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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E DIREITO
GUSTAVO FRANÇA GOMES
ÁGUA E REGULAÇÃO:
Aspectos jurídicos e sociais da regulação dos serviços públicos
de distribuição de água e coleta de esgoto
NITERÓI
2006
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GUSTAVO FRANÇA GOMES
ÁGUA E REGULAÇÃO: ASPECTOS JURÍDICOS E SOCIAIS DA REGULAÇÃO DOS
SERVIÇOS PÚBLICOS DE DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA E COLETA DE ESGOTO
Dissertação apresentada ao curso de mestrado
do Programa de Pós-Graduação em Sociologia
e Direito da Universidade Federal Fluminense
como requisito final para obtenção do grau de
Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais.
Aprovada em julho de 2006.
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________
Prof
a
Dr
a
MARIA ARAIR PINTO PAIVA - Orientadora
UFF
______________________________________________
Prof. Dr. MAURÍCIO VIEIRA MARTINS
UFF
______________________________________________
Prof. Dr. JOAQUIM LEONEL DE REZENDE ALVIM
UFF
______________________________________________
Prof. Dr. PAULO BRAGA GALVÃO
UERJ
Niterói
2006
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Aos seis manifestantes mortos e às centenas
de feridos em 2002, durante as
manifestações em Cochabamba, na Bolívia,
pelo direito à água.
AGRADECIMENTOS
À Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), à Pró-
Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa (PROPP) da Universidade Federal Fluminense (UFF) e
ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) pelo apoio e fomento a esta
pesquisa.
À minha orientadora Maria Arair Pinto Paiva a quem devo a exata combinação de paciência e
rigor científico que possibilitaram a conclusão do trabalho.
Aos docentes e aos colegas discentes do mestrado, que contribuíram com críticas e
perspectivas teóricas nas diversas etapas da construção da dissertação que ora apresento, em
especial Leonel Alvim, Maurício Vieira Martins, Roberto Fragale Filho, José Fernando,
Virgínia Fontes, Fernando Fontainha, Pedro e Anamaria.
À minha companheira Maíra de Oliveira Alves a quem devo, mais que o apoio nas horas
difíceis, o árduo e competente trabalho de leitura e discussão do texto.
Aos meus alunos do curso de Direito Administrativo I e II e aos colegas professores da
Faculdade de Direito da UGB, Augusto, Brito, Flavia, Macário, Sávio e Vânia.
Aos servidores do II Juizado Especial Cível de Niterói.
Aos meus companheiros de estudos e intervenção na realidade brasileira Alexandre, Bianca,
Cláudio Gurgel, Cláudio Correa, Clarisse, Carol, Carlos Alberto, Clarice, Daniel, Eloísa,
Eduardo, Fernanda, Fernando, Guilherme, Humberto, Julio, Jorge, Laura, Luiz Fernando,
Luis Manhães, Márcia Denise, Margareth, Márcia Salles, Mariana Trotta, Mariana Pardal,
Marco Antonio, Patrícia, Pedro, Renato, Rodrigo, Rodrigo Lamosa, Thelma e muitos outros
que ainda se indignam com a injustiça social..
Aos meus amigos e parentes em especial aos meus pais, Sonia França Gomes e Paulo
Eduardo Gomes, pelo apoio e incentivo nos longos anos de formação acadêmica. E por tudo.
“Em certo momento culminante do conflito, o exército
ficou nos quartéis, a polícia ficou nas delegacias, os
congressistas desapareceram, o governador sumiu, ele
renunciou, e não restou nenhuma autoridade. A única
autoridade legítima era o povo que estava nas ruas e nas
praças, tomando decisões em grandes assembléias e que
acabou decidindo sobre a água. Eu acho que nós o povo,
jovens e velhos, finalmente pudemos saciar a nossa sede
de democracia.”
Uma das lideranças dos protestos que resultaram em seis
manifestantes mortos, centenas de feridos e no fim do controle da
multinacional Bechtel sobre a água em Cochabamba na Bolívia
(Entrevista registrada no documentário The corporation: direção de
Jennifer Abbott e Mark Achbar; Canadá, 2004; 145 min)
SUMÁRIO:
1. INTRODUÇÃO
...........................................................................................................................................
10
2. ÁGUA E O NOVO IMPERALISMO
...........................................................................................................................................
14
2.1 Exportação de capitais, acumulação por espoliação e a água
..........................................................................................................................................
15
2.2 Concentração e formação dos oligopólios da água
..........................................................................................................................................
24
2.3 Estado, organizações internacionais multilaterais e as
multinacionais da água
..........................................................................................................................................
28
2.4 Invenção da “crise da água” e a propaganda ideológica
..........................................................................................................................................
32
3. REFORMA DO ESTADO E PRIVATIZAÇÃO
DA ÁGUA NO BRASIL
.................................................................................................................................................
38
3.1 A proposta do Estado Gerencial e as reformas constitucionais
..........................................................................................................................................
41
3.2 A Reforma do Estado na década de 1990
..........................................................................................................................................
45
4. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA PROPRIEDADE DA ÁGUA NO BRASIL
...........................................................................................................................................
55
4.1 Propriedade particular da água: o Código Civil de 1916
e o Código de Águas de 1934.
.................................................................................................................................................
59
4.2 Propriedade pública da água: a Constituição de 1988 e o processo de “publicização”
da água.
..........................................................................................................................................
66
4.3 Propriedade pública não-estatal da água: a Lei 9.433 de 1997, a criação da Agência
Nacional de Águas e a cobrança pelo uso da água.
..........................................................................................................................................
71
4.4 Uma interpretação sócio-juridica para a evolução legislativa da gestão da água.
..........................................................................................................................................
73
5. SERVIÇO PÚBLICO DE DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA E
COLETA DE ESGOTO NO BRASIL
.................................................................................................................................................
85
5.1 A “crise” da noção de serviço público e a teoria da regulação
..........................................................................................................................................
85
5.2 Princípios e poderes do Estado no regime jurídico administrativo
dos serviços públicos
.................................................................................................................................................
92
5.3 Classificação dos serviços públicos
..........................................................................................................................................
97
5.4 Novo marco regulatório: a construção do regime jurídico administrativo
do Estado Gerencial.
.................................................................................................................................................
103
6. JURISPRUDÊNCIA E A ÁGUA
...........................................................................................................................................
113
6.1 A “crise” do Planasa: da gestão pública para a gerencial
do setor de saneamento brasileiro
.................................................................................................................................................
113
6.2 A pesquisa das demandas judiciais em Niterói
..........................................................................................................................................
119
6.3 Suspensão do serviço e princípio da continuidade
..........................................................................................................................................
125
6.4 “Taxa de esgoto”: natureza jurídica híbrida desse instituto
..........................................................................................................................................
133
6.5 Tarifa mínima e tarifa progressiva
..........................................................................................................................................
141
6.6 A construção jurisprudencial do novo marco regulatório e o regime jurídico hibrido
do Estado Gerencial
..........................................................................................................................................
143
7. CONSEQÜÊNCIAS SOCIAIS DA PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA
...........................................................................................................................................
153
7.1 As guerras pela água
..........................................................................................................................................
153
7.2 O agronegócio e o uso intensivo e predatório da água no campo
..........................................................................................................................................
154
7.3 O uso industrial intensivo da água e a poluição
..........................................................................................................................................
159
7.4 O uso doméstico da água e a sua distribuição desigual dos serviços
..........................................................................................................................................
160
8. CONCLUSÕES
...........................................................................................................................................
167
9. ASPECTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS
...........................................................................................................................................
172
10. BIBLIOGRAFIA
...........................................................................................................................................
179
11. ANEXOS
...........................................................................................................................................
186
11.1Tabela com demandas judiciais em Niterói (2000- 2005)
186
11.2 Concessões municipais e concessionárias privadas
202
RESUMO
No início do século XXI, crescente preocupação dos governos, dos centros de
pesquisa, das universidades, dos ambientalistas e da sociedade em geral com relação à
possível “crise” mundial da água. A presente dissertação parte desse problema para
identificar as razões para a atual escassez dos recursos hídricos. Para isso, analisa os múltiplos
usos da água nas sociedades capitalistas contemporâneas. Descreve, inicialmente, o contexto
da exploração desse recurso natural pelas grandes multinacionais da água. Traça
posteriormente um panorama histórico da transição do modelo de Welfare State para o do
Estado Gerencial por meio das reformas constitucionais ocorridas na década de 1990 no
Brasil, sublinhando os reflexos para o regime de propriedade da água e para o conceito de
serviços públicos e seu respectivo regime jurídico. Após descrever a gradativa substituição do
Plano Nacional de Saneamento Planasa pela delegação à iniciativa privada do setor de
saneamento, apresenta pesquisa com base em demandas judiciais envolvendo serviços de
distribuição de água e coleta de esgoto privatizados. Conclui, com fundamento nas decisões
judiciais analisadas, que o estabelecimento de um novo marco regulatório no Brasil para a
gestão dos serviços públicos. Por fim, aborda de forma crítica as conseqüências sociais desse
novo regime jurídico administrativo dos serviços públicos implantado após as privatizações.
ABSTRACT
At the beginning of the 21
st
century, there is a growing concern, expressed by
governments, research centres, universities, environmentalists and society in general,
regarding the potential world water “crisis”. This dissertation extends this concern seeking to
identify the reasons for the current scarcity of hydric resources. To that end, it analyses the
multiple uses of water in contemporaneous capitalist societies. It describes initially the
context of the exploitation of this natural resource by great multinational water companies. It
then proceeds to delineate a historical panorama of the transition from the Welfare State to the
Regulatory State by way of constitutional reforms carried out in the 1990s in Brazil,
underlining the reflections on the legal ownership of water and on the concept of public
services and their respective legal framework. After describing the gradual replacement of the
National Sanitation Plan in Portuguese: Planasa with delegation of provision of sanitary
services to private initiative, the results are presented of research into judicial demands
involving privatised water distribution and sewage collection services. Based on analysis of
court decisions, it is concluded that a new regulatory landmark has been established for the
administration of public services in Brazil. Finally, a critical approach is taken to the social
consequences of this new juridical framework for the administration of public services which
has been adopted following their privatisation.
1. INTRODUÇÃO
Há realmente o perigo da crise da água? Quais seriam as razões para a escassez? Quais são os
problemas a serem enfrentados para se evitar a escassez? Essas são algumas das inevitáveis
indagações preliminares que motivaram a presente dissertação.
A água é um recurso natural essencial à manutenção da vida dos seres humanos. Nos últimos
anos recrudesceu o debate sobre a sua utilização e preservação. Governantes e ambientalistas
apresentam posições alarmistas quanto à possibilidade de crise de abastecimento gerada pela
escassez da água.
O estudo e a pesquisa desenvolvidos almejam destacar a relação historicamente constituída
entre o homem e a água. Somente com a observância numa perspectiva histórica dessa relação
é possível compreender as demais questões que hoje despertam intensos debates nas
sociedades em todos os continentes do planeta.
Portanto, começaremos, no nosso próximo capítulo, por investigar como a exploração da água
se insere no contexto histórico das sociedades capitalistas contemporâneas. A apropriação
privada da água e a sua conseqüente transformação de recurso disponível na natureza em
mercadoria são percebidas como as marcas atuais desse desenvolvimento.
Atualmente, as sociedades capitalistas têm como característica preocupante o índice elevado
de problemas relacionados à água, tais como a poluição das suas fontes e nascentes, a sua
distribuição desigual, a escassez em determinados territórios do planeta e, até mesmo, a
deflagração de guerras pelo controle dessa matéria-prima, essencial à manutenção da vida.
Os tratados, as declarações e as conferências internacionais que abordaram o tema, assim
como a legislação dos Estados nacionais, estão permeados pelo conflito de interesses que
existe na sociedade entre aqueles que querem extrair lucro na exploração desse recurso e
aqueles que querem garantir a todos os seres humanos o direito à água.
Nos últimos anos, presenciou-se, porém, o recrudescimento da perspectiva que transforma a
água em simples mercadoria a ser adquirida, mediante pagamento de seu preço, no mercado.
Mudanças na legislação e no regime de propriedade sobre a água foram promovidas pelos
governos de diversos Estados nacionais para atender a tal premissa.
No terceiro capítulo, analisamos a década das privatizações, que transferiram da esfera
pública para a privada grandes setores econômicos como os de transportes, siderurgia,
telefonia, energia, água e esgoto, entre outros. Essas reformas foram justificadas por
argumentos que apontavam a ineficiência estatal em universalizar os serviços, as altas tarifas
decorrentes dos monopólios estatais, falta de recursos para investimentos, gestão “politizada”,
ineficiência de uma burocracia privilegiada de funcionários públicos para atender ao
consumidor. A grande imprensa divulgou amplamente tais argumentos.
O ex-ministro da Administração Pública e Reforma do Estado, Bresser Pereira, foi o grande
defensor teórico dessas reformas no Brasil. Ao defender a substituição do Estado burocrático
pelo gerencial, apontou a necessidade de mudanças legais-institucionais capazes de adequar o
modelo de Estado à nova realidade social.
No quarto capítulo, analisamos então essas mudanças no que tange às três fases identificadas
na evolução histórica do regime de propriedade da água: propriedade privada, propriedade
pública e, por fim, propriedade pública não-estatal. Quanto às mudanças institucionais da
gestão dos serviços públicos, destacamos no quinto capítulo o contexto da denominada “crise
da noção de serviço público” e a gradativa construção de um novo e híbrido regime jurídico,
misto de prerrogativas e sujeições de direito público e privado.
Observamos, contudo, que a criação desse marco teórico ainda é incipiente, apesar dos
insistentes apelos do empresariado nacional e internacional pelo estabelecimento de leis que
dêem segurança jurídica aos investimentos no setor. Isso realça a importância da
jurisprudência como fonte do Direito.
Desse modo, no sexto capítulo, apresentamos pesquisa das demandas envolvendo disputas
pela água entre os anos de 2000 e 2005 nos Juizados Especiais Cíveis de Niterói. Os
resultados da pesquisa são elucidativos ao demonstrar que persistem insatisfações da
população com relação aos serviços de distribuição de água e coleta de esgoto mesmo após a
privatização. Apontam também os dados obtidos no sentido das principais controvérsias que
se apresentam ao Poder Judiciário para solução.
Notamos portanto dificuldade em se estabelecer uma harmonia de princípios haja vista que,
no novo regime jurídico administrativo do Estado Gerencial, coexistem princípios,
prerrogativas e sujeições muitas vezes antagônicos. Essas contradições revelaram, na
realidade, diferentes visões presentes na sociedade que pretendem manter as regras vantajosas
para os seus interesses e eliminar as desfavoráveis.
Concluímos então a dissertação no oitavo capítulo, ressalvando os diferentes usos da água nas
sociedades contemporâneas. Elencamos diversos exemplos de como esses usos têm sido
nocivos ao meio ambiente. O desperdício, a poluição e a distribuição injusta e desigual dos
recursos hídricos são a tônica da gestão atual desse bem.
Uma década depois do início das privatizações, verifica-se que as empresas privadas
prestadoras de serviços públicos lideram o ranking de reclamações dos consumidores, as
tarifas sofrem constantes reajustes, os serviços nem sempre são de boa qualidade e,
principalmente, grande parcela da população continua excluída do acesso aos bens e serviços
considerados essenciais.
Desse modo, o debate sobre o modelo de gestão da distribuição da água e da coleta do esgoto
continua em destaque na sociedade. A mídia ainda divulga a opinião hegemônica de que a
transferência da gestão desses serviços para a iniciativa privada é a melhor solução para o
setor de saneamento.
1
No entanto, segundo Pierre Bourdieu, cabe à sociologia justamente
superar os obstáculos do saber vulgar:
.
O sociólogo nunca conseguirá acabar com a sociologia espontânea e deve se impor uma
polêmica incessante contra as evidências ofuscantes que proporcionam, sem grandes esforços,
a ilusão do saber imediato e de sua riqueza insuperável.” Portanto, “numa sociologia como
alhures, uma pesquisa séria leva a reunir o que o vulgo separa ou a distinguir o que o vulgo
confunde” (BOURDIEU, 1999, p. 23 e 25).
Desse modo, em um estudo acadêmico, é insuficiente considerar uma premissa como esta e
concordar a priori com o argumento de que a privatização corresponde à única solução para
um efetivo atendimento da população e para a implementação de um sistema de saneamento.
Por conseguinte, um trabalho científico tem a especificidade e até mesmo o compromisso de
almejar aprofundar tais interpretações, o que não é exigido do senso comum.
A pesquisa e a análise da legislação e das demandas judiciais contra a empresa concessionária
do serviço público tem, portanto, como objetivo ajudar a elucidar alguns desses aspectos do
novo modelo de gestão do Estado. Além da identificação das causas para os problemas do
setor de saneamento, procura-se verificar até que ponto a exploração privada da água tem sido
ou não deletéria para a dignidade humana e para a preservação ambiental, pois um estudo
histórico, jurídico ou sociológico das privatizações e da regulação econômica deve se
pronunciar principalmente sobre essa questão.
1
Com relação à exploração da água, podemos, por exemplo, destacar a visão expressa no jornal O
Dia que assim anunciou: “Saneamento precisa de investidores privados – falta de dinheiro para a
expansão levará a acordos com grandes empresas nacionais e estrangeiras”. O diário defende então
um marco regulatório que permita ao setor privado ter garantias para os elevados investimentos que
teria de fazer. Na matéria, prossegue enfaticamente a defesa da privatização dos serviços de
distribuição de água: “a universalização dos serviços de saneamento no Brasil depende,
fundamentalmente, de capital privado” (Jornal O Dia, 16 de maio de 2004, p. 16).
Por fim, vale ressalvar que disponibilizamos ao leitor no nono capítulo algumas notas teóricas
e metodológicas. Entendemos assim que estaremos possibilitando maior controle e
aprofundamento sobre o resultado deste trabalho.
2. ÁGUA E O NOVO IMPERIALISMO
A água é um recurso natural presente no planeta Terra milênios. No decorrer da história,
no entanto, a relação dos seres humanos com esse recurso natural sofreu diversas variações.
Houve utilização da água para diversos fins que vão desde o mais elementar, para saciar a
sede, passando pelo uso místico em rituais religiosos como o batismo até a sua utilização mais
sofisticada em produtos comerciais internacionais como a água mineral Perrier, Danone ou
Nestlé.
Mesmo com a sua composição química inalterada em duas moléculas de oxigênio e uma de
hidrogênio, a água assume diferentes funções de acordo com o momento histórico e o local
pesquisados. São esses elementos que determinam a existência de diferenças significativas
nas relações do homem com a água em diversas sociedades.
O objetivo principal da presente análise é a compreensão da gestão da água nas sociedades
capitalistas contemporâneas, destacando-se principalmente as alterações ocorridas na última
década no regime de propriedade da água.
Para melhor interpretação da atual relação estabelecida entre os homens e a água nessas
sociedades, faz-se necessária uma breve referência aos elementos mais marcantes do
capitalismo contemporâneo. Por mais que o pensamento social do século XXI recuse a
utilização indistinta do conceito de capitalismo, é inegável, até para os maiores críticos da
tradição marxista, a possibilidade de se vislumbrar elementos comuns característicos da
maioria das sociedades capitalistas.
Esses atributos essenciais a essas sociedades são fundamentais então para inserirmos a
exploração da água num contexto mais amplo de produção mundial. Portanto, delinearemos
de forma sucinta tais elementos fundamentais do que alguns autores denominam
“globalização”, “mundialização”, “pós-modernidade”, “novo imperialismo” ou simplesmente
“imperialismo”.
2
2.1 EXPORTAÇÃO DE CAPITAIS, ACUMULAÇÃO POR ESPOLIAÇÃO E A ÁGUA
2
O debate sobre o atual desenvolvimento do capitalismo mundial é extremamente fecundo e ainda inconcluso.
De acordo com perspectivas políticas diversas, uma profusão de conceitos relacionados às mudanças
verificadas após a decadência do bloco soviético que certamente esta dissertação não pretende dar conta nem ao
menos de elencá-los. Registramos apenas o intenso debate e a opção pelo conceito formulado por Hilferding que
associa o imperialismo à predominância do capital financeiro oriundo da fusão das indústrias e do capital
bancário. Acrescentamos ainda algumas reflexões desenvolvidas por David Harvey sobre as conseqüências
atuais do desenvolvimento do imperialismo.
Uma das principais características do capitalismo do início do século XX foi a formação de
monopólios e a concentração das empresas. Verificaram-se nessa fase do desenvolvimento
capitalista diverae
pTd) divefzÇN
exportação de mercadorias. O que caracteriza o capitalismo moderno, no qual impera o
monopólio, é a exportação de capital” (LENINE, 2005, p. 61).
Essa incessante procura por novos mercados marca as constantes crises capitalistas e suas
guerras. Após o ápice do capitalismo moderno na década de 1960, sob o modelo conhecido
como Welfare State, nova crise se verificou. A burocracia estatal, seus sistemas de
redistribuição de renda, a política de pleno emprego e direitos sociais começou a apresentar
sinais de fadiga, tornando-se incapaz de sustentar o crescimento econômico.
Na década de 1970, a economia mundial apresentava taxas decrescentes de lucros. A
exportação de capitais pelos grandes cartéis mundiais atingira um patamar no qual encontrava
obstáculos para novos e lucrativos investimentos. Os principais Estados capitalistas do mundo
apresentavam brusca queda nos índices de crescimento do PIB. Estados Unidos, Alemanha
Ocidental, França, Inglaterra e Japão registraram taxas de crescimento abaixo da metade da
verificada na década anterior. O Japão, por exemplo, de uma taxa de crescimento de 10,4%
nos anos 1960 despencou para 3,6% na década seguinte. Podemos verificar esses dados
econômicos apresentados pela Organização Européia de Cooperação para o Desenvolvimento
Econômico (OCDE):
Estados Unidos
2,50%
2,40%
3,20%
4,40%
1960-68
1968-73
1973-79
1979-85
4,00%
3,60%
8,40%
10,40%
1960-68
1968-73
1973-79
1979-85
Alemanha Ocidental
1,30%
2,30%
4,90%
4,10%
1960-68
1968-73
1973-79
1979-85
França
1,10%
3,10%
5,90%
5,40%
1960-68
1968-73
1973-79
1979-85
Inglaterra
1,20%
1,50%
3,20%
3,10%
1960-68
1968-73
1973-79
1979-85
Todos os países da OCDE
2,20%
2,60%
4,70%
5,10%
1960-68
1968-73
1973-79
1979-85
Fonte: Relatório da OCDE – 1986
Taxas percentuais anuais de mudança
Produto Produto per capita Exportações
1820-1870 2,2 1,0 4,0
1870-1913 2,5 1,4 3,9
1913-1950 1,9 1,2 1,0
2950-1973 4,9 3,8 8,6
1973-1979 2,6 1,8 5,6
1979-1985 2,2 1,3 3,8
Fonte: Relatórios da OCDE – 1973-85
Para superar essa crise de acumulação era necessário para o capital abrir novas fronteiras. E
foi justamente isso que se verificou. O economista Claudio Gurgel destacou que, no processo
produtivo, os capitais privados “para efetivarem, sobre a superacumulação, nova acumulação,
têm diante de si três desafios: a) identificar novos segmentos de negócios lucrativos para onde
possam se dirigir; b) encontrar formas de conviver com o mercado restrito, subproduto de sua
própria acumulação e c) encontrar formas de recuperar as taxas de lucro (cadentes nos anos de
1970), em ambiente de baixo crescimento” (GURGEL, 2003, p. 124-125).
O neoliberalismo então surge como resposta para a crise, apresentando um conjunto de
medidas políticas, sociais e econômicas para restabelecer o crescimento da economia mundial.
Parte dessa solução foi atingida através do avanço no processo contínuo da transformação dos
bens mundiais em mercadoria. Direitos reconhecidos pelo Estado de Bem-Estar Social como
à aposentadoria, à energia elétrica, à água, entre outros, são transformados em mercadorias a
serem compradas no mercado.
David Harvey, resgatando a análise de Rosa Luxemburgo sobre o imperialismo, considera que
de fato verifica-se nesta fase capitalista uma continuidade daquilo que Marx conceituou como
acumulação primitiva do capital. Luxemburgo chamava a atenção para a necessidade no
capitalismo da coexistência entre modos propriamente capitalistas de produção e modos não-
capitalistas de acumulação. Desse modo, o processo de acumulação primitiva, que teve na
expropriação da terra camponesa um momento fundamental, continua a existir no capitalismo
contemporâneo (HARVEY, 2002, capítulo V).
Esse fenômeno foi denominado, por Harvey, “acumulação por espoliação”, já que a expressão
“primitiva” remetia a uma idéia de “original”, e não de continuidade como lhe parecia mais
adequado. O conceito de acumulação por espoliação aplicar-se-ia então aos fenômenos
bastante atuais, do início do século XXI, da continuidade da expropriação da terra camponesa,
como ocorre aos milhares na China, da mercantilização do antigo direito comunitário à água e
até das modernas patentes genéticas de animais e seres humanos.
Desse modo, o capital financeiro recorre continuamente, para manter elevadas as suas taxas
de lucros, à expropriação de bens e direitos. A exportação de capitais é assim necessariamente
acompanhada desse modo de acumulação por espoliação. E, assim, para superar as quedas de
lucratividade, era necessário um novo ciclo de espoliações que de fato se confirmou com o
neoliberalismo.
Com a alteração da correlação de forças mundial, o desmembramento da União Soviética e do
bloco de países socialistas do Leste Europeu, o capital financeiro encontrou terreno propício
para avançar. A entrada da China e dos demais países do bloco socialista na economia de
mercado, a fraqueza dos estados africanos e asiáticos recém-independentes foram
fundamentais para criar uma conjuntura favorável aos interesses das multinacionais
imperialistas.
A água tornou-se então um dos objetos prioritários para essa nova acumulação pretendida
pelo capital financeiro. Atualmente, o mercado da água corresponde ao quinto ramo industrial
para os países do G-7 e estima-se que os ativos das principais multinacionais da água
cheguem a quantia de 90 bilhões de euros (PETRELLA, 2004).
Os cartéis mundiais passaram, com a ajuda dos Estados nacionais e instituições
internacionais, a exportar seus capitais, procurando o controle dessa matéria-prima vital à vida
humana: a água. Em todo o mundo, exemplos dessa partilha entre as grandes
multinacionais da água.
Em Bangalore, na Índia, de forma semelhante ao verificado na França, houve uma divisão dos
serviços de distribuição de água entre a Vivendi-Génèrale des Eaux e a Suez-Lyonnaise des
Eaux. As duas maiores empresas mundiais da água receberam a concessão por cinco anos
dessa área que abrange uma população de um milhão de pessoas. Caso consigam fazer, neste
período de teste, com que os indianos paguem pela água, terão a preferência para expandir a
concessão para o país inteiro.
A Vivendi-Génèrale des Eaux expandiu também a sua influência para as águas do
Mediterrâneo através da aquisição da concessão da rede de água e energia das cidades
marroquinas de Tétouan e de Tanger. Esses negócios em todo o mundo envolvem cifras
milionárias. Por exemplo, na pobre cidade de Manilha nas Filipinas, a concessão dos serviços
de distribuição de água que foi partilhada entre a americana Bechtel e a francesa Suez-
Lyonnaise des Euax atinge o valor de 7,5 bilhões de dólares (PETRELLA, 2004, p. 28).
Como ressaltamos, é desse modo, exportando capitais, que os cartéis mantêm altas as taxas de
lucro das suas empresas multinacionais. O capital financeiro se entusiasma diante da
desregulamentação e abertura do mercado da água nas principais cidades do mundo que agora
privatizam este serviço. À medida que cresce sua participação na distribuição de água, o
capital financeiro assume também o seu interesse pelo setor de saneamento como
possibilidade de expandir ainda mais o lucro de seus acionistas.
Novamente, a análise das multinacionais francesas demonstra como se desenvolveu esse
processo envolvendo o controle da água. A exportação de capitais pela Suez-Lyonnaise des
Eaux foi extremamente bem-sucedida. A multinacional tem operações em mais de vinte
países em todo o mundo, como Austrália, Bélgica, China, Alemanha, Espanha, Hungria,
Itália, Lituânia, Romênia, Reino Unido, Estados Unidos, Argentina, Bolívia, Brasil, entre
outros. Através de suas filiais ou em corporações junto às empresas nacionais, as
multinacionais se fazem presentes em todo o território mundial, partilhando entre elas a água
e mantendo elevados os seus lucros.
A GLOBALIZAÇÃO DA MULTINACIONAL FRANCESA LYONNAISE DES EAUX
COMPANHIA PAÍS CIDADE
% DO
CAPITAL
QUE POSSUI
SETOR DE
ATIVIDADE
DATA
Águas Argentinas Argentina 25,50% Água 1994*
Lyonnaise-
Australie
Austrália 100% Água 1994*
Sita Bélgica 100%
Gerenciamento
do lixo
1994*
Aquinter Bélgica 45% Água 1994*
Sofege Bélgica 100% Água 1994*
SS2 República Tcheca 51% Construção 1994*
SMP República Tcheca 51% Construção 1994*
Lyonnaise (C2) República Tcheca 100% Água 1994*
Lyonnaise China China 100% Água 1994*
Eurowasser Alemanha 49% Água 1994*
Brodrier Alemanha 25% Construção 1994*
Águas de
Barcelona
Espanha 23% Água 1994*
Cespa Espanha 100%
Gerenciamento
do lixo
1994*
Lyonnaise Pacific
Depts. Franceses
Além-mar
100% Água 1994*
CEM Hong-Kong 20% Energia 1994*
SAAM Hong-Kong 43% Água 1994*
Lyonnaise
Indonésie
Indonésia 100% Água 1994*
Crea Itália 49% Água 1994*
Sita Itália 100%
Gerenciamento
do lixo
1994*
Lyonnaise
Lituanie
Lituânia 100% Água 1994*
Lyonnaise
Hongrie
Hungria 100% Água 1994*
Lyonnaise
Malaisie
Malásia 100% Água 1994*
Safege Roumanie Romênia 100% Água 1994*
Sita Clean Reino Unido 100%
Gerenciamento
do lixo
1994*
Essex & Suffolk Reino Unido 99% Água 1994*
Lyonnaise UK Reino Unido 80% Água 1994*
North-East Water Reino Unido 99% Água 1994*
General Water
Works
Reino Unido 26% Água 1994*
Lyonnaise des
Eaux
Filipinas Manilha
Água e
saneamento
1997/1998
Lyonnaise des
Eaux
Hungria Budapeste
Gerenciamento
e distribuição
de água
1997/1998
Lyonnaise des
Eaux
Argentina Córdoba
Distribuição
de água
potável
1997/1998
Lyonnaise des
Eaux
Marrocos Casablanca
Eletricidade e
distribuição de
água e
saneamento
1997/1998
Lyonnaise des
Eaux
Indonésia Jacarta
Produção e
distribuição de
água
1997/1998
Lyonnaise des
Eaux
Indonésia Medan
Produção de
água
1997/1998
Lyonnaise des
Eaux
Bolívia
La Paz e
subúrbios
Água e
saneamento
1997/1998
Lyonnaise des
Eaux
Bolívia El Alto
Água e
saneamento
1997/1998
Lyonnaise des
Eaux
EUA Indianápolis Saneamento 1997/1998
Lyonnaise des
Eaux
EUA Milwaukee Saneamento 1997/1998
Lyonnaise des
Eaux
China Tianjin
Produção de
água
1997/1998
Lyonnaise des
Eaux
China Zhongshan Água potável 1997/1998
Lyonnaise des
Eaux
Vietnã
Cidade de
Ho Chi
Minh
Produção de
água
1997/1998
Lyonnaise des
Eaux
Alemanha Postdam
Água e
saneamento
1997/1998
Fonte: European Water Industry, EPC Survey, EPSC, Bruxelas, 1994 (data incerta).
A mundialização da Suez-Lyonnaise des Eaux é apenas um exemplo de como a concentração
capitalista contemporânea empurrou as empresas a procurarem serviços e produtos ainda
inexplorados ou subexplorados no mercado externo.
2.2 CONCENTRAÇÃO E FORMAÇÃO DOS OLIGOPÓLIOS DA ÁGUA
Conforme já mencionamos, data do século passado o processo de subordinação das pequenas
empresas aos grandes cartéis monopolistas que se caracterizam por práticas empresariais que
acabam por suprimir a concorrência.
Os cartéis privam seus concorrentes dos meios de sobrevivência. O capital bancário reduz o
crédito das indústrias que não estiverem sob seu controle e, através do poderio financeiro,
monopoliza as matérias-primas e os meios de transporte. Igualmente, celebra alianças com os
sindicatos operários para garantir o monopólio também da mão-de-obra e até força a
exclusividade das relações comerciais com os compradores dos seus produtos e serviços,
prática que vem sendo reprimida pela legislação de diversos países.
A história da exploração da água parece confirmar esse desenvolvimento do imperialismo.
Uma breve análise da indústria da água mundial aponta para uma rápida concentração das
empresas do setor. Na última década, ocorreram diversas fusões entre os maiores grupos
mundiais de exploração da água. Cerca de 11 empresas multinacionais fundiram-se em apenas
seis organizações, formando um cartel que explora em regime monopolista o crescente
mercado da água.
Na França, onde está situada a sede das principais empresas, essa concentração é bastante
visível. À Vivendi uniu-se a Génèrale des Eaux, formando um dos maiores conglomerados
mundiais de prestação de serviços públicos, que atende a 70 milhões de pessoas no mundo
todo no setor ambiental, de energia, saneamento urbano e de transporte público.
A Lyonnaise des Eaux e o Grupo Suez, outras duas gigantes francesas, também se
fundiram. Resultado dessa fusão, a multinacional Suez-Lyonnaise des Eaux também atende a
70 milhões de pessoas em todo o mundo, com um volume nacional anual de vendas de cerca
de 5,1 bilhões de dólares e um volume internacional de 2,9 bilhões de dólares em 1996.
Aumentando a concentração no setor, mais três grandes empresas francesas também se
uniram. O grupo Bouygues, primeiro em construção civil, adquiriu a terceira e a quarta
companhias francesas do ramo, a Saur e a Cise, respectivamente. A multinacional Saur-
Bouygues presta serviços privados no setor a 34 milhões de pessoas no mundo.
Existiam cerca de oito companhias com sede na Inglaterra que exploravam a água. Porém,
após fusões e aquisições, restaram apenas cinco empresas inglesas, sendo as maiores a Sever-
Trent e a Thames Water, terceira no mercado mundial. Contudo, em 2000, a Thames Water
também foi adquirida pela multinacional alemã do setor, a RWE.
Entre as grandes multinacionais que atuam no mercado da água, vale ainda destacar a
americana Bechtel que está em expansão na América Latina e no Iraque, onde ganhou, após a
guerra, a concessão da exploração das reservas aqüíferas iraquianas.
Desse modo, verifica-se como tendência para os próximos 25 anos a consolidação da partilha
das reservas de água no mundo entre as grandes multinacionais resultantes dessas fusões e
aquisições: a anglo-alemã RWE, a americana Bechtel além das francesas Suex-Lyonnaise des
Eaux, Vivendi-Génerale des Eaux e Saur-Bouygues. Incluem-se ainda neste seleto grupo
algumas companhias do ramo da água engarrafada e do setor alimentício como a gigante suíça
Nestlé e a francesa Danone.
Conclui-se que também no setor de distribuição de água e coleta de esgoto ocorreram diversas
fusões entre empresas internacionais. Essa concentração das multinacionais deu origem a um
grande oligopólio monopolista, sendo possível afirmar que:
O que se nota é que em nível global, um punhado de sociedades domina o mercado e,
freqüentemente, são as filiais que são contratadas para os trabalhos. Note-se que 70% do
mercado privado são dominados pelas firmas francesas Vivendi, Suez-Lyonnaise e
Saur/Bouygues; a alemã RWE e sua filial Times Water sendo pesos-leves (BOUGUERRA, 2004,
p. 145 e 146).
Com relação a essa exploração privada da água, é interessante esmiuçar o exemplo da França
haja vista que este Estado é sede das principais indústrias multinacionais da água. A
colocação das empresas francesas em posição de destaque no mercado da água não é simples
obra do acaso. A história imperialista colonial da França permitiu vantagens consideráveis
nesse tipo de acumulação com a presença de suas empresas nas antigas colônias. Por
exemplo, foi assim que surgiu no Egito a Companhia de Suez para operar o canal de mesmo
nome.
Na própria França, a distribuição da água é 77% privatizada. A capital Paris teve a gestão da
água privatizada em 1983, durante a administração de Jacques Chirac cujo diretor de sua
campanha eleitoral em 2002, Jérôme Monod, foi o antigo presidente-geral da Suez-Lyonnaise
des Eaux. Na partilha da capital, coube à Vivendi-Génèrale des Eaux o lado direito da cidade
e à Suez-Lyonnaise des Eaux, o lado esquerdo.
Desse modo, 85% da população francesa é atendida por serviço delegado. Igualmente, as
empresas privadas assumiram cerca de 35% do serviço de saneamento. Apenas três
empresas em regime quase monopolista dividem o mercado francês: a Suez-Lyonnaise des
Eaux, a Vivendi-Génèrale des Eaux e a Saur-Bouygues (PETRELLA, 2004, p. 107).
Essas companhias estabelecem relações diretas com o Estado francês que asseguram suas
posições privilegiadas no mercado. As empresas francesas de água possuem também o
controle dos meios de comunicação, seja pelo financiamento via propaganda, seja por meio da
aquisição direta do controle acionário de canais televisivos, tais como TF1, M6, Canal+ e
L’Express (BOUGUERRA, 2004, p. 152).
Percebe-se que as fusões e aquisições no setor deram origem a uma enorme concentração de
capital em poucas empresas. Estas multinacionais da água, por sua vez, passam a exercer um
poder enorme diante dos seus Estados nacionais, pois são fundamentais para a economia
nacional francesa como um todo.
OS DEZ GUPOS FRANCESES MAIS IMPLANTADOS NO EXTERIOR
GRUPO
PESSOAL
EMPREGADO NO
EXTERIOR
PESSOAL
EMPREGADO NO
EXTERIOR EM %
DO TOTAL
FATURAMENTO NO
EXTERIOR EM % DO
FATURAMENTO
TOTAL
Alcatel-Alsthom 124000 58 68
Michelin 94900 70 80,5
Saint-Gobain 70400 67 72
Génèrale des
Eaux 68500 34 27
Compagnie de
Suez 63000 80 50
Accor 60100 73 53
Thompson 57100 54 68,6
Lyonnaise des
Eaux 50000 45 N.C.
Rhône-Poulenc 49600 56 77,5
Schneider 47500 47 50
Total 685100 56
Fonte: DREE, abril de 1993; (n. c.: não comunicado)
Devido a essa grande importância que assumem para as economias nacionais, os governos
desses países atuam junto às organizações internacionais multilaterais e aos outros governos
para garantir a exportação de capitais através da venda de produtos e serviços. O Estado
francês, a companhia Suez-Lyonnaise des Euax e o Banco Mundial foram responsáveis, por
exemplo, pela fundação do Conselho Mundial da Água (WWC) e a Parceria Global da Água
(GWP) que zelam pelas suas posições privilegiadas no crescente mercado mundial da água
por meio de iniciativas como a Declaração de Dublin, principal parâmetro internacional para
defesa da mercantilização da água.
Essa busca dos mercados internacionais, como destacado, é essencial para manter o
crescimento econômico dos países capitalistas desenvolvidos, pois o mercado externo (não-
capitalista) é fundamental para o capital conter a tendência decrescente das taxas de lucro.
4
A
solução, portanto, encontra-se na venda de mercadorias e na busca contínua de matérias-
primas e força de trabalho nessas áreas externas não-capitalistas. Para isso, o capitalismo
remove todos os obstáculos, sejam as fronteiras territoriais, ou as antigas relações sociais e
produtivas pré-capitalistas.
Os direitos sobre a água tornaram-se então barreiras a serem ultrapassadas pela indústria da
água na fase neoliberal desse novo imperialismo. Para isso, iniciou-se uma batalha política,
econômica e ideológica, na qual, além do poder financeiro, os Estados nacionais e as
organizações internacionais multilaterais tiveram papel de destaque. O poder econômico
alcança também o poder político pela penetração ideológica e jurídica dos interesses desses
grupos multinacionais nas políticas públicas nacionais e internacionais por meio da
comunicação de massa e dos dirigentes políticos no Estado.
2.3 ESTADO, ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS MULTILATERAIS E AS
MULTINACIONAIS DA ÁGUA
4
Para Rosa Luxemburgo o conceito correto de “mercado externo” ao capital relaciona-se com “o meio social
não-capitalista que absorve os seus produtos e lhe fornece elementos produtivos e força de trabalho.”
(LUXEMBURGO, 1985, p. 251)
Nos últimos trinta anos, verificou-se uma alteração da correlação de forças sociais e um
avanço do capital financeiro sobre todos os setores públicos de bens e serviços. Água, energia
elétrica, telecomunicações, correios, transporte urbano, gás, saúde, educação, ferrovias,
escritórios nacionais de estatística, companhias aéreas, segurança nacional, tudo foi
privatizado, apenas variando de intensidade de um país para outro.
O antigo secretário do tesouro norte-americano, Roger C. Altman, assim comentou esse
processo: “Nenhum país está a salvo do poder do mercado financeiro”. Desse modo, a década
de 1990 foi marcada pelo avanço em todo o mundo das políticas de privatização (PETRELLA,
2004, p. 90 e 91).
O capital financeiro desempenha então função essencial nessa nova onda de acumulação
verificada na última década. No início do século XX, houve uma mudança na operação
fundamental dos bancos, que inicialmente possuíam função de intermediar os pagamentos.
Verificou-se uma concentração bancária que subordinou os pequenos estabelecimentos e
transformou os bancos de meros intermediários em monopolistas onipotentes ao combinar em
uma mesma empresa diversos ramos da produção industrial.
Essa concentração é acompanhada de um aumento exponencial das contas correntes em poder
do banco, inclusive de todos os capitalistas. Tal processo permite aos bancos conhecerem com
exatidão a situação de cada capitalista e controlá-los através da política de crédito. Ao
expandir ou diminuir o crédito de determinada sociedade, os bancos determinavam o futuro
das sociedades empresariais.
Desse modo, a formação de grandes “trustes dos bancos” ou mesmo a sua unificação limitam
e subordinam a ação das sociedades industriais à sua gerência. Os bancos deixam de ser
intermediários das operações industriais e assumem diretamente o controle de outras funções
industriais e comerciais.
Na prática, houve, através da compra e venda de ações, uma fusão dos maiores bancos com as
maiores empresas da indústria e do comércio. Essa fusão manifestava-se também na direção
das empresas que passaram a contar com diretores indicados pelos bancos que detinham a
maior fatia de suas ações.
Esse processo, brevemente descrito, demarca a principal característica da fase imperialista do
capitalismo, ou seja, a transformação do capital em capital financeiro. Considera-se então,
conforme conceituado por Rudolf Hilferding, que “capital financeiro é o capital que se
encontra à disposição dos bancos e que os industriais utilizam” (HILFERDING, 1912, p. 338 e
339 apud LENINE, 2005, p. 47). Portanto, não se confunde exclusivamente com o capital
bancário. Muito menos se confunde com a oposição muito freqüente entre capital bancário e o
industrial, mas, ao contrário, significa justamente a união entre ambos, embora não se possa
ignorar os conflitos resultantes deste processo.
Para tornar o conceito ainda mais preciso, deve ser destacado o papel da concentração e da
formação dos monopólios, assim como a fusão do capital bancário com o industrial e
comercial, para o surgimento do denominado capital financeiro.
5
O processo de transformação da indústria da água do século XXI apresenta também essas
características percebidas no início do século XX. Exemplo dessa nova dinâmica dada pelo
capital financeiro com relação à exploração da água foi anunciado em 2000. O banco suíço
Pictet lançou um truste de investimentos em valores mobiliários de oitenta companhias de
água na incrível soma de 50 a 100 bilhões de dólares. Produtividade e lucratividade são os
princípios para obtenção de apoio desse fundo.
Igualmente, as instituições multilaterais internacionais, como o FMI, por meio da
administração das dívidas públicas, o Banco Mundial, o Gatt e a OMC, desempenharam
funções idênticas ao condicionar os seus empréstimos e decisões à implementação do
programa de privatizações, desregulamentações e liberalização.
O principal objetivo estatutário do FMI é explícito: a promoção de investimentos privados no
exterior. Desse modo, em 1999, Moçambique teve que privatizar as suas águas, passando a
gestão para a multinacional Saur-Bouygues, para conseguir autorização para obtenção de
empréstimos no valor de 117 milhões de dólares junto ao Banco Mundial (BOUGUERRA, 2004).
Esse exemplo, entre inúmeros outros, deixa evidente que as principais instituições que
financiam o desenvolvimento, ligadas às agências multilaterais das Nações Unidas,
desempenham função vital para a exportação do capital e a manutenção das taxas de lucro
elevadas. Ao tornar a privatização da água condição compulsória aos empréstimos e
investimentos, dão impulso considerável para as multinacionais do setor.
No entanto, vale ressalvar que a privatização, denominada “modernização do setor de
gerenciamento dos serviços de água (melhorias de grande porte, irrigação, coleta e
distribuição de água potável, saneamento urbano), não elimina o papel do Estado. Ao
contrário, atuação estatal é fundamental para a expansão e manutenção do capital.
5
Lênin, contudo, ressalta que o conceito de Hilferding não destaca o monopólio como resultante
deste processo de concentração. “Concentração da produção; monopólios que resultam da mesma;
fusão ou junção dos bancos com a indústria: tal é a história do aparecimento do capital financeiro e
daquilo que o conceito encerra.”
As privatizações são precedidas da adequação do Estado a esses novos paradigmas de gestão
dos serviços públicos. Portanto, são realizadas reformas nos ordenamentos jurídicos nacionais
para adequar os Estados a exploração privada desses bens e serviços.
Na reforma neoliberal do Estado, um estímulo aos mecanismos de parceria público-
privada, permitindo lucrativas operações com a água, uma das últimas fontes de acumulação
ainda subexploradas pelo capital financeiro. Desse modo, instituições como o Banco Mundial
6
reservam ao Estado a função de co-financiador dos investimentos privados (PETRELLA, 2004, p.
95).
Os modelos de gestão exportados juntamente com os capitais para os países são, não por
acaso, o inglês e o francês. A reforma do Estado nesses países tem adotado como paradigma
de gestão esses modelos. O modelo francês, também adotado no Brasil, estabelece que a
propriedade das seis bacias hidrográficas é estatal, mas a gestão é delegada à iniciativa
privada, que tem que se submeter às regras gerais da legislação nacional.
Tanto no modelo francês quanto no inglês, houve um afastamento da esfera pública das
decisões fundamentais da distribuição da água. Embora o modelo francês, diferentemente do
inglês, preserve legalmente a propriedade pública da água, na prática, a gestão retira dos
cidadãos de ambos os países o controle sobre um bem vital à vida humana. O capital
financeiro opera a política tarifária, as técnicas gerenciais, os dados ambientais e sociais e até
a edição das leis e portarias do setor via corrupção dos agentes políticos.
A mundialização do capital, a privatização da água e a desregulamentação do setor de
recursos hídricos têm causado problemas graves para a maioria da população,
comprometendo seriamente o equilíbrio socioambiental. Às causas dessa crise têm sido dadas
interpretações distintas. A explicação da crise da água passa necessariamente por uma disputa
ideológica entre aqueles que apresentam como solução a transformação da água em
mercadoria e aqueles que defendem a água como um bem comum da humanidade.
2.4 INVENÇÃO DA “CRISE DA ÁGUA” E A PROPAGANDA IDEOLÓGICA
Uma das primeiras barreiras a serem transpostas para se iniciar esta acumulação por
expropriação foi, e ainda é, a ideológica. A água é associada ao conceito de direito universal e
de bem comum. O seu uso ainda é considerado público.
6
Relatório do Banco Mundial n
o
12649-MOR, 1995, Washington
Segundo dados apresentados pela Unesco, se a tendência atual for mantida, até 2025 cerca de
4 bilhões de pessoas, o equivalente à metade da população mundial, não terão acesso a água
potável. Estaríamos, assim diante de uma “crise da água” (PETRELLA, 2004, p. 27).
O argumento pró-mercantilização da água sustenta então que a denominada “crise da água”
tem sua origem na escassez do recurso devido ao desperdício no seu uso e gerenciamento.
Como solução, apresenta a definição política, social e jurídica da água como um bem limitado
e dotado de valor econômico, portanto, sujeito unicamente à regulação pelo livre mercado.
Deveria-se, assim, “abandonar a noção de que a água é um produto gratuito”, como defendeu
Mark Rosegrant, do Instituto de Pesquisa sobre Políticas de Alimentos dos Estados Unidos. A
água deixaria de ser um bem social para tornar-se uma mercadoria, pois o seu baixo preço ou
mesmo a gratuidade estimularia o desperdício. Em conseqüência, o aumento do seu preço
incentivaria o uso eficiente da água. Além desses argumentos, a privatização da água traria
também investimentos necessários ao fornecimento eficiente para todos (PETRELLA, 2004, p.
77).
É, porém, fundamental buscar compreender as razões efetivas para a atual escassez de água
para grande parte da população mundial. Na propaganda oficial aparecem como causas
prováveis da falta de recursos hídricos: o desperdício, o mau gerenciamento e o aumento
populacional.
Contudo, os dados apontam em outras direções para se explicar a escassez. Determinadas
atividades socioeconômicas específicas são as principais consumidoras de água. Em 1980, o
consumo mundial de água foi de 1.953 km
3
. Deste total, apenas 2% foi consumido em uso
doméstico enquanto 91% desses recursos hídricos foram destinados às atividades agrícolas e
industriais.
CONSUMO ANUAL MUNDIAL DE ÁGUA (KM
3
)
ANO/SETOR 1900 1950 1970 1980 2000*
AGRICULTURA 409 859 1.400 1.730 2.500
INDÚSTRIA 4 15 38 62 117
RESERVATÓRIO 7 66 120 220
DOMÉSTICO 4 14 29 41 65
TOTAL 417 895 1.533 1.953 2.902
Fonte: Water in Crisis, 1993. *estimativa
Não é possível então ignorar, na explicação do problema, o uso da água para irrigação na
agricultura e na produção industrial. As enormes campanhas de conscientização contra o
desperdício doméstico acabam por encobrir as principais razões do perigo real da escassez.
Seriam mais eficazes medidas no sentido de evitar o modo intensivo de produção agrícola,
aplicado pelas modernas agroindústrias, que registra índice de desperdício na irrigação de
cerca de 40% (PETRELLA, 2004, p. 54).
Igualmente, seria mais racional manter uma rígida legislação ambiental que evitasse o
excessivo consumo na indústria. Na construção de um automóvel, por exemplo, são
consumidos 400 mil litros de água. Porém, a propaganda é dirigida para o consumo doméstico
para individualizar o problema e justificar a fixação do preço da água como solução para a
“crise”.
Essa explicação, do mesmo modo, ignora a poluição causada pelo agronegócio e pela
indústria como uma das principais causas de uma possível escassez. O uso maciço de
produtos químicos e metais pesados, a produção de resíduos industriais não-tratados,
exploração das águas subterrâneas, a degradação do solo, o desflorestamento e a
desertificação, as enchentes e barragens não estão relacionados aos hábitos domésticos.
Mesmo no viés da explicação que prioriza o consumo doméstico para justificar a escassez,
não se consideram as desigualdades no próprio consumo doméstico, o que deslegitima a
solução via fixação de preços.
Fica evidente que a solução por meio do denominado “gerenciamento racional dos recursos
hídricos” pressupõe a inevitabilidade da escassez da água e propõe como solução para
acessibilidade ao bem a solvência dos usuários, que competiriam entre si. Nesse contexto, a
água se transforma em mercadoria dotada de um valor econômico e, como tal, sujeita
exclusivamente à “auto-regulação” das “leis” da oferta e da procura.
Essa propaganda ideológica, que não encontra respaldo nos dados disponíveis de pesquisa, é
fundamental para legitimar os interesses das grandes multinacionais da água. Para isso, além
das medidas econômicas já descritas, são tomadas também inúmeras iniciativas de
propaganda junto aos Estados nacionais e às organizações internacionais para viabilizar este
projeto.
Os organismos internacionais multilaterais passaram então a defender enfaticamente, a partir
de meados da década de 1980, a água como um bem de valor econômico. Assim, a OMC, o
FMI, o Banco Mundial, o Conselho Comercial Internacional para o Desenvolvimento
Sustentável (IBCSD) organizam e divulgam diversos seminários, conferências e relatórios
como, por exemplo, o elaborado pelo vice-presidente do Banco Mundial, I. Serageldin,
Towards Sustainable Management of Water Resources (Washington, World Bank, 1995), que
se tornam referência para as políticas implementadas (PETRELLA, 2004, p. 32).
Em 1996, o Banco Mundial tomou duas iniciativas importantes para o setor: a fundação do
Conselho Mundial da Água (WWC) e o lançamento da Parceria Global da Água (GWP). Em
cooperação com outras agências das Nações Unidas e grandes multinacionais como a Suez-
Lyonnaise des Eaux, o Banco Mundial formulava um programa de exploração privada da
água por meio de uma série de declarações internacionais: Carta de Montreal (1990),
Declaração de Dublin (1992), Declaração de Strasburgo, Declaração de Paris (1998) e
Declaração de Haia (2000). Com essas declarações como a de Dublin, princípios do mercado
foram assim consolidados:
A água tem um valor econômico em todos os seus vários usos e deveria ser reconhecida como
um bem econômico. Seguindo este princípio, é especialmente crucial reconhecer o direito
básico de todos os seres humanos a terem acesso à água potável e ao saneamento a um preço
que possam pagar. A inabilidade em reconhecer o valor econômico da água no passado levou
ao desperdício e a usos que foram prejudiciais ao meio ambiente. Gerenciar a água como um
bem econômico é um passo importante para a obtenção de um uso eficiente e igualitário, e
para o encorajamento da conservação e proteção dos recursos hídricos (Declaração de Dublin
sobre a água em uma perspectiva de desenvolvimento, ONU, 1992).
Nessas declarações internacionais ficavam bastante evidentes os parâmetros da proposta de
gestão dos recursos hídricos defendidos pelas multinacionais e suas organizações
multilaterais: a defesa da água como um bem escasso e de valor econômico que deveria ser
submetido à regulação do livre mercado; gerenciamento racional, eficiente e rigoroso do
recurso; e, por fim, a abertura para o mercado de capitais como forma de solucionar a carência
dos investimentos necessários.
Em outra obra de referência para orientação das atividades do Banco Mundial, Gabriel Roth
7
expõe claramente os principais problemas que ainda dificultam a expansão privada no setor,
tais como: as baixas tarifas, as dificuldades para cobrança do serviço e a impossibilidade de
desligar aqueles que não pagam (PETRELLA, 2004, p. 93 e 94).
7
Gabriel Roth publicou em 1987 o livro The private provision of public services in developing countries (New
York: Oxford University Press [para o Banco Mundial], 1987).
Esses princípios econômicos e políticos fundamentam as bases para a transformação da água
de um bem comum em mercadoria e a conseqüente expansão internacional da iniciativa
privada no setor de distribuição de água e coleta de esgoto. A escassez da água provocada
pela indústria e pela agroindústria, o monopólio privado, a poluição estão tornando a água um
bem extremamente caro, o que permite ao capital financeiro extrair enormes lucros do seu uso
direto e intensivo e, por outro lado, da comercialização através da distribuição para as
residências de um bem fornecido pelo Estado a preços módicos.
Por ser um bem vital, o Estado não pode deixar de fornecer água, portanto a vida da maioria
da população torna-se a maior garantia aos investimentos privados. O Estado garante o
fornecimento e novos investimentos, pois até os pobres são obrigados a comprar água para
sobreviver. Por conseguinte, a água vai se transformando em um setor tão atraente quanto as
telecomunicações, a energia, o gás, o petróleo, o transporte público, entre outros. Para que a
acumulação por espoliação nesse setor pudesse se efetivar, era necessário, como descreveu o
jornalista John Barham do Financial Times, romper a “última fronteira na privatização ao
redor do mundo”: a água. E é isso o que tem sido feito (PETRELLA, 2004, p. 95).
Para isso, o modelo francês, das suas grandes multinacionais, é o mais adequado, pois o
Estado continua com a propriedade da água, ou seja, com a obrigação de fornecê-la às
empresas concessionárias privadas a baixo custo, garantir os investimentos necessários à
ampliação e à manutenção da rede e legislar a favor do equilíbrio econômico-financeiro do
contrato, por meio do combate à inadimplência, do aumento das tarifas e da instituição de
taxas repassadas diretamente às empresas privadas. Cabe a estas, então, apenas garantir a
cobrança eficiente do serviço e contabilizar os lucros para seus acionistas. A teoria francesa
da regulação estatal vai se transformando de garantia dos direitos dos cidadãos em garantia
dos direitos das multinacionais. O Estado Gerencial transforma-se em Estado-Fiador.
Há, assim, uma defesa ideológica do livre mercado como o instrumento mais eficaz para a
distribuição das riquezas produzidas pela humanidade e das matérias-primas do planeta.
Entretanto, tal assertiva ignora que mesmo o liberalismo econômico pressupõe a liberdade do
consumidor para adquirir o produto. No caso da água inexiste esta possibilidade de escolha,
pois todos precisam dela. A água, por ser um bem vital, não deveria ser submetida aos
princípios de regulamentação do livre mercado. Ao contrário, para a satisfação das
necessidades da maioria da população mundial, faz-se necessário o reconhecimento da água
como um bem social comum da humanidade, ou seja, um direito garantido a todos.
Na maioria das civilizações democráticas contemporâneas, a ética instituída no ordenamento
jurídico não permite o comércio de órgãos humanos embora, como ressaltou Harvey, algumas
patentes já ameacem também esse direito. Desse modo, que se considerar o quanto o
direito à água pode ser incluído num regime de direito que permite a livre compra e venda.
A individualização da solução do problema da escassez da água também ignora as relações
intrínsecas entre a saúde e a distribuição de água e coleta de esgoto. Como destacou Ricardo
Petrella, em seu Manifesto da água:
Não podemos pedir a cada indivíduo que assuma a responsabilidade via mecanismos de
preço pelos custos de planejar, construir e manter a infra-estrutura e por melhorias no
fornecimento de água, tanto na cidade quanto no campo. Esses são todos custos sociais,
coletivos, que abrangem a gama completa de exterioridades negativas e positivas envolvidas
na produção, distribuição e uso de qualquer recurso básico (PETRELLA, 2004, p. 88).
As conseqüências sociais e ambientais desta política econômica se revelam em
diversas partes do mundo. Entretanto, se fazem notar alguns motins da água como reação
ao neoliberalismo do século XXI.
3. REFORMA DO ESTADO E PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL
Conforme destacamos no capítulo anterior, a cada de 1970 foi marcada por uma
desaceleração da taxa de crescimento dos principais países capitalistas do mundo. Como
solução para o problema foi necessária a abertura de novos mercados para a exportação
crescente dos capitais e produtos que não encontravam mais lugar em seus países de origem.
Além da abertura para novos investimentos, em outros Estados nacionais, dos mercados ainda
não totalmente explorados, verificou-se também o que David Harvey denominou
“acumulação por espoliação”, que consistiu em transformar recursos naturais ainda não
integrados ao modo de produção capitalista em novos produtos. Desse modo, em pleno século
XXI, constata-se um contínuo processo de criação de novas mercadorias: as patentes
biogenéticas, as terras comunais camponesas na China, a água, dentre outras.
No entanto, essa mercantilização levada a cabo pelas grandes multinacionais, pelos Estados e
pelas organizações internacionais multilaterais foi acompanhada de um processo de
resistência. Para se efetivar uma nova acumulação capitalista foi imprescindível a remoção de
barreiras ideológicas, culturais e políticas.
Com relação à água era necessário “conscientizar” as pessoas de seu valor. Não de seu valor
de uso mas de seu valor econômico de mercado. A “crise” da água surge então como
fundamento da propaganda pela cobrança pelo uso da água. A população deveria
compreender que a água é um recurso limitado e finito.
Para se combater a escassez, o foco não foi a indústria ou a agricultura intensiva, responsáveis
por mais de ¾ do consumo mundial, mas, ao contrário, o centro foi o consumo doméstico.
Essa justificativa ecológica sustenta assim a fixação de um preço de mercado para a água
consumida pela maioria da população. Esta população é quem deve então abandonar a antiga
utilização gratuita da água e passar a pagar pelo seu consumo.
Nesse sentido, era preciso implementar uma nova política de gestão dos recursosdricos. O
regime de propriedade particular da água não se mostrava adequado para a exploração dessa
nova mercadoria. Igualmente, mudanças institucionais no modelo de gestão tornaram-se
imprescindíveis. Não era possível reconhecer a distribuição de água e a coleta de esgoto como
serviços públicos, obrigação do Estado e direito do cidadão, como preconizava o antigo
Estado social.
Desse modo, no bojo das reformas neoliberais do Estado, se incorporaram tais inovações ao
ordenamento jurídico brasileiro, permitindo-se o avanço do processo de transformação da
água em mercadoria. O discurso neoliberal hegemônico na década de 1990 justificou assim
uma diminuição do papel do Estado na economia.
Em seminário realizado em 1996, no Brasil, pelo Ministério da Administração Federal e
Reforma do Estado, com apoio do BID, foram debatidas reformas no Estado a serem
implantadas no país que, nas palavras do então presidente Fernando Henrique Cardoso no
início do seu primeiro mandato, significariam abandonar visões do passado de um Estado
assistencialista e paternalista, de um Estado que (...) concentrava-se em larga medida na ação
direta para a produção de bens e de serviços” (CARDOSO, 2001, p. 15).
Desse modo, defendia-se um “novo marco teórico” e uma “nova prática para a
administração pública” aabordagem gerencial”, que substituía a “perspectiva burocrática”
anterior (CARDOSO, 2001, p. 15). Caminhando, assim, na direção do projeto do Estado
gerencial, transferiram-se para o setor privado, por alienação direta, as empresas ligadas à
produção de bens e, por meio de concessões e permissões, as empresas prestadoras de serviço
público. Estas passaram então a constituir o denominado segundo setor na concepção
piramidal do Estado gerencial, objeto principal da regulação e fiscalização pelas agências
reguladoras criadas.
Desse modo, foram privatizadas e delegadas diversas empresas públicas ou sociedades de
economia mista. Em 1991, foi privatizada a Usiminas. Em 1995, houve a primeira
privatização de empresa prestadora de serviço público com a venda da distribuidora de
energia elétrica Escelsa. em 1996, dando prosseguimento ao processo de desestatização,
foram privatizadas as companhias elétricas Light e Companhia de Eletricidade do Rio de
Janeiro (Cerj). Em seguida, nos anos de 1997 e 1998, foram alienadas duas grandes empresas
estatais: a Companhia Vale do Rio Doce e a Telebrás.
Neste período e posteriormente continuaram ocorrendo outras privatizações e delegações.
Somente para ficar em alguns exemplos no setor energético podemos destacar as companhias
geradoras centrais Geradoras do Sul (Gerasul), Companhia Energética de São Paulo (Cesp)
Tietê, Cesp Paranapanema e as companhias distribuidoras Companhia Paulista de Força e
Luz (CPFL), Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia (Coelba), Centrais Elétricas
Mato-grossenses (Cemat), AES Sul Distribuidora Gaúcha de Energia (AES Sul), Empresa
Energética do Mato Grosso do Sul (Enersul), Rio Grande Energia (RGE), Companhia
Energética do Rio Grande do Norte (Cosern), Empresa Energética do Sergipe (Energipe) –,
além das companhias de distribuição de gás, como a Companhia de s de São Paulo
(Comgás) e a Companhia Distribuidora de Gás do Rio de Janeiro CEG/Rio Gás (FARIA, 2002,
p. 68).
Igualmente foram privatizados, pela delegação dos serviços, trechos da malha ferroviária e
rodovias federais. Essa realidade também se verificou nos municípios que haviam
transferido quase na sua totalidade o setor de transporte público para a iniciativa privada e
começaram a transferir também o serviço de fornecimento de água e coleta de esgoto. É o
caso das cidades de Araçatuba, Biribitiba-Mirim, Hortolândia, Itu, Jaú, Jundiaí, Limeira,
Ourinhos, Pereiras, Ribeirão Preto, Mineiros do Tietê, Campos, Friburgo, Cabo Frio,
Araruama, Búzios, Niterói, dentre outras.
Esse modelo privado de gestão da água vem substituindo gradativamente aquele implantado
nos anos anteriores por um Estado intervencionista através do Plano Nacional de Saneamento
(Planasa). Embora com participação ainda muito pequena no setor de saneamento, o avanço
da exploração privada é bastante significativo no sudeste do Brasil. Há, porém, uma
tendência à expansão da iniciativa privada que diversas concessões estão terminando e, por
conseguinte, necessitando pela lei de novas licitações (ver Anexo I).
Contudo, para a abertura definitiva dos serviços públicos de distribuição de água e coleta de
esgoto para a iniciativa privada, era necessária uma mudança no paradigma de gestão desses
serviços considerados públicos e, igualmente, uma adequação do regime de propriedade às
necessidades atuais das sociedades empresárias interessadas na exploração da água. Essas
alterações legislativas de fato ocorreram com a efetivação das reformas constitucionais da
década de 1990.
3.1 A PROPOSTA DE ESTADO GERENCIAL E AS REFORMAS CONSTITUCIONAIS
No Brasil, houve uma penetração das propostas neoliberais que fundamentaram, na
década de 1990, significativas mudanças no Estado e na própria Administração Pública. Essas
transformações podem ser analisadas a partir de um de seus principais teóricos: o ex-ministro
Luiz Carlos Bresser Pereira.
No primeiro ano do primeiro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso, a antiga
Secretaria da Presidência foi transformada em Ministério da Administração e Reforma do
Estado. Apontou-se, desse modo, para a intenção do governo recém-eleito de priorizar a
reforma do Estado brasileiro. Para esta pasta, foi nomeado ministro Bresser Pereira, que ficou
incumbindo de preparar o plano de reforma.
Bresser Pereira início ao processo que resultaria em uma série de modificações na
Constituição da República. Em dois textos apresentados em seminários promovidos pela
Fundação Getúlio Vargas, Bresser Pereira traça um breve histórico dos modelos de Estado,
analisa o denominado Estado burocrático e defende as linhas gerais do que seria, segundo ele,
o melhor modelo a ser adotado no Brasil: o Estado gerencial.
De forma sucinta, procuramos então expor as principais linhas das propostas apresentadas
pelo ministro na defesa das reformas constitucionais e do modelo de Estado gerencial que
acabaram por ser implementados no Brasil.
Preliminarmente, Bresser Pereira constrói uma tipologia dos Estados, começando
pelos antigos Estados patrimonialistas. Nestes Estados absolutistas, do Antigo Regime, não
havia uma separação entre o público e o privado, pois o patrimônio estatal confundia-se com
os bens pertencentes aos soberanos. Igualmente, o corpo profissional que servia ao Estado era,
na realidade, composto por serviçais do monarca. Essa vinculação era tamanha que as funções
jurisdicionais também eram de competência real. Os juízes indicados pelo rei cumpriam
apenas a função de longa manus real não podendo contrariar em última instância a decisão
final do soberano.
8
A ascensão de novas classes sociais e a incapacidade do Estado absolutista de responder a
estas mudanças teriam acarretado a eclosão da Revolução Francesa. Bresser Pereira destaca,
então, o segundo modelo histórico de Estado originário dessas revoluções liberais: a
República. Citando Max Webber, Bresser Pereira aponta que a República é resultado desse
processo de desencantamento do mundo, no qual a legitimidade do Estado deixa o campo da
teologia e ingressa no da razão científica do homem. O pensamento iluminista dos
revolucionários do final do século XVIII racionalizou o Estado, limitando assim o poder do
governante. Desse modo, instituiu o princípio da legalidade, dividiu poderes e separou o
público do privado.
Bresser Pereira considera que, na República, houve pela primeira vez a criação de uma
burocracia independente do governante, o que significou um avanço em relação ao modelo
patrimonialista que favorecia o nepotismo e a corrupção. Contudo, o ex-ministro destaca que
houve um crescimento progressivo dessa burocracia com o surgimento dos Estados do
modelo de Welfare State.
8
O historiador inglês Perry Anderson destaca, no entanto, que o processo de centralização dos Estados
absolutistas conheceu dinâmicas diferenciadas em toda a Europa. Na França, por exemplo, o absolutismo
“consumou a sua apoteose institucional nas últimas décadas do século XVII”, durante o reinado de Luís XIV, o
que significa que a rigidez e centralização do regime sofreram alterações no decorrer do tempo (ANDERSON,
1995).
Na sua origem liberal, os Estados estavam restritos às funções de polícia e segurança pública,
cujo objetivo era apenas garantir os direitos civis individuais como a propriedade. No entanto,
com o surgimento dos movimentos trabalhistas, os direitos sociais foram também incluídos na
pauta política das sociedades.
Desse modo, o Estado foi gradativamente assumindo outras funções relacionadas à promoção
desses direitos sociais: saúde, educação, previdência, prestação de serviços diversos e
produção de bens. Segundo o autor, esse Estado de concepção social-democrata fez crescer
imensamente a burocracia estatal que se ocupava em garantir a efetivação desses direitos
sociais através da multiplicação dos seus serviços. A riqueza social que no Estado liberal era
acumulada apenas pelos proprietários passou a ser dividida também entre essa burocracia
emergente, que assegurava diversos privilégios por sua presença e integração com o Estado.
O gigantismo do modelo de Estado de Bem-Estar Social teria então, de acordo com Bresser
Pereira, aumentado as despesas públicas, causando endividamentos crescentes e sucessivos
déficits fiscais. Além dessa questão fiscal fundamental, segundo essa perspectiva, a enorme
burocracia desse modelo de Estado tornara-se também ineficiente para garantir os direitos
sociais dos cidadãos, pois priorizava sempre um controle do procedimento administrativo em
detrimento dos resultados da política pública para os quais aquela havia sido criada. A
burocracia tornara-se uma nova classe que dividia com os capitalistas a riqueza social.
O capitalismo contemporâneo exigia então mudanças. Segundo essa perspectiva, era
necessário atrair investimentos privados e reduzir a burocracia estatal através de duas
medidas: diminuir o número de pessoal contratado pelo Estado, principalmente em regime
especial, e retirar as funções de prestação de serviços públicos e de intervenção direta na
ordem econômica do Estado.
Desse modo, foram difundidas e implementadas políticas para a redução do déficit público;
desregulamentação do mercado, liberalização do comércio, desestatização ou privatização de
setores da administração; redução da diversidade de serviços prestados diretamente pelo
Estado, diminuição do número de servidores; flexibilização do instituto da estabilidade, entre
outras medidas.
Para Bresser Pereira, era necessário introduzir na Administração pública brasileira as
concepções de gerência das modernas empresas. Segundo ele, a Constituição da República de
1988 equivocadamente escolheu como paradigma o modelo de Estado de Bem-Estar Social.
Nele, as diretrizes sociais apontavam para o recrudescimento da burocracia estatal, a
introdução do regime jurídico único dos servidores e a instituição de previdência pública
especial para os mesmos.
Bresser Pereira considera que, nesse ponto, a Constituição de 1988 foi um passo atrás no
desenvolvimento institucional da República no Brasil. A sua análise não ignora a permanência
da corrupção e do nepotismo que permeiam a Administração brasileira desde o Império.
Reconhece ainda que tais características do modelo patrimonialista persistiram à
descentralização promovida pelo governo militar com o Decreto-lei 200/67.
9
Contudo, para Bresser Pereira, a opção do constituinte de 1988 foi equivocada ao adotar um
modelo já em crise em todo o mundo. O correto, segundo ele, seria reduzir a atuação social e
econômica direta do Estado por meio da delegação e parceria com a iniciativa privada. Para
isso, defendia um novo modelo de Estado, adequado às premissas contemporâneas: o Estado
gerencial.
Após essa fundamentação que brevemente recuperamos, Bresser Pereira expõe nos seus dois
artigos as diretrizes das reformas que, como ministro da Administração e Reforma do Estado,
buscou implementar. Preliminarmente, destaca que não pretende retomar o modelo liberal,
pois as experiências históricas que procuraram reduzir o Estado apenas às suas funções
originárias ligadas a segurança e polícia não lograram êxito.
A presença do Estado, segundo ele, não somente é exigida pela sociedade mas também é
necessária para corrigir as distorções causadas pelo livre mercado. Contudo, o que defende é
uma nova estrutura estatal na qual essa presença seja de outra natureza: não mais através da
intervenção direta na prestação de serviços e na produção. O Estado gerencial deve se ater a
fiscalizar e regulamentar o mercado valendo-se de instrumentos mais eficientes do que uma
grande burocracia com seus procedimentos morosos e onerosos.
Bresser Pereira, por fim, desenha o que seria essa nova estrutura institucional de gestão do
Estado gerencial. Para ele, deveria haver uma divisão do Estado em quatro setores: o núcleo
estratégico, as atividades exclusivas do Estado, os serviços não-exclusivos e, por fim, a
prestação de serviços e a produção de bens.
O denominado núcleo estratégico corresponderia àquele com atribuições de legislar e
administrar, ou seja, seria composto pela alta cúpula da burocracia estatal: ministros e
secretários. as atividades consideradas exclusivas do Estado corresponderiam àquelas
relacionadas com a segurança e o poder de polícia, tais como as forças armadas, as agências
arrecadadoras, de fomento e reguladoras.
9
Para maior compreensão do tipo webberiano de Estado patrimonialista adotado por Bresser Pereira ver FAORO,
Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 10
a
ed. São Paulo: Globo; Publifolha,
2000. v. 2.
Os serviços o-exclusivos seriam aqueles em que participação do Estado pelo interesse
público do serviço, mas sem exclusividade, como se verifica na saúde, educação e
previdência. Por fim, haveria a prestaçã
ve,
diretamente ou através de suas controladoras, preponderância nas deliberações sociais e o
poder de eleger maioria dos administradores da sociedade”.
Posteriormente, a Lei n
o
9.491, de 9/9/1997, modificada pelas Leis 9.635/1998 e 9.700/1998,
revogou a Lei 8.031/1990 modificando assim o Programa Nacional de Desestatização. A Lei
n
o
9.491/1997 considerou desestatização na alínea a” do seu artigo 2
o
o que antes era
considerado privatização e, ainda, ampliou o conceito, adicionando a seguinte alínea “b”: “a
transferência, para iniciativa privada, da execução de serviços públicos explorados pela
União, diretamente ou através de entidades controladas, bem como daqueles de sua
responsabilidade”.
Como observou José dos Santos Carvalho Filho, a alteração procurou demarcar mais
claramente que “a privatização, assim, não seria da atividade ou serviço, mas sim do executor
da atividade ou serviço, (...) o objetivo pretendido era apenas o de afastar o Estado da posição
de executor de certas atividades e serviços”. Este, contudo, não deixa de ser o titular dos
serviços, mantendo o seu controle e fiscalização sobre eles. Foi neste contexto que surgiram
as agências reguladoras como nova forma de entidades administrativas setoriais (CARVALHO
FILHO, 2005, p. 279).
Desse modo, iniciou-se importante processo de alteração das funções da Administração
Pública que, na última década do século XX, ganhou contornos definitivos com as reformas
constitucionais dos capítulos da ordem econômica e social da Constituição brasileira de 1988.
A profusão legislativa apresentada cronologicamente nos quadros a seguir demonstra
inequivocamente a efetivação da nova proposta de Estado gerencial que anteriormente
explicitamos com a análise do pensamento evidenciado nos artigos do ex-ministro da
Administração e Reforma do Estado: Luiz Carlos Bresser Pereira.
CRONOLOGIA DAS EMENDAS CONSTITUCIONAIS:
EC n
o
5/1995: Flexibilização do monopólio estatal do serviço público de distribuição de gás
canalizado pelos Estados através da alteração do artigo 25, § 2
o
, da CRFB.
EC n
o
6/1995: Extinção de determinadas restrições ao capital estrangeiro com a eliminação do
conceito de proteção à empresa brasileira de capital nacional e para permitir a exploração
mineral do subsolo por sociedades estrangeiras. Para isso, altera o inciso XI, do artigo 170, o
artigo 171 e o § 1
o
do artigo 176 da Constituição da República.
EC n
o
7/1995: Abertura da navegação de cabotagem e interiores a sociedades estrangeiras
através da alteração do artigo 178 da CRFB.
EC n
o
8/1995: Quebra o monopólio dos serviços de telecomunicações e radiodifusão com a
modificação do artigo 21 nos incisos XI e alínea “a” do XII, da CRFB.
EC n
o
9/1995: Flexibilização do monopólio estatal do petróleo, facultando à União a
contratação com sociedades privadas com a modificação do art. 177 da CRFB.
EC n
o
19/1998: Modifica o regime e dispõe sobre princípios e normas da Administração
Pública, servidores e agentes políticos.
EC n
o
20/1998: Modifica o sistema de previdência social.
EC n
o
36/2002: Abertura de até 30% do capital das empresas jornalísticas e de radiodifusão
para o capital estrangeiro através da alteração do artigo 222 da CRFB.
EC n
o
41/2002: Nova reforma da previdência dos servidores através da modificação dos
artigos 37, 40, 42, 48, 96, 149 e 201 da CRFB e da revogação do inciso IX do § 3
o
do artigo
142 da CR e dispositivos da Emenda Constitucional n
o
20.
CRONOLOGIA DA LEGISLAÇÃO
Lei 8.031/1990: Programa Nacional de Desestatização
Lei 8.987/1995: Dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços
públicos previsto no artigo 175 da CRFB.
Lei 9.074/1995: Estabelece normas para outorga e prorrogações das concessões e permissões
de serviços públicos.
Lei 9.427/1996: Institui a Agência Nacional de Energia Elétrica ANEEL, disciplina o
regime das concessões de serviços públicos de energia elétrica.
Lei 9.491/1997: Revoga a Lei 8.031/1990 modificando os procedimentos relativos ao
Programa Nacional de Desestatização.
Lei 9.472/1997: Dispõe sobre a organização dos serviços de telecomunicações e a criação do
órgão regulador.
Lei 9.478/1997: Dispõe sobre a política energética nacional, as atividades relativas ao
monopólio do petróleo e institui como órgão regulador a Agência Nacional do Petróleo.
Lei 9.637/1998: Dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais, a
criação do Programa Nacional de Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que
menciona e a absorção de suas atividades por organizações sociais.
Lei 9.790/1999: Dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins
lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público e institui e disciplina o
Termo de Parcerias.
Lei 9.961/2000: Cria a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS.
Lei 9.984/2000: Cria a Agência Nacional de Águas – ANA.
Lei 10.233/2001: Cria a Agência Nacional de Transportes Terrestres e a Agência Nacional de
Transportes Aquaviários.
Lei 11.079/2004: Institui normas gerais para licitação e contratação de parcerias público-
privadas no âmbito da administração pública.
Lei 11.182/2005: Cria a Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC.
Observa-se claramente com a cronologia das emendas constitucionais e da legislação nas
tabelas ora apresentadas que o processo de Reforma do Estado, defendido por Bresser Pereira,
avançou em diversas frentes. A abertura do mercado nacional para o capital estrangeiro, que
ansiava encontrar locais e negócios propícios ao restabelecimento de suas altas taxas de lucro,
foi efetivada mediante emendas como 6, 7 e 36 nos setores de mineração, navegação e
comunicações, respectivamente. Comentando criticamente esse processo de
desnacionalização econômica, Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que:
Sirvam, como exemplo, no Brasil, a alienação para grupos alienígenas de todas as empresas
que prestavam serviços de telecomunicações e de grande parte das que efetuavam a produção,
transmissão e distribuição de energia elétrica, a liberação para estrangeiros da exploração das
riquezas minerais e da navegação costeira e interior, a abertura para eles das empresas
jornalísticas e de radiodifusão sonora e de sons e imagens, a invasão devastadora do setor
bancário para citar algumas áreas importantes de nossa economia. Tudo isso foi propiciado
por emendas constitucionais ou audaciosas manobras políticas patrocinadas pelo grande
condutor desse movimento de desnacionalização (acompanhado de escândalos notórios, mas
muito eficientemente acobertados): o Sr. Fernando Henrique Cardoso, a quem, de todo modo,
não se pode negar o reconhecimento de ser o maior e mais bem-sucedido líder do pensamento
de direita na esfera econômica que o país teve em toda a sua história (BANDEIRA DE MELLO,
2006, p. 634 e 365).
Com relação aos serviços públicos considerados exclusivos do Estado, a prestação foi
transferida para sociedades privadas. Para isso, houve primeiramente a quebra do monopólio
que o Estado exercia sobre algumas dessas atividades com a exploração do gás (Emenda n
o
5/1995), telecomunicações e radiodifusão (Emenda n
o
8/1995) e a flexibilização do
monopólio do petróleo (Emenda n
o
9/1995).
Além do fim do monopólio estatal sobre alguns setores da economia por tais emendas
constitucionais, legislação ordinária regulamentou a transferência da prestação desses serviços
públicos, cuja titularidade permanecia estatal, para a iniciativa privada. Essa delegação foi
prevista por meio das concessões e permissões regulamentadas na Lei 8.987/1995. a Lei
9.074/1995 estabeleceu normas para outorga e prorrogações dessas mesmas concessões e
permissões de serviços públicos.
As concessionárias de serviços públicos que passaram a explorar essas atividades econômicas
passaram a compor o denominado segundo setor do Estado, sendo o primeiro setor mais
relacionado ao núcleo estratégico de governo, da administração direta e indireta. Desse modo,
com relação ao segundo setor, as funções do Estado não mais se relacionariam com a
prestação dos serviços, mas, sim, com o exercício do poder de polícia, de fiscalizar e
regulamentar os mesmos serviços através da criação de órgãos reguladores para cada uma
dessas atividades ora exploradas pela iniciativa privada.
Foram assim criadas as seguintes agências: a ANEEL (Lei 9.427/1996) para os serviços de
produção de energia elétrica; a ANATEL (Lei 9.472/1997) para os serviços de
telecomunicações; a ANP (Lei 9.478/1997) para a exploração do petróleo; a ANS (Lei
9.961/2000) para a saúde suplementar; a ANA (Lei 9.984/2000) para as águas; a ANTT e a
ANTAQ (Lei 10.233/2001) para transportes terrestres e aquaviários, e a ANAC (Lei
11.182/2005) para a aviação civil.
A desestatização não se restringiu, contudo, aos antigos serviços públicos exclusivos do
Estado. Os serviços enquadrados por Bresser Pereira no conceito de atividades não-exclusivas
do Estado, como a seguridade social, também foram atingidos pelas reformas do Estado.
11
Os segurados do regime geral de previdência tiveram seus benefícios diminuídos e as
condições para fruição destes dificultadas. A previdência pública dos servidores, por sua vez,
sofreu alterações para aproximá-la do regime geral. Tudo isso para reduzir a previdência
pública a um mínimo social, abrindo espaço para a iniciativa privada como nos Fundos de
Pensão das estatais.
12
Não somente a previdência foi alterada mas também a assistência e a saúde. As fundações
públicas da administração indireta foram incentivadas a se transformar em Organizações
Sociais. Para serem habilitadas como organizações sociais, as entidades devem observar
diversos requisitos exigidos pela Lei 9.637/98,
13
tais como publicação no Diário Oficial da
União de relatório financeiro, proibição de finalidade lucrativa ou distribuição de bens, entre
outras (CARVALHO FILHO, 2005, p. 283 e 285).
Este procedimento foi criticado pela procuradora Maria Sylvia Di Pietro por considerá-lo
verdadeira substituição do Poder Público através da autonomia financeira concedida pelos
11
A Emenda Constitucional
n
o 19/98 inseriu novos instrumentos de gestão dos serviços públicos pautados pelo chamado federalismo cooperativo: os convênios de
cooperação e os consórcios públicos. Além desses institutos
,
são introduzidos no ordenamento jurídico nacional, através do regime de parceria com a iniciativa privada, três
outras espécies de parcerias: convênios administrativos, contratos de gestão e, por fim, regime de gestão por colaboração (CARVALHO FILHO,
2005
, p. 281 e 282)
.
12
Bresser Pereira afirma que ao Estado cabe apenas garantir a “previdência básica”. Portanto, fica implícito que,
para além desse patamar, caberia aos interessados em benefícios superiores procurar no mercado a satisfação
para as suas necessidades (BRESSER PEREIRA, 2001).
13
Esta lei refere-se apenas aos serviços públicos federais, portanto cabe aos demais entes federativos editar seus
próprios diplomas legais referentes à matéria.
instrumentos dos contratos de gestão. Para a autora, a Lei 9.637/1998 abriu a possibilidade de
flexibilização da exigência de concurso público, de licitação e do controle pelo Tribunal de
Contas.
O processo de privatização da assistência social e da saúde prosseguiu com a Lei 9.790/1999,
criadora da qualificação em Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, que
também permitiu dotação orçamentária para pessoas jurídicas de direito privado por meio da
celebração de termo de parceria.
As organizações da sociedade civil de interesse público se diferem, portanto, das organizações
sociais pela menor ingerência pública no seu funcionamento como, por exemplo, verifica-se
na dispensa da participação de agentes públicos na estrutura da sociedade ou na exigência de
contrato de gestão, bastando apenas um termo de parceria (CARVALHO FILHO, 2005, p. 288).
Nelas não portanto mais contratação de servidores públicos, estatutários ou empregados
públicos. Não mais um estatuto público para regular as relações de trabalho dos agentes
públicos nem mesmo a regulação das relações privadas e gerais garantida pela CLT.
apenas contratos flexíveis de prestação de serviço, sem quaisquer garantias trabalhistas.
Essas mudanças estruturais na estrutura dos serviços oferecidos pelo Estado para a população
foram acompanhadas também de outras transformações, relativas às relações de trabalho, no
interior da Administração: a redução da burocracia estatal e a flexibilização do regime
especial dos servidores públicos (Emendas Constitucionais 19, 20 e 41).
Conclui-se que a edição dessas leis e das emendas constitucionais a partir da década de 1990
demonstra que o modelo de Estado gerencial preconizado por Bresser Pereira avançou em
grande medida no ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, essas mudanças profundas na
administração pública no Brasil apresentam lacunas e imprecisões cuja origem está na
transição institucional de um modelo para o outro. Essas questões ainda pautam diversos
debates políticos e acadêmicos.
Antecipando-se a alguns desses problemas teóricos e práticos, Bresser Pereira ao final do seu
artigo tenta responder a indagações por ele mesmo formuladas: Que tipo de administração,
que tipo de propriedade e que tipo de instituição devem prevalecer em cada setor, no novo
Estado que está nascendo nos anos 90” (BRESSER PEREIRA, 2001, p. 34). Quanto à primeira
questão, ele responde que, com exceção do núcleo estratégico, o regime de pessoal deve se
aproximar daquele adotado pela iniciativa privada, ou seja, o regime da CLT. Consolida,
desse modo, o regime celetista determinado pela Constituição para as empresas públicas e
sociedades de economia mista que explorem atividade econômica (artigo 173, §1
o
, II, CR),
estendendo-o para quase toda a administração.
O regime estatutário ficaria então restrito à alta burocracia estatal incumbida da gerência do
governo e de atividades como a fiscalização pública e o recolhimento tributário. O núcleo
estratégico, segundo Bresser Pereira, deve preservar a rigidez da burocracia com manutenção
da estabilidade, carreiras, altos salários e benefícios especiais.
Na realidade, ele defende também a ampliação da presença de agentes públicos, da espécie
“particulares em colaboração com a administração”, que são aqueles com relação de emprego
flexível com as delegatárias de serviços públicos ou mesmo com as Oscip (DI PIETRO, 2006).
Com relação ao arcabouço institucional, Bresser Pereira defende o abandono das antigas
concepções atreladas à noção de serviço público. Desse modo, o Estado deveria retirar-se da
prestação direta de serviços e da produção de bens para o mercado, pois essa área seria
própria da iniciativa privada. Restariam à Administração, além do núcleo estratégico, as
atividades exclusivas do Estado referentes ao exercício do poder de polícia: fiscalização,
tributação e polícia.
Quanto aos serviços não-exclusivos de universidades, hospitais, museus centros de pesquisa
dentre outros, caberia à Administração apenas incentivar a iniciativa privada e atuar de
maneira complementar a esta.
Desse modo, na concepção institucional do Estado gerencial, recorre-se a dois instrumentos:
às agências reguladoras, nas hipóteses de atividades exclusivas, e às organizações sociais
quando se tratar de atividades não-exclusivas.
Por fim, no que diz respeito ao regime de propriedade, Bresser Pereira traz uma inovação ao
ordenamento jurídico nacional: o bem público não-estatal. Nessa perspectiva, não mais
sentido na adoção da divisão clássica no direito entre propriedade pública e privada, pois esta
classificação não seria mais adequada à realidade das sociedades contemporâneas.
Na Administração Pública a sua utilização ficaria restrita ao núcleo estratégico e ao setor de
produção de bens e prestação de serviços, nos quais o regime de propriedade pública estatal e
a propriedade privada seriam os mais adequados, respectivamente. No entanto, para os
serviços não-exclusivos do Estado, caberia um novo regime: a propriedade pública não-
estatal.
Bresser Pereira salienta que atividades e bens que pelo seu interesse público merecem
tratamento diferenciado ao concedido aos bens particulares. Contudo, embora de interesse
público, não necessariamente deveriam ser estatais compondo o patrimônio do Estado, pois,
como ressaltamos, isso se afasta da proposta gerencial para o Estado. Esses bens, segundo
Bresser Pereira, conservariam características públicas, devido ao interesse público envolvido
na sua gestão, e privadas para dinamizar a sua exploração.
Não obstante essa tentativa de conceituar tais bens, a definição do que significaria um bem
público não-estatal segue extremamente imprecisa. O esforço teórico para tornar o conceito
menos aberto não era, porém, inútil. Ao contrário, como veremos a seguir, era necessário para
resolver contradições jurídicas originadas das profundas transformações da ordem econômica
e social durante a década de 1990. O sentido da proposta apresentada pelo dirigente do
Ministério da Administração e Reforma do Estado, embora vago, parece apontar para um
sentido:
(...) no setor dos serviços não exclusivos de Estado, a propriedade deve ser em princípio
pública não-estatal. Não cabe ser estatal porque não envolve o uso do poder de Estado. Deve
ser pública para justificar os subsídios recebidos do Estado. O fato de ser pública não-estatal,
por sua vez, implica a necessidade de a atividade ser controlada de forma mista pelo mercado
e pelo Estado (BRESSER PEREIRA, 2001, p. 263, grifos meus).
O modelo de Estado que surge das reformas constitucionais modificou significativamente o
regime institucional-legal dos serviços públicos e da propriedade. O serviço de distribuição de
água, anteriormente considerado um direito social, foi gradativamente se tornando uma
atividade controlada “de forma mista pelo mercado e pelo Estado”. Cabendo a este a
regulação através da Agência Nacional de Águas e àquele, considerado mais eficiente e
racional, a execução do serviço.
Quanto ao regime de propriedade da água, houve uma transição da propriedade particular da
água, passando para a propriedade pública e, finalmente, considerando-a propriedade pública
não-estatal no modelo gerencial, que permite a concessão de “subsídios recebidos do Estado”
além de prerrogativas do regime jurídico-administrativo. Analisaremos então, nos próximos
dois capítulos, como a perspectiva apresentada no modelo gerencial de Estado repercutiu
respectivamente no regime de propriedade da água e no regime jurídico de gestão do serviço
público de distribuição de água e coleta de esgoto.
6. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA PROPRIEDADE DA ÁGUA NO BRASIL
Embora a água que corre na fonte seja de todos, quem poderia duvidar que na bilha está
somente a que pertence a quem recolheu? Pelo trabalho tirou-a das mãos da natureza onde era
comum e pertencia igualmente a todos e, de tal forma, dela se apropriou para si mesmo
(LOCKE, 1978, p. 46).
O conceito de propriedade privada desenvolvido por John Locke no século XVII parece ser
ainda de extrema atualidade para a compreensão das sociedades contemporâneas. A teoria
desenvolvida por Locke individualizou os bens de uma natureza. A natureza considerada
unitária, pois criada e concedida por Deus para toda a humanidade, é então dividida e
repartida entre os homens.
Ao considerar que a propriedade privada nasce da transformação da natureza pelo trabalho
humano, Locke não historiciza a natureza, mas, ao contrário, naturaliza a propriedade. Essa
particularização da natureza que permite a sua apropriação individual está no cerne da
fundamentação da propriedade privada e, por conseguinte, das sociedades modernas.
Usada como exemplo por Locke quatro séculos, a exploração da água é hoje objeto
de um acirrado debate ético, político e jurídico. Na visão hegemônica atual avança a
compreensão da água como um bem de valor econômico. A mercadoria-água estaria, então,
submetida à lógica do mercado no sentido de que o acesso ao seu uso seria limitado pela
possibilidade de compra. Contra essa visão, outras opiniões se insurgem como a do teólogo
Leonardo Boff, em recente artigo publicado no Jornal do Brasil:
A água doce, por ser um bem cada vez mais escasso somente 0,7% é acessível ao consumo
humano – mais e mais ganha preço e se transforma em objeto da cobiça mundial. Vigora uma
corrida frenética de grandes multinacionais para privatizar a água, transformá-la em recurso
hídrico e em mercadoria com a qual se pode ganhar muito dinheiro. Cuidou-se para que fosse
demolida a compreensão humanística e ética de que o acesso à água fosse direito humano
fundamental. Conseguiu-se que fosse reduzida a uma necessidade como qualquer outra, cuja
satisfação deve ser encontrada no mercado (...) A água é um dom que a natureza ofereceu à
vida e a cada um de nós. 70% do nosso corpo é composto de água. Porque é tudo isso, a água
constitui uma das metáforas mais significativas do Divino que está em nós e no universo e da
sacralidade de toda a vida.
14
Embora recorra a uma argumentação pré-moderna já superada por Locke, as críticas e
questionamentos éticos do teólogo sobre os problemas da transformação da água em
mercadoria são de extrema pertinência. Como toda mercadoria, nela está oculta uma relação
social de produção que se expressa no seu valor de troca (MARX, 1984, p. 32-53). Desse modo,
para a devida interpretação da evolução do regime de propriedade das águas, obrigatoriamente
deve-se perceber a propriedade de bens naturais como parte das relações sociais estabelecidas
entre os homens em determinado tempo e lugar.
A propriedade privada da água é compreendida então como uma relação histórica construída,
na qual verifica-se um processo de acumulação de capital que subordina o interesse da
maioria da população aos grandes proprietários. O jurista francês Bernard Edelman, em artigo
sobre a relação entre natureza e o direito autoral, discute criticamente a contribuição teórica
de Locke para o Direito e a inclusão da propriedade privada entre as suas principais categorias
(EDELMAN, 2001).
Discutindo o direito autoral da fotografia, o jurista questiona como é possível a um individuo
tornar-se autor” da natureza. Para isso, elenca três princípios fundamentais do Direito: no
primeiro, a natureza pertence a todo mundo (res communis); de acordo com o segundo
princípio, a natureza pode, sob certas condições, ser objeto do direito autoral; e no terceiro
afirma-se a conciliação entre as noções de res communis com a de natureza como obra do
espírito.
15
A noção de Direito da res communis referenciada no primeiro princípio distingue como objeto
aquilo que não pode ser apropriado por ninguém. Com fundamento na idéia de autonomia
individual considera-se que existem coisas da natureza natureza natural, humana ou urbana
que integram um patrimônio comum, insuscetível de apropriação privada sob pena de
colocar em risco a própria liberdade individual.
No segundo princípio, justifica-se a apropriação de parcela da natureza pelos indivíduos pela
impressão na natureza comum de marcas de uma personalidade, ou seja, individualizando-a.
Assim, pela obra do espírito humano e do seu trabalho, seriam acrescentados detalhes que
estão “fora dela” de modo a destacá-la do patrimônio comum (res communis) e transformá-la
14
Leonardo Boff, Jornal do Brasil, 28 de janeiro de 2005.
15
Ver também ALVES, Maíra de Oliveira. Editoras universitárias: um estudo sobre o público e o privado com
ênfase no caso da Editora UFRJ. Rio de Janeiro, 2004 (monografia).
em propriedade privada. Nota-se que a ênfase está no trabalho próprio do indivíduo, como
Locke já havia teorizado sobre a gênese da propriedade em partes.
Por fim, o terceiro princípio propicia uma conciliação entre os dois anteriores, ou seja, entre a
natureza e o direito à propriedade, entre o espaço público e o espaço privado. O espaço
privado corresponderia quase que a uma continuidade da autonomia individual ou, como
definiu Edelman, a uma “emanação espacial da pessoa”.
16
o espaço público corresponderia,
na noção de res communis, ao conjunto natural onde o objeto individualizado se dissolve.
Entretanto, segundo Edelman, haveria uma tendência ao avanço do direito à propriedade
sobre a noção anteriormente resguardada a res communis. Haveria então uma redução do
espaço público em benefício do espaço privado. Na hipótese analisada pelo jurista, o tribunal
de Draguinan reconheceu o direito à propriedade privada sobre a paisagem da cidade francesa
de Port-Grimaud com fundamento na cessão desse direito de reprodução deste conjunto
urbano pelo arquiteto que o projetou às imobiliárias:
O estabelecimento de uma cidade lacustre no golfo de Saint-Troppez, onde não havia nada,
ligando o sol e o mar –, na qual os planos irregulares de água e as construções de volumes e
cores contrastantes e variados provocam a surpresa e mantêm a curiosidade e expectativa,
constituem, no seu conjunto, pela combinação harmoniosa de seus elementos, uma criação
original particular [...]; que neste caso especial, é a totalidade da cidade de Port-Grimaud
considerada como uma obra de arte que se beneficia da proteção da lei, e não este ou aquele
edifício determinado [...]
17
Esse exemplo analisado por Edelman demonstra nitidamente que o conceito de propriedade
insere-se numa perspectiva histórica, variando no decorrer do tempo. Acreditar ser possível a
determinação universal e imutável do conceito de direito à propriedade acarretaria em
dificuldades teóricas para a compreensão das diversas formas em que ele se apresenta. A
propriedade como conceito do Direito não é, segundo o jurista, uma lei da natureza mas, sim,
uma “ficção”. A função dessa ficção seria, pelo seu funcionamento, dar ao invisível o
pensamento do homem o caráter visível a propriedade privada (EDELMAN, 2001). Seguindo
a tradição marxista da crítica à concepção idealista de Hegel, considera-se que a ficção
jurídica, por si só, não é útil para explicar as sociedades capitalistas.
16
“A clausura, a parede, o recinto, a cerca formam uma barreira intransponível que se confunde com o espaço
vital da pessoa, que é também o espaço da propriedade privada.” (EDELMAN, 2001, p. 194.)
17
TGI Draguinan, 16 de maio, 1972, Gaz. Pal., 1972.2.568, apud Edelman, 2001, p. 197.
Sem essa premissa, tornar-se-ia difícil a apreensão de fenômenos sociais como a ampliação do
direito à propriedade sobre a paisagem de uma cidade inteira ou mesmo da variação do regime
de propriedade da água no Brasil, que de propriedade privada tornou-se propriedade pública e
agora assume a forma de propriedade pública não-estatal, como ora iremos demonstrar.
Um breve histórico da legislação sobre a água no Brasil, destacando as principais leis entre
1930 e 2005, evidencia que não houve uma continuidade com relação às formas de
propriedade sobre a água existentes no ordenamento jurídico brasileiro. Percebe-se que o
Direito não conferiu historicamente tratamento idêntico à propriedade da água. Conforme
explicitado no exemplo da paisagem da cidade francesa de Port-Grimaud, este direito não
constitui um fenômeno da natureza, mas, ao contrário, origina-se na evolução histórica das
relações humanas.
Em um primeiro momento, a água era protegida pelo estatuto que protegia os demais recursos
da natureza, sendo considerada um bem comum até ser apropriada por determinado indivíduo.
Segundo essa premissa liberal, a água tornava-se então propriedade privada pelo trabalho
individual, ou seja, como demonstra a citação de Locke, por aquele que canalizou a água na
bilha. As primeiras leis aplicadas no Brasil fundamentam-se nessa ideologia. O Código Civil
de 1916 e o Código de Águas de 1934 enquadram-se nessa primeira etapa.
Em uma segunda etapa histórica, houve a predominância da propriedade pública da água. As
Constituições de 1946, 1967, a Emenda Constitucional n
o
1 de 1969 e, principalmente, a
Constituição de 1988 atribuíam ao Estado a propriedade sobre as águas. A propriedade estatal
permitiu a expansão dos serviços de saneamento, distribuição de água e coleta de esgoto em
todo o território nacional. Na terceira etapa histórica, verifica-se a tentativa de adotar-se o
conceito de propriedade pública não-estatal como o regime jurídico de propriedade mais
adequado para a gestão da água.
6.1 A PROPRIEDADE PRIVADA DA ÁGUA, O CÓDIGO CIVIL DE 1916 E O CÓDIGO
DE ÁGUAS DE 1934
A água é um recurso natural essencial para a vida humana. O homem fisiologicamente
necessita de água para o funcionamento do seu próprio organismo. O corpo humano é
composto por moléculas de água que correspondem a cerca de 60% a 70%, em média, do seu
peso. Desse modo, uma pessoa com 90 kg consome cerca de 3 litros de água diariamente.
Além da preservação da vida humana, a água também é utilizada para diversos fins, tais como
a preparação dos alimentos, a irrigação na agricultura, a produção de energia para as
indústrias, entre outros múltiplos usos. Por essa importância, a água ocupa historicamente
função de relevo em sociedades pretéritas, sendo inclusive associada a rituais místicos. Ainda
hoje, por exemplo, a atividade sagrada dos casamentos coletivos às margens do rio Ganges, na
Índia, reúne uma multidão de mais de um milhão de pessoas (TUNDISI, 2005).
O significado que a água possui em cada sociedade varia conforme as condicionantes
temporais e territoriais de cada sociedade. Atualmente, por exemplo, nas sociedades
capitalistas contemporâneas, o valor da água não se encontra somente na satisfação das
necessidades básicas dos seres humanos. Para além da sobrevivência humana, a água tem se
tornado também um recurso natural dos mais cobiçados pelo mercado, conseqüentemente,
atingindo um valor cada vez mais elevado.
Inúmeros estudiosos da atual utilização e racionalização da água alertam para o risco de uma
iminente escassez mundial. Segundo esses pesquisadores, se medidas urgentes não forem
adotadas por governos e cidadãos, o planeta enfrentará uma crise sem precedentes:
Diante de uma oferta de água praticamente fixa, desigualmente distribuída e muitas vezes mal
utilizada, descobrimos então uma demanda em alta, até mesmo exponencial por todos os
lugares. O desequilíbrio é maciço, e nada faz pensar que se possa resolver logo. E,
certamente, não de maneira natural. O estresse hídrico, hoje ainda uma exceção, poderia se
tornar norma em alguns decênios (CAMDESSUS, 2005, p. 122).
Esse alarmante diagnóstico foi apresentado na obra organizada pelo ex-diretor-geral do Fundo
Monetário Internacional Michel Camdessus e corroborado por inúmeros cientistas. Nessa
perspectiva, se as sociedades continuarem a tratar a água como um bem infinito e renovável,
em breve o planeta Terra entrará num período de colapso hídrico. A solução encontrada por
Camdessus e diversos outros especialistas em matéria de água e de finanças internacionais
aponta para a conscientização da população e dos governos para o que eles denominam “valor
da água”.
Esse conceito de “valor” utilizado refere-se a mais do que o reconhecimento da essencialidade
da água para manutenção da vida humana. A referência ao valor da água corresponderia ao
seu valor econômico a ser aferido nas trocas no mercado. Para esses autores, a fixação de um
preço correspondente em dinheiro para cada litro de água seria a única solução possível para
frear o consumo crescente desse recurso escasso.
Seria então necessário, para isso, que os Estados adotassem leis reconhecendo o valor
econômico da água, pois “a água deve pagar a água”. Enquanto os Estados permitissem o uso
gratuito da água, o desperdício seria incentivado. Portanto, a partir dessa premissa sustenta-se
a adoção do princípio do usuário-pagador pelos governos como solução para a ameaça de
escassez.
18
Esse princípio fundamenta-se então na racionalidade dos mercados para solucionar o
problema do desequilíbrio entre a oferta reduzida e a demanda crescente pela água. A
cobrança pelo uso da água, através da fixação de tarifas, consistiria num mecanismo para
desestimular o desperdício. Quanto maior fosse a demanda e menor a oferta, o preço
aumentaria de modo a pressionar para baixo o consumo de água, restabelecendo o necessário
equilíbrio.
Os especialistas ainda ressalvam que a política de dotar a água de valor econômico não seria
autorizar a compra de “direitos para desperdiçar quantidades de água” mas, ao contrário,
corresponderia a estabelecer “incentivos econômicos supostos de desenvolver melhores
comportamentos”. Essa solução para o problema da escassez dos recursos hídricos de fato se
tornou predominante em todo o planeta. Dos países capitalistas centrais como EUA, França,
Alemanha, Inglaterra e Itália, passando pelos países capitalistas emergentes como a China e a
Índia até os países periféricos mais subdesenvolvidos na África, Ásia e América Latina, a
cobrança pela água está sendo implementada.
Conforme explicitado, em um primeiro momento histórico, a legislação aplicada no Brasil,
previa o regime da propriedade privada sobre as águas. Uma das primeiras referências sobre a
matéria se encontrava nas Ordenações Filipinas. Luciana Cordeiro de Souza ressalta que o
Livro II, Título XXVI, deste diploma legal, garantia a propriedade particular sobre a água aos
proprietários dos prédios onde estas nasciam. Por conseguinte, a propriedade dos imóveis
confundia-se com a propriedade das águas que tivessem origem no seu interior. Ainda
segundo esta autora, o Alvará de 1919 autorizava a apropriação particular das águas dos rios e
ribeirinhos para utilização na agricultura e na indústria.
19
18
“A aplicação desta recomendação em quantidades de água colocadas à disposição se chama o princípio
usuário-pagador: todo volume de água reservado se torna objeto de fatura, seja qual for o seu uso. Em termos
práticos , um hidrômetro em cada duto de saída que mede os metros cúbicos utilizados. Uma tarifa é então
aplicada.” (CAMDESSUS, 2005, p. 121.)
19
Os dados foram obtidos através dos estudos publicados nos livros de Luciana Cordeiro de Souza, Eduardo
Coral Viegas e no coordenado pelo desembargador paranaense Vladimir Passos de Freitas.
O Código Civil de 1916 o inovou ao reconhecer a propriedade privada das águas como
decorrência lógica do direito à propriedade dos imóveis. O artigo 43, I, da referida codificação
classifica como bens imóveis, além do próprio solo, “a sua superfície, os seus acessórios e
adjacências naturais, compreendendo as árvores e frutos pendentes, o espaço aéreo e o
subsolo”. Conseqüentemente, as águas foram consideradas bem acessório do solo, integrando
também a definição de bens imóveis.
Essa integração da água ao solo trouxe reflexos também sobre o direito à propriedade. Ao
abranger tudo o que estivesse inferior ao solo, em profundidade, o direito alcançava também
as águas encontradas no subsolo dos imóveis. Os lençóis subterrâneos e os aqüíferos foram
então reconhecidamente incorporados ao domínio do proprietário particular do imóvel. No
mesmo sentido, o artigo 526 do Código Civil de 1916 ratifica essa interpretação ao determinar
que “a propriedade do solo abrange a do que lhe está superior e inferior em toda a altura e em
toda a profundidade, úteis ao seu exercício (...)”. Evidentemente incluiu-se nesse dispositivo a
propriedade sobre as águas subterrâneas.
O caput do artigo 526 traz, no entanto, a ressalva de que os proprietários desses imóveis
somente poderiam se opor a trabalhos realizados no subsolo na hipótese destes afetarem seus
interesses. Essa limitação não tinha o condão de significar um grande óbice à propriedade
privada sobre as águas, pois, com observou Eduardo Coral Viegas:
Estando a água integrada ao subsolo, pertencia ao titular do bem imóvel, já que o limitador da
propriedade não excluía a porção do terreno compreendida entre a superfície e o
alcançamento da água, em razão da inegável utilidade desta para o proprietário, ainda que
potencial, configuradora de seu interesse jurídico na coisa até aquela camada subterrânea
(VIEGAS, 2005, p. 74).
Percebe-se, então, que o legislador civilista brasileiro do início do século XX preocupava-se
principalmente em garantir aos proprietários o livre uso das águas que se originem ou passem
pelos seus imóveis, apenas estabelecendo limitações concernentes às possíveis disputas
particulares envolvendo o uso desse bem.
O Código Civil de 1916, na sua Seção V, destinada aos direitos de vizinhança, regulava a
gestão das águas. Desse modo, em seus artigos 563 a 568, ocupava-se centralmente em
dirimir os possíveis conflitos originados pela disputa da água entre proprietários de terrenos
vizinhos nos quais as águas correm de um prédio superior para um inferior.
A regulamentação civilista pautava-se assim, principalmente, pela premissa liberal de que o
exercício da propriedade sobre a água encontrava limite apenas na liberdade do uso da
propriedade alheia. Conforme percebeu Edelman, o princípio que vigorava nessas relações era
o da proteção da propriedade privada como extensão da própria liberdade individual.
O artigo 565 do citado código determinava expressamente que, quando satisfeitas as
necessidades de consumo do proprietário, este “não pode impedir o curso natural das águas
pelos prédios inferiores”. E, para isso, assegurava indenização aos prejudicados pelo uso de
outrem. Igualmente, os artigos 567 e 568 deixavam evidente o reconhecimento da propriedade
particular sobre as águas quando garantia o direito à indenização pelos danos causados aos
proprietários das águas utilizadas em canalização para uso agrícola ou industrial, ou ainda
aqueles prejudicados por servidões administrativas. A propriedade privada da água estava
portanto mais do que acolhida e protegida pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Esse regime privado das águas se estende para além daquelas com origem em terrenos
particulares. O Código Civil de 1916 também prevê o uso privado das águas que tenham
origem em locais públicos. O artigo 566 autorizava a utilização por particulares das águas
pluviais que corriam por lugares públicos e também a dos rios públicos. Assim, qualquer
proprietário dos terrenos por onde passem tais águas podiam fazer uso destas desde que em
conformidade com os regulamentos administrativos.
Em 10 de julho de 1934, o governo provisório de Getúlio Vargas publicou o Decreto
24.643/1934 que disciplinava o uso da água. O decreto, conhecido como o Código de Águas,
não alterou significativamente o que estabelecia o Código Civil de 1916 sobre o regime de
propriedade das águas. Na exposição de motivos, o decreto explicitava seu objetivo de criar
uma legislação que “permita ao poder público controlar e incentivar o aproveitamento
industrial das águas”. Esse aproveitamento das águas referia-se principalmente à sua
utilização para fins de produção de energia hidráulica e para irrigação na agricultura.
Ao Ministério da Agricultura foi então atribuída a execução do estabelecido no Código. O
Estado, através de concessões e autorizações de uso, permitia assim a exploração para fins
industriais e agrícolas das águas públicas e possibilitava também o estabelecimento de
servidões e desapropriações das águas particulares, sempre garantido o direito à indenização
decorrente do direito à propriedade atingido. Desse modo, por exemplo, o artigo 71 do
Código previa que os donos de prédios atravessados ou banhados pelas correntes de águas
comuns podiam “usar delas em proveito dos mesmos prédios, e com aplicação tanto para a
agricultura como para a indústria (...)”.
Assim como o Código Civil de 1916, o Código de Águas mantinha então, para realização de
tais finalidades, o regime privado de gestão da água. A propriedade privada das águas era
amplamente reconhecida, abrangendo as nascentes (art. 89), as águas subterrâneas (art. 96) e
até mesmo as águas pluviais (art. 103). Embora o artigo 108 do Código de Águas permitisse a
todos fazer uso destas águas decorrentes das chuvas, o referido artigo 103 estabelecia que as
águas pluviais pertenciam “ao dono do prédio onde caírem diretamente, podendo o mesmo
dispor delas à vontade, salvo existindo direito em sentido contrário”.
Igualmente, o artigo 96 mantém privada a propriedade sobre as águas subterrâneas quando
estabelece que
o dono de qualquer terreno poderá apropriar-se por meio de poços, galerias, etc., das águas
que existem debaixo da superfície de seu prédio contanto que não prejudique aproveitamentos
existentes nem derive ou desvie de seu curso natural águas públicas dominicais, públicas de
uso comum ou particulares.
Com relação às nascentes e todas as demais águas localizadas em terrenos particulares
também era assegurado idêntico direito, conforme previsão expressa em seu artigo 8
o
:
Art. 8. São particulares as nascentes e todas as águas situadas em terrenos que também o
sejam, quando as mesmas não estiverem classificadas entre as águas comuns de todos, as
águas públicas ou as águas comuns.
No entanto, o Código de Águas introduziu uma distinção conceitual diferenciada em relação
ao Código Civil de 1916, classificando as águas nos seus artigos 1
o
ao 8
o
. Desse modo, as
águas passaram então a ser enquadradas nas seguintes espécies: particulares (capítulo III),
comuns (capítulo II) ou públicas (capítulo I), sendo estas últimas ainda subdividas em de uso
comum ou dominicais.
As águas públicas de uso comum corresponderiam aos mares territoriais (golfos, baías,
enseadas e portos); às correntes, canais, lagos e lagoas navegáveis ou flutuáveis; às fontes e
aos reservatórios públicos; às nascentes quando forem de tal modo consideradas; e, por fim,
aos braços de quaisquer correntes públicas desde que estes influam na navegabilidade. Era
permitido a todos o uso das águas públicas comuns de todos, sendo inclusive “assegurado o
uso gratuito de qualquer corrente ou nascente de águas, para as primeiras necessidades da
vida, se houver caminho público que a torne acessível” (art. 34).
As águas públicas dominicais seriam aquelas situadas em terrenos que também fossem
públicos com exceção das águas que, embora estivessem nesta condição, fossem
classificadas como águas comuns ou públicas de uso comum. Por fim, as águas comuns
correspondiam àquelas “correntes não navegáveis ou flutuáveis e de que essas não se façam”.
Em regra, pode-se concluir que o Código de Águas manteve como característica essencial da
gestão da água o regime privado da sua propriedade ao garantir aos proprietários o domínio
sobre todas as nascentes e águas localizadas em seus terrenos. Havia exceção a essa regra
como, por exemplo, as águas situadas em áreas assoladas pela seca que poderiam ser
consideradas públicas de uso comum mesmo que estivessem no interior de imóvel particular
(art. 5
o
).
Embora admita hipóteses excepcionais como esta, havia na legislação clara predominância da
garantia privada da propriedade sobre os recursos hídricos, como demonstra a preocupação do
legislador civilista em resguardar determinadas águas particulares de possível domínio
público. O artigo 2
o
, § 3
o
do decreto, nesse sentido, excluiu da classificação das águas
públicas, de uso comum, aquelas situadas em lagos e lagoas de um prédio particular e por
ele exclusivamente cercado. Essa era a lógica determinante: a água pertencia ao proprietário
do imóvel onde ela estivesse localizada.
As águas comuns e as águas públicas, de uso comum ou dominicais atenderiam aos fins
comerciais, agrícolas e industriais de estímulo ao desenvolvimento econômico capitalista no
Brasil. Essas águas teriam portanto como principais usos a navegação, a irrigação dos campos
e a produção de energia hidráulica.
Além de manter a existência das águas particulares, o Código de Águas realizou uma partilha
das águas públicas entre os entes da federação. Nessa partilha, coube aos Municípios a
propriedade sobre as águas situadas exclusivamente em seu território. As demais espécies de
águas classificadas pelo Código ficaram sob o domínio da União e dos Estados, conforme
discriminação legal. As constituições de 1934 e 1937 acabaram por ratificar o estabelecido
pelo Código de Águas (RIBEIRO, 2001, p. 37).
Essa breve sistematização das principais disposições contidas no Código de Águas demonstra
que este foi o último marco legal no qual havia um predomínio do regime de propriedade
privada das águas. A legislação subseqüente alterou tal regime privatístico de gestão da água
no sentido de transferir para o Estado o domínio desse recurso natural.
Segundo entendimento majoritário entre os juristas, a Constituição de 1988 pôs fim ao regime
de propriedade particular sobre as águas que anteriormente era admitido no Código de Civil
de 1916 e no Código de Águas de 1934. Ao eliminar a previsão da existência de águas
particulares, acabou por reconhecer apenas o regime de propriedade público, extinguindo
definitivamente o direito à propriedade privada sobre os recursos hídricos.
6.2. A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A “PUBLICIZAÇÃO” DA ÁGUA
A legislação posterior ao Código de Águas de 1934 iniciou o processo de mutação do regime
de propriedade, que passou pela ampliação do domínio estatal sobre as águas, nas
Constituições de 1946 e 1967, até a definitiva expropriação das águas com a extinção da
propriedade particular pela Constituição de 1988.
O domínio dos Estados sobre as águas foi ampliado pelo artigo 45 da Constituição de 1946
que incluiu entre os bens estaduais os lagos e rios em terrenos do seu domínio e os que têm
nascentes e foz no território estadual”. Essa transferência do domínio para os Estados se
acentuou nos diplomas constitucionais posteriores.
Na Constituição de 1967 e na Emenda Constitucional n
o
1 de 1969 o regime dominial foi
alterado com nova ampliação do domínio estadual em detrimento da propriedade dos
particulares e dos Municípios. A alteração em relação ao que dispunha o Código de Águas
determinou ser do domínio dos Estados todas as águas que possuíssem nascente ou foz em
território estadual, não importando se também estivessem em terrenos particulares ou
municipais (RIBEIRO, 2001, p. 36).
Essa gradual diminuição da propriedade dos particulares culminou na sua definitiva extinção
promovida pelos constituintes de 1988. Desse modo, a Constituição de 1988 introduziu
significativa mudança no que se refere ao tratamento dispensado às águas. Houve, conforme
denominou Eduardo Coral Viegas, um processo de “publicização” das águas, com a completa
transferência da sua propriedade para o patrimônio público. Viegas frisa que, no seu
entendimento, a Constituição de 1988 revogou tacitamente o Código de Águas na parte que
admite a existência das águas particulares.
Contudo, a doutrina não é unânime nesse sentido. Há posições diversas desta, como a da
administrativista paulista Maria Sylvia Zanella Di Pietro que, com fundamento no Código de
Águas, ainda admite a existência de águas particulares no ordenamento jurídico nacional (DI
PIETRO, 2005).
Em que pese tal divergência doutrinária, a interpretação que considera inexistente o direito à
propriedade privada sobre as águas vem ganhando ressonância na jurisprudência. Os juristas
que assim interpretam entendem que a Constituição de 1988 é clara ao determinar o domínio
público sobre as águas. Entendem ainda que o controle de constitucionalidade brasileiro não
agasalha normas elaboradas pelo próprio poder constituinte originário e, por conseguinte, não
poderia se obstar a expropriação das águas que antes de 1988 estavam sob domínio privado.
Eduardo Coral Viegas fundamentando-se nesta interpretação vai ainda mais longe ao
descartar possível direito à indenização pela diminuição do patrimônio de quem possuía
imóvel com águas particulares. Para o promotor, como o poder constituinte é originário,
ilimitado e incondicionado, não precisava respeitar o direito à propriedade sobre as águas
particulares previsto no Código Civil de 1916 e no Código de Águas. Por conseguinte, não
haveria que se pleitear indenização pela perda de tal direito.
Desse modo, a Constituição de 1988 seria um marco legal fundamental nesse processo de
publicização da água. Viegas compreende que observados os modernos princípios de proteção
ambiental, o constituinte acertadamente expropriou as águas particulares, colocando-as sob a
tutela estatal, regime público de gestão e realizando a partilha do seu domínio entre a União e
os Estados conforme disposto em seu art. 26:
Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados:
(...)
as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste
caso, na forma da lei, as decorrentes de obra da União;
Verificou-se, então, uma significativa mudança no regime dominial da águas. Conforme
mencionado, o artigo 526 do Código Civil de 1916 incluía, por acessão, as águas subterrâneas
entre os bens dos proprietários particulares dos imóveis. Igualmente, o artigo 96 do Código de
Águas assim dispunha ao assegurar a propriedade das águas subterrâneas aos donos dos
terrenos desde que não prejudicasse aproveitamentos já existentes.
Desse modo, o referido artigo 26, I, da Constituição da República de 1988 pôs fim à
propriedade particular sobre as águas subterrâneas. Após duas décadas de vigência do Código
de Águas, passaram para o patrimônio público estadual as águas que se localizam no subsolo
como, por exemplo, os lençóis freáticos. Do mesmo modo, passam a pertencer aos Estados o
domínio sobre as águas superficiais que estão na superfície da terra: fluentes (rios),
emergentes (fontes) ou em depósito (lagos, lagoas, açudes e represas).
A União também recebeu parcela desse domínio. Os rios e lagos internacionais ou que
banham mais de um Estado passaram ao domínio da União (CR/88, art. 20, III) assim como
as águas decorrentes de obras da União passaram, na forma da lei, para a propriedade desta
(CR/88, art. 26, I). Desse modo, acabaram as águas particulares ou comuns previstas no
Código de Águas, somente se admitindo atualmente em nosso ordenamento jurídico a
existência de águas públicas conforme salientou Fernando Quadros da Silva:
Não mais subsiste o direito de propriedade relativamente aos recursos dricos. Os antigos
proprietários de poços, lagos ou qualquer outro corpo de água devem ser adequar ao novo
regulamento constitucional e legislativo passando à condição de meros detentores do direito
de uso dos recursos hídricos, assim mesmo, desde que obtenham a necessária outorga prevista
na lei citada (SILVA, 2001, p. 20).
Essa expropriação suscitou indagações quanto à proteção ao direito adquirido assim como
sobre o decorrente direito à indenização pela expropriação das águas particulares. Não
obstante, entendimento da doutrina no sentido de não haver direito adquirido em face do
poder constituinte originário, alguns juristas admitem a possibilidade de indenização haja
vista que:
Proprietários, aproveitando os recursos hídricos de seus terrenos, fizeram tanques, açudes,
represas, lagos, etc., despendendo recursos financeiros. Assim, devem ser indenizados pela
perda da propriedade sobre as águas e do respectivo solo que elas ocupam, não sendo justo o
Estado locupletar-se, assenhorando-se desses bens, sem qualquer contraprestação. Sobretudo
levando-se em conta que esses antigos proprietários terão de pagar, agora, pelas águas que
utilizarem, conforme dispõe a Lei 9.433/97 (RIBEIRO, 2001, p. 42).
Apesar desse entendimento minoritário quanto ao direito à propriedade das águas em imóveis
particulares e o possível direito à indenização pela sua expropriação, é evidente o processo
explicitado por Coral Viegas de estatização da água. Essa expropriação promovida pelo
constituinte, em 1988, também levou à perda da propriedade sobre a parcela do território
atrelado à água, pois incorporou, em uma mesma unidade jurídica, todo o suporte físico da
água que, como bem considerado acessório, passou para o domínio dos Estados.
O leito, álveo ou porção de terra passaram então a integrar o domínio do Estado, devendo
inclusive ser registrada tal mudança no cadastro do Registro de Imóvel. Após 1988, conclui-
se que pertencem aos Estados todas as águas que não pertencerem à União, ou seja, aquelas
que se encontram em terrenos de propriedade da União, que banhem mais de um Estado ou
que estejam em depósito decorrente de obras federais.
20
Configurando exceção à competência privativa da União na matéria, cabe ainda aos
municípios competência residual para legislar sobre “questões como preservação de matas
ciliares e emissão de efluentes domésticos e industriais”, pois estes “são assuntos de
insofismável interesse local, que é dever do Município manter a água potabilizável água
em condições de ser destinada ao abastecimento doméstico, após tratamento convencional”
(BRUNONI, 2001, p. 83).
Igualmente, a Portaria 36/90 do Ministério da Saúde menciona essa atribuição municipal no
que se refere à vigilância sobre a potabilidade da água mesmo quando o serviço esteja sendo
prestado por uma empresa estatal. Cabe inclusive ao Conselho Municipal de Saúde a
fiscalização da prestação do serviço quando efetuado pelo próprio município.
De qualquer maneira, o que destacamos é o processo verificado de estatização das águas
particulares. Conclui-se que, com a Constituição de 1988, verificou-se a expropriação da água
com a transferência definitiva da propriedade dos particulares para o Estado. A propriedade
pública das águas atribuída aos Estados federados permitiu que estes implantassem, através
das companhias estaduais, uma rede nacional de distribuição de água e coleta de esgoto.
Entretanto, esse processo não parou com a estatização das águas particulares. Na década de
1990 verificaram-se novas mudanças. A gestão pública da água passou a ser questionada pela
sua ineficiência, desperdícios e altos custos. Iniciou-se então um processo de desestatização
da distribuição da água e da instituição da cobrança pelo seu uso.
A possibilidade da cobrança estava prevista no art. 21, XIX, da Constituição da República
que definiu a competência da União para “instituir sistema nacional de gerenciamento de
recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de uso”. Entretanto, somente em
janeiro de 1997, esse dispositivo constitucional foi regulamentado pelo legislador ordinário
com a publicação da lei dos recursos hídricos. A nova legislação sobre os recursos hídricos
preocupa-se fundamentalmente em criar instrumentos necessários para a efetivação da
cobrança pela utilização da água.
20
Vale ainda ressaltar que, nessa divisão das águas entre os Estados e a União, quem se contraponha à
exclusão completa dos Municípios dessa partilha. De forma minoritária, também quem defenda a existência
de águas municipais. Nesse sentido, Paulo Afonso Leme Machado defende hipótese de domínio municipal da
água quando houver uma corrente de água que nasça no município e tenha foz junto ao mar no território do
mesmo município (GRAF, 2001, p.56).
6.3. LEI 9.433/97, A CRIAÇÃO DA AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS (ANA) E A
COBRANÇA PELO USO
A promulgação da Lei 9.433/97 deu novo impulso ao processo de cobrança pelo uso da água
ao instituir a Política Nacional de Recursos Hídricos e o Sistema Nacional de Gerenciamento
dos Recursos Hídricos. Essa lei foi responsável pela implantação, como instrumentos de
gestão, da cobrança e pela outorga dos direitos de uso dos recursos hídricos (art. 19). A lei
instituiu também o Plano de Recursos Hídricos e o Sistema de Informações sobre Recursos
Hídricos.
Em seu artigo 1
o
, o referido diploma legal declara expressamente que a água é bem de
domínio público e que o seu uso se sujeita a outorga através de licença concedida pelo órgão
administrativo competente. Confirma, por conseguinte, o que determinava a Constituição
da República de 1988, ou seja, a extinção do domínio privado sobre as águas e a conseqüente
transferência deste para o Estado.
Porém, no artigo 49, a lei avança na determinação do caráter público das águas ao tipificar
como infração a utilização de recursos hídricos, subterrâneos ou superficiais, sem prévia
autorização dos órgãos ou entidades governamentais competentes. Desse modo, além de
proibir o acesso à água por outra via que não seja a outorga pelo Poder Público, coage os
usuários no sentido da adequação ao novo regime.
A legislação sobre a matéria não estagnou na lei de recursos hídricos. Durante a década de
1990, legislou-se com profusão sobre a gestão dos recursos hídricos. Para melhor efetivar as
disposições contidas na lei 9.433/1997, foi editado o Decreto 2.612/98, que regulamentou o
Conselho Nacional de Recursos Hídricos.
Outro momento importante na consolidação desse novo modelo de gestão das águas foi a
criação da Agência Nacional de Águas em 2000. Criada pela lei 9.984/2000, a ANA também
se constituiu como instrumento fundamental para implementação da política nacional de
recursos hídricos através da regulamentação, fiscalização e cobrança pelo uso da água.
Desse modo, entre os objetivos institucionais da ANA, o artigo 4
o
da referida lei elencou: a
outorga do direito de uso dos recursos hídricos; a elaboração dos estudos técnicos para o
Conselho Nacional de Recursos Hídricos; a implantação da cobrança desses recursos em
conjunto com os Comitês de Bacia Hidrográfica e a arrecadação, distribuição e aplicação de
receitas provenientes da cobrança na forma do art. 22.
Essa lei estabeleceu ainda como atribuição da agência propor ao Conselho Nacional a
concessão de incentivos, inclusive financeiros, para conservação dos recursos hídricos. Por
conseguinte, a criação da Agência Nacional de Águas teve os seus objetivos institucionais
bastante claros e definidos. Conforme observou Luciana Cordeiro de Souza:
O que determinou a criação da ANA foi, sem sombra de dúvidas, a instituição da figura do
usuário-pagador pela Lei das Águas, e a cobrança pelo uso da água pelo usuário tem como
objetivos principais: reconhecer a água como bem econômico; incentivar a racionalização do
seu uso; obter recursos financeiros, os quais serão de aplicação prioritária na bacia
hidrográfica onde foram gerados, colaborando-se diretamente para a melhoria ambiental da
região (Lei 9.433/97, art. 19 e 22). Assim, a criação da Agência Nacional de Águas é
fundamental para a efetivação, em nosso direito, da figura do usuário-pagador (SOUZA, 2005,
p. 85).
O processo de implementação da cobrança pelo uso da água não estaria completo sem as
legislações estaduais instituidoras da cobrança. Como detentores da maior parcela do domínio
da água, após o processo de publicização de 1988, os Estados da federação começaram a
legislar com objetivo de instituir a cobrança nos seus territórios. Diversas leis estaduais,
assim, já dispõem sobre a outorga onerosa do direito ao uso das águas estaduais subterrâneas.
No Estado de São Paulo, a Lei Estadual 7.633 de 30.12.199 ainda instituiu a política estadual
de recursos hídricos. Esse ente da federação é o maior consumidor de água no Brasil.
Verifica-se que 90% das suas indústrias fazem uso, total ou parcial, das águas subterrâneas
dos poços e ainda 65% de seus núcleos urbanos são abastecidos por estas mesmas águas.
Por conseguinte, o expressivos os recursos arrecadados através da cobrança pelo uso da
água nesse Estado. Com a estimativa de cobrar o valor de R$ 0,01 por cada um mil litros, a
perspectiva de arrecadação correspondente atinge a ordem de 550 milhões de reais anuais
(GRAF, 2001, p. 62 e 70).
Esse potencial estimula a introdução da cobrança em todos os Estados brasileiros. Além de
São Paulo, portanto, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Ceará, entre
outros, também editaram leis regulamentando a outorga dos recursos hídricos em seus
territórios.
Apesar da proliferação legislativa que visa regulamentar o uso das águas públicas estaduais, a
utilização das águas subterrâneas no Brasil ainda não é muito difundida. A perfuração de 8 a
10 mil poços por ano no país ainda é majoritariamente destinada ao abastecimento de
atividades industriais.
Não obstante o pequeno uso, o debate sobre a utilização desses recursos torna-se fundamental
haja vista que, como mencionado, a indústria e a agricultura são as principais responsáveis
pelo consumo mundial de água.
6.4. UMA INTERPRETAÇÃO SOCIOJURÍDICA PARA A EVOLUÇÃO LEGISLATIVA
DA GESTÃO DA ÁGUA
Após a breve descrição cronológica da legislação referente à gestão da água no Brasil, faz-se
mister um esforço de compreensão das descontinuidades verificadas no regime de propriedade
sobre a água presentes no ordenamento jurídico brasileiro.
Em um primeiro momento, que podemos considerar privatístico, houve a prevalência do
regime privado da propriedade. O Código Civil de 1916 adotava este regime ao reconhecer o
direito à propriedade das águas aos donos do terreno onde estas se situavam. A utilização para
suprir as necessidades humanas vitais também era facilitada pelo direito ao acesso as águas
públicas.
Em um segundo momento, o governo Getúlio Vargas iniciou um processo importante de
alteração na legislação para propiciar o desenvolvimento industrial brasileiro. Para isso, o
Código de Águas introduziu um regime público no qual, por meio de concessões e
autorizações, o Estado associava-se à iniciativa privada para estimular a produção agrícola e
industrial, além de gerar energia elétrica. Esse modelo também foi mantido pelos governos
posteriores para garantir o abastecimento de água para a população. Os Estados criaram então
as companhias estaduais de abastecimento para implantar a distribuição de água e a rede
coletora de esgoto.
Na década de 1990, iniciou-se uma outra etapa. A atividade de distribuição de água e coleta
de esgoto que era tratada como um serviço público, custeado por tarifas subsidiadas e taxas,
passa a interessar à iniciativa privada. Adota-se então a defesa de um modelo de Estado
gerencial que altera novamente o regime de propriedade sobre as águas, introduzindo o
conceito de público não-estatal como novo paradigma. Esse regime de propriedade é visto
como capaz de permitir nova acumulação de capital sobre um recurso natural ainda pouco
explorado comercialmente no Brasil.
Os juristas que se debruçaram sobre essa evolução legislativa do tratamento dispensado aos
recursos hídricos são unânimes em destacar a adequação do regime jurídico a uma
consciência ecológica crescente no final do século XX. O juiz federal Vladimir Passos de
Freitas, que foi organizador de relevante obra sobre os aspectos jurídicos e ambientais da
água, ressalta entre suas conclusões finais ser necessária “a conscientização dos juízes, no
sentido de que na interpretação das normas que tratam da água deve ser levado em
consideração tratar-se de um bem público, finito e de valor econômico” (FREITAS, 2001, p. 27).
Em igual sentido, Luciana Cordeiro de Souza conclui que
a partir do Código das Águas, onde a predominância do entendimento do bem água como
sendo de natureza privada, aos poucos o Estado foi percebendo, face às grandes secas no
Nordeste do país, a crescente preocupação com a coletividade, com o bem social; a água
passou a ser vista gradativamente como bem público, e, com a promulgação da atual
Constituição, a sua natureza jurídica passou a ser difusa (SOUZA, 2005, p. 89).
Conforme compreendem esses juristas e economistas, o direito à água, se for interpretado
como o acesso gratuito a este bem, incentivará o desperdício e a utilização da água.
Imputar um valor econômico à água significaria criar embaraços para seu uso inadequado,
pois a escassez elevaria o preço que, por sua vez, desestimularia a demanda. A “mão
invisível” do mercado zelaria pelo equilíbrio entre a demanda e a oferta dos recursosdricos
no planeta.
Não obstante o inegável interesse ambiental sobre os recursos hídricos, o processo de
explicação da publicização da água e principalmente de suas conseqüências não se esgota na
motivação ecológica. As leis sobre as águas no Brasil não foram resultado de uma evolução
da racionalidade jurídica que passou a incorporar preocupações com a preservação dos
recursos naturais do planeta. Para além dessa perspectiva, verifica-se uma intensa disputa na
sociedade sobre a gestão desse bem como mais adiante vamos demonstrar com o exemplo das
demandas judiciais em Niterói.
É evidente que não ignoramos a importância dos movimentos ambientais e a sua pauta
política ideológica de preservação do planeta. No entanto, o não se pode negligenciar como
elemento da interpretação das mudanças na legislação o interesse das sociedades empresarias
num crescente mercado mundial que movimenta bilhões de dólares com a venda da água.
A transição do regime de propriedade privada civilista para o regime gerencial, de
propriedade pública não-estatal, encontra explicações também nessas relações sociais
capitalistas. Para além da interpretação da norma, essa ratio legis tem interesse fundamental
para a compreensão do fenômeno social da exploração da água.
Ao se posicionar sobre a natureza jurídica da água, Luciana Cordeiro não concorda com os
autores que classificam, de acordo com a lei 9.433/1997, a água como sendo um bem público.
Para a autora, o correto seria enquadrar a água como um bem ambiental em conformidade
com a Constituição de 1988. Igualmente, Ana Cláudia Bento Graf considera que a água é um
bem essencial de uso comum do povo, da espécie bem difuso ambiental, pois sua utilização
estaria limitada pela proteção ao meio ambiente. (GRAF, 2001, p. 55)
Não é possível, contudo, pela análise da substância da água determinar a sua natureza jurídica
de bem privado, público, público não-estatal, difuso ou comunitário. A natureza jurídica,
enquanto ficção criada pelo intelecto, se manifesta nas relações de troca entre os homens.
Há alguns anos, a água tinha como principal valor a sua utilização para saciar a sede dos seres
humanos. Desse modo, o uso da água era protegido pela legislação que assegura a
propriedade privada da água. A propriedade, no entanto, nesse primeiro momento se
aproxima da noção de res communis assinalada por Edelman como um dos três princípios do
Direito. A água, nessa perspectiva, é considerada coisa da natureza que não pode ser
apropriada por ninguém.
Não estamos sendo contraditórios ao afirmar que a propriedade privada sobre a água prevista
no Código Civil de 1916 e no Código de Águas de 1934 não diz respeito à apropriação
privada desse recurso. Em ambos os códigos, a proteção dada à água refere-se justamente ao
seu valor de uso, ou seja, a sua utilização para satisfação das necessidades essenciais dos
homens. Não por acaso o artigo 565 do Código Civil, por exemplo, estabelecia que os
proprietários das águas, após satisfeitas as necessidades de seu próprio consumo, não
poderiam “impedir o curso natural das águas pelos prédios inferiores”.
Essa disposição e outras, como as autorizações para o uso pessoal das águas fluviais,
demonstram que, nesse primeiro momento, a propriedade privada da água associava-se
também à idéia de liberdade humana. O espaço privado era uma “emanação espacial da
pessoa” e, como tal, a propriedade privada sobre este significava a preservação da própria
liberdade individual. A propriedade privada nessas primeiras codificações não tinha como
escopo garantir a propriedade sobre uma mercadoria a ser vendida. A proteção legal
relacionava-se, ao contrário, com o reconhecimento do valor de uso da água para preservação
da vida.
Mesmo a distinção posterior realizada pelo Código de Águas, classificando as águas em
particulares (capítulo III), comuns (capítulo II) ou públicas (capítulo I), não alterou muito esse
regime. A principal conseqüência social desse estatuto jurídico foi incentivar a utilização da
água para a produção energética, industrial e agrícola, além de permitir a criação de
companhias estatais responsáveis por expandir os serviços de distribuição de água e coleta de
esgoto.
A mudança mais significativa no regime se deu quando a água passou a ser vislumbrada a
partir do seu valor econômico. Esse valor, frisado pelos defensores da cobrança da água,
corresponde àquele estabelecido nas relações sociais de troca. Marx quando analisou as
mercadorias distinguiu principalmente dois fatores: o valor de uso e o valor de troca. O valor
de uso somente se realizaria através do consumo da mercadoria. Desse modo, afirma que
“quem com seu produto satisfaz sua própria necessidade cria valor de uso mas não
mercadoria. Para produzir mercadoria, ele não precisa produzir apenas valor de uso, mas valor
de uso para os outros, valor de uso social” (MARX, 1983, p. 49).
Como vimos no capítulo anterior, o baixo crescimento econômico verificado na década de
1970 empurrava as sociedades empresárias e os Estados a exportar capitais através inclusive
da criação de novas mercadorias. A água torna-se então um dos principais recursos naturais a
serem transformados em mercadorias. Percebe-se, porém, que para a água tornar-se uma
mercadoria era necessário que deixasse de ter apenas valor de uso. Era preciso que esta
adquirisse também um valor na troca no mercado.
Contudo, se os indivíduos tinham garantido o livre acesso à água, esta jamais seria trocada
por outros produtos no mercado, pois cada cidadão poderia adquiri-la gratuitamente em seus
próprios poços, açudes ou mesmo se abastecer com as águas públicas. O Código de Águas e a
garantia à propriedade privada da água eram então obstáculos para a transformação da água
em mercadoria, ao prever o seu uso gratuito e interditar a troca por outros produtos ou seu
equivalente em dinheiro:
Art. 34. É assegurado o uso gratuito de qualquer corrente ou nascente de águas, para as
primeiras necessidades da vida, se houver caminho público que a torne acessível.
Art. 35. Se não houver este caminho, os proprietários marginais não podem impedir que os
seus vizinhos se aproveitem das mesmas para aquele fim, contanto que sejam indenizados do
prejuízo que sofrerem com o trânsito pelos seus prédios.
§ 1
o
Essa servidão se dará, verificando-se que os ditos vizinhos não podem haver água de
outra parte, sem grande incômodo ou dificuldade.
§ 2
o
O direito do uso das águas, a que este artigo se refere, não prescreve, mas cessa logo que
as pessoas a quem ele é concedido possam haver, sem grande dificuldade ou incômodo, a
água de que carecem.
Nota-se que, paradoxalmente, a propriedade privada da água configurava um
obstáculo para a sua transformação em mercadoria. Esse empecilho para a criação e
exploração da nova mercadoria somente poderia ser removido pelo Estado por meio da
expropriação das águas particulares necessária para obrigar aos indivíduos a sua aquisição
mediante troca. Esse é o principal efeito da publicização da água realizada pelo constituinte de
1988. A estatização da água obrigou a todos a aquisição desta unicamente por meio do
mercado.
O promotor Coral Viegas percebeu, na sua atuação profissional no Estado do Rio
Grande do Sul, as conseqüências da transformação da água em mercadoria quando afirma que
“passamos a enfrentar cotidianamente o problema da perfuração desenfreada de poços
artesianos como forma de evitar o pagamento dos serviços de fornecimento de água potável”
(VIEGAS, 2005, p. 19).
Ao contrário do que pode parecer ao membro do Ministério Público, essa luta pelo
direito ao uso da água para saciar a sede não é uma desconsideração da premissa ecológica
mas, sim, parte de uma luta individual contra a transformação da água em mercadoria. Cada
cidadão, ao recusar-se a consumir a água exclusivamente através do mercado, comprando-a
das concessionárias privadas, reconhece a água apenas pelo seu valor de uso. Assim, insiste
em manter com esse recurso natural uma relação comunitária que constitui, na prática, um
poderoso obstáculo ao comércio da água.
O Estado aparece então como instrumento fundamental para a remoção dessas
barreiras culturais e políticas ao negócio da água. Para isso, vem exercendo duas funções
primordiais: legalizar a expropriação da água e impedir o uso direto e pessoal da água pela
coação estatal.
A expropriação dos bens naturais é uma característica marcante das sociedades capitalistas.
Assim como ocorre atualmente com a água, no processo que David Harvey denomina
“acumulação por espoliação”, fenômeno semelhante de expropriação havia se verificado
em relação às propriedades comunais dos camponeses europeus. Igualmente, houve no Brasil
uma expropriação das propriedades imobiliárias. Em 1850, quando entrou em vigor a Lei de
Terras no Brasil houve também a publicização das terras. Maria Sylvia Di Pietro destacou que
essa legislação tornou públicas todas as chamadas terras devolutas, legitimou a propriedade
privada da terra e instituiu o contrato de compra e venda como única forma de alienação da
propriedade da terra (DI PIETRO, 2005).
O sociólogo José de Souza Martins percebeu que este processo de publicização da terra era
indispensável para a sua transformação em mercadoria. A publicização e a mercantilização da
terra eram então faces da mesma moeda, pois, se todo o território brasileiro estivesse livre
para a posse de quem lhe quisesse cultivar, a propriedade da terra nada significaria. Era
necessária a transformação da terra em mercadoria – de propriedade pública ou privada – para
que esta tivesse algum valor pecuniário.
José de Souza Martins observa ainda que sem a Lei de Terras, que transformou todas as terras
em propriedade, o seria possível a posterior abolição da escravidão, haja vista que se os
escravos libertos dispusessem da posse da terra como meio de produção se recusariam a
trabalhar nas fazendas de seus antigos proprietários. Com a publicização das terras devolutas,
com a sua aquisição exclusivamente restringida ao contrato de compra e venda, houve uma
transferência de valor do escravo para a terra. Nesse sentido, Souza Martins destaca que
quando havia um regime de trabalho cativo a terra era livre, no entanto, quando o regime de
trabalho passa a ser livre a terra torna-se cativa (SOUZA MARTINS, 1986).
Analogicamente, a denominada “publicização da água” cumpre função semelhante à que
desempenhou a Lei de Terras em 1850. Embora tenha tornado as águas públicas, esse
processo foi necessário para a privatização da água e a sua transformação em mercadoria.
Tanto no caso das terras quanto no das águas, o Estado teve função de destaque nessa
espoliação. Sem o Estado seria impossível acabar com o direito à propriedade privada sobre a
água, que dava a cada indivíduo a garantia ao seu livre uso para satisfação de suas
necessidades essenciais. Em primeiro lugar, que se indagar como seria possível outorgar,
por meio de autorização ou outro instituto, o uso da água a grandes sociedades empresarias
antes da Constituição de 1988, com a vigência do Código de Águas que garantia a
propriedade particular sobre esse recurso.
A proteção a esse direito era barreira instransponível para o negócio da água. Não seria
admitido que se fosse retirado o direito à propriedade da água dos particulares para
simultaneamente se outorgar esse bem a outro particular para que este, de forma onerosa,
auferisse lucros na revenda do produto para os mesmos particulares que haviam sido
expropriados.
Conclui-se que a expropriação constitucional das águas particulares levada a cabo pelo poder
constituinte originário de 1988 foi bastante conveniente para os interesses dessas sociedades
privadas, pois seria inviável a indenização a todos que foram atingidos pela expropriação. A
ilimitação e a incondicionalidade do constituinte viabilizaram a expropriação e a posterior
privatização.
Igualmente, a vedação do uso comunitário das águas subterrâneas dos poços, inclusive com o
estabelecimento de sanções fundamentadas na propriedade pública da água, obriga todos os
cidadãos a consumirem a água-mercadoria das sociedades empresarias titulares das
concessões, mantendo elevados os lucros dos sócios. Esse parece ser um dos sentidos da
evolução legislativa da matéria relacionada à gestão da água.
Ao ignorar essa perspectiva, os juristas classificam como contraditórias as legislações
estaduais que começaram a ser implantadas, isentando os maiores consumidores e poluidores
a indústria e a agroindústria do pagamento pelo uso da água. Realmente, essa legislação é
contraditória com a explicação que nas razões ambientais o motor de todas as alterações
legislativas. Ao contrário, a análise das leis estaduais demonstra que os interesses das grandes
sociedades empresariais têm papel relevante nesta explicação.
Eduardo Viegas cita como exemplo da incorporação da preocupação ambiental a Lei Estadual
do Rio Grande do Sul que obriga o consumo na rede pública de distribuição. Contudo, o
mesmo artigo que veda o uso residencial das águas subterrâneas autoriza o uso industrial da
mesma. Como vimos no capítulo anterior, os dados científicos apontam para o uso industrial
como sendo responsável por grande parte do consumo, além de ser o principal poluidor junto
com o agronegócio.
Desse modo, não se pode justificar a ação dos parlamentares gaúchos pela preocupação em
relação à preservação das reservas subterrâneas na medida em que foi autorizada a atividade
de maior consumo e proibida a de menor. Nesse sentido, Eduardo Viegas considera as leis
estaduais contraditórias com a finalidade da racionalização do consumo através da cobrança
pelo uso. Na análise da legislação do Estado do Paraná percebe-se a mesma contradição
aparente. A lei paranaense, recentemente adaptada à Lei 9.433/97, assim dispõe:
Art. 53. O Executivo estadual estabelecerá, em regulamento próprio, no prazo de 18 meses a
partir da vigência desta Lei, os procedimentos relativos à cobrança pelo direito de uso da
água, a ser implementada de forma gradual sobre todos os setores de usuários.
Parágrafo único. As captações destinadas à produção agropecuária estarão isentas da cobrança
pelo direito de uso da água, mantida a obrigatoriedade de obtenção de outorga.
Fica evidente então que a instituição da cobrança, ao menos no Paraná, não foi pautada
pela preocupação ecológica em preservar um recurso natural limitado, pois o maior
consumidor o agronegócio foi isentado do pagamento pelo uso enquanto os usuários
domésticos, responsáveis pelo menor percentual do consumo, arcariam sozinhos com os
custos da cobrança.
A elaboração da referida lei obedeceu aos interesses econômicos dos agricultores em
detrimento do meio ambiente. Ana Cláudia Bento Graf protestou ao constatar que em “relação
à lei paranaense recentemente editada” havia uma “injustificada exclusão do setor
agropecuário da obrigação de pagar pela captação da água”. A crítica da procuradora
paranaense se estende assim à legalidade e à moralidade deste dispositivo haja vista que
compete à União, através do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, conforme estabelecido
pelo artigo 20 da Lei 9.433/97, a fixação de critérios gerais para a outorga e cobrança dos
recursos hídricos. A Assembléia Legislativa do Paraná, em seu entendimento, teria então
exorbitado a sua competência ao isentar um setor da cobrança pelo uso.
Apesar da surpresa dos juristas, a cobrança pela água vem sendo implantada de forma a
maximizar a lucratividade das empresas concessionárias dos serviços de distribuição de água
e coleta de esgoto, deixando para segundo plano as preocupações ambientais que estariam na
origem das alterações normativas.
Essa cobrança pelos recursos hídricos é a tendência verificada em diversos Estados da
federação. Após a supressão em nosso ordenamento jurídico das águas particulares, a Lei
9.433/97 estabeleceu competência para a União e os Estados concederem a outorga do uso de
recursos hídricos. Desse modo, os Estados estão gradativamente implementando leis que
disciplinam o uso da águas no âmbito de suas competências.
Os juristas, que tem estudado a evolução da legislação brasileira referente à gestão da água,
com referência na propaganda amplamente difundida sobre a escassez da água, consideram
que a legislação brasileira foi gradativamente incorporando diretrizes ecológicas no sentido de
reconhecer a água como um bem finito:
Segundo grande parte dos especialistas, a cobrança pela água é providência essencial para
garantir o abastecimento futuro, possibilitando a sobrevivência das futuras gerações (...) Por
fim, é irrefutável a eficácia do instrumento da cobrança na luta contra a crise da água, pois,
(...) o custo zero dos recursos naturais conduz o sistema de mercado à hiperexploração do
meio ambiente (VIEGAS, 2005, p. 56).
Desse modo, reconhecem como avanço jurídico a transformação da água de um bem privado
em um bem público de uso comum ou ambiental. Igualmente, interpretam a instituição da
cobrança pelo uso dos recursos hídricos como solução premente para a racionalização do seu
uso, o combate aos desperdícios e a escassez. Nesse sentido, Aldo da Cunha Rebouças é ainda
mais explícito:
A experiência nos países desenvolvidos, principalmente tem mostrado que a parte mais
sensível do corpo humano é o bolso, uma das recomendações do Banco Mundial (BM) e da
Organização das Nações Unidas (ONU) para reduzir o desperdício e a degradação da
qualidade da gota d’água disponível em níveis nunca imaginados, é considerá-la como recurso
natural de valor econômico, ou seja, uma mercadoria com preço de mercado, como
estabelece, aliás, o terceiro princípio da Lei Federal n
o
9.433/97 (REBOUÇAS, 2003, p. 39).
No entanto, esse fundamento antigo do pensamento liberal, cujas origens remetem a Adam
Smith, não se sustenta diante de uma análise mais aprofundada. O historiador E. P.
Thompson, ao analisar a escassez do pão na Inglaterra dos séculos XVIII e XIX, demonstrou
como o livre mercado, longe de solucionar os problemas de escassez, muitas vezes o agrava.
Em alguns casos históricos, como os analisados por Thompson, o livre mercado o
conseguiu equilibrar satisfatoriamente o direito de propriedade e o direito à vida dos
trabalhadores famintos. Foi o caso, por exemplo, da municipalidade de Nottingham que
acabou por ratificar o pleito da multidão no sentido de validar a imposição de um teto aos
preços dos alimentos, pressionando os fazendeiros locais a impor limites ao mercado.
Os defensores dogmáticos do laissez-faire como melhor remédio para os períodos de escassez
encontravam voz no século XVIII, com relação à crise do pão, e no século XXI, com relação
à crise da água. Representantes do governo de Madrastra defendiam, em 1833, que a livre
oferta tende naturalmente a encontrar o melhor caminho da demanda e que qualquer
interferência poderia agravar a situação de calamidade e fome absoluta.
Thompson demonstra, citando o exemplo da Irlanda durante a década de 1840, que, embora a
demanda por alimentos possa ter atingido o ápice num período de escassez, pode se verificar
até a exportação dos alimentos da região atingida pela calamidade devido à depreciação do
poder de compra.
Outro erro grave é a premissa de que o mecanismo dos preços é o melhor instrumento de
racionamento dos bens. Num período de escassez, observa Thompson, esse mecanismo
reserva alimentos a quem pode pagar e exclui completamente os que não podem. “Era contra
esse racionamento financeiro socialmente desigual que os motins da fome constituíam um
protesto e talvez um remédio.” (THOMPSON, 1998, p. 222.)
Na Irlanda do século XIX e na Bolívia do século XXI, insurreições populares se levantaram
contra a desigual distribuição, efetivada pela “mão invisível do mercado”, desses recursos
essenciais à manutenção da vida naquelas comunidades. Em Cochabamba, na Bolívia,
milhares de revoltosos derrubaram governos que tentavam impedir que a população pobre
tivesse acesso inclusive à água das chuvas.
Dados do Relatório de Desenvolvimento Humano do PNUD de 1998 apontam para a
desigualdade do consumo de recursos hídricos entre as diferentes faixas de renda das camadas
sociais. A quinta parte mais rica do mundo é responsável por 86% do consumo de água
mundial (PETRELLA, 2004, p. 56). Esta constatação está presente inclusive entre os defensores
da adoção pela legislação dos mecanismos de fixação do preço da água:
A preocupação maior vem com o abastecimento das populações carentes. Teme-se que a
privatização possa resultar na negativa desse bem, indispensável para a sobrevivência.
Evidentemente, que se resguardar tal situação, sob pena de ofensa ao princípio
constitucional da inviolabilidade do direito à vida (CF, art. 5, caput). A Agência Nacional de
Águas e as correspondentes agências estaduais deverão deixar bem claro esse aspecto ao
concederem direitos de exploração. O ideal é que nada se cobre nessas situações,
considerando tais volumes de água insignificantes (Lei 9.443/97, art. 12, § 1
o
, incisos II e III).
Se os exemplos do Rio Grandes do Sul e do Paraná forem seguidos e o ônus da cobrança for
imputado aos consumidores domésticos, a parcela mais necessitada da população pode ser
excluída do acesso a este bem essencial à manutenção da vida. Contudo, também os exemplos
históricos da luta pelo pão e pela água podem encontrar paralelos comuns na luta, de ontem e
de hoje, para manter ao menos a pão e água a vida dos trabalhadores.
5. SERVIÇO PÚBLICO DE DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA E COLETA DE ESGOTO
NO BRASIL
5.1. A “CRISE” DA NOÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO E A TEORIA DA
REGULAÇÃO
O interesse crescente das sociedades privadas na exploração dos serviços estatais tem-se
verificado em diversos países. Desse modo, vem sendo desmantelado pelas reformas
neoliberais o antigo Estado de Bem-Estar Social, que garantia como direitos da cidadania,
entre outros, os serviços públicos de energia elétrica, de telecomunicações, de gás canalizado,
de iluminação pública e de distribuição de água e coleta de esgoto.
No novo modelo de Estado gerencial não espaço para a intervenção estatal direta na
produção de bens e prestação de serviços. Por conseguinte, avançou globalmente a
participação da iniciativa privada na prestação dos chamados serviços públicos. A teoria
jurídico-administrativa que, no auge do Welfare State, centrava-se no conceito de serviço
público passa a ser confrontada com essa nova realidade de diminuição do papel do Estado
nesse setor das atividades econômicas. O administrativista Diogo de Figueiredo Moreira
Neto, sublinhando os fundamentos políticos, jurídicos e, principalmente econômicos da teoria
da regulação, aponta que:
É neste contexto que a velha intervenção pesada, pró-Estado, se transforma numa intervenção
leve, pró-sociedade. O papel do Estado muda: de agente monopolista, concorrente ou
regulamentador, torna-se um agente regulador e fomentador. Não se trata de um movimento
para chegar a um Estado mínimo, como poderia se pensar, mas para torná-lo um Estado
melhor. (MOREIRA NETO, 2003, p. 74)
Foi necessário, portanto, um esforço teórico para apreender e propiciar um adequado
funcionamento das instituições nesse novo regime de gestão. Ainda inacabado, o arcabouço
teórico jurídico continua sendo objeto de candentes debates acadêmicos sob o rótulo da teoria
da regulação, que substitui aos poucos a do serviço público como fundamento norteador de
todo o Direito Administrativo. Como observaremos mais adiante, o setor de saneamento
público não ficou imune a esse processo de reformas.
Ao analisar a teoria do serviço público, Maria Sylvia Di Pietro admite a atual dificuldade em
demarcar o próprio conceito de serviço público justamente por esta mutação ocorrida nos
últimos anos. Essas mudanças, ressalta, fizeram com que determinados autores mencionassem
inclusive uma crise na noção de serviço público”. Apesar dos problemas conceituais
reconhecidos, Dedos iepordm MãÐÇN° dm
Em momento histórico posterior, com o avanço das sociedades empresárias privadas sobre o
setor de serviços, verificou-se no sentido inverso uma nova diminuição da área de prestação
pelo Estado de serviços econômicos e sociais. Novamente, a teoria jurídica sofreu inovações
correspondentes ao desenvolvimento social. Foram criados instrumentos de delegação á
iniciativa privada desses serviços anteriormente considerados públicos, tais como as
concessões, permissões e autorizações.
Por conseguinte, o critério subjetivo que integrava o conceito de serviço público também se
esvaziou com a prestação de serviços públicos sob regime privado, o que, segundo o
administrativista francês Louis Corail,
21
significava uma verdadeira “crise da noção de serviço
público”. A tentativa de adequar o conceito a esta nova realidade é a base de toda a moderna
teoria da regulação que norteia o Estado Gerencial.
22
Considerar, por conseguinte, o serviço público limite e fundamento do Poder Público tornou-
se difícil com a ampliação e posterior restrição de tais serviços verificadas historicamente.
Com a ampliação da atuação da iniciativa privada, serviços definidos como públicos, no
âmbito do Estado de Bem-Estar Social deixaram atualmente de ser assim classificados.
De acordo com esses aspectos da análise dos serviços públicos, é possível conceituar
essas atividades de forma diferenciada. Em sentido amplo, serviço público é toda atividade ou
organização do Estado para cumprir os seus fins. Nesse sentido, a tradição da doutrina
francesa, ainda muito presente no Brasil, elevou o conceito de serviço público ao bojo da
teoria administrativa.
A denominada “Escola do Serviço Público” e seus maiores expoentes Leon Duguit,
Rolland, Jèze, Roger Bonnard, entre outros consideravam que a partir da idéia de serviço
público era possível explicar toda atividade da Administração. Esta definição como elaborada
pelos juristas franceses foi seguida no Brasil por autores como Hely Lopes Meirelles, José
Cretella Júnior e Mário Masagão.
Esse conceito de tão amplo incluía a mesmo as atividades judiciária e legislativa, além das
outras atividades administrativas, como o exercício do poder de polícia e o fomento. Os
serviços públicos tornavam-se, assim, o centro de todo o direito público.
21
Louis Corail apresentou tese de doutoramento sobre o assunto (DI PIETRO, 2005, p. 98)
22
“Jean Rivero (1981:489) mostra que atualmente a combinação dos três elementos é menos freqüente. Existem
necessidades de interesse geral que a autoridade atende satisfatoriamente, mas que nem por isso confia a órgãos
públicos; e também pode acontecer que entidades públicas, como autarquias, desempenhem atividade industrial
ou comercial idêntica à das empresas privadas similares, e que não podem ser consideradas serviço público, uma
vez que nenhuma peculiaridade distingue o seu regime do adotado no setor privado. Há, aí, uma dissociação dos
sentidos subjetivo e material. A dissociação é igualmente freqüente entre os dois primeiros sentidos e o regime
jurídico de serviço público: os serviços comerciais e industriais do Estado são exercidos pelas empresas estatais
sob regime jurídico de direito privado, parcialmente derrogado por normas publicísticas.” (DI PIETRO, 2005, p.
98.)
em sentido mais restrito, serviço público corresponderia àquela atividade social prestada
pela Administração Pública. Levando-se em conta estes aspectos subjetivos e objetivos,
estariam os serviços públicos mais delimitados à atividade de governo sob competência do
Poder Executivo, o se confundindo com as funções estatais, legislativa ou jurisdicional, ou
ainda com o poder de polícia, fomento ou intervenção.
Dando relevo ao terceiro aspecto, alguns autores, como Celso Antônio Bandeira de Mello,
destacam o aspecto formal como primordial para a definição de serviço público. Essa
perspectiva afirma que são serviços públicos aqueles que o Estado decidiu inserir em regime
jurídico próprio de direito público. Di Pietro, contudo, critica a definição estabelecida por
Bandeira de Mello por restringir demais o conceito ao considerar serviços públicos somente
os diretamente fruíveis pelos usuários. Isso acabaria por afastar, por exemplo, trabalhos
diplomáticos e pesquisas científicas do conceito.
23
Ambos os doutrinadores, no entanto, descartam a possibilidade de se distinguir serviços
públicos de outras atividades meramente pela utilização de critérios objetivos, pois cabe a
cada Estado, em determinado momento histórico, definir quais seriam as atividades alçadas ao
regime próprio dos serviços públicos.
24
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, por exemplo, fez essa indicação
nos artigos 21, X, XI, XII e XV, e 25, § 2
o
, que foram alterados, respectivamente, pelas
Emendas Constitucionais n
o
8 e 5 de 1995. Igualmente, o artigo 175, caput, determina ser
incumbência do Poder Público a prestação dos serviços públicos.
Fica evidente então que para Bandeira de Mello o essencial da definição é a proteção legal
concedida pelos legisladores a determinadas atividades alçadas à categoria de serviço público
e, portanto, submetidas ao regime jurídico diverso das demais.
25
23
Para Di Pietro, serviço público é “toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça
diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades
coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público” (DI PIETRO, 2005, p. 99).
24
Segundo Di Pietro, este aspecto histórico “exclui a possibilidade de distinguir, mediante critérios
objetivos, o serviço público da atividade privada; esta permanecerá como tal enquanto o Estado não
assumir como própria” (DI PIETRO, 2005, p. 99).
25
Para Bandeira de Mello, serviço público “é toda atividade de oferecimento de utilidade ou
comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos
administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por
quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público portanto, consagrador de prerrogativas
de supremacia e de restrições especiais – , instituído em favor dos interesses definidos como públicos
A teoria da regulação não prioriza as regras de Direito Público como elemento imprescindível
do conceito. Ao contrário da teoria do serviço público, a regulação, atividade central do
Estado Gerencial, procura pôr fim, através da fusão em um mesmo regime, da antiga
dicotomia entre público e privado. Outros doutrinadores observam que atualmente nem
todos os serviços públicos obedecem às prerrogativas e sujeições de caráter meramente
público. Maria Sylvia Di Pietro e José dos Santos Carvalho Filho destacam, por exemplo, que
estes serviços são atividades prestadas “sob regime jurídico total ou parcialmente de direito
público” ou “basicamente sob regime de direito público” (CARVALHO FILHO, 2005, p. 261).
De acordo com Carvalho Filho, são três os elementos que caracterizam o serviço público: o
sujeito prestador, a finalidade e, por fim, o regime jurídico ao qual está vinculado. Nota-se,
porém, que, ao contrário de Bandeira de Mello, admite-se que os serviços públicos possam
estar submetidos ao mesmo regime de direito privado característico da iniciativa particular no
campo econômico. Assimila então teoricamente a característica atual da prestação privada de
tais serviços.
26
Há então na Constituição da República definições políticas acerca dos serviços que devem ser
alçados ao regime de Direito Público. Na competência da União, são indicados expressamente
e, portanto, como ressalta Celso Antônio Bandeira de Mello, serão “obrigatoriamente serviços
públicos”: “o serviço postal e o Correio Aéreo Nacional (art. 21, X, da Constituição); os
serviços de telecomunicações, energia elétrica e aproveitamento dos cursos d’água, navegação
aérea, aeroespacial, infra-estrutura aeroportuária, transporte ferroviário e aquaviário entre
portos brasileiros e fronteiras nacionais” (BANDEIRA DE MELLO, 2005, p. 647).
Esse entendimento ainda encontra respaldo nos tribunais brasileiros. Em recente julgamento
da Argüição de Preceito Fundamental (ADPF n
o
46), que pretendia por fim ao monopólio da
União sobre os serviços postais, o ministro Cezar Peluzo considerou que a definição de
determinada atividade como serviço público passa por uma opção política tomada, através da
edição de leis, pelo Poder Legislativo. Então, desse modo, proferiu o seu voto a favor da
manutenção do monopólio da União, alegando que “o conceito de serviço público é histórico
e constitucional, daí a Constituição ter atribuído à União a responsabilidade e garantia do
serviço como elemento de integração nacional” (ADPF n
o
46).
no sistema normativo” (BANDEIRA DE MELLO, 2005, p. 632).
26
Vale ainda ressalvar que serviço público não se confunde com obra pública ou poder de polícia.
Obra pública destina-se a um bem público que através desta é edificado, reparado ou modificado.
o poder de polícia significa o exercício estatal de controle e limitação, mediante lei, de direitos
individuais. Portanto, poder de polícia encontra significado diametralmente oposto ao de serviço
público, pois, enquanto este visa garantir determinados direitos essenciais da cidadania, aquele
procura limitar e conter certos direitos individuais, adequando-os ao bem comum.
No mesmo sentido afirmou que não cabe ao Supremo Tribunal Federal definir o que seria
serviço público, mas, sim, ao Poder Legislativo que já o fez para este caso.
27
Conclui-se então que na passagem do modelo de Estado de Bem-Estar Social para o Estado
Gerencial verifica-se uma adequação no regime jurídico de prestação dos serviços. uma
flexibilização do aspecto formal da definição de serviço público, passando-se a admitir que
estes submetam-se não somente ao regime jurídico-administrativo mas também ao regime
privado civilístico.
É necessário, por conseguinte, na análise dos serviços públicos levar-se em consideração as
condições históricas políticas, econômicas e sociais. Dinorá Adelaide Museti Grotti, em
trabalho sobre os serviços públicos na Constituição de 1988, destacou que em determinado
momento uma atividade considerada serviço público pode posteriormente ser considerada
privada, sendo a recíproca também verdadeira.
Igualmente, seria possível afirmar que também um elemento espacial na definição, pois o
que um determinado Estado considere serviço público outro, num mesmo período, pode
considerar fora da esfera pública de atuação. Definitivamente, para a referida autora, a noção
de serviço público decorreria de uma opção política por um modelo de Estado:
Cada povo diz o que é serviço público em seu sistema jurídico. A qualificação de uma
atividade como serviço público remete ao plano da concepção do Estado sobre seu papel. É o
plano da escolha política, que pode estar fixada na Constituição do país, na lei, na
jurisprudência e nos costumes vigentes em um dado tempo histórico (GROTTI, 2003, p. 87).
Para a referida autora, portanto, a definição da natureza do serviço não pode prescindir de um
prévio julgamento político sobre o objeto. A lei, a jurisprudência, a doutrina e os costumes,
em conjunto, seriam responsáveis por constituir um rol de proteções especiais, presentes em
um regime jurídico específico que resguardaria determinados serviços.
A transição do Estado de Bem-Estar Social para o Estado Gerencial significa, portanto,
também uma transição de um regime jurídico administrativo para um novo regime jurídico.
Esse novo marco regulatório, como se convencionou chamar o regime jurídico pela teoria da
27
Ressalva-se, no entanto, que esse rol de serviços públicos elencados na Constituição não é
taxativo, pois além da própria União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios também poderão
definir e criar, dentro dos limites constitucionais, seus serviços públicos mesmo que estes não sejam
mencionados na Constituição. também a competência comum para alguns serviços, como
promover a educação, o saneamento básico e a habitação popular.
regulação, se caracteriza então por mesclar princípios e poderes inerentes à Administração
Pública com regras de direito comum geralmente destinadas às relações privadas.
Nessa construção do novo marco regulatório, a colisão de interesses antagônicos entre as
sociedades empresárias e os usuários dos serviços públicos. O novo regime jurídico não
nasce, então, da evolução da racionalidade dos juristas, mas, sim, surge da disputa social entre
esses atores que pretendem garantir os princípios e as regras de prerrogativas e sujeições mais
vantajosos para seus interesses.
Para usarmos a observação perspicaz trazida por Dinorá Grotti, o marco regulatório é pautado
pelo “plano da escolha política” e a disputa dos seus pressupostos estará inscrita “na
Constituição do país, na lei, na jurisprudência e nos costumes vigentes em um dado tempo
histórico”. Analisaremos assim o regime jurídico presente no modelo do Estado de Bem-Estar
Social, seus princípios, prerrogativas e restrições especiais para, posteriormente,
compreendermos o regime defendido no modelo de Estado Gerencial.
5.2. PRINCÍPIOS E PODERES DO REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO DOS
SERVIÇOS PÚBLICOS
O Estado de Bem-Estar Social acolheu em seu ordenamento jurídico uma diversidade de
direitos sociais como aqueles relacionados a saúde, educação, previdência, assistência,
transporte, comunicação, energia elétrica, entre outros. Multiplicaram-se assim os serviços
ofertados à população. Conforme analisamos anteriormente, estes serviços considerados
públicos eram então protegidos pela legislação com um regime diferenciado das demais
atividades econômicas destinadas à iniciativa privada. Estas atividades eram submetidas, em
regra, ao direito comum, sendo reguladas contratualmente pelo Direito Civil e Empresarial.
A Administração Pública desempenhava principalmente a função de prestar os serviços
públicos. Quando de forma complementar atuava na esfera considerada privada, por meio de
suas empresas públicas ou sociedades de economia mista, igualava-se ao particular,
submetendo-se ao regime de direito comum, com algumas derrogações excepcionais.
A teoria administrativa considerava, por conseguinte, a existência de dois regimes da
Administração Pública: o regime jurídico administrativo propriamente dito e o regime
comum. Estes relacionados ao desempenho de atividades econômicas e aqueles atrelados aos
serviços públicos. Portanto, para a análise do novo marco teórico, se faz mister a compreensão
prévia dos princípios, poderes e sujeições que constituem o regime jurídico administrativo
presente no modelo do Welfare State.
A existência do regime jurídico próprio para a prestação dos serviços públicos se justifica
pela prevalência dos interesses públicos nos Estado de modelo intervencionista. Para isso, era
necessário, conforme frisado anteriormente, o estabelecimento de princípios que vinculassem
o Poder Público a restrições e poderes especiais para que melhor se persiga o bem comum.
A Administração tem regime jurídico administrativo próprio que se fundamenta em alguns
princípios especiais. Desse modo, são princípios da Administração Pública elencados por Di
Pietro: a legalidade; a supremacia do interesse público; a impessoalidade; a presunção de
legalidade e veracidade; a especialidade; o controle ou tutela; a autotutela; a hierarquia; a
continuidade; a publicidade; a moralidade; a razoabilidade e a proporcionalidade; a
motivação; a eficiência e a segurança jurídica.
Esses princípios não existem no regime privado, pois eles visam justamente permitir
ao Poder Público buscar o bem comum. No regime privado, por exemplo, seria estranho
exigir-se de uma sociedade privada a publicidade de seus negócios ou a impessoalidade na
contratação de serviços, ou mesmo a continuidade de seus serviços.
A legalidade constitui forte restrição à Administração, pois esta, ao contrário do
indivíduo, que pode fazer tudo o que a lei não proíbe, somente pode fazer o que a lei permite.
Esta vinculação da Administração à lei corresponde ao princípio da legalidade. Decorrentes
da legalidade, podemos destacar outros três princípios: o da especialidade, o do controle e o
da autotutela. Pela especialidade, assim como os entes da Administração Direta vinculam-se à
legalidade, as pessoas jurídicas que compõem a administração indireta têm limites de atuação
bem definidos pela lei que as criou ou autorizou a sua criação.
Pelo princípio do controle ou tutela, o dever de fiscalização da administração
indireta pela administração direta, nos termos da lei, com objetivo de garantir a conformidade
com os fins que justificaram a sua criação. Enquanto a autotutela refere-se à atribuição da
administração direta para controlar os seus próprios atos assim como zelar pelos seus bens.
Cabe à Administração o dever de anular os seus próprios atos ilegais.
A supremacia do interesse público determina a vinculação da Administração à
finalidade pública. Contudo, esse princípio também fundamenta os poderes do Estado em face
dos indivíduos. O princípio da impessoalidade configura outra sujeição haja vista que a
Administração não pode se confundir com a pessoa de seus agentes.
o princípio da presunção de legitimidade ou veracidade constitui prerrogativa
importante concedida ao Poder Público. De acordo com este princípio, uma presunção de
que os atos administrativos são material e formalmente verdadeiros, ou seja, que são legais e
fundamentados
queatos vCzÇ t
Santos Carvalho Filho acrescenta também, entre os princípios destinados a garantir os fins
públicos dos serviços, o da eficiência e o da modicidade das tarifas (CARVALHO FILHO, 2005, p.
639).
Celso Antônio Bandeira de Mello torna o rol de princípios inerentes ao regime
jurídico-administrativo ainda mais extenso. Acrescenta aos enumerados os seguintes: dever
inescusável do Estado de promover-lhe a prestação; supremacia do interesse público;
transparência; motivação; e, por fim, o princípio do controlnÇ°ontropfasi
Quanto à cobrança pelos serviços, o princípio da modicidade determina que o Poder Público,
ao fixar os preços dos serviços públicos, deve respeitar a condição financeira do usuário para
não excluir cidadãos, devido a uma discriminação pela renda, dos benefícios da prestação de
atividades sociais básicas. O lucro, objetivo principal da atividade capitalista, é então
descartado como norteador da atividade estatal.
28
Os princípios do dever inescusável do Estado de promover a prestação e da supremacia do
interesse público ressaltados por Bandeira de Mello constituem, na verdade, diretrizes que
estão na essência da definição do conceito de serviço público das quais decorrem os demais
princípios. Vale então respaldar a importância vislumbrada pelo jurista da aplicação aos
serviços públicos dos princípios da transparência, motivação e do controle. Originários de
princípios gerais da Administração, é fundamental a sua observância para que os cidadãos
possam também controlar e fiscalizar a execução de atividades que reconhecidamente têm
relevância social especial.
Assim como o regime jurídico administrativo pressupõe a existência de princípios, o mesmo
regime implica ainda a existência de poderes especiais. Por conseguinte, os princípios da
Administração Pública fundamentam alguns poderes sem os quais tornar-se-ia impossível
fazer valer o interesse coletivo em detrimento dos interesses individuais.
Na realidade, não se trata apenas de poderes outorgados à Administração, mas também de
deveres, pois a teoria impõe a esta a satisfação dos interesses coletivos e a realização do bem
comum. São então espécies de poder-dever: o normativo, o hierárquico, o disciplinar e, por
fim, o poder de polícia.
O conjunto de princípios, poderes e restrições peculiares que envolvem a Administração
Pública constituem assim o regime jurídico administrativo. No modelo de Estado de Bem-
Estar Social, este regime diferenciado em relação às regras do direito civilista tem como
escopo a consecução e priorização do interesse coletivo. No Estado Gerencial não mais
subsiste essa condição como veremos mais adiante.
5.3. CLASSIFICAÇÕES DOS SERVIÇOS PÚBLICOS
Essas definições políticas imprescindíveis para o enquadramento de determinadas atividades
no conceito de serviço público serão necessárias também para a classificação e distinção dos
diversos serviços sob incumbência do Estado.
28
Celso Antônio Bandeira de Mello destaca então que “o serviço público, para cumprir sua função
jurídica natural, terá de ser remunerado por valores baixos” (BANDEIRA DE MELLO, 2005, p. 639)
Podemos perceber que os critérios utilizados pelos administrativistas para classificar os
serviços públicos relacionam-se com as regras de sujeição e prerrogativas às quais vão se
submeter, vale dizer, ao seu regime jurídico de funcionamento.
Desse modo, uma breve análise da classificação adotada pelos doutrinadores mais citados no
Direito Administrativo aponta para uma profusão de enquadramentos diferenciados aplicados
às espécies de serviços públicos: próprios ou impróprios; essenciais (primários) ou não-
essenciais (secundários); delegáveis ou indelegáveis; comuns ou privativos; originários
(congênitos) ou derivados (adquiridos); exclusivos ou não-exclusivos; uti singuli ou uti
universi; remunerados ou gratuitos; centralizados ou descentralizados; compulsórios ou
facultativos; suspensíveis ou contínuos; administrativos ou de utilidade pública; coletivos ou
singulares; sociais ou econômicos.
Na classificação adotada por Celso Antônio Bandeira de Mello uma distinção relevante
entre os serviços privativos do Estado e os não-privativos do Estado (comuns).
Independentemente de se prestados diretamente pela Administração ou delegados, nos
serviços privativos haveria o poder de império decorrente da titularidade pública.
Nos serviços não-exclusivos, ao contrário, não haveria titularidade exclusiva do Estado.
Portanto, permite-se à livre iniciativa uma atuação complementar à atividade estatal, embora
submetida ao rigor legal mais elevado. Não haveria, porém, necessidade pelo Estado da
concessão do serviço, haja vista que a titularidade do Estado é pressuposto para a existência
do poder concedente.
Desse modo, Bandeira de Mello destaca existir imposições constitucionais que determinam a
obrigatoriedade de o Estado prestar algumas atividades. O serviço postal e o correio aéreo
nacional seriam então exemplos de serviços públicos cuja obrigação é exclusiva do Estado,
não se facultando ao administrador delegá-los à iniciativa privada (artigo 21, X, da CRFB).
No entanto, não são todos os serviços que o Estado tem obrigação de suprir dessa forma
monopolista. Embora sem exclusividade, serviços como os de educação, saúde, previdência
social continuariam como obrigações do Estado. Pela importância dessas atividades para o
desenvolvimento da sociedade, a Constituição de 1988 não desincumbiu o Estado de sua
manutenção.
Determinados serviços, ao contrário, teriam como característica justamente a inconveniência
de ser prestados diretamente pelo Estado, embora sua titularidade fosse intransferível pelo
relevante interesse social neles envolvidos. Seriam, assim, serviços que o Estado tem
obrigação de prestar e obrigação de conceder. Obedeceria-se portanto ao princípio da
complementaridade dos sistemas público e privado, conforme o exemplo da exigência da
outorga dos serviços de difusão sonora e de sons e imagens, prevista no artigo 223 da
Constituição da República.
Por fim, Bandeira de Mello ainda elenca aqueles serviços de prestação facultativa pelo Estado
embora este, se optar por não os prestar diretamente, seja obrigado a promover a prestação
através de delegação à iniciativa privada. Exemplos não taxativos desses serviços seriam os
de telecomunicações, transporte rodoviário interestadual, entre outros previstos no artigo 21
da Constituição de 1988 (BANDEIRA DE MELLO, 2005, p. 649 e 650).
Usando critério semelhante aos utilizados por Bandeira de Mello para distinguir os serviços
exclusivos dos não-exclusivos, Maria Sylvia Di Pietro classifica como próprios aqueles
serviços que são assumidos pelo Estado. Este então detém a titularidade de sua gestão, pois
aquelas atividades definidas como públicas passam a receber tratamento diferenciado por lei.
Ao contrário, os serviços impróprios não são assumidos nem executados pelo Estado,
correspondendo a atividades reservadas à iniciativa privada que, apenas por atenderem
necessidades de interesse público, são, de forma imprópria, denominadas serviços públicos.
Estas atividades, na realidade não se relacionariam diretamente com o Estado. O Poder
Público, com relação a elas, apenas exerceria o seu poder de polícia, como se fossem
atividades meramente privadas, submetendo-as à sua autorização, regulamentação e
fiscalização.
No entanto, Hely Lopes Meirelles adota outro sentido para a classificação dos serviços
públicos em próprios ou impróprios. Para este administrativista, o principal critério utilizado
para distinção é a função a qual a atividade está relacionada. Considera próprios aqueles
serviços relativos às atribuições do Poder Público, citando como exemplos a segurança,
polícia, higiene e saúde pública.
Quando não afetam as necessidades vitais da sociedade, embora sejam de seu interesse, os
serviços seriam impróprios, inclusive podendo ser delegados a particulares, que receberiam a
remuneração pela sua execução. Hely Lopes Meirelles, mais próximo da noção tradicional,
considera fundamental para a classificação “o tipo de interesse atendido, essencial ou não-
essencial da coletividade, combinado com o sujeito que o exerce; no primeiro caso, as
entidades públicas; no segundo, as entidades públicas e também as de direito privado,
mediante delegação” (MEIRELLES apud DI PIETRO, 2005, p. 104).
Discordando desses critérios, Maria Sylvia Di Pietro critica o conceito de “serviços públicos
autorizados”, como os de táxi, pois estas atividades não são da alçada do Estado. Este não
detém a sua titularidade, portanto não há que se falar em serviço público, mas, sim, atividade
privada sob fiscalização estatal. Di Pietro considera serviços não-exclusivos aqueles
executados mediante autorização do Poder Público, como os de saúde, previdência social,
assistência social e educação (artigos 196, 199, 202, 204, 208 e 209 da Constituição de 1988).
Tais serviços, segundo a autora, poderiam ainda ser considerados próprios ou impróprios.
José dos Santos Carvalho Filho vai mais além na crítica à vinculação entre essencialidade e
indelegabilidade dos serviços. Ao contrário da posição de Meirelles, Carvalho Filho, mais
sintonizado com a perspectiva gerencial, contesta o critério da essencialidade como
delimitador dos serviços públicos em delegáveis ou indelegáveis. Em seu entendimento,
serviços públicos essenciais igualmente podem ser delegados. Atividades reputadas básicas
para determinada sociedade – ou seja, essenciais – podem ser prestadas por particulares, desde
que obedeçam a certas regras de direito público que as submetem a fiscalização e controle
pelo Poder Público.
Por serviços públicos delegáveis, o autor compreende aqueles que podem ser prestados
diretamente pelo Estado ou por terceiros particulares. os serviços públicos indelegáveis
seriam aqueles nos quais é vedada a execução do serviço por particulares, somente se
admitindo a sua prestação pela administração pública direta ou por seus órgãos e entidades da
administração indireta, como na hipótese da administração tributária.
Esse critério explicitado por José dos Santos Carvalho Filho aproxima-se então do conceito
pretendido por Bresser Pereira para os serviços exclusivos, nos quais seria admitida a
delegação da sua prestação enquanto a fiscalização permaneceria atribuição do Poder Público.
Seriam exemplos desses serviços a distribuição de energia elétrica e da água, delegadas às
concessionárias privadas mas sob fiscalização das agências reguladoras: a ANEEL e a ANA,
respectivamente.
Desse modo, não se confundiria serviço público essencial com serviço público indelegável.
Observando o interesse público como característica desses serviços, Carvalho Filho os
subdivide em serviços primários ou essenciais e serviços públicos secundários ou não-
essenciais. Porém, o próprio autor reconhece a dificuldade de qualificar o interesse público de
determinado serviço:
O caráter de essencialidade do serviço não tem parâmetros previamente definidos, variando de
acordo com o lugar e o tempo em que a atividade é desempenhada. Com efeito, países em
que um determinado serviço se configura como essencial, ao passo que em outro não passa de
atividade secundária (CARVALHO FILHO, 2005, p. 261 e 262).
Ainda utilizando o mesmo parâmetro da essencialidade da atividade, Maria Sylvia Di Pietro
classifica os serviços públicos em derivados (adquiridos) ou originários (congênitos). Estes
corresponderiam às atividades essenciais do Estado, ou seja, aquelas referentes à tutela dos
direitos de primeira geração, portanto seriam também próprias e privativas do Estado.
os serviços públicos derivados (adquiridos) corresponderiam às atividades desempenhadas
de forma facultativa pelo Estado. Estes serviços são aqueles de ordem social, comercial ou
industrial que foram incorporados às atribuições estatais pelas demandas sociais. Por
conseguinte, os serviços derivados podem ser executados pelos particulares.
A autora não deixa de observar que a ampliação da participação do Estado na ordem social
implicou em realce destas atividades a um status anteriormente conferido pelos Estados
liberais apenas aos direitos individuais relacionados à ordem e à segurança jurídica. Essa
distinção se aproxima daquela apontada por Hely Lopes Meirelles entre serviços públicos e
serviços de utilidade pública.
Para a autora, ainda é possível se distinguir os serviços econômicos, industriais ou comerciais
dos sociais. Ambos seriam ainda distintos dos denominados serviços administrativos que
visam atender a demandas internas à Administração.
Serviços sociais seriam aqueles que pretendem satisfazer os direitos sociais
fundamentais do homem (artigo 6, CRFB) e, por isso, são dever do Estado embora possam ser
prestados simultaneamente pela iniciativa privada. São exemplos os serviços de saúde,
educação e previdência. os econômicos, comerciais ou industriais corresponderiam às
atividades assumidas por lei pelo Estado (artigo 21, XI e XII e art. 25, § 2, da CRFB).
Outra diferenciação cabível entre os serviços públicos seria em serviços coletivos e
singulares. Correspondem aos serviços coletivos ou uti universi todos aqueles que o
usufruídos apenas indiretamente pelos indivíduos, ou seja, por um grupo de pessoas
indeterminado. A iluminação pública e o saneamento seriam exemplos dessa espécie de
serviço.
os serviços singulares ou uti singuli são aqueles destinados à satisfação de necessidades
individuais, podendo ser mensurada a quota de utilização particular. Celso Antônio Bandeira
de Mello, de forma minoritária, entende que apenas estes seriam serviços públicos.
Estes serviços, ao contrário dos coletivos, podem ser exigidos pelo cidadão queo disponha
do benefício que outro cidadão dispõe, pois seria uma violação do princípio da
impessoalidade da Administração, previsto no art. 37 da Constituição.
Por fim, vale ainda ressalvar a classificação empregada que leva em consideração a existência
ou não de pagamento por parte dos usuários dos serviços. José dos Santos Carvalho Filho
divide os serviços públicos em gratuitos ou remunerados. Segundo Carvalho Filho, os
serviços públicos podem ser remunerados por taxa, quando o serviço é obrigatório, ou por
tarifa, quando o serviço é facultativo.
29
Essa breve compilação das principais classificações empregadas pela doutrina
administrativista tem como intuito principal demonstrar a variedade de critérios utilizados e a
conseqüente dificuldade de se extrair posição homogênea dos principais autores quanto à
matéria dos serviços públicos.
Não se procurou, portanto, na divergência doutrinária encontrar aquela posição juridicamente
correta. Como bem observou o ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Grau, não
classificações certas ou erradas mas, sim, úteis ou inúteis. Para o jurista, nessas classificações
dos serviços públicos deve-se procurar as regras aplicáveis a cada serviço (GRAU, 2005, p. 22).
A confusão doutrinária, longe de nos afastar da compreensão do fenômeno jurídico estudado,
aponta preciosas dicas para a identificação da mutação verificada no regime jurídico
administrativo dos serviços públicos na transição do modelo de Estado intervencionista para o
gerencial. Desse modo, são relevantes os critérios utilizados para classificar os serviços
públicos: titularidade (estatal, privada ou estatal e privada); interesse público ou privado na
atividade; necessidades essenciais ou não-essenciais; facultatividade ou compulsoriedade;
sujeito autorizado a prestar determinada atividade (Estado; sujeito privado ou ambos).
Nota-se que característica distintiva de determinada espécie de serviço para um autor é para
outro justamente motivo de nova nomenclatura e classificação diversa. Desse modo, se a
indelegabilidade do serviço significa a obrigatoriedade de o mesmo ser prestado diretamente
pelo Estado, isso significa que estaremos diante de um serviço, além de indelegável, via de
regra também próprio, exclusivo, essencial e contínuo. Igualmente, se considerarmos um
serviço como gratuito, certamente será classificado também como contínuo e essencial.
Nesse sentido, Bresser Pereira identificou com melhores resultados os elementos que
distinguem as diversas atividades do Estado no modelo gerencial, percebendo claramente a
opção política na adoção de determinado regime ou classificação. Por exemplo, os critérios
utilizados por Maria Sylvia Di Pietro para divisão dos serviços em próprios e impróprios
guardam relação direta com os utilizados por Bresser Pereira para separar as funções estatais
nas quais haveria um núcleo estratégico do Estado encarregado das funções de polícia.
29
José dos Santos Carvalho Filho advoga que, na remuneração por tarifa “o pagamento é devido
pela efetiva utilização do serviço, e dele poderá o particular não mais utilizar quando quiser. (...)
Sendo tais serviços de livre utilização pelo usuário, já que inexiste qualquer cunho de obrigatoriedade,
tem-se entendido, a nosso ver com toda coerência, que podem ser suspensos pelo prestador se o
usuário não cumprir o seu dever de remunerar a prestação” (CARVALHO FILHO, 2005, p. 271-273).
Conclui-se que uma opção política pelo modelo de administração, institucional e de
propriedade a ser adotado no Estado. É essa opção que resultará na classificação dos serviços
em uma ou outra espécie. Não uma natureza jurídica inata a esses serviços. Para ficarmos
em um exemplo óbvio, o que determinada sociedade classificava como serviço público
gratuito pode ser posteriormente considerado serviço remunerado.
A dinâmica social e os múltiplos interesses existentes nas sociedades vão responder se, em
determinado momento histórico, a água, a energia elétrica, as telecomunicações, o gás são
serviços que devem ser ou não considerados essenciais; se são oferecidos de forma gratuita e
contínua, se são compulsórios ou facultativos.
Igualmente, serão esses mesmos interesses que responderão se a forma institucional dessas
atividades é delegável ou indelegável; própria ou imprópria; exclusiva ou não- exclusiva. A
solução para tais indagações e divergências começa a ficar mais delineada com a
progressiva implantação do marco regulatório gerencial no Brasil.
5.4. NOVO MARCO REGULATÓRIO: A CONSTRUÇÃO DO REGIME JURÍDICO
ADMINISTRATIVO DO ESTADO GERENCIAL
Como vimos, os princípios e poderes tradicionais inerentes ao regime jurídico administrativo
referem-se ao paradigma do Estado de Bem-Estar Social. No Estado Gerencial muitas dessas
regras às quais os serviços públicos deviam submissão tornam-se obsoletas. A manutenção do
regime jurídico administrativo apresenta-se como um obstáculo para a diminuição do Estado,
para a sua retirada da ordem econômica e social e a abertura para os novos investimentos
realizados pelo capital privado.
Conforme analisado em relação ao regime de propriedade da água (capítulo IV), foram
necessárias alterações também na forma de gestão dos antigos serviços públicos. As
instituições legais do antigo Estado intervencionista vão gradativamente se moldando à nova
realidade. Um primeiro momento foi a efetivação das analisadas reformas constitucionais e
legais que abriu o mercado nacional para investimentos estrangeiros, quebrou e flexibilizou
diversos monopólios estatais sobre atividades econômicas e permitiu a delegação para a
iniciativa privada de inúmeros serviços públicos (capítulo III).
Para a concretização desse processo, foi necessária a desconstituição do antigo conceito de
serviço público em favor da ampliação da área reservada à livre iniciativa privada,
denominada atividade econômica (capítulo V, item 5.1).
Houve portanto a necessidade de redimensionar a noção de público e privado. Essa dicotomia
público-privado, como categoria da sociedade capitalista, remete às origens históricas do
Estado liberal moderno. Nele, a coisa pública surge como arma na luta da burguesia
ascendente contra a nobreza e o clero. A República é oposta ao Antigo Regime. A democracia
liberal dos cidadãos substitui o absolutismo dos súditos. Em suma, o capitalismo toma o lugar
do feudalismo como relação social.
Esse processo histórico tem então implicações profundas no regime jurídico de propriedade e
governo. A Revolução Francesa deu origem a dois ramos diversos do direito moderno: um
privado remanescente da tradição romana, pretensamente individualista, que se consolidou no
Código Civil e pretendia garantir os direitos fundamentais ligados às liberdades individuais, e
o outro público, pretensamente coletivista, que alardeava como objetivo a realização de um
“bem comum”.
O abismo que separava um ramo do outro encontra sua explicação histórica na tentativa de
cercear qualquer prerrogativa do Poder Público ainda confundido na sociedade francesa
revolucionária com os arbítrios da monarquia absolutista. Por isso, a teoria radical da
separação dos poderes.
Num segundo momento, entretanto, a ascensão das classes trabalhadoras impôs uma pauta de
direitos sociais a ser também protegidos pelo Estado como parte da esfera pública e com
fundamento no “bem comum”. Diversos direitos sociais são então reconhecidos no Estado.
uma tentativa de conciliação entre os direitos de primeira geração, individuais, e os de
segunda geração, coletivos. “Daí a bipolaridade do Direito Administrativo: liberdade do
indivíduo e autoridade da Administração; restrições e prerrogativas” (DI PIETRO, 2005, p. 65).
Essas restrições e prerrogativas mencionadas por Di Pietro estabelecem duas esferas: a
pública e a privada. Desse modo, como descreveu Jürgen Habermas, nas sociedades
capitalistas modernas, a esfera pública
passa a ter status normativo de um órgão de automediação da sociedade burguesa com um
poder estatal que corresponda às suas necessidades O pressuposto social dessa esfera pública
“desenvolvida” é um mercado tendencialmente liberado, que faz da troca na esfera da
reprodução social, à medida do possível, um assunto particular das pessoas privadas entre si,
completando assim a privatização da sociedade burguesa (HABERMAS, 1984, p. 93 apud Arair,
2000, p. 35).
A mediação realizada pela esfera pública, elucidada por Habermas, corresponde justamente à
atuação coercitiva no sentido de garantir intocável a esfera privada, âmbito das relações
privadas dos direitos individuais fundamentados na propriedade privada. Igualmente, a partir
de meados do século XX, a mediação da esfera pública atua para aparar os conflitos entre o
capital e a classe trabalhadora, incorporando a pauta política desta e substituindo as fábricas
como espaço político para reivindicações. Estas devem agora não mais ser direcionadas aos
patrões, mas, sim, aos governos dos Estados. A fábrica reforça-se como espaço privado em
oposição ao espaço público. É o parlamento o espaço político por excelência no qual foi
forjado o conceito de serviço público.
A esfera pública, nessa mediação no Estado de Bem-Estar Social, reconheceu então algumas
atividades como serviços públicos destacando-as da esfera privada. Celso Antônio Bandeira
de Mello observa que nas sociedades serviços que são considerados privados enquanto
outros são públicos. Os últimos, para o administrativista, estão submetidos ao regime jurídico
público justamente por proteger especialmente determinados direitos da cidadania.
30
Essa proteção especial, referendada pela inclusão na esfera pública, é conferida pelo Poder
Legislativo, sendo em alguns casos expressa na própria Carta Fundamental do Estado. Por
conseguinte, Bandeira de Mello ressalta que a Constituição indica que
(a) certos serviços que não podem ser serviços públicos e (b) certos serviços que o são
obrigatoriamente ou que (c) podem ser serviços públicos.
Entre os dois extremos (a) e (b) é que existe a margem legal para definir os restantes serviços
públicos. Desde que não seja afrontada a orientação constitucional indicada, e o sentido
corrente da locução “atividade econômica”, o legislador ordinário poderá criar outros serviços
públicos (BANDEIRA DE MELLO, 2005, p. 656).
Nessa citação, observa-se que o constituinte procurou separar o que seria serviço
público de atividade econômica. Segundo Maria Sylvia Di Pietro, três espécies de
atividade econômica previstas na Constituição brasileira passíveis de prestação pelo Estado.
Na primeira hipótese, existe a esfera reservada pelo legislador originário à livre iniciativa
privada. Nela, a atuação do Estado somente é autorizada em caráter excepcional, portanto
30
“A separação entre os dois campos – serviço público, como setor pertencente ao Estado, e domínio
econômico, como campo reservado aos particulares é induvidosa e tem sido objeto de atenção
doutrinária, notadamente para fins de separar empresas estatais prestadoras de serviço público das
exploradoras de atividade econômica, ante a diversidade de seus regimes jurídicos.” (BANDEIRA DE
MELLO, 2005, p. 653.)
deve ser fundamentada na segurança nacional ou relevante interesse coletivo. A atuação que
ignore esses pressupostos seria inconstitucional por violar os princípios da ordem econômica
definidos na Carta Magna (artigo 173, CRFB). O que se verifica neste caso é, na realidade,
uma intervenção estatal direta na esfera privada e como tal, em regra, submetida ao direito
comum.
31
Na segunda hipótese, a atividade econômica é ainda mais gravosa para o interesse
coletivo ou a segurança nacional, o que justifica a extração completa desta atividade da esfera
da livre iniciativa, colocando-a em regime de monopólio público como nos casos da
exploração do petróleo, minas e jazidas, de minérios e minerais nucleares (artigos 176 e 177
da CRFB).
Somente na terceira hipótese, a atividade econômica é assumida pelo Estado como
serviço público (artigo 175, CRFB), como os serviços de telecomunicações, energia elétrica,
transportes e outros indicados na legislação (artigos 21, XI e XII e 25, § 2
o
, da CRFB). Nesse
mesmo sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello ressalvou o caráter histórico da distinção
entre serviço público e atividade econômica:
Em suma: o reconhecimento de ser feito ao lume dos critérios e padrões vigentes em dada
época e Sociedade, ou seja, em certo tempo e espaço, de acordo com a intelecção que nela se
faz do que sejam a “esfera econômica” (âmbito da livre iniciativa) e a esfera das atividades
existenciais à Sociedade em um momento dado e que, por isto mesmo, devem ser prestados
pelo próprio Estado ou criatura sua (“serviços públicos”) (BANDEIRA DE MELLO, 2005, p. 654).
Se não se pode a priori definir a natureza jurídica de determinada atividade social, qual seria
o critério a ser adotado pelos juristas para separar essas atividades da ordem econômica?
Novamente, Bandeira de Mello apresenta esforço teórico para dirimir tal questão ao destacar
o aspecto formal correspondente às regras de funcionamento dos serviços.
Para este autor, o objetivo central de se alçar um serviço à categoria de serviço público é
resguardar determinados interesses da coletividade, impedindo que o Estado ou terceiros
obstaculizem a sua fruição. Para isso, tais serviços são incluídos no rol dos serviços
31
“É realmente o Estado, por meio do Poder Legislativo, que erige ou não em serviço público tal ou
qual atividade, desde que respeite os limites constitucionais. Afora os serviços públicos mencionados
na Carta Constitucional, outros podem ser assim qualificados, contando que não sejam ultrapassadas
as fronteiras constituídas pelas normas relativas à ordem econômica, as quais são garantidoras da
livre iniciativa. É que a exploração da atividade econômica, o desempenho de ‘serviços’ pertinentes a
esta esfera, assiste aos particulares e não ao Estado. Este apenas em caráter excepcional poderá
desempenhar-se empresarialmente nesta órbita.” (BANDEIRA DE MELLO, 2005, p. 652.)
submetidos ao regime jurídico-administrativo de Direito Público. É então dispensável frisar
que tais serviços públicos não poderiam gozar do regime de Direito Privado, pois esta
condição eliminaria a necessidade de distinção jurídica entre serviços privados e públicos.
A priorização do regime jurídico administrativo para o conceito não é, no entanto, unânime na
doutrina administrativista. José dos Santos Carvalho Filho concorda que o serviço por ser de
interesse público e instituído pelo Estado estará sempre, em regra, obediente aos princípios do
regime de direito público. Contudo, diferentemente, flexibiliza a importância do regime para a
definição conceitual da natureza das atividades. Chega inclusive a inovar ao admitir a
existência de um “regime brido”, no qual haveria uma mescla de princípios de direito
público e privado, embora reconheça a prevalência do primeiro em caso de colisão entre eles
(CARVALHO FILHO, 2005, p. 262).
Essa flexibilização do regime jurídico administrativo é contestada por Bandeira de Mello, pois
este autor não vislumbra relevância na noção jurídica que incorpora atividades regidas pelo
direito comum, civil e empresarial, como serviços públicos:
Como toda e qualquer noção jurídica, esta serviço público só tem préstimo e utilidade se
corresponder a um dado sistema de princípios e regras; isto é, a um regime, a uma disciplina
peculiar (BANDEIRA DE MELLO, 2005, p. 634).
Por conseguinte, o interesse para os juristas nessa qualificação seria justamente identificar
quais as regras aplicadas àquela atividade. Desse modo, descarta, por exemplo, conceitos
como os de “serviço público econômico” (atividade estatal na ordem econômica sob regime
privado) por não servir aos juristas.
32
Vislumbra-se, finalmente, a existência de duas esferas de atuação estatal. De acordo com a
atividade que execute, a Administração Pública pode submeter-se aos regimes de direito
público ou privado. A legislação brasileira, em consonância com os interesses envolvidos,
resguarda algumas atividades ao regime publicístico ou as reservam à livre iniciativa privada.
Di Pietro, analisando a Constituição da República de 1988, cita como exemplo dessa escolha
os seus artigos 173, §1
o
e 175:
32
Como evidenciado, salienta-se que atividade econômica também se difere de serviço público: “na
conformidade do regime de Direito Privado, é evidente que em hipóteses quejandas não se estará perante
atividade pública, e, portanto, não se estará perante serviços públicos” (BANDEIRA DE MELLO, 2005, p. 646).
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade
econômica pelo Estado será permitida quando necessária aos imperativos da segurança
nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definido em lei.
§ 1
o
. A lei estabelecerá o Estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia
mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou
comercialização de bens ou de prestação de serviços (...).
Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão
ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
Observa-se que, no primeiro caso, o legislador originário definiu que as empresas públicas, as
sociedades de economia mista e as subsidiárias obrigatoriamente estariam enquadradas no
regime de direito comum ao qual estavam submetidas as demais sociedades empresárias.
Assim, no direito brasileiro, em regra, aplica-se o regime jurídico de direito comum, civil e
empresarial quando houver omissão do legislador. Contudo, as atividades da Administração
sempre possuem um caráter específico, havendo derrogações em favor do interesse público.
33
Portanto, na Administração Pública a coexistência de dois regimes jurídicos diversos: o
regime privado, anteriormente mencionado, com suas derrogações e o regime jurídico-
administrativo propriamente dito. Quando nos referimos a este último, tratamos do conjunto
de prerrogativas e sujeições especiais da Administração.
Esse regime publicístico tem, em regra, como característica a submissão da atividade a
prerrogativas e restrições especiais. Di Pietro cita então alguns exemplos dessas regras
peculiares que não se verificam na relação entre particulares:
A auto-executoriedade, a autotutela, o poder de expropriar, o de requisitar bens e serviços, o
de ocupar temporariamente o imóvel alheio, o de instituir servidão, o de aplicar sanções
administrativas, o de alterar ou rescindir unilateralmente os contratos, o de impor medidas de
polícia, a imunidade tributária, prazos dilatados em juízo, juízo privativo, processo especial de
execução, presunção de veracidade dos seus atos (DI PIETRO, 2005, p. 65 e 66).
33
Desse modo, Di Pietro pretende ressaltar que mesmo em caso de prevalência das regras do
regime de direito comum haverá sempre, em virtude do interesse público que envolve a
Administração, possibilidade de se recorrer às prerrogativas conferidas pelos princípios de direito
público.
com relação às sujeições do denominado regime de direito público podem ser elencadas
como características: a obrigatoriedade de concurso para seleção de pessoal; a exigência de
licitação para acordos com particulares além da vinculação dos seus atos à finalidade pública,
à competência, à forma, ao motivo, ao procedimento e aos princípios como os da moralidade
e publicidade. Igualmente, também se verifica a presença de bens públicos e sua decorrente
impenhorabilidade e inalienabilidade. É esse conjunto de prerrogativas e restrições que
constitui o regime jurídico administrativo, informado e ordenado por princípios de direito
público.
34
Contra alguns desses princípios e prerrogativas que compõem o regime jurídico
administrativo se insurgem os interesses das concessionárias de serviços públicos. Não
interessam às sociedades privadas, por exemplo, os princípios da continuidade ou da
modicidade das tarifas que, respectivamente, restringem a sua liberdade de suspender a
prestação do serviço no caso de inadimplemento do usuário ou ajustar as tarifas conforme a
sua vontade. Não é à toa o recente clamor do empresariado a favor do estabelecimento de um
marco regulatório que dê segurança para os investimentos no setor dos serviços públicos.
A defesa do novo marco regulatório consiste basicamente na restrição do conceito de serviço
público por meio de principalmente duas medidas: redução da sua abrangência,
transformando antigos serviços públicos em atividade econômica e flexibilizando o regime
jurídico administrativo, permitindo que serviços públicos fossem prestados por sociedades
privadas num regime híbrido.
Primeiramente, a teoria da regulação cumpre função ideológica relevante ao fundamentar a
mudança do paradigma estatal para o gerencial. Para tanto, era necessário, conforme percebeu
Bandeira de Mello, pôr fim à antiga noção de serviço público:
Chegou-se a apregoar o fim da noção de serviço público e uma suposta superação do Direito
Administrativo até então existente, substituídos um e outro pela maravilha da livre iniciativa e
da auto-regulação do mercado, tudo no melhor estilo e sotaque norte-americano. Os que disto
se fizeram arautos cumpriram, em sua maioria sem se aperceber, o papel de massa de
manobra para a portentosa campanha de marketing conduzida pelos organismos financeiros
internacionais manejados pelos países cêntricos, nos quais, para penetrar livremente nos
mercados dos países emergentes e praticar o vampirismo econômico”, foram elaborados os
motes “globalização” e “reforma do Estado”, em termos que lhe facilitassem os objetivos. Eis
34
No regime jurídico de direito comum, ao contrário, as relações de trabalho são regidas pelo regime trabalhista
ou do emprego público (CLT). Os bens que não o afetados pelo interesse público submetem ao regime civil,
podendo ser penhorados e alienados livremente.
por que tal movimento, a fim de causar impressão em meios jurídicos, de cujo apoio não
poderia prescindir para a sustentação das indispensáveis teses político-administrativas
correlatas, se faz acompanhar de arremedos teóricos na área do Direito Administrativo,
suficientes para impressionar alguns segmentos, que facilmente tomaram a nuvem por Juno,
hipnotizados pela aludida manobra publicitária (BANDEIRA DE MELLO, 2005, p. 634 e 365).
Esse “vampirismo econômico” ao qual se refere o autor se completou com grande êxito após
as reformas constitucionais. No Brasil, foram alienadas para grupos estrangeiros todas as
empresas que prestavam serviços de telecomunicações, grande parte das geradoras e
distribuidoras de energia elétrica, foi permitida a exploração das riquezas minerais e da
navegação costeira e interior, além da abertura para o capital internacional das empresas
jornalísticas e de radiodifusão sonora e de sons e imagens.
Desse modo, com relação à redução da abrangência dos serviços públicos, a mudança de
paradigma de fato se efetivou. Contudo, essas reformas legislativas ocorridas ao longo da
década de 1990 não foram suficientes para substituir definitivamente a concepção burocrática
intervencionista pela gerencial. A adequação se verifica de forma mais lenta nos costumes, na
jurisprudência e na própria doutrina administrativa. Nesses espaços segue a disputa entre as
diversas visões presentes na sociedade.
Para a transição tornar-se plenamente satisfatória para os interesses das sociedades privadas
do setor de serviços faz-se necessária à eliminação de resquícios da teoria do serviço público
presentes nos princípios do regime jurídico administrativo. Novamente, a teoria da regulação
cumpre função de destaque ao propor a modificação dos princípios públicos de gestão dos
serviços por um regime híbrido.
De acordo com Bandeira de Mello, esses “arremedos teóricos na área de Direito
Administrativo” correspondem à construção de um novo regime jurídico no qual estejam
presentes regras de direito privado e público simultaneamente. O erigir desse novo marco
regulatório é marcado, no entanto, pelo antagonismo dos interesses sociais afetados por tais
definições de princípios. Como bem observou o ministro Eros Grau, ao analisar a distinção
entre atividade econômica e serviço público:
Sustentei ser a distinção entre um (serviço público) e outra (atividade econômica em sentido
estrito) função das vicissitudes das relações entre as forças sociais. Por isso que, em termos de
modelo ideal, a distinção nos termos seguintes seria estabelecida. Pretende o capital preservar
para sua exploração, como atividade econômica em sentido estrito, todas as matérias que
possam ser imediata ou potencialmente, objeto de profícua especulação lucrativa. o
trabalho aspira atribua-se ao Estado, para que este as desenvolva não de modo especulativo, o
maior número possível de atividades econômicas (em sentido amplo). É a partir desse
confronto do estado em que tal confronto se encontrar, em determinado momento histórico
que se ampliarão ou reduzirão, correspectivamente, os âmbitos das atividades econômicas
em sentido estrito e dos serviços públicos. Evidentemente, a redução de um ou outro desses
campos será função do poder de reivindicação, instrumentado por poder político, de um e
outro, capital e trabalho. A definição, pois, desta ou daquela parcela da atividade econômica
em sentido amplo como serviço público é permanecemos a raciocinar em termos de modelo
ideal decorrência da captação, no universo da realidade social, de elementos que informem
adequadamente o estado, em um certo momento histórico, do confronto entre interesses do
capital e do trabalho. (GRAU, 2005, p. 110 e 111.)
Foram essas “vicissitudes entre as forças sociais”, com a ascensão do movimento de
trabalhadores no período da redemocratização, que gravaram na Constituinte de 1988 uma
série de direitos sociais e serviços públicos. Da mesma maneira, é a correlação de forças
sociais que agora vem inserindo no regime privado de gestão o maior número possível de
atividades, as reservando para a “profícua especulação lucrativa”.
Entretanto, o choque entre o paradigma burocrático e o gerencial, entre a esfera pública e a
privada não se harmoniza sem contradições. Essas contradições, porém, também estão se
resolvendo a favor dos interesses do capital. O regime jurídico híbrido que surge desse
processo preserva prerrogativas e poderes especiais da Administração, úteis ao capital, como
a compulsoriedade e a executoriedade, ao mesmo tempo que ignoram os princípios que
beneficiam os usuários como a anterioridade, a continuidade e a publicidade. No próximo
capítulo, evidenciaremos juridicamente esse fenômeno pela análise detida da jurisprudência a
respeito do serviço de distribuição de água delegado à iniciativa privada.
6.3 SUSPENSÃO DO SERVIÇO E PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE
Diante da reforma do Estado brasileiro, o Poder Judiciário foi obrigado a resolver no caso
concreto as lacunas e contradições surgidas com a mudança de modelo de gestão estatal. As
sucessivas emendas constitucionais que diminuíram a prestação de serviços públicos e a
produção de bens pelo Estado acarretaram também a exigência de novas definições jurídicas
quanto à proteção legal concedida aos bens e serviços cujo regime era público estatal.
O processo de transformação do Estado, no qual houve diminuição da atuação estatal
direta no setor de prestação de serviços e produção de bens, não foi acompanhado de correlata
adequação institucional. A delegação à iniciativa privada da prestação desses serviços, cuja
titularidade continuou pública, ganhou um importante marco legal com a publicação da Lei
8.987/1995 que regulamentou as concessões e permissões. Porém, esta não foi suficiente para
dirimir as controvérsias decorrentes da adoção de um novo modelo de gestão.
Questões referentes à aplicação das regras e dos princípios da Administração a estes contratos
seguiram indefinidas. Foi, então, o Poder Judiciário, a partir do exercício da jurisdição, que
primeiramente passou a enfrentar teoricamente as contradições e conflitos que essa
transformação na ordem econômica implicaram.
Como fonte do direito, essa jurisdição passou a constituir um marco regulatório para a gestão
da água no Brasil. Embora a submissão ao controle difuso de centenas de juízes e dezenas de
tribunais suscitasse divergências, começaram a se desenhar regras para a exploração dessas
atividades econômicas. Algumas dessas decisões contrariavam os interesses das sociedades
privadas prestadoras de serviços públicos: a vedação à suspensão do fornecimento, a
possibilidade de rescisão unilateral do contrato por meio do instituto da encampação, a
proibição da cobrança de tarifa nima e progressiva, a atribuição ao Poder Público da
fixação das tarifas, entre outras medidas restritivas ao seus fins lucrativos.
Um desses obstáculos à maximização dos lucros era a vedação à suspensão dos serviços em
razão do princípio da continuidade. Na pesquisa realizada no II Juizado Especial Cível de
Niterói, 19% das demandas analisadas tinham como um dos pedidos o restabelecimento da
ligação que havia sido suspensa, via de regra, por inadimplência do usuário. No processo n
o
2004.815.004829-3, por exemplo, o entendimento foi no sentido de considerar, com
fundamento no Código de Defesa do Consumidor, ilegal a cobrança:
O dano moral encontra-se evidenciado em razão da conduta desrespeitosa perpetrada pela
empresa ré, efetuando cobrança que por evidente é abusiva, se negando a corrigir o seu erro,
impingindo ao consumidor cobrança abusiva que teve como conseqüência a interrupção do
fornecimento do serviço (Processo n
o
2004.815.004829-3, II JEC Niterói).
Esse posicionamento judicial não se configura uma exceção. Ao contrário, os juízes em
muitos casos interpretam as relações entre concessionárias e usuários à luz do Código de
Defesa do Consumidor, o que muito contraria os interesses da iniciativa privada com
investimentos no setor.
Por outro lado, nessa hipótese maior proteção legal aos consumidores do que aos usuários
de serviços públicos, o que, por si só, aponta questões importantes a serem compreendidas.
Numa primeira impressão, seria de se supor que as relações de consumo privadas são menos
protegidas que as relações advindas da prestação de serviços públicos, haja vista que estes
estão atrelados justamente a interesses públicos protegidos por um regime jurídico especial.
Os processos, no entanto, demonstram que, paradoxalmente, o fundamento legal da
interrupção do serviço sustentado pelas concessionárias é a Lei de Concessões e Permissões
de Serviços Públicos (Lei 8.987/1995) enquanto os cidadãos valem-se do Código de Defesa
do Consumidor (Lei 8.078/1990):
Art. 6
o
, § 3
o
. Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em
situação de emergência ou após prévio aviso, quando:
- motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações;
por inadimplemento do usuário, considerando o interesse da coletividade. (Lei 8.987/1995,
grifos meus.)
Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob
qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados,
eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas
neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados
na forma prevista neste Código.
Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem
será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.
Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do
indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária
e juros legais, salvo hipótese de engano justificável. (Lei 8.078/1990, grifos meus.)
Essa aparente contradição encontra explicação na inserção da primeira lei no contexto
histórico das reformas do Estado em 1995. Percebe-se que de fato houve a intenção do
legislador de permitir, a partir de 1995, que os usuários inadimplentes tivessem os serviços
suspensos. Não obstante, muitas das decisões judiciais não admitem a possibilidade de
interrupção do serviço público nessa hipótese.
Desse modo, quando as sociedades empresárias reivindicam um marco regulatório que lhes dê
segurança jurídica para os investimentos, o que estão pleiteando, na realidade, é a edição de
leis que modifiquem o entendimento de parte expressiva do judiciário, não apenas quanto à
suspensão mas com relação a quaisquer aspectos que prejudiquem os seus investimentos.
Em Ribeirão Preto, contrariando os interesses de uma multinacional da água, o Poder
Judiciário determinou a rescisão unilateral do contrato com a encampação dos serviços. Essa
decisão é inclusive apontada em relatório do Banco Mundial como exemplo de insegurança
jurídica a ser combatida.
Apesar dessas críticas dos empresários e das organizações financeiras internacionais, por se
tratar de um recurso essencial anteriormente protegido pelo Estado brasileiro, não há ainda na
doutrina e na jurisprudência entendimento homogêneo com relação à matéria. Ao contrário,
observa-se grande dificuldade em interpretar e aplicar as normas aos casos concretos, como
salientou José dos Santos Carvalho Filho:
Como é imposto em caráter obrigatório, domina o entendimento da doutrina e da
jurisprudência, com alguma controvérsia, no sentido de que esse tipo de serviço não pode ser
objeto de suspensão por parte do prestador, até mesmo porque tem ele a possibilidade de
valer-se das ações judiciais adequadas, inclusive e principalmente a execução fiscal contra o
usuário inadimplente (CARVALHO FILHO, 2005, p. 272).
No entanto, a pesquisa verificou uma tendência inversa à indicada pelo autor. A mudança
gradativa na jurisprudência, principalmente dos tribunais superiores, aponta para acatar o
entendimento no sentido de aceitar a interrupção do serviço por inadimplência do usuário, e
conformando as decisões de primeira instância às decisões de seus julgados.
precedente no Superior Tribunal de Justiça que serve como caso paradigma para ilustrar o
debate jurídico a respeito da matéria. Os ministros foram compelidos a enfrentar a questão da
legalidade da suspensão do fornecimento de água em Recurso Especial interposto pela
Companhia de Saneamento de Minas Gerais – COPASA.
A relatora do Recurso Especial n
o
337.965–MG, ministra Eliana Calmon, sustentou em seu
voto a legalidade da suspensão do serviço público de distribuição de água por falta de
pagamento da usuária do serviço. Conforme salientamos, essa interpretação não foi unânime
no Superior Tribunal de Justiça, pois o ministro Paulo Medina pediu vista dos autos e
posicionou-se no sentido diametralmente oposto.
Enquanto a relatora votou pelo improvimento do recurso, mantendo o acórdão, por entender
não haver qualquer ilegalidade na suspensão, o ministro Paulo Medina interpretou haver uma
ilegalidade na conduta da concessionária ao suspender o fornecimento de um serviço público
essencial.
Essas alegações e fundamentações dos magistrados permitem a identificação das questões
jurídicas que surgem com a gradativa implementação do novo regime jurídico dos serviços
públicos preconizada pelo modelo de Estado Gerencial. A solução da lide entre usuária e
concessionária exigiu, no caso concreto, interpretação das regras e princípios de
funcionamento dos serviços públicos após a reforma do Estado que delegou a prestação de
tais atividades para sociedade privadas.
Ambas as partes apresentaram fundamentação legal, jurisprudencial e doutrinária para
embasar os seus pedidos. Uma das primeiras questões debatidas foi a mencionada
controvérsia sobre a aplicação do artigo 6
o
, § 3
o
da Lei 8.987/1995 (Lei das Concessões e
Permissões) ou os artigos 22 e 42 da Lei 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor).
A maioria dos defensores da tese favorável às concessionárias da suspensão dos serviços
alegou a aplicação da Lei de Concessões por esta ser posterior e específica em relação ao
Código. Igualmente, o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais citou o
referido artigo da Lei 8.987/95 para reformar a decisão de primeira instância e permitir a
suspensão do fornecimento de serviços em caso de inadimplência.
O magistrado mineiro, em primeiro grau, acolhera a pretensão, considerando o disposto nos
citados artigos da Lei 8.078/90 de que a menção à expressão “serviço essencial” implicaria na
exigência legal de fornecimento compulsório daqueles serviços pelo Estado ou por quem dele
se fizer parte. Por conseguinte, a interrupção dos serviços de distribuição de água pela
COPASA colidiria com estas previsões do Código de Defesa do Consumidor, o que
implicaria ilegalidade dessa conduta.
Esse posicionamento era respaldado por decisões anteriores correlatas do próprio tribunal
sobre o serviço de fornecimento de energia elétrica. Os ministros da primeira turma foram
unânimes em considerar ilegal a interrupção da energia elétrica. Mesmo que inadimplente o
usuário, consideraram que a vedação expressa no artigo 42 do Código de Defesa do
Consumidor impede a exposição do consumidor ao ridículo. A concessionária de serviço
público deveria também se utilizar dos meios próprios para cobrança dos pagamentos em
atraso.
35
O ministro Paulo Medina, autor de voto contrário ao da relatora, defendeu uma interpretação
conforme a Constituição. Desse modo, a suspensão do fornecimento de água seria, segundo
ele, uma afronta aos preceitos constitucionais da proteção à dignidade da pessoa humana.
Considerou, por conseguinte, que esse princípio foi consagrado como fundamento da
República no artigo 1
o
, III, e também como finalidade da ordem econômica no artigo 170,
caput, da Constituição de 1988. A diretriz constitucional deve, segundo essa premissa,
informar a interpretação dos magistrados de maneira a buscar a máxima efetivação da
dignidade humana e da proteção ao usuário:
A solução de qualquer controvérsia que gire em torno da prestação de serviços públicos, deve
observar os princípios fundantes do ordenamento jurídico constitucional brasileiro, dotados de
caráter impositivo e conformador, especificamente o da dignidade da pessoa humana e da
proteção ao usuário.
36
Em seu voto, o ministro Paulo Medina sustenta interpretação que busca a solução que
melhor preserve tais princípios constitucionais. Considera, assim, equivocada interpretação
que exclua a prestação dos serviços públicos da aplicação do Código de Defesa do
Consumidor, discordando daqueles que defendem a aplicação direta do artigo 6
o
, § 3
o
, II, da
Lei 8.987/95.
Igualmente, Paulo Medina descarta a hermenêutica que pretende aplicar a anterioridade,
dando prevalência à Lei de Concessões, de 1995, sobre o Código de Defesa do Consumidor,
de 1990. Alega que a proteção à dignidade humana e ao consumidor-usuário, pólo mais fraco
da relação de consumo, impõe interpretação sistemática da Lei das Concessões e Permissões.
Por motivos idênticos, rejeita a argumentação que invoca a especialidade da Lei das
Concessões em relação ao Código do Consumidor:
35
Primeira Turma do STJ (REsp 122.812/ES, rel. Min. Milton Luiz Pereira, 1
a
Turma, unânime, DJ 23/06/2001).
36
REsp 337.965/MG, rel. Min. Eliana Calmon, 2
a
Turma, voto Paulo Medina, DJ 23/06/2001.
As razões aduzidas estão a justificar também a prevalência dos artigos 22 e 42 do CDC sobre
as demais normas pertinentes, pelo menos até a edição da legislação específica, prevista pelas
alterações introduzidas pela Emenda 19/98. Ressalta-se que a interpretação sistêmica do
ordenamento jurídicoo elide a incidência das normas do Código de Defesa do Consumidor
ao caso, sob suposto fundamento de tratarem-se de normas gerais, a serem desprezadas
quando em confronto com a legislação específica das Concessões, precisamente, o artigo 6, §
3
o
, II.
37
Outro argumento utilizado pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça remete a uma
interpretação literal dos citados diplomas legais. Desse modo, observa-se que o artigo 22 do
Código de Defesa do Consumidor faz referência aos “serviços públicos essenciais” enquanto
o artigo 6
o
da Lei 8.987/95 menciona apenas “serviço”.
A conclusão seria pela aplicação do artigo 6
o
somente para os serviços públicos que não
fossem essenciais. Então, a permissão para suspensão por inadimplência do usuário teria sido
autorizada pelo legislador apenas para serviços o-essenciais. Nas hipóteses de serviços
públicos essenciais, como o fornecimento de água, aplicar-se-ia o artigo 22 do Código do
Consumidor que veda a interrupção destes. A debilidade deste argumento reside na remissão
obrigatória para a problemática da classificação dos serviços públicos, ainda mais nebulosa
nos dias atuais, como pudemos demonstrar no capítulo anterior.
Não satisfeito com o recurso aos princípios constitucionais e a interpretação sistemática e
literal, o ministro acresce a exposição de seu posicionamento os artigos 7
o
, 11 e 13 da própria
Lei de Concessões e Permissões como fundamentos legais da impossibilidade da suspensão
dos serviços:
Art. 7
o
Sem prejuízo do disposto na Lei 8.078, 11 de setembro de 1990, são direitos e
obrigações dos usuários:
Art. 11. No atendimento às peculiaridades de cada serviço público, poderá o poder concedente
prever, em favor da concessionária, no edital de licitação, a possibilidade de outras fontes
provenientes de receitas alternativas, complementares, acessórias ou de projetos associados,
com ou sem exclusividade, com vistas a favorecer a modicidade das tarifas, observado o
disposto no art. 17 desta Lei.
37
Idem.
Parágrafo único. As fontes de receita prevista neste artigo serão obrigatoriamente
consideradas para a aferição do inicial equilíbrio econômico-financeiro do contrato
Art. 13. As tarifas poderão ser diferenciadas em função das características técnicas e dos
custos específicos provenientes do atendimento aos distintos segmentos de usuários. (Lei
8.987/1995, grifos meus.)
Junta, assim, aos seus argumentos a determinação expressa no artigo 7
o
da Lei 8.987/95 que
determina que a aplicação dos dispositivos desta lei deve se compatibilizar com o Código de
Defesa do Consumidor. Portanto, para o magistrado, o legislador preocupou-se em inibir que
possíveis interpretações daquela lei causem prejuízos aos direitos e deveres dos consumidores
desses serviços.
Destaca ainda que igualmente, nos artigos 11 e 13 do mesmo diploma legal, previsão que
corrobora a tese favorável aos usuários inadimplentes. Segundo o ministro Paulo Medina, a
menção ao princípio da modicidade das tarifas e a possibilidade expressa da fixação de tarifas
sociais ou subvencionadas demonstra de forma inequívoca a proteção concedida pelo
legislador às atividades consideradas por ele essenciais. Essas tarifas, por sua vez, apontariam
claramente para o estabelecimento de tratamento diferenciado para os usuários em condição
financeira mais precária, com objetivo de garantir vias alternativas de acesso aos serviços.
38
Todos esses argumentos não foram, entretanto suficientes para mudar o entendimento dos
ministros do Superior Tribunal de Justiça, convencendo-os a manter a vedação da suspensão
dos serviços públicos. A interpretação majoritária acolhida foi a desenvolvida pela ministra
relatora Eliana Calmon que concluiu pela legalidade da suspensão.
Para a magistrada, pelo princípio da anterioridade e especialidade, deve ser aplicado à
hipótese o artigo 6
o
da Lei 8.987/1995. Considera ainda que o próprio Código do Consumidor
não exige o fornecimento gratuito do serviço de água. As concessionárias seriam então
autorizadas a suspender os serviços tanto pela Lei de Concessões quanto pelo Código de
Defesa do Consumidor que também admitiria a exceção de contrato não cumprido. Conforme
a Lei de Concessões, “Sob o aspecto da norma específica, estão as concessionárias
38
O ministro Paulo Medina cita o administrativista Marçal Justen Filho no seu referido voto: “O primeiro tópico
a discutir-se refere-se à admissibilidade da vinculação das tarifas a circunstâncias subjetivas patrimoniais dos
usuários. Aplicar-se-ia uma modalidade do princípio da capacidade contributiva, de molde a que os desvalidos
do destino recebessem tratamento mais favorecido. Não parece questionável a validade (aliás, obrigatoriedade)
dessa solução, em face dos princípios constitucionais fundamentais. (...) Aliás, muito ao contrário, a pobreza
exige intervenção protetora do Estado e pressupõe necessidade muito mais intensa de receber serviços aos quais
o individuo não tem acesso por outra via”.
autorizadas a suspender os serviços, quando o pagas as tarifas” (art. 6, § 3
o
, II, da lei
8.987/95).
39
Desse modo, conclui-se que as questões levantadas dizem respeito à essencialidade dos
serviços, aos princípios constitucionais de preservação da vida, o princípio da continuidade do
serviço público e da modicidade de suas tarifas. Todas essas questões demandam definições
políticas e jurídicas centrais.
6.4 “TAXA DE ESGOTO”: NATUREZA JURÍDICA HÍBRIDA DESSE INSTITUTO
Outra questão de relevância que motivou diversas demandas nos Juizados Especiais foi a
denominada “taxa de esgoto”.
40
Diversos usuários dos serviços pleitearam em juízo ser
indevida a cobrança da referida taxa pelo fato de a concessionária não disponibilizar o serviço
de coleta de esgoto para suas residências. Podemos citar, como exemplos pesquisados, os
seguintes processos do II Juizado Especial Cível de Niterói: 2004.815.003559-6,
2003.815.003463-2 e 2003.815.006146-5.
No processo n
o
2004.815.003559-6, a sentença em seu relatório destaca que o autor da
demanda “aduz que houve cobrança ilegal pelo serviço de esgoto quando não havia sido
instalado”. Para solucionar a lide, o magistrado vê-se necessariamente compelido a enquadrar
a cobrança pelos serviços de distribuição de água e coleta de esgoto em um determinado
regime de prestação e remuneração: público ou privado.
Os que defendem a natureza pública dos serviços consideram também que estes são
remunerados através de taxas enquanto aqueles que consideram ser de natureza pública
entendem que a remuneração é devida através de preço público. O tributarista Ricardo Lobo
Torres destaca assim, como elemento indispensável da definição de tarifa ou preço público a
fruição efetiva do serviço:
O preço público tem caráter vinculado ou contraprestacional, pois visa a remunerar o Estado
pela prestação de serviços públicos inessenciais (...) A compulsoriedade com relação ao preço
público só tem importância negativa: não se pode cobrá-lo se não houver utilização do serviço
(TORRES, 2005, p. 189-191).
39
REsp 337.965/MG, rel. Min. Eliana Calmon, 2
a
Turma, DJ 23/06/2001.
40
A cobrança pela distribuição de água e coleta de esgoto recebe denominação diversa nos boletos de pagamento
enviados pelas concessionárias para os domicílios dos usuários. o obstante a adoção da expressão “taxa”, o
que nos interessa identificar são as regras às quais esta classificação se remete.
Contudo, somente a definição da natureza do regime permite identificar se o usuário é
obrigado a consumir e pagar por determinado serviço e, conseqüentemente, se o Estado é
obrigado a prestá-lo. Segundo a Constituição da República, as taxas são uma espécie de
tributo que pode ser instituído pela União, Estados, Distrito Federal
D na
Público, pode fazê-lo, sem sofrer qualquer sanção, e sem estar obrigado, para deslocar-se (o
que pode fazer por outro meio de transporte, ou, em último caso a pé), a cometer infração
administrativa. No caso da remoção de lixo, que sua produção é necessária, não é possível
ao particular sequer omitir-se, pois, ainda assim, estará infringindo norma de controle
sanitário (RE n
o
89876-RJ).
Nota-se que, na direção do voto do ministro, um serviço público que fosse
compulsório ao particular e ao próprio Poder Público indiscutivelmente teria natureza de
tributo e, sendo específico e divisível, revestido na espécie de taxa. O citado jurista,
Luciano Amaro afirma que o que se deve discutir não são os conceitos (de taxa ou preço
público), mas sim os critérios que permitam elencar em lados distintos os serviços que devam
ser objeto de imposição de uma taxa daqueles que sejam objetos de contratação. Em suma, o
regime jurídico da prestação e cobrança pelos serviços.
A denominada “taxa de esgoto” de Niterói deve, por conseguinte, ser analisada sob
estes prismas. Nas demandas dos juizados especiais de Niterói, embora não haja um
entendimento unívoco sobre a matéria, percebe-se a tendência dos magistrados de considerar,
a despeito da nomenclatura oficial, a remuneração devida desses serviços mediante taxas:
Quanto ao pedido de fornecimento do serviço de esgoto, a empresa realizou contrato de
concessão com a empresa pública municipal EMUSA e, conforme restou comprovado nos
autos, o está cumprindo de forma integral.
Na prestação do serviço de esgoto está previsto no contrato de concessão que a empresa
deve fornecer este serviço em 80% do município de Niterói, meta esta que vem sendo atingida
pela empresa ré.
Logo, não obrigação contratual da empresa em fornecer o serviço de esgoto na
totalidade do bairro de Piratininga a justificar e viabilizar a procedência do pedido autoral,
como se comprova às fls. 89 (Processo n
o
2003.815.003463-2, II JEC Niterói).
Nessa sentença proferida no processo de demanda do Juizado Especial de Niterói, o
entendimento do magistrado da primeira instância pautou-se pelo cumprimento das metas de
expansão do saneamento. Verificada a adequação das concessionárias às metas fixadas pelo
município concedente, estaria legitimada a cobrança.
Esse regime de cobrança do serviço de esgoto em Niterói possui prerrogativas de
direito público correspondentes à espécie tributária das taxas. Em primeiro plano, percebe-se
o estabelecimento entre o Poder Público e o contribuinte de uma relação recíproca de
obrigatoriedade quanto ao serviço de coleta de esgoto. Não nessa relação o livre acordo de
vontades dos contratos pautados pelo direito civil e empresarial, pois o foi concedida a
opção ao particular para aderir ou não ao contrato de prestação de serviços.
Ao contrário, assim como o precedente mencionado da taxa de esgoto, uma
compulsoriedade inata à essencialidade do serviço e pelo interesse público na preservação da
saúde e higiene coletivas. Desse modo, o particular não pode se escusar de utilizar a rede
pública de esgoto, optando por despejar o seu esgoto em fossas sépticas residenciais, em rios
ou lagoas, pois estaria infringindo a legislação sanitária e ambiental. Não seria tolerável, pelo
poder público municipal ou pelo cidadão de Niterói, o despejo de 13 milhões de litros diários
de detritos nas lagoas de Itaipu e Piratininga conforme noticiado no jornal O Globo.
41
Em outro plano, também é inconcebível que o particular possa se escusar de pagar a
taxa de esgoto com fundamento na sua não fruição devido à não disponibilização da rede
pública de coleta de esgoto. O edital de licitação publicado pela Prefeitura de Niterói
reconhecia que apenas 40% da população urbana era beneficiada pela rede de esgoto:
10.3.12. Até o 36
o
mês, contado da ordem de serviço inicial, deverão estar atendidos com rede
de esgoto tratados, 60% da população urbana do Município, incluindo todos os bairros.
10.3.13. Até o 60
o
mês, contado da ordem de serviço inicial, deverão estar atendidos com rede
de esgoto tratados, 80% da população urbana do Município, incluindo todos os bairros.
10.3.14. Até o 84
o
mês, contado da ordem de serviço inicial, deverão estar atendidos com rede
de esgoto tratados, 90% da população urbana do Município, incluindo todos os bairros (Edital
de Concorrência Pública n
o
01/1997).
Desse modo, o citado edital previa, nos seus itens 10.3.12, 10.3.13 e 10.3.14, uma
meta a ser atingida de aumento progressivo da rede de esgoto para 60%, 80% e, após o sétimo
ano, 90% da população urbana em todos os bairros do município. Embora a rede de esgoto
não estivesse ainda disponível para toda a cidade, a taxa já era cobrada e assim imposta a toda
a coletividade.
Entretanto, ao lado dessa obrigatoriedade, coexistem características de direito comum
relacionadas à prestação de atividade econômica. Como concluímos, se a cobrança pelo
serviço de coleta é compulsória e esta é efetivada independentemente da fruição, estamos
diante da definição de uma espécie tributária. Contudo, se estamos diante de espécie
41
Jornal O Globo, Caderno Niterói, 22 de março de 2006.
tributária, era de se esperar que, além dessas prerrogativas do regime público, estivessem
presentes também as sujeições como a obediência ao princípio tributário da anualidade e
anterioridade e a indelegabilidade para particulares de sua instituição (ex legis) ou cobrança.
O problema da adequação institucional-legal vislumbrado por Bresser Pereira para a
delegação dos antigos serviços públicos à iniciativa privada faz-se notar nessa contradição. De
fato, como propunha o autor, era necessário em termos teóricos superar a dicotomia entre
público e privado.
Conceitos como “público não-estatal” começaram a aparecer na doutrina como instrumento
harmonizador da realidade diversa do modelo de Welfare State. Por conseguinte, verificou-se
um amplo espaço nebuloso onde os interesses dos grupos sociais mais fortes acabam por
prevalecer. Institutos jurídicos híbridos inconstitucionais acabam por ter efetividade social.
Sem o conceito de público não-estatal um instituto brido como a “taxa de esgoto” não
poderia prosperar. Somente com tais inovações na doutrina jurídica seria possível conceber
que uma sociedade privada, cujos fins são lucrativos, cobrasse taxa compulsória, criada por
contrato e majorada unilateralmente, apesar de dispensar o consumo efetivo. O público não-
estatal, como reconheceu o próprio Bresser Pereira, justifica as prerrogativas e subsídios
concedidos ao capital privado.
A análise jurídica da denominada “taxa de esgoto” revela então quanto o debate sobre as
formas jurídicas está subordinado às relações e interpretações sociais conflitantes. O que
aparentemente seria um debate sobre a natureza jurídica da referida cobrança, taxa ou preço
público, demonstra um profundo antagonismo entre interesses sociais irreconciliáveis.
O exemplo da concessão em Niterói ilustra a construção gradativa desse novo regime para os
serviços públicos. O município delegou, por meio de licitação, o serviço de distribuição de
água e coleta de esgoto para a empresa Águas de Niterói. No contrato, havia a previsão da
cobrança de taxa pelo serviço ambiental de coleta de esgoto que até então atingia somente
40% da população, como já destacado.
Essa taxa passou a ser cobrada imediatamente, na fatura da conta de água e com base de
cálculo sobre o consumo da água para todos os contribuintes, e não apenas para os 40% que já
usufruíam o serviço. Qual seria a natureza jurídica do instituto: preço público ou taxa?
A cobrança da “taxa de esgoto” em Niterói é compulsória e cobrança da fruição potencial
haja vista que, quando instituída, apenas 40% da população era atendida pela rede de esgoto.
Conclui-se que a natureza é de taxa. Porém, não houve respeito às limitações constitucionais
ao poder de tributar: a “taxa” não foi instituída por lei; não houve respeito à anterioridade,
pois sua cobrança foi imediata; e delegação da cobrança a uma empresa privada. Conclui-
se que a natureza é de preço público. O ministro Luiz Gallotti reconhecendo o problema frisa,
no entanto, que
a taxa não deixa de o ser pelo fato de se tornar devida quando voluntariamente utilizado o
serviço, força é concordar que, quando imposta por motivos de interesse público (saúde,
higiene, etc.) independentemente daquela utilização, o seu caráter tributário se torna
indiscutível (ERE 54.194).
Pelo exposto, conclui-se que a “taxa de esgoto” de Niterói não poderia ser preço
público, pois tem natureza evidentemente tributária. Contudo, o Município, em desacordo
com a Constituição da República Federativa do Brasil, ignorou os limites constitucionais ao
poder de tributar.
Como ressaltou em já mencionado acórdão o ministro Moreira Alves, o reconhecimento de
determinada cobrança como de natureza tributária confere a esta um regime jurídico especial.
Com efeito, sendo a taxa uma das modalidades de tributo está ela sujeita às restrições
constitucionais do poder de tributar (princípio da reserva legal, princípio da anualidade,
princípio de que a taxa não pode ter a mesma base de cálculo que tenha servido para a
incidência de impostos), que são garantias estabelecidas em favor do contribuinte, e restrições
essas que não existem em matérias de preços públicos. (RE n
o
89876-RJ.)
O município de Niterói, assim, institui a “taxa” com características inatas ao preço
público e às taxas. Com relação aos preços públicos, podemos destacar a cobrança delegada a
concessionária privada; a cobrança por meio diverso da execução fiscal e a possibilidade de
majoração do preço no mesmo ano e por meio de reajuste contratual. quanto às taxas
sublinha-se como característica a compulsoriedade do pagamento e da prestação do serviço
além da possibilidade de cobrança pela fruição potencial do serviço ou mesmo como subsídio
para a implantação da rede, que é questionável até para esta espécie por não respeitar a
divisibilidade característica do tributo.
Observa-se como na prática se deu a criação de um instituto híbrido nos moldes do moderno
conceito de “público não-estatal”. Contudo, nesta fusão dos institutos o que parece prevalecer
são os interesses privados das concessionárias e permissionárias de serviços públicos. O
conceito de preço público vai assim se destacando daquele de tarifa pública para incorporar as
premissa da gestão gerencial: “O preço público tem natureza diversa do preço privado,
podendo servir para a implementação de políticas governamentais no âmbito social” (Resp
167.489/SP).
O tributarista Ricardo Lobo Torres percebeu a injustiça da aplicação conforme a
conveniência para a distinção entre taxa e tarifa. Por exemplo, afirma que a distinção entre
tarifa e taxa com base na compulsoriedade seria tautológica e injusta “porque o contribuinte
teria que pagar taxa pelo serviço público que tivesse a natureza de tarifa, ainda que o não
consumisse” (TORRES, 2005, p. 190).
Embora se possa discordar quanto à tautologia apontada, pois o que mais interessa realmente
nesse conceito jurídico é estabelecer o regime de funcionamento, a crítica é extremamente
perspicaz ao apontar o equívoco da utilização dos conceitos de forma casuística. Para o
controle democrático dos serviços, é imprescindível que as suas regras de funcionamento
estejam claras para os cidadãos.
A complexidade e confusão jurisprudencial, contudo, tem uma origem no processo de reforma
do Estado e delegação de serviços públicos à iniciativa privada. A solução dessas
controvérsias passa obrigatoriamente por opções políticas relacionadas ao modelo de Estado e
ao grau de proteção jurídica concedida aos direitos econômicos e sociais.
42
Na prática, a construção do instituto híbrido das chamadas “taxas de esgoto” possibilita que o
sistema de saneamento básico, ainda precário no Brasil, seja custeado nos grandes centros
urbanos por subsídios de bilhões de reais às concessionárias privadas. Esse sistema que as
sociedades empresárias privadas querem consolidar com o estabelecimento de um marco
regulatório para o setor.
6.5. TARIFAS MÍNIMA E PROGRESSIVA
Questão jurídica igualmente controvertida diz respeito à adoção das chamadas tarifas mínima
e progressiva. Na pesquisa realizada em Niterói, 15% dos processos estudados tinham como
causa do pedido na inicial a contestação a essas espécies de cobrança. Todavia, o
entendimento majoritário, em regra, em primeira instância, não respaldava a pretensão da
inicial:
42
“Mas a verdade é que a distinção, embora difícil, encontra sólidos fundamentos jurídicos, pois se
baseia sobretudo no grau de proteção aos direitos fundamentais e no próprio papel do Estado Social
de Direito.” (TORRES, 2005, p. 190.)
Deve se atentar para o fato de a cobrança da tarifa mínima ter também a finalidade de custear
as despesas com a rede de água e esgoto. Ressalta-se o fato de haver um custo mínimo pelo
serviço disponibilizado, que é igual para todos os consumidores, razão pela qual não há que se
falar em cobrança indevida ou em excessos por parte da empresa (Processo n
o
2004.815.005150-4, II JEC Niterói).
Considera-se então contemplada como legal a incorporação ao valor da tarifa de um
percentual público que não se refere ao consumo individual, mas, sim, à manutenção da rede
de distribuição de água e esgoto associada ao interesse coletivo. Diferentemente, percebe-se
nas sentenças referentes à tarifa progressiva decisões pautadas por perspectiva diversas:
Restou incontroverso nos autos que a parte autora vem sendo cobrada de forma progressiva
pelo consumo de água, de acordo com suas faixas de consumo. Ou seja, quanto maior o
consumo do autor maior o preço cobrado pelo mesmo produto, a água. (...) No fornecimento
de água a tarifa deve ser cobrada pela utilização efetiva do serviço, em razão do caráter
retributivo da tarifa, e de forma igual, levando em consideração o quanto consumido,
ressalvada a possibilidade de cobrança da tarifa mínima, que tem a finalidade de subsidiar o
custo mínimo da disponibilidade do produto (Processo n
o
2004.815.008305-5).
Desse modo, observa-se que, contraditoriamente, embora se admita a presença de motivações
públicas na cobrança de tarifa mínima, estas são rejeitadas na cobrança das tarifas
progressivas. Assim, seria legal a remuneração pela manutenção de serviço, mas seria ilegal
política pública no sentido de desestimular o consumo ou mesmo isentar do pagamento
parcelas pobres da população por meio de política tarifária de subsídios cruzados.
Demonstra-se, desse modo, como dificuldades em se vislumbrar teoricamente o novo
modelo de Estado no qual os serviços públicos são prestados por sociedades inteiramente de
capital privado. Novamente, José dos Santos Carvalho Filho aponta a divergência
jurisprudencial nos seguintes termos:
tem suscitado controvérsia a denominada tarifa mínima, particularmente em relação ao
serviço de consumo de água. Alguns advogam o entendimento de que, em se tratando de
tarifa, não pode ser fixado valor mínimo para ela, eis que não teria havido uso do serviço. O
STJ, no entanto, decidiu em contrário, assentando que a utilização obrigatória dos serviços
de água e esgoto não implica que a respectiva remuneração tenha a natureza oÐna naÐna
CÐna
Para isso, recorremos inicialmente à pesquisa nos Juizados Especiais para identificar os
principais motivos, por meio dos pedidos dos autores, das demandas ajuizadas que envolvem
litígios sobre a água. Posteriormente, observamos nos autos dos processos as principais
controvérsias jurídicas sobre o novo modelo de gestão da água. A identificação dos principais
motivos das lides entre a concessionária e os usuários possibilitou a análise posterior dos
principais eixos de debate entre os magistrados.
Conclui-se que a jurisprudência foi demarcando, ao decidir no caso concreto sobre princípios,
prerrogativas e sujeições a serem aplicados às relações entre cidadãos, Poder Público e
concessionárias, um novo marco regulatório para os serviços públicos no Brasil. Surge desse
processo um regime jurídico híbrido que comporta princípios de direito público e privado.
Na tabela abaixo relacionamos os principais elementos elencados pela doutrina como
atributos de distinção entre os regimes jurídicos dos serviços públicos e das atividades
privadas.
REGIMES JURIDICOS PÚBLICO E PRIVADO:
ATRIBUTOS SERVIÇO PÚBLICO ATIVIDADE PRIVADA
REMUNERAÇÃO TAXA TARIFA
OBRIGATORIEDADE COMPULSORIEDADE FACULTATIVIDADE
MUTABILIDADE EXCEPTIO NON
ADIMPLETI CONTRACTUS
PREVISÃO CONTRATUAL
PREVISIBILIDADE ANTERIORIDADE SEM ANTERIORIDADE
ORIGEM EX LEGIS CONTRATO
OBJETO NECESSIDADE VITAL CONSUMO
ESSENCIALIDADE CONTINUIDADE SUSPENSÃO
TRANSPARÊNCIA PUBLICIDADE PRIVACIDADE DOS
NEGÓCIOS
RELAÇÃO
OBRIGACIONAL
FRUIÇÃO POTENCIAL CONTRAPRESTACIONAL
REMUNERAÇÃO MODICIDADE LIVRE MERCADO
JUÍZO EXECUÇÃO FISCAL JUSTIÇA COMUM
A análise da fundamentação das decisões dos ministros do Superior Tribunal de Justiça revela
um esforço teórico em compatibilizar esses atributos ao modelo trazido pela reforma do
Estado brasileiro.
De um lado,os mais conservadores que mantêm os serviços públicos no interior do regime
jurídico administrativo, ou seja, merecedor de prerrogativas e restrições especiais decorrentes
do interesse público envolvido em tais atividades. Para estes juízes e doutrinadores, as regras
privadas de mercado não são suficientes para regular a prestação de serviços essenciais como,
por exemplo, o fornecimento de água e energia elétrica. Nesse caso, o interesse público de
preservação dos direitos constitucionais fundamentais, como a dignidade da pessoa humana,
exigiria um regime público de gestão desses bens conforme previsão do Constituição de 1988.
Desse modo, elencam como sujeições especiais inatas ao serviço o respeito aos princípios de
direito administrativo: princípio da continuidade, da modicidade das tarifas, da mutabilidade
do regime, entre outros, decorrentes da própria supremacia do interesse público.
Pelo princípio da continuidade, é garantido ao cidadão em qualquer circunstância o direito à
prestação do serviço. Isso traz como conseqüência prática, por exemplo, a impossibilidade de
suspensão do serviço e restrições ao direito de greve dos agentes públicos. Igualmente, nos
contratos administrativos o interesse público é notório nas previsões da possibilidade de
rescisão (encampação) ou alteração unilateral do contrato por parte da administração e na
inexistência da possibilidade de se opor à administração cláusula de contrato não cumprido
(exceptio non adimpleti contractus).
Essas regras públicas impõem também poderes especiais conferidos à administração para
consecução do bem comum. A remuneração dos serviços públicos essenciais assume natureza
compulsória decorrente da utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e
divisível, conforme dispõem os artigos 77 e 79, I, do Código Tributário Nacional. A
compulsoriedade se revela então não somente na obrigação do Estado de prestar o serviço, de
acordo com determinação do artigo 175 da Constituição, mas também na obrigação do
particular de receber o serviço por falta de outro meio, pela essencialidade do consumo ou
pela exigibilidade do pagamento.
Demonstra-se assim a natureza pública e tributária da remuneração desses serviços efetivada
por meio das taxas. Essa prerrogativa concedida à administração na esfera tributária
igualmente é acompanhada das restrições correspondentes às limitações ao poder de tributar
presentes nos princípios da legalidade, anterioridade e anualidade.
Entretanto, essas características do regime de gestão pública, consideradas ainda por parcela
expressiva da jurisprudência apropriadas para a prestação dos serviços públicos, não são mais
consensuais.
o recrudescimento na jurisprudência do entendimento que considera esse regime público
incompatível com as alterações verificadas na legislação a partir da reforma do Estado
brasileiro. Em tese, essa jurisprudência tenderia ao enquadramento dos antigos serviços
públicos em regime predominantemente privado de gestão.
Desse modo, não estariam presentes nem as prerrogativas garantidoras da supremacia do
interesse público nem sequer as suas conseqüentes limitações impostas pelo regime jurídico
administrativo. As regras que pautariam as relações seriam aquelas correspondentes às
relações civis entre particulares com, no máximo, as derrogações decorrentes, por exemplo,
da desigualdade entre as partes na relação de consumo mitigada pelo Código de Defesa do
Consumidor.
A relação jurídica presente nos contratos de serviços púbicos teria então natureza contratual
originada na confluência das vontades individuais das partes. Por conseguinte, restrições
como os princípios da continuidade do serviço e modicidade das tarifas não abarcariam essas
atividades prestadas após as reformas que as transferiram para a iniciativa privada.
Entretanto, as conclusões tanto da pesquisa de campo quanto da jurisprudência dos tribunais
superiores apontam para solução mais complexa que a simples adequação dos serviços
públicos do regime jurídico administrativo para o regime privado.
O Poder Judiciário, aos poucos, vai sedimentando um arcabouço jurídico de um novo regime
jurídico para os serviços públicos que, inclusive, pode ser reconhecido posteriormente pelo
Poder Legislativo quando este editar legislação específica prevista pela Constituição.
Efetivamente, a análise da jurisprudência demonstra que as reformas do Estado brasileiro
durante a década de 1990 acarretaram, na realidade, uma imbricação nos antigos conceitos de
público e privado. A delimitação clara das fronteiras entre o público e o privado, essencial
para o direito administrativo, tornou-se cada vez mais obscura.
Quando as esferas pública e privada, assim delimitadas pelo Estado de Bem Estar Social, se
confundem no Estado Gerencial, um novo paradigma começa a se construir. Nele, conforme a
correlação de forças sociais, a construção de um regime jurídico híbrido, no qual prevalece
uma mitigação de regras públicas e privadas antes estanques e incompatíveis.
A tentativa de compatibilizar os princípios de direito público e privado efetuada nos casos
concretos pelo Poder Judiciário, no entanto, não satisfez integralmente o capital privado que
pretende aumentar os investimentos no setor. A permanência de antigos princípios públicos
como os da continuidade dos serviços e modicidade de suas tarifas constitui insegurança a ser
resolvida.
Desse modo, quando os especialistas reclamam o estabelecimento de um marco regulatório
para os serviços públicos, na prática, expressam uma posição nesse processo a favor de uma
nova regulamentação que garanta segurança e lucratividade às sociedades empresárias. É
nesse marco de disputa social entre interesses muitas vezes antagônicos que se forja o novo
regime jurídico administrativo. No quadro abaixo, demonstramos sucintamente as regras
pretendidas pelo marco regulatório do Estado Gerencial para a prestação de serviços públicos.
ESTADO GERENCIAL DIREITO PÚBLICO DIREITO PRIVADO
OBRIGATORIEDADE DA
UTILIZAÇÃO
OBRIGATORIEDADE
OBRIGATORIEDADE DA
PRESTAÇÃO
FACULTATIVIDADE
MUTABILIDADE PREVISÃO CONTRATUAL
PREVISIBILIDADE REAJUSTE CONTRATUAL
ORIGEM CONTRATO
OBJETO NECESSIDADE VITAL
CONTINUIDADE SUSPENSÃO
TRANSPARÊNCIA PRIVACIDADE DOS
NEGÓCIOS
RELAÇÃO
OBRIGACIONAL
FRUIÇÃO POTENCIAL
REMUNERAÇÃO LIVRE MERCADO
JUÍZO COMUM
No marco regulatório proposto pelo empresariado então uma nítida opção por princípios
escolhidos de acordo com critérios de favorecimento dos seus interesses privados na
lucratividade do negócio. Como observou a ministra Eliana Calmon na conclusão de seu voto,
“sob o ângulo da lógica capitalista, é impossível a manutenção do serviço gratuito por parte
de grandes empresas que fazem altos investimentos”.
43
Contudo, esse enquadramento em um regime privado de gestão demonstra-se não tão
rigoroso. Em prevalecendo exclusivamente essa lógica privada, se a água recebida é apenas
contraprestação pelo pagamento, poder-se-ia concluir que o pagamento também corresponde
exclusivamente à prestação pela água recebida.
Essa dedução, contudo, implica considerar estranha ao regime privado a utilização de
instrumentos como a tarifa mínima ou progressiva, pois o fundamento jurídico para a validade
destas reside justamente no interesse público de se financiar o acesso à água para a população
mais pobre. É justamente à prevalência desse interesse público no serviço de fornecimento de
água a que se opõem aqueles que o enquadram no regime privado de gestão.
43
REsp 337.965/MG, rel. Min. Eliana Calmon, 2
a
Turma, DJ 23/06/2001.
Se parte dos consumidores têm razão social para não pagar o consumo, este deverá ser
suportado pelo contingente populacional que paga as suas contas, por via do aumento das
tarifas, o que é profundamente injusto.
44
Em princípio, não é “injusto” que parte da população suporte ônus maior pela prestação de
determinado serviço. Em se tratando de regras de Direito Público, ao contrário, a justiça se faz
tratando os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual. Isso se reflete, por
exemplo, nas discriminações de alíquotas em matéria tributária ou ainda no emprego das
políticas de subsídios cruzados tarifários: na taxa de esgoto, na tarifa mínima e na progressiva.
Nessas hipóteses, os mesmos juristas que antes haviam negado esse interesse público para
vedar a suspensão do fornecimento de água recorrem ao mesmo para justificar a cobrança por
serviço não realizado.
Em suma, no contrato de fornecimento de água, considera-se que se o usuário não pagar não
faz jus ao serviço, mas, contraditoriamente, se este não consumir a água, mesmo assim ainda
mantém a obrigação de pagamento. Numa mesma relação, prevalece uma regra de direito
privado (só consome quem paga) e uma regra de direito público (mesmo se não consumir tem
de pagar) quando esta favorece as sociedades empresárias.
Há, assim, uma incompatibilidade da adoção simultânea dos mecanismos de suspensão do
fornecimento e da taxa de esgoto, tarifas mínima e progressiva que pretende ser superada pelo
marco regulatório gerencial. Se a água disponível na natureza não pode ser usufruída
diretamente pelos “pobres e excluídos”, como demonstra a proibição de uso da água dos
poços artesanais, o ordenamento jurídico que tenha a vida como bem de máxima proteção
deve procurar outros meios que não a proibição de acesso à água pela população pobre.
O estabelecimento de instrumentos jurídicos capazes de mitigar as regras do regime de direito
público e privado vem sendo sugerido por alguns juristas. Ao contrário dos doutrinadores
mais liberais que recorrem ao interesse público para justificar a cobrança de tarifa por serviço
não realizado (taxa de esgoto, tarifa mínima e progressiva) e, contraditoriamente, o rejeitam
para justificar a interrupção do fornecimento, os administrativistas mais atentos às premissas
do Estado gerencial procuram outros meios que não ignorem o pressuposto do interesse
público em tais atividades.
Em seu voto, o ministro Paulo Medina, embora se opondo à suspensão dos serviços públicos,
procura alternativas que atendam ao interesse das concessionárias. Como possíveis soluções
44
Idem.
para o problema do inadimplemento, cita alguns meios alternativos à suspensão do serviço
sugeridos por Marçal Justen Filho.
A primeira é promover a cobrança compulsória do valor correspondente à tarifa, para haver
do usuário o montante correspondente aos serviços que continuam a ser prestados. A segunda
é, verificando a carência de recursos, custear a manutenção da prestação dos serviços
(inclusive e se for o caso, através da elevação de tarifas) cobradas dos demais usuários. Nesta
última alternativa, a comunidade arcará com os custos dos serviços. A carência de recursos
não autoriza a supressão da existência e da dignidade da pessoa humana.
45
ainda uma terceira alternativa à suspensão do serviço. Nela, o princípio da continuidade
seria mantido por garantias oferecidas pelo próprio Estado, que arcaria com os custos da
inadimplência. O Estado seria uma espécie de fiador do contrato administrativo de concessão.
Nesse sentido, o ministro recorre à sugestão aventada por Marcos Juruena Villela Souto:
Uma sugestão, para conciliar entendimento, é no sentido de que o concedente ressarça o
concessionário, após um período fixado no contrato, para que não haja quebra do equilíbrio
contratual, sub-rogando-se deste em face do usuário, dele cobrando em juízo; assim, atende-se
o interesse público e a dignidade do consumidor, sem afastar investidores.
46
Essas propostas vêm ao encontro da perspectiva do novo Estado Gerencial que aumenta
novamente a abrangência do conceito de público para permitir a utilização de recursos
estatais.
47
Desse modo, o conceito de público não-estatal põe-se a serviço da compatibilização dessa
mitigação em favor das sociedades privadas concessionárias dos antigos serviços públicos. Na
proposta apresentada por Juruena Villela Souto, uma conciliação entre regimes jurídicos
diversos. O Estado entraria como fiador de um contrato privado entre concessionária e
usuários dos serviços. O interesse público na atividade seria, portanto, reconhecido. Mesmo
45
REsp 337.965/MG, rel. Min. Eliana Calmon, 2
a
Turma, voto Min. Paulo Medina, DJ 23/06/2001.
46
REsp 337.965/MG, rel. Min. Eliana Calmon, 2
a
Turma, voto Paulo Medina, DJ 23/06/2001.
47
A transferência, em 1999, da delegação da concessão da estatal CEDAE para a empresa privada Águas de
Niterói tem sido apontada como exemplo a ser seguido. A licitação não-onerosa previa investimentos de 129
milhões. Contudo, as restrições impostas às empresas estatais não se verificaram para a empresa privada recém-
constituída. O BNDES financiou 52% desse investimento. Assim, o equivalente a 67,7 milhões foi custeado por
empréstimo junto ao BNDES (PEIXOTO, 2004).
na hipótese de inadimplemento dos usuários, a continuidade dos serviços estaria garantida por
recursos estatais destinados a ressarcir as concessionárias.
Igualmente, o problema da cobrança de uma taxa indelegável às sociedades privadas também
se resolveria. Por meio de engenhoso mecanismo, seria possível uma execução especial, com
regras de direito público, para um crédito privado. Haveria, portanto, a transformação do
crédito privado em dívida pública, que gozaria de prerrogativas especiais como a presunção
de veracidade, exigibilidade e coercibilidade. As regras de direito público permaneceriam
presentes então na obrigatoriedade da prestação contínua do serviço pelo Estado e do
pagamento pelos usuários pelos mesmos. A cobrança se daria por regras de direito público e
por um ente da federação, sujeito de direito público.
Por outro lado, caberia à iniciativa privada a execução dos serviços. Desse modo, eliminar-se-
ia qualquer risco do negócio, e o segundo setor que originalmente, ao menos teoricamente,
veio para suprir a impossibilidade de investimentos do Estado, agora, além de ser remunerado
pelos usuários, também o seria pelo próprio Estado. Essa possibilidade inclusive está expressa
no artigo 11 da Lei 8.987/95. O Estado gerencial parece caminhar então para preservar o
regime jurídico publicístico para justificar o aporte financeiro do Estado em projetos
delegados à iniciativa privada como se verifica, por exemplo, na criação por lei das Parcerias
Público-Privadas.
A conclusão possível com a análise da evolução legislativa, dos litígios e da jurisprudência
referente à gestão da água no Brasil remete à disputa de interesses sociais antagônicos.
Mesmo a ciência jurídica não é capaz de se eximir do juízo valorativo acerca do grau de
proteção concedido a determinados direitos.
No julgamento do Recurso Especial analisado, ambas as posições admitem a dimensão social
dos fundamentos de suas decisões. O ministro Paulo Medina destaca que definir serviço
público pressupõe prévias definições sobre o próprio modelo de Estado e a proteção dada aos
valores jurídicos fundamentais. A ministra Eliana Calmon, embora em posição oposta,
também enumera algumas razões de ordem social para a validação jurídica da interrupção dos
serviços:
O Brasil é um país com um contingente de pobres e excluídos em número assustador, o que
leva a população merecedora do direito líquido e certo a não pagar porque é pobre e está
desempregada, como alegou a impetrante, assumida inadimplente (...) O inadimplemento por
parte dos pobres e excluídos não pode ser solucionado pelos normais meios de cobrança,
porque de nada vale executar quem não possui bens para garantir a execução.
48
É portanto fundamental que a sociedade paute o debate sobre o novo marco regulatório dos
serviços públicos no Brasil. As definições econômicas e jurídicas que prevalecerem nesse
processo resultarão em enormes conseqüências para a vida da maioria da população. A gestão
de bens essenciais à vida, como água, energia elétrica, meios de comunicação, entre outros,
deve ocupar posição de destaque em sociedade realmente democrática. Nesse sentido, é
premente a conscientização da população sobre a importância de se garantir a todos o direito à
água.
48
REsp 337.965/MG, rel. Min. Eliana Calmon, 2
a
Turma, DJ 23/06/2001.
7. CONSEQÜÊNCIAS SOCIAS DA PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA
7.1. AS GUERRAS PELA ÁGUA
A palavra “rival” (ou “rivalidade”) origina-se do termo rivus (corrente ou riacho) em latim.
As antigas disputas pelas margens dos rios e pelas fontes de água de tão presentes nas
sociedades antigas deixaram sua marca na própria língua.
Nas sociedades contemporâneas marcadas pela globalização, uma predominância do
capital financeiro mundial. Esse fenômeno, conforme explicitado, possui importantes
implicações sociais. Devido ao alto grau de concentração da produção, o capital financeiro é
obrigado a procurar novos mercados para exportação dos seus capitais excedentes, mantendo
assim elevadas as suas taxas de lucro.
Essa incessante partilha dos territórios globais e seus recursos naturais põe invariavelmente
em confronto interesses opostos de grandes sociedades empresárias e seus Estados nacionais.
A divisão ocorre então por vezes de forma conflituosa, segundo critérios que levam em conta
o poder de barganha do capital ou mesmo a utilização da força bélica. A globalização
significa também o desenvolvimento dessas relações internacionais nos planos econômico e
político.
A partilha do mundo entre os Estados e suas multinacionais, ao atingir um grau de
desenvolvimento que cobre praticamente todo o globo terrestre, torna a busca de novas e
inevitáveis repartições do mercado motivadora de diversas guerras pelo domínio das riquezas
econômicas. Nesse sentido, atualmente podem ser elencados, com relação à exploração da
água, uma série de conflitos que envolve interesses desses grandes Estados nacionais.
Hoje, em diversas regiões do mundo, se verificam disputas pela água como aquelas que
colocam em lados opostos a Índia e o Paquistão; o Equador e o Peru; a Turquia, o Iraque e a
Síria, por exemplo. A formação dos cartéis internacionais de empresas, outra característica da
globalização, não eliminou essas guerras por matéria-prima e mercados consumidores. Foi
desse modo que a americana Bechtel, por exemplo, garantiu o controle das valiosas reservas
aqüíferas do Iraque.
Embora o pensamento hegemônico continue a sugerir a regulação pelo livre mercado como
solução para a distribuição dos recursos hídricos, exemplos como do Iraque demonstram o
contrário.
A necessidade de aumentar a sua lucratividade leva os grandes cartéis, como os formados
pelas grandes multinacionais da água, a uma corrida pelo monopólio dessa escassa matéria-
prima. Na realidade, o que se verifica nesse caso é a concentração empresarial e o
conseqüente agravamento da disputa pelo domínio das reservas aqüíferas.
Foi isso que ocorreu, por exemplo, entre a Índia e o Paquistão, que entraram em conflito
armado em 1998 pelo controle das águas do Indo e Caxemira. É, então, evidente que as
disputas entre países não são resultado da escassez da água. Ao contrário, a escassez da água é
resultado também das disputas entre países. São os interesses econômicos que acabam por
impedir uma distribuição harmônica dessa matéria-prima essencial:
A causa do conflito não é que Castela tenha mais água que Andaluzia, ou a Califórnia menos
que Nevada ou Colorado, e sim que grupos sócio econômicos tem poder desigual para dirigir
e controlar os modos de regulamentação e distribuição dos recursos (PETRELLA, 2004, p. 58).
Ricardo Petrella destaca, portanto, que os constantes conflitos pela água demonstram a
incapacidade do livre mercado de racionalmente evitar a insurgência de novas guerras, haja
vista que, ao contrário, o próprio mercado é constantemente responsável pelo desequilíbrio e
pela injusta distribuição dos recursos. Veremos também que o modo de produção capitalista
contemporâneo igualmente se mostrou inócuo com relação às recentes preocupações
ambientais frente à escassez da água.
7.2. AGRONEGÓCIO E O USO DA ÁGUA NO CAMPO
A atividade agrícola é a principal responsável pela maior parte do consumo mundial de água.
No século XX, havia uma preocupação malthusiana com uma possível carência de alimentos
no mundo. Surpreendentemente, ocorreu justamente o contrário. Contrariando a previsão dos
especialistas, houve um aumento exponencial da produção agrícola.
O processo de expansão da indústria agrícola importou relevantes modificações no modo de
produção no campo. A chegada do capital financeiro ao campo e a concentração das
sociedades empresárias substituíram antigas técnicas de produção de alimentos pelos
conceitos das modernas sociedades capitalistas centrados no aumento da produtividade. Como
resultante desse fenômeno, de fato minimizou-se a possibilidade de escassez de alimentos,
pelo menos para a população mais abastada do planeta.
No entanto, por outro lado, essa revolução na agricultura, que passou a produzir excedentes
alimentícios, gera também conseqüências ambientais das mais graves. O aumento da
produtividade é acompanhado de todos deletérios para a natureza. Marq de Villiers, com
bastante pertinência, observou que:
A denominada “revolução verde” corresponde a um bípede” com um na química
(pesticidas e fertilizantes) e outro na distribuição administrada de água, irrigação, que juntas
deram origem a um salto quantitativo na eficiência e na produtividade da agricultura (VILLIERS,
2002, p. 199).
Países em desenvolvimento que são grandes destinatários do capital financeiro exportado,
como China, Índia e Brasil, passaram, após receberem estes investimentos de capital, a
exportar alimentos em grande quantidade no mercado mundial. Para isso, aplicam-se técnicas
de agricultura intensiva em larga escala. Para uma melhor compreensão da dimensão deste
fenômeno, basta citarmos o exemplo da Índia, que possui 113 milhões de hectares irrigados.
A Índia serve, assim, como exemplo que corrobora os reais motivos da escassez. A irrigação
promovida pela agricultura é responsável por 90% do consumo agregado de água. A
agricultura intensiva, com a exploração crescente dos lençóis subterrâneos e o uso de
agrotóxicos, poluiu imensas áreas e reservas. A competição e a “revolução verde”
modificaram a tradicional agricultura local e obrigaram os camponeses, para sobreviver no
mercado, a também introduzir essas modernas técnicas para colheitas que consomem enorme
volume de água.
Desse modo, o agronegócio e a sua “revolução verde”, que prioriza o aumento da
produtividade em detrimento do uso racional dos recursos hídricos e que privilegia o uso de
agrotóxicos, fertilizantes e transgênicos em detrimento da preservação do meio ambiente, vão
se espalhando por todo o mundo.
O capital financeiro impõe essa lógica à agricultura mundial. Substitui antigos e tradicionais
modos de produção agrícola por modernas técnicas que causam prejuízos à maioria da
população e ao meio ambiente. O caso mencionado da Índia não é um exemplo isolado. Ao
contrário, juntamente com o agronegócio, se espalham pelos campos de todo o planeta a
utilização intensiva da água, a contaminação por pesticidas e agrotóxicos e a poluição das
reservas aqüíferas.
Em 2003, nos Estados Unidos, a agroindústria da cana-de-açúcar no Estado da Flórida
ignorou acordo que havia firmado para reduzir o uso de fósforo proveniente da cultura da
cana-de-açúcar à quantidade de 10 ppb. Com essa decisão pautada em aspectos econômicos
da produção, a restauração do ecossistema dos brejos dos Everglades degradados por anos de
efluentes (adubos e pesticidas) foi adiada em mais 25 anos (BOUGUERRA, 2004, p. 141).
A garantia da alta produtividade agrícola e dos lucros dos investidores prevalece em relação à
preservação da vida. Esse vem sendo o modo como o livre mercado realiza a regulação,
“racional e eficiente”, apregoada pelo capital financeiro mundial. Dessa maneira, os
agricultores americanos seguem espalhando, em cada primavera, cerca de 150 milhões de
libras de pesticidas (68.038.855,5 kg) sobre os campos americanos. Como conseqüência, 3,5
milhões de cidadãos americanos, em 120 cidades, correm um risco maior de desenvolver
câncer.
A associação Médicins Pour La Responsabilité Sociale, em relatório sobre o problema,
confirmou os efeitos nocivos dessa política. Segundo relatório (1994) da associação, 14
milhões de americanos bebiam regularmente água contaminada pelos herbicidas, como o
alachlor, o antrazine, a cyanazine, o metalachlor e a simazine (BOUGUERRA, 2004, p. 138 e
139).
No entanto, esses dados não são suficientes para sensibilizar o capital financeiro e os políticos
que dirigem o Estado. Nos Estados Unidos, houve pressão sobre o Congresso para tornar mais
flexíveis as normas da água potável. A influência dos distribuidores privados de água teve
como resultado a exposição de 43 milhões de pessoas ao criptosporidium da água,
microorganismo que deixou uma centena de vítimas em Milwaukee, em 1993. Igualmente,
entre 1993 e 1994, 53 milhões de americanos beberam água contaminada por chumbo,
pesticidas e compostos orgânicos voláteis, e 11 milhões consumiram água contaminada pelos
coliformes fecais (BOUGUERRA, 2004, p. 126).
Para diminuir esses efeitos tão deletérios, a agência americana EPA propôs a redução da
presença do arsênico na água bebida pelos cidadãos dos EUA, baixando sua concentração
máxima legal de 50 para 5 ppb, o que acarretaria despesas aos distribuidores de água da
ordem de 400 a 500 milhões de dólares.
Entretanto, mais uma vez, prevaleceu o interesse do capital. A Associação dos
Administradores da Água Potável dos Estados (ASDWA) se opôs a esta limitação. O
presidente George W. Bush, retribuindo apoio recebido na campanha pelas indústrias
utilizadoras de arsênico, como as madeireiras e as mineradoras, se posicionou contra a
redução aos níveis exigidos pela OMS e compatíveis com outros países industrializados.
O resultado dessa simbiose entre os agentes políticos e os grandes poluidores industriais e
agrícolas se revela na alta degradação ambiental existente. A EPA estima que mais de 40%
dos rios do país mais de 20 milhas de cursos d’água e de lagos não satisfazem mais os
padrões quanto à qualidade da água (BOUGUERRA, 2004, p. 138).
No vizinho Canadá presenciou-se processo semelhante. O governo de Mike Harris, eleito em
1995, obedecendo à lógica financeira mundial, implementou política no sentido de eliminar
quaisquer obstáculos ao avanço do mercado privado: laboratórios foram eliminados ou
privatizados, postos de inspeção abolidos, a responsabilidade transferida aos municípios e as
obrigações e regulamentações modificadas. Em suma, diminuiu-se ao máximo o poder
público sobre a regulação do meio ambiente que anteriormente estava sob competência do
Ministério Ambiental de Ontário.
Foi aberto, por conseguinte, com estas medidas o caminho para um rápido crescimento da
agricultura intensiva. O resultado para a cidade agrícola de Walkerton foi a contaminação de
grande parte da população em 2000 pela bactéria E. Coli Graham Fraser (BOUGUERRA, 2004,
p. 137).
Também na América Latina semelhantes embates entre interesses sociais antagônicos tiveram
reflexo nas leis e no Estado. No Equador, houve um processo, durante a apresentação de
legislação para o setor, no qual ficou evidente o antagonismo entre os interesses dos grandes
grupos financeiros e da população local.
Numa margem, a proposta dos grandes agricultores defendia que o agronegócio, e não a
agricultura camponesa, gerava riquezas para o país. Portanto, defendiam a privatização da
água. Na margem oposta, a Confederação Equatoriana de Nacionalidades Indígenas (Conaie)
e pequenos produtores camponeses defendiam, por meio de projeto de lei (Propuesta de ley de
águas, Quito, 1996), que a água fosse considerada um bem comunitário, garantindo
prioritariamente alimentos para a população do país (PETRELLA, 2004, p. 64).
São essas as diferenças de interesses e projetos que pautam a disputa econômica, jurídica e
política pela água na sociedade civil. O uso da água necessariamente se insere nessa prévia
definição política das prioridades do modelo de gestão que determina se é justo 600 mil
fazendeiros consumirem 60% dos recursos hídricos na África do Sul enquanto 15 milhões de
negros não têm garantido o direito ao acesso à água (PETRELLA, 2004, p. 54).
O processo histórico de substituição da agricultura camponesa pela agricultura industrial
intensiva revela que as técnicas científicas são apropriadas pelo capital financeiro para a
contínua acumulação por espoliação promovida no campo, em diversos países do mundo.
A poluição da água subterrânea e de superfície por substâncias tóxicas, a contaminação e
poluição do solo, além da destruição da agricultura local, são conseqüências da “revolução
verde” promovida pelo agronegócio. Assim, este novo e atrativo negócio, junto com a
introdução de suas técnicas de produção no campo, aparece como principal responsável por
diversos problemas ecológicos da atualidade.
7.3. O USO INDUSTRIAL INTENSIVO DA ÁGUA E A POLUIÇÃO
Depois da agricultura, a indústria é a maior responsável pelo crescimento elevado do consumo
de água mundial. As atividades industriais representam cerca de 20% dos recursos hídricos
consumidos anualmente no mundo. E, segundo a Organização das Nações Unidas para o
Desenvolvimento Industrial (Unido), uma tendência deste quadro se agravar. Conforme os
dados desta instituição, as atividades industriais poderão estar absorvendo duas vezes mais
água até o ano de 2025 e, pior ainda, a poluição industrial pode aumentar em até quatro vezes
(PETRELLA, 2004, p. 55).
Assim como observado na atividade agrícola, as técnicas de produção nas atividades
industriais estão submetidas e apropriadas pelos interesses do capital financeiro. A
maximização da acumulação na exploração da água como matéria-prima para a produção
industrial tem também causado prejuízos à população e ao meio ambiente. Um dos casos
exemplares dessa lógica de mercado que afasta qualquer controle público ou limitação à
exploração dos bens da natureza é a exploração pela IBM dos lençóis subterrâneos na França.
Reportagem no jornal Le Monde relatou que a IBM extrai 2,7 milhões de metros cúbicos de
água por ano das camadas neocomianas de Esonne. Para produzir os seus microchips de 64
megabytes, a fábrica da IBM precisa de água muito pura, tal como aquela que só é encontrada
em reservas antigas desse tipo.
Embora houvesse proibição para a exploração dessas reservas subterrâneas da bacia Sena-
Normandia na França, a IBM alegou que, em outros países, todas as suas demais
competidoras do ramo da informática utilizavam essas reservas subterrâneas. Essa
concorrência impedia assim que ela utilizasse a água da superfície por ser mais cara.
As autoridades locais, preocupadas com os empregos gerados na comunidade, acabaram por
autorizar essa degradação ambiental. Ricardo Petrella destaca que, neste caso, ficou evidente a
introdução pelas indústrias capitalistas contemporâneas de “novas formas de exploração e
poluição da água por parte de atividades industriais que até então eram consideradas não-
poluentes – neste caso a indústria da informática” (PETRELLA, 2004, p. 55).
A poluição industrial, somada aquela gerada pela agricultura intensiva, além de ser
responsável pela quase totalidade do consumo de água mundial também responde pela maior
parte da contaminação dos recursos hídricos. Novamente, a Índia como um dos principais
países destinatários da exportação de capitais nos oferece exemplos nefastos dessa política de
“desenvolvimento”: a poluição dos rios Yamuna e Damodar.
A poluição nestes dois rios, que acarreta sérios problemas para o abastecimento de água em
toda a Índia, tem a sua origem na indústria pesada instalada em sua margem e no caótico
sistema rodoviário implantado ao longo da cidade de Delhi (PETRELLA, 2004, p. 81). O capital
financeiro e suas ramificações em todo o globo terrestre obedecem à lógica rígida da
maximização dos lucros dos acionistas: inexistência ou flexibilização da legislação de
proteção ao meio ambiente, salários baixos, fraca organização sindical, garantias à
propriedade e aos investimentos e eliminação e restrição de tributos.
A política de cobrança da água, com a introdução do princípio do poluidor-pagador como
solução para a poluição e o desperdício crescentes dos recursos hídricos, não tem conseguido
conter o avanço da degradação e da escassez. Além do mais, a partir da década de 1980,
houve uma exportação das atividades industriais e agrícolas poluentes para os países que
oferecem vantagens tributárias e legislação ecológica flexível.
Essa poluição das águas gerada pelo lixo industrial e doméstico das grandes cidades tem sido
uma das principais causas de ameaça dos recursos hídricos mundiais, afetando a água da
superfície e as fontes subterrâneas do planeta.
7.4. O USO DOMÉSTICO DA ÁGUA E A DISTRIBUIÇÃO DESIGUAL DOS SERVIÇOS
O consumo residencial da água tem sido o principal objeto da propaganda contra o
desperdício. Como já demonstrado, as multinacionais da água, em conjunto com os Estados e
as instituições multilaterais internacionais, se esforçam em difundir a mercantilização da água
como solução para a crise de escassez.
A adoção econômica, jurídica e social desses princípios liberais causa em diversos países
péssimas conseqüências para a população mais pobre. Altas tarifas, suspensão do
fornecimento aos inadimplentes, desigualdade na distribuição da água, qualidade dos
serviços e degradação ambiental são algumas delas.
Embora a razão verdadeira da escassez associe-se à superexploração agrícola, à poluição
industrial e à falta de planejamento integrado, a possibilidade de escassez tem justificado o
aumento do preço da água nas últimas cadas. Em grandes cidades do mundo, o custo da
água já corresponde a cerca de 10% da renda média familiar.
Na França, sede das maiores multinacionais do ramo, as tarifas pagas pelos cidadãos têm
aumentado consideravelmente após as privatizações. De acordo com o Relatório Parlamentar
apresentado por Ambroise Guelle à Assembléia Nacional Francesa (Le prix de l’eau De
l’exploitation à la maitrise, Paris, 1994), das vinte cidades com tarifas mais caras, 17 têm o
sistema de distribuição privatizado.
Por outro lado, das vinte cidades com tarifas mais baratas, 13 têm a distribuição realizada pelo
poder público local. É ainda significativa a oscilação para cima, de em média 50%, nos preços
da água durante 1990 e 1994. Em cidades importantes o aumento foi ainda maior como, por
exemplo, em Paris e Grenoble, que registraram aumento das tarifas correspondente a 154% e
300% do valor, respectivamente (PETRELLA, 2004, p. 109).
Em outra pesquisa comparativa entre a gestão pública sueca e a privada inglesa, Caspar
Henderson demonstra que com a gestão pública retomada “os fornecedores municipais suecos
reduziram o preço da água a um terço, têm a metade dos custos operacionais e obtiveram um
retorno sobre o capital três vezes mais elevado” (BOUGUERRA, 204, p. 144).
Na Inglaterra, verificou-se fenômeno semelhante com relação ao aumento de tarifas. Entre
1990 e 1994, os preços foram majorados em 55%. Também se registrou o aumento de 30%
dos desperdícios devido aos vazamentos na tubulação, além de freqüentes interrupções no
abastecimento e cortes no fornecimento por inadimplência (PETRELLA, 2004, p. 110).
No Brasil, após a privatização, uma filial da Suez-Lyonnaise des Eaux assumiu a concessão
em 1995 dos serviços na cidade de Limeira/SP. Após licitação com suspeitas de fraudes, a
multinacional aumentou em 50% o preço da tarifa, gerando imensos protestos da população,
que reclamava ainda da péssima qualidade da gestão. A justiça acabou determinando a
encampação dos serviços, o que gerou documento do Banco Mundial reclamando da falta de
segurança para investimentos do setor no Brasil. Para manter a segurança do setor, o governo
Lula encaminhou projeto de lei com objetivo de garantir, por meio do novo marco regulatório,
os investimentos e a privatização da água.
A cidade de Betim, em Minas Gerais, devido à insatisfação da população com os inúmeros
problemas da gestão privada, resolveu retomar os serviços de água e esgoto que estavam
sendo prestados por uma operadora que atuava sem licitação.
49
O aumento das tarifas é medida recorrente das multinacionais quando assumem a concessão
dos serviços de distribuição de água que estão sendo privatizados em diversas cidades do
mundo. A americana Bechtel, por meio de sua filial International Waters Ltda., assumiu a
concessão da água na cidade de Cochabamba na Bolívia.
Em 2000, porém, o aumento de 35% na tarifa desencadeou uma série de violentos protestos
que resultaram em seis manifestantes mortos, centenas de feridos e na retomada do controle
público da água. A lei que autorizava a privatização da água e o fim da subvenção estatal no
setor acabou revogada, com a Bechtel abandonando a Bolívia. A cidade de Carachi, no
Paquistão, também foi vítima, em junho de 1998, de violentos protestos devido à falta de água
(BOUGUERRA, 2004, p. 149).
A revolta em Cochabamba tem muitos paralelos com os motins pelo pão em períodos de
escassez no século XVIII na Inglaterra. Assim como nos dias atuais, naquele século, havia os
defensores do liberalismo e da “mão invisível” do mercado como a solução para a justa
distribuição da produção do pão. Também, como hoje, o mercado não não realizou uma
distribuição justa e eficaz como levou a explosão de motins entre a população.
Em 1998, no Chipre, enquanto o governo reduziu em 50% o abastecimento de água para a
população do país devido a uma grave seca, os dois milhões de turistas passaram imunes à
drástica política de racionamento (BOUGUERRA, 2004, p. 159).
Na Inglaterra e na Bolívia, as populações locais recorreram ao que Thompson definiu como
uma economia moral” para reivindicar seus direitos.
50
Os antigos plebeus ingleses
lembravam-se de costumes e relações paternalistas na sua luta pelo pão. Os bolivianos
contemporâneos recorreram à cultura tradicional indígena, na qual a água comunitária é um
dom divino e, portanto, não suscetível de ser apropriada individualmente.
A Bechtel, ao pretender cobrar até pelas águas da chuva, foi expulsa da Bolívia. Contudo,
levou os seus lucros realizados e deixou para a população somente dívidas, procedimento
comum nas relações entre as grandes multinacionais da água e as populações locais. Ao
menor sinal de riscos para os seus lucrativos negócios, o abandono das cidades pelas
empresas.
49
CANÇADO, Vanessa Lucena; MAGELA, Geraldo. A política de saneamento básico: limites e possibilidades de
universalização. In: X Seminário sobre a Economia Mineira.
50
O conceito de “economia moral” mencionado foi desenvolvido por Thompson nos textos reunidos na obra
citada.
Estas multinacionais levam apenas o capital obtido pelas facilidades dos governos e deixam
os problemas com a população, como fez a Bechtel em Cochabamba. Igualmente, na
Inglaterra, a Suez-Lyonnaise des Eaux vendeu sua filial em 2003, após algumas medidas
buscando maior controle dos preços e investimentos (BOUGUERRA, 2004, p. 146).
Não obstante a pressão do capital financeiro, essa retomada dos serviços pelo poder público
tem sido uma exigência das populações de muitas cidades que sofrem com as conseqüências
da privatização. Além dos exemplos da Bolívia, da Inglaterra e do Brasil citados, a Suez-
Lyonnaise des Eaux, que, por meio de uma filial, explorava a distribuição da água nas
comunas de Durance, Lubéron (Vaucluse) e Cernay-la-Ville (Yvelines) na França, teve a sua
concessão interrompida.
Em 1997, com o fim do contrato com essa multinacional, houve redução de 25% a 30% na
tarifa da água e de 25% a 50% no preço do saneamento. Igualmente, a Vivendi-Génèrale des
Eaux o teve os seus contratos renovados em diversos municípios de Val-de-Marne. Em
Athis-Mons, o contrato não foi renovado devido a um estudo comparativo que comprovava
que a fatura de água ficava 14% mais alta quando a operadora era privada (BOUGUERRA, 2004,
p. 132).
Nos Estados Unidos, a Suez-Lyonnaise des Eaux também enfrentou o repúdio da
população. A sua filial United Water era responsável pelo maior contrato de gestão da água
nos EUA. Os cidadãos de Atlanta, porém, revoltados com a péssima qualidade do serviço e as
constantes interrupções no fornecimento de água, pressionaram pela retomada da gestão
municipal do serviço. Assim, o contrato que deveria durar até 2019 foi denunciado em janeiro
de 2003 (BOUGUERRA, 2004, p. 143).
Também nos Estados Unidos, a sociedade OMI-Thames Water, detentora do direito à gestão
da água na cidade de Stockton, na Califórnia, por 25 anos, é quem enfrenta questionamentos.
Após a privatização do serviço de distribuição de água em 2003, o cartel anglo-americano-
alemão que ganhou esse contrato estimado em 600 milhões de dólares passou a ser alvo dos
protestos da população que se preocupa com a repetição do fracasso da privatização do setor
de energia elétrica (BOUGUERRA, 2004, p. 142).
Outra multinacional do ramo de alimentos, a poderosa Nestlé, teve as suas pretensões
rejeitadas pela população. Na Suíça, foi negado à Nestlé o direito a explorar uma fonte de
água de excelente qualidade como a IBM fazia na França para produção de computadores
(BOUGUERRA, 2004, p. 164).
As multinacionais também são acusadas de causarem crises de abastecimento e
incidentes graves. A administração da Vivendi-Génèrale des Eaux, que tem a concessão da
gestão da água em Porto Rico, segundo a população local, é responsável por uma catástrofe
com proporções maiores que o tufão de 1998.
Na Austrália, semelhantes problemas estão associados à privatização pelas sociedades
francesas do serviço de fornecimento de água. Em 1997, Adelaide sofreu com as inundações
provocadas pelo reservatório de Big Pong e, em Sidney, verificou-se uma grande
contaminação da água que obrigou, em 1998, a população por vários dias a ferver a sua
própria água (BOUGUERRA, 2004, p. 143).
A corrupção é outro elemento que acompanha essas políticas de privatização. A situação é tão
grave que chega a ser admitida pelo Banco Mundial, reconhecidamente um defensor desse
modelo de gestão. Em documento próprio, o Banco Mundial admite a relação direta entre
negócio privado e corrupção:
(...) o procedimento da própria privatização pode levar a corrupção. Uma firma talvez pague
para fazer parte da lista dos proponentes qualificados, ou para reduzir o número dos mesmos.
Talvez ela pague para obter uma avaliação menor dos ativos públicos que devem ser vendidos
ou arrendados, ou para ser favorecida por ocasião de uma seleção... As firmas que,
eventualmente, ofertarem somas em dinheiro esperam, não somente receber o contrato ou
vencer o leilão de privatização, mas também obter, por vias secretas, subvenções, posições de
monopólios e garantias de facilidades na aplicação futura das leis que regem os documentos
(BOUGUERRA, 2004, p. 148).
Esses são alguns dos problemas trazidos pelo avanço do capital financeiro sobre o direito à
água. Para ilustrar ainda mais, vale citar o exemplo da gestão temerária da Yorkshire Water
Service, pautada pela lógica do livre mercado aplicada à gestão da água.
Esta sociedade previu artificialmente um consumo baixo de água com a intenção de conseguir
autorização para aumentar os preços da tarifa. Além disso, a empresa substituiu uma gerência
integrada por uma partilhada, que possibilitava a terceirização dos seus serviços, apesar da
perda de informação e da diminuição da qualidade do serviço. Os postos de trabalho caíram
pela metade, aumentando a produtividade e o valor das ações. Entretanto, o resultado social
dessa gestão privada foi uma seca sem precedentes que afetou fortemente a população local
em 1995 (BOUGUERRA, 2004, p. 147).
Seguindo os mesmos princípios de administração, algumas mineradoras chilenas que
receberam com as privatizações, quase sem qualquer ônus, o direito à propriedade da água
provocaram artificialmente crises de abastecimento para majorar o preço do produto
(PETRELLA, 2004, p. 87).
Outra questão que não pode ser ignorada é a relação direta entre a água e a saúde pública.
Dados apontam que 85% das causas das doenças humanas nos países pobres estão
diretamente relacionadas a problemas de quantidade e qualidade da água.
Nesse sentido, o relatório da Organização Mundial de Saúde (World health report, 1996,
OMS, Genebra) apontou a poluição da água como a principal causa da diarréia que afeta 500
milhões de pessoas anualmente e da mortalidade entre crianças com menos de dois anos de
idade. Além disso, estima-se que cerca de 15 milhões de pessoas morrem por ano devido à
falta de água (PETRELLA, 2004, p. 26, 41 e 88).
Desse modo, a coleta de esgoto também deve merecer destaque, haja vista que boa parte das
grandes cidades ainda não possui redes de esgoto para o recolhimento dos resíduos
domésticos e industriais. E, mais uma vez, o capital financeiro apresenta como proposta a
cobrança do serviço por meio de tarifa individualizada para o esgoto. Esse problema revelou-
se no Brasil, por exemplo, nas discussões sobre a pioneira concessão do serviço pelo
município de Ribeirão Preto ou ainda em Niterói, com a cobrança privada para a expansão do
serviço.
As diversas conseqüências sociais dos múltiplos usos da água indicam a necessidade
do debate público e democrático sobre os modelos de gestão e propriedade da água. O estudo
das conseqüências do avanço do capital financeiro mundial sobre o direito à água tem
demonstrado que as relações econômicas e jurídicas estabelecidas ocorreram em prejuízo da
maioria da população.
A lógica do capital financeiro coloca seriamente em risco o frágil equilíbrio social e ambiental
do planeta. Crises ainda imprevisíveis podem surgir dessa expropriação da água. A
participação da maioria dos habitantes do planeta pode mudar esse perigoso rumo; caso
contrário, não está descartado que o próprio planeta ponha fim ao rumo dos seus habitantes.
8. CONCLUSÕES
A escassez da água é o principal problema do século XXI. É comum vermos difundida
no senso comum da população essa preocupação com a possibilidade de enfrentarmos uma
crise da água de proporções mundiais. Se medidas urgentes não forem tomadas pelos
governos e cidadãos do mundo inteiro, presenciaremos uma calamidade sem precedentes.
Esses alarmantes prognósticos divulgados em jornais de grande circulação, programas
de TV e em diversos trabalhos científicos justificaram a presente pesquisa. O escopo inicial
do trabalho era aprofundar o estudo sobre as causas da eventual escassez da água e,
principalmente, verificar os reflexos desse problema no ordenamento jurídico brasileiro.
A leitura da bibliografia sobre o tema traz importantes dados para a compreensão do
problema. O principal refere-se à constatação dos múltiplos usos da água nas sociedades
capitalistas contemporâneas. Ao contrário do que parece indicar a propaganda pela
preservação da água, demonstra-se que o uso doméstico residencial corresponde a uma ínfima
parcela do consumo mundial. O atual modo de produção e utilização da água pela agricultura
e pela indústria é responsável por mais de ¾ da água consumida no mundo.
Essa evidência, por si só, remete a uma análise de quais são as propostas apresentadas
então para combater a escassez. Entre tais propostas, aparece com destaque a defesa da
cobrança pelo uso da água e pelos serviços de distribuição já existentes.
Desse modo, faz-se mister inserir a água no contexto atual da globalização. Esse conceito já
foi apropriado possui um rol elevado de significados. Contudo, alguns elementos centrais
parecem permear o conceito. Como o que Chesnais, denominou “mundialização do capital”,
título de sua principal obra. Esse fenômeno que podia ser notado no final do século XIX,
indubitavelmente recrudesceu no século XXI.
O surgimento do capital financeiro tem origem histórica no processo de fusão entre o capital
bancário e o capital industrial como observou Hilferding. Essa concentração do capital
potencializou a produção a níveis sem precedente. O crescimento do excedente de
mercadorias produzidas empurra as sociedades empresariais para uma corrida constante em
busca de novos mercados para escoar a produção e forÐç
Grandes multinacionais da água detêm quase a totalidade desse bilionário negócio mundial.
São estas as francesas Vivendi, Suez-Lyonnaise, Saur/Boygues, a anglo-alemã RWE/Times
Water e a americana Bechtel.
No entanto, esse comércio da água encontrou e encontra fortes barreiras ideológicas.
resistências de muitas populações em aceitar pagar pela água. Elas reivindicam um valor
comunitário da água relacionado apenas ao uso para saciar a sede, uma necessidade básica
humana. Portanto, para remover esses obstáculos foi necessária uma intensa propaganda
ideológica no sentido de conscientizar os governos e populações do mundo interiro sobre a
crise da água e a conseqüente necessidade de se reconhecer à água como um bem “finito
dotado de valor econômico” como apregoado por diversos economistas. Colocar um preço na
água era então imprescindível para sua transformação em mercadoria.
A criação da mercadoria-água, contudo, não poderia se efetivar sem a respectiva adequação
do Estado a esta nova perspectiva. Foram necessárias profundas reformas nos ordenamentos
jurídicos dos Estados nacionais. A reforma do Estado se verificou em todo o mundo durante a
década de 1990. No Brasil, Bresser Pereira precursor da defesa da mudança do “Estado
Burocrático para o Estado Gerencial” resume as medidas institucionais-legais necessárias para
essa transformação: adoção de novo regime de propriedade e do modelo gerencial de gestão.
O novo regime de propriedade deveria, segundo Bresser Pereira, superar a antiga dicotomia
entre propriedade pública e privada com a introdução do conceito de público não-estatal. o
modelo gerencial corresponderia à adequação do regime jurídico à redução da participação
estatal na ordem econômica e à delegação de suas atividades à iniciativa privada.
A partir desses eixos explicitados de forma precisa pelo autor, direcionamos a pesquisa para a
compreensão das implicações para a gestão da água no bojo dessas reformas, em especial no
que tange a evolução da propriedade da água e a crise da noção de serviço público de
distribuição de água e esgoto no Brasil.
Em estudo sobre a visão jurídica da água, o promotor de justiça do Ministério Público do
Estado do Rio Grande do Sul, Eduardo Coral Viegas, descreve o desenvolvimento da
legislação e da propriedade como sendo um processo de “publicização da água”.
Segundo Viegas, verifica-se na evolução da legislação uma transição do regime de
propriedade privada, estabelecido no Código Civil de 1916 e no Código de Águas, para o
regime de propriedade pública, determinado definitivamente pela Constituição de 1988. Para
a maioria dos juristas que analisaram o fenômeno, esse processo encontra explicação na
conscientização dos legisladores da importância da preservação ambiental dos recursos
hídricos. Desse modo, acabam por ratificar a ideologia que abre caminho para a
transformação da água em mercadoria.
A espoliação da água particular pelo constituinte de 1988 foi fator essencial para vedar o seu
uso comunitário. O Código Civil de 1916 e o Código de Águas de 1934, paradoxalmente, ao
reconhecer a propriedade particular da água estimulavam, o seu valor de uso. A Constituição
da República, ao promover a expropriação da águas passando-as para o domínio público,
possibilitou a posterior cobrança pelas sociedades privadas. Assim, por exemplo, um cidadão
que possuísse em seu terreno um poço que abastecesse toda a sua família gratuitamente, vê-se
obrigado agora a pagar ao Estado ou à sua concessionária privada pelo uso daquelas águas.
Do mesmo modo, pode ser obrigado a pagar, independentemente do consumo, e usar a água
da rede oficial de distribuição.
Percebe-se que, embora preserve elementos característicos de um bem privado como a livre
alienação, a água conserva elementos de um bem público, como a sua afetação ao interesse
público de abastecimento. A cobrança pela água introduzida pela Lei 9.433/97 aponta para
uma adequação da água ao regime de propriedade pública não-estatal. Ou seja: adota um
hibridismo de regime, permitindo subvenções estatais para preservar o recurso:
As metas de extensão dos serviços às camada mais pobres seriam financiadas por recursos
orçamentários próprios na forma de subsidio direto a essas famílias. (SEROA DA MOTTA, 2004,
p.26)
Igualmente, a natureza pública estaria preservada ao manter-se a compulsoriedade do
pagamento pelo seu uso. No entanto, ao mesmo tempo abandona-se esse caráter público, ao
ignorar a afetação da propriedade ao interesse público essencial de preservação da vida.
A reforma do Estado não se restringiu apenas ao regime de propriedade, mas, ao contrário,
recaiu também sobre os serviços públicos. Sob o mote da crise da noção de serviço público
foi defendida a delegação para a iniciativa privada de diversas atividades econômicas que se
encontravam sob controle do Estado, como as telecomunicações, a distribuição de energia
elétrica e de água.
Diversos especialistas passam então a defender, como solução para uma suposta “crise do
modelo” do Plano Nacional de Saneamento, a substituição pelas concessionárias privadas das
antigas companhias estaduais de abastecimento, que são acusadas de gestão, desperdícios,
desrespeito aos usuários, corrupção e outras práticas responsáveis pela falência da gestão
estatal.
Contudo, essa tão propalada falência do modelo não encontrou respaldo nos dados coletados
pela pesquisa, pois as 15 maiores empresas governamentais estaduais obtiveram um lucro
líquido ajustado que suplantou a ordem de um bilhão de reais. O serviço de distribuição de
água e de esgoto revela-se então extremamente atraente para investimentos privados de
capitais que se interessam pelas longas concessões dos serviços.
Outro argumento em prol das privatizações não se comprova na prática. A insatisfação dos
usuários, com a gestão das estatais, não foi solucionada com a delegação à iniciativa privada
dos referidos serviços. A pesquisa realizada com as demandas judiciais em Niterói demonstra
que ainda um índice elevado de reclamações em juízo contra a concessionária privada. No
período entre 2000 e 2005, 785 cidadãos ajuizaram demandas em face da Águas de Niterói
com reclamações variadas, tais como erro nas tarifas cobradas, suspensão do serviço,
cobrança de taxa de esgoto, tarifa mínima e progressiva.
Esse rol de problemas verificados entre concessionária e usuários obriga o judiciário a se
manifestar, mesmo que ainda com imprecisões e divergências doutrinarias quanto ao marco
regulatório vigente para o setor. Assim como o regime de propriedade foi se adaptando, a
análise das decisões judiciais permite vislumbrar a gradual construção de um novo regime
jurídico administrativo dos serviços públicos no Brasil. Nesse regime híbrido são mantidos
atributos publicísticos como a compulsoriedade da cobrança mesmo potencial através da
“taxa” de esgoto e da tarifa progressiva, mas são rejeitados princípios como a continuidade e a
modicidade das tarifas. Nesse novo marco regulatório, como nos demais âmbitos da vida
social, os interesses antagônicos estão presentes, colocando de lado opostos usuários e
concessionárias.
As conseqüências sociais da privatização da água se fazem sentir em diversas partes do
mundo: guerras pela água, poluição dos rios e lençóis freáticos e exclusão social de quem não
pode pagar pela água. Entretanto, diversas resistências se opõem a esse processo
reivindicando o comunitário direito à água.
9. ASPECTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS
O presente apêndice teórico-metodológico se faz necessário pelo compromisso assumido pelo
autor de permitir o mais amplo controle sobre a pesquisa e seus resultados. Para isso, é
imprescindível a publicidade dos pressupostos adotados e dos métodos utilizados no decorrer
do trabalho.
Primeiramente, tomamos o cuidado, ao estabelecer o marco teórico, de o incidir em erro
recorrente de destacar o aspecto teórico do restante da pesquisa e da dissertação. A adoção de
pressupostos iniciais é inevitável em quaisquer trabalhos acadêmicos haja vista que, desde a
escolha do objeto até a defesa final, estes se manifestam presentes como sublinhou Pierre
Bourdieu:
em sociologia, os dados, até mesmo os mais objetivos, são obtidos pela aplicação de grades
(faixas etárias, de remuneração, etc.) que implicam pressupostos teóricos e, por esse motivo,
deixam escapar uma informação que poderia ter sido apreendida por outra construção dos
fatos. (BOURDIEU, 1999, p. 49 e 50).
É evidente para quem dispõe de prévio contato com uma bibliografia sociológica e histórica
que a presente dissertação não foge à regra. A tradição marxista de autores como Edelman,
Habermas, Harvey, Lênin, Luxemburgo, Chesnais, Thompson, José de Souza Martins e o
próprio Marx foi de extrema valia para permitir um alargamento da visão do trabalho.
Assim, assumidamente nos apropriamos da análise de Marx sobre o valor de uso e de troca e
as suas conseqüências para a produção das mercadorias, sem as quais não compreenderíamos
como a água deixa de ter valor comunitário para se tornar uma mercadoria. Igualmente, nos
valemos da interpretação de Souza Martins sobre a expropriação da terra no Brasil para traçar
paralelo com a recente expropriação da água no país.
Do mesmo modo, seria impossível inserir a mercadoria-água no contexto do atual mundo
globalizado sem o auxílio dos clássicos trabalhos de Chesnais, Lênin, Luxemburgo e Harvey.
Percebemos assim como a atual fase do capitalismo é fortemente marcada pela fusão do
capital bancário com o industrial, o que acarreta a concentração das sociedades empresariais
em um nível global e num aumento sem precedentes na produção de mercadorias. Esse
fenômeno tem conseqüências explícitas na busca incessante de novos mercados onde se possa
obter matéria-prima e escoar, através da exportação, o excedente de mercadorias produzido.
De David Harvey, tomamos o conceito de acumulação por espoliação, que permite incluir a
água como parte desse processo de procura de novos recursos naturais e mercados.
A utilização teórico-metodológica desses autores, no entanto, não impossibilitou o recurso a
abordagens e pensadores distintos. Mesmo encontrando-se em posição diametralmente oposta,
Bresser Pereira foi quem, ao apontar com precisão teórica a direção do Estado Gerencial,
direcionou também esta dissertação. Procuramos centralmente entender as duas perspectivas
apresentadas pelo ministro, intelectual da reforma do Estado, sobre a nova estrutura
institucional-legal no que tange às inovações do regime de propriedade da água, o conceito de
público não-estatal, e do modelo gerencial de gestão dos serviços públicos.
Na investigação dessas mudanças, Edelman e Habermas foram fundamentais para a devida
compreensão das relações jurídicas e suas imbricações sociais. O primeiro, com sua análise
sobre a propriedade privada das paisagens na França, e o segundo pelo seu estudo das
mudanças estruturais da esfera pública e sua função de “automediação da sociedade
burguesa”.
Diversas contribuições de juristas foram de relevante valia para a interpretação dessas
mudanças institucionais-legais apresentadas por Bresser Pereira. Quanto à evolução da
propriedade da água recorremos principalmente a Coral Viegas, Luciana Cordeiro, Vladimir
Passos, Ana Claudia Graf, José Ribeiro e Nivaldo Brunoni. Com relação à regulação e aos
serviços públicos, fizemos uso da doutrina jurídica de reconhecidos administrativistas
brasileiros como Celso Antônio Bandeira de Mello, Maria Sylvia Di Pietro, Alexandre
Aragão, José dos Santos Carvalho Filho, Toshio Mukai, Hely Lopes Meirelles, Dinorá Grotti,
Diogo de Figueiredo e ainda dois grandes constitucionalistas, Eros Grau e Luís Roberto
Barroso.
Vale ainda mencionar, quanto ao estudo da escassez da água e seus usos múltiplos, a valiosa
contribuição principalmente de Ricardo Petrella e também dos autores Marq Villiers, José
Galizia Tundisi, Inácio Arruda e Larbi Bouguerra. Nesse aspecto, coube função análoga à
desempenhada por Bresser Pereira na apresentação da proposta institucional-legal do Estado
Gerencial a obra organizada pelo ex-diretor do FMI, Michel Camdessus.
Por fim, faz-se mister ressalvar a importância do historiador inglês E. P. Thompson como
referência teórica obrigatória os que estudam as relações históricas entre direito e sociedade.
Foram muito úteis as suas contribuições sobre as manifestações populares no século XVIII,
envolvendo a escassez do pão e a utilização dos recursos naturais das florestas, que percebem
na dinâmica do direito um complexo campo de lutas. Sem elas, seriam difíceis a identificação
e a compreensão das atuais reivindicações populares em favor do direito à água.
51
Nota-se que consideramos que a teoria não deve aparecer como mero adorno do conteúdo do
trabalho. A teoria somente se torna útil se fornecer subsídios para a compreensão dos
fenômenos sociais estudados. Quando se recorre a clássicos, tem-se como escopo acionar
instrumental teórico capaz de aprofundar a percepção e a interpretação do objeto.
Nesse sentido, o materialismo histórico se demonstrou de extrema atualidade para a pesquisa
ora apresentada. Claro que não partimos de premissa ortodoxa, infelizmente ainda muito
presente, que considera a utilização dessa opção teórico-metodológica como dispensa do
profícuo debate com outras vertentes interpretativas. Em sentido oposto, na análise, não nos
eximimos de repassar a importante produção acadêmica sobre o tema seja esta na área
econômica, sociológica ou jurídica.
As omissões por certo encontradas na dissertação devem-se à inabilidade do autor em adequar
seu trabalho de pesquisa com o tempo exigido, mas jamais pelo menosprezo à relevância das
perspectivas e visões diferenciadas.
Após essa breve demarcação teórica, passemos em revista a metodologia específica da
pesquisa de campo para possibilitar a identificar mais claramente os problemas e equívocos de
fato enfrentados.
Em um primeiro momento da pesquisa, nos concentramos em coletar algumas primeiras
impressões sobre o tema. Desse modo, percebe-se como a questão dos serviços públicos
essenciais é abordada nos grandes meios de comunicação como jornais, revistas e TV. Essa
primeira abordagem permitiu a percepção de como o tema é tratado no senso comum e quais
são as polêmicas que ora se debatem na sociedade de maneira mais clara.
Em uma segunda etapa, reuniu-se a bibliografia citada sobre o tema pesquisado e
outros correlacionados: a distribuição de água e coleta de esgoto; privatização, Estado
Gerencial; defesa do consumidor; agências reguladoras; saneamento ambiental, entre outros.
Na terceira etapa da pesquisa, houve uma coleta de dados (censos, quadros de
investimento, planilhas contábeis das empresas, etc.) no IBGE, no IPEA e em revistas e
publicações especializadas que permitiram subsidiar uma análise dos resultados das mudanças
do setor no período de 1984-2004, abrangendo a mudança do modelo de gestão
intervencionista do PLANASA ao período das primeiras privatizações iniciado na década de
1990 e continuado atualmente.
51
Refiro-me as obras Costumes em comum e Senhores e caçadores: a origem da lei negra que já havia servido
de referência teórica para a monografia apresentada no Programa de História da UFF: O Código Penal de 1990 e
relações sociais na primeira República.
No segundo momento, tínhamos como idéia inicial, realizar pesquisa quantitativa nos
Juizados Especiais Cíveis de Niterói referentes às demandas judiciais existentes no período
que compreendia desde a gestão estatal dos serviços, pela Companhia Estadual de Águas e
Esgoto, até a gestão privada da concessionária Águas de Niterói. Essa proposta foi logo
abandonada pela impossibilidade de encontrar esses dados na mesma fonte, os Juizados
Especiais, haja vista que a época de implantação destes em Niterói coincidiu com a própria
privatização dos serviços de distribuição de água e coleta de esgoto.
Portanto, houve uma primeira adequação do objeto da pesquisa. Resolvemos nos ater às
demandas existentes contra a concessionária privada após a privatização, identificando: o
quantitativo das demandas judiciais e, através do acesso às sentenças, os pedidos que
motivaram as demandas e as soluções dadas pelo judiciário às lides envolvendo a gestão da
água.
A primeira parte dessa proposta foi integralmente alcançada. A partir do site do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro, foi possível sistematizar as demandas judiciais existentes
no período de 2000 a 2005. Constatou-se que, durante esse intervalo temporal, tramitaram ou
tramitam 785 demandas nos Juizados Especiais nas quais a Águas de Niterói figura no pólo
passivo.
No entanto, a segunda parte da pesquisa não logrou o mesmo êxito. A pesquisa consistiria em
levantar nos Juizados Especiais de Niterói e no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro as sentenças nas quais a Águas de Niterói figure como parte. Isso permitiria a
elaboração de um quadro, com dados quantitativos e qualitativos, do período de 2000 a2005,
no qual poderíamos analisar as principais lides entre as empresa e os usuários dos serviços e
sua evolução como, por exemplo, corte no fornecimento, tarifas abusivas etaxa” de esgoto,
assim como observar o posicionamento do Poder Judiciário diante desses conflitos.
Contudo, esse acesso às sentenças foi problemático por fatores de ordem objetiva e subjetiva.
Primeiramente, o período reservado para a pesquisa de campo coincidiu com as obras de
instalações do Fórum da Região Oceânica no qual se concentra a maior parte dos juizados
especiais de Niterói. A mudança de local dos antigos juizados, como o Juizado Especial Cível
da Comarca de Pendotiba, acarretou dificuldades como a diminuição do horário de
atendimento ao público e a desorganização e redução do acesso aos processos exatamente no
momento planejado para a realização da pesquisa.
Como forma de superar esse obstáculo, procuramos então pesquisar nos arquivos do Tribunal
de Justiça do Rio de Janeiro possíveis registros de sentenças proferidas nos juizados ou
mesmo os seus respectivos dados. Mesmo com o auxílio precioso dos servidores do Poder
Judiciário, no DEGECON, não conseguimos encontrar nenhum registro na íntegra das
sentenças. Localizamos apenas trechos que são publicados no Diário Oficial e que
havíamos encontrado também na sede da Impressa Oficial do Estado em Niterói.
Adotamos então como solução redimensionar o objetivo da pesquisa para apenas os juizados
especiais que estavam situados no Terminal Rodoviário de Niterói. Nesses juizados,
deparamos também com algumas dificuldades. Muitos processos encontravam-se arquivados
e, muitas vezes, por falta de interesse processual na ação impedia o desarquivamento para fins
de pesquisa.
Igualmente, resolução interna do Tribunal determina que os autos processuais findos dos
Juizados Especiais Cíveis serão eliminados após o prazo de 180 dias do arquivamento
definitivo. Como alternativa da consulta direta dos processos, restou a busca nos denominados
“Livros de Sentenças”, o que foi tentado. Porém, através da consulta ao Livro 38/05
constatamos que ele teve abertura no dia 12/12/05 e fechamento no dia 19/12/05 com 300
sentenças em apenas uma semana, sendo que, em nenhuma destas, a Águas de Niterói
figurava como parte. Também foi informado que os livros são enviados regularmente para o
arquivo de São Cristóvão.
Além dessas limitações objetivas, houve uma dificuldade em se dimensionar um objeto de
pesquisa adequado às condições e aos prazos estabelecidos no cronograma. Desse modo,
acolhendo finalmente a correta indicação da orientadora da pesquisa, delimitamos o segundo
objetivo desta pesquisa a uma coleta qualitativa em apenas um juizado especial.
Desse modo, escolhemos o II Juizado Especial Cível de Niterói para a pesquisa de campo.
Essa mudança do objeto reduziu a pretensão inicial ao apontamento dos principais motivos de
insatisfação que levam os usuários dos serviços em Niterói a ingressarem em juízo. Por
conseguinte, tivemos acesso a 34 sentenças proferidas no referido juizado.
Embora essa pesquisa qualitativa não permita com precisão uma aferição e distribuição anual
das demandas de acordo com os motivos do pedido, é possível extrair indicações importantes
dos dados colhidos. Por exemplo, foram identificadas algumas das principais questões
enfrentadas pelo judiciário com relação à gestão da água: o valor cobrado pela tarifa; a
suspensão do fornecimento; a cobrança pela taxa de esgoto e a cobrança da tarifa mínima e
progressiva.
Esses apontamentos foram indispensáveis para orientação da outra fase da pesquisa. Com
base nas sentenças pesquisadas no II Juizado Especial Cível, iniciamos uma pesquisa de
jurisprudência no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça para
observarmos como as controvérsias sobre a água, indicadas pelas sentenças de primeira
instância, eram resolvidas pelo judiciário.
Após essas pesquisas, iniciou-se a última etapa do trabalho. Esta consistiu na redação dos
capítulos através da interpretação dos dados da pesquisa de campo confrontados com o
conhecimento e a bibliografia já existentes sobre o setor.
Na dissertação, abordamos então o debate sobre a legislação existente e o novo “marco
regulatório”, proposto pelo governo e pelos empresários, para os serviços públicos no Brasil.
Conforme destacamos, utilizamos para isso alguns processos assim como a doutrina e a
jurisprudência a respeito dos conflitos suscitados. A interpretação proveniente da análise
dessas fontes jurídicas foi submetida ao contexto econômico e social e aos resultados da
pesquisa de campo.
Vale, portanto, frisar que a análise do novo modelo gerencial de gestão estatal dos recursos
hídricos, com a instituição da cobrança pela água, a criação da Agência Nacional de Águas
(ANA) e a gradativa mudança do regime jurídico dos serviços públicos, não pode ser bem
sucedida, apenas procurando uma racionalidade dentro do próprio sistema jurídico como se
este fosse neutro à dinâmica social.
A falta de uma análise sistemática e a ausência da pesquisa de campo podem tornar o
resultado do trabalho desvinculado da realidade social concreta. Corre-se o risco de se
pressupor uma racionalidade a um determinado sistema social a partir dele mesmo. No estudo
do Direito em particular, no qual a tradição positivista ainda se faz muito presente, ainda é
comum confundir a racionalidade jurídica em si com a própria realidade social.
Contudo, destacar a importância do trabalho de campo não significa, porém, reivindicar um
empiricismo. Ao contrário, a teoria é fundamental para que o pesquisador possa até interrogar
o objeto. Por isso a tentativa da presente dissertação de conciliar a teoria e o trabalho de
campo.
Tomamos assim uma clara opção de buscar uma interpretação do regime jurídico da gestão da
água para além da lógica interna do Direito. A pesquisa e o esforço teórico tinham como
ambição cruzar, na explicação do fenômeno relacionado à água, vertentes sociológicas,
econômicas, políticas, históricas que pudessem enriquecer a compreensão jurídica sobre o
tema. Ao final do trabalho, temos certeza de que esse objetivo trouxe prejuízos à densidade
que cada questão, de cada disciplina, nos coloca, mas mantemos a esperança de, ao menos em
parte, colaborar para novas abordagens sobre a água.
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