage poéti-
que, 1974: 192-193).
110
centrífuga das instâncias ficcionais, e pelas suas significações, a fic-
ção se constrói como um teatro da crueldade, do qual Artaud, muito
mais tarde estabelecerá o programa
1
(A revolução da linguagem poética,
1974: 333, grifos nossos).
O desdobramento dessa alusão ao artista, ou seja, do que consistiria o pro-
grama de Artaud, Kristeva não explicita; ela apenas menciona o teatro da crueldade,
e o liga aos textos de Lautréamont. O programa desse teatro, ao qual ela se refere,
não é um recurso retórico. Ele realmente existe e participa do volume O teatro e seu
duplo, do qual a teórica não faz referência. Temos, portanto, apenas uma pista que
nos leva ao teatro da crueldade associado ao nome de Artaud. O projeto de Artaud
inclui alguns pontos de condenação ao teatro ocidental como a “Rejeição do teatro
como divertimento”; a “Rejeição da encenação tradicional, verista ou ilusionista”;
“Apelo a uma ressurgência do teatro como cerimônia mágica ou mística”; “Apelo a
um renovação da vida através do teatro
2
”. Há um projeto de Artaud, tal como o re-
toma Virmaux, que nos chama a atenção pelo realce que oferece ao corpo: “Apelo a
uma linguagem teatral fundada no corpo e na inspiração”. Trata-se do corpo em evi-
dência, somado a uma breve citação de Sade, que aparece logo em seguida e contri-
bui para o nosso argumento que destaca algumas leituras de Kristeva acerca do cor-
po: “O gesto de Sade aqui se impõe à comparação. A filosofia da alcova (...). (...) tal é,
em suma, o esforço demandado por Sade. Ele se resume em um termo: a necessidade
da ficção como forma privilegiada de socialização da fruição
3
” (1974: 333-334).
Em outra referência a Artaud, Kristeva retorna à comparação já estabelecida
anteriormente entre o dramaturgo e Lautréamont. O “canto”, de Lautréamont, ela
reitera, é um lugar de conflito, no qual a luta de Maldoror contra o Nome-do-pai ati-
1
“Plus encore, ces personnages ainsi structurés dans l’instance d’un ‘il’, représentent des
idéologies anti-conformistes: anti-religieuse voire anti-sociales. Ils en sont les ‘héros’ au
sens qu’ils n’énoncent pas ces idéologies comme des credos philosophiques (...). Par la
structure centrifuge des instances fictionnelles, et par leurs significations, la fiction se
construit comme un théâtre de la cruauté dont Artaud, beaucoup plus tard va établir le
programme” (La révolution du langage poétique, 1974: 333).
2
Virmaux apresenta tais pontos em Artaud e o teatro (2000: 37).
3
“Le geste de Sade ici s’impose à la comparaison. La Philosophie dans le boudoir (...). (...) tel
est, en somme, l’effort démandé par Sade. Il se résume en un terme: lacessité de la fic-
tion comme forme privilegiée de socialisation de la jouissance” (La révolution du langage
poétique, 1974: 333-334).
111
ça certa agressividade necessária para a renovação (no sentido de ruptura) da lin-
guagem corrente. Em determinado ponto de sua reflexão, Kristeva refere-se aos
Chants de Maldoror como sendo um “Canto da crueldade” (Chant de la cruauté), além
de diferenciá-los por esse motivo do texto Poésies, também de autoria de Lautréa-
mont:
De modo que o “canto” não é um significante neutro, mas antes o
que Artaud chamará um “teatro da crueldade”. Pudemos observar
que nas Poésies, o teatro se desloca ao nível das relações lógicas e que
ele se enuncia como uma reviravolta ou como um leve deslocamento
de proposições moralistas, sem que apareça a cena fantasmática da
crueldade
1
(A revolução da linguagem poética, 1974: 467).
O texto dos Chants, aliado ao pseudônimo Lautréamont, está no limite do pro-
cesso significante e promove um esboroamento (effritement) da função simbólica e,
conseqüentemente, da noção de família. Essa ruptura, no entanto, é a condição neces-
sária para a renovação. Embora Kristeva não detalhe os efeitos de renovação do texto
artaudiano, ela deixa margem para preenchermos essa lacuna na medida em que
desperta interesse para as idéias do teatro da crueldade.
Enquanto Lautréamont é o nome mais ligado ao pensamento de Artaud, o po-
eta Mallarmé atua como segunda opção no que se refere a aproximações com o cria-
dor do teatro da crueldade. A ligação entre os dois, assim como acontece com Lau-
tréamont, dá-se pela via excremencial. De acordo com Kristeva, o poeta percebeu
muito cedo a importância deste teor, que é fundamental para qualquer existência so-
cial, e do qual ele tenta se separar de forma a explorar a negatividade anterior ao ob-
jeto. Para retomar a importância da analidade e relacioná-la com o papel do dinheiro,
ela reitera a explicação da aquisição da linguagem. Ou seja, ao passar pela fase anal,
que se caracteriza como sendo uma fase de agressividade, na qual o corpo é separado
das funções de ejeção e de secreção, o sujeito se isola – está aí o fundamento da su-
blimação – e encontra no dinheiro a identificação com o poder. O efeito do teatro li-
1
“De sorte que le ‘chant’ n’est pas un signifiant neutre mais plutôt ce qu’Artaud appellera
un ‘théâtre de la cruauté’. Nous avons pu remarquer que dans les Poésies, ce théâtre se
déplace au niveau des relations logiques et qu’il s’énonce comme un renversement ou
comme un léger déplacement des propositions moralistes, sans qu’apparaisse le scène
fantasmatique de la cruauté” (La révolution du langage poétique, 1974: 467).
112
ga-se ao empenho despendido, depósito de dinheiro. Nesse ponto a relação que es-
trutura o capitalismo é aquela que estrutura o sujeito; diferente de Mallarmé, Artaud
não é visto como separado desse processo de fixação contemplativa pelo dinheiro:
“Pode-se objetar que Mallarmé, ele mesmo, permaneceu fixado na contemplação des-
te papel-chave do dinheiro, e que se trata portanto de uma analidade recalcada, reti-
da, não separada em processo de dispêndio violento (como ela será por exemplo para
Artaud)
1
” (1974: 518).
A próxima referência a Artaud o liga ao pensamento freudiano no que esse
explora a noção de bissexualidade. Ao que ela chama a partir de Freud de “dupla se-
xualidade” está o reconhecimento da dupla sexualidade no processo de formação do
sujeito – para tanto se vale do termo “genitalidade”. A primeira identificação dá-se
pelo corpo materno, no qual atuam as pulsões orais e anais. A segunda identificação
liga-se ao pênis do pai, o que falta na mãe: trata-se do falo, que abre espaço para o
desenvolvimento do simbólico, da linguagem. Tal topografia, segundo Kristeva, dei-
xa margem para refletirmos acerca do papel da literatura, uma vez que permite a re-
presentação de todas as posições e papéis sociais que os sujeitos podem assumir. “O-
ra, não é o que sempre fez a literatura tanto na sua forma quanto nos seus “conteú-
dos”? A prática literária se arroga o estatuto de um engendramento ininterrupto on-
de o “autor” se torna ao mesmo tempo “seu pai”, “sua mãe”, e “si mesmo”, no en-
tendimento de Artaud
2
” (1974: 606). Artaud, portanto, com a plurifuncionalidade de
seus personagens, serve de exemplo para marcar o funcionamento do texto, o qual
exige uma posição pós-fálica do sujeito, e Kristeva, com base em Freud, o caracteriza
como participante de uma linguagem da genitalidade, fato que, segundo ela, é pro-
vavelmente a única linguagem possível (1974: 607). Sem referir ao conceito-chave de-
senvolvido em Polylogue com base nas referências ao dramaturgo Artaud é essa
1
“On peut objecter que Mallarmé lui-même est resté fixé à la contemplation de ce rôle-clé de
l’argent, et qu’il s’agit là d’une analité refoulée, retenue, non dégagée en procès de
dépense violente (comme elle sera par exemple chez Artaud)” (La révolution du langage
poétique, 1974: 518).
2
Or, nest-ce pas ce qua toujours fait la littérature, aussi bien dans sa forme que dans ses
‘contenus’? La pratique littéraire s’arroge le statut d’un engendrement ininterrompu, où
l’auteur’ devient à la fois ‘son père’, ‘sa mère’ et ‘soi-même’, à entendre Artaud” (La révo-
lution du langage poétique, 1974: 606).
113
mesma idéia que a autora faz circular na sua tese de doutorado. Ora, sustentamos,
apoiados em A revolução da linguagem poética, que a autora defende a necessidade de
nos colocarmos (nós, os leitores) nos diversos papéis sugeridos pelo texto, assim co-
mo faz o autor, de forma a suspender os nossos possíveis ajuizamentos arraigados
em crenças cristalizadas e, por isso, na contramão da mobilidade da significância.
Em última referência a Artaud, que antecede o capítulo conclusivo de A revolução da
linguagem poética, vemos o nome de Artaud ao lado de James Joyce, Ezra Pound e de
Georges Bataille, para ressaltar essa construção textual que implica noções psicanalí-
ticas. No terreno da psicanálise, o pensamento de Wilhelm Reich chama-nos a aten-
ção no conjunto de autores que formam A revolução da linguagem poética.
Reich, segundo Roudinesco (1998: 651-653), foi o criador do freudo-marxismo,
o que significa ter se dedicado ao estudo do fascismo e suas implicações sociais. A
partir de 1924, ele se interessou pelas obras de Marx e Engels para tentar mostrar a
origem social das doenças mentais e nervosas, com a finalidade de conciliar os con-
ceitos marxistas e os da psicanálise. Foi em função de sua adesão ao comunismo que
Reich foi perseguido pelo movimento freudiano e em conseqüência de seu engaja-
mento político foi afastado do grupo de Freud.
A referência a Reich, em A revolução da linguagem poética, passa pela leitura
marxista realizada pela psicanalista. Para ela, a contribuição de Marx ancora-se no fa-
to de ele ter posto fim à ilusão de constituir um Estado englobando organicamente a
totalidade das vontades individuais. Tal empreendimento ela faculta a Hegel e, mais
adiante, a Lênin. O mérito de Marx deve-se a sua percepção da existência de uma
contradição fundadora da “lógica dos conjuntos” na escala social. Apesar disso, ele
não sublinhou a existência do infinito. Segundo Kristeva, a lógica dos conjuntos que
postula a inexistência do conjunto de todos os conjuntos necessita da instauração da
existência do infinito. É nessa falha que a psicanalista localiza o papel do inconsciente
e do funcionamento da linguagem poética. Para Kristeva, o infinito não pode ser a
consciência de classe, uma vez que essa participa do sistema da produção e pertence
à coleção dos conjuntos finitos. Para ela, o funcionamento de uma prática social como
participante do “infinito” exige dessa prática a necessidade de sua consolidação por
uma ruptura. Nessa busca, ela evoca a noção de desejo para Reich (para exemplificar;
114
não se restringe a Reich, embora também não faça alusão a outro pensador) a fim de
marcar o infinito como sendo sempre radicalmente afastado do “código estatal” e das
estruturas de produção que ele gera.
Em A revolução da linguagem poética, Kristeva retoma o texto de Reich de 1934 –
“O que é a consciência de classe?” – que tem como pano de fundo histórico o fascis-
mo e reflete sobre os impasses do movimento dos operários comunistas. Nele, a au-
tora interpreta a tentativa reichiana de reabilitação da noção de “consciência de clas-
se” como distinta da consciência de classe dos aparelhos do partido, de modo a defi-
ni-la como “desejos progressistas” (désirs progressistes) em oposição às “fixações tra-
dicionais” (fixations traditionnelles). O destaque de Reich, portanto, é para a consciên-
cia subjetiva dos homens, evidência que, conforme Kristeva, não acaba com a função
da vanguarda revolucionária, mas prioriza a necessidade de se “analisar o desejo das
massas antes de conhecer as leis econômicas e históricas
1
” (1974: 390). Kristeva expli-
cita a designação do termo desejo para Reich ligando-o a rupturas com a cadeia pro-
dutiva e reprodutiva (e aqui a leitura do corpo se manifesta em cores vivas) como ú-
nica possibilidade da revolução proletária. A psicanalista também observa certo im-
passe no empreendimento reichiano, uma vez que ele não pretende estabelecer a es-
trutura organizacional ou discursiva que poderia dar voz a essas rupturas. Ela reco-
nhece a falta de respostas de Reich nesse âmbito. A psicanalista, no entanto, enfatiza
a contribuição de Reich e a ligação que ele estabelece entre a linguagem, a sexualida-
de (corpo) e a liberdade:
Reich designa implicitamente a liberação dos sujeitos como uma libera-
ção da sexualidade mas também da linguagem. Que na arte em geral, e
mais particularmente no texto, a partir do fim do século XIX, consti-
tui-se uma linguagem que fala dos lugares de ruptura que a “consci-
ência de classe” econômica recalca – lugares de ruptura próprios ao
desejo das massas mais inexpressivas e provavelmente mais inex-
primíveis da sociedade capitalista produtiva em estado de industria-
lização; portanto lugares de ruptura retirados da experiência das eli-
tes culturais e acessíveis, no seio dessas elites, a raros sujeitos para
os quais essas rupturas correm o risco e apresentam a vantagem de
se radicalizar até a loucura ou ao estetismo, e de, dessa forma, per-
der suas ligações com a corrente social: eis o que queríamos sugerir
2
1
analyser le désir des masses avant de connaître des lois économiques et historiques” (La
révolution du langage poétique, 1974: 390).
2
“Reich désigne implicitement la libération des sujets comme une libération de la sexualité mais
115
(A revolução da linguagem poética, 1974: 391).
A alusão ao texto de Mallarmé, “Conflit”, que se estabelece na seqüência da li-
beração da sexualidade e da linguagem propostas por Reich, ressalta outro texto do
psicanalista: Psicologia de massas do fascismo. O texto de Mallarmé em questão destaca
a palavra “sexual”, que, de acordo com Kristeva, é rara no léxico desse autor (1974:
391). O cruzamento entre o texto de Mallarmé e o de Reich fica mais definido na me-
dida em que a teórica localiza o sexto capítulo intitulado “O misticismo: organização
internacional anti-sexual”, de Psicologia de massas do fascismo (1974: 532). A dominação
do boulangisme entre 1890 e 1895 influenciou correntes ideológicas e literárias, as
quais serviram de pano de fundo para o dogmatismo característico do século XX, que
atou sob a forma de misticismo. Quanto ao misticismo do século XX como forma de
concentração do poder, o texto de Reich funciona como o primeiro a denunciar esta
prática (1974: 532), mas Kristeva percebe reações sutis contra esse movimento de to-
nalidade religiosa/ideológica já nos textos de vanguarda à época de Mallarmé. Mes-
mo com o cuidado do poeta no que diz respeito à análise sexual no dispositivo semi-
ótico, instaura-se uma espécie de ambigüidade que ela chama de “uma surda cum-
plicidade entre um tal vanguardismo e as ideologias reacionárias” (1974: 533). Ape-
sar dessa tensão, que opera no âmbito político, se mantém a referência ao corpo neste
jogo de concessões da linguagem:
Descentrados, excentrados, promovendo dialetizações constantes fa-
ce ao limite e ao infinito, o interdito e o rejeitado, questionando
qualquer sistema, já que eles são o tempo de sua renovação, e prati-
cando esta dialética no material mesmo da linguagem, no corpo
mesmo do sujeito, os textos não respondem à angústia de uma época:
eles reproduzem a sua economia
1
(A revolução da linguagem poética,
aussi du langage. Que dans l’art en général, et dans le texte plus particulièrement, à partir
de la fin du XIXe. siècle, se constitue un langage qui parle ces lieux de rupture que la
‘conscience de classe’ économiste refoule – lieux de rupture propres au désir des masses
mais inexprimés et peut-être même inexprimables par elles dans la société capitaliste
productiviste en état d’industrialisation; lieux de rupture donc retirés dans l’expérience
des élites culturelles et accessibles, au sein de ses élites, à de rares sujets chez qui ces
ruptures courent le risque et présentent l’avantage de se radicaliser jusqu’à la folie ou
l’esthétisme, et de perdre ainsi leurs attaches avec la chaîne sociale: voilà ce qui nous
voudrions suggérer” (La révolution du langage poétique, 1974: 391).
1
“Décentrés, ex-centrés, dialectisant constamment la limite et l’infini, l’interdit et le rejet,
mettant en cause tout système puisqu’ils sont le temps de son renouvellement, et prati-
116
1974: 533).
Ao lado de Reich, em A revolução da linguagem poética, observamos o interesse
de Kristeva pelo pensamento do psicanalista André Green. Algumas idéias de André
Green aparecem misturadas a assuntos que se desenvolvem a partir de noções en-
gendradas por Kristeva para a sua teoria da linguagem poética. É possível, no entan-
to, desenvolver algumas referências a esse psicanalista que estão em nota de pé de
página. Por exemplo, esse texto está no artigo da Revista Francesa de Psicanálise, n. 56,
1971, “A projeção: da identificação projeção ao projeto”, na qual o papel do desejo,
amplamente enaltecido através do pensamento reichiano, passa a ser questionado:
“Mas a cultura é ainda outra coisa, ela implica um desenvolvimento tecnológico e po-
lítico que escapa em parte ao desejo”, escreve A. Green
1
”( 1974: 133).
No capítulo referente à negatividade/rejeição, o mesmo artigo de André Gre-
en é mencionado, e o termo “excorporificação” (excorporation) aparece como correlato
da “expectoração” para Artaud e da “excreção” para Bataille. Em todas essas cons-
truções, portanto, subsiste a noção de corpo que exploramos em algumas leituras de
Kristeva. Mesmo que seja para ressaltar o esfacelamento do corpo, tal como sugerem
os prefixos que acompanham esses termos que evidenciamos nos autores supracita-
dos, o corpo marca o seu movimento e, por conseguinte, a sua existência na teoria
poética da psicanalista:
Se a rejeição comporta o momento de “excorporificação” (a nota 95
alude ao texto de Green já citado), de “expectoração” para Artaud,
ou de “excreção” para Bataille, essa descarga motriz, esse espasmo
corporal se investem no próprio signo já separado, na linguagem, pa-
ra reintroduzir e desenvolver nele a mecânica mesma segundo a qual
se produz a separação entre coisas e palavras; portanto para desen-
volver, deslocar e reajustar o registro vocal (o texto de Malarmé ou os
Cantos de Maldoror de Lautréamont) e as lógicas (Poesias de Ducasse).
A rejeição se reintroduz e se reitera numa linguagem cindida
2
(A revo-
quant cette dialectique dans le matériau même du langage, dans le corps même du sujet,
les textes ne répondent pas à l’angoisse d’une époque: ils en réproduisent l’économie” (La
révolution du langage poétique, 1974: 533).
1
‘“Mais la culture est encore autre chose, elle implique un développement technologique et
politique qui échappe en partie au désir’, écrit A. Green” (La révolution du langage poéti-
que, 1974: 133).
2
“Si le rejet comporte le moment de l’ ‘excorporation’ ( a nota 95 alude ao texto de Green já
citado), de l’ ‘expectoration’ selon Artaud, ou de l’ ‘excrétion’ selon Bataille, cette
117
lução da linguagem poética, 1974: 142).
A coleta dessas referências dispersas, as quais se somam aos poetas que ocu-
pam o título da tese de Kristeva (Lautréamont e Mallarmé) endossa a importância
que a teórica concede à temática do corpo. Observamos que, com a finalidade de in-
vestigar o universo desses poetas que ocupam o centro do debate, uma complexa te-
oria literária vem à tona. Conceitos lingüísticos como “o semiótico”, o “simbólico”,
“fenotexto”, “genotexto”, por exemplo, ganham espaço desde então em diversas uni-
versidades, adquirindo, em grande parte de suas apropriações, o estatuto de concei-
tos cristalizados em citações protocolares.
décharge motrice, ce spasme corporel s’investissent dans le signe lui-même déjà séparé,
dans la langage, pour réintroduire et déployer en lui la mécanique même selon laquelle
se produit la séparation entre choses et mots; donc pour déployer, disloquer et réajuster
le registre vocal (le texte de Mallarmé ou les Chants de Maldoror de Lautréamont) et logi-
ques (Poésies de Ducasse). Le rejet se réintroduit et se réitère dans une langage scindé” (La
révolution du langage poétique, 1974: 142).
118
2 DOIS MOVIMENTOS DO CORPO CLARICIANO
2.1 Perto do coração selvagem
Em linhas gerais, a crítica clariciana reconhece o efeito de estranhamento ca-
racterístico da produção artística de Clarice Lispector sobre o leitor. Reconhece-se o
quanto a escritora inovou no campo da sintaxe a partir de construções cujo arranjo
remete a uma língua por vezes diferente da própria língua portuguesa, embora a es-
critora se reconheça no meio dos escritores brasileiros. Incidir sobre essas renovações
lingüísticas levar-nos-iam a importante campo de investigação ainda não plenamente
desenvolvido no que toca à produção já bastante explorada de Clarice Lispector. O
olhar voltado para a temática do corpo é um outro meio de acesso para reler toda a
gama de renovações da linguagem que a escritora aguça em seus mais diversos tex-
tos. Não se trata daquele corpo que convém à teoria da crítica feminista norte-
americana, ou seja, um corpo feminino visto em grande parte como tributário de um
papel que reivindica a inclusão da mulher no espaço social característico do domínio
masculino, do simbólico. É importante esclarecer que não pretendemos a partir dessa
posição apagar as contribuições da crítica feminista que transitam nessa linha das di-
ferenças entre os gêneros. O texto clariciano, em contrapartida, se abre para questões
um tanto mais complexas do que a disputa entre os gêneros masculino e feminino. A
análise do corpo dos personagens que transitam nos textos da escritora deixa mar-
gem para um amplo leque de investigações que tocam em assuntos referentes não
apenas ao corpo constituído com órgãos (o que já seria reconhecidamente significati-
119
vo em tempos de exacerbada virtualização), mas também às sensações e aos senti-
mentos experimentados por esses personagens.
Os personagens de Clarice passam por experiências que podem ser considera-
das banais, uma vez que não se manifesta nada de extraordinário na vida de Joana,
por exemplo: uma menina órfã, depois da morte dos pais, mora com os tios e na ida-
de adulta se casa com um homem chamado Otávio. A existência de G.H. também
não extrapola ao contexto da classe média alta: uma escultora habita a cobertura de
um apartamento no Rio do Janeiro e em um dia de crise existencial resolve limpar o
apartamento tomando o quarto da empregada como ponto de partida. É dessas situ-
ações prosaicas que a escritora parte para contar histórias, mas essas não se acomo-
dam em lugares comuns, pois as situações retratadas pela escritora não passam des-
percebidas no automatismo do cotidiano. A escritora reveste suas narrações de um
olhar – esse que é típico recurso do narrador para a caracterização das personagens
claricianas – incomum, através do qual uma simples tarefa de casa ou um passeio de
bonde adquirem proporções que extravasam o caráter de objetividade e praticidade
que tais tarefas demandam.
Nesse contexto de aparente simplicidade surgem personagens que desmante-
lam a ordem vigente. Há uma linha da crítica clariciana que os localiza em momentos
de epifania
1
e por isso tais personagens ganham certa aura de mistério misturado às
construções sintáticas incomuns tecidas pela escritora, nas quais se observa o recurso
de cortes abruptos das orações, que desenham muitas vezes uma atmosfera próxima
1
Referimo-nos ao trabalho de Affonso Romano de Sant’Anna “O ritual epifânico do texto”
(1997: 241-261). O crítico desdobra a questão da epifania em duas possibilidades: no sen-
tido místico-religioso e no sentido literário. No primeiro deles, “a epifania é o apareci-
mento de uma divindade e uma manifestação espiritual – e é neste sentido que a palavra
surge descrevendo a aparição de Cristo aos gentios”. No segundo caso, que diz respeito à
literatura, “o termo significa o relato de uma experiência que a princípio se mostra sim-
ples e rotineira, mas que acaba por mostrar toda a força de uma inusitada revelação”
(1997: 244). Subjaz, portanto, ao sentido literário da epifania, significativo caráter religio-
so, místico, ou seja, atribuições que incitam a interpretações em busca de desvelamento
do texto clariciano, o que nos leva, simultaneamente, a construções de novas camadas de
silêncio, de inacessibilidade aos textos carregados de sacralidade de Clarice Lispector.
Nessa mesma linha, situamos o trabalho A escritura de Clarice Lispector, no qual Olga de
Sá retoma as idéias de Affonso Romano de Sant’Anna e chama a atenção para as seme-
lhanças do texto de estréia de Clarice Lispector Perto do coração selvagem com o processo
epifânico característico da obra de James Joyce (2000: 192).
120
da idéia religiosa subjacente à noção epifânica. O engendramento dessa atmosfera
misteriosa e ao mesmo tempo estranha na qual se inserem os personagens de Clarice
promove uma espécie de isolamento interpretativo desses seres ficcionais, os quais
não são suficientemente esmiuçados pela crítica. Se existe, de forma genérica, certa
fluidez na caracterização das protagonistas dos romances claricianos, torna-se, neste
caso, necessário percorrer os caminhos de constituição desses seres de ficção avessos
a taxonomias reducionistas. O nosso intuito é o de trazer à tona a riqueza composi-
cional proposta pela escritora, na qual as experiências retratadas põem em cena uma
série de sensações cujo efeito parece ressoar em movimentos de leitura que causam a
ilusão de desprendimento de qualquer vínculo material. Nosso ponto, entretanto, é
que tais cenas que instigam as sensações mais diversas no amplo quadro de leitores
das obras de Clarice não se dissociam de um cuidadoso processo de observação do
narrador, permanentemente atento às minúcias do cotidiano que escapam ao espec-
tador comum. Embora exista certo efeito de ultrapassagem na descrição das cenas e
elas transmitam nessa medida uma expressiva carga de fluidez – característica que se
sustenta nas diversas alusões ao elemento água empregadas pela escritora na forma-
ção dos personagens –, encontra-se, nos interstícios dessa constituição “aquosa”, uma
importante formação física desses seres de papel. Essa constituição, cabe destacar,
não exclui o aspecto psíquico. Percebemos, portanto, na escrita de Clarice, assim co-
mo já constatamos em textos de Julia Kristeva, a copresença da sexualida-
de/pensamento.
Perto do coração selvagem, publicado em 1943, é o romance de estréia de Clarice.
É a partir dele que se configura certa interpretação direcionada para o estudo de as-
pectos transcendentais na obra da escritora. Deve-se levar em conta para isso a natu-
reza aquosa, fluida da protagonista Joana, pois tal constituição abre margem para a
desistência focada sobre a elaboração física da protagonista. Estamos de acordo com
o aspecto “fluido” de Joana. Para apreendê-lo, entretanto, em seus caminhos claricia-
nos, é importante perscrutá-lo para além da superfície embaçada que o narrador cria.
Trata-se de um recurso retórico que opera uma espécie de bloqueio de acesso à inves-
tigação da protagonista. Joana aparece retratada como um “esboço”, constituída de
linhas suaves que se confundem com o mistério da água do mar e as cenas da ba-
121
nheira; daí a nossa investigação toma como ponto de partida o corpo dos outros per-
sonagens. Nessa medida, estamos em busca, primeiramente, das formas que adqui-
rem os personagens secundários, aqueles que mantêm contatos efêmeros e por vezes
intensos com a protagonista.
O revestimento corpóreo aparece como uma preocupação significativa da nar-
radora de Perto do coração selvagem, cujo discurso em determinado momento da narra-
tiva se mistura ao de Joana. Assim, é por meio da voz de Joana, a personagem reco-
nhecidamente fluida, que são delineados os corpos dos demais personagens. Sob o
olhar da protagonista, o corpo recebe o status de personagem. Numa das rememora-
ções de Joana, não é a lembrança de alguém que a personagem evoca, mas o que está
à frente do discurso da protagonista é a capacidade de congelar uma cena pelo im-
pacto visual, na qual sobressaem fragmentos de um rosto que não diz respeito à his-
tória pessoal de Joana, mas se liga a um estado de aflição onde surge a imagem de
uma face qualquer com vestígios de desagregação: “Distraída, lembrou-se então de
alguém – grandes dentes separados, olhos sem cílios, –, dizendo bem seguro da origina-
lidade, mas sincero: tremendamente noturna a minha vida” (1998: 23, grifos nossos).
Este exercício que encontra no corpo a antecipação de um estado de alma é uma prá-
tica que se manifesta claramente na fase de estudante da protagonista. No internato,
Joana instiga a capacidade observação de suas colegas, que se evadem do jogo de
dissecação proposto pela colega, situação que as deixa “desamparadas”, uma vez que
não são capazes da mesma brincadeira. A situação as deixa “envergonhadas”, já que
Joana se afasta rapidamente das colegas, sem escamotear seu sentimento de despre-
zo, que as deixa “murchas”, ou seja, em situação de desvantagem perceptiva. Joana
detém, portanto, a posse da palavra: – Vejam os olhos daquela mulher... redondos,
transparentes, tremem, tremem, de um instante para outro podem cair numa gota
d’água... (1998: 145).
O refinamento da observação desses corpos que podem ser denominados de
anônimos está no relato de uma cena que antecede o dia do casamento da protago-
nista. A lembrança refere-se à refeição feita por um homem imerso em jogo de sensa-
ções com a sua comida. A atenção do narrador não se fixa apenas no rosto, como em
episódios anteriores, mas também nas mãos e nas pernas do objeto observado. Em-
122
bora não existam descrições do encontro carnal entre Joana e o marido, temos, em
contrapartida, na refeição do “homem guloso”, que desperta em Joana um misto de
abjeção e voluptuosidade, a marca da sexualidade entre essa personagem e Otávio:
Um dia, antes de casar, quando sua tia ainda vivia, vira um homem
guloso comendo. Espiara seus olhos arregalados, brilhantes e estúpi-
dos, tentando não perder o menor gosto do alimento. E as mãos, as
mãos. Uma delas segurando o garfo espetado num pedaço de carne
sangrenta – não morna e quieta, mas vivíssima, irônica, imoral – a
outra crispando-se na toalha, arranhando-a nervosa na ânsia de já
comer novo bocado. As pernas sob a mesa marcavam compasso a
uma música inaudível, a música do diabo, de pura e incontida vio-
lência. A ferocidade, a riqueza de sua cor... Avermelhada nos lábios
e na base do nariz, pálida e azulada sob os olhos miúdos. Joana es-
tremecera arrepiada diante de seu pobre café. Mas não saberia de-
pois se fora por repugnância ou por fascínio e voluptuosidade. Por
ambos certamente (Perto do coração selvagem, 1998: 19).
É evidente a carga de sensualismo na descrição da cena do homem guloso, na
qual observamos uma riqueza cinética a partir dos movimentos do corpo do homem
misturados à habilidade com que ele manuseia a comida, que também sugere a idéia
de movimento, tal como aparece na descrição da carne – “sangrenta” como se guar-
dasse ainda resquícios do animal sacrificado. Em seguida, esta se confunde com a
“imoralidade” da mão do homem, que, no gesto de levar o alimento sangrento à bo-
ca, recebe uma predicação deslocada de caráter – “imoral”. O movimento, portanto,
liga-se ao desvio e também àquilo que é da ordem do vivo. Por isso, o homem dessa
cena é apresentado num apelo cromático no qual se destacam os lábios, que servem
como um revestimento da boca e um meio de acesso ao alimento, ou seja, à carne
sangrenta. O vermelho dos lábios soma-se ao já mencionado cinetismo do alimento
também vermelho e essa coloração confere aos lábios a intenção de mobilidade. As-
sim, o corpo do homem guloso anima-se em tons de vermelho, uma cor que o narra-
dor também localiza na esfera da violência e do mal: “a música do diabo”. Contra-
pondo-se à vivacidade da refeição do homem guloso, está a descrição dos corpos dos
tios de Joana:
A comida era uma das grandes preocupações da casa, continuou Joa-
na. À hora das refeições, os braços apoiados pesadamente sobre a
mesa, o homem se alimentava arfando ligeiramente, porque sofria do
coração, e enquanto mastigava, algum farelo esquecido fora da boca,
seu olhar se fixava vidrado em qualquer ponto, a atenção voltada às
123
sensações interiores que a comida lhe produzia. A tia cruzava os pés
sob a cadeira, e, as sobrancelhas franzidas, comia com uma curiosi-
dade que se renovava a cada garfada, o rosto rejuvenescido e móvel
(Perto do coração selvagem, 1998: 63).
Na cena anterior, a comida surge como meio de extravasamento dos sentidos.
À mobilidade do corpo do homem percebida nos gestos das mãos, das pernas e da
face, contrapõe-se a estaticidade dos corpos dos tios. O papel dos tios em relação à
Joana é o de cuidado, já que ela havia sido abandonada pela mãe e o pai morrera. Pa-
ra marcar a falta de afetividade de seus tutores, a protagonista os descreve, na rotina
de uma cena referente a um almoço familiar, de modo a enfatizar a atmosfera tensa
que os circunda. Os braços do tio ficam parados sobre a mesa apoiados na articulação
dos cotovelos e não há qualquer expressividade nos olhos dele. Quanto à tia, se há
alusão ao movimento do rosto da mulher, essa se congela na expressão de preocupa-
ção das sobrancelhas, as quais permanecem “franzidas” enquanto a mulher faz mo-
vimentos automáticos com o garfo, os quais se somam à passividade da posição de
seus pés. Muito distante da ligação prazerosa que constatamos no quadro do homem
guloso, atento em não perder as sutilezas do gosto do alimento, aqui se destaca o
funcionamento automático do organismo. Decorre daí a preocupação do tio com a
precariedade do seu coração e a vigilância – que configura um traço hipocondríaco
desse personagem – atento ao seu trabalho digestivo produzido por um corpo com
marcas de decadência física. A cena da refeição é tensa e provoca constrangimento
nos tios de Joana porque eles procuram uma brecha na maquinalidade dos próprios
gestos para entrar no assunto do internato. No entanto, é a protagonista quem pro-
duz uma ruptura ao antecipar o tema de sua saída daquela casa em direção ao inter-
nato. O narrador constrói a personagem Joana com uma aguçada capacidade percep-
tiva, característica que permite à protagonista flagrar o processo de automatização no
qual seus tios estão inseridos: “Joana em momentos parava para ouvir o ruído das
duas bocas e o tic-tac leve e nervoso do relógio” (1998: 63).
A aproximação entre o compasso do relógio e os sons emitidos pelas bocas dos
tios da protagonista destaca o cômico que o narrador é capaz de extrair dessas carac-
terizações que afastam os personagens de sua natureza exclusivamente corpórea. Em
124
O riso, Bergson insiste sobre o que chama de “o mecânico calcado no vivo” como
ponto de partida da comicidade
1
. O automatismo bergsoniano dissocia o movimento
da vida, e a pessoa ganha o aspecto de uma coisa. No exemplo dos tios, a esponta-
neidade dos gestos e das palavras perde espaço para a precisão compassada que os
ponteiros do relógio sugerem.
Nessa mesma perspectiva da risibilidade, configuram-se as descrições sobre o
corpo da tia de Joana. Essa personagem, que mantém contato com a protagonista
desde o momento em que Joana fica órfã, ganha um capítulo de destaque na narrati-
va. O encontro das duas é marcado pelo tenso contato corporal de um abraço abrup-
to: “Antes que pudesse fazer qualquer movimento de defesa, Joana foi sepultada en-
tre aquelas duas massas de carne macia e quente que tremiam com os soluços” (1998:
36). Nesse momento, percebemos a estratégia do narrador em fazer da proximidade
física, assim como indicam a textura macia da pele e a temperatura acolhedora, carac-
terísticas que despertam o contrário da afetividade. Trata-se, portanto, de uma situa-
ção que confirma a maquinalidade dos gestos da tia, que, em seguida, se revela em
atitude de análise. A mulher serve-se de um abraço para melhor inspecionar o aspec-
to da sobrinha: “Sentiu o rosto violentamente afastado do peito da tia por suas mãos
gordas e por ela foi observada durante um segundo. A tia passava de um movimento
para outro sem transição, em quedas rápidas e bruscas” (1998: 36). A cena indica não
apenas a frieza da tia numa situação especial, mas o que subjaz a essa inspeção é a
falta de laço sentimental entre as duas, embora subsista o vínculo sangüíneo. É uma
situação que Clarice desenvolve nos contos de Laços de família, nos quais as relações
familiares sobrevivem de ligações de parentesco que se mostram dissociadas de sen-
timentos genuínos
2
. Enquanto em Laços de família as situações de desamor recaem so-
1
Bergson concede à tensão entre o mecânico e o vivo a sua imagem central e a partir dela
ele retoma várias vezes a importância desse jogo oposicional no seu ensaio sobre o riso:
“O ser vivo que se tratava aqui era um ser humano, uma pessoa. O dispositivo mecânico
é, pelo contrário, uma coisa. Portanto, o que fazia rir era a transfiguração momentânea de
um personagem em coisa, se quisermos considerar a imagem desse prisma. Passemos en-
tão da idéia precisa de uma mecânica à idéia mais vaga de uma coisa em geral. Teremos
uma nova série de imagens risíveis, que se obterão, por assim dizer, esfumando contor-
nos da primeira, e que levarão a esta nova lei: Rimo-nos sempre que uma pessoa nos dê a im-
pressão de ser uma coisa” (O riso, 1980: 36).
2
No conto “Feliz aniversário”, a aniversariante, símbolo de incômodo para todos que a cir-
125
bre personagens femininas de mais idade (incidem sobre avós), em Perto do coração
selvagem é a personagem jovem quem padece do sentimento de desamparo mistura-
do à inadequação de uma presença que toma ares de uma carga difícil de suportar. A
comparação que a narradora efetua entre a tia e o cachorro escapa ao exercício clari-
ciano que concede aos animais um espaço de exceção, no qual se destacam sensações
e sentimentos dos mais variados matizes, no qual o humano é até mesmo rebaixado
em prol da animalidade
1
. Na formação física da tia, todavia, a comparação com o a-
nimal doméstico causa repulsa na protagonista: “Nova onda de choro rebentou no
seu corpo e Joana recebeu beijos angustiados pelos olhos, pela boca, pelo pescoço. A
língua e a boca da tia eram moles e mornas como as de um cachorro” (1998: 36-37).
O mal-estar que a tia desperta em Joana se associa à formação de um corpo
que o narrador realça em momentos de liquidez descartável. Na cena da refeição, a
tia aparece sob o signo da fixidez plasmada pela gestualidade maquinal do tic-tac do
relógio, isto é, numa situação que remete ao enrijecimento das ações dessa persona-
gem. O aspecto “aquoso”, ao qual nos referimos em comentários sobre descrições da
tia da protagonista, não oblitera o que ela tem de fixo, e decorre disso a referência aos
seios da mulher, que se descolam da alusão imediata à maternidade ou até mesmo à
sexualidade e ganham um relevo de misterioso jogo infantil que se soma em seguida
a um acolhimento mórbido: “Os seios da tia eram profundos, podia-se meter a mão
como dentro de um saco e de lá retirar uma surpresa, um bicho, uma caixa, quem sa-
cundam, recebe uma tratamento mecânico por parte dos filhos, a começar pelos prepara-
tivos de sua festa em comemoração de seus oitenta e nove anos: “E, para adiantar o ex-
pediente, vestira a aniversariante logo depois do almoço. Pusera-lhe desde então a presi-
lha em torno do pescoço e o broche, borrifava-lhe um pouco de água-de-colônia para dis-
farçar aquele seu cheiro de guardado – sentara-a à mesa. E desde as duas horas a aniver-
sariante estava sentada à cabeceira da longa mesa vazia, tesa na sala silenciosa” (Laços de
família, 1998: 55). A frieza do relacionamento entre os familiares consolida-se na despedi-
da, momento em que a aproximação física desvela o afastamento afetivo dos filhos: “A
aniversariante recebeu um beijo cauteloso de cada um como se sua pele tão infamiliar
fosse uma armadilha” (Laços de família, 1998: 63). No conto “Os laços de família”, o breve
contato acidental entre mãe e filha no trajeto do táxi em direção à Estação é suficiente pa-
ra acionar na filha Catarina um sentimento de mal-estar ao se ver fisicamente próxima de
uma mãe que nunca lhe despertou afetividade: “Porque de fato sucedera alguma coisa,
seria inútil esconder: Catarina fora lançada contra Severina, numa intimidade de corpo
há muito esquecida, vinda do tempo em que se tem pai e mãe. Apesar de que nunca se
haviam realmente abraçado ou beijado” (Laços de família, 1998: 96).
1
Em Água viva, a personagem narradora afirma: “Não humanizo bicho porque é ofensa –
126
be o quê. (...) Os seios da tia podiam sepultar uma pessoa!” (1998: 37). A descrição da
mulher intercala essa constituição fixa com gestos que remetem à fluidez das secre-
ções do corpo: “a tia tirou um lenço grande e amarrotado, assoou o nariz” (1998: 36).
Esta imagem líquida participa do mesmo campo de abjeção de outra caracterização
que a protagonista tece a respeito dos seios da tia. Se na primeira formulação os seios
da tia formam uma idéia de imobilidade altiva, nessa segunda referência eles se as-
semelham ao apelo da impureza que diz respeito à gama de secreções produzidas
pelo corpo humano e sua intrínseca carga histórica de mal-estar: “os seios da tia po-
diam derramar-se sobre ela, em gordura dissolvida” (1998: 37).
Chama a atenção em Perto do coração selvagem a retratação do corpo de perso-
nagens secundários, os quais são inexpressivos no plano diegético. É o caso de uma
cena em que Joana passeia na praia, uma cena que antecede o encontro desconfortá-
vel que ela terá com a tia. Na praia, em companhia da empregada, uma súbita rajada
de vento serve de pretexto para descrições do corpo da empregada: “Uma rajada
mais forte levantou-lhe a saia até o rosto, deixou nuas suas coxas escuras e musculo-
sas” (1998: 36). A imagem de força física ligada ao corpo da mulher direcionada ao
serviço de casa contribui para a constituição frágil do corpo da protagonista. É atra-
vés do corpo anônimo da empregada, essa que sequer é nomeada, que se insere o
corpo invisível de menina de Joana: “A ventania vinha do mar invisível, trazia sal,
areia, o barulho cansado das águas, embaraçava as saias entre as pernas, lambendo
furiosamente a pele da menina e da mulher” (1998: 36).
A referência aos corpos das crianças da escola na qual Joana estuda também
auxilia a demarcação do corpo da protagonista. A passividade dos corpos dos cole-
gas de Joana opõe-se à natureza selvagem da protagonista, sempre disposta a vôos
de imaginação e jogos de linguagem que desafiam o senso comum. As crianças da
escola dispõem de corpos que podem ser interpretados em conformidade a regras
sociais. Não se trata da mesma maquinalidade dos corpos dos tios da protagonista,
os quais exibem gestos endurecidos pela rudeza da rotina, todavia está na irônica
descrição das bocas das crianças e na desatenção ou incapacidade de fitar os outros
de respeitar-lhe a natureza –, eu é que me animalizo” (Água viva, 1973: 57).
127
(esse que é um perspicaz exercício e funciona como ponto de distinção de Joana sobre
os demais) o modo disfórico como se articulam os corpos dos colegas da protagonis-
ta. O adjetivo “satisfeitas” traduz justamente a decalagem entre a personagem Joana,
imersa desde a infância em questionamentos de teor filosófico, e as crianças da mes-
ma idade, as quais se acomodam com movimentos lentos a uma realidade que não
lhes aguça discussões: “Ainda mergulhadas no conto as crianças moviam-se lenta-
mente, os olhos leves, as bocas satisfeitas” (1998: 29). A presença de Joana abre mar-
gem para o constrangimento que suas reflexões suscitam. Nessa medida, localizamos
o corpo da professora. Este entra em cena e aponta o efeito moral da observação pre-
coce da protagonista, que pergunta à professora o que acontece depois que se é feliz.
O grau de embaraço da professora processa-se na sua coloração corporal: “a profes-
sora enrubesceu – nunca se sabia dizer por que ela avermelhava” (1998: 30). A esse
gesto que simboliza desautorização de poder por parte daquele que é orientado para
educar, segue outro movimento de hesitação da professora, situação que a rebaixa
em relação à protagonista: “Quando Joana estava à porta em dois pulos, a professora
chamou-a de novo, dessa vez corada até o pescoço, os olhos baixos, remexendo papéis
sobre a mesa” (1998: 30, grifos nossos).
A representação paterna, outra figura símbolo de poder, adquire formas físicas
no diálogo com o amigo Alfredo, momento em que o pai da protagonista esboça a di-
ficuldade de criar sozinho uma filha. Para marcar a confissão de que a “sensação” de
ter uma filha é “Às vezes a de ter um ovo quente na mão”, o rosto do homem assume
uma expressão na qual se destaca a perturbação da face: “O pai enxugava a boca com
o guardanapo, inclinava a cabeça para um lado e dizia sorrindo (...)” (1998: 26). O pai,
assim como a professora, tem a sua autoridade desafiada e mostra-se pelo viés da
fragilidade. Ao relembrar a ausência da mulher Elza, que o abandona junto à Joana, o
homem alude ao mal-estar físico dessa sensação de desamparo: – Uma vez acordei
com febre, de madrugada. Parece até que ainda sinto a língua dentro da boca, áspera
com um trapo. Você sabe meu pavor de sofrer, prefiro vender a minha alma. Pois pen-
sei nela (1998: 27, grifos nossos). A temática do corpo doente, que flagramos na suti-
leza da cena do tio preocupado com o caminho do alimento num corpo que já padece
de desajuste no funcionamento, ressurge na análise que contempla a figura do pai da
128
protagonista, esse, no entanto, sem qualquer doença física manifesta. Nos dois casos,
a identidade ligada ao corpo está em primeiro plano. Os traços hipocondríacos parti-
lhados por esses dois personagens sublinham a relevância do bom funcionamento
corporal e tocam num tabu que diz respeito à doença.
Em Poderes do horror, Kristeva recolhe exemplos bíblicos nos quais o corpo do-
ente é visto sob o viés da falta de caráter. A psicanalista retoma os capítulos 13 e 14
do Levítico em que a lepra, retratada como “tumor da pele” (tumeur de la peau), serve
de exemplo para marcar a ameaça à identidade (1980: 120). A diferença da pele do
leproso significa, conforme a interpretação de Kristeva do texto bíblico, impureza. O
impuro opera no sentido de apagamento das diferenças (effacement des différences),
ameaça à identidade (menace de l’identité). A pele do leproso, portanto, simboliza a
marca da exclusão e representa significativa intolerância em relação ao corpo doente.
A representação do corpo do personagem Otávio, marido da protagonista, po-
tencialmente reprodutor, afasta-se, nessa medida, de deformações causadas por do-
ença. A auto-imagem de Otávio evidencia a definição de seus traços: “Olhou-se ao
espelho antes de sair, de olhos entrefechados observou o rosto bem feito, o nariz reto,
os lábios redondos e carnudos” (1998: 126). Em contrapartida, sob o ponto de vista da
protagonista, o corpo de Otávio desperta uma certa piedade, o que não significa fra-
queza física no marido de Joana: “eu me emociono quando Otávio tosse e põe a mão
no peito, assim. Ou senão quando fuma, e a cinza cai no seu bigode, sem que ele no-
te” (1998: 22). O corpo de Otávio, visto sob a perspectiva de Lídia, a mulher com
quem Joana rivaliza, marca-se pelo espaçamento dos encontros dos amantes: “Sua
aproximação era um toque mágico, transformava-a num ser realmente vivo, cada fi-
bra respirando cheia de sangue. Ou senão não a agitava. Adormecia-a como se viesse
simplesmente, quietamente, aperfeiçoá-la” (1998: 88). Em contraste com a cena dos
amantes, na qual o distanciamento entre eles se reverte em proximidade, há uma ce-
na entre Otávio e Joana, em que a continuidade da presença física característica da
condição do matrimônio afasta o casal:
Otávio continuava no Direito público, demorando-se em alguma li-
nha e depois impaciente mordendo a unha e voltando rápido várias
páginas ao mesmo tempo. Até que parava de novo, distraído, a lín-
gua passeando pelo bordo dos dentes, uma das mãos puxando com
129
ternura os fios das sobrancelhas. Qualquer palavra imobilizou-o, a
mão no ar, a boca aberta como um peixe morto. (...) escreveu depres-
sa no caderno, parando um instante para respirar ruidosamente e,
num gesto que a sobressaltou, bater nos dentes com os nós dos de-
dos. (...) Sorriu tímido e importunado, estendeu-lhe a mão por cima
da mesa (Perto do coração selvagem, 1998: 107-108).
O ponto em comum entre os dois relacionamentos de Otávio configura-se na
capacidade de contatos afetivos que despertam o sentimento de piedade. Na cena de
Lídia, que antecede a descrição ancorada sobre a intimidade em vias de desgaste en-
tre a protagonista e Otávio, se desenha uma clara alusão à Pietà de Michelangelo:
Ela cosia perto da janela. Fechou a porta, trancou-a a chave, ajoe-
lhou-se perto dela. Encostou a cabeça no seu seio e de novo aspirou
aquele perfume morno e adocicado de rosas vermelhas. Ela continu-
ava a sorrir, ausente, quase misteriosa, com se prestasse ouvido ao
rolar suave de um rio dentro de seu peito (Perto do coração selvagem,
1998: 87).
Lucia Helena Vianna, em Cenas de amor e morte na literatura brasileira, observa, a
partir de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, uma seqüência dos movimentos dos
corpos dos protagonistas que levam até a mesma escultura de Michelangelo. No
momento da publicação de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, no ano de 1969, o
livro de estréia de Clarice Lispector chega a sua terceira edição
1
. Se em Lóri e Ulisses,
protagonistas ficcionais da Pietà de Michelangelo, é manifesto o jogo imagético pro-
posto pela narradora, em Perto do coração selvagem encontramos já referências que le-
vam a uma situação análoga, na qual o homem se ajoelha próximo do corpo da mu-
lher. Lídia e Lóri, portanto, constituem desdobramentos da Virgem Maria, enquanto
Otávio e Ulisses atuam no papel do Cristo, na medida em que são abrigados por uma
mulher. Nessa medida, o corpo de Otávio, em outro momento da narrativa, compa-
ra-se ao corpo de Cristo: “O peito nu, os braços abertos, crucificado” (1998: 133). Ca-
be também à Joana uma variação sutil da Pietà numa cena que mantém a proposta de
Michelangelo, no entanto, ocorre o deslocamento dos papéis do homem e da mulher.
A intimidade do casal Joana-Otávio abrevia em certa medida a série de movimentos
1
Conforme a pesquisa de Nádia Battella Gotlib, em “A descoberta do mundo”, para os Ca-
dernos de literatura brasileira (2004: 32).
130
que dá forma à escultura de Michelangelo: “Muito bem. Agora a senhora faça o favor
de se aproximar e encostar a cabeça nesse valoroso peito, porque estou precisando
disso” (1998: 110). Restam apenas alguns gestos que nos levam a perscrutar no casal
Joana-Otávio a alusão à escultura de Michelangelo. Tais movimentos se confirmam
quando Joana é assaltada, na seqüência desse episódio, por um sentimento de pieda-
de: “Agora sua piedade abrangia-a também e ela via os dois juntos, coitados e infan-
tis. Os dois iam morrer, esse mesmo homem que batera com os dedos nos dentes,
num movimento tão vivo deste” (1998: 111).
A rapidez da formação da cena de Joana em relação à de Lídia, no que diz res-
peito às possíveis leituras da Pietà, abre margem para conjecturas que distanciam a
protagonista da personagem Lídia. As duas disputam o amor e a atenção de Otávio.
Embora Joana esteja formalmente casada com Otávio, é Lídia quem espera um filho
dele. Esta informação relevante é suficiente para a produção de uma espécie de troca
de papéis entre as duas mulheres, na medida em que a gravidez de Lídia a legitima
no papel do paradoxo mãe-virgem característico da cultura ocidental. A respeito des-
se assunto, recorremos à pesquisa de Luiz Carlos Villalta para o volume Brazilian Fe-
minisms, na qual ele observa desde os primeiros escritos dos jesuítas sobre o Brasil,
datados da metade do século XVI, o destaque a certos estereótipos femininos que so-
breviveram durante os séculos e podem ser associados a padrões da nossa cultura o-
cidental. Villalta situa José de Anchieta e Manuel da Nóbrega como os mais impor-
tantes jesuítas no século XVI. Na tentativa de conversão dos índios para a fé católica,
eles escreveram poemas, cartas e peças de teatro de cunho pedagógico-moralista, ati-
vidade que promoveu a disseminação da idéia de pecado. Conforme esclarece Villal-
ta, até o início do século XVII, ainda se acreditava na Europa que o Equador não só
dividia o mundo, mas também a virtude do vício. Do lado do vício, estavam as ín-
dias, que se envolviam com os estudantes que vinham para estudar na escola da So-
ciedade de Jesus, e eles aprendiam que essas mulheres representavam ameaça seme-
lhante à da Eva que arruinara Adão. O casamento, então, surgiu como alternativa a-
ceitável e facultou à imagem de Maria a possibilidade da experiência legal do sexo.
Decorre daí o paradoxo mãe-virgem que perpassa os séculos e se incorpora no
imaginário ocidental. O filho que Lídia espera a retira, portanto, de sua condição ile-
131
gal, imoral, para incluí-la no âmbito de aceitação social. Cabe à Lídia o paradoxo de
mãe-virgem, por isso essa personagem suscita e produz a piedade e está situada na
mesma posição da Virgem Maria na composição que remete à escultura de Miche-
langelo. Joana, por sua vez, legitimada pelos laços do casamento, escapa à condição
da maternidade – ela não gera –, e atravessa a narrativa sob o epíteto de “víbora”. A
protagonista envolve-se em situações nas quais sobressai o gosto pela liberdade, con-
firmado pelas metáforas eqüinas, justificando o título da obra: “coração selvagem”.
Diferentemente de Lídia, a protagonista não ocupa a posição da Virgem na descrição
do quadro que sugere a formação da Pietà. Não é Joana quem oferece proteção a Otá-
vio, a personagem antes ocupa a posição que deveria ser a de Otávio. Nesta Pietà in-
vertida está o esboço da própria configuração enviesada dessa personagem, que, a-
pesar de estar ao lado da lei, em conformidade com o código social e religioso, sub-
verte a sua condição legal e se conduz na esfera incerta e libertária do coração selva-
gem da vida. O conjunto de ações da protagonista atenua as ações questionáveis de
Lídia. Otávio também fica à margem de condenações de caráter, inclusive, como já
mencionamos, ele ocupa a impassível posição imóvel e muda do Cristo crucificado.
Nessa medida, os julgamentos recaem sobre as duas mulheres que o disputam e nas
descrições de seus corpos. Sob a perspectiva da protagonista, temos acesso ao corpo
de Lídia: “Os olhos abertos de Lídia eram sem sombras. Que mulher bela. Os lábios
cheios mas pacíficos, sem estremecimentos, como de alguém que não tem receio do
prazer, que o recebe sem remorsos” (1998: 141). A caracterização positiva da rival por
meio do narrador se mantém quando é traçada a comparação entre as duas:
Os lábios grandes de Lídia, de linhas vagarosas, tão bem pintados de
claro, enquanto eu de batom escuro, sempre escarlate, escarlate, es-
carlate, o rosto branco e magro. Esses seus olhos castanhos, enormes
e tranqüilos, talvez nada tenham a dar, mas recebem tanto que nin-
guém poderia resistir, muito menos Otávio (Perto do coração selvagem,
1998: 143).
É a própria Joana, portanto, quem contribui para a construção de um retrato
disfórico. A consistência dos traços de Lídia, acrescido da suavidade da cor que en-
cobre os lábios da personagem – cores que realçam ou forjam uma pureza à mãe-
amante, contrastam com as linhas da protagonista. A brancura do rosto de Joana não
132
partilha da mesma tranqüilidade e pureza contidas na face de Lídia, em que não há
espaço para tons contrastantes: a cor clara da pintura dos lábios acompanha o tom
castanho dos olhos. Essa harmonia de cores liga-se ao caráter da personagem, que e-
xibe uma segurança irresistível. Na linha oposta, a protagonista evidencia o verme-
lho escarlate que recobre a sua boca. Não temos acesso às dimensões das particulari-
dades do rosto de Joana, como acontece nas descrições referentes a Lídia. Nessa per-
sonagem, no entanto, o exagero das formas dos lábios e dos olhos encontra compen-
sação na suavidade das cores que os encobrem. A ausência da descrição das formas
da face de Joana, à exceção da magreza do seu rosto, não a exime de um julgamento
que a localiza em linha oposta à sua rival. As escassas referências a que temos acesso
nos levam à configuração da protagonista no campo da impureza. O apelo cromático,
nesse recorte de comparação entre as duas mulheres, parece mais importante do que
a minúcia das formas dos olhos ou das bocas, pois é através da cor que se estabelece
a natureza selvagem da protagonista. O vermelho
1
, sobretudo o vermelho escarlate, é
uma cor recorrente nos textos de Clarice. Em Perto do coração selvagem, a expressivi-
dade desse tom de vermelho é suficiente para afastar de Joana vínculos com o estado
de serenidade ou de segurança afetiva, os quais são explícitos em Lídia. Em outro e-
xercício comparativo, por intermédio da protagonista, são exaltadas as qualidades da
adversária, de modo a confirmar o mesmo jogo autodepreciativo:
As minhas mãos e as dela. As minhas – esboçadas, solitárias, traços
lançados para frente e para trás, descuido e rapidez num pincel mo-
lhado em tinta branco-triste, estou sempre levando a mão à testa,
sempre ameaçando deixá-las no ar, oh como sou fútil, só agora com-
preendo. As de Lídia – recortadas, bonitas, cobertas por uma pele e-
lástica, rosada, amarelada, como uma flor que vi em alguma parte,
mãos que repousam em cima das coisas, cheias de direção e sabedo-
ria. Eu toda nado, flutuo, atravesso o que existe com os nervos, nada
sou senão um desejo, a raiva, a vaguidão, impalpável como a energia
(Perto do coração selvagem, 1998: 144).
Com base nessa segunda comparação, chegamos à fluidez
2
de Joana. Diver-
samente da cena evidente do banho da protagonista, ou de sua contemplação do mar
1
De acordo com Chevalier (1990: 944), o vermelho-escuro é noturno, fêmea, secreto e, em úl-
tima análise, centrípeto; além disso representa o mistério da vida.
2
Sobre a fluidez da protagonista de Perto do coração selvagem, críticos de diferentes linhas de
133
– episódios que envolvem essa personagem em situações onde a água ganha espaço
central –, a cena que elegemos também contempla a natureza fluida de Joana, obede-
cendo aos movimentos corpóreos da protagonista, os quais se definem pela inspeção
dos traços de Lídia. Novamente é Lídia quem faz a mediação para o corpo da prota-
gonista. Por meio das descrições das mãos de Lídia, portanto, se esboçam os gestos
imprecisos de Joana. As cores das mãos de Lídia, semelhantes às de uma flor entre o
rosa e o amarelo, denotam beleza, sabedoria, planejamento, ou seja, uma série de
predicados que se ausentam na fluidez corpórea da protagonista. A brancura das
mãos de Joana não apresenta qualquer relação com a pureza que vimos nas cores su-
aves concedidas ao rosto de Lídia, uma vez que a brancura imputada à protagonista
participa do mesmo jogo de impurezas concedidos na formação de seu rosto, que é
branco e magro. A cor branca, nesse sentido, desloca-se da sua significação marca-
damente simbólica de positividade para o universo de reversões da escrita de Clari-
ce. Por isso, em determinado momento, o narrador esclarece o teor do branco a res-
peito do qual alude: trata-se do branco-triste. A fluidez de Joana estrutura-se também
por meio dessa imagem melancólica e aquosa que é a do pincel molhado em “tinta
branco-triste”, servindo de equivalente para os movimentos imprecisos (fluidos) da
protagonista. A falta de forma das mãos e, em decorrência disso, dos gestos de Joana
a limita, pelo menos na passagem que recortamos, a sentimentos arcaicos como a rai-
va e também, quando a personagem se atribui a “vaguidão”, a insere na temática e-
xistencialista que diz respeito à interrogação sobre o nada.
A fluidez de Joana admite um amplo espectro de leituras, e uma forma de a-
cesso a este ponto de constituição de personagens tipicamente claricianos se alicerça
nos quadros comparativos que a escritora articula, os quais têm como via segura a
análise da formação dos corpos dos personagens secundários. A riqueza de detalhes
proporcionados pelos narradores de Clarice a alguns personagens viabiliza a investi-
trabalho reconhecem essa característica na formação de Joana. Olga de Sá, em A escritura
de Clarice Lispector (2000) chama a atenção para a relação entre a mulher e a água nos tex-
tos claricianos. Em Perto do coração selvagem, a autora destaca sobretudo a ligação da pro-
tagonista com o mar, procedimento que retorna em Uma aprendizagem ou o livro dos praze-
res (2000: 198). Cristina Ferreira Pinto, em O Bildungsroman feminino, percorre a trajetória
aquosa e, por conseguinte, fluida da protagonista: “Joana é ‘como água clara e fresca’
(Coração, 62), é líquida, fluida, mutável, não pode ser moldada pelo Outro” (1990: 101).
134
gação de outras de suas criaturas. No exemplo da protagonista de Perto do coração sel-
vagem, é por intermédio do contraste com outros seres ficcionais que obtemos a sua
constituição um tanto escorregadia. No contato com a tia, uma mulher de seios vo-
lumosos, Joana, sob o ponto de vista da tia, assume formas exíguas que se combinam
a descrições do narrador a respeito da magreza do rosto, pois a tia a vê, em momento
de aflição, com o corpo bastante reduzido em volume: “a tia viu por alguns momen-
tos as pernas magras e descobertas da sobrinha correrem, correrem entre o céu e a
terra, até desaparecerem rumo à praia” ( 1998: 37).
De forma análoga, o encontro na casa do professor leva a protagonista a um
confronto com a mulher desse, momento em que Joana se observa numa situação ri-
dícula ancorada sobre o contraste entre o seu corpo ainda infantil e a formação exu-
berante do corpo da mulher do professor. Ao entrar na sala onde eles estudavam, “a
mulher do professor” produz um forte impacto visual na protagonista, que se reflete
na aparência física da mulher: “A esposa do professor entrou no aposento, alta, quase
bonita com aquele cabelo cobreado, curto e liso. E sobretudo as coxas altas e serenas
movendo-se cegamente, mas cheias de uma segurança que assustava” (1998: 56). O
jogo de contrastes não se dá somente com a protagonista e outros personagens, é
possível percebê-lo também através da observação do narrador que se trata de um
recurso estendido à configuração engendrada por ela da relação entre, por exemplo,
o professor e a mulher dele: “Esta se aproximara, pousara a mão branca e longa, co-
mo de cera, mas estranhamente atraente, sobre o ombro do marido” (1998: 65). Em
seguida, a sensibilidade do narrador apreende as cores contrastantes que compõem o
casal: “E Joana viu, cheia de uma dor que lhe dificultava engolir a saliva, o belo con-
traste entre os dois seres. Os cabelos dele ainda negros, seu corpo enorme como o de
um animal maior que o homem” (1998: 56). O mesmo jogo cromático calcado em tons
que se opõem é transposto para a caracterização da protagonista, esta que tem na sua
rival imaginária um contraponto para a sua constituição imprecisa que já evidencia-
mos como sendo “fluida”. Neste episódio a protagonista é apresentada sobre “pernas
nervosas”, “seios ainda por nascer”, próprios de quem carrega “aquela imprecisão no
corpo” (1998: 58). O sorriso que a mulher do professor troca com o marido é logo
percebido pela protagonista como sinal de cumplicidade, movimento rapidamente
135
flagrado pela esperteza precoce da protagonista. Esse gesto rebaixa Joana, humilha-a
e, para melhor acentuar a sensação de desamparo, estabelece-se a oposição entre cla-
ro/escuro, na qual Joana ocupa o espaço destinado às sombras: “Joana diminuiu, fi-
cou pequena e escura diante daquela pele brilhante” (1998: 59). O sentimento de ver-
gonha que invade a protagonista se consolida por intermédio desse jogo entre o claro
e o escuro acrescido de uma sutil atenção voltada às texturas da pele dessas duas
personagens: “e era branca e lisa. Não miserável e sem saber de nada, não abando-
nada, não com os joelhos sujos como Joana, como Joana! Joana levantou-se e sabia
que sua saia era curta, que sua blusa colava-se ao busto minúsculo e hesitante” (1998:
59). O corpo em formação de Joana, ainda sem a definição dos traços que farão parte
de sua vida adulta, a deixa em suspensão. Curiosamente, essa marca de indecisão ca-
racterística da saída da infância da protagonista acompanha-a até a idade adulta. A
Joana em duelo com Lídia guarda vestígios dessa imprecisão que a constituiu duran-
te os primeiros contatos para além de sua família. Não se trata mais da rival imaginá-
ria, representada pela esposa do professor, mas permanece na protagonista a facili-
dade com que ela desperta a piedade. Joana, que não ocupa a função da Virgem por-
que a maternidade a aprisionaria, faz com que recaia sobre ela esse sentimento que,
no mundo clariciano, está próximo do riso. Por esse motivo, ou seja, o de que o nar-
rador retrata sob um viés de autopiedade risível por parte da protagonista, surgem
personagens em Perto do coração selvagem que despertam a piedade junto à vontade
de rir. O episódio, aparentemente sem qualquer vínculo com a atmosfera fluida da
protagonista, em que Joana conta a Otávio sobre o auxílio prestado a um homem ido-
so, explicita esse procedimento de piedade risível trabalhado pelo narrador:
... O velho foi-se aproximando, a balançar o corpo gordo, o crânio li-
so. Chegou-se junto dela, os lábios em forma de muxoxo, os olhos ar-
redondados, a voz chorosa. Disse, imitando o tatibitate infantil:
– Machuquei aqui... Ta dodói... Botei remedinho, já tá melhorzinho...
Revirou os olhos e num momento as gorduras tremeram, o brilho dos
lábios molhados e frouxos fulgurou docemente. Joana inclinou-se um
pouco e viu suas gengivas vazias.
- Não diz que tem pena de mim?
Ela olhava-o séria. Ele não estranhou:
– Não diz nem “tadinho”?
136
Era de uma pessoa se torcer de riso e de perplexidade vê-lo baixinho,
o traseiro saliente, os grandes olhos atentos, numa larga continência
trêmula (Perto do coração selvagem, 1998: 91-92).
Subjacente ao encontro paradoxal entre a pena e o riso, ressaltamos a impor-
tante função do corpo. É por meio dele que é possível a tessitura de imagens cujo im-
pacto visual leva simultaneamente ao riso e à sensação imediata de remorso por ter
rido
1
. Assim, de situações em que não seria conveniente rir, os narradores lançam
mão de formas, cores, texturas que embaçam as fronteiras entre o certo e o errado, re-
sultando daí a ação imediata e desarmada do riso. O corpo na velhice é alvo de uma
série de exercícios com o fito de despertar esses sentimentos contrastantes. O corpo
do homem da cena supracitada tem essa propriedade na medida em que sugere uma
sobreposição de formas excessivas e pesadas que se encontram em desalinho com a
agilidade típica da juventude. A calvície (crânio liso), o excesso de peso (corpo gordo,
traseiro saliente), a flacidez da pele (lábios em forma de muxoxo), a possível perda de
dentes (gengivas vazias), a salivação (o brilho dos lábios molhados) constituem índi-
ces da decadência física do personagem, que só entra em cena sob o olhar vigilante e
impiedoso do narrador. As cenas da velhice instigam a curiosidade de Joana, o que
faz com que ela, mesmo sem entrar em contato com o objeto a ser descrito, construa
uma rede minuciosa de detalhes capaz de extrapolar ao plano físico:
Assim, enquanto Otávio falara, apesar de ouvi-lo, observara pela ja-
nela uma velhinha ao sol, encardida, leve e rápida – um galho trêmu-
lo à brisa. Um galho seco onde havia tanta feminilidade, pensara Jo-
ana, que a pobre poderia ter um filho se a vida não tivesse secado no
seu corpo (Perto do coração selvagem, 1998: 48).
A velhinha anônima, que a protagonista acompanha na rua, sobressai pela tex-
tura e coloração da pele – “encardida” –, índice que denuncia a falta de viço do rosto
coberto de rugas e manchas. Diferente do velho obeso do episódio anterior, a velhi-
nha é ágil – uma marca de juventude que depreendemos de seu corpo de aspecto su-
jo –, mas a magreza que a torna leve e rápida desfaz qualquer ligação com a agilidade
1
Sobre este importante aspecto amplamente explorado por Clarice Lispector, situação na
qual o riso se mistura à culpa por ter rido, nos valemos dos apontamentos de Olga de Sá
137
do corpo jovem, visto que a mulher é comparada à falta de vivacidade presente no
movimento trêmulo de um galho seco. A esterilidade da velhinha também acompa-
nha essa imagem de planta sem vida.
Outra personagem secundária, que se assemelha aos tipos da velhice explora-
dos pela escritora, é a prima Isabel. Essa personagem participa da infância de Otávio,
como sua prima mais velha. A prima Isabel tenta apurar o gosto musical de Otávio
durante a infância dele, mas ele considera aqueles sons próximos de uma ingenuida-
de que, na idade adulta desse homem endurecido pelo exercício burocrático, podem
ser catalogados como “valsas de salão”. Entre o que Otávio chama de cômico e a cul-
pa pela falta de entusiasmo diante daquela música, ele situa a prima Isabel:
com aquele seu cheiro de panos velhos, de jóias guardadas, quando a
via preparar o “seu chazinho contra dores”, (...). Reviu-a saindo de
casa, o pó branco e leve sobre a pele cinzenta, o grande decote re-
dondo descobrindo o pescoço onde as veias arquejavam, trágicas. Os
sapatinhos rasos de menina, o guarda-chuva usado com aterrorizante
desenvoltura, como bengala (Perto do coração selvagem, 1998: 86).
A prima Isabel, assim como a velhinha anônima que Joana observa através de
uma janela, tem a sua pele também investigada. Agora o aspecto encardido da velhi-
nha reveste-se de um tom acinzentado, camuflado pelo artifício da maquiagem. Tra-
ta-se do pó branco que encobre o descorado da pele envelhecida pelo tempo. O as-
pecto encardido da velhinha também retorna pela lembrança dos cheiros exalados
por Isabel – como os de panos sujos e jóias guardadas – que remetem a objetos anti-
gos, esquecidos, possivelmente empoeirados, sujos pelo desuso. A textura ganha es-
paço na caracterização do pescoço da prima Isabel, que faz esforço para respirar e
deixa à mostra o desenho de veias no exercício que faz para oxigenar seu corpo: “as
veias arquejavam”. No que toca ao movimento das veias do pescoço, prima Isabel
lembra o aspecto vegetal da outra personagem anônima que se assemelha a um ga-
lho, mas não partilha da ausência de vitalidade dessa, cuja vegetalização indica ex-
pressiva decrepitude. A velhinha da outra cena é comparada a um galho seco, mas
ela se movimenta com agilidade. Prima Isabel, por sua vez, guarda significativa viva-
em A travessia do oposto.
138
cidade e, embora tenha limitações nos deslocamentos (usa o guarda-chuva como
bengala), está nos seus sapatos rasos de menina o ponto onde se articula o riso e a pi-
edade.
As referências ao professor da protagonista também se situam no plano da ve-
lhice. No primeiro contato com o professor, Joana, recém-saída da infância, se apai-
xona por ele. Apesar da diferença de idade entre os dois, o professor aparece à per-
sonagem como símbolo de sexualidade ao ser comparado a um animal. Além disso, o
critério de jovialidade da personagem para a análise do professor assenta-se, ingenu-
amente, sobre o tom dos cabelos do homem, isto é, sobre a ausência de fios brancos:
“Os cabelos dele ainda negros, seu corpo enorme como o de um animal maior que o
homem” (1998: 56). O professor que Joana reencontra já adulta não produz mais en-
cantamento na protagonista. Ela sabe que ele adoecera e fora abandonado pela mu-
lher, e essas informações antecedem a notícia do tempo transcorrido entre eles: “ape-
sar de envelhecido, encontrara-o mais gordo, o olhar brilhante” (1998: 114). Seme-
lhante ao que denomina de uma “fotografia antiga”, o corpo do professor traz um
destacado sinal da velhice que é recorrente na investigação clariciana sobre este tema.
O narrador apóia-se na pele do personagem, mas neste caso não há como escamotear
o tom escurecido, manchado, da pele do homem sob o desgaste do tempo. Essa ca-
racterística corpórea acompanha certo desânimo por parte do professor se compara-
do à atenção que ele dedicava aos questionamentos juvenis de Joana: “O professor
recebera-a com ar sereno e distraído. Com as olheiras escuras parecia uma fotografia
antiga” (1998: 114). A comparação do aspecto físico à imagem de uma fotografia an-
tiga o insere numa esfera em que a vida para esse personagem toma ares de esvaeci-
mento.
Em A câmara clara, Roland Barthes (1984: 125) localiza semelhanças entre a fo-
tografia e a relação original do teatro e do culto dos mortos. Segundo Barthes, assim
como os primeiros atores destacavam-se através do desempenho do papel dos mor-
tos, na fotografia também há algo da morte espetacularizada. Dessa forma, tanto a a-
tividade teatral quanto a fotografia promovem a caracterização de um corpo simul-
taneamente vivo e morto. Ao aproximar o professor de uma fotografia, o narrador
toca na iminência da morte desse personagem já em vias de envelhecimento físico.
139
Somando à fotografia a adjetivação “antiga”, o narrador produz a ressignificação do
estatuto da morte dentro desse texto literário que trabalha com imagens. O narrador
de Perto do coração, portanto, recobre o aspecto mortal já inerente à imagem fotográfi-
ca com mais um atributo que realça sobretudo o corpo morto. Por isso, o professor,
em vez de dar atenção à ex-aluna, como fazia outrora quando seu corpo sequer tinha
a aparência de uma fotografia, assume um ar distraído e preocupa-se com o horário
de seus medicamentos. Sob o olhar de Joana adulta, perde completamente o vigor fí-
sico de um “animal maior que o homem” (1998: 56) e transforma-se debilmente num
animal inofensivo e dessexualizado: “O professor parecia um grande gato castrado
reinando num porão” (1998: 114). Desprovido de qualquer traço de mistério para a
protagonista que já fora encantada pelo homem antes atraente e sedutor, Joana o per-
cebe à semelhança do homem quase anônimo que serve de assunto para ela e Otávio
numa das cenas típicas de casais que resumem um ao outro os acontecimentos do di-
a. A falta de cabelos (crânio liso) e o peso do corpo do “homem velho” do outro epi-
sódio retornam sob o olhar atento de Joana: “olhando-o Joana descobrira que ele era
apenas um velho gordo ao sol, os ralos cabelos sem resistir à brisa, o grande corpo
largado sobre a cadeira” (1998: 114). Se ela não percebe no rosto do professor qual-
quer traço referente ao abandono de sua mulher, a protagonista se culpabiliza pelo
seu aguçado senso de observação que traz à tona a decadência física do homem: “Ela
via humilhada e perplexa seu pescoço escuro, enrugado” (1998: 116). Essa cena de pi-
edade é subitamente atravessada pela ironia do fecho do capítulo que tem no título
“O abrigo no professor” uma sugestão de recuperar aquela posição de Pietà às aves-
sas outrora ocupada pela protagonista e o marido Otávio. Todavia, a protagonista
não encontra abrigo no professor, pois ele se mostra mais fraco do que ela. Com a ce-
na da Pietà invertida, interrompida em função do corpo doente do professor, e sem a
motivação para ocupar o lugar da Virgem, que é também o de Lídia, resta à protago-
nista a capacidade de melhor observar o homem que em outro momento lhe desper-
tara sentimentos diversos desses que incitam à piedade e ao riso: “o chinelo do pro-
fessor voara longe e seu pé de unhas recurvas e amareladas surgira nu” (1998: 116).
O fechamento desse elenco de personagens secundários que abordam a temá-
tica da velhice passa pelo corpo do amante de Joana. Esse, assim como vários perso-
140
nagens de Perto do coração, não recebe ao menos um nome. O homem com quem ela
tem um caso teme o olhar de Joana e para se defender ele esconde “bruscamente o
rosto nas mãos longas e magras” (1998: 162). Essas são as referências físicas desse
personagem que despertam variegadas sensações na protagonista. No capítulo desti-
nado ao amante, intitulado “O abrigo no homem”, Joana e seu amante participam de
uma cena que evoca a repetida alusão clariciana à Pietà. Nos momentos que levam a
personagem a essa formação, Joana desperta no homem desconhecido uma riqueza
de sensações que o deixa subitamente em estado de estarrecimento e de estupefação,
restando à protagonista o gesto misericordioso de acolhê-lo na inevitável posição a
qual ela recusara expressivamente no contato com o marido ou com o professor:
Ele escondeu o rosto naquele ombro macio e ela ficou sentindo sua
respiração percorrê-la de ida e de volta. Eles dois eram duas criatu-
ras. Que mais importa? – pensava ela. Ele moveu-se, ajeitou a cabeça
na sua carne como... como uma ameba, um protozoário procurando
cegamente o núcleo, o centro vivo. Ou como uma criança (Perto do co-
ração selvagem, 1998: 170-171).
O amante de Joana, portanto, fecha o ciclo referente ao tema velhice na medida
em que representa uma via para a formação psíquica da protagonista: “E assim fez-se
mulher e envelheceu” (1998: 171). Esse caminho passa por outra personagem que vi-
ve na mesma casa onde mora o amante de Joana. Ela exerce um papel indefinido,
pois ora é localizada na função materna, ora é situada no conjunto de mulheres que
são exploradas financeiramente por homens mais jovens. No encontro com o homem
quase desconhecido, a protagonista se depara com uma mulher surpreendentemente
estrangeira para ela. O narrador, que a via sempre à espreita na casa grande, a des-
creve como “a mulher dos lábios úmidos e frouxos” (1998: 188), características da ve-
lhice que retornam para marcar o corpo envelhecido, uma vez que tais imagens li-
gam o rosto dessa mulher sem nome à configuração de uma face onde se destacam a
flacidez dos lábios e a intensa salivação. As referências à composição física dessa per-
sonagem desdobram-se em itens que confirmam o olhar da protagonista voltado aos
sinais do envelhecimento do corpo:
Então Joana descobrira que ela era alguém vivo e negro. Orelhas
grossas, tristes e pesadas, com um fundo escuro de caverna. O olhar
terno, fugitivo e risonho de prostituta sem glória. Os lábios úmidos,
141
emurchecidos, grandes, tão pintados. Com ela devia amar o homem.
Os cabelos fofos eram ralos e avermelhados pelas pinturas sucessivas
(Perto do coração selvagem, 1998: 167).
O tom escuro com que Joana representa o corpo da mulher, esse que reveste
sobretudo o interior das orelhas da personagem quase invisível, é também o que a-
companha o sentimento de angústia que a protagonista percebe furtivamente nela
em um dos dias em que fora à casa do amante: “Porque um dia a enxergara de relan-
ce, as costas gordas concentradas num bloco indissolúvel de angústia sob o vestido
de renda preta” (1998: 167). O despertar da piedade nesse caso veicula-se à coloração
escura que se estende para além do corpo, pois acompanha o estado emocional da
personagem em situação de angústia. Ao lado disso está a textura da pele da mulher,
que tem na espessura das orelhas um aspecto em conformidade com o peso do corpo
e de seus sentimentos disfóricos (angústia, tristeza). O riso desencadeia-se pelo viés
do exagero: os lábios flácidos e ampliados por meio de batom excedendo os contor-
nos naturais da boca sugerem a imagem circense reforçada pelo tom vivo e artificial
dos poucos fios de cabelo arrumados para encobrir as falhas que a deixariam com
vãos de pele branca na cabeça e que resistiram à ação química das tinturas acumula-
das. A velhice explícita da personagem, que não interfere na diegese, pontua, entre-
tanto, a trajetória incomum e em constante processo de libertação de Joana.
Chegamos no momento de análise do corpo de Joana. O processo é possível
depois de passarmos pelos corpos dos personagens que a circundam, muitos deles
quase anônimos no que diz respeito à condução das ações da narrativa, os quais, em
contrapartida, chamam a atenção para o intenso exercício de Clarice Lispector dire-
cionado ao que chamamos de formas de corporalidade. Cabe-nos nesta etapa pers-
crutar os movimentos que articulam os deslocamentos, as intenções da protagonista
que, como já enfatizamos, desliza pelo texto como a fluidez do meio aquático.
As primeiras descrições do corpo da protagonista situam-na ainda na infância,
antes da perda do pai. A natureza precocemente contemplativa da personagem ma-
nifesta-se pelo movimento de sua cabeça, cuja temperatura elevada (o que indica in-
tensa atividade reflexiva) se choca com a frieza da superfície com a qual ela entra em
contato: “Encostando a testa na vidraça brilhante e fria olhava para o quintal do vizi-
142
nho, para o grande muro das galinhas-que-não-sabiam-que-iam-morrer” (1998: 13).
Não somente de pensamentos acerca da finitude vive a protagonista, Joana também é
descrita em gestos lúdicos próprios da infância, em que se observam movimentos de
uma coreografia improvisada na tentativa de captar virtualidades em um ambiente a
ser explorado, imaginado, inventado. Joana, que pode “ficar tardes inteiras pensan-
do” (1998: 17) em posição onde seu corpo recusa espaço para as brincadeiras movi-
mentadas das crianças da mesma idade – ela aparece “sentada chorando” (1998: 17) –
encontra uma brecha para jogos onde sobressai a espontaneidade de gestos quase
fortuitos:
Deu um corropio e parou, espiando sem curiosidade as paredes e o
teto que rodavam e se desmanchavam. Andou nas pontas dos pés
pisando as tábuas escuras. Fechou os olhos e caminhou, as mãos es-
tendidas, até encontrar um móvel. Entre ela e os objetos havia algu-
ma coisa mas quando agarrava essa coisa na mão, como a uma mosca,
e depois espiava – mesmo tomando cuidado para que não escapasse
– só encontrava a própria mão, rósea e desapontada (Perto do coração
selvagem, 1998: 15-16, grifos nossos).
Subjacente a esse conjunto que remete à despreocupação ligada a brincadeiras
infantis se esboça o interesse da protagonista pelas questões metafísicas. O jogo, que
se resume na tentativa de apreensão de uma realidade que lhe escapa do olhar e das
mãos, é análogo ao que a personagem adulta efetua sobre a origem das formas, o que
nos leva a refletir sobre uma questão de teor filosófico a partir do corpo de Joana em
movimento: “Como nasceu um triângulo? antes em idéia? ou esta veio depois de e-
xecutada a forma? Um triângulo nasceria fatalmente?” (1998: 172). Joana criança é
“magrinha e precoce” e sozinha aprendeu a fazer trancinhas no cabelo escorrido
(1998: 17). O aspecto frágil, bastante infantil, opõe-se ao que deveria ser uma vida
tranqüila com momentos de entusiasmo de criança, pois a protagonista, através de
um gesto que denota angústia, quebra a expectativa saudável instigada pela sua apa-
rência delicada. O movimento da mão inquieta de Joana é simultâneo à conversa que
ela escuta entre o pai e um amigo desse a respeito de Elza, a mãe ausente da prota-
gonista: “Joana riscava com a unha o couro vermelho da velha poltrona” (1998: 27).
Repete-se com freqüência a posição reclinada que assume o corpo da protago-
nista. A densa vida imaginativa da personagem entrelaça-se ao posicionamento hori-
143
zontal de seu corpo. Desde sua infância, chama–nos a atenção o constante movimen-
to dos seus olhos, em oscilações de abertura e de fechamento. Joana, que via demais,
não adormece com facilidade, apesar de ter a sua imagem constantemente cercada de
uma atmosfera de sonolência, assemelhando-se à da fluidez aquosa. Tais compara-
ções instigam a consolidação de um processo que não se interrompe porque está em
constante devir: ”Mas ela não dormia. É que entrefechando os olhos, deixando a ca-
beça cair de lado, valia um pouco como se estivesse chovendo, tudo se misturava le-
vemente” (1998: 28). A manifestação da faculdade da imaginação da protagonista,
que ocorre nessa posição contemplativa, necessita de substrato corpóreo leve e puro,
um estado que ela chama de “jejum” no intuito de “receber a imaginação” (1998: 23).
A complexidade desse exercício de trajeto para a imaginação demanda um penoso
esvaziamento da densidade corporal, de modo a transformar os movimentos do cor-
po em flutuações semelhantes às telas de Marc Chagall: ”Difícil como voar e sem a-
poio para os pés receber nos braços algo extremamente precioso, uma criança por e-
xemplo” (1998: 23).
A admiração de Clarice pelo pintor de origem russa – de origem idêntica à sua
– é tema de duas crônicas que ela produziu para o Jornal do Brasil. Em “O artista per-
feito”, de 6 de setembro de 1969, a cronista localiza no verdadeiro artista a capacida-
de de desfazer-se dos ensinamentos e do utilitarismo em prol de uma arte liberta. O
artista, nessa medida, transforma-se em “criança”. Curiosamente, a cronista vale-se
da pintura para ilustrar as bases desse status que ela ambiciona, ou seja, o de um ar-
tista liberto de pré-concepções. Parece-lhe mais apropriado um exemplo no campo
pictórico do que na sua própria área de criação. Essa crônica, que antecede a publica-
ção de Água viva, um texto no qual pintura e literatura se encontram e se confundem,
traz para a seara das palavras a intenção artística da escritora no plano imagético (es-
te que é também o da literatura). O artista clariciano idealizado se pintasse, com base
nesse esquema liberto de convenções, chegaria a uma espécie de “fórmula explicativa
da natureza: pintaria um homem comendo o céu” (1999: 229). É nessa honrosa posi-
ção dos artistas que arriscariam a representação constituída do mundo que Clarice si-
tua o trabalho de Marc Chagall: “Nós os utilitários, ainda conseguimos manter o céu
fora de nosso alcance. Apesar de Chagall” (1999: 229). Em outra crônica, de 12 de se-
144
tembro de 1970, intitulada “Das vantagens de ser bobo”, a cronista evoca novamente
o nome de Chagall. Clarice organiza uma lista dessas vantagens em que tributa à
condição de ser bobo a permissão de ficar sentado por umas duas horas sem se me-
xer, apenas em estado meditativo, apenas “pensando”. Também inclui nessa lista a
despreocupação com ambições, atitude que implica, para aquele capaz de abdicá-las,
significativa disposição de tempo para “ver, ouvir e tocar no mundo” (1999: 310). A
escritora, prudentemente, distingue o bobo do sujeito desprovido de inteligência:
“Aviso: não confundir bobo com burros” (1999: 310) e também do tipo esperto, pois:”
Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida” (1999:
311). Chagall, segundo a escritora, é um exemplo notável de bobo: – Bobo é Chagall,
que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. No gesto chagalliano, Clarice
Lispector percebe a demonstração de um sentimento por meio da arte pictórica: – É
quase impossível evitar o excesso de amor que um bobo provoca. É que só o bobo é
capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo (1999: 311).
Em Perto do coração selvagem, Clarice transpõe o excesso de amor das telas de
Chagall para o universo fluido de Joana. A protagonista clariciana desfruta de mo-
mentos que a enquadrariam no mesmo espectro de bobos estabelecido pela cronista
algumas décadas passadas da publicação desse romance de estréia. Continua, porém,
a idéia que defende certa permanência da reflexão, movimento que não significa pu-
ra racionalização: “ainda deitada, quedara-se silenciosa, quase sem pensar como às
vezes sucedia” (1998: 23). Algumas posições de Joana remetem a motivos explorados
por Chagall. É o caso, por exemplo, de telas onde os corpos retratados estão reclina-
dos e causam impacto no espectador, instigando a idéias de tranqüilidade, de sono-
lência, de contemplação e até mesmo despertando o deleite. Como pano de fundo
dessas telas há também a sugestão de que se trata de um momento fugaz. Assim,
conjeturamos que a marca chagalliana assentada sobre as flutuações dos corpos su-
gere essas cristalizações de sensações um tanto momentâneas, já que o pintor congela
momentos, dando forma e cores a estados de alma que se materializam ao lado de
objetos (vasos de flores, guarda-chuvas, bengalas) e de animais (gatos, vacas, galos) e
levando-nos à expectativa de ruptura desses estados efêmeros de serenidade. Os ob-
jetos e animais do mundo de Chagall também, muitas vezes, têm o seu peso descon-
145
siderado, participando da atmosfera de flutuações que o poeta confere aos corpos,
especialmente aos corpos dos amantes. O poeta reclinado, de 1915, e À minha mulher,
de 1933-1944, ofertam formas pictóricas muito próximas daquelas de Joana em situa-
ção contemplativa:
A moça estendida sobre a cama, olho vigilante na penumbra. (...) O
cansaço rastejando no seu corpo, a lucidez fugindo do polvo. Sonhos
esgarçados, inícios de visões. Otávio vivendo no outro quarto. E de
repente toda a lassidão da espera concentrando-se num movimento
nervoso e rápido do corpo, o grito mudo. Frio depois, e sono (Perto
do coração selvagem, 1998: 24).
Em algumas situações que lhe despertam o sentimento sobretudo de solidão,
Joana gira o corpo para o solo e deita de bruços. Assim ela o faz quando sabe da mor-
te do pai. Nessa posição horizontal de marcada estaticidade, no entanto, é possível
localizar a fluidez da protagonista. Numa cena breve, por exemplo, o ambiente que a
circunda é invadido pela fluidez que constitui a protagonista e, por meio de um re-
curso metonímico, observamos a cama da personagem em situação de movimento.
No discurso da personagem enredado ao do narrador, o realce à corporalidade com o
fito de adensar essa sugestão que encontramos nas telas de Chagall.
- Uma noite, mal me deitara, disse-lhe ela, uma das pernas da cama
partiu-se jogando-me ao chão. Depois de um movimento de cólera,
porque nem ao menos tinha sono bastante para dispensar o conforto,
pensei subitamente: por que motivo uma cama inteira, e não uma
quebrada? Deitei-me e em breve dormia... (Perto do coração selvagem,
1998: 94, grifos nossos).
Da perspectiva de Otávio, o corpo da mulher ganha um aspecto de fragilida-
de, o que remete ao mesmo ponto que retomamos algumas vezes sobre a leveza do
corpo da protagonista, que se coaduna com o ponto de vista da tia de Joana, já referi-
do. Otávio percebe em Joana uma formação aquosa e abjeta, na medida em que sus-
tenta que “Nela havia uma qualidade cristalina e dura que o atraía e repugnava-lhe
simultaneamente” (1998: 91). Ele fixa-se no modo de andar de Joana, levando-o a
concluir que ela é isenta de “ternura e gosto pelo próprio corpo”, uma vez que o mo-
vimenta “jogando-o como uma afronta aos olhos de todos, friamente” (1998: 91). As-
sim, Joana escapa ao tipo físico feminino fantasiado por Otávio, que buscava nas mu-
146
lheres definição de formas ou “corpos pequenos, acabados, sem intenções”, ou
“grandes, como o da noiva, fixos, mudos” (1998: 91). A definição dos corpos almeja-
dos pelo personagem já traz definições do caráter das supostas mulheres que ele pro-
cura nessas formas pré-concebidas, o que leva, em raciocínio equivocado, a associar a
falta de intencionalidade ao corpo “pequeno” e a imobilidade silenciosa (que pode
ser interpretada como passividade) ao corpo “grande”. Joana escapa desse esquema
topológico desenvolvido por Otávio, que se assemelha ao das personagens planas.
Como a protagonista foge da segurança pretendida nesse esquema arquitetado pelo
marido, ela é vista por ele não pela beleza dos traços, mas como um feixe de linhas
movediço, luminoso e competitivo: “Aquelas linhas de Joana, frágeis, um esboço, e-
ram inconfortáveis. Cheias de sentido, de olhos abertos, incandescentes. Não era bo-
nita, fina demais. Mesmo sua sensualidade deveria ser diferente da dele, excessiva-
mente luminosa” (1998: 91).
Depreende-se daí que a natureza fluida de Joana se distancia das propriedades
de apagamento próprias do meio aquoso. A despeito de sua fluidez, a protagonista
sobressai-se num espaço onde suas formas exíguas incomodam àqueles que dela se
aproximam. Por isso, o marido não vê beleza nela, apenas “mistério”, que confere à
pele clara da personagem um traço de obscuridade, despertando novamente o sen-
timento de abjeção de Otávio em relação a ela: “Se os instantes de abandono prolon-
gavam-se e se sucediam, então ele via assustado a feiúra, uma espécie de vileza e
brutalidade, alguma coisa cega e inapelável dominar o corpo de Joana como uma de-
composição” (1998: 95). A virtualidade de Joana, sugerida pela imagem de escoamen-
to das metáforas aquosas, exacerba-se no confronto com Lídia, momento em que a
protagonista mostra uma faceta de sua posição no mundo para seu interlocutor: “a
certo movimento, posso me transformar numa linha. Isso! numa linha de luz, de mo-
do que a pessoa fica só ao meu lado, sem poder me pegar e à minha deficiência”
(1998: 143). Esse esclarecimento acerca da personagem é semelhante à forma como
Otávio a apreende e serve para a ressignificação dos termos “fina”, “linhas”, “lumi-
nosa” (1998: 91). Joana, portanto, segundo Otávio, distancia-se do arquétipo da mu-
lher silenciosa que ele procura numa das formas físicas definidas que constrói inge-
nuamente, uma vez que a protagonista ousa entrar no terreno das idéias, espaço des-
147
tinado aos homens. Assim, quando Otávio entra em contato com o pensamento da
mulher, ele não a reconhece no quadro de sua tipologia feminina, restando a Joana a
cristalização de sua natureza fluida: “Ler o que ela escrevera foi como estar diante de
Joana. Evocou-a e, furtando-se aos seus olhos, viu-a nos momentos de distração, o
rosto branco, vago e leve” (1998: 124).
É importante a análise dessa formação fluida de Joana não pela via que enco-
bre o corpo da personagem, e sim pelo acesso que se abre ao trabalho dedicado às su-
tis descrições de um rosto cujos olhos se movimentam; que, por vezes, é encoberto
pelas mãos (1998: 41) com os olhos piscando constantemente; onde a testa franze
(1998: 73); os lábios ficam soltos (1998: 96); e os dentes podem aparecer cerrados
(1998: 108). Joana também aparece sem movimento, “o rosto sem expressão, lasso e
cansado como se ela tivesse tido um filho” (1998: 82). Essas oscilações acompanham o
conjunto do corpo da personagem. No capítulo do banho, Joana toma consciência de
seu corpo já formado e, em gesto irrefletido das mãos, ela as fita brevemente, caindo
num estado de contemplação onde partes do corpo se animam: “Observou-as vaga-
mente curiosa e esqueceu-as logo depois. O teto era branco, o teto era branco. Até
seus ombros que ela sempre considerara tão distantes de si mesma, palpitavam vi-
vos, trêmulos” (1998: 51). Essas marcas de corporalidade atuam no sentido de dissi-
pação da fluidez vista pela perspectiva da desmaterialização do corpo de Joana, pois
tal característica de aquosidade, em determinado momento, retoma sob tonalidade
vermelha que outrora serviu de distinção entre Joana e Lídia, na medida em que a
boca da protagonista é revestida de vermelho escarlate. Agora, numa discussão com
o marido, Joana é comparada ao vigor físico de um animal e sua aquosidade ganha a
cor do sangue de um animal: “O sangue corria-lhe mais vagarosamente, o ritmo do-
mesticado, como um bicho que adestrou suas passadas para caber dentro da jaula”
(1998: 109). Nessa medida, no som emitido pela protagonista também ecoa o vigor
animal, embora domesticado, que se desenha na coloração da voz da personagem,
essa que se desdobra mesma tonalidade avermelhada da garganta desta personagem:
– Amêndoas... – disse Joana voltando-se para o homem. O mistério e a doçura das
palavras: amêndoa... ouça, pronunciada com cuidado, a voz na garganta, ressoando
nas profundezas da boca (1998: 167).
148
O exercício clariciano que se detém sobre o prazer da pronúncia é o mesmo
que Julia Kristeva defende na análise dos textos poéticos de Mallarmé e de Lautréa-
mont. A voz, portanto, representa para o domínio teórico e ficcional um destacado
instrumento de exposição manifesto na escolha de palavras cuja função, supomos, é o
acionamento de uma rede de sensações daquele que entra em contato com determi-
nado universo estético.
No mundo clariciano de Perto do coração selvagem, a pele de Joana tem a pro-
priedade de conduzi-la a uma malha de sensações onde se destacam partes de seu
corpo. Por intermédio da pele, a protagonista escapa de um posicionamento solipsis-
ta, embora seja manifesto o descompasso existencial de Joana em relação aos demais
personagens, os quais não alcançam a mesma riqueza de sensações que Joana é capaz
de alcançar. A pele, nessa medida, representa a via para o universo de sensações da
protagonista. Trata-se de um procedimento que serve como meio de acesso ao que a
personagem chama de conhecimento, mas que parece atuar no campo das intuições,
distanciando-se assim da pura racionalidade pretendida no logos. Joana embaralha as
fronteiras entre a racionalidade e os outros modos de conhecer. Apesar de não definir
sua particular forma de conhecimento, ela não a retira de uma esfera na qual persiste
a influência simbólica do universo de Otávio, o qual transita no sistema das leis do
Direito e também se interessa pelo trabalho filosófico de Spinoza. Talvez como estra-
tégia retórica para se tornar compreensível ao marido, Joana se refira ao que sente em
termos de um conhecimento nas bases que ocupam as aspirações do marido: “Acre-
dite, Otávio, meus conhecimentos mais verdadeiros atravessaram minha pele, me vi-
eram quase traiçoeiramente... Tudo o que sei nunca aprendi e nunca poderia ensinar”
(1998: 179).
Se a sensação é um pensamento, pergunta filosófica interessante, é uma ques-
tão que também interessa a Julia Kristeva, mas ela prefere deixá-la em aberto. Em A
revolta íntima: poderes e limites da psicanálise II (La révolte intime: pouvoirs et limites
de la psychanalyse II), Kristeva reconhece nos estudos cognitivistas a abertura a um
debate agudo nos estudos filosóficos contemporâneos (1997: 84). Sabemos, no entan-
to, que a psicanalista questiona a orientação cognitivista, pois essa recusa o centro do
seu argumento acerca do sujeito, o qual leva em conta a copresença da sexualida-
149
de/pensamento, em prol de uma análise dissociada da história desse corpo no mun-
do. Nesse sentido, uma vez que sustentamos o mesmo aporte psicanalítico, no qual o
sujeito é um complexo formado pela sua historicidade e também pela sua genética,
não entraremos em discussões de cunho cognitivista. Para reavivar o embate entre a
sensação e o pensamento numa perspectiva diferente da cognitivista, Kristeva locali-
za uma alusão ao tema que remonta ao texto platônico A república. Na evocação da
caverna, realizada pelo filósofo, a psicanalista depreende a formação desse traço de
divergência entre pensamento e sensação, situando no texto platônico a origem do
que chama de “cicatriz”: “Essas ‘sombras’ são o ‘símbolo da experiência sensível’, o
que significa que elas são, desde aquele momento, realidades inteligíveis
1
” (1997: 84).
Kristeva sustenta que a sensação, segundo o ideal platônico, se apresenta necessari-
amente como falsa, além disso diverge do inteligível. Aventamos a possibilidade de
que nesse impasse entre o pensar e o sentir haja um espaço para o desdobramento da
própria idéia da copresença da sexualidade/pensamento, estando a sexualidade no
âmbito das sensações e dos sentimentos e o pensamento na esfera do simbólico, da
linguagem.
A protagonista de Perto do coração selvagem também se insere nessa tradição
onde sensação e pensamento se chocam até mesmo embaçando os limites do pensar e
do sentir. O nosso ponto não será o de desenvolver esse debate, e também não pre-
tendemos tomar partido de uma dessas partes em detrimento de outra. Interessa-nos,
em contrapartida, a mediação do corpo promovida por esses personagens – agora
centrado no corpo da protagonista – e sua relevância para a expressão de sensações,
de idéias. Já que finalizamos os apontamentos sobre a natureza fluida de Joana cen-
trando-nos sobre a pele dessa personagem, iniciaremos a inspeção referente aos sen-
tidos a partir do tato. O sentido do tato remete-nos ao relevo que a escritora confere
às primeiras experiências do sujeito consciente no mundo:
olhos brilhantes, essa força e essa fraqueza, batidas desordenadas do
coração. Quando a brisa leve, a brisa de verão, batia no seu corpo to-
do ela estremecia de frio e calor. E então ela pensava muito rapida-
1
“Ces ‘ombres’ sont le ‘symbole de l’expérience sensible’, ce qui veut dire qu’elles sont, dès ce
moment-là, des réalités intelligibles (La révolte intime: pouvoirs et limites de la psycha-
nalyse II, 1997: 84).
150
mente, sem poder parar de inventar. É porque estou muito nova ain-
da e sempre que me tocam ou não me tocam, sinto – refletia (Perto do
coração selvagem, 1998: 20).
Joana concentra-se nas batidas do seu coração e na temperatura do seu corpo
entre frio e o calor. A personagem constrói-se com base no ideal clariciano desenvol-
vido na crônica “Das vantagens de ser bobo”, na qual sobressai o artista livre, des-
vencilhado das camadas sígnicas acumuladas, não apenas pela história individual,
mas também pelas histórias que formam o sentimento de coletividade. Joana personi-
fica, nesse sentido, um aspecto de busca dessa liberdade de representação, pois ela
reconhece nas suas primeiras trocas epidérmicas com o meio-ambiente um estado de
novidade que mistura uma breve referência à ação do pensamento (esse não é apa-
gado, apesar de constituir um breve momento neste percurso) à capacidade de sentir.
É como se a pele tocada nas primeiras vezes, no sentido de estar em contato com o
vigor do próprio corpo jovem e saudável e também com a temperatura ambiente, re-
velasse algo da natureza secreta dessa personagem que, gradualmente, perde essa fa-
culdade do impacto das primeiras sensações-pensamento no momento em que acu-
mula certa experiência existencial. Esses pequenos transbordamentos epidérmicos
deslocam-se para um campo que ultrapassa a mera condição de estar no mundo, pois
o narrador atribui, por exemplo, à virtude da bondade a mesma caracterização cor-
póreo-tátil-olfativa que constitui o corpo da protagonista:
A bondade era morna e leve, cheirava a carne crua guardada há mui-
to tempo. Sem apodrecer inteiramente apesar de tudo. Refrescavam-
na de quando em quando, botavam um pouco de tempero, o suficien-
te para conservá-la um pedaço de carne morna e quieta (Perto do co-
ração selvagem, 1998: 19).
Em outro momento, o sentido do tato evoca a textura e a temperatura de ima-
gens religiosas. No capítulo “... A Tia...”, Joana vê-se órfã, à espera de uma parente
que mal a conhece. Por causa dessa sensação de desamparo, ela se apóia em referên-
cias sagradas as quais fogem da desmaterialização intrínseca ao metafísico: “Os san-
tos finos e delicados. Quando a gente toca são frios. Frios e divinos” (1998: 41). A
produção dessa sensação tátil transpõe-se, em outro momento narrativo, para a cons-
tituição do corpo da protagonista. Trata-se de um momento que promove a imbrica-
151
ção do sentido da visão ao do tato: “Olhos abertos flutuando entre folhas amarele-
cendo, nuvens brancas e muito embaixo o corpo estendido, como envolvendo a terra.
E agora... Talvez tivesse aprendido a falar, só isso. (...) Mas agora seus olhos, voltados,
voltados para fora, haviam esfriado” (1998: 190, grifos nossos). O aspecto térmico, a-
cessível a quem toca pessoas, objetos, é desviado para o campo de visão da persona-
gem; no entanto é o sentido da visão que altera a sua função meramente contempla-
tiva. Se os olhos aparecem “voltados para fora”, isso indica que eles não se restrin-
gem apenas à função do olhar, e que eles também são capazes de transformar o am-
biente
1
. É através do tato, quando visita o professor e esbarra com a imagem impo-
nente e feminina da mulher do personagem, que Joana permanece estática, de pé,
muda “sentindo a casa”: “Sentiu a capa dura do livro entre os dedos, longe longe
como se um abismo a separasse de suas próprias mãos” (1998: 60). A protagonista é
sensível à textura dos objetos, mas também as virtualidades térmicas ganham a sua
percepção, uma vez que ela se deixa tocar, por exemplo, pela umidade da cena do
banho: “O quarto abafado de vapores mornos, os espelhos embaçados, o reflexo do
corpo já nu de uma jovem nos mosaicos úmidos das paredes” (1998: 65-66). A respei-
to da mulher da voz, uma personagem secundária que suscita o interesse da prota-
gonista em função de um tom vocal incomum e, a seguir, desperta-lhe o desprezo,
pois ela frustra as expectativas imaginadas pelo narrador, Joana lança-lhe um “pen-
samento”: “de certo modo vingara-se jogando sobre aquela mulher intumescida de
vida seu pensamento frio e inteligente” (1998: 78). Aqui o pensamento descreve-se a
partir da mesma caracterização tátil empregada para marcar a presença dos santos
aos quais Joana recorre. Desfaz-se, portanto, nesse cruzamento epidérmico, a cristali-
zação de uma configuração onde impera a racionalidade esvaziada de sensações ou
de sentimentos. O jogo clariciano das sinestesias mantém a tensão entre o pensar e o
sentir. A faculdade da imaginação, que é bastante presente em Joana, a leva a um u-
niverso onde a protagonista, também habituada a se transformar numa linha, tece
um emaranhado de linhas geométricas na tentativa de desenhar um corpo com o fito
1
Regina Pontieri, com base no pensamento de Merleau-Ponty – O olho e o espírito – reconhe-
ce em A cidade sitiada o poder de um olhar que dá forma às coisas. A ensaísta vale-se de
uma passagem de A cidade sitiada que ilustra bem este ponto: “’Ver as coisas é que eram
152
de acomodar a intensidade e profusão de seus pensamentos. Curiosamente, a inten-
ção de “materialização” do pensamento desencadeia-se a partir de uma memória da
infância que alude à tonalidade vermelha significativamente presente no corpo adul-
to da protagonista. A memória de fundo tátil acionada por Joana vale-se estrategica-
mente de um vermelho-claro, pois é com dificuldade que ela remonta a cena da in-
fância:
Caiu mais fundo nos pensamentos, viu imóvel uma figura magra de-
bruada de vermelho-claro, o desenho com um dedo úmido de sangue
sobre um papel, quando se arranhara e enquanto o pai procurava io-
do. No escuro das pupilas, os pensamentos alinhados em forma ge-
ométrica, um superpondo-se ao outro como um favo de mel, alguns
casulos vazios, informes, sem lugar para uma reflexão. Formas fofas
e cinzentas como um cérebro. Mais isso ela não via, procurava ima-
ginar talvez (Perto do coração selvagem, 1998: 195).
Na citação, o realce da cor esmaecida deve-se ao complexo exercício embutido
na prática da rememoração, que, sob a perspectiva sinestésica, promove uma série de
associações entre os sentidos. Ora, o vermelho relaciona-se, diretamente, ao sentido
da visão, mas a cor, que reveste os lábios e a garganta da protagonista, e por conse-
guinte sua voz, também abre ampla margem para o sentido da audição. Como uma
terceira possibilidade de trabalho dos sentidos, o narrador lhe confere uma natureza
tátil que se liga à ancestralidade do sangue, levando-a, sub-repticiamente, à dupla e
inexorável formação da vida e da morte. Esses exemplos expressivos do sentido tátil
condicionam reflexões no campo de outro sentido explorado pelo narrador: o olfato.
Há momentos em que esses dois sentidos se aproximam, confundido-se numa
espécie de terceiro que dá vazão aos ritmos corporais da protagonista: “O vento lam-
bia-a rudemente agora. Pálida e frágil, a respiração leve, sentia-o salgado, alegre, cor-
rer pelo seu corpo, por dentro de seu corpo, revigorando-o. Entreabriu os olhos”
(1998: 38). O contato com a natureza complexifica ainda mais o sensualismo da cena,
pois se somam, ao tato e ao olfato, o paladar, a visão e o estado de alegria. Temos,
portanto, os elementos para a composição de uma tela de Chagall. Nem todas as in-
dicações olfativas demandam essa trabalhosa arquitetura sensitiva de diferentes par-
tes do corpo. No exemplo da infância, momento em que a personagem vive as pri-
as coisas’” (1999: 143).
153
meiras experiências fundamentais para o projeto clariciano na medida em que dis-
põem de uma intensidade primitiva incomum, a figura paterna é centrada sobre os
gestos táteis e odores desconhecidos do mundo infantil: “Enquanto o pai a carregava
pelo corredor para o quarto, encostou a cabeça nele, sentiu o cheiro forte que vinha
dos seus braços” (1998: 29). Os alimentos também aguçam a capacidade olfativa da
protagonista, de modo que ela reconhece temperos e distingue o sabor dos alimentos:
“de dentro da casa veio um cheiro de feijão misturado com alho” (1998: 37). O cheiro
exalado pela marca da ausência de animais, cujo destino poderia ser o da refeição,
não agrada à sensibilidade olfativa da protagonista, pois ela parece associar ao olfato
as formas vivas, em movimento: “aquele galinheiro velho sem galinhas. O cheiro era
de cal e de porcarias de coisa secando” (1998: 41). Isso se desdobra para o ponto de
vista de Otávio em relação à prima Justina, cuja velhice é metaforizada na imagem de
ferro retorcido que o seu cheiro de “jóias guardadas” incita a formular. A tia da pro-
tagonista, sobre ela salientamos o descompasso afetivo na relação com a sobrinha,
também instiga uma memória olfativa que Joana associa ao sentimento de revolta: “a
maior revolta que sinto que senti em ti, além das que eu provocava, pode ser resu-
mida naquela frase quase diária que ainda ouço, misturada ao teu cheiro que não
posso esquecer” (1998: 173). Joana traça um diálogo imaginário com a tia, que nunca
fora sequer uma companhia para ela, no qual a protagonista se observa relatando as-
pectos de seu triângulo amoroso. A tia, já falecida, retorna à memória de Joana sob o
que é chamado de “feminilidade de velha” (1998: 173), um aspecto que se acresce aos
tipos femininos da velhice explorados por Clarice. Em outro momento, cabe destacar,
é do ponto vista masculino de Otávio que temos acesso a essa “feminilidade de ve-
lha”, onde a pele flácida das orelhas da prima Justina sustenta brincos de brilhantes
que se misturam ao grisalho dos cabelos ralos:
No rosto seco e rugoso repentinamente, um veio d’água no deserto,
os dois pequenos brilhantes tremiam de suas orelhas murchas, duas
pequenas gotas úmidas, cintilantes. Ah, eram excessivamente frescas
e voluptuosas... A velha possuía bens. Mas se usava os pendentes era
por uma razão que ele nunca soubera: ela própria comprara as pe-
dras, mandara engastá-las em brincos, carregava-os como dois fan-
tasmas sob os cabelos grisalhos e arrepiados (Perto do coração selva-
gem, 1998: 86-87).
154
A protagonista, cuja jovialidade dispensa os adereços que enfeitam, por exem-
plo, as orelhas flácidas da prima Justina, revela no próprio corpo o que poderíamos
classificar de uma feminilidade juvenil. Essa se ancora sobretudo nos ritmos corpó-
reos, os quais se somam ao exercício da respiração, para além da sobrevivência aos
deslocamentos vibráteis que repercutem sobre seu corpo numa conexão onde tato e
olfato se confundem: “Aspirou o ar morno e claro, e o que nela pedia água restava
tenso e rígido como quem espera de olhos vedados pelo tiro” (1998: 33-34). A inten-
sidade desse jogo de sentidos a leva, por vezes, ao extenuamento do corpo: “A noite
veio e ela continuou a respirar no mesmo ritmo estéril. (...) ela sentiu a nova manhã
insinuando-se e abriu os olhos. Sentou-se sobre a cama” (1998: 34). O contato velado
com o amante apresenta, por intermédio do sentido do olfato exalado pelo aroma das
maçãs vermelhas, a metáfora do pecado que está na culpa da relação extraconjugal
cultivada brevemente pela protagonista. Novamente, o apelo visual da coloração
vermelha invade a rede de sentidos de Joana, momento em que o cheiro das maçãs já
velhas remete à possível tonalidade esmaecida desse vermelho, de modo a atenuar
sua transgressão, uma vez que ela também fora traída pelo marido:
Reviu o rosto do amante e amava levemente aqueles traços claros.
Fechou os olhos um instante, sentiu novamente o cheiro que vinha
dos corredores sombrios daquela casa inexplorada, com apenas um
aposento revelado, onde conhecera de novo o amor. Cheiro de maçãs
velhas, doces e velhas, que vinha das paredes, de suas profundezas
(Perto do coração selvagem, 1998: 187).
O retorno da fluidez de Joana enreda-se nesse contexto que tem a intenção de
retirá-la de um universo no qual ela tem a tendência ao desaparecimento perceptivo
característico do fluxo aquoso, pois, embora seja capaz de uma complexa atividade
mediada pelo substrato corpóreo, ela deixa escapar, em atos que revelariam a sua
mais secreta natureza, certa inacessibilidade que lhe é intrínseca: “Ela que violentara
a alma daquele homem, enchera-a de uma luz cujo mal ainda não compreendera. Ela
própria mal fora tocada” (1998: 187). Nesse sentido, as lembranças olfativas da infân-
cia retornam pelo mesmo viés que Clarice defende na crônica “O artista perfeito”,
sugerindo que as primeiras experiências são as mais intensas. O exemplo das verdu-
ras desperta na protagonista o regresso às primeiras sensações que a escritora privi-
155
legia: “Conhecera perfumes. Um cheiro de verdura úmida, verdura aclarada por lu-
zes, onde? Ela pisara então na terra molhada dos canteiros, enquanto o guarda não
prestava atenção” (1998: 195). Essa lembrança olfativa vem após a rememoração es-
pacial de uma casa de esquina onde morava um velho e seus dois filhos “grandes e
belos reprodutores”. Aqui reaparece a experiência tátil em proximidade com a olfati-
va, visto que o episódio se liga aos perfumes da verdura apreciados pela protagonis-
ta. Na cena da casa, Joana relata a sensação de ter sido beijada pelo filho mais novo:
“beijara-a uma vez, um dos melhores beijos que jamais sentira, e alguma coisa ergui-
a-se no fundo de seus olhos quando ela lhe estendia a mão” (1998: 195). Assim, a mão
de Joana torna-se “um pequeno corpinho aparte, saciado, negligente” (1998: 195). As-
sim como a protagonista anima o ambiente e este ganha ares de humanidade, de or-
ganicidade, tal como a cena do amante supõe, a partir dos odores que ela percebe nos
corredores da casa desse quase desconhecido, também o corpo da personagem rece-
be uma vida fragmentada e independente do todo – é o caso de suas mãos: “Quando
era pequena costumava fazê-la dançar, como a uma mocinha tenra” (1998: 195). Um
desdobramento ainda mais minúsculo dessa brincadeira que confere forma humana
está logo no primeiro capítulo, no qual Joana inventa um amigo imaginário do tama-
nho de um dedo: “Inventou um homenzinho do tamanho do fura-bolos, de calça
comprida e laço de gravata” (1998: 15). Na idade adulta, permanece a brincadeira
que dá à mão uma vida própria: “Dançara-a mesmo para o homem que fugira ou fo-
ra preso, para o amante – pois ela tivera um amante – e ele fascinado e angustiado
terminara por apertá-la, beijá-la como se realmente sozinha fosse uma mulher” (1998:
195).
O sentido da gustação passa pela intersecção entre o tato, o olfato e o senti-
mento de abjeção que retorna com a proximidade física do corpo da tia: “Joana enxu-
gou com as costas das mãos o rosto umedecido de beijos e lágrimas. Respirou mais
profundamente, sentiu ainda o gosto ensosso (sic) daquela saliva morna, o perfume
doce que vinha dos seios da tia” (1998: 37-38). As transparências aquosas que dão
forma à cena contribuem para a consolidação da natureza fluida de Joana, capaz de
flagrar a falta de sabor presente num vestígio de saliva. Nos diversos textos claricia-
156
nos, a faculdade do gosto aparece constantemente na interação entre os personagens
e o mundo.
A respeito do sentido da gustação, Kristeva o coloca no centro da teoria estéti-
ca kantiana. Cabe salientar a importância de Kant no que se refere à autonomia da ar-
te; o filósofo conferiu à arte um valor em si, afastando-se de seus predecessores. Em
A revolta íntima (1997: 132), a teórica aproxima a faculdade do gosto da teoria kantia-
na primeiro observando-o como um elemento arcaico da sensação, o que se observa
desde a relação do bebê com o mamilo materno. Na literatura, Kristeva oferece-nos o
exemplo de Proust como um modelo refinado de exercício dessa faculdade, no qual o
mamilo é metamorfoseado na “untuosa madeleine” (onctueuse madeleine). Apesar de
sustentar o fato de Proust estar claramente afastado do pensamento kantiano no seu
conjunto, Kristeva defende o argumento de que “Kant fundou sua crítica da capaci-
dade de julgar – estética ou moral – sobre o esquema originário do julgamento que é
o gosto
1
” (1997: 132). A psicanalista situa na faculdade do gosto a ponte para a consti-
tuição da estética: “O refinamento do juízo enraíza-se nessa apreciação arcaica gusta-
tiva: ‘isso é bom [para comer] para mim’; ou: ‘isso não é bom [para comer] para
mim
2
’” (1997: 132). O sentido da gustação ganha espaço de destaque em Perto do cora-
ção selvagem, localizando-se fisicamente:
sinto quem sou e a impressão está alojada na parte alta do cérebro,
nos lábios – na língua principalmente, na superfície dos braços e
também correndo dentro, bem dentro do meu corpo, mas onde, onde
mesmo, eu não sei dizer. O gosto é cinzento, um pouco avermelhado,
nos pedaços velhos um pouco azulado, e move-se como uma gelati-
na, vagarosamente (Perto do coração selvagem, 1998: 21-22).
O impacto visual do vermelho retorna para a formação da faculdade do gosto
clariciano. Nas imagens dos lábios, língua e o movimento de “dentro do corpo”, me-
táfora que alude à circulação do sangue, reconhecemos a mesma tonalidade que re-
1
“Kant a fondé sa critique de la capacité de juger – esthétique ou morale – sur ce schème o-
riginaire du jugement qu’est le goût” (La révolte intime: pouvoirs et limites de la psycha-
nalyse, 1997: 132).
2
“Le raffinement esthétique et intellectuel du jugement s’enracine dans cette appréciation
archaïque gustative: ‘c’est bon [à manger] pour moi’; ou: ‘ce n’est pas [à manger] pour
moi’” (La révolte intime: pouvoirs et limites de la psychanalyse II, 1997: 132).
157
cobre a garganta da protagonista, características que ecoam em uma voz significati-
vamente perturbadora. A voz transgressora da protagonista manifesta-se na imagem
voltada para o mal que a constitui como “a víbora” aos olhos da tia: “Roubar torna
tudo mais valioso. O gosto do mal – mastigar vermelho, engolir fogo adocicado”
(1998: 20). As maçãs doces e velhas e de um vermelho apagado, segundo o sentido
olfativo no episódio que traz à luz a culpa da protagonista por meio do personagem
amante, voltam sob o sentido gustativo. No episódio do roubo cometido por Joana,
no entanto, o vermelho ganha o realce de um tom muito vivo (do fogo), apesar de o
gosto ser somente “um pouco avermelhado”, mas materializa-se sob uma forma ge-
latinosa: o vermelho reveste-se de uma massa para ser melhor degustado. O exercício
do gosto acompanha Joana desde o período de sua vida anterior à convivência com a
tia. Para melhor apreciar a galinha, a menina dispensa o acompanhamento: “Joana
viu estupefacta e contrita uma galinha nua e amarela sobre a mesa (...) Todos riam e
Joana também. O pai dava-lhe mais uma asa de galinha e ela ia comendo sem pão”
(1998: 25). Ao gosto concreto da galinha, que não necessita de um aparelho percepti-
vo muito refinado, Joana sobrepõe o abstrato gosto de sono, esse que combina foneti-
camente com o insosso percebido outrora:
Aos poucos, de um movimento com a perna, nasceu-lhe longinqua-
mente a consciência misturada a um gosto de sono na boca, estiran-
do-se depois por todo o corpo. De repente, como um pequeno raio,
alguma coisa acendeu dentro dela, disse rapidamente sem mover
sem mover um só músculo do rosto: olhe para o lado (Perto do coração
selvagem, 1998: 132).
A semelhança entre esses dois exemplos no campo do gosto está na necessida-
de do uso do corpo para a sua manifestação. O sentimento de liberdade, que conduz
o destino da protagonista a uma vida necessariamente solitária, a guia a estados em
que impera a ação dos sentidos sobre um corpo disponível para a recepção de distin-
tas influências que advêm dessa intensa atividade. Sem desfazer o trabalho do pen-
samento, há um processo no corpo de Joana oor aprecndeuas
um forma gue eca iclasidicatcomo u“orgânic]TJ19.2360 TD.0001 Tc.(an” que cpoe sor ontenrrecada pomo um a)]TJ-19.136-1.86 TD0 Tc.047 Tw[(.tntanivo de upôrem )práicas aue las
158
percepção: “A liberdade que às vezes sentia. Não vinha de reflexões nítidas, mas de
um estado como feito de percepções por demais orgânicas para serem formuladas
em pensamentos” (1998: 43).
Outro ponto que merece atenção na narrativa de Clarice diz respeito à com-
plexidade de sentimentos envolvidos na formação dos personagens, sobretudo da
protagonista. Na cena que se passa na casa do professor, por exemplo, Joana fica en-
ciumada com a presença adulta e exuberante da mulher do professor, incomodando-
se com a segurança presente nos seus gestos. Em decorrência desse mal-estar que lhe
assusta, Joana demonstra nos olhos o arcaico sentimento de raiva: “Olhou-a fugiti-
vamente, abaixou os olhos cheia de raiva” (1998: 56). Durante o passeio na praia, de-
pois do constrangimento vivido na casa do professor, a protagonista experimenta um
sentimento de liberdade, que se repete nas suas rupturas amorosas e dá forma ao seu
aspecto fluido no final da narrativa. Curiosamente, ele depende da raiva, de uma rai-
va tão intensa que se transforma no seu contrário, ou seja, em amor. E a intensidade
do amor reverte-se, por sua vez, novamente em ódio, encerrando-a na solidão. Não
se trata do mesmo sentimento de raiva inicial, uma vez que há um trajeto sinuoso
desses sentimentos claricianos os quais passam de um estado de intensa raiva para
um outro de intenso amor, para chegar ao ponto onde esses dois sentimentos con-
trastantes se encontram na formação de um outro sentimento que não é a mera jun-
ção de opostos:
Na areia seus pés afundavam e emergiam de novo pesados. (...) O
vento aninhara-se nos seus cabelos, fazia esvoaçar como louca a fran-
ja curta. Joana não sentia mais tontura, agora um braço bruto pesava
sobre seu peito, um peso bom. Alguma coisa virá em breve, pensou
depressa. Era a segunda vertigem num só dia! (...) Estou cada vez
mais viva, soube vagamente. Começou a correr. Estava subitamente
mais livre, com mais raiva de tudo, sentiu triunfante. No entanto não
era raiva, mas amor. Amor tão forte que só esgotava sua paixão na
força do ódio. Agora sou uma víbora sozinha (Perto do coração selva-
gem, 1998: 61).
No episódio da mulher da voz, Joana, cuja voz é metaforizada em tons de
vermelho a simbolizar sua personalidade expressiva e transgressora, sente, de imedi-
ato, curiosidade ao ouvir uma voz que lhe soa desconhecida: “Não compreendia a-
quela intonação (sic), tão longe da vida, tão longe dos dias...” (1998: 73). A mulher da
159
voz incomum é viúva e mãe de um filho já casado. O diálogo truncado entre as duas
e a vida comum da mulher que despertara intensa curiosidade na protagonista a leva
ao campo das fabulações. Joana inventa uma existência para a mulher da voz que
consiste exclusivamente no que denomina de saber viver, sem esconder, em contra-
partida, aí uma profunda ironia: “Porque ela nascera para o essencial, para viver ou
morrer. E o intermediário era-lhe o sofrimento. (...) teria pensado, se tivesse o hábito
de pensar: eu nunca fui” (1998: 78). Essa inconsciência existencial se reverte ao oposto
do que suporíamos como um “saber viver”. A mulher da voz, percebida por Joana
como um ser sem consciência de si, assemelha-se à Macabéa, a protagonista de A hora
da estrela. Essa, no entanto, desperta aquele sentimento de piedade risível em que in-
sistimos na análise corpórea de muitos personagens idosos de Perto do coração. A mu-
lher da voz, por sua vez, suscita o sentimento de inveja: “Joana percebeu que a inve-
jara, aquele ser meio morto que lhe sorrira e falara num tom de voz desconhecido”
(1998: 78). A inveja de Joana fundamenta-se no medo que ela sente de abandonar a
sua vida racional em busca de um outro estado, no qual ela enquadra a mulher da
voz, e que desencadearia possivelmente uma via de loucura para a protagonista.
Nessa medida, por medo de enlouquecer na tentativa de compreender a mulher da
voz, Joana rabisca num papel, no intuito de se vingar da inacessibilidade da mulher,
o seguinte: “‘A personalidade que ignora a si mesma realiza-se mais completamente’.
Verdade ou mentira? Mas de certo modo vingara-se jogando sobre aquela mulher in-
tumescida de vida seu pensamento frio e inteligente” (1998: 78). Esses sentimentos
negativos de ódio, de inveja, estão próximos daquele sentido tátil que oferece ao pen-
samento uma forma física de manifestação. O processo de sensação/sentimento da
protagonista, nesse sentido, foge de uma racionalização que distancia as duas perso-
nagens, pois Joana também participa de uma existência onde o par sensa-
ção/sentimento lhe confere uma vida com laivos de uma “inconsciência” (que pode
ser interpretada pela metáfora aquosa) consentida. A diferença entre Joana e a mu-
lher da voz sustenta-se no fato de que Joana não apaga da sua constituição a copre-
sença sexualidade/pensamento, e, sob pena de entrar num estado de loucura, inferi-
oriza-se diante da outra no que se refere ao campo das percepções. Esse breve rebai-
xamento perceptivo de Joana é, em seguida, escamoteado pela rapidez com que a
160
personagem sai de sentimentos disfóricos para outros de extrema positividade. Isso
se deve, em parte, à própria organização fragmentada de Perto do coração selvagem, na
qual a autora justapõe tempos da narrativa que confundem infância, adolescência e
idade adulta, sobretudo a linha do tempo que divide as fases da vida adulta da pro-
tagonista, em um mesmo fluxo de acontecimentos que evidenciam, em primeiro pla-
no, não o tempo transcorrido, mas o efeito desse fluxo no corpo da protagonista. Vê-
mo-la, no capítulo intitulado “...Otávio...”, entrar em elevado sentimento de ternura
depois de uma cena que ressalta sentimentos de ódio, de amor e de vingança:
Fechou os olhos, vagarosamente foi descansando. Quando abriu re-
cebeu um pequeno choque. (...) E em breve ela não saberia dizer se a
impressão da manhã fora verdadeira ou se apenas uma idéia. (...) Os
nervos abandonados, o rosto relaxado, sentiu uma leve onda de ter-
nura por si mesma, de quase agradecimento, embora não soubesse
por quê (Perto do coração selvagem, 1998: 79-80).
No mesmo capítulo, ao fitar seu rosto no espelho, muda subitamente da sen-
sação de ternura para o sentimento de ódio que sua própria imagem refletida incita.
Ela caminha até a janela, estende os braços para fora à procura de uma brisa que não
a atende. O breve percurso demanda uma complexa descrição do rosto de Joana, que
parece forçar um estado de inconsciência perceptiva: “Ficou assim esquecida por
longo tempo. Conservava os ouvidos entrefechados por uma contração dos músculos
do rosto, os olhos cerrados mal deixando passar a luz, a cabeça projetada para frente”
(1998: 80). Os poucos gestos são suficientes para desencadear na protagonista um for-
te sentimento de ódio: “Esse estado meio inconsciente, onde parecia-lhe mergulhar
profundamente em ar morno, cinzento... Pôs-se diante do espelho e entre dentes, os
olhos ardendo de ódio” (1998: 80). O ódio despertado através da visão do rosto “pe-
queno e aceso” no espelho dissipa-se fugazmente, fazendo-a esquecer o que também
chama de “raiva” (1998: 80). Subjaz ao ódio da protagonista o mesmo sentimento de
inveja que ela cultiva acerca da mulher da voz, que se aproxima de uma experiência
na qual se desfazem as diversas capas de significação que recobrem as coisas. Como
o exercício mais elevado de Joana com o objetivo de alcançar as primeiras e intensas
experiências não se desvencilha de um estado de semiconsciência, a personagem é
tomada por um ódio momentâneo: “Desejava ainda mais: renascer sempre, cortar
161
tudo o que aprendera, o que vira, e inaugurar-se num terreno novo onde todo pe-
queno ato tivesse um significado, onde o ar fosse respirado como da primeira vez”
(1998: 80). O ódio esconde, na realidade, um sentimento de impotência da protago-
nista em face de um estado no qual sua constituição corpórea, tendo em vista a co-
presença da sexualidade/pensamento, é incapaz de tornar viável à esfera do simbóli-
co determinados sentimentos/sensações.
Na cena que centraliza o capítulo intitulado “O casamento”, percebemos a de-
sunião do casal Joana e Otávio em função de pequenos contratempos do cotidiano
que desvelam a desarmonia entre eles. No gesto banal de Joana de esquecimento do
título do livro ao procurar uma obra de direito público para o marido que a espera e
depois a recebe com a mão estendida, sem levantar a cabeça, esboça-se uma série de
desencontros velados, os quais são marcados pelos gestos de impaciência dos corpos
desses personagens. Ao sorriso tímido do marido que se sente importunado e esten-
de a mão por cima da mesa, Joana reage por meio de imagem corpórea que anima
também o ambiente, na medida em que o recurso da catacrese se confunde à configu-
ração do corpo da protagonista, realçando o sentimento de ódio vivido por ela:
odiou-o com uma força tão bruta que suas mãos se fecharam sobre os
braços da poltrona e seus dentes se cerraram. (...). A culpa era dele,
pensou friamente, à espreita de nova onda de raiva. (...) Ele roubava-
lhe tudo, tudo. (...) pensou com intensidade, os olhos fechados: tudo!
Sentiu-se melhor, pensou com mais nitidez (Perto do coração selvagem,
1998: 108).
A onda de ternura que antecede o sentimento de ódio da outra situação é mar-
cada por uma espécie de estremecimento sobre a superfície da pele, fato que prati-
camente encobre a ação do pensamento; na cena do casal, porém, o ódio de Joana a-
póia-se sobre a ação do pensamento, da racionalidade. A nitidez do pensamento do
Joana repercute sobre Otávio, que se perturba ao perceber que Joana já sabe da exis-
tência de Lídia. A reação de Otávio é a de cólera: “a cólera veio-lhe subindo do cora-
ção pesado, ensurdeceu-lhe os ouvidos, enublou-lhe os olhos. O que..., debatia-se ne-
le a raiva trôpega e arquejante, então ela sabia sobre Lídia, sobre o filho... sabia e si-
lenciava... Ela me enganava...” (1998: 184). A reação de Joana é a de espectadora, pois
a protagonista acompanha visualmente a transformação de humor do marido, que se
162
parece muito com as imagens de animais que metaforizam alguns personagens como
o professor, comparado ao vigor de uma fera: “Ela o observava bater os punhos so-
bre a mesa, enlouquecido, chorando de ira. Quanto tempo?” (1998: 185).
A alegria também é uma constante no repertório sentimental de Clarice. Em
Perto do coração selvagem, essa condição manifesta-se sob diversas circunstâncias vivi-
das pela protagonista. No capítulo intitulado ”...O banho...”, que pontua a descoberta
do corpo em desenvolvimento, acrescida do precoce amadurecimento psíquico da
protagonista, ela se vê, em total desamparo afetivo e repleta de questionamentos,
num momento de alegria que se expressa pelo seu corpo: “A alegria cortou-lhe o co-
ração, feroz, iluminou-lhe o corpo” (1998: 62). Essa condição a leva a movimentos
corpóreos que ilustram o impacto da mesma sobre a personagem: ”para a frente co-
mo se anda na praia, o vento alisando o rosto, levando para trás os cabelos” (1998:
62). Na cena do banho propriamente dita, entre os vapores mornos, Joana vê o refle-
xo do seu corpo nu nos desenhos formados nas paredes do banheiro, situação que
lhe desperta uma alegria misturada ao riso: ”A moça ri mansamente de alegria de
corpo. Suas pernas delgadas, lisas, os seios pequenos brotaram da água. Ela mal se
conhece, nem cresceu de todo, apenas emergiu da infância” (1998: 65). Aos gestos do
seu corpo que dão forma ao estado de alegria risível – nos quais ela fita o pé e o ob-
serva de longe, estende uma perna e eleva os braços acima da cabeça –, tal condição
cinética é caracterizada no âmbito do movimento puro, não havendo espaço para
enquadrá-la no campo dos sentimentos: “sem nenhum sentimento, só movimento”
(1998: 65). Esse olhar voltado à fisicalidade, quase como um exercício no qual há uma
espécie de sugestão de esvaziamento da articulação sexualidade/pensamento, se dis-
sipa na formação de uma alegria constituída de suavidade e ligada ao sentimento de
ternura. No capítulo “O encontro de Otávio”, a proximidade física entre a protago-
nista e o marido desperta nela a criação de “sílabas soltas”, um tipo de entoação que
remonta àquelas primeiras experiências sonoras que constituem o ser falante e são
importantes na teoria da linguagem e, por conseguinte, na formação do poético de
Kristeva. A posição e os movimentos do corpo de Joana, que configuram seu estado
de alegria suave, conferem a essas sílabas soltas o status de glossolalias: “Os olhos fe-
chados, entregue, disse baixinho palavras nascidas naquele instante, nunca antes ou-
163
vidas por alguém, ainda tenras da criação – brotos novos e frágeis” (1998: 138). É nes-
se momento que sobressai a estrutura da copresença sexualidade/pensamento da
protagonista, ou seja, por meio da alegria suave, Joana afirma a ligação entre corpo
(sexualidade) e alma (essa que se desdobra em linguagem):
Seus olhos se umedeceram de alegria suave e de gratidão. Falara...
As palavras vindas de antes da linguagem, da fonte, da própria fon-
te. Aproximou-se dele, entregando-lhe sua alma e sentindo-se no en-
tanto plena como se tivesse sorvido um mundo. Ela era como uma
mulher (Perto do coração selvagem, 1998: 138).
O recurso dos oxímoros, freqüente nos textos de Clarice, também acompanha
os sentimentos. Na prática do olhar, exercida por Joana já nos tempos do internato,
ela, através de “uma graça ardente e cortante como ligeiras chicotadas” (1998: 146),
dispunha de um carisma retórico que envolvia as colegas, rebaixando-as a um senti-
mento de vergonha. A aguçada capacidade perceptiva da protagonista a distancia de
suas amigas, que se revoltam contra o talento dela de traduzir em palavras o flagran-
te de uma situação quase imperceptível. Desse modo, as colegas contestam a superio-
ridade de Joana através do que denominam, provavelmente de forma equivocada, de
alegria: – Joana fica insuportável quando está alegre... (1998: 146). A alegria da prota-
gonista determina nas amigas um efeito incomum, qual seja, o de dor. Por isso a gra-
ça atribuída à Joana, que poderia ser equivalente ao sentimento de alegria suave de
outrora, ganha uma nuance de dissolução dessa qualidade positiva na medida em
que se justapõe à sugestão de sofrimento embutida na imagem irônica das “ligeiras
chicotadas”. O desenvolvimento do que se classifica como “alegria de dor” cola-se ao
episódio das colegas de Joana. Numa mudança brusca de tempo diegético, na se-
qüência desse episódio, entramos em contato com Joana adulta, em encontro tenso
com a rival, Lídia. Trata-se da reação de Joana diante da revelação da gravidez de Lí-
dia: “Eu estava então sozinha? e essa alegria de dor, o aço franzindo minha pele, esse
frio que é ciúme, não, esse frio que é assim: ah, andaste tudo isso? pois tens que vol-
tar” (1998: 146, grifos nossos). A variação contrastante dessa forma de alegria que
remete ao sofrimento físico também invade o corpo do amante de Joana: “Com a su-
bitaneidade de uma punhalada, a dor estalou dentro de seu corpo, iluminou-o de a-
164
legria e perplexidade” (1998: 165). A manifestação dessa alegria de dor no corpo do
amante exemplifica uma condição que concede espaço àquelas primeiras e intensas
sensações almejadas no projeto criativo clariciano: “E seu corpo era apenas memória
fresca, onde se moldariam como pela primeira vez as sensações” (1998: 165). No pri-
meiro encontro com o amante, que surge abruptamente na vida de Joana, ele a incita
a esse sentimento controverso de dor, que se abre para outra gradação do sentimento
de alegria envolvido com o sofrimento. Trata-se, pois, de uma “alegria misteriosa”:
“Seus olhos resplandeciam, mas não se poderia saber se de dor ou de misteriosa ale-
gria. Sua testa alargara-se para o alto, seu corpo mal se equilibrava no esforço de se
conter, de não vibrar” (1998: 161). Ao presenciar essa cena em que homem é flagrado
em estado de mistério – de alegria misteriosa – a reação de Joana é de uma “alegria
compacta”: “ela não teve medo, mas sentiu uma alegria compacta, mais intensa que o
terror, possuí-la e encher-lhe todo o corpo” (1998: 162, grifos nossos).
O marido de Joana, ao tentar reproduzir um pensamento da protagonista co-
mo forma de demonstrar interesse por ela, se refere a ciclos de alegria depois de uma
experiência de sofrimento, mas ele não tem certeza da idéia que reproduz da mulher:
– Não lembra que um dia você me disse: “a dor de hoje será amanhã tua alegria; na-
da existe que escape à transfiguração”. Não lembra? Talvez não tenha sido exatamen-
te assim... (1998: 180).
Há também um tipo de “alegria fina”, que é comparada ao som de uma músi-
ca e aciona, em conseqüência disso, o sentido da audição. Em outro momento, cha-
mamos a atenção para a voz de uma mulher – personagem secundária –, no entanto
essa voz anônima é importante para atiçar a curiosidade sobre a voz da protagonista.
Os tons avermelhados que invadem a voz de Joana também participam da constitui-
ção dessa alegria fina, que também se volta para uma alusão tátil na imagem da frie-
za do gelo:
Novamente deslizou para a janela, respirando cuidadosamente. Mer-
gulhada numa alegria tão fina e intensa como o frio do gelo, quase
como a percepção da música. Ficou de lábios trêmulos, sérios. (...)
Líquidos resplandecentes como fogos derramando-se por dentro de
seu corpo transparente de jarros imensos... (Perto do coração selvagem,
1998: 192).
165
No capítulo final – “A viagem” – momento em que Joana opta por um estado
de liberdade solitária, observamos que ela ensaia uma distinção entre a dor e a ale-
gria, mas a tentativa de separá-las acaba por consolidar esse par antitético que já fora
várias vezes associado numa formação incomum mas possível para o mundo clarici-
ano: “Doía ou alegrava? No entanto sentia que essa estranha liberdade que fora sua
maldição, que nunca a ligara nem a si própria, essa liberdade era o que iluminava
sua matéria” (1998: 196). As últimas sensações que acompanham Joana no fecho de
seus relacionamentos se ampliam para uma busca em que a liberdade está em pri-
meiro plano, e até mesmo a sua natureza aquosa parece dissipar-se: “Aquele movi-
mento de alguma coisa viva procurando libertar-se da água e respirar. Também co-
mo voar, sim como voar... andar na praia e receber o vento no rosto (...)” (1998: 199).
Essa transformação, motivada pelo sentimento de alegria, ocorre no corpo da prota-
gonista metamorfoseada na vigorosa imagem de seu corpo que, no final de sua nar-
rativa, ganha uma metáfora eqüina. Já observamos sinais desse corpo antes do fecho
do relato de Joana: “Um soluço seco como se a tivessem sacudido, alegria rutilando
em seu peito intensa, insuportável, oh o turbilhão, o turbilhão. Sobretudo aclarava-se
aquele movimento constante no fundo do seu ser – agora crescia e vibrava” (1998:
199). O destino de Joana é incerto, as informações a seu respeito são difusas, entretan-
to é possível sustentar o argumento de que a protagonista preserva ou cristaliza a
comunhão entre corpo e alma, ou seja, a copresença sexualidade/pensamento num
gesto que agrega ao movimento corpóreo o estado de alegria e o jogo tátil-visual-
sonoro: “Erguendo-se, erguendo-se, o corpo abrindo-se para o ar, entregando-se à
palpitação cega do próprio sangue, notas cristalinas, tintilantes, faiscando na sua al-
ma...” (1998: 200).
O estado de felicidade também aparece em Perto do coração selvagem. Curiosa-
mente, uma das primeiras manifestações dessa qualidade de felicidade deve-se a to-
nalidades próprias da condição da alegria. Ao caminhar pela praia, órfã e quase sem
destino certo, Joana experimenta uma sensação de liberdade que se processa no cor-
po: ”E, de repente, assim, sem esperar, sentiu uma coisa forte dentro de si mesma,
uma coisa engraçada que fazia com que ela tremesse um pouco. Mas não era frio,
nem estava triste, era uma coisa grande que vinha do mar, que vinha do gosto de sal
166
na boca, e dela, dela própria” (1998: 38). Na tentativa de melhor explicar essa sensa-
ção, Joana descarta nomeá-la de tristeza, e prefere chamá-la de “uma alegria quase
horrível”, que ainda mantém um traço do que em seguida será chamado de felicida-
de. É por meio do corpo que a protagonista expressa o efeito dessa tonalidade para-
doxal de alegria: “Não era tristeza, uma alegria quase horrível... Cada vez que repa-
rava no mar e no brilho quieto do mar, sentia aquele aperto e depois afrouxamento
no corpo, na cintura, no peito” (1998: 38). À alegria quase horrível sucede um movi-
mento em que a personagem cobre o rosto com as mãos sentindo-se envergonhada.
Depois Joana sente o contato da água do mar no seu corpo exposto ao sol e coberto
pelo sal da água. O conjunto produz novamente no corpo de Joana o meio para a
consolidação de outro matiz da alegria, a “alegria séria” – que impede a ação do riso
e é comparada à felicidade: “O sal e o sol eram pequenas setas brilhantes que nasci-
am aqui e ali, picando-a, estirando a pele de seu rosto molhado. Sua felicidade au-
mentou, reuniu-se na garganta como um saco de ar. Mas agora era uma alegria séria,
sem vontade de rir“ (1998: 39).
Se na infância observamos a relevância do corpo descrito no vermelho que re-
veste a garganta e oferece animação à qualidade de felicidade, na idade adulta a pro-
tagonista é flagrada em situação de felicidade onde o corpo é praticamente apagado
na sua condição de imobilidade que a metáfora da estátua institui: “abriu os olhos e
novamente era uma estátua, não mais plástica, porém definida. (...) Levemente sur-
preendida dilatava os olhos, percebia seu corpo mergulhado na confortável felicida-
de. Não sofria, mas onde estava?” (1998: 100). Essa perda de referências, que confere
a Joana uma “confortável felicidade”, leva-nos à relativização do sentimento no que
ele apresenta de bem-estar em função de sua imobilidade gestual. A situação confir-
ma-se na tentativa, sem êxito, da personagem de sair dessa sensação apática: – Joa-
na... Joana – chamava-se ela docemente. E seu corpo mal respondia devagar, baixi-
nho: Joana (1998: 100).
Muito diferente é a felicidade que invade o corpo da protagonista no capítulo
“O casamento”. No momento em que ela rememora uma cena onde está no topo de
uma escadaria e observa as pessoas de uma visão privilegiada, a personagem capta
pequenos detalhes que se espalham pela escadaria de mármore: as roupas de cetim,
167
os movimentos dos leques, o cheiro das fazendas novas. Joana, entretanto, não está
segura se viveu, imaginou ou apenas embaralhou a situação congelada na memória:
“Muito provável mesmo que nunca tivesse vivido aquilo” (1998: 105). O mais impor-
tante para ela é a retomada ou a criação de uma sensação: “Parou um instante os
movimentos e os olhos batiam rápidos, à procura da sensação” (1998: 105). A lem-
brança que remonta a um possível dia do seu casamento com Otávio aciona a memó-
ria do corpo da protagonista naquela ocasião: “Desceu pela escadaria de mármore,
sentindo na planta dos pés aquele medo frio de escorregar, nas mãos um suor cálido,
na cintura uma fita apertando, puxando-a como um leve guindaste para cima” (1998:
105-106). São essas referências físicas, lembranças de um corpo sobretudo aflito, que
dão forma a um estado repentino de felicidade:
Parava no último degrau, no largo e sem perigo, pousava levemente
a palma da mão sobre o corrimão frio e liso. E sem saber por que sen-
tia uma súbita felicidade, quase dolorosa, um quebranto no coração,
com se ele fosse de massa mole e alguém mergulhasse os dedos nele,
revolvendo-o maciamente. (Perto do coração selvagem, 1998: 106, grifos
nossos).
Essa felicidade repentina, experiência fortemente clariciana, a autora a apro-
xima de uma quase dor que percebemos se manifestar no corpo da personagem, na
medida em que se alteram os ritmos cardíacos e respiratórios por mais de uma vez
enquanto dura esse tipo de felicidade: “De novo o coração lhe doeu levemente e ela
sorriu, o nariz franzido, a respiração fraca” (1998: 106). Depois que essa sensação a-
bandona o corpo de Joana, ele volta à realidade, ao que ela chama de “corpo insensí-
vel”, realidade em que os movimentos corpóreos se acomodam dentro de um fun-
cionamento regular, esperado: “não sentiu mais as pernas trêmulas, nem o suor nas
mãos. Então viu que esgotara a lembrança” (1998: 107). Não se restringe somente a
Joana o arrebatamento físico desse estado de felicidade que não pode ser incluído no
mesmo conjunto tonal da alegria, uma vez que Lídia, a rival, também é inundada por
essa espécie de felicidade repentina. É numa cena banal em que ela, ao ser amparada
por Otávio depois de um momentâneo desequilíbrio lhe agradece com uma “ligeira
pressão no braço” – essa situação dá margem para a felicidade também experiencia-
da, em contexto solitário, por Joana: “Olharam-se com um sorriso e de repente senti-
168
ram-se ofuscamente felizes... Puseram-se a andar mais depressa, os olhos abertos,
deslumbrados” (1998: 128).
Não há como dissociar a temática da felicidade nos textos de Clarice de uma
certa inspiração derivada da ficção de Katherine Mansfield. A própria Clarice, em
crônica de 24 de fevereiro de 1973, intitulada “O primeiro livro de cada uma de mi-
nhas vidas”, não esconde o entusiasmo diante da descoberta literária que faz aos
quinze anos, quando, com o dinheiro do primeiro salário, ela entra numa livraria:
E de repente, um dos livros que abri continha frases tão diferentes
que fiquei lendo, presa, ali mesmo. Emocionada, eu pensava: mas es-
se livro sou eu! E, contendo um estremecimento de profunda emo-
ção, comprei-o. Só depois vim a saber que a autora não era anônima,
sendo, ao contrário, considerada um dos melhores escritores de sua
época: Katherine Mansfield (A descoberta do mundo, 1999: 453).
Há um depoimento da própria escritora em que ela responde, confirmando o
conteúdo da crônica, à pergunta de João Salgueiro sobre qual autor a teria influenci-
ado entre todos
1
. Nádia Battella Gotlib (1995: 152) estabelece forte ligação entre essas
duas escritoras, tecendo pontos de contato, por exemplo, entre o conto “Bliss”, de Ka-
therine Mansfield, e o conto de 1952 chamado “Amor”, de Clarice, que fora publica-
do no volume Alguns contos. Conforme o depoimento da escritora, percebemos que o
seu interesse parece direcionado sobretudo à temática da felicidade, que inspira uma
malha de sensações. Em Perto do coração selvagem, assim como ocorre com alguns ma-
tizes da alegria, a felicidade também tem a propriedade de escamotear o pensamen-
to, de modo a subentender exclusivamente uma rede de gestos irrefletidos que, no
entanto, deixam escapar a copresença de pensamentos nos estados epidérmicos: ”Re-
flexões rapidíssimas e brilhantes como faíscas que se entrecruzavam eletricamente,
fundindo-se mais em sensações do que pensamentos” (1998: 192). As mudanças súbi-
tas desses estados delicados – talvez esteja aí o motivo central que permite a compa-
1
A resposta de Clarice Lispector relaciona-se a nossa temática acerca da felicidade, pois re-
lata a escritora: “Ah, bom! Então, com o primeiro dinheiro que eu ganhei, entrei, muito
altiva, numa livraria para comprar um livro. Aí mexi em todos e nenhum me dizia nada.
De repente eu disse: ‘Ei isso aí sou eu’. Eu não sabia que Katherine Mansfield era famosa,
descobri sozinha. Era o livro Felicidade” (2005: 159). Retiramos essa informação da entre-
vista da escritora gravada no dia 20 de outubro de 1976, na sede do Museu da Imagem e
do Som do Rio de Janeiro e disponibilizada no volume Clarice Lispector e outros escritos.
169
ração entre Mansfield e Lispector – conduzem a um tipo de felicidade matizada pelo
medo e mediada pelos ritmos do corpo da protagonista: “Mudava sem transição, em
saltos leves, de plano a plano, cada vez mais altos, claros e tensos. E de instante a ins-
tante caía mais fundo dentro de si própria, em cavernas de luz leitosa, a respiração
vibrante, cheia de medo e felicidade pela jornada” (1998: 192). Depois dessa apreen-
são de um momento de deslumbramento, Joana desnomeia essa experiência, no fito
de uma busca que a ela soa como inacabada: “Não fora felicidade o que sentira então,
mas o que sentira fora fluido, docemente amorfo, instantes resplandecente, instantes
sombrio” (1998: 194-195).
2.2 A paixão segundo GH
A paixão segundo G.H. é publicada no ano de 1964, período em que Clarice Lis-
pector já é uma escritora consagrada. O livro é escrito em alguns meses, durante o
ano anterior, momento que coincide com a oficialização da separação do casal e a
conseqüente divisão dos bens. Em setembro de 1963, Clarice compra um apartamen-
to, ainda em construção, situado no bairro do Leme, no Rio de Janeiro
1
. É nesse am-
biente que encontra inspiração para a trajetória de G.H. Antes de tecermos conside-
rações acerca da representação do corpo de G.H., a protagonista da obra, vasculha-
remos os corpos quase invisíveis de personagens ou situações corpóreas que partici-
pam do percurso intimista dessa personagem solitária e desesperada.
Em Perto do coração selvagem, entramos em contato com uma série de persona-
gens secundários, muitos anônimos, outros importantes para a formação do delicado
enredo em direção à liberdade de Joana. O desfile dos tipos da velhice, por exemplo,
que despertam o riso, a piedade e a culpa daqueles que se aprofundam no intrincado
esquema descritivo articulado pela escritora, reflete o destaque que ela concede às
transformações corpóreas pelas quais passam diversos de seus personagens. Curio-
samente, em A paixão segundo GH, esse recurso parece apagar-se diante do monólogo
da protagonista, que centraliza a trama em sua complexa vida interior. Essa ilusão
1
Retiramos essas informações sobre a confecção de A paixão segundo G.H. no recorte crono-
lógico estabelecido por Nádia Battella Gotlib, “A descoberta do mundo”, presente no vo-
lume Cadernos de Literatura Brasileira (2004: 29).
170
monologal, no entanto, dissipa-se na medida em que a personagem-narradora pede
auxílio, desde o início do seu relato, a um interlocutor imaginário
1
: “Estou tão assus-
tada que só poderei aceitar que me perdi se imaginar que alguém me está dando a
mão” (1998: 17).
Divergindo da posição de Benedito Nunes, que faculta a importância do diá-
logo no texto clariciano a partir de Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, obra pu-
blicada em 1969, sustentamos o aspecto dialogal presente já em A paixão segundo G.H.
Apesar de acionar a faculdade da imaginação na formação desse interlocutor, a nar-
radora busca aproximar-se sobretudo de um leitor comum, aquele que, no entanto,
conforme a dedicatória da escritora, ocupa para ela um lugar especial: “Este livro é
um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma
já formada” (1998: 7). Na seqüência dessa observação, que eleva o leitor a uma ideali-
zação por parte da personagem-narradora, esta se descreve pelo mesmo dado corpo-
ral que localiza no interlocutor de alma formada. Observemos a relação entre o nar-
rador e o destinatário: “Enquanto escrever e falar vou ter que fingir que alguém está
segurando a minha mão” (1998: 18, grifos nossos). As mãos, portanto, ligam a perso-
nagem-narradora aos possíveis interlocutores. Esse aspecto do corpo destaca-se na
parte inicial do relato de G.H.:
Oh pelo menos no começo, só no começo. Logo que puder dispensá-
la, irei sozinha. Por enquanto preciso segurar esta tua mão – mesmo
que não consiga inventar teu rosto e teus olhos e tua boca. Mas em-
bora decepada, esta mão não me assusta. A invenção dela vem de tal
de amor como se a mão estivesse realmente ligada a um corpo que,
se não vejo, é por incapacidade amar mais. Não estou à altura de i-
maginar uma pessoa inteira porque não sou uma pessoa inteira. E
como imaginar um rosto se não sei de que expressão de rosto preci-
so? Logo que puder dispensar tua mão quente, irei sozinha e com
horror (A paixão segundo G.H., 1998: 18).
1
Benedito Nunes, em “Do monólogo ao diálogo”, observa no recurso monologal empregado
pela escritora o diálogo da consciência consigo mesma: “Em A paixão segundo GH., a per-
sonagem, que chega à visão silenciosa onde o monólogo interior se esgota, inventa, para
garantir a possibilidade da narrativa, a presença de um interlocutor imaginário, de quem
finge segurar as mãos. É um estratagema contra a incomunicabilidade, que não consegue
superar a angústia da ‘consciência de si’, a caminho de uma nova ruptura dentro da pró-
pria narrativa que se interrompe no final do romance” (1995: 78).
171
O pacto que se estabelece entre G.H. e o interlocutor invisível se passa na ima-
ginação da personagem, mas desperta, simultaneamente, o interesse do destinatário
que entra em contato com esse pedido um tanto sem propósito, já que pouco sabe-
mos a respeito das conseqüências desse gesto de solicitude. A proposta da narradora
pode ser interpretada como uma estratégia discursiva no intuito de deter a atenção
dos possíveis leitores e dessa forma ela cria uma presença bastante flexível, compa-
rando esse exercício de auxílio àquele que ela prevê na solidão característica da mor-
te: “Por enquanto estou inventando a tua presença, como um dia também não saberei
me arriscar a morrer sozinha” (1998: 19). Somos, nessa medida, enredados na atmos-
fera de pavor da solidão criada por G.H., personagem que, assim como Joana, instiga
o sentimento de piedade nos leitores que se arriscam na investigação pormenorizada
da natureza íntima desses seres ficcionais: “Por enquanto eu te prendo, e tua vida
desconhecida e quente está sendo a minha única íntima organização, eu que sem a
tua mão me sentiria agora solta no tamanho enorme que descobri” (1998: 19, grifos
nossos). Na medida em que avança o relato de G.H., e nos tornamos cúmplices de
sua trajetória agônica, as primeiras informações sobre a história banal que ela relatará
têm como estratégia o pedido de ajuda a esse interlocutor invisível para a narradora,
o qual ela prudentemente não especifica fisicamente: “Dá-me a tua mão desconheci-
da, que a vida está me doendo, e não sei como falar – a realidade é delicada demais,
só a realidade é delicada, minha irrealidade e minha imaginação são mais pesadas”
(1998: 34). Em outro momento mais adiantado do seu percurso, quando G.H. já está
dentro do quarto da empregada e diante da barata que desencadeia seus questiona-
mentos mais profundos, a personagem-narradora prolonga o pedido de ajuda que no
início se apresenta como momentâneo: – Segura a minha mão, porque sinto que estou
indo. Estou de novo indo para a mais primária vida divina, estou indo para o inferno
de vida crua (1998: 60). Ao afirmar que tocara no imundo, fato que é considerado pe-
la protagonista como sendo proibido, G.H. rompe com a brevidade do pedido de so-
corro aos interlocutores no início do seu relato. A dependência entre narrador e leitor
também proporciona uma ardilosa estratégia daquele para manter o interesse desse
numa narrativa de poucas ações:
– Ah, não retires de mim a tua mão, eu me prometo que talvez até o
172
fim deste relato impossível talvez eu entenda, oh talvez pelo cami-
nho do inferno eu chegue a encontrar o que nós precisamos – mas
não retires tua mão, mesmo que eu já saiba que encontrar tem que
ser pelo caminho daquilo que somos, se eu conseguir não me afundar
definitivamente naquilo que somos (A paixão segundo G.H., 1998: 73).
O excerto acima atenua o tom suplicante de G.H., pois a personagem-
narradora detém certo domínio da história vivida por ela. Nessa medida, ela nos ex-
põe à mesma situação de aflição que a envolve e motiva seu empenho narrativo. So-
mos, portanto, definidos e, por conseguinte, ficcionalizados em uma esfera de busca
desesperada que circunda a protagonista, visto que ela nos inclui como participantes
de um percurso também agônico. O emprego dos verbos “precisamos” e “somos”
confere-nos significativa cumplicidade na trajetória da personagem. A narradora ga-
nha status de onisciência, apesar do medo intrínseco ao gesto do recorrente pedido de
socorro. Tal onisciência, depois de afirmada, é subitamente posta em dúvida, pois
G.H. desconfia de seu próprio relato. Essa capacidade de questionamento do aconte-
cimento vivido já está presente em Perto do coração selvagem. Na cena em que Joana
reconstitui o que se esboça como a festa de seu casamento, observamos uma riqueza
de detalhes que transita pela sutileza dos odores exalados pelas fazendas dos convi-
dados da festa e pela materialidade percebida nos adereços e nos traços de outros
convidados. Todas essas lembranças se escoam sob a capa de uma dúvida que apro-
xima o acontecimento vivido de uma possível fabulação, pois, conforme Joana: “Mui-
to provável mesmo que nunca tivesse vivido aquilo” (1998: 105). A dúvida retorna
em A paixão segundo G.H., na medida em que a narradora deixa margem para a in-
venção do acontecimento, o qual de início é revestido de uma carga de sofrimento ca-
racterística daquilo que é efetivamente experienciado:
– Dá-me a tua mão. Porque não sei mais do que estou falando. Acho
que inventei tudo, nada disso existiu! Mas se inventei o que ontem
me aconteceu – quem me garante que também não inventei o que on-
tem me aconteceu – quem me garante que também não inventei toda
a minha vida anterior a ontem?
Dá-me a tua mão (A paixão segundo G.H., 1998: 97).
O fragmento acima viabiliza uma interpretação que traz à tona a farsa social
que constitui a vida de G.H., uma mulher em tensão com o reconhecimento de seu
173
vazio existencial
1
. É importante somar a esse flagrante social a dúvida entre o vivido
e o inventado, que não abranda o sofrimento da personagem-narradora. Por isso ela
reitera o pedido de amparo na imagem da mão estendida: “E eis que a mão que eu
segurava me abandonou. Não, não. Eu é que larguei a mão porque agora tenho que
ir sozinha” (1998: 123). O gesto de abandono que ela imputa ao destinatário, o qual se
configura a partir da vontade da narradora, é subitamente desfeito na seqüência pela
própria personagem que, num outro movimento muito próximo desse jogo ampa-
ro/desamparo, ilustrado pela imagem da mão desse interlocutor imaginário, aban-
dona o leitor a quem G.H. sempre recorreu: “Se eu conseguir voltar do reino da vida
tornarei a pegar a tua mão, e a beijarei grata porque ela me esperou que meu cami-
nho passasse, e que eu voltasse magra, faminta e humilde: com fome apenas de pou-
co, com fome apenas do menos” (1998: 123). A narradora recria para os possíveis in-
terlocutores a mesma atmosfera de solidão na qual ela se enredou, o que cristaliza o
sentimento de cumplicidade entre leitores e narrador e instaura um lapso no relato
de G.H., mas o abandono “físico” de sua rememoração sinaliza sobretudo o distanci-
amento entre o vivido e o relatado, ou entre G.H. e os possíveis leitores dessa experi-
ência: “Para revivê-lo, solto a tua mão” (1998: 123). Esquecida de que havia soltado a
mão do interlocutor imaginário, a personagem-narradora evoca essa presença solidá-
ria num momento em que o interlocutor está na mesma expectativa suspensa de
G.H.: – Ah, mão que me segura, se eu não tivesse precisado tanto de mim para for-
mar minha vida, eu já teria tido a vida! (1998: 143). O reatamento da cumplicidade
cindida entre GH e o interlocutor, que sucede ao gesto de abandono da personagem-
narradora, se processa na desatenção da narradora, pois ela evoca a presença de uma
mão que fora dispensada há poucos momentos. O abandono de G.H. reverte-se, por-
tanto, de um gesto de confiança da personagem-narradora concedido a quem a lê,
1
Berta Waldman explora este aspecto no artigo “Alegria difícil, mas alegria”, no qual des-
taca o choque social entre GH e a empregada Janair: “Quando G.H. se afasta do conforto
de seu apartamento e vai para o quarto da empregada, a diferença é tão grande que ela se
sente agredida como diante de um estômago vazio. Nesses termos, a oposição proposta
no romance é clara. Enquanto G.H. mora num apartamento de cobertura, sua empregada,
que mora com ela para melhor servi-la, ocupa um espaço ínfimo do mesmo apartamento,
mas nos fundos – cubículo esturricado pelo sol. A relação patroa-empregada reproduz no
interior do apartamento a natureza hierárquica da sociedade brasileira e a inibição da
comunicação entre classes sociais distintas” (1992: 73-74).
174
uma vez que reconhece ter estado ligada ao interlocutor solícito, e portanto, tê-lo co-
mo um aliado sempre presente. Não é o esquecimento que move o gesto abrupto de
G.H. ao soltar a mão do interlocutor, pois a personagem-narradora mostra-se atenta
aos deslocamentos gestuais que ela promove no percurso do seu relato: – Dá-me de
novo a tua mão, não sei ainda como me consolar da verdade (1998: 145). Em seguida,
G.H. faz uso da imagem das mãos grossas, pois esta a aproxima dos leitores, incluin-
do-os na mesma trajetória de busca: “Existe uma coisa que é mais ampla, mais surda,
mais funda, menos boa, menos ruim, menos bonita. Embora também essa coisa corra
o perigo de, em nossas mãos grossas, vir a se transformar em “pureza”, nossas mãos
que são grossas e cheias de palavras” ( 1998: 158). A procura de G.H., que se estende
aos interlocutores virtuais, se relaciona a algo em certa medida transformado pelo
trabalho das mãos. A mediação proporcionada pelas mãos desempenha o papel de
uma metáfora que encobre o nosso acesso imediato às coisas do mundo, por isso a
“pureza” compreende a adjetivação disfórica “grossas” atribuída a essas “mãos”, se-
gundo o universo de Clarice atento às minúcias, sutilezas e invisibilidades dos seres e
das coisas. Mesmo com a consciência dessa “pureza” partilhada com o interlocutor,
que reflete a inescapabilidade da função simbólica, ou seja, da linguagem, a persona-
gem-narradora insiste nessa imagem suplicante e fracassada das mãos estendidas: –
Dá-me a tua mão, não me abandones, juro que também eu não queria: eu também
vivia bem, eu era uma mulher de quem se poderia dizer “vida e amores de G.H.”
(1998: 160).
O adensamento do discurso de G.H. chega ao limite de sua tentativa de despo-
jamento na atitude da personagem de levar à boca a massa da barata. Se o ato não a-
tinge o despojamento dos santos almejado pela protagonista, pois é recusado a ela
viver com a matéria de uma barata, e se opõe ao projeto de “desumanização” da per-
sonagem, resta a ela o exercício da reversão já mencionado antes pela narradora, no
entanto sem a mesma convicção desse final de trajetória: “E agora não estou tomando
tua mão para mim. Sou eu quem está te dando a mão” (1998: 169). Assim como G.H.
desloca o sentido da pureza, qualificando-a pela sua oposição – a impureza –, a nar-
radora também desfaz o recorrente pedido de auxílio que marcou todo o seu percur-
so de sofrimento. G.H. passa a necessidade de amparo físico aos seus interlocutores:
175
Agora preciso de tua mão, não para que eu não tenha medo, mas pa-
ra que tu não tenhas medo. Sei que acreditar em tudo isso será, no
começo, a tua grande solidão. Mas chegará o instante em que me da-
rás a mão, não mais por solidão, mas como eu agora: por amor. Co-
mo eu, não terás medo de agregar-te à extrema doçura enérgica do
Deus (A paixão segundo G.H., 1998: 170).
Outro personagem, embora ausente do contato estreito com G.H., é Janair, a
empregada da protagonista. As primeiras referências à mulher que havia trabalhado
no apartamento de G.H. revelam a dificuldade da personagem-narradora na reme-
moração física de Janair, aspecto que se estende à falta de comunicação entre as duas
mulheres: “A lembrança da empregada ausente me coagia. Quis lembrar-me de seu
rosto, e admirada não consegui” (1998: 40). Ao entrar no quarto de Janair, G.H. sur-
preende-se com um desenho na parede onde se julga retratada com falta de respeito
pela mulher que supostamente deveria se restringir às tarefas domésticas. Sentindo-
se excluída da própria casa, a protagonista perde por alguns momentos qualquer re-
ferência dos traços físicos da empregada: “A lembrança de sua cara fugia-me, devia
ser um lapso temporário” (1998: 40). Primeiro, G.H. relembra o nome da empregada:
“Mas seu nome – é claro, é claro, lembrei-me finalmente: Janair” (1998: 40). No mo-
mento em que contempla o desenho na parede, é invadida por um “mal-estar diver-
tido”, pois tal atitude transgressora a narradora jamais ligaria à imagem servil que
fazia de sua empregada silenciosa. Por meio dessa surpresa, que rompe a idéia pré-
concebida de G.H. em relação à empregada, refaz-se a descrição de Janair. A primeira
impressão de G.H acerca de Janair apenas constata o aspecto servil e silencioso da
empregada; a que nos chega desenvolvida, no entanto, já é aquela refeita sob o olhar
crítico da empregada, que flagra o vazio de sua patroa e o devolve na parede como
desenho bruto:
Foi quando inesperadamente consegui rememorar seu rosto, mas é
claro, como pudera esquecer? revi o rosto preto e quieto, revi a pele
inteiramente opaca que mais parecia um de seus modos de se calar,
as sobrancelhas extremamente bem desenhadas, revi os traços finos e
delicados que mal eram divisados no negror apagado da pele (A pai-
xão segundo G.H., 1998: 41).
G.H. vasculha na lembrança dos traços do rosto de Janair elementos que a reti-
rem da condição de rebaixamento sócio-econômico na hierarquia que ela mesma te-
176
cera. O tom negro e opaco da pele de Janair dificulta a inspeção da narradora, pois
esconde as proporções do seu rosto. Apesar disso, G.H. resgata vestígios dessa face
que a elevam à delicadeza das mulheres bonitas. A respeito do rosto de Janair, a nar-
radora conclui, sem escamotear certo descontentamento: “Os traços – descobri sem
prazer – eram traços de rainha. E também a postura: o corpo erecto, delgado, duro,
liso, quase sem carne, ausência de seios e de ancas” (1998: 41). O desapontamento de
G.H. reside no fato de ela não ter percebido as nuances da invisibilidade de Janair. A
personagem-narradora supreende-se ainda mais ao relembrar a roupa da empregada
cujo uniforme de cor preta ou marrom-escuro sobrepunha-se sobre sua pele também
escura: “arrepiei-me ao descobrir que até agora eu não havia percebido que aquela
mulher era uma invisível” (1998: 41). G.H. compara ironicamente a imagem de Janair
à imobilidade – está aí uma resposta à perturbação causada pelo desenho da empre-
gada – das formas de um baixo-relevo: “os traços que ficavam dentro de sua forma
eram tão apurados que mal existiam: ela era achatada como um baixo-relevo preso a
uma tábua” (1998: 41). O emprego do termo baixo-relevo leva-nos às formas de ex-
pressão artística dos antigos egípcios
1
.
A tridimensionalidade das figuras egípcias parece apagar-se diante do frágil
revestimento de madeira contido na tábua que apóia a imagem “achatada” de Janair.
Distanciada dos materiais egípcios de pedra, que proporcionam solidez e permanên-
cia ao desgaste do tempo, a forma do corpo de Janair tem como substrato a madeira,
material suscetível ao desaparecimento, que se acomoda aos contornos quase invisí-
veis decorrentes da pele escura de Janair. Todavia, nessa mesma passagem descriti-
va, a empregada de G.H. também é comparada à aparência delicada de uma rainha,
o que permite, a partir das referências claramente egípcias aos baixo-relevos, alçá-la à
condição de rainha do Egito
2
. A representação de Janair oscila entre a altivez presente
1
Dietrich Wildung (1998: 66) chama a atenção para a prática que consiste em combinar a
frente e o lado das figuras humanas nos relevos do Antigo Egito, o que causa um efeito
de profundidade espacial dessas figuras fixadas sobre paredes.
2
Christian Jacq faz referência a uma possível rainha de pele negra no Antigo Egito. Segundo
o historiador (2000: 67-72), Ahmés-Nefertari, após a morte do marido, desempenhou a
função do faraó, tendo sido regente do reino durante a infância de Amenhotep I (1551-
1524). Ela ganhou bastante popularidade e foi considerada a santa padroeira da necrópo-
le tebana porque se preocupara com a manutenção dos túmulos e, em conseqüência dis-
177
na alusão à rainha egípcia e na simplicidade de sua figura de baixo-relevo. É, no en-
tanto, o enfoque direcionado para o sagrado que sobressai no texto clariciano. Da
mesma forma que Kristeva, Clarice, sobretudo pelo viés ficcional, insere temáticas
que procuram uma espécie de ligação com as formas do sagrado. Embora o título do
penoso trajeto de G.H. aluda ao sofrimento de Cristo, implicando nesse caso conflitos
catequéticos que se distanciam do âmbito do sagrado, observamos, em contrapartida,
nas referências esparsas como ilustra o caso do corpo de Janair, um retorno ao sagra-
do. Kristeva evoca a deusa Ísis, a rainha do Egito que ressuscita Osíris e prefigura to-
das as outras mulheres influentes no Egito
1
. A psicanalista sustenta no poder de res-
surreição acionado por Ísis o que chama de retorno à união com o corpo feminino
(1974: 485). Essa é a função dos mistérios arcaicos, sejam eles mesopotâmicos, gregos,
ou, como no caso da rainha Ísis, egípcios. No exemplo ficcional de Clarice, a empre-
gada Janair, apagada aos olhos de uma representante da classe média alta, faz esse
so, criara uma confraria encarregada da construção e restauração de túmulos. Por esse
gesto, a rainha foi elevada à categoria de divindade protetora e criou-se um templo para
ela. Por muito tempo, esteve como certo que a cor da pele de Ahmés-Nefertari era negra,
mas a descoberta de sua múmia dissipou essa dúvida: a rainha tinha a pele branca. Para
Jacq, entretanto, permanece a dúvida acerca das várias representações de Ahmés-
Nefertari em madeira betumada, o que leva à configuração da pele da rainha. Retomando
o simbolismo egípcio, o historiador conjectura que a cor escura encarna a idéia de rege-
neração, ou seja “do processo alquímico pelo qual a alma deve passar para reviver no A-
lém”. Ademais, a cor negra é “a cor do deus Anúbis de cabeça de chacal, encarregado de
conduzir os ressuscitados ao longo dos belos caminhos do Além, não evoca morte nem
aniquilamento, mas um meio fértil e rico em potencialidades criadoras, onde se organiza
uma nova forma de existência” (2000: 72). O historiador conclui que a representação do
corpo da rainha por meio da cor negra prefigura as “Virgens negras”, as quais são nume-
rosas nas catedrais e igrejas do Ocidente.
1
De acordo com Christian Jacq, depois de ter o marido Osíris assassinado por Seth, a rainha
Ísis parte em busca de todos os fragmentos do corpo de Osíris, que fora jogado ao mar e
tivera todo o corpo retalhado. Antes de se transformar num falcão fêmea, gesto que leva
à ressurreição de Osíris, a rainha convoca a ajuda de sua irmã Néftis. Juntas elas pronun-
ciam encantamentos numa câmara funerária escura perfumada com incenso para ressus-
citar o corpo de Osíris. Chama a atenção o detalhe do “corpo purificado” dessas mulhe-
res: elas se apresentam para o ritual “inteiramente depiladas, com perucas encaracoladas,
a boca purificada com natrão (carbonato de sódio)” (2000: 27). O historiador reconhece na
imagem de Ísis aquela que se torna “a protetora de numerosas confrarias iniciáticas, mais
ou menos hostis ao cristianismo, que a consideravam o símbolo da onisciência, detentora
do segredo da vida e da morte, e capaz de assegurar a salvação dos seus fiéis. Mas Ísis
não exigia apenas uma simples devoção; para conhecerem, seus adeptos deviam sujeitar-
se a uma ascese, não se contentando com a crença, mas subindo na escala do conhecimen-
to e transpondo os diversos graus dos mistérios” (2000: 37).
178
jogo de retorno do sagrado. Janair e a harmonia de seus traços, que remetem às re-
presentações femininas esculpidas em pedra no antigo Egito, promovem o retorno do
sagrado já esfacelado à época moderna de G.H.. Janair como uma variação de Ísis, na
sugestiva imagem escurecida da rainha egípcia Ahmés-Nefertari, desperta na prota-
gonista também o gosto pelo sagrado.
A imagem sagrada de Janair deve-se muito à observação que leva em conside-
ração o espaço. No exemplo de Janair, há uma volta ao antigo Egito. No decorrer da
busca de G.H., o limitado espaço onde se focaliza a inspeção de G.H. e seus escassos
movimentos em direção ao que denomina de a “coisa bruta” conferem ao ambiente
da protagonista um estado animado: ”E havia também o guarda-roupa estreito: era
de uma porta só, e da altura de uma pessoa, de minha altura” (1998: 42). Quando en-
tra no quarto da empregada e localiza os desenhos na parede, G.H. se vale de uma
metáfora para fundamentar a sua fragilidade num território que lhe escapa da com-
preensão. Na exegese de A paixão segundo G.H., Benedito Nunes desdobra uma afir-
mação de G.H. anterior à cena do quarto numa passagem em que a narradora revela
sempre ter conservado uma aspa à direita e outra à esquerda de si. De acordo com o
crítico, o recurso retórico das aspas nesse caso implica “aquilo que não é da própria
autoria, nem pessoal, nem original” (1997: 21). Podemos estender essa nota de Bene-
dito Nunes ao trecho que enfatiza a desagregação da protagonista no ambiente desti-
nado à empregada, pois as aspas retornam com a mesma função metafórica de haver
algo artificial na constituição da personagem: “O quarto era o oposto (...) era uma vi-
olentação das minhas aspas, das aspas que faziam de mim uma citação de mim. O
quarto era o retrato de um estômago vazio” (1998: 42). G.H., desde o início de sua
narração, encontra-se num processo de busca pessoal, que é refletida na necessidade
de alcançar uma existência diversa daquela que a perturba. A metáfora escolhida pe-
la narradora para a expressão de sua angústia é a do estômago vazio. O quarto da
empregada, pela perspectiva de G.H., personifica-se, isto é, ganha uma vida que traz
à tona um foco de miséria ambígua, uma vez que alude tanto à condição de pobreza
da empregada quanto ao vazio existencial da patroa. Metáfora de um sol também
metaforizado em corpo, o quarto de Janair inspira uma vivacidade excessiva para o
estado melancólico de G.H.:
179
lá era o próprio lugar do sol, fixado e imóvel numa dureza de luz
como se nem de noite o quarto fechasse a pálpebra. Tudo ali eram
nervos seccionados que tivessem secado suas extremidades em ara-
me. Eu me preparara para limpar coisas sujas mas lidar com aquela
ausência me desnorteava (A paixão segundo G.H., 1998: 42-43).
Para sair desse ambiente de intensa luminosidade sem fugir do quarto de Ja-
nair, a personagem-narradora volta-se à observação do guarda-roupa. Esse objeto
participa das modificações que a proprietária do apartamento faria para torná-lo
homogêneo, isto é, sem lhe causar a “violentação” de um cômodo transformado em
minarete. O quarto desperta na protagonista um incômodo físico, pois ele a intimida
na medida em que destoa do conjunto de sua cobertura. Como medida para atenuar
esse sentimento de desconforto físico, G.H. dá início a uma arrumação que consiste
não na limpeza, pois para sua surpresa o quarto não apresenta sinais de sujeira, mas
para reorganizá-lo, conforme a sua vontade. A primeira medida seria a de afastar os
móveis para o corredor e depois jogar baldes de água no intuito de umedecer aquele
ambiente por ela considerado árido. O guarda-roupa também entraria nesse gesto de
purificação: “jogaria água no guarda-roupa para engorgitá-lo num afogamento até à
boca – e enfim, enfim veria a madeira começar a apodrecer” (1998: 43). Nessa citação,
a narradora mantém a predicação que personifica o inanimado. Este, que, já fora
comparado à altura da própria G.H., metaforiza o processo de autoconhecimento da
personagem. Como veremos mais adiante, na descrição do corpo da protagonista, há
um despojamento essencial do revestimento do corpo para o êxito de sua proposta.
Trata-se de uma perda corpórea equivalente àquela que a narradora constrói hipote-
ticamente na cena em que põe fim à estrutura do guarda-roupa. Completamente
perdida na arrumação do quarto de Janair, ela encontra no objeto guarda-roupa uma
âncora para o extravasamento de seu vazio interior. Novamente, é por meio do ca-
minho material que G.H. personifica a sua formação humana, no qual se verifica a
copresença do corpo e da alma: “Animei-me com uma idéia: aquele guarda-roupa,
depois de bem alimentado de água, de bem enfartado nas suas fibras, eu o enceraria
para dar-lhe algum brilho, e também por dentro passaria cera pois o interior devia
estar ainda mais esturrado” (1998: 45). Ao abrir com dificuldade a porta dessa espé-
cie de organismo que, para os leitores, já é um personagem muito vivo, obtemos a
180
confirmação, desenhada ao longo das referências anteriores, de que se trata realmen-
te de um objeto animado: “Abri um pouco a porta estreita do guarda-roupa, e o escu-
ro de dentro escapou-se como um bafo” (1998: 46). A catacrese, recurso explorado em
Perto do coração selvagem no que toca ao corpo, retorna na caracterização da cama de
Janair, promovendo suspense no relato de G.H.: “Tentei abri-lo um pouco mais, po-
rém a porta ficava impedida pelo pé da cama, onde esbarrava” (1998: 46). De uma
brecha, G.H. acomoda o rosto para dentro do guarda-roupa. Sem nada ver pela escu-
ridão do móvel quase fechado, a narradora concede a propriedade da visão ao guar-
da-roupa: “como o escuro de dentro me espiasse, ficamos um instante nos espiando
sem nos vermos” (1998: 46). Ainda sem nada ver do interior do guarda-roupa, G.H.
percebe um cheiro quente e seco como, segundo ela, o de uma galinha viva, que é e-
xalado de dentro do móvel. Ao empurrar um pouco mais a porta do guarda-roupa, a
protagonista entra efetivamente em contato com algo vivo. Sem desfazer o caráter
humano que a personagem-narradora tributa à fixidez própria de um guarda-roupa,
ela joga em cena um outro personagem essencial para o andamento de sua busca.
Chegamos, portanto, ao corpo da barata, mediado pelo corpo do guarda-roupa.
O primeiro contato entre GH e a barata acontece num dos revestimentos escu-
recidos do guarda-roupa: “De encontro ao rosto que eu pusera dentro da abertura,
bem próximo de meus olhos, na meia escuridão, movera-se a barata grossa“ (1998:
47). Apesar da escuridão do ambiente de abrigo do inseto, a narradora perscruta-lhe
os traços: “Era uma cara sem contorno. As antenas saíam em bigodes dos lados da
boca. A boca marrom era bem delineada. Os finos e longos bigodes mexiam-se lentos
e secos. Seus olhos pretos facetados olhavam” (1998: 55). A descrição da barata leva-
nos rapidamente a associá-la à imagem tecida pela narradora sobre Janair. A empre-
gada de G.H. dispõe também de traços refinados e de uma pele negra que se mistura
ao uniforme de tom preto ou marrom-escuro. Esse jogo de sobreposições, de nuanças
escuras, contribuíra para o apagamento dessa figura já esmaecida aos olhos de G.H.,
uma mulher envolvida em questões que se distanciam do mundo de Janair. Para jus-
tificar esse descompasso entre as duas mulheres, basta uma comparação entre os es-
paços que habitam. Da mesma forma que a empregada, a barata é inicialmente des-
crita como um ser sem contornos, uma vez que a sua escuridão impede a investiga-
181
ção visual típica dos personagens claricianos. Em seguida, ultrapassado esse primei-
ro obstáculo, G.H. flagra alguns aspectos da cara da barata. A narradora detém-se
sobretudo nos tons da boca e dos olhos e aos movimentos das antenas da barata. As-
sim como Janair
1
, a barata é analisada em seus pormenores pela narradora, pois, a-
lém do matiz marrom envolvendo o contorno da boca, G.H. percebe uma coloração
avermelhada no corpo do animal que se deve à movimentação das pernas da barata,
metáfora que a personifica: “E era arruivada. E toda cheia de cílios. Os cílios seriam
talvez as múltiplas pernas. Os fios de antena estavam agora quietos, fiapos secos e
empoeirados” (1998: 56). A personagem-narradora fita o corpo da barata e percebe
finas camadas sobrepostas que compõem a estrutura que chama de “compacta”. O
olhar de G.H. decompõe a solidez dessa estrutura comparando-a a cascas de uma ce-
bola. Descobrimos em seguida que a solidez referida por G.H. nessa análise específi-
ca não tem a ver com o peso da barata, mas com a capacidade de instigar a sensação
de eternidade:
E eis que eu descobria que, apesar de compacta, ela é formada de
cascas e cascas pardas, finas como as de uma cebola, como se cada
uma pudesse ser levantada pela unha e no entanto sempre aparecer
mais uma casca, e mais uma. Talvez as cascas fossem as asas, mas
então ela devia ser feita de camadas e camadas finas de asas com-
primidas até formar aquele corpo compacto (A paixão segundo G.H.,
1998: 56).
A referência à antigüidade sobre a constituição do corpo da barata entrelaça-se
à de Janair, pois as duas personagens representam para a narradora uma espécie de
contato violento com o sagrado. A eternidade que a narradora vislumbra nas cama-
das escuras que formam uma espécie de pele sempre presente desenvolve-se a partir
de uma afirmação anterior que localiza temporalmente as baratas: “Há trezentos e
cinqüenta milhões de anos elas se repetiam sem se transformarem. Quando o mundo
era quase nu elas já o cobriam vagarosas” (1998: 48). A passagem fortalece a noção de
eternidade simbolizada em seguida pela carapaça que forma o corpo das baratas,
1
Na citação a seguir, G.H. explicita a relação entre a barata e Janair: “A barata não tem na-
riz. Olhei-a, com aquela sua boca e seus olhos: parecia uma mulata à morte. Mas os olhos
eram radiosos e negros. Olhos de noiva. Cada olho em si mesmo parecia uma barata” (A
paixão segundo G.H., 1998: 56).
182
pois a data remota evocada pela narradora acompanha os estudos da localização das
baratas, realçando o arcaico que a imagem desses animais sugere. De uma eternidade
que escapa ao logos, as baratas inserem-se, assim como a possível alusão à rainha e-
gípcia que tecemos a propósito da personagem Janair, num universo mítico: “Era
uma barata tão velha como salamandras e quimeras e grifos e leviatãs. Ela era antiga
como uma lenda” (1998: 55). Em outro momento da narrativa, G.H. compara a barata
ao escaravelho: “Olhei: a barata era um escaravelho. Ela toda era apenas a sua pró-
pria máscara. Através da profunda ausência de riso da barata, eu percebia a sua fero-
cidade de guerreiro. Ela era mansa mas sua função era feroz”
1
(1998: 116). A violên-
cia presente no sagrado retorna numa interessante imagem da barata no relato tenso
de G.H., momento em que a narradora, assustada com os deslocamentos do corpo
ágil da barata, fecha a porta do guarda-roupa. A sucessão de quinze parágrafos pon-
tua esse gesto abrupto da protagonista. Pensando ter matado a barata, a narradora
contempla o corpo do animal ainda vivo entre a fresta do guarda-roupa fechado: “E
vi a metade do corpo da barata para fora da porta. Projetada para a frente, erecta no
ar, uma cariátide. Mas uma cariátide viva” (1998: 54). As cariátides são estátuas de
mulheres gregas que substituem as colunas na sustentação de pórticos
2
. Chegamos
novamente, agora pela via dos mistérios gregos, à consolidação da necessidade do
sagrado no texto de A paixão segundo G.H. A imagem da barata como cariátide traz à
tona a força do bicho, que, num momento de quase morte, se fortalece como uma es-
tátua que serve de sustentáculo para uma estrutura também maior do que ela. A ba-
rata vence o impacto da porta do guarda-roupa sob pena de significativa perda de
sua estrutura corpórea. O movimento que a narradora impõe à fixidez intrínseca das
1
Conforme a nota de Benedito Nunes no trabalho pontual sobre A paixão segundo G.H., veri-
ficamos o aspecto sagrado que envolve essa comparação: “O escaravelho tem atributos
místicos e era símbolo da imortalidade entre os egípcios, em harmonia com outras ima-
gens originadas da egiptologia, no romance. Identificam-se barata e escaravelho” (1997:
75).
2
Conforme Lawrence (1996: 120-121), há um exemplo de formas de cariátides na sustentação
do templo jônico da Acrópole, Erectêion, iniciado em 421 e terminado em 404. Localiza-se
de frente para o lado norte do Partenon. A intenção da construção desse templo era reli-
giosa. De acordo com o historiador, o termo adequado é o de Virgens e não a expressão
popular cariátides. Ele as descreve como “mulheres vestidas com pesados drapeados, cu-
jas dobras parecem as nervuras vistas de frente nas colunas do Partenon” (1996: 122).
183
mulheres-estátuas reproduz o esforço da barata na luta pela sua permanência e, por
conseguinte, pela sua eternidade. A barata resiste heroicamente à pressão sobre seu
corpo. O cinetismo das estátuas de pedra que metaforizam a luta da barata pela con-
tinuidade do corpo – esse que fora outrora descrito como uma sucessão de infinitas
camadas – constrói uma cena na qual é retomado aqueles sentimentos ambíguos,
amplamente explorados em Perto do coração selvagem, quais sejam, o riso e a piedade.
Subjaz à intensa movimentação desses seres arcaicos, conseqüentemente sagrados, os
quais são recobertos de outra camada de sacralidade na medida em que são compa-
rados às virgens gregas, uma brecha para o riso, seguido de culpa por ter rido. G.H.,
ao construir essa metáfora, toca no sagrado pela via da transgressão, pois a persona-
gem-narradora desloca um símbolo grego, cuja finalidade é a de suporte e o amolece
para dar vigor à barata. Essa também é subvertida no centro da sua eternidade, uma
vez que perde a adjetivação “compacta” que é essencial para a constituição de per-
manência desse animal.
Faremos de agora em diante uma análise voltada ao corpo da protagonista, já
que é ela quem articula esses personagens secundários e fundamentais para uma
busca de intenso sofrimento físico. Assim como a barata, G.H. perde, conforme ela
expõe no início de seu relato, algo que lhe era essencial e que se metaforiza na ima-
gem de uma terceira perna. Esta também trabalha no sentido metafórico e pode ser
interpretada como o uso das máscaras sociais que encobrem convenientemente as
hipocrisias diárias. A perda dessa terceira perna ressoa na personagem pelo avesso,
uma vez que representa um falso retorno: “E voltei a ser uma pessoa que nunca fui.
Voltei a ter o que nunca tive: apenas duas pernas” (1998: 12). Na verdade, a perda da
personagem representa um ganho, que se expressa pela economia do corpo, ou pelo
corpo sem suportes.
Na crônica de 2 de março de 1968, intitulada “Persona”, Clarice retoma a ori-
gem dessa palavra que se relaciona ao teatro grego, na qual os atores vestiam uma
máscara no rosto de acordo com o papel a ser representado. A cronista revela sentir-
se agradada pela idéia de os atores fixarem no palco uma expressão que impede uma
das importantes qualidades do ator, qual seja, a exploração das “mutações sensíveis
de seu rosto” (1999: 80). A máscara, segundo a escritora, protege o rosto na medida
184
em que ele não fica exposto à sensibilidade. A ausência da máscara é perigosa, pois:
“é que esse rosto que estava nu poderia, ao ferir-se, fechar-se sozinho em súbita más-
cara involuntária e terrível” (1999: 80). Clarice admite o uso de uma máscara e tam-
bém reconhece que a segurança desencadeada por esse artifício pode, a qualquer
momento, desabar. Aquele que passa por essa perda se torna, para a escritora, uma
pessoa
1
. Em G.H., acontece uma perda curiosa dessa máscara. Essa terceira perna,
que pode ser uma metáfora para o uso da máscara, G.H. reconhece ter perdido, sem,
no entanto, ter consciência de tê-la possuído alguma vez. Isso só se manifesta no
momento em que tal máscara, invisível para ela, se esfacela abruptamente. Na crôni-
ca, a escritora descreve o repentino que envolve essa perda: “de repente a máscara de
guerra da vida cresta-se toda no rosto como lama seca, e os pedaços irregulares caem
com um ruído oco no chão. Eis o rosto agora nu, maduro, sensível quando já não era
mais para ser” (1999: 80-81).
O esfacelamento da máscara de G.H. dá-se quando, dentro do quarto de Jana-
ir, observa o desenho na parede que lhe devolve uma imagem de si mesma que até
então lhe escapava à consciência: “Os pés simplificados não chegavam a tocar na li-
nha do chão, as cabeças pequenas não tocavam a linha do teto – e isso, aliado à rigi-
dez estupidificada das linhas, deixava as três figuras soltas como três aparições de
múmias” (1998: 39). A insinuação de fluidez, típica da formação da personagem Joa-
na, de Perto do coração selvagem, está aqui na suspensão do desenho dos corpos, pois
eles flutuam sem tocar no solo ou alcançar o teto. No entanto, essa fluidez se dissipa
no momento em que G.H. se vê na imagem de um corpo embalsamado e petrificado
pela técnica de conservação. Assim, a fluidez de Joana, em consonância com o senti-
mento de liberdade, reverte-se, com G.H., em imobilidade pela representação de um
corpo sem vida (também pode ser interpretado como um corpo protegido para uma
1
Na mesma crônica, Clarice explica o significado da palavra pessoa para ela, palavra que se
assemelha foneticamente à persona: ”Vou falar da palavra pessoa, que persona lembra. A-
cho que aprendi o que vou contar com meu pai. Quando elogiavam demais alguém, ele
resumia sóbrio e calmo: é, ele é uma pessoa. Até hoje digo, como se fosse o máximo que
se pode dizer de alguém que venceu numa luta, e digo com o coração orgulhoso de per-
tencer à humanidade: ele, ele é um homem. Obrigada por ter desde cedo me ensinado a
distinguir entre os que realmente nascem, vivem, morrem, daqueles que, como gente, não
são pessoas (Descoberta do Mundo, 1999: 80).
185
vida eterna). Além disso, a perda da máscara da protagonista deve-se ao sentimento
de solidão flagrado pela empregada ao retratar a patroa: “Nenhuma figura tinha li-
gação com a outra, e as três não formavam um grupo: cada figura olhava para a fren-
te, como se nunca tivesse olhado para o lado, como se nunca tivesse visto a outra e
não soubesse que ao lado existia alguém” (1998: 39). A solidão da protagonista mis-
tura-se a sua conduta egoísta, confirmada na representação inicialmente apagada que
ela faz da empregada Janair. Essa é para ela uma figura praticamente apagada, não
tanto pela cor da pele, que serve como símbolo para adensar a diferença sócio-
econômica entre as duas mulheres, mas sobretudo porque a personagem-narradora
desautoriza a sua empregada qualquer indício de pensamento independente, crítico.
Como num jogo de espelhos, Janair devolve habilmente à patroa uma representação
análoga à que fora tacitamente submetida, ou seja, a empregada desenha na parede
uma mulher cujos traços não são divisados:
E fatalmente, assim como ela era, assim deveria ter me visto? abstra-
indo daquele meu corpo desenhado na parede tudo o que não era es-
sencial, e também de mim só vendo o contorno. No entanto, curio-
samente, a figura na parede lembrava-me alguém, que era eu mesma
(A paixão segundo G.H., 1998: 41).
O desabamento do mundo de G.H. ou a sua transformação em pessoa necessi-
ta desse desenho no qual as mãos dos retratados estão espalmadas e podemos assim
vê-la ridicularizada pela mesma perspectiva de baixo-relevo a que outrora ela havia
rebaixado o corpo de Janair. G.H. toma consciência de sua existência solitária e apáti-
ca através do desenho na parede, flagrante da unidimensionalidade que ela inspira
em Janair. É difícil para nós, leitores, enquadrá-la nessa situação de rebaixamento ca-
racterística das personagens planas, visto que, conforme destacamos na descrição dos
outros personagens, somos ficcionalizados e nos acostumamos com o sentimento de
piedade despertado pelo sofrimento de G.H.
A literatura brasileira dispõe de dois exemplos notáveis de narradores de pri-
meira pessoa. Não nos esqueçamos de que G.H. participa de uma tradição que suce-
de o ardiloso Bentinho, de Dom Casmurro
1
. Bentinho foi suficientemente sedutor para
1
Conforme Roberto Schwarz, em Duas meninas, Bentinho representa um dos tipos mais es-
186
embaralhar a crítica até a publicação do ensaio da década de 60 de Helen Caldwell
1
,
cuja tradução para o português só ocorreu recentemente (2002) sob o título de O Ote-
lo brasileiro de Machado de Assis. Outro narrador importante que antecede G.H. é Paulo
Honório, de São Bernardo. Diferente de Bentinho, protagonista-narrador de Dom
Casmurro, que, de acordo com Roberto Schwarz, em Duas meninas, persuade os leito-
res por meio de um discurso linearmente sedutor, Paulo Honório, por sua vez, num
primeiro momento, parece dissuadir-nos de qualquer simpatia no que diz respeito à
auto-imagem que produz no seu discurso. Ele é um homem que se revela extrema-
mente rude, ciumento, violento, competitivo e materialista. Primeiro, sua vida resu-
me-se na aquisição da propriedade São Bernardo. Depois de consegui-la de forma
discutível, ele se casa com Madalena e após a morte dela sua vida perde o sentido
2
.
Em função dessa vida agreste, Paulo Honório desperta, por um caminho mais sinuo-
so que Bentinho, a simpatia do leitor. Ambos personagens-narradores são portanto
hábeis na composição que leva ao sentimento de piedade do receptor.
Clarice, muito atenta às manifestações de piedade de seus personagens, apro-
veita a narração dominante em primeira pessoa de G.H., no intuito de promover uma
atmosfera dirigida a esse sentimento pesaroso. A evocação aos leitores tem na ima-
gem das mãos, conforme destacamos, um forte apelo de cumplicidade. Desfazendo
julgamentos ou questionamentos acerca da conduta da narradora, G.H. define fisi-
camente seus possíveis leitores por meio dessa imagem que metaforiza um pedido de
socorro. A narradora, nessa medida, instiga no leitor o sentimento de pena. Em se-
timados da ideologia brasileira: “como recusar simpatia a um cavalheiro distinto e sen-
timental, admiravelmente bem-falante, um pouco desajeitado em questões práticas, so-
bretudo de dinheiro, sempre perdido em recordações da infância, da casa onde cresceu,
do quintal, do poço, dos brinquedos e pregões antigos, venerador lacrimoso da mãe, a-
lém de obcecado pela primeira namorada?” (1997: 10).
1
O título original da obra de Helen Caldwell – The Brazilian Othello of Machado de Assis: a
study of Dom Casmurro – propunha uma perspectiva diferente da vigente na qual Capitu
é inserida no contexto de ciúme do marido, que é comparado ao personagem shakespea-
riano.
2
Selecionamos uma passagem paradigmática acerca do discurso autodepreciativo de Paulo
Honório: – Quanto a mim, acho que em questões de sentimento é indispensável haver re-
ciprocidade. – Qual reciprocidade! Pieguice. Se o casal for bom, os filhos saem bons; se
for ruim, os filhos não prestam. A vontade dos pais não tira nem põe. Conheço o meu
manual de zootecnia (São Bernardo, 1996: 87).
187
guida, ela se descreve sobretudo como alguém cujas mãos são de extrema importân-
cia, a começar pelo seu ofício de escultora: “Da escultura, suponho, veio meu jeito de
só pensar na hora de pensar, pois eu aprendera a só pensar com as mãos e na hora de
usá-las” (1998: 29). G.H., não sem aguçar uma certa ironia ao mencionar que preferi-
ria o exercício da atividade de empregada – a mesma que configura a natureza invi-
sível de Janair – chama a atenção para uma busca que envolve a idéia de trabalho
com o empenho do corpo: “Tivesse eu sido empregada-arrumadeira, e nem sequer
teria precisado do amadorismo da escultura; se com minhas mãos eu tivesse podido
largamente arrumar. Arrumar a forma?” (1998: 33).
A mão também serve de metáfora para a vida supostamente inconsciente de
G.H., aquela que se situa antes de ter sua máscara partida em período no qual ela
imaginava erroneamente nunca ter tido uma máscara: “sempre tive a mão bastante
delicada para não me impor um papel. (...) Um olho vigiava a minha vida. A esse o-
lho ora provavelmente eu chamava de verdade, ora de moral, ora de lei humana, ora
de Deus, ora de mim” (1998: 28). No movimento em que a protagonista fecha a porta
do guarda-roupa é a mão dela que entra em cena. O gesto de violência é acompanha-
do pelo fechamento de seus olhos: “levantei a mão como para um juramento, e num
só golpe fechei a porta sobre o corpo meio emergido da barata – – – – – – – – – – – – –
– –. Ao mesmo tempo eu também havia fechado os olhos. E assim permaneci, toda
trêmula” (1998: 53). Sem saber ao certo o que acabara de fazer e acreditando ter ma-
tado a barata, G.H. concentra-se na ação que sua mão acabara de realizar. A protago-
nista reage como se a sua mão fosse independente de sua vontade. Depois de consta-
tar que a barata continua viva, G.H. percebe que a permanência da barata depende
de um único golpe fatal. É nesse momento que retoma a consciência de seus gestos e,
após erguer a mão à altura da cabeça e dos olhos, de modo a impulsionar uma força
de todo o corpo junto com o movimento do braço, ela desiste do ato. A sucessão des-
ses acontecimentos promove a desorganização do corpo da barata, que se estende
para uma desorganização que ecoa no corpo de GH.:
Minha mão, que se abaixara ao desistir do golpe, foi aos poucos su-
bindo de novo lentamente até o estômago: se eu mesma não me mo-
vera do lugar, o estômago recuara para dentro de meu corpo. A boca
secara demais, passei uma língua também seca pelos lábios ásperos
188
(A paixão segundo G.H., 1998: 55).
O relato de G.H. consiste na explicação da perda de sua estrutura humana pe-
la qual passara no dia anterior: “Ontem no entanto perdi durante horas e horas a mi-
nha montagem humana” (1998: 12). Existem, em contrapartida, escassas referências
dessa “montagem humana” que seria o corpo da narradora. G.H. oferece pistas de
seu corpo inacessível na medida em que se compara aos negativos das fotografias. As
diversas referências às máquinas fotográficas são uma constante na formação dos
personagens claricianos e, no que toca à constituição de G.H., deixam à mostra a sua
falta de contornos, a imprecisão de um corpo retratado por meio de fragmentos es-
parsos. G.H. chama a atenção para a importância que estava incrustada no seu aspec-
to de não ser: “um dos modos mais fortes é ser negativamente“ (1998: 31). Numa das
raras cenas que antecedem a descrição do seu corpo antes de entrar no quarto de Ja-
nair, a protagonista realça aspectos que podem ser os de qualquer corpo:
Esse modo de não ser era tão mais agradável, tão mais limpo: pois,
sem estar agora sendo irônica, sou uma mulher de espírito. E de cor-
po espirituoso. À mesa do café eu me enquadrava com meu robe
branco, meu rosto limpo e bem esculpido, e um corpo simples. De
mim irradiava-se a espécie de bondade que vem da indulgência pe-
los próprios prazeres e pelos prazeres dos outros. Eu comia delica-
damente o meu, e delicadamente enxugava a boca com o guardanapo
(A paixão segundo G.H., 1998: 32).
A simplicidade presente no corpo de G.H. desdobra uma noção também pre-
sente em Joana, qual seja, a copresença da sexualidade/pensamento. A formação
corpo e espírito realiza um movimento que se focaliza no detalhe da boca da perso-
nagem-narradora, fato que antecipa o seu estilhaçamento corporal. Nessa medida, o
início da perda de sua “montagem humana” tem na imagem da boca, outrora enfati-
zada na sua tarefa de nutrição, uma referência de apagamento corporal da protago-
nista. Ao entrar no quarto da empregada e identificar-se com o desenho na parede,
G.H., mesmo antes de dar com a barata, tem seu corpo transformado. Trata-se do
cansaço desencadeado pela forma com que ela se vê esboçada pelo olhar crítico de
Janair: “e o peso do primeiro desabamento abaixava os cantos de minha boca, me
deixava de braços caídos” (1998: 41). Essa mudança da percepção de G.H. de si mes-
189
ma deflagra uma redução de seu corpo, que ela denomina de perda da montagem
humana. Essa alteração relaciona à mudança que a personagem observa no que se re-
fere ao “sentimento de lugar”, isto é, a capacidade de estar num ambiente e de apre-
endê-lo. Durante a sua infância, o sentimento de lugar a leva a um estado em que ela
se sente habitante de uma casa “solta no ar” e cercada de baratas invisíveis, por isso
suas formas são amplas, indeterminadas. A experiência no quarto de Janair acelera o
processo de delimitação da protagonista, de forma a encerrá-la numa forma corpórea
que parece contrária à idéia de desmontagem mencionada pela personagem ao nar-
rar a sua experiência: “Anteriormente, quando eu me localizava, eu me ampliava.
Agora eu me localizava me restringindo – restringindo-me a tal ponto que, dentro do
quarto, o meu único lugar era entre o pé da cama e a porta do guarda-roupa” (1998:
50). Curiosamente, a redução do corpo de G.H. acontece num ambiente que se vale
do recurso da catacrese – pé da cama –, que se soma à referência ao guarda-roupa
que espia e assim anima o ambiente. A personificação do ambiente, já dissemos, ser-
ve de metáfora para a representação da protagonista. Encerrada no exíguo quarto de
Janair, G.H. fica reduzida a movimentos calculados: situa-se entre a porta do guarda-
roupa e o pé da cama; é portanto nesse espaço estreito que surgem algumas poucas
referências corpóreas de G.H., como a sensação de ardência, calor e secura: “ali esta-
va eu sem passagem livre, encurralada pelo sol que agora me ardia nos cabelos da
nuca, num forno seco que se chamava dez horas da manhã “ (1998: 50).
Depois do golpe que desestrutura não apenas a barata, mas também G.H., a
narradora compara-se ao corpo do inseto, construindo uma espécie de corpo meta-
morfoseado: “Também eu, que aos poucos estava me reduzindo ao que em mim era
irredutível, também eu tinha milhares de cílios pestanejando, e com meus cílios eu
avanço, eu protozoária, proteína pura” (1998: 60). Ao observar a barata depois do
esmagamento, ela entra em contato com o que chama de um nada vivo e úmido: é a
massa esbranquiçada que escorre do corpo da barata depois do fechamento do guar-
da-roupa sobre o animal. Essa visão do corpo da barata desperta em G.H. um esvazi-
amento de sua forma corpórea, reduzindo-a à nudez e também ao achatamento do
desenho na parede feito por Janair. Em seguida, a personagem-narradora, personifi-
190
cando a barata ou se animalizando, vale-se desse jogo de sobreposições estruturais
do corpo para pontuar a sua busca pelo sentimento de eternidade:
Eu, corpo neutro de barata, eu com uma vida que finalmente não me
escapa pois enfim a vejo fora de mim – eu sou a barata, sou minha
perna, sou meus cabelos, sou o trecho de luz mais branca no reboco
da parede – sou cada pedaço infernal de mim – a vida em mim é tão
insistente que se me partirem, como a uma lagartixa, os pedaços con-
tinuarão estremecendo e se mexendo. Sou o silêncio gravado numa
parede (...). De nascer até morrer é o que eu me chamo de humana, e
nunca propriamente morrerei (A paixão segundo G.H., 1998: 65).
As descrições que sucedem a necessidade da personagem-narradora de per-
manência no mundo levam a ações que se duplicam nos corpos dessas duas perso-
nagens. Por exemplo, o sol entra no quarto de Janair e tanto a barata quanto G.H. são
atravessadas por ele: “O sol caminhara um pouco e fixara-se em minhas costas. Tam-
bém ao sol estava a barata bipartida” (1998: 85). Em seguida, G.H. desfaz essa possí-
vel fusão entre ela e a barata ao mencionar ter apagado a ponta do cigarro que lhe
queimava os dedos. Essa divisão no entanto se atenua quando a narradora concede
aos dois corpos uma variação daquela umidade que outrora se ligava às coisas vivas,
de acordo com a descrição que ela faz da massa branca da barata. A umidade, que
caracteriza o vivo, se estende ao corpo da barata e de G.H., fato que nos leva a conjec-
turar a possibilidade de que elas formam um só corpo: “cruzei as pernas suadas,
nunca pensara que perna pudesse suar tanto. Nós duas, as soterradas vivas. Tivesse
eu coragem, e enxugaria o suor da barata” (1998: 93). Em seguida, persistindo na i-
déia de perda da “montagem humana”, G.H. retoma esse ponto central de seu proje-
to: “Eu já havia abandonado a mim mesma – quase podia ver lá no começo do cami-
nho já percorrido o corpo que eu havia largado” (1998: 95). Na seqüência, a sincronia
dos atributos da narradora e da barata dissipa a idéia de fusão dos corpos das duas
num corpo híbrido, visto que é somente o corpo de G.H. que se transforma: “Com a
ponta do robe enxuguei a testa, sem desfitar os olhos da barata, e meus próprios o-
lhos também tinham as mesmas pestanas. Mas os teus ninguém toca, imunda. Só ou-
tra barata quereria esta barata” (1998: 96). Nessa medida, ela invade o universo da
barata com a intenção de concretizar a perda de sua montagem humana. Por isso,
não é com cílios humanos que ela dá seguimento a sua experiência. G.H. recorre às
191
pestanas que envolvem o órgão de visão da barata em contraste com a fraqueza do
aparato visual de seu corpo humano: “se meu corpo é tão fraco que não posso enca-
rar o sol sem que meus olhos fisicamente chorem” (1998: 100). Cansada e imóvel co-
mo se partes de sua constituição estivessem paralisadas, G.H. adormece e, ao voltar
de um sono momentâneo, ainda mantém seu aspecto metamorfoseado em barata:
“Vinda daquele sono, em cuja superfície sem profundidade minhas patas curtas se
haviam agarrado, eu estremecia agora de frio” (1998: 104). Provida de pestanas e de
patas, G.H. reconhece-se num estado perceptivo diferente, no qual ela se atribui a fa-
culdade de prognosticar o futuro: “Eu havia desencavado talvez o futuro – ou chega-
ra a antigas profundidades tão longinquamente vindouras que minhas mãos que as
haviam desencavado não poderiam suspeitar” (1998: 106). A imagem de suas mãos,
que se associa a dos leitores dessa personagem-narradora e serve de metáfora de pe-
dido de auxílio, retorna sob a idéia de um futuro pressentido. G.H. transforma-se em
uma espécie de cartomante que traz à tona a dimensão de um sagrado perdido no
tempo e que ela parece encarregada de resgatar. Assim, o futuro que a personagem-
narradora prediz salvaguarda elementos de uma esfera sagrada há muito tempo dis-
tanciada daquela mulher refugiada no último andar de um edifício luxuoso:
Eu crescera, e me tornara tão simples como uma rainha. Reis, esfin-
ges, leões – eis a cidade onde vivo, e tudo extinto. (...) todos esquece-
ram-se de mim, foram embora sem me retirarem, e, julgada morta,
fiquei assistindo. E vi, enquanto o silêncio dos que realmente haviam
morrido ia-me invadindo como hera invade a boca dos leões de pe-
dra (A paixão segundo G.H., 1998: 106).
O ponto alto do corpo de GH está nessa passagem na qual ela evoca uma sa-
cralidade que lhe é intrínseca mas que até então lhe havia escapado. As alusões à cul-
tura egípcia, através das imagens de leões, esfinges, reis, rainha, a situam numa posi-
ção onde o domínio do sagrado ganha luzes. Iniciado pela empregada Janair, alçada
à condição de rainha egípcia, o sagrado também está na representação da barata. Es-
sa se recobre de uma eternidade característica de sua espécie, cujo aparecimento, de
acordo com as informações de G.H., se localiza num período remoto da humanidade.
Assim, é como se esse inseto sempre estivesse presente, por isso transmitindo a idéia
de eternidade que atua por meios sub-reptícios no discurso da narradora: “Uma ba-
192
rata é maior que eu porque ela vem do infinito e passa para o infinito sem perceber,
ela nunca se descontinua” (1998: 126). As sugestões de estaticidade decorrentes das
imagens da rainha egípcia, cujo destino é a mumificação (aí reside um traço pela bus-
ca de eternidade), e dos leões de pedra, que apontam para a selvageria congelada da
protagonista, indicam a existência de um corpo humano em luta pela permanência,
uma qualidade típica da resistência das baratas. No duelo entre o infinito, simboliza-
do pelo corpo da barata, e o finito, cuja representação se assenta sobre a natureza
mortal da protagonista, acontece, para a narradora, a aceitação do seu destino huma-
no, no qual se destacam dois atributos que constituem a sua natureza corpórea co-
presente (sexualidade/pensamento): “só posso me imaginar pensando e sentindo,
dois atributos de se ser, e não consigo me imaginar apenas sendo” (1998: 172).
Na rede de sensações que compõe o universo de G.H. encerrado no quarto de
Janair, observamos o destaque aos sentidos da visão e da gustação. O primeiro deles
relaciona-se estreitamente ao sagrado e sua atmosfera misteriosa. A intenção de ver
com maior acuidade acompanha a atividade literária de Clarice em diversas produ-
ções. Na crônica de 12 de junho de 1971, cujo título expressa o interesse da escritora
pelas diferentes facetas do Egito – “Andei de camelo, a esfinge, a dança do ventre
(Conclusão)” – revela-se a ligação entre a visão e o mistério. Tendo de passar três di-
as no Egito sem intenção, pois o avião mudara de rota inexplicavelmente, a escritora
parte para um passeio noturno de carro com a finalidade de ver as pirâmides, daí seu
comentário: “Vi as pirâmides de noite. (...) Assustei-me. De dia elas são menos peri-
gosas” (1999: 351). É através do olhar à procura do desvendamento do mistério de-
sencadeado pela imagem da esfinge que é aguçado em Clarice o respeito pelo sagra-
do: “Vi a Esfinge. Não a decifrei. Mas ela também não me decifrou. Encaramo-nos de
igual para igual. Ela me aceitou, eu a aceitei. Cada uma com o seu mistério” (1999:
351). Trata-se de um respeito análogo àquele que a cronista manifesta acerca da feitu-
ra de um conto, mas no lugar da esfinge há um búfalo. Na crônica “A explicação que
não explica”, de 11 de outubro de 1969, a escritora comenta o processo de criação de
algumas de suas obras e, entre elas remete ao conto “O búfalo”: “O búfalo” me lem-
bra muito vagamente um rosto que vi numa mulher ou em várias, ou em homens; e
uma das mil visitas que fiz a jardins zoológicos. Nessa, um tigre olhou para mim, eu
193
olhei para ele, ele sustentou o olhar, eu não, e vim embora até hoje” (1999: 240). Se e-
xiste um limite para a apreensão do olhar clariciano, e esses exemplos servem para
delimitar o perigo que se esconde na capacidade visual dos personagens de Clarice e
da própria escritora, é porque também há a ultrapassagem dessa linha. O que ela vê
ao transgredir essa perigosa linha entre o visível e o invisível não chega ao conheci-
mento dos interlocutores. Todavia, entre o segredo e o olhar encetado pelos persona-
gens e narradores, há um rastrsãoxetadooá
194
to que acena para a desistência de sua tentativa frustrada de deciframento daquela
imagem enigmática. Entretanto, algo se passa entre quem olha e o objeto olhado. A
noção hierárquica do exemplo anterior perde campo para a equivalência entre a cro-
nista e a esfinge, que caem numa malha onde o cerne do mistério é mantido.
Nessa medida, as várias referências ao campo visual em A paixão segundo G.H.
recobrem-se de uma cautela em prol do mistério, do segredo, do sagrado – elemen-
tos, portanto, que compartilham de uma mesma aura de intransponibilidade. É assim
que, ao dar início à narração, G.H. focaliza o acontecimento no perigo que reside em
seu sentido visual: “Não compreendo o que vi. E nem mesmo sei o que vi, já que
meus olhos terminaram não se diferenciando da coisa vista” (1998: 15). Quanto ao
não-distanciamento do objeto visto, podemos relacioná-lo ao questionamento clarici-
ano entre o vivido e o imaginado, já manifesto em Perto do coração selvagem. Essa expe-
riência relatada por G.H. não se restringe à personagem-narradora, pois ela se julga,
depois de passado o episódio, capaz de reconhecer, por intermédio do sentido da vi-
são, no rosto de outras pessoas vestígios de uma cumplicidade que, sob pena de uma
“desumanização” clariciana, necessita do esquecimento: “Para que eu continue hu-
mana meu sacrifício será o de esquecer? Agora saberei reconhecer na face comum de
algumas pessoas que – que elas esqueceram” (1998: 17). A base da sua narração inici-
al assenta-se sobre o fato de G.H. ter visto algo que desestrutura a sua vida pregres-
sa: “Eu vi. (...) Sei que vi – porque para nada serve o que vi. (...) O que vi arrebenta a
minha vida diária” (1998: 17). No movimento do abrir e fechar dos olhos da protago-
nista – pois, ao entrar no quarto de Janair, G.H. é ofuscada pela luminosidade cres-
tante que invade o ambiente –, constatamos o quanto a sua experiência é dependente
do seu aparelho visual. É a própria personagem-narradora quem reconhece o impac-
to da luz sobre o seu corpo: ”Mas ao abrir a porta meus olhos se franziram em rever-
beração e desagrado físico” (1998: 37). Como numa experiência mística, supostamen-
te o corpo de G.H. entra em transe, ao estilo descrito por Georges Bataille ou por Jac-
ques Lacan
1
: “Essa mulher calma que eu sempre fora, ela enlouquecera de prazer?
1
Referimo-nos à alusão que esses autores fazem da Santa Teresa de Ávila esculpida por
Bernini, em O erotismo e no Seminário XX, na qual a santa reproduz a imagem de uma
pessoa em estado de gozo sexual, uma das facetas do êxtase místico por amor a Deus. No
195
Com os olhos ainda fechados eu tremia de júbilo. (...) Abri devagar os olhos, em do-
çura agora” (1998: 54). O sentimento de perplexidade frente ao possível assassinato
da barata é logo desfeito quando a personagem-narradora percebe que o inseto con-
tinua vivo. A abjeção toma conta de G.H. ao constatar que a barata está viva porque
esta a desafia sutilmente através de um olhar que se assemelha àquele do búfalo ou
da esfinge: “Viva e olhando para mim. Desviei rapidamente os olhos, em repulsa vio-
lenta” (1998: 54). Transgredindo o respeito implícito no desvio do contato visual,
G.H. decide fitá-la, sob pena de conduzir a seu sentimento de abjeção para uma via
insuportável: “Mas foi então que vi a cara da barata” (1998: 55) É aí que se consolida
a economia da estrutura corporal de G.H., reduzida a poucos movimentos, em con-
trapartida àqueles intensos que se direcionam para o campo visual. Subentende-se
que toda a seqüência agônica da protagonista se desenrola partindo do fato de a ba-
rata ter sido vista pela protagonista, numa tentativa de deciframento subversiva. Se
existe o desejo de transgredir, há também o respeito pela barata, um ente cercado de
sacralidade. Por isso, a personagem-narradora hesita em face do golpe que poria fim
ao seu mal-estar físico: ”Ela estava de frente, à altura de minha cabeça e de meus o-
lhos. Por um instante fiquei com a mão parada no alto. Depois gradualmente abaixei-
a” (1998: 55). Ora, G.H. mostra-se de certo modo arrependida de seu gesto visual fa-
tal, pois, no instante colado à desistência do golpe, ela confessa: “Um instante antes
talvez eu ainda tivesse podido não ter visto na cara da barata o seu rosto” (1998: 55).
Essa fração de tempo, no entanto, determina o destino da personagem-narradora,
somando-se à mesma lógica dos pequenos movimentos que são essenciais para as
reviravoltas claricianas. Se não fosse um segundo, se não fosse um olhar – esses con-
dicionais quase imperceptíveis no tecido de sensações que envolvem os textos de
Clarice servem de caminho para depois suscitar a surpresa de ampliações motivadas
ensaio “A experiência mística de G.H.”, Benedito Nunes inscreve a trajetória de G.H. no
mesmo caminho da ascese de místicos como São João da Cruz, Mestre Eckardt ou até
mesmo de Teresa de Ávila. A interpretação de Benedito Nunes, no entanto, se afasta da
nossa, na medida em que privilegia o dualismo alma/corpo, apagando a estrutura de sua
copresença que é o nosso ponto central de análise, pois, segundo o crítico: “Com o amor-
tecimento das impressões sensíveis exteriores, mortificados os desejos, apaziguada a
mente, o centro de interesse da vida espiritual desloca-se do Eu, individual e pessoal, pa-
ra o núcleo secreto da alma, que se comunica com o Ser e que é partícipe de sua existên-
cia universal e ilimitada” (O dorso do tigre, 1976: 105).
196
pelo recurso da metonímia, em que uma parte é tomada pelo todo de modo a causar
um estranhamento no conjunto do texto: “Cada olho reproduzia a barata inteira”
(1998: 57). Ao se deparar com o minúsculo, o narrador clariciano o amplia para me-
lhor vê-lo. É como se tivesse a sua disposição uma lupa a fim de não perder qualquer
minúcia do objeto observado.
Em Perto do coração selvagem, a mão de Joana é tomada pelo corpo todo de uma
mulher. Animando partes isoladas de seres vivos e, em conseqüência disso, valori-
zando cada fragmento da estrutura do corpo como se tivesse vida própria, G.H. sen-
te-se responsável pela desestruturação da forma corpórea da barata, uma vez que o
fechamento da porta sobre o corpo do inseto esfacela essa noção de conjunto refletida
na importância de cada parte. Transtornada, G.H. reduz-se na sua potencialidade vi-
sual ao fechar os olhos para não se desagregar diante do esfacelamento da barata.
Também a voz da protagonista abafa-se e, somos, nessa medida, privados do contato
do sentido da audição. Esse é amplamente explorado em Perto do coração selvagem,
quando Joana – na expressiva imagem de tonalidade vermelha que encobre sua gar-
ganta e boca, harmonizando-se a uma voz cuja intensidade se coaduna ao tom ver-
melho do fogo – emite palavras carregadas de uma sacralidade libertária. Todavia,
nada sabemos a respeito da voz de G.H, e tampouco sobre as cores que dão vida a
essa personagem: “Fechei os olhos, aguardando que a estranheza passasse (...). Eu
ainda continuava a sentir, incalculavelmente longínquo em mim, o gemido que já
não me chegava mais à garganta” (1998: 58). Antes da experiência fatal, G.H. descre-
ve suas dores de garganta. Trata-se, portanto, de uma das poucas referências corpó-
reas que recebemos dela, mas é impossível ligá-la à força imagética que se desdobra
na rede nuançada de Joana, isto é, na sobreposição dos vermelhos produzindo um
impacto sinestésico sobre os interlocutores. G.H., mesmo antes do enfrentamento
com a barata, dá indícios de uma fragilidade física, prefigurando emudecimento la-
tente: “Lembro-me de minhas dores de garganta de então: as amígdalas inchadas, a
coagulação em mim era rápida. E facilmente se liquefazia: minha dor passou, dizia-te
eu” (1998: 118). Ao refletir sobre essa situação um tanto absurda que a leva para o li-
mite da razão, G.H. mantém os olhos fechados como forma de organizar os pensa-
mentos que lhe produzem o mal-estar físico: “Isto é loucura, pensei de olhos fecha-
197
dos” (1998: 58). Curiosamente, nesse breve momento em que fecha os olhos, a perso-
nagem-narradora evoca na memória uma imagem matizada pelo vermelho de seu
sangue. Trata-se do mesmo tom que reveste a sua garganta, mas este não se relaciona
ao vigor do corpo da protagonista, visto que é associado à dor, à fragilidade de um
corpo doente. Não é muito diferente o que acontece com o vermelho aludido por ela
na rememoração remota desse tom que se localiza temporalmente muito distante do
penoso itinerário no qual se enredou:
Aguardei que a estranheza passasse, que a saúde voltasse. Mas reco-
nhecia, num esforço imemorial de memória, que já havia sentido essa
estranheza: era a mesma que eu experimentava quando via fora de
mim o meu próprio sangue, e eu o estranhava. Pois o sangue que eu
via fora de mim, aquele sangue eu o estranhava com atração: ele era
meu (A paixão segundo G.H., 1998: 59).
A narradora não menciona o provável motivo que desencadeia a sua dor, este
que tem a ver com o sofrimento do corpo, e que teria levado ao escoamento de san-
gue para o exterior de seu corpo. A imagem das amígdalas inchadas conduz ao es-
maecimento do vermelho que é verificado na tentativa de esboçar gemidos, na inten-
sa vida contemplativa de G.H., pois ela atravessa a narração centrada apenas sobre
suas falas internas, seus desejos silenciosos. O vermelho do sangue de G.H. também
segue essa lógica que retira da protagonista a condição de vivacidade presente neste
símbolo fundamental do princípio da vida. Isso se deve ao fato de ele ser apreendido
no exterior do corpo da personagem, como se participasse de uma estrutura à parte.
Todavia, trata-se de um procedimento diferente daquele que confere autonomia aos
fragmentos do corpo (olhos da barata, a mão de Joana, por exemplo), dando-lhes
uma noção do todo e, por conseguinte, valorizando o conjunto que abarca a idéia cla-
riciana de corpo. É por essas reflexões que conduzem a uma temida desagregação do
corpo, de modo mais geral, a uma desagregação da forma, que G.H. manifesta, sob o
sentido da visão, certo rechaço a essa acuidade visual: “Eu não queria reabrir os o-
lhos, não queria continuar a ver” (1998: 59).
A visão de G.H. contém, em determinado ponto de seu relato, a propriedade
de acionar a natureza tátil da protagonista, na medida em que ela é capaz de “sentir”
o ambiente que a circunda e que reverbera intensamente sobre a sua estrutura frágil.
198
Ela que prefere não ver, no entanto abre os olhos abruptamente como se fosse toma-
da por arrepios epidérmicos: “Então abri de uma só vez os olhos, e vi em cheio a vas-
tidão indelimitada do quarto, aquele quarto me vibrava em silêncio, laboratório de
inferno” (1998: 59). O movimento oscilatório das pálpebras da personagem-narradora
produz uma ilusão de ótica, pois a estreiteza que compõe o quarto de Janair, onde o
guarda-roupa aberto quase esbarra no pé da cama, é distorcida, ampliando-se para
além da exigüidade que o caracteriza. É nesse momento que os olhos de G.H., à se-
melhança do que acontece entre ela e barata, também se metamorfoseiam sob o mo-
delo do ambiente: “Olhei para o teto, descansando um pouco os olhos que eu sentia
terem se tornado fundos e grandes” (1998: 62). Os olhos da personagem-narradora
tomam a forma ampliada que ela havia conferido ao ambiente, mas já não sabemos
quem produz essas deformações visuais, essas ilusões, pois, como ela faz questão de
embaralhar a busca pelas origens, resta-nos o apoio na afirmação da narradora de
que “Tudo olha para tudo, tudo vive o outro” (1998: 66). A visão que conduz ao tato
também desencadeia o sentido da audição:
Olhei para o teto com olhos pesados. Tudo se resumia ferozmente em
nunca dar um primeiro grito – um primeiro grito desencadeia todos
os outros, o primeiro grito ao nascer desencadeia uma vida, se eu
gritasse acordaria milhares de seres gritantes que iniciariam pelos te-
lhados um coro de gritos e horror (A paixão segundo G.H., 1998: 63).
O perigo de sair do silêncio e dar um primeiro grito compara-se ao de romper
o pacto do segredo entre aqueles que passaram pela experiência de ter visto algo a
que poucos tiveram acesso. Lembremos de que a condição para a permanência da
humanidade de G.H. se sustenta no sacrifício de seu esquecimento: é, portanto, ne-
cessário que ela esqueça o que viu. Capaz, como ela diz no início de sua narrativa, de
reconhecer nos traços das faces de outros que também passaram pela mesma experi-
ência os vestígios desse exercício do olhar, assim G.H. se encontra na iminência de
desatar o segredo do que foi apreendido pela sua visão. Os movimentos entre a mu-
dez e a necessidade de um grito que dissiparia a atmosfera de segredo que parece es-
sencial para a tensão de sua narrativa acompanham as oscilações entre o abrir e o fe-
char dos olhos da personagem-narradora. Alguma coisa acontece entre esse jogo de
manutenção do segredo que não é apenas velamento de uma realidade proibida. Ao
199
chegar no que chama de nada, mediado pela massa branca da barata, se opera uma
transição do mundo da protagonista para o desconhecido. Nesse deslocamento do
mundo próprio para o que ela denomina de “o mundo”, que necessita da mão do in-
terlocutor (mais uma relação entre visão e tato), a capacidade de ver também se mo-
difica: “É que eu não estava mais me vendo, estava era vendo” (1998: 63). Essa visão
mais nítida do que a anterior a deixa em contato íntimo com a imagem de suas foto-
grafias. Aqui temos um ponto de união entre a técnica e o corpo que indica o quanto
Clarice cria personagens que dependem, invariavelmente, de metáforas do progresso
técnico:
E o primeiro verdadeiro silêncio começou a soprar. O que eu havia
visto de tão tranqüilo e vasto no estrangeiro nas minhas fotografias
escuras e sorridentes – aquilo estava pela primeira vez fora de mim e
ao meu inteiro alcance, incompreensível mas ao meu alcance (A pai-
xão segundo G.H., 1998: 64).
Se o caminho para o desvendamento do segredo de G.H. reside na investiga-
ção de suas fotografias, pouco ela nos revela acerca delas. A personagem-narradora,
no intuito de adensar a manutenção do mistério, reverte essa técnica já extremamente
trabalhada em diversos segmentos sociais, tais como a arte e a ciência, e a transforma
em instrumento à disposição do mistério que a escritora obsessivamente persegue
nas primeiras experiências. Já nos referimos a respeito da força das primeiras experi-
ências na constituição de personagens claricianos desde o romance de estréia da es-
critora. Aqui está o retorno dessa temática pela sinuosa via que emprega uma metá-
fora ligada à técnica. Quando o sagrado presente no “primeiro silêncio” se aproxima
de imagem da protagonista metaforizada pela técnica fotográfica, ainda que decalca-
da dela, é porque o corpo clariciano em A paixão segundo G.H. já não é mais um corpo
que vive sem uma carga de representações postiças. É em função dessa metáfora fo-
tográfica que a personagem-narradora produz a sua transformação em direção ao
que nomeia de “matéria bruta”. Ver-se fora de si mesma como o negativo de uma fo-
tografia a conduz a uma metamorfose que ela considera sem qualquer sentido, pois a
leva a uma incompreensível redução de sua existência: ”É uma metamorfose em que
perco tudo o que tinha, e o que eu tinha era eu – só tenho o que sou. E agora o que
sou? Sou: estar de pé diante de um susto. Sou; o que vi. Não entendo e tenho medo
200
de entender” (1998: 67). G.H. reduz-se, nessa medida, ao que ela tem acesso através
do seu sentido visual, e, em determinado momento, ela se deixa ver pela barata, pelo
estranho modo de uma visão animal que se dissemina por todo o corpo do inseto:
”Não sei se ela me via, não sei o que uma barata vê. Mas ela e eu nos olhávamos, e
também não sei o que uma mulher vê. (...) a barata não me via diretamente, ela esta-
va comigo. A barata não me via com os olhos mas com o corpo” (1998: 76). Enquanto
o corpo de G.H. se reduz, o inseto é alçado a uma condição corpórea que dialoga com
a experiência sensual entre Joana e seu amante, na qual a protagonista de Perto do co-
ração selvagem toca com a boca nos olhos do amante para sentir o gosto dos olhos de-
le, ou, em outras palavras, o gosto da visão. Em A paixão segundo G.H., a experiência
sinestésica se repete, agora com o inseto: “Seriam salgados os seus olhos? Se eu os to-
casse – já que cada vez mais imunda eu gradualmente ficava – se eu os tocasse com a
boca, eu os sentiria salgados?” (1998: 77).
Chegamos, portanto, ao segundo sentido mais explorado por G.H., qual seja, o
da gustação. A primeira manifestação do gosto em G.H. segue uma comparação pos-
sível como a que já se anuncia na intenção da protagonista de provar o gosto dos o-
lhos da barata. Esse desejo de G.H. tem seu ponto de contato com Perto do coração sel-
vagem na relação amorosa entre Joana e seu amante. É com o amante que Joana sente
a liberdade de dizer palavras mudas de sentido, como é o caso de Lalande
1
. Em A
paixão segundo G.H., a protagonista sente-se invadida por uma liberdade na qual ela
se arrisca a dizer e a escrever palavras que foneticamente desagradam a ela mesma e
aos possíveis interlocutores, mas que parecem palavras necessárias para a realização
de um crescimento obtido por meio de uma perda, em consonância com a perda cor-
pórea que ela sofre: “Disse ‘vagalhões de mudez’, meu coração se inclina humilde, e
eu aceito. Terei enfim perdido todo um sistema de bom-gosto? Mas será este o meu
1
Sobre o neologismo “Lalande”, Joana explica o significado ao amante, que se mostra inte-
ressado na definição tecida por Joana: “É como lágrimas de anjo. Sabe o que é lágrimas
de anjo? Uma espécie de narcisinho, qualquer brisa inclina ele de um lado para outro. La-
lande é também mar de madrugada, quando nenhum olhar ainda viu a praia, quando o
sol não nasceu. Toda a vez que eu disser: Lalande, você deve sentir a viração fresca e sal-
gada do mar, deve andar ao longo da praia ainda escurecida, devagar, nu. Em breve você
sentirá Lalande... Pode crer em mim, eu sou uma das pessoas que mais conhecem o mar”
(Perto do coração selvagem, 1998: 170).
201
ganho único? (...) Quero saber o que mais, ao perder, eu ganhei” (1998: 20-21). A per-
da neste caso diz respeito ao exercício do mau gosto, isto é, à omissão de palavras
que não trabalham, conforme a personagem-narradora, no sentido de aguçar o pra-
zer daqueles que supostamente a lêem. Trata-se de uma escolha libertária muito dis-
tante daquelas de Joana, que prima por uma atmosfera de beleza e encantamento que
remete à harmonia sonora e temática
1
. G.H., em contrapartida, opta pelo feio que ela
percebe no conjunto sonoro presente em “vagalhões de mudez” – aí tem início o iti-
nerário de G.H. em busca da falta de gosto. A feiúra ou a falta de gosto que G.H. ex-
perimenta têm como justificativa o sentimento de liberdade, que ela denomina de
“gosto da liberdade” advindo de uma ruptura amorosa:
Eu me atardava à mesa do café, fazendo bolinhas de miolo de pão
era isso? Preciso saber, preciso saber o que eu era! Eu era isto: eu fa-
zia distraidamente bolinhas redondas com miolo de pão, e minha úl-
tima e tranqüila ligação amorosa dissolvera-se amistosamente com
um afago, eu ganhando o gosto ligeiramente insípido e feliz da li-
berdade (A paixão segundo G.H., 1998: 24).
O gosto da liberdade, insípido, mistura-se a um dos poucos gestos da prota-
gonista de fumar um cigarro, mas isso é anterior à entrada no quarto de Janair: “An-
tes, porém, encostei-me à murada da área para acabar de fumar o cigarro” (1998: 34).
Ao entrar no quarto da empregada e, impressionada com a imagem da barata no
guarda-roupa, G.H. dá prosseguimento ao gesto de fechamento da porta do guarda-
roupa, gesto que, nesse momento, pode ser interpretado pela sensação de gosto des-
pertada na narradora:
É que nesses instantes, de olhos fechados, eu tomava consciência de
mim assim como se toma consciência de um sabor: eu estava toda
com sabor de aço e azinhavre, eu toda era ácida como um metal na
língua, como planta verde esmagada, meu sabor me veio toda à boca
(A paixão segundo G.H., 1998: 53-54).
1
No mesmo capítulo que cria o neologismo “Lalande”, Joana reproduz, também para o a-
mante, o impacto de outra palavra sobre o seu corpo: trata-se da palavra “amêndoa”
(Perto do coração selvagem, 1998, p. 167).
202
Na entrevista concedida por Clarice Lispector, na sede do Museu da Imagem e
do Som do Rio de Janeiro, Affonso Romano de Sant’Anna
1
conduz o depoimento da
escritora no intuito de confirmar a suposta influência de pensadores existencialistas
sobre um romance como A maçã no escuro, com a finalidade de ser estendida ao con-
junto da obra clariciana. Em O dorso do tigre, Benedito Nunes, no artigo intitulado “A
náusea”, também centraliza o curso de algumas temáticas claricianas de relevância
na perspectiva da filosofia existencialista. Em uma linha temporal que contempla os
apontamentos de Heidegger em Ser e o tempo sobre a angústia e a liberdade, Benedito
Nunes chega à náusea desenvolvida por Jean-Paul Sartre por meio do personagem
Roquentin, o protagonista do romance A náusea
2
. O crítico diferencia a náusea da an-
gústia, sustentado no fato de que a primeira se assenta sobre a consciência de uma
gratuidade cuja reação mais óbvia é o desejo de fuga pelo viés físico, por exemplo, o
desejo de vomitar. Benedito Nunes estende esse aspecto físico da náusea existencial a
três personagens de Clarice. O primeiro exemplo é Ana, personagem do conto “A-
mor”, de Laços de família; o segundo é Martim, de A maçã no escuro, e o último é G.H,
cuja náusea se desencadeia pelo encontro da protagonista com a barata
3
. Apesar das
aproximações entre a filosofia sartriana presente em A naúsea e a escrita clariciana,
que despertam sensações de mal-estar físico de personagens, Benedito Nunes marca
um ponto em que a escritora se distingue da acepção da náusea de Sartre, qual seja,
aquele que se atém ao que o crítico reconhece como “o outro lado da náusea e que
1
A entrevista de Clarice Lispector encontra-se disponível no volume Clarice Lispector e ou-
tros escritos (2005: 151).
2
À semelhança do que acontece com muitos personagens claricianos, Roquentin entra a-
bruptamente num estado em que o corpo do personagem é tomado de um mal-estar: “O
jardim, como território humano, lugar de contemplação amena, de repouso e ócio, é su-
plantado, de repente, por um formigamento da existência que, propagado de coisa a coi-
sa, toma conta de todo o universo. O corpo de Roquentin cede a essa corrente impetuosa
do ser, no meio da qual a sua consciência consegue apenas flutuar, a princípio impulsio-
nada pelo medo, depois por um certo mal-estar físico, que se transforma na emoção am-
bíbarrocna, descrita, coto ‘pêxit sehcorívpel’pel itco finnodo a ulgi-
nvânciade acólera” (
203
diz respeito ao “reverso da existência humana”, ao “ilimitado”, ao “caótico”, ao “ori-
ginário” (O dorso do tigre, 1976: 102). Na resposta à pergunta de Affonso Romano de
Sant’Anna sobre possíveis influências de filosofias existencialistas, Clarice recusa
qualquer semelhança entre a sua escrita e esta corrente filosófica. Além disso, ela a-
proveita a pergunta para desfazer a aproximação entre a náusea apregoada em seus
textos e a náusea sartriana:
Minha náusea inclusive é diferente da náusea de Sartre. Minha náu-
sea é sentida mesmo, porque quando eu era pequena não suportava
leite, e quase vomitava quando tinha que beber. Pingavam limão na
minha boca. Quer dizer, eu sei o que é a náusea no corpo todo, na
alma toda. Não é sartreana (Clarice Lispector e outros escritos, 2005:
151).
A náusea clariciana está, portanto, intimamente ligada ao sentido da gustação.
A escritora, comentando ser sensível ao sabor dos alimentos, revela-nos nesse trecho
do depoimento que não reconhece vínculo com a temática existencialista a despeito
das evidentes semelhanças, mas o que sobressai nessas informações é um exemplo de
corpo onde se confirma a forma da copresença sexualidade/pensamento sob a reve-
lação de que sua náusea se processa pelo paladar. Sua náusea se passa, ainda de for-
ma mais ampla do que a dependência do sentido do gosto instiga, pelo “corpo todo”
e essa completude abarca a alma. A construção que a personagem-narradora deno-
mina uma “alma possível” se alicerça sobre a interdição da refeição totêmica, pois a
ingestão do “imundo” (interpretamos por impuro) representa a impossibilidade de
formação dessa “alma”. Nessa medida, só há um meio para a permanência da alma –
a transgressão: “a lei manda que, quem comer do imundo, que o coma sem saber.
Pois quem comer do imundo sabendo que é imundo – também saberá que o imundo
não é imundo. É isso?” (1998: 73). A lei que a protagonista invoca está na Bíblia, uma
vez que ela recorta um fragmento do Levítico ou Deuteronômio: “’E tudo que anda de
rastos e tem asas será impuro, e não se comerá
1
”’ (1998: 73). Em Poderes do horror,
Kristeva também investiga a relação entre o puro e o impuro nos textos bíblicos. O
1
Conforme nota de Benedito Nunes, trata-se de uma citação explícita do cap. 11, v. 13-19 do
Levítico ou Deuteronômio, cap. 14, v. 11-18 (Clarice Lispector. A paixão segundo G.H. 1997:
47).
204
distanciamento entre homem e Deus, por exemplo, sustenta-se em uma diferenciação
alimentar na qual se opera a oposição carne/sangue, sendo que a carne exangue é
destinada ao homem e o sangue é destinado a Deus. O sangue, de acordo com Kris-
teva, retoma o sema “animal” e aponta para a possibilidade do assassinato, da qual o
homem deve se esquivar. Todavia, a teórica reconhece na simbologia do sangue uma
“encruzilhada semântica fascinante”, na medida em que o elemento também alude às
mulheres, e por conseguinte, à fertilidade e sobretudo à “promessa de fecundação”
(1980: 114-116). O critério de pureza e de impureza está associado portanto a essas in-
terdições que têm como meta a demarcação de papéis. Kristeva retira exemplos do
Levítico, em que animais como peixes, pássaros e insetos se ligam a três elementos,
tais como o céu, o mar e a terra. Os animais impuros são, nesse sentido, aqueles que
não pertencem apenas a um desses elementos, mas que se misturam a outros (1980:
117) – eis o critério de impureza com base no texto bíblico. Kristeva busca uma uni-
dade entre os capítulos do Levítico que abordam as interdições alimentares e os que
condenam à impureza o corpo doente (Levítico, cap. 13-14). Nos capítulos treze e qua-
torze do Levítico, a pureza recai sobre a deformidade da superfície da pele simboliza-
da pela lepra. O impacto visual desse tumor da pele produz o mesmo efeito de nega-
ção das fronteiras identitárias que caracterizam a impureza dos animais proibidos,
uma vez que
essa doença afeta a pele, fronteira essencial senão primeira de indi-
viduação biológica e psíquica. Deste ponto de vista, a abominação da
lepra se inscreve na concepção lógica de impureza que já ressalta-
mos: mistura, apagamento das diferenças, ameaça de identidade
1
(Poderes do horror, 1980: 120).
O capítulo doze do Levítico, que está entre o da impureza dos animais e o do
corpo em vias de apodrecimento, situa a posição do corpo materno. Menciona a du-
ração do período necessário para a purificação da mulher após o parto. Curiosamen-
te, ao dar à luz a um menino, a mulher se manterá impura durante uma semana, ao
1
“cette maladie affecte la peau, frontière essentielle sinon première de l’individuation bio-
logique et psychique. De ce point de vue, l’abomination de la lèpre s’inscrit dans la con-
ception logique de l’impureté que nous avons déjà relevée: mélange, effacement des dif-
férences, menace de l’identité” (Pouvoirs de l’horreur, 1980: 120).
205
passo que, ao dar à luz a uma menina, a mulher permanecerá impura durante o do-
bro dos dias. Existe, evidentemente, uma relação muito próxima entre o feminino e o
impuro. A barata representa o impuro na narrativa de A paixão segundo G.H., embora,
conforme nota de Benedito Nunes na edição crítica desse livro, não exista referência à
barata entre as espécies consideradas impuras ou imundas. As baratas, é importante
ressaltar, também não se incluem entre os animais supostamente puros, aqueles que
podem ser ingeridos
1
. Além disso, as baratas se acomodam em espaços que mistu-
ram os elementos céu, mar e terra. G.H., a personagem carregada de uma feminilida-
de sagrada, também se inscreve na esfera da impureza. A protagonista, que toca no
impuro com a consciência de que transgride uma lei, localiza na boca o caminho para
a sua transcendência. O itinerário de cunho místico da personagem-narradora obtém
a transcendência por meio de um processo de imanência que se inicia pela boca:
“quero que, se o transcender me vier fatalmente, que seja como o hálito que nasce da
própria boca” (1998: 83). Antes de depositar a barata na boca, G.H. chama a atenção
para o sentido visual, localizando-se em um campo visual que, análogo à sua condi-
ção de impureza inerente ao feminino, toca no interdito visual: ”Pois o que eu estava
vendo era ainda anterior ao humano” (1998: 85). A essa capacidade de captar virtua-
lidades G.H. entrelaça o sentido visual. Assim, o que ela vê é uma falta de gosto que
sente ao entrar em contato com os olhos da barata:
Não, não havia sal naqueles olhos. Eu ainda tinha a certeza de que os
olhos da barata eram insossos. Para o sal eu sempre estivera pronta,
o sal era a transcendência que eu usava para poder sentir um gosto, e
poder fugir do que eu chamava de “nada”. Para o sal eu estava pron-
ta, para o sal eu toda me havia construído. Mas o que minha boca
não saberia entender – era o insosso. O que eu toda não conhecia –
era o neutro (A paixão segundo G.H., 1998: 85).
O insosso, o neutro e o nada se equivalem nessa experiência que acompanha a
redução das formas corpóreas da protagonista. Os olhos da barata afastam-se do sa-
bor de lágrimas que outrora ela menciona ter experimentado nos olhos de um ho-
mem. G.H. focaliza esse neutro sem sabor da barata na imagem do corpo esfacelado
1
Conforme o Levítico, cap. 11, v. 22, dos insetos alados que caminham sobre quatro pés, as
diferentes espécies de locustídeos, de gafanhotos, de acrídios e de grilos ficam isentas da
proibição.
206
do inseto que deixa à mostra uma aparência aquosa de matéria branca, despertando
o sentimento de abjeção da personagem-narradora e também de seus interlocutores:
“Era-me nojento o contato com essa coisa sem qualidades nem atributos, era repug-
nante a coisa viva que não tem nome, nem gosto, nem cheiro” (1998: 86). G.H. sus-
pende a significação das coisas não mais classificando-as em “tristes, alegres ou dolo-
rosas” (esses exemplos delimitam o interesse clariciano pelos sentimentos); ela aban-
dona inclusive os “entretons” para se concentrar na “própria coisa”, cujo nome é des-
conhecido, mas que também assume um sinônimo provisório de “coisa viva”. É isso
que G.H. julga poder ser chamado sem nome, conduzindo-nos para a compreensão
do recurso a oxímoros nos quais o sentido da audição se agrega a essa busca pelo i-
nexpressivo: “Esperei que aquele som mudo e preso passasse” (1998: 82). Subitamen-
te, no entanto, G.H. rompe com a atmosfera de insipidez que lhe parece insuportável
e acende um cigarro: “Apalpei os bolsos do robe, achei um cigarro e fósforos, acendi-
o” (1998: 90). Reduzida a uma condição de mudez em que o riso se dá no próprio
sangue, G.H. antecipa o fluxo sangüíneo que compõe a escorregadia forma da força
protagonal de Água viva. Por isso, G.H. também se faz elemento de medusa, o ele-
mento marinho que produz queimaduras quando em contato com a pele humana, ao
narrar suas experiências limítrofes: “A vida pré-humana divina é de uma atualidade
que queima” (1998: 102). Essa experiência tátil que leva à dor se deve ao que se confi-
gura na ultrapassagem da natureza humana da protagonista. Ora, G.H. vê demais,
ela chega ao pré-humano, mas isso para a protagonista do itinerário de auto-inspeção
é o caminho para a insipidez, ou seja, sensação na qual G.H. se liberta da malha de
sentimentos/sensações (ela cria o termo “sentimentação”) que a cerca e também a
desvia da possibilidade de chegar à sutileza presente no relevo que ela concede à fal-
ta de gosto: “É muito difícil de sentir. Até então eu estivera tão engrossada pela sen-
timentação que, ao experimentar o gosto da identidade real, esta parecia tão sem gos-
to como o gosto que tem na boca uma gota de chuva. É horrivelmente insípido, meu
amor” (1998: 103). Assim, G.H. privilegia o sentido da gustação no acesso ao insípido
que tem na imagem da mãe lactente a expressão máxima de neutralidade: “E o leite
materno, que é humano, o leite materno é muito antes do humano, e não tem gosto,
não é nada, eu já experimentei – é como olho esculpido de estátua que é vazio e não
207
tem expressão” (1998: 143). Mais adiante, G.H. acrescenta aos atributos do leite (a
narradora não faz uma relação direta com o leite materno) a função de saciedade, que
tem como pano de fundo um retorno ao gosto arcaico do leite materno, na medida
em que o bebê só o utiliza ao sentir necessidade, fome. Essa função de saciedade sem
excessos subjaz à intenção clariciana referente à busca pelo inexpressivo, ou pelo in-
sípido ou pelo neutro, pois, conforme G.H.: “O leite a gente só bebe o quanto basta ao
corpo” (1998: 150). Além disso, essa imagem da mãe lactente desdobra aquele exercí-
cio estético clariciano, de Perto do coração selvagem, que está atento às primeiras expe-
riências do sujeito. G.H., nessa medida, ao imbuir a insipidez do leite materno com a
carga de significação que se sedimenta em sucessivas camadas de sensações, senti-
mentos, emoções sobre o seu corpo (por isso a “sentimentação” é termo pejorativo),
transpõe esta experiência arcaica do gosto do leite materno anterior ao futuro sujeito
falante que ela já é para o gosto de algo ainda não experimentado por ela: ”O gosto
do vivo” (1998: 154). Nessa expectativa pelo novo, que toca sua pele de maneira i-
naugural, G.H. dá início à tentativa de degustação da massa branca da barata, com-
parada às tentativas de se experimentar a hóstia. Trata-se de um gesto difícil para ela,
uma vez que desperta o sentimento de abjeção da personagem-narradora. G.H. com-
para o nojo que sente pela barata àquele de beijar o leproso. Em nota da edição crítica
de A paixão segundo G.H., Benedito Nunes reconhece nessa inserção clariciana um
subtexto parodiado de São Francisco de Assis, que beijou um leproso (Clarice Lispec-
tor. A paixão segundo G.H. 1997: 105). Consideramos que essa comparação entre o con-
tato gustativo com a barata e o ato de beijar o leproso dialoga ainda com o Levítico,
em seu capítulo treze e a relação entre pureza e impureza. Aqui vemos como o ani-
mal e o corpo, ambos impuros de acordo com o texto bíblico, são, num movimento
de transgressão às leis divinas, elevados ironicamente a uma condição de agentes do
aprimoramento da protagonista. G.H., que também guarda na sua constituição femi-
nina o estigma da impureza, encontra na ingestão da barata uma condição para um
novo batismo: “eu me sentia batizada pelo mundo. Eu botara na boca a matéria de
uma barata, e enfim o ato ínfimo” (1998: 178). A rememoração da massa branca da
barata na boca da protagonista é de uma repulsa física acionada pelo gosto que aco-
mete todo o corpo de G.H. Eis uma ilustração da náusea clariciana que deixa em evi-
208
dência a formação da copresença sexualidade/pensamento na construção ficcional
que é G.H.:
Crispei minhas unhas na parede: eu sentia agora o nojento na minha
boca, e então comecei a cuspir, a cuspir furiosamente aquele gosto de
coisa alguma, gosto de um nada que no entanto me parecia quase
adocicado como o de certas pétalas de flor, gosto de mim mesma – eu
cuspia a mim mesma, sem chegar jamais ao ponto de sentir que en-
fim tivesse cuspido minha alma toda (A paixão segundo G.H., 1998:
166-167).
Depois desse batismo na boca, as dimensões do corpo de G.H. perdem os con-
tornos corpóreos e ela prefigura a natureza fluida da personagem-narradora de Água
viva: “Enfim, enfim quebrara-se realmente o meu invólucro, e sem limite eu era”
(1998: 178). Pelo recurso da reversibilidade, G.H. constrói sua redução ampliando-se:
“Eu estava tão maior que já não me via mais” (1998: 179). Isso se deve ao fato de G.H.
se encontrar em um estado que não é mais apreendido pelos seus sentidos: “Enfim
eu me estendia para além da minha sensibilidade” (1998: 179).
Resta-nos, na parte final dessa análise, algumas considerações acerca do des-
pojamento da “sentimentação” de G.H., uma vez que a protagonista se focaliza, co-
mo insistimos na investigação perceptiva centrada sobre os sentidos visual e gustati-
vo, na experimentação daquilo que denomina de inexpressivo, neutro, cuja finalida-
de é o apagamento das várias camadas de sentimentos. Todavia, o que encontramos
no relato da protagonista é uma série de desdobramentos sofisticados desses senti-
mentos, os quais já apresentam um leque de tonalidades no romance de estréia. A a-
legria de Joana, que se desenrola em matizes contrastantes, ganha espaço na trajetó-
ria de G.H., a começar pela nota de dedicatória ao leitor, onde a autora, assim como
sua criatura, se reduz às iniciais do nome – C.L. – e nos lança a uma variação desse
sentimento de alegria, aguçando nos interlocutores o esmiuçamento das possíveis to-
nalidades emotivas que o texto parece envolver: “A mim, por exemplo, o persona-
gem G.H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria” (1998:
9). Em seguida, a personagem-narradora associa a alegria no seu mais alto grau de
sensação ao gesto de apoio que a imagem da mão, já bastante explorada por nós, en-
cerra: “Dar a mão a alguém sempre foi o que esperei da alegria” (1998: 17). Ao entrar
em contato com o íntimo da barata, a interdição de G.H. produz uma alegria plas-
209
mada ao medo: “O que temia eu? ficar imunda de quê? Ficar imunda de alegria”
(1998: 73). A alegria remete à impureza que caracteriza o ato proibido de tocar a bara-
ta e também se relaciona ao inexplicável, ao início de sensações novas em que G.H. se
enreda até chegar a um estado-limite onde ela compartilha esse sentimento com um
interlocutor cuja representação é a recorrente imagem da mão:
Pois agora entendo que aquilo que eu começara a sentir já era a ale-
gria, o que eu ainda não reconhecera nem entendera. No meu mudo
pedido de socorro, eu estava lutando era contra uma vaga primeira
alegria que eu não queria perceber em mim porque, mesmo vaga, já
era horrível: era uma alegria sem redenção, não sei te explicar, mas
era uma alegria sem a esperança (A paixão segundo G.H., 1998: 73).
O sentimento de alegria escapa ao sentido dicionarizado, qual seja, o de con-
tentamento, de júbilo, de felicidade, e entra em um domínio que se opõe à necessida-
de de satisfação que esse sentimento implica, dado que a alegria clariciana, na citação
acima, aponta para a perda de confiança naquilo que se espera dessa experiência. O
exercício de G.H., que contempla a neutralidade, nos leva, no entanto, à ressignifica-
ção dessa alegria sem esperança, pois no conjunto das sensações/sentimentos da per-
sonagem-narradora o objetivo dela é justamente a obtenção do inexpressivo, do neu-
tro. Segue-se daí que a satisfação de G.H., e por conseguinte sua alegria, possa estar
nessa falta de expectativa a que o sentimento de alegria sem esperança nos induz.
Antes da criação dessa mão imaginária, G.H. revela ter estado em conflito com sen-
sações desconhecidas que ela acaba por chamar de alegria desconhecida e, para pon-
tuar a sua aflição solitária, recorre a gestos de abertura e fechamento de sua boca em
estado de perplexidade, os quais evidenciam o corpo na expressão e composição des-
sas sensações: “e eu abria e fechava a boca em tortura para pedir socorro, pois então
ainda não me havia ocorrido inventar esta mão que agora inventei para segurar a
minha” (1998: 74). Depois do fechamento do guarda-roupa sobre o corpo do inseto,
G.H., ao entrar em contato visual com a massa branca da barata, perde gradualmente
a sua composição corpórea. O sentimento que acompanha essa espécie de metamor-
fose da mulher escultora em mulher barata é o de uma alegria infernal:
Era com alegria infernal que eu como que ia morrer. (...) eu estava
pouco a pouco abandonando a minha salvação humana. Sentia que o
meu dentro, apesar de matéria fofa e branca, tinha no entanto força
210
211
videz desperta na protagonista uma alegria de horror, pois a expõe ao que denomina
de neutro da vida, o qual indica um ser em formação e a mágica potencialidade fe-
minina de gerar: “Caminhara pelas ruas com meus lábios ressecados, e viver, doutor,
me era o lado avesso de um crime. Gravidez: eu fora lançada no alegre horror da vi-
da neutra que vive e se move” (1998: 92). Na medida em que o itinerário rumo ao i-
nexpressivo progride, G.H. sente uma alegria plasmada ao medo do processo de rup-
tura da forma que ela própria se impôs. Trata-se, portanto, da alegria de perder-se:
“A alegria de perder-se é uma alegria de sabath. Perder-se é um achar-se perigoso.
(...) gozam-se as coisas. Frui-se a coisa de que são feitas as coisas – esta é a alegria da
magia negra. Foi desse neutro que vivi (...). Eu ia avançando e sentia a alegria do in-
ferno” ( 1998: 102). Em seguida, a personagem-narradora diferencia o inferno da dor.
A afirmação contradiz a comparação que recolhemos do texto, na qual esses dois e-
lementos se somavam para o extravasamento da “alegria infernal” da protagonista.
Mas G.H. não opõe dor e alegria, ela apenas propõe uma via sinuosa no momento em
que desloca o sofrimento, que é intrínseco ao conceito de dor, para a noção de alegri-
a. Essa, conforme as variações que sofre, admite uma carga semântica na qual o so-
frimento está presente. Nessa medida, o enunciado que se segue não pode ser apar-
tado do conjunto no qual se insere a “alegria” clariciana: “o inferno não é a tortura da
dor! É a tortura de uma alegria” (1998: 102). G.H. envolve-se com uma camada de
sensações muito primitiva, na qual a arcaicidade do sentido gustativo faz uma remis-
são bíblica. O maná, que foi o alimento dado por Deus ao sustento dos israelitas du-
rante a jornada de quarenta anos em direção a Canaã, ilustra a busca de G.H. pelas
experiências assentadas sobre o despojamento, que compreendem a falta do gosto:
“vida tão primária como se fosse um maná caindo do céu e que não tem gosto de na-
da: maná é como uma chuva e não tem gosto. Sentir esse gosto do nada estava sendo
a minha danação e o meu alegre terror” (1998: 103). A escolha clariciana pelo maná
talvez não esteja fundamentada na insipidez do alimento, pois, conforme o livro do
Êxodo, cap. 16, v. 31, o maná “era como a semente de coentro, branco, e o seu sabor
como bolo de mel”. Todavia, mantém-se o mistério do alimento que era enviado por
Deus ao povo do deserto. Algo da saciedade manifesta no gosto do leite materno re-
torna sob a evocação também sagrada desse alimento religioso.
212
Se o contato com a insipidez a deixa no estado de “alegre terror”, a intensida-
de da experiência de G.H. gradualmente a expõe a uma “alegria de dor” cujos possí-
veis efeitos sobre o corpo da narradora se esboçam a partir das imagens de personifi-
cação que compõem a atmosfera desse inferno clariciano: “O inferno é a boca que
morde e come a carne viva que tem sangue, e quem é comido uiva com regozijo no
olho” (1998: 120). Na seqüência, o inferno se caracteriza entre o riso, a dor, o gozo da
matéria e, de modo a se coadunar ao projeto da narradora de despojamento dos sen-
timentos, cabe-lhe a ausência de piedade pelo próprio destino. Nesse contexto, G.H.
localiza a alegria da dor: “esse era o inferno, onde quem comia a cara viva do outro
espojava-se na alegria da dor” (1998: 120). A perigosa neutralidade que é alcançada
por essa alegria, na qual se apaga a possibilidade do sentimento de autopiedade fren-
te ao destino que parece hostil, abre espaço para uma “alegria indiferente”. E a saída
desse estado que a personagem-narradora considera “terrível” não depende mais
daquele que o sente, pois é incapaz de apiedar-se de si mesmo: “Só a misericórdia do
Deus poderia me tirar da terrível alegria indiferente em que eu me banhava, toda
plena” (1998: 125).
No impasse que parece depender da vontade da protagonista de continuar a
via crucis, G.H. se apresenta consumida de prazer no gesto que deforma o corpo da
barata. A narradora sente aí a “alegria do assassinato” (1998: 129). Acreditando ter
deixado os interlocutores imaginários em uma situação infernal, a protagonista ofe-
rece-nos um som opaco que se parece com uma tentativa de aquisição das primeiras
experiências, sensações. Aqui G.H. esboça um som que serve de consolo aos leitores
jogados nessa situação infernal representada pelo neutro, pelo nada: “já estava nas-
cendo em mim um soluço que mais parecia de alegria. Não era um soluço de dor, eu
nunca o ouvira antes: era o de minha vida se partindo para me procriar“ (1998: 130-
131). A alegria de dor presente na representação desse som entrecortado e inacabado
que é o soluço une o sofrimento e o riso na expressão da alegria de G.H.: “como po-
deria eu ter adivinhado? Se não sabia que no sofrimento se ria. É que não sabia que
se sofria assim. Então havia chamado de alegria o meu mais profundo sofrimento”
(1998: 131). Todas as variações da alegria em G.H. trazem essa formação dicotômica
entre o riso e a dor física/psíquica, e há um momento em que parecem se concentrar
213
exclusivamente sobre o aspecto do sofrimento: “Mas agora, que eu sabia que minha
alegria fora o sofrimento, eu me perguntava se estava fugindo para um Deus por não
suportar minha humanidade” (1998: 131-132). Nesse fazer e desfazer das sensações
claricianas há a indicação para o nada, para o inexpressivo, mas isso não significa que
tenhamos que rechaçar pura e simplesmente os momentos que formam um conjunto
para além dessa malha sensitiva de oscilações. No exemplo da alegria, depois de a-
travessar as antíteses, G.H. chega a revertê-la em sofrimento como se a teia de ambi-
güidades estivesse definitivamente desfeita, mas esse crucial momento se abre para
uma outra configuração da alegria que, não apagando as anteriores, as complexifica:
“É que no neutro do amor está uma alegria contínua, como um barulho de folhas ao
vento. E eu cabia na nudez neutra da mulher da parede” (1998: 133). G.H. esvazia-se
corporalmente e adquire as formas esboçadas por Janair na parede, que refletem a
mesma indiferença que a protagonista já manifestara ao descrever os traços apagados
de sua empregada. Não se trata nesse momento de uma indiferença disfórica que se
esgota no distanciamento de duas mulheres de classes sociais distintas, mas de uma
indiferença que vislumbra o neutro no qual também está contido o sentimento de
amor cujo meio de expressão é a “alegria contínua”. A continuação desse processo
leva à formação de uma “alegria profunda”, mas essa se dá quando se alcança mo-
mentaneamente o que não é, em outras palavras, o inexpressivo, como os negativos
das fotografias que G.H. observa atentamente: “E há também às vezes a exasperação
do atonal, que é de uma alegria profunda” (1998: 142). Outra nuança da alegria diz
respeito àquela que se manifesta entre um homem e uma mulher, que ela classifica
no âmbito de uma “arriscada alegria”, pois os personagens claricianos visam à liber-
dade, e a dependência amorosa parece bloquear esse intento: “a mais arriscada ale-
gria entre um homem e uma mulher vem quando a grandeza de precisar é tanta que
se sente em agonia e espanto: sem ti eu não poderia viver” (1998: 152-153). Inserções
um tanto isoladas como essa parecem se deslocar da trama solitária traçada por G.H.,
que oferece espaço somente aos interlocutores de “alma formada”. No entanto, essa
riqueza de tonalidades sentimentais trabalha no sentido de levantar questionamentos
sobre quais aspectos corpóreos entram em cena quando se alcança um tipo de alegria
na qual vigora o atonal. Sabemos, por exemplo, que antes mesmo do contato com o
214
corpo da barata, animal impuro, G.H. é tomada pelo sentimento de abjeção que re-
percute sobre o seu corpo violentamente e produz uma alegria como se ela fosse me-
nina – trata-se, portanto, de uma alegria em um corpo de menina: “depois da revolu-
ção que é vomitar, eu me sentia fisicamente simples como uma menina. Teria que ser
assim, como uma menina que estava sem querer alegre, que ia comer a massa da ba-
rata” (1998: 165). Sabemos também que a alegria subseqüente a essa experiência no
corpo que imita a representação de um corpo infantil (corpo de menina), de acordo
com a concepção clariciana acerca da importância das primeiras experiências, implica
um corpo que está perto do objetivo da escritora de busca do inexpressivo, já exposto
na crônica “O artista perfeito”. Depois da alegria de menina, G.H. sente vergonha por
ter avançado na sua busca e se situa em outro matiz de alegria, onde o seu corpo in-
dica o arrebatamento causado pela sobreposições desses estados: “Minha alegria e
minha vergonha foi ao acordar do desmaio. Não, não fora desmaio. Fora mais uma
vertigem, pois eu que continuava de pé, apoiando a mão na guarda-roupa” (1998:
165-166).
O sentimento do medo retorna na cena em que G.H. degusta a massa branca
da barata. Ele já acompanhara G.H. em outro momento de alegria e quase a paralisa
quando ela se vê entre a barata e a exigüidade do quarto da empregada; daí obser-
vamos o recurso da catacrese com a finalidade de animar todo o ambiente como se
este fosse uma extensão do sofrimento físico da personagem-narradora: “Meu pri-
meiro movimento físico de medo, enfim expresso, foi que me revelou com surpresa
que eu estava com medo. E precipitou-me então num medo maior – ao tentar a saída,
tropecei entre o pé da cama e o guarda-roupa” (1998: 49). O medo físico volta sob a
imagem abjeta do corpo da barata entre a descrição de fragmentos do corpo da pro-
tagonista. O medo de G.H., nessa passagem central de sua trajetória, é tributário do
paladar: “Tinha medo de sentir na boca aquilo que estava sentindo, tinha medo de
passar a mão pelos lábios e perceber vestígios. E tinha medo de olhar para a barata –
que agora devia ter menos massa branca sobre o dorso opaco...” (1998: 166). O medo,
no entanto, cede espaço para a expressão da alegria em G.H., e a vemos exultante
depois de realizado o gesto fatal: “O que estou sentido agora é uma alegria” (1998:
171). Essa alegria, que não vem acompanhada de qualquer adjetivação esclarecedora,
215
advém do estado de ser/estar vivo. Depende do contato batismal que a protagonista
trava com o corpo (massa branca) da barata. O “ser vivo” para G.H. “é um estágio
muito alto, é alguma coisa que só agora alcancei”. (1998: 171). O “estar vivo”, de a-
cordo com a narradora, é diferente do que ela, antes da experiência, considerava vi-
da, pois denominava vida sua capacidade perceptiva, chamando-a de “sensibilidade
à vida”. Todavia, depois da experiência vivida, a vida e, em conseqüência disso, o
“estar vivo” acompanha o processo de neutralidade que G.H. encontra no fim do
caminho, pois: “Estar vivo é uma grossa indiferença irradiante. Estar vivo é inatingí-
vel pela mais fina sensibilidade. Estar vivo é inumano” (1998: 171). G.H. atinge uma
“inumanidade” e essa, segundo ela, representa a “mais alta conquista do homem”
(1998: 172). Inserida nesse lugar paradoxal, pois quando se chega ao inumano não se
tem mais a capacidade perceptiva – visto que essa é própria do humano – G.H., no
entanto, parece dispor a todo o instante da capacidade perceptiva de seus interlocu-
tores, por ela rechaçada; senão como verdade do acontecimento vivido, pelo menos
enquanto algo que para ela precisa ser comunicado aos interlocutores, os quais pre-
sumivelmente ainda estão no terreno da “sentimentação”. Para se evadir da contra-
dição, a personagem-narradora alude ao sentimento de felicidade. Como esse não
tem a mesma carga matizada da alegria nesse romance, portanto ecoa de forma fami-
liar aos interlocutores, a narradora subitamente abandona a sensação familiar de feli-
cidade construindo uma obscura sensação que não é por ela desenvolvida: “Estou fa-
lando da morte? não, da vida. Não é um estado de felicidade, é um estado de conta-
to” (1998: 172). O acompanhamento dos momentos finais da trajetória agônica da
narradora talvez esclareça esse enigmático estado de contato. Nossa conjectura vai na
di5 -1dmao seivi gu est vivs prlopaordo com as p seãndo dausqüênciae gostato. da
216
a uma parte da missa que sucede ao Kyrie. G.H., portanto, oscila entre essas duas sig-
nificações dicionarizadas, na intenção de nos comunicar algo acerca desse “nada”
que ela apreende ou com o qual entra em “contato” por intermédio de seu apurado
paladar. Apesar do despojamento sensual que a protagonista apregoa, é preciso, en-
tretanto, dispor de significativa capacidade perceptiva no intuito de sentir o “gosto
do nada”. Curiosamente, esse gosto fora comparado ao maná, o alimento religioso
enviado por Deus que, em hebraico, significa “O que é isso?”. A resposta a respeito
das características desse “gosto do nada”, as quais são acessíveis somente àqueles
que alcançaram o estado de inumanidade, se apresenta pela perspectiva obscura de
um “isto”. O “isto clariciano”, embora não esteja esgotado, visto que ele se ramifica
em diversos matizes na ampla produção textual de Clarice, encontra em A paixão se-
gundo G.H. um profícuo campo de análise. O “isto” clariciano exemplifica-se na pe-
nosa trajetória que chega ao gosto do nada, uma espécie de maná engendrado pela
personagem-narradora sem o peso religioso e que leva ao ambicionado processo de
despersonalização almejado por G.H.:
Eu sei agora de um modo que prescinde de tudo – e também de a-
mor, de natureza, de objetos. Um modo que prescinde de mim. Em-
bora, quanto a meus desejos, a minhas paixões, a meu contato com
uma árvore – eles continuem sendo para mim como uma boca co-
mendo (A paixão segundo G.H., 1998: 173).
A metáfora gustativa da “boca comendo” não é aleatória, tampouco de inspi-
ração surrealista, visto que se encaixa no projeto de G.H. de busca da neutralidade,
do inexpressivo. O estado de contato, do qual nos fala a protagonista, está provavel-
mente na importância que ela concede ao sentido do gosto, pois é esse que é mantido
quando se atinge a despersonalização, condensada na “perda de tudo o que se possa
perder e, ainda assim ser” (1998: 174). A despersonalização implica a perda das ca-
racterísticas do sujeito até o ponto onde este não percebe sequer a dor de tal perda.
Trata-se, portanto, de um despojamento das características, isto é, um “tirar de si,
como quem se livra da própria pele” (1998: 174). Essa imagem corpórea é o que acon-
tece com a personagem G.H. ao longo de seu itinerário repleto de segredo, onde os
poucos elementos do enredo, cuja situação inicial aponta para a banalidade do quo-
tidiano de uma mulher ao arrumar o apartamento, se modifica substancialmente a
217
ponto de atingir o estado no qual o corpo se desestrutura em prol de uma outra con-
figuração impossível de ser apreendida pela visão
1
, ou seja, em que se cai em um es-
tado de despersonalização. Mas antes disso, a protagonista sente uma alegria – sen-
timento que a acompanha por toda a sua trajetória – a indicar a sua desistência de in-
gressar no estado de inumanidade. Assim, G.H. a chama de uma alegria humana:
“Desisto, e para a minha pobreza humana abre-se a única alegria que me é dado ter,
a alegria humana” (1998: 177). A variação desse sentimento chamado de “alegria tí-
mida”, assim como outros que participam do universo clariciano, tem no corpo o seu
ponto de exibição: “Com as mãos quietamente cruzadas no regaço, eu estava tendo
um sentimento de tenra alegria tímida. Era um quase nada, assim como quando a
brisa faz estremecer um fio de capim” (1998: 177).
Durante o relato agônico de G.H., ela experimenta intensas e variadas sensa-
ções/sentimentos onde o corpo desempenha um papel crucial, pois serve de media-
dor para o extravasamento desses estados ora conflituosos, ora exuberantes. Seme-
lhante à personagem Joana, G.H. passa por uma gama de emoções que contribuem
para a explicitação da atmosfera misteriosa que se coaduna com o enigma subjacente
às iniciais de um nome que nunca se desdobra. Da natureza fluida de Joana, envolvi-
da pela cor vermelha, entramos na neutralidade G.H., cujo corpo se dilui em frag-
mentos até chegar a uma amplidão onde não é mais alcançável pelo olhar. A profu-
são de personagens secundários, a maioria anônima, e a conseqüente descrição de
seus corpos em Perto do coração selvagem, cede espaço para um embate no qual os per-
sonagens se resumem consideravelmente. Assim, não é apenas o corpo de G.H. que,
comparado ao de Joana, no que se refere ao aspecto qualitativo, se reduz em infor-
mantes e índices, mas é o conjunto do ambiente exíguo de G.H. que é reduzido para
melhor se adaptar ao seu intento de neutralidade.
1
G.H. explica esse estado da seguinte forma: “Eu estava tão maior agora que já não me via
mais. Tão grande como uma paisagem ao longe”. Eu era ao longe” (A paixão segundo G.H.,
1998: 179).
218
3 O CORPO ATRAVESSADO PELA TÉCNICA
1
3.1 Nota sobre a Tel Quel
Os anos que separam a tese de doutorado de Julia Kristeva da publicação de O
velho e os lobos, assim como os anos que a separam de Clarice Lispector, trazem uma
série de complexificações no campo da técnica. Aproximadamente quase duas déca-
das após a publicação de A hora da estrela, situam-se as obras romanescas de Kristeva
que escolhemos para a análise referente à temática do corpo. A psicanalista experien-
cia um mundo bastante modificado no que diz respeito aos avanços tecnológicos em
comparação ao meio já em vertiginosa transformação sutilmente retratado nos escri-
tos claricianos. É flagrante a profusão de elementos tecnológicos que despontam en-
tre o final da década de 70 e início dos anos 90. A popularização dos computadores é
um exemplo de como esse curto espaço de tempo que divide essas duas escritoras
produz diferentes arranjos na caracterização dos personagens elaborados por elas.
Em Clarice, há riqueza de detalhes na configuração dos corpos das personagens, ape-
sar da sugestão de um apagamento desses corpos por meio do recurso do encurta-
mento dos nomes das protagonistas (Joana-GH-força protagonal) e da intensificação
de uma atmosfera na qual os corpos perdem espaço ou se diluem na narrativa em
função de habitarem um espaço marcado pela fluidez habilmente construída pela es-
1
Capítulo dedicado à técnica de Madeleine Vionnet.
219
critora. Investigaremos, neste terceiro capítulo, as implicações do corpo proposto por
Kristeva no terreno ficcional de O velho e os lobos e Possessões.
No primeiro capítulo, percorremos algumas leituras da teórica que têm como
ponto em comum a importância concedida ao corpo. É o caso das alusões a Georges
Bataille e a Antonin Artaud, cujos fragmentos textuais por vezes não aparecem expli-
citamente no texto de Kristeva, mas percebemos indicações que levam a esses auto-
res. Expressões como o teatro da crueldade (Artaud) e experiência interior (Bataille)
aludem a obras desses autores e, embora Kristeva não tenha podido relacionar a sua
experiência literária revolucionária às práticas do teatro não menos revolucionário de
Artaud ou aos exercícios do íntimo que propõe Bataille, é possível o estabelecimento
de um ponto de contato entre eles. É também viável aproximá-los de autores do
campo da psicanálise, tal como fizemos ao destacar o interesse da psicanalista pelas
idéias de Reich e de Green. Todos esses autores ocupam-se, no recorte efetuado por
Kristeva, em A revolução da linguagem poética, da relação entre o corpo e a sociedade. É
por isso que os poetas que ganham destaque na tese da teórica – Mallarmé e Lautré-
amont – também não fogem dessa lógica na qual o corpo é associado à linguagem e,
por conseguinte, à esfera social.
É importante reafirmar que o processo de aquisição da linguagem, no qual os
papéis do semiótico e do simbólico se complementam, pertence a todos os sujeitos,
ou seja, não é exclusivo dos poetas ou dos artistas em geral. A diferença é que algu-
mas pessoas ultrapassam o já complexo papel de comunicação da linguagem e pro-
movem, por meio dela, ou apenas antecipam alterações lingüísticas que alcançam
certa repercussão sobre o funcionamento social. Nessa medida, as passagens dos tex-
tos de Mallarmé e de Lautréamont, que se somam aos demais autores, retiradas de A
revolução da linguagem poética, revelam que, a despeito de falta de engajamento políti-
co de Mallarmé ou da vida prática de Lautréamont, subjaz uma experiência lingüísti-
ca de tom revolucionário, feita de ritmos e de elipses que causam estranhamento
quanto à forma, e de temas que desafiam a lei; no que se refere ao conteúdo, a pro-
dução desses poetas marca um espaço de desejo na ordem do discurso. É por esse
motivo que a construção do corpo desenvolvida por Julia Kristeva necessita dos fun-
220
damentos da psicanálise, pois é por meio dessa técnica que se constrói a estrutura de
um corpo copresente, no qual coabitam sexualidade e pensamento.
A análise de O velho e os lobos, portanto, não se afasta do núcleo de interesses
de Kristeva e nos parece que ela continua a perseguir os movimentos do corpo frente
a um meio social muitas vezes avesso a manifestações de rupturas ou de diferenças.
Observa-se, a partir de agora, que a análise do corpo necessita de uma espécie de de-
finição da técnica. Antes de desenvolver os mecanismos que formam e definem a
técnica para Kristeva, vejamos a definição proposta por Jacques Ellul, em A técnica e o
desafio do século, de 1954, e publicado no Brasil apenas no ano de 1968. Sem a preten-
são de esgotar um assunto de extrema importância e carregado de historicidade e de
diferentes abordagens, alguns pontos levantados por Ellul contribuem para que a
técnica não se encerre em definições estereotipadas.
Ellul desmitifica a associação imediata típica do senso comum que relaciona a
técnica exclusivamente à máquina. Embora reconheça a relevância da máquina para
a consolidação da técnica, argumenta que a técnica precede a máquina. Ellul também
diverge do ponto de vista que associa a técnica diretamente à ciência, pois, usando o
mesmo argumento que descentraliza a máquina, ele reconhece a utilização de técni-
cas pelo homem primitivo, anteriores ao desenvolvimento da ciência (1968: 5-6). De
acordo com Ellul, é inerente a todo o trabalho humano a intervenção da técnica e essa
se presentifica inclusive para os não-civilizados, os quais, segundo ele, já dispunham
de técnica para a colheita de frutos. A técnica, no entanto, é diferente de uma simples
atividade, pois o que a caracteriza é “a procura da maior eficácia: substitui-se o esfor-
ço natural e espontâneo por uma combinação de atos destinados a melhorar o ren-
dimento, por exemplo” (1968: 19). Dominique Janicaud, que foi diretor do CRHI
(Centre de Recherche d’Histoire des Idées) em entrevista a Ruth Scheps, comenta que
o livro de Ellul passou despercebido na época de sua publicação. Segundo ele, os
poucos especialistas daquele período desconsideraram o valor sistêmico que a obra
de Ellul revelava, pois “ao lado dos elementos econômicos, ou propriamente técni-
cos, no sentido clássico do termo, existem elementos novos, que dizem respeito pre-
cisamente a essa lógica interna de uma técnica que remete a si mesma” (1996: 204).
Esse pensar sobre si mesma confere à técnica o status de um imperativo, tal como
221
Jacques Ellul sintetiza o apelo da técnica há algumas décadas e que nos parece bas-
tante atual: “Não há mais sociedade humana que escape a esse imperativo técnico”
(1964: 21).
Nesse sentido, o primeiro meio de divulgação das idéias de Kristeva, a revista
Tel Quel, também aparece, de certa forma, imersa no “imperativo técnico”. Ao reto-
mar o pano de fundo histórico que precede a formação da revista Tel Quel, Philippe
Forest retorna ao ambiente dos anos cinqüenta e tece um comentário elucidativo da-
quele período. Ele observa algo um tanto distante do que se poderia esperar de uma
cena literária: trata-se do enaltecimento da juventude divulgado no cinema. Forest
associa a característica da juventude como a responsável pela renovação do cinema:
“O cinema conhece sua ‘nouvelle vague’. A literatura espera pela sua
1
” (1995: 15). É
com base nessa idéia de juventude, divulgada através de um meio técnico, que se
configura o grupo Tel Quel do qual Kristeva terá participação destacada.
Em março de 1960, surge o primeiro número da Tel Quel, na França. Um pouco
antes de o contrato ser assinado, acontecem algumas manobras editoriais e publicitá-
rias para o lançamento da revista. Em janeiro do mesmo ano, a Plaisir de France dedi-
ca um artigo acompanhado de uma foto dos integrantes da revista Tel Quel, na qual
são retratados Coudol, Matignon, Huguenin, Hallier e Sollers (1995: 50). Observa-se
que eles não escaparam da sociedade do espetáculo, pois para divulgar uma publica-
ção que se pretendia de “vanguarda” e que atingiu esse objetivo, tiveram de passar
por um caminho de legitimação dos meios publicitários. Forest enumera os diversos
jornais que deram cobertura ao nascimento da Tel Quel: “Les Lettres Françaises, Nice-
Matin, La Gazette de Lausanne, Nation Française, Elle, Maroc Matin, France-Observateur,
Le Mercure de France, la NRF, L’Express, Le Corrière Meridionale, Nowa Kultura, Libéra-
tion ou ainda Combat“ (1995: 67). Há também uma imagem interessante que colabo-
rou para a consolidação do grupo Tel Quel. Forest relata que Jérôme Lindon convidou
Sollers, o diretor e maior idealizador da revista, para participar de um dicionário so-
bre o nouveau roman que contaria, entre outros autores, com a participação de Alain
Robe-Grillet, Claude Simon, Jean Ricardou e Jean Thibadeau. Apesar dos encontros,
1
Le cinéma connaît sanouvelle vague. La littérature espère la sienne (Histoire de Tel
222
o projeto fracassou e o resultado foi uma fotografia tirada por Cartier-Bresson do
grupo Tel Quel – imagem que, na acepção de Forest, contribuiu para imortalizar os
integrantes da revista (1995: 72).
Outro episódio que liga Tel Quel à sociedade do espetáculo, ainda que seus
membros não tivessem esse propósito, foi a exclusão de Huguenin da revista. Ele foi
excluído porque faltara a uma reunião do comitê da revista com o objetivo de finali-
zar um romance. Curiosamente, a obra de Jean-René Huguenin – Le côté sauvage faz
sucesso na imprensa e é divulgada ao lado da imagem jovial do escritor. Huguenin
passa a idéia de um “estudante esportivo”, deixando-se fotografar com as roupas de
um jogador de tênis. Forest, não sem ironia, relaciona o sucesso de vendas do escritor
à sua aparência exuberante: “Leitores e leitoras descobrem, portanto, que Jean-René
Huguenin ‘tem 24 anos, olhos azuis e um longo corpo musculoso’’’
1
. Em seguida, ele
é cotado para o prêmio Goncourt. A morte trágica de Huguenin em um acidente de
carro, dois anos depois de ter saído da revista, é motivo para várias publicações na
imprensa e faz com que, novamente pelo viés da imagem, o nome da Tel Quel, ainda
que indiretamente, permaneça associado ao espetáculo.
Essa prática, no entanto, não se restringe apenas à revista Tel Quel. Muito antes
dessa publicação direcionada à literatura, a revista Arts, segundo Forest, fornece as
bases para aquilo que se configuraria na “sociedade do espetáculo” (1995: 38). Trata-
se de uma publicação, no mínimo eclética, na qual é possível entrar em contato com
os grandes clássicos da literatura e também ter acesso a matérias sobre maquiagem.
O interesse da Tel Quel, em contrapartida, não visa ao espetáculo. Um exemplo disso
é a cautela da revista diante da vanguarda cinematográfica; segundo Forest (1995:
426), são poucos os artigos destinados ao cinema. Os cineastas Buñuel e Murnau são
exceções, uma vez que têm seus filmes comentados por Baudry e Claude Ollier. A li-
gação com escritores também contribui para despertar o interesse pela sétima arte. É
o caso de Madame se meurt, de Jean Cayrol e de Claude Durand ou de Marienbad, de
Robbe-Grillet e Resnais, os quais constituem parcerias entre literatura e cinema e
Quel, 1995: 15).
1
“Lecteurs et lectrices découvrent ainsi que Jean-René Huguenin ‘a 24 ans, des yeux bleues
et un long corps musclé’” (Histoire Tel Quel, 1995: 107).
223
rendem artigos para a Tel Quel. De acordo com Forest, o debate mais expressivo so-
bre o cinema acontece fora da revista e se dá entre Baudry, Pleynet e Thibaudeau.
Apesar dessa distância em relação ao meio cinematográfico, há um episódio que a-
proxima a revista dessa esfera imagética. Em 1963, Jean-Daniel Pollet, cineasta de
vanguarda em início de carreira e amigo de alguns integrantes da Tel Quel, com um
roteiro de Philippe Sollers, lança o filme Méditérranée, uma referência do jovem cine-
ma de vanguarda. Isso abre espaço para que os membros da Tel Quel publiquem arti-
gos sobre cinema nos Les Cahiers e na Cinéthique, revistas especializadas no assunto.
Em 1969, Leblanc e Fargier, membros fundadores da Cinéthique, pedem a autorização
de Philippe Sollers para a publicação do roteiro de Méditérranée. Com isso, Baudry e
Sollers entram na crítica de cinema e levam o nome da Tel Quel para esse âmbito i-
magético. Forest destaca uma importante contribuição de Jean-Louis Baudry, cujo
texto de “inspiração telqueliana”, intitulado “Efeitos ideológicos produzidos por um
aparelho de base” (Effets idéologiques produits par l’appareil de base), viabiliza escrever
sobre o cinema de forma crítica.
No final da década de 70, a inclusão da imagem não produz tanto estranha-
mento nos membros da Tel Quel quanto no início da revista. Denis Roche, um dos
nomes de peso da revista, produz artigos cuja referência é a técnica fotográfica. Con-
forme Forest, o texto de Roche depende da influência fotográfica, pois tem ali sua
inspiração, dado que a intenção dele é a de causar o mesmo embaralhamento percep-
tivo que se observa na pintura com a chegada da fotografia (1995: 575). Portanto, De-
nis Roche vale-se da técnica no intuito de recriar a prática literária. Nessa esteira, Fo-
rest situa a obra Paradis, de Philippe Sollers, publicada em 1981. Na apreciação do
historiador, Paradis é um texto central no que se refere à imbricação entre a literatura
e a técnica:
Paradis é também um texto político: profético, o discurso é denúncia
veemente do reino perpétuo e bárbaro dos ídolos. Paradis é ainda um
romance realista, antecipando em dez anos o evento da “sociedade
do espectro”: corpos e espíritos submissos à Técnica (comunicações,
controle da reprodução etc)
1
(História da Tel Quel, 1995: 580-581).
1
Paradis est aussi un texte politique: prophétique, le discours est dénonciation véhémente
du règne perpétuel et barbare des idoles. Paradis est encore un roman réaliste, disant
avec dix ans d’avance l’avènement de la ‘société du spectral’: corps et esprits soumis à la
224
Paradis realmente extrapola o terreno literário, o que nos leva também a pensar
que a literatura se expande para o domínio do audiovisual, pois é assim que Forest
sintetiza a repercussão dessa obra sobre o campo das letras. Sollers grava todo o texto
de Paradis em fitas cassetes e depois as comercializa com a ajuda de Michel Gueude.
O livro também conta com o apoio de uma rádio belga, que se oferece para divulgá-
lo, e da livraria La Hune. Uma figura indispensável para a consolidação do apelo vi-
sual foi o cineasta Jean-Paul Fargier. Conhecido do grupo Tel Quel e de Sollers desde
a época das polêmicas com a revista especializada em cinema, a Cinéthique, Fargier
produz, segundo Forest, uma memorável encenação de Paradis. Para tanto, o vídeo-
maker instala no centro de uma espécie rosácea, composta por oito câmeras de televi-
são, o escritor. Sollers fica diante de um teleprompter, um aparelho equipado com mo-
nitor de vídeo utilizado pelos locutores em programas de televisão para a leitura de
notícias, e assim o escritor lê os textos que farão parte do segundo volume de Paradis.
Fargier faz um jogo de imagens ao misturar cenas diretas de Sollers – resultado da
combinação de imagens das oito câmeras – a outras cenas já gravadas. O videasta
também joga com as cores e, dessa forma, realiza um vídeo que Forest chama de
“vanguarda”:
Sob o título de Sollers no Paraíso, uma versão vídeo dessa leitura será
realizada por Fargier, apresentada num cinema parisiense, depois
comercializada. É a época de múltiplas colaborações entre o escritor
e o videasta: em lugares diferentes (museu Picasso ou muro das la-
mentações), Sollers se lança em grandes improvisações ou leituras,
Fargier capta a imagem e joga com ela para encontrar um quivalente
visual ao discurso
1
(História da Tel Quel, 1995: 582).
O vídeo de Fargier desperta o interesse do cineasta Jean-Luc Godard. Ele toma
conhecimento dos deslocamentos de Sollers para o campo visual e o convida para
Technique (communications, contrôle de la reproduction, etc.)” (Histoire Tel Quel, 1995:
580-581).
1
“Sous le titre de Sollers au Paradis, une version video de cette lecture sera réalisée par Far-
gier, présentée dans um cinéma parisien puis commercialisée. C’est l’époque de multi-
ples collaborations entre l’écrivain et le vidéaste: en des lieux divers (musée Picasso ou
mur des lamentations), Sollers se lance dans de grandes improvisations ou lectures, Far-
gier captant l’image et jouant avec elle pour trouver un équivalent visuel au discours”
(Histoire Tel Quel, 1995: 582).
225
um papel no filme Je vous salue Marie. Apesar dos diferentes meios artísticos de ex-
pressão, tanto o cineasta quanto o autor de Paradis exploram os paradoxos do catoli-
cismo. Sollers foge da experiência de ator, mas, por intermédio de Fargier, o encontro
entre o escritor e Godard, no dia 21 de novembro de 1984, dá origem a um filme no
qual os dois dialogam sobre temas instigantes como, por exemplo, o dogma da Vir-
gem Maria, a histeria e até mesmo sobre o escritor Antonin Artaud. Dirigido por Far-
gier, o filme se chama Godard-Sollers: l’entretien. O encontro entre literatura e cinema,
simbolizado no filme de Fargier por dois expoentes dessas duas áreas, já não mais
participa do movimento Tel Quel, embora a revista tenha trabalhado para esta possi-
bilidade, uma vez que abriu espaço para se pensar a literatura no cruzamento de ou-
tras expressões artísticas. O último número da Tel Quel, 94, sai no inverno de 1982 e
logo em seguida surge L’Infini, no inverno de 1983. Sob a direção de Philippe Sollers
e com textos de Kristeva, essa revista, a partir de seu texto de apresentação, mostra-se
imersa no que se chama, conforme Debord, de “sociedade do espetáculo”. Ao enu-
merar algumas características típicas do espetáculo como a televisão, o jornalismo, as
revistas, a transformação da política em marketing, o turbilhão das mídias, a nota de
abertura do primeiro número assume um ar zombeteiro diante dessas transforma-
ções “técnicas” ao constatar com um fingido desdém que isso não é “nada” e que
“não há motivo para ter medo” (1995: 505). O final da nota de abertura de L’Infini nos
parece uma continuação do projeto revolucionário iniciado pela revista Tel Quel, na
medida em que, na contracorrente da técnica, estimula o questionamento e a desarti-
culação do sistema. Chegamos, nessa medida, ao mesmo objetivo perseguido pelo
conjunto teórico de Kristeva.
Essas breves referências a importantes revistas francesas constroem a atmosfe-
ra intelectual na qual se desenvolveu o pensamento de Kristeva. Trata-se, é preciso
reafirmar, de uma pensadora que defende o social como meio de acesso à teoria, por
isso o retorno a sua trajetória intelectual permite a descoberta de um percurso de
pensamento que não pode ser reduzido à mera referência e aplicação conceitual. Em
Sentido e contra-senso da revolta, publicado em 1996, Kristeva situa a experiência de ter
participado da Tel Quel ao lado da experiência (no intuito de privilegiar os aconteci-
mentos e não abstração de teorias afastadas do fluxo da vida) de pensadores como
226
Sartre, Aragon e Barthes, os quais ela eleva a um patamar de destaque no que diz
respeito ao tema da revolta. Em algumas linhas, condensa a história da revista, e essa
se soma a sua própria história intelectual. Muitos dos autores citados por Kristeva
aparecem em seus livros, sobretudo aqueles que nos chamaram a atenção na análise
do nosso primeiro capítulo. Referimo-nos aos escritores e poetas que privilegiam a
função do corpo: Mallarmé, Lautréamont, Artaud, Freud, Céline e Proust. É curioso
que, embora a revista tenha entrado no domínio da técnica (sua divulgação na im-
prensa e interesse pelo audiovisual e até mesmo a popularização do cinema de van-
guarda), o “planeta midiático”, segundo Kristeva, não conseguiu desmitificá-la a
ponto de vendê-la como um produto fácil. No encontro entre o que Kristeva chama
de literatura e o impossível, a França produz três momentos. O primeiro está na pro-
dução de Rimbaud, Lautréamont e Mallarmé, o segundo responde pelo surrealismo e
o terceiro está na revista Tel Quel:
O que me atrai na experiência de Tel Quel é a terceira variante – ain-
da invisível – desse encontro entre literatura e impossível. Variante
ainda invisível para quase todo o planeta midiático. Por quê? Porque
ela é bem mais radical. E porque ela não está recuperada pela institu-
ição (religiosa, partidária, leiga, comunista, universitária etc.), sa-
bendo-se que são justamente as recuperações que tornam uma expe-
riência visível, que tornam visíveis experiências de ruptura, as quais,
sem isto, continuam agindo à margem. Por que ela é radical? Porque
assumimos o legado dos predecessores: o esgotamento da bela lin-
guagem, o desejo de irradiar “a universal reportagem” (Mallarmé), o
boato, a literatura-divertimento. Mas, além disso, confrontamos essa
experiência mais nitidamente ainda com a história da filosofia, da re-
ligião, da psicanálise. Hegel, Husserl, Heidegger, Freud – mas tam-
bém santo Agostinho, são Bernardo, santo Tomás, Duns Scot e mui-
tos outros – se tornaram referências privilegiadas, do mesmo modo
que Joyce, Proust, Mallarmé, Artaud, Céline. Tel Quel foi considerado
um laboratório de leitura e de interpretação. Universitários! Grita-
ram alguns. Terroristas! Acusaram, recuando, os preguiçosos. Trata-
va-se, nesses confrontos com os filósofos, os teólogos ou os escritores
citados, de testar até onde podia ir a literatura como viagem ao fun-
do da noite. Ao fim da noite como limite do absoluto, limite do sen-
tido, limite do ser (consciente/inconsciente), limite da sedução e do
delírio. E isto sem a esperança romântica de fundar novamente uma
comunidade pregando o culto de uma Grécia antiga, por exemplo, ou
o culto das catedrais, ou aquele dos amanhãs que cantam
1
(Sentido e
1
“Ce qui me retient dans l’expérience de Tel Quel, c’est la troisième variante – encore invisi-
ble – de cette rencontre entre littérature et impossible. Variante encore invisible pour
presque toute la planète médiatique. Pourquoi? Parce qu’elle est peut-être autrement ra-
dicale. Et parce qu’elle n’est pas récupérée par l’institution (religieuse, partisane, laïque,
communiste, universitaire, etc.), étant entendu que ce sont précisément les récuperations
227
228
espécie de linha divisória entre a reflexão sobre a revolta/revolução na década de se-
tenta e sua releitura no final dos anos noventa. Kristeva, no entanto, atenua em parte
essa distância histórico-temporal ao esclarecer que seu campo de interrogação, no
que diz respeito à investigação política, retoma desde o final da Revolução Francesa e
o conseqüente desenvolvimento da democracia. Interessa-nos, em contrapartida, sua
constatação referente à falta de valores que se nota entre essas duas construções da
experiência-revolta. Se vivemos um momento no qual Kristeva denomina “vazio de
valores” e supõe sua origem no “vazio de poder” (2000: 51-52), investigaremos de
que forma a representação do corpo político atua nesse esvaziamento do sujeito. O
romance O velho e os lobos (Le vieil homme et les loups), publicado em 1991, antecipa al-
guns pontos que serão abordados teoricamente em Sentido e contra-senso da revolta.
Veremos, nessa medida, se existe efetivamente essa crise de valores na caracterização
que Kristeva oferece a seus personagens.
3.2 O velho e os lobos
Bernard-Henri Lévy, para Le nouvel observateur, comenta a respeito do silêncio
da crítica diante do romance policial de estréia de Kristeva
1
. A trama policial de O ve-
lho e os lobos localiza-se em Santa Bárbara, uma cidade onde acontecem assassinatos
misteriosos. Talvez o termo mais adequado para iniciar a interpretação desse roman-
ce policial seja a substituição da palavra assassinato por desaparecimento, a começar
pelo sumiço de um dos alunos do Velho. O Velho, um professor de latim solitário,
comenta a outra aluna, Alba, sobre o que para ele é um acontecimento incomum:
- Você lembra de Crisipo? Sempre sentado na primeira fila, ainda o
vejo. Nem sombra. Ninguém conhece, ninguém viu. Hoje, quem sabe
se existiu mesmo alguém com o nome de Crisipo? Estranho, não a-
cha? No entanto, vivemos e trabalhamos juntos. Você chegou a con-
viver com Crisipo? Você, ao menos você não o esqueceu? Eles o leva-
1
O crítico interroga sobre os motivos do silêncio da crítica e pergunta se estaria na forma,
na combinação entre romance filosófico e história de detetive ou até mesmo na história os
motivos do descaso em face do trabalho ficcional da escritora. Conforme “Le Nouvel Ob-
servateur”, n. 1415, 26 de dezembro 1991 a 1 de janeiro de 1992, p. 66. Para o “Le Mon-
de”, a crítica de Michel Braudeau (11/10/1991, p. 66), intitulada “Le sexe des métapho-
res”, enquadra a obra de Kristeva na categoria das história de detetive e dos contos filo-
sóficos.
229
ram
1
(O velho e os lobos, 1999: 13).
Alba, como todos os habitantes de Santa Bárbara, desconfia das visões apoca-
lípticas do professor de latim, e omite do Velho a notícia da morte de seu gato Epicte-
to. Na mesma manhã em que ela recebe a notícia do desaparecimento do colega, ela
encontra Epicteto morto no jardim: o gato fora provavelmente esganado, pois ela
percebe “duas riscas de sangue coagulado sobre o pêlo angorá” (1999: 13). É, portan-
to, a personagem Alba quem estabelece a relação entre morte e desaparecimento.
Nesse mesmo período, é descoberto um ossário, imediatamente ligado ao desapare-
cimento misterioso de dez mil oficiais. Os oficiais desaparecem, segundo o narrador,
como num passe de mágica, “sem deixar vestígios” (1999: 15). O Velho atribui o epi-
sódio aos lobos. Trata-se de uma metáfora que relaciona o professor a um universo
fantasioso, mas que também desempenha a função de questionamento revoltado di-
ante da banalização dessas mortes. Numa tentativa de explicar o desaparecimento
dos oficiais ao marido de Alba, o Velho recorre à imagem dos lobos: – Os lobos, estou
dizendo que foram os lobos! Isso aconteceu exatamente na época em que eles come-
çaram a nos invadir. (O Velho continuava a se obstinar.)
2
(1999: 15). Em seguida, o
narrador oferece algumas características desses corpos anônimos que foram encon-
trados numa montanha: “Cinco mil corpos jaziam amontoados sobre o calcário man-
chado: mordidos, roídos, dilacerados. Algumas marcas de balas nas paredes, coro-
nhas de fuzis crivadas de garras, de dentes, de sangue
3
” (1999: 17). Os corpos desses
oficiais, localizados quase que fortuitamente no fundo de uma velha pedreira situada
na montanha, apenas servem como uma referência para os próximos desaparecimen-
1
Tu te souviens de Chrysippe? Toujours assis au premier rang, je le vois encore. Plus de
trace. Ni vu ni connu. Qui sait seulement aujourd’hui s’il a existé quelqu’un du nom de
Chrysippe? Étrange, tu ne trouves pas? Alors qu’on a vécu, travaillé ensemble. Tu l’as
bien fréquenté, Chrysippe? Toi, au moins, tu ne l’as pas oublié? Ils l’ont emmené (Le viel
homme et les loups, 1991: 16).
2
– Les loups, je vous dis que ce sont les loups! Ça s’est produit exactement à l’époque où ils
ont commencé à nous envahir. (Le Vieil Homme s’obstinait toujours.) (Le vieil homme et
les loups, 1991:18).
3
“Cinq mille corps gisaient entassés sur le calcaire souillé: mordus, rongés, déchiquetés.
Quelques traces de balles sur les parois, des crosses de fusils criblées de griffes, de dents,
de sang” (Le vieil homme et les loups, 1991: 23).
230
tos, ou assassinatos, que a narradora substitui na medida em que desenvolve a rotina
de alguns personagens também vítimas dessa espécie de apagamento existencial.
Ao encontrar o professor de latim num hotel em período de férias, Alba relata
o desaparecimento de seus pais ao Velho. Nessa medida, já estamos familiarizados
com esses personagens, pois muitos já foram retratados em algumas situações passí-
veis de nos despertar uma espécie de cumplicidade por vezes e por outro lado eles
também foram capazes de instigar sentimentos hostis em outros momentos. A ques-
tão é que, diferentemente dos oficiais do Exército, Alba e o professor de latim reves-
tem-se do peso de uma história, dito de outra forma, eles participam de uma narra-
ção que nos é dada a conhecer. Nesse sentido, os acontecimentos que se referem à vi-
da deles ressoam com grande impacto no tecido narrativo para os leitores. Apesar
desse vínculo de afetividade, o desaparecimento dos pais de Alba não lhe produz o
efeito de estranhamento esperado. É de forma lacunar e despreocupada que ela dá a
notícia ao Velho: – Meus pais desapareceram... Já lhes disse?
1
(1999: 32). O relato do
desaparecimento dos pais da protagonista ofusca-se, é preciso destacar, em virtude
de outra notícia que a personagem sobrepõe ao sumiço dos pais. Alba está de casa-
mento marcado com Vespasiano. No entanto, sem qualquer entusiasmo, ela conden-
sa essas duas novidades ao contar tais eventos ao Velho, esvaziando a relevância de
cada uma delas. Isso leva a enquadrá-las no mesmo âmbito do desaparecimento dos
oficiais, os quais representam figuras opacas no conjunto de O velho e os lobos.
O próximo desaparecimento não diz respeito a uma pessoa, mas a um senti-
mento que aciona, no diálogo entre o Velho e Vespasiano, a constatação do desapare-
cimento do amor na acepção de Vespasiano e de sua transformação, no ponto de vis-
ta do Velho. Vespasiano menospreza o sentido dos autores estudados pelo Velho tais
como Ovídio, Suetônio ou Tíbulo. Para a vocação prática do médico, o professor de
latim não passa de um romântico deslocado que encontra na imagem de Délia, que
fora amante de Tíbulo, a sua representante contemporânea em Alba, a aluna dedica-
da. A discussão entre os dois, conforme o trecho a seguir, traz à tona duas posições
divergentes:
1
– Mes parents ont disparu... Vous l’ai-je dit? (Le vieil homme et les loups, 1991: 46).
231
– Sem dúvida, sem dúvida, rapaz. Eros, Amor. (...) Havia laços entre
aquelas pessoas, que no entanto não estavam amarradas. Nem paixão
nem indiferença, a liberdade é um laço, talvez. Depois foi a nossa
vez – como cristãos – e a vez do que resta deles em Santa Bárbara,
por exemplo. Eu faço parte, evidentemente... Mas para onde foram
Ovídio, Tíbulo e até mesmo Suetônio, e se você quiser, Alba Pois esta
é a questão, não é? Para onde foram eles? (O Velho)
– Desapareceram, é óbvio. (Vespasiano.)
1
(O velho e os lobos, 1999: 57-
58).
Enquanto Vespasiano defende o apagamento do amor, o Velho busca a per-
manência das histórias de amor por meio da hipótese de que elas se apresentam sob
o jogo das metamorfoses. Nesse aspecto justifica-se a epígrafe de O velho e os lobos,
cujo texto escolhido é o das Metamorfoses, de Ovídio: “É meu intento contar as meta-
morfoses dos seres em novas formas
2
”. O Velho, portanto, recolhe os estilhaços des-
ses fragmentos amorosos na argumentação que tece contra o pessimismo desencan-
tado de Vespasiano.
Para compreender melhor o exercício do Velho, é preciso levar em conta o res-
gate que Kristeva faz do sentimento amoroso em Histórias de amor. A partir de dados
cronológicos, Kristeva pesquisa elementos da paixão no ocidente grego, judaico e
cristão. Narciso, Dom Juan, e Romeu e Julieta são algumas das histórias enfatizadas
pela psicanalista que explicam a consolidação do sentimento amoroso até os nossos
dias. Kristeva publica as Histórias de amor no início da década de oitenta, em 1983. Na
contracorrente do progresso das máquinas e da sociedade do espetáculo, ela parece
mais interessada na importância dos laços amorosos – desde aquele entre a mãe e o
bebê, a relação de transferência, contra-transferência entre o analista e o analisado,
até os modelos literários que constituem reflexos da nossa ligação com os outros – do
1
- Sans doute, sans doute, jeune homme. Eros, Amor. (...). Il y avait des liens entre ces gens-
là qui n’étaient pourtant pas ligotés. Ni passion ni indifférence, la liberté est un lien,
peut-être. Puis ce fut notre tour, à nous chrétiens, et à ce qu’il en reste à Santa Barbara,
par exemple. J’en suis, évidemmet... Mais où sont passés Ovide, Tibulle et même Suétone,
si tu veux, Alba? Car telle est la question, n’est-ce pas? Où sont-ils passés?
- Disparus, cela va sans dire. (Vespasien.) (Le vieil homme et les loups, 1991: 90).
2 “J’ai formé le dessein de conter les métamorphoses des êtres en des formes nouvelles” (Le
vieil homme et les loups).
232
que no desenvolvimento puro e simples da linguagem, o qual foi e ainda continua
sendo o enfoque de muitos colegas cognitivistas. Kristeva faz um movimento análo-
go ao de seu professor e amigo Roland Barthes. No entanto, Kristeva inverte a ordem
cronológica dos temas, ou seja, inicialmente ela escreve sobre o amor (Histórias de a-
mor, 1988) e depois sobre o que definimos sob o enfoque na técnica (Sentido e contra-
senso da revolta, 1996 e A revolta íntima, 1997). Barthes parte de uma crítica da cultura
de massa, portanto interpreta de início o impacto da técnica (Mitologias) e depois se
atém à necessidade/retomada das histórias de amor (Fragmentos de um discurso amo-
roso).
As crônicas das Mitologias foram escritas entre 1954 e 1956 e a reunião dos tex-
tos data de 1956. Embora Barthes tenha evidenciado alguns elementos que enqua-
dramos, de modo demasiado amplo, na esfera da técnica, o teórico, ao mesmo tempo
em que abriu espaço para se pensar na sociedade imagética e na produção de seus
ídolos e costumes, conduziu também para a desmitificação desses produtos constru-
ídos para a formatação dos gostos do senso comum. Mesmo em Mitologias – essa i-
déia nos parece central no pensamento barthesiano –, a técnica não pode ser interpre-
tada como um simples instrumento de alienação, como algo que achata a capacidade
de refletir dos interlocutores, relegando-os à condição de espectadores autômatos.
Em “O rosto de Garbo”, por exemplo, Barthes retoma o papel de arrebatamento cau-
sado pela imagem dos traços marcantes da atriz Greta Garbo:
Garbo pertence ainda a essa fase do cinema em que o enfoque de um
rosto humano deixava as multidões profundamente perturbadas,
perdendo-se literalmente numa imagem humana como num filtro,
em que o rosto constituía uma espécie de estado absoluto da carne
que não podia ser atingido nem abandonado. Alguns anos antes, o
rosto de Valentino provocava suicídios; o de Garbo ainda participa
do mesmo reino do amor cortês, onde a carne desenvolve sentimen-
tos místicos de perdição (Mitologias, 2006: 71).
Segundo Barthes, o cinema do qual participa Garbo é uma exceção, pois ele re-
conhece na arte cinematográfica certa banalização da função outrora arrebatadora da
imagem. É também contra a tecnocracia, agora no campo do jornalismo, que o crítico
se volta na crônica “A clarividente”. Barthes expõe, por meio de uma metáfora técni-
ca, a segmentação dos assuntos nos jornais como se fossem práticas médicas nas
233
quais subjaz um claro vínculo publicitário expresso na substituição do sábio univer-
sal pela opinião do especialista:
Cada órgão do corpo humano (visto que se deve partir do concreto)
tem assim seu “técnico”, que é simultaneamente papa e perito máxi-
mo: o dentista da Colgate para a boca, o médico de “responda-me,
Doutor” para as hemorragias do nariz; os engenheiros do sabão Lux
para a pele, um padre dominicano para a alma e o correspondente
dos jornais femininos para o coração (Mitologias, 2006: 127).
Estamos diante da banalização ou, em outra palavras, da comercialização das
relações amorosas. A denúncia de Barthes é contra a padronização do papel femini-
no, pois constata que “a moral do Correio jamais postula para a mulher uma outra
condição que não seja a de parasita. Só o casamento, instituindo-a juridicamente, con-
fere-lhe uma existência” (2006: 129). Isso não nos autoriza a postular uma maior in-
dependência feminina à época dos poetas romanos; em contrapartida podemos des-
confiar desse aconselhamento de jornal formatador de opinião, o qual atua numa
camada quase invisível e conduz, muito sutilmente, os costumes de um período.
Uma outra desmitificação barthesiana está na proposta de cozinha vendida pela re-
vista Elle. A questão do paladar nacional francês aparece na crônica “O bife com bata-
tas fritas”, na qual Barthes associa o estado sangüíneo do bife mal-passado à morali-
dade. A relação, no entanto, entre o sentido da gustação e a técnica se desenrola na
crônica “Cozinha ornamental”. Barthes destaca o papel da cobertura na cozinha da
revista Elle. Todos os pratos são retratados com o intuito de aguçar o sentido da vi-
são, dado que não está em pauta o consumo: o público da revista, aí está a desmitifi-
cação de Barthes, é popular. Segundo o cronista: “Nesse tipo de cozinha, a categoria
substancial dominante é a cobertura; fazem-se todos os esforços para alisar as super-
fícies, para arrendondá-las: com o intuito de esconder o alimento sob o sedimento li-
so dos molhos, cremes, fondants e geléias” (2006: 130). Barthes a define na expressão
“cozinha de sonho” e observa nas fotografias da Elle o domínio do tom de rosa e jo-
gos decorativos que escondem a crueza dos alimentos, como é o caso da cobertura do
molho béchamel sobre os corpos dos lagostins.
O tema da fotografia, que aparece em sua gama de ambigüidades no último
livro de Barthes – A câmara clara – é destaque em várias construções mitológicas a-
234
preendidas pelo teórico. É o caso do texto “Fotogenia eleitoral”, no qual a imagem fo-
tografada do candidato contribui para a sua eleição – prática que atualmente não é
mais novidade: “o candidato rodeado pelos filhos (...), o jovem pára-quedista de
mangas arregaçadas, oficial coberto de condecorações. Portanto, a fotografia se cons-
titui numa verdadeira chantagem aos valores morais: pátria, exército, família, honra,
combate” (2006: 164). Talvez a crônica “O plástico” seja a que melhor condensa a i-
déia do amálgama entre corpo e técnica nesse conjunto de textos barthesianos, sobre-
tudo a passagem a seguir:
Um objeto luxuoso está sempre muito ligado à terra, recorda sempre
de uma maneira preciosa a sua origem mineral ou animal, o tema na-
tural de que é apenas uma atualidade. O plástico é totalmente absor-
vido pela sua utilização: em última instância, inventar-se-ão objetos
pelo simples prazer de serem utilizados. Aboliu-se a hierarquia das
substâncias, pois apenas uma substituiu todas as outras: o mundo in-
teiro pode ser plastificado, e até mesmo a própria vida, visto que, ao
que parece, já foi iniciada a fabricação de aortas de plástico (Mitolo-
gias, 2006: 174-175).
A sólida relação entre corpo e técnica que aparece nas Mitologias é semelhante
àquela explorada por Paul Virilio em Velocidade e política. Publicado em 1977, o mes-
mo ano em que Roland Barthes lança Fragmentos de um discurso amoroso, Virilio situa
sua análise sobretudo nas técnicas que dizem respeito às estratégias de guerra. Nesse
sentido, o filósofo vale-se de alguns neologismos para elucidar a dependência entre a
velocidade e o êxito da classe dominante. Termos como dromologia, dromocracia e
suas variantes têm em comum a raiz grega dromos, a qual oferece a idéia de corrida,
de movimento, de velocidade. Apresenta-se, portanto, a construção da idéia de velo-
cidade sustentada pelo autor. Na entrevista a Sylvere Lotringer, em Guerra pura: a
militarização do cotidiano, o autor define a velocidade como violência. Para tanto,
exemplifica com o peso de parte de seu próprio corpo: “O exemplo mais óbvio é o
meu punho cerrado. (...) se o arremessar em alta velocidade, posso fazer o seu nariz
sangrar. Você pode ver facilmente que o que faz toda a diferença é a distribuição de
massa no espaço” (1984: 39). Existe, portanto, um evidente paradoxo no título Veloci-
dade e política, o qual é evidenciado por Virilio quando ele postula a inversão entre o
que se estabeleceu na filosofia aristotélica como substância e acidente. A primeira
235
deveria ser da ordem do necessário e o acidente, por sua vez, estaria à disposição do
contingente. Conforme Virilio, a tecnologia inverte essa hierarquia, pois:
Cada tecnologia produz, provoca, programa um acidente específico.
Por exemplo: quando inventaram a estrada de ferro, o que foi que
inventaram? Um objeto que permitia que você fosse mais depressa,
que lhe permitia progredir – uma visão à la Júlio Verne, positivismo,
evolucionismo. Ao mesmo tempo porém inventaram a catástrofe fer-
roviária. A invenção do barco foi a invenção dos naufrágios. A in-
venção da máquina a vapor e da locomotiva foi a invenção dos des-
carrilhamentos. A invenção da auto-estrada foi a invenção de trezen-
tos carros colidindo em cinco minutos. A invenção do avião foi o de-
sastre aéreo (Guerra pura, 1984: 40).
No intuito de promover sempre o progresso tecnológico, existe um descaso no
que se refere ao lado negativo da tecnologia e, por conseguinte, da velocidade. O filó-
sofo sustenta que esse aspecto foi censurado pelos “tecnocratas”, mas isso não nos
impede de pensar “instantaneamente a substância e o acidente” (1984: 40). Nesse con-
texto, Velocidade e política destaca-se por ser, segundo Virilio, ”o primeiro a levantar a
questão da velocidade” (1984: 56). Essa afirmação, discutível, é logo em seguida ate-
nuada pelo filósofo: “Não foram muitos os que tocaram na velocidade. É claro que
existe Paul Morand, algum Kerouac, mas isto é literatura. Para uma visão mais políti-
ca da velocidade, há Marinetti e os futuristas italianos, e depois Marshall McLuhan”
(1984: 46-47). Supomos que o ponto de diferença de Virilio, o que o torna um crítico
da velocidade, apareça na desmitificação que ele promove da política ao afirmar que
“a velocidade é o lado desconhecido da política” e, em conseqüência disso, sustenta
que “Toda sociedade é fundada numa relação de velocidade” (1984: 49-50). O poder,
nesse sentido, é destinado àquele que tem a velocidade.
O que nos interessa no estudo da dromologia é a sua relação com o apagamen-
to das funções do corpo (esse deve ser interpretado como uma estrutura copresente –
sexualidade/pensamento – assim como desenvolvemos no primeiro capítulo). Vi-
mos, no exemplo do punho cerrado, que o mau uso do corpo gera violência, esta na-
da mais é do que a definição de velocidade engendrada por Virilio. Em Velocidade e
política, há uma tese que sustenta o seguinte: ”O dissidente é um corpo, sua dissidên-
cia, um delito postural – por exemplo, sua indolência, sua lascividade” (1996: 43).
São, por conseguinte, os gestos do corpo, desde que estejam libertos ou conscientes
236
dos imperativos da sociedade dromocrática, que constituem um caminho de revolta
contra a automação promovida pelo poder movido pela velocidade, o poder dromo-
crático. Trata-se, nesse aspecto, de um uso revolucionário do corpo, o que está distan-
te de um mau uso do corpo. Em nota de rodapé, o filósofo exemplifica seu ponto his-
toricamente ao evidenciar que, na Idade Média, existiam confissões que dependiam
da relevância de um corpo político, pois: ”a pergunta é feita sob tortura a um corpo
‘conhecedor da verdade’ que deve deixá-la escapar à revelia de sua vontade”. A abo-
lição da tortura, no século XIX, não constitui um ato de humanidade, “mas porque se
percebeu que todo ato (todo movimento humano) deixa algum traço externo, alguma
impressão material involuntária” (1996: 43). A técnica promove um apagamento dos
vestígios do sofrimento do corpo sob a capa de práticas sociais mais justas.
O objetivo dos Fragmentos, publicado no mesmo ano de Velocidade e política, as-
senta-se, tal como expõe a sua nota introdutória, na consideração do total abandono
do discurso amoroso, o qual está condenado a ocupar um espaço de “extrema soli-
dão” no universo contemporâneo. É possível lê-lo como uma tentativa do retorno a
um corpo ainda não apagado em virtude da exploração da técnica. Contra a roboti-
zação denunciada por Virilio e pelo próprio Barthes em Mitologias, os fragmentos
barthesianos propõem, sob a capa falsamente ingênua de uma volta para o coração,
um caminho para o discurso da liberdade. No fragmento intitulado “O coração”, esse
se define como uma alternativa aos desmandos da dromocracia: “O coração é o órgão
do desejo”. Não se trata de um discurso narcísico, tampouco solipsista; Barthes, no
complemento dessa passagem, insere o desejo na coletividade, produzindo um sau-
dável questionamento das nossas ações no mundo: “O que é que o mundo, o que é
que o outro vai fazer do meu desejo?” (Fragmentos de um discurso amoroso, 2000: 94).
Essas observações sobre o cruzamento entre corpo e técnica auxiliam na com-
preensão da resposta do Velho a Vespasiano. Enquanto o Velho se mantém confiante
na defesa dos laços afetivos, Vespasiano declara o desaparecimento desse sentimen-
to
1
. A próxima personagem que sai de cena é uma das principais: Alba. O desapare-
1
Interrompemos a enumeração dos desaparecimentos nessa discussão entre os dois perso-
nagens ao tentar apreender os motivos que levam o Velho a defender a permanência dos
laços de amor numa sociedade na qual o peso da existência se dilui como na prática da
237
cimento dela é antecipado no discurso da detetive Stéphanie Delacour, jornalista, in-
vestigadora e amiga de infância da vítima: “Alba levantou uma última vez seus
grandes olhos para mim. Estremeci ao ver novamente o quanto a vergonha os torna-
va belos, e fugi escada abaixo. Afinal, cada um tinha direito a sua depressão. Não sa-
bia que Alba ia desaparecer
1
” (1999: 78). O sumiço de Alba também está presente no
discurso do Velho, que se manifesta numa rememoração da jornalista-detetive:
“Não há outra coisa senão o microcosmo, a vida interior dos ho-
mens... e das mulheres, minha pequena Stéphanie”, dizia-me ainda
há pouco o Velho que encontrara diante de um supermercado. “A
propósito, você não viu mais Alba? Ela desapareceu”, suspirara ele,
antes de se eclipsar por sua vez, com um olhar que me pareceu apa-
vorado
2
(O velho e os lobos, 1999: 79).
O próximo personagem a desaparecer é o Velho, um dos protagonistas da nar-
rativa. Segundo as observações de Stéphanie, havia um interesse geral no desapare-
cimento do Velho por parte dos personagens ligados a ele. Apesar da atmosfera de
devaneio que o professor de latim constrói constantemente na trama, fato que o ex-
põe a atitudes de menosprezo ou de descrédito, ele é capaz, na visão perspicaz de
Stéphanie Delacour, de causar uma sensação de desconforto diante dos habitantes de
Santa Bárbara, gerando, assim, alguns inimigos velados. A metáfora dos lobos opera
como um deslocamento anacrônico na medida em que desvela aos santabarbarenses
algumas de suas inconsistências escondidas, promovendo, assim, a quebra de valores
até então inquestionáveis ou simplesmente cristalizados por esses personagens que
dividem a cena com o Velho:
Todos haviam tido interesse em fazer desaparecer Septicius Clarus.
Os de Santa Bárbara, porque ele citava bem alto aquele mal que os
outros acabaram por domesticar. Vespasiano, porque o Professor o
sabia prestes a assassinar Alba. Alba, porque o Velho adivinhara sua
prestidigitação (para usar uma imagem técnica recorrente nas obras de Virilio).
1
“Alba leva une dernière fois ses larges yeux vers moi. Je frémis de voir une fois de plus
combien la honte les rendait beaux, et m’enfuis dans l’escalier. Après tout, chacun avait
droit à sa dépression” (Le vieil homme et les loups, 1991: 118).
2
“’Il n’y a que le microcosme, la vie intérieure des hommes... et des femmes, ma petite
Stéphanie’, me disait encore tout à l’heure le Vieil Homme que j’avais croisé devant un
supermarché. ‘A propos, vous n’avez pas revu Alba, elle a disparu’, avait-il soupiré
avant de s’éclipser à son tour, l’oeil paniqué, me sembla-t-il” (Le vieil homme et les loups,
1991: 120).
238
vingança. A Colega do lifting porque não suportava os tristes. A en-
fermeira, porque não era suficientemente paga, e porque não agüen-
tava mais pajear todos aqueles velhos. Os lobos, porque eram lobos
1
(O velho e os lobos, 1999: 111).
Em que medida a representação do personagem Velho, no espaço político de
Santa Bárbara, concentra tamanha revolta a ponto de, conforme o discurso intuitivo
de Stéphanie Delacour, uma significativa parte do enredo desejar apagá-lo? Trata-se,
pois, de um personagem-chave e se faz necessário, inicialmente, percorrer alguns
movimentos do professor de latim. A cena de abertura do romance, na qual está a
descrição do olhar do Velho e do espaço que o circunda, contempla a curiosa relação
entre corpo e técnica. Essa cena chama a atenção para elementos da técnica, por e-
xemplo, o plástico (que é assunto de uma crônicas barthesianas destacadas por nós e
é diretamente associado ao índice de sobrevivência de um corpo doente), o aquece-
dor e o vidro compõem algumas ilustrações técnicas as quais se misturam a elemen-
tos corpóreos do professor: os olhos amarelados e a pele se colam a sentimentos co-
mo a solidão e o terror:
Enroscado perto da janela, buscava através da bruma os olhos ama-
relos que salpicavam de terror a solidão a tanto tempo depositada
em placas em sua pele, em sua respiração. Nas vidraças, a geada es-
culpia estrelas, galhos de folhas picotadas, essas rendas cristalinas,
de plástico ou de strass, que se encontram por toda parte nas lojas, às
vésperas do Natal; (...). Mas o calor do bom velho aquecedor de ce-
râmica verde chegara ao ponto máximo, fazendo derreter o gelo no
meio do vidro, e a vigia que se assim se formara permitia agora dis-
cernir melhor o drama que se desenrolava lá fora
2
. (O velho e os lobos,
1999: 11).
1
239
O Velho não é refratário, conforme a descrição do narrador, ao seu meio mo-
dernizado. Existem alguns índices que, na apresentação desse personagem, conferem
a sua inserção na contemporaneidade. Nessa medida, Kristeva desfaz, no início de
sua construção narrativa, a desconsideração interpretativa da técnica em detrimento
ao corpo. Se esses dois itens caminham lado a lado, isso não apaga as diferenças entre
eles, tampouco atenua as vilezas que subjazem ao irrefletido imperativo da tecnolo-
gia. O corpo do Velho produz nos outros personagens a idéia de que eles também
participam de uma humanidade que caminha, naturalmente, para o envelhecimento
e, por conseguinte, para a morte
1
. Todas as descrições, nos seus pormenores, daque-
les rostos desgastados pelo tempo e ao mesmo tempo anônimos, porque os persona-
gens idosos não participam das ações centrais nos romances claricianos, causam o
mesmo desconforto proporcionado pelo corpo do velho. A estratégia de Lispector é a
inversão, ou seja, seus narradores constroem cenas atípicas de vivacidade nos corpos
que supostamente deveriam estar sem movimento. Curiosamente, Alba tenta dissu-
adir seu professor da alusão recorrente aos lobos, por meio de uma imagem marca-
damente corpórea, na qual se desenha a suposta decadência desse personagem: – É a
sua úlcera, Professor, o duodeno. Bem que Vespasiano lhe disse. (Alba, filial e incré-
dula)
2
(1999: 13). Em contrapartida, o Velho participa de um exercício análogo ao ob-
servado nas senhoras descritas por Clarice, pois seu corpo, apesar de envelhecido, é o
que responde mais enfaticamente à ação nefasta dos lobos:
Sonho ou pesadelo? E aquela dor no fundo do ventre, que o desper-
tava no meio da noite, bem na hora em que os uivos recomeçavam e
os olhos selvagens perfuravam a cortina, atormentavam a carne, re-
volviam-se no estômago – ventosas ardentes, ali, bem abaixo do co-
ração? Esfolavam-no com suas presas, lambiam-no com os focinhos,
o sangue ia jorrar, não bastaria mais despertar. Os lobos haviam en-
contrado seu ponto fraco, não o largavam mais, dilaceravam-no por
dentro, enquanto lá fora o Velho continuava a sentir seus uivos en-
trando pelos ouvidos, a contar suas pegadas na neve, por toda parte
3
1
Nos textos de Clarice Lispector que selecionamos existe uma série de alusões a essa mesma
temática.
2
– C’est votre ulcère, Professeur, le duodénum. Vespasien vous l’a bien dit. (Alba filiale et
incrédule. (Le vieil homme et les loups, 1991: 15).
3
“Rêve ou cauchemar? Et cette douleur au creux du ventre, qui le réveillait en plein coeur
de la nuit, à l’heure même où les hurlements reprenaient et où les yeux sauvages perçai-
240
(O velho e os lobos, 1999: 12).
O Velho é um personagem de exceção, e seu nome pode ser comparado ao
mistério que desperta G.H., em A paixão segundo G.H.. Da personagem de Clarice
tem-se as iniciais que jamais se desdobram durante sua trajetória agônica, mas do Ve-
lho nem isso possível. O Velho escolheu um pseudônimo para, provavelmente, pre-
servar o que chamamos, por indicação da própria Kristeva em Sentido e contra-senso
da revolta, a sua vida íntima
1
.
O sentido da visão está presente nas descrições tecidas por Septicius a respeito
das metamorfoses que ele observa nos homens transformados em lobos. Trata-se de
uma forma enviesada (para usar um termo que resume uma prática clariciana) ou,
em outras palavras, metafórica, para denunciar uma série de irregularidades que ele
constata na cidade de Santa Bárbara. A transformação mencionada pelo Velho não é
apenas na aparência, pois essa se exterioriza por meio da linguagem, da retórica so-
mada à velocidade. Aqui estamos diante da sociedade fundada sobre a velocidade,
na acepção de Virilio, isto é, na violência decorrente dessa imagem de pessoas meta-
morfoseadas em animais velozes: “Em suma, ele via os carniceiros, pêlo cinza, foci-
nho pontudo, cauda baixa, infiltrando-se, solitários ou em bandos, nos jardins, nas
casas, nos armários, sob a pele dos rostos, nas palavras das pessoas... Alguns eram
brancos, de raça, velozes
2
” (1999: 14). Além do sentido da visão, o Professor, protegi-
do pelos sentidos do gosto e do tato, sente (ou mantém) significativo prazer, a des-
peito dos olhares tristes dos outros santabarbarenses, ao comemorar setenta anos de
ent le rideau, taraudaient la chair, se vrillaient dans l’estomac – brûlantes ventouses, là,
au-dessous du coeur, précisément? Ils le labouraient de leurs crocs, ils le léchaient de
leurs museaux, le sang allait jaillir, il ne suffirait plus de se réveiller. Les loups avaient
trouvé son point faible, ils avaient collé leurs gueules, ils le déchiquetaient au-dedans,
tandis qu’au-dehors le Vieil Homme continuait d’entendre leurs cris à pleines oreilles, de
compter leurs empreintes partout dans la neige” (Le vieil homme et les loups, 1991: 14).
1
Voltaremos mais adiante a falar sobre esse assunto. Por enquanto, sabe-se que o Velho a-
dotou um nome latinizado na carteira de identidade – ele é chamado de Septicius Clarus
por alguns alunos, mas a maioria prefere chamá-lo de Professor.
2
“Bref, il voyait les carnassiers, poil gris, museau pointu, queue basse, se glisser, solitaires
ou en bandes, dans les jardins, les maisons, les placards, sous la peau des visages, les
mots des gens... Certains étaient blancs racés, véloces”(Le vieil homme et les loups, 1991:
17).
241
idade. Novamente – e aqui o nosso ponto se explicita – Kristeva busca a vivacidade
na velhice:
Septicius Clarus saboreava seu septuagésimo outono com a gula dos
olhares melancólicos. No contato com essa estação colorida, seu júbi-
lo era gustativo e tátil. Todas as nuances de marrons, amarelos e
vermelhos infiltravam-se em sua pele, reaqueciam-lhe a garganta,
enchiam-lhe os olhos, insuflavam-lhe aquelas perturbações de pleni-
tude que só se exprimem bem cantando. (...) Aproximava-se apenas
de uma árvore frágil, de folhagem cereja, sacudindo-a suavemente,
para se deixar inundar pela cascata das odorantes línguas de fogo
1
(O velho e os lobos, 1999: 19).
O canto do Professor remete a versos latinos que mencionam as festas de A-
dônis e as cerimônias religiosas. Os versos do Velho, na explicação do narrador, bus-
cam – para usar uma expressão proustiana – um tempo perdido. Tempo de amor?
Certamente. Versam sobre o mesmo tema que Roland Barthes, em seus Fragmentos do
discurso amoroso e Kristeva, nas suas Histórias de amor, perseguem na contramão da
história. O Velho personifica essa busca, que é sobretudo um retorno às experiências
sensuais e afetivas:
Versos latinos insinuavam-se nas folhagens, e seu frêmito reconcilia-
va Septicius com um tempo perdido, aquela segurança, sensual até o
declínio, que ele tanto amara, recitara, ensinara. Versos de um fim de
mundo, o mundo romano que foi antes de nós – como somos agora,
antes que aconteça não se sabe que barbárie ou simples metamorfose
(...)
2
(O velho e os lobos, 1999: 20).
Dispomos da informação de que o Velho contempla a cidade de Santa Bárbara
com olhos romanos dos poetas Tíbulo e Ovídio, fato que o torna diferente dos demais
habitantes. Na cidade escolhida pelo Velho, “todos esqueceram Tíbulo” (1991: 20-21).
1
“Septicius Clarus savourait son soixant-dixième automne avec la gourmandise des regards
mélancoliques. Au contact de cette saison colorée, sa joie était gustative et tactile. Toutes
les nuances de bruns, de jaunes et de rouges s’infiltraient dans sa peau, réchauffaient sa
gorge, emplissaient ses yeux, lui insufflaient ces désarois de plénitude qu’on n’exprime
bien qu’en chantant. (...) Il s’approche seulement d’un arbre frêle au feuillage cerise et le
secoue doucement, pour se laisser inonder par la cascade des langues de feu odorantes”
(Le vieil homme et les loups, 1991: 27).
2
“Des vers latins s’insinuaient dans les frondaisons et leur frémissement réconciliait Septi-
cius avec un temps perdu, cette assurance, sensuelle jusqu’au déclin, qu’il avait tant
aimée, récitée, enseignée. Les vers d’un fin de monde, le monde romain qui fut avant
nous, comme nous sommes maintenant avant on ne sait quelle barbarie ou simple méta-
morphose (…)” (Le vieil homme et les loups, 1991: 28).
242
Pierre Grimal, em O amor em Roma, oferece alguns dados relevantes para compreen-
dermos a importância de Tíbulo. Oriundo de uma família aristocrática arruinada fi-
nanceiramente, ainda antes de completar vinte anos de idade, ele se torna protegido
de Valério Messala Corvino. Esse o conduziu para o ofício das armas e o intimou a
lutar no Exército de Otávio. No inverno de 32-31 a.C. acontece o inesperado. Tíbulo
conhece Délia, uma cortesã, se apaixona por ela e desiste de fazer fortuna nos campos
de batalha. Segundo Grimal, a renúncia de Tíbulo é grave não apenas pela recusa da
fortuna, mas sobretudo pelo fato de ele ter renunciado à glória. A contragosto, entre-
tanto, Tíbulo segue Messala em direção ao Oriente. Uma doença abrevia a sua tarefa
e ele se vê obrigado a retornar a Roma. Ao rever Délia, ela já está sob os cuidados de
outro protetor, pois era comum para as cortesãs substituir amantes ausentes. Além
disso, seria impossível para os costumes romanos da época o casamento entre um jo-
vem de “nível senatorial” e uma cortesã. Em seguida, depois de curado, Tíbulo volta
ao Oriente e realiza várias missões para Messala. Numa dessas viagens, ele se apai-
xona por Márato, os dois vivem uma história de amor homossexual. O poeta também
se envolve com Nêmesis, outra cortesã. Diferente foi a vida do poeta Ovídio, que foi
fiel a uma única mulher. A sua poesia, entretanto, não compartilhava dessa mesma
tranqüilidade. Em função de seus versos, foi condenado ao exílio pelo imperador
Augusto. Ao escrever Arte de amar e Amores, o poeta não se inspirou na própria vida
amorosa, seu recurso foi a imaginação. Grimal resume o amor para Ovídio de uma
forma que incita a pensar o motivo do exílio do poeta: “Para Ovídio – e sem dúvida
para maioria de seus contemporâneos – o amor é acima de tudo desejo” (1991: 157).
243
perseguir com seus ardores retóricos e forçosamente físicos o mais
jovem e sedutor dos homens, um certo Márato. Francamente! Aque-
les jovens jogadores de futebol e de pólo aquático estavam pouco li-
gando para os sentimentos e para o cântico áspero de Tíbulo e de ou-
tros Prudêncios ou Ovídios: uns maçantes superdotados, e ponto fi-
nal. A “civilização”, como dizia o velho Septicius, mudara muito, e
ele não parecia perceber. Paciência. Que se divirta no seu museu.
Não é ruim, afinal. Mas bem que podia dar um chute mais longo!
Que idéia de conservar o latim no programa entre nós, enquanto há
computadores, discos laser, sondas espaciais, processamentos de tex-
tos...
1
(O velho e os lobos, 1999: 20-21).
Essa passagem deixa à mostra a tensão entre o Septicius e a técnica. De forma
irônica, ele observa o iminente desaparecimento de seu ofício em virtude do interesse
despertado nos jovens pelo universo da técnica (ou simplesmente imposto a eles).
Percebe-se, apesar da diferença dos costumes do Velho diante dos alunos, al-
guns momentos nos quais eles apreendem ritmicamente as melodias elegíacas que
o Professor insiste em divulgar como uma base fônica (semiótico) para, em seguida,
estabelecer um gosto alternativo (que pode interpretado como desautomatizado) aos
alunos. Sem mencionar ou descrever o corpo do Professor, se intui o contraste for-
mado entre o corpo dele e o dos jovens, pela descrição das roupas dos alunos: Re-
tomavam os versos, sonhadores e inspirados, como se a palavra do romano jamais os
tivesse deixado, como se uma metamorfose mística tivesse semeado, em seus corpos
vestidos de camisetas, as melodias elegíacas do adolescente latino
2
” (1999: 23). As
metamorfoses do Professor contrapõem-se, nessa medida, às metamorfoses da técni-
ca, nas quais a recorrente metáfora dos lobos esconde a intenção de um constante a-
1
“Tout le monde aujourd’hui a oublié Tibulle. Les élèves de la classe de latin, qui
appréciaient plutôt les lubies du vieux prof, ricanaient sous cape quand il prenait la voix
de ce chantre amoureux, de ce Roméo antique qui fut, paraît-il, épris de la belle Délia,
avant de poursuivre de ses ardeurs rhétoriques et forcément physiques le plus jeune et
séduisant des hommes, un certain Marathus. Franchement! Ces jeunes joueurs de foot et
de water-polo se fichaient bien des états d’âme et du cantique rocailleux de Tibulle et au-
tres Prudence ou Ovide: des raseurs surdoués, un point c’est tout. La ‘civilisation’,
comme disait le vieux Septicius, avait beaucoup changé, il ne semblait pas s’en rendre
compte. Tant pis. Qu’il s’amuse dans son musée. Pas méchant, du reste. Mais qu’il
dégage, enfin! Quelle idée, entre nous, de conserver le latin au programme, alors qu’il y a
des ordinateurs, des disques compacts, des sondes spatiales, des traitements de texte…”
(Le vieil homme et les loups, 1991: 29).
2
“Ils reprenaient les vers, rêveurs et inspirés, comme si la parole du Romain ne les avait ja-
mais quittés, comme si une métamorphose mystique avait semé, dans leurs corps en T-
shirts, les mélodies élégiaques de l’adolescent latin” (Le viel homme et les loups, 1991: 33).
244
primoramento dos elementos técnicos, o qual é sustentado pela violência intrínseca à
velocidade. O Velho, portanto, colide com o universo da técnica, que é caracterizada
disforicamente, pois – no momento em que se verifica o desaparecimento de poetas
como Tíbulo, Ovídio ou Prudêncio –, Septicius se encontra “separado por seus livros
de um mundo sem luz
1
” (1999: 26).
Na temporada em que ele passa em uma estação balneária, o contraste entre
Septicius e os outros hóspedes se estabelece pelo alinhamento um tanto fora de moda
do Professor: “Via-se agora o Velho passear seu inalterável terno de seda pura chine-
sa
2
(1999: 27). Curiosamente, os corpos dos hóspedes revestem-se de uma apatia que,
por oposição ao corpo do Professor – marcado pelo encantamento de sensações –,
comunga com os alunos a mesma falta de sentido: “Corpos insípidos e murchos, cujo
espírito não sabe e não quer mais saber. Menos que um embrutecimento, mais que
uma distração, uma espécie de torpor os paralisava
3
” (1999: 28). O Velho, de modo
otimista ou apenas sarcástico, lança a hipótese de que os hóspedes estariam tomados
de uma “vaga alegria” e escapariam, assim, do automatismo que seus corpos exalam.
A imagem que ele emprega instiga nos leitores a lembrança de sensações térmicas re-
lacionadas, paradoxalmente, ao entorpecimento do corpo: “a menos que fosse uma
vaga alegria cuja inconveniência suspeitavam, como a calma provocada por um ba-
nho quente, quando desligamos a água: que fazemos aqui, com esses desconhecidos
– estaremos então em sursis?
4
” (1999: 28). A narrativa de Kristeva, em contrapartida,
não se leva unicamente pelo olhar do Professor. Observado pelo discurso do narra-
dor, Septicius também desperta uma espécie de “entorpecimento” justificado pelo
seu anacronismo, uma vez que o Velho instiga, como acontece freqüentemente com
alguns personagens claricianos, a piedade seguida de riso:
1
“séparé par ses livres d’un monde sans lumière” (Le vieil homme et les loups, 1991: 37).
2
“On voyait maintenant le Vieil Homme promener son éternel costume en soie de Chine
grège” (Le vieil homme et les loups, 1991: 39).
3
“Corps fades et flous dont l’esprit ne sait pas et ne veut plus savoir. Moins qu’une
hébétude, plus qu’une distraction, une spèce d’engourdissement les figeait” (Le vieil
homme et les loups, 1991: 40).
4
“à moins que ce ne soit une vague joie dont ils suspectaient l’inconvenance, comme la
détente d’un bain chaud quand on a coupé l’eau: que faisons-nous ici, avec ces inconnus,
sommes-nous donc en sursis?” (Le viel homme et les loups, 1991: 40).
245
aquela expressão gratificada que se vê nos rostos dos santos nas igre-
jas hoje desativadas. É isso: aquele homem devia tomar-se por um
santo, com seu silêncio meio aflito, meio deslumbrado, em seu traje
de xantungue natural, elegância dos velhos dias, que exibia não sem
insolência no dancing deserto, chegando a beijar a mão de velhas a-
posentadas que se perguntavam se tal gesto devia lisonjeá-las ou a-
borrecê-las
1
(O velho e os lobos, 1999: 28).
O tecido de xantungue destaca-se dessa cena quase religiosa oferecendo sofis-
ticação exagerada e fora de moda para o contexto. Tecido da vestimenta feminina,
feito de seda, de aparência brilhosa, um pouco áspero, encorpado, o xantungue foi
sensação na primeira coleção de Christian Dior, em fevereiro de 1947. Valerie Men-
des e Amy de la Haye explicam que, com a coleção chamada “Novo visual”, o estilis-
ta consagra Paris como o centro da moda mundial. A descrição do traje principal da
coleção é um clássico do vestuário de muitos filmes da década de cinqüenta. Trata-se
do conjunto “Barra”: “era composto de uma jaqueta de xantungue justa e de uma fi-
na saia de lã plissada. (...) A saia, muito pesada, era sustentada e moldada por uma
anágua em camadas de seda e tule” (2003: 125). Além disso, para marcar a silhueta,
se recorria a um pequeno espartilho. O Velho compõe-se, portanto, de um tecido de
alta-costura, que se usa em ocasiões formais e que, ainda mais, é quase exclusivo do
guarda-roupa feminino. As senhoras, provavelmente da mesma geração do Profes-
sor, talvez se reconheçam tacitamente no cruzamento dos traços de envelhecimento
de Septicius e da trama de fios de seda de um traje que já não se usa mais. Novamen-
te, a imagem do Velho causa embaraço naqueles que o circundam. Septicius, entre-
tanto, não se incomoda, ele parece impermeável a olhares de julgamento: “Nada. O
Velho não pensava nada. Seu corpo envolvido em seda pura afastava-se para o fundo
do jardim perfumado pelos róseos loureiros, antes de voltar aos salões com canapés
cobertos de capas e lustres apagados
2
” (1999: 29-30). Absorto na dança dos sentidos,
1
“cette expression exaucée que l’on voit au visage des saints dans les églises aujourd’hui
désaffectées. C’est ça: cet homme devait se prendre pour un saint, avec son silence mi-
navré mi-ravi, dans son costume de shantung grège, élégance des vieux jours qu’il pro-
menait non sans insolence sur le dancing désert, allant jusqu’à faire le baisemain à des
vieilles retraitées qui se demandeaient si elles devaient en être flattées ou vexées” (Le
vieil homme et les loups, 1991: 40-41).
2
“Rien. Le Vieil Homme ne pensait rien. Son corps enveloppé de soie grège s’éloignait vers
le fond du jardin où embaumaient les lauriers roses, avant de regagner les salons aux ca-
246
o Professor busca um mundo no qual se esboçam pequenos gestos apreendidos pelos
sentidos, flagrantes de um universo que ele encontra na fantasia, essa que é condição
para a atividade literária. Septicius dedica-se à captura de efêmeros instantes, apro-
ximando-se nesse aspecto do exercício proustiano, o qual é tema de investigação de
Kristeva.
Em O tempo sensível, Kristeva levanta um debate atual em filosofia, do qual ela
retoma o mesmo ponto no seminário que dá origem ao volume Sentido e contra-senso
da revolta (1996). Kristeva pergunta se a sensação está na ordem do pensamento. Já
mencionamos o impacto da questão acionada por Kristeva no intuito de conferir
complexidade à relação entre o físico e o psíquico na formação dos sentimentos e das
sensações descritas na representação dos personagens construídos por Clarice. É uma
questão sem resposta, apesar de todo o empenho dos cognitivistas. Em O tempo sensí-
vel, que chama a atenção sobre a natureza da sensação
1
, Kristeva reconhece que essa
não é uma noção central para o pensamento freudiano. Apesar disso, ela busca em
textos do Freud da primeira fase, ou seja, ligado ao funcionamento neurológico da
linguagem, algumas direções para o funcionamento das sensações. Kristeva recorre
ao Nascimento da Psicanálise para destacar não somente o impacto do Freud ligado a
estudos neurológicos, mas para salientar a criação de um modelo de estratos que ele
constrói, qual seja, Percepção, Inconsciente, Pré-Consciente, os quais se estruturam
diversamente “em razão da presença ou não da linguagem e da memória neles
2
(1994: 282). A “Percepção”, segundo Kristeva, responde pelo primeiro registro de
percepções, no entanto é incapaz de se tornar consciente. O “Inconsciente” diz respei-
to a um segundo registro ou transcrição perceptiva, os quais se relacionam a “lem-
branças conceituais” e também não são acessíveis ao consciente. Sobre o Pré-
Consciente, Kristeva recorta de Freud (O nascimento da psicanálise) a informação de
que esse é formado por uma terceira transcrição, está ligado a representações verbais
e diz respeito ao nosso “eu oficial” (moi officiel). É esse processo que viabliza o acesso
napés recouverts de housses, aux lustres éteints” (Le vieil homme et les loups, 1991: 42).
1
Esse tópico está em O tempo sensível, no sexto capítulo intitulado “A sensação é uma lin-
guagem?”, pp. 280-306.
2
“(…) en raison de la présence ou non du langage et de la mémoire en elles” (Le temps sensi-
247
às representações verbais; além disso, é um processo que se mostra dissociado do
conteúdo da memória, assim como Kristeva retira do texto freudiano ao chamar a a-
tenção para o ponto do psicanalista no qual ele sustenta que neurônios do estado de
consciência seriam os neurônios formadores da percepção, os quais são “estranhos à
memória”. Esses diferentes estratos servem, sobretudo, para desfazer qualquer inten-
ção identitária entre “percepção-consciência”. Segundo Kristeva, “todo o projeto
freudiano parece ser de manter afastados os dois pólos Percepção-Consciência
1
(1994: 282).
O baralhamento das fronteiras entre o sensível e o inteligível causado pela ten-
tativa de apreensão teórica de sensações exemplifica-se na abertura de O tempo sensí-
vel, uma vez que Kristeva inicia a sua análise sobre a obra proustiana por meio do
impacto da descrição da madeleine sobre os leitores. O jogo de detalhamento fugidio é
freqüente no conjunto de Em busca do tempo perdido e ilustra convenientemente a difi-
culdade de caracterização das sensações. O olhar de Kristeva voltado sobretudo para
o gosto – o sabor da madeleine – encontra ressonância nos estados gustativos produ-
zidos pelos narradores claricianos e pelo próprio depoimento de Clarice Lispector
2
.
De forma mais ampla, a leitura que sugerimos dos textos de Clarice é uma experiên-
cia carregada do que se desenha como na ordem de uma “fisicalidade”, a qual é tam-
bém a que Kristeva procura ao ler Proust. Em entrevista a John Lechte, a teórica ex-
plica que o uso do termo “transubstanciação”, o qual é recorrente em seus ensaios, é
um termo de fundo religioso, no qual se marca a passagem da palavra para a carne e
vice-versa. Segundo Kristeva, a experiência proustiana reside no seguinte exercício:
“Proust quis que os leitores entendessem que, quando eles lêem A la recherche du
temps perdu, eles não estão unicamente nas palavras, mas no corpo do narrador. E
Proust também se encontra em uma experiência corporal
3
”. O fascinante é a percep-
ble, 1994: 282).
1
“tout le projet freudien semble être de tenir écartés les deux pôles Perception-Conscience
(Le temps sensible, 1994: 282).
2
Abordamos esse assunto no nosso segundo capítulo.
3
“Proust wished to make readers understand that when they read A la recherche du temps
perdu they are not uniquely in the words, but in the narrators body. And Proust finds
himself as such in a bodily experience” (Julia Kristeva: live Theory, 2004: 150).
248
ção do leitor que acontece na segunda parte desse exercício, pois, segundo Kristeva:
“quando ele se sente no corpo, ele percebe que está também imediatamente numa
experiência de sentido (sens) e linguagem, já que o corpo está sempre já agarrado à
rede da linguagem. Essa é a ambição Proustiana
1
” (2004: 150).
Seria o Velho um desses leitores proustianos? O discurso de Septicius desenca-
deia algumas sensações/sentimentos, mas não a ponto de congelar sabores escamo-
teados pela sociedade dromocrática. O Velho se permite pequenas observações, mi-
croscópicos movimentos que cristalizam, por exemplo, fragmentos de pele e de pê-
los, ou seja, vestígios de um corpo em desaparecimento ou em metamorfose visível
apenas àqueles que não perderam a capacidade de continuar vendo numa sociedade
massacrada pelo apelo visual
2
: “O Velho dobrou sobre a poltrona seu surrado terno
de seda natural chinesa e fechou os olhos, não vendo outra coisa senão a penugem
cor de trigo sobre o braço musculoso de Alba
3
” (1999: 36). É o sentido da visão que
interessa ao Professor, pois é através dele que o Velho – cuja falsa aparência de inge-
nuidade construída pelo estilo distraidamente démodé – deixa escapar uma arguta in-
dagação acerca da formação das imagens, ou da formação de suas próprias imagens:
“Qual é a matéria de nossas representações? (...) O Velho percebia a formação de suas
visões: seu artifício e seu mal-estar
4
” (1999: 36). Aqui está o desdobramento ficcional
que Kristeva oferece para sua questão proustiana, também objeto dos cognitivistas.
Motivado por alguns sentimentos, Septicius realiza seu movimento de transubstanci-
ação deslocando-se do corpo à linguagem e vice-versa. Há o sentimento do amor, do
1
“when he feels himself in the body he realizes that he is also immediately in an experience
of meaning (sens) and language, since the body is already caught in the network of lan-
gage. This is the Proustian ambition.” (Julia Kristeva: live Theory, 2004: 150)
2
Em A máquina de visão, Paul Virilio reconhece um outro paradoxo presente na contempora-
neidade. Mencionamos a tensão entre velocidade política; trata-se agora do abuso das re-
ferências visuais que leva à incapacidade de uma visão crítica: “Desde o início do século,
o campo de percepção europeu é invadido por determinados signos e logotipos que vão
proliferar durante vinte, trinta, sessenta anos fora de todo contexto explicativo imediato,
assim como o hotus (tipo de peixe) nos charcos poluídos que eles despovoam” (1994: 31).
3
“Le Vieil Homme plia sur le fauteuil son vieux costume en soie de Chine grège et ferma les
yeux, ne voyant plus que le duvet couleur de blé sur le bras musclé d’Alba” ( Le vieil
homme et les loups, 1991: 51).
4
“Quelle est la matière de nos représentations? (...) le Vieil Homme percevait la formation
de ses visions: leur artifice et leur malaise” (Le vieil homme et les loups, 1991: 52).
249
qual explicitamos o valor no início dessa explanação, e que nos parece central para o
Professor de latim. Os versos latinos, conforme o discurso do narrador (1999: 20), re-
conciliam o Professor com um tempo perdido (temps perdu). Eis, portanto, uma clara
alusão à obra proustiana. Há também o sentimento de horror, que se manifesta
quando o Velho se observa como um personagem de exceção: sozinho em Santa Bár-
bara, ele se envolve num medo expresso pelo enredamento metafórico dos sentidos
do olfato, da gustação e do tato. A dor conseqüente desse estado de horror se situa no
corpo de Septicius:
Aconteceu então a catástrofe, e a invasão completa. Perdido de hor-
ror, o Velho distanciava-se de todos numa aura de sabedoria e de
honra à qual ninguém tinha a inteligência – ou audácia – de dar um
nome, mas que cada um reforçava com olhares furtivos, gestos ser-
vis, subentendidos. Um desses silêncios que isolam os justos e im-
pregnam os outros de um acre odor de falsidade envolveu a região ge-
lada de medo e de comprometimento. O Velho continuava a velar em
sua janela, a dor aparafusada no estômago. Mas seu mal, que era tam-
bém um covil dos lobos em sua carne, paradoxalmente o preservava,
conferindo-lhe aquela vigilância magnética que parecia impedir os
bárbaros de se aproximarem da sua morada. A dor faz a distinção
dos frágeis
1
, (...) (O velho e os lobos, 1999: 18, grifos nossos).
Dispor de um corpo, a despeito do sofrimento que está contido na experiência
de possuir um corpo, é, paradoxalmente, a salvação do Professor. As metáforas rela-
tivas às imagens produzidas pelo Velho, em outro momento de suas reflexões, tam-
bém encontram no corpo um ponto de apoio para sua purgação, através da tentativa
de um sentido, ou seja, de uma nomeação para o irrepresentável que, contudo, não
obtém êxito. Em outras palavras, na falta da significação para seus fantasmas, o Pro-
fessor somatiza, e o reflexo está em seu próprio corpo tomado pelo medo de pala-
vras/sensações que não exprimem nada: “o medo que o devastava e sua incapacida-
1
“Ce fut alors la débâcle, et l’invasion complète. Éperdu d’horreur, le Vieil Homme
s’éloignait de tous dans une aura de sagesse et d’honneur sur laquelle personne n’avait
l’intelligence – qui est audace – de mettre un nom, mais qui chacun renforçait par des re-
gards furtifs, des gestes serviles, des sous-entendus. Un de ces silences qui isolent les
justes et imprègnent les autres d’une âcre odeur de cafards enveloppa le pays gelé de
peur et de compromission. Le Vieil Homme continuait de veiller à sa fenêtre, la douleur
verrouillée à l’estomac. Mais son mal, qui était aussi un repaire des loups dans sa chair,
paradoxalement le préservait en lui conférant cette vigilance magnétique qui semblait
empêcher les barbares de s’approcher de sa demeure. La douleur fait la distinction des
fragiles, (...)” (Le viel homme et les loups, 1991: 24).
250
de de combater o mal de outro modo que não o de transformá-lo no interior de si
mesmo em esgar, garatuja, cristal de raiva, baço dilatado, úlcera perfurada
1
” (1999:
37). Estamos diante de um corpo que recupera o temps perdu sob o viés da doença – aí
reside a fragilidade do Professor. Algumas das suas imagens são purgadas, tornan-
do-se palatáveis, é aí que o corpo descansa e escapa do mal-estar físico: “A imagem
relaxa o estômago, a visão cura a dor, é uma guardiã do sono
2
” (1999: 37). Mas o abu-
so dessas imagens leva à consolidação do sentimento de ódio, pulsão de morte para
Freud, guerra total para o Velho e também para Virilio. Depois de enaltecer as elegias
de Tíbulo, embevecido de sensações táteis, sonoras e visuais, o Velho se restringe ao
apelo da visão para denunciar os desmandos da técnica: ‘”Cada um tornou-se um
Hiroshima potencial – aliás, até mesmo cada vez mais atual. O mundo moderno é um
espetáculo, diz você. Vejo nele uma guerra total, a guerra de todos contra todos. Sem
fronteiras, sem ‘bem’ nem ‘mal’ (miseráveis refinamentos!), sob o impulso dos eu-
eu
3
’” (1991: 90). Essa fala do Professor é uma lembrança da detetive Stéphanie Dela-
cour no momento em que ela divide a cena com Vespasiano, suspeito do suposto as-
sassinato/desaparecimento da própria mulher: Alba. É uma cena montada pela dete-
tive com a finalidade de obter a confissão de Vespasiano. Para tanto, a detetive seduz
o médico até um encontro sensual, momento em que é curiosamente atravessada pe-
lo despropósito de seu gesto e pela rememoração de uma fala do Velho na qual ele
advoga um retorno do laço afetivo entre as pessoas. Segue-se, portanto, uma outra
alusão ao sentimento amoroso:
“Perdemos o laço, Stéphanie, o sentido do laço. (...) Não creia que
advogo um retorno à religião que, hoje, está fatigada ou virulenta. É
claro que o laço inspirava a elegia de Tíbulo ou os contos de Ovídio
era apaixonadamente um laço sagrado, quero dizer, respeitoso. Mas
livre, dubitativo, cético, pneumático... Foi a aurora do laço. Eis o que
1
“la crainte qui le ravageait et son incapacité à combattre le mal autrement qu’en le trans-
formant à l’intérieur de lui-même en grimace, gribouillage, crise, cristal de rage, rate di-
latée, ulcère perforé” (Le viel homme et les loups, 1991: 53).
2
“L’image décrispe l’estomac, la vision panse la douleur, elle est une gardienne du som-
meil” (Le vieil homme et les loups, 1991: 53)
3
“’Chacun est devenu un Hiroshima potentiel – voire de plus en plus actuel, d’ailleurs. Le
monde moderne est un spectacle, dites-vous. J’y vois une guerre totale, la guerre de tous
contre tous. Sans frontières, sans ‘bien’ ni ‘mal’ (misérables raffinements!), sous la pouss-
ée des moi-moi.” (Le vieil homme et les loups, 1991: 138).
251
nos seria necessário. (...) A aurora do laço – durante toda a minha
vida procurei essa aurora, minha cara Stephinha, e cada vez mais me
convenço de que ela ainda está longe
1
” (O velho e os lobos, 1999: 90).
O corpo de Stéphanie está em descompasso com a noção reavivada pela lem-
brança do Velho. O Professor de latim também não se realiza no discurso de união
harmoniosa, apesar de vendê-lo abertamente. Encontramos na representação de Sep-
ticius a imagem de infelicidade típica dos estrangeiros. Em estrangeiros para nós mes-
mos, Kristeva reconhece no rosto a infelicidade desses sujeitos deslocados: “O rosto
da estrangeiro queima a felicidade
2
” (1994: 11). Joana, a protagonista de Perto do cora-
ção selvagem traz consigo, por exemplo, aquela imagem intensa de um fogo adocicado
a ser engolido. Há também marcas de estrangeiridade no Professor, pois, no discurso
do narrador está o fato de que ele se “desgarrara de sua mãe e até mesmo de mãe a-
dotiva
3
” com o objetivo de viver exilado. A condição do estrangeiro, segundo Kriste-
va, apesar de todo o sofrimento e de infelicidade que seu desenraizamento acarreta
para o exilado, não é vista unicamente sob o seu enfoque negativo, mas como opção
para aqueles que necessitam da mudança até mesmo para o estabelecimento de laços
afetivos, como é o exemplo do Velho e do seu nomadismo: “essa estranha possibili-
dade que alguns têm de jamais coincidir com ‘eles mesmos’, não mais que com ‘aqui’
ou com ‘agora’, mas – sem por isso tornar-se loucos – visar perpetuamente outras pa-
ragens
4
” (1999: 135). A partir dessa condição, torna-se mais acessível aos leitores a
sensação de alegria despertada pelo corpo do Velho um pouco antes de sua morte
“técnica”. A busca de estrangeiridade do Professor o levou para uma morte solitária,
sem cuidados de parentes ou de amigos mais próximos. Em um de seus devaneios,
1
‘“On a perdu le lien, Stéphanie, le sens du lien. (...) Ne croyez pas que je plaide pour un re-
tour à la religion qui, aujourd’hui, est fatiguée ou virulente. Bien sûr, le lien qui inspirait
l’élégie de Tibulle ou les contes d’Ovide était passionnément un lien sacré, je veux dire
respectueux. Mais libre, dubitatif, sceptique, pneumatique... Ce fut l’aube du lien. Voilà ce
qu’il nous faudrait’” (Le vieil homme et les loups, 1991: 138-139).
2
“Le visage de l`étranger brûle le bonheur” (Étrangers à nous-mêmes, 1988: 12).
3
“Il s’était arraché à son village et même à sa mère adoptive” (Le vieil homme et les loups,
1991: 213).
4
“cette étrange possibilité que possèdent certains de ne jamais coïncider avec ‘eux-mêmes’,
pas plus qu`avec ‘ici’ ou avec ‘maintenant’, mais, sans pour autant devenir fous, de viser
perpétuellement d’autres rivages” (Le vieil homme et les loups, 1991: 213-214).
252
sozinho, provavelmente já internado no Hospital Militar, ele sente uma estranha ale-
gria que invade o seu corpo: “A ameaça da morte penetrava como um calor no inte-
rior do crânio. O Velho sentiu que ela invadia suas visões. Estar encerrado nas pró-
prias visões como na própria pele. Algo que até pode desencadear uma certa ale-
gria
1
” (1999: 101). Não sem ironia e amargura diante da iminência de sua morte, o
Velho pensa na “alegria das pessoas que não escutam” (1999: 101). Esse trecho é irô-
nico porque nos remete automaticamente ao prazer que lhe proporcionam os versos
latinos e, mais recentemente, às canções de Billie Holiday que ele ouvia com discreta
admiração na estação balneária. Billie Holiday, essa participante da esfera da técnica,
talvez seja o único elemento de humanização dentro desse universo onde imperam
os computadores e os discos laser, ainda não assimilados pelo professor de latim:
Os moribundos perdem a memória, mas por vezes uma alegria os i-
nunda, infantil, sexual, débil: último resquício daquilo que foi uma
energia, doravante senil, para as testemunhas. O quadrado fluores-
cente da televisão absorvia as aparições e recuava na tez lunar da
noite, quando a voz de Billie se impôs ao ouvido e a todos os órgãos,
rouca, aguda, suspiros e ritmos – a afinação física
2
(O velho e os lobos,
1999: 110).
Semelhante às tonalidades sentimentais, algumas até mesmo contrastantes,
engendradas pelo narrador clariciano, aqui a alegria recebe algumas variações que
também se opõem à expectativa dicionarizada de felicidade. No conjunto dos senti-
mentos/sensações de Septicius localiza-se um contraditório estado de delicadeza.
Sabe-se que o Velho era órfão, seu pai fora morto numa guerra, sua mãe morrera de
parto e ele fora criado por uma viúva que, na suspeita levantada pelo narrador, seria
também sua amante. Apesar da sugestão desse “laço” terrivelmente incestuoso, o Ve-
lho desenvolve, paradoxalmente à violência sofrida, um sentimento de “delicadeza”:
1
“La menace de la mort pénétrait comme une chaleur à l’intérieur du crâne. Le Vieil
Homme la sentit envahir ses visions. Être enfermé dans ses visions comme dans sa peau.
Voilà qui peut déclencher une certaine gaieté” (Le vieil homme et les loups, 1991: 159).
2
“Les mourants perdent leur mémoire, mais parfois une joie les inonde, infantile, sexuelle,
débile: ultime reliquat de ce qui fut une énergie, désormais, pour les témoins, sénile. Le
carré fluorescent de la télévision absorbait les apparitions et reculait dans le grain lu-
naire de la nuit quand la voix de Billie s’imposa à l’oreille et à tous les organes, éraillée,
aiguë, soupirs et rythmes – la justesse physique” (Le vieil homme et les loups, 1991: 175-
176).
253
“o Professor tinha a delicadeza dos meninos que partilharam durante muito tempo
as sensações das mulheres maduras. Mas vivia como se tivesse sabido sempre que
seu corpo era o mausoléu de dois mortos. Tinha esse sorriso do além, porque consi-
derava a si próprio de além-túmulo
1
” (1999: 133). Seria o Velho habitante de um cor-
po morto em vida, o que levaria a contradizer o nosso discurso apoiado na represen-
tação eufórica do corpo de Septicius? Seria mais apropriado, sugerimos, enquadrá-lo
na categoria dos sujeitos resilientes. Aliás, é a própria Kristeva quem nos aponta essa
direção em uma de suas crônicas – sem ilustrá-la por meio de suas obras teóricas. No
volume Crônicas do tempo sensível, o texto “Você conhece a resiliência?
2
”, de 30 de ja-
neiro de 2002, Kristeva oferece um caminho para a leitura do corpo do Professor que
justifica o comportamento otimista e revoltado desse personagem em detrimento de
uma vida de perdas e de sofrimento psíquico, o qual, por extensão, é também de so-
frimento físico, visto que devemos ter sempre presente a copresença sexualida-
de/pensamento na estrutura de todo sujeito. Nessa crônica, Kristeva define a resili-
ência como a capacidade do corpo de resistir a um choque e de viver e se desenvol-
ver positivamente apesar de todas as adversidades sofridas (2001-2002: 93). Segundo
Kristeva, essa idéia, que ela considera oportuna para superação de sofrimentos psí-
quicos e eficaz para uma vida psíquica saudável, colide com um fundamento muito
caricatural da psicanálise, qual seja, o de que a formação do sujeito está encerrada
por volta dos três anos de idade. Sabemos que a própria psicanalista questiona esse
determinismo psíquico ao levar em consideração o papel do psicanalista no que diz
respeito à contra-transferência. Trata-se, nessa medida, de uma resposta àqueles que
apregoam a limitação da prática e dos conceitos psicanalíticos a esquemas no qual a
relação – o laço – entre analista e analisando não produz qualquer eficácia para os
envolvidos no tratamento. Obras como Psicanálise e fé (Au commencement était l’amour:
psychanalyse et foi), Histórias de amor, Sentido e contra-senso da revolta e A revolta ínti-
1
“le Professeur avait la délicatesse des petits garçons qui ont longtemps partagé les sensa-
tions des femmes mûres. Mais il vivait comme s’il avait toujours su que son corps était le
tombeau de deux morts. Il avait ce sourire d’au-delà parce qu’il se considérait lui-même
comme d’outre-tombe” (Le vieil homme et les loups, 1991: 211).
2
A crônica “Connaissez-vous la résilience” está disponível no volume Chroniques du temps
sensible (2001-2002: 93-96).
254
ma, por exemplo, tocam nessa temática sob diferentes abordagens. De forma mais
explícita e amena, tal como é próprio do gênero crônica, Kristeva defende a modifi-
cação da “temporalidade específica do aparelho psíquico
1
” (2001-2002: 94). Dessa
forma, é possível recriar um universo fadado ao desencantamento e à infelicidade,
como seria o destino do Professor de latim. Portanto, ao escapar das armadilhas do
destino, Septicius torna-se um homem revoltado – no sentido kristevaniano da revol-
ta.
Em Sentido e contra-senso da revolta, Kristeva percorre a etimologia da palavra
revolta
2
para retirá-la de um único sentido. Valendo-se da obra de Alain Rey, Revolu-
ção, história de uma palavra, a autora explica a existência de dois momentos semânticos
na evolução desta palavra. O primeiro diz respeito ao movimento e o segundo se liga
à relação espaço-tempo. Curiosamente, Kristeva observa que a primeira formação es-
tava bastante afastada da conotação política que a palavra adquiriu na atualidade,
pois o volvere (do latim) transforma-se, através da influência italiana (séculos XV e
XVI) no francês volute, que é um termo da arquitetura e em volta e voltare, os quais
“sugerem a idéia de um movimento circular e, por extensão, de um retorno tempo-
ral
3
” (2000: 14). Antes de chegar ao sentido histórico e político dessa palavra, o qual
ela situa entre os séculos XVII-XVIII, em que Voltaire escreve O século de Luís XIV e se
vale da revolta com o sentido de “guerra civil”, “guerra” e “revolução” até consoli-
dar, no século XVIII, o termo “revolução” como ”mutação política”, Kristeva faz ela
mesma um retorno ainda mais remoto às origens da revolta. Para isso, busca no
sânscrito e no grego formações que levam a revolta para ações como “torcer”, “ro-
lar”, “enrolar” e também menciona sua função de “cobertura”:
As antiqüíssimas formas wel e welu evocam um ato voluntário, arte-
sanal, resultando na denominação de objetos técnicos de proteção e
de envelope. Hoje somos pouco conscientes dos laços, no entanto in-
trínsecos, entre “révolution” (revolução) e “hélice” (hélice), “se ré-
1
“temporalité spécifique de l’appareil psychique” (Chroniques du temps sensible, 2001-2002:
94).
2
Há um resumo das idéias referentes à revolta no ensaio de Kristeva “Quelle révolte au-
jourd’hui”, em L’avenir d’une révolte (1998: 15).
3
“suggérent l’idée d’un mouvement circulaire et, par extension, d’un retour temporel” (Sens
et non-sens de la révolte, 1996: 6).
255
volter” (revoltar-se) e “se vautrer” (agachar-se).
1
(Sentido e contra-
senso da revolta, 2000: 15).
Destaca-se do trecho selecionado o aspecto da técnica que a história da palavra
’’revolta” contém. É um tanto inusitado, e até mesmo paradoxal, se compararmos
com a passividade que está por trás dos elementos que constituem a técnica atual-
mente, estabelecer um vínculo – ainda que remoto – entre a técnica e a revolta, sobre-
tudo se esse vínculo sugerir qualquer relação de proteção, de cuidado e, por exten-
são, de humanidade – como é o que faz Kristeva ao recuperar essa noção bastante
longínqua da revolta. Sentido e contra-senso da revolta constrói-se com a função de evi-
denciar esse apagamento da função protetora presente outrora na técnica. A autora
reconhece que vivemos na “sociedade do espetáculo”, a qual denomina “sociedade
das imagens” (2000: 10) e por isso julga necessário reavivar a noção de revolta na
contemporaneidade. Kristeva, nessa medida, admite o distanciamento da função de
envelope que o retorno à origem da palavra revolta instigava. Pensadores como He-
gel, Marx, Freud e artistas como Artaud, Picasso, Pollock e Francis Bacon são expres-
sões do que a teórica convenciona uma “cultura-revolta”. A autora faculta ao stali-
nismo o desmoronamento da “cultura-revolta” e observa que o fracasso das ideolo-
gias revoltadas levou à substituição de uma cultura-revolta para uma “cultura-
mercadoria”. A investigação de Kristeva responde por que não nos satisfazemos nos
esquemas fáceis da “cultura-divertimento”, da cultura-show”. A teórica justifica fa-
cilmente a insatisfação das pessoas diante dessa cultura descartável, uma vez que re-
ações intoleráveis de violência encontram facilmente apoio na escassez de experiên-
cias artísticas mais arrebatadoras, efetivamente catárticas, isto é, diferentes daquelas
oferecidas pela profusão de imagens de variados meios que se nomeiam artísticos.
Kristeva propõe o retorno à análise da revolta edipiana, o que nos leva ao tex-
to Totem e Tabu, do qual já mencionamos a importância na formação do terceiro mo-
delo da linguagem freudiano. Em Totem e tabu, Freud encontra a resposta referente à
1
“Les très anciennes formes wel et wehu évoquent un acte volontaire, artisanal, aboutissant à
la dénomination d’objets techniques de protection et d’enveloppe. Nous sommes au-
jourd’hui peu conscients des liens pourtant intrinsèques entre ‘révolution’ et ‘hélice’, ‘se
révolter’ et ‘se vautrer’” (Sens et non sens de la révolte, 1996: 7).
256
importância da figura paterna e, extensivamente, do complexo edipiano para a for-
mação social. Vimos que a formação da linguagem necessita do sentimento de respei-
to diante da figura do pai
1
, pois foi assim, ou seja, privando o corpo do pai do assas-
sinato que se legitimou a fundamental consolidação da imagem do pai fundada sobre
a respeitabilidade para a formação do laço social entre os homens. Subjacente à ima-
gem paterna, está o aparecimento de um laço religioso: “devo dizer que para Freud a
ordem social é fundamentalmente religiosa
2
” (2000: 31). Daí se desdobra uma ques-
tão de extrema relevância para a permanência do homem revoltado: “se o homem
revoltado é um homem religioso, o que acontece quando o homem não é mais religi-
oso? Será que ele ainda é revoltado? E de que forma?
3
” (2000: 31). A resposta Kristeva
encontra no próprio Freud, na medida em que o psicanalista se volta para a impor-
tância da arte para justificar o sentido dos laços sociais. Kristeva adota, portanto, a ar-
te como uma saída para a permanência do homem revoltado, englobando nessa esfe-
ra a literatura, que é uma espécie de continuação do apelo religioso, o qual deve ser
interpretado pela via de sua dessacralização.
Ao desenvolver a revolta no sentido freudiano, Kristeva sustenta que não é
apenas pelo aspecto edipiano que deverá ser interpretado o peso da revolta proposto
pelo psicanalista. Existe também um retorno ao arcaico, que nos será útil para a aná-
lise de Possessões. No que se refere ao O velho e os lobos, a relação entre a revolta e cor-
po de Septicius Clarus se relaciona, sob o aspecto de sua ancestralidade, à imagem de
um pai curiosamente ausente, ou, em outras palavras, desaparecido em virtude da
técnica (morto em guerra). A repercussão sobre o filho, o Professor de latim, é de um
retorno ao corpo/imagem do pai que ele não teve. O Professor incomoda porque
simboliza o respeito, ainda que com algum descrédito, vivendo em época de desori-
entação política, religiosa e, sobretudo, estética. Nessa medida, é um homem revolta-
do, a despeito de toda uma vida psíquica de sofrimentos. Ele encontra refúgio na ar-
1
Conforme desenvolvemos esse assunto no nosso primeiro capítulo.
2
“il faut savoir que, pour Freud, l’ordre social est fondamentalement religieux” (Sens et non-
sens de la révolte, 1996: 23).
3
“si l’homme révolté est un homme religieux, que se passe-t-il quand l’homme n’est plus re-
ligieux? Est-il encore révolté? Et sous quelle forme?” (Sens et nos-sens de la révolte, 1996:
23).
257
te, os textos latinos representam a sua “experiência-revolta”. Septicius, na contracor-
rente dos habitantes de Santa Bárbara e de sua própria existência fadada ao fracasso,
devolve-lhes o peso revoltado da imagem paterna exposto na representação de um
corpo dissonante. No fluxo das imagens, pois são elas que mais bem ilustram o obje-
to de combate do Professor, reside o exercício que o distancia da massa robotizada.
Ele se diferencia porque não apaga o sentido de um espaço em desintegração, porque
se mantém escandalizado frente aos desaparecimentos enquanto todos parecem a-
dormecidos, anestesiados, domesticados pelo fluxo de imagens, assim como a metá-
fora da televisão sinaliza:
“Meus pais desapareceram”. “Todo mundo foge”. Só isso. Nada a fa-
zer. Ligue. Troque o canal. As palavras chamam as quimeras, mas
também as explicam. Domesticam-nas e embaralham as imagens de
nossas televisões oníricas, para atingir esse desfalecimento no torpor
– o sabor da angústia, o embrutecimento da doença. O Velho procu-
rava as palavras, para melhor fugir-lhes ao gerar seus monstros
1
(O
velho e os lobos, 1999: 38).
Septicius Clarus morre no Hospital Militar. É possível que alguém tenha des-
ligado os aparelhos que o ligavam a sua frágil vida, mas o crime contra o Professor se
apaga, somando-se aos demais assassinatos cujo desvendamento não está em ques-
tão, pois são muitas as hipóteses e os suspeitos. No hospital, em seus últimos mo-
mentos de vida, ironicamente, o Professor de latim refugia-se nas imagens de uma te-
levisão – companhia incompatível com a sua história de vida devotada aos livros. Ele
continua, no entanto, imerso em imagens: não as imagens literárias que lhe serviram
para a satisfação dos sentidos e purgação de seus fantasmas recônditos, mas nas i-
magens-mercadoria – imagens publicitárias , aquelas que constituem um exemplo,
conforme nossa interpretação de Sentido e contra-senso da revolta, de empobrecimento
do sujeito em sua capacidade de pensar/sentir, levando-o até mesmo a atitudes de
violência ou de desencantamento existencial:
Na televisão, só se conseguia assistir aos anúncios, pois eles gasta-
1
“’Mes parents ont disparu’. ’Tout le monde fuit’. Il n’y a que ça. Cliquez. Zappez. Les mots
appellent les chimères, mais les expliquent aussi. Ils les apprivoisent et brouillent les i-
mages de nos télés oniriques, pour atteindre cet évanouissemet dans la torpeur qui est la
saveur de l’angoisse, l’hébétude de la maladie. Le Vieil Homme recherchait les mots,
pour mieux les fuir en générant ses monstres” (Le vieil homme et les loups, 1991: 54-55).
258
vam sem preocupação, fingindo ignorar o cálculo e a morte. Nesse
sentido, eram vitais: uma vida reduzida a sua trama de simulacros
em spots. Então a luz irisada da tela alargava-lhe as pálpebras, pare-
cia restituir-lhe olhos. Os moribundos começam por perder o uso dos
olhos e se põem então a escutar seus órgãos. Quanto a ele, tornava-se
curioso. Uma curiosidade de nada, de nenhum objeto, apenas a ten-
são das pupilas e dos neurônios distante dos flashes da televisão. Di-
ante do simulacro
1
(O velho e os lobos, 1999: 106).
Alba, a aluna dedicada de Septicius Clarus, também nos leva à análise de um
corpo político na cidade de Santa Bárbara e esse se aproxima por vezes do corpo re-
voltado do Professor de latim. Curiosamente, essa personagem tem como leitura pre-
ferida As vidas dos doze Césares. Segue-se daí que o nome fictício do Velho – Septicius
Clarus – alude ao patrono de Suetônio
2
. O historiador romano exibe aspectos da vida
privada desses personagens do poder, desmitificando muitas das ações dessas figu-
ras públicas. O discurso do narrador, à primeira vista, situa o gosto de Alba por Sue-
tônio como uma experiência-revolta: “As vidas dos doze Césares, escritas no tempo de
Adriano, revelavam-lhe um cronista do escândalo cotidiano que lançava, sobre os
maiores homens da história romana, um olhar corrosivo ou insensível, mas sempre
de uma imoralidade total
3
” (1999: 23). Alba observa no discurso de Suetônio a rela-
ção física instigada pelos escritos do historiador na medida em que o classifica como
um simples “contador” de histórias, as quais, em contrapartida, ganham o peso da
nossa busca pela temática do cruzamento entre o corpo e a escrita: “Suetônio não
1
“A la télévision, les publicités seules étaient regardables, car elles dépensaient sans souci,
feignant d’ignorer le calcul et la mort. En ce sens, elles étaient vitales: une vie réduite à
sa trame de simulacres en spots. Alors, la lumière irisée de l’écran lui élargissait les
paupières, elle semblait lui redonner des yeux. Les mourants commencent par perdre
l’usage de leurs yeux, ils se mettent alors à écouter leurs organes. Lui, devenait curieux.
Une curiosité de rien, d’aucun objet, juste la tension des prunelles et des neurones face
aux flashes de la télé. Devant la feinte” (Le vieil homme et les loups, 1991: 168).
2
Conforme Antônio da Silveira Mendonça (2007: 12-14), Suetônio teve o apoio de duas per-
sonalidades importantes a sua época: Plínio, escritor e político e Septício Claro, detentor
do cargo de comandante da guarda pretoriana. Durante o governo de Adriano, Suetônio
chefiou os arquivos imperiais. Deve-se provavelmente a essa experiência a produção dos
textos que receberia o nome de Os doze Césares, a qual não conservou a dedicatória que o
historiador faz ao amigo Septício Claro.
3
Les Vies des douze Césars, écrites sous Hadrien, lui révélaient un chroniqueur du scandale
quotidien qui jetait, sur les plus grands hommes de l’histoire romaine, un regard corrosif
ou insensible, mais toujours d’une immoralité totale” (Le vieil homme et les loups, 1991: 33-
34).
259
passava de um contador das fraquezas corporais chegadas aos mais altos poderes pa-
ra o melhor e para o pior
1
” (1999: 24). Alba não tem, portanto, consciência da rele-
vância que está contida na sua observação sobre a obra de Suetônio, pois ela deprecia
o fato de Suetônio envolver-se em assuntos que dizem respeito ao corpo. O discurso
do narrador atenua aquilo que de início se configurava como traço de perspicácia
nessa personagem ao afirmar que Alba não era “suficientemente estudiosa”, impli-
cando daí o afastamento traçado por ela na comparação entre Santa Bárbara e Roma:
“estava persuadida de que a atualidade de Santa Bárbara permitia compreender a
história de Roma, mas não o inverso
2
”. Essa distância temporal entre Roma e a cida-
de de Santa Bárbara leva-nos à distância das técnicas que se produz entre esses dois
tempos. É flagrante a sofisticação dos aparatos técnicos disponíveis em Santa Bárbara
– uma cidade que guarda semelhanças com as cidades contemporâneas. Na hipótese
da personagem Alba, se esboça a impossibilidade de relação entre o antigo como
meio de suposição de um futuro; segue-se disso a instauração defendida por essa
personagem de uma ruptura drástica entre os “costumes” romanos e o modo de vida
da atualidade. Esse distanciamento temporal observado no discurso de Alba, que não
deixa de ser também uma crítica contra a sociedade dromocrática, pode ser interpre-
tado como uma tentativa de situar essa personagem, ainda em formação para os lei-
tores, na mesma intenção de “experiência-revolta” característica do Professor, mas
antes de enquadrá-la nessa posição privilegiada é necessário refazer alguns movi-
mentos do corpo de Alba. Numa das primeiras cenas dessa personagem, enquanto
aprecia o espetáculo de crueldades e miséria humana disponível nos escritos de Sue-
tônio, Alba prepara uma paleta de porco que surpreende pelo excesso de temperos:
“algumas páginas de Suetônio, entre sua paleta de porco temperada com cinqüenta
cravos-da-índia e sua truta salmonada ao gengibre
3
” (1999: 24). A intensificação dos
sentidos do gosto e do olfato acrescenta-se à forte cena de exagero visual desse prato
1
“Suétone n’était qu’un conteur de faiblesses corporelles parvenues aux plus hauts pou-
voirs pour le meilleur et pour le pire” (Le vieil homme et les loups, 1991: 34).
2
“elle était persuadée que l’actualité de Santa Bárbara permettait de comprendre l’histoire
de Rome, mais non l’inverse” (Le vieil homme et les loups, 1991: 34).
3
“quelques pages de Suétone, entre sa palette de porc aux cinquante clous de girofle et sa
truite saumonée au gingembre” (Le viel homme et les loups, 1991: 34).
260
construído por Alba para a dança dos sentidos. O paladar agridoce de Alba contrasta
com a apreensão dos delicados sabores experimentados pela personagem Joana, de
Perto do coração selvagem. A comparação serve como uma pista para a análise desses
índices do “gosto” que dizem respeito à capacidade de sentir dessa personagem im-
portante. Por que Alba precisaria dessa expressiva carga de temperos?
A descrição do corpo de Alba passa pelo olhar do Professor de latim, pois é a-
través dele que a imaginamos fisicamente, ainda que Alba lhe apareça subitamente
no hotel, causando-lhe a estranha sensação de algo sobrenatural: “Percebeu de repen-
te um braço esguio mas torneado, um braço ágil de moça, que levantava a trança de
cabelos louros para prendê-la em coque, embaixo da nuca. Alba? Mais uma visão
1
(1999: 30). Essa representação do corpo de Alba oscila entre o universo das princesas
louras dos contos de fada (Rapunzel e a Bela Adormecida formatam o arquétipo de
mocinhas pacientes e silenciosas) e as academias de ginástica (o braço torneado ins-
pira virilidade e se aproxima do vigor masculino). Inspirado nas elegias de Tíbulo, o
Professor encontra em Alba uma musa para criar também suas próprias elegias, nas
quais sobressai a descrição do corpo de Alba. Novamente, a personagem se corporifi-
ca sob o olhar do Velho: “’Os dedos com unhas de violinista, cortadas rentes na fa-
lange enrijecida, levantam os cabelos na nuca, a coroa negra enrola-se na cabeça, en-
quanto o braço, estendido naquele esforço inconsciente e automático, curva-se em ar-
co frágil, serpente domesticada, música das fibras
2
’” (1999: 31). Septicius, no seu e-
xercício de captura de minúcias, congela pequenos detalhes de um corpo que ele fla-
gra em transformação. Nesse sentido, as metamorfoses propostas por Kristeva a-
companham as de Ovídio na medida em que anunciam uma série de infortúnios. No
exemplo de Kristeva, as mudanças metafóricas no corpo de Alba antecipam o seu de-
saparecimento repentino e têm, na inspeção evidenciada pelo olhar do Velho, estreita
ligação com a falta de liberdade. A expressão “serpente domesticada”, do trecho an-
1
“Il aperçut soudain un bras grêle mais fuselé, un bras agile de jeune femme, remonter la
tresse de cheveux blonds pour l’accrocher en chignon au-dessus de la nuque. Alba? Enco-
re une vision” (Le vieil homme et les loups, 1991: 43).
2
“’Les doigts aux ongles de violoniste, coupés au ras de la phalange cornée, relèvent les
cheveux sur la nuque, la couronne noire s’enroule sur la tête tandis que le bras, tendu
dans cet effort inconscient et automatique, se courbe en arc fragile, serpent apprivoisé,
261
terior, desdobra-se a seguir na descrição de um corpo metamorfoseado em pássaro
que, no entanto, é incapaz de alçar vôo. Os versos do Velho pontuam a angústia de
Alba, uma figura paradoxalmente exuberante e de movimentos limitados: “A cabe-
leira espessa veste seu dorso, quando as mãos se erguem como asas de gaivota. Cor-
tam o feixe em três espigas, com elas tecem uma trança e revelam orelhas róseas de
bebê. A lua freme sobre a pele ambreada desses braços que não sabem o que fazem
1
(1999: 31).
Em outra cena, para desfazer em parte o choque de uma metamorfose total e
do processo de crescente automação de Alba, o Professor reanima sua aluna, conce-
dendo-lhe uma existência bastante luminosa, a qual, entretanto, guarda indícios de
um corpo tocado pela técnica. Trata-se da referência à luz néon, que oferece contorno
aos traços da personagem de forma a defini-la em diversos tons:
Contempla de novo aquele braço louro que desliza agora ao longo da
camisa lilás e se aproxima do copo de água gelada que o barman aca-
ba de pousar sobre a mesa, além de dois copos de cerveja. Ela toma
um gole e levanta novamente o braço, mas para desfazer a espiga
loura que lhe esculpe a cabeça e desmorona sobre seus ombros, na
água seca do néon. Com aquela luz, os cabelos de sua violinista tor-
navam-se verdes, e o braço musculoso tomava a cor de uma mestiça
2
( O velho e os lobos, 1999: 34).
Resta dessa cena pictórica o gesto débil que Alba faz ao movimentar os braços
como se fossem os ponteiros de um relógio em funcionamento, pois, conforme o dis-
curso narrador, um ponto de vista afastado do encantamento lírico próprio do dis-
curso do Professor, se constata a monotonia nos gestos de Alba: “Ela não parava de
musique des fibres’” (Le vieil homme et les loups, 1991: 44).
1
“’La chevelure épaisse enrobe son dos, quand les mains s’élévent en ailles de mouette. El-
les coupent la gerbe en trois épis, en tissant une natte et dégagent des oreilles roses de
bébé. La lune frémit sur la peau ambrée de ces bras qui ne savent pas ce qu’ils font’” (Le
vieil homme et les loups, 1991: 44).
2
“Il regarde de nouveau ce bras blond qui glisse maintenant le long du chemisier mauve et
s’approche du verre d’eau glacée que le barman vient de poser sur la table avec deux ve-
rres de bière. Elle avale une gorgée et relève encore le bras, mais pour défaire l’épis
blond qui sculpte sa tête et s’enffondre sur ses épaules dans l’eau sèche du néon. Avec
cette lumière, les cheveux de sa violoniste devenaient verts, et son bras musclé prenait le
teint d’une métisse” (Le vieil homme et les loups, 1991: 48).
262
levantar e abaixar o braço, de fazer e desfazer sua coroa
1
” (1999: 35). Esse automatis-
mo confirma-se quando novas informações a respeito de sua atividade na cozinha se
alinham as nossas suspeitas acerca do bloqueio dessa personagem diante da capaci-
dade de sentir:
Alba cozinhava como algumas pessoas fazem amor: com habilidade e
indiferença, imaginando o prazer dos parceiros. De tanto imaginar,
acontecia-lhe por vezes experimentá-lo. Além disso, depois que ha-
viam suprimido o ensino de latim na escola, deixando-a reduzida ao
desemprego, que outra coisa poderia fazer? Traduções? Edição? O
mesmo que pretender enfrentar os lobos. Restava a cozinha, a arte
natural daqueles que utilizamos com tanta naturalidade quanto os
esquecemos
2
(O velho e os lobos, 1999: 44-45).
A cidade de Santa Bárbara também se metamorfoseia em um espaço no qual
várias funções, até mesmo profissões, saem de cena sob a desculpa de se afastarem
do processo inevitável de modernização. Santa Bárbara simboliza evidentemente al-
gumas conseqüências negativas do processo de globalização. Alba é um exemplo
dessa mudança de “costumes” em que o mercado dita as regras. As aulas de latim
não se acomodam no universo das telas de computadores, disco laser e televisores a
cabo, pois não constituem um produto de fácil assimilação, impedindo, assim, a fácil
circulação de um conteúdo que, para a sociedade do espetáculo, estaria destinado à
cultura-show, cultura-divertimento. A transição de Alba do meio acadêmico para a
culinária serve apenas para preencher um tempo de ostracismo que se anuncia per-
manente. O cuidado na escolha dos ingredientes para a “paleta de porco” enfatiza o
tédio da personagem que dispõe de excesso de tempo livre e por isso Alba fixa um
olhar atento e ao mesmo tempo despropositado sobre os alimentos: “Levava tempo
para escolher, minuciosamente, a ‘sua’ paleta: bem roliça, rósea sob a frescura do os-
1
“Elle n’arrêtait pas de lever et baisser le bras, de tisser et défaire sa couronne” (Le vieil
homme et les loups, 1991: 50).
2
“Alba faisait la cuisine comme certains font l’amour: avec adresse et indifférence, en im-
aginant le plaisir des partenaires. A force de le supposer, il lui arrivait parfois de
l’éprouver. Au demeurant, depuis qu’on avait supprimé l’enseignement du latin à l’école
et qu’elle était réduite au chômage, que faire d’autre? Des traductions? De l’édition? Au-
tant vouloir affronter les loups. Restait la cuisine, l’art naturel de ceux qu’on utilise et
qu’on oublie tout aussi naturellement” (Le vieil homme et les loups, 1991: 69).
263
so, limpa de gordura supérflua
1
(1999: 45). O narrador a chama de “feiticeira”, “cozi-
nheira um pouco alucinada e inteiramente insensível” (1999: 45), e esses atributos são
considerados positivos para quem trabalha nesse meio – segundo o discurso do nar-
rador. Em outra cena, Alba oferece para a amiga e detetive, Stéphanie Delacour, que
estava cansada de viagem à Santa Bárbara, uma xícara de café. Novamente, é pela in-
tensificação do gosto que temos acesso à descrição dos traços de Alba:
Alba acolheu-me com aquele ar impassível que eu conhecia desde
nossas aulas no colégio, mas logo reparei seu desatino, enquanto en-
golia o café fervente que acabava de me preparar, e que me deu von-
tade de vomitar. O constrangimento marcava os traços de seu rosto,
prosaico sob o capacete dos cabelos cor grená: naquele instante ela
era bela
2
(O velho e os lobos, 1999: 69).
Stéphanie, diferentemente de Alba, não é impermeável à ação dos sentidos. A
detetive e jornalista deixa-se levar pelo efeito de um café muito quente até esboçar
um estado muito próximo da abjeção, ao passo que Alba apenas sugere um ar de
constrangimento que é imediatamente atenuado pela beleza do seu rosto. O discurso
direto de Alba apaga qualquer referência de constrangimento desenhado no rosto
dessa personagem: – Tome seu café, Stephy. Café frio perde metade da força
3
(1999:
70). Alba não percebe, nesse caso pelo menos, as reações de seu interlocutor e assim
ela confirma certa tendência para a maquinalidade de seus gestos. Se existe efetiva-
mente esse teor de automação na estrutura da personagem, esse não se apresenta
desvinculado de uma brecha de consciência de sua condição sofrível, pois Alba ex-
põe à amiga Stéphanie sua incapacidade de sentir. No trecho a seguir, Stéphanie re-
produz a confissão dessa barreira sensitiva da amiga: “Vespasiano acariciava-a, bei-
java-a, penetrava-a, como se seu corpo todo estivesse enfiado num imenso preserva-
tivo. O que lhes proporcionava de vez em quando um prazer acerbo, porém jamais
1
“Elle mettait du temps à choisir, minutieusement, ‘sa’ palette: bien dodue, rose sous la
fraîcheur de l’os, décapée du lard superflu” (Le viei homme et les loups, 1991: 69).
2
“Alba m’accueillit avec cet air impassible que je lui connaissais depuis nos classes au
collège, mais, tout de suite, je repérai son désarroi tandis que j’avalais le café brouillant
quelle venait de me préparer et qui me donna envie de vomir. La gêne accusait les traits
de son visage, quelconque sous le casque de cheveux grenat: à cet instant, elle était belle”
(Le vieil homme et les loups, 1991: 105).
3
– Bois ton café, Stephy. Un café froid n’a plus que la moitié de sa force (Le vieil homme et les
264
aquela encarnação (Alba dizia mesmo “encarnação”) de um no outro, que transforma
o coito em amor
1
” (1999: 76).
Em entrevista a Bernard Sichère sobre o romance O velho e os lobos
2
, Kristeva
localiza a personagem Alba entre os depressivos e observa que o universo da perso-
nagem é “vazio de significado” (1996: 166). Em Sol negro: depressão e melancolia
(1987), Kristeva reconhece na depressão um caminho fundamental para a aquisição
da linguagem, uma vez que só entramos na linguagem porque passamos pelo pro-
cesso de separação da figura materna. O reencontro com a mãe dá-se primeiramente
na imaginação e em seguida passa para a palavra (1989: 13). Trata-se de um percurso
necessário para todo o ser falante. Não é dessa etapa necessária para a autonomia do
sujeito que Kristeva se refere ao vincular a personagem Alba à condição dos depres-
sivos, mas a psicanalista se atém ao desdobramento dessa experiência. Kristeva reco-
nhece no corpo do depressivo um significativo “entorpecimento” (1989: 54) – o qual
nos parece semelhante àquele indicado pelas sensações que invadem o corpo de Al-
ba. Valendo-se do texto de Heidegger – O que é uma coisa?, Kristeva atribui ao me-
lancólico a busca por algo (“alguma coisa”) que aparece ao sujeito como “indetermi-
nada”, “inesperada”, “inapreensível” (1989: 19). A “Coisa” é diferente do “Objeto”,
esse é um termo próprio da psicanálise e, conforme Kristeva, o Objeto reserva-se à
”constância espaço-temporal que uma proposição, enunciada por um sujeito senhor
do seu dizer, verifica
3
” (1989: 19). A Coisa não dispõe dessa capacidade alentadora
que é a nomeação, a localização, elementos próprios do Objeto. Trata-se, nesse senti-
do, de uma construção reavivada por Kristeva com o intuito de descrever o sofrimen-
to do depressivo, pois, segundo a psicanalista, o luto do depressivo é o luto da “Coi-
loups, 1991: 106).
1
“Vespasien la caressait, l’embrassait, la pénétrait comme si tout son corps avait été enrobé
d’un immense préservatif. Ce qui leur procurait de temps en temps un aigre plaisir, mais
jamais cette incarnation (Alba disait bien “incarnation”) de l’un dans l’autre, qui trans-
forme le coït en amour” (
265
sa” e não do “Objeto” (1989: 19). A definição do melancólico, segundo Kristeva, se
aproxima da condição do estrangeiro, dado que “o melancólico é um estrangeiro na
sua língua materna. Ele perdeu o sentido – o valor – da sua língua materna, por não
poder perder sua mãe. A língua morta que ele fala e que anuncia o seu suicídio es-
conde uma Coisa enterrada viva
1
” (1989: 55).
Septicius Clarus, o protagonista dessa trama policial e personagem de exceção
porque é capaz da experiência-revolta, também se inclui, ao lado de Alba e de Sté-
phanie Delacour, no grupo dos estrangeiros. O traço melancólico do Professor reves-
te-se de entusiasmo por vezes excessivo, o que, para Kristeva, é uma das facetas dis-
farçadas assumidas pelos depressivos, isto é, um outro lado da depressão que se es-
conde sob a máscara de uma intensa vivacidade. O Professor de latim encontra refú-
gio numa língua morta, por isso fica conveniente relacioná-lo unicamente à teoria de
Kristeva que contempla os estrangeiros. Na teoria de Kristeva, entretanto, as noções
não andam sozinhas, observa-se que estão todas interligadas e, na medida em que
acrescenta novas experiências que se transformam em conceitos e se agregam a sua
complexa rede conceitual, as antigas construções se vitalizam porque são imediata-
mente retomadas, fortalecendo a coerência de seu pensamento teórico. O Velho, as-
sim como Alba, apresenta características que compõem o quadro melancólico traçado
por Kristeva
2
. Alba e o Velho não são completamente antagônicos, os dois persona-
gens participam de uma atmosfera social na qual impera a depressão. Trata-se, con-
forme a entrevista concedida por Kristeva a Sichère (1996: 167), de um grave aconte-
cimento que envolve o conjunto social, ou seja, a depressão não é uma patologia me-
ramente individual
3
. Logo, Alba não está sozinha em seu mal-estar. As ações da per-
1
“le mélancolique est un étranger dans sa langue maternelle. Il a perdu le sens – la valeur –
de sa langue maternelle, faute de perdre sa mère. La langue morte qu’il parle et qui an-
nonce son suicide cache une Chose enterrée vivante” (Soleil noir, 1987: 64).
2
É mister esclarecer que não é nossa intenção, com base nesses apontamentos de fundo cla-
ramente psicanalítico, propor diagnósticos desses seres ficcionais; apenas localizamos
pontos de contato relevantes entre a produção ficcional e teórica de Kristeva.
3
Essas idéias reaparecem no volume intitulado Contre la dépression nationale, de 1998. O en-
foque não é a cidade de Santa Bárbara do Professor de latim, mas a própria França, de Ju-
lia Kristeva. A teórica, em entrevista a Philippe Petit (1998: 99 e 102), reconhece que está
numa nação deprimida e enumera alguns pontos que justificam esse diagnóstico: a perda
de confiança na solidariedade, discrédito na política, perda dos desejos etc. Kristeva, em
266
sonagem, entretanto, se distanciam do ânimo revoltado de Septicius. Na conversa
com o marido, Vespasiano, ela parece consciente das mutações sinistras que aconte-
cem em Santa Bárbara, até mesmo as associa a elementos obviamente técnicos: - Falo
das pessoas na rua, nos bondes, nas lojas, no hospital. Estão mudando de cara. (Al-
ba.)
1
(1999: 33). É possível, no entanto, que Alba apenas reproduza o discurso de seu
Professor de latim, pois ele partilha com os alunos suas reflexões e perplexidade di-
ante das metamorfoses na cidade de Santa Bárbara. O automatismo de Alba dissipa
esse protesto importado da fala do Professor e se evidencia na afirmação do narrador
de que ela não se permite adoecer, assim a personagem participa dessa mesma me-
tamorfose que há pouco lhe servira de motivo para um debate acirrado com Vespasi-
ano: “Ela não ousava mais ficar doente. Esse constrangimento tinha a vantagem de
lhe garantir uma saúde falsa, mas obstinada
2
” (1999: 71). Depois do desaparecimento
de Alba, constrói-se no texto a sugestão de que essa personagem estabelecera fortes
laços afetivos com os santabarbarenses e por isso sua falta é lamentada: “Desde en-
tão, o telefone de Alba tocava sem parar
3
” (1991: 83). Observa-se que a tradução bra-
sileira abranda a falta de interesse por essa personagem, pois o mais interessante se-
ria a forma: “o telefone de Alba tocava no vazio”, ou, de forma mais literária, “o tele-
fone de Alba tocava no ar”. Essa insistência é voltada sobretudo à personagem Sté-
phanie Delacour, a detetive-jornalista em busca de um sentido para os acontecimen-
tos estranhos da cidade de Santa Bárbara. Stéphanie desconfia do prefixo “tele” (à
distância) indicado pelo telefone que toca sem ser atendido e desloca-se até a casa de
Alba. Lá a detetive encontra um livro de química que instiga no leitor um caminho
interpretativo para se compreender a “saúde falsa” ostentada por Alba:
Lanço um último olhar sobre aquele interior deserto. Um livro de
química está aberto no capítulo “Venenos”: Arsênico, Antimônio, Mer-
cúrio, Chumbo. Provavelmente um tratado de medicina, pertencente a
contrapartida, ainda situa a França como um espaço de resistência contra esse estado ne-
gativo.
1
- Je parle des gens dans la rue, dans les tramways, les magasins, à l’hôpital. Ils changent
de visage. (Alba.) (Le vieil homme et les loups, 1991: 48).
2
“Elle ne osait plus tomber malade. Cette contrainte avait l’avantage de lui garantir une
santé fausse mais têtue” (Le vieil homme et les loups, 1991: 109).
3
“Depuis, le téléphone d’Alba sonnait dans le vide” (Le viel homme et les loups, 1991: 126).
267
Vespasiano. Alba se interessaria por aquele tipo de leitura? Vejo-a
mais imersa no Temesta, no Lexomil, por que não no Floxyfral ou no
Cledial? Toma-se o veneno que se pode. Como atingir o patamar de
gozo específico de cada indivíduo?
1
(O velho e os lobos, 1999: 83-84).
Temesta e Lexomil são ansiolíticos; Floxyfral e Cledial atuam como antide-
pressivos. O corpo de Alba é percebido pela amiga sob o efeito desses medicamentos,
os quais são muitas vezes utilizados no tratamento dos sujeitos depressivos, confor-
me a acepção de Kristeva de “melancolia”. Observamos, de acordo com as descrições
da psicanalista, que a melancolia apresenta semelhanças, apesar de tomar outro en-
foque, com o que na psiquiatria é chamado de transtorno bipolar
2
. Em uma das defi-
nições de melancolia, constata-se que Kristeva, com base na teoria freudiana, confir-
ma a construção psiquiátrica: “Chamaremos de melancolia a sintomatologia psiquiá-
trica de inibição e de assimbolia que, por momentos ou de forma crônica, se instala
num indivíduo, em geral se alternando com a fase, dita maníaca, da exaltação
3
(1989: 16). Em Sol negro, publicado no final da década de 80, Kristeva não entra nos
detalhes dos diversos tipos de depressão, tampouco se aprofunda no que chama de
um campo “promissor mas pouco preciso dos efeitos exatos dos antidepressivos (I-
MAO, tricíclicos, heterocíclicos) ou dos estabilizadores tímicos (sais de lítio)
4
” (1989:
16). Kristeva situa-se no que destaca como uma “perspectiva freudiana”. Em entrevista
1
“Je jette un dernier coup d’oeil sur cet intérieur déserté. Un livre de chimie est ouvert au
chapitre ‘Poisons’: Arsenic, Antimoine, Mercure, Plomb. Un traité de médecine, probable-
ment, appartenant à Vespasien. Alba s’intéresse-t-elle à ce genre de lecture? Je la vois
davantage immergée dans le Témesta, le Lexomil, pourquoi pas le Floxyfral ou le Clédi-
al? On prend le poison qu’on peut. Comment atteindre le seuil de jouissance spécifique à
chaque individu?” (Le vieil homme et les loups, 1991: 126).
2
Consultamos a definição de bipolaridade presente no Compêndio de Psiquiatria organizado
por Harold Kaplan e Benjamin Sadock e Jack Grebb, que se baseia nas últimas edições do
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, período que se aproxima da
publicação de Sol negro e das entrevistas concedidas por Kristeva sobre essa obra (1997:
493).
3
“On appellera mélancolie la symptomatologie asilaire d’inhibition et d’asymbolie qui
s’installe par moments ou chroniquement chez un individu, en alternance, le plus sou-
vent, avec la phase dite maniaque de l’exaltation” (Soleil noir, 1987: 18-19).
4
“prometteur mais encore peu précis des effets exacts des antidépresseurs (IMAO, tricycli-
ques, hétérocycliques) ou des stabilisateurs thymiques (sels de lithium)” (Soleil noir,
1987: 19).
268
a Dominique Grisoni
1
, no verão de 1987, sobre a publicação de Sol negro, a psicanalis-
ta confirma a influência da psiquiatria sobre o seu trabalho, mas ela recusa posições
dogmáticas tanto na sua área específica – a psicanálise – quanto na psiquiatria (1996:
81-82). Kristeva admite o alívio proporcionado pelos antidepressivos a pacientes que
sofrem de tipos graves de melancolia. A psicanalista, no entanto, também chama a
atenção para a tendência de os pacientes submetidos a esse tratamento desenvolve-
rem um discurso neutro, mecânico, ou seja, sem as modulações vocais cuja importân-
cia a teórica fundamenta na modalidade lingüística referente ao semiótico. Nessa
medida, a psicanalista defende, se necessário, o recurso à área da psicanálise somada
à necessidade do uso de medicamento, área da psiquiatria. Curiosamente, em entre-
vista concedida a Bernard Sichère sobre O velho e os lobos
2
, essa questão volta sob o
papel do movimento psicanalítico na atualidade.
Kristeva não desmente o período de crise pelo qual passa a prática psicanalíti-
ca, o qual está evidentemente expresso na indagação de Sichère sobre o futuro incer-
to desse movimento. Kristeva inclusive retoma a afirmação generalizada de que a
psicanálise estaria morta e, surpreendentemente, sobre alguns aspectos, não vê com-
pleto equívoco nessa crítica ao emprego da psicanálise em nosso tempo. Segundo ela
(1996: 173), muitos psicanalistas e sociedades de psicanálise buscam uma obediência
à cartilha freudiana ou lacaniana que, na sua opinião, soa “excessivamente dogmáti-
ca” e se distancia, por conseguinte, das tendências contemporâneas. Em As novas do-
enças da alma, por exemplo, persegue essas questões, uma vez que seus analisandos
demonstram problemas vinculados a uma sociedade cujo desenvolvimento tecnoló-
gico se mostra mais intenso e modificador da vida psíquica do que aquele observado
no tempo de Freud. Na entrevista para Sichère, anterior à publicação de As novas do-
enças da alma (1993), está um esboço de uma “concessão” que a psicanalista se mostra
disposta a fazer em prol da saúde psíquica de seus analisandos. Destacamos a refe-
rência que ela faz às neurociências na medida em que não rechaça os conhecimentos
1
Referimo-nos à tradução inglesa de Ross Guberman, “Melancholia and Creation”, disponí-
vel no volume de entrevistas intitulado Julia Kristeva interviews.
2
A entrevista chama-se “The old man and the wolves” e encontra-se em Julia Kristeva inter-
views.
269
advindos dessa área e até mesmo incentiva o aprendizado por parte dos terapeutas
do uso de medicamentos no tratamento de seus pacientes. Em contrapartida, Kriste-
va condena a propagação de um “bombardeamento farmacêutico” com a finalidade
de tratar a doença da alma (1996: 173). Em As novas doenças da alma, aponta duas dire-
ções na relação entre as neurociências e a psicanálise. A primeira delas, que aliás já é
uma realidade, está no aumento do número de pacientes que se valem do tratamento
misto, isto é, remédios e terapia. A segunda, ainda não assimilada pela sociedade, es-
tá no desconhecimento (ou na falta de interesse) das nuanças das enfermidades psí-
quicas por parte dos cientistas, pois a farmacologia não trata as doenças da alma em
suas diferenças, tampouco valoriza suas diversas manifestações tendo em vista o pa-
ciente em sua individualidade. Por isso, Kristeva defende a reatualização do papel da
psicanálise: “É necessária uma análise cada vez mais refinada do aparelho psíquico,
atenta à tradutibilidade das pulsões em palavras
1
” (2002: 50).
Conjeturamos que a crítica contra o uso irrefletido de medicamentos se pre-
sentifica na construção da personagem Alba, segundo o ponto de vista perspicaz de
Stéphanie Delacour, pois é do suposto abuso de medicamentos que a jornalista-
detetive tece seus argumentos. Em um fragmento da carta deixada supostamente por
Alba, a desaparecida, o peso de sua melancolia esvazia-se de modo expressivo – pelo
menos no que toca à diegese –, dado que a personagem salta bruscamente de uma
perspectiva de vítima para a esfera dos vilões: “’Todo dia ponho soníferos e neuro-
lépticos em seu café, na sopa, nos molhos da salada. E agora estou me iniciando no
verdadeiro veneno
2
’” (1999: 92). Em determinado momento, a detetive suscita a hipó-
tese de que Alba estaria envolvida nos acidentes de carro de Vespasiano, assim como
estaria por trás dos olhos congestionados e das vertigens do seu próprio marido:
“Sua farmácia entupida de psicotrópicos; o livro aberto no capítulo “Venenos”, ao
lado da truta ao gengibre? Não é difícil reconstituir o itinerário
3
” (1999: 96). Os misté-
1
A edição francesa de Les nouvelles maladies de l’âme está esgotada, por isso as citações refe-
rentes à obra em questão ficam sem a sua versão original.
2
“’Tous les jours je verse des somnifères et des neuroleptiques dans son café, son potage,
les sauces de la salade, n’importe quoi. Et, à présent, je m’initie au vrai poison’” (Le vieil
homme et les loups, 1991: 142).
3
“Sa pharmacie bourrée de psychotropes; le livre ouvert au chapitre ‘Poisons’ à côté de la
270
rios de Santa Bárbara suspendem os nossos ajuizamentos e também, ainda que mo-
mentaneamente, os da detetive Delacour acerca dos personagens e dos crimes. Alba,
por exemplo, não é uma mulher indefesa assim como a recorrente alusão às suas
tranças insinua (índice de passividade presente em heroínas de contos de fadas), ou
apenas uma mulher desempregada, com traços de melancolia, que encontra na cozi-
nha a substituição das aulas de latim. Antes de encerrá-la em estereótipos, o narrador
produz caminhos interpretativos que deslocam essa personagem de um julgamento
definitivo.
A formação do personagem Vespasiano, que compartilha várias cenas com
Alba, produz efeitos diferentes, dado que se trata de um personagem cujas caracterís-
ticas negativas deixam à mostra seu mau caráter
1
. Desde o início de sua formação, na
cena em que o Velho presencia uma tentativa de “revolta” de Vespasiano contra o a-
taque de um lobo, o personagem se delineia pela fraqueza de suas ações, o que tam-
bém leva, em certa medida, ao abrandamento no que diz respeito ao julgamento des-
se personagem:
Vespasiano ensaiara mesmo atirar num lobo branco encontrado dian-
te da lareira da sala: o animal ferido, que por um momento o médico
pensara estar morto, saltara-lhe no rosto, as presas lhe haviam arran-
cado um pedaço da face, o invasor fugira ganindo, deixando Vespa-
siano coberto de sangue, petrificado. “Não se pode fazer nada contra
esses bichos, não se pode fazer nada, a gente precisa se acostumar" –
repetiu ele durante alguns dias, como se estivesse alucinado, e o Ve-
lho percebeu que o lobo instilara seu veneno em Vespasiano
2
(O velho
e os lobos, 1991: 15).
O mundo dos lobos, do qual participa Vespasiano, segundo a visão fantástica
do Professor de latim, se desdobra no discurso direto de um personagem secundário:
truite au gingembre? Il n’est pas difficile de reconstituer l’itinéraire” (Le vieil homme et les
loups, 1991: 149).
1
Vespasiano é um dos imperadores retratados por Suetônio em A vida dos doze césares.
2
“Vespasien avait même essayé de tirer sur un loup blanc qui s’était installé devant la che-
minée du salon: la bête blessée, que le docteur avait cru un instant abattue, lui sauté à la
figure, les crocs avaient arraché un morceau de sa joue, l’envahisseur s’était enfui en gla-
pissant, et Vespasien était resté en sang, pétrifié. ‘On ne peut rien contre ses bêtes-là, on
ne peut rien, il faut s’y faire’, répéta-t-il pendant quelques jours, comme halluciné, et le
Vieil Homme comprit que le loup avait instillé son poison chez Vespasien” (Le vieil hom-
me et les loups, 1991: 18).
271
o barman do hotel onde estão hospedados Alba, Septicius Clarus e Vespasiano. Ao
observá-lo, o barman adivinha a profissão de Vespasiano e este lhe pede uma justifi-
cativa que é prontamente construída pelo atendente do bar: - Um certo modo de o-
lhar. Desligado, com raios X. Sem piedade. Quero dizer: o senhor sabe o que faz. (O
barman.)
1
(1999: 34). É por meio do barman e de suas imagens referentes à técnica para
a descrição do médico que se consolida a relação entre o personagem Vespasiano e o
domínio técnico. Essa ligação entre o médico e a técnica explicita a crítica do narrador
kristevaniano no tocante aos efeitos da tecnologia. Observa-se na falta do sentimento
de piedade na composição do médico o traço que nos leva a essa afirmação negativa
sobre a técnica em O velho e os lobos. Vespasiano, entretanto, ao contrário do que se
espera de um homem-máquina, mantém sua relação com os sentidos: “Vespasiano
comia com gula animal, a cabeça rente ao prato e emitindo grunhidos incompreensí-
veis à guisa de cumprimentos
2
” (1999: 46). O apetite de Vespasiano, que o retira da
maquinalidade, também serve para jogá-lo nela, pois o trecho selecionado mostra o
personagem em processo de intensa metamorfose rumo à animalidade. A caracteri-
zação significativamente humana conferida a Vespasiano evidencia-se na manifesta-
ção de seu desejo sexual por Alba, mas essa descrição, como a anterior, porque exa-
gera as paixões atribuídas ao personagem, o deixa muito próximo de uma definição
meramente instintiva, ou seja, Vespasiano é uma referência cujo corpo indica desapa-
recimento. É de um corpo híbrido que ele realiza suas ações: “No início de suas me-
tamorfoses, Vespasiano não cessara de desejá-la. Tomava-a com um prazer furioso, e
lhe pedia para contar histórias de estupro
3
” (1999: 50). Em seguida, o narrador retira
o médico de uma suposta humanidade construída pela capacidade exacerbada do
personagem de sentir para inseri-lo em um lugar inclassificável, ou seja, não-
humano:
1
- Une façon de regarder. Détachée, aux rayons X. Sans pit. Je vous dire: vous vous y con-
naissez. (Le Barman.) (Le vieil homme et les loups, 1991: 49).
2
“Vespasien mangeait avec un gloutonnerie animale, penché au ras de son assiette et émet-
tant d’indiscernables grommellements en guise de compliments” (Le vieil homme et les
loups, 1991: 70).
3
“Au début de ses métamorphoses, Vespasien n’avait pas cessé de la désirer. Il la prenait
avec un plaisir furieux et lui demandait de raconter des histoires de viol” (Le vieil homme
et les loups, 1991: 76).
272
O perverso, como o apaixonado, escolhe um ídolo, ou ao menos um
fetiche para venerar. Mas Vespasiano não dispunha de cripta interior
para qualquer celebração: havia demarcado fronteiras, habitava bor-
das reversíveis, solos evanescentes. Pronto para tudo, portanto indi-
ferente, definitivamente intratável
1
(O velho e os lobos, 1999: 51).
Ao comentar a Stéphanie sobre a mudança de Vespasiano – essa transforma-
ção metafórica do personagem Vespasiano –, Alba elege o corpo do médico como i-
lustração das metamorfoses pelas quais seu companheiro passa: - Ele mudou... Você
não o reconheceria... Seu rosto... O Velho acha que ele também está ficando como os
lobos
2
(1991: 78). A descrição do rosto de Vespasiano feita pela jornalista expõe traços
do médico que realçam seus ossos e cartilagem (a largura do maxilar, o queixo, o
formato do nariz), sua pele (uma cicatriz na face direita, resultado do possível com-
bate com o lobo, sua cor mate, a covinha no queixo, as maçãs do rosto) e até mesmo
seus pêlos (cabelos cortados à escovinha). O conjunto dos traços de Vespasiano com-
põe um rosto masculino, mas alguns fragmentos desse rosto dissecado remetem a
uma estrutura que poderia ser a de um animal. A reação da detetive diante da face
de Vespasiano é semelhante àquela de evitar o contato visual com um animal perigo-
so em situação de enfrentamento: “O rosto ossudo, o nariz longo e afilado, e até os
cabelos bastos cortados à escovinha, davam-lhe uma aparência demasiado viril,
“brutal” – pensei – e, para me esquivar do seu olhar, fingi consultar meu relógio
(“cinco e vinte e três, e daí?”). Tinha os olhos congestionados
3
” (1999: 80). A compo-
sição de ameaça percebida por Delacour se atenua quando recolhemos de outras pas-
sagens do texto os motivos que levam à constatação dos olhos congestionados do
personagem Vespasiano. Por exemplo, diante do aparelho de televisão, o torpor cau-
sado pela sucessão das imagens justapõe-se ao efeito do uso de álcool pelo médico:
1
“Le pervers, comme l’amoureux, se choisit une idole ou du moins un fétiche à vénérer.
Mais Vespasien ne disposait de crypte intérieure pour aucune célébration: il l’avait striée
de frontières, il habitait des bords réversibles, des seuils évanescents. Prêt à tout, donc
indifférent, en définitive intraitable” (Le vieil homme et loups, 1991: 77).
2
– Il a changé... Tu ne le reconnaîtrais pas... Son visage... Le Vieil Homme prétend qu’il de-
vient lui aussi comme les loups (Le vieil homme et les loups, 1991: 118).
3
“Le visage osseux, le nez long et affilé, et jusqu’aux cheveux drus qu’il portait en brosse
lui donnaient un air trop viril, ‘brutal’, pensait-je, et, pour esquiver son regard, je fis
semblant de consulter ma montre (‘Cinq heures vingt-trois, et alors?’). Il avait les yeux
congestionnés” (Le vieil homme et les loups, 1991: 121).
273
“Sob o efeito do álcool, Vespasiano perdia todo limite. Um sentimento de vingança
embaçava-lhe os olhos, tornava-lhe a voz rouca
1
” (1999: 72). O alcoolismo de Vespa-
siano reaparece no encontro com a detetive Delacour. Trata-se de um momento em
que a jornalista flagra no marido de Alba o efeito do consumo de álcool, e o rosto do
médico que, em outra cena lhe parecera viril, agora se esvazia desse atributo simul-
taneamente ameaçador e envolvente, tornando-se debilmente infantilizado: “Os o-
lhos sempre congestionados, enquanto estranhamente as linhas quadradas de seu
rosto diluíam-se num arredondado suave, oleoso. O álcool começa por dissipar os
traços, antes de envelhecê-los
2
” (1999: 85).
Vespasiano não está inteiramente deslocado do mundo humano, embora exis-
tam índices físicos que o situam ao lado dos lobos, contribuindo para torná-lo um su-
jeito inescrupuloso, quase apartado da esfera social. Em entrevista a Bernard Sichère
(1996: 171), Kristeva admite que é comum encontrar pessoas como esse personagem,
ou seja, Vespasiano personifica um sujeito “quase psicótico”, individualista e sem
uma “vida interior” – características comuns na rotina da escuta dos psicanalistas co-
legas de Kristeva. O esvaziamento do foro íntimo é tema de As novas doenças da alma,
obra publicada em 1993. Vespasiano, portanto, antecipa ficcionalmente essa questão
de ordem teórica levantada por Kristeva dois anos após a publicação de O velho e os
lobos. O médico, para se esquivar da morte de sua vida psíquica ou, em outras pala-
vras, do apagamento de sua vida interior, vida íntima, encontra refúgio no fluxo de
imagens oferecidas pela televisão. O silêncio do médico, depois de uma jornada de
trabalho, não é de meditação, ele também não partilha com Alba suas experiências
microscópicas (alusão à alternativa proposta pelo Professor de latim para manuten-
ção da vida psíquica em tempos de crise do espaço psíquico). Vespasiano, nesse sen-
tido, encontra na tela o equivalente medicinal proporcionado pela indústria farma-
cêutica, dado que ele “Afoga no fluxo da mídia seus estados de alma, antes que se
formulem em palavras” (As novas doenças da alma, 2002: 15). Vê-lo em frente à televi-
1
“Sous alcool, Vespasien perdait toute limite. Une humeur vengeresse embuait ses yeux,
rendait sa voix rauque” (Le vieil homme et les loups, 1991: 110).
2
“Toujours ses yeux congestionnés, alors qu’étrangement les lignes carrées de son visage se
diluaient dans un arroundi flou, huileux. L’alcool commence par dissiper les traits avant
274
são suspende parcialmente a intenção maléfica imputada ao antagonista, porque
Vespasiano, bombardeado pela seqüência de imagens da televisão, é atacado em sua
liberdade de pensar/agir:
Quando ele voltava, tarde, só tinha olhos para a televisão: não para
se distrair, mas para se desligar e melhor desprezar o mundo a sua
volta. Pois Vespasiano não fala mais. Encerrado numa visão estan-
que, foge da voz humana. Só a tela o atrai, difundindo imagens fa-
talmente fascinantes, já que alguém as passa
1
(O velho e os lobos, 1999:
70).
O discurso de Alba, retomado pela amiga detetive, chama a atenção para a
maquinalidade que ela observa no marido. Vimos que Alba não escapa de certo au-
tomatismo, muito de sua capacidade de sentir/pensar aparece apagada em função de
ações que encobrem a sua desistência frente às transformações de Santa Bárbara. Cu-
riosamente, o sobrenome da protagonista é Ram – Alba Ram, na constituição de seu
nome há um aspecto marcadamente técnico, que nos leva a associá-la imediatamente
à memória perecível dos computadores. Em As novas doenças da alma, Kristeva lança
uma provocação que se aplica à análise do casal Alba-Vespasiano. A psicanalista,
sem esconder um tom de revolta, instiga em seus interlocutores a seguinte reflexão:
“Não é fabuloso que alguém se satisfaça com uma pílula e uma tela?” Alba, conforme
as hipóteses de Stéphanie Delacour, representa a pílula – tal é o motivo de sua parce-
la de inconsciência. A protagonista, no entanto, deixa margem para o questionamen-
to de sua conduta entorpecida pela técnica na medida em que constata em Vespasia-
no talvez o lado mais impiedoso e alienante do domínio da técnica, qual seja, o da te-
la. Vespasiano joga seu indispensável espaço psíquico no fluxo das imagens-
mercadoria:
– Você sabe (Alba não cessava de me tomar como testemunha), ele
não tem consciência de levar uma vida dupla, pois lhe falta a consci-
ência. Consciente, consciente: você acredita nisso? Antes uma multi-
dão de imagens. Uma exposição de máscaras ambulantes, cada qual
de les vieillir” (Le vieil homme et les loups, 1991: 131).
1
“Quand il rentrait, tard, il n’avait d’yeux que por la télévision: non pour se distraire, mais
pour devenir distrait et mieux mépriser le monde autour de lui. Vespasien ne parle donc
plus. Enfermé dans une vue étanche, il fuit la voix humaine. Seul l’écran l’attire, diffu-
sant des images fatalement fascinantes, puisqu’on les passe” (Le vieil homme et les loups,
1991: 107).
275
composta para uma cena que também é composta. (...) Devora-o o
desejo de ser único em toda parte. Vespasiano habita mundos inco-
municáveis, onde as sombras que o cercam só conhecem uma de suas
faces
1
(O velho e os lobos, 1999: 70-71).
A frieza do personagem no exercício da medicina – ele é um cirurgião – repro-
duz um questionamento sobre a eficiência da técnica em detrimento do sujeito (este
que participa do arranjo da copresença sexualidade/pensamento) revela uma com-
plexa formação na qual se entrelaçam sensações, sentimentos e pensamento. O médi-
co da trama menospreza esse conjunto delicado, optando por um tratamento cruel,
impiedoso e arrogante:
a úlcera cortada ou a ponta do coração apodrecido refeito em plásti-
co ou metal, Vespasiano praticava a velha arte de Hipócrates esque-
cendo que estava lidando com um homem, uma mulher. Parecia a-
cometido daquela precipitação mental que é uma excitação sem des-
carga; a mesma com a qual se faz, se desfaz e se renova o material
eletrônico: rejuvenescido e envelhecido de uma temporada para ou-
tra, supereficiente e ultra-obsoleto antes de ser usado, pura delícia
para os técnicos, utilidade duvidosa para os profanos. Assim, as ope-
rações de Vespasiano eram sempre de uma virtuosidade invejável, e
se seus doentes, apesar de tudo, sucumbiam no caminho – o que
muitas vezes acontecia –, a lógica vespasiana que se generalizava em
Santa Bárbara jamais punha em discussão o ator desses óbitos, mas
unicamente o acaso, o destino ou, mais radicalmente, a “inviabilida-
de” do paciente. E o renome cirúrgico de Vespasiano ia aumentando
2
(O velho e os lobos, 1999: 39-40).
1
– Tu sais (Alba ne cessait de me prendre à témoin), il n’a pas conscience d’avoir une dou-
ble vie, car il n’a pas de conscience. Conscient, conscient: tu y crois, toi? Plutôt une mul-
titude d’images. Une exposition de masques ambulants, composés chacun pour une scène
elle aussi composée. (...) Un désir le dévore d’être unique partout. Vespasien habite des
mondes incommunicables, où les ombres qui l’entourent ne connaissent qu’un visage de
lui (Le vieil homme et les loups, 1991: 107).
2
“l’ulcère découpé ou le bout de coeur pourri refait en plastique et en métal, Vespasien pra-
tiquait le vieil art d’Hippocrate en oubliant qu’il avait affaire à un homme, à une femme.
Il semblait atteint de cette précipitation mentale qui est une excitation sans décharge; la
même avec laquelle on fait, défait et renouvelle le matériel électronique: rajeuni et vieilli
d’une saison à l’autre, super-performant et ultra-dépassé avant d’avoir servi, pour délice
pour les techniciens, utililité douteuse pour les profanes. Ainsi les opérations de Vespa-
sien étaient-elles toujours d’une virtuosité enviable, et si ses malades succombaient,
malgré tout, dans la foulé – ce qui était souvent le cas – la logique vespasienne qui se
généralisait à Santa Barbara ne mettait nullement en cause l’acteur de ces décès, mais
seulement le hasard, le destin, ou, plus radicalement, l’ ‘inviabilité’ du patient. Et la re-
nommée chirurgicale de Vespasien allait grandissant (Le vieil homme et les loups, 1991: 60).
276
Há momentos, ainda que breves, nos quais o médico demonstra medo (1999:
40), angústia (1999: 41) ou alegria (1999: 70), mas é sobretudo por meio de sua mani-
festação de intolerância no tocante à observação de corpos quaisquer, corpos anôni-
mos, aparentemente saudáveis, os quais não dependem da intervenção do seu efici-
ente bisturi, que o médico-cirurgião consolida o seu repúdio misturado ao sarcasmo
pela condição humana: – ‘As pessoas são de uma feiúra!’ Eis seu leitmotiv, que não
abandona, quando andamos na praia, sob os ciprestes. ‘Nenhuma elegância, sobre-
tudo as mulheres. Vulgares. Sua amiga Stephy Delacour, que para você é uma estre-
la: idem. Corcunda, desajeitada. Não acha?
1
’ (1999: 72). Alba Ram reproduz essa fala
de seu companheiro para a amiga provavelmente no intuito de rebaixá-la em seu po-
der de sedução. Trata-se de uma cena típica de ciúme, mas o ponto que nos interessa
é a postura do médico. A carta de Alba, que Stéphanie encontra no apartamento de
sua amiga, põe em dúvida a capacidade de sentir de Vespasiano - eis o desabafo de
Alba: “Pode ele viver com os outros? Não entendo nada desse homem. (...) Acontece-
lhe sentir algum tipo de sofrimento?
2
” (1999: 92). Em outro fragmento, que diz res-
peito não sofrimento mas ao prazer, a suposição de Alba ganha força. Vespasiano
mostra-se incapaz de manter distância da técnica mesmo em sua atividade sexual:
“Assim, Vespasiano pensava que o sexo era questão de técnica. Primeiro, Alba o a-
chara divertido. Agora, descobria-o bestial
3
” (1991: 70). Curiosamente, o médico en-
contra afinidade por uma colega de trabalho, a qual é ironicamente nomeada de a
“Colega do lifting”: “Ele a apelidava assim por preocupar-se com a discrição e para
minimizar sua própria dependência com relação a essa forte mulher
4
” (1999: 75). No-
vamente, os relacionamentos de Vespasiano se pautam pelo questionamento de sua
1
– ‘Les gens sont d’une laideur!’ Voilà son leitmotiv, et il ne s’en lasse pas lorsqu’on arpen-
te la plage sous les cyprès. ‘Aucune allure, les femmes surtout. Vulgaires. Ton amie
Stephy Delacour que tu prends pour une star: idem. Bossue, empotée. Tu ne trouves pas?’
(Le vieil homme et les loups, 1991: 110).
2
“Peut-il vivre avec les autres? Je ne comprends rien à cette homme-là. (...) Lui arrive-t-il de
ressentir une souffrance quelconque?” (Le vieil homme et les loups, 1991: 143).
3
“Ainsi, Vespasien pensait que le sexe était affaire de technique. D’abord, Alba l’avait
trouvé amusant. Maintenant, elle le découvrait bestial” (Le vieil homme et les loups, 1991:
106).
4
“Il la surnommait ainsi, par souci de discrétion et pour minimiser sa propre dépendance
envers cette forte femme” (Le vieil homme et les loups, 1991: 113).
277
capacidade de estabelecer vínculos. A união desses dois personagens cirurgiões pelo
laço da sutura evidencia a cumplicidade entre eles no que se refere ao imperativo da
técnica expressa pela busca midiática da imagem irretocável. É por meio do discurso
de Stéphanie Delacour, o qual retoma uma observação de Alba, que se abre um ca-
minho importante para a investigação metafórica das metamorfoses:
Segundo Alba, a Colega era simplesmente uma cirurgiã que fazia lif-
tings em pacientes cuja doença vinha tanto de sua imagem quanto de
seu dinheiro: uma população cada vez mais numerosa, que logo se
confundiria com a sociedade de Santa Bárbara, e que passava os pe-
ríodos de convalescença nas estações balneárias
1
(O velho e os lobos,
1999: 75).
A perseguição pela auto-imagem irretocável conduz muitos habitantes de San-
ta Bárbara ao apagamento de seus traços naturais ou à negação do processo de enve-
lhecimento. Todas essas promessas de metamorfoses corpóreas promovidas pelas
técnicas cirúrgicas representadas pelos personagens Vespasiano-Colega do lifting
produzem nas faces esticadas de seus pacientes uma alegria momentânea que é se-
guida, conforme o narrador, de “risos eletrizados”. As transformações na carne, que
nas metamorfoses narradas por Ovídio são seguidas de sofrimento, de luto, aqui se
atenuam sob a prática do “embelezamento exasperante”: “Exasperante inclusive para
seus pacientes liftados que, no entanto, só pediam para ser reanimados, por assim di-
zer. Ora, eles mesmos às vezes percebiam o abismo que separava as promessas caca-
rejantes da Colega do lifting da realidade obtida após sua intervenção
2
” (1999: 75). O
narrador critica nessa passagem o esvaziamento do domínio psíquico pela compen-
sação de uma imagem supostamente idealizada. Entretanto, o mal-estar dos pacien-
tes liftados não afeta Vespasiano – novamente o médico é flagrado em sua incapaci-
dade de pôr em ação o seu sujeito em processo: “Entretanto, a exasperação dos paci-
1
“Selon Alba, la Collègue était tout simplement une chirurgienne qui faisait des liftings à
des patients malades de leur image autant que de leur argent: une population de plus en
plus nombreuse, qui se confondrait bientôt avec le Tout-Santa Barbara, et qui passait ses
périodes de convalescence dans les stations balnéaires” (Le vieil homme et les loups, 1991:
113-114).
2
“Exaspérant, y compris pour ses pacients liftés qui, pourtant, ne demandeaint qu’à être
remontés, si l’on ose dire. Or, eux-mêmes parfois s’apercevaient de l’abîme qui séparait
les promesses gloussantes de la Collègue du lifting et la réalité obtenue après son inter-
vention” (Le vieil homme et les loups, 1991: 114).
278
entes jamais atingia Vespasiano, tão vigorosa era sua obstinação em nada ver, e em
tudo aprovar, no melhor mundo dos lobos possível
1
” (1999: 75). O narrador ainda
abranda a indiferença de Vespasiano diante do desconforto de seus pacientes liftados,
uma vez que o situa próximo da crítica de Voltaire a Leibniz sobre a afirmação “oti-
mista” desse filósofo de que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Ao adaptar a
frase para o “melhor mundo dos lobos possível”, o narrador localiza no médico agu-
do senso de ironia que é logo dissipado por seus gestos marcadamente maquinais, ou
seja, em conformidade com toda a sorte de irregularidades e hipocrisias simbolizadas
pelos lobos. Vespasiano, por exemplo, é cúmplice de sua amante/colega do lifting.
No enterro do Professor de latim, Stéphanie Delacour observa as incisões no braço da
mulher do lifting:
Ela devia detestar o Velho. Ou antes, espírito ambíguo e portanto
clínico, devia ter desejado aliviá-lo, libertá-lo de sua vida inútil. Na-
da de medicamentos para os velhos, a não ser drogas sem validade e
deterioradas, em doses cavalares, ou ao contrário apenas água, pla-
cebos, absolutamente nada, antes de desligar os aparelhos
2
(O velho e
os lobos, 1999: 116).
A hipótese da detetive confirma o nosso ponto acerca da intolerância presente
no casal de cirurgiões. A técnica do lifting, da qual nem a colega de Vespasiano esca-
pa, confere à amante do cirurgião uma face sem história, como se ela fosse imperme-
ável ao efeito da passagem do tempo. Mesmo na cena triste representada pelo enterro
do Velho, a Colega do lifting mantém-se impecavelmente plastificada, passando a
seus interlocutores aquela indiferença característica dos rostos cujas intervenções ci-
rúrgicas estéticas, na expectativa de resgatar a jovialidade, dissolvem as sutilezas e as
possíveis transparências de suas expressões: ”O Lifting triunfa da doença, a boa ima-
gem esconde a velhice, por que não esconderia a morte, não há mais morte, não há
1
“Cependant, l’exaspération des patients n’atteignait jamais Vespasien, si vigoureuse était
son obstination à ne rien voir et à tout approuver dans le meilleur des mondes aux loups
possible” (Le vieil homme et les loups, 1991: 114).
2
“Elle devait détester le Vieil Homme. Ou plutôt, esprit ambigu donc soignant, elle avait
vouloir le soulager, le libérer de sa vie inutile. Pas de médicaments pour les vieux, que
des drogues périmées et pourries, à doses de cheval, ou au contraire de l’eau, des place-
bos, rien du tout, avant qu’on ne débranche” (Le vieil homme et les loups, 1991: 185).
279
mais morto, vamos pôr nossas máscaras, vamos fingir. Ela continua a sorrir, ninguém
percebe como é monstruoso
1
” (1999: 116).
Está presente no discurso de Stéphanie Delacour a revolta no tocante ao desca-
so evidenciado pelo narrador ao papel do pai. O professor de latim fora amigo do pai
da jornalista. Também na condição de um estrangeiro como Septicius e da própria
Delacour, o pai da detetive era diplomata e por isso se mudou com a família para
Santa Bárbara. O pai de Stéphanie Delacour e o Professor de latim, cuja trama expõe
a falta de liberdade deles num país onde não há espaço para divergências políticas,
aludem ao pai da própria autora. Em entrevista a Marie-Christine Navarro, em Au
risque de la pensée, Kristeva explica a importância de ter escrito O velho e os lobos para
atravessar um momento de dor provocada pela morte de seu pai: ele morrera na
Bulgária, em setembro de 1989, alguns meses antes da queda do muro de Berlim
(2001: 18). Kristeva, depois de algumas investigações, conclui que seu pai fora assas-
sinado em virtude de experiências da medicina socialista para “tratar” idosos doen-
tes. Para Kristeva, essa medicina, na qual a técnica está acima do doente, subestima o
“fator humano” (facteur humain) (2001: 19). Kristeva explica que, na Bulgária, seu país
de origem, somente os aliados ao partido comunista podiam ser enterrados. Parado-
xalmente, seu pai, homem devotado à igreja, estaria destinado à incineração, tal co-
mo o pai de Stéphanie Delacour: “jamais perdoarei aos lobos por lhe terem recusado
o direito ao solo. (...) ‘Só os ateus terão seus mausoléus!’ Tanto absurdo me entediava,
e eu me calava, bestificada
2
” (1999: 151). Esses pontos de contato entre a ficção e a re-
alidade intensificam-se sobretudo na composição do personagem do Professor de la-
tim, pois a teórica comenta (2001: 20) a M.C. Navarro que as iniciais de Septicius Cla-
rus são as mesmas da forma latinizada do nome de seu pai – Stoyan Kristev. A ho-
menagem ao pai chama a atenção para a relevância do papel paterno na formação so-
cial. O desaparecimento de Septicius Clarus exacerba a corrupção de Santa Bárbara:
1
“Le lifting triomphe de la maladie, la bonne image cache la vieillesse, pourquoi ne cache-
rait-elle pas la mort, il n’y a pas plus de mort, mettons nos loups, faisons semblant. Elle
sourit toujours, personne ne s’aperçoit combien c’est monstrueux” (Le viel homme et les
loups, 1991: 185).
2
“je ne pardonnerai jamais aux loups de lui avoir refusé le droit au sol. (...) ‘Seuls les athées
auront leurs mausolées!’ Tant d’absurdité m’assomait et je me taisais, hébétée (Le viel
280
primeiro porque a detetive não localiza o culpado e em segundo – o que é mais preo-
cupante –, isso não seria possível. Ora, não é possível porque existem muitos culpa-
dos.
3.3 Possessões
Possessões, livro publicado em 1996, na esteira de Os velhos e os lobos, apresenta,
no centro de seu enredo, um crime a ser investigado. Uma diferença importante em
relação ao policial de estréia de Kristeva está na tentativa de centralização do crime:
em Possessions some de cena a atmosfera onírica promovida pelo intertexto das Me-
tamorfoses de Ovídio. A seqüência de desaparecimentos, que causa mal-estar nos in-
terlocutores, uma vez que rompe com as tentativas de produção de sentido do texto,
cede agora espaço a um único corpo assassinado. Trata-se do corpo de Gloria Harri-
son, o qual abre a narrativa de Possessões. Como aparece Gloria Harrison na abertura
desse polar? Inicialmente, a personagem é descrita em vivas cores de seu corpo-
cadáver – estamos diante de um assassinato seguido de um ritual de crueldade –,
pois Gloria Harrison fora assassinada e depois decapitada:
Gloria jazia numa poça de sangue, decapitada. O vestido de noite de
cetim marfim de Gloria, os braços roliços, as longas mãos manicura-
das de Gloria, o relógio Cartier, o diamante no anular esquerdo, as
pernas bronzeadas, os escarpins combinando com o vestido: não ha-
via dúvida, era mesmo Gloria, não faltava nada, exceto a cabeça
1
(Possessões, 2003: 11).
Os informantes, que recompõem algumas características de Gloria Harrison, a
deixam reconhecidamente imersa no universo de consumo, dos pequenos prazeres
que embelezam o corpo, assim como no cuidado que ela dedica às mãos ou sua ex-
posição ao sol, uma possível forma de lazer ou apenas para marcar mais um símbolo
de status tal como se evidencia em seu relógio Cartier, uma peça luxuosa, acessível a
poucos santabarbarenses e a raras pessoas desse mundo globalizado ou no seu anel
homme et les loups, 1991: 247).
1
“Gloria gisait dans une flaque de sang, décapitée. La robe du soir en satin ivoire de Gloria,
les bras ronds, les longues mains manucurées de Gloria, la montre Cartier, le diamant à
l’annulaire gauche, les jambes bronzées, les scarpins assortis à la robe: aucun doute,
c’était bien Gloria, rien n’y manquait, sauf la tête” (Possessions, 1996: 11)
281
de diamante, um acessório claramente dispendioso e feminino. Essas referências a
deixam no centro do consumo sofisticado, fazendo de sua morte a interrupção pesa-
rosa de uma vida destinada ao aproveitamento de mercadorias que apaziguam evi-
dentemente o peso da existência. Gloria Harrison aproxima-se da técnica no que está
tem de espetáculo – pelo menos a partir desse pequeno fragmento inicial, no qual a
descrição de seu corpo-cadáver encobre o iminente desaparecimento de uma mulher
que até a morte brutal constrói uma imagem, em grande parte, por meio de seu po-
der de compra.
Segundo Guy Debord, em A sociedade do espetáculo, “O consumidor real torna-
se consumidor de ilusões” (Tese 47, 1997: 33). Na seqüência dessa mesma tese, De-
bord oferece uma de suas várias formulações para a definição de mercadoria e tam-
bém de espetáculo, já que esses elementos estão relacionados entre si: “A mercadoria
é essa ilusão efetivamente real, e o espetáculo é sua manifestação geral” (Tese 47,
1997: 33). Existe, nesse sentido, se aplicarmos as referências de consumo a Gloria
Harrison ao aforismo de Debord, a possibilidade de uma linha interpretativa em que
o corpo se confunde com a técnica no que esta defende o fluxo das imagens como o
centro das relações humanas. Em outra tese, Debord retira a responsabilidade das
imagens “em si”, pois não são as imagens que inibem a capacidade de pensar, mas a
perversão localiza-se no uso dessas imagens na relação social: “O espetáculo não é
um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por ima-
gens” (Tese 4, 1997: 14). O espetáculo mórbido do corpo de Gloria Harrison decapi-
tado leva-nos à reflexão iniciada por Kristeva em Poderes do horror, publicado em
1980.
Nesse livro Kristeva define a abjeção como um estado de impureza, valendo-
se dos tabus alimentares presentes no Livro Levítico para demonstrar a relação histó-
rica de fundo religioso que subjaz a essas interdições alimentares na constituição do
puro/impuro. Estende-se também aos leprosos, chamados de impuros, a impossibi-
lidade de contato que se estabelece diante de um corpo diferente dos outros. É no-
vamente pela via do corpo que fica marcada a convenção que delimita as fronteiras
entre o puro (permitido) e o impuro (fora da lei). Interessa sobretudo a Kristeva os
desdobramentos dos tabus alimentares que chamam a sua atenção no Levítico. Ela lo-
282
caliza em passagens do Êxodo a relação entre alimento-interdição assentada sobre o
alimento leite: “Não cozerás o cabrito no leite de sua mãe” (Ex 23, 19); “Não cozerás o
cabrito no leite de sua própria mãe” (Ex 34, 26). Kristeva observa a ocorrência dessa
proibição também no Deuteronômio: “Não cozerás um cabritinho no leite de sua mãe”
(Deut 14. 21). O leite simboliza o “meio comum” à mãe e ao filho, no qual se mistu-
ram essas duas identidades. Conforme a leitura de Kristeva do Levítico, a impureza
deve-se ao desrespeito de fronteiras, por isso o exemplo dos animais que circulam
pelo ar, terra e mar é um excelente caso de impureza. Quanto ao leite materno, Kris-
teva constata que a condenação atribuída ao leite não se impõe pela sua função natu-
ral, que é a de saciar o recém-nascido, pois:
A abominação não é a de alimentar, mas de cozinhar o cabrito no leite
de sua mãe: dito de outra forma, ela consiste em utilizar o leite, não
em função de suas necessidades de sobrevivência, mas segundo uma
fantasia culinária cultural, estabelecendo uma ligação anormal entre
a mãe e o seu filho
1
(Poderes do horror, 1980: 124).
Kristeva reconhece nesse tabu alimentar a base para a interdição do incesto,
implicando daí a instauração da linguagem, do social. Enquanto Freud constrói a
proibição ao incesto pela figura paterna, em Totem e tabu, e em conseqüência disso
serve-se do pai para a formação da linguagem, da lei; Kristeva – que não rechaça a
importância desse texto freudiano para a configuração de seu fenotexto – em Poderes
do horror, no entanto, se desloca para o corpo materno como forma de instaurar o es-
boço arcaico da lei. O corpo feminino portanto, no que esse tem de materno, sugere o
início do simbólico, conforme essa construção teórica em que o sentimento da abjeção
é o tema a ser explorado. Nos evangelhos de Marcos e de Mateus, Kristeva constata a
“interiorização da abjeção” como um avanço na lógica do simbólico, na medida em
que a dicotomia puro/impuro desculpabiliza-se ao passar para a relação den-
tro/fora. Isso se deve à forma que a teórica chama de “espetacular” na mensagem de
Cristo diante dos leprosos, na qual se permite o contato verbal e gestual com esses
1
“L’abomination n’est pas de nourrir mais de faire cuire le chevreau dans le lait de sa mère:
autrement dit elle consiste à utiliser le lait, non pas en fonction des besoins de survie,
mais selon une fantaisie culinaire culturelle établissant un lien anormal entre une mère et
son enfant” (Pouvoirs de l’horreur, 1980: 124).
283
corpos deformados e também se verifica pela abolição dos tabus alimentares. Os re-
cortes feitos por Kristeva do evangelho de Marcos mostram um Cristo que promove
esse deslocamento em que o dentro e fora assumem uma posição que mantém o res-
quício da oralidade presente na antiga forma do puro/impuro: “Este povo honra-me
com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Mc 7, 6); “Nada há no exterior
do homem que, penetrando nele, o possa tornar impuro; mas o que sai do homem,
isso é o que o torna impuro” (Mc 7. 15). Também no evangelho de Mateus a interiori-
zação é responsável pelos infortúnios: “Não é o que entra pela boca que torna o ho-
mem impuro, mas o que sai da boca, isto sim o torna impuro” (Mt 15, 11).
Nesse contexto de interdições e consolidação da lei, ainda que de maneira en-
viesada, incluímos o cadáver de Gloria Harrison. Conforme os fundamentos da psi-
canálise, Kristeva situa nos dejetos anais a primeira separação material regulada pelo
ser humano. A psicanalista localiza em referências dos profetas Zacarias e Ezequiel o
sentimento de abjeção em face dos excrementos. No entanto, para Kristeva, está na
representação do cadáver o mais importante sentimento de abjeção no que se refere
aos dejetos: “o cadáver é a poluição fundamental. Um corpo sem alma, um não-
corpo, uma matéria desordenada, ele está excluído do território como da palavra de
Deus
1
” (1980: 127). Nessa medida, a representação do cadáver rompe expressivamen-
te com a lógica do dentro/fora. Kristeva reconhece no cadáver o “inverso do espiri-
tual”, do “simbólico” e da “lei divina”, pois o corpo morto simboliza enfaticamente
uma matéria em transição, ou seja, não se trata de algo a ser classificado. A teórica re-
sume uma passagem do Levítico em que a morte atua ao lado da impureza: “Os ani-
mais impuros se tornam ainda mais impuros uma vez mortos (Lev 11, 20-40)
2
” (1980:
128). Em outras passagens bíblicas, Kristeva chama a atenção para o fato de que o ca-
dáver deve ser evitado, não pode ser tocado porque é fonte de impurezas. Em Eze-
quiel, a teórica localiza um caminho para a purificação do cadáver: “Durante sete
meses a casa de Israel os sepultará, com o fim de purificar a terra” (Ez 39, 12).
1
“Un corps sans âme, un non-corps, une matière trouble, il est à exclure du territoire comme
de la parole de Dieu” (Pouvoirs de l’horreur, 1980: 127).
2
“Les animaux impurs deviennent encore plus impurs une fois morts (Lev 11, 20-40)” (Pou-
voirs de l’horreur, 1980: 128).
284
O cadáver de Gloria Harrison realça a dramaticidade inerente a um corpo
morto porque é recoberto de uma capa sofisticada facilmente reconhecida pela socie-
dade do espetáculo. De início, os adereços da mulher assassinada sobressaem ao seu
corpo recém-saído de uma vida plena de sucesso profissional. Entretanto, assim que
o narrador chama a atenção para a ausência da cabeça da personagem, os acessórios
dispendiosos dão espaço a uma cabeça ausente. Glória Harrison desliza o interesse
dos interlocutores para uma parte de seu corpo que só é acessível ao narrador por
meio de sua rememoração. O corpo fetichizado da personagem e o prazer que advém
do uso da mercadoria cede espaço ao horror presente na decapitação seguida do su-
miço da cabeça:
Nada mais pesado que um corpo morto. E o peso do cadáver aumen-
ta mais ainda se acontece de faltar a cabeça. Um rosto, mesmo pláci-
do, lívido ou deformado pela morte, dá sentido ao corpo, e por con-
seguinte o torna leve. Os olhos, mesmo apagados, arregalados ou e-
xoftálmicos, a boca, mesmo retorcida, sangrenta ou tumefacta, os ca-
belos, mesmo arrancados, colados ao crânio ou em desordem, todos
são vetores necessários de uma expressão que suspeitamos ser a da
morte. Mas sem olhos nem boca, sem cabeça nem cabelos, um cadá-
ver não é mais que uma peça de açougue. (....) Amputado da funesta
exuberância exibida pela máscara dos falecidos, o morto é duas ve-
zes morto. Não que a vítima seja privada de sua humanidade, ou
mesmo de sua personalidade: ao contrário, estas persistem, minucio-
samente esculpidas no torso decapitado, nos membros curvados, no
abandono da postura; mas a loucura, que é o selo do humano e é tra-
ída pelo rosto, permanece – se falta esse indício capital – literalmente
invisível
1
(Possessões, 2003: 11-12).
Das descrições do corpo de Gloria Harrison em vida são raras as informações
obtidas. Sabe-se que ela fora casada com Stan Novak, um pintor de quadros que ja-
1
“Rien de plus lourd qu’on corps mort. Et la pesanteur du cadavre s’accroît davantage en-
core si la tête vient à manquer. Un visage – qu’il soit placide, livide ou déformé par la
mort – donne du sens au corps et par conséquent l’allège. Les yeux, fussent-ils éteints,
écarquillés ou exophtalmiques, la bouche, fût-elle tordue, sanglante ou tuméfiée, les che-
veux, fussent-ils arrachés, plaqués sur la crâne ou en désordre, tous sont les nécessaires
vecteurs d’une expression qu’on soupçonne être celle de la mort. Mais, sans yeux ni
bouche, sans tête ni cheveux, un cadavre n’est plus qu’une pièce de boucherie. (...) Am-
puté de la funeste exubérance que peint le masque des trépassés, la mort est deux fois
mort. Non que la victime soit privée de son humanité ou même de sa personnalité, qui
persistent au contraire, minutieusement sculptées dans le torse décapité, dans les mem-
bres déjetés, dans l’abandon de la posture; mais la folie, qui est le sceau de l’humain et
que trahit le visage, demeure – si cet indice capital fait défaut – littéralement invisible”
(Possessions, 1996: 11-12).
285
mais se interessara pela sua rotina de vida. Indiretamente, através desse personagem
secundário, o corpo de Gloria Harrison caracteriza-se por cuidados que a afastam de
hipóteses suicidas: “Stan jamais lhe fazia qualquer pergunta: (...) nem sobre a forma
(saúde, maquiagem, vestido, blusa, sapatos – há tantos detalhes essenciais na vida de
uma mulher)
1
” (2003: 37). A voz, sempre um item explorado por Kristeva na compo-
sição de seus personagens ficcionais, contribui para a configuração dessa persona-
gem-cadáver: “Gloria avançava sempre com aquela voz estridente de diretora de co-
ral, que usava para afrontar a meninazinha amedrontada que se escondia dentro de-
la
2
” (2003: 37-38). A análise da voz é um dos meios de acesso ao semiótico, essa mo-
dalidade da linguagem que atua na transverbalidade e serve para a apreensão de as-
pectos do conteúdo íntimo do psiquismo.
Em As novas doenças da alma, Kristeva busca na análise das vozes de seus paci-
entes um caminho viável para a sua interpretação analítica. A tentativa de um infra-
significado por intermédio da voz está em uma das reflexões de O velho e os lobos:
“Toda frase pode ser ouvida como o contrário do que pretende dizer. Uma observa-
ção anódina ou lisonjeira inverte-se em acusação, crítica ou ameaça
3
” (1999: 71). Por
isso, na formação de alguns personagens de Kristeva, a própria autora sinaliza para
as possíveis modulações vocálicas na formação do caráter de seus personagens. É o
exemplo de Vespasiano, cujo comportamento discutível confirma as observações do
narrador, logo no início da narrativa, a respeito das possíveis más ações do médico
cirurgião: “(Diante de Alba, o tom de Vespasiano adquiria a segurança cautelosa dos
entendidos suspeitos)
4
” (1999: 16); (Vespasiano pontuava a fala, mais doutoral e dis-
1
“Stan ne lui posait jamais aucune question: (...) ni sur sa forme (santé, maquillage, robe,
chemisier, souliers, il y a tant de détails essentiels dans la vie d’une femme)” (Possessions,
1996: 41).
2
“Gloria s’avançait avec cette voix claironnante de directrice de chorale qu’elle prenait pour
braver la petite fille apeurée tapie en elle” (Possessions, 1996: 42).
3
“Toute phrase peut être entendu comme le contraire de ce qu’elle dit. Une remarque ano-
dine ou flatteuse s’inverse en accusation, critique ou menace” (Le vieil homme et les loups,
1991: 107).
4
“(Devant Alba, le ton de Vespasien prenait l’assurance cauteleuse des connaisseurs lou-
ches.)” (Le vieil homme et les loups, 1996: 20).
286
simulado que nunca.)
1
(1999: 17). Em outro momento, na carta que a detetive Stépha-
nie Delacour encontra no apartamento de Alba, há uma nova referência à voz de
Vespasiano que elucida o distanciamento entre o casal promovido, em grande medi-
da, pela técnica: “’Quando não me expressa seu desprezo e seu rancor, sua fala perde
o timbre, para não lhe trair a maldade. Uma dessas vozes insípidas que usamos para
nos dirigir aos pássaros, quando nos sentimos dominados e febris por sua agilidade
vocal
2
”’ (1999: 92-93). No universo refletido pela sociedade do espetáculo, o persona-
gem Velho, perplexo com os desaparecimentos dos santabarbarenses, desenvolve
uma percepção da fala de seu interlocutor de forma a corporificá-la, provavelmente
como um exercício que também serve para dar espessura ao seu próprio corpo e a
sua imaginação: ”As palavras de Alba e de Vespasiano ressoavam no seu crânio, to-
mavam corpo
3
” (1999: 37). A força do professor de latim e sua perspicácia no mundo
repleto de alienados tem na voz desse personagem um importante índice
4
de sua vi-
talidade: “O canto lhe aumentava os olhos, enchendo-os de uma luz azulada, e lhe
abria o rosto além dos ossos e da pele, numa escuta carnal, mas justa e nítida a des-
peito desse deslumbramento
5
” (1999: 136).
No que se refere à voz, até mesmo o pai da detetive Delacour é caracterizado
como um admirador do professor – a voz serve como uma metáfora para a afinidade
1
”(Vespasien ponctuait, plus doctoral et surnois que jamais.)” (Le vieil homme et les loups,
1991: 21).
2
“Quand il ne me crie pas son mépris et sa hargne, sa parole perd son timbre, pour ne pas
trahir sa méchanceté. Une de ces voix fades que l’on prend pour s’adresser aux oiseaux,
parce qu’on se sent dominé et affolé par leur agilité vocale” (Le vieil home et les loups,
1991: 143).
3
Les mots dAlba et de Vespasien résonnaient sous son crâne, prenaient corps” (Le vieil
homme et les loups, 1991: 53).
4
Referimo-nos aos índices que integram a teoria estruturalista de Roland Barthes. Para ele,
os índices caracterizam-se pelo implícito que denunciam na narrativa, remetendo a um
“caráter, a um sentimento, a uma atmosfera (por exemplo de suspeita), a uma filosofia
(...)”. (1972: 32). Retornaremos a usar esse termo de acordo com o sentido barthesiano
em questão.
5
“Le chant agrandissait ses yeux, les remplissait d’un lumière bleutée et ouvrait son visage
par-delà les os et la peau, dans une écoute charnelle mais juste et nette en dépit de ce ra-
vissement” (Le vieil homme et les loups, 1991: 217).
287
ideológica desses personagens – os dois integrantes do mesmo coral da igreja: “papai
o admirava, imitava-o e unia sua voz à de Clarus
1
” (1999: 137).
Esse breve retorno ao Velho e os lobos revela que, a despeito dos desapareci-
mentos, subsiste uma carnalidade trabalhada por meio das alusões às vozes de vários
personagens – desde os principais até os secundários. Trata-se, possivelmente, de
uma forma de atenuar o efeito de prestidigitação causado pela vertiginoso fluxo da
diegese. Todavia, em Possessões, há um único desaparecimento – o assassinato de
Gloria Harrison – e sobre a voz dessa personagem é dito, sem qualquer destaque, que
está ligada à fragilidade da vítima. A breve pista da voz da personagem assassinada
ofusca-se sob o retorno da discussão acerca do seu cadáver. Popov, o assistente do
delegado Rilsky, e o próprio delegado nos deixam em contato com esse corpo sem
vida quando descreve tecnicamente os fragmentos do corpo da personagem assassi-
nada: – Ferimento de arma branca no seio esquerdo. Ataque abrupto, fundo da ferida
fino e alongado, tipo ‘rabo de rato
2
’ (2003: 45). Popov faz questão de empregar os
termos técnicos na autópsia do cadáver de Gloria Harrison e também tece conjecturas
claramente improváveis que são logo desconsideradas por seu chefe, Rilsky. A pró-
pria descrição das roupas de Popov e seu empenho demasiado “técnico” indica o
quanto estereotipado é o seu papel no desvendamento do crime: “jeans, camiseta e
jaqueta de couro. (...) Armado de uma câmara de vídeo, já fizera a ronda do quarto
sem omitir o menor detalhe visível do cadáver decapitado
3
” (2003: 46). Um pouco
distraído pelos aparatos técnicos, Popov segue a interpretação do corpo-cadáver de
Gloria Harrison engendrada pelo inspetor-chefe, Northrop Rilsky: “O ferimento foi
mortal, pois o sangue se derramou no saco pericárdico, reduzindo assim o débito
cardíaco. Está me acompanhando, Popov?
4
” (2003: 47). O inspetor, decepcionado
1
“papa l’admirait, l’imitait et joignait sa voix à celle de Clarus” (Le vieil homme et les loups,
1991: 218).
2
– Blessure par arme blanche au sein gauche. Attaque abrupte, fond de la plaie effilé, en
‘queue de rat’ (Possessions, 1996: 50).
3
“jeans, sweat-shirt et blouson de cuir. (...) Armé d’un caméra vidéo, il avait déjà fait le tour
de la chambre sans omettre le moindre détail visible du cadavre décapité (Possessions,
1996: 52).
4
“La blessure a été mortelle, car le sang s’est épanché dans le sac péricardique, réduisant
d’autant le débit cardiaque. Vous me suivez, Popov?” (Possessions, 1996: 52).
288
com a falta de agudeza de seu ajudante, elabora as objeções contra a sua própria hi-
pótese a respeito do assassinato de Gloria Harrison. Há a hipótese do uso de medi-
camentos, pois foi encontrado um frasco de remédios ao lado do cadáver, o que leva-
ria à possibilidade de a morte ter acontecido antes do golpe de arma branca. Uma se-
gunda hipótese estaria ligada ao possível estrangulamento da vítima, uma vez que a
cabeça é uma peça que lhes falta na investigação. Existe ainda uma terceira hipótese,
que, segundo o narrador, não diminui o peso do crime, mas desloca para o corpo – o
corpo da própria vítima – o peso de uma morte em que o acionamento arrebatado
das emoções produz uma intensa reação da regulagem da corpo a ponto de fazê-lo
colapsá-lo:
Essa idéia não me desagradava: se alguém no mundo podia ter su-
cumbido de “morte súbita por bloqueio” – e eu virava e revirava a
fórmula em todos os sentidos – esse alguém era Gloria! “Estímulo
vagal”, teria diagnosticado Rilsky, portanto morte violenta, provo-
cada por qualquer excitação de uma área sensível (pele, laringe, ór-
gãos genitais, colo uterino, períneo, tímpanos, plexo solar, e por aí
vai...) devida a qualquer agente, mesmo psicológico e forçosamente
emocional. O que poderia haver de mais emocional do que Gloria,
apavorada diante de seu agressor, aliás mesmo sem agressor, presa
fácil de um medo comprimido, vagal, vaginal, uretral, carotídeo, so-
lar...
1
(Possessões, 2003: 47).
O cadáver de Gloria Harrison desperta nos interlocutores o questionamento a
respeito do mal. De onde vem o mal que desemboca no assassinato dessa mulher? I-
ronicamente, as descrições do legista não escondem a admiração do médico diante
do trabalho bem conduzido do assassino que realiza a decapitação. O trabalho técni-
co do especialista, é preciso enfatizar, desempenha um destacado papel para o an-
damento diegético desse romance policial. O médico legista, portanto, colabora na
investigação, uma vez que a autópsia realizada por ele expõe o improvável – uma
espécie de duplo assassinato atesta a avaliação do profissional:
1
“Cette idée n’était pas pour me déplaire: si une personne au monde pouvait avoir suc-
combé d’une ‘mort subite par inhibition’ – et je tournais et retournais la formule dans
tous les sens –, c’était bien Gloria! ‘Stimulation vagale’, aurait diagnostiqué Rilsky, donc
décès brutal entraîné par toute excitation d’un site sensible (peau, laryn, organes géni-
taux, col utérin, périnée, tympans, plexus solaire et j’en passe...) due à n’importe quel
agent, fût-il psychologique et forcément émotionnel. Quoi de plus émotionnel que Gloria,
affolée devant son agresseur, même sans agresseur, d’ailleurs, proie facile d’une peur
comprimée, vagale, vaginale, urétrale, carotidienne, solaire...” (Possessions, 1996: 53).
289
– Trabalho de profissional. (O especialista curvou-se pela última vez
sobre o corte bem nítido da decapitação.) Realizado várias horas a-
pós a morte, levando-se em conta o derramamento de sangue muito
moderado, na parte superior do tronco. Como eu, vocês devem ter
notado o tecido de granulação que começa a se formar sobre a ferida
peitoral que, por conseguinte, já tem mais ou menos dois dias, ao
passo que não se observam fibroblastos nem capilares na região do
pescoço – isto é, da decapitação -, nitidamente mais recente
1
(Posses-
sões, 2003: 48).
A partir daí as buscas pelo culpado tomam algumas direções preciosas para o
contato mais estreito com o crime ou, dito de outra forma, com o mal. O dossiê do le-
gista lança-nos numa das formas da abjeção que poderia se somar àquelas que Kris-
teva seleciona de alguns escritos de Céline no intuito de exemplificar literariamente o
que a psicanalista reconhece por abjeção.
Aliás, Céline – embora não tenha sido mencionado pela autora em A revolução
da linguagem poética e por isso escapa aos autores que nos serviram como um possível
acesso ao tema do corpo – tem a sua sintaxe, de acordo com Kristeva, exposta como
uma continuação de seus ritmos corporais. Kristeva coloca-nos em contato direto
com a possível voz ficcional de Céline. A teórica também persegue a temática do cor-
po na produção textual do escritor, localizando na sua tese de doutorado em medici-
na, de 1924, o envolvimento com as questões que preconizam o corpo. A tese de Cé-
line é a biografia do médico húngaro Ignace Semmelweis, conhecido pelo combate à
epidemia de febre puerperal que levava as parturientes à morte. Kristeva comenta
que, muito antes da descoberta dos micróbios, o médico húngaro sugeria que os mé-
dicos lavassem as mãos depois de terem tocado nos cadáveres: uma medida profilá-
tica para não contaminar as grávidas que depois seriam examinadas pelos mesmos
médicos. Espantosamente, naquela época a sugestão revoltou os médicos e Semmel-
weis foi expulso do hospital. Segundo Kristeva, essa tese serve como uma preparação
para A Viagem ao fim da noite (Voyage au bout de la nuit). Trata-se de um texto central
1
– Travail de professionnel. (Le spécialiste se pencha pour la dernière fois sur la coupure
bien nette de la décapitation.) De plusiers heures postérieur à la mort, compte tenu de
l’épanchement sanguin fort modéré à la partie supérieure du tronc. Vous aurez noté
comme moi le tissu de granulation qui commence à se former sur la plaie pectorale, la-
quelle remonte par conséquent à deux jours environ, alors qu’on observe ni fibroplastes
ni capillaires dans la région du cou – je veux dire de la décapitation –, nettement plus
290
para nós que percorremos o gosto literário de Kristeva no que esse leva em conta o
espaço destinado ao corpo. Existem muitas entrevistas
1
nas quais a escritora alude a
esta obra e também a utiliza de forma a recortá-la da referência celiniana para cons-
truir fortes imagens daquilo que toca no horror, na falta de sentido ou na gama infi-
nita de experiências-limite disponíveis no mundo. O desenvolvimento ficcional da a-
tividade de Céline, embora sua tese já contivesse elementos claramente romanceados,
tal como argumenta Kristeva, age no sentido de estabelecer uma mesma neutralidade
no tratamento de temas diversos. O personagem Ferdinand, por exemplo, de Morte a
crédito, é obcecado pela sujeira anal, como mostra Kristeva (1980: 174). O cadáver
humano, um dos temas de Céline, concentra um máximo entrelaçado de “abjeção e
fascinação”, segundo a psicanalista (1980: 175). Eis o ponto celiniano que nos liga a
Gloria Harrison. As duas guerras mundiais retratadas em A viagem ao fim da noite
convergem para um lugar que Kristeva denomina de massacre ou de morte. Em fun-
ção da escrita desses relatos agônicos, a teórica confere ao escritor o título de “o mai-
or hiper-realista das carnificinas dos tempos modernos” (1980: 175). Afastando-se do
contexto da guerra, Kristeva argumenta que o ponto central de Céline reside no “a-
mor da morte nas fibras, a embriaguez diante do cadáver, esse outro que sou e que
jamais alcançarei, esse horror com o qual me comunico não mais que com o outro se-
xo na volúpia mas que me habita, me excede e me deixa a ponto em que a minha i-
dentidade se rompe no indecidível
2
” (1980: 175). O médico legista de Possessões pare-
ce esvaziar esse espanto diante da morte tão belamente desenvolvido no texto teórico
por Kristeva, pois a abjeção desenvolvida pelo narrador kristevaniano, sob este as-
pecto técnico, perde o seu caráter de enfrentamento e reflexão, entrando na banalida-
de burocrática das atividades roteirizadas:
o pulmão esquerdo revela um edema devido ao efeito agressivo do
fraîche (Possessions, 1996: 53).
1
Nas entrevistas de Julia Kristeva, há uma série de referências celinianas, por exemplo no
volme Julia Kristeva interviews ou em Contre la dépression nationale, ou em Au risque de la
pensée.
2
“l’amour de la mort dans les fibres, l’enivrement devant le cadavre, cet autre que je suis et
que je n’atteindrai jamais, cette horreur avec laquelle je ne communique pas plus qu’avec
l’autre sexe dans la volupté mais qui m’habite, m’excède et me porte au point où mon i-
dentité se renverse dans l’indécidable” (Pouvoirs de l’horreur, 1980: 175).
291
líquido gástrico sobre o tecido pulmonar: cheiro característico de pu-
trefação. Inútil dizer-lhe – se posso me permitir citá-lo – que a subs-
tância amarelada nada mais é senão o conteúdo do estômago; por as-
sim dizer, o sujeito o aspirou sob o efeito da estrangulação que levou
à morte súbita.
(...) as artérias coronárias estão contraídas, o ventrículo esquerdo não
está dilatado, portanto não há falência cardíaca. Acrescente a isso o
edema pulmonar moderado, algumas hemorragias petequiais pul-
monares e cardíacas, uma forte presença de álcool, Rohypnol e Elavil
no conteúdo estomacal
1
(Possessões, 2003: 155-156).
Gloria Harrison trabalhava como tradutora na cidade de Santa Bárbara. Ape-
sar de o domínio de uma língua estrangeira ter o seu viés eminentemente técnico, a
atividade da personagem é também contra a técnica, pois a globalização de Santa
Bárbara, anunciada em O velho e os lobos, não mais valoriza o trabalho sempre penoso
que é o do tradutor. Alba Ram e a sua dedicação a uma língua morta, o latim, prepa-
ra o caminho de exclusão ou de estrangeirismo imputado às mulheres que se arris-
cam a entrar no terreno marcadamente simbólico. Essa relação de exclusão aparece
em A revolução da linguagem poética, nas observações de Kristeva sobre o papel das
mulheres com base no pensamento hegeliano. Diversamente do destino irreversível
da personagem de Possessões, Alba desloca a sua atividade para uma tarefa não me-
nos complexa – a alquimia dos alimentos – na qual o exercício da transubstanciação
se adapta a um universo em que a significação se esfumaça na saciedade gustativa.
Alba, portanto, não mais atua na comunidade. Gloria Harrison, por sua vez, produz,
por intermédio de seu trabalho, um efeito coletivo sobre os santabarbarenses – ela ex-
trapola a esfera do lar, gerando até mesmo um desconforto entre a comunidade, pois
“tomavam-na por uma cerebral, a frieza impregnada de sucesso, uma arrivista inso-
lente
2
” (2003: 125). Gloria Harrison atua na ordem do simbólico porque seu instru-
1
“le poumon gauche révèle un oedème dû à l’effet agressif du liquide gastrique sur le tissu
pulmonaire: odeur caractéristique de putréfaction. Inutile-de-vous-dire – si je puis me
permettre de vous citer – que la substance jaunâtre n’est autre que le contenu de
l’estomac; le sujet l’a pour ainsi dire inhalé sous l’effet de la strangulation qui a conduit
à la mort subite (...) les artères coronaires sont rétrécies, le ventricule gauche n’est pas di-
laté, donc, pas de véritable défaillance cardiaque. Ajoutez à cela l’oedème pulmonaire
modéré, quelques hémorragies pétéchiales pulmonaires et cardiaques, une forte présence
d’alcool, de Rohypnol et d’Élavil dans le contenu stomacal” (Possessions, 1996: 185).
2
“on la prenait pour une cérébrale, la froideur imbue de succès, une arriviste insolente”
(Possessions, 1996: 148).
292
mento é a palavra
1
. Embora localizada no domínio da lei, Gloria Harrison a subverte
duplamente: em primeiro lugar porque invade um terreno masculino e em seguida
porque ela trabalha na contracorrente do mercado literário lucrativo e mesmo assim
é bem sucedida: “Não é fácil como parece, pois por que traduzir, quando ninguém
mais escreve hoje (a não ser os computadores), nem lê (exceto as mulheres sozinhas
na praia, o que não representa realmente um grande público)?
2
(2003: 16). Ironica-
mente, o empenho da personagem pela permanência da cultura escrita redunda em
fracasso. De tradutora invejada Gloria Harrison passa a produto facilmente consu-
mido pela sociedade do espetáculo. A morte espetacular da personagem serve de en-
tretenimento para a indústria da imagem. A exemplo do que acontece com muitos
dos livros que traduz, Gloria Harrison é transformada em personagem, ficcionaliza-
da para um público obviamente menos exigente do que são os leitores de Shakespea-
re ou de Philip Roth (autores traduzidos por Gloria Harrison). Diante de telespecta-
dores habituados a informações, cujo efeito é semelhante àquele proporcionado pelos
enredos fáceis das telenovelas, dos seriados ou da indústria cinematográfica, a vida
de Gloria Harrison se condensa na duração de uma notícia, ou seja, torna-se ainda
mais curta e simplória do que aquelas retratadas nos filmes policiais:
Logo os projetores ofuscantes da tevê iriam misturar-se aos clarões
vermelhos e azuis dos faróis giratórios, e nossa querida Gloria seria
promovida à categoria de estrela da mídia. Servida à guisa de so-
bremesa no jornal televisado. Alguns segundos. Talvez um minuto
ou dois. Decapitação assim o exige. Obra de um serial killer? Crime
passional?
3
(Possessões, 2003: 13).
1
Decorre disso implicações que desenvolvemos no primeiro capítulo e dizem respeito à co-
dependência entre o semiótico e o simbólico e ao fato de que o segundo componente se
liga à imagem do pai, da lei. Anne-Marie Smith, em Speaking the unspeakable, cuja propos-
ta é a condensação de alguns pontos teóricos formulados por Kristeva, liga o semiótico
ao corpo materno, cabendo ao simbólico não o corpo do pai, mas antes a separação da
criança do corpo materno (1998: 20). Todavia, deve-se considerar o papel do pai da pré-
história individual na aquisição da linguagem, apesar de esse não se ligar necessariamen-
te à figura paterna, dado que desempenha função simbólica, está em questão um terceiro
elemento entre a mãe e o bebê na aquisição do simbólico que retira em parte a exclusivi-
dade do legado feminino na formação da linguagem.
2
“Il faut le faire, car pourquoi traduire quand personne n’écrit plus aujourd’hui (sinon les
ordinateurs) ni le lit (sauf les femmes seules à la plage, ce qui ne fait pas vraiment un
gros public)?” (Possessions, 1996: 17).
3
“Bientôt les projecteurs aveuglants de la télé se mêleraient aux éclairs rouge et bleu des
gyrophares, et notre chère Gloria serait promue au rang de star médiatique. Servie en
293
Torna-se impossível isolar a tradutora da técnica na medida em que a sua ro-
tina consistia, segundo o narrador, no “enfrentamento de um presente” em que so-
bressaem uma série de atividades ligadas à técnica tais como doenças, médicos, esco-
la, estacionamento, gasolina, eletricidade, telecomunicações, um pouco de ginástica,
um pouco de perfume, passagens de trem ou de avião (1996: 59). Os antidepressivos
também fazem parte de sua rotina. Conforme a investigação, sabe-se que ela tomava
habitualmente Rohypnol e fora intoxicada pelo Elavil – esse nunca lhe fora receitado.
Se reiniciarmos a análise da personagem Gloria Harrison com base nos indí-
cios de sua vida íntima, ou seja, a partir da coleta de referências que a levam a uma
rede de sentimentos variegados, fatalmente estabeleceremos uma outra relação com a
sua morte. O abuso de medicamentos, por exemplo, desloca-se dos julgamentos a
respeito do caráter da personagem em direção ao acionamento da avaliação (espécie
de sujeito em processo) do receptor. O narrador de Possessões promove essa experiên-
cia de deslocamento de papéis ao expor o corpo de Gloria Harrison em situação de
angústia: “Gloria acumulava as festas com indiferença, e os convidados sem convic-
ção, se é que se pode falar em cair na farra com indiferença, e que a palavra seja ca-
paz de traduzir a solenidade polvilhada de angústia que impregnava suas recep-
ções
1
” (2003: 30). O casamento da tradutora com o pintor Stan Novak fora uma farsa
sentimental, apenas servira para o nascimento de Jerry, mas a criança deficiente – e
todos os cuidados que geralmente os pais dedicam a crianças especiais – não manti-
veram o enlace do casal. Desse episódio distante de uma história de amor – e sabe-
mos do destaque que Kristeva oferece aos enlaçamentos –, observamos uma Gloria
Harrison anestesiada, neutra. Ao saber da morte de Stan Nova num mosteiro indiano
por overdose, ela constrói uma hábil neutralidade como se nunca o tivesse visto até
então, mas que é facilmente desmascarada pela perspicácia da detetive Stéphanie De-
guise de dessert au journal télévisé. Quelques secondes. Peut-être une minute ou deux.
Décapitation oblige. Oeuvre d’un serial killer? Crime passionnel?” (Possessions, 1996: 13-
14).
1
“Gloria accumulait les fêtes avec indifférence et les invités sans conviction, si on peut par-
ler de faire la fête avec indifférence, et pour autant que le mot soit capable de traduire la
solennité saupoudrée d’angoisse qui imprégnait ses réceptions” (Possessions, 1996: 33).
294
lacour: “A notícia esbarrara no desligamento que era costumeiro em minha amiga –
desde quando, mesmo? Uma neutralidade um pouquinho arrogante, que de modo
algum a impedia de me instilar confidências em cada uma de minhas visitas
1
” (2003:
36). Os traços de melancolia da tradutora consolidam-se na imagem gustativa de
uma insipidez expressivamente masoquista: “Gloria sabia saborear toda a gama de
uma paixão maculada, mas ainda não extinta. (...). Mas essa felicidade insípida con-
gelava-se, emparedava-se, como se estivessem mortos um para o outro
2
” (2003: 37).
A insipidez gustativa também se manifesta em personagens de Clarice Lispector.
Tanto Kristeva quanto Clarice vasculham no repertório das sensações caminhos para
tornar acessível a natureza virtual das sensações-sentimentos que essas autoras atri-
buem a seus personagens.
O divisor de águas na vida de Gloria Harrison é a maternidade: o nascimento
de Jerry. Decorre de sua capacidade de gerar a manifestação do sentimento de culpa
que repercutirá mais adiante sobre a sua morte trágica. A culpa aloja-se na tradutora
no momento em que seu filho é reconhecido como uma criança deficiente, aproxi-
mando-a, muito antes de ser cruelmente assassinada, de um ato criminoso não como
vítima, mas, surpreendentemente, como assassina. Gloria Harrison percebe-se como
a responsável por uma vida limitada, ela dá à luz a uma criança incapaz de viver
plenamente, por isso é interpretada pela detetive como uma mulher na qual se de-
sencadeiam sentimentos conflitantes de vida e morte, os quais culminam na sensação
de angústia: “Gloria poderia ter-se suicidado, sim. Devia – eu o teria feito, se estives-
se em seu lugar – eliminar os sofrimentos de Jerry, portanto Jerry em pessoa, e em
seguida liquidar ela mesma a responsável pelo crime
3
” (2003: 50). Por trás da aparen-
te neutralidade da tradutora concentra-se o sentimento de solidão que ela cultiva ao
1
“La nouvelle s’était heurtée au détachement dont mon amie était coutumière, depuis
quand déjà? Une neutralité à peine arrogante qui ne l’empêchait nullement de me distil-
ler des confidences à chacune de mes visites” (Possessions, 1996: 40).
2
“Gloria savait goûter toute la gamme d’une passion brimmé mais pas encore éteinte. (...)
Mais ce fade bonheur se figeait, semmurait comme s’ils étaient morts l’un à l’autre”
(Possessions, 1996: 41).
3
“Gloria aurait pu se suicider, ça oui. Elle aurait dû, je l’aurais fait si j’avais été à sa place:
effacer les souffrances de Jerry, donc Jerry en personne, et liquider ensuite elle-même la
responsable du crime” (Possessions, 1996: 57).
295
cuidar de uma criança cuja figura paterna desaparece de cena: “Não podendo contar
com aquele a quem amamos, já não contamos com ninguém, mas em compensação
adquirimos a dureza inumerável e consistente da areia. Os anos passam, a areia con-
tinua a só contar consigo mesma: imensa, oculta solidão
1
” (2003: 54). Diversamente
de uma perversa vocação para o masoquismo, a capacidade de sentir da tradutora
adere-se ao enfrentamento dos obstáculos. O narrador convence-nos de que são pou-
cos os que convivem com o sofrimento sem nele naufragar. Nesse sentido, a perso-
nagem se diferencia de tipos que, a exemplo de Stan Novak, soçobram ao sinal do in-
fortúnio, da dor:
Por que razão parece faltar profundidade a certas pessoas? Sem vol-
tar para os aspectos sórdidos da vida, Gloria pensava que se chama
profundidade à aptidão para suportar a dor com discrição. Não era
para se gabar, mas achava que para isso era preciso uma energia
tranqüila. Alguns fracos desabam, outros fecham as janelas da alma e
fogem
2
(Possessões, 2003: 54-55).
Transformando a sua frustração de geratriz em dedicação extremada ao filho,
Gloria Harrison, ao longo do tempo, aprendeu a conviver com Jerry, evitando pala-
vras como “deficiente” ou “normal”, as quais acentuariam as limitações da criança. A
respeito da maternidade, localizamos no volume O ódio e o perdão (La haine et le par-
don), no artigo “Das madonas aos nus: uma representação da beleza feminina” (“Des
madones aux nus: une représentation de la beauté féminine”), alguns apontamentos
acerca do feminino na construção estética feita por Kristeva que serão úteis para
marcar o adensamento da maternidade que ela preconiza.
Segundo a psicanalista, a idéia do feminino é própria do cristianismo, que cris-
talizou uma certa noção de beleza a qual influenciou por conseguinte a noção de di-
ferença sexual. Vejamos os caminhos de Kristeva que a levam a essas associações. A
1
“Ne pouvant compter sur celui que vous aimez, vous ne comptez plus sur personne, mais
acquérez en revanche la dureté innombrable et inconsistante du sable. Les années pas-
sent, le sable ne compte toujours que sur lui-même: immense, irrepérable solitude” (Pos-
sessions, 1996: 61-62).
2
“D’où vient que certaines personnes semblent manquer de profondeur? Sans verser dans le
misérabilisme, Gloria pensait qu’on appelle profondeur l’aptitude à se tenir dans la dou-
leur avec discrétion. Ce n’était pas pour se flatter, mais elle estimait qu’il y fallait une
force calme. Certains faibles s’effondrent, d’autres ferment les volets de leur âme et
s’enfuient.” (Possessions, 1996: 62).
296
teórica observa na beleza, especialmente na beleza feminina, a mais “surpreendente”
e “paradoxal” invenção do cristianismo (2005: 144). Kristeva volta ao milagre da En-
carnação – estamos diante da Virgem Maria – para nos trazer um sentido esquecido
da palavra milagre que remonta ao sânscrito. Trata-se do riso e seu convite para o
duplo exercício de ver e ser visto. Para Kristeva está no riso “a mais espiritual das
manifestações físicas
1
”; além disso, o riso é indispensável no início da formação da
identidade do futuro sujeito falante – o riso do bebê, característico do estádio do es-
pelho, também é mencionado pela psicanalista. Desde a Grécia, Kristeva procura por
vestígios da beleza no que essa permite a associação milagre-espelho-sorriso. O culto
helenista do corpo harmonioso – sobretudo do corpo masculino, mas também há re-
ferências ao corpo feminino – será herdado e modificado pela arte cristã. Kristeva
parte das diferenças dos corpos masculino/feminino para fundamentar a sua dialé-
tica ver/ser visto, pois, enquanto os homens, sujeitos fálicos que são, dispõem de um
“olhar penetrante” (2005: 145), a mulher, por sua vez, possui um corpo de cavidades,
um útero, ou seja, elementos invisíveis e, por extensão, um gozo “pouco visível”.
Kristeva situa a expressão do prazer feminino, ironicamente, no sorriso, mas adverte
que somos passíveis de fingimento. Em suma, no jogo prazeroso do olhar, do ver, re-
conhecidamente masculino, e do ser visto, próprio das mulheres, está a influência
histórica da Virgem Maria. Deve-se, conforme Kristeva, à Encarnação toda essa capa-
cidade extraordinária de ver que enobrece o masculino: “O corpo de Maria é indis-
pensável à chegada ao mundo visível do Deus-Pai invisível
2
” (2005: 146). Em função
disso, Kristeva explica que o corpo de Maria não é para aparecer, uma vez que se tra-
ta de um “corpo amoroso”. Sustentada pela Estética hegeliana, a devoção amorosa da
qual a psicanalista nos fala via mãe de Cristo é fundada sobre o desejo e o amor con-
siste na ‘“relação física espiritualizada’”, tendo nas mulheres a expressão da sua be-
leza. Nessa linha, Gloria Harrison lembra-nos, por seu gesto materno de amor e ade-
rência questionável, a representação da Virgem Maria, já que a mãe de Cristo é a pre-
1
“la plus spirituelle des manifestations physiques” (“Des madones aux nus…”, 2005: 144).
2
“le corps de Marie est indispensable à la venue au monde visible du Dieu-Père invisible”
(“Des madones aux nus...”, 2005: 146).
297
cursora das mulheres que se apagam para dar vida a filhos cujo destino é o de ultra-
passá-las:
A criança acabara por possuir Gloria. Sexo, ambição, sedução, suces-
so profissional, charme feminino, ginástica, equitação, cabeleireiro,
saídas, jantares, convites, coquetéis – o mundo, por assim dizer, vo-
lativizara-se. Desaparecera. Mais nada. Mas Gloria mal percebia, não
lamentava nada, vivia intensamente. A possessão: um só amor que
absorve o universo e reabsorve você dentro dele, ou fora, não faz di-
ferença. Não há mais “você”
1
(Possessões, 2003: 57).
A tradutora ultrapassa o trauma sob pena de perder-se no filho. Na breve re-
construção da história da beleza tecida pela escritora, observamos a ponte para a re-
lação entre o feminino e a imagem devoradora. Para Kristeva, a história do feminino
é a história contada ou retratada pelos artistas ocidentais, sobretudo aquela construí-
da pelos pintores. Os exemplos da autora aproximam pintura e literatura na repre-
sentação do feminino. Por exemplo, a Beatriz de Dante (1263-1321) divide a cena com
as pinturas de Giotto (1266-1337), antecedendo Fra Angelico (1400-1455) e Bellini
(1432-1516). Proust, que, segundo a teórica, define “estilo” como “visão”, compete ao
lado dos pintores impressionistas. Autores tais como Georges Bataille (1897-1962) e
James Joyce (1882-1941), que despertaram o interesse dos telquelianos, são contem-
porâneos de Picasso (1881-1973). O feminino guarda, nessa medida, um imaginário
que é da ordem do masculino (2005: 149), assim podemos percebê-lo pela profusão
de homens que moldaram a história da arte ocidental. Ao mesmo tempo em que
chama a atenção para esse aspecto, questiona a apreensão da beleza feminina pelo
olhar masculino, pois, se o que está em jogo na composição dessa beleza é o imaginá-
rio masculino, seus fantasmas, seus desejos sob um olhar com um pouco de sadismo
que a autora reconhece nas pinturas que analisa, é preciso ter em mente que o ponto
não se resolve facilmente na pura divisão dos papéis sexuais. Valendo-se das telas de
Picasso, que pintou muitas cenas de sofrimento, de violência e também de toureiros,
1
“L’enfant avait fini par posséder Gloria. Sexe, ambition, séduction, réussite profession-
nelle, charme féminin, gym, équitation, coiffeur, sorties, dîners, invitations, cocktails – le
monde, autant dire, s’était volatilisé. Disparu. Plus rien. Mais c’était à peine si Gloria
s’en apercevait, elle ne regrettait rien, vivait à fond. La possession: un seul amour qui ab-
sorbe l’univers et vous résorbe dedans, ou dehors, aucune différence. Il n’y a plus de
‘vous’” (Possessions, 1996: 65).
298
Kristeva suscita a possibilidade de que os pintores carregam traços enviesadamente
maternais nesses gestos que parecem se esgotar na pura violência: “Como não ver no
entanto que o gesto do pintor não é somente uma estocada de toureiro hábil sobre a
carne de sua vítima, mas um verdadeiro abraço da mulher por esta outra mulher que
se torna o pintor na sua identificação amorosa com o seu modelo?
1
” (2005: 150). Em
O velho e os lobos, mencionamos a aterrorizante imagem que Kristeva cria para dar
um corpo ao sujeito melancólico: é algo sem localização e se assemelha a uma “Coisa
enterrada viva”. Reavivamos essa imagem porque ela nos parece com um aspecto
fundamental da vida psíquica de Gloria Harrison. Segundo o narrador, ela “Cuidava
permanentemente de uma invisível ferida
2
” (2003: 60). Na deficiência de Jerry, ou em
outras palavras, na diferença que representa Jerry, Gloria Harrison toma consciência
de sua própria melancolia identificando-se à imagem imperfeita e no entanto familiar
que é a do seu filho: “Como poderia ela ter engendrado um ser como os outros, com
todas aquelas feridas no interior? Transmitira a ele essa invisível derrota, presente
envenenado. Amava em Jerry sua própria fraqueza insuspeitada, aquela debilidade
terna e oculta
3
” (2003: 61). A ternura é portanto um sentimento materno, mas não a-
paga a ligação narcísica entre a mãe e seu bebê. Para o artista, conforme Kristeva
(“Das madonas aos nus...”, 2005: 162), a mãe é constantemente objeto de blasfêmia,
alguns chegam ao matricídio estético no intuito de criar signos novos, ou seja, a expe-
riência que buscam é aquela de prestar contribuições para frear a automatização do
sentido desgastado. Observa-se que Kristeva mantém as bases do discurso revolu-
cionário de sua tese de doutorado.
Na formação de Gloria Harrison a autora evoca uma lembrança materna de
sua infância na Bulgária. Chegamos a essa relação em que a maternidade se aproxi-
1
“Comment ne pas voir cependant que le geste du peintre n’est seulement une estocade de
torero habile sur la chair de sa victime, mais une véritable étreinte de la femme par cette
autre femme que devient le peintre dans son identification amoureuse avec son modèle?”
(“Des madones aux nus..”, 2005: 151).
2
“Elle soignait en permanence une invisible blessure” (Possessions, 1996: 68).
3
“Comment aurait-elle pu engendrer un être comme les autres avec toutes ces blessures à
l’intérieur? Cette invisible débâcle, elle la lui avait transmise, cadeau empoisonné. Elle
aimait en Jerry sa propre faiblesse insoupçonnée, cette débilité tendre et cachée” (Posses-
sions, 1996: 70).
299
ma da imagem pelas informações biográficas posteriores à publicação de Possessões
com que a escritora nos presenteia no artigo “Do desenho, ou a velocidade do pen-
samento“ (“Du dessin, ou la vitesse de la pensée”), em Visões capitais. A autora guar-
da como lembrança de sua mãe esse exercício do olhar que em outro texto é descrito
pelo seu viés tipicamente masculino: “Um rosto, uma paisagem, um animal, uma flor
(...) sem se forçar, sem pensar, o ar de ninguém, minha mãe desenhava como outros
respiram ou bordam
1
” (1998: 12). Curiosamente, a decapitação da tradutora de Santa
Bárbara tem uma da suas origens em um episódio familiar. Kristeva comenta que,
ainda criança, na Bulgária, em um inverno muito rigoroso, ela escutava um progra-
ma de rádio com sua mãe e sua irmã. Da pergunta do locutor de rádio – “Qual é o
meio de transporte mais rápido do mundo? –, ganharia um prêmio aquele que elabo-
rasse uma resposta anexada de um desenho correspondente. A irmã mais nova de
Kristeva encontra rapidamente a resposta na velocidade dos aviões; Kristeva, para
rebatê-la, e contente por ter a “última palavra”, aposta no foguete. A mãe delas sus-
tenta um ponto mais sofisticado ainda ao dizer que a resposta está no pensamento.
Confessando-se insolente, Kristeva desafia a mãe: “Talvez, mas não se pode desenhar
um pensamento, ele é invisível
2
” (1998: 13). A carta foi enviada no nome de Kristeva,
e o desenho feito pela mãe da escritora lhe rendeu o prêmio radiofônico. Nela está
um homenzinho de neve que se afunda, de forma a destacar a cabeça pendida, como
se estivesse “cortada pela invisível guilhotina do sol
3
” (1998: 13) . É uma importante
imagem, pois não apenas retoma o longínquo estado de angústia do pensamento em
suspensão da autora que está já na sua infância, mas também a insere no centro da
cultura francesa (da qual ela participa na qualidade de estrangeira, mas com evidente
entusiasmo) ao evocar o horror da guilhotina.
No final dessa história premiada, Kristeva reconhece aí a inspiração para a
composição de Gloria Harrison, a mulher sem a cabeça. A tradutora de Santa Bárbara
1
Un visage, un paysage, un animal, une fleur, () sans se forcer, sans y penser, lair de
rien, ma mère dessinait comme d’autres respirent ou brodent” (“Du dessin…”, 1998: 12).
2
Peut-être, mais on ne peut pas dessiner une pensée, c’est invisible’” (“Du dessein…”,
1998” 13).
3
“l’invisible guillotine du soleil” (“Du dessin...”, 1998: 13).
300
traz à tona angústias de morte de sua autora, pois Kristeva, por meio de Gloria Har-
rison, se compara à natureza fugaz do boneco de neve. Trata-se, portanto, de uma lu-
ta contra a brevidade da vida na qual o corpo está em primeiro plano: “meu corpo é
tão passageiro quanto o homenzinho de neve que começa por perder a cabeça antes
de se apagar na poça de água
1
” (1998: 13), confessa a autora. A rememoração do de-
senho materno, que atualmente só existe na imaginação de Kristeva, inaugura a série
de artigos presentes em Visões capitais e também abre caminho para a discussão das
imagens a partir dos ícones bizantinos.
Algumas considerações importantes sobre a formação histórica das imagens
no Ocidente têm como ponto de partida a influência da iconografia bizantina. Bus-
camos em artigos de Kristeva a fonte a que ela recorre para percorrer essa formação
antiga da história das imagens e chegamos à obra de Marie-José Mondzain, Imagem,
ícone, economia: as fontes bizantinas do imaginário contemporâneo
2
. Retomaremos al-
guns pontos dessa influência bizantina com base nas pesquisas de Mondzain, pois
são as utilizadas por Kristeva na composição de seus apontamentos sobre essa ques-
tão que servirá como fundamento histórico para a nossa tese cujo eixo é o aprimora-
mento dos meios técnicos – sobretudo aqueles em que as imagens ditam as regras – e
a interferência no corpo de modo a torná-lo desnecessário.
Mondzain inicia a sua investigação sobre as imagens pelo mesmo sentimento
de perplexidade que motiva o questionamento da técnica realizado por Kristeva, ou
seja, no que ela tem de perversamente visual. Kristeva desenvolve essa temática em
textos como As novas doenças da alma, Sentido e contra-senso da revolta, A revolta íntima.
As duas autoras comungam o fato de que vivemos um momento de imperialismo vi-
sual e audiovisual, o qual limita a liberdade do pensamento, ou o que chamam de
“reflexão crítica”. Mondzain recorre, nessa medida, a uma gênese das imagens. Kris-
teva busca em pensadores da psicanálise e da filosofia elementos para o seu diagnós-
tico da perda do sentido e a redução da liberdade do sujeito.
1
“mon corps est aussi passager que ce bonhomme de neige qui commence par predre la tête
avant de s’effacer dans une flaque d’eau” (“Du dessin…”, 1998: 13).
2
Kristeva cita esta obra de Mondzain em Visions capitales (“Une digression: économie, fig-
ure, visage”, 1998: 57-69) e em La Haine et le pardon (“L’Europe divisée: politique, éthi-
301
Mondzain retira da Grécia o peso do nosso legado imagético. Segundo a auto-
ra, estamos habituados a tomar a Grécia como ponto de partida indispensável para a
análise do mundo ocidental, sobretudo no tocante à filosofia e também à linguagem.
A indagação de Mondzain é análoga àquela empreendida por Kristeva no conjunto
dos textos supracitados, ou seja, a historiadora interroga os limites do mundo visível.
O mundo das aparências que nos é dado, por exemplo, é de liberdade ou de escravi-
dão? Para tanto, Mondzain apóia-se na diferença entre o visível e o invisível, na qual
é possível estabelecer uma reconstrução histórica a partir da distinção entre imagem
e ícone. A imagem é invisível. O ícone é visível. O mistério é um atributo da imagem.
O enigma é um atributo do ícone (1996: 15). Mondzain sustenta no conceito da eco-
nomia o ponto de articulação entre ícone e imagem voltando à etimologia desse ter-
mo. Ela observa nas traduções criteriosas de textos clássicos diferentes traduções pa-
ra a palavra economia, por exemplo: “encarnação”, “plano”, “desenho”, “administra-
ção”, “providência”, “mentira”, “função” (1996: 27). No texto bíblico, a autora encon-
tra no evangelho de São Paulo o vínculo entre economia e encarnação, que será em-
pregado a partir do III século até os dias de hoje. O termo economia, nessa medida,
teve um lugar determinante na defesa do ícone.
Mondzain examina a organização semântica do pensamento econômico. A his-
toriadora afirma que o termo oikonomia não aparece em Homero, ou em Heródoto,
tampouco em Tucídides ou nos poetas líricos. A primeira ocorrência do substantivo
está em Xenofonte com o objetivo de meditar sobre a gestão da vida doméstica, de
forma, obviamente, prática. Mondzain conclui, pela sua leitura de autores clássicos,
que o discurso econômico é inseparável de uma reflexão sobre a utilidade e o apro-
veitamento das atividades a que os homens se dedicam (1996: 33). Mondzain também
chama a atenção para o fato de que não se pode separar a economia de sua significa-
ção jurídica, pois independente do seu campo de atuação a economia sempre reenvia
a uma reflexão sobre o direito, sobre a lei e sua legitimidade (1996: 35). Paradoxal-
mente, a economia trinitária, conforme a observação de Mondzain, opõe-se à teologi-
a. Ora, o discurso sobre a substância divina e suas características de eternidade e
que, religion, 2005: 47-86).
302
transcendência, que ultrapassam a tentativa de compreensão e de visibilidade, en-
tram em desalinho com a demanda da figurabilidade (1996: 36). Existe uma diferença
crucial, portanto, entre economia e teologia. Na primeira, a crença se sustenta no o-
lhar; na segunda, a crença prescinde do olhar. Um dos pontos mais importantes na
relação economia-imagem está em A trindade, livro VIII, de santo Agostinho. Mond-
zain localiza aí uma longa meditação sobre a imagem na qual os homens se aproxi-
mam da representação divina na medida em que fazem parte da mesma trindade que
constitui o Pai. Portanto, a trindade está no homem e no Cristo. O próprio Cristo, se-
gundo Mondzain, é a expressão máxima da economia, pois ele participa intrinseca-
mente da distribuição trinitária. Ele se torna visível, um instrumento do Pai pela uni-
ão do Verbo e da carne (1996: 51). Segundo Mondzain, o mistério da transubstancia-
ção – aquele que Kristeva localiza na experiência literária, sobretudo na sua leitura de
Proust – não teria sentido se o corpo e o sangue que nos compõem não fossem tam-
bém à imagem e semelhança de Cristo.
Mondzain sustenta que a igreja iconófila se beneficiou do poder dos ícones e
construiu seu império em função desses emblemas irrefutáveis de poder. A autora
encontra na leitura dos evangelhos a relação entre dinheiro e crença. No texto de Ma-
teus 22, 21 está a seguinte orientação - “Dai, pois, o que é de César a César, e o que é
de Deus, a Deus” – passagem recortada pela historiadora para enfatizar que havia
uma distinção entre o poder espiritual e o poder temporal. O texto de São Paulo, Ro
13, 6-7, por sua vez, “não faz questão de separar Deus de César”. Há uma mistura do
que é profano (dinheiro) com as obrigações espirituais (crença): “É também por isso
que pagais impostos, pois os que governam são servidores de Deus, que se desin-
cumbem com zelo do seu ofício. Dai a cada um o que lhe é devido: o imposto a quem
é devido; a taxa a quem é devida; a reverência a quem é devida; a honra a quem é
devida”. Conforme Mondzain, imperadores e imperatrizes se beneficiaram da com-
panhia de Cristo, da Virgem e dos santos, ganhando prestígio às custas do sagrado
embutido nessas figuras. Entre os anos de 692-695, Justiniano II ficou famoso ao cu-
nhar uma moeda em que de um lado ele aparecia de barba, de coroa, com uma cruz e
um grande manto de losangos e do outro lado havia o busto de Cristo, a cruz atrás
da cabeça, cabelos e barba longas, de túnica e manto, a mão direita em gesto de bên-
303
ção e os Evangelhos (1996: 195). Conforme ainda Mondzain, o triunfo do ícone está
na igreja, prestígio que resultou na ascensão da própria igreja, resultando no que de-
nomina “teocracia do visível”. Essa é uma doutrina simultaneamente especulativa e
estratégica em que vigoram visões impostas, autoritárias (1996: 205). Nesse sentido, a
autora lança a figura do iconocrata, aquele que detém o monopólio da produção das
imagens e de suas mensagens. Cabe ao iconocrata o estabelecimento do que é bom,
justo, ou seja, é ele quem determina o que deve ser visto.
Dentro dessa economia da fé está, em um primeiro nível indispensável, a eco-
nomia da encarnação. Esbarramos inevitavelmente na Virgem Maria e em sua crucial
relevância na formação das imagens. Mondzain oferece-nos uma definição de encar-
nação que não é a imersão na carne ou uma idealização da matéria, mas se liga a uma
espécie de olhar construído em função do desejo de ser visto. Segundo a autora, o
tornar-se carne é “a obtenção de um certo olhar no lugar vazio onde se encarna aquele que
acede à existência quando ele entra no campo daquilo que o constitui pelo olhar de um outro
1
(1996: 218). Dado que é diversa de uma materialização, a encarnação atua pelo seu
oposto, a desmaterialização, ou seja, está relacionada à “idealização da matéria”
(1996: 124). A encarnação, nessa medida, atua pela imaginação. Parece-nos que tanto
os defensores das imagens, isto é, aqueles que advogam em favor da invisibilidade
de sua crença, quanto aqueles que fazem questão de retratar os ícones estão sob o
papel da imaginação no que essa se caracteriza pela “ausência do vazio” (para usar
uma expressão da autora). A economia iconoclasta e sua encarnação, entretanto, se-
gundo Mondzain, não deixam margem para serem relacionadas à imaginação, pois
tal economia só aceita a imitação de uma vida virtuosa, tendo como suportes apenas
a eucaristia e cruz, esta é “a verdadeira imagem e signo da economia do Cristo”
(1996: 146). E as possíveis construções mentais individuais de um Cristo transcenden-
te? Preferimos pensar que elas podem ser imaginadas a despeito de sua transcendên-
cia supostamente inalcançável. Sobre esse aspecto, questionamos o ponto de Mond-
zain. A encarnação, no tocante aos iconófilos para a autora, é claramente da ordem
1
“l’obtention d’un certain regard dans le lieu vide où s’incarne celui qui accède à l’existence
quand il entre dans le champ de ce qui le constitue pour le regard d’un autre” (Image,
icone, économie…, 1996: 218).
304
da imaginação: “Pode-se dizer que aquilo que o ícone imita não é a visão do homem
sobre as coisas, mas a visão imaginada de Deus sobre os homens
1
” (1996: 217). Se
podemos imaginar a visão de Cristo e retratá-la em diversas formas que ganham até
mesmo status de “a verdadeira” imagem de Cristo, formatando inclusive um imagi-
nário da fé, por que não poderíamos imaginar um Cristo transcendente sob os olhos
dos homens que figuraria numa esfera muito íntima?
Subjacente a essas questões que promovem o entrelaçamento entre crença, e-
conomia e o olhar está a representação paradoxal do corpo da Virgem, mãe sem ter
sido fecundada, abrindo espaço para se pensar no vazio, cuja origem está na palavra
grega Kénos. Tanto Mondzain quanto Kristeva observam na Virgem, cujo corpo é um
receptáculo materno para a gestação do Salvador, a gênese das composições visuais
do Ocidente.
Em Visões capitais, Kristeva localiza na imagem uma das vias para o sagrado,
assunto que a autora preconiza desde a tese, assim como desenvolvemos no nosso
primeiro capítulo. Obviamente, Kristeva não louva as imagens desgastadas dos a-
núncios publicitários, das telenovelas ou do fluxo de informações do telejornalismo.
Em contrapartida, oferece algumas imagens que dialogam com a esfera do sagrado (o
que é diferente do vínculo a uma crença religiosa) e dessa forma faz uma distinção
entre a técnica e o que convenciona de sagrado. Na abertura de Visões capitais, Kriste-
va marca essa distinção por meio de um convite de busca por um repertório visual:
“Nas páginas que seguem, tentaremos mostrar que algumas imagens e alguns olha-
res podem ainda oferecer aos humanos que nós somos, sempre mais tempo absorvi-
dos pela técnica, uma experiência do sagrado
2
” (1998: 11). Em seguida, ela aciona em
seus interlocutores uma série de dúvidas a respeito de que sagrado, de que olhar ou
de quais imagens serão analisadas por ela. Quais representações visuais são efetiva-
mente as basilares do nosso olhar ocidental carregado de sobreposições sígnicas? A
resposta consiste em uma série de referências visuais que ecoam, como veremos, em
1
“On pourrait dire que ce l’icône imite, ce n’est pas la vision de l’homme sur les choses,
mais le regard imaginé de Dieu sur les hommes” (Image, icône, économie..., 1996: 217).
2
“Les pages qui suivent essaieront de montrer que certaines images et certains regards peu-
vent encore offrir aux humains que nous sommes, toujours davantage absorbés par la
305
Possessões e têm como ponto de partida a representação materna. O relato autobiográ-
fico que lhe rendeu o prêmio radiofônico serve como uma história amena para o
complicado processo de aquisição da linguagem pelo qual todos os sujeitos falantes
passam. E será retomado pela autora na seqüência de seu episódio familiar.
Antes da fala, segundo Kristeva, está a tristeza. Trata-se de um estado passa-
geiro, chamado de “posição depressiva”, em que a criança encontra prazer em seu
corpo fragmentado misturado ao rosto de sua genitora. A maturação neuropsíquica
somada aos bons cuidados parentais promovem um suporte adequado para o bebê
ultrapassar o sentimento de “ausência da mãe”. Essa falta corresponde ao primeiro
luto, período em que o lactente experimenta a vontade de morrer para o pensamento,
para a fala e até mesmo nega o alimento materno. Segundo Kristeva, existe, para a
nossa sobrevivência psíquica, uma saudável e necessária substituição da imagem ma-
terna: “A maior parte, no entanto, substitui o rosto ausente, tanto amado quanto te-
mido, fonte de gozo e de pavor por... uma representação. Eu perdi mamãe? Não, eu a
alucino: eu vejo sua imagem, depois eu a nomeio
1
” (1998: 14). Em Sol negro, Kristeva
sustenta esse argumento sobre o caráter melancólico da imaginação na medida em
que afirma que “não existe imaginação que não seja, aberta ou secretamente, melan-
cólica
2
” (1989: 13). Podemos vê-lo suficientemente desdobrado nos exemplos que
constituem as “visões capitais”, pois a psicanalista descreve o exacerbado sofrimento
desencadeado no lactente pela ausência da mãe – um sofrimento que se transforma
na capacidade de imaginar e, em seguida, na formação da linguagem: “Um corpo me
deixa: seu calor tátil, sua música que acaricia o meu ouvido, a visão que me deixam
sua cabeça e seu rosto perdidos. A esse desaparecimento capital eu substituo por
uma visão capital: minhas alucinações e minhas palavras
3
” (1998: 15). Kristeva chama
technique, une expérience du sacré” (“Du dessin, ou la vitesse de la pensée”, 1998: 11).
1
“La plupart, toutefois, remplacent le visage absent, aussi aimé que redouté, source de joie
et d’effroi par... une représentation. J’ai perdu maman? Non, je l’hallucine: je vois son
image, puis je la nomme” (“Du dessin, ou la vitesse de la pensée”, 1998: 14).
2
“il n’est d’imagination qui ne soit, ouvertement ou secrètement, mélancolique” (Soleil noir,
1987: 15).
3
“Un corps me quitte: sa chaleur tactile, sa musique qui flatte mon oreille, la vue que me
donnent sa tête et son visage perdues. A cette disparition capitale je substitue une vision
capitale: mes hallucinations et mes mots” (“Du dessin, ou la vitesse de la pensée”, 1998:
306
isso que ultrapassa a depressão e oferece expressão para a linguagem de imaginação,
a qual é também para a teórica, da mesma forma que é para Mondzain, uma “encar-
nação” (Visões capitais, 1998: 15). Na base da nossa capacidade de representação resi-
de a imagem de uma “cabeça perdida”. Gloria Harrison, portanto, simboliza o que há
de aterrorizante e arcaico na constituição do sujeito que tem acesso à linguagem.
No ensaio “O crânio: culto e arte” (“Le crâne: culte et art”), em Visões capitais,
sem a pretensão de rivalizar com a erudição dos antropólogos, Kristeva faz questão
de expor as lacunas de sua investigação, e retorna para a importância histórica do
culto dos crânios, os quais remontam ao paleolítico inferior, uma data aproximada de
dois milhões a 100 000 anos antes de Cristo. Com a função de ornamento ou adoração
ou de participação em rituais de canibalismo, os crânios acompanham a história da
humanidade em diversos períodos e em diferentes países (1998: 19-20). Na composi-
ção do rosto, uma referência crucial para o lactente, Kristeva realça o crânio. Obser-
va-se que esses dois elementos são presas fáceis do olhar para o recém-nascido. No
que diz respeito à macro-história arcaica, Kristeva volta aos rituais do canibalismo,
que depois se transformam em rituais totêmicos – essas associações levam-nos inevi-
tavelmente ao Totem e tabu freudiano e, por conseguinte, à formação da linguagem, à
instituição da lei. Segundo a autora, esse trajeto do canibalismo para o totemismo
guarda algo da “perda original do corpo nutriz que o sujeito alucina como uma cabe-
ça que o deixa
1
” (1998: 24). Fica como lembrança dessa experiência traumática para o
futuro sujeito falante a tentativa de reprodução desse prazer oral e a forte ligação
com a cabeça materna, que se soma àquela do seio, amplamente discutida pelos psi-
canalistas, sobretudo os kleinianos. Conforme Kristeva, o culto do crânio nas civiliza-
ções antigas toca nas figuras parentais, pois significa a perda original da mãe e amea-
ça de castração desencadeada pelo pai. Kristeva sugere a figura feminina na forma-
ção do simbólico, tal como aventamos na nossa interpretação de Poderes do horror, em
que a autora parece deslocar o esboço do simbólico, da lei, para a figura materna,
com sua carga de estímulo tátil, visual, olfativo: “a assimilação da cabeça nos parece
15).
1
“la perte originelle du corps nourricier que le sujet hallucine comme une tête qui le quitte”
(“Le crâne: culte et art”, 1998: 24)
307
ser igualmente um possível equivalente arcaico do incesto, seu deslocamento rumo
ao prazer oral e ao rosto alucinado
1
” (1998: 25). Kristeva atenua esse ponto que poria
as mulheres no centro não apenas do semiótico mas também do simbólico. A autora
vale-se desses dados arqueológicos para retornar à hipótese freudiana de que a soci-
edade estaria fundada sobre um crime cometido em comum cujo sacrifício abarca os
dois pais, pois existe sacrifício dos dois lados. Nesse sentido, o culto dos crânios ca-
racteriza-se por uma dupla identificação (mãe/pai), cujo resultado está na renúncia
dos homens a todas as mulheres, o que implica assumir a própria feminidade. É essa
identificação do masculino ao feminino que caminha rumo à sublimação dos instin-
tos” e chega à “instauração da lei”.
Interessa-nos sobretudo nesse combate entre a lei e o desejo uma estrutura co-
presente que subjaz à formação das palavras, na qual coabitam, sem esconder uma
rede pulsional de difícil apreensão, sexualidade e pensamento: “A criança, antes da
fase depressiva, se serve não de símbolos mas de equivalentes simbólicos que são
tanto ‘ações’ quanto ‘pensamentos’: as palavras são da alimentação, os signos são sa-
tisfações
2
” (1998: 25). Esse jogo também desliza para o universo eminentemente visu-
al dos pintores. Sobre o olhar incomum dos pintores, o narrador de Possessões filoso-
fa:
Os olhos dos pintores (...) são sempre recobertos de uma pele sensí-
vel, saturada de pontos brilhantes, que falta à maioria dos outros
humanos. Na superfície úmida dessas antenas parabólicas, cruzam-
se as emanações dos objetos e dos seres exteriores, assim como as
pulsações sonoras, táteis, olfativas e todo tipo de cataclismos bioló-
gicos provenientes do próprio corpo oco. O olho transmuta esses es-
tímulos ínfimos e caóticos em bagatelas visuais. Olho boca, olho pe-
le, olho ouvido, olho pênis, olho vagina, olho ânus, olho garganta e
assim por diante: o olho do pintor recobre, para começar, os cinco
sentidos e, para terminar, o resto inumerável do corpo, com uma pe-
lícula que torna visível sobretudo o que não se vê (...) À força de
transformar o sensível em espetáculo, o olho do pintor não só não
pode se furtar de ir, mas vai direto ao fundo invisível do espetáculo
que é o crime, o assassinato de homem ou mulher. Portanto, é por
1
“l’assimilation de la tête nous apparaît être également un possible équivalent archaïque de
l’inceste, son déplacement vers le plaisir oral et le visage halluciné” (“Le crâne: culte et
art”, 1998: 25).
2
“L’enfant, avant la phase dépressive, se sert non pas de symboles mais d’équivalents sym-
boliques qui sont autant des “actions” que des “pensées”: les mots sont de la nourriture,
les signes sont des satisfactions” (“Le crâne: culte et art”, 1998: 25).
308
excesso de refinamento que os maiores dentre eles têm gostos de a-
natomistas ou de açougueiros
1
(Possessions, 2003: 14-15).
Possivelmente nesse olhar incomum – dos pintores – ressoam as sensações ar-
caicas do contato com a figura materna. Em Visões capitais, no ensaio “Quem é medu-
sa?” (“Qui est Méduse?”), Kristeva retorna a essa figura mitológica. A psicanalista in-
teressa-se pelo legado do olhar que é próprio da constituição da medusa, ou seja, um
olhar capaz de petrificar, de paralisar, de “cadaverizar” (cadaveriser) e também de
matar. Habilmente, Kristeva vê semelhanças entre a górgona e Perseu e as paixões da
separação mãe-filho. Se o olhar da Medusa mata aquele que a fita, o reflexo dela aca-
ba por matá-la. O contato entre a mãe e o bebê guarda algo desse mesmo jogo de re-
flexos no qual já não se sabe quem olha quem ou quem mata quem. A psicanalista
chama a atenção para a produção pictórica dos artistas pré-históricos na qual há um
evidente pavor dessa representação feminina materna/medusa presente no confron-
to do olhar e do ser visto que simboliza o medo do órgão genital feminino. Os artis-
tas, no intuito de ultrapassar o poder desse olhar, o substituem pela representação do
crânio ou do rosto feminino. Há também, como Kristeva observa em imagens do sítio
pré-histórico La Ferrassie, de 30 000 anos antes de Cristo, um movimento inverso que,
no entanto, tem por finalidade a expressão do mesmo pavor: trata-se de hiperbolizar
a representação da vulva e apagar a referência ao rosto (1998: 37). Kristeva estabele-
ce, no legado mitológico da medusa, uma nova variante dos ritos cranianos, os quais
também despertavam esse terror do feminino.
1
“Les yeux des peintres (...) sont toujours recouverts d’une peau sensible, saturée de points
vibrants, qui manque à la plupart des autres humains. À la surface humide de ces anten-
nes paraboliques se croisent les émanations des objets et des êtres extérieurs, ainsi que
les pulsations sonores, tactiles, olfactives et toutes sortes de cataclysmes biologiques
provenant du corps creux lui-même. L’oeil transmue ces stimulations infimes et chaoti-
ques en broutilles visuelles. Oeil bouche, oeil peau, oeil oreille, oeil pénis, oeil vagin, oeil
anus, oeil gorge et ainsi de suite: l’oeil du peintre recouvre pour commencer les cinq
sens, et le reste innombrable du corps pour finir, d’une pellicule qui rend visible surtout
ce qui ne se voit pas. (...) À force de transformer le sensible en spectacle, l’oeil du peintre
non seulement ne peut s’empêcher d’aller, mais va tout droit au fond invisible du specta-
cle qu’est le crime, le meurtre d’homme ou de femme. C’est donc par excès de raffine-
ment que les plus grands ont des goûts d’anatomistes ou de bouchers” (Possessions, 1996:
15).
309
Existe um pavor desencadeado pelo feminino porque a mãe-medusa, ou seja,
aquela que dá a vida, é também aquela que marca uma vida destinada à morte, à fi-
nitude inevitável que é o nosso destino. Nessa medida, Kristeva observa já no pró-
prio ato sexual uma ameaça para o homem: “Ameaça de perder seu poder de pene-
tração e de possessão até submergir nas profundezas marítimas cegas, até perder o
rosto, desaparecer, se petrificar como um coral
1
” (1998: 39). Segundo Kristeva, a obra
de Sade retoma esse medo ao associar a decapitação à satisfação sexual. Nessa capa-
cidade de olhar, de ultrapassar o trauma da ausência materna, encontramos uma das
variações arcaicas do espetáculo, poisltrssar oih8.3(i-recdnru,vndoresic.0 imítiTw observa já8ma das )]TJ-3 0 TD.0vtáv29 Ttraçnituediá.0 cenciovariaç2 Ttáve Debord, c Twctáv29nevia ma eeD0 Thiíti seu poderExiTc.04dTc.1o piaç2áãe-medua, 19poisltrssar oih8.3(17.47 0 Tn[(deExiTidaicistetri.04de9nevia ma e--medusa, 19po obra )Tj-21.105 -1.8.515 -1eD0 T[(géwca.1033nevia formi.04petácu6.96iar a de)]TJ19.255 0 TD.0dTclinguagem.Tw[(Nessavel aca.m icar com8Tc0 Tw5.9ciar a de)]T74.32 624.8Vis.003 Tm0 Tc0 T2.6ir nas p 85.08 39.8com8Tc0 T.3 pelo fe)]TJ170001 - Kris35.83po obra
310
dela sobre nossa vida. A minha é lugar de passagem, estou de passagem
1
” (2003: 29).
A condição de estrangeira da jornalista, que passeia por vários cenários em suas in-
vestigações iniciadas em O velho e os lobos, encontra nas pinturas de Poussin a expres-
são para seus devaneios mais íntimos: “Não que o sono domestique a morte, mas e-
xistem vidas nas quais, como em certo quadro de Poussin, a morte já aconteceu
2
(2003: 29). Ligamos esses corpos demasiadamente sonolentos de Poussin, pintor do
século XVII, ao fantasma da decapitação que, no torpor da sonolência, nos levam a
estados em que a mãe-medusa ressurge para nos assombrar, de forma a dar vazão ao
primeiro estado de luto decorrente da ausência materna. Parece-nos que a observa-
ção de Delacour desloca-se dessa idéia puramente fantasmática, pois os corpos aos
quais ela se refere – mortos em vida – parecem estacionados no trauma que é essa
imagem da decapitação que Kristeva elege deste pintor em “Quem é Medusa?”. Em
Visões capitais, Kristeva defende a existência de uma “genealogia secreta” desenhada
pelos séculos que se deve ao “poder dos górgonas e a experiência estética”. O mito
da Medusa constitui portanto, segundo a autora, o anúncio de uma “estética da en-
carnação” (1998: 43).
Na seqüência do périplo imagético que se desenrola em Visões capitais, no en-
saio “A verdadeira imagem: uma santa face” (“La vraie image: une sainte face”),
Kristeva confessa ter crescido sob a influência de ícones da igreja bizantina, na qual
ouvia de seu pai histórias sobre o mandylion guardado no sepulcro do monastério de
Backovo, na Bulgária. A autora também freqüentava os monastérios de Tirnovo
(1230) e de Bojana (1259), na Bulgária, para apreciar as pinturas que se encontravam
nos murais. A origem do livro Possessões remonta a esse passado iconográfico que ela
reativa ao deparar com a santa face de Laon, na capela de Saint Paul, na qual se de-
tém sobre a face de Cristo destacada sobre uma superfície da cor marfim. Logo abai-
xo da barba, pois não há o “desenho” do pescoço, está um grafismo eslavo que a au-
tora diz ter lido em voz alta: “Obraz gospoden na oubroucé” (1998: 45). Isto significa, na
visible corail” (“Qui est Méduse?”, 1998: 40).
1
“L’intime nocturne se modèle, sans qu’on y veille, sur notre vie. La mienne est lieu de pas-
sage, je suis de passage” (Possessions, 1996: 31).
2
“Ce n’est pas que le sommeil apprivoise la mort, mais il existe des vies dans lesquelles,
311
tradução francesa, ‘”Imagem do Senhor sobre um prato (ou roupa branca, ou trama
de uma fazenda)
1
”’. Em seguida, Kristeva desdobra essa inscrição: “’Imagem do Se-
nhor sobre uma outra imagem’ ou ‘Trama do Senhor sobre uma outra trama’. Duas
imagens, ou fazendas, associadas, mas como?
2
“ (1998: 45). A própria autora nos con-
cede a resposta ao retomar a história que dá origem ao manto de Cristo, o mandylion,
a qual é também reavivada por Mondzain
3
. A história do manto de Cristo contada
pelas duas enfatiza sua importância de imagem que viabiliza a “existência” de ima-
gens “não pintadas pela mão dos homens” (1998: 45-46). A história de Abgar, rei de
Edessa na Mesopotâmia, relaciona o corpo à imagem. Ao retomar essa lenda, Kriste-
va conta que o rei sofria de lepra e, por intermédio de seu mensageiro, que procurou
a ajuda de Cristo, recebeu uma espécie de “retrato” impresso sobre uma fazenda em
que se esboçava o rosto de Cristo. Mais adiante, no século VI, surgem, na fronteira do
Império bizantino, duas imagens com as mesmas características, ou seja, “não pinta-
das pela mão do homem”. Trata-se do mandylion de Laon. Kristeva questiona o des-
caso diante do manto de Laon, pois esse só foi reconhecido pela história da arte cristã
entre os séculos XI-XII.
A santa face de Laon, de acordo com a intuição de Kristeva, a leva à represen-
tação mitológica da Medusa. A própria autora desconfia desse déjà vu, freqüente
também nas investigações da detetive-jornalista Stéphanie Delacour. Kristeva o rela-
ciona primeiramente ao que chama de “fantasias de psicanalista”. O historiador A.
Grabar, no entanto, dissipa sua dúvida e confirma a intuição da psicanalista. Em A
santa face de Laon, Grabar aproxima o papel do mandylion e sua iconografia na vida re-
ligiosa do oriente cristão à imagem da Górgona: “’sabe-se precisamente que as cabe-
comme dans tel tableau de Poussin, la mort a déjà eu lieu” (Possessions, 1996: 31-32).
1
“’Image du Seigneur sur une serviette (ou linge, ou trame d’un étoffe)’” (“La vraie im-
age…”, 1998: 45).
2
“’Image du Seigneur sur une autre image’ ou ‘Trame du Seigneur sur une autre trame’.
Deux images, ou étoffes, associées, mais comment?’” (“La vraie image…”, 1998: 45).
3
Em Image, icône, économie…, no artigo “Histoire d’un spectre”, Mondzain traça a história do
mandylion (1996: 237-238).
312
ças da Górgona eram ainda reproduzidas sobre os objetos da época bizantina e servi-
am sempre de talismãs
1
’” (Grabar apud Kristeva, 1998: 47).
Kristeva faz uma distinção importante entre a iconografia bizantina e a pintu-
ra moderna. Segundo a autora, o ícone bizantino não tem por intenção a cópia ou a
representação, que são as bases da pintura moderna, tampouco de um objeto exteri-
or. Aliás, o ícone também não se olha, pois é para ser absorvido, vivido: “ele transfere
um mundo invisível nos seus traços visíveis
2
” (1998: 48). Cristo, entretanto, não foi
decapitado ou degolado e por esse motivo não faremos analogias entre Ele e Gloria
Harrison. Antes de consolidar a trágica imagem da tradutora de Santa Bárbara por
intermédio das imagens de degolação que a autora do polar nos oferece, cabe incluir
uma breve referência que Kristeva insere no fecho de seu ensaio sobre a santa face de
Laon. Trata-se de uma segunda imagem lendária acheiropoiètos, isto é, que “não é feita
pela mão do homem” e, conforme Kristeva, preenche o afastamento histórico ou a
aproximação aparentemente extravagante entre a Medusa e a Santa face, ou, entre
“Jesus e a mulher”. Nos evangelhos de Mateus IX, 20-22; Marcos V, 25-34 e Lucas VI-
II, 43-48, desenvolve-se a lenda de uma mulher que sofre de menstruação contínua
3
.
O fluxo menstrual permanente de Hemorroíssa cessa no momento em que ela “toca a
franja do manto de Cristo”. Kristeva localiza, na História eclesiástica, de Eusébio de
Cesaréia (VII, 18, 1), a edificação de uma estátua em homenagem a Cristo e também a
Hemorroíssa: “Esse memorial é uma das primeiras representações de Jesus, associa-
do de maneira sintomática para nós a uma mulher, à menstruação, à doença, à cura
milagrosa e, por seu intermédio, à encarnação
4
” (1998: 48-52). Chegamos, portanto, à
estética da encarnação por vias oblíquas da imagem que “não é feita pela mão do
homem”. No fecho desse ensaio sobre a “verdadeira imagem”, Kristeva exibe uma
1
“’on sait que précisément les têtes de la Gorgone étaient encore reproduites sur les objets
d’époque byzantine et servaient toujours de talismans”’ (“La vraie image...”, 1998: 47).
2
“elle transfère un monde invisible dans ces traces visibles” (“La vraie image...”, 1998: 47).
3
Ora, é novamente o corpo relacionado à imagem que a psicanalista recorta dos textos bíbli-
cos.
4
“Ce mémorial est une des premières représentations de Jésus, associée de manière symp-
tomatique pour nous à une femme, à la menstruation, à la maladie, à la guérison miracu-
leuse et, par leur intermédiaire, à l’incarnation” (“La vraie image...”, 1998: 48-52).
313
reprodução da escultura de Corradini, “A pureza” (1998: 56). Aludimos a essa escul-
tura no primeiro capítulo deste trabalho no intuito de realçar a formação defendida
por Kristeva que não se acomoda na lógica fálica do visível/invisível representada
pelo pênis (falo). O jogo do véu que encobre o rosto da Virgem, que Kristeva inter-
preta em Sentido e contra-senso da revolta (1996) como uma representação da experiên-
cia-revolta do feminino, reaparece em Visões capitais (1998) para reforçar a estética da
encarnação que tem como precursora a medusa. Corradini cobre o rosto da Virgem:
“Virtude invisível, cabeça sem ver, o drapeado é a bela intimidade que brinca de es-
conde-esconde
1
” (1998: 56). O escultor “encobre” o apelo aterrorizante, evidente na
representação da Górgona e de suas serpentes ondulantes acompanhadas de um o-
lhar gélido, que petrifica a qualquer um, para substituí-lo por uma variante desse
pavor. No rosto quase sem expressão da escultura de Corradini permanece o misté-
rio, construído pela série de plissados que encobrem a verdadeira face da mulher. O
horror evidente despertado pela Medusa sai de cena e ficamos apenas com a sutileza
das pregas. Resta a dúvida se Corradini se petrifica diante da Górgona e por isso es-
culpe uma variação mais fraca dela, ou se o escultor aprofunda a lógica invisível do
feminino, kénos, da qual o corpo paradoxal da Virgem Maria é a expressão máxima.
Talvez (preferimos pensar dessa forma) Corradini seja o precursor das telas de Geor-
gia O’Keeffe e de todas as sutilezas que encontramos nos quadros compostos por
mulheres ou por homens que escapam da estrutura cristalizada no visível/invisível.
Antes de abordar as imagens que privilegiam as virtualidades delicadas, pas-
saremos à degolação de João Batista, pois, segundo Kristeva, trata-se do marco da fi-
guração moderna. No ensaio “Une digression: économie, figure, visage”, em Visões
capitais (1998: 65), Kristeva distingue figura de ícone. A autora consulta a obra Figura,
de Aeurbach, para retomar o sentido corrente da palavra que é o de “forma plástica”,
provindo da raiz fingere, a qual significa modelar. Para Lucrécio e Cícero, o sentido
dessa palavra liga-se à “aparência exterior”, “contorno”, “forma gramatical”, “traço
geométrico”. Segundo Kristeva, a invenção latina mais radical para o desdobramento
da palavra figura está na proposta de Quintiliano: a “figura retórica”. Os sentidos de
1
“Vertu invisible, tête à ne pas voir, le drapé est la belle intimité qui joue à cache-cache”
314
figura, portanto, se afastam do ícone na medida em que implicam significações liga-
das a uma “coisa real” e “histórica”. Para Kristeva, a economia do ícone assenta-se na
invisibilidade, na retratação que, conforme a interpretação de Mondzain, busca o o-
lhar de Cristo. Por isso, a economia do ícone flerta com o invisível, o mortal, o uteri-
no. Em contrapartida, as representações figurativas acentuam o que a autora conven-
ciona de “realismo do visível” (1998: 65). O ensaio “A figura ideal ou uma profecia
em ato: são João Batista” (“La figure idéale ou une prophétie en acte: saint Jean-
Baptiste”), em Visões capitais, tem na morte de João Batista o legado imagéti-
co/figurativo para o destino do Ocidente, de acordo com a aposta de Kristeva (1998:
71). A justificativa para isso está no fato de que a representação da morte de João Ba-
tista concilia o sacrifício e a ressurreição. Kristeva mostra-se fascinada pelas represen-
tações dessa degolação bíblica, pois ilustra seu ensaio com uma série de reproduções
desse marco imagético. Para ela, as obras de Gentille Bellini e de Leonardo da Vinci
são inesquecíveis e por isso não entram nas reproduções que recorta para ilustrar a
morte de João Batista. Kristeva inclui a representação que está na basílica de são
Marcos, em Veneza, intitulada “Degolação de são João Batista”, pois é considerada a
primeira representação dessa degolação, guardando aspectos de uma iconografia,
segundo a autora, “quase bizantina” (1998: 74). A pintura de Albrecht Dürer partici-
pa do elenco de Kristeva porque o pintor “surpreende o olhar quase amoroso de Sa-
lomé
1
” (1998: 75).
Consideramos a representação mais surpreendente da morte de João Batista a
de Andrea Solario: é possível vê-lo derrotado sobre a bandeja, as pálpebras caídas, os
cabelos castanhos-escuros sobre a bandeja do mesmo tom, apoiada sobre uma mesa
de madeira de um marrom um pouco mais claro, a pele amarelada, os lábios sutil-
mente entreabertos, deixando à vista um fragmento de dente quase encoberto pelo
lábio superior. É como se João Batista estivesse apenas dormindo e respirasse pela
boca. Muito diferente é aquela imagem construída por Giambattista Tieopolo, pintor
do século XVIII: “Uma teatralidade patética se instala com Tiepolo: o barroco faz cor-
(“La saint face...”, 1998: 56).
1
“surprend le regarde quasi amoureux de Salomé” (“La figure idéale...”, 1998: 75).
315
rer sangue a plenos tubos de escarlate
1
” (1998: 75). A sociedade do espetáculo assalta
a tela composta por Tiepolo, pois aqueles que assistem à degolação, participando da
cena do crime, são flagrados em momento de “pose”. Eles encenam uma curiosidade
mórbida que muito se assemelha às reportagens do telejornalismo da atualidade no
qual assistimos à crueldade, ao sofrimento alheio como um espectador privilegiado.
Possessões, cujo enredo poderia ser adaptado para um filme do tipo FBI, apresenta no
corpo exposto de Gloria Harrison ecos desse olhar sagaz de Tiepolo, que soube pin-
tar o voyeurismo de seu tempo. Vejamos a relação tecida pelo narrador desse polar en-
tre Tiepolo, São João Batista e a tradutora de Santa Bárbara:
Segunda-feira, 17 de outubro, 16:55. (...) A mancha carmesim que na-
quela manhã sujava o vestido de cetim marfim, à altura do seio es-
querdo de Gloria, parecia-me agora bordô escuro, e logo não restaria
dela mais que uma crosta desbotada a puxar para o negro. Em com-
pensação, a região do pescoço, com uma obscenidade que nenhum de
meus pesadelos jamais manifestara, continuava a exibir o mesmo
imundo buraco escancarado, cercado de pintura vermelha. Tiepolo
encarniçando-se contra João Batista em Bérgamo, ou Caravaggio
massacrando Holofernes, no fundo não procuravam outra coisa se-
não embelezar a paixão sanguinária que se exibia – de verdade – aos
meus olhos. O crime não os perturbava: o crime, tanto quanto uma
maçã, lhes servia de pretexto para proporções. Do mesmo modo que,
para um delegado de polícia, era um pretexto para hipóteses. Para
mim, não. Lancei uma última olhada. O horror escarlate conferia aos
braços e às pernas cadavéricas daquilo que, no sábado passado, ain-
da era uma mulher, aquela luminosidade cor de bronze que emana
sempre de Salomé dançando sobre os mosaicos de São Marcos, em
Veneza
2
(Possessões, 2003: 64-65).
1
“Une théâtralité pathétique s’installe avec Tiepolo: le baroque fait couler le sang à pleins
tubes d’écarlate” (“La figure idéale...”, 1998: 75).
2
“Lundi 17 octobre, 16h 55. (...). La tache cramoisie qui souillait ce matin-là la robe de satin
ivoire, à hauteur du sein gauche de Gloria, me paraissait maintenant bordeaux foncé, il
n’en resterait bientôt qu’une croûte fanée virant au noir. La région du cou, en revanche,
avec une obscénité qu’aucun de mes cauchemars n’avait jamais manifestée, exhibait tou-
jours le même immonde trou béant bordé de peinture rouge. Tiepolo s’acharnant sur Je-
an-Baptiste à Bergame, ou le Caravage massacrant Holopherne, ne cherchaient au fond
qu’à embellir la passion sanguinaire qui s’étalait, vrai de vrai, sous mes yeux. Le crime
ne les révulsait pas, le crime, aussi bien qu’une pomme, leur était prétexte à proportions.
Comme, pour un commissaire de police, un prétexte à hypothèses. Pas pour moi. Je jetai
un dernier coup d’oeil. L’horreur écarlate conférait aux bras et aux jambes cadavériques
de ce qui, le samedi précédent, était encore une femme, cette lueur bronze qui émane tou-
jours de Salomé dansant sur les mosaïques de Saint-Marc à Venise” (Possessions, 1996: 73-
74).
316
Observa-se uma referência à obra de Caravaggio na passagem supracitada.
Em Visões capitais, no ensaio “Degolações” (“Décollations”), Kristeva não ilustra o seu
quadro de degolações de João Batista com a interpretação pintada por Caravaggio. A
pintura de Caravaggio por ela escolhida é a história de Davi e Golias porque, segun-
do Kristeva, existe ali “o humor macabro” (l’humeur macabre) que remete à commedia
dell’arte. Esse mesmo discurso sobre a obra de Caravaggio reproduz-se em Possessões.
No romance policial, a autora descreve essa pintura ausente em Visões capitais, enfati-
zando a expressão de neutralidade cruel de Salomé e a descrição crua do efeito da
degolação. A união desses dois elementos fortelece o argumento de que a mulher de-
sencadeia a morte:
Ah, colérico Caravaggio, que se compraz em iluminar a giorno seus
rostos de papelão! É pouco dizer que gosta de cabeças decepadas –
ele as adora, as incensa; merece com toda a certeza os louros do Gré-
vin careteiro por suas degolações em cera e em série. Eu as revejo
daqui: sua Judite heróica e enojada diante de um Holofernes de boca
aberta, pela qual se derrama um novelo de lã vermelha engomada;
seu Isaac com inocência de Barba Azul, que urra sob o punho de um
Abraão surdo e cego ao dedo do anjo apontado em vão para o carnei-
ro providencial. E, embora a cabeça melancólica do Batista do pintor,
que começa a se estragar sobre uma bandeja, deixe Salomé indiferen-
te, ele não deixa de pôr em transe a rude escrava, agarrada aos san-
tos cabelos
1
(Possessões, 2003: 15).
Em Visões capitais, Kristeva, ao se deter sobre “Davi e Golias”, explora o inte-
resse escondido no olhar essa cabeça cortada, o qual diz respeito aos apreciadores de
quadros e aos voyeurs, categoria em que ela própria se inclui e nos leva junto, afinal
estamos imersos nas imagens. Ao mesmo tempo em que a autora revela uma ultra-
passagem do olhar, a qual pode ser interpretada como um exercício pouco ético de
satisfação estética, aponta para um limite desse olhar, o término do visível: “É o fim
do espetáculo, senhoras e senhores, andem! Não há mais nada a ver! (...) Abram seus
1
“Ah, coléreux Caravage qui se plaît à éclairer a giorno ses visages de carton-pâte! C’est peu
dire qu’il aime les têtes coupées – il les adore, les encense; il mérite à coup sûr la palme
du Grévin grimaçant pour ses décollations en cire et en série. Je les revois d’ici: sa Judith
héroïque et dégoûtée devant un Holopherne bouche bée par où s’épanche un écheveau de
laine rouge amidonnée; son Isaac à l’innocence de Barbe-Bleue qui hurle sous la poigne
d’un Abraham sourd et aveugle au doigt de l’Ange pointé en vain sur le bélier providen-
tiel. Et si le chef mélancolique de son Baptiste, qui commence à se gâter sur un plateau,
laisse Salomé indifférente, il ne manque pas de mettre en transe la rude esclave cram-
ponnée aux saints cheveux” (Possessions, 1996: 15-16).
317
ouvidos, se eles não estão muito sensíveis. O fundo do horror não se vê; se ouve, tal-
vez
1
” (1998: 99). O Davi de Caravaggio é quem nos representa esse limite do olhar,
pois ele evita o contato com a cabeça cortada do gigante. O movimento do braço de
Davi, que segura a cabeça de Golias pelos fios escuros dos cabelos da vítima, os quais
se confundem com o fundo também escurecido da tela, o afasta de um contato direto
com a morte. Resta-nos a imagem das pálpebras baixas e enviesadas do degolador. A
mesma reflexão sobre os limites do visível, que está em Visões capitais (1998), é antes
exposta na trama ficcional pelo narrador de Possessões (1996) a partir da referência de
outra obra de Caravaggio (o retrato da decapitação de São João, em Malta), na qual a
bufonaria típica do pintor cede espaço às distinções limítrofes entre o ver e o ouvir:
Uma degolação não é para se ver, ora essa, é para ouvir! Aliás, toda
pintura deveria ser ouvida. Mas como?
A degolação sela o término do visível. É o fim do espetáculo, senho-
res e senhoras, movam-se! Não há mais nada para ver! Abram antes
os ouvidos, se eles não estão demasiado sensíveis. Bem no fundo do
horror, não se vê; ouve-se, talvez
2
(Possessões, 2003: 16).
As poucas referências à pintura de Caravaggio sobre a degolação de João Ba-
tista tanto em Visões capitais quanto em Possessões somam-se à falta de outra degola-
ção ilustrada por este pintor que Kristeva exclui de seu repertório imagético. Trata-se
da degolação de Holofernes. Suspeitamos que essas exclusões se pautam sobre o cru-
cial papel do gesto degolador de Judite pintado por Artemisia Gentileschi no tocante
ao estímulo prestado por esta pintora à capacidade de ver feminina. Sabe-se que Ca-
ravaggio pintou uma versão da degolação de Holofernes, a qual serviu como uma
espécie de referência para o olhar de Artemisia. Mary Garrard, especialista na obra e
vida desta pintora, reconhece o tratamento artístico inovador sugerido por Caravag-
gio em sua composição “Judite degolando Holofernes” (1590-95). Garrard observa
1
“C’est la fin du spectacle, messieurs-mesdames, circulez! Il n’y a plus rien à voir! Ou plu-
tôt il n’y a que ça à voir, mieux, à entendre. Ouvrez maintenant vos oreilles, si elles ne
sont pas trop sensibles. Le fond de l’horreur, ça ne se voit pas; ça sentend, peut-être
(“Décollations”, 1998: 99).
2
“Une décollation, ce n’est pas pour la vue, voyons, c’est pour l’ouïe! D’ailleurs, toute pein-
ture devrait être etendue. Mais comment? La décollation signe le terminus du visible.
C’est la fin du spectacle, m’sieurs dames, circulez! Y a plus rien à voir! Ouvrez plutôt vos
oreilles, si vous ne les avez point trop sensibles. Au fin fond de l’horreur, ça ne se voit
318
nessa pintura de Caravaggio a ênfase na narrativa da história bíblica, além do foco
dirigido para o apelo dramático em detrimento dos detalhes épicos do acontecimen-
to. Diversamente das interpretações dos pintores renascentistas, em que havia a ne-
cessidade de retratar o conjunto da ação, por conseguinte uma fatia expressiva do es-
paço da cena englobava uma série de personagens e suas reações, a intenção de Ca-
ravaggio é a de pintar aproximando-se da esfera íntima da ação central. Por isso, o
pintor fecha seu foco de interesse nos personagens centrais: Judite, Holofernes e a
ama que observa a degolação. Segundo Garrard, o pintor produz um ambiente inti-
mista, fechado e sombrio (1989: 290). Quanto às características das figuras retratadas,
a historiadora constata a aplicação da teoria do contrapposto. Trata-se de uma teoria
típica do século XVI que difundia o contraste de idade, de sexo e de aparência na re-
tratação das personagens. Caravaggio congela a imagem de Holofernes no momento
em que o pescoço desse é decepado. Para Garrard, o pintor soube explorar o êxtase
de Holofernes, que parece gritar como atitude de protesto. Não podemos deixar de
mencionar que também nesta tela, que não tem nada de risível, Caravaggio desloca a
atenção dos espectadores para o som – a expressão da boca de Holofernes parece e-
mitir um lamento –, confirmando assim o argumento de que no horror não se vê, se
ouve. Voltando à descrição dos personagens de Caravaggio, Garrard questiona a fal-
ta de expressividade na composição de Judite, pois ela apenas franze a testa deixan-
do à vista um conjunto de rugas sobre o rosto cor de mármore. Isso se deve, confor-
me a historiadora (1989: 291), ao fato de que foi possivelmente mais fácil para o pin-
tor imaginar o sofrimento de Holofernes, ou seja, um homem assassinado por uma
mulher, do que entrar nas sutilezas emocionais de Judite no momento do crime, isto
é, retratar a mulher que mata um homem. Encontramos na pintura de Artemisia
Gentileschi a versão que contempla o rosto de Judite na hora do crime, no quadro Ju-
dite e Holofernes (1612-13). Garrard reconhece a influência de Caravaggio sobre a pin-
tora, através de elementos que são próprios da versão desse pintor como por exem-
plo a luz misturada ao conjunto sombrio, as fisionomias realistas dos personagens, a
posição dos braços de Judite em diagonais paralelas e o jorro melodramático do san-
pas: ça s’entend, peut-être” (Possessions, 1996: 16).
319
gue de Holofernes sobre o tecido claro reaparecem no quadro composto por Artemi-
sia. É flagrante, no entanto, a força física esbanjada por Judite e também da serva que
a acompanha nessa pintura feita por Artemisia. Duas mulheres de punhos grossos
que aparentam a mesma idade é demasiadamente diferente da fragilidade das duas
mulheres compostas por Caravaggio, pois ele acentua a fragilidade delas. A falta de
vigor de Judite está no corpo delicado, os braços delgados; e a outra personagem,
muito idosa e repleta de rugas, apenas segura um manto plissado e assiste à degola-
ção – petrificada. Na pintura de Artemisia, essas duas mulheres, que seguram o cor-
po de Holofernes, participam ativamente do assassinato.
Em Visões capitais, o enfoque de Kristeva concedido à pintura de Artemisia
passa pelo texto de Freud sobre o tabu da virgindade, em A vida sexual. Freud inspi-
ra-se na versão da tragédia de Hebbel cujo título é Judite e Holofernes. Segundo a re-
tomada desse texto por Kristeva, o gesto da “defloração” contém uma “reação arcaica
de hostilidade contra o homem” (1998: 85). Ao citar o texto freudiano, Kristeva desta-
ca uma passagem em que o psicanalista relaciona metaforicamente o sexo ao ato da
decapitação: “A decapitação, que é um substituto simbólico da castração, aparece em
conseqüência como uma vingança contra a defloração
1
” (1998: 85). Pela experiência
clínica, Kristeva não questiona esse argumento no qual o sexo produz no inconscien-
te feminino o “desejo de vingança”. A psicanalista, ao seguir Freud, estende esse
complexo de castração à experiência masculina do sexo, pois o homem encontra na
penetração vaginal a expressão da angústia da perda do pênis e, em decorrência dis-
so, outro trauma se esboça na psique masculina: a possível gestação de um bebê de-
sencadeada pelo ato sexual. Segundo Kristeva, a maternidade abranda o sentimento
de castração para as mulheres: “Para aquelas que não engravidaram, a produção de
uma obra – e melhor ainda de um objeto para ver preenche essa ameaça
2
” (1998: 85).
É o caso de Artemisia, pois ela escolheu a pintura para ultrapassar seu complexo de
castração. Kristeva chama a atenção para relevância histórica dessa “maternidade”
1
“La décapitation, qui est un substitut symbolique de la castration, apparaît en conséquence
comme une vengeance contre la défloration” (“Décollations”, 1998: 85).
2
“Chez celles qui n’ont pas enfanté, la production d’une oeuvre – et mieux encore d’un objet
à voir – vient combler cette menace” (“Décolations”, 1998: 85).
320
escolhida por Artemisia na medida em que o efeito de sua pintura serve de combate
ao poder fálico característico dos homens “violadores”, além de questionar a passivi-
dade feminina. Segundo a psicanalista, é notável a forma como Artemisia trabalha
seu complexo de castração: “A mais espetacular de suas realizações é precisamente a
pintura, não a cena da violação que Artemisia ela própria teria sofrido, mas ao inver-
so aquela da decapitação de um homem pela lendária Judite
1
” (1998: 85). Levamos
adiante a especulação sobre “o mais espetacular em Artemisia”, e nos parece que re-
side no próprio gesto de pintar, que nada mais é do que a conseqüência da vontade
de olhar em época adversa à recepção dos olhares das mulheres. Parece-nos, nessa
medida, que não é tanto o impulso violento retratado na imagem ativa de Judite, a
degoladora, o mais surpreendente, mas sim o acionamento promovido por ela rumo
a experiências femininas do olhar pelo “simples” gesto da produção de imagens com
o uso dos pincéis e das tintas. Em Possessões, observamos o mesmo discurso susten-
tado por Kristeva em sua obra ensaística: “O importante é que pintou como nenhuma
outra mulher o fez antes ou depois dela, e que não pintou qualquer coisa, mas de fato
um homem estuprado, ou melhor: decapitado pela própria mão dela, da genial Ar-
temisia!
2
” (2003: 131).
Em Possessões, Kristeva resume a vida de Artemisia Gentileschi e sua repercus-
são sobre as feministas:
Não houve sequer uma feminista da belle époque que não tenha es-
quadrinhado os detalhes da carnificina, para aplaudir os talentos de
Artemisia e a proeza de Judite. Sem esquecer o escândalo que foi, ao
que parece, no início do século XVII, o estupro da mesma Artemisia
por um pintor do ateliê paterno, um certo Orazio que, denunciado
bem tarde pelo pai da estuprada, foi levado à justiça antes que os
amantes se reconciliassem, parece, bastante misteriosamente, no ras-
tro do processo. Caso duvidoso, este: mestre e discípulo, pai e filha,
estuprador estuprada, quem estupra quem? A Artemisia foi uma pu-
ta, um joguete ou um gênio? Provavelmente tudo isso ao mesmo
tempo, que importa?
3
(Possessões, 2003: 130-131).
1
“La plus spectaculaire de ses réalisations est précisément la peinture, non pas de la scène
du viol qu’Artemisia elle-même aurait subi, mais à l’inverse celle de la décapitation d’un
homme par la légendaire Judith” (“Décollations”, 1998: 85).
2
“L’important est qu’elle peignit comme nulle autre femme ne le fit avant ou après elle, et
qu’elle ne peignit pas n’importe quoi, mais bel et bien un homme violé, mieux: decapité
par sa propre main à elle, la géniale Artemisia!” (Possessions, 1996: 155).
3
“Pas une féministe de la Belle Époque qui n’ait scruté les détails du carnage pour applau-
321
Essa breve biografia da pintora, no meio da trama policial que desemboca na
cabeça perdida de Gloria Harrison, corresponde aos dados oferecidos por Kristeva
em Visões capitais (1998: 99) sobre Artemisia e também aos disponíveis na pesquisa de
Mary Garrard (1989: 13-121). A descrição da degolação de Holofernes pintada por
Artemisia surge em um sonho da detetive Delacour. Curiosamente, a autora de Pos-
sessions emprega uma metáfora referente ao universo da técnica – o trocar de canal,
zapear – para mostrar o fluxo das imagens que a levam até a tela da degolação de
Holofernes. Antes do acesso ao vídeo/sonho de Artemisia, Delacour, por uma outra
alusão pictórica, acessa a morte de seu pai, a qual já vimos retratada através do Pro-
fessor de latim. Septicius e o pai da detetive retornam à cena inconsciente e promo-
vem um intertexto policial mediado pela pintura de Goya:
No canal seguinte passa um filme insignificante que a sonhadora não
retém, novamente ela troca de canal: mesmo efeito, despertar. Resta
o rosto daquele homem. Seu pai morto no hospital? Vítima goyesca
dos homens transformados em lobos. Há quantos anos, mesmo? O
pesadelo não pára de voltar, mais ou menos o mesmo, e a mesma
culpa. Do pai ou da filha? O sonho troca de canal
1
(Possessões, 2003:
130).
O horror imagético característico das pinturas de Goya serve de ilustração pa-
ra o conflito político vivido pelo pai da detetive e pelo professor de latim ou pelo pai
da própria autora, na medida em que são todos vítimas de regimes autoritários. Em
Poderes do horror, Kristeva elege a obra de Céline
2
, A viagem ao fim da noite, para a-
dir aux talents d’Artemisia et à l’exploit de Judith. Sans oublier le scandale que fut, pa-
raît-il, au début du XVIIe. siècle, le viol de la même Artemisia par un peintre de l’atelier
paternel, un dénommé Orazio qui, dénoncé bien tard par le père de la violée, fut traîné
en justice avant que les amants ne se réconcilient, semble-t-il, assez mystérieusement,
dans le foulée du procès. Affaire douteuse s’il en fut: maître et disciple, père et fille, vio-
leur et violée, qui viole qui? Artemisia fut-elle une putain, une jouet ou une génie? Sans
doute toute cela à la fois, quelle importance?” (Possessions, 1996: 155).
1
“Sur la chaîne suivante passe un film insignifiant que la rêveuse ne retient pas, elle zappe
de nouveau: même effet, réveil. Reste le visage de cet homme. Son père tué à lhôpital?
Goyesque victime des hommes transformés en loups. Depuis combien d’années déjà? Le
cauchemar ne cesse de revenir, plus ou moins le même, et la même culpabilité. Du père
ou de la fille? Le rêve zappe” (Possessions, 1996: 154).
2
Para um aprofundamento da influência de Céline sobre o pensamento de Kristeva, sugeri-
mos o artigo de Megan Becker-Leckrone, “Céline’s pharmacy”.
322
companhá-la ficcionalmente nos caminhos de sofrimento da abjeção, pois Céline es-
creve sobre temas que atuam lado a lado do estado de abjeção, como por exemplo o
“horror”, “a morte”, “o sarcasmo cúmplice”, “o medo” (1980: 166). O processo celini-
ano do contato com o horror intensifica-se, segundo a psicanalista, na obra Morte a
crédito, uma vez que:
Provavelmente nunca, tanto para Bosch quanto para o Goya mais
sombrio, a ‘natureza’ humana, o outro lado do ‘sensato’, do ‘humano
civilizado’, do ‘divino’ não tinham sido abertos com tanta crueldade,
com tão pouca complacência, de ilusão ou de esperança. Horror de
um inferno sem Deus’
1
(Poderes do horror, 1980: 172).
Hieronymus Bosch, que pintou cenas de um inferno com muitas facetas da
maldade as quais compõem o nosso imaginário do mal e dos corpos por vezes em es-
tado de sofrimento, aparece ao lado de Goya, que também soube apreender sarcasti-
camente a decrepitude dos corpos envelhecidos, ou em estado de dor, ou de penúria
física. Segundo Kristeva, esses pintores não alcançam a profundidade da dor apreen-
dida pelo escritor Céline. Esboça-se nessa idéia uma distinção interessante entre a es-
crita e as artes visuais. Entretanto, para o aprofundamento fantasmástico de Stépha-
nie Delacour, Kristeva descreve a sua interpretação acerca da tela de Artemisia Gen-
tileschi sobre a degolação de Holofernes. Por meio das mudanças de canais, que nada
mais são do que um recurso metafórico para melhor compreendermos a sucessão de
imagens que constituem os sonhos da detetive, o narrador alude em seu devaneio,
depois da referência a Goya, a uma versão muito sintética de Caravaggio sobre o
quadro da degolação: “seus traços congestionados evitam as duas mulheres, enquan-
to a cabeça verga sobre o ombro esquerdo, onde um riacho de sangue inunda o col-
chão. Volumes vermelho-ocre, o páthos de Caravaggio
2
” (2003: 130). A autora, portan-
to, persegue a influência recebida por Artemisia, pois antes da apresentação da ver-
são da pintora que, conforme vimos em Visões capitais, é um marco para a figuração
1
“Jamais peut-être, même chez Bosch ou chez le Goya le plus noir, la ‘nature’ humaine,
l’autre côté du ‘sensé’, de l’ ‘humain civilisé’, du ‘divin’ n’ont été ouverts avec autant de
cruauté, avec si peu de complaisance, d’illusion ou d’espoir. Horreur d’un enfer sans Di-
eu” (Pouvoirs de l’horreur, 1980: 172).
2
“ses traits révulsés fuient les deux femmes tandis que sa tête ploie sur son épaule gauche
où un ruisseau de sang inonde le matelas. Volumes rouge ocre, le pathos du Caravage”
323
ocidental, a autora de Possessões deixa claro na intenção de Caravaggio um medo da
castração que o paralisa, impossibilitando-o de adentrar nas sutilezas e vilanias de
Judite e da serva. Vejamos como os corpos dessas mulheres sobressaem na leitura do
narrador na seqüência da troca de canal, ou seja, na vez de Artemisia:
O sonho de Stéphanie e o quadro de Artemisia: imagens virtuais que
se contaminam. Duas mulheres atacam o corpo deitado do general
assírio: a serva de rosto blasé e uma Judite feroz, flutuando em seu
vestido de brocado. Um suave veludo carmesim envolve as coxas a-
fastadas do homem, contraponto do embate confuso de seis braços
que, na altura da cabeça, perpetram o que parece um interminável
estupro. Com todo o seu peso, a serva imobiliza a vítima, enquanto
um violento movimento leva Judite à margem direita do quadro: com
a mão direita, a soberana mergulha uma espada na garganta oferta-
da, e com a mão esquerda prega na cama a cabeça do macho. Ne-
nhum horror nos traços da assassina. Só a rígida contenção de seu
corpo, afastando-se do sangue que jorra, trai alguma repulsa. Em
compensação, o rosto exige a concentração de uma matemática, ou
bióloga, ou cirurgiã que, no esforço, já saboreia a vitória. A do saber
absoluto? Do povo de Israel? Da mulher sobre o homem?
1
(Possessões,
2003: 130).
No fecho dos comentários sobre Artemisia Gentileschi, no ensaio “Degola-
ções”, em Visões capitais, Kristeva insere um autoretrato desta pintora, intitulado
“Autoretrato como alegoria da pintura”, no qual confirma a nossa suspeita de que o
gesto “mais espetacular” de Artemisia está no próprio ofício de sua pintura. Kristeva,
tal como faz em Possessões, também descreve a degolação de Holofernes segundo Ar-
temisia em seu ensaio dedicado às degolações. O rosto de Judite “reflete uma concen-
tração de matemática, de bióloga ou de cirurgiã que, no esforço, já saboreia a vitó-
(Possessions, 1996: 154).
1
“Le rêve de Stéphanie et le tableau d’Artemisia: des images virtuelles qui se contaminent.
Deux femmes s’acharnent sur le corps couché du général assyrien: la servante au visage
blasé et une Judith farouche, flottant dans sa robe de brocart. Un suave velours cramoisi
enveloppe les cuisses écartées de l’homme, contrepoint de l’empoignade confuse de leurs
six bras qui, côté tête, perpètrent comme un interminable viol. De tout son poids, la ser-
vante immobilise la victime tandis qu’un violent mouvement emporte Judith à la marge
droite du tableau: de sa main droite, la souveraine plonge une épée dans la gorge offerte,
de sa main gauche elle clue au lit la tête mâle. Nulle horreur dans les traits de la meur-
trière. Seule la rigide réserve de son corps, s’écartant du sang qui gicle, trahit quelque
dégoût. Sa face, en revanche, dépeint la concentration d’une mathématicienne ou d’une
biologiste ou d’une chirurgienne qui, dans l’effort, savoure déjà sa victoire. Celle du sa-
voir absolu? Du peuple d’Israël? De la femme sur l’homme?” (Possessions, 1996: 154-155).
324
ria
1
” (1998: 99-100). Em uma sucinta descrição do autoretrato de Artemisia, Kristeva
destaca o corpo da pintora exposto em suas formas generosas. Essa pintura lembra-
nos os volumes da Judite retratada por Artemisia: os braços e os punhos fortes. Kris-
teva chama a atenção para a posição do corpo em que apreendemos somente três
quartos de sua figura e o braço direito robusto, no qual ela segura “vigorosamen-
te”um pincel. Para Kristeva, o braço muito curto e musculoso e a ausência de narci-
sismo do gesto – pois ela não parece preocupada com o olhar dos espectadores na
medida em que se deixa ver apenas lateralmente – cria uma atmosfera de concentra-
ção. Artemisia retrata-se imersa no trabalho de pintora. Por isso, Kristeva vê no gesto
da pintora mais poder do que no braço de Judite, que dispõe de uma faca. Se o rosto
de Judite expressa o sabor cirúrgico, calculado, decorrente da decapitação, a vitória
de Artemisia reside no gesto de uma decapitação um pouco diferente: “A cabeça de
Artemisia está nas suas mãos, (...) a pintura é ela mesma uma degolação
2
” (1998: 100).
Da medusa e Virgem Maria a Artemisia Gentileschi o caminho está preparado
para Georgia O’Keeffe e suas flores:
Não, o sexo jamais fora estupro para Stéphanie, não importa o que
pudessem pretender suas amigas feministas em nome da humanida-
de, ou antes, em nome da feminilidade; fora mesmo nisso que tivera
de se separar delas. Estupro, nunca. (...) Flores oferecidas ao céu sob
o pincel de Georgia O’Keefe. Fragrâncias tornadas táteis nas páginas
de Colette. Stéphanie sabia reconhecer nas obras dos outros aquele
prazer sem nome que os homens lhe davam. E que ela gostava de
preservar, velado, insular
3
(Possessões, 2003: 131).
Esse trecho toca não apenas na importante função das imagens exploradas por
Georgia O’Keeffe como também contribui para desfazer mal-entendidos a respeito
1
“reflète une concentration de mathématicienne, de biologiste ou de chirurgienne qui, dans
l’effort, savoure déjà sa victoire” (“Décollations”, 1998: 99-100).
2
“La tête d’Artemisia est dans sa main, (...) la peinture est elle-même une décollation”
(“Décollations”, 1998: 100).
3
“Non, le sexe n’avait jamais été du viol pour Stéphanie, quoi qu’eussent pu prétendre ses
amies féministes au nom de l’humanité, ou plutôt au nom de la féminité; c’est même là-
dessus qu’elle avait dû se séparer d’elles. Jamais de viol. (…) Fleurs offertes au ciel sous
le pinceau de Georgia O’Keefe. Fragrances devenues tactiles dans les pages de Colette.
Stéphanie savait reconnaître dans les oeuvres des autres ce plaisir sans nom que lui don-
naient, à elle, les hommes. Et qu’elle aimait préserver, voilé, insulaire” (Possessions, 1996:
156).
325
da recepção da obra de Kristeva e de seu caminho teórico. Em primeiro lugar, parece-
nos claro que a autora se ocupa com o flagrante descaso diante dos poucos exemplos
de mulheres pintoras que escreveram e contribuíram para a história imagética oci-
dental. Artemisia significa, nessa medida, uma espécie de precursora da capacidade
de olhar das mulheres e, por conseguinte, há em suas telas, sobretudo a que nos deti-
vemos, a expressão dessa defasagem, ou pode-se dizer, exclusão feminina na compo-
sição de um campo crucial de poder. Isso é inquestionável. Ao lado disso, a própria
teórica frisa a existência incrustada em nossas imagens de uma lógica falocêntrica na
qual impera uma estrutura que é a do falo no seu movimento de aparecimen-
to/desaparecimento, cuja repercussão é a constituição acentuadamente “técnica” do
binarismo 0/1 formador do nosso campo visual, empregado por Kristeva para expli-
car o trabalho do pensamento. Por outro lado, Kristeva aprofunda a gênese das nos-
sas imagens até esbarrar na Virgem Maria e seu corpo, receptáculo materno e o abri-
go de todos os outros. O corpo da Virgem remete-nos ao receptáculo móvel que é a
chora. Trata-se de uma referência indispensável para a formação do semiótico e, por
conseguinte da linguagem, sobretudo aquela com inspirações artísticas. Nesse senti-
do, pertencemos, invariavelmente, a esse corpo paradoxal da mãe-virgem, mesmo
sob a égide de um poder falocrático. Este é o ponto de Kristeva. Por isso, incluí-la ou,
em outras palavras, reduzi-la ao domínio, muitas vezes dogmático da crítica feminis-
ta, entraria em contradição com os pressupostos de sua signifiance, cuja dinâmica é o
constante pôr-se à prova, o questionamento das últimas “certezas”.
Sobre a relação de Kristeva com o movimento feminista, na entrevista conce-
dida a Elaine Hoffman Baruch, na década de oitenta
1
, ela se abstém de falar sobre a
crítica feminista norte-americana. Sua crítica sobre o feminismo recai sobre o pensa-
mento francês no que esse se aproxima de uma herança marxista, ou seja, de um mo-
vimento de protesto sociológico desencadeado pelo proletariado. A lógica dessa re-
volta sustenta-se na existência do opressor e do oprimido. Para Kristeva, o protesto
das mulheres situa-se em um nível completamente diferente desse jogo em que o
1
Consultamos a entrevista “Feminismo e psicanálise” (“Feminism and psychoanalysis”), do
volume Julia Kristeva interviews (1996: 113-121), no qual se encontram os pontos que re-
sumiremos sobre o feminismo e o pensamento da autora.
326
destino da classe oprimida é a luta pelo reconhecimento no plano econômico, político
ou ideológico. A psicanalista defende o ponto que a diferença não está encerrada no
plano biológico, mas no que fizemos dessa diferença, ou seja, o papel da nossa subje-
tividade, a forma como usamos a nossa linguagem para marcar a nossa diferença
dentro do conjunto. Com isso, julga uma regressão o papel de algumas feministas,
especialmente na França, que encerram a linguagem na ordem masculina no que esta
tem de lógica, fálica. O oposto disso também não é o seu ponto: por exemplo reduzir
a linguagem ao feminino com adjetivos de imprecisão como “sussurros”, “impulsos”.
Kristeva afasta-se de posições maniqueístas acerca da linguagem. Sua teoria da lin-
guagem apóia-se na codependência desses dois pólos somado à necessidade de uma
articulação própria daquele que produz linguagem. O feminismo de Kristeva cami-
nha em direção ao incentivo da subjetividade das mulheres inseridas no conjunto,
por isso julga importante que existam mulheres atuantes no meio simbólico, ou seja,
na filosofia, na teoria, na ciência, por exemplo, que são esferas da cultura.
Em Contra a depressão nacional, Kristeva afasta-se de um vínculo com a teoria
feminista
1
: “O pouco que escrevi sobre as mulheres é empírico, disperso, em curso...”
(1998: 36). Essa frase lacunar tem um fundo de verdade, basta relacioná-la à entrevis-
ta concedida a Baruch ou à própria teoria da codependência entre o semiótico e o
simbólico por ela desenvolvida. Na seqüência dessa longa entrevista a Philippe Petit,
Kristeva resume o que chama de etapas do movimento feminista. A primeira etapa
consistiu na igualdade sócio-política entre os dois sexos. A segunda fase iniciou-se
depois de maio de 68, momento em que feminismo interessa-se pela arte e pela psi-
canálise: “Reivindica-se uma ‘escrita feminina’, uma ‘linguagem feminina’, um ‘ci-
nema feminino
2
’” (1998: 36). O terceiro tempo, conforme a psicanalista, tem o seu
“esboço” na contemporaneidade, ou seja, é uma etapa ainda em formação. As mulhe-
res já estão no simbólico, isto é, na cultura, segundo Kristeva. O “poder”, nesse senti-
do, modula-se conforme “particularidades da experiência feminina no que ela tem de
1
“Je ne me considère pas comme une théoricienne du féminisme. Le peu que j’ai écrit sur les
femmes est empirique, dispersé, en cours... (Contre la dépression nationale, 1998: 36).
2
“On renvendique une ‘écriture féminine’, un ‘langage féminin’, un ‘cinéma féminin’, etc”
(Contre la dépression nationale, 1998: 37).
327
mais cúmplice com a intimidade, a sexualidade
1
” (1998: 37). Esboça-se, portanto, um
movimento feminista que não rechaça, aliás, enaltece a maternidade ou as ações ditas
maternais. Nesse terceiro movimento entrariam as mulheres-mães e também aquelas
que não optaram pela maternidade
2
. Como o assunto maternidade centraliza o pen-
samento de Kristeva, Philippe Petit lhe pergunta se a ausência de filhos tornaria uma
mulher incompleta. A resposta de Kristeva nos oferece a definição mais acabada do
que reconhece por maternidade:
Algumas mulheres – e alguns homens! – realizam uma “maternidade
simbólica” em suas vidas profissional e pessoal: notavelmente no en-
sino e nos ofícios terapêuticos, mas não somente. Chamo de vocação
materna não o trabalho nele mesmo extraordinário da geratriz ou da
mãe grávida mas essa alquimia que conduz da biologia à significa-
ção, e que passa pela modulação do desejo em ternura, depois em
representação-sentido-linguagem-pensamento. Um desvio da pulsão
se opera: no lugar de se satisfazer num objeto de prazer (que é es-
sencialmente um objeto perverso), a pulsão da mulher-mãe não se i-
nibe, mas adia suas metas e encontra, não um objeto, mas um outro:
um outro a cuidar, a proteger, a amar
3
(Contra a depressão nacional,
1998: 84).
Georgia O’Keeffe, por exemplo, não teve filhos, no entanto, realizou a mater-
nidade por meio de seu ofício de pintora, tornando visível um mundo em que a téc-
nica e o corpo ganham expressão no exercício de sua subjetividade desenvolvida por
1
“les particularités de l’expérience féminine dans ce quelle a de plus complice avec
l’intimité, la sexualité” (Contre la dépression nationale, 1998: 37).
2
No artigo “La passion selon la maternité, de 2000, publicado em La haine et le pardon (2005),
Kristeva defende a maternidade como uma espécie de etapa no desenvolvimento psíqui-
co da mulher, dado que ao entrar em contato com a aprendizagem da linguagem do filho
acontece um exercício comparado à busca proustiana: “Cette réconciliation avec la langue
maternelle est, por la mère, non seulement une réconciliation avec sa prime enfance à el-
le, ou avec sa propre mère, mais aussi une désinhibition de son imaginaire, la création
socialement autorisée d’un langage sensoriel personnel: le ‘baby talk’ que la mère parta-
ge avec son enfant est ‘la recherche du temps perdu’ de chaque mère” (2005: 190).
3
“Certaines femmes – et certains hommes! – réalisent une ‘maternité symbolique’ dans leur
vie professionnelle et personnelle: notamment dans l’enseignement et les métiers théra-
peutiques, mais pas seulement. J’appelle vocation maternelle, non pas le travail en lui-
même extraordinaire de la génitrice ou de la mère porteuse, mais cette alchimie qui con-
duit de la biologie à la signification, et qui passe par la modulation du désir en tendres-
se, puis en représentation-sens-langage-pensée. Un détournement de la pulsion s’opère:
au lieu de se satisfaire dans un objet de plaisir (qui est essentiellement un objet pervers),
la pulsion de la femme-mère ne s’inhibe pas, mais diffère ses buts et rencontre, non pas
un objet mais un autre: un autre à soigner, à protéger, à aimer” (Contre la dépression natio-
nale, 1998: 84).
328
uma forma demasiadamente particular de olhar e representar o mundo. Segundo
Britta Benke (1995: 38), o clima dos Estados Unidos dos anos vinte contribuiu para
associações entre a teoria psicanalítica freudiana, que estava em pleno desenvolvi-
mento, e a temática ilustrada pela pintora a mesma época. Com uma espécie de lente
de aumento, Georgia O’Keeffe revelava detalhes da anatomia vegetal, contribuindo
para interpretações de cunho erótico de sua obra. Embora não fosse essa a sua inten-
ção, como ressalta recorrentemente Benke, há uma permanência desse erotismo que
encontramos em Possessões. Em Polylogue, conjunto de ensaios publicado em 1977,
Kristeva ocupa-se de algumas referências imagéticas. No artigo intitulado “A alegria
de Giotto”, Kristeva vale-se de apontamentos do pintor Matisse no que ele defende
as bases pulsionais da cor na pintura. Kristeva interessa-se sobretudo por um trecho
em que o pintor observa no efeito da cor “sensações na retina” capazes de romper
com a “tranqüilidade” da “superfície” e do “contorno”. Talvez tenhamos encontrado
nesse texto do final da década de setenta o esboço do argumento em que no horror
não se vê, no horror se escuta. Para retomar a teoria de Kristeva desenvolvida em
nosso primeiro capítulo, observa-se que a cor, a voz e o gesto são elementos próprios
do semiótico, antes da sintaxe e, por conseguinte, transverbais. Logo, sobre o aspecto
de constituição da linguagem, a análise do domínio da cor pelos pintores em diversos
períodos histórico será útil para Kristeva em sua busca por momentos de inovações
lingüísticas. Vejamos o fragmento por ela recortado de um texto de Matisse sobre a
ligação da cor à voz e à escuta: “’Só há, no fim das contas, uma vibração tátil compa-
rável ao ‘vibrato’ do violino e da voz
1
” (“A alegria de Giotto”, 1977: 392). Kristeva re-
conhece na cor um traço de afastamento do simbólico, o que se explicita na atividade
pictórica. Diversamente de elementos como forma e espaço, os quais atuam na esfera
da verossimilhança e da representação (pelo menos até a época de Giotto e de seus
contemporâneos), a cor possui uma liberdade incomparável. Kristeva reconhece
também na cor certa limitação histórica em virtude das tendências artísticas de cada
momento, mas é por meio da cor que são desencadeadas as transformações substan-
ciais. Segundo Kristeva, no que se refere à pintura ocidental, o uso da cor por Giotto
1
“’Il n’y a, en fin de compte, qu’une animation tactile comparable au ‘vibrato’ du violon et de
329
subverteu normas da pintura como a perspectiva. A cor também foi responsável pelo
início da dissolução da representação, como a teórica observa nas pinturas de Cézan-
ne, Matisse, Rothko, Mondrian. Curiosamente, a autora vale-se da metáfora do “gos-
to” (goût), a qual é também um “capricho”, com a finalidade de realçar o aspecto re-
volucionário contido na natureza da cor
1
(1977: 394).
As diferenças proporcionadas pelas experiências cromáticas, as quais nos le-
vam ao semiótico e, por extensão, às suas implicações no plano simbólico, na lingua-
gem, retornam sobretudo nessa alusão da detetive Stéphanie Delacour às pinturas de
Georgia O’Keeffe, que conduziu a forma de suas flores ao movimento e às tonalida-
des de suas tintas. Em função de sua proximidade com o universo vegetal, a narrado-
ra de Possessões situa O’Keeffe ao lado de Colette. As duas comungam um retorno
exuberante ao semiótico, pois suas experiências são ricas em signos que causam sen-
sações táteis, as quais levam ao ponto kristevaniano que nos parece o eixo de Posses-
sões, qual seja, no horror não se vê, mas se ouve. A experiência tátil consiste portanto
no deslocamento do olhar para o sentido da audição, na escuta de alguma voz. Trata-
se de um percurso em que a oralidade ganha a cena, sugerindo uma volta à relação
arcaica entre a mãe e o bebê. Em recente livro destinado à interpretação da obra de
Colette, Kristeva destaca o recurso metafórico empregado pela escritora. Constata-
mos nesses deslocamentos vestígios desse “gosto” arcaico, lembrança que reativa os
sabores e os sofrimentos da formação de todos os sujeitos. Kristeva, novamente, en-
trelaça a maternidade em sua discussão sobre literatura:
Habitualmente vermelha, rosa ou amarelo-chá, a rosa aqui chega até
o negro. A este contraste que a extrai do mundo das flores e a trans-
porta (primeiro efeito de metáfora) ao da cultura (do artifício) ou da
melancolia (como o sol acompanhado do mesmo epíteto), acrescenta-
se um segundo movimento metafórico, introduzido segundo a lógica
das inversões e dos deslocamentos sensoriais. O olhar come a rosa, a
vista se tornou um gosto, eu saboreio a flor como um confeito
2
(O gê-
la voix”’ (“La joie de Giotto”, 1977: 392).
1
Mencionamos no início da nossa análise sobre Possessões a importância dos tabus alimenta-
res na aquisição da nossa linguagem e formação da nossa cultura.
2
“Habituellement rouge, rose ou jaune thé, la rose fonce ici jusqu’au noir. A ce contraste qui
l’extrait du monde des fleurs et la transporte (premier effet de métaphore) dans celui de
la culture (de l’artifice) ou de la mélancolie (comme le soleil accompagné de la même
épithète), s’ajoute un deuxième mouvement métaphorique, filé selon la logique des in-
versions et déplacements sensoriels. Le regard mange la rose, la vue est devenue un goût,
330
nio feminino. Colette, 2007: 115).
As flores de Colette, que são reavivadas na análise de Kristeva, não se esgotam
no poder do gosto, pois a autora continua a perseguir seus deslocamentos até chegar
ao sentido do olfato. No entanto, mesmo assim, Kristeva marca a dependência do
gosto nesse terceiro e último deslocamento do trecho escrito por Colette que ela esco-
lheu para análise: “Enfim, um terceiro deslocamento conduzirá do palato e da língua
até o nariz: é a vez dos perfumes serem confeitos, a rosa cozinha seu odor
1
” (2007:
115). Na seqüência de sua análise, Kristeva cita a própria Colette: “’vocês, rosas ne-
gras, confeito de odor
2
’” (2007: 115). Esse deslocamento é um exercício da linguagem
comum nos textos de Clarice Lispector. A personagem Joana, de Perto do coração sel-
vagem, transgride o já revoltado contato com a cor na sua experiência marcadamente
gustativa de “mastigar o vermelho”, como está na imagem de “engolir fogo adocica-
do”.
A experiência cromática de Georgia O’Keeffe, na exploração de sua gama de
cores, é a desse retorno arcaico ao paladar, ao transverbal, terreno da formação do
poético. É também a expressão da maternidade subjacente ao gosto que abre cami-
nho, um tanto oblíquo, para relacionarmos a mulher à técnica, visto que o cor-
po/cadáver de Gloria Harrison não escapa dessa lógica em que impera o domínio
técnico. Georgia O’Keeffe produziu uma série de quadros sobre a cidade de Nova
York nos quais estão retratados prédios altos onde sobressaem muitas janelas com
luzes artificiais. Casada com um fotógrafo – Alfred Stiegtliz –, O’Keeffe conviveu no
meio das fotografias e dos fotógrafos amigos de seu marido e é possível que as tenha
utilizado para captar algumas minúcias típicas de seu estilo interessado em sutilezas.
Britta Benke insere algumas fotografias de Stieglitz sobre a cidade de Nova York, fa-
zendo com que se estabeleça uma evidente semelhança entre o flash fotográfico e a a-
tividade pictórica de O’Keeffe. De acordo com Benke (1995: 52), Stieglitz, Strand e
je savoure la fleur comme une confiture” (Le génie féminin. Colette, 2002: 136).
1
“Enfin, un troisième déplacement conduira du palais et de la langue au nez: c’est le tour
aux parfums d’être confits, la rose cuit son odeur” (Le génie féminin. Colette, 2002: 136).
2
“’vous, roses noires, confiture d’odeur’” (Le génie féminin. Colette, 2002: 136).
331
Sheeler (também fotógrafos) seguem princípios da teoria de Henri Bergson no que
esse defende a interrupção do tempo para melhor apreendê-lo. Para tanto, eles utili-
zam as máquinas fotográficas, vendo nessa ferramenta técnica uma forma de reter o
tempo e assim captar a “essência do objeto”. Britta reconhece na pintura de O’Keeffe
essa influência e também elementos específicos da pintura, por exemplo, o desenho
dos reflexos de luz. Observamos até mesmo em sua produção voltada para o domí-
nio do sagrado – momento em que a pintora se retira da cidade cosmopolita e passa
viver no deserto do México com todo respeito e interesse pela cultura local –, a exis-
tência de um importante resquício das máquinas fotográficas em sua produção. Em
um dos vários retratos tirados por Stieglitz de O’Keefe, ele focaliza sobretudo a linha
do pescoço da pintora. A foto a que nos referimos se chama “Georgia O’Keeffe: um
retrato, colo”, é de 1921, e o destaque localiza-se no osso que liga o colo ao pescoço,
esse sustentáculo da cabeça é assunto de interesse de Kristeva. Na fotografia, parte
de alguns dedos da pintora situam-se sobre o colo, muito alvo. Chama a atenção o
detalhe do osso saliente que deixa à mostra apenas a metade da orelha de O’Keeffe,
que fica na mesma linha de sua boca, lábios finos sutilmente entreabertos. A alvura
desse colo/pescoço leva-nos imediatamente à tela em que ela se dedica a pintar que
se chama “Crânio de vaca com rosas de algodão”, de 1932. No centro do quadro está
o crânio de uma vaca, muito branco, frágil, e duas rosas – o retorno da marca imagé-
tica da pintora. As rosas e o crânio são da mesma tonalidade de branco. O material
das rosas mistura-se à estrutura oca do crânio. Tanto o algodão das rosas quanto al-
gumas rachaduras no crânio do animal, que se deixa ver nos tons amarelados, com-
põem uma atmosfera visual em que domina a cor branca e passa, por conseguinte,
certa idéia de vazio, de um nada dentro da forma, ou, para voltar à importância da
cor, de uma forma que se desenha em função da cor. Na fotografia em que Stieglitz
destaca o colo de O’Keeffe esboça-se essa idéia de um corpo flagrado em seu funcio-
namento até o detalhe dos movimentos dos ossos, pois os ossos da pintora ultrapas-
sam a textura da pele, que nos parece um invólucro desnecessário. O aspecto que-
bradiço do crânio da vaca é o elemento de coesão entre essas duas imagens, pois a
imagem de O’Keeffe comunga dessa mesma aparência de desfacelamento iminente.
Em outra fotografia da pintora, essa dinâmica torna-se explícita. Na foto de Stieglitz
332
intitulada “Georgia O’Keeffe: um retrato com crânio de vaca”, de 1931, a cabeça da
pintora e seu olhar claricianamente oblíquo, junto ao crânio do animal, nos levam aos
cultos cranianos da antigüidade e acionam a rede de imagética traçada por Kristeva
em Visões capitais da qual O’Keeffe é uma representante mais próxima do corpo de-
golado de Gloria Harrison do que as demais referências pictóricas, mas a tradutora
de Santa Bárbara está, esse aspecto é inquestionável, na mesma linha de Medusa,
Virgem Maria e Artemisia Gentileschi.
No volume O feminino e o sagrado, formado pela troca epistolar entre as escrito-
ras Julia Kristeva e Catherine Clément, a primeira, em sua investigação sobre o tema
que dá título a esta obra, comenta o impacto sofrido pelas pinturas de O’Keeffe:
(...) deparei por acaso com um catálogo de obras de Georgia O’Keeffe
(1887-1986), que me pareceu vir a calhar. Adoro essa pintora sóbria e
sensual, suas flores carnudas, suas visões de ovos (...), de ossos úmi-
dos e crânios limpos. (...) Ela não se priva de traçar os mistérios; mas
de quê? Seu corpo, um sexo-flor, a vida, a morte, o cosmos, o ser? Se-
cretamente, modestamente, ela se afasta – não nomeia, silencia. E de-
senha, mas outra coisa na própria coisa; uma coisa insignificante,
quase nada. (...) Tento dizer alguma coisa; não posso, seria preciso
escrever um poema, um romance...
1
(O feminino e o sagrado, 2001: 52).
Essa carta de Kristeva, de 22 de janeiro de 1997 e a publicação de O feminino e o
sagrado, 1998, são, portanto, posteriores ao livro Possessões. A necessidade de compre-
ender as pinturas de Georgia O’Keeffe por meio de poema ou de um romance foram
atendidas, nos parece, com a escrita de Possessões, romance publicado em 1996, um
ano antes da troca epistolar. A alusão às flores de O’Keeffe, na seqüência de outros
pintores que ilustram a decapitação sofrida por Gloria Harrison, contribui para a car-
tela de pintores que tocaram no íntimo, ou seja, na formação arcaica do futuro sujeito
falante, aquela que traz à tona a complexa relação entre a mãe e o bebê. Trata-se de
uma etapa anterior ao estabelecimento das interdições, anterior ao simbólico. Segun-
do Kristeva, em A revolta íntima, reside nesse espaço arcaico a mais importante ex-
pressão daquilo que a teórica chama de revolta. Curiosamente, apesar de evocar fan-
tasmas “capitais”, as pinturas de O’Keeffe não participam do conjunto de ensaios de
1
O texto original chama-se Le féminin et le sacré, de 1998, está esgotado e por isso não dispo-
nibilizamos a versão original em nota de final de página. Utilizamos a tradução de Ra-
chel Gutiérrez, da editora Rocco, 2001.
333
Visões capitais, o que confirma o afastamento teórico a respeito dessas pinturas na
confissão da autora a Catherine Clément.
As duas escritoras investigam o domínio do sagrado.
Clément, de Dacar, na carta que antecede à de Kristeva, de 16 de janeiro de
1997, cerca-se da simbologia da vaca para fundamentar um caminho possível entre o
sagrado e o feminino: “Como a deusa Hathor, no Egito, a vaca sagrada da Índia é o
invólucro do universo porque foi da pele costurada de uma vaca que nasceu o pri-
meiro ser humano. Macho, nem é preciso dizer. A vaca é, portanto, maternal e envol-
vente, admitamos” (2001: 40, grifo nosso). A carta de Kristeva tem no encontro “ca-
sual” com a pintura de O’Keeffe o retorno a um tema demasiadamente presente em
Possessões, o da maternidade. Vê-se que Clément oferece a palavra-chave desencade-
adora da imagem sagrada para Kristeva. Destacamos a palavra “maternidade” do
texto de Clément, pois é a partir dela que tecemos as suturas entre imagem-
maternidade-sagrado. Kristeva anexa à carta, não só para a amiga mas também para
a edição publicada, fotocópias de duas telas de O’Keeffe. Na primeira delas está o
peso que a teórica confere à cor: “’Série I, número 1’ (um título que não quer dizer
nada, mas a cor torturante desse botão obsceno faz vibrar o olhar e a carne)”. A outra
tela escolhida pela escritora é “Crânio com rosas de algodão” – imagem que na nossa
interpretação é também a expressão de um vazio, de um nada em que o uso da cor
branca, novamente o impacto da cor, desencadeia um saudável “fora do tempo”. Em
Possessões, esse exercício do fora do tempo tem por defensora a detetive e jornalista
Stéphanie Delacour, que ironiza o descaso do delegado Northrop Rilsky no tocante
às artes plásticas:
Stéphanie estava farta dos quadros de mestres, e se deixou enfim cair
no sono com a impressão de, pelo menos uma vez, compreender Nor-
throp Rilsky, que acusava a pintura de ser uma arte demasiado lenta.
Pois é, isso mesmo, caro Northrop, e até iremos mais longe, delega-
do: a pintura não é apenas lenta, é imóvel, anacrônica, é fora do
tempo, puro tempo incorporado, sobretudo em sonho. Sonhemos
com ela!
1
(Possessões, 2003: 134).
1
“Stéphanie en avait assez des tableaux de maîtres, elle se laissa enfin couler dans le som-
meil avec l’impression de comprendre pour une fois Northrop Rilsky qui accusait la pe-
inture d’être un art trop lent. Hé oui, c’est bien vrai, cher Northrop, et nous irons même
plus loin, Commissaire: elle n’est pas seulement lente, la peinture, elle est immobile, ana-
chronique, elle est hors temps, pur temps incorporé, surtout en rêve. Rêvons-en!” (Posses-
334
Antes de buscar a localização teórica desse “fora do tempo”, pois é assunto de
extrema relevância o desdobramento dessa condição expressa pela experiência-
revolta defendida por Kristeva, voltaremos a nossa atenção para aquilo que está su-
postamente na contracorrente desse movimento. Trata-se da sociedade do espetácu-
lo, visto que Santa Bárbara não escapa do nosso mundo contemporâneo e de suas
“leis” da globalização. Em Possessões, a primeira referência a que temos acesso sobre
o assunto diz respeito ao corpo-cadáver de Gloria Harrison:
Os dez policiais que levantavam indícios e recolhiam o menor cabelo
espalhado perto da mulher assassinada pouco estavam ligando para
o que eu pensava terem sido os infortúnios de Gloria Harrison, tanto
quanto os meus. Só faziam entrar ainda mais naturalmente no qua-
dro, também eles comparsas indiferentes, e já teatrais
1
(Possessões,
2003: 65).
A morte como processo de teatralização desenvolve-se desde O velho e os lobos
na produção ficcional de Kristeva. O corpo de uma mulher anônima, cuja aparência é
a de Alba Ram, explica-se pela padronização do gosto da vítima, que veste roupas
desenhadas pela estilista francesa Agnès B. Recentemente, a edição de maio de 2007
da Revista Elle brasileira, reportagem de Ian Phillips, publicou uma matéria sobre a
estilista em que apresenta fotografias de sua casa reformada há pouco: “Uma casa
erguida pelo rei Luís XIV para o seu médico, Guy-Crescent Fagon. (...) construção
suntuosa, conhecida como Le Coeur Volant (O coração voador) e erguida em Versa-
lhes, a oeste de Paris”. Na seqüência da abertura da matéria, a marca da singularida-
de da estilista desenha-se a partir do nome: “a estilista francesa Agnès b. (assim
mesmo, com B minúsculo)” (2007: 191), dessa forma a designer grifa seu nome no u-
niverso fashion. Vejamos como a personagem anônima, uma consumidora das roupas
de Agnès b., tem a sua vida abruptamente abreviada:
Um tumulto. (...) Uma velha senhora soluça. (...) Acabam de retirar
sions, 1996: 158-159).
1
“La dizaine de policiers de la Brigade criminelle qui prélevaient des empreintes et recueil-
laient le moindre cheveu traînant près de la femme assassinée se fichaient pas mal de ce
que je croyais avoir été les infortunes de Gloria Harrison, autant que des miennes. Ils
n’entraient que plus naturellement dans le tableau, comparses indifférents eux aussi, et
déjà théâtraux” (Possessions, 1996: 74).
335
do lago o corpo de uma mulher afogada. Tem uma ferida no pescoço.
“Os lobos!” (A multidão.) “Seu amante deve ter-lhe dado uma faca-
da”. (Um dos homens responsáveis e insensíveis.) “Mas não, eu vi a
marca das presas.” (A senhora em soluços.).
O cadáver ainda está estendido sob uma toalha ou lençol, espera-se a
polícia, nada pode ser tocado. Mostro meu cartão de jornalista e le-
vanto a ponta da toalha. Com efeito, um ferimento na base do pesco-
ço. Os longos cabelos cobreados começam a secar sob o efeito do ca-
lor. Os cabelos de Alba, cobertos de alga e de lodo. Colam-se ao rosto
lívido e maculado, cujos traços não posso distinguir sob as inchações
e a lama. “Não toque, estamos esperando a ambulância.” (A velha
senhora soluça, afastando-me, com uma energia súbita, do corpo
morto, do qual visivelmente se atribui a propriedade exclusiva, a só
ser partilhada, quem sabe, com a equipe médica.)
1
(O velho e os lobos,
1999: 81).
Na matéria da Revista Elle, Agnès b. exibe em sua antiga sala de música, que
atualmente foi substituída pelo living, um pequeno armário onde se encontra uma
edição original de L’Encyclopédie, de Diderot e d’Alembert. Essa raridade contrasta
com obras de arte contemporânea, as quais podem ser apreciadas nos vários aposen-
tos reformados. A antiga sala de música está enfeitada com um tela do artista húnga-
ro Simon Hantai e na sala de jantar a estilista prestigiou o trabalho de Jean-Michel
Basquiat. A matéria realça o interesse da estilista pela arte pictórica: “Agnès tem uma
coleção particular com mais de 900 obras e é dona de duas galerias” (2007: 191-192).
A primeira butique de Agnès surgiu em 1975 e hoje existem aproximadamente cento
e quinze lojas espalhadas pelo mundo. O sucesso de Agnès independe das tendên-
cias, segundo a matéria jornalística, que repete uma das frases famosas da estilista
que “nunca comprou uma só página publicitária”: “’Eu crio peças de vestuário, não
de moda”’ (2007: 192). A personagem anônima de O velho e os lobos, a afogada do la-
go, conforme o discurso do narrador, não dispõe de um gosto sofisticado como a pro-
1
“Un attroupement. (...) Une vieille dame sanglote. (...) On vient de repêcher du lac le corps
d’une femme noyée. Une blessure au cou. ‘Les loups!’ (La foule.) ‘Son amant a dû la
frapper d’un coup de couteau.’ (Un des hommes responsables et insensibles.) ‘Mais non,
j’ai vu la trace des crocs.’ (La dame en sanglots.) Le cadavre est encore étendu sous une
nappe ou un drap, on attend la police, il ne faut rien toucher. (...) Les longs cheveux
cuivrés commencent à sécher sous l’appel de la chaleur. Les cheveux d’Alba couverts
d’algues et de vase. Ils collent au visage bleui et maculé dont je ne distingue pas les traits
sous les bouffissures et la boue. ‘N’y touchez pas, on attend l’ambulance.’ (La vieille
dame sanglotte en m’écartant avec une énergie soudaine du corps mort dont elle s’est vi-
siblement attribué la propriété exclusive, à ne partager, à la rigueur, qu’avec le corps
336
tagonista da matéria da Elle insinua ao estreitar os laços entre o universo das artes e a
indústria da moda:
Aquele mesmo conjunto branco de pintinhas pretas da Agnès B., do
qual Alba só se separava raramente. Que idéia, vestir-se na Agnès B.,
como uma colegial, uma remanescente atrasada de 68! Alba nunca ti-
vera gosto pelo luxo, talvez também não tivesse recursos para tanto,
apenas o grau zero da elegância
1
(O velho e os lobos, 1999: 81-82).
Nesse universo de padronização e de descaso diante dos assassinatos, a dete-
tive Stéphanie Delacour é a única na trama de O velho e os lobos que se preocupa com
assassinato da mulher do lago. Ela compra o jornal É domingo em Santa Bárbara e cho-
ca-se com o descaso dado ao crime, somado à falta de interesse pela vítima, uma con-
sumidora que provavelmente partilhava do mesmo ideal artístico presente na singu-
laridade da marca Agnès b.: ”Ninguém veio reclamar a jovem anônima cujo corpo foi
retirado, depois de uma afogamento precedido de crise cardíaca
2
” (1999: 160). No en-
terro do Professor de latim, a possível presença de Alba confunde a detetive, que
pensava ter desvendado a identidade do cadáver do lago: “Apesar de tudo, aquela
semelhança: a anônima tinha o rosto de Alba Ram, os mesmos cabelos, o mesmo con-
junto de Agnès B
3
” (1999: 160). Essa confusão comum no mundo das aparências é
uma das facetas da sociedade do espetáculo, uma de suas armadilhas, pois a estan-
dardização vigora no consumo das mercadorias, apesar de o enfoque publicitário,
sobretudo quando se faz ausente, se apoiar sobre o diferencial da exclusividade:
“Simples coincidência? Afinal de contas, um mundo de moças com cabelos cobrea-
dos veste-se na Agnès B. e basta embebê-las em água suja para ver nelas os traços de
Alba, ou de quem se quiser
4
” (1999: 160).
médical.)” (Le vieil homme et les loups, 1991: 123).
1
“Ce même ensemble blanc à petits pois noirs d’Agnès B., dont Alba ne se séparait que ra-
rement. Quelle idée de s’habiller chez Agnès B., comme une collégienne, une soixante-
huitarde attardé! Elle n’a jamais eu le goût du luxe, Alba, peut-être pas les moyens non
plus, juste le degré zéro de l’élégance” (Le vieil homme et les loups, 1991: 124).
2
“Personne n’est venu réclamer la jeune anonyme dont le corps a été repêché, suite à une
noyade précédée d’une crise cardiaque” (Le vieil homme et les loups, 1991: 263).
3
“Tout de même, cette ressemblance: l’anonyme avait le visage d’Alba Ram, les mêmes che-
veux, le même ensemble Agnès B” (Le vieil homme et les loups, 1991: 263).
4
“Simple coïncidence? Après tout, une foule de filles aux cheveux cuivrés s’habillent chez
337
Observa-se que o caminho do espetáculo mostra-se suficientemente desenvol-
vido no primeiro polar de Kristeva. Em Possessões, a ação da detetive Delacour segue
a linha da revolta em face do espetáculo. Na reconstituição do crime de Gloria Harri-
son, a jornalista-detetive, que havia jantado com a vítima e com uma série de suspei-
tos, espera para dar o depoimento ao delegado Rilsky sem esconder, ainda que so-
mente em sua imaginação, um reduto muito íntimo, a repulsa pelo teatro: “Stéphanie
Delacour esperava com os outros. Encenação grotesca, pensava ela
1
” (2003: 73). Gro-
tesco refere-se ao modo como aparecem alguns dos suspeitos quando reproduzem o
mesmo traje de noite da data do assassinato. É o caso de Larry Smirnoff, apaixonado
pela vítima e bastante abatido. No outro lado do espetáculo está Odile Pascal, que
desfila, com uma euforia deslocada para a ocasião, o seu vestido vermelho (2003: 73-
74). Na seqüência das alusões ao espetáculo, há uma reflexão que nos leva àquela
presente em Clarice, na qual a escritora redige uma crônica chamada “Persona”, que
nos serviu para a análise de Perto do coração selvagem. Assim como Lispector, o narra-
dor kristevaniano reconhece esse recurso desenvolvido muito antes dos elaborados
meios técnicos televisuais dos quais dispomos na atualidade:
Todos assumem atitudes, poses, máscaras e outros looks, neste mun-
do de fingimentos, onde o “verdadeiro” se dissipa no vapor das i-
magens que se sucedem nos canais de tevê, e onde o “autêntico” é
uma pretensão que não resiste um segundo sequer às especulações
das bolsas, nem aos recursos judiciários
2
(Possessões, 2003: 77).
A roupa do delegado Rilsky, cuidadosamente escolhida para o confronto entre
Michael Fish, Hester Bellini e Brian Wat, todos supeitos do assassinato da tradutora,
não se furta desse tom espetacular que é muito próximo de um envolvimento praze-
roso com o crime. Vejamos as referências cinematográficas, (especialmente a descri-
ção do casaco estilo Humphrey Bogart), as quais se assemelham à tentativa revoltada
Agnès B. et il suffit de les imbiber d’eau maculée pour n’y voir que les traits d’Alba ou
de qui on veut” (Le vieil homme et les loups, 1991: 264).
1
“Stéphanie Delacour patientait avec les autres. Mise en scène grotesque, songeait-elle”
(Possessions, 1996: 84).
2
“Tout le monde prend des attitudes, des poses, des masques et autres looks, dans ce monde
de faux-semblants où levrai se dissipe dans la vapeur des images zappées et où lau-
thentique’ est une prétention qui ne résiste pas une seconde aux spéculations boursières
ni aux renvois judiciaires” (Possessions, 1996: 89).
338
do “fora do tempo”, na mesma linha do fora de moda do professor de latim em O ve-
lho e os lobos:
Na gama cuidadosamente selecionada dos conjuntos comemorativos
dos atores hollywoodianos de sua juventude, escolhera naquele dia
um terno que ousava uma risca sobre a alpaca negra, e o corte de
uma camisa branca que, mais que as outras, lhe dava o ar cerimonio-
so de assistir a um espetáculo de ópera. (...). “Elegância, só isso! É
preciso ter boa apresentação”, confiava pudicamente a Stéphanie,
que concordava (Possessões, 2003: 138).
1
Em outro momento relacionado ao espetáculo, o delegado Rilsky, em seu dis-
curso direto, deixa evidente o seu “horror” aos jornalistas. De forma irônica, afirma,
sem esconder o sentimento de vergonha, ter desenvolvido uma espécie de racismo –
semelhante, ele exemplifica de modo infeliz, aos anti-semitas ou ao ódio aos árabes
ou aos negros – mas no que diz respeito exclusivamente à classe jornalística. Segundo
Rilsky, os jornalistas substituem os padres de outrora, pois têm acesso a informações
capazes de manipular vários setores da sociedade e não se ocupam, obviamente, da
verdade. O longo trecho a seguir condensa essas idéias do delegado e justifica o por-
quê de seu racismo, o qual se fundamenta no vertiginoso fluxo de informações e i-
magens próprias da dinâmica do mercado de notícias. Os exemplos de Rilsky expres-
sam o descaso frente ao sofrimento humano em detrimento de sentimentos ou ações
que poderiam ser de caráter edificante na medida em que a indústria da notícia mo-
vimenta uma série de pessoas e de órgãos de poder. Na passagem que segue, Rilsky
critica sobretudo o telejornalismo, já que é o mais claramente espetacular.
Em Diante da dor dos outros, Susan Sontag localiza na guerra que os Estados
Unidos travaram no Vietnã o evento desencadeador da intensificação desse exercício
em que o olhar voltado sobretudo ao sofrimento dos outros cria o hábito de trans-
formar a tragédia em diversão, pois essa guerra, “a primeira a ser testemunhada dia-
a-dia pelas câmeras de tevê, apresentou à população civil americana a nova teleinti-
1
“Dans la gamme soigneusement sélectionné de ses complets commémoratifs des acteurs
hollywoodiens de sa jeunesse, il avait prélevé ce jour-là un costume qui osait une rayure
grise sur l’alpaga noir, et le tranchant d’une chemise blanche qui lui donnait plus que les
autres l’air cérémonieux d’assister à un spectacle d’opéra. (...) ‘De la tenue, c’est tout! Il
faut se tenir”, confiait-il pudiquement à Stéphanie, qui en convenait’” (Possessions, 1996:
165).
339
midade com a morte e a destruição” (2003: 22). O discurso do delegado aponta para
esse voyeurismo denunciado por Sontag:
“Senhoras e senhores, de Ruanda, ao vivo. Várias centenas de milha-
res de mortos. Um avião carregado de auxílio humanitário chegou
esta manhã. Por enquanto, só os jornalistas desembarcaram. (Close
sobre os jornalistas). John Smith, enviado especial da CNN, ao vivo
de Ruanda, para o Jornal das vinte horas...” No comment. Não chega?
Escutem mais isto: “Senhoras e senhores, acabamos de chegar ao lo-
cal do crime. Só os jornalistas foram autorizados a penetrar no perí-
metro de segurança. Ainda não há vítima, e muito menos assassino.
O crime deveria acontecer a qualquer instante. Os jornalistas estão
no local. (Close sobre os jornalistas.) Marie Dupont, ao vivo de Santa
Bárbara, para o Jornal das vinte horas...”’ Ouviram? Bem sei que olha-
ram, mas ouviram? Aí está. Atingimos aquilo que há de melhor, e que
só acontece no melhor dos mundos possíveis. Não entendem o que é?
Vou dizer-lhes: os jornalistas falam dos jornalistas aos jornalistas.
Para lhes dizer o quê? Tudo, nada, qualquer coisa, pouco importa,
contanto que dê uma matéria, uma imagem, um clipe. Pode-se mes-
mo chegar ao ponto de dizer, deve-se mesmo chegar ao ponto de di-
zer o quanto é horrível a sociedade do espetáculo. Isso é uma idéia
de jornalistas, que agrada aos jornalistas, os quais se comprazem em
fazer espetáculo, o qual se denuncia a si mesmo ao passar, e passa
adiante... Sim, os jornalistas falam dos jornalistas aos jornalistas
1
(Possessões, grifos nossos, 2003: 88).
Essa longa reflexão realiza um curto-circuito no argumento desenvolvido em
Possessões sobre os limites do olhar. No meio da citação, destacamos o apelo de Rilsky
(“Ouviram? Bem sei que olharam, mas ouviram?”), que é continuação do ponto defendi-
do pelo narrador, de acordo com a nossa análise dos exemplos pictóricos. A pintura
1
“’Mesdames et messieurs, nous sommes en direct du Rwanda. Plusieurs centaines de mil-
liers de morts. Un avion chargé d’aide humanitaire est arrivé ce matin. Pour le moment,
seuls les journalistes ont débarqué (Gros plan sur les journalistes). Ici l’envoyé spécial de
CNN, John Smith, je vous parle en direct du Rwanda pour le Journal de 20 heures...’ No
comment. Cela ne vous suffit pas? Écoutez encore ça: ‘Mesdames et messieurs, nous ve-
nons d’arriver sur les lieux du crime. Seuls les journalistes ont été autorisés à pénétrer
dans le périmètre de sécurité. Il n’y a pas de victime et encore moins d’assassin. Le crime
devrait se produire d’un moment à l’autre. Les journalistes sont sur place. (Gros plan sur
les journalistes.) Ici Marie Dupont, en direct de Santa Barbara pour le Journal des 20 heu-
res...’ Vous avez entendu? Je sais bien que vous avez regardé, mais vous avez entendu?
Voilà. Nous avons atteint ce qui est pour le mieux et qui n’arrive que dans le meilleur
dans mondes possibles. Vous ne voyez pas ce que c’est? Je vais vous le dire: les journalis-
tes parlent des journalistes aux journalistes. Pour leur dire quoi? Tout, rien, n’importe
quoi, aucune importance pourvu que ça fasse un papier, une image, un clip. On peut
même aller jusqu’à dire, on doit même aller jusqu’à dire combien elle est horrible, la so-
ciété du spectacle. Ça, c’est une idée de journalistes qui plaît aux journalistes, lesquels se
plaisent à faire du spectacle, lequel se dénonce lui-même en passant, et passe outre...
Oui, les journalistes parlent des journalistes aux journalistes (Possessions, 1996: 102).
340
no polar de Kristeva exerce a função de estabelecimento de uma barreira para o al-
cance do olhar. Chega-se a um ponto em que as coisas não podem ser vistas, ou que
as pessoas não alcançam pela vista. O exemplo da decapitação explicita esse interdi-
to, por isso não é aleatória a construção da morte de Gloria Harrison. A decapitação
da tradutora de Santa Bárbara leva ao argumento de que no horror não se vê, no hor-
ror se ouve. Kristeva recolhe uma imensa iconografia sobre esse assunto em Visões
capitais. O desafio que a autora nos propõe em Possessões é o de repensar esse interdi-
to trabalhado pelos pintores no plano do espetáculo eminentemente técnico que é o
de Gloria Harrison. O questionamento de Rilsky pode ser desdobrado na seguinte
indagação: Como não olhar, se o sentido da visão é o que apregoa a sociedade televi-
sual?, ou: Quem é capaz de ouvir no fluxo encantatório de imagens técnicas? O ques-
tionamento de Northrop Rilsky guarda certo paradoxo porque o delegado convive
perto da ultrapassagem dessa interdição na medida em que o crime e crueldade ad-
vindos daí necessitam de um olhar atento para serem inspecionados e desvendados.
Talvez seja por esse motivo que ele tenha desenvolvido um interesse pela música. A-
liás, tanto o delegado quanto a detetive Stéphanie Delacour têm uma comum admi-
ração por Yehudi Menuhin. Além do interesse pela psicanálise, o delegado pratica
violino para relaxar. A aproximação de Rilsky com o crime deve-se ao sentimento de
abjeção que ele experiencia ao entrar em contato com o horror. Não existe na capaci-
dade de ouvir do delegado o altruísmo que se esperaria em sua atividade tão mais
nobre do que a dos jornalistas, pois ele se refugia, segundo o narrador, na condição
de “humanista esteta”:
Contudo, acreditava que a existência tinha um objetivo, que certa-
mente não era servir aos homens, como proclamavam os velhos hu-
manistas, mas adquirir uma justa percepção da humanidade. Nisso
se considerava – não sem razão – como um humanista esteta, e aliás
só suportava a comunidade de seus semelhantes quando magnetiza-
da pela escuta admirativa de uma obra-prima
1
(Possessões, 2003: 78).
1
“Il croyait pourtant que l’existence avait un but, qui n’était certes pas de servir les
hommes, comme le proclamaient les vieux humanistes, mais d’acquérir une juste percep-
tion de l’humanité. Il se considérait en cela, non sans raison, comme un humaniste
esthète, et d’ailleurs ne supportait la communauté de ses semblables qu’aimantée par
l’écoute admirative d’un chef-d’oeuvre” (Possessions, 1996: 90).
341
A música, segundo o discurso do narrador, foi o modo como o delegado mer-
gulhou com “elegância no horror” (2003: 78). A experiência musical torna os “senti-
mentos comedidos”, daí segue um abrandamento dos sentimentos desencadeado pe-
la escuta: “O sublime, a graça, todas as maravilhas que justificam a humanidade, o
que significam, senão sentir na medida certa, comover-se na medida certa
1
?” (2003:
78). Rilsky é descrito como um melômano, isso se lê como uma auto-ironia da pró-
pria autora, visto que tem sua teoria assentada sobre o ritmo, na melodia do recém-
nascido embalado e envolvido pelo contato com o corpo materno. Interessa-nos so-
bretudo o aspecto de comedimento do som que pode ser desenvolvido no exercício
do bom senso e, conforme a construção de Kristeva, parece ausente, ou no mínimo
deficiente, na atividade de olhar. A desmedida, portanto, se liga à sociedade do espe-
táculo. A condução da vida íntima de Gloria Harrison é um exemplo de ultrapassa-
gem do olhar. A tradutora e o marido se expõem ou deixam-se flagrar em momentos
da esfera privada. Trata-se de uma concessão inevitável por vezes ou de uma estraté-
gia calculada em outros casos, que no entanto é sempre muito estimulada pela socie-
dade do espetáculo. A indústria do entretenimento reconhece na diversidade da vida
das pessoas um meio rentável de aquisição de novos consumidores:
apesar da aversão de Gloria pela autobiografia, sua ligação com Mi-
chael Fish não podia permanecer secreta na pequena sociedade de
Santa Bárbara. “Não gosto de me mostrar, mas não me escondo.”
(Gloria.) Portanto isso era conhecido, tanto mais que o próprio Mi-
chael Fish não detestava a publicidade
2
(Possessões, 2003: 110).
Inserida sem muito entusiasmo, mas também sem se contrapor à sociedade do
espetáculo, Gloria Harrison caminha no fluxo de sua época. Conforme o narrador, a
moda atual não é mais a reverência ao que chama sarcasticamente de as professional
women, deixando assim o legado de feministas como Angela Davis e Simone de Be-
auvoir fora do interesse do mercado literário. Carregado de ironia, o texto de Kriste-
1
“Le sublime, la grâce, toutes ces merveilles qui justifient l’humanité, qu’est-ce d’autre, si-
non sentir en mesure, s’émouvoir en mesure?” (Possessions, 1996: 90).
2
“malgré l’aversion de Gloria pour l’autobiographie, sa liaison avec Michael Fish ne pou-
vait rester secrète dans la petite société de Santa Barbara. ‘Je n’aime pas me montrer,
mais je ne me cache pas.’ (Gloria.) Cela se voyait par conséquent, d’autant plus que Mi-
chael Fish, lui, ne détestait pas la publicité” (Possessions, 1996: 128).
342
va ressalta que a palavra do dia das atuais leitoras chamadas de “novas libertinas” é
o “desejo”. Observa-se o diálogo temático estimulado por Kristeva entre a reflexão
relacionada à teoria e ao campo ficcional. Em Possessões, a autora insere aspectos do
que denomina o terceiro movimento feminista, assunto que abordamos recentemente
com base em Contra a depressão nacional, o qual é também e talvez em grande medida,
uma estratégia de venda. O enfoque no desejo da mulher, que pode ser desdobrado
no exercício de sua subjetividade, leva Gloria Harrison a traduzir O seio, de Philip
Roth e Os sonetos, de Shakespeare. Sobre a reação da tradutora em seu discurso direto
há um movimento dela que surpreendentemente toca na revolta: “’Que honra, mas
que trabalho! Vai ser preciso fazer o santabarbarês perder as estribeiras; torcer as fra-
ses, chocar as metáforas... Enfim, demais, não, as pessoas sentem como gafes as novi-
dades em sua língua...
1
”’ (2003: 127).
Se o trabalho da tradutora é mediado pelas solicitações do mercado, o que
suspende a sua liberdade ou, em outras palavras o exercício do gosto caro a Kristeva,
a tradutora de Santa Bárbara, no entanto, encontra um meio demasiadamente pessoal
para subverter os imperativos da sociedade do espetáculo. Trata-se de sua própria
escrita ao traduzir para o santabarbarês esses textos da língua inglesa. A condição de
estrangeira de Gloria Harrison, nessa medida, remete-nos à de Mallarmé e de Proust,
pois esses autores também exerceram a atividade de tradutores. Esse detalhe não es-
capa a Kristeva, pois o “estrangeiro” é um tema que une toda a sua produção, tanto
ficcional quanto teórica
2
. Mallarmé e Proust beneficiaram-se desse trânsito na lingua-
gem, maleabilidade que lhes rendeu um estilo próprio. Gloria Harrison não se com-
para a esses autores no que se refere à composição de uma obra literária, pois ela se-
quer é uma escritora. O ponto de contato entre ela, Proust e Mallarmé está na repro-
dução de um conteúdo da linguagem, transmitido e também recriado na tradução.
Sua atividade de tradutora aciona, portanto, por meio características incrustadas no
1
“’Quel honneur, mais quel boulot! Il faudra sortir le santabarbarois de ses gonds, tordre
les phrases, choquer les métaphores... Enfin, pas trop, les gens ressentent les nouveautés
dans leur langue comme autant des gaffes...”’ (Possessions, 1996: 150).
2
A relação entre a condição estrangeira de Kristeva e as repercussões em sua teoria da lin-
guagem encontram-se em um série de artigos produzidos por Anna Smith para o volume
Julia Kristeva: readings of exile and strangement (1996: 51-82).
343
semiótico e visíveis no genotexto e fenotexto que trazem à luz um infra-sentido, isto
é, uma camada da linguagem muito íntima da personagem, a qual é capaz de desper-
tar em seus leitores – cujo interesse recai sobretudo nos autores originais (Roth e
Shakespeare) – reações diversas. Paira na cidade de Santa Bárbara um sentimento de
inveja de Gloria Harrison: “Em Santa Bárbara, tomavam-na por uma cerebral, a frie-
za impregnada de sucesso, uma arrivista insolente
1
” (2003: 125). Essa inversão pro-
movida por Kristeva parece-nos semelhante àquela que a própria autora observa no
retrato de Artemisia Gentileschi sobre a degolação de Holofernes. A “inveja do pê-
nis”, que nada mais é do que a inveja feminina diante da exclusão ao mundo simbóli-
co, aqui recai sobre uma mulher. Provavelmente, o mais importante nessa construção
não é a mudança de papéis ou de forças – como Kristeva constata na intenção de Ar-
temisia Gentileschi – dado que o mais surpreendente nessa inversão reside na pró-
pria atividade de escrever, ou seja, no caso específico de Gloria Harrison, de traduzir:
recriar significados sob a ação melódica de enunciados que oscilam entre o pessoal e
o coletivo. Por isso, Gloria Harrison, apesar de vítima irreversível do espetáculo,
também tem sua parcela, ainda que discreta, de desforra, uma vez que deixa sua
marca textual ecoando na cidade que a “acolheu” para a morte trágica. Por uma tra-
paça do destino, a tradutora torna-se tão rentável quanto a demanda do mercado edi-
torial expressa no discurso de seu editor: ‘“Hoje em dia já não se vendem livros, mi-
nha filha! (...) Nada de romances, nada de poemas! Vendem-se segredos, vende-se
sexo, vende-se a vida!
2
”’ (2003: 127-128). O prestígio de Gloria Harrison, advindo de
sua exposição midiática, embaralha a busca pelos culpados do crime, pois até mesmo
a técnica do médico legista se encontra dispersa em uma rede de suposições que re-
conhece nos favorecimentos típicos a pessoas “conhecidas” um empecilho para o
desvendamento da morte da personagem: “essa senhora, como toda paciente de al-
1
“À Santa Barbara, on la prenait pour une cérébrale, la froideur imbue de succès, une arri-
viste insolente” (Possessions, 1996: 148).
2
“’Aujourd’hui on ne vend plus de livres, ma chère enfant!” (...) Pas de romans, pas de
poèmes! On vend des secrets, on vende du sexe, on vend la vie!”’ (Possessions, 1996: 151).
344
guma notoriedade nesse bairro de Santa Bárbara, poderia obter com muita facilidade
qualquer substância em sua farmácia habitual
1
” (1996: 156).
Numa espécie de contraponto ao espetáculo, encontramos a jornalista Stépha-
nie Delacour, pois ela é a personagem mais dedicada ao caso Gloria Harrison, não se
deixando abater pela falta de sentido desencadeada pelo crime e pelo cenário social
em que todos parecem cúmplices da morte da tradutora. O olhar da detetive, uma
freqüentadora do Louvre, viabiliza reflexões sobre a pintura como uma manifestação
do fora do tempo. Marca-se, nessa medida, um afastamento entre o fluxo das ima-
gens característico dos meios televisuais e as imagens contidas nas telas dos pintores
e disponíveis para apreciação, um deleite visual diferente da teleintimidade mórbida
estimulada pelos meios de comunicação, especialmente os eletrônicos:
nada me encanta mais do que um copo de Perrier no terro do Mar-
ly, num fim de tarde de verão. A elegância faustosa do século XVII
ladeia sem choques o vazio cortante de Pei; enquanto o público cos-
mopolita de camiseta, que não liga a mínima para Bernini e seu Luís
XIV a cavalo, nem para o Carrousel cada vez mais rosa sob o sol po-
ente, parece de um universalismo rudimentar, refrescante, talvez
sem amanhã, mas também sem terror. Quando atinge o desligamento
dos amantes satisfeitos com seu ato, a humanidade, qualquer que se-
ja, parece uma peça de museu: única, ao mesmo tempo imemorial e
carregada de memória. Como o Marly. Fora-do-tempo, a França
2
(Possessões, 2003: 169).
Se o privilégio da experiência do fora do tempo está em território francês, pre-
cisamente no Louvre, onde é possível o resgate da história imagética ocidental como
forma de esvaziamento dos fantasmas, é também na França que o narrador de Posses-
sões situa a efervescência do espetáculo, por extensão, da técnica. A condição de es-
1
“cette dame, comme toute patiente de quelque notoriété dans ce quartier de Santa Barbara,
pouvait se procurer très facilement n’importe quelle substance chez sa pharmacienne ha-
bituelle” (Possessions, 1996: 185).
2
“rien ne me ravit comme une verre de Perrier à la terrase du Marly par une fin d’après-
midi d’été. L’élégance faste du Grand Siècle côtoie sans heurts le vide coupant de Pei;
tandis que le public cosmopolite en T-shirts, qui se fout éperdument du Bernin et de son
Louis XIV à cheval, comme du Carrousel de plus en plus rose sous le soleil déclinant, pa-
raît d’un universalisme rudimentaire, rafraîchissant, sans lendemain peut-être, mais sans
terreur non plus. Quand elle atteint le détachement des amants satisfaits de leur acte,
l’humanité, quelle qu’elle soit, ressemble à une pièce de musée: unique, à la fois immé-
moriale et lourde de mémoire. Comme le Marly. Hors-temps, la France” (Possessions,
1996: 199).
345
trangeira de Delacour permite o distanciamento crítico para essa constatação que
promove uma espécie de curto-circuito no estereótipo francês alicerçado sobre a in-
tensa fruição dos sentidos:
Quando a lógica está em casa nas ruas, nos oceanos, nas estações de
trem, já não há profundidade: o impossível aflora. O que escondem
tantas aparências? Outras aparências igualmente acessíveis, acredita-
se. (...). Claro, já naveguei bastante pelo mundo para nos ver também
do exterior, nos ver (já que francesa eu sou): distintos, estilizados,
longe do tráfego. Posso dizer também – como se diz fora de nossas
fronteiras – que não temos alma, que nos falta interioridade. Os es-
trangeiros se apegam, se zangam, amam, ameaçam. Os franceses re-
presentam papéis, se vigiam, vigiam, acampam em seu inexpugnável
retiro
1
(Possessões, 2003: 170).
Kristeva vasculha na vida de Colette, sempre às voltas com as descrições mi-
núsculas das flores e de um mundo entrelaçado à natureza, o improvável. A escritora
francesa, na contramão de um rechaço ao espetáculo, entrega-se às aparências. Kris-
teva reconhece, no que chama de carreira de mímica e de atriz de Colette, a intenção
de se expor, o que a leva à pergunta: “Esse desejo de oferecer à vista – de mostrar, de
fazer ver – a fruição vocal do rouxinol não antecipa o nosso prazer de voyeurs mo-
dernos, consumidores ópticos de ostentações midiáticas
2
?” (2007: 108). Kristeva des-
taca mais de uma vez em um único parágrafo o fato de a escritora se adequar ao gos-
to francês pelo espetáculo. Novamente, a teórica instiga uma comparação entre o de-
sejo de aparecer à época de Colette e a permanência dessa intenção sob o incremento
da técnica
3
: “Colette pertence inteiramente a essa cultura do ‘parecer’, e não rejeita
nenhum de seus encantos acidulados. (...) Ontem, pela intermediação do music-hall,
1
“Quand la logique est chez elle dans les rues, les océans, les gares, il n’y a plus de profon-
deur: l’impossible affleure. Que cachent d’apparences? D’autres apparences tout aussi
accessibles, croit-on. (...) Bien sûr, j’ai assez navigué à travers le monde pour nous voir
aussi de l’extérieur, nous autres (puisque française je suis): stylés, stylisés, garés des voi-
tures. Je peux dire aussi – comme on le dit hors de nos frontières – que nous n’avons pas
d’âme, que nous manquons d’intériorité. Les étrangers s’attachent, se fâchent, aiment,
menacent. Les Français jouent des rôles, se surveillent, surveillent, campent dans leur
imprenable retraite” (Possessions, 1996: 201).
2
“Ce désir d’offrir à la vue – de montrer, de faire voir – la jouissance vocale du rossignol
n’anticipe-t-il pas notre plaisir de voyeurs modernes, consommateurs optiques des fastes
médiatiques?” (Le génie féminine. Colette, 2002: 128).
3
Diferente da nossa interpretação é a de John Lechte, no artigo “The imaginary and the
spectacle: Kristeva’s view”, no qual ele sustenta que Kristeva observa em Colette uma es-
346
hoje pela da telinha?
1
”(2007: 108). Mesmo em Roland Barthes, um pensador do ínti-
mo com quem a teórica partilha muitas das idéias que encontramos na semelhança
entre Fragmentos de um discurso amoroso e nas Histórias de amor, há espaço também pa-
ra o espetáculo. Em A revolta íntima, Kristeva menciona o interesse de Barthes pelo
music hall (1997: 137). Esses exemplos de escritores em contato com a técnica no que
ela tem de espetacular não desfazem a contribuição deles para a permanência de uma
delicada e fundamental esfera do íntimo, a qual nos levará até a construção do fora
do tempo.
O tema do íntimo, anunciado em Sentido e contra-senso da revolta (1996), rela-
ciona a revolta ao arcaico, de acordo com a interpretação que Kristeva oferece à re-
volta freudiana, sobretudo com o significado desse arcaico, fato que é diferente de
julgamentos morais e muito menos políticos. Kristeva faz questão de apontar para
essa diferença (2000: 36) que, à primeira vista, parece de muita modéstia, mas que
para a psicanalista se reveste de uma “ambição exorbitante”. Já nesse texto de 1996,
Kristeva anuncia as bases do retorno ao arcaico que será desdobrado no ano seguin-
te, em A revolta íntima. Valendo-se da terminologia de Heidegger, no que toca ao
tempo, Kristeva utilizará o termo “temporação”, que “ele emprega para mostrar que,
até no êxtase, já existe o tempo, o tempo suposto, mesmo nesse tempo extático em
que o tempo parece suspenso
2
”. A inovação de Freud está em permitir o acesso ao
que chama de Zeitlos, o fora do tempo. Observa-se que essa mudança será crucial pa-
ra a reflexão literária, para a crítica literária, pois é dessa forma que a teórica interpre-
ta Proust: “O retorno, ou o acesso a uma temporalidade fora-do-tempo: esta é a expe-
riência cuja análise lhes proponho e que os grandes textos literários, especialmente
Em busca do tempo perdido, nos permitem abordar
3
” (2000: 36). Na seqüência, Kristeva
crita exclusivamente contra o espetáculo (2004: 117).
1
“Colette appartient tout entière à cette culture du paraître, et n’en rejette aucun des
charmes acidulés. (…) Hier par le truchement du music-hall, aujourd’hui par celui du pe-
tit écran?” (Le génie féminin. Colette, 2002: 128).
2
“il utilise pour manifester que, jusque dans l’extase, il y a toujours déjà du temps, du
temps supposé, même dans cet état extatique où le temps semble suspendu” (Sens et non-
sens de la révolte, 1996: 28).
3
“Le retour, ou l’accès à l’archaïque comme accès à une temporalité hors-temps: telle est
l’expérience dont je vous propose l’analyse et que les grands textes littéraires, notam-
347
aponta para o que é o esboço do perdão, ou seja, uma das variações do fora do tempo
freudiano ao relacionar o texto de Proust como preparação da “benevolência”. No jo-
go de espelhos, que é a prática psicanalítica e a troca da transferência, contra-
transferência, também está o caminho para se pensar o perdão: “O bom analista não
seria aquele que nos acolhe com benevolência, com indulgência, sem contas a acertar,
calmo em sua casa baixa, diz Freud, e nesse sentido precisamente revolucionário,
dando-nos acesso para nós mesmos à nossa ‘casa baixa’
1
?”(2000: 36).
Kristeva recorre a uma instalação do artista Bob Wilson, chamada sugestiva-
mente de Memory Lost, para exemplificar esse retorno ao arcaico realizado na literatu-
ra por Proust. Sem sapatos e sobre uma superfície coberta de espuma que causa a
impressão de uma “perda de alicerces”, Kristeva e os outros visitantes recebem um
texto e têm seus olhares direcionados para um busto de homem de cabeça raspada
iluminado por um projetor em que é contada a seguinte fábula: “Vivemos uma his-
tória que contava que no seio de alguma população existia o hábito de raspar a cabe-
ça daqueles que se tornariam escravos, antes de expô-los ao sol. Dessa maneira os ca-
belos cresciam no interior e não mais no exterior do crânio, e eles perdiam a memó-
ria
2
” (2000: 37). Segundo Kristeva, a “revolta analítica” e o acesso ao retorno do arcai-
co funcionam no combate a esse memória perdida que a instalação de Bob Wilson
denuncia e que a psicanalista critica no abuso da obscuridade pelos artistas contem-
porâneos. A ruptura radical com a possibilidade de sentido, ainda que remoto da
“arte abstrata”, é o ponto de questionamento de Kristeva. Em busca de algum senti-
do, ainda que longínquo ou extremamente trabalhado pelo artista, reside a ambição
da teórica, fato que não dissolve todo o seu envolvimento com a estética de vanguar-
da, pois mesmo ao enfatizar os poetas revolucionários (Mallarmé, Lautréamont) a au-
ment À la recherche du temps perdu, nous permettent d’approcher” (Sens et non-sens de la
révolte, 1996: 28).
1
“Le bon analyste n’est-il pas celui qui nous accueille avec bienveillence, avec indulgence,
sans compte à régler, calme dans maison basse, nous dit Freud, et en ce sens précisément
révolutionnaire, nous donnant accès pour nous mêmes à notre ‘maison basse’? (Sens et non-
sens de la révolte, 1996: 28).
2
“Vous viviez une histoire qui racontait que chez quelque peuplade étrange, on avait cou-
tume de raser la tête de ceux dont on voulait faire des esclaves avant de les exposer au
soleil. Ainsi, leurs cheveux poussaient à l’intérieur et non plus à l’extérieur du crâne, et
ils perdaient la mémoire” (Sens et non-sens de la révolte, 1996: 28).
349
morte para Freud significa desligamento, mas se isso adquire um tom radical não é a
intenção dos dois psicanalistas, na medida em que Kristeva observa nesse gesto de
Freud exatamente o contrário da lamentação, pois trata-se antes de desdramatizar a
morte (dédramatiser). Vejamos:
Em razão dessa imanência do tempo morto (ou melhor do tempo des-
ligado) no tempo ligado ao vivo, a temporalidade psicanalítica é do-
tada de um arkhe, de um arcaico. Freud, no entanto, constrói uma es-
tranha temporalidade: pois se ela comporta um arkhe, paradoxalmen-
te ela não tem telos, ou melhor seu telos (a “cura”, a “verdade, o “re-
nascimento”) se encontra marcado, entrecortado, escandido pelo im-
possível que é em última instância a resistência à morte (psíquica e
biológica). A longa coabitação de Freud com a morte (câncer, Primei-
ra Guerra e Segunda Guerras mundiais, nazismo) contribui sem dú-
vida para forjar o modelo não vitalista e não cosmogônico do Zeitlos
1
(A revolta íntima, 1997: 52) .
Da complexidade desse fora do tempo Kristeva passa à análise da combinação
entre o fora do tempo, que é inconsciente, e o tempo linear, um tempo consciente.
Trata-se de uma tarefa difícil, pois mesmo nos textos freudianos é complicado acessá-
la. Segundo a psicanalista, a memória para Freud é inconsciente e por isso constitui
um traço (Spur) durável de excitação, além de ser indestrutível e deslocável (1997:
54). Kristeva cita um caso de somatização que pode ser interpretado à luz de uma
“memória corporal”, a qual ela prefere chamar de “memória de sistema” (mémoire de
système), cuja característica é a de se repetir em lugares e momentos diferentes do
tempo consciente linear. A medicação, segundo a psicanalista, é uma forma de inter-
vir, na medida em que bloqueia a somatização. Nesses casos, a parada abrupta da
medicação leva ao retorno das somatizações. Em função da ineficácia do tratamento
medicamentoso, Kristeva suscita “a existência de uma memória pré-psíquica subjacente
10).
1
“En raison de cette immanence du temps mort (ou plutôt du temps délié) dans le temps lié
vivant, la temporalité psychanalytique est pourvue d’un arkhe, d’un archaïque. Pourtant,
Freud construit une étrange temporalité: car si elle comporte un arkhe, paradoxalement
elle n’a pas de telos, ou plutôt son telos (la ‘guérison’, la ‘vérité’, la ‘renaissance’) s’en
trouve marqué, entrecoupé, scandé par l’impossible qui est en dernière instance
l’endurance de la mort (psychique et biologique). La longue cohabitation de Freud avec
la mort (cancer, Première Guerre et Seconde Guerres mondiales, nazisme) contribue sans
doute à forger ce modèle non vitaliste et non cosmogonique du Zeitlos” (La révolte intime,
1997: 52).
350
à aquisição da consciência e de sua temporalidade
1
”. Uma segunda forma de mani-
festação do fora do tempo está na perlaboração (Durcharbeitung), desenvolvida por
Freud em A técnica psicanalítica, no artigo “Rememoração, repetição e elaboração”.
Conforme Kristeva, a perlaboração é responsável pela articulação de dois outros pro-
cessos: a rememoração e a repetição. Na primeira, há a inscrição do passado, de for-
ma lacunar, na consciência, o nosso tempo linear. A segunda, que é a repetição, se li-
ga à indestrutibilidade do pulsional, que está ao lado do que é acessível no tempo li-
near. A perlaboração atua no centro desse processo em que se está diante da estrutu-
ra copresente, ou seja, entre a sexualidade e o pensamento. De acordo com Kristeva,
a perlaboração se apresenta como um “tempo morto” (temps mort) – fora do tempo –
constitui-se numa estagnação percebida durante o trabalho de transferência e que,
apesar desse aparente retrocesso, comporta um caminho para o sentido da vida que
passa por um resgate de uma não-vida. No caso clínico que Kristeva nos oferece co-
mo exemplo a experiência de mudez de uma analisanda a respeito de um assunto
que lhe causa mal-estar psíquico só se desfaz quando ela transforma o acesso ao fora
do tempo em palavras, ou seja, quando ela entra no tempo, na consciência e no sim-
bólico e expressa sua dor psíquica e somática por meio de palavras. Nessa medida,
um aspecto de angústia que também é característico do fora do tempo está na consti-
tuição imagética. Essas imagens que levam ao sofrimento psíquico e estão no plano
inconsciente precisam de alguma tradução na forma de palavras para não se trans-
formarem em doenças. Um terceiro exemplo e mais evidente da experiência de Zei-
tlos está no tempo da própria análise que leva à aprendizagem da separação com o
analista. Essa separação viabiliza ao analisando aceitar a morte do analista, o que ins-
taura no analisando, como num jogo de espelhos, a aceitação, a possibilidade de sua
própria morte no que ela encerra de biológico e de psíquico, pois Kristeva nunca a-
bandona essa formação copresente da sexualidade e do pensamento.
Retomamos esse percurso de desdramatização da morte que, para Kristeva,
pode ser interpretado como uma valorização da vida. Essas pequenas mortes, experi-
ências do fora do tempo dentro da vida, da consciência, configuram uma possível fi-
1
“l’existence d’une mémoire prépsychique sous-jacente à l’acquisition de la conscience et de sa
351
nitude. Observa-se que o zeitlos freudiano é a expressão do ateísmo do psicanalista; é
assim que interpretamos esse percurso de desdramatização da morte proposto por
Kristeva. A autora também se encontra nessa condição de ateísmo que, muito longe
de ser uma desistência da vida, é a intensa valorização do estar vivo. Em carta a Ca-
therine Clément, Kristeva narra a formação de seu ateísmo:
Sob um ícone representando minha homônima, santa Juliana, que
meu pai pendurou acima de minha cama, da qual não guardo ne-
nhuma imagem precisa, tanto o relato dessas experiências deve ter
me assustado antigamente, lembro-me de uma noite em que tentava
vivenciar a fé da qual minha família me ensinara a recitar as orações.
A escola comunista a desaprovava, e eu oscilava entre o desejo de
agradar a meus pais, partilhando essa fé que era a deles, e a revolta
que me instigava em desagradar-lhes alinhando-me com as ordens
da escola, Édipo exige. Tinha chegado à idade em que precisava des-
cobrir qual era a minha crença, eu, sinceramente, pessoalmente. Uma
amiga havia-me confiado que encontrara a fé por causa da morte, se-
gundo ela, só Deus é capaz de nos dar a imortalidade, ergo... Eu fa-
zia força para pensar na minha morte, para me aproximar d’Ele.
Qual não foi minha surpresa quando constatei que essa eventualida-
de me era totalmente impensável! Se tento reconstituir os componen-
tes desse flash, lembro que a idéia de meu corpo, que eu me empe-
nhava em imaginar sem vida, me aterrorizava, porque o imaginava
menos desprovido de calor ou de desejo do que, fundamentalmente,
de pensamento. Já seria eu, então, uma “intelectual”? (...) Eu assimi-
lava, pois, o pensamento ao que a vida e seus encantos tinham de
mais livre, e ficava petrificada pelo horror de um dia perdê-lo. Mas
esse período glacial não durou. Tive a sensação física de que o pen-
samento de modo algum era meu, de que ao contrário me ultrapas-
sava ou transcendia, e de que era indestrutível. Não o meu pensa-
mento, não, eu fora invadida por uma apercepção do pensamento
descontínuo da espécie, se posso formular assim essa inclusão do fi-
nito no infinito. A eternidade era simplesmente essa infinita descon-
tinuidade, para além da morte individual, do pensamento da espécie
– enquanto existirem homens –, opondo-se ao limite de cada corpo-
pensamento de si. A idéia de que alguém ou alguma coisa pudesse
pretender tomar o lugar desse infinito do pensamento ritmado pelo
impensável da morte, e mais ainda, que pretendesse remediar sua
improvável, sua impensável extinção – essa idéia de que me falava
minha amiga me parecia ilógica, inútil, incongruente. Qual era a ne-
cessidade de tal ser supremo, pois, se havia a persistência do pensa-
mento sem mim? (O feminino e o sagrado, 2001: 62-63).
A permanência da capacidade de pensar para além da finitude de seu corpo
ancora-se na continuação da espécie. O corpo, essa estrutura copresente com uma da-
ta para morrer, representa a sede onde estão relacionadas algumas sensações descri-
temporalité” (La révolte intime, 1997: 55).
352
tas por Kristeva. No momento do impasse, que corresponde a sua opção pelo ateís-
mo, eclode o sentimento/sensação que reconhece por serenidade, mas é logo descrita
por Kristeva como um sensação confusa que se mantém até hoje para ela, um estado
em que se mistura o contraste de uma “calma inquietante”. Seria o início de sua ex-
periência-revolta que mais adiante será teorizada ou um fantasma íntimo transfor-
mado em palavras? Supomos que Kristeva também nos prepara para a desdramati-
zação da morte quando nos confronta com o depoimento de sua experiência de fora
do tempo em plena vida: “em face do pensamento ilimitado fora de mim, eu me con-
frontava com o limite de meu espírito tributário de minha carne. Parecia-me natural
que fossem ambos perecíveis, e logicamente natural e lamentável, mas não assusta-
dor, de modo algum” (2001: 63). Com isso, a autora nos deixa na mesma sensação de
finitude que ela percebe no final do processo analítico, ou da cena do crime nos ro-
mances policiais – momentos em que a “possibilidade” da morte passa a ser cogita-
da. A morte de Gloria Harrison é também parte na entrada desse zeitlos necessário.
Acreditamos, assim como Kristeva, que a leitura de romances reflexivos de-
sempenham um papel semelhante ao proporcionado por essas três modalidades do
fora do tempo que a psicanalista nos apresentou. Kristeva distingue a consciência de
morte na construção de um sujeito analisado da provável inconsciência acerca da fi-
nitude presente na defesa de um homo natura, construção que ela observa no discurso
e nas intenções dos cognitivistas: “O Homo analyticus seria re-torno, re-volta do fora
do tempo no tempo. Não o compreendo como um homem da revolta moral, mas co-
mo aquele de uma re-volta lógica e cronológica
1
” (1997: 64). Na entrevista a Pierre-
Louis Fort sobre o seu terceiro romance policial - Meurtre à Byzance presente em O
ódio e o perdão
2
, Kristeva toca no tema do Zeitlos freudiano enfatizando que ele pode
ser trabalhado a partir da leitura de romances policiais. Segundo a romancista, o polar
leva-nos a um estágio de insustentabilidade e fascinação no qual o tempo é escandido
1
L’Homo analyticus serait re-tour, ré-vole du hors-temps dans le temps. Je ne lentends pas
comme un homme de la révolte morale, mais comme celui d’une ré-volte logique et chro-
nologique” (La révolte intime, 1997: 64).
2
A entrevista chama-se “Meurtre à Byzance ou pourquoi ‘je me voyage’ en roman”, presente
em La haine et le pardon (2005: 609-655).
353
pela ação da pulsão de morte, a de desligamento. Kristeva faculta ao marquês de Sa-
de o título de precursor do romance policial moderno.
Para entrar no específico do campo literário, a autora sugere uma tradução do
zeitlos que seria o “tempo perdido” (temps perdu) de Proust. Trata-se de “um tempo
que se perde como tempo à força de nos reconciliar com a experiência de nossa pró-
pria perda
1
” (1997: 66). Mas como é possível esse deixar-se perder em plena socieda-
de do espetáculo, quando estamos envolvidos com imagens que se confundem com
as nossas imagens mais arcaicas, também virtuais, ainda não transformadas em pala-
vras? Esse é o ponto explorado por Kristeva tanto em A revolta íntima quanto em Pos-
sessões, levando-nos a romper com a barreira do gênero, na medida em que não se
trata de delimitar o ficcional ou o teórico, pois a autora em parte dissolve essas seg-
mentações quando atravessa os pretensos gêneros, transitando por eles com os mes-
mos questionamentos.
A tentativa de permanência da esfera íntima, que está no título de A revolta ín-
tima, é também o núcleo de Possessões. Os personagens de Santa Bárbara (incluem-se
também os de O velho e os lobos) têm a sua natureza íntima ameaçada porque habitam
um espaço urbano no qual a complexidade da técnica leva ao apagamento do íntimo
– sobretudo no que diz respeito à imagem imbuída do seu prefixo tele, ou seja, vista
paradoxalmente à distância mas com a intenção de forjar uma intimidade na forma
de um laço afetivo virtual e portanto inconsistente. Mas qual é a definição de íntimo
para Kristeva? Depois de mencionar a importância do Zeitlos como uma preparação
para a morte e de marcar a sua inconsciência, a autora introduz o íntimo: “A palavra
vem do latim intimus, superlativo de interior, portanto: o mais interior. De modo que,
ainda que compreenda o inconsciente, não parece se reduzir a ele, mas, amplamente,
ultrapassá-lo
2
” (1997: 69). O desafio à viabilidade desse íntimo quase impenetrável
está no impasse da nossa condição contemporânea, uma vez que estamos sobrecarre-
gados de imagens que barram o acesso naturalmente complicado a essa experiência.
1
“Un temps qui se perd comme temps à force de nous réconcilier avec l’expérience de notre
propre perte” (La révolte intime, 1997: 66).
2
“Le mot vient du latin intimus, superlatif d’interior, donc: le plus intérieur. De sorte que
l’intime, bien qu’il comprenne l’inconscient, ne semble pas devoir s’y réduire, mais lar-
354
O fora do tempo, segundo Kristeva, necessita sair de sua condição de pura imagem
sem representação para entrar no campo do sentido, ou seja, da palavra. Por isso, o
fluxo, a sobrecarga imagética da sociedade do espetáculo prejudica o alcance ao zei-
tlos, pois o excesso de referências imagéticas retarda ou até mesmo impede o momen-
to de eclosão desse exercício do fora do tempo. No tocante ao íntimo acontece o
mesmo, ou seja, é necessário um espaço psíquico para que venha à tona esse retorno
ou, dito de outra forma, essa revolta – experiência-revolta – do arcaico que constitui o
íntimo. Em A revolta íntima, Kristeva escolhe os Exercícios espirituais de Santo Inácio
de Loyola como exemplo de manifestação da esfera íntima. A autora chama a atenção
para o ritual obsessivo de Loyola acompanhado dos cinco sentidos, ritual estimulado
pelo texto sagrado. Kristeva observa em Loyola o esboço da copresença sexualida-
de/pensamento que será a base da teoria freudiana interpretada por ela: “trata-se de
fato de uma contínua copresença entre sensível e inteligível
1
” (1997: 75). Nesse percurso
muito abreviado que contempla uma alusão a Santo Inácio de Loyola, mesmo antes
de mencionar o peso freudiano da copresença, Kristeva dá um passo adiante no tem-
po e menciona a interpretação de Lacan, pois o psicanalista localiza em Sade, esse au-
tor chave para a compreensão do polar moderno, uma fundamental coabitação entre
lei, razão e sensação, a qual Kristeva resume na prática de uma “intimidade maso-
quista”.
Recorramos ao seminário sete de Lacan para resumir o ponto do psicanalista
acerca de Sade, pois Kristeva não o desdobra em A revolta íntima e também não faz
referência ao texto que escolhemos para essa possível conjunção entre o íntimo e seu
contato com o pensar/sentir. No texto “Da lei moral”, Lacan retoma, com base na
Crítica da razão prática, o eixo da ética de Kant, o imperativo categórico: “Age de tal
modo que a máxima de tua vontade possa sempre valer como princípio de uma le-
gislação que seja para todos” (1997: 98). O curioso é que Lacan aproxima o lançamen-
to de a Crítica da razão prática, de 1788, da perturbadora publicação de A filosofia na al-
cova, de 1795, do marquês de Sade. A publicação de Sade lhe rendeu uma prisão de
gement le dépasser” (La révolte intime, 1997: 69).
1
“Il s’agit en effet d’une continue coprésence entre sensible et intelligible” (La révolte intime,
1997: 75).
355
vinte e cinco anos. Em A filosofia da alcova, há o elogio da calúnia e a ruptura com os
imperativos morais que são a base da ética kantiana. Segundo Lacan, Sade preconiza
o “incesto, o adultério, o roubo e tudo o que vocês podem imaginar” (1997: 100). O
universo caricatural de Sade é livre de qualquer fundamento moral e essa radicalida-
de é interpretada por Lacan como o princípio da ética kantiana, pois se apega sem
qualquer mobilidade aos imperativos categóricos. O ponto comum entre Kant e Sade,
que sustentam, de modo radical, pontos de vista divergentes, assenta-se sobre a dor
do outro. Reproduziremos a passagem da Crítica kantiana sobre a dor, que é recorta-
da por Lacan (terceiro capítulo referente aos móveis da razão pura prática): ‘“Por
conseguinte, podemos ver a priori que a lei moral como princípio de determinação da
vontade, pela mesma razão que ela causa danos a todas as nossas inclinações, deve
produzir um sentimento que pode ser chamado de dor”’ (1997: 102). Lacan sustenta
que os dois autores partilham da mesma opinião, pois, quando Sade, na tentativa de
obter “A coisa” (das Ding) em sua busca sem limites pela satisfação do desejo o que
ele anuncia é a dor, ou seja, uma experiência partilhada por todos, assim como está
na base do imperativo categórico: “a dor de outrem e, igualmente, a dor própria do
sujeito, pois são, no caso, apenas uma só e mesma coisa. O extremo do prazer, na
medida em que consiste em forçar o acesso à Coisa, nós não podemos suportá-lo”
(1997: 102). Kristeva nos indica a relação entre Kant e Sade sem se referir a esse texto
especificamente e chega à conclusão de que a busca pela intimidade é a de “intimi-
dade sadomasoquista” e inconsciente. Quanto ao inconsciente, esse inapreensível que
tentamos resgatar em palavras, Kristeva lança uma pergunta: “o inconsciente é outra
coisa além de sadomasoquista?
1
” (1997: 77). O caminho de Freud, portanto, passa por
Kant e por Sade, autores que, apesar de suas trajetórias contrastantes, viabilizaram
para o pensamento lacaniano a articulação de um íntimo que circula no entrelaça-
mento da razão, da moral e do afeto. A contribuição freudiana, segundo Kristeva, es-
tá na composição de um íntimo que chama de “vivo”, como uma referência explícita
à teoria dos afetos desenvolvida por André Green em O discurso vivo (Le discours vi-
vant). Em suma, Kristeva reconhece na psicanálise o terreno para a experiência do ín-
1
“l’inconscient est-il autre chose que sadomasochique?” (La révolte intime, 1997: 77).
356
timo em que a nossa vida psíquica comporta de forma indissolúvel e simultânea
“discurso e afeto” (1997: 78).
Kristeva supõe no imaginário
1
o nosso acesso mais imediato e também o mais
arriscado ao íntimo. Os fantasmas fazem a mediação para o imaginário e, por conse-
guinte, para a nossa intimidade. A autora observa na raiz da palavra fantasma a no-
ção de luz, do brilhar, do aparecer, se apresentar e também se representar. Ela apenas
prepara o campo para ligar o íntimo, como faz em seguida, ao espetáculo no que ele
tem de técnico, ou seja, à sociedade do espetáculo. Kristeva também distingue os ti-
pos de fantasmas. Os fantasmas inconscientes subliminais correspondem a devaneios
inconscientes de forte conotação sexual, com consciência ou não e são os precursores
dos sintomas histéricos. Os fantasmas inconscientes ligam-se a desejos inconscientes
e manifestam-se nos sonhos. A impossibilidade de acessá-los, ou seja, o recalque po-
de levar à manifestação de sintomas (1997: 101). De acordo com Kristeva, o trabalho
psicanalítico tem por função trazer para o plano consciente o fantasma, transformá-lo
em narração e interpretá-lo com o objetivo de barrar o sintoma. Há também os fan-
tasmas originários ou hereditários, que seriam ainda mais profundos e mais arcaicos
dos que os já mencionados porque remontam à tradição das gerações que nos são
precedentes. Kristeva sustenta uma importante função da arte para a formulação dos
fantasmas na medida em que reconhece na literatura e na “arte” (a autora não especi-
fica) o lugar “favorito” do que denomina “formulação” desses fantasmas. Não é alea-
toriamente que ela liga o trabalho psicanalítico de Freud à prática literária de Proust,
os dois estão envolvidos no processo que denomina, com expressiva ironia, “tran-
substanciação”, o qual, para ambos, seguindo metaforicamente a fórmula da eucaris-
tia, consiste no “tocar com o verbo as vibrações do desejo
2
” (1997: 103). Um outro e-
xemplo de arte na apreensão de fantasmas refere-se à pintura de Goya
3
, que soube
transformar o seu sofrimento psíquico em telas: “Goya e seus caprichos inspirados
1
Segundo Roudinesco e Plon, o imaginário relaciona-se com a imaginação, portanto “com a
faculdade de representar coisas em pensamento, independentemente da realidade” (1998:
371).
2
“toucher avec le verbe les vibrations du désir” (La révolte intime, 1997: 103).
3
Sobre esse assunto, recorremos ao estudo de Henri-Jacques Stiker, “Francisco de Goya
(1746-1828), la folie dans tous ses états”, do volume Les fables peintes du corps abîmé.
357
pela violência que sofreu a Espanha durante as guerras pós-revolucionárias, mas
também pela depressão do pintor, sua perda de identidade sob a marca da morte
1
(1997: 106).
Não é a exposição de sua vida fantasmática que Kristeva realiza ao compor
Possessões? Não apenas de sua condição feminina ou das mulheres um tanto estran-
geiras diante do simbólico e por isso Artemisia Gentileschi assume um peso pictórico
tanto em Possessões quanto em Visões capitais, mas também da nossa condição para a-
lém da questão de gênero. Nesse sentido, a iconografia presente nessas duas obras
extrapola a esfera íntima individual de sua autora, claramente atormentada pelo fan-
tasma da degolação/castração, e adentra à história fantasmática coletiva, pois todos
passamos por esse trauma que forma a ordem do desenvolvimento da nossa vida
psíquica. A questão que Kristeva traz ao expor nesses livros reproduções e descrições
de obras imagéticas que nos constituem e por isso nos são íntimas não deixa de ser
uma espécie de triagem ou, em outras palavras, de organização de imagens nucleares
com a finalidade de reatar a idéia de laço, de sentido de nossa vida psíquica particu-
lar com a vida psíquica do coletivo. Essa mesma idéia está na expressão de seu ate-
ísmo. Para Kristeva, se somos finitos, temos o consolo que nos leva à serenidade de
sermos sucedidos por pessoas com a capacidade de pensar, as quais participarão
desse legado fantasmático e, por conseguinte, imagético que nos constitui. O trabalho
da sociedade do espetáculo e a sua produção mercadológica de imagens interpõe-se
nessa tentativa sempre escorregadia de apreender o íntimo entre o particular e o uni-
versal. Essa é a denúncia que faz Kristeva ao nos questionar com provocação: “Não
estamos saturados de fantasmas, estimulados a produzi-los e a nos tornar, cada um
por sua vez, criadores imaginários?
2
(1997: 106). O paradoxo desse estímulo midiáti-
co reside no fato de que a sociedade do espetáculo, que se caracteriza por uma rela-
ção entre imagens e a sociedade, não se interessa pela criação de fantasmas tampouco
pela análise dos fantasmas já existentes e sedimentados no nosso imaginário ociden-
1
“Goya et ses Caprices inspirés par la violence que subit l’Espagne pendant les guerres
post-révolutionnaires, mais aussi par la dépression du peintre, sa perte d’identité sous
l’emprise de la mort” (La révolte intime, 1997: 106).
2
“Ne sommes-nous pas saturés de fantasmes, stimulés pour en produire et devenir, chacun
358
tal. Um exemplo disso são os pacientes que Kristeva descreve em As novas doenças da
alma, os quais têm uma existência atrelada à imagem, sobretudo àquelas televisuais,
mas são incapazes de transformar em palavras suas angústias. Didier, por exemplo,
vale-se de quadros-colagens na tentativa de expressão de seu íntimo, prática que pa-
ra Kristeva, em sua atividade analítica, foi vista como um empobrecimento das fanta-
sias de seu analisando: “Didier ‘significava’ de outra forma. Substitutos das represen-
tações de coisas (seus quadros) tomavam o lugar da relação entre representações de
coisas e representações de vocábulos, para garantir a identidade psíquica que seu ego
narcísico não chegava a criar” (2002: 26). Em Possessões, Jerry, o filho de Gloria Harri-
son, acompanha esses pacientes de As novas doenças da alma, pois há uma discreta re-
ferência tecida pelo narrador a um dos seus estados de alma de Jerry em que ele é
flagrado na lógica do automatismo desencadeado pelos estereótipos muito bem cons-
truídos pela mídia
1
: “Mesmo as cóleras de Jerry, que a adolescência infalivelmente
devia exacerbar, exprimiam-se em termos tirados dos clichês das propagandas de te-
vê, quando não eram imediatamente escamoteadas sob alguma banal e apaziguadora
manobra de sedução
2
” (2003: 59).
Deve-se levar em conta que a deficiência de Jerry o impede de administrar eti-
camente o conteúdo de seu horror, ou seja, o seu íntimo. Insistimos no ponto levan-
tado por Kristeva de que no horror se deve fazer o deslocamento do sentido da visão
para a audição. A própria autora cria o paradoxo e faz um curto-circuito em seu ar-
gumento que poderia ser uma saída ética contra o voyeurismo, difundido pela socie-
dade do espetáculo, ao construir um personagem cuja deficiência é justamente a in-
à son tour, créateurs imaginaires?” (La révolte intime, 1997: 106).
1
Sobre esse assunto, Marcel Mauss, em “Noção de técnica do corpo”, antecipa a influência
da imagem sobre o corpo em um comentário que servirá para a sua teoria: “Uma espécie
de revelação me veio no hospital. Eu estava doente em Nova York e me perguntava onde
tinha visto moças andando como minhas enfermeiras. Eu tinha tempo para refletir sobre
isso. Descobri, por fim, que fora no cinema. De volta à França, passei a observar, sobre-
tudo em Paris, a freqüência desse andar; as jovens eram francesas e caminhavam também
dessa maneira. De fato, os modos de andar americanos, graças ao cinema, começavam a
se disseminar entre nós. Era uma idéia que eu podia generalizar“ (2003: 403-404).
2
“Même les colères de Jerry, que l’adolescence devait immanquablement exacerber,
s’exprimaient en termes empruntés aux clichés des pubs télé, quand elles n’étaient pas
sur-le-champ escamotées sous quelque banale et désarmante manoeuvre de séduction”
(Possessions, 1996: 67).
359
capacidade da escuta. Como expressar “eticamente” o horror da vida fantasmática se
se está fisicamente excluído dessa tarefa por uma deficiência?
1
Esse é o caso de Jerry,
a surdez do personagem o leva para o que o psiquiatra Zorine, um dos suspeitos do
assassinato de Gloria Harrison, chama de autismo visual:
Um de seus jovens pacientes, surdo de nascença, desenvolvera uma
estranha aptidão para desenhar exatamente como Picasso. E também
para reproduzir sem nunca acabar falsos Picassos, que só os especia-
listas – e nem sempre – tinham condições de distinguir dos verdadei-
ros. Aliás, o falsificador se revelava perfeitamente incapaz de dese-
nhar adequadamente, por si mesmo, uma maçã ou uma árvore, como
o teria feito em sua idade qualquer criança considerada “comum”
2
(Possessões, 2003: 98-99).
A morte de Gloria Harrison e o passar do tempo deslocam a obsessão tecnoló-
gica de Jerry dos videogames para os computadores. Stéphanie Delacour questiona-se
acerca dessa aptidão de Jerry, localizando, obviamente, na figura materna a causa do
comportamento “frio” de Jerry, pois ele encontra no exercício da racionalização o
meio para marcar sua autonomia. Kristeva defende a necessidade da separação da fi-
gura materna para a autonomia do sujeito – esse aspecto é fundamental para com-
preender a sua teoria poética e também Possessões. Em Sol negro, a autora reforça a
necessidade da morte simbólica da mãe, etapa que vimos desenvolvida em A revolu-
ção da linguagem poética: “Para o homem e para a mulher, a perda da mãe é uma ne-
cessidade biológica e psíquica, o primeiro marco de autonomização. O matricídio é
nossa necessidade vital, condição sine qua non de nossa individuação
3
” (1989: 33). Jer-
1
A deficiência é campo de estudos de Kristeva, que é presidente, ao lado de Charles Gar-
dou, do Conselho Nacional do “Deficiente: sensibilizar, informar”. A autora organizou o
volume Handicap: le temps des engagements, publicado em 2006. Nessa mesma obra, Da-
niel Sibony, no debate “Paradoxes do handicap”, referente ao capítulo “Vie santé, éthi-
que et déontologie”, sugere o tratamento “pessoa em situação de deficiência” no lugar do
termo deficiente, de modo a não reduzir o ser ou a sua essência a sua deficiência (2006:
71).
2
“Un de ses jeunes patients, sourd de naissance, avait développé une étrange aptitude à
dessiner tout à fait comme Picasso. Et à reproduire à n’en plus finir des faux Picasso que
seuls les spécialistes – et encore! – étaient en mesure de distinguer des vrais. Le faussaire
se révélait par ailleurs parfaitement incapable de dessiner convenablement, et par lui-
même, une pomme ou un arbre, comme l’aurait fait à son âge n’importe quel enfant dit
‘ordinaire’” (Possessions, 1996: 114).
3
Pour lhomme et pour la femme, la perte de la mère est une nécessité biologique et psy-
chique, le jalon premier de l’autonomisation. Le matricide est notre nécessité vitale, con-
360
ry reproduz, de forma ampla e quase caricatural as relações entre mãe e filho que
Kristeva expõe em Sol negro. Interessa-nos, sobretudo na observação de Delacour que
segue, a dúvida entre os limites do que é particular e do que é parte do meio com a
forte influência do espetáculo e de suas camadas de interesses diversos: “Entregue a
si mesma, a consciência que raciocina não difere de um sistema informático que co-
mete falhas por vezes irremediáveis, sem jamais se confundir com elas. Eu me per-
guntava se esse comportamento era o traço de uma geração, ou o produto paradoxal
da dedicação de Gloria
1
(2003: 193). Possivelmente esse arranjo participa de uma es-
trutura de copresença na qual é impossível distinguir os limites de cada um de seus
elementos – uma composição bem ao gosto de Kristeva, que cristaliza o seu enfoque
semiológico voltado à diluição das segmentações especialmente em Poderes do horror.
A obra de Picasso escolhida pelo personagem para a “significação” do seu sofrimento
de alma insere Jerry na experiência fantasmática ocidental das degola-
ções/castrações, pois, a despeito de sua deficiência, ele vivencia o seu horror fantas-
mático sem excluir-se do contexto, estando no cerne do olhar e, extensivamente da
maldade, o seu íntimo:
Hoje se faz tudo no computador, por que não a degolação de são Jo-
ão em mosaico, nas paredes de São Marcos em Veneza, ou O homem
que anda sem cabeça, de Rodin – ou, até mesmo – a própria degola-
ção de Gloria? Já não há arte, já não há crime, estamos na era da inte-
ligência artificial, o computador sabe tudo, pode tudo, faz tudo; in-
venta, pensa, projeta, ele é o criador, já não há criador, lógico, não?
Eu sei, por enquanto temos necessidade de um intermediário, o pro-
gramador, Jerry em pessoa, mas até quando? Jerry, sobrevivente da
morte de Gloria e dos lábios de Pauline, falsifica A mulher com colari-
nho de Picasso, quebra o rosto de todas – a mulher, sua mãe, a fono-
audióloga –, pausadamente, dentro das regras do software. Um de-
mônio lógico
2
(Possessões, 2003: 207).
dition sine qua non de notre individuation” (Soleil noir, 1987: 38).
1
“Livrée à elle-même, la conscience raisonnante ne diffère pas d’un système informatique
qui commet des ratés parfois irrémédiables, sans jamais se confondre avec eux. Je me
demandais si ce comportement était le trait d’une génération ou le produit paradoxal du
dévouement de Gloria” (Possessions, 1999: 230)
2
“On fait tout sur ordinateur aujourd’hui, pourquoi pas la décollation de saint Jean en
mosaïque sur les murs de Saint-Marc à Venise, ou L’Homme qui marche sans tête de Rodin
– ou, tant qu’on y est, la décollation de Gloria elle-même? Plus d’art, plus de crime, nous
sommes à l’ère de l’intelligence artificielle, l’ordinateur sait tout, peut tout, fait tout; il
invente, pense, projette, c’est lui le créateur, logique, non? Je sais, pour l’instant on a be-
soin d’un intermédiaire, le programmeur, Jerry en personne, mais jusqu’à quand? Jerry,
rescapé de la mort de Gloria et des lèvres de Pauline, fausse La femme à la collerette de Pi-
361
Kristeva desloca-se para a transformação da técnica que toca na formulação
dos nossos fantasmas. A autora elege a imagem cinematográfica como “lugar cen-
tral” para a investigação do nosso “imaginário contemporâneo” (1997: 109). Existem,
segundo Kristeva, dois caminhos para o cinema. Um é o atalho mais fácil e lucrativo
e reduz o espectador ao que chama de “consumidor passivo”. O outro é o mais longo
e preocupa-se com a composição de uma “escrita cinematográfica”; decorre disso a
ambição que não se acomoda ao jogo do mercado, pois está centrada sobre o “pensar
o especular”. Em seguida, a autora escolhe alguns filmes nos quais seu critério foi a
captura de nossos fantasmas. Filmes como Um homem e uma mulher (Claude Le Lou-
ch, 1966), James Bond contra Dr. No (Terence Young, 1962) ou Este mundo é um hospício
(Arsenic and old lace, de Frank Capra, 1944) são filmes que nos seduzem porque des-
pertam o nosso horror ou fascinação na medida em que, conforme Kristeva, “capta-
ram fantasmas de uma época” (1997: 110). Entretanto, o cinema que desperta o inte-
resse da escritora é aquele inserido na categoria do “especular pensado”. O especu-
lar, próprio de quem se dedica ao exercício da visão, é sempre repleto de fascinação,
uma vez que ele carrega, segundo a autora, vestígios de “agressividade, dessa pulsão
não simbolizada, não verbalizada e portanto não representada
1
” (1997: 117).
Kristeva busca no estoicismo grego a formulação do lekton, traduzido pela au-
tora como exprimível, que serviu como distinção entre o objeto e o referente. O “es-
paço” característico dessa construção antiga na formação das imagens a autora enal-
tece ao preferir o cinema especular pensado no lugar de fórmulas prontas produzi-
das pela indústria cultural de um cinema voltado basicamente ao sucesso das bilhe-
terias. Referências positivas ao estoicismo encontram-se em O velho e os lobos, pois al-
guns dos personagens cujos desaparecimentos são lamentados – Crisipo, Epiteto –
podem ser lidos à luz da tentativa de esgotamento desse intermediário (lekton) pro-
movido pela sociedade do espetáculo. No cinema especular pensado as imagens fan-
casso, leur casse la figure à toutes – la femme, sa mère, l’orthophoniste –, posément, dans
les règles du logiciel. Un démon logique” (Possessions, 1996: 247).
1
“agressivité, de cette pulsion non symbolisée, non verbalisée et donc non représentée” (La
révolte intime, 1997: 117).
362
tasmáticas “nunca estão no primeiro grau; ao contrário, os fantasmas estão lá como
desossados, desarticulados
1
”, sobrando, nessa medida, uma espécie de “música”
(1997: 117). Chegamos ao semiótico, ou na sua reformulação, à plena ascensão da so-
ciedade virtual mediada por imagens:
Chamemos portanto de “traços lektônicos” essas informações suple-
mentares: trata-se essencialmente de introduzir deslocamentos e
condensações à imagem bruta, de associar os tons, ritmos, cores, fi-
guras; em suma de acionar o que o que Freud chama de processo
primário subjacente ao simbólico – o “semiótico”, na minha termino-
logia –, essa captura primária das pulsões sempre em excesso em re-
lação ao representado, ao significado
2
(A revolta íntima, 1997: 117-
118).
Discordamos da leitura de Sara Beardsworth no artigo “Da revolução para a
Cultura revolta (“From revolution to Revolt Culture), em Revolt, affect, collectivity. A
autora sustenta uma ruptura entre o texto da década de 70, sobretudo A revolução da
linguagem poética e os textos da década de 90 produzidos por Kristeva. Segundo Be-
ardsworth (2005: 37), os textos produzidos na década de 80 (Poderes do horror, Histó-
rias de amor e Sol negro) não incluem o tema da revolução da tese de doutorado de
Kristeva, o qual é retomado, sem vínculo com a tese, nos cursos sobre a revolta da
década de 90. O nosso ponto não se apóia sobre a descontinuidade do pensamento de
Kristeva, pois, embora a psicanalista não tenha retomado as bases teóricas desenvol-
vidas em A revolução da linguagem poética nessa trilogia, esse texto base é fundamental
para a compreensão do funcionamento da linguagem subentendido na sua produção
dos anos 80. A diferença que sustentamos reside na mudança social e as implicações
da técnica, isso implica uma releitura ou adaptação das possibilidades de manifesta-
ção da chora semiótica e não significa a sua exclusão no papel da linguagem.
1
“ne sont jamais au premier degré; au contraire, les fantasmes y sont comme désossés,
désarticulés” (La révolte intime, 1997: 117).
2
“Appelons donc ‘traces lektoniques’ ces informations supplémentaires: il s’agit essen-
tiellement d’introduire des déplacements et des condensations supplémentaires à l’image
brute, d’associer les tons, rythmes, couleurs, figures; en somme, de faire jouer ce que
Freud appelle les ‘processus primaires’ sous-sujacents au symbolique – le ‘sémiotique’,
dans ma terminologie -, cette capture primaire des pulsions toujours en excès par rapport
au représenté, au signifié” (La révolte intime, 1997: 117-118).
363
Observa-se que existe uma revisão da prática psicanalítica decorrente da in-
fluência da técnica sobre a vida psíquica do sujeito. No período de A revolução da lin-
guagem poética (1974), a repercussão das imagens sobretudo pelo cinema e pela televi-
são não levou, pelo menos durante os trabalhos daquele momento, a psicanalista a
rever o universo fantasmático de seus analisandos a curto prazo, embora ela ainda
não estivesse envolvida naquele período na produção de textos direcionados à práti-
ca psicanalítica como acontece com a publicação de Poderes do horror (1980) e Histórias
de amor (1983). Somente com As novas doenças da alma (1993), no qual o problema do
esvaziamento do imaginário se explicita no relato do caso de Didier, surge uma signi-
ficativa abertura para se repensar fundamentos da própria prática analítica. Em A re-
volução da linguagem poética, conforme chamamos a atenção no nosso primeiro capítu-
lo, a chora semiótica só admitia aproximações com a negatividade desenvolvida por
Hegel em A fenomenologia do espírito ou com os ritmos cinéticos. Observa-se que em A
revolta íntima, cujo tema central contempla o impacto da sofisticação tecnológica so-
bre a sociedade, ocorre um alargamento da possibilidade de comparação da chora
semiótica com vistas a compreender a linguagem no centro dessa mudança social de-
sencadeada pela profusão de índices tecnológicos. O “semiótico” (desenvolvido a
partir da chora semiótica) admite uma outra comparação que não é diretamente extra-
ída da sociedade do espetáculo, pois Kristeva recupera uma expressão do estoicismo
na qual está a defesa a uma espécie de lacuna, espaço entre o objeto e o referente. A
ampliação, no tocante às possíveis aproximações contemporâneas do semiótico, está
no exemplo que a autora se vale para fundamentar o “semiótico” por meio da ex-
pressão à vida fantasmática do sujeito na atualidade. Kristeva oferece o exemplo do
cinema
1
, não qualquer tipo de produção, mas aquela do “especular pensado”. O ci-
neasta Jean-Luc Godard participa da produção desses traços lektônicos, pois não ofe-
rece simples “imagens-informações”, ele antes nos convida ao encontro dos nossos
fantasmas e ao conseqüente esvaziamento deles. Eisenstein é outro cineasta produtor
de traços lektônicos em suas produções cinematográficas: “A mensagem de Eisenste-
1
O início dessa exploração encontra-se nos estudos do grupo Tel Quel, é importante ressal-
tar, e aprofunda-se em Sol negro, pois no capítulo “A doença da dor: Duras” Kristeva
constata uma ruptura importante rumo à brutalizacão das consciências, a partir da Se-
364
in no seu curso é clara: é preciso que o drama, o conflito sejam interiorizados em todo
o elemento do visível; que o menor átomo do visível seja saturado de conflito e, diz e-
le, de ‘ritmo dramático
1
’” (1997: 121). Kristeva busca na teoria de Eiseinstein varia-
ções desse ritmo que pode ser interpretado segundo a mobilidade característica do
semiótico. Para o próprio Eisenstein, o ritmo adquire o status de “orgânico”. Além
disso, o cineasta convenciona de “métrico” o ritmo dos filmes de Poudovkine e de
melódico os construídos por Walt Disney. Sem explicar as implicações desses dife-
rentes ritmos classificados por Eisenstein, Kristeva detém-se na condição do ritmo
orgânico desenvolvido pelo cineasta, pois ele trabalha com a tentativa de apreensão
de um “horror representado”. Para a psicanalista, essa prática do cineasta, que se re-
sume na “necessidade de saturar o visível do conflito (de agressividade, do mal)
2
”,
evoca o romance policial ou o filme de horror. A autora faz essa associação em forma
de pergunta. Os exemplos dos filmes consumidos, ou seja, os deslocamentos dos gos-
tos da modernidade que a psicanalista captura de forma perspicaz serve como uma
resposta para a sua pergunta-provocação e também como uma justificação para a
amplitude comparativa que a autora concede a chora semiótica. Sobre o público mo-
derno e seus gostos, Kristeva argumenta: “do mais sofisticado ao mais vulgar, não
resistimos aos vampiros e aos massacres do Far West. A catarse, regulagem necessá-
ria a toda sociedade, não passa hoje pelo Édipo, Eletra ou Orestéia, mas por Os pássaros
ou Psicose
3
” (1997: 122). A questão decorrente dessas reflexões sobre técnica
4
é a se-
gunda Guerra Mundial, cujo efeito pode ser lido nas obras de Marguerite Duras.
1
“Le message d’Eisenstein dans son cours est clair: il faut que le drame, le conflit soient in-
tériorisés dans tout élement du visible; que le moindre atome de visible soit saturé de
conflictualité et, dit-il, de “rythme” dramatique” (La révolte intime, 1997: 121).
2
“nécessité de saturer le visible du conflit (de l’agressivité, du mal)” (La révolte intime, 1997:
121-122).
3
“du plus sophistiqué au plus vulgaire, nous ne résistons pas aux vampires ou aux massa-
cres du Far West. La catharsis, réglage nécessaire à toute société, ne passe plus au-
jourd’hui par Oedipe, Électre ou Oreste, mais pour Les Oiseaux ou Psychose” (La révolte in-
time, 1997: 122).
4
Essa pergunta encontra-se no artigo “Ellipse sur la frayeur et la séduction spéculaire”, pu-
blicado em Polylogue em 1977 e primeiramente em Communications, em 1975. Nota-se que
Kristeva já estudava ligações entre a técnica e os fundamentos de sua teoria antes de
compor romances policiais cujo enfoque recai sobre o desdobramento técnico dos “ele-
mentos semiotizáveis” sobre os recepetores/espectadores.
365
guinte: “existe uma sedução especular sem terror?
1
” (1997: 122). Nesse contexto sobre
a imagem técnica que é o cinema e a sua relação com o mal, Kristeva menciona, em
seu seminário que dará origem ao volume A revolta íntima, ter acabado de escrever
Possessões, o qual ela chama de polar metafísico, um livro que a própria autora consi-
dera de fácil leitura (1997: 125). Refizemos, portanto, o contexto de Possessões. A per-
gunta que subjaz ao seu romance policial e se explicita em A revolta íntima apresenta
em sua superfície um fundo moral, embora sua base seja de uma investigação locali-
zada no íntimo, na vida psíquica arcaica, a qual, conforme Kristeva adverte reitera-
damente, não se confunde com a moralidade. No questionamento a seguir, apesar
dessa diferença, está o encontro entre o conteúdo do íntimo, no que ele tem de espe-
cular, e seu enredamento na faculdade do julgar: “Chegado a esse ponto, não pode-
mos evitar a questão moral que eu tinha anunciado no início: exibindo o mal, o cine-
ma participa de uma mistificação a mais, de uma banalização suplementar do mal?
De fato, o risco não é nulo
2
” (1997: 125).
Se existe uma brecha para se pensar diferente disso, Kristeva a localiza no diá-
logo que estabelece com Santo Agostinho. A autora observa, de acordo com a inter-
pretação do Livro III, Da Trindade, no pensamento precursor de Santo Agostinho, a
construção das imagens, que posteriormente serão tomadas pela psicanálise para a
formação do imaginário, como constituintes de um terceiro elemento interposto entre
a percepção sensorial e o intelecto. Kristeva recorta de A trindade o seguinte trecho
para reavivar a diferença defendida por Agostinho entre uma “visão interior” (con-
teúdo do nosso íntimo) que é semelhante à percepção mas sem reduzir a ela e a ex-
pressão desse conteúdo na linguagem: “’Uma coisa é [a visão] que está enterrada na
memória, outra coisa é o que se exprime na representação quando o homem se lem-
bra
3
”’ (1997: 73). Sobre esse aspecto a psicanalista está de acordo com Santo Agosti-
1
“existe-t-il une séduction spéculaire sans frayeur?” (La révolte intime, 1997: 122).
2
“Arrivés à ce point, nous ne pouvons éviter la question morale que j’avais annoncée au dé-
but: en exhibant le mal, le cinéma participe-t-il à une mystification de plus, à une banali-
sation supplémentaire du mal? De fait, le risque n’est pas nul” (La révolte intime, 1997:
125).
3
“’Une chose est [la vision] qui est enfouie dans la mémoire, autre chose est ce qui
s’exprime dans la représentation quand l’homme se souvient”’ (La révolte intime, 1997:
73).
366
nho, uma vez que o pensamento agostiniano prepara o terreno para a construção do
Zeitlos freudiano e, por conseguinte, da permanência da esfera do íntimo. Desde Sol
negro (1987), Kristeva lança algumas idéias a respeito da relação entre as imagens do
cinema e o mal, associação que se aprofunda em A revolta íntima. Kristeva recolhe, em
Sol negro, outro fragmento de Santo Agostinho, A trindade, XIV, IV, 6, no intuito de
ressaltar a passividade do homem diante do fluxo de imagens e de seu supostamente
horror: “’Embora o homem se inquiete em vão, ele caminha, entretanto, na ima-
gem
1
”’ (1989: 203). Essa citação sucede a um comentário da psicanalista sobre o hor-
ror que é intrínseco à imagem cinematográfica: “Por um lado, a arte da imagem pri-
ma pela mostra bruta da monstruosidade: o cinema permanece como a arte suprema
do apocalíptico, quaisquer que sejam seus requintes, de tanto que a imagem tem o
poder de “fazer-nos caminhar no medo”, como já o vira Santo Agostinho
2
” (1989:
203). Em Sol negro, portanto, não há espaço para a dúvida, para a suspensão desse
mal, pois ele está arraigado às telas virtuais. Em A revolta íntima, Kristeva estabelece
uma margem de dúvida na relação entre o mal e o cinema, na medida em que recha-
ça o ponto de Santo Agostinho, afastando-se de seu discurso em conformidade com o
fluxo imagético na condição de que “saturado de mal, o cinema não nos faça somente
‘caminhar’, mas tomar nossas distâncias. Eu me afasto aqui de santo Agostinho e de-
fendo que o homem ‘não caminhe’ na imagem...
3
” (1997: 125). Curiosamente, Kriste-
va não se afasta completamente do mal para a formação dos filmes e de suas temáti-
cas que vivem intensamente dessa exploração, mas isso não implica aceitar o efeito
nocivo do mal na imagem agostiniana de uma “caminhada” irrefletida no apelo ima-
gético. Isso também é diferente de uma construção limitada à criação de imagens
chamadas, ironicamente, pela teórica de uma apresentação “ingênua” do mal, pois
1
“’Bien que l’homme s’inquiète en vain, cependant il marche dans l’image”’ (Soleil noir,
1987: 232).
2
“D’une part, l’art de l’image excelle dans la mostration brute de la monstruosité: le cinéma
demeure l’art suprême de l’apocalyptique quels qu’en soient les raffinements, tant
l’image a le pouvoir de ‘nous faire marcher dans la peur’, comme l’avait déjà vu saint
Augustin” (Soleil noir, 1987: 231-232).
3
“saturé de mal, le cinéma ne nous fasse pas seulement “marcher”, mais prendre nos dis-
tances. Je m’écarte ici de saint Augustin et plaide pour l’homme qui ‘ne marche pas’ dans
l’image...” (La révolte intime, 1997: 125).
367
isso levaria ao papel que é o da “igreja”. Kristeva deixa-nos numa difícil encruzilha-
da nessa sua tentativa de pensar a função do cinema na atualidade, pois a autora tem
consciência de que a abrangência do público, sem mencionar o efeito invisível e efi-
caz da carga subliminal sobre a gama de espectadores das salas de cinema, não está
dissociada de repercussões robotizadas sobre o comportamento dos sujeitos. Resta-
nos uma questão de múltiplas camadas no final de sua exposição que contempla essa
amplificação da chora semiótica para o domínio da técnica em que o risco está na se-
guinte alternativa suscitada pela autora: “o cinema quer uma exibição do recalcado
sadomasoquista do espetáculo, uma perversão autorizada, uma banalização do mal?
Ou, ao contrário, sua desmistificação?
1
” (1997: 126)
Em Possessões, obra que poderia ser facilmente adaptada para o cinema, Kris-
teva alude aos filmes do cineasta Eisenstein que, em A revolta íntima, ocupam um es-
paço imagético privilegiado porque participam de uma produção de imagens deno-
minada pela autora de “especular pensado”. Distante, portanto, do cinema hollywo-
odiano e de suas receitas simples para seduzir e fascinar um público sem a sofistica-
ção daqueles espectadores que se ocupam de composições visuais refinadas, o cine-
ma de Eisenstein estaria ligado à capacidade de refletir sobre as imagens em movi-
mento com a finalidade de organização e o conseqüente trabalho de pensamento em
confronto com a vida fantasmática de seus espectadores. Entretanto, Kristeva cola o
cinema de Eisenstein ao personagem Brian Wat. Sua habilidade em línguas estran-
geiras foi útil para que ele conseguisse um emprego ao lado da tradutora assassina-
da. Além disso, o seu domínio dos computadores o levou a trabalhar como um
“mensageiro de segunda categoria” para Michael Fish, um forte suspeito do assassi-
nato de Gloria Harrison e também marido da vítima, além disso ele fazia pacto com a
máfia da cidade. A possível inocência de Brian no assassinato de Gloria Harrison não
o exime, no entanto, de um contato, mediado por suas habilidade, com a máfia de
Santa Bárbara, na qual se enredam diversos contravenções: “tráficos de armas”, de
“drogas” e até mesmo de “objetos de arte”. Na noite do crime, Brian, que passara a
1
“le cinéma se veut-il une exhibition du refoulé sadomasochiste du spectacle, une perver-
sion autorisée, une banalisation du mal? ou, au contraire, sa démystification?” (La révolte
intime, 1997: 126).
368
noite no quadro de Hester Bellini, a empregada de Gloria Harrison, dá um depoi-
mento ao delegado Rilsky. Daí a relação entre o “especular pensado” aparece em Pos-
sessões; no meio do depoimento rico em detalhes há uma sutil referência elogiosa a
Eisenstein: “filme na cinemateca (‘Por nada no mundo perderei a série Eisenstein que
passa cada vez mais raramente, sabe, senhor delegado, a televisão matou o cine-
ma...’), jantar, boate, retorno por volta das duas horas da manhã, portanto segunda-
feira
1
” (2003: 71). Embora Brian Wat não seja o assassino de Gloria Harrison, o perso-
nagem também não é modelo de retidão. Observa-se que o cultivo da vida fantasmá-
tica nesse exemplo ficcional acompanha a investigação de Kristeva em A revolta ínti-
ma na medida em que a autora separa o conteúdo arcaico constituinte da nossa vida
fantasmática de julgamentos voltados a aspectos morais.
Disso não decorre que o mal seja intrínseco à imagem ou vice-versa. A discus-
são permanece aberta para Kristeva (fizemos questão de destacar essa irresolução de-
fendida pela escritora) quando ela entra por esse assunto pela via contemporânea do
cinema. Podemos levar esse debate para o campo da psicanálise, um dos interesses
teóricos da autora, e daí partiremos rumo à pulsão de morte elaborada por Freud e
revisitada por Kristeva em Sol negro. Nesse livro sobre a melancolia, que não deixa de
contemplar a técnica em face a esse tema presente desde Aristóteles
2
, Kristeva obede-
ce à cronologia de alguns textos freudianos. Em 1915, na Metapsicologia, a psicanalista
observa a referência ao masoquismo primário, que é afirmado depois do termo “pul-
são de morte”, desenvolvido no texto “O problema econômico do masoquismo” (de
1924), presente em Neurose, psicose e perversão. O argumento de Freud sobre a pulsão
de morte que Kristeva se vale para fundamentar a relevância da pulsão de morte, ou
1
“film à la cinémathèque (‘Je ne raterai pour rien au monde la série Eisenstein qui passe de
plus en plus rarement, vous le savez, monsieur le Commissaire, la télévision a tué le
cinéma...’), dîner, boîte de nuit, retour vers 2 heures du matin, le lundi donc” (Posses-
sions, 1999: 82).
2
As diversas formulações da melancolia encontram-se na obra organizada por Jennifer
Radden, chamada The nature of Melancholy: from Aristotle to Kristeva, em que são sele-
cionados trechos de autores que se dedicaram ao estudo da melancolia. Apesar de o títu-
lo apontar o trabalho de Kristeva como o último na linha cronológica a abordar a melan-
colia, há um último capítulo dedicado a uma breve análise biomédica da depressão em
que sobressaem os estudos de Frederick Goodwin e Kay Jamison, desenvolvidos na dé-
cada de 90.
369
seja de desligamento na obra do psicanalista, está no observação de que “o ser vivo
apareceu após o não-vivo
1
”, do volume Resumo de psicanálise, resultados, idéias, proble-
mas. Segue-se disso, a leitura de Kristeva: “Freud pensa que uma pulsão específica
deve habitá-lo, uma pulsão que ‘tende ao retorno a um estado anterior
2
’”. Em Além
do princípio do prazer (1920), Kristeva nota que o psicanalista define a pulsão de morte
em oposição à de ligação, além de relacioná-la ao “retorno ao inorgânico e à homeos-
tase”. No movimento da pulsão de morte descrita por Kristeva a partir do texto freu-
diano, uma parte dessa pulsão constitui o sadismo, que é aquela dirigida para o
mundo externo via sistema muscular - está aqui um importante uso do corpo –, cujo
efeito é o de destruição. A outra parte dessa pulsão, descrita em “O problema eco-
nômico do masoquismo” (1924), aparece como um recorte destacado no texto de Sol
negro: ‘“uma outra parte não participa desse deslocamento para o exterior: ela perma-
nece no organismo e lá se encontra ligada libidinalmente [...] é nela que devemos reconhecer o
masoquismo original, erógeno
3
”’ (1989: 23). Desde o texto de 1915, “Pulsões e destinos
das pulsões”, Freud defendia, de acordo com a retomada desse tema por Kristeva, a
precedência do sentimento do ódio sobre o amor (1989: 23). Depois de reafirmar esse
ponto com base no texto de Freud “O problema econômico do masoquismo” (de
1924), Kristeva lança uma pergunta na qual suscita a hipótese de que no “refúgio ma-
soquista do ódio” está o caminho para se pensar na existência de um ódio que ela
chama de “ainda mais arcaico”, levando, com isso, a uma resposta afirmativa sobre a
sua própria questão, pois Kristeva, sem esgotar o ponto, fecha a favor da existência
íntima desse ódio arcaico: “Freud parece supor isto: de fato, ele considera a pulsão de
morte como uma manifestação intrapsíquica de uma herança filogenética que remon-
ta até a matéria inorgânica
4
” (1989: 23).
1
“l’être vivant est apparu après le non-vivant” (Soleil noir, 1987: 26).
2
“Freud pense qu’une pulsion spécifique doit l’habiter qui ‘tend au retour à un état anté-
rieur’” (Soleil noir, 1987: 26).
3
“’une autre partie ne participe pas à ce déplacement vers l’extérieur: elle demeure dans
l’organisme et là elle se trouve liée libidinalement [...] c’est en elle que nous devons reconnaître le
masochisme originaire, érogène’” (Soleil noir, 1987: 26-27).
4
“Freud semble le supposer: il considère en effet la pulsion de mort une manifestation in-
tra-psychique d’une héritage phylogénétique remontant jusqu’à la matière inorganique”
(Soleil noir, 1987: 27).
370
A atenção de Kristeva voltada para a reconstrução dessa pulsão de desliga-
mento acompanha, supomos, toda a formação teórica que retomamos no nosso pri-
meiro capítulo na qual a aparência fragmentária dos conceitos que compõem sua teo-
ria poética, suturadas pelo impacto da “negação”, ganha unidade ao ser retomada à
luz dessa interpretação psicanalítica em que no início era a pulsão de desligamento.
Conceitos como a negatividade, que não se esgota no ato da negação, mas se desloca
para melhor ser apreendida para a Rejeição, ou a maleabilidade do sujeito em pro-
cesso, que dá espaço a sua liberdade, e a própria construção de significância, ou seja,
um constante ressignificar muito próximo ao sujeito em processo, são formações teó-
ricas nas quais subjazem a dinâmica do desligamento, da negação. Apesar do nosso
arranjo aparentemente segmentado na apresentação dos conceitos formulados por
Kristeva, conforme o nosso primeiro capítulo, já havia a tentativa de coesão pelo e-
xercício de buscar no corpo um elo de ligação entre as partes.
Possessões é um texto rico em exemplos dessa pulsão de desligamento. Mesmo
no discurso de Stéphanie Delacour, a personagem mais voltada ao desvendamento
do crime, sobressai a intimidade com a destruição: “Eu teria até chegado a admitir,
contra a humanidade que erradamente atribuímos aos humanos, às mulheres, e por
vezes às jornalistas, que o punhal que lhe haviam enfiado em pleno peito antes de lhe
cortar a cabeça não me parecia nem extravagante, nem realmente deslocado
1
” (2003:
20-21). Esse lampejo intuitivo da detetive acerca da pulsão de morte, uma condição
fortemente arraigada ao íntimo, é em seguida censurada pela personagem, que re-
chaça essa intimidade com o mal, distanciando-se desse gesto que, segundo Freud,
está presente em potência no humano:
Mas que sombria paixão, desencadeada nas veias de que psicopata,
podia ter guiado a mão que, com minúcia de rendeira, decepara a
carne do pescoço, a laringe, as vértebras, para deixar escancarada
aquela fronte lisa, aquele espelho rubro, aquele rubi imundo que or-
lava o cadáver no lugar da cabeça ausente?
2
(Possessões, 2003: 21).
1
“J’aurais même été jusqu’à admettre, contre l’humanité qu’on prête à tort aux humains,
aux femmes et parfois aux journalistes, que le poignard qu’on lui avait planté en pleine
poitrine avant de lui trancher la tête ne me paraissait ni extravagant, ni vraiment dépla-
cé” (Possessions, 1996: 22).
2
“Mais quelle sombre passion, déchaînée dans les veines de quel psychopathe, avait pu
guider la main qui avait découpé avec une minutie de dentellière la chair du cou, le
371
Um outro caminho de entrada na discussão que se desloca para o tema do mal
ligado à imagem está em tomá-lo sob a ótica do perdão. Aliás, é a partir de uma ima-
gem que a escritora entra em contato com o tema do perdão em Sol negro, o qual será
posteriormente retomado em A revolta íntima como uma prática saudável para a con-
servação da nossa vida íntima em plena sociedade hipertecnificada. Em Sol negro,
Kristeva centra-se no impacto de uma imagem sobre o escritor Dostoievski. Trata-se
do “Cristo morto” pintado por Holbein, o Jovem (1497-1543), imagem sobre a qual a
autora descreve a possível angústia de Dostoievski diante de um mundo sem deus.
Segue a descrição dessa tela e a perturbação da própria escritora que, ao reproduzir o
possível impacto desconcertante dessa imagem sobre a temática de Dostoievski, nos
deixa no mesmo estado de perplexidade do qual, supomos, ela também partilha:
O quadro de Holbein representa um cadáver estendido num pedestal
coberto com um lençol maldobrado. De tamanho humano, este cadá-
ver pintado é representado de perfil, com a cabeça ligeiramente in-
clinada para o espectador, os cabelos espalhados sobre o lençol. O
braço direito, visível, acompanha o corpo descarnado e torturado e a
mão ultrapassa ligeiramente o pedestal. O peito saltado esboça um
triângulo no interior do retângulo muito baixo e alongado do nicho
que constitui o plano do quadro. Esse peito apresenta o traço san-
grento de uma lança, e na mão vêem-se os estigmas da crucificação
que endurecem o dedo médio esticado. Os traços dos pregos marcam
os pés do Cristo. O rosto do mártir traz a expressão de uma dor sem
esperança, o olhar vazio, o perfil aguçado, a tez verde-azulada são os
de um homem realmente morto, do Cristo abandonado pelo Pai (‘Pai,
por que me abandonastes?’) e sem promessa de Ressurreição.
A representação sem disfarce da morte humana, o desnudamento
quase anatômico do cadáver, comunica aos espectadores uma angús-
tia insuportável diante da morte de Deus, aqui confundida com nos-
sa própria morte, de tanto que está ausente a menor sugestão de
transcendência
1
(Sol negro, 1989: 105).
larynx, les vertèbres, pour laisser béante cette source lisse, ce miroir rouge, ce rubis im-
monde qui ourlait le cadavre à l’emplacement de la tête manquante?” (Possessions, 1996:
22).
1
“Le tableau de Holbein représente un cadavre allongé seul sur un socle couvert d’un linge
à peine drapé. De taille humaine, ce cadavre peint se présente de profil, la tête légère-
ment inclinée vers le spectateur, les cheveux répandus sur le drap. Le bras droit, visible,
longe le corps décharné et torturé et la main dépasse légèrement le socle. La poitrine re-
bondie esquisse un triangle à l’intérieur du rectangle très et allongé de la niche qui cons-
titue le cadre du tableau. Cette poitrine porte la trace sanglante d’une lance, et l’on voit
sur la main les stigmates de la crucification qui raidissent le majeur tendu. Les traces de
clous marquent les pieds du Christ. Le visage du martyr porte l’expression d’une douleur
sans espoir, le regard vide, le profil acéré, le teint glauque sont ceux d’un homme réelle-
372
Kristeva percebe o distanciamento desse Cristo morto em comparação às ima-
gens da iconografia italiana, nas quais o Cristo é acompanhado de personagens cren-
tes na certeza da Ressurreição. Do contato com a imagem construída por Holbein de-
corre uma experiência que tem a aparência do fora do tempo freudiano, pois nos ex-
põe à finitude, embora de modo diverso daqueles suscitados por Kristeva em A revol-
ta íntima e talvez até de forma mais perturbadora. Não é pelas ocorrências do Zeitlos
descritas por Freud em sua obra, tampouco pelo término da prática analítica ou pela
leitura de romances policiais que nos familiarizamos com a morte até aceitá-la como
o evento da nossa finitude, mas é pela imagem que a morte, experiência fora do tem-
po, sugere nesse quadro de Holbein. Vemos na observação de Kristeva a imediatida-
de do fora do tempo produzida por esse confronto visual que causa a “impressão da
morte definitiva”. A escritora resume o efeito da tela sobre os espectadores: “esse ca-
dáver não se levantará mais
1
” (1989: 105). Kristeva encontra em um texto de memó-
rias de Anna Grigorievna Dostoïevskaia, mulher do escritor russo, um comentário
sobre a viagem do casal, em 1867, e o contato com o quadro de Holbein: ‘“O espetá-
culo desse rosto intumescido, coberto de ferimentos ensangüentados, é assustador
2
”’
(1989: 172). Com base nesse fragmento, Kristeva flagra a inspiração imagética do es-
critor para compor personagens como Mychkine ou Hypolite no Idiota, os quais ques-
tionam a Ressurreição. O espetáculo, pelo seu viés pictórico e não televisual, produz,
portanto, uma ação positiva na medida em que constitui uma das formas de “fora do
tempo”. Segundo Kristeva, Dostoievski trabalha em suas obras a idéia do perdão. Pa-
ra chegar a esse ponto que parece um contra-senso – pois a autora recorre a um ter-
mo religioso para fundamentar o pensamento com cores de ateísmo do escritor –, ve-
remos em que medida o perdão tem espaço na teoria psicanalítica. Em Sol negro, isto
ment mort, du Christ abandonné par le Père (‘Père, pourquoi m’as-tu abandonné?’) et
sans promesse de Résurrection. La représentation sans fard de la mort humaine, la mise à
nu quasi anatomique du cadavre, communique aux spectateurs une angoisse insupporta-
ble devant la mort de Dieu, confondue ici avec notre propre mort, tant est absente la
moindre suggestion de transcendance (Soleil noir, 1987: 121-122).
1
“ce cadavre ne se relèvera plus” (Soleil noir, 1987: 122).
2
’Le spetacle de ce visage tuméfié, couvert de blessures sanguinolentes est effrayant’” (Soleil noir,
1987: 198).
373
é, muito antes da publicação de A revolta íntima, Kristeva lança o assunto de base re-
ligiosa como uma possibilidade no tratamento da melancolia, doença da alma. O en-
foque é o mesmo nos dois livros, pois é o do sentido do perdão que ela sustenta o seu
ponto que é uma variação do Zeitlos freudiano. É possível que a necessidade de in-
cluir esse termo aparentemente deslocado do ateísmo da autora tenha se iniciado a
partir da falta de sentido característica do discurso do melancólico, por esse motivo
Kristeva desenvolve empatia com o discurso do outro, do melancólico:
O sentido da melancolia? Nada mais do que um sofrimento abissal
que não chega a se significar e que, tendo perdido o sentido, perde a
vida. Este sentido é o afeto insensato que o analista irá procurar com
um máximo de empatia, para além do abrandamento motor e verbal
dos seus deprimidos, no tom de suas vozes, ou então recortando suas
palavras desvitalizadas, gastas, palavras das quais desapareceu todo
apelo ao outro, para tentar, precisamente, unir-se ao outro nas síla-
bas, nos fragmentos e nas suas recomposições. Tal escuta analítica
pressupõe tato
1
. (Sol negro, 1989: 173).
A própria autora responde-nos o que significa o tato na sua prática analítica.
Trata-se de “Ouvir certo com o perdão. Perdão: dar a mais, apostar no que está ali pa-
ra renovar, para fazer com que o deprimido se anime (esse estranho curvado sobre o
seu ferimento) e para lhe dar a possibilidade de um novo encontro
2
” (1989: 173). Em
As novas doenças da alma, Kristeva retoma o perdão ao aludir à obra sobre a melanco-
lia, mas a psicanalista também nos revela o seu modo de escuta, que é a forma, su-
pomos, como “perdoa” aqueles que procuram uma recriação da vida psíquica. Des-
possuir-se é o caminho para entender o perdão, essa prática de escansão do tempo
praticada por Kristeva em seu consultório:
Doação ao outro de uma capacidade de entendimento, de julgamen-
to. Eu me despossuo dos meus, aparto-me de meu afeto e de meu si-
1
“Le sens de la mélancolie? Rien qu’une souffrance abyssale qui ne parvient pas à signifier
et qui, ayant perdu le sens, perd la vie. Ce sens est l’affect insensé que l’analyste ira
chercher avec un maximum d’empathie, par-delà le ralentissemnt moteur et verbal de ses
déprimés, dans le ton de leur voix ou bien en découpant leurs mots dévitalisés, banalisés,
usés, mots desquels a disparu tout appel à l’autre, pour essayer précisément de joindre
l’autre dans les syllabes, dans les fragments et dans leur recomposition. Une telle écoute
analytique suppose du tact” (Soleil noir, 1987: 199).
2
“Entendre vrai avec le pardon. Pardon: Donner en plus, miser sur ce qui est là pour renou-
veler, por faire repartir le déprimé (cet étranger replié sur sa blessure), et lui donner la
possibilité d’une nouvelle rencontre” (Soleil noir, 1987: 200).
374
lêncio, cuja plenitude penosa ou prazerosa interroguei. E não paro de
formular questões. Nem sempre digo ao paciente que me questiono a
partir do lugar no qual penso em que ele se encontra. Minha maneira
de saber que não sei é minha interrogação permanente, que se lê em
meu tom, em meu gesto, na inclinação de meu corpo, em meu discur-
so, enfim (As novas doenças da alma, 2002: 100).
Curiosamente a despossessão, que nos permite associar as possessões à neces-
sidade de autonomia de Jerry, um personagem cercado de afeto de figuras femininas
intrusivas, necessita de uma empatia que, na prática analítica de Kristeva, tem o seu
desencadeamento no avesso, o qual compreendemos como um exercício de “posses-
são”. Ora, na medida em que o analista se desloca para o suposto pensar/sentir de
seu analisando, existe uma “despossessão” de si mesmo (sempre questionável) rumo
a uma imediata “possessão” do outro, o que nos remete, conforme o romance polici-
al de Kristeva, às possessões entre mãe e filho. Nos dois casos fica o ponto em co-
mum do laço físico, ou seja, aquele que faz a mediação para a empatia acontecer: está
portanto no corpo, tanto no jogo da observação analista/analisando quanto, de forma
ainda mais evidente, na relação de dependência entre a mãe e o bebê o eixo da posse
e/ou desposse do outro. Nessa medida, não apenas Jerry, cuja deficiência o impede
de um acesso convencional à linguagem, é invadido ou, em outras palavras, possuí-
do pela linguagem de sua fonoaudióloga Pauline Gadeau – uma espécie de mãe
substituta desse personagem – mas também ela é possuída pelo paciente na sua pa-
radoxal linguagem muda e pelo seu próprio desejo de uma maternidade roubada:
Secretamente, uma paixão branca feita de sons e de olhares, bocas e
gargantas articulando juntas, numa atenção de todos os instantes, li-
gou-a à criança. Pauline instalou-se em seu ser mudo, abriu os ouvi-
dos para ele; a partir do mundo silencioso do meninozinho que ela se
tornou, começou a pronunciar como se fosse ele. Osmose submarina,
comunhão dos golfinhos, ultra-sons inacessíveis aos humanos. A bo-
ca de Pauline está nos olhos de Jerry. Dia após dia, o pequeno glutão
óptico come os desenhos de seus lábios, imprime-os numa voz que
mal chega a ser audível, mas cujo sopro ele sente lhe roçar o palato
para fazer ressoar um “a”, um “o”, um “i”, um “p”, um “l”, um “n” –
“Pauline”. Desenho bucal para ele, contorno sonoro para ela: “Isso
mesmo”, “Você conseguiu”, “Eu te sorrio”, “Você me sorri”, “Eu te
aceito, Jerry”. Quando a boca escuta, o olho absorve a boca: boca e
olho em uníssono substituem o ouvido morto, modulam a voz; Jerry
se faz ouvir. Precisa de Pauline para traçar aqueles caminhos inaudi-
tos dos lábios às pupilas e às cordas vocais; depois, desse mapa mu-
do, fazer sussurrar palavras. Não se podem imaginar as dobras de
lábios, as paisagens de garganta que os olhos de Jerry devem apre-
375
ender em Pauline para regravá-los em seu corpo, antes que advenha
uma palavra. O silêncio confuso permanece nos ouvidos do surdo.
Mas, de uma pulsação que tem sentido, a boca e olhar revivem a mú-
sica das percepções – melodia visivelmente encarnada. Duas bocas,
duas gargantas, dois pares de pupilas, e apenas dois ouvidos para
dois. Um trabalho de formiga? A palavra não é inata, a palavra nasce
de um amor que escuta
1
(Possessões, 2003: 198-199).
.
As pistas recolhidas pela detetive Stéphanie Delacour, movida pela necessida-
de de saber, pela busca do sentido sempre caro a Kristeva, nos conduz ao provável
gesto criminoso de Pauline Gadeau, levando-nos à sugestão de que ela seria respon-
sável por alguma das “mortes” de Gloria Harrison. Nessa medida, analisá-la portan-
to sob a ótica do perdão não apaga a crueldade de sua ação condenável, mas desen-
cadeia nos leitores um tortuoso exercício de deslocamento, levando-os ao contato
com o íntimo de fantasmas arcaicos, um encontro com a pulsão de desligamento co-
mum a todos, mas reavivada por meio de um contato abrupto com o fora do tempo
definitivo – a morte – na sua aparência anti-natural e terrivelmente abreviada que é o
gesto do assassinato seguido da redundante e perturbadora morte seguida da morte,
nos parece a tentativa de se referir a um zeitlos pleno de horror. Kristeva deixa-nos lá
perto do coração selvagem da vida, pois é a dimensão de valor à nossa existência e a
sua crucial valorização que a escritora defende ao nos familiarizar com um horror
fantasmático recalcado. Esse deslocar-se que está contido no perdão, Kristeva obser-
1
“Secrètement, une passion blanche faite de sons et de regards, bouches et gorges articulant
ensemble dans une attention de tous les instants, l’a nouée à l’enfant. Pauline s’est logée
dans son être muet, elle a ouvert ses oreilles pour lui; depuis de monde silencieux du pe-
tit garçon qu’elle est devenue, elle s’est mise à prononcer comme si elle était lui. Osmose
sous-marine, communion des dauphins, ultrasons inaccessibles aux humains. La bouche
de Pauline est dans les yeux de Jerry. Jour après jour, le petit glouton optique mange les
dessins de ses lèvres, les imprime à une voix à peine audible mais dont il sent le souffle
lui frôler le palais, pour faire résonner un ‘a’, un ‘o’, un ‘i’, un ‘p’, un ‘l’, un ‘n’ – ‘Pauli-
ne’. Dessin buccal pour lui, contour sonore pour elle: ‘C’est ça’, ‘Tu y es’, ‘Je te souris’,
‘Tu me souris’, ‘Je te reçois, Jerry’. Quand la bouche écoute, l’oeil absorbe la bouche:
bouche et oeil à l’unisson remplacent l’oreille morte, modulent la voix; Jerry se fait en-
tendre. Il a besoin de Pauline pour tracer ces chemins inouïs des lèvres aux prunelles et
aux cordes vocales, puis, de cette carde muette, faire bruire des paroles. On n’imagine
pas les plissements de lèvres, les paysages de gorge que les yeux de Jerry doivent saisir
sur Pauline pour les regraver dans son corps à lui, avant qu’advienne un mot. Le silence
brouillé demeure aux oreilles du sourd. Mais, d’une pulsation sensée, sa bouche et son
regard revivent la musique des perceptions – mélodie visiblement incarnée. Deux bou-
ches, deux gorges, deux paires de pupilles, et seulement deux oreilles pour deux. Un tra-
vail de fourmis? La parole n’est pas innée, la parole naît d’un amour qui écoute” (Posses-
sions, 1996: 236-237).
376
va no discurso de Hannah Arendt, em A condição do homem moderno, na volta da filó-
sofa para o origem grega da palavra perdão na qual está, conforme o destaque de
Kristeva, a remissão à volta, liberar, mudar de opinião, refazer seu caminho
1
” (1989:
185, nota 58), igualando-se assim à proposta da psicanálise de recriação do psiquismo
do sujeito analisado. Observa-se nessa nota de rodapé o esboço para a busca etimo-
lógica da revolta que a psicanalista realizará um pouco depois em Sentido e contra-
senso da revolta e em A revolta íntima.
Para voltar a Dostoievski, que nos parece a grande inspiração para o romance
policial metafísico desenvolvido por Kristeva, a idéia do perdão para o escritor passa,
conforme o trecho selecionado pela autora em Sol negro, pelo cadáver – o corpo sem
vida. Trata-se sobretudo do cadáver de Cristo pintado por Holbein visto pelo escritor
na Basiléia, em 1867, e que o inspira na composição de Humilhados e ofendidos. Segun-
do Kristeva, Dostoievski encontra aí um “fantasma íntimo”. Recortamos a passagem
que a autora escolhe de Humilhados e ofendidos para mostrar o encontro do pintor com
a imagem:
“O que também me impressionara era a sua magreza extrema; quase
não tinha mais corpo, era como se lhe restasse apenas a pele sobre os
ossos. Seus olhos grandes, mas apagados, cercados de olheiras de um
azul escuro, olhavam sempre para a frente, jamais para o lado, e ja-
mais viam algo, estou convencido disto [...] Em que ele está pensan-
do? Continuava eu com meus botões, o que tem na cabeça? E pensa
ainda em alguma coisa? Seu rosto está tão morto que já não exprime
absolutamente mais nada
2
” (Sol negro, 1989: 174).
Kristeva defende no texto de Dostoievski um universo que se relaciona mais à
epilepsia do escritor do que ao próprio tema melancolia. A teórica localiza em Freud,
sem especificar as obras, um importante e reiterado ponto que ela chama de “grau
zero da vida psíquica
3
”. A psicanalista observa, nos escritos de Dostoievski e em suas
1
“’renvoyer, libérer, changer d’avis, revenir, refaire son chemin”’ (Soleil noir, 1987: 213).
2
“’Ce qui m’avait frappé aussi, c’était sa maigreur extrême; il n’avait presque plus de corps,
c’était comme s’il ne lui restait que la peau sur les os. Ses yeux, grands mais éteints, en-
tourés d’un cerne bleu sombre, regardaient toujours droit devant eux, jamais de côté, et
jamais ils ne voyaient rien, j’en suis convaincu [...] A quoi pense-t-il? continuais-je à part
moi, qu’a-t-il dans la tête? Et pense-t-il encore à quelque chose? Son visage est si mort
qu’il n’exprime déjà absolument plus rien’” (Soleil noir, 1987: 201).
3
O grau zero da visa psíquica é “onde o sofrimento (‘masoquismo primário’, ‘melancolia’)
377
crises epilépticas, expressões da tristeza arcaica do escritor que é transformada no
texto através de uma experiência que ela chama de “fora do tempo”. Curiosamente, a
partir do corpo frágil de Dostoievski, chegamos a uma referência recolhida pela auto-
ra em Sol negro que diz respeito ao diário dos Possessos, presente em Os demônios, ou,
podemos traduzir por Os possessos, obra que serviu para a escolha da epígrafe de
Kristeva em Possessões
1
. Perseguimos o recorte de Kristeva do fragmento do diário do
escritor sobre o romance Os possessos, (ou Os demônios), publicado em 1873. Ora,
mesmo sem explicitar a proximidade temporal com o contato que o escritor teria tido
com a tela de Holbein, subjaz esse encontro imagético com o fora do tempo propor-
cionado pela pintura ao fora do tempo experienciado por Dostoievski em suas anota-
ções íntimas:
“Crise às 6 horas da manhã (o dia e quase a hora do suplício de
Tropmann). Não a ouvi, acordei às 8 horas com a consciência de uma
crise. A cabeça me doía, o corpo estava quebrado. Em geral, as con-
seqüências da crise, isto é, nervosismo, enfraquecimento da memó-
ria, estado enevoado de alguma forma contemplativo, agora prolon-
gam-se muito mais do que nos anos anteriores. Antes, isto passava
em três dias, agora não antes de seis. Sobretudo de noite, à luz de ve-
las, uma tristeza hipocondríaca sem objeto e como uma tonalidade
vermelha, sangrenta (não como uma cor) sobre tudo...” Ou: “riso
nervoso e tristeza mística”, repete ele, referindo-se implicitamente à
acedia dos monges da Idade Média. Ou ainda: Como escrever? “So-
frer, sofrer muito...
2
” (Sol negro, 1989: 162-163).
não-erotizado seria a inscrição psíquica prim
378
Ao insistir no aspecto do sofrimento para a análise do texto do escritor russo –
pois Kristeva também se vale de um fragmento de O subterrâneo no qual o tema so-
frimento é defendido pelo próprio Dostoievski como a expressão de um capricho –
está em jogo o enfoque sobre o afeto. Pela descrição psicanalítica do afeto segundo
Kristeva, Dostoievski, que trabalha no cerne do afeto, realiza uma escrita de comple-
xa construção. De acordo com Kristeva, “O Afeto não passa linguagem, e quando es-
ta se refere a ele, este não se liga à linguagem como se liga a uma idéia. A verbaliza-
ção dos afetos (inconscientes ou não) não tem a mesma economia que a das idéias
(inconscientes ou não)
1
” (1989: 164). Kristeva, infelizmente, não trata em Sol negro,
tampouco localizamos em suas outras obras, o desenvolvimento da economia dos a-
fetos
2
. A teórica supõe que a verbalização dos afetos não os torna conscientes, pois
exemplifica: “(o sujeito não sabe mais do que antes donde e como vem a sua alegria
ou a sua tristeza e não as modifica)
3
” (1989: 164). Com base na tentativa de transfor-
má-los em linguagem, Kristeva afirma que os afetos realizam uma redistribuição da
ordem da linguagem e também originam um “estilo”. Além disso, os afetos trazem à
tona um conteúdo do inconsciente através de personagens reconhecidamente trans-
gressores, violadores cruéis da lei. Os personagens de Os possessos enredam-se em
ações criminosas que se diluem no clima de fanatismo retratado pelo narrador; os as-
driaque sans objet et comme une nuance rouge, sanglante (non pas une teinte) sur tout...
Ou: ‘rire nerveux et tristesse mystique’, répète-t-il en référence implicite à l’acedia des
moines du Moyen Age. Ou encore: Comment écrire? ‘Souffrir, beaucoup souffrir...’” (So-
leil noir, 1987: 187).
1
“L’affect ne passe pas par le langage et lorsque le langage s’y réfère, celui-ci ne s’y lie pas
comme il se lie à une idée. La verbalisation des affects (inconscients ou non) n’a pas la
même économie que celle des idées (inconscients ou non)” (Soleil noir, 1987: 188).
2
Em Histórias de amor, ela produz uma espécie de definição: “Lien de l’homme avec
l’extériorité, avec Dieu et avec les choses, l’affect est une notion connexe à celle de désir.
La différence entre les deux consistera peut-être en ceci que le désir, comme nous le ver-
rons, accentuera le manque, alors que l’affect, tout en le reconnaissant, privilégie le mou-
vement vers l’autre et l’attraction réciproque” (1883: 195). [Elo do homem com a exterio-
ridade, com Deus e com as coisas, o afeto é uma noção conexa à de desejo. A diferença
entre ambos estará talvez em que o desejo, como veremos, sublinha a falta, enquanto o a-
feto, mesmo que a reconheça, privilegia o movimento em direção ao outro e à atração re-
cíproca (1988: 183)].
3
(le sujet ne sait pas plus quavant doù et comment vient sa joie ou sa tristesse et ne les
modifie pas)” (Soleil noir, 1987: 188).
379
sassinos de Possessões também participam, sem o mesmo pano de fundo histórico, de
um crime que acomoda uma rede de violência de muitos suspeitos.
Reconstruímos o valor atribuído por Freud e recuperado pela autora no que
diz respeito à pulsão de morte: essa seria a primeira no conjunto pulsional do sujeito
e a prevalecente. Em Sol negro, Kristeva dialoga sutilmente com Freud ao inserir um
personagem como Raskolnikov, de Crime e castigo, no centro do debate sobre a me-
lancolia. É justamente ao escolher a melancolia como eixo de sua investigação que a
autora será levada a confrontá-la com a pulsão de desligamento freudiana. Inicial-
mente, Kristeva expõe a condição de tristeza do personagem Raskolnikov: “Raskol-
nikov se descreve como um personagem triste
1
” (1989: 179). Em seguida, a autora in-
terroga-se sobre as condições de transformação desse afeto em ato criminoso: “Como
essa tristeza se transforma em crime?”
2
(1989: 179). Em um terceiro momento, Kriste-
va questiona o primado da pulsão de desligamento: “O que existe primeiro, o ódio
ou a depressão?” (1989: 179). Não temos a pretensão de desvendar esse tema, mas
Kristeva, na medida em que o suscita, deixa margem para se pensar algo diferente da
pulsão da morte no início de nossa formação psíquica. Ao fazer a primeira pergunta,
a psicanalista já revela algo do seu interesse pelo deslocamento da pulsão de morte
para um estado melancólico como o início do nosso íntimo. Nota-se que ela faz refe-
rência a uma tristeza transformada em crime, logo segue disso a pré-existência da
“melancolia”, dado que é somente na seqüência que ocorre o assassinato. Entretanto,
não é pelo jogo de linguagem que devemos interpretar as construções de Kristeva a-
licerçadas sobre a experiência do vivido, embora nesse caso de busca pela base da
nossa estrutura arcaica seja um recurso interessante. E se a melancolia estiver efeti-
vamente no início da constituição do sujeito, o gesto do perdão se torna mais ou me-
nos necessário porque é capaz de despertar no outro uma forma diferente de piedade
do que aquela desencadeada pelo primado da pulsão de morte? Essa é uma questão
sem resposta, servindo apenas a reflexões motivadas pelo crime. Mas é o crime que,
segundo Freud, funda a sociedade.
1
“Raskolnikov se décrit lui-même comme un personnage triste” (Soleil noir, 1987: 206).
2
“Comment cette tristesse s’inverse-t-elle en crime?” (Soleil noir, 1987: 206).
380
Possessões contém algumas referências ao perdão. O discurso de Odile Pascal,
no encontro fortuito dessa personagem com a jornalista-detetive, num bar, apresenta
marcas do tipo dessa experiência de fora do tempo:
em suma acho essa justiça santabarbarense muito sábia, concorda
comigo? Bob, que recebeu a herança da irmã, tornou-se o tutor de
Jerry até à maioridade do menino – e talvez depois, isso vai depen-
der da evolução dele. Claro, o tio confiou a criança a Pauline; com a
aprovação do tribunal, é óbvio. Gloria não poderia ter desejado coisa
melhor, se quisermos nos dar ao trabalho de imaginar que se pede à
mãe que designe post mortem sua própria substituta, está me enten-
dendo, querida Stéphanie?
1
(Possessions, 2003: 183).
Não deixa de haver nesse gesto de Odile, uma personagem simultaneamente
observadora e cruel, que intui a possível maldade ou possessão da fonoaudióloga ao
receber Jerry como filho, uma face de seu cinismo. Ora, Odile narra detalhes da vida
de Pauline que levam Delacour a encaixar as peças de sua investigação. Se existe por-
tanto a intenção de perdão por parte de Odile, pois fica evidente que ela não vislum-
bra uma melhor cuidadora de Jerry em Santa Bárbara do que a fonoaudióloga, tam-
bém se forma, no conjunto de informações que passa à jornalista, um espaço para se
questionar a conduta de Pauline Gadeau. O delegado Rilsky também participa dessa
atitude de perdão no que diz respeito à fonoaudióloga: “Como sabe, o testamento de
Gloria Harrison foi invalidado pelo Tribunal, Fish perdeu sua parte na herança; é Bob
que administra todo o patrimônio. O pequeno Jerry teve sorte, Pauline Gadeau se re-
velou uma verdadeira mãe para ele, percebe o que quero dizer
2
” (2003: 191). O pró-
prio Jerry, ao retomar a Stéphanie Delacour os deslocamentos de Pauline em busca
de seu game gear, na noite do assassinato de Gloria Harrison, leva ao seu discurso o
absurdo do gesto da fonoaudióloga, o qual, no entanto, é logo entrecortado por uma
1
“je trouve en some cette juridiction santabarbaroise très sage, vous êtes de mon avis? Bob,
qui a obtenu la succession de sa soeur, est devenu le tuteur de Jerry en attendant la majo-
rité du petit – et peut-être après, cela dépendra de son évolution. Bien entendu, l’oncle a
confié l’enfant à Pauline; avec l’approbation du tribunal, cela va sans dire. Gloria
n’aurait pas souhaité mieux si on veut bien se donner la peine d’imaginer qu’on demande
à la mère de désigner post-mortem sa propre remplaçante, vous me suivez, ma chère
Stéphanie?” (Possessions, 1996: 217).
2
“Comme vous le savez, le testament de Gloria Harrison a été invalidé par le Tribunal, Fish
a perdu sa part sur l’héritage; c’est Bob qui gère tout le patrimoine. Le petit Jerry a eu de
la chance, Pauline Gaudeau s’est révélée une vraie mère pour lui, vous voyez ce que je
381
observação que nos remete ao perdão que ele concede à fonoaudióloga e procura
despertar na detetive: - Todos disseram: impecável. Pauline? Impecável. É só ela que
eu tenho agora, entende?
1
(2003: 196). A reação de Delacour é a de escansão do tem-
po – perdão – não o perdão ao possível ato criminoso da fonoaudióloga, mas ao pe-
dido de Jerry:
Posso fazer frente aos homens, mas não resisto a uma criança. Minha
pele torna-se permeável, a criança se infiltra em mim, me difundo
nela; fluido das fibras e das palavras, a ternura é pura infância in-
corporada. Mas esse software deficiente, com seus grandes olhos va-
gos, brasas de cetim, ali, diante de mim, me perturbava bem mais a-
inda do que o mar misturado com o sol
2
(Possessões, 2003: 196).
Vencida pela voz de Jerry, Delacour aceita as súplicas do garoto desenvolven-
do um sentimento muito maternal de ternura, que pode ser interpretado como um
afeto fora do tempo derivado dessa prática do perdão que também é, segundo a au-
tora, uma escansão do tempo. A detetive-jornalista, conforme o discurso do narrador,
experimenta a “degolação”, essa metáfora para a ligação entre mãe e filho, de forma
frustrada. Ultrapassada a etapa dos primeiros meses de gestação
3
, Delacour tem a
sua gravidez subitamente abreviada:
Como a medicina não parava de progredir, capaz de prever, senão de
prevenir o futuro, este se resumia, quase sempre, sobretudo quando
não se esperava, em malformações... embora não necessariamente,
mas podiam sobrevir horrores, por vezes tardios, sempre dramáti-
cos... embora, sem essa medicina, as coisas pudessem ter sido ainda
mais loucas – no sétimo mês de gravidez, tinha-se descoberto que
Stéphanie fora acometida de uma toxoplasmose. Toxo... quê? Toxina,
veux dire” (Posssessions, 1996: 227).
1
- Tout le monde l’a dit: impeccable. Pauline? Impeccable. Je n’ai qu’elle maintenant, vous
comprenez? (Possessions, 1996: 234).
2
“Je peux tenir tête aux hommes, mais je ne résiste à un enfant. Ma peau devient perméable,
l’enfant s’infiltre en moi, je diffuse en lui; fluide des fibres et des mots, la tendresse est
pure enfance incorporée. Mais ce logiciel handicapé, avec ses grands yeux vagues, brais-
es de satin, là, devant moi, me bouleversait bien plus encore que la mer mêlée au soleil”
(Possessions, 1996: 234).
3
David Le Breton desenvolve uma fundamental relação entre a maternidade e a técnica que
nos auxilia a compreender a angústia de Delacour: “As diferentes formas de diagnóstico
pré-natal são em geral demoradas. Terminado o exame, são necessárias várias semanas
para saber o resultado. Enquanto isso, a mulher permanece na expectativa; seu investi-
mento afetivo, suspenso. A criança está ali sem estar; a mãe às vezes a sente, mas deve
conter sua emoção por medo de se apegar a ela e descobrir em seguida que é portadora
de alguma doença grave ou trissômica” (Adeus ao corpo, 2003: 88).
382
veneno, grande probabilidade de comprometimento cerebral, aborto
terapêutico. A dor exorbitante de um parto forçado, um parto de na-
da. (...). Assim, da degolação ela tivera sua dose
1
383
reo desses trechos recortados. Supomos que a transubstanciação, cujo paradigma é o
texto de Proust, é uma variante desse “sujeito em processo”, uma vez que se relacio-
na ao sacramento da Eucaristia, ou seja, nesse gesto oral mediado pelo paladar, ainda
que insosso da hóstia, de receber o corpo e o sangue de Cristo simbolicamente. As
passagens do texto de Colette também fazem essa transubstanciação, uma vez que a
escritora realça o sabor da oralidade em seus escritos, acionando uma rede de senti-
dos muito semelhante ao proporcionado pelos textos de Clarice. Desenha-se – susten-
tamos esse argumento - entre o sujeito em processo e a transubstanciação uma fun-
damental linha de sutura constituída pelo gosto. Se o romance é uma experiência físi-
ca, conforme Sentido e contra-senso da revolta, ele passa por uma afirmação do corpo
sobretudo na fugacidade característica da madeleine. Kristeva mostra-nos que a tradi-
ção cristã da transubstanciação acompanhou a produção de Rimbaud e também a de
Aragon pela ligação ao mistério, mas é em Proust e na experiência do gosto que se
sustenta a fisicalidade atribuída ao romance
1
. Encontraremos a função do gosto de-
senvolvida por Kristeva na análise que a psicanalista dedica a Hannah Arendt. Inici-
almente, retomaremos o ponto segundo Arendt.
Na terceira parte de A vida do espírito, depois de ter analisado “o pensar” e “o
querer”, Arendt se volta a refletir sobre o julgar. A morte de Arendt, no entanto, dei-
xa essa parte final de seu trabalho inacabada, mas restam alguns fragmentos a respei-
to de sua análise sobre o juízo do gosto com base na teoria kantiana. A autora recorre
à Antropologia de Kant para constatar o estranho argumento do filósofo que funda-
menta a capacidade de julgar, ou seja, de discriminar entre o certo e o errado, no sen-
tido do gosto. Conforme Arendt, os sentidos do tato, da visão e da audição caracteri-
zam-se pela sua comunicabilidade, dado que “dão claramente objetos do mundo ex-
terior” (“O julgar”, A vida do espírito, 2002: 375). Cabe a esses três sentidos a faculdade
da imaginação, segundo Kant, pois, na interpretação de Arendt, tais sentidos viabili-
zam a “representação, isto é: “ter presente algo que está ausente; posso lembrar-me
de um edifício, de uma melodia, da textura do veludo” (2002: 375). Quanto aos senti-
dos do gosto e o do olfato, promovem sensações que são da ordem do “incomunicá-
1
Essa discussão está em Sens et non-sens de la révolte, 1996, p. 178.
384
vel”, isto significa que “o gosto e o cheiro que sinto não podem absolutamente ser
expressos em palavras” (2002: 375), atuando, nessa medida, na esfera privada. Nos
outros sentidos, segundo Arendt, o julgamento pode ser furtado: “podemos nos fur-
tar a julgar o que vemos, e, embora isto seja mais difícil. Podemos nos furtar a julgar
o que ouvimos ou tocamos” (2002: 375). Isso, no entanto, não acontece com os senti-
dos do gosto e do olfato: “em questões de gosto e cheiro, o apraz-me ou o não me a-
praz é imediato e avassalador. E o prazer e o desprazer são por sua vez inteiramente
privados” (2002: 375). Está em questão, nesse sentido, a imediatidade proporcionada
pelos sentidos do gosto e do olfato; no resumo de Arendt vemos a instantaneidade
com que eles se manifestam na afirmação de que tais sentidos se constituem por se-
rem ”não mediados pelo pensamento ou pela reflexão” (2002: 375). No entanto, há
uma segunda parte dessa leitura arendtiana do gosto que diz respeito à comunicabi-
lidade que é possível a partir do gosto quando ela menciona duas faculdades investi-
gadas por Kant: a imaginação e o senso comum. Cabe à primeira, segundo Arendt, a
internalização de um objeto e com isso não é mais necessário estar em contato com
ele para emitir referências sobre ele. Isso leva à substituição do termo gosto por juízo:
“Removendo o objeto, estabelecemos a condição para a imparcialidade” (2002: 376).
Sobre o senso comum, Arendt sustenta a interpretação kantiana da existência do
“não-subjetivo” no que parecia ser o sentido mais privado e subjetivo” (2002: 376).
Arendt observa na teoria kantiana sobre o gosto e sobre o belo a importância indis-
pensável da “sociedade”, já que, para ela, um homem sozinho numa ilha deserta não
enfeitaria a própria casa: “Temos que superar nossas condições subjetivas especiais
em proveito dos outros. Em outras palavras, o elemento não subjetivo nos sentidos
não objetivos é a intersubjetividade. (Deve-se estar só para se poder pensar; é preciso
companhia para se desfrutar de uma refeição.)” (2002: 377).
No livro que dedica a Hannah Arendt, Kristeva observa um distanciamento da
pensadora em relação a muitos de seus colegas filósofos quando Arendt interpreta o
pensamento político kantiano como uma “adesão à vida e ao Ser” (O gênio feminino,
TI, 2002: 199). Segundo Kristeva, o critério do gosto arendtiano reside na comunicabi-
lidade. Esse ponto de Kristeva está de acordo com o trajeto que refizemos da inter-
pretação da Arendt sobre o juízo do gosto kantiano. Kristeva refaz brevemente o
385
mesmo percurso que buscamos em A vida do espírito e insere o seu ponto de vista psi-
canalítico por meio de uma comparação com o conceito freudiano do princípio do
prazer. Ao enfatizar que no gosto está embutida a idéia ”isso me agrada ou isso não
me agrada”, Kristeva vê o que Freud define como “o princípio do prazer”. Conforme
Kristeva: “esse discernimento sensorial fundado sobre a distinção prazer/desprazer
é imediatamente descartado e absorvido pela ‘aprovação do prazer
1
’” (2002: 201).
Kristeva observa no pensamento de Arendt a influência do sensus communis de Santo
Tomás de Aquino, referido pela própria pensadora e que se ajusta à defesa que ela
faz da comunicabilidade na interpretação da Terceira Crítica. Kristeva retoma esse
aspecto revelando, ao mesmo tempo, a gênese de seu sujeito em processo: “Trata-se
de um ‘senso’ distinto da palavra; é o ‘efeito da simples reflexão sobre o espírito’, e
me afeta como se se tratasse de uma sensação; é trazido por ‘máximas’ (pensar por si
mesmo: máxima das Luzes; pensar pondo-se no lugar de outro (...)
2
” (2002: 201-202).
Kristeva resume esse julgamento alicerçado sobre a comunidade e suas impli-
cações com a política como algo que se afasta do que reconhece como um “julgamen-
to cognitivo”. Trata-se, segundo a teórica de um desafio ao “entendimento” (2002:
203). Nesse momento, deslocando-se da interpretação de Arendt, recorre à possível
inspiração que teria levado Kant para a margem do entendimento. Daí segue a se-
guinte reflexão que busca no pensamento kantiano um vínculo não apenas com o
corpo, mas também com a técnica, no que ela tem de espetacular, pois Kristeva ar-
gumenta que “Kant deve ter-se inspirado não somente no “espetáculo” da Revolução
Francesa mas também nos inúmeros tratados do século XVIII francês sobre o gosto
3
(2002: 203). Nota-se, na aposta da autora, a necessidade de levar o pensamento kanti-
ano para o domínio da cultura francesa, uma vez que essa dispõe de autores que se
1
“Ce discernement sensoriel fondé sur la distinction plaisir/déplaisir est immédiatement
écarté et absorbé par l‘approbation du plaisir’” (Le génie féminin. Hannah Arendt, TI,
1999: 348).
2
“Il s’agit donc d’un ‘sens’ distinct de la parole; il est l’ ’effet de la simple réflexion sur
l’esprit’ et m’affecte comme s’il s’agissait d’une sensation; il est porté par des ‘maximes’
(penser par soi-même: maxime des Lumières; penser en se mettant à la place de tout au-
tre (...) (Le génie féminin. Hannah Arendt, TI, 1999: 349).
3
“Kant a dû s’inspirer non seulement du ‘spectacle’ de la Révolution française, mais aussi
des nombreux traités du XVIII e. siècle français sur le goût” (Le génie féminin. Hannah
386
dedicaram a escrever sobre o gosto. Nessa medida, Kristeva, em importante nota so-
bre a possível influência que teria sofrido a respeito de gosto, realça, em seu próprio
pensamento, o peso exercido sobre o gosto. No fragmento que a autora retira do tex-
to de Montesquieu chamado Ensaio sobre o gosto, no qual o pensador percorre algu-
mas referências francesas que se dedicaram à análise do gosto, está a possível inspi-
ração que teria levado Kant a compor sua Crítica do Juízo, conforme a hipótese de
Kristeva, que se mistura sutilmente ao tema de seu livro em nota de final de página e
se dilui, em parte, pois o enfoque de seu texto é sobretudo a vida de Hannah Arendt:
Assim, Voltaire insiste na importância da sociedade e de sua coesão
para a formação do que é percebido como “gosto” (“Quando há pou-
ca sociedade, o espírito se estreita, sua ponta se embota, não há com
que formar o gosto”), chegando até a só reconhecer gosto nos povos
da Europa, não tendo os outros “aperfeiçoado” suficientemente suas
sociedades (cf. o artigo “Gosto” da Encyclopédie). Mais nuançado,
Montesquieu subordina firmemente o gosto ao prazer, implicando,
com isso, tanto o corpo quanto a alma: “São os diferentes prazeres da
nossa alma que formam os objetos do gosto [...], que não é senão a
vantagem de descobrir, com finura, e prontamente a medida do prazer
[grifo nosso] que cada coisa deve dar aos homens.” Ele distingue os
prazeres e os gostos naturais dos prazeres e dos gostos adquiridos:
sendo os prazeres dependentes essencialmente do corpo, de tal “ór-
gão” de nossa “máquina”, e até mesmo de uma contextura diferente
dos mesmos órgãos”, e procedendo por “uma aplicação de pronta e
delicada das próprias regras que não se conhecem”. Ainda mais su-
tilmente, a alma recebe seus prazeres pelas idéias e pelos sentimen-
tos, sempre guardando uma autonomia de funcionamento específico,
uma vez que “não há absolutamente coisas tão intelectuais [...] que
ela não sinta
1
” (O gênio feminino. Hannah Arendt, T I, 2002: 238-239).
Arendt, TI, 1999: 352).
1
“Ainsi Voltaire insiste sur l’importance de la société et de sa cohésion pour la formation de
ce qui est perçu comme un ‘goût’, (‘Quand il y a peu de société, l’esprit est rétréci, sa po-
inte s’émousse, il n’a pás de quoi se former le goût’), allant jusqu’à reconnaître du goût
aux seuls peuples d’Europe, les autres n’ayant pas suffisamment ‘perfectionné’ leurs so-
ciétés (cf. l’article “Goût” de l’Encyclopédie). Plus nuancé, Montesquieu subordonne fer-
mement le goût au plaisir, en y impliquant le corps aussi bien que l’âme: ‘Ce sont ces dif-
férents plaisirs de notre âme qui forment les objets du goût [...] qui n’est autre chose que
l’avantage de découvrir avec finesse et avec promptitude la mesure du plaisir [nous sou-
lignons] que chaque chose doit donner aux hommes.’ Il distingue les plaisirs et goûts na-
turels des plaisirs et goûts acquis: les plaisirs étant dépendants essentiellement du corps,
de tel ‘organe’ de notre ‘machine’, voire d’une contexture différente des mêmes organes’,
et procédant par ‘une application prompte et exquise des règles mêmes que l’on ne
connaît pas’. Plus subtilement encore, l’âme reçoit ses plaisirs par les idées et par les sen-
timents, tout en gardant une autonomie de fonctionnement spécifique, puisqu’ ‘il n’y a
point de choses si intellectuelles [...] qu’elle ne sente’” (Le génie feminine. Hannah Arendt,
387
Nessa passagem desenha-se, de acordo com referências da cultura francesa,
importantes aspectos que dizem respeito ao corpo, cuja formação pode ser levada à
compreensão também da estrutura copresente sexualidade/pensamento interpretada
por Kristeva a partir da teoria freudiana. Voltando a Arendt, Kristeva lamenta a falta
de acesso ou de conhecimento da pensadora sobre essa possível leitura que Kant te-
ria feito dos vários tratados do século XVIII francês a respeito do gosto. A própria
Kristeva distancia o gosto kantiano do que classifica como o “sensualismo de Mon-
tesquieu”, ou do sentido dado por Voltaire (2002: 203). Esse movimento nos leva a
concluir que a composição teórica de Kristeva se constrói entre reflexões dos autores
escolhidos por ela, na medida em que a psicanalista aponta diferenças entre a condu-
ção de seu pensamento e a orientação tomada por Arendt via Kant. Kristeva situa
Kant e Arendt na mesma posição quanto ao gosto, pois esses autores partilham a de-
fesa de uma comunicabilidade que é “louvável” e “muito pacificadora” (2002: 204).
Nessa medida, Kristeva ressalta do pensamento de Arendt sobre Kant o retorno rea-
lizado pela filósofa à Crítica da razão pura: “Arendt constata que, para além das duas
cepas da experiência e do conhecimento, que são a intuição (sensibilidade) e os con-
ceitos (o entendimento), Kant reconhece no conceito uma ‘espécie de imagem’, e su-
gere por aí uma presença da imaginação no próprio intelecto
1
” (2002: 204). Chega-
mos, portanto, novamente à imagem no que ela se relaciona à imaginação. Agora não
pelas telas dos pintores acessíveis principalmente ao público dos museus, mas pela
retomada do sofisticado pensamento kantiano. Na seqüência de seu argumento, Kris-
teva reproduz o conceito de “esquema” recuperado por Arendt na terceira parte de
seu A vida do espírito. Trata-se, pois, de “uma apreensão que reconhece que ‘esta’ me-
sa partilha propriedades gerais com outras mesas, permanecendo sempre um singu-
lar
2
” (2002: 204). Cabe à imaginação e a seu vínculo necessário à percepção o enrai-
TI, 1999: 352-353).
1
“Arendt constate que, par-delà les deux souches de l’expérience et de la connaissance que
sont l’intuition (sensibilité) et les concepts (l’entendement), Kant reconnaît dans le con-
cept une ‘sorte d’image’, et suggère par là une présence de l’imagination dans l’intellect
lui-même” (Le génie féminin. Hannah Arendt, TI, 1999: 354)
2
“’une saisie qui reconnaît que ‘cette’ table partage des propriétés générales avec d’autres
tables, tout en restant un singulier” (Le génie feminine. Hannah Arendt, TI, 1999: 354).
388
zamento na comunidade, lido por Arendt como a capacidade de se fazer comunicar.
Nas palavras de Kristeva, esse “dizer” formador da comunidade é o que “faz com
que o esquema não possa jamais ser reduzido a uma imagem
1
”. Ao retomar o conceito
de esquema desenvolvido por Kant via Arendt, Kristeva resume o intento da filósofa
que é o de pensar as bases até o vínculo entre o particular e o universal. Mais impor-
tante ainda para o nosso objetivo do que chamar a atenção para esse crucial ponto do
pensamento arendtiano é o recurso metafórico empregado por Kristeva para resumir
a intenção da filósofa. Vejamos: “O que conta é esse apetite de pensamento que não
cessa, em Arendt, de procurar os fundamentos do elo entre particular e geral, entre
indivíduo e pluralidade, para justificar uma condição humana vivível, tão livre quan-
to justa
2
”(2002: 205). A metáfora do gosto construída por Kristeva – “apetite de pen-
samento” – para dar conta da vivacidade intelectual de Arendt se soma à busca feita
por Kristeva no texto Colette, ancorada sobre o apelo comestível dos deslocamentos
tecidos pela escritora e também às possíveis ligações do gosto sugeridas pelas telas
de Georgia O’Keeffe, cujas texturas em tons sobrepostos de branco produzem sensa-
ções adocicadas. O ponto em comum entre Arendt, Colette e O’Keeffe está em suas
experiências simultaneamente em confronto e contato com a técnica, sobretudo no
âmbito da imagem e especificamente no que esta toca o espetáculo. Arendt, por e-
xemplo, foi jogada na sociedade do espetáculo especialmente quando escreveu Eich-
mann em Jerusalém. Kristeva faz questão de recuperar a repercussão espetacularizada
desta obra que, equivocadamente, lançou a pensadora à negação do mal e a sua ba-
nalização. No fechamento do volume dedicado a Arendt, Kristeva – na seqüência
dessa perturbadora metáfora do gosto (“apetite de pensamento”), que sintetiza a vo-
racidade da pensadora pelo conhecimento – resume o perdão segundo Arendt. Na
interpretação de Kristeva, Arendt fundamenta o gesto do perdão em sua atitude di-
recionada à pessoa mas não ao ato. Por exemplo: “Não se pode perdoar o assassinato
1
“fait qu’un schème ne peut jamais être ramené à une image (Le génie féminin. Hannah
Arendt, TI, 1999: 354).
2
“Ce qui compte, c’est cet appétit de pensée qui ne cesse, chez Arendt, de chercher les
fondements du lien entre particulier et général, entre individu et pluralité, pour justifier
une condition humaine vivable, aussi libre que juste” (Le génie féminin. Hannah Arendt,
TI, 1999: 356).
389
ou o roubo, somente o assassino e o ladrão
1
” (2002: 207). Antes de Eichmann, Arendt
reconhece a possibilidade do imperdoável, uma vez que, na retomada de Kristeva de
A condição do homem moderno, “’existem ações ‘radicalmente más”’. O imperdoável
em Eichmann não reside em sua maldade, mas, segundo a interpretação de Kristeva,
está no fato de que Arendt “absolutamente não perdoa esse homem criminoso por-
que, ‘levando em conta a pessoa’, ela descobre uma não-pessoa, a ausência de ‘quem’
ou de ‘alguém’, um funcionário autômato, incapaz de julgar sensatamente e excluin-
do-se, por isso mesmo, da esfera do perdão
2
” (2002: 208). Depreendemos disso que
Eichmann sequer pode ser considerado vítima da propaganda totalitária, pois, se fos-
se o caso, ele despertaria um mínimo gesto de indulgência. Nota-se que a exclusão da
“técnica” também é nociva.
Kristeva leva esse tema de escansão do tempo de fundo religioso que é o per-
dão a sua prática analítica. A autora realiza esse passo no final de seu ensaio dedica-
do a Hannah Arendt. Esse procedimento, no entanto, já está em Sol negro, em Psicaná-
lise e fé e, mais recentemente, em As novas doenças da alma. Embora distante e contra as
referências advindas da psicanálise, Arendt alcança a mesma intenção de Kristeva.
As duas autoras defendem a valorização da vida. Kristeva observa na relação analíti-
ca de transferência e contra-transferência e a conseqüente recriação do sujeito em tra-
tamento a prática que já está no pensamento arendtiano quando a pensadora inclui
as idéias de Santo Agostinho para pensar sobre “o querer” em A vida do espírito. Tra-
ta-se, pois, da possibilidade de um novo começo. Cada vida, portanto, diz respeito a
um novo começo: “O homem foi posto no mundo, segundo Agostinho – o que A-
rendt retoma uma vez mais –, para um ‘novo começo’, pelo fato de que ele próprio é
pensado como ‘um começo correndo em direção a um fim’ e ‘dotado de capacidade
de querer e de não querer
3
”’ (2002: 189). A relevância desse começo fica ainda mais
1
“On ne peut pardonner le meurtre ou le vol, seulement le meurtrier ou le voleur” (Le génie
féminin. Hannah Arendt, TI, 1999: 361).
2
“Elle ne pardonne nullement à cet homme criminel, précisement parce que, en ‘tenant
compte de la personne’, elle découvre une non-personne, l’absence de ‘qui’ ou de ‘quel-
qu’un’, un fonctionnaire automate incapable de juger ses actes et s’excluant par là même
de la sphère du pardon” (Le génie féminin. Hannah Arendt, TI, 1999: 362).
3
“L’homme a été mis au monde, selon Augustin – ce qu’Arendt reprend une fois de plus –,
pour un ‘nouveau commencement’, du fait qu’il est pensé lui-même comme ‘un com-
390
valorizada se o associarmos à importância que Arendt via Kant concede à faculdade
do gosto. Nesse sentido, Kristeva acompanha a formação que envolve o sentido do
gosto no plano da história da filosofia. Logo, não se trata de um argumento extrava-
gente e descontextualizado essa busca da autora pelas marcas do “gosto” nos varia-
dos textos percorridos por ela. A diferença está no caráter efetivamente “oral”, isto é,
não metafórico do gosto e ao mesmo tempo não redutível ao mero organicismo, pois
está em jogo a formação de um sujeito falante – o que é diferente de um autômato
desmerecedor do gesto de perdão. Para a interpretação do gosto segundo Kristeva, é
preciso deslocar-se para a psicanálise e o crucial papel da figura materna. Vimos que
a negatividade explorada por Kristeva via Hegel escapa para o que a teórica conven-
ciona por “Rejeição”, que consiste no deslocamento em benefício da inserção do cor-
po e de sua rede pulsional. No que se refere ao perdão, esse zeitlos cuja história re-
monta ao “gosto”, Kristeva, semelhante ao pensamento de Arendt, afirma que o per-
dão “não lava os atos
1
” (1989: 186), mas permite ao inconsciente “reencontrar um ou-
tro amoroso: um outro que não julga, mas que entende minha verdade na disponibi-
lidade do amor e, por isto mesmo, permite renascer
2
” (1989: 186-187). O gesto da jor-
nalista-detetive Stéphanie Delacour exemplifica esse movimento do perdão açulado
por Kristeva:
Podemos amar alguém que não é do nosso mundo? Parece loucura,
mas é preciso crer que isso existe. Ela beijou os grandes olhos daque-
le adolescente diferente. Um daqueles penosos nós feitos de perdão,
de açucarado enternecimento, de detestável bondade lhe cerrou a
garganta. E a jornalista apressou-se em deixar a mansão dos Harri-
son, sem uma palavra
3
(Possessões, 2003: 211).
mencement courant vers un fin’ et ‘doté de capacité devouloir et de non-vouloir’” (Le
génie féminin. Hannah Arendt, TI, 1999: 326-327).
1
“ne lave pas les actes” (Soleil noir, 1987: 215).
2
“rencontrer un autre amoureux: un autre qui ne juge pas mais qui entend ma vérité dans la
disponibilité de l’amour et pour cela même permet de renaître” (Soleil noir, 1987: 215).
3
“Peut-on aimer quelqu’un qui n’est pas de votre monde? Ça paraît fou, mais il faut croire
que ça existe. Elle embrassa les grands yeux de cet adolescent pas comme les autres. Une
de ces pénibles boules faites de pardon, d’attendrissement mièvre, de détestable bonté
lui noua la gorge. Et la journaliste se hâta de quitter la villa des Harrison, sans un mot”
(Possessions, 1996: 251).
391
Delacour realiza o gesto fora do tempo do perdão.
1
A detetive-jornalista, no
entanto, circula entre elementos sedimentados no domínio técnico. Os constantes
deslocamentos aéreos da personagem e a sua atividade jornalística direcionada à in-
dústria da informação são alguns exemplos que fundamentam seu viés “dromocráti-
co” e, por conseguinte, supostamente irrefletido e/ou até mesmo anestesiado diante
do fluxo de acontecimentos (imagens) que constituem, em linhas gerais, os movimen-
tos da vida desta personagem. Delacour, em contrapartida, faz dois movimentos
surpreendentes para a sua condição: busca a verdade e pratica o fora do tempo sob a
forma do perdão. Delacour carrega o contra-senso do legado histórico da construção
paradoxal do corpo da Virgem Maria e toda a herança da formação da imaginação a
partir desse corpo. Além disso, a detetive tem o sentido do gosto desenvolvido: “Le-
vanto os olhos para uma paisagem azul e areia riscada de esmeralda e, sem me mis-
turar ao falatório, sem sequer pensar em Stan Novak ou em Michael Fish, aplico-me a
saborear a polpa morna da torta Tatin
2
” (2003: 40-41). É uma hipótese, entre outras, a
ser considerada para compreender o sentido dessas “possessões” suscitadas pelo tí-
tulo do livro de Kristeva.
1
Pierre-Louis Fort, no artigo de inspiração proustiana “Du côté de chez Stéphanie Dela-
cour”, aproxima Delacour de sua autora, pois as duas, de acordo com o neologismo cria-
do por Kristeva em seu último polar – “je me voyage”, exploram um universo que leva
não a respostas, mas a desestabilizações que despertam a angústia e a busca em seus in-
terlocutores.
2
“Je lève les yeux sur un paysage bleu et sable barré d’émeraude, et sans me mêler au ba-
vardage, sans même penser à Stan Novak ou à Michael Fish, je m’applique à savourer la
pulpe tiède de la tarte Tatin” (Possessions, 1999: 45).
392
4 CAMINHO PARA O TERCEIRO MOVIMENTO DO CORPO
CLARICIANO
1
4.1 Meditações claricianas
A volta ao ano de 1943, data de publicação do romance de estréia de Clarice
Lispector, promove um retorno a um universo ficcional cuja influência da técnica não
se apresenta tão acentuada quanto em construções romanescas como as de O velho e
os lobos e Possessões, obras de Julia Kristeva que apresentam em seu enredo estreito
vínculo com o desenvolvimento da técnica. A ligação das personagens com as ima-
gens produzidas por equipamentos constituem um exemplo de como Kristeva mos-
tra-se sensível a reproduções artificiais de comunicação. Em O velho e os lobos, explora
a condição paradoxal da necessidade de contato característica dos tempos modernos
em que todos caminham na rapidez dos encontros virtuais afetivos e profissionais,
mas pouco laços efetivamente sólidos são tecidos. Alba e Vespasiano protagonizam o
descompasso de um casal sem o cultivo da cumplicidade. A tradutora de Santa Bár-
bara, Gloria Harrison, enredada na exposição típica da sociedade do espetáculo, é ví-
tima da repercussão de sua imagem simultaneamente deslumbrante e inteligente. Es-
sa segunda característica não combina com o clichê criado ao redor do espetáculo,
pois não se espera vivacidade intelectual daqueles que dele participam, mas apenas a
necessidade de aparecer. Kristeva, por sua vez, não simplifica a técnica relegando-a a
1
Capítulo dedicado a John Coltrane.
393
um papel puramente disfórico, ela faz questão de nos incluir no que esta oferece de
atraente e descartável. Estamos portanto imersos na técnica no que esta tem de ima-
gético, ou seja, caminhamos na imagem, conforme o discurso de Santo Agostinho,
mesmo sem nos deslocarmos para fora de nossas casas.
Os textos de Kristeva têm esse pano de fundo tecnológico em que as telas dos
computadores, do cinema e da televisão passam quase despercebidos porque consti-
tuem o nosso cotidiano, de forma que não mais nos imaginamos sem as facilidades
produzidas por esses instrumentos da técnica. Perto do coração selvagem contrasta com
esse universo superiluminado – para empregar um termo corrente nos escritos de
Paul Virilio, especialmente em O espaço crítico
1
– dos romances contemporâneos, uma
vez que sequer havia, na época da feitura e publicação dessa obra, televisores no Bra-
sil. A profusão de imagens desgastadas que servem para a crítica de Kristeva, sobre-
tudo em Possessões, não ganha espaço em Perto do coração selvagem. Teríamos de levar
em conta as novelas de rádio ou o cinema como um equivalente desse massacre visu-
al que a psicanalista defende em sua crítica ao apagamento da nossa vida psíquica,
mas essas opções não nos parecem adequadas. As novelas radiofônicas estimulam a
imaginação, por isso não produzem o mesmo efeito desencadeado pela televisão, o
do fluxo quase irrefletido das imagens sobre os telespectadores
2
. Quanto ao cinema,
esse caso imagético ainda não era suficientemente popular a ponto de influenciar a
vida psíquica brasileira daquele período e mesmo atualmente não podemos compa-
rá-lo ao impacto sobre as classes populares como faz a televisão. Apesar disso, Perto
do coração selvagem não fica à margem da técnica. A cena de abertura do primeiro ca-
1
Em O espaço crítico (1999: 22-79), Virilio observa o que chama de fratura morfológica do es-
paço arquitetônico contemporâneo e esta se liga ao esvaziamento da duração das ativi-
dades e a recusa de interrupções de atividades no intuito de acelerar a produtividade.
Virilio chama a atenção para a substituição do dia solar, que era responsável pela estru-
tura do espaço e da cidade e dos hábitos de vida, para o “dia químico”, que é o da ilumi-
nação artificial: “De fato, o dia e a noite deixaram de organizar a vida, a cidade, a partir
do momento em que o espaço e o tempo perderam sua importância prática para dar lugar
a uma maior transparência, a uma maior profundidade, profundidade cinemométrica em
que a luz subitamente adquire o status de ‘matéria-prima’” (O espaço crítico, 1999: 45).
2
Consultamos o artigo “Televisão e violência do imaginário”, de Maria Rita Kehl, no qual
ela questiona “se é possível existir uma sociedade que incita e demanda que tudo tenha
expressão e visibilidade, em que todos possam dizer tudo e, ao mesmo tempo, não passar
ao ato” (2000: 138).
394
pítulo chamado “O pai...” tem no barulho do movimento do relógio de parede a pri-
meira referência sobre a técnica a que temos acesso nessa obra de estréia:
A máquina do papai batia tac-tac... tac-tac-tac... O relógio acordou
em tin-dlen sem poeira. O silêncio arrastou-se zzzzzz. O guarda-
roupa dizia o quê? roupa-roupa-roupa. Não não. Entre o relógio, a
máquina e o silêncio havia uma orelha à escuta, grande, cor-de-rosa
e morta (Perto do coração selvagem, 1998: 13).
As onomatopéias deixam a protagonista no ritmo maquinal dos relógios cujo
funcionamento sincopado tem por objetivo reafirmar a nossa condição temporal e
por extensão finita. Nesse trecho em que Joana, ainda criança, anima o ambiente, tal-
vez para desautomatizá-lo, há uma alusão a um corpo fragmentado e sem vida. A li-
gação, portanto, entre o corpo e a máquina deixa à mostra um corpo que remete à es-
tética surrealista pelo estranhamento da imagem de uma orelha cor-de-rosa e esta
pode ser lida em função da intensidade que a protagonista dedica ao olhar a orelha
de seu pai, realçando a cor rosada das cartilagens. A falta de atenção de seu pai tam-
bém se desdobra na informação de que se trata estranhamente de uma orelha morta.
É a forma de olhar das crianças, muito atenta aos detalhes, que a narradora clariciana
busca e é semelhante à descrita na crônica “O artista perfeito” (1999: 228-229), na qual
a escritora defende a idéia da liberdade do utilitarismo dos sentidos para a criação ar-
tística. Apoiada no pensamento de Bergson, em Os dados imediatos da consciência, Cla-
rice sustenta que “aquele que estivesse completamente livre de soluções convencio-
nais e utilitárias veria o mundo, ou melhor, teria o mundo de um modo como jamais
artista nenhum teve. Quer dizer, totalmente e na sua verdadeira realidade” (1999:
228). Segundo a cronista, é próprio do pintor ter o sentido da visão “mais ou menos
liberto”. Nesse sentido, ela exemplifica com o trabalho de Pablo Picasso, pois suas te-
las cubistas causam a impressão de terem sido produzidas por uma criança. Em con-
trapartida, os desenhos de crianças não constituem obras de arte, pois, no fecho de
sua crônica, ela argumenta: “talvez seja mais justo louvar Picasso que as crianças. A
criança é inocente, Picasso tornou-se inocente” (1999: 229).
Observa-se que, ao compor a protagonista de Perto do coração selvagem, Clarice
trabalha com essa mesma idéia que dará origem à crônica publicada no Jornal do Bra-
sil, em 6 de setembro de 1969. As descrições da infância da personagem principal re-
395
velam experiências sensitivas de curiosidade e encantamento frente a um mundo a
ser descoberto em seus detalhes de sons, cores, perfumes. Na seqüência do badalar
do relógio, Joana desloca-se da maquinalidade rítmica dos ponteiros do relógio de
modo a tomar consciência de sua corporalidade e nesse momento a personagem cai
numa espécie de intuição de sua natureza mortal ou, dito de outra forma, ela entra
em contato com a sua finitude: “Encostando a testa na vidraça brilhante e fria olhava
para o quintal do vizinho, para o grande muro das galinhas-que-não-sabiam-que-
iam-morrer” (1998: 13). Nesse mesmo capítulo, a protagonista tem as suas sensações
marcadas pelo passar do tempo. Ela volta-se para o movimento dos ponteiros do re-
lógio quando sente dor, alegria, raiva, ou simplesmente nada. Trata-se de um exercí-
cio de meditação:
se tinha alguma dor e se enquanto doía ela olhava os ponteiros do re-
lógio, via então que os minutos contados no relógio iam passando e a
396
No capítulo “O encontro de Otávio”, Joana fita esse personagem sobre a cama.
É possível associá-lo às cenas de degolação descritas por Kristeva em Visões capitais
ou em Possessões, nas quais Holofernes revela-se rendido sob o olhar de Artemisia
Gentileschi. O corpo de Otávio, visto sob a perspectiva da protagonista, guarda algo
de um retorno à castração masculina. O esgotamento físico de Otávio depois da cena
de amor é apreendido por Joana de modo semelhante ao seu exercício de sentir dian-
te dos movimentos do relógio: “Olhou-o no
397
to (Perto do coração selvagem, 1998: 134).
O final da citação abre caminho para outras metáforas da ordem técnica. A
personagem Joana, deitada ao lado do marido, vê-se refletida na lâmpada. A ilumi-
nação da lâmpada sob o teto do quarto cria a imagem típica de construções líricas,
como é o exemplo da lua. Todavia, Joana afasta-se desse pretenso lirismo ao se asso-
ciar à condição de um mundo transformado pela iluminação artificial. O trecho a se-
guir expõe a solidão da personagem, uma marca aliás de grande parte das persona-
gens claricianas. A imagem do relógio que acompanhou a capacidade de sentir da
protagonista durante a infância volta na sua vida adulta não com a função de contra-
ponto, mas com a finalidade de comparação Joana é posta na mesma esfera da téc-
nica:
E ela, solitária como o tic-tac de um relógio numa casa vazia. Espe-
rava sentada sobre a cama, os olhos engrandecidos, o frio da madru-
gada próxima atravessando-lhe a camisa fina. Sozinha no mundo,
esmagada pelo excesso de vida, sentindo a música vibrar alta demais
para um corpo (Perto do coração selvagem, 1998: 138).
No capítulo “O homem”, o relógio reaparece ao lado do tema da eternidade.
“Entre um instante e outro, entre o passado e as névoas do futuro, a vaguidão branca
do intervalo. Vazio como a distância de um minuto a outro no círculo do relógio. O
fundo dos acontecimentos erguendo-se calado e morto, um pouco da eternidade”
(1998: 157). Esse jogo com o tempo, cujo ponto de apoio é o relógio, traduz uma for-
ma que a escritora encontra para livrar-se de um tempo que lhe parece por vezes in-
tensamente vivido. Na crônica “Aprofundamento das horas”, de 16 de novembro de
1968, Clarice explica a experiência da escrita como uma atividade que “aprofunda e
alarga as horas” (1999: 152). Por outro lado, a escrita, no fecho de sua crônica signifi-
cativamente sintética, também serve para livrá-la de um tempo, isto é, de uma vida
que lhe parece um tanto insuportável, talvez por se tratar de uma existência extenu-
ante ou, por outro lado simplesmente tediosa: “Se bem que ultimamente, por neces-
sidade grande, aprendi um jeito de me ocupar escrevendo, exatamente para ver se as
horas passam” (1999: 152). O relógio também associa-se à eternidade nessa passagem
por nós recortada. Na crônica “Medo da eternidade”, de 6 de junho de 1970, Clarice
398
comenta o seu “dramático e aflitivo contato com a eternidade”. Recém-chegada em
Recife, ainda criança, ganha de sua irmã uma bala que nunca acaba. Tratava-se de
um chiclete que a menina pôs na boca com muita delicadeza. Esse encontro gustativo
com a eternidade a escritora descreve em detalhes:
Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cin-
zento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastiga-
va. Mas eu me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando
do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie
de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito (A
descoberta do mundo, 1999: 290).
A experiência clariciana com a goma de mascar situa a eternidade articulada
pela escritora sob o domínio do gosto. Sensações como neutralidade, o it, as quais re-
latamos em nosso segundo capítulo, esclarecem-se por meio dessa crônica. Observa-
se que Clarice não suporta o peso de uma continuidade indefinida e rompe com essa
experiência por meio de um gesto fatal carregado de oralidade: “Até que não supor-
tei mais, e, atravessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair
no chão de areia” (1999: 290). A formação do ateísmo de Kristeva, que não deixa de
ser uma espécie de ruptura com a “eternidade”, curiosamente se dá pelo paladar. Em
carta a Catherine Clément, a escritora revela um episódio de sua vida que merece ser
retomado, embora, ao relatá-lo, tome o cuidado de esvaziar a seus possíveis interlo-
cutores toda a importância de sua confissão valiosa. Antes disso, reproduziremos a
relação que a autora traça entre a religiosidade e o paladar segundo a história da san-
ta Catarina Benincasa, que é conhecida pelo nome de Catarina de Siena (1347-1380).
Leiamos a pequena biografia dessa mulher crente nas palavras da própria Kristeva:
Essa mulher extraordinária que pregava o amor apaixonado por
Deus, dominicana fervorosa e padroeira da Itália com são Francisco
de Assis, foi considerada doutora da Igreja como santo Tomás de
Aquino. Ela curou-se milagrosamente da peste e escreveu seus êxta-
ses no Diálogo da Divina Providência – uma das primeiras obras-
primas da literatura italiana, sendo à sua maneira uma espécie de
anoréxica. (...) Sua homônima tinha uma irmã gêmea, e como sói a-
contecer, as duas recém-nascidas eram muito frágeis. Quando nasce-
ram, sua mãe, Lapa Piacenti, tinha uns quarenta anos e já tinha vinte
e dois filhos, dos quais só a metade sobreviveu! Ela teve que se sepa-
rar de uma das gêmeas, Giovanna, que foi entregue a uma ama e
morreu logo depois. Catarina agarrou-se ao seio materno e se forta-
leceu. Saciada, satisfeita: era ela a eleita – o que confirma a hipótese
analítica segundo a qual os seres satisfeitos oralmente são capazes de
399
esperança e... de fé (O feminino e o sagrado, 2001: 144).
Para Kristeva, é importante a continuação da história de vida da santa Catari-
na porque a autora fará uma ponte com um caso de anorexia vivido por uma de suas
pacientes – exemplo que serve de paradigma para esse distúrbio alimentar. Não é a
parte clínica da história que nos interessa, pois a revelação está no ateísmo de Kriste-
va – manifesto antes de narrar o caso da Santa Catarina – e ancorado sobre o sentido
da gustação:
(...) jamais fui anoréxica. De fato, não. Mas sei que fui desmamada
muito cedo, mamãe teve uma infecção nos seios, e eu em criança não
me dava bem com o leite – leite de ovelha, de vaca, de cabra, concen-
trado, cremoso, integral, nada resolvia. A mínima película de nata
me fazia vomitar. Com certeza porque me haviam privado do leite da
mãe muito cedo, cedo demais, dizia minha mãe. Volto a essa narrati-
va um pouco simplória mas não menos dolorosa para me livrar dos
seios doentes, para analisar a minha contratransferência com Agnès,
e ouvi-la, somente a ela – e não minhas histórias da nata do leite que
só interessam à minha mãe e a mim (O feminino e o sagrado, 2001: 141-
142).
Na lógica de Santa Catarina, a falta de saciedade, a fome, geram a desesperan-
ça, a falta de fé – o ateísmo de Kristeva. Retornando à luta clariciana com a noção de
eternidade, nota-se que em Perto do coração selvagem esta se desenha a partir de um
relógio como um desafio à condição mortal de sua protagonista. Envolvida no correr
do tempo, Joana agarra-se ao indefinido de um estado “calado” e “morto”. A perso-
nagem, nessa medida, assemelha-se ao Zeitlos freudiano, essa experiência do fora do
tempo retomada por Kristeva no intento de desdramatizar a morte. A protagonista
vasculha nos ponteiros do relógio esse tempo entre tempos e assim promove escan-
sões entre tempos transcorridos que são experiências análogas àquelas aventadas por
Kristeva no término da prática analítica ou na leitura de romances policiais. Joana,
nesse sentido, prepara-se para a morte, para a sua finitude inevitável.
Uma outra alusão aos relógios encontra-se no capítulo chamado “A víbora” e
diz respeito ao personagem Otávio. Todavia, não é ele que está envolvido com a agi-
tação, pois o movimento das badaladas sinaliza a movimentação proporcionada pe-
los gestos e as ações de Joana. O relógio apenas indica, conforme o discurso do nar-
rador, a iminente mudança no rumo do casal: ”Otávio lia enquanto o relógio estalava
400
os segundos e rompia o silêncio da noite com 11 badaladas” (1998: 174). Uma última
referência aos relógios acha-se na parte final da narrativa. No enigmático capítulo de
fechamento chamado “A viagem”, há uma importante reversão entre a capacidade
de sentir da protagonista, sempre revoltada, e seu vínculo com essa máquina do
tempo: “A fazenda também existia naquele mesmo instante e naquele mesmo instan-
te o ponteiro do relógio ia adiante, enquanto a sensação perplexa via-se ultrapassada
pelo relógio” (1998: 195). Trata-se, entretanto, de uma referência momentânea, pois
logo em seguida esse tempo vivido torna a ultrapassar a simbologia maquinal do re-
lógio levando a personagem principal a uma experiência repleta de cruzamentos con-
trastantes nos quais a dor e alegria se entrechocam nas dimensões do corpo da prota-
gonista:
Dentro de si sentiu de novo acumular-se o tempo vivido. A sensação
era flutuante como a lembrança de uma casa em que se morou. (...)
Doía ou alegrava? No entanto sentia que essa estranha liberdade que
fora sua maldição, que nunca a ligara nem a si própria, essa liberda-
de era o que iluminava sua matéria (Perto do coração selvagem, 1998:
196).
Outro exemplo da técnica em Perto do coração selvagem localiza-se na referência
ao bonde. Em História do transporte urbano no Brasil, Waldemar Corrêa Stiel percorre
as diversas regiões do Brasil com a finalidade de mostrar as mudanças dos meios de
transportes associadas ao crescimento das cidades. A cidade do Recife, onde Clarice
viveu parte de sua infância, apesar de todo o seu progresso, teve a eletrificação no
serviço de bondes atrasada. Diferente de outras cidades que já usufruíam desse a-
vanço da técnica, em Recife, durante um bom tempo, “ainda se discutiam os prós e
os contras do novo serviço e os bondes a burro lentos e desconfortáveis continuavam
seu tráfego monótono” (1984: 291). Em 1923, tem início o trabalho de assentamento
da linha mais extensa do Recife, chamada a linha da Boa Viagem. Em 31 de março de
1928, a Pernambuco Tramways foi comprada pela General Electric Co. por 4 milhões de
dólares. Naquele mesmo ano, Twetdatrasad(0.055 -ih-n019.6dáa(de eEspinstan-)]TJT*-.0004 57Tc.02 nh pontedáa(de eFarolrasaOlo, “Twsão eTc0te de )]T728.815 0 TD.0003 5c.0447 eTc40(192s. A cidade do R obsso, oquelsse a-)]TJ728.815 -1.86 TD.0001 26c.025 e msucprogantesnovo setrasaa do transpcolenquan)]TJ10.08 0 TD-.0001 Tc.0251 tido orte uriões do Brades92s. A cide Por-sada
401
em Recife aconteceu em 1942 e, em função da guerra de 1939/1945, começou a decair
esse meio de transporte. Essas breves informações constituem um pano de fundo da
história dos bondes na cidade na qual Clarice possivelmente experienciou uma espé-
cie de laboratório para seus textos, pois eles apresentam um movimento semelhante,
muitas vezes, a máquinas de transporte em movimento. No conto “Amor”, por e-
xemplo, de Laços de família, a maior parte da ação se passa no interior de um bonde. O
itinerário transformador de uma dona de casa concentrada na rotina que não deixa
espaço para grandes emoções é totalmente alterado quando a mulher é invadida por
um sentimento de ódio ao ver um cego que masca chicletes. O sentimento de náusea
da personagem mistura dois movimentos: o dos gestos do desconhecido e o do des-
locamento do bonde. O narrador condensa esses dois movimentos ao descrever o
sentimento de abjeção despertado na dona de casa: “Os ovos se haviam quebrado no
embrulho do jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios de rede. O ce-
go interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente
pegar o que acontecia” (1998: 22).
Muito antes de ser uma mulher envolvida com os constantes deslocamentos
aéreos, pois Clarice Lispector foi casada com o diplomata Maury Gurgel Valente e
por isso teve de acompanhá-lo em uma série de mudanças de países
1
, a escritora
mostrava-se sensível ao seu ambiente em transformação. Existem reflexos desses
bondes do Recife no conto “Amor”, assim como é possível localizá-los em uma pas-
sagem da vida de Joana, essa personagem que ainda é resultado em grande parte das
experiências e observações da escritora em terra brasileira:
Era muito cedo de manhã e Joana mal tivera tempo de lavar o rosto.
A empregada a seu lado distraía-se soletrando os anúncios do bonde.
Joana encostara a têmpora direita no banco e deixava-se atordoar pe-
lo doce ruído da rodas transmitido solenemente pela madeira. O
chão corria sob seus olhos abaixo, célere, cinzento, raiado de listas
1
Indicamos a trajetória da escritora presente na descrição de Nádia Battella Gotlib, pois a
autora, a partir dos deslocamentos de Clarice, oferece dados valiosos para a compreensão
do conjunto clariciano, sobretudo no longo capítulo chamado “Itinerários” (1995: 55-407)
Em Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector, Teresa Cristina Montero Fer-
reira titula os capítulos com base nos deslocamentos de Clarice, levando-nos a acompa-
nhar os lugares por onde a escritora esteve: Ucrânia (nascimento), Maceió, Recife, Rio de
Janeiro, Belém, Nápoles, Berna, Rio de Janeiro, Torquay, Rio de Janeiro, Washington e
por fim Rio de Janeiro.
402
velozes e fugazes. Se abrisse os olhos enxergaria cada pedra, acaba-
ria com o mistério. Mas entrefechava-os e parecia-lhe que o bonde
corria mais e que se tornava mais forte o vento salgado e fresco do
nascer do dia (Perto do coração selvagem, 1998: 35).
No capítulo “A víbora”, enquanto Otávio lia, Joana observava o ambiente da
casa. Conforme o discurso do narrador, a personagem anima os pequenos detalhes
de um espaço supostamente parado: “Estava solta das coisas, de suas próprias coisas,
por ela mesma criadas e vivas” (1998: 179). No capítulo “Dois movimentos do corpo
clariciano”, recolhemos exemplos de Perto do coração selvagem e também de A paixão
segundo G.H. em que o recurso da catacrese surge para fundamentar essa necessidade
dos textos claricianos de fazer viver o inanimado. A solidão da protagonista, na cena
em que seu marido se mostra ausente e dispersivo, constrói-se por meio de uma me-
táfora oriunda da técnica: “A trepidação de um bonde longínquo atravessou-a como
num túnel. Um trem noturno num túnel. Adeus. Não, quem viaja à noite apenas olha
pela janela e não dá adeus. Ninguém sabe onde estão os casebres, os corpos sujos são
escuros e não precisam de luz” (1998: 176). O bonde, a despeito do tom metafórico,
participa da capacidade de sentir da protagonista. Esse meio de transporte serve co-
mo mediador para a expressão do íntimo de Joana, ou seja, o narrador clariciano in-
vade uma referência própria do domínio técnico e, de forma enviesada, a desloca pa-
ra a configuração de uma sensação muito importante e recorrente dos tipos de Clari-
ce, qual seja, a de solidão. A reação de Joana dá-se, na seqüência, em sua própria voz
descrita como leve, o que contrasta com a voz de Otávio, a qual é carregada de carna-
lidade, sendo semelhante a outra construção na qual a voz da protagonista é descrita
com ênfase no tom avermelhado, levando-nos a associá-la à região da garganta e, por
conseguinte, ao vigor de sua necessidade de falar
1
: “E sua voz era cheia de sangue e
de carne, reuniu a sala na sala, designou e definiu as coisas” (1998: 176). Na continu-
ação desse diálogo tenso e quase mudo, desenha-se uma outra referência à técnica
para definir a reação de Joana, uma personagem que passa a idéia de afastamento
1
Referimo-nos à importante imagem, comentada por nós no segundo e também no terceiro
capítulo desse trabalho, que é composta pelo narrador clariciano para definir a natureza
subversiva de Joana: “O gosto do mal – mastigar vermelho, engolir fogo adocicado”
(1998: 20).
403
mas que está intimamente ligada ao ambiente circundante: “Debateu-se um momen-
to, tremeu, acordou. Tudo rebrilhava sob a lâmpada, tranqüilo e alegre como num
lar. Dentro da penumbra de seu corpo a inutilidade da espera atravessou-a sonâmbu-
la como um pássaro pela noite” (1998: 176). Sobre o brilho das lâmpadas elétricas –
essa imagem nos parece diferente do sentido epifânico e seu fundo religioso –, pois
preferimos associá-la à técnica e a sua capacidade de uma luz artificial. Em O espaço
crítico, Paul Virilio lamenta a perda da esfera política e a associa ao que chama de fra-
tura morfológica. Contribui para isso, segundo o autor, a perda da referência do dia
solar, pois esse servia como parâmetro para o organização das tarefas. Virilio chama
de “dia químico” a transformação da técnica – aí estão as lâmpadas e todas as luzes
artificiais presentes do discurso intimista das personagens de Clarice Lispector – que
desestruturou os nossos hábitos. Trata-se, portanto, de um dia artificial que no início
foi vislumbrado pela luz das velas e depois, com o aprimoramento dos materiais,
possibilitou a formação de um “dia elétrico” (1999: 65).
Diferente da busca pela transcendência, o texto de Clarice envolve-se com o
cotidiano e desse enfrentamento com os ambientes de uma casa ou de um aparta-
mento, ou até mesmo da rua e seus meios de transporte em movimento, nesses espa-
ços manifestam-se as reações de estranhamento ou de extrema alegria dos persona-
gens claricianos. O brilho da lâmpada que retira Joana de uma intensa conexão com
seu espaço doméstico, quase impenetrável, é um brilho técnico. Podemos vê-lo esbo-
çado no primeiro capítulo de Perto do coração selvagem, o qual ilustra a infância de Jo-
ana:
Já vestira a boneca, já a despira, imaginara-a indo a uma festa onde
brilhava entre todas as outras filhas. Um carro azul atravessava o
corpo de Arlete, matava-a. Depois vinha a fada e a filha vivia de no-
vo. A filha, a fada, o carro azul não eram senão Joana, do contrário
seria pau a brincadeira. (...) Trabalhava séria, calada os braços ao
longo do corpo. Não precisava aproximar-se de Arlete para brincar
com ela. De longe mesmo possuía as coisas (Perto do coração selvagem,
1998: 14-15).
Da luz elétrica a narrativa oferece-nos um vínculo ainda mais evidente com o
universo técnico, o qual está perdido entre a brincadeira da protagonista. Referimo-
nos ao carro azul, esse que aparecerá no romance A hora da estrela, mas na cor amare-
404
la e sem qualquer motivo infantil, pois a trama da nordestina Macabéa não deixa es-
paço para a retratação da infância de sua protagonista, embora mantenha, em outros
momentos da vida dessa personagem, elementos ainda mais lúdicos do que os ex-
postos na construção da natureza selvagem de Joana. O carro que atravessa o corpo
de Arlete, conforme a brincadeira de Joana, é um fantasma clariciano, talvez tão im-
portante quanto são as cabeças para Kristeva, pois reaparece em O lustre e em A hora
da estrela. A possibilidade de uma morte causada pela técnica, nesse sentido, dese-
nha-se como uma preocupação antiga nos textos de Clarice Lispector
1
.
Publicada em 1964, no ano do golpe militar, A paixão segundo G.H., em função
do volume de sua fortuna crítica
2
, revela-se como aquela que desperta maior interes-
se do público leitor. No ano de 1964, conforme Sérgio Mattos (2002: 179), havia no
Brasil 34 estações de televisão e mais de 1,8 milhão de aparelhos receptores. Foi o
primeiro ano da transmissão da telenovela de maior audiência da década. A novela
Direito de nascer, dirigida por Boni, baseou-se em um script de rádio e serviu de mo-
delo para outras tramas produzidas para a TV Rio. Percebe-se, nesse sentido, uma si-
tuação imagética significativamente modificada daquela do ano de publicação de
Perto do coração selvagem (1943). Somente em 1950, no dia 18 de setembro, a televisão
foi oficialmente inaugurada no Brasil, em São Paulo. O início da implantação da tele-
visão brasileira data de fevereiro de 1949, com a iniciativa do jornalista Assis Chate-
aubriand (2002: 49), que, aliado à empresa americana RCA Victor, conseguiu 30 tone-
ladas de equipamentos para montar um emissora e também nomeou diretores para o
sucesso de seu intento. As primeiras imagens da nossa televisão, pela TV Tupi, Canal
3, foram disponibilizadas para uma elite econômica, pois havia apenas 200 televiso-
res, dado que o preço de um aparelho aproximava-se ao de um carro. Isso restringiu
a venda de televisões tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo, as regiões cen-
trais que têm o privilégio das novidades (2002: 81). Sérgio Mattos considera o ano de
1964 como um marco para a divulgação desse meio de comunicação no Brasil. Nesse
1
Mais adiante voltaremos a esse motivo central para o entendimento da produção textual
clariciana. Primeiro, fecharemos o ciclo da técnica ao percorrê-la em A paixão segundo GH.
2
Conforme a bibliografia organizada por Diane Marting em Clarice Lispector: a bio-
bibliography.
405
ano em que o presidente João Goulart foi deposto por um golpe de estado, a televisão
exerceu o papel de divulgadora da ideologia do regime e da produção de bens durá-
veis e não-duráveis. A partir dessa política, observa-se o crescimento no que toca à
dependência da tecnologia estrangeira, implicando também o aumento da dívida ex-
terna e o vínculo da televisão brasileira aos anunciantes estrangeiros. Segundo Mat-
tos, a maior fonte de receita da nossa televisão deve-se ao suporte publicitário (2002:
55). A censura decorrente de 64 bloqueou a qualidade dos programas locais para a te-
levisão, fato que rebaixou o conteúdo ao nível “popularesco” (2002: 90). Mattos ob-
serva, nesse mesmo período, uma reação por parte do cinema, pois coincidiu com a
rica experiência do Cinema Novo de Glauber Rocha. Segundo Mattos: “Não havia
espaço na televisão para a indústria cinematográfica nacional devido aos temas dos
filmes, censurados por motivos ideológicos” (2002: 91).
É nessa atmosfera, portanto, de repressão de idéias e de pobreza de imagens
sobretudo para a cultura de massa, que o Brasil se encontra quando Clarice publica A
paixão segundo G.H. Depois de vários anos de vida em outros países como acompa-
nhante do marido embaixador, a escritora, já instalada no Brasil, produz esse livro
perturbador em dois meses. Procurar por referências aos aparelhos de televisão no
enredo introspectivo de A paixão segundo G.H, como o movimento do nosso texto in-
sinua ao situar algumas informações a respeito desse instrumento da técnica virtual,
é uma tarefa destinada ao fracasso. O nosso objetivo centra-se em promover o retro-
cesso na investigação das imagens, ou seja, inspecioná-las antes de sua implicação no
contato entre personagens como Alba, Vespasiano, Gloria Harrison, Pauline Gadeau
ou Michael Fish – só para citar alguns tipos construídos por Kristeva que circulam
em uma rede ficcional na qual inexiste o estranhamento em face da banalidade da
divulgação de imagens cuja recepção acontece à distância. Kristeva realiza esse pro-
cesso no próprio texto na medida em que promove um resgate das nossas imagens
fundamentais, aquelas que nos constituem enquanto pertencentes à cultura ociden-
tal.
Apesar disso, é possível encontrar alguns vestígios da técnica no universo apa-
rentemente limitado de GH. O nosso segundo capítulo já desmitificou em parte a e-
conomia atribuída ao texto clariciano, que pode ser interpretada erroneamente como
406
uma narrativa minimalista. A resposta clariciana revela-se, em contrapartida, no e-
xercício atento aos detalhes, um texto rico em pormenores em busca da descrição de
um corpo em agonia. Da mesma forma, suspeitamos, no que se refere à técnica, esse
mesmo procedimento sinuoso e insuspeitado. A primeira alusão que desperta a aten-
ção para o improvável vínculo entre a técnica e a composição clariciana está na pró-
pria forma que a personagem-narradora elabora seu discurso a fim de contar o estra-
nho acontecimento que experienciou: “Precisarei com esforço traduzir sinais de telé-
grafo – traduzir o desconhecido para uma língua que desconheço, e sem sequer en-
tender para que valem os sinais” (1998: 21, grifo nosso). Observa-se que o prefixo tele,
do qual a televisão é uma variante mais atual do que os telégrafo
1
da nossa sociedade
do espetáculo, serve como primeiro exemplo da nossa investigação centrada na téc-
nica. Na seqüência, G.H. intitula-se a única capaz dessa prática misteriosa. Curiosa-
mente ela mantém a metáfora do telégrafo que pode ser lida como a ênfase no dis-
tanciamento entre a experiência vivida e a tentativa de transpô-la para o campo das
palavras: “Os sinais de telégrafo. O mundo eriçado de antenas, e eu captando o sinal.
Só poderei fazer a transcrição fonética” (1998: 22). Assim como Joana, que se une à
técnica ao se identificar com o carro azul, a protagonista desse romance, que em de-
terminado ponto chega a confundir-se simbolicamente com a barata, também pode
ser vista à luz de uma aproximação identitária com a técnica. A descrição da barata,
somada ao nosso estudo desenvolvido na segunda parte do segundo capítulo desse
trabalho, leva-nos a essa possível configuração em que GH-barata se fundem. Obser-
va-se, no entanto, que a descrição a seguir é anterior à possível sugestão desse imbri-
car entre a mulher e a barata: “Ela era arruivada. E toda cheia de cílios. Os cílios seri-
am talvez as múltiplas pernas. Os fios de antena estavam agora quietos, fiapos secos e
empoeirados” (1998: 56, grifos nossos).
As lâmpadas, também presentes na estrutura técnica de Perto do coração selva-
gem, retornam no texto de G.H. com a intenção de reafirmar a sua presença de artifi-
cialidade. Por isso, a protagonista, ao se aprofundar no extenuante exercício medita-
1
Conforme Mattelart (1994: 15), o telégrado ótico ou aéreo, também chamado de manual,
surgiu no final do século XVIII, na França, inventado por Claude Chappe para fins mili-
tares. O termo telégrafo surge apenas no início do século XX.
407
tivo, prefere vê-las apagadas: “Em casas as luzes se apagam para que se ouçam mais
nítidos os grilos, e para que os gafanhotos andem sobre as folhas quase sem se toca-
rem, as folhas, as folhas – na noite a ansiedade suave se transmite através do oco do
ar, o vazio é um meio de transporte” (1998: 114). Em outra composição, na parte final
de seu relato, G.H. esboça um diálogo para ninguém, espécie de acerto de contas com
um passado desafortunado que vem à tona ao fim de seu itinerário, um caminho de
auto-inspeção onde se cruzam fios elétricos (aqueles que deram forma à barata-GH)
a tomadas de luz. Por uma via oblíqua, lemos nessa segunda referência à técnica uma
forma indireta de se reportar à luminosidade. A personagem-narradora condensa
portanto duas imagens a respeito da técnica que já foram mencionadas em outras
construções:
– Ah, lembrei-me de ti, que és o mais antigo na minha memória. Re-
vejo-te unido a fios elétricos para consertar a tomada de luz, cuidan-
do do pólo positivo e negativo, e tratando as coisas com delicadeza.
Eu não sabia que aprendi tanto contigo. Que aprendi contigo? A-
prendi a olhar uma pessoa trançando fios elétricos. Aprendi a ver-te
uma vez consertar uma cadeira quebrada. Tua energia física era a tua
energia mais delicada (A paixão segundo G.H., 1998: 155).
O fragmento, aparentemente deslocado dos interesses temáticos claricianos,
encaixa-se na nossa inspeção e legitima nossa busca por elementos improváveis em
um texto cujo enfoque recai sobre a pesquisa epifânica
1
. A investigação sobre o plano
metafórico, no que toca às sugestões de luminescências claricianas, não é a nossa
1
Essa interpretação divulga-se sobretudo a partir da obra A escritura de Clarice Lispector, de
Olga de Sá. A crítica sustenta o recurso ao procedimento epifânico no texto de Clarice
desde o romance de estréia – Perto do coração selvagem. Em artigo intitulado “Epifania de
Clarice”, publicado na revista Remate de males, Luciana Stegagno-Picchio ressalta o uso
do termo em questão nos ensaios sobre o texto de Clarice: “Toda crítica de apreender no
seu todo, na sua amplitude e profundidade, o significado da obra de Clarice Lispector,
tem desembocado, nestes anos, no termo-conceito de epifania. Epifania imaginativamen-
te, como revelação através da escritura de algo essencial que inesperadamente se fixa e se
torna torna visível. Epifania criticamente, terminologicamente, como aparição instantâ-
nea e transfiguradora, com explícita alusão à estética joyceana. Mais epifania, também,
metaforicamente, como advento nas letras brasileiras, tão viçosas de ambientes e de fol-
clore, tão marcadas pelo sol e pelo trópico, de uma escritura mais esquiva e discreta. Fe-
minina e lunar, como em nossos universos lingüísticos a lua está para o sol, a noite para
o dia, esta escritura nos ofusca com sua fria fosforescência epifânica, idéias vaga-lumes,
imagens vaga-lume que se acendem inesperadamente na escuridão profunda de um perí-
odo todo voluntariamente, fatigosamente, denotativo” (1989: 17).
408
proposta. Sobre essas iluminações, preferimos pensá-las em conformidade com um
mundo tecnicamente transformado, tal como faz Hannah Arendt.
Kristeva, assim como mencionamos no terceiro capítulo desse trabalho, em-
prega noções do pensamento arendtiano para expor relações acerca do perdão as
quais nos auxiliaram na composição de um corpo político no cruzamento com o tema
de fundo religioso e o imperativo técnico. No entanto, no volume dedicado a Hannah
Arendt, a psicanalista não centra a sua análise na importante contribuição de Arendt
para se pensar a técnica. Em Contra a depressão nacional, Kristeva expõe a necessidade
de que as mulheres pensem, reflitam sobre a técnica. Nesse sentido, a trilogia do gê-
nio feminino (Klein, Arendt, Colette) incita a essa busca por elementos técnicos, ain-
da que na obra dedicada à filósofa Kristeva não exponha fragmentos diretamente re-
lacionados a esse intento. Apesar dessa lacuna, a teórica nos oferece pistas que nos
levam a procurar por indícios da técnica em A condição humana. Esse livro, publicado
no ano de 1958, situa-se, portanto, entre os dois livros de Clarice Lispector que esco-
lhemos para analisar: Perto do coração selvagem (1943) e A paixão segundo G.H. (1964). A
leitura que Kristeva faz de Arendt conduz-nos a uma pensadora contemporânea de
Clarice. É possível que a romancista sequer tenha tido acesso a alguma obra de A-
rendt. Na pesquisa de Ricardo Iannace chamada A leitora Clarice Lispector, Arendt não
consta nas leituras claricianas. Esse também não é o nosso ponto, pois o surpreenden-
te para a nossa investigação está no prólogo de A condição humana. Na abertura desse
livro, Arendt revela a sua motivação para a escrita dessa obra, a qual pode ser com-
parada ao sentimento de estranhamento despertado por meio dos personagens de
Clarice, que, em situação de intensa introspecção, ou seja, pouco propícia a interfe-
rências de um mundo tocado pelas mudanças tecnológicas, vêem-se, no entanto, en-
volvidos com tais transformações. Vejamos a forma como Arendt expressa a sua per-
plexidade diante do primeiro satélite artificial lançado ao espaço, o Sputinik:
Em 1957, um objeto terrestre, feito pela mão do homem foi lançado
ao universo, onde durante algumas semanas girou em torno da Terra
segundo as mesmas leis de gravitação que governam o movimento
dos corpos celestes – o Sol, a Lua e as estrelas. É verdade que o saté-
lite artificial não era nem a lua nem estrela; não era um corpo celeste
que pudesse prosseguir em sua órbita circular por um período de
tempo que para nós, mortais limitados ao tempo da Terra, durasse
uma eternidade. Ainda assim, pôde permanecer nos céus durante al-
409
gum tempo; e lá ficou, movendo-se no convívio dos astros como se
estes o houvessem provisoriamente admitido em sua sublime com-
panhia (A condição humana, 2007: 9)
O conteúdo de A condição humana passa, pois, por esse evento tecnológico. É a
partir desse gesto pautado sobre a capacidade de fabricar um artefato que a filósofa,
em seu prólogo, expõe a sua proposta, considerada ironicamente por ela como “mui-
to simples”, a saber: “trata-se apenas de refletir sobre o que estamos fazendo” (2007:
13). Decorre disso a expressão vita activa e o desdobramento de três atividades hu-
manas fundamentais segundo a autora. O labor é uma delas e relaciona-se ao proces-
so biológico do corpo humano. O trabalho é uma segunda atividade e, na contramão
da biologia, diz respeito ao “artificialismo da existência humana”. Quanto à ação, es-
sa terceira construção destacada por Arendt é “única atividade que se exerce entre os
homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana
da pluralidade, ao fato de que os homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam
o mundo” (2007: 15). Arendt faz questão de acentuar o fato de que todas as ativida-
des humanas dependem da noção de conjunto, de comunidade. Nesse sentido, a ação
não pode ser imaginada fora da sociedade dos homens, o que é diferente, por exem-
plo, do que acontece com o labor, pois, segundo Arendt, a fabricação de algo não ne-
cessita da presença de outros. A filósofa observa na ação a condição da nossa huma-
nidade: “Só a ação é prerrogativa exclusiva do homem; nem um animal nem um
deus é capaz de ação, e só a ação depende inteiramente da constante presença dos
outros” (2007: 31). A liberdade contida nos possíveis caminhos das ações humanas
leva a autora a refletir sobre a ação no âmbito das transformações da técnica, pois tais
mudanças decorrem expressivamente da influência desses gestos em conjunto para
alterar a vida comunitária. Cumpre destacar que a liberdade, para a filósofa, reside
justamente na limitação humana, ou seja, “não se pode contar consigo mesmo nem
ter fé absoluta em si próprio (e as duas coisas são uma só)” (2007: 256). Por isso, a
importância do laço, semelhante a que apreendemos na produção ficcional de Kriste-
va, tal como desenvolvemos na análise de O velho e os lobos, pode ser deslocada para a
proposta arendtiana. Para a pensadora, a incerteza em relação ao porvir, isto é, o nos-
so desconhecimento em face ao futuro e as interferências imprevisíveis advindas das
410
histórias de vida dos outros que cruzam o nosso caminho, nos retira de uma condi-
ção de domínio sobre os acontecimentos e nos expõe ao que chama de “alegria” de
convivência “com outros num mundo cuja realidade é assegurada a cada um pela
presença de todos” (2007: 256). Pensar a técnica quando estamos nessa rede de de-
pendência parece o desafio lançado pela filósofa em A condição humana.
Arendt, ao explicitar a discussão sobre a tecnologia, critica a condução desse
tema que é simplesmente o de apontar o serviço ou o desserviço das máquinas para o
homem. O questionamento da pensadora a respeito da recepção das máquinas no
que toca ao seu utilitarismo denuncia a possível perda da liberdade daqueles que de-
las usufruem e vai um pouco além disso, pois Arendt lamenta o fato de termos per-
dido o sentido da nossa condição humana ao nos termos afastado da pergunta cruci-
al: “a questão não é tanto se somos senhores ou escravos de nossas máquinas, mas se
estas ainda servem ao mundo e às coisas do mundo ou se, pelo contrário, elas e seus
processos automáticos passaram a dominar e até mesmo a destruir o mundo e as coi-
sas” (2007: 164). Arendt, na retomada à história da filosofia, nos dá o sentido antigo
da vida ativa, qual seja, o da contemplação. A técnica, por sua vez, apaga o espaço
desse exercício nobre para o ser humano. Não é por extravagância que a autora fecha
essa obra com um pensamento de Catão: ‘“Nunca ele está mais ativo do que quando
nada faz, nunca está menos só que quando a sós consigo está”’ (2007: 338). Ela busca
em textos de Platão e de Aristóteles a origem da contemplação e chega ao termo
thaumazein, definido como “o choque da admiração, do espanto ante o milagre do
Ser, é o começo de toda filosofia” (2007: 315). Arendt observa um ponto de encontro
entre o pensamento de Platão e de Aristóteles, a despeito das divergências desses
dois filósofos centrais, no que se refere a esse sentimento de espanto. Trata-se, pois,
da impossibilidade de dizê-lo, por isso o entusiasmo decorrente da filosofia leva à
mudez e, por conseguinte, ao estado contemplativo. Segundo a filósofa, o termo theo-
ria é uma outra palavra para expressão do thaumazein, esse estado que é começo da fi-
losofia. Arendt flagra o apagamento da atividade de pensar (estado contemplativo),
que não é exclusiva dos filósofos, mas que tem neles importantes representantes de
uma vida contemplativa de influência sobre a comunidade. A pensadora observa um
deslocamento da ação para o campo da ciência, uma vez que os cientistas “amplia-
411
ram a esfera dos negócios humanos ao ponto de extinguir a consagrada linha divisó-
ria e protetora entre a natureza e o mundo humano” (2007: 337). Arendt não deixa de
considerar essa mudança com a expressão “uma ponta de ironia”, pois é no mínimo
curioso que “aqueles que a opinião persistentemente considerou com os menos práti-
cos e menos políticos membros da sociedade se tenham demonstrado os únicos a a-
inda saber agir, e agir em concerto” (2007: 337). Isso se deve, conforme a autora de-
senvolve em seu último capítulo sobre as características da era moderna, à necessi-
dade de “instrumentalizacão” do mundo, a qual se sustenta em um processo históri-
co de “confiança nas ferramentas” e na “produtividade do fazedor de objetos” (2007:
318).
Na abertura do último capítulo de A condição humana, Arendt já lança a hipó-
tese de que a técnica implica nossas ações. Ela cita três eventos formadores da era
moderna, quais sejam, a descoberta da América e a conseqüente exploração da Terra;
a Reforma e decorrente dela o acúmulo de riquezas e, por fim, a invenção do telescó-
pio. Envolveram-se nessas mudanças Martinho Lutero, Galileu Galilei e grandes na-
vegadores, exploradores de terras desconhecidas, isto é, aventureiros. Arendt supõe
que, à época desses eventos, o menos notado, na ampla esfera social, deve ter sido a
invenção do telescópio: “inútil a não ser para olhar as estrelas, embora fosse o pri-
meiro instrumento puramente científico a ser concebido” (2007: 261). Em outra pas-
sagem, ela volta para o suposto descaso em relação a esse instrumento técnico: “Com
a exceção de um grupo de homens eruditos, numericamente pequeno e politicamente
inconseqüente – astrônomos, filósofos e teólogos – ninguém sentiu alvoroço ante a
invenção do telescópio” (2007: 270). Para Arendt, o telescópio foi o evento de maior
importância entre os três apontados na constituição da modernidade, pois foi o que,
a médio prazo, produziu um encurtamento de distâncias até então inalcançáveis para
a nossa percepção, levando aproximações entre o homem e a cobiça de seu olhar, dito
de outra forma, à acessibilidade dessas distâncias, conseqüentemente à sensação de
um domínio do espaço. No entanto, a jornalista-pensadora reconhece a primazia da
vida contemplativa na investigação do mundo, pois, como ela expõe: “os filósofos
não precisavam de um telescópio para afirmar que, ao contrário de toda a experiên-
cia dos sentidos, não era o sol que se movia em torno da Terra, mas a Terra que gira-
412
va em torno do Sol” (2007: 271). A especulação filosófica de Giordano Bruno, entre-
tanto, não foi suficiente para mudar o pensamento, pois, conforme defende a pensa-
dora, não constituiu um “evento”. O evento está portanto relacionado à capacidade
de produzir algo artificial, e isso leva à legitimação da idéia:
Não foi a razão, mas um instrumento feito pela mão do homem – o
telescópio – que realmente mudou a concepção física do mundo; o
que os levou ao novo conhecimento não foi a contemplação, nem a
observação, nem a especulação, mas a entrada em cena do homo fa-
ber, da atividade de fazer e de fabricar (A condição da vida, 2007: 286-
287).
Nem mesmo o ensimesmamento característico do texto clariciano, cujo ápice
está em A paixão segundo GH, foge à materialização promovida pelo homo faber. A pro-
tagonista, apesar de encerrada no quarto da empregada, não se evade dos ecos dos
eventos promovidos pela técnica. Depois desses apontamentos construídos habil-
mente por Hannah Arendt, diminui o nosso estranhamento diante do interesse clari-
ciano pela retratação, ainda que sutil, de elementos provenientes do âmbito da técni-
ca. A forma de encurtamento espacial, semelhante ao recurso inaugural dos telescó-
pios, manifesta-se para G.H sob a forma do microscópio:
Não, em tudo isso eu não estivera enlouquecida ou fora de mim. Tra-
tava-se apenas de uma meditação visual. (...) O menos perigoso na
meditação é, na meditação, “ver”, o que prescinde de palavras de
pensamento. Sei que existe agora um microscópio eletrônico que a-
presenta a imagem de um objeto cento e sessenta mil vezes maior do
que o seu tamanho natural – mas não chamarei de alucinatória a vi-
são que se tem através desse microscópio, mesmo que não se reco-
nheça mais o pequeno objeto que ele monstruosamente engrandeceu.
Se eu me enganei na minha meditação visual?
Absolutamente provável. Mas também nas minhas visões puramente
óticas, de uma cadeira ou de um jarro, sou vítima de erro: meu tes-
temunho visual de um jarro ou de uma cadeira é falho em vários
pontos. O erro é um dos meus modos fatais de trabalho (A paixão se-
gundo G.H., 1998: 112, grifos nossos).
A dúvida de G.H. decorrente desse instrumento fabricado pelo homem – o
microscópio – reproduz a dúvida de Descartes. A descrição estética da protagonista
clariciana esbarra no mesmo impasse experienciado por Descartes ao deparar com o
evento telescópio e com o impacto das descobertas de Galileu. Segundo Arendt, que
413
contextualiza o pensamento de Descartes, a dúvida cartesiana, “em seu significado
radical e universal, foi inicialmente a reação a uma nova realidade, realidade esta não
menos real pelo fato de se ter restringido, durante séculos, ao círculo limitado e poli-
ticamente insignificante dos doutos e eruditos” (2007: 286). Existem dois pesadelos,
originados pela técnica que estão no centro do pensamento cartesiano. O primeiro
deles, resume Arendt, está na desconfiança dos nossos sentidos: “se já não podemos
confiar nos sentidos, nem no senso comum, nem na razão, então é possível que tudo
o que julgamos ser realidade não passe de um sonho” (2007: 289). O segundo mal-
estar está na possibilidade da existência de um deus enganador, fato que, para A-
rendt, liga-se à “condição humana geral” (2007: 289). Não desdobraremos os efeitos
da dúvida cartesiana para o pensamento ocidental que seguem na interpretação da
filósofa, pois o que nos interessa está na superfície: trata-se apenas desse espanto di-
ante de um instrumento produzido pela mão do homem o qual leva surpreendente-
mente ao questionamento de um legado filosófico. No exemplo de G.H., o choque
desencadeado por um elemento da técnica envolve uma sugestiva alusão às Medita-
ções de Descartes. Por isso, marcamos no texto supracitado o uso repetido que o nar-
rador clariciano faz da palavra meditação, uma forma de relacioná-la à dúvida carte-
siana sem o mesmo peso histórico que foi para o filósofo o assombro do telescópio
para o campo visual daquele período. A recepção de G.H. guarda algo desse estra-
nhamento cartesiano, mas seria um tanto inverossímil que uma personagem como
G.H., constituída de traços típicos de uma mulher inserida em um universo muito
próximo do de Alba Ram ou de Gloria Harrison, mas ainda não suficientemente glo-
balizado, ou seja, participante de um mundo tecnificado, caísse em estado de perple-
xidade desconcertante frente a um artefato que remonta a uma outra etapa da huma-
nidade. Entretanto, deve-se atenuar o julgamento das reações dessa protagonista, já
que ela se encontra numa condição um tanto distanciada da sua existência marcada-
mente fútil, a qual antecede seu movimento para o interior de um espaço exíguo – o
quarto da empregada.
Percebe-se que o narrador clariciano se vale de um microscópio para manifes-
tar a dúvida da protagonista. Nessa escolha está o exercício de ampliação da capaci-
dade de enxergar o que seria invisível a olho nu. Trata-se de uma opção que contras-
414
ta com o telescópio, pois esse instrumento permite estender a capacidade de perceber
e para tanto diminui as distâncias entre o objeto observado e o observador no intuito
de oferecer à vista o que é distante. O ponto de encontro desses dois instrumentos, no
entanto, ancora-se na viabilidade de apreender o invisível, no desafio de enxergar o
que até então não passava de especulação da vida contemplativa. O narrador clarici-
ano é fruto do advento da dúvida cartesiana e como forma de ultrapassá-la tenta i-
dentificar-se com a técnica. Em outro momento da narrativa, a imagem do radar, esse
dispositivo que permite detectar objetos a longas distâncias, é o instrumento da téc-
nica escolhido por G.H. para metaforizar seu estado de espanto diante de um mundo
em que a fabricação do homem intervém sobre seu modo de vida: “O mundo só não
me amedrontaria se eu passasse a ser o mundo. Se eu for o mundo, não terei medo.
Se a gente é o mundo, a gente é movida por um delicado radar que guia” (1998: 91).
Esse vínculo indissolúvel com a técnica explicita-se em A hora da estrela, publi-
cado em 1977, pois, em determinado momento dessa narrativa pungente, é dito de
Macabéa que ela age como se estivesse teleguiada. Segundo o personagem-narrador
Rodrigo S.M., Macabéa atravessa a violência da sociedade hipertecnificada (podemos
chamá-la de dromocrática também) sem ter consciência de sua condição miserável:
“Nem se dava conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso
dispensável” (1999: 29). No entanto, podemos flagrá-la em movimentos sofisticados
de uma existência muito especial, apesar de sua pobreza e desleixo evidentes. É o
próprio narrador quem nos conduz a esse contra-argumento: “Embora não tivesse re-
lógio, ou por isso mesmo, gozava o grande tempo. Era supersônica de vida” (1999:
63). Esse trecho alude à relação entre a mulher e o tempo que se encontra no romance
de estréia de Clarice. Joana e Macabéa, portanto, lutam contra essa marcação do tem-
po, pois ela indica um escoamento do tempo biológico dessas personagens cheias de
uma “alegria” de viver. Um outro exemplo de como Macabéa foge ao estereótipo da
nordestina simplória desenhado propositalmente pelo narrador está na descrição de
uma situação em que eclode o gosto dessa personagem. Surpreendentemente, ela fica
fascinada pelos traços de Greta Garbo. Uma reação semelhante à imagem de Greta
Garbo levou Roland Barthes a escrever uma crônica sobre a atriz, de modo a imorta-
lizá-la como um ícone do cinema hollywoodiano que fugia, em parte, dos padrões esté-
415
ticos mais disseminados de beleza daquela época
1
. Pois Macabéa também tem o olho
treinado para perceber nuanças delicadas: “se concentrava com retrato de Greta Gar-
bo quando moça. Para minha surpresa, pois eu não imaginava Macabéa capaz de
sentir o que diz um rosto como esse. Greta Garbo, pensava ela sem se explicar, essa
mulher deve ser a mulher mais importante do mundo” (1999: 64). Entretanto, o papel
de Rodrigo S.M. é o de desfazer quaisquer laivos de refinamento de sua protagonista,
pois logo em seguida ele a enquadra no gosto padrão que será tema da fina ironia de
Andy Warhol ao expor a massificação advinda de personagens da cultura pop por
meio de várias reproduções dos rostos de personalidades midiáticas os quais são
dispostos em faixas horizontais e verticais, em seqüências iguais, com a finalidade de
chamar a atenção para a imposição de um gosto produzido sobretudo pela técnica no
que ela tem imagético e mercadológico: “Mas o que ela queria, como eu já disse, era
parecer com Marylin. Um dia, em raro momento de confissão, disse a Glória quem
ela gostaria de ser” (1999: 64).
Uma breve nota sobre outra publicação que foge momentaneamente da nossa
inspeção centrada em A paixão segundo G.H., mas que merece um destaque, localiza-
se em Um sopro de vida, livro de 1978. Nessa obra, publicada postumamente, na qual
Clarice constrói a personagem Ângela Pralini como forma de dialogar consigo mes-
ma, encontramos o desdobramento da dúvida cartesiana já indicada pela conduta de
perplexidade de G.H. em face da técnica. Trata-se do mesmo estranhamento vivido
pela escultora que se espanta ao evocar a desmitificação do olhar proporcionado pelo
advento do microscópio:
O objeto – a coisa – sempre me fascinou e de algum modo me destru-
iu. No meu livro A Cidade Sitiada eu falo indiretamente no mistério
da coisa. Coisa é bicho especializado e imobilizado. Há anos também
descrevi um guarda-roupa. Depois veio a descrição de um imemorá-
vel relógio chamado Sveglia: relógio eletrônico que me assombrou e as-
sombraria qualquer pessoa viva no mundo. Depois veio a vez do tele-
fone. No “Ovo e a Galinha” falo do guindaste. É uma aproximação tí-
mida minha da subversão do mundo vivo e do mundo morto amea-
çador (Um sopro de vida, 1999: 104-105).
1
Destacamos um fragmento da crônica de Barthes sobre essa atriz no nosso terceiro capítu-
lo.
416
Existem várias referências acerca de utensílios produzidos pelo homo faber em
Um sopro de vida que abririam espaço para a confecção de um outro trabalho centrado
somente na análise dessa obra e os reflexos da técnica sobre as demais obras claricia-
nas. Não é a nossa proposta, pois optamos pelo estudo cronológico de três obras cla-
ricinas em que é possível constatar o crescimento desses aparatos sobre o corpo dos
personagens. No entanto, essa obra é crucial, sobretudo o trecho por nós recortado,
porque sinaliza para um projeto temático da escritora. Ao dar voz à personagem Ân-
gela Pralini, o narrador, que se confunde com a própria escritora Clarice Lispector,
condensa alguns instrumentos fabricados pelo homem (relógio, guindaste, telefone),
os quais não são novidade no conjunto de textos de Clarice. A nossa pesquisa traba-
lha na direção da coleta desses artefatos, uma espécie de busca pela intimidade com
um meio técnico ainda não explorado nos textos de Clarice, o que não apaga o cará-
ter intimista desses escritos. Percebe-se que a personagem Ângela Pralini promove a
separação entre um mundo vivo e um mundo morto ao contrastar pessoas (suposta-
mente do mundo vivo) a objetos da técnica (presumivelmente do mundo morto). Em
nosso segundo capítulo, destacamos a necessidade do narrador clariciano de animar
o inanimado. O guarda-roupa, através do recurso da catacrese, é um exemplo de co-
mo funciona essa estratégia de vivificação no universo ficcional da escritora. As coi-
sas ganham vida, um movimento, um corpo. Nessa medida, a divisão de Ângela Pra-
lini entre o vivo e o não-vivo contradiria o gesto clariciano de oferecer elementos de
humanidade (corporalidade) ao que é do âmbito da técnica. No entanto, ao lermos
atentamente a passagem em que a personagem lança essa diferença, vemos que ela a
desfaz ao justapor ao mundo morto o adjetivo “ameaçador”. Possivelmente, trata-se
de uma estratégia clariciana para esvaziar o desmandos da técnica, ou seja, a autora
julga ameaçador não as implicações decorrentes dos instrumentos, mas sim a rever-
são produzida pela sua criação de vida naquilo que estaria fadado ao automatismo.
Os telefones participam do universo ficcional clariciano, pois essa forma de comuni-
cação está presente tanto no discurso fragmentário de Ângela Pralini quanto na nar-
rativa intimista de G.H.:
Eu havia desligado o telefone, mas poderiam talvez tocar a campai-
nha da porta, e eu estaria livre! A blusa! A blusa que eu tinha com-
prado, eles haviam dito que a mandariam, e então tocariam a campa-
417
inha!
Não, não tocariam. Eu seria obrigada a continuar a reconhecer. E re-
conheceria na barata o insosso da vez em que eu estivera grávida (A
paixão segundo G.H., 1998: 91).
No itinerário agônico de G.H., o telefone funciona como um instrumento de
ruptura, de desvio na sua trajetória cujo fim é a auto-inspeção rumo à liberdade. Não
essa falsa liberdade que pode ser a desistência de uma verdadeira “liberdade” em
função de uma interrupção motivada pela campainha ou pelo som do telefone. De-
corre daí um retorno à vida contemplativa, tal como faz Hannah Arendt em A condi-
ção humana ao retomá-la historicamente e com esse gesto nos mostrar o quanto os fi-
lósofos antigos foram capazes de agir e de pensar sem a profusão dos elementos téc-
nicos. Nessa passagem de A paixão segundo G.H., o telefone simboliza uma interrup-
ção que produziria na protagonista o fracasso de seu intento meditativo. Nesse senti-
do, a técnica é refutada em favor de uma atmosfera silenciosa, ou seja, somente sem a
instrumentalização a protagonista alcança o caminho necessário para a sua almejada
libertação. Portanto, o narrador clariciano produz uma outra forma de pensar a vida
ativa. No exemplo do telefone, a ausência do artefato leva ao estranhamento que
conduz à liberdade de poder agir. Trata-se, portanto, de um procedimento que colide
com a importância do evento produzido pelo homo faber para a transformação do
mundo mediada pela sensação de estranhamento encontrada no cartesianismo. Cla-
rice expõe essas duas faces da vida humana desenvolvidas também por Arendt. No
final de seu relato, G.H. faz outra referência ao telefone:
Falta uma coisa a contar. Mas há alguma coisa que será indispensá-
vel dizer.
(De uma coisa eu sei: se chegar ao fim deste relato, irei, não amanhã,
mas hoje mesmo, comer e dançar no “Top-Bambino”, estou precisan-
do danadamente me divertir e me divergir. Usarei, sim, o vestido
azul novo, que me emagrece um pouco e me dá cores, telefonarei pa-
ra Carlos, Josefina, Antônio, não me lembro bem em qual dos dois
percebi que me queria ou ambos me queriam, comerei “crevettes ao
não importa o quê”, e sei porque comerei crevettes, hoje de noite, ho-
je de noite vai ser a minha vida diária retomada, a de minha alegria
comum, precisarei para o resto dos meus dias de minha leve vulga-
ridade doce e bem-humorada, preciso esquecer, como todo o mundo)
(A paixão segundo G.H., 1998: 162).
418
No ápice de seu relato, a protagonista produz uma ruptura para mostrar quão
angustiante é a sua trajetória meditativa. Somente após terminá-la é que ela irá pro-
curar os amigos e ter uma vida que ela chama vulgar. O meio de procurá-los é atra-
vés de um recurso técnico: o telefone. Mas por enquanto ela se encerra em estado
contemplativo cujas ações microscópicas rechaçam quaisquer interrupções artificiais.
Os parênteses, em contrapartida, produzem uma espécie de quebra da ordem da a-
ção do homo faber. Como se G.H. não tivesse desligado o telefone, é assim que inter-
pretamos essa digressão da personagem-narradora, da qual ela escapa de uma insu-
portável revelação. Nesse caso, a técnica desempenha a função de um recurso narra-
tivo a produzir simultaneamente suspense e desafogo em seus interlocutores. Em ou-
tro momento, a alusão indireta à técnica, no exemplo da doença ainda sem cura, é
exposta cruamente pela protagonista:
Nós somos muito atrasados, e não temos idéia de como aproveitar
Deus numa intertroca – como se ainda não tivéssemos descoberto
que o leite se bebe. Daí a alguns séculos ou daí a alguns minutos tal-
vez digamos espantados: e dizer que Deus sempre esteve! quem es-
teve pouco fui eu – assim como diríamos do petróleo de que a gente
finalmente precisou a ponto de saber como tirá-lo da terra, assim
como um dia lamentaremos os que morreram de câncer (A paixão se-
gundo G.H., 1998: 151).
Veremos a seguir como o tema de Clarice é sobretudo o da morte a partir da
análise de algumas mortes produzidas pela técnica e de sua recorrência na obra Água
viva. A passagem acima expõe a revolta da narradora clariciana em face da morte,
pois antes desse fragmento há uma frase que pode ser lida como a descrença de G.H.:
“Ele nos usa, e não impede que a gente faça uso Dele” (1998: 151). Existe, na parte fi-
nal da citação supracitada, o retorno de um tempo, tal como o tempo dos relógios ob-
servados pela personagem Joana, que desperta no discurso de G.H. uma expressiva
parcela de indignação manifesta por meio de uma ironia fina. O lamento aos que
morrem de câncer implica um tempo em desalinho com a técnica disponível. Se Deus
é onipresente, conforme o discurso de G.H., Ele nos fez atrasados. Segue-se daí que
Ele nos está preocupado com o nosso bem-estar e também não dispõe da onipotência
que Lhe é atribuída. Para G.H., isso é visto como infortúnio, pois ela, como várias
(talvez todas) as personagens claricianas, recusa a idéia da morte. Por isso, ela luta
419
contra o fortuito presente nas formas de morrer. Ao imaginar que futuramente não se
irá morrer de doenças que à época da narração de G.H. são fatais, a personagem nos
leva a pensar na duração da vida tendo como parâmetro os avanços da técnica. Isso
oferece um sentido utilitário à nossa condição mortal, que é questionado também por
Hannah Arendt. Da mesma forma que a jornalista-pensadora nos faz ver que o pen-
samento se desencadeia pelo advento da técnica a partir de Descartes, Arendt tam-
bém nos leva a questionar a primazia da técnica sobre a condução das nossas vidas,
pois antes da profusão dos artefatos vivia-se sem o peso desse utilitarismo. A perso-
nagem G.H. vive o dilema de uma vida que é construída em função da expectativa
de progresso biotecnológico. G.H. está na mesma linha de negação da morte que se
evidencia no discurso objetivo de Ângela Pralini, em Um sopro de vida, no qual a per-
sonagem maldiz a inevitável mortalidade que nos constitui: “Deve haver um modo
de não se morrer, só que eu ainda não descobri. Pelo menos não morrer em vida: só
morrer depois da morte” (1999: 156). Ao refletirem sobre a morte, negando-a, as per-
sonagens de Clarice fazem o sugerido por Kristeva, ou seja, esses seres ficcionais
morrem várias vezes em vida promovendo escansões do tempo (o fora do tempo,
Zeitlos freudiano) como meio de preparação para morte final e, por conseguinte, para
a aceitação da finitude. Está em jogo, nessa medida, nesse exercício de preparação
para a morte, o critério de um tempo a ser usufruído na duração da vida, pois esta é a
única experiência para a manifestação da subjetividade da qual dispomos. Ao relem-
brar um episódio de seu passado, G.H. fala de um homem que era “delicado com as
coisas e com o tempo” (1998: 156). Curiosamente, esse personagem secundário, que
só aparece na memória da protagonista, tem o papel crucial de entrelaçar o peso de
uma existência revestida obviamente de um corpo destinado a morrer à aparente fri-
volidade do cotidiano caracterizado, no segmento a seguir, por meio de uma metáfo-
ra proveniente da técnica – os fios:
- Ah, lembrei-me de ti, que és o mais antigo na minha memória. Re-
vejo-te unido a fios elétricos para consertar a tomada de luz, cuidan-
do do pólo positivo e negativo, e tratando as coisas com delicadeza.
Eu não sabia que aprendi tanto contigo. Que aprendi contigo? A-
prendi a olhar uma pessoa trançando fios elétricos. Aprendi a ver-te
uma vez consertar uma cadeira quebrada. Tua energia física era a tua
energia mais delicada.
420
- Tu eras a pessoa mais antiga que eu jamais conheci. Eras a monoto-
nia de meu amor eterno, e eu não sabia. (...) E minha libertação len-
tamente entediada, a fartura do corpo que não pede e não precisa (A
paixão segundo G.H
421
que ‘não humano’ é uma grande realidade, e que isso não significa ‘desumano’, pelo
contrário: o não humano é o centro irradiante de uma amor neutro em ondas hertzi-
anas” (1998: 171). Não podemos retirar do humano e, por conseguinte do corpo, na
sua composição sexualidade/pensamento, a influência da técnica. Vimos, com base
no pensamento de Kristeva, uma crítica dos abusos da técnica, que o social está im-
bricado ao meio técnico constituindo-nos e por isso deve ser pensado e não somente
rechaçado pura e simplesmente. Embora exista um abuso na atualidade dos cami-
nhos da técnica, essas autoras resgatam uma relação possível com os artefatos sem
que o gosto pela condição humana, em outras palavras, a alegria de viver e a liber-
dade das ações, seja apagada em benefício da instrumentalização. O sentido do gos-
to, nessa medida, é a escolha clariciana para a afirmação de seu “estar vivo” ou de
sua condição enviesadamente “inumana”. Trata-se, pela forma oblíqua do narrador
clariciano, de um gosto do nada: “Mas eu sei – eu sei – que há uma experiência de
glória na qual a vida tem o puríssimo gosto do nada, e que em glória eu a sinto vazi-
a” (1998: 173). G.H., essa personagem desprovida de fé, confere espessura ao sentido
fugaz da gustação. Kristeva, na expressão de seu ateísmo, mostra-nos um fundamen-
tal vínculo com o paladar. A carta a Catherine Clément, na qual a teórica revela as
bases de seu ateísmo; o interesse pela madeleine, que serve de abertura para uma série
de análise dos textos proustianos em O tempo sensível e a construção da personagem
Stéphanie Delacour, cujo paladar é o sentido mais evidente, constituem algumas
marcas desse sentido no pensamento de Kristeva. G.H., na tentativa de promover
uma espessura ao gosto do nada, realiza o mesmo movimento gustativo e revoltado
(no sentido arcaico da oralidade) das mulheres atéias: “Quando se realiza o viver,
pergunta-se: mas era só isto? E a resposta é: não é só isto, é exatamente isto” (1998:
173). Observa-se que nessa passagem Clarice realiza o mesmo gesto nobre e irônico
de Kristeva, ou seja, perdoa a nossa finitude. Carregada de indulgência, a protagonis-
ta de A paixão segundo G.H. promove uma revalorização da vida humana a qual será
ainda mais acentuada em Água viva, pois se trata de um texto em que o imperativo
da técnica tende a diluir a nossa condição humana em uma série de luminescências
artificiais.
422
Na nossa dissertação de Mestrado, Revolução poética em Água viva, na retomada
de algumas críticas fundamentais dessa obra, percebemos a divulgação de um tom
fragmentário em Água viva, o qual não é relacionado ao meio em vertiginosa trans-
formação supostamente experienciado pela escritora no início da década de 70
1
.
A reportagem de Léo Gilson Ribeiro, na Revista Veja, por ocasião da publica-
ção do livro, sublinha o caráter egóico da narrativa. Intitulada “Auto-inspeção”, não
há nesta matéria qualquer referência que aluda à perspicácia da narradora-pintora,
uma personagem cuja sagacidade flagra momentos para além do solipsismo de sua
subjetividade supostamente narcísica. O crítico realça antes o desmantelamento da
estrutura narrativa para, em seguida, isolar a protagonista em meditações amorosas:
“Não há enredo, nem personagens, nem transição cronológica entre passado e o pre-
sente. Rudimentarmente, trata-se de um monólogo? Ou de uma carta? De qualquer
maneira, de uma auto-inspeção sofrida, lúcida e despojada, em que uma mulher se
dirige a um homem que a amou” (1973: 113).
Nessa mesma linha situa-se o trabalho “Anotações sobre ‘Água Viva’” – I, de
Elias José, no qual a obra em questão reaparece como expressão máxima do exercício
literário, ou seja, trata-se da liberdade de escrever apenas o instante vivido, eximindo
a narrativa de qualquer “compromisso estipulado” (1974: 2). Publicado no ano de
1979, o trabalho de Olga de Sá, A escritura de Clarice Lispector, de forma análoga, acen-
tua o recorte fragmentário: “o improviso que é Água Viva só termina, porque a narra-
dora decide deliberadamente, por ato voluntário, encerrá-lo, isto é, morrer um pou-
co” (2000: 269, grifo nosso). Na introdução do volume Clarice Lispector: a paixão se-
gundo G.H. (1988), Benedito Nunes capta a poeticidade da obra e a classifica como
um improviso musical, de forma a retratar o espaço agônico da linguagem. De acor-
do com Nunes, trata-se da narração de uma história que não pertence a ninguém,
formando-se a partir da alusão a histórias episódicas. No ensaio elucidativo do mes-
mo crítico, “O jogo de identidade”, em O drama da linguagem: uma leitura de Clarice
Lispector (1989), há reavaliação do livro como uma “espécie de meditação apaixona-
1
No artigo “O fio metálico em Água viva”, condensamos algumas dessas críticas que pro-
movem a recepção desse texto clariciano. Reproduziremos, com algumas modificações,
nessa medida, essa versão condensada de alguns autores que se dispuseram a analisar
423
da, feita de lampejos intuitivos” (1995: 168), marcada por “súbitas iluminações”
(1995: 169). A função do improviso é desenvolvida, pois esta não atua apenas como
variação, mas impossibilita a restrição do texto a um único gênero. Para Nádia Battel-
la Gotlib, em “Um fio de voz: histórias de Clarice” (In: Nunes, 1988), existe em Água
viva algo de inovador na produção clariciana que cria “estilhaços em desintegração”.
Analisando as crônicas da ficcionista em relação a esse texto, Gotlib, semelhantemen-
te aos críticos antes mencionados, mantém a noção de segmentação da narrativa
1
. Na
biografia Clarice: uma vida que se conta (1995), a crítica alude a um tênue substrato
de enredo, que, no entanto, a personagem-narradora “não sabe definir bem” (1995:
410). Sobre esse fio que transpassa o livro, Gotlib sugere uma espécie de monólogo
com um interlocutor ausente e salienta a imbricação com as crônicas da escritora. Dos
fragmentos que ilustram a bricolagem da escritora, ela observa alguns pertencentes
ao volume A legião estrangeira, entre eles estão “Os espelhos de Vera Mindlin, “Esbo-
ço de um guarda-roupa” e “A pesca milagrosa”. As referências ao “estado de graça”,
que estão no final de Água viva e remetem diretamente à obra Uma aprendizagem ou o
livro dos prazeres, também participam da colagem evidenciada pela biógrafa. Tal prin-
cípio, no entanto, permanece quantitativamente acentuado na obra, suplantando a
possibilidade de nela haver uma linha condutora que reúna o desconexo, conforme o
recorte crítico que apresentamos sucintamente.
Críticas mais recentes da obra clariciana não se afastam da idéia de fragmenta-
ção difundida por tais autores. A tessitura dissimulada: o social em Clarice Lispector
(1997), de Neiva Pitta Kadotta, por exemplo, tributa à Água viva o caráter de um texto
fragmentário por excelência. Se a autora aponta A hora da estrela como um texto cla-
ramente social, Água viva é visto por ela como uma obra de questionamento, mas Ka-
dotta não desdobra o seu argumento: “Um questionar fragmentário sobre a lingua-
gem, a conduta humana, a transcendência das coisas, os problemas existenciais éticos
e estéticos que nos envolvem na tarefa de viver” (1997: 36). O trabalho de Jeana Laura
essa obra que, no conjunto clariciano, se afigura como a mais enigmática de Clarice.
1
Água Viva apresenta-se basicamente como uma colagem de fragmentos, alguns anteriores
e aqui reaproveitados em novo arranjo, cujas histórias, enxertadas, ganham novo realce:
tal como a história do homem bonito que vê na rua, a dos bichos, a das flores” (Clarice
Lispector: a paixão segundo G.H, 1988: 188).
424
da Cunha Santos, A estética da melancolia em Clarice Lispector (2000), apoiado sobre a fi-
losofia de Walter Benjamin, parece fugir a essa tendência consolidada pela tradição
crítica desse texto clariciano, uma vez que a autora o interpreta como uma espécie de
alegoria do nosso tempo. Em seguida, o seu argumento dissipa-se, em parte, ao afir-
mar que “Água viva é a radicalização da falta de vinculação do texto a um referente
humano” (2000: 130). A sugestão de Edgar Cézar Nolasco (2001) caminha na mesma
direção apontada por Nádia Battella Gotlib, pois o autor recolhe das crônicas da es-
critora trechos que se repetem em Água viva como o exercício aleatório de uma cola-
gem:
os fragmentos na escritura de Água viva: eles não se justapõem bus-
cando uma totalidade porque a escritura continua inacabada, ao con-
trário e melhor, se constituem e significam enquanto fragmento, o que
só reforça o brilho e a razão de ser da escritura que se quer fragmen-
tária e relampejante (borbulhante) o tempo inteiro (Clarice Lispector:
nas entrelinhas da escritura, 2001: 206, grifos nossos).
Maria José Somelarte Barbosa, em Clarice Lispector: Des/fiando as teias da pai-
xão (2001), recusa qualquer interpretação de cunho social no que toca à análise de
Água viva. A autora traz à tona uma série de exemplos nos quais constata, por inter-
médio dos narradores claricianos, múltiplos signos de opressão em nossa sociedade,
os quais são sutilmente denunciados nos textos reconhecidamente intimistas de Cla-
rice Lispector. A própria crítica reconhece a exclusão interpretativa de Água viva e
prefere não analisá-la com profundidade, uma vez que foge a sua área de pesquisa:
“Ainda que, às vezes, eu use Água viva para ilustrar o seu processo de pensamento
poético, não incluo este texto em nenhuma análise específica por não se tratar dire-
tamente da questão dos gêneros” (2001: 18).
Essas referências são importantes porque marcam uma tendência interpretati-
va de Água viva e essa parece ter-se consolidado como algo distante do social. No en-
tanto, relacioná-la apenas a sua musicalidade, ou tomá-la simplesmente à luz de um
relato epifânico (e sua subjacência religiosa), ou ainda como a expressão angustiada
de um narrador em conflito interno, parece contrapor-se ao próprio projeto da escri-
tora. Conforme o depoimento de Clarice, disponível na biografia da escritora com-
posta Nádia Battella Gotlib, observamos que, ao compor Água viva, sua autora chama
425
a atenção para a longa duração de seu exercício literário. Trata-se portanto de uma
prática que extrapola a simples coleta de fragmentos dispersos. Preferimos pensá-la
como a busca da escritora pela expressão de sua subjetividade no âmbito do coletivo,
do social:
Esse livrinho tinha 280 páginas; eu fui cortando – cortando e tortu-
rando – durante três anos. Eu não sabia o que fazer mais. Eu estava
desesperada. Tinha outro nome. Era tudo diferente... (...) era Objeto
gritante, mas não tem função mais. Eu prefiro Água viva, coisa que
borbulha. Na fonte. (...) O Álvaro interrompeu a impressão de vários
livros para pegar Água viva, e nos fins de agosto a obra já estava nas
livrarias (Clarice: Uma vida que se conta, 1995: 410).
Nesse aspecto de elaboração do texto, localizamos o trabalho de Clarice na
mesma corrente da produção de Kristeva. A psicanalista, ao analisar poemas de Lau-
tréamont e Mallarmé, em sua tese de doutorado de 1974, estava em busca de um sen-
tido para aquelas formas poéticas supostamente apartadas da realidade. Mesmo no
nível fônico, a teórica observa a interferência dos textos desses poetas no âmbito so-
cial. Em linhas gerais, eles propuseram uma nova forma de expressão lingüística que
se misturou na sintaxe francesa corrente e produziu efeitos no discurso dos falantes
de língua francesa. No que se refere ao conteúdo dos textos pretensamente desloca-
dos da realidade, Kristeva desmitifica essa ruptura ao enquadrá-los, por exemplo, em
leituras da ordem psicanalítica. Em Sentido e contra-senso da revolta (1996) e A revolta
íntima (1997), não abandona esse projeto manifesto na década de 70 com a publicação
de sua tese, A revolução da linguagem poética. Os livros da década de 1990 não se pau-
tam sobre o interesse por textos vanguardistas, embora muitos deles permaneçam,
pois a disseminação de tais textos os tornou equivocadamente paradigmáticos, isto é,
uma fórmula fácil de acesso ao que seria a arte de vanguarda. O sentido dentro da
suposta falta de sentido, no entanto, permanece no projeto de Kristeva. Em contra-
partida, a falta de sentido evidenciada pela escritora está no apelo a uma transforma-
ção radical fomentada pela técnica. Por isso, a autora volta à análise dos textos de Ro-
land Barthes, pois foi ele que ofereceu o caminho para pensar as imagens em tempos
de mudanças dos costumes a partir de interferências do homo faber. Espaços em bran-
co já não causam mais o estranhamento, o não sentido de “Um lance de dados”, ou
seja, não produzem a perturbação característica do movimento vanguardista de ou-
426
trora e podem ser vistos como uma espécie de paradigma para poetas que se preten-
dem revolucionários. Um exemplo nacional está na produção de romances com con-
teúdo pornográfico produzidos por jovens escritores cujo intertexto percebemos fa-
cilmente. As poucas traduções para o português de Georges Bataille - Minha mãe, A
história do olho, por exemplo – para ficar somente no plano ficcional, pois são os que
nos levam a articular os intertextos, encontram em muitos escritores em desenvolvi-
mento o terreno para a sua criatividade sempre incompreendida, produzindo as ba-
ses para a produção ficcional de muitos autores que se intitulam marginais e, por ex-
tensão, inovadores. É possível que a recepção dos textos de Bataille tenha contribuído
para a padronização dos textos literários confeccionados atualmente. Não se pode re-
futar que no caso de Bataille, por exemplo, houve a escrita de temas-tabu os quais
despertaram e ainda aguçam naturalmente a curiosidade de muitos leitores. Além
disso, Bataille, assim como Artaud, fez de sua própria experiência o tema de muitos
de seus escritos, de modo que experiência e linguagem se confundem em suas pro-
duções textuais. A divulgação das narrativas de Charles Bukowski para a língua por-
tuguesa, outro escritor que circula como fonte de inspiração para os textos contempo-
râneos, difere significativamente dos outros textos mencionados, pois são textos infi-
nitamente inferiores em relação aos outros exemplos, mas causam o mesmo efeito
supostamente contestador e servem de modelo literário. Bukowski, no entanto, es-
creve sobre as misérias de sua vida e, por isso, seu texto apresenta a revelação de um
sujeito em processo de impacto e veracidade da experiência vivida. A repercussão
em série desses autores produz, no entanto, sobre a cena local, narrações revoltadas
(que não têm absolutamente qualquer vínculo com a revolta produzida por Kriste-
va), uma espécie de padronização do gosto situado fora do interesse pelo regionalis-
mo ou por tentativas mercadológicas centradas sobre a culinária, auto-ajuda ou ma-
nuais médicos do viver bem.
O caso francês não nos parece diferente do nosso, pois a procura do sentido
dentro da pretensa falta de sentido da atualidade tem a sua parcela no entrelaçamen-
to do texto à popularização e ao desgaste produzido pelas imagens artificiais (as telas
dos televisores, por exemplo), as quais, em certa medida, com o seu conteúdo empo-
brecedor, definham o imaginário e achatam o senso crítico. O recado subjacente nos
427
textos de Kristeva (Sentido e contra-senso e A revolta íntima) é um pouco diferente do
argumento que lançamos acima, mas acompanha a tentativa infundada de produzir
rupturas sem efetivamente alcançar qualidade artística. O recado da escritora susten-
ta-se nas artes plásticas, pois Kristeva não se deixa fascinar pelo apagamento das
possíveis intertextualidades em benefício de exercícios nos quais imperam abstrações
esvaziadas de historicidade.
Em 1973 é publicado Água viva, um texto que carrega o impacto do experimen-
talismo, mas isso não significa que não possamos, a partir dessa constatação, subme-
tê-lo a uma investigação à procura de um sentido. Kristeva recolhe um sentido, sem-
pre que possível, na arte contemporânea, apesar do fluxo de imagens virtuais que a-
trapalham o acesso a nossos fantasmas. A obra Visões capitais desempenha esse papel
de nos pôr em contato com imagens que se imiscuem na malha imagética dos anún-
cios publicitários e de tantas outras formas de imagens divulgadas pela sociedade do
espetáculo.
Em 1972, conforme a história da televisão brasileira de Sérgio Mattos (2002:
96), surge a televisão colorida no Brasil pela TV Globo, o que contribuiu para a sua
liderança no mercado nacional. Em 1973 (2002: 187), entra no ar, pela Rede Globo, a
primeira telenovela colorida. “O bem amado” iniciou em 24 de janeiro e terminou em
9 de outubro do mesmo ano e foi responsável pela consolidação de um hábito nacio-
nal: o de assistir a esse gênero de programa por volta das 22 horas. Nesse mesmo ano
foi introduzido o merchandising, uma estratégia de publicidade durante a exibição de
um programa para vender produtos sem passar essa intenção. A Globo valeu-se da
novela “Cabo de aço” para a divulgação de mercadorias e a prática dessa publicida-
de indireta. Daí se segue que não apenas as narrativas, destinadas ao entretenimento,
entraram nas casas dos brasileiros, mas também, de forma subliminar, uma rede de
produtos envolta de eficaz estratégia de venda e consolidação de imagens para atrair
inicialmente espectadores ávidos por histórias que os tornariam em seguida divulga-
dores, muitas vezes inconscientes, de um gosto administrado à distância. É nessa at-
mosfera que Clarice lança Água viva, isto é, em um momento no qual a teleimagem
ganha cores e as narrativas de base folhetinesca são interrompidas por intervalos pu-
blicitários dentro e fora da própria diegese. Nessa medida, uma forma viável de in-
428
terpretá-la como portadora de sentido, ainda que escorregadio, está em retomá-la sob
à luz da técnica. Seguiremos portanto algumas referências acerca desse tema, que se
apresentam de forma dispersa no texto e são mediadas pelo interesse cambiante da
personagem-narradora
Água viva forma-se a partir da tentativa de sua narradora em apreender o
tempo; observamos aí a configuração de sua diegese quase imperceptível porque é
extremamente ambiciosa. Trata-se da mesma tentativa iniciada pela protagonista Jo-
ana, de Perto do coração selvagem, que ficava longos momentos a contemplar o passar
das horas, dos minutos e dos segundos diante do relógio. Não há em Água viva a
construção de um nome para a personagem-narradora, por esse motivo alguns críti-
cos a chamam de força protagonal. Essa falta de nome contribui para a despersonali-
zação da personagem, mas não extingue as semelhanças com personagens que a an-
tecedem no conjunto clariciano. A personagem-narradora em questão também se in-
teressa pelo passar do tempo, por isso vê-la envolvida metaforicamente com a ima-
gem maquinal dos relógios evoca as marcas do desafio ao escoamento do tempo rea-
lizado por Joana, para quem a capacidade de sentir extrapolava a marcação dos pon-
teiros. Quanto à força protagonal, ela também se compõe em parte pela identificação
com a técnica, ou seja, há na personagem-narradora a estratégia de G.H., que é a de
se aproximar da técnica misturando-se a ela, para, em movimento inesperado, ques-
tioná-la sem com isso desfazê-la completamente: “Sou um ser concomitante: reúno
em mim o tempo passado, o presente e o futuro, o tempo que lateja no tique-taque
dos relógios” (1974: 23). Em outro momento, a personagem-narradora menciona o re-
lógio como forma de desafiar a sua inevitável mortalidade: “Relógios pararam e o
som de um carrilhão rouco escorre pelo muro. Quero ser enterrada com o relógio no
pulso para que na terra algo possa pulsar o tempo” (1973: 50). Aqui está uma pista
que leva ao possível ateísmo da personagem-narradora. Não apenas em Água viva,
mas em vários textos de Clarice, sobretudo em Um sopro de vida, sobressaem a recusa
de morrer ou a resignação carregada de sarcasmo e em conseqüência disso seus per-
sonagens são abruptamente interrompidos. Em breve, daremos alguns exemplos
dessas vidas abreviadas por narradores revoltados com a idéia da morte. A existência
desse sentimento de revolta deve-se, segundo a nossa leitura, à descrença desses per-
429
sonagens e possivelmente de sua criadora. A força protagonal de Água viva é a radi-
calização por vezes risível dessa recusa de morrer, pois, mesmo enterrada, ela que es-
taria literalmente fora do tempo, prefere não abandonar o fluxo do tempo.
O telefone, cuja simples referência em A paixão segundo G.H. serve para cortar e
postergar o desfecho do percurso agônico de sua protagonista, reaparece no tecido
aquoso de Água viva. Em um dos raros momentos em que a personagem-narradora
constrói pequenas fabulações no intuito de escandir a densidade do instante-já a seus
possíveis interlocutores, observamos a inserção de uma dessas histórias em que o te-
lefone, em nossa inspeção por indícios técnicos, torna-se o elemento principal. Curio-
samente, assim como faz em A paixão segundo G.H. por meio dos parênteses em que
elenca tarefas amenas para depois de seu périplo angustiante e aí ela se refere a uma
procura por amigos mediada pelo telefone, em Água viva também se produz essa in-
terrupção: “Vou agora parar um pouco para me aprofundar mais. Depois eu volto”
(1973: 38). Na seqüência, a personagem-narradora lança a sua pequena fabulação:
Voltei. Fui existindo. Recebi uma carta de São Paulo de pessoa que
não conheço. Carta derradeira de suicida. Telefonei para São Paulo.
O telefone não respondia, tocava, tocava e soava como num aparta-
mento em silêncio. Morreu ou não morreu. Hoje de manhã telefonei
de novo: continuava a não responder. Morreu, sim. Nunca esquecerei
(Água viva, 1973: 38)
A historinha da força protagonal, no entanto, é desprovida de desafogo como
acontece no relato de G.H, pois aqui o telefone deixa em suspense o fim da morte de
um anônimo, gesto muito afastado da confraternização com amigos anunciada no
discurso de G.H.. Nesse trecho de Água viva, a comunicação à distância proporciona-
da pelo telefone confere ao ato de morrer a ausência de corpo morto para dar legiti-
midade à interrupção fatal que é a morte. Lemos na lamentação dessa personagem-
narradora a despersonalização completa daquele que perde a vida. Talvez esteja es-
boçado na compadecimento despertado por esse corpo anônimo a base para a criação
de Macabéa, a nordestina cuja morte a expõe a um momento tragicamente espetacu-
lar. Macabéa, diferentemente do suicida da correspondência, tem um corpo constan-
temente referido por seu narrador Rodrigo S.M., que faz questão de retratá-la em
pormenores de miséria e desleixo atravessado por uma fina camada de vaidade. Há o
430
sangue menstrual ressecado que passa pela roupa da personagem imersa muitas ve-
zes em divagações para além de sua capacidade expressão, de seu vocabulário redu-
zido sob o impacto do maravilhamento que lhe causam as palavras ou as músicas
ouvidas na Rádio Relógio. Também desenha-se a ansiedade misturada à vaidade de
sua condição mortal que a faz roer as unhas pintadas de um vermelho escarlate, uma
cor muito viva para quem está prestes a morrer: “pintava de vermelho grosseiramen-
te escarlate as unhas das mãos. Mas como as roía até o sabugo, o vermelho berrante
era logo desgastado e via-se o sujo preto por baixo” (1999: 36). A morte do homem
anunciada por carta, uma forma de comunicação anterior ao telefone, mas que con-
tém em sua estrutura a mesma intenção de um contato à distância no qual o corpo é
apagado em prol da circulação da mensagem, aponta para a banalização que pode
estar no evento da morte quando o corpo desaparece. Em O velho e os lobos, Kristeva
compõe uma série de mortes que sequer são lamentadas, pois inexistem ou são raros
os laços sociais em Santa Bárbara. Com exceção do professor de latim e da detetive
Stéphanie Delacour e em alguns momentos de Alba Ram, existem fortes indícios de
que o movimento da cidade é sobretudo virtual, especialmente em função das telas
ou pela sugestão do uso de pílulas. Gloria Harrison também constitui um descaso no
que se refere ao cuidado (respeito) à condição da vida, pois ela é duplamente assassi-
nada sem causar grande comoção. Localizamos, em outro texto de Clarice, uma refe-
rência aos telefones que se cruza ao texto de Água viva.
Na crônica “Um telefonema”, de 14 de fevereiro de 1968, para o Jornal do Bra-
sil, Clarice expõe a sua angústia em face da ausência do corpo visto por ela como um
corpo anônimo nesse contato proporcionado pela comunicação à distância. Na aber-
tura da crônica, ela faz uma ressalva: “O telefone tocou, eu atendi, chamaram por
mim. Em geral pergunto quem é porque nem sempre estou disposta a ser chateada”
(1999: 73).
Mas dessa vez alguma voz coisa na voz, doce e tímida, me fez dizer
que era eu mesma que estava ao telefone. Então a voz disse: sou uma
leitora sua e quero que você seja feliz. Perguntei: como é seu nome?
Respondeu: uma leitora. Eu disse: mas quero saber seu nome para
poder dizê-lo ao desejar que você seja feliz. Mas foi inútil, ela não ti-
nha sequer diante de mim a vontade de aparecer como pessoa que é.
Era o anonimato completo. Mas para você, de quem nem ao menos
sei o nome, quero que tenhas alegrias e que, se já não é casada, que
431
encontre o homem de sua vida. Peço também que não leia tudo o que
escrevo porque muitas vezes sou áspera e não quero que você receba
minha aspereza (A descoberta do mundo, 1999: 73).
Uma outra alusão ao telefone em Água viva surge com a mesma necessidade
de interrupção que antecede esse elemento da técnica: “Tenho que interromper por-
que – eu não disse? eu não disse que um dia ia me acontecer uma coisa? Pois aconte-
ceu agora mesmo” (1973: 70). A personagem-narradora oferece outra pequena histó-
ria na qual é o telefone novamente o eixo de seu relato: “Um homem chamado João
falou comigo pelo telefone. Ele se criou no profundo da Amazônia. E diz que lá corre
a lenda de uma planta que fala. Chama-se tajá” (1973: 71). Dicionários de botânica
confirmam a existência dessa planta encontrada na região amazônica; além disso, o
tajá participa do folclore brasileiro, pois se diz que a planta, encontrada em residên-
cias do Acre e da Amazônia, ajuda no amor e põe fim à fadiga. Conforme a informa-
ção recebida à distância pela narradora de Água viva, cabe à planta a faculdade da
“comunicação”. Observa-se que a narradora clariciana mistura o implícito poder má-
gico dessa planta, exagerando-o ao risível, à interação com a técnica, que, pelo seu vi-
és utilitário, estaria supostamente afastada de um discurso mitificado. A interação
promovida pela personagem-narradora, nesse sentido, trabalha para evidenciar o
que pode ser lido como sagrado num período em que esse assunto se oblitera em
função da técnica – é uma forma possível de reler o sagrado como um movimento de
revolta (no sentido de retorno, volta à natureza), o qual também é presente no dis-
curso de G.H. na descrição de Janair, que é tanto de rainha egípcia quanto de rainha
do mar afro-brasileira
1
.
Uma outra evidência do ateísmo da força protagonal está na informação reite-
rada de que a narradora toma conta do mundo: “Estou cansada. Meu cansaço vem
muito porque sou pessoa extremamente ocupada: tomo conta do mundo” (1973: 71).
Ora, se houvesse a crença em algo onipotente, a narradora não precisaria concentrar-
1
No ensaio “Xeque mate: o rei, o cavalo, e a barata em A paixão segundo G.H.”, do volume
Entre passos e rastros (2003: 54-55), Berta Waldman percebe a associação entre o nome de
Janair, a empregada de G.H., e os ritos africanos. A ligação fonética entre Janair e Janaí-
na, outro nome para Iemanjá, que é o equivalente africano para a Nossa Senhora da Ima-
culada Conceição, segundo Waldman, é em parte ultrapassada porque existem no texto
432
se nesse extenuante encargo. Em que consiste esse tomar conta? Trata-se de pôr em
prática o sentido da visão, o que é extremamente trabalhoso, pois, segundo a narra-
dora onisciente: “obriga-me a me lembrar do rosto inexpressivo da mulher que vi na
rua. Com os olhos toma conta da miséria dos que vivem encosta acima” (1973: 72).
Isso é um dos resultados do caminho penoso de G.H., isto é, quando ela entra no
quarto de Janair. Da janela do quarto da empregada, que se afigura, diversamente da
expectativa da proprietária, um espaço privilegiado, G.H. tem uma visão da cidade.
A personagem percebe detalhes da pobreza que antes escapavam a sua realidade ob-
tusa de classe média alta, mas isso não é o mais importante que ela ganha ao se depa-
rar com uma janela nesse espaço exíguo. O mais revelador na descoberta dessa janela
para a rua está na prática da fabulação de G.H. a partir de quadros apreendidos por
si mesma, na sua capacidade de ver, que, como vimos por meio de textos de Kristeva,
não é uma atividade destinada às mulheres. Artemisia Gentileschi e Georgia
O’Keeffe infringiram essa condição histórica que é a desistência do olhar em prol do
ser olhado. Não é por acaso que Kristeva elege pintoras para ilustrar o enredo polici-
al de seu Possessões, a escritora contemporânea não parece ter se convencido de que
dispomos livremente desse exercício do olhar, o qual será em seguida deslocado para
o sentido do gosto. Percebe-se que são poucos os exemplos de mulheres preocupadas
com o retrato de decapitações. Pelo menos os exemplos em Possessões reduzem-se
àquele pintado por Artemisia, ou na forma simbólica, às telas de O’Keeffe. A cena de
abertura, em que o corpo morto de Gloria Harrison é dissecado, trabalha com o as-
pecto visual, funcionando como um deslocamento da atividade de pintar para o
campo literário. Kristeva, que não é uma pintora, produz algo intensamente visual ao
descrever o cadáver de Gloria de Harrison em minúcias de peles recortadas e acessó-
rios requintados. Esse recurso reaparece ao descrever algumas telas de pintores con-
sagrados, pois o objetivo da autora, em larga medida, é o de nos mostrar o que vê em
suas visitas ao Louvre. Depreende-se disso que Kristeva nos passa um pouco de seu
gosto na medida em que nos expõe a um catálogo de suas imagens fantasmáticas, as
quais, no entanto, não são isoladas de seu contexto, isto é, ressoam no imaginário o-
de Clarice a promoção de uma “ambiência oriental” (referências à cultura egípcia).
433
cidental para além da escolha da escritora, dado que, como já mostramos, apontam
para a construção fantasmática do sujeito falante, independente do gênero, pois to-
dos sujeitos inseridos na comunicação passam pela aquisição da linguagem e pelo
complexo de castração. O jogo entre o particular e o universal nos conduz a refletir
sobre os entrelaçamentos que dizem respeito exclusivamente ao sujeito em processo
de Kristeva e o que pode ser tomado como uma regra a ser universalizada no que to-
ca aos demais conceitos tecidos pela autora. A passagem de Água viva que nos levou
a tais reflexões suscita essa mesma revolta da escassez do domínio do olhar para as
mulheres, que é despertada pela teórica da literatura sobretudo em Possessões e Visões
capitais. Clarice, preocupada desde o início de sua produção textual com os limites da
visão de seus personagens, principalmente as femininas, constrói em Água viva uma
narradora-pintora. Expressão máxima da vontade de olhar, a força protagonal revela
ter saído do universo das tintas e das cores para entrar na desconhecida seara das pa-
lavras; essa personagem-narradora antecipa, portanto, o gesto de Kristeva, que tam-
bém elabora narradores ocupados em enxergar detalhes, virtualidades. Nessa medi-
da, o trecho do tomar conta do mundo, o qual leva ao sentido da visão, elucida o
próprio trabalho literário de Clarice, visto que o encontramos desdobrado posterior-
mente em A hora da estrela, no discurso do narrador Rodrigo S.M.:
Como é que sei tudo que vai se seguir e que ainda o desconheço, já
que nunca o vivi? É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de
relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina.
Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste. Também sei das
coisas por estar vivendo (A hora da estrela, 1999: 12).
Na crônica autobiográfica, de 16 de março de 1968, intitulada “Restos de car-
naval”, Clarice comenta sobre a sua infância vivida a observar as ruas de Recife.
Quando sentia a alegria com a proximidade do carnaval era “Como se as ruas e as
praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. (...) Carnaval era
meu, meu” (1999: 83). Com tanta alegria íntima, mas vivendo um clima familiar de
doença, pois a mãe de Clarice era doente, não havia em sua casa estímulo para a
brincadeira, muito menos para a descontração do carnaval: “Não me fantasiavam: no
meio das preocupações com minha doente, ninguém em casa tinha cabeça para car-
naval de criança” (1999: 83). A grande distração de Clarice, nesse período em que ex-
434
perimentava o que se alinhavará em seus textos como a forma incomum de uma ale-
gria muda, estava na observação das pessoas, no flagrante de sensações que depois
seriam transformadas no retrato da vida íntima de muitos de seus personagens. Na
crônica, ela conta: ”Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me havia fantasiado.
Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de es-
cada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem” (1999: 83).
Essa intensidade do olhar clariciano a acompanha desde a infância e apresenta – este
é um detalhe crucial a ser considerado – o vínculo com a exploração de um ambiente
que extrapola as perquirições intimistas de sua mente, pois Clarice precisa da rua pa-
ra fitar as pessoas e retirar-lhes do anonimato. Tanto as ruas de Recife, onde passou a
infância, quanto as ruas estrangeiras das cidades pelas quais passou, todos esses ca-
minhos realçam a necessidade da escritora por um espaço que lhe é exterior às diva-
gações
1
. As visitas que faz ao jardim zoológico participam do laboratório do olhar
que alcança o cume na pintora-narradora de Água viva:
“O Búfalo” me lembra muito vagamente um rosto que vi numa mu-
lher ou em várias, ou em homens; e uma das mil visitas que fiz a jar-
dins zoológicos. Nessa, um tigre olhou para mim, eu olhei para ele,
ele sustentou o olhar, eu não, e vim embora até hoje (A descoberta do
mundo, 1999: 240).
Um outro momento de Água viva em que a técnica aparece em primeiro plano
surge na seqüência da confissão perturbadora da narradora-pintora sobre o tomar
conta do mundo. A força protagonal nos elege – os interlocutores do instante-já – na
qualidade de cúmplices em sua narração descrente em formas de transcendência. Es-
se destinatário “tu” ao qual a personagem-narradora se refere pode ser analisado
como uma antiga história de amor que fez parte de seu passado, mas como o relato
dela permite ser lido ao acaso também sugere, e talvez com maior eficácia, que nos
1
Sobre a relação entre deslocamentos geográficos e a condução do texto clariciano, consul-
tamos o trabalho de Claudia Nina, A palavra usurpada, no qual ela analisa o conjunto cla-
riciano com base em dois movimentos: o exílico e o nomádico. Quanto ao primeiro, inse-
rem-se as primeiras obras de Clarice Lispector, as quais se desenvolvem num período em
que ela vivia fora do Brasil e têm como característica a abordagem do silêncio. O segundo
movimento refere-se ao aspecto nomádico de sua escrita e inclui as obras produzidas no
Brasil, na década de 70. Esse ponto não é o nosso enfoque, pois nos interessa a relação da
escritora com qualquer tipo de epaço, independente das mudanças: a rua, a cidade, os
435
incluamos nesse fluxo de referências móveis e fugidias. Se optarmos por essa leitura
em que nos tornamos personagens receptores, seremos, portanto, levados a uma
prestação de contas. Trata-se de uma forma de reativação de laços, tal como propõe o
narrador de Kristeva ao compor o personagem Septicius Clarus, o professor de latim,
que, a despeito da contra-senso de sua existência na gélida cidade de Santa Bárbara,
insiste, por exemplo, despertar o interesse de seus alunos, apagados pela perda da
capacidade de sentir, pelo prazer do conhecer. Segue uma passagem sobre prestação
de contas da pintora-narradora:
Vou agora mesmo prestar-te contas daquela primavera que foi bem
seca. O rádio estalava ao captar-lhe a estática. A roupa eriçava-se ao
largar a eletricidade do corpo e o pente erguia os cabelos imantados
– esta era dura primavera. Ela estava exausta do inverno e brotava
toda elétrica. De qualquer ponto em que se estava partia-se para o
longe. Nunca se viu tanto caminho. Falamos pouco, tu e eu. Ignoro
por que todo o mundo estava tão zangado e eletronicamente apto.
Mas apto a quê? O corpo pesava de sono. E os nossos grandes olhos
inexpressivos como olhos de cego quando estão bem abertos (Água
viva, 1973: 73).
Constata-se que a personagem-narradora é uma mulher fortemente tocada pe-
lo artificial, simbolizado pelos fios de um espaço supostamente ao ar livre – os mes-
mos fios metaforizados pelo corpo da barata, isto é, um corpo com resquícios do sa-
grado e tocado pela transformações do homo faber. O relato da força protagonal resul-
ta de sua lembrança, o que não apaga a sua busca por espaço exterior e, em conse-
qüência disso, da necessidade de seu corpo para as experiências que constituem a
inspiração para o seu texto do instante-já. O mais importante do fragmento encontra-
se no cansaço dos corpos que estiveram intensamente em contato com a técnica. Pa-
radoxalmente, os olhos não suportam essa experiência-limite de tudo ver e fecham-se
no auge de querer possivelmente tudo abarcar. Estamos diante de uma crítica muito
tênue acerca da intensificação do olhar, da ordem do voyeurismo ou da robotização da
condição humana, essa que leva à sobreposição de atividades e demandas as quais
não se acomodam na duração de um dia. Por isso, vive-se, de acordo com Virilio
1
, de
ambientes do lar.
1
Conforme o autor sustenta em A arte do motor, apoiado pelo pensamento de Nietzsche em
Ecce Hommo, no qual este filósofo enfatiza o papel da nutrição para o alcance do máximo
436
forma suplementar com o auxílio, por exemplo, de luzes artificiais que encurtam as
horas de sono em benefício da produtividade mantenedora da sociedade dromocráti-
ca. Sobre o voyeurismo, desenvolvemos em nosso terceiro capítulo o quanto, para
Kristeva, esse desvio está imbuído de uma questão da ordem ética. Ao compor Pos-
sessões, a autora demarca um limite para o olhar, os exemplos de decapitação, sobre-
tudo a referência ao Davi de Caravaggio, despertam para a crueldade que está no
gesto de fitar o sofrimento alheio, por isso Davi desvia os olhos para a cabeça dego-
lada quando afasta seu braço da altura dos olhos, evitando assim uma possível con-
templação de Golias decapitado.
Ao retomar exemplos da técnica em Água viva, os mais significativos, esbar-
ramos no sentido da visão, por isso é importante demonstrar alguns exemplos da
manifestação da visão para além do fragmento acima recortado. Logo no início de
seu relato, a personagem-narradora nos convida a olhar (não a ler) o que pintou ao
fazer a seguinte pergunta: “O que pintei nessa tela é passível de ser fraseado em pa-
lavras?” (1973: 9). Sabe-se que ela é uma pintora-narradora ainda não habituada com
o uso das palavras, um terreno que não lhe é íntimo, apesar disso ela se atribui uma
espécie de hiper-consciência na qual se amolecem as fronteiras entre o bem e o mal:
“Sei que meu olhar deve ser o de uma pessoa primitiva que se entrega toda ao mun-
do, primitiva como os deuses que só admitem vastamente o bem e o mal e não que-
rem conhecer o bem enovelado como em cabelos no mal, mal que é o bom” (1973: 12-
13). Embora se localize ao lado dos deuses no que refere ao que chama de condição
primitiva, a narradora, no entanto, menciona os entrelaçamentos entre bem e o mal,
enunciado semelhante à pulsão de desligamento e de ligação observados por Freud
em sua teoria e reavivados por Kristeva em vários de seus textos (Sol negro, O ódio e o
perdão, Histórias de amor). Trata-se também de um enunciado que dialoga com a espe-
de performance dos homens, Virilio atualiza esse imperativo para os nossos dias: “De-
pois de ingestão de alimentos reconstituintes, frutos da agricultura, preparam para nos
fazer digerir, nos alimentarmos de produtos dopantes de todas as origens, não somente
os químicos com a voga dos excitantes modernos – como o álcool, o café, o fumo a droga
ou os anabolizantes – mas também técnicos com os produtos da biotecnologia, as pastilhas
inteligentes, capazes, diz-se, de superexcitar nossas faculdades mentais” (1996: 93). Curi-
osamente, Virilio localiza em Traité des excitants modernes, de Honoré de Balzac, a anteci-
pação, em meio século, dessas questões aventadas por Nietzsche.
437
culação decorrente do ato de olhar denunciada por Kristeva em Possessões. O deixar-
se levar da pintora-narradora pela vontade de ver em primeiro momento contrasta
com a busca de um limite do alcance ético do olhar, entretanto, em outro momento,
essa ultrapassagem é desfeita, pois a personagem-narradora, que compõe sua escrita
pela metáfora da visão, admite que existem limitações em seu ambicioso campo vi-
sual: “Na verdade ainda não estou vendo bem o fio da meada do que estou te escre-
vendo. Acho que nunca verei – mas admito o escuro onde fulgem os dois olhos da
pantera macia” (1973: 31). Na coleta seqüencial das aparições do sentido da visão em
Água viva nos defrontamos, sem a intenção, com a escrita circular da narradora-
pintora. Chegamos, nessa medida, justamente ao ponto do tomar conta do mundo no
qual havíamos parado para retomar a relação de Kristeva com esse sentido. O tomar
conta do mundo reitera uma postura de cuidado da narradora onisciente:
Todos os dias olho pelo terraço para o pedaço de praia com mar e ve-
jo as espessas espumas mais brancas e que durante a noite as águas
avançaram inquietas. Vejo isto pela marca que as ondas deixam na
areia. Olho as amendoeiras da rua onde moro. Antes de dormir tomo
conta do mundo e vejo se o céu da noite está estrelado e azul-
marinho porque em certas noites em vez de negro o céu parece azul-
marinho intenso, cor que já pintei em vitral (Água viva, 1973: 71).
Em outra cena proveniente da memória da narradora, o tomar conta do mun-
do não tem a intenção da maldade especulativa do olhar que tudo apreende. Tem-se,
novamente, uma via para o processo de criação que se encontra, conforme mostra-
mos em outros exemplos, assentado sobre a observação, ou seja, uma vontade de o-
lhar que subverte a história feminina resumida e apagada na condição de ser mera-
mente observada. Nota-se que tanto Clarice quanto seus narradores fogem, felizmen-
te, dessa tradição limitada do olhar. Além disso, o ponto alto da cena que segue abai-
xo reside na importância concedida ao corpo, uma vez que retorna a idéia clariciana
de que o escritor encontra conteúdo para seus personagens ou na formulação de at-
mosferas íntimas de seus seres ficcionais ao se permitir circular por espaços abertos
como a rua, o jardim botânico ou o jardim zoológico:
eu o vi de repente e era um homem tão extraordinariamente bonito e
viril que senti uma alegria de criação. Não é que eu o quisesse para
mim assim como não quero para mim o menino que vi com cabelos
de arcanjo correndo atrás da bola. Eu queria somente olhar. O ho-
438
mem olhou um instante para mim e sorriu calmo: ele sabia quanto
era belo e sei que sabia que eu não o queria para mim. Sorriu porque
não sentiu ameaça alguma (Água viva, 1973: 76).
Nem sempre a relação da personagem-narradora com o sentido da visão é i-
senta de conflitos. Há também o exagero do olhar de quem está pouco acostumado a
essa prática. Pelo menos, ainda são poucas as mulheres que entraram para o cânone
iconográfico, fato que nos leva a refletir sobre uma parcela de imposição de uma vida
fantasmática às mulheres desenhada sobretudo pelo ponto de vista e pelo traçado
masculino. A pintora-narradora reconhece, em determinado momento da narração
de seu instante-já, que é capaz do exagero. Segue-se disso que ela tem intimidade
com o horror: “Tenho medo então de mim que sei pintar o horror, eu, bicho de ca-
vernas ecoantes que sou, e sufoco porque sou palavra e também sou eco” (1973: 16).
Observa-se, sutilmente, a tentativa de deslocamento da narradora-pintora para esca-
par do horror. Essa se manifesta sutilmente pelo sentido da audição através da refe-
rências aos ecos, elementos sonoros que a constituem ao lado das palavras. Sobre es-
se aspecto, a resolução da narradora de Água viva é a mesma que percebemos na aná-
lise de Possessões, na medida em que o narrador dessa obra enuncia enfaticamente
que no horror não vê, no horror se ouve.
Ao seguir algumas referências destinadas ao sentido da audição no discurso
da pintora-narradora, percebemos, pelo seu início, que se trata de uma experiência
perceptiva fortemente associada ao que inspira, no mínimo, temor, pois ela descreve
a sensação de uma alegria manifesta metaforicamente por um grito arcaico mistura-
do ao que denomina de “o mais escuro uivo humano”. Trata-se, pois, de um “grito
de felicidade diabólica” (1973: 7). Em outro instante fugidio, o corpo, fio condutor da
nossa análise, entra em cena quando a personagem-pintora explica sua forma de ou-
vir música: “Vejo que nunca te disse como escuto música – apóio de leve a mão na e-
letrola e a mão vibra espraiando ondas pelo corpo todo: assim ouço a eletricidade da
vibração, substrato último no domínio da realidade, e o mundo treme nas minhas
mãos” (1973: 10). Eis um encontro entre a técnica e o corpo que humaniza a técnica.
Esse procedimento também ocorre em O velho e os lobos. As canções de Billie Holiday
constituem o único elemento da esfera técnica que adquirem um contorno humano
439
no ambiente hostil sugerido por essa trama. O personagem Barman, mesmo sem sa-
ber o significado das letras, as cantarola num inglês muito pessoal, uma forma de en-
trar em contato com o semiótico. O professor de latim, resistente às virtualidades de
um período em exacerbada transformação técnica, também se deixa envolver pela
voz melancólica da cantora. A voz (esse tema é recorrente em nossa análise) é um dos
elementos semiotizáveis estudados por Kristeva tanto em sua teoria do texto quanto
em sua prática analítica. No terceiro capítulo do nosso trabalho, sublinhamos o fato
de Kristeva buscar um espaço para o semiótico em meio à profusão das imagens ci-
nematográficas ou da televisão. É a própria autora que suscita essa possibilidade de
pensar o semiótico para além do texto literário ou do discurso do analisando, inse-
rindo-o na rede imagética. A voz metalizada de Billie Holiday, uma vez que depende
da eletrola para ser apreciada, é o esboço dessa inserção teórica que se desdobra no
plano teórico em A revolta íntima (1997). Nessa obra, Kristeva menciona alguns cine-
astas (Godard, Eisenstein, por exemplo) que compõem uma interessante sugestão
imagética, com mobilidade rítmica, semelhante à da chora semiótica e por isso nada
combinam com as imagens vendidas pela indústria do cinema em série e de baixa
qualidade. A narradora clariciana de Água viva realiza um movimento semelhante ao
proposto por Kristeva, pois, no trecho em que sentindo as vibrações metálicas emiti-
das pela eletrola em seu próprio corpo, a pintora plasma-se ao apelo técnico trans-
formando-o ao ritmo de sua existência supostamente não-maquinal
1
.
Em outro instante, ainda sob o enfoque do sentido da audição, a força prota-
gonal mistura a técnica, na referência à música barulhenta ouvida por jovens, ao con-
torno de sagrado, conforme a palavra batuque, a qual incita uma possível aproxima-
ção entre o som artificial e a caricata alusão ao termo de base africana: “Estou ouvin-
do agora uma música selvática, quase que apenas batuque e ritmo que vem de uma
casa vizinha onde jovens drogados vivem o presente” (1973: 20). Nesse trecho, entre-
tanto, o sentido da audição não parece salvá-la do conflito e em função disso pode-
mos pensá-lo na mesma linha de algo que a leva para o horror que está contido na
1
Em Échographies de la télévision, Jacques Derrida e Bernard Stiegler sugerem uma mudança
de ritmo na atualidade, um movimento que reflita a respeito de ritmos que nos são im-
postos pela mídia. O início dessa reflexão já se manifesta na década de 70 por Kristeva.
440
capacidade de tudo ver. Em seguida, a narradora, em sua ambição de criadora onipo-
tente, situa-se, ainda que momentaneamente, na condição sobre-humana do fora do
tempo: “Ouço o ribombo oco do tempo. É o mundo surdamente se formando. Se eu
ouço é porque existo antes da formação do tempo” (1973: 42). Podemos pensá-la no
cerne do hors-temps articulado por Kristeva – um caminho que liga o ateísmo das du-
as autoras em exercícios de escrita que se pautam sobre o tempo, de maneira a es-
candi-lo, ou como no exemplo da pintora-narradora, simplesmente desafiá-lo. Dessa
forma, a personagem-narradora nunca abandona a sua capacidade de sentir mediada
pelo corpo, esse meio indispensável para as suas revelações íntimas. Em outro instan-
te-já, ela aprofunda sua capacidade auditiva para apreender camadas finas de sua in-
timidade com o ambiente e consigo própria: “Que música belíssima ouço no profun-
do de mim. É feita de traços geométricos se entrecruzando no ar. É música de câma-
ra. Música de câmara é sem melodia. É modo de expressar o silêncio. O que te escre-
vo é de câmara” (1973: 54). Em outra passagem, depois de descrever minuciosamente
algumas plantas que a deixam exausta, porque a narradora vê demais, ela observa a
necessidade de parar. Sua interrupção é logo desfeita e novamente, pelo sentido da
audição, a personagem-pintora se interrompe: “Acho que vou ter que pedir licença
para morrer. Mas não posso, é tarde demais. Ouvi o Pássaro de fogo – e afoguei-me in-
teira” (1973: 70). Na dedicatória do autor de A hora da estrela, Rodrigo S.M, que vem
acompanhada de uma observação – “(Na verdade Clarice Lispector)” – nota-se o en-
volvimento musical da escritora ao criar Macabéa, uma personagem simples, que
passa um bom período de seus dias envolvida com as notícias e as músicas da Rádio
Relógio. Nessa dedicatória, o autor-narrador e Clarice confundem-se, e a escritora
revela o seu gosto musical por Schumann, Debussy e Schönberg. A relação dessa
dedicatória com Água viva acontece por meio da metáfora de intensidade despertada
pela música que está na imagem forte de um vôo de fogo. É assim possivelmente que
a autora de A hora da estrela escuta O pássaro de fogo, de Stravinsky, ou seja, muito se-
melhante à construção paradoxal do afogamento a partir da sugestão da imagem do
fogo evocada pela música de Stravinsky: “Dedico-me à tempestade de Beethoven. À
vibração das cores neutras de Bach. A Chopin que me amolece os ossos. A Stravinski
que me espantou e com quem voei em fogo” (1999: 9). Em um último instante a ser
441
analisado por nós que diz respeito à audição, a pintora-narradora entrelaça o sentido
da audição, que vem em segundo plano, ao do olfato, promovendo um jogo sinesté-
sico entre eles: “O jasmin é o dos namorados. Dá vontade de pôr reticências agora.
Eles andam de mãos dadas, balançando os braços, e se dão beijos suaves ao quase
som odorante do jasmim” (1973: 69). Percorreremos a partir dessa imbricação percep-
tiva passagens acerca do sentido do olfato em Água viva.
A primeira referência ao olfato está na descrição do respirar, atividade invo-
luntária e indispensável para a permanência do ser vivo. A personagem-narradora
ultrapassa o mero gesto de oxigenação das células de seu corpo, pois, ela ambiciona,
tal como procede em nossa interpretação dos sentidos da visão e da audição, sensa-
ções que extrapolam o bom funcionamento do organismo, isto é, ela aprofunda os
sentidos para melhor apreender o que chama de instante-já. Trata-se portanto do
mesmo desafio da protagonista Joana, de Perto do coração selvagem, que tinha um re-
lógio para contemplação do correr das horas e ficava medindo sua capacidade de
sentir para além da passagem do tempo. No instante de Água viva, a narradora soma
ao olfato a audição. Essa constrói-se pelo avesso através de um imagem paradoxal
que evoca estrondo mas se manifesta mudamente: “Esses instantes que decorrem no
ar que respiro: em fogos de artifício eles espocam mudos no espaço. Quero possuir os
átomos do tempo” (1973: 8). Em outro instante, a pintora-narradora inventa uma i-
magem na qual produz a sensação de uma tela impressionista na medida em que jus-
tapõe cores imprecisas pelo fluxo da água e, para justificar a nossa procura pela olfa-
to, ela inclui o perfume dos elementos retratados:
Neste instante-já estou envolvida por um vagueante desejo difuso de
maravilhamento e milhares de reflexos do sol na água que corre da
bica na relva de um jardim todo maduro de perfumes, jardim e som-
bras que invento já e agora e que são o meio concreto de falar neste
meu instante de vida. Meu estado é de jardim com água correndo
(Água viva, 1973: 17).
Essa passagem liga o olfato à visão e, além disso, oferece uma condução de lei-
tura na qual se privilegia a rapidez, que pode ser interpretada como o convite a ler o
texto desatentamente para dele sair surpreendido ou com alguma descoberta nas en-
trelinhas. Afinal, Clarice expõe a sua provável forma de escrita em uma das crônicas
442
para o Jornal do Brasil chamada “Escrever nas entrelinhas”, em que defende esse pro-
jeto condensado brevemente em Água viva, na forma de um conselho para melhor
compreender a pintura em palavras e odores: “O que te digo deve ser lido rapida-
mente como quando se olha” (1973: 17). Na crônica, a escritora desdobra essa prática
de escrita para o grande público, em 6 de novembro de 1971:
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra
pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra – a entreli-
nha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou
a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa
a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que sal-
va então é escrever distraidamente. (A descoberta do mundo, 1999: 385).
Esse mesmo trecho encontra-se também no próprio Água viva, o que contribui
para desenvolver a indicação inicial apoiada na sugestão da narradora do “ler rapi-
damente”. Edgar Nolasco encontra uma origem para essa citação em “Fundo de ga-
veta”, de A legião estrangeira (1964), em que chama a atenção para as diferentes ver-
sões engendradas pela escritora a partir desse texto inaugural (2001: 206). Pois nessa
primeira versão, o narrador muda o verbo de “escrever” para “ler”: “’O que salva en-
tão é ler distraidamente’” (2001: 207). Para Nolasco, Clarice tece produções distintas
em todas essas três formulações que levam a interpretações diferenciadas. Nas ver-
sões da crônica e do texto de Água viva o verbo mantém-se o mesmo (escrever). A di-
ferença sustenta-se na grafia da palavra “distraidamente”, pois na crônica aparece
em itálico ao passo que em Água viva não há qualquer destaque. Para a condução da
nossa análise – que não considera essa obra de Clarice como uma simples reunião de
textos interessantes com o intuito de compor outro texto, embora a escritora reúna
muitos fragmentos para compô-la –, o conjunto desses três textos promove um me-
lhor entendimento do objetivo da pintora-narradora. Se voltarmos a sua primeira
versão, veremos que ela enfatiza a leitura. O texto de Água viva e o da crônica têm o
mesmo conteúdo, à exceção do destaque a uma palavra que é a mesma nos dois tex-
tos e por isso não altera o significado da mensagem. Se lermos com atenção, veremos
que a autora desmembra o conteúdo da primeira versão (cujo enfoque recai sobre a
leitura) sob a imagem da tela sinestésica (visão misturada ao olfato) na indicação de
uma leitura veloz. Reside nessa recomendação sensitiva a primeira orientação tecida
443
pela personagem-narradora, somente na página 21, reiterada pela sua forma de escri-
ta, a qual acompanha a sua indicação de leitura. Nota-se que a escritora dispõe de um
projeto ao criar Água viva, pois ao refazê-lo durante três anos, ela condensa também
uma estratégia de sedução a seus destinatários, ao promover semelhanças entre o
personagem-narrador e seus possíveis receptores, os quais, sobretudo em A paixão se-
gundo G.H., já foram acostumados à resignação diante da cumplicidade requerida pe-
lo personagem-narrador.
Em outro instante-já referente ao olfato o que se anuncia é a reafirmação do
que está presente no outro trecho: “O mundo não tem ordem visível e eu só tenho a
ordem da respiração. Deixo-me acontecer” (1973: 26). A personagem-narradora de-
senha-se como uma mulher sem crença em algo para além de sua existência corpórea
e nessa medida se atém a sua capacidade de sentir/pensar, a qual é um desdobra-
mento da teoria de Kristeva, apoiada no pensamento de Freud sobre a copresença da
sexualidade/pensamento. Porque percebemos nessa narradora uma espécie de intui-
ção de que a vida se encerra nessa existência corpórea fadada à mortalidade e tam-
bém à finitude, é possível vê-la em situações, apesar da imediatidade do relato dessas
cenas, em que a personagem se mistura aos universos vegetal e animal. O fragmento
a seguir, cujo eixo reside no sentido do olfato, é um exemplo dessa fusão almejada
pela pintora, que parece uma forma de abrandamento da consciência da duração li-
mitada pelo tempo de sua existência:
Antes tenho que passar pelo vegetal perfumado. Ganhei dama-da-
noite que fica no meu terraço. Vou começar a fabricar o meu próprio
perfume: compro álcool apropriado e a essência do que já vem mace-
rado e sobretudo o fixador que tem que ser de origem puramente a-
nimal. Almíscar pesado (Água viva, 1973: 51).
Ao comentar sobre o ato de aspirar uma rosa, a pintora viabiliza uma medita-
ção para o sagrado, um contato que ela considera místico. O gesto não implica uma
experiência para fora do corpo, visto que ela própria desfaz interpretações sustenta-
das, por exemplo, em outras existências ao descrever o impacto desse gesto em que
vemos a interação sexualidade/pensamento (ou a união da dualidade corpo/alma):
“Seu perfume é mistério doido. Quando profundamente aspirada toca no fundo ín-
timo do coração e deixa o interior do corpo inteiro perfumado” (1973: 67). Uma últi-
444
ma consideração sobre o olfato leva-nos para um entrelaçamento que já se esboçava
na experiência fusional de protagonistas como Joana e G.H., ou seja, de tão perto que
ficam dos objetos (relógios, guarda-roupa, lâmpada) elas se fundem a eles. Em Água
viva ficamos diante de um gesto fatal: “Os dias. Fiquei triste por causa desta luz di-
urna de aço em que vivo. Respiro o odor de aço no mundo dos objetos” (1973: 111).
Seguindo os caminhos efêmeros do olfato, os quais são aprofundados pela força pro-
tagonal como forma de desafiar o efêmero dessa experiência dos sentidos, percebe-
mos que a pintora-narradora defende a existência de um fio condutor a ser percorri-
do em seu enredo intencionalmente frouxo. Na metáfora “linha de aço” (1973: 43), lo-
calizamos a sua pista: “Há uma linha de aço atravessando isto tudo que te escrevo”
(1973: 43). A própria pintora se confunde com essa imagem, que nos parece marca-
damente técnica, ao afirmar a sua natureza entrelaçada aos artefatos: “Não é confor-
tável o que te escrevo. Não faço confidências. Antes me metalizo” (1973: 17). Mas em
que consiste esse metalizar-se clariciano? Trata-se de uma expressão tão afastada de
sua intimidade com as formas naturais dos universos vegetal e animal, no entanto
lança um neologismo
1
que permite um deslocamento para o que é da ordem técnica.
Como a pintora-narradora se metaliza?
Em nossa dissertação de Mestrado, Revolução poética em Água viva, investiga-
mos o encurtamento dos espaços em alguns textos de Clarice. Constatamos que Água
viva é a radicalização dessa perda espacial, pois sua narradora habita um agonizante
e insuportável espaço-tempo. A rua, a cidade e o quarto ficaram como resquícios de
um passado talvez não muito distante que é evocado pela pintora como uma espécie
de memória em estado de apagamento, entretanto o que subsiste efetivamente em
Água viva é a intensidade de um tempo a ser consumido em sua própria tentativa e-
vanescente de narração. Sem o propósito de refletir sobre o corpo, apontamos aguns
caminhos interpretativos sobre o papel da pintora-narradora e a situamos na conti-
nuação de outros personagens construídos por Clarice. Para tanto, seguimos o im-
pacto do “metalizar-se” da pintora-narradora, vasculhando em outras textos da escri-
1
É raro o recurso de neologismos no texto de Clarice Lispector. Há a criação do termo “la-
lande” em Perto do coração selvagem, sobre a qual já comentamos em nosso segundo capí-
tulo.
445
tora possíveis metalizações. Nota-se disso uma riqueza de referências a máquinas fo-
tográficas que são, no relato do pintora-narradora, agregadas a sua própria identida-
de, algo que já esboçava em A paixão segundo G.H., mas não pela fotografia. Na se-
qüência, reproduziremos apontamentos sobre o encontro entre a técnica e o corpo
1
.
4.2 Nota sobre o flash de sangue
Em A câmara clara (1984), a partir da análise de algumas fotografias seleciona-
das, Roland Barthes postula o “princípio de aventura” ou “estalo” (1984: 36) como
critério de escolha de algumas imagens que lhe despertam uma curiosidade afetiva, e
também com o objetivo de justificar o fascínio que determinadas fotografias exercem
sobre ele. Dessa forma, Barthes estabelece duas categorias que contribuem para a a-
nálise e, por conseguinte, para a classificação das imagens pictóricas “reveladas” (no
sentido químico, como ele próprio acentua).
Trata-se de duas denominações retiradas da língua latina: o punctum e o studi-
um
2
. As categorias em questão marcam características perceptíveis em determinadas
fotografias que, segundo ele, podem ser objeto de três práticas, as quais são também
equivalentes a três emoções ou a três intenções: fazer, suportar e olhar. Envolvem-se,
nesse processo, o referente, ou seja, o objeto fotografado, o qual Barthes também de-
nomina de alvo; o fotógrafo e o observador – esse também chamado de spectator
3
.
1
A parte teórica dessa exposição está presente em nossa dissertação de Mestrado. Retoma-
mos os exemplos que dizem respeito ao punctum formulado por Barthes e acrescentamos
aspectos referentes à obra de Kristeva.
2
Punctum: 1. Picada. 2. Pequeno buraco feito por uma picada. 3. Ponto (sinal de pontuação)
4. Parte de um todo, do tamanho de um ponto; pequeno espaço; pequena parcela, um na-
da. 5. Momento; instante; pequeno espaço de tempo. 6. Voto (ponto com que se assinala-
va o nome daquele a quem se dava o voto). 7. Ponto (geométrico); ponto (no jogo de da-
dos). 8. Pequeno membro (da frase); divisão (no discurso) (Dicionário latino português,
s/d: 710-711).
Studium: (de studere). 1°Aplicação, trabalho cuidado, zelo, empenho; 2° Vontade, intento,
desejo; modo de ver, parecer, opinião; inclinação, tendência, propensão, paixão; costu-
mes, hábitos; 3° favor, benevolência, bemquerença, interesse, amor, afeição; partido; fac-
ção; 4° ação de estudar, exercício de espírito, estudo; objeto de estudo; ramo de estudo;
instrução; trabalho (literário); obra (literária) (Novíssimo dicionário latino-português, 1993:
1135).
3
Spectator: 1. Espectador; observador; contemplador. 2. Conhecedor; bom julgador. (Dicioná-
rio latino português, s/d: 811).
446
De acordo com o teórico, punctum e studium não se encontram em relação de
dependência, visto que é exclusivamente pelo studium que ele se interessa por muitas
fotografias. Essa prática é sempre codificada, uma vez que se apresenta de forma a
ser culturalmente decifrada. Apesar disso, o studium é da ordem do to like e não do to
love (1984: 48), correspondendo, assim, a “interesses vagos e irresponsáveis” que te-
mos por “pessoas”, “espetáculos”, “roupas” ou “livros” que, segundo Barthes, consi-
deramos “distintos” (1984: 48). Barthes classifica o studium como “fotografia unária”
(1984: 66). Utiliza idêntico procedimento ao da gramática gerativa, na qual, através
da transformação unária, uma única seqüência é gerada pela base. De forma análoga,
“A fotografia é unária quando transforma ‘enfaticamente’ a realidade sem duplicá-la,
sem fazê-la vacilar (a ênfase é uma forma de coesão): nenhum duelo, nenhum indire-
to, nenhum distúrbio” (2000: 66). Barthes exemplifica, através das fotos jornalísticas,
o mesmo aspecto em questão, contido em grande parte delas. Diferentemente do
punctum, o studium não se revela como necessariamente poético, pois, na acepção do
teórico, à poeticidade vincula-se a capacidade do abalo. Por extensão, a pungência é
inerente ao poético. Na mesma classe das fotos-reportagem, que são “recebidas (de
uma só vez)” e “eis tudo” (1984: 66), onde só há espaço para a foto “gritar” e não “fe-
rir”, estão as fotos pornográficas.
A parte poética da fotografia corresponde ao punctum, isto é, espaço onde se
dá a pungência. O segundo elemento em questão não aparece necessariamente codi-
ficado. De acordo com Barthes, funciona como um suplemento, independente de es-
tar ou não delimitado:
O segundo elemento vem quebrar (ou escandir) o studium. Dessa vez,
não sou eu que vou buscá-lo (como invisto com minha consciência
soberana do studium), é ele que parte da cena, como uma flecha, e
vem me transpassar (....) (A câmara clara, 1984: 46).
Na interação entre o fotógrafo, o objeto fotografado e o spectator ocorre o du-
plo movimento de natureza suplementar do punctum, ou seja, acrescenta-se algo à fo-
to que, entretanto, já estava nela. Barthes elenca uma série de fotografias pungentes
com a finalidade de ilustrar o procedimento suplementar proporcionado pelo punc-
447
tum. Na foto de James van der Zee
1
Retrato de família, 1926 –, por exemplo, o pesqui-
sador não dispensa a descrição das características sócio-históricas da fotografia. Entre
eles, constata a “responsabilidade”, o “familiarismo”, o “conformismo”, o “endo-
mingamento” (1984: 71). Cabe destacar que essas descrições não o levam ao pungen-
te, pois esse ocupa uma camada mais invisível:
O que me punge, coisa curiosa de dizer, é a larga cintura da irmã (ou
da filha) – (...) seus braços cruzados por trás das costas, à maneira de
um colegial, e sobretudo seus sapatos de presilha (...). Esse punctum
agita em mim uma grande benevolência, quase um enternecimento
(A câmara clara, 1984: 71).
A fotografia corresponde ao flagrante de um instante que se eterniza na “reve-
lação” (no sentido químico) e, simultaneamente, sofre interferência do desgaste pro-
porcionado pelo tempo. No que concerne à finitude humana, tendo em vista o aspec-
to temporal, Barthes menciona a relação original do teatro e do culto de um morto,
encontrando, a partir daí, semelhança entre essas duas áreas e a fotografia. Assim
como os primeiros atores destacavam-se através do desempenho do papel dos mor-
tos, na fotografia também há algo da morte espetacularizada. A atividade teatral
promove a caracterização de um corpo simultaneamente vivo e morto. De acordo
com o teórico, o processo do receptor implica reflexão, e nessa medida sugere a for-
mulação:
por que será que vivo aqui e agora? Certamente, mais que outra arte,
a Fotografia coloca uma presença imediata no mundo – uma co-
presença; mas uma presença não é apenas de ordem política (“parti-
cipar dos acontecimentos contemporâneos pela imagem”), ela tam-
bém é da ordem metafísica (A câmara clara, 1894: 125).
Para Barthes, o efeito da foto não está centrado na rememoração do passado,
uma vez que não percebe nada de proustiano numa fotografia. Seu efeito, em contra-
partida, consiste numa espécie de irrefutatibilidade do acontecimento vivido, ou seja,
na impossibilidade de desfazer ou de negar a imagem que é vista através da revela-
ção. “Ora, esse é um efeito verdadeiramente escandaloso” (1984: 123). Existe uma re-
lação tensional na diferença pretendida por Barthes entre a fotografia e outras formas
1
Retrato de uma família afro-americana.
448
de criação que prescindem de referentes “reais”. O teórico observa que não se pode
negar “que a coisa esteve lá” (1984: 114) possibilitando a dupla posição de realidade e
de passado. Ao mesmo tempo em que postula a ficcionalização como critério de divi-
são entre o signo verbal e o signo visual, ele não deixa de também vislumbrar a inau-
tenticidade do ato fotográfico:
Diante da objetiva, sou ao mesmo tempo: aquele que eu me julgo,
aquele que eu gostaria que me julgassem, aquele que o fotógrafo me
julga e aquele de que ele se serve para exibir sua arte. Em outras pa-
lavras, ato curioso: não paro de me imitar, e é por isso que, cada vez
que me faço (que me deixo) fotografar, sou infalivelmente tocado por
uma sensação de inautenticidade (...) (A câmara clara, 1984: 27).
Tal como na máscara do teatro grego ou na personagem concebida pelo escri-
tor, existe, de certa forma, também algo de ficcional na fotografia. De modo reversí-
vel, observa-se que as atividades teatrais ou literárias, mesmo quando se afastam dos
princípios estéticos, não escapam completamente da interferência da realidade, ou
seja, seu efeito é semelhante àquele apreendido pela objetiva, embora não tenha o
mesmo caráter de instantaneidade que se constata no objeto fotografado.
Philippe Dubois, em O ato fotográfico, ensaia três períodos que situam histori-
camente a fotografia quanto à questão do realismo e do valor documental da imagem
fotográfica. Quanto ao primeiro, esboçado desde o início do século XIX, apesar de
conter variações, resume-se na proposição de que a fotografia funciona como espelho
do real, dado que é considerada como “a imitação mais perfeita da realidade” (2001:
27). Isso se justificava pela não intervenção da mão do artista diretamente sobre o ato
fotográfico, visto a existência de uma câmera como mediadora. Em seguida, manifes-
ta uma reação contrária a esse “ilusionismo do espelho fotográfico” (2001: 26), na
medida em que se percebe a imagem fotográfica como instrumento de transposição
do real. Com base no funcionamento da língua, a fotografia passa a ser vista como
um conjunto de códigos. O segundo período da história fotográfica compreende o sé-
culo XX, o qual insiste na idéia de transformação do real pela foto, pois não se trata
mais de interpretá-la a partir da noção de espelho neutro. O terceiro período compre-
ende a atualidade e se caracteriza pelo retorno ao referente, no entanto, sem a “obses-
são do ilusionismo mimético” (2001: 53), pois:
449
Por mais útil e necessário que tenha sido, esse movimento de des-
construção (semiológica) e de denúncia (ideológica) da impressão de
realidade deixa-nos contudo um tanto insatisfeitos. Algo de singular,
que a diferencia dos outros modos de representação, subsiste apesar
de tudo na imagem fotográfica: um sentimento de realidade incontor-
nável do qual não conseguimos nos livrar apesar da consciência de
todos os códigos que estão em jogo nela e que se combinaram para a
sua elaboração (O ato fotográfico, 2001: 26).
A câmara clara, de Roland Barthes, de acordo com Dubois (2001: 26), contribui
para a sedimentação desse processo. A impossibilidade da negação do “esteve lá”
barthesiano (1984: 114) encontra expressão no que se refere ao terceiro período ati-
nente à questão do realismo e do valor documental da imagem fotográfica. Não se
trata de uma correspondência ingênua, ou seja, a interpretação de Barthes já se en-
contra muito distante da concepção da foto como espelho do real. O seu livro, inclu-
sive, é posterior aos trabalhos que aludem ao estudo semiológico. Nessa medida, ob-
servamos a complexidade da formulação do punctum:
Por mais fulgurante que seja, o punctum tem, mais ou menos virtu-
almente, uma força de expansão. Essa força é freqüentemente meto-
nímica. Há uma fotografia de Kertész (1921) que representa um ra-
bequista cigano, cego, conduzido por um garoto; ora, o que vejo, por
esse “olho que pensa” e me faz acrescentar alguma coisa à foto, é a
rua de terra batida; o grão dessa rua terrosa me dá a certeza de estar
na Europa central (A câmara clara, 1984: 73).
Essa visão deslocada para a escassez mostrada distingue a afirmação do “este-
ve lá” (1984: 114) de Barthes de uma análise que reproduz a superficialidade do pri-
meiro sentido histórico da fotografia, ou seja, que não leva em consideração o sistema
de códigos que nos circunscrevem. No pensamento desse teórico, há a captação do
que é rarefeito no retrato, pois ele permite perceber a invisibilidade, a qual também
chama de o poético da fotografia. O punctum, postulado de difícil apreensão, apre-
senta a mesma complexidade que a noção da chora semiótica, de Kristeva, percebida
a partir do genotexto. Na esteira de Roland Barthes, ela também ambiciona flagrar as
nuanças do poético. Nesse sentido, as considerações acerca do punctum e do semióti-
co imbricam-se na formulação de juízos que buscam o limite das possibilidades me-
ramente racionais. Dubois também insiste no aspecto metonímico do punctum. Ci-
450
tando o artigo “As mortes de Roland Barthes”, de Jacques Derrida, acentua esse con-
ceito barthesiano, o qual se coaduna com a chora semiótica. Vejamos o fragmento de
Derrida que Dubois cola a seu texto:
Lembramo-nos que o punctum está fora de campo e fora de código.
Lugar da singularidade insubstituível do referencial único, o punc-
tum irradia e, o que é mais surpreendente, presta-se para a metoní-
mia. E, a partir do momento em que se deixa arrastar pelas escalas
de substituição, pode invadir tudo, objetos e afetos. Esse singular
que não está em parte alguma no campo, eis que mobiliza tudo e por
toda a parte, pluraliza-se (...) (O ato fotográfico, 2001: 77-78).
Os exemplos reunidos a seguir, retirados de vários textos de Clarice Lispector,
participam do nosso gosto, ou seja, daquilo que nos punge ou, em outras palavras,
do que escande a nossa leitura no momento em que deparamos com determinadas
descrições as quais nos parecem incomuns ou que simplesmente tocam em aspectos
da nossa história arcaica, fantasmática.
Antes de iniciarmos a nossa exposição do pungente em textos de Clarice, ob-
servamos na composição ficcional de Kristeva, que foi aluna de Barthes, ecos do
punctum articulado por seu professor. A descrição das telas que a autora promove em
Visões capitais e em Possessões é a expressão do que se afigura como pungente para e-
la. Gloria Harrison, uma personagem exposta em detalhes análogos ao que encon-
tramos em exemplos puramente pictóricos, também constitui um exemplo de exercí-
cio literário em que está em pauta a capacidade de sentir. Em outras palavras, a auto-
ra ocupa-se de quadros descritivos nos quais subjaz a intenção de ferir aquele que a
lê. No caso do polar, cujo eixo é o crime, esse procedimento atinge quase a banaliza-
ção, pois um bom texto policial deve ter o cuidado de acionar nos interlocutores uma
carga expressiva de perturbação visual. Quando, no terceiro capítulo desse trabalho,
expusemos a ligação de Kristeva com as telas de Georgia O’Keeffe, intuitivamente
recorremos a alguns retratos da pintora tirados por Stieglitz. Chamou-nos a atenção a
semelhança entre a delicadeza simultaneamente porosa e acetinada das flores, dos
esqueletos brancos de vacas pintadas pela escritora e as fotografias tiradas pelo ma-
rido da pintora, nas quais ele expunha fragmentos da pele alva e os ossos salientes de
O’Keeffe. Nessas semelhanças entre a pintura e a fotografia desenhou-se o esboço de
uma forma que pode ser chamada de “feminina” de ver, pois O’Keeffe segue a linha
451
de Artemisia Gentileschi, que é o desafio de olhar sendo historicamente sugestionada
simplesmente à realização de ser olhada. Ao lermos o artigo de Kristeva intitulado
“A forma inevitável” (“La forme inévitable”), de O ódio e o perdão (La haine et le par-
don), percebemos que ela também tece alguns exemplos de pungência ao entrar em
contato com fotografias de Stieglitz, no entanto a autora não as relaciona à obra de
O’Keeffe (embora exista uma sugestão que não é por ela desenvolvida). Kristeva in-
teressa-se sobretudo pela relação do casal e sugere que Georgia deve ter sido a mu-
lher mais fotografada do mundo, pois, em 20 anos, Stieglitz tirou mais de trezentas
fotografias da pintora (2005: 482). Fascinada pelo poder de observação de Stieglitz,
Kristeva elege uma foto entre tantas, assim como fizemos ao analisar algumas ima-
gens da pintora tiradas pelo seu marido em nosso segundo capítulo. A escolha da au-
tora recai sobre um retrato chamado “Georgia O’Keeffe após o seu retorno do Novo
México
1
” (“Georgia O’Keeffe après son retour du Nouveau-Méxique”). O pungente,
para Kristeva, aparece no que chama de austeridade do rosto, na descrição de um de-
talhe do pescoço e também nas mãos da pintora, um detalhe semelhante ao que a au-
tora de Visões capitais aponta no Auto-retrato de Artemisia. No exemplo de Artemisi-
a, o pungente insinua-se no fragmento do braço da pintora, o qual leva imediatamen-
te à técnica, ou seja, à capacidade de produzir dessa pintora. Possivelmente, o mais
pungente para Kristeva esteja na subjacência do gesto de criar que pode ser visto nos
braços roliços de Artemisia ou na delicadeza das mãos de O’Keeffe, as quais são fla-
gradas em muitas poses de uma hábil coreografia cujo destino é fabricação de ima-
gem.
Em sua trilogia do gênio feminino, Kristeva, ao escrever sobre a obra de Han-
nah Arendt, expõe aspectos biográficos da pensadora e tece comentários sobre algu-
mas fotografias de Arendt, as quais podem ser interpretadas à luz de sua manifesta-
ção do punctum barthesiano. Com base em alguns detalhes que localiza numa ima-
1
“Adossée à une grosse voiture, une sorte de camionnette – on voit la vitre arrière et la roue
de secours fixée en dessous -, Georgia se tient droite, fière, détachée et quelque peu pro-
vocante. Le visage est d’une austère tendresse, qui semble contempler à l’extérieur un
monde intérieur imprenable et inévitable. Les cheveux tirés, le long cou dégagé lui don-
nent l’air d’une danseuse. L’érotisme vient des mains, elles introduisent la grâce nerveu-
se d’une mouvement suspendu” (“La forme inévitable”, 2005: 484).
452
gem cristalizada no e pelo tempo, Kristeva sintetiza momentos da vida dessa autora,
como o envolvimento amoroso com Heidegger e a postura da filósofa em universo
marcadamente masculino:
Uma foto do fim dos anos 50 proporciona, a meu ver, a imagem mais
perturbadora da “compreendedora”. A tensão de penetrar (...), de
desvendar, confere a seu rosto um ar masculino e uma voracidade
irônica. Não obstante, o sorriso e o olhar triunfantes continuam ilu-
minados por uma doçura furtiva que traduz e transmite confiança,
tanto quanto cumplicidade. Mas a maturidade e o combate intelectu-
al fizeram desaparecer a jovem de cabelos longos que, aos dezoito
anos, havia seduzido o seu Platão de Maburgo. A própria menina do
cigarro, que atraía com um perfil concentrado o público de uma con-
ferência em Nova York, em 1944, ficou brutalmente fixada
1
(O gênio
feminino. Hannah Arendt, 2002: 39).
Curiosamente, Kristeva não procede do mesmo modo ao escrever o volume
sobre Colette, escritora que não se opunha ao espetáculo e revelava afinidade com o
aparecer. Não suficientemente distante dessa forma espetacularizada (Arendt atuou
como jornalista e seu livro sobre Eichmann gerou discussão na imprensa), Kristeva
interpreta a possível recepção de Arendt sobre esse tipo de análise: “Hannah Arendt
detestava a celebridade, mas não parava de celebrar o aparecer e o espetáculo: ela,
sem dúvida, não teria desaprovado que as pessoas se devorassem sobre os traços que
ela deixava de suas aparições
2
”. Como um fecho analítico, Kristeva constata que a fo-
to tirada no final da década de 1950 traz à tona a negociação da bissexualidade psí-
quica da pensadora e pode ser vista como um “desabrochar viril” (2002: 41). Uma ou-
tra referência de Kristeva às máquinas fotográficas aparece em Os samurais, seu pri-
meiro romance, no qual se desenham aspectos biográficos de sua trajetória intelectual
e afetiva. Olga Morena, protagonista e alter ego da escritora, desembarca em Paris, tal
1
“Une photo de la fin des années 50 livre, à mes yeux, l’image la plus troublante de la
“compreneuse”. La tension de pénétrer (..), de percer à jour, confère à son visage un air
masculin et une voracité ironique. Cependant, le sourire et l’oeil conquérants demeurant
illuminés par une furtive douceur qui traduit et transmet confiance autant que compli-
cité. Mais la maturité et le combat intellectuel ont fait disparaître la jeune fille suave aux
cheveux longs qui avait séduit à dix-huit ans son Platon de Mabourg. La garçonne à la
cigarette elle-même, qui appelait d’un profil concentré le public d’une conférence à New
York en 1944, s’est brutalement fixée” (Le génie féminin. Hannah Arendt., 1999: 57-59).
2
“Hannah Arend détestait la célébrité, mais ne cessait de célébrer l’apparaître et le specta-
cle: elle n’aurait sans doute pas désapprouvé que l’on s’attardât sur les traces qu’elle
laissait de ses apparitions” (Le génie féminin. Hannah Arendt, 1999: 59).
453
como Kristeva relata em suas entrevistas, com apenas 5 dólares no bolso, a promessa
de uma bolsa do estudos e uma máquina fotográfica. Em um trecho de Os samurais,
percebemos o forte vínculo da escritora com a máquina:
(Ela continuava fotografando os schweppes, os bules de chá, os kirs.)
- Escute aqui, você não é meio japonesa, metralhando sem parar com
essa máquina?
Faziam-na rir. Fotografá-los era ainda seu retiro pessoal, seu desa-
cordo com o mundo. Trágico ou cômico? Paradoxo
1
(Os samurais,
1996: 18).
Um breve relato de uma viagem à China está na diegese d’ Os samurais. Sabe-
se que alguns integrantes do grupo Tel Quel (Kristeva, Sollers e Barthes) viajaram pa-
ra a China. Para Kristeva, essa viagem rendeu um livro chamado Des chinoises, no
qual ela aponta semelhanças e diferenças culturais entre Ocidente e Oriente. No dis-
curso de Olga, a sua experiência na China condensa uma expressiva parte da teoria
da linguagem de Kristeva desenvolvida em A revolução da linguagem poética, pois o
que a personagem chama de língua tonal, uma forma de comunicação dos chineses
que é possível desde as crianças de seis ou sete meses, apesar de não ser praticada
pelas crianças ocidentais, uma vez que não dispomos dessa riqueza de modulações
na voz, contribui possivelmente para que Kristeva reflita sobre a condição de uma
linguagem antes da distinção de fonemas, palavras, frases. É provável que esteja na
observação desse discurso estrangeiro o esboço da articulação do semiótico, os fun-
damentos do genotexto/fenotexto. Não apenas os chineses, mas eles em maior inten-
sidade, realizam essa comunicação sem palavras, transverbal (para usar o termo re-
corrente de Kristeva), mas também nas crianças do Ocidente a teórica observa essa
necessidade de expressão. No mesmo capítulo destinado a descrever alguns aspectos
sobre a viagem à China, Olga Morena, sempre com a sua máquina nas mãos, apro-
veita para tirar alguns retratos e para refletir sobre a técnica:
Feliz e, curiosamente, a fotografia e, melhor ainda, o cinema são in-
1
“(Elle continuait de photographier les schweppes, les théières, les kirs.)
- Dis donc, tu ne serais un peu japonaise, à mitrailler sans arrêt avec ton appareil?
Ils la faisaient rire. Les prendre en photo, c’était son retrait à elle, son désaccord avec le
monde. Tragique ou comique? Paradoxe” (Les samouraïs, 1990: 23).
454
terlocutores. Mudos, parecem não reagir. Mas guardam nosso olhar,
registram nosso interesse e lhes respondem, acentuando-os e restitu-
indo-os mais nítidos, mais belos, ou mais falhos que o que pensamos.
Sobretudo, a foto avalia. É essencial avaliar quando uma imensidão
nos devora: inúmeras cabeças, uma multidão de bronzes, estátuas,
caligrafias e slogans que nos reduzem a um grão de arroz perdido
num monte de gigantes derretendo-se ao sol. O mais difícil é separar
os rostos. Por exemplo, rostos de crianças: um encanto solar, o amor
ao alcance da objetiva
1
(Os samurais, 1996: 177).
O fascínio da autora d’Os samurais pelas máquinas fotográficas atenua-se em
parte em seus romances posteriores. Todavia, subsiste na autora dos policiais a von-
tade olhar que está na base da descrição do mal, da manifestação da pulsão da morte
que esses romances policiais incitam a refletir sobre. A fotografia, conforme Barthes a
pensa, congela um tempo, por isso atua justamente ao lado da morte. Nos exemplos
dos romances policiais, a descrição detalhada dos assassinatos assemelha-se a instan-
tâneos habilmente retratados por narradores-fotógrafos cuja intenção é a de ferir seus
receptores. As obras de Clarice que fazem parte do nosso corpus não tratam direta-
mente da vontade de matar, no entanto toda a obra clariciana desperta em seus leito-
res tonalidades afetivas as quais têm como pano de fundo o retrato de uma cena, ou
seja, a descrição fotográfica de uma ambiente que foi rapidamente absorvido e depois
vertido em palavras. Em Perto do coração selvagem, romance de estréia de Clarice Lis-
pector, observamos que o punctum se manifesta, de forma mais surpreendente, atra-
vés de uma personagem secundária. O punctum, que, como no exemplo a seguir, po-
de ser apenas um “detalhe”, arrebata o leitor (correspondente ao spectator), por meio
do flagrante de uma idosa:
No rosto seco e rugoso repentinamente, um veio d’água no deserto,
os dois pequenos brilhantes tremiam de suas orelhas murchas, duas
pequenas gotas úmidas, cintilantes. Ah, eram excessivamente frescas
e voluptuosas... A velha possuía bens. Mais se usava os pendentes
1
“Heuresement, curieusement, la photographie et, mieux encore, le cinéma sont des interlo-
cuteurs. Muets, ils ne semblent pas réagir. Mais ils retiennent votre regard, enregistrent
votre intérêt, et leur répondent en les accentuant et en les restituant plus nets, plus beaux
ou plus ratés que vous l’aviez cru. Surtout, la photo discerne. Il est essentiel de discerner
quand tant d’immensité vous dévore: des têtes innombrables, une foule de bronzes, des
statues, de calligraphies et de slogans qui vous réduisent à un grain de riz perdu dans un
tas géant en train de fondre sous le soleil. Le plus dur, c’est de trier les visages. Par e-
xemple, les visages d’enfants: un charme solaire, l’amour à portée d’objectif” (Les
samouraïs, 1990: 251-252).
455
era por uma razão que ele nunca soubera: ela própria comprara as
pedras, mandara engastá-las em brincos, carregava-os como dois fan-
tasmas sob os cabelos grisalhos e arrepiados (Perto do coração selva-
gem, 1998: 86-87, grifos nossos).
O narrador posiciona uma lente de aumento sobre rosto da senhora, fragmen-
tando a face da mulher, porque, no seu retrato, primeiro estão os “dois pequenos bri-
lhantes” ou o punctum barthesiano; em seguida surgem os demais índices da deca-
dência física da personagem: “orelhas murchas”, “cabelos grisalhos e arrepiados”.
No conto “Instantâneo de uma senhora” – presente no volume Para não esque-
cer
1
–, a relação que a narradora estabelece entre o ato fotográfico, levando em consi-
deração uma das acepções de instantâneo
2
e a velhice é ainda mais explícita. A se-
nhora em questão é descrita com as características transpostas de uma galinha: “Era
volumosa, e cheirava a quando a galinha vem meio crua para a mesa. Tinha cinco
dentes e a boca seca” (1999: 16). O conto aborda a indiferença do filho em relação à
degradação física de sua mãe e o conseqüente afastamento que se estabelece entre os
dois. No entanto, isto só se revela através das descrições da senhora, que denunciam
a ruptura dos laços familiares entre eles. Na visita que ela faz ao filho, fica evidente a
distância entre eles: “Mas houve a segunda-feira de manhã em que ela, em vez de sa-
ir do quarto, veio da rua. Estava lisa e com o pescoço claro, sem nenhum cheiro de
galinha” (1999: 16). Essas metáforas justificam o título do conto, que se mostra exem-
plar no que concerne ao punctum. Duas descrições ganham destaque nessa investiga-
ção do pungente no texto, pois fragmentam ainda mais o corpo da senhora. Quando
ela regressa à pensão onde morava, na rua São Clemente, a mulher está ainda desca-
racterizada ou, em outras palavras, construidamente arrumada para agradar ao filho
e à nora. Dessa forma, expõe-se e contrasta com os “pensionistas de robe”, deixando-
os “sem jeito”, pois: “via-se que os sapatos abotinados lhe apertavam os pés, mas con-
tinuou de visita, levantada a grande cabeça de profeta” (1999: 17, grifos nossos). Ao
1
Os textos reunidos no volume em questão constituíam, na edição de 1964, a segunda parte
da obra A legião estrangeira e esta recebia a denominação de Fundo de gaveta pela autora.
2
Instantâneo: Que se dá num instante; momentâneo, rápido; súbito. Fotografia com tempo
de exposição muito curto (Novo Aurélio, 1999: 1118). Referimo-nos à vinculação com a
fotografia.
456
lado dos sapatos abotinados e de todas as metáforas que a aproximam a uma gali-
nha, a transformação da senhora, à noite, é acompanhada de uma ausência cortante,
mediada por despojamento social refletido no corpo liberto, o qual atravessa os dois
ambientes. Ou seja, de volta à modesta pensão, depois de freqüentar a casa do filho –
onde tomara banho de imersão na “confortável banheira da nora” –, desfaz-se a con-
tenção da personagem: “Na hora do jantar apareceu para uma xícara, de olheiras
marrons, com o largo vestido de estampazinha de ramagem, e de novo sem soutien”
(1999: 17, grifo nosso).
Retornando à análise de algumas personagens de Perto do coração selvagem
1
– a
protagonista Joana, cuja natureza rebelde destaca-se nos estudos literários de cunho
feminista
2
–, confirma a perspectiva da investigação dos detalhes, na medida em que
sua descrição se contrapõe à de sua rival Lídia. Enquanto os lábios de Lídia – a aman-
te – são pintados de claro e têm linhas vagarosas, Joana assume o peso do “batom es-
curo”, “sempre escarlate”. As cores e formas suaves de Lídia a colocam numa posi-
ção de vítima, ainda que ela seja a amante
3
:
Os lábios grandes de Lídia, de linhas vagarosas, tão bem pintados de
claro, enquanto eu de batom escuro, sempre escarlate, escarlate, o
rosto branco e magro. Esses seus olhos castanhos, enormes e tranqüi-
los, talvez nada tenham a dar, mas recebem tanto que ninguém po-
deria resistir, muito menos Otávio (Perto do coração selvagem, 1998:
143).
O punctum dessas duas personagens descortina-se, sobretudo, na descrição
das mãos. Enquanto as mãos de Joana revelam-se “esboçadas” e “solitárias”, for-
mando “traços para a frente e para trás”, agindo como um “pincel molhado em bran-
co-triste”, além de serem constantemente levadas à testa, as mãos de Lídia não de-
1
Não pretendemos análise exaustiva do que classificamos como personagens fotográficas
em Clarice Lispector. Elegemos, no entanto, alguns exemplos que justificam a escolha e a
articulação teórica sugerida.
2
Destacamos a importantíssima análise de Lucia Helena em Nem musa, nem medusa, que re-
cupera a recepção de Clarice em outros países.
3
Se alguns dos exemplos encontram-se também no nosso segundo capítulo, não se trata de
uma simples repetição, mas porque tais exemplos constituem o punctum na nossa leitura
desde a Revolução poética em Água viva e não se alteraram desde então. Além disso, pode-
se, por meio dessa recorrência, marcar o vínculo entre o corpo e a técnica.
457
monstram quaisquer sinais de hesitação. Isolada do sistema de ações da narrativa, a
apreensão de tais referências tece o destino dessas mulheres:
As de Lídia – recortadas, bonitas, cobertas por uma pele elástica, ro-
sada, amarelada, como uma flor que vi em alguma parte, mãos que
repousam em cima das coisas, cheias de direção e sabedoria (Perto do
coração selvagem, 1998: 144).
Em O lustre, a fragilidade da protagonista, manifesta pela sua inadaptação à cidade
grande, é evidente no retrato impreciso desenhado pelo narrador:
Olhava-se no espelho, o rosto branco e delicado perdido em penum-
bra, os olhos abertos, os lábios sem expressão. Ela se agradava, gostava
daquele seu jeito, fino, tão sinuoso, dos cabelos sombreados, de seus
ombros pequenos e magrinhos (O lustre, 1999: 63, grifos nossos)
Virgínia perambula por alguns ambientes como a Granja Quieta e a mansão
onde mora uma de suas tias velhas, Henriqueta. O retrato que o narrador faz dessa
senhora acompanha a natureza irrefletida da protagonista, pois a tia, a despeito da
vivacidade de um corpo sujeito a caracterizações de um observador atento, não es-
conde algo de objeto. Veremos em que medida ela se torna inumana, até mesmo i-
norgânica:
Henriqueta era alta, corada e lenta. O rosto de pele lisa muito sedosa
manchava-se de sardas grandes e brilhantes; o pescoço unia-se ao
corpo em curvas como numa boneca de louça; era calva, usava um
chinó ralo preso por uma fita, vestia uma saia feita de fazenda casta-
nha enegrecida, longa até os pés inchados e sardentos. Movia-se de-
vagar hesitando como se seus pensamentos fossem sempre interrom-
pidos por novas idéias e ela restasse muda e confusa – mas seu rosto
era de surpresa e bondade (O lustre, 1999: 118).
De forma análoga à personagem Virgínia, Lucrécia Neves, em A cidade sitiada,
oblitera-se nas formas de São Geraldo e nos ambientes onde circula. A ambição cari-
catural da protagonista faz com que seus acessórios apareçam em primeiro plano, e,
a partir daí, ela transfigura o subúrbio com o olhar:
Lucrécia Neves precisava de inúmeras coisas: de uma saia quadricula-
da e de um pequeno chapéu da mesma fazenda; há tanto tempo precisa
se sentir como os outros a veriam de saia e chapéu quadriculados, a
cintura bem nos quadris e uma flor na cintura: assim vestida ela olha-
ria o subúrbio e este se transformaria (A cidade sitiada, 1949: 40, grifos
nossos).
458
O risível em Lucrécia encontra-se no excedente de sua caracterização, que lhe
confere certa pureza, amenizando seu comportamento aparentemente interesseiro de
“moça casadoura” em busca de um marido, quase arrivista: “estava vestida de azul,
cheia de fitas e pulseiras. O chapéu se enterrava até as sobrancelhas por força do gos-
to intransponível da moda. A bolsa encarnada tinha miçangas...” (1949: 36-37). O
pungente da protagonista está no contraste do corpo que se esconde entre as vesti-
mentas incongruentes porque desatualizadas e também desproporcionais para as
dimensões exíguas da cidade de São Geraldo. Enquanto “sua forma de se exprimir
reduzia-se a obem..” (194922),em Lucrécivêma monaie,as poissidosíguao cesza,ssiml,
459
Em A maçã no escuro, a longa trajetória mística de Martim, classificada por Be-
nedito Nunes como a “imagem de uma peregrinação simbólica da alma” (1989: 41), en-
contra na primeira parte do romance “Como se faz um homem” – onde o protago-
nista está mais próximo da natureza do que das mulheres da fazenda – certo despo-
jamento
1
das características que até agora mediaram a análise do punctum barthesia-
no. Sem as cores marcantes de Joana e de Lucrécia Neves, é a inexpressividade de
Martim que chama a atenção e lhe confere a poeticidade captada por Vitória:
Olhou-o de novo. Mas a verdade mesmo é que aquele homem parecia
não pensar em nada – constatou então com mais calma. Na cara dele
havia permanecido a estremecível sensibilidade que o pensamento
dá a um rosto: mas ele não pensava em nada. Talvez tivesse sido isto
que a horrorizava (A maçã no escuro, 1992: 61).
Na ausência de um rosto fragmentado a ser descrito, isto é, sem o destaque
para a expressão dos olhos ou para o formato da boca, a fotografia de Martim, pelo
menos na primeira parte do romance, espalha-se numa sensibilidade difusa. O pun-
gente nesse protagonista, percebido por Vitória, está no suplemento de sua ausência,
na inação mental que horroriza a mulher porque é da ordem do sensível. O percurso
de G.H., em A paixão segundo G.H., semelhante ao de Martim, mostra-se tenso e dolo-
roso. O nome abreviado da protagonista – G.H. – já indicia o processo de despoja-
mento da personagem, que comenta sua experiência como uma perda de sua “mon-
tagem humana” (1998: 12). Esse romance em primeira pessoa aproxima o leitor do
narrador, fazendo-o parte do punctum de Barthes, na medida em que a personagem
narradora conclama a presença de uma mão que, num primeiro momento, parece
impessoal: “Enquanto escrever e falar vou ter que fingir que alguém segura a minha
mão” (1998: 18). Em seguida, G.H. confere identidade à mão isolada, e o narratário
flagra-se como alvo e vítima do pungente na escritura clariciana:
Oh pelo menos no começo, só no começo. Logo que puder dispensá-
la, irei sozinha. Por enquanto preciso segurar esta tua mão – mesmo
1
No texto de Benedito Nunes está exposta uma aproximação com o punctum: “Em transe
diante daquilo que vê, o personagem tem um conhecimento sem palavras. São momentos
de repentina clarividência, de instantâneo descortínio: percepção extasiada que o esvazi-
a, reduzindo a vida de seu espírito a uma expressão mínima, rudimentar, que confina
com o torpor vegetativo e com a imobilidade animal” (1989: 42).
460
que não consiga inventar teu rosto e teus olhos e tua boca. Mas em-
bora decepada, esta mão não me assusta. A invenção dela vem de tal
idéia de amor como se a mão estivesse realmente ligada a um corpo
que, se não vejo, é por incapacidade de amar mais. Não estou à altu-
ra de imaginar uma pessoa inteira porque não sou uma pessoa intei-
ra. E como imaginar um rosto se não sei de que expressão de rosto
preciso? Logo que puder dispensar tua mão quente, irei sozinha e
com horror (A paixão segundo G.H., 1998: 18, grifos nossos).
Na trajetória de G.H., assim como a narradora, também somos levados ao pro-
cesso de fragmentação. Dessa forma a acessibilidade ao exercício do poético nos re-
tratos de Clarice se explicita, uma vez que a personagem-narradora faz uma série de
alusões ao próprio ato fotográfico:
Às vezes, olhando um instantâneo tirado na praia ou numa festa,
percebia com leve apreensão irônica o que aquele rosto sorridente e
escurecido me revelava: um silêncio. Um silêncio e um destino que
me escapavam, eu, fragmento hieroglífico de um império morto ou
vivo. Ao olhar o retrato eu via o mistério (A paixão segundo G.H, 1998:
24).
Tal como observa Vitória de A maçã no escuro, em A paixão segundo G.H. so-
bressai-se novamente o inexpressivo, no jogo do retrato que simultaneamente revela
e esconde:
Talvez tenha sido esse tom de pré-clímax o que eu via na sorridente
fotografia mal-assombrada de um rosto cuja palavra é um silêncio
inexpressivo, todos os retratos de pessoas são um retrato de Mona
Lisa (A paixão segundo G.H, 1998: 27).
Essa tensão entre o inalcançável e “a certeza de que se esteve lá” barthesiana –
característica, aliás, também admitida por Philippe Dubois no percurso histórico que
ele faz da fotografia em O ato fotográfico (2001) – reforça o sentido suplementar pre-
sente em alguns retratos, tal como reitera a personagem-narradora:
Somente na fotografia, ao revelar-se o negativo, revelava-se algo que,
inalcançado por mim, era alcançado pelo instantâneo: ao revelar-se o
negativo também se revelava a minha presença de ectoplasma. Foto-
grafia é retrato de um côncavo, de uma falta, de uma ausência? (A
paixão segundo G.H, 1998: 31).
461
A essa auto-imagem, a qual G.H. chama de “imagem de mim entre aspas”
(1998: 31) ou a “imagem do não-ser” (1998: 31), soma-se a vista do seu apartamento,
que se transforma com o olhar, tal como a protagonista de A cidade sitiada: “eu olhava
a vista, provavelmente com o mesmo olhar inexpressivo de minhas fotografias”
(1998: 35). O inexpressivo em Clarice, no entanto, reveste-se de extrema importância,
pois sua busca aspira a uma almejada neutralidade: “Eu, que tinha como meu tema
secreto o inexpressivo. Um rosto inexpressivo me fascinava; o momento que não era
de clímax me atraía” (1998: 142). Essa neutralidade, em contrapartida, depende de
um substrato corporal. A experiência mística, proporcionada pelo encontro com a ba-
rata, repercute sobre o corpo da protagonista, pois, conforme a personagem narrado-
ra, trata-se de dor física, ainda que metafórica: “Foi preciso a barata me doer tanto
como se me arrancassem as unhas” (1998: 114-115). No clímax do romance – o impas-
se entre ela e a barata –, a aflição de G.H. é acompanhada da seqüência que focaliza
parte do seu corpo, detalhando-o e, por conseguinte, separando-o como se se tratas-
sem de partes independentes: mãos, pés e pernas. G.H. revela-se tão dilacerada
quanto a barata:
Apaguei a ponta do cigarro que já me queimava os dedos, apaguei-o
no chão minuciosamente com chinelo, e cruzei as pernas suadas,
nunca pensara que a perna pudesse suar tanto. Nós duas, as soterra-
das vivas. Tivesse eu coragem, e enxugaria o suor da barata (A paixão
segundo G.H, 1998: 93).
Mas foi preciso que a empregada Janair – cuja apreensão a personagem-
narradora só realiza na limpeza do quarto desocupado da mulher – aparecesse na
lembrança de G.H. para que ela iniciasse seu caminho para o inexpressivo:
Os traços – descobri sem prazer – eram traços de rainha. E também a
postura: o corpo erecto, delgado, duro, quase sem carne, ausência de
seios e de ancas. E sua roupa? Não era de surpreender que eu a ti-
vesse usado como se ela não tivesse presença: sob o pequeno avental,
vestia-se sempre de marrom escuro ou de preto, o que a tornava toda
escura e invisível – arrepiei-me ao descobrir que até agora eu não
havia percebido que aquela mulher era uma invisível (A paixão se-
gundo G.H., 1998: 41).
462
Também foi preciso que Janair, com seus traços delicados que “mal eram divi-
sados no negror apagado da pele” (1998: 41), desenhasse na parede do quarto para
que G.H. se percebesse através da invisibilidade flagrada pela empregada. Por meio
do contorno a carvão de “um homem nu, de uma mulher nua, e de um cão que era
mais nu do que um cão” (1998: 39), a personagem-narradora desperta para a sua ca-
pacidade de desnudamento:
E fatalmente, assim como ela era, assim deveria ter me visto? abstra-
indo daquele meu corpo desenhado na parede tudo o que não era es-
sencial, e também de mim só vendo o contorno. No entanto, curio-
samente, a figura na parede me lembrava-me alguém, que era eu
mesma (A paixão segundo G.H, 1998: 41).
A descoberta de sua invisibilidade intensifica-se na visão ampliada da barata,
esta que vista de perto é “um objeto de grande luxo”, tal como uma “noiva de pretas
jóias” (1998: 71). A longa descrição que a personagem faz da barata e de sua inevitá-
vel ingestão antecedem o momento em que a narradora toca no mistério, espécie de
revelação de um instante que passa quase obliterado pela beleza do inseto ampliado
e pela estranheza do acontecimento. O transcendente da busca espiritual de G.H. é
comparado ao inapreensível dos retratos e, através do elemento moderno das lentes
fotográficas, manifesta-se a proximidade fugaz com o divino:
O que eu havia visto de tão tranqüilo e vasto e estrangeiro nas mi-
nhas fotografias escuras e sorridentes – aquilo estava pela primeira
vez fora de mim e ao meu inteiro alcance, incompreensível mas ao
meu alcance (A paixão segundo G.H., 1998: 64, grifo nosso).
Em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, o contraste entre o novo e o antigo
é novamente explorado pela escritora. Sobre a descrição de Lóri, essa personagem
que “não tinha um dia-a-dia mas sim uma vida-a-vida” (1998: 35) – ela, que já tivera
cinco amantes ocasionais e morava sozinha –, só é plenamente apreendida quando
está em contato com a natureza, como num banho de mar:
A garganta alimentada se constringe pelo sal, os olhos avermelham-
se pelo sal que seca, as ondas lhe batem e voltam, e batem e voltam
pois ela é um anteparo compacto. (...) de algum modo obscuro seus
cabelos escorridos são de náufrago (Uma aprendizagem ou o livro dos
prazeres, 1998: 80).
463
Lóri, que no início de sua “busca do mundo” (1998: 122), como num ritual, se
enfeita para o namorado – Ulisses – possui algo de rainha egípcia que lhe escapa:
riqueza ainda maior seria a de esconder com os cabelos as orelhas de
corça e torná-las secretas, mas não resistiu: descobriu-as, esticando
os cabelos para trás das orelhas incongruentes e pálidas: rainha egíp-
cia? não, toda ornada como as mulheres bíblicas, e havia também al-
go em seus olhos pintados que dizia com melancolia: decifra-me,
meu amor, ou serei obrigada a devorar, e (Uma aprendizagem ou o li-
vro dos prazeres, 1998: 17).
Na metade de sua trajetória amorosa, Lóri, voltando de uma festa, excessiva-
mente pintada – ela que usava a “máscara da pintura excessiva” (1998: 85) – esbarra
no seu auto-retrato, através do motorista de táxi - “O modo como o chofer olhou-a fê-
la adivinhar: ela estava tão pintada que ele provavelmente tomara-a como uma pros-
tituta. ‘Persona’” (1998: 85). Acontece algo no táxi que o narrador classifica como
humilhante:
por causa de um olhar passageiro ou de uma palavra ouvida do cho-
fer – de repente a máscara de guerra da vida crestava-se toda como
lama seca, e os pedaços irregulares caíam no chão como um ruído
oco. E eis o rosto agora nu, maduro, sensível quando já não era mais
para ser (Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, 1998: 86).
É o namorado, Ulisses, o pedante professor de filosofia, que expõe o punctum
da protagonista. Ele a percebe tal como ela se vê no espelho, pois capta no rosto dela
algo de despojamento enigmático: “Teu rosto, Lóri, tem um mistério de esfinge: deci-
fra-me ou te devoro” (1998: 89). O discurso direto de Ulisses revela o jogo clariciano,
que circula entre o novo do flash fotográfico e o antigo de natureza mítica:
- Você anda, Loreley, como se carregasse uma jarra no ombro e man-
tivesse o equilíbrio com uma das mãos levantadas. Você é uma mu-
lher muito antiga, Loreley. Não importa o fato de você se vestir e se
pentear de acordo com a moda, você é antiga. E é raro encontrar uma
mulher que não rompeu com a linhagem de mulheres através do
tempo (Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, 1998: 98).
A busca da protagonista depende do outro, por isso Benedito Nunes (1989: 79)
constata no romance o jogo das unidades monologais que se misturam às unidades
dialogais. Lóri, portanto, no seu “corpo-a-corpo com a vida” (1998: 77), precisa de U-
464
lisses, pois a natureza reflexiva da protagonista se revela bastante desenvolvida no
que diz respeito à captura do pungente e reivindica a necessidade do outro:
Ela conhecia o mundo dos que estão tão sofridamente à cata de pra-
zeres e que não sabiam esperar que eles viessem sozinhos. E era tão
trágico: bastava olhar numa boate, à meia-luz, os outros: era a busca
do prazer que não vinha sozinho e de si mesmo (Uma aprendizagem ou
o livro dos prazeres 1998: 104).
A densidade da natureza reflexiva de Lóri explicita-se com a metáfora da ma-
çã, o proibido ao alcance – não mais de Martim, de A maçã no escuro, mas de uma pro-
tagonista feminina. O vermelho revelado (no sentido químico de Barthes) é tocado
por ela, pois, em seguida, nas palavras de Ulisses, ela desabrocha em “vermelho-
sangue” (1998: 153):
465
– Sabe o que mais eu aprendi? Eles disseram que se devia ter alegria
de viver. Então eu tenho. Eu também ouvi uma música linda, eu até
chorei.
– Era samba?
– Acho que era. E cantada por um homem chamado Caruso que se
diz que já morreu. A voz era tão macia que até doía ouvir. A música
chamava-se “uma furtiva Lacrima”. Não sei por que eles não disse-
ram lágrima (A hora da estrela, 1999: 50-51)
É através de uma fotografia que o pungente de Olímpico de Jesus, persona-
gem preocupado com o seu status social, vem à tona, por meio do sorriso faiscante:
Havia, no começo do namoro, pedido a Olímpico um retratinho ta-
manho 3x4 onde ele saiu rindo para mostrar o canino de ouro e ela fi-
cava tão excitada que rezava três pai-nossos e duas ave-marias para
se acalmar (A hora da estrela, 1999: 61, grifos nossos).
Olímpico, apesar do comportamento estereotipado, não se inclui na tipologia
de personagens planas. Da mesma forma que Macabéa, ele se compõe de modo inu-
sitado, pois é capaz de fazer esculturas em madeira e, no entanto, trabalha como me-
talúrgico. Ele também é uma estrela que não se percebe: “(Quanto ao paraibano, na
certa devo ter-lhe fotografado mentalmente a cara – e quando se presta espontânea e
virgem de imposições, quando se presta atenção a cara diz quase tudo)” (1999: 57).
Podemos considerar A hora da estrela paradigmático no que tange à elaboração
de personagens captadas como o instantâneo obtido pelas lentes fotográficas. Rodri-
go, o narrador-spectator, expõe essa tentativa de comunicação paradoxal. O exercício
clariciano de fazer um livro “sem palavras” – ou seja, a impossibilidade de prescindir
do signo e, ao mesmo tempo, a necessidade de eclipsá-lo em função do poético – co-
aduna-se com a presença-ausência, o estar lá e o não estar barthesiano, característico
das fotografias. É essa transposição, mediada por retratos, que o personagem narra-
dor trabalha em A hora da estrela, revelando (também no sentido químico), extensi-
vamente, o conflito lispectoriano, que fica no limite sígnico da apreensão de nuanças
invisíveis: “Juro que este livro é feito sem palavras. É uma fotografia muda. Este livro
é um silêncio. Este livro é uma pergunta” (1999: 15). O entre parênteses, uma forma
implícita da escrita clariciana, corrobora essa composição instantânea: “(Se estou de-
466
morando um pouco em fazer acontecer o que já prevejo vagamente, é porque preciso
tirar vários retratos dessa alagoana)” (1999: 39).
Quanto à Água viva, essa narração do instante-já, que “acende e apaga, acende
e apaga” (1973: 16), tal como o obturador de uma máquina fotográfica, a pintora, no
seu discurso entrecortado por luz artificial e natural, revela-se, em parte, de maneira
distinta das demais protagonistas claricianas.
Tal como evidenciamos nos exemplos sobre as personagens de Clarice, as co-
res vermelhas das protagonistas, que enfatizamos na apreensão do punctum, opõem-
se ao maquinismo de uma interrupção oriunda da técnica. Em Água viva, a pintora
flagra-se em sucessivos “instantes que pingam grossos de sangue” (1973: 24). Não e-
xiste, nesse sentido, a mediação das unhas escarlates, roídas rente à carne dos dedos
de Macabéa, tampouco o batom vermelho-escarlate de Joana ou o rosto carmim de
Lucrécia Neves, os quais constituem apenas alguns exemplos de humanidade trans-
bordante e encontram-se contrapostos à automação de um tempo que a diegese clari-
ciana denuncia, ainda que sutilmente, como marcado por interrupções artificiais. A
voz protagonal de Água viva, no entanto, desgasta essa mensagem – “Quero ser ‘bi-
o’” (1973: 40) –, de forma a eclipsá-la ao olhar da crítica
1
.
A inscrição dessa voz protagonal de Água viva percorre um caminho que não
pode ser abreviado, pois não é possível aceitar o apagamento da personagem nessa
obra. Constatamos, porém, que, a exemplo de outros textos em que a imagem foto-
gráfica, com seus recortes, coloca em evidência determinadas características desses
tipos claricianos, em Água viva, esse recurso não só está presente, mas se exacerba.
Existe, portanto, um processo de metacomposição, no que se refere à produção do
que elegemos como personagens de cunho pictórico-fotográfico. Todos os momentos
são fotografáveis, e a protagonista dilui-se em instantâneos que começam pelo deta-
1
Benedito Nunes, no ensaio “O improviso ficcional”, refere-se à Água viva como uma espé-
cie de continuação da experiência de esvaziamento presente em A paixão segundo G.H.,
trata-se de um “esvaziamento do sujeito narrador, que se desagrega” (1989: 156). Ele si-
tua a obra a partir da ausência: “sem enredo e sem personagens” (1989: 157). Para Olga
de Sá, é “uma escritura esquizóide, centralizada num ‘eu’ quase enlouquecido” (1999:
231). Para Neiva P. Kadota, em Água viva, “a personagem limita-se a voz do narrador,
que atravessa toda a narrativa” (1997: 62). A análise mais recente de Jeana L. C.Santos
(2000) compartilha dessa idéia de ausência, pois sustenta que “Água viva é a radicaliza-
ção da falta de vinculação do texto a um referente humano” (2000: 130).
467
lhe das mãos e alcançam, em determinado momento, comunhão com uma natureza
mítica:
Vejo que nunca te disse como escuto música – apóio de leve a mão na
eletrola (...) e o mundo treme nas minhas mãos (1973: 10); Quero co-
mo poder pegar com a mão a palavra (1973: 11); Mas estou tentando
escrever-te com o corpo todo (...) (1973: 11); Deixo-me ficar jogada no
chão, agreste, exausta, o coração ainda pula doido, respiro às golfadas.
(...) enxugo a testa molhada. Ergo-me devagar, tento dar os primeiros
passos de uma convalescença fraca (1973: 22); Mergulho na quase
dor de uma intensa alegria – e para me enfeitar nascem entre os
meus cabelos folhas e ramagens (Água viva, 1973: 25, grifos nossos).
Nesse trajeto do ser se formando, a personagem-narradora inicia a sua revela-
ção a partir das mãos, conferindo caráter metonímico a essa imagem – “o mundo
treme nas minhas mãos” (1973: 11). No seu romance de estréia, Perto do coração selva-
gem, o narrador, tal como evidenciamos na exemplificação do pungente, faz uma
longa descrição das mãos de Joana e de Lídia, representando, através dessas ima-
gens, as diversidades entre as personagens dissonantes. Em Água viva, as mãos com-
põem um personagem narrador que está em constante conflito com a palavra, pois a
narradora ambiciona pegá-la com as mãos. Em seguida, contrapondo-se a essa inten-
ção condenada ao fracasso, a pintora-narradora resigna-se à sua condição corpórea, à
medida que essa escrita convulsa encontra na alternativa “escrever-te com o corpo
todo” (1973: 11) uma espécie de mediação para o impalpável da palavra. Nessa busca
pela espessura do rarefeito, emerge a materialidade descarnada da “voz protagonal”,
a qual se liquefaz na rudeza do coração exposto e da distante alusão mítica, onde
nascem folhas e ramagens entre os cabelos.
A função da pintora que, conforme nos elucida Benedito Nunes (1989: 156), re-
side numa continuação de G.H. – a protagonista de A paixão segundo G.H. busca neu-
tralidade através do despojamento, por isso seu nome se reduz às iniciais –, encontra,
no entanto, nesse “eu” sem nomeação, a expressão da resistência de sua organicida-
de, a qual sugere a limitação desse despojamento, de acordo com a expressão: “Que-
ro ser ‘bio’” (1973: 40). Não se pode, então, deixar de admitir a existência de uma per-
sonagem em Água viva, pois a profusão de índices de corporalidade mostra sua pre-
sença.
468
A seguir, reaparece a metáfora metálica do espelho, que se insere nessa isoto-
pia do corpo. Inscreve-se como artefato (domínio do artificial) na construção da iden-
tidade daquele que se reconhece através do espelho, facultando ao contemplador –
mediado pela nitidez artificial da superfície refletora – “responsabilidade”, da qual
poderíamos depreender a passagem para um mundo civilizado, ou seja, com suas
implicações éticas decorrentes da razão. Sob o ponto de vista da materialidade, o es-
pelho reitera essa neutralidade limitada por índices corporais, a que a narradora am-
biciona, isto é, o “rosto nu”:
Antes do aparecimento do espelho a pessoa não conhecia o próprio
rosto senão refletido nas águas de um lago. Depois de certo tempo
cada um é responsável pela cara que tem. Vou olhar agora a minha. É
um rosto nu. E quando penso que inexiste um igual ao meu no mun-
do, fico de susto alegre (Água viva, 1973: 40, grifos nossos).
Em seguida, a narradora retorna à imagem (anafórica) do “coração batendo no
mundo” (1973: 41), a fim de marcar o vermelho, cor recorrente no conjunto da obra
de Clarice. A pintora-narradora, no acesso quase imediato ao vermelho do coração
pulsante, mistura-se ao reino vegetal, que lhe proporciona ainda mais visceralidade:
Sou um coração batendo no mundo. (...) Estou de olhos fechados. Sou
pura inconsciência. Já cortaram o cordão umbilical; estou solta no
universo (1973: 41); Sou uma árvore que arde com duro prazer (1973:
44); O nervo raivoso dentro de mim e que me contorce (1973: 45); Po-
nho sobre os cabelos o diadema de bronze (1973: 48); Mas eu me alimen-
tei com minha própria placenta. E não vou roer unhas porque isto é um
tranqüilo adágio (Água viva, 1973: 50, grifos nossos).
Os predicados referentes à placenta e às unhas, pospostos ao enunciado que
coloca a pintora-narradora em união com a natureza – “Sou uma árvore que arde”
(1973: 44) – plasmam-se a essa voz protagonal, a qual constitui uma espécie de refe-
rência do mundo, e ampliam a interpretação corrente desses signos. No sentido di-
cionarizado mais freqüente, levando-se em conta o contexto (no caso, trata-se da ca-
racterização de personagem feminina), a placenta refere-se a um “órgão discóide,
constituído por uma porção fetal materna, e que tem funções metabólicas de transfe-
rência de substâncias e de secreção endócrina” (1999: 1581). Na Botânica, a placenta
constitui um “tecido de folha carpelar sobre o qual se desenvolvem os óvulos, que ali
469
ficam inseridos” (1999: 1581). Ambas compartilham de funções nutricionais e, exten-
sivamente, de proteção, de forma a ampliar a noção corrente de placenta.
Coadunando-se com a isotopia da luminosidade, visto que pressupõe transpa-
rência (uma das esferas de luminosidade
1
contempladas em Água viva), a unha – to-
pos clariciano – constitui-se de “lâmina córnea semitransparente que recobre a ex-
tremidade dorsal dos dedos” (1999: 2029), ao mesmo tempo em que se funde à acep-
ção concedida pela Botânica, perfazendo a “base alongada e estreita de sépalas e pé-
talas” (1999: 2029). Observamos, portanto, a necessidade de uma espécie de invólu-
cro, como mediador para a apreensão desse corpo fracionado da personagem-
narradora, que atinge a fluidez do vermelho-sangue:
Quando penso no que já vivi me parece que fui deixando meus cor-
pos pelos caminhos (1973: 88); Os litros de sangue que circulam nas
veias. Os músculos se contraindo e retraindo. A aura do corpo em
plenilúnio (1973: 88, grifo nosso).
A passagem de Água Viva finaliza com um tema de discussão para Walter Ben-
jamin em seu ensaio “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”
(1936), no qual o filósofo reflete sobre uma possível perda da aura da arte em con-
fronto com a técnica. A fotografia e o cinema são manifestações da esfera técnica que
acarretam essa perda da aura, segundo Benjamin, uma vez que tornam acessíveis a
um grande público o que estaria encerrado anteriormente em única manifestação, e-
xibição ou exemplar. Percebemos algumas alusões a Andy Warhol na criação de am-
bientes do narrador-personagem Rodrigo S.M. de A hora da estrela (sabão Aristolino,
1
Essa isotopia, que não retomaremos em todas as manifestações do instante-já nesse traba-
lho, está desenvolvida em nossa dissertação de Mestrado e nela se observa o jogo do cla-
ro/escuro como artifício da narração fluida da pintora-narradora. Existe nesse núcleo
temático, no cruzamento do sentido do olfato com a metáfora técnica da máquina foto-
gráfica, uma importante pista que leva à metalização da narradora: “Com esta frase fiz
uma cena nascer, como num flash fotográfico” (1973: 25). Em outro instante, vemos o re-
torno dessa luz artificial: “Que estou fazendo ao te escrever? estou tentando fotografar o
perfume” (1973: 64) Mesmo no final, a metáfora técnica permanece: ”Ah, este flash de ins-
tantes nunca termina” (1973: 114). Em outro momento, percebemos os ecos da luminosi-
dade de lâmpadas que foram companhia de Joana e aqui se identificam com a narradora:
“estou à tona na brilhante escuridão” (1973: 14); “Eu viva e tremeluzente como os instan-
tes, acendo-me e apago, acendo e apago, acendo e apago” (1973: 16). Em outro instante-
já, o recurso à metáfora caleidoscópica oferece uma reflexão metadiscursiva: “Mas sou
caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes que aqui caleidoscopicamen-
470
Marilyn Monroe) que esbarram justamente na perda do poder aurático da arte, dado
que, no próprio objeto artístico, incitam a pensar a perda da originalidade. Warhol
radicaliza esse processo, sobretudo com a reprodução de latas de sopa ou das emba-
lagens de sabão em pó, pois leva a publicidade para o campo da arte.
Em História e narração em Walter Benjamin, Jeanne-Marie Gagnebin (1994: 64-65)
menciona uma carta de Benjamin para Adorno, de 4 de junho de 1936, na qual o filó-
sofo aproxima o ensaio sobre a reprodutibilidade e o flagrante das mudanças percep-
tivas (refere-se a mudanças no campo do tato e da visão) por ele evidenciadas acerca
da recepção das artes plásticas ao artigo, produzido pelo filósofo no mesmo ano, e
que recebe o nome de “O narrador”. Segundo Gagnebin, o conteúdo da carta resu-
me-se no “declínio da aura, declínio sensível não só nas novas técnicas do cinema e
da fotografia, mas também no fim da arte narrativa tradicional, de maneira mais am-
pla, na nossa crescente incapacidade de contar” (1994: 65). De que forma a morte, as-
sunto que está no centro da narrativa de Clarice Lispector, se mistura à técnica? Per-
cebemos uma pista no texto de Walter Benjamin sobre o narrador.
4.3 Mortes claricianas: contra a estética do desaparecimento
No texto de 1936, “O narrador: reflexões sobre a obra de Nikolai Lesskov”,
Benjamin sustenta, com base nesse escritor russo da metade do século XIX, o desapa-
recimento da arte de narrar. Da mesma forma, o ato de escuta também se encontra
em baixa, pois são poucas as pessoas dispostas a ouvir uma história. O autor localiza
a justificativa para o seu argumento na análise de seu tempo: “Não é verdade que no
final da guerra as pessoas voltavam mudas dos campos de batalha? E não vinham
mais ricas, mas sim mais pobres em experiência comunicável
1
” (1992: 28). Nessa me-
dida, o advento do romance acompanha as transformações sociais de um tempo no
te registro” (1973: 38).
1
Jeanne Gagnebin, sem a fechar a questão, sugere uma pergunta sobre essa desistência de
Benjamin: “Provocativamente, poderíamos nos perguntar se a teoria da literatura, em
Benjamin, cujo centro é a perda da tradição, a perda da narração clássica, a perda da aura
etc., não invalida sua teoria da historiografia revolucionária, definida como retomada e
rememoração salvadoras de um passado esquecido, perdido (...)” (História e narração em
Walter Benjamin, 1994: 2).
471
qual a técnica interfere sobre o impacto da narração. Benjamin distingue o romance
da narrativa. A referência da narrativa que ele nos passa é dos relatos épicos, por isso
ela se justifica na tradição oral. O romance, por sua vez, encontra legitimação no livro
e, por conseguinte, no desenvolvimento da técnica da impressão. Afastado do víncu-
lo com a oralidade, o romance está apto a tecer suas criações na solidão, dessa forma
foge à prática comum dos relatos orais apoiada na reunião de pessoas e no aconse-
lhamento. Ao mencionar Dom Quixote, o primeiro grande livro do gênero romanes-
co, Benjamin interpreta o protagonista como alguém isento da necessidade de dar
conselhos. O advento do romance deve-se, segundo Benjamin, ao domínio da bur-
guesia, à ascensão do capitalismo e à imprensa e sua nova forma de comunicação.
Sobretudo esse último item deve ser levado em conta em nossa busca por cruzamen-
tos entre a técnica e os costumes e podemos vê-lo explorado pelo pensador a partir
de uma frase do fundador jornal francês Figaro: “’Para os meus leitores – costumava
dizer – é mais importante um incêndio numa mansarda do Quartier Latin do que uma
revolução em Madri’” (1992: 34). Trata-se, portanto, conforme elucida Benjamin na
explicação desse fragmento que anuncia uma mudança dos hábitos, de uma prática
que se afasta significativamente daquelas narrativas épicas, as quais associavam a
expectativa pelo relato vindo de longe à credibilidade. A informação divulgada pelos
jornais, entretanto, inverte essa lógica da credibilidade, pois o que está mais próximo
se torna a notícia mais confiável. Com esse deslocamento, Benjamin observa a perda
do que chama de “criação”, uma vez que “Cada manhã somos informados sobre o
que acontece em todo o mundo. E, no entanto, somos tão pobres em histórias maravi-
lhosas!” (1992: 34). Decorre disso a perda do exercício das narrativas e o achatamento
da imaginação, dado que, ao não se dispor de todos os elementos na narração, é-se
estimulado a preencher as lacunas por meio da faculdade da imaginação.
Há também uma relevante causa para a perda da capacidade de narrar aven-
tada pelo filósofo: o ato de narrar histórias encontrava no tédio um aliado para a
memória, isto é, a fixação dos relatos ouvidos. Entretanto, as transformações da vida
moderna, o deslocamento para as cidades, por exemplo, são empecilhos para a re-
memoração e, por conseguinte, para troca de experiências vividas. A mudança que
nos interessa, e por isso fizemos essa breve introdução, situa-se na observação de
472
Benjamin sobre a morte, pois esta acompanha o movimento de transformação do re-
lato para o advento do gênero romance. Segundo o pensador, a modernidade modifi-
ca o que ele chama de “espetáculo da morte”, na medida em que são produzidos es-
paços para a morte (hospitais são um exemplo). Benjamin reconhece nesse gesto fa-
tal, que é o da morte, a eclosão da “experiência de vida” do indivíduo, o qual não se
reduz à mera transmissão de conhecimentos. Trata-se, nessa medida, de um momen-
to que se encontra, para o autor, na base das narrativas. Benjamin caracteriza o mo-
mento da morte como de agonia do indivíduo, pois é quando se misturam memórias,
situações vividas e também é quando o “inesquecível aflora”. Tal situação confere
autoridade àquele que está para morrer e essa autoridade constitui o que o autor de-
nomina de a “origem da narrativa”.
Se antes se morria em casa, na companhia dos mais próximos, também se de-
senha no texto de Benjamin que se costumava ouvir histórias acompanhado por ou-
tras pessoas; no entanto, a partir da modernidade tanto a morte quanto as histórias se
transformam em experiências solitárias. Apesar disso, para Benjamin, o ato da leitura
guarda algo do estar em companhia daquele que conta as histórias. Diferentemente
dos ouvintes antigos, os leitores de romances vivem uma condição solitária que é in-
trínseca ao ato de ler e segue disso, para Benjamin, uma ponte para se aproximar da
inexorabilidade da morte: “O que atrai o leitor para o romance é a esperança de que a
morte, que lhe é comunicada pela leitura, possa aquecer a sua fria vida” (1992: 48).
Clarice invade a condição solitária de seus leitores com algumas mortes que
produzem um efeito de perturbação técnica, ou, numa variação das palavras da pin-
tora-narradora, capaz de despertar uma sensação da ordem de suas metalizações.
Curiosamente, a primeira referência à morte técnica reveste-se de uma capa de inge-
nuidade e leveza. Na brincadeira de criança da personagem Joana, a protagonista de
Perto do coração selvagem, a vida de sua boneca Arlete é abruptamente interrompida
por um carro. Atravessada, pois é esse o verbo que escolhido por Joana - “Um carro
azul atravessava o corpo de Arlete, matava-a” – o narrador nos joga no centro de um
fantasma clariciano, qual seja, o horror de morrer de repente como se deixasse uma
história em andamento.
473
Em O lustre, publicado em 1946, o segundo romance de Clarice, retorna ao en-
redo da escritora a cena de uma morte causada pela técnica para embalar a solidão
de seus leitores. Virgínia, a protagonista que vaga da Granja Quieta para a casa de
duas tias solteironas desperta nesse movimento a suspeita de que seu destino não se-
rá suficientemente acabado. Clarice nos deixa uma pista no nome de uma das tias:
Arlete. O mesmo da boneca de Joana.
Em pé no jardim Virgínia rememorava suas relações com Arlete e de
seu prazer nascia a certeza de uma decadência cada vez maior de
uma depravação que afinal, sob a quentura do sol na cabeça desco-
berta e nas plantas cinzentas, resolvia-se num movimento de desâ-
nimo em que a fome recrudescia com novo ímpeto. Abaixando-se pa-
ra apanhar um graveto seco sentiu num sobressalto que alguém se
mantinha com indecisão à porta de casa. Voltou-se rápida – Arlete.
Riu com triunfo. A solteirona fitava-a. Arlete! (O lustre, 1999: 121).
No gesto de pegar um graveto morto do solo, percebemos o desafio também
que é Arlete para Virgínia. Anúncio de uma morte iminente cuja referência se esboça
no tom lúdico de romance de estréia, Arlete sai de sua condição inorgânica de boneca
e revela-se nesse romance sob uma aparência de medusa, pois ela encara a sobrinha
como se dela arrancasse um segredo inconfessável, mas também se esconde sob a ca-
pa frágil da falta de vigor que caracteriza a velhice. De modo a responder àquela fi-
gura amedrontadora, a tia Arlete, Virgínia resiste como se pedisse uma segunda
chance à vida: – Venha para o sol, disse-lhe com certa brutalidade (1999: 121). Como
resposta a narradora oferece-nos a sombria descrição de Arlete, que contrasta com as
cores de Henriqueta, a outra tia, injustamente comparada a uma boneca de louça e
que foi há pouco motivo para o pungente em nossa escolha de personagens com tons
fotográficos. Inorgânica e semelhante a um objeto é Arlete:
Arlete apoiava-se à parede, o corpo magro sob o vestido preto de
domingo, lavado, desbotado; o talco manchava o rosto cinzento e a-
batido – o ralo cabelo prendia-se em tranças úmidas. E como ela não
respondesse, os olhos brilhantes olhando para Virgínia com frieza,
esta não se conteve e num movimento voluptuoso e ousado murmu-
rou-lhe:
– Tem medo de não suportar...
A outra não respondia. E como a situação se tornasse muito estranha
e subisse à tona uma realidade nova e sincera Virgínia acrescentou
um pouco assustada:
– Está um calor aqui fora...
474
– Sim, respondeu finalmente Arlete. Queimaram-se as plantas (O lus-
tre, 1999: 121-122).
Esse desajuste entre as duas chega ao ápice na seqüência dessa cena e Virgínia
toma um táxi para driblar o seu infortúnio. Na cidade, as formas delicadas de Virgí-
nia acentuam-se fora do domínio provinciano de Granja Quieta, e seu atropelamento
fatal é precedido por um desconforto que se passa no corpo, como a expressão da
náusea cujo destino é a boca (para Clarice é diferente da náusea sartriana por esse
motivo, conforme o nosso segundo capítulo): “De súbito começou a transpirar, o es-
tômago encolheu-se numa só onda de enjôo, ela respirava terrivelmente opressa e ar-
quejante – o que lhe sucedia? Ou o que ia lhe suceder?” (1999: 258). Na descrição do
atropelamento, o corpo é estranhamente esmaecido da cena, sugerindo que a morte
de Virgínia se condensa no cruzamento de um facho de luz sobre sua pele: “atraves-
sou pálida a rua e o carro dobrou a esquina, ela recuou um passo, o carro hesitou, ela
avançou e o carro veio em luz, ela o percebeu com um choque de calor sobre o corpo
e uma queda sem dor enquanto o coração olhava aceso para nenhum lugar” (1999:
258). Enquanto Virgínia vive intensamente a interrupção final, fora do tempo irrever-
sível (conforme Kristeva nos conduz a pensar), as pessoas, sem qualquer tato, reú-
nem-se ao redor do corpo de Virgínia, personagem anônima para elas: - Esses chauf-
feurs são malucos, meu filho um dia ia sendo atropelado mas felizmente... (1999:
260).
O narrador de O lustre cria um laço com aqueles que lêem a frágil história de
vida de Virgínia. Apesar de triste, podemos até considerá-la sombria pelo seu início,
o qual está enfatizado no episódio dos irmãos Virgínia e Daniel que vêem um corpo
boiando no rio e em conseqüência dessa fatalidade do olhar toda a existência futura
da personagem fica atrelada a uma lembrança fúnebre e ao vínculo mais do que afe-
tivo, sugestivamente incestuoso, com o irmão. Embora sem despertar a piedade, à
primeira vista, em seus leitores, seu narrador oferece uma história bruscamente inter-
rompida a ser lamentada por aqueles que se aventuram a percorrer os feixes de luzes
e sombras dessa mulher atormentada por uma família da qual não há manifestações
de afeto. O punctum, pois, na morte técnica dessa personagem, sobressai algo que fere
475
os interlocutores, está paradoxalmente nessa invisibilidade de Virgínia. Desenha-se
na personagem atropelada uma forma incólume de interagir com as pessoas, fazendo
com que se reduza, tristemente, mesmo na morte pública, primeiro a seus objetos
pessoais e somente depois aos estilhaços de sua existência em apagamento: “(...) ele a
viu no chão com os lábios brancos e tranqüilos, o rolo dos cabelos desfeito, o chapéu de
palha marrom amassado. Então era mesmo ela” (1999: 262, grifos nossos).
A hora da estrela, de 1977, é um outro exemplo de morte mediada por um arte-
fato. A história de vida de Macabéa, conforme repetimos nesse trabalho, e nesse
momento essa informação é crucial, desconcerta porque produz em seus interlocuto-
res o par contrastante e quase simultâneo riso/piedade. Ingenuamente percebida por
Rodrigo S.M., que prioriza o lado caricato da mulher sem consciência de uma exis-
tência delicada e, talvez o mais preocupante em se tratando de personagens femini-
nas de Clarice, sem o it, assim se faz Macabéa. Percebemos numa das explicações de
Rodrigo S.M. um dos desdobramentos para o que pode ser uma das definições do it
para Clarice: “(Há os que têm. E há os que não têm. É muito simples: a moça não ti-
nha. Não tinha o quê? É apenas isso mesmo: não tinha. Se der para me entenderem,
está bem. Se não, também está bem.)” (1999: 25). Em outro momento, ele exemplifica
a falta de charme de Macabéa: “Nada nela era iridescente, embora a pele do rosto en-
tre as manchas tivesse um leve brilho de opala. Mas não importava. Ninguém olhava
para ela na rua, ela era café frio” (1999: 27). Como Macabéa é percebida por seu cria-
dor sem esse algo a mais, ela é descrita apenas em sua superfície de mulher esfomea-
da, como se estivesse sempre à procura de comida, assim ele a resume: “o creme era
tão apetitoso que se tivesse dinheiro para comprá-lo não seria boba. Que pele, que
nada, ela o comeria, isso sim, às colheradas no pote mesmo” (1999: 38). O enjôo que
ela sente não é visto pelo olhar atento de seu narrador como expressão da sensibili-
dade de sua personagem, a mesma que se manifesta ao ouvir a música “Una furtiva
lacrima” na Rádio Relógio, mas apenas é tomada pelo seu viés cômico: “Esqueci de
dizer que às vezes a datilógrafa tinha enjôo para comer. Isso vinha desde pequena
quando soubera que havia comido gato frito. Assustou-se para sempre” (1999: 39).
Rodrigo S.M. confessa-se, em determinado ponto de sua narração, tocado pela
simplicidade de Macabéa e revela-se apaixonado pelo corpo de sua criação. Rodrigo
476
S.M. oferece um corpo a essa personagem que é digno de pena: “pulmões frágeis, a
magricela” (1999: 68). Ele lamenta a escassez de palavras de Maca (é importante sub-
linhar que ele também cria uma apelido para ela) e chega a criar uma fala de desaba-
fo para a nordestina que inexiste no discurso direto da personagem, ganha vida ape-
nas na imaginação do narrador: “Quisera eu tanto que ela abrisse a boca e dissesse: –
Eu sou sozinha no mundo e não acredito em ninguém, às vezes até na hora do amor,
eu não acho que um ser fale com o outro, a verdade só me vem quando estou sozi-
nha” (1999: 68-69). Entretanto, Rodrigo não reflete sobre uma cena em que a solidão
de Macabéa é expressa por um desejo de posse do espaço que é próprio, por exem-
plo, de G.H., uma das personagens mais sofisticadas de Clarice. A história da escul-
tora é o aprofundamento do quarto da empregada, nesse espaço, na capacidade de
sentir um ambiente em solidão profunda ela dá vazão a sua trajetória de mutações na
alma. Macabéa, por sua vez, dividia um quarto com mais quatro moças balconistas
das Lojas Americanas. Essa experiência, nada afeita a meditações profundas, dá-se
num dia especial para Macabéa e desencadeia na protagonista um dia de estrela que
não é suficientemente desenvolvido, apenas relatado, por Rodrigo S.M.. Trata-se de
um dia em que inventa uma desculpa para o chefe e, enquanto as quatro colegas de
quarto estão no trabalho, ela usufrui de um espaço:
Tinha um quarto só para ela. Mal acreditava que usufruía o espaço. E
nem uma palavra era ouvida. Então dançou num ato de absoluta co-
ragem, pois a tia não a entenderia. Dançava e rodopiava porque ao
estar sozinha se tornava: l-i-v-r-e! Usufruía de tudo, da arduamente
conseguida solidão, do rádio de pilha tocando o mais alto possível,
da vastidão do quarto sem as Marias. Arrumou, como pedido de fa-
vor, um pouco de café solúvel com a dona dos quartos, e, ainda como
favor, pediu-lhe água fervendo, tomou tudo se lambendo e diante do
espelho para nada perder de si mesma. Encontrar-se consigo própria
era um bem que ela até então não conhecia. Acho que nunca fui tão
contente na vida, pensou. Não devia nada a ninguém e ninguém lhe
devia nada. Até deu-se ao luxo de ter tédio – um tédio até muito dis-
tinto (A hora da estrela, 1999: 42).
Esse momento de grande beleza não é levado em conta por Rodrigo S.M., o
narrador prefere resumi-la na condição de uma pessoa de poucos prazeres que são
reduzidos à satisfação proveniente dos alimentos (coxa de galinha, farofa, cachorro
quente, espaguete). A passagem em questão, no entanto, desafia a necessidade de pa-
477
lavras, pois apenas com gestos, a liberdade de um corpo em movimento, Macabéa,
próxima ao resgate do semiótico como fazem os poetas em textos que desestruturam
a sintaxe e/ou a semântica, nos explica que a sua vida, apesar de parca em recursos
lingüísticos e financeiros, não é em vão. Em outro momento, é possível flagrá-la ma-
ravilhada ao ver uma manifestação do arco-íris em dia de domingo:
É que a moça num aflitivo domingo sem farofa teve uma inesperada
felicidade que era inexplicável: no cais do porto viu um arco-íris.
Experimentando o leve êxtase, ambicionou logo outro: queria ver,
como uma vez em Maceió, espocarem mudos fogos de artifício. Ela
quis mais porque é mesmo uma verdade que quando se dá a mão, es-
sa gentinha quer todo o resto, o zé-povinho sonha com fome de tudo.
E quer mas sem direito algum, pois não é? Não havia meio – pelo
menos eu não posso – de obter os multiplicantes brilhos em chuva
chuvisco dos fogos de artifício (A hora da estrela, 1999: 35).
Aflora na descrição de Rodrigo S.M. dessa cena o relato do que ele mesmo
chama de “uma inesperada felicidade que era inexplicável” e somado a isso o pre-
conceito do narrador em relação a sua estimada Maca. Porque a personagem é pobre,
sem sofisticação verbal, ela não tem direito a experimentar o delicado do existir? Sub-
jaz essa pergunta perturbadora quando flagramos esse narrador em explícita de-
monstração de desamor e desatenção em face dos excluídos socialmente, apartados
dos prazeres da sociedade do espetáculo que se alinhava nesse último romance de
Clarice. Por esse motivo, ou seja, por não percebê-la em nenhum momento de sua
narração em contato com o que seria para ele da experiência de uma vida bem vivi-
da, o narrador oferece a sua personagem a oportunidade, ainda que efêmera, de uma
hora da estrela, momento fotográfico em que todos são interrompidos subitamente
para acompanhar e refletir sobre a possível história de vida por trás de um corpo a-
travessado por uma morte técnica. Ao sair da cartomante, enfeitiçada pelas informa-
ções da bola de cristal de madama Carlota, Maca, ao atravessar a rua é atravessada
por um Mercedes amarelo:
Macabéa ao cair ainda teve tempo de ver, antes que o carro fugisse,
que já começavam a ser cumpridas as predições otimistas de mada-
ma Carlota, pois o carro era de alto luxo. Sua queda não era nada,
pensou ela, apenas um empurrão. Batera com a cabeça na quina da
calçada e ficara caída, a cara mansamente voltada para a sarjeta. E da
cabeça um fio de sangue inesperadamente vermelho e rico. O que
queria dizer que apesar de tudo ela pertencia a uma resistente raça
478
anã teimosa que um dia vai talvez reivindicar o direito ao grito (A
hora da estrela, 1999: 80).
O momento de espetáculo estabelece-se, conforme Rodrigo S.M., no olhar es-
peculativo dos transeuntes que, parados a contemplar aquele corpo no chão, prova-
velmente tecem conjecturas sobre a história que envolve aquela mulher subitamente
retirada da vida: “Algumas pessoas brotaram no beco não se sabe de onde e haviam
se agrupado em torno de Macabéa sem nada fazer assim como antes pessoas nada
haviam feito por ela, só que agora pelo menos a espiavam, o que lhe dava uma exis-
tência” (1999: 81). Observa-se que esse silêncio pode ser interpretado como um gesto
de respeito dos voyeurs em face da mulher rumo à morte, poupando a personagem
atropelada em vias de completar o caminho irreversível para a sua finitude dos co-
mentários sempre desnecessários em momentos como esse. Diversamente do narra-
dor de O lustre, em que a hora da estrela de Virgínia é interrompida ou desrespeitada
por comentários aleatórios, em A hora da estrela, paira um silêncio incomum. É como
se todos acompanhassem esse último desejo voraz de sentir de Macabéa, nunca per-
cebido pelo seu criador, mas que se manifesta na descrição desse narrador desatento:
“Ficou inerme no canto da rua, talvez descansando das emoções, e viu entre as pe-
dras do esgoto o ralo capim de um verde da mais tenra esperança humana” (1999:
80). Diversamente do discurso que se estabelece em O lustre, o narrador nesse exem-
plo chama a atenção para o sofrimento físico da personagem: “Ela sofria? Acho que
sim. Como uma galinha de pescoço mal cortado que corre espavorida pingando san-
gue. Só que a galinha foge – como se foge da dor – em cacarejos apavorados. E Maca-
béa lutava muda” (1999: 81). A recusa da morte vivida por Macabéa éoges a2lizaençãa-
479
medida, cria-se uma forte objeção ao apego pela vida intrínseco à Macabéa, por outro
lado, esse vínculo com a morte é, também, sobretudo criado e da vontade do narra-
dor: “A morte que é nesta história o meu personagem predileto” (1999: 84). Por isso a
dúvida do narrador sobre a permanência ou não de sua Maca: “Iria ela dar adeus a si
mesma?” (1999: 84). Rodrigo a mata e por esse ato também morre, fazendo a escan-
são do tempo – essa preparação para a finitude tal qual pratica Kristeva em seus ro-
mances policiais.
A morte de Macabéa, publicada em 1977, leva-nos a uma cena de O espelho,
filme de 1974, de Andrei Tarkovski, na qual uma mulher sentada sobre uma cerca de
madeira fuma um cigarro, tem os cabelos louros e grossos presos num coque e olha
para o campo. Enquanto a voz do narrador anuncia o seguinte: “O caminho, que co-
meçava na estação, cruzava a aldeia de Ignatieva e virava um pouco antes de chegar
à nossa pequena fazenda onde, antes da guerra, passávamos todos os verões. Depois,
adentrava-se no cerrado carvalhal e ia para Tomchina”. É voz de Alexei adulto, per-
sonagem que conta partes da vida de Tarkovski nesse filme que é considerado o mais
autobiográfico do cineasta. Na seqüência, o narrador, para marcar a solidão da pe-
quena família de Alexei, acrescenta: “Qualquer viajante era visto da nossa casa... mal
alcançava o arbusto que se erguia no meio do campo. Se, ao chegar ao arbusto, virava
para a nossa casa, era o meu pai, se não virava, não era o meu pai, e nunca viria”. Até
que um dia um viajante corta o tédio da mãe de Alexei, que está contemplando uma
paisagem imensamente verde e fuma um cigarro sentada sobre a cerca. Aproximan-
do-se da mulher para pedir uma informação, o desconhecido lhe pergunta: “Descul-
pe, este é a caminho para Tomchina?” A mulher, um pouco assustada, mas sem ex-
pressão de medo evidente no rosto, responde-lhe: “Não devia ter virado no arbusto”.
O homem retruca: “Mas... Por quê? O que faz aqui sentada?” Ela responde ao viajan-
te: “Moro aqui”. Espirituoso, ele pergunta: “Onde? Na cerca?”. Ela, perdendo um
pouco a paciência, retoma o fio do diálogo para lhe dizer: “O que quer saber, afinal?
Como vai para Tomchina ou onde moro?” Então ele explica aproximando-se dela:
“Trago todos os instrumentos, mas esqueci-me da chave. Não tem um prego ou uma
chave de parafusos?” A mulher lhe responde fazendo o jogo da situação absurda:
“Não tenho pregos”. A câmara, durante esse diálogo em que ele se aproxima da mu-
480
lher, que permanece sentada sobre a cerca, acompanha somente os movimentos do
viajante, e ele pergunta, ao vê-la um tanto aflita com o contato inesperado: “Por que
está tão tensa? Dê-me a sua mão. Sou médico”. Ela hesita, nega o pedido do homem.
Ele acrescenta, pateticamente: “Não me deixa trabalhar”. Sem demonstrar medo, ela
o desafia: “Quer que chame o meu marido?” Ele argumenta: “Não tem marido ne-
nhum. Não tem aliança. Aliás, hoje poucos usam aliança. Talvez só os velhos. Talvez
eu tenha um cigarro?” Enquanto ele se aproxima da mulher para acender o cigarro,
ela vira somente a cabeça para trás, o corpo permanece de frente para o desconheci-
do, e a câmara acompanha um movimento de uma rede de descanso transparente
que acomoda os corpos onde estão duas crianças entediadas que se balançam, uma
delas é Alexei. A mulher volta a cabeça para o visitante e esse lhe pergunta: “Por que
está tão triste?” Com o cigarro aceso, ele senta ao lado dela na cerca. Subitamente, a
cerca cede e os dois caem. Ele ri muito da situação; ela fica irritada e logo retoma a
sua verticalidade altiva. O viajante, no entanto, fica estirado ao solo, como se fosse a
Macabéa atropelada. A mulher lhe pergunta: “E por que o senhor está tão alegre?”
Ele diz: “É um prazer cair com uma mulher tão atraente”. A câmara acompanha os
movimentos do viajante estendido no solo e ouvimos um barulho de inseto, um zan-
gão talvez; não aparece a imagem, apenas o som do animal. Enquanto o homem se
levanta do chão, tece uma reflexão que dá voz à eloqüência muda presente na cena
de Macabéa, personagem descrita numa condição de “explosão muda”.
Escolhemos essa cena de O espelho para fazer com que a personagem clariciana
se mostre por esse recurso técnico, tal como procede Kristeva ao levar o semiótico pa-
ra a técnica cinematográfica em A revolta íntima, metalizando, dessa forma, a lingua-
gem poética. O médico viajante vê o mesmo que é descrito pelo narrador Rodrigo
S.M. no momento em que o narrador clariciano se aproxima do corpo de sua perso-
nagem: “Caí, e o que vejo... Raízes, arbustos”. Nunca lhe pareceu que as plantas tam-
bém sentem, pensam, raciocinam até?” Ele já está recomposto, ao lado da mulher, e
continua o seu discurso de apelo panteísta: “As árvores, a aveleira”. Ela interrompe,
corrigindo-o: “Isto é um Amieiro”. Rapidamente, ele diz: “Tanto faz. Estão calmos e
livres da correria... da azáfama. Também das banalidades. Tudo isso só a nós diz res-
peito”. Ele se afasta da mulher, e de costas para ela, ouve-se a voz desse personagem
481
de tom misterioso e vestido de um terno negro: “Porque não acreditamos na nature-
za que está em nós. Sempre desconfiados, agitados. Sempre sem tempo para pensar”.
Isso não significa a adesão ao panteísmo por parte de narradores claricianos.
Em Perto do coração Selvagem, observa-se que Joana desmonta essa ligação divina com
a natureza ao construir uma pequena história para a “mulher da voz”, personagem
secundária cuja existência frustrada a protagonista absorve em breve contato. Joana
articula uma história para essa mulher apagada, uma história que consiste em nascer
e morrer. Ironicamente, ela também imagina o desdobramento de tonalidade panteís-
ta da morte que terá esta mulher:
A uma vida tão bela deve ter-se seguido uma morte bela também.
Certamente hoje é grãos de terra. Olha para cima, para o céu, duran-
te todo o tempo. Às vezes chove, ela fica cheia e redonda nos seus
grãos. Depois vai secando com o estio e qualquer vento a dispersa.
Ela é eterna agora.
Depois de um instante de absorção, Joana percebeu que a invejara,
aquele ser meio morto que lhe sorrira e falara num tom de voz des-
conhecido (Perto do coração selvagem, 1998: 78).
Água viva não contém, em sua forma fragmentada de apresentação de diversos
temas que se cruzam e merecem ser observados separadamente para serem compre-
endidos em suas sutilezas, o tema do atropelamento, que nos punge, porque é a ex-
pressão cruel e exacerbada de uma morte técnica. Todavia, Água viva promove uma
série de escansões no tempo da sua personagem-narradora, assim como no tempo de
seus receptores. O percurso das alusões à morte presente nessa obra explicita a inten-
ção do exercício do fora do tempo de sua narradora e a amplia para todas as isotopias
possíveis desse texto repleto de assuntos diversos. Nesse sentido, seguiremos, na or-
dem do texto, as ocorrências da morte narradas pela pintora-narradora. A primeira
alusão à morte, curiosamente, aparece no andamento da obra.
Em um instante-já, que é antecedido pela isotopia da luminosidade e o perigo
denunciado pela narradora no gesto de tudo ver, a pintora evoca a morte: “Equilíbrio
perigoso, o meu, perigo de morte de alma” (1973: 27). De forma a negá-la, a narrado-
ra apega-se à palavra, o modo como se sente viva: “Quero a seguinte palavra: ‘es-
plendidez’” (1973: 27). A personagem-narradora leva também seus possíveis interlo-
cutores à experiência da escansão do tempo, pois somos induzidos a refletir sobre a
482
morte tomados pela perturbação que é um tema escolhido pela narradora cujo efeito
também é da sua capacidade de sentir: “Nós – diante do escândalo da morte” (1973:
27). Em seguida, flagramos o esboço do narrador Rodrigo S.M., de A hora da estrela
(de 1977), pois ao criar essa personagem-morte em Água viva, da mesma forma que
Rodrigo S.M. cria e mata Macabéa, a pintora sente-se um pouco morta quando, na
mudança vertiginosa dos instantes relatados, afasta esse tema de sua busca descritiva
pelo instante escorregadio. O narrador Rodrigo menciona, no final de sua história, a
experiência de um fora do tempo na revelação da morte técnica de Macabéa. Em Á-
gua viva, a força protagonal não cria esse apego como na outra história, pois inexiste o
vínculo com uma história de vida, ainda que seja desapegada, como é o caso de Vir-
gínia. Por isso, a pintora-narradora tenta driblá-la, identificando-se com esse gesto fa-
tal: ”Vou embora – diz a morte sem acrescentar que me leva consigo. E estremeço em
respiração arfante por ter que acompanhá-la. Eu sou a morte (...) – como te explicar?”
(1973: 28). Em sua resposta, a personagem-narradora antecipa uma cena que será o
ponto alto da morte técnica de Macabéa: “é uma morte sensual. Como morta ando
por um capim alto na luz esverdeada das hastes” (1973: 28). Trata-se, portanto, de
uma forte alusão ao corpo da nordestina, pois é o corpo semi-morto que se destaca
quando Maca fita o fio de capim entre pedras e a água suja do esgoto.
Esse discreto fluxo de água do esgoto que quase interrompe o momento de
meditação final da protagonista nordestina tem o seu momento de vínculo com a
morte desenhado já no discurso da pintora, que constrói uma desconcertante metáfo-
ra para a morte: a de “água viva”. O jogo entre uma água viva e a morte é a expres-
são de sua luta contra a condição mortal humana: ”quando eu morrer então nunca
terei nascido e vivido: a morte apaga os traços de espuma do mar na praia” (1973: 32-
33). Em outra passagem, percebemos que a narradora amplia a rejeição à morte para
o mundo vegetal. Ao descrever uma série de flores, ela expõe a sua intenção: “Agora
vou falar da dolência das flores para sentir mais a ordem do que existe” (1973: 66).
Ou seja, é para se contrapor à condição mortal do mundo vivo que ela pontua a viva-
cidade das flores, as quais se antropomorfizam. Ou, pelo revés tipicamente claricia-
no, podemos pensar que nós, os humanos, é que nos “vegetalizamos”, tal como acon-
tece em outro momento no qual a narradora afirma animalizar-se para se humani-
483
zar
1
. A rosa, por exemplo, é comparada à mulher, à sexualidade e a ela são atribuídas
sentimentos como o de alegria. Quanto à violeta, a aliteração mostra o cuidado da es-
critora com a poeticidade do texto e também sedimenta a idéia de vivacidade que
sustentamos como projeto clariciano: “A violeta é introvertida e sua introspecção é
profunda” (1973: 68). A pintora-narradora antecipa a essas descrições de flores uma
história que justifica sua necessidade ver nesses vegetais fadados à morte flagrantes
de vida. A história acompanha a vida de uma rosa incomum:
Sei da história de uma rosa. Parece-te estranho falar em rosa quando
estou me ocupando com bichos? Mas ela agiu de um modo tal que
lembra os mistérios animais. E dois em dois dias eu comparava uma
rosa e colocava-a na água dentro da jarra feita especialmente estreita
para abrigar o longo talo de uma só flor. De dois em dois dias a rosa
murchava e eu a trocava por outra. Cor-de-rosa sem corante ou en-
xerto, porém do mais vivo rosa pela natureza mesmo. Sua beleza a-
largava o coração em amplidões. Parecia tão orgulhosa da turgidez
de sua corola toda aberta e das próprias pétalas que era com uma al-
tivez que se mantinha quase erecta. Porque não ficava totalmente e-
recta: com graciosidade inclinava-se sobre o talo que era fino e que-
bradiço. Um relação íntima estabeleceu-se entre mim e a flor: eu a
admirava e ela parecia sentir-se admirada. E tão gloriosa ficou na
sua assombração e com tanto amor era observada que se passavam os
dias e ela não murchava: continuava de corola toda aberta e túmida,
fresca como flor nascida. Durou em beleza e vida uma semana intei-
ra. Só então começou a dar mostras de algum cansaço. Depois mor-
reu. Foi com relutância que a troquei por outra (Água viva, 1973: 59-
60).
Em outro momento, esbarramos na morte técnica. Trata-se de um instante que
já mencionamos, mas o retomaremos porque se trata de perscrutar a morte em todas
as nuanças claricianas de negação ao que significa a variante da morte que mais lhe
interessa, qual seja, a da finitude, momento em que corpo e alma se apagam para o
nada. Na carta sobre o anúncio de uma morte de uma pessoa desconhecida surge a
1
Recortamos um trecho da crônica de 13 de março de 1971, intitulada “Bichos”, pois elucida
o afeto da escritora pelos animais: “Mas às vezes me arrepio vendo um bicho. Sim, às ve-
zes sinto o mudo grito ancestral dentro de mim quando estou com eles: parece que não
sei mais quem é o animal, se eu ou o bicho, e me confundo toda, fico ao que parece com
medo de encarar meus próprios instintos abafados que, diante do bicho, sou obrigada a
assumir, exigentes como são, que se há de fazer, pobre de nós. Conheci uma mulher que
humanizava os bichos, conversando com eles, emprestando-lhes suas próprias caracterís-
ticas. Mas eu não humanizo os bichos, acho que é uma ofensa – há de respeitar-lhes a na-
tura – eu é que me animalizo. Não é difícil, vem simplesmente, é só não lutar contra, é só
entregar-se” (“Bichos”, 1999: 334).
484
tentativa mediada por uma comunicação à distância que soa tão absurda quanto a
notícia enviada também à distância: “Recebi uma carta de São Paulo de pessoa que
não conheço. Carta derradeira de suicida. Telefonei para São Paulo. O telefone não
respondia, tocava e tocava e soava como num apartamento em silêncio. Morreu ou
não morreu” (1973: 38). Interrompemos nesse momento para relembrar a semelhança
dessa passagem com o gesto da detetive-jornalista Stéphanie Delacour em O velho e
lobos que, na procura por Alba, recorre ao telefone que, para a angústia de Delacour,
não é atendido. Na seqüência, percebemos a perplexidade da pintora-narradora dian-
te da morte técnica: “Morreu, sim. Nunca esquecerei” (1973: 38). A experiência da
morte do outro, apesar de anônimo, um simples desconhecido com quem ela possi-
velmente jamais teria contato é suficiente para desencadear nela o peso de sua pró-
pria finitude: “Custa-me crer que eu morra. Pois estou borbulhante numa frescura
frígida” (1973: 40). Para não morrer, a pintora realiza o mesmo desafio temporal que
já está presente na protagonista Joana, a contempladora do passar das horas se ape-
gava a uma capacidade de sentir para além dos ponteiros do relógio: “Minha vida
vai ser longuíssima porque cada instante é” (1973: 40). Nos instantes subseqüentes, a
pintora-narradora inventa uma série de nascimentos e mortes, os quais mantêm a sua
intenção de domínio e permanência no tempo, culminando na recusa de morrer: “E
desafio a morte. Eu – eu sou a minha própria morte
1
” (1973: 44). Em outro instante-já,
a narradora recompõe-se para não perder a sua forma supostamente corpórea: “Es-
tou prestes a morrer-me e constituir novas composições” (1973: 46). Nota-se o intenso
apego que ela tem à vida, pois somente aceita a morte se tiver novamente acesso à
vida: “Terei que morrer de novo para de novo nascer? Aceito” (1973: 52). Escandida
por essas pequenas mortes, construções ficcionalizadas de uma narradora atormen-
1
Incluímos uma passagem da crônica de Clarice chamada “Morte de uma baleia”, de 17 de
agosto de 1968. A partir desse episódio título da crônica, a escritora fornece elementos
para reconstruirmos a sua acepção de morte no texto de frágil fio condutor que é o do
fluxo aquoso: “Não, não fui vê-la: detesto a morte. Deus, o que nos prometeis em troca
de morrer? Pois o céu e o inferno já os conhecemos – cada um de nós em segredo quase
de sonho já viveu um pouco do próprio apocalipse. E a própria morte. Fora das vezes em
que quase morri para sempre, quantas vezes num silêncio humano – que é o mais grave
de todos do reino animal –, quantas vezes num silêncio humano minha alma agonizando
esperava por uma morte que não vinha. (...) Morri de muitas mortes e mantê-las-ei em
segredo até que a morte do corpo venha, e alguém, adivinhando, diga: esta, esta viveu”
485
tada pela idéia da finitude, a pintora traz à tona sua hipocondria que atualmente po-
de ser interpretada como um medo aceitável e freqüente em virtude das técnicas in-
vasivas da medicina cuja precisão dos exames apoiados em alta tecnologia desperta o
horror dos pacientes na expectativa de um diagnóstico que quase sempre é o resulta-
do de um vasculhar da intimidade (no sentido de Kristeva), uma inspeção que toca
nas entranhas. O discurso da pintora-narradora antecipa algo desse medo técnico:
“Acho que não vou morrer no instante seguinte porque o médico que me examinou
detidamente disse que estou em saúde perfeita. Está vendo? o instante passou e eu
não morri” (1973: 52-53). Na seqüência, a pintora, entre o trágico e o cômico, compõe
uma cena semelhante àquelas de abjeção que são tecidas por Kristeva sobretudo via
suas leituras de Céline: “Quero que me enterrem diretamente na terra embora dentro
do caixão. Não quero ser engavetada na parede como no cemitério são João Batista,
que não tem mais lugar na terra. Então inventaram essas diabólicas paredes onde se
fica como num arquivo” (1973: 53). Subjacente ao tom caricatural do desejo mórbido
da personagem-narradora aflora a sua recusa da morte, pois, em outro instante-já, ela
entra no paradoxo da vida dentro da morte: “Quero morrer com vida. Juro que só
morrerei lucrando o último instante. (...) queria tanto morrer de saúde. Como quem
explode. Éclater é melhor: j’éclate” (1973: 53). Novamente, localizamos as bases para
a criação de Macabéa, personagem cuja hora da morte é o seu momento máximo, de
espetáculo, de estrela de cinema. Em outro instante, depois de mencionar um caos
que antecede a escuta de uma música eletrônica, ela lança o anúncio da morte, que é,
nesse fragmento de tempo, a saudável interrupção do sono: “Estou pronta para o si-
lêncio da grande morte. Vou dormir” (1973: 54). Sobre um vento que bate em sua
“alma da cara”, o qual ela chama de ar solto, semelhante à fluidez da água mortal
que é o fluxo da água viva, a pintora evoca uma memória do passado – não a história
dessa lembrança, apenas a sensação lhe sobra para relato:
cada vez o mergulho em alguma coisa sem fundo onde caio sempre
caindo sem parar até morrer e enfim adquirir o silêncio. Oh, vento
siroco, eu não te perdôo a morte, tu que me trazes uma lembrança
machucada de coisas vividas que, ai de mim, sempre se repetem,
mesmo sob formas outras e diferentes (Água viva, 1973: 61).
(1999: 125).
486
Em seguida, entra na isotopia da morte uma outra referência à voz anônima:
“Soube de um ela que morreu na cama aos gritos: estou me apagando! Até que hou-
ve o benefício do coma dentro do qual o ela se libertou do corpo e não teve nenhum
medo de morrer” (1973: 61). Nesse caso, a personagem-narradora não participa do
anonimato daquele que morre pela técnica (sem cartas, ligações telefônicas), mas está
manifesto seu afastamento em relação à pessoa morta pelo emprego muito popular
de um “ouvi dizer que fulano tal morreu...”, produzindo um súbito alívio por não ser
a sua “hora da estrela” e o sentimento de compaixão porque a pessoa-cadáver possi-
velmente escapou de um terrível (que também desperta o temor da narradora) so-
frimento físico. A dor, nessa medida, para a narradora clariciana, liga-se estreitamen-
te à dor no corpo. Entretanto, a passagem em discussão não significa a resignação di-
ante da morte, uma vez que os instantes subseqüentes estão repletos de um senti-
mento de revolta da mulher ao pensar sobre a sua finitude:
Eu vou morrer: há esta tensão como a de um arco prestes a disparar a
flecha. Lembro-me do signo Sagitário: metade homem e metade ani-
mal. (...) Sei que vou atingir o alvo.
Agora vou escrever ao correr da mão: não mexo no que ela escrever.
(...). Começa assim: como o amor impede a morte, e não sei o que es-
tou querendo dizer com isto. Confio na minha incompreensão que
tem me dado vida liberta do entendimento, perdi amigos, não enten-
do a morte. O horrível dever é ir até o fim. E sem contar com nin-
guém (Água viva, 1973: 62).
A solidão da experiência da morte a faz aproveitar o tempo de vida, por isso a
pintora menciona a expressão “o delicado da vida”. Esse delicado, como é típico das
inversões de Clarice, não é a leveza de um seguir vivendo ao sabor dos acontecimen-
tos ou com a serenidade intrínseca dos que introjetaram a experiência da morte em
camadas profundas da alma (talvez seja o caso de Kristeva e de sua formulação do
fora do tempo) e por isso seguem uma vida entrecortada por pequenas mortes. A
narradora de Água viva realiza esse processo, o zeitlos freudiano (não queremos dis-
solver essa ligação a respeito da morte entre as duas escritoras), mas os textos de Cla-
rice, sobretudo o relato da força protagonal, não se realizam com o exercício extenu-
ante dessa escansão. No discurso de seus narradores ou no discurso direto dos per-
487
sonagens aloja-se o apego com as sensações (de modo a materializá-las, corporalizá-
las), pois ela pretende senti-las – aí está o delicado – até o esgotamento, o qual é tanto
dela quanto das “coisas” do mundo, sejam elas orgânicas ou inorgânicas, animais ou
vegetais, belas ou pavorosas, honestas ou desonestas. Trata-se de aproximá-la ao su-
jeito em processo de Kristeva e, em certa medida o fora do tempo de Kristeva tam-
bém é um reflexo da insatisfação da teórica frente à experiência da escansão do tem-
po. As duas escritoras, portanto, experimentam, na carne de diversos personagens e,
no caso específico de Clarice na carne dos objetos, o fluxo dos papéis disponíveis aos
que observam a beleza e o horror do estar vivo. O delicado clariciano abre-se em um
fragmento muito importante do final de Água viva em densidade a ser tolerada por
poucos, pois viver segundo a pintora: “viver não é só desenrolar sentimentos grossos
– é algo mais sortilégico e mais grácil, sem por isso perder o seu fino vigor animal”
(1973: 81).
Na seqüência da isotopia da morte, observa-se o trecho da pintora-narradora
em que está exposto o it, que se desdobra aqui não pelo fascínio presente no inexpli-
cável do charme que uns têm e outros são desprovidos, mas na necessidade da per-
sonagem, que é o desafio à morte, de sentir-se viva: “Mas sei que terei paz antes da
morte e que experimentarei um dia o delicado da vida. (...) Então aceito o pior e entro
no âmago da morte e para isto estou viva. O âmago sensível. E vibra-me esse it”
(1973: 66). Essa vibração que acompanha o it clariciano indica que tal estado depende
de um corpo para a sua manifestação, logo a pintora não está em busca de um outro
mundo, uma outra vida fora daquela que possui e mantém agarrando-se obsessiva-
mente a todos os momentos. A própria escritora tem consciência de que o seu escre-
ver, na intenção de passar a experiência do “delicado da vida”, é um gesto perigoso,
para não dizer carregado de crueldade. Ao recortarmos de uma crônica, há poucos
momentos, o interesse da escritora pelos telefones
1
, Clarice aconselha a uma leitora
anônima que lhe telefonou desavisadamente e com a qual sentiu uma identificação
vocal muito profunda que não se fixe em seu texto porque às vezes ela toca em zonas
que não são as mais aprazíveis na medida em que revela criar uma textura de aspe-
1
Referimo-nos à crônica “Um telefonema”, de 4 de fevereiro de 1968, presente em A desco-
488
reza em sua escrita, ou seja, a cronista sabe que ao escrever para jornal abrange um
público menos sofisticado, mesmo assim ela não os poupa de sua delicadeza cortan-
te
1
.
Em outro instante, a delicadeza da pintora-narradora expressa-se no universo
incompreensível da morte das crianças, sempre uma interrupção inexplicável. Na ce-
na, repleta de luminosidade visual – pois ela, entre tantas flores, menciona os cravos
brancos –, subjaz o tom mórbido da morte prematura: “Os brancos lembram o pe-
queno caixão de criança defunta: o cheiro então se torna pungente e a gente desvia a
cabeça para o lado com horror” (1973: 67). Sobre flores e morte, observamos que esse
é um tema a ser percorrido e explorado em detalhes em textos de Clarice. Por exem-
plo, no conto “Um dia a menos”, publicado em 1977, de A bela e a fera, o eixo gira em
torno da expectativa da chegada da morte. Logo na abertura, percebemos isso: “Eu
desconfio que a morte vem. Morte? (1999: 85). O nome da personagem principal –
Margarida Flores –, entre o risível e o sombrio, estabelece o vínculo por nós tecido
entre a beleza do vivo e a iminência presente no horror da morte, levando a encon-
trar na beleza da natureza, sobretudo do mundo vegetal onde estão especialmente o
jardim e as flores o pavor do apagamento irreversível da vida. Vejamos a passagem
do conto de Clarice:
Mas lá não estava o jornal: o diabrete do vizinho inimigo já deveria
ter carregado com ele. Era uma luta constante a de ver quem chegava
primeiro ao jornal que, no entanto, tinha claramente impresso seu
nome: Margarida Flores. Além do endereço. Sempre que distraida-
mente via seu nome escrito lembrava-se de seu apelido na escola
primária: Margarida Flores de Enterro. Por que alguém não se lem-
brava de apelidá-la de Margarida Flores do Jardim? É que as coisas
simplesmente não eram do seu lado (A bela e a fera, 1999: 86).
berta do mundo.
1
É comum ver trechos de livros de Clarice transcritos em suas crônicas. Isso desfaz em parte
o cuidado da escritora no que se refere à receão de seus textos, mas na crônica de 22 de
junho de 1968, intitulada “Ser cronista”, no início de sua carreira de cronista portanto,
nota-se a diferença que ela estabelece entre os gêneros: ”basta eu saber que estou escre-
vendo para jornal, isto é, para algo aberto facilmente por todo o mundo, e não para um
livro, que só é aberto por quem realmente quer, para que, sem mesmo sentir, o modo de
escrever se transforme. (...) E outras coisas: nos meus livros quero profundamente a co-
municação profunda comigo e com o leitor. Aqui no jornal apenas falo com o leitor e a-
grada-me que ele fique agradado. Vou dizer a verdade: não estou contente” (“Ser cronis-
ta”, 1999: 113).
489
Esse é mais um exemplo da delicadeza áspera de Clarice. Trata-se de uma
construção que flerta com a amargura na medida em que acaba com o belo (relação
entre flores/cadáver) para instaurar a desordem, mas também, por outro lado, confe-
re beleza ao feio (relação entre cadáver/flores). Da mesma forma, a pintora-
narradora aproxima a pureza dos cravos brancos ao corpo morto das crianças, um
corpo sem a carga de um história de vida e laços que implicam ações e julgamentos
alheios. Sobre a ligação entre morte e o universo infantil, localizamos em um livro
que fez parte da infância da escritora
1
, intitulado Os desastres de Sofia, um possível
marco para a futura vida literária de Clarice e seu aprofundamento do tema dessa
grande interrupção final, a morte. No livro da Condessa de Ségur, há um conto cha-
mado “Os peixinhos”. A delicadeza do recurso retórico do diminutivo dissipa-se as-
sim que Sofia ganha um presente de seu pai, uma faquinha trabalhada. Observa-se
que o narrador sublinha a leveza do texto para depois contrastá-la à crueldade da
personagem, pois na abertura está a informação: “A mãe de Sofia tinha uns peixinhos
maravilhosos, pequenos e delicados. Gostava muito destes peixinhos, que viviam
num aquário cheio de água e forrado com areia para que pudessem afundar e se es-
conder” (s/d: 21). Em sua brincadeira com a faquinha, Sofia corta alimentos como
pão, batatas , biscoitos e flores. No entanto, entediada, ela pede a sua pajem (a tradu-
ção antiga a que recorremos usa esse termo, possivelmente o lido por Clarice) um
pouco de óleo e vinagre para temperar a sua salada. Para não sujar o vestido da me-
nina, a pajem lhe alcança somente sal. Daí Sofia, contrariada, tem a seguinte idéia:
Sofia pegou o sal e pôs na salada. Sobrou um pouco. “Se eu tivesse
alguma coisa para salgar...” pensava. Precisava de carne ou de peixe.
“Oh! Que boa idéia!... Vou salgar os peixinhos de mamãe. Alguns eu
corto em pedaços; outros, vou salgar inteiros. Como vai ser diverti-
do!... Que prato maravilhoso vai ficar!...” (Os desastres de Sofia, s/d,
21).
Como um romance policial no qual o crime se mostra em detalhes para a pur-
gação do horror imagético ou fantasmático dos leitores voyeurs, a Condessa de Ségur
oferece às crianças um impressionante relato de um crime recheado de saborosos
1
Consultamos o trabalho de Ricardo Iannace, A leitora Clarice Lispector, e a biografia sobre a
escritora, Clarice: uma vida que se conta, de Nádia Battella Gotlib.
490
pormenores àqueles que estão no início das fabulações e têm a sede das histórias com
todos seus detalhes de vilania e sacrifício:
Sofia não pensou no desgosto da mãe quando perdesse seus queridos
peixinhos e nem no sofrimento dos pobres animaizinhos que preten-
dia salgar e picar. Daí a pouco todos os peixinhos estavam pescados
e postos num prato, que a menina levou para a mesa onde brincava.
Os bichinhos davam pinotes, pois não estavam se sentindo bem fora
d’água. Para aquietá-los, Sofia jogou-lhes sal pelo corpo todo. E qui-
etos ficaram, pois estavam mortos. Pegou os outros e picou-os em
postas. Percebeu então que os matava, quando os cortava. Começou
a inquietar-se. Examinou-os, verificando que estavam mortos e ficou
vermelha como uma cereja (Os desastres de Sofia, s/d, 21).
Sofia, antes de se redimir, pois as histórias da Condessa de Ségur continham
esse fundo de ensinamento em primeiro plano, articula uma ardilosa estratégia para
esconder o seu crime. Reunindo rapidamente os peixinhos salgados e estraçalhados
pelos cortes precisos de sua faquinha, a menina sai sorrateira do quarto onde supos-
tamente deveria ficar e os recoloca no aquário. O narrador deixa à mostra a formula-
ção da desculpa da menina para a mãe: “’Mamãe pensará que eles brigaram e que se
despedaçaram entre si. Vou enxugar meus pratos, minha faca e jogar fora o sal. Mi-
nha pajem não percebeu nada, graças a Deus, e ainda está trabalhando sem nem pen-
sar em mim’, dizia Sofia” (s/d, 22).
Mais adiante, ao escrever um livro para crianças, A mulher que matou os peixes,
observamos um eco dessa leitura da infância da escritora. Em sua abertura, diferente
do suspense da narrador construído pela Condessa de Ségur, para o qual a delicade-
za está em seu sentido dicionarizado, temos acesso à áspera delicadeza do narrador
clariciano: “Essa mulher que matou os peixes infelizmente sou eu. Mas juro a vocês
que foi sem querer. Logo eu! Que não tenho coragem de matar uma coisa viva! Até
deixo de matar uma barata ou outra” (1991: 7). Para os leitores infantis, a narradora
clariciana expõe o direto de seu pensamento mais bruto que está em grande parte
derramado no jazz em fúria que é Água viva quando o assunto é a morte: “Pois logo
eu matei dois peixinhos vermelhos que não fazem mal a ninguém e que não são am-
biciosos: só querem mesmo é viver” (1991: 7). Ao falar sobre a morte dos peixes, a
narradora promove uma brusca associação dessa ruptura da vida à morte das pesso-
as, fazendo com que as crianças também percebam a magia e pavor contidos na fini-
491
tude: “Pessoas também querem viver, mas felizmente querem também aproveitar a
vida para fazer alguma coisa de bom” (1991: 7). Antes de explicar as circunstâncias
de seu crime, a personagem-narradora acumula uma série de histórias de bichos. Es-
pecialmente em uma delas, vemos ressoar a crueldade de Sofia, mas em todas as ou-
tras pairam sentimentos de revolta contra a mortalidade e de apiedamento dos ani-
mais enfermos ou mortos. A história dissonante é sobre uma rata branca que fora de
um amigo da narradora chamada Clarice e que despertara nela a antipatia: “Maria de
Fátima morreu de modo horrivelzinho (eu digo horrivelzinho porque no fundo estou
bem contente): um gato comeu ela com a rapidez com que comemos um sanduíche”
(1991: 13). Retornando às evidências da morte em Água viva, observamos que a força
protagonal apaga as fabulações e temos por isso que buscar absorvê-la sem o invólu-
cro de uma história a lastimar, vivendo-a em seu âmago ou, nas palavras da pintora-
escritora, em seu estado de it. Esse é o delicado de Clarice que reside justamente em
não deixar espaço para se fazer um caminho, pois ela joga no texto suas intuições
sem piedade de seus interlocutores, apagando a tentativa de explorar um possível
sentido em sua obra. Exercício cansativo para a própria narradora, em determinado
instante-já é ela que se apaga momentaneamente do texto: “Acho que vou ter que
pedir licença para morrer” (1973: 70). Passados alguns instantes em que ela se esgota,
por exemplo, ao ouvir o Pássaro de fogo
1
, possivelmente uma alusão à composição de
Stravinsky, a pintora escande essa ruptura dramática que é a morte com outra, não
menos sofrível, que acompanha esse ciclo. Refere-se ao nascimento, uma ruptura de
impacto, pois ela faz questão de narrá-lo nos pormenores de algo que rompe a carne,
a luz que se afasta da luz gélida metaforizada pelas várias referências a um mundo
moderno que produziu luzes artificiais, dias intermináveis e uma narradora que, em
1
Deve-se levar em conta o jogo sinestésico clariciano e nessa medida ouvir o “pássaro de
fogo” pode também ser interpretado como apreciar uma tela de Paul Klee. Na crônica in-
titulada “Paul Klee”, presente em Para não esquecer, Clarice olha para a tela de Klee e o
resultado de sua visão ultrapassa a simples descrição do que é por ela visto, como se ti-
vesse sido também “afogada” por esses pássaros pintados: “Se eu me demorar demais
olhando Paysage aux oiseaux jaunes, de Klee, nunca mais poderei voltar atrás. Coragem e
covardia são um jogo que se joga a cada instante. Assusta a visão talvez irremediável e
que talvez seja a da liberdade. O hábito de olhar através das grades da prisão, o conforto
de segurar com as duas mãos as barras, enquanto olho. A prisão é a segurança, as barras
o apoio para as mãos. Então reconheço que a liberdade é só para muito poucos” (“Paul
492
determinado instante-já, revela estar “eletronicamente apta”: “Tenho falado muito
em morte. Mas vou te falar no sopro da vida” (1973: 75-76). A pretensa leveza indu-
zida por esse “sopro de vida”, título do livro póstumo de Clarice, desfaz-se em esti-
lhaços de uma vida delicadamente cortante. É assim que interpretamos o “sopro”,
com base na alusão que a escritora antecipa em Água viva e que depois será desen-
volvida em Um sopro de vida (Pulsações), conforme apreendemos do discurso da per-
sonagem Ângela Pralini: – O coral selvagem é pontudo e ilha de Capri ao sol. O colar
de coral não se pode pegar em punhados na mão: fere a concha delicada nessa mão
branca e nervosa (1999: 121). Nota-se a presença do corpo nessas formas de entrar em
contato com o delicado da existência. Em outro instante-já, a zombaria da pintora, es-
tratégia para evadir-se da morte, termina em aflição: “Penso que agora terei que pe-
dir licença para morrer um pouco. Com licença – sim? Não demoro. Obrigada.
.....Não. Não consegui morrer” (1973: 77). A pintora-narradora permite alguns apa-
gamentos no conteúdo da sua narração, embora seja predominante em seu discurso a
imagem de uma planta que está perdida entre outras flores como girassóis e rosas e
se chama a “sempre-viva”. Essa é a imagem passada pela pintora na tentativa de es-
crever a sua intensa forma de estar no mundo, pois mesmo no domingo, dia de des-
canso, o seu tema é o peso da morte: “Dobrei-me de repente em dois e para a frente
como em profunda dor de parto - e vi que a menina em mim morria. Estou numa de-
lícia de se morrer dela” (1973: 78). Atropelada por essa experiência em pleno domin-
go de manhã, a narradora o ilustra com cores de um corpo em sofrimento físico:
“Nunca esquecerei este domingo sangrento. Para cicatrizar levará tempo. E eis-me
aqui dura e silenciosa e heróica. Sem menina dentro de mim. Todas as vidas são he-
róicas” (1973: 78-79).
A reflexão da narradora clariciana combina com a leitura que Kristeva faz do
projeto filosófico de Hannah Arendt no qual a psicanalista enfatiza o peso das idéias
de Santo Agostinho sobre o conceito de vida arendtiano. Desse arranjo, Kristeva per-
cebe nos textos arendtianos a conjunção entre ato e verbo, ilustrando seu argumento
com um trecho de A condição humana: ‘“É pelo verbo e pelo ato que nós nos inserimos
Klee”, 1999: 17).
493
no mundo humano, e essa inserção é como um segundo nascimento no qual nós con-
firmamos e assumimos o fato em bruto de nossa aparição física e original
1
”’ (2002:
86). Ao interpretar esse fragmento, Kristeva sublinha o papel da narrativa, da mesma
forma que faz ao sustentar a importância do narração de histórias para a psicanálise:
É pela narrativa, e não na língua em si (que não lhe perdura menos como via e passagem),
que se realiza o pensamento essencialmente político”. Segue-se daí a explicação dessa pas-
sagem realçada por Kristeva: “Por essa ação contada, que é uma narrativa, o homem
corresponde à vida, ou pertence à vida na medida em que a vida humana é infali-
velmente uma vida política
2
” (2002: 87). Segundo Kristeva, os poetas mencionados
nos textos da pensadora, tais como Randall Jarell, Robert Lowell, Rilke e Emily Dic-
kinson estão lá “não pelo virtuosismo do dizer, mas pela sabedoria de suas narrati-
vas fulgurantes
3
” (2002: 88).
Mesmo na fragmentação angustiada da contagem dos momentos, a pintora-
escritora possui uma vida que pode ser levada em conta quando dela nos aproxima-
mos na tentativa audaciosa de interpretá-la. Voltemos agora à seqüência de sua his-
tória fugidia.
Em outro instante, a pintora associa o ato de morrer ao ápice do aproveita-
mento do tempo: “Será que no instante de morrer forçarei a vida mais do que pos-
so?” (1973: 86). Entretanto, ela parece não alcançar essa intensidade, uma vez que ao
lado dessa sugestão de se pôr para o auge oferecido pelo sentir, ela nos adverte que
está no presente do que vive: “Mas eu sou hoje” (1973: 86). Tal presentificação não
exclui o estar, em função do próprio movimento reflexivo que é o desafiar o tempo a
partir da experiência do pensar/sentir, também para fora desse tempo presente, co-
mo alguém que lamenta ter passado por uma experiência que não foi efetivamente
1
“’C’est par le verbe et l’acte que nous nous insérons dans le monde humain, et cette inser-
tion est comme une seconde naissance dans laquelle nous confirmons et assumons le fait
brut de notre apparition physique originelle’” (Le génie féminin. Hannah Arendt, 1999:
143).
2
C’est par le récit, et non dans la langue en soi (qui n’en demeure pas moins la voie et le passage),
que se réalise la pensée essentiellement politique”; “Par cette action racontée qu’est un récit,
l’homme correspond à la vie ou appartient à la vie en tant que la vie humaine est im-
manquablement une vie politique” (Le génie féminin. Hannah Arendt, 1999: 146).
3
“(...) le sont non pas pour la virtuosité du dire, mais pour la sagesse de leurs récits fulgu-
494
vivida. Reportamo-nos à penosa experiência de G.H., personagem angustiada sobre-
tudo porque lamenta ter perdido algo (metaforizado pela terceira perna) que nunca
fora de fato algo que a tivesse legitimado como participante de uma vida em grupo.
Sustentamos que o pesar de G.H., o qual se amplia para grande parte dos persona-
gens de Clarice, especialmente os da nossa análise (Joana-GH-força protagonal, Ma-
cabéa), ancora-se num sentimento de estrangeiridade (nas palavras de Kristeva) ou
de não-pertencimento (segundo a terminologia de Clarice
1
). Tal condição não é ape-
nas tributária da natureza incomum dessas personagens plenas de um ânimo “selva-
gem” (no sentido clariciano), mas está alicerçada na desconcertante falta de empatia
que suas ações geram na trama, deixando-as encerradas numa solidão profunda. Em
outras palavras, se são marcadamente estrangeiras é porque são rejeitadas pelos ou-
tros em virtude de uma capacidade que tais personagens dispõem de despertar na-
queles que as rodeiam reações insuspeitadas, desconfortáveis e, sobretudo, intensos
vínculos com a matéria tanto orgânica quanto inorgânica.
O pedido da narradora para interromper esse fluxo que a joga para o fora do
tempo, nessa medida, desenrola-se para uma espécie de entrada da narradora naqui-
lo que estaria na esfera de um pertencimento: ”Talvez então se eu pedir muito à na-
tureza, eu paro de morrer? Posso violentar a morte e abrir-lhe uma fresta para a vi-
da?” (1973: 88-89). Esse é apenas mais um fragmento de tempo sobre a morte que se
rants” (Le génie féminin. Hannah Arendt, 1999: 147).
1
A crônica “Pertencer”, de 15 de junho de 1968, sempre mencionada na crítica sobre a escri-
tora, evidencia a solidão de Clarice, que não se dobrava a agrupamentos de pessoas sim-
plesmente para se fazer incluída no social, mas buscava uma forma profunda de perten-
cimento que a afastava do verdadeiro convívio ambicionado por ela: “Com o tempo, so-
bretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como se é. E uma espé-
cie toda nova da ‘solidão de não pertencer’ começou a me invadir como heras num muro.
Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou
de associações? Porque não é isso o que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e não
posso, é por exemplo que tudo que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar
àquilo que eu pertencesse. Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma
alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente todo embrulhado
com papel enfeitado de presente nas mãos – e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o!
Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o
tom de tragédia, então raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos”
(“Pertencer”, 1999: 110).
495
soma à frágil trama que é Água viva, um relato que vive no cruzamento de muitos as-
suntos da própria biografia de Clarice
1
.
Em outro instante-já, ela pergunta: “Estou no âmago da morte?” (1973: 89). Se-
gue-se disso uma definição para a morte que a desfaz e acrescenta um mistério, pois
para alguns assuntos a saída clariciana é a estratégia de uma desistência que depois é
retomada e em outro tempo é atenuada: “A morte? a morte é ‘X’. Mas muita vida
também pois a vida é impronunciável” (1973: 95). Observa-se que o mistério do outro
instante está desfeito no efeito que deve ser a morte sobre o corpo, esse apagamento
da carne que será sentido delicadamente por Macabéa: “Eu na minha solidão quase
vou explodir. Morrer deve ser uma muda explosão interna. O corpo não agüenta
mais ser corpo. E se morrer tiver o gosto de comida quando se está com muita fome?
E se morrer for um prazer, egoísta prazer?” (1973: 99). Maca experimenta em seu
corpo lamentavelmente virginal, assim como é construído por Rodrigo S.M., um in-
tenso sopro final de prazer que a torna subitamente uma mulher retirada muito
bruscamente de uma vida de menina: “É que o rosto dela lembrava um esgar de de-
sejo” (1999: 84). Maca, excluída dos possíveis prazeres do corpo por essa interrupção
fulminante de uma máquina, experimenta, em sua despedida, o “gosto suave, arre-
piante, gélido e agudo como no amor” (1999: 84). A pintora, que vive uma morte in-
termitente sem uma história desgraçada de pano de fundo para nos pungir, está na
aflição da consciência de sua mortalidade (acionando o pungente em seus interlocu-
tores em todos os segundos de seu discurso), e isto é muito diferente da atmosfera
mágica em que vive Macabéa, a nossa Giulietta dos Espíritos do Nordeste, pois a
loucura da narradora é vivida num frágil enredo de solidão e angústia de um corpo
invadido pelo flash da máquina fotográfica: “Vai começar: vou pegar o presente em
cada frase que morre. (...) Mas vou ter que parar porque estou tão e tão cansada que
só morrer me tiraria deste cansaço. (...) Estou me encontrando comigo mesma: é mor-
tal porque só a morte me conclui” (1973: 101). Em outro instante fatal, a pintora-
escritora revela um segredo:
Vou lhe contar um segredo: a vida é mortal. Vou ter que interromper
1
Sobre a relação vida e obra da escritora, consultamos o trabalho de Lícia Manzo, Era uma
vez: eu (2001: 205-225).
496
tudo para te dizer o seguinte: a morte é o impossível e o intangível.
De tal forma a morte é apenas futura que há quem não a agüente e se
suicide. É como se a vida dissesse o seguinte: e simplesmente não
houvesse o seguinte. Só os dois pontos à espera. Nós mantemos este
segredo em mutismo para esconder que cada instante é mortal (Água
viva, 1973: 102).
O pacto da angustiada
1
personagem-narradora com um segredo compartilha-
do amplia o seu ateísmo ao de seus possíveis interlocutores: ela nos joga na certeza
de que o que está a nossa disposição é o “isto”, o qual é marcante no discurso de
G.H., logo devemos vivê-lo em sua duração, uma vez que a morte corta a existência,
retira o ser do mundo. Essas pequenas mortes metafóricas da pintora-narradora
constituem um exercício de espera e aprendizagem para a aceitação da grande inter-
rupção, embora exista a óbvia resistência que ela realiza a todo tempo contra a morte.
Assim ela anda com muito sofrimento em sua carne de mulher que se animaliza e em
determinado instante-já a vemos ferida, ela que é capaz de uma delicadeza cortante
também se deixa sangrar:
Senti-me então como se eu fosse um tigre com flecha mortal cravada
na carne e que estivesse rondando devagar as pessoas medrosas para
descobrir quem teria coragem de aproximar-se e tirar-lhe a dor. E en-
tão há a pessoa que sabe que tigre ferido é apenas tão perigoso quan-
to criança. E aproximando-se da fera, sem medo de tocá-la, arranca a
flecha fincada (Água viva, 1973: 103).
A possibilidade de continuar a narração do tempo, sempre sofrida, se tomar-
mos o fora do tempo em consideração (hors temps), é um privilégio dessa narradora,
que se despoja de si no texto e se aproxima de sua criadora, Clarice Lispector: “O
monstro sagrado morreu. Em seu lugar nasceu uma menina que era órfã de mãe”
(1973: 103). Observa-se nesse fragmento a “possessão” clariciana, pois mesmo com
1
Empregamos o termo angústia no sentido construído pela própria Clarice em uma de suas
crônicas chamada “O que é angústia”, para o Jornal do Brasil: “Um rapaz fez-me essa per-
gunta difícil de ser respondida. Pois depende do angustiado. Para alguns incautos, inclu-
sive, é a palavra que se orgulham de pronunciar como se com ela subissem da categoria –
o que também é uma forma de angústia. Angústia pode ser não ter esperança na esperan-
ça. Ou conformar-se sem se resignar. Ou não se confessar nem a si próprio. Ou não ser o
que realmente se é, e nunca se é. Angústia pode ser o desamparo de estar vivo. Pode ser
também não ter coragem de ter angústia – e a fuga é outra angústia. Mas angústia faz
parte: o que é vivo, por ser vivo, se contrai. Esse mesmo rapaz perguntou-me: você não
acha que há um vazio sinistro em tudo? Há sim. Enquanto se espera que o coração en-
497
uma mãe doente e sentindo-se culpada porque o seu nascimento não a livrou, con-
forme muitos acreditavam, da doença, a escritora não a retira do texto
1
. Apesar da
forte imagem autofágica recorrente em Água viva que é a de alimentar-se da própria
placenta, a pintora-escritora não a retira da cena: a mãe, sempre um eco da Virgem
Maria, está lá, um pouco esmaecida pelas circunstâncias biográficas de Clarice que a
lançaram na vida sem muito apoio da figura materna, entretanto uma referência que
levou a escritora ao extremo apego e valorização da vida e sobretudo à oportunidade
de experimentá-la com muita alegria.
Esse sentimento de alegria, ligado ao inevitável que é a morte, se mostra mis-
turado ao sarcasmo da narradora atéia, conforme o instante que segue: “Denuncio
nossa fraqueza, denuncio o horror alucinante de morrer – e respondo a toda essa in-
fâmia com – exatamente isto que vai agora ficar escrito – e respondo a toda essa in-
fâmia com a alegria” (1973: 112). Voltando à crônica “Pertencer”, Clarice escreve o
seu desejo íntimo: “Quereria simplesmente que se tivesse feito um milagre: eu nascer
e curar minha mãe” (1999: 111). Como o milagre não acontece, ela sente-se excluída,
mas às vezes acontece de ter uma leve amostra do que seria esse pertencer: “A vida
me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu
perco não pertencendo” (1999: 111). Segue-se disso que o pertencer para ela é a recu-
sa da morte em sua última interrupção, o cessar da vida, assim ela define o sentimen-
to de pertencimento, sublinhando-o: “E então eu soube: pertencer é viver” (1999: 111).
Trata-se, portanto, para confirmar o nosso percurso da isotopia da morte na trajetória
aquosa de Água viva, o enfoque temático voltado para a experiência da vida dentro
do texto, visto que a situação relatada pela pintora-escritora e também a de Clarice
(cronista) se aproximam, pois no fecho da crônica flagramos a metáfora do fluxo vivo
da água imbricada ao sentimento de pertencimento que é título de sua trajetória agô-
tenda” (“O que é angústia”, 1999: 435).
1
Na crônica “Pertencer”, Clarice revela esse dado importante de sua biografia: “fui prepa-
rada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma
superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de
uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei
minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determina-
da e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse de-
sertado. Sei que meus pais me perdoaram eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande
498
nica publicada alguns anos depois dessa crônica datada de 1968: “Experimentei-o
com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um
cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho“ (1999: 111). Por isso,
isto é, porque é a experiência da vida a insere no fluxo social que é a base da lingua-
gem, dado que não existe linguagem sem o outro, a personagem-narradora, enviesa-
damente, lança mão do sentimento de alegria para expressar a recusa da finitude: “E
a minha própria morte e a dos que amamos tem que ser alegre, não sei ainda como,
mas tem que ser” (1973: 113). Os instantes só enfatizam essa revolta da pintora-
narradora:
Aliás não quero morrer. Recuso-me contra “Deus”. Vamos não mor-
rer como desafio?
Não vou morrer, ouviu, Deus? Não tenho coragem, ouviu? Não me
mate, ouviu. Porque é uma infâmia nascer para morrer não se sabe
quando nem onde. Vou ficar muito alegre, ouviu? Como resposta,
como insulto. Uma coisa eu garanto: nós não somos culpados. E pre-
ciso entender enquanto estou viva, ouviu? porque depois será tarde
demais (Água viva, 1973: 113).
Na última referência, a pintora aventa a possibilidade que já foi pensada por
Descartes em suas Meditações: “Será que depois da morte é assim? o sonho de um so-
nho de um sonho de um sonho?” (1973: 114).
4.4 O gosto: uma forma de pertencimento
Encontramos em uma crônica importante de Clarice, recém mencionada, a si-
nonímia entre pertencer e viver. A pergunta que se segue disso é: O que é viver e
como vive a pintora de Água viva? Em parte já respondemos essa questão ao indicar
os movimentos realizados pela personagem-narradora. A inspeção dos sentidos da
visão, da audição e do olfato realçam a tentativa de manifestação da pintora de suas
sensações intensamente trabalhadas para captar o centro vivo das coisas. Faremos, a
partir desse momento, a coleta dos instantes-já referentes à gustação, conforme apa-
recem na seqüência de Água viva, pois intuímos que aí está uma das facetas mais de-
licadas do existir clariciano.
esperança. Mas eu, eu não me perdôo” (“Pertencer”, 1999: 111).
499
No início da caminhada do gosto da pintora-escritora, nota-se a revolta de sua
auto-suficiência sobre a qual mencionamos na crônica “Pertencer”, levando-nos in-
clusive a chegar até a esse entrelaçamento entre viver e o saborear: “quero me ali-
mentar diretamente da placenta” (1973: 7). Apagando a figura materna, a narradora a
faz viver obliquamente por essa negação – procedimento muito ao gosto dos textos
de Clarice. Em outro instante, a pintora-escritora conduz-nos para o campo do sabor:
“Escrevo-te toda inteira e sinto um sabor em ser e o sabor-a-ti é abstrato como o ins-
tante” (1973: 9). Colado a esse instante, ela acrescenta: “E aos instantes eu lhes tiro o
sumo de fruta. Tenho que me destituir para alcançar cerne e semente de vida. O ins-
tante é semente viva” (1973: 11). A personagem-narradora esgota o sabor, que serve
como metáfora para o adensamento do tempo. Assim ela realiza o mesmo aprofun-
damento que está em Perto do coração selvagem, exercício praticado por Joana na des-
crição de seu contato desafiante com os relógios durante a infância. Em outro instan-
te-já, ela mostra-se distanciada dos alimentos, como quem evita o sabor para sentir
um gosto que se afigura de difícil apreensão, para não dizer inacessível: “Mal toco
em alimentos, não quero me despertar para além do despertar do dia” (1973: 13). No
instante subseqüente, a pintora cria uma metáfora para o dia que o corporifica por
meio da alusão à carnalidade por ela percebida nas frutas, as quais ganham o atribu-
to protetor epitelial característico de forma mais evidente nos homens e nos animais:
“O dia parece a pele esticada e lisa de uma fruta que numa pequena catástrofe os
dentes rompem, o seu caldo escorre” (1973: 18).
A pintora-escritora, em determinado momento de seu discurso aquoso, afirma
o seu estranhamento nesse campo que não é o do seu domínio. No instante a seguir,
ela se diz à vontade com as palavras. Nota-se que a sua justificativa se apóia no pra-
zer das palavras, o qual anteriormente ela sentia apenas na escolha das tintas ou nos
traços de uma tela a ser preenchida: “Comecei estas páginas também com o fim de
preparar-me para pintar. Mas agora estou tomada pelo gosto das palavras, e quase
me liberto do domínio das tintas: sinto uma voluptuosidade em ir criando o que te
dizer” (1973: 19, grifo nosso). Na seqüência da captura de flagrantes da gustação, a
personagem-narradora exemplifica o seu gosto, já exercitado por meio da protagonis-
ta Joana, de Perto do Coração selvagem. A personagem do romance de estréia elege a
500
palavra “amêndoa”, uma escolha repleta de sabor doce. A escolha da pintora man-
tém-se nessa busca pelo flagrante do que é líquido numa fruta: “Quero a seguinte pa-
lavra: ‘esplendidez’; esplendidez é a fruta na sua suculência, fruta sem tristeza”
(1973: 27). A pintora-narradora faz com as palavras o mesmo uso que Kristeva perce-
be na aquisição da linguagem. Para a psicanalista
1
, no desenvolvimento do futuro su-
jeito falante, antes da fase depressiva, o que existe é um contato tátil, afetivo e sobre-
tudo gustativo com o leite materno. O fantasma de Kristeva, exposto em Visões capi-
tais, explora a região da face materna, o horror recíproco entre mãe e filho que está no
mito da medusa é percorrido pela psicanalista em diversas pinturas sobre “decapita-
ções”. O fantasma de Kristeva repercute sobre a vida de todo o sujeito falante porque
todos passamos por esse vínculo carnal com a linguagem, uma vez que necessitamos
dos cuidados de uma representante materna. Na nossa interpretação, observamos
que na origem do desenvolvimento da palavra reside um gosto arcaico desse corpo
materno nutridor que passa posteriormente para a linguagem. A narradora ambicio-
sa de Água viva procura o máximo dessa experiência e a iguala ao que chama de vida
e dela, no entanto, só atinge uma leve reminiscência da possessão materna, história
de qualquer sujeito inserido na linguagem: “Como vês, é-me impossível aprofundar
e apossar-me da vida, ela é aérea, é o meu leve hálito” (1973: 29). Apesar da difícil
apreensão da leveza presente nesse sopro (assunto do livro póstumo da escritora), a
narradora-escritora parece insatisfeita com essa experiência, pois ela tem fome de vi-
da e no instante que segue observa um mundo que é pleno de saliva: “O que mais me
emociona é que o que não vejo contudo existe. Porque então tenho aos meus pés todo
um mundo desconhecido que existe pleno e cheio de rica saliva. A verdade está em
alguma parte: mas inútil pensar. Não a descobrirei e no entanto vivo dela” (1973: 35).
Para escandir a intensidade alcançada por ela no instante-já narrado, ela desvia para
a possibilidade de uma história como quem recorre à figura materna e seu poder de
nutrição: “De vez em quando te darei uma leve história – ária melódica e cantabile
para quebrar este meu quarteto de cordas: um trecho figurativo para abrir uma cla-
1
Retomamos esse ponto, mas ele já está desenvolvido no terceiro capítulo do nosso traba-
lho. Kristeva desenvolve esse tema da relação entre palavras e nutrição em Visões capitais,
1998, p. 25.
501
reira na minha nutridora selva” (1973: 37). Porque a pintora é uma órfã de mãe
1
e não
encontra refúgio nessa referência protetora e nutriz, ela volta ao impacto solitário de
alguém que se alimenta de si mesmo: “Não. Não é fácil. Mas é it. Comi minha pró-
pria placenta para não precisar comer durante quatro dias. Para ter leite para te dar.
O leite é um ‘isto’. E ninguém é eu. Ninguém é você. Esta é a solidão” (1973: 39). O is-
to clariciano, no instante em questão, é do gosto arcaico, do leite materno recuperado
para a construção da teoria da linguagem de Kristeva e que será visto pela psicanalis-
ta nos deslocamentos metafóricos trabalhados pelos poetas, especialmente na escrita
comestível de Colette, que soube tirar da natureza um sabor enfeitiçante e incomum,
pois são poucos os escritores que alcançam as nuanças tecidas por Colette. Deve-se
levar em conta que Colette transgrediu em parte um tabu sexual ao se envolver com
o enteado e com isso tocou os tabus alimentares, os quais, na interpretação freudiana
(Totem e tabu), instauram o simbólico e, por conseguinte, a própria linguagem. En-
tramos em uma discussão sem resposta, apenas suscitamos esse confronto entre os
limites da linguagem e a criação verbal, pois nos parece um campo que se abre para
além da nossa pesquisa. A liberdade de Colette para fora do simbólico resultou em
um rico efeito poético no qual as palavras são um banquete. O caso da narradora de
Água viva é diferente, pois a sua autora, assim como qualquer autor, teve uma vida
única em experiências que não podem ser padronizadas, no entanto ela se encontra
com Colette ao escrever com o gosto pelas palavras. Pode-se dizer da pintora-
escritora da sua fome de palavras, procura simbolizada pelo seio materno, que é au-
sência da mãe: “Com olhos fechados procuro cegamente o peito: quero leite grosso”
(1973: 41). A pintora vive, portanto, uma possessão sem mãe, por isso seu gosto tem
esse aspecto sombrio de desamparo, de alguém que foi jogado no mundo e foi criado
1
Ao analisarmos a isotopia da morte, há um instante quase deslocado do texto no qual a
personagem-narradora relata o seguinte: “O monstro sagrado morreu. Em seu lugar nas-
ceu uma menina que era órfã de mãe” (1973: 103). Na continuação, vê-se o arrependimen-
to por ter alcançado um tom próximo ao confessional: ”Bem sei que terei que parar. Não
por falta de palavras mas porque estas coisas e sobretudo as que só penso e não escrevi –
não se dizem” (1973: 103). Na crônica de 22 de novembro de 1969, para o Jornal do Brasil,
intitulada “Brain storm”, Clarice faz um exercício de escrita veloz, ao correr da pena, no
qual vemos o mesmo trecho com uma interessante modificação no final: “O monstro sa-
grado morreu: em seu lugar nasceu uma menina que era órfã de mãe. Bem sei que terei
de parar, não por causa da falta de palavras, mas porque essas coisas e sobretudo as que
502
sem referências, à mercê de algumas interdições que poderiam tê-la levado talvez a
limitações verbais: “Gosto é das paisagens de terra esturricada e seca, com árvores
contorcidas e montanhas feitas de rocha e com uma luz alvar e suspensa. Ali, sim, é
que a beleza recôndita está” (1973: 44). O próximo instante-já confirma esse argumen-
to, além de associá-la ao intertexto de Lautréamont: “Insetos, sapos, piolhos, moscas,
pulgas e percevejos – tudo nascido de uma corrupta germinação malsã de larvas. E
minha fome se alimenta desses seres putrefatos em decomposição. (...) Mas existe
malignidade na selva. Bebo um gole de sangue que me plenifica toda” (1973: 47). No
instante que segue, novamente, observamos o refrão autofágico: “A pessoa come ou-
tra de fome. Mas eu me alimentei com minha própria placenta. E não vou roer unhas
porque isto é um tranqüilo adágio” (1973: 50). Órfã de mãe, a personagem-narradora
não degustou do peito materno, ela nem mesmo alcançou a experiência natural um
pouco anterior à saciedade, uma vez que é à sobrevivência que ela reivindica em seu
discurso cru. A pintora-escritora percebe a própria fome ao lançar essa construção
poética direta, com a intenção de ser por isso pouco trabalhada, que é a de alguém
que come a outra de fome: possessão mamãe/bebê.
Em outro instante-já, o sabor entra na esfera técnica, na alusão às transparên-
cias características do desenho contemporâneo
1
. Daí se percebe uma diferença sutil
em relação às referências egípcias e a solidez das pedras – retiradas da natureza e
empilhadas misteriosamente na edificação de monumentos sagrados – e o universo
iluminado pelos objetos criados com o fim de reverência à modernidade. Na primeira
situação, percebemos essa relação com a Antigüidade na história de G.H. e a profu-
são de elementos que a ligam ao sagrado do mundo egípcio. Quanto às transparên-
cias da força protagonal, não se pode sustentar que ela é impermeável ao mistério,
uma vez que existem exemplos em seu flagrante do instante-já que a alçam para um
mundo fantástico, mítico; no entanto, interessamo-nos por instantes em que a perso-
nagem-narradora escapa desse apelo intencionalmente sagrado, como no instante em
questão: “Parei para tomar água fresca: o copo neste instante-já é de grosso cristal fa-
eu só pensei e não escrevi, não se usam publicar em jornais” (“Brain storm”, 1973: 246).
1
Sobre as mudanças na arquitetura e o emprego do vidro (transparências) nos espaços mo-
dernos, consultamos a obra de Kenneth Frampton, História crítica da arquitetura moderna.
503
cetado e com milhares de faíscas de instantes. Os objetos são tempo parado?” (1973:
50). Mesmo nessa imagem gélida que remete à superiluminação promovida pelo de-
senvolvimento da técnica em nossa condição de sujeitos em dependência com toda a
sorte de telas artificiais, nota-se a busca da pintora-escritora por um gosto arcaico
com o qual ela não encontrou satisfação e por isso ela o inventa na tentativa de apre-
ender o sem sabor que é da sua experiência gustativa arcaica privada do leite mater-
no. Nessa medida, ela realça a insipidez da água. Se tomarmos a revolta da pintora-
escritora não pelo seu lado arcaico do paladar, e exclusivamente pelo âmbito de sua
macro-história, essa em que os interlocutores de cada tempo se incluem, daí o texto
contém o ambicioso exercício da atemporalidade ao se fazer no instante-já de seus in-
terlocutores. Encontramo-nos, passados 35 anos da publicação de Água viva, rodea-
dos da mesma questão aventada pela sua personagem-narradora, mas – o que é per-
turbador – de modo evidente, devido a uma série mudanças que atualmente estão
incorporadas indissoluvelmente ao nosso cotidiano. Estamos, portanto, imersos na
sociedade dromocrática (conforme a terminologia de Virilio), situação que, como ad-
voga Kristeva em seus textos mais recentes (As novas doenças da alma, A revolta íntima,
Sentido e contra-senso da revolta), limita a nossa condição humana, apoiada sobre a ca-
pacidade de pensar/sentir, barrando acesso ao complicado trabalho de recriação de
nossa vida psíquica. Nesse sentido, a leitura indicada pela pintora-escritora, na apre-
ensão dessa falta de sabor presente na água em contraste com as transparências do
copo e do próprio tempo, metaforiza a luta daqueles que defendem a liberdade do
sujeito em um período adverso à manifestação da liberdade e voltado à robotização,
implicando daí a padronização e, infelizmente, o apagamento do gosto.
As páginas femininas de Clarice
1
, produzidas no início da carreira da escritora
voltada à atividade da jornalística, estão repletas de notas sobre o gosto. Basta folhear
a coletânea publicada de textos da escritora para jornais brasileiros, organizada por
Aparecida Maria Nunes, para perceber como o gosto é um tema presente nas páginas
1
Sobre a atividade jornalística da escritora, consultamos a obra de Aparecida Maria Nunes,
Clarice Lispector jornalista: páginas femininas e outras páginas. Tereza Quadros, Helen
Palmer e Ilka Soares foram alguns pseudônimos usados por Clarice para escrever para
mulheres em jornais enquanto mantinha sua atividade de escritora de romances e de con-
tos.
504
construídas por Clarice. Por exemplo, no texto para o Diário da Noite, de 6 de maio de
1960, chamado “Experimente”, a autora da página mostra uma intenção que se des-
vela em muitos de seus romances, qual seja, a necessidade de incluir o interlocutor
em seu texto: “Estou hoje mais com jeito para conversinha mole, dessas partidas, à
vontade, sem o menor ar de “discurso”... Não gosto de monólogo, de modo que até
me parece ouvir sua voz me respondendo, concordando ou discordando de mim”
(2006: 21). No segundo parágrafo, ela expõe seu gosto, assim como faz em seus livros
ao narrar histórias de experiências sofridas na carne de personagens fictícios e em se-
guida evocar a apreciação do interlocutor invisível:
Que é que você acha, por exemplo, dessa moda de franjinha meio
boba, meio desfiada, meio de lado na testa, meio “como quem não
quer nada”? Pois há dias que me parece o ideal. Tal franja mistura
um ar de preguiça com um toque de exótico, e às vezes dá a impres-
são de deusa bem penteada que o vento despenteou. Sou a favor de
franja boba, sobretudo nesses dias bonitos de abril-maio. E você?
(Correio feminino, 2006: 21).
Em “Driblando a moda”, texto de 23 de abril de 1960 para o Diário da Noite, a
jornalista Clarice percebe os perigos do mercado da moda com a sua ditadura e pa-
dronização, fazendo assim para suas leitoras uma verdadeira revolução em busca do
estilo pessoal:
O perigo, quando se fala em moda, é que moda termina parecendo
lei. E para muitas mulheres é mesmo: “Não posso porque não está na
moda”, ouve-se muito. Muitas não chegam a dizer, mas chegam a
contrariar o próprio gosto, e mesmo o que lhes vai bem, contanto que
façam da moda uma prisão. Ora, moda é tendência, tendência geral a
ser adaptada por cada uma de nós, a ser usada com prazer, e não a
nos escravizar.
(...) roxo é a cor que vem. Em algumas de vocês, o roxo irá tão bem
como uma luva de luxo. Em outras, apesar de estar na moda, talvez
dê um ar de tristeza e viuvez. Lembre-se: moda é moda, mas quem
manda mesmo é você. E quem escolhe também: a cor da moda é roxo,
mas ninguém está lhe dizendo que tom de roxo. Quem sabe se o lilás,
modalidade mais suave do roxo, vai melhor com seu tipo? (Correio
feminino, 2006: 40).
Voltando ao próximo instante-já de Água viva, notamos que a personagem-
narradora se mostra como exemplo de alguém que não se curva à massificação, pois,
a despeito de uma vida sem o alimento vital, ela conseguiu a experiência delicada
505
dos sabores finos. Curiosamente, é ela quem denuncia os abusos da esfera técnica, ao
se esquivar de um mundo onde imperam transparências (metáfora da sociedade do
espetáculo). Septicius Clarus, o protagonista de O velho e os lobos, dispõe dessa mes-
ma consciência da força protagonal a ponto de ser o personagem mais crítico da tra-
ma de Kristeva, apesar de uma existência repleta de infortúnios que o faz, em grande
medida, realizar o mesmo gesto presente no instate-já seguinte da pintora: “Eu a-
güento porque sou forte: comi minha própria placenta” (1973: 52). A preocupação da
pintora-escritora tem base filosófica, pois ela nos joga a seguinte reflexão: “Como re-
produzir em palavras o gosto? O gosto é uno e as palavras são muitas” (1973: 53).
Nas crônicas, Clarice também chama a atenção para o papel do gosto. Em “Temas
que morrem”, de 24 de maio de 1969, a escritora aproxima-se da cronista nesse trecho
confessional: “A verdade é que simplesmente me faltou o dom para a minha verda-
deira vocação: a de desenhar” (1999: 197). Na mesma crônica, Clarice revela a sua
fome, que é também fome de criação estética que vem à tona pela palavra como um
impulso para a satisfação de uma fome arcaica:
Eu também poderia escrever um verdadeiro tratado sobre comer, eu
que gosto de comer e no entanto não como tanto. Terminaria sendo
um tratado sobre a sensualidade, não especificamente a de sexo, mas
a sensualidade de “entrar em contato” íntimo com o que existe, pois
comer é uma de suas modalidades – e é uma modalidade que engage
de algum modo o ser inteiro (A descoberta do mundo, 1999: 197).
Na seqüência do instante-já em Água viva, a pintora-narradora cobre de sofisti-
cação essa fome expressada na crônica do Jornal do Brasil: “Ultrapassar o máximo é
viver o elemento puro. Tem pessoas que não agüentam: vomitam. Mas eu estou habi-
tuada ao sangue” (1973: 54). A personagem-narradora deseja o instante em sua car-
nalidade bruta. Ela vive o instante como se fosse um alimento e intensamente se ali-
menta do tempo, uma forma de humanizá-lo, retirando-o do apagamento caracterís-
tico da técnica, muitas vezes às voltas com a produção da mera manutenção da velo-
cidade por si mesma. Em sua atividade de cronista, Clarice constrói uma versão po-
pular para essa sua necessidade que é, para usar um termo da pintora-narradora, a
“fúria dos impulsos viscerais”. Localizamos na crônica “Nossa truculência”, de 13 de
506
dezembro de 1969, o equivalente para o que Clarice deixa no relato da pintora-
escritora disperso na rede entrelaçada de assuntos do fluxo de Água viva:
Quando penso na alegria com que comemos galinha ao molho pardo,
dou-me conta de nossa truculência. Eu, que seria incapaz de matar
uma galinha, tanto gosto delas vivas mexendo o pescoço feio e pro-
curando minhocas. Deveríamos não comê-la e ao seu sangue? Nunca.
Nós somos canibais, é preciso não esquecer. É respeitar a violência
que temos. E, quem sabe, não comêssemos a galinha ao molho pardo,
comeríamos gente com seu sangue. Minha falta de coragem de matar
uma galinha e no entanto comê-la morta me confunde, espanta-me,
mas aceito. A nossa vida é truculenta: nasce-se com sangue e com
sangue corta-se a união que é o cordão umbilical. E quantos morrem
com sangue. É preciso acreditar no sangue como parte da nossa vida.
A truculência. É amor também (A descoberta do mundo, 1999: 252).
Mais recentemente, Derrida, em États d’âme de la psychanalyse, à procura de um
além (au-delà) da pulsão de morte, da pulsão de poder e da crueldade, realiza uma re-
tomada etimológica interessante para se refletir sobre a posição clariciana a respeito
dessa vida pulsante que é de uma ênfase em estados brutos, orgânicos, que esgui-
cham sangue sobre a composição de vários de seus personagens, especialmente sobre
a pintora-narradora, envolvida num constante vermelho visceral. Ao pesquisar a as-
cendência latina da palavra latina crueldade (cruor, crudus, crudelitas), Derrida a iden-
tifica à história do sangue derramado, do crime (2000: 10). O filósofo parte da etimo-
logia e desse caminho em que o estatuto do sangue e o sofrimento advindo daí se
desfazem em nossa sociedade técnica, pois essa produz, por exemplo, mortes indolo-
res sob a capa de um ato de humanismo. Em Visões capitais, no artigo intitulado “Da
guilhotina abolição da pena de morte” (“De la guillotine à l’abolition de la peine de
mort”), Kristeva mostra que o seu fantasma das decapitações também é o do povo
francês. A autora recorre à literatura francesa para ilustrar esse fantasma carregado
de crueldade cujo ápice aparece em O vermelho e o Negro e no envolvimento dos an-
cestrais de Mathilde de La Mole com a experiência da decapitação que retorna para
ela na cabeça cortada de Julien Sorel. A parcela ficcional da decapitação explorada
por Kristeva está em Possessões. Gloria Harrison, cujo corpo decapitado foi objeto de
nosso estudo no terceiro capítulo deste trabalho, apresenta esse legado de crueldade
de retorno (revolta, em sua acepção de volta) etimológico perdido pela técnica. O ar-
tigo presente em Visões capitais, em uma nota de rodapé, cita a obra de Martin Mo-
507
nestier, Penas de morte: história e técnicas das execuções capitais das origens até a atu-
alidade (Peines de mort: Histoire et tecniques des exécutions capitales des origines à
nos jours). É preciso entrar em contato com as imagens recolhidas por Monestier, as
quais não são copiadas ou referidas por Kristeva, para ver (esse é o verbo) que o de-
saparecimento do corpo – desaparecimento do sangue – não apaga o impacto san-
guinário sempre presente na palavra cruel. Esmaecido pela técnica – assim interpre-
tamos o sangue na pesquisa de Monastier –, a perturbação desse líquido vermelho,
que é intensa, por exemplo, em práticas rudimentares de pena de morte como nos
suplícios com animais, na empalação, na precipitação ou na degolação, se atenua
quando se aprimoram as técnicas das penas. A câmara a gás, a cadeira elétrica e a in-
jeção letal constituem exemplos de mortes produzidas pela técnica nas quais o san-
gue sai de cena, de modo a levar consigo também o horror contido nesse gesto de
destruição.
Nesse sentido, perdemos, na atualidade, o perturbador vínculo com o sangue
presente na formação da palavra crueldade. Todavia, não se perde o gesto da cruel-
dade que é o cultivo da destruição, e por conseguinte, do encerramento do sujeito na
pulsão de morte. Tem-se a crueldade, mas não se tem um corpo para que se acuse a
irracionalidade contida em qualquer ato cruel. Por isso, quando Clarice compõe per-
sonagens – e a força protagonal é uma exacerbação desse procedimento asséptico da
sociedade dromocrática –, a escritora denuncia o afastamento etimológico sofrido por
essa palavra. Mas a narradora-pintora clariciana faz isso por linhas oblíquas, pois ela
se desfaz num intenso vermelho visceral em que seu corpo perde peso e por isso ela é
encerrada na condição fragmentária, isto é, como se não dispusesse de um corpo a
ser lamentado pelos interlocutores fascinados pelas suas “mutações faiscantes”. A
historinha que segue no próximo instante-já é uma das poucas fabulações da pintora-
narradora para cortar a intensidade de seu relato cortante, mas mesmo aí veremos a
tentativa da narradora de expor esse sangue perdido:
Ter coruja nunca me ocorreria, embora eu as tenha pintado nas gru-
tas. Mas um ela achou por terra na mata de Santa Teresa um filhote
de coruja todo só e à mingua de mãe. Levou-o para casa. Aconche-
gou-o alimentou-o e dava-lhe murmúrios e terminou descobrindo
que ele gostava de carne crua. Quando ficou forte era de se esperar
que fugisse imediatamente, mas demorou a ir em busca do próprio
508
destino que seria o de reunir-se aos de sua doida raça: é que se afei-
çoara, essa diabólica ave, à moça. Até que num arranco – como se es-
tivesse em luta consigo próprio – libertou-se com o vôo para a pro-
fundeza do mundo (Água viva, 1973: 58, grifos nosso).
A história da coruja e o gosto desse animal pelo cru soma-se ao envolvimento
da pintora-narradora com a atmosfera também cruel de sua busca do instante. Toda-
via, o que fere nesse texto clariciano também é caminho para a salvação. A breve his-
tória da coruja sinaliza para a importância do laço afetivo. Em outro instante-já sobre
o gosto, ela apenas interrompe uma seqüência para satisfazer um hábito que também
era o da autora Clarice: “Agora vou acender um cigarro” (1973: 64). Em outro instan-
te, a narradora confessa o desejo de experimentar (ela emprega esse verbo na primei-
ra pessoa do futuro do presente), antes da morte, o que chama de “delicado da vida”
e o compara a uma comida: “Perceberei – assim como se come e se vive do gosto de
uma comida” (1973: 66). Mesmo nas crônicas, Clarice oferece um exemplo desse deli-
cado que tanto almeja. Na singeleza da crônica chamada “Comer”, de 8 de julho de
1972, a escritora populariza esse “delicado” ao relatar uma história pessoal na qual se
envolvem e se revelam o gosto da escritora e o modo intuitivo como ela vivia em de-
pendência com um escuta corpórea. Ao sair para jantar com uma amiga, o maître da
casa sugere Blanchette de veau, mas Clarice comenta que sua intenção era apenas a de
comer, “conversar só se calhasse”:
Quando o maître diz “recomendando Banchette de Veau, meu corpo
que às vezes tem a intuição de uma sabedoria, meu sábio corpo me
disse que não. Recorro ao argumento de que “molho branco não me
interessa”. Minha amiga, grande e delicada devoradora do que é
bom, explica-me que molho branco tem os seu segredos, etc. Resol-
vemos então seriamente arriscar a meio: pedimos Blanchette e um
Tournedos com molho de vinho para dividirmos (A descoberta do mun-
do, 1999: 419).
O gosto da comida não agrada à escritora. Como vimos no fecho do nosso ca-
pítulo anterior, em matéria de gosto, não há como se abster: “Bem sei que hesitei em
me conformar com o que sentia aos primeiros bocados, tinha medo de estar sentindo
errado” (1973: 419). Clarice hesita, mas vai adiante em sua apreciação gustativa:
“Disse meio a receio: você não sente que tem aí alguma coisa um pouco chamuscada,
não digo queimada mesmo, mas chamuscada” (1973: 419). Revelando-se voraz como
509
é a sua escrita-fluxo de pensamento e intuição, Clarice compõe uma passagem em
que o riso (um recurso muito presente em seus textos) encobre a sua fome e a busca
de uma sofisticação cuja origem está lá no paladar: “Ainda não descobri o que é, pois
na primeira fome misturei tudo na boca. Ela, minha amiga, me diz calmamente: o ar-
roz pegou (1973: 419). O sofisticado não significa para a escritora o refinamento de
um prato estrangeiro servido em restaurante caro. Assim como na palavra e na cons-
trução muito exposta de sua força protagonal está o direto, quase cru de sua espera
pelos sabores simples, conhecidos, a cronista mostra-se com a mesma intenção de
fruir o instante com algum prazer gustativo familiar: “Quanto à Blanchette. Certas
comidas requintadas demais estão no limiar do enjôo de estômago. Requintada de-
mais dá cócega ruim: e eis atingido o limiar. Pois também comida boa tem algo de
rude nela” (1999: 419). Estamos diante do mesmo caráter rude presente no gosto pes-
soal da escritora em outra crônica cujo eixo recai sobre o prazer de comer galinhas.
Na crônica reveladora, “Comer”, notamos mais um procedimento gustativo que ex-
trapola para o campo literário, pois é com uma carga expressiva de sofrimento dila-
cerante (especialmente em Água viva) que seus personagens e/ou narradores condu-
zem a diegese: “Quanto ao Tournedos, novo erro. Mas carne tem que resistir um pou-
co aos dentes! O filé que se corta como manteiga me avisa logo que, pelo menos a
mim, não me entenderam” (1999: 419). Ao abrir essa crônica, ela diz o seguinte: “A
comida estava ruim, mas que bom: ela me renovará toda para uma futura comida
que nem ao menos sei quando virá” (1999: 418). Essa construção é muito semelhante
ao escrever desencadeado pela inspiração, condição típica da escrita clariciana que se
manifesta em seus narradores e outras confissões sobre o silêncio e a espera, temas
que se encontram dispersos pelas crônicas do Jornal do Brasil.
Em outra crônica do JB, “Esclarecimentos – explicação de uma vez por todas”,
de 14 de novembro de 1970, ainda sobre a simplicidade dos sabores, e também para
desmitificar possíveis especulações sobre a sua vida que atingia a popularidade na-
quele período, a escritora, na contracorrente de todas as experiências e influências de
cozinhas estrangeiras que conheceu, escreve sobre a sua forte ligação com o sabor
nordestino e ao mesmo tempo faz uma declaração de amor à língua portuguesa:
Sou brasileira naturalizada, quando, por uma questão de meses, po-
510
deria ser brasileira nata. Fiz da língua portuguesa a minha vida inte-
rior, o meu pensamento mais íntimo, usei-a para palavras de amor.
Comecei a escrever pequenos contos logo que me alfabetizaram, e es-
crevi-os em português, é claro. Criei-me em Recife, e acho que viver
no Nordeste ou no Norte do Brasil é viver mais intensamente e de
perto a verdadeira vida brasileira que lá, no interior, não recebe in-
fluência de costumes de outros países. Minhas crendices foram a-
prendidas em Pernambuco, as comidas que mais gosto são pernam-
bucanas (A descoberta do mundo, 1999: 320).
Claire Varin, em Línguas de fogo: ensaio sobre Clarice Lispector, penetrou na
vida de Clarice, percorreu os caminhos da escritora e ilumina-nos com uma informa-
ção valiosa em que ela relata ter sido praticamente “usurpada” de Elisa Lispector,
uma das irmãs de Clarice. Ao entrar obliquamente em assunto delicado para a famí-
lia Lispector – as origens judaicas –, Varin pergunta a Elisa se Clarice havia aprendi-
do o iídiche e como resposta obtém que “os pais falavam o iídiche em casa: Clarice
entendia o iídiche, embora nunca tenha falado” (2002: 27). Depois dessa revelação,
que a leva a refletir durante três anos, Varin conclui que “Clarice bebeu em segredo o
leite das línguas”. A língua portuguesa é a eleita pela escritora, apesar disso Varin
vasculha no gosto e na vida de Clarice a mistura de línguas que a tornou símbolo de
estilo incomum:
O iídiche habita nela mais cladestinamente ainda, já que nunca a-
prendera a se expressar na língua de sua mãe morta cedo demais:
Clarice tinha apenas nove anos. Alimentada pelo iídiche, assimila o
português da terra que acolheu seus pais. Suas experiências auditi-
vas a mergulham desde a mais tenra infância num estado de deses-
tabilização de uma língua única pura. Ela nutre constantemente uma
estrutura mental binária pelo aprendizado de outras línguas (o fran-
cês, o inglês e o italiano durante as estadas na Itália (1944-1946), na
Suíça (1946-49), na Inglaterra (1951) e nos Estados Unidos (1952-59),
e graças às suas atividades de tradutora, exercidas durante os quinze
últimos anos de sua vida (Línguas de fogo, 2002: 27).
Retornando à investigação do gosto da pintora-escritora, entramos no instante
em que a voracidade do paladar da narradora confeita as flores, aproximando-se da
devoração verbal de Colette: “Agora vou falar da dolência das flores para sentir mais
a ordem do que existe. Antes te dou com prazer o néctar, suco doce que muitas flores
contêm e que os insetos buscam com avidez” (1973: 66). Em seguida, ela relata a sua
experiência do sabor de uma rosa, promovendo o realce e a sobreposição dos senti-
511
dos – olfato, gustação, tato, visão: ”As pétalas têm gosto bom na boca – é só experi-
mentar” (1973: 67). Interessa à narradora-escritora a função nutriz de suas flores co-
mestíveis, pois ecoa em seu discurso a tristeza de alguém que teve que se alimentar
da própria placenta, um esforço que lhe produziu sofrimento, conforme constatamos
na descrição das epífitas, as quais cruzam o caminho das outras flores não pela sua
exuberância (não é o caso), mas somente pelo atributo de não serem plantas parasi-
tas. As epífitas metaforizam a solidão gustativa da pintora que para sobreviver teve
que se alimentar da própria placenta: ”Epífitas nascem sobre outras plantas sem con-
tudo tirar delas a nutrição” (1973: 68). Sobre a flor chamada angélica repousa a som-
bra irônica da morte através de uma metáfora que evoca a fixação da narradora pelos
sabores perdidos – ela que foi privada do leite materno e por isso promove realce ao
insosso: “Mas Angélica é perigosa. Tem perfume de capela. Traz êxtase. Lembra a
hóstia. Muitos têm vontade comê-la e encher a boca com o intenso cheiro sagrado”
(1973: 69).
Do gosto na boca, a pintora-escritora chega a revelações que dizem respeito as
suas escolhas pessoais, por exemplo: ”Gosto de intensidades” (1973: 71). Refletimos
há pouco sobre a necessidade da escritora de entrar em contato com os contrastes – o
orgânico e o inorgânico –, os quais compartilham uma mesma linha que é a animação
verbal, a carne das palavras. Em outro instante-já acerca do gosto, a narradora ofere-
ce uma pequena história sobre um homem bonito que ela observa fixamente até con-
fessar o seu gosto de viés: “Eu continuava a não querê-lo para mim – gosto é das pes-
soas um pouco feias e ao mesmo tempo harmoniosas, mas ele de certo modo dera-me
muito com o sorriso de camaradagem entre pessoas que se entendem. Tudo isto eu
não entendia” (1973: 77). Para melhor compreendê-la nessa apreciação da desarmo-
nia, temos que buscar o que ela chama de experiência de lado
1
. Há um instante em
1
A pintora-escritora oferece uma definição importante de seu modo de vida “de lado” que
pode ser ligada ao delicado cortante clariciano: “A vida oblíqua? Bem sei que há um de-
sencontro leve entre as coisas, elas quase se chocam, há desencontro entre os seres que
se perdem uns aos outros entre palavras que quase não dizem mais nada. Mas quase nos
entendemos nesse leve desencontro, nesse quase que é a única forma de suportar a vida
em cheio, pois um encontro brusco face a face com ela nos assustaria, espaventaria os
seus delicados fios de teia de aranha. Nós somos de soslaio para não comprometer o que
pressentimos de infinitamente outro nessa vida que te falo” (Água viva, 1973: 83).
512
que a pintora entrelaça esse gosto enviesado a sua intensidade pelas coisas do mun-
do e à experiência do horror, que no texto clariciano – especificamente nesse instante
–, diferente do que se passa em Possessões, não tem deslocamento, pois está dissemi-
nado por todos os sentidos: “Eu, que vivo de lado, sou à esquerda de quem entra. E
estremece em mim o mundo” (1973: 38). A obliqüidade constitui-se numa estratégia
de proteção a essa forma de sentir/pensar da narradora clariciana: “E eu vivo de lado
– lugar onde a luz central não me cresta. E falo bem baixo para que os ouvidos sejam
obrigados a ficar atentos e a me ouvir” (1973: 83-84, grifo nosso). Resumimos em nota
de pé de página alguns instantes alusivos à isotopia da luminosidade no discurso da
pintora-narradora. Nota-se que a personagem de Água viva identifica-se em muitos
momentos com o fascínio produzido pelas luzes, as quais metaforizam – sustentamos
uma leitura moderna dessas luminescências – as transparências artificiais da nossa
sociedade hipertecnificada. Portanto, há em seu relato um movimento de rechaço ao
brilho intenso e artificial: é quando a pintora-escritora vale-se do verbo “crestar” e o
associa a uma forma oblíqua de olhar. Revela-se nesse instante-já a sua revolta ao tu-
do ver, aproximando-a de uma existência possivelmente não tão intensa no que toca
à visão e nessa medida ela se aproxima das possessões de Kristeva cujo recado está
expresso no enunciado de que “no horror não se vê”.
A narradora de Água viva acompanha o deslocamento sugerido pelo narrador
de Possessões. Se acompanharmos o instante agônico que sucede à cena do homem
bonito, veremos que no horror se ouve. Seguindo a nossa linha da inspeção do gosto,
o instante-já que condensa a cena do homem bonito é seguido de comentário sobre o
feio, sobre a desarmonia. Em suma, o oblíquo clariciano contém o deslocamento do
horror perceptivo da tentativa de apreensão do tempo deslocado da visão para audi-
ção que se funde ao tato e antecede a devoração (paladar) da pintora-narradora, que
se deixa contaminar pelo mesmo oblíquo que busca para suportar (ou simplesmente
amenizar) a sua intensidade: ”Ouço o canto doido de um passarinho e esmago bor-
boletas entre os dedos. Sou uma fruta roída por um verme” (1973: 80). O paladar, as-
sim como a escuta-tátil atenuam, pelo menos nessa seqüência de instantes, a condi-
ção insuportável do existir para a pintora-escritora, que, na continuação desses tre-
chos, identifica-se com o horror da luminosidade técnica, conforme metáfora da luz
513
artificial: “Uma chusma dissonante de insetos me rodeia. Uma luz de lamparina ace-
sa que sou. (...) Que febre: não consigo parar de viver” (1973: 80). Em outro instante-
já, o paladar se soma ao tato, momento em que a delicadeza clariciana da busca pela
vida oblíqua se exemplifica numa cena em que os sentidos mencionados têm por ob-
jetivo a nutrição e a proteção: “Tem um lado da vida que é como no inverno tomar
café num terraço dentro da friagem e aconchegada na lã” (1973: 82). Ainda sobre a
vida oblíqua, a pintora explica que se trata de uma vida que é “muito íntima”: “Não
digo mais sobre essa intimidade para não ferir o pensar-sentir como palavras secas.
Para deixar esse oblíquo na sua independência desenvolta” (1973: 82). Paira no texto
a pergunta: Quem pode viver essa vida oblíqua, também chamada pela narradora de
“oriental”? A força protagonal responde-nos, acompanhando a nossa investigação
que é a do instante-já do paladar: “Só algumas pessoas escolhidas pela fatalidade do
acaso provaram da liberdade esquiva e delicada da vida. É como saber arrumar flores
num jarro: uma sabedoria quase inútil” (1973: 82, grifo nosso).
A sofisticação dentro da simplicidade aparece na base da ambição clariciana
do aproveitamento delicado do instante. Nota-se que a pintora-escritora emprega o
verbo “provar”. Logo, a vida oriental é somente dada àqueles capazes de sentir o seu
sabor efêmero, como quem experimenta uma comida com cuidado prolongando essa
experiência fugidia que é do gosto. O paladar é a forma como essa delicadeza vem à
tona – exposição da intimidade da personagem-narradora – tal qual faz Roland Bar-
thes ao escrever sobre o paladar francês em sua obra de crônicas Mitologias. A revolta
da narradora de Água viva acha-se – conforme o sentido etimológico da palavra – na
exposição de sua intimidade gustativa. Em A revolta íntima, Kristeva, que vive a im-
posição e os imperativos da técnica anunciadas por Clarice, faz um caminho seme-
lhante ao que procuramos indicar em Água viva. A teórica, sem desenvolver o ponto,
pois cabe aos que a leram chegar a essa conclusão, localiza no gosto o mais íntimo de
Barthes. O questionamento da técnica para Kristeva portanto passa pelo reavivamen-
to da capacidade de sentir, por isso ela retoma autores que se debruçaram sobre o
sentir/pensar. A obra dedicada a Proust, O tempo sensível (Le temps sensible), que tem
em seu ensaio de abertura reflexões sobre a madeleine, um gosto arcaico do narrador
proustiano, é um reflexo do que se esboça no exercício clariciano pelo flagrante desse
514
sentido escorregadio e ao mesmo tempo crucial para o juízo estético. Em mais uma
observação sobre a vida oblíqua, a pintora-escritora conduz-nos a esse terreno dos
sabores fugidios e até mesmo adocicados:
E está-se no instante-já: come-se a fruta na sua vigência. Será que
não sei mais do que estou falando e que tudo me escapou sem eu
sentir? Sei sim – mas com muito cuidado, porque senão por um triz
não sei mais. Alimento-me delicadamente do cotidiano trivial e tomo
café no terraço no limiar deste crepúsculo que parece doentio apenas
porque é doce sensível (Água viva, 1973: 83).
Nem mesmo a pintora-escritora, cuja composição fluida pretende fugir de
qualquer tipo de vínculo em virtude de seu apelo fragmentário de existência, escapa
da influência adocicada que está incrustada na base do nosso paladar nacional. Ora,
não é o caso de adaptarmos o gosto francês barthesiano para entrar em contato com o
fluxo aquoso da força protagonal, embora seja um intertexto possível. A pintora, em
determinado instante-já, deseja explodir em sua intensidade de vida e para tanto re-
corre a um j’éclate que confirma a pesquisa de Claire Varin, na qual a língua claricia-
na é o rico conjunto de todas as experiências culturais e, por conseguinte, lingüísticas,
da escritora viajada. Percebemos, como forma de ligá-la ao gosto nordestino que se
faz expressar em suas crônicas confessionais, um possível vínculo com a doçura a-
preendida por Gilberto Freyre. No fecho da última passagem recolhida do fluxo a-
quoso da narradora, surge uma pista para relacionarmos o gosto dessa protagonista à
investigação de Freyre. Em Açúcar, o autor ressalta o fato de esse produto ter sido o
mais destacado da economia colonial durante os séculos XVI e XVII, a partir do con-
texto da mão-de-obra escrava. Embora esteja associado à mescla de diferentes inter-
ferências culturais – portuguesa, árabe, judaica, moura, hispânica, ameríndia, e afri-
cana –, o açúcar, conforme Freyre, se fixou na cultura brasileira ao longo de quatro
séculos, de forma a explorar uma série de variantes regionais. Trata-se, conforme o
pesquisador, de uma reação que não significa oposição ou contradição à influência
estrangeira. Segundo o antropólogo, as constantes servem como critério para a conso-
lidação de uma sociedade. Por isso, os quatro séculos de dedicação no preparo de
doces, de bolos e de sobremesas com açúcar relacionam positivamente o açúcar ao
Nordeste. Nesse estudo, Gilberto Freyre inclui uma série de receitas de doces. Entre
515
elas estão doces como toucinho-do-céu, mimos, baba-de-moça, quindins, sonhos de
freira, suspiros, fatias-de-parida entre outros. Diversamente das receitas médicas, as-
sim como Freyre distingue, a atemporalidade das receitas de bolos e de doces não
necessita dos princípios científicos para o seu aprimoramento. Por isso, ele as situa
no campo da estética, uma vez que seus principais compromissos são com o paladar,
com o olfato, com os olhos dos homens
1
.
Um exemplo contemporâneo do legado do açúcar para a cultura brasileira en-
contramos no trabalho do artista Vik Muniz, paulistano radicado em Nova York des-
de 1983. No verão de 1995, em viagem de férias ao Caribe, onde passou duas sema-
nas na ilha Kitts, o artista conheceu crianças da ilha, ensinou-as a nadar, tirou retratos
delas e ficou perturbado ao constatar que seguiriam o mesmo destino dos pais, pois
estariam fadadas ao trabalho de longas jornadas nas plantações de cana com uma
parca remuneração. Voltando a Nova York, ele reflete sobre a inevitável transforma-
ção que sofreriam aquelas crianças alegres ao constatar que seus pais pareciam “can-
sados e amargos” da rotina exaustiva desse trabalho. Daí segue o vínculo com a cul-
tura brasileira estimulado pela interpretação ácida de Ferreira Gullar acerca desse le-
gado do açúcar que servirá de inspiração para Muniz compor uma das séries, cha-
mada “Crianças de açúcar”, mais conhecidas de sua carreira, na qual peneirou açúcar
sobre as fotografias das crianças, conferindo-lhes, na nossa leitura, uma aparência de
felicidade efêmera, um pouco cansada, até mesmo rumo ao que se pode chamar de
tristeza:
Por essa mesma época eu havia lido um poema do poeta brasileiro
Ferreira Gullar, intitulado “O açúcar”, em que ele questiona as ori-
gens da substância branca. “De onde vem açúcar?, pergunta ele. Vem
do depósito, vem do armazém?” E prossegue traçando a genealogia
da substância para, por fim, dizer: “É com vidas amargas de pessoas
amargas que eu adoço meu café nesta linda manhã de Ipanema” (Re-
flex: Vik Muniz de A a Z, 2007: 59-60).
1
Para Gilberto Freyre, o açúcar é o produto que se fez acompanhar sempre do negro, além
de ligar setores sociais diversos como as “sinhás de engenho” e as “mulatas dengosas”
(1997: 55). Ao compor Janair, uma mulher negra cujo desenho desafiador deixado na pa-
rede de seu quarto de empregada desencadeia todo o périplo interior da dona de casa,
Clarice foge do estereótipo planificado de personagens em que os negros ficam encerra-
dos na condição servil.
516
A imagem do açúcar, esse produto marcadamente nacional, é flagrante na o-
bra desse artista, ou seja, o realce dado ao sabor é um traço importante do trabalho
de Muniz, que também produziu uma série de criações fotográficas “comestíveis”
como por exemplo o desenho da Catedral de Santiago de Compostela (2003) com
chocolate, o retrato de duas Mona Lisa em que uma delas é feita de pasta de amendo-
im e a outra de geléia (1999) e também montou uma medusa em prato de massa cujo
efeito do horror das serpentes está nas tiras enroladas de macarrão de fundo de mo-
lho de tomate sobre o prato de bordas brancas. A memória de Muniz é acionada não
somente pelo casualidade de ter lido um poema de Ferreira Gullar que lhe serviu de
inspiração naquele momento em que buscava associações para ilustrar o pungente
daquela pobreza desesperançada das crianças caribenhas, do apagamento da doçura
no olhar dessas crianças ainda felizes, pois existe um outro aspecto de seu paladar. O
paladar para o artista, conforme encontramos em seu próprio depoimento, é um e-
xercício do gosto estético que se entrelaça ao gosto pelas palavras e em seguida, ou
simultaneamente, pelas imagens. Vejamos um comentário de sua biografia exposto
na parte inicial de seu livro:
Minha avó tem um livro nas mãos – tinha sempre um livro ou uma
panela nas mãos. Segura meus dedos como se me ensinasse braile e
acaricia as palavras no livro com em um encantamento, repetindo-
lhes os sons: jibóia, jararaca, urutu, cascavel. Saboreávamos o gosto de
cada palavra como dois gourmets, mesmo que fossem nomes de co-
bras brasileiras (Reflex: Vik Muniz de A a Z, 2007: 10).
Essas observações sobre o gosto nacional servem para o esboço de um dos
possíveis panos de fundo histórico da doçura sensível mencionada pela pintora em
seu agônico instante-já que toca a nossa procura pelos sabores abafados em virtude
da profusão de elementos produzidos artificialmente pelo homo faber. Vik Muniz, cuja
produção artística não pode ser separada da técnica e da ilusão ótica, mostra-nos que
é possível manter o sabor, mesmo deslocando-o para o domínio técnico e metalizan-
do-o em certa medida em função do uso das lentes de sua câmara fotográfica
1
. Quan-
1
Exercício semelhante ao do artista plástico, referente à associação entre o saber e a técnica,
encontra-se no ensaio “O feminino sabor da alegria”, de Ruth Silviano Brandão. No co-
mentário ao filme A festa de Babette, a crítica desloca a relação da refeição atrelada à figu-
ra paterna (assunto de seu artigo chamado “A última ceia do pai”) para o feminino: “No
517
to à pintora-narradora, ainda sobre o último instante a respeito do gosto, o qual nos
levou a essas reflexões para fora do seu discurso, ela alude a uma doçura sensível em
um desses instantes gustativos. Pela investigação de outros sentidos, sabemos como é
intensa a forma do sensível para a pintora-escritora-narradora e por isso carregada
também de uma parcela de sofrimento. No próximo instante-já em que o enfoque é o
gosto – não pela sua forma metafórica como foi a anterior, mas pela sensação de um
gosto de difícil apreensão que caracteriza o gosto da água – entraremos em contato
com o ápice da delicadeza cortante da narradora clariciana. No gesto cruel da pinto-
ra-escritora que leremos a seguir se desdobra uma interessante crítica a respeito da
sociedade técnica:
Só uma pessoa muito delicada pode entrar no quarto vazio onde há
um espelho vazio, e com tal leveza, com tal ausência de si mesma,
que a imagem não marca. Como prêmio essa pessoa delicada terá en-
tão penetrado num dos segredos invioláveis das coisas: viu o espelho
propriamente dito.
E descobriu os enormes espaços gelados que ele tem em si, apenas
interrompidos por um ou outro bloco de gelo. Espelho é frio e gelo.
Mas há a sucessão de escuridões dentro dele – perceber isto é um
instante muito raro – e é preciso ficar à espreita de si mesmo, para
poder captar e surpreender a sucessão de escuridões que há dentro
dele. Com cores de preto e branco recapturei na tela sua luminosida-
de trêmula. Com o mesmo preto e branco recapturo também, num ar-
repio de frio, uma de suas verdades mais difíceis: o seu gélido silên-
cio sem cor. É preciso entender a violenta ausência de cor de um es-
pelho para poder recriá-lo, assim como se recriasse a violenta ausên-
cia do gosto da água (Água viva, 1973: 94-95).
Ao pintar esse espelho, a personagem-narradora relata ter precisado exercitar
a sua própria “delicadeza” a fim de não atravessá-lo com a sua imagem refletida nes-
sa superfície que tudo marca. Está em jogo portanto a tentativa de não aparecer, uma
espécie de recusa ao espetáculo. Percebemos nessa escolha clariciana uma clara refe-
rência à técnica no que ela tem de imagético. Trata-se de um artefato antigo que con-
tribui para o desenvolvimento da ótica – importante não apenas na arte, mas também
na área médica e refletida inclusive nas especulações voyeuristas da nossa sociedade
seu papel silencioso, Babette desloca os valores do pai, quando substitui o alimento cul-
pabilizante, que é a sua palavra, por outro alimento, que também passa pela boca e a en-
che, não de temor, mas da pura alegria” (1996: 131).
518
que tudo pretende abarcar pelo olhar
1
. Ao pintá-lo, ela congela um instante, uma
forma de desacelerar o seu tempo vertiginoso e angustiante que é a captura do ins-
tante-já. Nesse pintura, ela capta o que chama de “gélido silêncio sem cor”. Nota-se
nessa construção a tentativa de alcançar a ausência dentro de uma estrutura saturada
de um apelo sinestésico, pois estão justapostos nesse exercício o tato, a audição e a
visão. Todavia, a pintora os almeja em sua falta e fecha o seu discurso com uma cru-
cial referência ao sentido do gosto. Talvez seja o mais íntimo da narradora clariciana.
Vê-se que o gosto caminha sozinho na recriação da atmosfera delicada da pintora
como se fosse um exercício de aprendizagem no qual os sentidos do tato, da audição
e da visão tivessem que anteceder este que se desenha como o mais importante para
a narradora-escritora, ou seja, possivelmente o gosto é o mais eficaz para o seu obje-
tivo de alcance e experiência do instante-já. O convite da leitura nas entrelinhas faz-
se necessário nessa rede metafórica que abarca a técnica e o paladar. Percorremos em
Água viva um fio metálico, pela indicação da própria narradora, no qual a vemos a-
travessada pela técnica por meio do recurso da metáfora da máquina fotográfica. Me-
tamorfoseada em flash fotográfico, a luminosidade da pintora-escritora diverge, em
parte, da natureza epifânica de base religiosa que é atribuída ao conjunto de perso-
nagens claricianos, inclusive à pintora-narradora. Essa “metalização” (para usar um
termo da própria força protagonal) encontra outros exemplos que circulam nesse
campo semântico de acelaração do texto. Água viva é um texto veloz e seu fluxo a-
quoso sinaliza para uma possível comparação com textos da geração beat, como por
exemplo a escrita fluida de Jack Kerouac.
1
O historiador Pierre Thuillier retoma o debate do espelhos ardentes de Arquimedes que
atualmente participa do folclore, mas produziu debates entre pensadores como Descartes
e o padre Mersenas. Conforme o historiador, os espelhos estão na base dos estudos óti-
cos. Como uma conseqüência moderna na esfera social dessa vontade de olhar, situamos
a performance de Sterlac, um artista que encontra na modificação do próprio corpo o
meio de expressão para a sua arte. Virilio, em A arte do motor, descreve a desestrutura do
corpo antecipada por Sterlac: “Coberto por eletrodos e antenas e dispondo de dois laser-
eyes, nosso mutante leva muito longe a analogia com a robótica do tele-operador – na
qual o homem está no interior do andróide (...). Virilio também recorta um trecho de uma
entrevista de Sterlac: “’Hoje em dia, diz ele, a tecnologia nos cola à pele, está prestes a se
tornar um componente do nosso corpo – desde o relógio de pulso até o coração artificial
(...)’” (1996: 99). Em uma abordagem mais popular característica do gênero crônica, no
volume A bomba informática, de Virilio, encontramos efeitos negativos sobre o psiquismo
que são decorrentes do abuso dos destinos do sentido da visão (1999: 61-69).
519
A referência aos automóveis, por exemplo, exemplifica, pelo viés técnico, o in-
teresse da narradora na construção de metáforas próximas ao seu interlocutor imagi-
nário, no intuito de criar uma atmosfera de encantamento com o seu fluxo aquoso:
“O presente é o instante em que a roda da automóvel em alta velocidade toca mini-
mamente no chão. E a parte da roda que ainda não tocou, tocará num imediato que
absorve o instante presente e torna-o passado” (1973: 16). Em outro instante, ela insi-
nua ter perdido o controle da sua própria narração – tão veloz que a ultrapassa: “Sin-
to que não posso mais parar e me assusto” (1973: 20). Para ilustrar a sua própria in-
sônia decorrente dessa ansiedade que é a viver no instante-já, ela a desloca para o u-
niverso de um elemento marinho, fazendo assim o realce do fluxo marinho no qual
está submersa: “Será que a ostra dorme?” (1973: 34). No instante seguinte, há uma re-
ferência ao it que se une ao núcleo temático referente à velocidade: “Ouço o tique-
taque do relógio: apresso-me então. O tique-taque é it” (1973: 52). Observa-se a inter-
textualidade com o texto de Lewis Carroll - Alice no país das maravilhas e com o pró-
prio romance de estréia de Clarice. Joana-Alice-a pintora estão sempre em luta com o
tempo dos relógios e tentam desafiá-lo em momentos de contemplação profunda
desse tempo que se escoa enquanto o vivem intensamente. Todavia, o fluxo de Água
viva é movido por uma espécie de intimidade com a vertigem intrínseca nesse exercí-
cio extenuante de apreensão do instante-já. Sobre os carros, por exemplo, há uma va-
riação desse meio de transporte, tema de várias crônicas de Clarice para o Jornal do
Brasil: “Atravessei a rua e tomei um táxi” (1973: 76). As luzes e, por conseguinte, a
cobiça do olhar, de tudo alcançar com esse sentido, também desempenha a função de
acelerar o relato bruto do instante em formação – tentativa sempre em via de fracas-
so essa a da pintora-escritora.
Essa corrida metalizante, no entanto, tem seus momentos de ruptura
1
. Por e-
xemplo, se existe a vontade de tudo ver, por outro lado há momentos nos quais im-
pera a sonolência de imagens que buscam a desaceleração do fluxo aquoso. Se em de-
terminado instante-já, a pintora acelera o texto por meio da risível imagem de um re-
1
Caso contrário, poderíamos interpretá-la à luz de uma inserção no culto da performance
sustentado por Alain Ehrenberg (Le culte de la performance) ou à procura de experiências-
limite pautadas pela violência, como articula David Le Breton (Passions du risque).
520
lógio que a faz pulsar embaixo da terra, em outro instante-já esse exagero é atenuado:
“Minhas raízes estão nas trevas divinas. Raízes sonolentas. Vacilando nas escuri-
dões” (1973: 85). Se em alguns instantes-já ela se identifica ao flash das máquinas fo-
tográficas, em outro, ela retorna a uma natureza mítica: “sou a rainha dos medos e
dos persas e sou também a minha lenta evolução que se lança sobre uma ponte leva-
diça num futuro cujas névoas leitosas já respiro hoje” (1973: 26). No instante alusivo à
história da coruja, animal que foi cuidado por um “ela”, a narradora insere um verbo
para conferir a idéia de que há interrupções em seu fluxo de palavras: “Quando ficou
forte era de se esperar que fugisse imediatamente, mas demorou a ir em busca do
próprio destino que seria o de unir-se aos de sua doida raça: é que se afeiçoara, essa
diabólica ave, à moça” (1973: 58, grifo nosso). Percebe-se o vínculo de afeto decorren-
te desse verbo desacelerador no texto e por isso a desaceleração resulta num recurso
positivo nesse conjunto de instantes que é Água viva. A melancolia, sem se contrapor
ao bem-estar dos momentos de fruição vagarosa que dialogam com a intensidade de
viver intensamente o tempo, participa dessa isotopia da lentidão como contraponto à
superiluminação da sociedade saturada pelo apelo visual: “Estou melancólica. É de
manhã. Mas conheço o segredo das manhãs puras. E descanso na melancolia” (1973:
59). Ao lado da quebra do fluxo textual expressa pelo descanso, a pintora justapõe o
segredo. Esse constitui um dos desdobramentos da temática acerca da lentidão, pois
é uma forma de conter a velocidade – metáfora dos abusos da técnica. Tanto o segre-
do quanto o silêncio (uma outra constante de recusa à técnica) produzem escansões
semelhantes às que observamos na seqüência do instante-já que toca à morte
1
. Toda-
via, nessa isotopia central para a compreensão de Água viva, a narradora promove
um curto-circuito no binarismo velocidade/lentidão. Nessa medida, pensá-la exclu-
sivamente como rechaço ao abuso da técnica é um procedimento equivocado, pois na
morte reside a grande luta da pintora-escritora que não se conforma com o estado de
mortalidade e finitude que a caracteriza. Portanto, o ímpeto de narrar o instante-já es-
1
A investigação pormenorizada do contraste isotópico entre a velocidade e a lentidão e suas
bifurcações para o silêncio e o segredo estão em nossa Dissertação intitulada Revolução da
linguagem poética. Nesse momento, construímos um novo texto com base nesse fluxo rít-
mico movido pelo contraste, pois nos interessa ligá-lo à cena do paladar na qual se cru-
zam a técnica e o corpo.
521
tá alicerçado nessa recusa de morrer (ênfase na velocidade) e a sua escrita agônica
não passa de uma tentativa de viver pequenas mortes (interrupções, ênfase na lenti-
dão) com a finalidade de preparação para a hora da estrela – a última morte, gesto fa-
tal.
Retornando à temática da lentidão, há um instante-já no qual a pintora faz
uma referência ao paladar no que ele revela de nossa busca por um sabor íntimo, isto
é, arraigado primeiramente ao gosto arcaico de cada um e também à cultura da qual
participamos (mesmo os sujeitos nomádicos dele não escapam). Trata-se de um mo-
mento que eclode no relato vertiginoso da pintora-narradora e ressoa na instante-já
por nós interrompido momentaneamente para a explicação desse belo movimento
que contempla tanto a rapidez quanto a vagarosidade do tempo. Eis o fragmento de
desaceleração textual construído pela pintora-escritora: “Fico dormitando no calor es-
tivo do domingo que tem moscas voando em torno do açucareiro” (1973: 18, grifo nos-
so). O “domingo” é um índice de grande impacto para pontuar esse corte promovido
pela narradora, já que é um dia de descanso instituído historicamente e sobretudo
nesse texto clariciano aparece reiteradamente
1
. Entretanto, o ponto alto desse recorte,
de acordo com a nossa leitura em busca do gosto, situa-se, curiosamente, sobre um
objeto – o açucareiro – esse recipiente instiga em nossa memória sabores que atiçam o
sensualismo dos açúcares-confeitos transformados, pela pesquisa de Gilberto Freyre,
em engenhosas especiarias que metaforizam a laboriosa estética da pintora-narradora
na escolha de palavras, atmosferas, sensações que despertam nos interlocutores o
prazer do texto. A leitura de Kristeva sobre a obra de Colette encontra-se nessa mes-
ma perspectiva, na qual a palavra se transforma em confeito. Subjaz a todas essas au-
toras – Clarice, Kristeva, Colette – a espessura do paladar. No exemplo da pintora-
1
“Domingo é dia de ecos – quentes, secos, e em toda parte zumbidos de abelhas e vespas,
gritos de pássaros e o longínquo das marteladas compassadas – de onde vêm os ecos de
domingo. (...). Alarde colorido, o do domingo, e esplendidez madura. E tudo isso pintei
há algum tempo e em outro domingo (...). Tenho medo do domingo maldito que me liqui-
fica” (1973: 17-18); “Hoje é domingo de manhã. Neste domingo de sol e de Júpiter estou
sozinha em casa. Dobrei-me de repente em dois e para a frente como em profunda dor de
parto - e vi que a menina em mim morria. Nunca esquecerei esse domingo sangrento”
(1973: 78-79); “E acima da liberdade, acima de certo vazio crio ondas musicais calmíssi-
mas e repetidas. A loucura do invento livre. Paisagem onde se passa essa música? ar, ta-
los verdes, silêncio de domingo de manhã” (1973: 109).
522
narradora, que antecipa a paradoxal amargura dentro dos painéis recheados de do-
çura retratados nas fotografias de Vik Muniz, a ingestão da sensaboria d’água conti-
da no espelho produz esse mesmo desconforto cruel. A diferença está na intenção da
pintora-narradora, uma vez que ela não atinge diretamente a exploração de um tra-
balho escravo. A força protagonal – é preciso não esquecer desse detalhe – toma con-
ta do mundo, por isso seus gestos são grandiosos, abarcando, em sua voracidade que
beira aos quadros psicóticos, a humanidade e não casos isolados. Se unirmos o ins-
tante sobre a pintura do espelho – metáfora técnica – a um fragmento sobre números,
teremos um caminho alinhavado para se chegar a uma clara crítica a respeito da nos-
sa sociedade hipertecnificada. Há dois instantes-já de Água viva que nos conduzem a
uma crítica social ao gosto obliquamente clariciano: “Mas 9 e 7 e 8 são meus números
secretos. Sou uma mulher iniciada sem seita. Ávida de mistério” (1973: 36); “Meu
número é 9. É 7. É 8” (1973: 51). Em “O it/id da escritura”, Ana Maria de Almeida as-
socia o mistério atribuído a esses números à simbologia do tarô e da cabala. O nove,
por exemplo, é três mais seis, o que significa o número do iniciado. Cabe ao nove
também ser interpretado como três vezes três, significando a “imagem completa das
três dimensões”, “dos três mundos” (1985: 8). Segundo Ivo Lucchesi, em Crise e escri-
tura (1987: 26), o mistério de Clarice apresenta-se pela própria numeração do nome
da escritora, estendendo-se até à composição de seu fluxo aquoso: sete corresponde
ao número de letras que compõem o nome Clarice, o nove corresponde ao nome Lis-
pector e oito – curiosamente – simboliza o número de letras do título da obra Água
viva. Olga Borelli, grande amiga da escritora, mostra em Esboço para um retrato possível
que Clarice cultivava alguns rituais como por exemplo a cartomancia e o horóscopo:
“De vez em quando, consultava uma cartomante; anotava então cada uma das visões
do futuro reveladas pelas cartas. Não queria, porém os ‘fatos’ desse futuro. Queria
apenas o seu mais obscuro sentido” (1981: 59). Em seguida, anexamos uma crônica
chamada “Você é um número”, de 7 de agosto de 1971, anterior portanto à publica-
ção de Água viva, na qual há o trecho sobre o mistério da pintora-escritora que recor-
tamos em nossa última citação do relato do instante-já e podemos ver a seguir a his-
tória por trás desse aparente misticismo apartado da vida pública sendo descortinado
pela escritora fascinada pelas obscuridades:
523
Se você não tomar cuidado vira um número até para si mesmo. Por-
que a partir do instante em que você nasce classificam-no com um
número. Sua identidade no Félix Pacheco é um número. O registro
civil é um número. Seu título de eleitor é um número. Profissional-
mente falando você também é. Para ser motorista, tem carteira com
número, e chapa de carro. No Imposto de Renda, o contribuinte é i-
dentificado com um número. Seu prédio, seu telefone, seu número de
apartamento – tudo é número.
Se é dos que abrem crediário, para eles você é um número. Se tem
propriedade, também. Se é sócio de um clube tem um número. Se é
imortal da Academia Brasileira de Letras tem o número da cadeira.
É por isso que vou tomar aulas particulares de Matemática. Preciso
saber das coisas. Ou aulas de Física. Não estou brincando: vou mes-
mo tomar aulas de Matemática, preciso saber alguma coisa sobre
cálculo integral.
Se você é comerciante, seu alvará de localização o classifica também.
Se é contribuinte de qualquer obra de beneficência também é solici-
tado por um número. Se faz viagem de passeio ou de turismo ou de
negócio recebe um número. Para tomar uma avião, dão-lhe um nú-
mero. Se possui ações também recebe um, como acionista de uma
companhia. É claro que você é um número no recenseamento. Se é
católico recebe número de batismo. No registro civil ou religioso vo-
cê é numerado. Se possui personalidade jurídica tem. E quando a
gente morre, no jazigo, tem um número. E a certidão de óbito tam-
bém.
Nós não somos ninguém? Protesto. Aliás é inútil o protesto. E vai ver
meu protesto também é número.
Uma amiga minha me contou que no Alto Sertão de Pernambuco
uma mulher estava com o filho doente, desidratado, foi ao Posto de
Saúde. E recebeu a ficha número 10. Mas dentro do horário previsto
pelo médico a criança não pôde ser atendida porque só atenderam
até o número 9. A criança morreu por causa de um número. Nós so-
mos culpados.
Se há uma guerra, você é classificado por um número. Numa pulsei-
ra com placa metálica, se não me engano. Ou numa corrente de pesco-
ço, metálica.
Nós vamos lutar contra isso. Cada um é um, sem número. O si-
mesmo é apenas o si-mesmo.
E Deus não é um número.
Vamos ser gente, por favor. Nossa sociedade está nos deixando secos
como um número seco, como um osso branco seco exposto ao sol.
Meu número íntimo é 9. Só. 8. Só. 7. Só. Sem somá-los, nem transfor-
má-los em novecentos e oitenta e sete. Estou me classificando com
um número? Não, a intimidade não deixa. Vejam, tentei várias vezes
na vida não ter número e não escapei. O que faz com que precisemos
de muito carinho, de nome próprio, de genuinidade. Vamos amar
que amor não tem número. Ou tem? (A descoberta do mundo, 1999:
365-366, grifos nossos).
524
O mistério clariciano, nessa medida, pelo menos em nossa tentativa de agrega-
ção de fragmentos dispersos, em nossa necessidade pela busca de um sentido para
esse texto-fluxo que encerrou Clarice em uma luta introspectiva de alguns anos de
meditação angustiada, flerta, evidentemente, com a técnica. A metáfora da metaliza-
ção, visto que a pintora-escritora afirma “metalizar-se”, está por nós realçada nessa
crônica e pode ser interpretada como a recusa da escritora contra a padronização do
gosto – esse sentido que é tão caro em seus escritos desde Perto do coração selvagem. A
referência aos números, que se repete nos dois textos e cuja semelhança com os nú-
meros de letras do nome da escritora, indicia uma possível fabulação para além do
rigor da narração de um fato apoiado exclusivamente sobre a dura realidade. Além
disso, essa crônica distingue-se das demais porque na semana seguinte a escritora
volta a comentá-la – o que é um caso isolado em sua carreira de cronista: “Estou es-
crevendo sobre um texto aqui publicado e chamado ‘Você é um número’. Do dia 7 de
agosto, sábado. E escrevendo com maior pressa para logo atingir quem por acaso te-
nha sido atingido do modo errado” (1999: 370). Não sabemos a repercussão dessa
crônica, mas pelo tom de Clarice percebe-se que ela deve ter recebido algumas cartas
de desaprovação de leitores: “Senti – mas senti mesmo – no ar quanto desagradei
com o tal texto. Eu própria me ofendia. Eu sabia que ofendia os outros. Não. Você
não é um número. Nem eu” (1999: 370). Em seguida, ela elenca alguns elementos, de
fundo abstrato, que fogem à padronização numérica: “Porque há o inefável. O amor
não é um número. A amizade não é. Nem a simpatia. A elegância é algo que flutua. E
se Deus tem número – eu não sei. A esperança também não tem número” (1999: 370).
Outro procedimento não encontrado em suas crônicas para o JB é o espaço concedido
a cartas de leitores. Entretanto, sobre esse tema ela faz questão de transcrever uma
missiva que dialoga com o seu texto sobre números. Nota-se o respeito de Clarice pe-
lo escrito do outro, pois ela se vale de aspas para marcar uma voz que atravessa o seu
texto:
“Liberdade eu tomo de te escrever e se tu me permites respondendo
à tua crônica ‘Você é um número’, publicada no Jornal do Brasil de 7
de agosto de 1971 – sábado. Lendo-a aflorou em mim um sentido de
defesa ao número e que eu espero que tu compreendas. Não tenho
segundas intenções. Lê por favor o que te envio.”
A carta aí faz uma grande pausa e continua:
525
“E por que te preocupa o número: tu não vives em função do número
do Félix Pacheco, embora ele te seja necessário. Tu vives em função
da palavra e do pensamento. E tu não medes as palavras e tu não
contas os pensamentos. Corre em tua veia o sangue que não se soma.
E a Matemática não é o essencial. Tu não precisas aprendê-la porque
tu sabes mais do que ela. Porque tu amas o Belo e o Beloo se divi-
de. É íntegro apesar de existir em várias formas.
“Tu caminhas em campos abertos e claros e tu sentes o que não se
apalpa. Então por que te preocupar com o número que nada te traz?
“Deixa que o número viva e não te confundas com a sua existência
pois não é ele o alimento do teu espírito” (A descoberta do mundo,
1999: 370-371).
Essa carta, supostamente recebida e transcrita literalmente por Clarice, parece
no entanto elaborada pela própria escritora fazendo-se passar por outra pessoa. As
526
quina precisam de uma séria limpeza. Quase tanto quanto as minhas.
Porque mal se lê o que está escrito (A descoberta do mundo, 1999: 371).
Se existe ou não essa carta escrita por um leitor incomodado, não é a nossa me-
ta desvendar nesse trabalho. Paira no ar uma pergunta instigante: por que Clarice
forjaria um interlocutor? Interessa-nos sobretudo o foco da escritora voltado à técni-
ca, seja ele verdadeiro ou inventado. Se o autor da carta é a própria Clarice, ao escre-
ver duplamente sobre o mesmo assunto, ela pretende chamar o público para uma re-
flexão sobre a tecnocracia subjacente aos desdobramentos simbolizados pelos núme-
ros em nossa sociedade, os quais são antevistos por ela. Ao lado disso, interessamo-
nos pelo vínculo que essa crônica enfática estabelece com o anúncio de um livro em
formação, possivelmente Água viva em suas primeiras versões Atrás do pensamento ou
Objeto gritante, pois as luminescências despontam ao mencionar, na mesma crônica, a
composição de uma obra pontuada por um fluxo de luz crestante: “Continuo: olhe,
pessoa anônima, estou agora passando a limpo um livro que em breve será publica-
do. E que é duro como um diamante. Pode até às vezes faiscar. E só nas últimas pá-
ginas é que uso a mansidão e a revolta e a aceitação” (1999: 371). Observa-se que Cla-
rice faz uma publicidade para o livro ainda por sair no mercado cuja narradora será a
devastadora força protagonal e através dessa forma enviesada de divulgação entra-
mos em contato com o peso que a própria autora confere ao seu futuro Água viva:
E como pretendo escrever uma história infantil chamada A vida de
Laura – é o nome de uma galinha– precisarei descansar um pouco e
cortar qualquer brilho excessivo aos olhos e qualquer aspereza. Por-
que é preciso mansidão e muita quando se fala com crianças. Vou in-
clusive simplesmente repousar. E falar devagar. Sem pressa contar a
minha história de galinha. Nessa história há alegrias e tristezas e
surpresas. Não vê que até já estou mais mansa? (A descoberta do mun-
do, 1999: 371).
A vida de Laura caracteriza-se em oposição ao outro livro desconhecido que fe-
re como um diamante. Para as crianças Clarice procura escrever com a intenção de
leveza, da mansidão, ou seja, sem os atropelos de ansiedade que formam a sua tenta-
tiva de apreender o sempre fugidio instante-já. Com isso, a corrida pelo tempo apre-
senta, segundo a própria autora, o atributo disfórico. A alusão à velocidade portanto
tem o seu viés de violência. Um outro exemplo de perplexidade diante da técnica e
527
de suas possíveis interferências na capacidade de pensar/sentir intrínsecas ao huma-
no surge numa crônica anterior a essa que reflete sobre os números, servindo para
complementá-la nessa leitura de deslocamentos que propusemos durante a confecção
desse trabalho. Reproduzimos a seguir o essencial da crônica, de forte apelo “metáli-
co”, escrita por Clarice em 13 de julho de 1968, intitulada “Cérebro eletrônico: o que
sei é muito pouco”:
Decididamente estou precisando ir ao médico e pedir um remédio
contra a falta de memória. (...).
Tudo isso vem a propósito de eu simplesmente não me lembrar quem
me explicou sobre o cérebro eletrônico. E mais: tenho em mãos agora
mesmo uma fita de papel cheia de buraquinhos retangulares e essa
fita é exatamente a da memória do cérebro eletrônico. Cérebro ele-
trônico: a máquina computadora poupa gente. Os dados da pessoa
ou do fato são registrados na linguagem do computador (furos em
cartões ou fitas). Daí vão para a memória: que é outro órgão compu-
tador (outra máquina) onde os dados ficam guardados até serem pe-
didos.
Partindo deste princípio, chegamos ao definidor eletrônico: a partir
de um desenho feito num papel magnético a máquina (ou o cérebro)
pode reproduzir em matéria o desenho. Isto é: entra o desenho e sai
o objeto (cibernética, etc.) Há a experiência plástica, visual e também
literária da reprodução (número e qualidade). A sensação é de apoio
para o homem. Compensação do erro. Há possibilidade de você lidar
com uma máquina e seus sensores como a gente gostaria de lidar
com o nosso cérebro (e nossos sensores), fora da gente mesmo e nu-
ma função perfeita.
Bem, acabo de dizer tudo, mas mesmo tudo, o que sei a respeito do
cérebro eletrônico. Devo inclusive ter cometido vários erros, sem fa-
lar nas lacunas que, se fossem preenchidas, esclareceriam melhor o
problema todo.
Peço a quem de direito que me escreva explicando melhor o cérebro
eletrônico em funcionamento. Mas peço que use termos tão leigos
quanto possível, não só para que eu entenda, como para que eu pos-
sa transmiti-los com relativo sucesso aos meus leitores.
Quando penso que cheguei a falar no mistério, que continua misté-
rio, do cérebro eletrônico, só posso dizer como a dizia lá em Recife:
Virgem Maria!... (A descoberta do mundo, 1999: 115-116).
No fecho dessa crônica cercada pela ironia clariciana na qual impera um cons-
truído desconhecimento do assunto (soma de ingenuidade e de descaso) ao lado de
atroz crítica intuitiva acerca da iminente desumanização em benefício da máquina,
Clarice posiciona-se em favor de uma capacidade de sentir como uma resposta à ve-
locidade percebida por ela na frieza do cérebro eletrônico: “Mas o amor é mais miste-
528
rioso do que o cérebro eletrônico e no entanto já ousei falar de amor. É timidamente,
é audaciosamente, que ouso falar sobre o mundo” (1999: 116, grifo nosso). O amor
não é número, portanto. Suturamos, nessa medida, com esse último enunciado con-
tido na crônica sobre computadores as outras duas crônicas que também excluem di-
reta ou indiretamente os sentimentos/sensações da esfera numérica. Os números re-
presentam no tecido clariciano uma metáfora contra a técnica que se desdobra em
Água viva juntamente com a sugestiva imagem do metalizar-se e da contemplação da
pintora-narradora diante de um espelho.
Partimos de uma cena sobre a pintura de um espelho e o “delicado” exercício
realizado pela pintora-escritora de não se deixar refletir nessa superfície metálica e
por isso se justifica a metáfora da técnica em sua velocidade/violência. Por meio do
paladar, por vias oblíquas, a pintora confere uma espessura pesada à falta de sabor
de água, comparando-a ao modo cruel que somos invadidos (tomados) pela técnica.
Trata-se de um gesto cruel porque faz uma ponte a uma outra forma de gosto não
menos cortante, qual seja, o de “engolir fogo adocicado” – estratégia do narrador de
Perto do coração selvagem para nos pôr em contato com o que chama de mal. Através
da protagonista Joana, Clarice nos faz queimar oferecendo para isso um caminho me-
tafórico em que o paladar está no centro. A delicadeza cortante da pintora-narradora
tem essa mesma intenção, no entanto ela só se deixa perceber àqueles que a lêem na
pretensa falta de sabor do elemento água o peso dos espelhos estilhaçados que arra-
nham a glote e fazem sangrar o interior do corpo em processo de desaparecimento
pela rapidez causada em virtude da aceleração do desenvolvimento da técnica. Água
viva também é o nome da medusa – o animal marinho que queima os que freqüen-
tam os mares. Estamos todos no fluxo aquoso – esse é o recado da narradora-pintora.
Somos, para a narradora clariciana, interlocutores em vias de apagamento da capaci-
dade de sentir/pensar. Como uma experiência-revolta (no sentido etimológico recu-
perado por Kristeva desse termo), isto é, do gosto, a pintora-narradora cobre de cru-
eldade (sentido etimológico recuperado por Derrida) esse sabor do elemento água,
pintando-a de uma textura metálica
1
. Segue-se disso uma reação análoga à crônica
1
O fragmento da crônica a seguir para o Jornal do Brasil, de 11 de julho de 1970, dissipará
529
sobre o cérebro eletrônico, a saber, o resgate da capacidade de sentir. O amor, esse
sentimento que toca os corações e é tema de muitas canções populares, foi a escolha
de Clarice para contrastar com o gélido das máquinas em sua crônica sobre compu-
tadores. Em Água viva, o sentimento que acompanha a narradora após a indigesta ce-
na do gosto do espelho é do éclater – explosão de angústia: “Sinta-se bem. Eu na mi-
nha solidão quase vou explodir. Morrer deve ser uma muda explosão interna. O cor-
po não agüenta mais ser corpo. E se morrer tiver o gosto de comida quando se está
com muita fome? E se morrer for um prazer, egoísta prazer?”
1
(1973: 99). Para melhor
dar conta dos sentimentos/sensações, a pintora elege a gustação. Entramos, pela via
do gosto – contraponto ao abuso da técnica – no terreno do sentir clariciano.
A doçura e todo o campo campo semântico que envolvem esse predicado de-
finitivamente não está no foco do pensamento clariciano. Em sua página para o Diá-
rio da Noite, de 29 de setembro de 1960, a escritora deixa uma pista para apreender-
mos a sua busca pelas obliqüidades quando as entrelaça à sua recusa pela padroniza-
ção das pessoas. Está na crônica chamada “Com jeito de ar adocicado” esse recado:
Pelos arredores de 1940, os rigores da guerra talvez tenham “pedi-
do” que o rosto feminino fosse menos “planejado”, e a mulher tives-
se aparência mais suave. O que os americanos chamam de “girl next
door” (a moça que mora ao lado) tornara-se o ideal. Queria-se que a
moça fosse muito atraente, mas, ao mesmo tempo, representando
uma imagem familiar, o que repousava.
Então Betty Grable era a “pin up” de sucesso, e seu retrato fazia ba-
ter de saudade o coração dos soldados.
E as outras moças, é claro, aproximavam-se do tipo de Betty Grable.
Cabelos longos, por exemplo, apenas encimados por um discreto
“pompadour”, eram a marca essencial da beleza. Copiava-se também
o maquilagem moderado da Grable, o contorno de seus lábios.
E todas tinham o ar adocicado – que hoje consideraríamos ligeira-
mente enjoativo (Correio feminino, 2006: 118).
qualquer contra-argumento a respeito do vínculo que estabelecemos entre o “metalizar-se” e
a técnica: “No Rio de Janeiro, quando se pensa que a semana exausta vai morrer, ela com
grande esforço metálico se abre em rosa: na Avenida Atlântica o carro freia de súbito com
estridência e, de súbito, antes do vento espantado poder recomeçar, sinto que é sábado de
tarde” (“Sábado”, 1999: 297).
1
Clarice antecipa em Água viva o mesmo sentimento de angústia e maravilhamento diante da técnica
evidenciado pela cantora Björk na canção “Pluto”, de 1997: excuse me/but I just have
to/explode/explode this body/off me/wake-up tomorrow/brand new/a little tired/but brand new.
530
Como as crônicas sobre a técnica somam-se à narração da pintora-escritora e
cogitam o cultivo de sentimentos elevados, faremos agora um comentário a respeito
do estado do estado de it com base no valioso recorte que Sônia Roncador nos ofere-
ce em Poéticas do empobrecimento. Roncador buscou o manuscrito “Objeto gritante” es-
tabelecendo alguns apontamentos que merecem destaque. Segundo a crítica, há um
expressivo traço autobiográfico na escrita desse texto não publicado: “Parte desse re-
lato corresponde ao registro dos dias e das horas em que Clarice escreve esse manus-
crito: fatos que ocorrem em sua vida no momento mesmo em que está escrevendo
‘Objeto gritante’” (2002: 53). Roncador também comenta a citação sobre o j’éclate de
angústia que acabamos de incluir em nossa análise sobre o paladar. No manuscrito,
essa citação também se faz presente. A diferença, segundo Roncador, reside na rup-
tura promovida pelo texto manuscrito, pois ela sustenta que em Água viva existe uma
“unidade temática” da seqüência fragmentária que envolve essa explosão, qual seja,
o”’isto’ incomunicável, o encontro com a pantera e a meditação sobre a morte” (2002:
66). Em contrapartida, em “Objeto gritante”, conforme Roncador, “Clarice alterna os
fragmentos acima citados com outras passagens (que guardam apenas uma tênue li-
gação com esses fragmentos), produzindo assim uma dispersão do tema, além de
uma quebra radical da unidade interna” (2002: 66). Vejamos agora o trecho do ma-
nuscrito que leva a crítica a defender a ruptura temática:
Eu já comi caviar às colheradas na Polônia. Lá é barato. Cada peque-
na bola de caviar negro brilha e estoura na boca entre os dentes. E-
xiste o caviar vermelho: cada bola maior que o caviar negro parece
uma glândula inchada. Também é bom. Gosto de caviar puro e sem
pão. Como bebida champagne ultra-seco (“Objeto gritante”: 49).
Segundo Roncador, esse trecho não passa de uma curiosidade descartável do
texto preocupado com o “conhecimento intuitivo da vida profunda”, ela o considera
uma crônica de viagem que atrapalha reflexões sobre o sofisticado estado de it clari-
ciano: “Assim como sua narração de uma certa noite passada acidentalmente na Gro-
enlândia, essa crônica sobre sua viagem à Polônia também provoca um corte ou uma
descontinuidade nas reflexões sobre o ‘isto’” (2002: 68). Divergimos de Roncador,
pois esse belo fragmento é de extrema importância para o destaque ao paladar que
531
proporciona a capacidade de pensar/sentir (copresença sexualidade/pensamento),
além de servir como estímulo revoltado (em seu sentido arcaico) contra os imperati-
vos da técnica na sua tentativa de homogeneização dos sujeitos. Acrescido a isso, a
análise isolada da passagem permite associá-la a imagens em conformidade com a
atmosfera visceral, em tons de vermelho sangue, construída pela pintora. Como uma
última reflexão sobre esse fragmento do manuscrito, reencontramos os ecos dessa
devoração praticada pela autora numa crônica produzida no ano de 1970, possivel-
mente durante o mesmo período de composição de Água viva. A crônica, de 12 de
dezembro, chama-se “Palavras apenas fisicamente”:
Para passar de uma palavra física ao seu significado, antes destrói-
se-a em estilhaços, assim como o fogo de artifício é um objeto opaco
até ser, no seu destino, um fulgor no ar e a própria morte. Na passa-
gem de simples corpo a sentido de amor, o zangão tem o mesmo a-
tingimento supremo: ele morre (A descoberta do mundo, 1999: 325).
Sobre a alegria, pois é um sentimento que também recolhemos em Perto do co-
ração e em A paixão segundo G.H., no fluxo aquoso ela permanece em destaque, pois é
frase de abertura de livro, aguçando assim o entusiasmo, a curiosidade e a experiên-
cia da intensidade no interlocutor: “É com uma alegria tão profunda” (1973: 7). Em
outro instante, a alegria é ilustrada pela música: “Quero a vibração do alegre. Quero
a isenção de Mozart” (1973: 16). Como as outras obras de Clarice, a alegria transmu-
ta-se em seu oposto, deixando-se abrir para um tom que é da experiência íntima da
narradora clariciana: “Mergulho na quase dor de uma intensa alegria – e para me en-
feitar nascem entre os meus cabelos folhas e ramagens” (1973: 25). Em outro momen-
to, a narradora a resguarda numa espécie de silêncio sacrossanto: ”A profunda ale-
gria: o êxtase secreto” (1973: 31). As manifestações subseqüentes desse estado nuan-
çado de alegria expressam a revolta da pintora-escritora em seu ateísmo que – con-
forme o verbo experimentar do último fragmento – partilha com Kristeva um ateís-
mo de base oral:
Não dirijo nada. Nem as minhas próprias palavras. Mas não é triste:
é humildade alegre (1973: 38); Mas eu denuncio. Denuncio nossa fra-
queza, denuncio o horror alucinante de morrer – e respondo a toda
essa infâmia com – exatamente isto que vai agora ficar escrito - e
respondo a toda essa infâmia com a alegria. A minha única salvação
é a alegria (1973: 112); Recuso-me a ficar triste. Sejamos alegres.
532
Quem não tiver medo de ficar alegre e experimentar uma só vez se-
quer a alegria doida e profunda terá o melhor de nossa verdade (Á-
gua viva, 1973: 113).
Fecharemos com a inclusão do estado de graça – sensação dependente do cor-
po. A pintora comenta que caiu nesse estado às cinco da madrugada do dia 25 de ju-
lho – vamos detalhá-lo:
Foi uma sensação súbita, mas suavíssima. A luminosidade sorria no
ar: exatamente isto. Era um suspiro do mundo. Não sei explicar as-
sim como não se sabe contar sobre a aurora a um cego. É indizível o
que me aconteceu em forma de sentir: preciso depressa de tua empa-
tia. Sinta comigo. Era uma felicidade suprema (Água viva, 1973: 104-
105).
Em entrevista a Pablo Neruda, presente no volume De corpo inteiro, pois Clari-
ce também trabalhou como repórter para a revista Manchete, ela pergunta ao poeta a
respeito de sensações no ato de escrever: “Em você o que precede a criação, é a an-
gústia ou um estado de graça?” (1999: 30). Neruda lhe responde assim: “Não conheço
bem esses sentimentos. Mas não me creia insensível” (1999: 30). Para Alceu Amoroso
Lima, ela aplica a mesma pergunta, oferecendo um breve complemento de sua expe-
riência pessoal: “O senhor já se sentiu alguma vez em estado de graça? Morro de
saudade de sentir de novo, mas tanto já me foi dado que não exijo mais” (1999: 49). A
pergunta de Clarice – esse questionamento à procura da descrição de sensa-
ções/sentimentos – leva a uma indagação feita por Kristeva em Sol negro. A psicana-
lista, pela via teórica baseada nas idéias freudianas, explica que os afetos não são ex-
periências comunicáveis, uma vez que não de pode estabelecer uma definição para
essas sensações/experiências vividas na medida em que cada um as sente a seu mo-
do. Além disso, Kristeva menciona a presença de lacuna no pensamento freudiano
acerca de uma teoria dos afetos
1
. André Green produziu uma obra específica sobre o
assunto intitulada O discurso vivo (Le discours vivant). Green confirma a mesma defici-
ência percebida por Kristeva ao percorrer os caminhos do afeto na teoria psicanalítica
de Freud. Conforme Green, o próprio Freud promove o apagamento das nuances so-
bre esse tema ao misturar termos alemães como Empfindung (sensação) e Gefühl (sen-
1
Em nosso terceiro capítulo expusemos esse ponto.
533
timento) por afeto, o qual, na língua alemã tem um correspondente específico: Affekt.
Segundo Green – essa informação é importante para a nossa inspeção corpórea – a
história do afeto inicia com a própria história da psicanálise, ou seja, a partir da histe-
ria. Trata-se, nessa medida, de um vínculo com o corpo e, por conseguinte com o
pensamento, pois sustentamos a copresença sexualidade/pensamento.
A pintora-escritora, nesse sentido, sugere a seus interlocutores o exercício da
transubstanciação desse estado muito pessoal. Aliás, durante todo o seu relato agôni-
co a narradora convoca-nos a uma mistura de peles
1
. É o corpo e o sangue que ela
nos oferece sob a capa de sua sintaxe trabalhada em desenhos ardilosamente abstra-
tos de palavras táteis, signos comestíveis. Nessa atmosfera, encontramos uma defini-
ção do “estado de graça” no livro de arte de Michel Seuphour, intitulado Abstract pa-
inting: 50 years of accomplishment from Kandinsky to the present, no qual Clarice se
inspira para a epígrafe de Água viva
2
. No livro sobre os caminhos da arte moderna,
Seuphour reconhece na arte o verdadeiro país e a verdadeira religião daquele que a
ela se dedica. Entre outras reflexões que preconizam o aspecto visual como uma ex-
periência interior a ser comunicada pelo artista, Seuphour chega à exposição do que
denomina “estado de graça”: Todo artista, todo trabalho de cada artista, estabelece
em seu ou em sua própria forma inacessível, esse contato do espírito com o espírito.
Contanto que, é claro, que o espectador esteja em ‘estado de graça
3
’” (1967: 104). Para
a pintora-narradora, o estado de graça é o maravilhamento de possuir um corpo ou,
em outras palavras, de pertencer a um corpo:
1
Essa idéia, desenvolvida por nós em nosso primeiro capítulo a partir de A revolução da lin-
guagem poética, se encontra em A vida escrita, de Ruth Silviano Brandão: “A escrita se faz
o corpo, e daí sua pulsação, seu ritmo pulsional, sua rebeldia, às vezes domada pela força
da armadura da língua, pela sintaxe, pelos freios e ordenamentos. Assim, nunca são pu-
ras idéias abstratas que se escrevem e por isso, quando se lida com a escrita alheia do es-
critor ou do escrevente comum, como leitor ou crítico, toca-se em textos, com as mãos,
com os olhos, com a pele” (2006: 34).
2
Segue a epígrafe escolhida por Clarice: “Tinha que existir uma pintura totalmente livre da
dependência da figura – o objeto – que, como a música, não ilustra coisa alguma, não
conta uma história e não lança um mito. Tal pintura contenta-se em evocar os reinos in-
comunicáveis do espírito, onde o sonho se torna pensamento, onde o traço se torna exis-
tência.”
3
“Every artist, every work of every artist, establishes, in his or its own absolutely inaccessi-
ble way, this contact of the spirit with the spirit. Provided, of course, that the viewer is in
‘state of grace’” (Abstract painting, 1967: 104).
534
Mas se você já conheceu o estado de graça reconhecerá o que vou di-
zer. Não me refiro à inspiração, que é uma graça especial que tantas
vezes acontece aos que lidam com arte.
O estado de graça de que falo não é usado para nada. É como se vi-
esse apenas para que se soubesse que realmente se existe e existe o
mundo. Nesse estado, além da tranqüila felicidade que se irradia de
pessoas e coisas, há uma lucidez que só chamo de leve porque na
graça tudo é tão leve. É uma lucidez de quem não precisa mais adi-
vinhar: sem esforço, sabe. Apenas isto: sabe. Não me pergunte o quê,
porque só posso responder do mesmo modo: sabe-se.
E há uma bem-aventurança física que a nada se compara. O corpo se
transforma num dom. E se sente que é um dom porque se está expe-
rimentando, em fonte direta, a dádiva de repente indubitável de e-
xistir milagrosamente e materialmente.
(...)
Passa-se a sentir que tudo que existe respira e exala um finíssimo
resplendor de energia. (...)
Não é nem de longe o que mal imagino deve ser o estado de graça
dos santos. Este estado jamais conheci e nem sequer consigo adivi-
nhá-lo. É apenas a graça de uma pessoa comum que a torna de súbito
real porque é comum e humana e reconhecível (Água viva, 1973: 105-
106).
A pintora-narradora desvincula completamente o estado de graça de um tran-
se. Em seguida, ela lamenta ter saído dessa experiência: “Depois lentamente saí. Não
como se estivesse estado em transe – não há nenhum transe – sai-se devagar, com um
suspiro de quem teve tudo como o tudo é” (1973: 106). Para melhor comunicar esse
estado que ela chama também de felicidade, recorre ao dicionário:
Fui logo depois procurar no dicionário a palavra beatitude que de-
testo como palavra e vi que que quer dizer gozo da alma. Fala em fe-
licidade tranqüila – eu chamaria de transporte ou de levitação. Tam-
bém não gosto da continuação no dicionário que diz: “de quem se
absorve em contemplação mística”. Não é verdade: eu não estava de
modo algum em meditação, não houve em mim nenhuma religiosi-
dade (Água viva, 1973: 106-107).
Conforme o discurso da narradora clariciana, não existe uma luz dos céus, um
lado transcendente contido nesse estado de graça. A pintora o experimenta na carne,
ou seja, no gosto que depois é comunicado em palavras. Aqui está o fragmento em
que ela comenta o que fazia quando foi tomada por esse estado especial: “Tinha aca-
bado de tomar café e estava simplesmente vivendo ali sentada com um cigarro
queimando-se no cinzeiro” (1973: 107). Nesse ponto alto do fluxo aquoso que é Água
535
viva, no qual a carne – o paladar – parece apagar a metalização de sua pintora-
narradora, como ela fica em relação à técnica? Poderíamos, pelos índices de lentidão
no texto em contraste com os de velocidade, afirmar que a pintora ultrapassa a técni-
ca com a sua capacidade incomum de pensar/sentir? Sugerimos, por meio do convite
reflexivo da narradora na cena do “gosto do espelho”, que ela se funde com a técnica
para dessa experiência-violência buscar humanizá-la. No instante que antecede a
descrição do delicado estado de graça, a pintora-narradora, em sua solidão na má-
quina de escrever, “fazendo ecoar as teclas secas na úmida madrugada”, sintetiza o
seu papel corpóreo em meio à esfera “numérica” da técnica com todas as suas vile-
zas, fascínios e promessas: “Há muito que não sou gente. Quiseram que eu fosse um
objeto. Sou um objeto sujo de sangue” (1973: 104).
536
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A investigação dos corpos ficcionais tecidos por Clarice e Kristeva mostra que
vivemos em uma época na qual o corpo – em sua forma copresente, qual seja, sexua-
lidade e pensamento – sofre um processo de fragmentação que pode ser atribuído,
assim como sustentamos nessa tese, à influência da complexidade da técnica. Como
isso é possível? São muitos os caminhos quando o tema é o corpo, nesse sentido esse
trabalho propõe uma direção possível ou a formação de um sentido nos cruzamentos
de textos Clarice e de Kristeva alinhavados pelo nosso olhar. Reformularemos duas
questões que fizeram parte dessa pesquisa. Na primeira delas, o que é o corpo se-
gundo a nossa costura? A segunda liga-se a sua relação diante da técnica: o corpo vis-
to à luz da técnica.
No que se refere ao corpo, seguimos a definição engendrada por Kristeva a
partir de suas leituras de textos freudianos. Isso não significa o fechamento da ques-
tão, mas se trata de uma referência conceitual para a análise dos corpos dos persona-
gens que constituem o nosso corpus. Na abertura do segundo tomo sobre o gênio fe-
minino (2002), dedicado à vida e obra da psicanalista Melanie Klein, Kristeva, da
mesma forma que faz inicialmente em sua tese de doutorado, A revolução da lingua-
gem poética (1974), e depois em Sentido e contra-senso da revolta (1996) ou em A revolta
íntima (1997), volta a refletir sobre essa condição do corpo, reformulada por ela como
um entrançamento entre carne e espírito. Para Kristeva, a formulação freudiana pro-
duz um forte “abalo” sobre o desenvolvimento da história da metafísica e sobretudo
do cogito de Descartes, o qual, segundo a sua análise, recuperada ao longo da A revo-
537
lução da linguagem poética, não oferece espaço para a copresença da sexualida-
de/pensamento. Freud, em sua busca por meio da escuta ao conteúdo inconsciente,
formula um corpo com uma vida psíquica a ser investigada, interpretada e possivel-
mente recriada. Esse é o objetivo freudiano recuperado por Kristeva em seus livros
dedicados à relevância da tratamento analítico (Psicanálise e fé; As novas doenças da al-
ma).
De acordo com Kristeva, em seus apontamentos gerais sobre a psicanálise, e
sobretudo no volume dedicado à leitura da obra kleiniana, o inconsciente não signifi-
ca “irracionalismo”, no entanto constitui uma “estrutura”, a qual se apresenta de
forma “diferente da consciência” (2000: 17). Observamos que Kristeva alude sutil-
mente, nesse texto recente, às bases do seu projeto desenvolvidas em sua tese de dou-
torado de 1974, sem desenvolver, no entanto as etapas sobre as quais retomamos o
desenvolvimento no primeiro capítulo do nossa tese. A apreensão do conteúdo in-
consciente dá-se por meio dos elementos semiotizáveis – voz, cor, gestos –, os quais
são transmitidos para a consciência pela via transverbal. O prefixo trans, nesse senti-
do, é diverso da negação da linguagem sobre esse conteúdo, pois o semiótico está em
estreita codependência com o simbólico. Observa-se, a partir dessa articulação, uma
das questões suscitadas por Kristeva que diz respeito à história da filosofia e dialoga
com essa codependência por ela defendida. Trata-se da interrogação sobre a origem
da sensação, qual seja, se ela é pensamento ou atua apenas na superfície de pele co-
mo parte de gestos irrefletidos que escapam ao trabalho do pensamento. Essa per-
gunta não apresenta respostas, apesar do empenho dos cognitivistas. A codependên-
cia entre o semiótico e o simbólico formulada por Kristeva equilibra esses dois ele-
mentos tornando-os indispensáveis para a constituição do sujeito falante. Pode-se ar-
gumentar que Kristeva, ao incluir a gama de elementos semiotizáveis no domínio do
simbólico, e portanto na contracorrente das teorias tradicionais da lingüística, daria
assim maior relevância ao que é da ordem dos sentidos. Em certa medida isso acon-
tece e não pode ser confundido com um gesto de rechaço ao simbólico. As reflexões
claricianas sobre essa codependência disseminam-se por meio da rica vida íntima de
seus personagens e narradores, os quais parecem, à primeira leitura, apenas movidos
por sensações epidérmicas que atuam na superfície de um corpo produzindo ações
538
quase irrefletidas, mas que, quando investigados na complexidade de movimentos e
intenções de teor filosófico, não se furtam de um intenso trabalho de pensamento.
A investigação do corpo dos personagens dessas escritoras não se faz isolada
de um meio que os circunda. Tem-se um fio teórico psicanalítico que nos é contem-
porâneo e sobre o qual Kristeva encontra defasagens em sua atividade clínica, uma
vez que muitos de seus analisandos se mostram incapazes de narrar suas histórias,
ou seja, de oferecer uma estrutura comunicável ao analista de seus fantasmas recôn-
ditos porque vivem sobrecarregados de imagens. Isso fortalece o argumento de que
Kristeva não advoga sua teoria da linguagem em favor das sensações, pois viver de-
las acarretaria prejuízo à formulação dos nossos fantasmas. Percebe-se que atualmen-
te vivemos sobretudo de sensações na medida em que, por exemplo, somos constan-
temente invadidos por uma malha de sons e imagens sintéticas como se fossem um
emaranhado de elementos semiotizáveis produzidos com a finalidade de vender
mercadorias atraentes, as quais são muitas vezes necessárias.
Os textos ficcionais de Kristeva trazem à luz experiências contemporâneas em
contato com esse feixe de sensações que fazem do corpo uma espécie de reprodutor
desses estímulos produzidos artificialmente, por exemplo, por uma “tela” ou uma
“pílula”. Nesse contexto eminentemente televisual, que nos é familiar, o corpo não
existe sem a técnica. Referimo-nos sobretudo à carga que as imagens produzidas sin-
teticamente pela sociedade dromocrática estimulam em nossa vida psíquica, interfe-
rindo assim em nossa vida íntima. Observa-se que Kristeva não segue uma teoria re-
ferente à técnica. Com exceção de um comentário sobre o estudo dedicado ao cinema
realizado por Gilles Deleuze em uma de suas aulas sobre as imagens, reflexões que
originam o volume A revolta íntima (1997) e algumas referências esparsas e positivas
sobre o pensamento de Guy Debord a respeito da sociedade do espetáculo, Kristeva
não se dedica a retomar o pensamento francês sobre a técnica. Em Contra a depressão
nacional (Contre la dépression nationale), ela chama a atenção para a necessidade de a
técnica ser pensada por mulheres. Por que esse convite acontece? Subjaz a esta per-
gunta uma tentativa da autora que se esboça em suas obras recentes de refletir sobre
a técnica e ao mesmo tempo sobre o corpo (pois o corpo para nós está em dependên-
cia com a técnica), de forma diversa da condução masculina.
539
Em A revolta íntima, Kristeva recupera o percurso etimológico do termo revolta
para nos dizer – por intermédio de pensamento freudiano – que o sentido que lhes
interessa não é o moral mas sim o arcaico. A experiência-revolta, segundo a autora,
reside à plena forma lá na esfera do que nos parece ser o mais subjetivo: no gosto.
Clarice realiza o arcaico dessa experiência-revolta desde o seu romance de es-
tréia, em 1943. A Joana, de Perto do coração selvagem (constantemente enaltecida pela
crítica feminista) e seu ato revoltado incidem marcadamente sobre o gosto: “engolir
fogo adocicado”. Depois, com o desenvolvimento da técnica, nota-se que a protago-
nista de A paixão segundo G.H. volta-se para a experiência de sabores mais sutis do
que os sugeridos pela expressiva imagem do fogo como um recado a seus interlocu-
tores, qual seja, de que estamos em um processo de apagamento da capacidade de
pensar/sentir. Por isso, G.H. vislumbra entrar em contato comestível com o maná, o
alimento sagrado, cuja recuperação gustativa é uma tarefa que demanda o exercício
da imaginação – só assim ela pode acessá-lo. Aqui Clarice se encontra com a leitura
de Hannah Arendt sobre o gosto, assunto do qual a pensadora se vale para a análise
do deslocamento do subjetivo para o objetivo, ao retomar o papel da imaginação na
Terceira Crítica kantiana. Essa personagem também vive em busca de uma neutrali-
dade de difícil apreensão ao evocar sensações de neutralidade. A busca de G.H. ante-
cede o fluxo agônico da força protagonal de Água viva e constitui um caminho de sen-
tido para reunir os estilhaços do fluxo aquoso.
Curiosamente, percebe-se que Clarice antecipa um resgate pictórico que é ma-
nifesto em Possessões, quando Kristeva, em meio à falta de referências imagéticas que
constitui a cidade de Santa Bárbara, traz à tona uma série de “degolações” com a fi-
nalidade de dar um sentido àquele espaço diegético que também reproduz fantasmas
ocidentais. Em Visões capitais, Kristeva lança o argumento de que cada espaço tem as
suas próprias “degolações”. Pode-se apreender disso que, para além de imagens que
recuperam fantasmas universais, existem imagens que atuam de forma localizada.
Por outro lado, nota-se, de acordo com Estrangeiros para nós mesmos, que o pensamen-
to de Kristeva é eminentemente cosmopolita e a sua intenção é a de poder locomo-
ver-se sem as barreiras que o termo cidadão produz. Portanto, sem conduzir a nossa
inspeção a um espaço geográfico, observamos nessas narrações claricianas desenhos
540
de algumas imagens que sugerem variações da Pietà, de Michelangelo. Esses dois
textos de Clarice também aludem às telas de Chagall, instigando reflexões a respeito
de um mundo fluido em que os elementos em desordem do universo pictórico dialo-
gam com um espaço exterior ao texto, que se mostra sob a influência de imagens e
caminha em direção ao aspecto fragmentário. Em Água viva, esse intertexto imagético
é apagado em prol do fluxo de sensações de sua protagonista. Resta-nos a pergunta:
onde estão as imagens de Chagall ou de Michelangelo que dividem momentos de
sentir com o par contrastante riso e piedade? Água viva não dispõe desses elementos
figurativos, mas pode ser relacionada, na indicação da epígrafe de Michel Seuphour,
a uma tela de Alberto Burri chamada “Red Plastic Combustion”, de 1957, presente na
obra do crítico de arte e intitulada Abstract painting, na qual o vermelho visceral da
pintora-escritora – personagem dispersa em fluxo de sangue sem um invólucro de
pele – ecoa nessa composição pictórica em tons de preto e vermelho-alaranjado, cau-
sando a sensação de mal-estar do plástico queimado, que está no título do quadro.
Nesse exemplo, a força protagonal aproxima-se do fogo adocicado de Joana. É preci-
so, no entanto, buscar essa relação imagética que, paradoxalmente, age na superfície
do instante-já, assim como o corpo da pintora-narradora – todo exposto em cada ins-
tante e por essa razão apagado pela metáfora técnica do flash fotográfico.
Água viva é uma experiência literária radical que aproxima a observação das
transformações vertiginosas da técnica à tentativa de transcrevê-las literariamente. O
esforço de Clarice é notável porque, ao
541
advérbio de dúvida: o talvez. A própria autora de Possessões produz um contra-
argumento – oriundo em parte de seu exercício de examinar quadros de pintores co-
nhecidos – ao pôr um cena Jerry, personagem com deficiência auditiva e com extra-
ordinário talento para copiar obras de arte. Retornando à Água viva, percebemos que
o horror também está na escuta, embora a narradora-pintora, às vezes, promova al-
guns instantes de desafogo dessa intensidade perceptiva.
Nota-se também que o hors temps de Kristeva é semelhante ao da autora Clari-
ce, cujo desafio ao tempo dos relógios, exacerbado sobretudo em Água viva e na in-
tensidade da experiência de sua narradora-pintora pela apreensão do instante-já
sempre fugidio, responde pela expressiva falta de crença em formas de transcendên-
cia para fora do corpo. Conforme Kristeva, em Sentido e contra-senso da revolta, a con-
dição feminina é da ordem do transfálico – esse prefixo importante e que está no eixo
da constituição do semiótico – e por isso significa, somado à sua interpretação do tex-
to hegeliano, que as mulheres são vistas e construídas à margem do simbólico. Resi-
de nesse prefixo um caminho para se pensar a condição do sujeito falante. Isso é dife-
rente de uma disputa entre os gêneros na intenção de reivindicar poder ou de ocupar
o espaço marcadamente masculino, dado que seria uma forma de falocentrismo às
avessas. Nota-se que Kristeva e Clarice reconhecem a falta de um olhar feminino so-
bre o mundo, ou seja, de um olhar que venha a torná-las menos estrangeiras na esfe-
ra do simbólico. Tais autoras seguem, como sustenta a própria Kristeva, um legado
que é o da Virgem Maria, qual seja, o de fazer algo (uma criança, uma obra, uma pin-
tura por exemplo) visível, de dar um corpo as suas criações, interferindo assim no
“gosto” da coletividade, tal como fizeram Artemisia Gentileschi, Georgia O’Keeffe e,
por vias oblíquas, a força protagonal, que é uma pintora e simboliza essa vontade de
escrever sobre a sua revolta contra a técnica. Intuitivamente, Clarice, na crônica de 21
de dezembro de 1968, chega ao seguinte pensamento-síntese de uma série de refle-
xões psicanalíticas acumuladas por Kristeva: “Toda mulher, ao saber que está grávi-
da, leva a mão à garganta: ela sabe que dará à luz um ser que seguirá forçosamente o
caminho de Cristo, caindo na sua via muitas vezes sob o peso da cruz. Não há como
escapar” (1999: 158). Está implícito no discurso clariciano, conforme essa crônica
chamada “A virgem em todas as mulheres”, o mesmo ponto defendido por Kristeva
542
em Visões capitais (também presente sob outra formulação em Sol negro) ao sustentar
que a vida dada pela mãe, essa mãe que segue o legado de construções imaginárias,
como a medusa e a Virgem Maria, é uma vida para a morte (1998: 39). Observa-se um
fundo heideggeriano nesse papel destinado a refletir sobre a morte. A função do pen-
samento de Kristeva, diferente de seguir o legado do filósofo orientado pelo primado
da visão, é a de inserir o corpo feminino – substrato para a morte – na ordem da con-
dução técnica. Clarice antecipa a busca de Kristeva nesse sentido. Percebe-se que,
embora fascinada pelas luzes artificiais e pelo movimento vertiginoso de seu pensa-
mento fluido, a pintora-escritora reconhece na velocidade de tudo apreender pelo o-
lhar a violência a ser cortada quando, em atitudes que tocam no cruzamento entre o
ético e o estético, recusa narrar a totalidade do instante-já através de construções que
levam ao ofuscamento, à crestação de suas retinas fascinadas pelo horror de tudo a-
barcar pela vista. Possivelmente pela sua condição de estrangeira (termo de Kriste-
va), que, conforme a crônica “Pertencer” deixada por Clarice, se desdobra no senti-
mento de não-pertencimento, exista por parte dessas autoras uma revolta contra a
técnica que toca o corpo, sobretudo no que diz respeito ao paladar.
Deixamos para o final, como uma espécie de costura, alguns apontamentos de
Kristeva acerca da teoria da psicanalista Melanie Klein sobre a linguagem cujo de-
senvolvimento se concentra no paladar. No livro destinado à vida e obra da psicana-
lista, no capítulo intitulado sugestivamente “A fantasia como metáfora encarnada”,
Kristeva dá início ao peso que tomará o paladar em sua teoria. Conforme Kristeva, o
conceito de fantasia para Klein representa uma entidade heteróclita, dado que se
constitui de representações não verbais, de sensações, de afetos, e até mesmo de obje-
tos concretos (2002: 163). Retomando o conceito freudiano de fantasia, Kristeva eluci-
da que elas só se produzem em torno do segundo ou do terceiro ano de vida. Como
para Klein o fantasma abarca uma vida anterior a esse período demarcado por Freud,
existe um interesse por parte dos psicanalistas dessa vida primitiva de todo sujeito
falante: “Toda a atualidade da psicanálise está em jogo nessa exploração clínica e
conceptual do arcaico transverbal dado à luz por Melanie, e que desafia a representa-
543
ção ideal ou visual
1
” (2002: 167). Seguido a essa constatação, Kristeva faz uma nota
de pé de página para acentuar que sua tese de doutorado é a exploração disso. O se-
miótico, portanto, responde a essa vida arcaica fantasmática do futuro sujeito falante.
Ao propor jogos para entrar em contato com a vida fantasmática das crianças, Klein
vai um pouco além do apelo metafórico que está no discurso da vida fantasmática,
pois, segundo Kristeva, a sua busca é por uma “metáfora encarnada”:
nesse estranho encontro que está em jogo, no curso de um tratamento
analítico, entre a fantasia-jogo da criança (ou a fantasia associativa
do paciente adulto) e a interpretação analítica ancorada no Édipo e
na pulsão de morte, a fantasia assume todo o valor de uma metáfora
encarnada
2
(O gênio feminino. Melanie Klein, 2002: 169).
Na metáfora encarnada, que pode ser lida como uma metáfora corporal, está
em jogo o realce ao pensamento kleiniano. Kristeva recolhe estudos inspirados pelo
cognitivismo
3
que confirmam essa tese kleiniana que a autora de A revolução da lin-
guagem poética encontrou inspiração e denomina, via a nomenclatura dos cognitivis-
tas, de proto-phantasme no bebê, chamando-a “uma quase narração que articula a
pulsão e o desejo, e visa ao objeto (o seio, a mãe) para assegurar a sobrevivência do
jovem ego fóbico e sádico
4
” (2002: 169). A essas observações da ciência, Kristeva se
interessa pela informação de que nos bebês de menos de um ano existem o que se
convenciona por “representações de acontecimentos”, as quais assumem, de acordo
com os termos dos próprios cognitivistas, a forma de “’envelope pré-narrativo’”
(2002: 169):
1
“Toute l’actualité de la psychanalyse se joue dans cette exploration clinique et conceptuelle
de l’archaïque trans-verbal mis au jour par Melanie, et qui défie la représentation idéelle
ou visuelle” (Le génie féminin. Melanie Klein, 2000: 232).
2
“dans cette étrange rencontre qui se joue, au cours d’une cure analytique, entre le fan-
tasme-jeu de l’enfant (ou le fantasme associatif du patient adulte) et l’interprétation ana-
lytique ancrée dans l’Oedipe et la pulsion de mort, le fantasme prend toute la valer d’une
métaphore incarné” (Le génie féminin. Melanie Klein, 2000: 236).
3
Recolhemos alguns trabalhos citados por Kristeva: “l’enveloppe prénarrative”, de Daniel
Stern; “Generalized event representation: basic building blocks of cognitive develop-
ment”, de K. Nelson e J.-M. Greundel; Le cheminement des découvertes de l’enfant, de G.
Cellérier.
4
“une quasi-narration qui articule la pulsion et le désir, et vise l’objet (le sein, la mère) pour
assurer la survie du jeune moi phobique et sadique” (Le génie féminin. Melanie Klein,
2000: 236).
544
Do mesmo modo que a gramática gerativa havia postulado a existên-
cia de uma competência lingüística inata (com uma matriz mínima de
todo enunciado: sujeito-verbo-objeto) que se realiza ulteriormente
em tantas performances gramaticais conforme as regras das diferentes
línguas, caminha-se atualmente para a idéia de uma estrutura narra-
tiva básica, se não inata, que se atualizaria desde as primeiras intera-
ções pulsionais do recém-nascido. Os “envelopes pré-narrativos” se
acompanhariam de “representações analógicas”, nem pura vivência,
nem pura abstração, mas intermediárias entre as duas. O phantasme
seria uma tal representação analógica do envelope narrativo, vivida
em tempo virtual
1
(O gênio feminino. Melanie Klein 2002: 169-170).
O trecho supracitado mantém as bases que definem o corpo segundo a teoria
do corpo de Kristeva: copresença da sexualidade/pensamento. Ao lado disso, Kris-
teva percebe o papel das mulheres nesse trabalho, que é o de conferir ao corpo a sua
importância para a formação do futuro sujeito falante. Vejamos como ela se regozija
com essa forma de pensar que atravessa a pura abstração (não significa que a descar-
te) e necessita de um substrato de matéria, o corpo:
Urge reconhecer que, no debate sobre esse tema, foram as mulheres
(Klein, Isaacs, Heimann) que assumiram o risco de destacar o papel
da fantasia no processo de conhecimento, deixando a homens como
Bion, Winnicott e, de uma outra maneira, Lacan, a preocupação de
frear o imaginário pelo simbólico. Klein não somente trabalha sobre
o imaginário (da criança) e no imaginário (do analista) como o faz
tão intensamente, tão profundamente, que a interação dos dois ima-
ginários (criança/analista) com influência sobre os corpos e seus atos
não pode deixar de dar a impressão de vasculhar até as entranhas:
“Genial tripeira, ironiza Lacan
2
” (O gênio feminino. Melanie Klein,
1
“De même que la grammaire générative avait postulé l’existence d’une compétence linguis-
tique innée (avec une matrice minimale de tout énoncé: sujet-verbe-objet) qui se réalise
ultérieurement en autant de performances grammaticales selon les règles des différentes
langues, on s’achemine actuellement vers l’idée d’une structure narrative basique, sinon
innée, qui s’actualiserait dès les premières interactions pulsionnelles du nouveau-né. Les
‘enveloppes prénarratives’ s’accompagneraient de ‘représentations analogiques’, ni pur
vécu, ni pure abstraction, mais intermédiaires entre les deux. Le phantasme serait une te-
lle représentation analogique de l’enveloppe narrative, vécu en temps virtuel” (Le génie
féminin. Melanie Klein, 2000: 237-238).
2
“Force est de reconnaître que, dans le débat sur ce thème, ce sont des femmes (Klein, Is-
saacs, Heimann) qui ont pris le risque de revendiquer le rôle du fantasme dans les pro-
cessus de connaissance, laissant à des hommes comme Bion, Winnicott et, d’une autre
façon, Lacan, le soin de freiner l’imaginaire par le symbolique. Non seulement Klein tra-
vaille sur l’imaginaire (de l’enfant) et dans l’imaginaire (de l’analyste), mais elle le fait si
intensément, si profondément, que l’intéraction des deux imaginaires (enfant/analyste)
en prise sur les corps et leurs actes ne peut que donner l’impression que l’on fouille, jus-
qu’aux entrailles: ‘géniale tripière’, ironise Lacan” (Le génie féminin. Melanie Klein, 2000:
242).
545
2002: 172-173).
Kristeva faz questão de desvincular essa metáfora encarnada de um apelo re-
ligioso e sua tendência em “recalcar o corpo e o sexo” para fazer valer o que ela clas-
sifica como “espiritualidade”. A teórica interessa-se pelo corpo na formação da lin-
guagem. Nessa medida, ela amplia o interesse pelo primário manifesto em Klein e
em outras psicanalistas que se detiveram sobre pesquisas desse tipo, tais como
Eugènie Sokolnicka, Marie Bonaparte, só para citar, como ela sublinha, alguns exem-
plos locais. Sem reduzir esse foco de interesse ao que é exclusivamente do feminino,
Kristeva faz essa observação importante e ao lado disso também localiza, nas pesqui-
sas de psicanalistas mulheres, um interesse voltado ao “orgânico”, o qual tem nas i-
déias de Klein a precursora. Observa-se na força protagonal criada por Clarice esse
manifestar-se orgânico que está nos estudos recuperados por Kristeva e que também
são desenvolvidos por ela:
Atentos ao contributo kleiniano (...) poderíamos compreender me-
lhor por que a sexualidade feminina – e não somente o corpo femini-
no submetido ao ciclo ovariano e à maternidade – instiga nas mulhe-
res esse interesse pelo arcaico. E como, se ela não se afunda numa fá-
cil e, infelizmente, demasiado corrente complacência organicista, es-
sa atração poderia ser, ao contrário, o suporte principal de uma aná-
lise pensada como um renascimento psíquico
1
(O gênio feminino. Me-
lanie Klein, 2002: 175).
Na esteira do pensamento kleniano, Kristeva situa as teorias de Paula Hei-
mann e Susan Isaacs justamente no sentido que nos interessa – o gosto, pois é a partir
do relevo que adquire na obra de Clarice, sobretudo por meio de pintora-narradora,
mas também se dissemina nas crônicas de escritora, que resolvemos buscar um pos-
sível sentido e o encontramos, curiosamente, esboçado em idéias decorrentes do pen-
samento kleiniano e, em parte, desenvolvido pela própria Kristeva em sua tese de
doutorado, A revolução da linguagem poética. Se, para o pensamento freudiano, o sen-
1
“Attentifs à l’apport kleinien, (...) nous pourrions mieux comprendre pourquoi la sexualité
féminine – et non pas seulement le corps féminin soumis au cycle ovarien et à la mater-
nité – induit chez les femmes cet intérêt pour l’archaïque. Et comment, si elle ne s’enlisait
pas dans une facile et, hélas, trop courante complaisance organiciste, cette attraction
pourrait être, au contraire, le support majeur d’une analyse pensée comme une renais-
sance psychique” (Le génie féminin. Melanie Klein, 2000: 246).
546
547
1999: 295-296).
Na clínica kleiniana, Kristeva percebe uma espécie de encarnação entre o ana-
lista e o analisando, em que está em jogo, na transferência e na contra-transferência
estimulada pela psicanalista, essa encarnação que recupera o conteúdo transverbal,
ou seja, os elementos semiotizáveis dos discursos dos dois envolvidos. Percebe-se
que Kristeva se inspira nessa prática desenvolvida por Klein ao aproximá-la de sua
própria teoria do texto e de sua prática analítica quando confere à psicanálise a fun-
ção de um renascimento psíquico:
Ela ativa em si mesma, e escuta em sua analisanda, uma gama com-
plexa composta tanto pelo maternal sensorial como pela copresença
erotismo-pensamento imposta pela identificação fálica e também por
sua ultrapassagem numa posição feminina receptiva do pênis pater-
no para conseguir um bebê. O arcaico materno – o de sua própria re-
lação com o a-bjeto materno e o de sua posição de mãe diante do be-
bê – lhe dá acesso à complexidade da vida psíquica, ao leque que se
desdobra das pulsões às palavras, do pensamento ao sensível. Quan-
do uma mulher assim constituída escuta ou “pensa” seu paciente,
não aplica nem um sistema nem um cálculo. A lógica do que nos a-
pareceu como um computador fálico e simbólico, com sua grade 0/1,
não está aqui em posição dominante, mas uma forte coloração ima-
ginária impregna o conhecimento da transferência e o da contra-
transferência. É só assim que o analista renasce e faz renascer seu
analisando
1
(O gênio feminino. Melanie Klein, 2002: 180).
Na literatura – nosso campo de análise – acontece um processo semelhante ao
da clínica. Kristeva, sobretudo em A revolução da linguagem poética e em Poderes do hor-
ror, chama a atenção para a palavra que se torna movimento adquirindo a carnalida-
de de um corpo. Os textos de Mallarmé, Lautréamont e de Céline – só para citar os
autores centrais dessas obras – ilustram claramente esse ponto. Os exemplos dos tex-
1
“Elle active en elle-même, et entend dans son analysante, une gamme complexe que com-
posent et le maternel sensoriel et la coprésence érotisme/pensée imposée par
l’identification phallique, ainsi que par son dépassement en une position féminine récep-
tive du pénis paternel pour obtenir un enfant. L’archaïque maternel – celui de sa propre
relation à l’a-bjet maternel, et celui de sa position de mère vis-à-vis de son enfant – lui
donne accès à la complexité de la vie psychique, à l’éventail qui se déplie des pulsions
aux mots, de la pensée au sensible. Lorsqu’une femme ainsi constituée écoute ou ‘pense’
son patient, elle n’applique ni un système, ni un calcul. La logique de ce qui nous est ap-
paru comme l’ordinateur phallique et symbolique, avec sa grille 0/1, n’est pas ici en po-
sition dominante, mais une forte coloration imaginaire imprègne la connaissance du
transfert et du contre-transfert. C’est ainsi seulement que 7 0 u 2ara c42.á2 tTT2 Tt c42.á2re
son a u 2aant” ( O gênio feminino. Melanie Klein, 2000: 253-254).
548
tos desses autores selecionados por Kristeva conduzem-nos a pensar assim e suge-
rem que, no ato da leitura, praticamos a encarnação que serve, por exemplo, de exer-
cício literário para Clarice compor seus personagens, os quais mais aludem a sensa-
ções/sentimentos do que a descrições corpóreas. Ao ler os textos claricianos saímos
muitas vezes esgotados, pois ela cria um ambiente de cumplicidade com o receptor,
fazendo-se aparecer em ritmos próprios de seu corpo em inquietação (angústia) com
o meio que ela apreende com intensidade. Entrar um contato, portanto, com a sintaxe
de determinado autor, independente de sua temática, já implica fazer parte de seu
ritmo corporal. Esse é o desdobramento do argumento de Kristeva tecido em sua tese
de doutorado que se encontra também em seus textos mais recentes das décadas de
80 e 90, com enfoque psicanalítico.
Observa-se que, no volume dedicado à obra kleiniana, Kristeva dedica um es-
paço importante aos afetos, assunto que, como vimos, admite um vasto campo de in-
vestigação. Embora Kristeva reconheça a falta de uma teoria dos afetos no pensamen-
to kleiniano – tal qual percebe na teoria freudiana –, o peso que Klein confere à an-
gústia leva à postulação de Kristeva de uma “concepção pós-freudiana dos afetos”.
Curiosamente, é por meio do paladar que se inicia a investigação kleiniana e a cons-
tatação do sentimento de inveja na formação futuro sujeito falante (conforme Inveja e
gratidão, de 1957). Segundo Kristeva, de acordo com a experiência clínica, pode-se li-
gar a inveja do pênis (Freud) à inveja do seio (Klein). Percebe-se que esse sentimento
arcaico – necessário para os dois gêneros – depende do corpo materno e da experiên-
cia da oralidade. O processo, no início da relação mãe/bebê, não se esgota no pala-
dar, mas serve de caminho para transformar a disforia da inveja no sentimento de
ternura:
A oralidade de início mas também a analidade, assim como as pul-
sões uretrais e uma percepção precoce da vagina, estão aí implicadas
numa ambivalência para com aquela que não é ainda um objeto, mas
um a-bjeto: pólo de satisfação e de repulsa. No entanto, quando os
cuidados maternos são ótimos, essa intensa sensorialidade se vê logo
apanhada numa sublimação que inibe os objetivos eróticos e tanáti-
cos dos afetos, e os modula em ternura
1
(O gênio feminino. Melanie
1
“L’oralité d’abord, mais aussi l’analité, tout autant que les pulsions urétrales et une per-
ception précoce du vagin, y sont impliquées dans une ambivalence envers celle qui n’est
pas encore un objet, mais un a-bjet: pôle de satisfaction et de répulsion. Toutefois, lors-
549
Klein, 2002: 175, grifo nosso).
Kristeva comenta que Freud, em seus escritos, não menciona a palavra ternu-
ra, prefere a expressão “benevolência”. Na teoria kleiniana, segundo Kristeva, não se
encontra a metáfora dos computadores com a sua lógica binária 0/1 (que também é
questionada por Clarice), pois Klein deixa em cena “lógicas pulsionais para aceder ao
pensamento”. Kristeva observa que as idéias da psicanalista, que têm por base os
deslocamentos do paladar, apresentadas no XVI Congresso da Associação Interna-
cional de Psicanálise, se apagaram sob o impacto da exposição de “Le stade du mi-
roir comme formateur de la fonction du Je”, de Jacques Lacan. Kristeva não explicita,
mas segue-se daí o primado do olhar e toda as conseqüências intrusivas e questioná-
veis de nosso tempo. No lugar de lamentar as vilezas do olhar, Kristeva lastima o
descaso diante da experiência da “encarnação”:
O deslocamento lacaniano é, de resto, considerável: o primado do
significante apaga radicalmente o que temos chamado de “o encar-
nacionismo” kleiniano, sua concepção continuamente heterogênea de
um imaginário que seria simultaneamente coisa e imagem, sensação
ou afeto e representação
1
(O gênio feminino. Melanie Klein, 2002: 260).
Somente no final de seu texto Kristeva lança alguns exemplos a respeito das
conseqüências do primado do olhar sobre o nosso mundo. Ela dá o exemplo dos vide-
ogames, levando-nos a reler Jerry, filho de Gloria Harrison envolvido com um game
gear e em seguida absorvido pelos computadores, sob à luz dessa escassez do gosto.
Um outro exemplo acha-se no minimalismo das instalações, as quais ela situa ao lado
dos jogos eletrônicos, servindo para ilustrar, conforme a leitura de Kristeva, o fato de
que vivemos numa espécie de phantasme kleiniano, conceito que, pela sua mobilidade
e indefinição, apaga as diferenças entre imagem e realidade. A diferença entre o
phantasme kleiniano e sua metáfora dromocrática, lamentada por Kristeva, é que não
que les soins maternels sont optimaux, cette intense sensorialité se voit aussitôt prise
dans une sublimation qui inhibe les buts érotiques et thanatiques de
550
dispomos de um analista para formulá-lo, interpretá-lo, isto é, para trazê-lo ao pen-
samento para que seja superado.
Esbarramos – por meio do pensamento intensamente revoltado (em seu retor-
no claramente arcaico) – que é o de Melanie Klein – na técnica e na possibilidade de
humanizá-la através de um deslocamento que possibilite o retorno ou o início a um
corpo constituído pela copresença sexualidade/pensamento somado à ternura e ou-
tras tantas tonalidades afetivas, sem dessa rede excluir o fluxo metálico – como faz a
força protagonal:
“O que é mesmo o que você disse?”, você perguntava. “Eu não disse
nada.” Passavam-se dias e mais dias e tudo naquele perigo e os ge-
rânios tão encarnados. Bastava um instante de sintonização e de no-
vo captava-se a estática farpada da primavera ao vento: o sonho im-
pudente das cabras e o peixe todo vazio e nossa súbita tendência ao
roubo de frutas (Água viva, 1973: 74).
551
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CURRICULUM VITAE
1 DADOS PESSOAIS
Nome: Luciana Abreu Jardim
2 FORMAÇÃO
Graduação em Jornalismo pela PUCRS (1996-2000).
Mestrado em Letras, área de concentração Teoria da Literatura,
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(2001-2003). Bolsista: Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico.
Doutorado em Letras, área de concentração Teoria da Literatura,
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(2004-2008). Bolsista: Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico.
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