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Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais
San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP).
A Cultura Norte-americana como um Instrumento do
Soft Power dos Estados Unidos: o caso do Brasil durante a
Política da Boa Vizinhança.
Andreza da Silva Galdioli
São Paulo
2008
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2
Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais
San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP).
A Cultura Norte-americana como um Instrumento do
Soft Power dos Estados Unidos: o caso do Brasil durante a
Política da Boa Vizinhança.
Andreza da Silva Galdioli
Dissertação apresentada à
Banca Examinadora do
Programa de Pós-Graduação
em Relações Internacionais da
UNESP, UNICAMP, PUC-SP,
como exigência parcial para
obtenção do título de mestre
em Relações Internacionais,
sob a orientação do Prof. Dr.
Clodoaldo Bueno.
São Paulo
2008
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3
À minha família, por todo
apoio e paciência.
4
Banca Examinadora
_____________________________________________________
_____________________________________________________
_____________________________________________________
_____________________________________________________
5
SUMÁRIO
Agradecimentos............................................................................................p. 7
Resumo..........................................................................................................p. 8
Introdução.....................................................................................................p.10
CAPÍTULO 1
Cultura e Poder nas Relações Internacionais............................................p.15
1.1 O conceito de poder nos últimos séculos..............................................p.18
1.2 A cultura como um elemento do poder ................................................p.21
1.3 O conceito de poder em dois espectros: poder brando e poder duro....p.27
CAPÍTULO 2
Tradições da Política Externa Norte-Americana para a América
Latina ...........................................................................................................p.36
2.1 A construção de uma identidade nacional
norte-americana.........................................................................................p.37
2.2 Tradições da política exterior norte-americana para a América
Latina ........................................................................................................p.59
2.2.1 Brasil e Estados Unidos: aproximação com o advento da
República brasileira ..........................................................................p. 76
CAPÍTULO 3
A Era da Boa Vizinhança ...........................................................................p.85
3.1 A Americanização do Brasil ..................................................................p.88
6
3.2 O Office of the Coordinator of Inter-American Affairs
(OCIAA) .............................................................................................p.104
3.2.1 O Cinema ..................................................................................p.108
3.2.2 O Rádio......................................................................................p.115
3.2.3 A Imprensa ................................................................................p.118
3.2.4 A União Cultural Brasil-Estados Unidos (UCBEU) .................p.123
3.3 E quando a guerra acabou........................................................................p.126
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................p.133
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................p.142
7
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus pais pelo apoio e por me ensinarem a lutar pelos meus
sonhos. Agradeço especialmente à minha ir pela amizade, tolerância,
serenidade e incentivo nos momentos difíceis e ao meu companheiro, Bruno, pela
paciência e força para a conclusão desse projeto.
Agradeço ao meu eterno mestre Professor Antonio Manoel dos Santos,
que, desde a graduação, orientou-me e confiou em minha capacidade.
Ao Professor Clodoaldo Bueno, agradeço pela orientação para a realização
deste trabalho.
Registro também minha gratidão ao Professor Luis Fernando Ayerbe e à
Professora Cristina Soreanu Pecequilo, por suas valiosas contribuições como
membros da banca de meu exame de qualificação.
Agradeço aos colegas do grupo de mestrado do qual fiz parte,
especialmente aos queridos Fabrício Martins e Patrícia Vasconcellos sempre
prestativos e atenciosos.
Não poderia deixar de mencionar minha gratidão ao Programa de Pós-
Graduação San Tiago Dantas pelo acolhimento e suporte à minha pesquisa, bem
como à CAPES pelo financiamento que viabilizou a realização deste trabalho.
Agradeço, por fim, a todos aqueles que acompanharam essa jornada e que
torceram por mim.
8
RESUMO
A Política da Boa Vizinhança, lançada no governo Presidente Franklin Delano
Roosevelt (1933-1945), sinaliza uma reorientação da política externa norte-americana
para a América Latina. A postura agressiva dos Estados Unidos em suas relações com a
região sul do continente americano desde o início do século XX mostrou-se
contraproducente aos objetivos norte-americanos naquela área, especialmente
considerando-se a crescente influência que a Alemanha nazista exercia entre os latino-
americanos. Nesse contexto, tomamos o caso brasileiro para demonstrar de que forma
os Estados Unidos abandonam uma postura diplomática baseada no hard power (poder
duro) e adotaram uma linha mais soft (branda) em sua política externa para a América
Latina. Nesse sentido, busca-se, por meio desta pesquisa, apresentar a cultura norte-
americana como um instrumento de poder dos Estados Unidos em suas relações com o
Brasil à época da Segunda Guerra Mundial.
Palavras-chave: poder brando, cultura, Brasil, Estados Unidos.
9
ASTRACT
The Good Neighbor’s Policy, released in Franklin Delano Roosevelt’s
government (1933-1945), sinalizes a new orientation in North American foreign policy
for Latin America. The aggressive posture of the United States, used in its relations with
South America since the beginning of the twentieth century, was considered
contraproducent to the American objectives in the area, especially considering the rising
influence of the Nazi Germany among Latin Americans. In this context, we take the
case of Brazil to show how the United States abandoned a diplomatic posture based on
its hard power and adopted a softer line in its foreign policy for Latin America. In this
way, this research aims to present the North American culture as an instrument of the
United States powers in its relations with Brazil in the epoch of Second World War.
Key words: soft power, culture, Brazil, United States.
10
Introdução
A contemporaneidade é marcada pela penetração da cultura ocidental e do
conceito de Estado-Nação às mais variadas regiões do mundo, fomentando, desse modo,
o debate sobre a universalização da cultura ocidental.
Não é objetivo desse trabalho abordar as contradições que envolvem a temática
da universalização cultural ou de uma cultura global. No entanto, não podemos nos
esquivar da necessidade de rever os paradigmas acerca de temas como imperialismo,
hegemonia, poder e a importância do elemento cultural para a compreensão desses
( )-10.1537(d)-0.295585(2955882)3.74244( )20.295585(e)3.766436(.766436(bmc.229(a)3.74244(c)3.7426(c)3.74(o)-0.295585.1( )250]TJ-26 )250]TJ-266436(4-377.98335.45(c295585(s)-1.Dd)-0.2955( )-70.1891(o)-0.295585(b)-0.295585(j)-103.707a)3.74( )-140.229(d)-0.25585(o)-0.295585(,)9.85933( )-10]TJ-26643.707a259(c)3.74(uu)3.74(r)2.80439(ab)-0.3.74(d)-0.2954( )-)3.74244( )250]TJ-2295585(j)-103.707aumpjempntmo-0.146571( )250.1525(f)23.7068(p)-0.295585(o)-0.295585(d)-0.dânid
11
Roosevelt, utilizou o poder brando como um instrumento de sua Política da Boa
Vizinhança
2
.
A participação de estruturas do governo dos Estados Unidos no processo de
penetração e difusão da cultura norte-americana no Brasil, a partir da Segunda Guerra
Mundial, foi um misto de diplomacia cultural e disputa ideológica contra o
imperialismo alemão. A adoção da cultura norte-americana como paradigma cultural
alterou não só as relações governamentais brasileiro-estadunidenses, mas também a
percepção que a sociedade civil brasileira tinha sobre os Estados Unidos.
Apesar do poder brando escapar do total controle governamental, a introdução
da cultura norte-americana no Brasil ocorreu por meio de uma forte orientação do
governo dos Estados Unidos, principalmente ao considerar-se a parceria entre o
Presidente Roosevelt com o milionário Nelson Rockefeller, na década de 1940. Para
Antonio Pedro Tota, a Política da Boa Vizinhança de Roosevelt, que teve Rockefeller
como chefe do Office of the Coordinator of Inter-American Affairs, funcionou como
instrumento de um plano de americanização. O Departamento de Estado, nessa
conjuntura mundial, criou uma verdadeira “fábrica de ideologias” a serem implantadas
no Brasil
3
.
Trabalha-se também nessa pesquisa com a hipótese de que os Estados Unidos,
no decorrer de sua história como nação independente, sempre precisaram forjar um
“inimigo externo” comum ao continente americano. Essa tradição inicia-se no século
XIX, com a Doutrina Monroe e a “missão” estadunidense de guardar a independência
dos países latino-americanos, então recém conquistada. A partir de então, a missão de
proteger o continente americano parece enraizar-se na política externa norte-americana
2
NYE, J. Ibid, p. 9.
3
TOTA, A. P. O Imperialismo Sedutor: a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. São
Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 19.
12
para a região, que a América Latina, em vários momentos da história, viu-se ligada
aos Estados Unidos na luta contra “inimigos externos”, como o nazi-fascismo, o
comunismo e, mais recentemente, o terrorismo.
Além da Doutrina Monroe, o Destino Manifesto também pode ser apontado
como uma das raízes da cultura política do país para a América Latina. A doutrina do
Destino Manifesto, desenvolvida durante a primeira metade do século XIX, serviu como
argumento para os Estados Unidos durante o período de sua expansão territorial. De
acordo com a doutrina, cabia ao povo norte-americano expandir seu território,
conquistando novas fronteiras não apenas por sua vontade de expansão, mas por sua
obrigação de espalhar os valores americanos, sintetizados no par democracia/república
4
.
Tanto a Doutrina Monroe, como o Destino Manifesto serviram como base para o
desenvolvimento da cultura política dos Estados Unidos, principalmente no que diz
respeito às suas relações com a América Latina. Associado à democracia, ao liberalismo
e ao puritanismo, o Destino Manifesto e a Doutrina Monroe funcionam como moldura
da política externa norte-americana, que, em sua “missão civilizadora”, encontra
justificativa para difundir seus valores culturais pelo mundo.
Nesse sentido, o presente trabalho buscou apontar a importância da cultura como
um recurso de poder. Relegada a um papel secundário nas relações internacionais, a
cultura é considerada pelos realistas como um recurso de low politics (baixa política),
em contraste com a high politics (alta política) que daria conta dos aspectos mais
4
PECEQUILO, C. S. Continuidade ou Mudança: A Política Externa dos Estados Unidos. Tese de
Doutorado em História. Universidade de São Paulo, 1999, p. 26.
13
“nobres” da política internacional, tais como recursos militares, diplomáticos e
estratégicos
5
.
Baseando-se na proposição de Nye, vislumbra-se o papel da cultura como um
recurso de poder brando de importante expressão na construção da hegemonia
estadunidense, tomando como exemplo o caso do Brasil à época da Segunda Guerra
Mundial.
No primeiro capítulo, procuramos compreender a natureza mutante do conceito
de poder nos últimos séculos e, partindo das proposições de Nye sobre a divisão do
poder em dois espectros, buscamos apresentar a importância da cultura como um
elemento do poder brando. Recorremos também às contribuições de Antonio Gramsci
acerca do tema da hegemonia. Nesse sentido, buscamos estabelecer um paralelo entre o
trabalho de Nye e de Gramsci, que nos permitiu vislumbrar uma relação entre cultura,
poder e hegemonia.
No segundo capítulo, dedicamo-nos a apresentar um breve histórico das relações
entre os Estados Unidos e a América Latina. Para tanto, encontramos a necessidade de
buscar na historiografia dos Estados Unidos as bases para a compreensão da identidade
nacional norte-americana. Compreendemos os valores que compõem o imaginário
estadunidense e como tais valores podem ser identificados na tradição da política
exterior dos Estados Unidos para a América Latina.
Finalmente, o último capítulo deste trabalho aborda o objeto de estudo dessa
pesquisa, qual seja a penetração da cultura norte-americana no Brasil à época da
Segunda Guerra Mundial como um instrumento do poder dos Estados Unidos.
5
Para um aprofundamento do debate entre realistas e globalistas acerca do papel das relações culturais
nas relações internacionais ver: HERZ, M. Política Cultural Externa e Atores Transnacionais: o caso da
Fundação Ford no Brasil. Dissertação de Mestrado apresentada ao IUPERJ, Rio de Janeiro, 1989, cap. I.
14
Desse modo, não foi objetivo dessa pesquisa apresentar a influência do
American way of life no Brasil como uma imposição do mais forte para o mais fraco. O
que buscamos por meio desse trabalho foi compreender a cultura como um recurso de
poder, apresentando o caso das relações brasileiro-estadunidense no contexto da Política
da Boa Vizinhança.
15
Cultura e Poder nas Relações Internacionais
A potência vai muito além do militar, do jurídico, do executivo e da
administração. Pelas hierarquias complicadas, que se recortam e que
fazem com que o poder supremo se espalhe e se dilua em uma infinidade
de subpoderes, o econômico, a cultura e os valores participam muito para
a vontade que têm muitos homens de dominar os outros.
(Jean-Baptiste Duroselle, 1992).
16
O cenário internacional tem passado por mudanças profundas desde a formação
do Estado Moderno e a descoberta do Novo Mundo pelos europeus. Nos últimos
séculos a história presenciou a ascensão e queda de grandes potências mundiais
6
,
legando-nos um cenário internacional mutante. Essa é também a percepção de Jean-
Baptiste Duroselle, que aponta a regularidade do nascimento e morte dos impérios
7
.
Nesse contexto, diferentes ordens mundiais são estabelecidas de acordo com a realidade
do cenário internacional, entendendo-se uma ordem mundial como um conjunto de
entendimentos vigentes em um amplo contexto. Tais entendimentos regem as atividades
de todos (ou quase todos) integrantes da sociedade internacional, em uma variedade de
temas
8
.
Para compreender a distribuição de poder em um dado contexto histórico, deve-
se levar em conta o conjunto de entendimentos que rege as atividades dos atores
internacionais
9
. Rosenau compreende que, para melhor entender a formação de uma
ordem mundial, devemos considerar as estruturas básicas que sustentam tal ordem. Para
ele, essas estruturas podem ser dividas em três níveis fundamentais: o vel ideacional
ou intersubjetivo, o nível objetivo ou comportamental e o nível político ou agregado
10
.
O primeiro desses níveis estruturais está relacionado às crenças, aos contextos
mentais, aos valores compartilhados e aos outros “filtros”, compostos por atitudes e
percepções pelos quais passam os eventos de política mundial antes de provocarem
reações. Esse nível seria aquilo que as pessoas percebem intuitivamente, sem muita
clareza. A segunda parte da estrutura básica de uma ordem mundial consiste no
comportamento dos atores, naquilo que fazem regularmente para expressar o que
pensam ou percebem. O terceiro nível de atividade é mais formal e organizado. Nesse
6
KENNEDY, P. E. Ascensão e queda das grandes potências. Editora Campus, 1994, passim.
7 DUROSELLE, J. B. Todo império perece. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000, p. 373.
8
CZEMPIEL, E., ROSENAU, J. N. Governança sem Governo. São Paulo, Editora UNB. 2000, p. 21-22.
9
YOUNG apud Rosenau, ibid., p. 21-22.
10
ROSENAU, Ibid, p. 28.
17
nível, os atores estabelecem regimes e instituições internacionais como meio de
organizar suas percepções e comportamentos acerca de temas globais
11
.
Como exemplo dessa estrutura, tem-se a ordem mundial vigente à época da
Guerra Fria. Nesse período, um conjunto de premissas que divide o mundo entre
capitalistas e comunistas, aceito pelos atores internacionais, colocando os Estados
Unidos e a União Soviética em uma posição central de disputa ideológica pelo poder e,
em segundo plano, os aliados dos respectivos países. Assim, essa divisão do mundo em
dois grandes blocos consiste em um consenso intersubjetivo. No nível comportamental,
durante o período em questão, a atitude dos países de apoiar as políticas estadunidenses
ou soviéticas expressa a compreensão que esses atores tinham do sistema de uma ordem
bipolar
12
. A OTAN e o Pacto de Varsóvia são exemplos de instituições estabelecidas
dentro do bloco capitalista e do bloco socialista, respectivamente, dando formalidade às
percepções e aos comportamentos dos atores internacionais durante a Guerra Fria.
Considerando a estrutura de ordem mundial proposta por Rosenau, entende-se
que o primeiro nível dessa estrutura, ou seja, o nível ideacional reflete a importância do
elemento cultural nas relações internacionais. Nesse nível estrutural intersubjetivo,
determinados valores culturais transcendem fronteiras nacionais e são percebidos pela
comunidade internacional, ou por parte dela, como valores consensuais. O consenso
pode levar à hegemonia cultural de uma determinada região ou país na ordem mundial,
funcionando como um eficaz instrumento de poder no cenário global.
Desse modo, partindo da relação entre poder e cultura, busca-se uma definição
para o conceito de poder que abranja a importância do fator cultural nas relações
internacionais.
11
Ibid, p. 28-29.
12
Ibid, p. 28-29.
18
1.1 O conceito de poder nos últimos séculos
Como mencionado anteriormente, nos últimos séculos, o cenário internacional
foi palco de diferentes ordens mundiais, resultado do sucesso ou fracasso de atores que
buscam o poder. Da mesma forma que o decorrer da história culminou com a
emergência de diversas ordens mundiais, as quais devem ser compreendidas dentro de
suas peculiaridades, a idéia de poder também é diversa e não pode ser pensada como
algo estático, ou imutável ao desenrolar dos séculos.
Fala-se muito em poder nas relações internacionais, mas qual é a definição desse
conceito?
Para Joseph Nye, poder “é a capacidade de obter os resultados desejados e, se
necessário, mudar o comportamento dos outros para obtê-los”
13
. O analista alerta para o
problema de se definir como poder a posse de recursos que nada mais são que fontes de
poder. Entre esses recursos estão: grande área territorial e população, recursos naturais
em abundância, força militar e econômica, estabilidade social, etc. O grande problema
em entender o conceito de poder como a posse de recursos que podem, ou não, produzir
o mesmo é o fato de que muitas vezes países com a posse de alguns ou, até mesmo,
muitos desses recursos não conseguem transformar essa vantagem em um poderio
efetivo
14
.
Seguindo essa mesma linha, Norberto Bobbio argumenta que o poder social -
entendido como desde a capacidade geral do homem de agir até a capacidade do homem
em determinar o comportamento de outro homem - é sempre distinto do poder sobre as
coisas. Para ele o poder não reside na posse de uma coisa, ou de um recurso de poder,
13
NYE, J. S. Paradoxo do Poder Americano. São Paulo: Editora UNESP, 2002, p.30
14
NYE, J. S. Op.Cit., 2004, p. 3.
19
mas na relação entre as pessoas. O poder social reside no fato de que existe um outro,
que é levado por mim a comportar-se de acordo com a minha vontade
15
.
Além da confusão conceitual em compreender-se poder como a posse dos
recursos que podem gerá-lo, Nye também aponta para a constante mudança da natureza
do poder. Do mesmo modo que as mudanças no cenário internacional dos últimos
séculos levaram à emergência de diferentes ordens mundiais, essas mudanças também
alteraram a idéia acerca do conceito de poder.
Tradicionalmente, o poderio de uma grande potência esteve relacionado à sua
capacidade de organizar sua força bélica. O grande palco de disputas de poder era a
guerra. No entanto, com o decorrer dos séculos e com o desenvolvimento das
tecnologias, as fontes de poder não se restringem mais à esfera militar, adquirindo
novos contornos
16
.
Atualmente, observa-se que a idéia de poder tem se afastado do foco na força
militar e na conquista
17
. Pode-se destacar quatro fatores fundamentais que contribuem
para tal afastamento. O primeiro deles seria a Guerra Fria, provando que as armas
nucleares são tão temíveis e destrutivas que sua utilização tornou-se altamente inviável
por seus custos social e econômico. Uma segunda razão para esse distanciamento entre
poder e força militar foi o triunfo do nacionalismo, que fez com que fosse cada vez mais
difícil para os impérios conquistar e governar povos que passaram a se unir em torno do
ideal de nação. A terceira causa a ser considerada são as transformações ocorridas no
interior das sociedades, principalmente dos países desenvolvidos. Hoje em dia, em um
mundo pós-industrial, os setores da sociedade aspiram mais ao bem-estar social que à
15
BOBBIO, N.Dicionário de Política. Brasília: UNB, 2001, p. 933-934.
16
NYE, J. S. Understanding International Conflicts: an introduction to theory and history. New York:
Longman, 2000, p. 31.
17
NYE, ibid, p. 31.
20
glória das grandes conquistas. Uma última razão para esse fenômeno seria o fato de a
guerra trazer prejuízos às metas econômicas das grandes potências mundiais
18
.
Com a ascensão do império britânico e a criação de um mecanismo financeiro
avançado, resultado do excedente de capital acumulado por sua burguesia, tem-se, cada
vez mais, a valorização da economia como uma fonte de poder. A organização de um
sistema creditício eficiente deu impulso à Revolução Industrial inglesa, criando o
abismo entre o Ocidente e o resto
19
.
Desse modo, diferentes elementos de poder têm importância de acordo com os
períodos de tempo. Esses elementos não são estáticos, estão em constante mudança no
cenário internacional
20
. A tabela a seguir ilustra a mudança no contexto internacional
dos últimos séculos, considerando as principais potências de cada período e suas fontes
de poder.
Quadro 1
Leading States and Major Power Resources (p. 57)
Period Leading State Major Resources
Sixteenth century Spain Gold bullion, colonial
trade, mercenary armies,
dynastic ties
Seventeenth century Netherlands Trade, capital, markets,
navy
Eighteenth century France Population, rural industry,
public administration,
army
Nineteenth century Britain Industry, political
cohesion, finance and
credit, liberal norms,
island location (easy to
defend)
Twentieth United States Economic scale, scientific
and technical leadership,
18
Ibid, p. 31-33.
19
KENNEDY, Op. Cit., passim.
20
NYE, J. S. Understanding International Conflicts. An introduction to theory and history. New York:
Longman, 2000, p. 58.
21
universalistic culture,
military forces and
alliances, liberal
international regimes, hub
of transnational
communication and
information technology.
Fonte: NYE, J. Understanding International Conflicts: an introduction to theory and
history. Longman, 2000.
1.2 A cultura como um elemento do poder
A circulação de idéias no espaço da cultura tem poder de influenciar o processo
decisório do agente. Suas decisões dependem do meio cultural em que está inserido e
são frutos da interação entre agente e cultura
21
.
Nesse sentido, as idéias compõem um elemento cultural de poder, já que o
conjunto de crenças consolidadas e atuantes, preferências e opiniões motivam e
influenciam a ação de indivíduos e grupos sobre políticas e seus fundamentos. As idéias
têm o poder de influenciar políticas e comportamentos cristalizados ao longo de um
período histórico
22
,
alterando paradigmas e ordens vigentes.
A persuasão sempre foi uma forma importante de fazer política. Em uma era de
informação global, o poder de influenciar opiniões mostra-se ainda mais importante. A
cultura é um meio eficiente de garantir essa persuasão e exercer poder de atração na
política internacional. A globalização da cultura tem uma longa história
23
.
Os impérios caracterizam-se pela imposição de um controle central sobre um
determinado território, geralmente, com uma multiplicidade de grupos étnicos. O poder
gerado pela atração cultural é um elemento importante na construção e manutenção
desses impérios. Os grandes impérios foram aqueles que conseguiram estabelecer um
21
MARTINS, E. C. R. Relações Internacionais: Cultura e Poder. Brasília: IBRI, 2002, p. 34-37.
22
Ibid, p. 41.
23
HELD, D. et al. Global Transformations. Politics, Economics and Culture. Stanford University Press,
1999, p. 331.
22
controle político-militar efetivo, reforçado por um poder cultural capaz de exercer
atração sobre as diversas etnias dentro de seus territórios
24
.
Dos impérios do passado, Roma Antiga e o império britânico do século XIX
destacaram-se como centros capazes de exercer influência no cenário internacional. O
poder e a capacidade de influenciar o mundo advindo dessas potências não se deveram
somente à força militar, mas também à influência cultural
25
. Esses dois pólos de poder,
cada qual ao seu tempo, foram invejados, odiados e derrubados, confirmando a
regularidade apontada por Duroselle.
O império romano distingue-se de seus predecessores pela implantação de um
sistema político eficiente, capaz de centralizar o controle de uma enorme faixa
territorial. Esse controle central pôde ser estabelecido graças a uma série de
empreendimentos que criaram um consenso sobre a centralização desse poder. A
capacidade logística, a construção de estradas e a organização do império foram
importantes para o exercício desse controle político. Em paralelo a essas melhorias, uma
série de inovações culturais trabalhou em favor da construção de laços que uniam todo o
império em torno de uma ordem política comum. A alfabetização foi elemento chave
dessa cultura, com o latim e o grego adotados como línguas oficiais do império. A
construção de teatros e anfiteatros fez com que o drama chegasse às diversas províncias
do império. O cristianismo foi adotado como religião oficial e os cultos religiosos locais
foram gradualmente influenciados pela cultura romana
26
.
O império britânico foi o maior império global. Para estabelecer domínio entre o
centro e a periferia, o governo valeu-se da condução de uma política de educação
imperial e promoveu a construção de uma infra-estrutura de comunicações imperial. O
24
Ibid, p. 333-334.
25
COHEN, E. A. A história e a hiperpotência. Política Externa, São Paulo, v. 13, n. 3, dez-fev. 2004-
2005, pp. 67-77.
26
HELD, D., et al, Op. Cit., p. 333-334.
23
sistema de educação nas colônias serviu de base para a difusão da língua, de idéias e
práticas culturais inglesas. Houve um significativo movimento de estudantes das elites
coloniais que iam buscar em Oxford e Cambridge uma formação profissional. Esse
intercâmbio educacional exerceu grande influência nos serviços administrativos das
colônias e, até mesmo, nos governos estabelecidos após a independência das mesmas. O
império britânico promoveu a difusão dos sistemas de telecomunicações, utilizados para
o contato entre a metrópole e as colônias inglesas, facilitando o controle político
britânico em terras distantes
27
.
O advento do protestantismo, anterior à ascensão do imperialismo inglês,
também constituiu um fator cultural de importante contribuição para a consolidação do
poderio britânico. O Calvinismo, uma das vertentes resultantes da Reforma Protestante
e conhecido como a religião do capitalismo
28
contribuiu para o desenvolvimento da
mentalidade capitalista e atendeu aos interesses de uma classe burguesa em ascensão,
defendendo que o homem provava a sua e demonstrava a sua predestinação por meio
do amor ao trabalho e do enriquecimento.
A ideologia liberal foi também um elemento importante da cultura do império
britânico. As bases do liberalismo surgem no século XVIII, com o Iluminismo.
Contestando o mercantilismo e defendendo os interesses da burguesia, os liberais
fundamentaram-se na defesa da propriedade privada, no individualismo econômico e na
liberdade de comércio e produção.
A Reforma Protestante e a ideologia liberal proporcionaram o fortalecimento da
classe burguesa, que, com a acumulação de capital, pôde financiar a Revolução
Industrial na Inglaterra.
27
HELD, D., et al, Op. Cit., pp. 333-334.
28
WEBER, M. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Editora Martins Claret, 2005.
24
Tanto o protestantismo como o liberalismo fizeram parte da estrutura ideacional
da ordem mundial do século XIX. O empreendedorismo protestante e o individualismo
liberal impulsionaram a Revolução Industrial e levaram a Inglaterra a tornar-se o maior
império global. Para Carlos Lessa, a primeira metade do século XIX foi um período
“marcado pela ascensão rápida da liderança britânica, estabelecendo as bases de uma
nova ordem econômica mundial, costurada pelo liberalismo econômico”
29
.
no século XIX, a Inglaterra apresentava-se como uma potência diferente das
outras. Sua influência não podia ser dimensionada tomando-se como base o tradicional
critério militar, pois seu poder evidenciava-se em outras áreas, tais como a Marinha
Real Britânica, as finanças e a influência colonial britânica. Além das colônias, zonas
formais de domínio estabelecidas além-mar, a influência informal de uma sociedade
próspera e em expansão fez com que o poder da Grã Bretanha fosse sentido em todo
mundo
30
.
Tomando-se o caso inglês do século XIX, observa-se como uma cultura
favorável ao desenvolvimento econômico pôde ser considerada um elemento de poder.
Não que uma cultura econômica favorável ao crescimento baste por si para gerá-lo,
mas o império britânico constituiu um exemplo de como valores culturais podem gerar
poder e moldar ou “costurar”, nas palavras de Lessa, uma ordem mundial.
O imperialismo ocidental do século XVI ao século XX criou uma infra-estrutura
para a difusão da cultura ocidental no mundo. O período em questão marca a ascensão
do ocidente e a disseminação das idéias de cultura nacional e nacionalismos
31
.
O impacto do homem ocidental deu-se em todos níveis, evidenciando a dinâmica
do poder mundial. Em 1800, os europeus ocupavam cerca 35% da superfície terrestre,
29
LESSA, A. C. História das Relações Internacionais. A Pax Britannica e o Mundo no Século XIX.
Petrópolis: Editora Vozes, 2005, p. 87.
30
KENNEDY, P. Op. Cit., p. 154-155.
31
HELD, D. et al, Op. Cit., p, 336.
25
já, em 1878, esse número aumentara para 67%, chegando ao ápice de 84%, em 1914. A
participação da Grã-Bretanha na divisão colonial do mundo foi marcante e sua
influência estendeu-se desde suas relações econômicas, por meio de negociantes,
transportadores marítimos e cônsules, até a penetração de exploradores e missionários
que disseminavam a cultura e as doenças ocidentais pelo mundo
32
.
Com a Revolução Industrial, o Ocidente deu início a uma empreitada de
desenvolvimento tecnológico, deixando para trás o “resto” do mundo não-
industrializado. Criou-se, assim, um círculo virtuoso de avanço em tecnologia e
acumulação de capital que levou ao domínio na produção e disseminação da
informação. Desse modo, o Ocidente anunciou-se como o modelo de civilização a ser
seguido para alcançar a modernização.
Embora se considerar modernização como ocidentalização seja uma relação
simplista, existe uma forte impressão de que as formas de conhecimento que podem ser
universalizadas têm origem no Ocidente
33
.
Para Seymour Martin Lipset e Gabriel Salman Lenz, o surgimento de economias
desenvolvidas está relacionado a certos valores e costumes como a racionalidade, a
família reduzida, a realização, a mobilidade social e o universalismo. Esses valores
representariam a modernidade em detrimento do tradicionalismo
34
.
Até o século XVII, não havia desenvolvimento em qualquer parte do mundo,
fosse no Ocidente ou no Oriente. Os níveis de produtividades eram baixos, devido à
sociedade de estrutura agrária que não favorecia ao desenvolvimento econômico
sustentado
35
. Pode-se relacionar o desenvolvimento econômico à formação do Estado
32
KENNEDY, P. Op. Cit., p. 149.
33
TU WEI-MING. A crise asiática. In HARRISON, L. E.; HUNTINGTON, S. P. A cultura importa: os
valores que definem o progresso humano. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 355.
34
LIPSET, S. M., LENZ, G. S. Corrupção, Cultura e Mercados. In Ibid, p. 187.
35
GRONDONA, M. Uma Tipologia Cultural do Desenvolvimento Econômico. In Ibid, p. 101.
26
Moderno, à Reforma Protestante e ao Iluminismo, ou seja, fatores internos à Europa
Ocidental que foram difundidos no mundo, garantindo ao Ocidente um poder cultural
que fez da região um paradigma a ser seguido.
Assim, depreende-se que a cultura é um importante elemento do poder, que, por
sua vez, é um dos componentes centrais de qualquer vertente teórica das relações
internacionais. Com isso, a cultura apresenta-se como referência importante ao estudo
das relações internacionais.
Para Edgar Telles Ribeiro, a relação entre cultura e política externa, presente na
diplomacia cultural, abrange, entre outros, os temas ou idéias a seguir:
a) intercâmbio de pessoas;
b) promoção da arte e dos artistas;
c) ensino de língua, como veículo de valores;
d) distribuição integrada de material de divulgação;
e) apoio a projetos de cooperação intelectual;
f) apoio a projetos de cooperação técnica;
g) integração e mutualidade na programação
36
.
A importância da diplomacia cultural nas relações entre os Estados consiste no
fato de a cultura contribuir para a superação de barreiras, a compreensão mútua - que
leva à cooperação – e para a construção de um cenário internacional com menos
desconfiança e mais orientado para a manutenção da paz.
De acordo com Ribeiro, nas relações internacionais, o poderio militar ou
econômico de um país tende a intimidar, enquanto a cultura tem o poder de seduzir
36
RIBEIRO, E. T. Diplomacia Cultural. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 1989, p. 21.
27
outras nações
37
. O papel da diplomacia cultural seria o de cativar, atrair o outro para
uma esfera de cooperação mútua.
1.3 O conceito de poder em dois espectros: poder duro e poder brando
Em matéria de política internacional, o poder é considerado um meio e um fim
pelo qual se desenvolve uma relação de dominação de uma parte sobre a outra. Tal
relação garante a uma das partes o poder de determinar o comportamento dos demais,
na busca de seus interesses e princípios. Para Cristina Soreanu Peequilo, o poder de
influenciar ou determinar o comportamento dos demais pode ser exercido por meio de
duas fontes: a violência, baseada na força, e a racionalidade, que privilegia o
convencimento
38
.
O contraste entre essas duas fontes de poder, sugerido por Pecequilo, relaciona-
se aos conceitos de poder duro e poder brando, desenvolvidos por Nye na obra Bound to
Lead, publicada em 1990
39
.
Para Nye, o poder duro é o espectro no qual seu exercício dá-se por meio da
coerção (“sticks”) ou da indução (“carrots”). Nesse espectro, o poder baseia-se na força
militar e na economia. o poder brando vale-se da atração como forma de poder. Essa
atração é concretizada por meio da cultura, dos valores políticos e da formulação da
política externa de um país
40
.
Na esfera militar, o poder duro, também conhecido como poder de comando, é
colocado em prática com as guerras e a diplomacia de alianças belicosas, enquanto na
economia, tal poder de comando é exercido pelo o uso de pagamentos, políticas de
apoio financeiro, sanções e, até mesmo, subornos como formas de coerção e indução.
37
Ibid, p. 26.
38
PECEQUILO, C. S. Introdução às Relações Internacionais. Petrópolis: Editora Vozes, 2004, p. 57.
39
NYE, J. Op. Cit., 2004, p. XI.
40
Ibid., p. 11.
28
O poder brando consiste na capacidade de atrair os outros por meio de
instituições, ideologias, valores compartilhados com o meio internacional e uma cultura
universalista.
Desse modo, a distinção entre os recursos de poder duro e poder brando poderia
ser pensada no contraste entre poderes tradicionais, que podem ser sentidos de forma
prática, e poderes intangíveis, caracterizados pela atração ou convencimento:
O hard power, ou poder duro, refere-se aos recursos de poder tradicionais, passíveis de serem
vistos e sentidos com facilidade, percebendo-se sua influência e importância na prática [...]. No
outro extremo, o soft e cooptive power, definido como o poder “suave” e de cooptação, sustenta-
se em elementos de poder intangíveis e que não podem ser percebidos na prática. O poder suave
relaciona-se ao poder de convencimento e das idéias [...]
41
.
Apesar de dividir o conceito de poder em dois espectros, Nye lembra que o
poder brando e o poder duro estão relacionados, pois compõem a idéia de poder como
um todo. A diferença entre esses dois aspectos do poder é gradual, ou seja, consiste no
grau em que o poder é exercido, podendo tender mais para o comando, ou mais para a
atração. Um exemplo dessa relação é o fato de a diminuição de uma fonte de poder de
um Estado ter a capacidade de abalar o poder de tal Estado como um todo, ou seja, tanto
sua capacidade de atração, como de coerção ou indução. Quando um país perde parte de
seu poder econômico, é muito provável que essa perda afete não somente seu poder
duro, mas também sua capacidade exercer atração sobre outros países que o admiram
por sua prosperidade econômica
42
.
Embora a divisão do conceito de poder em poder duro e poder brando seja
recente, a idéia da importância de estabelecer-se o consenso como uma forma de exercer
41
PECEQUILO, C. S. Op. Cit., 2004, p. 59.
42
NYE, J. Op. Cit., 2004, p. 7-9.
29
o poder não é nova nas ciências políticas. Giovanni Arrighi lembra que Antonio
Gramsci falara da importância do consenso para o
30
apresenta-se atual na análise das novas formas de exercício do poder em escala
mundial
48
.
A noção de hegemonia gramsciana, baseada na combinação de consenso e força,
pode ser identificada como premissa para o desenvolvimento dos conceitos de poder
duro e poder brando, propostos por Nye.
Para Gramsci, o Estado é uma combinação da sociedade política com a
sociedade civil
49
e o exercício do poder ocorre por meio de uma articulação das funções
da sociedade política com a sociedade civil. A sociedade política relaciona-se ao poder
de domínio direto ou comando, enquanto a sociedade civil está relacionada à função de
direção da sociedade, onde há a formação e manutenção do consenso
50
:
A supremacia de um grupo social manifesta-se de duas maneiras: como “domínio” e como
“direção intelectual e moral”. Um grupo social é dominante dos grupos adversários que tende a
“liquidar” ou a submeter também com a força armada; e é dirigente dos grupos afins ou
aliados
51
.
Dessa perspectiva, tem-se a hegemonia como um fato político, mas que não
pode
ser compreendido sem considerar-se a sociedade em que se apresenta, ou seja, a
hegemonia é um fenômeno político que só pode ocorrer em determinadas condições
sociais. A disputa pela hegemonia ocorre entre grupos sociais com concepções de
48
MELLO, A. F. Gramsci, o capital supranacional e o novo teorema da política. In: Revista Brasileira de
Ciências Sociais, São Paulo, v. 21, n. 62, 2006, p. 105-113.
49
GRAMSCI, A. Op.Cit, p. 244.
50
SCHLESENER, A. H. Op, Cit., p. 18.
51
GRAMSCI, A. apud SCHLESENER, A. Op. Cit., p. 19.
31
mundo diferentes que tentam impor suas condições aos demais
52
. Essa disputa entre
grupos sociais com diferentes concepções de mundo nos remete ao campo da cultura:
[...] ao estabelecer que a luta pela hegemonia se entre grupos sociais com concepções do
mundo diferentes, Gramsci automaticamente remete ao campo da cultura, que não pode ser
compreendido e analisado se descurarmos da interação sempre presente entre sociedade e
cultura. Com isso quero dizer que a luta pela hegemonia se dá entre visões de cultura e não de
civilização – Kultur e não Zivilisation
53
.
Gramsci entende que o exercício do poder manifesta-se pela combinação de
domínio e direção. Essa concepção está presente na idéia de poder duro e poder brando.
De acordo com Nye, apesar desses dois espectros do poder se relacionarem, eles se
diferenciam em sua forma de manifestação. O poder duro é aquele relacionado ao
comando, enquanto o poder brando está ligado à atração
54
. O ideal para o exercício da
hegemonia é que os “poderes hard e soft estejam em uma situação de equilíbrio, para
que se alternem como instrumentos de dominação”
55
.
Do mesmo modo que Gramsci relaciona a sociedade civil à formação e
manutenção do consenso, Nye também o faz, alertando para o fato de que o governo
não pode ou não deve controlar a cultura, que funciona como arcabouço para esse
consenso
56
. Apesar de defenderem a relação entre e hegemonia e cultura ou poder e
cultura, tanto Gramsci
57
, como Nye reconhecem a importância do poder de comando
52
FERREIRA, O. S. A sociologia de Gramsci. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 21,
n. 62, 2006, p. 87-93.
53
Ibid.
54
NYE, J. Op. Cit., 2004, p. 7.
55
PECEQUILO, C. S. Op. Cit., 2004, p.59.
56
NYE, J. Op. Cit., 2004, p. 17.
57
SCHLESENER, A. H. Op. Cit., p. 19.
32
que, apesar de não ser o mais eficiente em longo prazo, é o mais rápido em situações de
urgência.
Tendo como uma de suas premissas a importância do elemento cultural, ao
propor o conceito de poder brando, Nye alerta para a importância desse espectro do
poder nas relações internacionais. O poder brando é composto por três elementos:
cultura, valores políticos e política externa
58
. Restringe-se, aqui, à relação entre cultura e
poder brando.
“O poder brando apóia-se na habilidade de moldar as preferências dos outros”
59
.
Uma cultura com alto poder de atração é uma das formas mais eficientes de moldar
preferências alheias. A cultura é um conjunto de valores e costumes que dão um
significado a uma sociedade. Quando a cultura de um país é composta por alguns
elementos universais, ou amplamente compartilhados, e quando esse mesmo país opta
por políticas que promovam tais valores, cria-se uma esfera de atração em torno dessa
nação. Esse poder de atração é uma ferramenta importante para “moldar as preferências
dos outros”, ou seja, para fazer com que os outros queiram aquilo que você quer:
Quando a cultura de um país inclui valores universais e suas políticas promovem valores e
interesses comuns aos outros países, aumenta a probabilidade de que esse país obtenha os
resultados desejados, devido à relação de atração e responsabilidade que esse país cria. Valores
limitados e culturas paroquiais dificilmente produzem poder brando. Os Estados Unidos
beneficiam-se de uma cultura universalista
60
.
58
NYE, J. Op. Cit., 2004, p. 11.
59
Ibid, p. 5.
60
Ibid, p. 11 (tradução nossa).
33
Para Gramsci, a sociedade é composta por uma variedade de grupos sociais e
nela convivem diferentes modos de produção, diferentes tipos de condutas sociais e
diversas culturas. Aí reside o problema da hegemonia. O grande desafio para o
estabelecimento da hegemonia é a unificação das consciências históricas dessa
variedade de grupos sociais, encontrar valores comuns a tais grupos
61
.
Nesse sentido, depreende-se que o grupo social com maior capacidade de atrair
outros grupos por meio de valores compartilhados e influenciar tais grupos em nome
de um interesse comum tem maior chance de exercer poder hegemônico sobre os
demais. A disputa pela hegemonia mundial implica em uma guerra de posição”,
sinalizando para um embate cultural pela internalização de uma visão de mundo, pela
criação de uma ideologia que molde mentalidades e pela capacidade de dirigir
destinos
62
.
Nye alerta para a diferença entre produtos culturais e o poder de atração em si.
Os produtos culturais são recursos que podem, ou não se converterem em poder brando.
Tanques de guerra não são boas fontes de poder quando estão em pântanos ou florestas.
Carvão e aço não são de muita serventia a um país sem um parque industrial. Tudo
depende do contexto
63
e, para transformar produtos culturais sejam eles populares ou
sofisticados em poder de atração, é necessário que esses produtos culturais traduzam-
se em valores universais, ou que sejam amplamente compartilhados pela comunidade
internacional. Um exemplo da transformação de produtos culturais em poder brando é a
importância da influência da cultura norte-americana nos países que compunham a
antiga União Soviética para a vitória dos Estados Unidos na Guerra Fria. A propaganda
do governo soviético e seus programas culturais não puderam impedir a atração que a
61
FERREIRA, O.S. Op. Cit.
62
MELLO, A.F Op. Cit.
63
NYE, J. Op. Cit., 2004, p. 12.
34
cultura norte-americana exercia sobre jovens soviéticos. Os Estados Unidos saíram
vitoriosos da guerra graças a uma combinação de poder duro e poder brando. O poder
duro levou à contenção de ambas as partes e o poder brando estadunidense contribuiu
para o desgaste do sistema soviético de dentro para fora
64
.
O sistema de relações internacionais é considerado anárquico, no entanto,
anarquia não é o mesmo que caos. A anarquia quer dizer ausência de um governo
central, enquanto o caos implica em uma falta total de organização
65
. À medida que
aumenta a situação de caos, uma demanda crescente por ordem. Nesse contexto,
qualquer Estado capaz de atender a essa demanda pode tornar-se uma potência
hegemônica. A liderança exercida por essa potência deve ser legítima, para tanto, é
necessário que seja percebida pelos outros Estados como um algo do interesse geral:
O “caos” e o “caos sistêmico”, em contraste [com a anarquia], referem-se a uma situação de falta
total, aparentemente irremediável, de organização. Trata-se de uma situação que surge por haver
uma escalada no conflito para além do limite dentro do qual ele desperta poderosas tendências
contrárias, ou porque um novo conjunto de regras e de normas de comportamento é imposto ou
brota de um conjunto mais antigo de regras e normas, sem anulá-lo, ou por uma combinação
dessas duas circunstâncias. À medida que aumenta o caos sistêmico, a demanda de “ordem” a
velha ordem, uma nova ordem, qualquer ordem! tende a se generalizar cada vez mais entre os
governantes, os governados ou ambos. Portanto, qualquer Estado ou grupo de Estados que esteja
em condições de atender a essa demanda sistêmica de ordem tem a oportunidade de se tornar
mundialmente hegemônico
66
.
64
Ibid, p. 50.
65
ARRIGHI, G. Op. Cit., p. 30.
66
Ibid., p. 30.
35
A ascensão dos Estados Unidos como potência mundial hegemônica no segundo
pós-guerra insere-se na lógica de Arrighi. Para Gerson Moura, já no período entre a
Primeira e a Segunda Guerras Mundiais (1918-1939), percebe-se uma crise política e
ideológica no sistema de poder
67
. Nesse período, nenhuma potência pretendeu ordenar o
caos mundial, mas agiram de acordo com seus objetivos expansionistas nacionais. A
única exceção foi os Estados Unidos que atuaram com o intuito de defender o comércio
nacional e o livre-cambismo
68
.
O caos do sistema de poder torna-se ainda mais caótico ao final da Segunda
Guerra Mundial. As conseqüências desastrosas da guerra provocaram uma demanda por
ordem e liderança na reestruturação da ordem mundial, que foi atendida pelos Estados
Unidos. Nesse contexto, o poder brando americano foi eficiente como instrumento de
persuasão, garantindo credibilidade e legitimidade à hegemonia estadunidense, que
agora devia disputar o poder com a URSS.
67
MOURA, G. Autonomia na Dependência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p. 51-52.
68
QUIJANO apud MOURA. Ibid, p. 52.
36
Tradições da política externa norte-americana para a
América Latina
“A expansão dos Estados Unidos sobre o continente americano,
desde o Ártico até a América do Sul, é o destino de nossa raça
(...) e nada pode detê-la”.
(James Buchanan, 1857).
37
2.1 A construção de uma identidade nacional norte-americana
Na linguagem comum uma nação é compreendida como o “povo de um Estado”.
Apesar das ambigüidades que cercam o conceito de nação, podemos indubitavelmente
relacionar o conceito a um sentimento de solidariedade comum aos membros de um
determinado grupo, quando comparado a outros. Desse modo, “o conceito pertence à
esfera dos valores”
69
.
Para Weber, poderíamos definir a idéia de nação como uma comunidade de
sentimento que se manifesta adequadamente em um Estado próprio, assim, entende-se
que uma nação é uma comunidade que tende a produzir seu próprio Estado
70
.
Entretanto, nos Estados Unidos, essa tendência não foi seguida, que notamos que a
formação do Estado norte-americano ocorreu antes da consolidação de uma identidade
nacional. A necessidade de se construir uma identidade comum é percebida em dois
momentos cruciais da história estadunidense: a independência (1776) e a Guerra Civil
Americana (1861-1865).
O processo de formação do Estado e de construção da identidade nacional pode
ser considerado como berço da cultura política norte-americana, pois é nele que
encontramos os valores que orientam as diretrizes de política externa do país,
principalmente no que se refere às suas relações com a América Latina.
Desse modo, a partir da compreensão dos valores e tradições que permeiam a
política norte-americana, vislumbra-se um melhor entendimento das relações político-
culturais entre os Estados Unidos e o Brasil, durante o período que compreende a
Política da Boa Vizinhança de Franklin Delano Roosevelt.
Uma simples comparação entre o modelo de colonização implantado na América
Ibérica e aquele praticado na América do Norte - baseando-se nos respectivos conceitos
69
WEBER, M. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: LCT Editora, 2002, p 120.
70
Ibid, p. 123.
38
de colônia de exploração e colônia de povoamento - é uma forma um tanto simplista
para se compreender as diferenças que abarcam o período colonial nessas duas regiões
do continente americano.
Partindo de um enfoque cultural, compreende-se as diferenças entre a
colonização da América Latina e a da América do Norte por meio de uma comparação
entre a postura colonizadora católica e a protestante
71
. Na Inglaterra, as tradições de
direitos individuais e mobilidade social estiveram mais presentes na sociedade,
estimulando o espírito de iniciativa individual. A teologia protestante reforçou essa
tendência com seu individualismo espiritual
72
. A Igreja Católica, que proibia o lucro e o
empréstimo de dinheiro a juros, contrastava com a ética protestante, principalmente com
a corrente calvinista, que favoreceu o desenvolvimento do capitalismo
73
. A idéia de que
a importância de se ganhar o pão de cada dia não deveria ser tão importante quanto a
busca pela salvação eterna estava enraizada na mentalidade dos colonizadores
espanhóis
74
. A ética protestante dos colonizadores anglo-saxões valorizava mais o
sucesso material que a religião católica.
Para os protestantes, a riqueza era sinal da predestinação divina, era por meio do
trabalho e do enriquecimento que o homem provava que era um eleito de Deus. Essa
filosofia era vista na América Latina como materialista e contra a os valores
humanísticos da herança cultural ibérica
75
.
De acordo com Weber, pode-se relacionar o espírito da vida econômica moderna
à ética racional protestante
76
. Os puritanos ingleses que chegavam à América, tais como
71
KARNAL, Leandro. Estados Unidos: a formação da nação. São Paulo: Contexto, 2005, p.15.
72
SELLERS, C., MAY, H., MCMILLEN, N. R. Uma Reavaliação da História dos Estados Unidos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 19.
73
WEBER, M. Op. Cit., 2005, passim.
74
GASPAR, E. United States - Latin América: a special relationship? Washington: American Enterprise
39
os holandeses, tinham características opostas à “alegria de viver”
77
, comportavam-se
como “atletas morais”:
Os puritanos eram “atletas morais”, convencidos de que a “vida correta” era a melhor prova
(embora não garantia) de que o indivíduo desfrutava da graça de Deus. A vida correta incluía
trabalhar tão arduamente e ser tão bem-sucedido quanto possível em qualquer ofício
mundano e negócio em que Deus houvesse colocado a pessoa. Animados por essas convicções,
não era de admirar que os puritanos fossem altamente vitoriosos em suas atividades temporais,
em especial nas circunstâncias favoráveis oferecidas pelo ambiente do Novo Mundo
78
.
Os protestantes, ao contrário dos católicos, não acreditavam na salvação por
meio da Igreja e dos sacramentos, mas por uma vida regrada, alheia aos prazeres
mundanos, dedicada ao trabalho, de modo a multiplicar as riquezas, que eram vistas
como uma benção divina.
De acordo com Edmund Gaspar, os pioneiros que colonizaram a América do
Norte eram produto do desenvolvimento do capitalismo na Inglaterra, enquanto os
conquistadores espanhóis e portugueses ainda não haviam tido contato com as idéias
capitalistas
79
. Esse contraste representa a diferença da Europa que migrou para a
América do Norte daquela que migrou para a América Latina.
A estrutura social e o modo de produção desenvolvidos no Brasil colônia
diferem muito daqueles da América Inglesa. Na colônia portuguesa estratificou-se uma
sociedade bipolar, baseada no esquema de senhores e escravos, com a ausência de uma
classe média empreendedora que ambicionasse a democracia. Desse modo, a metrópole
não encontrou maiores problemas ao suprimir órgãos eletivos para a administração
77
Ibid., p. 41.
78
SELLERS, C., MAY, H., MCMILLEN, N. R. Op. Cit., p. 29.
79
GASPAR, E. Op. Cit., p. 10.
40
local
80
. nos Estados Unidos, a sociedade caracterizou-se por uma formação mais
igualitária, por indivíduos que migravam para o Novo Mundo em busca de uma nova
pátria, buscando refúgio das lutas religiosas e políticas que marcaram o fim do
feudalismo na Europa
81
.
Não houve um projeto de colonização da coroa inglesa para a América do Norte
nos moldes da colonização desenvolvida por Espanha e Portugal nas colônias ibéricas.
Os conquistadores hispânicos institucionalizaram a ecomienda, sistema semelhante às
capitanias hereditárias implantadas nas colônias portuguesas. De acordo com esse
sistema, a coroa espanhola concedia ao encomendero um grande lote de terra e o direito
hereditário de explorar o trabalho dos índios que viviam no local. A encomienda
funcionou como um ramo da administração espanhola e contribuiu para o
desenvolvimento de uma aristocracia, que serviu como base para a formação da
tradicional oligarquia latino-americana
82
.
no século XVII, a América Espanhola mostrava um grau de organização
muito superior àquele existente nas colônias da América Inglesa, que, na opinião de
Leandro Karnal, “era um amontoado de pequenas aldeias atacadas por índios e rondadas
pela fome”
83
. Na América Latina, havia uma estrutura organizacional dirigida pela
metrópole e garantidora da participação direta da coroa nos negócios das colônias. Tal
grau de disparidade entre a organização colonial das Américas Ibérica e Inglesa deveu-
se, principalmente, ao fato de que a Inglaterra começou suas aventuras colonizadoras
como um país pobre
84
, quando comparada à posição de grande potência que ocupava a
Espanha. A coroa britânica não pôde financiar a ocupação e exploração das novas
80
BANDEIRA, M. Presença dos Estados Unidos no Brasil. Rido de Janeiro: Civilização Brasileira,
1978, p. 5.
81
Ibid, p. 7.
82
GASPAR, E. Op. Cit., p. 7.
83
KARNAL, L. Op. Cit., p. 16.
84
SELLERS, C., MAY, H., MCMILLEN, N. R. Op. Cit., p. 19-20.
41
42
os colonos sofriam com o clima inóspito da região, que não apresentava riquezas de
fácil exploração.
As treze colônias inglesas nasceram e se desenvolveram sem uma tutela direta
do Estado. A ausência de um projeto de colonização e de um controle rígido pela coroa
inglesa foi um dos fatores que tornou possível a independência dos Estados Unidos
89
.
Ao se compararem os modelos de colonização implantados nas duas Américas,
percebe-se que o Estado Moderno, acompanhado pelas transformações do
Renascimento europeu e da Reforma Protestante, migrou para a América do Norte,
especialmente para a região da Nova Inglaterra, enquanto, na América Latina,
implantou-se um projeto rigidamente controlado pelas coroas portuguesa e espanhola
voltado para a exploração das riquezas daquela região, sem qualquer autonomia local.
Essa diferença imprime um caráter individualista - o homem protestante devia seguir
seu caminho sozinho em busca de sua salvação eterna
90
- e progressista - os colonos
tinham autonomia para buscar o progresso no Novo Mundo - à cultura norte-americana,
desde o período colonial, enquanto a América Ibérica esteve presa ao controle da
metrópole e às tradições da Igreja Católica.
Esses contrastes sócio-culturais implicaram em diferenças na formação da
identidade nacional e no processo de independências dessas duas Américas. Nesse
sentido, comparando-se o Brasil e os Estados Unidos, percebe-se que o primeiro resulta
de uma política econômica altamente dependente da metrópole portuguesa e que,
mesmo após o advento da independência, a combinação de monocultura e trabalho
escravo voltada ao mercado externo foi mantida, atendendo os interesses de grandes
produtores rurais
91
, que não estavam interessados na diversificação da economia
brasileira. Os Estados Unidos, ao contrário, resultam da ascensão burguesa na Europa,
89
KARNAL, L., Op. Cit., p. 16.
90
WEBER, M.. Op. Cit., 2005, p.82.
91
BANDEIRA, M. Op. Cit., p. 11.
43
da Revolução Industrial e de um processo emancipação que desafiou os interesses da
metrópole inglesa e plantou na nação uma consciência de identidade nacional
92
.
Apesar dos milhares de órfãos e miseráveis que migraram para o novo
continente, são os pilgrims fathers (pais peregrinos) que constituem a idéia do povo
fundador da América no imaginário da população estadunidense. Os peregrinos eram
um grupo de protestantes, principalmente calvinistas, abastados e bem educados na
Inglaterra, que migraram para as colônias devido à perseguição religiosa
93
.
Ao migrar para o continente americano, os peregrinos viam-se como os antigos
hebreus, pois acreditavam que, tal como os hebreus, eram um povo eleito por Deus e
que deviam, portanto, buscar a terra prometida
94
. O Novo Mundo para esses peregrinos
era a possibilidade de constituir uma nova sociedade, livre das perseguições das quais
eram vítimas na Europa. Para eles, a América do Norte era uma nova Israel e Boston era
uma nova Jerusalém, na qual a moralidade e a religiosidade eram valores impostos por
Deus
95
.
Baseando-se nesse ideal, de constituição de uma sociedade de eleitos por Deus,
livre das intolerâncias religiosas, difundiu-se no imaginário norte-americano o mito de
que aquele era um povo herdeiro dos pais peregrinos e que tinham como missão a
constituição um Estado Nacional como nenhum outro, uma sociedade excepcional
96
.
As treze colônias norte-americanas que deram origem aos primeiros estados que
formariam o que veio a ser os Estados Unidos não tinham uma identidade nacional.
Cada colônia tinha vida própria e eram independentes umas das outras. A união das
treze colônias é conseqüência de um sentimento antibritânico e não de um ideal
92
Ibid, p. 11.
93
JENKINS, P. Breve Historia de Estados Unidos. Madrid: Alianza Editorial, 2003, p. 40.
94
JUNQUEIRA, M. Estados Unidos: a consolidação da nação. São Paulo: Contexto, 2001, p. 12.
95
JENKINS, P. Op. Cit., p. 42.
96
JUNQUEIRA, M. Op. Cit., 2001, p. 12.
44
nacional. A consciência de nação só foi constituir-se no século XVIII, após a formação
do Estado.
Para compreender-se a construção dessa idéia de nação é necessário que se leve
em conta dois acontecimentos história dos Estados Unidos: a independência, declarada
em 1776, e a Guerra Civil Americana, que ocorreu no período de 1861 a 1865.
Como dito anteriormente, os modelos de colonização implantados na América
Ibérica e na América do Norte diferem muito no que diz respeito às tradições culturais
que foram trazidas pelos imigrantes para essas regiões.
Enquanto na América Ibérica predominava a unidade e tradição em torno do
catolicismo, além do forte controle exercido pela metrópole, na América do Norte, a
diversidade de grupos protestantes que buscavam um mundo livre e a relativa
autonomia das colônias inglesas em relação à metrópole propiciaram um ambiente
favorável à construção de uma nova memória, uma nova identidade que não remetesse
ao Estado Inglês. Essa diferença de tradições fez com que a idéia de separação entre
colônia e metrópole fosse muito mais viável às colônias da América do Norte do que
àquelas da América do Sul.
Ainda que a separação da metrópole fosse mais viável às colônias da América do
Norte, a Revolução Americana não foi, desde seu início, um movimento pela
independência
97
. Até a decisão de romper com a mãe pátria - no verão de 1776 – o tema
dividiu opiniões. De um lado, estavam homens que concordavam que as colônias eram
parte inseparável da Inglaterra e da Europa, de outro lado, estavam aqueles que
reclamavam uma identidade e um destino próprio para as colônias britânicas
98
.
Nesse sentido, destaca-se a obra de Tom Paine, Common Sense (Senso Comum).
Partidário da independência, Paine expõe no texto as razões pelas quais as colônias
97
MAY, E. R. (org.). Os Grandes Debates da Política Exterior Norte-Americana. Rio de Janeiro;
Distribuidora Record, 1964, p. 1.
98
Ibid, p. 1.
45
britânicas deveriam se unir pela independência da metrópole. Entre as razões, o autor
aponta a necessidade de os Estados Unidos desvincularem-se da Europa, que, para ele,
estava “demasiadamente coalhada em reinos para passar muito tempo em paz”
99
. Além
disso, sempre que houvesse uma guerra entre a Inglaterra e uma outra potência
46
presença de vizinhos franceses agressivos havia limitado a insatisfação com a metrópole
britânica, que as colônias dependiam do auxílio de tropas inglesas para evitar
possíveis invasões. Com a eliminação do inimigo francês, os colonos puderam pensar
em seus interesses
104
. Dentre esses interesses estava a questão da expansão das colônias
para as terras do Oeste, reivindicada pelos colonos e proibida pela metrópole. Em 1763,
a coroa fixou os Apalaches como zona limite da colonização britânica, atendendo aos
interesses de especuladores de terra e comerciantes de pele
105
.
A vitória inglesa na Guerra dos Sete Anos levou a Inglaterra à posição de maior
império colonial no mundo. A partir da segunda metade do século XVIII, com as
inovações trazidas pela Revolução Industrial, a Inglaterra passava a olhar suas
possessões coloniais americanas com outros olhos, pois a necessidade de matéria-prima
para suas indústrias e mercado consumidor para seus produtos despertou na metrópole o
interesse em desenvolver uma crescente política de domínio político e econômico sobre
as colônias americanas, que, até então, gozavam de relativa autonomia em relação à
coroa inglesa
106
.
A política fiscal adotada pela coroa, após a Guerra dos Sete Anos pode ser
considerada como a ruptura de interesses entre as colônias e a metrópole.
Dentre as novas leis inglesas estavam a Lei do Açúcar (Sugar Act), promulgada
em 1964 - que reduzia o imposto sobre o melaço estrangeiro e encarecia os encargos
para importação de açúcar e artigos de luxo, vinhos e café que entravam nas colônias
107
- e a Lei do Selo (Stamp Act), de 1965 – que exigia que todos os documentos, periódicos
e outros elementos de intercambio comercial deveriam ter uma chancela do governo
104
PERKINS P. Op Cit., p. 73.
105
Ibid, p. 74.
106
KARNAL, Leandro. Op. Cit., p. 70.
107
Ibid., p. 73-74.
47
britânico. Com a Lei do Selo, a Inglaterra esbarrou nos interesses da elite colonial e
deu-se início ao debate acerca da condição política dos colonos dentro do Império
108
.
Entre os anos 1766 e 1775, as divergências entre a as colônias e a metrópole
inglesa se agravaram ainda mais. Os dissidentes criaram uma rede de propaganda
organizada, baseada em clubes clandestinos chamados de Filhos da Liberdade. Em
1770, dissidentes de Boston e soldados ingleses se enfrentaram. Cinco colonos foram
mortos. A partir de 1772, Boston tornou-se o centro de uma rede de opositores ao
governo britânico. Eles compartilhavam informações e promoviam a idéia de uma
América do Norte unida contra a repressão inglesa
109
.
Atingiu-se o ápice da crise quando, em 1773, em resposta à Lei do Chá (Tea Act)
- que dava o monopólio do comércio do chá à Companhia das índias Orientais - os
colonos arremessaram ao mar trezentas caixas de chá retiradas dos navios do porto de
Boston. O episódio ficou conhecido como a Festa do C(Boston Tea Party). Como
resposta àquela violação da autoridade inglesa, a metrópole promulgou as chamadas
Leis Intoleráveis. O porto de Boston foi fechado e a cidade ficava sob o aquartelamento
de tropas inglesas
110
.
A mudança na política fiscal implantada pela Inglaterra tinha como objetivo
aumentar o controle da metrópole sobre as colônias americanas. Para a Inglaterra, era
importante fazer com que suas possessões coloniais na América passassem a render
lucros à metrópole, de acordo com um sistema mercantilista e de modo a financiar a
Revolução Industrial levada a cabo pela burguesia inglesa. No entanto, a postura
adotada pelo governo inglês, após a Guerra dos Sete Anos, incentivou o surgimento de
um sentimento comum entre as treze colônias não existente até então. A intransigência
inglesa despertou na população de colonos o descontentamento com a metrópole
108
PERKINS, P. Op. Cit., p. 75.
109
Ibid, p. 77.
110
KARNAL, L. Op. Cit., p. 76.
48
inglesa. De acordo com Leandro Karnal, “a série de leis promulgadas na segunda
metade do século XVIII seria a causa imediata para a progressiva união dos colonos em
torno da idéia de independência”
111
. É importante frisar, nesse contexto, que essa
“progressiva união” entre as treze colônias não é fruto de uma idéia de nação comum,
mas sim de um sentimento antibritânico.
No dia 2 de julho de 1776, as colônias decidiram pela independência dos
Estados Unidos. No dia 4 do mesmo mês, ficou pronta a Declaração de Independência,
que se consagrou como um dos documentos mais importantes da história americana. O
texto é marcado pela influência do pensamento ilustrado da Europa do século XVIII,
misturando elementos do pensamento racional com fundamentos religiosos
112
.
Há no documento a pretensão de um feito inédito. Pela primeira vez uma colônia
separava-se da metrópole por meio de uma revolução. A idéia de um país que garante ao
seu povo o direito divino da vida, da liberdade e da busca da felicidade permeia o
imaginário americano, justificando historicamente sua missão de lutar pela liberdade e
felicidade dos povos.
Com a independência, os Estados Unidos, em princípio, organizaram-se em
torno de uma confederação (1778-1788). A confederação contava com o Congresso
Continental, uma instância que deveria reunir e analisar as reivindicações dos 13
estados. Não havia um poder central, o que garantia aos estados autonomia suficiente
para terem suas próprias milícias, moedas e políticas comerciais. A descentralização
política na organização dos estados fez com que a fase da confederação fosse conhecida
como período crítico, pois o Congresso Continental não tinha poder suficiente para
fazer cumprir qualquer ação política. Houve, nesse período, uma série de agitações
provocadas pelo descontentamento da população, pois, com a ausência de um
111
Ibid, p. 77.
112
Ibid., p. 86.
49
sentimento comum de nação entre os estados e de um poder central capaz de conferir
unidade às antigas colônias, não se podia definir ao certo se os Estados Unidos era um
país ou um conjunto de estados recém independentes
113
.
Para Alexander Hamilton, o
mais grave visível defeito da Confederação era a total ausência de sanção para suas leis,
pois, da forma como estavam organizados, os Estados Unidos não tinham poder para
exigir o cumprimento de suas resoluções
114
. A ausência de uma garantia mútua dos
estados era uma imperfeição que poderia deixar os Estados Unidos à mercê da
usurpação das liberdades do povo, sem qualquer poder para evitar a desordem
115
.
A solução para o problema seria a formação de uma federação, baseada em uma
constituição. Assim, em 1787 delegados de quase todos os estados norte-americanos
reuniram-se durante quatro meses para discutir os rumos que o país tomaria. Desse
encontro, resultou a Constituição dos Estados Unidos da América que, com dez
emendas realizadas até 1795 e outras 17 até o ano de 1992
116
, consagrou-se, do mesmo
modo que a Declaração de Independência, como um importante documento reconhecido
até hoje como o texto constitucional do país.
A partir de então, houve a centralização do governo em torno da tripartição dos
poderes, inspirada particularmente em Montesquieu. Assim, o governo passava a
constituir-se pelos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
O processo de independência dos Estados Unidos e a formação do Estado-Nação
estão repletos de representações históricas que formaram a identidade nacional norte-
americana e que permeiam o imaginário da população estadunidense ainda hoje. Os
ideais de independência e de livre escolha de cada povo (o direito à vida, à liberdade e à
procura da felicidade), apesar de muito difundidos pelo movimento iluminista na
113
JUNQUEIRA, Mary. Op. Cit., 2001, p. 22.
114
HAMILTON, A.; JAY, J.; MADISON, J. O Federalista. Rio de Janeiro: Editora Nacional de Direito,
1959, pp. 82-83.
115
Ibid, p, 83.
116
JUNQUEIRA, Mary. Op. Cit, 2001 p. 24
50
Europa, ainda não haviam sido colocados em prática por meio de um ato revolucionário,
com a instituição de uma democracia federativa e uma constituição política. Essa
conquista pioneira marcou a história dos Estados Unidos e a formação de sua identidade
nacional. Há no imaginário norte-americano a idéia de que aquele é um povo garantidor
da liberdade e da democracia, não que eles sejam os criadores desses ideais, mas os
primeiros a lutarem por eles e, de certa forma, a colocá-los em prática, apesar de todas
as falhas existentes nesse modelo de democracia, marcado pelas restrições impostas aos
negros e pelo extermínio da população indígena que vivia na América antes da chegada
dos colonos ingleses.
Com a conclusão do processo de independência, fez-se necessário forjar uma
nação na América. Nesse sentido, é construída uma série de valores ao longo da história
dos Estados Unidos. Pode-se dizer que esses valores compõem o imaginário norte-
americano e definem seu perfil como nação, influenciando nos interesses e escolhas da
política externa americana. Para Cristina Soreanu Pecequilo:
Desde os primeiros dias da República, os Estados Unidos m buscado o seu lugar no mundo,
amparados por muitas tradições e princípios que nasceram no século XVIII e que definem seu
perfil como nação. Embora renovados e revisados em diferentes contextos, estes elementos,
como a crença no poder do experimento liberal democrático, o sentido de missão e destino, o
direito de abrir portas, a proteção da esfera regional e o excepcionalismo dos interesses e
escolhas americanas e sua relação com a estabilidade e prosperidade da ordem global, são
relativamente os mesmos, ajudando o país a estabelecer suas prioridades no sistema internacional
e em seu próprio continente
117
.
Pecequilo alerta para a importância de compreender-se o processo histórico de
evolução das posturas internacionais americanas no período anterior à sua ascensão
117
PECEQUILO, C. S. Op. Cit, 1999, resumo.
51
como potência hegemônica no segundo pós-guerra
118
. A compreensão do processo de
construção da identidade nacional americana permite-nos compreender as diretrizes da
política externa dos Estados Unidos, especialmente no que diz respeito às suas
orientações políticas para a América Latina.
A política externa norte-americana evoluiu de acordo com as complexidades do
país e da sociedade, no entanto, um conjunto de crenças e prioridades tradicionais na
formação política dos Estados Unidos constitui, de certo modo, um modelo continuado
a partir do século XVIII até o século XX. Dentre essas prioridades, um conjunto de
objetivos podem ser encontrados freqüentemente na agenda americana: “a garantia da
paz e da prosperidade, a manutenção da estabilidade e da segurança, a promoção e a
defesa da democracia”
119
.
Na primeira metade do século XIX, consolidada a independência dos Estados
Unidos, fortalecia-se a idéia de que Deus estava do lado da América, de que os norte-
americanos eram um povo eleito, com um destino a cumprir.
A expressão “Destino Manifesto” foi utilizada por John L. O’Sullivan, na
primeira metade do século XIX, em um ensaio de sua revista Democratic Review, no
qual ele afirmava a necessidade de se anexar o Texas aos Estados Unidos: “cumprir
nosso Destino Manifesto é expandir o continente como quer a Providência para o livre
desenvolvimento e para que nos multipliquemos aos milhões”
120
.
O Destino Manifesto é uma das idéias mais enraizadas no imaginário norte-
americano e pode ser identificado como um dos principais elementos da tradição
cultural americana.
Após a consolidação da independência e da organização política do país, os
Estados Unidos iniciam um processo de expansão territorial para o Oeste, que se
118
Ibid., p. IV
119
Ibid., p. 1-3
120
Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Destino_Manifesto.
52
estendeu durante o século XIX. Nesse contexto, o Destino Manifesto era utilizado como
justificativa para a necessidade de se expandir as fronteiras americanas. Baseando-se na
idéia que o povo americano era escolhido por Deus, os Estados Unidos afirmam a
necessidade de expandir o experimento americano fundamentado no par
democracia/república. Assim, as ambições territoriais norte-americanas não eram
justificadas como interesses materiais, mas como um dever da nação estadunidense de
expandir seus valores e o excepcionalismo de um povo que estava fadado a civilizar a
América, de acordo com uma retórica de destino, fé, escolha e crença.
O processo de expansão territorial criou o mito do Oeste, que também constitui
um elemento tradicional da cultura dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo em que os
territórios, anteriormente habitados por indígenas e mexicanos, eram conquistados de
forma violenta, construía-se uma versão romanceada da marcha para o Oeste
121
. Os
homens que se lançavam às conquistas por novas terras eram tidos como heróis
corajosos que se aventuravam por lugares desconhecidos, levando a luz da civilização
americana. A partir de então, surge também a idéia do self-made man, homem que
trabalhava no campo e que, por conta de seu trabalho e coragem de desbravar novas
terras, tornava-se rico. A lenda do cowboy também está relacionada a esse período da
história dos Estados Unidos. O cowboy americano consagrou-se como um dos mais
fortes tipos nacionais norte-americanos, relacionado à conquista do Oeste e ao controle
do mundo selvagem
122
.
O mito do oeste atravessou o tempo na história dos Estados Unidos, constituindo
uma referência cultural para o norte-americano. Celebrado nos filmes de far west, a
lenda do Oeste está ligada à idéia do progresso da sociedade americana e seu fardo de
civilizar a barbárie.
121
JUNQUEIRA, Mary. Op. Cit., 2001 p. 56
122
Ibid., p. 60.
53
Enquanto norte-americanos descobriam o remoto Oeste, pressupostos românticos
intensificavam-lhes a fé sobre a superioridade e destino glorioso de suas instituições livres.
Rapidamente desenvolveu-se a idéia de que era o “manifesto destino” dessas instituições
espalhar-se por todos os vastos, escassamente povoados e mal defendidos territórios situados no
vale do Mississipi e o oceano Pacífico
123
.
O mito do expansionismo norte-americano está tão presente na identidade
nacional estadunidense que, para historiador Jackson Turner, esse não é um processo
que se encerra com a ocupação da costa do Pacífico:
Por aproximadamente três culos, o fato dominante na vida americana foi a expansão. Com a
colonização da costa do Pacífico e a ocupação das terras livres, esse movimento chegou a um
limite. Dizer que essas energias expansionistas não continuam mais operando seria um
diagnóstico por demasiado apressado; e os clamores de uma vigorosa política diplomática, de um
canal interoceânico, de reviver nosso poder sobre os mares e em prol da extensão da influência
americana a ilhas afastadas e países adjacentes são indicações de que o movimento vai
continuar
124
.
O homem do Oeste acreditava no destino manifesto
125
. Tinha idealista na
capacidade do indivíduo e na democracia. Esses valores atravessaram a história dos
Estados Unidos e podem ser percebidos ainda hoje no expansionismo que caracteriza a
política norte-americana. No entanto, tal expansionismo ultrapassa os limites
territoriais, sendo exercido por meio do poder de influência dos Estados Unidos.
A experiência em meio a um território remoto e inóspito da expansão territorial
faz com que a idéia de wilderness seja considerada um dos elementos básicos da
123
SELLERS, C., MAY, H., MCMILLEN, N. R. Op. Cit., p. 166.
124
TURNER, J. O Problema do Oeste. In KNAUSS, P. (org.) Oeste Americano – quatro ensaios de
história dos Estados Unidos da América. Niterói: EdUFF, 2004, p. 67.
125
Ibid, p. 62.
54
construção da identidade e do nacionalismo norte-americanos
126
. Os pressupostos do
destino manifesto, como a missão civilizadora dos Estados Unidos e o wilderness, que a
princípio descrevia somente o Oeste americano, agora passam a representar todo o lugar
no qual caiba uma ação expansionista ou “civilizadora” norte-americana.
Apesar do expansionismo norte-americano ter fomentado a anexação de novos
territórios aos Estados Unidos, ele não era bem visto por todos os setores da sociedade.
Havia quem temesse que a anexação de territórios mexicanos, por exemplo, pudesse
ameaçar as instituições americanas. Os mexicanos eram considerados uma miscelânea
de povos mestiços, selvagens de religiões e hábitos diferentes, incapazes de conviver em
de igualdade com os norte-americanos
127
. Em 1845, a Democratic Review afirmava
que o México estava “destinado a se converter em parte integral dos Estados Unidos em
algum momento futuro”
128
. No entanto, de acordo o próprio periódico, naquele
momento a expansão dos Estados Unidos às terras mexicanas era inviável, pois o povo
mexicano estava acostumado às obrigações de seu próprio governo e expandir o
domínio norte-americano àquela região representaria um custo excessivamente elevado
aos Estados Unidos
129
. O Illinois State Register, outro periódico da mesma época, por
sua vez, desdenhava o caráter da população mexicana, à qual considerava “somente
superior ao negro”
130
.
Essas preocupações deixam claro que, ao mesmo tempo em que os Estados
Unidos se auto-incumbiam de uma tarefa missionária de levar o progresso a outros
povos, o preconceito em relação aos habitantes do sul do continente já estava arraigado
no imaginário norte-americano. A América Latina era percebida como uma região
126
JUNQUERIRA, M. Representações políticas do território latino-americano na Revista Seleções .
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-01882001000300004&script=sci_arttext.
Acesso em: 18 out., 2006.
127
SCHOULTZ, L. Op. Cit., pp. 48-49.
128
Territorial Aggrandizement. Democratic Revi.
55
totalmente diversa dos Estados Unidos e havia receio em agregar aos norte-americanos
uma população de língua, educação, religião e leis tão distintas. Os latino-americanos
eram considerados um povo índole inferior:
Nem todos os tratados que pudéssemos assinar, nem todos delegados que pudéssemos enviar,
nem o dinheiro que pudéssemos emprestar não transformariam os seus Pueyrredons e Artigas em
Adams e Franklins ou os seus Bolívares, em Washingtons
131
.
A experiência da Revolução dera aos norte-americanos um senso de orgulho
nacional sobre o futuro de seu experimento em liberdade. No entanto, nem todos
concordavam sobre o que seria esse futuro
132
. Até a Guerra Civil, supunha-se que a
união dos estados que formavam os Estados Unidos não teria que ser um vínculo eterno.
Essa percepção alterou-se após a Guerra de Secessão, que transformou as relações com
o governo nacional
133
.
A diversidade entre os estados foi uma característica constante na história dos
Estados Unidos
134
. Desde a formação do Estado nacional, as regiões norte e sul dos
Estados Unidos exacerbavam suas diferenças. O sul do país possuía uma economia
agrária baseada na monocultura, no trabalho escravo e na exportação, enquanto a
burguesia nortista ostentava uma indústria naval que florescia graças comércio
triangular, transportando açúcar das Antilhas para a Inglaterra, onde os navios eram
carregados com bens manufaturados que, por sua vez, eram transportados para a
América. De acordo com Weber:
131
EVERETT, E., 1821 apud WHITAKER, A. P. Op. Cit., 1966, p. 230.
132
SELLERS, C., MAY, H., MCMILLEN, N. R. Op. Cit., p. 79.
133
JENKINS, P. Op. Cit., p. 14.
134
Ibid., p. 14.
56
[...] a história dos primórdios das colônias americanas é dominada pelo agudo contraste entre os
aventureiros que queriam implantar grandes plantations fundadas no trabalho de colonos
contratados e nelas viver como senhores feudais, e a visão tipicamente burguesa dos
puritanos
135
.
A Guerra Civil Americana, também conhecida como Guerra de Secessão, mostra
a fragilidade da idéia de nação existente até então, que o norte e o sul dos Estados
Unidos eram regiões de interesses tão divergentes, que chegaram a ponto de entrarem
em uma guerra que quase dividiu o país.
A Guerra Civil acabou com 625 mil mortos. Entre os que sobreviveram, 50 mil
estavam mutilados e, especialmente no sul do país, as cidades ficaram praticamente sem
homens entre os 18 e 60 anos de idade. Ao fim da Guerra, os Estados Unidos
depararam-se novamente com o desafio de forjar uma identidade nacional. Se logo após
a independência o país precisou buscar a unidade entre os 13 estados, após a Guerra
Civil, pode-se dizer que foi necessário aos Estados Unidos buscar a reintegração da
região sul ao norte do país
136
.
A reconstrução dos Estados Unidos foi ditada pela elite nortista, com a
construção de ferrovias de leste a oeste do país e com a industrialização, favorecendo a
migração para regiões afastadas e o desenvolvimento comercial
137
. Apesar da abolição
da escravidão, a situação dos negros continuou delicada. Em nome da manutenção da
harmonia nacional, nortistas, que antes levantavam a bandeira do fim da escravidão,
fizeram vista grossa à discriminação, marginalização e até mesmo à violência sofrida
pelos negros no sul do país. Na realidade, “a maioria dos brancos nortistas
compartilhavam do que a maioria dos brancos do Sul pensava do valor do negro. Os
135
WEBER, M.. Op. Cit., 2005, p. 131.
136
JUNQUEIRA, M. Op.Cit ,2001 p. 85-87.
137
Ibid., p. 93.
57
pressupostos de supremacia branca, demais disso, foram reforçados pelo imperialismo
norte-americano na passagem do século”
138
. A Guerra Civil Americana não teve como
pano de fundo a luta pela emancipação dos negros, mas sim o confronto entre dois
modelos econômicos distintos, que dividiam os interesses do país.
Jefferson Davis, presidente dos estados do sul que lutavam pela separação,
alegava que o clima e o solo do norte do país eram inadequados ao trabalho escravo.
Com isso, o norte teria vendido seus escravos ao sul, que sem colocarem em questão a
boa-fé dos vendedores nortistas haviam pago o preço de sua aquisição. No entanto, os
estados nortistas, assim que conseguiram o número suficiente de representantes no
Congresso, iniciaram um programa de medidas contra os direitos dos escravocratas do
sul
139
.
Os Estados Confederados também reclamavam do pensamento político que se
desenvolvera entre os nortistas, de acordo com o qual se alegava que o governo não era
um contrato entre os estados, mas sim um governo nacional, que estava acima dos
estados
140
.
Em sua mensagem anual de 1861, o presidente Abraham Lincoln discursou
sobre a deslealdade dos insurretos que lutavam pela separação do país e enalteceu o
modelo econômico do norte, afirmando que um trabalhador não deveria estar preso a
uma condição pelo resto da vida. Valorizou o empreendedorismo daquele que começava
sua vida sem dinheiro, mas que, com prudência e trabalho, progredia e prosperava,
abrindo caminhos e dando esperança para outros
141
.
O êxito do processo de industrialização levado a cabo pela elite nortista, ao final
da Guerra Civil, fez com que os Estados Unidos se consagrassem como uma potência
138
SELLERS, C., MAY, H., MCMILLEN, N. R. Op. Cit., p. 210.
139
DAVIS, J. Mensagem ao Congresso Confederado, 1861 apud MAY, R. E. Op. Cit., p. 86.
140
Ibid., p.85.
141
LINCOLN, A. Mensagem Anual, 1861 apud MAY, E.R. (org.) Op. Cit., pp. 94-95.
58
não-européia. Como tal, o país devia assegurar mercados para sua indústria em
ascensão. Nesse sentido, a importância estratégica da América Latina, como zona de
influência norte-americana, justifica as diretrizes da Doutrina Monroe e o papel
internacional que os Estados Unidos pretendiam desempenhar na região.
A cultura política dos Estados Unidos esteve, desde seu processo de
independência, baseada na idéia que o norte-americano é um povo eleito e, como tal,
deve cumprir seu destino manifesto de levar o progresso às outras sociedades. O
experimento americano, que se traduz no modelo de organização política baseado na
democracia e liberdade, é visto como justificativa moral para a missão dos Estados
Unidos de “civilizar” o mundo e difundir valores que devem ser vistos como universais.
Na formação do pensamento político estadunidense, pode-se observar a cristalização de
duas tradições primordiais: primeiramente, a necessidade de satisfazer a consciência dos
norte-americanos e, em um segundo plano, fazer com que a atitude política pareça
moralmente correta ao mundo
142
. Essa necessidade de justificar moralmente ações de
política externa, que poderiam ser entendidas sob o viés da disputa de poder,
consolidou-se como uma das tradições mais marcantes da política estadunidense. Desse
modo, as ações americanas estariam fundadas na difusão dos ideais da democracia e da
liberdade no sistema internacional e não em interesses de poder
143
.
De acordo com Ernest May, para se compreender o modo de pensar norte-
americano, é necessário olhar para o passado dos Estados Unidos, pois é que se
encontram as linhas de orientação desse pensamento
144
. Uma série de crenças e
tradições, que nasceram nos primórdios da história norte-americana, com o advento da
República e que foram forjadas durante o processo de construção da identidade
nacional, constitui um padrão nas diretrizes da política externa dos Estados Unidos. A
142
MAY, E.R. (org.). Op. Cit., p. 56.
143
PECEQUILO, C. S. Op. Cit., 1999, p. 4
144
MAY, E. R. (org.). Op. Cit. p. XX.
59
partir de uma análise das ações dos Estados Unidos no sistema internacional, deparamo-
nos com a continuidade de um conjunto de idéias que nasce com a República, em 1776.
É claro que tal continuidade deve ser considerada em meio às transformações que
ocorrem no cenário internacional e à própria evolução do poder norte-americano ao
longo da história, no entanto, esse conjunto de idéias é gradualmente reincorporado à
agenda norte-americana, aparecendo sob outros nomes e sendo perseguido com maior
ou menos intensidade, de acordo com o contexto em questão
145
.
Esse conjunto de valores compõe uma tradição na política dos Estados Unidos
para a América Latina. Embora as diretrizes da política exterior americana dependam da
conjuntura internacional, percebe-se que a cultura política estadunidense, no que diz
respeito à América Latina, segue uma tradição construída ainda no século XVIII, mas
que permeia toda a historiografia das relações Brasil-Estados Unidos.
2.2 Tradições da política externa norte-americana para a América Latina
Raymond Aron afirma que a diplomacia de um Estado e sua forma de entender o
mundo internacional é herança de seu passado
146
. A identidade nacional norte-
americana foi construída com base em uma série de valores forjados durante a formação
dos Estados Unidos. Esses valores são os pilares da cultura política estadunidense,
especialmente no que diz respeito à historiografia da política externa dos Estados
Unidos para a América Latina.
Logo após a conquista da independência, os objetivos da diplomacia norte-
americana resumiam-se em ocupar, povoar, explorar o espaço físico e manter uma
soberania única, capaz de evitar as rivalidades da política de poder
147
. Nesse sentido, as
145
PECEQUILO, C. S. Op. Cit.., 1999, p. 2
146
ARON, R. República Imperial: os Estados Unidos no mundo pós-guerra. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1975, p. 18.
147
ARON, R. Op. Cit., p. 19.
60
ações políticas do país estiveram voltadas para o plano doméstico. No entanto, ainda
que a política externa não despertasse o interesse norte-americano, desde seu processo
de independência, os Estados Unidos exercem influência sobre seus vizinhos do sul.
O processo de independência da América Ibérica (1808-1826) culmina com a
ascensão de Estados latino-americanos independentes que, com exceção do Brasil,
adotam a República como forma de governo. É inegável a influência do experimento
americano nesse processo. Esse fato garante aos Estados Unidos uma afinidade natural
com os novos países, sustentada no princípio da democracia e da liberdade. As
Repúblicas da América deveriam se desenvolver sem qualquer interferência de poderes
externos
148
.
Os Estados Unidos não prestaram apoio direto às revoluções independentistas
das colônias ibéricas, já que os riscos de encorajar a independência da América
Hispânica eram muito mais graves do que seus possíveis benefícios. Não interessava ao
país uma indisposição junto às grandes potências européias, especialmente ao governo
espanhol. Até 1820, não havia, por parte do governo norte-americano, qualquer intenção
de sacrificar-se em nome dos “remotos e alienígenas sul americanos”
149
. No entanto, os
Estados Unidos logo perceberam as vantagens da dicotomia América/Europa, iniciada
pelas “anárquicas” Repúblicas hispano-americanas
150
. Vale notar que essa
contraposição entre o Novo e o Velho Mundo era reivindicada pelas novas Repúblicas
hispânicas, não se incluindo nesse grupo o Império brasileiro, que, até o final do século
XIX, manteve laços estreitos com a Europa, em detrimento de suas relações com seus
vizinhos americanos.
148
PECEQUILO, C. S. Op. Cit., 1999, p. 34.
149
WHITAKER, A. P. Os Estados Unidos e a Independência da América Latina (1800-1830). Belo
Horizonte: Editora Itatiaia, 1966, p. 227.
150
SANTOS, L. C. V. G. O Brasil entre a América e a Europa. São Paulo: Editora UNESP, 2004, p. 25.
61
A construção de uma idéia de América comum aos Estados Unidos e aos
vizinhos do sul não foi uma tarefa fácil. Pairava entre as elites norte-americanas um
sentimento que afirmava sua peculiaridade em relação ao resto do continente. Esse
sentimento refletia-se em uma política externa isolacionista, que adotava uma postura
defensiva em relação à Europa, ao mesmo tempo em que exacerbava um sentimento de
superioridade em relação à América Ibérica.
151
. Essa postura alterou-se com o
advento da Santa Aliança e das ambições européias de recolonização, que eram
percebidas como uma ameaça tanto para as novas Repúblicas espanholas, como para os
Estados Unidos. Nesse cenário, em 1823, deu-se a proclamação da Doutrina Monroe,
que se tornou, a partir de então, o pilar da política externa norte-americana para o
continente.
A tradição política norte-americana até o desenrolar da Segunda Guerra Mundial
foi de optar por uma política externa de isolamento. Essa tradição inicia-se com George
Washington e fica evidente em seu discurso de despedida (1796):
A grande regra de conduta para nós a respeito de nações estrangeiras é, ao ampliar nossas
relações comerciais, a de manter com elas a menor ligação política possível. Tão logo tenhamos
estabelecido compromissos, deixemos que sejam cumpridos com boa-fé perfeita. Aqui nos
devemos deter.
Discurso de Despedida de Washington, 1776
152
.
A partir de 1823, a Doutrina Monroe estende a tradição isolacionista da política
de Washington para todo o continente americano
153
. Em sua declaração, o Presidente
Monroe afirmava que:
151
Ibid, p. 58-59.
152
WASHINGTON,G. Discurso de despedida de Washington. In: MORRIS, R. B. Documentos Básicos
da História dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1964, p. 97-98.
62
[...] a ocasião foi julgada propícia para um acerto, quanto a um princípio em que estão
envolvidos os direitos e interesses dos Estados Unidos, que os continentes americanos, por sua
condição livre e independente que têm assumido e mantido, não serão desse modo considerados
como sujeitos à colonização futura por quaisquer poderes europeus...
Mensagem do Presidente James Monroe ao Congresso dos EUA, 1823
154
.
A Doutrina Monroe representa uma das tradições mais fortes da política exterior
norte-americana para a América Latina e durante quase dois culos tem permanecido
como um princípio fundamental dessa relação
155
. A partir da declaração do Presidente
Monroe, os Estados Unidos assumem a posição de guardião da segurança hemisférica
baseando-se na existência de ambições expansionistas na região por parte de potências
extra-continentais; na defesa de um modo de vida que expressa o maior grau de avanço
pela civilização - na época representado pelo regime político republicano - a ser
defendido das ambições colonialistas das monarquias européias; na fragilidade das
novas Repúblicas latino-americanas para defenderem seus próprios interesses sem a
ajuda dos Estados Unidos
156
.
A Doutrina pode ser considerada o primeiro passo para o estabelecimento de um
sistema americano sob a liderança dos Estados Unidos
157
, que buscava separar o Novo e
o Velho mundo e afirmar a missão estadunidense de proteger as novas repúblicas latino-
americanas. A mensagem de Monroe devia ter um efeito moral na América Ibérica, com
o objetivo de fortalecer o prestígio norte-americano no subcontinente. Os Estados
153
AYERBE, Luis Fernando. A Reinvenção da Doutrina Monroe. Determinismo cultural e política
externa de Estados Unidos pós 11/09. Artigo disponível em:
www.santiagodantasso.locaweb.com.br/br/arquivos//nucleos/artigos/Ayerbe1.pdf
154
MONROE, J. A Doutrina Monroe. In: MORRIS, R. B. Op. Cit. p, 124.
155
SCHOULTZ, L. Op. Cit., 2000, p. 19.
156
AYERBE, Luis Fernando. Op. Cit.
157
KISSINGER, H. apud PECEQUILO, C. S. Op.Cit., 1999, p. 36.
63
Unidos deviam ser vistos como o melhor amigo e protetor dos novos Estados,
favorecendo o republicanismo entre eles
158
.
O desenvolvimento e enriquecimento dos Estados Unidos exacerbaram o
expansionismo norte-americano. Todas as doutrinas, sejam elas de predestinação
geográfica, tarefa de regeneração, alargamento da área de liberdade, etc. deveriam
justificar as ambições econômica e política do país
159
. Nesse sentido, a declaração de
Monroe foi lembrada como um incentivo às ambições expansionistas norte-americanas
durante todo o século XIX. Nesse período, o território do país expandiu-se por todo o
oeste até o Oceano Pacífico, anexando, inclusive, as antigas possessões mexicanas do
Texas, Novo xico, Califórnia, Utah, Arizona, Nevada e parte do Colorado,
completando a missão do destino manifesto americano.
Apesar de condenar as pretensões européias na América Latina, a Doutrina
Monroe serviu como justificativa para uma série de intervenções norte-americanas no
subcontinente no início do século XX. No entanto, vale notar que a declaração de
Monroe foi reflexo do direito de legítima defesa presente na política de isolamento
preconizada por George Washington
160
. As intervenções norte-americanas nascem com
a formulação de corolários à Doutrina de Monroe, notadamente nos governos de
Theodore Roosevelt e William Howard Taft.
O boom econômico que ocorre no período compreendido entre 1890 e 1914,
conhecido como belle époque, marca um período de expansão e prosperidade nos
negócios
161
. O desenvolvimento tecnológico e a industrialização contribuíam para a
concentração de capital e para o aparecimento de trustes e cartéis, que disputavam zonas
de mercado consumidor e fontes de matéria-prima. Nesse contexto, Inglaterra e França
158
WHITAKER, A. P. Op. Cit., 1966, p. 348.
159
BANDEIRA, M. Op. Cit., p. 86.
160
NAIVA, R. N. La Doctrina de Monroe – Presencia Histórica. Tese de doutorado. Pontifícia
Universidad Católica Javeriana. Bogotá, 1962, p. 36.
161
AYERBE, L. F. Estados Unidos e América Latina. São Paulo: Editora UNESP, 2002, p. 46.
64
partilhavam o domínio da África, enquanto a Alemanha, em ascensão, começava a dar
indícios de suas ambições expansionistas. Para os Estados Unidos, sua zona natural de
influência era o próprio continente americano
162
.
Até a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos geralmente, preservaram uma
postura de isolamento no que concerne os assuntos internacionais, no entanto, deve-se
ter em conta a reorientação da política externa do país a partir de 1898, especialmente
no que diz respeito às suas relações com a América Latina:
O primeiro quarto de século de nossa existência nacional foi quase uma luta contínua, para não
sermos levados às guerras européias. Ao fim dessa era de conflito, os Estados Unidos voltaram
sua face para o Oeste. Iniciou-se a colonização e o desenvolvimento do vasto interior do país.
Aqui estava o campo de nossa colonização, aqui o campo de nossa atividade política. Concluído
esse processo, não é estranho que encontremos os Estados Unidos novamente envolvidos com a
política mundial
163
.
Essa reorientação das diretrizes da política exterior dos Estados Unidos pode ser
considerada um reflexo do expansionismo na tradição americana. Ou seja, com o fim da
oferta de terras a serem ocupadas a oeste do país, a continuidade da expansão
164
deveria
ser garantida no exterior. Desse modo, verifica-se gradualmente, a partir de 1898, com a
Guerra Hispano-Americana, um “reposicionamento relativo dos Estados Unidos no
mundo”, quando o país ascende a uma posição de liderança no sistema internacional
165
.
Após a recuperação das severas perdas sofridas com a Guerra de Secessão e a
conclusão da expansão territorial para o Oeste, no final do século XIX, começa a surgir
no país interesse pelos assuntos externos, ainda que de forma incipiente. Nesse sentido,
162
BANDEIRA, M. Op. Cit, 1978, p. 125.
163
TURNER, J. A Contribuição do Oeste para a Democracia Americana. In KNAUSS, P. Oeste
Americano – quatro ensaios de história dos Estados Unidos da América. Niterói: EdUFF, 2004, p.73.
164
TURNER, J. O Problema do Oeste. In KNAUSS, P. Op. Cit., 2004, p. 67.
165
PECEQUILO, C. S. Op. Cit, 1999, p. 4.
65
acreditava-se que os Estados Unidos tinham especial interesse pelo hemisfério
Ocidental e que, baseando-se nos preceitos da Doutrina Monroe, o país deveria buscar
maior controle sobre a zona do Caribe
166
.
Nesse sentido, a Guerra Hispano-Americana, em 1898, é considerada o marco da
reorientação da política exterior norte-americana. Baseados em uma renovação da
Doutrina Monroe e do Destino Manifesto, os Estados Unidos ampliaram sua tradição
expansionista até a zona do Caribe. Com a assinatura do Tratado de Paris, que marca o
final da guerra contra a Espanha, o país além de obter Porto Rico, dominou a Ilha de
Guam, das Filipinas e, com Emenda Platt, manteve Cuba em uma situação de quase
colônia norte-americana
167
. Para Weinberg, a Guerra contra Espanha marca a utilização
de métodos imperialistas mais dissimulados que a simples expansão territorial. A
Emenda Platt garantiu aos Estados Unidos a capacidade de estender a esfera de seu
poder político, por meio da intervenção, da obtenção de amplos direitos por meio de
tratados e do estabelecimento de uma esfera de influência:
Os norte-americanos começaram a conhecer métodos imperialistas mais dissimulados nessa
guerra que sinalizou a culminação virtual do expansionismo territorial; pois a intervenção de
1898 em Cuba permitiu não a satisfação das ânsias de expansão territorial, mas também, por
meio da Emenda Platt, estender a esfera do poder político. A intervenção, a obtenção de amplos
direitos por meio de tratados e a reivindicação de uma esfera de influência foram métodos
tortuosos, graças aos quais pareceu que, em um determinado momento, o imperialismo norte-
americano tendia à realização quase completa do sonho continental do destino manifesto
168
.
166
SELLERS, C., MAY, H., MCMILLEN, N. R. Op. Cit, p. 263.
167
BUENO, C. Política Externa da Primeira República: os anos de apogeu (de 1902-1918). São Paulo;
Paz e Terra, 2003, p. 39.
168
WEINBERG, A. K. Op. Cit., p. 385 (tradução nossa).
66
Outros argumentos também são utilizados para justificar a entrada dos Estados
Unidos na política das grandes potências, ao final do século XIX. Entre eles está uma
interpretação econômica do imperialismo, ou seja, a necessidade do país angariar
matéria-prima e mercado consumidor para sua indústria em ascensão
169
.
O extraordinário crescimento econômico nos anos que seguiram a Guerra Civil
afetou diretamente as formulações de Washington para a América Latina. Nesse
período, a população norte-americana dobrou de 35 para 70 milhões de habitantes, o
PNB triplicou e a produção industrial expandiu-se a todo vapor
170
. As importações de
produtos latino-americanos, especialmente o açúcar e o café, mais que dobrou. No
entanto, as exportações norte-americanas eram destinadas quase totalmente à Europa
cerca de 80%. Esse fato passou a chamar a atenção do governo norte-americano, que
percebia a necessidade de transformar a América Latina em um mercado consumidor
para os produtos industrializados produzidos pelos Estados Unidos
171
.
Fala-se também em um renascimento e reafirmação do destino manifesto e da
superioridade racial da nação norte-americana
172
- idéia que fora associada ao
processo de expansão para o Oeste. ainda um viés baseado no proselitismo dos
protestantes evangélicos, que teria contribuído para a reorientação política desse
período. As seitas protestantes com representações no exterior teriam promovido um
imperialismo moral, de acordo com o qual os norte-americanos serviriam como
exemplos entre as raças que ainda viviam em meio ao pecado
173
. Essa postura reflete a
antipatia dos norte-americanos tanto em relação à região como à cultura latino-
169
SELLERS, C., MAY, H., MCMILLEN, N. R. Op. Cit., 1990., p. 264.
170
SCHOULTZ, L. Op. Cit., p. 106.
171
Ibid., p. 106-107.
172
SELLERS, C., MAY, H., MCMILLEN, N. R. Op. Cit., p. 264.
173
Ibid., p. 264.
67
americana, o que faz com que os Estados Unidos prefiram uma visão preconceituosa da
América Latina, em detrimento de uma melhor compreensão das realidades da região
174
.
À medida que os Estados Unidos consolidaram seu desenvolvimento econômico
interno e definiram os objetivos principais do país no cenário internacional, a política
em relação à América Latina assumiu uma forma mais definida
175
. Passado o período da
Reconstrução
176
, com o domínio do modelo industrial nortista, o mercado interno norte-
americano encontrava-se saturado de manufaturas à espera de um mercado consumidor
que pudesse criar demanda para tais produtos. Nesse cenário, a jovem nação norte-
americana buscou integrar-se no rol das grandes potências, procurando estabelecer
esferas de influência a exemplo do imperialismo franco-britânico-alemão. O comércio
passou a orientar a política exterior estadunidense e a América Latina surgia como uma
zona naturalmente destinada a integrar a órbita do poder norte-americano
177
.
Nessa conjuntura de prosperidade industrial - período conhecido como a “Idade
Áurea da América”
178
- os Estados Unidos convocam uma reunião com todos os países
do continente americano, com a exceção do Canadá. A Conferência Internacional
Americana ocorreu em Washington, no período de 20 de outubro de 1889 a 10 de abril
de 1890. Por meio da análise da agenda do encontro, percebem-se os interesses norte-
americanos na região abaixo do Rio Grande, que se resumiam à ampliação do
intercâmbio comercial com a América Latina
179
.
174
WIARDA, H. WIARDA, H. In search of policy: the United States and Latin América. Washington
D.C.: American Enterprise Institute for Public Policy Research, 1984, p. 22.
175
AYERBE, L. F. Op. Cit., 2002, p. 51.
176
Período que se seguiu imediatamente ao término da Guerra Civil Americana, situado entre 1865 e
1890 (Cf. SELLERS C., MAY H., MACMILLEN N.R. Op. Cit., p. 203-213).
177
BUENO, C. O Brasil e a Terceira Conferência Internacional. Estudos Históricos, Marília, n. 13 e 14,
1974-1975, p. 24.
178
FISCHMANN, J. apud BUENO, C. Ibid, p. 24.
179
BUENO, C. Da Pax Britannica à Hegemonia Norte-Americana: o Integracionismo nas Conferências
Internacionais Americanas (1826-1906). Revista de Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 20, 1997.
Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/224.pdf Acesso em 9 de Jan., 2007.
68
Apesar dos resultados pífios da Primeira Conferência Americana
180
, identifica-se
a nova postura adotada pelos Estados Unidos em relação à América Latina a partir de
então. Depois de consolidar suas fronteiras territoriais, a nova missão americana seria a
consolidação de suas fronteiras econômicas que deveriam ser estendidas ao sul do
continente.
Embora os Estados Unidos não possuíssem recursos militares capazes de
garantir os preceitos da Doutrina Monroe, ela é expressão da consciência política
americana
181
69
nacional e hegemônica, que estabeleceu as bases de um sistema que justificaria a
expansão e o domínio do capitalismo norte-americano
185
.
Essa justificativa esteve
baseada na ameaça de um inimigo externo e na necessidade dos Estados Unidos zelarem
pela segurança e pela paz do hemisfério.
Os corolários à Doutrina Monroe, que se iniciaram na presidência de James
Knox Polk (1845-1849), serviram como justificativa para o intervencionismo norte-
americano na América Latina. De acordo com o Presidente Polk, os Estados Unidos
possuíam o direito natural de intervenção para garantir a tranqüilidade no continente
186
.
No início do século XX, o país era uma potência mundial com uma economia
de primeira ordem e uma política externa que tinha como objetivo prioritário a
hegemonia no continente americano. Em 1904, o então presidente americano, Theodore
Roosevelt, defendeu o quinto corolário à Doutrina Monroe, mais conhecido como Big
Stick
187
, ou política do “grande porrete”. O corolário rooseveltiano justificava a
intervenção dos Estados Unidos na América Latina em nome da necessidade de
assistência de uma nação “civilizada”, que agisse como polícia internacional. Para
Roosevelt, a América Latina era “uma dependência semi-bárbara norte-americana, a
carecer de orientação anglo-saxônica”
188
. Entre os anos de 1898 a 1925, os Estados
Unidos intervieram 31 vezes, em nove países da América Central e Caribe,
principalmente Cuba, Honduras e Nicarágua
189
.
Seguindo a linha intervencionista de Roosevelt, William Howard Taft, seu
sucessor, apelou mais para a força econômica dos Estados Unidos em suas relações com
a América Latina. Para ele, investimentos norte-americanos no exterior eram bons
185
BANDEIRA, M. Op. Cit., p. 50.
186
POLK, J. K. apud NAVIA, R. N. Op. Cit., p. 68.
187
AYERBE, L. F. Op. Cit., 2002, p. 54.
188
SELLERS, C., MAY, H., MCMILLEN, N. R. Op. Cit., p. 273.
189
FERES JR., J. A América Latina vista do alto. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 13, nov.
1999, pp. 183-188.
70
instrumentos de política externa. Essa prática ficou conhecida como a “diplomacia do
dólar”
190
. A política de investimento de capital norte-americano na América Latina tinha
como objetivos afastar os interesses europeus sobre a região e dominar economicamente
as repúblicas latino-americanas, especialmente aquelas da América Central.
Com Woodrow Wilson, o imperialismo americano ganha um viés humanitário,
baseado no conceito de missão filantrópica dos Estados Unidos na América Latina.
Apesar de condenar todas as formas de domínio, Wilson baseava-se em uma filosofia
inevitavelmente imperialista de destino manifesto, afirmando que os Estados Unidos
eram responsáveis pela criação de valores morais do pan-americanismo
191
.
Acompanhando o legado moralista de Wilson, na presidência de John Calvin
Coolidge, o dever moral dos Estados Unidos foi reafirmado na obrigação do país de
impedir a revolução e zelar pela ordem dos governos latino-americanos, especialmente
aqueles situados ao norte do Canal do Panamá:
Sentimos, em relação aos governos reconhecidos dos países ao norte do canal do Panamá, uma
responsabilidade moral que não se estende a outras nações. Desejamos que compreendam que
nosso reconhecimento lhes é de valor autêntico e que, quando enfrentarem dificuldades, poderão
contar com o apoio que estejamos em condições prestar-lhes legalmente
192
.
De acordo com Aron, as intervenções norte-americanas na América Central e no
Caribe refletem uma ampla interpretação da Doutrina Monroe e a recusa do
imperialismo europeu pelos Estados Unidos
193
.
Ao observarmos o intervencionismo norte-americano do início do culo XX e a
reorientação da política exterior dos Estados Unidos que ascendia ao rol das grandes
190
SELLERS, C., MAY, H., MCMILLEN, N. R. Op. Cit., p. 273.
191
WEINBERG, A. K. Op. Cit., p. 404.
192
Ibid, p. 409 (tradução nossa).
193
ARON, R. Op. Cit., p. 27.
71
potências, percebe-se que os corolários à Doutrina Monroe foram expressão do poder
duro estadunidense, notadamente a política do Big Stick”, que se consagrou, na
historiografia da política exterior dos Estados Unidos para a América Latina, como o
maior expoente do exercício do poder por meio da coerção.
Ao final do século XIX, os Estados Unidos passam a liderar as iniciativas
interamericanas, que, a então, pautavam-se pela idéia de unidade bolivariana. No
entanto, essa nova liderança acarretou uma mudança na ênfase do projeto
interamericano, que deixou de focalizar-se em uma coordenação exclusivamente
política entre os países americanos e ganhou uma abordagem econômica
72
qual muitas vezes neutralizou o suposto multilateralismo pan-americanista, adotando
uma postura unilateral e intervencionista inspirada na Doutrina Monroe
197
.
Apesar do pan-americanismo estadunidense constituir um conjunto de idéias
pouco organizadas, percebe-se que a bandeira do pan-americanismo serviu à política
exterior estadunidense como um instrumento de poder brando, exacerbando a
importância de unir as duas Américas e enaltecendo as peculiaridades do Novo Mundo
em relação ao Velho Continente.
Até a Segunda Guerra Mundial, as políticas de poder dos Estados Unidos
estiveram voltadas especialmente para a América Latina, por esta ser uma região
estratégica para a segurança norte-americana. Ou seja, qualquer ameaça ao hemisfério
americano deveria ser prevenida e, quando necessária, eliminada
198
.
A preocupação com a ameaça de inimigos externos é lugar comum nas
formulações políticas dos Estados Unidos para o continente. O conceito de segurança
nacional estadunidense pauta-se em dois eixos fundamentais, quais sejam: a percepção
de uma ameaça constante e a conseguinte reação externa, que a fonte de ameaça é
sempre identificada além das fronteiras do país
199
.
Durante o século XIX, a Doutrina Monroe com o slogan de “América para os
americanos” serviu aos interesses expansionistas norte-americanos, garantindo aos
Estados Unidos o papel central no continente como o garantidor da paz e estabilidade
das novas Repúblicas latino-americanas, afastando a ameaça do inimigo externo,
representada pelas ambições européias na América Latina. No início do século XX, a
Doutrina Monroe é renovada com o Corolário Roosevelt. A ideologia moral serviu
como justificativa para a doutrina do poder de polícia e provavelmente exerceu
197
CAMPOS, C. O. Op. Cit., p. 29.
198
PECEQUILO, C. S. Op. Cit., 1999, p. 33.
199
CAMPOS, C. O. Op. Cit., 2000, p. 11.
73
influência sobre a concepção legal norte-americana acerca da intervenção
200
. Nesse
sentido, a idéia de líder hemisférico e de responsável pela proteção da América Latina
em relação ao mundo não americano relaciona-se com o dogma da superioridade norte-
americana e do destino manifesto.
No governo de Franklin Delano Roosevelt (1933-1945), as formulações
políticas, antes baseadas nas amplas interpretações da Doutrina de Monroe, ganham
uma roupagem pan-americanista na luta contra a influência nazi-fascista na América do
Sul. O período da Boa Vizinhança, como ficou conhecido o governo de Franklin Delano
Roosevelt, não foi marcado pelo unilateralismo que predominou nas relações entre os
Estados Unidos e a América Latina anteriormente. Na realidade, a política do bom
vizinho tinha como um de seus objetivos desfazer as más impressões deixadas pelo
intervencionismo norte-americano do início do século XX, baseando-se em um discurso
que exaltava os valores pan-americanos.
Essa mudança de postura esteve de acordo com os interesses tanto político-
estratégicos, como econômicos de Washington. Politicamente, essa nova postura tinha
como objetivo dissipar a influência alemã na América Latina. no que diz respeito à
economia, a retórica pan-americanista de cooperação e solidariedade continental
ampliava as possibilidades dos Estados Unidos de garantir a formação de um mercado
consumidor externo para seus produtos industrializados, bem como o acesso às
matérias-primas necessárias ao seu parque industrial. Devido aos efeitos da crise de
1929 que arrasou a economia norte-americana e à crise na Europa, o controle de um
mercado consumidor de produtos industrializados e o suprimento de matérias-primas
necessárias ao processo industrial era de fundamental importância para o governo norte-
americano.
200
WEINBERG, A. K. Op. Cit., p. 413.
74
Para atender a tais interesses, o Departamento de Estado levou a cabo um projeto
de política externa que introduziu e difundiu, em dimensões não sentidas anteriormente,
a cultura estadunidense na América Latina. Procurou-se, assim, criar uma relação
amistosa entre Estados Unidos e os países latino-americanos, promovendo um ambiente
favorável à concretização dos interesses estadunidenses no subcontinente. A política da
Boa Vizinhança pode ser considerada o marco da disseminação do American way of life
na América Latina e a consolidação da liderança estadunidense no hemisfério Ocidental.
Para Moniz Bandeira, essa política “correspondia à necessidade de manter em calma o
quintal enquanto se pelejava nas ruas”
201
, uma alusão à importância estratégica da
América Latina para os Estados Unidos, em uma conjuntura de crise com a Guerra
Mundial que se aproximava.
A política do bom vizinho de Washington marca um novo período da política
externa estadunidense para a América Latina, quando os Estados Unidos adotam uma
política de poder brando, em detrimento do intervencionismo e da intimidação que
marcaram a postura norte-americana em relação ao subcontinente no início do século. O
perigo da influência alemã na América Latina fez com que o Departamento de Estado se
empenhasse em desfazer o mal-estar que permeava as relações entre Estados Unidos e
América Latina, fruto do exercício do poder de coerção norte-americano.
A idéia que o experimento americano deve servir como exemplo universal
sempre inspirou as formulações da política exterior norte-americana para a América
Latina. Os Estados Unidos baseiam-se na idéia de que qualquer nação ou grupo regional
pode tornar-se próspera, estável e democrática ao seguir o exemplo norte-americano,
como se ele fosse o remédio universal para as doenças da humanidade. A superioridade
de seu desenvolvimento econômico faz com que os Estados Unidos considerem o
201
BANDEIRA, M. Op. Cit., p. 247.
75
modelo de vida norte-americano mais desenvolvido socialmente, politicamente,
intelectualmente e, até mesmo, moralmente. Essa superioridade seria o motivo pelo qual
os sistemas social e político estadunidenses deveriam servir como paradigma aos latino-
americanos, aos quais caberiam aprender com o vizinho do norte.
Para Howard Wiarda, a partir da guerra contra a Espanha no final do século
XIX, ou seja, desde a ascensão dos Estados Unidos como potência industrial, percebe-se
uma continuidade nos interesses do país em relação à América Latina, os quais têm
sido, principalmente, de ordem estratégica, econômica e política
202
. Nesse contexto, os
interesses primários dos Estados Unidos no subcontinente seriam a manutenção do
acesso às matérias-primas, aos mercados e às vias de navegação marítima latino-
americanas, além de manter à distância potências hostis aos interesses norte-
americanos
203
. Nesse sentido, observa-se que os interesses de primeira ordem dos
Estados Unidos na América Latina confirmam a tradição da Doutrina Monroe na
política exterior estadunidense para o subcontinente. Essa tradição invocou a
necessidade de combater ameaças externas em diferentes momentos da historiografia
das relações entre as duas Américas, desde o imperialismo europeu, no século XIX, à
ameaça soviética, durante a Guerra Fria.
Ainda que as formulações da política externa norte-americana ocorram de
acordo com as diferentes conjunturas internacionais, percebe-se que as diretrizes da
política exterior norte-americana para a América Latina pautam-se por tradições de uma
cultura política, que desde o século XVIII, aponta o subcontinente como uma região
inferior que deve ser orientada pelos Estados Unidos, tal como uma zona de influência
natural norte-americana. A América Latina e o Caribe são, tradicionalmente, percebidos
pelo vizinho do norte como uma área geográfica, na qual deve-se definir e estabelecer
202
WIARDA, H. Op. Cit., 1984, p. 24.
203
Ibid, p. 24.
76
um sistema de dominação próprio, e como uma plataforma para o relacionamento com o
resto do mundo
204
, principalmente no que diz respeito ao tema da segurança nacional
estadunidense.
2.2.1 Brasil e Estados Unidos: aproximação com o advento da República
brasileira.
Durante quase todo o século XIX, o Estado brasileiro via-se civilizado e
influenciado pela cultura européia, exaltando suas peculiaridades quando comparado
aos seus anárquicos vizinhos hispano-americanos
205
.
O Brasil, ao contrário das revoltosas colônias espanholas, teve sua
independência declarada pelo herdeiro do trono português. A implantação da monarquia
foi reflexo da influência européia no país, mesmo após sua independência. O Império
brasileiro identificava-se muito mais com o Velho que com o Novo Mundo, negando
sua condição de americano. Aos olhos do Império, as Repúblicas americanas eram
vistas como anárquicas e turbulentas
206
.
O distanciamento do Estado brasileiro em relação às nações do Novo Mundo
estendia-se também aos vizinhos do norte.
Apesar do Brasil ter sido o primeiro país latino a ter um diplomata norte-
americano e o primeiro a reconhecer a Doutrina Monroe, bem como os Estados Unidos
serem os primeiros a reconhecerem a independência do Brasil, em 1824
207
, o
relacionamento entre os dois países foi pouco expressivo durante quase todo o século
204
CAMPOS, C. O. Op. Cit., p. 10.
205
SANTOS, C. V. G. Op. Cit., p. 28.
206
Ibid, p. 68.
207
PEREIRA, P. J. R. A Política Externa da Primeira República e os Estados Unidos: a atuação de
Joaquim Nabuco em Washington. Dissertação de Mestrado em Relações Internacionais. Programa de Pós-
Graduação San Tiago Dantas.
77
XIX. Este fato deveu-se não ao alinhamento brasileiro à Europa que caracterizou a
política externa brasileira do período em questão, mas também ao isolacionismo norte-
americano, que optou por um engajamento estreito, de acordo com seus objetivos e
recursos de poder
208
. Essa postura garantia ao país uma margem de manobra no exterior,
ao mesmo tempo em que priorizava as questões domésticas, tais como: expansão
territorial e desenvolvimento da indústria nacional e do mercado interno.
A aproximação entre Brasil e Estados Unidos deu-se com o advento da
Proclamação da República do Brasil, em 1889. A partir de então, o Brasil passa a adotar
uma postura de alinhamento à América, como uma alternativa para a inserção
internacional do país a partir do próprio continente americano. Nesse sentido, a política
externa brasileira iniciada com a República não deve ser simplesmente caracterizada
como “norte-americana”. Ela foi uma política “americanista”, que, por meio de uma
aproximação com seus vizinhos continentais, o Brasil buscou distanciar-se do Império e
de tudo que ele representava
209
.
Até o final do século XIX, as iniciativas interamericanas não faziam parte das
diretrizes da política exterior brasileira, que os ideais pan-americanos das Repúblicas
do Novo Mundo não coadunavam com a Monarquia do Brasil. Esse quadro também se
alterou com a proclamação da República brasileira. A participação do Brasil na Primeira
Conferência Internacional Americana marca o reposicionamento brasileiro no
continente.
Até o início da Conferência, que marcou o início da liderança dos Estados
Unidos nas iniciativas interamericanas
210
, o Império brasileiro não via com bons olhos o
interamericanismo. A partir da instauração do governo republicano, a delegação que
208
PECEQUILO, C. S. Op. Cit., 1999, p. 21.
209
PEREIRA, P; J. R. Op. Cit., p. 25.
210
CAMPOS, C. O. Op. Cit., p. 109.
78
representava o Brasil da Conferência de Washington recebeu novas orientações para
que exercessem maior participação no encontro, confirmando a reorientação da política
exterior do Brasil a partir da Proclamação da República. Tal reorientação seria
responsável pela aproximação do Brasil com os países da América, principalmente com
os Estados Unidos, deixando para trás o paradigma de cautela e não-envolvimento que
caracterizou as relações entre o Brasil e seus vizinhos americanos durante o período
imperial
211
.
Além das novas diretrizes adotadas pela diplomacia brasileira com o advento da
República, deve-se considerar também a postura favorável dos Estados Unidos a uma
aproximação com o Brasil. Passado o período de Reconstrução, os Estados Unidos
despontavam como um colosso no cenário internacional. O desenvolvimento industrial
norte-americano criava a necessidade, cada vez maior, de expandir mercados que
gerassem uma demanda compatível ao ritmo da produção industrial. Desse modo, uma
parceria com o Brasil – levando em conta suas dimensões territoriais, população e
recursos naturais – era vista como uma possibilidade de gerar demanda e garantir
matéria-prima para a indústria norte-americana.
Nessa conjuntura, a Conferência de Washington coloca em evidência os
interesses camuflados pela retórica do pan-americanismo liderado pelos Estados
Unidos. Os objetivos do encontro eram nitidamente econômicos, condizendo com os
interesses norte-americanos:
Pelo simples exame da agenda do encontro, percebem-se claramente seus objetivos nitidamente
econômicos e a intenção que tinham os norte-americanos em ampliar seu prestígio político e o
intercâmbio comercial com a América Latina: medidas tendentes a promover a prosperidade dos
211
PEREIRA, P. J. R. Op. Cit., p. 29.
79
diversos estados americanos: união pan-americana de comércio; comunicação dos portos; união
aduaneira; pesos e medidas; direitos de intervenção; moeda comum e arbitramento. o
arbitramento foi um item de natureza política, os demais se configuraram de natureza
econômica
212
.
A busca dos Estados Unidos por novas áreas de expansão comercial e política
favoreceu uma aproximação com o Brasil. Desse modo, no início da República, os
dois países firmam o Convênio Aduaneiro de 1891. O convênio permitia que uma série
de produtos norte-americanos fosse isenta de impostos ou tivessem uma redução de
25% nas taxas alfandegárias, enquanto o Brasil beneficiava-se isenção de impostos na
entrada de açúcar e couro nos Estados Unidos, bem como da manutenção do café como
um produto isento
213
. Apesar das controvérsias que cercaram o convênio, ele reflete
tanto o esforço norte-americano para incrementar suas relações comerciais com o Brasil
– seguindo as orientações dispostas na Conferência de Washington como a disposição
da nova República brasileira em estreitar relações com o vizinho do norte.
No início do século XX, a política externa brasileira oscilava entre a expansão
do poder americano e o imperialismo europeu. Desde o fim do século XIX, os Estados
Unidos se destacavam como os maiores importadores do café brasileiro
214
. Com uma
economia especializada baseada na agroexportação, o Brasil viu esse quadro se
aprofundar no início do século XX, aumentando sua dependência em relação aos
Estados Unidos
215
.
212
BUENO, C. Op. Cit., 1974-1975, p. 25-26.
213
PEREIRA, P. J. R. Op. Cit., p. 31.
214
BUENO, C. Op. Cit., 2003, p.95.
215
Ibid, p. 107.
80
Quadro 2
1906 – Direção do café exportado (%)
Estados Unidos 37, 9
Alemanha 21,8
França 15,3
Holanda 6,6
Áustria-Hungria 6,5
Bélgica 3,4
Itália 1,6
Grã-Bretanha 1,2
Argentina 1,1
Cabo da Boa Esperança 1,0
Diversos Países 3,6
Total 100,0
Fonte: Relatório do Ministério da Fazenda, 1907
apud BUENO, C. Op. Cit., 2003, p. 97.
Apesar da predominância norte-americana na importação do café brasileiro, no
início do século XX, a Inglaterra ainda ocupava primeiro lugar nas relações comerciais
com o Brasil. Para Clodoaldo Bueno, a idéia de que houve, no Brasil, uma competição
entre os imperialismo inglês e o norte-americano deve ser desconsiderada. A influência
dos Estados Unidos e da Inglaterra no subcontinente complementavam-se. Os capitais
ingleses foram investidos na infra-estrutura agroexportadora ferrovias, serviços
portuários e um sistema de crédito na praça de Londres enquanto os Estados Unidos
beneficiavam-se dessa infra-estrutura para comprar o café brasileiro. Com o limiar da
Primeira Guerra Mundial, a Inglaterra diminuiu sua ão no continente americano,
voltando-se para a crise que eclodia na Europa e criando um vácuo de poder no
subcontinente. Desse modo, com o advento da Primeira Guerra Mundial, os Estados
81
Unidos puderam ampliar sua presença não no Brasil, mas na América Latina em
geral.
216
.
Nesse cenário, sob a direção de Rio Branco, o Brasil optou por um
aprofundamento nas reações com os Estados Unidos
217
. Em nome deste
aprofundamento, Rio Branco aceita o corolário Roosevelt à Doutrina Monroe,
entendendo que a política internacional estadunidense não ameaçava o Brasil, pois este
não estava entre os países turbulentos da América Latina, que vivia um momento de
tranqüilidade político-econômica, devido à prosperidade na lavoura cafeeira.
Em 1905, cria-se a Embaixada Brasileira em Washington e Joaquim Nabuco
assume o posto de primeiro embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Adepto do
monroísmo, Nabuco enxergava a aproximação com os Estados Unidos como uma
questão de sobrevivência para o Brasil
218
.
No início do século XX, a maior parte do mundo estava dividida em zonas
coloniais ou de dominação política das grandes potências mundiais. Àquela época, o
imperialismo caracterizava-se pela conquista territorial e essa é uma das preocupações
que orienta a adesão de Nabuco ao monroísmo. O Embaixador entendia que a dimensão
territorial do Brasil deixava-o vulnerável às ambições e cobiças de nações européias.
Como o Brasil não tinha condições de proteger-se das ameaças externas, a Doutrina
Monroe deveria ser a garantia de nossa independência e preservação de nosso
território
219
.
216
. BUENO, C. Op. Cit., 2003, p. 109
217
PEREIRA, P. J. R. Op. Cit , p. 52.
218
Ibid, p. 132.
219
Ibid, p.131-132.
82
Tanto Rio Branco como Joaquim Nabuco concordavam que os “Estados Unidos
eram o centro de um subsistema internacional de poder”
220
. Além do poder garantido
aos Estados Unidos por consagrarem-se no início do século XX como o país mais
desenvolvido economicamente, a influência norte-americana também era percebida sob
um viés moralista. Na apresentação de suas credenciais ao então Presidente Theodore
Roosevelt Nabuco mostrava-se desejoso de:
[...]que se aumente a imensa influência moral que os Estados Unidos exercem sobre a marcha da
civilização e que se manifesta pela existência no mapa do mundo, e pela primeira vez na
História, de uma vasta zona neutra, de paz e de livre concorrência humana
221
.
Desse modo, o Embaixador via o alinhamento aos Estados Unidos como algo
inevitável para a política externa brasileira, já que esse deveria ser o eixo de
segurança garantidor da integridade do território nacional, além do prestígio
decorrente do fato de estar o Brasil ao lado da mais forte República do continente.
Nesse sentido, para Nabuco, a Embaixada Brasileira em Washington deveria ser o
centro de operações do Brasil para sua inserção no mundo
222
.
A gestão de Rio Branco no Itamaraty marca a americanização da política
exterior do Brasil. Essa americanização não deve ser entendida por norte-
americanização. A política externa brasileira buscou, nesse período, o alargamento
de sua inserção internacional nas Américas, abrangendo suas relações continentais,
especialmente com os Estados Unidos
223
.
220
BUENO, C. Op. Cit., 2003, p. 165.
221
AHI. 34.6/IX, maço 1, pasta 8 (cópia manuscrita de Rio Branco) apud BUENO, C. Op. Cit., 2003, p.
165.
222
PEREIRA, P. J. R. Op. Cit., p.141-142.
223
ALTEMANI, H. Política Externa Brasileira. São Paulo: Saraiva: 2005, p. 29.
83
Para Bueno, apesar da aproximação entre Brasil e Estados Unidos refletir o
relacionamento comercial que já existia entre os dois países, quando do advento do
regime republicano de 1889, ela reflete também a percepção de Rio Branco acerca do
quadro mundial e das tendências políticas do novo regime
224
.
A reorientação da política exterior brasileira ao final do século XIX e início do
século XX reflete, portanto, a implementação da República do Brasil e o esforço em
deixar para trás os princípios fundamentais do Império.
Após a Primeira Guerra Mundial, com o desgaste da hegemonia inglesa e o
crescimento da atuação norte-americana na balança de pagamentos brasileira, os
Estados Unidos tornaram-se ainda mais importantes para a política externa brasileira.
Essa tendência foi mantida e transformada em um processo de alinhamento
automático do Brasil ao governo de Washington até a década de 1930
225
.
A partir da cada de 1930 até a tomada de decisão do governo brasileiro de
apoiar os Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, tem-se o período no qual a
política externa brasileira destaca-se pelo seu alto poder de barganha, advindo das
possibilidades de alinhamento com a Alemanha ou com os Estados Unidos. Gerson
Moura
226
rotula a atuação da chancelaria brasileira durante esse período de
eqüidistância pragmática.
No cenário internacional, o período entre guerras é marcado pela indefinição,
com a ascensão de potências diversas em busca de sua zona de influência. Nesse
sentido, destaca-se a importância do Brasil devido às suas dimensões territoriais,
224
BUENO, C. Op. Cit., 2003, p. 483.
225
ALTEMANI, H. Op. Cit, p., 42.
226
MOURA, G
84
riquezas e geografia estratégica - tanto para os Estados Unidos como para a
Alemanha.
Desse modo, a política externa brasileira, sob o governo Vargas, caracteriza-se
pelo aproveitamento das brechas geradas pela competição entre Estados Unidos e
Alemanha, mantendo uma eqüidistância pragmática entre os dois centros de
poder
227
.
Para garantir que não o Brasil, mas a América Latina como um todo,
continuasse a integrar a área de influência norte-americana e dissipar a ameaça alemã no
subcontinente, os Estados Unidos lançaram mão da Política da Boa Vizinhança, que
teve como um de seus pilares a disseminação do American way of life entre os latino-
americanos. Com a política do bom vizinho, a tradição expansionista norte-americana
ganhou uma roupagem amistosa e a cultura passou a funcionar como um instrumento do
poder brando da política externa estadunidense.
227
ALTEMANI, H. Op. Cit., p. 47.
85
A Era da Boa Vizinhança
O futuro e a segurança de nosso país e de nossa democracia estão
profundamente entrelaçados com os acontecimentos que se processam
além de nossas fronteiras... Digamos às democracias: “Nós, americanos,
estamos inteiramente dedicados à defesa de vossa liberdade. Estamos
jogando nossas energias, nossos recursos e nossos poderes de
organização para dar-vos a força necessária para recuperar e manter o
mundo livre”.
(Franklin Delano Roosevelt, 1941).
86
Em meio a defensores e opositores, o debate sobre a americanização” do Brasil
gira em torno dos que responsabilizam a assimilação da cultura norte-americana pela
desestruturação da cultura brasileira e daqueles que atribuem a essa influência uma
força capaz de modernizar a sociedade, livrando o Brasil de seu atraso econômico-
cultural
228
. A corrente contra a americanização relaciona a dependência cultural à
economia. As idéias de individualismo e consumismo norte-americanas seriam
responsáveis pela destruição da tradição cultural latino-americana
229
. Essa relação de
dependência baseia-se na Teoria da Dependência, uma das contribuições
internacionalmente conhecidas das ciências sociais latino-americanas
230
. Nas décadas de
1960, 1970 e 1980, as explicações acadêmicas para o subdesenvolvimento da América
Latina privilegiaram a idéia da “dependência” do subcontinente em relação aos países
desenvolvidos, sobretudo aos Estados Unidos
231
.
Aqueles que se encontram na vertente pró-americanização assumem uma postura
em favor da liberalização política e econômica pregada pelos Estados Unidos,
atribuindo ao americanismo um significado de cultura do empreendimento. O modelo
americano é identificado como um sistema de valores favorável ao progresso. Para
Lawrence E. Harrison, a Teoria da Dependência foi uma das forças que conduziram a
política exterior auto-destrutiva da maioria dos países latino-americanos
232
. Para ele,
atribuir o subdesenvolvimento latino-americano a uma exploração imperialista imposta
à região pelas grandes potências mundiais é procurar nos outros a razão para os
problemas que a América Latina não consegue resolver. Harrison destaca a importância
do sistema de valores de um país para seu desenvolvimento. Segundo o autor, entre
228
TOTA, A. OP. Cit., p. 10.
229
Ibid, p. 11.
230
AYERBE, L. F. O Ocidente e o resto: a América Latina e o Caribe na cultura do império. Buenos
Aires: Clacso, 2003, p. 45.
231
HARRISON, L. E. The Pan-American dream: do Latin America’s cultural values discourage true
partnership with the United States and Canadá? Westview Press, 1997.
232
Ibid, pp.76-77.
87
esses valores estão: a relação da sociedade com o trabalho, a educação, a justiça, o
mérito. Tais valores explicariam a existência de culturas favoráveis ao progresso e de
culturas resistentes ao progresso
233
.
Os Estados Unidos construíram sua hegemonia sobre uma preponderância
militar, econômica e uma influência cultural que levou o American way of life ao nível
global. Apesar de a americanização ter defensores e opositores no Brasil e no mundo, o
fato é que os Estados Unidos utilizaram a cultura na construção de sua hegemonia em
dimensões sem precedentes. Hoje o inglês é a língua franca do tráfego aéreo ao
entretenimento, as universidades norte-americanas estão entre as melhores instituições
de ensino superior no mundo, a cultura popular da classe média americana invade o
mundo, no qual alguns amam e outros odeiam, mas a maioria conhece os filmes de
Spielberg, as lojas da Starbucks e a programação da MTV
234
.
Uma série de fatores contribuiu para esse feito, entre eles e, talvez, o mais
importante foi o fenômeno da globalização dos meios de comunicação.
Procuramos apontar no presente capítulo de que modo a cultura norte-americana
atuou como um instrumento do poder brando dos Estados Unidos, contribuindo para o
alinhamento brasileiro à causa americana durante a Segunda Guerra Mundial.
Para garantir maior clareza à idéia de cultura e sua utilização como instrumento
de poder, concordamos com Nelson Werneck Sodré que entende por cultura “o conjunto
de valores materiais e espirituais criados pela humanidade, no curso de sua história”
235
.
Nesse sentido, a cultura apresenta-se como um fenômeno social que representa os
avanços alcançados por uma sociedade em um determinado período histórico, tais
233
Ibid, pp. 32-39.
234
COHEN, E. A. Op. Cit., p. 71.
235
SODRÉ, N. W. Síntese de história da cultura brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, p.
3.
88
como: progresso, técnica, experiência de produção e de trabalho, instrução, educação,
ciência, literatura, arte e instituições que lhes correspondem
236
.
Desse modo, entendemos que a influência de uma cultura sobre a outra culmina
em mudanças no nível de progresso, técnica, experiência de produção e de trabalho,
instrução, educação, ciência, literatura, arte e instituições da cultura influenciada.
3.1 A americanização do Brasil
A partir da década de 1930, o Estado brasileiro passa a acomodar os interesses de
outras classes no aparelho estatal. Apesar de a Revolução de 1930 não possuir um
vinculo específico com a burguesia industrial
237
, notamos que, na década que se segue
ao movimento, a percepção do interesse nacional é ampliada em detrimento de uma
percepção estritamente voltada aos interesses de uma oligarquia agroexportadora.
A estrutura econômica do Brasil, baseada na monocultura do café, vinha dando
sinais de sua vulnerabilidade desde a Primeira Guerra Mundial. A manutenção de um
sistema econômico dependente de um único produto para exportação tornava-se difícil
em um mundo que tendia, cada vez mais, à autarquia e ao protecionismo
238
.
A crise mundial de 1929 aumenta as contradições no seio da oligarquia cafeeira, ao
provocar os desencontro entre a classe e seus representantes no governo. Desse modo,
tornou-se impossível à burguesia do café a manutenção de sua supremacia
239
. No
entanto, embora a elite cafeicultura tenha perdido poder na esfera política, o governo
não deixou de atender aos interesses da classe que ainda representava a maior fatia das
exportações brasileira. O quadro abaixo apresenta o desempenho da exportação do café
236
Ibid, p. 3-4.
237
FAUSTO, B. A Revolução de 1930. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1975, p.11.
238
Ibid., p. 93.
239
Ibid., p. 98.
89
nos anos que se seguiram à Revolução de 1930. Apesar de sofrer queda constante, em
decorrência da política de defesa do preço do produto, o café ainda manteve-se como o
principal produto da economia brasileira:
Quadro 3
1931 - 68,8%
1932 – 71,6%
1933 – 73,3%
1934 – 60,7%
1935 – 52,6%
1936 – 45,5%
1937 – 42,1%
Fonte: Ministério das Relações Exteriores 1935, Rio de Janeiro, 1935 e Ministério das
Relações Exteriores – 1939-1940, Rio de Janeiro, 1940 apud Fausto, B. Op Cit., p.105.
A política externa brasileira ganhou novos contornos e buscou novas formas de
cooperação e barganhas, já que, sem descuidar dos interesses da oligarquia cafeeira,
trabalhou para contemplar outros segmentos da sociedade
240
.
Em um cenário no qual
nenhum dos grupos dominantes pode oferecer ao Estado as bases de sua legitimidade,
estabelece-se um compromisso entre as várias facções, de acordo com o qual aqueles
que governam o país não representam a diretamente grupos sociais hegemônicos
241
.
240
BUENO, C.; CERVO, A. L. História da Política Exterior do Brasil. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 2002, p. 234.
241
WEFFORT, F. Classes Populares e Política apud FAUSTO, B. Op. Cit., 1975, p. 104.
90
Para Boris Fausto, a viabilização do Estado de compromisso ocorreu em virtude da
ausência de oposições radicais entre as classes dominantes e do papel unificador do
exército, funcionando como sustentáculo do regime vigente
242
. Nesse sentido, a
importância do exército durante governo varguista é notória, já que garantiu a
subordinação das classes dominantes em relação a um Estado centralizado e
intervencionista.
O colapso econômico que permeou a passagem dos anos 20 para os anos 30 acabou
por reforçar a crise do capitalismo liberal e, no plano político, serviu como justificativa
para a crítica à liberdade de expressão
243
.
Nesta senda, após a Revolução de 1930, o Brasil foi continuamente empurrado ao
autoritarismo até o advento do Estado Novo. Para garantir a legitimação do novo
regime, oriundo de um golpe, o governo brasileiro lançou mão de um amplo projeto de
propaganda política.
A propaganda política possui caracteres particulares, tais como simplificações das
idéias para atingir às massas incultas, apelo emocional, repetições, promessas de
benefício materiais à população (emprego, aumento de salário, melhoria nos preços de
artigos de primeira necessidade), promessas de unificação e fortalecimento nacional. A
intensificação das emoções ocorre principalmente através dos meios de comunicação,
no entanto o apelo emocional pode dar-se também por meio de outros instrumentos
como: literatura, teatro, pintura, arquitetura, ritos, festas, comemorações cívicas e
esportivas.
244
.
242
FAUSTO, B. Op. Cit., 1975, p. 104-106.
243
FAUSTO, B. O ESTADO Novo no contexto internacional. In: PANDOLFI, D. (Org.) Repensando o
Estado Novo. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1999, p. 17-20.
244
CAPELATO, M.H. Propaganda política e controle dos meios de comunicação. In: PANDOLFI, D.
(Org.) Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1999, p. 167-168.
91
Nesse sentido, destaca-se o exemplo alemão na promoção da propaganda política,
que, apesar de terem aprendido com a propaganda comercial norte-americana, inovaram
em organização. Para a propaganda nazi-fascista, era importante garantir a unidade de
todas as atividades e ideologias. A moral e a educação deveriam subordinar-se a ela.
Para garantir tal nível organizacional, o governo de Hitler criou o Ministério da
Informação Popular e da Propaganda
245
.
Os organizadores da propaganda estado-novista foram fortemente influenciados pela
organização do modelo alemão e, com isso, criaram, em dezembro de 1939, o
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). A entidade, sob a direção de Lourival
Fontes, estava diretamente subordinada à presidência da República e possuía as
seguintes divisões: divulgação, radiodifusão, cinema, teatro, turismo e imprensa. O
objetivo do DIP foi controlar os meios de comunicação e cultura de modo a coordenar e
centralizar a propaganda estado-novista
246
. O organismo altamente centralizado
consagrou-se como o principal organismo responsável pela promoção de uma
propaganda política favorável ao governo Vargas.
Enquanto, no Brasil, a década de 1930 foi marcada por um processo de
transformações político-econômicas, no plano internacional, esse período é recordado
pelo estremecimento de disputas ideológicas. Nesse contexto, as grandes correntes
ideológicas que dividiam o mundo começavam a penetrar no Brasil.
Nesta senda, destaca-se um processo de penetração e difusão da cultura norte-
americana no Brasil sem precedentes nas relações entre os dois países.
245
CAPELATO, M. H. Op. Cit., p. 169.
246
VELLOSO, M. P. Uma configuração do campo intelectual. In: Oliveira, L. L.; VELLOSO, M. P.;
GOMES. A. M. C. Estado Novo: ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1982, p. 72.
92
No que diz respeito às relações entre Brasil e Estados Unidos, o período que se
inicia com a década de 1930 aponta para duas tendências que guiaram a política
exterior dos dois países até a Segunda Guerra Mundial.
O pragmatismo da política externa brasileira, rotulado por Gerson Moura de
“autonomia na dependência”
247
, reflete o poder de barganha do Brasil ao perceber
sua importância em um contexto internacional de disputa entre os Estados Unidos e
Alemanha, no período que antecede a Segunda Guerra Mundial.
A Política da Boa Vizinhança, inaugurada com presidência de Franklin Delano
Roosevelt (1933-1945), apresenta-se também como uma tendência nas relações entre
os dois países até o advento da guerra mundial. A política do bom vizinho utilizou
entre outros instrumentos a cultura norte-americana para promover uma boa relação
dos Estados Unidos não com o Brasil, mas com toda a América Latina, de modo a
manter a região como uma área de influência norte-americana.
Ao assumir a presidência dos Estados Unidos, Roosevelt encontrou uma tradição
intervencionista na política exterior norte-americana para os países abaixo do Rio
Grande. O Big Stick de Theorore Roosevelt e a Diplomacia do Dólar de William
Howard Taft foram expoentes dessa tradição. Conquistar a confiança dos latino-
americanos seria uma tarefa difícil para os Estados Unidos, mas necessária, pois o país
tinha a região como um mercado promissor capaz de impulsionar a recuperação
econômica pós-crise de 1929. O intervencionismo do Corolário Roosevelt deveria ser
abandonado definitivamente, pois o medo do “colosso do norte” que pairava na região
abaixo do Rio Grande estava convertendo-se em uma ameaça ao pan-americanismo e às
relações entre os Estados Unidos e a América Latina
248
. Para desempenhar tal tarefa,
247
MOURA,G. Op. Cit., 1980.
248
WHITAKER, A. P. Las Americas y un Mundo en Crisis. Lancaster: Lancaster Press, 1946, p. 19.
93
Roosevelt inaugurou a Política da Boa Vizinhança, vinculada ao pan-americanismo, que
funcionou como instrumento para a promoção de uma relação de cooperação entre os
Estados Unidos e os vizinhos do sul
249
.O discurso dessa política apontava para a
necessidade de se manter o continente americano unido na luta contra as ameaças
Desde a ascensão do partido nazista na Alemanha (1933), o governo alemão
passava a projetar-se internacionalmente
250
. Na década de 1930, a influência alemã
ganhava espaço na América Latina, principalmente no Brasil, onde o grande número de
colônias germânicas ao sul do país potencializava esse processo. O comércio de
compensação, ou seja, a troca de produtos por outros produtos sem a intermediação de
qualquer moeda, cresceu rapidamente entre a Alemanha e o Brasil
251
. Ente 1934 e 1939
o comércio entre os dois países dobrou. Em 1938, o Brasil foi responsável pelo
fornecimento de 30% de todo algodão importado pela Alemanha, além de ter no Reich o
maior comprador da borracha brasileira
252
. Esse tipo de comércio contrariava os
interesses comerciais dos Estados Unidos na região. O nazismo atraía principalmente os
militares brasileiros, que se identificavam com o modelo autárquico do governo
alemão
253
e admiravam sua máquina de guerra.
Para Clifford Geertz, quaisquer que sejam os rumos dos acontecimentos, as
forças determinantes são parcialmente culturais
254
. Desse modo, em um cenário de crise
latente, a transição da década de 1930 para 1940 foi um período de intensa disputa
ideológica entre os Estados Unidos e a Alemanha na tentativa de um sobrepor-se ao
outro na determinação dos acontecimentos.
249
Ibid., p. 24.
250
MOURA, G. Op.Cit., 1991, p.4.
251
Ibid, p. 4.
252
HILTON, S. E. Suástica sobre o Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, p. 22.
253
TOTA, A. P. Op. Cit., p. 23.
254
GEERTZ, C. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989, p132.
94
Baseando-se na tradição política da Doutrina Monroe e no dever de afastar do
hemisfério ocidental qualquer ameaça à segurança da região, os Estados Unidos
percebiam cada vez mais a inevitabilidade de envolverem-se em um conflito de
proporções mundiais. Desse modo, a América abaixo do Rio Grande despertava
interesses de primeira ordem na agenda norte-americana, pois era uma região estratégica
e não deveria ser deixada à mercê da influência germânica.
em 1938, em correspondência ao ministro das relações exteriores, Oswaldo
Aranha, a Embaixada Brasileira nos Estados Unidos chamava a atenção apara a
inquietação e preocupação que pairavam sobre os homens de Estado, de negócios, bem
como o público geral norte-americano. Os Estados Unidos sentiam-se ameaçados pelo
perigo de uma agressão de forças totalitárias e temiam a ação desses inimigos na
América do Sul
255
.
Em 6 de janeiro de 1941, em sua mensagem anual ao Congresso, Roosevelt
alertou para a ameaça de agentes secretos que estariam ocupando a América Latina,
considerada uma região estratégica para a segurança dos Estados Unidos
256
:
A primeira fase da invasão deste hemisfério não seria o desembarcar de tropas regulares. Os
pontos estratégicos necessários seriam ocupados por agentes secretos e seus joguetes e um
grande número deles já se acha aqui e na América Latina
257
.
A possível entrada dos Estados Unidos no conflito transformava o Brasil em
uma região estrategicamente importante, devido ao recorte geográfico do nordeste
brasileiro, considerado um ponto chave na defesa do hemisfério. Assim, passa ser vital à
255
CPDOC/FGV-RJ. Arquivo Oswaldo Aranha 38.01.07 cf II3.
256
ROOSEVELT, F. D. apud MAY, E. R. (org.). Op. Cit., pp. 170-171.
257
Mensagem Anual do Presidente Franklin Delano Roosevelt ao Congresso, em 6 de janeiro de 1941
apud MAY, E. R. (org.). Ibid., pp. 170-171.
95
segurança norte-americana garantir a cooperação política e militar dos países da
América do Sul, especialmente a concessão de bases no nordeste brasileiro, que
pudessem ser ocupadas por militares norte-americanos
258
.
A disputa ideológica entre Estados Unidos e Alemanha coincidiu com a ditadura
estado-novista de Getúlio Vargas (1937-1945), que soube tirar proveito da situação,
optando por uma posição de neutralidade em relação ao conflito entre os dois países.
Pode-se estabelecer dois traços estruturais do Estado Novo, quais sejam: a
neutralização das forças políticas no campo interno e a política de duplo compromisso
externo
259
. No plano interno, a ditadura implementada com o Estado Novo
desestruturou as forças oposicionistas por meio da repressão e das atividades do
Departamento de Imprensa e Propaganda. No plano externo, o duplo compromisso de
Vargas advinha de seu poder de barganhar seu apoio político, na conjuntura em questão.
Para atender aos anseios americanos de cooperação, Vargas insinua
constantemente o condicionamento de seu apoio àquele que melhor atendesse aos
interesses brasileiros, que se resumiam na aquisição de equipamento lico para as
forças armadas brasileiras, na concessão de empréstimos que impedissem o colapso da
balança cambial e de crédito para a construção da Siderúrgica de Volta Redonda
260
.
Para Moura, a política externa brasileira deve ser pensada como o resultado da
combinação de conjunturas políticas mais imediatas, tanto internas como externas, e dos
condicionamentos estruturais mais amplos, que representariam o campo capitalista, no
258
MOURA, G. Op. Cit, 1980, p. 59.
259
GAMBINI, R. O duplo jogo de Getúlio Vargas: influência americana e alemã no Estado Novo. São
Paulo: Ed. Símbolo, 1977, p.77.
260
Ibid., p.122.
96
qual o Brasil está inserido. Na primeira metade do século XX, esse campo seria
caracterizado pela disputa por hegemonias
261
.
A conjuntura internacional à época da Segunda Guerra marca o esforço da
Alemanha e dos Estados Unidos em fazer da cultura um instrumento para concretizar
suas ambições imperialistas.
A ascensão do fascismo no mundo fazia com que os imigrantes alemães na
América Latina se identificassem com a ideologia do Terceiro Reich. Esses imigrantes
procuravam manter seus laços com a Alemanha, que reservava a essa população uma
importante participação em seu projeto expansionista
262
.
Para Roberto Gambini, a perspectiva política dos imigrantes alemães no Brasil
difere da dos outros grupos estrangeiros, devido ao isolamento dos alemães que se
concentravam nas colônias rurais na região sul do país, encontrando-se, de certo modo,
“impenetráveis à cultura brasileira”
263
.
Desde que assumiu o poder Hitler investiu em um forte programa de propaganda
ideológica. Nas escolas germânicas, iniciou-se uma doutrinação por meio de livros
escolares que eram enviados à América Latina. Um livro de história contemporânea, por
exemplo, reservava “90% de suas páginas para o Terceiro Reich, 5% para o Brasil e 5%
para resto do mundo”
264
.
O papel da população de imigrantes alemães residentes no subcontinente,
especialmente no Brasil, deveria ser o de desenvolver uma ponte entre a Alemanha e a
América Latina, de modo a garantir a difusão da ideologia nazista na região.
261
MOURA, G. Op. Cit., 1980, p. 37.
262
GAMBINI, R. Op. Cit., p. 61.
263
Ibid, p. 65.
264
TURNER, E.E. apud GAMBINI, R. Ibid, p. 66.
97
A conquista da Dinamarca, Noruega, Bélgica, Holanda, seguida da invasão da
França aguçava as preocupações norte-americanas sobre o futuro do Ocidente
265
. Urgia
ao governo norte-americano proteger a América Latina das ambições do imperialismo
alemão.
Como apontado anteriormente, desde o século XIX, o subcontinente constituiu
uma zona estratégica da plataforma política dos Estados Unidos. A influência da
ideologia nazista ameaçava os preceitos da Doutrina Monroe. Desse modo, cabia a
Washington zelar pela segurança hemisférica, afastando o fascismo da região
considerada como zona natural de influência norte-americana.
A Política da Boa Vizinhança começou a ser idealizada pelo republicano Herbert
Hoover
266
. Ainda antes de assumir a presidência dos Estados Unidos, enquanto ocupou
a cadeira de Secretário do Comércio (1921-1928), Hoover percebeu o quanto as
relações comerciais com a América Latina eram importantes para os Estados Unidos e o
efeito contraproducente do intervencionismo dos governos Roosevelt-Taft
267
. Quando
ganhou as eleições, Hoover chegou à Casa Branca com ambições de melhorar as
relações entre os Estados Unidos e a América Latina, mas a depressão econômica que
afetou o país no final da década de 1920 fez com que todas as atenções do governo
fossem desviadas para os problemas domésticos
268
.
No início da década de 1930, a noção de segurança dos Estados Unidos vincula-
se às medidas adotadas para solucionar os problemas causados pela crise de 1929. Nesta
senda, destaca-se a iniciativa política do New Deal para a recuperação da economia
norte-americana. De acordo com a percepção do New Deal, os países latino-americanos
tinham um papel chave para a recuperação dos prejuízos causados à sociedade
265
TOTA, A. P. Op. Cit., p. 41.
266
Ibid., p. 28.
267
SCHOULTZ, L. Op. Cit., pp. 329-330.
268
Ibid., p. 330.
98
estadunidense pela depressão, como supridores de matéria-prima, mercado para os
produtos manufaturados e investimento de capitais. Uma nova geração de políticos
destacava-se como defensores de uma política hemisférica, que apagasse os
ressentimentos latinos e garantisse os interesses norte-americanos nas Repúblicas ao sul
do continente. Dentre esses políticos, conhecidos como os new-dealers, um dos nomes
mais expressivos para a América Latina foi Nelson Rockefeller
269
.
Apesar de ter sido idealizada já na década de 1920, a Política da Boa Vizinhança
para a América Latina é consolidada com a chegada de Franklin Delano Roosevelt à
presidência e a ascensão política dos new dealers. Baseada nos ideais pan-
americanistas, essa nova formulação da política exterior norte-americana tinha como
objetivo acabar com o mal-estar que permeava as relações entre os Estados Unidos e a
América Latina, devido ao intervencionismo do início do século. Essa nova postura do
Departamento de Estado é resultado da percepção de que “a cessação da intervenção
militar tornou-se um pré-requisito para a consolidação do comércio externo
americano”
270
.
A necessidade de expandir relações comerciais com a América Latina tornou-se
a pedra de toque da política exterior norte-americana, principalmente devido ao
crescimento do comércio de compensação entre a Alemanha e a América Latina. Em
1939, em um artigo publicado pela revista Fortune, as relações comerciais do Brasil
eram caracterizadas por duas situações:
[...] na primeira o Brasil vende café aos Estados Unidos por dólares, troca-os por libras para
comprar tecidos (ou pagar juros) na Inglaterra, voltando os dólares aos Estados Unidos quando a
269
HIRST, M. O Processo de Alinhamento nas Relações Brasil-Estados Unidos:1942-45. Disseratação de
Mestrado apresentada à IUPERJ. Rio de Janeiro, 1982, p. 14-36
270
GAMBINI, R. Op. Cit., p. 36.
99
Inglaterra importa algodão. Na segunda, ao vender ca para a Alemanha o Brasil recebe em
pagamento produtos alemães, não entrando na transação dinheiro algum: quando a Alemanha
compra café, o Reichsbank lança um crédito aque o Banco do Brasil encontre um importador
interessado em mercadorias alemãs.
271
.
O aumento do comércio entre Alemanha e Brasil preocupava o governo norte-
americano, que percebia que esse aumento ocorria em detrimento do comércio realizado
com os Estados Unidos
272
.
Em uma correspondência destinada ao então Embaixador do Brasil nos Estados
Unidos, Mario de Pimentel Brandão, o presidente do National Foreign Trade Council
relata o desagrado dos Estados Unidos em relação ao comércio de compensação
brasileiro-alemão
273
, que, na opinião dele, não era favorável aos Estados Unidos, nem
ao Brasil. Ele apontava que, no período de 1934 a 1936, a balança comercial de Brasil-
Estados Unidos teve um superávit de 186,045 milhões de dólares favorável ao Brasil,
a balança comercial Brasil-Alemanha, no mesmo período, apresentou um aumento
substancial no volume de produtos importados da Alemanha, apontando para um déficit
de 9,291 milhões de dólares para o Brasil
274
.
Assim, ao perceber a ameaça germânica no subcontinente, atrelada ao fato de
que era cada vez mais difícil para os Estados Unidos manter uma postura neutra em
relação ao conflito mundial, a política do bom vizinho ganha um viés culturalista para
enfrentar a difusão do nazi-fascismo na América Latina. Nesse contexto, o Brasil
271
Exemplo retirado do artigo “Off to the trade wars?”, publicado pela revista Fortune apud GAMBINI,
R. Op. Cit., p. 37.
272
CPDOC/FVG-RJ. Arquivo Oswaldo Aranha 1938. 01 .07 cp I16A2.
273
CPDOC/FGV-RJ. Arquivo Oswaldo Aranha 1938.01.07 cp I29.
274
CPDOC/FGV-RJ. Arquivo Oswaldo Aranha 1938.01.07 cp I29.
100
despertava preocupação especial de Washington, que o sul do país era povoado por
um grande número de imigrantes alemães
275
.
Entre aqueles que advogavam pela aproximação com a América Latina,
destacava-se o new dealer Nelson Rockefeller, herdeiro milionário da Standard Oil
Company, empresa presente em vários países da América Latina
276
.
Os Rockefeller eram conhecidos pelas políticas filantrópicas que ficavam sob a
responsabilidade da Fundação da Rockefeller. As ações filantrópicas dessa fundação no
exterior tinham como base as companhias da família. No México e na Guatemala, por
exemplo, a instituição combatia a malária e a febre amarela. O estado de
subdesenvolvimento e abandono em que se encontrava a população latino-americana era
visto como terreno fértil para idéias revolucionárias. Para os Rockefeller, que tinham
amplos interesses econômicos na região, a revolução era como uma doença social, que
deveria ser curada por meio de donativos e propaganda. O jovem milionário via a
necessidade de se implantar uma política de bem-estar social que atendesse às
necessidades da população latino-americana. Entre suas propostas estava o envio de
professores, médicos e missionários à América Latina
277
.
Para reforçar tais pontos de vista, no início de 1940, Rockefeller tomou a
iniciativa de elaborar um trabalho intitulado Hemisphere Economic Policy, no qual
expressou suas idéias sobre a necessidade de os Estados Unidos adotarem medidas
econômicas que garantissem a prosperidade econômica na América Central e do Sul,
baseando-se na promoção de uma cooperação econômica hemisférica. Tais medidas
contribuiriam para o país a mantivesse sua posição internacional, em detrimento da
ameaça do totalitarismo alemão na América Latina. De acordo com a Hemisphere
275
Embora não existam dados oficiais acerca do número de imigrantes alemães que habitavam o Brasil,
estima-se que esse número seja 1.000.000 de descendentes de alemães. (cf. Gambini, R. Op. Cit., p. 64)
276
TOTA, A. P. Op. Cit., p. 44.
277
Ibid., p. 46.
101
Economic Policy, o comércio entre os Estados Unidos e a região abaixo do Rio Grande
deveria ser estimulado por meio da redução tarifas alfandegárias; melhoria nos meios de
transporte e comunicação; parceria entre o governo federal e o setor privado norte-
americano para promover investimentos nos países do continente, de modo a garantir o
comércio de matéria-prima necessária aos Estados Unidos; revisão da dívida externa das
repúblicas latino-americanas, que não deveria ser um obstáculo nas relações entre a
América do Norte e a América do Sul. Apesar de a Hemisphere Policy não abordar
questões culturais, científicas ou educacionais, o memorando aconselhava também
sobre a importância de se criar um programa que abrangesse tais segmentos
278
.
Em resposta à necessidade de se lançar uma ofensiva propagandística e um
projeto de promoção comercial na América Latina, como um meio de conter o avanço
da ideologia nazista na região, no dia 16 de agosto de 1940, o Presidente Roosevelt
criou o Office for Coordination of Commercial and Cultural Relations between the
American Republics e Rockefeller entrou para as atividades governamentais como
Coordenador das relações Comerciais e Culturais entre as Repúblicas Americanas.
Entre as principais funções do Coordenador estavam: assegurar economia e eficiência
nas atividades governamentais relacionadas à defesa do hemisfério americano,
principalmente no que dizia respeito às relações comerciais e culturais; elaborar e
executar, em parceria com o Departamento de Estado, um programa nas áreas de artes e
ciências, educação e viagem, rádio, imprensa e cinema que fortalecesse os laços entre as
nações americanas e a defesa do continente
279
.
Para a realização de tal projeto, investiu-se na produção de todos os tipos de
mídia, desde revistas às transmissões radiofônicas e filmes, além de um programa de
278
Uma cópia do relatório referente à Hemisphere Economic Policy encontra-se disponível , em anexo, no
trabalho de doutorado de Sidney Ferreira LeiteO Filme que não passou: Estados Unidos e Brasil na
Política da Boa Vizinhança – a diplomacia através do cinema”, FFLCH, USP, 1998.
279
CPDOC/FGV-RJ. Coleção Departamento de Estado. Documentos sobre a organização do OCIAA.
102
ajuda econômica. O subdesenvolvimento da América Latina passou a ser tratado como
uma questão de segurança hemisférica. Questões relacionadas à prevenção de doenças,
higiene, esgotos, habitação, transportes, obras públicas e educação passaram a compor a
esfera dos assuntos que eram incumbência da agência de Rockefeller
280
.
No ano seguinte à sua criação, o Office for Coordination of Commercial and
Cultural Relations between the Americas passou a chamar-se The Office of the
Coordinator of Inter-American Affairs (OCIAA). Essa agência era composta por três
divisões: Comercial e Financeira, Comunicações e Relações Culturais
281
.
As Divisões de Comunicações e de Relações Culturais são de especial
importância para esse trabalho, pois refletem os esforços do OCIAA para difundir na
América Latina um sentimento favorável aos Estados Unidos.
De acordo com Gambini
282
, entre 1936-1939, a Alemanha viveu o apogeu de sua
influência comercial no Brasil. Para o Terceiro Reich, o Brasil era peça fundamental do
comércio exterior alemão. A alta demanda alemã por algodão poderia ser suprida
pelo Brasil, principal produtor depois dos Estados Unidos. A falta de câmbio fazia com
que o Brasil, na realidade fosse a única alternativa ao governo alemão
283
.
Com o intuito de afastar a ameaça da concorrência germânica do mercado latino-
americano, a Divisão de Comunicações e a de Relações Culturais investiu em uma forte
propaganda que buscava promover o American way of life na América Latina. O modo
de vida americano baseava-se no consumismo, no progresso material e nos bons
salários
284
. Para a difusão desses valores, implementou-se uma ampla rede de
280
SCHOULTZ, L. Op Cit., p. 341.
281
TOTA, A. Op. Cit., p. 51.
282
GAMBINI, R. Op. Cit., p. 105.
283
Ibidt., p. 116.
284
COBBS, E. A. The rich neighbor policy: Rockefeller and Kaiser in Brazil, p. 9 apud TOTA, A. P. Op.
Cit., p. 52.
103
comunicações que, principalmente por meio do rádio, do cinema e da imprensa,
estabeleceu laços culturais entre os Estados Unidos e o Brasil.
Para promover o American way of life no Brasil, o OCIAA contou com o apoio
de pessoas ligadas diretamente ao governo brasileiro, entre formadores de opinião,
políticos e diplomatas, como foi o caso de Oswaldo Aranha. Embaixador do Brasil em
Washington durante três anos e Ministro das Relações Exteriores
(1938-1944)
,
Aranha
gozava de alto prestígio nos Estados Unidos, por suas boas relações com o governo
norte-americano. O próprio Presidente Roosevelt mostrou apreço pela indicação do
diplomata para o posto de Ministro das Relações Exteriores em 1938
285
.
Na edição do dia 6 de março de 1938, o New York Times festejou a indicação de
Oswaldo Aranha para a pasta das relações exteriores, apontando para o fato de que tal
indicação favorecia o estreitamento das relações entre os Estados Unidos e o Brasil,
bem como afastava as suspeitas de influência fascista no governo Vargas
286
.
Ainda sobre a indicação do diplomata para dirigir o Itamaraty, a edição de 8 de
março de 1938 do mesmo periódico afirmava que:
[...] a entrada de Oswaldo Aranha para o gabinete do Presidente Getúlio Vargas é percebida
como uma certeza de que o regime não é moldado à semelhança das ditaduras fascistas
européias. Ele é tão devotado à causa da paz nesse hemisfério, que seu comando nas relações
exteriores do Brasil é garantia de que sua grande influência será exercida de modo a avançar o
estreitamento das relações inter-americanas
287
.
285
CPDOC/FGV-RJ. Arquivo Oswaldo Aranha 1938.01.07 cp I5.
286
CPDOC/FGV-RJ. Arquivo Oswaldo Aranha 1938.01.07 cp I10A1.
287
CPDOC/FGV-RJ. Arquivo Oswaldo Aranha 1938.01.07 cp I10A2 (tradução nossa).
104
A partir de 1938, as relações entre Brasil e Estados Unidos melhoram em virtude
da indicação de Oswaldo Aranha para o Ministério das Relações Exteriores, bem
como do estremecimento das relações entre Brasil e Alemanha - decorrente da
campanha de nacionalização e da proibição da propaganda e organização de partidos
políticos impostas pelo Estado Novo
105
foi instruído a utilizar a imprensa, o rádio e o cinema para estimular a compreensão
da população sobre as causas de guerra. O organismo não estava preocupado
somente em disseminar informações e prestar esclarecimentos. Preocupava-se,
principalmente, com a interpretação que tais informações poderiam adquirir. Assim,
o OWI ocupou-se também em difundir símbolos e idéias por meio de entretenimento,
desse modo, a população dos Estados Unidos e do mundo não perceberiam que
estavam sob influência de propaganda e desenvolveriam interpretações favoráveis ao
governo norte-americano
290
. O OWI responsabilizou-se pelas ações de propaganda
em favor dos Estados Unidos em todo o mundo. A única exceção foi a América
Latina que ficou sob a coordenação restrita de Rockefeller
291
.
Nesse sentido, o OCIAA foi um organismo peculiar quando comparado aos
outros esforços do governo dos Estados Unidos para disseminar a cultura norte-
americana pelo mundo por sua preocupação com a política exterior dos Estados
Unidos para a América Latina e seu apelo pan-americanista, ou seja, o discurso sobre
a importância de se estreitar os laços entre os vizinhos do norte e sul. Para tanto, o
Office de Rockefeller tinha um plano de ação de duas vias: disseminar idéias
favoráveis sobre os norte-americanos entre os latino-americanos e vice-versa. Desse
modo, a simpatia mútua entre a América do Norte e a América do Sul favoreceria a
Política da Boa Vizinhança e os interesses estadunidenses no subcontinente. Esse
plano de ação de duas vias ficou evidente, por exemplo, no projeto do OCIAA de
educar os norte-americanos sobre os povos do sul do continente:
290
KOPPES, C. R. What to Show the World: The Office of War Information and Hollywood, 1942-1945.
In The Journal of American History, v.64, n.1, Jun. 1977, p. 87-105.
291
Ibid
106
A segunda parte do projeto a educação de nossa própria população e livrá-los da ignorância e
preconceito estúpido é a parte mais importante. Nossa população é mais ignorante e mais
preconceituosa em relação aos seus vizinhos do que a população que está ao sul da fronteira
292
De acordo com Geertz, o conceito cultura é essencialmente semiótico.
Baseando-se em Max Weber, o antropólogo compreende o homem como um ser
amarrado a teias de significados tecidas por ele próprio. Nesse sentido, a cultura seria
constituída por essas teias e pela análise das mesmas, ou seja, para Geertz, a cultura é
uma ciência interpretativa, à procura de significados
293
.
Compreendemos que o OCIAA funcionou como uma teia de significados, que
envolveu e atraiu a atenção da sociedade brasileira para o American way of life. Essa
teia, que impregnou o Brasil de significados yankees, contribuiu para promover entre os
brasileiros a admiração pelo vizinho do norte.
A criação do OCIAA e sua vinculação com o pan-americanismo como forma de
atingir os interesses de uma política de segurança hemisférica coloca-nos em contato
com as principais representações da identidade nacional norte-americana, que servem
como condutores da política externa estadunidense, tais como as idéias de “experiência
única” e “missão”
294
.
A imprensa e a propaganda eram instrumentos estratégicos para a divulgação do
paradigma americano. Em seis anos de atividade, o OCIAA contou com um orçamento
de aproximadamente 140 milhões de dólares, além de chegar a empregar 1100 pessoas
nos Estados Unidos e 200 no exterior
295
.
292
CPDOC/FGV-RJ. OCIAA, 17/04/194, IAA 41.06.21.
293
GEERTZ, C.Op. Cit., p. 04.
294
MESQUITA, S. Q. N. A Política Cultural norte-americana no Brasil: o caso do OCIAA e o papel das
Seleções Reader’s Digest 1940-1946. Dissertação de Mestrado em História. UERJ, Rio de Janeiro, 2002.
295
MOURA, G. O Tio Sam Chega ao Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1984, p.22.
107
A organização administrativa do OCIAA foi estruturada a partir da Divisão
Comercial e Financeira, da Divisão de Comunicações e da Divisão de Relações
Culturais. As principais decisões eram submetidas à aprovação de Nelson Rockefeller,
que tinha acesso direto ao Presidente Roosevelt
296
.
No Brasil, o OCIAA foi dirigido por Berent Friele, que contava com o apoio da
embaixada americana no Rio de Janeiro, além de um comitê composto por
representantes de importantes segmentos do setor privado norte-americano, como a
General Electric, a Standard Oil, The National City Bank of New York, entre outros
297
Durante o Estado Novo a centralização política foi acompanhada por uma
centralização do poder simbólico
298
, com disso, o OCIAA teve que angariar também o
apoio do DIP para seu plano de americanização do Brasil, que o órgão transformara-
se em peça chave devido ao controle exercido sobre os bens culturais no Brasil. As
relações entre o DIP e o OCIAA estreitaram-se definitivamente quando o governo
norte-americano concedeu empréstimos ao Brasil para a construção da Companhia
Siderúrgica Nacional e para a modernização das Forças Armadas
299
.
A Divisão Comercial e Financeira tinha como principal objetivo ampliar e
facilitar as relações comerciais entre os Estados Unidos e a América Latina, além de
estimular atividades que viabilizassem o desenvolvimento das Repúblicas latino-
americanas
300
. Uma política de promoção comercial entre os Estados Unidos e a região
correspondia às necessidades norte-americanas de recuperação da economia, que
necessitava de mercados externos tanto para consumo, como para fornecimento de
matéria-prima de seus produtos. Com o advento da guerra e do bloqueio britânico, o
296
108
comércio com a Europa tornava-se inviável aos latino-americanos. Nesta senda, os
Estados Unidos consolidaram-se como principal parceiro comercial da América Latina.
O objetivo do governo estadunidense com a criação do OCIAA era o de
dinamizar as relações comercias com a América Latina, além de legitimar a hegemonia
norte-americana no subcontinente, por meio de um consenso acerca das boas intenções
dos Estados Unidos. Para atingir esses propósitos, as Divisões de Comunicação e de
Relações Culturais receberam especial atenção do OCIAA no esforço de difundir, na
América Latina, a imagem do bom vizinho do norte.
Cinema
Durante a década de 1930, a produção cinematográfica norte-americana
consumou-se como uma produção industrial, inserida na gica dos processos de
linha de montagem, utilizados na fabricação de automóveis, eletrodomésticos e
alimentos enlatados. A produção de filmes em escala industrial, nos Estados Unidos,
baseou-se em um padrão para a feitura de tais filmes. Tal padrão era constituído pelo
sistema de estúdio, o star-system e o Código Hays
301
.
Basicamente, o sistema de estúdio viabilizou a adequação do processo de
produção cinematográfica ao sistema capitalista de produção. A fabricação do filme
ganhou racionalidade e especialização, que os estúdios passaram a contar com
departamentos especializados em cada etapa de produção do filme, tais como roteiro,
figurino, efeitos especiais, entre outros. O star system, por sua vez, foi o responsável
em trazer as estrelas de cinema para perto das sociedades de consumo pequeno-
burguesas. A partir da década de 1930, os artistas passaram a aparecer nas produções
301
GONÇALVES, M. R. O cinema de Hollywood nos Anos Trinta, o American Way of Life e a
sociedade brasileira. In: FABRIS, M.et. al. (org.). Estudos Socine de Cinema. Ano III, 2001, p. 533-545.
109
hollywoodianas como pessoas normais que moram em casas e apartamentos, têm
filhos e casam-se com médicos e industriais, em detrimento das produções limitadas
aos castelos, templos gregos, regimes feudais e realezas. Já o Código Hays, ou
Código de Produção, adotado a partir e 1934, colocou Hollywood em sintonia com o
New Deal de Roosevelt e os princípios morais, sociais e econômicos da sociedade
norte-americana. Tais princípios resumiam-se na exaltação ao trabalho,
individualismo, racionalização e organização metódica da vida, utilitarismo e
pragmatismo, otimismo e valorização do sucesso material
302
.
Roosevelt acreditava que os filmes eram um dos instrumentos mais eficientes de
atingir o público americano e, durante os anos de guerra, não mediu esforços para
fazer com que a indústria cinematográfica de produção em série trabalhasse em pleno
vapor. Nesse período, a média de filmes produzidos em Hollywood foi de 500 por
ano. A influência exercida por Hollywood foi maior que a do rádio e da imprensa. As
produções chegavam a alcançar audiências no exterior de mais de oito milhões
pessoas por semana, determinando se um filme era ou não lucrativo para os cofres da
indústria cinematográfica
303
.
O cineaidanticicaro eso oóI.8103( )2A57564(o)-10.36.76 o o m oita K.23133664-O523133664-P0.3016334-P0.3016334-E.39583507(S575( ))-0.195166
u
110
anúncios publicitários, convidando o público ao consumo de produtos norte-
americanos
305
.
No Office de Rockefeller, a Divisão de Cinema, ou Motion Pictures Division, foi
encarregada de fazer das produções cinematográficas de Hollywood poderosos
instrumentos de propaganda. Seu objetivo era promover uma melhora nas relações
comerciais e culturais entre as Repúblicas latino-americanas e os Estados Unidos
306
.
Para atingir tais objetivos, elaborou-se o Motion Picture Section’s plan que
objetivava: convencer os produtores de cinema que a distribuição de filmes que
criassem uma impressão dos Estados Unidos na América Latina era contra-
producente aos interesses norte-americanos; promover tours de estrelas norte-
americanas nas principais cidades latino-americanas e vice-versa; descobrir talentos
latino-americanos que pudessem ser utilizados nas produções estadunidenses e que
pudessem atuar como portadores de uma mensagem positiva do vizinho do norte para os
latino-americanos, contribuindo com a difusão do pan-americanismo; desenvolver um
mercado e uma indústria cinematográfica ao sul do continente em cooperação com o
capital e a administração norte-americanos
307
.
As produções de Hollywood que invadiram os cinemas brasileiros a partir da
década de 1930 são produtos culturais que difundem no Brasil uma série de valores e
visões de mundo, remetendo ao modo de vida da sociedade americana. A aproximação
das estrelas de cinema à realidade das sociedades da década de 1930 fazia com que o
espectador se fascinasse com a história contada e se identificasse com as personagens.
Assim, o consumismo do American way of life invadiu a sociedade brasileira, que se
305
DE CICCO, C. Hollywood na cultura brasileira: o cinema americano na mudança da cultura
brasileira na década de 40. São Paulo: Convívio, 1979, p. 83.
306
CPDOC/FGV-RJ. OCIAA, IAA 41.08.31.
307
CPDOC/FGV-RJ. OCIAA, IAA 41.08.31
111
entusiasmava, cada vez mais, com a aquisição dos produtos que apareciam nos filmes e
eram veiculados à imagem das estrelas de Hollywood
308
O filme é um documento precioso para a compreensão dos comportamentos, das
visões de mundo, dos valores, das identidades e ideologia de uma sociedade
309
. O
gênero western hollywoodiano, por exemplo, reflete a importância da fronteira na
mitologia popular dos Estados Unidos, como um país desenvolvido por uma sociedade
agrária ainda no século XIX
310
. Já no século XX, o mito é utilizado para atrair a
população masculina norte-americana a se engajar em guerras contra o nazismo e o
comunismo
311
. Esse seria o “fardo” norte-americano de civilizar a barbárie, remontando
à época da expansão para o Oeste.
No western, o herói, desbravador do Oeste, foi imortalizado no imaginário
americano. O cinema de Hollywood “criou um momento histórico impreciso e uma
geografia imaginária, onde figuras míticas vivem em busca do equilíbrio em um
universo violento”
312
. A oposição entre o cowboy - homem branco e símbolo da
civilização cristã e o indígena selvagem apresenta a natureza como um obstáculo à
construção de uma sociedade superior e puritana
313
.
O cinema e o rádio, como ocorreu posteriormente com o advento da televisão,
trazem novos modos de expressão ao homem. Assim a cultura é influenciada à medida
que se rompem as limitações de uma cultura que, até então, esteve presa à leitura como
meio de comunicação
314
.
308
GONÇALVEZ, M. R. Op. Cit.
309
KORNIS, M. A. História e Cinema: um debate metodológico. Estudos Históricos, v.5, n.10, Rio de
Janeiro, 1992.
310
SLOTKIN, R., 1996 apud JUNQUEIRA, M. A. Op. Cit., 2000, p. 71.
311
Ibid, p. 71.
312
VUGMAN, F. S. Western. In MASCARELLO, F. (org.) História do cinema mundial. Campinas:
Papirus, 2006, p. 160.
313
Ibid, p. 161.
314
DE CICCO, C. Op. Cit, p. 22.
112
Utilizar o cinema para promover propaganda ideológica não foi uma iniciativa
dos Estados Unidos. A Alemanha havia percebido o potencial desse veículo de
comunicação como uma ferramenta capaz de influenciar multidões. No entanto, o que
difere a cinematografia norte-americana das demais produções é seu alto grau de
desenvolvimento técnico e criativo
315
. Além disso, o bloqueio britânico durante a guerra
impedia que as películas alemãs chegassem à América Latina, o que deixava as
produções norte-americanas praticamente sem concorrentes no subcontinente
316
.
No plano da Divisão de Cinema, os filmes norte-americanos que deveriam ser
distribuídos na América Latina estavam divididos em três grupos: os filmes de
propaganda, filmes relacionados ao desenvolvimento e filmes assistenciais. Os filmes
de propaganda abordavam temas como a defesa das Américas, o antinazismo e a difusão
de uma imagem positiva dos Estados Unidos, mostrando o lado humano dos norte-
americanos, bem como suas belezas naturais, cultura e esportes. As produções voltadas
para o desenvolvimento deveriam apresentar o poder da indústria estadunidense e o
progresso na área científica. a categoria de filmes assistenciais deveria ser utilizada
em salas de aula para demonstrar as cnicas americanas na área cirúrgica, dentária, de
saúde pública e saneamento em geral. De acordo com os planos da Divisão de Cinema
do OCIAA, a distribuição de tais produções na América Latina favoreceria a imagem
dos Estados Unidos no subcontinente e fortaleceria o espírito de boa vontade na defesa
das Américas
317
.
Constava também nos planos da Divisão de Cinema do OCIAA a difusão de
filmes latino-americanos nos Estados Unidos. Essas produções deveriam despertar o
interesse dos norte-americanos para os povos que viviam ao sul do Rio Grande,
315
LEITE, S. F. Op. Cit, p. 130.
316
TOTA, A. P. Op. Cit., p. 62.
317
CPDOC/FGV-RJ. OCIAA, IAA 41.06.21, 17/04/1943.
113
contribuindo para eliminar o preconceito em relação aos latino-americanos, enraizado
na sociedade estadunidense desde o século XIX.
As produções latino-americanas que deveriam ser distribuídas nos Estados
Unidos estavam divididas em três categorias: turismo, história e cultura geral. Os
filmes de turismo tinham como objetivo principal incentivar o turismo de norte-
americanos na América Latina. nas produções sobre a história da América Latina,
destacavam-se os filmes sobre arqueologia que apresentavam as conquistas dos povos
das nações pré-colombianas. A cultura geral latino-americana foi apresentada por
documentários que mostravam o dia-a-dia de operários latino-americanos trabalhando
em empresas norte-americanas - como a Standard Oil do grupo Rockefeller - além do
projeto The March of Time”, abordando temas atuais envolvendo Brasil, Argentina e
Chile, países estratégicos do Cone Sul
318
.
O OCIAA contou com a contribuição de figuras carismáticas para a consumação
dos planos de sua Divisão de Cinema. Entre elas, destacamos Carmen Miranda e as
criações e Walt Disney, que refletem os esforço norte-americano para a construção da
imagem do bom vizinho em território brasileiro.
Nascida em Portugal e naturalizada no Brasil, Carmen Miranda foi convidada
para trabalhar nos Estados Unidos e, entre 1939 e 1945, participou de rias produções
de sucesso da 20th Century Fox
319
. Em 1940, a brasileira estrelou, ao lado de Betty
Grable, em Down the Argentine Way Serenata Tropical no qual a atriz interpretava
músicas famosas no Brasil como, Mamãe eu quero. No entanto, o tratamento que foi
dado às músicas não era exatamente uma típica manifestação cultural brasileira, mas
sim uma mistura de ritmos - que iam da rumba à marchinha - pretendendo ser uma
318
CPDOC/FGV-RJ. OCIAA, IAA 41.06.21, 17/04/1943.
319
TOTA, A. P. Op. Cit., p. 118.
114
síntese da cultura latino-americana. Essa miscelânea de ritmos, que nada tinha de
brasileiro ou argentino, e a importância dada à figura de Carmen Miranda nos Estados
Unidos tinham como objetivo agradar aos brasileiros, que se orgulhavam com o sucesso
da atriz nas películas norte-americanas, bem como de apresentar aos próprios norte-
americanos a figura do latino-americano como um povo exótico e simpático. Esse
estereótipo do latino-americano remete à idéia do wilderness no imaginário da
sociedade norte-americana. A presença dessas duas “Américas” nos filmes de
Hollywood uma representada pelo exotismo e sensualidade de Carmen Miranda e a
outra representada pela modernidade, disciplina e o mundo do trabalho corroborava a
idéia de que a diversidade entre a América Latina e os Estados Unidos era positiva
320
,
enaltecendo a “missão” dos Estados Unidos de levar o progresso à América ao sul do
Rio Grande.
Os desenhos de Disney conquistaram o público brasileiro, especialmente o
personagem Carioca, um papagaio idealizado por Walt Disney, durante sua viagem
ao Brasil
321
. A primeira aparição de Carioca ocorre no filme Alô, amigos, ao lado do
Pato Donald. No filme, o papagaio caracterizado com roupa de malandro representa o
típico brasileiro. Mais uma vez a idéia das duas Américas é representada pelo contraste
das personagens: Carioca é o arquétipo do latino-americano malandro, preguiçoso e
alegre, o civilizado Pato Donaldo, símbolo do “americano comum”
322
, fica extasiado
com a beleza e sensualidade do Brasil. No entanto, apesar das diferenças das raízes
culturais entre os latino-americanos e os Estados Unidos, Walt Disney consegue, de
320
GARCIA, T. C. Carmen Miranda e os Good Neighbours. Disponível em:
http://www.dhi.uem.br/publicacoesdhi/dialogos/volume01/vol7_mesa3.htm Acesso em Jan. 2007.
321
TOTA, A. P. Op. Cit., p. 135.
322
MOURA, G. Op Cit., 1986, p.39.
115
forma mágica, aproximar os dois vizinhos ao incluir Carioca em sua família de aves
– “we are all birds of a feather”
323
.
A idéia da existência de duas Américas representadas nas produções
cinematográficas de Hollywood era a síntese do ideal pan-americanista defendido pelos
Estados Unidos. Essa percepção de dois povos distintos em um mesmo continente
enaltece a missão estadunidense de assegurar a defesa e guardar a liberdade hemisférica
contra o inimigo externo, ao mesmo tempo em que apresenta à América Latina a
importância da união dessas duas Américas, como a união de dois bons vizinhos que
devem cooperar para afastar as ameaças externas de sua vizinhança.
O Rádio
A partir da década de 1930 e, notadamente, durante a década de 1940, o rádio
consolidou-se como veículo de comunicação, com uma vasta programação de
radioteatros, radionovelas, programas humorísticos, programas de jornalismo, além de
transmissões esportivas
324
.
Até o início da Segunda Guerra Mundial, as grandes emissoras de rádio norte-
americanas não tinham muito interesse na América Latina, já que as perspectivas de
lucros na região não eram muito promissoras
325
. Em 1939, a Alemanha, ao contrário dos
Estados Unidos, percebia as vantagens de oferecer à população latino-americana uma
323
HERZ, M; SILVA, A. M. A Política Cultural Norte-americana durante a Segunda Guerra Mundial.
Trabalho apresentado no Colóquio Estado Novo e Autoritarismo no Brasil 1937-1945, IFCS/UFRJ, Rio
de Janeiro, 1987.
324
KLÖCKNER, L. O noticiário radiofônico na Segunda Guerra e a edição brasileira de “O Repórter
Esso”. Disponível em: www.redealcar.fornalismo.ufs.br/cd3/sonora/lucianoklocner.doc
325
TOTA, A. P. Op. Cit., p. 73.
116
propagação radiofônica bastante variada. A Rádio Berlim oferecia, por meio de ondas
curtas, uma programação que ia de concertos aos noticiários econômicos e políticos
326
.
Com o advento da guerra, Washington percebe a urgência de contrapor a difusão
do germanismo por meio do rádio. Desse modo, o OCIAA passa a apoiar e orientar uma
ampla programação radiofônica, em ondas curtas, para a América Latina. Os programas
de rádio fomentados pelo OCIAA deveriam funcionar como instrumentos de
propaganda, em uma perspectiva de guerra psicológica do governo americano. Assim,
em cooperação com a CBS e a NBS, foram criados 12 programas para a América
Latina, transmitidos em inglês espanhol e português
327
.
A estratégia do OCIAA para atingir a América Latina baseava-se em duas vias:
por meio de transmissões diretas dos Estados Unidos e por intermédio de estações
locais
328
. Para se ter idéia do esforço para aumentar a atuação radiofônica dos Estados
Unidos no sul do continente, em 1939, os Estados Unidos contavam com 12 horas por
semana de programas para a América Latina, em 1941, esse número havia aumentado
para 24 horas por dia, com programas irradiados em todo o continente
329
O Repórter Esso foi um exemplo de programa radiofônico que esteve em
consonância com a Política da Boa Vizinhança e os objetivos do OCIAA na América
Latina. O programa existia nos Estados Unidos desde 1935. Em 1942, o programa
contava com 60 emissoras em 15 países, entre eles: Argentina, Brasil, Costa Rica,
Chile, Colômbia, Cuba, Honduras, Nicarágua, Panamá, Peru, Porto Rico, República
Dominicana, Uruguai e Venezuela
330
.
326
Ibid., p. 74.
327
HIRST, M. Op. Cit., 1982, p. 53-54.
328
Ibid, p. 44.
329
PRADO, M. L. C. Ser ou não ser um bom vizinho: América Latina e Estados Unidos durante a Guerra.
In: Revista USP, São Paulo, n. 26, Junho- Agosto, 1995, p. 52-61.
330
KLÖCKNER, L. Op. Cit.
117
A edição brasileira do programa entrou no ar no dia 28 agosto de 1941. O
noticiário foi patrocinado pela Standard Oil, produzido pela United Press e transmitido
pela Rádio Nacional
331
. Vale lembrar que a Standard Oil pertencia à família
Rockefeller, que tinha amplos interesses econômicos na América Latina. Desse modo,
era fundamental aos Rockefeller que fosse disseminada na região uma propaganda em
favor dos Estados Unidos.
Com cinco minutos de duração, o noticioso consagrou-se como um serviço de
informações internacionais de guerra. Sem confrontar-se com os interesses locais, o
programa tinha espaço livre para divulgar o que interessasse à Standard Oil e ao
governo norte-americano
332
, ou seja, funcionava como um eficiente instrumento para
disseminar a aversão ao nazi-fascismo.
Durante o Estado Novo, a radiodifusão brasileira caracterizou-se por um sistema
misto entre o Estado e a iniciativa privada. O primeiro fiscalizava e controlava a
atividade, mas a exploração desse poderoso veículo de comunicação ficava por conta do
setor privado. Desse modo, o rádio permitiu que além da disseminação de idéias,
fossem “vendidas” também mercadorias
333
.
A programação radiofônica do OCIAA para o Brasil esteve de acordo com os
objetivos gerais da Divisão de Informação do Office, ou seja, conquistar o “apoio
psicológico” dos latino-americanos para a causa dos aliados, por meio das ondas de
rádio. Para tanto, divulgava-se uma imagem dos Estados Unidos como uma grande
potência econômica e militar associada aos valores da civilização norte-americana,
331
Ibid.
332
Ibid
333
CAPELATO, M. H. Op. Cit., p. 177
118
como: pioneirismo, inventividade, fortaleza, competitividade, tolerância e liberdade em
contraste com a intolerância racial e religiosa do fascismo
334
Os Estados Unidos souberam tirar proveito da abertura que o governo brasileiro
deu à iniciativa privada para a exploração da radiodifusão. Desse modo, além de
contribuir com a causa da guerra, por meio desse veículo de comunicação, vendeu-se
também o consumismo estadunidense, com a veiculação de comerciais que estimulavam
a compra de produtos que iam desde automóveis e eletrodomésticos à Coca-Cola e
chicletes, disseminando entre os brasileiros a admiração pelo modo de vida americano.
Como a reciprocidade foi defendida como um dos pilares da Política da Boa
Vizinhança, a utilização do rádio como um instrumento de aproximação entre os
Estados Unidos e o Brasil deveria ser um caminho de mão dupla, ou seja, em
contrapartida à presença norte-americana no rádio brasileiro, o Brasil também deveria
ter seu espaço no sistema radiofonia estadunidense. Um dos programas de rádio de
maior sucesso entre os vizinhos do norte foi o News for the Americas”. Patrocinado
pelo Departamento Nacional do Café e pela embaixada brasileira, o programa promovia
a cooperação hemisférica, o café brasileiro e o turismo ao Brasil, apresentado como o
“reino do café”
335
.
A Imprensa
As seções de imprensa e publicações do OCIAA trabalharam em conjunto
promovendo o estreitamento das relações entre os Estados Unidos e a América Latina,
em um primeiro plano, e, em um segundo plano, desenvolvendo propaganda anti-
334
.HERZ, M; SILVA, A. M. Op. Cit., 1987.
335
Ibid
119
nazista, alertando os latino-americanos para o perigo da ameaça do Eixo
336
. O Office de
Rockefeller estimulou publicações que exaltassem o espírito pan-americanista do
continente e a necessidade de proteger o hemisfério de ameaças externas.
Por meio de uma parceria com as agências de notícias Associated Press, United
Press e International News Press, o OCIAA promoveu, a baixo custo, a venda de
serviços para mais de 100 jornais na América Latina. O material jornalístico fornecido
aos vizinhos do sul era normalmente sobre assuntos leves e com grande apelo visual,
acompanhado de uma variedade de ilustrações e cartazes. Houve também o incentivo de
visitas de jornalistas brasileiros aos Estados Unidos, para que eles pudessem conhecer
de perto o kmow how norte-americano nas atividades jornalísticas. Além disso, grandes
jornais estadunidenses como o New York Times, o New Herald Tribune passaram a
conceder cada vez mais espaço para notícias sobre a América Latina, especialmente no
que dizia respeito ao turismo no sul do continente e temas culturais
337
.
Nesse contexto, Nelson Rockefeller insistiu para que se providenciasse uma
edição brasileira do Reader’s Digest norte-americano
338
, periódico que desde 1922 era
um grande sucesso nos Estados Unidos
339
. A revista Seleções do Reader’s Digest,
publicada no Brasil de 1942 a 1970, foi um ótimo exemplo da propaganda do American
way of life nos trópicos. A edição brasileira da revista era composta por textos curtos, de
leitura simples e agradável. Ela mostrava os americanos como vizinhos simpáticos e os
Estados Unidos como um país harmonioso e ordenado, formado pela sociedade WASP
(White, Anglo-Saxon, Protestant ), uma perspectiva excludente que valoriza as raízes da
cultura anglo-saxônica e protestante na formação da identidade norte-americana, em
336
LEITE, S. F. Op. Cit., p. 105.
337
HIRST, M. Op. Cit., p. 52-53.
338
JUNQUEIRA, M. A. Ao Sul do Rio Grande. Imaginando a América Latina em Seleções: oeste,
wilderness e fronteira (1942-1970). Bragança Paulista: EDUSF, 2000, p. 38
339
JUNQUEIRA, M. A. Representações políticas do território latino-americano na Revista Seleções.
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 21, n. 42, 2001.
120
detrimento dos negros, índios, imigrantes e católico
340
. Seleções apresentava o modo de
vida americano como um remédio para os problemas enfrentados pela América
Latina
341
, ou seja, o exemplo norte-americano deveria ser o paradigma para a “outra”
América.
Tal como as produções hollywoodianas, o periódico valeu-se da idéia de duas
Américas em um mesmo continente. Nesta senda, apresentou as diferenças entre a
América do Norte e a América Latina, apontando as peculiaridades da cultura
protestante e anglo-saxã em oposição ao catolicismo ibérico
342
. Em Seleções, essa
diferença entre as duas Américas esteve presente principalmente quando o a revista
associou a América Latina à idéia de wilderness
343
, enquanto os Estados Unidos
apareciam como o bom vizinho do norte, exemplo de civilização, justificando-se, assim,
missão estadunidense de orientar e proteger o subcontinente das ameaças externas ao
hemisfério.
O sucesso da versão brasileira do Reader’s Digest – a revista consagrou-se como
o segundo periódico mais lido no país - pode ser atribuído à aceitação dos intelectuais,
envolvidos no projeto do Estado Novo, bem como ao Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP) do governo Vargas. A cooperação dos “formadores de opinião” - um
pequeno grupo de intelectuais que controlavam a opinião pública nacional - deu
credibilidade à revista no Brasil
344
.
Em Guarda era o nome de outro periódico que veiculava a imagem dos Estados
Unidos como um exemplo de democracia para o continente. As edições de Em Guarda
foram impressas em três idiomas: inglês, espanhol e português e suas distribuições
340
Ibid.
341
Ibid.
342
JUNQUEIRA, M. A. Op. Cit., 2000, p. 14.
343
Ibid, p. 58-59.
344
MESQUITA, S. Q. N. Op. Cit., p. 142.
121
alcançaram toda a América Latina e Estados Unidos. Os artigos que compunham a
revista eram variados, mas sempre lembravam os esforços da guerra: produção de
materiais bélicos, a excelência de um tanque de guerra, a eficiência do serviço de
enfermagem americano, notícias sobre as vitórias dos aliados
345
.
Durante a guerra, as grandes empresas americanas aumentaram seus
investimentos em propaganda. Vendia-se a idéia de progresso por meio de automóveis e
máquinas de lavar. Embora a produção desses produtos tivesse diminuído muito durante
o período de guerra as empresas concentravam-se na produção de materiais bélicos -
os gastos com propaganda chegaram à cifra de 20 milhões de dólares, em 1945.
Propagandas que misturavam interesses de mercado com patriotismo na causa da guerra
eram comuns
346
.
As propagandas de publicitárias também chegaram às páginas da revista O
Cruzeiro. A partir da década de 1930, a revista dedicou cada vez mais espaço para
divulgar as produções de Hollywood no Brasil e anunciar os produtos vinculados às
estrelas do cinema norte-americano. O estímulo à cópia da aparência desses artistas foi
uma constante
347
. Além de incentivar a imitação da aparência das estrelas de cinema, O
Cruzeiro estimulou também a imitação do comportamento norte-americano. Os
expectadores assistiam nos cinemas as cenas de famílias americanas fazendo suas
refeições e encontravam, nas ginas do periódico, propagandas com o intuito de
345
TOTA, A. P. Op. Cit., p.56.
346
Um exemplo desse tipo de propaganda foi o anúncio publicitário da Goodyear: “Pela vitória do Brasil
e seus aliados não desperdice borracha – Dê paradas e saídas devagar” apud TOTA, A. P. Op. Cit., p.58.
347
A revista aconselhava suas leitoras a imitarem as estrelas de Hollywood em textos como: “Parecer com
as estrelas de cinema! Um ideal de muitas moças. Entretanto, nada mais simples. Basta alguns toques de
rouge... O vestuário tem uma grande influência sobre a personalidade. Vista-se como as estrelas de
cinema e parecerá com elas.” (O Cruzeiro 04/01/1936) apud GONÇALVES, M. R. Op. Cit.
122
introduzir os hábitos alimentares yankees no mercado nacional, por meio da divulgação
de produtos como os cereais Quaker e o achocolatado Toddy
348
.
Durante o Estado Novo, a imprensa periódica foi o principal instrumento de
propaganda do Departamento de Imprensa e Propaganda para a eliminação de vozes
discordantes.
Nesse sentido, destaca-se a revista Ciência Política. Com um estilo objetivo e
pragmático, o periódico relacionava diretamente a questão da cultura ao expansionismo
e afirmação do Brasil como uma grande potência, apontando a América como um
continente hegemônico com a grande missão de civilizar o mundo, contribuindo para a
difusão do pan-americanismo, sintetizado no pragmatismo norte-americano e no
idealismo latino, que não deveria restringir-se ao plano cultural, mas deveria abranger
também uma diretriz econômica no estreitamento nas relações entre Brasil e Estados
Unidos
349
.
O periódico Ciência Política mostrou-se voltado para os objetivos práticos da
propaganda orientada pelo DI. Esse pragmatismo serviu perfeitamente aos interesses
norte-americanos à medida que a revista apresentava os nazistas, integralistas e
comunistas como inimigos a serem combatidos
350
. . É certo que os democratas em
geral também compunham a lista de adversários do governo estado-novista, mas,
naquela conjuntura, esse era apenas um detalhe sem muita importância para os Estados
Unidos.
348
Ibid.
349
VELLOSO, M. P. Op. Cit., p. 89-90.
350
Ibid, p. 101-103
123
A União Cultural Brasil-Estados Unidos (UCBEU)
A União Cultural Brasil Estados Unidos foi fundada em 1938 com o objetivo de
estreitar os laços culturais entre o Brasil e os Estados Unidos. A instituição de caráter
binacional contou com apoio de Washington, refletindo os esforços do governo norte-
americano nos campos da educação e cultura para promover o alinhamento dos países
latino-americanos aos Estados Unidos
351
. Embora o instituto tenha sido fundado pouco
antes da explosão da Segunda Guerra mundial, foi na ocasião da guerra que a escola
ganhou impulso, transformando-se em um centro de atividades culturais
352
. A UCBEU é
exemplo dos esforços norte-americanos para difundir a história, a língua e a literatura
americana, por meio de uma série de cursos: História Americana, Artes, sica e
Cultura Norte-Americana
353
, além do ensino do idioma inglês, que se tornou o ponto
forte da instituição.
A participação do governo dos Estados Unidos na organização e manutenção da
União deu-se por meio do Departamento de Estado, ao qual o OCIAA esteve
subordinado
354
. O apoio dos Estados Unidos à União materializou-se com a concessão
de bolsas de estudos para candidatos que deveriam ser indicados pelo UCBEU para
estudar nos Estados Unidos
355
.
Na visão de Gerson Moura, a promoção de intercâmbios patrocinados pelo
OCIAA foi um tanto capenga
356
, que, na realidade, o propósito das viagens
patrocinadas pelo Departamento Estado não era o de promover um intercâmbio cultural
entre os dois países. O que interessava ao OCIAA era que especialistas americanos
351
BOYD, A. B. A União Cultural Brasil-Estados Unidos e as políticas culturais dos Estados Unidos
(1938-1951). Dissertação de Mestrado em Educação. PUC-SP, São Paulo, 2003, p. 88.
352
MOURA, G. Op.Cit., 1986.
353
BOYD, A. B. Op. Cit., p. 88.
354
Ibid, p. 90.
355
Ibid, p. 89.
356
MOURA, G. Op. Cit., 1986, p. 50.
124
viessem à América Latina ensinar suas técnicas e exibir suas realizações, enquanto os
latino-americanos iam aos Estados Unidos para se impressionarem com o progresso
americano e voltarem aos seus países imbuídos de um sentimento favorável em relação
ao modo de vida americano. Nas palavras de Moura: “os brasileiros iam aos Estados
Unidos para aprender; os americanos vinham ao Brasil para ensinar
357
. Esse era o caso
de técnicos agrícolas, designados pelo governo norte-americano, que vinham ao Brasil
estudar os métodos, as condições e as possibilidades de nossa produção, com a
finalidade de obter maior cooperação e aproximação dos dois países
358
.
Em fins de 1945 o Departamento de Estado declarou que as contribuições que
eram remetidas à União anualmente seriam canceladas
359
. Interessante notar que a
decisão de suspender os recursos da União coincide com o fim da Segunda Guerra
Mundial, da qual os Estados Unidos saíram vitoriosos, ou seja, os objetivos que o
Departamento de Estado tinha, ao patrocinar a UCBEU, já haviam sido alcançados.
Em breve seria o próprio OCIAA que entraria para a lista de cortes do
Departamento de Estado.
Inspirada em Mitchell
360
, Mônica Herz explica que o contato cultural ocorre por
meio da atuação de “representantes culturais”, que tem como objetivo influenciar
grupos considerados potencialmente reprodutivos, esses são os target groups. Nesse
sentido, os representantes culturais envolvidos no processo de influenciar os target
groups atuariam em divisões variadas:
357
MOURA, G. M. Op. Cit., 1986 p. 50.
358
CPDOC/FGV-RJ. Arquivo Oswaldo Aranha 38.01.07 cf I18.
359
BOYD, A. B. Op. Cit., pp. 100-101.
360
Cf . MITCHELL, J. M. International Cultural Relations. Londres, Allen & Unwin, 1986.
125
126
3.3 E quando a Guerra acabou...
Apesar do Estado Novo ter divergido dos princípios democráticos norte-
americanos, o Brasil gozou de boas relações com os Estados Unidos durante esse
período. Bueno e Cervo explicam que isso decorreu em virtude da principal
preocupação de Washington em relação ao Brasil desde o advento do Estado Novo, que
era evitar que ele ficasse na órbita da influência alemã
362
.
A política externa estado-novista soube tirar proveito de uma situação favorável
ao Brasil, que se manteve em uma posição de eqüidistância pragmática entre Estados
Unidos e Alemanha, a fim de melhor atender ao interesse nacional. Nesse contexto, o
governo Vargas barganhou para obter vantagens concretas ao desenvolvimento
econômico nacional, tais como recursos e tecnologias norte-americanas para a
construção da siderúrgica de Volta Redonda, além da cooperação estadunidense para
reequipar as Forças Armadas
363
.
A participação do Brasil na Segunda Guerra mundial é cercada por paradoxos.
Na opinião de Gerson Moura, o primeiro deles é o fato de a ditadura estado-novista ter
se aliado, no plano internacional, às potências democráticas do Ocidente; o segundo
paradoxo apontado pelo pesquisador é o governo do Brasil, um país com recursos
limitados, resolver enviar um corpo expedicionário à guerra, sem que tal atitude lhe
tivesse sido solicitada; um outro paradoxo é pensar que as mesmas forças que levaram
Vargas ao poder em 1937 o derrubaram em nome da democracia; o quarto e último fato
que chama a atenção de Moura é que o imediato pós-guerra significou a rendição de
nossa política exterior aos interesses das grandes potências que saíram vitoriosas da
362
BUENO, C.; CERVO, A. L. Op. Cit., 2002, p. 248.
363
Ibid, p. 259.
127
guerra
364
, o que frustrou as pretensões brasileiras de exercer um papel relevante no
reordenamento mundial, na qualidade de aliado especial dos Estados Unidos.
A aliança entre a ditadura de Getúlio Vargas e as potências liberais relaciona-se
mais a uma questão de interesse nacional do que a uma simpatia ideológica. A
eqüidistância pragmática
365
, adotada por Vargas até as vésperas de seu alinhamento aos
Estados Unidos, mostra o poder de barganha que o governo teve para negociar seu
apoio de acordo com o que lhe fosse mais vantajoso. Como observado anteriormente,
Vargas condicionou seu apoio ao cumprimento de exigências consideradas
fundamentais ao interesse nacional, como o fornecimento de material bélico às Forças
Armadas, a concessão de empréstimos e o financiamento da construção da siderúrgica
de Volta Redonda, de acordo com o projeto nacionalista do Estado Novo.
O Brasil declara guerra à Alemanha e Itália em outubro de 1942. Tendo suas
exigências atendidas pelos Estados Unidos, o governo brasileiro passa agora a
ambicionar uma participação efetiva na guerra. Havia a convicção no governo brasileiro
que o envio das Forças Armadas para o campo de batalhas confirmaria uma
preeminência do Brasil na América Latina. No entanto, não era do interesse dos Estados
Unidos o envio de brasileiros para a guerra, pois o despreparo e a improvisação eram
características de nossas forças armadas
366
.
Ao final do conflito mundial, os Estados Unidos ascendem à posição de maior
potência mundial e suas ambições de hegemonia deixam de se concentrar na América
Latina como ocorrera até então. Nesse contexto, o Brasil perde seu poder de barganha e
a América Latina deixa de ser região de primeira importância para política externa
364
MOURA, G. Op. Cit., 1991, p. x.
365
Ver Moura, G. Op. Cit, 1980.
366
MOURA, G. Op. Cit., 1991, p. 26; BUENO, C.; CERVO, A. L. Op. Cit., 2002, p. 264.
128
norte-americana. Desse modo as aspirações brasileiras a uma participação efetiva no
reordenamento mundial não vão além do plano das idéias.
A queda de Getúlio Vargas em outubro de 1945 pode ser atribuída,
primeiramente, a um processo natural de democratização decorrente da própria Segunda
Guerra Mundial e da derrota do totalitarismo nazi-fascista. No entanto, a forma como o
esse processo ocorreu marca a especificidade do caso brasileiro. Embora, a ação política
que levou à derrubada de Vargas tenha sido encabeçada pelos militares, que saíram
fortalecidos da guerra, o governo norte-americano não assistiu passivamente ao
processo. Ele foi consultado e até interveio para contribuir com a causa oposicionista
367
.
Os anos que seguiram a 1945 marcaram o declínio das ações de política externa
para a América Latina e, conseqüentemente, para o Brasil. Enquanto a Guerra Fria
marcou o auge do internacionalismo da política exterior estadunidense
368
, ela
representou também o início de uma reestruturação do Departamento de Estado, que
agora se preocupava com regiões de maior importância estratégica para os Estados
Unidos, como a Europa.
Nesse contexto, o OCIAA entrou para lista de cortes do Departamento de
Estado. Não havia mais razões para se manter um escritório com atuação o extensa na
América Latina, pois não eram percebidas quaisquer ameaças à segurança dos
Estados Unidos naquela região.
A preocupação com a América Latina, refletida na política cultural do OCIAA,
perdia força a partir do quarto ano de guerra. O descaso com o subcontinente ficou
claro na ocasião da conferência de Dumbarton Oaks para a formação das Nações
367
MOURA, G. Op. Cit., 1991, p. 42.
368
PECEQUILO, C. S. Op. Cit.,1999, p. 154.
129
Unidas, em agosto de 1944. Não houve qualquer participação de países latino-
americanos. O continente foi representado, obviamente, pelos Estados Unidos
369
.
Em março de 1945, por decisão do presidente Roosevelt, o Office de Rockefeller
passou a chamar-se Office of Inter American Affairs e Wallace K. Harrison foi indicado
para assumir a direção da instituição
370
. Com a morte de Roosevelt e o fim da guerra, o
OCIAA, agora Office of Inter American Affairs, foi perdendo espaço até ser
completamente extinto em 1946, pelo Presidente Harry Trumam. De acordo com a
decisão do Presidente Truman, todas as funções do Office seriam, a partir de então,
transferidas para o Departamento de Estado
371
. Afinal, com o fim da guerra e a vitória
norte-americana, o governo de Washington não encontrava mais razões para manter um
organismo exclusivamente preocupado com a América Latina, que não havia mais
uma percepção de ameaça aos interesses estadunidenses na região. Nas palavras de
Tota: “a ‘fábrica de ideologias’ havia sido fechada. Não tinha mais serventia”
372
.
Com a globalização dos meios de comunicação na segunda metade do século
XX, a presença de americanismos no Brasil e no mundo é percebida em dimensões cada
vez maiores. A difusão cultural ganhou autonomia.
O fim da Segunda Guerra Mundial marca um período de negligência da política
externa norte-americana para a América Latina que duraria até 1959, quando as
primeiras ameaças comunistas no subcontinente começam a chamar a atenção de
Washington para a região novamente
373
.
369
TOTA, A. P. Op. Cit., p. 183.
370
CPDOC/FGV-RJ. Coleção Departamento de Estado. Documentos sobre a organização do OCIAA.
371
CPDOC/FGV-RJ. Coleção Departamento de Estado. Documentos sobre a organização do OCIAA.
372
Ibid., p. 190.
373
PECEQUILO, C. S. Op. Cit., 1999, p. 155.
130
No Brasil, pairava a frustração de ver que de país estratégico para a segurança do
hemisfério e com alto poder de barganha, havíamos caído no descaso dos Estados
Unidos para a América Latina.
Em entrevista sobre a contribuição norte-americana para a reorganização
mundial no pós-guerra, Oswaldo Aranha lembrou aos Estados Unidos que, durante a
guerra, foram feitas concessões de bases aéreas e navais brasileiras, que toda a produção
do país e nosso sistema de transporte estiveram em serviço dos interesses americanos.
Passado o conflito, o diplomata esperava que os Estados Unidos financiassem a
reconstrução dos portos, estradas e a indústria brasileira
374
.
Enquanto o Plano Marshall destinava ajuda financeira para a Europa, o Brasil
esperava receber também sua parte, devido aos esforços de cooperação despendidos
durante o período de guerra:
Os Estados Unidos estão gastando uma soma de dinheiro fabulosa na Ásia, na Europa e no
Oriente. Da nossa parte, esperamos somente que a amizade, cooperação e aliança dos tempos de
guerra não sejam transformadas em indiferença e negligência nos tempos de paz
375
.
A Política da Boa Vizinhança manteve tanto a tradição moralista quanto a
utilitarista da cultura política norte-americana.
A idéia de exercer uma hegemonia benigna na região, baseada na “missão” de
disseminar o experimento americano esteve de acordo com o moralismo da cultura
política dos Estados Unidos. Para Eliot A. Cohen, a intenção benigna dos Estados
Unidos de disseminar a democracia não é “nem mais nem menos sincera que as
374
CPDOC/FGV-RJ. Arquivo Oswaldo Aranha pi ARANHA 48.00.00/4
375
CPDOC/FGV-RJ. Arquivo Oswaldo Aranha pi ARANHA 48.00.00/4 (tradução nossa).
131
missions civilizatrices das potências imperiais do passado”
376
. Nesse sentido, quando ao
final do século XIX os Estados Unidos alteram o equilíbrio de poder na América, eles
estavam, em parte, defendendo o hemisfério do novo imperialismo europeu, bem como
imitando, conscientemente ou não, as potências européias. Até mesmo o preconceito
dos norte-americanos em relação à América Latina remete à influência européia da fé na
“superioridade anglo-saxônica” e da missão moral da raça branca em relação aos “povos
inferiores”
377
.
O discurso que permeou a Política da Boa Vizinhança sobre o papel dos Estados
Unidos de protetor do continente contra ameaças externas é expressão da continuidade
da tradição moralista norte-americana em suas relações com a América Latina.
Ao mesmo tempo em que o discurso do bom vizinho expressou a intenção dos
Estados Unidos de exercer uma influência benigna no subcontinente, também
representou o utilitarismo na política de Washington. A difusão do American way of life
contribuiu para a construção da hegemonia norte-americana. A criação do OCIAA foi
reflexo do esforço despendido pelo Departamento de Estado para a promoção do modo
de vida americano como um modelo a ser seguido pela América Latina. Esse esforço
buscou cultivar, na América Latina, a admiração pela prosperidade e pelos valores
norte-americanos. Tal admiração agregou ao poder dos Estados Unidos a habilidade de
influenciar as preferências de seus vizinhos latino-americanos em um cenário de crise
mundial.
376
COHEN, E. A. Op. Cit., p. 71.
377
WHITAKER, A. P. Op. Cit., 1966, p. 9-10.
132
Durante seus anos de atuação, o Office de Rockefeller esteve de acordo com o
caráter da expansão norte-americana, que, desde o século XIX, teve como seu
mecanismo de ação a penetração, ou o direito de acesso, em detrimento da aquisição
378
.
Mesmo tendo sido criado especificamente para atender aos interesses dos
Estados Unidos de promover uma propaganda ideológica que colaborasse com a causa
americana durante Segunda Guerra Mundial, o legado do OCIAA contribuiu para que
poder de influência e acesso dos Estados Unidos na América Latina se estendesse ao
período que seguiu a guerra.
378
HERZ, M. Op. Cit., 1989, p. 26.
133
Considerações Finais
134
O objetivo desse trabalho não foi compreender as relações entre os Estados
Unidos e o Brasil, no período estudado, sob o prisma do imperialismo clássico, pois não
acreditamos no poder elucidativo de teorias reducionistas que colocam os Estados
Unidos como detentores de um absoluto poder de decisão e os latino-americanos como
vítimas manipuladas, sem qualquer poder de escolha. Ao contrário, concordamos com
Gerson Moura que, fugindo de generalizações, contribuiu ricamente para o estudo da
historiografia das relações entre os Estados Unidos e o Brasil à época da Segunda
Guerra Mundial, mostrando como um país aparentemente débil como o Brasil soube
valer-se de seu poder de barganha para alcançar vantagens junto aos Estados Unidos.
Optou-se, desse modo, por uma análise da cultura norte-americana como um
instrumento do poder brando dos Estados Unidos em suas relações com o Brasil durante
a Política da Boa Vizinhança. Apesar de não constituir a esfera da alta política, a cultura
foi compreendida como um importante instrumento de poder nas relações internacionais
contemporâneas.
Para alcançar tal objetivo, partiu-se da premissa de que a política exterior norte-
americana apresenta laços de continuidade com seu passado. A cultura política
estadunidense é influenciada por mitos que permeiam o imaginário norte-americano
desde a formação de sua identidade nacional. Desse modo, foi necessário o regresso ao
período colonial da história dos Estados Unidos para a compreensão do processo de
construção da identidade nacional estadunidense e dos valores que compõem o
imaginário norte-americano.
Nesta senda, percebe-se que os Estados Unidos forjaram uma idéia de nação
excepcional - fruto do pioneirismo dos pais peregrinos - que permeia a cultura política
do país. Tal como os hebreus, os peregrinos acreditavam que deveriam buscar a terra
prometida. Assim, o Novo Mundo surgia como a possibilidade de deixar para trás toda
135
perseguição política e religiosa que haviam sofrido na Inglaterra e começar uma nova
vida. Além disso, o processo de independência dos Estados Unidos também contribuiu
para excepcionalismo estadunidense, que pela primeira vez na história, uma colônia
conquistou sua independência, por meio de uma revolução, garantindo ao seu povo o
direito divino da vida, da liberdade e da busca da felicidade.
Baseando-se nesse excepcionalismo, o país assume a “missão” de levar o
experimento americano ao resto do mundo. Desse modo, durante o século XVIII, o
destino manifesto serviu como justificativa para a expansão para o Oeste. A fronteira
era identificada com o atraso, a barbárie, um ambiente de wilderness. A expansão da
fronteira até a costa do Oceano Pacífico foi justificada como um fardo, uma missão do
norte-americano que deveria levar o progresso ao far west.
Até o final do século XIX, a política estadunidense esteve voltada para os
assuntos domésticos. Passado o período de Reconstrução e com a ocupação de todo
território ao Oeste do país, os Estados Unidos passam a olhar para América Latina. Com
o fim da expansão para o Oeste, a região sul do continente é percebida como uma nova
fronteira ser conquistada. Nesse contexto, a Guerra Hispano-Americana foi o marco da
reorientação da política estadunidense que, a partir de então, deixa de restringir-se aos
temas exclusivamente domésticos e assume uma posição de liderança no cenário
internacional.
A América Latina, tal como o far west, foi relacionada à idéia de wilderness, ou
seja, uma porção de terra a carecer da “benevolência” dos Estados Unidos, que
deveriam civilizá-la para que pudesse prosperar como seu vizinho do norte.
A influência do mito do wilderness e da fronteira na formação da identidade
nacional norte-americana é percebida na importância que espaço territorial assumiu na
historiografia estadunidense, substituindo a idéia de tempo. Os norte-americanos
136
procuraram compensar o sentido de tempo de que careciam por um amplo sentido de
espaço. Seu pensamento não remonta a um passado que não existiu, mas ao futuro
379
.
Essa importância dada ao elemento territorial e ao futuro na historiografia norte-
americana explica, de certo modo, o esforço da política externa de Washington para
garantir a hegemonia estadunidense na América do Sul, a partir do final do século XIX.
Embora a hegemonia norte-americana não tenha sido estabelecida aos moldes do
tradicional imperialismo colonial, os Estados Unidos lançaram mão de uma postura
imperialista disfarçada por seu destino manifesto de civilizar a região, percebida como
uma zona de influência natural norte-americana.
Nesse sentido, verificou-se que, desde sua ascensão como grande potência, no
século XIX, o expansionismo dos Estados Unidos não se caracterizou pela aquisição,
mas sim pelo direito de acesso justificado advindo de sua missão civilizadora.
A partir da presidência de Theodore Roosevelt, as relações entre os Estados
Unidos e a América Latina foram marcadas pelo intervencionismo estadunidense. A
Doutrina Monroe foi reformulada de modo a justificar a política externa norte-
americana para o subcontinente, que se pautou pelo unilateralismo e pela coerção. Essa
postura marcou a predominância do poder duro estadunidense em suas relações com os
países latino-americanos.
Esse padrão acompanhou a política externa dos Estados Unidos para a América
Latina até a década de 1930, principalmente no que diz respeito ao relacionamento com
a América Central e o Caribe. O Big Stick rooseveltiano e a Diplomacia do Dólar de
Taft foram expoentes do intervencionismo norte-americano, exacerbado pela força do
poder de polícia reivindicado por Washington.
379
HOFSTADER, R. Los Historiadores Progressistas, Turner, Beard, Parrington. Buenos Aires: Paidós,
1968 apud JUNQUEIRA, M. A. Op. Cit., 2000, p. 69.
137
Com o governo de Franklin Delano Roosevelt (1933-1945), percebe-se uma
reorientação da política exterior norte-americana para a América Latina. O pan-
americanismo passou a servir como base para a política do bom vizinho.
O pan-americanismo não era elemento novo na diplomacia norte-americana. Ao
final do século XIX, os Estados Unidos já haviam percebido os benefícios que poderiam
provir das iniciativas pan-americanistas. Todavia, até então, o pan-americanismo de
Washington havia sido neutralizado pelo uso exacerbado do poder duro em suas
relações com o subcontinente.
A década de 1930 marca uma revisão dos instrumentos de poder adotados até
então pelos Estados Unidos. A iniciativa do New Deal e uma nova geração de políticos
norte-americanos preocupados com a importância estratégica da América Latina para os
interesses estadunidenses apontam o abandono de políticas de poder baseadas em
reinterpretações da Doutrina Monroe e o fortalecimento do pan-americanismo. Desse
modo, entende-se que, no período em questão, os Estados Unidos definem seu plano de
inserção internacional a partir da América Latina, adotando uma postura diplomática
mais branda, em detrimento da agressividade do poder duro.
A Política da Boa Vizinhança foi, assim, um divisor de águas na política exterior
dos Estados Unidos, que, apesar de manter continuidade em seus objetivos - ou seja,
garantir a que o sul do continente continuasse a constituir uma zona natural de
influência norte-americana - adota mudanças nos meios utilizados para atingi-los. É a
partir de então que os norte-americanos percebem a necessidade de abandonar o
unilateralismo e acabar com mal-estar que pairava entre os latino-americanos, em
virtude do intervencionismo estadunidense do início do século. Para atingir tal objetivo,
os Estados Unidos deveriam lançar mão de sua capacidade de atração, em detrimento da
138
coerção. Era necessário que fossem mais amados e menos temidos. Para tanto, o vizinho
do norte atentou-se para a importância do poder de influenciar idéias.
Em um contexto continental, no qual a ameaça germânica ganhava cada vez
mais espaço entre os latino-americanos, o Departamento de Estado abandonou a
agressividade de sua política exterior do início do século e optou por uma postura mais
branda, enaltecendo os valores pan-americanistas que deveriam unir as nações do
continente e promover, entre os países ao sul do Rio Grande, uma imagem dos Estados
Unidos que remetesse à idéia do bom vizinho do norte.
A situação brasileira inspirava cuidados especiais ao Departamento de Estado,
devido ao grande número de imigrantes alemães que habitavam o sul do país, além da
notória admiração dos militares brasileiros pela máquina de guerra nazista. O comércio
de compensação praticado entre Brasil e Alemanha contribuía para agravar ainda mais a
percepção da ameaça germânica.
Nesse contexto, o recorte geográfico da região nordeste garantiu ao Brasil uma
posição estratégica para a segurança hemisférica. Assim, na eminência de uma guerra
mundial, na qual Estados Unidos e Alemanha seriam forças opostas, o Brasil, apesar de
sua condição de nação subdesenvolvida, soube tirar proveito da situação adotando uma
postura pragmática em suas relações com Estados Unidos e Alemanha.
Dentro desta lógica, o governo varguista buscou atender os interesses de seu
projeto desenvolvimentista, tais como a construção da siderúrgica de Volta e Redonda e
o equipamento das Forças Armadas. Apesar de não simpatizarem com os métodos
autoritários e o nacionalismo varguista que caracterizaram o Estado Novo, os Estados
Unidos viram-se sem outra opção que não fosse atender aos anseios brasileiros, devido
às suas implicações políticas, ou seja, o não atendimento aos interesses varguistas
poderia resultar em benefício à Alemanha.
139
Diante do fato de que os pressupostos liberais vinham caindo em descrédito
desde a Primeira Guerra Mundial e de que uma nova potência imperial ameaçava a
hegemonia hemisférica norte-americana, os Estados Unidos atentam-se para a
necessidade de redefinir as relações interamericanas, a fim de manter sua posição no
continente. Assim, o Departamento de Estado valeu-se da inserção das relações
culturais no contexto de suas relações com o subcontinente.
Nesse sentido, verificou-se que a criação do OCIAA representou o primeiro
esforço norte-americano em exercer seu poder brando no plano internacional,
desvinculando-se do paradigma agressivo dado anteriormente ao tema da segurança
nacional e apontando para uma nova perspectiva nas relações diplomáticas dos Estados
Unidos, qual seja a vinculação do interesse nacional às relações culturais internacionais.
As ações das Divisões de comunicação e de Relações culturais trabalharam com
o objetivo de difundir na América Latina uma teia de significados que levassem os
latino-americanos a uma interpretação positiva sobre o vizinho do norte. Nesta senda,
verificamos a existência de duas Américas no imaginário norte-americano: a América
do Norte e a América Latina. A primeira constituída pela sociedade WASP, modelo de
trabalho, progresso e civilização, enquanto a irmã do sul, vista como a “outra” América,
caracterizava-se pela herança ibérica e católica, carente de uma cultura progressista. No
entanto, as diferenças entre as duas Américas não foram apresentadas pelos Estados
Unidos como oponentes, mas sim como complementares. Nesse sentido, o pan-
americanismo no qual se baseou a Política da Boa Vizinhança foi utilizado para
exacerbar a necessidade de união entre as duas Américas para a defesa da segurança
hemisférica.
As ações do OCIAA contribuíram, em grande medida, para vincular as relações
culturais às relações comerciais. As produções hollywoodianas, as campanhas
140
publicitárias veiculadas no rádio e na imprensa promoveram o consumo de mercadorias
que carregavam consigo significações sociais e difundiam padrões de comportamento
que remetiam ao American way of life.
A Segunda Guerra Mundial marcou o reposicionamento dos Estados Unidos no
que diz respeito às relações internacionais. Nesta senda, a América Latina -
especialmente o Brasil por sua posição estratégica à época do conflito serviu como
plataforma para a formulação de um projeto global de poder norte-americano. A partir
hegemonia hemisférica, os Estados Unidos projetar-se-iam mundialmente no segundo
pós-guerra, disseminando o modo de vida americano além da fronteiras continentais.
A Política da Boa Vizinhança foi formulada para atender ao interesses que
envolviam o projeto hegemônico norte-americano, que, em um primeiro momento,
baseou-se na oposição democracia versus fascismo e que teve a América Latina como
principal zona estratégica. Com a vitória dos aliados na guerra, o projeto hegemônico
dos Estados Unidos assume novas dimensões e adota como orientação a disputa entre
capitalismo e socialismo.
Nesse contexto, sem a percepção de uma ameaça eminente aos interesses norte-
americanos na região, a América Latina deixa de ser objeto de preocupação do governo
dos Estados Unidos, que transfere sua atenção para a reconstrução européia e a
contenção da União Soviética. O OCIAA perde sua razão de existir, enquanto o Brasil,
sem mais poder contar com seu poder de barganha, deixa de ocupar uma posição
estratégica na agenda norte-americana.
O OCIAA pautou-se pelo moralismo da tradição da política externa norte-
americana, ao apontar racionalizações que justificassem o alinhamento da América
Latina à causa de guerra dos Estados Unidos. A promoção de uma imagem dos norte-
americanos como os guardiões da segurança hemisférica, ligados ao progresso e à
141
prosperidade, garantiu legitimidade às ambições estadunidenses de manter o
subcontinente como uma zona de influência natural dos Estados Unidos.
Em seus seis anos de vida, o OCIAA serviu como um laboratório para a
experiência norte-americana de fazer da cultura um instrumento de poder.
Passada a ameaça do imperialismo alemão, o Office de Rockefeller perdeu
expressão política até chegar à extinção, mas deixou suas práticas como herança aos
Estados Unidos, que, a partir de então, agregaram definitivamente o poder brando à sua
política exterior, dando ao “experimento nacional” um enfoque universal.
142
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