Não imagino o que aconteceu com ela. Penso que ainda esteja viva. É um mistério
que tira nossa paz desde o dia em que essa menina saiu de Soure. Queremos saber se
ela pelo menos está viva. (O LIBERAL, 2007).
25
Essa condição peculiar, que parece natural na vida de inúmeras crianças brasileiras
nos dias atuais, vem sendo cultivada desde períodos mais longínquos. Algumas dessas
impressões podem ser confirmadas a partir de fragmentos de textos históricos literários com
referência à Colônia e ao Império, que registram inclusive, formas perversas de interações
entre crianças:
Para as crianças brancas são adotadas amas africanas, as yayás, (...) ao crescer, o
menino branco recebe como companheiro de brincar um curumim indígena e depois
um muleque negro que para tudo serve: de amigo, de cavalo de montaria, de
burro de liteira, de carro de cavalo em que um barbante serve de rédea e um galho de
goiabeira, de chicote. Eram os “mané-gostoso”, os “leva-pancada”. (Altiman, 2006
p231) [grifo nossos].
Prudêncio, um muleque (sic) de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as
mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, a guisa de freio, eu trepava-lhe ao
dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava-lhe mil voltas a um e outro lado,
e ele obedecia, – algumas vezes gemendo – mas obedecia sem dizer palavra, ou
quando muito, um – ai nhonhô! – ao que eu retorquia: “cala boca, besta!” (Assis
1998, p36)
26
.
O convívio entre crianças de diferentes condições sociais ao longo do processo de
formação da sociedade brasileira tem sido importante para a composição de uma diversidade
cultural significativa, a qual se transforma e ganha novos contornos ao passar do tempo. Nos
dias atuais, corresponde à existência de culturas identitárias tradicionais
27
.
No entanto, as interações presente no cotidiano das crianças, às vezes vistas de
forma pacífica, não intencional, realizadas por meio do trabalho doméstico nos domicílios
25
Cf. matéria do jornal O Liberal, caderno atualidade, coluna responsabilidade social, p.12 de 17/05/2007,
intitulada “Trabalho rouba infância no Marajó”. Em referência a entrevista da senhora Oneide Cruz de 74 anos
que mora na cidade Soure, na Ilha do Marajó/PA, de onde viu sua neta aos dez anos de idade partir para a capital
Belém para trabalhar em casa de terceiros. Há dezessete não tem noticias da neta.
26
Cf. no Clássico Memórias Póstumas de Brás Cubas.
27
Os portugueses introduziram no Brasil as festas tipicamente católicas como: São João, Natal e Páscoa; os
índios firmaram as tradições folclóricas em homenagem aos elementos regionais próprios de seu universo como
o Sairé, o Cateretê, as brincadeiras de pau de sebo, as lendas do Saci, Curupira, Uirapuru e; os negros a
importante diversidade das danças, na música, representada pela Marujada, Vaquejada, Maracatu, Boi bumba,
dentre outras expressões.