Download PDF
ads:
PRISCILLA RODRIGUES SIMÕES
A NOÇÃO DE TRABALHO REPRESENTADA
PELA IMAGEM E INTERPRETADA PELA
PALAVRA
PORTO ALEGRE
2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ÁREA: ESTUDOS DA LINGUAGEM
ESPECIALIDADE: TEORIAS DO TEXTO E DO DISCURSO
LINHA DE PESQUISA: ANÁLISE DE DISCURSO
A NOÇÃO DE TRABALHO REPRESENTADA PELA IMAGEM E
INTERPRETADA PELA PALAVRA
PRISCILLA RODRIGUES SIMÕES
ORIENTADOR(A): PROF(a). DR(a). FREDA INDURSKY
Dissertação de Mestrado em Teorias do Texto e
do Discurso, apresentada como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre pelo
Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
PORTO ALEGRE
2007
ads:
DEDICATÓRIA
Dedico não este trabalho, mas tudo o que faço na minha vida à construção de um
mundo mais belo, justo, fraterno, igualitário, do qual possamos sentir, realmente, orgulho de
fazer parte. Espero, portanto, que este trabalho - uma pequena parte de minha ínfima parte
nesta construção - auxilie o mundo a perceber a si mesmo como um mundo grande, e plural.
Mundo grande
Não, meu coração não é maior que o
mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho
cruamente nas livrarias: preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os
homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do
que eu esperava.
Mas também na rua não cabe todos os
homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e
livros,
carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso,
amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele
estale.
Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos-voltarão?
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam).
Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões
patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.
Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante
exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
que o mundo, o grande mundo está
crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
-ó, vida futura! Nós te criaremos.
Carlos Drummond de Andrade
AGRADECIMENTOS
Devo agradecer a muitas pessoas pela realização desta dissertação, pois, com certeza,
todos aqueles que estiveram, de uma forma ou de outra, acompanhando minha caminhada
auxiliaram neste processo de estudo, compreensão, interpretação e análise desse mundo
grande que nos cerca.
Agradeço à UFRGS e ao Programa de Pós-graduação em Letras pela oportunidade de
aperfeiçoamento profissional e pessoal que este mestrado me proporcionou. Agradeço à
CAPES, pelo auxílio financeiro e pela oportunidade de realizar um estágio nesta instituição de
tanto prestígio. Também agradeço à turma na qual realizei o estágio, pela sua compreensão e
participação que possibilitaram o sucesso do mesmo, tornando-o mais do que uma obrigação,
um momento de troca intensa e prazerosa de conhecimento.
Agradeço, especialmente, a minha orientadora, Freda Indursky, pela acolhida,
compreensão, dedicação, responsabilidade, e pela igualdade com a qual me tratou desde o
momento em que ingressei neste programa de pós-graduação, pelo carinho, pelas respostas às
dúvidas que me afligiam. Isso tudo sem contar o imenso conhecimento que ela compartilhou
comigo e que me impediu, muitas vezes, de seguir o caminho errado. Além de ser minha
orientadora de escrita, foi minha orientadora de estágio auxiliando na minha formação
docente e dando muito de si para meu crescimento enquanto ser social.
Agradeço imensamente a todos os grandes mestres da FURG, UFRGS, e, inclusive, do
Ensino Básico e Médio com os quais pude ter contato até hoje e que me ensinaram que a
relação de ensino-aprendizagem inclui muito mais do que conhecimento teórico. Inclui
respeito, amor, dedicação, responsabilidade e, sempre, uma alta dose de polêmica, de
questionamento e dúvida. Ressalto aqui a professora Dr.ª Solange Mittmann que, na FURG,
foi minha primeira orientadora no estudo da Teoria do Discurso, sem o qual eu nunca teria
chegado até aqui. Agradeço aos alunos da FURG que me auxiliaram na construção do corpus
de análise desta pesquisa, e, também, à professora Dr.ª Maria Cristina Freitas Teixeira e ao
professor Dr. Oscar Brisolara que me cederam o espaço de suas aulas para que a atividade de
interpretação do recorte fílmico fosse realizada.
Agradeço também a alguns colegas que foram, antes de tudo, grandes amigos ao longo
de toda a graduação: Helton, Sylvia, Adriel, Marcela, Angela Meili, que nossos ideais nunca
se percam em meio à rotina, à injustiça do mundo, ao desinteresse de muitos, ao
embrutecimento das emoções que nos fazem sentir que, além de existir, vivemos.
Agradeço aos meus pais pela indicação do caminho a ser seguido e pela cobrança que
sempre fizeram questão de ter quanto aos estudos, pois isso me ensinou a ser uma pessoa
organizada, disciplinada e responsável com relação a tudo o que faço. Cabe aqui também
agradecer a meus padrinhos que muito me ensinaram sobre as palavras: ética, bom-senso,
respeito, dedicação e otimismo. E outros familiares que me deram força e coragem para
chegar até aqui, através do empréstimo de livros, indicações de leituras, e questionamentos
que demonstram o interesse daqueles que se preocupam com nosso sucesso.
Agradeço ao meu companheiro, amigo e crítico que, além de ser minha base
emocional, é meu maior interlocutor tanto das discussões teóricas quanto da minha prática de
estudante, analista e professora. Certamente, nossas longas conversas e buscas de respostas às
indagações que nos incomodam fazem parte das condições de produção deste trabalho.
Agradeço a minha filha, por ser a razão de minha dedicação e motivo de minha vontade de
construir um mundo melhor, mais igualitário e, sobretudo, humano.
Enfim, agradeço a todos aqueles que acreditam em mim e me dão força para seguir
lutando, crescendo, aprendendo, sofrendo e atuando em prol da difusão de uma visão crítica,
responsável e baseada, sempre, no fim social de nossa existência.
RESUMO
Esta pesquisa tem como principal objetivo refletir sobre o fato de que toda a materialidade
simbólica produz sentido juntamente com as condições de produção, e, por isso, se inscreve
na ordem do discurso. Considerando que o sentido não pode ser dado aprioristicamente, mas
na relação entre sujeito, língua e história, buscamos realizar uma atividade de interpretação da
noção de trabalho, representada por um recorte fílmico formulado a partir de um arquivo pré-
existente. No procedimento de análise do corpus experimental formulamos recortes
discursivos de acordo com as posições sujeito que emergiram do trabalho de interpretação das
imagens. A heterogeneidade dos saberes que subjazem a essas tomadas de posição aponta
para o retorno de dizeres silenciados no seio do discurso hegemônico da ideologia dominante,
através dos processos interdiscursivos e do trabalho da memória discursiva. Concluímos,
portanto, que a interpelação do sujeito pela ideologia não se dá de forma plena e que a
emersão do desejo inconsciente faz com que um discurso torne-se outro e venha a provocar o
surgimento de novas relações entre o sujeito do discurso e a forma-sujeito que regula os
saberes da ideologia dominante.
ABSTRACT
This research aims mainly at reflecting about the fact that every symbolic materiality produce
meaning along with its conditions of production, and, thereby, it inscribes itself in the order of
discourse. Considering that meaning can not be given in advance, but within the relation
among subject, language, and history, we have accomplished an activity of making sense of
the notion of work, represented through a film extract based on a pre-existing file. Proceeding
to the examination of the experimental corpus, we have generated discursive extracts
according to subject position that emerged from the task of image interpretation.
Heterogeneity of knowledge that lay on taking these positions points toward the return of
silenced speech in the vein of the dominant ideology hegemonic discourse, through
interdiscursive processes and the work of discursive memory. In conclusion, subject
interpretation through ideology is not completely accomplished, and unconscious desire
emersion turns a discourse into another, generating new relations between the subject of
discourse and the subject-form which regulates the knowledge of dominant ideology.
SUMÁRIO
CAPÍTULO 1: APRESENTANDO A DISCUSSÃO
1.1. O despertar da teoria 12
1.2. O quadro epistemológico da Análise de Discurso 14
Construindo um efeito de fechamento 17
CAPÍTULO 2: O TRABALHO À LUZ DA FILOSOFIA E DA SOCIOLOGIA
2.1. Trabalho, valor e propriedade em Locke 19
2.2. O estado natural do homem e a propriedade em Rousseau 21
2.3. Divisão do trabalho e aparecimento das classes sociais 25
2.4. Trabalho e capitalismo em Engels, Marx e Lukács 28
2.5. Radicalização: o fim do trabalho 32
2.6. A reelaboração da noção de trabalho 34
Finalizando o debate com a Filosofia e Sociologia 37
CAPÍTULO 3: CONSTRUÇÃO DO DISPOSITIVO TEÓRICO DA PESQUISA
3.1. Língua: o conceito-chave do deslocamento 40
3.2. Formação ideológica e formação discursiva 44
3.3. Sujeito e sentido 50
3.4. Interdiscurso: pré-construído e discurso transverso 58
3.5. Heterogeneidade 60
3.6. Memória Discursiva 62
3.7. Discurso: o objeto 68
3.8. O texto verbal e o não-verbal na Semiótica e na AD 73
3.9. Leitura e interpretação na AD 80
3.10. Paráfrase e polissemia 90
3.11. Autoria e discurso 95
Costurando a elaboração do aparato teórico 100
CAPÍTULO 4: METODOLOGIA DE ANÁLISE
4.1. Objeto de análise 104
4.2. Segmento e recorte 109
4.3. Corpus discursivo 111
CAPÍTULO 5: MOMENTO ANALÍTICO
Recorte discursivo 1: Plena identificação com a FD capitalista 116
Recorte discursivo 2: Contra-identificação com a FD capitalista 120
Bloco discursivo 1. A reificação do homem 121
Bloco discursivo 2. O sujeito do desejo 124
Recorte discursivo 3. O sujeito do vacilo 129
Recorte discursivo 4. Leitura parafrástica 135
Recorte discursivo 5. Leitura polissêmica 137
Construindo uma leitura global sobre as análises 144
CAPÍTULO 6: FINALIZANDO A DISCUSSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 154
CAPÍTULO 1: APRESENTANDO A DISCUSSÃO
Diante das formas simbólicas que, na era da multimídia, “falam aos nossos olhos”, e
nos impelem silenciosamente a interpretar, preocupamo-nos em estudar a materialidade
imagética e sua interpretação. Foi a partir do conhecimento dos documentários
KOYAANISQATSI (1983) e POWAAQATSI (1987), de Godfrey Reggio
1
, que começamos a
postular questões acerca do discurso não-verbal, visto que estas produções cinematográficas
são compostas, exclusivamente, de imagens acompanhadas de uma trilha sonora minimalista,
composta por Philip Glass, para cada cena. Não existem falas e nem qualquer palavra ao
longo dos filmes, essa forma de tratar de vários assuntos de forma muda nos chamou a
atenção, e surgiu então a curiosidade: como outras pessoas significariam aquele material?
Talvez uma pesquisa sobre a interpretação do mesmo tivesse algo a dizer sobre a produção de
sentidos a partir de materialidades simbólicas não-lingüísticas, esse foi o pensamento inicial
que guiou esta pesquisa.
Nosso procedimento inicial foi delimitar um tema para observação, já que seriam
infinitas as temáticas proporcionadas pelas três horas de material que os documentários nos
disponibilizavam. Partindo de um questionamento a respeito das formas tomadas pelo
trabalho inserido na concepção capitalista de evolução social que temos na atualidade,
pensamos: como outros sujeitos concebem o sistema capitalista de produção? Buscando
descobrir isso, selecionamos cenas representativas de formas de trabalho distintas e
elaboramos um recorte lmico a fim de apresentá-lo a alguns grupos de alunos, e solicitamos
que escrevessem sua interpretação a respeito do que haviam assistido.
A seguir, vamos expor a estruturação dos capítulos que constituem a presente
dissertação. No passo inicial, fazemos uma breve apresentação do momento histórico no qual
a Teoria do Discurso foi fundada. No segundo tópico deste primeiro capítulo, tratamos da
constituição heteronea da Teoria do Discurso, devido ao fato da mesma mobilizar conceitos
provenientes do materialismo histórico; da lingüística; e da teoria do discurso propriamente
dita. Outra área do conhecimento que também irá auxiliar na produção de conceitos para a
Teoria do Discurso é a psicanálise, devido às preocupações de Pêcheux com a subjetividade
envolvida tanto no processo de produção quanto no de interpretação do objeto discursivo.
1
Godfrey Reggio, a exemplo dos cineastas russos como Serguei Eisenstein e Dziga Vertov, que inovaram no
processo de montagem, rompe a forma clássica dos documentários de narrador e depoimentos, criando um filme
sem história ou diálogos, apenas com imagens do fotógrafo Ron Fricke e a trilha sonora do compositor Philip
Glass.” In: http://lunik9.blogspot.com/2007_06_01_archive.html (11/09/07)
11
O segundo capítulo desta dissertação é resultado de uma pesquisa teórica baseada na
noção que buscamos observar, o trabalho humano
2
. Acreditamos ser imprescindível buscar os
teóricos que refletiram sobre trabalho para construir uma espécie de arquivo sobre os sentidos
construídos até o momento sobre esta noção. Nesta pesquisa visitamos Locke, Rousseau e
Ponce que nos apresentaram as noções de trabalho, valor, propriedade, divisão do trabalho e
classes sociais. Também buscamos Lukács, Marx e Engels, no intuito de definir teoricamente
o conceito de regime capitalista juntamente com a própria noção de trabalho. Algumas
discussões contemporâneas acerca do trabalho estão aqui apresentadas, como a proposta de
fim do trabalho
12
1. O DESPERTAR DA TEORIA
A teoria da Análise de Discurso (AD) surge na França, na década de 60, e tem,
segundo Maldidier (1994), uma dupla fundação por Dubois e Pêcheux, os quais trabalham,
independentemente, na elaboração dessa teoria. O contexto científico das ciências humanas da
época era favorável ao desenvolvimento da nova teoria, visto que com o estruturalismo, a
lingüística recebe status de ciência piloto chegando, inclusive, a transferir “todo um conjunto
de conceitos lingüísticos para quase todos os domínios das ciências humanas e ‘sociais’”
(HENRY, 1997
3
, p.27), como foi feito por Lévi-Strauss ou Roland Barthes, por exemplo. Isso
significa que foi devido aos avanços do estruturalismo que se deu a possibilidade de
existência da teoria de Análise de Discurso.
No entanto, há uma peculiaridade que diferencia esta teoria da lingüística da época,
qual seja: a percepção de uma relação entre a língua e seu exterior, constatação que afasta o
conceito de língua como sistema, estrutura fechada sobre si mesma, conferindo-lhe uma
mobilidade que pode ser observada quando concebemos a língua enquanto prática de
linguagem, ou seja, quando questionamos as diferentes formas que ela tem de significar.
Dessa forma, passa-se de uma concepção de autonomia absoluta da língua, da lingüística; para
uma concepção de autonomia relativa, visto que ela deve receber a intervenção de fatores
externos para se chegar ao efeito de sentido de determinado discurso. Assim, o que temos na
Teoria do Discurso é uma concepção de ngua como um meio através do qual se chega ao
funcionamento do objeto discursivo, e, também, como um lugar de incompletude, pois os
sentidos não estão dados nas suas relações internas, mas sim em sua relação com a
exterioridade.
Portanto, torna-se necessário elaborar conceitos que relacionem o objeto discurso aos
acontecimentos sociais, a sua historicidade, à memória que dele deriva. Nesse trabalho de
elaboração dos conceitos teórico-metodológicos da AD, os estudiosos buscaram o “método
dito harrisiano de extensão da análise distribucional além da frase” (MALDIDIER, 1994,
p.21), pois para Pêcheux “a deslinearização permite perceber os traços dos processos
discursivos” (Ibid.). Mais tarde, chegar-se-ia à conclusão de que este método apresentava
limitações que impediam o desenvolvimento da Teoria do Discurso.
3
HENRY, P. Os fundamentos teóricos da “Análise Automática do Discurso” de Michel Pêcheux (1969). In:
GADET, Françoise e HAK, Tony. (org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de
Michel Pêcheux. 3 ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997.
13
A instituição da AD, para Pêcheux, “é pensada como ruptura epistemológica com a
ideologia que domina nas ciências sociais(Ibid., p.19). Assim, esta seria uma “disciplina
transversal” (Ibid., p.20) que objetiva a articulação da questão do discurso às questões do
sujeito e da ideologia, o que demonstra que não é possível propor a filiação de Pêcheux a uma
forma de pensamento estruturalista, visto que seu objetivo era o de fundar uma disciplina
autônoma “recusando uma relação de aplicação (da lingüística a um outro domínio) e uma
integração pura e simples à lingüística” (MALDIDIER, 1994, p.20).
A partir das dicotomias saussurianas, os lingüistas deveriam se dedicar ao estudo das
formas da língua, mas não dos sentidos delas derivados; assim como deveriam estudar a
língua sem relacioná-la ao seu exterior. Nessa perspectiva, fatores cruciais para Pêcheux,
como as condições de produção (noção diretamente relacionada ao caráter social e histórico
do discurso), a relação de forças e as relações de sentido não poderiam ser estudadas. É por
isso que Pêcheux busca, a partir das definições saussurianas, formular uma outra concepção
de língua: opaca, e não transparente; passível de equívoco, e não perfeita; lacunar, e não
completa e fechada em si mesma.
Quando a Análise de Discurso surge na França, ela está voltada para o estudo do
discurso político e, segundo Maldidier, ela tem um “objetivo político: a arma científica da
lingüística oferece meios novos para abordar a política” (MALDIDIER, 1994, p.18). Com
este objetivo, seriam aliados conceitos lingüísticos, marxistas e psicanalíticos em sua
formulação buscando conhecer, através da linguagem, a estrutura da esfera social:
Relacionando um estado dado das condições de produção do discurso, M.
Pêcheux fornecia, simultaneamente, uma definição de discurso, sempre
determinada e apreendida dentro de uma relação com a história, e um
princípio de construção do corpus discursivo. (Ibid., p.20)
Quanto ao corpus discursivo, Maldidier diz que “ele reproduz o fechamento
estrutural do texto para tentar apreender a relação com um exterior” (Ibid.), visto que essa
teoria busca trabalhar com uma noção de texto heterogêneo, ou seja, que é construído a partir
de elementos diversos e, por isso, não pode ser considerado como uma unidade fechada. A
autora ainda acrescenta que sendo o discurso construído a partir dessa relação com a história,
e no interior de determinado estado social, ele “não se confunde nem com a evidência de
dados empíricos, nem com o texto” (Ibid.). Isso significa que a Teoria do Discurso representa
um deslocamento tão grande do objeto de análise que este não pode ser pensado, apenas, a
partir do campo da lingüística. Assim, a Análise de Discurso seria uma “interpretação
althusseriana do materialismo histórico” (MALDIDIER, 1994, p.19), pois, além de considerar
as configurações das estruturas sociais através da história e da memória discursiva, a teoria
14
buscava compreender o papel da ideologia e do inconsciente através da noção de formações
imaginárias, para analisar os discursos almejados.
Há, ainda, uma importante peculiaridade da AD que pode ser conhecida se nos
perguntarmos, tal como o fez Paul Henry: o que é para Pêcheux um instrumento científico?
Pergunta à qual Henry também responde dizendo-nos que:
... o ponto de vista de Pêcheux é (...) aquele da história da ciência e
das técnicas científicas. Ele segue de perto Bachelard e Canguilhem.
Mas ele acrescenta a estes teóricos elementos oriundos de uma análise
marxista sobre as conseqüências da divisão do trabalho (em particular,
da separação entre o trabalho manual e o trabalho intelectual), e sobre
as conseqüências do caráter contraditório da combinação das forças
produtivas e das relações sociais de produção em uma sociedade
dividida em classes. (HENRY, 1997, p.15).
Esta afirmação, creditada a Pêcheux r P rixa
15
que para estes autores “A história não é mais do que a sucessão das diferentes gerações, cada
uma delas explorando os materiais, os capitais e as forças produtivas que lhes foram
transmitidas pelas gerações precedentes (Ibid., p.21). Nesta perspectiva, a história é
construída com base na divisão do trabalho, na luta de classes, na divisão existente na
sociedade. A noção de história se faz importante na Teoria do Discurso, pois, a partir de uma
concepção discursiva, a linguagem só é linguagem porque produz sentido, e este só é possível
porque se inscreve na história. Disso depreende-se que para existir sentido é necessário que
pré-exista algum sentido.
O materialismo histórico possibilitou a Althusser, através de uma releitura, formular a
teoria do assujeitamento do sujeito à formação discursiva na qual ele se inscreve, teoria
apresentada na obra Aparelhos Ideológicos de Estado (1970) e que também será produtiva
para o trabalho com o discurso. Outra importante noção oriunda do materialismo histórico,
mobilizada por Althusser, é a concepção de ideologia, visto que, não sendo um ato de
pensamento de um indivíduo solitário, a ideologia é uma ‘representação’ da relação
imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência (ALTHUSSER, 1992
5
,
p.85). Nesta noção se percebe a inexistência de uma realidade empírica, e uma afirmação da
existência de uma relação reflexiva de representações, ou seja, para a Teoria do Discurso, a
realidade é uma “ilusão” criada por cada um de nós e refratada pela ideologia, sendo, também,
diretamente relacionada ao lugar social. Como foi postulado por Althusser, e trabalhado por
Pêcheux, não há prática social senão através de e sob uma ideologia; e não há ideologia senão
através do sujeito e para o sujeito, visto que todo o sujeito é interpelado pela ideologia.
A lingüística, que estuda os mecanismos sintáticos e os processos de enunciação, é a
segunda área de conhecimento que constitui o campo epistemológico da Análise de Discurso.
Para analisar os discursos, é necessário identificar marcas que podem derivar de qualquer
nível: fonológico, morfológico, ou sintático. O estudo das marcas lingüísticas revela que a
organização da estrutura de um texto também é um fator constitutivo da significação, a
escolha lexical, a flexão verbal, a pontuação, são elementos que devem ser percebidos quando
se deseja chegar a um vel profundo de leitura, que o modo de dizer não é indiferente aos
sentidos. Mas não devemos esquecer que o fator diferencial da Análise de Discurso, em
relação a outras teorias que estudam o texto, é considerar não somente os itens lingüísticos no
processo de produção do sentido de um texto, e sim, relacioná-los aos fatores externos:
5
Texto consultado: ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1992. O
original data de 1970.
16
interdiscurso, condições de produção, memória discursiva
6
e todas as particularidades que
cada uma dessas noções inclui no trabalho com o objeto discursivo. Isso decorre do fato da
não-coincidência entre signo e sentido, pois, para a Análise de Discurso, essa relação não é
estável e nem unívoca, mas desestabilizada ao considerarmos fatores externos à ngua para a
constituição dos efeitos de sentido.
O terceiro campo epistemológico que forma a Análise de Discurso é a teoria do
discurso, que é a “teoria da determinação histórica dos processos semânticos” (PÊCHEUX e
FUCHS, 1997
7
, p.164), por articular conceitos provenientes do materialismo histórico para
pensar a constituição do discurso pela ideologia e pela historicidade; e, também, conceitos da
lingüística para trabalhar com os dados lingüísticos analisados. Essa teoria produz, portanto, o
corpo teórico e metodológico para que a Análise de Discurso possa trabalhar com seu objeto:
o discurso.
Essas três regiões são “atravessadas e articuladas por uma teoria da subjetividade de
natureza psicanalítica” (PÊCHEUX e FUCHS, 1997, p.164). Assim, a principal contribuição
da psicanálise para a Teoria do Discurso foi o conceito de inconsciente que possibilitou a
inclusão da subjetividade no estudo da língua. Além disso, a noção de Outro constitutivo
também auxiliou na compreensão do processo de assujeitamento do sujeito à ideologia, e de
sua fragmentação. A falta, o real, o simbólico e o imaginário também foram articulados pela
AD a partir da teoria psicanalítica, visto que Pêcheux concebe um sujeito social dotado de
inconsciente e, por isso, capaz de produzir falhas, equívocos em seu discurso.
6
Noções estas que serão retomadas em momento apropriado.
7
Data da obra consultada; a datação original do texto “A propósito da Análise Automática do Discurso:
atualização e perspectivas”, de autoria de Pêcheux e Fuchs, é: 1975.
17
CONSTRUINDO UM EFEITO DE FECHAMENTO DO CAPÍTULO
A história da fundação da Análise de Discurso apresenta esta teoria como uma forma
de análise lingüístico-histórica do discurso político, construída a partir de releituras de
conceitos provenientes do materialismo histórico, da lingüística e da psicanálise. Segundo os
autores aqui estudados, Pêcheux interessava-se pela questão da leitura e sua divisão social,
pelo caráter material da história, pelas condições de produção do discurso.
Com base nisso, podemos dizer que nossa pesquisa retoma algumas preocupações
provenientes do materialismo histórico e que são compartilhadas por Pêcheux. A afirmação
de que a história está diretamente relacionada com os modos de produção, e o fato de
produzirmos representações imaginárias sobre tudo o que interpretamos, ou seja, de que a
realidade é uma “ilusão” criada por cada um de nós e refratada pela ideologia, nos permitem
abordar a temática do trabalho humano percebendo-a como um constructo, e não como uma
realidade dada à priori.
No próximo capítulo, trataremos detalhadamente da noção de trabalho a partir do
estudo da Filosofia e da Sociologia.
18
CAPÍTULO 2: O TRABALHO À LUZ DA FILOSOFIA E DA
SOCIOLOGIA
19
2.1. TRABALHO, VALOR E PROPRIEDADE EM LOCKE
John Locke
8
foi o teórico que defendeu a teoria do liberalismo moderado. Ele
acreditava que o homem tem direitos naturais anteriores à sociedade, os quais têm de ser por
esta respeitados e protegidos, tais como: liberdade pessoal, propriedade e legítima defesa.
Assim, ele demonstra no Segundo Tratado Sobre o Governo, que integra a obra Dois
Tratados Sobre o Governo
9
, de que forma o trabalho funda o direito à propriedade:
Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os
homens, cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa; a esta
ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo. O trabalho de seu corpo e a
obra de suas mãos, pode dizer-se, são propriedade dele. Seja o que for que
ele retire do estado que a natureza lhe forneceu e no qual o deixou, fica-lhe
misturado ao próprio trabalho (...) tornando-o propriedade dele (...). Desde
que esse trabalho é propriedade exclusiva do trabalhador, nenhum outro
homem pode ter direito ao que se juntou. (LOCKE, 1978, p.45-46).
Desta citação depreende-se o conceito de trabalho sobre o qual o autor baseia seu
discurso, qual seja: a transformação de um elemento da natureza pelas mãos do homem, de
forma que o trabalho empregado nessa atividade fixa a propriedade de um homem sobre algo,
e, por isso, nenhum outro homem pode se beneficiar dos frutos do trabalho de alguém.
Locke baseia-se no célebre trecho da Bíblia em que Deus expulsa Adão e Eva do
Paraíso para justificar a existência da propriedade privada: “maldita seja a terra por tua causa.
Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida. Ela te produzirá
espinhos e abrolhos, e tu comerás a erva da terra. Comerás o teu pão com o suor de teu
rosto...” (GÊNESE, 1995
10
, p.51). E afirma que:
Deus ordenava, e as necessidades obrigavam ao trabalho (...). Daí se que
dominar ou cultivar a terra e ter domínio estão intimamente conjugados. Um
deu direito a outro. Assim, Deus, mandando dominar, concedeu autoridade
para a apropriação; e a condição da vida humana, que exige trabalho e
material com que trabalhar, necessariamente introduziu a propriedade
privada. (LOCKE, 1978, p.48)
Essa concepção de propriedade, a partir da qual o homem só é proprietário daquilo que
transforma a partir do seu esforço, ou seja, que ele pode ter tanto quanto possa utilizar,
continuaria vigorando até hoje, segundo o autor: “se a invenção do dinheiro e o tácito acordo
dos homens, atribuindo um valor à terra, não tivessem introduzido (...) maiores posses e o
8
John Locke nasceu em 1632 e morreu em 1704 e durante toda a sua vida participou das lutas pela entrega do
poder à burguesia, classe à que pertencia, pois acreditava que todos os homens nascem iguais.
9
A publicação original desta obra data de 1690 e a obra aqui utilizada para as citações data de 1978.
10
95ª edição.
20
direito a elas.” (Ibid., p.49). Assim, foi a invenção da moeda, como forma de tornar duradouro
o valor de objetos perecíveis tais como os alimentos, que possibilitou ao homem ampliar suas
posses e acumulá-las, pois “onde não existe algo de duradouro e raro, de bastante valor para
que se guarde, os homens não estarão em condições de ampliar as próprias posses de terra...”
(LOCKE,
1978, p.53).
Logo, é o surgimento da moeda que permite ao homem produzir objetos em excesso e
trocá-los não por outros produtos, mas também por “ouro e prata que podem [ser]
guardados (...) uma vez que esses materiais não se deterioram nem se estragam nas mãos de
quem os possui.” (Ibid.). Desta forma, se antes não havia razão para o homem trabalhar mais
do que o necessário para garantir sua sobrevivência, visto que acumular caças, frutos ou
pescados seria sinônimo de desperdiçar bens naturais, esforço e tempo, devido à rápida
deterioração desses produtos, com a invenção da moeda vende-se o que excede ao necessário
para a subsistência e, com isso, o homem passa a acumular metais que têm um valor
duradouro.
Quanto ao cálculo do valor de determinada propriedade, Locke o atribui ao trabalho:
...é na realidade, o trabalho que provoca a diferença de valor em tudo quanto
existe. Considere qualquer um a diferença que existe entre um acre de terra
plantado com fumo ou cana-de-açúcar (...) e um acre da mesma terra (...)
sem qualquer cultura e verificará que o melhoramento devido ao trabalho
constitui a maior parte do valor respectivo. (LOCKE, 1978, p.51).
Através do exemplo dado pelo autor compreende-se facilmente porque o trabalho
constitui a base do valor da terra ou de qualquer produto. Esse é o motivo pelo qual o vinho
vale mais do que a água, ou a seda vale mais do que as folhas: é o esforço despendido na
transformação desses produtos desde seu estado natural até o momento em que estão prontos
para o uso. Assim, “pode verificar-se como o trabalho constitui a maior parte do valor de tudo
quanto gozamos no mundo” (Ibid.) e de que forma ele pode ser o único a garantir o direito à
propriedade privada.
Portanto, foi a valorização monetária do trabalho que possibilitou a instauração de
uma nova ordem social na qual as pessoas passaram a ser caracterizadas pelo ofício que
exerciam e pela quantidade de posses que, a partir dele, constituíam, e não somente pela
posição social que ocupavam. Mais adiante, veremos que este fato proporcionou o surgimento
de uma nova classe social que, não possuindo fortuna hereditária, pôde buscar sua ascensão
através do trabalho e das riquezas com ele acumuladas.
21
2.2. O ESTADO NATURAL DO HOMEM E A PROPRIEDADE EM ROUSSEAU
Rousseau
11
caracterizou-se como “adverso à sociedade organizada nos moldes
consagrados” (ROUSSEAU, 1945
12
, p.16), pois “realizava o panegírico do estado natural que
teria existido anteriormente a qualquer espécie de civilização e no qual o homem, nascido
bom, não fora ainda estragado pela sociedade” (ROUSSEAU, 1945, p.16). Devido a suas
idéias que muito difundiram a tese do bom selvagem o autor não era visto com bons olhos
pelos “privilegiados senhores da aristocracia” (Ibid.), principalmente porque defendia “uma
tese que afirmava que os frutos da terra a todos pertenciam, porque a terra não era de
ninguém” (Ibid.). Assim, Rousseau apresentava um pensamento contraventor para a sociedade
da época em que viveu, e também uma visão bastante antecipada das conseqüências que esse
modelo de sociedade poderia trazer, visto que ele “teve consciência de que a liberdade política
está estreitamente ligada às condições de existência. Percebeu com clareza que a desigualdade
dos direitos entre os cidadãos tem origem na desigualdade das riquezas” (ROUSSEAU, 1945,
p.18). Desigualdade essa que se tornou mais acentuada a partir do momento em que se
convencionaram valores para o ouro e a prata, ou seja, desde que se iniciou o uso da moeda
em troca de bens e serviços.
A segunda obra de Rousseau, Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens (1753
13
), traz algumas considerações importantes sobre o
homem em seu estado natural. Nela o autor afirma que na vida em sociedade “a maioria dos
males é fruto de nossa própria obra, e (...) seriam quase todos evitados se conservássemos a
maneira simples, uniforme e solidária de viver, que nos foi prescrita pela Natureza.”
(ROUSSEAU, 1945, p.150). Assim, seria a vida em sociedade a causadora de males como as
doenças, a alimentação dos pobres, a miséria e “a extrema desigualdade na maneira de
viver, o excesso de ociosidade por parte de uns, o excesso de trabalho de outros” (Ibid.).
Disso depreende-se que o trabalho, desde o seu surgimento, não beneficia aqueles que o
realizam, mas sim aqueles que com ele lucram e que são os mesmos que vivem em
ociosidade.
11
Jean-Jacques Rousseau nasce em 1712 e morre em 1778. Em 1750 escreve o Discurso Sobre as Ciências e as
Artes; em 1753 escreve o Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens; e em
1762 é editado em Amsterdã O Contrato Social, sua mais conhecida obra.
12
Data da versão utilizada para as citações, e que compreende as três obras do autor, das quais apenas duas serão
aqui referenciadas. Vale explicitar, portanto, que O contrato Social compreende as páginas 21 a 142 e o
Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens as páginas 143 a 208.
13
Datação do original.
22
Rousseau diz, também, que o homem “ao tornar-se sociável e escravo, transforma-se
em fraco, medroso, abjeto; e sua maneira de vida, delicada e efeminada, acaba por enervar por
seu turno a força e a coragem” (ROUSSEAU, 1945, p.151). Sendo assim, o homem natural,
que depende de sua força e coragem para sobreviver em meio à natureza, quando passa a fazer
parte da sociedade transforma-se em escravo de outros homens que não são superiores a ele
em termos de atributos necessários à vida natural; mas em termos de riqueza, o que torna a
relação entre os homens muito diferenciada daquela existente antes da vida em sociedade. Nas
palavras do autor:
Enquanto os homens se contentaram com suas cabanas rústicas, enquanto se
limitaram a coser as vestes de pele com espinhos e arestas, a adornar-se de
penas e conchas marinhas, a pintar o corpo com tintas de diversas cores, a
aperfeiçoar e embelezar os arcos e as flechas, a talhar, com a ajuda de pedras
cortantes, algumas canoas de pescadores ou alguns grosseiros instrumentos
musicais; numa palavra, enquanto se dedicaram às obras que podiam ser
feitas individualmente, às artes que não necessitavam de numerosas mãos,
viveram livres, sãos, bons e felizes, tanto quanto o podiam ser por sua
natureza, e continuaram a desfrutar entre si de um comércio independente...
(ROUSSEAU, 1945, p.183)
Essa citação constitui um dos acréscimos que Rousseau vem dar à nossa pesquisa, e
que diz respeito à conceituação da perspectiva telúrica de trabalho que coincide,
perfeitamente, com a concepção de homem natural postulada pelo autor, pois numa
perspectiva de trabalho artesanal o homem deve ter as características de autonomia e
coragem, que o único responsável pelo êxito de sua atividade laboriosa é ele mesmo, afora
as condições que a Natureza lhe proporciona. Rousseau afirma ainda que:
... desde o instante em que um homem teve precisão da ajuda de outrem,
desde que percebeu ser conveniente para um ter provisões para dois, a
igualdade desapareceu, introduziu-se a propriedade, o trabalho tornou-se
necessário e as vastas florestas se mudaram em campos risonhos que
passaram a ser regados com o suor dos homens, e nos quais logo se viu a
escravidão e se viu a miséria germinar e crescer com as colheitas.(Ibid.)
Partindo dessas palavras do autor podemos dizer que a liberdade do homem existiu
enquanto este ainda se encontrava no seu estado natural, depois disso, com a vida em
sociedade, a liberdade só existia para aqueles que eram mais bem sucedidos em termos de
exploração de outros homens e, por isso, conseguiam acumular riquezas. Para Rousseau, a
“metalurgia e a agricultura foram as duas artes cuja invenção produziu essa revolução”
(
ROUSSEAU, 1945, p.183
). Portanto, foi a necessidade de ter quem trabalhasse o ferro e de ter
quem alimentasse os trabalhadores, que não mais podiam cuidar apenas de sua própria
sobrevivência, que o homem passou a desempenhar uma atividade em troca de sua
subsistência, pois, não podendo cultivar seu alimento, ainda assim, poderia comprá-lo de
23
outrem, tal como seu patrão havia comprado sua mão-de-obra para realizar o trabal-3
24
Portanto, a modificação do estado natural do homem, a partir do estabelecimento das
sociedades organizadas, trouxe más conseqüências para os pobres; e benefícios para os
ricos. A nova ordem social da propriedade, que prega a liberdade e igualdade entre os
homens, mantém, entretanto, divisões de classes, e cria uma legislação em favor dos “mais
fortes” (ROUSSEAU, 1945, p.24). O autor especifica o sentido do termo igualdade ao dizer
que “não se deve entender por essa palavra que os graus de poder e riqueza sejam
absolutamente os mesmos” (Ibid., p.60), ou seja, a igualdade entre os homens não anula a
desigualdade de riqueza existente entre as classes constituintes das sociedades organizadas.
Quanto à riqueza, o autor espera “que nenhum cidadão seja assaz opulento para poder
comprar um outro, e nem tão pobre para ser constrangido a vender-se” (Ibid.), entretanto, no
que consiste a relação de trabalho senão na venda e na compra da força de trabalho? E nem
por isso esta relação foi considerada opulenta ou causadora de constrangimento por aqueles
que a instituíram, ao contrário, até mesmo a Igreja a justificou através de afirmações do tipo
“O trabalho dignifica o homem”.
Rousseau, com base em sua reflexão, afirma que “o homem nasceu livre, e em toda
parte se encontra sob ferros. De tal modo acredita-se o senhor dos outros, que não deixa de ser
mais escravo que eles” (ROUSSEAU, 1945, p.21). Disso depreende-se que não a
escravidão, mas todas as formas de relação social fazem com que o homem abra mão de sua
liberdade e de sua autonomia, pois na vida em sociedade uns dependem dos outros e, por isso,
tanto escravo quanto senhor - de formas diferentes, é claro - estão subjugados a uma
autoridade maior seja ela a lei, a religião ou o rei.
Quanto à ordem social, o autor diz que ela “é um direito sagrado que serve de alicerce
a todos os outros. Esse direito, todavia, não vem da Natureza; está, pois, fundamentado sobre
convenções.” (Ibid., p.22). Assim, o autor entende que a ordem social é algo exterior à
natureza humana e, por isso, está baseada em convenções que constituem a base de “toda a
autoridade legítima” (Ibid., p.25) existente entre os homens. Uma das formas de relação de
autoridade é o trabalho e, segundo Rousseau, “alienar é dar ou vender. Ora, um homem que se
escraviza a outro não se dá, vende-se, pelo menos em troca da subsistência” (Ibid.). Sendo o
trabalho assalariado, tal como se apresenta até os dias de hoje, um dos elementos
constitutivos da ordem social, ele também é uma atividade exterior à natureza humana, pois,
de acordo com essa ordem, cada homem seria responsável pela sua própria subsistência,
enquanto na esfera do trabalho a subsistência de uns depende de outros.
25
Rousseau diz também que:
... escravatura e direito são contraditórias, excluem-se mutuamente. Seja de
homem para homem, seja de um homem para um povo, este discurso será
igualmente insensato: “Faço contigo um contrato, todo em teu prejuízo e
todo em meu proveito, que eu observarei enquanto me aprouver, e que tu
observarás enquanto me aprouver.” (ROUSSEAU, 1945, p.28).
Ora, o que lembra este contrato criticado pelo autor senão a relação patrão/empregado
na forma que vigora até os dias de hoje? Afinal, apesar da especialização da mão de obra
trabalhadora é o empregador que continua em posição de vantagem com relação ao
trabalhador, visto que este tem mais do que o necessário para sua sobrevivência - já que o
lucro é uma riqueza acumulada - e o trabalhador recebe apenas o suficiente para retornar ao
trabalho semana após semana, mês após mês, ano após ano. Dessa forma, percebe-se que a
primeira forma de trabalho foi a escravidão, pois a partir dela se convencionou que a
sobrevivência de um homem dependeria de outro. Vale salientar, ainda, que o discurso
considerado insensato pelo mesmo autor traduz, de forma bastante verossímil, a lógica
capitalista atuante no mundo contemporâneo.
2.3. DIVISÃO DO TRABALHO E APARECIMENTO DAS CLASSES SOCIAIS
Aníbal Ponce
15
(1981) discute o surgimento das classes sociais, relacionando-o ao
“escasso rendimento do trabalho humano e a substituição da propriedade comum pela
propriedade privada” (PONCE, 1981
16
, p.22). Não vamos nos deter ao segundo ponto trazido
pelo autor, pois entendemos que a transformação da propriedade comum em privada foi
devidamente detalhada no estudo que fizemos do trabalho de Locke, no primeiro tópico deste
capítulo. Vamos partir da primeira afirmação do autor que concede ao “escasso rendimento do
trabalho humano” (Ibid.) o surgimento das classes sociais.
Ponce diz que a “divisão da sociedade em ‘administradores’ e ‘executadores’ não teria
levado à formação das classes, tal como hoje as conhecemos, se outro processo paralelo não
tivesse ocorrido” (p.24). O autor refere-se às modificações introduzidas na técnica, tais como
a domesticação dos animais e o seu emprego na agricultura como auxiliares do homem. Estas
alterações resultaram em maior rendimento do trabalho humano e na possibilidade das
15
Aníbal Ponce nasce em 1898 e morre em 1938, ele foi um teórico argentino que realizou muitos de seus
estudos na área da educação que, devido à sua militância socialista, incluiu aspectos relacionados às condições
de existência das sociedades em seus trabalhos teóricos.
16
Data da ed. da tradução brasileira, a ed. da tradução brasileira data de 1963, e a publicação do original
data de 1937.
26
comunidades produzirem “mais do que o necessário para o seu próprio sustento” (Ibid.). Com
isso, a produção excedente era destinada ao escambo, e, segundo o autor, é a possibilidade de
aumento da produção que provoca a escravidão, ou seja, a troca da vida dos guerreiros -
pertencentes aos povos vencidos na guerra - pela sua liberdade. Já que, a partir deste
momento, não seria mais interessante sacrificar pessoas que poderiam se tornar trabalhadoras
e auxiliar na expansão do poder de troca das tribos vencedoras.
Os produtos excedentes de uma tribo eram trocados por outros entre tribos distantes ou
vizinhas pelos representantes da comunidade, os quais, logo, começaram a exigir que a função
por eles exercida passasse a ser hereditária. Foi assim que as propriedades e rebanhos, que
anteriormente pertenciam a toda a tribo, passaram a constituir propriedade das famílias que
administravam e defendiam os interesses da mesma. Com isso, as famílias donas dos
produtos (...) passaram também a ser donas dos homens(PONCE, 1981, p.25), ou seja, a
fórmula da desigualdade havia sido inventada, instaurando uma separação entre aqueles
sujeitos que, não trabalhando, eram donos de toda a produção e aqueles que, trabalhando,
recebiam talvez a décima parte do que produziam. Isso nos mostra que a desigualdade entre
os homens instaurou-se antes do advento da moeda, e não com ela como sugeriam Locke e
Rousseau, e também que muito tempo a relação de propriedade era firmada pelo trabalho.
No entanto, a simetria entre o trabalhador e o fruto do seu esforço existiu somente enquanto as
tribos ocupavam-se apenas de sua própria subsistência, pois logo que uma nova forma de
trabalho surgiu no interior dessas comunidades primitivas, o escambo, originou-se uma
relação desigual entre os membros que as constituíam.
No início da Idade Média, o sistema de trabalho escravo, apesar de ter auxiliado no
aumento da produção e ter sustentado toda economia do mundo antigo, começa a ser
desconstruído, pois com o crescimento da população também havia necessidade de se
aumentar o número de escravos que, depois do advento da moeda, tornaram-se produtos
passíveis de compra e venda. Assim, a produção em grande escala o rendia tanto, pois
havia muitas pessoas a serem alimentadas com a mesma produção de forma que o excedente
tornou-se raro e a miséria cresceu de tal forma que no período feudal o “cultivo em pequena
escala voltou a ser o único que compensava” (PONCE, 1981, p.83). Isso por que “o escravo
passou a produzir menos do que custava a sua manutenção e a partir desse momento ele
desapareceu como um sistema de exploração em grande escala” (Ibid.).
Nesta época, além do escravo, havia o colono que não era propriamente um escravo,
mas também não era livre que estava preso à terra na qual trabalhava, e pela qual pagava
27
uma quantia fixa anual ao senhor feudal. No entanto, havia também uma outra classe de
trabalhadores que não era a mesma dos servos, e nem dos colonos, era a classe dos:
... vilões, descendentes dos antigos colonos romanos, eram (...) livres ou
francos. Não se vendiam, ofereciam-se. Quando queriam viver do fruto do
seu trabalho, procuravam alguém que tivesse terras para explorar e lhe
propunham o cultivo de um lote, em troca de alguma compensação. O
pedido do trabalhador constituía um ato jurídico chamado súplica ou
precária; o consentimento do proprietário constituía outro ato jurídico,
chamado concessão ou prestaria. Em troca da concessão obtida, o vilão se
comprometia a entregar ao senhor uma parte do fruto do seu trabalho e, além
disso, a prestar certos serviços pessoais. (PONCE, 1981, p.84).
Compreende-se, a partir disso, que o trabalho “remunerado” começou a existir antes
mesmo da utilização da moeda, pois não tendo outro bem de valor o vilão pagava o “aluguel”
da terra do senhor com parte de sua colheita. Caso esta não fosse boa, ele arcava com todos os
prejuízos do mau plantio e ainda ficava devendo a parte referente ao pagamento do patrão.
Neste caso, o vilão deveria renegociar a dívida com o proprietário da terra, e com base nisso é
fácil perceber como este tipo de contrato de trabalho com o vilão rendia mais do que o
trabalho escravo para o patrão. Em todo o caso este último era sempre o detentor não da
propriedade, mas também dos instrumentos necessários para a produção como, por exemplo,
o moinho.
Os servos e vilões, ao contrário, não eram donos de nada e o único meio que tinham de
prover seu sustento era trabalhar nas terras dos senhores e ainda “dividir” com eles os bens
produzidos. Neste tipo de contrato de trabalho o senhor feudal tinha a lucrar, pois poderia
cobrar o quanto quisesse pelo arrendamento de um lote das suas terras, e também podia dispor
do servo para a realização de outras tarefas como, por exemplo, a coleta de frutas e de lenhas.
Vale ressaltar que, além de pagar ao senhor o aluguel da terra para prover seu sustento, os
servos ou vilões ainda tinham de arcar com o pagamento de dízimos cobrados pela Igreja, de
impostos do Estado e de taxas do Império.
Portanto, para os donos da terra era muito mais lucrativo firmar acordo com os vilões,
ou servos, do que ter escravos, pois “era necessário um grande capital para adquirir e manter
os escravos (...), ao passo que a servidão não requeria qualquer gasto; o servo custeava sua
própria vida, e todas as vicissitudes do trabalho corriam por sua conta.” (Ibid, p.85). Como
pudemos perceber, desde as primeiras formas de economia, os trabalhadores vêm sendo
prejudicados, enquanto os ociosos lucram e provém o seu sustento através do trabalho alheio.
Aqui retornam sempre as perguntas: quando, em que momento, o trabalhador foi dono do que
produziu? E de que forma o trabalho firma a propriedade de um trabalhador sobre aquilo que
ele produziu?
28
2.4. TRABALHO E CAPITALISMO EM MARX, ENGELS E LUKÁCS
Marx e Engels
17
afirmam que foi o surgimento da classe burguesa, em meio às
mudanças ocasionadas pela Revolução Francesa (1789-1799) e pela Revolução Industrial no
século XVIII, que trouxe consigo a racionalidade econômica, base do capitalismo:
A burguesia desempenhou na História um papel eminentemente
revolucionário. Onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia
calcou aos pés as relações feudais, patriarcais e idílicas. Todos os complexos
e variados laços que prendiam o homem feudal a seus "superiores naturais"
ela os despedaçou sem piedade, para deixar subsistir, de homem para
homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do "pagamento à vista".
(MARX e ENGELS, 1848, p.2)
A burguesia, portanto, foi o elemento essencial da divisão das classes em termos
econômicos, pois trouxe consigo a mentalidade econômica que se colocou no lugar das
tradições e da noção de trabalho como “um modo de vida regido por tradições” (GORZ,
2005, p.24), visto que este era, anteriormente, o significado do trabalho para os camponeses e
tecelões, por exemplo. O surgimento do capitalismo, portanto, se dá juntamente com a
legitimação da classe burguesa, assim podemos perceber claramente que, a partir desse
momento histórico, a noção de trabalho sofre sua maior transformação. Transformação que
permeou todas as esferas da sociabilidade, pois juntamente com as relações de trabalho
modificaram-se valores éticos e morais que eram respeitados anteriormente, e o valor que se
colocou em lugar de todos os outros foi o valor monetário. Gorz diz que “O que chamamos
‘trabalho’ é uma invenção da modernidade.” (GORZ, 2005, p.21), invenção que se dá a partir
do surgimento da burguesia.
Até aqui vimos que a concepção de trabalho assalariado surge com a classe burguesa e
sua mentalidade capitalista, mas para entender um pouco mais sobre a noção que estamos
investigando é necessário buscar outras acepções para o trabalho. Lessa (2002) retoma
Lukács
18
para explicar que:
(...) o conceito de trabalho comparece em uma acepção muito precisa: é a
atividade humana que transforma a natureza nos bens necessários à
reprodução social. Nesse preciso sentido, é a categoria fundante do mundo
dos homens. É no e pelo trabalho que se efetiva o salto ontológico que retira
17
Utilizamos a versão eletrônica do O Manifesto do Partido Comunista que foi escrito por Karl Marx e Friedrich
Engels em dezembro de 1847 - janeiro de 1848. Publicado pela primeira vez em Londres em fevereiro de 1848.
Esta versão foi publicada de acordo com o texto da edição soviética em espanhol de 1951, traduzida da edição
alemã de 1848. Confrontado com a edição inglesa de 1888, editada por Friedrich Engels. Traduzido do espanhol.
18
György Lukács foi um pensador e crítico literário húngaro que nasce em 1885 e morre em 1971. Após a
Revolução Russa seu pensamento voltou-se para a história e ele aderiu ao marxismo, tendo sido, inclusive,
comissário do povo para a educação no governo de Bela Kun.
29
a existência humana das determinações meramente biológicas. Sendo assim,
não pode haver existência social sem trabalho. (LESSA, 2002, p.27)
Nessa perspectiva, qualquer atividade de transformação da natureza pelo homem é
considerada trabalho, ou seja, a pesca, a agricultura, a coleta de frutos, todas essas atividades
são caracterizadas como trabalho, e não necessidade de interferência da esfera monetária
para que elas sejam assim caracterizadas. Nesse sentido é que o trabalho é percebido como
categoria fundante do mundo dos homens, pois através dele é que os processos evolutivos
podem ocorrer. Segundo Lessa, “Na acepção de ‘intercâmbio orgânico’ ‘eternamente
necessário’ do homem com a natureza, o trabalho é uma categoria distinta do trabalho
abstrato, produtor de mais-valia” (LESSA, 2002, p.28). O autor retoma Marx e Engels ao
dizer que:
(...) uma clara distinção entre trabalho abstrato e trabalho: o primeiro é
uma atividade social mensurada pelo tempo de trabalho socialmente
necessário e produtor da mais-valia. Corresponde à submissão dos homens
ao mercado capitalista, forma social que nos transforma a todos em ‘coisas’
(reificação) e articula nossas vidas pelo fetichismo da mercadoria. O
trabalho, ao contrário, é a atividade de transformação do real pela qual o
homem constrói, concomitantemente, a si próprio como indivíduo e a
totalidade social da qual é partícipe. É, portanto, a categoria decisiva da
autoconstrução humana, da elevação dos homens em veis cada vez mais
desenvolvidos de sociabilidade. (LESSA, 2002, p.28)
Ou seja, uma noção de trabalho que representa um metabolismo do homem com a
natureza, uma atividade realizada pelo sujeito de maneira a tornar a natureza sua parceira para
a sobrevivência, transformando-a em elementos que possam suprir sua subsistência. Contudo,
essa transformação da natureza deveria se dar apenas de acordo com as necessidades materiais
mais imediatas de subsistência, pois, pelo fato de o homem estar em harmonia com a
natureza, não deve super-explorá-la. Isto pode ser percebido pela seguinte definição de Marx:
(...) o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza,
processo em que o ser humano com sua própria ação, impulsiona, regula e
controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza
como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo,
braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da
natureza, imprimindo-lhes força útil à vida humana. Atuando assim sobre a
natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo que modifica sua própria
natureza. Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e submete ao seu
domínio o jogo das forças naturais. (MARX, 1982, p.202)
19
19
1982: data da versão aqui utilizada para as citações do O capital vol.1 cuja datação original é 1867 - único
publicado durante a vida de Marx - os outros volumes foram publicados após sua morte, depois de revistos por
Engels, a publicação original do vol.2 data de 1885, e a do vol.3 data de 1894.
30
Esta concepção de trabalho ilustra de forma bastante clara as cenas - recortadas para
compor nosso recorte fílmico - representativas do que chamamos perspectiva telúrica de
trabalho em nossa pesquisa, em oposição à perspectiva capitalista. Sendo que esta última
corresponde à outra acepção que caracteriza o trabalho como abstrato, uma forma que
carrega em si a mentalidade capitalista, pois surge com ela; assim, é a extração do lucro do
trabalho que gera a realidade do valor monetário de troca. Dessa forma, o trabalho abstrato
diz respeito, exclusivamente, à atividade que tem por objetivo a reprodução da mais-valia,
reduzindo-se, portanto, ao trabalho alienado capitalista. Ainda se faz importante salientar que
esse é um tipo de trabalho reificante, onde o homem se transforma em meio de produção ou,
ainda, em capital variável sob o domínio capitalista, perdendo assim qualquer tipo de
autonomia sobre seu trabalho. Segundo Lessa, o trabalho abstrato é uma forma
historicamente particular de exploração do homem pelo homem” (LESSA, 2002, p.34).
Marx (1967
20
) afirma, também, que o trabalho, em oposição ao trabalho abstrato, é
anterior a este último, e continuaria a ser importante mesmo quando ocorresse o fato de uma
sociabilidade superar o capital. Assim, a concepção de trabalho como uma categoria fundante
do mundo dos homens é inextinguível, o trabalho abstrato pode ser superado em uma
sociedade na qual possa haver cooperação entre os sujeitos trabalhadores de forma que eles
dominem os meios de produção e participem de todo o processo produtivo diretamente, tendo,
assim, acesso aos bens que produzem. Essa tese se encontra em Marx (1967) quando o autor
postula que a superação do trabalho abstrato pode ocorrer em uma sociedade de
“produtores associados”.
Quanto à transformação dos sujeitos em coisas (reificação), ela se explica através da
venda da força de trabalho do operário para o capitalista, no entanto:
A força de trabalho só pode figurar no mercado a título de mercadoria
quando é colocada à venda por seu próprio possuidor (...) Esse trato pode
durar com a condição expressa de que o possuidor da força de trabalho não a
venda senão por um tempo determinado. Porque se ele a vendesse como um
todo, de uma vez, vender-se-ia a si próprio e se transformaria, de homem
livre, em escravo e, de possuidor de mercadoria, em mercadoria. (MARX,
1967, p.30)
Marx percebeu isso nos primórdios do capitalismo, mas, até agora, não houve
mudanças significativas nessa esfera do trabalho, pois o trabalhador ainda depende da compra
de sua força de trabalho por um capitalista para sobreviver. Mas, como o autor também
ressaltara, esse tipo de negociação gera uma grande insegurança para o trabalhador, o qual,
atualmente, tem dificuldade de encontrar um comprador para sua força de trabalho, visto que,
20
1967: data da edição resumida dos três volumes do O capital, por Julian Borchardt.
31
com o crescimento populacional (principalmente dos países mais pobres), a oferta de mão-de-
obra é muito maior do que a procura dos empregadores. Outra conseqüência disso é a
diminuição do valor pago pela força de trabalho, pois que ela é abundante o empregador
pode lucrar mais com o temor da perda do emprego por parte do trabalhador, explorando-o ao
máximo.
Offe diz que a racionalidade capitalista tem outras conseqüências maléficas à
sociedade:
Marx e Weber concordam em que a racionalidade estratégica do cálculo
capitalista é a força motriz dominante da racionalização (‘formal’) das
sociedades capitalistas, com o que o trabalho é desvinculado de todos os
critérios imediatos de referência doméstica ou de valor de uso, assim como
do ritmo de fome e da satisfação. (OFFE, 1989, p.15).
O que temos, então, é uma esfera produtiva completamente apartada das necessidades
sociais de subsistência e preocupada única e exclusivamente, e não poderia ser diferente dada
à própria lógica capitalista, com o lucro. Aspecto esse que terá reflexo na sociedade com
muitas pessoas passando fome enquanto outras esbanjam luxos supérfluos. Até mesmo porque
a preocupação do capitalismo sempre foi o lucro em detrimento do humano, e a maior prova
disso está no fato da exploração que esse sistema faz de sua maior fonte de riqueza: o
trabalhador. Como Marx (1967) explica, o capital é composto do capital constante e do
capital variável, sendo que o lucro se pela extração da mais valia do trabalhador (capital
variável), isto é, no processo produtivo e não durante a circulação das mercadorias.
Outro elemento que contribuiu decisivamente para a degradação do trabalho humano
foi o advento da maquinaria, pois isso transformou o homem em mero acessório, em uma
simples peça que se integra às engrenagens de funcionamento das máquinas. Aliás, isso irá
representar uma contradição do capitalismo muito bem descrita por Gorz:
Os agentes diretos da dominação maquínica da natureza e da autopoièsis da
humanidade são uma classe proletária cujos indivíduos vêm suas faculdades
‘mirrando’ e ‘mutilando-se’, embrutecidos pelo trabalho, oprimidos pela
hierarquia e dominados pela maquinaria a que servem. É essa contradição que
se transforma no sentido e no motor da História: graças à racionalização
capitalista, o trabalho deixa de ser atividade privada submetida às
necessidades naturais; mas, no momento mesmo em que é despojado de seu
caráter limitado e servil para tornar-se poiêsis, afirmação de potência
universal, ele também desumaniza aqueles que o realizam. Domínio triunfante
sobre as necessidades naturais, ao mesmo tempo que submissão
constrangedora aos instrumentos dessa dominação que era a submissão a
natureza, o trabalho industrial apresenta, para Marx e para os grandes clássicos
da economia, uma ambivalência que não se deve perder de vista. (GORZ,
2005, p.28).
32
Dessa maneira, emerge soberano o trabalho alienado capitalista, tornando-se central
para as sociedades contemporâneas e, também, um fator de infindáveis discussões, pois
acabará por sobrepujar e desumanizar o responsável por ele, o trabalhador, e balizar toda a
organização social, dada sua função primordial de elemento de redistribuição de renda.
2.5. RADICALIZAÇÃO: O FIM DO TRABALHO
Assim, se há - e certamente há - uma ideologia dominante que sustenta a necessidade
e positividade do trabalho, ela não é tão homogênea a ponto de impedir que novas
perspectivas sejam produzidas acerca do que o trabalho representa na sociedade ocidental
atual. O questionamento sobre a vida regida pelo trabalho e suas futuras conseqüências se
faz presente nas atuais discussões acerca da importância da preservação ambiental e da
qualidade de vida. Já existe um grande número de pensadores como os integrantes do Grupo
Krisis
21
: Robert Kurz, Roswitha Scholz, Claus Peter Ortlieb e Anselm Jappe que se debruçam
sobre a impossibilidade do trabalho, ainda hoje, ser considerado como elemento central das
sociedades.
O grupo preocupa-se, atualmente, com o consentimento às práticas capitalistas que,
cada vez mais, se expandem por todo o globo, por isso, eles buscam discutir essa realidade
que nos cerca a partir de suas características devastadoras, mas reais, e que foram, ao longo da
história, silenciadas para que a consolidação da mentalidade capitalista pudesse se dar sem
problemas, isto é, sem mostrar suas reais intenções. Intenções que atualmente já não são mais
escondidas, pois nos anúncios publicitários, nas entrevistas de empregos, nos lançamentos de
moda está determinada a forma de divisão da sociedade entre aqueles que têm acesso a um
emprego ou a um produto, e aqueles que nunca chegarão a obter os bens com os quais sonham
ou, até mesmo, um emprego formal.
Segundo o Krisis: “Um cadáver domina a sociedade o cadáver do trabalho.”
(KRISIS, 2003, p.15), visto que “a sociedade dominada pelo trabalho não passa por uma
simples crise passageira, mas alcançou seu limite absoluto” (Ibid.). O grupo defende esta
posição devido ao desenvolvimento da microeletrônica que aponta uma tendência de total
substituição da força de trabalho humana por máquinas inteligentes construídas através da
21
Grupo que nasceu no final dos anos 70 e é formado por filósofos e ensaístas, tais como os acima citados, que
estavam insatisfeitos com o marxismo tradicional, e criaram uma revista intitulada Crítica Marxista.
33
técnica chamada de inteligência artificial. Técnica através da qual, inclusive, estudos de
aquisição de linguagem são realizados para a criação de equipamentos com capacidade de
aprendizado e raciocínio, uma possibilidade que “há poucas décadas era imaginada como
ficção científica” (Ibid.), mas que hoje tem se tornado realidade.
. Outro fator negativo da perspectiva capitalista de trabalho apontado pelo grupo é a
crescente degradação das bases naturais:
Todos os recursos do planeta são usurpados sem hesitação para a máquina
capitalista do fim em si mesmo. Se esses recursos não são mobilizados de
uma maneira rentável, eles ficam em pousio’
22
, mesmo quando, ao lado,
grandes populações morrem de fome (KRISIS, 2003, p.20).
Realidade esta que no Brasil conhecemos amplamente devido à luta do Movimento dos
Trabalhadores Sem-Terra (MST) que, décadas, tenta fazer com que recursos naturais sem
uso (terras improdutivas, no caso) sejam destinados a famílias de agricultores que não têm um
lugar onde possam realizar sua produção agrícola e/ou pecuária. Infelizmente, a sociedade
brasileira não percebe que a atividade rural é de extrema importância para a produção dos
alimentos que atendem às necessidades da sociedade em geral, isso sem pensar na esfera
econômica que também se beneficia de pessoas empregadas e da circulação de capital.
Como percebemos com as denúncias do grupo Krisis, esta é uma realidade mundial, e
não brasileira, recursos naturais sem uso e a degradação desses devido a diversos fatores
tais como: a poluição do ar ocasionada pelas indústrias de petróleo; o aumento da circulação
de automóveis; a poluição dos mananciais hídricos e etc. O grupo ainda estabelece uma
explicação histórica que demonstra que o trabalho abstrato nunca foi inerente ao homem,
mas sim imposto a ele de diversos modos. Dentre os fatores que influenciaram o nascimento
do absurdo fim em si mesmo do trabalho capitalista estão os aparelhos do Estado absolutista
que precisavam de capital “para financiar as primeiras máquinas militares modernas”
(KRISIS, 2003, p.47); a escravidão “em sentido literal, que nas economias de plantation de
matérias-primas ultrapassou em dimensões a escravidão antiga, faz parte dos crimes
fundadores do sistema produtor de mercadorias.” (Ibid., p.49). O sistema escravista foi
também o veículo através do qual se realizou a separação entre o homem branco, superior e
inteligente, e o selvagem, primitivo e natural, e, por isso, inferior, tal como os seres do reino
animal. Segundo o Krisis:
Esse raciocínio grotesco joga uma luz reveladora sobre o Iluminismo. O
ethos repressivo do trabalho da modernidade, que se baseou, em sua versão
protestante original, na misericórdia divina e, a partir do Iluminismo, na lei
22
A palavra “pousio” significa “em espera” no contexto em que foi utilizada.
34
natural, foi mascarado como “missão para civilizar”. Cultura, nesse sentido,
é submissão voluntária ao trabalho; e trabalho é masculino, branco e
“ocidental”. O contrário, o o-humano, a natureza informe e sem cultura, é
feminino, de cor e “exótico”, portanto, a ser colocado sob coerção. Numa
palavra: o “universalismo” da sociedade do trabalho é totalmente racista
desde sua raiz. (KRISIS, 2003, p.50)
Assim, longe de ser apenas uma forma de relação entre o homem e a natureza, o
trabalho, para os “seres inferiores”, representa uma atividade sem sentido, pois o sentido está
dado, exatamente, no benefício de outrem. No entanto, apesar da ideologia dominante
apresentar apenas os elementos positivos do trabalho, tal como a ética protestante outrora o
fez, houve, ao longo dos tempos, muitas revoltas por parte dos trabalhadores para com a
imposição dessa realidade de exploração brutal promovida pelo sistema de produção da mais-
valia.
Devido à aceitação plena da imposição da categoria trabalho, esses teóricos do Grupo
Krisis questionam: por que essa categoria é ainda apontada como única forma de
desenvolvimento das sociedades, se ela continua realizando a exploração do homem pelo
homem? Se ela ainda continua marginalizando, excluindo e destruindo os povos e pessoas que
não se enquadram na gica capitalista de produção da mais-valia? E, ainda, como se pode
pensar que todos estes fatores apontados sejam percebidos como evolução da humanidade?
Nesse intuito, o Grupo Krisis tenta abrir os olhos das sociedades sobre os erros que,
séculos, vêm sendo cometidos e repetidos sempre e mais; e, por isso, suas teorizações se
fazem importantes para a reflexão sobre a categoria trabalho.
2.6. A REELABORAÇÃO DA NOÇÃO DE TRABALHO
Depois de considerar as diversas modificações teóricas e estruturais da categoria
trabalho, chegamos, agora, num ponto a partir do qual a problemática do trabalho abstrato
pode ser superada, é a chamada utopia de Marx que nos conduz a contemplar uma sociedade
guiada por trabalhadores associados que não visam, primeiramente, o lucro. Esta sociedade
também não faz do trabalho uma atividade estranha ou totalmente prejudicial ao trabalhador,
mas um meio de subsistência através do qual ele tem acesso aos bens que produz e, ao mesmo
tempo, realiza uma atividade de que gosta e sabe fazer.
Segundo Marx (1848), a superação do capital poderia se dar através de uma
revolução realizada pela classe trabalhadora a partir da qual o sistema capitalista seria extinto,
35
pois, de acordo com este teórico, um sistema não pode conviver com o outro. Isso aconteceria
quando a exploração do homem pelo homem se transformasse em uma situação tão
insuportável para o trabalhador que não haveria outra forma de sobreviver a não ser através da
união entre os trabalhadores, os quais, sendo detentores dos meios de produção, assim como
dos conhecimentos teóricos e práticos correspondentes a sua profissão, poderiam estabelecer
um novo curso de desenvolvimento para a sociedade.
Entretanto, há um exemplo atual desse sistema, que, diferentemente do que fora
postulado por Marx, convive com o sistema capitalista. Trata-se das cooperativas em que os
trabalhadores não são empregados, mas sócios, detentores tanto da força de trabalho quanto
dos meios de produção, sendo que o lucro é dividido entre todos. Essa possibilidade
devolveria ao trabalhador seu ofício e o preço justo do mesmo, sendo que cada um deveria
exercer uma atividade considerada importante para a coletividade, mas, principalmente,
relevante para si mesmo.
Portanto, se, por um lado, existem teóricos que defendem a falência total do sistema
capitalista de produção, por outro, temos, bastante tempo, a indicação de uma saída
viável para a superação do trabalho abstrato, seja no interior do próprio sistema capitalista,
seja após sua extinção. Isso indica que apenas quando todos tiverem o direito de escolher sua
profissão, de estarem satisfeitos com o papel que desempenham na sociedade, poderemos ter
o trabalho como uma categoria formadora de identidade e também valorativamente central,
além de necessária e fundante, para a sociedade.
Com base nessas considerações, podemos inferir o aparecimento de uma nova forma
de relação com a noção trabalho, pois, ao ser considerado como obrigação exercida em prol
de outrem, temos uma desvalorização do sujeito trabalhador; enquanto a consideração do
trabalho como algo que perpassa a vida desse sujeito, de uma forma que lhe propicie
benefícios para além do ganho financeiro - o qual já se mostra ineficiente em termos de
qualidade de vida - temos que o trabalho passa a ter um caráter mais intelectualizado, mais
prazeroso e menos alienante. Segundo Di Masi (2000
23
) - o teórico do ócio criativo - o
capitalismo é baseado no egoísmo e na competitividade: isto é, sobre premissas brutais, não
humanas. Portanto é impossível humanizá-lo
24
, ou seja, apenas quando surgisse um sistema
de produção que visasse a outros interesses, tais como o desenvolvimento intelectual e o
23
Data da publicação brasileira da obra O ócio criativo de Domenico di Masi pela editora Sextante.
24
Citação extraída de uma entrevista obtida na Internet, motivo pelo qual a datação da obra e a numeração da
página não foram explicitadas.
36
envolvimento emocional do trabalhador com seu ofício, poderia haver uma distribuição de
renda justa e uma sociedade mais igualitária.
Por mais utópicas que essas soluções pareçam, devemos considerar que não poder
imaginar uma saída para além do sistema de produção capitalista levaria a sociedade a ter de
se conformar com a inevitável falência desse sistema, que vem apresentando suas trágicas
conseqüências: desemprego em massa e a conseqüente marginalização da classe do ex-
trabalhador. Marx e Di Masi apontam a relevância do trabalho para o trabalhador como a
única saída para que essa categoria possa ser, senão ultrapassada, transformada novamente, de
certa forma, num modo de vida. Como sabemos, são poucas as pessoas que têm o privilégio
de escolher sua profissão, entretanto, geralmente, estas são as mais realizadas
profissionalmente, e, também, as que melhor desempenham sua atividade profissional. Logo,
não podemos descartar essas utopias quando buscamos uma solução para o fim dessa vida
centrada no trabalho abstrato, e na sua mais trágica conseqüência: a ditadura do consumo,
como elementos centrais das sociedades.
37
FINALIZANDO O DEBATE COM A FILOSOFIA E A SOCIOLOGIA
Com este estudo da categoria trabalho no campo da Filosofia e da Sociologia,
buscamos traçar um percurso que se inicia pelas teorizações de Locke sobre o surgimento da
propriedade privada e da moeda, visto que o autor relaciona ambas com o trabalho. Este autor
demonstrou-nos como o trabalho garante a propriedade de um trabalhador sobre aquilo que
ele produz, e como apenas o trabalho é capaz de dar valor a determinado bem, de forma que a
introdução do ouro e da prata como equivalentes do esforço desempenhado por um
trabalhador na produção de algo foi a única possibilidade de conservar duradouro o valor do
bem negociado.
Rousseau foi o segundo autor trazido para a discussão sobre a noção de trabalho
devido à sua caracterização do estado natural do homem que nos serviu aqui para ilustrar a
perspectiva telúrica de trabalho que estamos contrapondo com a concepção capitalista. Além
disso, o autor ainda nos trouxe interessantes considerações sobre a nova ordem social que se
baseia no direito à propriedade privada e instaura a igualdade jurídica no lugar da
desigualdade natural; igualdade essa que, segundo Rousseau, serviu para os ricos e fez
mais miseráveis os pobres. Assim, na perspectiva do autor, a instituição da sociedade
organizada serviu apenas para degradar as boas inclinações do homem selvagem e incentivá-
lo a uma ambição devoradora, à concorrência e à rivalidade. O autor ainda nos trouxe
importantes constatações sobre a dependência que esta nova ordem social instalou entre os
homens e sobre as más conseqüências de um regime que privilegia os ricos em detrimento dos
pobres, e apenas faz crescer a miséria na qual estes últimos vivem.
Ponce, por sua vez, explicou-nos como o escambo, a primeira forma de trabalho
diferenciada a surgir entre as tribos selvagens, propiciou a divisão do trabalho e, por
conseqüência, a divisão das classes nas sociedades primitivas. O autor nos mostra também a
divisão das classes na Idade Média, momento no qual surge a classe dos vilões, ou
trabalhadores livres, e em que o trabalho escravo deixa de ser lucrativo.
Para falar tanto da perspectiva telúrica de trabalho quanto da capitalista, buscamos os
mais conhecidos teóricos que se preocuparam com a categoria trabalho: Marx e Engels que
estudaram as condições de trabalho nas sociedades primitivas e também nas sociedades
organizadas demonstrando-nos que o surgimento da classe burguesa foi o momento crucial
para a instauração de um modelo de sociedade calcado nas relações monetárias. Para dar
continuidade ao estudo destes autores, buscamos alguns teóricos mais atuais que promoviam
releituras das postulações teóricas de Marx e Engels e demonstraram-nos, algumas vezes, a
38
atualidade das idéias desses autores e, em outras, o quanto elas estavam ultrapassadas.
Lukács, seguidor das idéias de Marx, também foi trazido à discussão através da sua ontologia
do trabalho que nos foi apresentada por Lessa e que tem como ponto central o fato do
trabalho em si (metabolismo homem/natureza) ser inextinguível, enquanto o trabalho
alienado, sendo uma forma inventada pelo homem, deixaria de existir em algum momento
devido às suas próprias deficiências.
Também recorremos a algumas teorizações radicais ora devido à severidade de suas
críticas, como foi o caso do Grupo Krisis, ora devido à novidade de suas postulações, como
foi o caso de Domenico Di Masi. Nesta verdadeira viagem em busca da categoria trabalho
tentamos, portanto, unir diferentes possibilidades teóricas de compreender a mesma, no
intuito de aprender um pouco mais sobre essa noção e dispor de teoria para balizar as análises
realizadas nesta pesquisa, que muitas das idéias apresentadas nas interpretações
correspondem a diferentes formas de conceituação do trabalho.
Tentando fazer uma retomada dos tópicos aqui abordados temos que a categoria
trabalho pode receber duas diferentes acepções: a primeira aponta para a transformação da
natureza pela ação do homem que consiste em uma forma telúrica de trabalho na qual o
trabalhador, além de ser detentor dos meios de produção, também usufrui daquilo que produz.
E a segunda acepção corresponde à exploração do homem pelo homem no intuito de produzir
a mais-valia, ou lucro. Como vimos anteriormente, a segunda acepção é uma criação do
homem e o desenvolvimento da espécie humana não dependeria, necessariamente, da
existência dela, enquanto a primeira concepção apresenta o trabalho como uma condição
inerente à evolução da nossa espécie, ou seja, uma faculdade nata do homem. No entanto,
após a instalação do sistema de produção capitalista, juntamente com a consolidação da
classe burguesa, não houve outra forma de produção que tenha tomado dimensões tão
ampliadas quanto esta que nos acompanha até os dias de hoje.
Depois de passar por essas noções, buscamos elucidar a atual preocupação dos teóricos
acerca da categoria trabalho que é o seu oposto: o desemprego que assola a grande maioria
dos trabalhadores das sociedades capitalistas. Nesse ponto, o Grupo Krisis foi fundamental,
pois apresentou uma série de fatores que nos levam a pensar de maneira aprofundada este
momento do trabalho, pois como sistema inventado pelo homem ele também apresenta
problemas que envolvem praticamente todas as sociedades do globo. Acreditamos que, como
estudiosos ou como trabalhadores, devemos todos estar atentos para essas implicações que o
desenvolvimento tecnológico e intelectual da sociedade traz para a esfera do trabalho.
39
Na Teoria do Discurso, há uma noção de natureza teórica e também metodológica que
nos permite observar cada uma das formas de trabalho aqui apresentadas com relação à
ideologia, qual seja: a noção de formação discursiva (FD), pois através da delimitação de uma
FD é possível perceber as formas de relação do sujeito do discurso com a ideologia dominante
através da sua identificação com os dizeres permitidos ou impedidos de serem inseridos na
rede de saberes regulada pela Forma-sujeito de cada FD. Vale salientar que, com o estudo da
categoria trabalho, procuramos estabelecer uma forma de explicitar, no momento analítico, a
diferença existente entre os discursos que se inserem numa perspectiva capitalista de trabalho
e os discursos que se inserem na perspectiva telúrica de trabalho. Isso porque entendemos
que a concepção de trabalho não é homogênea, existem formas diferenciadas de conceituar o
trabalho de acordo com a perspectiva de observação adotada. Conseqüentemente, o sentido
de trabalho para um operário não é o mesmo para um pescador, tal como os sentidos
produzidos por capitalistas e empregados sobre esta mesma noção não coincidem, pois cada
um desses sujeitos se inscreve em diferentes lugares sociais.
Considerando tudo o que precede, acreditamos poder dizer, junto com Pêcheux, que a
heterogeneidade da formação ideológica é que permite a existência de discursos tão desiguais
acerca da noção que aqui é contemplada: o trabalho. Considerando a instância histórica e a
existência de uma memória discursiva, buscamos conhecer os efeitos de sentidos produzidos
sobre a categoria trabalho, com base nos pressupostos teóricos da Análise de Discurso de
linha francesa que serão apresentados a seguir.
40
3. CONSTRUÇÃO DO DISPOSITIVO TEÓRICO DA PESQUISA
Através da harmonização entre as noções-chave da Análise de Discurso e a
materialidade não-verbal que constitui nosso objeto de pesquisa, propomos a construção de
um dispositivo de análise baseado em autores que têm contribuído para a discussão sobre as
distintas materialidades simbólicas através das quais o discurso pode ser observado, pois
pensamos que a materialidade lingüística não é a única que dá acesso aos processos de
produção de sentido; outras materialidades também o permitem.
41
concepção de língua como sistema completo, fechado em si mesmo, sem lugar para variação,
e dotado de autonomia absoluta. Assim, a caracterização da língua como sistema se dá devido
à interdependência de seus elementos: um signo é o que o outro não é, reflexão básica que
podemos depreender da teoria saussuriana do valor lingüístico.
Com base em Leandro Ferreira (1999), podemos dizer que a noção saussuriana de
sistema foi muito importante para a Teoria do Discurso na
42
exterioridade, e ainda compreende a alíngua
26
, ou seja, mantém relação com a dimensão do
inconsciente. Ao pensar a língua como entidade lingüística e histórica, portanto discursiva,
Pêcheux ultrapassa o estudo da “organização (regra e sistematicidade)” (ORLANDI, 1996,
p.47) e chega à “ordem (funcionamento, falha) da língua” (Ibid.). E pensar sobre a ordem da
língua, significa perceber como a organização sintática produz sentidos, visto que a
materialidade lingüística é a via de acesso para os processos de interpelação ideológica e
inconsciente.
Ao definir de duas formas a língua, como sistema de signos e como instituição social,
Saussure está definindo, respectivamente, o que lhe é interior e o que lhe é exterior. Assim,
cabe ao lingüista considerar o aspecto interno da língua, enquanto o aspecto externo o autor
relega à Semiologia, ciência que deveria estudar os sistemas de signos não-lingüísticos. Essa
separação entre o que é interno e o que é externo à língua se apresentará de forma distinta na
Teoria do Discurso, pois Pêcheux diz que a exterioridade é constitutiva da língua, ou seja, não
há uma divisão formal separando seu interior se seu exterior.
Desta forma, a AD diferencia-se da Lingüística quanto à sua concepção de língua. De
acordo com Leandro Ferreira (1999), a língua é considerada uma estrutura que comporta tanto
a regularidade quanto a irregularidade em seu interior, logo, podemos dizer que a regularidade
está próxima da previsibilidade que caracteriza o discurso já-dito, o pré-construído; enquanto
a irregularidade está próxima da imprevisibilidade que caracteriza o discurso novo. Na AD,
portanto, a língua caracteriza-se pela presença da regularidade, pois na estrutura
organização, mas a irregularidade também é uma característica pertinente à noção de
estrutura, visto que é a partir dela que podemos pensar a singularidade como a ruptura da
regularidade. Isto por que esta estrutura não é fechada em si mesma, seus limites são passíveis
de serem transpostos, ela comporta “furos” (LEANDRO FERREIRA, 1999, p.127) que
permitem o acontecimento, a quebra da regularidade, a irrupção do novo em meio ao pré-
existente. Vale lembrar que estrutura e acontecimento não são noções estanques para a AD,
pois é a partir de um deslocamento na estrutura que o acontecimento irrompe.
Na Psicanálise, Lacan, a partir da releitura de Freud e do estudo da teoria Lingüística
Estrutural formulada por Saussure, diz que “o inconsciente é estruturado como uma
linguagem” (LACAN, 1972-1973, p.25). Desta forma, fica estabelecida a relação entre a
língua e o inconsciente na Psicanálise: a língua é o mecanismo que dá acesso ao inconsciente,
pois é através da articulação lingüística que o sujeito deixa escapar aquilo que não é acessível
26
Noção oriunda da Psicanálise, e que possibilita falar-se de uma língua que também serve para não-comunicar,
que é intangível.
43
nem mesmo a ele, pois é irrepresentável, ou seja, o real da língua. Lacan postulou que “o
sujeito do desejo é a essência do homem” (Ibid., 105), afinal, o que move sua busca pela
completude, pelo preenchimento do que falta, é a pulsão. O autor também diz que é a fantasia
que sustentação ao desejo, logo, nessa relação com o desejo “a realidade aparece como
marginal” (Ibid.). Este desejo ao qual Lacan se refere é o “desejo do Outro” (Ibid.,111) e no
campo do Outro está o significante, por isso, Lacan diz que o sujeito nasce do significante, de
forma que a interpretação é o próprio desejo do sujeito, a fantasia por ele imaginada. Assim,
“pelo efeito de fala, o sujeito se realiza sempre no Outro, mas não persegue mais que
uma metade de si mesmo. Ele achará seu desejo sempre mais dividido, pulverizado, na
destacável metonímia da fala” (Ibid., 178), já que é o significante que chama o sujeito a falar,
a funcionar como sujeito determinado pela linguagem e pela fala.
A respeito disso Henry, a partir da sua leitura da teoria freudiana de interpretação dos
sonhos, diz que
“o desejo inconsciente é um certo real que se repete não apenas no sonho ou
no sintoma, em tudo aquilo que traz a marca patente de ponta do desejo(HENRY, 1992
27
,
p.162)
.
Disso, podemos depreender que na língua também é possível perceber a marca de
ponta do desejo que é peculiar ao sujeito. Importante salientar que o lugar onde as marcas do
desejo inconsciente podem ser localizadas é a sintaxe, o intradiscurso, lugar de formulação do
discurso. O que ratifica o exposto acima sobre a articulação entre língua e inconsciente.
Esta articulação, produzida na Teoria do Discurso, traz uma língua caracterizada pela
equivocidade, pelo impossível de simbolizar, de dizer, de representar. A língua é não-toda
(MILNER, 1987, p.19), pois “tudo não se pode dizer” (Ibid.), por isso, a questão da língua
enquanto estrutura é importante na AD. A estrutura, na lingüística, caracteriza-se pela
totalidade, regularidade, e fechamento; enquanto a AD insere na estrutura a exterioridade,
através da não totalidade, da regularidade relativa e da abertura, o que possibilita a irrupção
do acontecimento. O deslocamento da noção de língua como forma abstrata da Lingüística
para a forma material da AD também é uma questão crucial, pois permite esta diferenciação
entre a língua transparente e a língua opaca, esta última trabalhada pela AD.
Leandro Ferreira (2003) considera a leitura e a interpretação como possibilidades de
produção de sentido, e não de mera repetição do já-dito, e rompe com a trilogia
transparência, univocidade e regularidade, pois estas são características de uma concepção
de língua e sentido que não permitem o trabalho com o exterior da língua. Tomando o
primeiro termo, transparência, temos uma concepção de língua como expressão do
27
A edição original de "Le mauvais outil. Langue, sujet et discurs" data de 1977.
44
pensamento, de forma que haja uma simetria entre aquilo que é dito e o que é pensado.
Possibilidade em que tanto o histórico quanto o ideológico são excluídos, por outras áreas do
conhecimento, da reflexão sobre o que motiva ou o que produz os sentidos de um discurso.
Quanto à univocidade, relaciona-se a uma idéia de sentido único, de direção linear
entre palavra (enunciado ou discurso) e referente, ou seja, as coisas do mundo são nomeadas,
expressas, de uma forma que se apresenta como a única possibilidade de dizer. Nesse espaço
normalizado não lugar para a ambigüidade, o equívoco, ou a polissemia, fatores
considerados constitutivos do discurso na AD.
a regularidade “é compatível com o primado de um mundo lógico reduzido”
(LEANDRO-FERREIRA, 2003, p.205) em que a língua é um conjunto homogêneo, e seus
elementos estabelecem relações previsíveis e ordenadas. Aqui não são considerados os jogos
que o sistema também possibilita, tais como o chiste, o implícito, a pressuposição que, apesar
das tentativas de exclusão por parte das disciplinas logicistas, continuam significando a partir
de torções no sistema ideal, rigidamente estrutural. Para a AD, a língua é considerada um
sistema lacunar, passível de falhas, e no qual a exterioridade regularmente se insere,
participando na produção dos efeitos de sentido, ou seja, no seu funcionamento.
Agora, vamos dar um passo em direção ao estudo de outros elementos que também
constituem sentido, juntamente com a língua.
3.2. FORMAÇÕES IDEOLÓGICAS E FORMAÇÕES DISCURSIVAS
A discussão a respeito da noção de ideologia em AD inicia em Althusser (1992
28
), o
qual propõe que a ideologia interpela os indivíduos em sujeitos (p.93), pois
ideologia pelo sujeito e para os sujeitos (Ibid.). Essa interpelação ocorre de forma
inconsciente por mecanismos que fazem parte da organização social, os Aparelhos
Ideológicos de Estado. Esses aparelhos produzem um conjunto de valores e crenças com os
quais todos os sujeitos deveriam viver de acordo; e esta seria a realidade, a vida real de todos
nós, na qual estão incluídos nossos deveres e direitos de cidadãos. Desta forma, todas as ações
que julgamos ter origem em nossa força de vontade são, na verdade, imposições das
representações ideológicas.
28
A datação original do Ideologie et appareils idéologiques d’État é 1970.
45
Em 1975
29
Pêcheux e Fuchs explicitam que seu interesse pelo materialismo histórico
diz respeito, especialmente, à noção de superestrutura ideológica em sua ligação com o
modo de produção que domina a formação social considerada(PÊCHEUX e FUCHS, 1997,
p.165). Assim, os autores trabalham sobre a questão da impossibilidade de se tratar da
instância ideológica de forma isolada das questões por eles denominadas mundo das coisas,
dos fatos econômicos(Ibid.), ou seja, a ideologia estaria presente em todas as esferas da
sociedade e não circunscrita a mecanismos ou aparelhos determinados. Essa afirmação
criticava o posicionamento de alguns autores marxistas da época que acreditavam que a
ideologia (...) [seria] constituída pela ‘esfera das idéias’” (Ibid.), pois queriam tratar a
instância ideológica separada das relações sociais, modos de produção, posições de classe,
enfim, fora do terreno da prática social.
A crítica de Pêcheux e Fuchs se baseava na noção de interpelação, inicialmente
postulada por Althusser, pois a “modalidade particular do funcionamento da instância
ideológica (...) consiste no que se convencionou chamar de interpelação, ou o assujeitamento
do sujeito como sujeito ideológico” (PÊCHEUX e FUCHS, 1997, p.166). A partir desse
processo de assujeitamento que ocorre de forma inconsciente, cada sujeito social seria
conduzido(Ibid.) sob “a impressão de estar exercendo sua livre vontade, a ocupar o seu
lugar em uma ou outra das duas classes sociais antagonistas do modo de produção” (Ibid.).
Logo, todo efeito de sentido produzido pelo sujeito irá remeter a uma ou outra dessas posições
de classe, filiando-se à instância ideológica que interpela esse sujeito.
De acordo com Pêcheux (1988
30
), é “a ideologia que fornece as evidências pelas
quais ‘todo mundo sabe’ o que é um soldado, um operário, um patrão (...), evidências que
fazem com que uma palavra ou um enunciado ‘queiram dizer o que realmente dizem’”
(p.160), ou seja, a ideologia opera na sociedade criando a ilusão de verdade dos fatos, o que
pode ser sustentado por uma concepção de língua que atrele o significado ao referente
impedindo a reflexão sobre as dessimetrias que ocorrem entre o dito e os efeitos de sentido
sobre ele produzidos.
Assim, Pêcheux propõe que “sob a transparência da linguagem” (1988, p.160)
aquilo que ele chama o caráter material do sentido das palavras e dos enunciados” (Ibid.),
este caráter material deve ser pensado a partir da relação entre língua, sujeito e historicidade.
Estes três elementos constituem-se no âmbito do todo complexo das formações ideológicas
(Ibid.) e essa proposição acarreta um distanciamento entre sentido e língua, apontando para
29
Datação original, a data da obra consultada está indicada no final da citação.
30
O original data de 1975.
46
determinação do sentido a partir das posições ideológicas que estão em jogo no processo
sócio-histórico (Ibid.), salientando que nesse processo estão representados o modo de
produção dominante e a luta de classes. Dessa forma, o autor salienta que as palavras,
expressões (...) mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as
empregam” (PÊCHEUX, 1988, p.160), posições estas que devem ser entendidas como lugares
determinados na estrutura social.
Portanto, é assim que a ideologia produz seus efeitos: mascarando-se sob a
literalidade da língua, sob a livre vontade do sujeito e sob a legitimação histórica. No entanto,
as posições ideológicas “não são nem individuais, nem universais, mas são referentes a várias,
ou mais diretamente a duas, posições de classes que estão em conflito umas com as outras”
(PÊCHEUX, 1971, p.148), ou seja, ao refletir sobre a noção de formação ideológica, o autor
ressalta que ela é constituída de um complexo de atitudes e representações que se organiza a
partir de inúmeras formações discursivas que mantêm entre si relações diversas de
antagonismo, de aliança, e, até mesmo, de dominação. Pêcheux diz ainda que:
... les formations idéologiques ainsi définies comportent nécessairement,
comme une de leurs composantes, une ou plusieurs formations discursives
interreliées, qui déterminent ce qui peut et doit être dit (...) à partir d’une
position donnée dans une conjoncture donnée: le point essentiel ici est qu’il
ne s’agit pas seulement de la nature des mots employés, mais aussi (et
surtout) des constructions dans lesquelles ces mots se combinent.
(PÊCHEUX, 1971, p.148)
Assim, as formações discursivas (FD) representam diferentes formas de relação do
sujeito com as formações ideológicas, visto que são as primeiras que regulam o que pode ou
não ser dito a partir de uma conjuntura dada. O ponto essencial da noção de formação
discursiva, de acordo com Pêcheux, é que ela não atua somente na natureza dos termos
empregados, mas, sobretudo, na forma sintática da combinação desses termos. Note-se, por
exemplo, o valor das conjunções, advérbios e adjetivos e suas funções diversas nos
enunciados em que aparecem.
A formulação da noção de formação discursiva (FD) inicia em Foucault (1986
31
) que
a concebe como o princípio de dispersão e de repartição, não das formulações, das frases,
ou das proposições, mas dos enunciados(p.124). Este autor, ao formular a noção de FD,
pensa na organização do conhecimento humano, na disciplinarização dos campos dos saberes
que se de forma linear, segmentando os domínios do saber. Para Pêcheux, o saber é um
todo extremamente complexo que não pode ser segmentado e, por isso, ele diz que todos os
31
Data da 2ªed. brasileira, a 1
ª
ed. brasileira é de 1971 e o original é de 1969.
47
saberes residem no interdiscurso, e só podem ser repartidos a partir da tomada de um ponto de
vista ou outro, de uma posição que determina uma parte do saber - o qual consiste em um
conjunto de possibilidades que podem, ou não, vir a atualizarem-se no intradiscurso.
Pêcheux não entende que a noção de FD seja produtiva apenas para a consideração do
conhecimento e a utiliza para pensar a organização do político e da luta de classes, este é o
primeiro deslocamento do autor em relação à Foucault. O segundo consiste na constatação da
ausência da noção de ideologia na teoria deste, pois as divisões do conhecimento não se
produzem de forma neutra e, por isso, não podem ser pensadas como funcionamentos não
sujeitos à determinação ideológica. Com isso, podemos dizer que é a partir da consideração da
noção de ideologia em seu trabalho que Pêcheux teoriza a noção de formação discursiva para
dar conta da repartição organização dos discursos com relação à instância ideológica.
Pêcheux, então, concebe duas noções distintas para pensar o discursivo: a formação
ideológica (FI); e a formação discursiva (FD), sendo que a principal distinção entre elas é o
fato de que podemos ter várias FDs representando uma formação ideológica. Podemos
também dizer que a noção de FI rompe com a possibilidade de existência de um sentido
literal, dado à priori, às palavras, aos enunciados, ou a um texto (em sua forma verbal e não-
verbal), pois o sentido produzido sempre será determinado a partir da ideologia que interpela
o sujeito interpretante.
Assim, ao teorizar sobre a noção de FD, Pêcheux postula que, é a partir da inserção de
uma palavra ou enunciado em um domínio de saber determinado que esses receberão um
sentido. Pêcheux caracteriza a FD como o lugar em que as palavras recebem seu sentido, ou
seja, o sentido não existe à priori, ele é regulado a partir da formação discursiva na qual é
produzido. Essa produção de sentido ocorre no interior da FD a partir da relação que
determinada palavra mantém com outras que também habitam aquela FD; por isso, o autor
afirma que o ponto mais importante a ser pensado, com relação ao sentido, é o das relações
entre as palavras, e não da natureza de cada palavra em si.
Sendo a FD uma noção teórica postulada no intuito de organizar saberes, percebe-se
que qualquer tentativa de torná-la um conceito fechado e regulado sistematicamente seria um
equívoco, pois, como diz Foucault (1986), a FD é uma distribuição de lacunas, de vazios que
podem ser ocupados por determinado enunciado, mas não o podem ser por qualquer
enunciado devido às condições de existência que a regem. Assim, fica claro que a noção de
FD tem por função a limitação, o recorte daqueles enunciados que podem ou não ocupar os
vazios que existem no seu interior. Importante atentar para a primeira característica desta
noção que se manteve ao longo dos tempos, qual seja: o aspecto lacunar da FD que, desde o
48
início, confere uma mobilidade a esta noção, ou seja, um potencial de abrigar em si elementos
heterogêneos.
No interior da formação discursiva temos o que Pêcheux (1988) denominou Forma-
sujeito da FD - e Courtine (1981), por sua vez, iria chamar Sujeito universal - responsável por
permitir, ou não, que determinados efeitos de sentido se constituam no interior da FD. A
“Forma-sujeito (...) tende a absorver-esquecer o interdiscurso no intradiscurso, isto é, ela
simula o interdiscurso no intradiscurso, de modo que o interdiscurso aparece como o puro
‘já-dito’ do intra-discurso, no qual ele se articula por ‘co-referência’” (PÊCHEUX, 1988,
p.167). Assim, a Forma-sujeito regula as escolhas do sujeito do discurso quanto ao que pode,
ou não, ser enunciado a partir da FD com a qual ele se identifica. Mas, como a FD tem um
caráter heterogêneo, podem existir formas diferenciadas de relação do sujeito do discurso com
a Forma-sujeito da FD, por isso, além da Forma-sujeito, variadas posições-sujeito no
interior da FD. Quando o sujeito do discurso identifica-se com uma das posições-sujeito da
FD essa identificação é denominada tomada de posição.
Quanto à noção de tomada de posição (PÊCHEUX, 1988, p. 215) podemos dizer que
ela representa diferentes modalidades de relação entre o sujeito do discurso e a Forma-sujeito
que regula os saberes de uma FD. A primeira modalidade remete a uma identificação plena
entre o sujeito do discurso e a Forma-sujeito; nessa modalidade, a tomada de posição do
sujeito do discurso realiza o seu assujeitamento sob a forma do “livremente consentido”
(Ibid.). Aqui é o lugar da repetição do mesmo, da paráfrase, da homogeneidade. A segunda
modalidade, denominada contra-identificação, caracteriza um distanciamento entre a Forma-
sujeito e o sujeito do discurso, o qual, através de uma tomada de posição, se contrapõe ao
Sujeito universal questionando, revoltando-se contra o saber da FD com que se identifica.
Esta tensão ocorre no interior da Forma-sujeito, no âmbito da FD, instaurando a diferença,
a contradição, resultando daí a heterogeneidade, a polissemia, a presença do discurso outro no
interior da FD. A terceira modalidade trata da desidentificação do sujeito do discurso com a
Forma-sujeito, decorrente de uma tomada de posição não-subjetiva, ocasionando uma ruptura
do sujeito do discurso com uma FD e um deslocamento, para identificar-se com outra FD.
Em nossa pesquisa, a modalidade de desidentificação do sujeito com a Forma-sujeito
da FD não será mobilizada, mas a contra-identificação será muito produtiva para dar conta do
questionamento dos saberes da FD observada. Vamos ver agora como podemos mobilizar as
noções de formação ideológica e formação discursiva para trabalhar com a materialidade
imagética e o discurso fílmico.
49
FORMAÇÃO IDEOLÓGICA E FORMAÇÃO DISCURSIVA NA ABORDAGEM DO
DISCURSO FÍLMICO
Pautados nas teorizações de Pêcheux sobre as noções de formação ideológica e
formação discursiva, pretendemos analisar o processo de constituição do discurso fílmico,
visto que este também é construído de acordo com a disputa ideológica pela legitimação de
determinadas possibilidades de sentido em detrimento de outras. Conseqüentemente, o gesto
de interpretação produzido sobre este tipo de discurso também apresentará as determinações
ideológicas que o sujeito interpretante, concebido no âmbito social como sujeito do discurso,
sofre.
Se tomarmos as noções de formação ideológica e formação discursiva em relação ao
saber e se pudermos conceber que o saber é constituído por dizeres, imagens, sons, e um
conjunto muito complexo de materiais simbólicos, então, em nosso entender, tanto a FI
quanto a FD podem ser mobilizadas na análise da materialidade não-verbal, pois a FD
funcionaria como um conceito teórico-metodológico de repartição desses saberes constituídos
por uma gama muito heterogênea e ampla de materialidades.
Assim, em nosso procedimento analítico, partimos do estabelecimento de uma
formação discursiva do trabalho, representada no recorte fílmico por, no mínimo, duas
matrizes de sentido distintas que possibilitam a produção de efeitos de sentido variados com
relação ao trabalho, quais sejam: a perspectiva telúrica e a capitalista. Lembramos que, no
capítulo dedicado à discussão do trabalho na Filosofia e Sociologia, estudamos alguns
teóricos que têm postulado a dicotomia trabalho x trabalho abstrato. Essa dicotomia está
representada pelas formas telúrica e capitalista de trabalho que compõem o recorte fílmico.
Com isso, temos o objetivo de observar as relações antagônicas de constituição da FD
capitalista que a fazem ser heterogênea, cheia de lacunas e brechas para a inserção de
discursos distintos provenientes de várias regiões do saber sobre o trabalho humano. Também
pretendemos observar as formas de relação do sujeito do discurso com o atual sistema de
produção capitalista, que é considerado aqui como FD dominante, tendo em vista que o
trabalho é a engrenagem central da subsistência humana, do consumo de bens materiais
necessários ou supérfluos, e da acumulação e reprodução de riquezas.
No próximo passo, vamos estudar a noção de sujeito para perceber como a AD o
entende enquanto dotado de inconsciente e interpelado pela ideologia.
50
3.3. SUJEITO E SENTIDO
Tendo como base Indursky (2000), podemos estabelecer um breve resumo das três
fases de elaboração pelas quais a noção de sujeito passou em Pêcheux. Assim, temos que em
1969
32
, o autor formula sua primeira noção de sujeito como um lugar determinado na
estrutura de uma formação social, ou seja, o sujeito “se encontra representado, isto é,
presente, mas transformado (...) funciona nos processos discursivos como uma série de
formações imaginárias” (PÊCHEUX, 1997, p.82). O sujeito da Análise de Discurso é,
portanto, desde o início da teoria um sujeito social.
em 1975
33
, o autor, juntamente com Catherine Fuchs, formula “uma teoria da
subjetividade (de natureza psicanalítica)” (Ibid., p.164) acrescentando ao sujeito social a
característica de ser dotado de inconsciente e fazendo com que esse sujeito atue sob duas
ilusões: ser a fonte de seu dizer e ser responsável pelo que diz (Ibid., p.177). Em obra
seguinte, também de 1975
34
, Pêcheux acrescenta que se trata da busca de “uma teoria não-
subjetivista da subjetividade” (PÊCHEUX, 1988, p.133) na qual são articulados inconsciente
e ideologia. Segundo o autor “os processos de ‘imposição/dissimulação’ que constituem o
sujeito, situam-no (significando para ele o que ele é) e, ao mesmo tempo, dissimulando para
ele essa ‘situação’ (esse assujeitamento) pela ilusão de autonomia constitutiva do sujeito”
(Ibid.). Nesta perspectiva, não somos sujeitos autônomos que fazemos nossas escolhas de
acordo com nossa vontade, a determinação da vontade é pura ilusão. cheux, assim como
Althusser o fizera, propõe-se a trabalhar com a análise do funcionamento discursivo dessas
categorias que proporcionam nosso assujeitamento: a ideologia e o inconsciente.
É pertinente situar a noção de sujeito juntamente com a de sentido, pois ambos se
produzem como efeitos na Teoria do Discurso e são produzidos como efeitos ideológicos.
Vejamos como Althusser introduz esta questão:
Como todas as evidências, inclusive as que fazem com que uma palavra
“designe uma coisa” ou “possua um significado” (portanto inclusive as
evidências da transparência da linguagem), a evidência de que vocês e eu
somos sujeitos e até não problema é um efeito ideológico, o efeito
ideológico elementar. (ALTHUSSER, 1992, p.94).
Como se vê, não temos aqui um sujeito intencional que decide sobre seus atos de
forma livre e individual, mas um sujeito constituído no corpo social, que age de acordo com a
32
Estamos usando a datação dos textos originais para manter a ordem cronológica em que foram escritos, mas
após as citações estamos indicando a data da edição utilizada para a consulta.
33
Datação original, a obra consultada data de 1997.
34
Datação original do Les Vérités de la Palice.
51
ideologia que o determina. Vale lembrar que, embora Pêcheux concorde com Althusser
quanto à noção de sujeito social, o sujeito de Althusser é o da produção e da reprodução
diferentemente do sujeito de Pêcheux que compreende a produção; a reprodução; e, ainda, a
transformação, sendo este último o ponto que os diferencia. Assim, o sujeito pechêutiano,
apesar de ser determinado, também pode transformar, ou seja, também pode construir sentidos
a partir daqueles que lhe são dados à priori.
Segundo Orlandi (2002), o sujeito do discurso tem essa peculiaridade de, ao mesmo
tempo, ser “sujeito dee estar “sujeito à” (Ibid., p.49). Ao dizer que o sujeito é sujeito de a
autora está se referindo ao desejo inconsciente que o constitui, e estar sujeito à representa a
submissão desse sujeito à ideologia através de sua relação constitutiva com a língua e com a
história, pois ele “é afetado por elas” (Ibid.) ao produzir sentidos. Isso mostra que nesta teoria
não temos nem a hipertrofia do sujeito, caracterizada por concepções que consideram o
sujeito centrado, inteiro, pleno, fechado; nem sua completa submissão, pois ele não é apenas
reprodutor de sentidos na medida em que também é capaz de alterar sentidos e produzir o
novo.
Tendo em vista que sujeito e sentido constituem-se mutuamente, como fora
apontado por Lacan o sujeito se constitui pelos efeitos do significante(LACAN, 1998
35
,
p.122), percebemos que este processo se de acordo com a interpelação ideológica, pois o
sujeito é constituído pela língua. Assim, se as escolhas do sujeito se fazem de acordo com sua
inserção em determinada formação ideológica, via formação discursiva, conseqüentemente
seu discurso estará partindo de um viés da ideologia que o interpela. Pêcheux diz que a
ideologia fornece as evidências de sentido único que mascaram “o caráter material do sentido
52
conseqüência o lapso, ou seja, a deriva do sentido, que impede sua estabilização. Portanto, é
possível pensar o sentido a partir dos processos que o constituem e o deslocam.
Outro teórico que também reflete sobre a relação entre sujeito e sentido é Henry
quando diz que:
Enunciar que a apropriação do conceito (...) implica uma noção de forma-
sujeito equivale a fazer do sentido um efeito ao mesmo tempo ideológico e
subjetivo. Considerar assim o sentido indica que ele não pode estar
relacionado com a forma-sujeito “indivíduo-sujeito”, ser procurado nas
palavras, no texto ou no discurso de um indivíduo, mas na relação desse
texto (...) com outros textos, outras palavras, outros discursos, relação na
qual esse sentido se constitui enquanto efeito ideológico. Ao mesmo tempo,
essas relações com outros textos (...) não se o com quaisquer textos...
(HENRY, 1997, p.139/140)
Ao apontar a referência do sentido não ao indivíduo, ao texto ou às palavras, este
autor nos direciona a um pensamento que considera a produção do sentido na relação entre
textos, palavras e discursos mantida com outros textos, palavras ou discursos inseridos na
mesma formação discursiva regulada pela Forma-sujeito. A partir disso, depreende-se a
importância da formação ideológica e discursiva (FD) na produção e manutenção de
determinados efeitos de sentido, assim como o motivo pelo qual o conceito de sujeito deve ser
remetido ao exterior que o constitui e não a um indivíduo plenamente consciente do que diz.
Nesta perspectiva, apoiando-se em uma interpretação da primeira tópica freudiana,
Pêcheux diz que o sujeito é afetado por dois tipos de esquecimento. O esquecimento nº 1 que
dá conta do fato de que o sujeito-falante não pode, por definição, se encontrar no exterior da
formação discursiva que o domina(PÊCHEUX, 1988, p.173), este esquecimento se ao
nível inconsciente e, a partir dele, o sujeito aceita determinada seqüência lingüística e recusa
outra a fim de produzir determinados sentidos aceitáveis pela forma-sujeito que regula os
dizeres possíveis no interior da FD. No entanto, ele acredita que seu enunciado é a única
forma clara e evidente de dizer o que deseja. Também podemos acrescentar que o
funcionamento deste esquecimento no discurso ocorre ao nível da constituição, ou seja, do
interdiscurso.
Já o esquecimento nº 2 é aquele “pelo qual todo sujeito-falante ‘seleciona’ no interior
da formação discursiva que o domina (...) um enunciado, forma ou seqüência, e não outro,
que, no entanto, está no campo daquilo que poderia reformulá-lo na formação discursiva
considerada”. (Ibid.), este se caracteriza pelo que o sujeito "quer dizer" e pelo que "não quer
dizer", e opera em nível pré-consciente oferecendo ao sujeito a ilusão de que seu discurso
reflete o conhecimento objetivo que ele tem da realidade, ou seja, de que é senhor de sua
53
palavra, origem e fonte de sentido. Podemos dizer, ainda, que o funcionamento deste
esquecimento s20.337(f)2.80561(o)-0.295a5585(a)3.74(o)-0.295585( )2055856(n)-0.26433(ít)-2.16558vdelfaformuo, ou se, do intrdiscrso, onde sint e z
54
De onde se depreende que a noção de sujeito de direito se constitui em uma forma de
produzir o apagamento da determinação à qual todo o indivíduo está submetido desde o seu
nascimento. Assim, também se apagam as diferenças entre as classes sociais no que diz
respeito aos direitos e deveres de todos os cidadãos, pois, segundo o Direito, todos são iguais
perante a lei, ilusão esta que possibilita ao sujeito pensar que é livre para tomar as decisões
que lhe aprouver, desde que não cometa nenhum ato ilícito ou danoso à sociedade, ou seja,
desde que não infrinja as leis existentes para proteger e assegurar a liberdade de todos os
cidadãos.
Retomando a reflexão de Haroche temos que:
As modificações das estruturas econômicas do culo X ao século XIII e as
incidências ideológicas que elas puderam ter (...) sobre o Direito levam a
pensar que a crise da Dupla Verdade está fundamentalmente ligada ao
enfraquecimento da Igreja no sistema feudal e à escalada do jurídico-
político, que se exprime em particular através das mudanças no processo
jurídico. Estas vão se manifestar por um deslocamento das formas de
assujeitamento do indivíduo ao poder e modificar sensivelmente o estatuto
do sujeito e sua relação com o saber. (HAROCHE, 1992, p.67).
Desta forma, a autora estabelece que as mudanças na estrutura econômica das
sociedades ocasionadas por fatores tais como: o crescimento demográfico e a conseqüente
migração de camponeses para a cidade, assim como o melhoramento das técnicas agrícolas e
o desenvolvimento do comércio e, com ele, o aparecimento da moeda - que favorece o
surgimento do trabalhador assalariado - acarretou num distanciamento do sujeito com relação
aos dogmas religiosos e no assujeitamento deste ao aparelho jurídico.
Segundo a autora, este deslocamento é que vai produzir o sujeito de direito que tem
direitos e deveres, um sujeito responsável por seus feitos e gestos(Ibid., p.68), no entanto,
no período feudal esta noção ainda não podia ser pensada, pois não era possível estabelecer
uma relação de igualdade entre o vassalo e o senhor feudal. Logo, apenas com a concessão de
um feudo, por parte do senhor, ao seu vassalo é que a sujeição pessoal vai dar lugar a uma
sujeição econômica (Ibid., p.69), pois, a partir disso, o camponês não é mais explorado
apenas em seus serviços, mas através das dívidas que mantém para com o senhor feudal
devido à compra de sua liberdade através de fundos emprestados pelo próprio senhor feudal.
De acordo com Haroche, Compreende-se então todo o interesse que o senhor pode
encontrar em conceder ao camponês sua ‘liberdade’, para conseguir, na verdade, ‘assujeitá-
lo’ economicamente graças ao Direito, melhor do que poderia fazê-lo anteriormente pelo
viés da ordem religiosa.” (HAROCHE, 1992, p.69).
55
Percebemos, portanto, de que forma a dominação do sujeito pela religião lugar a
uma concepção absolutamente nova de sujeito(Ibid.) que alia a obrigação econômica à
liberdade jurídica (Ibid.), pois mais importância ao sujeito, suas intenções e suas
motivações, ou seja, à sua vontade, entretanto, também cobra dele o cumprimento dos deveres
impostos pela sociedade em que está inserido. Segundo Haroche, esta autonomização
aparente(Ibid., p.71) concedida ao sujeito pelo Direito está totalmente de acordo com as
novas necessidades sociais, pois a economia nascente na época prescinde da livre circulação
de bens e de indivíduos para se desenvolver. Nesta perspectiva, é possível compreender o
caráter ideológico desta concessão de “liberdade” aos sujeitos tidos como servos
anteriormente.
A autora também realiza uma interessante retomada da palavra sujeito a partir do viés
etimológico que nos leva a perceber que este termo surgiu para designar os servos:
... o sentido primeiro de “sujeito” (surgido no século XII) significa:
“submetido à autoridade soberana”. “Sujeição” aparece igualmente na
mesma época; no século XV, são derivadas as palavras “assujeitar” e depois
“assujeitamento”. Bloch e Wartburg nos revelam também que o termo
“sujeito”, significando no início “que é subordinado”, toma, a partir do
século XVI, o sentido de “matéria, causa, motivo” e, enfim, de “pessoa que é
motivo de algo, pessoa considerada em suas aptidões” (HAROCHE, 1992,
p.158).
Ou seja, desde o seu surgimento, o termo “sujeito” designa aquele que essubmetido
a uma autoridade que inicialmente era soberana, mas posteriormente se transferiu ao Direito, à
palavra da lei. No século XVI o termo sujeito também é transformado comportando o sentido
de “motivo de algo” (Ibid.), ou seja, o sujeito passa a valer pelo ofício que exerce, pela sua
utilidade social. Foi com o fim do regime feudal que se deu a possibilidade (ou infelicidade?)
dos sujeitos que não se inseriam na classe dominante (camponeses, artesãos, ex-escravos)
vender sua força-de-trabalho, ou seja, serem valorizados pela atividade laboriosa que
exerciam.
Vemos, portanto, que o termo “sujeito” conduz-nos à ambigüidade, pois recebe tanto o
sentido de livre e responsável quanto passivo e submisso às determinações que ora são de
ordem religiosa, ora de ordem jurídica. Isso nos leva a compreender esta ‘ficção’ de
liberdade e de vontade do sujeito: o indivíduo é determinado, mas, para agir, ele deve ter a
ilusão de ser livre mesmo quando se submete.(HAROCHE, 1992, p.178). Certamente, é sob
esta mesma ilusão que todos nós nos consideramos sujeitos livres no interior da sociedade
democrática.
56
Antes de concluir desejamos retomar aqui uma reflexão de Pêcheux, sobre “esse ponto
de realização impossível do assujeitamento ‘perfeito’, no interior do processo de trabalho
imposto pelo modo de produção capitalista(1988, p.306), através de uma passagem extraída
“da narrativa autobiográfica de um militante intelectual empregado durante um ano em uma
das indústrias Citröen; ele fala do trabalho em série” (Ibid):
E se a gente se dissesse que nada tem muita importância, que basta se
habituar a fazer os mesmos gestos de uma forma sempre idêntica, aspirando
somente à perfeição plácida da máquina? Tentação da morte. Mas a vida se
revolta e resiste. Algo no corpo, na cabeça, se fortalece contra a repetição e o
nada. A vida: um gesto mais rápido, um braço que pende inoportunamente,
um passo mais lento, um sopro de irregularidade, um falso movimento, a
“reconstrução”, o “escoamento”, a tática do posto; tudo o que faz com que,
nesse irrisório quadrado de resistência contra a eternidade vazia que é o
posto de trabalho, haja ainda acontecimentos, mesmo minúsculos, que haja
ainda um tempo, mesmo monstruosamente estirado. Esse desajeito, esse
deslocamento supérfluo, essa aceleração súbita, essa solda fracassada, essa
mão que retoma a vida que se liga. Tudo o que, em cada um dos homens da
cadeia, urra silenciosamente: “Eu não sou uma máquina!” (PÊCHEUX,
1988, p.307)
Essa passagem, que se encontra na nota 22 do Semântica e Discurso, vem relacionada
à discussão situada à página 301 sobre “o lapso, e o ato falho (falhas do ritual, bloqueio da
ordem ideológica)” (PÊCHEUX, 1988, p.301) que se relacionam com essa origem não-
detectável da resistência e da revolta: formas de aparição fugidias de alguma coisa ‘de uma
outra ordem’, vitórias ínfimas que (...) colocam em xeque a ideologia dominante tirando
partido de seu desequilíbrio(Ibid.). Nesta perspectiva, há possibilidade de revolta do sujeito
contra a determinação ideológica, no dizer do militante uma contra-identificação com
aquele lugar social, com o lugar de máquina, do qual o sujeito se diferencia por dar “um passo
mais lento”, “um falso movimento”, pela possibilidade de falhar, por desejar não ser uma
máquina.
Portanto, é o desejo de “uma outra ordem” que move o sujeito a questionar o lugar
social que ocupa, a falta lhe constitui criando a possibilidade de fuga do assujeitamento para a
produção de um efeito de sentido distinto daquele que está dado pela ideologia dominante, um
efeito de sentido que causa desequilíbrio.
Vale agora percebermos como as noções de sentido e sujeito funcionam na observação
da materialidade imagética.
57
SUJEITO, SENTIDO E IMAGEM
Vimos que, em AD, o sujeito é social, dotado de inconsciente e sujeito à determinação
ideológica. O conceito de sujeito não traz a autonomia, liberdade ou intencionalidade do
sujeito falante, autor ou leitor. Como pudemos ver com Haroche, o próprio conceito de sujeito
de direito refere-se ao indivíduo assujeitado ao Estado. A Teoria do Discurso, apesar de
conceber a noção de assujeitamento ideológico, não trabalha apenas com um sujeito produtor
e reprodutor de sentidos, pois também considera a existência de um sujeito transformador que
rompe com a estabilidade do sentido dominante e faz emergir o novo.
De acordo com Henry, sujeito e sentido constituem-se mutuamente, mas isso não
significa que o sentido está no sujeito, ele está na relação do discurso produzido pelo sujeito
com outros discursos que vem da mesma FD com que o sujeito se identifica. Essa
identificação do sujeito está presente no jogo dos imaginários, processo em que o sujeito
atribui a si e ao seu interlocutor o lugar social que cada um ocupa em relação à sociedade em
que estão inseridos. Considerando que relações de força, poder e sentido implicadas no
processo de produção dos discursos acreditamos que a representação dos modos de produção,
contida no recorte fílmico, possa fazer emergir do sujeito um posicionamento com relação à
formação ideológica dominante na atualidade, a capitalista.
Nesta pesquisa, a produção de sentidos se com base na materialidade fílmica, em
lugar da lingüística, e, apesar da distinção de forma entre essas materialidades, a construção
dos sentidos é, também, entrelaçada pelo desejo e pela ideologia, pois o sujeito interpretante é
o mesmo. Assim, a interpretação da imagem é, também, atravessada por processos
inconscientes de assujeitamento ideológico, e também pelo desejo do outro, do impossível de
ser alcançado. A imagem tem constituição heterogênea, relaciona formas, cores e sonoridade,
elementos materiais que, unidos às condições de sua produção e leitura, podem suscitar ao
sujeito a busca de elos com seu desejo, com sua identificação com determinada formação
discursiva e, independentemente de sua verbalização, a produção de sentidos irá decorrer no
intervalo constituído entre o sujeito autor do – recorte fílmico – e seu interlocutor – sujeito do
discurso interpretante. Passaremos, agora, à observação da noção de interdiscurso e suas
modalidades particulares para perceber como se dá o retorno e a produção dos sentidos.
58
3.4. INTERDISCURSO: PRÉ-CONSTRUÍDO E DISCURSO-TRANSVERSO
Segundo Pêcheux (1975)
40
“toda formação discursiva dissimula, pela transparência
do sentido que nela se constitui, sua dependência com respeito ao ‘todo complexo com
dominante’ das formações discursivas, intrincado no complexo das formações ideológicas”
(PÊCHEUX, 1988, p.162). O autor chama interdiscurso a este ‘todo complexo com
dominante’, considerado como lugar onde se alocam todas as possibilidades do dizer, nele os
enunciados não têm uma filiação ideológica, pois esta lhe será dada no momento em que o
enunciado é inscrito em determinada rede de saberes que se insere, por sua vez, em uma FD.
O interdiscurso apresenta duas modalidades: o pré-construído e o discurso-
transverso. Nas palavras de Pêcheux, o pré-construído corresponde ao lugar do já-dito;
aquilo que todo mundo sabe(PÊCHEUX, 1988, p.171), aos conteúdos de conhecimento
universal; ao “‘sempre-já-aí’ da interpelação ideológica que fornece-impõe a ‘realidade’ e
seu ‘sentido’ sob a forma da universalidade” (Ibid., p.164).
Já o discurso-transverso se mostra como “exterior ao discurso considerado e o
implícito que ele constitui é explícito alhures” (PÊCHEUX e FUCHS apud INDURSKY,
1997, p.35), o discurso transverso está, portanto, implícito na formulação do sujeito, mas é
afirmado em outro lugar, por isso, o funcionamento desta modalidade é a “internalização de
enunciados oriundos de outros discursos” (INDURSKY, 1997, p. 213). Uma das formas mais
simples de compreender o funcionamento do discurso- transverso é a negação, pois, ao
negarmos um saber, estamos trazendo-o de forma transversa para a constituição do
intradiscurso, logo, a refutação de um saber faz com que ele também constitua o sentido do
que está sendo dito. De acordo com Courtine, o discurso-transverso é um “modo de figuração
do interdiscurso na formulação” (1981, p.36), pois os dizeres negados encontram-se no
interdiscurso, visto que este é o lugar de constituição do dizer.
Em busca do funcionamento da noção de interdiscurso na interpretação da imagem,
vamos estudar um pouco da relação entre esta noção e a materialidade imagética.
40
Datação do original, a obra utilizada para consulta é a da tradução brasileira de 1988.
59
INTERDISCURSO E IMAGEM
Considerando o interdiscurso como lugar de constituição dos enunciados, propomos,
nesta pesquisa, um deslocamento relacionado às materialidades que o constituem. Assim,
defendemos a hipótese de que o interdiscurso não é composto apenas por enunciados, pois,
em seu interior, também estão as imagens, os sons, as cores, as formas, e outros materiais
simbólicos que, tal como os enunciados, não apresentam nenhuma filiação ideológica
enquanto são considerados ao nível de interdiscurso.
Sendo a FD um recorte de saberes do interdiscurso, a filiação ideológica dos
materiais simbólicos se apenas no momento em que eles passam a constituir uma
seqüência ou rede de saberes estruturada, organizada, a partir de determinada FD. Nesta
perspectiva, consideramos que a FD na qual nosso recorte lmico se inscreve é constituída
pelos saberes representantes da ideologia dominante relacionados com o trabalho abstrato, e
também de formas variadas de relação do sujeito do discurso com o sentido dominante.
Formas essas que estão todas virtualmente constituídas no interdiscurso.
Estendendo as modalidades do interdiscurso - o pré-construído e o discurso-
transverso ao nosso recorte fílmico, podemos dizer que elas estão presentes tanto em sua
constituição quanto em sua interpretação. No que diz respeito à constituição do recorte
fílmico, cenas nele que representam discursos já-ditos que se inserem em uma rede de
saberes pré-existente. Na interpretação da materialidade imagética os sujeitos do discurso
podem retomar esses pré-construídos para produzirem seus discursos, de forma a manter o
efeito de sentido dominante, alterá-lo, ou se opor a ele. Nessa construção de sentido também
podem ser internalizados, no discurso do sujeito, discursos outros formulados em outras
condições de produção. Essas tomadas de posição do sujeito quanto ao tema representado no
recorte lmico apresentarão as relações interdiscursivas mobilizadas na formulação das
interpretações produzidas pelos espectadores.
Concebendo, portanto, uma noção de interdiscurso que abriga tanto a materialidade
verbal quanto a não-verbal em seu interior, defendemos a hipótese de que todos os materiais
simbólicos carregam marcas de uma constituição heterogênea. E é da constituição
heterogênea do discurso que vamos tratar a seguir.
60
3.5. HETEROGENEIDADE
Quanto à noção de heterogeneidade, podemos buscar as elaborações de Authier-
Revuz (1990
41
) sobre as heterogeneidades enunciativas, quando a autora diz que a
heterogeneidade pode ser encontrada de duas formas na teoria do discurso, sendo que uma
forma não exclui a outra.
a heterogeneidade constitutiva, aquela que está presente em todos os discursos,
visto que um discurso sempre retoma um já-dito do interdiscurso; no entanto ela é denegada,
isto é, tem sua própria existência negada pelo sujeito do discurso. E a heterogeneidade
mostrada, a qual pode ainda dividir-se em marcada e não marcada. Ou seja, quando temos
um termo, frase ou trecho aspado, ou introduzido por palavras tais como: segundo autor tal,
ou de acordo com..., estamos diante da heterogeneidade mostrada marcada, visto que é
possível discernir o discurso do sujeito do discurso citado. Enquanto a heterogeneidade
mostrada e não marcada permite-nos inferir a existência de um outro discurso, no entanto,
não delimitação formal entre o discurso do sujeito e o discurso outro. É o caso, por
exemplo, dos ditos populares que se atravessam em nosso discurso, porém, é possível
perceber que eles não têm sua origem no sujeito que profere o discurso - assim como nenhum
discurso a tem.
Gallo (2001), por sua vez, propõe um nível discursivo de heterogeneidade, visto que
na heterogeneidade constitutiva (proposta por Authier-Revuz) trabalha-se apenas com o nível
inconsciente. Por isso, a autora inclui na reflexão sobre a heterogeneidade as noções de
formação discursiva e de pré-construído e entende que a heterogeneidade no nível discursivo
é permanente, sem ser denegada pelo sujeito, ao contrário, o sujeito conta com ela para fazer
sentido, o sentido se faz nela. Gallo relaciona a heterogeneidade à noção de formação
discursiva devido à concepção da AD de que as palavras, enunciados e discursos recebem
seu direcionamento de sentido no momento em que se inserem em determinada FD. Sendo
assim, a heterogeneidade discursiva não é tão inacessível como a heterogeneidade
constitutiva, nem mesmo proposital como seria a heterogeneidade mostrada, mas opera a
partir da possibilidade de produção heterogênea do sentido.
Compreendidas as formas tomadas pela noção de heterogeneidade, vamos tentar
estabelecer um elo entre a materialidade imagética e esta noção tão importante na
consideração do objeto discursivo.
41
Datação original: 1984.
61
A HETEROGENEIDADE DO DISCURSO FÍLMICO
No discurso cinematográfico, também podemos conceber essa noção de
heterogeneidade constitutiva, devido ao caráter heterogêneo de todo o discurso, e se estamos
tomando a imagem como discurso, pois tanto o texto verbal quanto o não-verbal significam na
ordem do discurso (COURTINE, 1999), este caráter deve ser correlativo a ela. Souza reflete
sobre esta questão da heterogeneidade da materialidade imagética ao dizer que o espectador,
em seu processo de leitura da imagem, conta com elementos que não estão visíveis, mas
sugeridos, e é este espaço de interlocução do discurso imagético com outros discursos que:
imprime também ao texto não-verbal o caráter de sua heterogeneidade(SOUZA, 2001,
p.75).
Quanto às noções de heterogeneidade mostrada marcada e não marcada podemos
correlacioná-las a saberes que retornam através de imagens que compõe o recorte fílmico e
que, por vezes, podem ser identificadas. Desta forma, podemos considerar como
heterogeneidade mostrada marcada, por exemplo, o símbolo de uma marca famosa, tal como
a da Coca-Cola, em uma seqüência na qual o tema principal não é esta imagem; enquanto a
heterogeneidade mostrada não marcada daria conta de imagens não tão facilmente
identificáveis com outros discursos, pois não são delimitadas formalmente, mas que, no
entanto, apontam para determinada FD, seria o caso da conceituação do trabalho abstrato
como trabalho escravo ou atividade mecânica.
um imenso número de saberes já construídos sobre o trabalho, por isso, além de
ser heterogêneo enquanto objeto teórico, a formação discursiva que o delimita também abriga
a diferença. A concepção de heterogeneidade discursiva, de Gallo, auxilia-nos a pensar nas
interpretações do recorte fílmico que representam, exatamente, a possibilidade de produção de
efeitos de sentido distintos daqueles pertencentes à ideologia dominante. Essa concepção de
heterogeneidade dá conta dos deslizamentos de sentido que o processo de interpretação
possibilita, já que neles o sujeito está contando com o caráter heterogêneo do material
simbólico considerado para produzir sentido.
Desta forma, é possível conceber a heterogeneidade da materialidade imagética
pensando no processo plural de sua constituição - imagem muda, em movimento, acelerada,
acompanhada de melodia, em cores, elaborada em condições de produção determinadas - e no
processo de interpretação realizado pelo seu observador que conta com outros discursos,
outros materiais simbólicos, e condições de produção de leitura distintas para significá-la. E o
que dizer da memória? Vamos descobrir a seguir.
62
3.6. MEMÓRIA DISCURSIVA
A reflexão sobre a noção de memória inicia com Foucault (1986
42
), no momento em
que este autor busca descrever a organização do campo de enunciados (FOUCAULT,
1986, p.63) em que os discursos “aparecem e circulam(Ibid.), pois ao analisar as formações
discursivas este autor diz que todas as formulações vêm de domínios associados (Ibid.,
p.134) de outras formulações que se repelem, refutam, transformam, negam, é o já-dito sobre
o qual se produzem os efeitos de memória específicos. Nesse trabalho de “configuração do
campo enunciativo” (Ibid., p.64) Foucault estabelece que este campo compreenda: formas de
coexistência (Ibid.) que delimitam um campo de presença (Ibid.); um campo de
concomitância” (Ibid.); e um “domínio de memória” (Ibid.).
Apenas o domínio de memória interessa para nossa discussão. Segundo Foucault este
domínio:
... trata-se dos enunciados que não são mais nem admitidos nem discutidos,
que não definem mais, conseqüentemente, nem um corpo de verdades nem
um domínio de validade, mas em relação aos quais se estabelecem laços de
filiação, gênese, transformação, continuidade e descontinuidade histórica.
(FOUCAULT, 1986, p.65)
Assim, os enunciados contidos no domínio de memória preexistem àqueles que são
formulados e através de novas formulações são transformados, ratificados ou rompidos a
partir da instauração de novos dizeres. Courtine (1981) relacionou a noção de domínio de
memória às questões de materialidade social e ideológica trabalhadas por Pêcheux na Teoria
do Discurso, relacionando-as ao conceito de campo enunciativo postulado por Foucault. A
partir disso, Courtine diz que a memória discursiva corresponde à existência histórica do
enunciado que se insere em práticas discursivas reguladas pelos aparelhos ideológicos. Logo,
a memória discursiva não é a memória individual, psicológica, mas uma memória histórico-
social.
Refletindo sobre a existência de uma FD como memória discursiva" (COURTINE,
1981, p.53) o autor diz que a caracterização dos efeitos de memória(Ibid.) dos discursos
produzidos em uma conjuntura histórica são articulados em dois níveis de descrição que
correspondem à pluralidade dos tempos históricos, assim:
les objets que nous avons appelés ‘énoncés’, dans la formation
desquels se constitue le savoir prope à une FD existent dans le temps
long d’une mémoire, allors que les ‘formulations’ sont prises dans le
42
O original data de 1969.
63
temps court de l’actualité d’une énonciation. (COURTINE, 1981,
p.53).
Nessa perspectiva, os enunciados que constituem o domínio de saber de uma FD têm
sua existência em relação aos temps long (Ibid.) de uma memória, enquanto aqueles
enunciados atualizados no momento da formulação têm sua existência em relação aos temps
court” (Ibid.), pois seu local de atuação é a formulação do discurso. Assim, um enunciado não
pode ser analisado apenas de acordo com a situação enunciativa em que aparece, mas também
com relação à memória que pré-existe a ele, que na memória se inserem todos os discursos
já formulados e que podem ser atualizados a partir da construção de novos dizeres.
Aqui são compreendidas, também, as noções de intradiscurso e interdiscurso, pois a
primeira relaciona-se ao eixo da formulação, ou seja, da atualidade; a segunda corresponde
ao eixo da constituição dos saberes, ou seja, da memória. Assim, é o retorno de uma
“formulação origem” (Ibid.) na atualidade de uma “conjuntura discursiva” (Ibid.) que
Courtine designa como “efeito de memória(Ibid.). Podemos concluir, então, que esse efeito
de memória ocorre em todas as formulações que retomam formulações anteriores,
acrescentando que as últimas se encontram na memória discursiva, a memória de um dizer
que, mesmo após ter sido discursivizado, ainda continua produzindo efeitos em formulações
novas através de seu retorno enquanto efeito de memória.
Courtine & Haroche (1988) afirmam que a linguagem é o tecido da memória.
uma memória inerente à linguagem e os processos discursivos são responsáveis por fazer
emergir o que, em uma memória coletiva, é característico de um determinado processo
histórico. Courtine (1999) diz, seguindo Foucault, que é o domínio de memória que constitui
a exterioridade do enunciável para o sujeito enunciador na formação dos enunciados
‘preconstruídos’, de que sua enunciação apropria-se(COURTINE, 1999, p.18), ou seja, o
sujeito toma como suas as palavras de uma voz anônima (a memória) que se produz no
interdiscurso, apropriando-se dessas palavras e mobilizando-as de diferentes maneiras na
formulação de seus dizeres.
De acordo com Mariani (1998) a memória social é:
... um processo histórico resultante de uma disputa de interpretações para os
acontecimentos presentes ou já ocorridos, sendo que, como resultado do
processo, ocorre a predominância de uma de tais interpretações e um (às
vezes aparente) esquecimento das demais.(MARIANI, 1998, p.34)
Assim, se partirmos da definição de memória discursiva como as possibilidades do
dizer que se atualizam no momento da enunciação, perceberemos que a “escolha” desses
dizeres formulados dependente do processo histórico resultante de uma disputa de
64
interpretações, como propõe Mariani. Essa escolha” de discursos que serão ou não
atualizados, portanto, é determinada exatamente pelo eco dessas disputas, por isso, teremos
sempre aquelas possibilidades de dizer que retornam; e outras que não voltam a ser
formuladas, pois foram silenciadas através de um efeito de esquecimento proporcionado pela
derrota na disputa de interpretações. No entanto, os dizeres esquecidos, derrotados, podem
retornar no interior daqueles saberes hegemônicos, ou até mesmo de forma isolada,
instaurando novas formulações a partir das quais sentidos esquecidos voltam a se fazer
presentes.
Para tentar compreender como se o funcionamento da memória com relação à
imagem, vamos passar agora à esta aproximação.
MEMÓRIA DISCURSIVA E DISCURSO IMAGÉTICO
Concebendo a memória discursiva como o lugar em que os dizeres formulados se
inserem e de onde eles retornam na formulação do discurso, acreditamos ser possível pensar
que a memória discursiva (assim como o interdiscurso) não é composta apenas de dizeres,
mas também de imagens. Isso porque a imagem permeia nossas vidas desde a infância, sendo
que algumas são divididas por todos os membros de uma nação, como as letras que compõem
o alfabeto, por exemplo; enquanto outras são de ocorrência regional, como a bandeira do
Estado; e outras, ainda, são conhecidas por uma pequena parcela de pessoas.
Sendo assim, podemos pensar na concepção de uma memória discursiva constituída
de saberes lingüísticos, imagéticos, sonoros, e etc, pois todas essas materialidades são formas
discursivas que não se separam rigidamente umas das outras, de modo que muitos dizeres
correlacionam-se a imagens, cores, formas. Seja na mídia impressa, cinematográfica ou
audiovisual, sempre teremos a formulação de discursos a partir do processo de interpretação
dessas materialidades, processo este que pode acionar a memória discursiva. O fato de que as
materialidades discursivas são variadas e servem como base para a interpretação, justifica
nossa tendência a abrigar tanto as materialidades lingüísticas quanto as imagéticas e sonoras
na mesma concepção de memória discursiva. Até mesmo porque, de acordo com Orlandi, “os
sentidos não são indiferentes à matéria significante, a relação do homem com os sentidos se
exerce em diferentes materialidades, em processos de significação diversos: pintura, imagem,
música, escultura, escrita, etc.” (1996, p. 12); estas materialidades não têm uma ocorrência
65
estanque no processo de interpretação, ao contrário, elas trabalham juntas na construção dos
efeitos de sentidos.
Sendo compreendida como o processo histórico resultante de uma disputa de
interpretações (MARIANI, 1998, p.34), mais um motivo para conceber de forma conjunta
a memória do dizer e a memória da imagem, visto que ambas carregam memórias. Assim, a
memória da imagem só pode ser concebida como o resultado deste processo histórico de
disputa, pois tanto as imagens que são trazidas pelas mídias quanto aquelas que nelas não se
inserem estão compreendidas nessa disputa pelos lugares que possam torná-las visíveis, ou
seja, passíveis de serem interpretadas. Neste momento, cabe salientar que as imagens que
constituem nosso recorte fílmico representam, de acordo com sua temática, formas distintas
de trabalho e, através de sua linearização (em termos de apresentação cronológica) conduzem
o olhar do espectador de uma perspectiva de trabalho arraigado à terra e aos recursos naturais
até uma perspectiva de trabalho industrial; perspectivas essas que correspondem a
interpretações distintas, a diferentes lugares na estrutura social, ou seja, na disputa pela
produção e manutenção de sentidos.
Davallon (1999
43
), nos seus estudos sobre os objetos culturais, postulou que eles
abrem a possibilidade de um controle da memória social, privilegiando a imagem
contemporânea como operadora de memória(DAVALLON, 1999, p.24) o autor diz que há
toda uma distância que separa a realidade(Ibid.) do fato de significação(Ibid.), ou seja,
entre o acontecimento representado e o real(Ibid.). Isso significa que, quando passa a ser
representado, um fato não é mais exatamente como ocorreu, pois, mesmo estando
apagados, os processos de edição, filmagem, sonorização, entre outros aos quais o fato
representado é submetido, passam a fazer parte de sua constituição enquanto objeto
simbólico.
O mesmo autor diz, também, que os objetos culturais (destinados a produzir um
efeito simbólico: livros, filmes, arquitetura...) funcionam na produção da memória social, pois
para que haja memória, é preciso que o acontecimento ou o saber registrado saia da
indiferença, que ele deixe o domínio da insignificância. É preciso que ele conserve uma força
66
insignificância(Ibid.) evocando a memória social, p39-0.29558ilia
67
Assim, o acontecimento, como acontecimento “memorizado” poderá entrar
na história (a memória do grupo poderá perdurar e se estender além dos
limites físicos do grupo social que viveu o acontecimento); mas enquanto
“histórico”, ele poderá se tornar, em compensação, elemento vivo de uma
memória coletiva. Esta última adquirirá então uma outra dimensão: aquela
que, se podemos dizer, de uma memória societal. (DAVALLON, 1999, p.26)
Logo, não é o fato histórico que fica na memória coletiva, mas o fato representado,
registrado pela televisão, por exemplo. No entanto, pensando-se discursivamente a memória
veremos que ela resiste ao tempo não através da história, mas também através das
reformulações, dos deslocamentos de sentidos proporcionados pelos objetos simbólicos a
partir do trabalho de releitura e interpretação.
No caso de nosso recorte lmico, elaborado através do discurso cinematográfico, a
memória funciona no processo de atribuição de sentidos ao mesmo, o que poderá mobilizar
efeitos de memória materialmente distintos, pois ao significar o sujeito espectador conta com
saberes constituídos por materialidades verbais e não-verbais. Considerando a temática
trabalho, será de acordo com a tomada de posição do sujeito do discurso, identificando-se ou
não com a FD capitalista, que poderemos ter acesso aos saberes pré-construídos que estão na
base de seu dizer. Neste jogo de memória poderemos ter a presença do discurso do
trabalhador, do patrão, da história, do marxismo, da tecnologia, da ciência, entre outros
relacionados à noção de trabalho, sendo mobilizados para a interpretação do material
simbólico que elaboramos.
Pêcheux (1983
44
) contribui ao debate sobre a memória discursiva dizendo que:
... uma memória não pode ser concebida como uma esfera plena, cujas
bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido
homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um
espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas,
de conflitos de regularização... Um espaço de desdobramentos, réplicas,
polêmicas e contra-discursos. (PÊCHEUX, 1999, p.56).
De acordo com o exposto por Pêcheux, nada indica que a memória, pensada a partir
da perspectiva discursiva, seja apenas relacionada ao dizer. A preocupação do teórico está
mais próxima da questão da constituição da memória pelo exterior, ou seja, pela sua relação
com o processo histórico social da luta de classes na qual a interpelação do sujeito pela
ideologia produz seus efeitos.
Sobre a afirmação: “... nenhuma memória pode ser um frasco sem exterior” (Ibid.),
permitimo-nos um deslocamento para pensar, também, que toda a memória tem um invólucro,
quer seja a língua, a imagem ou qualquer outra materialidade simbólica. Idéia que se
44
Esta é data do original, a datação da obra consultada está indicada após a citação.
68
aproxima da concepção de Davallon de que os objetos culturais têm a função de serem
operadores de memória, e vale salientar que aqui estamos entendendo a denominação
“objetos culturais” como diferentes materiais simbólicos.
Importante, também, ressaltar que a ideologia tem uma existência material
(COURTINE, 1981, p.34) e “o discursivo é considerado como um desses aspectos materiais
(Ibid.), ou seja, é o discursivo que garante a existência material da ideologia, pois é na ordem
do discurso que a ideologia irá deixar suas marcas e, a partir disso, poder ser observada em
seu funcionamento. Assim, em Courtine (1981) estava dada a possibilidade de diversos
tipos de materialidades serem concebidas como discurso e, com isso, nossa idéia de tratar a
imagem enquanto discurso já está bastante sólida no que diz respeito às suas bases teóricas.
Tomamos como base, portanto, as concepções de memória de Davallon, Pêcheux,
Courtine e Mariani para considerar a materialidade imagética como um elemento constitutivo
da memória discursiva - assim como a materialidade verbal, a sonora, entre outras - pois aqui
estamos tomando a imagem enquanto discurso devido à sua inserção no processo histórico
social. A partir dessa posição, o exterior da memória deverá ser considerado com relação às
determinações históricas, sociais e ideológicas que conduziram os escritos dos sujeitos-
espectadores.
3.7. DISCURSO: O OBJETO
A noção de discurso é o que define o objeto da teoria da Análise de Discurso e
lugar a uma nova disciplina. Pêcheux (1997
45
) afirma que falar em discurso é falar em
condições de produção, pois: “o que funciona nos processos discursivos é uma série de
formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a
imagem que eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro” (PÊCHEUX, 1997, p.82).
De forma que “o objeto de uma sociologia do discurso seria, pois, o de verificar a ligação
entre as relações de força (exteriores à situação do discurso) e as relações de sentido que se
manifestam nessa situação” (Ibid., p.87). Assim, segundo Pêcheux, o discurso é efeito de
sentidos entre os pontos A e B (Ibid., p.82), pois o sentido não está no locutor ou no
45
1997 é a data da 3ª ed. da versão brasileira que está sendo utilizada aqui para as citações da obra originalmente
intitulada Analyse Authomatique du Discours que data de 1969. A data da edição utilizada será explicitada ao
final das citações.
69
interlocutor, mas no intervalo constituído entre eles na situação do discurso que compreende
todo o jogo dos imaginários e da filiação ideológica dos sujeitos de discurso.
Ao diferenciar texto e discurso, Orlandi (1987) entende que o texto é a unidade de
análise, enquanto o discurso é o conceito teórico e metodológico de explicitação desta análise,
o que significa que é através do texto que se chega ao discurso, visto que este é a conjugação
da língua e da história por intermédio do efeito ideológico – que produz um efeito de
realidade; e o texto é a materialidade que retém as marcas lingüístico-discursivas através das
quais este processo pode ser observado. No entanto, se o sentido é constituído no espaço entre
os interlocutores junto com as condições de produção, entendemos que ele extrapola a
materialidade lingüística, que não poder ser dado a priori por ela, ou melhor, não se
constrói exclusivamente sobre ela. De acordo com Orlandi:
...o sentido tem uma materialidade própria, ou melhor, ele precisa de uma
matéria específica para significar. Ele não significa de qualquer maneira.
Entre as determinações as condições de produção de qualquer discurso
está a da própria materialidade simbólica: o signo verbal, o traço, a
sonoridade, a imagem etc. e a sua consistência significativa. (ORLANDI,
1995, p.39)
Essa reflexão indica que outras materialidades discursivas sobre as quais a
produção de sentidos também pode se dar: a imagem, o som, o ritmo, a oralidade, os gestos, e
etc. Vamos tentar estabelecer agora, e cada vez mais até o final desta escrita, uma relação
entre discurso e imagem a partir do processo de significação.
A APROXIMAÇÃO: DISCURSO E IMAGEM
Considerando que o sentido necessita de uma materialidade determinada para
significar, propomos que o texto verbal não seja aunidade de análise do discurso, mas sim
que ele seja uma das materialidades a partir das quais se tem acesso ao discurso, visto que a
imagem também deve ser relacionada à história, a outros discursos, à memória coletiva, para
que sobre ela se produzam sentidos. A imagem e o som também produzem uma impressão de
realidade causada pelo efeito ideológico, pelo jogo dos imaginários, ilusão que se relaciona
com a materialidade simbólica do discurso, e que irá influenciar no funcionamento do mesmo.
Courtine já em 1982 trabalhava sobre a imagem considerando-a uma materialidade
que aciona a memória discursiva, ao empreender uma análise sobre o desaparecimento de um
personagem histórico de uma fotografia oficial que figurava “em cartazes, nos manuais e nos
70
museus” (COURTINE, 1999
46
, p.15). Este ponto inicial nos a possibilidade de refletir
sobre o funcionamento discursivo de outro tipo de materialidade simbólica, o não-verbal,
porque as diferentes materialidades simbólicas se produzem todas “na ordem do discurso
(COURTINE, 1999, p.16).
Davallon (1999
47
) também trabalha com a imagem enquanto operador de memória
(p.27) e diz que esta “representa a realidade, certamente; mas ela pode também conservar a
força das relações sociais (e fará então impressão sobre o espectador)” (Ibid.). Assim, temos
uma concepção de imagem que nos permite considerá-la como uma das materialidades que
acesso ao plano discursivo, visto que se relaciona com o âmbito social.
Quanto ao espectador, o mesmo autor afirma: “aquele que observa uma imagem
desenvolve uma atividade de produção de significação; esta não lhe é transmitida ou
entregue toda pronta(DAVALLON, 1999, p.28). Com base no que precede, podemos dizer
que a partir da imagem o sujeito constrói sentidos, pois, tal como ocorre com o texto, uma
imagem não carrega em si o sentido, este lhe será dado a partir do olhar do espectador que irá
interpretar esta materialidade simbólica com base nos já-ditos que reconheJ/R8 12 Tf10a10.295585(h)-0.295539(e)3.74(l)-2.164.-0.295585(s)-1.2312(s)-1.2312(i)-2.16925(m)-2.46239(,)-0.1 Tf10aa
imagem
71
... a imagem teria assim capacidade para integrar os elementos que a
compõem em uma totalidade. É porque compreenderíamos o sentido global
antes de reconhecer a significação dos elementos; e atingiríamos primeiro o
efeito dessa integração; estaríamos sob o charme desse efeito formal,
estético; toda a imagem pareceria assim se apresentar como única origem
dela mesma assim como de sua significação (...). Esse apagamento da
passagem dos componentes à totalidade tem por conseqüência essencial
interditar que se reencontre a maneira como o efeito estético e significante é
produzido. (DAVALLON, 1999, p.30/31).
Seguindo o pensamento do autor, podemos pensar que a imagem é constituída por uma
série de elementos, ela também carrega em si um efeito de completude que, entretanto, não
pode ser considerado real, pois sua unidade é construída a partir do apagamento de uma série
de componentes que também trabalham na sua constituição material e significativa. Podemos
pensar que, se a constituição da imagem é heterogênea, ela não é a “única origem dela
mesma” (Ibid.) e, nem mesmo, é dotada de um sentido determinado, pois se a tomamos como
uma materialidade produzida na ordem do discurso - como diz Courtine -, efeitos de sentido
diversos podem ser formulados de acordo com as condições de produção nas quais se sua
interpretação.
No Brasil, Orlandi, em 1987, ressaltava a constituição heterogênea da instância
discursiva, pois:
A convivência com a música, a pintura, a fotografia, o cinema, com outras
formas de utilização do som e da imagem (...) poderiam nos apontar para
uma inserção no universo simbólico (...). Essas linguagens todas não são
alternativas. Elas se articulam. (ORLANDI, 1987, p.38).
Ou seja, a produção de sentido é um processo plural, constituído pela articulação das
diferentes materialidades simbólicas, e não, exclusivamente, de uma ou outra delas, a
materialidade não-verbal, além de significar na ordem do discurso, não significa de forma
isolada, mas em relação com todas as outras materialidades simbólicas. Assim, o sentido de
uma imagem não se constrói apenas a partir dos elementos que a compõem, mas também, de
outras formas de discurso que com ela dialogam.
Segundo Tânia Clemente de Souza,
É a visibilidade que permite a existência, a forma material da imagem e não
a sua co-relação com o verbal. A não co-relação com o verbal, porém, não
descarta o fato de que a imagem pode ser lida. Propriedades como a
representatividade, garantida pela referencialidade, sustentam, por um lado,
a possibilidade de leitura da imagem e, por outro, reafirmam o seu status de
linguagem. (SOUZA, 2001, p.70)
Aqui Souza nos sustentação para pensar sobre as interpretações produzidas com
base em nosso recorte fílmico, constituído por imagem e som, pois, devido a sua característica
72
de representatividade, de relação entre o objeto representado - no caso o trabalho - e sua
existência real, a materialidade imagética também provoca produção de sentidos no interior de
determinadas condições de produção. A autora explica ainda que:
Não porque, dadas essas propriedades, se diga que a imagem também
informa, comunica, e sim porque - em sua especificidade - ela se constitui
em texto, em discurso. E nesse ponto, sublinhamos que falar dos modos de
significação implica falar também do trabalho de interpretação da imagem,
procurando entender tanto como ela se constitui em discurso, quanto como
ela vem sendo utilizada para sustentar discursos produzidos com textos
verbais. (SOUZA, 2001, p.70)
Essa constituição da imagem em discurso demonstra que as condições de produção de
um discurso verbal ou não-verbal incluem a especificidade da materialidade observada,
pois a distinção entre elas também é um elemento constitutivo do trabalho de interpretação,
logo, ao observar os efeitos de sentido produzidos a partir da imagem podemos compreender
seu funcionamento enquanto materialidade discursiva.
Considerando que a imagem não é completa, fechada, percebemos que sua natureza
lacunar possibilita o estudo do equívoco, da falha, do impossível de ser expresso ou analisado;
pois no processo de interpretação de uma imagem nos baseamos naquilo que vemos, mas
também, inconscientemente, no que não está ali e significa por fazer parte de nossa “história
de espectadores”, ou seja, por pertencer ao conjunto de discursos já-ditos (verbais ou não-
verbais) que podem ser atualizados, através da memória discursiva, na formulação do dizer.
Cabe ressaltar a importância dos sujeitos envolvidos no processo de produção e
interpretação dos discursos, visto que, por serem interpelados pela ideologia e pelo
inconsciente, estes sujeitos fragmentados, assujeitados, inseridos em determinado lugar social,
também colaboram para a análise do processo discursivo construído pela/na imagem. Isto por
que, para se pensar o discurso, é necessário remeter a imagem à história e à ideologia, que
deve ser entendida como o processo de produzir sentidos “A” ou “B”, e não os sentidos em si,
haja vista que os sentidos não existem antes do atravessamento ideológico.
Os trabalhos de Courtine (1982), Davallon (1983), Orlandi (1988) e Souza (2001)
demonstram-nos que a discussão sobre as diversas materialidades simbólicas que se produzem
na ordem do discurso é frutífera. Com base nas reflexões desses autores, é válido dizer que,
em AD, o sentido, tal como a memória, não é um “frasco sem invólucro” (PÊCHEUX, 1983,
p.56), mas sim, o resultado de uma prática social que pode ser representada através de
distintas materialidades simbólicas. E, para trabalhar com qualquer materialidade enquanto
invólucro do discurso é necessário ter em mente que esse objeto é constitutivamente
73
heterogêneo, pois é produto da união entre uma materialidade qualquer (desde que possa ser
interpretada), o histórico, o ideológico e o desejo inconsciente.
3.8. O TEXTO VERBAL E O NÃO-VERBAL NA SEMIÓTICA E NA AD
Nesta seção, vamos estudar a concepção de texto vigente na Análise de Discurso, e,
também, o texto concebido pela Semiótica. Já que esta área do conhecimento tem tratado,
bastante tempo, da problemática das distintas materialidades que podem constituir um texto, e
por sua reflexão sobre o não-verbal ser anterior à da AD, acreditamos ser importante trazer
para essa discussão seu conceito de texto. Interessa-nos, particularmente, o momento em que
esta teoria postula que um texto pode ser manifestado tanto por materialidades lingüísticas
quanto não-lingüísticas; e ainda seu modo de estudo que se baseia no processo de produção
do sentido, e não apenas o seu produto. Assim, essa teoria ocupa-se antes da significação do
que do significante em si, e este é um ponto essencial para o nosso trabalho.
O TEXTO NA SEMIÓTICA
Buscamos, no Dicionário de Semiótica de Greimas e Courtés, o termo texto e
descobrimos que: uma forma semiótica pode ser manifestada por diferentes substâncias
(1979, p.460). E também que tanto o termo texto quanto o termo discursopodem ser
empregados indiferentemente para designar o eixo sintagmático das semióticas não-
lingüísticas: um ritual, um balé, podem ser considerados como textos ou discursos(Ibid.). A
partir disso, podemos dizer que a imagem é uma substância não-lingüística que pode ser
considerada como texto, fato que nos interessa devido à natureza de nosso recorte fílmico
constituído de imagens e sons acerca do tema trabalho.
Umberto Eco (1984) afirma, quanto à noção de texto, que:
...Se podia ser obscura a noção de signo, também pode ser obscura a noção
de texto. Creio que a noção de texto, do modo como foi elaborada nos
últimos anos, seja notavelmente importante e nos permita entender alguns
mecanismos da significação da comunicação de maneira muito mais ampla.
(ECO, 1984, p.4)
Importante salientar que ao se referir aos últimos anos o autor está indicando estar a
par “das pesquisas sobre a filosofia da linguagem” (Ibid.), em um momento em que algumas
74
teorias lingüísticas, como a enunciação, por exemplo, passam a considerar fatores antes tidos
como externos à estrutura da língua incluídos no processo de produção do sentido. Eco
considera que estes fatores tornam mais amplo o entendimento dos mecanismos da
significação, ou seja, na Semiótica, a constituição heterogênea do material simbólico é um
dos pontos fundamentais a serem considerados no trato com o sentido. O autor também fala
sobre a impossibilidade de construir uma semiótica do texto sem relacioná-la a uma
semiótica do signo(Ibid.), isto é, para pensar o texto deve-se lidar com níveis de significante
e significado, forma e substância. Na verdade, pensando dessa forma, parece cada vez mais
claro que a dupla face do signo pode ser considerada a partir de toda e qualquer materialidade
simbólica, já que sua constituição se dá com base nesta mesma duplicidade.
Eco define o texto da seguinte forma:
Um texto nada mais é que aquele mecanismo que prescreve quais
propriedades (...) devem ser narcotizadas e quais devem ser enfatizadas, de
modo a se poderem dar amálgamas e, assim, estabelecer níveis de sentido ou
isotopias no interior do texto. (ECO, 1984, p.96).
Podemos, então, inferir que aqui está sendo defendida a idéia de que o texto ao
leitor as coordenadas de sua significação. Importante salientar que com o uso do termo
“amálgamas” Eco está se referindo ao todo-texto
48
, ou seja, para a sua constituição, ao mesmo
tempo, verbal e não-verbal, ou seja, o autor nos apresenta as isotopias, unidades de forma e
significação com as quais a Semiótica trabalha. Sendo assim, a forma do texto influencia o
seu sentido, visto que:
A maneira pela qual o texto estabelece quais as propriedades que devem ser
abandonadas e quais as propriedades que, ao contrário, devem ser
consideradas, não faz parte da representação semântica dos termos, mas de
algumas estratégias pelas quais o texto prescreve o tema do próprio texto, ou
topic, e o conjunto de pressuposições pré-textuais e intertextuais que vão
entrar em jogo e postas em função, a fim de que esta operação de
narcotização e de enfatização seja possível e a coerência textual seja
estabelecida... (ECO, 1984, p.96).
Neste enunciado temos alguns elementos que permitem perceber o texto como o ponto
de partida para diversos processos de significação, os quais irão se basear não apenas nos
mecanismos internos do texto, pois as estratégias e o conjunto de pressuposições pré-textuais
e intertextuais, aos quais Eco alude, fazem parte de um universo que extrapola os limites do
texto para considerar as relações que este estabelece com outros textos e com outros saberes
que o antecedem.
48
Esta é uma denominação utilizada na Semiótica para referir-se ao texto de forma a não apagar os elementos
heterogêneos que o constituem.
75
De acordo, ainda, com Eco “é no texto que se verifica a atribuição de sentido, e antes
do texto os termos não têm sentido. Antes do texto, os termos possuem todos os seus
sentidos virtuais possíveis” (ECO, 1984, p.96). Aqui podemos perceber a importância que o
texto, nesta perspectiva teórica, em si carrega, ou seja, a possibilidade de direcionar o sentido,
de dar uma configuração particular a ele, apesar de os termos que constituem o texto
possuírem sentidos virtuais possíveis. Isso nos permite dizer que, na Semiótica, o processo de
construção do sentido de um texto conta com sentidos preexistentes, seja dos termos em si
seja da temática (ou topic) da qual o texto trata.
O TEXTO NA TEORIA DO DISCURSO
Destacados os aspectos julgados essenciais sobre a noção de texto na Semiótica,
retornamos, agora, à face discursiva dessa teorização. Orlandi (1996) estabelece a distinção
entre discurso e texto, dizendo que o primeiro é tido como um conceito teórico e
metodológico que deve ser mobilizado na análise dos textos, enquanto o texto é tido como um
conceito analítico. Na prática de análise, o texto é remetido ao discurso para daí produzir
sentido, ou seja, ao passar pelo olhar do analista, o texto é remetido a uma série de questões
que tentarão situá-lo quanto às suas condições de produção, as quais compreendem os sujeitos
e a situação, e também o aspecto histórico-social.
Orlandi (2002) considera as condições de produção de duas formas distintas: em
sentido estrito, no qual temos as circunstâncias da enunciação: é o contexto imediato
(p.30), contexto este considerado não como contexto lingüístico, mas sim como textual, isto é,
aquele em que consideramos o texto em sua totalidade (relações intertextuais e
interdiscursivas). E, em sentido amplo, as condições de produção incluem o contexto sócio-
histórico, ideológico” (Ibid.), ou seja, os elementos provenientes do exterior constitutivo.
Interessa perceber, numa análise discursiva, como o texto organiza a relação da
língua com a história no trabalho significante do sujeito em sua relação com o mundo
(ORLANDI, 2002, p.69). Assim, a relação entre o sujeito social e o mundo concede a ele uma
forma pronta de significar, proveniente das formações ideológicas compartilhadas pelos
grupos sociais, que estará presente no imaginário que o sujeito produz sobre determinado
objeto. No entanto, os sentidos de uma palavra, um enunciado, não são os mesmos quando
consideramos um grupo social ou outro, pois as distinções instituídas em nível social refletem
nos discursos produzidos por estes sujeitos - também constituídos pelo/no social - e esse
76
trabalho é considerado como historicidade do sentido em Análise de Discurso, pois se o
sujeito é capaz de significar, este processo não se fora das determinações históricas e
ideológicas que o interpelam.
A partir dessas relações temos, de acordo com Orlandi, que o texto é a unidade
complexa de significação, consideradas as condições de sua realização. É, então, uma unidade
de análise não formal, mas pragmática(ORLANDI, 1983, p.159), ou seja, o texto não é o
lugar de análise de relações puramente lingüísticas, pois é produzido a partir de determinadas
condições de produção. O texto é considerado, também, como a materialidade do discurso,
isto é, o lugar de observação das relações entre língua, sujeito, interdiscurso, e ideologia.
O TEXTO NA AD E NA SEMIÓTICA: RETOMADA
Após essas considerações sobre a perspectiva de texto na teoria do discurso é
necessário fazer a retomada de alguns aspectos da Semiótica para percebermos melhor a
especificidade de cada uma dessas disciplinas no trabalho com a noção de texto. O primeiro
deles, que acreditamos ser produtivo ressaltar aqui, é que, na Semiótica, tanto a materialidade
verbal quanto a não-verbal são consideradas textos. No entanto, a aproximação dessas
materialidades não significa o abandono da estrutura textual enquanto centro da busca de
relações não-textuais, pois, segundo Eco, “o texto prescreve o tema do próprio texto, ou topic,
e o conjunto de pressuposições pré-textuais e intertextuais que vão entrar em jogo e postas em
função” (ECO, 1984, p.96).
Assim, podemos inferir que na Semiótica a ideologia é considerada um mecanismo
consciente, utilizado pelo autor de acordo com a leitura que ele deseja que seu texto suscite.
E, apesar de se referir à importância de fatores externos ao texto para a construção de seu
sentido, Eco aborda esses fatores a partir de uma perspectiva de onisciência e intencionalidade
do autor, desconsiderando a interpelação ideológica da qual também o autor é alvo, e
desconsiderando, ainda, que o confronto existente entre o leitor virtual e o leitor real,
tomando aqui os termos de Orlandi, é que vai constituir simultanea0.273(m)-2.”n2.16436(a)3.74(n)-0.29(,)-0.146571-0.146571( )-0.146571(s)-1.2312(u)-0.295585(j)-2.16436(e)3.74(i)-2.16436(t585(a)3.74(i)-2.16436(s)-1.2312( )-1.1879(d)-0.295585(e74244(c)3.74244(12(e)3.74(n)-0.295585(t))3.74244(l)-2.16436(v)79(d)-0.29”-40.1784.0142 0 Td2312(t)-346( )250]TJ974(”)3.(E)0.640436(()2.80439(O)1.57564(R)-13.0[(.)-0.13.749(A)1.51494(N)1.5718)-0.295585(4)-0.295585(,)-0.147792( )-0.147792(1)-0.295585(9)-0.295585(9)-0.295585(4)-0.295585(,)-0.147792( )-0.147792(p)-0.147792( )04(c)3.74(o)-10.3015(6)-0d)-0.295585074244(.)-0.146.76 Td28( )T2(()2.80561(571( )-120.217(c)3.74(o)-0.295585(m)-22.2938)3.74(r)-7.201(à)-6.2659( )-130.223((r)2.80561(m)-2.45995(o)-0..2938)320.64 Td[(m)-2.46.2938 aqu-0.295585(o)-0.2(r)2885(t)-2.16436(r)2(.29386436(e)3.74(n)-0.293525(t)-2.16436(e)3.74(x)-10.3015(t)-2.16142(o)-0.2.293864937 0 Td[( )-270.306(n.29386436(e)3.74(n)-0.293306(t)-2.16436(e)3.74(o)-0.295585(r)2.80439(.293864-0.295585(n)-0.295585(d)-0(.293864-0.295585(n)306(e)3.74(x)-10.5585((i)-2.16436(s)-1.2312(c)3.74(u).1477( )250]TJ/R23x)-10.3015(t)-2.16142(o)-0.2.293864)-0.146571( )2.293864015(a)3.74( )-140.229(u)-02.293864( )-270.306(s)-1.2312(o)s)-1.2312(u)-0.295-0.295585(n)-0.295585(t)-2..293864-0.295585(n)e-0.146571( )2.293864ar)2.804394(c)3.74244(á)-0.293142(n)-10.299(a)3.74244(79(d)-0.295585(e7424)-2..293864-0..16925(a)3.74244(d)-0.293142(( )250]244( )250]TJ-260.674 -20.Td[(r)2.805(e)3.74024(l)-2.16558(a)3.74(ç)3.74(õ)-10.30090.295585-0.295585( )-0.147792(i)-2.16558(n)-0.295585(t)-2.1-0.295585(n)306(e)355(o)-0.295585((i)-2.16436(s)-1.2312(c)3-2.1-0.294974(n)-0.294974(585(e)3.74( )-10.15)-0.295585(i)-d)-0.295585.295585(m)4(ç)3.74(õ)-10.30090.29558553(e)3.74(n)-0.295585(q)-0.2955306(e)355(o)-0.293.74(i).295585(71(e)3.74( )-0.146571(ic-0.295585(u)-10.3)-10.1525(q)-0.295538(c)3.74(o)-0.295585(o-2.16436(12(e)3.74(u)-0.295585(23(p)-0.295585(a)( )-180.254(a)10.3015(464]TJ/R23 12 Tf36(n585(a)3.74(l)-2.16436(h)-0.(l)-2.16436(e)3.74( )-70.18)-270.306(o)-0.2955854.34 )-20.1584-0.295585(-0.295538.295585(ó436(s)-1.2312)2.80439( )-10.1525436(i)-2.16436(c)3.42.623178]TJ/R8 1(l)-2.16 )-80.1938(d)-10.3015(e)3.742.96760.146571(p)]TJ)-0.293.7453(e)3.74(n)-0.2955858( )-1.22997(p)-0.2949741525(s.295585(-0.2955r)2.80439(o)-0.295585(n)-6(i)-2.16436(c)3.(o)998578]TJ/R8 1(l)-2.16(o)-10.299( )-130.223(d)-.16925(o)-0.29314274(n)-0.29bo)-10.299( )-130.223()-2.16436(o)-0.2.2312(s)-1.2312(a)3.74244399.5856571( )250]TJ)-0.147792( )-30.1655 -20.64 Td[()-025031537(e)3.74(s)0.146571( ))-025031-0.295585( )-0.147792(i-0.295585(b)-0.295585(s)-1.2-0.295538(c)3.74(oi)-d)-0.295585)-025031o3(e)3.74(n)-0.295585(q)585)-025031997(e)3.74( )-100.207(n)-0.2955i)-d)-0.29558561692997(i)-12..74(n)-10.3015(d)-0. e í-0.294974(585(e)3.74( 4 -20.Td[(r)2.805-0.)-0254(i)-2.16558(n)-00.146571( ))-025615585(á)3.74( )6(s)-1.2312(c)3.74((s)-1.2312(i)-2.16436(m)-2.45995(u585(e)3.74(l)-2.16436(a)-6.2659(ç)3.74()-025615 )-290.318(x)-10.3015(t)-2)-025615 e
77
da complexidade das relações que devem ser consideradas pelo analista no momento de sua
leitura sobre o objeto que estuda, seja ele um texto verbal ou não-verbal.
E, sendo o sujeito social “obrigado” a interpretar aquelas materialidades que o cercam,
nos dispomos a realizar um trabalho de análise sobre o processo de produção de sentidos a
partir da materialidade fílmica, que podemos denominar, mais especificamente, de discurso
cinematográfico.
O TEXTO E O DISCURSO CINEMATOGRÁFICO
Na teoria do discurso, o texto não é visto como uma unidade completa, pois sua
natureza é intervalar. Orlandi nos ensina que mesmo o sentido é intervalar. Não está em um
interlocutor, não está no outro: está no espaço discursivo (intervalo) criado (constituído)
pelos/nos dois interlocutores.(ORLANDI, 1987, p.160). Sendo assim, por ser construído
pelos interlocutores, o sentido também não é dado pelo texto em si, nem mesmo as palavras
significam isoladamente, mas sim de acordo com sua inserção em determinada formação
discursiva.
Considerando essa constituição heterogênea do texto, Orlandi diz que:
Todo texto é heterogêneo: quanto à natureza dos diferentes materiais
simbólicos (imagem, som, grafia etc); quanto à natureza das linguagens
(oral, escrita, científica, literária, narrativa, descrição etc); quanto às
posições do sujeito. Além disso, podemos considerar essas diferenças em
função das formações discursivas: em um texto não encontramos apenas
uma formação discursiva, pois ele pode ser atravessado por várias formações
discursivas que nele se organizam em função de uma dominante.
(ORLANDI, 2002, p.70).
Neste ponto podemos estabelecer relações com nosso objeto de análise devido à
consideração dessas modalidades distintas de heterogeneidade. Primeiramente, temos que a
materialidade simbólica de nosso texto é imagética, o que nos faz considerá-la de forma
particular. Tânia Clemente de Souza diz, com relação à imagem, que: em sua especificidade
ela se constitui em texto, em discurso(SOUZA, 2001, p.70), então, falar dos modos de
significação implica falar também do trabalho de interpretação da imagem, procurando
entender (...) como ela se constitui em discurso...(Ibid.). Portanto, assim como devemos
remeter o texto verbal às suas condições de produção para produzirmos sentido sobre ele, com
o texto não-verbal ocorre o mesmo processo: é na interpretação que vamos perceber a
inserção de uma imagem em determinada rede discursiva de saberes, em uma formação
discursiva.
78
Indursky (2001), partindo da noção pechêutiana de texto enquanto efeito, diz que um
texto é produzido através de um trabalho de textualização realizado pelo sujeito-autor e que
resulta num efeito de homogeneidade, ou seja, de unidade de sentido. Nesse trabalho de
textualização também se realiza o apagamento das marcas do discurso outro e de sua
proveniência da exterioridade, assim como de sua inserção na organização da estrutura
textual. Portanto, é sobre este efeito-texto, isto é, sobre essa ilusão de homogeneidade e
transparência que o leitor irá construir sua interpretação, re-significando o texto de referência
para fazer surgir um novo efeito-texto, este construído a partir de relações intertextuais e
interdiscursivas diversas daquelas mobilizadas pelo autor do texto de referência.
Assim, quando um sujeito-autor produz um texto não-verbal, objetivando a construção
de determinado efeito de sentido, ele iproduzir o apagamento dos discursos outros que
também constituem seu texto. Quando estamos diante de uma imagem a percebemos como
um todo, e mesmo que este seja constituído de diferentes cores e formas que nos são
visualmente acessíveis, sempre haverá uma série de determinações que não somos capazes de
perceber, pois fazem parte das condições de produção do texto, acessíveis apenas ao sujeito-
autor.
Outro ponto a partir do qual a imagem pode ser pensada é a relação entre
intertextualidade e interdiscurso noções aproximadas e distinguidas por Indursky (2001) -,
visto que essas são duas formas de relação com a exterioridade que constituem o texto
tornando-o um espaço discursivo heterogêneo. Retomando Souza (2001), podemos dizer que
o sujeito espectador, ao produzir sua interpretação acerca de uma imagem de referência, acaba
produzindo outras imagens e, para isso, ele conta com pré-construídos, discursos transversos
e com a memória discursiva, assim como com as condições de produção nas quais sua
interpretação é realizada.
Percebendo a imagem também como espaço heterogêneo em que a exterioridade se
insere, podemos mobilizar as noções de intertextualidade e interdiscurso para o trabalho com
o discurso cinematográfico. Assim, a intertextualidade da imagem se configura pela
possibilidade de releitura de uma imagem por outra, de forma que este processo possa ser
identificado como uma retomada; a interdiscursividade da imagem relaciona-se à memória
discursiva que nos a possibilidade de reconhecer discursos provenientes do interdiscurso
na representação simbólica produzida pela imagem. De acordo com Indursky: é possível
pensar o texto como um espaço simbólico, não fechado em si mesmo, pois ele estabelece
relações com o contexto, com outros textos e com outros discursos(2001, p.29), ou seja, o
sentido de uma materialidade simbólica decorre da relação da mesma com uma série de
79
textos, contextos e discursos que pré-existem a ela, e também trabalham na sua constituição
enquanto espaço discursivo heterogêneo. Considerando a imagem teremos, também, a
produção dos sentidos sendo constituída por outras imagens conhecidas pelo sujeito
interpretante; outros contextos históricos, geográficos e ideológicos aos quais determinada
imagem pode ser referida; assim como por outros discursos de materialidades simbólicas
verbais e não-verbais. Todos os discursos -ditos, lidos, vistos, ouvidos, imaginados,
desejados pelo sujeito que interpreta servirão de condições de produção para a leitura de uma
imagem.
As relações contextuais remetem o texto para o contexto socioeconômico, político,
cultural e histórico em que é produzido, determinando as condições de sua produção(Ibid.).
No caso de nosso objeto, podemos perceber as relações contextuais a partir do momento
histórico em que as cenas foram produzidas, a década de 80, quando o desenvolvimento
tecnológico industrial começava a ter conseqüências desastrosas para a massa de operários
que vinham sendo substituídos pelas máquinas; para o meio-ambiente devido à emissão de
gases danosos e poluição de mananciais hídricos; e, também, quanto às determinações
políticas, socioeconômicas e culturais envolvidas no processo de sua constituição, como, por
exemplo, o fato do autor dos documentários estar inserido em uma sociedade capitalista
regida por valores ditados pelo mercado, sendo que esta sociedade (EUA) é a principal
mantenedora e ditadora das regras deste mesmo mercado.
As relações textuais relacionam um texto com outros textos(INDURSKY, 2001,
p.29.), é a intertextualidade que aponta não apenas para o efeito de origem, quando
trabalha com a noção de discurso fundador, mas aponta igualmente para outros textos que se
inscrevem na mesma matriz de sentido(Ibid.). Essas relações podem ser apreendidas no
recorte fílmico através daqueles discursos que podem ser remetidos a outros que os antecedem
em trabalhos distintos daquele, como, por exemplo, o clássico: Tempos Modernos
49
concebido
e protagonizado por Charles Chaplin que retrata as atividades repetitivas do trabalhador
industrial.
as relações interdiscursivas que aproximam o texto de outros discursos,
remetendo-o a redes de formulações tais que não é possível distinguir o que foi produzido
no texto e o que é proveniente do interdiscurso(Ibid.) podem ser remetidas à temática do
recorte fílmico, ou seja, o trabalho humano que será significado de acordo com a tomada de
posição dos sujeitos do discurso no interior da formação discursiva capitalista.
49
No dia 05 de fevereiro de 1936, no Rivoli Theatre, de Nova Iorque, Tempos Modernos teve sua estréia.
80
Parece-nos que, neste momento, a aproximação entre as materialidades verbal e não-
verbal encontra-se bastante clara, ambas têm constituição heterogênea; apresentam relações
intertextuais e interdiscursivas; seu sentido é afetado pelas condições de sua produção, e de
sua interpretação; e, apesar de se constituírem de materialidades distintas, ambas significam
na ordem do discurso. Vamos agora abordar o processo de interpretação dessas
materialidades.
3.9. LEITURA E INTERPRETAÇÃO NA TEORIA DO DISCURSO
A AD trabalha com o pressuposto de que o sentido não se origina no sujeito, sodf slid4( 39)-777-2.16558(a)3.16558(d4( 39)-777-m571(D)1.57e(c)3.74(lm027(I)12.ó295585(i)-2.1655885(a)3.74(s)-1.a4(u)-0.295585(r)-19)-6535( )-70.1,70.18152.74( 39)-777-100.207(s)-1.22997(e)3.74( )-100.206(c)3.74(o)-0.295585(n)-0.295585(s)-1.2312(t)-2.16436(i)-2.1642.16558(a)3.74(l)-28. 39)-777-3.74(s)-1.2312(s)-1.23120.2955(r)-7.239 abs dseniialid74(i)-2.16436(t39)-777-3.74(s)(e)3.he i d
81
que ele sempre pode ser outro. Até mesmo porque sujeito e sentido não são naturais, mas
historicamente determinados, o que afasta as possibilidades de existência de verdade única; de
relação direta entre referente e sentido; de sujeito intencional. Pêcheux também afirma que os
enunciados são “como uma série de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar a
interpretação” (Ibid.), assim, é o processo de interpretação que possibilita a emersão de efeitos
de sentido distintos. Nesta perspectiva, Orlandi diz que não sentido sem interpretação
(ORLANDI, 1996, p.21), aspecto decorrente da noção de opacidade da língua que nega o
princípio da literalidade.
No trabalho com o discurso, devem ser consideradas relações entre a produção de
sentido e suas determinações sociais. Pêcheux (1994
51
) trabalha com a noção de divisão social
do trabalho de leitura do arquivo noção que Orlandi estende à interpretação - na qual se
estabelece uma diferenciação entre aqueles que podem produzir interpretações, ou seja,
cientistas e autoridades renomadas; e aqueles que devem, somente, reproduzir as
interpretações previamente realizadas. Desta forma, temos a evidência de que mecanismos
de controle do sentido, os quais têm sua existência no corpo social. Althusser citou a família,
a Igreja, a escola, entre outros aparelhos ideológicos, como responsáveis por este controle em
seu trabalho intitulado Aparelhos Ideológicos de Estado.
Haroche afirma, quanto a este controle, que:
O Estado funda sua legitimidade e sua autoridade sobre o cidadão, levando-o
a interiorizar a idéia de coerção ao mesmo tempo em que faz com que ele
tome consciência de sua autonomia. (...) A subordinação fica menos visível
porque se sustenta na idéia de um sujeito livre e não determinado quanto a
suas escolhas. (HAROCHE, 1992 apud ORLANDI, 1996, p.90).
Dessa forma, a ilusão de autonomia trabalha para sustentar o processo de interpelação
ideológica que se de forma inconsciente, ou seja, é inacessível àquele que o sofre. Mas, se
aparelhos ideológicos para submeter os sujeitos, certamente o trabalho de interpretação
também passa pela determinação destes. Como isso acontece? Orlandi nos responde da
seguinte forma:
... na transparência da linguagem, é a ideologia que fornece as evidências
que apagam o caráter material do sentido, sua historicidade, evitando o corpo
das palavras e do sujeito (cf. E. Orlandi, 1987) regrando a relação com a
interpretação, ao mesmo tempo em que faz o sujeito responsável, fonte de
seus sentidos. (ORLANDI, 1996, p.92)
Orlandi (1996) afirma, também, que a injunção à interpretação tem sua forma e suas
condições, e a forma dessa injunção é que faz com que a relação entre a interpretação e o
51
A publicação original do Lire L’arquive aujourd’hui data de 1980.
82
sujeito não seja a mesma hoje como foi, por exemplo, na Idade Média quando a determinação
se exercia de fora para dentro, pois se inscrevia na ordem religiosa. Já na interpelação,
modalidade atual de injunção, não separação entre interioridade e exterioridade embora,
para o sujeito, essa separação continue a ser uma evidência sobre a qual ele constrói sua dupla
ilusão: a de ser a origem de seu dizer e a da literalidade, ou seja, relação direta, termo-a-
termo, entre pensamento e mundo.
Sendo assim, é pelo esquecimento daquilo que o constitui que o sujeito acredita ser
livre para interpretar. No entanto, sendo dotado de inconsciente e ideologicamente
interpelado, ele reproduz as determinações externas na constituição de seu dizer, e interpreta a
partir de pré-construídos e discursos transversos que indicam sua filiação ideológica. O gesto
de interpretação vem também carregado de efeitos de memória que são sempre negados, como
se o sentido surgisse ali mesmo. De acordo, ainda, com Orlandi (1996), a interpretação parece
ser transparente, mas não o é; ela está presente em toda e qualquer manifestação da
linguagem, que não sentido sem interpretação. Os sentidos não são evidentes, embora
pareçam ser eles jogam com o equívoco, a incompletude e com o desejo do sujeito.
Orlandi diz ainda que a constituição do sentido de um texto se a partir da
“representação do leitor no processo de leitura” (1987, p.185), pois no momento da leitura o
leitor está estabelecendo com o texto um processo de interação do qual a ideologia é um
elemento constitutivo. Nesse processo de interação:
A tensão, o confronto existente é aquele que podemos observar quando
perguntamos pelo interlocutor do texto. Há um interlocutor que é constituído
no próprio ato da escrita. Assim, na medida em que o interlocutor (o leitor
real) encontra um outro, um leitor constituído (o leitor virtual) no texto,
começa o debate. (ORLANDI, 1987, p.185).
Aqui Orlandi traz as concepções de leitor virtual e leitor real para diferenciar essas
duas posições, a primeira é produzida no momento de formulação do texto e remete à noção
de formações imaginárias, tal como é postulada na teoria do discurso. Assim, o leitor virtual
é “aquele que o autor imagina (destina) para seu texto” (ORLANDI, 1987, p.186). Já o leitor
real remete àquele que realiza sua interpretação sobre o texto que lê, construindo-a através de
uma interação que inclui, além do texto, o seu autor e o leitor virtual concebido no momento
da escrita.
Vale dizer que o leitor real tanto “pode ser um ‘cúmplice’ quanto um (...)
‘adversário’” (Ibid.) do autor. A partir disso, percebemos que os leitores virtual e real podem
não coincidir, pois a percepção do autor quanto ao seu leitor virtual está limitada às condições
de produção de seu texto, o que o impede de conceber um leitor exato; deixando espaço para
83
esse debate ao qual Orlandi se refere, e que irá, na verdade, produzir um efeito de sentido
atrelado às condições de produção da leitura, responsáveis pelo maior ou menor
distanciamento entre o leitor virtual e o leitor real, pois, de acordo com elas, a leitura pode
variar um pouco, ou muito, com relação àquela imaginada pelo autor no momento da
construção de seu texto.
Leandro Ferreira ressalta que:
A leitura é um processo de desvelamento e de construção de sentidos por um
sujeito determinado, circunscrito a determinadas condições sócio-históricas.
Portanto, por sua própria natureza e especificidade constitutiva, a leitura
tende a ser múltipla, a ser plural, a ser ambígua. Mas não será nunca
“qualquer uma”. (LEANDRO-FERREIRA, 2003, p.208)
Aqui a autora nos leva a refletir sobre a leitura como possibilidade de produção de
sentidos, no entanto esta leitura não será qualquer uma, mas sim aquela permitida pela FD
com a qual o sujeito identifica-se. Partindo das relações que um texto mantém com o seu
exterior constitutivo, podemos dizer que são elas que irão determinar o curso das
interpretações produzidas pelo sujeito leitor. Assim, na Teoria do Discurso, temos um leitor
que também produz um texto a partir daquele que lhe foi dado a interpretar.
Orlandi, em 1987, postula as noções de história de leituras do texto e histórias de
leituras do leitor, que devem ser consideradas a partir de dois fatores comuns: a
sedimentação de sentidos(ORLANDI, 1987, p.42) que se relaciona diretamente à noção de
memória como o retorno de saberes -ditos; e “a intertextualidade(Ibid.), ou seja, relação
de um texto com outros textos. Quanto à história de leituras do texto a autora diz que: Para
um mesmo texto, leituras possíveis em certas épocas não o foram em outras, e leituras que
não são possíveis hoje serão no futuro(Ibid., p.41), isto porque as leituras são determinadas
pelas condições de sua produção e pela intertextualidade. Com relação à história de leituras do
leitor, Orlandi afirma: O conjunto de leituras feitas configuram, em parte, a
compreensibilidade [capacidade de leitura] de cada leitor específico (ORLANDI, 1987,
p.43), pois essas leituras prévias podem aumentar ou restringir a interpretação de um texto,
fazendo emergir o efeito de memória na constituição dos sentidos.
Nesta perspectiva, não as histórias de leitura do leitor vão constituir sua
interpretação, mas também as condições de produção desta. Indursky (2001) salienta a
diferença das histórias de leitura de cada leitor, fator que também igerar processos distintos
de produção de sentido, já que:
O reconhecimento da interdiscursividade vai depender das histórias de
leitura do sujeito leitor, assim como das condições de produção da leitura. E,
84
em decorrência do fato de que cada leitor tem uma história de leitura
distinta, cada um pode mobilizar uma interdiscursividade distinta daquela do
sujeito autor, através de relações também distintas. Produzindo novas
interpretações, novos efeitos de memória, e é esse trabalho discursivo de
atribuição de sentidos, instaurado pela produção de leitura que constitui o
sujeito-leitor. (INDURSKY, 2001, p.36)
Importante salientar que o processo de re-significação de um texto abrange uma gama
muito extensa de variações dos sentidos, visto que enquanto um sujeito re-significa um texto
de referência apenas lhe atribuindo outras relações de sentido que não aquelas mobilizadas
pelo autor do mesmo; um outro sujeito poderia re-significá-lo de forma tão destoante que
poderia ocasionar um deslizamento de sentidos para além da temática tratada no texto. Assim,
poderia ocorrer, até mesmo, um deslocamento de sentidos que transformaria o texto de
referência em uma nova referência que não mantém um elo semântico necessário com o
texto origem. Uma terceira forma de re-significação é a que atribui ao texto de referência
sentidos absolutamente antagônicos, assim, um leitor A pode re-significar o texto para X
enquanto um leitor B poderia realizar este processo chegando à Y. Logo, a partir de um
mesmo texto de referência as condições de produção da leitura dos sujeitos é que irão
conduzir essa construção de efeitos-texto distintos. A este movimento dos sentidos é que
Indursky vai chamar prática discursiva de leitura (INDURSKY, 2001, p.40), a qual
consiste (...) em um trabalho intenso de desestruturação/estruturação do efeito-texto, ou, (...)
de um tecer, destecer e retecer o texto, entrelaçando-o ao interdiscurso(Ibid.). Trabalho a
partir do qual o sentido dominante pode ser mobilizado.
Segundo Grantham (2001, p.70), os leitores estabelecem relações distintas com o texto
que interpretam e, na elaboração de seu próprio texto, podem assumir posições-sujeito
distintas daquela sustentada pela forma-sujeito da FD. Ela afirma que os sujeitos podem
inscrever-se na mesma FD e assumir a mesma posição da forma-sujeito da FD; inscrever-se
na mesma FD e assumir um posicionamento distinto da forma-sujeito desta FD; ou inscrever-
se em uma FD distinta da FD considerada. Essa distinção entre os tipos de leitores será
bastante produtiva para nossa pesquisa no momento de análise.
Considerando que a teoria do discurso ocupa-se em estudar os processos de produção
de sentidos que mantêm relação com um sujeito dotado de inconsciente e ideologicamente
interpelado, e com a história; podemos dizer que não um primado da ngua sobre outras
materialidades simbólicas, que todo o processo de interpretação inclui esses elementos
provenientes da exterioridade constitutiva. Vejamos, então, como este processo se dá na
interpretação do discurso cinematográfico.
85
LEITURA, INTERPRETAÇÃO E DISCURSO IMAGÉTICO
Tendo em vista a distinta materialidade discursiva que nos serve de corpus empírico,
buscamos perceber este material como sendo passível de leitura. Isso porque, na Teoria do
Discurso, a leitura é produzida(ORLANDI, 1983, p.180) a partir de suas
86
Orlandi (1996) diz ainda que o sentido está (sempre) em curso, seja pelo
deslizamento que ele pode sofrer, seja pela ambigüidade causada por um termo, um
enunciado, uma imagem. Como os sentidos não são indiferentes à matéria significante, a
relação do homem com os sentidos pode se dar a partir de materialidades variadas: pintura,
imagem, música, escultura, escrita, etc. A matéria significante e/ou sua percepção afeta o
gesto de interpretação, dá-lhe uma forma, e é em busca da forma do gesto de interpretação do
discurso cinematográfico que nossa pesquisa avança.
Para trabalhar com a materialidade imagética temos que considerar as
especificidades que a constituem. Segundo Monique Sicard (2000) a interpretação da imagem
não é unívoca e isso nos leva a percebê-la de diferentes formas:
A imagem, na origem, é o reflexo da realidade sobre uma superfície
refletora. Ela é também, ao mesmo tempo, o que parece (mimesis), o que se
vê (phanein), o conhecimento que dá acesso à realidade (eidos), mas também
o que forma a visão, a ilusão (phantasma) que leva a crer na existência de
uma realidade. (SICARD, 2000, p.26)
Percebemos, com base nessa citação, que em nenhum momento é possível relacionar
de forma unívoca a realidade e sua representação imagética, pois a imagem dá acesso ao real,
cria a ilusão de realidade, por isso, nunca podemos confundir imagem com realidade.
Segundo Sicard O que é imagem para um pode não ser imagem para outro. Assim, a
estética da recepção define a imagem” (SICARD, 2000, p.27), ou seja, a interpretação
produzida sobre a materialidade não-verbal também conta com as condições de produção,
assim como depende do sujeito que a formula. Neste trabalho, buscamos perceber como se dá
o processo de interpretação do discurso cinematográfico, para isso, haveremos de considerar a
pluralidade do funcionamento dessa estética da recepção, sem deixar de lembrar que É
utópico pensar (...) imagens como se elas fossem sem subjetividade (Ibid., p.28), seja por
parte de quem as elabora, seja por parte de quem as interpreta.
No caso específico de nossa pesquisa, é a representação do trabalho humano que está
sendo elaborada em forma de imagens, o que é, em si, uma determinação da analista que
produziu o recorte fílmico, ou seja, o próprio material simbólico carrega, em si, uma marca de
subjetividade. Apesar de que esta determinação das imagens que compõem o nosso recorte
fílmicofaz parte de um processo maior de relações ideológicas, pois, voltando à reflexão de
Sicard: “Todas as imagens de ciência, quaisquer que sejam, são (...) fortemente marcadas
por escolhas culturais, históricas, individuais” (SICARD, 2000, p.28). O que interessa,
sobretudo, no dizer de Sicard é a constituição das imagens por elementos constitutivos do
texto e, conseqüentemente, do discurso. Podemos dizer que essas escolhas às quais a autora
87
alude também trazem conseqüências para o momento de recepção da imagem por parte do
espectador, e se apresentam como mais uma justificativa para a aproximação que estamos
propondo entre a materialidade verbal e a não-verbal.
De acordo com Souza: No cinema a imagem, em geral, é explorada em toda sua
densidade como forma de linguagem e significa sem vir ancorada no verbal. É usada como
imagem que é, como forma de linguagem e não como cenário” (SOUZA, 2001, p.70).
Concordamos com esta afirmação, principalmente, pela ausência de elementos verbais em
nosso recorte fílmico, o que torna sua recepção quase que exclusivamente visual, que as
imagens recortadas são acompanhadas apenas de uma trilha sonora, composta de música
instrumental, e criada exclusivamente para os documentários pelo músico Phillip Glass.
Quanto à interpretação da materialidade imagética, Souza diz que o sujeito tem mais
liberdade para interpretar e produzir outras imagens, outros pontos de vista, instalando-se
no intervalo entre o representado e a representação(SOUZA, 2001, p.72). A autora faz esta
afirmação devido à variedade de saberes que podem ser atualizados pelo observador no
momento em que ele interpreta a imagem. Assim, seria possível que o sujeito produzisse
sentido de forma mais livre, que ele percebe a imagem(r)2.80439(v)-0.2 opnorepmaã0.295585(142(o)-0.2935( )-160.241(q)-0.2935( )-160.244(d)-0.293ã7(r)2.8043142(o)-0.293142(r)2.885(e)-6-240.288(n)-3 -20.76 Td[(C)-3.0.293142(o)-10.299( )2574(r)2.80561J-251.9e.16558(n.254(q)-0.295585e)3.74(r)2.80561(i)-2.16558(a)-6.)3.74(n)-0.295.74(r)2.80561(i)-2.1a, t n 468.74(r)2.80561.
88
à linguagem verbal e não-verbal (SOUZA, 2001, p.73). Aqui podemos estabelecer uma
aproximação com o trabalho de Indursky a respeito da leitura e da reescrita que se
desenvolvem sobre o texto a partir da interpretação, pois o material simbólico não carrega em
sua estrutura o sentido; o efeito de sentido só pode ser constituído a partir da interlocução com
o leitor, espectador, ouvinte e suas condições de produção.
Portanto, é por meio da incompletude, no intervalo, que se produz o gesto de leitura da
materialidade imagética, a partir disso podemos dizer que, assim como o texto verbal, a
produção de sentido sobre o texto não-verbal depende da inserção do sujeito nas lacunas entre
o representado e a representação. Nesta perspectiva, não é possível limitar os sentidos de um
material simbólico, assim como as relações estabelecidas entre ele e os discursos pré-
construídos e/ou transversos atualizados pelos espectadores.
Souza diz, ainda, que a incompletude da imagem aponta para sua recursividade, pois
Quando se recorta pelo olhar um dos elementos constitutivos de uma imagem produz-se
outra imagem, outro texto, sucessivamente e de forma plenamente infinita(Ibid.). Portanto,
assim como acontece com a leitura de um texto, a leitura de uma imagem engloba tanto os
fatores visíveis de sua constituição, tais como: cor, forma, som, movimento, quanto os
elementos que não aparecem explicitamente nela, mas também a constituem, tais como o
interdiscurso e a memória discursiva. Podemos pensar, inclusive, em uma história de leituras
da imagem, assim como ocorre com o texto, pois, certamente, na composição da nova
imagem através da interpretação, o espectador conta com já-vistos, com a memória que, além
de heterogênea, é representada por materialidades simbólicas distintas.
Segundo Souza, uma imagem não produz o visível; torna-se visível através do
trabalho de interpretação e ao efeito de sentido que se institui entre a imagem e o olhar
(SOUZA, 2001, p.72). Aqui a autora retoma o fato de que o sentido do texto, das palavras ou
proposições pode ser produzido se houver um interlocutor, ou seja, de que o texto sozinho
não tem um sentido determinado. Logo, entre o olhar e a imagem se interpõem a história de
leituras da imagem e a história de leituras do leitor, fazendo com que a interpretação seja o
resultado deste intrincado processo de retorno de dizeres através do efeito de memória; e,
conseqüente, atualização destes na formulação das interpretações.
Souza diz, ainda, que diferentemente da leitura da palavra, que tem uma direção fixa
(da esquerda para a direita), a leitura “da imagem é multidirecionada, dependendo do olhar de
cada ‘leitor’ (SOUZA, 2001, p.73), isto é, esta leitura conta com o ponto de vista do
espectador que pode se interessar por um ou outro elemento de uma imagem, que pode fazer
sobre dela uma interpretação global ou pontual, que pode percebê-la como espelho da
89
realidade ou pura ficção, dependendo de sua relação com “a cultura, o social, o histórico, com
a formação social dos sujeitos.” (Ibid.), do lugar social ocupado pelo sujeito que interpreta.
Considerando que os efeitos de sentido são sempre vários e que sua determinação se
faz através da história de leituras do texto e do leitor, podemos observar que, com a imagem,
este processo também ocorre, pois o elemento imagético a partir do qual determinado
espectador constrói sua interpretação não será o mesmo elemento que servirá de base para um
outro espectador, e as relações que espectadores distintos poderão fazer a partir de uma
imagem também não são restritas. Isso demonstra que a imagem tem sua história de leituras,
determinadas tanto pelas suas condições de produção quanto pela interdiscursividade que
mantém com outras materialidades simbólicas. Faz-se importante reforçar a afirmação da
autora sobre o fato da imagem não produzir o visível, mas tornar-se visível, pois antes do
olhar a imagem é apenas um material sem sentido em si, assim como o texto e as palavras
tomados em sua literalidade o são.
Com relação às noções de leitor real e leitor virtual, postuladas por Orlandi,
acreditamos que elas também funcionam no processo de produção e interpretação da
materialidade imagética, pois sempre haverá a construção de um espectador virtual por parte
do autor de um filme ou documentário, assim como esta construção poderá, ou não, coincidir
com o espectador real desses materiais simbólicos. Também percebemos, juntamente com
Orlandi, a tensão, o confronto que se entre as expectativas do autor e as condições de
produção da leitura que determinam a interpretação do leitor/espectador real. Desta mesma
forma, estaremos trabalhando com a imagem, pois sua interpretação decorre da história de
leituras de cada sujeito interpretante, e da história de leituras do recorte fílmico apresentado.
O que vai determinar, então, a interpretação do material simbólico apresentado aos
espectadores é esse confronto entre o espectador imaginado pelo autor do recorte e o
espectador real que produz sentido através da retomada de discursos outros trazidos pela sua
história de leituras. A partir disso, poderemos observar as tomadas de posição que delineiam a
FD capitalista através dos dizeres produzidos sobre o tema trabalho e, também, remetê-los à
memória discursiva, posto que dela provêm os dizeres pré-construídos sobre os quais se
baseia a formulação das interpretações produzidas pelos sujeitos espectadores. Vamos estudar
agora a paráfrase e a polissemia para perceber como o retorno de dizeres e a instauração de
novos modos de dizer podem ocorrer a partir da interpretação.
90
3.10. PARÁFRASE E POLISSEMIA
As noções de paráfrase e polissemia são essenciais para este trabalho, pois na análise
das interpretações sobre o recorte fílmico nosso objetivo inicial é perceber quais saberes
constituem a FD capitalista atualmente. Para conhecer estes saberes, devemos observar os
seguintes processos: retorno de sentidos estratificados sobre o tema trabalho, e elaboração de
novos sentidos para o mesmo tema.
Considerando que Pêcheux e Fuchs (1975
52
) dizem que:
... a produção do sentido é estritamente indissociável da relação de paráfrase
entre seqüências tais que a família parafrástica destas seqüências constitui o
que se poderia chamar a “matriz do sentido”. Isto equivale a dizer que é a
partir da relação no interior desta família que se constitui o efeito de sentido.
(PÊCHEUX e FUCHS, 1997, p.169)
Portanto, é com base na noção de família parafrástica como “matriz do sentido(Ibid.)
que pretendemos considerar os discursos produzidos sobre o tema trabalho representado no
recorte fílmico. Assim, cada tomada de posição no interior da FD capitalista representa uma
matriz de sentido diferenciada a partir da qual efeitos de sentido distintos podem ser
produzidos, visto que um discurso se conjuga sempre sobre um discurso prévio (ou já-dito)
que pode ser retomado ou reformulado pelo sujeito interpretante. Vale lembrar aqui a
afirmação de Pêcheux a respeito da possibilidade que todo enunciado tem de vir a tornar-se
outro, diferente de si mesmo.
Logo, podemos dizer que a construção dos sentidos passa sempre por um já-dito, no
entanto, isso não impede que esses sentidos se transformem em outros, possibilitando a
emersão de uma nova relação do sujeito com a ideologia que o interpela. Importante salientar
que neste momento (AAD 1969) Pêcheux está pensando a noção de paráfrase como a
possibilidade de substituição de segmentos discursivos num contexto de forma a manter o
conteúdo semântico do enunciado inalterado, assim, a substituição estabelece uma relação de
sinonímia entre os elementos discursivizados. Essa reflexão demonstra que o autor concebe a
paráfrase como espaço de produção do mesmo sentido, da estabilização dos sentidos, e a
observa apenas no interior de uma FD homogênea. No entanto, essa noção sofre modificações
ao longo do desenvolvimento da Teoria do Discurso e para explicitar este processo de
transformação da noção de paráfrase discursiva, estudamos alguns teóricos da AD desde a
conceituação de paráfrase como lugar do mesmo para chegar a uma outra conceituação,
52
Datação do original, a data da obra consultada encontra-se ao final da citação.
91
proposta por Courtine (1981), que nos permite concebê-la, também, como lugar de
convivência do mesmo com o diferente.
Para Courtine (1981) a paráfrase pode manifestar a contradição entre dois domínios de
saber, entre FDs antagônicas e, desta forma, estaríamos diante de uma configuração particular
de paráfrase discursiva. Nessa configuração, no interior de um mesmo enunciado, duas
formulações pertencentes a domínios de saber distintos, podem ser aproximadas mesmo
trazendo efeitos de sentido que se opõem, e, para que isto se dê, a paráfrase deve ser pensada
no âmbito do interdiscurso ou de uma FD muito heterogênea. A partir desse momento, a
paráfrase deixa de ser uma noção homogênea, o lugar do mesmo, para abrigar em si a
existência do outro, e, ainda assim, isso não anula sua característica de retorno do mesmo,
mas possibilita que se pense o mesmo habitado pelo outro. De acordo com Courtine:
En effet, la suite des termes: se référer (implicitement ou non)’, répéter’,
modifier’, adapter’, s’y opposer’, etc., indique que l’énoncé s’insère dans
une série de formulations dont certaines sont dominnés par la même FD que
celle qui domine la séquence discursive d’où is est extrait. (Courtine, 1981,
p.44)
Essa forma de pensar a paráfrase discursiva nos leva sempre a buscar o interdiscurso,
pois é nele que convivem os dizeres antagônicos. Courtine, assim, estabelece que é a
articulação do processo discursivo no interdiscurso que determina a configuração da
parafrasagem no interior de um processo dado. Através dessa consideração de que um
enunciado pode estar inserido numa série de formulações que não pertence àquela da FD
dominante da seqüência discursiva da qual o enunciado foi extraído. Desta forma, Courtine
está possibilitando a aproximação de diferentes FDs através da consideração da paráfrase
como uma noção heterogênea, visto que distintos pro
92
(ORLANDI, 2002, 37); enquanto na criação há um deslocamento do mesmo através da
ruptura com o discurso institucionalizado, para que um discurso novo possa se instituir.
Portanto, se pensarmos a paráfrase ao lado da repetição, podemos relacioná-la com
as leituras que representam a manutenção dos sentidos logicamente estabilizados; e sendo a
polissemia o lugar do novo, podemos relacioná-la ao processo de ruptura que a interpretação
provoca, com o deslocamento de sentidos. A paráfrase e a polissemia são consideradas, na
AD, como duas modalidades distintas de produção de linguagem, em que uma representa o
caminho do mesmo, do que está posto, estratificado, cristalizado, estabilizado como diz
Orlandi, enquanto a outra abandona as bases do mesmo para com ele romper na busca da
inscrição de um novo modo de dizer, uma nova forma do sujeito do discurso se relacionar
com a ideologia. Vale ainda dizer que cada um desses processos não é estanque, eles estão
constantemente em jogo e ambos são responsáveis pela produção de linguagem.
Percebe-se, nas formulações de Pêcheux (1975) e Orlandi (1987 e 2002), a
perspectiva de paráfrase apenas como lugar de repetição, e, por isso, nesta época, fazia-se
necessário elaborar uma noção que respondesse àqueles processos que não apenas repetiam
um sentido sedimentado, mas rompiam com ele instaurando novas formas de dizer, novas
redes de significação; assim, a noção de polissemia foi bastante produtiva para os estudos
realizados nesta fase da AD. No entanto, essa dicotomia não se manteve tão fecunda depois
que o próprio Pêcheux rompeu com a conceituação homogeneizante da noção de paráfrase. A
partir do momento (1980/1977) em que o autor afirma que a formação ideológica é
heterogênea, e, também, quando elabora as distintas modalidades de relação do sujeito do
discurso com a Forma-sujeito - estabelecendo a existência de posições-sujeito desiguais no
interior da FD (PÊCHEUX, 1988, p.214) -, realiza-se uma abertura para que se pense a
paráfrase não apenas como lugar do mesmo, mas também como constituída de elementos
antagônicos. Essa mudança de paradigma com relação à paráfrase discursiva, para a qual
Courtine contribuiu fortemente, possibilita que se trabalhe, na Teoria do Discurso, com a
convivência do mesmo e do diferente sob um mesmo conceito. Vejamos, então, como o
processo parafrástico e o polissêmico podem ser abordados no estudo da materialidade
imagética.
93
PARÁFRASE, POLISSEMIA E DISCURSO IMAGÉTICO
Refletindo sobre a noção de paráfrase discursiva na produção de nosso recorte
fílmico, acreditamos que é possível estabelecer relações parafrásticas entre as imagens que o
compõem, assim como entre outras formas discursivas que a ele se relacionam, através da
instância interdiscursiva, pois entendemos que a imagem, tal como o texto, não é origem, mas
composição heterogênea que mantém relação com outras imagens e, até mesmo, com outras
materialidades simbólicas. Dito isso, percebemos que no processo de retorno a um pré-
construído, ou refutação do mesmo, as imagens selecionadas se originam de duas matrizes de
sentidos distintas, pois temos algumas que apontam para a forma telúrica e outras que
representam a forma capitalista de trabalho. Sendo que cada uma dessas perspectivas de
trabalho parecem constituir um todo a partir de domínios de saber distintos que convivem no
interior da FD dominante.
Serrani (1993) introduz a noção de ressonância de significação no estudo da paráfrase
discursiva. Segundo a autora,
... paráfrase quando podemos estabelecer ent80561(o)-0.2.26(c)3.7(a)3.0.1997(m)-2.45995(e257.912300048(t80561(o)-0.2.26(c)3.7(a646239(a)3.7.295585(e0048(e)-1T2)-0.295585(a152.415(h61(e)-1.9197dm)16.675( )-152.4142(o)-0.300048(s)-2.53843.7.295585(e0048(e)687(a)8.221643(e)3.77393( ))16.680561(e)3.7393(l(e)-1.952( ))16.6805i(e)-1.952(d1(e)3.7393(( )-152795585)-2.137i)-2.16558(n-0.2.26a)3.)-1.229uá)-1.919776( )-152.4a(a)-1.91845(r7-0.82545995(e257.912300049184(b)-0.30004(b)-0.30004oá)-1.91977(a152.415(h6â0.2.26(c)3.7(a)3.0.19( )-152.414i7(m)-2.4a2300048(t805r7-0.821(–48(o)10.576(d)6)3.02(e1(e)-1.91973.7(a)3.0.1997(m)-2.48(s)-2.53845995(e257.9dm)16.6751(e)-1.1.943.7.295585( )-152.414T2)-0.2955855995(e257.93.7.2955851(e)-1.9197vm)16.675( )-152.41405r7-0.821(–48(o)10.576(d)7-0.81242(o)-0.300048(s)-2.5384(d)6)3.02(e(b)-0.300041(e)-1.9197gm)16.675(a152.415(h61((m)-2.4f995(e257.91(e)-1.9197c0.2.26(c)( )-152.414ç )-152.414ã0.2.26(c)o561(o)-a)358a)3.74(c)3.74(r86964(d)6)3.02(e29(n)-0.300048(d)-0.3000e )-152.41405r7-0.829558(m)-2.48(s)-2.53840048( )-152.414(p)-0.3008(s)-2.5384(d)6)3.02(e( )-152.41405r7-0.8(s)-1)-1527955o))16.68053(e)3.77393((b)-0.300048((m)-(u)-0.25(e257.9u))16.6805i(e)-1.952((n)-0.300048(t6)3.02(e( .2.28955852.16558(n-a)358aa)3.722(s)-1.235(e257.912300049184( .2.2762(l(e)-1.8195i(e)-1.8195dm)16.6734a(a)-1.9184dá)-1.91977e(a)-1.91845(r228.5475585)-2.53841(e)-1.91976( )-152.4a(a)-1..414gm)16.6751(e)-1.91973.7(a)3.0.19á(s)-2.53845995(e257.9i(e)-1.91977(l)6.09928(n)-0.300048(t228.54752(o)-0.300048(s)-2.53848(t228.547548(d)-0.3000m)5.7991548(t228.5475(q)-0.300048(s)-2.53840048( )-152.8(e)-1.91971((m)-2.4414(p)-0.300048(o)10.576.3.74(r86964(d)228.5475R04 5607687(a)8.95629(b)-0.30004(b)-0.30004oá)16.675(a152.415(h6â(s)-2.53840048( )-152.c0.2.26(c)i(e)-1.91977(s)-2.53848(t217-15-7.20151(-0.2(S)5.6747o2)-0.2955855995(e257.929(n)-0.300048(d)-0.3000e )-152.41405r228.5475pm)16.675( )-152.4146(e)8.95629( )-152216405r228.5475q(e)3.77393(u))16.6805e1)-152795505r228.5475h1(e)3.7393(( .2.28955j(e)-1.952(( .2.28955852.16558(n(-0.2(Sa)3.)-1.229(á)-1.91977(f)6.71788(r)e)8.95629á .2.2762(f995(e257.9r)-4.15818a2300049184(b)-0.30004e(a)-1.91845(r228.5475a )-152.41405r228.5475(b)-0.300041(e)-1.9197gm)16.675(a152.415(h61((m)-2.4f995(e257.91((m)-2.4( )-152.414( )-152.414ç .2.26(c)ã )-152.414048(o)10.576(d)228.5475é(u)-0.300048228.5475pm)-0.2955855995(e257.9o048( )-152.414(p)-0.30048(d)-0.3000z0.2.26(c)i(e)-1.9197414(p)-0.300a )-152.41405r228.5475p14(p)-0.300048(o)10.576rn)-0.300048(t228.54756( )-152.4e )-152.414i(e)-1.9197048(o)10.576(d)228.54752(o)-0.300048(s)-2.53848(t228.547548(d)-0.3000m))-1.2336..3(o)-0.2931428.54758(s)-2.5384f235(e257.91230004.414i7(m)-2.4t(e)-1.9197048(o)10.576(d)228.54752(o)-0.300048(s)-22216405r228.5475 ))16.6805i(e)-1.952(b1(e)3.7393(6(e)8.95629( )-1527955ç .2.28955ã1)-1527955o))16.6805)-1.22997(e)36..3a)3.722(s)-1(b)-0.30004e(a)-1.91846( )-152.4â(a)-1.9184ná)-1.91977t(e)-1.8195i(e)-1.8195c2300049184( .2.2762(0024(.)-0.156( )-152.4ú048( )-152.8(e)-1.9197u14(p)-0.300a )-152.414.3.74(r86964(d)74(r86964585e)8.95629S)1-6.268(E))-1.2025R04 560768R04 560768A)15.05u)-Nn)-06969556(17-594c)3.74(r86964(d)74(r86964114(p)-0.300914(p)-0.300914(p)-0.300314(p)-0.300)3.74(r86964(d)74(r86964p14(p)-0.300.3.74(r86964414(p)-0.300714(p)-0.3008(n)-0.30004.3.74(r.28180561(o)3.)-1293142(795.68 Tm( )TjETQQq1200.15359.722(0.15A5(o)-0.29 )-0.147792(a)36287 3258(a)-6.265-0.295585(a)3.74(da)9.71032(ê)3.74(n)- 85(s)-1.223.74(o)-0.295585(n)-[(r)-1.2312(e)3.746-0.569312(s)-1.2312(558(i)-2.1658(m)-2.45995( )-140.235585(n)-0.295585(c)3.74(i)-2.16436(a)-0.295585( )-30.10.15-2.16558(d)-03.74(l)-2.166287 325)-1.2312(i)-2.16436(g)6287 )500]TJ/R8 12 Tf102.5436(f)-2.16436(i)-2.16436(c)3.74(a)-0.295585(ç)3.74(ã)-0.295585(o)500]TJ/R8 12 Tf134.719 0 Td[( )-30.1643(n)-0.295 563(o)-0.2931.1879(i)-2.1643931.1879(i)-2.16439(a)]TJ275.202 0 Td[(3(g)9.71032(i)-2.16436]TJ/R23 12 T6287 )5)3.74(m)-2.45995( )-190.265(r)-1.2312m)-2.45995(o)-0.295585(s)-J/R23 12 T6287 )5 )-190.259(c)-6.2659(a)3.74(d)-0.26287 )5o03.74(l)-2.166287 )500]TJ/R8 )-6.2659(a)3j190.265(r)-1.2312)3.74(ã)-0.202 0 Td[(3(g)9.71032(.166287 )5F)-4.33117(D)1J/R23 12 T6287 )5l0.295585(ç)3.74(ã)-0.J-293.933 -85(d)-276-383.506 -20a.76 Td[(d9(,)-0.146571( )-20.1584(.3(q)835852.16558(n-30.306558(s)-1.229)-2.1658(m)-2.45995(d)-0.2955á.293142(t)16558(e)-2.16558(i)-2.16558(d)-0.2949319(s)-1.22997(o)-0.295585(b)-2.16558(e)3.74(r)2.80561(d)-c0.295585(a)3.74(d)-6.2659(a)3585(,)-0.147792( )-30.1655(o)-0.29585(b)-2.165)-0.295585(r)2.80439(o))-2.165-80.1938(o)-0.293158(d)-0.5( )1714(c)3.74(o)85(i)-2.16558(r)2.80561( )-40.17145585( )-80.1938(c)3.74(o)-10.3015(m)-2.-1.2312(3 12 Tf171.941 0 Td[(r)-1.2312(e)3.74(9.67 2(r)-1.2312(á)-0.295585(f)-2.16436(r)-1.2312(a)-0.295585(s)-1.2312(e)3.74( )-290.318(d)-0.295585(i)-444-40.1714(p)-0.2-4.076a)3.74(c)3.74(r71( )-30.1643(i)558(s)-1.22997( )-260.301(t)-2.6436(n)-0.2955-2.-1.2312(0.295585(e)3.74(r00]TJ/R8 12 Tf102.58(o)-0.295585(-1.2312(.74(b)-10.3015(e)3.74(l)-2.16436(e)85(-1.2312(ã)3.74(o)-0.295585( )-30.1643(d)-0.295585(e)3.74( 39(a)3.74244(s)-1.2312(-0.295585(-0.29558-7.20151(e)3.74(l)-2.-1.2312(3 12 Tf171.941 0 Td0.3015(t)-2.16436(o))-6.26346( )250]TJ-3.74(l)-2.16436(e151(r)2.80439(-2.-1.2312(3 110.299( )250]TJ-282-1.2312(94(p)-0.2931427-5435(m)-2.46056(a37.306558(0561(r)2-2.16558(a)-6.)3.74(o)85(i)-2.16558(r)2.8056(d)-0.295585 ).1643637997(c)3.74(u).74(d)-0.296436379)-2.16558(a)3.74(m)-2.45995( )-190.26(a)3)-0.295585(e)3.74(s)-1.585(u)-0.295585(6436379 )-190.259(c)-6.2659(a)3.74(d)-0.296436379)-2.16558(i)-2.1659(o))-2.1650.295585(t)-2.1658056-1.2312(p)-0.29558516558(o)-0.294974(-1.22997(s)-1.226436379-190.26(a)3.74( )250]TJ0.293-40.1702(d)--7.20151(e)3.74(l)-2.-1.2312()3.74(m)-23015(e)3.74(a)-6.2l0.295585(ç61(e)3.74( )-290.319(a)3a74(d)-0.296436255o03.74(l)-2.1696436255s.295585(e62(S)5.6747)-6.2659(a)3j190.265(r)-1.2312)3.74(ã)-0.202 0 Td[(3(g)9.71032(.1696436255e)3.74(s)-1.585(u)-0.295585(6436255e)3.74(s)-1.0.295585(r)-1.2312(s)-1.2312(i)-2.16436(v))-6.26346(c)3.7424585(u)-0.295585(6436255 )-20.1584(a)3.74( )-20.1584(i)-2.16436(m)85(d)-0.295585(u)-0.295585(ç)3.74(ã)3.74(o)-0.295585( )-2930.1643(n)-0.(6436255.74(b)-10.3015(e)3.74(l)9255.74(b)TJ-28296436255s.312(o)-0.29558.20151(e)3.74244(s)-1.2312(0.295585(r)[( )-40.170220.76 Td[(i5.4209 -20.64 .74(o)-0.29462(S558(s)-1.229u)-0.290e)3.74(t)-)-0.2955)-0.2951)3.74( )258(d)-0.29491(1)-0.295585(( )-30.1655(m)-.80561(1)-0.295530.1643(n)-0.( )-30.1a.74(o)85(i)-2.165m)-2.45995(o)-0.295585(s)3.74(r)2.8043914( )-20.1584(a)3.74( )-20.1584(i)-2.504397i)-2.16558(m)-2.4599d[(r)-1.2312(e)3.7424t)-25(r)-1.2312(á)-0.295585(f)-2.16436(r)-1.45992(a)-0.295585(s)-1.5294974(a)-0.294974(l)8(d)-0.295585(i)-.16558(389-40.1714(p)-0.)3639033.74(b)-0.295585(e)“-444-40.1712(e)3.748(s)517312(s)-1.2312(o)-0.295585(n)-0.295585(â)-0.295585(n)-0.294974(l)8(d)-mM)2.51125(A)95585(e)3.74(r)2.812 Tf102.5436(f)-2.16436(i)-2.16436(c)3.74(a)-0.295585(ç)3.74(ã)-0.295585(o)500]TJ/R842(a)3.74244(s)-1.2312( 5585(o)500]TJ/R8mM)2.51125)3.74(m)-2.45995( )-190.265(r)-1.2312142( )250]TJ-293.-0.294974(l)8(d)-142( )250]Tv714(c)3.74(o) )250]TJ-419.287 -20)3.74(ã)-0.2974( )-190.74(l)8(d)-l0.295585(ç)3.74(ã)-0.d-293.-0.294974(l)8(d)-)-0.295585(o)-0.295585(m)-2.45995(í)-2.16436(n)-0d[(i)-509 0 Td[( )-40.17020.295585(r)-1.2312(s)-1)-1.2312(r.S)5.6747)-6.2654244( )250]TJ-/R23 12 Tf127.035 0 Td[(r)-1.-43)3.956558(0561(r)2-2.16551.226436379s)-1.22997(t)-2.16558(r)2.805(u95585(i)-2.16558(a)3.74(m-190.26(a)3)-0.295585(z74(a)-0.294974(l)8(d)-(c)3.7493.74)-0.295585(a)3.74(,-2.16551.226436379J-293.-0.294974(l)8(d)-14226436379h95(í)-2.16436(n)-0.16436(r)-1.4599(n)-0.2915(z74(a)-0.295585(n)-0.295585(c)3.74(58(i)-2.16558(s)-1.22997(t)-2.16558(a)-0.2955d-293.-0.294974(l)8(d)-)-0.295585(o)-0.295585(6436255e)3.74(s)-1.4974(l)8(d)-1422643625.295585(o)500]TJ/R8)-0.295585(o)-0.29543(d)-0.295585(e)3.74( 6(t)-2.16436(r)2643625.o)500]TJ/R842(a)3.7424(e)3.74( )-2)-1.23369a)3.74(b)-v714(c)é.295585(e)3.74(r)2.86436255e)3.74(s)-1.)-0.295585(6436255e)3.74(s)-1.6(c)3.74(a)-0.295585(çe5585(i)-2.1655TJ257.91251(e)3.74244(s)-1.2312(.295585(n)-0.2955585(6436255.2312(o)-0.2955850.74(l)8(d)-l0.295585(ç)3.74(ã)-0.z-2.1655TJo)500]TJ/R8 12 Tf)-70.1879(p)]TJ248.9070.2955585(6436255l0.295585(ç)3.74(ã)-0.J-293.79(p)436(f)-.2931ü1(e)3.74244í.295585(r)-1.2312(s)3.74(s)-11.2371( )-70.1879(e.201a1(e)3.742448(389-40.1714(p)-0.19)-156a)3.74(c”74(b)TJ-28[(r)-1.-42949(pS558(s)-1.229585e95585956(1)-01096558(h)-0.294974(s)-1.22997( )-260.3117(e)-6.2658(n)-0.23117(e)-6.2659(g295585(oA5(o)-0.29558(i)-2.16558(s)-585(s)3.74(rê)3.74(n)--190.26(a)3)-0.295585(rn)-0.295585(t)-2.16597(t)-2.16558(i)-2.16558(n)-0.29555( )-140.235585(n)-0.29363(o)-0.295585(i)-2.16558(s)-2.16436(n)-0.1643655(m)-2.459)-1.22997( )-260.301(a)3.74(l)-2.16436(g)9.7(i)-2.16558(s)-2.164-30.1643(s)-11.2371(e)3.74(l)2.16436(r)2.80439-30.1643(i) )-20.1584(a)3.74( )-20.1584(i)-2..1643(i)-2.16436(m)-6.26346( )250]TJ(g)9.71032(e)3.74(n)-0.295585(s)-1295585(e306295585(o)-0.2953(s)-11.2371(e)3.74(l)-2.16192(e) )-20.1584(a)3.74( )-20.1584(i)-2..293142(v)-0.293142(i)-2.16436(v)-.2371(e)3.74(l)3.74(s)-11.2371( )-70.585(o)-0.295585( )-30.13.74(o)-0.295585(n)-0(ç)3.74(ã)3.74(o)-0.295585(-0.2( )-250.294(d)-0.295585(e)3.74( )-[(r)-1.2312(e)3.74246.913.74244(ov)-0.293142(i)-2.16.2312(o)-0p)-20.1584(a)3.74( )-20.(e)3.74(l)-2.16192(e)1( )-20.1584(o)-6.26p1(e)3.74244í.295585(r)00]TJ/R8 12 Tf72.4027 0 T16436(( )-260.3(e)3.74( 94646(a)3.74(39556(453.868n)-0.294974(t)-2.16558(i)-2.165t)-12.1715(o1.2359(e)3.74(n)-0.2997(t)-2.165997( )-260.3295585( )-2930.1643(n)3.74(o)-0.295585(n)-012.1715(o294(a)3.73756( )-250.294(u[(f)-2.16558(o)-0.29.0066295585(o)-0.295)-2.16558(i12(á)-0.295585(f)-2.1643ç3.74(o)-10.3015(m)-2.12.1715(ov.1938(r)-7.20151(em)-2.45995(d)-0.29551.22875(.)-0.147792( 4(l)8(d)-l0278-260.3(e)3.74( 3.0031a)3.74(c)3.74(r6.2659(g)9.71032(294(a)3.73756( )-250.294(u))-2.1643636(o)9.71032(s)-1.2312( )-40.1702(0.295585(i)-2.164e)3.74(s)-1.0.295585(r)-1.2312(s)-1.2312(i)-2.16436(v))-6.26346(c)3.7424585(u)-0.2956(t)-2.16436(r)2643625.)-0.295585( )-20.1584(o)-0.295585( )-20.1584()-2.16436294(a)3.73756( )-250.294(e)3.74(l)-2.)-2.16436e)3.74(s)-1.0.295585(r)30.1643(n)-0.)-2.16436295585(t)-12.116436295585(9(a)]TJ275.202 0 Td[(3(g)9.71032(i)-2.16436]T-4.33117(e)--20.64 Td[(759380561(o2.1649(9S558(s)-1.229A5(o)-0.298(m)-2.45995( )-140.23(c)3.74(o)-0.295585(m))3.74(r6.2659(g95585(t-190.26(a)3.74( )250]TJ/R23 -40.1702(d)--7.20151(e)3.74(l)-2.95585(t558(s)-2.16436(n)-0.1643655(m)--30.13.74(o)-0.295585(n94(q)-0.295585(u)]TJ266.695585656-1.2312(p)-0.2955853(s)-11.2371(e)3.74(l)2.16436(r)2.80439-30(t)-2.16 )-20.1584(a)3.74( )-20.1584(i)-2.4( )-90.1997(m)10.1525( )-80.1938(a)655(m)--30.13.74(o) )-40.1702(0.9.71032(ê)3.74( )-140.229(d)-)-2.45995( )-40.1702(d)-0.2951643 12 Tf)-70.1879(p)]TJ248.9070.2955585(t)-2.16 )a)3.749555(a)3.74(r)3.74( )-20.1584(i)-2.4( )-90.-0.295585(r)2.804300]TJ/R8 )-6.2659(a)3l371( )-70.585(o)-0.2960.3(a)3.74( )250]T.20151(e)3.74(l)-2.955853(p)-0.295585(r)2.80439(o2312(m)-)2.804300]TJ/R8 (t)-2.16436(e)3.74244(/R8 12 Tf148.1671 -20.64 Td[(i)-0.1938(a)655(m)-.259(d)-0.293142(e) Td[(m)-2.46056(3)3.)294974(s)-1.22997(t)-2.1653.74(r)2.805(i)-2..74(a)-930.2955853(s)-11.295585(i)-2.16558(300.3255 )-20.1584(a)3.2312(a)3.74(s)-58(300.3255f5(u)-0.295585(z)-6.26rn)-0.2955-10.3015(e)3.74(s)-0.295585(n)-0(ç0.3255o03.74(l)-2.1[(r)-1.2312(e)3.74244(755312(s)-1.2312(558(i)-2.165v)-0.293142(i)-2.16.2312(.45995(d)-0.2955.74(s)-58(300.324)-0.295585(çí.295585(r)/R8 12 TfmM)2.51125)3.74(ã)-0.295585(6(( )-260.3(e)3.74( 4.564o)9.71032( )-0.324)-1.2312(p)-0.295585(e)-6.2634-190.265(r)-1.2312m)-.74(l)-21714(c)3.74(o)-0.295585(n)-0)-0.324)a3.74(o)-10.3015(m)-2.)-0.324) )-20.1584(a)3.74( )-20.1584(i)-2..10.324)12 Tf-67.3655(r)-7.20029(e)3.74(f)(r)2.80439( )-40.1702(d)-0.29558n3.74( )-20.1584(i))3.74(r71( )-30..74(3(o)-0.295585(i)-2..74(a)-.295585(o)-0.29(d)-0.29558n3.74( )-20.643(d)9.71032(a)3.74( )-30.1.74(3(F0.2957116436(r)2.80439(a)3.74244(1879(e.201a179(e.201u(e)3.74244(/R8 12 Tf( )-40.1702)3.74(r659380561(o2202-6.2(n)-0.294974(s)-1.2241.4244 0 Td.74( )250]TJ007.3655(r)-260.3295585( )-2930.1274(37(3 12 Tf171.941 0 Td[(r)-1.2312(e)3.746215279o)9.7103995(i)-2.16558(n)-0.295585(o)-0.29585(,)-0.1455(()2.80561(1)-0.29552(a)3.74( )-30.1274(37(3 12 Tf171.94.1643(n)-0.2274(37(85(o)-0.293.74(o)-0(o)-0.29ó142(i)-2.16.2312(.459943(d)-0.29558 )-290.318(n)-0.2957.1033.74(b)-)3.74(r71( )-30.274(3.1655(r)-7.20029(e)3.74(f)2.80274(3.1o)-0.295585(i)-2.j85(o)-0.2960.3(a))3.74(r71( )-30.16134)2.80439(o)-03.74244(t)-274(3.1(g)9.71032(e)3.74(n)-0.2i)-2..74(a)-.29)-0.2953(s)-11.2371(e)3.74(l)-2.116134)2)2.804300]TJ/R8 (t)-2.1655(r)-7.200/R8 12 Tf148.167 0 Td)3.74(ã)-0.d-293.-0.2949.16436(m)-6.26346( 274(3.1f)-260.3(q)-0.1643(n)30.1643(n)3.74(o)-0.295585(n)-0 274(3.1-2.16436(i)-2.16436(r)2.80439( )-40.1702.74(b)TJ-282 274(3.1[( )-40.1702(s4(b)TJ-282 274(3.194(p)-0.293142(r)2.8043-2)-1.283.84.3(o)-0.293[(r)-1.-453.868n)-0.294974(t3.74(o)(,)-0.140995(d)-0.2955.74(s)-r)2.805( )-0.147792(d)-0.295585(a)3.74()-0.295585(e)3.74(s)-1.22997( )-250.295(s)-1.2299(r)210.213)-0.295585(n1( )-40.1714(u)-0.2955897(i)-2.16436(s)-1.2312(s)210.213)-0.295585(na.74(o)85(i)-2.1653.7.76593805)210.212)3.74(s)-0.295585(np55(r)-7.200/R8 12(a)3.74( )2(s)210.213) )-190.259(c)-6.2659(a)3.74(d)-0.2910.212).74(b)-10.3015(e)3.74(l)-2.1á74(d)-0.2910.212))-0.295585(r)2.80439(o910.212)-290.319(a)3a74(d)-o)-0.295585(r)2.80439(i910.209o)-0.295585(s)3.74(r)20.294(1.85(.74244(ov)-0.293142(i)-2.16436(v)-.2371(e)3.74(l)3.74(s)-11.2371( )-70.585(o)-0.295585( )-30.12371( )-70..1643(d)-0.295585(e)3.74( )25910.212)d-293.-0.2949.16436(m)-6.26346(910.212)2.45995(o)-0.295585(,)-0.146571( )-80.149.16436(m)-6.2634(e)3.74(n)-0.2910.212)DM)2.51125)3.74(m10.3015(e)3.74(l)-2.16436(eTJ-282910.212)(m)-2.45995(a)3.7-266.677 -20.76(r)2.80439(i)-2.16436-2.16436(é)3..74(o)-0.(1.85(.n)-0.294974(5(d)-0.2955.74(s)-50]TJ007.3655(r)-260.3-2.16436(g)9.71)-2.165 )-20.1584(a)3.74( )-20.1584(i)-2.16436165)-0.295585(r01(a)3.74(l)-2.16436(g)5( )-140.235585(n)-0.29d[(r)-1.2312(e)3.7483.089312(s)-1.23116558(a)3.74(mv)-0.293142(i)-2.16.2312(.45995(d)-0.2955.7.1643(n)-0.295585(o8(m)1.57503(i)-2.16558(c)3.74(o)500]TJ295585( )-250.2295585(6(( )-260.3(e)3.74( ]TJ6223(o)-0.293146436165)2.80439(i)-2.1692)-0.295585( )-20.1584(o)-0.295997(s)-1.22997(í)-2.16558(v)-05(e)3.74(l)-2.1)-10.3015(m)-2.-1.2312(142(t)-2.16436(a)3.74(mr)2.80439(-2.-1.2312((n)-0.29558e)3.74(n)-0.2i)-2..7.2312(p)-0.2955853(s)-11.2371(e)3.74(l)-2.-1.2312(59( )-70.1891(é)3.74( )-70.1891(p)-0.-1.2312(o)-0.295585(i)-2.-2..1643(i)-2.1643585(o)-0.295585( )-30.10.295585(m)-12.4650.295585(r)30.1643(n)3.74(s)-0.295585(n)-0-1.2312(ã)3.74(o)-0.295585( )-30d[(r)-1.2312(e)3.74223 -20295585(o)-0.2950.295585(r)x-0.295585.74(l)-2.1641.2312(148.1671 -205(a)3.7-266.67]TJ/R8 12 Tf72.40z(c)3.7424585(u)-018053(e)3.795( )]TJ272.921 0e)3.74244(/278-260.3(e)3.74( 20.2293.74(b)-)39.85933293[(r)-1.-450.986n)-0.294974(t)-2.16558(i)-2.165.74(a)-930i)-2.16558(v58(e)3.74(r)2.805(i)-2.997( )-260.301(d)-015(m)-2.)2504099)2.80439(o95585(t7(t)-2.16558(a)-0.2955n(é)3.74( )-70.1891(p))3.74(rê)3.74(n)-)-0.295585(e)3.74(s)-1.22997( )-250.295(s)-1)-0.295585(e)3.74(-1.2312(a)3.74(s)805685(e)3.74()-0.293142(t)-2.1640.295585(t)-2.1655)-2.16558(i)-2.16558(d)-0275.202 0 Td[(015( )-40.1714(d)-0.294363(o)-0.295585.1938(a)655(m)--30.11997(m)10.1525( )-80.1938(a)2.45995(o)-0.295585(,)3.74244e)3.74(n)-0.2i)-2TJ-342.082 -2)3.74(r71( )-30.294(1.034o)9.7103140.229(d)-0.295585(i)-2.16436(.1938(a)]TJ272.921 0 Td[(p)-0.29558-40.1702(d)--7.20151(e)3.74(l)-2.2312(m)-3.74(s)-1.2312(m)-v)-0.293142(i)-2.16436o)-0.295(e)3.74(l)3.74(s)-11.2371( )-70.585(o)-0.295585( )-30.1í.295585(r)643(d)9.71032(a)3.74( )-30..1938(a)997(s)-1.22997(í)-2.1655(r)2.80439-30(t)-2.16(g)9.71032(e)3.740439(i)-2.164369(,)-0.146571( )-20.159(q)-0.293142(u)-10.299(.74(o)-0.(1.034on)-0.294974(q97( )-260.3i)-2.16558(v1584(i)-2.504397i)-2)-0.295585(504397i)e.295585(m)-122955.7.1643(n)-0.504397i))-2.16558(i)-2.165t)-6287 325-2.16558(m)-2.45995( )-140.232312(s)-1.2312(o)-0-2.16558(d)-0.29551(e)3.74(l)-2.504397i)260.3(q)-0..74(s)80565( )-140.2384(o)-0.295585( )-20.1584(504397i))-2.16558(i)-2.16542(o)-0.293142504396)2)2.804300]TJ/R8 t)16436(o)-0.16436(r)2.804393.74(o)-0.295585(n)-06287 )5-2.1643585(o)-0.295585( )-30.10.295585(m)-12.4650.26436(o)-30.1643(n)3.74(s0.15655(m)--30.11997(m)100.294(4.6363(o)-0.2931504396)2ã)3.74(o)-0.295585( )-30d[(r)-1.2312(e)3.74orlínrcuv
94
construídos que dialogam interdiscursivamente com a seqüência produzida, e que residem no
que Courtine denomina eixo vertical.
Tratando-se dos textos produzidos sobre o nosso material simbólico, estamos olhando
para os mesmos como sendo constituídos neste eixo vertical de relações com dizeres pré-
construídos acerca do tema trabalho, porque acreditamos, juntamente com Indursky (2002)
que os saberes pré-existem ao discurso de um sujeito; mais especificamente: a existência
destes saberes é vertical e sua sede é a Formação Discursiva e, antes dela, o interdiscurso
(INDURSKY, 2002, p.102). Portanto, partindo da perspectiva de que os sujeitos se apropriam
de saberes pré-existentes para produzir sentidos sobre determinado material simbólico, o que
temos no eixo horizontal, ou nível da formulação de enunciados, é a repetição. No entanto,
este processo de repetição de dizeres não se dá de forma perfeita, mas através de processos de
interpretação e é aqui que ressoa o efeito de memória (Ibid., p. 103), ou seja, quando um
elemento do interdiscurso se atualiza no intradiscurso a memória discursiva, coletiva, é
mobilizada.
Logo, acreditamos ser possível dizer que não é apenas através de realizações
lingüísticas que a paráfrase funciona, pois quando temos uma série de imagens representando
determinada temática existe aí, da mesma forma, uma relação parafrástica, visto que toda a
produção de discurso remonta a discursos-outros e pré-construídos. Com isso, estamos
entendendo a imagem como uma outra forma, não-lingüística, de concretização dos discursos
provenientes do interdiscurso, pois na constituição da imagem, assim como em sua
interpretação, é a ressonância de significação que trabalha na construção dos efeitos de
sentido.
Serrani (1993) ainda trata de dois tipos distintos de funcionamento parafrástico, sendo
um deles caracterizado por ressonâncias de significação que se dão em torno de unidades
específicas (...) tais como itens lexicais, frases nominais etc.” (p.47), ou seja, que tem uma
forma material de identificação. Já o outro é caracterizado por ressonâncias de significação
que se dão “em torno de modos de dizer(Ibid.), e ao falar de modos de dizer a autora refere-
se ao estudo dos efeitos de sentido produzidos pela repetição, em nível interdiscursivo, de
construções sintático-enunciativas na estruturação de um discurso determinado (Ibid.).
Assim, temos a indicação de que a paráfrase tanto pode ser identificada a partir de itens
morfo-sintáticos quanto de aspectos semânticos do discurso analisado. A distinção, realizada
por Serrani, entre os funcionamentos parafrásticos é produtiva para o momento de análise do
corpus experimental, pois este é constituído de materialidade verbal.
95
Passaremos a refletir, a partir do próximo tópico, sobre o processo de autoria
implicado na interpretação de um material simbólico.
3.11. AUTORIA E DISCURSO
Foucault concebe o autorcomo princípio de agrupamento do discurso, como unidade
e origem de suas significações, como foco de sua coerência.” (FOUCAULT, 1999
54
, p. 26) e
não como “indivíduo falante” (Ibid.), por isso, o autor cunha a expressão função do autor que
corresponde à posição ocupada pelo sujeito do discurso que escreve e inventa. Dessa forma,
Foucault se afasta das concepções de autoria que consideram o autor como origem do dizer, e
mobiliza a função do autor que representa aquele que organiza um discurso de forma a
expressar sua posição em relação àquilo que escreve.
Na AD, as contribuições de Foucault para a noção de autoria são mobilizadas
contemplando, ainda, os aspectos históricos e ideológicos com os quais essa teoria trabalha.
Logo, a autoria aqui também é entendida como uma função do sujeito do discurso. Nela, ele
organiza vários discursos produzindo o efeito de um sentido e o efeito de linearidade, de
transparência do sentido. A função de autoria realiza o apagamento de outros discursos
possíveis para trazer aquele discurso permitido pela formação discursiva com a qual o sujeito
se identifica. A autoria na AD, portanto, é uma função do sujeito, e não uma atribuição do
autor, enquanto sujeito empírico.
Segundo Orlandi, a noção de sujeito, na teoria do discurso, é trabalhada não como uma
subjetividade, mas sim como um lugar, uma posição discursiva. A função-autor é uma
função da noção de sujeito, responsável pela organização do sentido e pela unidade do texto,
produzindo o efeito de continuidade do sujeito” (ORLANDI, 1996, p.69). Portanto, um
importante ponto de distinção entre a concepção foucaultiana e a da AD é a situação em que a
função de autor será convocada, pois na Teoria do Discurso esta função se realiza toda vez
que o produtor da linguagem se representa na origem, produzindo um texto com unidade,
coerência, progressão, não-contradição e fim(Ibid.); enquanto na concepção de Foucault
esta função se em um quadro restrito e privilegiado de produtores ‘originais’ de
linguagem” (Ibid.), ou seja, nem todo sujeito é considerado autor por Foucault.
54
Datação original: 1970.
96
A relação entre a função autor e a história é abordada por Orlandi, visto que a
historicidade é uma característica singular da Teoria do Discurso, e que o autor organiza
discursos a partir de uma história de formulações que todo o dizer carrega. Orlandi (1996) diz
que, para ser autor, o sujeito deve produzir algo interpretável, visto que ... o sentido que não
se historiciza é ininteligível, ininterpretável, incompreensível(ORLANDI, 1996, p.70). Idéia
que aponta a recursividade do dizer, pois retomando um já-dito historicamente determinado, o
autor produz sínteses com base em efeitos de sentido produzidos por outros sujeitos do
discurso em condições de produção distintas. A partir disso temos, na AD, a consideração
simultânea do autor e das condições de produção da interpretação.
Indursky (2002) aborda essa questão dizendo que um texto é produzido por um sujeito
interpelado ideologicamente e identificado com uma posição-sujeito inscrita em uma FD, ou
seja, o sujeito produz seu texto a partir de um lugar social e ao fazê-lo exerce a função
enunciativa de autor. A autora diz ainda que o sujeito-autor mobiliza diferentes relações com
a exterioridade, e as organiza, dando-lhes a configuração de um texto, logo, o texto é uma
heterogeneidade estruturada pelo trabalho discursivo do sujeito-autor. Assim, ela salienta que
a função-autor pode ser exercida pelo autor, e também pelo leitor. Quando o leitor não se
identifica com a posição-sujeito explicitada pelo autor, ele desconstrói o texto e o reconstrói a
partir de sua própria história de leituras e de sua posição-sujeito, tornando-se “responsável”
pelo efeito de sentido que produz.
Gallo (2001), por sua vez, caracteriza “o efeito-autor, como sendo o efeito resultante
do confronto de formações discursivas, cuja resultante é uma nova formação dominante
(p.67). A autora salienta que a noção de efeito-autor foi possível na medida em que ela
pôde contar com a “heterogeneidade discursiva, pois é esse nível que permite a diferenciação
de formações discursivas dominantes se confrontando em um mesmo enunciado (Ibid.).
Quando isso ocorre, o sujeito do discurso traz à tona sentidos da ordem do já-dito,
constitutivos de discursos heterogêneos, e com os quais ele não se identifica plenamente,
fazendo emergir, assim: uma nova formação ideológica (discursiva) que integra de maneira
inédita esses elementos do pré-construído.” (GALLO, 2001, p.67). Como podemos perceber
aqui, a autoria tem a ver com a organização particular dos discursos, com o processo de
produção de sentidos que pode ser protagonizado por todo o sujeito social.
Portanto, no nível da heterogeneidade discursiva a autoria tem relação com a função
de todo o sujeito: a função-autor, que articula os confrontos existentes entre FDs antagônicas,
e tem relação com a dimensão enunciativa do sujeito do discurso, ou seja, ...tem a ver com a
heterogeneidade interna a uma formação discursiva dominante, que ganha seu movimento
97
e sua unidade sem perder, com isso, sua dominância.” (Ibid.). Retomando o dito “quem conta
um conto aumenta um ponto” (GALLO, 2001, p.68), a autora explica esse fato pela função-
autor do sujeito do discurso: “que garante o movimento dos sentidos, interno a uma ordem de
discurso, mas, na contrapartida, a sua conservação.” (Ibid.). Isto por que os elementos que
caracterizam a autoria são: a singularidade, garantida pela diferença; e o fechamento,
garantido pelo repetível. Desta forma, a partir de uma estrutura dada, a possibilidade de
surgir um acontecimento discursivo, conceito que se caracteriza pela instauração de um novo
modo de dizer, provocando uma ruptura com o que havia sido formulado até o momento.
Segundo Pêcheux (1990), o discurso resulta de uma união entre estrutura e acontecimento, e
não de um ou outro desses elementos tomados de forma isolada.
A noção de autoria em AD é bastante profícua, como pudemos perceber através das
discussões apresentadas. Entretanto, para situar os leitores, vale definir qual a linha de
pensamento que vamos seguir no momento analítico de nossa pesquisa. Podemos dizer que a
maioria dos teóricos citados concorda quanto à idéia de que o autor é uma função exercida
pelo sujeito do discurso, no interior da posição-sujeito, que tem como princípio básico a
organização dos dizeres que podem ser repetidos, negados, e, até mesmo, reformulados de
maneira inédita pelo enunciador. Nesta última perspectiva, o sujeito faz trabalhar outras
relações de sentidos, e seu dizer rompe com os pré-construídos da ideologia dominante,
sedimentados pela repetição.
Resumidamente, podemos diferir dois processos que trabalham para a efetivação da
autoria na Teoria do Discurso, pois temos a função-autor (ORLANDI, 1996, p.69) na qual o
sujeito do discurso formula seu dizer a partir de elementos pré-construídos, sem, no entanto,
deslocar sentidos; e também o efeito-autor (GALLO, 2001, p.67) que é mais raro, pois
depende de uma tomada de posição que demonstre desidentificação por parte do sujeito
quanto aos dizeres permitidos pela FD dominante. Desidentificação essa que emerge de um
trabalho de ruptura, deslocamento do sentido estabelecido para fazer emergir um sentido
novo, a partir do qual outros discursos poderão surgir. Trabalharemos, portanto, com essas
duas categorias explicitadas acima para caracterizar aquelas interpretações que representam
apenas organização de discursos outros (função-autor) e outras que produzem a instauração
de novos sentidos (efeito-autor). No entanto, não deixaremos de observar aqueles fatores que
também são considerados, pela maioria dos teóricos estudados, importantes no processo
autoral, tais como: as condições de produção do discurso (em sentido amplo e estrito); a
interpelação ideológica; e o assujeitamento inconsciente que estarão trabalhando para que as
interpretações produzidas se constituam através de uma função-autor, ou de um efeito-autor.
98
AUTORIA E IMAGEM
Neste ponto da pesquisa, a relação entre autoria e imagem pode ser percebida
como uma extensão da relação entre interpretação e imagem, pois todo o processo de
produção de sentidos baseia-se na organização de discursos heterogêneos. Assim, ao produzir
uma materialidade simbólica não-verbal o autor conta sempre com sentidos previamente
historicizados que serão mobilizados de acordo com as determinações sociais, subjetivas e
ideológicas as quais ele está sujeito.
No capítulo metodológico explicamos detidamente o processo de autoria de nosso
objeto de pesquisa, o recorte fílmico, por isso, não vamos nos estender na discussão deste
tópico. O processo de autoria desenvolvido pelos sujeitos que interpretaram nosso recorte
também será retomado no capítulo metodológico e nas análises, mais um motivo para não nos
estendermos em comentários sobre este ponto.
Entretanto, vale dizer aqui que, ao trabalhar com as noções de função-autor,
organização de discursos, e efeito-autor, produção singular de discursos de forma a pôr em
oposição duas FDs; propomos um deslocamento na noção de efeito-autor de Gallo. Esta
autora trabalha com “o efeito-autor, como sendo o efeito resultante do confronto de
formações discursivas, cuja resultante é uma nova formação dominante(2001, p.67), mas,
em nossa pesquisa, temos apenas uma FD sendo mobilizada, o que nos impediria de pensar
neste nível de autoria, que Gallo fala em oposição entre duas ou mais FDs e surgimento de
uma nova FD como resultado do trabalho do sujeito do discurso enquanto efeito-autor.
Nosso deslocamento, portanto, consiste em perceber que no interior de uma mesma
FD também temos um confronto que se dá entre as diferentes posições-sujeito que apresentam
formas distintas de relação do sujeito do discurso com os saberes regulados pela Forma-
sujeito da FD. Nesta perspectiva, o que surge do confronto entre as posições-sujeito é uma
nova posição que representa aquele sujeito que o se identifica com as posições já existentes
no interior da FD com a qual se identifica, inaugurando, assim, uma nova forma de
subjetivação que produz rupturas com os saberes internos da FD, possibilitando que outros
discursos possam ser elaborados, e tornando a FD heterogênea. Assim, acreditamos que não
a desidentificação do sujeito com os saberes da FD é marca da heterogeneidade discursiva,
mas também a contra-identificação é uma forma de ruptura parcial com saberes de uma FD.
Assim, estaremos trabalhando com a noção de função-autor quando estivermos
concebendo um sujeito organizador de discursos, e com o efeito-autor quando o sujeito
apresentar-se como produtor de sentidos, como fonte de ruptura dos saberes logicamente
99
estabilizados pela FD capitalista. A partir do deslocamento apresentado no parágrafo anterior,
lembramos que, em nossa pesquisa, o efeito-autor não será pensado apenas quando da
desidentificação do sujeito do discurso com os saberes da FD capitalista, mas também quando
o sujeito contra-identificar-se com estes saberes. Principalmente, porque concebemos a plena-
identificação como forma genuína de organização e reprodução de discursos cristalizados.
Realizaremos, a seguir, um retorno às questões tratadas neste terceiro capítulo para,
no próximo capítulo, apresentarmos a metodologia a partir da qual esta pesquisa foi
elaborada.
100
COSTURANDO A ELABORAÇÃO DO APARATO TEÓRICO
Neste capítulo teórico, abordamos conceitos essenciais da Teoria do Discurso para
nossa pesquisa, concebendo a imagem como mais uma das materialidades que revestem o
discurso. As materialidades simbólicas - os objetos culturais - circulam por toda a parte,
mídia, ruas, museus, cinemas, shoppings e etc., obrigando-nos a interpretá-las, como diria
Orlandi. Na era da multimídia, elas estão em nossas casas, em nossa programação ideológica
diária e sutil; parece-nos, portanto, válido empreender um estudo deste processo de produção
de sentidos, que está sempre acontecendo, a partir da observação da materialidade imagética,
ou fílmica.
Foi o próprio Pêcheux que permitiu o trabalho com materialidades não-lingüísticas
ao dizer que a AD é uma disciplina de interpretação(PÊCHEUX, 1990
55
, p.55), o que nos
aponta que o importante em uma análise discursiva é o processo de produção de sentidos, o
qual independe da materialidade simbólica observada para ocorrer. Também temos uma
contribuição importante do autor quando ele diz que:
O ponto crucial é que, nos espaços transferenciais da identificação,
constituindo uma pluralidade contraditória de filiações históricas (através
das palavras, das imagens, das narrativas, dos discursos, dos textos, etc...), as
“coisas-a-saber” coexistem assim com objetos a propósito dos quais
ninguém pode estar seguro de “saber do que se fala”, porque esses objetos
estão inscritos em uma filiação e não são o produto de uma aprendizagem.
(Ibid.)
A partir desta citação podemos depreender que a filiação ideológica é o ponto
essencial da produção de sentidos, e sua percepção se através da identificação do sujeito
com saberes pertencentes a filiações históricas de sentido, representadas através de
materialidades verbais e não-verbais. Pêcheux diz que as coisas a saber(Ibid.) não existem
a partir de verdades incontestáveis, mas da relação constitutiva entre o discurso e suas
condições de produção, produção esta que se dá sempre sob os olhos dos aparelhos que
organizam as sociedades de forma que os sujeitos não reconheçam a interpelação ideológica
que atinge a todos de forma silenciosa. A referência do autor às imagens nos é bastante cara,
pois, se ele ainda não havia pensado em trabalhar com essa materialidade simbólica enquanto
discurso, sua referência a ela demonstra que Pêcheux já tinha a percepção de que outros
materiais simbólicos, além da língua, também podem ser interpretados a partir das
condições de sua produção e das condições de produção de sua interpretação.
55
Data da edição utilizada para consulta que se trata de uma tradução da versão inglesa Discourse: Structure or
Event? de 1988, o original francês data de 1983.
101
A relação entre o sentido e o sujeito do discurso também se fez importante, pois
pensar sobre a interpretação de um material simbólico no âmbito da AD pressupõe o trabalho
com um sujeito interpelado ideologicamente, dotado de inconsciente e passível de cometer
falhas, equívocos, assim como de ser tomado pelos esquecimentos que o impedem de ser um
sujeito intencional. Esse sujeito também é histórico, pois sua existência situa-se no interior de
determinada conjuntura histórica na qual o embate sempre presente entre as ideologias
dominantes e dominadas também trabalha na produção de sentidos. A partir dessa noção de
sujeito foi possível ancorar a reflexão acerca da leitura, da interpretação e da autoria,
categorias essenciais para o trabalho com a materialidade discursiva, pois propõem um olhar
não literalizante sobre o sentido, já que sua produção prescinde das relações entre os discursos
e destes com suas condições de produção. As histórias de leituras do leitor e das
materialidades simbólicas também constituem a interpretação, assim como o confronto entre o
leitor real e o leitor virtual.
As noções de formações ideológicas e de formações discursivas são imprescindíveis
devido à filiação dos sentidos, pois a interpelação ideológica é essencial no trabalho com a
interpretação das materialidades simbólicas. O maior deslocamento proposto para essas
noções no trabalho com a imagem foi o fato de que as redes de saber que constituem a
instância ideológica - assim como seu recorte, a saber, a formação discursiva - não se
constituem apenas de material lingüístico, mas também de outras materialidades, ou seja, a
imagem também se encontra no interior das FIs e das FDs.
Para entendermos melhor as questões relativas à produção dos sentidos sobre o
discurso cinematográfico também foi necessário rever a noção de interdiscurso em suas duas
modalidades, pré-construído e discurso transverso, pois sabemos que todo o discurso é
constituído de saberes já-ditos e de possibilidades silenciadas que se atravessam no discurso
formulado. Esse jogo de retorno de saberes, e possível deslocamento de um sentido para
outro, também inclui o trabalho da memória discursiva, pois é dela que os dizeres
realizados retornam para que sejam elaboradas outras formulações.
A noção de heterogeneidade nos permitiu trabalhar com a constituição plural do
discurso cinematográfico, pois assim como o texto verbal conta com conteúdos da
exterioridade para sua constituição, o mesmo ocorre com a imagem. Assim, o ponto
importante desta noção é que ela nos permite perceber que a diversidade da constituição do
discurso imagético também produz efeitos na sua recepção.
Dentre os outros autores que também auxiliaram nossa caminhada na descoberta da
materialidade imagética, Courtine foi importante, pois foi o primeiro a produzir uma análise
102
discursiva a partir de um documento fotográfico. Assim, ele relacionou a memória discursiva
com o acontecimento do desaparecimento de um personagem histórico de uma fotografia.
Orlandi, por sua vez, também atentou-nos para o fato de que a interpretação não se dá
apenas a partir de uma materialidade simbólica isolada, pois todas elas se relacionam e, por
isso, trabalham juntas na construção dos sentidos. Com base nisso, poderíamos pensar que se
o pensamento estrutura-se em linguagem não seria equívoco dizermos que ele também se
estrutura em imagem, bem como a partir de um vasto leque de materialidades simbólicas.
Souza foi importante neste capítulo, pois iniciou os trabalhos com as imagens de
forma que elas não fossem “reduzidas” a palavras, mas consideradas em sua plenitude. Assim,
ela nos chamou atenção para o fato de que a imagem tem sua forma própria de significar:
muda, em movimento. Ao mesmo tempo, a autora salienta semelhanças entre a materialidade
verbal e a não-verbal, e a principal delas é que ambas significam na ordem do discurso, ou
seja, a exterioridade as constitui.
Sicard foi outra referência importante devido ao seu trabalho com as imagens de
ciência que nos ensinou a pensar a imagem não apenas como aquilo que se vê, mas também
como aquilo que se constrói a partir do que se vê com o auxílio do imaginário, das histórias de
leituras, de discursos pré-construídos.
Considerando a Semiótica precursora do trabalho com materialidades não verbais,
tomamos sua afirmação de que um ritual, um balé, um filme são todos textos, já que é possível
construir sentidos a partir deles, para refletir sobre o discurso cinematográfico. Algumas
considerações de Greimas, Courtén e Eco também demonstraram-nos a pertinência de
103
pode relacioná-la a outras materialidades na sua interpretação. Quanto à interdiscursividade
temos uma ampliação bastante importante, já que ela aponta para a pluralidade dos materiais
simbólicos que podem ser uma forma de representação do discursivo. Assim, a imagem
também pode ser interpretada como um texto que, entretanto, mantém características
particulares de recepção, tal como foi lembrado por Sicard e Souza: a estética da recepção é
uma das características que definem a imagem como uma materialidade particular. Parece-
nos, inclusive, que esta estética ocasiona uma alteração no que seria a exposição do texto ao
leitor, pois a imagem parece não estar pronta para ser decifrada, ela vai criando uma
atmosfera de significação que está representada através de formas simultâneas de linguagem,
104
CAPÍTULO 4: METODOLOGIA DE ANÁLISE
4.1. OBJETO DE ANÁLISE
Em AD não uma separação rígida entre o campo da teoria e o campo da prática, o
que temos é um processo de leitura e reflexão sobre a teoria, que vai auxiliar na construção do
dispositivo de análise. Isso porque não uma metodologia previamente estabelecida através
da qual as análises serão realizadas, mas formulações teóricas que podem, ou não, ser aliadas
a cada prática de análise conforme as necessidades de cada corpus específico. Sendo que o
próprio analista também pode, e deve, produzir seus procedimentos metodológicos, tendo em
vista a peculiaridade de seu objeto.
De acordo com Orlandi (2002), o analista deve estabelecer uma escuta que lhe
possibilite perceber sentidos além das evidências, buscando compreender de que forma eles
estão sendo produzidos. Para construir um dispositivo de interpretação, o analista deve
considerar o sujeito que interpreta, as condições de produção desta interpretação, e a história
de leituras do material simbólico considerado. O dispositivo desta pesquisa é voltado para o
trabalho com o não-verbal, que bastante tempo nos interessamos pela materialidade
imagética, interesse que se sustenta no fato de estarmos cercados por propagandas, banners,
cartazes, outdoors, filmes, entre outros materiais simbólicos que nos são oferecidos a
significar. Esse fato histórico da atualidade nos levou a questionar as formas de recepção
desse apelo constante à interpretação da materialidade imagética que nos é imposto.
Na construção da temática que nos interessou, partimos dos documentários
KOYAANISQATSI (1983) e POWAAQATSI (1987)
56
, ambos de Godfrey Reggio,
constituídos por imagens reais, acompanhadas por uma trilha sonora minimalista, composta
por Philip Glass, exclusivamente, para cada cena que os compõem. As cenas foram captadas
por Reggio e sua equipe de filmagem em viagens realizadas aos hemisférios norte e sul, do
ocidente ao oriente do globo. Reggio explica seu trabalho, em uma entrevista que obtive na
Internet, da seguinte forma:
O primeiro filme "Koyaanisqatsi" lida com aspectos da indústria tecnológica
hipercinética do Hemisfério Norte. O segundo filme "Powaaqatsi" lida com
culturas de moralidade, de tradição e da existência artesanal - culturas da
105
algo que vivemos. O objetivo da trilogia, numa maneira limitada, foi mostrar
um espelho da vida assim como ela é; uma via muito rápida. (REGGIO,
1996)
Como podemos perceber, o autor dos documentários contemplou uma infinidade de
temáticas no seu empreendimento cinematográfico, entretanto, para compor o material de
nossa pesquisa, utilizamos apenas algumas cenas dos documentários de 1983 e 1987 que
retratavam diferentes formas de trabalho - sendo que as artesanais foram encontradas em
POWAAQATSI e as industriais em KOYAANISQATSI. Após a seleção das cenas que nos
interessavam, de acordo com a temática que havia sido previamente escolhida, produzimos
um recorte (literalmente falando) dessas cenas, na tentativa de compor um pequeno filme -
quase um curta-metragem - com um direcionamento de sentidos distinto daquele produzido
por Reggio, porque o nosso objeto foi construído com base nas relações de trabalho sob a
perspectiva telúrica (relacionada a formas de trabalho que representam um metabolismo
homem/natureza) e sob a perspectiva capitalista (relacionada a formas de trabalho que
representam o trabalho abstrato), relações essas que pressupõem modos de produção e
formas de relação distintas entre produto e trabalhador.
Nos documentários citados, temos a denúncia de um processo de transformação,
sofrido por, praticamente, todas as sociedades e que instaurou a relação de supremacia dos
povos de primeiro mundo em relação aos povos do terceiro mundo. POWAAQATSI traz
imagens que são a expressão da cultura dos povos de terceiro mundo, tanto do lado ocidental
quanto do hemisfério oriental de nosso planeta, das quais recortamos as relações de trabalho.
Em KOYAANISQATSI observamos os costumes e relações de trabalho dos povos de
primeiro mundo; o que possibilitou a instauração de dois diferentes pontos de vista sobre a
noção de trabalho. As imagens apresentadas nos dois documentários tornam possível
depreender os aspectos universais que caracterizam a diferença radical existente entre a
concepção capitalista e a telúrica de trabalho.
Na construção de nosso dispositivo de análise, buscamos a noção de matriz
parafrástica para trabalhar com a filiação dos sentidos produzidos a partir do material
simbólico que denominamos recorte fílmico, no intuito de distingui-lo do recorte discursivo
verbal que efetuamos no momento analítico. Assim, acreditamos ser possível definir, com
base nesse material, no mínimo, duas matrizes de sentidos: uma relacionada ao trabalho
manual, e outra ao trabalho industrial.
Com base no estudo que realizamos das noções teóricas de trabalho, mobilizadas
pela Filosofia e Sociologia, entendemos que a primeira dessas formas de trabalho relaciona-se
106
à forma artesanal de produzir bens de consumo, e tem como característica principal o trabalho
do homem articulado à natureza. A partir disso, decidimos denominar esta modalidade de
trabalho como sendo parte de uma perspectiva telúrica de trabalho, representada no recorte
fílmico por cenas de agricultura, artesanato, pecuária, coleta de frutos, assim como outras
tarefas que relacionam o homem com a instância natural. Relação essa na qual o trabalhador
realiza todo o processo do trabalho, como, por exemplo, da criação do animal até seu abate e
conseqüente consumo alimentar.
A segunda modalidade de trabalho representada no recorte fílmico diz respeito ao
trabalho industrial, mecanizado, relacionado às determinações capitalistas ditadas pela
sociedade do consumo. Sendo que a principal característica dessa modalidade é a
segmentação do trabalho do homem em diferentes etapas de produção, nas quais, diferentes
trabalhadores desempenham as distintas funções achegar ao produto final, o qual segue da
cadeia de produção (industrial) para a de negociação (comercial).
Elaborando estas redes de significação na própria construção do objeto que estamos
estudando, objetivamos evidenciar o contraste existente entre essas duas concepções de
trabalho, ou seja, essas duas formas de relação do sujeito com os dizeres existentes sobre esta
noção. Assim, um conceito importante é o de formação discursiva, que ela funciona como
o lugar em que os dizeres do sujeito do discurso recebem sua filiação ideológica, onde o
sujeito toma posição e o seu dizer passa a compor uma rede de saberes estruturada pelo
Sujeito-universal, ou passa a desestruturar os saberes da FD.
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE ANÁLISE
Na AD, o arquivo é concebido como um objeto teórico a ser construído pelo analista,
e não um dado empírico sobre o qual se processa a análise. A noção de arquivo deve ser
pensada no contexto da divisão social do trabalho da leitura, pois este se inscreve numa
relação de dominação política em que a alguns é dado o direito de interpretar, enquanto a
outros é relegada a tarefa de manutenção das interpretações legitimadas por cientistas e
autoridades, por exemplo. Portanto, a leitura do arquivo já parte de um ponto de vista que tem
sua origem nas determinações sociais. Pêcheux (1994) afirma que o central da leitura de
arquivo consiste em perceber a relação entre a língua, entendida como sistema sintático
passível de jogo, e a discursividade, concebida como inscrição de efeitos lingüísticos
materiais na história.
107
Guilhaumou e Maldidier (1994, p.164) afirmam que o arquivo nunca é dado à priori,
seu funcionamento é opaco e a identificação institucional (data, nome próprio...) utilizada
pelos historiadores em seus trabalhos é insuficiente para pensar o funcionamento do arquivo,
sua inscrição histórica, seu direcionamento ideológico. Deve-se, então, remeter o arquivo ao
interdiscurso, aos outros textos que com ele possam manter relações. Essa é a prática atual da
AD, em que regimes múltiplos de produção, circulação e leituras de texto são convocados
para a construção do arquivo. Os autores dizem, ainda, que o arquivo não é um reflexo
passivo de uma realidade institucional como o querem os historiadores, ele é ordenado por sua
abrangência social; não é simples documento, ele permite uma leitura que traz à tona
dispositivos e configurações significantes.
O arquivo sobre o qual nosso trabalho é composto - os documentários
POWAAQATSI (1987) e KOYAANISQATSI (1983) - exclusivamente por imagens e sons.
Logo, a dispersão deste arquivo não é tão ampla quanto a de outros tantos, visto que ele
próprio é uma montagem que tem como interdiscurso uma quantidade infinita de cenas, no
entanto, apenas aquelas que interessavam ao objetivo do diretor foram inseridas na edição
final dos filmes.
A construção do objeto de análise desta pesquisa resultou da transformação dos dois
documentários acima citados, sendo que cada um deles tem duração total de 90 minutos, em
um recorte fílmico sobre o trabalho humano. Neste processo, exerci o papel de organizadora
dos discursos contidos nos documentários de forma a conferir-lhes uma única temática e, para
isso, todas as cenas que não tratavam de relações de trabalho foram excluídas do projeto,
enquanto as cenas que representavam diferentes formas de trabalho foram selecionadas.
Entretanto, não seria possível incluir todas as cenas que tratavam deste tema, assim, uma nova
etapa de recorte de cenas teve de ser realizada, a partir do conjunto de cenas que
representavam formas de trabalho, com o objetivo de apresentar a perspectiva telúrica e a
capitalista sobre o trabalho em um só recorte fílmico.
Toda a pesquisa envolve condições de produção determinadas; em nosso caso, o
tempo, em sentido estrito, era muito preocupante, pois o recorte fílmico deveria ser sucinto e,
ao mesmo tempo, representativo o suficiente para que as duas formas de trabalho
contempladas fossem devidamente percebidas, pois este recorte fílmico seria exposto à
interpretação posterior. Logo, o trabalho de recorte e montagem das cenas selecionadas
resultou em um recorte fílmico de 10 minutos, breve o suficiente para apresentar o tema
trabalho e para suscitar interpretação e discussão em momento posterior como será exposto
na próxima seção.
108
O TRABALHO DE INTERPRETAÇÃO DO RECORTE FÍLMICO
Nossa pesquisa tem três momentos distintos: no primeiro deles, temos a seleção de
cenas dos documentários e montagem do recorte fílmico; no segundo, levamos o recorte
fílmico para a interpretação dos alunos em sala de aula; e, no terceiro, analisamos as
seqüências discursivas de referência, recortadas dos textos produzidos pelos alunos. Vamos
nos deter aqui na explicitação dos procedimentos do terceiro momento da pesquisa.
O terceiro momento de nossa pesquisa, portanto, consistiu em analisar as
interpretações produzidas a partir do recorte fílmico por três grupos de alunos de primeiro e
quarto anos pertencentes ao curso de Letras da Fundação Universidade Federal do Rio Grande
(FURG). Faz-se importante esclarecer que o tema do recorte fílmico não foi anunciado
previamente aos alunos/espectadores, pois, que eles deveriam interpretar o material que
assistiriam, seria melhor não dizer nada que pudesse direcionar a produção deles.
Acreditamos que este cuidado talvez possibilitasse o surgimento de discursos em que o gesto
de autoria estivesse presente. Vale também ressaltar que estamos pensando a autoria no
interior da teoria do discurso, ou seja, trabalhamos com a concepção de função autor, de
efeito-autor, e nunca com um indivíduo produtor de sentidos originais.
Mas, quem são esses sujeitos espectadores que interpretaram nosso recorte fílmico? A
escolha do público espectador foi feita com base na minha ligação com a universidade na qual
cursei a graduação em Letras; a Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG). E,
também, por que meu desejo não era o de obter a opinião de especialistas em cinema ou
estudiosos da categoria trabalho; mas sim de leigos, para perceber como a imagem atua no
processo de produção de sentido. Um ponto que foi decisivo na escolha do público espectador
para a realização desta pesquisa, foi o mero de pessoas que iriam participar da pesquisa. O
número não poderia ser muito reduzido, e, ao mesmo tempo, não poderia ser muito extenso
devido ao tempo que teríamos para a posterior produção das análises.
Com base, então, nessas questões, escolhemos três grupos de alunos da FURG aos
quais o recorte lmico foi apresentado, sendo um grupo pertencente ao primeiro ano de
graduação do curso de Letras da citada instituição; e os outros dois grupos pertencem um
ao turno da manhã do quarto ano de graduação do mesmo curso e da mesma universidade, e o
outro, ao turno da noite também do quarto ano de graduação em Letras daquela instituição.
Para isso, foram realizadas três apresentações do recorte fílmico - que foi projetado em telões
a partir de um datashow - uma para cada turma, com a diferença de que o grupo pertencente
ao primeiro ano de graduação assistiu à apresentação visual, exclusivamente, devido a um
109
problema na saída de som do computador utilizado para a apresentação, fato que ocasionou a
impossibilidade de escutar o som que acompanha o recorte.
Esse imprevisto até poderia ter sido planejado e havíamos (eu e minha orientadora)
mesmo pensado nessa possibilidade - pois a ausência ou presença de som na apresentação das
cenas também é um elemento constitutivo da interpretação -, mas não cheguei a planejar a
execução da mesma e ela acabou acontecendo por outros motivos. O resultado disso, nas
reflexões, foi menos determinante do que esperávamos, pois o som foi percebido pelas turmas
de quarto ano (que assistiram ao recorte lmico com áudio) juntamente com a calma ou
agitação das cenas, também representadas na instância visual. Mas, um fato interessante que
notei, durante a apresentação das cenas sem áudio, foi uma maior tensão da turma do primeiro
ano, o que resultou numa maior seriedade dos alunos ao longo do tempo em que assistiram ao
material. A meu ver, essa turma respondeu de uma maneira formal à atividade. as turmas
de quarto ano estavam mais à vontade, e, inclusive, encararam a atividade de forma lúdica,
rindo e brincando com os colegas enquanto a seqüência era apresentada. O som, portanto,
produziu um clima mais descontraído às apresentações para as turmas de quarto ano,
enquanto a turma de primeiro ano experimentou a tensão de assistir às cenas em meio ao
silêncio que as acompanhava.
Apresentadas as condições de produção desta pesquisa, vamos, agora, passar para a
explicitação da metodologia utilizada no primeiro momento da pesquisa, a construção do
corpus de arquivo, e, também, no terceiro momento, a análise do corpus experimental.
4.2. SEGMENTO E RECORTE
A noção de recorte é essencial, pois se trata de um deslocamento da noção de
segmento, que opera na Lingüística. A peculiaridade do recorte é que ele compreende a
materialidade lingüística e a histórica, o que faz com que o analista de discurso, ao recortar
um texto, o faça a partir de determinações históricas e ideológicas, e não apenas lingüísticas.
O recorte resulta de teoria e é uma construção, pois, através dele, se chega à representação das
relações textuais referidas às condições em que estas foram produzidas.
Dessa forma, procura-se não perder de vista a constituição heterogênea do discurso,
visto que o recorte discursivo compreende tanto a língua quanto a situação. Orlandi (1984)
caracteriza o recorte como um naco, pedaço, fragmento; pois ele não é segmento mensurável
em sua linearidade, sua constituição é intervalar, tal qual o sentido que não se encontra
110
atrelado ao sujeito ou à palavra, mas ao espaço discursivo constituído entre os enunciadores.
Isso também acontece com o recorte do texto imagético, pois sua constituição é heterogênea,
e o efeito de sentido que dele deriva depende das condições de sua produção e das condições
de produção de sua leitura. Podemos dizer, assim, que essa materialidade não determina
apenas um sentido, mas serve de suporte a partir do qual o processo de interpretação se dá, em
busca dos processos de significação e seus efeitos de sentido. Observamos que a
materialidade fílmica (imagem e som) pode ser recortada e interpretada da mesma forma que
uma materialidade lingüística.
Nesta pesquisa, o trabalho com o recorte tem dois momentos: o primeiro se refere à
seleção das cenas que fazem parte de nosso recorte fílmico, o qual foi construído a partir da
representação imatica (e sonora) da noção de trabalho. Assim, um deslocamento da
noção de recorte que vai da materialidade lingüística à materialidade imagética, desde que se
considere a característica peculiar desta, suas formas de recepção distintas. Logo, sabendo que
as materialidades simbólicas não-verbais também são constituídas pela instância histórico-
social, pelo sujeito-autor e pelo sujeito que as interpreta, podemos produzir recortes e
mobilizá-los para o trabalho de interpretação.
A cristalização de discursos acerca do trabalho - que produz a ilusão de que o
sentido da vida humana está no trabalho foi um dos questionamentos que guiaram a
construção do objeto desta pesquisa. Haja vista que a legitimação de um discurso dominante
produz o silenciamento de outras possibilidades de sentido, e também das razões pelas quais
se permite e defende a perpetuação da realidade capitalista. O conceito de trabalho como
gerador de capital para a sobrevivência do sujeito na sociedade de consumo, que representa o
único modo de vida existente na contemporaneidade, tende a calar aqueles discursos outros
que apontam para as falhas da interpelação do sujeito pela ideologia dominante.
O segundo momento da construção dos recortes em nossa pesquisa tem como base as
interpretações produzidas pelos alunos/espectadores sobre o recorte fílmico, pois delas serão
recortadas seqüências discursivas representativas das tomadas de posição desses sujeitos.
Neste momento, estaremos tratando de um recorte discursivo constituído pela materialidade
lingüística, e a definição das seqüências discursivas será dada pelas posições de sujeito
evidenciadas na formulação das interpretações. Nas análises vamos remeter os efeitos de
sentido produzidos ao interdiscurso, já que ele trabalha tanto na constituição quanto na
formulação dos dizeres, no intuito de demonstrar a não-coincidência dos saberes que co-
habitam na formação discursiva dominante.
111
4.3. CORPUS DISCURSIVO
Courtine (1981, p.24) define o corpus discursivo como um conjunto de seqüências
discursivas estruturado segundo um plano definido com referência a certo estado de
condições de produção do discurso”. O corpus é, portanto, produto de um gesto de
interpretação, pois sua seleção está relacionada aos objetivos de pesquisa do analista que, em
AD, têm ligação direta com o processo de produção do discurso.
Courtine também afirma que, para delinearmos o corpus discursivo, devemos partir
de um universal discursivo (Ibid.) que, segundo Dubois (1969), seria o conjunto de
discursos que podem ser analisados a partir da delimitação de um campo discursivo de
referência”. A partir do campo discursivo, serão extraídas as seqüências discursivas que serão
submetidas à análise. Segundo Courtine (1981), as noções de seqüência discursiva e
seqüência discursiva de referência devem ser consideradas com relação a um sujeito de
enunciação, às coordenadas espaço-temporais que as constituem, assim como às condições
mais circunstanciais de sua produção. O autor ressalta que uma seqüência discursiva deve ser
determinada pela sua pertinência no interior de uma conjuntura histórica, assim como pelas
condições nas quais ela é produzida, e pelas relações que ela mantém com outras formulações.
Essas relações podem ser de oposição, de aliança, de resposta e auxiliam na descrição do
quadro institucional e as circunstâncias enunciativas de produção das seqüências.
A noção de seqüência discursiva é muito importante, pois são as seqüências
analisadas que indicam o caráter simples ou complexo de um corpus discursivo. Courtine
(1981) diz que o corpus pode ser constituído por seqüências discursivas produzidas por um
locutor ou por mais de um locutor; produzidas a partir de posições ideológicas homogêneas
ou heterogêneas; produzidas em sincronia ou diacronia, em qualquer destes casos a primeira
alternativa aponta para o corpus simples e a segunda o corpus complexo. Ainda devemos
considerar se o corpus é constituído a partir do arquivo, ou seja, corpus pré-existentes; ou
corpus experimental, isto é, produzido a partir de questionários, entrevistas, etc.
Nesta pesquisa, cada uma das imagens recortadas pode ser tomada como uma
seqüência discursiva não-verbal, e relaciona-se com o que Courtine (1999) chama de nível
do enunciado(p.18), pois cada uma dessas seqüências deve ser considerada quanto à sua
existência vertical, ou seja, quanto à relação que mantém com enunciações distintas e
dispersas, articulando-se entre elas em formas lingüísticas determinadas(Ibid.). Em nosso
trabalho, deslocamos as ‘formas lingüísticas’ de que fala Courtine para as ‘materialidades
simbólicas’ para dar conta também das imagens-outras que se relacionam àquelas que estão
112
sendo apresentadas. Considerando que recortamos seqüências de imagens e que elas foram
produzidas em diacronia (1983/1987), assim como representam posições ideológicas
heterogêneas, podemos afirmar que nosso corpus de arquivo é complexo.
quanto ao corpus experimental, constituído por seqüências discursivas de
referência extraídas das interpretações dos alunos/espectadores, também podemos caracterizá-
lo como complexo, pois as seqüências analisadas foram produzidas por locutores diferentes
com posições ideológicas distintas. Na verdade, o próprio fato de estarmos trabalhando com
um corpus de arquivo e um corpus experimental caracteriza esta construção de corpus
como complexa.
Segundo Courtine, três princípios a que a constituição do corpus deve responder:
a) exaustividade, ou seja, nenhum fato discursivo deve ser deixado de fora do corpus; b)
representatividade, ou seja, não se deve depreender uma lei geral de um fato constatado
apenas uma vez; c) homogeneidade, garantida pelas condições de produção. No entanto,
alguns desses princípios destoam um pouco das concepções de outros teóricos com relação à
construção do corpus discursivo. Orlandi discorda do critério de exaustividade de Courtine,
pois ele aponta uma noção de corpus homogêneo, dotado de completude, e propõe a
exaustividade vertical, que corresponde à profundidade das análises empreendidas.
Quanto ao critério de representatividade ele se mostra bastante profícuo nas análises
em geral, pois como não é possível contemplar todos os fatos correspondentes a determinado
corpus, é necessário que as seqüências recortadas sejam capazes de representar o todo ao qual
a análise se refere. Para a composição de nosso corpus de arquivo, por exemplo, foram
recortadas algumas cenas totalizando, aproximadamente, 10 minutos de um arquivo de mais
de 180 minutos, o que significa que elas representam o todo do qual fazem parte. Já quanto às
seqüências discursivas que constituem o corpus experimental, buscamos agrupá-las em
recortes discursivos, de forma a evidenciar o caráter de representatividade de uma tomada de
posição.
O critério da homogeneidade também é alvo de críticas, pois, ao concebermos a FD
como heterogênea, as condições de produção também o são e, nesse caso, torna-se difícil
tentar aplicar este critério ao corpus. Trabalhar com a homogeneidade implica no apagamento
das condições de produção deste discurso, e a elisão da heterogeneidade constitutiva de
qualquer discurso.
Maingueneau (1997) propõe para a delimitação do corpus três noções: universo
discursivo, campo discursivo e espaço discursivo. A primeira é o conjunto de formações
discursivas de todos os tipos que coexistem, ou melhor, interagem em uma conjuntura
113
(p.116), trata-se de um conjunto irrepresentável. O campo discursivo é definido como um
conjunto de formações discursivas que se encontram em relação de concorrência, em sentido
amplo, e se delimitam, pois, por uma posição enunciativa em uma dada região.” (Ibid.). O
autor ressalta que o campo discursivo deve ser recortado em decorrência de hipóteses
explícitas, relacionadas ao trabalho de análise, e não de uma partição do universo discursivo.
De acordo com Orlandi, é no interior do campo discursivo que o discurso se constitui.
Portanto, em nossa pesquisa, ele remete à temática do recorte fílmico, o discurso sobre o
trabalho.
O espaço discursivo, por sua vez, delimita um subconjunto do campo discursivo,
ligando pelo menos duas formações discursivas que, supõe-se, mantém relações
privilegiadas, cruciais para a compreensão dos discursos considerados.” (MAINGUENEAU,
1997, p.117). O autor diz, ainda, que este espaço deve ser definido pelo analista, de acordo
com os objetivos de sua pesquisa, visto que as FDs se opõem diferentemente no interior do
campo discursivo, o que leva o analista a ter de decidir quais oposições são fundamentais, e
quais não têm um papel essencial para o seu trabalho. O espaço discursivo que delimitei para
análise de meu corpus empírico é composto pelos 10 minutos de cenas recortadas, a partir das
quais identifiquei duas concepções de trabalho que se opõem: uma que corresponde ao modo
de produção capitalista e outra que corresponde ao modo de produção telúrico.
Para concluir, relembramos que o corpus de arquivo desta pesquisa consiste no
recorte fílmico dos dois documentários de Reggio KOYAANISQATSI e POWAAQATSI -
e o corpus experimental é constituído pelas interpretações produzidas pelos
alunos/espectadores. A relação entre as seqüências recortadas é significativa para a análise do
todo que as mesmas compõem. Com base nela produzimos os recortes discursivos que
delineiam os saberes que constituem a FD capitalista, a partir das tomadas de posição dos
sujeitos do discurso. No próximo capítulo vamos analisar as seqüências discursivas recortadas
das interpretações produzidas pelos alunos.
114
CAPÍTULO 5: MOMENTO ANALÍTICO
Nossa tentativa, ao longo das análises realizadas sobre as interpretações produzidas
pelos alunos/espectadores, foi a de contemplar todas as formas de relações dos sujeitos do
discurso com a ideologia dominante - que está sendo representada aqui pela FD capitalista.
Algumas se repetiram, mas em nossa pesquisa não vamos privilegiar apenas os casos
hegemônicos, por isso, analisamos também as tomadas de posição que destoaram dos saberes
sustentados pela Forma-sujeito da FD dominante. Isso porque objetivamos compreender as
diferentes concepções de trabalho para os sujeitos sociais do mundo contemporâneo e,
sabendo que o sentido não pode ser unívoco, mobilizamos as diferentes interpretações que
foram feitas sobre o tema trabalho.
Nosso objetivo, portanto, é construir diferentes redes discursivas de sentidos com base
em nossas análises para compreender o funcionamento dessa noção na práxis social.
Considerando que as duas formas de trabalhotelúrica e capitalista - mobilizadas no recorte
fílmico são “objetos imaginários”, constituídos por “formações imaginárias” (Pêcheux,
1997
57
, p.83) que atuam na ordem social, não podemos esquecer que, ao produzir sentidos, o
sujeito do discurso interpretante estará resgatando saberes que têm sua origem nestas
formações que atingem a coletividade.
Para definir as seqüências discursivas de referência que serão analisadas aqui
consideramos as tomadas de posição dos sujeitos quanto à noção de trabalho, para perceber a
caracterização das duas formas que ele pode assumir, abstrata ou telúrica. A primeira delas
corresponde ao modo de produção capitalista que está sendo tomado aqui como efeito de
sentido dominante no interior da FD capitalista; a segunda representa um efeito de sentido que
se insere na FD capitalista através da contra-identificação dos sujeitos do discurso com os
saberes que constituem esta FD.
Vale salientar que em nosso corpus experimental uma outra posição-sujeito que
não pode ser considerada a partir da inserção, ou não, do sujeito do discurso na mesma
posição sustentada pela forma-sujeito da FD. Estamos falando dos casos em que o sujeito do
discurso interpretante não toma uma posição definida, pois produz enunciados divididos a
partir dos quais não é possível afirmar que seu posicionamento seja favorável, ou contrário,
aos saberes da FD capitalista. Neste caso, o leitor produz sentidos situados no limiar entre a
identificação e a contra-identificação, pois ele ainda está à deriva, à procura de seu lugar no
57
Esta é a data da obra consultada, o original é de 1969 (AAD 69).
115
interior desta FD. Por isso, identificamos este sujeito do discurso interpretante como o sujeito
do vacilo. Pêcheux (1983) denomina sujeito do vacilo aquele sujeito que, mesmo identificado
com determinada FD, não pode impedir a “irrupção imprevista de um discurso-outro” (p. 317)
no fio-do-discurso, o autor ainda questiona: “O sujeito seria aquele que surge por instantes,
onde o ‘ego-eu’ vacila?” (Ibid.), demonstrando-nos que pode haver implicações da ordem do
inconsciente nos processos de interpelação ideológica e produção do sentido.
Seguindo Grantham (2001), entendemos que o sujeito do discurso interpretante que
não se identifica com a forma-sujeito da FD e também não se identifica com a posição-sujeito
que questiona os saberes da FD capitalista a partir de seu interior, pode ser considerado como
um leitor que se inscreve em uma posição-sujeito e FD distintas daquelas do sujeito-autor.
Inserimos nesta possibilidade os casos em que os leitores produziram sentidos a partir de
temáticas distintas daquela definida no recorte fílmico. Denominamos esta forma de
interpretação como polissêmica, tomando como base a distinção entre leitura parafrástica e
leitura polissêmica efetuada por Orlandi (1987, p.200) que define a primeira como
reconhecimento do sentido dado ao texto pelo autor e a segunda como atribuição de múltiplos
sentidos ao texto.
Elaboramos, então, cinco recortes para analisar as seqüências discursivas de
referência, as quais foram organizadas a partir das tomadas de posição dos sujeitos do
discurso. Os três primeiros organizam-se em torno das principais formas de subjetivação, com
relação ao tema trabalho, apresentadas pelos alunos nas formulações das suas interpretações.
O primeiro recorte representa um sujeito plenamente identificado com a forma-sujeito da FD
capitalista e o segundo, um sujeito que questiona os saberes dessa FD, contra-identificando-se
com eles. No terceiro recorte, analisamos as seqüências que apresentam enunciado dividido, a
partir delas não é possível identificar um posicionamento específico do sujeito que interpreta,
por isso, relacionamos esta tomada de posição ao sujeito do vacilo.
O quarto e o quinto recortes, apesar de constituídos por seqüências discursivas
produzidas por sujeitos também inseridos na FD capitalista, não representam a tomada de
posição do sujeito do discurso quanto à noção de trabalho. No primeiro deles, os sujeitos do
discurso caracterizam as formas de trabalho abordadas no recorte fílmico, mas não revelam
sua identificação ou contra-identificação com o trabalho telúrico ou capitalista. Assim, os
recortes 4 e 5 dão conta de outra questão que nos interessa, o processo de recepção da
materialidade imagética.
Nossos recortes discursivos, analisados a seguir, serão construídos com seqüências
discursivas de referência identificadas como segue:
116
a) turma 1 (4º ano-manhã), textos de 1 a 19. Por exemplo: TX 5; TU 1.
b) turma 2 (1º ano-noite), textos de 1 a 36. Por exemplo: TX 30; TU 2.
c) turma 3 (4° ano-noite), textos de 1 a 17. Por exemplo: TX 7; TU 3.
RECORTE DISCURSIVO 1: Plena identificação com a FD capitalista
Neste recorte, apresentamos algumas seqüências discursivas que representam uma
posição-sujeito de plena identificação com os saberes da FD capitalista. Se tomarmos a
concepção abstrata de trabalho como um objeto imaginário, podemos dizer que ela é
compartilhada pelos membros de nossa sociedade ocidental, representando o efeito de sentido
dominante. Grantham (2001) trata dos distintos modos de relação do sujeito interpretante do
discurso com a posição-sujeito do autor de um texto sobre o qual se estabelece a
interpretação. Nesta pesquisa, deslocamos a relação do sujeito interpretante com o
posicionamento do autor para a relação do sujeito interpretante com a forma-sujeito da FD.
Assim, podemos perceber que, na constituição destes discursos, funcionam pré-construídos e
discursos transversos que retornam, através de um processo de repetição, a um efeito de
sentido cristalizado. Organizando discursos, o sujeito ocupa a função-autor e não chega a
constituir um efeito-autor. Vejamos como ocorre este processo.
SD1: De acordo com as cenas tem-se a interpretação do modo como evoluíram os meios de
produção. Passou do escravo ao maquinário, num instante. (TX 22; TU 2)
SD2: Com base no vídeo assistido (...) podemos analisar primeiramente um tipo de trabalho
no qual as pessoas parecem ser bastante exploradas e trabalham num lugar desumano e
impróprio, e no qual certamente os empregadores aproveitam-se da o-de-obra barata e
da baixa condição social para explorarem seus empregados. Num segundo plano podemos
notar a industrialização com os trabalhadores tendo um lugar digno para trabalhar. (TX 13;
TU 2)
SD3: ... quanto mais o tempo passa, mais a tecnologia evolui. Hoje em dia o trabalho braçal
é ajudado por robôs, por máquinas (...) as imagens fazem um contraponto entre os
117
trabalhadores do campo e os trabalhadores das indústrias ambos têm um trabalho árduo
sendo que no segundo há a ajuda da tecnologia. (TX 17; TU 1)
SD4: A apresentação do vídeo mostra a evolução humana no trabalho. Antes, trabalhos
manuais e condições precárias, quase uma vida subumana, por exemplo, nos garimpos. Hoje,
desde as grandes montadoras a pequenos supermercados utilizam recursos tecnológicos,
tornando as condições dos trabalhadores um pouco melhores. (TX 16; TU 1)
SD5: ... a industrialização, as máquinas tomando conta da mão-de-obra braçal, mostram a
grande facilidade de se fazer produtos com a utilização das máquinas. De um lado o
trabalho mais dificultoso e do outro o mais prático. (TX 12; TU 3)
SD6: ... as imagens apresentadas estão divididas em duas partes, a primeira, em câmera
lenta tenta reproduzir o quão vagaroso é o trabalho realizado pelos homens sem o uso de
máquinas. Numa segunda parte, as imagens são reproduzidas em uma velocidade acelerada
transmitindo a idéia de que as máquinas tornam as tarefas mais fáceis e rápidas. As
imagens refletem uma situação rotineira da vida, em ritmos distintos... (TX 9; TU 3)
Na SD1, a aluna interpreta o recorte fílmico como a representação da evolução dos
modos de produção, ou seja, sua interpretação foca a perspectiva capitalista de trabalho com
base no imaginário de que a mudança da escravidão - provavelmente as cenas da forma
telúrica de trabalho - para a utilização de máquinas - cenas da perspectiva industrial de
trabalho - aconteceu “num instante”. O uso dessa expressão atualiza um pré-construído de
que a evolução dos meios de produção foi rápida e sem percalços, dizer em que emerge um
efeito de memória cristalizado pelo sentido dominante, e que esconde o discurso sobre a luta
de classes que sempre foi silenciado. A retomada de um discurso da ordem do já-dito
demonstra que a aluna organiza discursos, exercendo, assim, a função-autor sem, no entanto,
articular saberes contraditórios ou heterogêneos.
Na SD2, o aluno caracteriza positivamente a industrialização, devido à melhoria das
condições de trabalho que o modelo de produção em massa proporcionou. O uso da expressão
lugar digno para definir este modelo de trabalho indica sua identificação plena com os
saberes regulados pela Forma-sujeito da FD capitalista. Essa interpretação aponta-nos,
também, o silenciamento de um discurso-outro que pode ser retomado interdiscursivamente, e
118
representa os malefícios da evolução dos modos de produção, pois, para que um sistema
social vigore, os discursos contrários a ele devem ser esquecidos, silenciados, apagados pelo
efeito de sentido dominante. Essa seqüência constitui, portanto, um exemplo da eficácia do
apagamento dos discursos-outros na formulação do sujeito interpretante.
Na SD3, a aluna relaciona a forma capitalista de trabalho com a evolução tecnológica
ao dizer que esta auxilia os trabalhadores das indústrias. A falta de questionamentos pode ser
apontada como identificação do sujeito do discurso com os saberes da FD capitalista, a crença
da aluna no auxílio da evolução tecnológica para o trabalhador constitui uma forte marca de
sua identificação com os saberes desta FD. Comparando as duas formas de trabalho
apresentadas no recorte fílmico, a espectadora diz que em ambas o trabalho é “árduo”, apesar
de a segunda forma receber ajuda da tecnologia, ou seja, a aluna enuncia a partir de uma
posição-sujeito que defende a perspectiva de que a evolução tecnológica trouxe melhorias
para o trabalhador. Assim, quando este sujeito do discurso considera essas duas formas de
trabalho, propondo sua equivalência, podemos dizer que sua interpretação se insere na ordem
da repetição de um dizer cristalizado e demonstra sua identificação com os saberes da
ideologia dominante.
Na SD4, percebemos uma interpretação positiva da forma capitalista de trabalho, pois,
no entender desta aluna, as imagens representam a evolução humana no trabalho”, e a
qualificação negativa da perspectiva telúrica de trabalho através das construções: condições
precárias” e “vida subumana”. Ao dizer que os recursos tecnológicos tornam as condições
dos trabalhadores um pouco melhores”, a aluna marca através do advérbio pouco” a
existência de um discurso-outro que revela a insuficiência dos avanços tecnológicos para a
melhoria da vida dos trabalhadores.
Na SD5, a aluna caracteriza a forma telúrica de trabalho como algo “mais dificultoso”
e a capitalista como algo mais prático”, ou seja, temos a qualificação negativa da primeira e
a positiva da segunda. A partir disso, já podemos perceber a identificação desta espectadora
com a FD capitalista; também temos a grande facilidade” apontada na utilização de
máquinas para a produção, construção em que, além da qualificação efetuada através do
adjetivo fácil”, temos a intensificação deste com o advérbio grande”, o que aponta uma
interpretação que se baseia nos modelos através dos quais cada uma das formas de trabalho se
realiza.
Na SD6 a leitura do aluno aponta que o recorte fílmico é dividido em duas partes”,
com base nos ritmos distintos em que as cenas são apresentadas. Isso nos leva a pensar que
sua interpretação foi influenciada pela característica particular da materialidade simbólica
119
apresentar ritmo, já que algumas cenas eram aceleradas e outras não; assim como pela
instância sonora que, de forma minimalista, complementa o plano visual. Demonstrando que o
funcionamento particular da materialidade não-verbal deixou marcas na sua interpretação, e a
percepção das duas formas cotejadas, trabalho e trabalho abstrato, aponta para a emersão do
interdiscurso no fio-do-discurso.
A idéia de que as máquinas tornam o trabalho humano mais fácil” e rápido” nos
indica o caminho da identificação deste aluno com a FD capitalista, assim como a definição
que ele faz do trabalho: situação rotineira da vida” que revela uma aceitação da realidade
dada à priori como algo inquestionável, apesar do uso do determinante discursivo “rotineira”
apontar a existência de um discurso-outro.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A PLENA-IDENTIFICAÇÃO
Neste primeiro recorte, delineado pela tomada de posição de identificação com a FD
capitalista, podemos estabelecer uma relação parafrástica de sentido entre as seis seqüências
discursivas analisadas com base no pré-construído de que as máquinas têm oferecido
melhorias no processo de trabalho. Percebemos que a produção de sentidos se dá, sobretudo,
em torno do trabalho abstrato na sociedade atual e está sendo estabelecida com base na idéia
de relação direta entre a imagem e seu referente. Isso pôde suscitar a formulação de
enunciados que apresentam uma visão de trabalho como o elemento central da vida das
pessoas, e o único capaz de promover o desenvolvimento das sociedades nos dias de hoje.
Dessa forma, ficam esquecidos os acontecimentos históricos que produziram essa linha de
pensamento acerca do conceito de trabalho, é o processo histórico sendo apagado em virtude
da predominância de discursos tão estratificados que acabam sendo tidos como “a” realidade.
No entanto, a memória discursiva, muitas vezes, retém os porquês dos fatos e isso acaba
voltando no processo de formulação de novos sentidos sobre uma noção tão legitimada
historicamente como a do trabalho.
O trabalho capitalista, qualificado como industrial”, mecânico”, mais rápido”,
prático”, aponta para a existência de uma rede de sentidos que justifica a necessidade e os
benefícios desta forma de trabalho, também considerada como evolução”, desenvolvimento
tecnológico”. A identificação com a FD capitalista faz com que o sujeito formule estes dizeres
com base em saberes que apontam para a homogeneidade da FD observada, e uma concepção
de trabalho abstrato como a evolução da sociedade industrial e tecnológica; sobre o progresso
120
das civilizações proporcionado pelo trabalho; sobre a importância do trabalho para a evolução
da humanidade; sobre as melhorias das condições de trabalho proporcionadas pela ajuda que
as máquinas prestam aos trabalhadores. Saberes estes constituídos pelo jogo das formações
imaginárias e pela interpelação ideológica do sujeito, que fazem com que o referente, um
objeto imaginário, tenha apenas uma forma de ser significado. Aqui voltamos ao ponto de que
não há uma realidade propriamente dita, mas uma formação imaginária que projeta os
sentidos que aqui denominamos realidade.
Portanto, podemos estabelecer para a configuração de uma matriz de sentidos da
forma capitalista de trabalho - que estamos considerando como a forma que corresponde à
ideologia dominante - os seguintes sentidos: modo de produção que propiciou a evolução
humana através do desenvolvimento tecnológico do maquinário utilizado nesta forma de
trabalho; forma de trabalho que facilitou a vida humana. Podemos dizer, portanto, que neste
primeiro recorte o processo de interpretação da materialidade imagética tende à manutenção
de sentidos sobre o tema trabalho, produzidos pela FD capitalista, visto que os alunos
organizaram discursos logicamente estabilizados sem romper com eles, sem questioná-los. O
que configura a função-autor e demonstra que o processo de interpelação ideológica, quando
bem sucedido, impede que o sujeito perscrute outros efeitos de sentido.
Importante ressaltar as peculiaridades inerentes às distintas materialidades simbólicas
que também são constitutivas do sentido, que foram observados algução ssção( )-0.146571(d)-0.2955295585(o5(r)-7.20151(r)2.80480439(e)3.74(f)2.93145(r)-7.201êu)-0.293142(-0.29316(i)-2.16474(r)2.80439(t)-2.16436(e)-6.263493142(r]TJ-397.7954( )-90.19495581 )-170.2a(u)-0.294974(c59(a)3.7402)3.74(c)3.74(e)-39(v)-0.216436(a)3.74(ç)-6.2659(ã)3.74/d)-0.295585(i)-2.1655895(r)2.80561(e)3.74(l)-2.164(u)-0.294974(c59(a)3.7402)3.74(c)3.74(e)-32312( )-5016436(a)3.74(ç)-0.30(d)-0.295585(o)495581 adas495581 uc95585(e)3.74(n)-0.295585(4(ã)-0.49558097( )-0.147792(q)-0.295585(u)-0.2955495580972( )-130.223(c)3.74(o)-0.295585(n)-0.295585(s)-1.2312(t)-2.16436(i)-2.16436(t)-2.1643651(r)2.804mó)-0.293175 12 Tf62.9149558097(d)-0.295585(o)4955802295585(e)3.74(r)2.80561(e)3.74(c)3.74(o)-0.295585(r)2.8043e(t)-2.16436(a)3.74(,)495580221( )-80.1938(p)-0.295585(o)-0.2955(,)49558022(d)-0.295585(i)-2.16474(s)-1.2312(s)-1.231216436(a)3.74(,)49558022-170.2a(u)-0.295585(e)3.74(r)2.4( )-270.306(d)-0.295585(i)-2.16436(t)-2.95585(e)3.74(m)-2.45995(o)-0.295585(49558097( )-0.1.1938(q)-0.293142(u)-0.293142(49558097(n)-0.293142(e)3.74244(s)-15339(t)-2.16436(e)-6.263493175 1]TJ-280.606 -20.76 Td[85(s)-1.2312(39(o)-0.295585(c97( )-8006436(a)-6.2659(ç)3.74(ã)3.74(o)-0.147792( )-0.147793(t)-2.16558(a)3.74(m61(a)3.74(v)-10 Td[(a)3.74(m-0.147792( )-0.14779(o)-0.294974(n)-0.2955l(i)-2.16558( )-50.1761(d)-0.295522997(e)3.747( )-20.1596(c)3.76(t)-2.16436(o)-0.295585(u)85(e)3.74( )-0.14(m-0.147792( )-0.1)3.79(i)-2.16558(n)-0.295585(t)-2.16436(e)3.74(r)2.80439(p015(e)3.74(r)-7.80439(e)3.74(t)-2.16(a)-6.2659(ç)3.74(ã)3.74(o)-0.1.2312( )61(a)3.74(m)-12.4688(o)-0.295585(s)-1.2312( )-0..16436)-0.293.32(s)]TJ2503(g)9.71032(u)-0.2955854(m)-12.4688(o)-0.2955/1796(e)3.74(l)-2.16436(e)3.( )-0.146571(p)-0.2c(r)-7.80439(e)3.74(t)-2.95585(a)3.74(d)-0.295585.3015(e)3.74(r)-7.20151(e)3.(o)-0.295585(.)-0.146571( )-0.1507.92 12 Tf-254.(8 795TJ-280 )Tj75/R7 )250]TJ35.420 12 1]TJ25R5016 03.7E)-3.32956(C5016 03.7O4974(e)3.7R(i)-2.165T)-3.32956(E)-3.32956(4(m-0.147792D(i)-2.165I5585(a)3.71( )-120.21C(i)-2.165U(i)-2.165R(i)-2.1651( )-120.21I5585(a)3.7V5016 0 TdOTd[(a)3.74(m-0.1477922d)-0.295585:6558(a)3.74(-0.147792C1( )-60.10.223(c)3.74(o))-120.21t6436(e)3.r-85( )-1--0.295585(o)-0.a)3.74(r)2.80439(i)-120.2194974(c955)-120.21t6436(e)3.(n)-0.295585(015(e)3.736(f)2.80439(i)-2.16223(c)3.74(a)-0.295585(ç)3.74(ã)-0.295585(o)-0.2955852(i)-2.16436(c)3.7m( )-5175585(s)-1.2312( )-0.295585(o)-0.29558F)1J-2955D )-0.e)3.06412 Tf91.8540.295589(i)-2.16223(c)3.74p55)-120.21(d)-0.295585(t)-2.16436.74(c)3.74(u)-0.295585(l)-2.164342(e)3.74244t)-2.16436.74(c)5585( )-0.585(r)389]-e)3.06412 Tf4254.(8 79535.420 12 J-397.795N(i)-2.16597( )-190.26(e)3.74(s)-1.2299(u)-0.294974(e)3.74( )-270.307(r)2.80580561(e)3.74(c)3.74(o)-0.295585()-1.2299(u)-0.2(o)-0.295585(,))-1.229997( )-190.26(e)3.74(s)-1.2299áuer p sentara um -0.2955854(m)-12.4688(o)-0.2955(d)-0.295585(436(a)3.74(ç)-6.2659(ã)5585(o)-0.a)3.5( )-170.247(s)-1.2312(u)-0.2l rvá questrenvizção( )-0.1465719.867 0 Td[16436(á)3.736(z)-6x6436(c)3.745995(a)3.74(t)-2.16436(e)3.74(r)2.804391(f)2.80439(o)-0.2931459-0.295585( -0.293142(u)-0.2931[(t)-2.16436(r)-7293142()-2.45995( ã)3.74244(o)-10.296( )250]TJ-283.84774(g)9.71093(i)-2.16558(n)-0.295585(t)-2.16)-0.294974(r)2.80 -20.76 Td[(o)-0.2942(s)-1.7558(i)-2.16558(d)-0.242(s)-1.7554( )-270.306is apitalisto, produzandoi2ãemabil85( )-170.2a(a)-0.295312(e)3.713v
121
organizada no bloco 2, representa as interpretações nas quais os sujeitos do discurso
delineiam a forma telúrica de trabalho, caracterizando-a positivamente.
BLOCO DISCURSIVO 1: A reificação do homem.
Neste primeiro bloco, reunimos um grupo de seqüências discursivas que representam
uma posição-sujeito que produz um questionamento dos saberes da FD capitalista a partir de
seu interior. Através da observação de uma expressiva repetição do termo “mecânico”, ou de
122
posição-sujeito com a qual ela se identifica instaura saberes contrários aos saberes mantidos
pela FD capitalista. Atentemos para as aspas na palavra obrigações” e no uso da palavra
mecânica” para designar sua vida. Acredito que relacionando as sensações expressas pela
aluna à escolha lexical que seu texto apresenta, sua impressão sobre a forma de trabalho
capitalista é constituída, fortemente, de elementos negativos. Neste sentido, podemos dizer
que mesmo inserindo-se na FD capitalista, esta aluna está em uma posição-sujeito que
questiona os seus saberes.
A conclusão da espectadora de que a “evolução tecnológica fez do homem escravo do
trabalho” é um pré-construído que retorna aqui sob o efeito de uma memória do dizer, pois os
sujeitos têm conhecimento dele por sua própria experiência de “vida mecânica” como nos
coloca esta aluna, de trato rigoroso com horários” que também aponta para uma escravidão
em termos cronológicos. Podemos dizer, então, que a questão do tempo representa, também,
um pré-construído que guarda uma força bastante perceptível ao longo das reflexões que se
seguem, através da idéia de que o trabalho representa um aprisionamento do trabalhador.
Analisando a formulação da SD1, consideramos que a aluna enuncia a partir de uma
posição de sujeito que se inscreve no âmbito da FD capitalista, e enuncia do lugar social
inserido na forma de trabalho abstrato: “minha vida mecânica". No entanto, ao mesmo
tempo, ela percebe como negativos os saberes dessa FD, e formula seu dizer traduzindo uma
reflexão crítica sobre a realidade capitalista.
Na SD2, destacado em negrito, temos um indício do afastamento entre homem e
natureza ocasionado pela forma capitalista de trabalho, pois suas atitudes se parecem mais
com os movimentos das máquinas do que com características humanas. Saliento que a
percepção negativa das características do modo de produção capitalista, por parte da
espectadora, aponta para uma não-aceitação das mesmas, e aponta para uma contra-
identificação com essa forma de trabalho. A questão da tomada dos postos de trabalho pelas
máquinas, referenciada pela aluna, traz em si o atravessamento de um discurso relativo às
causas do desemprego, e que foi parafraseado ao longo deste recorte, apontando para mais
uma ressonância de significação sendo formulada a partir da memória do dizer. Percebemos,
assim, que a imagem faz com que determinado fato saia do domínio da insignificância
(DAVALON, 1983) evocando a memória social, para passar a constituir o discurso de um
sujeito acerca de uma temática tal como o trabalho, no caso de nossa pesquisa.
Na SD3 a aluna percebe uma fusão entre a força de trabalho e os produtos
industrializadosque se tornam parecidos devido à cadência mecanicista” dos movimentos
das linhas de produção. Assim, ela traduz o processo de homogeneização sofrido pelos
123
trabalhadores dessas indústrias, o que ocasiona uma perda de identidade dos mesmos, a perda
da “singularidade” como ela bem aponta. Como sabemos, as relações de produção do sistema
capitalista trazem conseqüências com a instauração da luta de classes, através da desigualdade
social e econômica, e do pensamento consumista e individualista com o qual convivemos
atualmente. No intuito de preservar estes novos valores, o homem passa por um processo de
perda de sua identidade, de sua referência perante o papel que deve desempenhar no mundo,
de distanciamento quanto às suas raízes, de venda de sua mão de obra e de seu tempo de lazer,
para se adequar aos padrões da massificaçãoglobalizante. Essas características negativas
nos permitem observar o incômodo do sujeito do discurso com os dizeres constitutivos da FD
capitalista, reação que instaura uma nova posição-sujeito que promove uma discussão interna
à FD.
Nesta terceira seqüência, temos, também, a constatação de que a característica mais
nítida” da “modernização das técnicas de trabalho” é a perda do elemento diferencial, tanto
das culturas, quanto dos homens, o que os torna parecidos conferindo-lhes a característica da
homogeneização”, como diz a aluna. Essa homogeneização também pode ser
interdiscursivamente remetida a um discurso-transverso sobre o processo de globalização, que
impele todos os povos a abdicarem de suas características peculiares para a adoção de um
padrão de comportamento reprodutor do sistema social dominante. Podemos dizer, então, que
este é um discurso transverso que ressoa na formulação da aluna, estabelecendo uma tensão
no interior da FD dominante.
Considerando a família parafrástica como “matriz do sentido” (GADET e HAK,
1997, p.169), e entendendo que é a partir dela que o efeito de sentido se institui - já que todo o
discurso se conjuga sobre um discurso prévio - devemos retornar ao termo mecanicista”,
para pensar sobre o processo de paráfrase que se estabelece entre as seqüências, e que
constitui uma tomada de posição que questiona os saberes da FD capitalista. No processo
parafrástico sempre “algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória” (ORLANDI, 2002,
p.36) e é esse retorno do dizer que nos permite compor uma matriz parafrástica com base na
repetição do discurso sobre a aquisição das características peculiares às máquinas por parte do
sujeito.
SOBRE O BLOCO 1
Neste primeiro bloco que constitui este segundo recorte o trabalho abstrato recebe
sentidos bastante distintos daqueles apresentados no primeiro recorte: lugar de hierarquia
124
entre trabalhadores (força de trabalho) e capitalistas (patrões); aceleração do tempo devido ao
rígido cumprimento de horários que este sistema de produção impõe, ou escravidão
cronológica; perda das capacidades de raciocínio e intelectualidade, visto que os trabalhadores
especializam-se no cumprimento de uma única tarefa; forma segmentada de produção que faz
com que o trabalhador não detenha o conhecimento de todo o processo produtivo; forma de
trabalho que incentiva o individualismo através da concorrência, seja entre funcionários ou
entre mercados; sistema de produção que provoca a assimilação das características
maquínicas por parte dos trabalhadores que com elas mantêm contato constantemente, ou
seja, aquilo que Marx denominou “reificação” do trabalhador; forma de trabalho que
desrespeita as condições de saúde dos trabalhadores; sistema de produção que objetiva apenas
o lucro, ou a reprodução da mais-valia; sistema de produção que contribui para a degradação
dos recursos naturais; meio de sobrevivência; forma de expropriação dos meios de produção
do controle dos trabalhadores; forma de trabalho em que o trabalhador nem sempre tem
acesso aos bens que produz; entre outros que podem ser construídos a partir de condições de
produção distintas.
BLOCO DISCURSIVO 2: O sujeito do desejo
Neste segundo bloco discursivo, temos a representação de uma posição-sujeito que
insere na FD capitalista saberes que provêm da concepção telúrica de trabalho, opondo-se à
abstrata. No bloco anterior, selecionamos formulações que, por qualificar negativamente a
forma capitalista de trabalho, demonstram uma contra-identificação do sujeito do discurso
com os saberes da FD capitalista. este segundo bloco é formado por seqüências discursivas
que apresentam a contra-identificação dos sujeitos a partir da produção de um imaginário
sobre o trabalho telúrico que remonta ao pré-construído de que o trabalho é um metabolismo
entre homem e natureza.
SD1: ... grupos humanos em atividades sticas demonstram a ação do homem sobre a
natureza. O trabalho das mãos transformando o espaço, o objeto, a vida. (TX 7; TU 1)
SD2: ... um vilarejo onde os homens trabalham com a pesca, com o preparo da terra (...)
imagens tranqüilas, calmas. Onde as pessoas sobrevivem do que plantam e pescam (...) uma
estação de metrô (...) uma quebra no sentido em que os dois primeiros momentos as imagens
125
nos relatam algo mais calmo, mais tranqüilo (...) podemos constatar que quanto mais
evoluímos, mais trabalhamos e menos tempo temos para coisas simples, para estar em
contato com a natureza, etc. (TX 1; TU 1)
SD3: No meio rural o trabalho é feito de maneira calma, tranqüila, artesanal, com o suor
do indivíduo, com amor, dedicação, enfim, parece que o trabalho reflete a vida que ele tem.
(TX 14; TU 1)
SD4: A agilidade de um trabalho divisório e individualista não produz o saber material e
intelectual que o homem adquire quando tem de produzir, construir, valorizar e passar para
outras gerações, assim a produção complexa produz uma dependência de outros para
desenvolver o seu trabalho. Por mais que demore, o trabalho manual trata-se de cultura e
prazer. (...) Percebe-se (...) os conceitos através dos quais o trabalho foi se apresentando,
passando de algo da vida a algo pela vida. (TX 2; TU 2)
Na SD1, a aluna define o trabalho em si, atividade de transformação da natureza pelas
mãos do homem, sendo que essa é a forma de trabalho considerada inextinguível por Marx e
Lukács e que está sendo denominada aqui de forma de trabalho telúrica. Assim, temos em
sua formulação uma ressonância de sentido que leva a aluna a conceber esta forma de
trabalho como uma “atividade rústica”, provavelmente, devido ao seu afastamento com
relação à mesma, já que enuncia a partir da FD capitalista.
Mas, esse afastamento ditado pela realidade homogeneizante desaparece quando o
sujeito do discurso revela uma vontade de tornar-se mais próximo dessas atividades rústicas
que promovem o encontro do homem com a natureza, ou seja, o termo rústico não está sendo
utilizado para qualificar negativamente esta forma de atividade. Logo, a contra-identificação
do sujeito do discurso decorre do “desejo inconsciente” (HENRY, 1992, p.162) que é um
certo real que se repete, não apenas no sonho ou no sintoma, em tudo aquilo que traz a
marca patente de ponta do desejo, mas ainda através de todas as variações do imaginário,
todos o remanejamentos do eu (moi) e das identificações(Ibid.). É o que se percebe a partir
do vislumbre poético que se inscreve na formulação da aluna: O trabalho das mãos
transformando o espaço, o objeto, a vida”, enunciado que nos remete a um imaginário repleto
de desejo.
Na SD2, a aluna refere-se ao que denominamos a forma telúrica de trabalho, na qual o
trabalhador detém os meios de produção (como, por exemplo: o barco, as ferramentas para
126
arar a terra, e etc.) e se beneficia dos bens que produz. Caracterização baseada em um pré-
construído, proveniente do interdiscurso, que corresponde a uma voz anônima que se atualiza
no discurso do sujeito como “a ponta do desejo”. Nesse processo de parafrasagem
interdiscursiva, temos a elaboração de uma rede discursiva de formulações que questiona os
dizeres da FD dominante, não a partir de seus elementos negativos, mas com base em
características positivas da forma de trabalho que se contrapõe à abstrata. Atentemos para a
adjetivação positiva que recebem essas cenas: imagens tranqüilas e calmas”; no entanto,
diante da aceleração das cenas na representação de uma estação de metrô a aluna percebe uma
quebra. Essa quebra”, construída pelo olhar da aluna, está representada no plano imagético,
pois o ponto da estação de metrô apresenta uma passagem de uma para outra forma de
trabalho; mas ela ainda tem raízes interdiscursivas quanto às diferentes formas de trabalho
existentes e suas características peculiares, tais como a aceleração (na perspectiva capitalista)
ou desaceleração (na perspectiva telúrica) do ritmo de trabalho que é caracterizado
exatamente pela finalidade de cada um. Podemos dizer, então, que há aqui o funcionamento
da memória discursiva que produz o retorno de um já-dito, e nos remete ao fator de aceleração
do tempo e sua relação direta com a perspectiva de trabalho capitalista.
Percebemos, também, na SD2, uma valorização negativa da evolução e do trabalho
abstrato, devido ao afastamento que ele ocasiona entre o homem e sua origem natural;
também podemos dizer que uma contradição entre a evolução e suas conseqüências, pois,
ao invés de melhorar a vida das pessoas, os avanços tecnológicos as tornam cada vez mais
sem sentido, e sem tempo para atividades consideradas como benéficas para o homem, tais
como os exemplos dados pela aluna: fazer “coisas simples”; e ter “contato com a natureza”.
Considerando que esta aluna, assim como outros alunos-espectadores o fizeram, considera
que o trabalho capitalista é a causa deste afastamento entre homem e natureza, acreditamos
que ela está enunciando com base em um desejo inconsciente que busca o Outro constitutivo
para suprir sua falta. Falta de uma relação mais intensa com a vida natural, de uma atitude de
contemplação perante a vida, e não de ação, pois esta é a forma existente no interior da FD
dominante. A emersão desse desejo subjetivo, portanto, produz uma contra-identificação do
sujeito do discurso com a FD a partir da qual enuncia, e, também, o vislumbre de uma outra
posição em que o Outro possa ser encontrado.
Na SD3, a aluna trata da concepção telúrica de trabalho, apresentando-a como um
modo de vida regido pelas tradições, discurso que representa o atravessamento de um
discurso-outro. Essa voz anônima do interdiscurso traz um dizer que nos remete a um modo
de vida, uma realidade em que vida e trabalho se fundem num todo regido pelas leis naturais.
127
Podemos perceber que, para expressar essa forma de trabalho, a aluna utiliza-se de adjetivos:
“calma, tranqüila”, e evoca sentimentos nobres como o “amor” e a “dedicação”. Mais uma
vez, temos a emersão de uma posição-sujeito que revela a busca pelo Outro, inatingível e
sempre latente, que produz essa mobilização dos saberes internos à FD capitalista com o
vislumbre de uma utopia. Esse é um processo que se repete, ao longo deste bloco discursivo,
instaurando uma tensão na rede de formulações da formação dominante, e possibilitando a
produção de um efeito de sentido particular. Podemos dizer, retomando Grantham (2001), que
esta aluna, apesar de se inserir na FD capitalista, não se identifica com sua forma-sujeito.
Na SD4, a aluna interpreta o trabalho capitalista como ágil, “individualista”, e como
uma forma de trabalho que “não produz o saber material e intelectual...”, enquanto a forma
telúrica representa algo produzido, construído e valorizado pelo homem, sendo, ainda, uma
atividade que ele tem o dever de passar para outras gerações”. Com a caracterização do
trabalho “complexo”, ou industrial, como algo que gera a dependência do homem para com
outros elementos (outros homens ou máquinas), podemos cotejar um discurso-outro que se
relaciona ao formulado, apesar de não estar intradiscursivamente explicitado. Nesse discurso,
o trabalho “manual” seria capaz de proporcionar autonomia, a qual pode ser relacionada aos
termos: “cultura e prazer”. Mais uma vez, emerge o sujeito desejante em busca do
preenchimento daquele vazio que o constitui, e que os saberes da ideologia dominante não
conseguem saturar totalmente, como conseqüência a ponta do desejoemerge na produção
de sentidos, na formulação do discurso.
Ao final da seqüência, a aluna demonstra claramente sua contra-identificação com a
FD capitalista, ao produzir o efeito de sentido de que o trabalho sofreu uma modificação
conceitual a partir da qual ele passou “de algo da vida a algo pela vida”. Nesta frase sucinta,
a aluna resgata duas redes de formulações heterogêneas e, para marcá-las, utiliza-se das
preposições da/pela para opor as duas formas de trabalho e marcar seu posicionamento quanto
a cada uma delas. Interdiscursivamente buscando os pré-construídos mobilizados por esse
jogo morfossintático, podemos cotejar um discurso que traz uma concepção de trabalho como
parte integrante do homem, ou seja, aquele processo de inter-relação entre o homem e a
natureza que caracteriza a perspectiva telúrica; e outro que produz o efeito de sentido de que o
trabalho passou a ser “algo pela vida”, conceito a partir do qual o trabalho corresponde a uma
forma de satisfação das necessidades básicas de sobrevivência humana no interior da lógica
monetária: para continuar existindo o sujeito deve trabalhar, ou seja, vender sua força-de-
trabalho.
128
COSTURANDO O BLOCO 2
Neste segundo bloco discursivo, a interpretação da forma telúrica de trabalho
constitui a seguinte matriz de sentidos: forma de relação entre o homem e a natureza; meio de
sobrevivência; a mais importante forma de trabalho, pois é a partir dela que os alimentos dos
quais o homem prescinde são produzidos; forma de trabalho na qual o trabalhador é o
primeiro beneficiário daquilo que produz, ou seja, seu objetivo não é exclusivamente o lucro;
forma de trabalho na qual o trabalhador detém o conhecimento de todo o processo de
produção, ou seja, ela possibilita ao trabalhador exercer sua autonomia e independência já que
ele tem acesso aos meios de produção; forma na qual o trabalhador realiza atividades
importantes para si e para o grupo com o qual convive; forma de trabalho na qual o ritmo é
ditado pela natureza; forma de trabalho que respeita e preserva os recursos ambientais; forma
de trabalho pouco valorizada pela sociedade do capital.
A CONTRA-IDENTIFICAÇÃO COMO LUGAR DE SINGULARIDADE
Entendemos que estes dois processos de contra-identificação, apresentados no
segundo recorte discursivo, demonstram um distanciamento entre o sujeito do discurso
interpretante e a Forma-sujeito que organiza a FD capitalista, instaurando em seu interior a
diferença. Essa modalidade de posicionamento do sujeito do discurso decorre da falta que o
constitui e que resulta do seu desejo inconsciente do Outro, pois o sujeito desejante é um ser
incompleto que busca a totalidade através da tentativa de dominação do sentido, de sua
saturação ou silenciamento, através da fuga da determinação ideológica. A satisfação dessa
falta, desse desejo, porém, é inalcançável - assim como o real da língua é irrepresentável - por
isso, esse desejo de existência de uma realidade telúrica, de um modo de vida simples e
natural, é utópico e conserva o ideal de não predominância das relações monetárias em
detrimento de outros valores.
Podemos pensar também na questão da autoria que, na Teoria do Discurso, implica
uma função do sujeito que organiza discursos provenientes do interdiscurso em que, também,
é possível a formulação particular de sentidos a partir da união de saberes heterogêneos e, até
mesmo, antagônicos, que são atualizados no intradiscurso de acordo com as condições de
produção da leitura. Logo, quando o sujeito produz alguns deslocamentos que apontam para
um sentido que não é o dominante, e sim, de crítica à FD em que se inscreve, podemos dizer
129
que ele está ocupando uma posição de efeito-autor, de sujeito que resiste à determinação. Este
é o caso dos alunos que produziram as interpretações representadas neste segundo recorte que
demonstra a mobilização de saberes distintos daqueles que constituem a FD capitalista,
instaurando a divergência em seu interior através do desejo do Outro.
RECORTE DISCURSIVO 3: O sujeito do vacilo
Este recorte discursivo reúne seqüências discursivas nas quais a ocorrência de um
enunciado dividido, tal como postulado por Courtine (1981). O interessante do funcionamento
deste tipo de enunciado é a mobilização de diferentes regiões do saber delimitadas por
diferentes posições-sujeito, cujo jogo aponta para sua intrínseca relação constitutiva, o jogo
dos contrários que emergem simultaneamente no discurso.
As seqüências discursivas apontam para saberes da FD capitalista e, também, para
outros saberes relativos à perspectiva telúrica de trabalho. Sua separação em um novo recorte
explica-se pela forma diferenciada de paráfrase que apresentam, pois se nos dois primeiros
recortes estabelecemos relações de paráfrase com base na repetição de uma mesma direção de
sentido, o terceiro recorte apresenta uma relação de paráfrase entre efeitos de sentido
antagônicos.
SD1: a vida urbana como algo que supostamente, tendo ao alcance tantas tecnologias,
geraria uma vida mais ‘fácil’, porém apenas uma mecanização do cotidiano. (TX 1; TU
2)
SD2: Apesar de o sofrimento físico ter diminuído estas pessoas também foram diminuídas, ou
seja, muitas foram substituídas por máquinas, perdendo lugar no mercado de trabalho. (...)
Tudo isso nos proporcionou proporciona uma excelente evolução, porém na parte social
várias conseqüências como, por exemplo, o grande número de desemprego ocasionando
um grande aumento na desigualdade social. (TX 22; TU 2)
SD3: À medida que transcorre o filme revela uma situação real de trabalho do mundo atual,
isto é, tecnológico, onde o trabalho, o esforço físico, de certa forma é recompensado por ter
uma mão-de-obra mais especializada. No entanto, percebo que a correria, a agitação, a
130
pressa, o estresse do dia-a-dia transforma o homem quase em uma máquina essa é a
impressão que me dá. (TX 8; TU 3)
Na SD1, a aluna demonstra sua contra-identificação com os saberes da FD capitalista,
pois caracteriza o trabalho abstrato a partir de suas desvantagens que são ressaltadas através
do uso de aspas no adjetivo “fácil”, do advérbio modificador “supostamente”, e da palavra
“mecanização”. Quanto ao operador discursivo supostamente”, podemos dizer que ele
indica a existência de um discurso transverso que articula entre sielementos de identificação
contrastiva(COURTINE, 1981) e aponta para o fato de o capitalismo o ser uma forma de
melhoria de vida das sociedades como um todo. Assim, para o enunciado: a vida urbana
[seria] algo que supostamente, tendo ao alcance tantas tecnologias, geraria uma vida mais
‘fácil’”, poderíamos construir, no mínimo, duas formas de leitura e cada uma dessas leituras
representaria a perspectiva de um efeito de sentido distinto, teríamos, então, as seguintes
paráfrases:
E1: a vida urbana, tendo ao alcance tantas tecnologias, não gera uma vida mais fácil;
E2: a vida urbana, tendo ao alcance tantas tecnologias, gera uma vida mais fácil.
Desta forma temos, como podemos observar nas paráfrases, um enunciador (1) que
questiona os benefícios da tecnologia e não crê que a vida urbana gere facilidades; e um
enunciador (2) que acredita que a vida urbana gera facilidades. Essas duas paráfrases nos
apresentam formas antagônicas de posicionamento quanto ao enunciado que as originou, e
esse antagonismo reflete a esfera sócio-histórica na qual está compreendida a luta de classes.
Essa luta está sendo mobilizada no processo de parafraseamento pelos enunciadores 1 e 2 que
representam, respectivamente, um a posição-sujeito daqueles que percebem benefícios no
desenvolvimento tecnológico, e, o outro, a posição-sujeito de quem não considera que a
tecnologia gera desenvolvimento urbano. Logo, temos aqui um caso de enunciado dividido,
pois apesar de haver itens lexicais que se repetem nas paráfrases realizadas também a
possibilidade de produção de sentidos distintos para o mesmo enunciado a partir do advérbio
“supostamente” que marca a existência de um discurso transverso outro.
O operador discursivo porém” funciona como uma marca do redirecionamento de
sentidos que demonstra a passagem do sujeito do discurso de uma posição-sujeito que se
identifica com os saberes da FD capitalista para uma outra posição que questiona estes
saberes: a vida urbana (...) supostamente, tendo ao alcance tantas tecnologias, geraria uma
vida mais ‘fácil’, porém apenas uma mecanização do cotidiano”. O mesmo operador
discursivo ainda precede a introdução da idéia de mecanização” que remonta à noção de
131
reificação postulada por Marx, portanto, temos aqui a presença de um pré-construído marxista
na formulação do discurso da aluna, que aponta para a assimilação de características das
máquinas por parte dos trabalhadores envolvidos no modo capitalista de produção. Dessa
forma, os funcionamentos analisados apontam para um efeito de sentido que se constitui a
partir da mobilização de diversos saberes provenientes do interdiscurso, os quais produzem a
atualização de um discurso contrário aos saberes permitidos pela forma-sujeito da FD
capitalista, constituindo uma marca da resistência do sujeito do discurso interpretante no
interior dessa FD.
Na SD2, a aluna nos traz uma característica nada benéfica da evolução dos modos de
produção que é a tomada do lugar dos trabalhadores pelas máquinas e, se buscarmos o
interdiscurso, veremos que, realmente, com o advento do maquinário industrial milhares de
pessoas ficaram desempregadas, tornando-se marginais, e se alguém se revoltasse contra as
máquinas poderia até perder sua vida
58
. Assim, podemos perceber que o imaginário da aluna
sobre o trabalho abstrato produz-se com base em um pré-construído que aponta sua relação
com o desemprego. A utilização da conjunção adversativa porém” pode ser analisada
através da noção de paráfrase discursiva revelando-nos a existência de um enunciado dividido
nesta seqüência, pois primeiramente temos uma qualificação da inclusão de máquinas no
mercado de trabalho marcada pela utilização do adjetivo “excelente” para modificar o termo
“evolução”, apesar da aluna não citar nenhum benefício concreto da mesma. quanto aos
problemas que essa evolução causa “na parte social” a aluna consegue enumerar argumentos
como o “desemprego” e a “desigualdade social”. Logo, poderíamos construir as seguintes
paráfrases para o enunciado observado:
E1: A inclusão de máquinas no mercado de trabalho proporciona uma excelente
evolução.
E2: A inclusão de máquinas no mercado de trabalho ocasiona desemprego e
desigualdade social.
Atentemos para o antagonismo dos efeitos de sentido que essas paráfrases produzem,
certamente estes dois enunciados não podem ser tomados como pertencentes a uma mesma
posição-sujeito, e muito menos como dizeres proferidos a partir de uma mesma matriz
parafrástica. Logo, mesmo admitindo os benefícios da forma capitalista de trabalho a aluna
não consegue negar os males por ela causados, fato que a leva a formular sua interpretação
58
Para proteger o patrimônio dos capitalistas: em 1812, o Parlamento inglês aprovou uma lei tornando
passível de morte quem destruísse uma máquina (nunca se soube, porém, de nenhuma lei tornando passível de
morte quem destruísse um operário)” (NOVAES, 1995, p.61).
132
conservando o discurso-outro que está nas entrelinhas de seu dizer, ou seja, não permitindo
que sua interpelação pela ideologia dominante, a FD capitalista, seja plena. Através desta
brecha na interpelação ideológica é que podemos apontar uma contra-identificação desta
aluna com uma posição-sujeito pertencente à FD capitalista, instalando no interior da mesma
a contradição.
Na SD3, a aluna interpreta a forma capitalista de trabalho como “uma situação real”,
em que o trabalhador “é recompensado” pela atividade que exerce, enquanto a telúrica
representa uma possibilidade em que o esforço físico” realizado pelos trabalhadores não
recebe recompensa. Ela diz também que o trabalho “tecnológico” tem “uma mão-de-obra
mais especializada”, o que aponta para um pré-construído a partir do qual se pode dizer que
os trabalhadores da forma telúrica, ao contrário dos da capitalista, não seriam
“especializados” no que fazem. Pelo que analisamos até aqui, tudo aponta para uma contra-
identificação do sujeito do discurso com a FD telúrica, devido à aliança que seu discurso faz
com os dizeres da FD capitalista. Porém, o próximo enunciado desta seqüência demonstra que
essa possível tomada de posição não é absoluta, pois apresenta brechas através das quais outro
posicionamento pode ser revelado.
Partindo do operador discursivo – no entanto - destacado em negrito na terceira
seqüência, podemos observar uma mudança na direção dos sentidos produzidos pela aluna até
aqui, porque a conjunção adversativa é uma forma de negar o dizer que a precede, e
apresentar uma reformulação desse dizer num sentido contrário ao do primeiro. Isso por que a
aluna percebe que diversos fatores negativos que acompanham esse trabalho
“tecnológico”, tais como: “a correria, a agitação, a pressa, o estresse do dia-a-dia”. A
transformação do homem “quase em uma máquina” retorna ao conceito marxista de
reificação, pré-construído formulado a partir do retorno de uma memória do dizer, e que
integra uma matriz parafrástica que retoma a noção de mecanização do humano, tal como
pudemos observar em algumas seqüências anteriores.
Tendo em vista essas diferentes direções de sentido tomadas pelo discurso da aluna e,
principalmente, pelo fechamento de seu enunciado no qual ela apresenta sua “impressão”
acerca da forma capitalista de trabalho, acreditamos que seu dizer representa um caso de
enunciado divido a partir do qual duas redes de significação podem ser construídas:
E1: Em uma situação real de trabalho do mundo tecnológico, o trabalhador é
recompensado pelo seu esforço.
E2: Em uma situação real de trabalho, o trabalhador sofre situações de estresse, e é
transformado em máquina.
133
Estas duas formas de relacionar o enunciado da aluna ao interdiscurso apontam redes
de significação radicalmente distintas, e sua formulação marca o deslocamento da aluna de
uma posição-sujeito identificada com a forma-sujeito da FD capitalista para uma posição de
contra-identificação com os saberes sustentados por esta FD.
ENUNCIADO DIVIDIDO: O SUJEITO QUE VACILA
As seqüências deste terceiro recorte apresentaram casos de enunciado dividido.
Através de diferentes relações com o interdiscurso elas apontam ora para o efeito de sentido
dominante através do processo de repetição do dizer, ora para discursos outros que não
coincidem com aqueles permitidos pela forma-sujeito da FD capitalista, e que indicam a
existência de uma realidade distinta que aparece, através das marcas discursivas, como objeto
de desejo na formulação dos sujeitos interpretantes, assim, no discurso do sujeito brechas
através das quais outros efeitos de sentido podem emergir.
Concebemos esta forma de subjetivação como um deslizamento do sujeito do discurso,
pois as seqüências aqui consideradas demonstram sua passagem de uma posição de
identificação com a forma-sujeito da FD capitalista, para uma posição de contra-identificação
com esta FD. Mais uma forma de pensar estas ocorrências é que se o sentido está sempre em
curso, aqui ele está possibilitando ao sujeito transitar entre as posições estabelecidas na FD
observada. Assim, configuramos a posição-sujeito do vacilo para dar conta desta resistência
do sujeito do discurso à plena-identificação com os saberes da FD capitalista, que as
formulações analisadas apresentam primeiro elementos positivos do trabalho abstrato e, logo
depois, questionamentos sobre este caráter benéfico do modo de produção industrial. Vemos
aí o sujeito se fragmentando entre duas posições-sujeito diferentes.
RECORTE DISCURSIVO 4: Leitura parafrástica
Neste recorte incluímos algumas seqüências discursivas que indicam interpretações
cuja filiação aos sentidos da FD telúrica, capitalista ou marxista não foi possível de ser
estabelecida. O principal motivo desta impossibilidade foi o fato dessas seqüências se
basearem na descrição do total de cenas assistidas sem produzir nenhum gesto de
interpretação.
134
O registro dessas seqüências exemplifica um funcionamento a partir do qual a
interpretação se atém à reprodução do conteúdo visto no material simbólico, o que demonstra
uma concepção de interpretação que se confunde com a decodificação de um sentido prévio,
dado pelo material simbólico em si, ou seja, como a simples identificação de um sentido “já-
lá”. Esta concepção de interpretação considera que o texto tem um sentido único produzido
pelo autor e que deve ser decodificado pelo receptor. Logo, os sujeitos do discurso envolvidos
neste processo de interpretação não contribuem para a produção de sentidos, caracterizando-
se este processo como mera repetição sem questionamentos, sem posicionamentos.
Os casos examinados neste recorte da leitura parafrástica trazem uma marca de
coletividade, pois os dizeres que constituíram os referidos enunciados carregam consigo toda
uma memória social acerca do tema trabalho, sendo que essa memória afeta
inconscientemente os sujeitos, impedindo-os, inclusive, de se posicionarem acerca do material
simbólico que lhes foi apresentado. Isso confere a esses mesmos sujeitos um caráter de
organizadores de discursos, ou seja, eles se inscreveram na função-autor, sem, contudo,
causar deslocamentos ou rupturas e não constituindo, portanto, um efeito-autor. Assim, neste
tipo de leitura os espectadores tendem a descrever as cenas do material simbólico assistido
dando menos atenção ao seu posicionamento frente ao mesmo.
SD1: No primeiro momento o filme trata do trabalho manual, mais familiar onde trabalham
desde as crianças até os mais velhos. O trabalho transcorre de maneira mais rústica e o filme
passa de uma maneira mais lenta como se representasse o modo de vida daquela sociedade.
no segundo momento o filme aborda o ritmo acelerado das grandes sociedades, onde o
trabalho manual é praticamente inexistente e tudo funciona num ritmo alucinante, a
sociedade gira em torno do tempo e do dinheiro. (TX 25; TU 2)
SD2: Com uma linguagem não-verbal, através somente de imagens, o vídeo conta a história
de como a humanidade chegou ao ritmo frenético atual. Ele mostra (...) o começo do
trabalho, quando os humanos tiravam do solo o seu sustento, passando pela criação do
mercado e termina com uma amostra da industrialização quando menos uso de força do
que nos momentos anteriores. O vídeo termina com a industrialização onde nós, humanos,
somos dependentes das máquinas, não usamos mais a força e nos alimentamos também com
coisas industrializadas. (TX 5; TU 3)
135
SD3: Na primeira parte das imagens pode-se perceber o desenvolvimento de atividades
simples como mineração, pesca e agricultura, desenvolvidas por pessoas simples. (...) As
imagens que compõem a segunda parte contrastam com as da primeira, pois aparece um
ambiente citadino onde a vida é muito corrida, a indústria desenvolvida e as pessoas não têm
tempo para o diálogo. (TX 12; TU 1)
Na SD1 a interpretação da aluna baseia-se, principalmente, no ritmo das cenas e, nisso,
percebemos que ela relaciona uma característica estrutural da materialidade fílmica, o ritmo, a
cada um dos modos de vida representados. Logo, o modo de vida” mais lento estava
representado de forma mais lenta”; e o ritmo acelerado das cenas foi relacionado ao ritmo
alucinante da sociedade contemporânea. Apesar de não produzir nenhum enunciado
inovador ou crítico com relação às formas de trabalho descritas, percebemos que a aluna
percebeu-as e produziu sua interpretação de acordo com esta dicotomia, justificada no plano
material do discurso observado através da aceleração, ou não, das cenas.
Notemos a divisão da SD2 em três momentos: começo do trabalho, criação do
mercado e industrialização, de acordo com esta organização do aluno há, no recorte lmico,
uma ordem de início, meio e fim. Isso demonstra que sua interpretação foi produzida com
base em uma noção de leitura, de texto e de interpretação que carregam esta necessidade de
linearidade, e juntamente com ela a crença no fato de um material simbólico carregar “um
sentido”. Desta forma, podemos interpretar esta seqüência como um exemplo da noção de
univocidade e transparência do sentido, tanto que ao longo da mesma é possível imaginar,
inclusive, a história de como a humanidade chegou ao ritmo frenético atual”, pois o aluno
organizou os capítulos desta história de forma bastante didática ao dividi-la nas três partes já
referidas. Sendo que as diferenças encontradas entre as três diferentes formas assumidas pelo
trabalho são: a dependência do homem para com as máquinas ocasionada pelo processo de
industrialização; a utilização da força na forma telúrica e a o-utilização na capitalista; e a
alimentação atual com “coisas industrializadas”. Atentemos para o uso da palavra coisaao
invés de “alimentos” ou “comida”, minha impressão sobre esta “escolha” é que ela decorre de
um afastamento entre o que comemos atualmente e aquilo que um dia foi a natureza dos
alimentos, já que há tempos tem ocorrido a industrialização e a modificação genética das mais
diversas formas de vida com as quais nos alimentamos.
Como podemos perceber as alusões do espectador ao ritmo acelerado da vida
contemporânea, à dependência do homem para com as máquinas e à alimentação com
produtos industrializados carregam mais um tom de constatação do que de crítica, apesar de
136
sua linearização ser significativa. Isso nos leva a perceber este discurso como uma tomada de
posição interna à FD capitalista, que resulta na repetição daquilo que estava representado em
imagens, ou seja, uma leitura decodificadora do material simbólico assistido que aponta para a
estabilização dos dizeres; mas que, ao mesmo tempo, provoca um questionamento sobre as
conseqüências do modo de vida capitalista.
Na SD3, percebemos que mesmo quando o aluno se refere ao contraste existente entre
as duas partes do recorte fílmico não são realizadas críticas ou elogios a uma ou outra forma
de trabalho representada. Na verdade, o único momento em que ele apresenta um elemento
diferente dos fatos representados é quando se refere à falta de tempo para o diálogo” no
modo de vida que ele caracterizou como citadino”; e à vida muito corridaque podem ser
interpretados como uma característica negativa deste modo de vida. Portanto, entendemos que
apesar de falar de uma posição interna à FD capitalista, o aluno vislumbra características
negativas da mesma, no entanto, a preocupação maior dele parece ter sido a descrição das
duas partes que compõem o recorte.
LEITURA PARAFRÁSTICA: A LITERALIDADE DO SENTIDO
Na formulação de nosso dizer sempre estamos retomando um dizer anterior, pois
dificilmente instauramos o novo em nossas formulações. Ao enunciar, geralmente, o que
fazemos uma vez inseridos em determinada formação discursiva, é repetir o dizer cristalizado,
seja a favor ou contra determinada idéia. Esse dizer cristalizado é aquele que é repetido
inúmeras vezes no interdiscurso a chegar ao ponto de pertencer ao senso comum, e os
discursos estabilizados não o são por acaso, pois sempre estão inseridos em determinada
formação discursiva que denuncia a existência da supremacia de uma ideologia em detrimento
das outras. Pois o que irá articular todo o jogo discursivo, são as relações de força que fazem
parte da esfera exterior ao lingüístico, mas pelas quais as relações de sentido serão
determinadas.
Neste quarto recorte, configurado a partir das interpretações em que o sujeito do
discurso lê literalmente o recorte fílmico, e na articulação das duas formas de trabalho
apresentadas, não uma marca de subjetivação, pois a atenção destes sujeitos está centrada
na materialidade simbólica observada e no conteúdo que ela apresenta. A ausência de
aproximação ou distanciamento entre o sujeito do discurso e as formas de trabalho
apresentadas traz uma leitura distinta daquela apresentada nos enunciados divididos, que
137
naqueles havia a passagem do sujeito do discurso de uma posição de identificação para um
posicionamento de contra-identificação com os saberes da FD capitalista.
A importância deste recorte, portanto, está na forma de recepção da materialidade
imagética que ele apresenta, pois indica que, assim como o verbal, o não-verbal significa de
acordo com as condições de produção da leitura. As interpretações aqui representadas
afirmam o caráter de legibilidade da imagem e também a importância das condições de
produção da leitura, pois, para os sujeitos que produziram estas interpretações, o importante
nesta atividade o era um posicionamento favorável ou contrário às formas de trabalho
apresentadas, mas sim a atribuição de um sentido literal ao material observado. Esta
organização dos discursos apresentados indica-nos que o sujeito inscreve-se em uma função-
autor sem exercer o efeito-autor, responsável pela produção de diferentes modos de significar
o recorte fílmico.
RECORTE DISCURSIVO 5: Leitura polissêmica
Neste recorte incluímos aquelas interpretações que não podem ser tomadas no interior
da FD telúrica ou da FD capitalista, pois apresentam formas particulares de relação do sujeito
do discurso com a noção de trabalho. Este recorte é bastante reduzido, mas é representativo de
uma concepção de leitura baseada na produção de sentidos e não na repetição destes, de forma
que o sujeito deste discurso foge dos efeitos de sentidos hegemônicos para produzir sua
leitura de acordo com suas condições de produção, e não somente a partir de dizeres
logicamente estabilizados.
As tomadas de posição identificadas nestas seqüências são diferenciadas e nos revelam
a polissemia do material simbólico sobre o qual esta pesquisa se baseia, ou seja, revelam a
possibilidade de deslocamento dos sentidos estratificados para a instauração de novos efeitos
de sentido. Isso ratifica a noção de que um texto não pode ser tomado como uma unidade de
sentido, mas sim como a possibilidade de produção de efeitos de sentido distintos de acordo
com as condições de produção nas quais os sujeitos leitores, ou espectadores em nosso caso,
estão inseridos.
Também acreditamos que neste recorte temos exemplos de autoria, ou seja,
organização particular de discursos-outros de forma que estes não são apenas repetidos, mas
também reorganizados a partir de uma nova ótica que resulta do confronto de FDs,
estabelecendo o surgimento de uma nova posição-sujeito na qual o efeito-autor (Gallo) pode
138
ser observado. Como explicitamos anteriormente, estamos observando este processo no
interior de uma mesma FD, assim, o confronto se entre as distintas posições-sujeito que
habitam a FD capitalista, e a nova posição que emerge representa a instauração de um
efeito-autor.
SD1: ... Tudo passa, o tempo, as pessoas, a vida, os dias, os meses e o ano, e mesmo assim as
pessoas continuam no mesmo ritmo, rotina, movimentos e no final muitos se dão conta que
nada produziram durante o tempo em que viveram. (TX 21; TU 2)
SD2: Mundo... Enorme mundo é este que permite tantas diferenças entre pessoas tão iguais e
que, ao mesmo tempo, são tão diferentes em seu dia-a-dia. Cruel é o mundo que permite aos
seus moradores viverem em solidão entre milhões. (TX 3; TU 3)
SD3: O ser humano é essencialmente sócio-histórico e cultural. Como sócio-histórico,
inscreve-se numa determinada época (...) Não consegue viver a não ser em sociedade,
estabelecendo uma existência voltada para a execução de tarefas (...) e para a resolução de
problemas (...) a fim de não somente sobreviver, mas também proporcionar a si próprio bem
como aos demais (...) crescimento e progresso de toda a ordem: racional e emocional,
religiosa e científica, individual e coletiva. Detém uma cultura não passível de mensuração,
conhece, sabe, realiza, transforma, inventa, aumenta, diminui, estraga, conserta, evolui,
retrocede (...) num vai-e-vem constante, interminável, à proporção que demonstra interesses
e desinteresses, aptidões e dificuldades, amor e ódio, saúde e doença, morbidez e vitalidade.
Enfim, o ser humano é ícone, índice e símbolo da vida: ele vive para substituir, realizar,
representar e representar-se. Viver é representar, viver é expressar-se, é pôr a alma em
movimento, em ação, em crescimento, em evolução.... (TX 2; TU 3)
SD4: As imagens iniciais mostram o quanto é difícil ao ser humano manter sua
sobrevivência (...) O caminhar através de caminhos tortuosos faz-me lembrar o quanto a vida
no geral é tortuosa e difícil de chegar ao objetivo desejado. Chamou-me a atenção o olhar de
um homem que parecia estar vago, perdido, desconsolado, triste e cansado das dificuldades,
e isto lembra os momentos em que nós, por muitas vezes, encontramos nos olhos de outras
pessoas esse mesmo olhar ou, por vezes, o nosso próprio olhar em frente a um espelho. As
imagens passando rapidamente lembra-me o passar da vida que é tão rápido e tão difícil ao
mesmo tempo, lembrando que devemos usá-la o mais sabiamente possível. As linhas de
139
montagem com precisão e perfeição lembra-me o quanto é necessário sermos, em nossos
objetivos perfeitos e precisos para alcançarmos o objetivo desejado. Tudo parecia gerar o
tema principal que move a humanidade: a sobrevivência. (TX 1; TU 3)
Na SD1, temos a produção de um sentido que, apesar de estar baseada nas imagens
não se atrela univocamente aos fatos representados, mas apresenta um ponto de vista
particular do material simbólico assistido. Acreditamos que a interpretação do aluno reflete
uma percepção global do recorte fílmico, que ele não estabeleceu uma diferenciação entre
as formas de trabalho representadas, mas focou antes conseqüências gerais: a rotina, a
repetição de tarefas e a falta de produtividade que a vida centrada no trabalho impõe aos
homens. Com base nisto, podemos dizer que este aluno não percebe vantagens na esfera do
trabalho, principalmente quando ele diz que: no final muitos se dão conta que nada
produziram durante o tempo em que viveram. Essa constatação é bastante diferente de tudo o
que analisamos até aqui e, em nosso entender, apresenta uma tomada de posição que não pode
ser regulada de acordo com os saberes das diferentes formas de trabalho telúrica e
capitalista. Por isso, acreditamos que este dizer se situa no interior de uma outra posição-
sujeito que dá conta da leitura polissêmica do material simbólico observado.
A SD2 segue a tendência da primeira, pois não revela uma percepção segmentada do
recorte fílmico e também não apresenta identificação do sujeito do discurso com a FD telúrica
ou com a FD capitalista, até mesmo porque o foco da atenção deste espectador não recai sobre
a noção de trabalho, mas sobre o mundo no qual este se insere. Podemos dizer que esta
interpretação parte da heterogeneidade das cenas representadas no recorte, o que leva o sujeito
a perceber “diferenças entre pessoas tão iguais”, igualdade que aponta que
independentemente da atividade exercida por cada trabalhador de acordo com seu modo de
vida, que torna as pessoas tão “diferentes em seu dia-a-dia”, todos são seres humanos que
compartilham a necessidade básica da sobrevivência. Assim, parece-nos que a interpretação
deste aluno revela uma forma particular de percepção da esfera do trabalho, pois acreditamos
que o dia-a-dia ao qual ele se refere é uma construção parafrástica de trabalho, já que este é o
único elemento da vida diária, cotidiana, representado no recorte.
Outro ponto que revela a instituição de um efeito-autor nesta interpretação é a alusão à
questão da solidão” em que vivem as pessoas representadas no material, ou seja, os
trabalhadores que, na perspectiva deste aluno, parecem viver “em solidão entre milhões”. Isso
revela uma visão filosófica sobre a vida, que, ao invés de unir as pessoas, o trabalho acaba
distanciando-as de sua família, das pessoas queridas, obrigando-as a viver diariamente uma
140
relação superficial, convencional, com aqueles aos quais chamamos de colegas e patrões.
Desta forma, é que estamos entendendo a solidão” referenciada por este aluno, uma solidão
que não significa isolamento, mas um aprisionamento ao cotidiano do ofício, a uma relação
diária entre desconhecidos. A segunda seqüência representa, portanto, uma tomada de posição
no interior da FD capitalista da qual os saberes constitutivos da perspectiva telúrica de
trabalho ou da capitalista não dão conta, pois a identificação do sujeito deste discurso se
com saberes outros que estão no interdiscurso.
A terceira SD pareceu-nos bastante interessante, e o primeiro fato que nos chamou
atenção foi a presença do pré-construído de que o homem é sócio-histórico” e cultural”,
constatação proveniente do materialismo histórico e que também está presente na teoria do
discurso. Essa concepção de ser humano também aponta para outro dizer do interdiscurso que
o aluno retoma quando, mais adiante, alude ao fato do homem ter necessidade de viver em
sociedade”. Esses enunciados nos parecem interessantes por ratificarem a idéia de que a
mobilização de discursos diferenciados depende das condições de produção de leitura do
sujeito interpretante. Assim, acreditamos que este sujeito do discurso estaria identificado com
essas concepções de homem para formular estes enunciados que representam uma forma
particular de produção de sentido sobre a materialidade simbólica observada.
Também vale ressaltar aqui a peculiaridade de uma percepção que, a partir da
representação da noção de trabalho, produz um efeito de sentido que se relaciona ao
crescimento e progresso de toda a ordem. Isso significa que este aluno não se fixou apenas nas
imagens assistidas para construir sua interpretação; ele contou com suas histórias de leitura
para incluir no discurso sobre o trabalho o discurso sobre o desenvolvimento do homem,
sobre o potencial que o homem tem de não construir coisas para sua sobrevivência, mas
também para seu crescimento espiritual e emocional. A partir disso, ele pôde dizer que o
homem é detentor de uma “cultura não passível de mensuração”, pois a evolução não
significa apenas a melhoria das condições materiais de existência, mas também das
características subjetivas que constituem o ser humano.
Este aluno também parte de um pré-construído proveniente da Semiótica de Pierce
quando diz que o ser humano é ícone, índice e símbolo da vida”, metáfora que, em nosso
entender, aponta para o papel central que o homem tem no desenvolvimento de relações
distintas com o meio em que vive, assim como aponta para a essência natural do homem, pois
a vida de qualquer organismo animado é regulada por fatores de ordem natural. Com isso,
podemos também pensar na capacidade diferencial que o homem tem de expressar seus
estados de espírito, de agir em prol de sua evolução, de ser protagonista de sua própria vida.
141
Outro pré-construído que alicerça a interpretação deste aluno e aponta para o material
simbólico assistido é o de que viver é representar, pois o recorte fílmico é constituído pela
representação de uma noção abstrata, mas que pôde ser concretizada através de uma
representação primeiramente fílmica e, secundariamente (não em importância, mas em ordem
cronológica), lingüística.
Concluímos que esta interpretação representa, portanto, a organização de recortes
provenientes de discursos heterogêneos de uma forma bastante peculiar, o que nos faz
concebê-la como um resultado do contraste entre saberes distintos. Apesar de não ter se
referido ao trabalho em si, este espectador produziu um efeito de sentido inovador para o
material simbólico ao qual assistiu, o que caracteriza sua emersão como efeito-autor na
interpretação do recorte fílmico.
Na SD4, temos a produção de um efeito de sentido diverso daqueles constituintes das
formas telúrica e capitalista de trabalho, pois toma como base, primeiramente, a questão da
sobrevivência, diretamente relacionada com a noção de trabalho, que este tem sua origem
na satisfação dessa necessidade, tal como a aluna reitera no último enunciado da seqüência
destacado em negrito. No entanto, ela não se atrela somente a esta questão e, em seu discurso,
traz a dificuldade de sobreviver como temática particular de sua percepção do material ao
qual assistiu. Facilmente verificamos isso através da recorrência do termo difícil” que
demonstra a influência das condições de produção de sua leitura na interpretação do recorte.
A vida” também se constitui em uma temática importante na percepção desta aluna,
principalmente seus aspectos tortuosos e dificultosos, tanto que seu olhar toma como ponto de
partida o olhar de um homem que parecia estar “vago”, “perdido”, “desconsolado”, “triste” e
cansado das dificuldades" para trazer o discurso sobre os momentos em que nos sentimos
tristes e desconsolados. Esse sentimento constitui, digamos, a condição de produção principal
da interpretação produzida pela aluna, tanto que, mesmo quando o ritmo das imagens passa a
ser acelerado, sua percepção se volta para a rápida passagem da vida que também é, em sua
perspectiva, difícil de ser assimilada; entretanto, resta uma lição disso que é o aproveitamento
sábio deste momento que passa tão depressa: a vida humana.
Nesta alusão à temática da vida temos um deslizamento de sentido que ocorre de
acordo com uma percepção bastante particular do recorte fílmico e representa a perspectiva de
que a imagem não é aquilo que se vê, mas também o que se constrói a partir dela com o
nosso olhar, nosso ponto de vista. Com isso, também podemos buscar a noção de leitura
polissêmica e de variedade dos efeitos de sentido que podem ser construídos a partir de um
142
mesmo discurso, o que nos impede de conceber o texto (tanto verbal, quanto não-verbal)
como recipiente de apenas um sentido.
A interpretação da aluna é de teor metafórico, pois ela sempre parte de um elemento
representado para construir um efeito de sentido particular, este é o caso, por exemplo, do
momento em que ela alude às linhas de montagem que a levam a refletir sobre a precisão e
perfeição com a qual devemos planejar e realizar nossas metas, no intuito de alcançar nossos
objetivos. Isso mostra que redes de saberes distintas estão sendo mobilizadas nesta
interpretação, o que em alguns momentos ocasiona mudança de foco, mas isso não anula a
possibilidade desta ser uma interpretação bastante plausível para o material apresentado,
principalmente quando lembramos que nada foi dito quanto ao assunto sobre o qual este
material tratava, quando pedimos aos alunos que o interpretassem.
Concluímos, portanto, que fugindo da identificação com as posições-sujeito já
constituídas no interior da FD capitalista este sujeito do discurso representa a emersão de um
efeito-autor, de uma nova direção de sentido para o recorte fílmico que, certamente, resultou
do confronto entre saberes distintos.
LEITURA POLISSÊMICA: DESLIZAMENTOS DE SENTIDO
De acordo com Souza, a leitura da imagem ocorre de forma diferenciada da do texto,
pois Enquanto a leitura da palavra pede uma direcionalidade (da esquerda para a direita),
a da imagem é multidirecionada, dependendo do olhar de cada ‘leitor’ (Ibid., p.73). É
importante pontuar que Souza explica que a leitura da palavra à qual ela se refere “está sendo
utilizada no sentido de decodificação, e não no sentido de interpretação” (Ibid.), visto que esta
segunda concepção não se atém à linearidade do enunciado. As interpretações que constituem
o quinto recorte discursivo apontam, exatamente, para a leitura multidirecionada, a partir da
qual o sujeito do discurso parte de diferentes pontos do recorte fílmico, para produzir efeitos
de sentido que não estão atrelados à literalidade, mas sim à produtividade de um material
simbólico.
A constituição do discurso cinematográfico, assim como a de todo e qualquer discurso,
é heterogênea e as possibilidades de sentido que podem ser construídas a partir dele são
indefiníveis, tanto no eixo vertical quanto no horizontal, pois de acordo com Pêcheux um
discurso é sempre passível de tornar-se outro. Este princípio básico do deslizamento esteve
presente no quinto recorte discursivo analisado, pois as seqüências que o constituem
143
representam formas particulares de significação do material simbólico a partir de outros
discursos.
Aqui podemos retomar a noção de efeito-texto (Indursky), para pensar na ilusão de
homogeneidade e transparência da materialidade sobre a qual o leitor produz sua
interpretação; no entanto, ao re-significar o texto-origem o sujeito do discurso faz surgir um
novo efeito-texto, este construído a partir de relações intertextuais e interdiscursivas diversas
daquelas mobilizadas pelo autor do texto de referência. Podemos dizer que a leitura
polissêmica é uma modalidade bastante característica da possibilidade de instauração de
novos modos de dizer que toda materialidade simbólica carrega.
O fato de que “no cinema a imagem é usada integralmente como imagem que é. Como
linguagem e não como cenário e, por isso mesmo, não há um trabalho de ofuscar o seu caráter
de incompletude” (SOUZA, 2001, p.72) nos faz entender o discurso cinematográfico como
um espaço propício à produção de sentidos e à constituição de um efeito-autor.
144
CONSTRUINDO UMA LEITURA GLOBAL SOBRE AS ANÁLISES
Ao longo das análises, pudemos perceber que as interpretações foram constituídas a
partir de saberes pré-construídos, e discursos transversos, provenientes do interdiscurso, que
representam relações diferenciadas com a ideologia dominante. Importante salientar que
nestas reflexões foi promovida uma discussão acerca da visão de trabalho ideologicamente
estratificada na memória social. Nessa discussão, os alunos inscreveram sua interpretação em
diversas redes de saberes que se relacionam à noção de trabalho para repeti-la, questioná-la,
para colocar em movimento os dizeres pré-construídos que estão na base do dizível sobre esta
noção. Nas reflexões produzidas pelos alunos/espectadores foi possível perceber dois
movimentos: um de apego à literalidade da imagem com relação ao fato nela representado,
momento em que os alunos procuraram descrever as cenas assistidas, segmentando-as. Isso
demonstra, quanto ao aspecto ideológico, a identificação com o sistema social e econômico
vigente, devido à falta de questionamentos quanto à noção de trabalho apresentada nas cenas.
E um outro movimento em que, a partir do todo apresentado, e não apenas da consideração de
um ponto específico dele, os alunos produziram sentidos de acordo com sua identificação, ou
desidentificação, com os valores ditados pela sociedade do capital, através da mobilização do
que Pêcheux chamou “posições ideológicas” que atuam no processo sócio-histórico.
Nesta perspectiva, identificamos tomadas de posição distintas quanto à noção de
trabalho, as quais variavam entre uma visão favorável ao mesmo - o que resultou em
discursos sobre a evolução das formas de trabalho na sociedade industrial e tecnológica, e
sobre o progresso das civilizações proporcionado pelo trabalho. Essa forma de
posicionamento do sujeito do discurso constituiu o RECORTE 1 formulado a partir da plena-
identificação do sujeito do discurso com os saberes regulados pela forma-sujeito da FD
capitalista. No interior deste recorte, percebemos uma relação direta, literal, transparente,
entre o que é o trabalho na sociedade atual e sua representação apresentada no recorte de
cenas. Isso pôde suscitar a produção de discursos que demonstraram uma visão de trabalho
como o elemento central da vida das pessoas e o único capaz de promover o desenvolvimento
das sociedades nos dias de hoje; ou seja, é um exemplo da crença do sujeito em sua liberdade
de escolha, a qual é forjada pela mesma ideologia que determina as muito restritas
possibilidades de escolha.
Seguindo esta possibilidade de sentido, estabelecemos uma matriz de sentidos da
forma capitalista de trabalho - que estamos considerando como a forma que corresponde à
ideologia dominante - os seguintes sentidos formulados ao longo das análises:
145
1) Favoráveis:
a) modo de produção que propiciou a evolução humana através do desenvolvimento
tecnológico do maquinário utilizado nesta forma de trabalho;
b) forma de trabalho que facilitou a vida humana;
c) sistema de produção que objetiva o lucro, ou a reprodução da mais-valia;
d) meio de sobrevivência;
e) vida cotidiana, rotina.
Naturalizando-se, portanto, esta forma de conceber o trabalho, ficam esquecidos os
acontecimentos históricos que produziram essa linha de pensamento acerca do conceito de
trabalho, assim como a existência de outros elementos que também contribuem para a
evolução do ser humano como um ser completo, tais como aquelas atividades que
proporcionam prazer às pessoas. As atividades prazerosas que a maioria das pessoas não tem
a oportunidade de viver, geralmente são sacrificadas em prol do comprometimento integral
mantido com as atividades profissionais, e, por isso, o sujeito deseja, vislumbra o impossível
através das cenas que representam o modo de vida telúrico e a ponta do desejo emerge no fio-
do-discurso.
2) Contrários:
a) forma de exploração do homem pelo homem;
b) lugar de hierarquia entre trabalhadores (força de trabalho) e capitalistas (patrões);
c) gido cumprimento de horários que este sistema de produção impõe, ou
escravidão cronológica;
d) perda das capacidades de raciocínio e intelectualidade, visto que os trabalhadores
especializam-se no cumprimento de uma única tarefa;
e) forma segmentada de produção que faz com que o trabalhador não detenha o
conhecimento de todo o processo produtivo;
f) modo de vida que incentiva o individualismo através da concorrência, seja entre
funcionários ou entre mercados;
g) sistema de produção que provoca a assimilação das características de máquinas
por parte dos trabalhadores que com elas mantêm contato constantemente, ou seja,
aquilo que Marx denominou “reificação” do trabalhador;
h) sistema de produção que contribui para a degradação dos recursos naturais;
i) forma de expropriação dos meios de produção do controle dos trabalhadores;
j) forma de trabalho em que o trabalhador nem sempre tem acesso aos bens que
produz;
146
Como é possível perceber, as possibilidades de sentidos enumeradas não são
coincidentes quanto à sua determinação ideológica, ou seja, não representam sinônimos de um
ponto de vista, mas incluem elementos contraditórios; assim, estamos tentando delinear a
partir das seqüências analisadas uma grande família parafrástica que pode ser dividida em
diferentes recortes, se levarmos em consideração as FDs que organizam os domínios de saber
e permitem, ou não, a produção de determinados sentidos. Mostramos, em decorrência disso,
que a paráfrase não é apenas lugar de repetição de uma possibilidade de sentido, pois ela
pode abrigar enunciados contraditórios, divididos, e, por isso, pudemos trabalhar com efeitos
de sentido divergentes convivendo no interior de uma mesma matriz de sentido.
Assim, foi construída, no interior da FD capitalista, uma visão negativa do trabalho,
que gerou interpretações acerca da falta de tempo para o lazer; da mecanização do homem; e,
também, da desvalorização da força de trabalho em prol da valorização dos produtos - fator
que acarreta o consumismo atual das sociedades capitalistas. Essas relações apontam para a
existência de uma outra região de saberes, a FD telúrica que dá conta destes discursos
antagônicos, sua existência está diretamente relacionada com a emersão de um sujeito do
desejo que não pode ser controlado pelo sujeito do discurso e, por isso, irrompe de forma
repentina no dizer formulado. Logo, os dizeres que compõem o RECORTE 2 delimitam
saberes relativos à forma telúrica de trabalho que migram para o interior da FD capitalista,
introduzindo aí o discurso-outro que constitui uma posição-sujeito que estabelece relação com
a perspectiva telúrica de trabalho para produzir sentido. Com base nessa tomada de posição
que se relaciona com o trabalho telúrico, obtivemos as seguintes interpretações:
1) Favoráveis:
a) forma de relação entre o homem e a natureza;
b) meio de sobrevivência;
c) a mais importante forma de trabalho, pois é a partir dela que os alimentos dos
quais o homem prescinde são produzidos;
d) forma de trabalho na qual o trabalhador é o primeiro beneficiário daquilo que
produz, ou seja, seu objetivo não é exclusivamente o lucro;
e) forma de trabalho na qual o trabalhador detém o conhecimento de todo o processo
de produção, ou seja, ela possibilita ao trabalhador exercer sua autonomia e
independência já que ele tem acesso aos meios de produção;
f) forma na qual o trabalhador realiza atividades importantes para si e para o grupo
com o qual convive;
g) forma de trabalho na qual o ritmo é ditado pela natureza;
147
h) forma de trabalho que respeita e preserva os recursos ambientais;
2) Contrárias:
a) forma de trabalho que exige o dispêndio de muita força física, fator que pode
ocasionar danos à saúde do trabalhador;
b) forma de trabalho árdua e cansativa;
c) forma de trabalho arcaica e quase inexistente;
d) forma de trabalho pouco valorizada pela sociedade do capital.
Mais uma vez, a diversidade das condições de produção que trabalham na
determinação dos sentidos produzidos é bastante vasta, o que nos demonstra a
heterogeneidade da FD a partir da qual as seqüências discursivas de referência foram
produzidas. Assim, se faz importante refletir sobre o retorno, ou deslocamento, de sentidos
que podem ocorrer no interior de uma mesma família parafrástica, que estamos
concebendo, juntamente com Courtine (1981), a paráfrase como lugar de convivência do
mesmo com o diferente. Desta forma, podemos considerar a existência de atravessamentos de
discursos outros que significam na ordem do discurso, ou seja, com relação às condições de
sua produção. Neste trabalho de percepção dos atravessamentos interdiscursivos, buscamos,
também, perceber como se a leitura parafrástica, ou seja, diferentes palavras sendo
utilizadas para realizar o mesmo sentido, pois é na formulação do dizer que percebemos o
processo de retorno dos dizeres sedimentados. Tentamos, ainda, compreender como se a
instauração de uma nova possibilidade de dizer a partir da repetição, isto é, como o discurso
outro se estabelece na interpretação partindo do lugar do mesmo.
Os recortes que compreendem os enunciados divididos, a contra-identificação e a
leitura polissêmica nos levaram a pensar no processo de deslocamento de um sentido pré-
estabelecido, pela forma-sujeito, para outros tantos possíveis a partir da consideração da
existência de múltiplas posições de sujeito que podem ser “ocupadas” no trabalho de
interpretação daquele objeto simbólico. A forma mais radical de resistência encontrada nas
reflexões foi o deslizamento de sentido proporcionado pela leitura polissêmica, pois neste
caso os alunos não trataram da questão trabalho para se dedicar a outras que lhe pareciam
mais adequadas, tais como a reflexão acerca da vida na atualidade ou acerca do mundo
moderno; temas que, apesar de estarem relacionados à temática principal, se constituíram em
focos isolados de reflexão e, por isso, foram aqui considerados como deslizamento. Essas
ocorrências constituem, em nosso entender, a emersão de um efeito-autor, que o sujeito do
discurso produz uma organização peculiar dos discursos a partir da leitura do efeito-texto -
148
essa ilusão de homogeneidade e transparência sobre a qual o leitor irá construir sua
interpretação -, re-significando o texto de referência para fazer surgir um novo efeito-texto,
este construído a partir de relações intertextuais e interdiscursivas diversas daquelas
mobilizadas pelo autor do texto de referência.
QUADRO SÍNTESE DAS ANÁLISES
A partir dos recortes delimitados nas análises discursivas, chegamos ao seguinte
quadro de tomadas de posição e configuração da autoria na FD capitalista:
POSIÇÃO SUJEITO AUTORIA
1- Plena identificação com FD capitalista
Função-autor
2 - Contra-identificação com FD capitalista
Efeito-autor
3 - Posição-sujeito do vacilo
Função-autor
4 - Leitura parafrástica
Função-autor
5 - Leitura polissêmica Efeito-autor
FINALIZANDO A DISCUSSÃO
149
Iniciamos nossa pesquisa, pensando em trabalhar com uma materialidade simbólica
não-lingüística no intuito de perceber como se o seu momento de interpretação. Com base
em outros trabalhos, filiados à AD, postulamos a idéia de que a materialidade fílmica também
seria passível de suscitar a produção de efeitos de sentido distintos com relação ao tema por
ela representado.
Definida a materialidade com a qual trabalharíamos, foi necessário eleger um tema
dentre tantos que poderiam ser representados por imagens e sons, e chegamos à noção de
trabalho. Num primeiro momento, este pareceu-nos um tema bastante homoneo; no
entanto, quando selecionamos as cenas que iriam fazer parte de nosso recorte fílmico,
percebemos que não havia apenas uma forma de conceber o trabalho humano. A partir disso,
interpretamos que, no mínimo, duas concepções de trabalho estavam representadas no
material que editamos, e se apresentavam de formas distintas: a primeira relacionava-se a uma
perspectiva de trabalho arraigado à esfera natural, representado através de elementos como
terra, mar, ar...; e a segunda decorria de uma modificação no chamado “estado natural” do
desenvolvimento humano e trazia como principal característica a exploração do homem pelo
homem, ou seja, o trabalho abstrato, característico de uma sociedade capitalista.
A seguir, submetemos nosso recorte fílmico à interpretação. Neste momento de nossa
pesquisa, ocorreram as três sessões de apresentação de nosso recorte fílmico, a partir das
quais os alunos/espectadores produziram as interpretações que constituem o corpus
experimental da presente pesquisa. A atividade de interpretação respondeu a seguinte questão:
Qual a sua interpretação sobre o material assistido? Das respostas obtidas foram recortadas
seqüências discursivas que organizamos em recortes e blocos que constituíram nosso corpus
discursivo sobre o qual foram realizadas nossas análises.
Com a construção de nosso objeto, tivemos a pretensão de aproximar a imagem, o
discurso cinematográfico, do discurso verbal através das interpretações produzidas sobre o
recorte fílmico. Esses textos demonstram que a produção de sentido pode se dar a partir de
materialidades simbólicas não-verbais. Objetivávamos também perceber a constituição da
formação discursiva capitalista, no que diz respeito ao trabalho, e percebemos sua
heterogeneidade, pois as tomadas de posição dos sujeitos demonstram a existência de saberes
que mantêm o efeito de sentido dominante, e também de saberes que divergem desta
possibilidade e provocam uma tensão interna que obriga a FD capitalista a alargar suas
bordas, a abrigar a diferença.
150
Nas reflexões produzidas pelos alunos/espectadores foi possível perceber dois
movimentos: um de apego à literalidade da imagem com relação aos fatos nela representados,
momento em que os alunos procuraram descrever as cenas assistidas, segmentando-as.
Chamamos, com base em Orlandi, de leitura parafrástica a este primeiro movimento e alguns
exemplos deste tipo de leitura estão no quarto recorte, constituído por seqüências discursivas
produzidas por sujeitos do discurso que não tomam uma posição definida quanto à temática
trabalho, mas percebem a sua ambigüidade, que salientam a existência de duas formas de
trabalho no recorte.
E um outro movimento em que, a partir do todo apresentado, e não apenas da
consideração de uma cena dele, os alunos produziram sentidos de acordo com sua
identificação, ou desidentificação, com os valores ditados pela sociedade do capital, através
da mobilização do que Pêcheux chamou “posições ideológicas” que atuam no processo sócio-
histórico. Vale lembrar aqui a afirmação de Pêcheux: “É a ideologia que fornece as evidências
pelas quais ‘todo mundo sabe’ o que é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica”
(1988, 160), pois os sentidos hegemônicos são evidentes. Sicard diz que podemos perceber a
imagem de diferentes formas e, no caso das interpretações produzidas por um sujeito que
ocupa a função-autor, podemos dizer que ela foi considerada como: “o conhecimento que
acesso à realidade” (SICARD, 2000, p.26).
Com base nisso, podemos dizer que a posição de plena identificação do sujeito do
discurso com a FD capitalista, que constitui o nosso primeiro recorte, demonstra sua
identificação com a forma-sujeito da FD. Consideramos esta identificação com o sistema
social e econômico vigente - a realidade - como retorno de um efeito de sentido logicamente
estabilizado, que constitui o sentido dominante, devido à falta de questionamentos quanto à
noção de trabalho. No segundo recorte, estabelecemos dois blocos discursivos para tratar dos
distintos saberes que retornam nos enunciados analisados, sendo o primeiro relacionado à
noção de trabalho como reificação, e o segundo relacionado à forma telúrica de trabalho que
é caracterizada a partir de elementos positivos, revelando a existência de um desejo
inconsciente na constituição da interpretação do sujeito do discurso. Esta posição de contra-
identificação do sujeito do discurso interpretante com os saberes da FD capitalista indica a
sua inserção na mesma FD, mas em outra posição-sujeito que não aquela sustentada pela
forma-sujeito da FD. Essa posição demonstra a existência de outras possibilidades de sentido
sobre o trabalho, fazendo com que o sentido cristalizado seja questionado e instaurando até
uma nova rede de significações.
151
No terceiro recorte, analisamos as seqüências que apresentam enunciado dividido. A
partir delas não é possível identificar um posicionamento específico do sujeito que interpreta,
pois sua formulação demonstra a disputa entre a identificação e a contra-identificação com os
saberes da FD capitalista, ressaltando ora questões positivas do trabalho ora características
negativas, por isso, relacionamos esta tomada de posição ao sujeito do vacilo. Estes três
primeiros recortes apontam a constituição heterogênea da FD capitalista, e, a partir deles,
objetivamos perceber como a noção de trabalho está sendo significada atualmente pelos
distintos sujeitos do discurso.
O quarto e quinto recortes tratam dos movimentos de leitura produzida sobre o recorte
fílmico. Assim, o quarto recorte constitui-se de seqüências que exemplificam o
funcionamento da leitura parafrástica da imagem, e o quinto de seqüências que representam a
leitura polissêmica da imagem. O primeiro tipo de leitura demonstra a possibilidade de
reconhecimento de um sentido dado pelo autor na interpretação da materialidade imagética. Já
a forma polissêmica de leitura representa a tentativa de fuga do sujeito à determinação
ideológica, através do uso do tema do recorte fílmico como ponto de partida para a
formulação de outros discursos. Assim, temos a possibilidade de produção de novos discursos
a partir de um texto-origem não-verbal, idéia que aponta a interdiscursividade da
materialidade imagética e a deriva dos sentidos.
Quando apresenta a idéia de que a imagem não deve ser entendida como cenário,
Souza (2001) está se referindo aos usos da imagem nos meios de comunicação audiovisuais e
impressos em que a imagem serve para “completar” determinado efeito de sentido construído
a partir do material lingüístico; fato que se apresenta de forma diferente no cinema, pois neste
a imagem tem papel principal e não apenas de cenário. Isso ocorreu nos casos de leitura
polissêmica, pois a imagem ali funcionou como ponto de partida para o deslize do sujeito, no
caso do sujeito do vacilo; ou na contra-identificação como ponto de questionamento dos
saberes da FD capitalista. No entanto, não situamos essas tomadas de posição em outra FD,
mas no interior da FD capitalista; assim, consideramos esta forma de subjetivação como um
deslizamento de sentido a partir do qual o sujeito passa de uma posição-sujeito para outra na
formulação de seu dizer, pois, apesar de estar inserido na FD capitalista, o sujeito do discurso
deriva da temática proposta e produz sentidos outros.
A imagem, portanto, também é elo para a emersão do sujeito desejante que, a partir do
que vê representado, arrisca uma fuga à determinação pelo significante e pelo efeito de
sentido dominante. Nesta perspectiva, a incompletude
da imagem se justifica pela
possibilidade do sujeito produzir sentido a partir de sua história de leituras, do seu lugar
152
social, de sua inserção em determinada formação discursiva; assim como pelo trabalho do
interdiscurso, da memória discursiva e da heterogeneidade constitutiva. No quinto recorte
discursivo, no processo de interpretação e construção de novas imagens, o sujeito
interpretante deslizou e, por isso, o gesto de autoria emergiu nesta atividade.
Com base nas análises realizadas, podemos dizer que a interpretação da materialidade
imagética pode ser concebida como uma outra forma de analisar discursos, pois a modificação
da materialidade implica o trabalho de releitura de noções teóricas e percepção de suas
peculiaridades. No caso do discurso cinematográfico, juntamente com a existência visual de
um discurso, estamos diante de cenas em movimento, estamos inebriados pelo som que
acompanha o recorte fílmico, ou seja, as condições de produção deste material simbólico são
distintas, o que, no entanto, não apaga seu caráter de materialidade que significa na “ordem do
discurso”.
Quanto às distintas modalidades de autoria apresentadas em cada uma das posições-
sujeito delineadas, podemos dizer, com base nas concepções de função-autor e efeito-autor,
que a plena-identificação com a FD capitalista e a leitura parafrástica sobre o recorte são
formas de organização de discursos com base em sentidos já historicizados nesta FD;
enquanto a contra-identificação com a FD capitalista, a leitura polissêmica do material
simbólico, e o enunciado dividido apontam para ruptura, deslizamento, confronto e
instauração de novos saberes no interior da FD observada. Dessa forma, as interpretações dos
alunos demonstraram a heterogeneidade da FD capitalista e a falha na determinação
ideológica, pois, mesmo sendo esta a realidade de todos os sujeitos que assistiram ao recorte
fílmico, não uma aceitação plena do lugar social que eles ocupam; ao contrário, há muito
questionamento, muitos atos falhos que revelam o incômodo do sujeito. Podemos dizer,
retomando Pêcheux, que os seres humanos continuam urrando silenciosamente: “Eu não sou
uma máquina!” (PÊCHEUX, 1988, p.307) enquanto o sistema continua silenciosamente
esmagando a natureza humana que resiste em florescer no ser humano.
Voltando à imagem, concluímos que ela é, na atualidade, um importante mecanismo
de expressão dos embates ideológicos que atuam nas sociedades e sua percepção como
material simbólico significante na “ordem do discurso” atesta sua força discursiva de ser o
que é, o que parece ser, e, ao mesmo tempo, aquilo que o sujeito interpreta que seja. Se a
língua é incompleta e os sentidos nela não se fecham, a imagem não é menos profícua em
termos de produção de sentidos heteroneos. Esperamos ter contribuído, com esta pesquisa,
para a abertura do estudo discursivo para as múltiplas materialidades simbólicas que também
153
nos constituem enquanto sujeitos, que também participam do processo de construção da ilusão
de realidade na qual estamos inseridos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado (1970). Rio de Janeiro: Graal, 1992.
___________. Processo sem sujeito nem fim(s). (1973) In: Althusser. Posições-1. Rio de
Janeiro: Graal, 1978.
AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade(s) Enunciativa(s). (1984). In: Cadernos de
Estudos Lingüísticos. Campinas, n.19, jul./dez. 1990.
COURTINE, Jean-Jacques. O chapéu de Clémentis. (1982) In: INDURSKY, Freda &
LEANDRO FERREIRA, Maria Cristina (org.). Os múltiplos territórios da
Análise do Discurso. Porto Alegre: Sagra-Luzzatto, 1999.
__________. Analyse du discurs politique. Langages. Paris: Larousse, v.62, 1981.
COURTINE, Jean-Jacques; HAROCHE, Claudine. O homem perscrutado. Semiologia e
antropologia política da expressão e da fisionomia do século XVII ao século XIX. In:
ORLANDI, Eni. [et al.]. Sujeito e texto. Série cadernos PUC. São Paulo: EDUC, 1988.
DAVALLON, Jean. A imagem, uma arte de memória? (1983) In: ACHARD, Pierre [et al]
Papel da Memória. Campinas: Pontes, 1999.
ECO, Umberto. Conceito de texto. São Paulo: EDUSP, 1984.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso (1970). São Paulo: Loyola, 1999.
__________. As regularidades discursivas. In: A arqueologia do saber. (1969) 2 ed. Rio de
Janeiro: Forense-Universitária, 1986.
__________. O enunciado e o arquivo. In: A arqueologia do saber. (1969) 2 ed. Rio de
Janeiro: Forense-Universitária, 1986.
GALLO, Solange Leda. Autoria: questão enunciativa ou discursiva? In: Linguagem em
(Dis)curso, v.1, n.2. Tubarão, 2001.
GORZ, André. Metamorfoses do trabalho. Crítica da razão econômica. São Paulo:
AnnaBlume, 2005.
GRUPO KRISIS. Manifesto contra o trabalho. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2003.
GREIMAS, Algirdas Julien & COURTÉN, Joseph. Dicionário de semiótica. São Paulo:
Cultrix, [1979].
GRANTHAM, Marilei. Da releitura à escritura: um estudo da leitura pelo viés da
pontuação. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de
Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras, Porto Alegre, 2002.
155
GUILHAUMOU, Jacques e MALDIDIER, Denise. Efeitos do arquivo. A análise de discurso
no lado da história. In: ORLANDI, Eni (org.) Gestos de leitura: da história no discurso.
Campinas: Editora da UNICAMP, 1994.
HAROCHE, Claudine. A desordem das estruturas econômicas e as incidências ideológicas
que dela decorrem para o estatuto do sujeito. In: HAROCHE, Claudine. Fazer dizer, querer
dizer (1983). São Paulo: HUCITEC, 1992.
_________. Análise crítica dos fundamentos da forma sujeito (de direito). In: HAROCHE,
Claudine. Fazer dizer, querer dizer (1983). São Paulo: HUCITEC, 1992.
HENRY, Paul. A ferramenta imperfeita: língua, sujeito e discurso. (1977) Campinas: Editora
da UNICAMP, 1992.
___________. Os fundamentos teóricos da “Análise Automática do Discurso” de Michel
Pêcheux (1969). In: GADET, Françoise e HAK, Tony. (org.). Por uma análise automática do
discurso: uma introdução à obra de Michel cheux. 3 ed. Campinas: Editora da UNICAMP,
1997.
INDURSKY, Freda. A fragmentação do sujeito em Análise de Discurso. In: INDURSKY, F.;
CAMPOS, M.C. (Org.). Discurso, memória, identidade. 1 ed. Porto Alegre: Sagra-Luzzatto,
2000.
__________. A negação externa. In: A fala dos quartéis e as outras vozes. Campinas:
Editora da UNICAMP, 1997.
__________. Quadro teórico de referência. In: A fala dos quartéis e as outras vozes.
Campinas: Editora da UNICAMP, 1997.
________.
Da heterogeneidade do texto à heterogeneidade do discurso. In: ERNST-
PEREIRA, Aracy e FUNCK, Susana B. (org.). A leitura e a escrita como práticas
discursivas. Pelotas: Educat, 2001.
___________. Lula lá: estrutura e acontecimento. In: INDURSKY, Freda; LEANDRO
FERREIRA, Maria Cristina (org.). Discurso, memória e identidade. ORGANON 35, Porto
Alegre: UFRGS, 2002.
LACAN, Jacques. A Jakobson. In: LACAN, J. O Seminário: livro 20: mais ainda. (1975) 2
ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
___________. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964).
2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LEANDRO FERREIRA, Maria Cristina Leandro. Glossário de termos do discurso. Análise
de Discurso. Porto Alegre: UFRGS, 2001.
___________. Nas trilhas do discurso: a propósito de leitura, sentido e interpretação. In:
ORLANDI, Eni (org.). A leitura e os leitores. São Paulo: Pontes, 2003.
156
___________. Saussure, Chomsky, Pêcheux: a metáfora geométrica do dentro/fora da língua.
In: Linguagem & Ensino, vol. 2, n° 1, 1999.
LESSA, Sérgio. Centralidade do trabalho: qual centralidade, qual trabalho? In: Mundo dos
Homens: Trabalho e Ser Social. São Paulo: Boitempo, 2002.
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo (1690). In: LOCKE, John. Carta acerca da
Tolerância; Segundo Tratado sobre o Governo; Ensaio acerca do Entendimento Humano.
Série Os Pensadores, 2. ed. São Paulo: 1978.
MAINGUENEAU, Dominique. Universo, campo, espaço discursivos. In: Novas tendências
em AD. São Paulo: Pontes, 1997.
MALDIDIER, Denise. Elementos para uma história da Análise do Discurso na França. In:
ORLANDI, Eni (org.). Gestos de leitura: da história no discurso. Campinas: Editora da
UNICAMP, 1994.
MARIANI, Bethania. O PCB e a imprensa: os comunistas no imaginário dos jornais (1922-
1989). Rio de Janeiro: Revan; Campinas: UNICAMP, 1998.
MARX, Karl. Compra e venda da força de trabalho. (Vol. I, cap. 4, 3). In: O capital. Ed.
resumida dos três volumes por Julian Borchardt. Rio de janeiro: Zahar, 1967.
__________. O Capital: Crítica da Economia Política. São Paulo: Difel, 1982.
__________. O trabalho alienado. In: Manuscritos econômico-filosóficos de 1844. São Paulo:
Martin Claret, 2006.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. In: file:///C/site/livros_gratis/
manifesto_comunista.htm. 17/09/2006.
________.A Ideologia Alemã. In: http://www.filonet.pro.br/livros/ebooks/ideologia.pdf
08/09/07
MASI, Domenico Di. O ócio criativo é uma arte que se aprende e se aperfeiçoa com o tempo
e com o exercício... www.mariopersona.com.br/domenico.html. 17/09/2006.
MILNER, Jean-Claude. O amor da língua. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.
OFFE, Claus. Trabalho como categoria sociológica fundamental? In: Trabalho e Sociedade.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.
ORLANDI, Eni. Textualidade e discursividade. In: Análise de Discurso. Princípios e
procedimentos. São Paulo: Pontes, 2002.
____________. Paráfrase e polissemia. In: Análise de Discurso. Princípios e procedimentos.
São Paulo: Pontes, 2002.
___________. A proposta de uma tipologia. In: A linguagem e seu funcionamento. As formas
do discurso. São Paulo: Pontes, 1987.
157
____________ . Discurso, texto, diálogo. In: A linguagem e seu funcionamento. As formas do
discurso. São Paulo: Pontes, 1987.
___________. Segmentar ou recortar? In: Série Estudos, Uberaba, (10): 9-26. Faculdade
Integrada de Uberaba, 1984.
___________. O trabalho da interpretação. In: Interpretação; autoria, leitura e efeitos do
trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes, 1996.
__________. Autoria e interpretação. In: Interpretação; autoria, leitura e efeitos do trabalho
simbólico. Petrópolis: Vozes, 1996.
__________. Ordem e organização na língua. In: Interpretação; autoria, leitura e efeitos do
trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes, 1996.
___________. Discurso: fato, dado, exterioridade. In: Interpretação; autoria, leitura e efeitos
do trabalho simbólico. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
___________. Efeitos do verbal sobre o não-verbal. In: Rua, n. 1. Campinas, 1995.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio (1975).
Campinas: Editora da UNICAMP, 1988.
__________. Análise automática do discurso (AAD-69). In: GADET, Françoise e HAK,
Tony. (org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel
Pêcheux. 3 ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997.
__________. O discurso: estrutura ou acontecimento (1983). Campinas: Pontes, 1990.
__________. Ler o arquivo hoje.(1980) In: ORLANDI (org.) Eni P. Gestos de leitura: da
história no discurso. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994.
__________. Remontémonos de Foucault a Espinoza. In: El discurso político. Universidad
Nacional Autonoma de México. México: Editorial Nueva Imagen, 1980.
__________. La sémantique et la coupure saussurienne: langue, langage, discours. In:
MALDIDIER, D. (org.) L’inquiétude du discours. Paris: Ed. des Cendres, 1971.
__________. Papel da memória.(1983). In: ACHARD, Pierre [et al] Papel da Memória.
Campinas: Pontes, 1999.
PÊCHEUX, Michel; FUCHS, Catherine. A propósito da Análise Automática do Discurso:
atualizações e perspectivas. (1975). In: GADET, Françoise e HAK, Tony. (orgs.). Por uma
análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 3 ed. Campinas:
Editora da UNICAMP, 1997.
PONCE, Aníbal. Educação e luta de classes. 2 ed. São Paulo: Cortez, 1981.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social e outros escritos. Clássicos Cultrix. São
Paulo: Cultrix, 1945.
158
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. BALLY, Charles e SECHEHAYE,
Albert. (org.). São Paulo: Cultrix, 1971.
SERRANI, Silvana. Paráfrase como ressonância interdiscursiva. In: A linguagem na pesquisa
sociocultural: um estudo da repetição na discursividade. Campinas: Editora da Unicamp,
1993.
SICARD. Monique. Os paradoxos da imagem. In: Revista Rua, nº6. Campinas: Editora da
UNICAMP, 2000.
SOUZA. Tânia C. Clemente de. A análise do não verbal e os usos da imagem nos meios de
comunicação
In: Rua, n. 7. Campinas, 2001.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo