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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICANÁLISE
MESTRADO
Pesquisa e Clínica em Psicanálise
ROSEMARY FIÃES PINTO
CAPSI PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES AUTISTAS E
PSICÓTICAS: A CONTRIBUIÇÃO DA PSICANÁLISE NA
CONSTRUÇÃO DE UM DISPOSITIVO CLÍNICO
Dissertação de Mestrado
RIO DE JANEIRO, OUTUBRO DE 2005
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ii
CAPSI PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES AUTISTAS E
PSICÓTICAS: A CONTRIBUIÇÃO DA PSICANÁLISE NA
CONSTRUÇÃO DE UM DISPOSITIVO CLÍNICO
ROSEMARY FIÃES PINTO
“Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em
Psicanálise”
Orientador: Luciano Elia
RIO DE JANEIRO, OUTUBRO DE 2005
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iii
DEDICATÓRIA
Para minha família, com amor e com afeto.
iv
AGRADECIMENTOS
Ao Luciano Elia, por aceitar me orientar e pelo enorme respeito que sempre dedicou ao
meu trabalho. Mais ainda, pela paciência em ler comigo textos difíceis da psicanálise
acolhendo minha ignorância, mas me fazendo trabalhar. Serei eternamente grata...
À equipe do CAPSI Eliza Santa Roza, pois sem ela esta dissertação não seria possível.
Cada um, singularmente, está aqui representado nesta dissertação. O trabalho continua...
Aos residentes e estagiários, que nos ensinam e nos mostram sempre um novo olhar...
Para Marisa, que generosamente ajudou com seu fluente Inglês e com sua palavra sempre
carinhosa...
À Cristina Ventura, que desde a Especialização apóia este trabalho.
À UERJ e aos mestrandos da minha turma. Agradeço pelo aprendizado compartilhado da
psicanálise e pelas discussões.
À profª Sonia Alberti e Maria Anita Carneiro Ribeiro, pelas valiosas contribuições na
Qualificação.
Para Emmanuel, pelo encontro...
À Teresa, pela escuta fundamental...
Aos amigos que sambam, que cantam e me encantam nos momentos mais felizes e difíceis
também, especialmente Silvia pela disponibilidade em ler este trabalho e Joana, que não
leu, mas aceitou de pronto a “encomenda”...
Finalmente, devo agradecer aos pacientes do CAPSI, por me deixarem aprender...
v
RESUMO
Esta dissertação pretende demonstrar a contribuição da Psicanálise na constituição
de um novo dispositivo clínico para o tratamento de crianças e adolescentes autistas e
psicóticas: O Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSI). A partir da pesquisa
teórico-clínica realizada num CAPSI da cidade do Rio de Janeiro, o CAPSI Eliza Santa
Roza, este trabalho visa suscitar novas questões a partir da direção da Psicanálise, com o
objetivo de sustentar que só haverá uma clínica nesses novos dispositivos se a aposta no
sujeito do inconsciente estiver presente.
vi
“ABSTRACT”
This dissertation intends to demonstrate the psychoanalytic contribution to the
constitution of a new clinical tool for the treatment of autism and psychosis in children and
adolescents: The Center for Psychosocial Care of Children and Adolescents (Centro de
Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil - CAPSI).
Departing from a theoretical-clinical research accomplished in one specific CAPSI,
The Capsi Eliza Santa Roza, this work aims at raising new questions in a psychoanalytic
framework, and supporting the hypothesis that a clinical work based on this new tool will
only be possible if there is a belief in the Unconscious (in the Subject o f the Unconscious).
vii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 1
CAPÍTULO I
1- CAPSI Para Crianças e Adolescentes: Um Campo em Construção 4
1.1- O Estado da Arte do CAPSI no Estado do Rio de Janeiro 10
1.2- O CAPSI Eliza Santa Roza: Seus Impasses e Possibilidades 13
CAPÍTULO II
2- Por que a Direção da Psicanálise? 17
2.1- A Constituição do Sujeito e o Campo Social 24
2.2- Do Direito ao Desejo: O que Demanda um Benefício? 27
2.2.1- A Articulação do Benefício e o Nome-do-Pai. 41
CAPÍTULO III
3- O CAPSI Eliza Santa Roza: A Construção de uma Clínica 45
3.1- O Dispositivo Analítico Ampliado: Uma Experiência Pioneira de CAPSI 51
3.2- O CAPSI Eliza Santa Roza e os Turnos de Atendimento 54
CONCLUSÃO 79
BIBLIOGRAFIA 81
viii
INTRODUÇÃO
Considero importante começar falando sobre os motivos que me levaram a escolher
este tema: CAPSI para Crianças e Adolescentes autistas e psicóticas: A Contribuição da
Psicanálise na construção de um dispositivo clínico.
Apresentei uma monografia de conclusão do curso de Especialização em
Saúde Mental da Infância e Adolescência no Instituto de Psiquiatria da
Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2002. Neste trabalho iniciei um campo
de estudo que explorou a importância da construção dos CAPSI (Centro de Atenção
Psicossocial Infanto-Juvenil), ressaltando a experiência do CAPSI Eliza Santa Roza.
Contudo, creio que a questão clínica deste dispositivo não foi devidamente
trabalhada. Fiz um percurso no campo da Reabilitação Psicossocial, que é uma
bibliografia bastante explorada na área da saúde mental, mas não fiz o percurso que
me parecia ser o mais interessante e singular, que é o da escuta psicanalítica no
CAPSI.
Várias questões ficaram abertas na monografia. Uma delas era entender por
que a clínica da psicanálise é a mais indicada para esta clientela e o que ela pode
contribuir de singular, marcando uma diferença radical nesses dispositivos. Como a
psicanálise pode ser inserida no atendimento das crianças e adolescentes autistas e
psicóticas, uma vez que a clínica individual do ambulatório não é tomada como
prioridade de escuta?
Desde que comecei a trabalhar no CAPSI Eliza Santa Roza tenho me
deparado com novas e importantes questões e o desejo de continuar estudando a
inserção do CAPSI, tendo a psicanálise como direção, me trouxe até o Mestrado de
ix
Pesquisa e Clínica em Psicanálise. A possibilidade de articular clínica e pesquisa no
local no qual trabalho foi condição fundamental para a viabilização deste projeto.
As questões que desenvolvo nesta dissertação surgiram a partir da clínica e
das discussões realizadas na supervisão dos casos atendidos, bem como dos vários
encontros com outros profissionais da área da saúde mental infanto-juvenil. Tentei
dialogar com alguns autores que trabalham com essa clientela buscando sempre a
articulação teórico-clínica. Os casos atendidos no CAPSI, com diagnósticos de
neurose, psicose e autismo e a riqueza dessa experiência possibilitaram a prática que
a clínica exige. Trabalhei seis casos ao longo da tese priorizando as principais
discussões que atravessam a clínica do CAPSI Eliza Santa Roza, bem como seus
impasses e construções.
Falar que num CAPSI há uma clínica implica em nomear uma direção,
questão que num primeiro momento parece simples, mas que não ocorre com
freqüência. Nem sempre há uma direção clínica nos CAPSI, o que já nos aponta um
problema. Como trabalhar sem conceber o CAPSI como um espaço de tratamento?
Mais ainda, como trabalhar com uma clientela tão grave sem apostar que há um
sujeito a ser escutado e que é a psicanálise a responsável por essa inclusão? Esta
questão é muito importante e deve ser assumida em sua radicalidade. Recuar desse
lugar pode trazer conseqüências irreversíveis na vida de uma criança ou
adolescente.
Em 19 de fevereiro de 2002 foi apresentada no Diário Oficial da União a
Portaria nº 336, que define e orienta a prioridade do CAPS no campo da saúde
mental infanto-juvenil. O “Serviço de Atenção Psicossocial”, como foi denominado,
é considerado um serviço de alta complexidade, que além de oferecer um
atendimento aos pacientes em seu próprio território, busca ampliar contatos com as
redes sociais que podem fazer parte do universo da criança: escolas, conselhos
tutelares, abrigos, etc. O objetivo é fazer com que essas crianças e adolescentes
possam contar com um serviço que modifica uma lógica existente na rede pública
de saúde, que é o fato do paciente ter que se enquadrar nos “sintomas” já
previamente constituídos pelos serviços. É a construção do CAPSI que inaugura a
x
“acessibilidade e acolhimento universal de toda procura envolvendo grave
sofrimento psíquico”
1
, uma vez que não será o sintoma o norte do tratamento.
É a Psicanálise que inaugura a escuta do sujeito como condição fundamental
no acolhimento ao paciente. Uma escuta singular, que inclui o sujeito desde sempre
na direção do tratamento.
Essa articulação clínico-política sugere esse lugar inaugural na constituição
do campo da saúde mental infanto-juvenil e revela a contribuição da psicanálise
para a direção do tratamento. A partir desse novo olhar é possível sustentar a
inclusão do enfoque analítico para as crianças e adolescentes com graves
sofrimentos psíquicos.
Assim, este trabalho pretende sustentar que a psicanálise é a direção que melhor
possibilita a constituição do CAPSI como um local de tratamento, uma vez que inclui a
dimensão do sujeito com um rigor ético imprescindível em casos tão graves. São muitas as
reflexões e ao longo do trabalho tento desenvolvê-las. Espero que questões tão caras para
mim, possam servir como um eixo de trabalho fecundo para que possamos escutar melhor
nossos pacientes.
1
Relatório da Reunião MS-OPAS realizado no dia 03/10/2003 (Preparatória do Seminário em comemoração
ao Dia mundial da Saúde Mental _ “Saúde Mental da Criança e Adolescente”.
xi
CAPÍTULO 1- CAPSI PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES: UM
CAMPO EM CONSTRUÇÃO
Resumo: Este capítulo visa mostrar o campo no qual o CAPSI está se constituindo e como
ocorre a Reforma Psiquiátrica no campo da infância e adolescência. A proposta é apresentar
as questões atuais presentes no campo da Reforma Psiquiátrica, no que diz respeito ao campo
infanto-juvenil e apresentar o CAPSI como um dispositivo imprescindível neste cenário
.
Falar sobre o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) como um lugar de escuta e
cuidado pode parecer para muitos uma redundância, uma vez que as inúmeras experiências
nesta área falam por si só da qualidade que essa modalidade de atendimento têm oferecido
a seus usuários, principalmente para aqueles chamados psicóticos. Aliás, o sucesso desta
clínica parece residir no fato da mesma suportar as idiossincrasias do ser humano, não
acolhidas em outros Serviços, fazendo falar o sofrimento, ao invés de oferecer-lhe uma
escuta surda.
A experiência paradigmática do CAPS Luiz Cerqueira em São Paulo mostra
isto. Jairo Goldberg
2
, faz-nos acompanhar a trajetória da construção deste projeto
que iniciou em 1989 uma importante experiência: atender na rede pública de saúde
de São Paulo àqueles casos que não “tinham o perfil do ambulatório”, ou seja, os
psicóticos. Ao longo do livro ele mostra porque o ambulatório não suporta o
atendimento desses pacientes e como a lógica médica investe no sintoma e não no
sujeito. Mas o que seria o investimento no sintoma?
Jairo mostra que investir naquilo que aparece como sintoma não tem sido
suficiente nos casos de pacientes psicóticos, apesar dos enormes gastos empregados
na assistência a esta clientela. A modalidade de atendimento ao psicótico na rede
pública priorizava o ambulatório e a internação num círculo ininterrupto de gastos e
ineficiência, além de não atender o paciente como ele deveria ser atendido:
respeitando exatamente a particularidade de sua subjetividade no mundo, mesmo
sem “sintomas”.
2
GOLDBERG, Jairo. Clínica da Psicose. Rio de janeiro, Te Cora Ed. E IFB, 1994.
xii
Para entender melhor a trajetória do discurso que calou o sintoma do sujeito
aprisionando-o a uma esfera única de “cuidado”, que silenciava os corpos, é preciso
entender a dinâmica do asilo. Ao mergulharmos no tempo e retomarmos a história
da psiquiatria esbarramo-nos necessariamente com a “História da loucura” descrita
por Foucault. Nela entendemos muito bem quão necessário foi o sentido econômico
que a palavra investimento apresentou nas definições acima e como a construção
dos CAPS está marcada por esta oposição ao modelo asilar.
De acordo com Foucault o aparecimento do hospital como um instrumento terapêutico,
vinculado ao tratamento e à cura dos doentes só é possível no final do século XVIII. Antes,
o hospital servia para recolher pobres e proteger a sociedade do perigo que estes
representavam. O “personagem” marginalizado era o pobre e não o doente e a função dos
que nele trabalhavam era de “salvar o pobre”. O médico não tinha lugar neste cenário, pois
eram os religiosos e os leigos quem “cuidava” dos mesmos. A função, do hospital era,
pois, a de transição da vida para a morte e a de salvação espiritual. Era um lugar em que
misturavam-se loucos, prostitutas, devassos, misto de assistência e transformação
espiritual.
Foucault nos mostra que até meados do século XVIII hospital e medicina
permaneceram independentes e este “encontro” ocorreu a partir da necessidade de se
anularem os efeitos negativos do hospital, onde se amontoavam pessoas, para torná-lo um
lugar de saber.
O saber psiquiátrico foi construído socialmente, visando a destituição do lugar do
louco num cenário onde a falta de razão não era mais permitida. Se antes desrazão não
era uma questão que atrapalhava a convivência dos loucos com a cidade, pois a loucura
na Idade Média era respeitada enquanto um saber especial, agora ela passa a ser um
problema que deve ser solucionado. Há uma passagem da legitimidade de um saber para
a ilegitimidade. É na ilegitimidade da loucura que será respaldada a exclusão dos loucos,
que serão confinados nos hospitais.
A psiquiatria surge como o saber que vai responder pela figura do louco, um saber
que legitima a exclusão da loucura do cenário social. Um lugar específico de tratamento,
o asilo, também é determinado, e somente um médico, através do seu conhecimento
especializado, é capaz de saber o segredo da cura dos seus males.
xiii
O saber psiquiátrico que se constituiu hegemônico é hoje alvo de grandes
críticas e reformulações. A Reforma Psiquiátrica surge como tentativa de
implementar uma modificação na cultura e no entendimento do que é o louco. Há
uma dimensão complexa, perpassada não apenas pelas modificações necessárias na
assistência psiquiátrica, mas pelos diferentes olhares e entendimentos acerca do que
representa a loucura e seu lugar na sociedade.
No Brasil temos avançado nas discussões da reforma a cada dia. Há muito
por fazer, mas a existência de uma rede de assistência em saúde mental implicada
na escuta do sujeito tem implementado algumas mudanças importantes neste
campo. A existência dos CAPS marca a efetivação da possibilidade de cuidar sem
excluir e de tomar a responsabilidade pelo sujeito que sofre oferecendo um cuidado
diário e contínuo aos pacientes.
Golberg coloca:
“a presentificação de um cotidiano compartilhado nos limites da doença, com
disponibilidade para absorver o que ela fosse capaz de expressar”. Não se trata de abordar
o “psicótico”, mas acolher a “condição psicótica, de alguém que é maior que a doença, não
redutível à categoria da doença e por isto infenso às estratégias tópicas do raciocínio
sintomatológico
.
3
O fracasso dos atendimentos aos psicóticos no serviço público ambulatorial
muitas vezes ocorre por não respeitar a condição desse sujeito e de querer impor a
lógica médica a esta clientela: Prevenção, tratamento e cura. A importância dos
CAPS como lugares privilegiados da escuta do sujeito reside nesta modificação
apontada pelo autor, que é a de acolher essa condição psicótica oferecendo uma
escuta a este sujeito.
É de um lugar de construção de algo que pode oferecer um espaço diferente do que
foi oferecido ao longo da história da psiquiatria que o CAPS parece falar , nele não se
pretende calar o sujeito, mas fazer falar o que há de singular nesta experiência. Cada um
pode ser radicalmente diferente do outro e é nesta diferença que a singularidade de cada
experiência pode aparecer.
3
(idem, ibidem. Pg.113 e 126)
xiv
A construção do CAPS para crianças e adolescentes é um campo ainda em
constituição, mas o que o aproxima neste primeiro momento do campo já bastante
estudado do adulto é a história também asilar que as crianças e adolescentes autistas e
psicóticas estão submetidas.
Num artigo escrito por Cristina Ventura
4
, a autora coloca importantes reflexões acerca
desta questão e mostra que as crianças e adolescentes autistas, psicóticas e com outros
transtornos estavam fora das tradicionais unidades hospitalares psiquiátricas e
“aparentemente protegidas pela mortificação imposta pela lógica asilar”. As crianças
estavam sendo submetidas à exclusão, embora legalmente protegidas. Após um longo
trabalho de pesquisa a Coordenação da Saúde Mental do Estado do Rio de Janeiro
identificou a existência de 850 crianças e adolescentes vivendo em abrigos, que na
verdade eram depósitos humanos do descaso público com a infância. Esses abrigos não
estavam incluídos no sistema formal de saúde, fazendo, pois, parte da assistência social.
Exclusão é a palavra que mais representa a assistência que era oferecida a esta clientela,
uma vez que “abrigadas” não faziam parte de nenhum tratamento psicológico, nem
educacional. Abrigava-se tudo: o externo, ao fechar os muros institucionais, e o interno,
mortificando os corpos que nele residiam. Embora alguns recebessem a visita dos
familiares, nenhum trabalho era feito para que a criança pudesse retornar à casa dos pais.
Estes eram também excluídos enquanto sujeitos que poderiam e deveriam ser escutados
pela instituição. O abrigo embora seja definido em lei como “medida provisória e
excepcional estava sendo utilizado como medida de reclusão”
5
.
Falar, então, da história da reforma psiquiátrica da criança e adolescente faz-nos
reportar aos primeiros momentos da história da reforma psiquiátrica brasileira. O
momento em que se discutia a criação dos grandes asilos e sua função de exclusão. Foi
preciso adentrar na realidade dos abrigos para que a reforma psiquiátrica no campo da
infância e adolescência ganhasse mais voz na cidade do Rio de Janeiro. Eu mesma tive a
oportunidade de conhecer um abrigo, na ocasião para discutir um caso clínico, e senti
aquele cheiro peculiar dos asilos psiquiátricos, que tão bem conhece quem já adentrou em
um.
4
COUTO, Maria Cristina Ventura. Novos Desafios À Reforma Psiquiátrica Brasileira: necessidade da
construção de uma política de saúde mental para crianças e adolescentes. (mimeo). Rio de Janeiro. Pg. 64
5
Estatuto da Criança e do Adolescente, lei nº 8.069-13/07/1990).
xv
Lendo o “Relatório Final do Processo de Avaliação das Crianças e Adolescentes
Internos de um abrigo”, o CAD I (Centro de Assistência ao Deficiente) que foi realizado
pela equipe de Saúde Mental da Secretaria do Estado do Rio de Janeiro em agosto e
setembro de 2000, uma passagem me chamou a atenção:
O alojamento localizado no mezzanino do segundo prédio possui aberturas amplas com
grades, sem vidros ou qualquer outra proteção contra o frio, [...] o teto não possui forro; em sua
quase totalidade os leitos da unidade são beliches, inadequados para menores com distúrbios
neuropsiquiátricos; o número de cobertores e travesseiros encontrados era muito inferior ao
número de internos na instituição; os banheiros das enfermarias não apresentavam boxes para
os vasos sanitários e nenhum dos chuveiros possuía aquecimento; na entrada da unidade há uma
piscina sem qualquer proteção; a quase totalidade das crianças encontrava-se descalça e
insuficientemente vestida e a maioria das crianças examinadas apresentava-se descorada, com
escabiose e diversas cáries dentárias; a maioria dos prontuários pesquisados não possuía
qualquer anotação médica referente ao corrente ano, em alguns a última anotação médica
datava de 1998”.
É difícil ler esta observação sobre o local de moradia das crianças sem que isto nos
reporte a autores como Goffman que tão bem escreveu sobre as instituições totais. Para
este autor o aspecto central das instituições totais pode ser descrito como a ruptura das
barreiras que existem na sociedade moderna, que separam da vida do sujeito o lugar onde
dormir, brincar e trabalhar. De acordo com ele, em tais instituições todos os aspectos da
vida são realizadas no mesmo local e sob uma única autoridade. Cada fase da atividade
diária do participante é realizada na companhia imediata de um grupo relativamente grande
de pessoas, todas elas tratadas da mesma forma e obrigadas a fazer as mesmas coisas em
conjunto. As atividades diárias são estabelecidas em horários por um sistema e um grupo
de funcionários e visam a atender aos objetivos oficiais da instituição.
No manicômio há a produção de um corpo doente descaracterizado de questões
sociais e desvinculado da história de vida do paciente. O sujeito é destituído de sua
identidade e vivencia a experiência da internação como mortificadora, pois o único olhar
possível é o olhar biológico. O olhar enfoca a doença e não o sujeito como um ser humano
complexo, que está necessitando de uma ajuda específica num determinado momento de
sua vida. A descrição dos grandes asilos psiquiátricos apontados pelo autor não me parece
muito diferente das descrições existentes no relatório da Assessoria de Saúde Mental do
Estado do Rio de Janeiro, onde a equipe coordenada por Cristina Ventura identificou os
xvi
arquivos do CAD I como “pastas-depósito”, com “nomes sem referência, endereços
perdidos, datas confusas”, etc.
A descrição do CAD deixa claro o abandono junto à exclusão. Na nossa realidade a
falta de investimento eficaz nos cuidados com crianças e adolescentes faz a exclusão do
asilo mais repugnante: “manicômios, prisões e conventos” de indigência.
No relatório havia ainda um dado muito importante e que reafirma a aproximação
do funcionamento deste abrigo como um manicômio: No CAD I estavam listadas 61
crianças e adolescentes e 55 delas foram avaliadas. No estudo realizado sobre a inserção
social da criança na rede social daquela comunidade (Jacarepaguá) foi identificado que
apenas duas crianças internas estavam freqüentando a escola da rede pública. Os outros 53
não participavam de nenhuma atividade como esporte, lazer ou outra proposta fora dos
muros da instituição. Mesmo nos casos de doença, apenas os casos de emergência eram
atendidos. Emergência esta que eles mesmos definiam, o que comprometia em muito a
avaliação.
Luciano Elia e Maria S.E.Galvão chamam a atenção para a instituição fechada.
Dizem eles:
“A instituição fechada não o é apenas no sentido descritivo e imediato de não ser aberta ao livre
movimento do ir e vir de seus usuários, mas é fundamentalmente fechada a todo e qualquer saber e
a todo e qualquer fazer (clínico, social, educacional, comunitário, humanitário, e outros)”
6
.
O resultado último para os autores é, portanto, a repetição “morta e mortificante do
mesmo”. A mesmice é tomada como algo natural pela instituição e o diferente passa a ser
aquele que foge a essa regra.
É exatamente onde os seres humanos são tomados como amorfos que a psicanálise se
diferencia. A escuta do sujeito psicótico torna-se uma ética imprescindível sustentando
uma posição radicalmente singular. Um delírio que para a psiquiatria só é revelado como
fenômeno e calado neste lugar, pois não tem um sentido, é para a psicanálise uma
“tentativa de cura ou uma reconstrução”
7
implicando o analista na escuta desse sentido.
6
ELIA, Luciano e GALVÃO, Maria Silva. Estratégias de desconstrução da instituição fechada e produção
de subjetividade. In: Almeida, N. & DELGADO, p (org). De Volta à Cidadania. Rio de janeiro, IFB, 2000.
Pg, 71
7
FREUD, S. Neurose e Psicose In Edições Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol.
XIX. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987. Pg. 191.
xvii
Trabalhar num CAPS que diz respeito ao campo da infância e adolescência convoca
ao aprimoramento de um trabalho clínico extremamente importante. São sujeitos que
precisam falar de seus sofrimentos e que necessitam encontrar no CAPS disponibilidade
para essa escuta. No trabalho com crianças e adolescentes autistas e psicóticas a palavra
verbal nem sempre ocorre e este é um trabalho que precisa ser suportado pelos que com
esses sujeitos trabalham. Sustentar essa posição, do não recuo frente ao que
aparentemente é sem sentido, possibilita a construção de um trabalho subjetivo com as
crianças e também com seus pais, fazendo valer o sentido do que em algumas situações
só aparecem como “atos” aparentemente involuntários.
xviii
1.1- O ESTADO DA ARTE DO CAPSI NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
O ano de 1999 marca a inauguração de um novo compromisso com a o Campo da
Infância e Adolescência no que diz respeito ao atendimento das crianças e adolescentes
com graves transtornos como o autismo e a psicose. Estas crianças que não eram tratadas
no campo da Saúde Mental, pois só contavam com o recurso da Educação Especial,
passam a ter prioridade no atendimento Infanto-juvenil a partir dessas discussões sobre a
importância de CAPSI para os transtornos mentais graves.
Com a finalidade de diminuir os problemas relacionados ao atendimento da criança e
do adolescente na área de saúde mental e criar uma rede articulada de atenção, a
Assessoria de Saúde Mental da Secretaria do Estado de Saúde do Rio de Janeiro criou em
abril de 2000 um Fórum Inter-Institucional para o Atendimento em Saúde Mental de
Crianças e Adolescentes com o objetivo de convocar diferentes setores implicados no
atendimento dessa clientela. Segundo a coordenadora do Fórum, Cristina Ventura
8
“A necessidade de construir balizamentos políticos, técnicos e clínicos calcados em decisões
coletivas, discutidas e pactuadas entre os diferentes atores e agentes dos campos jurídico,
assistencial, educacional e do campo da saúde mental, para a definição das linhas gerais de uma
política para o atendimento de crianças e adolescentes, deu sustentação para a montagem deste
Fórum
”.
O Fórum têm uma particularidade importante que é a discussão dos impasses a partir
da clínica, o que faz com que o Fórum concerne também uma dimensão de formação. As
discussões dos impasses clínicos dos casos apresentados por cada Serviço são muitas
vezes fundamentais para o estabelecimento de novas diretrizes necessárias para esse
campo.
No Estado do Rio de Janeiro já temos 12 CAPSI em funcionamento, sendo os seis
primeiros cadastrados e os outros seis ainda não cadastrados, mas em funcionamento. Os
8
COUTO, Maria Cristina Ventura. Abrigos para “Menores Deficientes”: Seus impasses Clínicos,
Assistenciais e Éticos. In: Almeida, N. & DELGADO, P (org). De Volta à Cidadania. Rio de janeiro, IFB,
2000. Pg, 64-65
xix
CAPSI são: CAPSI Pequeno Hans (Sulacap), CAPSI Eliza Santa Roza (Jacarepaguá),
CAPSI Estação Viver (Barra Mansa), CAPSI Viva Vida (Volta Redonda), CAPSIJ
(localizado no Centro de Atenção e Reabilitação da Infância e Mocidade/IPUB), CAPSI
Duque de Caxias (Caxias) Petrópolis, CAPSI Zé Garoto (São Gonçalo), CAPSI Belford
Roxo (Belford Roxo), CAPSI Dom Adriano (Nova Iguaçu), CAPSI de Campos, CAPSI
Monteiro Lobato (Niterói) e CAPSI Silvia Ortoff (Petrópolis).
A III Conferência Nacional de Saúde Mental realizada em dezembro de 2001 marca a
construção de uma política pública de saúde mental para a infância e adolescência. O
CAPS foi definido como modo operacional, como um pólo de base territorial que está
sempre em referência à pluralidade de modalidade de serviços existentes na rede. Entre
outras atribuições que ao longo deste trabalho serão discutidas o CAPSI foi instituído
como o Serviço que têm como uma de suas prioridades de ação os projetos de
desospitalização e desinstitucionalização.
A consolidação dos CAPSI no Estado do Rio de Janeiro tem sido amplamente
discutida pela Gestão de Saúde Mental do Estado, num trabalho de parceria importante
nesse processo. Algumas discussões reafirmam a importante tarefa desses dispositivos de
atenção em seu cuidado diário e extremamente delicado que a clínica com essas crianças
convoca. Um ponto muito importante que foi determinado numa reunião do Ministério da
Saúde realizada no ano de 2003 coloca que a supervisão clínico-institucional é condição
absolutamente necessária neste trabalho, uma vez que a equipe deve responder às
exigências éticas que são colocadas. A função é:
“garantir a fala produtiva de efeitos nesse espaço, do que a presunção de ensinar o que se
deve fazer. Considera-se que a prática da atenção e do cuidado a criança e ao adolescente com
grave sofrimento psíquico e risco social desenvolve-se em um universo sobre o qual o saber não
antecipa integralmente o fazer, o que situa esta prática no campo da pesquisa permanente e dos
incessantes avanços e descobertas”
9
No Congresso Brasileiro de Centros de Atenção Psicossocial realizado no mês de
junho de 2004 em São Paulo vários representantes de CAPSI de todo o Brasil (são 38
CAPSI) estiveram presentes. Foi um encontro bastante importante, onde observamos que
9
MINISTÉRIO DA SAÚDE/COORDENAÇÃO DE SAÚDE MENTAL. Relatório da reunião MS-OPAS.
03/10/2003.Pg4.
xx
a diversidade de cada região determina o modo como cada serviço organiza sua prática e
constrói sua clínica. Há pontos interessantes a serem destacados. A supervisão clínico-
institucional ainda não é a regra, mas exceção. Muitos lugares trabalham sem supervisão,
o que tem determinado um recuo no atendimento das crianças e adolescentes autistas e
psicóticas. Alguns profissionais colocaram que “não sabem atender autista” e que a
supervisão que recebem é de uma vez por mês, quando existe. Por outro lado,
observamos também um grande desconhecimento sobre a clientela privilegiada a ser
atendida no CAPSI. A Portaria 336, já mencionada neste trabalho e que determina as
prioridades de um CAPSI é em algumas cidades pouco conhecida e pouco praticada.
Algumas questões como: que clientela é para um CAPSI? Que política de saúde mental
para a Infância e Adolescência o Ministério preconiza? Há Serviços que trabalham com a
idéia de prevenção em saúde mental, o que coloca uma questão da própria clínica. O que
significa trabalhar com prevenção em saúde mental? Como isto é possível?
Identificamos que a direção da clínica era algo sempre pouco clara nas discussões; alguns
Serviços situaram a direção na psicanálise, mas outros pareciam sem nenhuma direção.
Estas questões não parecem derivar da diversidade cultural, nem da constituição desse
campo ainda muito pouco sedimentado, mas da falta de uma direção da clínica que deve
estar presente em todo trabalho que propõe o tratamento em saúde mental. Além disso, a
supervisão clínico-institucional seria fundamental para trabalhar a própria resistência da
equipe em atender uma clientela tão difícil como a criança autista, por exemplo.
O Rio de Janeiro destacou-se como o local onde esses serviços estão mais
estruturados, e onde atendem prioritariamente a criança psicótica e autista, trabalham com
supervisão, numa rede de discussão pactuada com a gestão municipal e Estadual.
Ventura, num grupo de trabalho em São Paulo colocou dois pontos importantes para
solidificar as diretrizes do trabalho do CAPSI: 1) Do CAPSI ser um projeto público de
saúde mental, com rigor e princípios que incitam verificação e cuidado permanente; 2) O
fato de uma criança ser um sujeito, valorizando a necessidade de retirar todas as
conseqüências dessa afirmação. A criança tem o que dizer mesmo que não fale.
Apesar do número significativo de CAPSI já instituídos, notamos que a falta de
uma direção clínica em vários CAPSI impede que a decisão do atendimento aos casos mais
graves de fato ocorra, tornando o CAPSI um dispositivo muitas vezes muito semelhante ao
xxi
ambulatório, que escolhe os pacientes a partir de um perfil diagnóstico. No nosso ponto de
vista o não recuo, preconizado pelo Ministério da saúde, aos casos como o do autismo e da
psicose na infância requer fundamentalmente uma clínica que inclua em sua diretriz ético-
metodológica o sujeito da criança autista.
xxii
1.2- O CAPSI ELIZA SANTA ROZA: SEUS IMPASSES E POSSIBILIDADES
No início desse ano foram realizados no CAPSI Eliza Santa Roza um Censo e um
Seminário Interno, para que pudéssemos construir um panorama geral de alguns impasses
que já estavam se apresentando na clínica do CAPSI: como acolher uma paciente sem
que isto implique sua absorção no Serviço? CAPSI pra quem? Como o diagnóstico deve
ser pensado num CAPSI que tem como direção clínica a psicanálise? Por que numa
situação de crise alguns dos profissionais recorrem imediatamente ao psiquiatra, mesmo
dentro do CAPSI? Por que os CAPS de adultos não querem receber os casos dos autistas
com mais de 18 anos, já que seriam elegíveis para este dispositivo? Por que um serviço
como um CAPSI ainda apresenta um ambulatório de pacientes que só estão contando
com a psiquiatria como tratamento? Como resolver este impasse, uma vez que não temos
mais vagas para absorver esta clientela? A rede de saúde mental não poderia atender
alguns casos graves, onde o laço social não estivesse rompido? O que significa apostar no
sujeito da criança autista num trabalho como CAPSI?
Podemos tentar pensar nessas questões a partir de dois eixos, que estão
necessariamente articulados: o da clínica e o institucional. Para isso é necessário definir
primeiro o que estamos chamando de clínica.
A clínica que apostamos ser a que melhor oferece a possibilidade de um trabalho com
pacientes tão graves no CAPSI, devido à sua condução ética, teórica e metodológica é a
da psicanálise. Pensar que os impasses devem ser pensados a partir da clínica já marca
uma direção do trabalho e dizer que esta clínica é a da psicanálise configura-se como um
passo fundamental no CAPSI.
Podemos dizer que a clínica da psicanálise configura-se no a posteriori, ou seja, na
construção de um trabalho onde o sujeito é sempre o primeiro a ser escutado. Esta
metodologia fundada por Freud mostra-se muito importante no trabalho com uma
clientela tão grave, que muitas vezes já chegam no CAPSI com seus diagnósticos e
medicações, sem que nenhuma escuta cuidadosa tenha sido realizada. A clientela que
procura o CAPSI o faz a partir de seu sofrimento e é deste lugar que a psicanálise é
xxiii
convocada a fazer sua escuta. Mais do que isso, é exatamente a partir deste lugar que ela
se diferencia, não recuando, nem dirigindo sua escuta. Nas “regras” da psicanálise
apresentadas por Freud
10
destaca-se o fato do psicanalista não direcionar o paciente, que
diga o que ocorre em sua cabeça, da forma que for, sem que haja uma direção, que não a
do próprio inconsciente. Desta forma, as primeiras entrevistas já são propriamente o
início de uma psicanálise. As “regras” da psicanálise, que Freud nomeia como
“recomendações”, devem ser utilizadas, segundo Freud, na sua relação com o plano geral
do jogo. O autor faz uma comparação entre a psicanálise e o jogo de xadrez, dizendo que
o exercício do tratamento psicanalítico encontra-se com as mesmas limitações desse jogo.
Diz ele: “todo aquele que espere aprender o nobre jogo do xadrez nos livros, cedo
descobrirá que somente as aberturas e os finais de jogos admitem uma apresentação
sistemática exaustiva e que a infinita variedade de jogadas que se desenvolvem após a
abertura desafia qualquer descrição desse tipo”
11
. Quando abrimos a possibilidade de
escutar um paciente não sabemos até onde iremos, pois não podemos prever nada a
priori. É no só-depois de cada palavra trazida pelo paciente e da transferência
estabelecida que teremos condições de pensar sobre o caso que recebemos. Freud aponta
a cautela que devemos ter em não fazer da técnica uma regra em si mesma, mas de
reconhecê-la dentro de um contexto.
Estas recomendações metodológicas são fundamentais para pensarmos na clínica que
desejamos no CAPSI, pois elas falam sobre o modo como recebemos e acolhemos cada
paciente. O CAPSI tem o mandato de acolher para uma escuta quem chegar ao Serviço.
Essa determinação está de acordo com a psicanálise, mas em vários CAPSI,
principalmente fora do Estado do Rio, isto é um ponto de impasse, particularmente
quando estamos discutindo a questão do diagnóstico. Há serviços que trabalham a partir
dos diagnósticos e não a partir de uma escuta, o que é uma questão a ser pensada na
direção da própria clínica. No CAPSI Eliza Santa Roza tivemos várias discussões sobre
esta questão e chegamos à conclusão de que não será o diagnóstico que norteará nossa
escuta, não será ele o ponto de partida, para saber se a criança ficará ou não no Serviço,
mas a perda dos laços sociais dessa criança. Optamos por incluir o diagnóstico, seguindo
10
FREUD, S. Sobre o Início do tratamento (Novas Recomendações obre a Técnica da Psicanálise) In Edições
Standard Brasileira das Obras Completas Sigmund Freud. Vol. XII. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987.
11
Idem, Ibdem. Pg. 164.
xxiv
a direção apresentada por Freud no texto já citado, onde o diagnóstico é identificado
como um elemento clínico importante, que faz parte do tratamento da psicanálise. Em
outro texto Freud
12
nos convida a pensar no diagnóstico para além dos fenômenos, ou
seja, num diagnóstico estrutural, uma vez que ele só pode ser realizado a partir de uma
escuta ao longo do próprio tratamento. Esta questão pode parecer óbvia e simples, mas é
extremamente complexa, uma vez que convoca o profissional a suspender sua ansiedade
em dar respostas apressadas na busca de uma solução, que na maioria das vezes
beneficia a instituição que “resolve” rapidamente mais um encaminhamento.
Essa direção ética e metodológica também traz muitas dificuldades no cotidiano do
CAPSI, pois nos convoca a lidar com o próprio paradoxo do CAPSI, que já foi
mencionado: como acolher sem que isso signifique necessariamente absorver? E como
tornar esse acolhimento já uma primeira escuta, mesmo que o paciente não seja elegível
para o tratamento do CAPSI?
Ao longo do trabalho realizado no CAPSI temos observado que para muitos pacientes
a possibilidade de ser acolhido no Serviço e escutado de forma cuidadosa, sem uma
pressa em realizar diagnósticos e oferecer encaminhamentos, já é um atendimento que
traz modificações, às vezes surpreendentes, em suas vidas. Para ilustrar temos um
exemplo de uma triagem de um menino de 11 anos que fora encaminhado para o CAPSI
pelo seu fisioterapeuta, porque após uma brincadeira na rua ele começou a apresentar
muitas dores nas pernas e dificuldades em andar. Nenhum exame clínico justificava esta
dificuldade e o profissional suspeitou de problemas psicológicos.
Nas primeiras entrevistas realizadas no CAPSI não identificamos nenhum elemento
da história de vida desse menino que justificasse tal encaminhamento, mas o profundo
sofrimento que ele apresentava pelo fato de não poder andar foi o que nos levou a acolher
este caso. A família estava completamente desesperada, correndo para vários lugares e
não cabia encaminhá-lo para um Posto de Saúde, porque ele não era autista, psicótico ou
neurótico grave. Encaminhá-lo seria causar mais um sofrimento, uma vez que ele
precisava e desejava falar sobre todas as modificações que estavam ocorrendo em sua
vida. Não foi o diagnóstico que nos fez atender essa criança, nem o critério de laços
12
FREUD,S Histeria .(1888). In Edições Standard Brasileira das Obras Completas Sigmund Freud. Vol. II.
2ª Ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987.
xxv
interrompidos, nem mesmo a necessidade de uma equipe multidisciplinar, mas o
sofrimento da criança e da família.
O trabalho que o CAPSI pôde realizar neste caso perpassou os muros da instituição,
uma vez que o menino precisou ser internado por mais de dois meses para fazer exames.
Um profissional o acompanhou durante todo este tempo de investigações diagnósticas
oferecendo sua escuta no hospital e posteriormente no CAPSI, até sua alta. Após vários
exames, um tipo de leucemia, o mais brando, foi diagnosticado e o menino iniciou os
tratamentos necessários, recuperando em poucos meses seus movimentos. Esse caso é
bastante curioso, pois mostra como a escuta sustentada pela psicanálise é imprescindível
nesse trabalho: Acolhemos a fala do menino que estava marcada pelo sofrimento, não
sabíamos até onde o caso seria atendido, nem nos baseamos no diagnóstico para acolher o
paciente e todo o fruto do trabalho só foi possível porque houve esta direção ética, clínica
e metodológica.
Freud
13
afirma que em psicanálise “pesquisa e tratamento coincidem” o que nos faz
responsáveis por qualquer caso que chega no CAPSI, mesmo que posteriormente ele seja
encaminhado. O encaminhamento é necessariamente um procedimento clínico, onde o
paciente e o profissional estão implicados na decisão institucional.
O trabalho construído cotidianamente no CAPSI Eliza Santa Roza tem tentado
sustentar essa posição da psicanálise que é o trabalho com o sujeito do inconsciente.
Contudo, é importante avançarmos sobre essa direção clínica tão necessária de trabalhar
com o sujeito da criança autista e psicótica no CAPSI. É sobre seus impasses e
dificuldades que pretendemos avançar no próximo capítulo, definindo melhor as
implicações dessa posição e a relação do CAPSI neste projeto.
13
FREUD, S. Recomendações aos Médicos que exercem a Psicanálise. In Edições Standard Brasileira das
Obras Completas de Sigmund Freud. Vol XII. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987. Pg. 152
xxvi
CAPÍTULO 2: POR QUE A DIREÇÃO DA PSICANÁLISE
Resumo: Este capítulo tem como objetivo trabalhar a importância da psicanálise na clínica do
CAPSI Eliza Santa Roza, uma vez que o trabalho com crianças autistas e psicóticas nesta
instituição exige uma escuta tal qual a psicanálise sugere: de um sujeito do inconsciente.
A tentativa de discutir a importância da direção da psicanálise no
CAPSI Eliza Santa Roza tornou-se ponto fundamental para a
constituição da clínica nesta instituição. Mas por que escolhemos a
psicanálise como direção? O que ela tem de singular para contribuir neste
campo da saúde mental?
O primeiro ponto importante a ser colocado diz respeito à
especificidade deste CAPSI, que está situado na área da Área
Programática (AP4) de Jacarepaguá. Como sabemos é uma área que
concentra um grande número de hospitais psiquiátricos e abrigos, além
de uma população de 800.000 habitantes. Esses dados são importantes,
pois recebemos no CAPSI um grande número de pacientes que residem
em clínicas conveniadas com o S.U.S (Sistema Único de Saúde) e
moradores de abrigos desta região. São crianças e adolescentes
institucionalizados por longos anos e que nunca tiveram qualquer
tratamento. Recebemos uma grande quantidade de pacientes psicóticos e
autistas dessas instituições, que apresentam situações muito graves e
difíceis de serem conduzidas na clínica. Além desses, há os casos
xxvii
encaminhados pela rede (escolas, conselhos tutelares, lares abrigados) e
demandas espontâneas que nos chegam cotidianamente.
O CAPSI existe desde 2001, ano de sua inauguração. A equipe é
multiprofissional e a direção da psicanálise é algo bastante novo para a
mesma. Antes de se transformar em CAPSI, parte da equipe já
trabalhava no chamado COIA (Centro de Orientação à Infância e
Adolescência), ambulatório que funcionava neste mesmo lugar. Esta
configuração diz muito sobre o CAPSI, pois faz parte da sua constituição.
Quando a psicanálise chegou como direção deste trabalho, que estava se
transformando em CAPSI, houve muita resistência por parte de alguns
profissionais da equipe. Uns porque tinham uma outra direção de
trabalho clínico e outros porque não tinham nenhuma familiaridade com
o campo da psicanálise. A nova proposta os assustava, e, além disso,
colocava-se desde o primeiro momento um rigor que é próprio da
psicanálise. Podemos pensar, por exemplo, na própria discussão clínica
dos casos, que não era realizada por um supervisor para toda a equipe.
Não havia a construção de uma clínica compartilhada, que começou a
ocorrer com a construção de uma nova lógica a partir da psicanálise.
Uma lógica que perpassava a discussão dos casos e que ao longo desses
anos expandiu-se para todo o CAPSI, que partia de um impasse na clínica
do caso a caso para pensar o arranjo institucional.
Há diversas situações no cotidiano do CAPSI que nos convocam a
pensar no impasse que a construção de uma direção marcada pela
psicanálise pode enfrentar no campo da reforma psiquiátrica, que
sustenta como ponto de partida uma lógica universalizante dos direitos
dos usuários. Na clínica da infância e adolescência no CAPSI, não
raramente, estas questões trazem problemas desde o início do trabalho,
xxviii
uma vez que as famílias, que muitas vezes chegam apenas solicitando um
laudo médico para obter um "benefício" do CAPSI, recorrem ao pedido
como um "direito" para a criança e/ou adolescente. Este direito expressa-
se em um pedido de obter recursos financeiros sustentados por um laudo
que incapacita o filho e o define legalmente como um assujeitado. Fazê-los
falar e pensar nas questões do direito para além do campo jurídico não
tem sido tarefa fácil, uma vez que a psicanálise os convoca a perguntar o
que estas questões falam sobre eles enquanto sujeitos.
A responsabilidade do sujeito apresentada pela direção da psicanálise abre a
possibilidade de ouvirmos algo que num primeiro momento é impossível para os familiares
das crianças atendidas no CAPSI, uma vez que estão aprisionados numa única direção, que
é a dos direitos sociais. Não se trata aqui de negligenciar esta questão, mas de não tomá-la
de pronto, sem escutar o que cada responsável quer dizer quando diz que necessita de um
"benefício". Consideramos importante pensar nestas questões, pois esta dissertação se
propõe a pensar na contribuição da psicanálise neste campo, torna-se questão fundamental
levantar estas discussões que permeiam a clínica da psicanálise neste dispositivo tão
recente.
Mas o que estamos chamando de rigor da psicanálise? Podemos
partir do princípio ético que é colocado pela psicanálise que é a escuta do
sujeito a partir do seu inconsciente. A discussão do sujeito, que é própria
da psicanálise, não é tarefa fácil, mas extremamente necessária nesta
clínica que trabalha com crianças e adolescentes tão graves, onde a aposta
da existência desse sujeito, que precisa ser escutado, torna-se condição da
própria clínica neste dispositivo. Ou seja, uma aposta que vai modificar a
maneira como cada sujeito será escutado, uma vez que o surgimento desse
sujeito é trabalho do próprio CAPSI. É a partir do CAPSI, ou seja, dos
profissionais que estão aí colocados para escutar esse sujeito, que o
xxix
mesmo poderá surgir, uma vez que há necessariamente uma aposta na
emergência desse sujeito.
É este o rigor que clínica psicanalítica nos convoca: a escuta do
inconsciente deste sujeito. Faz-se necessário discutir esta questão e para
isto recorreremos a Lacan e outros autores do campo da psicanálise.
O texto de Lacan "A ciência e a verdade"
14
aponta a importância de estudar
como a concepção de sujeito em psicanálise é entendida, corroborando a idéia de
que falar em sujeito já pressupõe uma concepção psicanalítica, pois este foi definido
pela psicanálise e sempre que nos remetemos à palavra sujeito, já está colocada uma
concepção psicanalítica.
Lacan afirma no texto que o sujeito da ciência é o mesmo que o da
psicanálise, contudo a ciência não "opera" com o sujeito tal como a psicanálise.
Coloca que a psicanálise como prática e que o inconsciente de Freud como
descoberta, seria impensável antes do nascimento da ciência, marcando no texto o
século XVII como o século do talento. Diz que o sujeito está no âmago da diferença
e reforça que é exatamente pela psicanálise ser radicalmente não humanista, não
idealista, que sua diferença será colocada para sempre.
O autor faz uma crítica importante sobre as chamadas "ciências humanas"
após afirmar que o homem da ciência não existe, mas apenas seu sujeito. Critica as
ciências que tentam a todo custo se enquadrar em uma lógica idealista e humanitária
e diz que "a posição do psicanalista não deixa escapatória, já que exclui a ternura da
bela alma".
15
Essas primeiras considerações podem parecer simples, mas são
extremamente difíceis de serem trabalhadas na prática. Como dizer num CAPSI que
apresenta uma equipe multiprofissional que o sujeito prioritariamente a ser escutado
não é o do campo social? No dia a dia desta clínica isto é bastante difícil, pois há
um desejo por parte dos profissionais de responder às demandas que chegam com
sua urgência de atendimento nesses campos ditos sociais. Não quero dizer com isto
14
LACAN, Jacques. Escritos: A ciência e a Verdade (1965-66). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Editor., 1998.pg
879-873.
15
Idem, ibidem. Pg.873.
xxx
que os pedidos não são pertinentes numa clientela que traz muitos problemas sociais
desde o início. Por outro lado, a própria clínica tem nos apontado que responder a
esta demanda faz com que o trabalho que aponta para uma escuta subjetiva fique
paralisado.
No texto Posição do Inconsciente
16
Lacan diz que o ideal é servo da
sociedade e critica a psicologia dizendo que ela é um veículo a serviço dos ideais.
Em outro texto
17
volta a criticar a psicologia e os demais conhecimentos que
valorizam a consciência como possibilidade de saber. Para este, no campo
freudiano, apesar das palavras, a consciência é um traço “caduco”, que não serve
para basear o inconsciente. A importância de escutar algo que aponta para além da
consciência, ou seja, o inconsciente, com todo seu “tropeço” como diz Miller
18
, é
que remeterá a verdade do sujeito.
Lacan toca em algo que é fundamental e que marca, como ele mesmo diz,
uma ruptura da psicanálise. Para esta uma verdade não corresponde necessariamente
um saber, como colocado na ciência. Não há furos na ciência que possam ficar
abertos, e quando não há respostas para problemas ainda não solucionados, é porque
a ciência ainda não o encontrou. O autismo, por exemplo, é sempre apresentado na
psiquiatria biológica como uma doença ainda não curável, porque um remédio
específico não foi descoberto. O ainda parece marcar exatamente a precisão das
respostas que estão em aberto, mas que pretendem ser fechadas num futuro
promissor.
A psicanálise, pelo contrário, partirá da fala do sujeito tomando como ponto
de partida o não fechamento do que o sujeito muitas vezes traz como um saber
consciente e consistente. E o analista sustentará exatamente a posição de não saber,
posição radicalmente diferente de um cientista.
Luciano Elia
19
demonstra que: "A ciência constitui-se como um corpo discursivo
cujo coração (o sujeito) é extraído, expelido para fora deste corpo, mas de forma alguma
16
LACAN, J. Escritos: posição do Inconsciente (1960-64). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Editor, 1998.Pg 846.
17
LACAN, J. Escritos :Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1960). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar. Editor, 1998. Pg 813.
18
MILLER, J.A. Para ler o Seminário 11 de Lacan: Contextos e Conceitos. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed.
1997.
19
ELIA, Luciano. Uma Ciência sem coração. Agora, VII. Nº 1, 1999. .Pg 49
xxxi
inexistente, de modo algum eliminado. Fora do corpo, ele pulsa, consistente, e se oferece à
apreensão discursiva para outras formas de discurso _ as chamadas ciências humanas_ que
não cessando, precisamente por serem humanas, de humanizar este sujeito, revestindo-o de
qualidades anímicas a serem investidas e investigadas pela via da compreensão (verstehen
fenomenológica por exemplo), não chegam nunca a dizer eficientemente este sujeito.
Esta citação nos convida a pensar na prática do CAPSI, quando partimos do
pressuposto de que devemos trabalhar com o coração e não com o corpo tomado em
sua dimensão biológica e social.
Lacan diz que “por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis”
20
.
Partindo desta convocação que a psicanálise nos propõe e tentando articular estas
questões com as discussões da responsabilidade do sujeito cabe-nos partir das
colocações apontadas por Lacan, para que possamos superar o engodo que o eu
tenta nos remeter o tempo todo.
Num trabalho de Neusa Santos Souza, intitulado “o eu e o sujeito:
ressentimento, culpa e responsabilidade"
21
a autora apresenta considerações
importantes neste sentido. Fala sobre o desamparo primário ao qual o eu está
submetido e sobre a tentativa desesperada que o eu tem de proteger-se através da
relação imaginária que tenta construir com o outro, convocando-o como plenitude.
Assim, quando esta completude não se apresenta o eu estabelece uma relação de
ódio com o outro, uma vez que a possibilidade de identificação não foi
correspondida. Neusa mostra que nenhum amor, nenhuma proteção protege o eu
deste desamparo primário e coloca que o ser falante está de saída sendo lesado.
Lacan diz no seminário 11 "o sujeito e o outro(I): a alienação"
22
, que se a
psicanálise deve se constituir como ciência do inconsciente ela deve partir de que o
inconsciente é estruturado como uma linguagem. Inicia falando que tudo o que o ser
humano deve aprender como homem ou como mulher tem que fazê-lo, "peça por
peça" do Outro. Aponta que não há nenhuma marca no psiquismo quanto as
equivalências de macho ou fêmea, apontando desde já uma descontinuidade do
20
LACAN, Jacques. Escritos: A ciência e a Verdade (1965-66), op.cit . Pg. 873
21
SOUZA, Neusa Santos. O eu e o sujeito: ressentimento, culpa e responsabilidade. Mimeo. Rio de janeiro,
1996.
22
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). 2ª
edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed. , 1998. Pg 194
xxxii
corpo biológico para o corpo sexual. A realização do campo sexual, não é sabida,
segundo Lacan, sendo a sexualidade instaurada no campo do sujeito por uma via
que é a da falta. Lacan apresenta duas faltas que se recobrem: Uma que é
corresponde a falha central e que corresponde a dialética do advento do sujeito a seu
próprio ser em relação ao Outro. O autor diz que o sujeito depende do significante e
que este está primeiro no campo do Outro. O significante é o que representa um
sujeito para um outro significante e este significante no campo do Outro faz surgir o
sujeito por sua significação.
Tentando explicar melhor, Lacan apresenta o que chama de primeira
operação essencial em que se funda o sujeito de alienação. Esta, segundo ele,
condena o sujeito a só aparecer nessa divisão. De um lado ele aparece como sentido,
produzido pelo significante, do outro ele aparece como afânise. O vel da alienação
se define então por uma escolha que implica necessariamente uma perda. Como ele
diz "qualquer que seja a escolha que se opere, há por conseqüência um nem um, nem
outro"
23
. No exemplo "a bolsa ou a vida!" Ele mostra que a questão da perda é
inexorável quando se faz uma escolha. Se escolhermos a bolsa perdemos a vida e
bolsa e se escolhermos a vida temos a vida sem a bolsa. Ou seja, há necessariamente
uma perda. Registra-se aqui a presença do que Lacan denominou da presença do
fator letal do vel alienante: se escolhermos o ser o sujeito desaparece.
A Segunda operação marca o que Lacan chamou de subestrutura da
interseção. Assim, se no primeiro tempo temos a subestrutura da reunião, no
segundo temos a interseção dos dois conjuntos. Esta Segunda operação inaugura o
campo da transferência e é chamada a separação.
"Uma falta é, pelo sujeito, encontrada no Outro, na intimação mesma que lhe
faz o outro por seu discurso. Nos intervalos do discurso do Outro, surge na
experiência da criança, o seguinte, que é radicalmente destacável _ ele me diz isso,
mas o que é que ele quer?”
24
. Lacan diz que o desejo do Outro é apreendido pelo
sujeito naquilo que não cola, nas faltas do discurso. Isto é interessante pensar, pois
só há o desejo quando a presença da falta aí se coloca. Mostra que a partir desta
23
idem, ibidem. Pg 200
24
idem, ibidem. Pg 203
xxxiii
dialética é possível a fantasia da própria morte, da própria perda e que na criança
esta se apresenta na sua relação de amor com seus pais.
Partimos, portanto, do pressuposto de que há uma escolha da qual o sujeito é
sempre responsável, como já citamos anteriormente. Assim, caberá ao sujeito
aceitar ou recusar este furo, que constituirá sua falha fundamental e "irremediável",
como explica Neusa Santos. O sim ou o não a este furo trará conseqüências que só o
sujeito poderá responder. A autora coloca que ser responsável é ser "capaz de
responder por um ato de escolha e suas conseqüências, escolha que a priori não é de
ninguém, mas que a posteriori, ao ser consumada, o sujeito afirma, inscreve sua
assinatura."
25
Em Freud encontramos essa noção de responsabilidade
26
quando o autor
lança a questão: "_Devemos assumir responsabilidade pelo conteúdo dos próprios
sonhos?". É interessante que ao longo do texto Freud vai mostrar que devemos nos
considerar responsáveis pelos impulsos maus dos próprios sonhos, uma vez que eles
pertencem ao próprio ser. Aqui ele aproxima as questões que temos levantado
acima: a questão do eu e do sujeito, articuladas e presentes o tempo todo. O eu não
existe sem o sujeito e vice-versa e é a partir desta consideração que Freud
demonstra que não há saída possível. O autor explica que se procurarmos classificar
os impulsos presentes em bons ou maus, temos que assumir responsabilidade por
ambos os tipos, e se por outro lado quisermos nos afastar dos sonhos como algo
desconhecido, inconsciente e recalcado também não estaremos compactuando com
o que a psicanálise propõe. Para Freud o que repudiamos não apenas está em nós
como age "desde" nós para fora. Há um id no qual o ego se assenta e a partir do qual
foi desenvolvido. Desta forma uma separação entre o ego e o id seria "irrealizável" e
retomando o ponto de partida podemos compreender que não há como operar o
sujeito da psicanálise sem operarmos com o sujeito da ciência.
A importância dessas discussões revela a necessidade de estar atento a esta
clínica em construção no CAPSI e que tem como direção a psicanálise. Percebemos
que no cotidiano do CAPSI muitas vezes somos atropelados por essa via humanista,
25
SANTOS, N . _ op. cit. Pg 8
26
FREUD, S. Responsabilidade Moral pelo conteúdo dos sonhos (1925). In Edições Standard Brasileira das
Obras Completas Sigmund Freud . Vol. XIX. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Imago, 1998. Pg 165
xxxiv
que é naturalizada por muitos profissionais deste campo. Parece que o grande
desafio deste trabalho é tentar demonstrar que há um sujeito que opera para além do
sujeito da ciência.
Embora o campo da reforma psiquiátrica tenha passado por inúmeras modificações,
ainda me parece muito incipiente a escuta clínica do sujeito nestes campos de cuidado.
Ficamos presos às concepções do campo social e surdos para o que pode advir do sujeito.
É importante dizer que os CAPS não possuem necessariamente uma orientação da
psicanálise, o que para mim aponta uma diferença radical. Assim, a contribuição da
psicanálise nestes dispositivos contará necessariamente com a participação dos
psicanalistas neste campo da reforma.
xxxv
2.1- A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E O CAMPO SOCIAL
Dissemos no texto anterior, que a psicanálise opera com o mesmo sujeito da
ciência, contudo, ela opera com esse sujeito que foi expelido da ciência. Para operar
com esse sujeito a psicanálise criou condições específicas em sua metodologia, onde
a instalação do dispositivo
da associação livre, que é a regra fundamental, produz a emergência do sujeito do
inconsciente através da repetição e da transferência. Ao estudar o conceito de sujeito
Elia
27
diz que essa metodologia criará condições de produção das formações do
inconsciente _ atos falhos, lapsos, sonhos, sintomas e chistes_ possibilitando a
emergência do sujeito na experiência psicanalítica. Sujeito esse de caráter
metafórico e pontual.
Esse autor aponta que a regra fundamental criada por Freud coloca o crédito na
palavra do analisando e não em sua pessoa e afirma que será através dela que teremos
acesso ao inconsciente. Citando em seu livro a conhecida frase de Lacan “o inconsciente é
estruturado como uma linguagem” ele demonstra como isso ocorre, convidando o leitor a
refazer o caminho de Lacan. Nesse convite Elia sugere que toda produção do sentido é da
ordem simbólica, seja ela falada ou não. Assim, um gesto, uma expressão do rosto, do
corpo, uma dança, um desenho, serão produções simbólicas regidas pelo significante e,
desta forma, verbais, por estarem na dependência do verbo significante. Não há, segundo
ele, o pré-verbal no campo do simbólico, tampouco o não–verbal, uma vez que o domínio
do verbal é uma condição inerente ao falante. Como ser de linguagem, o sujeito humano se
constitui no domínio do verbal. Essa questão é interessante, pois mesmo um paciente que
não faz uso da função da fala, como os autistas ou alguns psicóticos, está, necessariamente,
no campo da linguagem, na medida em que é ser falante, que se constituiu em um mundo
de linguagem, o humano. O dispositivo analítico assim colocado por Freud, pressupõe que
o tratamento advém da palavra do paciente, supõe um saber que emergirá a partir do
próprio sujeito.
27
ELIA, Luciano. O Conceito de Sujeito. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.,2004. Pg 18
xxxvi
A psicanálise insiste em dizer que o sujeito é constituído, não é inato. Ele é
constituído a partir do campo da linguagem, sendo, portanto, efeito deste campo. Mas o que
significa dizer isto? Elia aponta que para a psicanálise o sujeito só pode se constituir em um
ser que por pertencer à espécie humana entrará obrigatoriamente em uma ordem social
constituída. Sem essa condição, reforça o autor, o ser da espécie humana morrerá. Para a
psicanálise não há um outro contexto que não seja o do social, pois o sujeito é pensado
como social, uma vez que sua constituição está articulada a este plano.
O sujeito da psicanálise é constituído na relação com o Outro. Será este que
encarnará para o que culturalmente chamamos de bebê a função que Freud nomeou como
“ação específica”, que é fundamental para a sobrevivência do ser humano desamparado, o
recém nascido. Esse Outro não será apenas o adulto próximo, mas fundamentalmente o
adulto que transmitirá para o bebê um conjunto de marcas materiais e simbólicas
_significantes_ introduzidas pelo Outro. Para Elia são essas marcas que suscitarão no corpo
do bebê um ato de resposta chamado sujeito.
O tempo próprio ao inconsciente é o a posteriori (Nachträglich, no dizer de Freud). Em
sua experiência, o sujeito tem um encontro _ o encontro com o Outro materno, de que ora tratamos -
que se dá em determinado ponto da estrutura temporal, ou seja, em determinado momento. Só
depois, em um segundo momento, é que esse encontro poderá ganhar, para o sujeito, alguma
significação que permita que ele faça o reconhecimento de algum nível de sua constituição.”
28
Elia diz que o significado dado ao encontro com o Outro depende do significante,
entendendo que o significante convoca o sujeito, exige trabalho do sujeito em sua
constituição. O autor explica que significante é o que faz significar, mas é no encontro entre
o sujeito, ainda não constituído, e o significante que o sujeito e o Outro passam a existir.
Quando um bebê surge em um cenário o campo da linguagem já está colocado. Ele
é mergulhado neste campo muito antes de nascer. Não se trata aqui de uma herança
genética, mas de um campo simbólico que é transmitido pelo Outro na relação com o
recém-nascido. Assim, o momento da necessidade é um momento mítico, pois se nascemos
com necessidades, nunca as experimentamos pura ou diretamente sem a mediação da
28
(ibidem. Pg. 41)
xxxvii
linguagem. Este campo já está constituído, estruturado e ordenado, bem como as estruturas
sociais e culturais. Elia aponta que a vida biológica é excluída da experiência do sujeito,
que só se relacionará com ela por intermédio da linguagem, o que a modifica, a pulveriza e
fragmenta.
Essas questões que tocam no âmbito do que é o sujeito para a psicanálise e de como
ele já está, desde sempre inserido no contexto social, são muito importantes para a
construção da clínica no Capsi Elisa Santa Roza. Quando recebemos uma criança autista no
Capsi fazemos uma aposta, desde o início, de que há um sujeito que opera para além do
diagnóstico recebido. O que queremos dizer, é que o comparecimento desse sujeito só
ocorrerá se assumirmos todas as conseqüências dessa posição. Isto implica em fazer o
paciente falar da maneira que lhe for possível e fazer valer uma escuta que seja fiel aos
preceitos da psicanálise.
Um dos pontos mais caros nessa clínica do atendimento a crianças autistas e
psicóticas no âmbito público têm sido tentar discutir a partir de uma escuta da psicanálise o
que é garantido como “benefício”. Essa dicotomia proposta pelo campo da assistência
social, separando o psíquico do social têm trazido muitas questões para o CAPSI. São
exatamente essas questões que estaremos aprofundando no próximo ponto, tentando nos
perguntar onde a psicanálise se insere neste contexto, já que há uma aposta de saída no
sujeito. Alguma dimensão jurídica pode prescindir da clínica, quando trabalhamos com
psicanálise?
xxxviii
2.2- DO DIREITO AO DESEJO: QUE DEMANDA UM BENEFÍCIO?
Tenho participado de uma discussão importante no campo da reforma psiquiátrica
no diz respeito ao trabalho com crianças e adolescentes. Existe um trabalho que é o Fórum
Interestadual que é realizado uma vez por mês na Secretaria do Estado do Rio de Janeiro.
Neste muitas discussões são realizadas na articulação clínica-política. Recentemente houve
uma discussão sobre o atendimento aos pais realizados com crianças e adolescentes e foi
apontado por uma profissional da Saúde Mental que no campo Infanto-juvenil havia um
certo pudor em oferecer "o que é de direito para as pessoas". Esta questão me tocou
profundamente, pois no CAPSI temos muitos casos de crianças que chegam para o
tratamento e os pais logo nas primeiras entrevistas apontam a necessidade de obterem um
"benefício" em dinheiro. Este "é direito" das crianças que apresentam problemas
considerados de ordem mental e faz com que elas sejam aposentadas desde pequenininhas.
Assim, temos pais onde a criança tem sete anos ou menos que fazem uso deste benefício
(muitos já chegam ao CAPSI com este benefício). Mas será que o nosso trabalho em
psicanálise é prover isto? Como marcar uma escuta singular sem cair na questão primeira
de dar um benefício? Isto é uma tensão no CAPSI, pois há profissionais que acham que isto
deve ser oferecido, uma vez que a família "precisa" e outros que querem escutar o que é
este pedido primeiro, ou seja, escutar o sujeito que faz este pedido.
Se partirmos das discussões apresentadas nos textos anteriormente citados
podemos pensar que o "direito" aí colocado como lógica geral, está sendo tomado
no corpo social pautado num ideal de direitos e de ideal de criança, pois sem escutar
o que o sujeito pode dizer sobre si, isto é definido como regra básica e indiscutível.
E o que ganharíamos caindo no ideal do que é bom? Não é exatamente o contrário
que tentamos fazer em psicanálise? Como fica a questão da responsabilidade do
sujeito, quando partimos deste princípio?
Um caso muito interessante está sendo atendido no CAPSI e tentarei
exemplificá-lo para ilustrar a delicadeza desta situação. Um menino autista
contando 05 anos na ocasião de chegada no COIA (nome do ambulatório, que foi
transformado em CAPSI) foi atendido por um psiquiatra do serviço. A mãe, que
leva o filho ao atendimento apresenta uma situação extremamente miserável: diz
xxxix
não ter dinheiro para comer, sair, vestir-se etc. e solicita do psiquiatra um laudo
médico para obter um benefício. No que este nega o pedido falando que primeiro
era importante uma avaliação, esta sai e não retorna mais. O médico tenta contato,
mas este é em vão.
Depois de dez meses Inês (como chamarei a mãe), retorna com o filho
Eduardo, que é encaminhado para uma psicóloga e são iniciadas avaliações para que
um outro tipo de atendimento, além do psiquiátrico fosse realizado. Eduardo fazia
um acompanhamento com o psiquiatra, mas não tomava nenhuma medicação. Nas
entrevistas com a nova psicóloga Inês volta a demandar o benefício. Fala sobre suas
péssimas condições de vida, de "ratos do tamanho de gatos que passam pelos corpos
das crianças" (ela tem dois outros filhos e está grávida de um quarto) e de como
seria importante conseguir esta ajuda. Na história familiar há relatos de que a mãe
quando estava grávida de Eduardo tomava pílulas e usava preservativos de "tanto
que não queria outro filho" e de que ficou muito surpresa quando ao cair da laje
grávida soube que Eduardo, que estava na barriga, não havia morrido. Inês diz que
Eduardo pouco se mexia na barriga e que ela chegou a pensar que o filho nasceria
"morto". Surpreende-se ao perceber que o filho nasceu "normal". Neste momento
Eduardo fala apenas as palavras "mãe", "pai" e "Brasil" (mãe diz que gosta de
futebol).
Nas entrevistas preliminares Eduardo não dirige nenhum olhar para a
psicóloga, mantendo-se aparentemente ausente. Anda para todos os lados, sem
conseguir centrar-se em nenhuma atividade. O mesmo teve o diagnóstico de autista
quando contava quatro anos de idade, mas Inês negava este diagnóstico dizendo que
o filho era "normal". Apesar desta fala, ela conta que ele se morde e bate com a
cabeça na parede o tempo todo quando está em casa.
O pai, segundo informações da mãe, apresenta problemas na coluna e, por
isso, tem dificuldades para trabalhar como pedreiro, que é sua profissão. Também
sofre de artrite e não consegue andar em algumas situações. O pai chegou a tentar
aposentadoria, mas, segundo Inês, não conseguiu. Hoje eles vivem com uma cesta
básica, que conseguem através da matrícula do filho mais velho na escola, e de
doações de vizinhos. A mãe é extremamente jovem, tem apenas 26 anos e o
xl
companheiro tem um pouco mais que o dobro de sua idade. Moram na Cidade de
Deus, em um único cômodo.
O que chama a atenção neste caso é que num primeiro olhar não teríamos
dúvidas quanto ao fato de oferecer um laudo para o benefício. A família vive em
situações insalubres e isto é inquestionável. Contudo, no decorrer dos atendimentos
com a mãe a posição desta chamava muito a atenção. Como a situação de miséria é
extrema a psicóloga que atendia a mãe mobilizou-se muito no início do
atendimento. Desejava prontamente oferecer o laudo, mas as discussões em
supervisão apontavam situações bastante interessantes do caso. A psicóloga chegou
a oferecer endereços de locais na comunidade onde ela pudesse obter informações
para alguns tipos de ajuda no campo social, mas Inês nunca procurou esses
endereços. Algo chamava a atenção no sentido de que esta mãe desejava um
benefício que partisse deste filho. E dizia reiteradamente que este era um "direito"
que lhe cabia. Houve momentos muitos difíceis nos atendimentos, que eram
conduzidos no sentido de trabalhar estas questões com a mãe e um momento de
interrupção onde ela "mente" para a psicóloga dizendo que conseguiu um outro
lugar para obter o laudo que necessita para "melhorar sua vida".
Ao mesmo tempo em que a mãe é atendida, Eduardo também inicia o
tratamento no que alguns autores chamam de turno entre muitos
29
. As crianças
autistas não se agrupam e a proposta deste trabalho não caminha nesta direção. O
que entendemos com esta proposta é que esta organização entre muitos (são muitos
profissionais e muitas crianças e/ou adolescentes sendo atendidas no mesmo turno)
de diferentes formações, mas com a direção da psicanálise, possibilita que o
dispositivo atenda a maneira como geralmente estas crianças chegam no serviço: em
extrema atividade, andando de um lado para o outro, cantarolando, gritando,
debatendo-se, mordendo-se, etc. Algumas falam poucas palavras, mas há muitos
pacientes que não falam absolutamente nada. Oferecer um cenário múltiplo de
linguagens (diferentes formações profissionais e um espaço com várias escolhas de
29
Este ponto será melhor trabalhado no próximo capítulo desta dissertação. Trata-se de uma proposta de
atendimento psicanalítico oferecido para crianças e adolescentes autistas e psicóticas num espaço diferente do
consultório particular, por entender que a relação dual é muito invasiva para essa clientela, que não suporta
este atendimento. A proposta é que o dispositivo possa facilitar o tratamento dessas crianças e adolescentes
tão graves.
xli
opções; instrumentos, música, papel, entre outros) tem sido bastante interessante,
pois ao acompanharmos com nossa escuta esses atos, apostando que neles há um
sujeito, apreendemos sentido naquilo que tenderia a manter uma pedagogização dos
corpos, uma vez que elas chegam bastante interessadas em seus corpos, cheiros e
odores.
Para exemplificar melhor falarei sobre o atendimento de Eduardo num
desses turnos. Este chega nos primeiros atendimentos com um olhar bastante
perdido, sem fixar-se em nada, interessado apenas em entrar e sair de diferentes
salas. Ao longo dos atendimentos ele começa a escolher um carrinho vermelho e a
fazer alguns sons que nos sugerem a palavra "carro". Seu olhar após quatro meses
de atendimento já está mais direcionado e ele já consegue ficar numa única sala
brincando com alguns brinquedos que escolhe: brinca colocando-os na boca ou de
deixá-los em diferentes salas, para depois encontrá-los. Este dado é extremamente
importante neste caso, pois Eduardo já foi "perdido" uma vez. Ele "sumiu" de casa
ficando ausente por quatro dias. Foi encontrado pelos moradores da comunidade
desmaiado e hospitalizado em seguida. Talvez a cena dos carrinhos sendo deixados
e encontrados reatualize em Eduardo este episódio tão marcante e fale sobre como é
importante que em cada turno ele possa brincar de perder estes objetos. Isto é
curioso, pois ele sempre sabe exatamente onde deixa cada objeto e tem o cuidado de
recolhê-los sempre que o turno acaba.
Após a interrupção da mãe, que durou dois meses, Eduardo retorna ao
serviço, porque ela diz que ele estava sentindo falta dos atendimentos. Há um fato
bastante significativo nesta interrupção. O pai que nunca havia respondido aos
chamados da psicóloga leva o filho ao tratamento e é atendido pela profissional
neste dia. Esta, que parece bastante desejosa de dar uma resposta a toda miséria da
família encaminha o pai para a assistente social do CAPSI, com o objetivo de que
ele pudesse conseguir sua aposentadoria. Depois deste atendimento há a
interrupção. O interessante é que o pai no atendimento havia dito que o filho
entendia o que ele falava quando falava "ao contrário". Ele diz para Eduardo tirar os
sapatos, mas o que ele quer é que o filho os coloque. A psicóloga faz uma
intervenção que aponta a dificuldade de Eduardo compreender isto, mas o pai
xlii
reafirma o que disse, apesar do filho não colocar os sapatos. Percebemos em
supervisão que houve uma precipitação de atender uma demanda, que naquele
momento era muito mais da psicóloga do que do pai. Além disso, marcou-se na
entrada do pai no serviço a presença de um terceiro que talvez tenha sido
insuportável para a família. Uma outra consideração apontada foi do pedido que o
pai fez quando disse que ele fala ao "contrário". Ele realmente levou vários laudos,
mas o que ele queria de fato dizer com isso? Não será este mais um exemplo de que
atender a demanda pode impossibilitar um tratamento?
A entrada do pai marca uma diferença radical na maneira como Eduardo
chega no turno após o afastamento. Ele está visivelmente ávido por entrar no
tratamento e escolhe vários carrinhos vermelhos para brincar. Emite vários e
diferentes sons e fala três novas palavras, dentre elas "papai", pela primeira vez
mencionada no CAPSI. Quando o horário acaba ele não quer ir embora, joga-se no
chão e grita "é meu" segurando o carrinho. Falamos neste momento do tempo que
ficou ausente do CAPSI e de como precisava nos dizer que não queria ir embora.
Asseguramos que o carrinho estaria esperando por ele e após um longo tempo de
conversa ele aceita ir embora sem o brinquedo.
Trouxe este pequeno exemplo de como estas questões do benefício que a
princípio aparecem como um direito precisam ser escutadas e que elas trazem
implicações na clínica de forma extrema, uma vez que estamos trabalhando com a
responsabilidade que cada sujeito deve assumir por sua posição: sejam os pais, seja
a criança. Por outro lado pareceu-nos que foi exatamente o não atendimento da
demanda que possibilitou que Eduardo fosse reconhecido pela primeira vez como
um sujeito. Foi a primeira vez que a mãe disse que o filho sentiu falta do CAPSI.
Freud coloca uma frase muito interessante: "Recusamo-nos, da maneira mais
enfática, a transformar um paciente, que se coloca em nossas mãos em busca de
auxílio, em nossa propriedade privada, a decidir por ele o seu destino, a impor-lhe
os nossos próprios ideais, e, com o orgulho de um Criador, a formá-lo à nossa
própria imagem e verificar que isso é bom"
30
. Freud vai uma pouco mais além
30
FREUD, S. Linhas de Progresso na terapia psicanalítica (1919). In Edições Standard Brasileira das Obras
Completas Sigmund Freud . Vol. XIX. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Imago, 1998. Pg 207
xliii
dizendo que no que se refere ao tratamento analítico o paciente deve ser deixado
com os desejos insatisfeitos em abundância. Mas como a psicanálise é sempre
singular e caso a caso, Freud aponta que algumas concessões devem ser feitas de
acordo com a natureza do caso. Ou seja, em nenhum momento a psicanálise pode
cair em algo que prime por um ideal de pessoas, nem de técnicas.
O que queremos reparar quando oferecemos o benefício ratificando que este
pertence apenas ao campo do direito? Por que a mãe de Eduardo coloca que é
“direito” dela ter um benefício deste filho? Quais as implicações disto para o
sujeito? Por que a falta do CAPSI só pôde ser percebida por esta mãe na falta
provocada pela ausência de um benefício?
Apresentaremos um segundo caso onde essa questão do benefício se coloca, para num
segundo momento retomarmos mais profundamente essas questões.
Bruno, um adolescente com 12 anos iniciou o tratamento no COIA quando tinha 8
anos de idade. Um Hospital da cidade o encaminhou com diagnóstico de “autismo”.
Bruno nasceu prematuro com 8 meses de gravidez. Andou com 2 anos e falou
somente aos 5 anos. Mãe diz ter procurado atendimento na época para saber o que ocorria
com seu filho, mas não conseguiu ser atendida. Relata gravidez difícil, pois teve problemas
de hipertensão e “não aceitava” o filho. Coloca que não sabia se queria ter filhos, tinha
dúvida, pois “não queria parar de trabalhar”. Contudo, “aconteceu” e ela parou de trabalhar.
A mãe morava no Ceará e quando o então namorado veio trabalhar no Rio ela, que estava
grávida veio também. Conta que o Rio era muito diferente do que imaginava, pois é uma
cidade muito “agitada”. “Lá era calmo e aqui tem muita violência”. Morou inicialmente na
Rocinha e diz que foi muito difícil. Nunca havia morado numa favela, mas era “o que o
marido podia pagar”. Após alguns meses o casal foi para um uma favela no bairro de
Jacarepaguá “muito mais tranqüila”. Relata que não só ela, mas o marido teve dificuldades
em se adaptar ao Rio. O marido possui parentes na cidade, mas ela deixou todos no norte e
sofreu muito com a distância. “sentia solidão” e “chorava muito de saudade”.
Nas primeiras entrevistas Lucia, mãe de Bruno, diz que ele não interage com outras
crianças, nem mesmo com seus irmãos mais novos. “Sempre brinca sozinho”. “Tem mania
de ventilador”, “recorta figuras de ventilador e guarda”.
xliv
O nome do filho, que é muito diferente
31
foi dado por um tio do pai. A mãe não sabe
dizer por que o tio escolheu este nome, só sabe que ele queria que iniciasse com a letra E.
para “não perder a tradição”. O curioso é que esse tio não colocou o nome do próprio filho
com esta inicial. Lúcia acha o nome do filho “diferente” e o chama pela segunda parte do
nome (ela divide o nome, abreviando) porque acha “mais fácil de falar”. Os irmãos mais
novos tiveram os nomes escolhidos pelos pais e a letra inicial dos dois é M. Ela diz que
“rompeu a tradição” após a gravidez de Bruno.
Bruno chega ao COIA medicado pela psiquiatra do Hospital Lourenço Jorge e
quando inicia o tratamento psicológico esta medicação é retirada pelo psiquiatra.
Um episódio interessante é contado pela mãe nas entrevistas preliminares. Ela diz
que o filho quando tinha um ano e meio chorou de um jeito diferente. Um choro que ela
chama de “específico”. Relata que a madrinha de Bruno estava grávida e numa visita à casa
a madrinha mostrou o quarto do bebê que estava para chegar. Ela estava “arrumando” o
quarto do bebê. Lúcia conta que logo que Bruno viu a madrinha arrumar o quarto do bebê
“sentiu ciúmes” e começou a chorar muito de um jeito que até hoje chora, um choro
“específico”, “choro de ciúmes”. Bruno não gosta do primo, briga sempre que o encontra e
a mãe acha que é por isso.
Após um ano de atendimento Bruno começa a brincar com os irmãos e gosta de
colocar voz em bonecos. Brinca com o barulho da gasolina entrando no carro. Suporta ficar
no atendimento sem pedir para ir embora. Gosta de brincar com jogos que montam o corpo
humano e fala em voz alta enquanto monta: “mãos, pés, camisa...”. Brinca com massinha
de fazer “postes de luz”, que fiquem bastante firmes, “sem cair”.
O atendimento individual permanece até o término da residência em saúde
mental da psicóloga que o atendia. Nesta ocasião, quase dois anos de atendimento,
Bruno está muito mais comunicativo em casa e na escola. Para vir aos atendimentos
veste-se sozinho, toma banho e acorda sem que a mãe precise falar com ele. Mas
nos outros espaços, como a escola, Bruno não faz nada sozinho.
O atendimento entre muitos é proposto para Bruno. Quando sou apresentada para Bruno
este começa a jogar bola para mim na sessão e me oferece depois uma bala. Não joga
31
Todos os nomes apresentados neste trabalho são fictícios.
xlv
mais a bola para a antiga psicóloga, mas só pra mim, marcando em ato a passagem do
que vinha sendo trabalhado em palavras. Continua fazendo enormes avanços clínicos.
Consegue se relacionar com alguns adolescentes durante o turno, joga bola, ping-pong,
mostra-se preocupado com um outro paciente quando este falta ao atendimento. Na
escola participa dos jogos olímpicos e já ganhou algumas medalhas. Bruno sente-se cada
vez menos invadido pela presença de outras pessoas no turno. Muitas vezes prefere ficar
sozinho em uma sala, ou consegue por poucos minutos estar em alguma atividade com
um técnico ou paciente, mas mantém a mesma disposição para vir ao tratamento toda
semana, se arrumando sozinho e aproveitando os espaços que o CAPSI oferece.
O atendimento com a mãe foi iniciado assim que Bruno iniciou no atendimento entre
muitos. Foi oferecido um atendimento semanal, que a mãe aderiu no início com bastante
freqüência. As questões eram sempre vinculadas ao filho e ao atendimento. Lúcia trazia
dificuldades com relação ao modo como abordar com Bruno o fato dele querer andar nu
pela casa como se ainda fosse um bebê. Ela chega a dizer isso. “Eu acho que ele pensa
que ainda é um bebê”. Ao estranhar essa frase e colocá-la para falar mais sobre ela há
visivelmente uma dificuldade nesta mãe em impor alguns limites no filho. Após vários
atendimentos ela consegue dizer para ele não andar mais nu pela casa, pois os pêlos já
estão crescendo. Conta com um certo espanto que o pênis do filho também já está
grande. O pai foi chamado várias vezes, mas só veio uma vez. Diz que tem muito
trabalho e que a mulher já está indo: “pode contar para ele depois”.
Após aproximadamente um ano de atendimento a mãe de Bruno me pede um laudo para
fazer o pedido do benefício. Apesar do marido trabalhar e ela também trabalhar
esporadicamente: fazendo faxina, lavando roupas para fora, esse pedido chega como
xlvi
algo que vai facilitar a vida difícil que levam. Eles possuem uma vida simples, mas a
casa é própria e se sustentam com o trabalho do marido que é garçom. Sugiro que
possamos conversar mais sobre isso e recorrentemente aparece no discurso uma
preocupação com o filho adulto, sobre a impossibilidade de trabalhar, viver como os
outros. A mãe seguia falando e depois de algumas semanas uma fala do marido é
bastante contundente. “É bom ser ajudado, disse ele à mulher, mas aposentar crianças eu
não concordo. O Estado não deveria dar esse benefício para as crianças”. Esta fala do
marido fez com que a demanda do benefício não se colocasse mais como uma prioridade
para a mãe, que começou a sustentar que até os 18 anos do filho muita coisa podia
acontecer.
Apresentar o caso desse menino que está fazendo inúmeros progressos clínicos, onde a
família é simples, mas que a partir do atendimento da mãe a questão do benefício pôde
ser recolocada é muito importante, pois caminha na direção de que é preciso responder a
uma demanda com o atendimento e não com um benefício.Mas como fazer com que pela
via da demanda haja um trabalho para que o sujeito possa melhor dizer sobre seu desejo?
Recorreremos novamente ao estudo de Elia já citado neste capítulo, uma vez que para
falar da demanda e desejo retomaremos alguns pontos que já foram comentados. O
primeiro deles é sobre a constituição do sujeito para a psicanálise, que como já foi dito
não é inato. Mesmo onde a experiência de um recém-nascido com relação às suas
necessidades vitais pareceria puramente biológica, já foi inserido neste campo, junto
com o leite que é fornecido ao bebê, o campo da linguagem. Quando a mãe atribui um
sentido para o desconforto do bebê, a necessidade, enquanto tal é perdida para o sujeito
traduzindo-se em termos significantes como dor, fome, frio, etc. O primeiro circuito de
xlvii
satisfação da primeira necessidade do sujeito já é marcado pelo significante, ou seja, já
se coloca em termo de demanda, e o desejo já incide aí impossibilitando a colagem da
demanda com a mensagem que responde a esta demanda.
Para Lacan a necessidade deve ser traduzida em termos de linguagem, e deve ser
transcodificada pelo Outro da criança, em demanda. O Outro é a fonte, o engendrador e o
pólo de endereçamento da demanda. Para além do atendimento da necessidade, a demanda
visa fundamentalmente o Outro enquanto tal, enquanto capaz de amar, já que o amor
nomeia o movimento pelo qual o Outro codifica em linguagem e atende (em ato) a
necessidade da criança, transformando-a em demanda. A demanda visa o Outro, mais
especificamente o amor do Outro. O sujeito deve alienar-se na demanda do Outro a fim de
sobreviver e constituir-se como sujeito.
A alienação do sujeito na demanda do Outro é antes de tudo uma alienação nos
significantes do Outro, visando principalmente o sentido e o amor, mas é nas margens
desses significantes que o desejo encontrará seu lugar. O desejo, portanto, se inscreve nas
margens da demanda, e esta, assim, é condição de possibilidade do desejo.
Freud já havia precisado a passagem do objeto da necessidade para o objeto do
desejo, ao colocar que na experiência psíquica está registrada a experiência de satisfação da
necessidade. Dizer que o sujeito registra, representa esta experiência, é dizer que ele a
perde como natural. Freud diz que o psiquismo procurará reencontrar o objeto segundo as
linhas em que ele foi registrado psiquicamente. Ele denomina essa busca como desejo.
Lacan diz que o desejo só se constitui a partir da demanda, suportado nos pontos de
opacidade de sua significação. A partir dessa direção ele convoca o analista a escutar essa
demanda, exatamente nesse ponto que o sujeito não sabe dizer o que esta demandando.
A demanda não é explícita, diz ele, é muito mais que implícita, ela é oculta para o
sujeito. É como algo que deve ser interpretado e nisto reside a ambigüidade. Quando
respondemos à demanda inconsciente no plano de um discurso concreto caímos na
armadilha de achar que o sujeito deveria se satisfazer com nossa resposta
“Todo modo prematuro da interpretação é criticável, na medida em que esta compreende
depressa demais, e não percebe que o que há de mais importante a compreender na demanda do
xlviii
analisado, é aquilo que está para além dessa demanda. É a margem da incompreensão, que é a
mesma do desejo. É na medida que isso não é percebido que uma análise se fecha prematuramente,
em suma, fracassa.”
32
Na clínica nos deparamos com mães, particularmente mães das crianças autistas que
parecem não permitir que sua demanda seja insatisfeita. Trazem a demanda como uma
exigência a ser cumprida, como uma dívida que o Estado tem com elas. Elas “entendem”
tudo sobre o filho, “sabem” tudo, não abrem espaço para que a criança possa demandar
algo de diferente, no que a criança responde ativamente neste lugar petrificado do
significante autista. Cabe inclusive perguntar se elas conseguem possibilitar aos filhos um
lugar de sujeito de desejo, que possam abrir a possibilidade de se deparar com o não saber.
Parece que isto só começa a ser possível a partir do tratamento. Quando a criança pode
deixar de ser só “autista”, “louca”, “estranha” passa a ganhar outros significantes que a
façam passear pelo discurso da mãe. Isto é raro, mas na nossa experiência tem sido possível
esse trabalho, a partir do momento em que colocamos os pais para falar desse filho preso ao
lugar de seu objeto.
Assim, não se trata de não querer que as mães demandem o campo do benefício,
mas de precisar que colocar um paciente para falar sobre sua demanda é condição
fundamental de trabalho, para que o desejo possa aparecer. Tomar o benefício como um
significante que só deve ser entendido em sua relação com um outro significante e não um
sentido em si, parece importante, para que não haja a petrificação do sujeito autista nesse
significante chamado “benefício”, quando este é entendido como um atributo universal de
uma incapacidade de tornar-se sujeito.
Lacan nos mostra que na análise o que está em questão é a emergência da
manifestação do desejo do sujeito e que a dificuldade das relações da demanda do sujeito
com a resposta que lhe é dada se situa mais adiante, num ponto absolutamente original.
Tudo aquilo que é, no sujeito que fala, tendência natural, tem que se situar num mais-além
e num aquém da demanda. Num mais-além que é a demanda de amor e num aquém que
chamamos desejo.
32
LACAN, J. O Seminário, livro 8: a transferência 1960-1961. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. Pg 208
xlix
A demanda mais simples, diz ele é a demanda oral. A demanda oral é a demanda de ser
alimentado, que se dirige a este Outro que espera.Toda demanda, pelo fato de ser fala,
tende a se estruturar no fato de que ela atrai do Outro sua resposta invertida. A demanda
de ser alimentado responde, no lugar do Outro, a demanda de se deixar alimentar. É no
próprio modo de confrontação entre as duas demandas que jaz esta hiância, onde se
insinua a discordância , o fracasso pré-formado do encontro.
No encontro da demanda de ser alimentado com a demanda de deixar-se alimentar,
manifesta-se que esta demanda é transbordada por um desejo: a) que ela não poderia ser
satisfeita sem que esse desejo se saciasse ali; b) que é para que esse desejo que
transborda a demanda não se sacie que o sujeito tem fome; c) que a extinção ou o
esmagamento da demanda na satisfação não se poderia produzir sem matar o desejo.
A ambivalência primeira, própria a toda demanda é que o sujeito não quer que ela seja
satisfeita. O sujeito visa a salvaguarda do desejo.
E o que é esse desejo? Pergunta Lacan. É que a demanda oral tem um outro sentido além
da satisfação da fome. Ela é demanda sexual. Ela é em seu fundo canibalismo e
canibalismo como diz Freud nos “Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade”, tem um
sentido sexual. A libido sexual é um excedente que torna inútil toda satisfação da
necessidade. A escolha dos alimentos que queremos comer é um exemplo disso e coloca
a especificidade da dimensão do desejo.
É somente no interior da demanda que o Outro se constitui como reflexo da fome do
sujeito. O Outro, portanto, não é apenas fome, mas fome articulada, fome que demanda.
E o sujeito está dessa maneira aberto para se tornar objeto, mas de uma fome que ele
escolhe.
l
A demanda na fase anal é a demanda de reter o excremento e funda alguma coisa
que é o desejo de expulsar. Há uma exigência por aqueles que educam a criança. É
demandado ao sujeito dar alguma coisa que satisfaça, que tenha aprovação geral. Não se
trata da relação entre uma necessidade e sua forma demandada, mas da disciplina da
necessidade, e a sexualização só se produz no movimento de retorno à necessidade. O
excremento assume um caráter de presente, legitima a necessidade como dom à mãe,
que espera que a criança satisfaça suas funções. O sujeito só satisfaz uma necessidade
para a satisfação de um outro, para dar prazer ao Outro.
Lacan diz que o presente excrementício faz parte da temática mais antiga da análise. O
campo da dialética anal é o verdadeiro campo da oblatividade, que segundo ele é uma
fantasia obsessiva. “Tudo para o outro” essa é a fantasia do obsessivo, e é isso que ele
faz para que o outro se mantenha na existência.
O autor diz que a raiz dessa questão está no fato de que a fase anal se caracteriza pelo
fato de que o sujeito só satisfaz uma necessidade para a satisfação de um outro. Essa
necessidade ele foi ensinado a retê-la para que ela se funde, se institua unicamente como
a ocasião da satisfação do outro, que ele chama de educador. A satisfação da
maternagem, da qual faz parte a higiene anal, é inicialmente a do outro. Ela é
demandada como um dom e é por esse motivo que a oblatividade está -ligada a esfera de
relações na fase anal.
O desejo vem nessa situação ser simbolizado por aquilo que é suprimido na operação,
ele vai “literalmente à merda” como diz Lacan. A experiência do sujeito como aquele
que vai embora para o buraco pode ser reencontrada na experiência analítica como
ligada à posão do desejo anal. Isso para o autor constitui ao mesmo tempo o ponto de
li
atração e evitação e sugere desconfiar das análises que ainda não encontraram este
termo, enquanto não observaram o ponto fundamental do sujeito como desejo com o
objeto mais desagradável. Se não encontraram este ponto não deram um grande passo na
análise das condições do desejo, uma vez que esses são primitivos objetos orais, bons ou
maus e tem muito valor na experiência clínica.
É na relação anal que o Outro como tal assume plenamente o domínio. E é isso que faz
com que o sexual se manifeste no registro próprio a essa fase.
Lacan coloca que na fase genital o desejo deveria aparecer como algo que não se
demanda, como algo que merecesse ser chamado, de desejo natural sendo, portanto, o
desejo sem o revestimento da demanda. Contudo, o autor diz que isso é impossível, uma
vez que já tivemos a demanda oral e anal como antecedentes da fase genital. Ou seja,
não saberemos nunca dizer sobre esse desejo natural em sua forma mais crua, e nunca
teremos um desejo natural.
Se nas fases oral e anal o sujeito é convocado a dar o que tem, sua própria carne, seus
excrementos, na fase genital ele é chamado a dar o que não tem. Lacan diz que amar é
dar o que não tem, pois o sujeito oferece seu querer, oferece o que ele também não tem,
uma vez que também está buscando. A falta se apresenta sem que a ilusão de uma
completude seja possível, como ocorria nas fases anteriores, ela se institui como um
enigma que nem o Outro, nem o sujeito, sabem dizer. O sujeito se depara com o vazio
do saber, quando aparece o desejo sexual, se depara com a castração.
Elia coloca que o primado do falo pretendeu dizer, que o simbólico já era inconsistente
desde o início. Ele, que é o regente da sexualidade infantil, é a condição simbólica de
toda inscrição pela via do recalcamento no inconsciente, é o ponto de sustentação do
lii
sujeito em face ao Outro, ponto de partida de seu processo de constituição. Mas ao
sujeito é dado um ir além do falo, que não é ir para um outro primado, pois trata-se de
um furo radical, ponto de inconsistência, que é o genital.
Assim, o genital em psicanálise não é uma ordem consistente, mas o furo na aparente
consistência -fálica- do simbólico, e também o ponto em que o falo se ancora como
significante garantindo essa mesma inconsistência. Ele é o ponto real que faz furo no
simbólico, que se situa para além do primado do falo.
“Foi, no entanto preciso, ao sujeito, dar um passo, o passo do luto do falo, para que ele pudesse dar-se
conta disso. Do ponto de vista do sujeito, enquanto sustentado na significação fálica, o simbólico
consistia, e, desde este lugar era-lhe necessário fazer alguma coisa a mais para atingir a “genitalidade”.
Quando faz alguma coisa - que vem a ser exatamente o luto de sua posição enquanto fálica, portanto um
fazer a menos, uma perda – o sujeito percebe que não havia nada a fazer a mais. A posição fálica já era o
lugar da castração, com a fundamental diferença de que supunha, desde este lugar, que lhe era preciso
atingi-la. O passo a mais que a posição “genital” tem em relação a posição fálica é, portanto, um a menos
a ser deduzido pelo sujeito, numa palavra a ser subjetivado
.”
33
O genital não é, portanto, uma etapa na maturação biológica a ser atingida, pois não se
trata disso. Não é uma fase mais elaborada, trata-se, antes de tudo, de se deparar com o
buraco do desejo, com o que não há de recurso no Outro, com a própria castração.
33
ELIA, Luciano. Corpo e Sexualidade em Freud e Lacan. 2ª edição. Rio de Janeiro. Uapê, 1995, pg92.
liii
O encontro com o sexual em psicanálise aponta esta dimensão. O sexual em Freud não é
tomado como natural, ambiental ou cultural, resulta, como diz Elia, de um encontro da
matéria viva do corpo humano, com um desejo que lhe era de saída exterior. A
sexualidade para Freud é constituinte, pois o sujeito deriva das incidências do sexual
sobre um corpo que nasce entre sujeitos. O sujeito advém, se constitui na e pela
sexualidade.
Mais uma vez retomando a clínica com as mães de crianças autistas, é curioso perceber
como no discurso o benefício se coloca como algo que vai preencher, compensar uma
perda de algo que elas ainda não puderam falar. Ele é falado como um ideal a ser
conquistado, como um ponto que trará a felicidade. Tudo está ruim, mas se tivesse o
benefício...é importante apontar algumas questões que particularizam essas mães:
geralmente, os pais são colocados e se deixam colocar nos “colchonetes” dos quartos.
Ficam fora da relação entre a criança e a mãe, que passam a se constituir como um casal
inseparável. A relação sexual que fez com que uma criança nascesse é anulada do
cenário desses casais, que não vivem mais como casais. O sexual é colocado para fora da
casa, reaparecendo no corpo da criança, mas destituído de seu caráter sexual, como se
retirassem da criança qualquer indício do sexual. Assim, a masturbação não é “vista”,
mesmo quando as crianças circulam pela casa nuas e brincando com seu sexo.
Se apontamos que para a constituição de um sujeito o sexual é ponto de partida, como
deixar de considerar a dimensão do desejo em cada pedido de benefício, uma vez que de
saída ele já aponta um anseio de fechar, de tamponar aquilo que talvez fosse um
primeiro ponto de angústia para um sujeito diante da castração? Não estaríamos indo na
direção contrária a da possibilidade de fazer emergir um sujeito?
liv
Elia diz que é só quando totalmente esvaziado da possibilidade de conferir algum
benefício que um ato do sujeito pode efetiva e rigorosamente constituir-se como um ato de
desejo. Esta é uma questão importante, pois nos incita a situar cada pedido de um benefício
num campo particular, subjetivo, que só a psicanálise se propõe a fazer, uma vez que é a
única que inclui em sua própria estrutura um ponto de não saber naquilo que é demandado
pelo sujeito. Este ponto, do trabalho com os pais considerando a dimensão do não saber, de
uma verdade que nunca poderá ser completa, pois desde sempre ela é incompleta é
fundamental para ouvir a questão do benefício. Refere-se ao fato do sujeito ter que se haver
com seu desejo, e que para isso terá que se haver com a demanda, terá que passar “pelos
desfiladeiros da demanda” para só depois falar sobre seu desejo. O pedido do benefício
deve ser algo que o sujeito necessariamente se implique, que sua responsabilidade seja
colocada e, por isso requer um trabalho de elaboração psíquica, onde o sujeito primeiro
precisa se deparar com uma falta que lhe é constituinte, pois o desejo, ao contrário da
demanda, não visa manter o Outro completo, capaz de prover e amar o sujeito, uma vez que
ele se sustenta na impossibilidade de satisfação.
lv
2.2.1 - A ARTICULAÇÃO DO BENEFÍCIO E O NOME-DO-PAI
Ao longo deste trabalho temos tentado problematizar o que no discurso da
saúde mental é tomado como algo natural: a concessão de benefícios em dinheiro
para pacientes portadores de “deficiência”.
34
Observamos na clínica que o pedido
realizado pelos pais das crianças autistas e psicóticas não são incluídos no trabalho
como uma demanda, mas como uma exigência a ser cumprida já que estão
amparados pelas leis do direito da assistência social. Como trabalhar de forma
particular com o que nos chega como geral? Este é um desafio que inclui todos os
pedidos, inclusive o do benefício.
É comum que os pais solicitem, logo no primeiro atendimento, um
“benefício”, que é um salário mensal conseguido a partir de um laudo
médico e muitos profissionais oferecem este laudo sem questionar as
implicações clínicas para os casos que atendem. O que pretendo sustentar
é que o pedido do “benefício” seja escutado a partir do campo da
psicanálise como uma demanda que exigirá um trabalho do sujeito. Os
pais referem-se ao benefício como a “felicidade” que faltava enquanto
que, por outro lado, nada falam sobre a gravidade dos filhos. Em geral a
questão do benefício é o único ponto de angústia, que não aparece em
relação aos outros aspectos do quadro do filho, no entanto muito graves.
Trabalhar essa questão, portanto, é fundamental para que o trabalho
clínico possa ser iniciado.
A dimensão inaugural que a falta do benefício apontou em alguns
casos do CAPSI como uma primeira falta, como um ponto de vazio, de
não saber, me fez pensar sobre a importante articulação do benefício e o
Nome-do-Pai. O benefício como um significante que aponta uma
possibilidade de falta em casos onde isto não se coloca, como nos dois
34
LOAS. Lei Orgânica da Assistência Social. Legislação Suplementar. 2ª edição. Brasília- DF, Agosto,
2001.pg. 8
lvi
exemplos que trouxemos neste trabalho. No primeiro caso apresentado ele
marcou a possibilidade da inserção do pai, que efetivamente só
compareceu ao tratamento porque o benefício não foi concedido e onde a
criança pôde pela primeira vez ser vista pelos seus pais como um sujeito.
No segundo caso, uma fala do pai sobre o benefício retorna na voz da mãe
em análise como uma falta reveladora de novas possibilidades para o
filho.
Temos aqui dois pontos importantes: O benefício como demanda pré-genital de
assistência, fundada na lei social, e o trabalho clínico como via capaz de levar o sujeito
desta demanda, os pais, como exemplificados nos casos clínicos, ao nível do desejo,
fundado na lei da castração do nome-do-pai.
Se o benefício for tomado como um significante, que não deve trazer em si já um
significado, mas fomentar a abertura de uma capacidade de trabalho com esses pais que
não devem ser atendidos em sua demanda enquanto uma exigência, mas serem
convidados a seguir um caminho que aponta para uma lei que não é a do gozo absoluto,
estaremos no caminho da psicanálise, pois não se trata de negar ou conceder o benefício,
mas trabalhar analiticamente com a demanda que chega. Em nenhum trabalho analítico a
demanda é prontamente atendida, pois requer um percurso que implique o sujeito nisto
que ele pede. Da mesma forma não cabe achar que os sujeitos já vão chegar no nível da
castração, mas que possam passar ao nível da lei do nome-do-pai, que requer o trabalho
analítico justamente sobre a demanda tal como ela chega.
Conforme assinala Elia, Freud marcou uma disjunção da natureza com a cultura
quando criou o mito do assassinato do Pai da Horda primitiva. Ele diz que como sujeitos
procedemos de um ato, um assassinato, que nos arranca da natureza, que nos faz culpados,
sem que tenhamos matado Pai algum que fosse encontrado. Matamos o Pai natureza e, por
lvii
esse ato ingressamos na cultura. Carregando uma espécie de “buraco em nossa alma”. Esse
buraco significa, segundo o autor, que é só por uma falta no nível do ser, do ser vivo,
natural, que o sujeito tem a condição de emergir como tal. Essa falta fundadora do sujeito
não se produz por si mesma, nem por um processo cultural, ela requer o ato constituinte do
sujeito para se fazer como falta. O paradoxo é que a falta é fundante do sujeito, mas em
contrapartida, requer o ato do sujeito para se fundar como falta. Só há falta no nível do ser
se houver sujeito, e o sujeito é o correlato ativo da falta. Para a psicanálise a falta é
fundacional, é o que nos faz sujeitos na cultura e não da cultura.
Lacan diz que o Nome-do-Pai é o significante primordial. Ele não é o pai biológico,
mas diz respeito a uma “função paterna”. É ele quem vai instaurar a falta na relação da
criança com a mãe, que criará um abismo impossível de ser preenchido, por maior que
sejam os esforços da criança e da mãe. É a partir dele que a falta será possibilitada e onde
todas as amarrações que estruturam o universo simbólico serão constituídas.
Estamos sustentando que o benefício pode ser tomado como um significante que
causa um abismo em mães de crianças autistas, pois em alguns casos clínicos do CAPSI ele
é o primeiro ponto que remete à castração da mãe ou de quem ocupa esta função.
O pai intervém em diversos planos. Mas o fundamento, o princípio do complexo de
Édipo é de que o pai interdita a mãe. É aí que o pai se liga à lei primordial da proibição do
incesto. “É por toda a presença, por seus efeitos no inconsciente, que ele realiza a interdição
da mãe”.
35
O vínculo da castração com a lei é fundamental. Na clínica Freud observou que
a relação do menino com o pai é dominada pelo medo da castração. Há uma proibição do
pai que incide sobre a mãe, que faz com a mãe relativize seu olhar sobre a criança, tomada
neste ponto como seu objeto. Quando o olhar da mãe pode estar em outro lugar que não só
na criança, quando esta deixa de ser o objeto de seu zelo, de seus desejos e satisfação, aqui
identificada como a satisfação de um gozo de completude e, portanto, absoluto, temos a
entrada de uma lei que instaurará o desejo, que possibilitará a emergência do desejo, de um
sujeito que deseja.
Nas crianças psicóticas há um fracasso desse fundamental ponto de amarração. Ela é o
resultado, como diz Lacan, do fracasso em assimilar um significante “primordial, que
35
LACAN, Jacques. O seminário, Livro5: As formações do inconsciente (1957-1958). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed.,1999. Pg175.
lviii
estruturaria seu universo simbólico, ficando o restante dos significantes condenados a
“navegar à deriva”
36
. Há nesses casos uma enorme dificuldade de separação, pois a falta
constituinte não foi aí instaurada. Uma mãe em um dos atendimentos, quando questionada
sobre sua presença “física” sempre colada ao corpo do filho, disse: “_eu sou a sombra
dele”, justificando que ele não podia ficar sem ela e vice-versa. Seus olhos pareciam
testemunhar que ele não podia existir sem sua ininterrupta vigilância.
A partir dessas considerações, concluímos dizendo que o benefício não pode ser
reconhecido apenas como um bem social que trará a “felicidade”, mas nele deve ser
incluída sua dimensão de falta que o articula à metáfora paterna, quando tomado na direção
de um trabalho analítico. A falta como um furo radical, como algo que aponta para a
castração, que não tem respostas, nem pode tamponar uma angústia torna-se condição sine
qua non em crianças tão gravemente comprometidas, onde a concessão de um benefício
pode aprisioná-las num lugar de objeto e de gozo para os pais.
Se na clínica do CAPSI desejamos que um sujeito possa ser escutado como sujeito do
inconsciente precisamos ir além da lei social, pois de outra forma estaremos excluindo a
possibilidade de surgimento de um sujeito. Estaremos no caminho da exclusão subjetiva
quando generalizamos as demandas e não as tomamos caso a caso.
Só a psicanálise inclui a falta em sua estrutura e o não saber como condição de
trabalho analítico. Por isso, é a psicanálise que proponho como a única clínica que fará uma
escuta do sujeito e que incluirá a Lei do desejo como a Lei das leis situando o sujeito como
responsável pela sua existência.
36
FINK Bruce. O sujeito Lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
Pg.78
lix
3- O CAPSI ELIZA SANTA ROZA: A CONSTRUÇÃO DE UMA CLÍNICA
Resumo: Neste capítulo pretende-se apresentar como a prática ocorre no CAPSI Eliza Santa Roza:
seus impasses e esforços no que concerne ao atendimento clínico neste dispositivo
.
Como apontado no primeiro capítulo deste trabalho, a necessidade
de implementar novos dispositivos de saúde mental na área da infância e
adolescência está em constante discussão nos dias atuais. A partir da
experiência na rede pública de saúde ficou constatado que os dispositivos
clínico-institucionais de atendimento ambulatoriais e internações não
eram suficientes para lidar com a complexidade do adoecer psíquico,
podendo trazer, como no caso das internações, efeitos nefastos para o
paciente.
O CAPSI Eliza Santa Roza foi idealizado a partir da necessidade
de que crianças e adolescentes psicóticos, autistas e neuróticos graves do
território pudessem ser atendidos num espaço de tempo maior do que o
oferecido pelo ambulatório, por serem casos que requerem uma atenção
contínua, com uma freqüência maior que a oferecida pelos consultórios
do Serviço Público de Saúde. Um outro motivo que fez com que este
projeto fosse implementado era a própria demanda, uma vez que não
havia nenhum serviço que atendesse a esses pacientes, o que justificava
essa necessidade.
A ênfase apontada no documento da Secretaria Estadual de Saúde,
que versava sobre a reestruturação do COIA em serviço de atenção
diária e em ambulatório especializado foi condição sine qua non para esta
construção. A constituição de uma rede de atenção psicossocial que
lx
prima por seguir os preceitos da Reforma Psiquiátrica tem sido
importante para que as mudanças efetivamente ocorram.
A proposta do atendimento do Dispositivo Analítico Ampliado foi trazida pelo
supervisor do CAPSI. O Dispositivo é uma intervenção que se propõe num espaço clínico
ampliado, onde todos os espaços do CAPSI são tomados como lugares onde a clínica pode
ocorrer: sala, pátio, corredor, entre outros. É uma prática feita entre muitos técnicos e entre
muitos pacientes, o que não significa um agrupamento, mas a permanência desses
profissionais e pacientes no mesmo espaço físico acompanhando o percurso a ser
construído por cada paciente. Ele marca a possibilidade do atendimento às crianças autistas
e psicóticas neste dispositivo da saúde mental a partir da direção da psicanálise. É a partir
da clínica, do caso a caso, que este trabalho está sendo construído, não sem dificuldades,
mas com muita persistência.
Nos quatro anos de experiência desse trabalho com crianças e adolescentes autistas
e psicóticas temos observado, a partir dos casos clínicos, o quanto essa intervenção é mais
interessante para esses pacientes, que já chegam no CAPSI trabalhando psiquicamente e
onde seus atos
37
(gesticular, gritar, andar, emitir sons), já são tentativas de barrar a angústia.
No caso da criança autista há a ausência da fala e esse dispositivo tem sido muito
interessante nesses casos, porque há uma aposta de que este ato, aparentemente sem
sentido, já quer dizer alguma coisa sobre aquela criança. É muito comum as mães das
crianças autistas dizerem que a criança não quer dizer nada com os movimentos que faz,
“que é assim mesmo”, que “não adianta falar com ela, porque ela não entende” e parece-
nos importante poder oferecer nesses casos já um primeiro sentido, lá onde a mãe diz não
existir “nada”. Desta forma, ocorre já num primeiro momento uma possibilidade de
intervenção no ato mesmo da criança.
Os atos da crianças são tomados como “agressivos” pelos pais/responsáveis sem que
haja uma possibilidade de incluir um estranhamento, uma associação com algo
desconfortável que a criança viveu, como se essa agressão nascesse com ela, fizesse parte
37
O ato aqui deve ser entendido como significante, “que é aquilo que não tem sentido quando aparece, mas
que poderá produzir o sentido no devir mesmo de sua seqüência sobretudo se for tomado nessa perspectiva”.
Luciano, Elia. O Sujeito demasiado visível no autismo
. Trabalho apresentado na I Jornada Clínica da Sede Rio
LAEP, realizada no dia 11 de dezembro de 2004 no Museu da República (Palácio do Catete), Rio de Janeiro,
pg2.
lxi
dela, como se os pais ou outros acontecimentos não tivessem nenhuma participação na
história relatada. Nesses casos parece importante oferecer uma outra condição de escuta
para esse ato, criando um sentido diferente do que já existia, oferecendo uma outra
possibilidade de resposta.
Se no consultório um paciente autista pode se sentir invadido pela presença de um
analista, suportando ficar pouquíssimo tempo na sala com este, no trabalho entre muitos
observamos que esta presença ameaçadora fica diluída, podendo o paciente escolher ir
para um outro lugar do CAPSI, onde possa ficar sozinho, ou ainda confortar-se com um
outro profissional, criando uma situação que o ameace menos. Temos experiências
desses casos, que eram atendidos individualmente nos ambulatórios: muitos não
suportavam entrar na sala sem a presença da mãe, ou ficavam poucos minutos afastados
dela. A importância dessa questão não diz respeito apenas ao tempo cronológico, mas ao
tempo psíquico destes pacientes, que mostram-se plenamente colados à presença da mãe.
A mudança da direção do trabalho tornou possível uma primeira separação das crianças
de suas mães e hoje observamos que elas conseguem ficar entre outros por algumas
horas e afastadas sem que isso constitua uma ameaça, o que já é um dado clínico
importante nessas crianças que não realizaram a separação psíquica de um Outro,
encarnado muitas vezes na presença da mãe.
Entendemos que o modo do CAPSI funcionar também aponta para um fator
importante, já que ele atende à própria lógica de funcionamento psíquico de uma criança
autista ou psicótica, que já chega em “atividade permanente”
38
. Não cabe propor oficinas
neste trabalho, pois as crianças já chegam dirigindo-se para o que lhes interessa, mas
acompanhar este movimento. Ainda que desejássemos sugerir uma oficina isto não seria
possível. Os pacientes autistas não costumam se agrupar e tomar sua ação como
38
SANTOS, K.W. “O Dispositivo Psicanalítico na Clínica Institucional do Autismo e da Psicose Infantil”.
Dissertação de Mestrado apresentada no Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Rio de janeiro, 2001. Pg8.
lxii
possibilidade de trabalho clínico, que apresenta um sentido, já é de início uma primeira
possibilidade de oferecer uma escuta para essa ação que talvez nunca tenha sido
significada.
Eric Laurent diz que “é preciso não ceder do desejo de apostar na existência do
sujeito, lá onde tudo permite esquecê-lo tão facilmente”
39
. Para o autor, se colocar “entre
muitos” é uma forma de não ceder, de compartilhar as dificuldades que estão presentes
nessa clínica.
A prática entre muitos surgiu a partir da clínica com crianças autistas e psicóticas e
a originalidade dessa proposta de trabalho coletivo com esta clientela apontou de saída uma
primeira intervenção clínica importante. O nome “prática entre muitos” foi atribuído por
Jacques-Alain Miller e historicamente três instituições européias iniciaram este trabalho: L’
Antenne110, Le Courtil e Nonette. As duas primeiras instituições estão situadas na Bélgica,
a terceira está situada na França e fazem parte de uma Rede Internacional de Instituições
Infantis, a RI3. Uma quarta instituição, Mish’olim, de Tel-Aviv também participa dessa
Rede e iniciou o trabalho entre muitos posteriormente. Estas instituições recebem crianças,
adolescentes e jovens adultos psicóticos e são orientadas a partir dos ensinamentos de
Freud e Lacan.
A idéia dessas instituições é de que a psicanálise não seja uma linha teórica para
complementar outras na instituição, mas a direção mesma da clínica. Stevens
40
fala da
necessidade de inventar uma instituição que reinvente, a partir do caso, sua maneira mesma
de operar. Ou seja, de inventar uma instituição que dê lugar a uma instituição particular
para cada caso, para cada sintoma.
Convida-nos a uma escuta necessária antes de qualquer proposta, seja do âmbito
clínico ou institucional. Não há um saber- fazer anterior a qualquer escuta do sujeito. Será
a clínica quem decidirá sobre toda intervenção institucional, que dirá sobre os casos que
serão absorvidos no serviço, sobre o número de pacientes em tratamento, sobre as faixas-
etárias atendidas. O que comumente chamamos de decisões burocráticas serão
necessariamente ouvidas a partir de um lugar que é o da clínica, uma vez que os efeitos de
todos os trabalhos realizados neste campo serão necessariamente clínicos.
3939
LAURENT, ERIC. La Pratique A Plusieus, 1998. Pg II
40
STEVENS, ª “A instituição : prática do ato” In: Escola Brasileira de Psicanálise. Ano 10. Número 4
(ago/set). Rio de Janeiro. 2003
lxiii
Mas como podemos operar com esta proposta no CAPSI? Como esta proposta do
caso clínico como direção do trabalho institucional tem se mostrado nos casos de crianças
autistas e psicóticas?
Essas questões são extremamente importantes de serem pensadas no cotidiano do
CAPSI. Aparentemente podem parecer simples, mas são absolutamente complexas.
Baio coloca que este é um campo onde nos fazemos parceiros dessas crianças para
que elas realizem seu ato de “se produzir como sujeito”
41
. Segundo ele, a prática feita por
muitos constitui uma tentativa de tratamento, na psicose, do impasse ligado à transferência,
uma vez que ela faz do saber, de seu lugar e de seu uso sua questão fundamental. Baio
coloca questões bastante relevantes como: Onde localizamos o saber?, Para que ele nos
serve?
O autor retoma pontos já destacados anteriormente, quando diz que as crianças
psicóticas não deixam de elaborar no tempo e que não esperam nossas sessões para estar a
trabalho, pois trabalham por todos os lados no espaço. O que Baio observou na experiência
do Courtil é que essas crianças se dirigem principalmente àqueles que parecem não saber.
O autor diz que o Ato de fundação deriva de uma operação sobre o saber, onde o fundador
aposta no fato de que uma equipe pode responder às condições exigidas pelo sujeito
psicótico quanto a seu parceiro. Há um saber que é o saber de não poder saber. É esse saber
que permite que uma equipe opere a partir do que ela não sabe. “Ela tem que não saber
porque cabe ao sujeito psicótico construir seu próprio saber”
42
.
A estratégia clínica criada para tornar possível a direção apontada é fazer com que
“O Fundador” se destitua e institua a equipe de trabalho. Assim institui-se a equipe para
que ela mesma se autorize nessa destituição permanente quanto ao saber. Essa equipe será
necessariamente convocada pelos próprios impasses e pelo não saber, para permitir que o
psicótico faça seu trabalho. A reunião geral é na experiência de Courtil esse lugar. Ela é ao
mesmo tempo uma lógica de estratégia, e uma possibilidade de que o sujeito realize seu ato,
produzindo-se como sujeito. Baio diz que a reunião geral tem a função de tornar a equipe
“atentamente distraída” diante das crianças. Para ele que os profissionais devem estar
presentes não com relação à sua posição fantasmática, mas com relação à operação do
41
BAIO, VIRGINIO. Curinga, Nº 13. BH Set.1999. EBPMG. Pg 66
42
Idem, ibdem. Pg. 67
lxiv
sujeito psicótico. Do lado das crianças estas vão estar atentas se esses profissionais não
estão numa posição de demanda em relação a elas e farão essa verificação pelo nosso olhar,
voz, etc. A experiência mostra que esta observação é extremamente relevante, pois se
estamos “distraídos” elas nos convocam, pegam nossos braços, procuram fazer laços, como
aponta Baio.
A reunião geral não é para tratar a equipe, mas para que ela possa se manter na
posição de um Outro regulado, ou seja, de um outro que sabe-não-saber. Esta questão
convoca-nos a trabalhar pontos fundamentais da direção colocada a partir da psicanálise.
Stevens propõe quatro eixos que serviram de início no trabalho para a criação da Courtil:
desespecialização, a formação, a invenção e a transmissão. A desespecialiação é, segundo
Stevens, um princípio de base para a psicanálise aplicada, porque ela vai lado a lado com os
processos de desidentificação. O autor retoma Laurent para dizer que o ato analítico na
instituição deve visar produzir o S1 do sintoma como descoberta, invenção que permite ao
sujeito constituir um ponto de ancoragem para o gozo. A desespecialização ocorreria no
projeto institucional e no trabalho de cada um. Não há nenhuma equivalência do trabalho
entre muitos com o trabalho onde os diferentes profissionais vão aplicar seus saberes na
instituição, onde o valor é a especialidade. Stevens coloca que o psicanalista na instituição
não é um especialista do sujeito ou do gozo, mas um desespecializado, uma vez que ele fura
a instituição e o trabalho analítico por uma construção do caso que atravesse todos os
pontos de vista dos especialistas. Esta colocação é muito importante, pois ao falar de um
caso este não será tomado em partes a partir das especialidades, mas o contrário. O caso
clínico é que fará esta articulação, que incluirá ou não um outro profissional no percurso da
construção do saber que está do lado do paciente e do seu percurso no tratamento.
Os quatro eixos colocados por Stevens necessariamente estarão articulados. O eixo
da formação, por exemplo, está completamente articulado ao primeiro, o da
desespecialização, pois não se trata de enfocar a formação no sentido de uma especialidade,
mas de identificar a possibilidade de levantar questões, de duvidar, espantar-se. O autor
aponta a importância de que haja uma transferência com a psicanálise, caso os profissionais
não sejam analisandos, para que a prática possa ter os efeitos que a tomada dessa direção
propõe. Para ele, é importante que a clínica leve cada um a fazer perguntas e não apresentar
um saber fechado sobre o sujeito. Desta forma, chegamos ao próximo eixo, que é o eixo das
lxv
invenções. Stevens diz que não se trata de interpretar ao infinito, mas de estarmos prontos
para ouvir a surpresa, permitir a invenção de pontos de “capitonê”, para que o gozo que
atormenta as crianças gravemente perturbadas possa encontrar um ponto de ancoragem. Ele
diz que o ponto de capitonê da função paterna não operou para esses sujeitos psicóticos e é
preciso que eles encontrem outros, substitutos a essa função. As invenções aqui destacadas
são as invenções dos sujeitos, que eles produzem. Não cabe oferecer-lhes invenções que
servem de identificações, mas acolher a surpresa, ou suscitá-la, como já foi falado.
O quarto eixo que é o da transmissão refere-se ao modo como os profissionais da
instituição trabalham com essas invenções. O autor afirma que não se trata de apoiar
qualquer coisa e de qualquer jeito, mas de dizer sim àquilo que pode amarrar um momento
da história da criança. Há diferenças necessárias entre os profissionais e estilos diferentes
nas intervenções, mas que passam fundamentalmente pela direção clínica do caso que foi
discutida durante a reunião clínica.
lxvi
3.1- O DISPOSITIVO ANALÍTICO AMPLIADO: UMA EXPERIÊNCIA
PIONEIRA DE CAPSI
O CAPSI Pequeno Hans, hoje localizado no bairro da Sulacap no Rio de Janeiro, Zona
Oeste da cidade foi o primeiro CAPSI desta cidade. Nos primeiros anos de atendimento,
o CAPSI funcionava em Realengo, bairro da Zona Oeste. Sua fundação ocorreu em
outubro de 1998 e a peculiaridade deste Serviço é de que ele é, desde sua constituição,
determinado pela psicanálise. Fruto de um Termo de Cooperação Mútua entre a
Coordenação de Saúde Mental do Rio de Janeiro e uma ONG da área de Saúde Mental
intitulada APPEC – Assistência e Pesquisa em Psicologia, Educação e Cultura, o CAPSI
Pequeno Hans tem sua direção técnica sob o encargo desta ONG e a direção
administrativo-financeira sob o encargo da Coordenação Municipal de Saúde Mental.
Seu nome homenageia o único caso de criança tratado por Freud. Na verdade o pai do
pequeno Hans conversava com Freud e este tratava Hans através de seu pai.
No dispositivo CAPSI a proposta clínica do Pequeno Hans é pioneira na área da saúde
mental da infância e adolescência, pois foi a primeira vez que equipe desde seu início
optou pela direção da psicanálise, apostando que no campo público pudesse haver uma
direção da clínica psicanalítica. O fato de ser uma ONG tornou fértil esta proposta, pois
a equipe foi escolhida pelo desejo de trabalhar com essas crianças, a partir desta direção,
o que parece muito singular neste trabalho.
O nome dispositivo psicanalítico ampliado mostra a intenção de que o dispositivo
psicanalítico ocorra em todos os lugares do CAPSI. Trata-se da psicanálise diretamente
aplicada e não de uma instituição meramente atravessada pela psicanálise. Na ampliação do
dispositivo são mantidas as condições estruturais da clínica psicanalítica com todo seu
lxvii
rigor. Neste dispositivo também há lugar para a configuração clássica da psicanálise, onde
o divã pode ser usado para os pacientes que tenham alguma indicação, ou que podem e
querem falar em espaço privado, não coletivo
Partindo de uma prática diversa da apresentada no início deste capítulo, da “prática
entre muitos”, a equipe do Pequeno Hans também propõe que a criança autista e psicótica
seja atendida em um dispositivo diferente do consultório, a partir da clínica com essas
crianças. Temos assim, duas experiências bastante originais, que se iniciam em épocas
diferentes, mas apostando que o dispositivo para as crianças autistas e psicóticas deve ser
diferente do apresentado pelo consultório.
No projeto de pesquisa apresentado ao Programa Prociência
43
Elia coloca que a
opção pela tradução entre muitos e não entre vários, deve-se aos ensinamentos de Lacan e
da discussão que este autor faz sobre o número. O número UM aparece como
fundamentando a contagem do muitos, mais do que vários, que introduz uma variedade,
uma multiplicidade. Entre muitos refere-se ao fato do tratamento psicanalítico ocorrer entre
muitos espaços, entre muitos que tratam e entre muitos tempos, mas fundamentalmente fala
do entre muitos participantes (humanos).
“A questão do número, da matemática, do um, do um a um do significante, introduz uma
diferença absoluta ente cada um e si mesmo. O que varia não é de um para outro, mas o diverso
deve se estabelecer entre cada um e si mesmo. São muitos (e não vários) envolvidos nesse
dispositivo, e cada um desses contados é não idêntico a si mesmo. Logo, é na dimensão do cada um
dos muitos contados que se encontra o vário”.
44
O trabalho do Pequeno Hans parte do princípio clínico de que se as crianças autistas
não suportam estar a dois o melhor dispositivo não é o do consultório, mas o dispositivo
ampliado, onde a criança não se sente tão avassalada pelo Outro. Na configuração do
dispositivo ampliado, as crianças encontram o Outro como que fragmentado, o que
favorece que a função analista possa ocorrer, desde que haja desejo de analista de quem a
atende. Esta é uma questão fundamental de ser discutida no campo da saúde mental, pois
43
ELIA, Luciano. Programa Prociência: Programa de Incentivo à Produção Científica, Técnica e Artística.
Relatório do trabalho: “A Psicanálise com Muitos na Clínica Institucional Pública de Saúde Mental Infanto-
Juvenil” . Rio de Janeiro, Janeiro de 2005.
44
Idem, ibdem, pg. 16.
lxviii
nesta clínica um lugar para um profissional que lide com sua prática de forma burocrática
não será possível. O não desejo impedirá o início de qualquer escuta, pois um profissional
que não escolhe este trabalho provavelmente terá muitas dificuldades em sustentar essa
clínica.
A clínica com esta clientela demonstra que um dispositivo deve ser estruturado de
modo que as particularidades desses casos sejam francamente ouvidas. Foi a partir da
experiência bem sucedida do Pequeno Hans que outras propostas de atendimento para as
crianças autistas e psicóticas puderam ser iniciadas. Esse trabalho, que traz inúmeras
contribuições clínicas e já foi tese de mestrado defendida nesta universidade
45
, destaca-se
como um projeto que mantém a originalidade de defender que a psicanálise pode ser
exercida no campo institucional, não como uma contribuição de uma escuta psicanalítica,
mas como direção ética, clínica e metodológica.
45
SANTOS, K.W. “O Dispositivo Psicanalítico na Clínica Institucional do Autismo e da Psicose Infantil”.
Dissertação de Mestrado apresentada no Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Rio de janeiro, 2001.
lxix
3.2- O CAPSI ELIZA SANTA ROZA E OS TURNOS DE ATENDIMENTO
O cotidiano do trabalho no CAPSI Eliza Santa Roza tem sido uma experiência que
nos incita a construir uma nova clínica para crianças e adolescentes tão gravemente
comprometidos. Consideramos que é a partir da direção da clínica encarnada na supervisão
clínico-institucional que os impasses com as crianças e/ou com os demais profissionais
podem ganhar voz e circular numa convocação que não diz respeito a um, mas a todos, uma
vez que falar dos impasses tem sido fundamental para a continuidade do trabalho.
O primeiro impasse do trabalho foi a transformação de um ambulatório (COIA) em
CAPSI. Havia uma grande resistência por parte de alguns profissionais em aceitar a
reestruturação do ambulatório e enquanto essa resistência não foi tratada em supervisão,
não conseguimos iniciar o trabalho com os pacientes. A supervisão clínica foi fundamental
para a constituição dessa possibilidade, pois estávamos assustados com o enigma do
“autismo”. Como atenderíamos? O que falaríamos? O não saber era motivo de paralisia na
equipe, que achava que deveria ter um saber a priori para tratar dessas crianças.
A direção da supervisão era a de que deveríamos atender os pacientes e depois
discutir as situações, os impasses e dificuldades, ou seja trabalhar com a clínica na direção
da psicanálise. Uma parte da equipe tinha o desejo de trabalhar com esta nova e instigante
clientela, a outra não. Queria manter o trabalho nos moldes de um ambulatório público,
comum na rede municipal de saúde, onde os profissionais trabalham isolados de outros
campos de saber, mantendo sua especificidade e trabalhando, como diz Elia, olhando os
perfis. Quando um paciente não tem um perfil que se encaixe no ambulatório é rechado,
sem que muitas vezes possa ter sido sequer escutado.
Apesar desses impasses na equipe a psicanálise foi escolhida como a direção clínica
que podia sustentar esse tratamento. A escolha do supervisor marca o início de uma nova
configuração do trabalho, onde teremos a discussão permanente dos casos clínicos do
CAPSI. Para muitos pode parecer óbvio que num serviço de saúde mental exista um espaço
de supervisão. Mas não é assim em toda a rede de saúde pública, onde muitas vezes os
profissionais nem conseguem se encontrar para discutir um atendimento. Encaminham os
casos através de um papel ainda que trabalhem na mesma instituição, sem que o
lxx
encaminhamento seja discutido a partir de uma direção de trabalho. O encaminhamento não
é entendido como um trabalho clínico, que deve ser discutido e avaliado. Tive a
oportunidade de trabalhar num ambulatório da rede municipal de saúde e nos três anos de
trabalho constatei inúmeras dificuldades para conseguir conversar com outros profissionais
sobre os casos encaminhados ou atendidos.
Como já foi dito anteriormente a direção da psicanálise inaugura uma nova maneira de
conceber a clínica, que será necessariamente iniciada a partir da escuta e dos impasses aí
colocados. O supervisor que foi escolhido pela enorme experiência clínica com essas
crianças e por ser o supervisor do CAPSI Pequeno Hans -dispositivo que já tínhamos
visitado para pensar o trabalho do CAPSI Eliza Santa Roza- convoca a equipe ao novo
trabalho exigido num CAPSI. Perguntas como o que é a clínica num CAPSI ? CAPSI
pra quem? Começam a ser pensadas e mais do que responder tínhamos o mandato ético-
clínico de construir esta clínica.
É com esta proposta que os turnos de atendimento entre muitos são iniciados. A
partir de uma realidade completamente diferente da equipe do CAPSI Pequeno Hans, onde
todos disseram sim à direção da psicanálise, iniciamos os turnos com parte da equipe ainda
não desejando este trabalho. Este impasse original é bastante visível na clínica com essas
crianças, que prima pela condição de que seja possível uma aposta na emergência de um
sujeito. Ainda hoje temos este enorme problema, pois como são profissionais concursados
chegam sem “saber” com quem vão trabalhar. As dificuldades no trabalho com esta
clientela são inúmeras e quando não há o desejo do profissional elas se tornam ainda
maiores. Às vezes o profissional entende a supervisão como um momento de avaliação do
seu trabalho e não o quer expor. Isto traz mais problemas para ele, pois fica sozinho, sem
conseguir falar sobre suas angústias e suas dificuldades, o que pode suscitar problemas nos
casos em atendimento. Desde o início este é um problema que faz parte da equipe do
CAPSI Eliza Santa Roza. Vários profissionais chegaram e saíram, por não desejarem esta
clínica e/ou o dispositivo CAPSI. Mas a maior dificuldade, que também traz implicações
éticas, é quando os profissionais por motivos burocráticos não conseguem sair. Tentam
lxxi
fazer um trabalho burocrático, que a clínica não comporta, o que traz muito sofrimento para
quem atende, mas um enorme problema para quem é atendido. Na supervisão todas estas
questões são trabalhadas, mas há um ponto de basta que é necessário para que o trabalho
caminhe.
Atualmente temos nove turnos de atendimento, num total de 97 crianças e
adolescentes nesse dispositivo clínico. É importante enfatizar que eram crianças e
adolescentes sem nenhum atendimento na rede pública, pois não se encaixavam nos perfis,
que se traduz assim: como as crianças e adolescentes já chegam fazendo muito barulho,
gesticulando, gritando, se batendo, se mordendo, entre outros comportamentos bastante
estranhos eles não são elegíveis para serem escutados.
O nome turno de atendimento é uma proposta muito recente e surgiu do incômodo
que o antigo nome começou a suscitar na equipe. Chamávamos o turno de “convivência” e
este nome trouxe enormes problemas para alguns casos atendidos. Os pais diziam que o
filho ia “conviver” no CAPSI e continuavam buscando o “tratamento” em outro lugar. É
claro que essas questões foram discutidas caso a caso, mas sabemos que um nome marca a
direção de um trabalho e começamos a questionar que lugar desejamos imprimir na escuta
desses casos. A convivência da criança no mundo, no CAPSI, nas suas relações afetivas é
muito importante nesses casos onde o maior problema é exatamente o rompimento dos
laços sociais, em alguns casos e a impossibilidade de construí-los em outros. Há uma
aposta de que algo se modifique na vida das crianças e adolescentes como conseqüência de
um tratamento, mas sustentar um nome que demande de início uma convivência tornou-se
questionável para a equipe do CAPSI pela interferência no tratamento.
Além desses 97 casos de crianças e adolescentes psiquicamente graves, que são
atendidos nos turnos, temos um total de 200 pacientes atendidos no serviço. São
atendimentos que ocorrem fora do turno, mas com a lógica de um CAPSI. Há atendimento
individual para crianças e adolescentes, individual para o atendimento aos pais dos
pacientes que estão nos turnos de atendimento, ou fora dele e outros casos de adolescentes e
crianças neuróticas que necessitam desse dispositivo, pois como já foi dito anteriormente,
não é prioritariamente diagnóstico que norteia a direção do trabalho, mas o rompimento dos
laços na vida dessas crianças.
lxxii
Destaquei três casos que são atendidos nos turnos de atendimento para ilustrar como
o trabalho está sendo realizado. Escolhi faixas etárias diferentes e diagnósticos como
psicose, neurose e autismo. Desde já coloco que são enormes as dificuldades nesses
atendimentos e certamente há enormes equívocos nos trabalhos apresentados. Contudo, é
extremamente pertinente que essa realidade seja mostrada e revelada com todas as suas
dificuldades, erros e acertos.
- CASOS CLÍNICOS:
PRIMEIRO CASO CLÍNICO - LEONARDO
Este caso clínico trouxe para mim e creio que para toda a equipe que trabalha
comigo neste atendimento surpresas que revelam como um menino de 11 anos, a cada dia,
trabalha na construção do seu saber. O que me fez destacar este caso para apresentá-lo nesta
dissertação foi exatamente à possibilidade de acompanhar a cada dia o que este menino
revela sobre seu inconsciente e sobre seu caminho na constituição de sujeito.
Chamarei este menino de Leonardo: Leonardo chega ao COIA, ambulatório que
existia antes do CAPSI Eliza Santa Roza, em agosto de 1999. Conta oito anos de idade? Na
época fizera uma avaliação psiquiátrica e fora encaminhado para o atendimento psicológico
individual. A queixa era de que Leonardo era “muito nervoso”: colocou fogo na camisa que
usava, apagava o bocal do fogão, puxava os cabo das panelas, gritava, atravessava a rua
correndo sem olhar para os lados, não brincava com outras crianças. A mãe dizia que ele
“não tirava a conversa por ele”, “só fala o que a gente diz”. Maria, como a nomearei,
percebeu diferenças quando este tinha 03 anos de idade. “ele não pedia as coisas direito:
ficava batendo na geladeira”. Os relatos do psiquiatra na ocasião destacam que Leonardo
dizia “frases de forma desconexa” e algumas palavras como “carrinho”. Leonardo é 5º
filho de uma prole de seis. Os primeiros filhos morreram ainda muito pequenos. O primeiro
lxxiii
(menino) com sete meses, de diarréia e o segundo (uma menina) com um ano e quatro
meses de pneumonia e hepatite. Tem um irmão com 23 anos e uma irmã com 19. Antes de
Leonardo nascer Maria teve um aborto “devido a um susto”. Ela não relata detalhes, mas
diz que o aborto ocorreu antes da gravidez de Leonardo, que é o filho mais novo. A
gravidez de Leonardo ocorre segundo Maria, com muito medo. Não deixava ninguém
segurar o filho. Conta que quando a bolsa “arrebentou” ela demorou a procurar o médico e
não sabe se isto interferiu no problema do filho. Conta que não correu na hora, porque
“sabia que não seria atendida”.
É importante colocar que as mortes dos filhos pequenos foram ocultadas da mãe
num primeiro momento, que soube das mortes por causa dos cochichos entre os familiares.
Na ocasião do enterro dos dois filhos ela os agarrava para que eles não fossem enterrados,
mas não conseguiu despedir-se de nenhum dos dois. Não foi ao enterro.
Na casa onde moram vivem o pai, a mãe, o irmão de 23 anos e uma irmã de 19
anos. Leonardo, segundo a mãe tem um bom contato com o pai, que sempre sai com ele
para passear, mas que demorou dois anos para conseguir chegar no CAPSI. O contato com
este irmão mais velho parece ser muito importante para Leonardo. Foi este irmão e a mãe
que “perceberam que Leonardo tinha diferenças para uma criança de três anos: era
"agitado”, “inquieto”, “jogava tudo o que via” (sic). Antes de chegar ao COIA foi atendido
em outro Serviço sendo acompanhado por um neurologista, mas a mãe suspendeu este
tratamento quando começou o tratamento no COIA.
Começo a atender Leonardo ainda no COIA, em janeiro de 2001. O atendimento era
individual. As primeiras sessões foram muito difíceis, pois Leonardo jogava todos os
brinquedos de forma violenta no chão e também as cadeiras. Colocava alguns brinquedos
na boca, às vezes para tentar levar os brinquedos para a casa e, em outras situações desejava
quebrar os brinquedos com os pés me olhando, como que esperando uma fala minha que
impossibilitasse tal ação. Eu dizia isto pra ele e em alguns momentos ele aceitava minha
fala. Em outros ele era tomado por uma excitação que impedia qualquer escuta e eu
precisava cortar a sessão como uma forma de interromper tamanha excitação que o deixava
descontrolado.
No início dos atendimentos Leonardo me olhava insistentemente e
quando meu olhar encontrava o dele ele me perguntava: “_ tá rindo?”.
lxxiv
Geralmente era ele quem estava rindo e no decorrer do atendimento
começou a dizer “sou eu que tô rindo”. Certa vez cheguei atrasada para o
atendimento e ele mostrou-se muito aborrecido comigo. Assim que entrou
na sala chutou alguns brinquedos e eu associei isto ao meu atraso, ao
quanto ele parecia estar chateado comigo. Neste dia ele inventou uma
brincadeira que era a “a casa da Rose” e passou um grande tempo
brincando de bater na casa da Rose, de querer “matar a casa da Rose”.
Quando a proposta do trabalho psicanalítico foi sugerida pelo supervisor como uma
direção que incluísse todo o CAPSI em sua dimensão territorial e também outros
profissionais nessa clínica eu a acolhi de pronto, pois achava muito difícil o trabalho com as
crianças autistas e psicóticas no consultório. Geralmente elas suportavam um tempo
mínimo na sala e a escuta de que o trabalho entre outros podia ser menos ameaçador para
essas crianças me seduzia. Compartilhar as dificuldades e as intervenções era algo que eu
achava interessante, apesar de supor a dificuldade do trabalho.
Leonardo era um menino que estava num momento interessante do atendimento,
começando a falar sobre seu corpo, inventando brincadeiras tais como uma onde ele dera
um nome a um boneco (pato Donald de borracha) de “bebê”, que queria entrar na minha
barriga. Ele dizia: “faz que ele anda”, “faz que ele fala”. Eu então dizia que não tinha como
entrar na minha barriga e que os bebês quando nascem não podem voltar para a barriga. Ele
então forçava a entrada na minha barriga e eu precisava afastar o boneco de mim dizendo:
Na minha barriga não tem como entrar. Ele não convencido dizia: “faz que entra pela boca”
e me olhava desconfiado, assustado e parecia não acreditar no que eu falava. Nesta sessão
ainda ele pega um casal de bonecos negros e me dá a menina para eu colocar a voz. O
boneco ele chama de “Leonardo”.
Muitas sessões são marcadas por perguntas. Leonardo certa vez pega uma boneca
pequena (Moranguinho) e depois quer uma boneca grande. Ele procura e encontra uma
boneca Barbie e diz que ela é grande e forte. Compara as duas e me pergunta se era
grande ou pequena, mulher ou homem. Mostra-se curioso com relação a tudo que
envolve diferenças. Há um cadeado grande e um pequeno na sala e ele compara os dois
lxxv
também. Nesta sessão Leonardo faz pela primeira vez a voz de um cachorro numa
brincadeira. Algumas vezes ele arregalava os olhos como que confuso entre a ficção e a
realidade, mas nada disse sobre isso. Voltou a me perguntar sobre a Barbie: se ela
andava, falava, voava. Leonardo desenha partes do seu corpo (faz bolinhas com dois
pontos como sendo seus olhos) e nomeia: “pé”, “Leonardo” e “asas do Leonardo”.
A passagem para o turno entre muitos intensificou o trabalho que Leonardo já vinha
realizando. O espaço do atendimento agora era todo o CAPSI e Leonardo passou a usar
todos os espaços para continuar o trabalho que já havia iniciado. Como outras linguagens
diferentes também faziam parte daquele universo Leonardo pôde aproveitar muito esta
proposta. Uma delas, por exemplo, foi a entrada do violão no turno. A primeira vez que
Leonardo viu um violão ficou extremamente excitado e fascinado. Ao mesmo tempo, com
muito medo do “buraco” do violão. Ele, que já gostava dos violões de brincadeira, ficou
impressionado com o violão “grande”. Certa vez pulou muito ao ver o violão e a residente
perguntou por que ele estava pulando tanto. Ele então respondeu que era de “medo”. Ao
mesmo tempo ele queria tocar no violão e usava um boneco para fazer isso. Depois de
algum tempo ele começa a tocar sozinho no violão.
A temática do grande, pequeno, de dizer insistentemente que queria “crescer” é
freqüente. O deslizar desses inúmeros objetos que ele encena na convivência e pede para
fazer aviões grandes e aviões pequenos, violões grandes e pequenos caminha até poder falar
sobre o crescimento do seu pênis. Foram longos meses de trabalho até chegar a esta
questão. Leonardo diz que “ele (o pênis) cresce na cama”. Pede que toquemos em seu
“piru” e tenta encostar seu piru nos profissionais. Nós dizemos a ele que ele pode falar
sobre o piru, mas que não podemos tocar em seu piru. Falamos das mudanças em seu piru,
que era pequeno e agora está crescendo e que ele parece um pouco assustado com isso.
Leonardo às vezes olha para o violão grande e olha para seu piru parecendo comparar os
dois. Um dia me perguntou se podia crescer até o céu e digo que não, que nem ele, nem
ninguém pode crescer até o céu. É interessante, pois neste momento estamos olhando para o
céu, no meio do pátio e Leonardo experimenta colocar o desenho de um violão nas árvores,
comparando seu tamanho com o tamanho do violão. Ele pode explorar no cotidiano deste
lxxvi
trabalho o que ele vai pensando e fazendo. Após um tempo no pátio ele me pede uma
tesoura e pega uma folha. Vai até uma outra sala e com a ajuda de um copo faz um círculo.
Depois me chama para uma sala e silenciosamente corta a parte interna do círculo fazendo
um buraco, que ele nomeia de “estrela”. É uma folha com um buraco, que ele se concentra
para cortar com o que havia me pedido: uma tampa. Após este buraco ele tem continuado a
fazer mais buracos, sempre respeitando os contornos, onde há um enorme trabalho de
Leonardo e uma grande concentração, que vem acompanhado de suor e boca trêmula,
mostrando-nos o enorme esforço psíquico que está realizando.
Em casa Leonardo não pode falar sobre seu piru, pois o pai diz que falar sobre piru
“faz mal”. Eu convoco o pai, que há meses me promete ir ao CAPSI, mas sempre apresenta
uma justificativa. Insisto de uma forma diferente, converso com ele, falo que é muito
importante sua presença, que a mãe sozinha não pode falar as coisas que só ele pode. Após
muita insistência o pai comparece e mostra-se muito apático. O assunto do piru surge, pois
Leonardo quer falar sobre isto em todos os lugares: no ônibus, na rua, num desespero de ser
ouvido em sua questão. O pai diz que esse assunto é difícil e que quem conversa sobre isto
é o irmão mais velho. Eu valorizo esta possibilidade de poder incluir este assunto em casa
com o irmão, para que Leonardo não precisasse falar o tempo todo e em todos os lugares.
Vale dizer que o corpo de Leonardo para esses pais não era um corpo erotizado. Em
casa o tratavam como um bebê que podia tirar a roupa a qualquer hora e fazer xixi ou cocô
em qualquer parte da casa. A mãe dizia que ele “não entendia” e por este motivo ela não
falava nada.
Este ano, numa convivência, Leonardo me diz uma frase que me espanta: “Eu quero
nascer”. Sou tomada por um susto e não digo nada a ele. Ele insiste nesta questão repetindo
a frase e uma outra profissional que está perto de mim também se mantêm em silêncio. Três
meses depois ele faz uma pergunta também impressionante: “Se crescer vira filho?”.
Leonardo constrói cada vez mais objetos que apontam para uma falta: folhas com furos,
com espaços separados, com bordas firmes e precisas. Ele, que sempre demandava a mão
do outro para realizar seus desenhos tem, cada vez mais, construído a possibilidade de
instaurar uma falta, uma separação entre seu corpo e o do outro, antes não separado.
lxxvii
- CONSIDERAÇÕES SOBRE O CASO
Ao acompanhar o percurso de Leonardo no cotidiano do CAPSI será que podemos
dizer que no trabalho entre muitos a instauração de uma lei construída pelo próprio sujeito
nesse laço aponta para a construção do Nome do Pai? Não tenho ainda resposta, mas me
parece que essa construção que este paciente insiste em realizar assemelha-se com o que
Eric Laurent aponta como a invenção de ficções do pai
46
tão presente na clínica com
crianças psicóticas. Fazer a falta aparecer parece instaurar um trabalho que ainda não tinha
sido possível para essas crianças e que com o tratamento psicanalítico ele começa a ser
possível. As ficções sugeridas pelo autor servem como uma forma de barrar um gozo que
não tem nessas crianças nenhum ponto de ancoragem, de amarração que possa sustentar um
certo limite, fazer contornos como mostra o caso de Leonardo. O contorno é algo
imprescindível para esse menino que insiste em deixá-lo visível, com contornos muito
fortes.
O Nome-do-Pai é uma metáfora, que como diz Alberti sustenta a função paterna
desde os primórdios da humanidade
47
. É ela que redimensiona a mãe e se associa aos tabus
que introduzem a Lei do desejo para cada sujeito. É o pai que barrará a mãe assumindo que
o filho não é só da dela, mas também dele, quebrando uma ilusão de que eles (mãe e bebê)
se complementariam nessa relação. A função paterna incide na mãe barrando o desejo desta
e permitindo que o sujeito deseje algo de diferente. Há um espaço inaugural que é desejo do
sujeito e isto só é possível a partir da referência à um pai.
Na neurose este é o desfecho do Édipo em Freud, mas na psicose infantil este parece
ser um trabalho que na clínica temos acompanhado em cada sujeito de modo particular. As
invenções de Leonardo parecem tentar constituir o vazio, a existência de uma falta ainda
não presente nessa relação entre ele e a mãe, uma vez que falta uma função paterna que
medeie isto. Muitas vezes Leonardo chega com um brinquedo na mão e deixa este
brinquedo no CAPSI em algum lugar. Depois, na hora de ir embora o recolhe e o leva
embora. Seria simplista pensar que além de ter uma função apaziguadora, que aponta para
46
LAURENT, ERIC. “O que as Psicoses ensinam à Clínica das Neuroses”. Curinga, nº 14. BH. Abril de
2000. EBP-MG
47
ALBERTI, SONIA “ O Adolescente e o Outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004
lxxviii
uma dificuldade de separação, estes brinquedos marcariam um terceiro na relação entre ele
e a mãe? Notamos que essas ficções paternas são criações que apontam isso e marcam a
incidência do sexual neste caso. São muitos os furos que ele precisa construir, muitos
buracos, “estrelas”, como ele mesmo diz. Precisamos continuar ouvindo e acompanhando
este percurso tão singular e importante para este menino que tem nos ajudado a pensar estas
questões que nos abrem mais perguntas do que respostas e que nos ensina algo de
realmente novo em sua constituição como sujeito.
lxxix
SEGUNDO CASO CLÍNICO – CASO CAROLINA
Carolina é uma adolescente que chega ao CAPSI em agosto de 2002, contando 13
anos de idade. As queixas são diversas: “Brigas na escola”, “se joga na frente dos carros”,
quando a mãe recusa um pedido seu, e “furtos de biscoito no mercado”. Neste período
quase foi atropelada por um carro, que chegou a atingir sua orelha, fazendo-a levar pontos.
Além disso “batia em pessoas desconhecidas”. (sic)
Em janeiro de 2003 foi internada no hospital Vicente Resende, situado no Instituto
Nise da Silveira, que é o único local do Estado para internação de adolescentes. Não há
relato de quanto tempo permaneceu internada.
Em fevereiro Carolina retorna ao CAPSI com o avô materno. Este fala da
impaciência de Carla, mãe de Carolina, com ela. Neste período Carolina é avaliada pela
musicoterapeuta e inicia um trabalho na oficina de musicoterapia. Nas entrevistas com
Carla é revelada a história de Carolina. Carolina é gêmea de Tatiana, que “desapareceu” aos
4 anos de idade em Madureira. A história contada pela mãe é que a filha “sumiu” em
Madureira, e ela não “teve condições de registrá-la como desaparecida ainda”. Após o
desaparecimento da filha, Carla, que cuidou de Carolina até os 4 anos e 11 meses, a filha
com uma amiga, que devolve Carolina aos 12 anos de idade. Desde esta devolução Carla
diz desprezar a amiga, pois não “ficou de acordo com o fato dela devolver a menina que
havia pego” (sic). Carla conta para a musicoterapeuta que Carolina era maltratada pela
amiga e pelas pessoas que viviam na casa e mostra as marcas no corpo de Carolina.
O pai de Carolina é desconhecido. A mãe sabe apenas seu apelido e que ele
“morreu de tiro”. Quando Carla teve as filhas gêmeas morava na rua. Foi “menina de rua”
por muitos anos e mãe ainda adolescente, aos 14 anos de idade. Na época chegava a deixar
as filhas sozinhas (ainda bebês) para ir ao baile funk. Atualmente vive com um
companheiro e tem outros 4 filhos. Diz sentir-se muito só para cuidar de tudo. “Bate em
Carolina para garantir o papel de mãe”, quando a filha desobedece. O diálogo entre as duas
não existe, “porque Carolina não conversa com ela, só com os outros”. “Ela sabe que
Carolina não é doida por esse motivo”.
lxxx
Na época das entrevistas Carolina fala do desejo de encontrar a irmã desaparecida.
Começa a participar da oficina de musicoterapia. Existiam no início do CAPSI duas
oficinas: de arte e musicoterapia. Com as discussões do trabalho inserimos esta
possibilidade nos próprios turnos de atendimento, de modo que os pacientes podem ou não
participar desses espaços. O paciente escolhe, em cada turno o que deseja fazer, não
existindo uma separação nos horários e atividades. As escolhas acontecem a partir do
desejo de cada paciente.
Carolina não suportava quando a musicoterapeuta dava atenção para outro paciente.
Saía da sala e/ou batia nos instrumentos até quebrar. Não conseguia dizer o que a
incomodava, falava com muita dificuldade. Suas palavras eram incompreensíveis na
maioria das vezes e ela falava com seus atos sobre seus incômodos. Com o passar do tempo
Carolina começa a pedir para vir mais ao CAPSI e isto é muito curioso, pois é ela quem vai
nos ensinar o que não havíamos escutado: que precisava de uma analista.
Carla começa a ser atendida pela musicoterapeuta. Nos atendimentos revela que
“não gosta de ver Carolina lúcida. Ela fica melhor dopadinha”. Diz que a filha “não tem
vergonha de nada, que tira as roupas na rua e fica se oferecendo”.
Em julho de 2003 a musicoterapeuta tira férias e Carolina falta às sessões por três
meses sem justificar. A mãe também não entra em contato com o serviço, que tenta
inúmeras vezes falar com Carolina. Em setembro conseguem retornar e Carla conta que
Carolina estava “sumida” por dois dias. Diz que a filha teve uma “crise”, “quebrou tudo”,
“jogou pedras” e foi levada para o Nise da Silveira para tomar um “mata-leão”. Carla diz
para a Carolina que vai passear, mas a leva para o hospício.
Carolina não fica internada e começa a freqüentar uma “casa de rapazes para ter
relações sexuais com eles”. Em casa Carla mantém uma intensa fiscalização sobre o corpo
de Carolina. Segundo o companheiro, que traz Carolina ao CAPSI (a mãe não comparece
quando convocada) Carla examina o corpo de Carolina sempre que eles retornam da rua”.
Ele conta que Carla “bate com cabo de vassoura na filha” e que é muito “arrogante” com
ela.
Na equipe do CAPSI há dúvidas quanto ao diagnóstico de Carolina. Ela, que chegou
com um diagnóstico de “retardo mental” e “psicose” associados, mostra que seu
enlouquecimento é dirigido ao Outro em busca de amor e a hipótese de histeria é pela
lxxxi
primeira vez vislumbrada. As reações frente às separações são difíceis para Carolina, que
nunca quer ir embora do CAPSI quando o turno acaba, quer abraçar a musicoterapeuta de
um modo que parece querer entrar em seu corpo, provoca situações inusitadas para a
equipe, ficando na frente dos carros, e ameaçando quebrar tudo no CAPSI. É uma paciente
que demanda muito da equipe e a discussão do caso em supervisão é sempre freqüente.
Na escola, Carolina não sabe ler nem escrever e as professoras reclamam do
comportamento dela: bate nas professoras, nos colegas da escola, nas pessoas que encontra
na rua. Pega nos “órgãos sexuais dos meninos”, quando “eles implicam” e as brigas com a
mãe também são constantes. Brigam como se fossem duas irmãs.
No CAPSI Carolina começa a puxar os meus cabelos e tenta me “abraçar” várias
vezes do modo descrito acima: um abraço que machuca, que parece querer entrar no corpo.
Desde que me viu atendendo uma paciente muito grave que tinha como comunicação
“puxar os cabelos”, começou a dizer que sentia “ciúmes de mim com a outra paciente” e na
supervisão é apontada a necessidade de atender Carolina individualmente. Entendemos o
“puxar de cabelo” como um pedido, como um endereçamento feito a mim e converso com
Carolina sobre um atendimento individual comigo, apontando que este ato dirigido a mim
estava sendo escutado. Ela aceita prontamente. Nesse momento Carolina passa a vir três
vezes por semana ao serviço. Carolina nos ensina que faltava um espaço onde ela pudesse
falar, aponta que de alguma forma não estávamos conseguindo ouvi-la em seu pedido
transferencial tão difícil de ser entendido, pois ao mesmo tempo que ela quer alguma coisa
perto ela convoca uma separação por causar no outro um certo horror quanto à sua
presença.
Inicio o atendimento de Carolina no início de 2004. Nos primeiros atendimentos ela
faltava, ou se atrasava com muita freqüência. Parecia testar minha presença naquele espaço
e provocava o abandono com sua falta, tema tão presente em sua vida. Quando entrava na
sala não conseguia me olhar, nem falar. Dizia que “não sabia falar”. Ficava segundos na
sala e logo pedia para ir embora. Pedia folhas para desenhar e fazia muitas casas: tortas,
soltas no espaço, sem portas, nem janelas. Ainda desenha casas com muita freqüência.
Ainda sem portas, nem janelas, mas já no chão. Sobre o desenho diz apenas que “é uma
casa”. Aos poucos Carolina começa a falar sobre as brigas com a mãe: que “mordeu a mãe”
ou “bateu na mãe”. Diz que quer morar na rua e que a irmã “fugiu da mãe”. Quando
lxxxii
estranho esse “fugir da mãe” ela diz que a mãe “deixou ela fugir” e consegue pela primeira
vez dizer que sente raiva da mãe por isso. Com um rosto indignado diz: “_ela não fez
nada”. Mostra várias marcas no corpo das brigas com Carla e assume que provoca a mãe
até que ela bata nela.
Convido Carolina a “aprender a falar” no espaço do atendimento e aos poucos ela
vai se colocando mais. Há um tema de que só fala comigo: sobre a irmã. Pensa que a irmã
está na rua, morando na rua e coloca em palavras a raiva que sente da mãe ter “deixado a
irmã sumir”. Ao contar novamente a história sobre o desaparecimento da irmã, ela relata
que os outros irmãos estavam juntos e só Tatiana sumiu. Diz que a mãe não colocou
nenhum cartaz para encontrar a irmã e fala que gostaria que a mãe procurasse Tatiana.
Pergunto por que ela não faz este pedido para a mãe e ela diz novamente que “não sabe”
perguntar para a mãe.
Na escola ela passa a ficar mais interessada nos cartazes com fotos de crianças
desaparecidas e volta a falar sobre o desejo de que a mãe pudesse colocar uma foto da irmã
também. Começo a questionar se ela não poderia fazer alguma coisa, já que é tão
importante pra ela e Carolina fala sobre não saber ler nem escrever. Há um “não saber” que
aparece como um sintoma nesta adolescente que, a partir do tratamento, começa a namorar
as palavras, interessando-se pelo seu nome, pelo meu, e por outros nomes importantes para
ela no CAPSI. Foi nesta sessão em que o seu não saber sobre a irmã apareceu que pediu
pela primeira vez para ajudá-la a escrever seu nome no desenho que havia feito. Ela fez até
a metade e depois me perguntou sobre as letras do seu nome.
As agressões dirigidas à mãe são pela primeira vez situadas na história de Carolina
como uma possibilidade dela falar desse “sumiço” da irmã. Carolina começa a dizer nesta
ocasião que está começando a conversar com a mãe e as brigas entre as duas diminuem
sensivelmente. Frases do tipo: “_Carolina se você estiver com raiva lave alguma coisa que
a raiva sai com a sujeira” começam a ser ditas pela mãe, que antes nada dirigia à Carolina.
A mãe coloca ainda que elas “não podem brigar porque são do mesmo sangue”. Carolina
acolhe as falas da mãe e passa a gostar e a demandar que Carla cuide de seu atendimento.
Esquece alguns horários, falta no atendimento e é a mãe quem começa a justificar os
motivos das ausências de Carolina.
lxxxiii
Carla, que não aderia a seu tratamento começa a faltar menos e a se interessar mais
pelo atendimento de Carolina. Percebe os efeitos dos atendimentos em Carolina, que não se
oferece mais nas ruas, nem pede dinheiro para comida. Carla esboça em novembro de 2004,
pela primeira vez em seu atendimento, uma certa curiosidade em encontrar a filha. Pensa
em ir procurar ajuda na televisão, mas depois diz “_Imagina se ela aparecer moça, como vai
ser? Ela vai querer roupas, preciso estar calçada” (sic).
No CAPSI Carolina também está mais tranqüila. Aceita sair quando o atendimento
acaba sem criar nenhuma situação difícil: não joga pedras na rua, nem enlouquece com
essas separações que no início eram terríveis para ela. Carolina batia nas portas, corria atrás
das pessoas, era sempre muito difícil lidar com ela no CAPSI.
Carolina ficou bem até maio de 2005. Neste período precisei me ausentar por um
mês e isto teve conseqüências bastante significativas no caso. Embora tenha trabalhado
com ela esta separação, Carolina no último dia antes da minha licença falou que estava
“muito difícil”. Na hora de se despedir pede para me dar um beijo no rosto e tendo a nítida
impressão que ela vai me morder não ofereço a outra face. Ela então diz que estou saindo
“por causa dela”, “porque não gosto dela” e embora tenha dito que minha licença não tinha
nada a ver com ela, minhas palavras não tem efeito. Ela só se acalma quando digo que não
farei como sua irmã que sumiu, que não a abandonarei. Ela consegue se despedir de mim e
vai embora (ela ficou mais de uma hora no CAPSI. Após esta frase conseguiu sair).
Na primeira semana da minha ausência ela pergunta para uma profissional por mim.
A profissional esqueceu que eu havia entrado de licença e disse para Carolina que eu estaria
no CAPSI no dia seguinte. Como não me encontra sente-se traída, apesar de ser dito para
ela que houve um esquecimento da profissional. É um mês bastante difícil para Carolina,
que provoca inúmeras situações em casa: “Fica agitada”, “começa a quebrar coisas”, diz
querer “morar na rua” (sic). A situação fica tão complicada que a mãe procura o Conselho
Tutelar para “abrigar” Carolina. O CAPSI é contactado, mas não é escutado num primeiro
momento como o local onde Carolina faz tratamento. A Conselheira Tutelar diz “que é
responsável pelo abrigamento de Carolina, que está em uma “situação de risco onde vive”
e fala que a mãe está “mal orientada”, devendo ir para uma Escola de Pais na FIA”.
Carolina chega a passar uma noite num abrigo, situado no Centro do Rio e só não foi
abrigada em outro abrigo, perto da casa da mãe, porque não tinha vaga. Apesar do CAPSI
lxxxiv
tentar intervir como o local responsável pelo atendimento de Carolina a Conselheira disse
que Carolina “faltava muito ao atendimento”, desautorizando o trabalho. Um acordo foi
possível com o Conselho, pois mesmo não concordando com o abrigamento foi solicitado
que este fosse perto do CAPSI para a não interrupção do tratamento.
No final da minha licença recebo um telefonema da musicoterapeuta pedindo que
Carolina fale comigo ao telefone, para confirmar a sessão na semana seguinte. Carolina me
diz ao telefone que está com “muitas saudades” e segundo a musicoterapeuta fica muito
calma ao longo do dia.
Após inúmeras conversas com o Conselho Tutelar e do sumiço da mãe quando
Carolina foi abrigada, foi possível retomar a discussão da não indicação clínica de abrigar
Carolina, pois ela estava respondendo, com atuações, à minha ausência. O Conselho
começa a entender que há questões na mãe de Carolina fundamentais de serem trabalhadas
e isto deveria ser tratado num trabalho clínico e não burocraticamente. Carla volta a dizer
que quer que a filha fique em casa num “quarto trancada”, pois “não agüenta mais
Carolina”. Diz que não vale a pena cuidar da filha por “240,00 reais”. Esta mãe tem o
benefício e isto é uma grande questão, principalmente neste caso, de uma menina neurótica,
muito grave, mas que já recebeu o diagnóstico de “psicótica” e de “retardo mental”. Há um
fato curioso: a mãe diz que tudo o que compra para a filha “ela dá para os outros e troca por
roupas velhas”. Carla compra roupas e Carolina rasga. Este é um ponto importante que vem
sendo trabalhado no atendimento com Carla, que é feito pela musicoterapeuta.
Quando retorno da licença Carolina fala sobre como foi “difícil ficar sem me ver”,
“que sentiu muitas saudades”, que “pensava que eu não gostava mais dela”, “não queria
atendê-la”.
Os atendimentos de Carolina foram retomados e ela tem falado sobre como é
“difícil” ficar na casa com a mãe, às vezes insiste em me abraçar quando vai embora, mas
ainda não tem sido possível isto, porque quando me abraça me machuca. Ela consegue
abraçar várias outras pessoas no CAPSI e tenho pensado que o meu não abraço (pelo menos
neste momento) tem sido importante como uma demanda que não deve ser atendida.
Aumentei as sessões (ela está sendo atendida três vezes por semana individualmente), mas
coloquei o abraço em suspenso. Dei um tempo para o abraço, até que ela possa “construir”
um outro abraço comigo. Essa palavra, “construir” surgiu recentemente, após um namoro
lxxxv
efêmero que Carolina teve. Um outro adolescente do CAPSI e Carolina iniciaram um
namoro na festa junina do CAPSI e após duas semanas de namoro a avó desse adolescente,
que chamarei de Ricardo, adoece no Piauí e a família vai embora por causa deste problema
familiar. Ricardo se despede de Carolina e compartilha com ela esses problemas, mas isto
reforça em Carolina o abandono. De uma forma bastante sofrida ela fala dessa perda, da
saudade de Ricardo e tem tentado elaborar no CAPSI essa ausência escrevendo cartas para
ele (pede que escreva e ela copia depois), dizendo sobre a saudade que sente, falando dessa
separação que “dói muito”.
Após a perda de Ricardo Carolina intensifica a busca da irmã. Solicita a ajuda do
CAPSI nessa procura, mas diz não querer que a mãe participe disso. Vai até o Conselho
Tutelar e consegue o telefone do SOS crianças desaparecidas. Fala que quer ligar do CAPSI
e há uma dificuldade da minha parte em lidar com esse pedido transferencial. Ela me
entrega o telefone e eu pergunto como ela está pensando em fazer, o que ela pensou.
Carolina lembra que “não sabe” ver os números e tento trabalhar este saber para poder agir
na busca da irmã. Mas isto se coloca como uma urgência para Carolina, que chega a dizer
que se não encontrar a irmã “vai dar uma de doida” e ser internada. Houve um episódio
recente onde Carolina tentou quebrar uma porta da sua casa e a mãe a levou para o Hospital
Jurandyr Manfredini com a ajuda do corpo de bombeiros (há leitos de curta permanência
para os adolescentes neste hospital). Era um dia de sexta-feira, dia em que vai ao CAPSI,
onde duas pessoas da equipe estavam de férias (a musicoterapeuta e uma psicóloga). A
médica de plantão do Hospital já conhecia Carolina e a liberou após uma conversa com ela
e a mãe. Carolina, segundo esta médica, fez uma grande cena no hospital e xixi no pátio. A
médica conversou com ela e sua intervenção de que ali ela não podia fazer o que queria
porque era um hospício teve um grande efeito e Carolina parou de fazer esses atos dirigidos
à mãe, que quer colocá-la neste lugar de doida, talvez o único lugar que esta mãe consiga
dar para Carolina. Entre ter um lugar e não ter nenhum, parece que Carolina atua neste
momento como um atendimento a esta demanda da mãe, demanda que é de amor.
Como resposta a esta minha não escuta deste pedido, Carolina atua novamente.
Agora o contexto é um curso de informática, na comunidade onde mora. Ela já havia falado
que tinha muitas dificuldades nesse curso, pois “não sabe ler, nem escrever” e que uma vez
havia puxado os cabelos das pessoas. Neste segundo episódio no curso ela mordeu algumas
lxxxvi
pessoas e pela primeira vez a mãe, que fora chamada no curso, telefonou para mim
solicitando minha ajuda. Carolina tinha tido uma sessão neste dia comigo, uma sessão onde
ela falou sobre a possibilidade da irmã estar morta e do medo que sentia de não encontrar a
irmã. Estava com muita raiva da mãe, porque “ela não faz nada”. Contou que deu o telefone
do lugar para a mãe, mas ela disse que “não sabia ir”. Ao telefone, Carolina está tranqüila,
fala comigo que mordeu as pessoas porque “elas também bateram nela”. Assinalo que ela
falou sobre o medo da irmã estar morta e que talvez isso tenha sido muito difícil pra ela,
além dela estar com muita raiva da mãe não estar conseguindo fazer o que ela gostaria que
a mãe fizesse, e que seu ato de morder parecia estar relacionado com tudo isto. Carolina diz
que está “muito difícil”, mas que pode ir para a casa com a mãe depois que ficar mais
calma. Converso com a mãe ao telefone e digo a Carla que esses atos estão relacionados ao
desaparecimento da irmã. Carolina havia falado para a professora do curso sobre o
desaparecimento da irmã e que a mãe não havia denunciado o sumiço dela. Depois deste
episódio Carolina deixa de freqüentar o curso, “porque a mãe não quer deixar”. A
professora de Carolina conversou com a mãe e disse que a ajudaria a procurar pela filha
desaparecida e esta fala fez com que a mãe afastasse Carolina do lugar.
Carolina telefonou, com a ajuda de uma profissional do CAPSI para o SOS crianças
desaparecidas e obteve vários esclarecimentos que desejava. Ela soube que só com a mãe
poderia fazer a queixa, pois ela ainda é menor de idade. Esta condição da mãe estar
necessariamente implicada aborreceu Carolina, que não queria que a mãe participasse. Mais
do que isto, faz com que Carolina se aproxime de uma verdade que é difícil para ela: o fato
de que a mãe ainda não quer, ou não pode, procurar sua irmã. Recentemente ela me contou
que seu avô paterno também “perdeu” um filho. Pedi que ela falasse mais sobre isso e
Carolina conta que o tio já tinha uns 18 anos e foi embora. Não sabe para onde, mas sabe
que ninguém foi procurá-lo.
Em sua análise, cujo aumento das sessões foi proposta pela analista por entender
essas atuações como um pedido de mais tratamento, Carolina tem tentado elaborar essa
história tão dramática, tem conseguido falar dessa mãe que se mostra tão impotente numa
questão importante para ela. Solicitando ajuda ela escreve cartas para Ricardo, o namorado
que foi embora para o Norte e cada vez mais se envolve com as palavras. Quer escrever
meu nome e o nome de outras pessoas e já reconhece alguns números e letras. Na sessão
lxxxvii
sempre desenha casas, mas agora um novo fato se coloca. Ela está desenhando uma casa há
três sessões e a cada momento destaca um ponto da casa, seja para pintar, ou falar. No mês
de agosto me perguntou como era uma porta. Perguntei de que porta ela falava e ela me
disse: “quero desenhar a porta da minha casa, mas não sei como é uma porta”. Não
respondi, nem desenhei, mas destaquei que este era parecia ser um importante ponto.
Carolina sempre fez várias casas, sempre sem portas e/ou janelas. É a primeira vez, em todo
este tempo que ela pergunta como é uma porta, “a porta de sua casa”.
Na sessão seguinte ela me pergunta novamente sobre a “porta”. Fez uma casa,
desenhou uma janela, mas não sabe como fazer a porta. Sabe que a porta é “para entrar”,
“para sair”, “para fechar”, mas continua sem saber como desenhar uma porta da casa. Faz
um desenho no lugar que tradicionalmente chamamos de porta dizendo que é “uma cruz”.
A palavra “cruz” parece ser um significante neste caso, pois seu sobrenome é “cruz” e sua
mãe já disse em seu atendimento que Carolina é “uma cruz que carrega”. Na hora do
atendimento esses elementos me faltaram, pois só depois as associações fizeram sentido, no
momento em que fui discutir o caso com a equipe. Curiosamente neste dia ela me diz que
está com “diarréia”. Pergunto sobre o que a poderia ter feito sentir-se mal e ela diz não
saber. Fala que come “qualquer coisa” e eu destaco esta palavra em voz alta. Ela ri e depois
diz que quer falar comigo sobre a irmã. Conta que sonhou que a irmã a visitava, que saía do
abrigo onde estava e passava o dia na casa de sua mãe com ela e os irmãos. Carolina conta
que ficou muito feliz com o sonho, mas que começou a chorar e acordou com muita dor de
barriga. Não parou mais de ir ao banheiro.
Foi a primeira vez que Carolina relatou um sonho e pôde falar que a mãe não está
conseguindo ir procurar a irmã. Carolina acha que é por causa do dinheiro e coloquei em
um atendimento que a dificuldade da mãe não parecia ser só pelo dinheiro, pois a mãe tem
como conseguí-lo (a mãe recebe benefício e trabalha com faxina). Destaco que a mãe deve
estar com muitas dificuldades em falar sobre esse assunto e Carolina pôde ouvir que a mãe
também tem suas questões. Ainda nesta sessão Carolina questionou sobre a medicação que
está tomando dizendo que há outros adolescentes que não tomam remédio no CAPSI e que
ela também pode se tratar sem tomar remédios. Carolina está visivelmente melhor, mais
tranqüila, concentrada. Diz “obrigada” no final da sessão e me dá dois beijos no rosto.
lxxxviii
- OUTRAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O CASO
Falar sobre este caso e como o atendimento dele está ocorrendo no CAPSI é algo
extremamente necessário, pois ele demonstra como um caso de neurose com tantas
complexidades pode demandar um dispositivo de atendimento complexo como é o do
CAPSI, demonstrando que dificilmente um caso como este poderia ser atendido num
ambulatório tradicional.
Carolina chega ao CAPSI com o diagnóstico de psicose associada a um retardo
mental. Esta hipótese só foi descartada após meses de atendimento, demonstrando que o
diagnóstico deve ser feito como Freud sugere: um diagnóstico feito a partir do discurso do
paciente que é realizado ao longo do tratamento. Carolina, como destaquei, mal conseguia
falar, não olhava, conseguia ficas pouquíssimos minutos na sala. Mas será que ao longo de
sua vida este espaço foi permitido a ela? O caso indica que não. Quando a irmã desaparece
Carolina também perde os laços com sua família. Mora até os doze anos de idade com uma
amiga da mãe e neste lugar sofre maus tratos que deixaram marcas em seu corpo. Apanhava
muito, segundo conta e não teve uma infância feliz. “Não sabe” falar sobre a infância, mas
conta sobre o encontro traumático que teve com o sexo nesta casa. Fala de ser seduzida
pelo filho desta amiga, que a ameaçava se ela não o deixasse beijar seus seios. Este lugar de
“abusada” estende-se para outros lugares: Carolina passa a se oferecer em casas para
homens que ela não tem nenhuma relação afetiva.
O trauma do desaparecimento da irmã e o encontro também traumático com o sexo
são pontos importantes no diagnóstico de histeria, uma vez que apontam para um
diagnóstico estrutural e não fenomênico. Freud já nos apontava em seu artigo sobre a
“Comunicação Preliminar”
48
que os fenômenos psicóticos podem estar presentes também
numa neurose. Logo eles não são suficientes para diagnosticar um paciente.
48
FREUD, Sigmund. “Sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos: Comunicação Preliminar
(1893) (Breuer e Freud). In: Obras Completas de Sigmund Freud. Vol.II (1893-1895), Rio de Janeiro: Ed.
Standard Brasileira. Imago. 2ª ed, 1987. Pg. 75
lxxxix
O trauma vivido por Carolina foi duplamente vivido: quando a irmã desaparece e
quando ela é “dada” pela mãe para uma outra família. A perda da irmã gêmea faz com
que a história de Carolina também desapareça, uma vez que a mãe parece não suportar
sua presença, como algo que aponta para o real do desaparecimento da outra filha. A
presença de Carolina ainda hoje é difícil para esta mãe que ao longo do atendimento
promove várias situações de abandono em Carolina: não vai buscá-la nos atendimentos
quando ela inicia no CAPSI, e só com o início do tratamento começa a sustentar algum
lugar de mãe para esta adolescente. A adolescência que por si só já aponta para um
momento de profundas mudanças e separações, como nos mostra Alberti em seu livro
(aqui já citado), neste caso parece ainda mais difícil. A autora mostra que quando os
pais estão presentes ele pode ou não escolher a presença dos pais, o que será importante
neste momento de escolhas e elaborações da falta de um Outro. O problema ocorre
quando os quando os pais se separam dos filhos antes dos filhos poderem se separar,
pois, o adolescente se vê abandonado e começa a lutar pela atenção deles. O que dizer
então neste caso onde antes mesmo da adolescência Carolina teve perdas que não
puderam ser elaboradas: a da irmã e a da mãe, que se separou dela ainda na primeira
infância. Esses momentos traumáticos não puderam ser falados e pela primeira vez
Carolina encontrou um lugar onde pode dizer sobre essa dor, de perder antes mesmo de
existir. Antes de existir na cultura como adolescente Carolina precisa construir um lugar
para estar e este lugar parece estar sendo o CAPSI. Carolina vai ao CAPSI todos os dias
(além da análise ela participa de duas oficinas e raramente falta). Às vezes seu
atendimento está marcado para uma hora e ela chega duas horas antes. Gosta de ficar no
CAPSI e tem podido estabelecer uma relação diferente com este lugar. Às vezes chega
cedo e dorme antes do atendimento, outras vezes fica no CAPSI conversando com outras
xc
pessoas. No início ela brigava com todos, era difícil estar com Carolina, que reatualizava
no CAPSI este abandono pela mãe e colocava toda sua raiva quando não era atendida na
hora que queria, ou não tinha toda a atenção que desejava.
A importância do trabalho com Carolina tem um outro aspecto que de não podemos
deixar de falar: o quanto esse dispositivo substitui internações de outro modo iminentes.
Sabemos da gravidade de uma internação para um adolescente quando esta não é a
indicação clínica para o caso, ou quando ela ocorre como um primeiro recurso. A
interrupção dos laços sociais e o oferecimento desse lugar de louca que a mãe insiste em
colocar Carolina seriam decisões que trariam implicações subjetivas decisivas neste caso,
se a internação fosse tomada como primeiro tratamento. Como já foi ressaltado em nenhum
caso a internação deve ser o primeiro tratamento, mas o esgotamento de todas as outras
condições de trabalho.
xci
TERCEIRO CASO CLÍNICO – CASO PAULINO
Paulino foi encaminhado para o CAPSI pela equipe da Educação Especial da área
de Jacarepaguá, em maio de 2004. O pedido era de que Paulino fosse avaliado e inserido
imediatamente no turno de atendimento. O pedido da avaliação foi atendido, mas o
acolhimento da criança no tratamento só foi possível no início deste ano.
Paulino contava cinco anos na época das primeiras entrevistas. Sônia, a mãe, falara
que ele gostava de “brincar sozinho”, com “papel” e que não se relacionava com as duas
irmãs, a não ser puxando os cabelos: uma de 10 anos e outra de dois anos de idade. Paulino
não tem controle das fezes e urina e na fala de Sônia “parece que tem medo da privada”.
Fala palavras como “rua” e “pai” e emite muitos outros sons. (sic)
Desde nove meses de idade apresentou várias crises convulsivas (TCG) com ou sem
febre, A última crise ocorreu em 2004. Fez tratamento neurológico em um Hospital da
cidade (sic).
Sônia conta que teve uma gravidez “agitada” e “nervosa”, pois os vizinhos lhe
diziam “este bebê vai nascer morto!”. Não conta na entrevista os motivos pelos quais os
vizinhos falam esta frase para ela e a profissional que a entrevista não relata porque ela
resgatou esta fala depois de seis anos, o que a faz repetir.
Sônia diz que o filho já está conseguindo ir à escola duas vezes por semana e que
gosta de picar plástico, papel e jornal. “Usa fralda em casa e gosta de ficar pelado”. Paulino
chora se a mãe tenta ensiná-lo. Também não come sozinho. (sic)
OUTRAS CONSIDERAÇÕES
Paulino está em tratamento no CAPSI há seis meses e trazer este caso me pareceu
importante porque em pouquíssimo tempo de tratamento este menino já apresenta enormes
mudanças.
xcii
O que sempre me impressionou neste caso é a marca de uma posição de escolha
desse lugar de autista que esse menino sustenta no turno de atendimento. A maneira como
seu corpo se apresentava era muito particular: Paulino chegava descalço e colocava-se num
canto de forma silenciosa. Não dirigia o olhar para nenhuma pessoa da equipe e quando o
fazia cerrava os olhos como quem não quer enxergar o mundo. Seu jeito de andar era muito
peculiar. Arrastava os pés, sempre descalços, como se o caminhar fosse um grande esforço.
Chegava a quase cair, andava cambaleando, a ponto de uma psicomotricista achar que ele
tinha “flacidez muscular”. Seu corpo estava sempre disposto a ficar num canto jogado, de
pernas para o ar, alheio a tudo e a todos. Sempre queria tirar a roupa. Sônia, sua mãe dizia
que ele ficava em casa pelado todo o tempo, que “não gostava de usar roupas”. Aos poucos
o que começou a surgir no discurso de Sônia era um estranhamento pelo nosso interesse
nessa questão, afinal, por que ele não podia ficar pelado o tempo todo? Por que estranhar se
ele só come papinhas como se fosse um neném?
Paulino chega sempre com um pedaço de papel na mão de biscoito ou de revista.
Demonstra um franco interesse pelos papéis. Em um momento do turno ele fala “zabumba”
olhando para o papel e eu lhe pergunto se “zabumba” é o nome que ele dá ao papel. Ele não
pára de falar, olha para mim e volta a dizer “zabumba”. Eu demonstro um grande interesse
pelo “zabumba” e ele ri. Neste dia Paulino queria ir para o pátio e eu disse que ele só iria se
calçasse suas sandálias, pois o pátio estava muito sujo, com coisas que poderiam machucá-
lo. Ele buscou as sandálias e me ofereceu seus pés. Depois que o ajudei a calçar a primeira
sandália, solicitando sua ajuda, pois acredito que ele possa fazer isto sozinho, ele tirou da
sandália um dos pés já calçados. Eu então não voltei a ajudá-lo e falei sobre isso com ele.
Uma outra pessoa da equipe chegou na sala neste momento e ele gritando solicitou
sua ajuda. Ele queria sair para o pátio. Eu coloquei-a par do que havia ocorrido falando alto
envolvendo-o nessa questão. Ela então reforçou a condição de que ele só poderia sair
calçado. Colocou-se disponível para ajudá-lo. Neste momento Paulino tentou sair diversas
vezes descalço. Não queria colocar as sandálias e começou a tirar as roupas protestando.
Apontamos isto para ele, que estávamos entendendo que ficara zangado, mas que não
abriríamos esta possibilidade de sair descalço. Enfatizamos que ele estava tirando suas
roupas para nos dizer isto, mas que não seria possível ir ao pátio naquele dia sem as
sandálias. O que impressionou neste dia foi o esforço que este menino fez para recusar esta
xciii
ponderação. Ele tentava anular nossa fala e tentava sair como se fosse invisível. Num
determinado momento eu disse isso a ele. _Paulino, você não é invisível! Eu estou vendo
você e você está me vendo também. Estou entendendo que você acha que não existe, que
pode passar desapercebido pelos lugares, mas eu olho para você e vejo que você é um
menino, que está muito chateado porque não pode sair sem as sandálias, mas que também
está incomodado com o fato de que nós estamos dizendo que você existe. Ele olhou firme
neste momento e disse “rua”, palavra que diz quando quer ir embora. Palavra também que
quando não acatada rapidamente faz com que sua força apareça ferozmente. Ele bate com
força, grita, esmurra a porta. Seu corpo “flácido” se transforma em outro. Ganha brilho e
cor.
Levei-o para fora marcando que entendi suas palavras. Quando encontrei Sônia e
perguntei se ela tinha ouvido algumas novas palavras que Paulino estava dizendo, Sônia
espantada me diz que “ele só fala aqui”. Coloco que ele havia dito “zabumba” e que fiquei
interessada em saber se era o nome que ele dava aos pedaços de papel que gostava de
cortar. Sônia me diz que não sabe e me pergunta respondendo em voz alta “_ele entende?”
Aponto que não há dúvidas com relação a isto, mas que era preciso que ela escutasse o que
ele diz.
Esta intervenção causou em Sônia um grande efeito. Na semana seguinte ela me viu
e me disse que ele “falou várias coisas”. Que a filha de onze anos “anotou” as palavras. Ela
diz que ele também começou a ir ao banheiro e a comer coisas diferentes de “papinha”.
Sônia é atendida por uma pessoa da equipe, que estava de férias quando ocorreu este
episódio e em seu atendimento falou sobre “meu interesse em atender o pai de Paulino”. Eu
havia perguntado como o pai lidava com o “zabumba” e transferencialmente meu desejo, de
que eles escutassem o “zabumba” parece ter sido escutado.
A constituição de um sujeito implica, como nos mostrou Lacan em duas operações,
que já foram citadas neste trabalho: a alienação e separação. Gostaria de arriscar um pouco
e pensar neste caso como elas ocorrem. Na verdade como a alienação ocorre, uma vez que
Paulino não chega a fazer a operação da separação.
Aprendemos que a alienação é o primeiro momento da operação, momento em que
o sujeito vai ser convocado a mergulhar nos significantes do Outro, com uma entrega total.
Se o Outro -que como já vimos é na maioria das vezes representado na figura materna, mas
xciv
pode ser qualquer outro que faça essa função- oferece ao sujeito uma enxurrada de
significantes há um segundo momento em que ele escolhe os significantes, que em si nada
significam. Esses primeiros significantes, que nada significam articulam-se em cadeias e
passam a só ter sentido quando articulados a um outro significante. Este processo que
ocorre ainda na alienação implica o sujeito numa escolha necessária de que ele para tornar-
se sujeito precisa abrir mão do corpo de necessidades sendo capturado e capturando-se num
significante. O desejo desse Outro será fundamental nessa constituição, pois a transmissão
dos significantes marcará o lugar desse sujeito.
Há uma discussão importante apresentada por Colette Soler
49
, psicanalista francesa,
sobre a alienação nas crianças autistas. A autora sustenta que o autista permaneceria na
“porta de entrada” da alienação, ou seja, que não faria esta operação. Contudo, como dizer
que a alienação não ocorreu com Paulino? Será que podemos dizer que ele não se alienou
no discurso da mãe? Ou de forma contrária, que ele tenha se alienado em demasia.
Petrificou-se num significante oferecido agarrando-se a ele e sustentando a marca desse
único lugar. É como se não tivessem outros significantes para Paulino diferentes do “ele
não entende”, e em cada ato da mãe isto se ratificasse ainda mais. De outro modo, Paulino
também escolhe em cada ato colocado no turno entre muitos uma posição de recusa de sair
desse lugar de não sujeito, que se deixa amorfo, em um canto da sala. É preciso estudar
mais este ponto, aprimorá-lo, mas este caso é muito instigante para pensar esta questão.
Observamos neste caso que a operação de separação não ocorreu, pois este é o
momento em que o sujeito separa-se do Outro. É na falta que ele poderá aparecer, na
hiância de um significante para o outro e não na petrificação a um sentido, que cola o
sujeito a um único lugar, prendendo-o para sempre e o matando, como disse Ribeiro em seu
artigo “o último véu”
50
, quando fala do autismo como “um desejo de morte encarnado”,
pois ele faz uma escolha que nem sequer pode desejar.
Ao incluir a presença do pai como alguém que pode falar do filho, pois ela não pode
dizer tudo sobre ele, Sônia parece ter dado um passo fundamental no caso, uma vez que
abre pela primeira vez a possibilidade de que uma falta se apresente para esse menino e que
49
SOLER, C. Autismo e Paranóia, in Autismo e esquizofrenia na clínica da esquize, Alberti, S. (org), Rio de
Janeiro, Marca d´Água Livraria e Editora, 1999.
50
CARNEIRO RIBEIRO, Maria Anita. “O último véu”, Revista de Psiquiatria e Psicanálise com Crianças e
Adolescentes, v. I, nº 2. 1995b.
xcv
talvez os significantes possam começar a deslizar marcando para ele outros encontros com
os outros significantes. O vislumbrar de uma separação parece se colocar para Paulino, que
tem se inquietado com o rumo que o tratamento dele tem tomado, parecendo não querer
abrir mão desse lugar.
A entrada do pai no serviço, neste momento pelo discurso, que já é fundamental,
pois não é a presença física e sim a função paterna que precisa entrar como um corte entre a
mãe e Paulino, para que o desejo possa emergir. Não sabemos se isto ocorrerá, mas esta
aposta precisa ser encarnada em cada atendimento e em todos os casos para que o sujeito do
inconsciente possa enfim ser escutado.
xcvi
CONCLUSÃO
Após dois anos de pesquisa no âmbito do Programa de Pós-Graduação em
Psicanálise e Pesquisa e Clínica em Psicanálise, tendo como proposta o estudo teórico da
psicanálise articulado a prática clínica que foi desenvolvida no CAPSI Eliza Santa Roza,
encerro este trabalho sem a pretensão de esgotar o tema, mas de ter contribuído com
aberturas neste campo da saúde mental tão novo e fértil.
Inserir a clínica no dispositivo do CAPSI, local privilegiado para o tratamento de
crianças autistas, psicóticas e neuróticas graves parece óbvio, pois nos sugere o espanto
quando isto não ocorre. Mas dizer que há uma clínica em CAPSI e trabalhar com esta
direção são dois pólos distantes na prática da saúde mental. Em muitos encontros realizados
com outros profissionais que trabalham em CAPSIS no Rio de Janeiro ou em outras
cidades do Brasil observamos que em vários CAPSIS não há uma direção clínica, muito
pelo contrário, há práticas que primam por uma pedagogização que calam qualquer
possibilidade de escuta do sujeito.
A proposta deste trabalho foi tentar mostrar que não há trabalho possível com uma
clientela tão grave sem que a clínica da psicanálise seja tomada como direção privilegiada
para esta escuta, já que é ela que inclui a dimensão de sujeito do inconsciente na escuta a
um paciente.
A pesquisa realizada no CAPSI foi fundamental para a realização deste trabalho.
Minha inserção de pesquisadora e profissional me possibilitou o exercício de um olhar que
ora estava dentro e ora estava fora podendo estranhar questões que talvez sem a
possibilidade de realizar este trabalho eu não faria. Como aluna pude ter um distanciamento
de algumas práticas muitas vezes naturalizadas e que nos paralisam quando não
exercitamos esta dimensão. Quero dizer que esta pesquisa me fez construir uma direção da
clínica da psicanálise neste campo de modo mais radical, ou seja, de não ceder diante da
escuta do sujeito, de entender que qualquer diretriz política precisa se submeter à clínica do
sujeito, porque de outro modo não estaremos tratando o paciente.
xcvii
Recentemente o Ministério da Saúde publicou um documento intitulado “Caminhos
para uma Política de Saúde mental Infanto-Juvenil”
51
, onde o sujeito foi incluído pela
primeira vez num documento da política pública para a área da infância e adolescência. Isto
demonstra o quanto a dimensão do sujeito precisa ser tomada no rigor a que ela nos
convoca para que haja uma ética clínica em todas as nossas ações. Não institucionalizar as
crianças que enlouquecem requer muito trabalho, quando o caminho mais fácil seria
esquecê-las num abrigo ou numa internação. Incluir a clínica da psicanálise nos implica a
todos e nos responsabiliza como sujeitos de desejo.
A lógica da clínica é soberana e o desejo de estar neste processo deve ser incluído
como condição de trabalho, pois também no CAPSI podemos excluir um paciente do
direito de ser ouvido como sujeito quando abrimos mão das premissas tão caras à
psicanálise.
Longe de ter esgotado um tema, pois esta não era minha pretensão, espero ter aberto
uma porta fecunda para trabalhos neste campo que falem mais da clínica, das dificuldades,
tensões, erros e acertos. Há muitas questões a serem trabalhadas, estamos todos aprendendo
com esta clínica, mas espero ter podido dizer algo do campo onde me incluo, dizer um
pouco do que a psicanálise me causou. Termino este trabalho com o desejo de aprimorar os
pontos trabalhados por mim nesta dissertação, já que estou iniciando meus estudos na
psicanálise, e com o desejo de que possa ser uma contribuição no campo da saúde mental
da infância e adolescência.
51
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Caminhos para uma Política de Saúde Mental Infanto-Juvenil / Ministério da
Saúde , Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. – Brasília:
Editora do Ministério da Saúde, 2005.
xcviii
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