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PAULO BUNGART NETO
AUGUSTO MEYER PROUSTIANO: A REINVENÇÃO MEMORIALÍSTICA DO EU
Porto Alegre
2007
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ÁREA: ESTUDOS DE LITERATURA
ESPECIALIDADE: LITERATURA COMPARADA
LINHA DE PESQUISA: RELAÇÕES INTERLITERÁRIAS E TRADUÇÃO
AUGUSTO MEYER PROUSTIANO: A REINVENÇÃO MEMORIALÍSTICA DO EU
PAULO BUNGART NETO
ORIENTADORAS: PROFa DRa TANIA FRANCO CARVALHAL (in memoriam)
PROFa DRa MARIA LUIZA BERWANGER DA SILVA
Tese de Doutorado apresentada ao Curso de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, como requisito parcial para a
obtenção do tulo de Doutor em Letras -
Literatura Comparada.
Porto Alegre
2007
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A Deus, sem o qual nada seria possível
Às minhas queridas avós Nazareth e Margarida
e à Maria da Glória Pinheiro,
eternamente presentes na saudade do dia-a-dia
Aos meus pais Peter e Lúcia, pelo apoio
incondicional e pela confiança extrema
À minha mulher Simone e ao meu filho Dimitri,
por tanto sacrifício, amor e paciência
À professora Tania Franco Carvalhal,
por tudo e para sempre, desde o primeiro momento
AGRADECIMENTOS
À Simone e ao Dimitri, por toparem encararmos juntos o desafio de uma saudade maior que a
distância entre Presidente Prudente e Porto Alegre.
Aos meus pais Peter Ralph Bungart e Maria Lúcia Pereira Bungart, incondicionalmente
presentes desde os primeiros passos em Copacabana.
À Profa. Dra. Tania Franco Carvalhal, orientadora, incentivadora e amiga, que vislumbrou a
profundidade lírica das memórias de Augusto Meyer e acreditou, desde o primeiro instante,
que eu poderia ter a honra de demonstrá-la. Oxalá este agradecimento e, sobretudo, o próprio
texto que apresento, possam se tornar veículos de sincera homenagem e de humilde
retribuição pela confiança depositada.
À Profa. Dra. Maria Luiza Berwanger da Silva (pelos livros emprestados, pelas sugestões
bibliográficas, pelos comentários feitos no Exame de Qualificação e pela orientação na reta
final do trabalho), ao Prof. Dr. Ubiratan Paiva de Oliveira (pelas valiosas sugestões dadas no
Exame), e às Profas. Dras. Sara Viola Rodrigues, Patrícia Lessa Flores da Cunha, Gilda Neves
da Silva Bittencourt e Lúcia Sá Rebello, do Instituto de Letras da UFRGS.
Aos funcionários da Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS
Márcia e ao Canísio) e a todo o pessoal do Rio Grande do Sul que me ajudou (em especial, ao
Fabiano Bruno Gonçalves e ao José Luís Krummenauer, o Mico, essenciais em tudo, na
amizade, na hospitalidade e no carinho com que fui recebido).
Ao Prof. Dr. Luiz Carlos da Silva Dantas, da UNICAMP SP, que, durante a Graduação, me
apresentou à instigante obra de Meyer e à pesquisa universitária. Aos professores da UNESP
de Assis SP, principalmente ao Prof. Dr. Luiz Roberto Velloso Cairo, orientador da
dissertação de Mestrado, que, ao me colocar no caminho da profa. Tania Carvalhal, concedeu-
me a feliz oportunidade de conhecer a fundo a obra de Augusto Meyer ciceroneado pela
“Grande Dame de la Littérature Comparée”; e, também da UNESP de Assis, às Profas. Dras.
Maria Lídia Maretti, Maria do Carmo Savietto, Silvia Maria Azevedo (a todas pela
bibliografia, pelas idéias e pela amizade) e Silvia Mussi da Silva Claro (pelas sugestões e pelo
encaminhamento no início do Mestrado). Ao Prof. Dr. Wander Melo Miranda, da UFMG,
pelas sugestões e pelo incentivo à pesquisa da memorialística brasileira.
À minha querida Simone pela ajuda na tentativa de domar o monstro “Microsoft Word”, e a
toda sua família, especialmente ao Arcênio pelos livros do Freud, à Rafaela pela ajuda no
escaneamento das figuras, enfim, a todos.
À Lilian Coimbra, pelo auxílio na elaboração do resumo em francês.
Aos funcionários das bibliotecas da UFRGS, da UNESP de Assis e da UNISINOS (São
Leopoldo RS), e aos funcionários do Setor de Arquivos do Correio do Povo, do Museu
Moisés Vellinho e do Museu Hipólito José da Costa, em Porto Alegre – RS.
A todas estas pessoas e instituições agradeço profundamente o auxílio e a confiança,
lembrando que o esboço deste trabalho não se tornaria a realidade da tese se não tivesse
podido contar com a colaboração e com o incentivo de cada um e de todos, a quem renovo
meus agradecimentos e minha admiração.
“O rumorejar do vento nas árvores
desperta esquecidas recordações. Como
aquele azulão pousado na ponta do mais
alto ramo, antes de levantar vôo, a
memória hesita, voltada para todos os
lados do passado. Mas, de súbito, a
intuição acerta o rumo e vai direita e
rápida, como ave de arribação atraída
pelo faro de outra querência: a saudade
do tempo da flor...”
(Augusto Meyer, No tempo da flor,
1966, p. 39)
BUNGART NETO, Paulo. Augusto Meyer proustiano: a reinvenção memorialística do
eu. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2007 (Tese de Doutorado).
Orientadoras: Profa. Dra. Tania Franco Carvalhal (in memoriam) / Profa. Dra. Maria Luiza
Berwanger da Silva
RESUMO
Esta tese de Doutoramento em Literatura Comparada aborda a obra memorialística de
Augusto Meyer a partir do influxo proustiano que se evidencia, nos dois volumes que a
compõem (Segredos da infância, 1949; e No tempo da flor, 1966), através do apelo aos cinco
sentidos, da reconstituição dos lugares paradisíacos da infância, do eu “perdido” e
“reencontrado” e, sobretudo, de diversas manifestações da memória involuntária,
especialmente aquelas ligadas ao minuano, o “vento da campanha”. Após a Introdução (1),
são discutidos (2 - “Fundamentos teóricos”) os mais variados enfoques relacionados ao estudo
de fenômenos mnemônicos, a fim de se demonstrar de que maneira ramos tão diversificados
do conhecimento humano (tais como Mitologia, Filosofia, Psicanálise, Cinema, Música, etc)
trataram a questão da memória e de sua representação. Além disso, nas considerações
específicas sobre a memória como gênero literário, percorro, à luz da crítica estruturalista
francesa, as diferentes formulações teóricas acerca dos conceitos de autobiografia, diário,
memórias e outros subgêneros confessionais. No capítulo seguinte (3 - A la recherche du
temps perdu e a reconstrução da memória: o monumental ‘edifício imenso da recordação’
involuntária”), o destaque é dado à questão da memória involuntária no romance A la
recherche du temps perdu, de Marcel Proust, bem como à recepção crítica, na França e no
Brasil, desta obra-prima do século XX. Ao quarto capítulo (“Augusto Meyer memorialista:
influxo proustiano na busca da unidade perdida”), por fim, reserva-se a formulação essencial
desta tese a noção de que a memorialística modernista brasileira sofreu forte influxo do
roman-fleuve de Proust, sugestão que se confirma através de sua presença nos mais diversos
gêneros (crônica, poesia, memorialística) e temas (a memória involuntária e a memória dos
sentidos, amplamente utilizadas por escritores como Augusto Meyer, Pedro Nava, Cyro dos
Anjos, Gilberto Amado, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e outros).
Palavras-chave: memorialística modernista brasileira (de 1945 a 1984); Augusto Meyer
(1902-1970); Segredos da infância (1949); No tempo da flor (1966); Marcel Proust (1871-
1922); A la recherche du temps perdu; memória involuntária.
BUNGART NETO, Paulo. Augusto Meyer proustien: la mémorialistique reinvention du
moi. Porto Alegre: Université Fédérale du Rio Grande do Sul, 2007. (Thèse de Doctorat).
Directrices de recherche: Prof. Dr. Tania Franco Carvalhal (in memoriam) / Prof. Dr. Maria
Luiza Berwanger da Silva
RÉSUMÉ
Cette thèse de Doctorat en Littérature Comparée analyse l’oeuvre mémorialistique de Augusto
Meyer sous l’influx proustien, mis en évidence, dans les deux volumes qui la composent
(Secrets de l’enfance, 1949; et Au temps de la fleur, 1966), par l’appel aux cinq sens, la
reconstituition des endroits paradisiaques de l’enfance, le moi “perdu” et “retrouvé” et
surtout, les différentes manifestations de la mémoire involontaire, comme celles attachées au
minuano, le “vent de la campagne”. Après l’Introduction (1), on débat des approches (2 -
“Fondements théoriques”) les plus variées ayant rapport à l’étude des phénomènes
mnémoniques, dans le but de démontrer la façon dont des branches tellement diversifiées de
la connaissance humaine (la Mithologie, la Philosophie, la Psychanalyse, le Cinéma, la
Musique, etc) ont traité le thème de la mémoire et de sa représentation. En plus, dans les
considérations spécifiques sur la mémoire en tant que genre littéraire, je considère, à la
lumière de la critique structuraliste française, les différentes formules théoriques concernant
les concepts d’autobiographie, de journal, de mémoires et autres genres dérivés de la
confession. Dans le chapitre suivant (3 - A la recherche du temps perdu et la reconstruction
de la mémoire: le monumental ‘édifice immense du souvenir’ involontaire”), le thème de la
mémoire involontaire dans le roman A la recherche du temps perdu, de Marcel Proust, est mis
en relief, aussi bien que la réception critique, en France et au Brésil, de ce chef-d’oeuvre du
XXe siècle. Enfin, dans le quatrième chapitre (“Augusto Meyer mémorialiste: l’influx
proustien à la recherche de l’unité perdue”), l’essentiel de la thèse est formulé: la notion que
la mémorialistique brésilienne moderne a subi un profond influx du roman-fleuve de Proust,
hypothèse qui se confirme par sa présence dans les genres les plus divers (cronique, poésie,
mémorialistique), et par les thèmes (la mémoire involontaire et la mémoire des sens,
largement employées par les écrivains Augusto Meyer, Pedro Nava, Cyro dos Anjos, Gilberto
Amado, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade et autres).
Mots-clés: mémorialistique brésilienne moderne (1945-1984); Augusto Meyer (1902-1970);
Segredos da infância (Secrets de l’enfance), 1949; No tempo da flor (Au temps de la fleur),
1966; Marcel Proust (1871-1922); A la recherche du temps perdu; mémoire involontaire.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – As três idades do homem e a Morte (Hans Baldung)..............................................65
Figura 2 – A persistência da memória (Salvador Dalí)............................................................66
Figura 3 – A desintegração da persistência da memória (Salvador Dalí)...............................67
Figura 4 – O “gatilho” da memória involuntária em Proust: o chá e a madeleine.................122
Figura 5 – A vista de Delft (Johannes Vermeer).....................................................................151
Figura 6 – O “zaori” Marcel Proust........................................................................................198
Figura 7 – Augusto Meyer em óleo de Portinari.....................................................................266
Figura 8 – Praça da Matriz, em Porto Alegre, no início do século XX..................................337
Figura 9 – Praça da Matriz nos dias de hoje (século XXI).....................................................339
Figura 10 – Cerro d’Árvore, “tempespaço” reinventado........................................................486
SUMÁRIO
1 - INTRODUÇÃO..................................................................................................................09
2 - Fundamentos teóricos........................................................................................................28
2.1. Teorias da memória diversidade e amplitude de enfoque: memória coletiva e memória
individual..................................................................................................................................28
2.2. Representações da memória e do “tempo perdido” em outras artes..................................63
2.3. Memória como gênero literário: autobiografia e memorialismo.......................................91
2.4. A memória involuntária e o “gatilho” da memória..........................................................120
3 - A la recherche du temps perdu e a reconstrução da memória: o monumental “edifício
imenso da recordação” involuntária...................................................................................133
3.1. O roman-fleuve de Marcel Proust e sua mola propulsora: a memória involuntária.........133
3.2. Crítica proustiana francesa e européia.............................................................................159
3.3. Proust e a literatura modernista brasileira........................................................................188
4 - Augusto Meyer memorialista: influxo proustiano na busca da unidade
perdida...................................................................................................................................236
4.1. A memorialística brasileira e a crítica..............................................................................236
4.2. Reflexos de A la recherche du temps perdu em Segredos da infância e em No tempo da
flor: A memória involuntária em Augusto Meyer, o “iniciado do vento”..............................297
4.3. As Memórias de Augusto Meyer: imaginação e lirismo à procura do “país da memória
perdida”...................................................................................................................................326
4.4. Resgatando a unidade do eu: Do menino e moço ao homem viagem em tempespaço de
Tico-Foguinho-Aug-Bilu-Meyer............................................................................................361
4.5. Confluências entre as memorialísticas de Augusto Meyer e de Pedro Nava...................390
4.6. Augusto Meyer e os poetas e memorialistas proustianos brasileiros: memória dos sentidos
e acessos involuntários na “busca do eu perdido”..................................................................416
4.7. Proustianos e não-proustianos: expiação dos insultos sofridos na escola e na rua..........435
5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS: AUGUSTO MEYER POLÍGRAFO – COESÃO E
COMPLEMENTARIDADE: A MEMORIALÍSTICA EM COTEJO COM OUTROS
GÊNEROS DE SUA PRODUÇÃO.....................................................................................444
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................453
ANEXOS................................................................................................................................482
ANEXO I................................................................................................................................483
ANEXO II..............................................................................................................................495
1 – INTRODUÇÃO
“É de [Joaquim] Nabuco a grande verdade psicológica
de que todos os homens através da vida se agitam dentro
de um continente emocional criado por quatro ou cinco
impressões da infância. Impressões essenciais de
surpresa, descoberta e compreensão, de síntese e
análise do mundo –, com que a imaginação
fundamentalmente livre e direta da criança reúne e
compara os fatos que se destinam à criação do material
elementar que vai condicionar todas as reações afetivas
do homem maduro.” (Pedro Nava, “Itinerário para a rua
da Aurora”, Homenagem a Manuel Bandeira, 1986, p.
183)
A idéia de escrever uma tese de Doutoramento a respeito da obra memorialística de
Augusto Meyer surgiu de uma sugestão da Profa. Dra. Tania Franco Carvalhal, feita (em
agosto de 2002) a partir da constatação de que se trata o gênero memorialístico da vertente
menos estudada da produção do escritor gaúcho. Tudo que se lerá adiante é fruto de cinco
anos de um trabalho que se originou da sugestão desta intelectual sensível e cativante,
orientadora e “guia virgiliana” de um estudo realizado com grande prazer (devido à
descoberta progressiva do riquíssimo material que se me apresentava, a cada dia, mais
desafiadoramente sedutor) e que, assim sendo, tudo deve a seus comentários e a sua visão
profunda de literatura, a ela que, no vasto e desconhecido mundo que passou recentemente a
habitar, será sempre a primeira e a mais especial leitora do estudo por ela idealizado e a ela
dedicado.
Se os dois volumes de memória que Augusto Meyer escreveu (Segredos da infância,
1949, e No tempo da flor, 1966) freqüentemente não fazem parte da fortuna crítica do autor,
mais afeita às obras poética e ensaística, e se os mesmos não possuem, por exemplo, a
importância histórica da Minha formação de Joaquim Nabuco, o impacto político das
Memórias do cárcere de Graciliano Ramos ou a confissão caudalosa e abismal das
portentosas Memórias de Pedro Nava, nem por isso tais “ausências” significam que não
devamos dar o devido valor às pungentes lembranças de Meyer (sobretudo as sugeridas pelos
10
“becos da memória”) e à recriação, sob inegável influxo proustiano, não apenas do menino
ruivo, autodidata e precoce, habituado desde tenra idade à literatura e às artes plásticas, no
então provinciano Porto Alegre de início do século XX, mas também do jovem adolescente
que cedo assinaria artigos e crônicas no Correio do Povo e que, convivendo com outros
modernistas empenhados na renovação literária proposta pela nova tendência, pontuaria sua
eclética e imprescindível contribuição em pontos estratégicos tais como a Livraria do Globo
ou o Café Colombo
1
.
De todos os gêneros literários a que Augusto Meyer se dedicou, apenas a memorialística
não possuía ainda um estudo aprofundado que preenchesse tal lacuna, constatação que
justifica o desafio a ser enfrentado, uma vez que tanto sua produção poética um dos marcos
do Modernismo gaúcho – quanto sua atuação como crítico literário (e até mesmo seus estudos
sobre o folclore da região Sul)
2
foram analisadas por pesquisadores e críticos sobretudo a
partir da segunda metade do século XX.
Tese com a qual Tania Franco Carvalhal obteve o título de Doutora em Letras pela
Universidade de São Paulo (USP) em 1981, A evidência mascarada Uma leitura da poesia
de Augusto Meyer (publicada pela Editora L&PM em 1984) representa o estudo definitivo de
sua poética, pois, além do sério e competente levantamento e discussão dos temas e sugestões
aproveitados pelo escritor, a tese pontua conceitos que nortearam a técnica de composição de
Augusto Meyer, tais como os que dizem respeito à unidade e à circularidade de sua obra, ao
esfacelamento da personalidade e à exploração dos conflitos interiores, chaves de seu
proceder literário.
Da mesma forma, sua atividade como ensaísta e como crítico literário foi
1
Para Erico Veríssimo, as obras memorialísticas de Meyer, “dois extraordinários pequenos volumes de
recordações da meninice e da adolescência”, são talvez os melhores livros no gênero escritos no Brasil.” (Solo
de clarineta, 9 ed, 1976, v. 1, p. 237)
2
Ver Sílvio Júlio de Albuquerque Lima (Estudos gauchescos de literatura e folclore, 1953); e José Clemente
Pozenato (O regional e o universal na literatura gaúcha, 1974).
11
suficientemente circunscrita, analisada e interpretada, especialmente por uma geração de
críticos e professores universitários que, a partir da década de 70, voltaram-se para a erudita e
originalíssima contribuição de um Meyer que, tendo passado do impressionismo à crítica
formalista, dos primeiros esboços humanistas à pesquisa de fontes, assinalou com propriedade
sua participação na consolidação da crítica literária brasileira ao mostrar que o gênero poderia
conter, simultaneamente, rigor de análise e intenso lirismo, fundamentação teórica e saídas
coloquiais, “chaves” e “máscaras” metalingüisticamente apropriadas à originalidade dos
assuntos propostos e discutidos.
Assim, dentre inúmeros outros, críticos paradigmáticos tais como Otto Maria
Carpeaux
3
, Moisés Vellinho
4
, José Guilherme Merquior
5
, Antonio Candido
6
, Roberto
Schwarz
7
e João Alexandre Barbosa
8
, apontaram a excelência da produção crítica de Augusto
Meyer, reconhecendo sua primazia na fortuna crítica machadiana e na evolução do gênero no
Brasil, além de identificar, no ensaísmo meyeriano, estilo, acuidade, rigor e precisão ímpares.
Em sua dissertação de Mestrado, intitulada O crítico à sombra da estante Levantamento e
análise da obra de Augusto Meyer
9
, Tania Franco Carvalhal se voltou também para tal
vertente da obra de Meyer, destacando o quanto a crítica machadiana do autor de A chave e a
máscara fundamentou a abordagem, sob o ângulo da introspecção e do psicologismo, da obra
de escritores como Dostoiévski, Pirandello, Shakespeare e Proust.
A atividade crítica exercida por Augusto Meyer orientou, da mesma forma, a
dissertação de Mestrado que defendi na Faculdade de Ciências e Letras de Assis-SP
(UNESP), em outubro de 2002, sob orientação do Prof. Dr. Luiz Roberto Velloso Cairo.
Intitulada A flor amarela, solitária e mórbida da introspecção A obra crítica de Augusto
3
“O crítico Augusto Meyer”, Presenças, 1958.
4
“Augusto Meyer – Poeta e crítico”, Letras da província, 1960, 2 ed.
5
“Em torno da estética da recepção”, O elixir do apocalipse, 1983.
6
“Esquema de Machado de Assis”, Vários escritos, 1970.
7
Um mestre na periferia do capitalismo – Machado de Assis, 1991, 2 ed.
8
“Paixão crítica”, A leitura do intervalo, 1990; e “Augusto Meyer ensaísta”, Cult, nº 54, jan. 2002.
9
Porto Alegre, Editora Globo, 1976.
12
Meyer sobre Machado de Assis, o trabalho buscou situar a crítica machadiana de Meyer em
seus recortes diacrônico estudando a posição que sua crítica ocupa na exegese dos estudos
sobre o romancista, sendo responsável pela passagem da crítica biográfica à estilística; e
sincrônico destacando a abordagem psicológica adotada no volume Machado de Assis, de
1935, obra que norteia estudos posteriores e que lida com a idéia do pessimismo e da
introspecção de um Machado voluptuosamente “cerebral”, “demoníaco” e “mórbido”.
Se considerarmos “esgotados” ou pelo menos suficientemente explorados estudos
relacionados às vertentes referidas acima, interessará, na presente tese, focalizar a
memorialística de Augusto Meyer e sua relação com outros modernistas proustianos de nossa
literatura, a partir de conceitos vinculados às sugestões expressas por Marcel Proust em A la
recherche du temps perdu (Em busca do tempo perdido), tais como: o papel da memória
involuntária para a recuperação da ilha perdida” da infância, espécie de “Delos flutuante”; a
importância dos sentidos, “gatilhos” da memória; a reconstrução, não apenas de um “tempo
perdido”, mas também de um “espaço” irremediavelmente perdido, reinventados a partir da
evocação do sujeito da memória; a questão da imaginação e da conseqüente recriação, através
do sujeito “neutro” da escritura, de um “personagem” intervalar entre o eu da infância e o eu
que rememora, entre o menino e o homem, entre o personagem recriado e o narrador,
“mistura quase indeslindável entre ficção e lembrança, invenção e documento, refiguração e
verdade documental”
10
, nas palavras de José Maria Cançado a caracterizarem a forma de
composição da escrita naviana e sua intertextualidade com O Ateneu de Raul Pompéia.
10
Memórias videntes do Brasil A obra de Pedro Nava. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2003, p. 115. Ver
também, à página 118: “invenção e documento se confundem, sem detrimento da verdade e realidade da
memória, e com amplo enriquecimento da expressividade do que é reconstituído”. Para Tania Franco Carvalhal,
“Literature of memory follows (...) the rules of its own development: created by remembering and forgetting, it
establishes reality by mixing truth, sincerity, and invention.” (“Autobiographical writing in Brazil The
‘Proustians’ Jorge de Lima, Augusto Meyer, and Pedro Nava”, in The I of the beholder – A Prolegomenon to the
Intercultural study of self, 2002, p. 96)
13
O objetivo primordial desta tese será, portanto, perscrutar o fato de se tratarem as
Memórias de Augusto Meyer
11
(e de outros memorialistas proustianos brasileiros), não da
simples recordação e do relato dos fatos ocorridos (como, por exemplo, nas Memórias do
cárcere de Graciliano), mas principalmente da reconstituição dos ambientes paradisíacos da
infância e da adolescência através da imaginação e de uma sutil fusão entre ficção e realidade,
postura que o leva à constatação de que “visto de longe, e por saudade, o tempo da flor é
aroma; vivido, é espinho também”
12
, tudo isso, repito, sob intensa sugestão proustiana e de
um lirismo que, nunca descaindo para a pieguice ou para a afetação, impressiona por não
esconder a pior e a mais cruel de todas as constatações a de que somos irremediável e
condenadamente mortais e portanto de certa forma impelidos a, através de recuos,
ressignificações e reterritorializações do tempo perdido (“escoado”) e recuperado pela
memória (o tempo “redescoberto”), esquecermos parcialmente a triste constatação da finitude
da vida e da presença inevitável da morte, através do recurso de imaginar-se criança
novamente, livre das intrincadas maquinações, frustrações, recalques e cobranças do mundo
adulto, pois
11
Quando me referir às Memórias de Augusto Meyer, estarei falando sobretudo dos supracitados Segredos da
infância (1949) e No tempo da flor (1966), mas também de textos como a “Carta aos meus bisavós”, incluída na
edição feita, em 1997, por iniciativa do Instituto Estadual do Livro e do Fundo Nacional da Cultura de Porto
Alegre, e que pode ser considerada a edição definitiva de suas memórias, já que traz reunidos, além da
emocionante carta, todos os capítulos dos dois volumes mencionados. Meyer previra em seu projeto
memorialístico a composição de uma trilogia (mesmo caso de seus estudos sobre folclore, estes realizados. Ver
Prosa dos pagos (1943; 2 ed. 1960); Guia do folclore gaúcho (1951); e Cancioneiro gaúcho (1952);), a ser
completada com o sugestivo título de Becos da memória, intenção que se confirma se confiarmos nas
informações veiculadas no verso da capa de Prosa dos pagos (1960), a respeito das obras completas de Augusto
Meyer, reeditadas, à época, pela Livraria São José. O projeto, porém, não passou do papel e o terceiro e último
volume, idealizado e, quem sabe, estruturado, não chegou a ser publicado. Conforme veremos no capítulo 4, o
projeto de continuação da redação das memórias é apenas uma dentre as tantas confluências entre as
memorialísticas de Augusto Meyer e de Pedro Nava, uma vez que, assim como os Becos da memória de Meyer,
o escritor mineiro também idealizou e chegou a datilografar dezenas de páginas o sétimo tomo de suas
memórias, a que daria o título de Cera das almas (publicado, mesmo incompleto, em 2006, pela Ateliê
Editorial), volume cuja redação foi interrompida pelo suicídio, em maio de 1984, cometido, ao que parece, sob
intensa crise emocional, semelhante ao estado que desencadeou, coincidentemente, o mesmo ato levado a cabo
por Raul Pompéia, mestre de Nava na recriação dos internatos pelos quais passou. Assim como Pedro Nava,
parece ter sido também a morte a responsável pelo fato de Meyer não ter publicado o último volume de suas
memórias, que No tempo da flor foi lançado em 1966 e o escritor morreu em julho de 1970, após ter passado
os últimos cinco anos de sua vida enfermo e praticamente recluso.
12
No tempo da flor, Rio de Janeiro, O Cruzeiro, 1966, p. 40.
14
A todo momento, quando nos perturba a sedução da sua saudade, sentimos que é
preciso voltar de qualquer modo aos pagos da infância. Voltar! Diz uma voz interior,
voltar enquanto é tempo à manhã da tua vida... (MEYER, “Cerro d’Árvore”,
Segredos da infância, 1949, p. 17)
Na memorialística de Augusto Meyer (e, de modo geral, nas de vários outros
memorialistas brasileiros, sobretudo os proustianos), a memória do passado é refundida e
reinventada por uma terceira entidade narrativa (o “sujeito da memória” ou “Narrador”),
forma “anfíbia” entre o “velho” que relembra/reinventa e o jovem evocado, pois ao recordar
e/ou imaginar a criança que havia sido, o sujeito que intenta reconfigurar, através da tentativa
de resgate do elo perdido da infância, uma certa, ainda que tardia, unidade do ser
multifacetado pelas mais diversas experiências, acaba criando uma outra imagem de si, ou
seja, um Outro a partir de sua própria reinvenção
13
.
Multifacetado porque, entre outros motivos, essa aparente unidade está comprometida
justamente em relação aos primeiros instantes de nosso despertar para o mundo, que,
segundo o narrador da Recherche, “Ces années de ma première enfance ne sont plus en moi,
elles me sont extérieures, je n’en peux rien apprendre que, comme pour ce qui a eu lieu avant
notre naissance, par les récits des autres”
14
. Assim, a mais distante recordação e a mais
fantasiosa imaginação estão em relação de contigüidade, que, segundo Meyer, a recordação
do que fomos “não diz nada às vozes da memória” caso não seja sugestionada pela
imaginação. Vejamos como um trecho de “Cerro d’Árvore”, capítulo inaugural de Segredos
da infância (1949), soa como uma espécie de explicação adicional do sentido das palavras de
13
Ver, a esse respeito, a bela imagem de Pedro Nava em Baú de ossos, na qual, ao comentar que a “memória dos
que envelhecem” é elemento básico da tradição familiar, afirma a legitimidade do “contato do moço com o
velho”, “porque este sabe que existiu em determinada ocasião o indivíduo cujo conhecimento pessoal não
valia nada, mas cuja evocação é uma esmagadora oportunidade poética” (NAVA, 1983, 6 ed, p. 23). Quanto à
necessidade de distanciamento no tempo entre o sujeito que rememora e o objeto de sua rememoração, lemos em
A construção da Ilíada Uma análise de sua elaboração, que: “A sabedoria, para ser reconhecida, requer a
consagração do tempo. Sábio é quem armazenou a experiência do passado. O jovem não pode competir em
sabedoria com o ancião, falta-lhe a visão que só os anos concedem.” (SCHÜLER, 2004, p. 35-6)
14
PROUST, Marcel. Le côté de Guermantes, 1954, p. 13. Na tradução de Mario Quintana: “Esses anos da minha
primeira infância não estão mais em mim, são exteriores, deles nada posso tirar a não ser pelo que contam os
outros, como se dá com as coisas que sucederam antes de nascermos.” (O caminho de Guermantes, Porto Alegre,
Globo, 1953, p. 04)
15
Proust referidas acima, ao mesmo tempo em que situa a direção dos passos que o
memorialista pretende dar em sua reconstituição do passado:
Nada sabemos do começo. O que os outros mais tarde nos contaram, tentando
retraçar aos nossos olhos a imagem da criança que fomos, não diz nada às vozes
da memória, nem de leve toca nas cordas da revelação. Os outros nos falam de
outro; não podemos contar com o auxílio de ninguém para dar os primeiros passos
no tempo que passou. É dentro de nós mesmos que ele dorme, como a verdade no
fundo de um poço. Dura, estranha, absurda, é a imagem que uma fotografia
amarelecida recortou tantos anos na fluidez do instante, e vale como
documento na imaginação alheia. Na grande noite do começo, vagamente
pressentimos a escuridão do fim. (MEYER, 1949, p. 13; grifo do autor)
15
Somente a partir da imaginação podemos reelaborar as lembranças de um passado
remoto, inexistente em estado puro”
16
. Às páginas 33 e 34, veremos como, na concepção de
Aristóteles, a memória pertence a uma parte da “alma” na qual a imaginação possui
importância capital:
A quelle partie de l’âme la mémoire appartient-elle ? Il est évident que c’est à cette
partie de laquelle relève aussi l’imagination. Et les choses qui, en elles-mêmes, sont
objets de mémoire sont toutes celles qui relèvent de l’imagination, et le sont
accidentellement toutes celles qui n’existent pas sans cette faculté. (ARISTÓTELES,
“De la mémoire et de la réminiscence”, 1953, p. 55)
17
15
Esta dúvida não é apenas de Augusto Meyer em Mémoire et personne, Georges Gusdorf cita o
questionamento feito por Goethe na abertura de suas memórias: “Goethe note au début de Poésie et Vérité ce
danger de confondre nos propres réminiscences avec les récits des souvenirs de notre premier âge, tels que nous
les avons entendus répéter par nos parents et les membres de l’entourage. Il est impossible de trouver un signe
absolu qui garantisse l’authenticité du souvenir d’enfance” (1951, v. 2, p. 375). Gusdorf se refere ao seguinte
trecho de Memórias: poesia e verdade: “Quando procuramos recordar-nos do que nos aconteceu na nossa
primeira infância, expomo-nos muitas vezes a confundir o que nos disseram outras pessoas com o que realmente
devemos à nossa experiência e às nossas observações pessoais” (GOETHE, 1971, v. 1, p. 09). Veremos no
capítulo 4 que Augusto Meyer reinventa não apenas o “Outroque ele foi como também os “Outros” de sua
história familiar, isto é, recria através da imaginação e daquilo que os “outros” contaram os parentes que não
chegou a conhecer, fato que não o impede de exaltar e de eternizar a bravura destes verdadeiros heróis anônimos
tão logo descobre suas desventuras e suas tragédias pessoais, orgulhoso por descender de destemidos
farroupilhas: “Nada sei, afinal, da tua aparência [do bisa Felipe Klinger] no tempo, a não ser o que me
contavam em casa, desde menino: que eras ruivo como eu, que vieste em vinte e quatro, com os primeiros
colonos, e abandonaste logo a tua pobre lavoura, encravada nos matos de Sapucaia, para alistar-te entre os
Farroupilhas. Por sinal que morreste na guerra grande ah, isto sim, o guri curioso que eu era guardou para
sempre num desvão da memória.” (MEYER, “Carta aos meus bisavós”, Segredos da infância/No tempo da flor,
Porto Alegre, 1997, p. 11)
16
Ainda sobre a importância que Meyer atribui ao poder de reconstituição da imaginação, ver também o seguinte
trecho, fundamental para o enfoque desta tese, no qual o memorialista recria o ambiente “rústico” e “edênico”,
sugerido pela menção a chácaras, pomares e folhagens de maricá, que o hoje movimentado bairro da Floresta,
em Porto Alegre, possuía no início do século XX: “Só a imaginação poderá reproduzir o verde vivo daqueles
campos de cevada que havia então na Floresta, verde realçado violentamente pelo tijolo sem reboco das fábricas
de cerveja” (MEYER, 1949, p. 36). Para Marcel, narrador de A la recherche du temps perdu, “On s’ennuie à
dîner parce que l’imagination est absente, et, parce qu’elle nous y tient compagnie, on s’amuse avec um livre”
(Le de Guermantes, 1954, p. 569). De acordo com a tradução brasileira: “Aborrecemo-nos ao jantar porque
a imaginação se acha ausente e divertimo-nos com um livro porque ela nos faz companhia.” (PROUST, O
caminho de Guermantes, 1953, p. 444)
17
Muitos séculos depois, escreveria Georges Poulet em “La dialectique de l’être”, ressaltando o papel da
imaginação em contraste com a percepção exterior: “(...) l’acte de l’imagination ou du souvenir n’est rien d’autre
16
Tal propriedade, que alguns memorialistas possuem, de conciliar recordação e
imaginação, possibilita a abordagem de suas obras sob duas vias – a da realidade e a da ficção
– as quais, dependendo do modo como o relato é conduzido, podem se mesclar e se unificar
de forma que se permita uma espécie de “dupla leitura”, ou de leitura de “dupla mão”, reversa
e concomitante, que comporte tanto a interpretação mais evidente, isto é, a que confia na
confissão autobiográfica, quanto o enfoque subjetivo motivado pela presença de processos
narrativos sugestionados pela imaginação, mais comum na abordagem de gêneros como o
romance, o conto ou mesmo a crônica, consignando, assim, aquilo que Gaston Bachelard, em
El ayre y los sueños, chamou de “verdade profunda da livre imaginação”
18
. Ao comentar, no
ensaio “Poesia e ficção na autobiografia”, as obras Boitempo, de Carlos Drummond de
Andrade, Baú de ossos, de Pedro Nava, e A idade do serrote, de Murilo Mendes (todas
presentes no corpus deste trabalho), Antonio Candido afirma que, “apesar das diferenças”,
esses volumes
(...) têm um substrato comum, que permite -los reversivelmente como recordação
ou como invenção, como documento da memória ou como obra criativa, numa
espécie de dupla leitura, ou leitura ‘de dupla entrada’, cuja força, todavia, provém de
ser ela simultânea, não alternativa. (CANDIDO, 1987, p. 54; grifo meu)
Assim, ainda segundo o crítico, “a experiência pessoal se confunde com a observação
do mundo e a autobiografia se torna heterobiografia, história simultânea dos outros e da
sociedade” (CANDIDO, 1987, p. 56). Em Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano
Santiago, Wander Melo Miranda concebe esta “dupla possibilidade” de leitura de um relato
memorialístico como a própria expressão da “relação entre representação literária e
experiência vivida.” (1992, p. 26)
O “vôo” da imaginação, no entanto, não se limita à recriação do tempo que passou, pois
que cela: opposer à la perception extérieure une image qui soit notre création propre; hausser l’impression
jusqu’à une expression; trouver la métaphore. Tel est l’effort spirituel que tout objet sensible demande de nous.”
(Les critiques de notre temps et Proust, 1971, p. 75; grifo do autor)
18
Cidade do Mexico, Fondo de Cultura Economico, 1958, p. 190.
17
o memorialista cria também um espaço idealizado ao qual as lembranças se ajustam, idéia que
aparece, por exemplo, no capítulo “Crepúsculos do Sul”, de No tempo da flor, em que o
escritor confessa:
E eu, provinciano e elegíaco, parado à esquina dos vinte anos, ouço não sei que
rumores confusos de arrabalde, vozes róseas ao fim da rua da memória. O
pensamento viaja para muito longe, toma pé no devaneio, invade as terras virgens da
cisma, enfia-se pelas vielas e ruas tortas da recordação perdida (...) (MEYER, 1966,
p. 99)
O espaço criado pelo pensamento que “viaja para muito longe”, cuja metáfora
pressupõe a redescoberta de “terras virgens” e de “ruas tortas”, é sempre, na memorialística
de Meyer, o lugar do devaneio e da imaginação, dos recursos aos quais ele se atém na
tentativa de fixar os acontecimentos e os lugares que escapam ao domínio de sua memória.
Não é por acaso, portanto, que a observação inicial de Segredos da infância “A memória da
infância é uma ilha perdida” (MEYER, 1949, p. 11) privilegia justamente a noção de um
espaço “perdido”, recuperado somente quando a imaginação atua, reinventando-o e
reconfigurando-o, ao mesmo tempo em que faz referência à imagem da “ilha flutuante” de
Proust, a “Delos” que, isolada do continente, assemelha-se a certos “trechos de paisagens”
soltos na memória (ver comentário a seguir, quando falo a respeito da tradução brasileira da
Recherche).
A cidade natal de Augusto Meyer não é a mesma de sua infância nem tampouco aquela
com que o memorialista se deparava no momento em que escrevia, mas uma terceira, uma
cidade somente sua porque imaginada e repovoada à sua maneira
19
, transfigurada por sua
“fantasia evocativa”:
19
Diz Meyer no último capítulo de No tempo da flor, intitulado “Epílogo”, e que descreve justamente a decepção
do memorialista com a cidade “que não existe mais”: “Mudou muito Porto Alegre. Em vão procuro reconstituir a
fisionomia familiar e rústica de certos arrabaldes, reconhecer algumas ruas que agora existem no traçado de
uma planta subjetiva, dentro de mim mesmo. Quem não leva escondido o seu Mapa da Saudade, o seu Pays de
Tendre? (1966, p. 135). Veremos no capítulo 4 que Manuel Bandeira, ao explicitar, em Itinerário de
Pasárgada, a fonte onde colhera inspiração para a criação de seu mais célebre poema, confessa o alcance da
sugestão, semelhante à fantasia de Meyer: “Esse nome de Pasárgada, que significava ‘campo dos persas’ ou
‘tesouro dos persas’, suscitou na minha imaginação uma paisagem fabulosa, um país de delícias, como o de
‘L’invitation au Voyage de Baudelaire” (BANDEIRA, 1967, p. 102; grifo meu). Ainda sobre o trecho de
Meyer, é impossível ler esta passagem de A história à prova do tempo Da história em migalhas ao resgate do
18
O meu Porto Alegre começa no fim dos planos de urbanização, com o imprevisto
das vielas, o desaprumo dos muros limosos, um beiral emplumado de macega e os
velhos nomes que as placas não conseguem abafar. O tempo e a memória dos
homens impregnam quase sempre as coisas de uma névoa de passado e evocação
que as transfigura com não sei que toques de magia. Torna-se transparente qualquer
paisagem, aos olhos de quem recorda ou tenta reconstituir os seus aspectos
anteriores, e uma cidade, uma rua, começam a desandar para as suas feições
primitivas, a desmanchar-se, recompondo-se noutra ordem de planos, quando se
projeta no seu passado a luz da fantasia evocativa. (MEYER, 1949, p. 74-5)
20
Na memorialística de Meyer, o espaço recriado não se limita à reprodução do ambiente
geral da cidade, explorando também o universo das ruas e da flânerie, das casas em que
morou e dos lugares que freqüentava, bem como das habitações de parentes e, longe da capital
sul-rio-grandense, do período vivido em Cerro d’Árvore, no município de Encruzilhada,
interior do Rio Grande do Sul, lugarejo a que remetem suas primeiras reminiscências,
descritas no capítulo inaugural de Segredos da infância. Vejamos um trecho significativo da
reconstituição:
Minha primeira recordação é um muro velho, no quintal de uma casa indefinível.
Tinha várias feridas no reboco e veludos de musgo. Milagrosa aquela mancha verde
e úmida, macia ao contacto, quase irreal na sua beleza livre. Fecho os olhos, e ela
me enche de luz, como um aviso da vida teimosa. (...) Depois, o vento da campanha,
sobre o nosso rancho no Cerro d'Árvore. Era uma voz tão grave, que metia medo.
Mais tarde, senti a mesma impressão ao atravessar os campos da fronteira. Como a
um toque mágico, restabeleceu-se a cadeia entre o homem e a criança. Arquipélagos
submersos de recordações vieram à tona. (MEYER, 1949, p. 11-2)
A sentença final do trecho acima é essencial se quisermos identificar manifestações da
memória involuntária nas recordações de Meyer, uma vez que, através de um novo contato
com o minuano, o vento da campanha, “arquipélagos submersos de recordações vieram à
tona”, retomando o adulto, “a um toque mágico” e através de um episódio marcante, que a
sentido, de François Dosse, sem relacioná-la aos comentários nostálgicos do memorialista a respeito de sua
cidade natal: “Esses lugares de memória não são revisitados com a perspectiva de reconstrução, mas
simplesmente considerados como restos de um passado recalcado, desaparecido. Conservam ainda valor
simbólico e inauguram uma relação arquivística com o tempo passado.” (2001, p. 281)
20
A noção de Pays de Tendrenão aparece apenas na obra memorialística de Augusto Meyer no ensaio “A
casa de Rubião”, presente em A forma secreta (1965), Meyer, ao evocar a enseada de Botafogo, extingue os
limites geográficos entre a cidade que o acolheu (Rio de Janeiro) e aquela onde nasceu (Porto Alegre),
entrelaçando-as harmonicamente: E aqui, entre o Caminho Velho da Pedreira e o Caminho Novo de Botafogo,
entre Senador Vergueiro e Marquês de Abrantes, comecei a criar musgo. Tanto musgo criei, afinal, que hoje
não posso admitir uma querência que não envolva no mesmo abraço as duas enseadas: Guaíba e Guanabara.
Creio que a Geografia não impede essas transfusões da saudade, espécie de lição errada, mas muito certa no atlas
da memória sentimental” (MEYER, 1981, p. 45-6). A respeito desta mescla, “abraço” a “envolver as duas
enseadas”, ver o texto que apresentei em 2003 no II Colóquio Sul de Literatura Comparada - Encontro Abralic
19
“voz” do vento lhe “metia medo”, a atmosfera de pavor e surpresa experimentada na infância,
de modo muito semelhante à redescoberta de Marcel que, em Du côté de chez Swann, ao
consumir novamente o ce a madeleine experimentados tantos anos na casa de sua tia
Léonie, subitamente reconstitui todo um passado tido como morto, graças ao poder de
evocação oriundo dos sentidos
21
.
Uma outra intenção fundamental desta tese será a de mostrar, utilizando exemplos tais
como a evocação do poder do minuano ou outros de igual teor, que muitas das recordações de
Augusto Meyer foram reconstituídas não somente através da imaginação mas também pelo
expediente súbito, renovador e catártico da memória involuntária. Sendo assim, ao indicar a
presença da memória involuntária na composição das Memórias de Augusto Meyer e em
outras obras memorialísticas brasileiras, estarei, de certa forma, refutando a afirmação de José
Maria Cançado, veiculada em suas Memórias videntes do Brasil, segundo a qual este tipo de
manifestação, na literatura memorialística brasileira, aparece somente na obra de Pedro Nava
e, timidamente, no Itinerário de Pasárgada de Manuel Bandeira. Assim diz o crítico:
É estranho que as memórias e as autobiografias no Brasil, salvo eventual engano e
omissão da minha parte, não acusem terem sido assaltadas em algum momento pelo
fenômeno da ‘memória involuntária’. (...) Estranho, sim, que o memorialismo no
Brasil pareça não se expor ao milagre miserável da memória involuntária, ao seu
regime intermitente e não premeditado. Ainda mais quando se sabe que tais peças
literárias (autobiografias e memórias) vêm de uma história literária marcada
fortemente pelo que Sergio Miceli chamou de ‘galomania’. Além do mais, sabe-se
que pelo menos a geração que é a de Pedro Nava foi leitora de primeira hora da obra
2003, intitulado “Porto Alegre e Rio de Janeiro: Augusto Meyer abolindo fronteiras”. (Ver “Referências
Bibliográficas – Obras sobre Augusto Meyer e sobre outros memorialistas brasileiros”)
21
“Et tout d’un coup le souvenir m’est apparu. Ce goût, c’était celui du petit morceau de madeleine que le
dimanche matin à Combray (...), quand j’allais lui dire bonjour dans sa chambre, ma tante Léonie m’offrait après
l’avoir trempé dans son infusion de thé ou de tilleul. La vue de la petite madeleine ne m’avait rien rappelé avant
que je n’y eusse goûté; (...) Mais, quand d’un passé ancien rien ne subsiste, après la mort des êtres, après la
destruction des choses, seules, plus frêles mais plus vivaces, plus immatérielles, plus persistantes, plus fidèles,
l’odeur et la saveur restent encore longtemps, comme des âmes, à se rappeler, à attendre, à espérer, sur la ruine
de toute le reste, à porter sans fléchir, sur leur gouttelette presque impalpable, l’édifice immense du souvenir”
(PROUST, Du côté de chez Swann, 1954, p. 46-7). Na tradução de Mario Quintana, lê-se: “E de súbito a
lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray
(...) minha tia Leôncia me oferecia, depois de o ter mergulhado no seu chá da Índia ou de tília, quando ia
cumprimentá-la em seu quarto. O simples fato de ver a madalena não me havia evocado coisa alguma antes de
que a provasse; (...) Mas quando mais nada subsistisse de um passado remoto, após a morte das criaturas e a
destruição das coisas, – sozinhos, mais frágeis porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis,
o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as
ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação.”
(PROUST, 1948, p. 47; grifo meu)
20
de Proust, não desconhecendo portanto a existência e a força da experiência
involuntária da memória. (CANÇADO, 2003, p. 36-7)
Tanto não desconhecia que, como veremos, Augusto Meyer e outros modernistas se
utilizaram dela. A recordação da força do minuano funciona em Meyer como uma espécie de
“gatilho”
22
a disparar o mecanismo da memória involuntária, atitude inesperada mas nem por
isso improvável, impotente ou inconseqüente, fato que pretendo demonstrar através de
exemplos a serem colhidos tanto em Segredos da infância como em No tempo da flor.
Para que eu passe aos comentários de cada capítulo da tese, é necessário esclarecer que,
devido à importância que a obra de Proust e todo o corpus crítico e teórico consultado
representam para o desenvolvimento deste trabalho, a leitura e a compreensão do referido
material em francês tornam-se imperiosas, já que, do contrário, várias dessas referências
perderiam a autenticidade e a profundidade presentes nos textos originais. Optei por não
traduzir tais trechos por uma questão de economia de espaço, uma vez que o trabalho ficaria
enorme e ainda mais repleto de notas de rodapé caso assim fizesse. Somente em uma ocasião
abri mão dos textos originais: nos poucos casos em que encontrei disponível apenas a
tradução de determinadas obras
23
. Em relação à obra A la recherche du temps perdu (Em
busca do tempo perdido), de Marcel Proust, decidi citar o trecho original acompanhado,
esporadicamente (de preferência somente nos trechos mais importantes ou mais complexos),
da tradução brasileira levada a cabo pela Editora Globo de Porto Alegre a partir do final dos
anos 40 e feita por intelectuais como Mario Quintana, Manuel Bandeira, Carlos Drummond
de Andrade e Lúcia Miguel Pereira. Além da excelência dos trabalhos realizados, esta
tradução interessa aos propósitos da tese por ter Augusto Meyer feito parte dela, redigindo as
22
Expressão criada por Pedro Nava em Galo das trevas para se referir ao poder de evocação que seus livros lhe
suscitavam: “(...) olho as estantes que contêm os livros de que mais gosto. A aquisição de cada um foi o
resultado de longas espreitas, pesquisas, paqueras, paciências e esperas como na conquista das amadas. São os
que funcionam como madeleines-gatilhos me restituindo gente, situações, lugares como foram vistos no dia, na
noite, no frio, no calor, na sua cor, no perfume de cada hora, nos mundos tácteis, gustativos que eles
ressuscitam.” (NAVA, 1981, p. 49; grifo meu)
23
Como por exemplo a obra O si mesmo como um outro, de Paul Ricoeur, traduzida por Lucy Moreira Cesar
(Campinas: Papirus, 1991). Título do original: Soi-même comme un autre.
21
Notas para a leitura de No caminho de Swann, veiculadas na primeira edição do primeiro
volume (1948), bem como pelo fato de a mesma ter impulsionado a crítica proustiana
brasileira, como leremos no item 3.3 (“Proust e a literatura modernista brasileira”), e pelo
próprio Meyer a ter criticado (ver, no mesmo item, comentários a respeito do capítulo “A ilha
flutuante”, de Preto & Branco, 1956, p. 123-7, no qual o crítico corrige um equívoco da
tradução de Quintana, ocorrido justamente em um dos trechos mais fundamentais da narrativa
naquele que compara as “paisagens perdidas” da memória à ilha de Delos, ilha isolada de
tudo e que “flutua incerto em meu pensamento (...) sem que eu possa dizer de que país, de que
tempo (...) de que sonho – me vem”, 1956, p. 127).
No capítulo seguinte a esta Introdução, apresentarei os fundamentos teóricos do
trabalho. Partindo de Aristóteles (“De la moire et de la reminiscence” e “Pensée,
perception, imagination Étude de l'imagination”) e de Santo Agostinho (“O encontro de
Deus”, Confissões Livro X; e “O homem e o tempo”, Confissões Livro XI), buscar-se-á a
apreensão do fenômeno da memória tendo como pressupostos o papel da imaginação e
conceitos que lidam com a noção da obra memorialística como forma mista entre os discursos
autobiográfico e ficcional. Para isso, será fundamental, além de mapear idéias de autores
como Henri Bergson, Georges Gusdorf, Béatrice Didier, Lucien Dällenbach, Georges Poulet e
outros, a assimilação de tópicos presentes em La mémoire, l’histoire, l’oubli (2000), de Paul
Ricoeur, e em Le pacte autobiographique (1975), de Philippe Lejeune, a partir da própria
definição do termo “autobiografia”
24
e de sua distinção em relação ao gênero “memórias”
25
. A
fim de definir precisamente o lugar que a memória individual (e nesta, sobretudo, a
memória involuntária) ocupa nos estudos sobre o gênero, comentarei, brevemente, outros
24
Récit rétrospectif en prose qu’une personne réelle fait de sa propre existence, lorsqu’elle met l’accent sur sa
vie individuelle, en particulier sur l’histoire de sa personnalité.” (LEJEUNE, 1975, p. 14)
25
Para Wander Melo Miranda, sintetizando as idéias de Lejeune, “a distinção entre memorialismo e
autobiografia pode ser buscada no fato de que o tema tratado pelos textos memorialistas não é o da vida
individual, o da história de uma personalidade, características essenciais da autobiografia. Nas memórias, a
narrativa da vida do autor é contaminada pela dos acontecimentos testemunhados que passam a ser privilegiados.
22
tipos de memória e suas diferentes abordagens, bem como a utilização, em outras artes, de
idéias ligadas à passagem do tempo e ao resgate do passado por intermédio da evocação.
Após tal mapeamento, privilegiarei, em A la recherche du temps perdu e a
reconstrução da memória: o monumental ‘edifício imenso da recordação’ involuntária”, a
análise do roman-fleuve de Proust, especialmente tópicos relacionados à memória
involuntária, representada pelo episódio da madeleine, e à concepção proustiana de “tempo
perdido” e “tempo redescoberto”. É indispensável, para se atingir tal objetivo, recorrer não
somente ao romance A la recherche du temps perdu mas também à crítica proustiana francesa
(Roland Barthes, Gérard Genette, Gilles Deleuze, Maurice Blanchot, Michel Butor, Claude
Mauriac, dentre tantos outros); européia (Walter Benjamin, Eric Auerbach, Samuel Beckett,
Ernest Curtius, Leo Spitzer, etc); e brasileira (Tristão de Athayde, Graça Aranha, Carlos
Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Otto Maria Carpeaux, Sérgio Buarque de Holanda,
Alcântara Silveira, além do próprio Augusto Meyer). Aqui mostrar-se-á que o alcance da obra
de Marcel Proust no modernismo brasileiro se faz notar não apenas através de textos em prosa
ou de relatos memorialísticos, mas pelo interesse crítico despertado por este que é, ao lado do
Ulisses de James Joyce, o grande romance europeu do século XX. Tal monumento literário
não passou despercebido por intelectuais modernistas como Drummond, Bandeira, Graça
Aranha e Meyer, o que justifica a publicação, em meados do século, da Proustiana brasileira,
organizada por Saldanha Coelho
26
.
No capítulo seguinte (intitulado “Augusto Meyer memorialista: influxo proustiano na
busca da unidade perdida”), o mais importante desta tese, pois nele é que se inserirá as
perquirições aventadas acima, qual sejam, o fenômeno da reinvenção memorialista a partir da
imaginação, o pays de tendre meyeriano e o papel da memória involuntária em Segredos da
(...) a autobiografia propriamente dita seria uma auto-representação (o indivíduo assume papel preponderante no
texto) e as memórias uma cosmo-representação.” (MIRANDA, Corpos escritos, 1992, p. 36-7)
26
Rio de Janeiro, Revista Branca, 1950.
23
infância e em No tempo da flor, abordarei as imbricações e as divergências entre a
memorialística de Augusto Meyer e as de outros memorialistas e poetas modernistas da
literatura brasileira, a fim de determinar de que maneira e com qual intensidade a obra de
Proust passou a enformar, às vezes subrepticiamente, um segmento considerável do
memorialismo brasileiro do século XX. Para tanto, determinei um corpus de
aproximadamente treze prosadores e seis poetas, em um recorte temporal situado entre as
décadas de 40 e de 80 e que, portanto, pontua o trânsito da geração de 45 para produções mais
modernas, afeitas à renovação e às conquistas estilísticas advindas do período “heróico” do
movimento.
Assim, as obras memorialísticas ou autobiográficas confrontadas às de Augusto Meyer
são: Infância (1945) e Memórias do cárcere (1953), Graciliano Ramos; O menino e o
palacete (1954), Thiers Martins Moreira; História da minha infância (1954), Gilberto Amado;
Itinerário de Pasárgada (1954), Manuel Bandeira; Um homem sem profissão: Memórias e
confissões I Sob as ordens de mamãe (1954), Oswald de Andrade; Explorações no tempo
(1954) e A menina do sobrado (1979), Cyro dos Anjos; Meus verdes anos (1956), José Lins
do Rego; A idade do serrote (1968), Murilo Mendes; Viagem no tempo e no espaço (1970),
Cassiano Ricardo; os dois primeiros volumes das Memórias (1972) de Agripino Grieco; Um
solitário à procura da vida Fragmento de autobiografia (1975), Carlos Dante de Moraes;
Um certo Henrique Bertaso (1973) e Solo de clarineta (1973, o volume; e 1976 o 2º, este
póstumo), Erico Veríssimo; e, finalmente, os seis volumes das Memórias de Pedro Nava
27
.
Além disso, vários poemas relacionados à memória e à tópica do tempus fugit,
selecionados da produção de autores como Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade,
Mario Quintana, Murilo Mendes, Manuel Bandeira e Mário de Andrade.
27
Baú de ossos (1972); Balão cativo (1973); Chão de ferro (1976); Beira-mar (1978); Galo das trevas (1981); e
O círio perfeito (1983).
24
Por fim, na conclusão do estudo (“Considerações finais: Augusto Meyer polígrafo
coesão e complementaridade: A memorialística em cotejo com outros gêneros de sua
produção”), comentarei a relação das Memórias de Augusto Meyer com outras vertentes de
sua obra (sobretudo poesia, crítica e folclore, além de suas “Cartas abertas” e de relatos de
viagem tais como “Impressões de Hamburgo”
28
), aproximação que pode ser verificada através
do levantamento dos temas mais recorrentes em sua produção, ligados à questões referentes à
metáfora do espelho e da sombra; à redescoberta dos sentidos; à fragmentação e
reconfiguração da personalidade, isto é, à busca do Eu cindido e reconstruído; e ao apelo à
saudade e à atmosfera edênica da infância.
A recordação da infância “perdida” é tema, por exemplo, dos poemas “Flor de maricá”
(Poesias, 1957, p. 16) e “Canção do minuto pueril” (Poesias, 1957, p. 83-4). No primeiro,
na primeira estrofe se nota a alusão à obra de Proust, através da recorrência à memória
“olfativa”: “Este perfume tão fino / é a saudade de um perfume / e parece que resume / o amor
de um poeta menino”. Já no segundo, o pedido insistente, espécie de tábua de salvação, traduz
a angústia do apelo de quem pressente o passado (balão efêmero) praticamente morto e
suplantado pela triste realidade do adulto: “Oh a canção dos pomares! / Me o sol! / Dá-me
a infância perdida / como um raio de sol! // A alegria subia / como aquele balão / que, uma
tarde gloriosa, fugiu da minha mão...”.
Quanto à confluência com a crítica literária, alguns ensaios de Augusto Meyer, tais
como “Simões Lopes Neto” (Prosa dos pagos, 2 ed, 1960, p. 143-167) e “O espelho”
(Machado de Assis, 2 ed, 1952, p. 65-74), iniciam-se pela evocação da forma com que o
escritor reagiu ao primeiro contato com as obras, respectivamente, de Lopes Neto e de
Machado de Assis, reconstituindo a paisagem do local onde lera os contos do autor de Lendas
28
Publicado originalmente em A chave e a máscara, 1964, p. 213-7. Ver também “Caderno de viagem”, Textos
críticos, 1986, p. 633-6.
25
do sul ou a atmosfera de sua adolescência, impregnada pelo poder dos sentidos
29
. Além disso,
temos em Preto & Branco o supracitado “A ilha flutuante” (1956, p. 123-7), a respeito da
renovação proustiana de certas imagens recorrentes na tradição literária ocidental, tais como a
“Delos que Apolo acabou fixando no centro das cícladas” (1956, p. 125), e que o escritor
francês adaptara “perfeitamente àquela ilha de recordações que a memória recorta no mar do
tempo e espaço” (1956, p. 127); bem como, na coletânea Os pêssegos verdes, organizada por
Tania Carvalhal em 2002 por ocasião do centenário de nascimento de Augusto Meyer, outros
dois textos sobre Marcel Proust: “Nota barroca” (2002, p. 27-30), interpretação original e
ousada cuja idéia básica reside no fato de o ensaísta identificar no romancista traços de
“barroquismo” oriundos da “obsessão de fugacidade das coisas” (p. 27); e “Proust vida e
obra” (2002, p. 31-36), no qual Meyer comenta a biografia de Proust escrita por George
Painter e a complexidade da tarefa de traduzir A la recherche du temps perdu, dificuldade que
se inicia a partir da frase de abertura do roman-fleuve, “Longtemps, je me suis couché de
bonne heure”.
Em seus estudos sobre a tradição e o folclore gaúchos, Augusto Meyer deixa de lado as
evocações da memória individual, tônica das recordações veiculadas em Segredos da infância
e em No tempo da flor, para mergulhar na memória coletiva de seu povo e na reconstituição
das mais variadas manifestações do arquétipo popular gauchesco. Além do mencionado
Prosa dos pagos, que contém estudos sobre alguns dos grandes prosadores brasileiros, como
Alcides Maya e José de Alencar, e sobre, por exemplo, a origem etimológica do termo
“gaúcho” (“Gaúcho, história de uma palavra”, 1960, p. 09-42), ou sobre a bibliografia
estrangeira a respeito de tópicos da região (“Da estante dos forasteiros”, 1960, p. 284-319),
29
Ver os trechos “Eu já tive a sorte de ler os Contos gauchescos numa velha casa de estância, com as janelas
abertas sobre os horizontes limpos da campanha. Recorro agora ao meu caderno de notas, para reconstituir a
poesia arisca daquele momento. Através das linhas a lápis, quase apagadas, ressurge na memória a paisagem, em
toques de mancha impressionista” (1960, p. 145); e: O Espelho é para mim uma história comprida, embora não
passe de um simples conto. As suas ginas estão impregnadas da nostalgia do tempo perdido, e basta o título
para interromper a irreversibilidade, transportando-me a um momento intenso de adolescência, como a visão, o
cheiro e o sabor numa evocação de Proust.” (1952, p. 67)
26
Augusto Meyer procede à compilação da poesia popular gaúcha em Cancioneiro gaúcho
(1952), volume dedicado a Mário de Andrade e subdividido em itens tais como “Motivos do
fandango”; “Motivos de trova e descante”; “Motivos da guerra dos farrapos”; e “Poesia
gauchesca”, bem como ao “fichamento metódico”, no Guia do folclore gaúcho (1951), de
todos os temas folclóricos da região, na forma de um glossário contendo referências a
expressões, à bibliografia e às mais diversas manifestações artísticas gaúchas e gauchescas.
Procederei, portanto, à localização e à interpretação das interseções entre a
memorialística de Augusto Meyer e sua produção poética, crítica e ensaística, considerando,
nesta última, tanto seus estudos de literatura universal como aqueles pertencentes à literatura
brasileira e à regional, interseções que confirmam a coerência do conjunto de sua obra a partir
da identificação de um substrato comum a todos os gêneros a que Meyer se dedicou a
introspecção e a noção do esfacelamento da personalidade e da conseqüente recriação do Eu.
À seção de Anexos reservei uma seleção de textos paradigmáticos da memorialística de
Augusto Meyer: no primeiro, a prosa de capítulos que fixam episódios ocorridos antes de seu
nascimento (“Carta aos meus bisavós”), durante sua infância (“Cerro d’Árvore”) e sua
adolescência (“No tempo da flor”); no segundo, poemas relacionados à memorialística e à
memória dos sentidos, amostragem que vai de Coração verde aos Últimos poemas de Meyer,
reunidos em Poesias (1957).
Não gostaria de encerrar esta Introdução sem destacar a importância de determinados
estudos (a grande maioria, teses de Doutoramento), quer sobre Augusto Meyer, quer sobre
outros memorialistas brasileiros, e que, de certa maneira, orientaram a concepção, a
estruturação, a delimitação do corpus da pesquisa e até mesmo o método de abordagem das
obras aqui elencadas. Destaco sobretudo: A evidência mascarada: uma leitura da poesia de
Augusto Meyer (Tania Franco Carvalhal); Paisagens reinventadas: traços franceses no
simbolismo sul-rio-grandense (Maria Luiza Berwanger da Silva); A recepção crítica da obra
27
de Marcel Proust no Brasil (Maria Marta Laus Oliveira); Memórias videntes do Brasil A
obra de Pedro Nava (José Maria Cançado) ; Vísceras da memória Uma leitura da obra de
Pedro Nava (Antônio Sérgio Bueno); Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago
(Wander Melo Miranda); A infância do velho Graciliano Memórias em letras de forma
(Tânia Regina de Souza); Um polígrafo contumaz O Visconde de Taunay e os fios da
memória (Maria Lídia Maretti); Baú de madeleines O intertexto proustiano nas Memórias
de Pedro Nava (Maria do Carmo Savietto); e, finalmente, A escrita do eu, de Eliane Zagury,
obra fundamental que dialogará diretamente com o estudo a que me proponho, uma vez que
se trata da reflexão crítica a respeito de gêneros como a autobiografia e a memorialística (em
particular, as memórias de infância, subgênero de capital importância pois nele se inserem os
Segredos da infância de Meyer), e na qual em comum com esta tese a presença, em seu
corpus, de autores como José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Thiers Martins Moreira e
Augusto Meyer. A seguinte citação, da qual me sirvo para concluir esta introdução, é um
ótimo exemplo do tipo de abordagem que farei das Memórias de Augusto Meyer, levando em
conta o recorte interpretativo sugerido pela autora e o lugar que estas memórias ocupam no
cenário da prosa memorialística modernista brasileira:
Nosso enfoque se restringe à literatura memorial de cunho autobiográfico, vale
dizer, àquela cujo núcleo temático é a história da vida do autor. Deixamos de lado os
depoimentos mais específicos, exclusivamente históricos, políticos ou de viagens.
Interessa-nos o indivíduo que se volta de preferência para si mesmo, embora, é
claro, não se furte a testemunhar o comércio do seu eu com o mundo circundante
que a vida lhe apresentou. (ZAGURY, 1982, p. 14-5)
É o que pretendo fazer na seqüência deste estudo.
2 – FUNDAMENTOS TEÓRICOS
2.1 TEORIAS DA MEMÓRIA – DIVERSIDADE E AMPLITUDE DE ENFOQUE:
MEMÓRIA COLETIVA E MEMÓRIA INDIVIDUAL
“Josué falou ao Senhor no dia em que ele entregou os
amorreus nas mãos dos filhos de Israel, e disse em
presença dos israelitas: Sol, detém-te sobre Gabaon, e
tu, ó lua, sobre o vale de Ajalon.’ E o sol parou, e a lua
não se moveu até que o povo se vingou de seus
inimigos. (...) O sol parou no meio do céu e não se
apressou a pôr-se pelo espaço de quase um dia inteiro.”
(Livro de Josué, 1971, p. 262)
“Oh! nem sequer chego a compreender a força da minha
memória, sem a qual não poderia pronunciar o meu
próprio nome!” (Santo Agostinho, Confissões - Livro X,
1987, p. 183)
muitos séculos o homem procura assimilar o mistério e as conseqüências da
passagem do tempo e o poder da memória de absorção e retenção de imagens significativas,
passíveis de esquecimento e de recriação, sendo que tal busca, complexa e repleta de
meandros, longe de respostas definitivas, parece apontar apenas para o grande cabedal de
enfoques e das mais diversas interpretações para o fenômeno.
A Mitologia grega ensina que Mnemósine (do verbo mimnéskein, “lembrar-se de”) é a
“Memória que garante a vitória do espírito sobre a matéria instantânea e funda toda
inteligência” (GRIMAL, 1987, p. 27). Vencer a “matéria instantânea” e o caráter efêmero do
tempo, bloquear, como Josué, o movimento do sol e da lua, mesmo que por ínfimo instante, a
fim de eternizar reminiscências e momentos vividos, eis o objetivo primordial de toda
atividade mnemônica. Não por acaso Memória (Mnemósine) e Tempo (Cronos) são irmãos,
gerados a partir do enlace de Urano e Gaia
1
. Para Donaldo Schüler, Zeus, filho de Cronos,
1
“A união de Urano e de Gaia revelou-se fecunda. Dela surgiram, inicialmente, por duas vezes, seis casais de
Titãs e Titanesas. Os seis Titãs eram: Oceano, Ceos, Crios, Hipérion, Japeto e Cronos. As seis Titanesas: Téia,
Réia, Têmis, Mnemósine, Febe e Tétis.” (GRIMAL, 1987, p. 26). Ver também, à página 28: De todos os Titãs,
o mais importante para o desenvolvimento do mundo foi Cronos, o mais jovem, o que engendrou os
olimpianos.”
29
extrai de Mnemósine, com quem gerou as nove Musas, a força necessária para governar o
Olimpo:
Quem foi Zeus antes de casar com a Memória? Quem foi ele depois? Sem a
Memória, sem memória, Zeus estaria mais próximo das rochas do que dos homens,
silencioso, insciente do passado, sempre idêntico a si mesmo, sem planos. Pouco se
distinguiria de seus antepassados, violentos, intempestivos, cruéis, opressivos. (...) A
Memória tira Zeus da mesmidade da natureza e o naturaliza nas flutuações da
cultura. Unido à Memória, Zeus vive, privado da segurança dos eventos naturais, os
riscos das divindades culturais. não persiste sem ela. Enquanto a Memória lhe
guarda os atos, Zeus existe, e existe só assim. (SCHÜLER, 1991, v. 3, p. 418)
Mnemósine tem muito a dizer e a mostrar, controla Zeus e o arranca de sua própria
natureza, preside seus atos e lhe impinge vida. Tal personificação é a base de um legado
cultural que envolve, através da narrativa oral, a transmissão, de geração a geração, dos feitos
de deuses e heróis, bem como de mitos, eras, raças e tradições culturais milenares.
Mnemósine está muito próxima daquilo que os estudiosos contemporâneos denominam,
conforme veremos, “memória coletiva”, uma vez que, na definição de Maurice Halbwachs,
memória “é o que ainda é vivo na consciência do grupo para o indivíduo e para a
comunidade” (Apud ACHARD, 1999, p. 25). Em “A fragmentação da memória”, Schüler
esclarece a diferença básica entre memória coletiva e memória individual utilizando outra
nomenclatura, criando ainda a sugestiva imagem, bastante atual, diga-se de passagem, dos
“homens de agora” que, sem a proteção e a narração de Mnemósine, “viveriam sem chão”.
Convém distinguir memória ativa de memória passiva. Esta última acolhe sem
esforço imagens recentes e remotas, que freqüentam em turbilhão as nossas
recordações. Mesmo que algumas se instalem com mais persistência, permanecem
alheias à memória ativa, que, personificada e acasalada com Zeus, recebeu o nome
de Mnemosyne. Esta, investida por matrimônio de poder, redime da destruição
mundos que sem sua intervenção se perderiam no fluxo do tempo e instaura imagens
do que se passou, conferindo-lhes consistência, associações precisas, força contra o
desgaste. Unida a Zeus, cabe-lhe resgatar o sucedido nos reinados do Céu e de
Crono, antecessores do deus que domina o mundo. É de sua competência narrar os
sucessos que levaram Zeus ao governo e os tempos de seu reinado. Sem essa
restauração, viveriam sem chão os homens de agora, e isso lhes seria molesto. (...) A
Memória casada com Zeus não é a minha memória, não é a tua. Acima da memória
de cada um está a Memória da comunidade, viva e ativa. A Memória da comunidade
constrói uma narrativa oferecida a todos, concatenação dos eventos, redenção da
dispersão interior. (SCHÜLER, 1991, v. 3, p. 419-20; grifo do autor)
Das características da Memória, Donaldo não destaca somente a importante missão de
narrar os percalços e conquistas de Zeus, mas também a tarefa superior de nos libertar da
30
inércia do cotidiano, através de um recurso, logo enunciado, imprescindível para o enfoque
que pretendo explorar neste trabalho: “Dotada de imaginação, a Memória liberta das prisões
da insignificância cotidiana, tão frágil que perece ao acontecer. Vencendo a fugacidade que se
desdobra em presente, passado e futuro, a Memória eterniza.” (1991, v. 3, p. 420; grifo meu)
A imaginação não é prerrogativa exclusiva de deuses e deusas sabemos que os poetas
a ela recorrem regularmente, devendo simultaneamente à Mnemósine o apelo imaginativo e a
revelação dos segredos do passado, uma vez que esta é quem, nas palavras de Jacques Le
Goff em História e memória, “lembra aos homens a recordação dos heróis e dos seus altos
feitos” (1990, p. 438). Levando em conta, desde já, que o memorialista Augusto Meyer,
objeto deste estudo, era, antes de mais nada, um grande poeta, é essencial que entendamos o
que Le Goff diz sobre tal relação:
O poeta é pois um homem possuído pela memória, o aedo é um adivinho do
passado, como o adivinho o é do futuro. É a testemunha inspirada dos ‘tempos
antigos’, da idade heróica e, por isso, da idade das origens. [Mnemósine revela] ao
poeta os segredos do passado, o introduz nos mistérios do além. A memória aparece
então como um dom para iniciados e a anamnesis, a reminiscência, como uma
técnica ascética e mística. (LE GOFF, 1990, p. 438)
A respeito da estreita ligação entre Mnemósine e poesia, é interessante acompanhar o
esclarecimento de Adélia Bezerra de Meneses em “Memória, história e ficção: Blade
Runner”:
(...) a Memória, em grego Mnemosyne, era uma deusa, a mãe das Musas, mãe das
divindades responsáveis pela inspiração. Mnemosyne preside à função poética e
imaginativa dos artistas criadores. A própria sacralização da Memória (os gregos
fizeram dela uma divindade!) revela, por si só, o alto valor que lhe é atribuído numa
civilização de tradição oral, como foi, entre os séculos XII e VIII, antes da difusão
da escrita, a da Grécia. Essa deusa feminina revela as ligações obscuras entre o
‘rememorar’ e o ‘inventar’: a musa inspiradora da invenção poética é, ela própria,
filha da Memória. (1991, v. 2, p. 211; grifo da autora)
Adélia se refere a Calíope, musa da poesia épica
2
, como a entidade responsável pela
analogia entre a memória (personificada por sua mãe Mnemósine) e a invenção poética,
confirmando assim o quanto o ato de relembrar esvinculado ao ato de (re)inventar, a ponto
2
As outras Musas, filhas de Zeus e Mnemósine, são: Clio (história); Polímnia (retórica); Euterpe (música);
Terpsícore (dança); Érato (lírica coral); Melpômene (tragédia); Talia (comédia); e Urânia (astronomia).
(BRANDÃO, Mitologia grega, 1989, v. 1, p. 203).
31
de, alguns parágrafos adiante, a ensaísta afirmar que, psiquicamente, “memória e ficção se
equivalem” (1991, v. 2, p. 212). Sendo assim, Mnemósine, cosmo-representação e mimese,
também reproduz, de alguma forma, certa realidade outrora vivida e que permite que,
reconfigurada, acabe recriando uma outra terceira “realidade”, misto de ficção e verdade.
Como na Grécia antiga não havia registro escrito, a Memória era de fato o recurso
fundamental – e daí elevada à condição de divindade, já que não podiam desprezá-la” – para
a preservação e transmissão, por meio de narrativas orais, de toda uma paradigmática tradição
cultural, verdadeiro tesouro histórico, mitológico, filosófico, antropológico, etc, revivido a
cada narrativa, tendo contribuído decisivamente para a consolidação da civilização e do
pensamento ocidentais.
O estudo dos atributos da memória despertou o interesse de filósofos como Platão
3
e
Aristóteles, sendo que sobretudo este último se dedicou ao entendimento e esclarecimento de
conceitos tais como “lembrança”, “reminiscência”, “impressão”, “imagem”, “imaginação”,
“reconhecimento do passado”, etc, discutidos, por exemplo, nos textos “De la mémoire et de
la réminiscence” e “Pensée, perception, imagination Étude de l’imagination”. Após figurar
na representação macrocósmica da Mitologia, a Memória passou a ser foco de atenção da
Filosofia, privilegiando-se ainda aqui questões gerais, já que a Memória interessava a diversos
campos de investigação do saber humano (não escapando, dessa forma, à curiosidade
intelectual de filósofos ecléticos), característica presente nos títulos das obras às quais
3
“Platão, ao elaborar sua teoria do conhecimento, separa mneme (lembrança) de anamnesis (reminiscência).
Entende por lembrança a mera retenção de impressões e reserva para a reminiscência a tarefa de ver, através do
sensível, o inteligível, levantado acima do tempo e do espaço, meta de todo pensamento rigoroso” (SCHÜLER,
1991, v. 3, p. 420). Devemos ao filósofo outra importante alegoria a respeito da memória: “Numa passagem
célebre do Teeteto (...) de Platão, Sócrates fala do bloco de cera que existe na nossa alma e que é ‘uma dádiva de
Mnemosine, mãe da Musa’ e que nos permite guardar as impressões nele feitas com um estilete” (LE GOFF,
1990, p. 439). Em relação ao termo anamnesis (em português, anamnese), lemos no Dicionário Houaiss da
língua portuguesa que, de acordo com a filosofia platônica, anamnese é a “rememoração gradativa através da
qual o filósofo redescobre dentro de si as verdades essenciais e latentes que remontam a um tempo anterior ao de
sua existência empírica” (2001, p. 203). Outras definições de anamnese citadas por Houaiss e imprescindíveis
para a seqüência deste trabalho são: “lembrança pouca precisa; reminiscência, recordação; (med) histórico que
vai desde os sintomas iniciais até o momento da observação clínica, realizado com base nas lembranças de
paciente; (retórica) simulação do orador que parece lembrar-se de coisas que teria esquecido, chamando, assim,
atenção sobre elas.” (Idem, ibidem)
32
pertencem os textos supracitados, a saber: Petits traités d’histoire naturelle (“Pequenos
tratados de história natural”) e Traité de l’âme (“Tratado da alma”), respectivamente.
Antes de abordá-los, todavia, convém compreendermos melhor os conceitos
platônicos de mneme e de anamnesis, diferenciação discutida por Paul Ricoeur no capítulo
inicial de La mémoire, l’histoire, l’oubli, segundo a qual mneme é a lembrança que surge
como uma espécie de “aparição” passiva e primitiva, “evocação simples” (“évocation
simple”, 2000, p. 18), algo muito próximo, portanto, daquilo que hoje conhecemos como
memória involuntária. Segundo Ricoeur, a mneme platônica pode ser entendida como o
simples fato de “ter uma lembrança” (“avoir un souvenir”, 2000, p. 4), ao passo que a
anamnesis, fenômeno de “rememoração”, evocação consciente a partir de uma busca
voluntária (“recherche”, 2000, p. 32), possui o sentido de “procurar uma lembrança” (“se
mettre en quête d’un souvenir”, 2000, p. 4), sendo, assim, uma espécie de “elaboração
secundária”
4
. Outro conceito platônico fundamental para a abordagem da memória está
relacionado ao termo eikon, isto é, à lembrança como “fenômeno da presença de algo
ausente”. Tal aparente ambigüidade (“presença da ausência”) explicita tanto o caráter
involuntário (mneme) quanto principalmente o apelo inteligível (anamnesis) das
manifestações mnemônicas
5
.
4
De acordo com Paul Ricoeur, a própria forma pronominal, em francês, dos verbos referentes à memória (se
souvenir”) já demonstra que “lembrar-se de alguma coisa” é “lembrar-se de si”. À gina 67 de La mémoire,
l’histoire, l’oubli, afirma o filósofo: “se souvenir, c’est non seulement accueillir, recevoir une image du passé,
c’est aussi la chercher, ‘faire’ quelque chose. Le verbe ‘se souvenirdouble le substantif ‘souvenir’. Ce que ce
verbe désigne, c’est le fait que la mémoire est ‘exercée’.” (RICOEUR, 2000, p. 67)
5
“(…) la théorie platonicienne de l’eikon met l’accent principal sur le phénomène de présence d’une chose
absente, la référence au temps passé restant implicite” (RICOEUR, 2000, p. 6). Para o autor de Temps et récit,
Platão explicita a relação dialética que entre a ausência da “coisa” lembrada e a presença de seu modo de
representação (“rapport entre l’absence de la chose souvenue et sa présence sur le mode de la représentation”),
questão estudada pela fenomenologia da memória: “il semble qu’il soit réservé à l’acte de faire mémoire d’offrir
au regard de la description une surimpression aussi compléte de la visée cognitive et de l’opération pratique dans
un acte unique comme l’est la remémoration, héritière directe de l’anamnesis aristotélicienne et indirecte de
l’anamnesis platonicienne” (RICOEUR, 2000, p. 68). Sobre a questão do olhar, tema primordial da
fenomenologia da memória, ver também as obras de Maurice Merleau-Ponty, quase inteiramente dedicadas à
descrição da percepção, tais como O olho e o espírito, onde podemos ler que “(…) A visão não é um certo modo
do pensamento ou de presença a si: é o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir de dentro
a fissão do Ser, só no termo da qual eu me fecho sobre mim.” (1969, p. 99)
33
Dando continuidade à orientação da Mitologia, que, como vimos, intermediada pela
figura de Calíope, associa memória e imaginação, também a Filosofia grega se pautou pela
representação do passado como imagem visual ou auditiva. Assim, desde os ensinamentos
platônicos, “la mémoire et l’imagination partagent le même destin” (RICOEUR, 2000, p. 8),
apesar de suas diferenças estruturais, uma vez que a memória é “dirigée vers la réalité
antérieure”, e a imaginação, “dirigée vers le fantastique, la fiction, l’irréel, le possible,
l’utopique” (RICOEUR, 2000, p. 6). O partilhar de um mesmo destino, oriundo da tradição
grega, atravessa séculos e caracteriza da mesma forma o pensamento do homem moderno, já
que, segundo Paul Ricoeur, a conjunção da influência do empirismo inglês e do racionalismo
cartesiano fez da memória uma “província da imaginação”:
C’est sous le signe de l’association des idées qu’est placée cette sorte de court-
circuit entre mémoire et imagination: si ces deux affections sont liées par contiguïté,
évoquer l’une donc imaginer –, c’est évoquer l’autre, donc s’en souvenir. La
mémoire, réduite au rappel, opère ainsi dans le sillage de l’imagination. (RICOEUR,
2000, p. 5)
Aristóteles, por sua vez, acredita que a ligação entre memória e imaginação é
assegurada pelo fato de ambas pertencerem à mesma parte da “alma”, a “alma sensível”
(“l’âme sensible”). Em Pensée, perception, imagination – Étude de l’imagination” (Traité de
l’âme), Aristóteles caracteriza a imaginação como meio-termo entre a sensação e o
pensamento, distinta, porém, de ambos, o que evidencia o caráter ímpar de sua manifestação:
L’imagination, en effet, est quelque chose de distinct à la fois de la sensation et de la
pensée, bien qu’elle ne puisse exister sans la sensation, et que, sans elle, il n’y ait
pas non plus de croyance. Mais qu’elle ne soit ni pensée, ni croyance, c’est clair : cet
état, en effet, dépend de nous, de notre caprice (car nous pouvons réaliser un objet
devant nos yeux, comme le font ceux qui rangent les idées dans des lieux
mnémoniques et qui en construisent des images), tandis que nous former une
opinion ne dépend pas de nous, car il nous faut nécessairement alors être dans la
vérité ou dans l’erreur. (ARISTÓTELES, 1947, p. 165-6)
Sensação ou crença, verdade ou erro, para o filósofo a imaginação é sobretudo a
possibilidade de representação das imagens que, uma vez formadas consciente ou
34
inconscientemente, afloram no cérebro com o prestígio e a força de uma inscrição cavernal
6
.
Daí Aristóteles afirmar, em “De la mémoire et de la reminiscence”, “qu’il n’est pas possible
de penser sans image”, já que “la mémoire des choses intelectuelles n’a pas lieu sans image”,
motivo pelo qual a imaginação é “une affection du sens commun.” (1953, p. 54)
Tal sentido comum, original, inimitável e autêntico, diverge da impressão apreendida
por uma lembrança que, mediada pela imaginação, transforma-se em lembrança “de uma
outra coisa” (“souvenir d’une autre chose”, p. 56). Para diferenciá-los, Aristóteles recorre a
uma sugestão metonímica, questionando se, referindo-se ao mesmo tempo ao próprio animal e
à cópia deste, um animal pintado é o “mesmo” ou o “outro” (“sentido comum” ou
“imaginação”, “pensamento” ou “lembrança”), surpreendentemente antecipando as discussões
sobre alteridade levadas a cabo no transcorrer do século XX:
(...) l’animal peint sur un tableau est à la fois un animal et une copie, et, tout en étant
un et le même, il est ces deux choses; cependant l’existence n’est pas la même pour
les deux, et il est possible de considérer cet animal à la fois en tant qu’animal et en
tant que copie; de même aussi, il faut supposer que l’image peinte en nous est
quelque chose qui existe par soi et qu’elle est la représentation d’une autre chose.
Par conséquent, en tant qu’on la considère en elle-même, elle est une représentation
ou une image, mais en tant qu’elle est relative à un autre objet, elle est comme une
copie et un souvenir. (...) Alors l’impression produite par cette contemplation varie:
quand l’âme considère l’objet comme un animal figuré, l’impression existe en elle
comme une pensée seulement; d’un autre côté, quand elle le considère comme une
copie, c’est un souvenir. (ARISTÓTELES, 1953, p. 56)
Vimos na Introdução (p. 15) que, de acordo com a concepção aristotélica, a memória
pertence a um segmento de nossa alma no qual a imaginação possui grande prestígio. Além
deste conceito fundamental, o texto “De la mémoire et de la réminiscence” é imprescindível
para qualquer fundamentação teórica a respeito do assunto por estabelecer uma distinção
essencial entre as noções de futuro (atrelado à opinião ou à esperança), presente (vinculado às
sensações) e passado (território da memória):
En effet on ne peut se souvenir ni de l’avenir, mais ce dernier est l’objet d’une
opinion ou de l’espérance (il y aurait une certaine science de l’espérance, divination
comme certains l’appellent), ni du présent: c’est l’objet de la sensation, car elle ne
6
“(…) l’imagination est la faculté en vertu de laquelle nous disons qu’une image se produit en nous, et si nous
laissons de côté tout usage métaphorique du terme, nous dirons qu’elle est seulement une faculté ou un état par
quoi nous jugeons et pouvons être dans la vérité ou dans l’erreur. Telles sont aussi la sensation, l’opinion, la
science et l’intellection.” (ARISTÓTELES, 1947, p. 167)
35
nous fait connaître ni le futur ni le passé, mais le présent seulement. La moire
s’applique au passé. Et personne ne dirait qu’on se rappelle le présent, quand il est
présent, par exemple cette couleur-ci, quand on la voit, pas plus qu’on se rappelle
l’objet contemplé par l’esprit, quand justement on le contemple et qu’on le pense.
(ARISTÓTELES, 1953, p. 53)
Por mais óbvia ou simplória que possa parecer tal afirmação (“La mémoire s’applique
au passé”), trata-se da base comum a toda e qualquer abordagem de fenômenos mnemônicos
7
,
a ponto de Paul Ricoeur elegê-la como a sentença capital da primeira parte de La mémoire,
l’histoire, l’oubli, intitulada “De la mémoire et de la réminiscence”, alusão direta ao texto
aristotélico. Com efeito, o ato de lembrar somente se torna possível à medida que o tempo
passa, sendo que a evocação perpetrada pela memória percorre certo intervalo de tempo, curto
ou longo, entre a primeira impressão e seu retorno, fato que estreita ainda mais a relação
complementar e “fraterna” (Mnemósine e Cronos) entre memória e tempo, comprovando que
aquela depende da passagem deste. Dessa forma, podemos evocar o que pertence ao
passado, do contrário estaremos experimentando sensações novas (presente) ou fazendo
conjecturas (futuro).
Afora a referência obrigatória ao passado, a teoria aristotélica a respeito das
manifestações da memória estabelece uma diferença significativa entre memória propriamente
dita (semelhante à mneme platônica) e reminiscência (próxima, por sua vez, à anamnesis),
justificando o título escolhido para seu arrazoado (“De la mémoire et de la réminiscence”)
para Aristóteles, todos os seres vivos têm memória, porém apenas o homem, dotado de
7
No parágrafo de abertura do primeiro tomo da obra Mémoire et personne, Georges Gusdorf também destaca
esta característica básica da memória. Vejamos: “La mémoire apparaît, d’une manière générale, comme la
fonction du passé. Ribot la définit par ‘la possibilité de conserver les impressions et de les reproduire’.
Conservation et reproduction s’appliquent ici à la réalité d’une situation qui a été donné comme um présent et
qui désormais s’affirme dans notre expérience comme un passé. C’est le ‘retour du passé’ qui constitue selon M.
Delay la marque même de la mémoire. Le Vocabulaire philosophique de Lalande ajoute à ces définitions un
caractère supplémentaire. La moire, précise-t-il, est une ‘fonction psychique consistant dans la reproduction
d’un état de conscience passé, avec ce caractère qu’il est reconnu pour tel par le sujet’. Il n’y aurait donc
mémoire proprement dite que s’il y a reconnaissance, si le passé se donne explicitement comme passé”
(GUSDORF, 1951, v. 1, p. 01). Ver também, no mesmo volume: “Le passé n’existe plus qu’en idée” (p. 49); “La
mémoire s’affirme l’expérience du temps remémoré, la reviviscence du passé” (p. 88); e “Nous ne sommes pas
libres de notre passé. Il nous inspire, il nous guide et parfois nous opprime sans d’ailleurs pour autant dire
toujours son nom.” (p. 199)
36
raciocínio, volição e capacidade lógica (silogismo), possui aptidão para (re)produzir
reminiscências:
La moire diffère de la réminiscence (...) parce que, parmi les animaux autres que
l’homme, beaucoup ont de la mémoire, tandis qu’aucun des animaux connus, pour
ainsi dire, ne possède la miniscence, à l’exception de l’homme. La cause de ce
privilège est que la réminiscence est une sorte de syllogisme. En effet celui qui a une
réminiscence fait ce raisonnement qu’auparavant il a vu ou entendu quelque chose
ou éprouvé quelque impression, et c’est comme une espèce de recherche. Mais cela
n’arrive naturellement qu’aux seuls êtres qui possèdent la faculté de vouloir, car la
volition est une espèce de raisonnement. (ARISTÓTELES, 1953, p. 62)
8
Um terceiro filósofo, este na era cristã, em muito contribuiu para a consolidação e
ampliação dos conceitos veiculados por Platão e Aristóteles: Santo Agostinho (354 - 430).
Tendo sido maniqueísta e neoplatônico, Agostinho se converteu ao cristianismo em 386 e
redigiu suas Confissões nos anos de 397 e 398. Divididas em treze livros, as Confissões de
Santo Agostinho alternam louvores a Deus e exposições filosóficas, dentre as quais
interessam diretamente a este trabalho suas teorias sobre a memória (Livro X) e sobre o tempo
(Livro XI), visivelmente influenciadas pelas idéias platônicas
9
. Assim como o mestre grego,
também Agostinho acreditava que a alma, ao encarnar em um corpo, trazia do outro mundo as
imagens dos objetos vistos e apreendidos. Aprender, portanto, é recordar o que vira outrora :
O grande receptáculo da memória sinuosidades secretas e inefáveis, onde tudo
entra pelas portas respectivas e se aloja sem confusão recebe todas estas
impressões, para as recordar e revistar quando for necessário. Todavia, não são os
próprios objetos que entram, mas as suas imagens: imagens das coisas sensíveis,
sempre prestes a oferecer-se ao pensamento que as recorda. (SANTO
AGOSTINHO, 1987, p. 177)
Tais imagens, de acordo com o raciocínio do filósofo, acorrem ao pensamento sob duas
formas (voluntária ou involuntária), explicação que comprova que muito antes da madeleine
8
Em nota de rodapé, complementa Aristóteles, explicitando o caráter consciente da reminiscência: “La
réminiscence est en effet la mémoire consciente d’elle-même: c’est la remémoration, et, pour se souvenir,
l’homme utilise, comme nous l’avons vu, les lois de l’association des idées” (1953, p. 62). Atentemos ainda para
a utilização, no trecho referido no texto, da expressão recherche a caracterizar a reminiscência, a fim de não
perdermos de vista o tipo de resgate efetuado por Proust em A la recherche du temps perdu. Quanto ao fato de os
animais possuirem memória, também Santo Agostinho se manifesta a respeito : “Os animais e as aves m
também memória. Doutro modo não poderiam regressar aos covis e ninhos, nem fariam muitas outras coisas a
que estão acostumados. Sem a memória não poderiam contrair hábitos nenhuns.” (1987, p. 184)
9
Em La mémoire, l’histoire, l’oubli, comenta Paul Ricoeur: “La force d’Augustin est d’avoir lié l’analyse de la
mémoire à celle du temps dans les Livres X et XI des Confessions(2000, p. 117). Quanto à experiência da
conversão ao cristianismo, o filósofo francês julga que, através de tal iniciação, Agostinho inaugura a tradição do
37
proustiana diversos pensadores e filósofos haviam percebido este tipo peculiar de
manifestação mnemônica a irromper “aos turbilhões”:
Chego aos campos e vastos palácios da memória onde estão tesouros de inumeráveis
imagens trazidas por percepções de toda espécie. está também escondido tudo o
que pensamos, quer aumentando quer diminuindo ou até variando de qualquer modo
os objetos que os sentidos atingiram. Enfim, jaz aí tudo o que se lhes entregou e
depôs, se é que o esquecimento ainda o não absorveu e sepultou. (...) Quando
entro mando comparecer diante de mim todas as imagens que quero. Umas
apresentam-se imediatamente, outras fazem-me esperar por mais tempo, até serem
extraídas, por assim dizer, de certos receptáculos ainda mais recônditos. Outras
irrompem aos turbilhões e, enquanto se pede e se procura uma outra, saltam para o
meio, como que a dizerem: ‘Não seremos nós?Eu, então, com a mão do espírito,
afasto-as do rosto da memória, até que se desanuvie o que quero e do seu
esconderijo a imagem apareça à vista. (SANTO AGOSTINHO, 1987, p. 176)
Dois detalhes chamam a atenção no trecho acima – primeiramente o amplo domínio que
o filósofo julga possuir de suas recordações voluntárias, a ponto de ter o poder de “mandar”
comparecer “todas as imagens” que “quer”, como se p
38
Agostinho não repele apenas as imagens involuntárias que acorrem a sua mente, mas
também atitudes passadas (“falsos fantasmas”) que freqüentam seus sonhos, incompatíveis
com a doutrina já seguida no momento em que escreve suas Confissões:
(...) na minha memória (...) vivem ainda as imagens de obscenidades que o hábito
inveterado fixou. Quando, acordado, me vêm à mente, não m força. Porém,
durante o sono, não só me arrastam ao deleite, mas até à aparência do consentimento
e da ação. A ilusão da imagem possui tanto poder na minha alma e na minha carne,
que, enquanto durmo, falsos fantasmas me persuadem a ões a que, acordado, nem
sequer as realidades me podem persuadir. (...) Meu Deus e Senhor, não sou eu o
mesmo nessas ocasiões? Apesar disso, que diferença tão grande vai de mim a mim
mesmo, desde o momento em que ingresso no sono até àquele tempo em que de
volto! (...) Onde está nesse momento a razão que resiste a tais sugestões quando
estou acordado e permanece inabalável, quando as próprias realidades se lhe
introduzem? Fecha-se, quando cerro os olhos? Dorme simultaneamente com os
sentidos corporais? (SANTO AGOSTINHO, 1987, p. 191-2; grifo do autor)
Santo Agostinho separa a memória que conserva a imagem do objeto perdido
(denominada “memória sensitiva”) da memória que guarda a idéia desse objeto (“memória
intelectual”), recorrendo, uma vez mais, à teoria platônica. Tal distinção é nítida no trecho em
que, ao diferenciar “ciência” de “imagem”, Agostinho recorre à memória dos sentidos” (tão
cara a Proust) para exemplificar que a ciência dos objetos (“realidades”) está presente em nós
sem as respectivas imagens, estas sim vinculadas aos sentidos. Vejamos:
Estes conhecimentos estão como que retirados num lugar mais íntimo, que não é
lugar. Ora, eu não trago comigo as suas imagens, mas as próprias realidades. As
noções de literatura, de dialética, as diferentes espécies de questões e todos os
conhecimentos que tenho a este respeito existem também na minha memória, mas de
tal modo que, se não retivesse a imagem, deixaria fora o objeto. Neste caso
sucederia como à voz que ressoa e logo passa, deixando nos ouvidos a impressão
dum rasto que no-la faz recordar, como se continuasse a ressoar quando na realidade
não ressoa. Sucederia como ao perfume, que, ao passar e desvanecer-se nos ares,
afeta o olfato, donde transmite para a memória a sua imagem, que se reproduz com a
lembrança; como ao alimento, que no estômago perde o sabor, mas parece conservá-
lo na memória; finalmente, como acontece a qualquer objeto que o corpo sente pelo
tato e que a memória imagina, mesmo quando afastado de nós. (...) De fato, todas
estas realidades não nos penetram na memória. Só as suas imagens é que são
recolhidas com espantosa rapidez e dispostas, por assim dizer, em células
admiráveis, donde admiravelmente são tiradas pela lembrança. (SANTO
AGOSTINHO, 1987, p. 178)
Também no Livro XI de suas Confissões, intitulado “O homem e o tempo”, o filósofo se
preocupa em estabelecer distinções entre a “realidade” e a “imagem” dos objetos evocados,
tocando em um ponto fundamental desta formulação teórica a questão a respeito da
39
fidelidade da memória aos fatos lembrados e sua relação com a reconstrução operada através
dos sentidos e da imaginação, uma vez que
Ainda que se narrem os acontecimentos verídicos já passados, a memória relata, não
os próprios acontecimentos que decorreram, mas sim as palavras concebidas pelas
imagens daqueles fatos, os quais, ao passarem pelos sentidos, gravaram no espírito
uma espécie de vestígios. Por conseguinte, a minha infância, que já não existe
presentemente, existe no passado que já não é. Porém a sua imagem, quando a evoco
e se torna objeto de alguma descrição, vejo-a no tempo presente, porque ainda está
na minha memória. (SANTO AGOSTINHO, 1987, p. 220)
“Palavras”, “imagens” ou “vestígios” são vagos, pertencem ao campo da “memória
sensitiva”, existem apenas no “passado que não é” e na reelaboração levada a cabo pela
imaginação do memorialista no “tempo presente”, ao contrário da “realidade” dos objetos,
esta sim concreta e indiscutivelmente imutável. Baseado nesta dicotomia, Agostinho subverte
o conceito tradicional da divisão do tempo em passado, presente e futuro ao propor a
submissão destas três etapas a um eterno presente sugestionado ora pela “lembrança”, ora pela
“visão”, ora pela “esperança”. Assim,
É impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez
fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente
das presentes, presente das futuras. Existem, pois, estes três tempos na minha mente
que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente
das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras. (SANTO
AGOSTINHO, 1987, p. 222)
Se analisarmos estas considerações levando em conta a noção contemporânea do
“sujeito da memória”, ou seja, aquele que narra, no presente, “lembranças das coisas
passadas”, não nada mais coerente do que o raciocínio sugerido pelo filósofo, pois do que
trata o relato memorialístico senão da reconfiguração de certo passado através de imagens (de
lugares, pessoas e momentos vividos) que acorrem à mente, tentativas de fixação de mnemes,
aos turbilhões, e de anamnesis, ressignificadas? icxi sit
40
Em sua teorização sobre o tempo, Agostinho diferencia o tempo dos homens (passado,
presente e futuro vinculados à existência presente) do tempo de Deus (eternidade),
estabelecendo hierarquias que, ao desnudarem nossa estéril limitação temporal e espacial,
escancaram a distinção entre o inabalável poder divino e a débil condição humana
11
. Para
Santo Agostinho, é inútil discutirmos, por exemplo, se o tempo presente pode ser longo ou
não, uma vez que não sabemos nem mesmo se este pode ser medido em anos, meses,
semanas, dias ou horas, ao contrário do “tempo de Deus”, que é eterno:
O tempo presente o único que julgávamos poder chamar longo –, ei-lo reduzido
apenas ao espaço dum dia! Mas discutamos também acerca dele, porque nem
sequer um dia é inteiramente presente. (...) O dia e a noite compõem-se de vinte e
quatro horas, entre as quais a primeira tem as outras todas como futuras, e a última
tem a todas como passadas. Com respeito a qualquer hora intermediária são
pretéritas aquelas que a precedem, e futuras as subseqüentes. Uma hora compõe-se
de fugitivos instantes. Tudo o que dela debandou é passado. Tudo o que ainda
resta é futuro. Se pudermos conceber um espaço de tempo que não seja suscetível de
ser subdividido em mais partes, por mais pequeninas que sejam, a esse podemos
chamar tempo presente. Mas este voa tão rapidamente do futuro ao passado, que não
tem nenhuma duração. Se a tivesse, dividir-se-ia em passado e futuro. Logo, o tempo
presente não tem nenhum espaço. (SANTO AGOSTINHO, 1987, p. 219)
12
Um instante tão milagrosamente indivisível, de duração e intensidade infinitas, no qual
não se percebesse a tida distinção entre passado, presente e futuro, eis o “tempo presente”
idealizado pelo pensador, o único instante que se assemelha em parte à inércia do tempo
11
No século XVII, o alemão Andreas Gryphius resume o pensamento de Santo Agostinho nos versos de
“Contemplação do tempo”: “Não me pertencem mais os anos do passado, / Tampouco os do porvir, por todos
ignorado. / O instante é meu. Terei, se o prendo em minha mão, / O próprio Criador, de quem os anos são.” (in
SELANSKI, Wira (Org), Antologia da lírica alemã, 1999, p. 87)
12
Sobre a distinção entre o “tempo dos homens” (“artificial”) e o “tempo de Deus” (“natural”), leiamos o
comentário de Jacques Le Goff às páginas 12 e 13 de História e memória: “O instrumento principal da
cronologia é o calendário, que vai muito além do âmbito do histórico, sendo mais que nada o quadro temporal do
funcionamento da sociedade. O calendário revela o esforço realizado pelas sociedades humanas para domesticar
o tempo natural, utilizar o movimento natural da lua ou do sol, do ciclo das estações, da alternância do dia e da
noite. Porém, suas articulações mais eficazes a hora e a semana estão ligadas à cultura e não à natureza”.
Paul Ricoeur também comenta nossa extrema dependência em relação a datas e calendários: “(...) l’effort de
mémoire est pour une grande part effort de datation: quand? depuis combien de temps? combien de temps cela a-
t-il duré?(2000, p. 50). Para Marcel Proust, certas datas especiais conseguem a proeza de “renovar” o tempo
através de um (...) anniversaire, le nouvel an peut-être, un de ces jours qui ne sont pas pareils aux autres, où le
temps recommence sur de nouveaux frais en rejetant l’héritage du passé, en n’acceptant pas le legs de ses
tristesses” (Du de chez Swann, 1954, p. 412). Em Serafim Ponte Grande, Oswald lembra que “(...) Voltar
para trás é que é impossível. O meu relógio anda sempre para a frente. A História também” (1989, 5 ed, p. 11).
a memorialística é indiferente a tais “detalhes cronológicos”, como deixam claro Cyro dos Anjos em A
menina do sobrado (“(...) o que importa é a cronologia do sentimento e não a do calendário”, 1979, p. 53); e
Erico Veríssimo em Solo de clarineta: “Escrever memórias numa ordem rigorosamente cronológica seria uma
tarefa difícil, perigosa e possivelmente monótona. De resto, o tempo do calendário e o do relógio pouco e às
vezes nada têm a ver com o tempo do nosso espírito.” (1976, 9 ed, v. 1, p. 51)
41
eterno, “perpétuo hoje” incompreensível para a maioria dos homens, e até, em certas ocasiões,
para o próprio filósofo cristão, que faz de suas Confissões o território da dúvida e do
questionamento a respeito da relação “demasiadamente humana” entre a transitória passagem
do homem e o perene tempo divino, cuja eternidade, não se medindo por convenções
cronológicas reducionistas, existirá para sempre em perfeito estado de equilíbrio,
imutabilidade e monotonia
13
. Dirigindo-se diretamente a Deus, Santo Agostinho explicita a
diferença:
Precedeis (...) todo o passado, alteando-Vos sobre ele com a vossa eternidade
sempre presente. Dominais todo o futuro porque está ainda para vir. Quando ele
chegar, já será pretérito. ‘Vós, pelo contrário, permaneceis sempre o mesmo, e os
vossos anos não morrem’. (...) Os vossos anos não vão e m. Porém, os nossos vão
e vêm, para que todos venham. Todos os vossos anos estão conjuntamente parados,
porque estão fixos, nem os anos que chegam expulsam os que vão, porque estes não
passam. Quanto aos nossos anos, só poderão existir todos, quando todos não
existirem. Os vossos anos são como um só dia, e o vosso dia não se repete de modo
que possa chamar-se cotidiano, mas é um perpétuo ‘hoje’, porque este vosso ‘hoje’
não se afasta do ‘amanhã’, nem sucede ao ‘ontem’. O vosso ‘hoje’ é a eternidade.
(1987, p. 217; grifo do autor)
Eterno hoje imutável, simultaneamente alheia ao cotidiano e à passagem do tempo, tal
eternidade composta por “anos fixos” que “não morrem” em muito se diferencia do tempo
humano, que, por ser finito e efêmero, apresenta-se fragmentado em pretérito (tempo no qual
os anos “morrem” e que subsiste apenas na memória que dele possuímos
14
); presente
13
“Quem poderá prender o coração do homem, para que pare e veja como a eternidade imóvel determina o
futuro e o passado, não sendo ela nem passado nem futuro?” (SANTO AGOSTINHO, 1987, p. 216), interroga,
em uma espécie de apelo para que tentemos compreender a sujeição inevitável do tempo humano ao divino. Em
Études sur le temps humain, sintetiza Georges Poulet ao comentar a passagem do limitado tempo cronológico a
um estado de temporalidade ausente, característico da vida espiritual despojada da matéria: “Tout ce qu’il y avait
donc de naturellement spontané et instantané dans la vie spirituelle, l’acte de comprendre, l’acte de sentir, l’acte
de vouloir ou de jouir, tout cela ne s’accomplissait en l’homme qu’à travers le temps, qu’à l’aide du temps, que
porté par le temps vers son achèvement. Mais dans la mesure cet acte se rapprochait de son point de
perfection, à mesure qu’il s’accomplissait dans le temps, il tendait à se dégager du temps. A l’instant où il
atteignait sa plénitude, tout ce qu’il avait de temporel avait disparu. Il recevait sa perfection dans un instant qui
transcendait le temps, et qui, aussi longtemps qu’il durait, durait d’une durée permanente”. (1949, p. VI)
14
“Quem pode negar que as coisas pretéritas já não existem? Mas está ainda na alma a memória das coisas
passadas” (SANTO AGOSTINHO, 1987, p. 228). Paul Ricoeur não concorda com esta “sujeição” do passado ao
presente, questionando se a teoria do triplo presente não concede à experiência “viva do presente” uma
importância tal que comprometa a “alteridade do passado”: “C’est le problème de savoir si la théorie du triple
présent ne donne pas à l’expérience vive du présent une prééminence telle que l’altérité du passé en soit affectée
et compromise” (La mémoire, l’histoire, l’oubli, 2000, p. 122). Na terceira parte (“La condition historique”)
desta mesma obra, Ricoeur sugere uma leitura polissêmica da noção de presente: “Je plaide ailleurs pour une
lecture plus polysémique de la notion de présent: celui-ci ne se réduit pas à la présence en quelque sorte optique,
42
(sensações, opiniões e impressões atuais”, mas muitas vezes vinculadas a certas imagens
preconcebidas no passado); e futuro (intenções, planos e projetos que, mesmo se levados a
termo, em breve também farão parte do passado, que nossos anos “passam” e não “duram
para sempre”). Resta-nos a tentativa de fixar anos (e, conseqüentemente, atitudes e
acontecimentos) para não deixá-los perecer de vez à medida que o implacável tempo escorre,
daí a necessidade do esforço da rememoração e do apelo à recriação idealizada inerente ao
relato memorialístico, a fim de conservar se não a realidade, pelo menos a imagem dos fatos
vividos, observados ou apreendidos. Para Santo Agostinho, o presente existe
objetivamente, sendo o passado e o futuro abstrações de nossa mente inconformada com tais
desígnios:
De que modo existem aqueles dois tempos o passado e o futuro – , se o passado já
não existe e o futuro ainda não veio? Quanto ao presente, se fosse sempre presente, e
não passasse para o pretérito, já não seria tempo, mas eternidade. Mas se o presente,
para ser tempo, tem necessariamente de passar para o pretérito, como podemos
afirmar que ele existe, se a causa de sua existência é a mesma pela qual deixará de
existir? (SANTO AGOSTINHO, 1987, p. 218)
43
eternidade
16
. Esclarecedoras por um lado, por outro as Confissões de Santo Agostinho
suscitam questões complexas e conclusões dúbias, como no trecho em que admite
desconhecer se o dia é composto pelo movimento do sol ou pela duração em que tal
movimento se realiza, uma vez que
(...) chamamos dia não somente à demora do Sol sobre a Terra, pela qual se
diferencia o dia e a noite, mas também, ao giro completo que o Sol descreve do
Oriente ao Oriente. Por isso dizemos: ‘Passaram-se tantos dias’. Entendemos
também as respectivas noites, sem enumerar à parte os seus espaços. Portanto, já que
o movimento do Sol e o seu percurso do Oriente ao Oriente completam um dia,
desejava saber se é o movimento que constitui o dia, ou se é a duração em que se
realiza esse movimento, ou se são estas duas coisas conjuntamente. (SANTO
AGOSTINHO, 1987, p. 224)
Se quisermos determinar precisamente quanto tempo se passou e de que forma
transcorreu, de acordo com Agostinho, não devemos nos fiar nem no movimento dos astros (e
o episódio de Josué, que o filósofo conhecia, corrobora esta desconfiança
17
), nem em sua
duração (que, como sabemos, pode ser sobretudo psicológica e fornecer apenas uma certa
“ilusão” a respeito do tempo que durou esse movimento).
Destaca-se também a compreensão de Santo Agostinho quanto ao aspecto ambíguo da
memória em relação à dicotomia lembrança/esquecimento, a ponto de o filósofo praticamente
criar uma espécie de paradoxo no trecho em que afirma que “(...) estou certo de que me
lembro do esquecimento, que nos varre da memória tudo aquilo de que nos lembramos”
(1987, p. 183; grifo do autor). Acompanhemos a engenhosa exposição de Agostinho segundo
a qual a memória, ao mesmo tempo em que retém o esquecimento, torna-se refém dele.
Que é esquecimento senão a privação da memória? E como é, então, que o
esquecimento pode ser objeto da memória se, quando está presente, não me posso
recordar? Se nós retemos na memória aquilo de que nos lembramos, e se nos é
impossível, ao ouvir a palavra ‘esquecimento’, compreender o que ela significa, a
não ser que dele nos lembremos, conclui-se que a memória retém o esquecimento. A
presença do esquecimento faz com que o não esqueçamos; mas quando está
presente, esquecemo-nos. Não se deverá concluir que o esquecimento, quando o
recordamos, está presente na memória, não por si mesmo, mas por uma imagem
16
Discutindo a importância do pensamento filosófico para a abordagem teórica da memória, Le Goff aponta os
estudos de Alberto Magno e de Tomás de Aquino (dominicanos do século XIII) como seguidores da linha
agostiniana do “homem interior”. Outros pensadores cristãos a tratar da memória são, por exemplo:
Boncompagno, Santo Anselmo e Ailred de Rievaux (retórica clássica do século XII). (1990, p. 453-4)
17
À página 224, Agostinho deixa claro que: “Quando, com a oração de Josué, o Sol parou, a fim de ele concluir
vitoriosamente o combate, o Sol estava parado, mas o tempo caminhava.”
44
sua? De fato, se ele estivesse presente por si mesmo, faria com que o não
lembrássemos, mas o esquecêssemos. Quem poderá penetrar, quem poderá
compreender o modo como isto se realiza? (SANTO AGOSTINHO, 1987, p. 182-3)
Assim como o eikon platônico, que torna a ausência presente, a presença do
esquecimento anula a memória da mesma forma que a memória, ao lidar com a possibilidade
do esquecimento, reconhece e admite sua presença, sobretudo através de imagens formadas
anteriormente e que podem aflorar ou não a qualquer momento. Dessa forma, entende-se o
fenômeno mnemônico como a tentativa por vezes desesperada de salvar do esquecimento
imagens que somente podem ser resgatadas através da rememoração efetuada pelo relato
memorialístico, atuando, além da lembrança involuntária e da evocação voluntária, uma
certa imaginação a preencher os espaços vazios deixados pelo esquecimento. À medida que a
imagem lembrada estiver definitivamente fixada em letra impressa, está, aparentemente, salva
do esquecimento, a menos que seja novamente “esquecida” em alguma gaveta, estante,
arquivo ou estoque de editora.
Parece óbvio referir que na maior parte dos casos essas imagens evocadas estão
indissociavelmente ligadas a lugares, pessoas e acontecimentos. Veremos ainda como as
imagens dos lugares e a necessidade de salvá-las do esquecimento é primordial em Marcel
Proust (Combray, Balbec, Veneza), em Pedro Nava (Belo Horizonte, Rio de Janeiro) e, o que
mais nos importa, em Augusto Meyer (Cerro d’Árvore, Porto Alegre). A evocação destas
cidades ilustra a idéia exposta por Italo Calvino em As cidades invisíveis, onde o escritor
italiano sugere que a cidade é feita “das relações entre as medidas de seu espaço e os
acontecimentos do passado”:
A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se
dilata. Uma descrição de Zaíra como é atualmente deveria conter todo o passado de
Zaíra. Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão,
escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas
antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por
arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras. (CALVINO, 1990, p. 14-5)
Também Santo Agostinho possui o seu pays de tendre, Cartago, na Tunísia, famoso
entreposto comercial fundado pelos fenícios e onde Agostinho (nascido em Tagaste, na
45
Numídia, antiga região do norte da África) estudara a partir de 370, lembrada, nas Confissões
do filósofo, para exemplificar o fato de que “quando a imagem de qualquer objeto se nos
imprime na memória, é preciso que primeiro o próprio objeto nos esteja presente, para que
nos possa ser gravada a imagem”:
É assim que relembro Cartago, todos os lugares em que estive, os rostos das pessoas
que vi, todos os objetos anunciados pelos outros sentidos e, do mesmo modo, a
saúde e as dores do próprio corpo. Quando a memória tinha estas coisas presentes,
tomou-lhes as imagens, para eu, depois, as poder contemplar e repassar no espírito,
ao recordá-las quando ausentes. (SANTO AGOSTINHO, 1987, p. 183)
18
Ainda sobre o esquecimento, é necessário frisar que, assim como as discussões a
respeito dos fenômenos da memória, a preocupação em entender sua função nasce com os
filósofos antigos e de certa forma continua até hoje, sobretudo através de pesquisas médicas e
psicanalíticas. Em “Memória e esquecimento”, texto apresentado no congresso da
ABRALIC (1991, v. 2, p. 202), Karl Erik Schollhammer menciona a idéia de Sócrates,
segundo a qual “todo conhecimento e toda invenção apenas é uma revelação de algo
‘esquecido’, que sempre ‘estava lá’ e que re-conhecemos, lembramos, descobrindo-o. Uma
espécie de inconsciente coletivo, reflexo da idéia, ao que o sujeito tem maior ou menor
acesso”. Para Schollhammer,
(...) não devemos ignorar que a noção de memória só tem sentido pensada em
relação ao esquecimento, e podemos sugerir que é no limite poroso entre estas duas
noções, na reflexividade sobre o próprio saber, que o pensamento torna-se
consciente e dinâmico, mais do que na capacidade que a memória tem de estocar e
18
Evocada por Santo Agostinho no Livro XI das Confissões, descrita por Virgílio no início do Livro I de Eneida
(“Colônia tíria no ultramar, Cartago, / Do ítalo Tibre contraposta às fozes, / Houve, possante empório, antigo,
aspérrimo / N’arte da guerra”; 1960, p. 103) e eternizada por Flaubert no romance Salambô, Cartago foi uma das
maiores cidades do mundo romano, tendo exportado trigo para Roma. Nesta cidade as comunidades cristãs
foram especialmente precoces e intensas, que antes de Santo Agostinho (séculos IV e V), Tertuliano (séculos
II e III) e São Cipriano (século III) puderam testemunhar seu esplendor. Jorge Luis Borges, no soneto “James
Joyce”, alude a Cartago e à destruição da cidade devido às sedições e à peste que dizimaram a população durante
o século VI. Interessa notar também que Borges parece recriar no poema as discussões de Agostinho a respeito
da diferença entre tempo terreno e tempo eterno, a fim de caracterizar o paradoxo entre a passagem do tempo (já
que o “ubíquo rio” do tempo terreno retorna ao “Eterno” apagando presente, passado e futuro) e a possibilidade
de fixá-lo em um único dia, tal qual a imaginou James Joyce ao contar, em Ulisses (1922), as peripécias do
corretor dublinense Leopold Bloom no dia 16 de junho de 1904. Eis os versos do escritor argentino: En un día
del hombre están los días / del tiempo, desde aquel inconcebible / día inicial del tiempo, en que un terrible / Dios
prefijó los días y agonias // hasta aquel outro en que el ubicuo río / del tiempo terrenal torne a su fuente, / que es
lo Eterno, y se apague en el presente, / el futuro, el ayer, lo que ahora es mío. // Entre el alba y la noche está la
historia / universal. Desde la noche veo / a mis pies los caminos del hebreo, // Cartago aniquilada, Infierno y
Gloria. / Dame, Señor, coraje y alegría / para escalar la cumbre de este día.” (BORGES, 1976, p. 170)
46
guardar percepções e idéias, classificando-as no arquivo cerebral. (1991, v. 2, p.
202)
19
Entre estocagem e esquecimento, entre a necessidade de lembrar e a comodidade de
esquecer, o filtro da memória atua mediado pelo recurso indispensável da imaginação, que, ao
proporcionar o compartilhamento de características oníricas e fantasiosas, ressignifica o
próprio esquecimento:
Assim, o sempre perseguido e criticado esquecimento torna-se um aliado da
imaginação, a faculdade humana que permite a transposição de um fato percebido à
existência, ou à hipótese da existência, de uma noção ou de uma idéia geral. É a
imaginação que possibilita pensar a existência da realidade além da
momentaneidade perceptiva e da limitação da experiência concreta e que entende-se
assim como uma espécie de ‘memória do futuro’. A imaginação tem a liberdade de
estruturar e ordenar o seu material de modo diferente da memória, mesmo
sustentando-se sempre nela. Na imaginação pode-se fazer ligações entre fenômenos
díspares em cadeias que não obedecem aos princípios normais da associação e do
encadeamento, como, por exemplo, semelhança, contigüidade em tempo e espaço e
causalidade. A imaginação organiza-se de uma maneira mais próxima ao trabalho do
sonho e consegue sugerir novas lógicas de causalidades diferentes cujos
desdobramentos abrem um outro mundo possível. (SCHOLLHAMMER, 1991, v. 2,
p. 205; grifo meu)
Tendo sacralizado a memória (Mnemósine) e a imaginação poética (Calíope), a
Mitologia grega, da mesma maneira, procede à figuração do esquecimento representando-o
através de Lete, o (único) rio pelo qual as “almas” passam a fim de reencarnar:
Em se tratando do último nível ctônio, em que estão os poucos que conseguiram
chegar, os Campos Elísios (...) são descritos, ao menos na Eneida, VI, 637 sqq.,
como um paraíso terrestre em plena idade de ouro. residem os melhores, em
opulentos banquetes nos gramados, cantando em coro alegres canções, nos
perfumados bosques de loureiros. estão os que já passaram por uma série de
19
Em outro texto apresentado no mesmo congresso, Bella Josef se refere às diversas fases da memorização: “O
primeiro tempo da memorização é a estocagem, do registro, da conservação à maneira de uma escrita. O segundo
tempo é a lembrança do que está guardado” (1991, v. 1, p. 455). No parágrafo anterior, afirmara o estudioso:
“Para poder lembrar-se, é preciso haver esquecido. Lembrar-se não quer dizer apenas recopiar um acontecimento
do passado mas revivê-lo de novo, regenerá-lo e concebê-lo no sentido biológico como se concebe uma idéia”
(1991, v. 1, p. 454). E concluindo: A essência da memória é o esquecimento, a própria vigilância da memória.
O poeta fala como se se lembrasse mas, se ele se recorda, é pelo esquecimento” (JOSEF, 1991, v. 1, p. 460). Em
La mémoire, l’histoire, l’oubli, Paul Ricoeur encara o esforço da rememoração como uma luta contra o
esquecimento: “La recherche du souvenir témoigne en effet d’une des finalités majeures de l’acte de mémoire, à
savoir de lutter contre l’oubli, d’arracher quelques bribes de souvenir à la ‘rapacité’ du temps” (RICOEUR,
2000, p. 36). No Posfácio à segunda edição de Segredos da infância (1966), Augusto Meyer considera
“fantasmas” imagens de pessoas conhecidas que às vezes esquecemos: “Compreendo então como é oportuno o
esquecimento em que vivemos. Venha o vento da indiferença para assoprar em fumo estes fantasmas indiscretos,
e apenas fiquem algumas frestas no muro da memória. Esquecer, esquecer para não perder a graça de recordar,
de vez em quando” (MEYER, Segredos da infancia/No tempo da flor, 1997, p. 88). No item 3.1 (p. 154),
veremos como a memória involuntária pode atuar como “antídotocontra o esquecimento definitivo, conforme
indica Maria do Carmo Savietto em Baú de madeleines: o intertexto proustiano nas Memórias de Pedro Nava:
“As revelações mais significativas que a memória pode nos fazer acerca da nossa identidade parecem estar (...)
imersas no esquecimento, mas basta que um estímulo exterior, coadunado a uma disposição interior, lance para a
claridade aquilo que se achava imerso nas sombras do esquecimento.” (SAVIETTO, 2002, p. 152)
47
provas e purgações. Mas, decorridos mil anos, após se libertarem totalmente das
‘impurezas materiais’, as almas serão levadas por um deus às águas do rio Lete e,
esquecidas do passado, voltarão para reencarnar-se. (BRANDÃO, 1989, v. 1, p. 320;
grifo do autor)
20
De acordo com a representação mitológica, são necessários mil anos para que as almas
que desejam retornar à vida, mergulhando nas águas do Lete, possam olvidar uma infinidade
de recordações pretéritas. Coincidência ou não, é o mesmo tempo mencionado por Charles
Baudelaire no verso de abertura do poema “Spleen” (“J’ai plus de souvenirs que si j’avais
mille ans”; 1944, p. 74), sentença que, opondo-se à simbologia do rio grego, é uma espécie de
apologia à (impossível) memória perfeita que bem poderia figurar como epígrafe de “Funes, o
memorioso”, conto de Jorge Luis Borges no qual, após um incidente que o deixa fisicamente
paralisado para toda a vida, Irineu Funes, antípoda do indivíduo amnésico, desenvolve sua
memória a ponto de deixá-la praticamente “infalível”, explorando até o limite seu poder e sua
capacidade quase doentia de computar e de armazenar imagens e informações intermináveis.
O curioso é que a incrível capacidade mnemônica de Funes surge através da leitura a respeito
de outros casos de memória prodigiosa:
Irineu começou por enumerar, em latim e espanhol, os casos de memória prodigiosa
registrados pela Naturalis historia: Ciro, rei dos persas, que sabia chamar pelo nome
todos os soldados de seus exércitos; Mitridates Eupator, que administrava a justiça
nos 22 idiomas de seu império; Simônides, inventor da mnemotécnica; Metrodoro,
que professava a arte de repetir com fidelidade o escutado uma só vez. Com evidente
boa-fé surpreendeu-se de que tais casos maravilhassem. (BORGES, 1989, p. 93-4)
21
Surpreendeu-se Funes porque o alcance de sua memória era infinitamente superior,
como atesta o seguinte trecho, exemplo máximo da extrema minúcia de suas recordações:
20
Léthe, em grego, designa o substantivo “esquecimento”, enquanto léthomai pode ser traduzido tanto pelo
verbo “esconder-se” quanto por “esquecer-se”, detalhe que, como veremos, a psicanálise freudiana utiliza no
intuito de sugerir que, ao reprimirem “lembranças esquecidas/escondidas/encobertas”, dizendo com Adélia
Bezerra de Meneses, “as pessoas, de um modo geral, se escondem no esquecimento (...), escondem algo de si
próprias no esquecimento” (1991, v. 2, p. 212). Quanto ao rio, acrescenta Le Goff: “No inferno órfico, o morto
deve evitar a fonte do esquecimento, não deve beber no Letes, mas, pelo contrário, nutrir-se da fonte da
Memória, que é uma fonte de imortalidade.” (1990, p. 438)
21
Em História e memória, Le Goff faz uma observação fundamental a respeito da técnica de Simônides,
responsável pela distinção entre os lugares e os símbolos da memória: “Simônides (cerca de 556-448 a.C.)
fixava assim dois princípios da memória artificial segundo os antigos: a lembrança das imagens, necessária à
memória e o recurso a uma organização, uma ordem, essencial para uma boa memória. (...) A Simônides seria
devida uma distinção capital na mnemotécnica, a distinção entre os lugares da memória, onde se pode por
associação dispor os objetos da memória (...) e as imagens, formas, traços característicos, símbolos que permitem
a recordação mnemônica.” (1990, p. 22; grifo do autor)
48
[Funes] Sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer do trinta de abril de mil
oitocentos e oitenta e dois e podia compará-las na lembrança com as listras de um
livro espanhol encadernado que vira somente uma vez e com as linhas da espuma
que um remo sulcou no Rio Negro na véspera da batalha do Quebracho. Essas
lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada às sensações
musculares, térmicas, etc. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os entressonhos.
Duas ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro; nunca havia duvidado, cada
reconstrução, porém, tinha requerido um dia inteiro. Contou-me: Mais recordações
tenho eu sozinho que as tiveram todos os homens desde que o mundo é mundo. E
também: Meus sonhos o como a vigília de vocês. E igualmente, por volta da alva:
Minha memória, senhor, é como despejadouro de lixos. Uma circunferência num
quadro-negro, um triângulo retângulo, um losango, são formas que podemos intuir
plenamente; o mesmo acontecia a Irineu com as tumultuosas crinas de um potro,
com uma ponta de gado numa coxilha, com o fogo irisante e com a inumerável
cinza, com os muitos rostos de um morto num demorado velório. Não sei quantas
estrelas via no céu. (BORGES, 1989, p. 94-5; grifo do autor)
22
Condenando a “eficácia” da hipermnésia de Funes
23
, médicos e psiquiatras indicam seus
malefícios e sua inutilidade, que é indispensável saber filtrar as informações que
recebemos, conforme esclarece, em entrevista à revista Época (setembro/2004), o
neurocientista Iván Izquierdo, autor do livro A arte de esquecer, quando questionado se
“esquecer é tão importante quanto recordar”:
É fundamental esquecer para não ter memórias que nos azucrinam e impedem o
aprendizado de coisas novas. Esquecemos para poder pensar. Em algumas
patologias, as pessoas apresentam uma memória fantástica, mas acumulam
informações inúteis. São idiotas sábios. O escritor Jorge Luis Borges tratou muito
bem desse assunto quando criou Funes, o memorioso. O personagem tinha a
memória perfeita e, por isso mesmo, era medíocre. Para pensar, é preciso esquecer e
ser capaz de fazer generalizações. Caso contrário, ninguém consegue refletir sobre
as informações a seu redor. (2004, p. 92)
24
22
O confronto realidade vs. imaginação, analisado por Santo Agostinho, também aparece no universo de Funes,
como destaca o narrador: Babilônia, Londres e Nova Iorque sufocavam com feroz esplendor a imaginação dos
homens; ninguém, em suas torres populosas ou em suas avenidas urgentes, sentiu o calor e a pressão de uma
realidade tão infatigável como a que dia e noite convergia sobre o infeliz Irineu, em seu pobre arrabalde sul-
americano.” (BORGES, 1989, p. 96-7; grifo meu)
23
Sendo, segundo o Novo Dicionário da língua portuguesa, o “exagero da capacidade de evocação das
lembranças” (FERREIRA, 1986, p. 897), a hipermnésia é considerada pela Medicina uma manifestação
patológica.
24
Considerados “patológicos” ambos os extremos (hipermnésia e amnésia), pelo menos literariamente eles
possuem grande valor do primeiro, temos como exemplo o paradigmático conto supracitado; do segundo,
desde que, através do esquecimento, adotemos novas perspectivas de abordagem dos fatos, fenômenos e imagens
que desejamos recordar. É o que afirma Georges Gusdorf na abertura do quarto capítulo (“L’oubli”) de Mémoire
et personne: “La disparition du souvenir nous apparaît d’ordinaire comme un raté de la mémoire, un signe de
décadence et de chéance souvent pénible. Quelque chose de notre expérience fait soudainement défaut. J’ai
besoin d’un nom, d’un fait, d’un détail quelconque et je m’aperçois qu’il m’est impossible de le retrouver. Je
ne me souviens plus des sous-préfectures du Tarn-et-Garonne. J’ai oublié tel ou tel des coups d’État du
Directoire, je ne sais plus comment on dit ‘lumière’ en italien. Davantage, il m’est impossible de me rappeler le
nom de quelqu’un que j’ai rencontré il y a quelques jours. Je n’arrive pas à retrouver ce que j’ai fait pendant les
grandes vacances de telle ou telle année de mon enfance. Une sorte de dépossession. Je m’échappe à moi-même;
j’ai perdu quelque chose de ma propre substance. (...) Mais ce caractère pathologique de l’oubli s’atténue pour
beaucoup si l’on songe qu’il s’agit d’un aspect constitutif de toute expérience une fois acquise. La moire
49
Levando um dia inteiro para guardar todas as informações recebidas pelos cinco
sentidos durante vinte e quatro horas, aos olhos de um poeta imaginativo Funes assombra pela
imensa capacidade de retenção de detalhes prenhes de lirismo, ao mesmo tempo em que,
“medíocre” na opinião da ciência, acumula “recordações inúteis”, pois desconhece que “para
expandir a capacidade de processamento é fundamental saber se livrar do que não interessa”
(2004, p. 92). A pergunta é: será que Funes deseja se “livrar” “do que não interessa” ou se
interessa pelas recordações das quais não consegue se livrar? Além disso, ao comentar a
importância da leitura para os processos de memorização
25
, Iván Izquierdo parece não
considerar o efeito que a leitura do Naturalis historia exerce sobre a memória prodigiosa de
Funes, e nem perceber que sua técnica espelha, recupera e aperfeiçoa, mesmo que somente no
âmbito da ficção, as fantásticas habilidades de Ciro, Mitridates, Metrodoro e Simônides
26
.
Se a observação do neurocientista é imprecisa do ponto de vista literário, por outro lado
sua pesquisa em relação aos aspectos psíquicos envolvidos no processo mnemônico é
réalise une mise en perspective de tout ce que nous avons vécu. Or la perspective efface les lointains. ” (1951, v.
2, p. 289)
25
“Nenhuma atividade mobiliza tantas variedades de memória como a simples leitura. Ela põe em prática a
memória das letras, a memória verbal e a memória da imaginação.” (2004, p. 91)
26
Não apenas na Antigüidade, mas também a literatura moderna é pródiga em registrar casos de poetas,
escritores e pensadores dotados de extrema capacidade mnemônica. O próprio Jorge Luis Borges, autor de
“Funes, o memorioso”, sabia de cor, além de seus contos e poemas, inúmeras obras, em prosa e verso, sobretudo
das literaturas de língua espanhola e inglesa. De acordo com Carrera Guerra, o poeta russo Maiakóvski, de
“memória extraordinária”, “compunha mentalmente longos poemas, pondo no papel somente a última forma.
Lembrava-se, porém, não só das diferentes variantes de cada verso, ocorridas durante a elaboração poética, como
do lugar, circunstâncias e razões da maioria delas. Desse dom é sumamente ilustrativo o seu folheto ‘Como fazer
versos’, escrito em 1926. Sabia de cor todos os seus poemas, senão livros, e era capaz de recitar Púchkin inteiro
(GUERRA, 1995, p. 54). Na literatura brasileira, Pedro Nava freqüentemente destaca, em suas Memórias, seu
próprio poder fenomenal de retenção mnemônica, como por exemplo, no volume
50
essencial para entendermos a abordagem da memória pela ciência médica, a começar pela
determinação dos vários tipos de memória que possuímos, bem como das principais regiões
do cérebro implicadas no processo. Segundo Izquierdo, a “memória de trabalho”, que dura
apenas alguns segundos, é responsável por “filtrar” “as informações que ocorrem a nosso
redor”, informações estas processadas pelo córtex pré-frontal e em seguida comunicadas a
outros órgãos; a “memória de curta duração”, que chega a durar poucas horas, permite que
certas lembranças venham à tona graças a “conexões entre o hipocampo e áreas como o córtex
entorrinal e o córtex parietal” (2004, p. 90); e, finalmente, a “memória de longa duração”, que
leva horas para ser construída, dura até décadas e está, muitas vezes, relacionada a
experiências de elevado conteúdo emocional, aspecto gerenciado pela amígdala cerebral.
Através desta subdivisão, fica claro que os tipos de memória estudados pela Medicina estão
relacionados, sobretudo, à duração da lembrança, e não ao fato desta ser voluntária ou não, de
ser individual ou coletiva, de se tratar de recordação “pura” ou de evocação reelaborada. Tais
sutilezas parecem interessar somente a especulações filosóficas ou fenomenológicas, pois ao
conhecimento científico basta saber que os diferentes registros da memória se explicam pelas
funções que exercem e pelas regiões nas quais ocorrem. Para Jacques Le Goff,
A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em
primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode
atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas.
(1990, p. 423)
Le Goff se refere ainda a outras áreas do conhecimento científico que abordam o
fenômeno mnemônico, a saber: Psicologia; Psicofisiologia; Neurofisiologia; e Biologia, além,
obviamente, da Psiquiatria, que estuda as perturbações da memória, sendo a amnésia a mais
comum. Mas talvez em nenhum destes ramos a memória desempenhe um papel tão especial
quanto na Psicanálise, interessada em desvendar patologias e recalcamentos a partir das
reminiscências evocadas pelos pacientes e nas quais surpreendem as mais diversas
51
manifestações, conscientes ou inconscientes, através de reações tais como interesse,
afetividade, inibição, desejo, censura, medo, etc
27
.
Tal preocupação fica evidente em alguns textos de Sigmund Freud, principalmente nos
capítulos “Recordações infantis e encobridoras” e “Lembranças encobridoras”, consultados na
edição argentina
28
. No primeiro, Freud expõe o caráter tendencioso e seletivo de nossas
recordações voluntárias, diferenciando as lembranças da vida adulta das recordações infantis,
uma vez que há, nestas últimas, resistências relacionadas a conteúdos reprimidos
inconscientemente e que fazem com que, em muitos casos, impressões realmente importantes
sejam esquecidas em detrimento de imagens triviais, secundárias:
En un artículo publicado em 1899 en la ‘Revista de Psiquiatría y Neurología’,
pudimos demonstrar el carácter tendencioso de nuestros recuerdos, carácter que se
nos reveló en aquéllos pertenecientes a un insospechado campo. Partimos entonces
del hecho singular de que en los más tempranos recuerdos infantiles de una persona,
parece haberse conservado en muchos casos lo más indiferente y secudario, mientras
que frecuentemente, aunque no siempre, se halla que de la memoria del adulto han
desaparecido sin dejar huella los recuerdos de otras impresiones importantes,
vigorosas y llenas de afecto, pertenecientes a dicha época infantil. Sabiendo que la
memoria ejecuta una selección entre las impresiones que a ella se ofrecen, podría
suponerse que dicha selección se verifica en la infancia, conforme a principios
totalmente distintos de aquellos otros, a los que obedece en la edad de la madurez
intelectual. Pero una más penetrante investigación nos evidencia en seguida la
inutilidad de tal hipótesis. Los recuerdos infantiles indiferentes, deben su existencia
a un proceso de desplazamiento y constituyen en la reproducción un sustitutivo de
otras impresiones, verdaderamente importantes, cuyo recuerdo puede extraerse de
ellos por medio del análisis psíquico, pero cuya reproducción directa se halla
estorbada por una resistencia. Dado que estos recuerdos infantiles indiferentes deben
su conservación, no al próprio contenido, sino a una relación asociativa de éste con
otro contenido reprimido, creemos que está justificado el nombre de recuerdos
encubridores (Deckerinnerungen) con que los designamos. (FREUD, 1953, v. 1, p.
57; grifo do autor)
Em seguida, o psicanalista austríaco destaca a imprecisão de se definir a que idade
27
Sobre a importância da memória para as teorias de Freud, ver a citação que Adélia Bezerra de Meneses faz, em
nota de rodapé ao seu texto “Memória, história e ficção: Blade Runner”, mencionando o comentário de Miriam
Chnaiderman presente em Ensaios de Psicanálise e Semiótica: “O nascimento da Psicanálise acontece a partir de
uma questão relativa à Memória; a histérica sofre de reminiscências; seu sintoma é a ação, no corpo, de algo que
não pode ser lembrado; cumpre à Psicanálise ajudar para que a lembrança possa ser verbalizada. É preciso
lembrar a cena traumática, resgatar a imagem, para então nomear” (Apud MENESES, 1991, v. 2, p. 207). Bella
Josef também se refere às conquistas freudianas nos estudos sobre memória: “A leitura dos textos de Freud
permitiu, pela primeira vez, dentro de nossa tradição intelectual, a percepção de que a fonte fundamental de toda
reflexão é a memória.” (1991, v. 1, p. 454)
28
Ver Obras completas de Sigmund Freud, Buenos Aires, Santiago Rueda Editor, 1953, 22 v.
52
equivale as primeiras recordações de um adulto, podendo existir, dependendo do indivíduo,
uma grande variação de um caso para outro:
¿Hasta qué punto de la niñez alcanzan los recuerdos? Me son conocidos algunos de
los trabajos realizados sobre esta cuestión, (...) de los cuales resulta que han
aparecido grandes diferencias individuales en los sujetos sometidos a investigación,
pues mientras que en algunos el primer recuerdo infantil corresponde a la edad de
seis meses, otros no recuerdan nada de su vida anterior a los seis y a veces hasta a
los ochos años cumplidos. (FREUD, 1953, v. 1, p. 59-60)
29
Tendenciosidade, caráter seletivo
30
movido por interesse ou repressão, imprecisões,
variações individuais, segundo a abordagem psicanalítica da memória não praticamente
informação alguma totalmente confiável, sobretudo no que se refere à idade e ao conteúdo das
recordações, que o “material psíquico” com o qual o adulto lida é bastante diverso, motivo
pelo qual Sigmund Freud afirma não haver exatidão nas lembranças evocadas, donde
podemos concluir, uma vez mais, pela presença constante da imaginação a recompor as
primeiras recordações da infância.
Si se someten a un examen analítico los recuerdos que de su infancia ha conservado
una persona, puede sentarse fácilmente la conclusión de que no existe ninguna
garantía de la exactitud de los mismos. Algunas de las imágenes del recuerdo
29
Para compreendermos as limitações inerentes às lembranças da infância é necessário levarmos em conta certas
“considerações neurológicas elementares”, expostas por Georges Gusdorf no segundo volume de Mémoire et
personne: “L’expérience de l’adulte est une expérience organisée. La représentation du monde y correspond à
une connaissance de soi et des choses qui permet une action efficace. Le tout est soutenu par un ensemble de
structures neurobiologiques parvenues à maturité. Or le petit enfant pendant les premières années demeure à un
stade plus ou moins rudimentaire d’organisation. Le nouveau-né continue directement l’existence de l’embryon.
En lui se poursuit la lente constitution de l’appareil sensori-moteur qui permettra peu à peu à l’enfant de
coordonner ses mouvements, de se donner une perception correcte, de parler, et d’atteindre ainsi, après plusieurs
années, à l’édification d’une image du monde et d’un univers du discours exactement coordonnés. Ce lent
travail, cette élaboration de conscience est lié en particulier à la mise en place et à l’entrée en fonction
progressive du système nerveux. La myélinisation des fibres nerveuses, constitution d’une gaine protectrice
permettant leur mise en service, n’est pas achevée avant la troisième année. (...) Il est impossible d’aborder la
question des souvenirs d’enfance sans tenir compte de ces considérations neurobiologiques élémentaires” (1951,
p. 376). É por isso que “Nous nous trouvons en face de nos premiers souvenirs comme en face de rêves dont
nous ne sommes pourtant jamais très sûrs de n’en avoir pas inventé après coup l’affabulation”, e que “la majeure
part de notre enfance nous échappe, semble-t-il, à jamais” (GUSDORF, 1951, v. 2, p. 375). Alguns depoimentos,
como o de Raïssa Maritain, mulher do filósofo e literato francês Jacques Maritain, parecem contradizer a tese,
defendida por Gusdorf, segundo a qual é impossível recordarmos algo ocorrido antes dos três anos de idade. Diz
a escritora, no parágrafo de abertura de Les grandes amitiés Souvenirs: “Mon premier souvenir date de ma
toute petite enfance. J’ai un peu plus de deux ans et demi, ma petite soeur Véra va naître. Je ne le sais pas,
naturellement. Mais je me vois debout contre le genoux de mon père qui est assis et qui pleure devant la porte
fermée de la chambre de maman.” (MARITAIN, Raïssa, 1941, p. 13)
30
Wander Melo Miranda também destaca esta característica da memória ao explicar que a diferença entre a
autobiografia e o diário íntimo está, não no grau de ficcionalidade, mas na perspectiva de retrospecção adotada:
“Há uma possibilidade maior de exatidão, de precisão e fidelidade à experiência no diário, justamente pela
menor separação temporal entre o evento e o seu registro, o que é mais difícil de ser atingido pela autobiografia,
em razão do caráter seletivo da memória, que modifica, filtra e hierarquiza a lembrança.(MIRANDA, Corpos
escritos, 1992, p. 34; grifo meu)
53
aparecerán seguramente falseadas, incompletas o desplazadas temporal y
espacialmente. Ciertas afirmaciones de las personas sometidas a investigación, como
la de que sus primeros recuerdos infantiles corresponden a la época en que ya habían
cumplido los dos años, son inaceptables. (...) Poderosas fuerzas correspondientes a
una época posterior de la vida del sujeto han moldeado la capacidad de ser evocadas
de nuestras experiencias infantiles, y estas fuerzas son probablemente las mismas
que hacen que la comprensión de nuestros años de niñez sea tan difícil para
nosotros. (...) La facultad de recordar de los adultos opera, como es sabido, con un
material psíquico muy vario. Unos recuerdan por medio de imágenes visuales,
teniendo por lo tanto sus recuerdos un carácter visual, y en cambio otros son casi
incapaces de reproducir en sua memoria el más simple esquema de sus recuerdos.
(FREUD, 1953, v. 1, p. 60-1)
A imaginação recompõe as primeiras recordações da infância juntamente com as
informações fornecidas pelos adultos, que não lembramos com precisão os fatos passados
em tenra infância
31
. Mais tarde, reelaboramos as imagens evocadas, todavia, não de forma
idêntica ao modo como os acontecimentos se passaram, qualificando aquilo que Freud
denominou “ulterior elaboração”, pois
Diferentes datos nos fuerzan (...) a suponer que en los denominados primeros
recuerdos infantiles no poseemos la verdadera huella del recuerdo, sino una ulterior
elaboración de la misma, elaboración que ha sufrido las influencias de diversas
fuerzas psíquicas posteriores. De este modo los ‘recuerdos infantiles’ del individuo
toman la significación de recuerdos encobridores’ y adquieren una analogía con los
recuerdos de la infancia de los pueblos, depositados por éstos en sagas y mitos.
(FREUD, 1953, v. 1, p. 62)
Em “Los recuerdos encubridores”, Freud cita a análise das recordações de infância feita
por um de seus pacientes que, interessando-se por “questões psicológicas”, dividiu
lembranças referentes aos dois ou três anos de idade em três diferentes grupos. No primeiro, o
31
A esse respeito, ver o trecho de Augusto Meyer citado à página 15 da Introdução: “Nada sabemos do começo.
O que os outros mais tarde nos contaram, tentando retraçar aos nossos olhos a imagem da criança que já fomos,
não diz nada às vozes da memória, nem de leve toca nas cordas da revelação. Os outros nos falam de outro
(1949, p. 13; grifo do autor). Em “Un recuerdo infantil de Leonardo da Vinci”, Freud sugere que a cena do
abutre a se aproximar do berço de Leonardo, mencionada pelo artista em seus apontamentos científicos,
caracteriza não uma recordação, como supõe da Vinci, e sim uma fantasia de sua imaginação: “La escena con el
buitre no constituiría un recuerdo de Leonardo, sino una fantasía ulterior transferida por él a su niñez. Los
recuerdos infantiles de los hombres no tienen a veces otro origen. En lugar de reproducirse a partir del momento
en que quedan impresos, como sucede con los recuerdos conscientes de la edad adulta, son evocados al cabo de
mucho tiempo, cuando la infancia ha passado ya, y aparecen entonces deformados, falseados y puestos al
servicio de tendencias ulteriores, de manera que no resultan estrictamente diferenciables de las fantasías”
(FREUD, 1953, v. 8, p. 187-8). Freud esclarece ainda, em “Los recuerdos encubridores”, que muitas recordações
da infância não são “totalmente inventadas”, mas são “falsas” “en cuanto transfieren la situación a un lugar en el
que no se ha desarrollado (...), funden varias personas en una sola o las sustituyen entre sí, o resultan ser una
amalgama de dos sucesos distintos” (1953, v. 12, p. 221). Tal falta de precisão também é mencionada por
Maurice Halbwachs em A memória coletiva, para quem a memória é “em larga medida uma reconstrução do
passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e além disso, preparada por outras reconstruções feitas
em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada.(HALBWACHS, 1990, p.
71)
54
paciente agrupou as cenas contadas pelos pais posteriormente, das quais ele não guardava
“imagen mnémica ninguna” (1953, v. 12, p. 211). No segundo grupo estão cenas impossíveis
de terem sido relatadas a ele, uma vez que o paciente jamais reencontrou as pessoas que
tomaram parte nas mesmas. São, portanto, imagens vistas e recordadas. Na última seqüência
estão também presentes cenas lembradas pelo próprio paciente, diferentes, porém, das
imagens evocadas no segundo grupo, que aqui, segundo ele, as cenas, “incompreensíveis”,
possuem uma certa “extensão” e são compostas por “varias pequeñas imágenes”. (1953, v. 12,
p. 212)
Ao fim do relato, Freud questiona se tais cenas e imagens evocadas retornam
“periódicamente a sua memoria, desde la infancia, o si había emergido en ella posteriormente,
provocado por algún motivo que recordarse” (1953, v. 12, p. 213), demonstrando conhecer
bem a noção do mecanismo da memória involuntária que, como sabemos, manifesta-se a
partir de um novo contato com o objeto associado à imagem (o “motivo” aventado pelo
psicanalista), contato ora visual ora gustativo, olfativo ou auditivo, como se verá nas
recordações involuntárias de Marcel em A la recherche du temps perdu, nas de Augusto
Meyer em Segredos da infância e nas de outros memorialistas brasileiros. O paciente não
soube precisar qual tipo de evocação havia surgido a ele, limitando-se a responder que “no
había pensado aún en lo que me dice.” (FREUD, 1953, v. 12, p. 213)
Além disso, o fundador da Psicanálise toca ainda em um ponto básico da
fundamentação a que procedo, detalhe que será aprofundado em outros capítulos a relação
dialética entre o “eu” do presente (sujeito da memória) e o “eu” do passado (objeto da
recordação). Vejamos: “(...) en la mayoría de las escenas infantiles importantes, el sujeto se
ve, a sí mismo, en edad infantil, y sabe que aquel niño que ve es él mismo, pero lo ve como lo
vería un observador ajeno a la escena” (1953, v. 12, p. 221). O narrador, identificado a um
observador “alheio à cena”, vê a si mesmo como Outro, tamanha a distância temporal entre o
55
mundo do adulto e o da criança, razão pela qual, em muitos casos, o memorialista opta pela
reconstituição utilizando a terceira pessoa
32
. Tal contraste entre o “eu sujeito” e o “eu objeto”
é, para Freud, a prova maior do fato de a “impressão primitiva” ter sofrido uma definitiva
“elaboração secundária”:
Siempre que en un recuerdo aparece, así, la propia persona, como un objeto entre
otros objetos, puede considerarse esta oposición del sujeto actor y el sujeto
evocador, como una prueba de que la impresión primitiva ha experimentado una
elaboración secundaria. Parece como si una huella mnémica de la infancia hubiera
sido retraducida luego, en una época posterior (en la correspondiente al despertar del
recuerdo), al lenguaje plástico y visual. En cambio, no surge jamás en nuestra
conciencia nada semejante a una reproducción de la impresión original. (FREUD,
1953, v. 12, p. 221)
Freud também discute a questão da memória em sua obra mais emblemática: A
interpretação dos sonhos (1900), sobretudo na seção B do primeiro capítulo da primeira parte,
intitulada “O material dos sonhos – A memória nos sonhos”, no qual afirma que
O modo como a memória se comporta nos sonhos é, sem sombra de dúvida, da
maior importância para qualquer teoria da memória em geral. Ele nos ensina que
‘nada que tenhamos possuído mentalmente uma vez pode se perder inteiramente’
(Scholz, 1893, 59); ou, como o exprime Delboeuf |1885, 115|, ‘que qualquer
impressão, mesmo a mais insignificante, deixa um traço inalterável, indefinidamente
passível de voltar à luz’. (1988, v. 1, p. 55)
Importa saber, portanto, que a mais ínfima impressão ou imagem aparentemente
distante pode retornar a qualquer momento, em estado de vigília ou de sonho, seja através de
lembranças involuntárias (a mneme platônica), seja pela evocação consciente (anamnesis)
33
.
A importância dos sonhos nos processos mnemônicos reside no fato de que “Todo o material
que compõe o conteúdo de um sonho é derivado, de algum modo, da experiência, ou seja, foi
reproduzido ou lembrado no sonho” (FREUD, 1988, v. 1, p. 48), motivo pelo qual
32
Augusto Meyer adota este procedimento no capítulo “Caminho da escola”, de Segredos da infância. Nele, o
memorialista relata o primeiro dia de aula não dele, Meyer, sujeito da memória, mas sim do menino Tico: “Lá no
alto uma janela abriu-se com barulho e Idalina gritou para os dois guris que marchavam de mão dada, muito
tesos: - Olha o pão! psst! o o! (...) Rico e Tico pararam. Fizeram meia volta e voltaram correndo. Tico (era eu)
abria um sorriso satisfeito na cara sardenta, sentia um alívio delicioso por causa do regresso, embora fosse um
falso regresso. Cada passo para trás era tempo ganho sobre o momento decisivo, e a casa familiar faria esquecer
o colégio.” (1949, p. 45)
33
JoMaria Cançado observa, à página 141 de suas Memórias videntes do Brasil: “De fato, para Freud nada
terá passado inteiramente. Tanto é assim que o objetivo da psicanálise e do trabalho do analista é fazer falar e
criar as condições de memória do que talvez tenha sido, por força dos interditos, esquecido cedo demais.
Esquecido cedo demais, mas não desativado.”
56
freqüentemente o sonho proporciona lembranças que, em vigília, permanecem ocultas, em
estado latente:
Ninguém que se ocupe de sonhos pode, creio eu, deixar de descobrir que é fato
muito comum um sonho dar mostras de conhecimentos e lembranças que o sujeito,
em estado de vigília, não está ciente de possuir. Em meu trabalho psicanalítico com
pacientes nervosos, (...) tenho condições, várias vezes por semana, de provar aos
pacientes, com base em seus sonhos, que eles de fato estão bem familiarizados com
citações, palavras obscenas, etc, e que as utilizam em seus sonhos, embora tenham-
nas esquecido em sua vida de vigília. (FREUD, 1988, v. 1, p. 50)
34
Freud assevera ainda que os sonhos são passíveis de reconstituir não somente imagens e
impressões da vida adulta muito apagadas ou deixadas de lado, mas acima de tudo fatos
passados durante a infância daquele que sonha e que, de outra forma, ter-se-iam perdidos para
sempre:
Uma das fontes de onde os sonhos retiram material para reprodução material que,
em parte, não é nem recordado nem utilizado nas atividades do pensamento de
vigília é a experiência da infância. Citarei apenas alguns dos autores que
observaram e ressaltaram esse fato. (...) Hildebrandt (1875, 23): ‘Já admiti
expressamente que os sonhos às vezes trazem de volta a nossas mentes, com um
maravilhoso poder de reprodução, fatos muito remotos e até mesmo esquecidos de
nossos primeiros anos de vida.’ (...) Strümpell (1877, 40): ‘(...) as profundezas da
memória, nos sonhos, também incluem imagens de pessoas, coisas, localidades e
fatos que datam dos mais remotos tempos, que nunca tiveram nenhuma importância
psíquica ou mais que um pálido grau de nitidez ou que muito perderam o que
teriam possuído de uma coisa ou de outra, e que, por conseguinte, parecem
inteiramente estranhos e desconhecidos tanto para a mente que sonha quanto para a
mente em estado de vigília, até que sua origem mais remota tenha sido descoberta.
(...) Volkelt (1875, 119): ‘É especialmente notável a facilidade com que as
recordações da infância e da juventude ganham acesso aos sonhos. Os sonhos
continuamente nos relembram coisas em que deixamos de pensar e que muito
deixaram de ser importantes para nós.’ (...) (FREUD, 1988, v. 1, p. 51-2)
35
O estudo dos mecanismos da memória individual levado a cabo pela psicanálise lida,
portanto, com a questão da importância dos conteúdos conscientes e inconscientes a motivar a
identificação, a análise e o tratamento de aspectos anteriormente “interditos” à memória
devido à presença muitas vezes obscura e de difícil localização – de traumas, recalcamentos
e pulsões, conteúdos manifestados, por sua vez, não através de evocações conscientes, mas
34
Lembremos aqui o fato de termos visto, à página 38 desta seção, a maneira pela qual Santo Agostinho
lamentava que certas imagens “de obscenidades”, das quais desejava se desvencilhar, retornassem a sua memória
justamente através dos sonhos.
35
Em A poética do devaneio, Gaston Bachelard sintetiza: “A Infância o Mundo ilustrado, O Mundo com suas
cores primeiras, suas cores verdadeiras. O grande outrora que revivemos ao sonhar nossas lembranças da
infância é o mundo da primeira vez.” (1988, p. 112; grifo do autor)
57
sim a partir de sonhos, delírios ou mesmo de alguma lembrança involuntária. Lembranças
com alta carga de negatividade e complexos oriundos de traumas da infância são ocorrências
particulares que, sabem os psicólogos, podem desenc
58
coletiva” (1990, p. 51), enfatiza o caráter familiar, grupal e social da memória, que um
grande número de lembranças “compartilhadas” por uma série de grupos sociais que, assim
procedendo, isto é, registrando tais recordações, eternizam-nas em arquivos, obras e
documentos a que podemos classificar de “memória histórica” ou “memória social”
38
. Paul
Ricoeur destaca a grande ressonância da obra de Halbwachs, sobretudo por estabelecer os
“quadros sociais da memória” e por possibilitar, não apenas a abordagem da memória de
forma objetiva e “em terceira pessoa”, mas uma espécie de “cruzamento de memórias” (a
“minha” vs. a dos “outros”), essencial no caminho da evocação e do reconhecimento de
imagens compartilhadas:
On doit à Maurice Halbwachs l’audacieuse décision de pensée consistant à attribuer
la mémoire directement à une entité collective qu’il nomme groupe ou société. Il
avait certes forgé avant La Mémoire collective le concept de ‘cadres sociaux de la
mémoire’. C’était alors en sociologue pur, et dans le sillage d’Émile Durkheim, qu’il
désignait la moire en troisième personne et lui assignait des structures accessibles
à l’observation objective. Le pas franchi dans La Mémoire collective consiste à
désimpliquer la férence à la mémoire collective du travail même de la mémoire
personnelle en train de rappeler ses souvenirs. Le chapitre 2, intitulé ‘Mémoire
individuelle et mémoire collective’, est écrit de bout en bout à la première personne
du singulier, dans un style quasi autobiographique. Le texte dit fondamentalement
ceci: pour se souvenir, on a besoin des autres. Mais il ajoute: non seulement la sorte
38
Convém lembrar aqui a observação de Henri Atlan, mencionada por Jacques Le Goff, a respeito da passagem
da memória individual (atrelada a um “corpo físico”) à memória coletiva (documentada e arquivada em
bibliotecas): “A utilização de uma linguagem falada, depois escrita, é de fato uma extensão fundamental das
possibilidades de armazenamento da nossa memória que, graças a isso, pode sair dos limites físicos do nosso
corpo para estar interposta, quer nos outros, quer nas bibliotecas. Isto significa que, antes de ser falada ou escrita,
existe uma certa linguagem sob a forma de armazenamento de informações na nossa memória” (Apud Le Goff,
1990, p. 425). Sobre a importância do arquivo, ver trecho de La mémoire, l’histoire, l’oubli no qual Paul Ricoeur
destaca, além de sua função social, a passagem do testemunho oral para o registro escrito: “Le moment de
l’archive, c’est le moment de l’entrée en écriture de l’opération historiographique. Le témoignage est
originairement oral; il est écouté, entendu. L’archive est écriture; elle est lue, consultée. Aux archives, l’historien
de métier est un lecteur. (...) L’archive se présente ainsi comme un lieu physique qui abrite le destin de cette
sorte de trace que nous avons soigneusement distinguée de la trace cérébrale et de la trace affective, à savoir la
trace documentaire. Mais l’archive n’est pas seulement un lieu physique, spatial, c’est aussi un lieu social
(2000, p. 209-10). O arquivo cumpre uma função social fundamental não apenas devido ao armazenamento de
registros escritos mas também por incluir aquilo que Ricoeur denomina de “vestígios do passado”: il existe des
traces qui ne sont pas des ‘témoignages écrits’ et qui relèvent également de l’observation historique, à savoir les
‘vestiges du passé’ (...) qui font le miel de l’archéologie: tessons, outils, monnaies, images peintes ou sculptées,
mobilier, objets funéraires, restes d’habitations, etc” (2000, p. 215). Nos dias de hoje, os arquivos são
imprescindíveis para a preservação do espólio deixado pela maioria dos grandes escritores. Em “Locações
tardias do moderno: a correspondência entre Abgar Renault e Carlos Drummond”, Reinaldo Marques, ao falar do
Acervo de escritores mineiros da UFMG, destaca que “a construção desses arquivos pessoais, literários,
comporta uma dimensão fortemente espacializante, relacionada aos lugares da memória, tanto individual quanto
coletiva. O que recoloca para os nossos correspondentes, de forma deslocada, a questão do espaço. Uma questão
que se torna proeminente hoje para os pesquisadores da literatura e da cultura que lidam com 339(u)5.7217(e)-2.05(r)-4.55]TJ-426.4(r)-4.55617(e-11.3345(e)-2.005734a)-2.0h
59
de mémoire qui est la nôtre ne peut en aucune façon être dérivée de celle-ci, mais
l’ordre de dérivation est inverse. Notre lecture critique a pour objectif de mettre à
l’épreuve cette conséquence extrême. Mais il faut dire d’abord que c’est à partir
d’une analyse subtile de l’expérience individuelle d’appartenir à un groupe, et sur la
base de l’enseignement reçu des autres, que la moire individuelle prend
possession d’elle-même. (...) C’est essentiellement sur le chemin du rappel et de la
reconnaissance, ces deux phénomènes mnémoniques majeurs de notre typologie du
souvenir, que nous croisons la mémoire des autres. (RICOEUR, 2000, p. 147)
Jamais podendo prescindir da constatação óbvia de pertencer a determinado grupo, a
experiência individual se enriquece através do contato com os outros, compreende-se melhor
sob novos parâmetros a estranha relação entre si e o grupo, entre lembranças pessoais,
recônditas, interditas, e imagens compartilhadas, comuns a toda uma geração instada pelos
mesmos anseios e preocupações destacadas pelo sujeito da memória. No caso de Augusto
Meyer, é bom não esquecermos a contribuição que o conhecimento dos mecanismos da
memória coletiva pode trazer para uma mais completa compreensão de sua obra
memorialística, uma vez que, além de suas pesquisas sobre o folclore da região Sul (a
confirmá-lo como um dos grandes incentivadores da memória popular gaúcha e gauchesca,
tradição imortalizada em Guia do folclore gaúcho, de 1951, e em Cancioneiro gaúcho,
lançado em 1952), temos, no capítulo “Rua da Praia”, de No tempo da flor (1966), um
excelente exemplo da fixação de episódios, quadros e imagens a partir da perspectiva do
grupo, nesse caso, a “geração de novecentos”, jovens modernistas gaúchos que se reuniam em
frente à Livraria do Globo, na emblemática Rua da Praia (Rua dos Andradas), para comentar
as últimas novidades literárias, culturais e políticas
39
.
39
Eis o grupo, nas palavras do próprio Meyer: “Acabava de conhecer na Biblioteca Pública do Estado, onde
então trabalhava, aquele que havia de ser o meu maior amigo: Teodemiro Tostes. E foi então que travei relações
de amizade com Moisés Vellinho e, por seu intermédio, com os mentores do chamado ‘grupo da Livraria do
Globo’: João Pinto da Silva, Mansueto Bernardi, Rubens de Barcelos e os seus companheiros de roda literária:
Darci Azambuja, Vargas Neto, Ruben Rosa, Eurico Rodrigues, Rui Cirne Lima, Pedro Vergara, Luís Vergara”
(MEYER, 1966, p. 129). A seguir, no item 2.3, bem como no decorrer do capítulo 4, veremos como a obra
Segredos da infância, por se tratar das memórias de infância do narrador e por estas se referirem basicamente às
lembranças pessoais (“auto-representação”), encaixa-se melhor na definição de autobiografia aventada por
Lejeune (Ver a nota 24 da Introdução, p. 21), ao passo que No tempo da flor, embora possuindo capítulos
autobiográficos, aproxima-se mais do gênero “memorialismo” já que, narrando suas recordações de
adolescência, o sujeito da memória inclui nesta cosmo-representação” a memória da geração que revolucionou
a literatura gaúcha durante a década de 1920. As Memórias de Augusto Meyer, ao incluírem recordações
pessoais, familiares e grupais (“memória comum”), são um ótimo exemplo da idéia que comento acima,
60
Tal complemento recíproco entre memória individual e memória coletiva está
perfeitamente sintetizado na abertura do primeiro capítulo da obra A infância do velho
Graciliano – Memórias em letras de forma, de Tânia Regina de Souza:
Falar sobre memória implica penetrar num campo vasto de indagações, que nos
conduzem para além de conceitos que a admitem como puro armazenamento de
informações passadas. Deve-se considerar, por exemplo, que impressões passadas,
ao serem atualizadas através da função psíquica, trazem em si a marca indelével da
experiência, impressões que se tornam possíveis em função das relações inter-
humanas. Essas experiências podem ser consideradas, até certo ponto, experiência
singular, na medida em que estão contidas nas recordações de acontecimentos que
estruturam a vida interior do ser humano. Mas observa-se que a experiência
individual desenvolve-se na convivência com um determinado grupo social, e muitas
vezes necessita resgatá-lo, para construir a si própria. Penetra assim na memória
coletiva, mas permanece no seu caminho ao se revelar através da consciência
pessoal e impõe o seu próprio ponto de vista. Contudo, a palavra experiência traz
consigo um leque de possibilidades, entre as quais está a sua dimensão temporal.
(2001, p. 21)
Este aspecto social e histórico da memória de um grupo interessa diretamente a
determinado ramo dos estudos lingüísticos, a “Análise do Discurso”, que entende a memória,
de acordo com Michel Pêcheux, “não no sentido diretamente psicologista da ‘memória
individual’, mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em
práticas, e da memória construída do historiador.” (ACHARD et alii, 1999, p. 50)
40
Além de Maurice Halbwachs e de Michel Pêcheux, vários outros teóricos vinculados
aos estudos das ciências humanas e sociais se interessaram pelo caráter coletivo da memória,
dentre os quais Jacques Le Goff, que, no capítulo “Memória” (História e memória, 1990),
define este viés da “memória comum” como uma forma essencial de manipulação “na luta das
forças sociais pelo poder(p. 476). Dessa forma, ao se referir ao recorte de sua abordagem,
decide analisar a memória “tal como ela surge nas ciências humanas (fundamentalmente na
história e na antropologia)”, a partir de uma perspectiva que “se ocupe mais da memória
formulada por Halbwachs e sintetizada por Ricoeur para lembrarmos algo que nos diz respeito, temos
necessidade do confronto com o outro e com as imagens compartilhadas em outras épocas e lugares.
40
Um bom exemplo do estudo das funções da memória segundo a Análise do Discurso se encontra na coletânea
Discurso, memória, identidade (2000), resultante do colóquio homônimo, realizado em Porto Alegre em outubro
de 1997, em comemoração aos 25 anos do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS. Nesta antologia,
organizada por Freda Indursky e Maria do Carmo Campos, são discutidas questões relativas à relação entre
memória e identidade a partir de suas implicações com a língua e com o discurso, bem como as possíveis
correlações entre memória individual e memória coletiva no que tange à criação literária.
61
coletiva que das memórias individuais”, já que “é impossível descrever sumariamente a
nebulosa memória no campo científico global” (1990, p. 423), assunto vasto e amplo, de
infinitas ressonâncias, que o afastaria de seus objetivos.
Citando as pesquisas de André Leroi-Gourhan, Le Goff estabelece cinco diferentes
períodos de transmissão coletiva das mais diversas manifestações mnemônicas, a saber: “o da
transmissão oral”; “o da escrita com tábuas ou índices”; “o das fichas simples”; “o da
mecanografia”
41
; e “o da seriação eletrônica” (1990, p. 427). Diferentes métodos e recursos,
no entanto, todos voltados a um denominador comum: a compilação e conseqüente
perpetuação das imagens e das informações recebidas, assimiladas e computadas, poderosos
aportes e instrumentos para a fixação e compreensão histórica do lugar que ocupamos neste
longo processo de (re)conhecimento de nossas próprias funções e motivações: “A memória,
onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o
presente e o futuro” (LE GOFF, 1990, p. 477). E assim se formam e se justificam a memória
histórica
42
e a memória social
43
.
Comentadas as diferentes abordagens da memória de acordo com a Mitologia, a
Filosofia antiga, a Psicanálise, a Medicina e a Análise do Discurso, cabe apenas ressaltar que
a grande diversidade de enfoque e de considerações a respeito do tema se fazem notar a
partir das inúmeras e mais variadas denominações, aqui elencadas, que os fenômenos
41
Mecanografia: “Arte, técnica ou processo de utilizar máquinas para apuração e organização de documentos,
para auxiliar a escrita ou o cálculo, etc.” (FERREIRA, 1986, p. 1108)
42
Há várias manifestações mnemônicas estudadas pela História e pela Geografia, dentre as quais destaco,
considerando a importância das ruas e praças de Porto Alegre (sobretudo a Rua da Praia e a Praça da Matriz)
para a memorialística de Augusto Meyer: a “memória da cidade” (que resgata lembranças do modo de vida
urbano de uma cidade específica, recompondo sua história e a história de seus monumentos, museus,
construções, etc); e a “memória urbana” (semelhante à anterior, isto é, retratando a vida urbana, mas sem estar
necessariamente relacionada a uma cidade ou lugar específico). Sobre esta diferenciação, ver os artigos
“Representação das cidades”, de Valéria Cristina P. da Silva, e “Algumas reflexões sobre memória urbana”, de
Vicentina S. da Anunciação et alii. (in “Estado, cidade e cultura”, Formação, UNESP - Presidente Prudente,
2001, n. 8)
43
Segundo Jacques Le Goff, recuperando mais uma vez a nomenclatura cunhada por Leroi-Gourhan, três
diferentes ocorrências da memória social nos membros de uma comunidade: a “memória específica” (que fixa
comportamentos); a “memória étnica” (que reproduz comportamentos); e a “memória artificial” (responsável por
reproduzir atos mecânicos encadeados). (1990, p. 425)
62
mnemônicos podem apresentar. Assim, dependendo do ângulo que adotarmos, a memória
pode ser sobretudo “individual” (“passiva”) ou “coletiva” (“ativa”) e “voluntária” ou
“involuntária”, mas também “comum”; “intelectual” ou “sensitiva”; “de trabalho”, “de curta”
ou “de longa duração”; “histórica”; “social”; “mítica”; e “artificial”, dentre inúmeras outras
denominações. Uma diversidade tão grande que, após estas considerações iniciais, impõe a
necessidade de um recorte específico a fim de delimitar a base teórica do trabalho. Desse
modo, nos próximos itens focalizarei a análise e a interpretação dos fenômenos mnemônicos
(principalmente aqueles relacionados à memória individual e à involuntária) de acordo com o
pensamento de Henri Bergson (século XIX) e com a teoria e crítica literária européia do
século XX, não sem antes comentar, na seção seguinte, as representações da memória em
outras manifestações artísticas, sobretudo na música, no cinema e nas artes plásticas.
63
2.2 REPRESENTAÇÕES DA MEMÓRIA E DO “TEMPO PERDIDO” EM OUTRAS
ARTES
“Tenho séculos de espera / nas contas da minha costela /
Tenho nos olhos quimeras / com brilho de trinta velas”
(Milton Nascimento/Ruy Guerra, “E daí?”)
“O que foi feito amigo / de tudo que a gente sonhou / o
que foi feito da vida / o que foi feito do amor / quisera
encontrar / aquele verso menino / que escrevi tantos
anos atrás”
(Milton Nascimento/Fernando Brant, “O que foi feito
devera”)
Pertencendo esta tese à área de Literatura Comparada, julgo adequado elencar aqui
outras representações da memória e da passagem do tempo, a fim de sublinhar não se tratar de
uma preocupação exclusivamente relacionada à literatura. Não possuindo, entretanto, um
vasto domínio teórico das artes que comentarei em seguida, não tenho a pretensão de
“esgotar” o assunto ou mesmo de proceder a um rigoroso exame comparativo entre os
fenômenos mnemônicos retratados pela literatura e aqueles abordados por outras artes, mas
tão somente indicar e destacar sua ocorrência em algumas manifestações artísticas, tais como
nas artes plásticas, no cinema e na música popular brasileira da segunda metade do século
XX, sem deixar de focalizar, ao mesmo tempo, uma característica essencial da personalidade
literária de Augusto Meyer a inclinação para as artes plásticas e seu enorme interesse pelo
cinema, poeticamente retratados em No tempo da flor
44
, conforme veremos no quarto
capítulo. Espero ainda que estas aproximações não me desviem demasiadamente das
formulações teóricas que venho desenvolvendo (e que serão retomadas no próximo item,
quando focalizarei especificamente a memorialística como gênero literário sobretudo a partir
dos inúmeros estudos aventados pela filosofia do século XIX e pela teoria e crítica literária do
44
Em “O caruncho” (1966, p. 45-9), Meyer evoca seus esboços como pintor e a convivência com o “velho João
Riedel”, enquanto que em “Cine Insônia” (1966, p. 31-8), o memorialista assume sua fascinação pelos cinemas
mudos da capital gaúcha no início do século XX, a sugerirem ao jovem escritor um misto de imaginação,
assombro, ternura e tristeza.
64
século XX), mas que, ao contrário, possam servir como indicadores da aplicação prática dos
fundamentos discutidos no item anterior (2.1) e nos seguintes (2.3 e 2.4).
Retratar as diferentes idades do homem e da mulher é um dos temas preferidos pelos
artistas renascentistas, que simbolizavam assim o lento e contínuo esvaecimento do ser
humano. É comum encontrarmos, por exemplo, nus femininos “ameaçados” por esqueletos
grotescos, em uma clara alusão à cruel morte que acompanha e arrebata nossa infância,
juventude e maturidade física. Este motivo está bem figurado em um óleo sobre painel de
1510, intitulado As três idades do homem e a Morte (Die Lebensalter und der Tod), do pintor
alemão Hans Baldung
45
, no qual a Morte, representada através de um esqueleto segurando
uma ampulheta, despreza, ao acompanhar com olhar de desdém, as diversas fases de uma
mesma mulher que, após passar pela ternura da infância, pela beleza da juventude e pelas
tribulações e temores da velhice, não tem como se furtar ao “encontro marcado” com a
“indesejada das gentes”. À indiferença da Morte se contrapõe o olhar rancoroso e
inconformado da Velha que, de braço dado à Morte mas com a outra mão nos ombros da
Jovem, fiel a seu papel de ponte entre as duas, resigna-se a defrontar, com asco e revolta, sua
própria imagem anos antes, “ameaça” da qual tenta subtrair-lhe os véus (como que a querer
cobrir seu aspecto atual com as mesmas sedutoras vestes de outrora), imagem que lhe sugere,
ao que parece, o amargo contraponto entre a frescura da pele jovem e sua inevitável
decomposição orgânica.
Se a Morte ostenta indiferença em relação à Jovem e à Velha, o ciclo da vida se fecha
(nascimento, desenvolvimento e morte) se atentarmos para o fato de que a Criança segura a
ponta da estranha lança que, quebrada quiçá pela atribulada passagem do tempo, jaz na mão
esquerda da Morte, prenunciando o irremediável fim anunciado pela proximidade da
Criança com uma coruja, animal que é, ao mesmo tempo, símbolo de conhecimento e de mau
45
Nascido em Schwäbisch-Gmünd, Alemanha, em 1484 ou 1485, e morto em Strasbourg em 1545.
65
presságio. Ou seja, levamos a vida inteira para nos conhecermos melhor mas no final
inevitavelmente morremos, completando um ciclo que não admite exceções ou variações à
regra. Esta é a verdade sombria que nos apresenta o artista em traços vivos de nus que
denotam o realismo dos corpos caracterizados e das mensagens subliminares:
Figura 1 - As três idades do homem e a Morte (Hans Baldung)
Mais radical do que a representação da passagem do tempo feita pelo renascentista
Baldung, o famoso quadro A persistência da memória (La persistencia de la memoria, 1931),
do surrealista Salvador Dalí
46
, vai um pouco além ao sugerir, ambientada em paisagem hostil
e estéril, a permanência de um tempo infinitamente longo, que sobreviverá ao
desaparecimento do homem, derretendo relógios (mera convenção certa ocasião adotada por
46
Figueras, Espanha, 1904. Id. 1989.
66
um ser “extinto”) e decompondo formas (até mesmo relógios de metal são devorados, por
formigas, como se carne em putrefação fossem, espécie de ritual antropofágico de sucessão
temporal pela deglutição e assimilação da máquina corroída), um tempo que se esquece de si
e perde o sentido, uma vez que, sem vida humana, não memória, mesmo que em arquivos
ou documentos escritos, inutilizados pela falta de leitores ou de testemunhas. A memória
persiste, mas por um certo período, após o qual a própria memória desaparecerá.
Figura 2 - A persistência da memória (Salvador Dalí)
O quadro é de 1931, período conturbado da história européia, situado entre as duas
grandes guerras mundiais e anterior à ascensão do Nazismo (1933) e à guerra civil espanhola
(1936), fatos que impressionaram Dalí sobretudo o último e que provavelmente
contribuíram para o estado de espírito no qual o excêntrico artista catalão representa o tempo
67
que se seguià extinção da raça humana após a última das guerras. Morre o homem e resta a
paisagem, devastada, desértica, ainda presente em alguns elementos uma oliveira,
68
O que resistia esvai-se definitivamente, sem possibilidade de retorno, como na
conclusão amarga de Álvaro de Campos em “Tabacaria”:
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta. / Olho-o com o desconforto
da cabeça mal voltada / E com o desconforto da alma mal-entendendo. / Ele morrerá
e eu morrerei. / Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos. / A certa altura morrerá a
tabuleta também, e os versos também. / Depois de certa altura morrerá a rua onde
esteve a tabuleta, / E a língua em que foram escritos os versos. / Morrerá depois o
planeta girante em que tudo isto se deu. (PESSOA, 1980, p. 260)
O cenário de A desintegração da persistência da memória e a constatação da ausência
de qualquer perspectiva ou redenção futura são desoladores, assim como no poema pessoano,
que antevê a destruição do planeta, daqui a alguns milhares ou milhões de anos. Futuro
desolador, hostil e impotente é também aquele retratado no filme O planeta dos macacos (The
planet of the apes, 1967), do diretor Franklin Schaffner, no qual quatro astronautas
americanos são enviados, em janeiro de 1972, para uma missão no espaço, e acabam
aterrissando, no ano de 3978, em uma Nova Iorque deserta e devastada, irreconhecível,
apenas habitada por poderosos e inteligentes macacos, e pelos poucos seres humanos que ali
restam, cativos dos primatas, tratados como bichos, inversão espetacular de nossas hierarquias
a mostrar novo ciclo e nova oportunidade de vida terrena após a destruição que as guerras que
o homem move contra si ocasionam e continuarão ocasionando, a ponto de reduzi-lo a mero
sobrevivente secundário, espectador do sucesso de outras raças devido a sua própria
estupidez.
Na cena inicial, com a astronave ainda no espaço cósmico, enquanto três astronautas
dormem, um quarto, o comandante George Taylor (Charlton Heston), tece considerações
sobre o tempo, motivado pela grande diferença, devido à velocidade da luz, entre a passagem
do tempo na Terra e no espaço. Diz o personagem:
A teoria do tempo numa viagem à velocidade da luz diz que 700 anos se passaram
desde que partimos. Quase não envelhecemos. Quem sabe. Mas uma coisa é certa:
quem nos enviou nesta missão já morreu há muito. Quem me ouve é uma outra raça.
69
Oxalá seja melhor
48
.
Durante a fala de George, o espectador se conta de que duas diferentes datas no
painel de controle da espaçonave. Uma se refere à data no próprio foguete (“Ship time”:
14.07.1972) e a outra à da Terra (“Earth time”: 23.03.2673). O personagem comenta também
o fato de terem partido “há seis meses”, ou seja, em janeiro de 1972, fazendo assim com que,
de acordo com o enredo do filme, um mês no espaço equivalha a aproximadamente 116 anos
na Terra. A expedição é, portanto, uma autêntica viagem ao futuro. Após estas considerações,
George Taylor se deita também. No transcorrer desta curta e fundamental cena – não mais que
alguns minutos nos quais ele fala, controla a máquina e se prepara para o sono passam-se
três dias na Terra. Quando ele se recolhe, em nosso planeta já é o dia 26 de março de 2673.
Em seguida, os astronautas dormem um longo sono (praticamente um ano segundo a
data do foguete), interrompido apenas quando a nave espacial entra na atmosfera de um
planeta qualquer, desgoverna-se, cai no mar e começa a afundar. Três tripulantes se salvam,
mas perdem a nave, que afunda de vez. Antes de abandoná-la, porém, o capitão olha o painel
e percebe: a Terra está no ano de 3978! Eles dormiram, no espaço, o equivalente a mil e
trezentos anos na Terra, e, a partir de então, sem locomoção e sem precisar prestar contas a
ninguém (já que seus “chefes” estão mortos muito), estão, os três, perdidos em um futuro
vazio e extremamente decepcionante, julgando encontrarem-se a “320 anos luz da Terra, num
planeta sem nome em órbita de uma estrela na constelação de Orion”. Os sobreviventes
conseguem alcançar a margem e começam a reconhecer o terreno onde estão. Encontram os
primeiros seres humanos, que logo são atacados por fortes macacos montados a cavalo. Os
astronautas, atordoados, sem entenderem direito o que ocorre a sua volta, são capturados
também. Um deles é morto (Dodge, interpretado por Jeff Burton), enquanto Lanson (Robert
48
A respeito da subjetividade envolvendo os conceitos de passado, presente e futuro em se tratando de viagens
espaciais, em “Space oddity”, simulando uma conversa entre o astronauta Major Tom, no espaço, e os técnicos
da NASA, em terra, David Bowie relativiza: “Though I’m past one hundred thousand miles, / I’m feeling very
still / And I think my spaceship knows which way to go”. (1990)
70
Gunner) e Taylor são presos, este levando um tiro no pescoço que o deixa por alguns dias
impossibilitado de falar.
Aos poucos Taylor percebe que o domínio dos macaco
71
racionalidade e o antigo poderio humano. Trata-se de “ferramentas cortantes, pontas de flecha
de quartzo e fósseis de gorila”, além de uma boneca que emite sons quando apertada na
barriga, achada ao lado de uma mandíbula humana. O próprio Taylor encontra outras provas
da passagem do homem pelo local: dentaduras, óculos e até mesmo uma válvula cardíaca
artificial, “vestígios do passado”, na acepção de Paul Ricoeur
49
.
Destroços, restos e cacos, por vezes apenas detalhes de tempos imemoriais, mas
imprescindíveis para o alcance do resgate proposto. Evidência material a comprovar a
necessidade do apelo à memória, a boneca é um importante índice de reconstituição de um
passado praticamente “morto” e restrito a uma caverna “proibida”. Na cena final, no entanto,
temos um exemplo, ainda mais impressionante que a descoberta da boneca, da profundidade a
que pode chegar a percepção de uma imagem e seu posterior reconhecimento a partir dos
dados e informações disponíveis na memória: solto pelos macacos, George Taylor cavalga, às
margens do rio Hudson, sem ter noção de onde realmente se encontra, até se deparar com as
ruínas da Estátua da Liberdade à beira do rio. Mais de mil anos depois, um ícone do
“passado” surge diante de seus olhos, motivando o seguinte desabafo: “Meus Deus. Voltei.
Estou em casa. O tempo todo”. A cena, antológica, é curtíssima, dura aproximadamente um
minuto e meio, tempo suficiente para o astronauta perceber que, após longo tempo em órbita,
voltara para o mesmo planeta e para o mesmo país de onde partira, reconstituindo a memória
de todo o povo americano através do reconhecimento de uma de suas mais paradigmáticas
evidências.
Outra famosa produção hollywoodiana a conferir à memória um destaque fundamental
na composição de seu enredo é Blade Runner O caçador de andróides (1982), de Ridley
Scott, admiravelmente analisada por Adélia Bezerra de Meneses em “Memória, história e
ficção: Blade Runner” (1991, v. 2), texto citado no item anterior, no qual a autora aponta a
49
La mémoire, l’histoire, l’oubli, 2000, p. 215. Conferir a referência a esta expressão na nota 38 do item anterior
(p. 58).
72
presença de inúmeros tipos de memória (a saber, a “memória manipulada”, isto é, criação de
um passado a partir de reminiscências artificiais”, “plantadas” no cérebro dos replicantes; a
“memória externalizada”, que age através do apelo a cenas infantis forjadas em fotografias; e
a “memória emocional”, acionada e reativada a fim de desencadear o “gatilho” da memória;
etc).
Projetada em uma Los Angeles futurista, composta por enormes arranha-céus e por
atrativos anúncios em neon, a ficção que pode ser traduzida por (aquilo que) “corre ao fio da
navalha”, representa o ambiente em nosso planeta após a maioria dos homens ter trocado a
problemática existência na Terra pela promissora vida no Espaço, aqui restando apenas
homens marginalizados e decadentes, além de alguns replicantes, isto é, criaturas concebidas
em laboratório, semelhantes aos humanos na força, na inteligência e no aspecto físico, porém
destituídas de emoção, família ou passado. Cabe aos policiais, os “caçadores de andróides”,
objetivando identificá-los e eliminá-los, reconhecê-los e diferenciá-los dos humanos a partir
de uma espécie de teste no qual, através da indução à crença em um passado que não
possuem, confirmar-se-á tratar-se ou não o sujeito analisado de um andróide. O resultado da
investigação leva em conta sua reação ao apelo de uma memória forjada por meio de
fotografias e de histórias fictícias envolvendo uma suposta família que os mesmos nunca
tiveram. A justificativa para tal atitude parte do investigador Bryant, ao explicar para o
policial Deckard, protagonista interpretado por Harrison Ford, a razão destas falsas sugestões:
Se lhes damos um passado, criamos uma base para suas emoções, e podemos melhor
controlá-los”. Ao que prontamente reage Deckard, concluindo: Memórias! Você fala de
memórias!”. Memória: senha para a decifração da diferença entre humanos e andróides, de
sua (in)existência depende o sucesso de perseguidores e de perseguidos.
Gostaria também de mencionar algumas produções deste século: Amnésia (Memento,
2000; dirigido por Christopher Nolan, tendo como atores principais Guy Pearce, Carrie-Anne
73
Moss e Joe Pantoliano); O pagamento (Paycheck, 2003), de John Woo e tendo como
protagonistas Ben Affleck, Aaron Eckhart e Uma Thurman; e Brilho eterno de uma mente
sem lembranças (Eternal sunshine of the spotless mind, 2004), de Michel Goudry, estrelado
por Jim Carrey, Kate Winslet, Kirsten Dunst e Mark Ruffalo.
Amnésia tem como “mote” o que a Medicina conhece como “perda da memória
recente”: Leonard Shelby, o Lenny” (Guy Pearce), devido a uma pancada na cabeça, é capaz
de se recordar de seu nome e de quem ele é, mas esquece coisas simples ocorridas poucos
minutos antes. O filme é um amontoado de cenas aparentemente desconexas, “flashes” do
passado que simbolizam a descontinuidade da memória de Lenny, incapaz de se ater a
detalhes ou longas abstrações. No intuito de reconstituir o quebra-cabeça que o levará a
compreender a morte da esposa, o protagonista insistentemente consulta fotos e papéis
(documentos “importantes”), e chega a tatuar no próprio corpo informações consideradas
“vitais” para a solução do mistério. Reconstituindo os “cacos” do passado através de vestígios
tais como um bilhete achado ao acaso, além de cartas e das fotos e tatuagens mencionadas,
Leonard, mesmo sem dispor de uma memória perfeita, consegue interpretar devidamente os
sinais recebidos, lembrar da cena em que foi atingido e descobrir que o estuprador e assassino
de sua esposa é John Gamnell (Joe Pantoliano), o inescrupuloso e hipócrita que se fazia passar
por seu melhor amigo.
O pagamento narra a história de Michael Jennings (Ben Affleck), renomado engenheiro
de computação especializado em “desconstrução de sistemas”, isto é, desmontar aparelhos de
alta tecnologia a fim de descobrir seus segredos, a mando de empresas corruptas que praticam
espionagem industrial. Para evitar “surpresas futuras”, Michael permite que sua memória seja
apagada após cada serviço “sujo” realizado. Desta forma, os segredos são esquecidos e ele
não se torna uma “ameaça” para seus contratantes. Tendo criado uma máquina capaz de
visualizar o futuro, o engenheiro, que desenvolveu este trabalho por três anos e não se recorda
74
de nada ocorrido durante este período, deve correr contra o tempo para recuperar sua memória
(através do auxílio de dezenove objetos aparentemente secundários mas na verdade autênticos
“vestígios do passado”) e para destruir a própria máquina inventada por ele, no intuito de
mudar seu destino fatal, vislumbrado no aparelho.
Misto de drama e comédia, em uma trama semelhante a de O pagamento porém mais
lírica e menos policialesca, defronta-se o espectador, em Brilho eterno de uma mente sem
lembranças, com uma estranha empresa, verdadeira fábrica do esquecimento, sugestivamente
intitulada “Lacuna”, cuja função é a de apagar, da mente de quem procura seus serviços, todas
as lembranças relacionadas a determinada pessoa, através de um mapeamento cerebral
comandado por computadores
50
. Após saber que sua ex-namorada Clementine (Kate Winslet)
submetera-se a tal procedimento, Joel Barish (Jim Carrey) decide fazer o mesmo, procurando
o Dr. Howard Mierzwiak (Tom Wilkinson) com a finalidade de realizar seu intento. O médico
indica-lhe então os passos a seguir para que as lembranças relacionadas a Clementine se
apaguem de vez – desvencilhar-se de tudo que diz respeito a ela. Assim diz Mierzwiak:
A primeira coisa que tem de fazer, Sr. Barish, é ir em casa e pegar tudo que tenha a
ver com Clementine. Qualquer coisa. Vamos usar esses objetos para criar um mapa
de Clementine em seu cérebro, ok? Vamos precisar de fotos, roupas, presentes,
livros que ela possa lhe ter comprado, CDs que tenham comprado juntos, trechos de
um diário. Queremos esvaziar sua casa, queremos esvaziar sua vida da existência de
Clementine. E quando o mapeamento for feito, nossos técnicos irão apagar tudo na
sua casa hoje de noite. Assim, quando acordar de manhã, vai estar em sua própria
cama como se nada tivesse acontecido, com uma nova vida lhe esperando.
De acordo com o médico, uma “base emocional para cada lembrança, e quando você
erradica essa base, o processo de degradação começa”. Quando o paciente acordar, “todas as
memórias que trabalharmos terão se deteriorado e desaparecido. Como quando a gente sonha
e acorda”. O procedimento, no entanto, não segue o esquema previamente traçado, já que,
além das conexões entre os computadores da casa de Joel e da empresa não estarem perfeitas,
o personagem se recusa a eliminar totalmente as lembranças dela, ainda mais quando percebe
50
Citada por Mary (Kirsten Dunst), a seguinte frase, atribuída a Nietzsche, funciona como uma espécie de lema
da “Lacuna”: “Bem-aventurados os esquecidos, pois não se lembram nem das próprias asneiras”.
75
ter domínio sobre as mesmas. Barish resolve cancelar o procedimento, tentando ludibriar os
“profissionais do esquecimento” ao perceber que, para evitar o mapeamento, bastava recorrer
a uma lembrança da época em que ainda não conhecia Clementine. Para isso, o protagonista
do filme se utiliza de suas próprias recordações da infância, longínquas, esmaecidas, mas que
funcionam a contento: Barish consegue sair do mapa de Clementine criado em seu cérebro e
salvar algumas das mais preciosas recordações em comum. O título do filme se justifica
através do trecho de um belo poema de Alexander Pope, mencionado nos instantes finais da
trama:
Feliz é o fado do puro inocente! / O mundo que esquece pelo mundo esquecido /
Brilho eterno de uma mente sem lembranças! / Cada oração aceita e cada desejo
abdicado.
51
Abdicar do desejo, nesse caso, é abdicar das próprias memórias compartilhadas,
lembranças que não se limitam ao puro instante fugaz do encontro e que, dessa forma,
perpetuar-se-ão para sempre, eternizadas em algum lugar recôndito mas essencial do cérebro.
Temos, também em Brilho eterno, as mesmas representações da memória arroladas por
Adélia Bezerra de Menezes para caracterizar o filme Blade Runner: memória “manipulada”
(eletronicamente, desta vez via computadores); “externalizada” (recorrência à lembranças da
infância muito abandonadas); e “emocional” (razão principal do “apagamento” a que se
submetem os protagonistas). Através de dois clássicos da sétima arte (O planeta dos macacos
e Blade Runner) e de produções recentes (Amnésia, O pagamento e Brilho eterno de uma
mente sem lembranças, que, sobretudo o último, conseguem mesclar modernidade
computadores a comandar e dispor de nossas vidas e situações cotidianas namorados
tentando apagar lembranças indesejadas), o cinema dá sua contribuição à infindável discussão
a respeito das vantagens e desvantagens dos mais variados fenômenos mnemônicos.
51
No original: “How happy is the blameless vestal’s lot! / The world forgetting, by the world forgot. / Eternal
sunshine of the spotless mind! / Each prayer accepted, and each wish resigned;” (POPE, “Eloisa to Abelard”)
76
Da mesma forma, a Música Popular Brasileira (MPB), sobretudo nas décadas de 1970
e de 1980, demonstrou preocupação semelhante, eternizando o tema em canções antológicas
que, ao considerarem poeticamente as particularidades inerentes à memória, bem como os
efeitos da passagem do tempo sobre a existência do homem, lograram estabelecer referências
definitivas, por vezes nostálgicas, na cultura brasileira, justamente em um dos períodos mais
atribulados de nossa história (isto é, durante o regime militar que vigorou de 1964 a 1985).
Raul Seixas, por exemplo, tal qual Josué no episódio bíblico ou Dorian Gray no pacto
diabólico com seu auto-retrato, sonhou com “o dia em que a terra parou”, representando quem
sabe a imobilidade decorrente do castrador governo militar
52
. Chico Buarque de Holanda, em
parceria com Milton Nascimento (“Léo”, Clube da Esquina II, 1978), descreve a infância,
vida e morte de Léo sem utilizar sequer um único verbo, demonstrando que o caráter
dinâmico do tempo dispensa até mesmo a obrigatoriedade da recorrência gramatical a
estruturas que denotam ação:
Um na soleira e um pé na calçada, um pião / Um passo na estrada e um pulo no
mato / Um pedaço de pau / Um de sapato e um pé de moleque / Léo // Um pé de
moleque e um rabo de saia, um serão / As sombras da praia e o sonho na esteira /
Uma alucinação / Uma companheira e um filho no mundo / Léo // Um filho no
mundo e um mundo virado, um irmão / Um livro, um recado, uma eterna viagem / A
mala de mão / A cara, a coragem e um plano de vôo / Léo // Um plano de vôo e um
segredo na boca, o ideal / Um bicho na toca e o perigo por perto / Uma pedra, um
punhal / Um olho desperto e um olho vazado / Léo // Um olho vazado e um tempo
de guerra, um paiol / Um nome na serra e um nome no muro / A quebrada do sol /
Um tiro no escuro e um corpo na lama / Léo // Um nome na lama e um silêncio
profundo, um pião / Um filho no mundo e uma atiradeira / Um pedaço de pau / Um
pé na soleira e um pé na calçada.
Na canção Doze anos” de sua Ópera do malandro (1979), assim como Oswald em
Primeiro caderno de poesia do aluno Oswald de Andrade
53
, Chico Buarque parodia Casimiro
de Abreu e seus famosos apelos às saudades dos dias, perfumes, “céus de primavera” e
52
“O dia em que a terra parou” (Raul Seixas/Cláudio Roberto, 1988). O ambiente “onírico” e inverossímil da
letra evidencia-se desde o princípio: “Essa noite eu tive um sonho de sonhador / Maluco que sou, eu sonhei... /
Com o dia em que a terra parou / Com o dia em que a terra parou. // Foi assim num dia em que todas as pessoas
do planeta inteiro / Resolveram que ninguém ia sair de casa / Em todo o planeta ninguém saiu de casa /
Ninguém”.
53
Ver os poemas “Meus sete anos” (1994, p. 27) e “Meus oito anos” (p. 28). Este apresenta a seguinte estrofe
final: “Eu tinha doces visões / Da cocaína da infância / Nos banhos de astro-rei / Do quintal de minha ânsia / A
77
“risonhas manhãs” dos “Meus oito anos”, incluindo uma variante irônica na alusão ao
homossexualismo entre os jovens, tema imortalizado na literatura através dos internatos
descritos por Raul Pompéia em O Ateneu e por Pedro Nava em Balão cativo e Chão de ferro:
Ai que saudades eu tenho / Dos meus doze anos / Que saudade ingrata / Dar banda
por / Fazendo grandes planos / E chutando lata / Trocando figurinha / Matando
passarinho / Colecionando minhoca / Jogando muito botão / Rodopiando pião /
Fazendo troca-troca // Ai que saudades que eu tenho / Duma travessura / O futebol
de rua / Sair pulando muro / Olhando fechadura / E vendo mulher nua / Comendo
fruta no / Chupando picolé / Pé-de-moleque, paçoca / E disputando troféu /
Guerra de pipa no céu / Concurso de pipoca. (BUARQUE, 1979; grifo meu)
Lembrança bem-humorada da adolescência, “Doze anos” contrasta com o desabafo
covarde da mãe que, em “Uma canção desnaturada”, interpretada por Marlene e Chico,
(remetendo-nos ao olhar rancoroso da Velha de As três idades do homem e a Morte de
Baldung), ao constatar que o tempo passou e a filha cresceu, lamenta a perda angustiada e
vingativamente, amaldiçoando e renegando seu próprio rebento como se tal atitude egoísta
pudesse restituir a juventude que este lhe subtraiu, como se para reverter o tempo”
necessitasse recolhê-lo de volta ao ventre amargo e já estéril:
Por que cresceste, curuminha / Assim depressa, e estabanada / Saíste maquilada /
Dentro do meu vestido / Se fosse permitido / Eu revertia o tempo / Pra reviver a
tempo / De poder // Te ver, as pernas bambas, curuminha, / Batendo com a moleira /
Te emporcalhando inteira / E eu te negar meu colo / Recuperar as noites, curuminha
/ Que atravessei em claro / Ignorar teu choro / E cuidar de mim // Deixar-te arder
em febre, curuminha / Cinqüenta graus, tossir, bater o queixo / Vestir-te com
desleixo / Tratar uma ama-seca / Quebrar tua boneca, curuminha / Raspar os teus
cabelos / E ir-te exibindo pelos / Botequins // Tornar azeite o leite, / Do peito que
mirraste / No chão que engatinhaste, salpicar / Mil cacos de vidro / Pelo cordão
perdido / Te recolher pra sempre / À escuridão do ventre, curuminha / De onde não
deverias / Nunca ter saído (BUARQUE, 1979)
Caetano Veloso
54
retratou o ventre feminino sob ótica inteiramente diversa, fonte de
vida a testemunhar a pulsão que acompanha o eterno presente e a eterna frutificação da
cidade progredia / Em roda de minha casa / Que os anos não trazem mais / Debaixo da bananeira / Sem ne
78
semente que brota, desenvolve-se e morre em meio ao turbilhão do tempo. Em “Força
estranha”, canção arraigada ao inconsciente coletivo brasileiro devido às inesquecíveis
versões de Gal Costa e de Roberto Carlos, acompanhamos emocionados o sensível captar do
momento exato de renovação da vida:
Eu vi o menino correndo, eu vi o tempo / Brincando ao redor do caminho daquele
menino / Eu pus os meus pés no riacho / E acho que nunca os tirei / O sol ainda
brilha na estrada e eu nunca passei // Eu vi a mulher preparando outra pessoa / O
tempo parou pra eu olhar para aquela barriga / A vida é amiga da arte / É a parte que
o sol me ensinou / O sol que atravessa essa estrada que nunca passou // (...) Eu vi
muitos cabelos brancos / Na fronte do artista / O tempo não pára e no entanto ele
nunca envelhece / Aquele que conhece o jogo / do fogo das coisas que são / É o sol,
é a estrada, é o tempo, é o pé e é o chão // Eu vi muitos homens brigando / Ouvi seus
gritos / Estive no fundo de cada vontade encoberta / E a coisa mais certa de todas as
coisas / Não vale um caminho sob o sol / E o sol sobre a estrada é o sol sobre a
estrada / É o sol (VELOSO, 1979)
O tempo possui o ambíguo poder de, por um lado, não ser interrompido, e, por outro, de
não envelhecer, renovando-se e repetindo-se ao sabor das estações e temporadas; de estacar
pelo breve momento em que se observa a vida nova que surge do ventre e, da mesma forma,
passar tão rapidamente a ponto de deixar somente “cabelos brancos” e a resignação
inconsolável de conhecer e de não mais aplicar as regras do “jogo do fogo das coisas que
são”.
Na canção “Oração ao Tempo”, de Cinema transcendental (1979), o compositor baiano
faz uma espécie de pacto com o “Tempo”, um acordo entre “contigo” e “migo
55
, iniciado
inúmeras parcerias entre estes autênticos artistas da palavra e da imagem denotam a ligação promissora entre
música e literatura em Velô (1984), Caetano musica “Pulsar”, de Augusto de Campos (“Onde quer que você
esteja / em marte ou eldorado / abra a janela e veja / o pulsar quase mudo / abraço de anos luz / que nenhum sol
aquece / e o oco escuro esquece”); em “Circuladô de fulô” (Circuladô, 1991), é a vez de Haroldo emprestar sua
genialidade ao experimentalismo de Caetano (“(...) o povo é o inventalínguas na malícia da mestria no matreiro /
da maravilha no visgo do impriviso tenteando a travessia / azeitava o eixo do sol // circuladô de fulô ao deus ao
demodará que deus te guie / porque eu não posso guiá eviva quem me deu circuladô / de fulô e ainda quem
falta me dá”); sem contar a tríplice parceria (música-poesia-tradução) entre Caetano, Augusto de Campos e
Péricles Cavalcanti, na versão brasileira da “Elegia” de John Donne, veiculada em Cinema transcendental
(1979), verdadeira ode à exploração táctil do jovem corpo feminino, convite à entrega da carne em seu esplendor
e antídoto do incontroverso tempus fugit: “Deixa que minha mão errante adentre / Atrás, na frente, em cima,
embaixo, entre / Minha América, minha terra à vista / Reino de paz se um homem a conquista / Minha mina
preciosa, meu império / Feliz de quem penetre o teu mistério / Liberto-me ficando teu escravo / Onde cai minha
mão meu selo gravo / Nudez total: todo prazer provém do corpo / (Como a alma sem corpo) sem vestes / Como
encadernação vistosa / Feita para iletrados, a mulher se enfeita / Mas ela é um livro místico e somente / A alguns
a que tal graça se consente / É dado lê-la / Eu sou um que sabe”.
55
Notar a genial referência à forma antiga (“migo”, do latim “mecum”) do pronome “comigo”, como a sugerir
algo que apenas o Tempo é capaz de fazer: considerar simultaneamente a atualização das formas (presente) e a
perpetuação dos clássicos (passado reconfigurado).
79
com um pedido, prometendo “aquilo” em troca, algo que ficará “guardado em sigilo” (a
eterna juventude, quem sabe?e nesse caso, metáfora admirável da deglutição tropicalista do
pacto de Dorian Gray), exigindo, ainda, uma certa cumplicidade e atenção às suas “ordens”
(“ouve bem o que te digo”). Exaltando o poder de constante invenção e de reciclagem dos
quais somente o tempo dispõe, evidenciado através da repetição exaustiva da palavra, sempre
em maiúsculas, a denunciar, não o tédio e o marasmo, mas nossa absoluta submissão aos
desígnios de Cronos, “um dos deuses mais lindos”, submissão tão arraigada e da qual tanto
dependemos que será capaz de sobreviver ao próprio tempo, quando então Ele nos sujeitará a
“outro nível de vínculo”, sobrepondo sua própria duração e o limite imposto pelo homem,
escravo de calendários, datas e comemorações fixas:
És um senhor tão bonito / Quanto a cara do meu filho / Tempo Tempo Tempo
Tempo / Vou te fazer um pedido / Tempo Tempo Tempo Tempo // Compositor de
destinos / Tambor de todos os ritmos / Tempo Tempo Tempo Tempo / Entro num
acordo contigo / Tempo Tempo Tempo Tempo // Por seres tão inventivo / E
pareceres contínuo / Tempo Tempo Tempo Tempo / És um dos deuses mais lindos /
Tempo Tempo Tempo Tempo // Que sejas ainda mais vivo / No som do meu
estribilho / Tempo Tempo Tempo Tempo / Ouve bem o que te digo / Tempo Tempo
Tempo Tempo // Peço-te o prazer legítimo / E o movimento preciso / Tempo Tempo
Tempo Tempo / Quando o tempo for propício / Tempo Tempo Tempo Tempo // De
modo que o meu espírito / Ganhe um brilho definido / Tempo Tempo Tempo Tempo
/ E eu espalhe benefícios / Tempo Tempo Tempo Tempo // O que usaremos pra isso
/ Fica guardado em sigilo / Tempo Tempo Tempo Tempo / Apenas contigo e migo /
Tempo Tempo Tempo Tempo // E quando eu tiver saído / Para fora do teu círculo /
Tempo Tempo Tempo Tempo / Não serei nem terás sido / Tempo Tempo Tempo
Tempo // Ainda assim acredito / Ser possível reunirmo-nos / Tempo Tempo Tempo
Tempo / Num outro nível de vínculo / Tempo Tempo Tempo Tempo // Portanto
peço-te aquilo / E te ofereço elogios / Tempo Tempo Tempo Tempo / Nas rimas do
meu estilo / Tempo Tempo Tempo Tempo. (VELOSO, 1979)
Abordadas esporadicamente por compositores como Caetano e Chico, a memória e a
passagem do tempo tornam-se temas fundamentais para a geração mineira surgida na década
de 1970, conhecida como “Clube da Esquina” e composta por músicos como Borges e
Milton Nascimento, e por letristas como Fernando Brant, Ronaldo Bastos e Márcio Borges,
irmão de Lô. Citarei apenas alguns exemplos, que são inúmeras as canções a retratarem as
modificações causadas pelo tempo, deixando marcas profundas nos amigos que freqüentaram
os mesmos bares e esquinas de Belo Horizonte, semelhante à iniciativa de grupos literários
80
modernistas, tais como o do Bar do Ponto, também na capital mineira (Drummond, Pedro
Nava, Emílio Moura, Abgar Renault, etc), e o da Rua da Praia, em Porto Alegre (Meyer,
Tostes, Vellinho, Bernardi, Vargas Neto, Pedro Vergara, etc), encontros que motivaram,
posteriormente, recordações nostálgicas em vários de seus componentes.
Beto Guedes e Ronaldo Bastos, em “Sol de primavera”, do LP homônimo (1979),
fixam nossa necessidade de renovação, sempre realçada nos períodos de grandes mudanças,
não sem aludirem aos mortos e desaparecidos que “se perderam no caminho” e que não os
impediram de buscar outras possibilidades que lhes trouxessem novamente o apogeu da
juventude, “sol de primavera”:
Quando entrar setembro / E a boa nova andar nos campos / Quero ver brotar o
perdão / Onde a gente plantou / (Juntos outra vez) / sonhamos muito / Semeando
as canções no vento / Quero ver crescer nossa voz / No que falta sonhar // Já
choramos muito / Muitos se perderam no caminho / Mesmo assim não custa inventar
/ Uma nova canção / (Que venha nos trazer) / Sol de primavera / Abre as janelas do
meu peito / A lição sabemos de cor / Só nos resta aprender.
Dois anos depois, em Contos da lua vaga (1981), Beto Guedes elogia o “Tesouro da
juventude” (“A pedalar / Camisa aberta no peito / Passeio macio / Levo na bicicleta o meu
tesouro da juventude / Passo roubando fruta de feira / Passo a puxar meu estilingue / Vai
pedra certeira no poste / Passa um veterano e cansado / Herói de guerra / Grito lá vem a
bomba e meu tesouro / Me leva pelas ruas de Santa Teresa a rodar, a rodar (...) Piso o pedal
do sonho e a vida ganha mais alegria / Ganha o meu tesouro da juventude”)
56
; resigna-se a
aceitar o “tempo perdido” em Boa sorte” (“Lembrei de não chorar / O tempo que passou /
Lembrei de desejar / Boa sorte pra você / E o dia clareou / Hoje a noite serenou / Orvalho nos
quintais / Acordei pensando em nós / E uma estrela caiu”)
57
; e, beatlemaníaco inconformado
pelo inexplicável assassinato de John Lennon, clama pelo impossível – a interrupção abrupta
56
Composta por Tavinho Moura e Murilo Antunes. Notar a semelhança entre o trecho da canção e a seguinte
passagem da História de minha infância, de Gilberto Amado: Concha que menino apanha na praia, passarinho
que bota na gaiola, é tesouro que armazena, é alegria que se transfunde em força de vida.” (1958, p. 120; grifo
meu)
57
De Luiz Guedes, Thomas Roth e Márcio Borges.
81
da trajetória da bala após o disparo do gatilho, tentativa desesperada de evitar a concretização
do triste fato, tentando obter o mesmo impressionante sucesso que Josué, potente o bastante
para parar sol e lua (“As canções em nossa memória vão ficar / Profundas raízes vão crescer /
A luz das pessoas me faz crer / E eu sinto que vamos juntos / Ó nem o tempo, amigo / Nem a
força bruta pode um sonho apagar / (...) Quem souber dizer a exata explicação / Me diz como
pode acontecer / Um simples canalha mata um rei / Em menos de um segundo / Ó minha
estrela amiga, por que você não fez a bala parar?”)
58
.
Milton Nascimento e Lô Borges, através sobretudo dos dois trabalhos duplos que
compõem o Clube da Esquina
59
, fizeram da referência à memória e ao escoar do tempo o
carro-chefe de suas obras, sabendo interpretar e traduzir perfeitamente as expectativas de toda
uma geração, ao mesmo tempo revolucionária (estando na vanguarda da contracultura
brasileira da década de 70) e temerosa, a cicatrizar as feridas abertas pelo súbito
desaparecimento de artistas e intelectuais nos porões do severo regime. A perpetuação da
memória desta época cumpre, portanto, dois desígnios fundamentais o de fixar o intenso
momento vivido pelos jovens artistas de então, experiência por vezes irremediavelmente
58
“Canção do novo mundo” (Beto Guedes / Ronaldo Bastos).
59
Clube da Esquina 1 (1972) e Clube da Esquina 2 (1978), lançados ao longo de um período crítico do regime
militar, sob o pulso firme de Emílio Médici (1969 a 1974) e Ernesto Geisel (1974 a 1979). A talentosa geração
mineira de então, composta por inúmeros poetas, jornalistas, escritores, músicos e letristas de destaque (Otto
Lara Resende, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Roberto Drummond, Márcio Borges, Fernando Brant e
Milton Nascimento, dentre muitos outros), tendo elegido pontos estratégicos de Belo Horizonte, tais como a Rua
da Bahia, o Bar Estrela e o Bar do Ponto, a redação do Diário de Minas ou o imaginário “clube da esquina”,
substituía a paradigmática geração anterior (de Drummond, Emílio Moura, etc), tentando harmonizar o “velho” e
o “moderno” a partir da ressignificação da tradição mineira, obtida através do contraste estabelecido entre a
evocação de seus “mitos” identitários (o “trem”, a “montanha”, o ideário barroco, o período áureo da mineração,
etc) e o conturbado cenário social e político ao qual pertenciam e do qual se tornavam testemunhas e porta-
vozes. Ao mesmo tempo em que Clube da Esquina 2 era lançado (1978), Pedro Nava, por exemplo, terminava,
no Rio de Janeiro, a redação de um dos volumes mais importantes de sua memorialística Beira-mar, quarto
livro da série, aquele que narra justamente os anos em que o escritor, estudando Medicina na jovem e promissora
capital mineira da década de 20, convivia de perto com o despertar do Modernismo em Minas, cujo grupo, afeito
à obra de Proust, visava à renovação estética de uma literatura até àquela altura convencionalista e alheia a
experimentalismos, esteio da “Tradicional Família Mineira” e das mais reacionárias estruturas sociais. A
atmosfera que cerca as composições de Clube da Esquina foi revivida, em 1996, por Márcio Borges em Os
sonhos não envelhecem – Histórias do Clube da Esquina (São Paulo: Geração Editorial, 2004, 5 ed), para quem
os músicos em questão eram “meninos sonhadores, tendo como pano de fundo os governos militares a sufocar
inexoravelmente os anseios e pretensões de nossa geração” (p. 16). Para Caetano Veloso, autor do prefácio, o
grupo representava “o que Minas pode trazer: os frutos de um paciente amadurecimento de impulsos culturais
do povo brasileiro, o esboço (ainda que muito bem-acabado) de uma síntese possível.” (2004, p. 13)
82
dolorosa e ambígua (já que ao “presente” auspicioso de sua linda juventude” correspondia o
“futuro” amargo prenunciado por um regime que se fortalecia cada vez mais e que não dava
mostras de tão cedo ruir); e o de denunciar os abusos de um período político que ficará para
sempre marcado na memória coletiva nacional como um dos mais atrozes, arbitrários e
absurdos de nossa história.
A angústia motivada pela incerteza do reencontro com a pessoa querida (já que todos
são perseguidores ou perseguidos, “caçadores” ou “andróides”) está bem explícita na canção
“Nada será como antes”, de Milton e Ronaldo Bastos, pertencente ao primeiro volume. Nela a
dúvida sufocante está exposta claramente:
Eu já estou com o nesse estrada / Qualquer dia a gente se / Sei que nada será
como antes aman/ Que notícias me dão dos amigos? / Que notícias me dão de
você? / Alvoroço em meu coração / Amanhã ou depois de amanhã / Resistindo na
boca da noite um gosto de sol // Num domingo qualquer, qualquer hora / Ventania
em qualquer direção, sei que nada será como antes amanhã / Que notícias me dão
dos amigos? / Que notícias me dão de você? / Sei que nada será como está /
Resistindo na boca da noite um gosto de sol (1972)
Voltarão do exílio os “caros amigos”? Ainda estarão vivos ou, torturados e humilhados,
eliminadas as chances de defesa e de reação, sepultado o perdão, jazem em algum porão,
cemitério ou cova rasa?
60
Não como saber, não como fazer coisa alguma para que o
hoje seja diferente do ontem e para que o amanhã seja como antes, uma vez que nada se
compara ao trauma de uma separação forçada, obrigada pela “força bruta”, que insiste em
apagar o “sonho”
61
da comunhão, e vinda não se sabe de onde (“ventania em qualquer
direção”). Talvez por isso o que está dito não passe, a princípio, de sugestões estéreis
60
Esta inquietação se estende até a década de 80, período menos opressor do regime, mas que nem por isso
diminuía a mágoa dos companheiros de geração, ferida verbalizada, por exemplo, em “Sentinela”, canção
regravada em LP homônimo e originalmente veiculada em Milton Nascimento (1969): “Morte, vela / sentinela
sou / do corpo desse meu irmão que já se vai / revejo nessa hora tudo que ocorreu / memória não morrerá //
Vulto negro em meu rumo vem / mostrar a sua dor / plantada nesse chão / seu rosto brilha em reza / brilha em
faca e flor / histórias vem me contar / longe, longe ouço essa voz / que o tempo não levará” (Milton Nascimento /
Fernando Brant, Sentinela, 1980). Sobre a cumplicidade irrestrita da verdadeira amizade, ver o comentário de
Raïssa Maritain em Les grandes amitiés: “Nos amis font partie de notre vie, et notre vie explique nos amitiés.”
(MARITAIN, 1941, p. 11)
61
“Ah, um dia, qualquer dia de calor / é sempre mais um dia de lembrar / a cordilheira de sonhos que a noite
apagou”. (“Os povos”, Milton Nascimento / Márcio Borges, Clube da Esquina 1, 1972)
83
semeadas ao vento, mas que cumprem seu papel de resistência (mesmo na “boca da noite”
ainda é possível experimentar uma “réstia de sol”) ao evocar tal união em torno de algo vago
e passageiro. A metáfora do vento a insinuar a efemeridade da (falta de) perspectiva
individual (devido ao cerceamento da liberdade de expressão através da censura às letras mais
politizadas) e coletiva (amizades interrompidas, colegas desaparecidos) é perfeita em seu
intuito de simbolizar a vaguidão decorrente de uma situação caótica como esta, sendo a
valorização do presente a única válvula de escape para uma geração acostumada a desconfiar
das mazelas que o futuro ainda poderia lhes trazer. Tal topos, explorado à exaustão, é
sutilmente sugerido (“cochichos” do vento e “ao vento” – como “coisas” que ficam “no ar”)
em duas outras canções do grupo: “O trem azul” (Lô Borges/Ronaldo Bastos), do mesmo
Clube da Esquina 1, e “Vento de maio” (Telo Borges/Márcio Borges), pertencente ao álbum
A via láctea (1979)
62
, nas quais lemos, respectivamente:
Coisas que a gente se esquece de dizer / Frases que o vento vem às vezes me lembrar
/ Coisas que ficaram muito tempo por dizer / Na canção do vento não se cansam de
voar (BASTOS / BORGES, 1972)
Vento de raio rainha de maio estrela cadente / chegou de repente o fim da viagem /
agora já não dá mais pra voltar atrás / rainha de maio valeu o teu pique / apenas para
chover no meu piquenique / assim meu sapato coberto de barro / apenas pra não
parar / nem voltar atrás // nisso eu escuto no dio do carro a nossa canção / sol
girassol e meus olhos abertos pra outra emoção / e quase que eu me esqueci / que o
tempo não pára nem vai esperar / vento de raio rainha dos raios de sol / vai no teu
pique estrela cadente até nunca mais / não te maltrates nem tentes voltar o que não
tem mais vez / nem lembro teu nome nem sei / estrela qualquer no fundo do mar /
vento de maio rainha dos raios de sol (BORGES, 1979)
62
Nesse mesmo álbum, há uma outra canção (“Nau sem rumo”) cuja letra retrata a preocupação dos artistas com
o destino e com a sanidade mental dos jovens de sua geração: “Onde foi parar a cuca dos caras / que agüentaram
a barra / de lutar por nossas ruas / mover / ou mais simplesmente ser / a poeira da estrela / ser agora e saber //
Achem nosso nome na tempestade / numa asa cortada / ou na página do livro amor / na página que faltou / na
poeira de uma bomba / ser agora e saber”. Ainda em A via láctea, mais uma referência à falta de perspectivas e
ao confronto entre os jovens e os soldados do exército: “porque se chamavam homens / também se chamavam
sonhos / e sonhos não envelhecem / em meio a tantos gases lacrimogêneos / ficam calmos calmos calmos calmos
calmos.” (“Clube da Esquina 2”, Borges, Milton Nascimento e rcio Borges, 1979). Gases que, em
Hilda Furacão, são o perfume que a juventude belorizontina dos anos 70 inala nas ruas: “Na época dos
acontecimentos que tanto deram o que falar envolvendo Hilda Furacão, eu trabalhava como repórter na Folha de
Minas numa Belo Horizonte que cheirava a jasmim e ao gás lacrimogêneo que a polícia jogava nos estudantes e
que acabava sendo o perfume daqueles dias.” (DRUMMOND, Roberto, 1991, p. 11)
84
que, efetivamente, sem as mesmas armas que os militares, lutando com palavras, a
“luta mais vã”
63
, muito pouco havia a se fazer a não ser se deixar levar pelo “vento” e, “sem
lenço e sem documento”, registrar o impasse em textos e canções, escapando um pouco,
mesmo que provisoriamente, da “inquisição” da ditadura. O “vento” símbolo da incerteza e da
insegurança, breve e “oscilante”, sem passado ou futuro (que, levando-nos ora “para lá” ora
“para cá”, ao sabor das emoções, imprime no corpo e na alma sensações “flutuantes”,
conflitantes, ambíguas), é também o vento do inusitado, dos encontros inesperados cuja
imagem da pessoa envolvida será guardada para sempre (e eternizada na letra da canção),
mesmo que, após anos ou décadas, não se lembre nem o nome dela o que importa é
homenagear a “estrela cadente”, a “rainha” que, rápida como um “raio”, um “vento de maio”,
transição do outono (vento “passageiro”) ao inverno (vento “permanente”), passa em nossa
vida deixando marcas profundas e imagens eternas, enquanto detalhes fundamentais se
perdem no caminho
64
. O instante fugidio do encontro é definitivamente assimilado pela
63
“Lutar com palavras / é a luta mais vã. / Entanto lutamos / mal rompe a manhã” (ANDRADE, Carlos
Drummond de, “O lutador”, Antologia Poética, 2002, p. 243). As palavras como instrumento de resistência
também têm destaque na letra de Saudade dos Aviões da Panair” (Milton Nascimento/Fernando Brant, Minas,
1975): “Descobri que minha arma é o que a memória guarda dos tempos da Panair / (...) nada de novo existe
nesse planeta / que não se fale aqui na mesa de bar”. Embora, obviamente, muito longe do contexto da ditadura
militar dos anos 60, Augusto Meyer, no capítulo Antonello”, de Literatura e poesia (1931), também se refere
aos “sonhos” elaborados em mesa de bar”: “Quantas viagens tenho feito neste canto aqui no bar... Meus
companheiros pensam que estou e conversam com a minha aparência. Mas eu me perdi nos espelhos e nunca
mais encontrei” (MEYER, 1931, p. 19). E, curiosamente, em “Impressões de Hamburgo”, a mesma referência a
Panair como símbolo da saudade de quem está longe do país: Para matar a saudade, que apertou com o frio da
noite, passemos ainda pela Panair do Brasil, no quinto andar, onde um bom cafezinho e jornais da terra.”
(MEYER, Textos críticos, 1986, p. 636; ver também A chave e a máscara, 1964, p. 217)
64
Em “Bela Bela” (Caçador de mim, 1981; música de Milton Nascimento e letra de Ferreira Gullar), constata-se
a mesma característica: a evocação de imagens marcantes de um antigo relacionamento sem que se lembre ao
menos o nome da pessoa homenageada, pormenor perdido “em alguma gaveta”, a salvo da mudança “de casa e
de tempo”: “Bela, bela / mais que bela / mas como era o nome dela? / Não era Helena nem Vera / nem Nara nem
Gabriela / nem Tereza nem Maria / Seu nome, seu nome era... // Perdeu-se na carne fria / Perdeu-se na confusão
de tanta noite e tanto dia / perdeu-se na profusão das coisas acontecidas / constelações de alfabeto / noites
escritas a giz / pastilhas de aniversário / domingos de futebol / enterros, corsos, comícios / roleta, bilhar, baralho
// Mudou de cara e cabelos, mudou de olhos e riso / mudou de casa e de tempo: mas está comigo / perdido
comigo / teu nome / em alguma gaveta ...”. Em “A olho nu” (A via láctea), Márcio Borges lança um desafio,
mostrando que o sentimento é mais proveitoso que a convenção: “Quero ver você dormir em paz / amar sem
perguntar / o nome da pessoa” (1979). Na memorialística brasileira, este topos aparece, por exemplo, em Meus
verdes anos, de José Lins do Rego, onde o escritor, ao evocar o despertar da paixão surgida do contato com as
“primas de fora”, admite: “Traziam as moças escorraçadas do Engenho Novo uma menina de cabelos pretos que
seria a minha primeira paixão. Nem me lembro mais do seu nome. Sei que brincávamos por debaixo da mesa de
jantar, tão pequenos éramos.” (REGO, 1956, p. 102-3)
85
memória e incorporado ao cabedal de lembranças que tentamos guardar a respeito de
determinada pessoa, atitude imortalizada por Charles Baudelaire em “A une passante”:
La rue assourdissante autour de moi hurlait / Longue, mince, en grand deuil, douleur
majestueuse, / Une femme passa, d’une main fastueuse / Soulevant, balançant le
feston et l’ourlet; // Agile et noble, avec sa jambe de statue. / Moi, je buvais, crispé
comme un extravagant, / Dans son oeil, ciel livide germe l’ouragan, / La douceur
qui fascine et le plaisir qui tue. // Un éclair... puis la nuit! - Fugitive beauté / Dont le
regard m’a fait soudainement renaître, / Ne te verrai-je plus que dans l’éternité? //
Ailleurs, bien loin d’ici! trop tard! jamais peut-être! / Car j’ignore tu fuis, tu ne
sais où je vais, / O toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais! (BAUDELAIRE, Flores
das ‘flores do mal’, 1944, p. 94-6; grifo do autor)
65
Brilho intenso mas passageiro, “poeira de estrela”, o momento do encontro – algo como
o “flash” de uma máquina fotográfica que, a despeito da brevidade da ocorrência, registra a
imagem para todo o sempre estará terminantemente fixado graças ao poder da evocação
sugerida, ressurreição catártica que confere força e distinção a quem o invoca, que vence
tempo e espaço em demonstrações de valentia e auto-domínio:
Pela fresta desta janela ouve o vento / que te rouba do meu peito / sem ao menos me
dizer para onde vai te levar / Quem se apossa assim tão fácil / É, não vai muito além
/ pois na força da manhã posso ser muito valente / pra vencer o espaço e te achar //
Adormece o tempo que a fada te jurou / Fere o dedo no teu sonho, se assusta com
meu beijo e acorda a tempo / de saber que ainda eu sou teu rei / vale mais a força do
pensamento ... (FREIAS, 1979)
66
Manifestação da memória auditiva (já que, além de senti-lo na pele, “ouve-se” o vento
entrar pela fresta da janela), a liberdade e a valentia sugeridas na letra desta canção em muito
se aproximam da ocorrência (citada na Introdução, p. 18) referida por Augusto Meyer em
“Cerro d’Árvore” (Segredos da infância, 1949), misto de temor, sobressalto e imaginação
diante da constatação da força do minuano:
O vento mandava naquelas várzeas e canhadas. Senti-o, desde [o] começo,
dominando tudo, sacudindo o rancho nas noites frias, quando eu acordava com medo
e ouvia fora o seu gemido. (...) O vento enfurecido açoitava a rancharia, os
primeiros frios penetravam pelas frinchas, o gado procurava os paradouros. (...) E no
outro dia, era o minuano. Bastava olhar a altura gelada e azul, com que outro galope
65
Na tradução de Guilherme de Almeida: “A rua, em torno, era ensurdecedora vaia. / Toda de luto, alta e sutil,
dor majestosa, / Uma mulher passou, com sua mão vaidosa / Erguendo e balançando a barra alva da saia; //
Pernas de estátua, era fidalga, ágil e fina. / Eu bebia, como um basbaque extravagante, / No tempestuoso céu do
seu olhar distante, / A doçura que encanta e o prazer que assassina. // Brilho... e a noite depois! Fugitiva
beldade / De um olhar que me fez nascer segunda vez, / Não mais te hei de rever senão na eternidade? // Longe
daqui! tarde demais! nunca talvez! / Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste, / Tu que eu teria amado, ó
tu que o adivinhaste!” (BAUDELAIRE, “A uma passante”, 1944, p. 95-7; grifo do tradutor)
66
“A força do vento”, canção de Rogério Freias gravada por Lô Borges em 1979.
86
de nuvem, para reconhecê-lo. Havia todas as vozes, todos os lamentos naquela voz
poderosa. Zunia nos tetos, varria as macegas, corria três dias e três noites sem parar.
(MEYER, 1949, p. 14 -5)
67
Além da mesma referência ao vento como símbolo da imaginação e da liberdade, do
pavor e da surpresa, de encontros e despedidas, há uma outra confluência entre a letra de “A
força do vento” e a memorialística de Meyer se atentarmos para a menção à “maldição”
jurada pela fada e aos cem anos de espera destinados à jovem a ansiar pelo beijo da
ressurreição, tempo durante o qual tudo estagnou, pessoas, cavalos, pombas, moscas e até o
vento. Em “Confissões de um leitor” (No tempo da flor, 1966), escreve Augusto Meyer:
Na Bela Adormecida no Bosque, durante cem anos tudo pára no tempo, tal como se
achava em determinado momento, e fica à espera do Príncipe e do seu beijo criador.
(...) No instante preciso em que a Princesinha sentiu a agulha de um fuso a picar-lhe
o dedo lembram-se? adormeceu, e com ela toda a corte adormeceu. Explicam os
irmãos Grimm que até os cavalos adormeceram na cavalariça, os cães no canil, as
pombas no pombal, as moscas na parede; (...) Deitou-se o vento, explicam ainda os
irmãos Grimm, e não se mexia uma folha nas altas árvores do parque. (...)
Adormeciam todos para um sono de cem anos, enquanto crescia em volta do castelo
uma áspera selva de espinheiros entrelaçados. (...) Ainda me lembro muito bem da
primeira impressão que me ficou da linda história, no tempo em que a sabedoria me
vinha coada pelos contos de fadas: um deslumbramento. Vinte anos? Cem anos?
Pouco importava a conta. Lá dentro do castelo, tudo continuava intacto, preservado e
intocável, no rolar do tempo que não perdoa. (...) A Princesinha dormia, à espera do
Príncipe. Não reinava no castelo encantado um silêncio de morte; sentia-se em tudo
apenas um compasso de espera, o leve respiro das coisas adormecidas. E a folha
verde e imóvel, na ponta do seu ramo parado, sonhava com o primeiro tremor
nervoso. (...) muito mais tarde verifiquei a profunda realidade do conto de fadas.
A Bela Adormecida no Bosque era a própria imagem da poesia das coisas perdidas
67
A evocação de Meyer da força do minuano é antiga: em 1931 lemos, em um capítulo de Literatura e poesia
intitulado “Minuano”, a seguinte observação, essencial para a compreensão da memória involuntária em sua
obra: “minha infância tem a voz do vento virgem, ele ventava sobre o rancho onde morei...” (MEYER, 1931, p.
49). Thiers Martins Moreira também se impressionou com a força do vento e com seu poder quase diabólico. À
página 72 de O menino e o palacete (1954), relembra: “O [vento] sul (...) escurecia o Palacete e assemelhava-se,
no espírito infantil, a um gigante perverso, quando, veloz e convulso, agitava os galhos da mangueira e levantava
a poeira que ia colocar-se sobre os objetos, sobre o corrimão da escada ou sobre as maçanetas de cristal,
sacudindo as portas e as janelas e ameaçando a telha-vã da dispensa. O Menino ouvia então dizerem: o diabo
anda às soltas. E imaginava que pequenos e grandes diabos negros tinham descido das nuvens e penetrado na
casa”. Em “Raízes de Proust” (Proustiana brasileira, 1950, p. 55-62), conforme veremos no item 3.3, Octacílio
Alecrim demonstra que, antes de Proust, escritores como Rousseau e Flaubert já haviam descrito alguns acessos
da memória involuntária, tendo inclusive servido como “sugestões” ao romancista de A la recherche du temps
perdu. Um dos trechos de Madame Bovary referidos por Alecrim como “raiz” do procedimento desenvolvido
por Proust se refere justamente ao poder que o vento possui de interromper bruscamente uma vibração
prolongada” e de instigar “devaneios”. Vejamos a passagem escrita por Flaubert e destacada pelo crítico
brasileiro: O dia seguinte foi para Emma um dia fúnebre. Tudo lhe pareceu envolto numa atmosfera negra, que
flutuava confusamente sobre o exterior das cousas; e a tristeza afundava-se em sua alma com clamores doces,
como faz o vento de inverno nos castelos abandonados. Era este devaneio que se tem sobre o que não volta mais,
a lassidão de que se é possuído após cada fato consumado, esta dor, enfim, que trazem a interrupção de cada
movimento habitual e a cessação brusca de uma vibração prolongada” (Apud ALECRIM, 1950, p. 59; grifo
meu). No decorrer do capítulo 4, retomarei este elo de ligação entre as recordações de Flaubert, Proust e Meyer a
partir da sugestão involuntária dos sentidos aguçados pelo vento.
87
no tempo, que imaginamos ainda possam reviver dentro de nós... (MEYER, 1966, p.
96-7)
68
Todos nós fantasiamos e ardentemente desejamos, sem sucesso, pensando que com
isso recuperaríamos algo perdido neste ínterim explorar os efeitos de uma possível
interrupção da seqüência normal dos acontecimentos, utopia de fazer com que o tempo,
dinâmico, se torne estático, seja por cem anos (à espera do beijo do príncipe), pelo “espaço de
quase um dia inteiro” (enquanto Josué vence seus inimigos), ou mesmo durante os poucos
segundos que uma bala leva para atingir seu alvo (“Canção do novo mundo”). O que
realmente importa é que tivéssemos a noção de que o “Tempo”, que nunca pára e também não
“envelhece”, sem que passasse tão depressa, conduzisse-nos a um amadurecimento afetivo,
sensitivo e intelectual justamente a partir das reflexões que “Ele” nos leva a incorporar,
mesclando o “antigo” (a “tradição”, os costumes que “pararam no tempo”) e o “novo” (o
“moderno”, o “presente”, o “atual”, aspectos “antenados” à nova realidade tecnológica do
século XXI). O saudosismo motivado pela impressão de que, em determinados lugares, o
tempo e o progresso da cidade ou da vila foram interrompidos simultaneamente, sendo um o
complemento do abandono do outro, está presente, por exemplo, no lamento veiculado na
letra da canção “Ponta de Areia” (Milton Nascimento/Fernando Brant, Minas, 1975),
exaltação melancólica do período no qual estradas-de-ferro permitiam o acesso de Minas
Gerais ao mar, a soar, a nossos ouvidos, como se o tempo tivesse parado “cem anos” e o
compositor, nostálgico, observando “praças vazias” e “casas esquecidas” e evocando a
“própria imagem da poesia das coisas perdidas no tempo”, ainda estivesse na época da
“Maria-fumaça”:
Ponta de Areia, ponto final / da Bahia-Minas, estrada natural / que ligava Minas ao
porto, ao mar / caminho de ferro mandaram arrancar / velho maquinista com seu
boné / lembra o povo alegre que vinha cortejar // Maria-fumaça não canta mais /
68
Tal imagem poética criada por Meyer, reconfigurada, encerra também o último capítulo de No tempo da flor
(“Epílogo”, p. 135-9), sendo, portanto, o fecho de sua obra memorialística, interrompida em 1966, dado
imprescindível a ser melhor tratado no decorrer do quarto capítulo. Assim resume o escritor: “De todas as
histórias de fadas, a mais impressionante sempre me pareceu a Hora Adormecida no Tempo.” (p. 139)
88
para moças, flores, janelas e quintais / na praça vazia um grito um ai / casas
esquecidas viúvas nos portais.
Em Clube da Esquina 2 (1978), a canção “Ruas da cidade” (Borges/Márcio Borges)
retrata uma lamentável fixação da memória: tribos indígenas, dizimadas, ao longo de
quinhentos anos, em todo o território brasileiro (todas “no chão”), eternizam-se através dos
nomes de algumas das principais ruas de Belo Horizonte, canonizando assim um passado
extinto (já que “tudo passa”, até “tribos” e “reis”) e agora reconfigurado (nomes “plantados”
nos corações e no “chão” das ruas):
Guaicurus Caetés Goitacazes / Tupinambás Aimorés / Todos no chão / Guajajaras
Tamoios Tapuias / Todos Timbiras Tupis / Todos no chão / A parede das ruas / Não
devolveu / Os abismos que se rolou / Horizonte perdido no meio da selva / Cresceu
o arraial / Arraial // Passa bonde passa boiada / Passa trator, avião // Ruas e reis /
Guajajaras Tamoios Tapuias / Tupinambás Aimorés / Todos no chão / A cidade
plantou no coração / Tantos nomes de quem morreu / Horizonte perdido no meio da
selva / Cresceu o arraial / Arraial
69
Se tudo é passageiro, tanto o “antigo” (bondes e boiadas) quanto o “novo” (tratores e
aviões) deixarão suas marcas, agindo como sugestões da ressignificação do passado a que
procedemos para melhor incorporarmos o tempo e o espaço que ocupamos em selvas de pedra
cujos horizontes muito se perderam, daí a necessidade de imortalização, através do apelo à
memória, de nossos paradigmas mais tradicionais (tribos indígenas em extinção, trens e
estradas, “ruas” e reis”), como repúdio às guerras e conflitos (do qual A persistência da
memória é um grande exemplo), e como oposição à opressão exercida pelas forças do poder e
ao mecanismo de controle de nossas reações emocionais e intelectuais, triste aspecto
denunciado pelas canções (verdadeiros hinos de resistência ao despotismo do regime militar)
e pelos filmes (sobretudo Blade Runner) supracitados. Quanto mais rígido o controle – que
69
Em Vísceras da memória Uma leitura da obra de Pedro Nava, ao mencionar trechos da memorialística de
Nava que tratam o Bar do Ponto como “centro do mundo”, Antônio Sérgio Bueno cita esta canção. Vejamos:
“Em torno do Bar do Ponto podia ser traçado um verdadeiro mapa-mundi. E por que não um mapa do Brasil
através dos nomes das ruas vizinhas? Os nomes dos estados se cruzam com os das nações indígenas nas ruas
centrais de Belo Horizonte. A lembrança do Pindorama, tão cultivada pelos modernistas, se preserva no chão,
nos signos que fazem lembrar uma canção recente: ‘Tabajaras, tamoios, tapuias, / tupinambás, aimorés, / todos
no chão.’ (Lô Borges)” (1997, p. 36). Bueno se equivoca, porém, na alusão à tribo Tabajara: no encarte do
trabalho original, lê-se, por duas vezes, “Guajajaras” (1978).
89
perdurará para sempre, conforme atestam romances como 1984 ou Admirável mundo novo
mais profunda será a reação contrária, que esta conta com um forte aliado: a memória a
registrar e a combater tanta tirania e tanta arbitrariedade, impedindo-as de cair no
esquecimento coletivo, delas extraindo lições amargas e funestas, porém essenciais.
Contra a violência institucionalizada, evocações inocentes da infância, como na “canção
dos pomares” de Augusto Meyer, a clamar pela “infância perdida / como um raio de sol”
70
,
contra a autoridade ignorante, o imaginar-se criança novamente, evocar o “aroma” do “tempo
da flor”
71
, flores de esperança brotando do estúpido asfalto, como no poema drummondiano
72
ou no ambiente rústico do Rio Grande do Sul retratado pelo memorialista em “Cerro
d’Árvore”
73
, de forma semelhante à atmosfera bucólica e nostálgica reproduzida por Nelson
Angelo na letra de “Fazenda”, canção interpretada por Milton Nascimento em Geraes (1976),
sendo todos estes exemplos fugas para o pays de tendre da infância com o intuito de evitar a
realidade de horror, ódio e incompreensão que caracterizou o século XX, com a qual artistas e
escritores se chocavam de frente e, desse choque, nascia a sua arte, a arte da liberdade e do
resgate da pureza perdida, da insubmissão e da crítica, do puro espírito rebelde que contesta
todas as autoridades patriarcais (o coronel”, o “senhor de engenho”, o “pai de família”, o
70
“Canção do minuto pueril”, Poesias, 1957, p. 83-4. Conferir comentário à p. 24 da Introdução.
71
“Bem sei: visto de longe, e por saudade, o tempo da flor é aroma; vivido, é espinho também” (MEYER,
“No tempo da flor”, 1966, p. 40). Incrível como podemos enxergar a imagem da flor da juventude de Meyer nos
versos iniciais da canção “A primeira estrela” (Túlio Mourão/Milton Nascimento/Tavinho Moura, Encontros e
despedidas, 1985), que parecem resumir a busca profundamente lírica de Meyer pelos ventos matinais, pomares
e flores da meninice perdida e recriada. Vejamos: “Nosso irmão / Senhor das manhãs / Traz uma estrela deusa,
lua novidade / Velho coração de prata de lei / Na mão, uma flor iluminada, acesa, clara, clara / Clara clara paz /
Nosso irmão / Com seu passado / E seus versos que excitam toda multidão / Nos ensina a amar / Nosso irmão”.
72
“Um inseto cava / cava sem alarme / perfurando a terra / sem achar escape. // Que fazer, exausto, / em país
bloqueado, / enlace de noite / raiz e minério? / Eis que o labirinto / (oh razão, mistério) / presto se desata: / em
verde, sozinha, / antieuclidiana, / uma orquídea forma-se.” (ANDRADE, “Áporo”, A rosa do povo, 1989, p. 49)
73
“O mundo era imenso. Começava muito além daqueles cerros quase apagados no horizonte e vinha dar na
sombra da casa, onde o peão Felisberto construía para meu uso uma casinha de brinquedo, encostada à outra,
com janelas, portas, telhado de barro e um forno” (Segredos da infância, 1949, p. 14). Ver também: “Não saberia
dizer com palavras o que foi para mim a várzea ao sol. Tive alegrias e revelações mais tarde, porém, nenhuma
tão profunda quanto aquela. Porque era indefinível e integral. Porque a consciência não me separava das coisas,
como agora. A criança era, naquele momento, a terra infinita com sua promessa, tudo possuía o sentido supremo,
a força definitiva, a luz perdida. O mundo existia, sem precisar de explicações.” (1949, p. 19)
90
“fazendeiro”, o “europeu branco”, o “vigário”, etc), arraigadas em nossa cultura desde o início
da colonização:
Água de beber / bica no quintal / sede de viver tudo / e o esquecer era tão normal /
que o tempo parava / e a meninada / respirava o vento / até vir a noite / e os velhos
falavam / coisas dessa vida / eu era criança / hoje é você / e no amanhã / nós // Água
de beber / bica no quintal / sede de viver tudo / e o esquecer era tão normal / que o
tempo parava / tinha sabiá, tinha laranjeira / tinha manga-rosa / tinha o sol da manhã
/ e na despedida / tios na varanda / jipe na estrada / e o coração ... (ANGELO,
“Fazenda”, 1976)
91
2.3 MEMÓRIA COMO GÊNERO LITERÁRIO: AUTOBIOGRAFIA E
MEMORIALISMO
“Ah, poder ser tu, sendo eu! / Ter a tua alegre
inconsciência, / e a consciência disso!” (Fernando
Pessoa, “Ela canta, pobre ceifeira”, 1995, p. 136)
“As memórias têm esse caráter luminoso de resgate
criador de uma experiência compartilhada em meio às
trevas, de conjunção solidária da mão que desenha a
letra miúda no papel amassado com outras mãos,
inaptas ao trato da palavra escrita que resguarda e
transforma o vivido”. (Wander Melo Miranda, Corpos
escritos, 1992, p. 17)
Em 1896, Henri Bergson publica, em dois tomos, a obra Matière et Mémoire,
interessado em apontar as supostas ligações entre corpo (“matéria” voltada à “ação”) e
memória (“representação” cerebral), intenção exposta a partir do subtítulo do estudo
(“Essai sur la relation du corps a l’esprit”). No capítulo 2, intitulado “De la reconnaissance
des images La mémoire et le cerveau”, Bergson estabelece dois tipos fundamentais de
memória, sendo que o primeiro está relacionado ao intelecto e à percepção do passado
(“imaginer”), e o segundo se refere ao corpo (“mécanismes moteurs”) e à ação presente
(“répétition”). O longo trecho a seguir explicita a diferenciação:
La première [mémoire] enregistrerait, sous forme d’images-souvenirs, tous les
événements de notre vie quotidienne à mesure qu’ils se déroulent; elle ne gligerait
aucun détail; elle laisserait à chaque fait, à chaque geste, sa place et sa date. Sans
arrière-pensée d’utilité ou d’application pratique, elle emmagasinerait le passé par le
seul effet d’une nécessité naturelle. Par elle deviendrait possible la reconnaissance
intelligente, ou plutôt intellectuelle, d’une perception déjà éprouvée; en elle nous
nous fugierions toutes les fois que nous remontons, pour y chercher une certaine
image, la pente de notre vie passée. Mais toute perception se prolonge en action
naissante; et à mesure que les images, une fois perçues, se fixent et s’alignent dans
cette mémoire, les mouvements qui les continuaient modifient l’organisme, créent
dans le corps des dispositions nouvelles à agir. (...) Nous prenons conscience de ces
mécanismes au moment ils entrent en jeu, et cette conscience de tout un passé
d’efforts emmagasiné dans le présent est bien encore une mémoire, mais une
mémoire profondément différente de la première, toujours tendue vers l’action,
assise dans le présent et ne regardant que l’avenir. Elle n’a retenu du pasque les
mouvements intelligemment coordonnés qui en représentent l’effort accummulé;
elle retrouve ces efforts passés, non pas dans des images-souvenirs qui les
rappellent, mais dans l’ordre rigoreux et le caractère systématique avec lesquels les
mouvements actuels s’accomplissent. A vrai dire, elle ne nous représente plus notre
passé, elle le joue; et si elle mérite encore le nom de mémoire, ce n’est plus parce
qu’elle conserve des images anciennes, mais parce qu’elle en prolonge l’effet utile
jusqu’au moment présent. (BERGSON, 1953, p. 86-7)
92
Memória como “lembrança involuntária” ou como “hábito”, imaginação
(“reconhecimento intelectual de uma percepção uma vez experimentada”, evocação de um
determinado episódio do passado e através da qual qualquer imagem pode vir à tona, uma vez
que “nenhum detalhe” é totalmente “negligenciado”
74
) ou ação (disposição do organismo de
reagir a estímulos exteriores de forma regular, pura repetição mecânica de gestos, atitudes,
etc
75
) nessa diferença capital se resumem os dois tipos de memória aventados pela filosofia
bergsoniana exposta em Matière et mémoire. A memória “sous forme d’images-souvenirs” é
uma forma de abstração
76
, ao passo que a mémoire-habitude nada mais é do que um
reconhecimento mecânico de uma atitude cotidiana, exemplificada por Bergson através do
latido de um cão que identifica a chegada de seu dono:
Quand le chien accueille son maître par des aboiements joyeux et des caresses, il le
reconnaît, sans aucun doute; mais cette reconnaissance implique-t-elle l’évocation
d’une image passée et le rapprochement de cette image avec la perception présente?
Ne consiste-t-elle pas plutôt dans la conscience que prend l’animal d’une certaine
attitude spéciale adoptée par son corps, attitude que ses rapports familiers avec son
maître lui ont composée peu à peu, et que la seule perception du maître provoque
maintenant chez lui mécaniquement? (1953, p. 87)
77
74
Vimos no item 2.1 (p. 55) que a Psicanálise confirmaria esta hipótese de Bergson no trecho de A interpretação
dos sonhos no qual Sigmund Freud se refere a uma afirmação de Scholz (“nada que tenhamos possuído
mentalmente uma vez pode se perder inteiramente”, 1988, v. 1, p. 55), ressaltando a tese de que, uma vez
presente, nenhuma imagem se apaga definitivamente de nossa memória. Escrevendo sobre a obra de Proust,
Louis Martin-Chauffier diz que “Le souvenir ne ressuscite pas ce qui est mort, car la mort, c’est l’oubli. Ce qui
reste, ce sont des traces, les traces d’un passé dont il a perdu la mémoire.” (1971, p. 57)
75
Reprodução de “atos mecânicos encadeados”, conforme a definição de Leroi-Gourhan de “memória artificial”
veiculada na História e memória de Le Goff. (Conferir o trecho em 2.1, nota 43, p. 61)
76
“Pour évoquer le passé sous forme d’image, il faut pouvoir s’abstraire de l’action présente, il faut savoir
attacher du prix à l’inutile, il faut vouloir rêver.” (BERGSON, 1953, p. 87)
77
Embora utilizando outra terminologia (“memória involuntária dos membros”, na tradução de Lúcia Miguel
Pereira), em Le temps retrouvé, Marcel Proust recorre à mémoire-habitude para justificar o “movimento reflexo”
do braço de Marcel ao evocar a amada morta: “Ma mémoire, la mémoire involontaire elle-même, avait perdu
l’amour d’Albertine. Mais il semble qu’il y ait une mémoire involontaire des membres, pâle et stérile imitation
de l’autre, qui vive plus longtemps, comme certains animaux ou végétaux inintelligents vivent plus longtemps
que l’homme. Les jambes, les bras sont pleins de souvenirs engourdis. (...) Une foi que j’avais quitté Gilberte
assez t, je m’éveillai au milieu de la nuit dans la chambre de Tansonville, et encore à demi endormi j’appelai:
‘Albetine’. Ce n’était pas que j’eusse pensé à elle, ni d’elle, ni que je la prisse pour Gilberte: c’est qu’une
réminiscence éclose en mon bras m’avait fait chercher derrière mon dos la sonnette, comme dans ma chambre de
Paris. Et, ne la trouvant pas, j’avais appelé: ‘Albertine’, croyant que mon amie défunte était couchée auprès de
moi, comme elle faisait souvent le soir, et que nous nous endormions ensemble, comptant, au réveil, sur le temps
qu’il faudrait à Françoise avant d’arriver, pour qu’Albertine pût sans imprudence tirer la sonnette que je ne
trouvais pas” (PROUST, 1954, p. 699). Em Marcel Proust” (Estudos série, 1928, p. 159), observa Tristão
de Athayde: “Vivemos ainda sob a memória do corpo. Mais do que isso, de cada parte do corpo. uma
memória em nossos braços como uma em nossos pés. Um contato, uma posição determinada, fazem nascer
em nós mundos esquecidos, menos vivamente é certo que o olfato ou a visão, mas ainda assim com toda a
riqueza da memória involuntária”. Em O círio perfeito, ao narrar a necessidade de tomar banho após um dos seus
plantões médicos, Pedro Nava fala até da “memória das mucosas do nariz”: “Tomou-o no banheiro do corredor.
93
Se a mémoire-habitude é a repetição mecânica do corpo que conscientemente identifica
determinada atitude comum e rotineira (graças à “sobrevivência” das imagens implicadas no
processo), a mémoire-souvenir, a despeito de seu reconhecimento “inteligente”, “intelectual”,
volta-se mais para o caráter espontâneo, até mesmo “involuntário”, das evocações feitas,
motivo pelo qual o filósofo tende a destacar uma diferença fundamental entre as duas formas
excludentes a primeira age através da repetição, enquanto a segunda se caracteriza
justamente pelo caráter original de sua aparição, isto é, por sua rememoração espontânea (“le
souvenir spontané”
78
), recriação de fatos e acontecimentos “desnaturalizados” e distantes
de suas características primordiais:
(...) comment ne pas reconnaître que la différence est radicale entre ce qui doit se
constituer par la répétition et ce qui, par essence, ne peut se répéter? Le souvenir
spontané est tout de suite parfait; le temps ne pourra rien ajouter à son image sans la
dénaturer. (BERGSON, 1953, p. 88)
O filósofo francês demonstra também que se trata a mémoire-souvenir de um “capricho
a reproduzir” uma imagem do passado, podendo ocorrer involuntariamente
(“indépendamment de notre volonté”, p. 90), ao contrário da mecânica e condicionada
“fidelidade a conservar”, típica da mémoire-habitude:
Disons donc, pour résumer (...), que le passé paraît bien s’emmagasiner, comme
nous l’avions prévu, sous ces deux formes extrêmes - d’un te les mécanismes
moteurs qui l’utilisent, de l’autre les images-souvenirs personnelles qui en dessinent
tous les événements avec leur contour, leur couleur et leur place dans le temps. De
ces deux moires, la première est véritablement orientée dans le sens de la nature;
la seconde, laissée à elle-même, irait plutôt en sens contraire. La première, conquise
par l’effort, reste sous la dépendance de notre volonté; la seconde, toute spontanée,
met autant de caprice à reproduire que de fidelité à conserver. (BERGSON, 1953,
p. 94-5 ; grifo meu)
79
Ensaboou-se duas, três vezes. Mudou toda a roupa, trocou os sapatos. Mas persistia dentro dele um cheiro
inescapável que era a memória das mucosas de seu nariz. Nem pediu o café com leite de todas as manhãs. Foi
direto ao botequim da esquina.” (NAVA, Pedro, 1983, 2 ed, p. 46)
78
“Ce souvenir spontané, qui se cache sans doute derrière le souvenir acquis, peut se révéler par des éclairs
brusques: mais il se dérobe, au moindre mouvement de la mémoire volontaire.” (BERGSON, 1953, p. 93)
79
Georges Gusdorf não concorda plenamente com a dicotomia proposta por Bergson. Para ele, não como
separar satisfatoriamente a mémoire-habitude da mémoire-souvenir, uma vez que, sendo ambas expressões
temporais de nossa existência, não há um limite exato a determinar onde começam e onde terminam suas
diferentes atribuições: “L’erreur des théoriciens a peut-être été de penser que l’on peut séparer le comportement
mnémique de l’activité personnelle dans son ensemble, comme si le souvenir avait des limites tranchées, un
commencement et une fin. Comme si tel ou tel moment de la vie pouvait être situé en dehors du règne de la
mémoire.” (Mémoire et personne, 1951, v. 1, p. 196)
94
Não muito distante das manifestações involuntárias que conhecemos a partir de Proust,
embora este não reconheça os pontos de contato entre a teoria bergsoniana e a concepção de
memória involuntária exposta em A la recherche du temps perdu
80
, a “souvenir spontané” de
Bergson se refere ao ressurgimento de uma lembrança através de uma imagem, reconstruída
por vezes naquele exato instante, daí advindo uma dicotomia entre a “pura lembrança” de um
fato passado (“souvenir pur”) e a “imagem” que passamos a construir (“imaginer”) a partir de
então, sendo esta a diferença entre ambas:
Imaginer n’est pas se souvenir. Sans doute un souvenir, à mesure qu’il s’actualise,
tend à vivre dans une image; mais la réciproque n’est pas vraie, et l’image pure et
simple ne me reportera au passé que si c’est en effet dans le passé que je suis allé la
chercher, suivant ainsi le progrès continu qui l’a amenée de l’obscurité à la lumière.
(BERGSON, 1953, p. 150; grifo do autor)
81
80
No capítulo 3 veremos, a partir dos comentários feitos por Augusto Meyer em “Relendo Marcel Proust”
(Proustiana brasileira, 1950, p. 63-71), de que forma Proust se recusava a aceitar a semelhança entre a filosofia
de Bergson e suas próprias idéias a respeito da memória involuntária. Assim diz Meyer: “Criador cioso de sua
originalidade, Proust não via com bons olhos qualquer aproximação com o bergsonismo, a propósito de sua
obra” (p. 67). Contudo, segundo Augusto Meyer, tal negação por parte de Proust é inteiramente desnecessária,
uma vez que inúmeras convergências entre ambas as obras, apontadas por críticos como Floris Delattre e
Charles Blondel, além do fato, inquestionável na opinião do crítico gaúcho, segundo o qual o romance
proustiano “impregnara-se de bergsonismo” já a partir da linguagem adotada. Vejamos alguns trechos do
arrazoado de Meyer: “Com o estudo de Floris Delattre, publicado em Les Études Bergsoniennes, a debatida
questão da influência de Bergson sobre Proust parece-me definitivamente solucionada; negá-la, agora, ou tentar
reduzi-la a uma simples analogia de temas, já não será muito fácil. As divergências não chegam a anular as
coincidências fundamentais, que podem resumir-se na seguinte enumeração de elementos temáticos (...): o valor
da introspecção, do ‘retour sur soi’; a duração (durée) considerada substância da realidade; (...) a memória como
força espiritual e sua riqueza reveladora; a ação do esquecimento na adaptação ao presente; a distinção entre
memória involuntária e memória voluntária. (...) Ainda vão além as coincidências: mostra-nos Floris Delattre
que a própria linguagem de Proust impregnou-se de bergsonismo, a começar pelo emprego sistemático do ‘tout
se passe comme si’ (que também aparece no trecho famoso da morte de Bergotte) até a repetição característica
das expressões ‘eu superficial’, ‘quantidades homogêneas’, ‘diferença qualitativa’, multiplicidade qualitativa’,
‘algo único’, ‘originalidade específica’ e outras” (MEYER, 1950, p. 67-9). Para Ricoeur, A la recherche du
temps perdu, “plus qu’aucune oeuvre, s’élève comme le monument littéraire symétrique de Matière et Mémoire
(2000, p. 568); e para Walter Benjamin, Matière et Mémoire define o caráter da experiência na durée (duração)
de tal maneira que o leitor se sente obrigado a concluir que apenas o escritor seria o sujeito adequado de tal
experiência. E, de fato, foi também um escritor quem colocou à prova a teoria da experiência de Bergson. Pode-
se considerar a obra de Proust, Em busca do tempo perdido, como a tentativa de reproduzir artificialmente, sob
as condições sociais atuais, a experiência tal como Bergson a imagina, pois cada vez se poderá ter menos
esperanças de realizá-la por meios naturais” (“Sobre alguns temas em Baudelaire”, 1989, p. 105). O filósofo
alemão também mais semelhanças do que divergências entre as concepções de Bergson e de Proust: “Se
damos crédito a Bergson, a presentificação da durée é que libera a alma humana da obsessão do tempo. Proust
simpatiza com esta crença e, a partir dela, criou os exercícios, através dos quais, durante toda a sua vida,
procurou trazer à luz o passado impregnado com todas as reminiscências que haviam penetrado em seus poros
durante sua permanência no inconsciente.” (1989, p. 131)
81
Comentando a teoria bergsoniana, Paul Ricoeur define a souvenir pur” como “état virtuel de la représentation
du passé, antérieur à sa venue en image sous la forme mixte du souvenir-image” (2000, p. 558), sendo já parte do
esforço de rememoração tal “venue en image”: Reconnaître un souvenir, c’est le retrouver” (2000, p. 561),
verdade “profunda “de l’anamnesis grecque: chercher, c’est espérer retrouver. Et, retrouver, c’est reconnaître
ce qu’on a une fois – antérieurement – appris.” (2000, p. 563)
95
A “imagem pura” pertence ao passado, porém a lembrança “atualizada” desta mesma
imagem é a tentativa de recriá-la e de reinterpretá-la sob novo ângulo, buscando trazê-la “da
obscuridade à luz”, esforço voltado à ação e à aplicação presentes, em contrapartida ao
passado “morto”, inerte e impotente, pois “Mon présent est ce qui m’intéresse, ce qui vit pour
moi, et, pour tout dire, ce qui me provoque à l’action, au lieu que mon passé est
essentiellement impuissant.” (BERGSON, 1949, p. 152)
“Imaginer” e “se souvenir” caracterizam, portanto, as duas atitudes relacionadas à
mémoire-souvenir, assim como “répéter” descreve o tipo de manifestação típica da mémoire-
habitude. No primeiro, lembranças espontâneas ou retrabalhadas pelo intelecto; no segundo,
repetições mecânicas e condicionamentos sensitivos. Impossível não identificar um paralelo
entre a nomenclatura utilizada por Bergson e aquela sugerida por Santo Agostinho, comentada
no item inicial deste capítulo (p. 38-9) pois por qual qualidade distinguir-se-á a mémoire-
habitude se não pela “ciência” ou “realidade” dos objetos com os quais lida, da mesma forma
que, em relação à mémoire-souvenir, pode-se associar o “se souvenir” bergsoniano à
“memória dos sentidos” em Agostinho (aquela que guarda a “imagem do objeto perdido”) e o
“imaginer” à “memória intelectual” (“idéia” que temos do objeto)?
As confluências entre os pensamentos de Santo Agostinho e de Bergson não se limitam
à nomenclatura usada para diferenciar as duas manifestações – aprofundando o cotejo entre as
duas teorias, percebe-se que as mesmas se aproximam também no esclarecimento do conceito
fundamental da filosofia bergsoniana – o conceito de durée. Vejamos como o “presente ideal”
concebido pelo pensador francês se avizinha do “triplo presente” agostiniano:
Le propre du temps est de s’écouler; le temps déjà écoulé est le passé, et nous
appelons présent l’instant où il s’écoule. Mais il ne peut être question ici d’un instant
mathématique. Sans doute il y a un présent idéal, purement conçu, limite indivisible
qui séparerait le passé de l’avenir. Mais le présent réel, concret, vécu, celui dont je
parle quand je parle de ma perception présente, celui-là occupe nécessairement une
durée. Où est donc située cette durée? Est-ce en deçà, est-ce au delà du point
mathématique que je détermine idéalement quand je pense à l’instant présent? Il est
trop évident qu’elle est en deçà et au delà tout à la fois, et que ce que j’appelle mon
présent’ empiète tout à la fois sur mon pas et sur mon avenir. Sur mon passé
96
d’abord, car ‘le moment je parle est déjá loin de moi’
82
; sur mon avenir ensuite,
car c’est sur l’avenir que ce moment est penché, c’est à l’avenir que je tends, et si je
pouvais fixer cet indivisible présent, cet élément infinitésimal de la courbe du temps,
c’est la direction de l’avenir qu’il montrerait. Il faut donc que l’état psychologique
que j’appelle ‘mon présent’ soit tout à la fois une perception du passé immédiat et
une détermination de l’avenir immédiat. Or le passé immédiat, en tant que perçu, est
(...) sensation, puisque tout sensation traduit une très longue succession
d’ébranlements élémentaires; et l’avenir immédiat, en tant que se déterminant, est
action ou mouvement. Mon présent est donc à la fois sensation et mouvement; et
puisque mon présent forme un tout indivisé, ce mouvement doit tenir à cette
sensation, la prolonger en action. D’où je conclus que mon présent consiste dans un
système combiné de sensations et de mouvements. Mon présent est, par essence,
sensori-moteur. (BERGSON, 1949, p. 152-3; grifo meu)
Este “presente indivisível”, duração “real”, “concreta”, espécie de estado psicológico”
“centralizador”, abarca simultaneamente sentidos opostos (“sensações” passadas e
“movimento” futuro), orientados, porém, para uma única direção a do porvir. A durée do
“presente ideal” para Bergson é, trocando em miúdos, a “lembrança presente das coisas
passadas”, a “visão presente das coisas presentes” e a “esperança presente das coisas futuras”
propostas por Agostinho (1987, p. 222). É graças ao conceito de durée que Georges Poulet
afirma, em Études sur le temps humain, que Henri Bergson, ao associar presente e futuro em
um momento tão emblemático de nossa história (fim do século XIX), comprovou ser não
apenas um pensador representativo das tendências intelectuais de seu século, mas um
precursor do seguinte (XX), demonstrando intuir processos psicológicos característicos deste
último, como a percepção a respeito da possibilidade da introversão (“communicaton de soi à
soi”) e de transformações profundas das mais diversas camadas, psíquicas ou sociais (“pour
Bergson devenir ne signifie plus être changé mais changer”). Assim escreve Poulet,
acentuando o fato de ser a durée bergsoniana a “única realidade”:
En son essence comme en son rôle historique, la pensée de Bergson est une pensée
transitive. Son office est de joindre le passé et l’avenir. Par un côté elle reste
profondément enfoncée dans le XIXe siècle. Elle en reprend, elle en accentue les
thèmes; elle en résout les difficultés. Pour elle, comme pour les romantiques, c’est
bien dans le souvenir profond que l’être se découvre; et il s’y découvre me, non
plus de manière intermittente et fragmentaire, après s’être cherché dans un gouffre
intérieur; mais rien qu’en laissant s’épanouir dans un moment de détente une
mémoire ineffaçable et totale que est toujours au bord de la conscience. (...) Et
pourtant, par un autre côté la pensée bergsonienne est déjà une pensée du XXe
siècle. Car pour Bergson devenir ne signifie plus être chanmais changer; c’est-à-
dire l’acte par lequel en se transformant, l’être incessamment s’invente lui-même:
82
Este verso de Boileau está citado, no item 2.1, à página 42 (nota 15).
97
‘Existir consiste à changer, changer à se mûrir, se mûrir à se créer indéfiniment soi-
même.’ Si l’être tire sans cesse l’existence de son passé, ce n’est pas comme d’un
principe dont on tire les conséquences; ni comme d’un patron dont on imite l’image;
mais par une libre adaptation de ses ressources passées à la vie présente en vue du
futur. (...) Philosophe du souvenir et philosophe du continu, reprenant donc les deux
caractéristiques de la temporalité du siècle précédent [XIXe], Bergson, cependant,
avec une souplesse merveilleuse, en évite les conséquences: plus d’opposition entre
le moment et la durée; plus de fatalisme déterminist; mais, au lieu de l’hiatus entre le
sentiment actuel de l’existence et la profondeur d’existence, la possibilité d’une
communication de soi à soi, d’une relation du moment au temps; et, à la place du
déterminisme des causes et des effets, le sentiment que n’importe quel moment peut
être vécu comme un moment neuf, et que le temps peut être toujours créé librement
à partir du moment présent. (POULET, 1949, p. XLIII – XLIV; grifo do autor)
83
Filósofo da “lembrança” mas também do “contínuo”, do “presente perpétuo” que
focaliza o futuro tendo a “duração” como fundamento do tempo (ao invés da temporalidade
mecânica que caracterizava a ciência de sua época, marcada pelo positivismo), Henri
Bergson, o primeiro pensador a distinguir continuidade de existência e de duração
84
, ousou
propor uma concepção mais humanista da ciência ao relegar determinismos de causa e efeito
a um segundo plano e valorizar sensações advindas da percepção do “momento presente”. Em
“Bergson O tema da visão panorâmica dos moribundos e a justaposição”, apêndice de sua
obra O espaço proustiano, Poulet afirma que o filósofo, ainda hesitante em Matière et
mémoire quanto a algumas concepções filosóficas, aperfeiçoou sua teoria em obras
83
Jacques Le Goff também acentua o aspecto moderno da teoria bergsoniana, precursor da abordagem da
memória levada a cabo no século XX: “[Bergson] Considera central a noção de ‘imagem’, na encruzilhada da
memória e da percepção. No termo de uma longa análise das deficiências da memória (amnésia da linguagem ou
afasia) descobre, sob uma memória superficial, anônima, assimilável ao hábito, uma memória profunda, pessoal,
‘pura’, que não é analisável em termos de ‘coisas’ mas de ‘progresso’. Esta teoria que realça os laços da
memória com o espírito, senão com a alma, tem uma grande influência na literatura. Marca o ciclo narrativo de
Marcel Proust, A la recherche du temps perdu (1913-1927). Nasceu uma nova memória romanesca, a recolocar
na cadeia ‘mito-história-romance’ (1990, p. 471). Nas considerações de Walter Benjamin, Matière et
Mémoire (...) destaca-se (...) como um monumento imponente, mantendo, mais do que as outras [obras de
Bergson], relações com a investigação científica. (...) Seu título demonstra que a estrutura da memória é
considerada como decisiva para a estrutura filosófica da experiência. Na verdade, a experiência é matéria da
tradição, tanto na vida privada quanto na coletiva. Forma-se menos com dados isolados e rigorosamente fixados
na memória, do que com dados acumulados, e com freqüência inconscientes, que afluem à memória. Bergson
não tem, por certo, qualquer intenção de especificar historicamente a memória. Ao contrário, rejeita qualquer
determinação histórica da experiência, evitando com isto, acima de tudo, se aproximar daquela experiência, da
qual se originou sua própria filosofia, ou melhor, contra a qual ela foi remetida. É a experiência inóspita,
ofuscante da época da industrialização em grande escala.” (1989, p. 104-5)
84
Georges Poulet esclarece: “L’existence et la durée ne sont plus choses identiques. Qui a une existence, n’a pas
encore nécessairement une durée. Il faut passer de l’une à l’autre, et ce passage n’est pas moins difficile à
concevoir que la relation de l’esprit au corps, ou que la transmission du mouvement dans l’univers. (...) La durée
est un chapelet d’instants. D’un grain à l’autre seule l’activité créatrice permet de passer. (Études sur le temps
humain, 1949, p. XVI)
98
posteriores tais como La perception du changement e L’Évolution créatrice
85
. Na primeira,
por exemplo, Bergson declara:
Uma atenção à vida que fosse suficientemente poderosa e suficientemente despojada
de todo interesse prático, abarcaria... num presente indiviso toda a história passada
da pessoa consciente não como um instantâneo, não como um conjunto de partes
simultâneas, mas como o continuamente presente que seria também o continuamente
movente: tal como (...) a melodia que se percebe indivisível, e que constitui do início
ao fim, se quisermos ampliar o sentido da palavra, um presente perpétuo, ainda que
esta perpetuidade não tenha nada em comum com a imutabilidade, nem a
indivisibilidade com a instantaneidade. Trata-se de um presente que dura. (...) Não
estamos diante de uma hipótese. Em casos excepcionais, sucede que a atenção
renuncia de súbito ao interesse que dava à vida: imediatamente, como por encanto, o
passado torna-se presente. Para as pessoas que vêem surgir à sua frente,
inesperadamente, a ameaça de uma morte súbita, para o alpinista que desliza em
direção ao fundo de um precipício, para afogados e enforcados, parece que pode
ocorrer uma brusca conversão da atenção algo como uma mudança de orientação
da consciência... (Apud POULET, 1992, p. 142-3; grifo meu)
Bergson se serve, portanto, de casos “excepcionais” para comprovar sua tese a respeito
do “presente perpétuo que dura”, insinuando que, em situações extremas, a memória dos
moribundos possui o poder de tornar presente, em um breve lapso de tempo, toda a vida
anterior daquele que se vê à beira da morte, sendo esta visão retrospectiva o exemplo perfeito
da indivisibilidade da durée
86
. Para Poulet, Bergson chega, através desta formulação, àquilo
85
Desta, um belo trecho citado por Poulet às páginas 136 e 137. Falando da importância do sonho, diz
Bergson: Deixemo-nos ir. Em vez de agir, sonhemos. Ao mesmo tempo, nosso eu se espalha; o nosso passado,
que até então se concentrava sobre si mesmo no impulso indivisível que nos comunicava, decompõe-se em mil e
uma lembranças que se exteriorizam umas em relação às outras, e que renunciam a se interpenetrar à medida que
se cristalizam cada vez mais. Assim, nossa personalidade volta a descer em direção ao espaço”. Ao comentar que
“o sonhador ou o visionário que revê a sua vida, revê não como a viveu, mas numa infinidade de fragmentos
espalhados em seu campo de visão” (1992, p. 137), Poulet diferencia a “memória total” da durée da “memória
fragmentada” do sonho.
86
Exemplo desta regressão catártica e hipermnésica, na memorialística brasileira, é a cena descrita por Oswald
de Andrade em Um homem sem profissão: Memórias e confissões I Sob as ordens de mamãe, na qual o
escritor, em visita ao Rio de Janeiro aos 20 anos de idade (em 1910), presenciara a eclosão da Revolta da
Armada, liderada pelo marinheiro João Cândido, e, estando na rua no início do bombardeio à cidade, viu-se em
situação de pânico ao tentar fugir dos estilhaços de balas e granadas lançadas pelos rebeldes. Atentemos para a
expressão “minuto-século” (a duréeda visão panorâmica de Oswald) a caracterizar a cena: “Espiando por
detrás da estátua, vi que o bombardeio continuava, acordando a cidade. Era terrível o segundo que mediava entre
o ponto aceso no canhão e o estrondo do disparo. Meus olhos faziam linha reta com a boca de fogo que atirava.
Naquele minuto-século, esperava me ver soterrado, pois parecia ser eu a própria mira do bombardeio”
(ANDRADE, 2002, p. 94). O topos é recorrente na literatura universal de ficção: no Sebastopol de Tolstói
uma descrição semelhante à de Oswald, envolvendo um soldado que, tendo se atirado ao chão, recordara sua
vida enquanto aguardava os “longos” segundos que decorreriam entre a detonação e o lançamento da granada e
sua explosão a alguns metros de distância dele; em 1832, Victor Hugo publica a edição definitiva de O último
dia de um condenado à morte (Le dernier jour d’un condamné), e Dostoiévski, em O idiota, em episódio
supostamente autobiográfico atribuído, no romance, a um terceiro, narra os instantes de agonia de um presidiário
momentos antes da ordem de cancelamento do fuzilamento a que estava condenado. Vale a pena
acompanharmos o longo trecho a seguir, um dos mais belos e impressionantes exemplos da visão panorâmica
dos moribundos estudada por Bergson: “O referido in
99
que poderíamos entender como “memória total”, uma memória que abrangesse, em questão
de segundos, todos os acontecimentos que precederam o perigo daquele instante crucial:
Bergson preocupou-se muito com o tema da visão panorâmica dos moribundos,
retornando a ele reiteradas vezes. Discutia-o com os amigos. É que este fenômeno
da apercepção hipermnésica de sua vida inteira, por certas pessoas em perigo de vida
fornecia a Bergson uma prova valiosa de uma de suas mais caras convicções: a
prova de que nenhuma lembrança encontra-se definitivamente soterrada pelo
esquecimento e que em cada um de nós, aflorando à nossa consciência, uma
espécie de memória total que, em certas circunstâncias, pode nos restituir
integralmente o tempo perdido. (POULET, 1992, p. 113; grifo meu)
A “memória total” referida por Bergson não está muito distante do conceito de
“memória concreta” (mémoire concrète, em oposição à mémoire abstraite) proposto por
Georges Gusdorf em Mémoire et personne, pelo menos no que diz respeito ao breve instante
no qual se dá o resgate mnemônico:
La mémoire concrète fait revivre, d’une manière souvent inattendue, tel ou tel
moment du passé dans la plénitude de sa saveur première. Restauration du passé, qui
s’impose à nous avec force. La mémoire abstraite ne porte pas sur l’intégralité d’une
situation donné, mais seulement sur tel ou tel point précis. Par exemple, je me
souviens que j’ai promis à tel ami de lui téléphoner à cinq heures. D’un côté, le
retour total d’une situation dans sa vérité originale. De l’autre, une indication
particulière, tout à fait localisée. (GUSDORF, 1951, v. 1, p. 76)
Para Gusdorf, o modelo maior de “retour total d’une situation dans sa vérité originale” é
justamente a obra de Marcel Proust: Le plus complet exemple de souvenir concret, celui de
100
característica constante da obra proustiana, funciona como singularidade e improviso (da
mesma forma que a mémoire-souvenir de Bergson), impressão que carrega em si o brusco
despertar para uma evocação que se manifesta em sua plenitude, se não tão autêntica quanto a
imagem em estado puro”, pelo menos igualmente marcante, representativa de um instante
único o da rememoração súbita e involuntária daí a massa indeterminada de aspectos
envolvidos na “operação mnemônica”, à qual mantemos fidelidade somente em relação a
certas imagens
87
:
Le monde personnel de la représentation se dessine aux confins de la perception, de
l’imagination et de la mémoire comme une masse indéterminée d’aspects, d’images,
de conduites, d’expériences liées par leur commune affinité avec une personnalité
particulière. Univers à la ressemblance de chacun, jamais tout à fait explicite et dont
la conscience claire n’envisage que des présentations plus ou moins étendues. Nous
vivons dans un monde, ami, indifférent ou ennemi, qui toujours porte notre
marque. (GUSDORF, 1951, v. 1, p. 47)
88
87
“Notre mémoire garde fidélité à certains moments de notre expérience tels qu’ils furent effectivement vécu
dans tout leur complexité.” (GUSDORF, 1951, v. 1, p. 13-4)
88
Gusdorf destaca, à página 192, o caráter impreciso da memória, “massa indeterminada de aspectos” a
selecionar algumas imagens e ignorar outras, utilizando-se de evocações desconexas e lembranças “fora de
ordem” (“sans ordre apparent”): “Chaque vie personnelle s’apparaît à elle-même comme constituée en sa
profondeur par une série de blocs concrets, histoires ou épisodes centrés autour de certaines images ou de
certains êtres. Ainsi de notre enfance, qui se profile à notre pensée d’à présent sous les espèces de groupes
d’évocations, irrégulièrement assemblés en vertu d’une logique secrète, mais qu’une étude plus approfondie
démasquerait sans doute. Ma vie, pour moi, ce sont des bouffées de réminiscences: vacances de telle année,
maladie, amours et luttes, crises de conscience et de croissance, évolutions et conversions, mariage, amitiés,
quelques noms et quelques prénoms. Souvenir de quelques paysages et de quelques visages en lesquels j’ai
contemplé certains aspects de mon propre secret. Tout cela restitué le-mêle, sans ordre apparent, chargé
ensemble de désirs et de répulsions, de regrets et de joie, retentissements assourdis de ce qui demeure dans ce
qui fut”. O trecho que destaco em itálico aparece citado na tese de Maria do Carmo Savietto, Baú de madeleines,
precedido pelo seguinte comentário da autora: “Para Gusdorf, é próprio das lembranças ressurgirem
desordenadamente, uma vez que elas são selecionadas segundo um critério de ordem interna e intrinsecamente
relacionado com os momentos que tiveram papel relevante em nossas vidas” (SAVIETTO, 2002, p. 114). A falta
de ordem das recorrências mnemônicas e a conseqüente evocação dos acontecimentos de maneira não linear são
assumidas, na memorialística brasileira, na Introdução aos Meus verdes anos de José Lins do Rego: “Fiz livro de
memória, com a matéria retida pela engrenagem que a natureza me deu. Pode ser que me escape a legitimidade
de um nome ou de uma data. Mas me ficou a realidade do acontecido como o grão na terra” (REGO, 1956, p.
06); e no primeiro volume das Memórias de Agripino Grieco: “Não sei dar ordem exata às minhas recordações
da infância. Como situar tantas criaturas em seu momento adequado? Ficam todas a saracotear-se diante de mim,
numa farândola confusa. Um pouco da fragmentária agitação dos sonhos. (...) A cronologia é naturalmente tecida
de números, e sempre tive horror aos números. Daí o desconexo de quantas desalentadas sombras reaparecem na
minha velhice a lembrar-me os dias de sol e esperança ao longe, à beira do meu rio, entre as mais formosas
árvores do mundo.” (GRIECO, 1972, p, 18)
101
O dualismo entre mémoire-souvenir e mémoire-habitude em Bergson se resolve, em
Gusdorf, através da equação memória concreta (“espontânea”, de tipo “proustiano”) versus
memória abstrata
89
(“lógica”, “organizada”):
On trouverait un exposé de ce dualisme dans le récent ouvrage de M. Pradines, qui
distingue pour les opposer une mémoire spontanée, de type proustien, et une
mémoire logique, tout à fait intellectualisée. La mémoire spontanée, dans sa richesse
concrète, demeure esthétique et contemplative. Elle risque de nous détourner de
l’action. Au contraire, la mémoire organisée intervient au service de la personne.
Elle est une des modalités d’affirmation de la personne. (GUSDORF, 1951, v. 1, p.
155)
90
A diferença é que Gusdorf considera também aspectos relacionados não somente à
relação entre o eu de outrora” e o “eu presente”, mas do Eu com o mundo e com o Outro,
pois
(...) la mémoire ne peut être définie comme le simple retour du présent. Le présent
revient, mais présent de moi-même et non du monde. Je sais que je suis seul à me
souvenir, et que la nature affirme un présent tout autre que le présent d’autrefois
revenu un instant me visiter. (...) La mémoire est le retour du présent comme pas.
Forme singulière de l’existence personnelle, réalité nouvelle que l’homme apporte
avec lui et qui constitue l’un des aspects les plus caractéristiques de sa condition.
(...) Je m’efforce de retrouver le temps perdu, et plus j’ai conscience qu’il
m’échappe, plus je multiplie les tentatives afin de reprendre possession de lui. La
mémoire livrée à elle-même réalise une sorte d’exercise incantatoire. A partir de
l’homme que je suis devenu je voudrais retrouver l’homme que j’ai été, et ensemble
le monde qui corroborait cet homme que j’étais autrefois. Tentative vouée à l’échec,
ou du moins que seule une sorte d’autosuggestion permet de croire menée à bien.
L’évocation du passé serait ainsi l’effort d’une re-création du monde. Un monde
immobilisé par la personne dans telle ou telle situation choisie pour sa signification
particulière. (1951, v. 1, p. 46 e 50; grifo meu)
Gusdorf atenta para o esforço necessário, em toda evocação, de representar o passado
não a partir da utópica restituição do evento original, mas através de uma abordagem
“renovada” pela passagem do tempo e pelo amadurecimento de quem olha a si mesmo de um
outro ângulo (buscando no “homem que ele se tornou” o “homem que ele foi”) e de uma
89
Lembrança “exterior”, “despersonalizada”, artificial e forçada, a “souvenir abstrait” não passa, para Gusdorf,
de uma “coincidência exterior” ligada ao “menos característico do ser real”: “L’essentiel de la mémoire ne réside
pas dans l’exactitude de la répétition. Celle-ci importe peu. Même, dans sa perfection, elle évoque une vie
dépersonnalisée, un automatisme de l’objectivité, qui figure le sens de la condition humaine. La restitution
d’un nom, d’une date, d’un detail précis ne consacre, de moi à moi-même, qu’une coïncidence tout extérieure,
une rencontre portant sur ce qui est le moins caractéristique de mon être el. Plus exactement, ce souvenir
abstrait ne se suffit pas à lui-même, en dépit des apparences. Si je désire justifier l’évocation, il faudra aller plus
loin que la pure et simple constatation de l’identité entre le détail d’autrefois et la réminiscence d’aujourd’hui.”
(1951, v. 1, p. 198-9)
90
Segundo nota de rodapé presente na obra de Gusdorf, o trecho pertence ao Traité de psychologie générale de
Maurice Pradines, editado em 1946 pelas Presses Universitaires de France (tomo II, p. 93).
102
distância razoável entre o “présent d’autrefois” e o “présent actuel”
91
. Na tentativa de recriar o
mundo da infância é que reside a ambigüidade da lembrança, que ela pertence ao presente
mas se refere ao passado (“réalité première”), a um passado morto enquanto realidade mas
que, conservando uma “certa presença” justamente em sua ausência, lembra o eikon platônico
e sua capacidade de tornar presentes, através da evocação, imagens pretéritas reelaboradas em
um “novo presente” (“réalité seconde”), tempo “ideal” no qual se persegue a todo custo a
unidade e a integração do velho com o novo e da tradição com a releitura, a fim de “retrouver
le temps perdu” e de dar sentido à vida rapidamente escoada:
L’ambigüité du souvenir tient au fait qu’il est un passé, un moment dépassé de mon
histoire. Il ne réponde plus directement à la situation présente. Cela se passait jadis,
quand j’étais un enfant, ou bien cela se passait en 1938, avant la guerre. Mais je ne
suis plus un enfant, et puis il y a eu la guerre. Le souvenir est un passé. Mais un
passé présent. S’il se trouvait radicalement dépassé, il ne s’offrirait plus à moi; il
serait mort, comme sont morts et déchus tant de moments de mon histoire. Le passé
du souvenir remémoré conserve une certaine présence, dans son absence même,
puisqu’il s’offre à l’esprit. Il n’existe plus de la même manière qu’au temps de sa
réalité première, mais la réalité seconde qu’il conserve lui permet de s’integrer à un
nouveau présent. (...). (GUSDORF, 1951, v. 1, p. 48; grifo meu)
E no parágrafo seguinte, completando o raciocínio:
Il n’y a pas dans l’histoire d’un homme deux instants, si voisins soient-ils, qui
puissent passer pour indiscernables. Ainsi ce que notre moire retient d’un présent
écoulé, ce n’est pas ce présent lui-même, c’est quelque chose de nouveau. Le temps
ne saurait suspendre son vol pour préserver une minute d’exception. La fidelité
absolue de la mémoire ne sera jamais qu’un mirage ou bien un désir pieux. Le passé
n’équivaut pas au présent, et le souvenir doit être compris comme un être de pensée
intermédiaire entre le passé pur, écoulé pour toujours et le présent absolu, tout
entier actuel. Passé pur et présent absolu ne sont d’ailleurs que des limites. Car le
souvenir remémoré inclut du présent, s’inscrit dans le contexte d’un présent
nouveau, et inversement tout présent inclut à divers titres beaucoup de passé:
habitudes, savoir dont se forme le tissu de chaque situation vécu. (Idem; grifo meu)
Contraposto o “passado puro” ao “presente absoluto”, resta a “mediação representativa”
(“médiation représentative”), responsável pela objetivação de lembranças e imagens pessoais
91
“Le souvenir ne doit pas être compris comme une restituition de l’événement ancien, mais comme une
approche renouvelée de cet événement. Mon passé pour autant du moins qu’il demeure vivant, ne s’offre pas à
moi comme une nature une fois achevée, mais comme la matière d’une perception qu’il me faut renouveler,
recréer” (GUSDORF, 1951, v. 1, p. 95). No segundo volume, declara: “Dans ce moment de grâce, cette
visitation, il faut bien tenir compte non seulement du temps initial que l’évocation restitue, mais aussi du temps
ultérieur l’évocation se produit”, utilizando aqui mais uma vez a obra de Proust como exemplo, obra cujo
narrador, “retrouvant Combray et le côté de chez Swann contemple son enfance avec ses yeux d’homme mûr.”
(1951, p. 311-2)
103
e pela atualização e reconfiguração de dados do passado (a “elaboração ulterior” sugerida por
Freud), acentuando a distância entre o “antigo eu” e o “atual”:
Il n’y a pas de souvenir sans médiation représentative, à quelque degré que ce soit, et
cette médiation nous oblige à objectiver notre subjectivité, à nous traiter nous-même
comme un autre, ce qui dès ce moment nous prépare à offrir nos souvenirs à autrui.
Dans notre souvenir explicité, il y a déjà une certaine distance prise de nous à nous-
même. (GUSDORF, 1951, v. 1, p. 188; grifo meu)
A idéia desenvolvida por Georges Gusdorf a respeito de como a distância entre nossos
eus faz com que tratemos a nós mesmos “como se fôssemos outros” é precursora de um dos
mais importantes e instigantes ramos de estudo da Literatura Comparada neste início de
século XXI o estudo da Alteridade, conforme veremos adiante, interessado em avaliar de
que forma a existência e a convivência com o Outro (mesmo que esse “Outro” seja apenas nós
mesmos em determinado período do passado, a “Criança” como “Outro” de si mesmo)
influenciam nossas atitudes e nosso comportamento em sociedade
92
.
Gusdorf acredita que nos vemos durante a “mediação representativa” como nos
veríamos em um sonho, no qual nunca atingimos uma “realidade definitiva” e “cristalizada”,
mas no máximo uma espécie de abstração simultaneamente regressiva e cíclica:
Nous nous y voyons un peu comme nous nous voyons dans le rêve. Mais
l’explicitation peut être plus ou moins poussée. Nos souvenirs ne prennent presque
jamais une réalité définitive, comme cristallisée. Un souvenir stéréotypé serait déjà
un souvenir mort. Le plus souvent une certaine indécision subsiste. Notre pensée
embrasse le passé selon une perspective particulière. Elle se trouve alors en
résonance avec tel ou tel aspect de notre être, qui nous est restitué sous une forme
92
Em Le même et l’autre quarante-cinq ans de philosophie française (1979, p. 72), Vincent Descombes cita
uma frase atribuída a La voix et le phénomène de Derrida: “Le même n’est le même qu’en s’affectant de l’autre”.
Em “De l’imagerie culturelle à l’imaginaire”, pertencente ao Précis de Littérature Comparée, Daniel Henri-
Pageaux afirma: “toute image procède d’une prise de conscience, si minime soit-elle, d’un Je par rapport à
l’Autre, d’un Ici par rapport à un Ailleurs. (...). D’une façon nérale, on essaiera de mettre en lumière le
système de qualification différentielle qui permet la formulation de l’altérité, à travers des couples oppositionnels
qui vont faire fusionner nature et culture: sauvage vs civilisé, barbare vs cultivé, homme vs animal (être humain
animalisé), homme vs femme, adulte vs enfant (Je est adulte, l’Autre est l’enfant...)” (PAGEAUX, 1989, p. 135 e
148; grifo meu). Em Étrangers à nous-mêmes, Kristeva expõe nosso completo desconhecimento do Outro que
nós fomos: “Inquiétante, l’étrangeté est en nous: nous sommes nos propres étrangers nous sommes divisés”
(1988, p. 268). E disseca o encontro com o Outro, “desconhecido” e “estranho” (o unheimlich de Freud):
“Étrange, en effet, la rencontre avec l’autre que nous percevons par la vue, l’ouïe, l’odorat, mais n’encadrons
pas par la conscience. (...) Étrange aussi, cette expérience de l’abîme entre moi et l’autre qui me choque je ne
le perçois même pas, il m’annihile peut-être parce que je le nie. Face à l’étranger que je refuse et auquel je
m’identifie à la fois, je perds mes limites, je n’ai plus de contenant, les souvenirs des expériences où l’on m’avait
laissée tomber me submergent, je perds contenance. Je me sens ‘perdue’, ‘vague’, ‘brumeuse’. Multiples sont les
variantes de l’inquiétante étrangeté: toutes réitèrent ma difficulté à me placer par rapport à l’autre”.
(KRISTEVA, 1988, p. 276)
104
plus ou moins fuyante. Comme si des portes s’ouvraient, que nous ne franchirons
pas toutes. Chaque visage, chaque situation retrouvée nous propose un horizon vers
lequel nous pourrions partir, à l’exclusion des autres. Mais la totalité du souvenir
s’impose à nous par delà chaque souvenir particulier et nous retient d’ordinaire de
nous y consacrer tout à fait. Tous nos souvenirs sont solidaires au sein de cette
totalité de la mémoire concrète qui, sous les espèces de notre histoire, nous permet
de pressentir la conscience la plus globale de nous-même. (1951, v. 1, p. 188)
Mesmo tendo o poder de “perscrutar a mais global consciência de nós mesmos”, nem
todas as lembranças na verdade bem poucas são evocadas, atestando o caráter seletivo e
excludente da memória, já que “l’existence, le fait d’avoir été vécu, ne donne pas à un
événement un droit au souvenir” (1951, v. 1, p. 151). E quais são, portanto, as recordações
mais comuns, ou melhor, o que distingue os mais variados tipos de lembrança, motivações
pessoais, sensoriais, sociais, racionais, involuntárias? Para Gusdorf, a essência de cada
recordação individual estará sempre atrelada à própria essência da pessoa (“L’essence du
souvenir est l’essence même de la personne”), pois “Nos souvenirs ne peuvent se réduire à un
ensemble de représentations collectives ou à une hiérarchie d’idées, dans la mesure même
un homme vivant se distingue d’un univers du discours rationnel ou social” (1951, v. 1, p.
191). Para o autor francês, a memória deve estar a serviço de nossa essência”, uma vez que
ela justifica inclusive nossa existência como indivíduos, agindo de acordo com os mesmos
princípios que nos regem microcósmica (“complexes personnels”) e macrocosmicamente
(“unités historiques et dramatiques”):
Le temps de la mémoire s’affirme comme une justification de l’être individuel, en
même temps qu’une représentation de cet être. Les principes, qui dominent le temps
et l’organisent, correspondent aux complexes personnels, unités historiques et
dramatiques de chaque passé particulier. (1951, v. 1, p. 191)
Sendo a “expressão temporal de nossa existência”, a memória é, para Georges Gusdorf,
o modo fundamental da afirmação desta existência e, mais que isso, representa a própria
atitude que assumimos diante de nós e do mundo
93
.
93
“Elle [la mémoire] se règle d’abord sur cette action totale et derniére que constitue notre affirmation dans le
monde, l’affirmation de notre réalité humaine dans son intégralité” (GUSDORF, 1951, v. 1, p. 285). Em outras
palavras: “La formation de la mémoire semble bien parallèle à la formation de la personnalité, de ses attitudes
propres et de sa pensée.” (1951, v. 2, p. 377)
105
La mémoire, fonction du passé, signe l’expression temporelle de notre existence.
Elle est donc une manière de considérer cette existence, une forme essentielle de son
affirmation. (...) il nous semble que la mémoire constitue l’une des maniéres dont le
monde nous est donné, l’une des manières pour nous de nous situer dans le monde.
Une attitude de nous à nous-même, le sens de notre propre histoire. La réalité du
passé dans la réalité du présent et dans la réalité de l’avenir. Nous ne sommes pas les
maîtres de nos souvenirs. Bien plutôt nos souvenirs nous font ce que nous sommes.
Ils disposent de nous. (1951, v. 1, p. 196-7; grifo meu)
A afirmação “Nous ne sommes pas les maîtres de nos souvenirs” toca em um ponto
fundamental desta tese, que será devidamente abordado no item seguinte, quando considerarei
os aspectos teóricos envolvidos na concepção e na apreensão dos mecanismos
desencadeadores da memória involuntária. Nesta, são as lembranças que dispõem de nós, e
não o oposto. Para Gusdorf não são os acontecimentos que possuem a sua “verdade” (já que a
memória, nas palavras de Savietto, “supõe a inexistência objetiva do passado”, 2002, p. 129),
mas nós mesmos, ao mesmo tempo sujeitos e objetos das mais variadas recordações:
La vérité de la mémoire se présente non comme une vérité sur les événements ou sur
les choses, mais comme une vérité de moi-même. Aussi bien la situation initiale ne
pouvait-elle avoir toute sa valeur que pour moi seul. Elle fut le sens de ma vie en un
certain moment. Ce sens ne peut se réaffirmer que pour moi. La vie de la mémoire
ne saurait donc être dissociée de la vie personnelle en sa plus large signification.
(1951, v. 1, p. 197; grifo meu)
Tais lembranças podem ser representadas não propriamente como sistemas, mas sob
duas “formas” de se referir ao passado de acordo com Gusdorf, podemos ser objetivos a
ponto de, preservando a exatidão dos fatos, descrevê-lo em terceira pessoa; ou considerar a
“richesse d’évocation extraordinaire” contida na narrativa em primeira pessoa, subjetiva e
confessional:
Il n’y a donc pas deux systèmes entre lesquels se partageraient mes souvenirs, mais
deux manières de faire face à mon passé, d’exercer sur lui mon droit de reprise. (...)
Je peut évoquer mon pasobjectivement, en troisième personne. En parler dès lors
avec exactitude, au besoin en les défigurant totalement. (...) Ou bien je peux faire
face à mon passé dans une intention de sympathie, le connaître et le reconnaître,
comme mien. Alors le souvenir se donne à moi en première personne; l’indication la
plus officielle et la plus vide en apparence de valeur personnelle, peut réceler une
richesse d’évocation extraordinaire. (1951, v. 1, p. 143)
94
94
Contudo, se as lembranças possuem duas formas (“objetiva” e “subjetiva”), a memória nunca é totalmente
objetiva, uma vez que não podemos deixar de considerar as impressões e informações ulteriores acrescentadas à
imagem original. Assim diz Gusdorf à página 416 do segundo volume: “Toute mémoire s’avère relative, toute
mémoire affirme une perspective particulière sur un événement, ou une série d’événements. Mais aucune de ces
perspectives ne peut se prétendre vraiment objective. (...) La réalité demeure toujours par delà les moignages
106
A estas duas formas de considerar o passado correspondem dois tipos de
“transcendências”, de acordo com o termo utilizado por Gusdorf para diferenciar o “soi du
sujet” do “soi de l’objet”
:
Notre passé, comme toute autre affirmation de notre vie, ne prend son sens que
comme symbole ou chiffre de notre être dernier, lui-même inaccessible. L’ordre de
la mémoire paraît donc bien se déployer entre deux transcendances. D’une part la
transcendance du passé, comme en soi inaccessible, et vide de sens dans sa alité
rigoureusement objective. De l’autre, la transcendance de la réalité personnelle,
antérieurement à tout affirmation dans l’univers, comme essence pure de notre être,
échappant à toute prise directe. Entre l’en soi du sujet et l’en soi de l’objet, les
souvenirs nous présentent un ensemble de signes qui nous renvoient à ces horizons
inaccessibles, et tirent de ces références invérifi
107
teórica presente na primeira parte, que trata exatamente do “pacto autobiográfico”, seção na
qual Lejeune, buscando a “appréhension globale du genre lui-même” (1975, p. 07), esclarece
pontos fundamentais da diferença entre “eu” e “tu”, entre narrativas em primeira e terceira
pessoas e principalmente entre autobiografia e memorialismo. no prefácio (Avant-propos)
Lejeune delimita o objeto de seu interesse estudar a autobiografia a partir sobretudo de seu
aporte como texto literário, abandonando o componente histórico, psicológico ou psicanalítico
da abordagem do gênero:
Ce qu’on appelle l’autobiographie est susceptible de diverses approches: étude
historique, puisque l’écriture du moi qui s’est développée dans le monde occidental
depuis le XVIIIe siècle est un phénomène de civilisation; étude psychologique,
puisque l’acte autobiographique met en jeu de vastes problèmes, comme ceux de la
mémoire, de la construction de la personnalité et de l’auto-analyse. Mais
l’autobiographie se présente d’abord comme un texte littéraire: mon propos, dans les
Études ici réunies, a été de m’interroger sur le fonctionnement de ce texte, en le
faisant fonctionner, c’est-à-dire en le lisant. (...) Si la psychanalyse apporte une aide
précieuse au lecteur d’autobiographie, ce n’est point parce qu’elle explique
l’individu à la lumière de son histoire et de son enfance, mais parce qu’elle saisit
cette histoire dans son discours et qu’elle fait de l’énonciation le lieu de sa recherche
(et de sa thérapeutique). (LEJEUNE, 1975, p. 7 e 9; grifo do autor)
Algumas páginas adiante, Lejeune conceitua a autobiografia, elencando as condições
necessárias à sua caracterização como gênero, que o limite entre, por exemplo,
autobiografia e memórias ou poema autobiográfico, é muito tênue:
Récit rétrospectif en prose qu’une personne réelle fait de sa propre existence,
lorsqu’elle met l’accent sur sa vie individuelle, en particulier sur l’histoire de sa
personnalité. (...) La définition met en jeu des éléments appartenant à quatre
catégories différentes: 1. Forme du langage: a) récit; b) en prose. (...) 2. Sujet traité:
vie individuelle, histoire d’une personnalité. (...) 3. Situation de l’auteur: identité de
l’auteur (dont le nom renvoie à une personne réelle) et du narrateur. (...) 4. Position
du narrateur: a) identité du narrateur et du personnage principal; b) perspective
rétrospective du récit. (...) Est une autobiographie toute oeuvre qui remplit à la fois
les conditions indiquées dans chacune des catégories. (1975, p. 14; grifo do autor)
“História da personalidade” centrada sobre a vida individual do memorialista, eis o
aspecto principal de um gênero que, narrado em prosa e em primeira pessoa, guarda certa
distância (“récit rétrospectif”) entre o objeto e o sujeito da recordação, da importância da
memória e da imaginação para a recomposição efetuada na autobiografia, diferentemente do
diário, espécie de crônica interessada em registrar objetivamente as impressões de um certo
período “recente”. Na autobiografia sempre relação direta entre a identidade do autor, do
108
narrador e do personagem principal da história a ser reconstituída, identidade “tripla” a
proceder à reelaboração de um passado idealizado, fusão de realidade e fantasia
95
. É
justamente à perfeita comunhão entre as três entidades que Lejeune se refere ao criar a
expressão “pacto autobiográfico”, identidade que remeterá sempre ao “nome” sob o qual se
congrega o trinômio autor-narrador-personagem: “Le pacte autobiographique, c’est
l’affirmation dans le texte de cette identité, renvoyant en dernier ressort au nom de l’auteur
sur la couverture.” (LEJEUNE, 1975, p. 26; grifo do autor)
96
Paul Ricoeur também se refere, em La mémoire, l’histoire, l’oubli, a estas
características específicas do relato autobiográfico, fazendo alusão a um “triplo dêitico” a
pontuar a autodesignação: “la première personne du singulier, le temps passé du verbe et la
mention du là-bas par rapport à l’ici” (2000, p. 204). Há, nas autobiografias, segundo o
filósofo francês, duas vertentes articuladas de um lado, a afirmação da realidade factual do
95
“Pour qu’il y ait autobiographie (et plus néralement littérature intime), il faut qu’il y ait identité de lauteur,
du narrateur et du personnage (...) L’identité du narrateur et du personnage principal que suppose
l’autobiographie se marque le plus souvent par l’emploi de la première personne” (LEJEUNE, 1975, p. 15; grifo
do autor). Ver também: “L’identité se définit à partir des trois termes: auteur, narrateur et personnage. Narrateur
et personnage sont les figures auxquelles renvoient, à l’intérieur du texte, le sujet de l’énonciation et le sujet de
l’énoncé; l’auteur, représenté à la lisière du texte par son nom, est alors le référent auquel renvoie, de par le pacte
autobiographique, le sujet de l’énonciation.” (Idem, ibidem, p. 35; grifo do autor)
96
Em Corpos escritos, Wander Melo Miranda resume a importância do “nome” para esta tripla identidade: “o
objeto profundo da autobiografia é o nome próprio, o trabalho sobre ele e a assinatura, fundamento do que
Philippe Lejeune chama de ‘pacto autobiográfico’, isto é, a afirmação da identidade autor-narrador-personagem,
remetendo em última instância ao nome do autor na capa do livro. A pessoa que enuncia o discurso deve, no
caso, permitir sua identificação no interior mesmo desse discurso, e é no nome próprio que pessoa e discurso se
articulam, antes de se articularem na primeira pessoa” (1992, p. 29; grifo do autor). Ao “pacto autobiográfico”
contrapõe-se o “pacto romanesco”, no qual o caráter ficcional da obra é indicado a partir de sua capa,
diferenciando claramente autor e narrador e/ou personagem. O “pacto romanesco” é exemplificado por Lejeune
através da referência à Recherche, embora este não seja, de acordo com o estudioso, o exemplo ideal: “On serait
tenté d’évoquer A la recherche du temps perdu, mais pour deux raisons cette fiction ne correspond pas tout à fait
à ce cas: d’une part, le pacte romanesque n’est pas clairement indiqué au début du livre, si bien que
d’innombrables lecteurs se sont trompes en confondant l’auteur Proust avec le narrateur; d’autre part, il est vrai
que le narrateur-personnage n’a aucun nom, sauf une seule fois, où, dans un même énoncé, il nous est proposé
comme hypothèse de donner au narrateur le me prénom qu’à l’auteur (énoncé qu’on ne peut rapporter qu’à
l’auteur, car comment un narrateur fictif connaîtrait-il le nom de son auteur?), et il nous est ainsi signalé que
l’auteur n’est pas le narrateur. Cette bizarre intrusion d’auteur fonctionne à la fois comme pacte romanesque et
comme indice autobiographique, et installe le texte dans un espace ambigu” (LEJEUNE, 1975, p. 29). O
“enunciado” ao qual Lejeune se refere se encontra em La prisonnière, quinto volume da Recherche, em uma
passagem na qual o narrador tenta determinar a quem precisamente Albertina se dirige no momento em que
acorda: “L’hésitation du réveil, révélée par son silence, ne l’était pas par son regard. (...) Elle [Albertine]
retrouvait la parole, elle disait: ‘Mon’ ou ‘Mon chéri’, suivis l’un ou l’autre de mon nom de baptême, ce qui, en
donant au narrateur le me prénom qu’à l’auteur de ce livre, eût fait: ‘Mon Marcel’, ‘Mon chéri Marcel’.”
(PROUST, 1954, p. 74-5)
109
acontecimento narrado, “simples informação” a respeito de um “fato significativo”; de outro,
a confirmação da declaração através da experiência de seu autor, denominada “confiabilidade
presumida” (“fiabilité présumée”) ou “elaboração secundária” (“élaboration secondaire”), se
assumirmos a expressão usada por Freud em A interpretação dos sonhos.
Para separar autobiografia de outros registros memorialísticos congêneres em estrutura,
verossimilhança ou intenção, Lejeune faz uma lista das condições não preenchidas por estes
últimos:
Les genres voisins de l’autobiographie ne remplissent pas toutes ces conditions.
Voici la liste de ces conditions non remplies selon les genres: mémoires: (2) [sujet
traité]; biographie: (4a) [identité du narrateur et du personnage principal]; roman
personnel: (3) [situation de l’auteur]; poème autobiographique: (1b) [en prose];
journal intime: (4b) [perspective rétrospective du cit]; autoportrait ou essai: (1a et
4 b) [récit et perspective rétrospective du récit]. (LEJEUNE, 1975, p. 14)
Enquanto a autobiografia preenche todos os requisitos enumerados na citação anterior a
esta última, faltam: à biografia a identidade entre narrador e personagem principal, que,
nesta, a vida do biografado não é descrita por ele próprio
97
; ao romance pessoal, a plena
concordância entre autor e narrador; ao poema autobiográfico, a narração em prosa; ao diário
íntimo, o necessário recuo no tempo; ao ensaio, a perspectiva narrativa; e, finalmente, falta às
memórias o foco sobre a vida individual da tripla identidade representada, sendo esta, a meu
ver, a mais sutil das diferenças até que ponto, podemos perguntar, o memorialista passa a
narrar não sua própria vida ou características de sua personalidade no convívio com a família
ou sociedade, mas a vida de sua comunidade ou do grupo que freqüentava? Limite frágil e
subjetivo, mas que não deixa de isolar um gênero de outro, embora ambos possuam aportes
afins
98
.
97
Para Roland Barthes, “Toda biografia é um romance que não ousa confessar-se (...)”. (Tel quel, 1971, nº 47, p.
89; Apud CALVET, Louis-Jean, Roland Barthes – Uma biografia, 1993, p. 15)
98
“Mémoires et autobiographie ont eu également un statut extérieur à la littérature, avant de s’y intégrer plus ou
moins. Les études critiques sur le genre contribuent à son changement de statut et à sa ‘promotion’ ” (LEJEUNE,
1975, p. 312). Wander Melo Miranda esclarece que “O mais comum é a interpenetração dessas duas esferas e,
quase sempre, a tentativa de dissociá-las é devida a critérios meramente subjetivos ou, quando muito, serve de
recurso metodológico” (1992, p. 36). Com efeito, a diferença entre os dois subgêneros é muito tênue: apesar de a
autobiografia ser mais “pessoal”, ambos são extremamente confessionais, sugestionando até mesmo declarações
polêmicas, dos próprios memorialistas, a respeito da utilidade de se redigir memórias Manuel Bandeira, por
110
As convergências e divergências entre os dois subgêneros serão ilustradas, no capítulo
4, justamente através da análise das Memórias de Augusto Meyer – seus Segredos da infância
focalizam principalmente as recordações individuais dos primeiros anos de vida do escritor
(“auto-representação”), embora façam alusão a familiares e colegas de escola, ao passo que
No tempo da flor privilegia, em alguns capítulos, o despertar da vocação literária do jovem
autor em contato com outros artistas de sua geração (“cosmo-representação”).
Vimos pouco que, devido ao resgate de imagens remotas que evocam episódios
ocorridos décadas antes, a autobiografia opera uma espécie de mescla entre ficção e realidade,
possuindo características que a tornam semelhante, digamos, tanto ao romance quanto ao
diário íntimo. Devido ao componente ficcional de toda autobiografia
99
, sabermos qual dos
dois autobiografia ou romance é mais “verdadeiro” em sua representação, é uma tarefa
complexa e por vezes frustrante, subjetiva e imprecisa. Para Lejeune, nenhum dos dois
gêneros é satisfatoriamente “verdadeiro”, que a um falta complexidade, e ao outro,
exatidão:
exemplo, assume seu arrependimento em Itinerário de Pasárgada: “Confesso que me vou sentindo bastante
arrependido de ter começado estas memórias. Fi-lo a instâncias de Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos.
(...) O meu arrependimento vem do nenhum prazer que encontro nestas evocações, da mediocridade que elas
respiram, e ainda das dificuldades em que me vejo ao tentar refazer o meu itinerário (...)” (1967, p. 47-8).
Graciliano Ramos acredita que as memórias devem necessariamente ser publicação póstuma”: “Estou a descer
para a cova, este novelo de casos em muitos pontos vai emaranhar-se, escrevo com lentidão e provavelmente
isto será publicação póstuma como convém a um livro de memórias” (Memórias do cárcere, 1996, v. 1, p. 35). E
Erico Veríssimo identifica no subgênero uma tentativa “ridícula” de autovalorização”: “O perigo das memórias
está no fato de que, com raras exceções, o memorialista, como a maioria dos homens, tem um grande apreço,
amor e admiração pelo seu próprio eu; acha que tudo quanto lhe acontece é digno de ser contado, oralmente ou
por escrito, em prosa ou verso, e que o leitor ou ouvinte tem de estar necessariamente muito interessado na vida
do narrador isto é, do herói, em tudo quanto ele viu, fez, pensou, disse, ouviu, sentiu... Nunca é tarde demais
para uma confissão. Uma das razões que por muito tempo me impediram de escrever memórias foi o temor de
resvalar para essa ridícula autovalorização.” (Solo de clarineta, 1976, v. 2, p. 235)
99
A fusão entre os dois, por vezes, é tão complexa, que Wander Miranda chega a falar em “ficcção
autobiográfica” para caracterizar as Memórias do cárcere de Graciliano e em “autobiografia ficcional” (1992, p.
13) para definir a obra Em liberdade, de Silviano Santiago, na qual o sujeito da escritura imagina-se o próprio
escritor alagoano a contar o que lhe teria ocorrido após a saída da prisão. À página 30, afirma Miranda: “Apesar
do aval da sinceridade, o conteúdo da narração autobiográfica pode perder-se na ficção, sem que nenhuma marca
decisiva revele, de modo absoluto, essa passagem, porquanto a qualidade original do estilo, ao privilegiar o ato
de escrever, parece favorecer mais o caráter arbitrário da narração que a fidelidade estrita à reminiscência ou o
caráter documental do narrado”. Tal tendência oscilante e dúbia da narração autobiográfica resulta em paradoxo
(ficção x verdade), pois “mesmo em sentido restrito, a autobiografia tende a assimilar técnicas e procedimentos
estilísticos próprios da ficção. Isso evidencia o paradoxo da autobiografia literária, a qual pretende ser
simultaneamente um discurso verídico e uma forma de arte, situando-se no centro da tensão entre a transparência
111
Il ne s’agit plus de savoir lequel, de l’autobiographie ou du roman, serait le plus vrai.
Ni l’un ni l’autre; à l’autobiographie, manqueront la complexité, l’ambiguïté, etc; au
roman, l’exactitude; ce serait donc: l’un plus l’autre ? Plutôt: l’un par rapport à
l’autre. Ce qui devient révélateur, c’est l’espace dans lequel s’inscrivent les deux
catégories de textes, et qui n’est réductible à aucune des deux. Cet effet de relief
obtenu par ce procédé, c’est la création, pour le lecteur, d’un ‘espace
autobiographique’. (LEJEUNE, 1975, p. 42; grifo do autor)
100
Nesse “espaço autobiográfico” alimentado pelo leitor ansioso por verossimilhança se
move, além da autobiografia e do romance, um tipo especial de “ficção em prosa”, inventada
por Santo Agostinho e aperfeiçoada por Rousseau as “confissões”, conforme indica,
segundo Lejeune, Northrop Frye em Anatomy of criticism:
L’autobiographie est une autre forme qui, par une série de transitions insensibles,
rejoint le roman. La plupart des autobiographies sont inspirées par une impulsion
créatrice, et par conséquent imaginative, qui pousse l’écrivain à ne retenir, des
événements et des expériences de sa vie, que ceux qui peuvent entrer dans la
construction d’un modèle structuré. Ce modèle peut être quelque chose qui dépasse
l’individu et auquel il a été amené à s’identifier, ou bien simplement la cohérence de
son personnage et de ses attitudes. Nous pouvons appeler cette forme très importante
de la fiction en prose la confession, d’après saint Augustin, qui semble l’avoir
inventée, et d’après Rousseau, qui en a établi le type moderne. (Apud LEJEUNE,
1975, p. 331)
Se a autobiografia e o romance convergem a ponto de dar margem a uma espécie de
gênero misto entre os dois (as “confissões”), o mesmo não ocorre em relação a outros gêneros
memorialísticos estes, por mais semelhantes que possam parecer, guardam sempre alguma
peculiaridade a diferenciá-los uns dos outros: as memórias, ao contrário da autobiografia, não
se limitam à vida individual, ao passo que o diário praticamente não separa o acontecimento
evocado do momento da enunciação, sendo esta a principal distinção entre este e aquelas: para
Béatrice Didier, o diário, algo que retrata o “cotidiano” (“trace de la quotidienneté”), o
referencial e a pesquisa estética e estabelecendo uma gradação entre textos que vão da insipidez do curriculum
vitae à complexa elaboração formal da pura poesia.” (MIRANDA, 1992, p. 30)
100
Na página anterior, Lejeune se serve de duas citações para mostrar que o romance pode ser tão ou mais
“verdadeiroque a autobiografia a primeira, de André Gide em Si le grain ne meurt: “Les Mémoires ne sont
jamais qu’à demi sincères, si grand que soit le souci de vérité: tout est toujours plus compliqué qu’on ne le dit.
Peut-être même approche-t-on de plus près la vérité dans le roman”; a segunda, de François Mauriac: “Seule la
fiction ne ment pas; elle entrouvre sur la vie d’un homme une porte dérobée, par où se glisse, en dehors de tout
contrôle, son âme inconnue” (Apud LEJEUNE, 1975, p. 41). Para Louis Martin-Chauffier, uma enorme
diferença entre a biografia (ou mesmo autobiografia) e a vida que nesta aparece retratada: Une biographie
(fictive) n’est pas la vie, c’est un récit: elle a sa ligne tracée, son but et ses procédés, elle est le contraire de la
vie;” (“Proust et le double ‘je’ de quatre personnes”, 1971, p. 61)
112
“atual”, o “presente”, o acontecido há pouco (não muito distante do “fato jornalístico”), é
responsável por “une certaine immediateté de la sensation”:
Il [le journal] diffère essentielement de l’autobiographie et des mémoires qui sont
écrits après l’événement et souvent, très longtemps après –, l’autobiographie étant
plus axée sur la vie personnelle; les mémoires, davantage sur la dimension
historique. (DIDIER, 1976, p. 09)
101
No capítulo 2, “L’emploi du temps”, Didier mostra que a grande diferença entre
autobiografia e diário está, não na “variedade de tempo” (já que tendemos a associar
autobiografia ao passado e diário ao presente), mas na predominância, no primeiro, da
narrativa, e no segundo, do discurso:
L’emploi des temps dans le journal est fort variable; on croirait a priori que le passé
est le temps de l’autobiographie et le présent, celui du journal, au jour le jour, par
définition. En fait, il suffit d’avoir lu quelques pages de journaux intimes pour voir
que la question est infiniment plus complexe et que l’on trouve une grande varié
de temps. Il convient d’abord de distinguer dans le journal la part du récit et celle du
discours. Tandis que dans l’autobiographie, le récit domine, il n’en est pas de même
dans le journal. (DIDIER, 1976, p. 159)
E o discurso domina de tal forma no diário que o cotidiano por ele circunscrito é em
parte entediante e não possui a mesma unidade presente na estrutura narrativa da
autobiografia, privilegiada pelo “recuo histórico” do qual se vale:
Le drame du journal intime, aussi bien au point de vue de l’esthétique du genre que
de la psychologie individuelle, c’est qu’il ne s’y passe rien. A mesure que l’intimité
se creuse, l’événement se réduit, jusqu’au moment il ne peut plus du tout fournir
des éléments de structure du récit. A quoi l’on pourra répondre que s’il ne se passe
rien dans le journal intime, c’est que le diariste n’est pas un homme d’action, etc.
n’est pas la question; une vie plus mouvementée risquerait aussi de perdre toute
valeur de récit à se trouver ainsi morcelée au jour le jour. Pour que l’histoire d’une
vie soit possible, il faut justement le recul historique; c’est la distance entre le temps
du récit et le temps de l’événement qui permet à l’écrivain de créer après coup une
unité à son aventure; l’au-jour-le-jour ne peut pas avoir de structure. (DIDIER, 1976,
p. 160)
102
101
Essencialmente diferente das memórias e da autobiografia, o diário tende a se colocar no extremo oposto, por
exemplo, de um gênero como o romance, uma vez que neste se procede a um longo e penoso trabalho de
recomposição e de reorganização da efabulação (tarefas nas quais o romance proustiano é modelar, segundo a
própria Didier), algo inexistente no diário: “Le roman suppose non seulement une part d’affabulation (mince
parfois, et qui pourrait affirmer qu’il n’y ait pas de fabulation dans le journal?) mais surtout un travail de
recomposition, d’organisation. A la recherche du temps perdu est aux antipodes du journal.” (DIDIER, 1976, p.
10)
102
Na página 40, Didier havia se referido à falta de estruturação narrativa do diário. Vejamos: A priori ce
genre se définirait par une absence totale de structure. Pas de ‘logique du récit’, comparable à celle qui existe
dans le conte ou dans le roman. Pour une raison bien évidente: il n’y a pas vraiment de récit. Et, curieusement, le
journal diffère, en ce point, de l’autobiographie je crois que l’on pourrait, du moins avec certaine prudence,
parler de récit. L’autobiographie est un récit construit après coup. C’est donc le fait d’écrire après l’événement,
largement après et avec un écart plus ou moins important, qui permet de donner aux faits une organisation, une
113
Didier percorre a mesma vereda seguida por Lejeune no que tange ao tipo de abordagem
eleita para a conceituação do “diário íntimo”, preferindo o viés crítico e estrutural ao recorte
histórico ou psicológico. Diz a autora:
Nous n’avons pas l’intention de faire une étude historique, ni psychologique. Nous
ne saurions être exhaustive en si peu de pages. Nous n’avons pas non plus
l’intention d’aborder le journal sous l’angle de la psychologie ni de la philosophie,
mais d’y voir essentiellement le fonctionnement d’un certain type d’écriture.
(DIDIER, 1976, p. 07)
Análise de um “certo tipo de escritura
sem “sectarismo
, adverte a autora, já que, longe
de rejeitá-los, Didier incrementa a abordagem lingüística do diário com componentes sociais e
psicanalíticos, pois “l’absence de lois esthétiques fixées à l’avance par quelque art poétique
114
‘Qui m’empêcherait d’écrire ma vie en me nommant ‘tu’? (...) On ne connaît pas
d’autobiographies qui aient été écrites ainsi entièrement; mais le procédé apparaît
parfois de manière fugitive dans des discours que le narrateur addresse au
personnage qu’il fut, soit pour le réconforter s’il est en mauvaise posture, soit pour
le sermonner ou le répudier’, et Ph. Lejeune de citer le fameux passage des
Confessions: ‘Pauvre Jean-Jacques, tu n’espérais guère qu’un jour ...’. On peut faire
à propos du journal des réflexions assez voisines, toute la différence sidant dans la
distance temporelle qui n’est pas la même. (...) L’usage prolongé d’une autre
personne que la première supposerait un dédoublement perpétuel et surtout une
distance entre le moi sujet et le moi objet qui risquerait d’être pathologique, et
d’autant plus que la distance temporelle est extrêmement réduite, sinon nulle.
L’écrivain qui dans son autobiographie se revoit enfant ou du moins beaucoup plus
jeune qu’il n’est maintenant, pourra s’addresser à cet autre au moyen du ‘tu’, se le
représenter comme ‘il’; (DIDIER, 1976, p. 150-1)
O discurso polifônico é, deste modo, um dos grandes recursos dos gêneros
memorialísticos para compensar a unidade, a estrutura e a organização inerentes aos gêneros
ficcionais em prosa
103
. Se podemos nos referir ao “eu” do passado como “ele” e até mesmo
como “tu”, é porque, aproveitando as palavras de Lucien Dällenbach, há, em certos textos, nas
autobiografias, por exemplo, um “sujeito desdobrado” (“sujet dédoublé”) a atuar em sua
composição o do presente” (“je du moi qui écrit”, Didier, p. 147) e o do “passado” (“je du
récit passé”, Idem), embora a distância temporal entre os dois seja muito maior na
autobiografia, que no diário, mais do que um novo “eu” a recriar um personagem, temos
praticamente o mesmo “eu”, o pronomezinho irritante” amaldiçoado por Graciliano
Ramos
104
, a modificar e a acrescentar observações ao texto a ser publicado.
Nous ne nous occupons pas, en ce moment, du problème de la sincérité; et ce qui
nous intéresse essentiellement, c’est que la publication finalement favorise la
multiplication des niveaux; elle va, grâce au jeu des notes, créer une perspective, et
une polyphonie, un espace dans le texte. Les notes que nous avons citées
précédemment instaurent une dialectique entre deux ‘je’, qui ferait penser à celle qui
est à la base de l’autobiographie; le ‘je’ du récit passé et le ‘je’ du moi qui écrit.
Mais la différence saute aux yeux. Dans le journal les deux ‘je’ écrivent, si bien que
la dialectique se déplace: elle opère entre le ‘je’ qui a vécu et écrit presque au même
103
Ao falar sobre as diferentes vozes do discurso, Paul Ricoeur as considera parte do
tesouro” de significações
psíquicas explorado pela literatura: “La moire est (...) à la fois un cas particulier et un cas singulier. Un cas
particulier, dans la mesure les phénomènes mnémoniques sont des phénomènes psychiques parmi les autres:
on en parle comme d’affections et d’actions; c’est à ce titre qu’ils sont atribués à quiconque, à chacun, et que
leur sens peut être compris hors de toute attribution explicite. C’est sous cette forme qu’ils rentrent eux aussi
dans le thesaurus des significations psychiques que la littérature explore, tantôt à la troisième personne du roman
en il/elle, tantôt à la première personne de l’autobiographie (‘longtemps, je me suis couché de bonne heure’),
voire à la deuxième personne de l’invocation ou de l’imploration (‘Seigneur, souviens-toi de nous’).” (2000, p.
154)
104
“Desgosta-me usar a primeira pessoa. Se se tratasse de ficção, bem: fala um sujeito mais ou menos
imaginário; fora daí é desagradável adotar o pronomezinho irritante, embora se façam malabarismos por evitá-lo.
Desculpo-me alegando que ele me facilita a narração.” (Memórias do cárcere, 1996, v. 1, p. 37)
115
moment d’une part, et le ‘je’ qui publie et ajoute ses remarques. Le ‘je’ qui publie le
journal se trouve curieusement dans la situation du ‘jequi écrit l’autobiographie;
mais le ‘je’ du ‘récit’ dans l’autobiographie n’a pas la possibilité de s’exprimer
indépendamment et nous ne savons de lui que ce que le je’ qui écrit veut bien nous
dire. Dans le journal au contraire, il y a eu un ‘je’ qui n’était pas exactement le ‘je’
du récit mais qui écrivait aussitôt après l’événement et que le ‘je’ qui publie ne peut
faire taire. Tout au plus, il lui infligera quelques mutilations: finit son pouvoir,
sous peine de détruire complètement le journal est d’en faire une autobiographie.
(DIDIER, 1976, p. 146-7)
Devido à reelaboração efetuada pela autobiografia – gênero ao qual pertencem os
Segredos da infância e (a maior parte de) No tempo da flor de Meyer e no qual se confrontam
pelo menos dois “eus”, o sujeito da escritura (perspectiva presente centrada no texto) e o “eu”
do passado (a consciência da criança evocada e ressignificada muitas décadas depois) –,
podemos entender o gênero como uma espécie de “narrativa especular” (o récit spéculaire
proposto por Dällenbach
105
), sendo, nesse caso, a criança, o espelho no qual o adulto deseja se
mirar para reconhecer-se naquele que ao mesmo tempo é e não lhe é mais familiar
(“unheimlich”), conflito que se “reflete” no texto e que o texto, reflexo da infância, por sua
vez reflete de volta, em imagens intermitentes. À página 31, sugere Dällenbach que
Autrement dit et à condition de tenir pour indifférente la nature du sujet dédoublé,
nous en revenons, après maints détours, à notre conviction première – à savoir que le
terme de mise en abyme, à son apparition, désigne, de manière univoque, ce que
certains auteurs appellent ‘l’oeuvre dans l’ouvre’ ou la ‘duplication intérieure’.
106
(DÄLLENBACH, 1977, p. 31; grifo meu)
Para o autor de Le récit spéculaire, a técnica do
mise en abyme” pode ser
compreendida como “retour de l’oeuvre sur elle-même” (p. 16) e como uma “réappropriation”
105
“L’usage de la plupart des critiques témoigne suffisamment du caractère interchangeable de la mise en abyme
et du miroir pour qu’il soit permis de les confondre et de baptiser récit spéculaire tout texte recourant à notre
procédé” (1977, p. 51 ; grifo do autor). E concluindo em seguida: est mise en abyme tout miroir interne
réfléchissant l’ensemble du récit par réduplication simple, répétée ou spécieuse.” (1977, p. 52; grifo do autor)
106
Expressões atribuídas por Dällenbach a, respectivamente, Butor (Répertoire III, Paris, Minuit 1968, p. 17) e
Morrissette (“Un héritage d’André Gide: la duplication intérieure”, Comparative Literature Studies, v. 8, n. 2,
1971, p. 125). Atentemos para o uso da expressão “duplicação interior” para se referir à confluência ou
interpolação de um texto em outro, mas que também pode ser entendida, a meu ver, no sentido de caracterizar o
espelhamento autor x narrador ou autor x eu lírico. O fenômeno da duplicação terá especial interesse no último
capítulo, quando mostrarei que, à fragmentação da personalidade no discurso poético (metaforizada pela
recorrência constante a espelhos e sombras), corresponde a fragmentação de vozes e de sujeitos na obra
memorialística de Augusto Meyer. À gina 51 de A evidência mascarada Uma leitura da poesia de Augusto
Meyer (1984), Tania Carvalhal indica o espelho como tema preferencial da poética meyeriana: Cristal claro,
água de sanga, vidraça ou fundo de um poço, a superfície refletora é móvel de consciência, recurso para o
mergulho interior”. E, alguns páginas adiante, comentando Segredos da infância: “A criação de um universo
particular e inacessível aos demais, a que se inclina desde a infância, se reproduz na obra como renúncia ao real,
116
na qual a “especularização imaginária” embasa e sustenta a “especularização escritural” a
ponto desta conseguir reconstituir a “imagem” dos “primeiros anos”, praticamente perdida e
então recuperada graças à reintegração entre corpo e linguagem
107
. Assim como Philippe
Lejeune e Béatrice Didier, também Lucien Dällenbach cita A la recherche du temps perdu,
não para destacar sua adequação ao “pacto romanesco” ou sua caracterização oposta ao diário,
mas para classificar a segunda parte de No caminho de Swann (intitulada “Um amor de
Swann”) como mise en abyme, por se tratar de uma narrativa em terceira pessoa inserida em
um romance narrado em primeira pessoa pelo protagonista Marcel. (1977, p. 36)
108
Além de ser um dos exemplos mais paradigmáticos de qualquer conceituação dos
gêneros literários, uma vez que se trata de um romance complexo (a fundir elementos
ficcionais e autobiográficos)
109
e polifônico (autor/narrador/personagem divididos entre o
sujeito da escritura e o objeto da narrativa)
110
, A la recherche du temps perdu também oferece
impulso de fuga, busca de um espaço próprio. Sempre que a solidão se instala e reina o vazio e o silêncio, a
duplicidade do Eu se manifesta, dramatizando a expressão lírica.” (CARVALHAL, 1984, p. 62; grifo meu)
107
“La parole spéculaire de l’écriture s’exaltant à l’image réfractée de celui qui écrit, le miroir des premières
années réactualisant l’intégration inaugurale du corps e du langage: nul doute que nous n’assistions ici à un
scénario typique de réappropriation, dont il appartiendrait à la analyste de gager toute la portée. Nous en
retiendrons, pour notre part, deux enseignements. Le premier, c’est que la spécularisation scripturale se soutient
de la spécularisation imaginaire qui permet au sujet de l’écriture de jouir obsessionnellement de l’image le
figurant tel qu’il se veut voir: écrivain; le second, c’est que la captation imaginaire visant à réinstaurer la relation
immédiate et continue de soi à soi est en butte, dans la mise en scène, à la discontinuité et au décalage introduits
par l’exercice même de l’écriture!” (DÄLLENBACH, 1977, p. 27; grifo meu)
108
Às páginas 215 e 216, Dällenbach cita outros comentários a respeito de “Um amor de Swann”, como por
exemplo o de J. Rousset, que nele via “un roman dans le roman, ou un tableau dans le tableau, comme certains
peintres ont aimé en insérer dans leurs oeuvres pour leur donner un effet de perspective et de profondeur; (...)
Proust place à l’une des entrées de son roman un petit miroir convexe qui le reflète en raccourci” (Apud
Dällenbach, 1977, p. 215-6). Segundo Jacques Rivière em “Marcel Proust et la tradition classique”, a distância
entre autor e objeto da narração está implícita já desde o tulo do romance: “ce titre [A la recherche du temps
perdu] (...) signifie une certaine distance entre l’auteur et son objet, une distance qu’il aura sans cesse à franchir
par la mémoire, par la réflexion, par l’intelligence; il sous-entend un besoin de connaissance; il annonce une
conquête discursive de la réalité poursuivie.” (1971, p. 28)
109
“Que l’expérience fictive du temps, mette à sa façon en rapport la temporalité vécue et le temps aperçu
comme une dimension de monde, nous en avons un indice élémentaire dans le fait que l’épopée, le drame ou le
roman ne se privent pas de mêler des personnages historiques, des événements datés ou datables, ainsi que des
sites géographiques connus, aux personnages, aux événements et aux lieux inventés” (RICOEUR. “La fiction et
les variations imaginatives sur le temps”, Temps et récit: Le temps raconté Tome III, 1985, p. 232). Este
terceiro tomo de Temps et cit, bem como o segundo (intitulado La configuration du temps dans le récit de
fiction), serão comentados ao longo do capítulo 3 desta tese, que tratará especificamente da análise do romance A
la recherche du temps perdu e de seu papel determinante para os rumos do modernismo francês e brasileiro.
110
No capítulo 3, veremos como, de acordo com Louis Martin-Chauffier (“Proust et le double ‘je’ de quatre
personnes”), são quatro, e não três, os diferentes “eus” que compõem A la recherche: “Quatre éléments, et non
plus trois. Dès que le héros ne se confond plus tend à ne plus se confondre avec l’homme, l’auteur, pour
répondre à la complexité nouvelle introduite par ce dédoublement, crée un nouveau personnage, comme les
117
inúmeras possibilidades de análise e de interpretação à luz das mais modernas teorias
envolvendo estudos comparados e comparatistas, tais como a Alteridade. Diversos autores,
dentre os quais Roland Barthes, Gérard Genette e Paul Ricoeur assim procederam, buscando
compreender a revolucionária narrativa proustiana a partir da superposição de vozes e da
dialética entre Escritura (sujeito da enunciação) e reconstituição do passado (objeto
privilegiado da narrativa), isto é, do diálogo entre o “eu” presente (“le Même”) e o “eu” da
infância (“l’Autre”). Em “La fiction et les variations imaginatives sur le temps”, Paul Ricoeur
sugere, em forma de questionamento: “Renversement dialectique: si le passé ne peut être
pensée sous le ‘grand genre’ du Même, ne le serait-il pas mieux sous celui de l’Autre?” (1985,
p. 263), que “la peinture imaginaire du passé” “resterait autre que le passé” (p. 261; grifo
do autor)?
Em La mémoire, l’histoire, l’oubli, a fim de estabelecer noções a respeito da diversidade
entre o Mesmo e o Outro, Ricoeur se vale da concepção de ontologia
111
e das teorias de John
Locke, que, sobretudo em seu Ensaio filosófico sobre o entendimento humano, de 1690,
formula três conceitos fundamentais (identity; consciousness; e self) para a compreensão da
memória como critério de identidade. À página 123, afirma Ricoeur:
(...) l’invention de la conscience par Locke deviendra la référence avouée ou non des
théories de la conscience, dans la philosophie occidentale, de Leibniz et Condillac,
118
Assim, a idéia do Outro comporta a referência do Mesmo a si, isto é, à sua própria
“identidade” em situações e ocasiões diversas. Para diferenciar o “Mesmo” da enunciação do
“Outro” do passado, Ricoeur recorre a vocábulos oriundos das línguas latina e inglesa
(retomando nesta os termos utilizados por Locke), estabelecendo o seguinte paralelo: o ipse
(“próprio”) ou self (“si”) é perene, nunca variando (“ser” enquanto “ser”, ontológico), ao
passo que o idem ou same (“mesmo”, em latim e em inglês) é o “eu” que varia conforme a
passagem do tempo (motivações psicológicas, históricas ou pessoais, efêmeras enfim, que
explicam a enorme discrepância que muitas vezes surpreendemos entre o “eu” da infância
“Outro” ou “idem” – e o sujeito da escritura – “Mesmo” ou “ipse”)
112
.
É sobretudo a partir de tais conceitos que procurarei abordar algumas das mais
representativas obras da memorialística proustiana brasileira, confrontando-as à Recherche e
nelas investigando a relação ambígua de distância e proximidade entre o eu da infância e o
sujeito da memória, que lembramos de algumas coisas e nos esquecemos de muitas outras,
em um eterno processo de rememoração, reinvenção e reconstituição de um passado
inexistente em “estado puro”, mas que, capitaneado pela imaginação, “visto de longe”
(MEYER, 1966, p. 40), é reevocado e recriado sob o ponto de vista do Outro, do adulto que,
quarenta ou cinqüenta anos depois, escreverá sobre a própria experiência a “sua”, sob a
ótica do “presente”, e a do “outro” que ele foi e que posteriormente reinventa. Através desse
expediente é que entenderemos o “sujeito desdobrado” em Augusto Meyer e o contraponto
entre o menino Tico, o jovem Aug e o adulto Meyer (sujeito da memória), todos inter-
relacionados por uma “voz interior” que incita o “Mesmo” a clamar, saudoso e lírico, pela
recriação do ambiente edênico do qual desfrutava o “Outro”, reevocado com certa angústia e
112
Eu reevocado” x eu atual”, segundo a síntese de Wander Melo Miranda a respeito da diferença entre idem e
ipse: “A reevocação do passado constitui-se a partir de uma dupla cisão, que concerne, simultaneamente, ao
tempo e à identidade: é porque o eu reevocado é diverso do eu atual que este pode afirmar-se em todas as suas
prerrogativas, assim, será contado não apenas o que lhe aconteceu noutro tempo, mas como um outro que ele era
tornou-se, de certa forma, ele mesmo.” (1992, p. 31)
119
resignação: “A todo momento, quando nos perturba a sedução da sua saudade, sentimos que é
preciso voltar de qualquer modo aos pagos da infância. Voltar! diz uma voz interior, voltar
enquanto é tempo à manhã da tua vida...” (MEYER, Segredos da infância, 1949, p. 17)
120
2.4 A MEMÓRIA INVOLUNTÁRIA E O “GATILHO” DA MEMÓRIA
“(...) comment ne pas reconnaître que la différence est
radicale entre ce qui doit se constituer par la répétition
et ce qui, par essence, ne peut se péter? Le souvenir
spontané est tout de suite parfait; le temps ne pourra rien
ajouter à son image sans la dénaturer;” (Henri Bergson,
Matière et Mémoire, 1953, p. 88)
“Le moindre accident peut déclencher l’évocation: un
mot, une perception, une sensation isolées, voire une
simple impression cénesthésique; la seule condition est
qu’un accident identique ait été vécu jadis.” (Benichou,
Apud Georges Gusdorf, 1951, v. 1, p. 90)
Creio ter formulado, nos itens precedentes, as considerações teóricas que me auxiliarão,
nos próximos capítulos, a entender as recorrências e os fenômenos mnemônicos presentes nas
Memórias de Augusto Meyer e em outras obras memorialísticas do modernismo brasileiro.
Antes, porém, de focalizar o roman-fleuve A la recherche du temps perdu (Em busca do
tempo perdido) e a crítica literária proustiana (tópicos a serem desenvolvidos no capítulo
seguinte), julgo conveniente destacar neste último item (“ponte” a “permitir” a passagem da
teoria exposta no capítulo 2 à análise da memória involuntária em Proust no capítulo 3 e em
vários memorialistas brasileiros no capítulo 4) algumas importantes características, apontadas
por certos críticos, envolvendo o surgimento e o reconhecimento de ocorrências desta que é
uma das mais misteriosas e peculiares manifestações de nossa memória.
Sabemos que Santo Agostinho (2.1, p. 36-8) intuíra ocorrências “involuntárias” em
nossa memória, que Bergson as desenvolvera (2.3, p. 92-4) e que Freud as analisara (2.1, p.
54), mas foi sobretudo A la recherche du temps perdu a obra que conferiu à memória
involuntária, embora outros tenham considerado sua existência
113
, sua representação mais
113
Em A la recherche de Marcel Proust, escreve André Maurois: “D’autres écrivains l’avaient pressentie
(Chateaubriand, Nerval, Musset), mais aucun écrivain avant Proust n’avait pensé à faire, de tels couples
sensation-souvenir, la matière même de son oeuvre” (1949, p. 173). Gusdorf também faria observação
semelhante, conforme atesta Maria do Carmo Savietto: “O filósofo francês chama a atenção para o fato de que o
reencontro com o passado é um acontecimento experimentado por todos, embora alguns consigam colher mais
frutos dessa experiência, como é o caso de Proust que soube dela [da memória involuntária] extrair uma das
obras mais originais da literatura universal, sem ter sido o primeiro a seguir esse caminho pois, antes dele,
Chateaubriand e Nerval atentaram para o ressurgimento involuntário do passado” (SAVIETTO, 2002, p.
121
profunda e exata ao fazer dela a “matéria de sua obra” e ao ressaltar seu efetivo poder
transfigurador e catalisador de lembranças anteriormente interditas e ora reveladoras de um
passado redescoberto, no caso de Marcel, a partir da inesperada sugestão do sabor
reencontrado: paladar (novo degustar, após anos, do bolinho madeleine) e olfato (odor
emanado do chá servido por tia Léonie) conjugados, dispositivos que, despertando a
imaginação, acionam ogatilho” da memória involuntária proustiana (“détonateur de la
‘déflagration du souvenir’”, na expressão de Gérard Genette)
114
e acolhem “l’apparition
mystérieuse, imprévue, grâce à laquelle va se construire, sur le goût d’un gâteau ou le parfum
d’une fleur, l’édifice immense du souvenir’.” (LAGARDE e MICHARD, 1973, p. 223; grifo
meu)
115
130). Para Benjamin Crémieux, não apenas a “matéria da obra
, mas também o estilo de Proust é original e
diferente do de outros gênios da literatura francesa: “Ce style ne s’insère dans aucune des traditions à succès du
XIXe siécle: il n’a ni le grand mouvement oratoire et mélodieux de Chateaubriand ni le rythme plus rompu, à
brusque volte, de Barrès; il ne s’apparente ni au style élaboré sur les textes du XVIe et du XVIIIe siècle et
modernisé par Anatole France, ni à celui de Jules Renard; il ne rappelle pas davantage Flaubert. Sa liberté
complète d’allure le rapprocherait peut-être du style de Balzac, si le tempérament robuste, l’exubérance, les
grossissements, la vulgarité de l’auteur de la Comédie humaine n’étaient pas aux antipodes du tempérament
maladif, de la distinction, de la précision, de la finesse de Proust. (...) Le style dA la recherche du temps perdu
n’est peut-être pas complètement au point; il est en tout cas entièrement original.” (CRÉMIEUX, “Le sur-
impressionisme de Proust”, 1971, p. 32-3)
114
Ver Genette, “Métonymie chez Proust ou la naissance du récit”, 1971, p. 172. O termo “deflágration du
souvenir” é uma menção à própria expressão que o narrador da Recherche utiliza para caracterizar a forma com
que a lembrança se apresenta a ele.
115
Segundo André Maurois, “Les sensations du goût, de l’odorat, du toucher, bien qu’elles nous semblent moins
fines que celles de la vue et de l’ouïe, et peut-être justement parce qu’elles sont moins intellectuelles, activent
mieux notre imagination” (1949, p. 187). Para Michel Butor, a memória involuntária em Proust se deve,
basicamente, à “memória dos sentidos”: “Dans l’épisode de la Madeleine, c’est le goût qui est en jeu, dans celui
du pavillon des Champs-Élysées, l’odorat, dans celui du bouton de bottine ou de l’inégalité des pavés, le
toucher; dans tous les cas, nous avons comme une parole adressée par les objets et qui s’en détache; ce
détachement atteint à son maximum dans les sensations auditives(“Les ‘moments’ de Marcel Proust”, 1971, p.
123; grifo meu). A expressão “o edifício imenso da recordação”, utilizada por Marcel para caracterizar toda a
vasta gama de sensações às quais a memória involuntária lhe expusera, pode ser conferida na Introdução (p. 19,
nota 21), bem como no item seguinte a este (3.1, a partir da p. 133). Quanto ao “gatilho” da memória, adoto a
paradigmática generalização (“madeleines-gatilhos”) criada por Pedro Nava para caracterizar as recordações
involuntárias, verdadeiro achado literário: “olho as estantes que contêm os livros de que mais gosto. A aquisição
de cada um foi o resultado de longas espreitas, pesquisas, paqueras, paciências e esperas como na conquista
das amadas. São os que funcionam como madeleines-gatilhos me restituindo gente, situações, lugares como
122
Figura 4 – O “gatilho” da memória involuntária em Proust: o chá e a madeleine
Em “Le bas couleur de bruyère”, ao discorrer sobre os componentes psicológicos e
subjetivos que movem as produções de Virginia Woolf e de Marcel Proust, porta-vozes de
uma profunda e gradual “espiritualização do objeto”
116
e conscientização de suas
potencialidades, dados que se refletem na maneira como as obras são concebidas e realizadas,
Erich Auerbach destaca a manifestação da memória involuntária em A la recherche du temps
perdu, desencadeada por um “acontecimento sem importância e aparentemente fortuito”,
como o fator responsável pela tomada de consciência, por parte do narrador, da necessidade
de reencontrar o “tempo perdido” e de reelaborar sua significação:
foram vistos no dia, na noite, no frio, no calor, na sua cor, no perfume de cada hora, nos mundos tácteis,
gustativos que eles ressuscitam.” (NAVA, 1981, p. 49; grifo meu)
116
Conferir a expressão em Études sur le temps humain, no qual Georges Poulet, ao comentar a “transmutação”,
no romance de Proust, do “objeto exterior” em algo imaterial e ontológico, ressalta a dificuldade da
“espiritualização” do objeto se consideradas certas impressões imediatas e parciais decorrentes dos acessos da
memória involuntária: “Foi en une impression immédiate, ou retrouvée, ou complétée, la pensée proustienne
revient toujours inévitablement au mystère de la relation entre un objet et une conscience. Tout se ramène
finalement à cette question: comment tel objet extérieur se transmue-t-il en cette chose intérieure, immatérielle,
aussi intime à nous-mêmes que nous-mêmes, en laquelle l’esprit librement se plonge, se meut, se complaît et se
123
Il [l’oeuvre de Proust] a été le premier à poursuivre logiquement un dessein du
même ordre, et sa technique tout entière est liée à la redécouverte par le souvenir de
la réalité perdue, redécouverte qui est déclenchée par un événement extérieurement
sans importance et apparemment fortuit. Proust a décrit plusieurs fois les processus
de cette redécouverte; nous en trouvons une description très precise, incluant la
théorie esthétique que Proust y rattache, dans le second volume du Temps retrouvé;
mais sa première mention, très frappante, apparaît dans le premier chapitre de
Du côté de chez Swann, où le goût d’une ‘petite madeleine’ trempée dans du thé, par
un morne soir d’hiver, suscite dans la personne du narrateur un intense sentiment de
plaisir qui reste d’abord indistinct. Par des efforts soutenus et répétés, il tente de
préciser la nature et la cause de ce sentiment, et il comprend que son plaisir vient
d’un souvenir: le souvenir du goût de la petite madeleine que sa tante lui donnait le
dimanche, lorsqu’il était enfant, quand il entrait dans sa chambre pour lui souhaiter
le bonjour. Du même coup, il se souvient de la vieille petite ville provinciale de
Combray, ainsi que de la maison où sa tante vivait sans plus guère quitter son lit, et
dans laquelle il passait les mois d’été avec ses parents. A la faveur de ce souvenir
retrouvé, le monde de son enfance revient à la lumière; il devient plus réel et vivant
que n’importe quel aspect du présent, un objet qu’il est possible de représenter et
la narration commence. (AUERBACH, 1968, p. 537)
O prazer catártico motivado pela súbita lembrança é o combustível adequado para a
recriação de um passado antes tido como vago e banal, “mundo da infância
que de um
momento para outro “vem à luz
, sendo a imagem reconstituída mais “viva
e “real
do que o
próprio objeto evocado, ocorrência regeneradora e plurissignificativa, rica de conquistas
interiores, que “tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardim, da minha taça de
chá” (PROUST, No caminho de Swann, 1948, p. 47)
117
. Gusdorf destaca a “intuition
instantanée” como predicado fundamental para a reconstituição de imagens, sabores e gostos
que, sobretudo após um longo período, são capazes de conferir novos sentidos a uma
experiência a princípio supérflua e desinteressante:
Le temps retrouvé de Proust se développe comme une évocation de toute la vie du
narrateur, depuis l’enfance, à partir de l’impression initiale qui, d’un seul coup,
restitue sans prétexte objectif aussi grave qu’une agonie ou un danger mortel le
panorama de toute une existence. Il semble que dans tous le cas de ce genre se
produise une sorte d’émergence du passé, comme au cours d’un cataclysme une île
nouvelle se dresse hors de la mer. (GUSDORF, 1951, v. 2, p. 295)
Assim como na hipermnésia dos moribundos, a memória total de Marcel restitui, a
partir de uma impressão inicial” súbita e involuntária, o “panorama de toda uma existência”.
confond? Or, dans l’impression immédiate, l’on sent combien cette spiritualisation de l’objet est rare et
difficile.” (POULET, 1949, p. 384)
117
No original de Du de chez Swann: “tout cela qui prend forme et solidité, est sorti, ville e jardins, de ma
tasse de thé” (PROUST, 1954, p. 48). A esse respeito, ver o comentário de André Maurois em A la recherche de
Marcel Proust: “Dès qu’il a reconnu ce goût, toute son enfance surgit, non plus sous forme de souvenirs
124
Não se trata de mera lembrança casual e sem conseqüências, uma vez que, a partir daí, o
passado se fundirá ao presente e possibilitará ao narrador uma espécie de “contato definitivo”
com o novo “eu”, sugestionado pela lembrança involuntária a lhe restituir sabores e emoções
de outrora. Para Maria do Carmo Savietto, as ocorrências da memória involuntária e a
conseqüente riqueza espiritual que estas experiências proporcionam, representam para o
personagem uma forma de liberdade e de autoconhecimento anteriormente inacessíveis:
A experiência pela qual passa o narrador proustiano, quando tomado pelo
encantamento da memória involuntária, representa, pois uma forma de libertação
que finalmente pode conduzi-lo a um mergulho introspectivo em que se o
conhecimento e o encontro com o Eu maior. (...) Reencontro do ser consigo mesmo,
descoberta de sua mais velada substância, eis o que a memória, esse veículo
suscitador, é capaz de fazer aflorar. Invadindo e rompendo a marcha cronológica do
tempo presente, ela vem instalar a ordem do intemporal na qual se inscreve e se
sustenta o ser redescoberto. (SAVIETTO, 2002, p. 151)
A experiência da memória involuntária representa, para Proust, não liberdade,
autoconhecimento e catarse, mas também uma felicidade sublime que o personagem, fisica e
emocionalmente debilitado, estaria longe de atingir se não pudesse dispor destas
manifestações:
Se os momentos de ressurreição do passado trazidos pela memória involuntária
proporcionam tanta felicidade ao narrador, é porque o elevam a um nível de
conhecimento que lhe permite ver, com mais intensidade, o que não vira no passado
por estar preso às exigências de um querer, muitas vezes, cego e obsessivo.
(SAVIETTO, 2002, p. 148)
118
Ao entrelaçamento de passado e presente deve o narrador proustiano o acesso a algo que
está muito além da simples evocação: a constatação do surgimento de um novo ser,
“purificado”, completo, indivisível, extratemporal, “ressuscitando” o passado a fim de
intellectuels et vidés de toute vigueur, mais solide, vivante et toute chargée encore des émotions qui lui
donnaient tant de charme.” (1949, p. 173)
118
Com efeito, em Le temps retrouvé, Marcel assume que a felicidade ímpar que sentia estava necessariamente
vinculada às ocorrências involuntárias: “Or cette cause, je la devinais en comparant ces diverses impressions
bienheureuses et qui avaient entre elles ceci de commun que je les éprouvais à la fois dans le moment actuel et
dans un moment éloigné, jusqu’à faire empiéter le passé sur le présent, à me faire hésiter à savoir dans lequel des
deux je me trouvais” (PROUST, 1954, p. 871). Quanto ao termo “sublime”, que utilizo para caracterizar o tipo
de felicidade sentida pelo narrador, entendo-o da forma como o verbete aparece referido na Enciclopedia
Universal Ilustrada e que se aplica perfeitamente à Recheche de Marcel. Vejamos: “Excelso, eminente, de
elevación extraordinaria. Se emplea más en sentido figurado aplicado à cosas morales ó intelectuales, y dícese
especialmente de las concepciones mentales y de las
125
reconstituir os diversos eus” que compõem esta complexa personalidade reinventada através
do reconhecimento e da aceitação recíproca entre o “Mesmo” e os “Outros” de si, um ser que,
“repartido entre o dia antigo e o atual”, “n’apparaissait que quand, par une de ces identités
entre le présent et le passé, il pouvait se trouver dans le seul milieu il pût vivre, jouir de
l’essence des choses, c’est-à-dire en dehors du temps” (PROUST, Le temps retrouvé, 1954, p.
871)
119
. De acordo com Georges Poulet,
Entre cette sensation retrouvée et la sensation présente une relation s’établissait, de
même nature qu’entre la foi de l’enfant et l’objet de sa croyance; et de cette relation
métaphorique entre deux impressions surgissait enfin le moi lui-même, non un moi
présent, sans contenu, livré au temps et à la mort; non plus un moi passé, perdu, à
peine retrouvable; mais un moi essentiel, affranchi du temps et de la contingence,
être premier et perpétuel, créateur de lui-même, auteur d’un ‘chant éternel et aussitôt
reconnu’. (POULET, Études sur le temps humain, 1949, p. 394)
Para o “Eu maior” que atingiu tão elevado grau de espiritualização (a “aprendizagem
da verdade” da qual falará Gilles Deleuze
120
), este “fora do tempo” é a marca característica da
ausência de limite entre passado e presente, consignando um dado fundamental a
reconstituição do passado, efetuada pelo binômio “ocorrência involuntária”/“reelaboração
secundária”, é muito mais importante que a “pura” imagem original: “Rien qu’un moment du
passé? Beaucoup plus, peut-être; quelque chose qui, commun à la fois au passé et au présent,
est beaucoup plus essentiel qu’eux deux.” (PROUST, Le temps retrouvé, 1954, p. 872)
Adotando o termo proposto por Georges Poulet, ao se reinventar o “eu do passado”
procede-se a uma espécie de re-conhecimento de si, processo no qual o ser “essencial”,
“verdadeiro”, é aquele que, tendo como fundamento o idem (o “Outro” que fomos), sobrepõe-
119
Gérard Genette sintetiza bem a supressão da diferença entre passado e presente em A la recherche: Entre la
chambre de Léonie jadis et l’appartement parisien maintenant, entre le baptistère de Saint-Marc naguère et la
cour de l’hôtel de Guermantes aujourd’hui, un seul point de contact et de communication: le goût de la
madeleine trempée dans du tilleul, la position du pied en porte-à-faux sur des pavés inégaux” (GENETTE, 1971,
p. 170-1). Em outro trecho de “Métonymie chez Proust”, destaque à seconde madeleine(a “reelaborada”),
aquela que possui o poder de evocar, a partir de um simples evento, uma cidade, uma casa, uma infância inteira:
“le vrai miracle proustien, ce n’est pas qu’une madeleine trempée dans du thé ait le me goût qu’une autre
madeleine trempée dans du thé, et en réveille le souvenir; c’est plutôt que cette seconde madeleine ressuscite
avec elle une chambre, une maison, une ville entière, et que ce lieu ancien puisse, l’espace d’une seconde,
‘ébranler la solidité’ du lieu actuel, forcer ses portes et faire vaciller ses meubles.” (1971, p. 173)
120
“Na realidade, a Recherche du temps perdu é uma busca da verdade. Se ela se chama busca do tempo perdido
é apenas porque a verdade tem uma relação essencial com o tempo. Tanto no amor como na natureza ou na arte,
126
se a categorias estanques e se afirma pela relação peculiar e, segundo Freud, “inconsciente”,
entre presente e passado, que culmina na supressão do Tempo:
La seule connaissance de soi possible, c’est donc la re-connaissance. Lorsque à
l’appel de la sensation présente surgit la sensation passée, le rapport qui s’établit
fonde le moi parce qu’il fonde la connaissance du moi. L’être que l’on reconnaît
avoir vecú devient le fondement de celui que l’on sent vivre. L’être véritable, l’être
essentiel, c’est celui que l’on reconnaît, non dans le passé, non dans le présent, mais
dans le rapport qui lie passé et présent, c’est-à-dire entre les deux (...) (POULET,
1949, p. 393; grifo do autor)
121
Praticamente duas cadas antes destas considerações de Poulet, Samuel Beckett, em
seu magistral e surpreendente ensaio intitulado Proust (1931; ver 3.2, p. 159-61), ao analisar o
quanto a fusão entre passado e presente é mais “essencial” ao universo de Marcel do que cada
qual “visto separadamente”, indica a “reduplicação” desta experiência, “a uma vez
imaginativa e empírica”, que conduz o narrador a vivenciar a própria “realidade essencial”:
A identificação entre as experiências imediata e passada, a reaparição de uma ação
passada, ou sua reação no presente, consiste numa colaboração entre o ideal e o real,
entre a imaginação e a apreensão direta, entre mbolo e substância. Tal colaboração
libera a realidade essencial, negada tanto à vida ativa como à contemplativa. O que
é comum ao passado e ao presente é mais essencial do que cada um deles visto
separadamente. A realidade, imaginativa ou empiricamente tomada, permanece
apenas na superfície, permanece hermética. A imaginação aplicada - a priori - ao que
está ausente é um exercício no vácuo e incapaz de tolerar os limites do real.
Também não será possível qualquer contato direta e puramente experimental entre
sujeito e objeto, que estão automaticamente separados pela consciência que o
sujeito tem de sua percepção, o que faz com que o objeto perca sua pureza e se torne
um mero pretexto ou motivo intelectual. Mas graças a esta reduplicação a
experiência é a uma só vez imaginativa e empírica, a uma só vez evocação e
percepção direta, real sem ser apenas fatual, ideal sem ser meramente abstrata, o real
ideal, o essencial, o extratemporal. Mas se esta experiência mística transmite uma
essência extratemporal, é certo então que o transmissor se torna, naquele momento,
um ser extratemporal. (BECKETT, 1986, p. 60; grifo meu)
122
não se trata de prazer, mas de verdade. Ou melhor, usufruimos os prazeres e as alegrias que correspondem à
descoberta da verdade.” (DELEUZE, Proust e os signos, 1987, p. 15)
121
Para haver re-conhecimento, é preciso haver certa “margem”, uma distância razoável entre o “Mesmo” e o
“Outro”: “Entre le souvenir qui renaît et l’être que maintenant nous sommes, avant toute reconnaissance, avant
cette identification de l’un par l’autre en quoi s’achève le souvenir, il y a ceci: la conscience d’une marge, d’une
distance, et cela, dans cette région intérieure où l’on a toujours d’ordinaire le sentiment d’être terminé par des
causes ou des séries de causes, d’être le prisonnier du temps.” (POULET, Études sur le temps humain, 1949, p.
390)
122
Proust, Porto Alegre, L&PM, 1986. Tradução de Arthur Rosenblat Nestrovski. Tal “realidade essencial” faz
sentido apenas enquanto “fusão” entre passado e presente, que essas duas entidades, isoladas, não se
“comunicam” satisfatoriamente, característica bem percebida por Roland Barthes, que questiona: “Que direito
tem meu presente de falar de meu passado? Meu presente tem algum poder sobre meu passado? Que ‘graça’ me
teria iluminado? Somente a do tempo que passa, ou de uma boa causa encontrada em meu caminho?” (Roland
Barthes por Roland Barthes, 2003, p. 137)
127
Apesar de tantos benefícios trazidos pelas manifestações involuntárias da memória (a
acuidade sensorial, o prazer redivivo, o despertar para a investigação ontológica, a busca da
verdade, etc), não possuímos qualquer tipo de domínio ou controle sobre elas ao contrário,
são as lembranças involuntárias que nos controlam e “dispõem de nós”
123
, que aparecem
repentinamente, sem obedecerem a critérios ou normas relacionadas à associação de idéias,
fidelidade cronológica, repetição mecânica de atos corriqueiros ou evocação deliberada,
bastando para isso somente certa semelhança “sensorial”, em geral com algum “acidente
idêntico já vivido outrora”
124
. Estão ligadas não à memória “intelectual” e a impressões
forjadas conscientemente, mas à memória dos “sentidos” e a impressões “corporais”
facilmente reativadas, latentes naquele que, sem o prever, será “invadido” por tais acessos.
Em outras palavras, dizendo com Walter Benjamin: “Traduzido em termos proustianos: Só
pode se tornar componente da mémoire involontaire aquilo que não foi expressa e
conscientemente ‘vivenciado’, aquilo que não sucedeu ao sujeito como ‘vivência(1989, p.
108). Lembranças fortuitas de episódios até então desprovidos de sentido e, portanto, de
“vivência” pois, encontrando-se ocultas, imersas no esquecimento, tais lembranças,
anteriormente “inexistentes”, apenas aguardam a ocasião propícia de se manifestarem. É por
isso, lembremos (2.1, p. 46, nota 19), que Savietto atribui à memória involuntária a
propriedade de servir como uma espécie de “antídoto” contra o esquecimento sua
“aparição”, imprevista, pode se dar a qualquer momento, da forma mais inusitada e a partir
das mais diversas associações possíveis, já que nenhuma informação é definitivamente
descartada de nossos registros mnemônicos, estando ainda presente, de certo modo, em algum
lugar do cérebro:
As revelações mais significativas que a memória pode nos fazer acerca da nossa
identidade parecem estar (...) imersas no esquecimento, mas basta que um estímulo
123
Ler novamente a observação de Georges Gusdorf, citada à página 105 do item 2.3: “Nous ne sommes pas les
maîtres de nos souvenirs. Bien plutôt nos souvenirs nous font ce que nous sommes. Ils disposent de nous.”
(1951, v. 1, p. 197)
124
Conferir epígrafe de Benichou, à página 120 deste item: “(...) la seule condition est qu’un accident identique
ait été vécu jadis.”
128
exterior, coadunado a uma disposição interior, lance para a claridade aquilo que se
achava imerso nas sombras do esquecimento. (2002, p. 152)
A memória involuntária restitui a imagem ainda não deturpada pela inteligência e pelo
raciocínio circular e repetitivo, mas o reconhecimento da origem da lembrança despertada
pelo paladar e pelo olfato não é tão simples assim: Marcel demora a reelaborar o ocorrido
após ter experimentado novamente o bolo e o chá (cena que veremos com detalhe no capítulo
3), e somente depois de um certo tempo consegue abstrair, também subitamente, o significado
do que lhe ocorrera e de onde vinha aquele sabor:
Et tout d’un coup le souvenir m’est apparu. Ce goût, c’était celui du petit morceau
de madeleine que le dimanche matin à Combray (parce que ce jour-là je ne sortais
pas avant l’heure de la messe), quand j’allais lui dire bonjour dans sa chambre, ma
tante Léonie m’offrait après l’avoir trempé dans son infusion de thé ou de tilleul. La
vue de la petite madeleine ne m’avait rien rappelé avant que je n’y eusse goûté;
peut-être parce que, en ayant souvent aperçu depuis, sans en manger, sur les tablettes
des pâtissiers, leur image avait quitté ces jours de Combray pour se lier à d’autres
plus cents; peut-être parce que, de ces souvenirs abandonnés si longtemps hors de
la mémoire, rien ne survivait, tout s’était desagrégé; (PROUST, Du côté de chez
Swann, 1954, p. 46-7)
125
À medida que Proust valoriza as recordações involuntárias, fazendo delas a “matéria de
sua obra”, rejeita terminantemente as supostas qualidades das lembranças conscientes. Nos
“Projetos de Prefácio” que abrem Contre Sainte-Beuve
126
, o romancista assume sua
parcialidade:
125
Trecho traduzido por Mario Quintana da seguinte forma: “E, de súbito, a lembrança me apareceu. Aquele
gosto era o do pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray (pois nos domingos eu não saía
antes da hora da missa) minha tia Leôncia me oferecia, depois de o ter mergulhado no seu cda Índia ou de
tília, quando ia cumprimentá-la em seu quarto. O simples fato de ver a madalena não me havia evocado coisa
alguma antes de que a provasse; talvez porque, como depois tinha visto muitas, sem as comer, nas confeitarias, a
sua imagem deixara aqueles dias de Combray para se ligar a outros mais recentes; talvez porque, daquelas
lembranças abandonadas por tanto tempo fora da memória, nada sobrevivia, tudo se desagregara;” (PROUST,
No caminho de Swann, 1948, p. 47)
126
Nesse mesmo “Prefácio”, Proust antecipa o episódio da madeleine reelaborado na Recherche, confessando de
onde tirou a idéia original para a concepção do acesso involuntário mais representativo de seu roman-fleuve,
referido como “simples acaso”: “Certa noite, tendo retornado congelado pela neve, e sem conseguir reaquecer-
me, pus-me a ler no meu quarto diante da lâmpada, quando minha velha cozinheira tomou a iniciativa de me
preparar uma xícara de chá, coisa que nunca bebo. Mas o acaso fez com que me trouxesse fatias de pão torrado.
Umedeci então o pão torrado na xícara de chá e, no momento em que coloquei o pão torrado na boca,
experimentei contra o palato a sensação de seu amolecimento, penetrado pelo gosto do chá; invadiu-me então
uma emoção, odores de gerânios, laranjeiras, uma sensação de extraordinária luz, de felicidade; eu permanecia
imóvel, temendo deter por um só momento aquilo que se passava comigo e que eu não compreendia, ligando-me
sempre àquele gosto de pão molhado que parecia produzir tantas maravilhas, quando de repente os frágeis
tabiques de minha memória cederam e foram os verões passados na casa de campo que irromperam em minha
consciência, com suas manhãs, arrastando com eles o desfile, a carga incessante das horas felizes. Então lembrei-
129
Cada dia dou menos valor à inteligência. Cada dia acredito mais e mais que é
somente independentemente dela que o escritor pode reabilitar alguma coisa de
nossas impressões do passado, atingindo assim algo dele mesmo e a única matéria
da arte. Aquilo que a inteligência nos sob o nome do passado não é ele.
(PROUST, 1988, p. 39)
127
No ensaio “Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais” (2001, p.
46), Jacy Alves de Seixas, discutindo o artigo “Swann expliqué par Proust”
128
, reproduz
opiniões do autor de Les plaisirs et les jours a respeito das limitações da recordação
voluntária, mostrando ainda ser a memória involuntária a “verdadeira memória”:
Encontramos em Proust uma radicalização da crítica à noção de memória voluntária:
aviltada pelo hábito, certamente, mas também pela inteligência. Proust afasta-se aqui
de Bergson, criticando a memória voluntária enquanto memória intelectual. ‘Para
mim’, escreve Proust, ‘a memória voluntária, que é sobretudo uma memória da
inteligência e dos olhos, nos dá do passado apenas faces sem verdade; mas quando
um odor, um sabor encontrados em circunstâncias muito diferentes despertam em
nós, apesar de nós, o passado, sentimos o quanto este passado era diferente do que
acreditávamos lembrar, e que nossa memória voluntária pintava, como o fazem os
maus pintores, com cores sem verdade.’ A memória voluntária é uma memória
uniforme e, em grande medida, enganadora, pois opera com imagens que, apesar de
representarem a vida, não ‘guardam’ nada dela. Nesse sentido, observa Proust,
‘podemos prolongar os espetáculos da memória voluntária que não exige de nós
mais forças do que folhear um livro de imagens.’ Em Proust, a memória involuntária
é aquela que rompe com o hábito (que constitui a camada mais superficial da
memória voluntária), mas sobretudo rompe com todo o esforço vão de busca e
captura intelectual do passado. Buscar o passado por meio do gesto voluntário da
inteligência é, a um só tempo, desgastante e infecundo: este o julgamento do
narrador adulto ao defrontar-se com a verdadeira memória e seu poder de ‘fazer
reencontrar os dias antigos, o tempo perdido, face aos quais os esforços de minha
memória e de minha inteligência sempre fracassavam.’ (SEIXAS, 2001, p. 46)
129
me: todos os dias, depois de me aprontar, descia ao quarto de meu avô que acabava de despertar e tomava seu
chá. Ele umedecia um biscoito e servia-me. Quando aqueles outonos passaram, a sensação do biscoito amolecido
no chá tornou-se um dos refúgios onde as horas mortas – mortas para a inteligência – ocultar-se-iam, e onde sem
dúvida eu nunca as teria reencontrado, se naquela noite de inverno, retornando congelado pela neve, a cozinheira
não me houvesse oferecido a bebida a que a ressurreição estava ligada, em virtude de um pacto mágico que eu
desconhecia. Mas tão logo provei o biscoito, foi todo um jardim, aentão vago e terno aos meus olhos, com
suas alamedas esquecidas, que se desenhou, canteiro por canteiro, com todas as suas flores, na minúscula xícara
de chá, como as florezinhas japonesas que só vicejam na água.” (PROUST, 1988, p. 39-40)
127
Maurice Blanchot também enxerga uma estreita correlação entre acessos da memória involuntária e a arte
preconizada por Proust, pois esta se trata “d’un art qui n’aurait demandé ses ressources qu’à l’enchantement
momentané des souvenirs involontaires” (“L’étonnante patience”, 1971, p. 93). Além disso, “L’art qu’il vise ici
ne peut être fait que de moments brefs: la joie est instantanée, et les instants qu’elle fait valoir ne sont que des
instants” (Idem, ibidem). Em “O processo holometabólico de Marcel Proust”, ensaio incluído na edição brasileira
de Contre Sainte-Beuve, Aguinaldo José Gonçalves cita a relação entre memória involuntária e a arte proustiana:
“A busca do eu profundo equivale ao exercício do narrador, ao pôr em prática as suas iluminações, ou as
iluminações da memória involuntária, para recriar as experiências da vida num trabalho de arte. (...) Mais
importante que o recordar pela memória voluntária, estão os cinco sentidos, despertos, disponíveis, aguçados e
integrados para a composição associativa dos fluxos da realidade literária.” (1988, p. 11)
128
Essais et articles, Paris, Gallimard, 1971, p. 558.
129
Além desta menção feita por Jacy de Seixas, destacando que, para Proust, a memória voluntária não passa de
um hábito comum e maçante, opinião semelhante pode ser constatada através da própria leitura de A la
recherche du temps perdu quando, no quarto volume (Sodome et Gomorrhe), Marcel comenta que “(...) si
l’habitude est une seconde nature, elle nous empêche de connaître la première, dont elle n’a ni les cruautés, ni les
enchantements” (PROUST, 1954, p. 754). Ver também: “Les images choisies par le souvenir sont aussi
130
Ao associar a “memória pura” em Bergson à memória “involuntária” em Proust, Walter
Benjamin também comenta o contraste estabelecido em A la recherche du temps perdu entre a
memória involuntária fundamental para a concepção, estruturação e realização do romance
e a voluntária, secundária, supérflua, incapaz de reter do passado traços ou informações
relevantes:
A memória pura a mémoire pure da teoria bergsoniana se transforma, em Proust,
na mémoire involontaire. Ato contínuo, confronta esta memória involuntária com a
voluntária, sujeita à tutela do intelecto. As primeiras páginas de sua grande obra se
incumbem de esclarecer esta relação. Nas reflexões que introduzem o termo, Proust
fala da forma precária como se apresentou em sua lembrança, durante muitos anos, a
cidade de Combray, onde, afinal, havia transcorrido uma parte de sua infância. Até
aquela tarde, em que o sabor da madeleine (espécie de bolo pequeno) o houvesse
transportado de volta aos velhos tempos sabor a que se reportará, então,
freqüentemente –, Proust estaria limitado àquilo que lhe proporcionava uma
memória sujeita aos apelos da atenção. Esta seria a mémoire volontaire, a memória
voluntária; e as informações sobre o passado, por ela transmitidas, não guardam
nenhum traço dele. (BENJAMIN, 1989, p. 106; grifo do autor)
Para que entendamos perfeitamente as considerações de Proust a respeito da memória
voluntária (ou “memória da inteligência”), o escritor alemão aconselha a consulta a um
importante texto de Freud, freqüentemente citado por psicanalistas e educadores Além do
princípio do prazer. Vejamos:
Na busca de uma definição mais concreta do que parece ser um subproduto da teoria
bergsoniana no conceito proustiano de memória da inteligência, é aconselhável se
reportar a Freud. Em 1921 surgiu o ensaio Além do princípio do prazer, onde Freud
estabelece uma correlação entre a memória (na acepção de mémoire involontaire) e
o consciente. (BENJAMIN, 1989, p. 108)
Walter Benjamin se refere à diferença, explicitada por Freud neste ensaio, entre
consciência e instinto, ou melhor, entre fenômenos conscientes, reconhecidos pela adequação
à realidade e a normas predeterminadas de conduta, e inconscientes, nos quais abundam a
“surpresa”, o “sobressalto”, o “susto experimentado”, dando margem à ocorrência das mais
arbitraires, aussi étroites, aussi insaisissables, que celles que l’imagination avait formées et la réalité détruites. Il
n’y a pas de raison pour qu’en dehors de nous, un lieu réel possède plutôt les tableaux de la mémoire que ceux
du rêve. Et puis, une réalité nouvelle nous fera peut-être oublier, détester même les désirs à cause desquels nous
étions partis.” (Idem, p. 752; grifo meu)
131
diversas manifestações involuntárias. (ver FREUD, Más allá del principio del placer, 1953, v.
2, p. 225)
A memória involuntária, na concepção de Proust, fundamenta o “edifício imenso da
recordação” com prazer e vigor, dando vida, através desta reinvenção, a uma imagem
esquecida, “abandonada” pela consciência. Trata-se, portanto, de uma ressurreição positiva do
passado. Já para a psicanálise a memória involuntária representa o contato com algo
traumático (algo que precisa “vir à tona” e do qual o paciente deve se lembrar justamente para
se livrar de uma imagem ou cena que inconscientemente lhe incomoda), “traumático” porém
catártico, pois a imagem que a manifestação involuntária revive, muito recalcada pelo
paciente, retorna com toda sua elevada carga de angústia e insegurança, desafiando a
consciência daquele que muitas vezes não consegue assimilar eventos tão complexos e de
motivações tão obscuras. Georges Gusdorf percebeu profundamente esta diferença básica
entre as formas de Proust e de Freud encararem os acessos da memória involuntária. Assim,
(...) pour Proust, la saveur de la madeleine ou le tintement de la cuiller se réfèrent à
l’ensemble d’une realité une fois donnée, et riche de valeur personnelle. Le
refoulement correspond à une forme du souvenir ‘involontaire’, symétrique, en un
sens opposé, du souvenir involontaire proustien. Souvenir de valeur négative, char
d’angoisse, par opposition au souvenir de valeur positive et riche de plénitude. Dans
les deux cas, il s’agit bien d’une résurrection du passé, encore que l’une soit
acceptée par la conscience, tandis que l’autre, repoussée par une réaction d’auto-
défense, n’accédera pas à la pensée claire. (GUSDORF, 1951, v. 1, p. 195)
Apesar destas divergências destacadas por Benjamin e por Gusdorf, quem aproxime
as obras de Proust e de Freud levando em conta uma característica essencial de ambas a
importância dada às manifestações inconscientes, detalhe percebido por Malcolm Bradbury a
partir de uma observação de Michel Butor:
Proust nunca leu Freud pois as traduções francesas surgiram tarde demais, porém
ele fazia parte de um mundo de medicina e ciências que o conhecia, e de círculos
literários profundamente fascinados pela psicologia moderna. O romancista
psicológico Paul Bourget é considerado o inspirador da personagem Bergotte, um
romancista. Michel Butor afirmou que Proust e Freud realizaram as mesmas
pesquisas paralelamente, e um ajuda a entender o outro; nisso muito de
verdadeiro. Proust diz que seu romance constitui uma busca de mergulhador no
inconsciente, e Em busca do tempo perdido é, entre outras coisas, a busca das
132
origens de uma doença psíquica e somática que tivera início na infância e que, com
o tempo é ‘sublimada’ na arte. (BRADBURY, 1989, p. 130)
130
Memória edificante, ressurreição, através do “simples acaso” sugestionado por uma
imagem muito esquecida, de todo um passado materializado em cidades, casas e jardins
redescobertos, a memória involuntária em A la recherche du temps perdu é, como podemos
ler acima, rica de valor pessoal e de plenitude, verdadeira sublimação epifânica do ser que
ressuscita o passado (e do passado) através de um bolo umedecido no chá e cria, dessa forma,
um dos episódios mais significativos da literatura universal moderna, síntese dos
questionamentos ontológicos mais autênticos e paradigmáticos, uma vez que “todos têm a sua
madeleine
131
.
130
Para entendermos melhor a relação entre os textos de Freud e de Proust, convém conferir o subcapítulo “Le
temps freudien” (1994, p. 556-559), pertencente à obra Le temps sensible Proust et l’expérience littéraire, no
qual Julia Kristeva discute temas como sublimação e pulsão a partir do aporte freudiano de inconsciente. José
Maria Cançado sintetiza a importância de ambos para o pensamento moderno da seguinte maneira: Houve
Marx, houve Freud e houve Proust: os três sentiram, cada um à sua maneira, que era preciso virar o mundo de
cabeça para baixo.” (CANÇADO, Marcel Proust – As intermitências do coração, 1983, p. 59)
131
Expressão de Pedro Nava que, em Baú de ossos, ao comentar o prazer que sentia ao comer novamente a
rapadura feita pela avó Nanoca (chamada de “batida” no Ceará), afirma que todos os escritores memorialistas
estão sujeitos aos acessos da memória involuntária, tendo sido Proust aquele que “dissecara” seus processos de
forma completa e definitiva: “Se a batida do Ceará é uma rapadura diferente, a batida de minha avó Nanoca é
para mim coisa à parte e funciona no meu sistema de paladar e evocação, talqualmente a madeleine da tante
Leonie. Cheiro de mato, ar de chuva, ranger de porta, farfalhar de galhos ao vento noturno, chiar de resina na
lenha dos fogões, gosto dágua de moringa nova todos m a sua madeleine. que ninguém a tinha explicado
como Proust – desarmando implacavelmente, peça por peça, a mecânica lancinante desse processo mental. Posso
comer qualquer doce, na simplicidade do ato e de espírito imóvel. A batida, não. A batida é viagem no tempo.
Libro-me na sua forma, no seu cheiro, no seu sabor.” (NAVA, 1983, p. 43-4)
3 A LA RECHERCHE DU TEMPS PERDU E A RECONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA:
O MONUMENTAL “EDIFÍCIO IMENSO DA RECORDAÇÃO” INVOLUNTÁRIA
3.1 O ROMAN-FLEUVE DE MARCEL PROUST E SUA MOLA PROPULSORA: A
MEMÓRIA INVOLUNTÁRIA
“Il y avait déjà bien des années que, de Combray, tout ce qui n’était pas le théâtre et
le drame de mon coucher, n’existait plus pour moi, quand un jour d’hiver, comme je
rentrais à la maison, ma mère, voyant que j’avais froid, me proposa de me faire
prendre, contre mon habitude, un peu de thé. Je refusai d’abord et, je ne sais
pourquoi, je me ravisai. Elle envoya chercher un de ces gâteaux courts et dodus
appelés Petites Madeleines qui semblent avoir été moulés dans la valve rainurée
d’une coquille de Saint-Jacques. Et bientôt, machinalement, accabpar la morne
journée et la perspective d’un triste lendemain, je portai à mes lèvres une cuillerée
du thé où j’avais laissé s’amollir un morceau de madeleine. Mais à l’instant même
la gorgée mêlée des miettes du gâteau toucha mon palais, je tressaillis, attentif à
ce qui se passait d’extraordinaire en moi. Un plaisir délicieux m’avait envahi, isolé,
sans la notion de sa cause. Il m’avait aussitôt rendu les vicissitudes de la vie
indifférentes, ses désastres inoffensifs, sa brièveté illusoire, de la même façon
qu’opère l’amour, en me remplissant d’une essence précieuse: ou plutôt cette
essence n’était pas en moi, elle était moi. J’avais cessé de me sentir médiocre,
contingent, mortel. D’où avait pu me venir cette puissante joie? Je sentais qu’elle
était liée au goût du thé et du gâteau, mais qu’elle le dépassait infiniment, ne devait
pas être de même nature.” (Marcel Proust, Du côté de chez Swann, 1954, p. 44-5)
Antes de passar à análise deste trecho fundamental e de outros relacionados às funções
que a memória involuntária e o “tempo redescoberto” desempenham em A la recherche du
temps perdu, destaco que a abordagem do romance no presente item se limitará a estes
tópicos, do contrário estaria fugindo da discussão proposta e estendendo o trabalho a
resultados imprevisíveis, expediente, por conseguinte, do qual me sirvo a fim de evitar a árdua
tarefa de discutir a indeterminação do gênero da obra-prima de Proust, bem como de resumi-
la, dificuldade bem percebida por críticos sagazes
1
. Assim, serão deixados de lado temas
1
Gustave Lanson, em sua Histoire de la littérature française, afirma: “Ce n’est pas, à proprement parler, un
roman. Ce n’est pas non plus une autobiographie. L’objet de l’auteur n’est pas de reconstituer les événements de
sa vie, mais d’éprouver de nouveau les principaux d’entre eux, que reliera une affabulation gére” (1960, p.
1222). Quanto à impossibilidade de resumi-lo, diz Malcolm Bradbury: Trata-se (...) de um livro que, devido a
seu volume e sua profundidade, é essencialmente impossível de resumir o que era a intenção do autor, pois ele
queria escrever um romance de sensações e emoções, e não apenas um relato de eventos” (“Marcel Proust”, O
mundo moderno Dez grandes escritores, 1989, p. 122). Pierre Brunel também acredita que “Le roman est
moins la chronique d’une vie que l’épanouissement d’une vision dont les événements ne sont que le prétexte.
134
interessantes tratados no roman-fleuve de Proust, mas que não se encaixam em minha
proposta, tais como: o caso Dreyfus; o mundanismo; a asma, a saúde frágil do narrador e a
proximidade da morte
2
; detalhes referentes a certos personagens que, como na Comédia
humana de Balzac, aparecem e reaparecem em mais de um volume
3
; a alta burguesia e a
aristocracia parisienses, o que resulta em uma enorme diferença social entre, por exemplo,
casais como Swann e Odette de Crécy, Robert Saint-Loup e Rachel; a contemplação das obras
de arte, fundamental para a concepção de vida do narrador Marcel (a sonata de Vinteuil; A
vista de Delft de Vermeer; a literatura de Bergotte); o “caminho de Méséglise” (também
conhecido como “caminho de Swann”), simbolizando o apelo à arte e à cultura e o retorno aos
“caminhos” da infância e das “sebes de pilriteiros em flor”, e o “caminho de Guermantes”,
exprimindo o luxo e a ostentação aristocratas, “píncaros da sociedade, da nobreza e da
distinção”
4
; o homossexualismo e o bissexualismo, nas figuras dúbias e andróginas do sr. de
Charlus e de Albertine e Andrée, as “raparigas em flor”, símbolos da discussão sobre virtude
Aucune aventure, aucune intrigue dans À la recherche du temps perdu, mais une découverte des êtres, des
choses et de soi-même.” (Histoire de la littérature française, tome II, 1977, p. 600)
2
Ver em Proust par lui-même, de Claude Mauriac: “Et l’on voit en effet Marcel Proust mettre au service de cette
continuelle et féconde expérimentation les plus pénibles de ses aventures personnelles. Nous avons déjà noté
que, pris d’un malaise dont il est seul à soupçonner la gravité, il en profite, des qu’il peut de nouveau écrire, pour
noter ‘sur le vif’, si l’on ose dire, les approches de la mort” (1953, p. 156). E em “A imagem de Proust”, a
observação de Benjamin: “O importante não é (...) que sua doença o privasse da vida mundana. A asma entrou
em sua arte, se é que ela não é responsável por essa arte. Sua sintaxe imita o ritmo de suas crises de asfixia. Sua
reflexão irônica, filosófica, didática, é sua maneira de recobrar o fôlego quando se liberta do peso de suas
reminiscências. Mais importante foi a morte, que ele tinha constantemente presente, sobretudo quando escrevia,
a crise ameaçadora, sufocante(BENJAMIN, Magia e técnica, arte e política, 1987, p. 48). Claramente sob
influxo do texto benjaminiano, José Maria Cançado comenta, em Marcel Proust – As intermitências do coração:
“A asma não mais o deixará, vindo inclusive a moldar as suas frases, longas e eternas, uma espécie de fuga (no
sentido quase musical do termo) para da dispnéia e da asfixia, respiradouro e clarabóia que a sua inteligência
abre inesperadamente no limite do fôlego e do sentido.” (1983, p. 29)
3
Em “Ça prend” (Magazine Littéraire, 350, jan 1997, p. 46), Roland Barthes comenta que “Proust a la
révélation dans la Comédie Humaine, et qui est (je cite Proust) ‘l’admirable invention de Balzac d’avoir gardé
les mêmes personnages dans tous ses romans’: procédé que Sainte-Beuve a condamné, mais qui, pour Proust, est
une idée de génie”.
4
A expressão é de Bradbury (1989, p. 120), que, em seguida, resume a função dos “dois caminhos” para a trama:
“Os dois caminhos ao mesmo tempo duas estradas e duas formas de vida formam o esquema básico do
romance, sua geografia social, artística e emocional. Eles dão à obra sua estrutura subjacente, pois ao decorrer da
história ‘Marcel’ segue ora um, ora outro, aos destinos distantes a que eles conduzem, passando por arte e
frivolidade, amor e esnobismo até que também ele conclui que ambos vão dar mais ou menos no mesmo
lugar.” (1989, p. 121)
135
moral e vício
5
; as metáforas retiradas do reino vegetal
6
; o ciúme e as relações doentias de
Swann e Odette e de Marcel e Albertine
7
.
Tendo na memória involuntária o fio condutor da aproximação entre Proust e Meyer (a
ser demonstrada no próximo capítulo), focalizarei também a problemática do Sujeito da
Escritura e da tripla identidade autor-narrador-personagem, essencial para a discussão
envolvendo o “eu atual” (Mesmo, ipse ou self) e o “eu do passado” (Outro, idem ou same).
Dadas a complexidade e a universalidade da Recherche, além da questão da memória,
inúmeras outras discussões são suscitadas (cujos comentários alongariam o capítulo e
fugiriam ao assunto em questão), sendo que muitas delas foram satisfatoriamente
desenvolvidas por alguns dos grandes críticos franceses do século XX, conforme veremos no
item 3.2. Gostaria de destacar apenas dois outros temas fundamentais da narrativa proustiana
(a “história de uma escritura”, como Barthes tão bem a batizou
8
), que, de alguma forma, estão
ligados à memória e ao escoar do tempo e que, sobretudo o primeiro, guarda muitas
semelhanças com a memorialística de Augusto Meyer primeiramente, a importância da
leitura durante a infância e o poder das obras literárias de recriar um mundo imaginário e
edênico
9
; e, em segundo lugar, o instigante e intrincado problema do despertar e da relação
5
“De même qu’en pathologie certains états d’apparence semblable sont dus, les uns à un excès, d’autres à une
insuffisance de tension, de sécrétion, etc, de même il peut y avoir vice par hypersensibilité comme il y a vice par
manque de sensibilité. Peut-être n’est-ce que dans des viés réellement vicieuses que le problème moral peut se
poser avec toute sa force d’anxiété. Et à ce problème l’artiste donne une solution non pas dans le plan de sa vie
individuelle, mais de ce qui est pour lui sa vraie vie, une solution générale, littéraire.” (PROUST, A l’ombre des
jeunes filles en fleurs, 1954, p. 558)
6
Alerta Samuel Beckett a respeito do procedimento de Proust: “É significativo que a maioria de suas imagens
sejam botânicas. Ele assimila o humano ao vegetal. Está consciente da humanidade como flora, nunca como
fauna.” (BECKETT, Proust, 1986, p. 72)
7
Em Du côté de chez Swann, lê-se, por exemplo, que o ciúme é o veneno que precisa ser controlado para que a
doença do amor não termine em morte (da relação, do interesse de Odette e do amor masoquista e suicida de
Swann): “Considérant son mal avec autant de sagacité que s’il se l’était inoculé pour en faire l’étude, il [Swann]
se disait que, quand il serait guéri, ce que pourrait faire Odette lui serait indifférent. Mais du sein de son état
morbide, à vrai dire, il redoutait à l’égal de la mort une telle guérison, qui eût été en effet la mort de tout ce qu’il
était actuellement.” (PROUST, 1954, p. 300)
8
Ver “Proust e os nomes”, 1974, p. 55.
9
Temos, ao longo da obra de Proust e não apenas em A la recherche, trechos incríveis a respeito do marcante e
inesquecível “livro da infância”, assunto que será melhor tratado no capítulo 4, que Augusto Meyer (em
“Alencar no telhado”, No tempo da flor, 1966, p. 75-8) e outros memorialistas brasileiros, tais como Pedro Nava,
também se referem às leituras da infância como componentes sicos da recriação a que procedem,
evidenciando, mais uma vez, intensa confluência com a evocação efetuada por Proust. O texto de Sobre a leitura
136
nem sempre harmônica entre sono (“sonho”) e vigília (“realidade”), cuja representação,
antológica, abre o romance:
Longtemps, je me suis couché de bonne heure. Parfois, à peine ma bougie éteinte,
mes yeux se fermaient si vite que je n’avais pas le temps de me dire: ‘Je m’endors’.
Et, une demi-heure après, la pensée qu’il était temps de chercher le sommeil
m’éveillait; je voulais poser le volume que je croyais avoir encore dans les mains et
souffler ma lumière; je n’avais pas cessé en dormant de faire des réflexions sur ce
que je venais de lire, mais ces réflexions avaient pris un tour un peu particulier; il me
semblait que j’étais moi-même ce dont parlait l’ouvrage: une église, un quatuor, la
rivalité de François 1
er
et de Charles Quint. Cette croyance survivait pendant
quelques secondes à mon réveil; elle ne choquait pas ma raison mais pesait comme
des écailles sur mes yeux et les empêchait de se rendre compte que le bougeoir
n’était plus allumé. (PROUST, Du côté de chez Swann, 1954, p. 03)
10
O trecho que escolhi como epígrafe deste item (p. 133) descreve o primeiro e o mais
emblemático acesso da memória involuntária em A la recherche du temps perdu, episódio
que encerra a primeira parte do primeiro capítulo de Du côté de chez Swann, intitulado
“Combray”: a “ressurreição” da infância, e com ela a reelaboração de casas, cidades e jardins,
“edifícios imensos da recordação”, a partir do reconhecimento do sabor do bolinho madeleine
mergulhado no chá de tímfa -0.295585(o)Du d403.742(Í)ndi-0.295585(.)-010.3015( E3 0 Td[(A-0.293142(e)3.74244(s)(c)3.74(a)-6)3.74( )-20.1584(p))-10.3015(r)2.80439(i)-2.16436(m)-2.45995-6.265r
137
subitamente, “no mesmo instante” (e é que se a primeira manifestação da memória
involuntária, e não no reconhecimento ulterior), ele estremece tão logo o gole atinge seu
paladar, “sem noção da sua causa”, invadido por um prazer “extraordinário” que elimina a
“perspectiva de mais um dia tão sombrio” como todos os outros e, mais do que isso, de uma
vida sombria pois, a partir desse episódio, o narrador se “transforma” e chega, no último
volume do roman-fleuve, sugestivamente intitulado Le temps retrouvé
11
, a uma espécie de
fusão atemporal de seus vários eus, “Essência” do ser redescoberto e livre dos grilhões da
realidade “medíocre, contingente, mortal” e do tempo finito, imerso na “ordem do
intemporal” em toda sua plenitude, concluindo assim o “aprendizado” iniciado em Du côté de
chez Swann: “No final da Recherche, o intérprete compreende o que lhe escapara no caso da
madeleine ou dos campanários: o sentido material não é nada sem uma essência ideal que ele
encarna.” (DELEUZE, 1987, p. 130)
12
A sensação despertada pelo contato com o bolo é imediata, dizia, mas não o
reconhecimento da origem de tal sugestão renovadora. Enquanto não se recorda com precisão
dos detalhes envolvendo a lembrança relacionada a Combray e à casa de tia Léonie, Marcel
tenta a todo custo recordar a origem do sabor, admitindo se tratar de “trabalho perdido”
evocar o passado voluntariamente, através da inteligência:
11
Em “Proust palimpseste”, Gérard Genette destaca a importância de Le temps retrouvé para a assimilação da
ausência de fronteiras entre presente e passado, bem como o fato de ser a madeleine apenas um “pretexto” para a
evocação: “Il est vrai que le rapport’ visé par Proust dans le Temps retrouvé est l’analogie entre une sensation
présente et une sensation passée et que l’abstraction opérée ici consiste en l’effacement des distances temporelles
nécessaire à l’éclosion d’une ‘minute affranchie de l’ordre du temps’. L’objet présent n’est alors qu’un prétexte,
qu’une ocasion: il s’évanouit aussitôt qu’il a rempli sa fonction mnémonique (...) comme disparaît la madeleine
présente dès que surgit le souvenir de la madeleine passé avec, autour d’elle, Combray, ses maisons et ses
jardins.” (1966, p. 46-7)
12
Em Temps et récit (tome II), ao discutir a unidade do romance, Paul Ricoeur destaca a estrutura “cíclica” da
Recherche e a transformação iniciada em No caminho de Swann e concretizada no Tempo redescoberto: “Si
l’extase de la madeleine n’est rien de plus qu’un signe prémonitoire de la révélation finale, elle en a du moins
déjà la vertu, celle d’ouvrir la porte du souvenir et de permettre la première esquisse du Temps retrouvé: les
récits de Combray (...) l’extase de la madeleine ouvre le temps retrouvé de l’enfance, comme la méditation dans
la bibliothèque ouvrira celui du temps de mise à l’épreuve de la vocation enfin reconnue” (RICOEUR, 1984, v.
2, p. 257). Por outro lado, Philippe Willemart demonstra que não “unidade” no próprio bolo, pois este se
desmancha e torna-se “outro” ao contato com o chá (ver “A Madalena”, terceiro capítulo de Proust, poeta e
psicanalista, 2000, p. 59, no qual Willemart sublinha a destruição da unidade da madalena sob a ação violenta
do chá”).
138
C’est peine perdue que nous cherchions à l’évoquer [notre passé], tous les efforts de
notre intelligence sont inutiles. Il est caché hors de son domaine et de sa portée, en
quelque objet matériel (en la sensation que nous donnerait cet objet matériel) que
nous ne soupçonnons pas. Cet objet, il dépend du hasard que nous le rencontrions
avant de mourir, ou que nous ne le rencontrions pas. (PROUST, Du côté de chez
Swann, 1954, p. 44)
Não chega a nada enquanto procura entender” a sensação através do auxílio da
inteligência, recurso enganoso e vão
13
. Todavia, tendo a sorte de pertencer àqueles que
encontram os objetos do seu “acaso” acidentalmente, recupera, “de súbito”, a “imagem ligada
a esse sabor”, a lembrança do gosto “do pedaço de madalena que nos domingos de manhã em
Combray” a tia lhe oferecia, “depois de o ter mergulhado no seu chá da Índia ou de tília”
14
.
Esta segunda madeleine, reconfigurada, gosto que “ultrapassava infinitamente” o simples
sabor do alimento pois “não devia ser da mesma natureza”, traz consigo não apenas
impressões sobre as férias em Combray e sobre os costumes dominicais de tia Léonie, mas
sobretudo “a velha casa cinzenta” (“la vieille maison grise”), “o seu quarto”
15
, o “pequeno
13
Certes, ce qui palpite ainsi au fond de moi, ce doit être l’image, le souvenir visuel, qui, lié à cette saveur,
tente de la suivre jusqu’à moi. Mais il se bat trop loin, trop confusément; à peine si je perçois le reflet neutre
où se confond l’insaisissable tourbillon des couleurs remuées; mais je ne peux distinguer la forme, lui demander,
comme au seul interprète possible, de me traduire le témoignage de sa contemporaine, de son inséparable
compagne, la saveur, lui demander de m’apprendre de quelle circonstance particulière, de quelle époque du
passé il s’agit” (PROUST, Du côté de chez Swann, 1954, p. 46). No final desse mesmo volume, Marcel admite
que “(...) les choses que nous savons, nous les tenons, sinon entre nos mains, du moins dans notre pensée où
nous les disposons à notre gré, ce qui nous donne l’illusion d’une sorte de pouvoir sur elles” (PROUST, 1954,
p. 315; grifo meu). Tal domínio sobre as recordações voluntárias não passa mesmo de ilusão, pois, “Em face
desse passado, essência íntima de nós mesmos, as verdades da inteligência parecem pouco reais” (PROUST,
Contre Sainte-Beuve, 1988, p. 43). Em Proust, Samuel Beckett resume perfeitamente a diferença, para o
romancista, entre os dois tipos de memória: “Sua obra não é um acidente, mas seu salvamento é. As
circunstâncias deste acidente serão reveladas no ápice desta pré-visão. Um clímax de segunda-mão é melhor que
nada. Mas não porque esconder o nome do mergulhador. Proust o chama de ‘memória involuntária’. A
memória que não é memória, mas simples consulta ao índice remissivo do Velho Testamento do indivíduo, ele
chama de ‘memória voluntária’. Esta é a memória uniforme da inteligência; é de confiança para a reprodução,
perante nossa inspetoria satisfeita, daquelas impressões do passado formadas por ação consciente da
inteligência.” (BECKETT, 1986, p. 24-5)
14
Conferir trecho completo no item anterior (2.4), à página 128. Uma outra passagem da Recherche (pertencente
a La prisonnière) explica magistralmente o fato de Marcel não ter reconhecido imediatamente a origem do gosto
da madeleine. Diz o narrador: Il semble que les événements soient plus vastes que le moment ils ont lieu et
ne peuvent y tenir tout entiers. Certes, ils débordent sur l’avenir par la mémoire que nous en gardons, mais ils
demandent une place aussi au temps qui les précède. Certes, on dira que nous ne les voyons pas alors tels qu’ils
seront, mais dans le souvenir ne sont-ils pas aussi modifiés?” (PROUST, 1954, p.401)
15
Onírica, envolta nas brumas do despertar do narrador em seu apartamento parisiense, a belíssima evocação do
seu quarto em Combray encerra a primeira parte de Du côté de chez Swann: “Certes quand approchait le matin, il
y avait bien longtemps qu’était dissipée la brève incertitude de mon veil. Je savais dans quelle chambre je me
trouvais effectivement, je l’avais reconstruite autour de moi dans l’obscurité et soit en m’orientant par la seule
mémoire, soit en m’aidant, comme indication, d’une faible lueur aperçue, au pied de laquelle je plaçais les
rideaux de la croisée je l’avais reconstruite tout entière et meublée comme un architecte et un tapissier qui
gardent leur ouverture primitive aux fenêtres et aux portes, j’avais reposé les glaces et remis la commode à sa
139
pavilhão que dava para o jardim” (“petit pavillon donnant sur le jardin”), “a cidade toda”, a
praça”, “as ruas por onde (...) passava” “e as estradas” que seguia “quando fazia bom tempo”
(1948, p. 47) (“les chemins qu’on prenait si le temps était beau”, 1954, p. 47), vivas
recordações sugestionadas pela lembrança involuntária de um costume ligado aos longínquos
domingos de missa no interior e ao hábito de comer bolos embebidos em chá:
Et comme dans ce jeu où les Japonais s’amusent à tremper dans un bol de porcelaine
rempli d’eau, de petits morceaux de papier jusque-là indistincts qui, à peine y sont-
ils plongés, s’étirent, se contournent, se colorent, se différencient, deviennent des
fleurs, des maisons, des personnages consistants et reconnaissables, de même
maintenant toutes les fleurs de notre jardin et celles du parc de M. Swann, et les
nymphéas de la Vivonne, et les bonnes gens du village et leurs petits logis et l’église
et tout Combray et ses environs, tout cela qui prend forme et solidité, est sorti, ville
et jardins, de ma tasse de thé. (PROUST, Du côté de chez Swann, 1954, p. 47-8)
Marcel passa então a viver, na expressão de Erich Auerbach, “a la faveur de ce
souvenir retrouvé” (2.4, p. 123), recordação inesperada que cria uma outra realidade, mais
“viva” quanto mais “imaterial” e mais “verdadeira” para ele que “qualquer aspecto do
presente”, capaz de trazer-lhe Combray de volta
16
e resgatar sua infância, tudo isso graças aos
place habituelle. Mais à peine le jour et non plus le reflet d’une dernière braise sur une tringle de cuivre que
j’avais pris pour lui – traçait-il dans l’obscurité, et comme à la craie, sa première raie blanche et rectificative, que
la fenêtre avec ses rideaux quittait le cadre de la porte je l’avais située par erreur, tandis que, pour lui faire
place, le bureau que ma mémoire avait maladroitement installé se sauvait à toute vitesse, poussant devant lui
la cheminée et écartant le mur mitoyen du couloir; une courette régnait à l’endroit où, il y a un instant encore,
s’étendait le cabinet de toilette, et la demeure que j’avais rebâtie dans les ténèbres était allée rejoindre les
demeures entrevues dans le tourbillon du réveil, mise en fuite par ce pâle signe qu’avait tracé au-dessus des
rideaux le doigt levé du jour” (PROUST, 1954, p. 186-7). Malcolm Bradbury observa que é a memória
involuntária “que torna o mundo estranho, transforma o quarto cotidiano em algo desconhecido, quebra nossa
consciência do hábito e daquilo que tradicionalmente denominamos realidade. Ela dissolve e recria o quarto que
nos cerca, transformando-o em todos os quartos em que dormimos e em todas as sensações que
experimentamos neles.” (BRADBURY, 1989, p. 125)
16
Em Le côté de Guermantes, lamentar-se-á Marcel: “Hélas! pauvre Combray! peut-être que je ne te reverrai que
morte, quand on me jettera comme une pierre dans le trou de la tombe. Alors, je ne les sentirai plus, tes belles
aubépines toutes blanches. Mais dans le sommeil de la mort, je crois que j’entendrai encore ces trois coups de
sonnette qui m’auront déjà damnée dans ma vie” (PROUST, 1954, p. 18). No item seguinte (3.2, p. 176-9),
veremos como Georges Poulet (O espaço proustiano, 1992) acredita que, ao reconstituir Combray e outras
localidades, a memória involuntária (sobretudo no episódio do bolo) confere a Marcel a possibilidade de resgatar
não apenas um “tempo perdido” mas também “espaços perdidos”: “Criação ou recriação do espaço, o fenômeno
da madeleine é coroado pela reconstituição integral do lugar” (POULET, 1992, p. 600). Ver também: “Se o
fenômeno da memória involuntária tem por efeito restituir momentos perdidos, também restitui lugares perdidos.
(...) O milagre da madeleine não tem poder nem para fundar um espaço, nem uma duração. Apenas pode fazer
surgir, das profundezas do espírito, a imagem de lugares e de momentos fechados” (1992, p. 62-3). Muitas
décadas antes, Beckett, percebendo a importância da memória involuntária para a recriação proustiana, dizia
que não somente Combray, mas todo o “mundo” de Marcel surgira da experiência da madeleine: “(...) seu livro é
todo ele um monumento à memória involuntária e o épico de sua atuação. O mundo inteiro de Proust sai de uma
taça de chá e não apenas Combray e sua infância” (BECKETT, 1992, p. 26). para Gilles Deleuze, o que
realmente importa em tal episódio é a materialidade da evocação e do signo evocado: “A madeleine nos remete a
Combray, o calçamento, a Veneza... Sem dúvida, as duas impressões, a presente e a passada, têm uma mesma
140
prodígios da memória dos sentidos (sobretudo, nesse caso, do olfato e do paladar) e ao seu
poder de, ressuscitando imagens, sensações e pessoas “mortas”, “esquecidas” muito nos
“desvãos” de um “passado remoto”
17
, recriar cenas que, somente fazendo sentido a partir
daquele momento, darão sustentação e respaldo a esta vasta e detalhada gama de lembranças,
“edifício imenso da recordação” involuntária e epifânica:
(...) quand d’un passé ancien rien ne subsiste, après la mort des êtres, après la
destruction des choses, seules, plus frêles mais plus vivaces, plus immatérielles, plus
persistantes, plus fidèles, l’odeur et la saveur restent encore longtemps, comme des
âmes, à se rappeler, à attendre, à espérer, sur la ruine de tout le reste, à porter sans
fléchir, sur leur gouttelette presque impalpable, l’édifice immense du souvenir.
(PROUST, 1954, p. 47; grifo meu)
A lembrança do sabor da madeleine o acompanhará ao longo de todo o romance,
facilitando o reconhecimento de outros acessos involuntários. Além disso, conforta-o durante
as “noites de insônia” e o auxilia a desvendar melhor a “massa indistinta” de lembranças
recentes e distantes que, daí por diante, assaltar-lhe-ão inesperadamente:
C’est ainsi que je restais souvent jusqu’au matin à songer au temps de Combray, à
mes tristes soirées sans sommeil, à tant de jours aussi dont l’image m’avait été plus
récemment rendue par la saveur ce qu’on aurait appelé à Combray le ‘parfum’
d’une tasse de thé et, par association de souvenirs, à ce que, bien des années après
avoir quitté cette petite ville, j’avais appris au sujet d’un amour que Swann avait eu
avant ma naissance, avec cette précision dans les détails plus facile à obtenir
quelquefois pour la vie de personnes mortes il y a des siècles que pour celle de nos
meilleurs amis, et qui semble impossible comme semblait impossible de causer
d’une ville à une autre tant qu’on ignore le biais par lequel cette impossibilité a été
tournée. Tous ces souvenirs ajoutés les uns aux autres ne formaient plus qu’une
masse, mais non sans qu’on pût distinguer entre eux entre les plus anciens, et ceux
plus cents, nés d’un parfum, puis ceux qui n’étaient que les souvenirs d’une autre
personne de qui je les avais appris sinon des fissures, des failles véritables, du
moins ces veinures, ces bigarrures de coloration qui, dans certaines roches, dans
certains marbres, révèlent des différences d’origine, d’âge, de ‘formation’.
(PROUST, 1954, p. 186)
18
qualidade; mas não deixam de ser materialmente duas. De tal modo que, cada vez que intervém a memória, a
explicação dos signos comporta ainda alguma coisa de material.” (DELEUZE, 1987, p. 40)
17
Para Willemart, o sabor e o odor, se relembrados por acaso, reabrem as portas a um pedaço do passado que
volta a viver” (2000, p. 65). Julia Kristeva considera, em Le temps sensible, o episódio da madeleine a
“verdadeira experiência sensorial” (“la véritable expérience sensorielle”) do romance: “Il s’agit d’une sensation
retrouvée comme l’est le temps. Elle n’advient qu’après coup, à travers les mots et, à rebours, touche aux
sensations anciennes, ici même et maintenant renouvelées, donc recréées”. (KRISTEVA, 1994, p. 374)
18
Ainda sobre a cidadezinha, leia-se a bela fixação de Combray como metáfora do pays de tendre que cada um
carrega consigo no artigo “Introdução a um estudo sobre Marcel Proust”, de Gastão de Holanda (Proustiana
brasileira, 1950, p. 162): [Proust] (...) conseguiu fazer de Combray um país, um continente, um mundo. Todos
nós que vivemos exclusivamente do passado temos a nossa Combray, ariana ou mestiça, indigente ou
suntuosa, nos litorais ou nos sertões longínquos, no trópico ou no pólo. As infâncias repousam numa multidão de
fatos, sepultados no esquecimento, mas que a qualquer momento podem surgir das cinzas. A memória, qualquer
que ela seja, ressuscita-os misteriosamente, através de pequenas associações, voluntárias ou não. Uma taça de
chá e alguns biscoitos, pequenos acidentes da vida burguesa podem recompor um longo espaço da vida anterior.
141
Fundamentais para a evocação da infância em Combray, olfato e paladar não estão
sozinhos no papel de “guardiões” das ruínas que sustentam o “edifício” da recordação para
o narrador proustiano, todos os sentidos são imprescindíveis para a reelaboração do vivido
19
,
dado que podemos aferir de sentenças tais como a que eterniza a visão da filha de Swann
(Gilberte), olhar plurissignificativo que complementa corpo e alma:
Je la regardais, d’abord de ce regard qui n’est pas que le porte-parole des yeux, mais
à la fenêtre duquel se penchent tous les sens, anxieux et pétrifiés, le regard qui
voudrait toucher, capturer, emmener le corps qu’il regarde et l’âme avec lui;
(PROUST, 1954, p. 141)
A visão em A la recherche du temps perdu não se limita à constatação da “realidade”
daquilo que somente “os olhos podem enxergar”. Serve, pelo contrário, como subsídio para a
Cada fato desperta em nós um conjunto interessante de reações e basta a repetição dele, anos depois, para que o
homem de antigamente surja diante do atual, revestido de todos os seus acidentes e no ambiente onde as coisas
se passaram”. José Maria Cançado, em Marcel Proust As intermitências do coração, indica a origem
biográfica da sugestão Combray é, na verdade, Illiers, vilarejo onde os pais passavam as férias: “Durante os
feriados da Páscoa, os Proust vão sempre a Illiers, perto de Chartres, hospedando-se na casa de uma tia-avó, casa
cuja descrição podemos encontrar no primeiro capítulo do primeiro volume da obra Du coté de chez Swann.
(Illiers é Combray, cujos contornos, superfícies, sons emergem trêmulos e intactos do fundo do passado e da
infância do Narrador, tão logo ele sente no paladar o gosto da pequena e caprichosa madeleine, essa espécie de
brioche que geralmente se come molhando-se a sua crosta seca e cheia de volutas no chá. É o alçapão da
memória involuntária, a memória afetiva, que se abre e se escancara para delícia do Narrador, então na
maturidade, fazendo Combray emergir viva e movente do fundo da taça de chá)”. (CANÇADO, 1983, p. 30-1)
19
Mesmo secundários em relação ao olfato, ao paladar e à visão, sentidos como o tato (tropeço no pátio do
palácio de Guermantes a lhe recordar Veneza) e a audição (a sonata de Vinteuil ou os sinos de Martinville,
embora o sentido predominante aqui seja a visão do campanário da igreja, percebido, em Du côté de chez Swann,
de dentro da carruagem do doutor Percepied) também são capazes de acionar o gatilho da memória involuntária.
Bradbury fala em “sinestesia”: “Ela [a memória involuntária] associa as sensações físicas de nossos corpos a
outras sensações da mesma espécie e constitui uma espécie de sinestesia, uma fusão de todos os sentidos(1989,
p. 125; grifo meu); assim como Michel Butor: “Dans l’épisode de la madeleine, c’est le goût qui est en jeu, dans
celui du pavillon des Champs-Élysées, l’odorat, dans celui du bouton de bottine ou de l’inégalité des pavés, le
toucher; dans tous les cas, nous avons comme une parole adressée par les objets et qui s’en détache; ce
détachement atteint à son maximum dans les sensations auditives. Le morceau de musique joué dans une salle
n’y dérange apparemment rien, et ne possède avec les instruments visibles” (“Les moments’ de Marcel Proust”,
Les critiques de notre temps et Proust, 1971, p. 123; grifo meu); e Julia Kristeva: “Olfactives, sonores, tactiles,
visuelles, gustatives toute la gamme des sensations et leurs variations insoupçonnées fondent l’univers
sensoriel de Proust” (Le temps sensible
142
imaginação de terras, cidades e espaços “perdidos” e “recuperados”, que, ao pedir
determinada informação a respeito de certo lugar conhecido, a tentativa de Marcel de se
lembrar das “terras reconquistadas ao esquecimento” é motivada pela visão sublime e
fantasiosa de alguma “torre de hospital” ou “campanário de igreja”, marcos que o reconduzem
às “ruas do coração”.
Et aujourd’hui encore si, dans une grande ville de province ou dans un quartier de
Paris que je connais mal, un passant qui m’a ‘mis dans mon chemin’ me montre au
loin, comme un point de repère, tel beffroi d’hôpital, tel clocher de couvent levant la
pointe de son bonnet ecclésiastique au coin d’une rue que je dois prendre, pour peu
que ma mémoire puisse obscurément lui trouver quelque trait de ressemblance avec
la figure chère et disparue, le passant, s’il se retourne pour s’assurer que je ne
m’égare pas, peut, à son étonnement, m’apercevoir qui, oublieux de la promenade
entreprise ou de la course obligée, reste là, devant le clocher, pendant des heures,
immobile, essayant de me souvenir, sentant au fond de moi des terres reconquises
sur l’oubli qui s’assèchent et se rebâtissent; et sans doute alors, et plus anxieusement
que tout à l’heure quand je lui demandais de me renseigner, je cherche encore mon
chemin, je tourne une rue... mais... c’est dans mon coeur... (PROUST, 1954, p. 66-
7)
20
A única realidade possível para Marcel é, portanto, a realidade dos “sentidos”, aquela
que, através da revivescência de sensações táteis, visuais ou gustativas, restitui-lhe as pessoas,
casas e cidades mais caras à sua infância, sempre com o auxílio indispensável da imaginação,
uma vez que “(...) les pays que nous désirons tiennent à chaque moment beaucoup plus de
place dans notre vie véritable, que le pays nous nous trouvons effectivement” (PROUST,
1954, p. 390)
21
. Confrontando a realidade efetiva à realidade do passado, Marcel percebe bem
pinheiros, das macieiras, dos lilases. Illiers, a amada Illiers, estava descartada para as férias de verão e
primavera.” (SNOW, 1988, p. 299)
20
Em Contre Sainte-Beuve, ensaio publicado postumamente mas escrito antes da Recherche, Marcel Proust
tecera os seguintes comentários a respeito dos lugares reinventados pela sua imaginação: “Eram os passeios
pelos arredores da cidade onde eu fora criança feliz, era tão-somente aquele país imaginário onde mais tarde eu
sonhava com mamãe tão doente, junto a um lago, numa floresta em que havia claridade durante toda a noite, país
assim inventado, mas quase tão real quanto a terra de minha infância, que já não passava de um sonho”.
(PROUST, 1988, p. 43)
21
Em uma entrevista feita quando Proust tinha apenas 13 anos de idade (reproduzida em A la recherche de
Marcel Proust, de André Maurois), perguntado sobre onde gostaria de viver, o futuro autor de Les plaisirs et les
jours não hesita: “Au pays de l’Idéal ou plutôt de mon idéal” (Apud MAUROIS, 1949, p. 17). Sobre a
imaginação em Proust, Maurice Blanchot, citando trecho pertencente a Jean Santeuil, destaca, em “L’étonnante
patience”, o quanto este signo de “superioridade” (na formulação do próprio Proust) é fundamental para
ressuscitar os sentidos “adormecidos” no passado: “Il semble que Proust conçoit alors un art pur, concentré sur
les seuls instants, sans remplissage, sans appel aux souvenirs volontaires, ni aux vérités d’ordre général formées
ou ressaisies par l’intelligence, auxquelles plus tard il croira avoir fait une large place dans son oeuvre: en
somme, un récit ‘pur’ qui serait fait de ces seuls points d’où il prend origine, comme un ciel où, en dehors des
étoiles, il n’y aurait que le vide. Le page de Jean Santeuil que nous avons analysée l’affirme à peu près: Car le
plaisir qu’elle [l’imagination] nous donne, est un signe de la supériorité, auquel je me suis suffisamment fié pour
143
(...) la contradiction que c’est de chercher dans la réalité les tableaux de la mémoire,
auxquels manquerait toujours le charme qui leur vient de la mémoire même et de
n’être pas perçus par les sens. La réalité que j’avais connue n’existait plus. Il
suffisait que Mme Swann n’arrivât pas toute pareille au même moment, pour que
l’Avenue fût autre. Les lieux que nous avons connus n’appartiennent pas qu’au
monde de l’espace où nous les situons pour plus de facilité. Ils n’étaient qu’une
mince tranche au milieu d’impressions contiguës qui formaient notre vie d’alors; le
souvenir d’une certaine image n’est que le regret d’un certain instant; et les maisons,
les routes, les avenues, sont fugitives, hélas! comme les années. (PROUST, Du côté
de chez Swann, 1954, p. 427)
Se os lugares que conhecemos passam a fazer parte, não do espaço em que efetivamente
estão, mas de nossa própria imaginação (já que “on arrange aisément les récits du passé que
personne ne connaît plus, comme ceux de voyages dans les pays personne n’est jamais
allé”; PROUST, Le temps retrouvé, 1954, p. 985)
22
, a única realidade possível, na mente de
Marcel, é o mundo (paralelo e verossímil) que se forma na memória com as imagens fugidias
que evocamos ou reinventamos, verdadeiras pedras a embasar o “edifício imenso da
recordação” involuntária. Tais considerações, na passagem que acabo de mencionar, são feitas
a partir da lembrança do “perfume de pilriteiro” e da conclusão a respeito da recriação
operada pela imaginação, poderosa aliada, espécie de “sexto sentido”, visto que
(...) ce parfum d’aubépine qui butine le long de la haie les églantiers le
remplaceront bientôt, un bruit de pas sans écho sur le gravier d’une allée, une bulle
formée contre une plante aquatique par l’eau de la rivière, et qui crève aussitôt, mon
exaltation les a portes et a réussi à leur faire traverser tant d’années successives,
tandis qu’alentour les chemins se sont effacés et que sont morts ceux qui les
foulèrent et le souvenir de ceux qui les foulèrent. Parfois ce morceau de paysage
amené ainsi jusqu’à aujourd’hui se détache si isolé de tout, qu’il flotte incertain dans
ma pensée comme une Délos
23
fleurie, sans que je puisse dire de quel pays, de quel
ne rien écrire de ce que je voyais, de ce que je pensais, de ce que je raisonnais, de ce dont je me souvenais, pour
n’écrire que quand un passé ressuscitait soudain dans une odeur, dans une vue qu’il faisait éclater et au-dessus
duquel palpitait l’imagination et quand cette joie me donnait l’inspiration’.” (BLANCHOT, Les critiques de
notre temps et Proust, 1971, p. 92-3; grifo do autor)
22
Julia Kristeva alerta que a imaginação é o elo de ligação entre as manifestações involuntárias e os aspectos
mais recônditos e complexos da memória: “pour la philosophie contemporaine de Proust, une intelligence
involontaire, apparentée à la volonté de l’Être, articule en imagination la sensibilité qui constitue la profondeur
de la mémoire” (Le temps sensible, 1994, p. 458). Georges Poulet opõe, em Études sur le temps humain, a
imaginação (como “criação própria” de imagens “reconstituídas”) à percepção exterior das cenas, pois “l’acte de
l’imagination ou du souvenir n’est rien d’autre que cela: opposer à la perception extérieure une image qui soit
notre création propre;” (POULET, 1949, p. 388)
23
Referência do narrador à ilhota grega do arquipélago das Cíclades, sede, na Antigüidade, de uma confederação
de ilhas situadas na costa do Mar Egeu em torno de Atenas (a Liga de Delos, 478 - 404 a.C.), criada com a
finalidade de unir a frota marítima das ilhas a fim de melhor se defenderem dos ataques persas. No item 3.3
veremos de que forma Augusto Meyer, em “A ilha flutuante” (Preto & Branco, 1956, p. 123-127), interpreta
esta importante passagem de No caminho de Swann, ao mesmo tempo em que corrige um “engano” da tradução
de Quintana. De acordo com Meyer, ao cotejarmos original e tradução percebe-se que o narrador não formulou a
imagem da forma que se lê no texto brasileiro: “Manifesta-se o verdadeiro sentido da imagem, depois de
cotejada a tradução com o original; escapou ao tradutor um lamentável cochilo: Proust não escreveu ‘tão isolado
144
temps peut-être tout simplement de quel rêve – il vient. Mais c’est surtout comme
à des gisements profonds de mon sol mental, comme aux terrains résistants sur
lesquels je m’appuie encore, que je dois penser au côté de Méséglise et au de
Guermantes. C’est parce que je croyais aux choses, aux êtres, tandis que je les
parcourais, que les choses, les êtres qu’ils m’ont
145
p. 569). A “realidade” de Marcel é, por conseguinte, a realidade da memória e da imaginação.
A outra, aquela que as pessoas “comuns” conhecem como “realidade”, é inapelavelmente
limitada, sendo, para o personagem, apenas “uma isca lançada a um desconhecido em cujo
caminho não podemos ir muito longe” (PROUST, A prisioneira, 1971, p. 15)
26
; uma
decepção, enfim, ao contrário da imaginação, “sentido” altamente complexo e desenvolvido
em Marcel, destinado a captar a “beleza” de suas lembranças reelaboradas:
Tant de fois, au cours de ma vie, la réalité m’avait déçu parce qu’au moment où je la
percevais, mon imagination, qui était mon seul organe pour jouir de la beauté, ne
pouvait s’appliquer à elle, en vertu de la loi inévitable qui veut qu’on ne puisse
imaginer que ce qui est absent. Et voici que soudain l’effet de cette dure loi s’était
trouvé neutralisé, suspendu, par um expédient merveilleux de la nature, qui avait fait
miroiter une sensation – bruit de la fourchette et du marteau, même titre de livre, etc.
à la fois dans le passé, ce qui permettait à mon imagination de la goûter, et dans le
présent l’ébranlement effectif de mes sens par le bruit, le contact du linge, etc.
avait ajouté aux ves de l’imagination ce dont ils sont habituellement dépourvus,
l’idée d’existence, et, grâce à ce subterfuge, avait permis à mon être d’obtenir,
d’isoler, d’immobiliser la durée d’un éclair – ce qu’il n’appréhende jamais: un peu
de temps à l’état pur. (PROUST, Le temps retrouvé, 1954, p. 872; grifo meu)
Da mesma forma que há tal valorização dos lugares “reinventados” em detrimento da
evocação fiel (uma vez que a “lembrança” é tão arbitrária quanto a “imaginação”), as relações
pessoais recriadas são muito mais significativas que a suposta “pessoa real”, sendo esta
apenas uma abstração inverossímil e igualmente idealizada, inacessível à realidade
redescoberta pelos sentidos:
C’est la terrible tromperie de l’amour qu’il commence par nous faire jouer avec une
femme non du monde extérieur, mais avec une poupée intérieure à notre cerveau, la
seule d’ailleurs que nous ayons toujours à notre disposition, la seule que nous
posséderons, que l’arbitraire du souvenir, presque aussi absolu que celui de
l’imagination, peut avoir faite aussi différente de la femme réelle que du Balbec réel
avait été pour moi le Balbec rêvé; creátion factice à laquelle peu à peu, pour notre
suffrance, nous forcerons la femme réelle à ressembler. (PROUST, Le côté de
Guermantes, 1954, p. 370)
Ao perdermos contato com determinada pessoa, é como se, para quem a relembra, essa
existência tivesse se interrompido efetivamente
27
, razão pela qual preferimos idealizá-la de
26
No original: “La réalité n’est jamais qu’une amorce à un inconnu sur la voie duquel nous ne pouvons aller bien
loin. ” (PROUST, La prisonnière, 1954, p. 24)
27
“Les femmes qu’on n’aime plus et qu’on rencontre après des années, n’y a-t-il pas entre elles et nous la mort,
tout aussi bien que si elles n’étaient plus de ce monde, puisque le fait que notre amour n’existe plus fait de celles
qu’elles étaient alors, ou de celui que nous étions, des morts?”, questiona Marcel em La fugitive. (PROUST,
1954, p. 686)
146
acordo com as características com as quais a conhecemos (“recordação”) a considerar a
possibilidade de qualquer mudança ou alteração substancial de sua personalidade (“realidade
nova”), a fim de não precisarmos reparar o inevitável hiato entre o objeto estereotipado e as
novas sugestões suscitadas:
Chaque être est détruit quand nous cessons de le voir; puis son apparition suivante
est une création nouvelle, différente de celle qui l’a immédiatement précédée, sinon
de toutes. Car le minimum de variété qui puisse gner dans ces créations est de
deux. Nous souvenant d’un coup d’oeil énergique, d’un air hardi, c’est
inévitablement la fois suivante par un profil quasi languide, par une sorte de douceur
rêveuse, choses négligées par nous dans le précédent souvenir, que nous serons, à la
prochaine rencontre, étonnés, c’est-à-dire presque uniquement frappés. Dans la
confrontation de notre souvenir à la réalité nouvelle, c’est cela qui marquera notre
déception ou notre surprise, nous apparaîtra comme la retouche de la réalité en nous
avertissant que nous nous étions mal rappelé. A son tour l’aspect la dernière fois
négligé du visage, et, à cause de cela même, le plus saisissant cette fois-ci, le plus
réel, le plus rectificatif, deviendra matière à rêverie, à souvenirs. C’est un profil
langoureux et rond, une expression douce, rêveuse que nous désirerons revoir. Et
alors, de nouveau, la fois suivante, ce qu’il y a de volontaire dans les yeux perçants,
dans le nez pointu, dans les lèvres serrées, viendra corriger l’écart entre notre désir
et l’objet auquel il a cru correspondre. (PROUST, A l’ombre des jeunes filles en
fleurs, 1954, p. 917-8)
Com o passar dos anos, as fisionomias das pessoas, obviamente, se modificam. O lema
de Marcel parece ser, no entanto, o seguinte: o tempo muda as pessoas mas não as lembranças
que delas guardamos, idéia verbalizada em Le temps retrouvé
28
. Em muitas passagens do
romance, Marcel assume sua perplexidade diante da constatação do abismo que se forma
entre a imagem “atual” da pessoa e a imagem idealizada com que a representamos em nossa
memória, perplexidade que, remetendo-nos ao óleo sobre painel de Baldung (v. 2.2, p. 65),
revolta-se contra a passagem cruel do tempo e contra seu lamentável poder de deixar em seu
rastro rugas, lepras ou doenças em lugar do corpo outrora viçoso e jovem, sacralizado pela
imaginação, transformando a pessoa em “outra”, bem diferente daquela que concebíamos:
C’était bien une femme, mais vieille, grande et forte, avec des cheveux blancs
s’échappant de sa casquette, et une lèpre rouge sur la figure. Je m’éloignais en
pensant: ‘En est-il ainsi de la jeunesse des femmes? Celles que nous avons
rencontrées, si, brusquement, nous désirons les revoir, sont-elles devenues vieilles?
28
“Je souffrais d’être obligé de moi-même à atteindre celles-là, car le temps qui change les êtres ne modifie pas
l’image que nous avons gardée d’eux. Rien n’est plus douloureux que cette opposition entre l’altération des êtres
et la fixité du souvenir, quand nous comprenons que ce qui a gardé tant de fraîcheur dans notre mémoire n’en
peut plus avoir dans la vie, que nous ne pouvons, au dehors, nous rapprocher de ce qui nous paraît si beau au
dedans de nous, de ce qui excite en nous um désir, pourtant si individuel, de le revoir, qu’en le cherchant dans
um être du même age, c’est-à-dire dans un autre être.” (PROUST, 1954, p. 987)
147
La jeune femme qu’on désire est-elle comme un emploi de théâtre où, par la
déffaillance des créatrices du rôle, on est obligé de le confier à de nouvelles étoiles?
Mais alors ce n’est plus la même’. (PROUST, La prisonnière, 1954, p. 125)
Como para o narrador proustiano possuem valor somente as imagens estabelecidas pela
“realidade da memória”
29
, a idealização do outro é bem mais atraente que a terrível aceitação
de sua finitude material e de seu lento e gradual apodrecimento, constatação terrível apenas
adiada pela imaginação. É por isso que Marcel julga que “Chacun voit en plus beau ce qu’il
voit à distance, ce qu’il voit chez les autres”, que “(...) les lois générales qui règlent la
perspective dans l’imagination s’appliquent aussi bien aux ducs qu’aux autres hommes”.
(PROUST, Le côté de Guermantes, 1954, p. 235)
Aberto às manifestações abruptas dos sentidos que lhe permitirão chegar ao “ser
redescoberto”, após a experiência da madeleine Marcel passa a reconhecer e a incorporar à
sua verdade outros acessos involuntários igualmente marcantes, sempre ocorridos ao
acaso
30
: em Sodome et Gomorrhe, estando em Balbec a desamarrar suas botas, um ano após a
morte da avó (que lhe acompanhara em sua primeira estada ali), Marcel credita à memória
involuntária o mérito de fazê-lo finalmente compreender e aceitar tal morte:
Je venais d’apercevoir, dans ma mémoire, penché sur ma fatigue, le visage tendre,
préoccupé et déçu de ma grand’mère, telle qu’elle avait été ce premier soir d’arrivée;
le visage de ma grand’mère, non pas de celle que je m’étais étonné et reproché de si
peu regretter et qui n’avait d’elle que le nom, mais de ma grand’mère véritable dont,
pour la première fois depuis les Champs-Élysées où elle avait eu son attaque, je
retrouvais dans un souvenir involontaire et complet la réalité vivante. Cette réalité
n’existe pas pour nous tant qu’elle n’a pas été recréée par notre pensée (sans cela les
hommes qui ont été mêlés à un combat gigantesque seraient tous de grands poètes
épiques); et ainsi, dans un sir fou de me précipiter dans ses bras, ce n’était qu’à
l’instant plus d’une année après son enterrement, à cause de cet anachronisme qui
empêche si souvent le calendrier des faits de coïncider avec celui des sentiments
que je venais d’apprendre qu’elle était morte. (PROUST, 1954, p. 756; grifo meu)
31
29
“(...) la ‘recherche du temps perdu’ n’est pas l’évocation nostalgique d’un passé inaccessible, mais la
découverte progressive de la seule réalité, celle qui se forme dans la moire car ‘les vrais paradis sont les
paradis qu’on a perdus’.” (BRUNEL, Histoire de la littérature française, tome II, 1977, p. 601)
30
Em síntese, Georges Poulet destaca: De repente, ao acaso, a coincidência de uma sensação atual com uma
sensação antiga determina uma liberação de lembranças. Os momentos perdidos são reencontrados. Despertam
das profundezas do passado, põem-se em movimento, atravessam uma longa zona de esquecimento, para aflorar,
enfim, à superfície” (O espaço proustiano, 1992, p. 54). Ver também: “A rememoração inventada por Proust (...)
não depende da repetição de um gesto ou um lapso, de uma neurose ou uma perversão, de um mal-estar ou uma
indisposição, mas apenas de uma circunstância ou um acaso”. (WILLEMART, 2000, p. 64)
31
Na opinião de Gilles Deleuze, “A botina, tanto quanto a madeleine, provoca a intervenção da memória
involuntária: uma sensação antiga tenta se superpor, se acoplar à sensação atual e a estende sobre várias épocas
ao mesmo tempo. Basta, entretanto, que a sensação atual oponha à antiga sua ‘materialidade’ para que a alegria
148
Em A l’ombre des jeunes filles en fleurs, o narrador já havia sido “vítima” de um acesso
semelhante ao passear, na companhia de Andrée, em um bosque nos arredores de Balbec,
surge-lhe, inesperadamente, a lembrança da “moita de espinheiros” de sua infância, a lhe
sugerir um curioso diálogo a respeito da efêmera juventude:
Tout d’un coup, dans le petit chemin creux, je m’arrêtai touché au coeur par un doux
souvenir d’enfance: je venais de reconnaître, aux feuilles découpées et brillantes qui
s’avançaient sur le seuil, un buisson d’aubépines défleuries, hélas, depuis la fin du
printemps. Autour de moi flottait une atmosphère d’anciens mois de Marie, d’après-
midi du dimanche, de croyances, d’erreurs oubliées. J’aurais voulu la saisir. Je
m’arrêtai une seconde et Andrée, avec une divination charmante, me laissa causer un
instant avec les feuilles de l’arbuste. Je leur demandai des nouvelles des fleurs, ces
fleurs de l’aubépine pareilles à des gaies jeunes filles étourdies, coquettes et pieuses.
‘Ces demoiselles sont parties depuis déjà longtemps’, me disaient les feuilles. Et
peut-être pensaient-elles que pour le grand ami d’elles que je prétendais être, je ne
semblais guère renseigné sur leurs habitudes. Un grand ami, mais qui ne les avais
pas revues depuis tant d’années, malgré ses promesses. Et pourtant, comme Gilberte
avait été mon premier amour pour une jeune fille, elles avaient été mon premier
amour pour une fleur. (PROUST, 1954, p. 922)
Exemplos de manifestações involuntárias tendem a se multiplicar ao longo dos sete
romances que formam A la recherche du temps perdu, que este é, nas palavras de Georges
Gusdorf em Mémoire et personne, o
fruto” “d’une résurgence massive et miraculeuse de la
mémoire” (1951, v. 1, p. 225). É comum identificarmos expressões tais como “subitamente”,
dessa superposição lugar a um sentimento de fuga, de perda irreparável, em que a sensação antiga é repelida
para o fundo do tempo perdido” (DELEUZE, Proust e os signos, 1987, p. 20). Ainda em Sodome et Gomorrhe,
Marcel deixa claro que, para ele, a morte de algum ente querido, “agindo sobre nós
mais do que sua vida, é a
única realidade através da qual podemos compreender integralmente o significado do outro
: “Il agit même
plus qu’un vivant parce que, la véritable réalin’étant dégagée que par l’esprit, étant l’objet d’une opération
spirituelle, nous ne connaissons vraiment que ce que nous sommes obligés de recréer par la pensée, ce que nous
cache la vie de tous les jours... Enfin dans ce culte du regret pour nos morts, nous vouons une idolâtrie à ce qu’ils
ont aimé” (PROUST, 1954, p. 770). A morte da avó de Marcel, ora assimilada, fora descrita no volume anterior,
Le côté de Guermantes, encerrando a primeira parte do romance em tom comovente: “Le bruit de l’oxygène
s’était tu, le médecin s’éloigna du lit. Ma grand’mère était morte. (...) Quelques heures plus tard, Françoise put
une dernière fois et sans les faire souffrir peigner ces beaux cheveux qui grisonnaient seulement et jusqu’ici
avaient semblé être moins âgés qu’elle. Mais maintenant, au contraire, ils étaient seuls à imposer la couronne de
la vieillesse sur le visage redevenu jeune d’où avaient disparu les rides, les contractions, les empâtements, les
tensions, les fléchissements que, depuis tant d’années, lui avait ajoutés la souffrance. (...) La vie en se retirant
venait d’emporter les désillusions de la vie. Un sourire semblait posé sur les lèvres de ma grand’mere. Sur ce lit
funèbre, la mort, comme le sculpteur du moyen âge, l’avait couchée sous l’apparence d’une jeune fille”
(PROUST, 1954, p. 345). No item 3.3, veremos que os temas discutidos pela crítica proustiana brasileira não
diferem muito das análises veiculadas pela crítica francesa. Em relação à morte da avó, por exemplo, escreve
Tristão de Athayde em “Marcel Proust”: “Bruscamente, seis ou oito meses depois, ao voltar a Balbec, onde
tantas vezes estivera com a morta querida, tudo lhe voltou ao coração, como uma onda de paixão recalcada e
toda a dor que parecia esquecida volta agora a viver com muito mais intensidade do que no momento em que se
gravara na alma, insensivelmente. Não portanto um esquecimento contínuo, como não há um tempo único. A
intermitência é a lei da nossa vida interior.” (ATHAYDE, Estudos – 2ª série, 1928, p. 162)
149
“de súbito”, “repentinamente” (geralmente tout d’un coup”, no original
32
), utilizadas para
descrever tais ocorrências peculiares, como na cena em que Marcel insinua que os benefícios
da memória são mais proveitosos para aqueles que padecem de algum mal físico, pois, devido
à necessidade da preocupação cotidiana com a cura e à conseqüente reclusão, os mesmos
tendem a valorizar mais os “quadros da memória” do que as “paisagens da natureza”:
Il arrive souvent que le plaisir qu’ont tous les hommes à revoir les souvenirs que leur
mémoire a collectionnés est plus vif par exemple chez ceux que la tyrannie du mal
physique est l’espoir quotidien de sa guérison, privent, d’une part, d’aller chercher
dans la nature des tableaux qui ressemblent à ces souvenirs et, d’autre part, laissent
assez confiants qu’ils le pourront bientôt faire, pour rester vis-à-vis d’eux en état de
désir, d’appétit et ne pas les considérer seulement comme des souvenirs, comme des
tableaux. Mais eussent-ils pu jamais n’être que cela pour moi et eussé-je pu, en me
les rappelant, les revoir seulement, que soudain ils refaisaient de moi, de moi tout
entier, par la vertu d’une sensation identique, l’enfant, l’adolescent qui les avait vus.
(PROUST, La prisionnière, 1954, p. 26-7; grifo meu)
Ataques “súbitos”, na Recherche, não estão restritos às manifestações transfiguradoras
da memória. Motivados por preocupações estéticas exacerbadas, podem, muitas vezes, decidir
a favor da vida ou da morte de determinado personagem, como no caso do escritor Bergotte
que, após constatar que não conhecia perfeitamente o próprio quadro que mais admirava (o
que o leva à extrema auto-crítica em relação à sua própria produção literária), sente-se mal e
“subitamente” falece em meio ao temor de ser a “nota sensacional” da exposição:
(...) [la mort] de Bergotte survint le lendemain de ce jour-là il s’était ainsi confie
à un de ces amis (ami? ennemi?) trop puissant. Il mourut dans les circonstances
suivantes: Une crise d’urémie assez légère était cause qu’on lui avait prescrit le
repos. Mais un critique ayant écrit que dans la Vue de Delft de Ver Meer (prêté par
la musée de La Haye pour une exposition hollandaise), tableau qu’il adorait et
croyait connaître três bien, un petit pan de mur jaune (qu’il ne se rappelait pas) était
si bien peint qu’il était, si on le regardait seul, comme une précieuse oeuvre d’art
chinoise, d’une beauté qui se suffirait à elle-même, Bergotte mangea quelques
pommes de terre, sortit et entra à l’exposition. s les premières marches qu’il eut à
gravir, il fut pris d’étourdissements. Il passa devant plusieurs tableaux et eut
l’impression de la sécheresse et de l’inutilité d’un art si factice, et qui ne valait pas
les courants d’air et de soleil d’un palazzo de Venise ou d’une simple maison au
bord de la mer. Enfin il fut devant le Ver Meer, qu’il se rappelait plus éclatant, plus
32
Em Le temps sensible Proust et l’expérience littéraire, Julia Kristeva destaca o uso desta expressão ao
indicar a relação metonímica e metafórica entre a sensação passada e a sensação presente nos acessos
involuntários ocorridos com Marcel: ‘Tout d’un coup’, une substitution s’offre au souvenir pour donner une
image enfin stable à cette effervescence indécise de l’identité et de la différence entre le perçu et le signifié. À la
madeleine de maman se substitue la madeleine de Léonie, autour de laquelle Proust agence ses souvenirs de la
famille paternelle, les Amiot d’Illiers. Une métonymie s’opère donc entre mère et tante, sensation présente et
sensation passé. (...) Ce transport métonymique, qui ouvre le passé, construit une métaphore: la madeleine
proustienne sera cette condensation qui embrasse deux moments et deux espaces dans ‘l’édifice immense du
souvenir’.” (KRISTEVA, 1994, p. 40-1; grifo da autora)
150
différent de tout ce qu’il connaissait, mais où, grâce à l’article du critique, il
remarqua pour la première fois des petits personnages en bleu, que le sable était
rose, et enfin la précieuse matière du tout petit pan de mur jaune. Ses
étourdissements augmentaient; il attachait son regard, comme un enfant à un
papillon jaune qu’il veut saisir, au précieux petit pan de mur. ‘C’est ainsi que
j’aurais écrire, disait-il. Mes derniers livres sont trop secs, il aurait fallu passer
plusieurs couches de couleur, rendre ma phrase en elle-même précieuse, comme ce
petit pan de mur jaune.’ Cependant la gravité de ses étourdissements ne lui échappait
pas. Dans une céleste balance lui apparaissait, chargeant l’un des plateaux, sa propre
vie, tandis que l’autre contenait le petit pan de mur si bien peint en jaune. Il sentait
qu’il avait imprudemment donné la première pour le second. ‘Je ne voudrais
pourtant pas, se dit-il, être pour les journaux du soir le fait divers de cette
exposition.’ (...) Il se répétait: ‘Petit pan de mur jaune avec un auvent, petit pan de
mur jaune.’ Cependant il s’abattit sur un canapé circulaire; aussi brusquement il
cessa de penser que sa vie était en jeu et, revenant à l’optimisme, se dit: C’est une
simple indigestion que m’ont donnée ces pommes de terre pas assez cuites, ce n’est
rien.’ Un nouveau coup l’abattit, il roula du canapé par terre, où accoururent tous les
visiteurs et gardiens. Il était mort. (PROUST, La prisonnière, 1954, p. 186-7; grifo
meu)
33
33
José Maria Cançado sugere que este episódio é autobiográfico: “Nessa época [início da década de 1920],
Marcel mora no apartamento da rua Hamelin, um quinto andar, de onde não sairá, senão uma única vez, em
1921: ele insiste em visitar a exposição de pintores holandeses, que dão no Jeu de Paume. Quer ver, pressentindo
que será a última vez, o quadro que ele considera o mais belo do mundo. A vista de Delft, de Vermeer. É fatal.
Apanha uma bronquite. Aproveita contudo a indisposição decorrente para descrever a agonia do escritor
Bergotte. Um dos últimos capítulos que escreve. Sobre a imortalidade do escritor. (...) Recusa-se a ser tratado.
Advém uma pneumonia. Dita febrilmente algumas correções a Céleste. depois de concluída a sua obra deixa-
se morrer” (CANÇADO, Marcel Proust – As intermitências do coração, 1983, p. 50). Alvaro Lins também julga
que Bergotte é uma representação do próprio escritor, sobretudo nesta descrição da cena de sua morte: “Em
Bergotte há muito de Anatole France, (...) mas também vários traços do próprio Marcel Proust. Bergotte, por
exemplo, é por inteiro o próprio Marcel Proust na grande cena do episódio que antecedeu a sua morte e da morte
mesma como ele a previa para dentro em pouco” (LINS, A técnica do romance em Marcel Proust, 1956, p. 60-
1). Em “No mundo de Proust” (Manuel Bandeira, Crônicas da província do Brasil, 1937, p. 264), lê-se uma
curiosa nota informando que “Durante sua última viagem à Europa, Manuel Bandeira visitou a Holanda,
especialmente para apreciar La Vue de Delft, de Jéan de Ver Meer”. Porém, em “Declaração de amor” (Flauta de
papel, Poesia completa e prosa, 1967, p. 612), o próprio poeta pernambucano confessa que passou rapidamente
pela cidade retratada: “(...) quando atravessei Delft pelo centro, Delft cuja porcelana azul mediocrizou-se, mas
que persiste linda como nos tempos de Vermeer. Não havia tempo para localizar a famosa vista do mestre, com o
seu paninho de muro amarelo tão exaustivamente analisado por Proust em La Prisonnière”. Quanto à expressão
“paninho de muro amarelo”, Bandeira se serve do mesmo termo utilizado por ele e por Lourdes Sousa de Aguiar
na tradução brasileira do romance (“pano de muro amarelo”, A prisioneira, 1971, p. 157-8, para designar o pan
de mur jaune”). Tal termo, a meu ver, não reproduz com exatidão a imagem sugerida pelo narrador proustiano.
De acordo com o Dicionário Escolar Francês-Português/Português-Francês, organizado por Roberto Alvim
Corrêa, pan pode ser traduzido por “pano”, fralda”, “aba”; “pedaço”; “lado”, “face” (1965, p. 430). Dessa
forma, julgo que “pedaço” (“de muro amarelo”) seria a expressão mais adequada para representar a parte do
quadro de Vermeer que Bergotte desconhecia. Em Memórias videntes do Brasil, José Maria Cançado sugere
outra tradução, bastante conveniente: “pequeno reboco de muro amarelo”, interpretando seu significado como
uma (...) pequena incrustação amarela no muro, aviso de ventura, cor e textura de ‘uma outra esquina’, de uma
outra epocalidade do ser e da vida;” (CANÇADO, 2003, p. 156-7)
151
Figura 5 - A vista de Delft (Johannes Vermeer
34
), indicado, por diversos críticos, como
o quadro “mais belo do mundo” segundo o parecer de Marcel Proust, opinião
compartilhada, na Recherche, pelo escritor Bergotte e pelo narrador Marcel
Às representações estéticas refinadas (nas artes plásticas, na literatura, na música, etc),
Marcel associa a mesma “realidade espiritual” evocada pelas manifestações involuntárias
mais significativas de sua narrativa, todas elas símbolos do prazer originado pela busca
incessante de “profundidade” e da “verdade”, busca baseada na “realidade da memória” re-
vivida através do apelo à arte e aos sentidos, pois
(...) il n’est pas possible qu’une sculpture, une musique qui donne une émotion
qu’on sent plus élevée, plus pure, plus vraie, ne corresponde pas à une certaine
réalité spirituelle, ou la vie n’aurait aucun sens. Ainsi rien ne ressemblait plus
qu’une belle phrase de Vinteuil à ce plaisir particulier que j’avais quelquefois
éprouvé dans ma vie, par exemple devant les clochers de Martinville, certains arbres
34
Delft, Holanda, 1632. Id. 1675.
152
d’une route de Balbec ou plus simplement, au début de cet ouvrage, en buvant une
certaine tasse de thé. (PROUST, La prisonnière, 1954, p. 374)
35
É, enfim, somente através da memória involuntária e da compreensão superior do
sentido da arte
36
que Marcel alcança o verdadeiro significado de sua infância e,
conseqüentemente, de seu ser, conquistas atribuídas ao “milagre” dos eventos súbitos e à
indistinção entre passado e presente:
Mais qu’un bruit, qu’une odeur, déjà entendu ou respirée jadis, le soient de nouveau,
à la fois dans le présent et dans le passé, réels sans être actuels, idéaux sans être
abstraits, aussitôt l’essence permanente et habituellement cachée des choses se
trouve liberée, et notre vrai moi qui, parfois depuis longtemps, semblait mort, mais
ne l’était pas entièrement, s’éveille, s’anime en recevant la céleste nourriture qui lui
est apportée. Une minute affranchie de l’ordre du temps a recréé en nous, pour la
sentir, l’homme affranchi de l’ordre du temps. (PROUST, Le temps retrouvé, 1954,
p. 872-3)
“Livre da ordem do tempo”, a existência de Marcel, “partie A la recherche de son
essence”, “la retrouve dans l’intemporel” (POULET, Études sur le temps humain, 1949, p.
394) existência atribulada, doente e doentia, dependente dos cuidados da mãe, mas que
casualmente se completa e se justifica graças à recomposição inesperada da infância,
35
Em Le temps retrou, Marcel aprofunda esta proposição ao sugerir uma questão a um tempo instigante e
perturbadora, relacionada à própria razão de ser das manifestações artísticas: “Or la recréation par la mémoire
d’impressions qu’il fallait ensuite approfondir, éclairer, transformer en équivalents d’intelligence, n’était-elle pas
153
(...) uma infância que a memória involuntária, estimulada ou encantada pelo gosto
muito esquecido de uma madeleine embebida em chá, evoca, em todo o relevo e
cor de seu significado essencial, do poço raso da inescrutável banalidade de uma
taça. (BECKETT, 1986, p. 27)
A infância de Marcel, porém, sendo, como sabemos, marcada pelo costume de passar as
férias em Combray, de consumir madeleines e de esperar ansiosamente pelo beijo de boa-
noite dado pela mãe, não é, conforme observa Genette em “Proust palimpseste”, a origem da
narrativa, uma vez que faz com que o leitor se defronte, devido à “ressurreição” abrupta desse
passado, com uma infância “sonhada”, “imaginada”, muito mais “verdadeira” que a infância
real vivida pelo personagem, fato compreendido em toda a sua extensão somente nas
considerações finais de Le temps retrouvé, o que caracteriza certo paradoxo detectado pelo
crítico, pois a cena “cronologicamente anterior” é “psicologicamente posterior”:
L’enfance de Marcel n’est pas tout à fait une origine, puisqu’elle est, pour
l’essentiel, ressuscitée par la petite madeleine, et qu’il s’agit plus d’une enfance
rêvée que d’une enfance réelle: ‘chronologiquement’ antérieure à la révélation du
Temps Retrouvé, elle lui est psychologiquement postérieure, et cette ambiguïté de
situation ne peut manquer de l’altérer. (GENETTE, 1966, p. 59)
Somente no fecho de sua narrativa Marcel entende que, mais do que “velhas sensações”
reencontradas, todas estas manifestações acidentais de sua memória involuntária lhe
participam uma “verdade nova”, da qual não pode se afastar, sob o risco de perder sua mais
preciosa “criação original”, essência a princípio tão inalcançável, pois, com certo atraso,
Marcel enfim percebe que,
(...) d’une autre façon, des impressions obscures avaient quelquefois, et déjà à
Combray du côté de Guermantes, sollicité ma pensée, à la façon de ces
réminiscences, mais qui cachaient non une sensation d’autrefois mais une vérité
nouvelle, une image précieuse que je cherchais à découvrir par des efforts du même
genre que ceux qu’on fait pour se rappeler quelque chose, comme si nos plus belles
idées étaient comme des airs de musique qui nous reviendraient sans que nous les
eussions jamais entendus, et que nous nous efforcerions d’écouter, de transcrire.
(PROUST, Le temps retrou, 1954, p. 878)
Tal “criação original”, no caso específico de Marcel, não se restringe à reelaboração,
com base nas recordações involuntárias, do Outro pelo Mesmo: sendo o narrador a ponte entre
o velho e o novo, este apela para uma caracterização inusitada de si mesmo, estranha “fusão”
entre a “alma” de seus antepassados e a sua própria alma quando criança:
154
Quand nous avons dépassé un certain âge, l’âme de l’enfant que nous fûmes et l’âme
des morts dont nous sommes sortis viennent nous jeter à poignée leurs richesses et
leurs mauvais sorts, demandant à coopérer aux nouveaux sentiments que nous
éprouvons et dans lesquels, effaçant leur ancienne effigie, nous les refondons en une
création originale. (PROUST, La prisonnière, 1954, p. 79)
A criação é original porque uma enorme distância entre o(s) eu(s) do passado e o eu
do narrador, ou melhor, entre as “imagens puras” do passado e as lembranças evocadas pela
recordação involuntária, diferença que elimina qualquer espécie de comparação (a fim de que
não se comprometa a “originalidade específica”), e que ainda por cima supervaloriza os
lugares edênicos da infância, paraísos praticamente perdidos (mas finalmente recuperados e
recriados pela memória
37
):
(...) entre le souvenir qui nous revient brusquement et notre état actuel, de même
qu’entre deux souvenirs d’années, de lieux, d’heures différentes, la distance est telle
que cela suffirait, en dehors même d’une originalité spécifique, à les rendre
incomparables les uns aux autres. Oui, si le souvenir, grâce à l’oubli, n’a pu
contracter aucun lien, jeter aucun chaînon entre lui et la minute presente, s’il est
resté à sa place, à sa date, s’il a gardé ses distances, son isolement dans le creux
d’une vallée ou à la pointe d’un sommet, il nous fait tout à coup respirer un air
nouveau, précisément parce que c’est un air qu’on a respiré autrefois, cet air plus pur
que les poètes ont vainement essayé de faire régner dans le Paradis et qui ne pourrait
donner cette sensation profonde de renouvellement que s’il avait été respiré déjà, car
les vrais paradis sont les paradis qu’on a perdus. (PROUST, Le temps retrouvé,
1954, p. 870)
Para restituir tudo aquilo do qual o esquecimento se apoderou, necessita-se, uma vez
mais e sempre, do auxílio irrefutável das ocorrências involuntárias, único expediente possível
para se combater o “abismo” da memória e que funciona como um “antídoto” (v. 2.1, p. 46,
nota 19) a atuar contra a morte definitiva de uma infinidade de imagens:
(...) la mémoire, au lieu d’un exemplaire en double, toujours présent à nos yeux, des
divers faits de notre vie, est plutôt un néant d’où par instants une similitude actuelle
nous permet de tirer, ressuscités, des souvenirs morts; mais encore il y a mille petits
faits qui ne sont pas tombés dans cette virtualité de la moire, et qui resteront à
jamais incontrôlables pour nous. (PROUST, La prisonnière, 1954, p. 146)
Para Marcel, “Une mémoire sans défaillance n’est pas un très puissant excitateur à
étudier les phénomènes de mémoire” (PROUST, Sodome et Gomorrhe, 1954, p. 652), daí o
37
“il [Marcel] sait que seul le passé nous est acquis et que ‘les vrais paradis sont les paradis qu’on a perdus’.
Perdus à jamais? Non, car la mémoire va les ressusciter, mémoire involontaire mais disponible, accueillant
l’apparition mystérieuse, imprévue, grâce à laquelle va se construire, sur le goût d’un gâteau ou le parfum d’une
fleur, l’édifice immense du souvenir’.” (LAGARDE et MICHARD, “Marcel Proust”, XXe siècle, 1973, p. 223;
grifo dos autores)
155
incentivo constante de se esperar pelos supostos benefícios da memória involuntária, último
recurso do qual o narrador se serve a fim de evitar o esquecimento “definitivo”
38
. Em seu
magistral ensaio, Samuel Beckett afirma ironicamente:
Proust tinha má memória (...). O homem de boa memória nunca se lembra de nada,
porque nunca se esquece de nada. (...) A apologia de sua memória ‘Lembro-me
como se fosse ontem...’ é também seu epitáfio e indica a expressão exata de seu
valor. Não pode lembrar-se de ontem, na mesma medida em que não pode lembrar-
se de amanhã. (BECKETT, 1986, p. 23; grifo do autor)
39
Mesmo dono de uma memória na qual cabiam “um milhão e duzentas e cinqüenta mil”
palavras, das quais se serviu para realizar sua obra-prima, Proust não a julgava infalível, fato
simbolizado, na narrativa de Marcel, através da dificuldade deste em se recordar com precisão
dos nomes de algumas das pessoas que conhecera em outros tempos, problema novamente
sanado devido à recordação súbita e casual que o acomete, trazendo-lhe fidedignamente o
nome desejado:
Dans ce grand ‘cache-cache’ qui se joue dans la mémoire quand on veut retrouver
un nom, il n’y a pas une série d’approximations graduées. On ne voit rien, puis tout
d’un coup apparaît le nom exact et fort différent de ce qu’on croyait deviner. Ce
n’est pas lui qui est venu à nous. Non, je crois plutôt qu’au fur et à mesure que nous
vivons, nous passons notre temps à nous eloigner de la zone un nom est distinct,
et c’est par un exercise de ma volonté et de mon attention, qui augmentait l’acuité de
mon regard intérieur, que tout d’un coup j’avais percé la demi-obscurité et vu clair.
En tous cas, s’il y a des transitions entre l’oubli et le souvenir, alors ces transitions
sont inconscientes. Car les noms d’étape par lesquels nous passons, avant de trouver
le nom vrai, sont, eux, faux, et ne nous rapprochent en rien de lui. Ce ne sont même
pas à proprement parler de noms, mais souvent de simples consonnes et qui ne se
retrouvent pas dans le nom retrouvé. (PROUST, Sodome et Gomorrhe, 1954, p. 650-
1; grifo meu)
A memória involuntária, além de seu papel determinante na redescoberta da essência do
eu atemporal, é o mecanismo responsável pela transição inconsciente do esquecimento à
lembrança, esquecimento considerado como o “nada mental” associado ao sono e ao poder
38
No segundo tomo de Temps et récit, Paul Ricoeur afirma que até mesmo a complexa reconstituição que
Marcel faz de Combray, supostamente “completa
, não está totalmente a salvo de um “esquecimento
devastador
: “Même les moments bienheureux de Combray, où la distance entre l’impression présente et
l’impression passé se trouve magiquement transformée en une contemporanéité miraculeuse, pourraient sembler
emportés par le même oubli dévastateur.” (RICOEUR, 1984, v. 2, p. 265)
39
Ao comentar este trecho de Beckett, Malcolm Bradbury reage com ironia semelhante: “Proust tinha
memória, uma memória em que cabiam 1 250 000 palavras, a qual teria sido maior ainda não fosse a intervenção
da Morte – ainda que, como ele próprio deixa claro, seja justamente a Morte que torna essencial a tarefa de busca
empreendida no frágil passado.” (BRADBURY, 1989, p. 124)
156
narcótico dos calmantes durante o eterno embate do narrador dividido entre sono e vigília,
pois
S’il est vrai que la mer ait été autrefois notre milieu vital où il faille replonger notre
sang pour retrouver nos forces, il en est de même de l’oubli, du néant mental; on
semble alors absent du temps pendant quelques heures; mais les forces qui se sont
rangées pendant ce temps-là sans être dépensées, le mesurent par leur quantité aussi
exactement que les poids de l’horloge ou les croulants monticules du sablier. On ne
sort pas, d’ailleurs, plus aisément d’un tel sommeil que de la veille prolongée, tant
toutes choses tendent à durer et, s’il est vrai que certains narcotiques font dormir,
dormir longtemps est un narcotique plus puissant encore, après lequel on a bien de la
peine à se réveiller. Pareil à un matelot qui voit bien le quai amarrer sa barque,
secouée cependant encore par les flots, j’avais bien l’idée de regarder l’heure et de
me lever, mais mon corps était à tout instant rejeté dans le sommeil; l’aterrissage
était difficile, et avant de me mettre debout pour atteindre ma montre e confronter
son heure avec celle qu’indiquait la richesse de matériaux dont disposaient mês
jambes rompues, je retombais encore deux ou trois fois sur mon oreiller. (PROUST,
A l’ombre de jeunes filles en fleurs, 1954, p. 821)
A recorrência inconteste ao “milagre” da memória involuntária como forma de salvar do
esquecimento suas recordações mais preciosas, o contraponto entre inteligência e imaginação,
o extremo psicologismo do romance
40
, as diversas vozes nele superpostas, dentre inúmeros
outros fatores, já atestam por si só a absoluta modernidade desta obra-prima escrita nos
primeiros decênios do século XX e que chega ao início do XXI despertando cada vez mais
interesse nos críticos contemporâneos, ansiosos por conseguir demonstrar o intenso diálogo
entre elementos presentes em A la recherche du temps perdu e as abordagens teóricas
características dos estudos críticos e comparatistas mais recentes, questionamento possível,
hoje em dia, graças à necessária distância temporal entre a publicação da obra e sua recepção
atual, conforme atesta o comentário de Antoine Compagnon em O demônio da teoria
Literatura e senso comum:
O afastamento no tempo desembaraça a obra do seu quadro contemporâneo e dos
efeitos primários que impediam que ela fosse lida tal como é em si mesma. A
Recherche, recebida primeiro à luz da biografia de seu autor, do seu esnobismo, da
sua asma, da sua homossexualidade, segundo uma ilusão (intencional e genética)
que impedia a lucidez quanto a seu valor, encontra enfim leitores livres de
preconceitos, ou melhor, leitores cujos preconceitos são outros, e menos estranhos à
Recherche, porque a assimilação da obra de Proust, seu sucesso crescente, tornou-os
favoráveis a essa obra ou mesmo dependem dela para ler todo o resto da literatura.
40
“Le roman psychologique s’imprègne de lyrisme; il n’est plus une branche de l’étude des passions; il ne sert
plus à dessiner des caractères; à de très rares exceptions près, il n’est plus conçu que comme un recueil
d’‘impressions’ sur l’âme, de ‘paysages introspectifs’.” (RIVIÈRE, “Marcel Proust et la tradition classique”, Les
critiques de notre temps et Proust, 1971, p. 28)
157
Depois de Renoir, diz ainda Proust, todas as mulheres tornaram-se Renoir; depois de
Proust, o amor de Mme de Sévigné por sua filha é interpretado como um amor de
Swann. Assim, a valorização de uma obra, uma vez começada, tem todas as chances
de acelerar-se, pois ela faz dessa obra um critério de valorização da literatura: seu
sucesso confirma, pois, seu sucesso. (...) É o afastamento no tempo que é, em geral,
considerado como uma condição favorável ao reconhecimento dos verdadeiros
valores. Mas um outro tipo de afastamento propício à seleção dos valores pode ser
fornecido pela distância geográfica ou pela exterioridade nacional, e uma obra é
muitas vezes lida com mais sagacidade, ou menos viseiras, fora das fronteiras, longe
de seu lugar de surgimento, como foi o caso de Proust na Alemanha, na Grã-
Bretanha ou nos Estados Unidos, onde o leram muito mais cedo e muito melhor. Os
termos de comparação não são os mesmos, não tão restritos, são mais tolerantes, e os
preconceitos são diferentes, sem vida menos pesados. (COMPAGNON, 2003, p.
252)
O leitor e o crítico contemporâneos encontrarão, portanto, na obra de Proust, farto
manancial para a discussão das mais variadas questões que pontuam a teoria literária neste
início de século, como, por exemplo, a crítica genética. Tal afirmação é verdadeira se
considerarmos as inúmeras manifestações involuntárias descritas na Recherche e que se
encontravam em germe em Contre Sainte-Beuve. Vejamos como Proust elabora neste o
episódio do tropeço nos paralelepípedos do palácio de Guermantes, descrição aproveitada, na
Recherche, somente no último volume (O tempo redescoberto):
(...) muitos dias de Veneza, que a inteligência não podia me devolver, permaneciam
mortos para mim quando, no ano passado, ao atravessar um pátio, simplesmente
parei no meio dos paralelepípedos desiguais e brilhantes. Os amigos que me
acompanhavam temeram que eu tivesse escorregado, mas fiz um sinal para que
continuassem, eu os reencontraria adiante: um objeto mais importante prendia-me,
não sabia ainda qual era, mas sentia no fundo de mim mesmo estremecer um
passado que não reconhecia; foi ao colocar o nos paralelepípedos para
experimentar aquela inquietação. Sentia uma felicidade que me invadia, ia ser
enriquecido com um pouco daquela substância pura de nós mesmos que é uma
impressão do passado, da vida pura conservada pura (e que podemos conhecer
quando preservada, pois no momento em que a vivemos, ela não se apresenta à
nossa memória, mas ao centro das sensações que a suprimem) e [que] pedia para
ser libertada, no sentido de aumentar meus tesouros de poesia e de vida. Mas eu não
conhecia o prazer de libertá-la. Temia que aquele passado escapasse-me. Ah! a
inteligência de nada me servia naquele momento. Refiz alguns passos para trás, para
retornar novamente aos paralelepípedos desiguais e brilhantes, esforçando-me para
me remeter àquele mesmo lugar. Bruscamente, um fluxo de luz invadiu-me. Era a
mesma sensação que eu experimentara em meus pés no pavimento um tanto desigual
e liso do batistério de São Marcos. A sombra que havia naquele dia sobre o canal,
onde me aguardava a gôndola, toda a felicidade, todo o tesouro daquelas horas
precipitou-se na seqüência daquela sensação reconhecida e daquele dia, ele próprio
renascido para mim. (PROUST, Contre Sainte-Beuve, 1988, p. 40-1)
41
41
Em Le temps retrouvé, Proust inclui o seguinte esclarecimento, ausente em Contre Sainte-Beuve: “Je n’avais
pas été chercher les deux pavés inégaux de la cour j’avais buté. Mais justement la façon fortuite, inévitable,
dont la sensation avait été rencontrée, contrôlait la vérité du passé qu’elle ressuscitait, des images qu’elle
déclenchait, puisque nous sentons son effort pour remonter vers la lumière, que nous sentons la joie du réel
retrouvé. Elle est le contrôle aussi de la vérité de tout le tableau, fait d’impressions contemporaines qu’elle
158
Sugestões inconscientes, análise psicológica extremamente aguda, imaginação a
completar os meandros da relação entre a memória dos sentidos e o apelo à inteligência - eis o
universo do roman-fleuve de Proust e de sua evocação da infância, universo complexo e
fascinante, no qual aidéia” recria o “menino” e o “menino” revive através da “idéia”,
ressuscitando assim um ciclo infindável de reminiscências:
(...) esse menino que brinca assim em mim sobre as ruínas não tem necessidade de
nenhum alimento, nutre-se simplesmente do prazer que a evidência da idéia que
descobre lhe dá; ele a cria, ela o cria, ele morre, mas uma idéia o ressuscita, como os
grãos que interrompem o germinar numa atmosfera muito seca estão mortos: mas
um pouco de umidade e de calor basta para ressuscitá-los. (PROUST, Contre Sainte-
Beuve, 1988, p. 139-40)
ramène à sa suite avec cette infaillible proportion de lumière et d’ombre, de relief et d’omission, de souvenir et
d’oubli que la mémoire ou l’observation conscientes ignoreront toujours.” (PROUST, 1954, p. 879)
159
3.2 CRÍTICA PROUSTIANA FRANCESA E EUROPÉIA
“L’histoire de Marcel Proust est, comme le décrit son
livre, celle d’un homme qui a tendrement aimé le monde
magique de son enfance; qui très t a éprouvé le besoin
de fixer ce monde et la beauté de certains instants; (...)
[qui] a consacré les années qui lui restaient à recréer
cette enfance perdue et les désillusions qui l’avaient
suivie; qui enfin a fait, du temps ainsi retrouvé, la
matière d’une des plus grandes oeuvres romanesques de
tous les temps.” (André Maurois, A la recherche de
Marcel Proust, 1949, p. 07)
Assim André Maurois resume a busca a que Marcel Proust procede de si mesmo
através da infância e do “tempo redescoberto” em seu espetacular empreendimento
intitulado A la recherche du temps perdu, o qual, ironicamente, ao mesmo tempo em que lhe
consome a saúde e a energia, canoniza-o como um dos maiores autores franceses de todos os
tempos. Antes, porém, de a crítica estruturalista francesa dos anos 60 e 70 se debruçar sobre a
Recherche e elegê-la, ao lado do Ulisses de Joyce, o grande marco do romance europeu da
primeira metade do século XX, tentando compreender a profundidade daquilo que o
surpreendente, revolucionário e inclassificável texto trazia de original em estilo, proposta,
concepção e realização, Samuel Beckett, dramaturgo, poeta e romancista irlandês
42
, autor do
aclamado Esperando Godot (En attendant Godot, 1952, considerado a expressão máxima do
niilismo do escritor), menos de dez anos após a morte de Marcel Proust (ocorrida em 18 de
novembro de 1922), lança um magnífico ensaio (Proust, 1931), extremamente poético, a
respeito da Recherche e de temas afins tais como “tempo”, “morte”, “fugacidade”, etc. O
início é em grande estilo e não sabemos se se trata de um ensaio de filosofia ou de crítica
literária, na medida em que somos, no decorrer de sua leitura, tragados pela força arrebatadora
de sua linguagem:
Não como fugir das horas e dos dias. Nem de amanhã nem de ontem. Não
como fugir de ontem porque ontem nos deformou, ou foi por nós deformado. O
42
Tendo nascido em Foxrock, nos arredores de Dublin, em 1906, e morrido em Paris em 1989, Beckett escrevia
em inglês e em francês (neste idioma, a partir de 1937, quando passou a morar definitivamente em Paris), sendo
que várias de suas obras, escritas em uma dessas duas línguas, foram por ele mesmo transpostas para a outra.
Proust, de 1931, foi escrito em inglês e posteriormente vertido para o francês. A tradução brasileira, da qual me
utilizo, feita por Arthur Rosenblat Nestrowski, saiu em 1986 pela L&PM de Porto Alegre.
160
estado emocional é irrelevante. Sobreveio uma deformação. Ontem não é um marco
de estrada ultrapassado, mas um dia-mante na estrada batida dos anos e
irremediavelmente parte de nós, dentro de nós, pesado e perigoso. Não estamos
meramente mais cansados por causa de ontem, somos outros, não mais o que éramos
antes da calamidade de ontem. Calamitoso dia, mas calamitoso não necessariamente
por seu conteúdo. A boa ou disposição do objeto não tem nem realidade nem
significado. Os prazeres e pesares imediatos do corpo e da inteligência não são mais
que mal-formações de superfície. Assim como foi, esse dia é assimilado ao único
mundo que tem realidade e significado, o mundo de nossa consciência latente, cuja
cosmografia sofre assim um deslocamento. Estamos, portanto, na situação de
Tântalo, com a diferença de que nos deixamos tantalizar
43
. E possivelmente o moto-
perpétuo de nossas desilusões esteja sujeito a maior variedade. As aspirações de
ontem foram válidas para o ego de ontem, não para o de hoje. Ficamos desapontados
com a nulidade do que nos apraz chamar de realização. Mas o que é a realização ? A
identificação do sujeito com o objeto de seu desejo. O sujeito morreu quem sabe
muitas vezes – pelo caminho. (BECKETT, 1986, p. 09; grifo meu)
Escravos das horas e dos dias, não nos resta muito, conforme Beckett, além de vivermos
os “prazeres e pesares imediatos do corpo e da inteligência” no dia de hoje apenas, no “agora”
(diamante lapidado em “dia-mante”!), que o futuro ainda não chegou (constatação amarga
materializada na indagação: “Mas o que é a realização?”, espécie de abstração que jamais se
plenamente atingida, porque nunca a “identificação do sujeito com o objeto de seu desejo”
será total), e o “calamitoso dia” de “ontem” passou rapidamente, não sem causar um
deslocamento ao ser assimilado pela realidade de nossa “consciência latente”, transformando-
nos em outros”, sujeitos múltiplos que ressuscitam objetos e a eles conferem nova realidade
e novo sentido, reinventando-os. Por tudo isso, Samuel Beckett julga que as “criaturas
proustianas” são “vítimas desta circunstância e condição predominante: o Tempo” (1986, p.
09), entidade máxima, maiúscula, capital, a presidir, com poderes divinos (o Cronos dos
gregos) os desígnios do ser humano em geral e do ser redescoberto em particular, ambos
dependentes Dele. Para o escritor dublinense, o Tempo “proustiano” é tão fundamental para a
narrativa a ponto de justificar a cronologia “interior” de Marcel, o herói-narrador à procura de
sua essência: “Para os propósitos desta síntese, convém adotar a cronologia interna da
43
Referência de Beckett ao soberano da Lídia, personagem orgulhoso e ambicioso que, tendo oferecido a carne
do filho Pélope em um banquete a fim de testar os dons divinatórios dos deuses (cometendo assim duplo crime:
infanticídio e sacrilégio), é por esse motivo condenado a viver no inferno, sedento e faminto, próximo a frutas e
água, das quais não pode usufruir (episódio conhecido como “Suplício de Tântalo”), de forma semelhante ao
homem que, escravizado pelo Tempo, observa Sua passagem sem se dar conta de sua impotência diante Dele.
161
demonstração proustiana, examinando em primeiro lugar esse monstro de duas cabeças,
danação e salvação – o Tempo.” (BECKETT, 1986, p. 07; grifo do autor)
A “danação” é esquecer (“tempo perdido”), a salvação, ressuscitar (“tempo
redescoberto”). Esquecendo ou ressuscitando, somos paulatinamente engolidos pelo Tempo,
protagonista egocêntrico que nos relega um papel secundário e limitado, o de espectadores de
sua vontade:
De modo que, seja qual for o objeto, nosso desejo de posse é, por definição,
insaciável. Na melhor das hipóteses, tudo que se der no Tempo (todo produto do
Tempo), seja na Arte ou na Vida, poderá ser possuído sucessivamente, por uma
série de anexações parciais e nunca integralmente, de uma vez. (BECKETT,
1986, p. 13)
44
Beckett vai mais além na importância que, segundo ele, Proust atribui ao Tempo,
afirmando ser Este o móvel de sua revelação artística e de sua busca “concreta” pela “Idéia”:
No Tempo, criativo e destrutivo, Proust descobre a si mesmo como artista: ‘Eu
compreendi o significado da morte, do amor e da vocação, das alegrias do espírito e
da utilidade da dor’. Alusão já foi feita a seu desprezo pela literatura que ‘descreve’,
pelos realistas e naturalistas adoradores do refugo da experiência, prostrados perante
a epiderme e a epilepsia passageira e satisfeitos com a transcrição da superfície, da
fachada atrás da qual está encarcerada a Idéia. (...) Proust não lida com conceitos, ele
persegue a Idéia, o concreto. Ele admira os afrescos da Arena de Pádua porque seu
simbolismo é tratado como uma realidade, especial, literal e concreta, e não é apenas
a transmissão pictórica de uma noção. (BECKETT, 1986, p. 63-4)
Sabemos que o Tempo nos consome mas não conseguimos deduzir rapidamente seus
propósitos e nem mesmo a época em que determinado evento ocorrerá, que não dispomos
de “senha” para decifrá-lo nem de percepção suficiente para intuir sua predestinação: “Tudo
que é ativo, tudo que está envolvido pelo tempo e pelo espaço, é dotado do que poderia ser
descrito como uma ideal, abstrata e absoluta impenetrabilidade.” (BECKETT, 1986, p. 46)
André Maurois diverge de Beckett ao propor que, no universo proustiano, o Tempo
seria apenas destrutivo, cabendo à Memória o poder de criação e preservação (concretização
44
Trata-se o trecho a seguir de outro exemplo de como, para Beckett, o Tempo da Recherche tudo consome em
sua implacável destruição, fazendo da vida de Marcel “uma seqüência de ajustamentos e deslocamentos, onde
nem o mistério nem a beleza são sagrados, onde tudo, exceto as colunas inflexíveis de seu tédio duradouro, foi
consumido no solvente torrencial dos anos, uma vida tão procrastinada no passado e tão inexpressiva no futuro,
tão completamente despojada de qualquer necessidade individual e permanente, que sua morte, agora ou amanhã
ou em um ano ou em dez, seria um fim mas não uma conclusão.” (BECKETT, 1986, p. 54)
162
da Idéia”): “premier thème: le Temps, qui détruit. Deuxième: la Mémoire, qui conserve”
(1949, p. 171; grifo do autor). À página 168, justifica:
Le temps détruit non seulement les êtres, mais les sociétés, les mondes, les empires.
Un pays est déchiré par des passions politiques, comme la France au temps de
l’Affaire Dreyfus; les amis se brouillent, les familles se divisent; chacun croit ses
passions absolues, éternelles, mais le courant implacable emporte vainqueurs et
vaincus, et tous se retrouvent vieillis, proches de la mort, apaisés par la fablesse,
autour de leurs passions refroidies et d’une lave durcie, inoffensive. Et les maisons,
les avenues, les routes sont fugitives, hélas ! comme les années.’
45
(MAUROIS,
1949, p. 168)
Além disso, Maurois percebe uma “falha” em nossa sujeição implacável ao Tempo, da
qual o próprio Marcel se “aproveita” para chegar ao “ser redescoberto” a idéia é que, se o
Tempo destrói o homem, este, com o auxílio da memória, torna-se “imortal” através da Arte e
da Literatura, sendo a Recherche
163
équivalents d’intelligence, est l’essence de l’oeuvre d’art. (MAUROIS, 1949, p. 171;
grifo do autor)
46
Para se chegar ao “ser redescoberto”, é necessário reelaborar o tempo “perdido” e,
graças à Arte, redescobri-lo” também motivo pelo qual Marcel valoriza tanto os atributos
do Tempo, a ponto de criar, na cena final do roman-fleuve, a sugestiva imagem dos seres
gigantes Nele imersos:
Du moins, si elle m’était laissée assez longtemps pour accomplir mon oeuvre, ne
manquerais-je pas d’abord d’y crire les hommes (cela dût-il les faire ressembler à
des êtres monstrueux) comme occupant une place si considérable, à côté de celle si
restreinte qui leur est réservée dans l’espace, une place au contraire prolongée sans
mesure puisqu’ils touchent simultanément, comme des géants plongés dans les
années, à des époques si distantes, entre lesquelles tant de jours sont venus se placer
– dans le Temps. (PROUST, Le temps retrou, 1954, p. 1048)
47
É proposital, portanto, a fixação proustiana em relação ao Tempo, espécie de obsessão
bem percebida por Maurois que, a certa altura de A la recherche de Marcel Proust, indica-o
como o principal tema explorado na Recherche:
Le premier, celui sur lequel il commencera et terminera son oeuvre, c’est le thème
du Temps. Proust est obsédé par la fuite des instants, par le perpétuel écoulement de
tout ce qui nous entoure, par la transformation qu’apporte le temps dans nos corps et
dans nos pensées. ‘Comme il y a une géométrie dans l’espace, il y a une psychologie
dans le temps.’ Tous les êtres humains, qu’ils acceptent ou non, sont plongés dans le
temps et emportés par le courant des jours. Toute leur vie est une lutte contre le
temps. (MAUROIS, 1949, p. 168)
As transformações operadas em nós fazem de nosso corpo e de nosso espírito
verdadeiros “reservatórios” do Tempo, daí a necessidade de, a fim de conhecer
profundamente os mistérios que diferenciam o Ipse do Idem e que determinam nossa
personalidade, sair “à procura do tempo perdido” e de, ao resgatá-lo, chegar ao tão almejado
“ser redescoberto”, muito latente, “pronto para ressurgir”: “Nos corps, nos esprits sont des
46
Deleuze formula a questão da “imortalidade” obtida através da Arte de forma extremamente poética: “As
reminiscências são metáforas da vida; as metáforas são reminiscências da arte. Ambas, com efeito, têm algo em
comum: determinam uma relação entre dois objetos inteiramente diferentes, ‘para as subtrair às contingências do
tempo’. Mas só a arte realiza plenamente o que a vida apenas esboçou.” (DELEUZE, 1987, p. 55)
47
A respeito desta cena, menciono a brilhante interpretação de Paul Ricoeur em Temps et récit II: “Cette
dernière figure du temps retrouvé dit deux choses: que le temps perdu est contenu dans le temps retrouvé, mais
aussi que c’est finalement le Temps qui nous contient. Ce n’est pas, en effet, sur un cri de triomphe que se clôt la
Recherche, mais sur ‘un sentiment de fatigue et d’effroi’. Car le temps retrouvé, c’est aussi la mort retrouvée”
(RICOEUR, 1984, v. 2, p. 285). Em “Relendo Marcel Proust” (Proustiana Brasileira, 1950, p. 64), Augusto
Meyer resume: “Seres monstruosos, ocupam no tempo um lugar muito maior do que no espaço, pois avultam
como gigantes mergulhados na profundez do passado”. E Philippe Willemart, em Proust, poeta e psicanalista,
164
réservoirs des temps. D’où l’idée, génératrice de tout l’oeuvre de Proust, de partir A la
recherche du temps qui semble perdu et qui, pourtant, est là, prêt à renaître.” (MAUROIS,
1949, p. 171)
48
Nas “Notes sur Proust” veiculadas no número 350 da Magazine littéraire de janeiro de
1997, Michel Leiris se propõe a esclarecer as diferenças entre “tempo perdido” e “tempo
reencontrado” de forma sintética e didática. Vejamos:
‘Temps perdu’ = 1) temps qui a fui, et que la mémoire volontaire ne permet pas de
reconstituer dans sa réalité vécue; 2) temps qu’on a gaspil en de vaines
occupations; ‘Temps retrouvé’ = 1) passé ressuscité; 2) temps qui ne sera plus
gaspillé par le narrateur mais utilisé dès qu’il aura décidé de consacrer ses dernières
années à une création esthétique (qui pour matière prendra, précisément, ce temps
qu’il pouvait s’imaginer avoir ‘perdu’). Découverte essentielle, donnée
expressément pour telle par le narrateur, qui la décrit comme l’illumination grâce à
laquelle il est passé du ‘temps perdu’ au ‘temps retrouvé’ (...) (LEIRIS, 1997, p. 57)
Algumas páginas adiante, Leiris associa a experiência do “tempo reencontrado” por
Marcel à inovadora experimentação poética do romance, ambos distanciados do “tempo
matemático”, fazendo do escritor um misto de cronista, memorialista e prosador, já que
afirma que “As personagens serão transformadas em gigantes, pois o seu tamanho será avaliado pelo número de
anos acumulados e não mais pela altura.” (2000, p. 206-7)
48
Anos mais tarde, mesmo defendendo a idéia segundo a qual a obra de Proust “é baseada, não na exposição da
memória, mas no aprendizado dos signos” (1987, p. 04), Gilles Deleuze esclarece que “O tempo perdido não é
apenas o tempo que passa, alterando os seres e anulando o que passou; é também o tempo que se perde (por que,
ao invés de trabalharmos e sermos artistas, perdemos tempo na vida mundana, nos amores?). E o tempo
redescoberto é, antes de tudo, um tempo que redescobrimos no âmago do tempo perdido e que nos revela a
imagem da eternidade; mas é também um tempo original absoluto, verdadeira eternidade que se afirma na arte”
(DELEUZE, Proust e os signos, 1987, p. 17). Malcolm Bradbury também observa que o romance é justamente
a história do tempo perdido nos dois sentidos da palavra. Perdido porque passou, porque seus momentos
mais intensos desapareceram no passado como um amante que nos abandona, e sua intensidade não pode mais
ser captada. E perdido, também, por ter sido desperdiçado em atividades sociais frívolas, em interesses fúteis,
em coisas irrelevantes” (BRADBURY, 1989, p. 120). Para Paul Ricoeur, o “tempo perdido
se manifesta das
mais variadas formas: “Est perdu, d’abord, le temps révolu, en proie à l’univ339(o)500.001]TJ/R7 1]TJ209.889 0 Td[( .33396.3339(i)04.55617(a)-2.05734( )-39.3338(d))-6.3339(i)0.721099(d)-6.3339(a)-6.33096(m)18.4984(a)-14.1129(n)5.7217(c)-0.721099(d)-6.3339(a)-2.05734(d)-67217(c)-mamas
165
L’expérience du ‘temps retrouvé’ est une expérience essentiellement poétique, car
elle est échappement au temps mathématique (qui est celui des mémorialistes, des
prosateurs ou des faiseurs de récits), car elle est aussi rapprochement fulgurant de
deux réalités distinctes, comme la métaphore. Partant de telles expériences, Proust
qui reste un mémorialiste (dans la mesure sa matière première est constituée par
des souvenirs) ainsi qu’un chroniqueur (dans la mesure où il vise à faire le tableau
d’une époque) est amené à une forme équidistante de la prose et de la poésie. Son
mode d’expression typique (mais non unique) est une prose aux phrases sinueuses et
compliquées de ramifications, parce qu’elle doit, par définition, faire tenir dans son
champ un grand nombre de alités diverses. Cette prose abonde en images parce
que Proust qui cherche l’universalité dépasse constamment l’immédiat et élargit
la perspective par le jeu des analogies. (...) Tout, chez Proust, se passe entre ces deux
pôles: chronologie sociale et durée intérieure. (LEIRIS, 1997, p. 60)
49
Para Julia Kristeva, a experiência do “tempo reencontrado” é, antes de mais nada, a
experiência radical da linguagem que, oscilando entre denotação e conotação, reelabora e
consistência às imagens evocadas, apesar da grande distância que em geral separa o
“percebido” daquilo que é efetivamente “dito”:
Le temps retrouvé serait ainsi le temps du langage comme expérience imaginaire: du
perçu au dit et du dit au perçu s’ouvre une distance, l’incompatibilité elle-même, une
inadéquation qui forme cependant un alliage. (KRISTEVA, Le temps sensible, 1994,
p. 356)
Walter Benjamin, no excelente ensaio “A imagem de Proust”, incluído em Magia e
técnica, arte e política, prefere referir-se a “tempos entrecruzados” para melhor detalhar a
dicotomia temps perdu x temps retrouvé através da alusão ao “tempo vivido”
(“envelhecimento externo”) e ao “tempo relembrado” (“reminiscências internas”):
A eternidade que Proust nos faz vislumbrar não é a do tempo infinito, e sim a do
tempo entrecruzado. Seu verdadeiro interesse é consagrado ao fluxo do tempo sob
sua forma mais real, e por isso mesmo mais entrecruzada, que se manifesta com
clareza na reminiscência (internamente) e no envelhecimento (externamente).
Compreender a interação do envelhecimento e da reminiscência significa penetrar
no coração do mundo proustiano, universo dos entrecruzamentos. É o mundo em
49
A respeito da poesia que emana das páginas da Recherche, André Maurois vê em Proust un écrivain capable
de comprendre que le devoir du poéte est d’aller jusqu’au bout de ses impressions et que le plus humble des
objets lui peut livrer les secrets du monde s’il arrive ‘à le charger de spiritualité’ (MAUROIS, 1949, p. 27). É
por esse motivo que Paul Ricoeur sugere que “la Recherche pourrait s’intituler A la recherche de l’impression
perdue(Temps et récit II, 1984, p. 283). “Impressão
que é, por si só, uma totalidade captada em curto lapso de
tempo, segundo Leo Spitzer: “Pour Proust, une impression perçue est une totalité, constituée (pour l’essentiel) de
faits intérieurs, mêlés d’éléments de notre destinée commune: le banal” (SPITZER, “Le style de Marcel Proust”,
Études de style, 1970, p. 406-7). Ainda sobre a importância da “impressão” para o trabalho de reelaboração
efetuado por Marcel, Georges Poulet afirma, em Études sur le temps humain, ser ela a responsável pela
caracterização da “lembrança profunda” presente na evocação do narrador: “Le souvenir profond n’est que le
retour d’une impression profonde. Or si celle-ci nous paraît si belle, si son retour nous rend si heureux, c’est
qu’elle exprime entre l’être sentant et l’objet senti un accord spontané où le desir de l’un s’applique à la solidité
de l’autre” (POULET, 1949, p. 376). Ver também, na mesma obra: “Peut-être en effet la difficulté la plus grande
de l’entreprise proustienne consiste-t-elle dans le fait que toute connaissance n’y doit jamais cesser de rester
impression.” (POULET, 1949, p. 392-3)
166
estado de semelhança, e nela reinam as ‘correspondências’, captadas inicialmente
167
Para Poulet (a quem novamente me referirei algumas páginas a seguir, a fim de analisar
as idéias veiculadas em suas obras sobre o autor de Os prazeres e os dias), no universo
proustiano tempo e espaço são indissociáveis, uma vez que o “ser redescoberto” em sua
“verdade original” deve abstraí-los e suplantá-los, considerando-os dados essenciais em seu
longo caminho em busca da “essência”. Em L’espace proustien (1963)
51
, Poulet deixa claro
que
Graças à memória, o tempo não está perdido, e, se não está perdido, também o
espaço não está. Ao lado do tempo reencontrado está o espaço reencontrado. Ou,
para ser mais preciso, está um espaço enfim encontrado, um espaço que se encontra
e se descobre em razão do movimento desencadeado pela lembrança. (POULET,
1992, p. 54-5; grifo do autor)
52
Podemos entender toda a aventura proustiana como o sinuoso e complexo processo de
autoconhecimento, objetivo primordial confirmado pela utilização constante, a partir do
título da obra, da expressão recherche (“pesquisa”, “busca”) a capitanear seu
empreendimento: “Le roman de Proust est l’histoire d’une recherche: une recherche, c’est-à-
dire une suite d’efforts pour retrouver quelque chose que l’on a perdu. C’est le roman d’une
existence A la recherche de son essence.” (POULET, Études sur le temps humain, 1949, p.
372; grifo do autor)
53
la cour d’un hôtel du faubourg Saint-Germain, etc). Pour Proust il y a, comme l’a dit l’un de ses commentateurs,
des ‘lieux privilégiés le temps a pris la forme de l’espace’: Combray et l’enfance, les Champs-Elysées et
l’amour de l’adolescent pour Gilberte, Balbec et la liaison du jeune homme avec les ‘jeunes filles en fleurs’,
Doncières et la vie militaire de son ami Saint-Loup, Venise après la disparition d’Albertine, etc.” (1997, p. 58;
grifo do autor)
51
Consultado na tradução brasileira feita por Ana Luiza Borralho Martins Costa. (O espaço proustiano, Rio de
Janeiro, Imago, 1992)
52
Gérard Genette também acredita que “(...) le temps n’est pas le seul, ni même le principal artisan des
métamorphoses proustiennes; il ne fait souvent que révéler après coup des mutations brusques dont il n’est pas
responsable”. (“Proust palimpseste”, 1966, p. 55)
53
Pierre Brunel observa que o contato com o universo aristocrático e mundano é o primeiro passo para se chegar
à busca de sua essência, passo tão importante quanto este último, a ponto de ser também dado fundamental da
história narrada: “Témoignage sur une étroite frange de la société française au début du XXe siècle, la Recherche
est surtout l’histoire de la découverte du monde par le narrateur: idéalisée par ses rêves d’enfant, la société
mondaine s’ouvre à lui, mais il n’est pas dupe longtemps de l’élégance des toilettes et des raffinements de
politesse”. (BRUNEL, Histoire de la littérature française, tome II, 1977, p. 604)
168
Nessa intensa associação entre “tempo perdido” e “tempo redescoberto”, Paul Ricoeur
descobre um índice de indeterminação do próprio gênero literário da Recherche, já que em tal
surpreendente empreitada personagens históricos se misturam a fictícios:
Que l’expérience fictive du temps, mette à sa façon en rapport la temporalité vécue
et le temps aperçu comme une dimension du monde, nous en avons un indice
élémentaire dans le fait que l’épopée, le drame ou le roman ne se privent pas de
mêler des personnages historiques, des événements datés ou datables, ainsi que des
sites géographiques connus, aux personnages, aux événements et aux lieux inventés.
(RICOEUR, Temps et récit III, 1985, p. 232)
No tomo anterior (Temps et récit II), Paul Ricoeur, ao contestar o fato de ser o romance
uma espécie de “fábula sobre o tempo”, havia comentado a “confusão” estabelecida entre a
possibilidade de a obra-prima ser a autobiografia “disfarçada” de Proust autor ou a
autobiografia fictícia do narrador Marcel, dúvida sanada pela crítica moderna:
Est-il légitime de chercher dans A la recherche du temps perdu une fable sur le
temps? (...) On a pu paradoxalement le contester de différentes manières. Je ne
m’attarderai pas sur la confusion, que la critique contemporaine a dissipée, entre ce
qui serait une autobiographie déguisée de Marcel Proust, auteur, et l’autobiographie
fictive du personnage que dit je. Nous savons maintenant que, si l’expérience du
temps peut être l’enjeu du roman, ce n’est pas en raison des emprunts que celui-ci
fait à l’expérience de son auteur réel, mais en vertu du pouvoir qu’a la fiction
littéraire de créer un héros-narrateur qui poursuit une certaine quête de lui-même,
dont l’enjeu est précisément la dimension du temps. Reste à determiner comment.
Quoi qu’il en soit de l’homonymie partielle entre ‘Marcel’, le héros-narrateur de la
Recherche, et Marcel Proust, l’auteur du roman, ce n’est pas aux événements de la
vie de Proust, éventuellement transposés dans le roman, et dont celui-ci garde la
cicatrice, que le récit doit son statut de fiction, mais à la seule composition narrative,
qui projette un monde dans lequel le héros narrateur tente de recouvrer le sens d’une
vie antérieure, elle-même entièrement fictive. Temps perdu et temps retrouvé sont
donc à entendre tous deux comme les caractéres d’une expérience fictive déployée à
l’intérieur d’un monde fictif. (RICOEUR, 1984, p, 246; grifo do autor)
Sendo, na opinião de diversos críticos, o enredo da obra a “dimensão do tempo” fictício
vivido e recuperado por Marcel (“la dimension d’un temps non pas évanoui mais traversé”,
RICOEUR, Temps et récit II, 1984, p. 258), é preciso entendê-la, conforme alerta o filósofo,
como dado constitutivo da composição narrativa e como parte do processo de reelaboração de
uma experiência presumivelmente real porém no fundo inventada (já que os acontecimentos
que caracterizam a vida do autor são tão somente eventualmente transpostos” para o mundo
ficcional do narrador, mundo “verossímil” mas “paralelo” à realidade). Tal diferença
fundamental não se limita à temporalidade (real ou fictícia), atuando sobretudo na
169
caracterização daquilo que Ricoeur denomina “jogo de vozes narrativas” (“le jeu des voix
narratives”, 1985, p. 241), verdadeiro achado estrutural do romance, pois, apesar da
referência, feita acima, ao “herói-narrador”, o crítico procura não fundir suas vozes,
demonstrando assim o paralelismo de seus discursos:
La Recherche laisse entendre au moins deux voix narratives, celle du héros et celle
du narrateur. (...) Le héros raconte ses aventures mondaines, amoureuses,
sensorielles, esthétiques au fur et à mesure qu’elles adviennent; ici, l’énonciation
adopte la forme d’une avancée orientée vers le futur, lors même que le héros se
souvient; d’où la forme du ‘futur dans le passé’ qui projette la Recherche vers son
dénouement; c’est encore le héros qui reçoit la révélation du sens de sa vie
antérieure comme histoire invisible d’une vocation; à cet egard, il est de la plus
grande importance de distinguer la voix du héros de celle du narrateur, non
seulement pour replacer ses miniscences elles-mêmes dans le courant d’une
recherche qui avance, mais pour préserver le caractère événementiel de la visitation.
(...) Mais il faut entendre la voix du narrateur: celui-ci est en avance sur la
progression du héros parce qu’il la survole; c’est lui qui, plus de cent fois dans
l’oeuvre, dit: ‘comme on le verra plus loin’. Mais, surtout, c’est lui qui dépose sur
l’expérience racontée par le héros la signification: temps retrouvé, temps perdu. En
deçà de la révélation finale, sa voix est si basse qu’elle est à peine discernable de la
voix du héros (ce qui autorise à parler de narrateur-héros). Il n’en est plus de même
au cours et à partir du récit de la grande visitation: la voix du narrateur prend
tellement le dessus qu’elle finit par couvrir celle du héros; c’est alors que
l’homonymie entre l’auteur et le narrateur joue à plein, au risque de faire du
narrateur le porte-parole de l’auteur, dans sa grande dissertation sur l’art. Mais,
même alors, c’est la reprise par le narrateur des conceptions de l’auteur qui fait foi
pour la lecture. Ses conceptions sont alors incorporées aux pensées du narrateur. A
leur tour, ces pensées du narrateur accompagnent l’expérience vive du héros qu’elles
éclaircissent. Ce faisant, elles participent au caractère d’événement que revêt, pour
le héros, la naissance d’une vocation d’écrivain. (RICOEUR, Temps et récit II, 1984,
p. 252-3; grifo do autor)
54
Embora muitas vezes estes diferentes “personagens” possam ser confundidos (o que nos
autoriza, segundo Ricoeur, a discorrer a respeito do “herói-narrador”
55
), a polifonia é
marcante na Recherche o “herói” conta suas aventuras, o narrador anuncia “o que se verá
54
Paul Ricoeur complementa seu raciocínio a respeito deste “jogo de vozes narrativas
em A la recherche du
temps perdu no tomo III de Temps et récit, no qual se lê que “le jeu entre la perspective du héros qui avance vers
son avenir incertain par l’apprentissage des signes, et le narrateur qui n’oublie rien et anticipe le sens global de
l’aventure; c’est bien à une sorte de tuilage de la durée que procède le narrateur en incorporant les miniscences
du héros au courant d’une recherche qui avance, donnant ainsi au récit la forme du ‘futur dans le passé’. Mais le
jeu des voix narratives atteint à une autre profondeur. C’est une authentique répétition qu’opère le narrateur,
lorsqu’il met en rapport la Quête constituée par l’apprentissage des signes avec la Visitation préfigurée dans les
moments bienheureux et culminant dans la grande méditation sur l’art rédempteur dans la bibliothèque du prince
de Guermantes. La formule proustienne pour la répétition, c’est le temps perdu retrouvé.” (RICOEUR, 1985, p.
241; grifo meu)
55
Também Roland Barthes, em “Ça prend” (Magazine littéraire, n 350, 1997, p. 46; o texto original é de 1979),
comenta a dificuldade de separarmos as diversas vozes que compõem a Recherche ao se referir ao “mode
d’énonciation original qui renvoie d’un façon indécidable à l’auteur, au narrateur et au héros”. A despeito desta
observação, o próprio Barthes, como veremos a seguir, demonstra a discrepância entre as vozes narrativas no
roman-fleuve de Proust.
170
adiante” e o autor tenta administrar os conflitos inerentes ao sujeito da enunciação, conforme
demonstra Paul Ricoeur ao estudar o fenômeno em Temps et récit a partir do ângulo da crítica
literária e da filosofia. Algumas décadas antes, contudo, Roland Barthes e Pierre Brunel
haviam apontado que a originalidade da descoberta de Marcel Proust está ligada justamente à
composição polifônica da obra. Em Histoire de la littérature française, comenta Brunel:
L’instrument de cette découverte est un certain langage. Proust ne devient un mâitre
que quand il passe du roman à la troisiême personne (le ‘il’ de Jean Santeuil) au ‘je’
qui, d’emblée, donne le ton de la Recherche: ‘Longtemps, je me suis couché de
bonne heure.’ Ce ‘je’ ne représente ni l’auteur car le roman n’est pas une
autobiographie ni le héros proprement dit, mais un personnage intermédiaire, le
narrateur, dont les souvenirs constituent la matière du roman. (BRUNEL, 1977,
tome II, p. 600)
Em texto de 1967
56
, Roland Barthes sugere a diferença entre narrador e autor
acentuando a diversidade de intenções que caracteriza seus respectivos discursos:
Os dois discursos, o do narrador e o de Marcel Proust, são homólogos mas não
análogos. O narrador vai escrever, e este futuro faz com que ele se mantenha numa
ordem da existência e não da palavra; está a braços com uma psicologia e não com
uma técnica. Marcel Proust, pelo contrário, escreve; luta com as categorias da
linguagem, e não com as do comportamento. (BARTHES, 1974, p. 58; grifo do
autor)
No discurso do narrador, planejamento e dúvida quanto à materialização da escritura; no
do autor, a técnica que lapida a linguagem e, ciclicamente, a linguagem que expõe a técnica
discursos díspares mas correspondentes, eis um dos segredos do bem-sucedido projeto de
Proust. Em “Longtemps, je me suis couché de bonne heure”, conferência apresentada no
Collège de France em 1978 e incluída em Le bruissement de la langue (1984), Barthes,
notando a genialidade da descoberta do romancista, esclarece o público acerca da
peculiaridade do Eu que narra a Recherche:
L’oeuvre proustienne met en scène ou en écriture un je’ (le narrateur); mais ce
‘je’, si l’on peut dire, n’est déjà plus tout à fait un ‘moi’ (sujet et objet de
l’autobiographie traditionnelle): ‘je’ n’est pas celui qui se souvient, se confie, se
confesse, il est celui qui énonce; celui que ce ‘je’ met en scène est un ‘moi
d’écriture, dont les liens avec le moi’ civil sont incertains, déplacés. Proust lui-
même l’a bien expliqué: la méthode de Sainte-Beuve méconnaît ‘qu’un livre est le
produit d’un autre ‘moique celui que nous manifestons dans nos habitudes, dans la
société, dans nos vices’. Le résultat de cette dialectique est qu’il est vain de se
demander si le Narrateur de la Recherche est Proust (au sens civil du patronyme):
56
“Proust e os nomes”, Novos ensaios crítico/O grau zero da escritura. São Paulo: Cultrix, 1974, p. 55-67.
171
c’est simplement un autre Proust, souvent inconnu de lui-même. (BARTHES, 1984,
p. 318; grifo do autor)
57
É claro que para o estruturalista Barthes o “moi d’écriture” (materializado através do
narrador que, por uma espécie de “transubstanciação”, torna-se um outro Proust) é
extremamente mais essencial que o Marcel Proust dos registros civis. Assim,
De plus en plus nous nous prenons à aimer non ‘Proust’ (nom civil d’un auteur fiché
dans les Histoires de la littérature), mais ‘Marcel’, être singulier, à la fois enfant et
adulte, puer senilis, passionné et sage, proie de manies excentriques et lieu d’une
réflexion souveraine sur le monde, l’amour, l’art, le temps, la mort. (BARTHES,
1984, p. 319)
Em outro texto de Le bruissement de la langue, o paradigmático La mort de l’auteur”,
Barthes condena a crítica biográfica, salientando a crença ingênua e superficial de alguns
estudiosos (Sainte-Beuve, por exemplo) que insistem em “provar” o poder “ilimitado” do
autor:
(...) la critique consiste encore, la plupart du temps, à dire que l’oeuvre de
Baudelaire, c’est l’échec de l’homme Baudelaire, celle de Van Gogh, c’est sa folie,
celle de Tchaïkowski, c’est son vice: l’explication de l’oeuvre est toujours cherchée
du côté de celui qui l’a produite, comme si, à travers l’allégorie plus ou moins
transparente de la fiction, c’était toujours finalement la voix d’une seule et même
personne, l’auteur, qui livrait sa ‘confidence’. (BARTHES, 1984, p. 62; grifo do
autor)
O sujeito da enunciação, para Barthes, jamais será “uma mesma e única pessoa”, sendo
antes uma mescla original de vozes, peculiaridade que faz da Recherche a “epopéia” da
escritura moderna, idéia manifestada na seqüência do ensaio e na qual o teórico francês
postula uma interessante inversão – não é o romance que reproduz a vida do autor, mas a vida
deste que se pauta por aquele:
Proust lui-même, en dépit du caractère apparemment psychologique de ce que l’on
appelle ses analyses, se donna visiblement pour tâche de brouiller inexorablement,
par une subtilisation extrême, le rapport de l’écrivain et de ses personnages: en
faisant du narrateur non celui qui a vu ou senti, ni même celui qui écrit, mais celui
qui va écrire (le jeune homme du roman mais, au fait, quel âge a-t-il et qui est-il ?
veut écrire, mais il ne le peut, et le roman finit quand enfin l’écriture devient
possible), Proust a donné à l’écriture moderne son épopée: par un renversement
radical, au lieu de mettre sa vie dans son roman, comme on le dit si souvent, il fit de
sa vie même une oeuvre dont son propre livre fut comme le modèle, en sorte qu’il
57
Julia Kristeva também confere lugar de destaque ao “eu” que narra a Recherche, identificando-o como o
responsável pela criação de um “mundo singular” e pela aproximação entre os universos do autor e do leitor: “Si
le but de la fiction est de faire un monde, il n’y a de monde que celui de la mémoire. Le temps retrouvé est un
monde singulier, refait par un seul le je égotiste d’A la recherche, dans un langage contagieux qui induit une
expérience analogue chez le lecteur.” (KRISTEVA, Le temps sensible, 1994, p. 337-8; grifo da autora)
172
nous soit bien évident que ce n’est pas Charlus qui imite Montesquiou, mais que
Montesquiou, dans sa réalité anecdotique, historique, n’est qu’un fragment
secondaire, dérivé, de Charlus. (BARTHES, 1984, p. 63; grifo do autor)
58
Vários outros críticos perceberam tais sutis diferenças entre autor, narrador e herói em A
la recherche du temps perdu, sendo que alguns, como por exemplo Louis Martin-Chauffier,
vão mais além, identificando quatro e não apenas três elementos: “narrador”, “personagem”
(ou “herói”), “autor” e homem”, idéia mencionada no capítulo 2 (cf. 2.3, p. 116, nota 110).
Em sua opinião, tais elementos não estão em harmonia, uma vez que dois deles são “geniais”
(autor e narrador) e dois são “banais” (homem e herói):
Non seulement à cause de l’exceptionnelle vigueur et nouveauté du génie, mais par
la remarquable insignifiance des deux personnages qui, aux deux bouts de la chaîne
proustienne, sont l’un, Marcel Proust l’homme, le banal fournisseur de matière
première, l’autre, Marcel le héros, l’image peinte et molle qui perd son temps. Toute
la grandeur est réservée, dans l’intervalle, à Marcel le narrateur, qui recherche le
temps perdu et le retrouve enfin, et à l’auteur, Proust, qui l’avait de longtemps
retrouvé quand Marcel le narrateur, enhardi par cette découverte, se décide à prendre
la plume pour en narrer le cheminement, long, minutieux et longtemps invisible.
(MARTIN-CHAUFFIER, “Proust et le double je de quatre personnes”, 1971, p. 58)
O contraponto, segundo Louis Martin-Chauffier, entre tais elementos é tão grande que o
crítico se espanta, a certa altura, com o fato de obra tão espetacular ter surgido da mente de
homem tão “insignificante”:
Cependant, c’est de cette vie, la plus insignifiante, la plus inutile et la plus étrécie
dans son expérience humaine (en outre, fort déformée) que va sortir l’oeuvre qui
projette sur la connaissance de l’homme, la vérité du coeur et la société même, le
plus pénétrant et vibrant faisceau de lumière que les lettres françaises aient sans
doute jamais vu jaillir. (MARTIN-CHAUFFIER, 1971, p. 60)
58
Ainda em “La mort de l’auteur”, Barthes diferencia o autor da obra do sujeito da escritura, destacando o
momento da enunciação como o aporte principal desta divergência: “linguistiquement, l’auteur n’est jamais rien
de plus que celui qui écrit, tout comme je n’est autre que celui qui dit je le langage connaît un ‘sujet’, non une
‘personne’, et ce sujet, vide en dehors de l’énonciation même qui le définit, suffit à faire ‘tenir’ le langage, c’est-
à-dire à l’épuiser. (...) le scripteur moderne naît en même temps que son texte; il n’est d’aucune façon pourvu
d’un être qui précéderait ou excéderait son écriture, il n’est en rien le sujet dont son livre serait le prédicat; il n’y
a d’autre temps que celui de l’énonciation, et tout texte est écrit éternellement ici et maintenant(BARTHES,
1984, p. 63-4; grifo do autor). Para Maria Luiza Berwanger da Silva, Barthes e Proust estabelecem uma espécie
de “diálogo intertextual” para além do tempo e do espaço, reinvenção da escritura através da multiplicação ao
infinito de todas as possibilidades de leitura: “Roland Barthes, figura teórico-crítica da intertextualidade, um dos
primeiros críticos a ter definido esse campo de estudos, refere explicitamente a presença de Marcel Proust em,
pelo menos, três momentos de sua vasta produção, Le Plaisir du Texte (1973), Le Bruissement de la Langue
(1984) e Incidents (1987). Estabelece com o autor de A la recherche du Temps Perdu o diálogo intertextual,
celebrando em Proust o prazer do discurso crítico que recria, reinventa, multiplica, como o quisera o próprio
romancista ao longo de sua produção ficcional. Visto desse ângulo, o encerramento do último tomo da
Recherche, Le temps retrouvé, pela imagem dos ‘homens gigantes’ (além do tempo e além do espaço), pontua a
relação da intertextualidade com a escritura que se apropria do Outro para transformá-lo.” (SILVA, “Suave
convívio: literatura comparada e psicanálise”, 2002, p. 102)
173
Martin-Chauffier sublinha o fato de ser o “eu” da Recherche um falso eu, um “duplo
eu” fictício canonizado como “Marcel”, muito próximo do sujeito da enunciação de um relato
memorialístico e que, nesse caso, somente se unifica no final, ao escrever a palavra “fim”, em
oposição ao homem “de carne e osso” que atendia pelo nome de Marcel Proust:
(...) le ‘je’ (...) d’A la recherche du temps perdu est un faux ‘je’, un alibi, un trompe-
l’oeil: une création. (...) Celui qui écrit ‘je’, c’est le personnage de fiction, le même
que nous voyons vivre sous sa plume: ici, nous l’appellerons Marcel, puisqu’il est
ainsi une fois nommé, laissant à l’homme réel son nom d’état civil, Marcel Proust, et
à l’auteur la simple syllabe, Proust, qui suffit à la postérité pour nommer le génie.
(...) Ce personnage de fiction, qui écrit ‘je’, est lui-même double, dans son action et
sa durée. Comme dans les mémoires, celui qui tient la plume et celui que nous
voyons vivre, distincts dans le temps, tendent à se rejoindre; ils tendent vers ce jour
où le cheminement du héros en action aboutit à cette table où le narrateur, désormais
sans intervalle et sans mémoire, l’invite à s’asseoir près de lui pour qu’ils écrivent
ensemble le mot: Fin. (MARTIN-CHAUFFIER, 1971, p. 55-6)
59
Próximos somente no fim da narrativa, o narrador e o herói são entidades diversas, em
algumas ocasiões mescladas e em outras não, confundindo o leitor desavisado e inexperiente a
ponto deste não saber ao certo à qual se refere especificamente o “eu” da narrativa. Em “Le
style de Marcel Proust”, Leo Spitzer tenta demonstrar a complexidade desta questão através
da alusão à narração (“récit”) e à descrição (“traité”), recursos que auxiliam a diferenciação
das vozes:
Le mystère qui entoure le narrateur, son jeu de cache-cache dans le fond du décor ne
se retrouve pas seulement dans la façon dont il se détache de ses personnages et de
son récit, il se détache aussi du Moi, qui se résorbe dans le nous et le on. Proust
passe constamment du récit au traité: le récit ne fournit plus alors qu’un exemple
pour des expériences générales. (...) A chaque page, le récit tourne à un didactisme
scientifique qui, avec son calme et sa grandeur sublimes, dresse à l’arrière-plan de
faits racontés une sorte de monument, invisible abri du sage, du narrateur, du
mystérieux Moi. Et ici encore le traité ‘excède’ le cadre des faits relatés isolément,
comme dans les comparaisons: l’éternel, le monumental, domine le particulier, le
temporel. (SPITZER, 1970, p. 460-1)
O mistério que envolve o narrador é também o “mistério” do gênero narrativo, uma vez
que é difícil determinarmos se se trata a Recherche de romance autobiográfico, pseudo-
autobiográfico, de cunho memorialístico, etc, sendo que tal indeterminação, bem como a
59
Aprofundando a explicação sobre esta grande variedade de “eus
que formam o roman-fleuve, o crítico
esclarece: “Marcel le narrateur, qui dit ‘je’; Marcel le héros, qui est ‘je’; Proust l’auteur, qui ne dit jamais ‘je’
mais intervient sans cesse et dans le récit même, et qui dirige tout, comprend tout, presse le narrateur, l’attarde
il convient, guette ses trouvailles, en profite pour s’enrichir lui-même, ne perd jamais de vue le but à
atteindre;” (MARTIN-CHAUFFIER, 1971, p. 59)
174
mescla de vozes narrativas, é justamente um dos apanágios de sua originalidade. Para André
Maurois, trata-se de um “vasto romance meio autobiográfico” edificado sob “as leis do
espírito”
60
, enquanto Malcolm Bradbury prefere considerá-lo “inqualificável” em sua
modernidade iconoclasta:
(...) o livro de Proust é mesmo inqualificável: uma autobiografia das sensações
humanas que não é exatamente uma autobiografia, uma sátira social que se afasta da
sociedade, um romance de extremo materialismo geográfico e físico que dissolve
espaço e lugar no mundo do tempo atemporal, um retrato do artista moderno que
se torna artista quando termina sua obra de arte. Assim, se o livro nos apresenta, no
plano geral dos dois ‘caminhos’, o mundo social e a dimensão espacial da obra, é
algo mais que nos sua forma subjacente: trata-se, essencialmente, da concepção
proustiana de tempo – uma idéia moderna, de um contemporâneo de Einstein, Freud
e Mann e do modo como recuperamos seus processos misteriosos, sua duração
interior, suas fraturas e suas continuidades. (BRADBURY, 1989, p. 123)
61
Walter Benjamin também opina, no início de “A imagem de Proust”:
Os treze volumes
62
de A la recherche du temps perdu, de Marcel Proust, são o
resultado de uma síntese possível, na qual a absorção do místico, a arte do prosador,
a verve do autor satírico, o saber do erudito e a concentração do monomaníaco se
condensam numa obra autobiográfica. se disse, com razão, que todas as grandes
obras literárias ou inauguram um gênero ou o ultrapassam, isto é, constituem casos
excepcionais. Mas esta é uma das menos classificáveis. A começar pela estrutura,
que conjuga a poesia, a memorialística e o comentário, até a sintaxe, com suas frases
torrenciais (um Nilo da linguagem, que transborda nas planícies da verdade, para
fertilizá-las), tudo aqui excede a norma. (BENJAMIN, 1987, p. 36; grifo meu)
60
“Dès qu’il eut abandonné l’idée d’écrire, sur le seul personnage de Swann, un roman objectif, Proust dut
entrevoir, dans une brève intuition analogue à celle qu’il crit à la fin du Temps retrouvé, et tel l’architecte qui,
avant même d’en commencer le dessin, imagine l’édifice qu’il veut bâtir, un vaste roman à demi
autobiographique, construit, non comme les romans ordinaires en suivant l’ordre du temps spatial et social, mais
selon les lois du monde de l’esprit, ou du souvenir, monde magique ‘où l’espace et le temps sont abolis’.”
(MAUROIS, 1949, p. 174)
61
Alguns parágrafos adiante, Malcolm Bradbury cita George Painter, biógrafo de Proust, que, tendo indicado a
fusão, realizada no romance, entre eventos reais e imaginados, propõe a expressão autobiografia criativa” para
classificar a Recherche: “(...) é possível encarar Em busca do tempo perdido tal como George Painter faz em sua
excelente e exaustiva biografia de Proust como uma obra que não tem similar entre os grandes romances,
porque ‘não é, propriamente falando, uma ficção, e sim uma autobiografia criativa’. Painter argumenta que
Proust alterou tudo, porém não inventou nada, e pretendia com seu livro apresentar ‘a história simbólica de sua
vida’. Painter estabelece um grande número de identificações bastante exatas, convincentes em sua maioria entre
pessoas e eventos reais e os personagens complexos e multifacetados de Proust.” (BRADBURY, 1989, p. 128)
62
A referência de Benjamin aos “treze” volumes que compõem a Recherche respeita a divisão original do
roman-fleuve, uma vez que praticamente todos os volumes tiveram suas primeira e segunda partes publicadas
separadamente. Em língua portuguesa, Em busca do tempo perdido, até então inédito, foi publicado em sete
volumes, iniciativa pioneira da Editora Globo de Porto Alegre durante os anos 40 e 50, empreendimento de alto
risco comercial (confirma-o Erico Veríssimo em Um certo Henrique Bertaso, 1972), mas acima de tudo enorme
façanha literária que muito impulsionou a recepção crítica de Proust no Brasil, conforme comentarei no próximo
item. Veríssimo credita a iniciativa à “teimosia” intelectual dele e de mais dois colegas da Globo: “Foi
[Maurício] Rosenblatt quem nos conseguiu no Rio de Janeiro alguns escritores de nome, como Carlos
Drummond de Andrade, que, vencidos pela sua capacidade de persuasão, se dispuseram a traduzir para o
português volumes de A la recherche du temps perdu. Sim, porque nossa paranóia editorial começava a tomar
proporções monumentais. Numa conspiração digna das novelas da Coleção Amarela, Henrique [Bertaso],
Maurício e eu, em sinistro conluio, decidimos atirar-nos nessa aventura editorial que foi a versão para a língua de
Machado e Eça da grande obra de Marcel Proust.” (VERÍSSIMO, Um certo Henrique Bertaso, 1973, p. 68)
175
176
Além de tudo isso, o romance de Marcel Proust é inovador também pela recriação dos
“espaços” da infância, e não apenas de seus diferentes “tempos”, questão magistralmente
discutida em O espaço proustiano (L’espace proustien, 1963), de Georges Poulet, no qual o
crítico demonstra que o roman-fleuve de Proust é não apenas a “recuperação” do “tempo
perdido”, mas também do “espaço perdido”, sendo que ambos, tempo e espaço, oscilam entre
duas realidades distintas:
O fenômeno da lembrança proustiana não tem somente por efeito fazer com que o
espírito oscile entre duas épocas distintas: força-o a escolher entre lugares
mutuamente incompatíveis. A ressurreição do passado, diz Proust, em resumo, força
nosso espírito a trébucher(tropeçar) entre lugares remotos e lugares presentes (...)
(POULET, O espaço proustiano, 1992, p. 16-7)
Poulet adverte que tal “procura do espaço perdido” se dá desde os primeiros instantes da
narrativa, evidenciada em uma das minuciosas descrições, presentes em No caminho de
Swann, a respeito do dilema (do adormecer a cada noite e do despertar a cada manhã) vivido
por Marcel:
‘Tentando descobrir onde estava...’ Vê-se claramente que desde o primeiro momento
quase que se poderia dizer: desde o primeiro lugar da narrativa, a obra
proustiana se afirma como uma busca não somente do tempo, mas também do
espaço perdido. Perdidos um como o outro, da mesma forma, perdidos como quem
se perdeu e busca o caminho. Perdidos também no mesmo sentido de perder a
bagagem, ou as contas de um colar que se desfez. Como ligar o lugar em que se está,
o momento em que se vive, a todos os outros momentos e lugares de algum modo
disseminados ao longo da étendue (extensão)? (POULET, 1992, p. 17; grifo do
autor)
64
Como ligar, pergunta o crítico, o lugar presente ao lugar evocado, como unir Paris a
Combray senão pela reelaboração, através da memória, do ser que, antes de “reencontrado”,
está dividido, desagregado, incompleto, pois que ainda procura um tempo e um espaço
perdidos? A fim de “localizarem” precisamente suas lembranças, os seres dependem de certas
convenções temporais (dias, meses, anos, etc) mas sobretudo de determinados espaços que as
64
Malcolm Bradbury também sublinha o fato de que, desde a cena inicial do romance, o espaço (no caso, o
quarto no qual Marcel se encontra) é essencial para a evocação que se seguirá: “É a memória que constrói o
espaço, forma e confunde o quarto no qual estamos deitados e nomeia as coisas (no plano original, os três
volumes da obra seriam intitulados A idade dos nomes, A idade das palavras e A idade das coisas). A memória
também reconstrói ou recria o eu, ao alienar-se do mundo do hábito. E trata-se de algo involuntário, uma função
do corpo e dos sentidos”. (BRADBURY, 1989, p. 125)
177
fixem e conservem (certos lugares especiais geralmente reconstruídos com nostalgia e afeto,
como na Combray de Proust ou no Cerro d’Árvore de Augusto Meyer). Para Poulet,
Sem os lugares, os seres seriam apenas abstrações. São os lugares que oferecem
precisão a suas imagens, que nos fornecem o suporte necessário, graças ao qual
podemos atribuir-lhes um lugar em nosso espaço mental, sonhar com eles e deles
nos lembrarmos. (POULET, 1992, p. 31)
O espaço proustiano, caracterizado pela “ressurreição” de Combray, de Balbec e de
Veneza, torna-se fundamental se quisermos compreender perfeitamente o episódio da
madeleine e as manifestações da memória involuntária na narrativa de Marcel, que,
“subitamente”, uma cidade inteira, com suas igrejas e jardins, “saem” de sua chícara de chá:
Ora, por vezes, quando muito havíamos renunciado tristemente a reestabelecer o
contato com nosso passado profundo ou mesmo recente, eis que um encontro
inesperado o restitui. No romance proustiano, o primeiro e mais célebre desses
‘encontros’ é descrito naquele que se convencionou denominar o episódio da
madeleine. Pelo milagre de uma semelhança entre o sabor atual de um bolinho
mergulhado numa taça de chá e o mesmo sabor percebido muitos anos antes, no
tempo em que a criança que se era então degustava uma madeleine da mesma forma,
na casa de seus pais durante as férias, eis que a pequena cidade [Combray] onde
moravam seus pais, eles mesmos, seus amigos, e todo o cortejo de impressões
infantis, beijos maternos, temores pueris, passeios dominicais para o lado de
Méséglise ou para o lado oposto de Guermantes, tudo isso ressurge na memória,
restitui o passado não apenas tal como foi visto, mas tal como foi vivido. Donde a
felicidade de quem assiste, radiante, à nova eclosão de sua antiga existência no
fundo de si mesmo. (POULET, 1992, p. 96)
65
65
Poulet acredita que a Combray recriada pela memória de Marcel é o que se pode denominar “lugar
inconfundível” (a existir no interior das sutis fronteiras entre o topográfico e o metonímico), que é trazida à
tona “por um ato da imaginação”: Não é somente um certo período de sua infância que o ser proustiano sair
da taça de chá: é também um quarto, uma igreja, uma cidade, um conjunto topográfico sólido, não mais errante,
que não vacila mais. (...) Seja graças à lembrança, por um ato da imaginação, ou simplesmente em razão da
com que nos ligamos a certos locais, eles começam a diferir de todos os outros, e permanecem à parte nos
espaços de nosso espírito. Lugares reencontrados no fundo de nossa memória, criados por nossos sonhos ou pela
participação nos sonhos dos outros que é um dos efeitos da arte –, ou ainda, e mais raramente, lugares
diretamente percebidos por nós em sua beleza particular, e realçados pela presença de um ser que lhes confere
algo de sua própria individualidade: há, em Proust, toda uma série de lugares inconfundíveis, que parecem existir
no interior de suas fronteiras de um modo absolutamente independente. Esta é a sua característica essencial”
(POULET, 1992, p. 23). Gilles Deleuze também crê que a reconstituição de Combray é mais importante que a
evocação do sabor da madeleine: “O sabor, qualidade comum às duas sensações, sensação comum aos dois
momentos, está para lembrar outra coisa: Combray. Com essa invocação, Combray ressurge de forma
absolutamente nova. Não surge como esteve presente; surge como passado, mas esse passado não é mais relativo
ao presente que ele foi, não é mais relativo ao presente em relação ao qual é agora passado. Não mais a Combray
da percepção, nem tampouco a da memória voluntária; Combray aparece como não podia ter sido vivida: não em
realidade, mas em sua verdade; não em suas relações exteriores e contingentes, mas em sua diferença
interiorizada, em sua essência. Combray surge em um passado puro, coexistindo com os dois presentes, mas fora
de seu alcance, fora do alcance da memória voluntária atual e da percepção consciente antiga: ‘Um pouco de
tempo em estado puro.’ Não mais uma simples semelhança entre o presente e o passado, entre um presente que é
atual e um passado que foi presente; nem mesmo uma identidade dos dois momentos; é muito mais o ser em si
do passado, mais profundo que todo o passado que fora, que todo o presente que foi. ‘Um pouco de tempo em
estado puro’, isto é, a essência localizada no tempo.” (DELEUZE, 1987, p, 60-1; grifo do autor)
178
Revivescência inesperada do vivido e não do visto, espaço recriado sob as lentes
desfocadas da imaginação, da memória e da nostalgia do “tempo perdido” (brindando o
narrador com uma felicidade igualmente inesperada), reconfigurações de terras “reais” na
infância e “virtuais” na reconstituição do sujeito da memória, para Georges Poulet os lugares
proustianos se comportam exatamente como as lembranças de Marcel, isto é, eles “vão e
vêm”, pois
Se os lugares familiares podem nos abandonar algumas vezes, também podem
retornar e reocupar o seu lugar primitivo, para nosso imenso alívio. Vê-se que os
lugares comportam-se exatamente como os momentos do passado, como as
lembranças. Eles vão e vêm. E assim como ocorre em certas épocas de nossa
existência, quando, sem causa, sem nenhum esforço voluntário de nossa parte,
reencontramos subitamente o tempo perdido, do mesmo modo aparentemente
fortuito, e graças à intervenção de alguma providência, aquele ser perdido no espaço
descobre-se em casa, e descobre ao mesmo tempo o lugar perdido. (POULET, 1992,
p. 20-1)
Tal “lugar primitivo” se encontra, muitas vezes, tão afastado no tempo e em relação a
outros espaços “atuais” que sua lembrança é como uma ilha que se destacasse de todos os
demais “lugares da memória” de quem a concebe. Assim, para Poulet, à solidão dos seres se
alia a solidão dos “universos à parte” recriados pela evocação, pois “os seres são pessoas, e as
pessoas podem ser compreendidas em sua originalidade própria. Ocorre o mesmo com os
lugares: são ilhas no espaço, mônadas
66
, ‘pequenos universos à parte’ (POULET, 1992, p.
39). O crítico julga que a necessidade do isolamento em “ilhas mônadas” (espécie de “cidades
sitiadas”) é reforçada pela falta de perspectivas e de caminhos objetivos, situação incômoda
freqüentemente enfrentada por quem se lança à recriação do “espaço perdido” mas sem dispor
dos meios apropriados à satisfatória realização do intento:
Numa palavra, a ausência ou o reforço de hábitos, a atenção ou a distração, o temor
ou a confiança, amesmo a simples substituição de um modo de locomoção por
outro, ora alongam, ora encurtam os caminhos que percorremos. Mas também, o que
é ainda mais grave, por vezes não há mais caminhos, o lugar em que se está é como
uma ilha, não conduz mais a outros lugares: interrompido por todos os lados, é
incapaz de prolongar sua rede de comunicações desaparecidas. Lugar recortado do
resto do mundo, que subsiste em si e por si mesmo, tal como uma cidadela sitiada,
66
Segundo o Novo dicionário da língua portuguesa, mônada ou mônade, de acordo com a Biologia, é um
“Organismo muito simples, que se poderia tomar por unidade orgânica”. de acordo com a Filosofia, trata-se
de um conceito lef0.999386 41.47
179
lugar situado na ausência, a negação ou a inacessibilidade dos demais lugares, lugar
que parece absolutamente perdido na solidão do espaço (...) (POULET, 1992, p. 18-
9; grifo meu)
Vimos no item anterior (3.1, p. 143-4 e nota 23), que o próprio Marcel Proust, ao evocar
a “sebe de pilriteiros”, cria a metáfora da “Delos florida” para aproximar deste “isolado trecho
de paisagem” uma determinada ilha que, flutuando incerta no pensamento do narrador, não
pertence a país ou tempo algum. Em Études sur le temps humain, Georges Poulet julga que
tais “pontos isolados” e “fragmentos de paisagens” seriam justamente os focos de resistência
que impediriam o aniquilamento total das lembranças de Marcel:
En cette sorte de néant ou de nuit qui s’étend derrière lui, au fond de lui, et qui
s’appelle le passé, l’être A la recherche de lui-même a donc découvert maintenant
certains points lumineux, isolés, morceaux de paysage, fragments de sa vie ancienne,
qui survivent à l’anéantissement de tout le reste. Derrière lui ce n’est plus le néant
total mais un néant étoilé. (POULET, 1949, p. 380)
Ao salientar que o tempo da infância é como uma ilhota” incomunicável e
aparentemente distanciada de tudo o mais, Paul Ricoeur elogia a relação estabelecida por
Poulet entre o “isolamento” temporal e espacial das reconstituições mnemônicas em A la
recherche du temps perdu:
(...) le temps de l’enfance reste fait d’îlots disparates, aussi incommunicables que,
dans l’espace, les ‘deux tés’, le côté de Méséglise, qui se révèle être celui de
Swann et de Gilberte, et le côté de Guermantes, celui des noms fabuleux d’une
aristocratie hors d’atteinte, celui surtout de Mme de Guermantes, le premier objet
d’un amour inaccessible. Georges Poulet a raison de mettre ici en strict parallèle
l’incommunicabilité des îlots de temporalité et celle des sites, des lieux, des êtres.
Des distances non mesurables séparent les instants évoqués comme les lieux
traversés. (RICOEUR, Temps et récit II, 1984, p. 259)
Distâncias e tempos incomensuráveis formam a realidade incomum de Marcel, o tempo
e o lugar redescobertos supõem “ilhas” no cérebro, pontos destacados que excluem tudo
aquilo que não se refira às ressurreições da memória involuntária (e graças à qual tais lugares
não ficarão “perdidos” para sempre) e da lembrança de Combray (“ilha” da qual Marcel
resgata um passado antes adormecido e ora atuante e vital). sim, cidade e igreja, jardins e
parques, tudo que “sai da taça de chá” passa a fazer sentido, atingindo proporções
macroscópicas e imprescindíveis para a construção do “edifício imenso da recordação” de
180
Marcel, espécie de “catedral” composta pelo amálgama originalíssimo de passado e presente,
concebido por alguém que parecia, como no verso de Baudelaire, ter mais recordações “do
que se tivesse mil anos”. (v. 2.1, p. 47)
Para muitos estudiosos da obra de Marcel Proust, questões relativas ao Tempo
(“perdido”/“reencontrado”) e à memória involuntária não são os mais fundamentais na análise
da obra-prima do romancista francês. Para Gilles Deleuze,
A obra de Proust não é voltada para o passado e as descobertas da memória, mas
para o futuro e os progressos do aprendizado. O importante é que o herói não sabe
certas coisas no início, aprende-as progressivamente e tem a revelação final.
Inevitavelmente, ele sofre decepções: ‘acreditava’, tinha ilusões; o mundo vacila na
corrente do aprendizado. (DELEUZE, 1987, p. 26)
Na revelação final” do “aprendizado da verdadeproposto por Deleuze estão contidos
o “tempo redescoberto” e as conquistas obtidas através dos acessos involuntários, mas estes
não são, na opinião do filósofo, os temas essenciais da aprendizagem (“voltada para o futuro”)
descrita ao longo dos sete volumes. Deleuze prefere valorizar os os fessos
181
Guermantes são muito menos fontes de lembrança do que matérias-primas, linhas do
aprendizado. São os dois caminhos de uma ‘formação’. (DELEUZE, 1987, p. 3-4)
O crítico britânico C.P.Snow concorda com Deleuze no capítulo “Proust”, de Os
realistas Retratos de oito romancistas, sugere que “a formulação de tempo e memória” na
Recherche muitas vezes “esconde” a excelência do talento do autor, sua originalidade e seu
perfeito domínio sobre a estruturação da narrativa:
É verdade que a estrutura metafísica dentro da qual ele encaixou Em busca do tempo
perdido, a formulação de tempo e memória que ele abstraiu da experiência, às vezes
esconde o aspecto mais maravilhoso e inerente de seu talento. Essa estrutura não
surgiu da experiência, e ficou estabelecida antes que a parte principal do romance
fosse escrita. O famoso final – onde todos os seus personagens são como um gigante
imerso no tempo foi composto antes que grande parte do primeiro volume fosse
escrito. Esse final forma e limpeza estética a todo o trabalho e, embora a
declaração não seja original, provavelmente (para alguns extremados admiradores de
Proust ainda existe uma certa dúvida intelectual) se autojustifica. Contudo, não
deveria agir como uma digressão dos elementos do grande roman fleuve que são tão
válidos e universais quanto o romancista os tenha feito. Os enigmas do tempo foram
causa de logro para muita gente a lembrança involuntária não era uma descoberta
recente mas Swann caminhando do lado de fora da casa de Odette, o
desfolhamento das camadas da personalidade como se fossem cascas de cebola, a
alegre insensatez de um jantar em Verdurin, a tristeza ao amanhecer, tudo isso
poderia ter sido escrito por esse grande e único escritor. (SNOW, 1988, p. 292-3)
68
Julia Kristeva, ainda que exaltando o estudo de Deleuze
69
, julga que o mundo simbólico
edificado por Marcel define-se basicamente pela “impressão” (“Déjà l’impression surgit, qui
compense la faiblesse des signes”, 1994, p. 437), e não pela sujeição a signos platônicos ou
mesmo saussurianos: “Proust ne cesse de ‘déchiffrer’, mais son monde n’est pas fait des
‘signes’. En tout cas, ce ne sont pas des signes-mots ni des signes d’idées, encore moins de
signifiants ou des signifiés” (KRISTEVA, 1994, p. 436). Mais do que isso, a psicanalista
acredita que Proust, durante seu aprendizado”, chegava a se “revoltar” contra algumas
espécies de signos: “Le jeune Proust, sans doute attentif aux leçons de Schelling,
68
Assim como o filósofo parisiense, o escritor britânico também não as manifestações involuntárias de
Marcel como o grande leitmotiv da Recherche, chegando a sugerir que tal tipo de manifestação não é “tão
involuntária assim”: “Elas [as lembranças involuntárias] o apresentadas como se tivessem a mesma força e o
mesmo impacto emocional; elas trazem de volta, com uma espécie de simetria tripla, o tempo perdido e depois
recuperado por esses acasos da lembrança. Isso é maravilhosamente planejado, mas é planejado.” (SNOW, 1988,
p. 324)
69
La magnifique lecture que Gilles Deleuze a proposée de Proust met l’accent sur la dématérialisation que ces
signes infligent aux personnes réelles auxquelles ils renvoient, et le philosophe y voit la preuve d’un platonisme
proustien” (KRISTEVA, 1994, p. 443). Em nota de rodapé, Kristeva comenta que Proust e os signos “(...)
privilégie le rôle des ‘signes’ et des ‘idées’ de Platon dans l’art ‘sériel’ de Proust.” (Idem, ibidem)
182
Schopenhauer et leurs successeurs français, se révolte plus nettement encore contre ‘les
signes’ et la ‘stricte signification” (Idem, ibidem), sendo que, para ela, o “signo” que
realmente importa é o da assimilação de que, através da memória involuntária, uma
“percepção presente” ressuscita uma “sensação passada” e faz desta uma impressão
definitiva, ultrapassando as barreiras de tempo e espaço:
La sensation passé demeure en nous, et la mémoire involontaire la retrouve
lorsqu’une perception présente s’y rapporte, induite par le même désir. Une
association de sensations se produit ainsi, à travers l’espace et le temps: lien,
composition, réminiscence des désirs. Dans cet entrelacs, la sensation se fixe et
devient une impression: c’est dire que sa particularité solitaire se perd. (KRISTEVA,
1994, p. 435; grifo da autora)
Privilegiando alguns o Tempo (Beckett, Ricoeur), outros a memória involuntária
(Auerbach, Benjamin, Kristeva), a polifonia (Barthes, Chauffier), o espaço (Poulet) ou o
“aprendizado dos signos” (Deleuze), os diversos estudiosos de A la recherche du temps perdu
parecem concordar plenamente em pelo menos um ponto essencial a extrema modernidade
de uma obra revolucionária e polêmica (tendo sido o primeiro grande romance em língua
francesa a abordar abertamente o homossexualismo masculino e feminino), que, alimentada
por um estilo ímpar e por um concepção vanguardista e desafiadora, é, ao lado das produções
de Joyce, Kafka e Borges, a referência estética mais importante do século XX em se tratando
de literatura ficcional. Em Le plaisir du texte, Roland Barthes a elege o cerne de toda a
reflexão literária e artística de sua geração:
Je comprends que l’oeuvre de Proust est, du moins pour moi, l’oeuvre de référence,
la mathésis nérale, le mandala de toute la cosmogonie littéraire comme l’étaient
les Lettres de Mme de Sévigné pour la grand-mère du narrateur, les romans de
chevalerie pour don Quichotte, etc; cela ne veut pas du tout dire que je sois un
‘spécialiste’ de Proust: Proust, c’est ce qui me vient, ce n’est pas ce que j’appelle; ce
n’est pas une ‘autorité’; simplement un souvenir circulaire. Et c’est bien cela l’inter-
texte: l’impossibilité de vivre hors du texte infini que ce texte soit Proust, ou le
journal quotidien, ou l’écran télévisuel: le livre fait le sens, le sens fait la vie.
(BARTHES, 1973, p. 59; grifo do autor)
Proust intertextual, multiforme, plurissignificativo, tão “atual” quanto uma notícia de
jornal ou um acontecimento mostrado na tela da tevê qual um Cérbero moderno, Proust se
volta para o passado (reminiscências, lembranças inesperadas), para o presente (impressões
183
reelaboradas) e para o futuro (experimentalismo narrativo), daí advindo sua mais preciosa
originalidade. Devido, entre outros fatores, a seu “senso metafísico” apurado e a sua pesquisa
“holística” do Ser, Pietro Citati via em Proust “nosso próprio futuro”, que o romancista
francês, mais do que qualquer outro, modificou e determinou nossa visão de mundo a ponto
de ter-se tornado uma espécie de arauto dos paradoxos da modernidade no fim do milênio.
Em entrevista veiculada no Dossiê Proust” da Magazine Littéraire de janeiro de 1997, o
crítico identifica sua inesgotável contribuição:
Proust l’a modifiée [notre vision du monde] plus que tout autre, et nous vivons
aujourd’hui en un monde proustien. Il est, lui seul, l’art de l’avenir beaucoup plus
que Kafka. Pour sa recherche du Tout, son sens métaphysique, sa fusion du récit et
de la pensée en un seul mélange, sa sensualité, son idée de l’infinie multiplicité de
chaque événement et de chaque sensation, son don mythologique, son idée des dieux
masqués qui vivent dans notre monde et de la métamorphose universelle, Proust est
vraiment notre avenir. (TITO, Anna. “Pietro Citati: la douleur pour destin”,
Magazine Littéraire, n 350, 1997, p. 250)
A excelência da obra de Marcel Proust apregoada por Pietro Citati não evitou,
obviamente, que o criador de Swann e de Albertine fosse comparado a outros escritores
geniais, sendo que, na maioria dos confrontos, a “balança” do julgamento de valor pendeu
para seu lado. Em alguns casos, a comparação surge quase sem querer, motivada por outros
aspectos não relacionados especificamente à discussão do “valor” da obra e do artista.
C.P.Snow, por exemplo, ao comentar a época apropriada, em seu entender, para se ler a
Recherche, aproxima-o de Stendhal:
Em busca do tempo perdido possui uma sabedoria profunda, porém, é a sabedoria de
um jovem. Como sucede com Stendhal, o livro é melhor se for lido isto é, pela
primeira vez quando se está na casa dos vinte anos. Então a pessoa envolve-se por
completo numa obra de arte que, muito mais que qualquer livro de qualquer grande
escritor, é inseparável do próprio homem. (SNOW, 1988, p. 322-3)
O ensaísta britânico comenta ainda outra confluência bastante explorada pelos críticos
em geral, a da obra de Proust com a de Balzac, que o muitos os pontos em comum (tanto
Em busca do tempo perdido quanto A comédia humana são roman-fleuves nos quais os
mesmos personagens circulam em mais de uma obra, ambos traçam um amplo retrato da
184
sociedade parisiense em suas respectivas épocas, etc). Para Snow, Proust realiza com sucesso
seu “plano” inicial de “superação” da extensa obra balzaquiana:
Proust absorveu a obra de Balzac com uma total abrangência. Balzac é o menos
etéreo de todos os grandes romancistas. Proust estava certo de que qualquer coisa
que Balzac de fazer, ele, Proust, poderia fazer melhor. No caso isso não ajudava
muito, embora a análise social de Proust a respeito dos círculos onde Balzac também
havia penetrado 60 anos antes seja mais precisa e mais brilhante; além disso, muitas
vezes a análise que Proust faz das pessoas individuais é mais profunda ainda. De
qualquer forma, uma das ambições literárias de Proust era superar Balzac, uma
ambição a que se podia dispor sem falsidade ou presunção. (SNOW, 1988, p. 293)
Admitindo que Proust tenha realmente ampliado” a obra de seu antecessor, é mais
razoável, portanto, aproximá-lo de grandes autores modernistas como Thomas Mann ou
Virginia Woolf, idéia concebida por Paul Ricoeur em Temps et récit III, no qual o crítico
discute “les expériences fictives du temps” (1985, p. 229) nas obras A la recherche du temps
perdu, Der Zauberberg (A montanha mágica) e Mrs. Dalloway. Em determinado trecho do
capítulo “La fiction et les variations imaginatives sur le temps”, Ricoeur coloca os romances
de Proust e de Mann “lado a lado”, a fim de demonstrar as “variações sobre a eternidade”
presentes nos mesmos:
Il est fascinant de placer côte à côte les variations sur l’éternité de Der Zauberberg
et celles de la Recherche. L’accès au royaume ‘extra-temporel’ des essences
esthétiques, dans la grande méditation du Temps retrouvé, ne serait pas moins source
de déception et d’illusion que l’extase de Hans Castorp dans l’épisode Schnee, si la
décision de ‘faire une oeuvre d’art’ ne venait fixer la fugitive illumination et lui
donner pour suite la reconquête du temps perdu. Il n’est pas besoin alors que
l’histoire vienne interrompre une vaine expérience d’éternité: en scellant une
vocation d’écrivain, l’éternité s’est muée de sortilège en don; elle confère le pouvoir
de ‘retrouver les jours anciens’. Le rapport de l’éternité et de la mort n’est pas pour
autant supprimé. Le memento mori, prononcé par le spectacle des moribonds qui
entourent la table du prince de Guermantes au dîner de têtes qui suit la grande
révélation, prolonge son écho funèbre au coeur même de la décision d’écrire: une
autre interruption menace l’expérience d’éternité; ce n’est pas l’irruption de la
grande histoire, comme dans Der Zauberberg, mais celle de la mort de l’écrivain.
Ainsi, le combat de l’éternité et de la mort se poursuit-il sous d’autres guises. Le
temps retrouvé par la grâce de l’art n’est encore qu’un armistice. (RICOEUR, 1985,
p. 244)
70
70
Malcolm Bradbury também coteja Proust e Mann, todavia para destacar como ambos, mesmo imersos em
semelhantes “estados primitivos de isolamento”, formulam de modo diferente questões relativas ao espaço, ao
tempo e ao esquecimento: “Escreve Thomas Mann no início de A montanha gica: O espaço, como o tempo,
engendra o esquecimento; porém o faz libertando-nos fisicamente do ambiente que nos cerca e nos remetendo de
volta a nosso estado primitivo de isolamento’. Mas, em Em busca do tempo perdido, se uma coisa que o
espaço e o tempo, atuando juntos, o fazem é gerar o esquecimento. (...) Afirma ele [Proust]: ‘quando um
homem dorme, a sua volta circulam a corrente das horas, a seqüência dos anos, a ordem dos corpos celestes’.
Quando acorda, ele consulta todas essas coisas e ‘num instante situa sua própria posição na superfície da terra e
o tempo que transcorreu durante seu sono; no entanto, esta procissão ordenada tende a tornar-se confusa, a
185
Comparada às criações de Mann, Woolf, Balzac, Flaubert
71
e Paul Valéry (em estudo de
Curtius), a obra de Marcel Proust nunca foi tão cotejada à de qualquer outro escritor
modernista ou realista mais do que à filosofia de Henri Bergson
72
, comparação a gerar eternos
debates entre os mais diversos especialistas na obra proustiana, os quais, defendendo, alguns,
inúmeras convergências entre os dois autores, e preferindo, outros, salientar o quanto as duas
obras (sobretudo a idéia de durée) eram diferentes, jamais chegaram a qualquer espécie de
unanimidade. Leo Spitzer, citando estudo realizado por Benoist-Méchin, credita a semelhança
entre os dois grandes autores às respectivas concepções sobre “evolução”:
Benoist-Méchin, si je le comprends bien, voit dans la langue de Proust une
application des idées bergsoniennes sur l’évolution, décomposée par le langage
humain en une foule d’instants du devenir: ‘C’est donc contre ses propres outils...
qu’il a entreprendre une lutte héroïque. La langue qu’il s’est forgée, il n’a pu
l’obtenir qu’en faisant éclater la syntaxe habituelle, en allongeant les périodes, en les
enchevêtrant de conjonctions, de subordonné(e)s, en assouplissant les transitions, en
empruntant son vocabulaire aux différents domaines des sciences et des arts.’ Je ne
parlerais pas pour ma part d’un ‘éclatement’, mais seulement d’un élargissement de
la syntaxe. Je m’abstiendrais aussi de chercher quoi que ce soit de musical dans
l’ordonnance de cette prose – Benoist-Méchin a lui-même montré que pour exprimer
le devenir pur, Proust se sert de la musique elle-même encore que cette prose
recherche souvent des effets musicaux, comme toute langue. (SPITZER, 1970, p.
473)
Georges Poulet discorda radicalmente de qualquer analogia entre Proust e Bergson,
sobretudo se a discussão envolver o conceito de durée: “(...) rien n’est-il plus faux que de
comparer la durée proustienne à la durée bergsonienne. Celle-ci est un plein, celle-là, un vide;
celle-ci un continu; celle-là, un discontinu” (1949, p. 396). Se a durée bergsoniana é um
contínuo “presente perpétuo”, a durée proustiana é, nas palavras de Poulet, uma “pluralidade
embaralhar-se’. Pois o sono desloca o lugar, desorganiza o tempo. Além disso, fragmenta a consciência, criando
aquela sensação que se tem quando semidesperto, de não saber sua própria identidade. Portanto, ele ocasiona o
‘estado primitivo de isolamento’ de que fala Mann: ‘Eu tinha apenas a mais rudimentar percepção da existência,
como a que talvez lampeje nas profundezas da consciência de um animal’ (BRADBURY, 1989, p. 124; grifo
do autor). Para José Maria Cançado, a Recherche “Trata-se de um romance tão europeu e tão Guerra de 14 como
A Montanha Mágica, de Thomas Mann.” (1983, p. 40)
71
Ver no item seguinte (3.3) a aproximação a que procede Octacílio Alecrim, em “Raízes de Proust” (Proustiana
Brasileira, 1950, p. 55-62), entre as obras de Proust e de Flaubert a partir do ângulo da memória involuntária,
manifestação utilizada em Madame Bovary e aprofundada na Recherche. José Maria Cançado e Aguinaldo José
Gonçalves também citam a obra de Flaubert em confronto com a de Proust.
72
Sobre esta questão, ver no item 2.3 (p. 94, nota 80) comentário sobre as aproximações que Augusto Meyer,
Paul Ricoeur e Walter Benjamin fizeram entre as obras de Proust e de Bergson. O artigo no qual Meyer analisa
186
de momentos isolados” a afrontar o esquecimento, “verdadeiro nada” contra o qual sua
reconstituição mnemônica luta com unhas e dentes:
Loin d’être comme le veut Bergson, une ‘continuité mélodique’, la durée humaine
est, aux yeux de Proust, une simple plurarité de moments isolés loin les un des
autres. Or, comme Proust l’a fait remarquer lui-même, la différence de nature entre
ces deux durées entraîne nécessairement une différence égale dans les démarches par
lesquelles l’esprit s’aventure à les explorer. C’est comme un lent et facile glissement
en arrière que Bergson conçoit la recherche du temps perdu. Au cours d’une rêverie,
l’esprit se tendant s’enfonce insensiblement dans un passé dont la substance
toujours liquide et dense ne cesse jamais de le presser doucement de tous côtés. Au
contraire, chez Proust, l’exploration du passé apparaît d’emblée comme d’une
difficulté si grande que pour la surmonter il ne faut rien de moins que l’intervention
d’une grâce spéciale et le maximum d’effort de la part de celui qui en est le sujet.
Ainsi aidée, la pensée doit d’abord percer ou dissiper toute une zone de mensonges
qui est le temps de l’intelligence et des habitudes, temps chronologique, où la
mémoire conventionnelle dispose tout ce qu’elle croit conserver en un ordre
rectiligne qui en dissimule la nullité; puis, ayant dispersé ces fantômes, il lui faut
affronter le vrai néant, qui est celui de l’oubli (...) (POULET, 1949, p. 397)
73
Tempos e espaços perdidos e reencontrados, diversas vozes narrativas sobrepostas,
originalidade de estilo e de mensagem, extrema modernidade de uma obra sintonizada às
grandes questões da modernidade constituem alguns dos principais temas proustianos
abordados pela crítica européia no decorrer do século XX. Para concluir, sirvo-me da citação
que encerra a obra Études sur le temps humain, de Georges Poulet, na qual o crítico salienta
que a obra de Proust preencheu um certo “vácuo” deixado pelo ser humano desde a Idade
Média, expondo o ser constantemente “perdido” e somente reencontrado através da recriação
do “eu” e dos ambientes freqüentados, reestruturação “total de si mesmo”, pois tudo nessa
obra se revela, segundo Poulet, sobre “planos diferentes” que nada mais são do que os
diversos tempos “dispostos em camadas” e sobre os quais, em movimento reflexo, a obra
proustiana, síntese do pensamento francês, “desdobra” suas “ramificações”:
Être toujours recréé, toujours retrouvé et toujours reperdu, comme l’est l’être
humain dans toute pensée depuis Descartes, dépendant lui aussi d’une grâce
précaire, comme le fait l’être humain dans toute pensée religieuse, qu’elle soit de la
Réforme ou de la Contre-Réforme, l’être proustien atteint en fin de compte à cette
as diversas confluências entre elas (“Relendo Marcel Proust”, Proustiana Brasileira, 1950) será abordado no
item seguinte.
73
Gérard Genette concorda totalmente com a idéia desenvolvida pelo autor de Études sur le temps humain:
“Georges Poulet l’a bien montré, le temps proustien n’est pas un écoulement, comme la durée bergsonienne,
c’est une succession de moments isolés; de même, les personnages (et les groupes) n’évoluent pas: un beau jour,
ils se retrouvent autres, comme si le temps se bornait à actualiser une pluralité qu’ils contenaient virtuellement
de toute éternité.” (GENETTE, “Proust palimpseste”, 1966, p. 55)
187
structure totale de soi-même que l’existence humaine avait perdue depuis le moyen
âge. Comme dans les vastes Sommes qui s’y sont édifiées, tout s’y découvre
simultanément sur des plans différents qui sont des temps étagés. Ainsi l’oeuvre
proustienne apparaît comme une vue rétrospective de toute la pensée française sur le
temps, déployant dans le temps, comme l’église de Combray, son vaisseau.
(POULET, 1949, p. 403-4)
188
3.3 PROUST E A LITERATURA MODERNISTA BRASILEIRA
“A procura do Tempo perdido é a procura do eu que se
perdeu. O Eu proustiano se volta pro passado com a
intenção de reconquistar ao longo dos anos vividos a
memória integral da personalidade, quer salvar-se no
meio da correnteza construindo na ilha da memória o
observatório da consciência.”
(Augusto Meyer, Proust, o zaori, 1930)
“Na Paris de 1900, onde os homens de cultura e os
artistas de gênio se reuniam, freqüentemente, no Weber,
para ali discutirem a posição do materialismo e exporem
teorias menos científicas e mais helênicas em torno de
novos conceitos, via-se um moço bem pálido, sóbrio, de
aspecto soberbo, o qual discutia com aprumo e ventilava
as suas idéias com ares de quem não está satisfeito e
feliz em rodas diletantes. Era Proust.”
(Henrique Maron, “Marcel Proust Um físico do
subconsciente”, Proustiana brasileira, 1950, p. 173)
Falar da recepção crítica da obra de Marcel Proust no Brasil é, em parte, falar da história
do próprio movimento modernista em nosso país, uma vez que ambas estão associadas de tal
forma a parecer que A la recherche du temps perdu somente poderia ter sido analisada, em um
primeiro instante, por modernistas como Graça Aranha, Carlos Drummond de Andrade,
Manuel Bandeira e Augusto Meyer, capitaneando gerações inteiras que nunca esconderam o
influxo que a obra-prima de Proust lhes legou
74
. Escrita entre 1913 e 1922 (terminada poucas
horas antes do “sopro” final do asmático genial a 18 de novembro), e publicada na França no
decorrer da década de 20 (os três últimos volumes, stumos, são, respectivamente, de 1923,
1925 e 1927), a Recherche foi ansiosamente aguardada, imediatamente lida e debatida
sobretudo entre os principais intelectuais modernistas do Nordeste, do eixo Rio-Minas-São
Paulo e do Rio Grande do Sul
75
.
74
Reconhece Otto Maria Carpeaux, no final da década de 40: “Há mais de dois decênios a sua obra é
universalmente reconhecida como uma das poucas realizações artísticas de valor permanente que o nosso século
produziu. Também entre nós essa obra conta, muito, leitores assíduos, até notando-se sensível influência
proustiana em nossas letras; vale aliás a pena observar que Proust talvez seja mais admirado na América latina
inteira do que em qualquer outra parte do mundo.” (“Lição de Proust”, Proustiana brasileira, 1950, p. 109)
75
Sobre a “ansiedade” com que nossos modernistas recebiam a “novidade” Proust, ver trecho de José Nava
acerca das caixas que chegavam à Livraria Francisco Alves, em Belo Horizonte, vindas do Rio em navio e
trazendo o então recém laureado com o Prêmio Goncourt À l’ombre des jeunes filles en fleurs, passagem
reproduzida por Maria Marta Oliveira em sua tese A recepção crítica da obra de Marcel Proust no Brasil
(defendida no Instituto de Letras da UFRGS, em 1993, sob orientação da Profa. Dra. Tania Franco Carvalhal):
“O bando atacou o caixote. Empunhava martelo e pé-de-cabra o risonho Francisco Martins de Almeida. Iniciada
189
Iniciada, portanto, simultaneamente à publicação do roman-fleuve, esta primeira fase da
crítica proustiana brasileira foi essencialmente impressionista, se considerarmos que o
julgamento era feito, invariavelmente, a partir de uma visão parcial e pouco distanciada da
obra, já que a Recherche se completa apenas em 1927, com a publicação de Le temps
retrouvé. Crônicas, por exemplo, como as de Graça Aranha (“Marcel Proust”) e de Carlos
Drummond de Andrade (“França”), veiculadas em 1925, analisam somente os quatro
primeiros volumes (até Sodome et Gomorrhe), o que as impede de ter uma noção abrangente
do romance, cujo ciclo (do ser “reencontrado” e ressuscitado pela memória) se fecha apenas
no derradeiro volume
76
. Demonstrando não ter percebido imediatamente a originalidade do
autor, Drummond critica não apenas seu estilo, mas também sua sintaxe, juízo que
provavelmente o poeta não manteve até a época em que ele próprio viria a traduzir o sexto
volume (A fugitiva, em 1956) ou dedicar-lhe versos sugestivos como os de “Interpretação de
a operação, salta um pacote, que vai tombar aos pés de um moço de olho vivo e ar tímido, mas atilado leitor, e
hábil tipógrafo. Era Eduardo Frieiro. Rápido, apanha-o e sobraçando o embrulho, sai correndo para o fundo da
loja. Mal aberto, grita: – É o Goncourt, pessoal! Mais quatro moços atiraram-se em seu encalço e arrebataram os
exemplares: Milton Campos, Pedro Nava, Carlos Drummond de Andrade e Alberto Campos. A cada um dos
cinco bibliomaníacos o lesto Kneipp debitou um Proust, a três mil réis. Os primeiros cinco a serem lidos em
Minas. E consta que Eduardo Frieiro começou a leitura ali mesmo. Eis, pois, sem tirar nem pôr, o primeiro leitor
de Proust, de que notícia no Brasil” (Apud OLIVEIRA, 1993, p. 63). A tese de Maria Marta é importante
fonte de consulta a respeito dos primeiros leitores e críticos da obra de Proust no Brasil, reproduzindo, nos
“Anexos”, diversos textos escritos sobre a Recherche na primeira metade do século XX. Além disso, a
pesquisadora indica alguns dados fundamentais para compreendermos o fascínio de Augusto Meyer
(“seguramente o primeiro grande proustiano do sul do país”, 1993, p. 220) e de sua geração pela obra de Proust,
como o fato de Meyer e Jorge de Lima terem se associado à “Société des Amis de Marcel Proust et des Amis de
Combray”, criada na França em 1950 (1993, p. 37), e a fundação, no Brasil, em 1963, da “Associação Brasileira
dos Amigos de Proust” (1993, p. 70). Aproveito esta nota para referir que não consegui encontrar dois textos
mencionados por Marta em sua tese: a obra Dois ensaios, de Jorge de Lima, publicada em 1929, e a crônica
“Metafrívola”, de Augusto Meyer, publicada no Diário de Notícias de Porto Alegre em 14.04.1929. Em pesquisa
realizada em 2003 nos Museus Hipólito José da Costa e Moisés Vellinho, em Porto Alegre, constatei que seus
respectivos Setores de Arquivos não dispõem das edições publicadas em abril de 1929. Quanto ao volume de
Jorge de Lima, trata-se, de acordo com Maria Marta, de uma obra “paradoxal”, na qual o escritor alagoano
consegue enxergar um Proust “religioso” e “caridosoem relação aos personagens que criou (1993, p. 121-2).
Em “Autobiographical writing in Brazil The ‘ProustiansJorge de Lima, Augusto Meyer, and Pedro Nava”,
Tania Carvalhal esclarece que “Jorge de Lima, a physician with strong Catholic inclinations, initially engaged
the work of Proust in what was the first article written on the French author in Brazil, ‘Brasileiros no caminho de
Proust’ (1927), an essay for the public competition for the position of professor of Brazilian literature and
romance languages at the Federal College of Alagoas (Maceió). With another essay about Brazilian modernism,
the study of Proust comprises the work entitled Dois ensaios.” (CARVALHAL, 2002, p. 99-100)
76
Sobre a recepção simultânea, na França e no Brasil, do romance de Proust, Tania assinala que “(...) the fame of
Marcel Proust and the dissemination of his works more or less contemporaneously with their appearance in
France indicate the close connection that Brazilian literature maintained with French literature and culture from
the beginning of the century on” (CARVALHAL, 2002, p. 99). A respeito do supracitado Dois ensaios, de Jorge
190
dezembro”
77
, mas que, naquele instante inicial da recepção de Proust em território brasileiro,
certamente causou impacto e formou opiniões. Leiamos:
Eu também tenho uma opinião sobre Proust. Dois pontos: é o autor mais difícil do
século 20. Não que ele seja obscuro, malarmesco, isso não. Mas escreve mal. Os
períodos não acabam nunca; arrastam-se por entre um cipoal de conjunções
preposições pronomes pessoais o diabo. Vocês já leram ‘À l’ombre des jeunes filles
en fleurs’? Um sacrifício. O resultado paga o sacrifício. Mas este em si é duro
demais. (ANDRADE, 1925, p. 52)
Drummond discorre sobre a sintaxe e o estilo de Proust em contrapartida aos
comentários elogiosos de Benjamin Crémieux presentes na obra XXe siècle, resenhada na
crônica do poeta itabirano. Este percebe o alcance que a obra de Marcel Proust terá
posteriormente (“Não sei se ainda será tempo de falar deste livro de Crémieux, mas tenho
certeza que sempre é tempo de falar de Proust”, p. 52), mas discorda radicalmente do crítico
francês quanto à excelência do estilo proustiano:
(...) é justamente sobre Proust que Crémieux escreve o maior e mais importante
capítulo de ‘XXe siècle’, dando-nos a primeira visão de conjunto dessa obra tão
caluniada e louvada, e afinal tão incompreendida. Bom capítulo. Excelente capítulo.
O autor de ‘Sodome et Gomorrhe’ é analisado com lucidez e penetração, e ainda
com boa dose de simpatia intelectual. Acho imprescindível esse coeficiente de
simpatia no estudo duma obra literária ou artística, sem o que o estudo se arrisca a
sair um chocho relatório ou um injusto libelo. Crémieux porém chega a simpatizar
demais, como no caso de Proust, cujo estilo é justamente a ausência de estilo e que
confunde perturba desespera o leitor. Pois não é que o sr. Crémieux afirma não
haver estilo mais dinâmico do que este? (ANDRADE, 1925, p. 52)
Recorrendo a outros pareceres semelhantes ao seu com o intuito de convencer o leitor
da inexistência de estilo nos romances de Proust, Drummond conclui, com certa incoerência,
não pela “ausência”, mas pela “idiossincrasia” do estilo como forma de se chegar à
“psicologia profunda” do autor:
Martins de Almeida notou que os livros de Marcel Proust podem ser lidos de trás
para diante como de diante para trás (o 2º volume antes do 1º). O que está de
perfeito acordo com a opinião comum de que Proust ‘compose mal, autrement dit il
ne compose pas...’ Aliás em seus livros o que nos interessa não é a anedota, é a
psicologia, levada ao infinito, dos personagens, a decomposição e recomposição
pasmosa dos caracteres, o dom de vida íntimo secreto e múltiplo, que o leitor
de Lima, a autora lembra que “It must be mentioned that this critical study is almost contemporaneous with those
published in Europe on the work of Proust”. (CARVALHAL, 2002, p. 100)
77
Ver: “É talvez o menino / suspenso na memória. / Duas velas acesas / no fundo do quarto. / E o rosto judaico /
na estampa, talvez. // (...) O doce escondido, / o livro proibido, / o banho frustrado, / o sonho do baile / sobre
chão de água / ou aquela viagem / ao sem-fim do tempo / lá onde não chega / a lei dos mais velhos. // (...) É o
menino em nós / ou fora de nós / recolhendo o mito.” (ANDRADE, A rosa do povo, 1989, p. 121-3)
191
chega a descobrir depois de vencer a idiossincrasia do estilo. (ANDRADE, 1925, p.
53)
78
Apesar de alguns juízos precipitados, perfeitamente justificáveis dada a estranheza
motivada pelo contato inicial com a escritura proustiana, Carlos Drummond de Andrade nota
que o grande diferencial da obra está no extremo psicologismo dos personagens e das
situações retratadas e na relação que Proust estabeleceu entre consciente (inteligência) e
inconsciente (memória involuntária), realizando na literatura aquilo que Freud sugeria através
da psicanálise:
Proust foi um doente um hipersensível. Crémieux acentua nele o desenvolvimento
anormal da memória e imaginação dando como produto sensibilidade hipertrofiada.
Estes os meios naturais de que dispõe para ‘renovar segundo sua estética a visão do
mundo e do homem’. É numa palavra o romancista do subconsciente. Sua obra nos
fornece dados importantíssimos para o estudo das relações entre consciente e
inconsciente. (ANDRADE, 1925, p. 53)
No mesmo ano da crônica de Drummond, Graça Aranha publica, em Espírito moderno,
um curto e interessante capítulo a respeito da obra de Marcel Proust, destacando a curiosa
relação entre a “sensibilidade” moderna do autor e sua arte, “antiga”, de “longínquas raízes”,
espécie de mescla entre o “velho espírito francês” e algo semelhante ao “humour” inglês:
Proust não nos rejuvenesce. As raízes da sua arte são longínquas. Nela o velho
espírito francês compraz-se na análise das cousas, na narração dos acontecimentos,
na associação das idéias e das sensações. Uma infiltração da seiva humorística e
deformadora dos ingleses a mistificação da novidade. Aquela análise vai ao
paroxismo e por tal exasperação a sensibilidade de Proust é do nosso tempo, embora
a arte lhe seja antiga. Arte de inteligência, em que o pensamento se faz instinto e
parece tecer inconscientemente. Arte processual, em que se reflete a cultura
voluntária. Arte de tradição, que termina em decadência. (ARANHA, 1925, p. 99)
79
78
Sobre o estilo de Proust, incompreendido durante a fase inicial de sua recepção no Brasil, afirmaria Alcântara
Silveira, demonstrando o ulterior amadurecimento, em nossas letras, do juízo a respeito da Recherche, após a
passagem da fase do “estranhamento” à do “entendimento”: “Quando V. estiver habituado com o estilo
proustiano descobrirá a beleza que nele existe e perceberá que só mesmo escrevendo desse jeito é que o
romancista poderia lhe transmitir os sentimentos que tumultuavam em sua alma e as prodigiosas sensações que
seu cérebro registrava. Com a leitura freqüente de Proust e com a compreensão do seu estilo, os trechos que à
primeira vista pareceram obscuros ressurgirão com todo o poder de sua beleza e de sua profundidade.”
(SILVEIRA, “Carta ao novo leitor de Proust”, Proustiana brasileira, 1950, p. 134)
79
Segundo Marta Laus Oliveira, além de Graça Aranha, Drummond, Tristão de Athayde e Augusto Meyer (os
dois últimos a serem comentados a partir daqui), José Lins do Rego, Jorge de Lima, Brito Broca, Humberto de
Campos e João Ribeiro foram os primeiros modernistas brasileiros que escreveram sobre Proust. A respeito do
pioneirismo do texto de Graça Aranha, Saldanha Coelho, organizador da coletânea Proustiana brasileira,
escreveria mais de vinte anos depois, em sua “Nota Introdutória”, que: “O culto do autor de A la recherche du
Temps Perdu não é fenômeno recente no Brasil, onde a sua figura vem sendo estudada com certa profundeza;
em 1925 Graça Aranha, no Espírito Moderno, tentava pela primeira vez a análise do complexo mundo
proustiano, é claro que não dispondo dos elementos com que a crítica atual se enriqueceu, mas num esforço em
que a honestidade do analista autorizava aquela aventura pessoal.” (1950, p. 05)
192
No entanto, o texto mais representativo veiculado sobre Proust durante a década de 20
no Brasil, tendo servido de base às análises que imediatamente lhe seguiram, é o capítulo
intitulado “Marcel Proust”, que Tristão de Athayde publica, em 1928, na série de seus
Estudos
80
. A abordagem de Tristão é surpreendente se levarmos em conta o pouco tempo
decorrido entre a publicação dos volumes na França e sua respectiva apreciação em nosso
país, sendo que inúmeras características apontadas por críticos franceses (e referidas no item
anterior) estão presentes na análise feita pelo intelectual brasileiro, tais como: a introspecção e
a penetração psicológica da obra
81
; a questão do “tempo puro” e da oposição entre memória
voluntária e involuntária; convergências e divergências em relação à filosofia de Bergson,
dentre outras. Antes de interpretar o romance, Tristão de Athayde discute o mundanismo de
Proust e sugere que a biografia ajuda a compreender a obra, embora, admite, não seja o
aspecto mais importante
82
. Comentando o início de sua carreira, o crítico destaca o quanto os
primeiros livros de Proust “respiravam” o “ar” dos salões parisienses:
Tudo (...) parecia condená-lo à literatura de salão
193
esnobismo ambiente, pelo demônio do mundanismo. Era um caso perdido. Mais
uma promessa que se dissipava. Um nome a riscar. (ATHAYDE, 1928, p. 148)
A grande reviravolta em sua atitude se a partir de 1905, quando Marcel Proust perde
a mãe e sua saúde começar a piorar a passos largos. O romancista, então, receoso de
morrer jovem, abandona os salões e passa a se dedicar integralmente à redação da Recherche.
Referindo-se ao episódio marcante, observa Tristão que
(...) em 1905, bruscamente, desapareceu esse milagre cotidiano. Proust está só.
Sobre si. Como uma criança perdida na multidão. A quem nem ao menos resta o
recurso das lágrimas. (...) E começa então para ele essa vida estranha, fechada,
fugindo ao sol, trancado no seu quarto, todo forrado de cortiça, para espancar os
intoleráveis ruídos do mundo exterior, saindo vagamente, à noite, altas horas, como
uma aparição, como um ser fora da vida, da espécie (...) A agitação da vida mundana
o retirara da vida: o isolamento ia, paradoxalmente, definitivamente, recolocá-lo em
plena vida. (ATHAYDE, 1928, p. 150)
83
Ao falar do “campo de investigação” do escritor, Tristão de Athayde salienta que o
universo proustiano foi criado a partir da observação de praticamente dois tipos de “classe”
(“nobres” e “servos”), através dos quais, assim como Montaigne, Proust atinge a
“universalidade”, comprovando a profundidade de sua visão e de seu poder de abstração:
Proust viveu em um meio acanhado. Nunca trabalhou, isto é, nunca entrou em
contato imediato com a vida áspera de todo o dia, com os homens que lutam pelo
pão ou pelo poder. Nunca viajou para longe, para conhecer outros povos, outras
civilizações. Viveu sempre recluso ou em salões. E as duas únicas classes que
estudou a fundo, pareciam naturalmente excluir toda possibilidade de atingir a
universalidade. Essas duas classes foram a nobreza mais fechada do faubourg
Saint Germain e os criados. Isto é, duas séries de criaturas totalmente
desinteressantes para quem como ele procurava atingir o fundo da vida e dos
homens. Uma pelo excesso de artifício e pelo estado de decadência, de exclusão do
mundo moderno em que vivia. A outra, naturalmente, pelo excesso contrário, pela
vulgaridade, pela incultura, pela falta de personalidade. (…) Pois bem, desses dois
acanhados campos de observações, Proust tirou todo um mundo de cousas profundas
e novas. Toda uma tipografia inédita do homem, que agora o colocam ao lado de
Montaigne, como descobridor da alma humana. (ATHAYDE, 1928, p. 152-3)
Além de Montaigne, Tristão de Athayde sugere aproximações entre Proust e outros
escritores, propondo estudos comparatistas que não chega a realizar, mas que provavelmente
impulsionaram iniciativas alheias: “Seria o momento, se o tempo o permitisse, de fazermos
um cotejo entre a obra de Proust, e a de Freud, no estudo do inconsciente, bem como entre a
83
Anos depois, Alcântara Silveira diria, poeticamente, que a Recherche é “(...) o resultado de uma vida, de uma
vida de doente que se extinguiu logo após o ponto final da última página do último tomo, como chama de vela
que tivesse se mantido acesa o tempo necessário para iluminar um instante de beleza.” (SILVEIRA, “Carta ao
novo leitor de Proust”, Proustiana brasileira, 1950, p. 129)
194
obra de Proust, e a de Pirandello, nos domínios da dissociação da personalidade e da loucura”
(ATHAYDE, 1928, p. 156)
84
. Laurence Sterne também é lembrado pelo pensador católico:
Seria interessante cotejá-lo [Proust] com Sterne. Foi Sterne, por exemplo, quem
introduziu, em literatura a continuidade psicológica, quebrando com a continuidade
mecânica. E isso é o que vamos encontrar em Proust, na teoria das intermitências, ou
na dissociação da pessoa. (ATHAYDE, 1928, p. 180)
A contribuição mais significativa do texto de Tristão de Athayde para o estudo da obra
de Marcel Proust está justamente nas considerações a respeito da dissociação da
personalidade e da conseqüente multiplicação de eus advinda da dissociação efetuada
85
.
Tristão julga que Proust introduziu o fenômeno da dissociação psicológica na arte literária,
subtraindo-a ao domínio exclusivo da psicopatologia. À página 153, afirma:
Pode-se dizer que, até Proust, a dissociação da personalidade era considerada como
um fenômeno de anormalidade mental, objeto apenas da psicopatologia, ao passo
que Proust considerou essa dissociação, não só como um fenômeno normal da
personalidade, mas ainda como um elemento fundamental da vida do espírito. (...)
Essa, para mim, em poucas palavras, a primeira grande concepção original de sua
obra. (ATHAYDE, 1928, p. 153; grifo do autor)
Acredita o crítico ser a dissociação psicológica não apenas a característica fundamental
do achado de Proust como sobretudo o “ponto de partida” de seu audacioso projeto, realizado
com sucesso, uma vez que o romancista consegue retirar “recordações”, “idéias” e
“sensações” do limbo do esquecimento, fornecendo-lhes um sentido antes inexistente e
transformando o “solo estéril” do passado em fértil terreno a fecundar os frutos da
reminiscência:
O ponto de partida, portanto, da psicologia proustiana é essa dissociação dos
elementos da personalidade. As recordações, as idéias, as sensações vivem em nós,
independentes, por si, recolhidas que vão sendo ao longo do nosso tempo. Uma parte
se utiliza logo, entra em combustão, por assim dizer, no curso ativo de nossa
existência atual. Outra parte se gasta com o tempo, com a inatividade, pela ação
incessante e terrível do esquecimento que vai corroendo o nosso passado acumulado
84
Como veremos em seguida, Augusto Meyer também associa a obra de Proust à de Freud (“Proust, o zaori”,
1930) e à de Pirandello (“Os três primos”, Preto & Branco, 1956, p. 165-170), realizando aquilo que Tristão de
Athayde sugerira com tanta propriedade.
85
Conferir o seguinte trecho: “Em Proust, o que encontramos, no centro de sua criação, não é a dissolução do eu
mas a multiplicação dos eus(ATHAYDE, 1928, p. 158; grifo do autor). Alvaro Lins discorda: “Não há, assim,
unidade no eu; o eu aparece sempre fracionado e até dilacerado. É o fenômeno da dissociação da personalidade,
tão característico da obra proustiana.” (LINS, 1956, p. 86)
195
em nós e que faz por vezes de nossa alma uma floresta ardida, um solo ressecado e
estéril por uma seca prolongada demais. (ATHAYDE, 1928, p. 154-5)
86
Alguns parágrafos antes, Tristão de Athayde sugere que a personalidade se dissocia
porque (quase) nada podemos fazer contra o tempo que passa e que carrega em sua passagem
os objetos que povoaram nossos sentidos em circunstâncias anteriores. A não ser que tais
recordações se incorporem definitivamente ao presente, ou melhor, ao “tempo puro” formado
pela abstração idealizada do passado “presentificado”, pois
(...) essa evocação anacrônica que realiza o que Proust chama ‘o tempo puro’,
começa a viver em nosso presente, como se começasse a viver ao tempo em que a
assimilamos e temos assim constantemente a nossa vida cortada de evocações, que
surgem às cegas, de outros tempos, com outros ritmos, partindo para futuros que
então julgávamos vir a ser e que falharam em caminho. E assim é que a nossa vida
presente é cortada de imprevistos, de incursões do passado, de variações do tempo,
de resíduos que se inflamaram, de mortos que não se decompõem nem se
galvanizam, de ramificações que não se completam, de caminhos abandonados, de
projetos que atraem para lados contraditórios, de toda uma fauna e uma flora
subconsciente e estranha que chegam aos planos supremos da arte mas que tornam a
resistência à loucura um milagre de cada momento. (ATHAYDE, 1928, p. 155-6)
Através da dissociação dos estados da alma é que Tristão de Athayde divide os homens
e as características de suas lembranças em dois tipos: de um lado, temos o “homem de ação”,
aquele que constantemente apela para a inteligência e para a memória voluntária como
maneira única de recobrar seu passado; de outro lado, há o “homem de retração”, categoria na
qual se inclui o narrador proustiano, atento às manifestações de sua sensibilidade e da
memória involuntária, às evocações “de outros tempos” que “surgem às cegas”:
O essencial para Proust foi a dissociação dos estados de alma, a independência dos
elementos da vida interior e finalmente como conseqüência disso, a multiplicação
da personalidade. (...) E se Proust viveu obcecado por essa disseminação é que viveu
sobretudo sob o signo da memória. Os homens de ação são aqueles que se servem da
memória. Os homens de retração, como Proust, são os que servem à memória. Em
uns a memória é uma função da inteligência. Nos outros, da sensibilidade. (...)
Proust sempre distinguiu nitidamente a memória voluntária da memória
involuntária. esta, a memória que nos vem sem querer, sem uma evocação
desejada é que lhe parecia a memória realmente fecunda. A memória voluntária
nos traz dos acontecimentos uma evocação pobre e mesquinha. (ATHAYDE, 1928,
p. 158-9; grifo do autor)
86
Tania Franco Carvalhal também acredita que “A procura do perdido é (...) constante luta contra o
esquecimento, contínua e tenaz reconquista.” (CARVALHAL, “Proust mais uma vez”, Correio do Povo,
15.08.1981)
196
Afora essa referência à “limitação” da recordação voluntária e à “fecundidade” da
involuntária, aspectos discutidos nos itens anteriores (sobretudo em 2.4 e em 3.1), o texto de
Tristão possui em comum com os de outros críticos citados em 3.2 a menção à confluência
com o pensamento de Bergson e a importância atribuída ao tempo, obsessão perene de
Proust”, ou melhor, “os tempos”, pois, segundo o crítico brasileiro, “a influência bergsoniana
é sensível em toda sua obra” (1928, p. 164), tendo Proust exposto, a partir da sugestão do
filósofo, a diferença entre tempo “exterior”, cronológico, e “tempo interior”, psicológico, a
durée que prolonga o “tempo puro” ad infinitum e nos mostra que “vivemos no curso do
tempo inflexível e criamos, simultaneamente, o nosso tempo interior e a nossa resistência ao
tempo, até mesmo a nossa supressão ilusória do temp
197
Em “Proust, o zaori”, Augusto Meyer aproxima Proust e Freud a partir do
desmascaramento, a que ambos procederam, da “psicologia oficial”, expondo mazelas e
idiossincrasias do nosso inconsciente e revelando os componentes mais profundos e
recônditos do interior humano, para incompreensão daqueles a quem a “introspecção fácil”
basta:
Proust com a sua lucidez cruel, Freud com a psicanálise ensinaram a desconfiar dos
chavões consagrados pela introspecção fácil da psicologia oficial. Seu método foi
uma desconfiança constante, uma revisão de valores. Onde outros aceitavam sem
análise, introduziram a obrigação da pré-análise. Antes de procurar a lei que
substituía o fato, quiseram surpreender a hipocrisia contida nele, o seu móvel
disfarçado pela camuflagem inconsciente. (MEYER, 11.09.1930)
Para Meyer, a obra de Proust foi responsável pelo equilíbrio entre as forças de
concentração (capitaneada pelo “eu”) e de dispersão (simbolizada pela passagem do tempo),
equilíbrio atingido através do resgate efetuado pela “memória integral da personalidade” e
pelo “eu” perdido e reencontrado, imerso no “tempo puro”, mas que hesita entre a “salvação”
por meios “ilícitos” (apego à religião) ou “lícitos” (mergulho em si):
A força de concentração está representada nos (...) volumes da Recherche’ pelo Eu
que centraliza a história; a tendência dispersiva pelo próprio tempo, dissociador e
destruidor da personalidade. A procura do Tempo perdido é a procura do Eu que se
perdeu. O Eu proustiano se volta pro passado com a intenção de reconquistar ao
longo dos anos vividos a memória integral da personalidade, quer salvar-se no meio
da correnteza construindo na ilha da memória o observatório da consciência. Mas ao
mesmo tempo não quer a salvação por meios ilícitos, recorrendo ao narcisismo
religioso. Exige de si mesmo a imagem mais sincera e mais crua que for possível
reconstruir. (MEYER, 1930)
Tal exigência é que faz de Proust, segundo Meyer, o “zaori” da literatura modernista,
isto é, o clarividente que, enxergando “além das paredes convencionais”, expõe cruamente os
mistérios e as incoerências que caracterizam nossa personalidade:
Vem daí o seu trabalho moroso, retardado em meandros, cheio de atalhos que se
perdem noutros atalhos, de becos subentendidos e a claridade quase desumana que
atravessa a obra toda, esse olhar de zaori enxergando através das paredes
convencionais. (MEYER, 1930)
87
87
Mito de origem árabe e que no Brasil ocorre principalmente no Rio Grande do Sul, terra natal de Augusto
Meyer, o zaori possui o poder de ver através de corpos opacos, terras e montanhas, conseguindo dessa forma
localizar ouro, prata e diversos outros tesouros escondidos. Tem o aspecto de um homem comum, porém seus
olhos, cintilantes, são dotados de um brilho mágico e misterioso. A metáfora utilizada por Meyer é perfeita, uma
vez que, além da capacidade de Proust de “enxergar além das aparências”, seu olhar, profundo e intenso,
assemelha-se bastante às representações do mito. Para saber um pouco mais sobre os zaoris, convém consultar o
Dicionário do folclore brasileiro (Rio, INL, 1954), de Luís da Câmara Cascudo, e ler “A salamanca do Jarau”,
198
Figura 6 – O “zaori” Marcel Proust
Se Proust possuía o “sexto sentido” do zaori, imaginemos o quanto ele dominava com
199
de um poder invejável de saber extrair das sensações o combustível necessário a sua evocação
magnífica:
Proust foi uma clarividência monstruosa servida por uma sensibilidade incrível.
se disse com muita razão: os sentidos dele não eram os nossos cinco instrumentos
normais. Ele nos esmaga com o lastro ativo das sensações. (MEYER, “Proust, o
zaori”, 1930)
88
Motivado pela multiplicidade de sensações revividas e redimensionadas, Augusto
Meyer, em um primeiro momento de sua abordagem da obra de Proust, deixou-se levar muito
mais pela “impressão”
89
profunda e positiva que a leitura da Recherche nele causou do que
propriamente pela análise racional dos elementos do romance, a ponto de, praticamente
“incorporando” a atitude rebelde e questionadora do “bicharoco rastejante” atormentado pelo
demônio da reminiscência, da introspecção e do niilismo, criar o “discurso” do zaori
90
, o
grito de guerra de um Dostoiévski, um Machado, um Proust, assim iniciado:
Como foi? o sei. De repente as coisas se liliputizaram, minguaram como a lua
clorótica, murcharam na minha mão tal e qual porquinho de borracha que exala o
último fôlego: nhé... (...) Adrenalina, cataplasma, compressas, picadas de óleo
canforado qual! me esforcei como três foles enchendo a bochecha, sobre o friúme
da brasa. O diabinho azul e o diabinho amarelo encarangaram na dança. E agora
adeus, fogo, Frau Sorge remexe a cinza fria. (MEYER, “Discurso do zaori”, 1930)
A dissecação do homem interior vislumbrado pelo narrador-zaori criado por Meyer
prossegue à medida que se seguem os parágrafos do discurso. Vale a pena acompanhar:
Os homens são retortas de cristal, são fantoches de vidro com vísceras translúcidas.
Cada um pensa que escondeu o dodói inconfessável nas entranhas do silêncio mas
eu aplico o olho clínico e a minha radioscopia não nega fogo. Vejo tudo e muito
88
Outro crítico que acredita na excelência de Proust sobre os demais escritores de seu tempo é Henrique Maron,
que à página 179 de seu “Marcel Proust Um físico do subconsciente” (Proustiana brasileira, 1950), afirma:
“Produto extremo e puríssimo da tradição greco-latina, Proust é o fim de uma cultura. Ele distingue, classifica,
analisa, pensa, julga, enquanto que muitos de seus contemporâneos só desenvolviam um rosário de frases
incolores sobre a superfície das coisas.”
89
Em O crítico à sombra da estante (1976), Tania Franco Carvalhal demonstra com precisão as três fases que
caracterizam a crítica literária de Augusto Meyer: impressionista (anos 20 e início dos 30); psicológica (a partir
do ensaio sobre Machado de Assis, em 35); e estilística (sobretudo anos 50 e 60). Esta primeira fase
“impressionista” da crítica proustiana de Meyer coincide, portanto, com a postura adotada em sua crítica de
modo geral. Apesar de eminentemente impressionista, sua abordagem inicial de Proust, como podemos perceber,
é composta por observações brilhantes e pela percepção pioneira do imenso valor desta obra-prima que, àquela
altura (1930), despertava cada vez mais interesse e, conseqüentemente, inúmeras avaliações, nem sempre
coerentes.
90
“Porque Eu nasci zaori, oui! zaori varador de parede, enxergador dos outros lados de tudo, olho
transcendentalista” (MEYER, “Discurso do zaori”, Diário de Notícias, 24.08.30). Veremos a seguir que a
convicção de Meyer a respeito da introspecção de Proust encontra respaldo em alguns artigos publicados na
Proustiana brasileira, sobretudo em “A neurose de Proust”, de Eustáquio Duarte (1950, p. 115-124) e em
“Marcel Proust – Um físico do subconsciente”, de Henrique Maron. (1950, p. 173-197)
200
mais. Vejo a úlcera roendo a displicência, o tubérculo preto do cancro encravado na
carne, colônias de bacilos encoivarando campo, todas as brechas, quebras, falhas,
dejeções, podridões. E as toxinas da virtude. E a sífilis do misticismo. E sempre,
camuflado pelo biombo da nobreza, um bicharoco rastejante de trinta caras. (...) Ó ó
é uma volúpia macanuda a gente ser zaori... (MEYER, 1930)
O olhar agudo do zaori se coaduna, na visão impiedosa e cruel do cronista, à
constatação da fugacidade da vida, recurso enganoso utilizado para se “distrair” da morte,
pois, ao “último figurino” com que nosso eu se empertiga de vaidade e soberba, contrapõe-se
o não muito distante “esqueleto” antecipado pela visão clarividente do zaori:
É uma gostosura: o zaori vem e logo as casas mais herméticas parecem feitas de
vidraça: são vitrinas onde se alinham coleções completas de zeros. Um cavalheiro
sólido, se eu chego perto olhando, é bolacha no chá quente, é suspiro e nada mais.
Vão andando pela rua e já morreram. Levam coroas enfiadas no braço. Através da
roupa escura meu olhar desenha a giz o esqueleto. Impagável o esqueleto vestido
pelo último figurino, correto, fingindo que vive... As vértebras são colares flexíveis
como a dignidade (ou quase). Contei milhares, milhões de fantasmas, porém quando
perguntei: Dr. Alguém está? (...) Todas as caveiras disseram não. (MEYER, 1930;
grifo meu)
91
No entanto, não é somente no “Discurso do zaori” que Augusto Meyer “incorpora
Proust: menos de um mês após a publicação do “Discurso”, mais precisamente a 11 de
setembro de 1930, lê-se no Correio do Povo outra inspirada crônica de “tempero” proustiano,
“A culpa é de Reinaldo Hahn”, referência ao amigo e músico que costumava acompanhar
Proust em passeios pelo interior da França e pela costa da Bretanha. Nesta crônica, que
reproduz a atmosfera onírica dos encontros de Proust e Hahn, Augusto Meyer, regressando
em sonho ao “país da memória perdida”, fixa o pays de tendre interior no qual todo
introspectivo deseja se exilar, espécie de ilha atemporal e fictícia mas real e viva na
imaginação:
Uma paisagem brumosa, na terra longe, decerto no país da memória perdida, quando
a gente esquece o cigarro entre os dedos e fica olhando pra dentro com olhos vagos
porque tem a sensação de já ter vivido muito tempo nesse lugar que não existe.
(...) Qualquer coisa poderosa e triste como o marulho do mar na praia interior.
(MEYER, 11.09.1930)
91
Notar a sutil referência de Meyer ao episódio da madeleine proustiana: “se eu chego perto olhando, é bolacha
no chá quente, é suspiro e nada mais.” O curioso é que este trecho aparece apenas na crônica publicada no
Diário de Notícias. Ao ser incluída em Literatura e poesia (1931), esta passagem do “Discurso do zaori” foi
alterada para: “Um cavalheiro sólido, se eu chego perto olhando, afunda na areia-gulosa. Vão andando pela rua e
já morreram.” (MEYER, 1931, p. 82)
201
A necessidade de eternizar a paisagem ideal sonhada com tanta intensidade equivale ao
desejo de, a partir da amizade de um Reynaldo Hahn e da saudade que deixará no amigo,
evitar o esquecimento definitivo e imortalizar, através da obra, sensações e pensamentos de
quem espera mais do que apenas deixar um registro efêmero na “areia” da existência
mundana:
E onde foi que existiu essa paisagem? Me ensina o caminho que leva até lá...
Qualquer coisa poderosa e triste como a saudade de quem pudesse ver, depois da
morte, que a mesma vida continua indiferente, que os amigos apagaram nosso nome
na areia, que o sol apagou a tua sombra no chão... (MEYER, 1930)
Afirma-se que os amigos e conhecidos de Proust fizeram mais do que acompanhá-lo a
passeios ou provocar-lhe sentimentos nostálgicos em “No mundo de Proust” (Crônicas da
província do Brasil, Rio, Civilização Brasileira, 1937, p. 261-4), Manuel Bandeira sugere que
inúmeros personagens da Recherche surgiram da observação dos hábitos e das atitudes de
pessoas próximas a Proust, o que o teria auxiliado a, por analogia, compreender a psique do
ser humano e daí abstrair suas motivações substanciais:
A um leitor superficial Proust parecerá um sujeito extremamente preocupado com os
detalhes. A verdade é que os detalhes o interessavam como elementos para a
indução das grandes leis. Ele observou os mesmos detalhes um olhar, um gesto,
uma frase, em muitos dos seus conhecidos, e tomando em consideração as
circunstâncias inquiria os móveis de tal ou qual forma de expressão, chegando assim
a uma verdade geral, onde cabiam não só os seus conhecidos, como todos os
semelhantes a eles, por ocasião de reações análogas. (...) Todo esse riquíssimo stock
de observações recolhido nos longos anos de aparente inatividade literária do ‘tempo
perdidoveio depois a servir, segundo as necessidades de sua demonstração. As
personagens foram desenvolvidas segundo a lógica dos seus temperamentos, dos
seus hábitos, acabando por dar uma tal ilusão de vida que os amigos do escritor viam
fulano no Barão de Charlus, sicrana em Odette, embora nunca tivesse havido
intenção de retrato. (BANDEIRA, 1937, p. 263-4)
92
92
Em “Carta ao novo leitor de Proust” (Proustiana brasileira, 1950, p. 131), Alcântara Silveira informa que
“Para completar o amontoado de anotações, esboços rascunhados durante a sua vida mundana, [Proust] mobiliza
seus amigos mais chegados e cada qual em sua especialidade lhe fornece os meios necessários para que seu
romance seja o reflexo do real, o mais próximo possível e assim, se Reynaldo Hahn lhe explica detalhes
musicais, Jean-Louis Vaudoyer o aconselha em pintura”. Na mesma coletânea, Henrique Maron associa certos
personagens aos seus respectivos modelos: “Odette de Crécy é a réplica em miniatura de uma famosa mundana
que se chamou Laura Heyman. Bergotte, o sábio, é o velho France que lançou Proust, revelando-lhe o gênio aos
vinte e cinco anos. Françoise é possivelmente uma velha doméstica que se chamou Céleste Albarret. E Swann, o
brilhante Charles Haas que viveu lá pelo último quartel do século XIX. Ao projetar a ficção dessas realidades no
plano da arte, Proust foi além da pesquisa abafadora e clínica. Sublimou. Viveu dentro de seus mundos,
auscultando-lhes o coração, sentindo-lhes a alma e tomando-lhes o pulso das idéias no acolchoado lascivo dos
salões, do faubourg Saint-Honoré, no faubourg Saint-Germain, nas ruas da Chaise, de l’Oiseau e do Saint-Esprit,
em Balbec, Rivebelle, Combray, Paris” (MARON, Proustiana brasileira, 1950, p. 185). Estas afirmações,
segundo o crítico, encontram respaldo na correspondência do escritor: “O próprio Marcel Proust revelou, em
uma carta dirigida a Montesquiou, o método com que forjava os seus personagens, juntando os traços diversos de
202
Augusto Meyer também participa da crença de Manuel Bandeira, de Alcântara Silveira
e de Henrique Maron segundo a qual a observação dos costumes daqueles que estavam a sua
volta ajudou Proust a compor os personagens do romance, procedimento “superior” que
transforma vida em arte e arte em vida com uma espécie de verossimilhança romanceada”
no verbete “Charlus”, por exemplo, de suas Notas para a leitura de ‘No caminho de Swann’,
justifica o crítico:
O ponto de partida e a sugestão para a criação do herói Charlus foi sem dúvida o
conde Robert de Montesquiou. A semelhança da personagem com o modelo é
flagrante, segundo o testemunho de Jacques-Émile Blanche. Antes de criar o seu
Charlus na obra literária, Proust ensaiou essa criação na vida real com suas imitações
vivas e caricatas do estranho conde. A simples imitação mica e o ‘pastiche’ literário
serviram de instrumento e experiência ao Proust romancista, que é muitas vezes um
memorialista velado, a utilizar-se da fantasia criadora de modo alusivo e transparente,
como a indicar a verdade biográfica sob a transfiguração romanceada. (MEYER,
1948)
Escritas praticamente duas décadas após suas primeiras crônicas sobre Proust, as
Notas” de Augusto Meyer, distribuídas juntamente com a primeira edição da tradução
brasileira de Du côté de chez Swann
93
, foram compostas com o intuito de auxiliar o leitor
brasileiro, pouco familiarizado ao universo proustiano, a enfrentar o árduo desafio de
compreender um romance estilistica e estruturalmente complexo e revolucionário, a ponto de
o crítico julgar necessária a inclusão de um verbete (intitulado “método de leitura”) que
facilitasse a aproximação entre leitor e obra. Orienta Meyer:
Recomendamos ao leitor de boa vontade que, após consulta prévia a estas notas,
escolha um episódio qualquer, ou tema, ou acidente, indicado nas mesmas,
vários indivíduos em um tipo de que ele revolve e escava as profundezas” (MARON, 1950, p. 178). Ao que
consta, Proust levava tão a sério este peculiar “método” de criação de seus personagens que, a certa altura de sua
vida, este se tornou praticamente o único motivo que o fazia sair de casa: “E se alguma vez o romancista
abandona seu quarto para explodir numa reunião elegante, é para ver como o Conde Fulano coloca atualmente o
monóculo e se a sua figura pode ser usada como parte do corpo de um personagem ainda no limbo.”
(SILVEIRA, 1950, p. 132)
93
No caminho de Swann, Porto Alegre, Editora Globo, 1948. Tradução de Mario Quintana. O grande poeta de
Alegrete viria a traduzir também os três volumes seguintes de A la recherche du temps perdu, intitulando-os,
respectivamente, À sombra das raparigas em flor; O caminho de Guermantes; e Sodoma e Gomorra. A respeito
deste empreendimento, ver o trecho de Erico Veríssimo citado na nota 62 do item anterior (p. 174). Além dos
quatro primeiros volumes da obra de Proust, Quintana também traduziu para a Editora Globo de Porto Alegre
obras-primas de autores como Charles Morgan, Virginia Woolf e Joseph Conrad. Veremos, na seqüência deste
item, que a tradução brasileira da Recherche impulsionou a crítica proustiana brasileira, suscitando pesquisas,
análises e artigos compilados em 1950 na antologia Proustiana brasileira, tendo contribuído para o surgimento
de uma segunda fase dos estudos sobre Proust no Brasil, menos impressionista e mais madura que a primeira.
203
procurando familiarizar-se com a sua composição. Logo a seguir, tente o leitor
aproximar esse tema de outros motivos igualmente indicados nestas notas, ou
quaisquer outros que apresentem interesse particular. Verá então como, de motivo em
motivo, de episódio a episódio, o encadeamento é perfeito. A composição rigorosa da
obra exige uma leitura lenta, pausada, sistemática, e a leitura de Proust é uma delícia
que se deve conquistar a pouco e pouco, recomeçando sempre, relendo para tornar a
reler. Esse andamento moderado corresponde ao próprio andamento da composição.
Dizia Ortega y Gasset que o processo literário de Proust lembra a filmagem em
câmara lenta. (MEYER, Notas para a leitura de ‘No caminho de Swann’, 1948)
Analisando os itens que compõem as Notas de Augusto Meyer,dee ore t A A7p-2.16558(t)-n.3132s49 oto3-1.22997( )-230171324en s 61-6.2659(r)22.45995( )-23017132461-0.295585( )-.74(o)-.74(l)-2.1653(i58-2.16558(t)-z.2659(r)2.74(l)-0.295585(o)-0.295585( )-1.2312( )25001713247. .295585(e)3.74( )-l.16436(o)-0.295585( )-2301713247.c74( )-4.05184s)-í.16436(o)-2.16436(o)-i.16436(o)-.74(o)-0.295585(m)-2301713247.TJ240.539871Td[( )-0.295585( )-1.2312( )25001713247..74(n)-0.295585(s)-1.2299( )2a74( )24o n sorl ue e oo34(u-0.29558314)-l.16436(a)-0.4( )24a
204
essencial notarmos também que Meyer não se refere à expressão “memória involuntária”,
preferindo, sugestionado provavelmente pelas leituras de Freud, termos como “memória
inconsciente” ou “evocação por acidente”. O crítico gaúcho volta a se referir às associações
evocativas” no verbete “memória”, ao diferenciá-las dos fenômenos voluntários da
inteligência:
[Proust] Estabelece distinção entre a memória voluntária, ou da inteligência, e a
associação evocativa, provocada por algum objeto que a memória inconsciente
impregnou de sensações. (...) O chá e as migalhas do bolo, o gosto e o cheiro
reconstituem aos poucos a imagem, a recordação visual (...) O tema da memória em
Proust, ligado ao motivo capital da criação estética, parece uma adaptação ao
romance, da filosofia bergsoniana. (MEYER, 1948)
O leitor das Notas não se espantará com a relação direta que Meyer faz, no item
“memória”, entre a filosofia de Bergson e a literatura de Proust porque em “Bergson” (logo à
segunda página do caderno) o autor de Prosa dos pagos havia sido o mais claro possível,
chegando a sugerir que a afinidade de pensamento se estreitava à medida que laços afetivos
espécie de cumplicidade e de interação além dos limites do texto aproximavam os dois
escritores.
É evidente a influência do grande filósofo sobre o grande romancista. Em 1889,
Bergson já havia publicado sua tese Les Donnés Immédiates de la Conscience, e foi
então que o conheceu Proust na Sorbona. O casamento de Bergson com uma parenta
de Proust, Mlle. Neuburger, acabou de estreitar-lhe as relações. Como observa Léon
Pierre-Quint, parece que Proust viveu, sentiu, experimentou pessoalmente toda a
psicologia de Bergson. O valor especial atribuído à intuição, o sentido da arte, a
evolução da personalidade, o inconsciente, a análise da memória etc são temas
fundamentais de ambos. (MEYER, 1948)
Meyer volta a relacionar as obras de Proust e de Bergson, desta vez ao apresentar ao
leitor o longo verbete sobre o “Tempo”, principal “personagem” do romance, na opinião do
crítico, e item importantíssimo para a compreensão de suas notas, que, além de Bergson,
Meyer indica preocupações semelhantes na obra de Flaubert e sugere, baseado em estudo de
Curtius, afinidades entre o tempo proustiano e a estruturação dos dramas do compositor
alemão Richard Wagner. Vejamos:
Pode-se considerar o Tempo a principal personagem da obra de Proust, seu tema
essencial, sua substância. Camille Vettard observou que a idéia de tempo ressalta de
modo impressionante na obra do maior filósofo, do maior cientista e do maior
criador de arte, nos primeiros anos do século vinte: Bergson, Einstein e Proust. No
205
seu admirável estudo sobre Flaubert, Proust apontava no mestre de Croisset a mesma
preocupação pela idéia de tempo, sobretudo na Educação sentimental (v. Nouvelle
Revue Française de 1-1-1920: ‘A propos du style de Flaubert’, reproduzido em
Chroniques). O tempo, na obra de Proust, é o fator de dissolução, ao qual se
contrapõe a personalidade, o esforço constante de recuperação por meio da memória
criadora na obra de arte. A procura do tempo perdido, é, portanto, a tentativa de
reconquistar o Eu aparentemente perdido, mas que permanece através do incessante
devir. Na Evolução criadora, ao introduzir o tema da memória, que é o presente a
transformar-se em passado, mostra Bergson em cada estado de alma a ‘durée’ em
progresso contínuo, observa ainda uma vez que tudo é mudança, para afinal
concluir: ‘Se o Eu não mudasse, não poderia durar, e um estado psicológico que se
mantém idêntico a si mesmo, enquanto não for substituído por outro, também não
poderá durar. Na verdade o passado conserva-se por si mesmo...’ Em Du côté de
chez Swann, o motivo dominante da recuperação do tempo perdido, embora ainda
não desenvolvido plenamente, aparece com evidência nas págs. 44 sgs. Sua
insistência no decurso de toda a obra e a íntima conexão com os temas secundários
sugerem certa afinidade com a estrutura wagneriana do drama musical. Só no Temps
Retrouvé, que é um verdadeiro hino dedicado à grandeza e ao poder mágico da arte,
a superação do sofrimento e da morte virá imprimir um sentido supremo à
construção da obra, sentido de nítida espiritualidade platônica, que não escapou à
argúcia de Ernst Robert Curtius (v. Marcel Proust, Traduit de l’Allemand par
Armand Pierhal, ed. de La Revue Nouvelle, 1928). (MEYER, 1948)
94
Alguns itens presentes nas Notas de Augusto Meyer (tais como os supracitados
“associações evocativas” e “tempo”) foram incluídos, com pequenas modificações, no artigo
“Relendo Marcel Proust”, publicado originalmente no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro,
no dia 09 de janeiro de 1949. Um mês depois (06.02.1949), Meyer publicaria, no mesmo
jornal, outro texto sobre o romancista, intitulado “Proust e Bergson”. Posteriormente, estes
dois estudos foram reunidos sob o título geral de “Relendo Marcel Proust” e veiculados na
coletânea Proustiana brasileira (1950, p. 63, 71), passando a ser, respectivamente, as partes I
e II do artigo. Tal procedimento é comum na atividade crítica de Augusto Meyer, conforme
esclarece Tania Carvalhal em O crítico à sombra da estante
95
. O título escolhido (“Relendo
94
Sérgio Buarque de Holanda defende que o tempo interior que Proust conhece é aquele regulado pelo “ritmo da
vida afetiva”, isto é, pelas intermitências do coração: “O tempo que Proust reconhece não é o dos relógios, nem o
dos calendários, nem o das ciências físicas e naturais; não obedece a uma regularidade metódica, mas procura
atender ao próprio ritmo da vida afetiva. A fidelidade a esse ritmo explica-se um pouco pela sua franca aversão a
toda ordem imposta pela vontade dominadora e metrificadora dos homens. A uma ordenação mecânica e abstrata
ele preferiria opor a simples lei da natureza” (HOLANDA, 1950, p. 140). Já Roberto Alvim Corrêa parece
concordar com Meyer o Tempo é, realmente, senão o principal, pelo menos um dos mais fundamentais
“personagens” de sua imensa construção: Proust escreveu mesmo sua obra sob o signo do Tempo, que parecia
perdido, e foi reencontrado graças à memória e à arte. Graças a elas, o tempo se torna o instrumento de nosso
destino, tem o valor que lhe conferem a consciência e a realização de nós mesmos, independentemente do seu
significado cronológico. Assim pode ser ele o fator que, por exemplo, misteriosamente, fez de nós por assim
dizer jovens Matusaléns.” (CORRÊA, 1950, p. 43-4)
95
Referindo-se à composição de À sombra da estante, observa a autora: “O volume de 47 indica também o modo
pelo qual publicou Meyer todos os seus livros: alguns de seus capítulos foram primeiramente redigidos para a
publicação em periódicos para, mais tarde, virem a ser organizados e refundidos na composição da obra”
206
Marcel Proust”) parece seguir à risca o conselho dado pelo próprio Meyer no verbete “método
de leitura”, a respeito da necessidade de recomeçar sempre”, “relendo para tornar a reler”
obra tão complexa e labiríntica.
O início da tradução brasileira da Recherche em 1948 (projeto para o qual Meyer
compôs as Notas) e a publicação da Proustiana brasileira em 1950 dão novo rumo à crítica
sobre Proust no Brasil, que, transcorridos aproximadamente vinte anos da publicação do
roman-fleuve na França, somente nesse momento (meados do século XX) torna-se possível
analisar o romance a partir de uma visão distanciada e imparcial. Tal amadurecimento é
visível nos artigos da coletânea, assinados por intelectuais como Sérgio Buarque de Holanda e
Otto Maria Carpeaux, justamente dois dentre aqueles que mais elogiaram o empreendimento
da Editora Globo
96
.
Voltando ao texto de Meyer, convém sublinhar ainda inúmeros aspectos esboçados nas
crônicas da década de 30 e aprofundados em “Relendo Marcel Proust”. Ao olhar do zaori,
Meyer adiciona a metáfora do “mineiro de lanterna à testa” descendo ao “poço” de si mesmo
como forma de caracterizar a extrema introspecção do autor, insistindo em
(...) lembrar a forte estrutura intelectualista de Proust, sua preocupação bem
tradicional, bem cartesiana, de passar pelo crivo da inteligência as instituições e
penumbras sentimentais que o revestem de um halo vago de mistério, os seus
íntimos crepúsculos e a própria sombra em que anda extraviado por gosto e sina ao
mesmo tempo, mineiro de lanterna afivelada à testa, pronto para descer ao poço de si
mesmo. Há nele quase sempre a hiperlucidez da insônia. (MEYER, 1950, p. 65)
(CARVALHAL, 1976, p. 47-8). A forma de composição do artigo veiculado na Proustiana brasileira seguiu o
mesmo procedimento descrito acima.
96
Para Sérgio, “A iniciativa de publicar-se em boa tradução brasileira a obra mestra de Marcel Proust (...)
representa, sem exagero, um acontecimento extraordinário em nossa literatura” (HOLANDA, 1950, p. 139).
Carpeaux opina que “(...) a iniciativa da editora é qualquer coisa de extraordinário, sendo admirável a coragem
de encarregar-se, nesses tempos de crise, de uma tarefa que serve muito mais à cultura literária do país do que a
fins comerciais; depois, porque a tradução de Mario Quintana é de alta qualidade, digna do original – e isso quer
dizer muito” (CARPEAUX, 1950, p. 109). EmProust mais uma vez”, Tania Carvalhal confirmaria estas
opiniões ao asseverar que “(...) o bom resultado do empreendimento deveu-se à escolha certa dos tradutores.
Mario Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Lúcia Miguel Pereira, Manuel Bandeira estavam todos
habilitados a reconstituir a atmosfera envolvente desta série de romances. Sem intransigências puristas, sem a
preocupação excessiva do mot juste, o único, o insubstituível, ocuparam-se sobretudo em preservar o encanto do
discurso original pela transposição do estilo” (CARVALHAL, 1981). A respeito da dificuldade de se traduzir o
intrincado texto proustiano, leiamos o irônico depoimento de Quintana, reproduzido no sexto volume da coleção
Autores gaúchos: “Uma barbaridade traduzir aqueles períodos que dão volta na esquina e não se sabe onde vão
parar.” (1996, 6 ed, p. 05)
207
Contudo, a principal discussão levada a cabo neste artigo diz respeito à confluência ou
não entre as obras de Proust e de Bergson. Vimos na nota 80 do item 2.3 (p. 94) que Augusto
Meyer, citando o estudo de Floris Dellatre, acredita estar definitivamente provada a
semelhança de temas e amesmo de estilo para ele, aspectos como a introspecção, a durée
como “substância” da realidade e a linguagem (utilização recorrente, em ambos, de termos
como “toute se passe comme si”, entre outros) bastam para comprovar as inúmeras afinidades
entre a Recherche e a filosofia de Bergson. Para Meyer, esta questão está tão claramente
resolvida que o crítico julga estranha a insistência do escritor em negar as confluências,
aventando razões psicológicas para explicar a recusa e invocando, a favor de seu arrazoado, a
própria correspondência de Proust:
Com que direito, pois, assegurava ele [Proust] a Joseph Bois que na obra do filósofo
não constava aquela diferença [entre memória voluntária e involuntária]? Decerto
com o direito de mentir a si mesmo, por um desses impulsos inconscientes de lapso
provocado, a que se refere Freud, impulsos tão repetidos na sua correspondência,
estranha mistura de loquacidade, confidência, amargura, lisonja, mundanismo,
queixume, ironia, onde a dissimulação parece mais profunda que na obra
romanceada. Pela correspondência descobrimos que, se não chegou a ler a Evolução
criadora, conheceu muito bem o seu Bergson através de Les données immédiates de
la conscience e Matière et Mémoire; sem falar na carta a Robert de Montesquiou,
baste a indicação de uma carta endereçada a Georges de Lauris, publicada agora em
A un Ami, Correspondance inédite (ed. Amiot-Dumont, 1948). Com razão dizia
Blondel que Proust não poderia escrever naqueles termos precisos a Montesquiou
sem receber da primeira obra de Bergson uma impressão duradoura e profunda.
Escrita quando do aparecimento de A evolução criadora, a carta a Lauris revela um
conhecimento pleno da obra anterior do filósofo. (...) Na verdade, desde o começo,
Proust aceita a tese bergsoniana da vida interior como tessitura de diferenças
qualitativas, formando uma heterogeneidade irredutível: apresenta a memória,
sempre no estrito sentido bergsoniano, como depositária de toda a nossa experiência
anterior, segundo a teoria do inconsciente do mesmo filósofo (...) (MEYER, 1950, p.
68)
Meyer acredita piamente que a obra de Proust seja “o reflexo da obra de Bergson, pelo
menos quanto a dois temas fundamentais: a memória espontânea e a duração” (1950, p. 68-9).
Seu ponto de vista é compartilhado por vários outros críticos arrolados na antologia
97
. Gastão
97
Para Henrique Maron, O tempo proustiano é idêntico ao tempo criado pelo intuicionismo de Henri Bergson.
É um tempo vivo; não tem espaço, não tem medida, não tem grandeza. Foi neste tempo que Proust fixou o
espaço de seu mundo... para fecundar a sua triste filosofia vegetal” (“Marcel Proust Um físico do
subconsciente”, Proustiana brasileira, 1950, p. 185). Alcântara Silveira, por sua vez, sintetiza o contraponto
entre tempo “oficial” e tempo “bergsoniano” ao observar que “Proust foi o primeiro a introduzir na ficção o
conceito de tempo revelado por Bergson, isto é: a duração interior que faz com que um minuto de tristeza custe
uma hora a passar, enquanto uma hora de alegria voe num minuto. Ao lado do tempo oficial, marcado pelo
208
de Holanda, por exemplo, afirma que não apenas Proust, mas toda a sua geração se
encontrava sob a égide do bergsonismo:
A sua geração estava impregnada de uma filosofia da duração, a filosofia
bergsoniana, ‘cuja ação em profundidade foi considerável.’ Uma geração precipitada
na inquietude e na revolução: ‘Précipitée dans une durée nouvelle, il était naturel
que la génération de 1914 fut précipitée dans un roman nouveau.’ [Thibaudet] (...)
Este novo romance é o de Proust cuja duração dilui-se ou condensa-se como a
filosofia de Bergson. Como este aproximava-se da metafísica tradicional, o
romancista estava ligado ao romance tradicional francês, divergindo em alguns
pontos (...). A duração, em Proust enriquece-se e dilata-se. Através dela penetra o
interior das coisas e ‘coincide’ com elas o que significa diz Penido (...) no seu
Dieu dans le bergsonisme apanhar o espírito com o espírito, atingir a matéria
materialmente. O conhecimento de Proust, sob esse ponto de vista, é também
dinâmico e intuitivo. A duração na Comédia Proustiana tem o mesmo sentido
bergsoniano, ou seja ‘o estofo do nosso ser e de todas as coisas’, em profundidade,
em direção ao que há de mais obscuro e imprevisto no homem. Duração de natureza
psicológica, densa, no plano da memória, talvez ilimitada pelo tempo perdido e pelo
tempo recuperado. (HOLANDA, “Introdução a um estudo sobre Marcel Proust”,
Proustiana brasileira, 1950, p. 161)
Roberto Alvim Corrêa, em “O vigésimo aniversário da morte de Proust”, também
associa, assim como Augusto Meyer, a obra de Proust à de Bergson e à de Freud, destacando
que o romancista francês
(...) renovou grande parte da psicologia contemporânea, como se diz de Bergson e de
Freud, ao lado dos quais é freqüentemente citado. Como o primeiro, salientou a
importância da intuição divinatória, e como o segundo, denunciou o papel
fundamental do subconsciente na vida psicológica. Mas aqui, como em tudo por
onde passou, prosseguiu sozinho, além dos outros. O que Proust descobriu é a
realidade das nossas contradições, assim como tudo que há de imprevisível em
nossas reações, as quais são tantas vezes o contrário do que pensávamos que seriam.
(CORRÊA, Proustiana brasileira, 1950, p. 48)
98
para Otto Maria Carpeaux, o “racionalista” Proust sempre esteve mais próximo de
Freud do que do autor de Matière et mémoire:
Já existe bibliografia considerável sobre as relações entre a obra de Proust e a
filosofia de Bergson. O próprio romancista negava essas relações; e também nos
parece que a psicologia de Proust está mais perto do associacionismo psicológico do
século XIX do que se admite. Antes de tudo, Bergson é irracionalista (por isso a
relógio, corre sempre o outro e assim quando V. combina um encontro com uma mulher a referência é feita ao
tempo oficial, mas quando – fluídos cinco minutos depois da hora marcada – ela não aparece, V. está
mergulhado no tempo bergsoniano, isto é: os minutos de espera dão-lhe a impressão de estar naquele lugar
horas...” (1950, p. 136). Lembremos, porém, que para Poulet nada é mais falso do que relacionar a durée
bergsoniana, “contínua”, à proustiana, “pluralidade de momentos isolados”. (v. 3.2, p. 185-6)
98
Dentre os críticos contemporâneos, Tania Carvalhal pode ser citada em meio àqueles que identificam
confluências entre os pensamentos de Bergson e de Proust, pois a autora afirma que, “(...) na linhagem da
filosofia de Bergson, a narrativa proustiana intenta recuperar o passado, liberando-o do caráter de tempo morto e
esquecido, encerrado nos limites da cronologia, para convertê-lo num possível resgatável que se atualiza e
sentido ao presente. Por isso a obra constitui no seu todo uma procura do tempo perdido que se realiza pela
memória, único veículo capaz de reconquistar o que já passou, fragmentos adormecidos que se ligam
indissoluvelmente ao presente.” (CARVALHAL, “Proust mais uma vez”, 1981; grifo da autora)
209
Igreja o condenou) enquanto Proust se esforça em fazer subir para o nível dos
movimentos psíquicos controláveis e dirigíveis os elementos do rio das associações.
Esse esforço aproxima-o do racionalista Freud – mas os motivos do romancista
francês são diferentes. Não quer abolir a regressão: quer mesmo regredir. Não
pretende apresentar uma análise mas sim uma síntese, uma obra de arte. Atrás do seu
esforço analítico à maneira dos intuitos mais seculonovecentistas’ do século XX
esconde-se a intenção artística de ‘tempos perdidos’. (CARPEAUX, “Lição de
Proust”, Proustiana brasileira, 1950, p. 111)
Sérgio Buarque de Holanda também não concorda com a aproximação entre Proust e
Bergson mencionando a circunstância biográfica comentada por Meyer em suas Notas, ao
discutir o papel da imaginação na Recherche, o autor de Raízes do Brasil assegura que a obra
de Marcel Proust (sobretudo o último volume, Le temps retrouvé) vincula-se a preocupações
estéticas e não filosóficas:
Pareceu a muitos lícito relacionar esse anti-mecanismo ou anti-intelectualismo, além
da noção de tempo estreitamente dependente dele, a determinadas doutrinas
filosóficas que andaram em moda quando Proust preparava seu romance. A
possibilidade mesmo de uma influência direta de tais doutrinas sobre o romancista
era singularmente reforçada, no caso, por uma circunstância que o sr. Augusto
Meyer não deixa de evocar nas notas que acompanham esta edição portuguesa: as
relações pessoais entre Proust e Bergson, e o casamento deste com uma parenta do
primeiro. (...) A aproximação com o bergsonismo tornou-se aliás motivo obrigatório
nos estudos críticos sobre Em Busca do Tempo Perdido. E não faltou, além disso,
quem notasse o fato de Proust ter tido como mestre, no liceu Condorcet, o filósofo
Darlu, que com seu criticismo metafísico e seu idealismo, teria contribuído para
estimular no discípulo reflexões pessoais acerca do problema do tempo. (...) Por
mais plausíveis, entretanto, que sejam estas aproximações, a verdade é que nos
conduzem, quando muito, a uma apreciação truncada e falsa. No último volume, as
experiências sucessivamente expressas ao longo de toda a obra de Proust irão
culminar na noção de uma realidade transcendente e intemporal, que unifica e, em
verdade, determina todos aqueles momentos únicos e aparentemente mal articulados
entre si. Sua visão final pertence ao domínio da imaginação estética, não ao da
especulação filosófica. (HOLANDA, “Tempo e verdade”, Proustiana brasileira,
1950, p. 141)
99
Da mesma forma que os críticos estrangeiros, os teóricos brasileiros também
exploraram, nos textos acerca de Proust, confluências entre este e vários outros escritores de
renome. Gastão de Holanda viu em Proust o “filósofo do cotidiano”, à semelhança do
99
Em 1983, no esclarecedor e iconoclasta Marcel Proust As intermitências do coração, José Maria Cançado,
em linguagem experimental e cheia de neologismos, introduz o leitor pouco afeito ao universo proustiano à vida
e à obra do romancista. Quanto ao bergsonismo de Proust, o crítico segue o raciocínio de Carpeaux e de Sérgio
Buarque, julgando que o autor da Recherche passou ao largo das teorias do filósofo: “Marcel não parece dar
importância maior ao filósofo da duração concreta, apesar da tendência quase unânime em ver na Recherche
uma espécie de equacionamento romanesco do pensamento e dos conceitos de Bergson. Mesmo muito tempo
depois, numa carta datada de 1910 (a Recherche começara a ser escrita), Proust não demonstrará haver
percebido sequer as angulações mais características da filosofia bergsoniana.” (CANÇADO, 1983, p. 38)
210
atormentado Kafka
100
. Otto Maria Carpeaux julga-o mais próximo de Henry James do que de
James Joyce
101
. E Roberto Alvim Corrêa acredita que Proust superou os legados deixados por
Molière e por Balzac
102
. A associação mais representativa, no entanto, veiculada na
Proustiana brasileira, é a que Octacílio Alecrim realiza em “Raízes de Proust” entre o autor
da Recherche e Flaubert. O crítico argumenta que o escritor realista já se utilizara, em
Madame Bovary, do expediente da recordação involuntária, tendo com isso contribuído para a
consolidação definitiva do tema em A la recherche du temps perdu, conforme referido em
item anterior (v. 2.2, p. 86, nota 67). Às páginas 59 e 60, indaga Alecrim, insinuando a
existência de um Proust “flaubertiano”:
Retomando, desenvolvendo e apurando la manière de Flaubert, segundo o conselho
de Brunetière aos romancistas franceses, não teria Proust feito isso mesmo, fazendo
seu em teoria e em prática o processo flaubertiano, a ponto de recriá-lo tão
maravilhosamente nos seus conhecidos afrescos de recordações inconscientes e
afetivas como, por exemplo, La Tasse de Thé, Les Clochers de Martinville, L’Odeur
de Moisi, Les Trois Arbres, Les Aubépines, La Serviette, La Cuillère contre
l’Assiette, Les Pavés Inégaux, Les Intermittences du Coeur e La ‘Petit phrase’ de
Vinteuil? (ALECRIM, 1950, p. 59-60; grifo do autor)
Na página seguinte, assevera ainda, ressaltando a importância dos sentidos em ambas as
obras:
100
“A filosofia da duração, criada por Bergson, arejou o trabalho do romancista francês. E sem ser um escritor de
tese, Proust é de certo modo um filósofo. Sem querer forçar uma comparação, um filósofo do cotidiano, à
maneira de Kafka, mas sem exprimir o absurdo pela lógica. Proust fica com a lógica e com o cotidiano. Ele e
Franz Kafka são contemporâneos de uma geração empapada de inquietude. Ambos têm uma riqueza clássica no
desenvolvimento e na variação dos seus temas, que poderiam ser desdobrados ao infinito sem sair do limite da
compreensão humana.” (HOLANDA, 1950, p. 160-1)
101
“Proust não é tradicionalista. Não é realista. Não ‘imita’ a realidade. ‘Imita seu sonho, fixando os
movimentos conscientes e subconscientes do seu ‘rio psíquico’. Este método já foi tantas vezes comparado com
o de Joyce que a dupla ‘Proust e Joyce’ virou clichê na boca de muitos críticos, particularmente de alguns que
nem leram Proust nem Joyce. Demonstrar a diversidade e incomparabilidade radical entre Proust e Joyce talvez
seja um dos caminhos mais seguros para se aproximar à compreensão dos dois; ‘but that is another story’. Na
verdade, Proust parece-se muito mais com Henry James, cronista novelístico de sociedades semelhantes e
inventor de uma técnica perspectiva da qual Conrad tirará as últimas conclusões. Proust ignorava as
preocupações morais do grande escritor anglo-polonês; em compensação ele, o francês, é mais sistemático do
que o americano; à base da sua obra encontra-se um verdadeiro sistema de psicologia. E esta acham muitos
seria a lição de Proust.” (CARPEAUX, 1950, p. 110-1)
102
“(...) se Proust vivesse, não há dúvida que teria continuado a escrever, ampliando talvez o campo de
observação de sua comédia humana, na qual Molière e Balzac teriam reconhecido a obra não só de um
continuador digno deles, mas também de um precursor. Como eles, Proust estudou os costumes e os caracteres;
mas foi além deles. Desceu mais fundo. E é mais complexo. Nele se combinam pelo menos duas correntes
literárias: uma que parte de Molière, passa por Balzac e Flaubert, feita da observação de seu próximo, e outra
que parte de Montaigne e leva a Amiel, introspectiva” (CORRÊA, 1950, p. 47). Henrique Maron também coteja
ambos a Proust: “A exemplo de Molière, [Proust] escrutava tipos anômalos. Era um contemplador. A exemplo
211
Num e noutro, Flaubert e Proust, documentamos que as ressurreições inconscientes
não valem somente como fatos psicológicos, vivem a mesma trama da sensação e do
sentimento, são capazes de produzir estados de realidade viva, irradiam mensagens
da vida interior, o odor, o som, o objeto, o trecho de paisagem, o reflexo da luz, uma
viatura, a cor, tudo é motivo para o acaso transformar em intermitências do coração.
(ALECRIM, 1950, p. 61)
103
A divergência entre memória voluntária e involuntária e a espetacular exploração desta
na obra-prima de Proust não poderiam ter passado despercebidas pelo leitor brasileiro: além
de Octacílio Alecrim, que aproxima Flaubert e Proust a partir das evocações espontâneas dos
personagens Emma e Marcel, Roberto Alvim Corrêa também julga que a memória
involuntária esteja na “base da arte de Proust”, e valoriza o incidente, a “aventura poética” a
“despertar” a “mola”, o gatilho da lembrança:
É uma grande parte da aventura poética que ele [Proust] ajudou a entender quando
ele próprio percebeu que carregamos em nós, anos inteiros, muita coisa de nós
ignorada e que, de repente, no momento menos esperado, sobe à tona, nem sempre
por emoção violenta, mas em virtude de um acidente que, embora mínimo, desperta
em nós aquela misteriosa mola da memória involuntária. Pois o papel desta é
preponderante, se bem que dependente do fator tempo, imponderavelmente ativo
mas capital por constituir com esses mesmos fenômenos de memória,
especialmente quando manifestam a espontaneidade do movimento mnemônico a
base da arte de Proust, fazendo assim com que fosses aproveitados, entre tantos
outros, por exemplo, aqueles dias da sua mocidade que pareciam perdidos para
sempre. (CORRÊA, 1950, p. 49)
Se a aventura é “poética”, por que não chamar, portanto, de “poética” a memória
“acidental”, involuntária, como faz Alcântara Silveira, em oposição à memória “lógica”,
voluntária, cartesiana:
de Balzac, fundamentava o seu plano psicológico no senso artístico, que tem a força de submeter as coisas à
realidade interior.” (1950, p. 173)
103
Vimos há pouco, no verbete “Tempo” das Notas de Meyer (p. 204-5), que Proust estudara o estilo de Flaubert
dando destaque à questão temporal em Madame Bovary. Em “Proust, vida e obra” (Correio da Manhã,
19.11.1966, também publicado em Os pêssegos verdes, 2002), Augusto Meyer comenta que “Proust, que
escreveu páginas tão penetrantes sobre a importância do imperfeito narrativo em Flaubert, teria as suas razões
para dar começo à longa aventura do seu grande livro com o passado composto” (MEYER, 2002, p. 35-6).
Outros estudiosos da obra de Proust perceberam afinidades entre os dois grandes romancistas, como por exemplo
José Maria Cançado (“Como Flaubert, gigante, também sempre a um passo do extenuamento completo, e que vai
buscar seu fôlego e as histórias de abnegação, sacrifício e virtude dos Trois Contes na figura de uma doméstica
que conheceu na infância (a Felicité de Un Coeur Simple), na lenda popular de São Julião, tal como a viu inscrita
nos vitrais da catedral de Rouen, e na história de Herodias gravada no mpano do portal sul desta catedral,
Marcel Proust foi buscar nos bons franceses de Saint André-des-Champs os seus heróis. São eles o sopro e os
sujeitos vivos de toda a Recherche”, 1983, p. 10-1. Ver também: Proust aprende com Flaubert, gigante, que os
grandes livros são escritos numa língua estranha. Enfim, uma moral do escritor. Não mais o charme e a graça
ligeiros do homme des lettres do século XIX, mas o encanto radical do criador”, 1983, p. 54-5) e Aguinaldo Jo
Gonçalves (“Resta-nos ainda tocar nas influências de Baudelaire e Flaubert na obra de Proust. No caso deste
último, quero apenas dizer que se trata de uma influência profusa no recorte da frase, nos malabarismos
212
Memória que se pode chamar poética (em contraposição à outra, que seria lógica) e
que não funciona segundo as leis da razão, mas movida pela sensibilidade
complacente à sua excitação. (...) A ela memória “poética”] devemos o poder de
reviver o que passou e que permanece ocultamente vivendo num objeto, num som,
num perfume, num sabor. Por ela encontramos o tempo que parecia perdido e o
passado se transforma instantaneamente no presente, no momento em que para
citar No caminho de Swann o pedaço de ‘madalena’ molhado no chá entra em
contato com o céu da boca do personagem proustiano. (SILVEIRA, 1950, p. 137)
Nos anos seguintes, toda a crítica proustiana brasileira (Aguinaldo José Gonçalves, José
Maria Cançado, Philippe Willemart, como veremos) faria menção e analisaria o episódio
capital da memória involuntária na Recherche, a “bolacha no chá quenteda rememoração
majestosa de Marcel. Na tese “Da técnica do romance em Marcel Proust” (com a qual
concorrera e se classificara em primeiro lugar, em fins de 1951, à cátedra de Literatura do
Colégio Pedro II), Alvaro Lins destaca, no autor, “(...) o poder emocional de fazer renascer a
lembrança de alguma coisa acontecida no passado, e cujo ressurgimento transporta o Narrador
a um estado de exaltação e plenitude” (1956, p. 26-7), além da
(...) intenção calculada com o objetivo de criar a sua lei psicológica sobre o valor
quase exclusivo da memória involuntária para recriação do passado e sobre a
conceituação da realidade como uma relação entre sensações e lembranças que nos
envolvem simultaneamente, tudo se enquadrando na linha do que fôra revelado e
enunciado acerca da correspondência entre os distúrbios da memória e as
intermitências do coração. (LINS, 1956, p. 26; grifo do autor)
104
Tania Franco Carvalhal, em “Proust mais uma vez”, acentua a importância da evocação
involuntária para a reconstituição da infância de um narrador que
(...) reconstrói um mundo que lhe ocorre aos pedaços; são porções de vida que
emergem de súbito, ao acaso de determinadas sensações. Junto com os fatos
evocados de maneira voluntária, surgem aqueles que sobrevêm involuntariamente.
São lembranças que não foram buscadas diretamente mas que jaziam no
inconsciente, como se estivessem ‘encantadas’, aguardando apenas a ocasião de
reviver. (...) Um pedaço de bolo (a madeleine) mergulhado no chá ao ser consumido
nos transporta, pelo gosto, a Combray e à infância do narrador; a visão de três
árvores juntas nos levam a Balbec; o desenho florido de um papel de parede evoca
sintáticos de natureza microestrutural que não se presta a uma abordagem passageira, sob pena de total
malogro”, 1988, p. 23), em textos a serem comentados a seguir.
104
A tese de Alvaro Lins foi publicada pela Livraria José Olympio Editora, em 1956, com o título de A técnica
do romance em Marcel Proust. Em Viagem no tempo e no espaço (Memórias), Cassiano Ricardo, um dos
examinadores presentes na Banca do concurso do Colégio Pedro II, tece o seguinte comentário, elogiando o
estudo de Lins: “Louvei-lhe a agudeza das observações sobre ‘memória involuntária’; ‘intermitências do
coração’, a descrição do ciúme de Swann e a minúcia infinitesimal, haurida em Ruskin, com que o autor de A la
Recherche du Temps Perdu fazia a descrição relativa a Combray e às flores que o narrador vai encontrando nas
aléias, passeando com os seus pais pelos caminhos e arredores da localidade. Me pareceu da maior importância,
também, a renovação da técnica que inaugurava o romance do século XX, em relação ao de Balzac, do século
XIX.” (RICARDO, 1970, p. 232)
213
um dos inúmeros quartos recriados ao longo dos textos. O mundo proustiano é um
território de sensações onde o caráter devorador do Tempo, diluidor também da
personalidade, subsiste como ameaça. (CARVALHAL, 1981)
Apesar de estar a concepção da Recherche mais voltada ao “domínio” da realização
estética do que ao da “especulação filosófica”, característica que aproxima Proust mais de
ficcionistas como Balzac, Flaubert ou Kafka do que de filósofos como Pascal ou Nietzsche,
nem por isso os críticos deixaram de perceber várias afinidades entre a obra de Proust e certos
conceitos veiculados por alguns dos mais paradigmáticos pensadores, a começar por Platão,
de quem, segundo Otto Maria Carpeaux, Proust (mesmo tendo tentado se refugiar, por um
tempo, na superficialidade do mundanismo) incorporara a anamnese das idéias”,
reconfigurando-as conforme o ambiente intelectual e racionalista do restrito círculo cultural
parisiense do fim do século XIX:
Marcel Proust, filho da alta burguesia parisiense, mimado nos salões, cronista
mundano e tradutor de esteticismos de Ruskin, passou depois a maior parte da vida
enclausurado em quarto escuro, fixando com paciência beneditina as lembranças
dificilmente evocadas do ‘tempo perdido’, recolhendo com verdadeira avidez
informações de amigos sobre chapéus de senhoras, cardápios de banquetes e
conversas sem sal para completar o que o sonho e as associações psicológicas lhe
inspiraram. Assim um discípulo da Academia de Platão livrar-se-ia ao trabalho
introspectivo de ‘lembrar-se’, da anamnese das Idéias, não desdenhando porém a
beleza do aspecto exterior das coisas. Assim esse platônico parisiense da ‘fin du
siècle’ construiu seu Reino das Idéias, muito particular aliás porque é o espelho da
sociedade francesa, sobretudo da alta sociedade, depois de 1890, depois de 1900,
nos tempos em que a Terceira República venceu definitivamente através da ‘affaire
Dreyfus’, caindo a velha aristocracia e subindo a nova burguesia, também
contaminada pelos germes da decadência. (CARPEAUX, 1950, p. 110)
Ao associar a “anamnese proustiana” à “anamnese platônica”, Otto Maria Carpeaux
mostras de valorizar, mais do que as recordações involuntárias, o trabalho intelectual de
reelaboração do passado efetuado por Proust (especulações comuns ao “reino das idéias”), já
que as manifestações da memória involuntária são afins à mneme proposta por Platão (mera
retenção de impressões), ao passo que o conceito de anamnesis envolve rememoração
gradativa e busca voluntária. Além disso, as “repetições” proustianas sugerem a Carpeaux
algo da filosofia do teólogo dinamarquês Soren Aabye Kierkegaard:
Ainda uma observação, quanto ao processo de ‘abstração’ em Proust: está em
relações íntimas com o processo da anamnese platônica, que é o assunto de A la
recherche du temps perdu. A anamnese proustiana, por sua vez, tem algo da
214
‘repetição’ que desempenha tão grande papel na filosofia de Kierkegaard: as
associações do romancista e a ‘repetição’ do filósofo cristão são dois caminhos
paralelos para o paraíso perdido. Durante esse caminho elimina-se a fazenda’, tudo
o que não é essencial. A sátira social de Proust, assim como Edmund Wilson a
caracterizou, é um instrumento de abstração platônica, para chegar-se às essências.
O resto está condenado a perecer; já está perecendo. (CARPEAUX, 1950, p. 114)
Santo Agostinho é, ao lado de Platão, o filósofo mais citado pela crítica proustiana em
geral. Eustáquio Duarte julga que os impulsos responsáveis pela concepção e pela redação da
Recherche sejam bem semelhantes àqueles que motivaram as Confissões do pensador cristão:
O impulso incontido de gritar para todo mundo os seus desvios, as suas fraquezas e
as suas misérias; de mostrar-se pela outra face, a interior, da personalidade; impulso
que foi o do piedoso Agostinho, que foi o de Rousseau e de quantos neuróticos de
gênio esse ímpeto, sentiu-o Marcel Proust criando a sua obra: a mais minuciosa e
profunda das auto-análises de um espírito ávido e insaciado, submerso em
implacável contemplação de si mesmo. Consciente dessa crueldade mental que se
experimentava, fez-se Proust por libertar-se, completando-se nas imagens que
animou, e com as quais encetaria o grande itinerário em busca do tempo perdido.
(DUARTE, 1950, p. 124)
Estudamos no item 2.1 (p. 36, nota 9) que Paul Ricoeur afirma ter Santo Agostinho
inaugurado a “tradição do olhar interior” na cultura ocidental a partir da “experiência cristã da
conversão”, particularidade que, fazendo-o voltar-se para a auto-análise, o teria motivado a
redigir as suas Confissões. Santo Agostinho é, portanto, o “pai espiritual” de toda uma legião
de introspectivos, de autores que, como ele, fizeram de si mesmos a “matéria de sua obra”
105
.
Continuador da tradição de Santo Agostinho e de Montaigne, Proust possuía a introversão
mas não a “luz interior” do santo, conforme comenta Gastão de Holanda ao citar a opinião de
Jacques Maritain, “deficiência” plenamente justificável, aos olhos de Gastão, se consideradas
as misérias características da alma do homem moderno:
E [Jacques Maritain] diz ainda que ‘para escrever a obra de um Proust como ela
exigia ser escrita teria sido necessária a luz interior de um Santo Agostinho’. É
verdade que o romance moderno, em relação às virtudes humanas, exige, mais do
que qualquer outro, virtudes que estão acima da natureza contingente. É verdade
também que o romance moderno está muito mais impregnado de miséria, de
realismo, de tortura e de angústia do que quase todos os que antecederam aos de
Balzac. (A tortura de um D. Quixote seria uma tortura romântica, além de idealista e
de um cristianismo à flor da pele). Suponho que os romances mais antigos não estão
tão ligados aos problemas da alma humana. (HOLANDA, 1950, p. 155)
105
A expressão é de Montaigne, que, na advertência “Do autor ao leitorpresente em seus Ensaios, justifica
ironicamente: “Assim, leitor, sou eu mesmo a matéria deste livro, o que será talvez razão suficiente para que não
empregues teus lazeres em assunto tão fútil e de tão mínima importância.” (MONTAIGNE, Ensaios (Livro I), Os
Pensadores, 4 ed, São Paulo, Nova Cultural, 1987, v. 1, p. 07)
215
Argumentando que, na representação literária, a verdade artística é mais fundamental
que a verdade religiosa, Gastão de Holanda demonstra porque Proust não precisou dispor da
“iluminação” do santo para realizar satisfatoriamente seu projeto.
Foi também contra a falsidade do assunto que o romance moderno procurou reagir,
contra os tipos ideais, contra os substantivos abstratos. A reação de Proust é das
mais importantes, embora ele não estivesse, cristãmente, à altura do seu assunto.
Mas artisticamente estava. Porque mais importante para o artista do que a verdade
religiosa é a verdade artística, que se mantém num plano de incontestável
independência. Ela supera todas essas coisas e o próprio assunto. Por isso é que
Proust se encontrava à altura de A la recherche du temps perdu, sem precisar da luz
interior de um Santo Agostinho para escrevê-la. (HOLANDA, 1950, p. 156)
“Verdade artística” que o ajuda a recriar o passado e trazê-lo para o presente ideal. A
ressignificação da infância de Marcel e a recriação de lugares como Combray e Balbec
somente poderiam ter saído da pena de um escritor terrivelmente introspectivo, cujo mergulho
no passado, nos confins da memória, nas recordações mais inusitadas e catárticas, nos
demônios da culpa e do arrependimento, enfim, no próprio inconsciente, o levariam a
conhecer os desvios, as misérias e as riquezas da personalidade humana, nossos dramas e
nossas atitudes mesquinhas, vendo, zaori que era, com olhos que, como máquinas de raios X,
enxergam a doença, a ferida, a chaga aberta, o segredo mais escondido, o seu e o dos outros.
A identificação de Meyer do introvertido zaori que em Proust enceta novos estudos, como
o de Eustáquio Duarte, A neurose de Proust”, excelente análise da reclusão, da neurose e da
introspecção do romancista que, como Machado de Assis (que conheceu a fundo diversas
culturas sem nunca ter saído do estado do Rio), como o “homem subterrâneo” de Dostoiévski
ou como o anti-herói de Xavier de Maistre que empreende a sua “viagem ao redor do quarto”,
cria um novo universo praticamente sem contato algum com o mundo exterior, trancafiado em
seu quarto contaminado por suas próprias sufocações, ou, como prefere dizer Eustáquio,
“fechado em sua ‘arca’ em circunstâncias mais atrozes” que as de Noé
106
. O resultado é a
106
Alcântara Silveira tem razão quando afirma que “(...) o quarto de Proust tinha algo de caverna de alquimista,
os aparelhos fumigatórios semelhando retortas e provetas, no leito o feiticeiro escrevendo, escrevendo sempre
suas fórmulas mágicas.” (SILVEIRA, 1950, p. 135)
216
análise impiedosa dos fatos e da natureza humana a partir do olhar penetrante do zaori, que
volta do poço de si trazendo verdades profundas, “sagradas” e “profanas”:
Jamais um psicólogo cuidara da análise dos impulsos através de uma soma tão
complexa de observações e de fatos, onde as paixões humanas chegam a decompor-
se numa multiplicidade de nuances até então inatingidas. (DUARTE, 1950, p. 118)
Assim como Meyer, que relaciona, como veremos, Proust, Machado e Pirandello (“Os
três primos”, Preto & Branco, 1956), Eustáquio Duarte também acredita que Proust pertença
a uma “família” de “neuróticos” responsáveis pela produção de complexa “literatura
psicológica”:
O prazer, a quase mania da análise minuciosa, de estudo meticuloso das atitudes,
inclinações e comportamentos humanos, tem sido uma característica dos auto-
analistas, dos intimistas, dos grandes neuróticos da inteligência. A paixão de
esmiuçar o interior, o desejo irrefreável de imprimir ou fixar temperamentos, o sabor
descritivo das situações e das reações ao choque dos impulsos e dos sentimentos,
resultaram em Proust, como em muitos outros portadores de idêntica neurose
voltados para a literatura psicológica (Saint-Simon, Stendhal, Rémy de Gourmont,
André Gide), do sensualismo exagerado e nunca satisfeito. (DUARTE, 1950, p.
119)
107
Todavia, ambos, Augusto Meyer e Eustáquio Duarte, sabem também que o
introspectivo Proust não é o monstro cerebral” ou “neurótico” capaz de reconstituir toda sua
existência anterior através unicamente dos recursos da inteligência, mas sim aquele que
permite que seu passado venha à tona por intermédio de apelos sensoriais involuntários e
ocasionais, pouco “cartesianos”:
Tornou-se ele uma dessas raras formações mentais onde o poder de reflexão se faz
tantas vezes nulo para ceder à exaltação das emoções soltas, resultantes de reações
sensoriais puras olfativas, gustativas, auditivas reações que seriam na
composição de sua obra, as trilhas do longo caminho encetado em busca do tempo
perdido. (...) A singular sensibilidade dessa singularíssima forma mentis dotaria o
novelista de prodigioso poder de captação daquilo que registrou no Temps retrouvé
107
Notar a semelhança entre a forma que Eustáquio Duarte utiliza para se referir a Proust (“O prazer, a quase
mania da análise minuciosa, de estudo meticuloso das atitudes (...)”) e as considerações que Meyer fizera, em
1935, no ensaio “O homem subterrâneo”, sobre o niilismo e a introspecção de Machado: “A impotência
sentimental do sarcasta, por uma fatalidade da compensação afetiva, produz uma violenta paixão de análise.
Quando o monstro cerebral descobre o ‘mundo da lua’ que na própria cabeça, se estabelece por e não quer
outra vida. A sua paixão tem a monotonia mas também a sedução acre de um vício, pois o espírito então se
masturba com uma espécie de volúpia incestuosa” (MEYER, Machado de Assis, 2 ed, 1952, p. 17). Duarte
parece asr
217
como ‘um pouco de tempo em estado puro’. Este dom mediúnico de espelhar-se no
ontem através de simples sensações, sem contudo escapar à evidência do hoje,
levaria Proust ao reencontro com fases recuadas de sua própria existência. (...) Essa
anomalia da memória, provocando fusão no tempo ao reativo de sensações, encheria
de beleza e magia as páginas da Recherche. O cheiro de uma planta silvestre; a
projeção de um sabor, como o das fatias de bolo molhadas no chá; a marca auditiva
de um leve ruído, como o de passos sem eco na areia de um passeio, ou de um som,
como os que voam dos campanários; todo um ‘maquinismo sensível’ reconduziria
Proust àquelas fases perdidas da sua vida, para a procura das quais, como chegou a
confessar, todos os esforços de recuperação de sua inteligência fracassavam sempre.
(DUARTE, 1950, p. 121-2)
Henrique Maron também estabelece analogia entre as redentoras ocorrências
propiciadas pelos sentidos e a profunda penetração espiritual que Proust atingira ao rasgar o
“véu” das abstrações do inconsciente:
Proust foi um espírito como outro qualquer, mas um espírito cuja penetração fez
com que se rasgasse o véu do subconsciente. Um homem que acordou para o mundo
pretérito olhando um bolo flutuar na redondeza de uma chávena. E, por ele ter em
seu líquido mergulhado com o peso da memória, afogou-se sem volver à tona,
legando para o futuro uma memória revivida nos contrafortes do ser. E não é sem
um pouco de tristeza que podemos repetir com Montaigne: ‘Chaque homme porte la
forme entière de l’humaine condition.’ (...) Ao achar o tempo perdido, Ele partia
para o cerne daquelas árvores frondosas, com intensa agonia de nirvana, que o fizera
gemer longos anos, imóvel, num amplo dinamismo de memória redentora.
(MARON, 1950, p. 197)
É característico, no caso de Proust e de outros “monstros” da introspecção, que, ao
“vício” da análise psicológica, corresponda alguma irregularidade orgânica (tais como a asma
que o acometera ainda criança, ou a epilepsia que atormentava Dostoiévski, Flaubert e
Machado de Assis), como se para ter acesso às “feridas” da alma fosse necessário também ter
contato direto com as anomalias e imperfeições do corpo físico, mecanismo pendular de
autodefesa e de auto compensação que faz com que um espírito, limitado fisicamente, possa
expandir-se infinitamente do ponto de vista psicológico, comprazendo-se na
autocontemplação narcísica:
O doente inaudito! Longos anos, dias e horas de crises de angústia, de asfixia na
penumbra de um quarto, sob a ação tóxica, brutal, de anti-espasmódicos e
hipnóticos; longas horas, dias e anos de tentativa de viver, de incrível esforço de
vitalização pela imaginação; sempre sonolento, nunca bem dormido pelo hábito de
ansiar, nem mesmo nos raros instantes de euforia respiratória; experimentaria Proust
a freqüência de um estágio cerebral ondeante entre a vigília e o sono, no qual não se
distingue bem a fantasia da realidade. Em tal atmosfera entremeada de sonhos e
fatos, seriam possíveis ao obstinado narrador àquelas fantastiques variations sur la
mesure extensible du temps.’ (DUARTE, 1950, p. 123)
218
Alcântara Silveira resume, de maneira invejável, o fato de que em Proust a “prisãodo
corpo correspondia à “liberdade” da criação espiritual, observando que no romancista “A
doença tomou conta do corpo, segregou-o dos outros, porém quanto mais o mortificava e o
aprisionava, mais livre deixou o espírito e a inteligência” (SILVEIRA, 1950, p. 130). Para o
crítico, o “tempo perdido” nos salões da aristocracia parisiense não foi absolutamente em vão,
tendo servido como experiência imprescindível para que um dia o mágico criador, a fim de
reencontrar o próprio Eu imerso no “tempo puro”, se trancasse em seu “laboratório”
fumegante de zaori entregue ao prazer masoquista de expor perenes tragédias e efêmeras
alegrias típicas da cômica existência humana:
O tempo desperdiçado na preguiça, na dissipação dos prazeres, porém, não tinha
sido em vão. Durante todo ele, notas e mais notas foram tomadas pelo romancista,
enquanto observava o gesto dos homens e os sentimentos das mulheres homens e
mulheres não do ‘grand-monde’, como empregados e domésticos com aqueles
olhos negros e brilhantes, as pálpebras pesadas caindo um pouco de lado,
envolvendo seu olhar numa doçura extrema. (SILVEIRA, 1950, p. 130)
O autor da “Carta ao novo leitor de Proust” não somente relaciona introspecção e
doença física (combinação peculiar a franquear ao escritor as portas do conhecimento
profundo do homem) como credita a esta o mérito de ter contribuído decisivamente para a
mudança do estilo do autor
108
, e, mais do que isso, de ser responsável por tê-lo feito se dedicar
à redação da Recherche com tamanha exclusividade e determinação que justificasse vida tão
reclusa, tanto mais reclusa e misteriosa quanto a doença o aproximava da morte:
E o romancista tanto trabalhou em sua obra que esta, afinal, voltando-se contra ele,
consumiu-o e extinguiu-o. Proust foi um criador devorado pela criação. Esta ajudara
a doença a matá-lo. Graças rendemos a esta doença: não fosse ela não teríamos hoje
Em busca do tempo perdido um romance que somente na solidão poderia ser
escrito e o romancista teria se multiplicado numa vintena de livros desiguais e
talvez sem importância, como figura repetida em estilhaços de espelho partido.
(SILVEIRA, 1950, p. 133)
109
108
“(...) é preciso além do mais lembrar que, quando os seus primeiros livros foram escritos (Pastiches et
Mélanges, embora publicado depois do aparecimento de Às sombras das raparigas em flor já tinha sido escrito
muito antes) a doença de Proust ainda não estava no seu ponto crucial. A doença que deu ao romancista uma
sensibilidade especialíssima, também colaborou na mudança de seu estilo.” (SILVEIRA, 1950, p. 134)
109
Em relação ao mundanismo de Proust antes de 1905 e a sua espontânea reclusão após essa data, crê o
estudioso que, através dessa atitude, o escritor involuntariamente dividiu sua vida em dois momentos distintos e
igualmente essenciais: “Tal era o escrúpulo [recorrendo ao auxílio dos amigos] com que Proust construía sua
obra, pedra a pedra, em meio das sufocações da asma e das lembranças que lhe vinham do escuro da memória,
219
Mas o estilo é apenas o colorido superficial que encarna as aparências da Recherche,
sendo que o seu “valor substancial”, para Silveira, reside na mescla perfeita de tempo e
memória, “suma da existência”, “aprendizagem” essencial tão abrangente que não exclui a
possibilidade de se estudar o romance por diversos outros ângulos, sob o ponto de vista da
História, da Geografia e de outras ciências sociais, haja vista a amplitude de sugestões
deixadas pela maravilhosa construção de Proust:
Assim como o valor extrínseco de ‘Em busca do tempo perdido’ está no estilo, na
fusão do tempo e memória reside o seu valor substancial. Tudo no romance gira ao
redor destes dois elementos, embora não seja para se desprezar o estudo da obra de
Proust sob o ângulo da História e da Sociologia (nada melhor do que seu romance
para quem quiser tomar contato, voltar ao Paris de 1880 a 1890), sob o ponto de
vista do humor (Proust foi chamado o segundo Sterne...), como também se pode
estudar (e realmente foi estudado) o Proust moralista (moralista parcial, como disse
Ramon Fernandez: ‘Proust universaliza parcialidades’), o Proust psicólogo, o Proust
esteta, o Proust musical, o Proust pintor... Sim, Proust foi tudo isto ou melhor: em
sua obra encontra-se uma parcela do todo, pois todos os temas foram abordados em
seu livro que não é apenas romance, mas uma suma da existência condicionada ao
binômio tempo-memória. (SILVEIRA, 1950, p. 135-6)
O tempo não morre se a memória conserva as lembranças, agindo ambos em nome de
uma idéia comum (imortalização da imagem e de sua durée contínua), pois enquanto um
conserva o outro destrói e não destrói se a memória consegue conservá-lo e fixá-lo sob
diversas formas – recordações espontâneas ou voluntárias, escritas ou apenas lembradas,
evocadas ocasionalmente, essenciais ou secundárias. A sentença final do seguinte trecho da
“Carta ao novo leitor de Proust” traduz, para o leitor brasileiro, o ponto de vista de André
Maurois a respeito dos dois temas da Recherche (o primeiro, o Tempo, que destrói; o
segundo, a memória, que conserva. Ver 3.2, p. 161-2):
O tempo não morre como parece continua incorporado em nós. Nossos eus
antigos podem reviver em sonhos e mesmo na vigília. Daí a idéia proustiana de
partir à procura do tempo que parece perdido, mas que permanece no nosso íntimo,
confins das lembranças, surgiam agora à tona novamente e o tempo perdido com tanta mundanidade, tanta
superficialidade, tanta futilidade, ia sendo, pouco a pouco, redescoberto graças à doença e ao sofrimento que lhe
devolviam o mundo que o mundanismo lhe havia roubado. (...) Proust resolveu assim, mesmo sem querer, um
dos maiores problemas dos artistas, isto é: a divisão do tempo entre a vida e a obra de arte, vivendo
primeiramente a vida do mundo, de fora, a vida do homem, para depois pejado de experiência e de
conhecimento - viver a vida interior, a vida do artista. Não me diga ter sido a doença a causadora deste quase-
milagre, porque nada como o desespero da doença incurável para jogar a criatura no rodamoinho do mundo e lhe
encher o corpo de desespero e pressa no aproveitamento do pouco tempo que lhe resta na terra. Outros não
teriam hesitado entre a vida e a arte.” (SILVEIRA, 1950, p. 131)
220
prestes a renascer. (...) Inútil, porém, procurá-lo no exterior, visitando lugares
amados, procurando pessoas queridas. A busca tem que ser feita dentro de nós
mesmos, eis que o mundo sendo apenas produto do que imaginamos não existe.
(...) O que vale para o romancista é o mundo redescoberto em suas lembranças,
donde a conclusão de que a memória é a única forma de constância do eu, pois
enquanto o tempo destrói, a memória conserva. (SILVEIRA, 1950, p. 137)
Silveira confessa em seguida a filiação de seu texto às idéias de Maurois citando o autor
de A la recherche de Marcel Proust com o intuito de “resumir” o “drama” da existência do
escritor:
Sobre o binômio tempo e memória Proust construiu sua obra, que pode se resumir (a
grosso modo como fez Maurois), como sendo o drama de um homem
maravilhosamente inteligente e dolorosamente sensível que parte, desde a infância, à
procura da felicidade no absoluto; que experimenta encontrá-la de todas as formas,
mas que se recusa com implacável lucidez a enganar-se a si próprio, como faz a
maioria dos homens que se contenta com a glória ou o amor. Proust foi levado a
procurar um absoluto que estivesse fora do mundo e do tempo. E esse absoluto que
os místicos buscam em Deus, Proust o procurou na arte, que é também uma espécie
de misticismo. (SILVEIRA, 1950, p. 137-8)
Para Henrique Maron, trata-se de uma espécie de “jogo paralelo” entre os dois tipos de
memória, entre a recordação espontânea, que foge à consciência e é atemporal, e a busca
voluntária, que tenta se ater ao fio do cronômetro e da evocação exata em tempo e espaço:
(...) a arte de Proust é um intenso esforço elaborado pelo conjunto de duas
memórias em que a voluntária, registradora de objetos inanimados, faz jogo paralelo
com a recordação espontânea, que escapa ao freio da consciência. Este duplo
aspecto da memória não se reflete nos quadros do cronômetro, porque os romances
de Marcel Proust, se bem que estejam postos nas paisagens de um fim de século, são
visões pretéritas onde as datas, propriamente, se confundem com a muda
volatilidade das estações da alma. É uma volatilidade intemporal, uma fixação do
bolor íntimo da primeira infância, visões da física do subconsciente, que se refratam
no jogo da projeção. Fundida na análise do eu, a memória vasculha o passado e o
revolve com a síntese dos tempos, mas não o fixa no tempo e no relativismo das
coisas. (MARON, 1950, p. 180-1; grifo do autor)
Em quase todos os trabalhos escritos sobre Proust no Brasil durante vinte e cinco anos
(de 1925 a 1950, data da publicação da Proustiana brasileira), os escritores e críticos
modernistas que se submeteram ao fascínio de analisá-la insistiram basicamente nas mesmas
características, a saber as principais: o binômio Tempo-destrutivo/Memória-construtiva; os
acessos da memória involuntária e a importância dos sentidos para o resgate da memória; o
sentido profundo da arte; a introspecção e o extremo psicologismo da obra; o estilo peculiar
221
do autor; a doença, a reclusão e a proximidade da morte; a confissão através de um romance
meio ficcional meio autobiográfico, etc.
Novos aspectos a serem explorados pela crítica proustiana brasileira “pós-1950”
deveriam, aos poucos, surgir, como surgiram, na forma de sugestões a estudos mais
aprofundados, após leituras e releituras exaustivas, como no caso do próprio Augusto Meyer,
que continuaria, obviamente, se dedicando ao deslinde de A la recherche du temps perdu após
a publicação da coletânea, visivelmente interessado, nos textos escritos entre o início da
década de 50 e o final da de 60, em questões específicas envolvendo o estilo, a estrutura e a
tradução da Recherche para a língua portuguesa. Seguindo a mesma orientação de sua
investigação crítica de outros escritores, a partir dos anos 50 Meyer focaliza sua atenção na
pesquisa de fontes e na renovação de certas “chapas literárias”, encontrando em Proust farto
material para a demonstração de seu intento. Refiro-me ao excelente “A ilha flutuante”,
originalmente publicado no Correio da Manhã em 10 de abril de 1949 e incluído em Preto &
Branco em 1956, no qual Augusto Meyer corrige um engano cometido por Mario Quintana na
tradução justamente de um dos trechos mais significativos de No caminho de Swann
110
, e
interpreta o significado, na efabulação de Marcel, do “trecho de paisagem” que, como a ilha
de Delos, se destaca, na memória, de tudo o que nela havia de fixo, indicando, além disso, as
fontes nas quais Proust colheu e renovou a imagem, presente em Homero no episódio em que
Ulisses conhece Éolo, o governador dos ventos, e referida por outros franceses anteriores a
ele:
110
Sobre detalhes da tradução de Mario Quintana e da correção que Meyer faz do trecho traduzido ver, na nota
23 do item 3.1 (p. 143-4), comentário de Meyer a respeito do “verdadeiro sentido da imagem” quando se coteja a
tradução ao texto original (“aquele trecho de paisagem assim trazido até o dia de hoje se destaca tão isolado de
tudo, que ele flutua incerto em meu pensamento como uma Delos florida (...)”, passagem corrigida por Meyer no
fecho do artigo (1956, p. 127; grifo meu da seqüência na qual Meyer “modifica” a tradução de Quintana). O
rigor crítico de Meyer não perdoa o cochilo do tradutor. À página 124, dispara: “Tal como se acha na tradução, a
imagem sabe a preciosismo, a requinte de fantasia literária: o trecho de paisagem é comparado a uma Delos
florida sem maiores razões. Parece coisa de redação escolar, atestado de boas letras, e diga-se que não deixa de
assumir no conjunto da frase um relevo um tanto ostensivo, que aceitamos porque a força do contexto em
Proust carrega tudo no seu curso, como um rio caudaloso.” (MEYER, 1956, p. 124)
222
Em 1857, no generoso artigo em que saudava a estréia do jovem Mistral,
consagrando-o desde logo, escrevia Lamartine: ‘On dirait que pendant la nuit, une
île de l’Archipel, une flottante Délos, s’est détachée d’un groupe d’îles grecques ou
ioniennes et qu’elle est venue sans bruit s’annexer au Continent de Provence,
embaumée, apportant avec elle un de ces chantres divins de la famille des
Mélésigènes’. Haverá nada mais lamartiniano do que essa frase alada e cantante,
pergunta Roger Picard. Ora, o fato é que Pierre Lasserre, enristando o seu dedo
indiscreto e severo, apontou em La Gaule Póetique de Marchangy, obra publicada
em 1813, a seguinte versão do mesmo tema: ‘On eut dit qu’une île de la Gréce, une
cyclade flottante, une autre Délos, détachée de sa base et chargée de ses cités, de ses
édifices, de ses bocages, de ses pénates et de ses citoyens, se fût arrêtée toute
parfumée, dans un des golfes de notre patrie’. (...) O desenvolvimento da imagem
coincide em ambas as versões; a Delos flutuante, destacada de sua base, atravessa o
Mediterrâneo para incorporar-se ao território de França; (MEYER, 1956, p. 126)
Meyer releva o fato de Proust ter renovado brilhantemente a imagem arquetípica da ilha
flutuante, adaptando sua significação ao contexto da “ilha perdida na memória”, sebe de
pilriteiro revisitada pela memória involuntária, lembrança “pura” que, “sem qualquer liame
associativo imediato”, refazendo os caminhos de Combray, de Méséglise (ou de
‘Mélésigènes’?!?) e de Swann, conduz o narrador à “paisagem brumosa” do “país da memória
perdida”, paisagem “poderosa e triste como a saudade”, idealmente resgatada do passado,
“solta” no presente em meio aos estados “flutuantes” e oscilantes da memória:
(...) em Proust a imagem da ilha flutuante adapta-se perfeitamente àquela ilha de
recordações que a memória recorta no mar do tempo e espaço, mas não consegue
ligar a uma data, a um nome de lugar, a uma reconstituição qualquer de
acontecimento definido. (...) Que outra imagem mais adequada poderia figurar esses
estados flutuantes da memória, retalhos de lembranças trazidos à tona da consciência
por um súbito movimento de emersão? Tomando uma inflexão nova, perdendo o
ranço de ornamento retórico, a velha imagem, desembotada pelo sentido novo e tão
preciso que Proust lhe emprestou, em vez de destoar na frase como um preciosismo
estéril, vem reforçar e coroar com uma graça imprevista a imagem verdadeira
contida no discurso, que é o trecho de paisagem ressuscitado pela memória
involuntária. (...) Na intenção de Proust, a ‘ilha flutuante’ serve para definir o caráter
peculiar do ‘souvenir pur’, a recordação que emerge do inconsciente, sem qualquer
liame associativo imediato, na cadeia das recordações. Impregnou-a de um valor
psicológico profundo, como tudo que lhe passava pelas mãos tão leves, tão delicadas
– e tão poderosas (...) (MEYER, 1956, p. 127)
Em 20 de janeiro de 1952, Augusto Meyer publica, no Diário Carioca, a crônica “Nota
barroca” (incluída por Tania Carvalhal, em 2002, na coletânea Os pêssegos verdes,
homenagem da Academia Brasileira de Letras ao centenário de nascimento de Meyer), na
qual o crítico porto-alegrense sugere um ambiente “barroco” a caracterizar o romance de
223
Proust em todos os seus elementos (inclusive no próprio título da obra
111
), atitude confirmada,
segundo Meyer, pela intenção explícita do autor de representar a fugacidade da vida e o
caráter efêmero e transitório das ações humanas:
O que eu gostaria de mostrar é que o tema da obra e de algum modo a atitude
psicológica do autor poderiam até certo limite enquadrar-se muito bem numa
filiação barroca, sem quebra de outras correlações literárias ou artísticas que
transparecem da Recherche du temps perdu, ou seja, seu parentesco, inesperado às
vezes, com o espírito de outros períodos e a ocorrência de outros motivos
tradicionais. A ‘matinée Guermantes’, por exemplo, é uma nova Dança e aproxima
singularmente Proust do mais puro Villon do Grande testamento. Sentem-se
facilmente na sua obra, como ele mesmo dizia, ‘plusieurs épaisseurs d’art’; e a
geologia da crítica literária não erraria muito ao atribuir uma dessas ‘camadas’ ao
período barroco. (MEYER, 2002, p. 27-8)
O tempus fugit, obsessão de todo poeta barroco, equivale, na Recherche, ao próprio
“tempo perdido” dissipado nos salões mundanos, no encalço do qual autor e narrador saem à
procura, reencontrando-o subitamente graças aos êxtases propiciados pela memória
involuntária, sendo esse tempo, para Meyer, apenas um dos tantos indícios do evidente
“barroquismo” presente no roman-fleuve, pródigo em expor
(...) o Tempo Perdido, a obsessão do Tempo como evanescência, o apego inútil à
sensualidade do instante, as horas que voam, o vanitas vanitatum’, a vida sonhada
mais que vivida, o ser e o não ser entre dois agoras, entre pouco e daqui a
minutos... (MEYER, 2002, p. 29)
112
Augusto Meyer opta, como vemos, a partir da década de 50, por uma análise do
romance de Proust de forma a dar ênfase a aspectos estilísticos e estruturais e aos
componentes humanos, psicológicos e filosóficos da trama. Muitos ensaios de Meyer escritos
nesse período bem poderiam figurar em qualquer antologia de Literatura Comparada, e os
111
“(...) não conheço título de sabor mais barroco: Em busca do tempo perdido. Haverá na literatura moderna
mais claro traço de barroquismo do que aquela obsessão de fugacidade das coisas, temperada quando muito pela
consciência da visão estética, no Temps retrou?” (MEYER, 2002, p. 27)
112
Na crônica “O dono da ilha” (Correio do Povo, 01.03.1964), Augusto Meyer adota novamente o
procedimento, comum em sua crítica, de reaproveitar, em mais de um texto, frases e idéias veiculadas alhures.
Vejamos como o início desta crônica é praticamente igual aos trechos de “Nota barroca” mencionados acima:
Em busca do tempo perdido... Haverá na literatura moderna mais claro vestígio de barroquismo? É, pelo menos
em conteúdo, aquela obsessão da fugacidade das coisas, temperada quando muito pela consciência da
contemplação estética, no ‘Temps retrouvé’. Deixemos de lado a questão do preciosismo, indicada a largos
traços por Jean Mouton, em ‘Le style de Marcel Proust’. O que eu gostaria de mostrar é que o tema da obra e a
atitude psicológica do autor poderiam de algum modo enquadrar-se numa filiação barroca, sem quebra de outras
correlações literárias ou artísticas que transparecem da ‘Recherche du Temps perdu’, ou seja, seu parentesco
inesperado às vezes com o espírito de outros períodos e a ocorrência de outros motivos tradicionais. Darei um
exemplo: a matinée Guermantes’ é uma nova Dança Macabra, a dança macabra da ‘belle époque’. Sentem-se
224
textos sobre Proust não fogem à regra – em “A ilha flutuante”, a pesquisa de fontes e
discussões sobre tradução; em “Proust, o zaori”, o estudo das confluências entre Proust e
Freud; em “A culpa é de Reinaldo Hahn”, a questão do exílio e da desterritorialização
envolvendo o pays de tendre “da memória perdida”
113
; e, por fim, “Os três primos”, magistral
estudo no qual Meyer, ao “ruminar o problema psicológico da criação literária” (1956, p.
165), “por efeito (“)3.74(A)1.57442( )-24())2.805(,)-0.147792( )-76(t)-12.171-2.164360(i)-2.16436(a)3.74(s)-.57442( i)-2.16436(c)3.74(o703(e)3.74(l)-2.16558(p)-0.295(g)9.71032(r)2.80t)-180.253(l)-2.16436(v)-180.253(d)-0.295585(e)3.74(”)3.74(A)1.5744732(r)2.80 pro294(e)3.74((r)2.80439(i)0.29552.509]TJ273.a)3.74(A)1.5744732254(“)3.74(P)-4.33117(r)2.80439(o)-0.295585(u)-0.295585(s)-1.2312(t)-2.16436(,)-0.5744732 ah(r)2.80561(a)3.74(dt)-2.16558(o)-0.295579( )-70.1891((“)3.74(A)16295528(“)-6.2659)-0.295585s439(ê)3.74(s).295579(“)3.74(A)1.574914( )-180.253(i)-20.1584(t)-2.16436modp o-0.293142(6)-6(”)3.74(,0.146571(52.509]J-273.401 t)-2.16558(o)-0.294974(s)-19)2509( )-70.1 três p mos.147792( )-l6(t)-12.171-2.16436d[(e)3.74(s)-1.22997()-0.295585(r)2.80s” d9(r)2.80561(u)-0.291584(m)-2.45585(9)2505( )-170.fgrxílm9epitliu”r9trcunpid[(“)3.74(d)-0.295585(9)2505()-0.295295(e)3.74(m)-29itpeod[(“)3.74(d)-0.295585(9)2505()-0.295585(o )-20.1584(p)-0.29.253t(ç)3.74244(ã).293142(6)-0.9d[(“)3247(p )-2.16436((l)7.84154( 18092 J-280.846 -27.6 Td[(d)-0.294974(i)-2.16558(i)-2.16558(e)-250.cH)1.57)-0.295çção da703(e)3.74(m)0.295A d.74(ã)3.74(o)-05574775(h94(e)3.74()-0.295574(o )-20.1584(m)-2.45995(e)3.74(4())2.805(,)-05574775()-0.295585(o )-20.1584(p)-0.293t)-2.16436m)-2.16436(a)-6.2659(ç)3.74(ã)3.74(o)-06295528 cujtp439(ê)3.74(s)5574761( )-170.24-240.288(r)0.295585(e)3.74295(c)3.74(u)-0.295436(i)0.29553.075]TJ273.a d.74(ã)3.74(o)-0.295585(s)-1.3015(s)5574761()-0.295585659(ç)3.74(ã)3.74(o)-06295528(r)2.80 pe enmd.74(ã)3.74(o)-0.295585t, em umês(ã).293142(6b)-2.16436(o)--2.16436(r)-2.46239439(ê)3.74t, 3.075]J-280.846 sa.3385d2a.3388(s)-2.057316po2294(a.3386( )--6.3032295.7217pi)-2.05445n75.7217pd2a.3385s-0.219.9np,26.219]5(e)4J273.i15(e)33456mi285m294(.146685d2)-6.3339i3229635mie.146685a285mig2.146685d2.146685e.146685d2.146685d2.146685e
225
Pascal
114
e Marcel, da questão da identidade, etc). O problema da identidade leva ao da
personalidade, ou melhor, à sua dissociação, ou à “multiplicação dos eus” proposta por
Tristão de Athayde, fragmentação que credita algo de “humano, demasiadamente humano” ao
mergulho interior de Pirandello e de Proust:
Outro ponto de coincidência de Proust e Pirandello, com alguns pontos de contato
em Machado, é a dissociação da personalidade. Nem sempre somos os mesmos para
nós mesmos; e queremos ser os mesmos para os outros. Na obra de arte muito
desse desesperado esforço, que é a ilusão da integralidade do ato criador. Valéry
escreveu páginas definitivas acerca do mesmo tema em suas Moralités. (...) Parece-
me indispensável, para completar os traços principais do esboço, acentuar o lado
profundamente humano de Proust e Pirandello, contra a opinião leviana dos que
pretendem ver na sua obra uma fantasmagoria de cerebrais impenitentes. (MEYER,
1956, p. 169)
Quanto a Machado e Proust, Augusto Meyer volta a aproximá-los em outro texto
presente em Preto & Branco“Os galos vão cantar”, capítulo de abertura do volume, no qual
o crítico discute o tema “imortalidade da obra” (e, conseqüentemente, do autor) vs.
“mortalidade do homem” a partir de considerações suscitadas pelo comentário da morte de
Machado de Assis
115
. Augusto Meyer “ignora” o corpo de Machado, material e passageiro,
porque o que realmente importa para a literatura é o registro das idéias do autor, veiculadas na
obra-prima que ele escreveu e pela qual será “eternamente” conhecido, única forma de evitar
a morte definitiva e a aniquilação de determinadas imagens, recordadas ou criadas,
eternizadas em contos, romances e poemas. Maior exemplo desta “luta” contra a destruição
114
PIRANDELLO, O falecido Mattia Pascal (1972). Aproveitando a ocasião de ter sido dado como morto,
Mattia Pascal muda de cidade e de nome e passa a se chamar Adriano Meis, complicando-se ao mesmo tempo
com a polícia e com a família, enquanto dissipa o produto de suas maquinações nos cassinos de Monte Carlo.
Além disso, o romance, também narrado em primeira pessoa (por Mattia Pascal), possui observações
semelhantes às do narrador proustiano, como o trecho a seguir, a lembrar o enfoque de Santo Agostinho: “Cada
objeto, em nós, costuma transformar-se consoante as imagens que evoca e agrupa, por assim dizer, em torno de
si. Certamente, de um objeto podemos gostar também em si mesmo, pela diversidade das sensações agradáveis
que suscita em nós numa percepção harmoniosa; mas, com bem maior freqüência, o prazer que um objeto nos
proporciona não se encontra no objeto em si mesmo. A fantasia o embeleza, cingindo-o e quase que iluminando-
o de imagens queridas. E, à nossa percepção, ele não mais se apresenta tal como é, mas como que animado pelas
imagens que suscita em nós ou que os nossos hábitos lhe associam. No objeto, em suma, amamos o que nele
pomos de nós mesmos, o acordo, a harmonia que estabelecemos entre ele e nós, a alma que ele adquire somente
para nós e que é constituída das nossas lembranças.” (PIRANDELLO, 1972, p. 116)
115
“Aquela cousa que ali está, atirada sobre a cama, entre cochichos tristes, é o corpo morto de Machado de
Assis. Quatro horas da madrugada. Vem das árvores do Cosme Velho um cheiro de seiva. Os galos vão cantar.
(...) E agora que o velho Joaquim Maria saiu pela porta invisível, deixando como rastro um ponto de
interrogação, Machado de Assis, o outro, o inumerável, o prismático, o genuíno Machado, feito do sopro das
226
total é, para Meyer, A la recherche du temps perdu, ilustração extrema da necessária fixação
pela memória de um eu que, idealizando tempo e espaço, fundindo passado e presente,
imortaliza sua existência repleta de vivas experiências sensoriais a desafiarem a morte e o
esquecimento que normalmente se seguiria à súbita “desaparição” física:
No fundo de toda obra literária, por menos que pareça e embora se apresente sob o
signo do desespero e da irremediável lucidez desencantada, um protesto da vida
contra a irreversibilidade, um desejo de ficar, de não mudar mais na agonia dos
minutos. O exemplo mais grave, para ilustrar o caso, está na obra de Proust. Ele
viveu escravizado à memória, ao recuo nostálgico, à saudade no tempo e no espaço.
no começo dos seus ensaios literários, segue esse declive espontâneo da fantasia
criadora, e convém ler em Les Plaisirs et le Jours as páginas de antecipação em que
analisa o regret, palavra constante, em torno da qual se agrupam os temas
proustianos. A força de concentração acha-se representada, nos (...) volumes de A la
recherche du temps perdu, pelo eu que centraliza a história; a tendência dispersiva,
pelo próprio tempo, dissociador e dissipador da personalidade. A busca do tempo
perdido é a reconquista do eu que se perdeu. Volta-se o eu para o passado com a
intenção de reconquistar ao longo dos anos vividos a memória integral da
personalidade, quer salvar-se no meio da correnteza, construindo na ilha da memória
o observatório da consciência. E no Proust do Temps Retrouvé não o
prestidigitador que mostra as mãos, revelando os seus passes, principalmente a
chave de toda uma vida. O sentido daquelas últimas páginas do Temps Retroué
uma redenção pela vitória do eu reintegrado em si mesmo, a voz do autor parece vir
do outro mundo, além do tempo e do espaço, como a grave mensagem de um
iluminado da arte que se vai ‘da lei da morte libertando’. (MEYER, “Os galos vão
cantar”, 1956, p. 12-3)
Preocupações referentes ao destino das obras e ao caráter “biobibliográfico” do estudo
dos escritores (isto é, estudar a “biografia” da obra e não do autor
116
) não impediram Meyer
de se interessar pela biografia dos autores que mais o fascinaram. Prova disso é que em 19 de
fevereiro de 1966 o crítico veicula, no Correio da manhã do Rio de Janeiro, o artigo “Proust,
vida e obra”
117
, onde elogia a pesquisa realizada por George Painter, destacando sua seriedade
e seu pertinente comentário biográfico de Marcel Proust:
palavras gravadas no papel e da magia do espírito concentrado entre as páginas, começará realmente a viver.”
(MEYER, 1956, p. 9 e 11)
116
A respeito da sugestão de Meyer, ver o capítulo “O autor e o homem” (Preto & Branco, 1956, p. 31-5),
sobretudo o seguinte trecho: Convoquemos a boa vontade dos machadianos para a análise e anotação desses
textos, cada qual em seu galho. Levantemos pedra a pedra um bom vocabulário de Machado, a par do estudo
estilístico iniciado por Aurélio Buarque de Hollanda, Cândido Jucá Filho e Eugênio Gomes. Sem esquecer o
Dicionário Machadiano, não apenas biográfico, a exemplo do Petit Dictionnaire Stendhalien, de Henri
Martineau, mas biobibliográfico, incluindo verbetes referentes a personagens (imagine-se o verbete ‘Capitu’!),
influências, intérpretes e críticos, tradutores e detratores...” (MEYER, 1956, p. 34-5)
117
Reproduzido em Os pêssegos verdes, 2002, p. 31-6. Além da biografia de Painter, Meyer discute aqui, assim
como fizera em “A ilha flutuante”, questões especificamente relacionadas à tradução da Recherche,
especialmente da sentença inicial da obra, a exaustivamente citada “Longtemps, je me suis couché de bonne
heure”. Diz Meyer, sobre o sentido da utilização do passé compona narrativa de Marcel: “A intenção de
227
São oitocentas e tantas páginas de texto, em que não cabem digressões. Na
densidade de cada parágrafo, a síntese crítica se mantém a cada passo vigilante e
equilibrada, com um na vida e outro na obra, permeando sempre a vida que
Proust viveu com aquela outra vida transposta em sublimação estética, através da
criação literária. Parece-me que nunca até hoje um biógrafo soube tão bem como ele,
George D. Painter, descer a tantas minúcias significativas, colher o mínimo e
esquecido, a par do que parece a todos manifesto e óbvio, sem ofender as regras
do jogo, isto é, respeitando sempre as fronteiras que separam, da experiência vivida,
a obra realizada. Para nós, que nos preocupamos com a lição metodológica a ser
aproveitada com a leitura de trabalhos como este, em que se aprofunda a análise das
conexões indistintas entre confissão e ficção, entre a confidência extraliterária do
homem e a sua transposição estética pelo autor, o estudo biográfico de Painter
contém o argumento de uma tese: para bem interpretar A la recherche du temps
perdu, diz ele, ou admitimos a hipótese de uma confidência indireta, ou ficamos sem
chave alguma, tropeçando em conjeturas. (MEYER, 2002, p. 31-2)
Em seu trabalho crítico, Augusto Meyer sempre procurou focalizar o procedimento,
aplicável ao caso de Proust e de outros introspectivos, de julgar que muitos criadores se
“confessam” muito mais através da obra ficcional do que por meio de diários, cadernos ou
correspondências. Em “O homem subterrâneo”, usa o argumento segundo o qual os escritores
de ficção “se confessam através das encarnações imaginárias, indiretamente, com uma
sinceridade mais honesta do que na correspondência ou nos cadernos íntimos”, pois o
“verdadeiro Dostoiévski, por exemplo, se revela muito mais na obra literária do que no
Journal d’un écrivain(MEYER, Machado de Assis, 2 ed, 1952, p. 19). Para o crítico, trata-
se a Recherche (bem como o Memorial de Aires de Machado ou as Recordações da casa dos
mortos de Dostoiévski) de um misto de “confissão e ficção”, confissão “indireta” e
“extraliterária”, esteticamente transposta para outro tipo de realidade, igualmente verossímil e
de “aparência autobiográfica”
118
. A diferença entre realidade (confissão autobiográfica) e
Proust, ao fixar-se no passé composé, era criar uma atmosfera intemporal, passado e presente entrelaçados,
acima do ‘tempo perdido’. O Francês, como o Inglês, possui uma forma verbal capaz de combinar o presente do
auxiliar com o particípio passado. A ação passada ainda continua a produzir os seus efeitos no presente, ainda
não está separada de nós pela sua insignificância, ou por uma enorme distância temporal, o que poderia provocar
o esquecimento. E assim, temos a fusão de dois tempos, o passado e o presente, jungidos numa forma verbal
composta, e podemos entrever nesse primeiro emprego do verbo no romance o dúplice critério do Tempo, o
temporal e o intemporal – que há de prevalecer em toda a obra.” (MEYER, 2002, p. 35)
118
Assim se refere Augusto Meyer, em “O romance machadiano”, ao Eu que narra a Recherche: “Como
qualquer outro recurso de transposição fictícia, a aparência autobiográfica serve de fator objetivo ao romancista
na construção de um simulacro de vida confessada. Dentro dessas fronteiras o romance construído na
perspectiva da primeira pessoa cabem graus diversos de aproximação do tom subjetivo, desde as ‘cartas’ e os
‘diários íntimosaté aquela aparente confidência continuada e minuciosa de um eu romanesco a longo prazo
(...) o eu de A la recherche du Temps Perdu em que a permanência do tom subjetivo, em sua duração, chega a
provocar um efeito de objetividade no tempo.” (MEYER, A chave e a máscara, 1964, p. 160)
228
sonho (ficção pseudo-autobiográfica) é tênue, sendo a obra literária fina “transmutação” a
“participar” dessas “duas ordens de existência” perfeitamente exemplificadas pela atitude do
próprio Marcel:
Finíssimo é o limite entre a realidade e a folha de papel em que deixou magros
vestígios do seu sonho. Nesse desvão, cabe o mundo dos imponderáveis. Se é
inegável que tudo realmente importa para o conhecimento crítico, também devemos
considerar o processo especial de transmutação que se verifica no momento da
criação literária, espécie de ajuste entre o delírio do espírito e a conta corrente. O
homem que escreve procura uma superação desse equilíbrio instável na obra
acabada. Mas participa das duas ordens de existência mais ou menos como a
personagem de Proust que, ao tropeçar na calçada, diante do palácio dos
Guermantes, sente uma onda de evocações emergindo do poço da memória e
recriando o ambiente do seu paraíso perdido: o campanário de Martinville, as
árvores de Balbec e o bolo empapado numa infusão transfundiam-se
misteriosamente na música de Vinteuil ou, formulados nessa linguagem insopitável
da consciência, murmuravam: decifra o enigma da felicidade que há em mim. (...) E,
como a personagem de Proust mantinha a posição incômoda, tropeçando sobre o
calçamento desnivelado para resguardar a fugitiva revelação daquele instante, com
um pé na realidade e outro no estribo do sonho, qualquer artista cultiva o estado
de crise para poder evadir-se da realidade, mesmo quando sabe lidar com as
formas primárias e puramente imitativas da arte. (...) De sorte que a verdadeira
biografia do escritor seria a história íntima das suas relações morais com a obra,
porém transcrita por ele mesmo, no calor da invenção, com a objetividade quase
absurda de quem vivesse a desdobrar-se, para melhor se analisar, sem perder,
todavia, o entusiasmo criador. Temos no caso de Proust um raro exemplo. (MEYER,
“O autor, esse fantasma”, À sombra da estante, 1947, p. 30-1)
119
Através de todas as considerações, feitas neste item, a respeito da análise de Augusto
Meyer sobre A la recherche du temps perdu, percebe-se que o crítico gaúcho não se limitou a
julgá-la somente nos textos escritos especificamente com esta finalidade, fazendo dela, ao
contrário, o paradigma primordial de suas especulações teóricas sobre a criação literária
(como em “O autor, esse fantasma”) e de suas leituras “comparativas” (como em “Os três
primos”, “Os galos vão cantar” e “O romance machadiano”). Tal atitude certamente
impulsionou a vertente contemporânea do pensamento brasileiro (terceira fase de nossa crítica
proustiana) a abordar a Recherche não somente a partir de uma visão global do romance, mas
também considerando a forma com que seus componentes estruturais, temáticos e estilísticos
119
Aguinaldo José Gonçalves também crê no tom confessional da narrativa de Marcel: “Ao invés de buscar na
fantasia a matéria-prima para a sua engendragem artística, Proust buscou-a no fluxo de sua própria vida,
assumindo um tom confessional de um eu conquistado e não de um pretenso eu social. Subjugou o factual à
validade artística, elevando-o assim à aproximação do verdadeiro. Foi tocando de frente a questão da
representação, uma forma de mimesis da própria vida que conseguiu atingir o processo de recriação da
experiência, plasmando-a em estilo.” (GONÇALVES, 1988, p. 19)
229
reagiram e se adequaram às questões mais prementes
230
da hierarquia social e da sua conservação e apologia, nenhuma recherche.
231
um ponto arbitrário do nosso passado, a memória involuntária é como rede lançada
na profundidade do vivido e da carne. Tudo o que cai na rede é ser... (CANÇADO,
1983, p. 63-4)
Cançado interpreta os dois momentos relacionados pela memória involuntária (o de
“conhecimento” de determinada imagem ou objeto e o de “reconhecimento” sensorial dos
mesmos, que é quando a sugestão realmente ocorre) como ambos sendo as duas pontas de um
“arco” que, distendido sobre a fusão passado-presente, entremostra a eternidade a quem se
propõe a multiplicar as sensações-sereias que o transfiguraram:
Um pé no pátio dos Guermantes e outro no Batistério de São Marcos, em Veneza. A
sensação pânica e ao mesmo tempo deliciosa de choque e reconhecimento, queda e
reassentamento, vertigem e restauração. Um no presente vivo e outro no passado
que sobe à superfície do dia. O quê? A eternidade... (...) Essa sensação de um ‘eu
comum de dois tempos’, arco entre passado e presente, essa sensação é para Proust a
sensação de eternidade por excelência. O tempo reencontrado. (...) Nada do tipo fuga
para as essências, visão suspirante de criatura atrofiada, contemplação extasiada das
esferas. Aí, esqueçam, nenhuma eternidade para Proust e nenhuma recherche para
nós. Para ele a eternidade é ativamente o contrário. É o eu liberto da inércia
desmemoriante e pleonástica da coerção social, da divisão do trabalho, o eu liberto
dessa espécie de mais-valia aplicada ao nosso passado, esse regime da memória em
que são privilegiados e conservados apenas os momentos úteis e produtivos
economicamente. (CANÇADO, 1983, p. 60-1)
Essa eternidade sempre existiu, apenas não percebíamos, tendo sido necessário que
esperássemos a descoberta realizada por Proust e por sua rechercheincansável para nos
darmos conta de uma espécie de pluralidade” que constantemente atualiza as incontáveis
dimensões do “tempespaço”
121
:
Inventário complexo, quase einsteiniano do universo (pois Proust descobriu e
formulou essa lei de abismo que consiste no fato de o tempo ter mais dimensões do
que o espaço, e de nem tudo que prospera neste pode prosperar naquele), inventário
presidido antes pela ausência e pela dispersão do que pela presença e pela identidade
da firma, ‘quando os senhores não estavam em casa’ a Recherche, aliada do tempo,
atualiza uma espécie de pluralidade que os indivíduos, os grupos, as classes sociais,
continham virtualmente desde toda eternidade. (CANÇADO, 1983, p. 76-7)
Símbolo da eternidade da materialização da escritura para Cançado, A la recherche du
temps perdu é, no “exercício-montagem” de Aguinaldo José Gonçalves intitulado “O
processo holometabólico de Marcel Proust”, “borboleta” que evoluiu da larva e do ovo de
Jean Santeuil da mesma forma que de “Proust” se chega a “Marcel”, acarretando drásticas
121
A expressão é de Donaldo Schüler. Conferir “Tempespaço no onirodédalo joyciano”. (Geografias literárias e
culturais: espaços/temporalidades, 2004, p. 157-169)
232
mudanças no foco narrativo, preparada a transição da narrativa em terceira pessoa para o tom
confessional da Recherche, narrada em primeira por um narrador-herói-personagem
hipermnésico e onipotente, aberto à explosão/recombustão dos sentidos
122
. O ensaio de
Aguinaldo se estrutura em torno das estrofes do poema “Áporo”, de Carlos Drummond de
233
A superação da “dimensão cronológica da existência”, etapa decisiva para se chegar ao
“ser reencontrado” em “estado puro”, é possível devido ao fato de a “lógica” da reminiscência
não obedecer ao mesmo encadeamento cronológico do tempo “oficial”, sendo antes regime
intermitente governado pelas idas e vindas das sensações submetidas aos impulsos oscilantes
da memória “afetiva”, conforme destaca Philippe Willemart em Proust, poeta e psicanalista,
para quem o narrador é capaz de criar uma determinada seqüência de eventos de maneira
semelhante ao paciente psicanalítico que, por mais absurda que possa parecer aos olhos da
lógica tradicional, relata sua história de acordo com seu próprio andamento interior,
subjetivamente regulado por avanços e recalques, recuos e fluxos de consciência.
A riqueza da invenção proustiana consiste em contar não apenas com a dimensão
temporal que a ciência estática e newtoniana de seu tempo não podia conceber e que
Einstein valorizou, mas com a possibilidade de saltar acontecimentos da história de
seu herói sem se submeter à dimensão cronológica do tempo. Semelhante ao
analisando no divã, o narrador espalha uma lógica dos acontecimentos independente
de reminiscências no sentido platônico da palavra, embora ligada a uma memória
simbólica ou lógica que, a partir de uma primeira lembrança, tenta constituir-se.
(WILLEMART, 2000, p. 153)
O estudo de Philippe Willemart pode ser considerado uma espécie de paradigma dos
modernos estudos proustianos no Brasil, pois a vasta e complexa abordagem a que procede
aponta para a consideração dos mais diversos campos de observação do comportamento
humano, além de explicitar detalhes fenomenológicos da Recherche através da psicanálise
freudiana e lacaniana e da leitura de Kristeva e de inter-relacioná-las aos textos e prototextos
produzidos por Proust.
O prototexto garante às vezes uma interpretação. Considerados como palimpsesto,
os rascunhos e Jean Santeuil orientam o texto e, pela insistência, constituem
invariantes ou unidades de sentido que se mantêm até o texto publicado. (...) Como
se sabe os escritos amadurecem na mente antes de passar pelo manuscrito.
Freqüentemente, no entanto, o inédito surge não somente de um pedaço de Real
começado e simbolizado mas de uma lembrança empurrada por acaso por um
fragmento de Real em ação e isto acrescenta um elemento à teoria da criação. Sob o
efeito desta fatia de Real ligada a um grão de gozo, o mapa psíquico do escritor se
reordena e lhe permite transmitir uma verdade nova. (WILLEMART, 2000, p. 214-
5)
123
123
Para se entender melhor o estudo genético da obra de Proust, ver sobretudo o capítulo “Mais ainda em Crítica
Genética e em Psicanálise? (WILLEMART, 2000, p. 213-8). Sobre o horizonte de expectativas da crítica
genética atual, ver em Vísceras da memória o comentário de Antônio Sérgio Bueno a respeito da lacuna que o
geneticismo pretende preencher: “A crítica genética é um caminho fecundo da pesquisa literária contemporânea,
234
Willemart interpreta também, no capítulo “A madalena”, baseando-se nas pesquisas de
Julia Kristeva em Le temps sensible Proust et l’expérience littéraire, os inúmeros
significados etimológicos e religiosos envolvendo o conceito de madeleine, questionando, a
certa altura, “o que há de determinado na relação entre a ocasião, o sabor e a lembrança”:
Freud acreditava numa relação de causa e efeito entre o nódulo nervoso e o sintoma.
Para o narrador proustiano, o sabor é na verdade efeito de uma lembrança que depois
se torna guia no labirinto da mente, mas que é provocado fortuitamente: ‘minha mãe,
vendo-me com frio, propôs que tomasse, contra meus hábitos, um pouco de chá’.
Entretanto, lembremos que estamos falando não da vida real, mas de uma ficção
construída pelo narrador que não escreve o que ocorre na realidade. Não é por acaso
que é a mãe do herói quem oferece o chá e a lembrança que segue é a da tia Léonie.
Por isso, mesmo aplaudindo a descoberta proustiana, devemos desconfiar da
assimilação entre a ficção e a mímese que ocorre raramente. (WILLEMART,
2000, p. 64)
Philippe sugere que o sabor evocado pela segunda madeleine representa uma metáfora
velada do processo de escritura, ambos valorizados pela ressignificação de imagens, a
princípio banais, mas que, reelaboradas, transformam-se na razão de ser do “edifício imenso
da recordação” involuntária do narrador e de sua confissão através da escrita:
Além do distanciamento observado por Kristeva pela evocação do Japão, sublinharei
também a comparação que se aplica evidentemente à escritura e à criação. Havia no
início apenas um sabor misturado ao chá, sabor tão banal quanto é vulgar o pedaço
de papel. Sob a ação do chá, este objeto etéreo que é o sabor deixa surgir uma
lembrança que atravessa uma infusão de tília e desenha as formas descritas. Não
estaríamos diante de uma metáfora da escritura? O papel insignificante acessível a
todos transforma-se e conta uma história povoada de personagens localizadas no
espaço e no tempo. Não estaríamos também diante da continuação da reflexão do
narrador sobre a criação poética? O espírito aberto a algo imperceptível que ‘ainda
não existe’, mas em contato com um líquido ou uma poção mágica referência ao
vocabulário dos mitos e lendas do século XII transforma o não ser em ser como se
um banho de chá, ao absorver as informações da mente, colocasse ou recolocasse-as
na memória imediata, sabendo que esse banho é o meio de ‘pôr as informações na
sua luz?’ (WILLEMART, 2000, p. 68-9)
vindo a ocupar um espaço que tanto os estruturalismos quanto a estética da recepção deixaram vazio: a atenção
sobre os materiais pré-textuais, ou seja, manuscritos, desenhos, caricaturas, mapas, fotos, colagens. Trata-se da
pesquisa dos traços de elaboração textual, de trazer à luz a dinâmica do futuro texto work in progress –, seus
mecanismos de produção. (...) O geneticista mostra os bastidores, a provisoriedade do caminho criativo, a
intimidade do gesto criador, o processo de fabricação do texto” (BUENO, 1997, p. 99). O interesse da crítica
brasileira pelos rascunhos de Proust, todavia, não é recente. Meio século antes, Alcântara Silveira comentava:
“Seus cadernos (sua papelada, como dizia a criada Felicie) iam se enchendo de anotações sobre tudo e sobre
todos, às vezes simples indicações, às vezes frases que lhe tinham permanecido nos ouvidos, cacoetes de
conhecidos, cenas avulsas, algumas classificadas como ‘importante’, outras etiquetadas sob a rubrica
‘importantíssimo’.” (SILVEIRA, 1950, p. 130)
235
Proust, poeta e psicanalista encerra um ciclo da crítica proustiana brasileira e inicia
outro, à medida que, suficientemente circunscritos (por Tristão de Athayde, Augusto Meyer,
Sérgio Buarque de Holanda, Otto Maria Carpeaux, Aguinaldo José Gonçalves e tantos outros)
a biografia, o estilo e o modus operandi do autor, os principais tópicos da Recherche e a
discussão de temas como tempo, foco narrativo e memória involuntária, Philippe Willemart
pôde muito bem saltar estas etapas (imprescindíveis) do processo de aprendizagem e de
apreensão do roman-fleuve para focalizar sua visão abrangente em motivações outras, de
caráter psicanalítico e genético, preocupações a respeito dos conteúdos explícitos e
implícitos desta “sinfonia literária”
124
tão bem acabada que faz com que o leitor se sinta tão
pantagruelicamente gigante quanto Marcel, a subjugar o tempo e a render graças ao poder
infinito das reminiscências:
As personagens proustianas continuam o gigantismo de Pantagruel. Enquanto o
gigante da Renascença percorre a França e o mundo da época, ironiza o passado e
força o narrador a descobrir uma nova língua, o narrador proustiano sentindo-se
gigante pela memória, cresce desmesuradamente ao levar em conta seu passado que
será a matéria de seu livro. (...) De um gigante, no sentido próprio do termo em
Rabelais, ao gigante longiforme e frágil de Proust, o leitor descobre um outro gênero
de monstro não mais ancorado numa nação emergente na aurora da Renascença e
rejeitando os mundo antigos, mas ocupando ‘um lugar muito mais considerável’,
pois está submerso no Tempo embora seja restrito o espaço a ele reservado.
(WILLEMART, 2000, p. 208)
124
No texto veiculado na orelha da primeira tradução brasileira da Recherche (ver o parágrafo, por exemplo, em
A prisioneira, Porto Alegre, Globo, 2 ed, 1971), lê-se: “Como um naturalista mas sobretudo como artista
[Proust] mergulhou profundamente no passado. Retratando horizontal e verticalmente a sociedade francesa
através das suas mais variadas classes, dos seus costumes, e paixões, a sua obra está pejada de experiências
vivas, de observações da realidade que penetram até o mais íntimo do mundo do psicológico. Pelo método e
pelas proporções da construção monumental, pode realmente, nos seus sete romances, ser comparada a uma
sinfonia.”
4 AUGUSTO MEYER MEMORIALISTA: INFLUXO PROUSTIANO NA BUSCA
DA UNIDADE PERDIDA
4.1 A MEMORIALÍSTICA BRASILEIRA E A CRÍTICA
O interesse pela análise e pela discussão de obras memorialísticas é fenômeno recente
no Brasil, uma vez que a grande maioria dos próprios escritores praticamente despreza o
gênero, sendo, em muitos casos, avessos a tal forma de escritura, conforme indica Antonio
Dimas em “Memória e pudor”
1
. Com efeito, é bem verdade que a maior parte dos estudos e
das teses universitárias brasileiras envolvendo questões relativas ao memorialismo surgiu
durante ou imediatamente após o Congresso Internacional da Associação Brasileira de
Literatura Comparada (ABRALIC), realizado em Belo Horizonte, em 1990, tendo como tema
principal as relações entre memória e literatura (Ver Literatura e memória cultural: Anais do
Congresso ABRALIC, Belo Horizonte, 1991, 3 volumes). Apesar do boom registrado a
partir dos anos 90, mostrarei aqui que a preocupação de escritores e críticos em produzir e
discutir obras deste gênero é bem anterior à referida década.
Nos anais do segundo congresso da ABRALIC lemos, além do instigante ensaio de
Dimas, textos como “A fragmentação da memória” (1991, v. 3, p. 417-427), de Donaldo
Schüler, citado no item 2.1 (p. 29-30); “Memória, história e ficção: Blade Runner” (1991, v.
2, p. 207-217), de Adélia Bezerra de Meneses, comentado em 2.1 (p. 30-1) e em 2.2 (p. 71-2 e
75); “A intermediação da memória: Otto Maria Carpeaux” (1991, v. 1, p. 85-95), de Tania
1
Ver sobretudo o trecho: “Diante de tamanha massa de informação [presente na obra de Pedro Nava],
mimeticamente reelaborada, é de se perguntar a que se deve a tradição de silêncio pessoal em que se enclausurou
a maioria de nossos escritores e poetas que pouca documentação escrita deixou para que pudéssemos avaliar de
modo mais largo tanto o período em que viveram como as condições intelectuais em que trabalharam. (...) Ao
contrário de certas literaturas estrangeiras onde existe farto material periférico aos textos poéticos, a nossa tem-
se mostrado sovina, seja da parte do artista, seja da parte da crítica estabelecida” (1991, v. 1, p. 590). E também:
“Ainda que a documentação pessoal, o memorialismo e a epistolografia não sejam fatores determinantes e
imprescindíveis para a exegese literária, não se pode anular seu concurso eventual no alcance de uma abordagem
mais abrangente. Quanto à reconstrução de períodos, movimentos e agrupamentos, sua utilidade, então, é
indiscutível.” (1991, v. 1, p. 592)
237
Franco Carvalhal, no qual a autora comenta,p4(l)-2.1643601]265974( )-50.1774(,)-01, -4.80517(2.41]TJETc6(,)057358(,)05735l.389d001]TJETe8(,)05735l.3890.5-7217058(,)0573c4 671216525312 Tf[7i4)-72109972.41BT89530.5-7217058(,)0573l ll.3345d001]TJET58(,)054d001]TJETe8(,)05735l.389((-4.80517(C694103558(,)0573r(-4.80517(p001]TJETe8(,)0573a8(,)0573u05-72170x)5-721705l.389s621.68e8(,)057363.44530.5-7217058(,)0573t4(ll.3345u05-7217r(-4.80517(58(,)0573l))-7210997i))-7210997z6(,)057358(,)057363.4453b001]TJETr(-4.80517(58(,)0573s621.68i))-7210997l))-7210997e4(,)0573i -4.80517(2.41]TJET5l.389e4(l4)-1296m)18..85(75l.3891.41]TJET94 671209.40912 Tf[74.41]TJET3339(7)500)(-4.80517(40.3662955l.389d05-721705814489272 671-421.662j/R7 12 Tf[(58(,)0573d001]TJ5370o0.1]TJ5370ç8(,)0573ã8(,)05732.41]TJ5370171946d001]TJ5370e8(,)0573171945u001]TJ5370m)18..8697171945p.41]TJ5370s6221e4(l4)-1296u05-720295d001]TJ5370ô.41]TJ5370n.5-720295i)(ll.3345m)18..8697o.41BT91317194558(,)0573f)7.5.294r(-4.80517(58(,)0573n)5-720295c8(,)0573e4(l4)-1296s622158(,)0573d001]TJ5370o0.1]TJ6840.366295171945d001]TJETe8(,)05731719452.41]TJETu05-7217t))-7210997r(-4.80517(a8(,)0573171945l))-7210997í
238
Drummond” (1991, v. 1, p. 321-334), de Maria do Carmo Campos, sensível estudo a respeito
da alternância drummondiana entre o “eu-biográfico” e o eu-lírico” “na disputa do tempo” e
na “apropriação do passado” (1991, p. 329); “Uma nota de memória” (1991, v. 1, p. 494-9),
de Vera Lúcia Andrade; e “Vida e memória: Drummond” (1991, v. 2, p. 424-430), de Gilda
Salem Szklo. também um texto em que as autoras aproximam Drummond e Nava a partir
das casas, cidades e ruas evocadas como “palcos” “da cena da escritura(“Um palco entre
outros: A escrita da memória em Nava e Drummond”, apresentado por Raquel Beatriz
Guimarães e por Silvana Maria de Oliveira, 1991, v. 3, p. 514-520).
Determinados aspectos das Memórias de Pedro Nava serviram de tema a inúmeros
trabalhos apresentados no evento: a sexualidade na obra do memorialista, discutida por Ana
Madalena de Oliveira (“Memórias vitorianas O espaço da sexualidade na obra de Pedro
Nava”, 1991, v. 3, p. 234-9); a importância da “biblioteca” secular composta pelos ossos,
lembranças, livros e outros utensílios “herdados” de seus mortos foi tratada por Celina
Fontenele Garcia em A biblioteca de Pedro Nava, como metáfora de sua identidade” (1991,
v. 3, p. 249-254); a questão da morte, preocupação constante do médico memorialista,
retratada por Ana Cristina de Chiara (“Um homem no limiar: sobre o tema da morte na obra
de Pedro Nava”, 1991, v. 3, p. 241-8); a escritura da obra, considerada sob enfoque
psicanalítico (“Nava e a escrita da memória”, Nancy de Castro e Neide Braga, 1991, v. 3, p.
255-261); e, finalmente, o memorialismo como discurso simultaneamente ficcional e histórico
(“A forma anfíbia: memorialismo em Pedro Nava”, Maria Consuelo Cunha Campos, 1991, v.
2, p. 440-5)
3
.
3
O próprio Pedro Nava, em Beira-mar (Memórias/4), em trecho que faz referência ao “pensamento” de Proust,
reconhece o interesse crítico por sua obra, surgido já desde a publicação dos diferentes volumes: “Elas [suas
memórias] estão longe do que eu desejaria que fossem. Não me considero grande escritor por tê-las rabiscado.
Foram produzidas porque eu queria terroubando aqui o pensamento de Proust – esse encontro urgente, capital,
inadiável comigo mesmo. Esse pensamento, a que tenho obedecido com sinceridade, verdade e risco, é que
chamaram alguma atenção sobre meus escritos. Não sei se prestam ou não. O que reconheço e posso dizer
porque público, é que todos meus livros têm conhecido reedições e que a crítica brasileira ocupou-se deles com a
maior generosidade” (NAVA, 1985, p. 284). Fábio Lucas confirma o sucesso das memórias de Nava em
Mineiranças: “De repente, a literatura brasileira descobriu um escritor que ousou levar a nossa memorialística a
239
Algumas características apontadas nesses estudos serão comentadas nos itens seguintes,
principalmente em 4.5 (“Confluências entre as memorialísticas de Augusto Meyer e de Pedro
Nava”) e em 4.6 (“Augusto Meyer e os poetas e memorialistas proustianos brasileiros:
memória dos sentidos e acessos involuntários na ‘busca do eu perdido’ ”). Desejo, contudo,
destacar, desde o início, a preocupação constante de vários estudiosos e pesquisadores em
proceder a um exame crítico das principais obras do memorialismo brasileiro, teorizando
sobre seus aspectos essenciais e ressaltando suas peculiaridades sobretudo através das
complexas relações entre confissão (“verdade”) e imaginação (“ficção”) nelas presentes.
Gilda Salem Szklo, ao tratar dos três volumes que compõem a obra Boitempo, de
Drummond, sublinha o fato destas “memórias em verso” abarcarem lembranças individuais e
coletivas, lembrando-nos a idéia, formulada por Maurice Halbwachs (ver 2.1, p. 57), segundo
a qual a memória coletiva se impõe como resultante da inclusão da memória individual em
um certo “repertório de grupo”, sendo este grupo a família, a comunidade (arquetípica
mineira, no caso de Drummond), os amigos ou colegas de trabalho do memorialista.
Mergulhamos no texto autobiográfico de Drummond: o passado redivivo de
Boitempo I, II e III, onde as reminiscências do poeta explodem em imagens –
fragmentos de uma memória individual e coletiva. Boitempo é uma narrativa de
‘reminiscência’, na acepção de Walter Benjamin e que foi típica do modernismo.
Narrador memorialista, Carlos Drummond de Andrade é narrador da história; porta-
voz da tradição em uma perspectiva poética. Sua visão do passado é uma visão do
passado no presente, isto é, da vida que é ou foi, ou de um tempo carregado de
‘agoras’ que ele faz explodir do continuum da história, e no qual introduziram-se
estilhaços do tempo messiânico. (SZKLO, 1991, v. 2, p. 425)
4
seu limite mais extremo. Pedro Nava iniciara sua longa e meticulosa busca do tempo perdido, de um modo tão
intenso, tão rico, tão pormenorizado, que a aproximação com a obra de Marcel Proust foi o primeiro gesto da
crítica, diante de prodígio tão alto. Bde ossos foi um sucesso desnorteante. Em 1973 saía sua segunda
edição” (LUCAS, 1991, p. 123). Em “O baú de Pedro Nava” (Cult, maio 2003, p. 52), Sergio Amaral Silva
também comenta: “Sua estréia como memorialista, aos 69 anos, foi saudada pela crítica, que viu no livro a
reinauguração, renovada, de um gênero pouco exercitado na literatura brasileira. Baú de ossos foi também um
sucesso de público, esgotando seis edições até 1980”.
4
Na página seguinte a esta citação, Gilda Szklo comenta a reconstituição do ambiente familiar ancestral operada
por Drummond, e que desemboca na “desintegração do passado”, isto é, no contraponto entre a antiga pujança e
a atual decadência desta tradicional sociedade patriarcal, triste realidade (para o poeta) da transformação ocorrida
ao longo dos séculos: “Recompomos o quadro infantil e humano do poeta. São imagens da família, do cenário
doméstico, do avô, da avó, do pai, da mãe, dos tios, das tias, dos primos e primas, dos irmãos, dos homens e
mulheres do clã sob as ‘tábuas da lei mineira de família’ (...). Capturamos um passado de glórias, de poder
econômico centrado nos proprietários rurais, e um passado em processo de desintegração. Tomamos de seus
versos retratos do casarão azul da infância do poeta; os interiores, nos seus compartimentos, no seu mobiliário,
nos utensílios domésticos, evocando sentimentos; os exteriores, nas ruas, nas avenidas, no quintal, no galinheiro,
na horta...” (SZKLO, 1991, v. 2, p. 426)
240
241
entrega, com metódica e persistente paixão, ao namoro longamente acalentado a
produção de uma obra. (CAMPOS, 1991, v. 2, p. 440)
6
O influxo proustiano sobre as memórias de Nava e de outros modernistas brasileiros,
estudado com mais profundidade a partir da década de 1990, não foi, contudo, identificado
por esta geração que agora o assume e o avalia detalhadamente. Em texto de 1984 (“Prosa
literária atual no Brasil”, publicado, em 1989, em Nas malhas da letra Ensaios), Silviano
Santiago, assim como Antonio Candido em dois capítulos de A educação pela noite e outros
ensaios (1987), chama a atenção do leitor brasileiro para a vertente proustiana de nosso
memorialismo, representada, segundo ele, por “velhos modernistas” como Drummond, Nava,
Murilo Mendes e Maria Helena Cardoso que, após a década de 1960, “legaram” às gerações
mais novas a “narrativa de tipo autobiográfico”, um tipo de texto que, “enveredando por uma
linha que podemos qualificar de ‘proustiana’, tende a apresentar uma visão conservadora da
sociedade patriarcal brasileira, relatada através da inércia do principal protagonista (cujo
protótipo é o funcionário público)”, que o narrador, “entrado na velhice”, tendo a ambição
de “recapturar uma experiência não pessoal como também do clã senhorial em que se
inseria o indivíduo”, identifica-se com a comunidade ancestral da qual faz parte e “pactua
mais e mais com os antepassados patriarcais e com a atitude estóica daqueles que, tendo
uma experiência longa de vida, se resguardam das intempéries existenciais.” (SANTIAGO,
1989, p. 33)
Ao contrário do que expõe Antonio Dimas, Silviano Santiago afirma em Prosa literária
atual no Brasil” a existência de uma “preocupação memorialística” “explícita” na literatura
brasileira moderna, objetivando a conscientização do leitor e a discussão da complexa questão
do gênero, das “rubricas memórias e romance”:
6
Ver também, algumas páginas adiante: “Proustiano, homem de leitura e releituras de A la recherche du temps
perdu, de anotações e filigranas que uma sólida e extremamente fina sintonia com a demanda do tempo
perdido poderia motivar, Nava foi um homem da memória, no sentido de que ele fez sua a afirmativa de Anatole
France, em Le livre de mon ami, de que ‘la mémoire est une faculté merveilleuse et que le don de faire apparaître
le passé est aussi étonnant et bien meilleur que le don de voir l’avenir’ ” (CAMPOS, 1991, v. 2, p. 443). De fato,
242
Se existe um ponto de acordo entre a maioria dos nossos prosadores de hoje, este é a
tendência ao memorialismo (história de um clã) ou à autobiografia, tendo ambos
como fim a conscientização política do leitor. É claro que essa tendência não é nova
dentro das letras brasileiras. Queremos dizer é que ela nunca foi tão explícita na
dicção da prosa, deixando ainda mais abaladas as fronteiras estabelecidas pela crítica
tradicional entre memória afetiva e fingimento, entre as rubricas memórias e
romance. Sabemos, por exemplo, que a preocupação memorialística é um
componente forte e definitivo dentro de nossa melhor prosa modernista. Mas os
modos como aquela preocupação emergia na ficção eram menos abertos do que os
modos como afloram em Rachel Jardim, Paulo Francis ou Eliane Maciel, para citar
apenas uns poucos. Se Lins do Rego não tivesse escrito no final da vida Meus verdes
anos, não teríamos certeza de que a ‘ficção’ de Menino de engenho era tão
autobiográfica. O mesmo para Oswald de Andrade com o tardio Sob as ordens de
mamãe, subseqüente ao João Miramar. (SANTIAGO, 1989, p. 30; grifo do autor)
Vimos ao longo dos “Fundamentos teóricos” o quanto são sutis e flexíveis as fronteiras
entre as narrativas ficcionais e autobiográficas, a ponto de não sabermos, no caso de José Lins
do Rego, em que obra o autor se “confessa” mais, se em Meus verdes anos ou em Menino de
engenho. Esta dúvida vale também para outros criadores cujos níveis de complexidade
estrutural do discurso apontam para tal enigma além de José Lins e de Oswald,
mencionados por Silviano Santiago, podemos citar Graciliano Ramos (qual é mais
“autobiográfico”, Vidas secas ou Memórias do cárcere?) e Dostoiévski
7
.
Nava “fez sua a afirmativa de Anatole France”, tanto que a colocou como epígrafe de Bde ossos. (1983, 6 ed,
p. 17)
7
Em “O homem subterrâneo(Machado de Assis, 1952, p. 19), sugere Augusto Meyer: “Caso normativo dos
escritores de ficção; eles se confessam através das encarnações imaginárias, indiretamente, com uma sinceridade
mais honesta do que na correspondência ou nos cadernos íntimos. O verdadeiro Dostoiévski, por exemplo, se
revela muito mais na obra literária do que no Journal d’un écrivain”. Sobre a fusão entre ficção e realidade
presente nas obras memorialísticas, que resulta na já mencionada “forma anfíbia” na qual, no dizer de Paulo
Nolasco, “os limites entre memória e ficção começam a esboroar-se”, acompanhemos o comentário de Antonio
Candido ao final de A nova narrativa”: “Pedro Nava, médico eminente, era conhecido em literatura por alguns
amigos, devido à participação no movimento modernista de Minas; e por alguns raros poemas de amador
original e talentoso. De repente, aos setenta anos, começa a publicar as suas espantosas memórias, numa
linguagem extremamente saborosa, de uma prolixidade que fascina proustianamente o leitor. Nós as lemos como
se fossem ficção, porque são de fato poderosamente ficcionais a força da caracterização e a disposição imaginosa
dos acontecimentos, que, mesmo quando documentados no ponto de partida, são tratados com o tipo de fantasia
que distingue o romancista” (CANDIDO, 1987, p. 215). Em “Poesia e ficção na autobiografia”, Candido destaca
o papel da imaginação como mediadora entre verdade e ficção: “Confinado nos limites da sua memória, com a
vontade tensa de apreender um passado que lhe chega pelo documento e por pedaços das memórias dos
outros, o Narrador [das Memórias de Nava] penetra simpaticamente na vida dos antepassados e dos parentes
mortos, no seu ambiente, nos seus hábitos, e não tem outro meio de os configurar senão apelando para a
imaginação. Desse modo, sobretudo em Baú de ossos, o relato adquire um cunho de efabulação e o leitor o
recebe como matéria de romance” (CANDIDO, 1987, p. 61). Em enquete realizada pela Folha de São Paulo em
setembro de 2001 a respeito do personagem de ficção mais marcante da literatura brasileira, o próprio Silviano
Santiago, ao contrário dos demais intelectuais consultados, justifica sua opção inusitada: “No presente momento,
o meu personagem favorito na prosa de ficção brasileira não se encontra nos grandes romances que foram
construídos pela arte do fingimento. Encontra-se nos livros autobiográficos. (...) Meu personagem favorito na
literatura brasileira é hoje o Graciliano Ramos das ‘Memórias do Cárcere’. Ele está no nicho por ele aberto pela
assiduidade com que reaparece na minha vida de leitor. Por isso é ali que, neste dia, acendo a vela da fidelidade e
do louvor.” (SANTIAGO, “Autobiografia como romance”, Caderno Mais!, Folha de São Paulo, 2001, p. 9)
243
Em outro capítulo pertencente a Nas malhas da letra, intitulado “O intelectual
modernista revisitado”, Silviano Santiago revela o despertar do interesse pelo memorialismo
em nossa crítica literária.
A bem da cronologia, cumpre salientar a posição pioneira, dentro dos estudos
literários, de Antonio Candido. Muitos anos antes da vasta bibliografia sobre
memorialismo e autobiografia que nos chega dos quatro cantos do mundo, uma
bibliografia liderada pela formalização moderna e abrangente da questão feita por
Philippe Lejeune, em Le Pacte autobiographique (1975), Candido é citado no corpo
das memórias de Oswald de Andrade, Sob as ordens de mamãe (1954), da seguinte
forma: ‘Antonio Candido diz que uma literatura adquire maioridade com
memórias, cartas e documentos pessoais e me fez jurar que tentarei escrever este
diário confessional’. (SANTIAGO, 1989, p. 167-8)
Para que compreendamos onde foi plantada a “semente” desta “preocupação
memorialística” frondosa que tanto interessa à atual geração de críticos acadêmicos, é
fundamental esta indicação de Silviano Santiago do pioneirismo de Antonio Candido,
precursor de Lejeune, em valorizar os relatos memorialísticos e confessionais como essenciais
para a consolidação de uma tradição literária consistente e representativa, pioneirismo que se
confirma por esta declaração de Oswald de Andrade, citada por Santiago, a respeito da
insistência de Candido para que ele deixasse seu registro autobiográfico, sugestão acatada no
mesmo dia, 15 de agosto de 1952, quando Oswald inicia a redação de Um homem sem
profissão Sob as ordens de mamãe. O trecho completo do comentário de Oswald, feito na
abertura de suas memórias, é o seguinte:
Hoje, feriado, 15 de Agosto, vieram almoçar conosco os casais Antonio Candido e
Domingos Carvalho da Silva. Saíram pouco, depois de uma boa camaradagem.
(...) Empresto a Antonio Candido o livro de crítica política de Lourival Fontes,
intitulado Homens e multidões, que ele repele com horror. Mal sabe que se trata de
um milagre, pois, do tradicional e consciente fascista que organizou o DIP, saiu o
melhor volume que possuímos no assunto, inteligente, imparcial e informado. (...)
Antonio Candido diz que uma literatura só adquire maioridade com memórias,
cartas e documentos pessoais e me fez jurar que tentarei escrever já este diário
confessional. (ANDRADE, 2002, p. 36)
Quanto a essa “maioridade” à qual Candido se refere, Santiago julga que, exceção feita
às memórias de Nava, tais textos autobiográficos, pouco “frondosos” e “viris”, ainda
“reclamam a atenção dos nossos melhores estudiosos”, opinião afim a de Antonio Dimas.
Essa ‘maioridade’, os modernistas a conseguiram nas últimas décadas, quase
todos publicando de uma forma ou de outra – as suas memórias. Diga-se de
244
passagem que muitas delas deixam a desejar, que os seus respectivos autores
julgaram apenas interessante o relato dos acontecimentos infantis em família
patriarcal. A infância foi o pasto privilegiado do boi-memória modernista; ali
ruminou ele o capim verde e tenro, devidamente observado pelas árvores paternas.
Mas mesmo sem galhos viris e frondosos, exceção para Pedro Nava, os textos
memorialistas dos modernistas estão reclamando a atenção dos nossos melhores
estudiosos. (SANTIAGO, 1989, p. 168)
Felizmente, esta lacuna apontada por Santiago durante a década de 1980 começa a ser
preenchida, a partir dos anos 90, por estudos e teses universitárias que, como veremos em
seguida, passam a se preocupar cada vez mais com aspectos teóricos envolvendo as narrativas
autobiográficas e as memórias de autores como Taunay, Nava e Graciliano, dentre outros.
Interessa-me sobremaneira o privilégio dado aos relatos memorialísticos relacionados à
infância e à juventude (já que estas são justamente as épocas destacadas nas memórias de
Meyer), privilégio criticado por Silviano que, ao que parece, lamenta a ausência de cunho
político desses relatos e a inexistência, em nossa memorialística, de descrições de fases mais
maduras referentes à vida de escritores que testemunharam, ao longo do século XX,
importantes transformações sociais, econômicas e culturais da nação.
O pioneirismo de Antonio Candido não se restringe à sugestão feita a Oswald de
Andrade em 1952. Em “Murilo Mendes: a memória além dos limites da prosa”, Elisabet
Gonçalves Moreira faz referência a um curso sobre A idade do serrote ministrado por
Candido em 1975
8
, e em A educação pela noite e outros ensaios (1987) lemos que o texto do
capítulo 4, “Poesia e ficção na autobiografia”, é originalmente uma palestra, intitulada
“Autobiografia poética e ficcional de Minas”, proferida em Belo Horizonte, em março de
1976, como parte das comemorações do cinqüentenário da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG).
8
Diz Elisabet: “O primeiro capítulo [de A idade do serrote] intitulado ‘Origem, Memória, Contacto, Iniciação’
foi objeto de uma análise textual admirável feita pelo professor Antonio Candido, num curso de 1975, do qual
participei e passo a sintetizar anotações feitas na época” (1991, v. 2, p. 226). Aproveito o espaço desta nota para
desfazer um equívoco cometido por Elisabet Moreira que, no último parágrafo de seu texto, afirma que Murilo
Mendes e Pedro Nava, mesmo sendo ambos contemporâneos e conterrâneos (de Juiz de Fora), “nem um nem
outro se citam” nas respectivas obras memorialísticas. Tal suposição é incorreta, uma vez que, no sexto volume
das memórias de Nava (O círio perfeito), o médico mineiro descreve detalhadamente a conversão de Murilo
245
Nesse texto, em que Candido comenta Baú de ossos, A idade do serrote e Boitempo, o
crítico propõe o termo heterobiografia para caracterizar um tipo de narrativa autobiográfica
no qual a “experiência pessoal se confunde com a observação do mundo”, resultando na
descrição simultânea da história dos “outros” e da “sociedade”
9
. Como conseqüência,
constata-se uma aparente ambigüidade, pois, desta forma, imprime-se “um cunho de
acentuada universalidade à matéria narrada, a partir de algo tão contingente e particular como
é em princípio a vida de cada um”. (CANDIDO, 1987, p. 51)
Assim, o real e o ficcional, o particular e o geral, o documento e a imaginação se
mesclam e se complementam, nos textos autobiográficos, de forma tão inextricável a ponto de
nos fazer acreditar na existência de um nero mais “completo” que os demais, uma vez ser o
único capaz de dar conta do perfeito equilíbrio entre “representação literária e experiência
vivida”, se quisermos utilizar os termos propostos por Wander Melo Miranda em Corpos
escritos. (1992, p. 26; ver Introdução, p. 16)
Quanto à obra de Murilo Mendes, além dos trabalhos de Candido apresentados na
década de 1970, lemos, na introdução à coletânea Transístor Antologia de prosa (1931-
1974), escrita por Luciana Stegagno Picchio, a seguinte referência ao proustianismo do autor
de Poesia liberdade, evidenciado em A idade do serrote, livro composto, segundo a autora,
durante os anos de 1965 e 1966 em Roma, e publicado no Brasil em 1968 pela Editora Sabiá:
O livro é de memórias no sentido proustiano, sendo a madeleine substituída, como
sempre acontece com a sensibilidade auditiva de Murilo, por palavras evocativas,
por nomes de babás, Etelvina, Sebastiana, histórias, parlendas, orações, ciranda
cirandinha, o bicho-papão, a mula-sem-cabeça, pianolas, quidum-sererê, por nomes
de doenças infantis, sarampo, caxumba, catapora, coqueluche, trazendo à lembrança
ternuras de camas quentes, de silêncios em redor. (PICCHIO, “Prosas de Murilo
Mendes”, 1980, p. 14-5)
10
Mendes ao catolicismo, ocorrida durante o velório do artista plástico Ismael Neri e presenciada por todos que ali
se encontravam. (NAVA, O círio perfeito, 2 ed, 1983, p. 315-9)
9
Conferir este trecho à página 16 da Introdução.
10
A idade do serrote continua fascinando os críticos contemporâneos. Exemplo disso é o instigante artigo
“Murilo Mendes entre Pompéia e Roma: as ficções do sujeito em A idade do serrote”, de Fernando Fábio Fiorese
Furtado, no qual o autor acentua que “Situações e incidentes os mais banais também participam dessa trama
textual que conjuga em desvios e retas as linhas esgarçadas do tempo.” (In Revista de Letras da UNESP Dois
centenários: Murilo Mendes e Cecília Meireles. São José do Rio Preto: UNESP, v. 41/42, 2001/2002, p. 15)
246
Outro importante texto sobre a memorialística brasileira publicado antes do Congresso
da ABRALIC em 1990 é o mencionado “Móbile da memória”, veiculado em Enigma e
comentário – Ensaios sobre literatura e experiência (1987), de Davi Arrigucci Júnior, no qual
o crítico aproxima as Memórias de Pedro Nava das obras Casa grande & senzala (Gilberto
Freyre) e O Ateneu (Raul Pompéia). Arrigucci mais semelhanças entre as obras
memorialísticas de Nava e estas duas obras “fundamentais na constituição do modo de ser
delas em sua relação com o passado histórico brasileiro” (1987, p. 74) do que se comparadas a
outros registros autobiográficos importantes, como os de Murilo Mendes, Oswald de Andrade
e Manuel Bandeira. Para ele, as Memórias do médico mineiro são radicalmente diferentes de
tudo quanto havia sido anteriormente publicado, neste gênero, em nosso país, pois
(...) o que Nava produziu não era o que se esperava habitualmente, pela tradição da
memorialística brasileira. Livros importantes tinham sido feitos aqui no gênero de
memórias, com maior ou menor interesse literário, mas nenhum deles pode ser
tomado como um antecedente claro da sua obra. Nem mesmo dentro do quadro do
gênero no Modernismo, próximo por outros lados, se encontram laços de parentesco
evidente. (ARRIGUCCI JR, 1987, p. 73)
Davi Arrigucci fornece em seguida exemplos da ausência de “parentesco” entre as obras
de Pedro Nava e de outros memorialistas modernistas anteriores a ele (a maioria, presente no
corpus deste capítulo), justificando sua opinião sobretudo através dos diferentes recursos
estilísticos utilizados nas composições, mas também de componentes históricos e sociais, dos
“documentos de época”:
Assim, por exemplo, o admirável A idade do serrote, de Murilo Mendes, que tem o
dom de cativar pela força poética, fruto de uma linguagem tensa e condensada, cheia
de achados de humor, de perfis escarpados e irreverentes, mas trabalhando a prosa
no sentido da concisão descarnada das imagens e dos cortes bruscos do relato, em
tudo avesso à expansão narrativa e à abundância verbal das Memórias [de Nava].
Caso parecido é também o das memórias desabusadas de Oswald de Andrade: Um
homem sem profissão (Sob as ordens de mamãe), onde sua veia satírica produz
páginas de uma graça e picardia da qualidade do João Miramar ou do Serafim, quer
dizer, do melhor Oswald. Mas nelas falta propriamente a reconstrução organizada do
passado, o documento de época, o retrato do sujeito, tudo se esbatendo num
amálgama de impressões, em que se misturam lirismo e ficção, sem todavia
configurar o desenho e o quadro característicos da obra de Nava. E se poderia citar
ainda, para ficar com os companheiros modernistas do memorialista mineiro, o
Itinerário de Pasárgada, de Manuel Bandeira, livro difícil de classificar, onde os
elementos autobiográficos e confessionais se misturam à reflexão sobre poética e ao
comentário crítico, numa mesma prosa limpa e exata. Mas aqui estamos ainda mais
distantes de Nava, que revela, porém, profundas afinidades com a obra lírica do
247
poeta (...). No mesmo sentido, seria também de pouca ajuda pensar nas memórias
em versos de Drummond. (ARRIGUCCI JR, 1987, p. 73-4)
11
Mesmo julgando o texto de Nava distinto de tudo o que havia sido feito anteriormente
248
Augusto Meyer), mesmo não estudando especificamente a memorialística do autor, Tania
Franco Carvalhal, ao interpretar a poética meyeriana, demonstra o quanto sua obra, de modo
geral, buscou e alcançou coerência e unidade invejáveis, destas sendo partes indissociáveis a
poesia, a crítica, as memórias, enfim, todos os gêneros a que Meyer se dedicou. Já no capítulo
de abertura de A evidência mascarada, sugestivamente intitulado “Tecendo a unidade”, ao
citar a primeira estrofe de “O poema” (“Corredor do tempo esquecido / Onde o eco responde
ao eco, / Em vez de janelas, reflexo / De espelho a espelho, refletido”, Poesias (1922-1955),
1957, p. 260), Tania comenta:
Essa poética da circularidade, conformação peculiar em que predomina a reversão
sobre si mesma, alude à postura de Narciso empenhado no conhecimento de si
mesmo pela investigação da própria imagem. (...) Nesta perspectiva é natural o
encaminhamento do autor para a obra de memória, território privilegiado da análise
de si mesmo através da reconstrução de um tempo anterior. Assim como a ensaística
e a poesia, a memorialística prolonga a busca de uma essência que ao longo dos anos
se desgarrou. Por isso Segredos da Infância e No tempo da Flor tentam reconquistar
não só um tempo perdido mas sobretudo uma identidade que nesse tempo se perdeu.
(CARVALHAL, 1984, p. 16-7)
Travando um “continuado diálogo entre si”, os diferentes gêneros eleitos por Meyer
perfazem uma “totalidade” que, em busca da “essência perdida”, age como em um “jogo
infinitivo de espelho”, refletindo-se e complementando-se reciprocamente, supostas “partes”
que somente fazem sentido se consideradas em conjunto:
Assim, uma espécie de lei dos reflexos, num jogo infinito de espelho, parece
estruturar o universo literário de Augusto Meyer. Nele, como numa caixa de
ressonâncias, os textos se falam e se respondem. Temas, motivos e imagens migram
de uma obra para outra porque travam um continuado diálogo entre si. (...) Por isso,
sua poesia se ilumina quando lida no confronto com o ensaio crítico ou com a obra
de memória e mesmo com os Cadernos e esses mais se esclarecem pela leitura da
primeira. É surpreendente como sua produção, quando percorrida na totalidade,
adquire a feição de um todo, unitário e coerente. Como se cada face fosse dela
apenas uma aparência, a obra ganha ao ser vista em conjunto, sem o risco da
fragmentação. É, portanto, necessário aproximar os diferentes textos para apreender-
lhes a unidade. Embora várias vias de acesso a este universo possam ser seguras,
temos de abrangê-lo por inteiro se quisermos ter a visão global e exata do desenho
que ele traça. (CARVALHAL, 1984, p. 16)
Vários aspectos discutidos por Tania Carvalhal em A evidência mascarada serão
retomados posteriormente, sobretudo nos itens 4.2 (no qual comentarei o apelo involuntário
de Meyer ao minuano, o “vento da campanha”), 4.4 (a fragmentação da personalidade e a
249
tentativa de reunificação dos vários “eus” que compõem as diferentes etapas da vida do
escritor) e nas considerações finais (gêneros interligados por um objetivo comum o
autoconhecimento conquistado através do “mergulho interior”). No presente item, tenho
apenas a intenção de destacar o quanto Tania Carvalhal insiste na valorização da
memorialística de Meyer como chave para a compreensão de sua obra poética e o quanto
ambas, poesia e memorialística, são, nas palavras da própria autora, “unidas” “por uma
mesma tonalidade evocatória”, a ponto de Meyer reaproveitar, nos volumes de memória,
capítulos anteriormente veiculados em Literatura e poesia, uma vez que as intenções do autor
são praticamente as mesmas nestes dois diferentes tipos de escritura. À página 37, afirma
Tania:
Nada menos surpreendente, portanto, verificar que vários dos textos que compõem
Segredos da Infância integravam, na primeira edição, Literatura e Poesia e alguns
deles ainda irão sugerir a elaboração de trechos de No Tempo da Flor. Confronte-se,
por exemplo, o início de “Estampa” (1931) com a parte introdutória de “Crepúsculos
do Sul” (1966). Ou melhor, “O Rei dos Ratos”, segundo capítulo do primeiro
volume de memórias nada mais é que um desenvolvimento de “Mundo”, texto
constante da edição original de Literatura e Poesia, publicado pouco antes de
integrar o livro no Correio do Povo, em 6 de outubro de 1929. Também “Aug está
gripado” e “São Leopoldo”, ambos da obra de 31, são reproduzidos quase
integralmente em Segredos da Infância. (...) A estreita vinculação entre a poesia e a
memorialística permite ao autor suprimir textos de uma para inseri-los em outra
porque, na verdade, as intenções são sempre as mesmas. Sempre que recorre à
infância o faz com idêntica motivação. Trata-se de ir ao fundo de si mesmo, resgatar
o eu que se perdeu, porque é ‘lá que ele dorme, como a verdade no fundo de um
poço.’
13
(CARVALHAL, 1984, p. 37; grifo da autora)
À semelhança dos outros críticos mencionados acima, que ressaltaram o proustianismo
de memorialistas como Pedro Nava e Murilo Mendes, Tania Carvalhal também identifica a
filiação proustiana das Memórias de Meyer, “ilhas” de recordações fragmentadas cuja
estruturação segue o modelo da Recherche:
A volta à infância na reconquista de si mesmo reencontra as fontes poéticas. A
memória espécie de ilha flutuante com o significado que lhe atribui Proust de
‘recordação que emerge do inconsciente’ serve-lhe de fio condutor. Seu
andamento fragmentado, incompleto e imprevisto estrutura o texto meyeriano. Por
isso ele é feito de instantes, captações bruscas de um detalhe aparentemente
13
Ver MEYER, “Cerro d’Árvore”, Segredos da infância, 1949, p. 13. Conferir o trecho completo à página 15 da
Introdução.
250
insignificante que alcança, na cadeia de associações livres, outro valor.
(CARVALHAL, 1984, p. 36; grifo da autora)
14
No ano seguinte à defesa de tese de Tania Carvalhal, Eliane Zagury publica A escrita do
eu (1982), o primeiro ensaio da crítica brasileira a discutir a fundo o gênero autobiográfico em
nossa literatura, principalmente as memórias de infância, recorte enfatizado desde a
Introdução, onde a autora afirma que
(...) é na década de 40 que surgem, entre nós, as memórias de infância, subgênero da
literatura confessional que veio produzir textos de qualidade indiscutível, sendo
mesmo um dos sustentáculos da nossa prosa lírica. (ZAGURY, 1982, p. 14)
Eliane Zagury se refere basicamente a duas obras fundamentais de nossa literatura
memorialística modernista produzidas na referida década: Infância (1945), de Graciliano
Ramos, e Segredos da infância (1949), de Augusto Meyer, livros que inauguram o gênero
(memórias de infância) no Brasil. Antes de estudá-los, porém, Zagury destaca o pouco
interesse despertado pelos mesmos, confirmando que é antiga a preocupação demonstrada por
Antonio Dimas em relação ao silêncio da crítica brasileira quanto ao memorialismo:
Ao nos debruçarmos sobre a literatura memorial produzida no Brasil, precisamos ter
em mente que se trata de matéria difusa e pouco estudada, talvez vítima de um
purismo esteticista que a tenha desdenhado, por estar mais próxima de suas
motivações sociais e psicológicas que o fascinante produto de transformação que são
a poesia, a ficção ou o teatro não por outras razões ainda detentores com
exclusividade da denominação de grandes gêneros. (...) Porque, na verdade, falar de
si mesmo é uma ruptura de perspectiva, um desequilíbrio em que o sujeito, sendo o
seu próprio objeto, como que caminha sobre uma perna só. O distanciamento
temporal um eu objeto passado em relação a um eu sujeito presente representa o
perfil de uma segunda perna fantasmagórica, porque a memória é sempre fluida e
inconstante. A literatura memorial, portanto, de ser sempre uma literatura crítica,
no sentido de ser em crise. Se em face de si mesmo, freqüentemente, o homem está
indefeso, em face da literatura memorial, o escritor está sempre inerme. Cada obra
que se preze equivale a um reinício do gênero, porque sua matéria só se pode
acreditar como especialíssima. Daí que não seja comum o tratamento evolutivo
desse gênero literário. As histórias da literatura simplesmente o ignoram,
concedendo algumas vezes que ele apareça na bibliografia acessória de um grande
poeta ou romancista. (ZAGURY, 1982, p. 14-5; grifo da autora)
14
Segundo Tania, não somente a memorialística de Meyer é proustiana sua poesia, sobretudo o introspectivo
Giraluz, também respira a atmosfera de desmascaramento psicológico típico de quem, assim como o romancista
francês, coloca-se deliberadamente à procura da própria essência: “É em Giraluz que um melhor domínio no
plano da linguagem vai ser logrado. Aqui a poética inspira-se em Proust, justamente naquele aspecto que lhe
parece substancial no autor da Recherche, a capacidade de revelar ‘a tendência dispersiva, pelo próprio tempo,
dissociador e dissipador da personalidade’ (CARVALHAL, 1984, p. 79). Na seqüência deste item, veremos
como as pesquisas de Tania Carvalhal a respeito de aspectos que envolvem a memorialística de Meyer e sua
relação com outros gêneros de sua obra m continuidade nos diversos prefácios, estudos críticos e artigos que a
autora escreveu.
251
É justamente contra esse estigma de “literatura acessória” que o estudo de Zagury (e
outros tantos que, felizmente, hoje grassam à exaustão) pretende se colocar, evidenciando a
importância deste gênero “anfíbio” e complexo, gênero que, “(...) sem dúvida, será uma das
maiores conquistas do modernismo para a criação de uma prosa lírica brasileira”. (ZAGURY,
1982, p. 35)
Desenvolvidas pelos modernistas a partir da década de 1940, as memórias de infância
remetem a alguns registros autobiográficos que Eliane Zagury classifica como os “primeiros
antecedentes” do subgênero, dentre os quais a autora arrola obras anteriores ao Modernismo
(Trechos da minha vida, de Visconde de Taunay, 1890; Minha formação, de Joaquim
Nabuco, 1900; e Minha vida, de Medeiros e Albuquerque, 1916) ou mesmo posteriores ao
surgimento da escola no Brasil (O meu próprio romance, 1931, de Graça Aranha; Memórias,
1932, e Memórias inacabadas, 1935, de Humberto de Campos; e Memórias da Emília, 1936,
de Monteiro Lobato, espécie de paródia do gênero), estes últimos rotulados por Zagury como
parte de um preparador surto memorialista dos anos 30” (1982, p. 119), intermezzo entre as
autobiografias de Taunay, Nabuco e Medeiros e Albuquerque e as memórias de infância
escritas por Graciliano Ramos e por Augusto Meyer.
O diferencial, para Zagury, entre as autobiografias anteriores e posteriores aos anos 40 é
a presença da “descontinuidade da memória”, característica primordial de Infância:
Em Infância, o relacionamento mais ou menos livre entre os capítulos representa a
descont.55617(e)-21]TJ/R7 9.n.55617(e)-dpae a memria, em rnca opos.55617(e)-çao s cn.55617(e)-(c)-2.05734(a)-2.05734(s)3.21993( )-976.479(n)5.7217(a)-2.60289(r)-4.55617(r)-4.55617aetas a
atoiora sa prso actual cronol.55617(e)-(c)-2.05734(a)-2.05734., o u no aa c 9.98264(r)-4.55617(o)-6.39739(n)5.7217(o)-6.3339(l)0.724042op.556124042(a)-2.0544( )-99.6118nna
comos.55617(e)-çao e rci.55617(e)-(a)-14.1129(n)5.7217(o)-6.3339( )753.5004Rsamos , mas mto scr ea, e.55617(e)-sG s.mament maraa
252
mudança de orientação da memorialística brasileira ocorrida após o que se convencionou
denominar de terceira geração modernista. Para Zagury, esta terceira fase age como divisor de
águas antes dela, as autobiografias seguem o encadeamento lógico das lembranças
verbalizadas na mesma seqüência dos fatos ocorridos; após 1945, o abandono da continuidade
espaço-temporal funciona como uma espécie de bandeira de um subgênero que, antes
aparentemente interdito ao movimento, surge tardiamente com a força de uma novidade
ansiada e logo assimilada.
É característica modernista mais que propalada pelos programadores do movimento
o abandono da ordem lógica das construções. Entretanto até a data de publicação de
Infância 1945, que curiosamente coincide com o início das publicações da
chamada ‘geração de 45’, que de certa forma reage ao ‘primitivismo’ modernista
as memórias não tinham aberto mão da severidade lógica da linguagem. O fenômeno
é compreensível: os escritores modernistas por adesão confessa ao movimento ou
por assimilação do que nele havia de verdadeiro sem exageros, em consonância com
a vida do século XX, ainda não tinham escrito memórias, gênero sempre tardio,
porque originário de uma atitude vital nada jovem,
253
memorial. Mas a grande diferença agora é que serão memórias de poeta, não de
ficcionista. O protagonista já não será revivido dramaticamente pelo autor, mas sim
contemplado, amado, presença invocada pela saudade e pela autoternura, em
passeios pelo tempo. O protagonista não se impõe como daimon a ser liberto e/ou
exorcizado, mas desabrocha do cultivo insistente da autocontemplação. (ZAGURY,
1982, p. 134)
Zagury, assim como Tania Carvalhal em A evidência mascarada, na
autocontemplação meyeriana a aproximação entre a poesia e a memorialística de um
introspectivo excessivamente preocupado com a redescoberta de si, essência profunda de
tantos eus reunificados em torno da figura arquetípica de Narciso, sujeito e objeto, criador e
criatura que se embevece na análise impiedosa de si mesmo, pois
Quem tiver presente a poesia de Augusto Meyer saberá como este abismar-se em si
mesmo é uma atitude constante, é a verdadeira tentação do poeta, Narciso que talvez
finja desconhecer a própria imagem para, numa volúpia maior, fazer durar
indefinidamente a autocontemplação. (ZAGURY, 1982, p. 134)
Na esteira das considerações de Tania Carvalhal, a autora de A escrita do eu, a fim de
evitar aquilo que ela própria classifica de “comparativismo colonial” ou “meramente formal”,
refere-se ao proustianismo de Meyer através da menção a alguns textos em prosa e em verso
que o memorialista dedicou ao comentário da obra de Proust, tais como a crônica “Os galos
vão cantar” (ver item 3.3, p. 225-6) ou o capítulo Ladeira da saudade”, de No tempo da flor
(1966, p. 87-92), confissões diretas de um Meyer leitor assíduo de Proust:
Esta linha da memória intermitente e sentimental, de base sensorial, pode ser
reconhecida como a linha proustiana das memórias de Augusto Meyer, sem cairmos
aqui em comparativismo colonial ou meramente formal, pois o autor nos deixou
vários testemunhos da sua convivência com a obra de Proust. Em Giraluz, por
exemplo, uma ‘Elegia a Marcel Proust’. Em Tempo da flor, livro de memórias de
adolescência texto da maior importância, mas que, por sistemática de trabalho,
escapa ao nosso exame mais detalhado a seguinte referência: ‘(...) está a
Biblioteca Pública, onde o adolescente Bilu, macerado de literatura e metido num
casaco felpudo, ia ler todas as manhãs um estranho e delicioso livro intitulado À
l’ombre des jeunes filles en fleurs’. E na obra ensaística, notadamente no artigo ‘Os
galos vão cantar’, publicado em Preto & Branco, demonstra profundo conhecimento
da obra de Proust. (ZAGURY, 1982, p. 138)
Assim como as observações sobre a memorialística de Meyer feitas por Tania Carvalhal
em A evidência mascarada (que sugestionaram a tese que ora apresento), o abrangente estudo
de Eliane Zagury que, tendo analisado obras de autores como Joaquim Nabuco, Humberto
de Campos e Monteiro Lobato, discute detalhadamente diversos aspectos fundamentais de
254
Infância, Segredos da infância e O menino e o palacete certamente despertou a atenção,
sobretudo a partir dos anos 90, de vários críticos universitários interessados na compreensão
de um gênero ímpar (que se pauta pela “mescla indeslindável de ficção e verdade”) e quase
sempre relegado a plano secundário pelo cânone “oficial” da literatura brasileira. Como
veremos em seguida, teses envolvendo aspectos relativos à memória são cada vez mais
freqüentes nos programas de Pós-Graduação em Letras das mais diversas universidades
brasileiras, estudos em sua maioria de rara beleza estilística e de grande percepção da
duplicidade, espelhada na relação texto/linguagem, envolvendo as sugestões expressas pelas
mais diversas ocorrências mnemônicas, tanto as lembradas involuntariamente (pertencendo
ainda ao domínio oral da linguagem) quanto as “imaginadas”, recriadas voluntariamente
(domínio escrito da linguagem, quando a sugestão, a fim de se eternizar através da escrita, é
reconfigurada diante da folha em branco). Ainda neste item veremos de que forma estudos
como os de Tania Carvalhal e de Eliane Zagury impulsionaram toda uma nova geração de
críticos universitários que, conscientes da importância de se interpretar devidamente inúmeros
registros fundamentais da bibliografia memorialística brasileira e munidos das teorias
estruturalistas de críticos como Lejeune, Derrida, Foucault, Barthes, Genette e Ricoeur,
debruçaram-se sobre o deslinde de obras autobiográficas de autores como o Visconde de
Taunay, Graciliano Ramos, Silviano Santiago e Pedro Nava.
Entretanto, antes de comentar tais estudos contemporâneos, complexos e extremamente
críticos, gostaria de chamar a atenção para o fato de que estudos como os de Carvalhal e de
Zagury, assim como originaram diversos outros trabalhos, por sua vez também tiveram uma
“origem”: refiro-me à chamada “crítica de jornal”, isto é, crônicas e artigos publicados nos
mais variados órgãos de imprensa do Brasil, textos que não discutiram a fundo o assunto mas
que certamente estão na base da recepção crítica destas obras e dos próprios estudos
memorialísticos realizados posteriormente.
255
No caso específico da memorialística de Augusto Meyer, objeto desta tese, é notável a
grande quantidade de textos nos quais ela é mencionada, variando desde referências breves
até análises minuciosas envolvendo aspectos estilísticos, semânticos e estruturais. Além disso,
podemos encontrar também uma significativa bibliografia que inclui, ao lado dos textos de
jornais e periódicos, testemunhos e reminiscências pessoais de quem conviveu com Meyer e
pôde, assim, confrontar as confissões veiculadas em suas Memórias às atitudes e idéias do
escritor, constituindo-se tais depoimentos, em muitos casos, o que chamarei de “memória de
grupo”, conjunto de textos que vinculam a atividade e a produção intelectual do autor a
determinado grupo ou geração com os quais este compartilhou seu fazer literário.
Somente no Correio do Povo de Porto Alegre, órgão no qual Meyer se firmou como
colaborador sobretudo entre 1925 e 1935, duas edições especiais sobre a vida e a obra do
escritor, ambas veiculadas no Caderno de Sábado, suplemento cultural do conceituado jornal
da capital sul-rio-grandense a primeira, de 31 de outubro de 1970, ano no qual, tendo
morrido a 10 de julho, Augusto Meyer é escolhido patrono da XVI Feira do Livro de Porto
Alegre; e a segunda, de 12 de julho de 1980, homenagem feita por ocasião dos dez anos de
seu falecimento.
No suplemento de outubro de 70, o discurso de abertura da Feira do Livro (cancelado
devido à morte do jornalista Alcides Gonzaga, ocorrida a 29.10.1970, e que seria pronunciado
por Donaldo Schüler) é publicado sob o tulo de “Augusto Meyer: a palavra e o mito”. No
terceiro parágrafo da apresentação, Schüler destaca o fato de Meyer ter imortalizado, em suas
memórias, aspectos pitorescos de uma capital antes provinciana (mas “madura”
intelectualmente) e naquele instante (início da década de 70) em acelerado processo de
modernização:
Augusto Meyer está definitivamente ligado a esta Cidade. O nome de Augusto
Meyer se confunde com estas árvores, com estas ruas, com este sol, com os nossos
jardins floridos, com nossas construções antigas. Augusto Meyer viu [na] Cidade um
monumento portentoso, que não será arrasado pela ação devastadora do progresso
urbanístico. A Porto Alegre antiga será imorredouramente bela nos livros de
256
memória de Augusto Meyer. A obra literária de Augusto Meyer mostra também a
maturidade intelectual a que tinha chegado Porto Alegre nas primeiras décadas deste
século. Augusto Meyer, entre outros de sua geração, elevou Porto Alegre ao nível
dos maiores centros literários deste País. (SCHÜLER, Caderno de Sábado, Correio
do Povo, 31.10.1970, p. 08)
16
Em tom igualmente elogioso, Josué Montello encontra nas memórias de Meyer
exemplos ideais da perfeição do estilo do autor
17
, motivações que o fazem incluí-las em
criteriosa lista de obras destinadas a acompanhá-lo em uma longa viagem ao exterior:
Quando saí do Brasil, em dezembro de 1968, com o programa de passar dois anos na
França, preparei para a temporada longa na língua alheia uma pequena biblioteca de
livros brasileiros e portugueses, pensando nas horas em que a saudade da língua
materna, na sua depuração literária, teimaria dentro de mim. Ao todo, uns 30
volumes. Entre eles, incluí dois de Augusto Meyer – aqueles em que o grande
escritor recompõe a sua infância e juventude com um rigor de forma que lhe dava
entre os mestres uma tranqüila preeminência. (MONTELLO, Caderno de Sábado,
Correio do Povo, 31.10.1970, p. 10)
Em “Aug”, o grande amigo Theodemiro Tostes, fazendo referência aos “indevassados
becos da memória” de Meyer, destaca uma característica peculiar do companheiro de geração,
também presente em seu memorialismo o introspectivo solitário que, desprezando a
realidade, imerso no mundo das idéias e da imaginação criadora, sai em busca de sua história
pessoal e familiar no intuito de chegar à “essência” de si:
A voz grave (que, em certas noites trauteava um lied do Winterreise) leva a conversa
lentamente até enveredar, também sem pressa, por um dos seus becos da memória. E
o homem que leu quase tudo, e captou em si mesmo o que não leu, desce do mundo
ideal em que confinou seu pensamento e tenta um contato com a realidade. Mas,
nesta hora da vida, ele sente que todos os caminhos percorridos, e até mesmo os
becos indevassados, vão desembocar de repente naquele largo melancólico, onde
não outra saída, e que se chama Solidão. (TOSTES, Caderno de Sábado, Correio
do Povo, 31.10.1970, p. 03; grifo do autor)
16
Em O grupo (Outras figuras – Outras paisagens), Paulo de Gouvêa comenta as profundas diferenças
urbanísticas ocorridas na capital gaúcha ao longo de quarenta anos de modernização: “Esta geração de agora
[anos 70] não pode ter uma idéia, nem sequer aproximada, do que era a Porto Alegre do início destas memórias
[anos 30]. Tão profundas foram as modificações que marcaram estas quatro décadas e meia que a sua fisionomia
de hoje mal guarda alguns traços do seu aspecto de então” (GOUVÊA, 1976, p. 16). No item 4.3, veremos como
o próprio Augusto Meyer, em visita à cidade durante os anos 60, refere-se com nostalgia e resignação, no último
capítulo de No tempo da flor, a tantas mudanças que descaracterizam a imagem idealizada de sua “querência”:
“Mudou muito Porto Alegre. Em vão procuro reconstituir a fisionomia familiar e rústica de certos arrabaldes,
reconhecer algumas ruas que agora só existem no traçado de uma planta subjetiva, dentro de mim mesmo. Quem
não leva escondido o seu Mapa da Saudade, o seu Pays de Tendre?” (MEYER, “Epílogo”, 1966, p. 135, grifo do
autor)
17
“Do ponto-de-vista do estilo literário, creio que nenhum outro autor moderno de língua portuguesa havia
alcançado, na linha da tradição formal da língua portuguesa, a perfeição de Augusto Meyer, sobretudo nos seus
dois livros de memórias.” (MONTELLO, “Augusto Meyer, o mestre”, Caderno de Sábado, Correio do Povo,
31.10.1970, p. 10)
257
Também no Caderno de Sábado de 12 de julho de 1980 análises da obra de Augusto
Meyer se confundem com elogios ao homem e ao intelectual. Nele encontramos textos como
“Meyer, a chave e as máscaras”, no qual Tania Franco Carvalhal resume a atuação de Meyer
como ensaísta, poeta e memorialista voltado ao “desdobramento” e à “dissociação da
personalidade”; e “Augusto Meyer e Mário de Andrade: partindo em cacos o
convencionalismo poético”, de Cecília de Lara, instigante aproximação, a partir da
confluência modernismo/regionalismo, entre os dois baluartes da fase “heróica” do
movimento modernista brasileiro, identificação explícita, segundo a autora, a partir da
correspondência trocada entre eles ao longo de várias décadas de “cumplicidade literária”.
Em “Memorialismo e poesia”
18
, Guilhermino Cesar aborda os dois volumes de
memórias de Augusto Meyer sugerindo tratarem-se de “prosa poética” escritos tão prenhes de
lirismo e de sensibilidade, e que tão bem representam a vida literária e social de Porto Alegre
nos primeiros decênios do século XX:
Dois livros capitais, ou antes, dois marcos da sensibilidade pessoal mais fina que por
aqui transitou, servem para balizar esse passado porto-alegrense. E embora
houvessem sido escritos em prosa, devem sobretudo ser apreciados como obras de
cunho poético. Quero referir-me a Segredos da Infância e No Tempo da Flor, as
conhecidas obras-primas de Augusto Meyer. Bastariam esses dois volumes para
mostrar a importância que na vida literária gaúcha teve a geração que sucedeu
imediatamente à de Eduardo Guimaraens. Foi por volta dos anos 20 que ela
apareceu, consoante nos mostra, num livro saboroso (O Grupo), de alto valor
documental, o poeta e jornalista Paulo de Gouvêa. (CESAR, Caderno de Sábado,
Correio do Povo, 12.07.1980, p. 05)
Guilhermino se refere a uma obra importantíssima (que comentarei em seguida) para
entendermos o ambiente no qual a geração de Meyer viveu e produziu O grupo (Outras
figuras Outras paisagens), misto de crônica jornalística e reminiscência literária de alguém
que conviveu de perto com escritores como Athos Damasceno Ferreira, Ernani Fornari,
Theodemiro Tostes e Augusto Meyer, tendo freqüentado os mesmos ambientes (tais como o
Café Colombo ou o bar Antonello, hoje inexistentes) e compartilhado as mesmas idéias e
18
Também publicado em Notícia do Rio Grande Literatura, Porto Alegre: IEL/Editora da UFRGS, 1994, p.
133-6 (Organização e Introdução: Tania Franco Carvalhal). As citações que farei seguirão as referências do
artigo veiculado no Correio do Povo de julho de 1980.
258
expectativas. Assim como Paulo de Gouvêa, Guilhermino Cesar também julga que, em se
tratando da renovação cultural e literária do Rio Grande do Sul, “vale a pena fixar um traço
comum” deste grupo que, em sua opinião,
(...) de todas as gerações que aqui viveram, foi essa a que o maior número de obras
deixou ligadas ao meio porto-alegrense. Quer como revivescência histórica, quer
como recriação poética, quer no campo mais facetado do memorialismo. Dentre os
desaparecidos, Athos Damasceno foi o cantor por excelência de Porto dos Casais.
Nos Poemas da Minha Cidade, editados pela primeira vez em 1936, tanto quanto em
Lembranças (livro póstumo, hoje integrando as Poesias Reunidas), Athos faz a
crônica urbana de Porto Alegre com o espírito de humor que lhe distinguiu a poesia.
Nos dois volumes citados [Segredos da infância e No tempo da flor], preferindo a
prosa, Augusto Meyer não foi menos poeta. Creio que ambos os autores, embora
dosassem perfeitamente bem sua própria originalidade, se deixaram impregnar
bastante daquele sentimentalismo inerente à melhor poesia de Verhaeren, sua notória
aversão (do autor belga) às villes tentaculaires; e do mesmo passo, sobre eles terá
influído também o humorismo desesperado de Laforgue. Pelo menos, quanto à
percepção nostálgica da paisagem, coisa que em ambos ocorre com freqüência.
(CESAR, Caderno de Sábado, Correio do Povo, 12.07.1980, p. 05; grifo do autor)
Para Guilhermino Cesar, nos dois volumes, mas sobretudo em No tempo da flor, título
considerado “um achado de trovador galego-português” que se adequa perfeitamente às
coitas de amor e medo que o rapazinho da Praça da Matriz sensivelmente rememora”, “ao
lado da história intelectual da geração de Meyer” podemos vislumbrar “a fisionomia da
cidade”, “suas diversões e costumes”, bem como as “conversas dos rapazolas que esperavam
reformar a poesia e o mundo” (CESAR, 12.07.1980, p. 05). Aconselhando o leitor a apreciá-
los na ordem em que foram escritos, o autor de Cantos do canto chorado chama a atenção
para os requintes da memorialística de Meyer, mais afeita aos expedientes da poesia e das
artes plásticas do que propriamente aos da prosa literária.
O leitor que deseje bem aproveitá-los deve começar por Segredos da Infância, pois
No Tempo da Flor é a continuação do anterior. O memorialista nos impõe,
persuasivo, a presença de seus fantasmas familiares; e daí passa aos da sua roda, aos
da cidade, aos do mundo. Usa recursos de poeta e de pintor. Numa prosa
surpreendente pela invenção plástica, nunca deixa, porém, de se mostrar atento aos
entretons da palavra. Quem quiser saber de sua vida episódica não a encontrará aqui.
O que o autor nos relata é o fluxo interior do pensamento, exprimindo
principalmente uma situação em si mesmo poética a do preparatoriano preso entre
os quatro cantos da Praça da Matriz, com os livros, as paineiras, a namorada, os
sonhos. A vida interior, a fluir em surdina, à maneira da música de Debussy, eis o
que nos lembram esses períodos que se articulam numa longa berceuse encantatória.
(CESAR, Caderno de Sábado, Correio do Povo, 12.07.1980, p. 05)
259
A narrativa da “vida interior”, das idas e vindas do pensamento, eis com o que nos
deparamos, segundo Guilhermino, ao lermos a reconstituição mnemônica da infância e da
juventude de Meyer, espécie de Quixote moderno, dividido entre os livros, as namoradas e os
sonhos etéreos, sonhos nos quais não lugar para o episódico nem para o anedótico, que
suas Memórias se assemelham àquilo que Fernando Pessoa denomina, através do Livro do
desassossego de Bernardo Soares, de “Autobiografia sem fatos”
19
. Memórias sem fatos mas
plenas de sugestões e de apelos à “memória sentimental” do scholar que não ignora as
intervenções do espírito e dos sentidos
20
. Por tudo isso, Guilhermino Cesar as tem como
“inesquecíveis”, como deixa claro no parágrafo final de “No tempo da flor”, artigo publicado
em 2 de dezembro de 1967 no Correio da Manhã do Rio de Janeiro e que serviu de base para
o texto veiculado em 1980 no Correio do Povo, reescritura do primeiro:
Se me pedissem a sua classificação, eu diria simplesmente que se trata [No tempo da
flor] de um livro inesquecível. De um dos poucos livros eternos já escritor entre nós.
Não exagero coisa alguma ao dizê-lo, porque raramente encontramos em nossa
língua uma tal conjunção de sensibilidade, ternura humana, e estilo. Se o Brasil não
fosse realmente um país subdesenvolvido, como os economistas dizem que é, este
livro de Augusto Meyer seria hoje um best-seller fulminante. (...) Mas não há de ser
nada. O tempo trabalha em favor de escritores como este, que tanto mais crescem
quanto mais o tempo flui, quanto mais água corre pelo Guaíba a caminho do mar.
19
Conferir PESSOA, Fernando, Livro do desassossego, 3 ed, São Paulo, Editora Brasiliense, 1989, p. 41-109.
Sobre a atração de Meyer pela “vida interior”, ver comentário de Mário de Andrade, transcrito por Silviano
Santiago em “O intelectual modernista revisitado”, destacando sua inclinação ao espírito e aos “sonhos” e sua
absoluta falta de senso prático para lidar com obrigações administrativas. Assim diz Mário, com certa crueldade:
“Atualmente [1938] estou como Consultor Técnico do Instituto Nacional do Livro. Quem dirige este é o meu
augusto amigo Augusto Meyer, um admirável espírito literário sem a menor energia prática, sem a menor
autoridade, sem a menor visão técnica. [...] Acabei nesta semana que passou o anteprojeto da Enciclopédia, que
agora vai naturalmente dormir pelas gavetas ministeriais o sono da bem-aventurança. Se não for o dos séculos”.
(Apud SANTIAGO, 1989, p. 170)
20
Em A vida literária” (Rio Grande do Sul Terra e povo, 2 ed, Porto Alegre, Editora Globo, 1969), ao
comentar a dialética localismo vs. universalismo na obra de Augusto Meyer, Guilhermino Cesar destaca o
quanto sua evocação da natureza está vinculada à memória dos sentidos: “Ora, considerando o Modernismo
Brasileiro e a literatura rio-grandense em particular, o aparecimento de Augusto Meyer, em 1922, como poeta,
no mesmo ano, por conseguinte, da Semana de Arte Moderna, nos trouxe justamente a presença de alguém que
descreveria a curva ascendente cujo ponto de partida, o local, teria como ponto de chegada o universal. No livro
em que reuniu a sua produção poética (Poesias, 1957), desde aquele ano até 1955, o autor mostra nas peças
essenciais de sua obra lírica os caminhos dessa evolução. O localismo feriu-lhe as retinas desde que começou a
poetar. O seu sentimento das coisas familiares veio molhado de sereno, banhado em água de sanga, orientado
pelo brilho da estrela boeira. Tudo é pago, tudo são imagens da terra, experiência visual e olfativa do meio
ambiente, revivescência de um mundo matinal, ao lado da nostalgia do puro, do evanescente.” (CESAR, 1969, p.
241; grifo meu)
260
O tempo, portanto, se encarrega e se encarregará de fixar as lembranças verbalizadas
por um escritor que, após contribuir para a história do Modernismo brasileiro como
excepcional poeta e crítico,
(...) é o mesmo admirável artista que hoje [1967], tantos anos decorridos, tem o
poder de nos restituir, num retângulo de papel escrito, toda uma paisagem fixada no
tempo. Muitos viveram aquela época, mas creio que ninguém mais a reconstituirá
com a mesma poesia, o mesmo senso dos matizes, mesma finura, para dizer tudo,
que faz de Augusto Meyer um dos maiores prosadores da nossa língua. (CESAR,
“No tempo da flor”, Correio da Man, 02.12.1967)
Modelo de perfeição estilística, mestre, em prosa e poesia, reconhecido por críticos
abalizados como Josué Montello e Guilhermino Cesar, Augusto Meyer suscitava admiração e
respeito em todos aqueles que tiveram a oportunidade de conhecer, ao lado de sua fecunda
obra, as idiossincrasias e excentricidades do homem cujo espírito se movia unicamente entre o
mundo dos sonhos e o das idéias, interesse muitas vezes despertado pela simples visão de sua
figura caminhando pelas ruas de Porto Alegre, como atesta Cyro Martins em “Perspectivas de
Augusto Meyer”:
Alguém me disse de repente, apontando para a outra calçada [da Rua da Praia],
numa manhã de domingo, numa dessas manhãs de que Porto Alegre é pródiga,
esplendorosa e plena de vibrações: ‘Aquele é o Augusto Meyer!’ E o ponto de
exclamação que ponho agora corresponde exatamente à ênfase com a qual o meu
companheiro empertigou a frase. Com efeito, ergui os olhos e admirei, inquieto
estudante de preparatórios, o poeta que passava, teso, magro, alto, loiro, o braço
esquerdo dobrado em ângulo reto sobre as costas, a mão direita segurando o cigarro,
o andar lento. (MARTINS, Rodeio Estampas e perfis, Porto Alegre, Movimento,
1976, p. 71)
21
21
Este trecho também aparece, com ligeiras modificações, em “Regionalismo, modernismo e o surgimento do
romance de 30”, publicado na coletânea A geração de 30 no Rio Grande do Sul Literatura e artes plásticas,
organizada por Léa Masina e Myrna Appel (Porto Alegre, 2000, p. 89-90). Ainda em “Perspectivas de Augusto
Meyer”, lemos a seguinte referência elogiosa às memórias de Meyer, na qual Cyro destaca, assim como
Guilhermino, a ausência de “fatos” nas recordações do poeta: “Nos últimos dez anos de vida, em muitos
momentos o nosso escritor recolheu o olhar dos vastos horizontes do pensamento universal e as vivas, as
esfumadas, as coloridas, as inebriantes, as tristes e alegres lembranças da infância, que ele simplesmente chamou
de segredos, passaram à primeira linha de sua atenção criadora. E desse convívio deliberado, de pena na mão,
com suas recordações de guri, e desse deixar-se ficar a gosto contemplando o fugitivo desfile de imagens
interiores, em perspectivas de clareiras, resultaram dois livros de memórias diferentes, muito diferentes do
comum do nero. A atividade cotidiana, os dados biográficos, o mundo do senso comum, foram envolvidos
pelo halo inefável dos apelos da saudade, nunca suficientemente atendidos, e o leitor, meio extraviado, por
míngua de referências concretas no texto, vacila, pasma e prossegue, fascinado pela luz e o vôo das revelações
líricas que o escritor extrai de suas reminiscências infantis e adolescentes. É um fluxo de recordações dosado.
Jamais se atropelam, por isso não cansam, nem assoberbam os leitores, mesmo os de fôlego curto. Em suas
memórias, Augusto Meyer mais recria do que rememora. Com efeito, as lembranças servem-lhe de pauta para o
influxo imaginativo. (...) Augusto era um gurizinho apenas quando seu pai foi gerenciar uma mina no município
de Encruzilhada, no Rio Grande do Sul. O lugar chamava-se Cerro d’Árvore’. Quando a família voltou para
Porto Alegre, penso que isso lá por 1910, viajaram de carreta, puxada a boi. A viagem se arrastou por dias e dias.
261
O jornalista e poeta Paulo de Gouvêa foi outro que, conhecendo Augusto Meyer
pessoalmente, fez de seu testemunho sobre os escritores desta geração uma mescla de crônica
jornalística da geração de 30 e de reminiscências pessoais do convívio com os artistas e
intelectuais que renovaram a cultura gaúcha daquela época, tanto em O grupo (Outras figuras
Outras paisagens), de 1976, quanto em “Dez anos sem o Augusto”, homenagem veiculada
no Caderno de Sábado de julho de 1980, na qual Gouvêa sublinha a “culminância” atingida
por um escritor tão completo a ponto de ter deixado a literatura brasileira órfã de valores
mestres:
Com ele para sempre ausente, a cultura e as letras, o Brasil enfim, sofreram uma
amputação tremenda. Por que era uma culminância que desaparecia, um marco
altíssimo de inteligência e de sensibilidade humaníssima como raras vezes surgiu no
panorama, tão exíguo em valores mestres da literatura deste país. Aug era amplidão;
eterno na beleza do que deixou escrito: seus versos, seus ensaios, seus estudos
críticos e suas memórias, tempo de flor de uma vida luminosa. (GOUVÊA, “Dez
anos sem o Augusto”, Caderno de Sábado, Correio do Povo, 12.07.1980, p. 03)
Se Cyro Martins se impressionou com a figura de Meyer ao -lo passar, Paulo de
Gouvêa não esconde a comoção sentida ao ser apresentado a ele por Theodemiro Tostes, ex-
colega dociclo ginasial” que Gouvêa reencontrara no Café Colombo, conforme narra em “O
encontro”, sexto capítulo de O grupo:
Era ele [Theodemiro Tostes]. Fez-me um aceno e, ao aproximar-se, perguntou: (...) –
Você não é o Paulo de Gouvêa? (...) Não havia mais dúvida: era o antigo
companheiro dos bancos anchietanos que me falava. Confimei, satisfeito: (...) Sou
eu, sim, Theo. (...) Um grande abraço uniu, outra vez, para novo e singular destino,
os dois gurizinhos, moços agora e de calças compridas. (...) Mas Theo não estava só.
Havia mais três [João Santana, João Manuel de A. Cavalcanti e Meyer], para mim
estranhos, à sua mesa. Três tipos completamente diversos, com aquele ar incomum
do homem que pensa e o separa, até por uma imponderável dissemelhança física, do
mundo vulgar em que vivem os outros. (...) Olhei-os com curioso interesse. O
primeiro era alto, magro, cabelo quase cor de fogo, um tom sardento sobre o rosto,
marca impressiva que eu diria de asceta e que lembrou-me o Padre Werner, com
quem eu fizera, há tempos, o meu curso de filosofia. ‘Este é o Augusto Meyer. O
Aug, como nós chamamos’. (GOUVÊA, 1976, p. 26-7)
Augusto Meyer, Theodemiro Tostes, João Santana, Athos Damasceno Ferreira e tantos
outros fazem parte das lembranças de uma época romântica em uma cidade igualmente
E das noites, das manhãs, dos ocasos, das árvores, das aves, dos rebanhos espalhados, dos rodeios, das falas, de
toda aquela ‘confusa palpitação de rumores indecifráveis’, subiram-lhe à memória, quarenta ou cinqüenta anos
depois, as flores de luz que estamos admirando hoje.” (MARTINS, 1976, p. 93-4)
262
romântica, distância em tempo e espaço que evidencia ainda mais o contraponto entre a
alegria despretensiosa de antes e a saudade melancólica admitida no momento da evocação.
Na tentativa de diminuir tamanha distância, Gouvêa se decide a recriar com sucesso as
discussões, expectativas e projetos literários compartilhados pelos jovens escritores nos bares,
restaurantes e livrarias da “capital da província”, momentos especiais que testemunharam a
eclosão e o amadurecimento daquela que o jornalista classifica como a geração mais talentosa
da literatura gaúcha de todos os tempos:
É esse tempo, distante e belo para os que o viveram em sua mágica plenitude, que
iremos tentar reviver, em um punhado de notas recolhidas do fundo da memória.
Não é história nem dicionário literário: serão apenas as memórias de uma geração
intelectual, a mais fecunda de quantas teve o Rio Grande do Sul em todo o seu longo
itinerário da poesia, da cultura, do romance e da arte. E não exagero em assim
dizer: ainda agora, ela serve de ponto de referência aos críticos e pesquisadores, toda
vez que tenham por objetivo a vida cultural da Província. Datando de cinco decênios
a culminância da sua floração, ela ainda não foi ultrapassada, permanecendo os
nomes daqueles que a integravam investidos do mesmo primado que outrora
ostentavam. Atente-se, simplesmente, para estes nomes e veja-se se, em época
alguma, reuniu o Rio Grande um grupo assim tão grande, em qualidade e número:
Augusto Meyer, Erico Veríssimo, Moisés Vellinho, Viana Moog, Darci Azambuja,
Vargas Neto, Theodemiro Tostes, Paulo Corrêa Lopes, Carlos Dante de Moraes,
Athos Damasceno Ferreira, Dyonelio Machado, Pedro Wayne, Ernani Fornari,
Miranda Neto e, citado por último já ndo-se ár mul
263
E para que este tempo longínquo não mingue de vez, Gouvêa apela para a necessidade
de se eternizar, passando de geração a geração, as lembranças dos companheiros que, como
ele, foram jovens em uma época ímpar, “fragmentos” de histórias variadas de amigos e
amigas que protagonizaram o esplendor da flor da mocidade, a flor que jamais viceja duas
vezes:
Tantos anos passaram sobre isso e sobre as nossas vidas! Mas acredito que as suaves
raparigas de antanho, as respeitáveis matronas de hoje, vovós de tantos netos que
têm a idade que elas tinham nos tempos idos da Galeria Colombo, ao lerem esta
página de amável recordação, hão de regressar, por um momento, àquele passado
que foi nosso, e dizer, abanando a cabeça encanecida: ‘Ele tem razão. Naquele
tempo era melhor...’ (...) Sim, era melhor, amigas damas de outrora; não por que
houvesse menos beleza na cidade em que vivemos, mas por que havia em nós a
mocidade que perdoem-me o imperdoável passadismo é igual à flor do lótus. A
flor que, em cem anos, floresce apenas uma vez. (GOUVÊA, 1976, p. 19)
Ao lado destas crônicas que invocam companheiros mortos e eternizam detalhes de sua
convivência, Paulo de Gouvêa também comenta algumas das principais obras publicadas, no
Rio Grande do Sul, pelos escritores desta geração. duas crônicas sobre a obra de Augusto
Meyer na primeira, Coração verde e outros livros” (1976, p. 61-3), Paulo destaca os
primeiros volumes de poesia, sobretudo Coração verde e Giraluz, acentuando o fato de que,
até 1926, o grupo “era integralmente inédito, com a exceção de Augusto Meyer” (1976, p.
61), que lançara A ilusão querida em 1920 e Coração verde em 1926; e na segunda, intitulada
“40 anos de um ensaio” (1976, p. 160-2), Gouvêa tece homenagens ao Machado de Assis de
Meyer, considerado pelo jornalista “o melhor ensaio sobre Machado de Assis” de toda a
história da crítica brasileira, ao fim do qual sentencia:
Esquecido dos novos, ignorado pela mesquinhez de uns poucos, hoje ele [Augusto
Meyer] paira entre outros grandes mortos: Graciliano Ramos, Cecília Meireles,
Guimarães Rosa, Ivan Lins, que marcaram, neste quase final de século, o plano mais
alto das letras do País. No Rio Grande, ele é a figura maior, e ninguém o substitui
em tanta altura, pois não tem, e dificilmente terá, quem isso faça. (GOUVÊA, 1976,
p. 162)
Textos como “Perspectivas de Augusto Meyer”, de Cyro Martins, e O grupo, de Paulo
de Gouvêa, são bons exemplos de como é possível comentar a obra sem desconsiderar as
características do homem que a escreveu, sobretudo no caso de um escritor como Meyer, que
264
fez de sua introspecção, de sua reclusão e de sua falta de pragmatismo uma extensão de sua
atitude diante da vida e de sua produção literária. Por isso é difícil separar a análise da obra da
fascinação exercida pela figura do intelectual aparentemente nefelibata que “leu quase tudo” e
que inscreveu para sempre seu nome na galeria dos grandes poetas e críticos de nossa
literatura. Tal complicação, evidente nos depoimentos de Martins e de Gouvêa, aparece
também no capítulo “Evocação de Augusto Meyer” (Alguns estudos e um fragmento de
autobiografia, Porto Alegre, Metrópole, 1975, p. 80-91), no qual Carlos Dante de Moraes
assume explicitamente a dificuldade de criticar obras de autores conhecidos além dos círculos
literários:
Discorrer sobre Augusto Meyer me é fácil e ao mesmo tempo difícil. As lembranças
afetivas e a grande admiração que nutri por ele poderão deformar talvez a visão
límpida e fiel de sua personalidade literária. Posso dizer que, desde o começo,
enxerguei nele uma criatura privilegiada em que o cerebral agudo, forrado de
cultura, se aliava, sem contradições, com uma sensibilidade fértil, rica em matizes,
ondulante e dúctil. Jamais poderei esquecer as longas horas proveitosas que passei
em sua companhia, debatendo os mais variados temas. Não que ele fosse um homem
de fácil comunicação, um temperamento expansivo e um verbo fluente. Bem ao
contrário. Era um profundo introvertido, que parecia cauteloso ao externar-se, cujos
conceitos, porém denunciavam a sua riqueza interior e uma precoce maturidade.
Seus juízos freqüentemente vinham acompanhados de um sorriso, uma expressão
irônica, de quem não quer assumir uma atitude de ‘mestre’ ou emitir opiniões
definitivas. Tal modo de ser, porém, jamais lhe inibiu a admiração, o louvor, a
alegria, ante o que lhe parecia valioso e autêntico. (MORAES, 1975, p. 80)
Acentuemos ainda o fato de estes três últimos depoimentos terem sido veiculados em
meados da década de 1970, isto é, apenas alguns anos após o falecimento de Augusto Meyer,
dado que certamente contribuiu para que Cyro Martins, Paulo de Gouvêa e Carlos Dante de
Moraes emitissem juízos “definitivos” a respeito da obra de Meyer, sintetizando, cada um a
sua maneira, as profundas implicações que tão valiosa produção acarretaria em nossa
literatura. Neste mesmo período, um quarto testemunho desta vez, de um antigo
companheiro com quem Meyer trocara inúmeras cartas e que fizera seu discurso de saudação
na ABL, como veremos a seguir canonizaria definitivamente a figura de Augusto Meyer
como um dos maiores intelectuais brasileiros do século XX: o de Alceu Amoroso Lima, o
Tristão de Athayde, em Memórias improvisadas (Diálogos com Cláudio Medeiros Lima), de
265
1973, série de entrevistas nas quais Alceu relembra os anos heróicos do movimento
modernista brasileiro, bem como as principais correntes literárias e filosóficas debatidas e
adotadas por nossos inovadores literatos de então. Entre as ginas 104 e 109 (no subcapítulo
“Augusto Meyer, nosso Erasmo”), Medeiros Lima questiona a relação de Meyer com Tristão
antes e depois da conversão deste ao Catolicismo, insinuando que a correspondência literária
trocada entre ambos no início discussões estritamente literárias foi aos poucos se
escasseando em virtude da enorme diferença entre eles de conceitos ligados à religião e à
espiritualidade. Alceu Amoroso Lima esclarece que, a princípio ligados por interesses em
comum, tais como a renovação estética ou a valorização exacerbada da obra de Proust
22
,
distanciaram-se os dois estudiosos na medida em que, cético por natureza, Augusto Meyer
passou a ver, na crença religiosa do amigo, um sinal de dogmatismo e de falta de isenção
crítica. Apesar destas diferenças, Alceu julga que Meyer, a despeito de seu ceticismo, “soube
sempre se conservar aberto, humilde e compreensivo diante da vida” (1973, p. 108), ainda que
aparentemente alheio à realidade e propositalmente distanciado de tudo e de todos: “A quem o
via de longe, Meyer dava a impressão de uma visagem, figura translúcida, ser incorpóreo.
Portinari fixou bem essa sua imagem no retrato que dele pintou” (LIMA, 1973, p. 108)
23
.
22
“Creio que Augusto Meyer dava muito apreço aos meus escritos, a julgar pelas suas expressões a respeito.
Tínhamos ainda nesse terreno algumas afinidades, como era o caso de Proust, por quem manteve durante toda
vida grande admiração. Era um proustiano como seria depois um machadiano. Certa vez escreveu um poema
intitulado Elegia para Marcel Proust, que me dedicou. Era essa uma fase em que os problemas estéticos ainda
suplantavam em mim os problemas filosóficos e religiosos, embora muito embuído deles. Pude, assim, manter
durante um ano uma total coincidência de pontos de vista em nossa correspondência. Mas quando lhe revelei a
minha conversão ao Catolicismo, embora não se tenha surpreendido, passou a fazer restrições à minha crítica
literária”. (LIMA, 1973, p. 105)
23
Para Alberto Crusius, “[Augusto Meyer] Trancou-se num mundo interior, preocupado em escutar apenas uma
coisa: a memória e o fluir do tempo. Quando olhava para o mundo, via-o quase sempre como uma paisagem,
como quem olha por uma janela” (CRUSIUS, Caderno de Sábado, Correio do Povo, 31.10.1970). Em Solo de
clarineta, Erico Veríssimo também menciona o absenteísmo de Meyer: “Aug não era bem deste mundo. Dava-
me a impressão de ter caído na Terra, vindo dum misterioso planeta sem nome. Não parecia ter noção de tempo
nem de espaço. Mas como se movia bem no universo das idéias, com que clara beleza raciocinava e escrevia!
Não era fácil manter com ele relações regulares no plano humano, de sorte que aprendi a querer bem ao homem
através da admiração que tinha pelo escritor.” (VERÍSSIMO, Erico, 1976, v. 1, p. 238)
266
Figura 7 – Augusto Meyer em óleo de Portinari
Esclarecidas as divergências filosóficas e comportamentais, resta a Tristão resumir a
importância de Meyer para a literatura brasileira, uma vez mais ressaltando a excelência do
conjunto de sua obra e se somando às opiniões de Josué Montello, Guilhermino Cesar, Paulo
de Gouvêa e Carlos Dante de Moraes no reconhecimento de sua maestria e preeminência:
O poeta sensível dos primeiros anos, que assisti nascer em 1926, com a publicação
de Coração Verde, tornou-se com o passar dos anos um erudito, um mestre, um
humanista, dos maiores que tivemos, pelo saber, pela argúcia crítica, pela
capacidade de penetrar no segredo dos textos. Chamei-o, certa vez, de ‘nosso
Erasmo’. E assim era de fato, um Erasmo que aliava o calor fáustico da natureza
física à atmosfera ascética de um Valéry ou de um Ezra Pound. Sem alarde, sem
atropelos, sem ruído, deixou uma obra fecunda, realizada no silêncio, na solidão, na
meditação do gabinete. E numa hora de saudade, despido de amarguras, como um
adeus à vida que passara, voltou-se para a infância e a adolescência, escrevendo
estas obras-primas de nossa memorialística que são Segredos da Infância e No
Tempo da Flor. (LIMA, 1976, p. 108-9)
Augusto Meyer, porém, não obteve apenas reconhecimentos póstumos. O próprio
Tristão de Athayde, no discurso de saudação a Meyer na Academia Brasileira de Letras, feito
a 19 de abril de 1961, enumera suas principais qualidades como homem de letras erudição,
poliglotismo, sensibilidade, imaginação e ironia, atribuições sempre acompanhadas “pela sede
267
invencível da curiosidade faústica do conhecimento” (2002, p. 10)
24
. No discurso, a mesma
referência à correspondência interrompida e à admiração de ambos pela obra de Proust que
Alceu comentaria, uma década depois, em Memórias improvisadas. Aqui, entretanto, o
comentário surpreende pela aproximação sugerida pelo crítico, que reconheceu, nas cartas
trocadas, “esquecidas” e posteriormente “recuperadas”, gatilhos que acionassem, nele próprio,
o mecanismo da memória involuntária, ao sabor das manifestações ocorridas a Marcel:
Revendo velhos arquivos à procura dessa nossa correspondência jamais relida mas
guardada na saudade com aquela doçura que, mais do que a lembrança, o
esquecimento nos deixa dos sempre furtivos momentos de felicidade verifiquei
com espanto e melancolia que em 1931 cessaram as nossas cartas entre Rio-Porto
Alegre. E nunca mais se renovaram! A distância, segundo La Rochefoucauld, é
como o vento, que apaga as velas e ateia os incêndios. O amargo moralista aplicava
a imagem apenas ao amor. Podemos também levá-la aos domínios da amizade. A
nossa nasceu à distância e nela se alimentou. Quando os bons fados vos trouxeram,
depois de 1930, do Guaíba à Guanabara, não para amarrar cavalos no obelisco mas
para nos guiar com a vossa cultura, começara a descer, entre nós, a cortina do
silêncio que a proximidade, por vezes, engrossa mais do que as distâncias. Revendo
agora essas folhas murchas da nossa mocidade quando entrávamos lado a lado,
embora à distância, na mesma aventura de um continente novo a desbravar foi como
se revivesse a experiência proustiana da famosa madeleine. (LIMA, 2002, p. 01-02)
Tendo vivido, durante a adolescência, reclusão semelhante à de Proust (com a diferença
de que este se trancara no quarto para escrever sua obra-prima, enquanto o autor de Literatura
e poesia assim procedera para encarar o desafio de conhecer a fundo a literatura universal,
inclusive a própria Recherche), Augusto Meyer, debilitado fisicamente, vislumbrou a
oportunidade de resgatar sua “infância livre” e seu peculiar contato com a vastidão dos
pampas – provisoriamente abandonado, durante a juventude em Porto Alegre, em prol de uma
dedicação exclusiva e quase doentia aos estudos ao se ver, convalescente, novamente diante
dos amados campos de seus tempos de menino, recomendação médica e materna que o faz
retomar um período mágico de sua vida e o motiva a redigir suas memórias subitamente
redivivas. Este acontecimento, capital em sua vida e determinante para o novo rumo que sua
obra literária tomaria daí por diante, é engenhosamente interpretado no discurso de Athayde,
24
A saudação de Tristão de Athayde a Augusto Meyer esteve disponível no site oficial da Academia Brasileira
de Letras (www.academia.org.br) durante o ano de 2002, em comemoração ao centenário de nascimento do
escritor gaúcho. O discurso, acessado em julho de 2002, consta de 15 ginas, sendo que a referência
bibliográfica que utilizo segue, portanto, o texto veiculado no site da ABL.
268
crítico de extrema argúcia que percebe perfeitamente o quanto a memória dos sentidos (visual
e olfativa, sobretudo) é fundamental para a reconstituição levada a cabo por Meyer.
Acompanhemos o longo e esclarecedor trecho a respeito das motivações desta redescoberta:
Depois daquela infância estudiosa a que antes me referi, entrou em vós o demônio
da leitura. Tudo acaba em livro, dissera aquele Mallarmé, que foi uma das vossas
paixões, na poesia moderna. Para vós, tudo começou pelo livro. Por anos seguidos,
antes de encontrar em Cachoeira a Sara dos vossos poemas, aquele ‘Grande amor’
de que enternecidamente faláveis, em mais de uma de vossas cartas e tem sido até
hoje a vossa admirável Carolina, – por anos seguidos vivestes trancado em casa, sem
quase sair do vosso quarto, mal vendo a luz do dia, como um autêntico lobisomem!
Nada mais restava das cirandas de outrora. A infância livre, em contato com a terra
verde, no meio do gado chucro, recebendo nos cabelos infantis o orvalho das
madrugadas que irá ser um dos temas de vossa futura poesia, ficara
aparentemente abolida para todo o sempre. Só nos livros encontráveis agora os
vossos companheiros. (...) À medida que a vossa memória e a vossa inteligência, na
solidão da
94(d)-6.3339(a)-2.05734(i)0.721099(s)3(d)667tor-2.0(d)667r49-6.3339(s-2.05734(i)01(d)667)4(v)5.7217(e)-2.05734(e)-2.0544(l-2.05734((e)-2.05734( )-99.6118(f)7.49943(d)-6.3339(i)0.721099(s)3(d)667)s)3.219092(s)3.21993(( )-87.5568(e)-14.112(s)3(d)673(a)-14.1129(n)0.72109s)3.21993( )-232439(,)-3.16695( )-631129(ír)-4.55617(a)-2.0544cesde ir(e)-14.11(m)6.-9-2.469(o)-6.3339(a)-2.05734(n)5.7217(o)--9-2.469t (c)-9-2.469 Td[(c)-2.05734(i)0.757.27520.721099(o)-6.3339r m(a)-2.05739(r2 Td[(d)-6.33537(32.807464(d)-6.335377(e)-2.0573h2.05734( )e))-87.5568lis isesaic ur ic e t444.222( )-36734(i)115.5( )-51.3892(e) uivva esmtlxr.724042( )-99.6118(m)6.4428(e)-2.05734((e)-2.05734(l)0.72109917(.)-3.16695(.4-87.5(A(a)-2.05739(r.724042(c)328)6689(e)-2.05734(l)0.721099(o)]TJ2369(r.724042(c)328)6689 )-184(l)0.721099(i)0.721099(v)-8.8340757(a)-2.0544(r)-4.55617(a)28)668952 Td[(s-3.16695(s)3.21993(e)-14.1129(g)-28)6689 )-184(l)0.72Td[(s)3.2214(o)115.5( )4(d)-6.335374(e)-2.05734(b)-6.3339(e)-2.05734l-8.8342( -6.33537(a)-2.05734( )-18p)-67344(r)-4.55617(o)-6.3339(.)-3.16695( )-51.3894(e6.4428(e)-2.05734((e)-2.05734(l)0.721099-18p)-67344(a)-14.1129(v)5.7217(a)-2.05734(i)0.721099(s)3.21993(,)-15.2226( -4.55617(e)-2.217(o)-6.)-673445( )-51.3894(e6.4428(ed-4.55617(t)0.72109z( )-87.5562(e)-14.112o)-6.3339( )-232.223(s)3)-67344àl)0.721099-18p rot4( )-51.389ag avtlpar u dos elature s
269
mesma atenção que seu percurso poético e sua atividade crítica, incitando-o ao planejamento
de uma trilogia
27
.
A preocupação em desvendar o próprio passado e o de seus familiares é mencionada em
outro importante discurso, também proferido na Academia Brasileira de Letras, a respeito da
vida e da obra de Augusto Meyer o de Francisco de Assis Barbosa, biógrafo de Lima
Barreto e sucessor de Meyer na ABL no início da década de 70. Publicado no Correio do
Povo de 22 de maio de 1971, “Posso me sentar na cadeira 13?traça um amplo painel da
carreira de Meyer como escritor, crítico, professor e administrador público. Logo no início de
sua apresentação, Assis Barbosa destaca o que há em comum entre Meyer e o Visconde de
Taunay, fundador da cadeira: “descendentes ambos de estrangeiros”, mesmo sem “sequer uma
gota de sangue nativo”, foram, entretanto, “um e outro grandes patriotas, de espírito e obra
profundamente brasileiros” (1971, p. 01). O fato de ser descendente de alemães incita Barbosa
a comentar a enternecedora “Carta aos meus bisavós”, na qual Meyer se orgulha de sua
origem:
‘Cria de imigrantes’, era este o título de que mais se vangloriava Augusto Meyer.
Num dos seus livros de memórias, em que desce à ‘raiz da vida’ dos ‘pagos da
infância’, orgulhoso de sua progênie humilde, qualifica-se ‘um neto de farroupilha’.
‘Cria de imigrantes’ e ‘neto de farroupilha’. Expliquemos o sentido destas
confissões, que nada possuem de fantasiosas. São alemães os bisavós maternos,
Felipe e Maria Klinger, chegados ao Brasil em 1824, na primeira leva de colonos
estabelecidos em São Leopoldo com um trato de terra. As duas gerações sucessivas,
a dos avós e a dos pais, os Feldmans e os Meyers, não se misturaram, conservaram
intacta a pureza do sangue germânico. Somente ele, Augusto, transporia a linha
racial, casando com brasileira [Sara], depois de um século de aculturação.
(BARBOSA, 1971, p. 01)
28
tão grave [a do vento da campanha], que metia medo. Mais tarde, senti a mesma impressão ao atravessar os
campos da fronteira. Como a um toque mágico, restabeleceu-se a cadeia entre o homem e a criança.
Arquipélagos submersos de recordações vieram à tona.” (MEYER, 1949, p. 12; grifo meu)
27
“O primeiro volume de memórias surge em 1949 e irá completar-se apenas em 1966 com No Tempo da Flor.
O anunciado Becos da Memória, que viria encerrar a trilogia, nunca apareceu” (CARVALHAL, A evidência
mascarada, 1984, p. 29). Tania Carvalhal se refere ao projeto de publicação das obras completas de Meyer pela
Livraria São José, exposto no verso da capa da segunda edição de Prosa dos pagos (1960; ver nota 11,
Introdução, p. 13). A expressão aparecen34(o)-6.33537(,)-3.166254(c)-2.05586.33537(,)-05734(e)-2.05734(n34(o.05734( )-39.3338(M)-3.11-39.3338(c)-2.05734()5.7217E50.181 0 Tdc)-2.05586.“)R7 98057E2(T)-15.8917(m)18.4917(i)0.721099(l)0.7210i9(l)0.721099(o)-6.33cMeyer”, de No tempo pa ilor, qua ndo n
270
A imigração dos bisavós e o destino do bisavô Felipe na Guerra dos Farrapos ecoaram
intensamente em sua alma, assim como as ocorrências amedrontadoras do minuano e a fuga
de um “índio” acoitado pelos seus pais, símbolos, para Assis Barbosa, da “luta contra a
opressão”, inquietação precoce do jovem Augusto:
A vida rústica, o inverno longo e duro, o zunido aterrador do minuano, três dias e
três noites seguidas, anunciando as geadas, tudo, enfim, que significa, ainda que
simbolicamente, a luta do homem contra a opressão, há de marcar-lhe fundo a
personalidade: ‘Estou no alto da coxilha, agarrado ao avental de minha mãe: o medo
gravou para sempre aquele instante na memória’. Uma sensação de insegurança lhe
incutira não apenas o minuano, na primeira infância, como também a caçada policial
a um índio fugido, acoitado no rancho dos Meyers. Episódio mais imaginado que
vivido, mas com tamanha e angustiada força que não se apagará jamais da
lembrança, a ‘daquele índio vago, dormindo de freio na macega, acossado como fera
de mato em mato, de grota em grota, de rancho em rancho, até receber de minha mãe
a esmola de um refúgio em nossa casa, de onde ouvia decerto, respirando a custo, o
boflar dos cavalos maneados, a saudação do cabo buenas, dona Rosa! e de vez
em quando o arrastar das rosetas de espora...’. (BARBOSA, 1971, p. 01)
29
No final de seu discurso, Francisco de Assis Barbosa sugere que Meyer, erudito que
conhecia profundamente diversas literaturas, ao invés de ter se dedicado a atividades
burocráticas em bibliotecas públicas, muito teria a contribuir para o desenvolvimento da
cultura e da educação em nosso país se tivesse optado pela carreira universitária, sobretudo
como professor de Literatura Comparada, brindando seus virtuais alunos com um domínio
invejável de várias literaturas ocidentais:
Meyer não tinha a vocação do burocrata. Era antes de tudo um scholar, que por um
desses inexplicáveis desencontros de intelectual desajustado ficou fora de cátedra de
professor universitário. Este é que era o seu lugar. Que grande professor de literatura
comparada não teria sido! De literatura comparada ou de qualquer das literaturas que
versava com o mais profundo conhecimento, as literaturas francesa, alemã, inglesa,
espanhola ou italiana, a brasileira como a portuguesa, especialmente os clássicos, de
Camões e Sá de Miranda. (BARBOSA, 1971, p. 03)
30
Livro do Rio Grande do Sul e pelo Fundo Nacional da Cultura, com apresentação de Carlos Reverbel. A
antologia equivale à quarta edição de Segredos da infância e à terceira de No tempo da flor.
29
Conferir os trechos citados por Francisco de Assis Barbosa em “Brinquedo de esconder”, Segredos da
infância/No tempo da flor, 1997, p. 21-3. No final do capítulo, Meyer admite, comovido, os ensinamentos
suscitados pelo inusitado episódio, a acompanhar-lhe durante toda sua vida: “Quanto eu sonhei com esse vulto
arisco de índio vago, sem pouso nesta vida, sempre de no estribo e amargando a sua sina de perdido! Dormia
com ele, de freio na macega. Com ele, estremunhado, despertava a um ruído suspeito, arrepio de susto picando o
vago silêncio do ermo. Com ele, procurava um rumo estelar na imensidão dos campos do céu... (...) Ensinou-me
a compreender muita coisa, a imaginar os atalhos sombrios, os labirintos desta vida, as voltas que o destino dá:
que não há pouso certo, a não ser na mudança e na morte; que hoje o dia é da caça e amanhã...”. (MEYER, 1997,
p. 23)
30
Sabemos que Augusto Meyer ministrou, nos anos de 1952 e 1965, cursos de Teoria Literária na Faculdade
Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, além de ter lecionado a disciplina “Estudos
271
Entre o discurso proferido por Tristão de Athayde em 1961 e o de Francisco de Assis
Barbosa, em 1971, rios cronistas registraram a excelência da obra memorialística de
Augusto Meyer, uma vez que no mesmo ano (1966) vieram a lume a primeira edição de No
tempo da flor e a segunda de Segredos da infância. Stella Leonardos escreveu sobre ambos no
Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro em “Segredos da infância” (18.09.66), destaca o
estilo e o poder de síntese do memorialista: “Nada longo o livro. (E ainda aqui a síntese
revelando a cosmovisão do Poeta). 116 ginas-beleza em 14 capítulos que parecem leves
graças à gostosura do estilo, personalíssimo”; em “No tempo da flor” (20.11.1966), comenta o
“inconfundível estilo augustomeyeriano” que faz brotar novamente “as mesmas raízes-poesia”
do livro anterior, assim como a presença dos “diminutivos de ternura, não de derramamento”
(“vultinho”, “orquestrinhas”) e de certos verbos-sugestividade que nunca víramos antes”
(“pesadelar”, “dançarinando”, “cervejava-se”, etc). Em “O memorial de Augusto Meyer”
(Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 20.05.1967), Raul Xavier, de modo semelhante à
observação feita por Guilhermino Cesar, sublinha a peculiaridade de serem as memórias de
Meyer praticamente autobiografias sem fatos”, o que não as impede, pela excelência da
linguagem, de terem importância capital para a memorialística modernista brasileira:
Em dois volumes Segredos da Infância e No tempo da flor Augusto Meyer
conta-nos uma história, que seria vulgar, a história de um menino e de um
adolescente, se a narrativa não decorresse no plano de uma linguagem azul, de
quando em quando rendilhada de ouro e violeta. (...) Essas lembranças careciam de
importância, se não fossem o passado vivo na moldura da linguagem. Linguagem,
não prosa. Linguagem porque a frase de Augusto Meyer, não se reduz a simples
texto, obediente a esquemas gramaticais. Sem dúvida, a redação é cautelosa,
denuncia a intenção de evitar que professores ranhetas ou catadores de nugas lhe
venham indicar vírgulas errantes. Augusto Meyer é desenhista de traço fino,
figurativo de realidades íntimas que adquirem relevo objetivo singular, graças à sua
arte verbal. Resolvendo o problema da invenção de estruturas estéticas significantes
e da sua moldagem na matéria léxica, Augusto Meyer elaborou o seu mundo misto
de espírito e de forma, a existência do ente que é alma e verbo.
31
brasileiros” na Universidade de Hamburgo (Alemanha) e proferido conferências em Madri (Espanha). Tais
cursos esporádicos, todavia, não tiram a razão de Assis Barbosa é realmente lamentável que um intelectual do
porte de Meyer não tenha se dedicado ao ensino universitário, que muito teria a aprender com sua disciplina, sua
rara percepção crítica e seu amor pela literatura.
31
o somente elogios à memorialística de Meyer nas crônicas veiculadas na imprensa ao citar
“professores ranhetas ou catadores de nugas”, Raul Xavier parece adivinhar o surgimento de comentários
depreciativos como o de Paulo Hecker Filho, para quem Augusto Meyer é um “(...) ensaísta estático,
272
É justamente como posfácio às mencionadas Poesias de Meyer, editadas em 1957 pela
Livraria São José, que encontramos um dos textos mais significativos a respeito da relação
entre as obras poética e memorialística do escritor refiro-me ao excelente “A poesia de
Augusto Meyer e a infância”, de Carlos Dante de Moraes, análise precursora de todas as
abordagens supracitadas, uma vez que, vindo a lume em 1957, é anterior até mesmo ao
discurso pronunciado por Tristão de Athayde em abril de 1961 e à publicação de No tempo da
flor em 1966. Na opinião do autor, “As páginas relativas à infância representam, sem dúvida,
uma etapa superior na sua arte literária” (1957, p. 283-4), etapa em que “transparecia um
sentido profundo e consolador”, daí o poeta ter se voltado para ela, “sedento e nostálgico”,
justificando “as saborosas páginas de evocação que escreveu, com mão de mestre”. (1957, p.
296)
Publicado em 1957, o estudo de Carlos Dantes de Moraes, no entanto, é anterior até
mesmo à primeira edição de Segredos da infância, lançada em 1949. Em nota de rodapé,
Moraes esclarece que, quando o escreveu, conhecia apenas alguns capítulos esparsos,
veiculados na “Lanterna Verde”, em 1944, e na “Província de São Pedro”, em 1946, fato que
valoriza ainda mais a profundidade de sua percepção em relação à excelência da matéria
original que tinha em mãos. A “crise livresca” vivida pelo intelectual, referida por Tristão em
seu discurso e comentada algumas páginas atrás, tendo levado Meyer a se decidir por um
período de reclusão no campo, havia chamado a atenção de Carlos Dante de Moraes, que,
em sua interpretação, vincula o “ciclo poético” de Meyer às sugestões mnemônicas resgatadas
pelo memorialista em seu catártico processo discursivo:
praticamente sem paixão ou idéias próprias” e seus dois volumes de memórias, obras “superestimadas” pela
273
Um rebate aflitivo sacudiu-lhe os quarenta anos... Cansado de análise, saturado de
cultura, o espírito reclamava a água lustral da infância encantada. ‘Voltar! diz uma
voz interior, voltar enquanto é tempo à manhã da tua vida...’ (...) Esse retorno terá de
ser, porém, um longo e sinuoso processo discursivo. O ciclo poético coincidirá com
a infância neste sentido: enquanto fez versos, Augusto se sentira ou tentara colocar-
se na situação de um ser novo, virgem, inicial, como a criança que descobre no dia-
a-dia milagres e angelitudes. Trata-se de um processo psicológico paralelo, em dois
planos mentais diversos, e até opostos, como o são os do menino e do adulto. Agora,
porém, é uma evocação deliberada da infância, a partir do reduto complicado, cheio
de barreiras, da auto-crítica, sob a qual fogem os veios frescos do tempo remoto... A
distância que se interpõe entre os anos verdes e o homem chegado à madureza é, por
certo, imensa. Não será tanto o tempo cronológico, medido pelo calendário, quanto o
recuo espiritual que torna aqueles primeiros inatingíveis aos únicos instrumentos
mentais de que dispomos: lembrança, imaginação, sentimento, análise, intuição...
Tal período não estará sepultado ou escondido em nosso mundo interior, porque
muito deixou de existir, com as suas vivências próprias e incomunicáveis. Melhor
que ninguém, Augusto Meyer sente a separação, o vácuo anímico aberto entre nós e
a fase inicial da vida. (MORAES, 1957, p. 282-3)
Planos psicológicos paralelos que acentuam o vácuo entre a lembrança e a imagem
evocada, a ponto de, contraditoriamente, transformar o ato passivo de relembrar em processo
ativo de recriar, de reinventar o que originalmente se perdeu,
Por isso mesmo, quem evoca ou recorda o passado, revive criando necessariamente.
A visada sentimental destacaria fragmentos sem nexo, sempre a pique de se
diluírem, não fosse a concentração reflexiva e crítica. É um processo contraditório
esse, em que se perde a emoção autêntica, para revivê-la, com outra autenticidade,
num plano diferente... As lembranças soltas e esfareláveis do ser distante e
desaparecido adquirem intensidade e ordem num quadro psicológico traçado pela
intuição, pelo gosto poético e as preferências da sensibilidade do adulto. (MORAES,
1957, p. 283; grifo do autor)
Ao falar do despertar da vocação poética de Meyer, Carlos Dante de Moraes valoriza o
apelo aos sentidos, herança precoce da filiação proustiana que sempre caracterizou a literatura
do autor:
Ilusão querida (...) encerrava a essência literária de um rapazinho alto e esguio,
ruivo e sardento, de ar melancólico e introvertido, que atravessara dias e noites lendo
sem cessar e tinha veleidades de pintor, mas nada sabia da sua verdadeira
sensibilidade. (...) Essa apareceria somente alguns anos depois, no surto lírico de
Coração Verde. Aqui, sim, ouve-se um clamor, um grito insofrido da visão, do
ouvido, do tato e do olfato, e de toda a gama dos sentimentos afetivos! (MORAES,
1957, p. 285)
Resgate da natureza através do redespertar dos sentidos, introspecção e melancolia
daquele que cedo pendeu para o cultivo da literatura e das artes, recriação romantizada do
passado simultaneamente heróico (herdado da inexpugnável bravura de ascendentes alemães
simpatizantes da causa farroupilha) e amedrontador (sobressaltado pela recordação apavorante
274
do vento da campanha), sua afeição constante aos “lugares” de sua memória (o inesquecível
Cerro d’Árvore e o Porto Alegre da Praça da Matriz e da rua da Praia, do Cinema Odeon e da
Livraria do Globo), todos estes elementos, enfim, sobre os quais debruçar-me-ei nos próximos
itens a fim de circunscrever e interpretar a memorialística de Augusto Meyer, foram
mencionados por Dante de Moraes em seu posfácio de 1957, confirmando um fato comentado
no início deste item – o de que o interesse da crítica brasileira em relação a questões
concernentes à memorialística, crescente a partir da década de 90, é bem anterior a esta data,
remetendo-nos a idéias discutidas em meados do século XX, nos anos 50 ou mesmo nos 40.
Como vemos, a memorialística é preocupação antiga da crítica brasileira, como
comprovam os depoimentos sobre Meyer e sobre outros escritores de sua geração. Das
homenagens em periódicos às teses universitárias, passando pelos primeiros ensaios, há muito
tempo o interesse pelo estudo da memorialística está presente em nossa crítica, e não apenas
de modo secundário ou complementar à discussão sobre os gêneros ficcionais, sobretudo
quando estão em jogo tópicos relacionados às dialéticas verdade/ficção e
confissão/reinvenção, questões constantemente debatidas pelos mais diversos teóricos
contemporâneos.
No caso de Tania Franco Carvalhal, por exemplo, a percepção, anunciada em A
evidência mascarada (1981), a respeito da importância da memorialística de Meyer para o
conjunto de sua obra, é confirmada, posteriormente, através de análises coerentes embasadas
nos textos do escritor, levadas a cabo em apresentações (tais como o “Estudo crítico” que
acompanha o volume 8, intitulado Augusto Meyer, da coleção “Letras Rio-Grandenses”,
publicado em 1987 pelo Instituto Estadual do Livro), em palestras (“Augusto Meyer, leitor: da
estante à biblioteca”, incluída em Os escritores que dirigiram a Biblioteca Pública do Estado
do Rio Grande do Sul, 1999, p. 73-9) e em artigos (“Autobiographical writing in Brazil The
‘Proustians’ Jorge de Lima, Augusto Meyer, and Pedro Nava”, in The I of the beholder A
275
Prolegomenon to the Intercultural study of self, 2002, p. 95-108); e “Augusto Meyer,
centenário e presente”, Cultura, Zero Hora, 28.12.2002, p. 02, dentre outros).
Ao longo dos próximos itens, voltarei a estes imprescindíveis estudos, que representam
o fundamento crítico da investigação a que aqui procedo sobre o proustianismo incontestável
deste poeta-memorialista cujo intenso lirismo se espraia em belos poemas e em singelas
recordações. Por enquanto, limito-me a sintetizar os elementos que conferem a tais textos a
preeminência da constatação do fato de se tratar a obra de Augusto Meyer de um todo
harmônico e extremamente coerente, no qual a crítica, a poesia e a memorialística
complementam-se reciprocamente em prol de um único objetivo – o de capturar e apreender a
essência do ser antes fragmentado e aparentemente perdido, ressignificado no ato da escritura.
No artigo escrito para o jornal Zero Hora, ao enfatizar a “condição de leitor” que, por si
só, peculiariza a atitude e, conseqüentemente, o estilo de Augusto Meyer, mesmo
discutindo principalmente a produção do autor como poeta e como crítico, Tania Carvalhal
não deixa de se referir à memorialística, mencionando uma passagem da conferência
pronunciada na ABL por Alberto da Costa e Silva, em abril de 2002, por ocasião do ciclo
comemorativo ao centenário de nascimento de Augusto Meyer, na qual o conferencista
relaciona a complementaridade entre a poética e a memorialística de Meyer como forma de
justificar o “prolongado jejum poético do escritor”, pois o lirismo da infância recuperada
substituía de certa maneira o lirismo poético que sempre o acompanhou. Assim diz Costa e
Silva, conforme acentua Tania:
(...) Augusto Meyer, nas duas abas de seu silêncio, encontra-se e se integra na
ternura da meninice, naquilo que ele chamou ‘fonte clara’. E seria essa necessidade
de recuperar os primeiros dias do mundo, em quem talvez reconhecesse na memória
uma certa superioridade sobre a imaginação criadora, que o levaria a escrever esse
longo e comovente poema em prosa a que deu o nome de Segredos da Infância.
(Apud CARVALHAL, 2002, p. 02)
Poesia e memorialística complementam-se uma vez mais, na obra de Augusto Meyer,
quando o tema é a várzea ao sol” cantada e ansiada com nostálgico lirismo, conforme Tania
276
Carvalhal deixa claro em “Augusto Meyer, leitor: da estante à biblioteca” após destacar sua
evocação no primeiro capítulo de Segredos da infância (“Cerro d’Árvore”, 1949, p. 09-19),
quando Meyer relembra a descoberta que ele, menino, fizera durante uma inesquecível
viagem de carreta que o conduziu ao rancho da família, em Cerro d’Árvore, Tania repara que
essa mesma várzea “curiosamente vai reaparecer na sua poesia”, aproximando, portanto, o
sujeito da memória de Segredos da infância do eu rico de sua poesia. Para a autora, na obra
memorialística, “(...) Meyer recupera a imagem vista como um dado do imaginário, cuja
descoberta lhe dá a dimensão de distância entre as coisas e as formas que elas podem adquirir
por força da imaginação” (1999, p. 75), da mesma forma que no poema “Distância” (v.
Poesias, 1957, p. 265) a várzea é a mesma, “somente o deslumbramento inicial se havia
transmutado em sentimento de nostalgia, sensação de perda que move a busca, num sentido
muito proustiano”. (1999, p. 76)
32
A convergência entre a poesia e a memorialística de Augusto Meyer o se reduz à
referência à “várzea ao sol” no “Estudo crítico” que abre o volume 8 das Letras Rio-
Grandenses, intitulado Augusto Meyer, Tania Carvalhal ressalta as sinestesias e a
interpenetração dos sentidos como elementos dominantes na poesia do escritor, sobretudo em
Coração verde e em Giraluz, aspectos essenciais também para a recuperação da infância
32
Ainda segundo Tania Carvalhal, Meyer apropria-se “(...) de material anterior, representado de outra forma na
ficção biográfica, para explorá-lo, ainda, na formulação poética”, reincidência que atesta o tramado intertextual
em que sua obra se constrói, na preservação de imagens que se impõem”, uma vez que o que o autor busca, no
conjunto de sua obra, é justamente “perpetuar o mistério, a bruma do acontecido, por via metafórica” (1999, p.
75). Um dos trechos referidos por Tania é o que abre o último parágrafo de “Cerro d’Árvore”, em que Meyer
confessa que “Não saberia dizer com palavras o que foi para mim a várzea ao sol. Tive alegrias e revelações
mais tarde, porém nenhuma tão profunda como aquela. Porque era indefinível e integral. Porque a consciência
não me separava das coisas, como agora” (MEYER, 1949, p. 19). O mesmo sentimento de indefinição e de
vagueza acompanha o poema: “Há uma várzea no meu sonho, / Mas não sei onde será... / Em vão, cismando,
transponho / Coxilhas enluaradas, / Cristas de serrilhadas, / Solidões do Caverá. (...) // Era além do azul da serra,
/ Era sempre noutra terra, / Era do lado de lá... / Em vão, cismando, transponho / Poentes e madrugadas, /
Intermináveis estradas / Perdidas ao deus-dará. // uma várzea no meu sonho, / Mas não sei onde será”
(“Distância”, 1957, p. 265). Aproximadas as duas passagens, a conferencista simultaneamente questiona e
responde: “Tratar-se-á da mesma várzea do texto autobiográfico? Possivelmente sim. Ela recobre, aqui, tudo que
está perdido no tempo e na distância. A imagem permanece na memória do eu lírico como elemento que mascara
a evidência.” (CARVALHAL, 1999, p. 76)
277
executada no volume de 1949. Para Carvalhal, a paisagem sugerida em muitos de seus
poemas reproduz
(...) mais o ato subjetivo da percepção, os efeitos, as impressões que logra no
espectador e, menos, o objetivamente visto. Por isso, ela [a paisagem] se pode
construir das recordações, recuperando um dia de sol, um gemido de vento, um
aroma de flor, um silêncio de campo aberto. (CARVALHAL, 1987, p. 16)
Assim, as paisagens “(...) são interiorizadas e o lírico se identifica (...) com o que vê”, já
que, no caso de um autor introspectivo como Meyer, “a nostalgia de recuperar um espaço
perdido traduz uma percepção intensamente subjetiva do que o cerca e que obriga tudo a
passar pelo filtro do Eu” (1987, p. 16). Augusto Meyer enfatiza, em sua produção poética,
elementos subjetivos relacionados à exploração de fatores de ordem sensorial e ontológica, e
esta mesma tendência verificar-se-á, obviamente, em sua memorialística, terreno adequado ao
amadurecimento das redescobertas pessoais que reintegrarão, sob acentuado influxo
proustiano, o passado no presente e o menino no adulto:
Há, na obra de Augusto Meyer, uma constante inclinação a integrar passado e
presente. Por isso, a memorialística foi um território de eleição, onde lhe foi possível
efetuar esse resgate. (...) Leitor de Proust, o poeta buscou a recuperação do tempo
perdido em Segredos da Infância (1949) e em No Tempo da Flor (1966). Nesse
segundo volume, sobretudo, a sugestão proustiana é acentuada desde o título. Mas
divergindo do autor apreciado, Meyer ocupou-se menos em traçar um painel social e
mesmo histórico do período recuperado e tomou a linha subjetiva do romancista
francês na qual é central a reflexão sobre o tempo e seu caráter destruidor.
(CARVALHAL, 1987, p. 13)
Tania Carvalhal sabe, além disso, que o interesse despertado no Brasil pela obra
proustiana não é privilégio de Augusto Meyer – em “Autobiographical writing in Brazil – The
‘Proustians’ Jorge de Lima, Augusto Meyer, and Pedro Nava”, a autora aponta o romance de
Marcel Proust como o grande modelo do memorialismo brasileiro, gênero que somente nos
dias de hoje começa a merecer a devida atenção de nossa crítica:
(...) the French writer is without doubt the greatest influence on the narration of
memory in Brazilian literature. Little studied and lacking a clear focus, this genre of
narrative is just beginning to be analyzed in all the complexity of its distinctive
problematic structure. (CARVALHAL, 2002, p. 98)
Além de Meyer, Jorge de Lima e Pedro Nava são citados como os principais
proustianos de nossa literatura memorialística modernista. O poeta alagoano, tendo-lhe
278
dedicado o precursor Dois ensaios e um “Poema a Marcel Proust”, é apontado como
“familiar” ao romancista, a quem trata de “mon petit Proust”, acusando um grau de intimidade
semelhante àquele demonstrado em relação à família e à pátria: “It is clearly a familial circle
into which Proust is easily inserted.” (2002, p. 100)
33
Augusto Meyer também dedicou um poema a Proust (“Elegia para Marcel Proust”,
Poesias, 1957, p. 115-6), comentado da seguinte forma:
Into Giraluz, a work published in 1928, he inserts an ‘Elegia para Marcel Proust’, in
which he associates his experience as a poet with that of a novelist. Meyer constructs
a broad avenue lined with hedges in order to situate ‘l’enfant Marcel’ with whom he
is in a dialogue. (CARVALHAL, 2002, p. 102)
34
Entre as páginas 102 e 106 do artigo, Tania Franco Carvalhal menciona alguns dos
principais textos de Meyer a respeito da obra de Proust, fundamentalmente “Proust, o zaori” e
“Os três primos”, discutidos no item anterior (3.3), bem como certas imagens, como a da
“várzea ao sol”, referida pouco, e a da “ilha flutuante de Delos”, sugeridas ao escritor
gaúcho a partir de motivações essencialmente proustianas, bases do desencadeamento das
recordações veiculadas em Segredos da infância e em No tempo da flor
35
.
33
Sobre o proustianismo de Jorge de Lima, ver, no excelente estudo de Fábio de Souza Andrade, a noção de que
o escritor alagoano contribuiu “(...) para a renovação da linguagem poética brasileira com seus panoramas
regionalistas e poemas negros”, pois “(...) Somou aos poemas de temática proustiana, voltados para a história de
constituição de sua persona poética, aqueles que, seguindo o ideal romântico, contribuíram para a consolidação
de uma literatura e linguagem nacionais, mesmo que incorporando procedimentos estilísticos tomados às
vanguardas européias.” (ANDRADE, O engenheiro noturno – A lírica final de Jorge de Lima, 1997, p. 31)
34
Ver sobretudo as estrofes iniciais do poema: “Aléia de bambus, verde ogiva / recortada no azul da tarde
mansa, / o ouro do sol treme na areia da alameda, / farfalham folhas, borboletas florescem. // Portão de sombra
em plena luz. // Gemem as lisas taquaras como frautas folhudas / onde o vento imita o mar. // Marcel, menino
mimoso, estou contigo, Proust: / vejo melhor a amêndoa negra dos teus olhos. / Transparência de uma longa
vigília, / imagino as tuas mãos / como dois pássaros pousados na penumbra.” (MEYER, Poesias, 1957, p. 115)
35
Sobre a “ilha flutuante” que tanto interessou a Meyer, Carvalhal escreve que esta “imagem proustiana” “(...)
appears frequently in the poetry and essays of Meyer: a floating island a kind of Delos, an island which,
according to the author, belongs to an archipelago of suggestions – that is integrated into a group of images that
must be discovered by literary memory” (2002, p. 103). Na página seguinte, Tania Carvalhal demonstra que,
para Meyer (“A ilha flutuante”, Preto & Branco, 1956, p. 123-7), a ilha que, como o pensamento de Marcel, se
destaca “tão isolada de tudo”, como “uma Delos florida”, torna-se metáfora do próprio processo de manifestação
da memória involuntária: “The interpretation that he [Meyer] provides of this Delos contributes to our
understanding of the Proustian procedure of exploring involuntary memory: the floating island may accord with
the recollection that memory has reconstructed, ‘mas não consegue ligar a uma data, a um nome de lugar, a uma
reconstituição qualquer de acontecimento definido’ (...). According to him, the floating island in Proust
corresponds to what he calls ‘souvenir pur’ (pure memory), that is to say, ‘a recordação que emerge do
inconsciente sem qualquer liame associativo imediato, na cadeia das recordações’.” (CARVALHAL, 2002, p.
104)
279
Pedro Nava é, na opinião de Tania Carvalhal, o “mais proustiano dos três”, pois, além
de ter se dedicado exclusivamente ao gênero memorialístico, demonstra tamanha intimidade
com a obra proustiana a ponto de citá-la confiando apenas em sua prodigiosa memória,
descartando a necessidade de consultar o trecho ao qual deseja se referir:
It is, perhaps, Pedro Nava, a physician like Jorge de Lima, who is the most Proustian
of the three, because he is the only one to write just memoirs. The author himself
tells us that he read La Recherche six times and that each evening he read a few
pages of one of Proust’s books. This exposure gave him a true intimacy with the
author and the work. This habit permitted him to appropriate several examples from
Proust and let them pass over into his book. Sometimes it is difficult to identify
precisely the source of a Proustian fragment cited by Nava because he often relies on
his memory rather than returning to examine the citation at close proximity.
(CARVALHAL, 2002, p. 106)
Em comum, o fato de todos três, Lima, Nava e Meyer, terem aproximado as literaturas
francesa e brasileira e contribuído para o estabelecimento de uma “escritura do eu” baseada na
reprodução peculiar do cotidiano, de nossa história e da vida em sociedade:
They open, thus, within Brazilian literature a field of study which on the one hand
prompts us to analyze the relationship between Brazilian and French literature and
on the other invites us to consider the very particular way of reproducing history,
society, and daily life that is the writing of the self. (CARVALHAL, 2002, p. 108)
Sobretudo o memorialista mineiro, o “mais proustiano” de nossa literatura
memorialística, tem merecido especial atenção por parte da crítica especializada e dos
pesquisadores acadêmicos. No número 70 da Cult – Revista Brasileira de Cultura, de maio de
2003, há um dossiê sobre Pedro Nava, publicação motivada pelo centenário de nascimento do
escritor (1903-2003). Ao longo dos textos, é constante a aproximação entre Nava e Proust, os
“dois gigantes do memorialismo ocidental”, como afirma Antônio Sérgio Bueno em “O
anatomista da palavra”, estudo que sublinha a existência de “ícones verbais que materializam
o rumor da língua e a auscultação do corpo” (2003, p. 57) nas memórias do autor. Para Bueno,
Ambos os autores apresentam uma poética da cor e uma poética da luz. Ambos
mergulham no tempo, mas são também mestres do espaço, inclusive do espaço
primordial que é o corpo. Se Nava, no Círio perfeito, fala na memória das mucosas
do nariz’, Proust, em O tempo redescoberto, lembra que ‘as pernas, os braços estão
cheios de lembranças embotadas’. (BUENO, 2003, p. 58; grifo do autor)
Antônio Sérgio Bueno afirma ainda que, “dentre os autores que servem de referência ao
maior memorialista em língua portuguesa está Marcel Proust, uma moldura da qual não
280
consegue nem parece querer fugir” (2003, p. 58), que tanto o romancista francês quanto o
médico-memorialista brasileiro tinham “(...) um olhar medicinal sobre o mundo, a vida, as
paixões”, que denunciava a abordagem dos mais variados fenômenos como estados
patológicos a respeito dos quais se tornava imperioso diagnosticá-los, principalmente os
“sintomas” relacionados ao amor (Idem, ibidem). Além disso, como no caso de Meyer, salta
aos olhos “o caráter poético de sua prosa memorialística” (2003, p. 57), o que o aproxima
ainda mais de Proust e de sua busca incessante do tempespaço perdido.
Em outro artigo do dossiê, intitulado “O baú de Pedro Nava”, Sergio Amaral Silva,
discorrendo sobre aspectos biográficos que ajudariam a compreender a obra e as
circunstâncias misteriosas da morte daquele que “reinventou a prosa memorialística”
brasileira, também se refere a Proust para caracterizar a escrita de Nava, unidos pela
necessidade de autoconhecimento calcada na ressignificação do tempo e dos fatos passados:
Em 1972, publica pela Editora Sab seu primeiro volume de memórias: Baú de
ossos, em que narra a história de seus antepassados portugueses, italianos, cearenses
e mineiros. Muito mais que isso, o livro não se limita a descrever episódios vividos
pelo autor: revela o ambiente social, político e cultural do Brasil na primeira metade
do século, levando o leitor a compreender, mais do que o homem, a época em que
viveu. Para ele, como em Proust, a busca do tempo perdido, através de fatos e
personagens, é antes de tudo um modo de chegar ao conhecimento de si mesmo.
(SILVA, 2003, p. 52)
36
A surpreendente obra de Pedro Nava também é responsável por um feito raro em termos
de crítica brasileira: refiro-me à presença de comentários a respeito do gênero em antologias
de historiografia literária, como podemos constatar em A literatura brasileira Origens e
Unidade (1500-1960), obra na qual José Aderaldo Castello dedica, no segundo volume, um
36
Sobre este primeiro volume das memórias de Nava, convém acompanharmos o trecho inicial de “Baú de
surpresas”, belíssimo prefácio escrito pelo amigo Carlos Drummond de Andrade e incluído na sexta edição da
obra, publicada em 1983 pela Nova Fronteira: “Pedro Nava surpreende, assusta, diverte, comove, embala,
inebria, fascina o leitor, com suas memórias da infância, a que deu o título de Baú de ossos. Seus guardados nada
têm de fúnebre. Do baú salta a multidão antiga de vivos, pois este médico tem o dom estético de, pela escrita,
ressuscitar os mortos. (...) E não eles, mas também o espaço e o tempo em que suas vidas se situaram são
restituídos por um criador poderoso, que se vale da memória como serva da arte. Pessoas, lugares, dias, fatos e
objetos começam a delinear-se, a desvendar-nos sua fisionomia e correlação, sua profunda unidade cultural e
humana, em torno de um menino que tem dimensão normal de menino, e não a de monstro incumbido de fazer
menção de tudo(p. 07). Leiamos ainda outro depoimento interessante, o de Fábio Lucas em Mineiranças:
“Reler Pedro Nava será, com certeza, percorrer a trajetória de uma das mais notáveis aventuras no campo da
281
item inteiro à análise do gênero “memórias”, além de incluí-lo na seqüência que discute a
produção de Jorge de Lima
37
. Para chegar à obra de Nava, porém, José Aderaldo Castello
percorre um longo caminho, iniciado com a menção à produção memorialística de autores
românticos e pré-modernistas:
Três vultos de destaque da nossa cultura, José de Alencar no período romântico,
Joaquim Nabuco e Graça Aranha de fins do século passado [XIX] para princípios do
atual [XX], marcam o surgimento do memorialismo entre nós. E memorialismo de
feição literária, elaborado com acentuada criatividade sobre a experiência pessoal, a
partir da fase inicial da infância. Fundamentado freqüentemente nas primeiras
impressões captadas, compõe e enriquece a consciência da realidade envolvente
familiar e afetiva, social, política, impressões da paisagem física do Brasil.
(CASTELLO, 1999, v. 2, p. 385)
Para Castello, Alencar, Nabuco e Graça Aranha “(...) devem ser lembrados como
antecipadores de um gênero que, à semelhança da crônica, ganharia vulto entre nós”, seja por
escritores, como Humberto de Campos
38
e Medeiros e Albuquerque, “sem compromissos
diretos com o Modernismo, antes presos à tradição imediatamente anterior”, seja por
modernistas dentre os quais destaca Graciliano Ramos, Oswald de Andrade, José Lins do
Rego e Pedro Nava (1999, v. 2, p. 386). A respeito de Graciliano, sublinha em Infância (...) o
despojamento emocional cedendo lugar à preocupação vigilante ao reconstituir a infância”
(1999, v. 2, p. 391). Já Oswald recompõe, na opinião de Castello, “(...) fase da vida em busca
de afirmação da própria individualidade”, “colocando-se entre os mais expressivos
representantes do gênero” “com a força da autenticidade” de quem possui “personalidade” e
“visão de mundo” bem diversa da de Graciliano (1999, v. 2, p. 397). Diferentes visões que
não os impedem, contudo, de fundir memorialismo e ficção com a mesma excelência da
mescla perfeita levada a cabo por José Lins do Rego:
palavra a serviço da memória, esquadrinhando as duas margens do Letes, a do Inferno e a do Paraíso. O texto foi
o esplendor votado à eternidade.” (LUCAS, 1991, p. 126)
37
Ver, a esse respeito, “Memória, poesia e ficção em Jorge de Lima”, subcapítulo no qual Castello analisa obras
como Tempo e eternidade (de Jorge de Lima e Murilo Mendes) e poemas como “O mundo do menino
impossível”, tendo como base as “raízes da infância” do escritor alagoano e as “reações parapsicológicas
entremeando rotina, imprevistos, circunstâncias e fatos do universo doméstico e de convívio extrafamiliar, até
mesmo em nível popular, fenômenos diversos do cotidiano ao sobrenatural”. (1999, v. 2, p. 211)
38
Sobre o autor de Memórias inacabadas, José Aderaldo Castello considera que Humberto “(...) amplia o
interesse autobiográfico das memórias com depoimento de caráter político-administrativo, além de apresentar-se
participante da vida intelectual do país”. (CASTELLO, 1999, v. 2, p. 388)
282
À semelhança de Graciliano Ramos e de Oswald de Andrade, José Lins do Rego
também representa íntima dependência entre o memorialista e o ficcionista, sendo
neste sentido o caso mais significativo da nossa literatura. Realmente, a leitura de
Meus Verdes Anos nos reconduz imediatamente a Menino de Engenho sob a
impressão de que o primeiro é uma nova versão do segundo ou até que ponto os dois
são obras distintas. (...) José Lins do Rego mesmo fazendo memória faz romance’,
como faria romance como se fosse ‘memória’. E o ponto de partida, como inspiração
e representação do Nordeste foi a infância que perduraria em fases subseqüentes.
(...) Reiterando: as memórias também ilustram fundamentos psicológicos e sociais, a
galeria dos tipos e a temática do restante da criação do ficcionista. Mas repudiamos a
idéia de repetição, para pensarmos uma obra em que memorialista e ficcionista se
confundem de tal maneira a possibilitar, como representação totalizante, o mais
abrangente e igualmente o maior e mais sincero depoimento humano e social da
nossa narrativa ficcional. (CASTELLO, 1999, v. 2, p. 398-9)
39
Sobre a obra de Pedro Nava, Castello considera-a responsável por um grande impacto
283
Mais do que representar o “verdadeiro painel da família brasileira”, a obra de Pedro
Nava exemplifica perfeitamente o trabalho, muito em voga atualmente, de reconstituição da
genealogia textual, como deixa claro Eneida Maria de Souza em “Males do arquivo”
40
. Assim
como o arqueólogo, “que da curva de um pedaço de jarro” reconstitui o vaso inteiro, o
memorialista, a partir de lembranças esparsas, recupera toda uma vida em sociedade. Afirma
Eneida de Souza, baseando-se na teoria do próprio Nava:
A metáfora do vaso, remetendo à idéia de recomposição e reelaboração da memória,
ou de um texto ‘original’ que retorna à superfície, é evocada por Pedro Nava, em
Baú de ossos, para introduzir sua viagem em torno do passado e fornecer, ao lado de
todo o trabalho de armazenamento de dados, uma das mais fascinantes teorizações
sobre a memória. Como quem, com mão paciente, vai compondo um puzzle, o
memorialista conscientiza-se da impossibilidade de completar a paisagem, pelo fato
de existirem peças que faltam e por estas deixarem ‘buracos nos us, hiato nas
águas, sombras nos sorrisos, furos nas silhuetas interrompidas e nos peitos que se
abrem no vácuo como vitrais fraturados
41
. Através do método de recomposição,
próprio da arqueologia, em que o pedaço de jarro encontrado impulsiona a
reconstituição suplementar do objeto, os fatos e as palavras vão igualmente atuar
como fragmentos da vida a ser escrita. Essa prática arqueológica distingue-se da
busca do princípio e do resgate da origem. Esfraturada e entregue ao traço e à
impressão de vários sujeitos, que se responsabilizam, de forma plural e múltipla,
pela sua escavação. (SOUZA, 1998, p. 82)
Se grandes obras memorialísticas de nossa literatura motivaram artigos, ensaios,
palestras e comunicações em congressos, também despertaram, evidentemente, o interesse da
comunidade acadêmica no sentido de produzir pesquisas de maior “fôlego”, servindo de mote
à redação de dissertações de Mestrado e teses de Doutorado nas mais diversas universidades
40
In Limiares críticos Ensaios de Literatura Comparada (Belo Horizonte: Autêntica, 1998, p. 81-8). O artigo
se encerra com o seguinte parágrafo: “Memória de arquivo, mal de arquivo, nostalgia e paixão da origem são
esses os princípios que norteiam o trabalho infinito de escavação da genealogia textual. Estar doente, ser
possuído pelo ‘mal de arquivo’, é considerá-lo como espectro e cadáver, fantasma que possibilita o diálogo
incessante da morte com a vida. Compete à escrita memorialística cumprir o papel de suplemento e de simulacro
desse diálogo.” (SOUZA, 1998, p. 88)
41
NAVA, Pedro. Baú de ossos, 1983, 6 ed, p. 50. O trecho ao qual Eneida Maria de Souza se refere como a
“metáfora do vaso”, continuação da citação mencionada, é o seguinte: “Um fato deixa entrever uma vida; uma
palavra, um caráter. Mas que constância prodigiosa é preciso para semelhante recriação. E que experiência... A
mesma de Cuvier partindo de um dente para construir a mandíbula inevitável, o crânio obrigatório, a coluna
vertebral decorrente e osso por osso, o esqueleto da besta. A mesma do arqueólogo que da curva de um pedaço
de jarro conclui de sua forma restante, de sua altura, de suas asas, que ele vai reconstruir em gesso para nele
encastoar o pedaço de louça que o completa e que nele se completa” (NAVA, Baú de ossos, 1983, 6 ed, p. 50-1).
Notar a semelhança do trecho de Nava com a seguinte passagem de A menina do sobrado, na qual Cyro dos
Anjos recorda o Tio Veloso: “O que pede a pena agora é que eu agarre e bote no papel umas lembranças fujonas
de 1916, enlaçadas a outras de 1921 e 1923, se não de 1924, ano em que vi pela última vez essa imponente
figura, através de quem se poderia reconstituir toda uma época, do mesmo modo como o arqueólogo, por um
torso de estátua ou mediante algum utensílio caseiro, consegue vislumbrar civilizações sepultadas sob milênios.”
ANJOS, Cyro dos, 1979, p. 216-7)
284
brasileiras. No primeiro caso, temos como exemplo o belo trabalho sobre a obra Infância, de
Graciliano Ramos, realizado por Tânia Regina de Souza na Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC) e publicado pela própria editora da universidade. Em A infância do velho
Graciliano Memórias em letra de forma, a autora destaca que as memórias de infância de
Graciliano
(...) não mostram uma idealização do passado, apenas um desejo de encarar os fatos
de frente, de desmistificar o tom quase sempre idealizado e nostálgico com que se
fala da infância. O mundo infantil descrito por Graciliano Ramos não libera
encantos; (SOUZA, 2001, p. 13)
Mas são sobretudo nas teses de Doutoramento que afloram a maioria dos trabalhos
acerca do gênero, e não somente nas pesquisas específicas sobre o assunto. Vimos nos itens
anteriores que estudos como o de Maria Marta Laus Oliveira (A recepção crítica da obra de
Marcel Proust no Brasil) e de Tania Franco Carvalhal (A evidência mascarada Uma leitura
da poesia de Augusto Meyer) tocam em pontos fundamentais da relação entre a
memorialística e outros gêneros literários da produção modernista brasileira. Da mesma
forma, a tese de Maria Luiza Berwanger da Silva, publicada com o título de Paisagens
reinventadas: traços franceses no Simbolismo Sul-rio-grandense (Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 1999)
42
, essencial para a compreensão do movimento simbolista no Rio Grande do
Sul, está repleta de importantes discussões relacionadas à reconfiguração poética de paisagens
a partir de sua íntima ligação com a Alteridade e com as práticas intertextuais, sempre
intermediada pela memória. No capítulo “Memória e resgate do desejo em As amargas...não
de Álvaro Moreyra”, a autora acentua o fato de o relato das memórias constituir, na maior
parte das vezes, “um caso exemplar de recriação literária” calcado em projeções que
funcionam como alternâncias entre momentos esquecidos e momentos relembrados:
Na base desta evocação, o ato de deixar resquício no passado, paralelo à
possibilidade de acionar a projeção do passado sobre o presente evidencia a
representação da memória como reminiscência e esquecimento. Conforme a
42
Título original: “A paisagem do desejo e a poética do outro no Simbolismo sul-rio-grandense: Uma leitura dos
intertextos franceses”. Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), 1995, 2 v.
285
passagem citada
43
, trata-se de recuperar a lembrança transgredindo o próprio
passado, o que, numa certa medida, acena à prática do jogo intertextual como
apropriação e transformação. No caso, a recriação consistiria na sobreposição ‘de
outro tempo [...] daquele tempo’ ao fluxo do presente. (SILVA, 1999, p. 221)
Através destes exemplos, constata-se que a preocupação dos críticos acadêmicos
brasileiros não está reduzida aos memorialistas modernistas, embora estes sejam os maiores
focos de interesse. Além da obra do simbolista Álvaro Moreyra, comentada por Maria Luiza
Berwanger da Silva, escritores como o romântico Visconde de Taunay também tiveram suas
memórias estudadas em teses universitárias. No quarto capítulo (“A construção da memória
de um arauto do rei”) de O polígrafo contumaz – O Visconde de Taunay e os fios da memória,
tese defendida por Maria Lídia Lichtscheidl Maretti no Instituto de Estudos da Linguagem da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) durante o ano de 1996, é patente a intenção
da autora de discutir, com base nas teorias de Paolo Rossi, Pierre Nora e Jacques Le Goff,
“(...) o potencial de inventividade, de desejo de construção de uma verdade concebida como a
verdade-em-si, ou no mínimo a carga de impressões pessoais contidas nos relatos
memorialísticos”, “resultado que é sempre uma leitura dos fatos, e não os fatos em si”
(MARETTI, 1996, p. 117; grifo da autora). Além disso – e essa é a peculiaridade das
memórias de Taunay que mais importa aqui, conforme veremos adiante, no item 4.6 – Maretti
aponta para a inusitada ocorrência de manifestações da memória involuntária na obra do
escritor de origem francesa, “causando estranheza e desempenhando um papel semelhante ao
43
A passagem de Álvaro Moreyra referida por Maria Luiza Berwanger da Silva é a seguinte: “A uma certa
idade, o homem pára, começa a evocar a vida que viveu, a revivê-la em saudade. (Há no passado uma fascinação
eterna sempre nova). Deixamos nele tudo o que existia em nós de instinto, de virgindade, de sensibilidade. Por
ele caminhávamos inconscientemente [...] E como um poeta que pousa os olhos numa página antiga e nela se
admira, pensando que nunca mais escreverá assim o homem, ao rever os anos do passado, imagina que o seu
melhor destino acabou, [...] nenhuma sensação de vir embelezar de dor ou de alegria o tempo desconhecido
[...] Mas não! É preciso viver! A memória é uma velha amiga, tudo sabe e nada esquece [...] Nas noites de
insônia, nos dias de chuva, poderemos pedir-lhe um caso distante, uma lembrança [...]‘Era uma vez [...]’ – E a
memória contará das lindas manhãs, dos meio-dias, das tardes, das noites longe [...] e das paisagens, das
criaturas [...] de tanta coisa de outro tempo [...] daquele tempo” (Apud SILVA, 1999, p. 220). Em outro trecho
citado por Berwanger, a observação de Moreyra nos faz lembrar o lamento de Augusto Meyer em “Cerro
d’Árvore” (“A todo momento, quando nos perturba a sedução da sua saudade, sentimos que é preciso voltar de
qualquer modo aos pagos da infância. Voltar! diz uma voz interior, voltar enquanto é tempo à manhã da tua
vida...”, 1966, p. 17). Diz Álvaro Moreyra: “Voltar [...] uma longa melancolia nesse verbo que, na verdade,
ninguém conjuga. Voltar [...] Quem é que volta? O que se sumiu, uma vez, nunca é o mesmo que reaparece.
286
da madeleine proustiana”, e que revela “(...) a influência do presente (da rememoração) sobre
o passado, que não pode ressurgir mais com as garantias pretendidas de pureza, isenção ou
neutralidade”. (1996, p. 120-1)
Espalhada, portanto, pelas principais universidades de estados como São Paulo, Rio
Grande do Sul e Santa Catarina, a pesquisa acadêmica referente à memorialística brasileira
alcançaria o merecido destaque em Minas Gerais, principalmente na Universidade Federal
(UFMG) e na PUC de Belo Horizonte, através de três importantes teses, todas publicadas pela
Editora UFMG (a primeira, em coedição com a EDUSP) – Corpos escritos: Graciliano
Ramos e Silviano Santiago (1992), de Wander Melo Miranda; Vísceras da memória: Uma
leitura da obra de Pedro Nava (1997), de Antônio Sérgio Bueno; e Memórias videntes do
Brasil: A obra de Pedro Nava (2003), de José Maria Cançado, esta última defendida na
Pontifícia Universidade Católica sob orientação de Lélia Parreira Duarte.
A tese de Wander Melo Miranda, antes de aprofundar-se na interpretação das Memórias
do cárcere, “ficção autobiográfica” de Graciliano Ramos, e de Em liberdade, “autobiografia
ficcional” de Silviano Santiago, também comentada por Fábio Lucas em Mineiranças
44
,
analisa conceitos tais como “individualismo” e “autobiografia” com base nas teorias de
Philippe Lejeune, concluindo pela relação paradoxal entre representação literária e
experiência vivida” (1992, p. 26), uma vez que a autobiografia literária se pauta pela
pretensão de “(...) ser simultaneamente um discurso verídico e uma forma de arte” (1992, p.
30), nem sempre obtendo os resultados esperados (de “pureza, isenção ou neutralidade”, no
dizer de Maria Lídia Maretti). Mesmo correndo o risco de incidir em tal paradoxo, Wander
Melo Miranda não se omite de sublinhar a função da memória “(...) a serviço da invenção
Sofreu. Traz a ilusão de mais experiências. Caso perdido. Todos os homens são casos perdidos.” (Apud SILVA,
1999, p. 221)
44
Ver o capítulo Em liberdade: as formas livres de um romance”, no qual o crítico esclarece que “Utilizando
como idéia-base de sua ficção o diário que Graciliano Ramos teria elaborado após a sua prisão durante a ditadura
Vargas, Silviano Santiago procura retratar o desconforto de um grande escritor ao tentar readaptar-se a um
mundo estranho, de que fora afastado pela ordem absurda das coisas.” (LUCAS, 1991, p. 220)
287
ficcional, concebida esta como o modo mais eficaz de recuperar experiências alheias e fazê-
las convergir ou articular(1992, p. 131), fato que o leva a discutir o papel da “interação da
imaginação com a memória” a partir do comentário de Graciliano Ramos em Memórias do
cárcere sobre a “falsidade” da afirmação de José Lins do Rego em Moleque Ricardo.
Segundo Wander Melo Miranda,
A memória a serviço da imaginação e vice-versa eis o sutil ponto de equilíbrio
almejado por Graciliano para expressar na escrita o ‘sofrimento alheio’ e poder
torná-lo comunicável ao leitor. Colocado no espaço ambíguo do embate do
testemunho memorialista e da invenção ficcional, ao leitor cabe a postura também
sutil de não buscar ‘nas obras de arte apenas o documento’ e nem tampouco fazer
delas mero pretexto para a satisfação do desejo de ‘sonho e fuga’. (MIRANDA,
1992, p. 140-1)
45
Filtrado pela discussão do binômio memória/imaginação, pois “(...) não se trata de
eternizar o passado, mas de confrontá-lo com o presente e inocular a própria mobilidade deste
no narrado, reinventando com as imagens arbitrárias da memória e da imaginação a trajetória
comum de vida percorrida” (1992, p. 121), o estudo de Miranda pretende mostrar que, nesta
obra de Graciliano, Dos reveses da vida, retomada ao reverso no tempo, a memória extrai a
matéria configuradora do texto que se entralaça com outros textos” (1992, p. 124), sendo a
infância, para o romancista alagoano, “o lugar privilegiado da opressão”, uma espécie de
“prisão pior que uma escola primária do interior” (1992, p. 125). Wander acredita que na
literatura do autor de Vidas secas
45
As observações de Wander Melo Miranda se referem ao tom crítico com que Graciliano Ramos condena, no
primeiro volume de Memórias do cárcere, a descrição de José Lins do Rego que, por não ter conhecido
objetivamente a miséria que descrevia, fazia, em sua opinião, “obra de imaginação” e não de relato verídico dos
fatos, apesar de ser considerado mais “memorialista” que “romancista”. Assim diz Graciliano, em trecho
mencionado por Miranda: “Conheceria José Lins aquela vida? Provavelmente não conhecia. Acusavam-no de ser
apenas um memorialista, de não possuir imaginação, e o romance [Moleque Ricardo] mostrava exatamente o
contrário. Que entendia ele de meninos nascidos e criados na lama e na miséria, ele, filho de proprietários?
Contudo a narração tinha verossimilhança. Eu seria incapaz de semelhante proeza: me abalanço a expor a
coisa observada e sentida. Tornaria esse amigo a compor outra história assim, desigual, desleixada, mas onde
existem passagens admiráveis, duas pelo menos a atingir o ponto culminante da literatura brasileira? Quem sabia
lá? Agora morava no Rio, talvez entrasse na ordem, esquecesse a bagaceira e a senzala, forjasse novelas
convenientes para um público besta, rico e vazio” (RAMOS, Memórias do cárcere, 1996, v. 1, p. 61). A Augusto
Meyer também soa falsa e inoperante a descrição fantasiosa de situações verdadeiras ou verossímeis. Em “O
clube ao ar livre”, recusa-se a imaginar o que os mendigos da Praça da Matriz conversavam entre si: “Seria uma
fraude inqualificável tentar aqui reproduzir a verdade amarga desse diálogo em termos literários, como um
romancista acomoda a realidade às amáveis traições da fantasia.” (MEYER, No tempo da flor, 1966, p. 28; grifo
meu)
288
(...) sensações desencontradas, parciais, fragmentárias, se entrelaçam a sensações
semelhantes de situações críticas experimentadas tanto pelo Graciliano de Infância,
quanto pelo de Memórias do cárcere, estabelecendo, através da repetição
diferencial, um campo fecundo de relações intertextuais, esclarecedoras a seu modo
do funcionamento da linguagem da memória. Dessa forma, é possível aproximar,
enquanto eventos reminiscentes que passam pelo corpo do sujeito e adquirem
significado, o intricado labirinto de impressões acústicas gravadas no presente dos
contos com os acessos periódicos de cegueira que acometem Graciliano na infância
e durante seu período de encarceramento. (MIRANDA, 1992, p. 125)
No parágrafo conclusivo de Corpos escritos, Wander Melo Miranda sintetiza a
importância de Memórias do cárcere e de Em liberdade para o estabelecimento de uma faceta
da cultura brasileira normalmente excluída dos cânones oficiais, dado que diferencia os
“politizados” Graciliano e Silviano da maioria de seus contemporâneos:
Em vez da imagem narcísica de um autor, esses textos, através da experiência
pessoal que carregam ou retratam, acabam por traçar um ‘retrato do Brasil’ não
coincidente com os traços do retrato oficial. Esse ato liberador e libertário os
distingue da maioria dos seus congêneres e afirma a função indispensável da palavra
artística diante dos limites da gramática e da lei, da difícil tarefa de dar sentido e
vida à vida. (MIRANDA, 1992, p. 157; grifo do autor)
Temos visto, ao longo deste item, o interesse despertado, em nossa crítica acadêmica,
pelo memorialismo de autores como Graciliano Ramos, Silviano Santiago, José Lins do Rego,
Oswald de Andrade, Jorge de Lima, Álvaro Moreyra, Humberto de Campos, Visconde de
Taunay, Raul Pompéia e muitos outros, a quem faltaria espaço e adequação para que aqui
fossem detalhados. Mas nenhum outro memorialista brasileiro sugestionou tantos diferentes
estudos como Pedro Nava, que também atraiu a atenção de pesquisadores na área da
Lingüística
46
. Nos domínios da crítica literária, além dos estudos de Antônio Sérgio Bueno e
de José Maria Cançado, não poderia deixar de citar a tese defendida por Maria do Carmo
Savietto na Universidade Estadual Paulista (campus de Assis) com o título de Baú de
madeleines: o intertexto proustiano nas Memórias de Pedro Nava (São Paulo: Nankin
Editorial, 2002). A autora percorre o intenso diálogo entre Proust e Nava a fim de “apontar as
convergências ou as divergências referentes à visão de mundo” de ambos, partindo da enorme
46
É o caso de Pedro Nava e a construção do texto (Londrina: Eduel; São Paulo: Ateliê Editorial, 2003), ensaio
de Edina Panichi e Miguel Contani que, nas palavras de Eneida Maria de Souza, autora da apresentação, tendo
como objetivo elaborar o processo construtivo das memórias de Nava e desenvolver seu processo de criação
como recurso “capaz de ensinar a pensar e a escrever”, “abre novo horizonte para a leitura desses rascunhos”.
289
atração do escritor brasileiro pela literatura francesa, espécie de característica primordial de
seu processo criativo,
(...) que consiste em trazer para suas Memórias o texto de diferentes autores
franceses os quais são inseridos sob a forma de epígrafes, alusões ou citações.
Assim, desfilam em suas obras Baudelaire, Rabelais, Maupassant, Montaigne,
Rimbaud, Malraux, Daudet, Lamartine, Villon, Anatole France e outros. Mas é
sobretudo Proust, o autor mais citado, aquele que permeia, com mais intensidade, a
escrita e o pensamento naveanos, suscitando o nosso questionamento sobre a
natureza dessas marcas. (SAVIETTO, 2002, p. 13)
A partir dessa identificação, Savietto percorre temas em comum, como a “volta ao
passado” e o conseqüente “reencontro do ser consigo mesmo”, a visão da morte, o amor e a
sensualidade, além de detalhar os acessos involuntários descritos nas Memórias de Nava a
partir de motivações essencialmente proustianas, como no caso do “livro da infância”,
desencadeador da memória involuntária tanto no romancista francês quanto no memorialista
brasileiro, sendo que, neste último, um complementa a curiosidade pelo outro: “O livro exerce
uma dupla função na escrita de Nava: ou desencadeia a memória, gerando e nutrindo a
narrativa ou lhe fornece alguns paradigmas, alguns modelos como parece ser o caso de A la
recherche(2002, p. 18). A conclusão de tantas aproximações significativas não poderia ser
outra, sintetizada à página 154:
Podemos afirmar que as obras de Nava e Proust refletem o interesse especulativo de
resgatar e conhecer o passado cujas imagens, privilegiadamente devolvidas pela
memória involuntária, revelam os traços mais profundos da identidade de seus
narradores.
Antônio Sérgio Bueno também atenta, em Vísceras da memória, para a importância do
livro na reconstituição memorialística proposta por Nava, aludindo a uma expressão essencial
criada pelo memorialista (“madeleines-gatilhos”), mencionada na Introdução (p. 20, nota 22)
e no item 2.4 (p. 121, nota 115):
Os livros são ‘madeleines-gatilhos’ que lhe restituem pessoas, épocas, lugares. Os
quatro volumes de Rousseau o levam de volta a uma tarde de outono na Rive-Droite,
em sua primeira viagem à Europa. Os setenta volumes de sua hipocratiana remontam
às épocas de Montaigne, de Molière, de Voltaire, de Anatole France. foi dito
47
que a sutura (imagem feliz em se tratando de Nava) da escrita das memórias é feita
47
Ver GARCIA, Celina Fontenele. “A biblioteca de Pedro Nava, como metáfora de sua identidade”. In:
Literatura e Memória Cultural: Anais do Congresso ABRALIC (agosto de 1990). Belo Horizonte: ABRALIC
/ Editora UFMG, 1991, v. 3, p. 249-254.
290
pelas apropriações de textos lidos. Biblioteca como imagem da identidade do
memorialista. Escrita Frankenstein. (BUENO, 1997, p. 118; grifo do autor)
Para Bueno, “As lembranças mais vivas do memorialista nem sempre são de vivências
próprias, mas de textos que leu” (1997, p. 117), fato que se comprova pela “reencarnação” de
personagens em pessoas de suas relações, tais como aqueles, pertencentes a O Ateneu,
identificados com colegas, funcionários e professores dos internatos que freqüentou (o
Colégio Anglo-Mineiro em Belo Horizonte e o Pedro II no Rio), ou Dr. Jekyll e Mr. Hide
configurando representações de sua própria personalidade, e principalmente personagens da
Recherche “transplantados” para as figuras de seu dia-a-dia, como nesta passagem de Balão
cativo: “Quando folheio a iconografia proustiana, sempre o reconheço [o professor francês
Albert de Capol, do Colégio Anglo-Mineiro] nos retratos de Swann-Charles de Haas,
sobretudo o deste, moço, braços cruzados, pupilas sonhando”. (NAVA, 1973, p. 130)
48
Nas palavras do prefaciador Francisco Iglésias, as Vísceras da memória se estruturam
em torno de três eixos sicos “espaço”, “corpo” e “figuração” comprovando o “aguçado
senso crítico” de Antônio Sérgio Bueno, “que lhe permite captar o essencial para retrato ou
imagem pretendida” (1997, p. 14). Com efeito, é notável a síntese alcançada ao longo de
pouco mais de 150 páginas, denotando apurado conhecimento da obra de Pedro Nava e
extrema capacidade de fixação do essencial. No capítulo I (“Espaço”), ao comentar o sentido
da frase de abertura das Memórias (“Eu sou um pobre homem do Caminho Novo das Minas
dos Matos Gerais”, Baú de ossos, 6 ed, 1983, p. 19), paráfrase de Eça de Queiroz (“Eu sou um
pobre homem de Póvoa de Varzim”), Bueno destaca que “o primeiro gesto do narrador para
se identificar diante de seu leitor faz-se em termos espaciais” (1997, p. 25), estando sua
narrativa situada “dentro de uma moldura européia do século XIX” (de a), mas também da
do século XX (de Proust) em nota de rodapé, afirma o crítico: “O espaço europeu irá
48
Mais uma confluência entre as memórias de Nava e de Meyer, conforme veremos em 4.5: Augusto Meyer
também fundia pessoas reais e personagens fictícios – em “Alencar no telhado” (No tempo da flor), compara-se a
Arnaldo, personagem de O sertanejo que aprecia a vista do alto de um jacarandá: “Se bem me lembro, deu-se
291
pontuando as memórias pela cultura do memorialista, pela consciência do modelo proustiano,
pelas investigações de sua própria origem italiana (a pesquisa no Studio Araldico Romano) e
pela evocação de lugares conhecidos em viagens” (BUENO, 1997, p. 26). A alusão ao
proustianismo de Nava aparece uma vez mais neste capítulo quando Bueno percorre os
“espaços” do próprio apartamento do escritor, situado à Rua da Glória, no Rio de Janeiro, e
que diz muito sobre a personalidade e sobre a atitude do memorialista em face do passado,
sobretudo a sala de visitas,
(...) espaço em que não se mudava um vel de lugar 35 anos. Uma área de
significado organizado, com seus dunquerques, miudezas em cima das mesas,
quadros na parede. Esses objetos permitem a ilusão desesperada de que o vazio está
povoado. São a imagem de seu proprietário, um ser que recusa o devir e quer
preservar a totalidade de sua circunstância. Se nos cansamos de um móvel ou de um
quarto, é como se os próprios objetos envelhecessem. A não-aceitação do
envelhecimento dos objetos mostra a dificuldade de lidar com o próprio
envelhecimento. Nessa sala de visitas refaz seus mesmos roteiros nas asas dos
objetos: uma Nossa Senhora de Guadalupe o leva ao México, duas moldagens do
Coro da Catedral de Chartres trazem-lhe o espaço proustiano, um lampião ilumina
ainda uma vez a sala da Rua Direita em Juiz de Fora. O sol de Josué parado no céu.
(BUENO, 1997, p. 66)
49
Bueno na cosmo-representação de Nava “um triângulo original, em cujos rtices se
encontram a Poesia, a Pintura e a Anatomia” (1997, p. 145), espaço, figuração e corpo da
conjunção poeta-pintor-médico para a qual o memorialista frankensteinianamente convergia,
olhar inconformado do cientista que não aceita a finitude da matéria, pois “(...) Pela vida afora
ele vai cuidar de lutar contra a perda da integridade corporal”, sendo sua escrita “uma espécie
de formol que procura manter incorruptíveis tempo e espaço vividos”. (1997, p. 74)
50
uma verdadeira transfusão de almas; leitura e vida pulsavam do mesmo ritmo da experiência. Eu, no alto do meu
telhado, como Arnaldo no alto do jacarandá, éramos uma só e a mesma pessoa.” (MEYER, 1966, p. 78)
49
Ver também: Na saleta de entrada, os olhos da Jeune Fille au Turban, de Vermeer, são inseparáveis, para o
memorialista, do olhar de Manuel Bandeira e lembram também Proust, que amava o pintor holandês.” (BUENO,
1997, p. 67; grifo do autor)
50
Sobre a presença da pintura na vida e nas memórias de Nava, leiamos o seguinte esclarecimento: “Os originais
de Pedro Nava oferecem vários exemplos de utilização de linguagens visuais em diálogo com a página escrita ao
lado. Nava desenhava as figuras ou os lugares que ia descrever e, a partir desses esboços, elaborava o texto. Sua
capacidade de reprodução quase fotográfica de situações e acontecimentos sustenta um estilo rico do ponto de
vista plástico e imagético” (BUENO, 1997, p. 101). Drummond também registra em versos o dom de Pedro
Nava para as artes plásticas: “Nava pintor e Nava desenhista / esquivo, agudo, exato, surpreendente, / quem nos
seus traços não consola a vista? // Do nosso tempo fiel memorialista, / esse querido Nava, simplesmente, / é
mistura de santo, sábio e artista” (ANDRADE, Carlos Drummond de, “Pedro (o múltiplo) Nava”, in Poesia
completa, 2002, p. 1452). E em Amar se aprende amando, a fixação da imagem de um artista-cientista eclético e
multipartido, tendo o próprio Drummond como “anjo de desguarda”: “(...) esse Pedro que é dois, que é três, é
292
Tão brilhantemente renovadora e sagaz quanto a tese de Antônio Sérgio Bueno, e ainda
mais iconoclasta que a deste, é a análise, profunda sob todos os aspectos, quer semânticos,
estruturais, metalingüísticos ou sociológicos, que José Maria Cançado leva a cabo em
Memórias videntes do Brasil: A obra de Pedro Nava, lançada em 2003 pela Editora UFMG,
tese na qual o autor supõe a confissão memorialística de Pedro Nava um dos mais
monumentais ícones da história cultural brasileira, realizada por alguém que, continuador e
artífice final dos processos de renovação da memorialística brasileira (na esteira de Raul
Pompéia, Gilberto Amado e Afonso Arinos) e de discussão do legado de nossa tradição
patriarcal (processo iniciado com Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda e
“completado” em suas memórias), torna-se, simultaneamente, uma espécie de “pajé”
detentor dos segredos do passado e de “vidente”, demiurgo a perceber as perspectivas dos
caminhos que se bifurcarão no futuro e que faz Cançado se perguntar, a certa altura,
Que lugar é esse, o dessa obra, feita de identidade e ao mesmo tempo de alteridade
frente à matéria brasileira e à história da literatura brasileira, de inteligibilidade
mútua e de enigma, de esclarecimento e ponto cego, de movimento de enlace e de
linha de fuga, de autobiografia e heterobiografia, de um e de uns? (CANÇADO,
2003, p. 63)
O sentido das ocorrências involuntárias em Nava, a força de uma reconstituição na qual
se conjugam documento e imaginação, a dialética alteridade/identidade, a intertextualidade, a
questão do “familismo brasileiro” e das implicações do memorialismo, sobretudo o mineiro,
como tentativa de restauração de um “passado mítico” muito inexistente, são alguns dos
principais elementos discutidos por Cançado em suas Memórias videntes do Brasil
51
. Assim
cinco, / aplicado estudante, insano jovem, / esse Pedro quem é? (...) // Esse Pedro, / penso às vezes que fui seu
lado esquerdo / em o saudosos hoje, magros tempos / de busca, de revolta, de amarugem, / de desvairado
humor sem rumo certo, / a desviá-lo do seu bom caminho... / Alguns meses mais velho, e presença / de
subversivo incompetente e reo, / sem rabo de diabo mas diabólico, / era eu, talvez, seu anjo de desguarda?”
(ANDRADE, Carlos Drummond de, “Companheiro”, 1995, p. 61-2)
51
A respeito desta última característica, Cançado comenta à página 127 que “Parece mesmo verdade que o
melhor e o pior do memorialismo em nossas letras, especialmente em Minas Gerais (região supostamente
mesopotâmica das autobiografias e das memórias na literatura brasileira) tem como tema e modulação esse
desejo de restauração de um passado mítico, de uma aquarela, rural ou mineradora, a ser evocada no péssimo da
condição funcionária-urbano-exilada”. Assim, “(...) é pela porta estreita do familismo que Pedro Nava entra na
sua história e na experiência brasileira. Talvez nenhum outro escritor brasileiro possua, numa medida tão
desassombrada, tão complexa e tão pulsante, a imaginação do familismo brasileiro quanto a tem Pedro Nava”
(CANÇADO, 2003, p. 121; grifo do autor). Ao comentar a grande identificação dos escritores mineiros com a
293
como fizera Davi Arrigucci Júnior em “Móbile da memória”, identificando as semelhanças
entre a obra de Nava e as de Raul Pompéia e Gilberto Freyre, Cançado também evidencia
inúmeros pontos de contato entre as Memórias e diversas outras, tanto aquelas pertencentes à
memorialística como também à sociologia, caso dos Sobrados e mocambos e de Casa grande
& senzala, de Gilberto Freyre, que ambos, “Freyre e Nava (talvez mais este) chamaram
para si o íntimo gozo e apocalipse do familismo patriarcal brasileiro e dele fizeram a sua
matéria” (2003, p. 149). Quanto aos literatos, o tema do “paraíso” (perdido e reencontrado,
ou, pelo menos, “entrevisto”) serviu para Cançado aproximar as Memórias de Nava da
História da minha infância, de Gilberto Amado (2003, p. 160-8); a intertextualidade mais
evidente, porém, se entre o segundo volume (Balão cativo) das memórias do médico
mineiro e O Ateneu, a ponto de “(...) a mediação entre a experiência individual do aluno Pedro
Nava e a generalidade da situação – o mundo dos colégios internos, criados no século 19, e da
educação no Brasil” ser feita “como que numa espécie de pastiche magistral” (2003, p. 114-5)
do romance de Pompéia. A interseção entre as duas narrativas é tão grande que o narrador das
Memórias não sabe ao certo se o interno que ele descreve se encontra nas dependências do
Pedro II ou do Ateneu:
É que à noite, entregues não ao reino do inconsciente e do sono, mas à grande re-
territorialização dos personagens e da matéria das Memórias, todos os internos são
colegiais de Raul Pompéia. (...) E, em especial, o interno Pedro da Silva Nava que,
mesmo deitado no dormitório do Campo de São Cristóvão (a localização do Pedro
II), é apanhado pelo Narrador no dormitório do Ateneu, nessa sorte de câmara
294
Extremamente consciente desta “re-territorialização”, José Maria Cançado se apressa
em esclarecer que o procedimento de Nava não se trata, de forma alguma, de plágio ou de
pastiche, ainda que “magistral” o que há, em sua opinião, é uma das mais perfeitas tramas
intertextuais da literatura brasileira, que funciona com a originalidade de um “patoá”:
Ora, não estou afirmando que se trata de pia, de plágio, de reprodução escusa e
subalterna, por parte do Narrador das Memórias, da escrita de Raul Pompéia. O que
é uma forma de clonagem estilístico-figural, ou estilístico-criatural, um patoá
criado por Nava, através da composição que ele faz com a escrita impressionista e
meio sacrificial de Raul Pompéia, criando um movimento de re-territorialização, de
migração para um outro território. Um território tramado intertextualmente e no qual
o Narrador se planta, e também à matéria de sua memória do Pedro II. (CANÇADO,
2003, p. 117-8; grifo do autor)
O patoá intertextual que promove a releitura de Pompéia através da ótica originalíssima
de Nava encontra paralelo em outro memorialista genial de nossa literatura: Graciliano
Ramos, responsável por outro código dialetal igualmente paradigmático o patoá da
alteridade, alimentado pela intersubjetividade de uma convivência forçada e desmitificadora:
Não é pouca coisa a reconstituição, por essa via emaranhada e pelo patoá
intertextual, do próprio rosto e do próprio vivido. É espantoso que um homem como
Pedro Nava, capaz de um máximo de adesão a si, tenha, na sua última cartada de
individuação (a da sua memória e da escrita), se entregue a essa via. Num sentido
muito decisivo, ele é o primeiro a fazê-lo em nosso memorialismo. (...) Pensando
melhor, houve um outro antes dele, que também o fez: Graciliano Ramos, em
Memórias do cárcere. Também ele criou seu patoá, sua re-territorialização, durante
o período em que esteve preso na Colônia Correcional da Ilha Grande (ou terá sido
durante toda a sua vida?). Graciliano o fez não através da intertextualidade, mas
através da intersubjetividade, uma que era quase impensável (com outros presos,
carcereiros, com o outro patibular). Uma intersubjetividade áspera, mas generosa, no
limiar do impossível, mas em expansão assim mesmo. (CANÇADO, 2003, p. 118-9)
Mesmo optando pela via macrocósmica e plurissignificativa da discussão de conceitos
ligados à sociologia, à alteridade e à intertextualidade, José Maria Cançado não hesita em
colocar seu olhar aguçado em questões aparentemente mais simples, debatidas por outros
críticos e suficientemente mapeadas em diversos textos citados neste item – o papel da
memória involuntária nas memórias de Nava e, por extensão, em toda a literatura
memorialística brasileira. Considerando tal forma de manifestação da memória algo
“totalmente negativo”, pois “(...) nos pega no cochilo, no déficit, na lacuna, e na não presença
da consciência a si e na operação da atenção e da lembrança voluntária” (2003, p. 32), para o
295
autor de Marcel Proust – As intermitências do coração a memória involuntária “(...) submete-
se à coerção e à violência do que fortuitamente vem de fora” (Idem, ibidem). De acordo com
seu ponto de vista, Pedro Nava foi um dos raros memorialistas brasileiros que se deixou “(...)
assaltar pela madeleine inumerável e fortuita, que podia estar em toda parte e sob várias
formas”, acolhendo a deficiência”, “(...) um déficit que, se é como um antivalor,
acontecimento negativo, é também acicate espiritual” (2003, p. 34). Menciono na Introdução
(p. 19-20) o fato de Cançado considerar “(...) estranho que as memórias e as autobiografias no
Brasil, (...) não acusem terem sido assaltadas em algum momento pelo fenômeno da ‘memória
involuntária’ (2003, p. 36), exceção feita às Memórias de Pedro Nava e ao Itinerário de
Pasárgada de Manuel Bandeira. Tal afirmação é uma espécie de “calcanhar de Aquiles” das
Memórias videntes do Brasil (“falha” que, obviamente, não tira o mérito de seu excepcional e
complexo estudo), pois o crítico parece não se dar conta de que, ao contrário do que sugere,
episódios descrevendo acessos involuntários estão presentes nas obras memorialísticas dos
mais diversos modernistas brasileiros, tais como Augusto Meyer, Murilo Mendes, Gilberto
Amado, Cyro dos Anjos, Cassiano Ricardo e até mesmo Graciliano Ramos, como
demonstrarei nos itens 4.2 e 4.6.
A riqueza interpretativa da tese de José Maria Cançado, bem como a de todos os demais
estudos, apresentações, dissertações, teses, artigos e prefácios referidos no item que ora
encerro, aponta, resumidamente, para uma conclusão a que é mister chegarmos a de que
muito tempo o memorialismo deixou de ser gênero secundário em termos de fortuna crítica
brasileira, sugestionando discussões as mais pontuais e urgentes no cenário da teoria literária
e do comparativismo nas letras nacionais. Oxalá os elementos envolvidos na interpretação da
memorialística de Augusto Meyer, que examinarei daqui por diante, possam servir para
comprovar o estabelecimento definitivo, entre nós, de um conjunto sedimentado de temas
essenciais a respeito do assunto, motivando, ao mesmo tempo, os mais variados pesquisadores
296
a se debruçarem com igual ou maior empenho sobre outras produções autobiográficas da
literatura brasileira que, certamente, estando no “limbo”, ainda aguardam a merecida atenção.
297
4.2 REFLEXOS DE A LA RECHERCHE DU TEMPS PERDU EM SEGREDOS DA
INFÂNCIA E EM NO TEMPO DA FLOR: A MEMÓRIA INVOLUNTÁRIA EM
AUGUSTO MEYER, O “INICIADO DO VENTO”
“O vento corta os seres pelo meio. / um desejo de
nitidez ampara o mundo... / Faz sol. Fez chuva. E a
ventania / Esparrama os trombones das nuvens no azul.
// Ninguém chega a ser um nesta cidade, / As pombas se
agarram nos arranhacéus, faz chuva / Faz frio. E faz
angústia... É este vento violento / Que arrebenta dos
grotões da terra humana / Exigindo céu, paz e alguma
primavera”
(Mário de Andrade, “Momento”, De Paulicéia
Desvairada a Café – Poesias Completas, 1986, p. 260)
“Compreendo então como é oportuno o esquecimento
em que vivemos. Venha o vento da indiferença para
assoprar em fumo estes fantasmas indiscretos, e apenas
fiquem algumas frestas no muro da memória. Esquecer,
esquecer para não perder a graça de recordar, de vez em
quando.”
(Augusto Meyer, “Posfácio”, Segredos da infância / No
tempo da flor, 1997, p. 88)
inúmeras ocorrências involuntárias descritas na memorialística de Augusto Meyer.
Suas Memórias respiram uma atmosfera proustiana do início ao fim, caracterizando-se,
basicamente, por dois elementos: a busca de si mesmo através da introspecção, do
autoconhecimento e do resgate do passado efetuado pela memória; e a redescoberta de
sensações ligadas aos cinco sentidos e reativadas pelo gatilho da memória involuntária. Para
Augusto Meyer, ver, sentir, ouvir, provar e cheirar representam profundas conexões
inconscientes, chaves de segredos que afloram novamente como “arquipélagos submersos”
que, acidentalmente, retornam à “tona” da consciência. O destaque dado ao redespertar dos
sentidos e dos acessos involuntários da memória é, como veremos, o principal ponto de
aproximação entre as Memórias do escritor gaúcho e A la recherche du temps perdu, embora
a intertextualidade, aqui, não se limite a tal característica, pois, mais do que espelhar uma
vasta gama de temas e atitudes coincidentes, o que chama a atenção no memorialismo de
298
Meyer é justamente aquilo que, escondido nas entrelinhas do lamento do “tempo perdido”, é
sutil e irremediavelmente proustiano.
Objetivamente, além da declaração expressa no volume No tempo da flor a respeito de
seu precoce interesse pela obra de Marcel Proust
52
, é possível identificarmos, ao longo das
Memórias, rios outros momentos nos quais o memorialista assume ou insinua sua filiação
proustiana. Em Segredos da infância, por exemplo, são comuns os casos em que o menino,
tomado por súbito pavor ou grande surpresa (sentimentos exacerbados por uma imaginação
aguçada e por vezes doentia), consegue se acalmar na presença da mãe, semelhante ao
carente e exigente Marcel, criança psicologicamente fragilizada que não adormece enquanto
não recebe o beijo materno de boa noite. Tal aproximação é patente em várias cenas do
299
Contra a “presença definida” da alucinação, basta-lhe o consolo dos cuidados paliativos
da mãe, manifesto ainda que por breves instantes, logrando afastá-lo dos fantasmas de sua
cisma:
O Rei dos Ratos passou a perseguir-me em sonhos. Minha mãe ajeitava o
travesseiro, prendia o cobertor, ficava algum tempo no quarto, depois de soprar a
vela. Era de uma doçura confortadora a sua presença invisível. Ouvia-se mal e mal o
coaxar dos sapos através do janelão de guilhotina e às vezes o latido de um cão nos
quintais de baixo. Voltava-me devagar para a direita, procurando outra posição mais
cômoda na cama. Pouco a pouco o torpor do sono diluía a consciência do ambiente.
não estava deitado, pairava sobre um vazio delicioso, e lá embaixo, na terra
distante, através das telhas de uma casa pequenina, via nitidamente no escuro uma
criança adormecida, que era e não era eu mesmo. (MEYER, 1949, p. 26)
53
O pesadelo chega a ser tão intenso a ponto de o menino, temendo a inevitável ordem do
“apaga-a-luz” e usando da mesma artimanha de Marcel, inventar pretextos que não o deixem
se afastar da proteção da mãe e o façam retardar, pelo maior tempo possível, “o momento
angustioso” de ceder à escuridão, à insegurança e ao medo do desconhecido. Dessa maneira, a
criança se agarra ao conforto onipresente da mãe como antídoto contra qualquer tipo de
situação desagradável com a qual deverá se deparar, quer no quarto de dormir, quer na escola,
quer no Cerro d’Árvore, com medo do vento, do lugarejo e dos soldados que perseguem o
índio fugido em todas as ocasiões, enfim, em que se desamparado e entregue à própria
sorte e à façanha da descoberta de si: “Estou no alto da coxilha, agarrado ao avental de minha
mãe: o medo gravou para sempre aquele instante na memória” (MEYER, 1997, p. 21),
recorda o escritor em “Brinquedo de esconder”, admitindo sua impotência diante da situação
tensa de revista ao rancho à procura do “gaudério” acoitado pela corajosa mãe. No “filme”
criado por sua imaginação com a intenção de eternizar a cena conferindo ao episódio ares de
aventura romântica, a sinceridade do memorialista reserva ao menino o cruel papel de anti-
herói, medroso e dependente do domínio materno:
53
Ver também, à página 29: “O mundo real, fronteiras protetoras da vigília, com a sensação de intimidade e
presença familiar, me parecia tão vacilante e ameaçado... As larvas do sonho, os monstros vagos, encolhidos na
sombra dos quatro cantos do quarto, esperavam o momento de entrar em cena. Dominava-me a certeza da sua
presença, apesar do desmentido que me davam os olhos. E assim criei, à margem deste mundo solar, um mundo
de terror, impenetrável para os outros, que o sol apagava durante o dia, mas de noite ali estava à minha espera”.
300
E, iluminado pela visão ideal, o cinema permanente, dentro da sala escura da
inconsciência, começa a desenrolar a trêmula, pálida, salteada fita das nossas
recordações. A magia de rever, a ilusão de tocar transforma o passado em presente,
aprofunda a vida no tempo, rasga abertas para o futuro. Sou a criança do Cerro
d’Árvore, que treme de medo, agarrada às saias da mãe. (MEYER, 1997, p. 22)
Augusto Meyer fixaria a imagem do “rei dos ratos” não somente em seu memorialismo,
mas também nos versos de “O poema” (Poesias, 1957, p. 260-1), onde diz:
Corredor do tempo esquecido / Onde o eco responde ao eco, / Em vez de janelas,
reflexo / De espelho a espelho, refletido. // Que passos repisando passos / Parados
vão? A horas mortas, / Fria, uma presença esvoaça / De leves dedos, que abrem
portas. // Longo é o caminho. Em qualquer parte / Rei dos Ratos rói os brinquedos. /
Dos quatro cantos, no quarto / Sombras cochicham os teus segredos. // Onde a
janela que se abria / Ao pôr do sol? Andando em frente, / Andando, andando, eu
tocaria / No fim da terra, o ouro do poente. / Iriavam-se os cristais do lustre, / Na
sala escura o espelho que arde! / Pulava a cortina, de susto, / Ao primeiro sopro da
tarde. // Mas tudo agora é tão distante! / O rato rói o fio da história. / o arrepio de
um instante / Sobe à surdina da memória... // Súbito, a hora morta no tempo /
Amadurece como um fruto! / No misterioso aroma, o poema / Recolhe a essência de
um minuto.
Para Tania Carvalhal, a metáfora do espelho, nesse e em outros poemas de Meyer,
também representa a oscilação entre passado e presente, entre o “eu” que antes se mirava e o
“eu” que ora se mira, enfrentamento que restitui involuntariamente imagens quase mortas,
mas ainda capazes de sugerir-lhe o “aroma” de um “fruto” que amadureceu há muito tempo:
Ao retraçar a gestação do poema, Meyer percorre o trajeto vencido em sentido
inverso. A memória abre suas comportas ao encontro da infância e seus segredos. A
imagem mais precisa é o do espaço delimitado de si mesmo em que o espelho exerce
a contínua atração narcisística, no lusco-fusco do entardecer. Mas tudo se esvai, o
passado se distancia, a trajetória fica inacabada, a memória quase nada recupera.
(...) Todavia, de maneira imprevista, a imagem se firma. Como a xícara de chá e os
pedaços de bolo fazem Proust ressuscitar Combray, por efeito da memória
involuntária, no misterioso aroma nasce o poema, recolhendo a essência de um
minuto. (CARVALHAL, A evidência mascarada, 1984, p. 219-20; grifo da autora)
Em outra passagem de Segredos da infância, a fim de não alimentar o estigma de garoto
medroso e inseguro sempre agarrado às “saias da mãe”, Tico sonha impressioná-la com gestos
heróicos que a convençam de sua “coragem” e “valentia” para isso, imagina-se eliminando
um fictício assaltante com a destreza de quem bem maneja o “(...) misterioso Colt guardado
em cima do armário, no coldre de couro preto”:
Tentação da fantasia... Se entrasse um ladrão em casa... e via-me a trepar numa
cadeira, a desabotoar o coldre; mansinho, deslizava na treva do corredor, com a
arma preparada, o ouvido atento aos menores ruídos. Estalava um degrau, mexia-se
um vulto e estrondava um tiro de beiço! Minha mãe, recolhida ao quarto, pensaria,
301
tremendo de susto, mas com uma ponta de orgulho: que menino valente! (MEYER,
“Do fundo da insônia”, 1949, p. 68)
Sem depender da presença física da mãe para aliviá-lo nos momentos de tensão, o
simples fato de imaginá-la por perto, fantasiando o orgulho que ela deveria sentir dele, é
suficiente para confortá-lo e protegê-lo de seus pesadelos infantis. A certa altura de suas
recordações da infância, lembra o memorialista que, desde seu primeiro contato com a escola
(no colégio Bom Conselho, em Porto Alegre), o menino não se conformava com a rigidez da
disciplina de horários e estudos a que devia se submeter, não entendendo os motivos que o
obrigavam a trocar a liberdade das “chácaras” da Floresta e os encantos e mistérios da Praça
da Matriz pelo severo regime do aprendizado escolar. Para fugir desse “horror” maçante e
rotineiro, definitivamente incorporado a sua vida, a criança frágil e insegura imagina a mãe
“presente” como forma de se “defender” do tormento das aulas, expediente que, no entanto,
acentua ainda mais o antagonismo da “vida ao ar livre” e da “prisão escolar”, contraponto de
difícil assimilação para quem, até então, só pensava em se divertir e não admitia a necessidade
de se trancafiar em salas de aula em dias de sol para tentar domar os “fantasmas” da “árida
matemática”. Distraído, sonha que a mãe se encontra do outro lado do abominável aposento:
A voz de mamãe parecia chamar-me do outro lado da parede [da sala de aula].
Tico...Tico... Ouvia os passarinhos cantando nas laranjeiras do quintal. Vagos
rumores atravessavam a casa. E súbito, os olhos se abriam, a voz chamava: Tico!
pertinho do ouvido e aquele rosto inclinado sobre mim era uma estranha carícia...
(MEYER, “No Bom Conselho”, 1949, p. 55)
Além do sentimento de castração da liberdade individual, à vida escolar também está
ligada uma das mais importantes e traumáticas manifestações da memória involuntária de
Augusto Meyer: o episódio, narrado em “No ginásio” (1949, p. 105-115), no qual, sendo
testada sua habilidade de leitura diante do pai, do irmão Henrique e do padre Lanz, diretor do
Ginásio Anchieta, Augusto se confunde e não conta da tarefa, “incapacidade” que, ainda
que momentânea, despertará no espírito da criança um misto de humilhação e vergonha,
sentimentos revividos sempre que o escritor, a partir de então, se diante de bancas de
argüição. Acompanhemos de que maneira o memorialista assimila, muitos anos depois, o
302
“fiasco” do menino, atentando para o fato de que a lembrança traumática voltará a se repetir,
futuramente, sempre de maneira inesperada e acidental:
Pesadas e irreconhecíveis, arrastavam-se as palavras no vazio do silêncio, que me
parecia todo feito de mãos em concha, prolongando pavilhões de orelhas atentas.
Não ouvia a minha voz; em compensação, sentia vivamente que ela era sugada sem
nem piedade e reduzida a um ridículo fiapo de som por todos aqueles buracos de
ouvido, decerto cheios de cera e cabeludos como bichos... (...) Diante das bancas de
exame também, mais tarde, reproduziu-se a mesma impressão, talvez com o
automatismo das fixações de infância, que levam uma vida inteira a desintegrar-se e
ressurgem quando menos esperamos. (MEYER, 1949, p. 108; grifo meu)
54
Manifestações ligadas ao poder assombroso e catártico do minuano são as mais
significativas, porém não as únicas ocorrências involuntárias representadas nas Memórias de
Augusto Meyer, ocorrências que, aliás, nem se restringem, na obra do escritor, a este gênero
específico
55
. Como na recordação traumática motivada pela necessidade de enfrentar bancas
de exame, o gatilho da memória involuntária de Meyer é acionado em diversas outras
ocasiões (sobretudo em Segredos da infância, e verbalizado através da expressão “de súbito”,
muito próxima do “tout d’un coup” proustiano), possibilitando o ressurgimento abrupto das
mais singelas e poéticas imagens relacionadas a sua infância e adolescência. Em “Do fundo da
insônia” (1949, p. 63-70), lemos que o memorialista, insone, recorda-se nostalgicamente de
detalhes que caracterizam a antiga casa em que morara no bairro Floresta, em Porto Alegre,
casa cujo quintal “emendava numa comprida chácara”: relembra a cerca, a “cortina de
taquareiras” tremulando ao sabor do vento
56
, mamoneiros e a “grande timbaúva”, os macacos
54
Episódio semelhante aparece em No tempo da flor, embora, nesse caso, as conseqüências de sua “falha” não
sejam tão “comprometedoras” durante o exame preparatório de Português, o jovem Augusto, tendo esquecido
o nome do autor de Marília de Dirceu (o poeta árcade Tomás Antônio Gonzaga), é ajudado por Aquiles Porto-
Alegre, presidente da banca, de quem posteriormente se recorda “sem mais nem menos”. Diz o memorialista:
“Era ali, no Instituto Júlio de Castilhos, o local do suplício, e ainda me vejo de cabeça baixa, nas provas escritas,
ou nariz no ar, olhos furando o teto, à espera de uma resposta que estava custando a cair do céu. (...) Mas nem
toda banca de exame é o Tribunal da Santa Inquisição. Agora mesmo, à minha frente, ressuscitado sem mais nem
menos, um velhote me olha com dois olhos contraditórios.” (MEYER, “Preparatórios”, 1966, p. 63; grifo meu)
55
No “Caderno de viagem” incluído em A chave e a máscara, reconstituindo um passeio dado em Milão, Meyer
recorda-se acidentalmente do tipo de calçamento da cidade a partir da descrição presente na obra de um amigo:
“Bem sei que a maior cidade da Itália foi modernizada, mas este calçamento, nas proximidades da estação...
Reconheci-o logo, por uma espécie de iluminação brusca da memória: ainda é o mesmo (ou decalque do
mesmo) que o meu amigo Henri Beyle descreve em Rome, Naples et Florence, e no Journal d’Italie.” (MEYER,
“Hamburgo-Milão”, 1964, p. 227; grifo meu)
56
Referência ao “bambual aos fundos” do quintal, que o impressionava pela oscilação decorrente do balanço
causado pelo vento: “Se acordo agora, noite alta, sem poder dormir, é para ver a outra casa da Floresta, com seu
quintal que emendava numa comprida chácara, quase toda coberta de capim alto. Era fechada aos fundos por
303
que habitavam a chácara, o ninho de tico-tico descoberto numa “manhã de Páscoa” e o lagarto
que roubava ovos do galinheiro. Ao evocar o aranhol que se formara no quintal, recorda-se
subitamente da várzea de Cerro d’Árvore, “país ideal” de sua infância, tão caro, como
304
romance Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo, e “um pobre livro de leitura”, mais
importante, para a formação do menino, do que todos os sagrados papiros orientais, apesar de
o memorialista não conseguir recordar nem título nem autor:
Num pobre livro de leitura, de capa verde-clara, que em sonhos poderia folhear
novamente, procuro a história do menino vadio que roubava ninhos de pássaros, a
imagem de um gato peloteando, coisas vagas, mortas em botão; de súbito, o ouvido
da memória torna a ouvir, os olhos interiores recompõem estes versos lamentáveis,
farrapo de um texto mais importante que todos os papiros famosos desenterrados
pela filologia clássica: Achei um relógio, / Gritava Janjão, / Pulando e cantando /
Com ele na mão. (MEYER, 1949, p. 112; grifo meu)
Algumas páginas adiante, é o romance de Victor Hugo que lhe aparece subitamente,
quando o adulto percebe, como em um piscar de olhos, que a história de Esmeralda e do
corcunda de Notre-Dame é a mesma que o irmão José lera, no Ginásio Anchieta, “numa
edição de cordel” “de um folheto barato”:
Tempos depois, quando entre tantas imagens sombrias do romance me apareceu
Esmeralda, com sua cabrita de chifres dourados, dançando diante do adro ao ritmo
do tamboril, toda uma associação desabrochou de súbito em minha memória; a
fantasia, partindo do ano da graça de 1482, foi pousar como um pássaro tonto
naquela tarde esquecida; eis a história misteriosa do folheto, dizia comigo, eis o
pecado literário do irmão José... (MEYER, 1949, p. 115)
Leituras da juventude como molas da memória involuntária também aparecem em No
tempo da flor, sobretudo no espetacular “Alencar no telhado” (1966, p. 75-8), evocação
extremamente lírica da época em que Augusto se refugiava no telhado da casa da Praça da
Matriz para saborear as aventuras românticas de Peri, Ceci e Arnaldo (protagonista de O
sertanejo). Comentando as impressões deixadas pelo encanto da leitura dos romances de José
de Alencar, Meyer admite a importância de fragmentos, recordados sem querer, que o
acompanharão no decorrer de sua longa e rica trajetória literária:
No meio de tantas impressões que da indefinição tiram a força e às vezes a própria
razão do seu maior encanto, reconheço também restos das primeiras leituras do
adolescente. Muitas conservaram pelo menos um reflexo da poesia perdida. Como
explicar, por exemplo, o que valem para nós, leitores envelhecidos em cima dos
livros e resignadamente armados de óculos, certas páginas lidas tantos anos, que
de súbito reconhecemos e saudamos como velhas amigas, no meio do contexto? São
como as primeiras namoradas, que nunca envelhecem na saudade. (MEYER, 1966,
p. 76)
305
Augusto Meyer chega a arriscar uma interpretação para as ocorrências involuntárias,
teorizando, poeticamente, a respeito dos benefícios que tal “associação estimulante” é capaz
de suscitar ao vencer o esquecimento e criar novo sentido, mais completo e mais edificante
que o sentido original. Diz o memorialista, no parágrafo seguinte à citação anterior:
Tudo isto lembra uma espécie de antologia confusa e truncada, feita de fragmentos e
alusões; ficou esquecida dentro de nós, ou guardada num desvão da memória, à
espera do intérprete oportuno, de uma associação estimulante, que depende da
impressão do momento, acaso qualquer da nossa vida sentimental, para recobrar
sentido e criar alma nova, desatada em vôo. Quando o germe sugestivo que
dormitava dentro da frase encontra no instante propício o terreno já preparado,
começa a brotar a emoção poética e talvez ainda venha a desabrochar numa forma,
que é a flor da experiência. (MEYER, 1966, p. 76-7)
Em certas ocasiões, essas “associações estimulantes” surgem, para Augusto Meyer, na
forma de impressões que repentinamente se insinuam à consciência na esperança de, passando
por uma espécie de filtro da memória, serem selecionadas como imagens que dpor diante
comporão o “tecido” de sua rememoração, como em “Papel de ramagem” (1966, p. 69-73),
capítulo no qual, estando em um quarto de hotel na Alemanha, o memorialista
involuntariamente se recorda da casa de sua tia Hermínia, em Porto Alegre, graças à
semelhança do papel que forra os dois aposentos.
Certa noite, em Hamburgo (lá fora, a noite, a neve), prestando atenção às ramagens
do papel que forrava a parede do meu quarto, senti uma pressão da memória sobre as
fronteiras da consciência, como apelos de imagens submersas, em momentos de
cochilo. (...) Nítida era a zona de luz que a lâmpada recortava na meia sombra, e
nessa área de claridade parecia como sempre ridículo, pretensioso e vulgar aquele
padrão de papel repetido de quarto em quarto, de parede em parede, e decerto
multiplicado aos milhares por não sei quantas casas deste mundo. (...) E, de súbito,
eu vi: era o quarto de tia Hermínia, na velha casa da Rua da Igreja, em frente do
Colégio Sévigné, em Porto Alegre. (MEYER, 1966, p. 69)
Se, em uma aproximação com a Recherche, as bancas de exame, os livros da juventude
e os papéis de parede evocados por Meyer equivalem à função desempenhada, na obra de
Proust, pelo tropeço no pátio do palácio dos Guermantes, pela sonata de Vinteuil e pelo ruído
da colher no prato isto é, agindo como acessos secundários da memória involuntária, todos
decorrentes, no caso do romance francês, das sensações ressuscitadas através do
reconhecimento do sabor do bolo e do chá então podemos dizer que, em se tratando do
306
memorialista gaúcho, a lembrança do minuano é uma espécie de madeleine meyeriana,
ocorrência capital que inortear o relato de suas memórias e conferir sentido aos demais
acessos. Assim como o paradigmático episódio descrito por Proust situa-se estrategicamente
na primeira parte de Du côté de chez Swann, volume de abertura do roman-fleuve, a menção
ao minuano, na memorialística de Meyer, é feita não somente no primeiro capítulo (“Cerro
d’Árvore”) do primeiro livro (Segredos da infância), mas já nos parágrafos iniciais do texto
58
,
no intuito de fixar rapidamente esta referência como mote de sua tentativa de restabelecer em
definitivo “a cadeia entre o homem e a criança”, entidades até então distantes como
“arquipélagos” e cuja ligação pode ser recuperada inesperadamente, que a “memória da
infância é uma ilha perdida” (1949, p. 11) no distante “oceano” das recordações interditas. A
lembrança, involuntária, dos primeiros assombros causados pelo vento é assumida
abertamente, sem rodeios, sugerindo ao leitor uma importância que se confirmará, como
veremos a seguir, no restante do capítulo e da obra.
Minha primeira recordação é um muro velho, no quintal de uma casa indefinível.
(...) Depois, o vento da campanha, sobre o nosso rancho no Cerro d’Árvore. Era uma
voz tão grave, que metia medo. Mais tarde, senti a mesma impressão ao atravessar
os campos da fronteira. Como a um toque gico, restabeleceu-se a cadeia entre o
homem e a criança. Arquipélagos submersos de recordações vieram à tona.
(MEYER, 1949, p. 11-2; grifo meu)
A impressão causada pelo contato abrupto e precoce com o minuano acompanhará o
escritor ao longo dos dois volumes das Memórias, fazendo-o admitir, sobressaltado, que
“quando um grande arrepio de medo penetra a carne frágil”, todos os ventos são “o mesmo
vento do Cerro d’Árvore” (1949, p. 13), obsessão que o levará a considerar, sobretudo no
primeiro capítulo, desde o reconhecimento de sua ocorrência até as variações infinitas do
fenômeno. Devo ressaltar que, imortalizado nas páginas de “Cerro d’Árvore”, o minuano
como “gatilho” da memória involuntária havia aparecido, na obra de Meyer (inclusive com
a utilização curiosa da expressão “gatilho das comoções latentes”), na crônica “A criança e o
58
Conferir o capítulo “Cerro d’Árvore” (1949, p. 09-19) no Anexo I, p. 486-491.
307
homem”, espécie de “primeira versão” do capítulo, publicada no Correio do Povo em agosto
de 1935. Leiamos um trecho significativo, retrabalhado na versão definitiva:
Depois, na memória auditiva, o vento da campanha sobre o nosso rancho no Cerro
d’Árvore. Era uma voz tão grave que dava medo. Mais tarde, poucos anos, fui
sentir a mesma impressão atravessando os campos de o Francisco de Assis. Foi
como um toque explosivo no gatilho das comoções latentes. Estabeleceu-se a cadeia
entre o homem e a criança. Arquipélagos submersos de emoção vieram à tona. O
que esse vento me diz com o seu largo fôlego é quase cruel para os meus nervos:
uma ordem de rigor, de solidão desesperada e orgulhosa. (MEYER, “A criança e o
homem”, Correio do Povo, Porto Alegre, 18.08.1935)
O exagerado interesse de Meyer pelas manifestações do minuano vem, portanto, de
longe (uma vez que nos anos de 1929 e 1930 já encontramos poemas e crônicas sobre o
assunto
59
), e chega sem desgaste ao segundo volume das Memórias, no qual, assim como em
Segredos da infância, o vento torna-se o principal agente responsável por instigar lembranças
súbitas, como no trecho a seguir, utilizado como epígrafe da tese:
O rumorejar do vento nas árvores desperta esquecidas recordações. Como aquele
azulão pousado na ponta do mais alto ramo, antes de levantar vôo, a memória hesita,
voltada para todos os lados do passado. Mas, de súbito, a intuição acerta o rumo e
vai direita e rápida, como ave de arribação atraída pelo faro de outra querência: a
saudade do tempo da flor... (MEYER, “No tempo da flor”, 1966, p. 39)
O vento e a recordação que ele suscita coadunam-se, enfim, na mesma subitaneidade.
Após o primeiro acesso involuntário, descrito em “Cerro d’Árvore”, o memorialista,
recorrendo ao auxílio dos sentidos, consegue delinear o contexto no qual o vento surgia como
uma ameaça a sua pacata infância:
Abrem-se e ondulam, no fundo da memória, os horizontes de coxilhões, com
maravilhosos crepúsculos e um sol enorme, inundando os campos. (...) O vento
mandava naquelas várzeas e canhadas. Senti-o, desde o começo, dominando tudo,
sacudindo o rancho nas noites frias, quando eu acordava com medo e ouvia lá fora o
seu gemido. (MEYER, 1949, p. 14)
Se, como vimos em 2.2 (p. 82 a 86), o vento simboliza, para os músicos mineiros, a
incerteza quanto ao futuro da nação, na memorialística de Meyer ele representa um outro tipo
59
Ver, por exemplo, “Canto de sol e de vento”: “Claro mês das corticeiras sangrentas, / várzeas deitadas ao
do sol. / Vem o vento e faz carinho na flechilha, / malmequeres amarelos dançam na haste. // Ternura de brotar...
espanto de ser... / espanto de estar sobre a terra como um rei / porque a tarde me trouxe a coroa da luz / e a
alegria parece uma flor que eu achei” (MEYER, Correio do Povo, Porto Alegre, 15.12.1929); e a crônica “Pra
ti”, que se encerra da seguinte forma: “Tudo isso é muito conhecido, Magali, porém os homens continuam tendo
opiniões. E outro fato mais curioso ainda: até as opiniões tem a sua utilidade elas servem para saber de que
308
de insegurança aquela relacionada à afirmação da coragem do menino frente às
adversidades de um mundo “selvagem” que fugia a seu controle e compreensão. O vento
“mandava” e o garoto, atônito, “obedecia”, submetia-se ao poder da natureza refugiando-se no
consolo paliativo da presença da mãe ou imaginando alguma situação extremamente
fantasiosa, a infernizá-lo e tranqüilizá-lo ao mesmo tempo, e que o auxiliasse a bem
compreender o quadro que a visão tentava, a todo custo, recompor conscientemente, mesmo
que aparentemente perdida em meio à amplidão do vazio:
O vento arredondava as nuvens, punha mais distância no campo. E era o
horizonte. Nos relevos um valor puramente acidental, nenhum volume detendo a
pupila. Fuga silenciosa para o além. Quem olha como eu olhava então, perde o ponto
humano de referência e fica, por assim dizer, no ar. Que sentido nesta visão
diluída, evaporada, esvaziada? Precisava de tocar, de sentir. A vacuidade me doía
como um ferimento vivo e me achava tão diminuído como aquele capão fantasma
no fim do horizonte. (MEYER, 1949, p. 12)
O vento acode à memória adormecida e desperta a imagem esquecida que aflora então
de forma sublime, “varrendo” tudo, como no poema de Manuel Bandeira:
O vento varria as folhas, / O vento varria os frutos, / O vento varria as flores... / E a
minha vida ficava / Cada vez mais cheia / De frutos, de flores, de folhas. // O vento
varria as luzes / O vento varria as músicas, / O vento varria os aromas... / E a minha
vida ficava / Cada vez mais cheia / De aromas, de estrelas, de cânticos. // O vento
varria os sonhos / E varria as amizades... / O vento varria as mulheres. / E a minha
vida ficava / Cada vez mais cheia / De afetos e de mulheres. // O vento varria os
meses / E varria os teus sorrisos... / O vento varria tudo! / E a minha vida ficava /
Cada vez mais cheia / De tudo. (BANDEIRA, “Canção do vento e da minha vida”,
Estrela da vida inteira, 1983, p. 150-1)
Em Meyer, assim como em Proust, a memória involuntária recupera imagens e
sensações especiais, porém sua reconfiguração consciente e voluntária é problemática, pois
carrega consigo as interferências e imperfeições decorrentes do fato de as lembranças do
sujeito da memória passarem necessariamente pelo “crivo da análise”. Vejamos como Meyer
formula o problema e admite que o resultado é insatisfatório:
Segredos e caminhos da infância... De todo aquele mundo, ficaram apenas algumas
imagens vagas, reproduzidas grosseiramente a poder de concentração da memória
sentimental, mas tão deturpadas pela necessidade discursiva, tão diferentes e quase
irreconhecíveis depois de passarem pelo crivo da análise, que, em vez de aproximar-
nos da fonte viva do ser em sua ingênua frescura, aguçam cada vez mais a
consciência que nos separa daqueles rincões perdidos. (MEYER, 1949, p. 16-7)
lado sopra o vento. (...) Me diz que vento sopra e eu te direi quem és...”. (MEYER, Correio do Povo, Porto
Alegre, 01.06.1930)
309
Para resgatar ao menos uma parte da espontaneidade perdida, o memorialista sabe que,
mesmo deturpada, é preciso reviver novamente a “ingênua frescura” da flor da juventude, a
flor que, como nos lembra Paulo de Gouvêa, viceja a cada cem anos, é preciso sim,
inadiavelmente, “voltar enquanto é tempo à manhã” de sua existência, por isso Augusto
Meyer sente que é necessário, mais do que nunca, “voltar à raiz da vida, reviver aquela fase
em que a gente é ao mesmo tempo todas as coisas, berço, aurora, sino e onda (...)” (1949, p.
11), e, por volta dos quarenta e sete anos de idade, interrompida a produção poética, resolve
dedicar-se ao primeiro volume de suas memórias, Segredos da infância (1949)
60
, recorrendo,
como o mestre Proust, ao apelo dos sentidos e ao expediente “fortuito” da memória
involuntária, expediente simbolizado, em “Cerro d’Árvore”, pela recorrência constante ao
minuano, característica marcante do lugarejo que tão profundamente o impressionou e que
nele despertou outras impressões igualmente distintas, tais como o “grito do quero-quero”, o
“murmúrio de água corrente” e a “várzea ao sol”, poeticamente evocadas
61
. Para o
memorialista, todas estas recordações fazem parte de uma ocasião única em sua vida,
inesquecíveis por participarem do “(...) lembra não lembra daquelas noites dormidas sob o
teto de uma casa de rodas, com seu vasto silêncio campeiro e a confusa palpitação de rumores
60
Reunidos em 1949, vários capítulos de Segredos da infância apareceram, primeiramente, nas páginas do
Correio da manhã, do Rio de Janeiro, entre os anos de 1945 e 1948. São exemplos desse procedimento: “O rei
dos ratos” (12.08.1945); “No Bom Conselho” (23.09.1945); “Na praça da matriz” (18.11.1945); A festa do
divino” (06.01.1946); “No ginásio” (01.09.1946); e “Do fundo da insônia” (04.04.1948). Alguns tiveram seus
títulos alterados: “A casa da Floresta” (26.08.1945) passou a se chamar “O menino da Floresta” (1949, p. 31-42),
e “A escola” (09.09.1945), “Caminho da escola” (1949, p. 43-50). Conferir “Apêndice” (CARVALHAL, Tania
Franco. O crítico à sombra da estante – Levantamento e análise da obra de Augusto Meyer, 1976, p. 131-154).
61
Ver: “Mais tarde, anos e anos depois, que estranha sensação me invadia dentro da noite ao ouvir o grito do
quero-quero, ou esse arrancar da grama, tão nítido no silêncio, que aproxima do nosso inquieto sono a presença
confortadora de um matungo pastando...” (MEYER, 1949, p. 18). E também: “Ainda hoje, quando ouço um
murmúrio de água corrente, aquele murmúrio que associamos a não sei que profundas vozes interiores, é o arroio
do Cerro d’Árvore que me acode à memória: entre as arvoretas do capão, no seu leito de areias finas, ele corre
docemente na lembrança” (MEYER, 1949, p. 16). Sugestões tão marcantes não deixariam de aparecer também
na obra poética de Augusto Meyer, como podemos deduzir a partir da leitura de poemas como “Quero-quero”,
no qual o escritor adverte: “Escuta: dentro da noite / é o avião que vai passando: / cidades iluminadas / rincões
perdidos na bruma / coxilhas embaixo, triste / cemitério de campanha. / É o grito do quero-quero! / Erraste o
caminho, lua / cega de tanto luar... // Calcei as botas de vento / passei a ponte do arco-íris / atirei um limão verde
/ por cima das Três Marias / deu no cravo, deu na rosa / só não deu no que eu queria. / Ó túneis da angústia, ó
insônia!” (MEYER, Poesias, 1957, p. 148-9)
310
indecifráveis, subindo pouco a pouco à memória, do fundo do tempo...”. (MEYER, 1949, p.
18)
O “teto de uma casa de rodas” é uma alusão à viagem de volta a Porto Alegre, feita de
carreta, durante a qual o menino pôde gravar na memória a visão da “várzea ao sol”,
eternamente marcada em seu espírito ansioso por descobrir um mundo de sensações e de
emoções, tão imprevisto quanto irreproduzível por meio da palavra:
Não saberia dizer o que foi para mim a várzea ao sol. Tive alegrias e revelações mais
tarde, porém, nenhuma tão profunda como aquela. Porque era indefinível e integral.
Porque a consciência não me separava das coisas, como agora. A criança era,
naquele momento, a terra infinita com sua promessa, tudo possuía o sentido
supremo, a força definitiva, a luz perdida. O mundo existia, sem precisar de
explicações. Mas já no fato de ter sido a lagoa milagrosa simplesmente água da
chuva, começou a decadência do espírito pueril. A evidência mata a revelação. E a
criança morre para que o homem possa viver. Ao longo dos anos, ainda assim o
homem continua a se debruçar sobre as vozes da infância porque, através do seu
balbucio pueril, distingue as palavras eternas da vida e morte. (MEYER, 1949, p.
19)
Fustigada pelo vento e extasiada pelo contato virginal com arroios e pássaros, a criança
convive inocentemente com a natureza do Cerro até se ver diante de uma descoberta
decepcionante, responsável pela perda de sua ingenuidade e da confiança irrestrita na
“magnitude” do universo a partir de então, iniciada a inevitável decadência, o ciclo se
repetirá indefinidamente: a criança “morre” “para que o homem possa viver”, da mesma
forma que, anos mais tarde, o homem viverá para recordar a criança que um dia foi. E a
criança tal qual o memorialista a evoca não existiria não fosse o “vento enfurecido” que
“enxotava o seu rebanho de nuvens” e “açoitava a rancharia”, quando “os primeiros frios
penetravam pelas frinchas” do rancho construído “a taquara e barro” e o gado
irremediavelmente “procurava os paradouros”. (MEYER, 1949, p. 15)
A súbita lembrança do minuano da campanha restitui a Meyer seu “arquipélago” mais
camuflado, Cerro d’Árvore, e com ela o rancho, o arroio, o quero-quero e o índio fugido.
Assim, é natural que a referência ao vento passe a ser, a partir desta primeira evocação e ao
longo de praticamente todos os demais capítulos, a imagem mais constante das reminiscências
311
de Augusto Meyer, madeleine a proporcionar a redescoberta das cidades e jardins” de sua
infância, tomando “forma e solidez”, em sua recriação, a terra que antes se encontrava
submersa nos “becos” de sua memória.
Em “Na Praça da Matriz” (1949, p. 71-87), o vento que altera a fisionomia do lugar
(“(...) louqueava pelas ruas, batia nas janelas, despenteava as árvores da praça”, p. 86) surge
ao memorialista de forma bem menos dolorosa que o minuano do Cerro d’Árvore, a ponto de
o escritor se deliciar com as sensações ocasionadas pelo inverno, palavra que lhe sugere graça
e voluptuosidade, bem-estar do corpo e do espírito em total liberdade:
É o inverno que vem vindo, dizia minha mãe, encantada com o espetáculo da
passarada em preparativos de arribação, e aquela palavra maravilhosa ‘in-ver-no’,
apesar de ligada a impressões um tanto melancólicas ou francamente penosas o
minuano do Cerro d’Árvore, as mãos roxas, gretadas de frieiras, os pés gelados, o
nariz ardendo, os lábios feridos me parecia tão sonora, tão cheia de graça
misteriosa e grave, que eu me punha sem mais nem menos a repetir para mim
mesmo, em todos os tons, num murmúrio voluptuoso, apenas da boca para dentro: o
inverno, o in-ver-no, vem vindo o inverno... (...) E o inverno chegava, bruscamente,
com as primeiras fúrias do minuano, depois de uma longa chuva. (MEYER, 1949, p.
85)
O vento que tanto marcou a infância de Augusto Meyer no interior do estado continua a
caracterizar as lembranças de sua adolescência em Porto Alegre seja na Praça da Matriz, no
Ginásio Anchieta ou às margens do Guaíba, o vento gelado do sul acompanha Augusto como
312
a provisão de lenha, enquanto a mão livre campeia e de vez em quando mergulha no
chão. (...) Lufadas de vento assaltam a janela, colam as bocas na frincha pra dizer
um segredo muito triste, o segredo de alguém que passou a vida inteira sólito à
beira-mar. (MEYER, Correio do Povo, Porto Alegre, 19.08.1930)
No tempo da flor também está repleto de referências ao vento: na evocação do peão da
fronteira que se fartava “de vento e galope” (“Do tempo da espanhola”, 1966, p. 60); “no cicio
de vento a rumorejar na folhagem” dos mais diversos lugares (“o não-sei-onde da memória
imprecisa” a justificar “a deleitação da fantasia solta num começo de férias...”; “Alencar no
telhado”, 1966, p. 75); na alusão ao “espetáculo da prostituição” na Praça da Matriz
62
; na
menção à Bela adormecida no bosque (“Deitou-se o vento, (...) e não se mexia uma folha nas
altas árvores do parque”; “Confissões de um leitor”, 1966, p. 96; ver 2.2, p. 86-7); e até
mesmo na recordação involuntária do nome do bairro onde o escritor nasceu:
Nasci na Independência, cercanias da Praça Júlio de Castilhos, no ponto mais alto
daquele dorso de coxilha que decerto sugeriu aos primeiros moradores saudosos e
emigrados o nome lisboeta de Moinhos de Vento. dois ou três anos, em Lisboa,
quando ia em visita ao grande Antônio Sérgio, na Travessa Moinho de Vento, 4, o
nome evocativo lembrou-me aquele trecho de rua, nos meus pagos. (MEYER,
“Rua da Praia”, 1966, p. 124)
Por tudo isso, deduz-se que Augusto Meyer é uma espécie de “iniciado do vento”, como
313
depoimento do acusado, o leitor constata sua fascinação pela força do vento, a mesma
presente na memorialística do escritor gaúcho. Assim diz o engenheiro, admitindo, diante do
juiz do caso, que o vento contribuía decisivamente para as expansões fantasiosas de sua
imaginação:
Era pois este lugar a capital do vento. Ou, pelo menos, uma cidade ventada. Enchi-
me de alegria, vendo confirmar-se minha expectativa. Até na figura do garoto, que
me esperava segurando as malas um menino de cabelos lisos, olhos espantados,
pele bronzeada, e uma mobilidade extrema na fisionomia – eu via um filho do vento.
É possível, Sr. Juiz, que eu exagerasse, que visse vento em tudo. Trazia a
imaginação livre e os nervos um pouco desgovernados pelo cansaço. (MACHADO,
1993, p. 28-9)
Obcecado pela ventania, José Roberto confunde sonho e realidade, delirando com a
possibilidade de “conhecer melhor” o vento da cidade montado a cavalo, condução sugerida
pelo garoto como forma de chegarem rapidamente ao topo da montanha de onde poderiam,
enfim, sentir o vento em sua máxima potência.
A associação de cavalo e vento me exaltara subitamente. Parecia resgatar em mim
todos os males que a fadiga acumulara. (...) Entrei [no hotel], mostraram-me o
aposento que mal pude reparar como era. Adormeci, aflito para que amanhecesse
logo. Foi um sono espesso, profundo, interrompido às vezes pelo barulho de uma
ventania que eu não sabia bem se era do sonho pois ventava também dentro do
meu sono ou se era a que rodava fora. Cavalo e vento... (MACHADO, 1993, p.
30)
64
Assim como nas Memórias de Augusto Meyer, o vento também possui, no conto de
Aníbal Machado, o dom de despertar ressonâncias até então “adormecidas”, desde a infância,
nos porões da inconsciência: “E à medida que aumentava de velocidade, [o vento] ia
mostrando uma qualidade diferente daqueles que correm em outros lugares. Parecia soprar da
minha infância, trazendo o que havia de melhor e de mais antigo no espaço” (MACHADO,
1993, p. 32). A analogia entre a memorialística de Meyer e “O iniciado do vento” não pára
correndo sempre, até sumir-se no longe. Fiquei só no meio do turbilhão. Com a sensação de que ele me
abandonara.” (MACHADO, 1993, p. 42; grifo meu)
64
À página 176 de A evidência mascarada, ao analisar o poema “Minuano”, de Augusto Meyer (a ser comentado
em seguida), Tania Carvalhal demonstra que a associação entre cavalo e vento, “de raízes populares”, pode ser
rastreada em muitos poetas gaúchos”, como em Vargas Netto (“Pampeiro”, Gado Xucro). Para a autora, a
imagem criada por Meyer em “Minuano” (“Ó mano / Minuano / upa upa / na garupa!”; ver Poesias, 1957, p.
153) “representa simbolicamente a liberdade, a independência, o rumo do esquecimento”, nisto residindo sua
originalidade – em fazer do “enlace entre vento e montaria” seu mais destemido “companheiro de fuga”
(CARVALHAL, 1984, p. 176), característica também presente em “O iniciado do vento”, como vemos na
citação que originou esta nota.
314
por aí – nota-se facilmente, nas duas obras, um forte apelo aos sentidos: em Meyer as
ocorrências do minuano estão estritamente vinculadas ao tato, à visão e à audição,
configurando aquilo que Guilhermino Cesar caracteriza como “experiência visual e gustativa
do meio ambiente” (ver 4.1, p. 259, nota 20); no conto, o menino percebe a chegada do vento
com bastante antecedência devido ao fato de conseguir “farejá-lo” (“Suas narinas farejavam
os longes. Alguns instantes depois, ele tinha a cabeleira em desalinho, e o meu chapéu fora
atirado à distância”, MACHADO, 1993, p. 31); em Meyer, manifestações súbitas do minuano
resgatam “arquipélagos submersos” no inconsciente, assim como em “O iniciado do vento”:
Não precisava que o vento viesse assim tão estabanado, pensou [José Roberto]. Mas
que maravilha! Será que ninguém percebia? Era [o vento que invadia a sala do
tribunal] de um tipo novo, menos descarnado e musical. Com algo de rebelde e
desordeiro. Pena que ali não estivesse o Zeca da Curva. O engenheiro tinha certeza
de que ele continuava vivo. Voltaria escondido, para uma busca naquelas grotas de
montanha. Ou será que ia encontrá-lo expatriado do seu vento, vagando triste pelas
ruas da Capital? (MACHADO, 1993, p. 46)
Se interpretarmos livremente o trecho acima, com o pensamento voltado às evocações
do memorialista gaúcho, dá-se a entender uma inusitada correspondência: parece que o
narrador do conto está se referindo não ao personagem Zeca, mas a Meyer, que, a fim de
“continuar vivo”, propõe-se a recriar seus “pagos da infância” “expatriado” de seu vento,
“vagando triste pelas ruas” do Rio de Janeiro, de onde exalta o inesquecível minuano. O vento
que chega de surpresa, tão “estabanado” e triunfal, e invade a sala do tribunal contribuindo
para a mudança de rumo do julgamento, é da mesma “família” do vento que, nas Memórias,
traz, em seu âmago, a imprevista caçada ao índio fugido em “Brinquedo de esconder” (1997,
p. 21-3). Em ambas as obras, ele é sinônimo de fascínio e de surpresa, de assombro humano
diante desta incontrolável e imprevista força da natureza. Ambas respiram a mesma
atmosfera, ou melhor, o mesmo “vento”, o mesmo deslumbramento-terror-mistério por este
impiedoso “batismo de orgulho”.
O minuano ressuscitado em Segredos da infância e em No tempo da flor como
componente da assombrada descoberta do mundo pelo menino Tico aparecia, na cada de
315
1920, nos poemas do jovem Augusto Meyer, porém com uma diferença essencial: ao invés da
insegurança e dos “medos infantis” confessados nas Memórias, o vento da campanha
simbolizará a bravura, o destemor e a valentia do homem dos pampas, calejado para as
“batalhas” da vida pela aspereza do lugar e do vento cortante. Em “Galpão”, pertencente à
Giraluz (1928), é o campo que se amedronta com sua chegada inesperada, e não os seres, que
acompanham, absortos, a brasa que se apaga:
Vêm de fora os rumores do campo medroso / e o seu grulho noturno pede silêncio: /
o vento o vento o vento viaja, / o vento viaja para o outro mundo... // Os campeiros
são graves como a lembrança / de tudo tudo que já passou. / Morrem os olhos na
cinza morta. / a brasa viva se apagou. // (...) O vento o vento vem e vai, / o vento
vai para o outro mundo... (MEYER, Poesias, 1957, p. 71)
Em “Minuano”, presente nos Poemas de Bilu (1929), a mesma intrepidez demonstrada
em “Galpão”, identificação tão profunda a ponto de poeta e vento se irmanarem no mesmo
sentimento de solidão:
Este vento macho é um batismo de orgulho: / quando passa lava a cara enfuna o
peito, / varre a cidade onde eu nasci sobre a coxilha. // Não sou daqui, sou de
fora... / Ouço o meu grito gritar na voz do vento: / Mano poeta, se enganche na
minha garupa! // Comedor de horizontes, / meu compadre andarengo, entra! / Que
bem me faz o teu galope de três dias / quando se atufa zunindo na noite gelada... // Ó
mano / Minuano / upa upa / na garupa! (MEYER, 1957, p. 152-3)
Este poema, tão representativo do procedimento de Augusto Meyer de explorar o
mesmo tema em mais de um gênero de sua produção, recebeu, em Literatura e poesia (1931),
uma nova versão, desta vez em prosa poética, contendo praticamente os mesmos “versos” e os
mesmos elementos que denunciam a intimidade do poeta com o vento que, como uma
montaria, leva-o a percorrer e a vencer as distâncias com o arrojo de quem conclama a união
de “todas as vozes numa voz” e desabafa suas cismas “na raiva do vento”. (MEYER, 1931, p.
50)
Ambas as versões são referidas por Tania Carvalhal que, em A evidência mascarada,
sublinha a “identificação do eu lírico com o vento, associando-se a seus desejos mais íntimos”
e demonstra que o poeta “não explora o minuano pelo lado da cor local mas o transmuta em
inquietação humana”, já que sua ocorrência estará sempre ligada “às lembranças mais remotas
316
da infância, aos instantes decisivos, aos grandes sustos e medos”. (CARVALHAL, 1984, p.
178-9)
65
Símbolo de vigor e de ousadia, de inquietação para o adulto e de sobressalto para a
criança (pois “(...) vento, orgulho, cidade, tudo gira em torno a este eu que lhes sentido”,
CARVALHAL, 1984, p. 175), a evocação do vento no poema de Meyer também sugere o
apelo a onomatopéias (o “upa upa” do texto poético e o “fiáááááuuu” da versão em prosa,
“vaia” que o minuano “afunila” “em todas as frinchas”, 1931, p. 48) e sinestesias, sobretudo
na quinta estrofe (“As ondas roxas do rio rolando a espuma / batem nas pedras da praia o tapa
claro... / Esfarrapadas, nuvens nuvens galopeiam / no u gelado, altura azul”, 1957, p. 152),
brilhantemente interpretada por Tania Carvalhal:
‘Roxas’ estaria numa oposição diametral à cor azul, não só pela posição que ocupam
no quarteto mas principalmente pelo contraste entre um cromatismo fechado (roxo
conota tristeza, luto; no contexto, frio) e outro que se amplia o azul do céu, do
mar, da amplidão). (...) Os efeitos sinestésicos ocorrem em o tapa claro, onde
interferem na formação da imagem uma percepção táctil e também auditiva (tapa) e
uma percepção ótica (claro). (...) outras duas sinestesias logradas em as ondas
roxas, numa associação de movimento e cor, e em ‘o céu gelado’ em que uma
percepção térmica qualifica uma percepção visual. Mesclam-se, portanto, cores,
sons, sensações térmicas e impressões tácteis recriando, na estrofe, a atuação do
vento em toda sua amplitude. Para isso contribuem também os recursos empregados
no terceiro verso: a repetição de termos (nuvens nuvens), a ausência de pontuação
acentuando o ritmo, a imagem essencialmente visual (esfarrapadas) e a ação verbal
ativa (galopeiam) que sugere uma imagem eqüestre que será mais adiante
concretizada. As nuvens são destroçadas e postas a correr pela violência do
minuano. (CARVALHAL, 1984, p. 174-5; grifo da autora)
As sinestesias, presentes em outros poemas
66
, são marcantes também no memorialismo
em “Cerro d’Árvore”, ouvimos o murmúrio da água corrente do arroio e o grito do quero-
65
Com efeito, não será preciso esperar pela memorialística do autor para relacionarmos a manifestação do
minuano a sua infância. Na antepenúltima estrofe de “Minuano” lemos: “Casuarinas cinamonos pinhais / largo
lamento gemido imenso, vento! / Minha infância tem a voz do vento virgem: / ele ventava sobre o rancho onde
morei” (MEYER, 1957, p. 153). Para Tania Carvalhal, o minuano na obra de Meyer “(...) é um elo entre o
presente e o passado”, e “(...) cabe-lhe estabelecer a ligação entre o eu atual e os eus anteriores em várias
passagens da memorialística. Reaparece com tanta insistência que se torna uma metáfora obsessiva, ponto de
referência para a consciência de si mesmo.” (CARVALHAL, 1984, p. 179; grifo da autora)
66
Leia-se em “Sombra verde”: “Mãe-verde... // Reclinei-me em seu regaço, / onde venenos e perfumes. // E
todo o cheiro das suas folhagens, / toda a seiva dos seus frutos, / frescura de águas claras e de folhas verdes /
vem banhar como um bálsamo as pálpebras fechadas” (MEYER, Coração verde, in Poesias, 1957, p. 30); e em
“Elegia do limão verde”, composição na qual o poeta rende homenagens ao olfato (magnólias, limoeiros), ao tato
(vento nos cabelos, toque dos dedos e roçar de cílios) e à audição (a “música” das praias): “Guardo o perfume
das magnólias, sinto o cheiro dos limoeiros, / revoa o vento praiano nos cabelos. // (...) Minha vida ficou presa
nos teus dedos, / suspensa à franja dos teus cílios finos. / A minha sombra cresce cresce no chão da saudade... /
Passam de novo os namorados pela estrada. / Ouço a música das praias. // E onde estás, adolescente ruivo, / alto
317
quero, visualizamos a várzea ao sol”, as cores do céu e da geada e as mesmas nuvens
espalhadas pelo vento que se insinua nas “várzeas e canhadas” da mesma forma que na “altura
gelada e azul”:
Às vezes, de um extremo do horizonte ao outro, o vento do Cerro d’Árvore enxotava
o seu rebanho de nuvens acarneiradas com uma violência precursora do minuano. As
macegas pareciam viver de uma vida atormentada, sobre o alecrim das baixadas,
ondulante, sobre o lombo das coxilhas, passavam sem cessar sombras rápidas, como
nuvens rasteiras, e tudo se revestia de uma aparência de intranqüilidade vagamente
ameaçadora. (...) E no outro dia, era o minuano. Bastava olhar a altura gelada e azul,
com que outro galope de nuvem, para reconhecê-lo. Havia todas as vozes, todos os
lamentos naquela voz poderosa. Zunia nos tetos, varria as macegas, corria três dias e
três noites sem parar. Os baldes de água gelavam ao relento. A geada branqueava os
campos. De manhã, que bom que era o café fumegante e o braseiro debaixo da
mesa... (MEYER, 1949, p. 15)
Na poesia ou na memorialística, em verso ou em prosa, o certo é que Augusto Meyer
fez das sinestesias e da referência ao vento molas de sua evocação da infância e do processo
de resgate da personalidade esfacelada em vários “eus”, priorizando sempre, no conjunto de
sua obra, “(...) o homem em busca de suas feições anteriores na tentativa de compreender a si
mesmo”. (CARVALHAL, 1984, p. 17)
Tania Carvalhal demonstra que o autor de Giraluz não foi o primeiro poeta gaúcho a
cantar as excentricidades do minuano. Antes de Meyer, e servindo-lhe de sugestão, Mansueto
Bernardi (em 1923) e Eduardo Guimaraens (em 1923 ou 1924) também exaltaram as
principais características do “vento frio e seco” que sopra por três dias no interior do Rio
Grande do Sul, fazendo de sua aparição o símbolo maior da renovação política ansiada pelo
povo gaúcho no transcorrer dos anos 20 (CARVALHAL, 1984, p. 170-1). Assim, se o poema
de Bernardi atribui ao minuano uma função saneadora, de purificação e de pacificação, e o de
Guimaraens a ele confere “o sentido da própria terra gaúcha” (1984, p. 170), a composição de
Augusto Meyer, segundo Carvalhal, “deixa transparecer pontos de contato” que indicam a
e curvo como os bambus que amavas tanto? // (...) Pensa na casa querida quando o vento noturno / vinha bater
com a mão de um ramo na vidraça...” (MEYER, Giraluz, in Poesias, 1957, p. 109-10). De fato, a lembrança do
perfume de folhas e frutos é uma das fixações poéticas de Augusto Meyer: Este perfume tão fino / é a saudade
de um perfume / e parece que resume / o amor de um poeta menino. // (...) De tudo aquilo, ficou-me / o vago
aroma de um nome / e a saudade de um perfume.” (MEYER, “Flor de maricá”, Alguns poemas, in Poesias, 1957,
p. 16)
318
leitura e o desejo de “reescrever” e de “inovar” as realizações de seus antecessores, uma vez
que, em seu poema, ao contrário dos demais,
(...) o minuano deixa de ser o tema exclusivo do poema pela relação que irá
estabelecer entre o ‘eulírico e o vento, conformando-o em uma espécie de duplo.
Perde, portanto, qualquer caráter emblemático já que não é apenas com a terra
gaúcha que o vento se identifica mas sobretudo com o poeta. (CARVALHAL, 1984,
p. 172)
Além de Guimaraens, Bernardi e Meyer, um quarto poeta gaúcho fez do vento presença
constante em seus versos, explicitando sua quota de imprevisibilidade e de transfiguração
falo de Mario Quintana, em cuja Antologia poética (Porto Alegre: L&PM, 1997) sobejam
referências a esta irrefreável força natural, a partir dos títulos de diversos poemas, como
“Canção de um dia de vento” (de Canções); “Esses inquietos ventos” e “O que o vento não
levou” (de A cor do invisível). No segundo, o terceto final parece o resumo em verso dos
temores noturnos de Meyer, surpreendido pela ventania do Cerro d’Árvore: “Faz tanto frio...
E é tão macia a cama: / Mas toda a longa noite inda hei de ouvir / A inquieta voz do vento que
me chama!” (QUINTANA, 1997, p. 155). No terceiro, o poeta de Alegrete confere ao vento
inusitadas qualidades olfativas, como no conto de Aníbal Machado:
No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas / que o vento não
conseguiu levar: // um estribilho antigo / um carinho no momento preciso / o folhear
de um livro de poemas / o cheiro que tinha um dia o próprio vento... (QUINTANA,
1997, p. 156)
também sugestivas associações com a infância (“Mas veio um vento de
Desesperança / Soprando cinzas pela noite morta! / E eu pendurei na galharia torta / Todos os
meus brinquedos de criança... // (...) Eu quero os meus brinquedos novamente! / Sou um pobre
menino... acreditai... / Que envelheceu, um dia, de repente!...”; “A Rua dos Cataventos – VII”,
1997, p. 13); com o tempo, sendo ambos símbolos do passageiro e do vago (“O tempo é
indivisível. Dize, / Qual o sentido do calendário? / Tombam as folhas e fica a árvore, / Contra
o vento incerto e rio”; “Pequeno poema didático”, 1997, p. 49); e, finalmente, com o fazer
poético:
319
No mundo há pedras, baobás, panteras, / Águas cantarolantes, o vento ventando / E
no alto as nuvens improvisando sem cessar. / Mas nada, disso tudo, diz: ‘existo’. /
Porque apenas existem... / Enquanto isto, / O tempo engendra a morte, e a morte
gera os deuses / E, cheios de esperança e medo, / Oficiamos rituais, inventamos /
Palavras mágicas, / Fazemos / Poemas, pobre poemas / Que o vento / Mistura,
confunde e dispersa no ar... (QUINTANA, “Olhos as minhas mãos”, 1997, p. 50-1)
Ao denotarem a relação de cumplicidade entre o “eu lírico” e o vento, Augusto Meyer e
Mario Quintana se juntam a outros poetas da literatura universal que exploraram a mesma
analogia, como os modernistas Borís Pasternak e T.S.Eliot e diversos outros poetas de língua
inglesa, como Shakespeare, Shelley e Longfellow
67
, e alemã, como Rainer Maria Rilke
68
.
Pasternak ressalta a onipresença do vento ao louvar a obra daquele que é considerado o maior
simbolista russo, Alexandr Blok, autor de Os doze, poema laudatório da Revolução Russa:
Aquele vento, que entrava sob as costelas / e na alma, com o passar dos anos / em
boa e fama / foi mencionado e recordado nos seus versos. // Aquele vento está
em toda parte. Na casa, / nas árvores, no campo, na chuva, / na poesia do seu
terceiro livro, n’Os doze, na morte, em toda parte. (PASTERNAK, “Vento Quatro
fragmentos sobre Blok”, Antologia da poesia soviética russa, 1984, v. 1, p. 73)
Em Eliot, o poeta flâneur e o vento participam do mesmo temor, sobressaltados pelo
contraste entre a escuridão da madrugada e os breves focos de luz que se alternam entre o
natural e o artificial, tônica da primeira estrofe de “Rhapsody on a windy night”:
67
Destes últimos, apenas cito os trechos e os poemas que confirmam a identificação eu-lírico/vento, a fim de não
desviar o foco do período modernista, objetivo primordial do capítulo e da tese. Shakespeare insere em As you
like it uma bela canção popular na qual se compara a ingratidão humana à rudeza do vento, sendo esta menos
“indelicada” que aquela: “Blow, blow, thou winter wind, / Thou art not so unkind / As man’s ingratitude; / Thy
tooth is not so keen, / Because thou art not seen, / Although thy breath be rude” (SHAKESPEARE, As you like it,
ato 3, cena 7, 1964, p. 266). O romântico inglês Percy Shelley compõe uma ode ao “vento oeste” (Ode to the
West Wind), em cuja última estrofe o vento se transforma em um espírito que faz soprar, através dos lábios do
poeta, as trombetas de uma pungente profecia: “Sweet though in sadness. Be thou, Spirit fierce, / My spirit! Be
thou me, impetuous one! / Drive my dead thoughts over the universe / Like whitered leaves to quicken a new
birth! / And, by the incantation of this verse, / Scatter, as from an unextinguished hearth / Ashes and sparks, my
words among mankind! / Be through my lips to unawakened earth / The trumpet of a prophecy! O Wind, / If
Winter comes, can Spring be far behind?” (SHELLEY, 1961, p. 245). E em “My lost youth”, do americano
Henry Longfellow, as recordações de uma bela e querida cidadezinha à beira-mar são embaladas por uma
canção, que não lhe sai da memória, em cujo refrão o desejo do menino se confunde com o desejo do vento, e as
divagações que a ventania traz consigo acompanhar-lhe-ão eternamente, tal como no caso de Meyer menino,
escravo do desejo do minuano do Cerro d’Árvore: “Often I think of the beautiful town / That is seated by the sea;
/ Often in thought go up and down / The pleasant streets of that dear old town, / And my youth comes back to
me. / And a verse of a Lapland song / is haunting my memory still: / ‘A boy’s will is the wind’s will, / And the
thoughts of youth are long, long thoughts’.” (LONGFELLOW, 1961, p. 356)
68
“Senhor: é mais que tempo. O verão foi muito intenso. / Lança a tua sombra sobre os relógios de sol / e por
sobre as pradarias desata os teus ventos. (...) // Quem não tem casa, não a irá mais construir. / Quem está
sozinho, vai ficá-lo ainda mais. / Insone, de ler, escrever cartas torrenciais / e correr as aléias num inquieto ir-
e-vir / enquanto o vento carrega as folhas outonais.” (RILKE, “Dia de outono”, Poemas, 1993, p. 67; tradução:
José Paulo Paes)
320
Twelve o’clock. / Along the reaches of the street / Held in a lunar synthesis, /
Whispering lunar incantations / Dissolve the floors of memory / And all its clear
relations, / Its divisions and precisions. / Every street lamp that I pass / Beats like a
fatalistic drum, / And through the spaces of the dark / Midnight shakes the memory /
As a madman shakes a dead geranium. (ELIOT, 2004, v. 1, p. 70)
69
Também na ficção são relativamente comuns as referências ao vento como força
transfiguradora da natureza exterior (agindo na transformação física das paisagens) e interior
(atuando como metáfora das mais diversas facetas do comportamento humano da
inquietação espiritual e do medo do desconhecido, do desejo de liberdade e da atração pelo
inusitado, dentre muitas outras). Vimos que, como frisou Octacílio Alecrim em “Raízes de
Proust” (ver 2.2, p. 86, nota 67), a fim de explicitar o turbilhão emocional que tumultuava o
espírito de Emma, imerso em devaneios, o narrador de Madame Bovary propõe, no primeiro
parágrafo do sétimo capítulo da segunda parte do romance, uma aproximação entre as
ocorrências inesperadas do vento nos “castelos abandonados” e a dúvida moral da
personagem:
O dia seguinte foi para Emma um dia sombrio. Tudo lhe parecia envolto em negra
atmosfera que pairava confusamente sobre as coisas, e a tristeza engolfava-se em sua
alma com bramidos lamentosos, como o vento de inverno nos castelos abandonados.
Era o devaneio do que não voltaria mais, a lassidão que nos toma depois de cada fato
consumado, a dor, enfim, que nos traz a interrupção de todo movimento habitual, a
cessação brusca duma vibração prolongada. (FLAUBERT, 1981, p. 95)
70
Na ficção brasileira, o vento aparece em romances modernistas como O tempo e o
vento, de Erico Veríssimo, no qual a personagem Ana Terra chamará a atenção, no volume “O
continente”, para o fato de que toda vez em que algo de importante lhe ocorre está ventando, e
em Presença de Anita, de Mário Donato, curiosa narrativa do fatídico caso de amor entre
Eduardo e Anita, a excêntrica moradora do sótão da “Esquina do Vento” (1985, p. 21-3),
69
Na tradução de Ivan Junqueira: “Meia-noite. / Uma síntese lunar captura / Todas as fases da rua, / Sussurrantes
sortilégios lunares / Dissolvem os planos da memória / E todas as suas límpidas tramas, / Divisões e precisos
mecanismos. / Cada lampião que ultrapasso / Pulsa como um tambor fatídico, / E através das lacunas do escuro /
A meia-noite golpeia a memória / Como um louco brande um gerânio morto.” (ELIOT, “Rapsódia sobre uma
noite de vento”, 2004, v. 1, p. 71)
70
Transcrevo a tradução de Araújo Nabuco, feita para a versão em língua portuguesa publicada pela Abril
Cultural em 1981, e não aquela veiculada no artigo de Alecrim (2.2, p. 86, nota 67). Também no nono capítulo
da primeira parte o vento surge como alegoria da confusão espiritual de Emma: “Bem no íntimo, contudo,
esperava um acontecimento qualquer. Como os marinheiros em perigo, relanceava olhos desesperados pela
321
fragmentada nas personas da própria Anita, de seu alter-ego Cíntia e de Conchita, a
misteriosa bailarina de porcelana com poderes hipnotizantes. O topus, porém, não é
exclusividade do Modernismo – em O gaúcho, o romântico José de Alencar se refere ao vento
do sul no primeiro capítulo (“O pampa”), com a intenção de fixar as intempéries do
ambiente retratado: “O pampa é a pátria do tufão. Aí, nas estepes nuas, impera o rei dos
ventos. Para a ria dos elementos inventou o Criador as rijezas cadavéricas da natureza”
(ALENCAR, 1978, p. 13). No capítulo seguinte (“O viajante”), o romancista esclarece o leitor
de outras regiões a respeito do nome e das características do vento temido pelos campeiros:
“Estava fresca a manhã. Em setembro ainda reina o inverno na campanha; e nesse dia soprava
o minuano, vento glacial, que desce dos Andes. Apesar do sol que dardejava em um céu
límpido e azul, o frio cortava.” (ALENCAR, 1978, p. 15-6)
71
Se o vento é assunto constante na ficção e na poesia brasileiras, não seria diferente em
se tratando de obras memorialísticas, embora Meyer tenha sido o único a fazer dele o
principal instrumento de suas recordações involuntárias. Thiers Martins Moreira exorciza os
“diabos negros” encarnados no vento que assombrava o palacete do menino (ver trecho em
2.2, p. 86, nota 67). Além disso, um capítulo intitulado “Os ventos”, em cuja abertura o
autor afirma que
(...) Como ao som dos sinos, o Menino incorporou à casa os ventos da planície.
Vinham de longe, de um horizonte qualquer, e pareciam, às vezes, ficar rondando do
lado de fora, antes de entrar pelas janelas ou pelas telhas. Mas, para o Menino, eram
solidão da sua vida, procurando, ao longe, alguma vela nas brumas do horizonte. Não sabia qual o acaso, o vento
que a impeliria para ela, e qual a praia para onde se sentiria levada;” (FLAUBERT, 1981, p. 50-1; grifo meu)
71
O gaúcho possui ainda, no capítulo V (“A guaiaca”), uma bela passagem a respeito da intensidade das
impressões que, trazidas da infância, acompanharão o adulto ao longo de sua vida: “O espírito guarda ainda mais
do que a matéria as primitivas impressões. É uma lâmina polida a consciência do menino, onde a luz da razão
nascente esgrafia com extraordinário vigor as primeiras imagens da vida. Muitos outros raios projetam depois
em nós sombras vigorosas, que todavia não desvanecem esse estereótipo indelével da infância” (ALENCAR,
1978, p. 63). Apesar dos significativos trechos mencionados, o romance de José de Alencar foi duramente
criticado por todos aqueles que não perdoaram a descrição “fantasiosa” de uma região que o autor sequer
conhecia pessoalmente. Em “O Gaúcho, de Alencar” (Prosa dos pagos, 2 ed, 1960, p. 77-92), Augusto Meyer
não hesita em classificá-lo como “um apressado romance regional”: “Para poder conciliar as duras contradições
que no Gaúcho de Alencar, em que o pior e o melhor andam lado a lado, em boa camaradagem, acabei por
admitir que essa obra são três obras num título: um drama hamletiano; uma admirável sucessão de quadros,
em que o paisagista soberbo e o afoito animalista conseguiram realizar um verdadeiro milagre de arte visionária;
e finalmente com que goa o reconheço! um apressado romance regional, feito de remendos de notas,
informações precárias, intuições nem sempre bem aproveitadas.” (MEYER, 1960, p. 79)
322
os ventos do Palacete, como se naquela terra sem montes, onde podem correr
livremente, viessem destinados à casa. (MOREIRA, O Menino e o Palacete, 1954,
p. 71)
Aludindo ao “Minuano” dos Poemas de Bilu, Cassiano Ricardo, tendo morado em
Vacaria em 1919, faria questão de registrar, em Viagem no tempo e no espaço, o inesquecível
“batismo” que tanto marcou sua passagem pelo estado:
Durante o inverno, vim também a conhecer o minuano, cantado por Augusto Meyer
o vento que se enrola no poncho do gaúcho, zune na noite e entra pelas frinchas
das portas, característico; o minuano que me batizou de gaúcho, e que senti na carne
até à medula dos ossos. (...) Conheci 12 graus abaixo de zero mas tudo tinha um quê
de inaugural pra mim. (RICARDO, 1970, p. 17)
Minuano que, assim como Meyer e Cassiano, batizara da mesma maneira Dyonelio
Machado, outro “iniciado” que, nascido na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai
(em Quaraí), eternizaria a sazonal ocorrência em Memórias de um pobre homem:
O clima não é de menosprezar, quanto mais não seja no que toca ao vento frio do
sudoeste – o minuano – que enche de frieiras todos os dedos do corpo e, em
compensação e por misteriosa alquimia, enrijece a gente contra os demais frios...
(MACHADO, 1995, p. 72)
Mas não é preciso ter habitado ou nascido no Rio Grande do Sul para render
homenagens ao vento e fazer dele paradigma da liberdade, da purificação e da renovação
simbólica representada pela figura do velho que, sugestionado pela mudança de ares”,
“ressuscita”, através da escritura, o jovem que se esconde nos confins da memória. É o que
acontece na obra de Pedro Nava, sobretudo em Baú de ossos, volume no qual o memorialista
conclama o vento a compor, ao lado de outras “cargas” igualmente poderosas, o retrato
fidedigno do cadinho hereditário do qual participa passiva (como representante aleatório de
um processo ininterrupto) e ativamente (como “porta-voz” da família, incumbido de revelar,
através do memorialismo, os detalhes de uma rica aculturação que diz muito sobre a antiga
sociedade patriarcal brasileira):
Cada um compõe o Frankenstein hereditário com pedaços dos seus mortos.
Cuidando dessa gente em cujo meio nasci e de quem recebi a carga que carrego
(carga de pedra, de terra, lama, luz, vento, sonho, bem e mal) tenho que dizer a
verdade, a verdade e se possível, toda a verdade. (NAVA, 6 ed, 1983, p. 240;
grifo meu)
323
Ao discutir os processos de manifestação da memória involuntária desnudados por
Proust e facilmente reconhecidos nas mais diversas sugestões sensoriais, Nava relaciona a
ação do vento como uma das possíveis causas desse redespertar abrupto, numa alusão, mesmo
que não intencional, à “madeleine” de Meyer:
Cheiro de mato, ar de chuva, ranger de porta, farfalhar de galhos ao vento noturno,
chiar de resina na lenha dos fogões, gosto dágua de moringa nova todos têm a sua
madeleine. que ninguém a tinha explicado como Proust desarmando
implacavelmente, peça por peça, a mecânica lancinante desse processo mental.
(NAVA, 6 ed, 1983, p. 43-4)
72
Mais do que ser somente um dos agentes deste tipo de ocorrência mnemônica, o vento
tem, em Baú de ossos, a função de representar o revigoramento de uma imagem antes
desgastada e “perdida no tempo”, mas redimensionada justamente através da lembrança
súbita, como no episódio em que Nava reconstitui sua casa de infância no Rio de Janeiro,
localizada à rua Aristides Lobo nº 106, cujas “janelas apagadas” no tempo da escritura
contrastam com as “janelas abertas ao vento” no tempo em que, habitada por sua família, a
casa justificava sua “existência” e “vivacidade”:
Eu tinha ido me refugiar na rua maternal, tinha parado no lado ímpar, defronte do
106, cuja fachada despojada esbatia-se na noite escura. Olhando as janelas apagadas.
Procurando, procurando. De repente uma acendeu e os vidros se iluminaram
mostrando o desenho, trinta anos em mim adormecido. Acordou para me atingir em
cheio, feito bala no peito, revelação como aquele raio que alumbrou São Paulo e
fê-lo desabar na Estrada de Damasco. Na superfície fosca, alternavam-se quadrados
brilhantes, cujos cantos se ligavam por riscos que faziam octógonos. Essa luz
prestigiosa e mágica fez renascer a casa do fundo da memória, do tempo; das
distâncias das associações, da lembrança. Como ela era! com suas janelas abertas ao
vento, ao calor, às manhãs, aos luares. Foi aquele tumultuar, aquele entrechoque
arbitrário de diversidades se conjuntando em coisa única (...) (NAVA, 6 ed, 1983,
340-1)
Muito antes, porém, de citá-lo como exemplo de manifestação da memória involuntária,
ainda na década de 1920 Pedro Nava veicula, na revista Verde de Cataguases, um inusitado
poema no qual o vento toma conta de Belo Horizonte “desrespeitando” lugares tradicionais da
cidade (como a avenida Afonso Pena) e as regras da gramática normativa (“O obelisco cortou
72
Conferir o trecho completo no final do item 2.4 (p. 132, nota 131).
324
ele pelo meio / mas ele foi avuando”, “Belorizonte”, “jinipapo”, etc), mandando ortografia e
sintaxe “pelos ares”, junto com o próprio vento:
O vento veio maluco lá do alto do Bomfim / e veio chorando da tristura do
cemitério. // Zuniu na praça do mercado / assuviou as mulatas [na] avenida do
comércio / e mexeu na saia delas. / Arrancou folha das árvores / poeira assungou do
chão / depois virou / soprou / correu / danou / e entrou feito uma carga na avenida
afonso pena, / O obelisco cortou ele pelo meio / mas ele foi avuando / e os fios da
C.E.V.U. como cordas de violas / vibraram dum som longo que cobriu Belorizonte
feito um lamento. / O vento passou desmandado no Cruzeiro / saiu pro campo
dobrou a mata / mas de repente / sua disparada pára na parede serra do curral / e o
bicho stópa mas sapeca no morro um supapo / que estrala que nem jinipapo / que
mão raivosa / chispasse num muro duro. // Co – nhe – ceu papudo? (NAVA, Verde,
novembro 1927, p. 23)
Ainda nas páginas da Verde lemos um belo poema sobre a morte, escrito por Ascânio
Lopes, morto prematuramente aos vinte e um anos, no qual o vento, longe de simbolizar a
renovação acalentada por tantos outros poetas, é, pelo contrário, extremamente maléfico, pois
traz em sua aparição a solidão do sanatório, o frio (no corpo e na alma) e o recrudescimento
da doença fatal:
Logo, quando os corredores ficarem vazios, / e todo o Sanatório adormecer, / a febre
dos tísicos entrará no meu quarto / trazida de manso pela mão da noite. // Então
minha testa começará a arder, / todo meu corpo magro sofrerá. / E eu rolarei ansiado
pelo leito / com o peito opresso e de garganta seca. // Lá fora haverá um vento mau /
e as árvores sacudidas darão medo. / Ah! os meus olhos brilharão, procurando / a
Morte que quer entrar no meu quarto. // Os meus olhos brilharão como os da fera /
que defende a entrada de seu fojo. (LOPES, “Sanatório”, Verde, maio 1929, p. 12)
73
De Shakespeare a Eliot, de Flaubert a Quintana ou de Aníbal Machado a Erico
Veríssimo, os mais diversos exemplos aqui referidos apontam para um fato indiscutível
muitos escritores cantaram o vento, mas somente Augusto Meyer fez dele o principal
desencadeador do mecanismo da recordação involuntária, característica que o aproxima ainda
mais de Proust. Espécie de madeleine a que recorre invariavelmente, pois, como no poema de
73
Até então inédito, “Sanatóriofoi publicado no primeiro (e único) número da segunda fase da revista (em
maio de 1929), número dedicado exclusivamente à memória e à análise da obra de Ascânio. À página 08, o leitor
deparar-se-á com uma comovente homenagem de Murilo Mendes ao poeta de Cataguases, ressaltando, em seu
“Canto novo”, as maravilhas das quais somente a memória é capaz, “elasticidade” infinita responsável pela
superação das próprias dimensões: “O espírito suspende a lâmpada do encanto / no terraço do mundo. / Formas
dormindo / carnes na sua verdadeira atitude / quem definirá a estrela da manhã / sem a influência de corpos
multiplicados / tapando a vista dos problemas celestiais? / Luz eterna sobre a matéria / noite sobre o espírito /
nascimento de idéias múltiplas / na arquitetura do previsto, / menina que vira flor / substância que vira abstração
/ canto que vira dança / deus que morre numa cruz pra variar de essência / tudo me invoca pra ultrapassar minhas
dimensões / ó elasticidade da minha memória / ó eternidade!” (MENDES, “Canto novo”, Verde, maio 1929, p.
08)
325
Longfellow, por muito tempo o “desejo” do menino era o mesmo que o do vento, este
marcante acontecimento permite a Augusto Meyer reconstituir, como veremos em seguida, a
sua Combray (Cerro d’Árvore) e a sua Paris (Porto Alegre) particulares, contribuindo
decisivamente para que o memorialista eternizasse, em Segredos da infância e em No tempo
da flor,
(...) a natureza, o campo, as coxilhas, os regatos murmurantes, os crepúsculos longos
sobre o Guaíba, a mudança das estações, o veranico de maio sob um céu translúcido,
as nuvens caprichosas e o vento, sempre o vento, principalmente aquele ríspido
minuano que tanto o impressiona... (MORAES, Carlos Dante de, “A poesia de
Augusto Meyer e a infância”, 1957, p. 284)
326
4.3 AS MEMÓRIAS DE AUGUSTO MEYER: IMAGINAÇÃO E LIRISMO À
PROCURA DO “PAÍS DA MEMÓRIA PERDIDA”
“E eu, provinciano e elegíaco, parado à esquina dos
vinte anos, ouço não sei que rumores confusos de
arrabalde, vozes róseas ao fim da rua da memória. O
pensamento viaja para muito longe, toma no
devaneio, invade as terras virgens da cisma, enfia-se
327
O curioso é que tal “tributo” a um Rio de Janeiro romântico e provinciano aparece
somente neste capítulo de A forma secreta. Na obra memorialística, a recriação do Cerro
d’Árvore e de um certo Porto Alegre igualmente romântico e provinciano absorvem-no por
completo, extinguindo a possibilidade de outras alusões ou homenagens. Nas Memórias de
Augusto Meyer haverá lugar somente para os paraísos perdidos da infância e da adolescência
em sua terra, sendo o Rio de Janeiro, nestas obras, tão “indiferente” ao memorialista quanto
São Paulo, Belo Horizonte ou Curitiba. A “cidade maravilhosa”, aliás, aparece nas Memórias
do autor apenas no último capítulo de No tempo da flor (“Epílogo”, 1966, p. 135-9), ainda
assim como simples “cenário” para a lamentável constatação da macaqueação efetuada pelos
conterrâneos porto-alegrenses em relação aos nomes dos principais bairros da cidade, fato que
confirma o quanto Meyer rejeita a falta de originalidade e a modernização desenfreada e mal
planejada, preferindo estabelecer definitivamente um Porto Alegre que só exista em sua
idealização atemporal, no qual os arranha-céus da década de 60 são substituídos, em sua
imaginação ao mesmo tempo fértil e seletiva, por becos, ladeiras e vielas que, inertes como
fotos antigas ou como “fragmentos de azulejos que formassem um quadro destruído”
74
,
simbolizam o “leve respiro das coisas adormecidas” enquanto eternizam a “poesia das coisas
perdidas no tempo”. (MEYER, 1966, p. 97)
75
De fato, mesmo recém chegado ao Rio de Janeiro, Augusto Meyer, “desterrado” em seu
próprio país (sentimento de “desajuste” físico e emocional competentemente captado por
Sérgio Buarque de Holanda), demonstrava profundo desgosto por se ver distante de seus
“pagos da infância”. Tendo trocado Porto Alegre pelo Rio em 1937 para assumir a direção do
Instituto Nacional do Livro (INL), em carta a Athos Damasceno Ferreira, datada de 8 de julho
de 1938, o escritor gaúcho admite abertamente a falta que lhe fazia sua amada cidade natal:
74
Ver CAMPOS, Humberto de, Memórias, 1958, p. 51.
75
Conferir estas expressões na citação que faço (no item 2.2, p. 86-7 e nota 68) do capítulo “Confissões de um
leitor” (No tempo da flor, 1966, p. 93-7), no qual Meyer interpreta o episódio da Bela Adormecida no Bosque
328
Positivamente a saudade continua, às vezes embarco na melancolia. Aqui [no Rio]
também existe um bar alemão, com cheirinho de Porto Alegre, e o Jacob se chama
Alfredo. Mas o diabo é a falta de certas ruas, de certas casas, de certos fantasmas.
(MEYER, “Cartas de Augusto Meyer a Athos Damasceno”, Caderno de Sábado,
Correio do Povo, 12.07.1980, p. 07)
76
Se Meyer lamentava, em 1938, a ausência de “certas ruas” e de “certas casas”,
presume-se o sentimento de profundo vazio que provavelmente experimentou ao longo das
décadas de 40, 50 e 60, quando a capital do Rio Grande do Sul dele se afastava cada vez mais
em tempo e espaço, modificada por um projeto de modernização que o exasperava e o
mortificava, processo contra o qual reagiu paliativa compensação do triste fato
imortalizando, em suas Memórias, um Porto Alegre que, muito diferente da cidade “moderna”
que passa a existir a partir da década de 60, sobrevive apenas em sua saudade revisitada pelos
apelos involuntários de uma “memória afetiva” topográfica e fotográfica. A fim de “proteger”
tal idealização, em tudo oposta ao “crescimento” caótico e desordenado dos “tempos
modernos”, Meyer opta por estabelecer o seu próprio pays de tendre, território improvável
pelas leis da Geografia, mas verossímil para as elucubrações de sua prolífica “memória
sentimental”.
Na verdade, Meyer havia abolido as fronteiras geográficas “tradicionais” desde a
crônica que publicara, no Correio do Povo de 22 de julho de 1930, sob o título de “Geografia
interior”. Ao falar da vida em metrópoles como Londres, o cronista valoriza as utópicas “vilas
do interior” e sugere que, com certa dose de imaginação, toda “geografia” é “subjetiva”, e a
capital do Rio Grande do Sul pode se tornar, num passe de mágica, a capital da Inglaterra,
inventada e reinventada “para uso externo”, abstraídas as lições escolares:
como metáfora perfeita da “imagem da poesia das coisas perdidas no tempo, que imaginamos ainda possam
reviver dentro de nós...” (MEYER, 1966, p. 97)
76
Segundo depoimento de Mario Quintana, Meyer acompanhava, há décadas, o boletim metereológico do
Correio do Povo de Porto Alegre, inteirando-se de detalhes da rotina da cidade e povoando-a com as “sombras”
do passado: “Augusto Meyer, lá no Rio, para onde a vida o arrancava, como que vivia em Porto Alegre,
relembrando amigos perdidos, horas perdidas... Quando o fui visitar em 66, disse-me ele que lia até o boletim
metereológico do Correio do Povo. E, comentando uma notícia que saíra neste jornal e naquela semana, sobre
dois cavalos encontrados a vagar sozinhos pela madrugada em plena Rua da Praia: - Olha, seu poeta, eu acho que
éramos o Théo e eu!” (QUINTANA, “Aug”, A vaca e o hipogrifo, 4 ed, 1983, p. 54)
329
Com a névoa, um pouco de boa vontade e muita imaginação a gente se londriniza
nestes crepúsculos de julho. Sim, porque afinal a geografia também é subjetiva. Qual
é o cavalheiro inteligente que vai mesmo a Londres quando basta levantar a gola do
impermeável, comprar um cachimbo, mastigar com dentes convictos meia dúzia de
monossílabos que ninguém entende e (chegou a parte mais suave do programa)
beber todo o whisky do Antonello? (...) Além disso, quem Londres, não acha
mais graça no seu londrinismo, porque as metrópoles mais tentaculares não valem
uma vilazinha do interior, construída pela gente com o cimento armado das utopias.
(...) Eu por mim nunca acreditei na existência espacial dessas Babilônias. Me
ensinaram na aula de geografia que ao norte fica isto, ao sul aquilo, a leste etc. Ora,
eu acho que ao norte, ao sul, a leste e a oeste fica sempre a desorientação da
humanidade e a sua deliciosa falta de imprevisto. Prefiro portanto esquecer as lições
do padre Fuhr e reinventar uma geografia para uso interno. (MEYER, “Geografia
interior”, 22.07.1930)
77
Indistintamente misturadas imagens “desencontradas no tempo” e “deslocadas” “no
espaço” (No tempo da flor, 1966, p. 18), neste original, prazeroso e subjetivo “país da
memória perdida” (e “reencontrada”, como em Proust) estão presentes tanto o rural (várzeas,
arroios e o minuano) quanto o urbano (praças, ruas e cafés); recordações de sua infância (o
rancho, a escola e a igreja) bem como da adolescência (a Rua da Praia e a Livraria do Globo,
dentre outras), compondo assim sua “Delos” pessoal, “ilha” paradisíaca na qual não cabem
capitais modernizadas nem a sisuda e complexa vida adulta, mas tão somente apelos a manhãs
de vento na campanha, a crepúsculos no Guaíba e a férias em São Leopoldo.
A insatisfação de Meyer em relação à inevitável modernização de Porto Alegre, que
descaracterizaria, em sua ótica, a singela cidade antes provinciana e lírica, é manifestada
indistintamente nos dois volumes das Memórias. Em Segredos da infância, o memorialista
prefere evocar as “feições primitivas” de uma cidade charmosa composta, no início do século
XX, por uma infinidade de ladeiras, vielas e becos que perfazem, em sua recordação
recuperada com o auxílio da imaginação, “caminhos interiores” sugestivamente mais vivos e
mais poéticos que as largas avenidas concebidas pelos burocráticos e “impessoais” planos de
urbanização:
77
Para Evelina Hoisel, “Cartografar pressupõe o delineamento de fronteiras, a demarcação dos limites entre
territórios, sejam eles reais ou virtuais, simbólicos” (“Sobre cartografias literárias e culturais”, Geografias
literárias e culturais: espaços/temporalidades, 2004, p. 150). Augusto Meyer, porém, como vemos,
“descartografa” e “recartografa” a seu bel-prazer em sua obra, o Rio de Janeiro torna-se Porto Alegre, Porto
Alegre pode “ser” Londres e Cerro d’Árvore, a sua “Illiers-Combray”.
330
Conheci um Porto Alegre fabuloso, regado a sarjetas de água verde, coberto de
clarabóias e beirais. Toda uma vertente da minha memória sentimental vai dar numa
encruzilhada de ladeiras e becos, onde às vezes me aparece, como intérprete
oportuno dos meus próprios sentimentos, o fantasma do guri que eu fui. É preciso
ter nascido com um pé no outro século para enveredar por estes caminhos interiores,
que se perdem no Passo do Não-Sei-Onde. (...) O meu Porto Alegre começa no fim
dos planos de urbanização, com o imprevisto das vielas, o desaprumo dos muros
limosos, um beiral emplumado de macega e os velhos nomes que as placas não
conseguem abafar. O tempo e a memória dos homens impregnam quase sempre as
coisas de uma névoa de passado e evocação que as transfigura com não sei que
toques de magia. Torna-se transparente qualquer paisagem, aos olhos de quem
recorda ou tenta reconstituir os seus aspectos anteriores, e uma cidade, uma rua,
começam a desandar para as suas feições primitivas, a desmanchar-se, recompondo-
se noutra ordem de planos, quando se projeta no seu passado a luz da fantasia
evocativa. (MEYER, “Na Praça da Matriz”, Segredos da infância, 1949, p. 74-5)
No parágrafo seguinte, o tom é de revolta, acompanhado de uma espécie de incitamento
anárquico à “destruição”, ainda que simbólica, do abominável cimento armado”
característico da cidade moderna, que oculta águas e devasta árvores e quiosques
imprescindíveis a seu pays de tendre que se quer absolutamente intocável:
A mim, fantasma do velho Coruja, desmanchemos o presente! Desmantelemos com
método o cimento armado, misturemos todos os traçados e plantas e posturas, para
ver como fica. Debaixo deste arranha-céu passa o beco do Fanha, como as águas
ocultas da saudade. Reponha-se o quiosque no devido lugar, atrelem-se de novo ao
bonde os burros sem futuro, mas principalmente replantem-se uma a uma as árvores
aquelas árvores que pareciam eternas na praça da Harmonia, de tão fundas raízes
no sonho... Prezado Coruja, patrono dos saudosistas, não devemos ter a menor
contemplação com esta cidade nova que brotou sobre a outra, apagando a marca dos
nossos passos. (MEYER, 1949, p. 75)
Conseguirá o singelo e impotente “Beco do Fanha” superar, de alguma forma, mesmo
que apenas na imaginação do sofrido saudosista, o arranha-céu que o engole com arrogância e
prepotência
78
? O sentimento de revolta prossegue e se acentua em No tempo da flor,
sobretudo no último capítulo, intitulado “Epílogo”, quando Meyer admite, com amargura,
estar diante “(...) de uma cidade que apaga as suas pegadas com o açodamento de um novo-
rico” (1966, p. 137). Não meios de o poeta-memorialista se conformar com tamanha
“precipitação”:
78
Sobre o beco como espaço poético, conferir a interpretação de Maria Luiza Berwanger da Silva, em
“Paisagens, constelações e limiares críticos” (
331
Mudou muito Porto Alegre. Em vão procuro reconstituir a fisionomia familiar e
rústica de certos arrabaldes, reconhecer algumas ruas que agora só existem no
traçado de uma planta subjetiva, dentro de mim mesmo. Quem não leva escondido o
seu Mapa da Saudade, o seu Pays de Tendre? (MEYER, 1966, p. 135)
Lamento irônico, por vezes sádico, no desabafo do memorialista a “destruição” efetiva
da “sua cidade” assume tom dramático, levando-o a reagir com irritação ao tratar dos aspectos
que envolvem a modernização de Porto Alegre. O penoso assunto de “Epílogo” surge a partir
de um passeio de carro no qual Erico Veríssimo é uma espécie de guia mefistofélico a
demonstrar, para desespero de Meyer, o quanto a cidade mudara entre a década de 20 e a de
60
79
. Mais do que inconformar-se com a substituição de sobrados por arranha-céus e de vielas
por largas avenidas, o que de fato irrita o autor de À sombra da estante é a cópia descarada e
insensata de alguns dos principais nomes de bairros cariocas, macaqueação imperdoável para
um povo que possui, segundo Meyer, belas expressões de origem indígena (tais como Guaíba,
o “seio das águas”; Gravataí, o “rio das gravatás”; e Taquari, o “rio das taquaras”; ver “Na
Praça da Matriz”, No tempo da flor, 1966, p. 09). Augusto Meyer não perdoa os “expeditos
comprovincianos” que “(...) não revelaram grande fantasia na escolha dos novos nomes”
(1966, p. 135), optando por uma “(...) clamorosa confissão de macaquice, um verdadeiro
deboche de arremedo” (1966, p. 137). Vejamos o contraponto entre a “inspiração” do original
e a “mediocridade” da cópia:
Que é isto aqui?, pergunto a Erico Veríssimo, volante, amigo e cicerone. E Erico:
(...) Tudo isto aqui é Petrópolis. (...) Petrópolis? Não será certamente homenagem
ao santo padroeiro do estado [São Pedro]. É nome para gente viajada, que vai muito
ao Rio, subiu a Petrópolis, bocejou no Quintandinha. (...) E isto aqui? (...)
intervalar onde o simbolismo do beco decanta a poética do movimento: ‘Que importa a paisagem, a Glória, a
baía, a linha do horizonte? / – O que eu vejo é o beco’(...)”. (SILVA, 1999, p. 69; grifo da autora)
79
Nesse aspecto, este capítulo da memorialística de Meyer parece o equivalente em prosa do seguinte poema de
Manuel Bandeira, modelo da decepção que a modernização impõe aos saudosistas: “Saí menino de minha terra. /
Passei trinta anos longe dela. / De vez em quando me diziam: / Sua terra está completamente mudada, / Tem
avenidas, arranha-céus... // Meu coração ficava pequenino. // Revi afinal o meu Recife. / Está de fato
completamente mudado. / Tem avenidas, arranha-céus. / É hoje uma bonita cidade. // Diabo leve quem pôs
bonita a minha terra!” (BANDEIRA, Manuel. “Minha terra”, Estrela da vida inteira, 1983, p. 179). Em outro
poema presente na coletânea, o poeta deplora a modificação sofrida pela capital pernambucana. Vejamos um
trecho: “Há que tempo que o te vejo! / Não foi por querer, não pude. (...) // Mas não houve dia em que te não
sentisse dentro de mim: / Nos ossos, nos olhos, nos ouvidos, no sangue, na carne, / Recife. // Não como és hoje, /
Mas como eras na minha infância, / Quando as crianças brincavam no meio da rua / (Não havia ainda
automóveis) / E os adultos conversavam de cadeira nas calçadas / (Continuavas província, / Recife).”
(BANDEIRA, “Recife”, Idem, ibidem, p. 245)
332
Ipanema, responde Erico, cheio de uma profunda e tranqüila malícia. (...) Ipanema?
Sinto uma espécie de frio, mas não é desta primavera fresca, sacudida por um resto
de minuano; é o arrefecimento que provocam as cousas tristes e erradas, mais ou
menos a impressão que sentimos, quando nos revelam que uma criança murcha e
sem bochechas, por exemplo, carrega desde a pia batismal o nome agressivo de
Churchill, para todos os efeitos: Churchill Pereira da Silva... (MEYER, “Epílogo”,
No tempo da flor, 1966, p. 136)
O sarcasmo de Meyer não se limita a esse “Churchill Pereira da Silva” que exemplifica
a prática ridícula de muitos progenitores que pensam prestar, dessa maneira, algum tipo de
homenagem aos nomes e costumes estrangeiros a certa altura, o escritor gaúcho sugere,
machadianamente:
E, se é caso de arremedar os nomes cariocas sem o mais leve respeito pela proporção
das cousas, sem contar com a escandalosa parcialidade da natureza, que é a
paisagem do Rio de Janeiro, reclamarei contra a falta do meu nome para ornamento
de todo um subúrbio porto-alegrense: (...) Onde está o Meyer? (...) Implacável,
Erico Veríssimo, o Tibiqüira de Cruz Alta, pisando no acelerador, esclarece com
farta cópia de pormenores que também temos Leblon, Botafogo, Copacabana...
(MEYER, 1966, p. 137)
Tais nomes, tão representativos de localidades tipicamente cariocas, soam como insulto
a quem aprendeu a amar desde cedo as peculiaridades de uma terra conquistada a ferro e fogo
e nascida da confluência de europeus, platinos e “gaudérios”. Como consolo, mesmo a
enumeração melancólica de sugestivos nomes do “passado”, para contrabalançar a imitação
triste e grosseira do “presente”:
Emudeço, então, sumido no assento dianteiro, com medo de ouvir outros nomes
igualmente impróprios e saturados de esnobismo provinciano. Murmuro a mim
mesmo, num arrulho de consolação: Praia da Alegria, Praia da Tristeza, Praia de
Belas, Pedras Brancas, Barra do Ribeiro, Pedra Redonda, Riacho, Alto do Bronze,
Rua do Arvoredo, Praça da Matriz, Beco do Império, Ponta da Cadeia, Ponta do
Dionísio, Itapuã... (MEYER, 1966, p. 136)
Microcosmos da cidade, as ruas de Porto Alegre participam do mesmo desabafo, entre
inconformado e resignado, levando-o a refugiar-se uma vez mais na evocação de um passado
vivo apenas na memória, com as mesmas “placas” identificando os “lugares originais”:
Com o tempo e a ostentação do progresso, as velhas ruas se desmancham
lentamente. Acordam um belo dia de placa nova na esquina, promovidas a general,
e, então, é tratar de enterrá-las, com a ladainha da saudade. Tudo assim vai sumindo,
embora sem tremor de terra, numa areia gulosa de olvido. (MEYER, 1966, p. 138)
O memorialista, no entanto, resiste bravamente ao “enterro” definitivo de ruas, praças e
becos que, devido à ganância dos adeptos do “progresso” desenfreado, passam rapidamente
333
da geografia à história, mas que no “atlas da memória sentimental” de sua geografia particular
continuam atuantes, eternizados em um pays de tendre
334
que também esse mesmo espaço passara, em sua época, e passaria outras vezes, por inúmeras
transformações inevitáveis. Meyer reluta em convencer-se de que todas as coisas devem
mudar (enquanto “nós mudamos também”), sendo a Praça da Matriz o grande paradigma
desta relutância, pois, tendo “mudado” diversas vezes, inclusive de nome, a praça simboliza a
ambigüidade da complexa relação entre o novo e o intemporal, entre a renovação e a tradição,
representando, além disso, a transição da infância do poeta para a adolescência. No próximo
item, veremos detalhadamente que, na memorialística de Augusto Meyer, conforma aponta
Tania Carvalhal em A evidência mascarada, “não distância entre o eu e a paisagem”, pois
“a reconquista do eu se alia à reconquista do espaço” justamente através da “recriação pela
memória”, sendo ambos, portanto, complementares e indissociáveis (1984, p. 183). Vejamos
como Meyer formula, já no primeiro parágrafo do capítulo inaugural de No tempo da flor, esta
analogia entre a paisagem que aos poucos se transforma e o eu que, contra sua própria
vontade, também muda:
Vejo a Praça da Matriz, em Porto Alegre, desandar para as feições que ainda
mostrava aos meus olhos de menino e moço. Mas é claro que estas praças vão
mudando, enquanto a gente mudou. Nesse jogo vertiginoso, mudam as cousas por
dentro e por fora, e, ao passo que as paisagens lentamente se desmancham,
recompostas noutra forma, também o espectador vai trocando de alma e de pele,
apesar de conservar o mesmo nome, confiado nas certidões do registro civil. O Eu
da gente é um inquilino que se imagina dono de si mesmo, proprietário do nariz, e
dentro dele moram não sei quantos locatários irresponsáveis, que acabam estragando
a casa. De vez em quando, ao cair do último andar do seu devaneio, o dono de si
mesmo descobre que foi logrado, vagamente se conta de um embuste... ‘Muda,
muda, qe 0 Td.721099(t)0.721099(i)-67(f9( ]734( )-111.667(v)5.7217(7()-3.1624(e)-2.051129( )-99.61126(m)18..7217(o)-6.3339(s)3.21993(o)7 0 Td[(o)-6.3339(n)5’5734( )-9699 -11.52 Td[(m)6.44d.6118(q)-6.3339(u)5..667(D)-1.38.3895(e)-2.0544( 77(-5734( )-975.5006(i)-h34(i)0.721099(s)-8.83567(,)-3.16695( )-15734(t)0.721099(á)-2.0.3339( )250]TJ-207.247 -11)-8.83567( )-3407 -11)-8.8699 -11.52 Td9(e)-24)-1217(d)-6.3339(a)-2.0734(t)0.721099(á)-2.01099(r)-4.533537(,)-3.16695( )-7 -11)-8.8699 -11.52 Td567(,)-3.16695( )-15734(t)0.721099(á)-2.08.3895(u)5.7217(s)3.3339( )-87.5562(r)-4.u43(o)-6.3339(i)0.721099( )-99.08.118(p)-6.336(m)18..7217.4398u339(,)-3.16695( )-5.7217(o)-621099(s)3.217217(o)-617(e)-14.1129( )-)3.217217(o)-608.118(p)-..6118(‘)-4.55617(M)-324dltes244a,
335
meio da rua, o mesmo sobradinho saudoso de antigas conversas moles em noites de
lua. depois, melancolicamente, notamos que o fantasma fotográfico da praça,
fixado num segundo, serve apenas de contraste irônico, na sua calma estabilidade, e
agrava a tristeza de sentir que aquilo tudo, tão parado, não cabe neste mundo versátil
e vário, e também já passou... (MEYER, 1966, p. 08; grifo do autor)
Meyer alude a uma característica comum a certas localidades porto-alegrenses, isto é, ao
fato de, ao lado do nome “oficial”, existir também um outro nome pelo qual o lugar é
conhecido “na boca do povo”. Desse modo, a famosa Rua da Praia é, na verdade, Rua dos
Andradas, assim como a poética Praça da Matriz foi, oficialmente, “promovida” de “posto”,
passando a se chamar definitivamente “Marechal Deodoro
81
. Havendo, pois, mais de uma
“Praça da Matriz”, no nome, no tempo e na história, as que de fato importam para Meyer são
somente “duas”: aquela recriada em Segredos da infância e a outra de No tempo da flor,
testemunha de sua adolescência, “cenários” de fases marcantes e que justificam o fato de “Na
Praça da Matriz” ser o único caso de capítulo homônimo no memorialismo do autor. Da
chácara na Floresta para o sobrado da Praça da Matriz, a primeira grande mudança, sentida
pelo gato da família e pelo menino assustado com os prédios e com a convivência harmônica
entre o profano (as prostitutas que faziam ponto na praça) e o sagrado (a catedral da cidade,
de onde saía a procissão do Divino Espírito Santo, retratada em “A festa do Divino”, Segredos
da infância, 1949, p. 89-103):
Foi não sei quando a mudança para a praça da Matriz, 24. O gato estranhou muito a
casa nova; desamparado, ia de um canto ao outro, miando. Também nós
estranhamos. Era apenas o térreo, no sobrado onde se achava instalado o curso de
preparatórios do velho Meyer, meu tio. Casa de alcova e porão alto, sem quintal.
Mas, pensando bem, havia a praça como novidade. (...) A praça da Matriz era a
cancha das mil e uma aventuras. Na sua área privilegiada cabia tudo: a igreja e o
palácio [Piratini, sede do governo do estado], a mesa-de-rendas e o tribunal, o teatro
e a escola, com duas esquinas de armazém e não sei quantas casinhas de porta e
janela, onde se debruçavam mulheres suspeitas. Ainda vejo aqueles admiráveis
81
Em O círio perfeito, ao comentar os diversos nomes recebidos pela Praça da República, no Rio de Janeiro,
Pedro Nava protesta de maneira semelhante, com ironia e amargura: “(...) os caminhantes aturdiam-se com as
amplidões da praça da República. Aquilo era solo tão cheio de história carioca e de fastos nacionais que era
pisado mais devagar e macio pelo Egon como se ele estivesse palmilhando nave de uma igreja catedral. O
médico sabia tanto aquele campo... Sentia e via suas primeiras veredas embitesgadas que iam da rua da
Alfândega à rua do Areal. A extensão era, do seu primeiro nome colonial, o Capueiruçu, onde passavam aqueles
caminhos. Campos de São Domingos. Campo de Santana. Campo das Lavadeiras. Campo da Cidade. Praça da
Aclamação. Campo da Honra. Campo da Regeneração. Campo da Liberdade. Praça da República. Tanta
mudança de nome! feita ora pelo governo ora pela cabeça quente de um povo que logo esquecia o que tinha
querido glorificar e até a razão dos nomes que eram substituídos como roupas mudadas. Como se chamará?
depois de praça da República.” (NAVA, 2 ed, 1983, p. 371-2; grifo meu)
336
coqueiros melancólicos em volta do Tesouro, que pareciam roídos de resignação.
(MEYER, “Na Praça da Matriz”, Segredos da infância, 1949, p. 73)
82
Mudança maior Augusto Meyer protagonizaria morando na Praça da Matriz, 24, dos dez
aos vinte anos de idade (de 1912 a 1922), quando o irrequieto Tico aos poucos se torna o
“revoltado” Foguinho e, posteriormente, o talentoso Aug, jovem artista entusiasmado pelo
início de sua colaboração nos jornais da capital e pelas discussões literárias nos cafés e
livrarias da Rua da Praia. Estas duas localidades porto-alegrenses, uma a “dois passos” da
outra, “para quem”, no dizer do próprio Meyer, “desce ou sobe a [rua da] Ladeira
83
” (1966, p.
124), tornam-se, juntamente com a várzea e o rancho retratados em Segredos da infância, os
dois grandes paradigmas espaciais de sua memorialística, paisagens canonizadas com o
intuito de compor uma “Delos” peculiaríssima a fundir o rural e o pitoresco do Cerro com o
urbano e o cosmopolita de Porto Alegre. E, não por acaso, se “Cerro d’Árvore” abre o volume
de suas recordações da infância, da mesma maneira os capítulos “Na Praça da Matriz” e “Rua
da Praia”, de No tempo da flor, estão estrategicamente colocados o primeiro, na abertura de
suas memórias da adolescência; o segundo, no fecho da obra, precedendo apenas o citado
“Epílogo”.
No entanto, se “Rua da Praia”, como veremos, constitui uma alegre lembrança dos
queridos companheiros de geração e dos lugares que freqüentavam, “Na Praça da Matriz” é
em tudo amargo e melancólico de fato, praticamente um libelo de acusação do processo de
descaracterização do projeto original da praça, contra o qual o escritor reage, novamente, com
extrema ironia, como no caso dos nomes dos bairros da cidade, ao afirmar que “(...) era de
uma beleza tão harmoniosa aquela praça, que não podia durar muito” (1966, p. 09). E o
lamento prossegue, cada vez mais amargurado:
82
Quanto à prostituição, ver também: “Aquelas mulheres de boca pintada, com decotes que mostravam o sulco
do seio, pareciam-me princesas decaídas. Abriam uma fresta na janela, por onde esgueiravam olhares vivos entre
as pálpebras fundas de bistre, procurando atrair o olhar dos homens que passavam. Brinquedo incompreensível
para as crianças...”. (MEYER, “Na Praça da Matriz”, Segredos da infância, 1949, p. 80)
83
A Rua General Câmara, conhecida antigamente como “Rua da Ladeira”, liga a Rua da Praia à Praça da Matriz.
337
Trabalhou ali para desfigurá-la com método e sanha a pior forma de anseio
progressista, o zelo cívico sem gosto e o zelo confessional sem piedade.
Importaram-se da França o projeto, o arquiteto e até as pedras, para construção de
um palácio menos indigno do nosso bovarismo. Arrancou-se do centro o velho
chafariz, revolveu-se o coração da praça, que foi ladrilhado, embalaustrado,
embonecado, monumentalizado com grandes gastos de bronze e granito. Sacrificou-
se a antiga Matriz ao projeto ostentoso e sobretudo oneroso do cavaliere João
Batista Giovenale, variante da Catedral de Patrasso, com monstruosos detalhes
incaicos no embasamento. (MEYER, “Na Praça da Matriz”, No tempo da flor, 1966,
p. 09-10)
Figura 8 – Praça da Matriz, em Porto Alegre, no início do século XX – notar os casarões
antigos, o chafariz ao centro e o rio Guaíba ao fundo
Meyer não se conforma com a “desarticulação” do chafariz, o “coração da praça”,
vendo no fato um deplorável sinal de desrespeito à tradição e à memória urbana da cidade,
que, infelizmente, “(...) no fim, tudo acaba em destroços de uma unidade perdida, como fria
lição de mau gosto” (1966, p. 10), renovação infeliz que reduz a caco a praça imaginada como
ideal, “quando ainda não havia obelisco, apenas o chafariz que representava a bacia do
Guaíba com os seus tributários, majestosas figuras de mármore, abrigadas à sombra de outra
338
bacia transbordante” (MEYER, 1966, p. 08)
84
. Do “estrago” causado em sua imagem
pretensamente eterna e definitiva da praça que tanto amou, o memorialista se “vinga”
ridicularizando o “obelisco positivóide” que substituiu o chafariz, símbolo, para ele, de uma
ostentação bajuladora e artificial, e marca de um “ávido novo-riquismo” que
(...) sempre confundiu tamanho, suntuosidade, ostentação de poderio e fausto com
decência, equilíbrio e beleza. O obelisco positivóide, rodeado de estátuas e
ameaçado pelo dragãozinho, com seu urro de bronze, quando muito serve para
acentuar ainda mais a graça modesta e provinciana, a harmonia simbólica do antigo
chafariz, com os cinco rios da minha cidade fitando num vago ponto do espaço as
pupilas vazias de estátua, que me pareciam cheias de paisagens interiores, de
horizontes perdidos... (MEYER, 1966, p. 10)
85
84
Pedro Nava é outro que condena terminantemente qualquer tipo de demolição, vendo nesta um terrível
obstáculo para as manifestações involuntárias da memória, já que assim não ocorrerá o encontro “(...) do
lembrador com o fragmento que desencadeia a lembrança”: “Uma demolição, o aterro que fez a nova praia de
Copacabana suprimem assim milhares de coisas, interrompem e bloqueiam a memória. desse jeito um
momento de guardar certos ambientes nos seus ínfimos detalhes todos importantes porque qualquer unzinho
deles poderá disparar num futuro obscuro o gatilho da recordação. Se tudo é suprimido, jamais dar-se-á o
encontro do lembrador com o fragmento que desencadeia a lembrança. Quem suprimiu qualquer detalhe ou
qualquer todo inutiliza não apenas sua figuração material mas esse gatilho de que falamos e que faz detonar um
mundo renascendo. Pratica (o que suprimiu) uma espécie de assassinato... Ah! Se soubessem disto os Senhores
Imprefeitos da Cidade do Rio de Janeiro...” (NAVA, Pedro, O círio perfeito, 2 ed, 1983, p. 293)
85
Este tipo de queixa, veiculada na memorialística de Meyer, não é exclusividade do criador de Bilu. Em Amar
se aprende amando, Carlos Drummond de Andrade também deplora as mudanças efetuadas na Praça da Estação,
em Belo Horizonte: “A Praça da Estação, em Belo Horizonte, / duas vezes a conheci: antes e depois das rosas. /
Era a mesma praça, com a mesma dignidade, / o mesmo recado para os forasteiros: / ‘Esta cidade é uma
promessa de conhecimento, / talvez de amor.’ // (...) A praça de entrada de Belo Horizonte, / mesmo esquecida,
mesmo abandonada pelos Poderes Públicos, / conta pra gente uma história pioneira / de homens antigos criando
realidades novas. / É uma praça forma de permanência no tempo / e merece respeito. / Agora querem levar
para o metrô de superfície. / Querem massacrar a memória urbana, alma da cidade, / num de seus últimos
pontos sensíveis e visíveis. / Esvoaça crocitante sobre a Praça da Estação / o Metrobel decibel a granel sem
quartel. / Planejadores oficiais insistem em fazer de Belo Horizonte / linda linda linda de embalar saudade / mais
uma triste anticidade” (ANDRADE, “Aqui havia uma praça”, Rio de Janeiro, Record, 1995, p. 171-2). A Música
Popular Brasileira também não deixa este sentimento passar em branco: na canção “Memória”, gravada por Fafá
de Belém, em 1979, no álbum Estrela radiante, Gonzaga Jr, autor da letra, resume exemplarmente a relação de
cumplicidade entre praças, ruas e esquinas e os saudosos habitantes que as freqüentaram um dia: “Houve um dia
aqui uma praça onde tantas crianças cantavam / Houve um dia aqui uma praça onde os velhos sorriam
lembranças / Houve um dia aqui uma praça onde os jovens em bando se amavam / e os homens brincavam
trabalho / um trabalho sem desesperança // Digo meu filho que esse jardim / era o viço da vida vingando / digo
meu filho que esse jardim / era o brilho dos olhos despertos / digo meu filho que esse jardim / era o branco dos
dentes brilhando / e a festa da vida seguia / pelo tranco dos gestos libertos // Digo de fresca memória / que aqui
não havia / do medo esse cheiro / digo de fresca memória / que aqui não havia de estátuas canteiros // Houve um
dia uma praça, uma rua, uma esquina, uma cidade, um país, / houve crianças e jovens e homens e velhos, um
povo feliz”.
339
Figura 9 – Praça da Matriz nos dias de hoje (século XXI) – notar o obelisco ao centro e a
Catedral Metropolitana (Igreja Matriz de Porto Alegre) ao fundo
Da mesma forma que em relação ao rancho e à várzea da campanha, o memorialista, ao
evocar seus pontos prediletos da capital, obedece ao “traçado de uma planta subjetiva” que
reorganiza o mapa de uma “paisagem interior” (recriada pela imaginação e pelos acessos
involuntários), depõe o “moderno” e sacraliza o “tradicional”, procedendo a um rigoroso
processo de exclusão e de inclusão das imagens que a ele interessa destacar: arranha-céus,
avenidas e obeliscos caricaturais são alijados de suas reminiscências e romanticamente
substituídos por becos, vielas, praças e chafarizes “imortais” e “congelados” na “Hora
Adormecida no Tempo”, reconstituídos com o fim específico de dar margem à ilusão de que o
tempo parou de vez “nas mesmas casas e ruas” de algumas “ladeiras de recordações” (1966,
p. 139) “cem anos” do “beijo do príncipe” ou da “flor de lótus” a propagar a inércia e a
captar, no “instantâneo fotográfico”, o belo, o simples e o eterno. Dessa maneira, temos não
somente um “espaço ideal” (o pays de tendre meyeriano composto pelo Cerro e pela capital
gaúcha antes da modernização), mas também um “tempo ideal” (a juventude, “tempo da flor”,
eternizada nas Memórias).
340
Meyer valoriza, sobretudo no primeiro capítulo de No tempo da flor (“Na Praça da
Matriz”, 1966, p. 07-19), o “ultrapassado mas autêntico” (trocando em miúdos, o “pobre mas
digno”, em suas próprias palavras), ao invés do “rico mas banal e inautêntico”. Explicando ao
amigo Mário Bacchelli os motivos da troca do chafariz pelo obelisco, o escritor é uma vez
mais impiedosamente irônico: “É para trocar o valor autêntico e intransferível de um
monumento pobre, mas digno, pela cópia banal de monumentos mais vistosos, coisas de
encher o olho... Sem palácios franceses e basílicas romanas, todos aqui nos consideramos
bugres...”. (MEYER, 1966, p. 11)
Décadas antes de redigir os capítulos que fariam parte de No tempo da flor, Augusto
Meyer acreditava que a “realidade” “está na velha praça”, espécie de “Jardim Interior”,
dotado de “alma”, que o escritor homenageia em “Noturno da Praça da Conceição” (Correio
do Povo, 13.05.1930), elevando-a à posição de nossa melhor confidente e cúmplice:
A alma das velhas praças ficou na sombra que o luar põe sobre os bancos, num
candieiro isolado, no vulto que passa assobiando a ‘comparsita’. (...) A praça
guardou a memória das nossas palavras. Cada folha é um sussurro murmurando
confidências, sussurro e murmúrio onde as nossas vozes passadas se misturam
puras, vivas como se em vez das folhas falassem as nossas bocas no mesmo tom
ingênuo, meus amigos... (MEYER, “Noturno da Praça da Conceição”, 13.05.1930)
Logo se que, no memorialismo de Meyer, a Praça da Matriz é aquela que mais se
aproxima desta “praça ideal” vislumbrada em 1930, “encarnando” todas as demais, queridas
também, mas não tão paradigmáticas. A Praça da Matriz e a Rua da Praia são tão importantes
para a reterritorialização das memórias do autor que, em outro capítulo, Meyer chega a
sugerir, a um “guaibense dado às letras e à saudade” (ele próprio?), uma minuciosa pesquisa
(“forma de permanência no tempo”, como no verso de Drummond) a respeito das origens
históricas dos dois logradouros, tanto as oficiais quanto as populares, baseando-se nos
registros de cronistas, historiadores e viajantes (o que confirmaria a caracterização mista
veraz e ficcional dos fenômenos da memória, que os dois primeiros preocupar-se-iam
341
com a documentação histórica dos locais, ao passo que os últimos privilegiariam o caráter
“aventureiro”, “fantasioso”, “mítico” de suas formações):
Nos arquivos do antigo Senado da Câmara, trazia o nome de Rua da Graça, mas o
povo não se engraçou com esse nome, diz o Velho Coruja. Tem a sua história
pitoresca e bem merece de um guaibense dado às letras e à saudade, uma crônica
minuciosa, apoiada não nos arquivos municipais, mas na descrição animada e
impressionista de alguns viajantes, nos cronistas da querência, na documentação
iconográfica, na tradição popular. Tenho imaginado muitas vezes uma coleção de
pequenas monografias municipais, com aproveitamento de alguns trabalhos
publicados. Mas, dentro do mesmo âmbito municipal, creio que não deveria
considerar-se abuso de microscopia bairrista um trabalho especial sobre a Rua da
Praia ou a Praça da Matriz. (MEYER, “Rua da Praia”, No tempo da flor, 1966, p.
123)
Se a “chácara da Floresta” e a Praça da Matriz são imprescindíveis para a recriação dos
momentos capitais de sua infância, a Rua da Praia representa a ambientação plena de sua
juventude e da convivência com os demais escritores pertencentes ao chamado “grupo da
Livraria do Globo”. Sem a necessidade, como ocorrera na reconstituição da infância, de
apelar para a imaginação
86
, uma vez que a década de 1920 parecia estar suficientemente
fresca em sua memória mesmo após um período de quatro décadas, Meyer estabeleceria a Rua
da Praia como a “estrada real” de sua formação intelectual:
Creio que para todos nós, da geração de novecentos, foi a Rua da Praia uma estrada
real da nossa formação. Na topografia sentimental da cidade, ela será sempre o
caminho obrigatório das recordações, no tempo da primeira mocidade, o lugar em
que todos se misturavam e marcavam encontro. (MEYER, “Rua da Praia”, No tempo
da flor, 1966, p. 123)
Em Augusto Meyer (Letras rio-grandenses, v. 8), Tania Franco Carvalhal resume o
prestígio que a Rua da Praia possuía no início do século XX, rua para a qual convergiam
escritores, intelectuais e políticos interessados na renovação literária (Modernismo) e política
(“Foi aqui mesmo, de um lado da rua para o outro, que Osvaldo Aranha e Flores da Cunha
comandaram o assalto, na Revolução de 30”; MEYER, 1966, p. 127) do Rio Grande do Sul:
A principal rua do centro de Porto Alegre era, nessa época da Província ‘belle
époque’, ponto de encontro, onde tudo acontecia. Concentrava as redações dos
jornais, as lojas mais importantes, as confeitarias e os cafés, as livrarias. A Editora
da Livraria do Globo, que se encarregava de lançar os jovens autores do Sul, ali se
86
Ver: “Só a imaginação poderá reproduzir o verde vivo daqueles campos de cevada que havia então na Floresta,
verde realçado violentamente pelo tijolo sem reboco das fábricas de cerveja.” (MEYER, “O menino da Floresta”,
Segredos da infância, 1949, p. 36)
342
localizava, sendo local também de literatos e políticos. (CARVALHAL, Augusto
Meyer – Letras Rio-grandenses, v. 8, p. 13)
87
Assim, é natural que a Rua da Praia, “(...) um dos primeiros sonhos dourados e uma das
grandes aventuras do menino Bilu” (1966, p. 124), congregasse as inquietações coletivas e
pessoais de cada jovem literato modernista porto-alegrense, e Augusto Meyer não fugia desta
regra, conforme seu próprio testemunho expresso em No tempo da flor. Para ele, a Rua da
Praia, muito mais do que o “(...) o vago e fascinante país dos cinemas, dos cafés, das
confeitarias, das livrarias, das casas de negócios, das redações de jornal, das vitrinas que
enchiam o olho” (1966, p. 124), constituía a materialização dos desejos mais recônditos de
sua ardente fantasia (e por isso tão difíceis de evocá-los concatenadamente), desejos
simbolizados por uma insaciável sede de aprender, característica de alguém que, possuindo a
“curiosidade fáustica do conhecimento”, ansiava por novidades trazidas do Velho Mundo,
fixadas primeiramente na retina e em seguida nos “desvãos” da memória: “Por ali viram os
meus olhos ávidos maravilhas maiores e menores, tantas e tais, que não cabem na página e
atropelam a recordação, pedindo a sua vez” (MEYER, 1966, p. 125). “Maravilhas” que
“atropelam a recordação” porque, do mesmo modo que em relação à Praça da Matriz, o
escritor não administra bem o conflito de o lugar amado simultaneamente “ser” e “não ser”
mais o mesmo que tanto o seduzia:
Como quem tenta repisar umas pegadas fantásticas, vamos andando no tempo, mais
que no espaço, em busca de uma rua que não mudou de nome na boca do povo, mas
não parece a mesma rua, cortada agora por uma larga avenida, e sem a incisão
pitoresca de alguns becos. (MEYER, 1966, p. 126)
88
87
Sobre a Rua da Praia, ver o artigo “Memória e esquecimento nas artes de lembrar a cidade de Porto Alegre nas
crônicas de Nilo Ruschel” (2006), de Charles Monteiro, no qual o autor comenta a série de quarenta crônicas
que, publicadas no Correio do Povo no fim da década de 70 para demonstrar que a localidade era “mais que uma
simples rua”, foram reunidas, em 1971, sob o título de Rua da Praia.
88
A respeito deste paradoxo de o lugar evocado ser, de certa maneira, “ele mesmo” (na recordação) e “outro” (na
realidade), ver o seguinte trecho de Na Praça da Matriz”, em que Meyer mistura, em sonhos, a Praça da Matriz
e a Praça do Paraíso (antiga designação da atual Praça XV de Novembro), enquanto “dialoga” com os amigos
mortos que freqüentam o sonho e a(s) praça(s), inclusive com o “olhar das figuras de mármore” das estátuas que
“(...) fitavam num ponto vago do espaço as pupilas vazias, que pareciam cheias de paisagens interiores e
horizontes perdidos” (1966, p. 19): “Sonhei a noite passada o sonho da Praça do Paraíso. Era e não era a Praça
da Matriz do meu tempo de menino, com a velha fonte de chafariz, que representava a bacia do rio Guaíba. No
sonho, as imagens parece que nascem do nada, com uma tal intensidade, que às vezes se tornam angustiosas, de
tão vivas. Pensamos, sonhando: como é possível suportar isto, sem respirar um pouco e despertar? Sei dizer que
reina uma tranqüila verossimilhança do absurdo em tudo, e por isso mesmo não estranhei certa mistura indistinta
343
Evocados em conjunto, tempo e espaço têm, de fato, uma importância significativa nas
Memórias de Meyer, ligação que se torna evidente no trecho em que o escritor relembra o
início de suas atividades na imprensa da capital, referindo-se indistintamente ao ano (1924) e
ao local (pois na Rua da Praia estavam situadas as redações dos três jornais em que Meyer
colaborava: A Federação, Diário de Notícias e Correio do Povo, este último o de sua estréia
“em letra de fôrma”):
Ano crucial para mim aquele 1924, quando vi estampadas em letra de fôrma, nas
colunas róseas do grande diário de minha terra, as veleidades literárias um tanto
embrulhadas e presunçosas que levedavam em minha fantasia, pedindo norma e
ritmo. Era o princípio de um interminável aprendizado, que arrastei comigo pela
vida e há de levar-me certamente a emendar as frases derradeiras, suspiradas à beira
da cova. (MEYER, “Rua da Praia”, No tempo da flor, 1966, p. 128)
Entretanto, as conquistas do jovem escritor o surgiram isoladamente, e a obra poética
de Meyer (o primeiro do grupo a publicar versos) participava, como escrevi na página
anterior, das “inquietações coletivas” de toda uma geração, prazerosamente relembrada em
um capítulo que, sendo uma bela homenagem aos “paraísos perdidos” da juventude
(“territórios” da memória “individual”), é também, e principalmente, um dos mais
representativos depoimentos, em tom cordial e saudoso, a respeito do grupo formado pela
“geração de novecentos” (memória “coletiva”):
Mas quem diz Rua da Praia também diz Livraria do Globo. E aqui seria necessário
avivar a fantasia, puxar pela memória, convocar engenho e arte, se eu quisesse
explicar às direitas o que chegou a significar para aquele momento da minha vida a
Rua da Praia aos sábados, em frente da Livraria do Globo. Eu acabara de
convalescer de uma grave doença. Acabava de conhecer na Biblioteca Pública do
Estado, onde então trabalhava, aquele que havia de ser o meu maior amigo:
Teodemiro Tostes. E foi então que travei relações de amizade com Moisés Vellinho
e, por seu intermédio, com os mentores do chamado ‘grupo da Livraria do Globo’:
de imagens desencontradas no tempo, nem a deslocação no espaço. A unidade era inegável: eu me achava na
Praça do Paraíso, que era e não era a Praça da Matriz” (MEYER, No tempo da flor, 1966, p. 18). A Praça do
Paraíso também é visitada na obra poética de Augusto Meyer, mais precisamente no poema em prosa incluído na
seção “Folhas arrancadas” de Poesias (1922-1955), que se encerra com este belo parágrafo de acento proustiano:
“Foi lá que eu deixei enterrado o segredo das horas que voltam, a um canto humilde da praça, com a cor, o som,
o gosto, o mistério e a tortura da evocação” (MEYER, “Praça do Paraíso”, 1957, p. 238). Em sua tese Paisagens
reinventadas Traços franceses no Simbolismo sul-rio-grandense, Maria Luiza Berwanger da Silva nestes
trechos uma aproximação entre a praça sonhada por Meyer e as paisagens simbolistas, indefinidas e misteriosas:
“Se a recuperação da Praça da Matriz remete ao imaginário do autor, do ponto de vista da existência equivale a
fixar um espaço e um tempo que, rompendo com a linearidade do presente, configuram a memória pelo desejo
de transgredir o mistério. Por outro lado, a memória dialoga com a paisagem simbolista do vago.” (SILVA,
1999, p. 256)
344
João Pinto da Silva, Mansueto Bernardi, Rubens de Barcelos e os seus companheiros
de roda literária: Darci Azambuja, Vargas Neto, Ruben Rosa, Eurico Rodrigues, Rui
Cirne Lima, Pedro Vergara, Luís Vergara. (MEYER, 1966, p. 129)
89
De modo semelhante a Paulo de Gouvêa em O Grupo (ver 4.1, p. 261-3), Augusto
Meyer recorda, além dos companheiros de geração, os jovens conterrâneos que “desfilavam”
pela Rua da Praia nas tardes de sábado: “De geração a geração, ao longo dos anos que vão
passando, naquelas calçadas da Rua da Praia, a menina e moça mudava de carnação e porte,
logo transformada em mulher, e, como as estrelas de cinema, mudava de nome” (1966, p.
132). “Encarnação” do cosmopolitismo europeu e sinônimo de requinte intelectual, a Rua da
Praia exigia de seus freqüentadores indumentária à altura de seu prestígio:
Quem não viu a Rua da Praia aos sábados à tarde, por volta de vinte e tantos, não
sabe o que perdeu como espetáculo, nem conhecerá jamais a província que ainda
caminhava pelo ritmo do século passado [o XIX]. Andávamos então em pleno rigor
do chapéu obrigatório, da bengala, muitas vezes do plastron. (MEYER, 1966, p.
131)
Se a Rua da Praia foi fundamental em sua transformação de menino em homem, a
Avenida Independência, “continuação” da rua famosa, marca o local de seu nascimento, nas
“cercanias da Praça Júlio de Castilhos”, já no bairro Moinhos de Vento:
Nasci na Independência (a casa, que fronteava o Edifício Esplanada, foi demolida
pouco), mas a minha formação desenvolveu-se na Floresta, na Praça da Matriz e na
Rua da Praia. A Praça da Matriz representa para mim todo um período capital,
quando o menino começa a despedir-se da infância e o adolescente caminha ainda
irresoluto ao encontro do homem. (MEYER, 1966, p. 124)
90
A breve referência à casa em que nascera demonstra que, para Meyer, pelo menos na
época em que redigia No tempo da flor (década de 1960), o imóvel, demolido, pouco
significava se comparado a outras casas que marcaram sua juventude, ao rancho de “taquara e
barro” com “teto de santa-fé” do Cerro d’Árvore, à casa da Floresta, com seu vasto quintal de
89
A respeito de Moisés Vellinho, comenta Meyer, no parágrafo anterior: “Suas colaborações, na seção Vida
Literária [do Correio do Povo], escritas numa prosa límpida, revelavam séria vocação para o exercício da crítica.
O equilíbrio, a ponderação, a fina sensibilidade, o espírito sisudo mas temperado pela ironia manifestavam-se em
perfeita consonância, dentro de alguns palmos de coluna. Eu não hei de esquecer o nosso primeiro encontro, na
Livraria do Globo. Disse logo ao autor daqueles artigos a minha admiração. Conversamos, descobrimos
afinidades de leitura: Renan, Anatole France, Machado, Eça.” (MEYER, “Rua da Praia”, No tempo da flor,
1966, p. 128-9)
90
No local onde ficava a casa em que Meyer nasceu se encontra, atualmente, a galeria Moinhos de Vento”,
composta por lojas e salas comerciais. O Edifício Esplanada, resistindo à ação do tempo, “sobrevive” até os dias
de hoje.
345
pomares, árvores e aranhóis, ou ao sobrado da Praça da Matriz, “alugado pelo Velho [Emilio]
Meyer para o seu curso de preparatórios” (1966, p. 124). Ainda assim, quem poderá duvidar
que, tal como no poema de Mario Quintana
91
, a casa de seu nascimento continuasse a existir,
dentro dele, em estado latente, à espera do “milagre” da memória involuntária, como ocorrera
com Pedro Nava, em Baú de ossos, ao relembrar a casa da Rua Aristides Lobo, no Rio de
Janeiro, citada no item anterior (ver 4.2, p. 323)? Esta conhecida cena diz muito sobre a
recuperação acidental dos espaços perdidos, demonstrando que podemos resgatar episódios e
lugares importantes de nossa infância a partir, muitas vezes, de uma simples lâmpada acesa,
capaz de iluminar todo um passado submerso no inconsciente:
Assim, quantas e quantas vezes viajei, primeiro no espaço, depois no tempo, em
minha busca, na de minha rua, na de meu sobrado... Custei a recuperá-lo. Aviltado
pelos anos e reformas sucessivas, recoberto de uma camada de cimento
fosforescente e de mica, que tinha substituído o velho revestimento e o ultramar
da pintura da fachada não havia meios da recordação provocada entregar-me a
velha imagem. Foi preciso o milagre da memória involuntária. Eu tinha ido me
refugiar na rua maternal, tinha parado no lado ímpar, defronte do 106, cuja fachada
despojada esbatia-se na noite escura. Olhando as janelas apagadas. Procurando,
procurando. De repente uma acendeu e os vidros se iluminaram mostrando o
desenho, trinta anos em mim adormecido. Acordou para me atingir em cheio, feito
bala no peito, revelação como aquele raio que alumbrou São Paulo e fê-lo desabar
na Estrada de Damasco. Na superfície fosca, alternavam-se quadrados brilhantes,
cujos cantos se ligavam por riscos que faziam octógonos. Essa luz prestigiosa e
mágica fez renascer a casa do fundo da memória, do tempo; das distâncias das
associações, da lembrança. (NAVA, Baú de ossos, 6 ed, 1983, p. 340-1; grifo do
autor)
91
“Não importa que a tenham demolido: / A gente continua morando na velha casa em que nasceu”
(QUINTANA, “Quem disse que eu me mudei?”, Antologia poética, 1997, p. 121). Em “Liquidação” (Boitempo
I), Carlos Drummond de Andrade sugere que a casa da infância “não tem preço”, pois é “vendida” juntamente
com todas as “impagáveis” e “imponderáveis” lembran
346
Para Antônio Sérgio Bueno, que dedica todo o primeiro capítulo de suas Vísceras da
memória à questão do espaço nas memórias de Pedro Nava, a “casa” é uma “ampliação do
próprio ser do narrador”:
As cidades, os bairros e as ruas são entes legíveis para o sujeito das memórias de
Pedro Nava, que também se deixa ler por eles. Sob o seu olhar esses lugares têm
identidade, são personagens. ‘Há para os quarteirões uma geografia sentimental que
difere da física. Ela é dada pelo caráter de cada canto ou rua da cidade’. Esse caráter
é o resultado de um encontro singular entre a paisagem e o que nela ocorre.
(BUENO, 1997, p. 62)
92
Já na memorialística de Augusto Meyer, em que também há “um encontro singular entre
a paisagem” de Porto Alegre e “o que nela ocorre”, mais do que tentar evocar uma casa que
mal chegara a conhecer, o escritor prefere se deter na reconstituição dos ambientes
mencionados acima (caso do rancho de Segredos da infância ou do sobrado de No tempo da
flor) ou, envolto nas brumas do mistério, do delírio e dos lapsos de memória, inventar casas e
“caminhos interiores” percorridos em imaginação (caso dos poemas em prosa de Literatura e
poesia), uma vez que, acompanhado pelo vento, cuja “voz (...) nas árvores fala de um país que
nunca existiu, longe, com praias selvagens de espuma e luar”, “o homem sabe que todos os
caminhos (...) levam sempre ao caminho de casa” (MEYER, “Caminho de casa”, Literatura e
poesia, 1931, p. 09). Caminho reinventado, na mesma obra, em “Noturno da casa morta”,
onde os passos reais da criança se confundem com as sedutoras imagens oníricas do “realejo
da memória”, e a casa, bem como os “mortos” que habitaram, é finalmente alcançada em
92
O trecho citado por Bueno se encontra no início de Galo das trevas, quando Nava explica que passará a falar
de um certo bairro da Glória propositalmente “idealizado”. Notar a semelhança com a memorialística de Meyer
em expressões como “ilhas” e “geografia sentimental” (em Meyer, “memória sentimental”): “Não na
circunscrição administrativa mas na Glória que me tracei e que comporta duas ilhas limitadas por mares de
outros bairros. Há para os quarteirões uma geografia sentimental que difere da física. Ela é dada pelo caráter de
cada canto ou rua da cidade” (NAVA, 1981, p. 12). Ainda sobre a obra de Antônio Sérgio Bueno, ver também:
“A casa da infância está definitivamente inscrita em nós. É onde vivemos as experiências íntimas mais intensas,
que nos deixam vulneráveis e nostálgicos. A nostalgia vem do fato de que houve um ‘instante perfeito’ que nos
legará para o resto da vida o sentido da palavra falta. Aqueles gestos primeiros permanecem vivos na memória
dos sentidos que registraram as luzes, as sombras e os sons daquela casa” (BUENO, 1997, p. 63; grifo do autor).
Talvez por estar “definitivamente inscrita em nós” é que uma simbiose tão perfeita entre casa e morador, a
ponto de, mplices, ambos envelhecerem e decomporem-se gradativa e simultaneamente: “Ah! longe de mim
maldizer de minha casa. Estou impregnado de suas paredes do seu ar do mesmo modo que ela o está de minha
pessoa, dos desgastes do meu corpo cujos fragmentos ficam pulverizados nos revestimentos, no chão, no teto
cabelos caídos, esfoliações de pele, excretas pelo cano, ar expirado, palavras vivas um instante, gemidos
347
meio a sugestões auditivas (vozes e pianos que reproduzem uma velha canção), visuais (a
claridade que surge do luar e das janelas acesas) e olfativas (perfume de magnólias):
É tarde. Agora é muito tarde, o caminho sumiu. Ouve a casa acordar ao fim da
alameda como a voz da memória no realejo da infância. Janelas rasgam luz crua
entre a folhagem e os galhos avançam, curiosos... dentro... Maria acorda o piano.
De onde vem, de onde vem esta velha canção? (...) É tarde. (...) Vem de mim-
mesmo, do realejo da memória, a mesma na mesma noite, tal e qual como então.
Bebe o perfume das magnólias de jardim alinhadas em moitas na sombra (tal e qual
como então). (...) Pianos, vozes, risos – alguém está no varandim, aspirando a espiral
dos aromas que rastejam fora, e lá fora o luar é claro... Acorda. (...) Um fantasma
ronda a casa iluminada ao fim da alameda, cola a cara na vidraça pra ver se a mesma
gente está lá dentro. E todos se foram. (MEYER, Literatura e poesia, 1931, p. 45-6)
Os caminhos “somem” mas os destinos onde esses caminhos vão dar são reinventados
pela imaginação ou pela memória, e, de fato, a obra de Augusto Meyer possui inúmeras
“paisagens interiores” criadas ou reconstituídas por intermédio de uma dessas duas vias.
Seguindo, também neste aspecto, as pegadas do mestre Marcel Proust, para quem “(...) é tão
fácil embelezar-se as narrativas de um passado do qual já ninguém está a par, como as das
viagens por países aonde ninguém foi” (PROUST, O tempo redescoberto, 1970, p. 206)
93
, a
produção de Meyer, tanto a poética quanto a memorialística, privilegia a invenção de
“paisagens ideais” e a retomada de um “espaço perdido”, praticamente da mesma forma como
ocorre, conforme indica Georges Poulet, em A la recherche du temps perdu. Vimos em 3.2 (p.
176-179) que, para o crítico francês, os lugares são “(...) ilhas no espaço, mônadas, pequenos
universos à parte”, e já que, “sem os lugares, os seres seriam apenas abstrações” (1992, p. 31),
a memória involuntária torna-se imprescindível para a “ressurreição” de Combray e de
Balbec, o que torna os acessos involuntários do narrador uma verdadeira busca do “espaço
perdido”. Nada muito diferente das Memórias de Meyer – sabemos que um novo contato com
o vento da campanha traz de volta o rancho e a várzea do Cerro d’Árvore, a lagoa congelada e
os paradouros, detalhes anteriormente adormecidos nos “desvãos” da memória do autor
94
.
murmúrios resmungos. Só que ela e as outras que habitei vida afora não são mais a casa que deixei e que procuro
para pedir de volta minha infância.” (NAVA, Galo das trevas, 1981, p. 26)
93
Conferir a citação original no item 3.1, p. 143.
94
Em “Sobre cartografias literárias e culturais”, Evelina Hoisel argumenta, baseando-se no trabalho de Fredric
Jameson, que, “(...) se no modernismo as temporalidades foram predominantes” (e a Recherche é “emblemática
348
Para Tania Carvalhal, na obra de Augusto Meyer, a “(...) nostalgia de recuperar um
espaço perdido traduz uma percepção intensamente subjetiva do que o cerca e que obriga tudo
a passar pelo filtro do Eu. As paisagens são interiorizadas e o lírico se identifica com o que
vê” (Augusto Meyer - Letras Rio-grandenses, 8, 1987, p. 16). Esta “busca do espaço perdido”
ocorre preferencialmente na memorialística, característica já mencionada (sobretudo no item
anterior e no início deste), a que voltarei em seguida, após destacar o fato de que a opção por
“terras imaginárias” é comum na poesia do autor, gênero no qual Meyer fixa paradisíacas
“paisagens do desejo”
95
, tão perfeitas que sequer são nomeadas, como em “Querência”,
exemplo do sonho romântico do lugar “sublime”:
Paisagem longa, na ondulação das coxilhas longas... // Debruns de caponenetes... //
Longes... // Oh! linhas suaves, como se houvesse / em cada coxilha uma saudade do
chão / e alvos capões de nuvens muito brancas / no pampa azul de um infinito azul...
(MEYER, Poesias, 1957, p. 43)
Paisagem semelhante àquela estabelecida no “Cerro d’Árvore” de Segredos da infância,
o “infinito azul” sonhado pelo poeta é responsável por uma felicidade e uma paz de espírito
maiores do que as sentidas pelo menino que vivia no rancho, pois não há, no poema, o medo
causado pela passagem do minuano nem a insegurança pela ausência da mãe. Outra paisagem
idealizada em versos é a “várzea ao sol” que aparece no primeiro capítulo de Segredos da
infânciase na memorialística Meyer se decepciona ao descobrir que a lagoa congelada é, na
verdade, água de chuva (ver 4.2, p. 310), em “Distância” a fascinação é absoluta, apesar das
cismas:
uma várzea no meu sonho, / Mas não sei onde será... / Em vão, cismando,
transponho / Coxilhas enluaradas, / Cristas de serrilhadas, / Solidões do Caverá. //
Leito de trevo e flechilha, / Várzea azul, da luz da lua. / Verde várzea,onde será? /
No ar da tarde flutua / Fino aroma de espinilho / E de flor de maricá. // Era além do
azul da serra, / Era sempre noutra terra, / Era do lado de lá... / Em vão, cismando,
transponho / Poentes e madrugadas, / Intermináveis estradas / Perdidas ao deus-dará.
dessa tematização do tempo”), “(...) o pós-modernismo produz-se dando ênfase aos espaços” (2004, p. 152-3).
De certa forma, Augusto Meyer antecipa, portanto, esta característica pós-moderna, fazendo a “experiência do
espaço” reconfigurado (Cerro d’Árvore, Porto Alegre antigo).
95
Expressão criada por Maria Luiza Berwanger da Silva em Paisagens reinventadas Traços franceses no
Simbolismo sul-rio-grandense, presente em diversos capítulos da tese (ver “Compondo a paisagem do desejo”,
1999, p. 19-28; “A paisagem do desejo”, p. 125-136; e “A paisagem do desejo e o Simbolismo sul-rio-
grandense”, p. 137-228).
349
// uma várzea no meu sonho, / Mas não sei onde será. (MEYER, Poesias, 1957,
p. 265)
Em Literatura e poesia, o escritor apela para a reprodução de um locus amenus
espetacular, contemplado por uma “tarde” tão “gloriosa” que, análoga a um momento mágico
da infância, é como se não pertencesse a este mundo, situando-se em um entre-lugar que,
também “perdido ao deus-dará” e sem que saibamos ao certo “onde será”, vale a pena
freqüentar:
Para definir aquela tarde, mesmo empregando um anglicismo: (...) Que dia
glorioso! (...) Uma tarde azul feita para se olhar nas águas, refletir nas janelas, era
como se a gente esperasse de novo a infância perdida brincando de roda num campo
aberto, obrigava a pensar em crianças tomando banho num arroio, em cochilhas
corcoveando ao sol, em flores cortadas, agorinha mesmo no jardim intacto, em
moças que vão botar o vestido novo para receber a carícia viril da luz... (MEYER,
“Entre o céu e a terra”, Literatura e poesia, 1931, p. 69)
Quem percebeu bem a capacidade de Augusto Meyer de “inventar”, a partir de suas
recordações da infância, as paisagens nas quais ambientará seus mais excêntricos sonhos de
poeta, foi o conterrâneo João Pinto da Silva, que, em Vultos do meu caminho, assinala que
Esse homem ruivo, que trai sua germânica origem mais ainda na fisionomia do que
no sobrenome, nascido e criado na cidade, entre as estantes da sua biblioteca,
interpreta com exemplar fidelidade a angústia, as paisagens, a alegria, a aleluia
primaveril dos campos e coxilhas. A sua curiosidade, de tão inteligente e aguda, em
face de certos motivos regionais, chega a ter o dom de adivinhar. Ele vive, assim,
por instantes, em lugares onde nunca esteve e de nos traz, paradoxalmente, flores
e frutos que colheu... (SILVA, 1926, p. 191-2)
O próprio Augusto Meyer tem plena consciência da posição que ocupam, em sua obra,
estas terras imaginárias que se perdem “no Passo do Não-Sei-Onde” (“Na Praça da Matriz”,
1949, p. 74; ver citação à página 330). No “Posfácio” que escreveu para a segunda edição de
Segredos da infância (reproduzido no volume definitivo de suas Memórias, em 1997), Meyer
convida Dudu e Fandango, os dois “negrinhos” com os quais pretende se desculpar pelas
“brincadeiras” de “senhor e escravo” feitas “no quintal da velha casa do Caminho Novo”
96
,
96
Caminho Novo”: forma pela qual era conhecida, antigamente, a Rua Voluntários da Pátria, situada entre o
bairro Navegantes e o centro de Porto Alegre. É interessante notar que, assim como Proust (Swann e
Guermantes), Meyer também conheceu bem dois “caminhos novos” o de Porto Alegre, ligando o bairro ao
centro, percorrido quando criança; e o de Botafogo, no Rio de Janeiro, “entre Senador Vergueiro e Marquês de
Abrantes”, onde, “criando musgo”, o memorialista envelhecera (ver epígrafe deste item, p. 326). Lembremos
que, coincidentemente, Pedro Nava também possui o seu “caminho novo”, onde nasceu e cresceu: “Eu sou um
pobre homem do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais. Se não exatamente da picada de Garcia
350
para um inusitado encontro em Xanadu, terra retratada por Colerigde em poema sobre as
peripécias do imperador mongol Kublai Khan:
Dudu e Fandango, se vocês tiverem tempo e jeito de crescer, não se esqueçam de
marcar encontro comigo em Xanadu, para um bate-papo interminável e a
reconciliação definitiva. Por esta luz que me alumia, quem brincava de surrar
escravo não era eu, Dudu, sei lá quem era, Fandango... (...) E os portões desta
chácara estão sempre abertos: é Xanadu. (...) Xanadu é lugar especialmente
escolhido para o Congresso dos Aluados, em homenagem ao seu fundador, o poeta
Coleridge, que, segundo o azedo Carlyle, era fabricante de luar engarrafado: In
Xanadu did Kubla Khan / A stately pleasure dome decree... (MEYER, “Posfácio”,
1997, p. 88-9; grifo do autor)
97
Sede de um “congresso” democrático de “aluados” (com os “portões” “abertos” a
todos), seria esta segunda “Xanadu” a metáfora escolhida por Meyer como síntese da
paisagem edênica em que se congraçariam as mais caras recordações do Cerro, do Porto
Alegre provinciano e da “Guaíbanabara”, terra mágica que testemunhará a “ressurreição” de
Dudu e Fandango para juntos participarem das delícias de um pays de tendre em que não
espinhos, “flor”? Augusto Meyer incita todos os poetas, artistas e demais “aluados” a
celebrarem as “atrações” de Xanadu como “convidados de honra”, a começar pelo escritor
romântico Clemens Brentano que, quando criança, teria “inventado” uma cidade que na
verdade já existia:
Convocaremos todas as criaturas que ficaram sobrando neste mundo e jamais
aprenderam a entrar na pauta. Ao toque mágico desse nome, começaram a chegar
os convidados de honra. está, por exemplo, Clemens Brentano, cada vez mais
Rodrigues, ao menos da variante aberta pelo velho Halfeld e que, na sua travessia pelo arraial do Paraibuna,
tomou o nome de Rua Principal e ficou sendo depois a Rua Direita da Cidade do Juiz de Fora.” (NAVA, Baú de
ossos, 6 ed, 1983, p. 19)
97
Eis a estrofe inteira, que abre o poema de Coleridge: “In Xanadu did Kubla Khan / A stately pleasure-dome
decree: / Where Alph, the sacred river, ran / Through caverns measureless to man / Down to a sunless sea. / So
twice five miles of fertile ground / With walls and towers were girdled round: / And there were gardens bright
with sinuous rills, / Where blossomed many an incense-bearing tree; / And here were forests ancient as the hills,
/ Enfolding sunny spots of greenery” (COLERIGDE, “Kubla Khan”, in The golden treasury of the best songs &
lyrical poems, 1961, p. 267). Em As cidades invisíveis, de Italo Calvino (obra mencionada em 2.1, à p. 44),
Marco Polo expõe a Kublai Khan as excentricidades das cidades por onde passou, despertando no imperador
curiosidade e interesse, apesar da inverossimilhança do relato: “Não se sabe se Kublai Khan acredita em tudo o
que diz Marco Polo quando este lhe descreve as cidades visitadas em suas missões diplomáticas, mas o
imperador dos tártaros certamente continua a ouvir o jovem veneziano com maior curiosidade e atenção do que a
qualquer outro de seus enviados ou exploradores” (CALVINO, 1990, p. 09). Termômetros das relações “entre as
medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado” (1990, p. 14), são inúmeras as cidades imaginárias
(“invisíveis”) descritas por Marco Polo, a grande maioria possuindo nomes femininos, tais como: Diomira;
Dorotéia; Anastácia; Ipásia; Armila; Esmeraldina e outras dezenas, com destaque para Zora, a cidade que “quem
viu uma vez nunca mais consegue esquecer”, pois tem a “propriedade de permanecer na memória ponto por
ponto, na sucessão das ruas e das casas ao longo das ruas e das portas e janelas das casas, apesar de não
demonstrar particular beleza ou raridade.” (CALVINO, 1990, p. 19)
351
irresponsável e encantador. Quando criança, inventou para seu uso o Reino de
Vaduz, e quase morreu de goa ao descobrir que nome e lugar existiam de fato no
mapa; Vaduz consulte a geografia era a capital do Principado de Liechtenstein.
Mas a mãe do grande Goethe, que deixava o filho a perder de vista na arte de contar
histórias, solicitamente o consolou, mostrando que o seu Vaduz era inalienável e
mais duradouro que o outro, por não caber neste mundo. (MEYER, “Posfácio”,
1997, p. 89)
98
Meyer convida Brentano, “criador” do “inalienável” e “duradouro” Vaduz, mas se
esquece de chamar outro “aluado” capaz de reinventar um verdadeiro “país das delícias”:
Manuel Bandeira, “habitante” de Pasárgada, lugar “mais-que-perfeito” para o qual todos
fugiriam com a intenção de se livrar de problemas mesquinhos e de existências banais, cidade
imortalizada em um dos mais belos e conhecidos poemas da literatura brasileira:
Vou-me embora pra Pasárgada / sou amigo do rei / tenho a mulher que eu
quero / Na cama que escolherei / Vou-me embora pra Pasárgada // (...) Em
Pasárgada tem tudo / É outra civilização / Tem um processo seguro / De impedir a
concepção / Tem telefone automático / Tem alcalóide à vontade / Tem prostitutas
bonitas / Para a gente namorar // E quando eu estive mais triste / Mas triste de não
ter jeito / Quando de noite me der / Vontade de me matar / – Lá sou amigo do rei – /
Terei a mulher que eu quero / Na cama que escolherei / Vou-me embora pra
Pasárgada. (BANDEIRA, “Vou-me embora pra Pasárgada”, Estrela da vida inteira,
1983, p. 117-8)
Em Itinerário de Pasárgada, a explicação da origem da expressão surge em um prefácio
sugestivamente intitulado “Biografia de Pasárgada”, no qual Bandeira confessa que, mesmo
antes da materialização da idéia em poema, ele já vivia, sonhava e respirava os ares do lugar:
Quando eu tinha os meus quinze anos e traduzia na classe de grego do Pedro II a
Ciropédia fiquei encantado com esse nome de uma cidadezinha fundada por Ciro, o
Antigo, nas montanhas do sul da Pérsia, para passar os verões. A minha
imaginação de adolescente começou a trabalhar, e eu vi Pasárgada e vivi durante
alguns anos em Pasárgada. (BANDEIRA, Itinerário de Pasárgada, 1967, p. 31)
Já “vivendo” o escritor com o pensamento voltado para Pasárgada (e a cidade “vivendo”
nele), o poema se constrói involuntariamente, desabrochando com a liberdade e a naturalidade
de algo que, remetendo às reminiscências da infância, funciona como compensação às
98
Assim como Goethe (1749-1832), Clemens Brentano (1778-1842) também pertence à passagem do século
XVIII para o XIX, tendo sido um dos fundadores da escola romântica de Heidelberg (2ª fase do Romantismo
alemão). Brentano, que valorizava o estudo da história e do folclore, organizou uma coletânea de canções
populares germânicas intitulada A maravilhosa trompa do menino, iniciativa que o aproxima de Meyer, autor de
um trabalho semelhante a respeito do nosso cancioneiro popular. (ver Cancioneiro gaúcho, Porto Alegre, Globo,
1952)
352
terríveis limitações físicas do poeta, trágico escapismo que faz com que atividades simples
pareçam heróicos exemplos de bravura:
Não construí o poema; ele construiu-se em mim nos recessos do subconsciente,
utilizando as reminiscências da infância as histórias que Rosa, a minha ama-seca
mulata, me contava, o sonho jamais realizado de uma bicicleta, etc. O quase inválido
que eu era ainda por volta de 1926 imaginava em Pasárgada o exercício de todas as
atividades que a doença me impedia: ‘E como eu farei ginástica... tomarei banhos de
mar!’ A esse aspecto Pasárgada é ‘toda uma vida que podia ter sido e que não foi’.
(BANDEIRA, 1967, p. 31)
99
Vemos, assim, que a opção pelo estabelecimento de “paisagens interiores” ricas e
sublimes é uma tônica dos primeiros modernistas Augusto Meyer, Manuel Bandeira e
Oswald de Andrade utilizam-nas para caracterizar um sentimento de evasão típico de quem vê
na poesia moderna uma forma de afirmar uma nova realidade espacial no plano físico mas
também, e sobretudo, no plano da linguagem. Carlos Drummond de Andrade sintetiza
perfeitamente esta orientação ao criar, em As impurezas do branco, a idéia de uma paisagem
simultaneamente compatível com a memória (“paisagem retrospectiva”) e com a imaginação
(paisagem composta por “pensamento da paisagem”), “ruminação” que nos habita e da qual
somos o pasto, “paisagem” da própria “paisagem”:
Esta paisagem? Não existe. Existe espaço / vacante, a semear / de paisagem
retrospectiva // (...) Paisagem, país / feito de pensamento da paisagem, / na criativa
distância espacitempo, / à margem de gravuras, documentos, / quando as coisas
existem com violência / mais do que existimos: nos povoam / e nos olham, nos
fixam. Contemplados / submissos, delas somos pasto, / somos a paisagem da
paisagem. (ANDRADE, “Paisagem: como se faz”, Poesia completa, 2002, p. 730-
1)
100
99
Manuel Bandeira alude à seguinte estrofe de seu poema: “E como farei ginástica / Andarei de bicicleta /
Montarei em burro brabo / Subirei no pau-de-sebo / Tomarei banhos de mar! / E quando estiver cansado / Deito
na beira do rio / Mando chamar a mãe-d’água / Pra me contar as histórias / Que no tempo de eu menino / Rosa
vinha me contar / Vou-me embora pra Pasárgada” (BANDEIRA, Estrela da vida inteira, 1983, p. 117). Já o
último verso citado está em “Pneumotórax”, que se inicia assim: “Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos. /
A vida inteira que podia ter sido e que não foi. / Tosse, tosse, tosse.” (BANDEIRA, 1983, p. 97). Além de
Pasárgada, Bandeira freqüentava outras “terras imaginárias”, como aquelas às quais se refere em “Testamento”:
”Vi terras da minha terra. / Por outras terras andei. / Mas o que ficou marcado / No meu olhar fatigado, foram
terras que inventei” (BANDEIRA, 1983, p. 158); Oswald de Andrade também: “Ah! Meu Brasil! Meu Brasil! /
Eu já morei foragido / Numa casa rota / Que dava para o mar / Já morei no Normandy de Deauville / E num
navio de guerra / E nas ruas e nos portos / Das terras mais imaginárias (...)”. (ANDRADE, “Hino Nacional do
Pati do Alferes”, Primeiro caderno de poesia do aluno Oswald de Andrade, 1994, 2 ed, p. 37)
100
Ver também, na terceira estrofe do poema, a bela imagem criada por Drummond, a sugerir que nossa visão
“fotografa” com antecedência as paisagens a serem posteriormente fixadas pela memória: “Por enquanto o ver
não vê; o ver recolhe / fibrilhas de caminho, de horizonte, / e nem percebe que as recolhe / para um dia tecer
tapeçarias / que são fotografias / de impercebida terra visitada.” (ANDRADE, 2002, p. 730)
353
Se as paisagens “interiores” são feitas de “pensamento da paisagem”, então é possível
cantar terras jamais visitadas (“É preciso fazer um poema sobre a Bahia... / Mas eu nunca fui
lá”, ANDRADE, “Lanterna mágica”, Poesia completa, 2002, p. 13) ou antigas fazendas de
sua família: “Serro Verde Serro Azul / As duas fazendas de meu pai / aonde nunca fui /
Miragens tão próximas / pronunciar os nomes / era tocá-las”. (ANDRADE, “Memória”,
Poesia completa, p. 459)
Todos estes exemplos citados acima, de Meyer, Bandeira, Oswald e Drummond,
354
Expressão de um “jogo de imagens espaciais” concretas e abstratas, além de “brumosa”,
como na crônica em que Augusto Meyer confessa a sensação de ter vivido em lugares
inexistentes, “países” da “memória perdida”
102
, a paisagem poética reinventada não é tão
“restrita” quanto a original, estando esta presa a um limite histórico e geográfico dos quais
não consegue escapar, a não ser justamente através da expansão dos “horizontes” de um
pensamento “andarilho” que, conhecendo “pátrias pitorescas”, tem a coragem de abdicar das
cômodas paisagens “terrenas”, como nos versos da “Tarde oculta no tempo” de Jorge de
Lima:
O andarilho sem destino reparou então / que seus sapatos tinham a poeira indiferente
/ de todas as pátrias pitorescas; (...) E o andarilho sem destino viu / que não conhecia
a Tarde que está oculta no tempo / sem paisagens terrenas, sem turismos, sem povos,
/ mas com a vastidão infinita onde os horizontes / são as nuvens que fogem. (LIMA,
Tempo e eternidade, 1935, p. 25)
Devido à importância destas “paisagens absolutas” para a composição de uma “poética
do espaço” tão ao gosto dos poetas modernistas, é que Jorge de Lima irá prestar sua
homenagem à G.W.B.R. (“Great Western of Brazil Railway”), a estrada-de-ferro “mestra de
paisagem” que, ligando Alagoas à Bahia, permitia ao escritor sonhar com uma vida diferente
daquela que levava no sertão nordestino:
Devo fazer um poema em louvor dessa estrada, / com todos os bemóis de minha
alma lírica, / porque ela, na minha inocência de menino, / foi a minha primeira
mestra de paisagem. / Ah! a paisagem da linha: / uma casinha branca, / uma
cabocla à janela, / um pedaço de mata, / as montanhas, / o rio, / e as manhãs, / e os
crepúsculos... / e o meu trenzinho romântico indo devagarinho / para que o poeta
provinciano / visse o cair da tarde, / e visse a paisagem passando... (LIMA,
“G.W.B.R.”, Poemas, 2004, p. 51-2)
Estes poetas e memorialistas brasileiros parecem se sentir à vontade na “paisagem
absoluta” que criam apenas quando a visão a respeito da própria obra (ou do próprio passado)
está suficientemente amadurecida, a ponto de se moverem, neste ambiente simbólico, com
(...) a esplêndida certeza de nunca poder partir no bom sentido da palavra sair de si mesmo, abandonar-se,
encontrando-se ‘outro’ numa luz nova, numa terra que não conste da geografia. (...) As viagens são interiores.
Mas não adianta nada saber que elas são interiores. Partir. Aventura. Invitation. Mon enfant, ma soeur...”
(MEYER, “Invitation au voyage”, 06.06.1930)
102
Ver “A culpa é de Reinaldo Hahn” (MEYER, Correio do Povo, 11.09.1930), comentada no item 3.3 (p. 200-
1).
355
a mesma desenvoltura com que transitavam, na infância, pela “paisagem terrena” original.
Isso está bem claro no volume A idade do serrote, de Murilo Mendes, onde à limitação na
experiência temporal corresponde uma similar “limitação” espacial (tanto no plano
topográfico, de exploração da cidade, quanto no descritivo, que não para recordar o que
não se conhece). Elisabet Gonçalves Moreira observa que as memórias de Murilo
(...) estão circunscritas num espaço preciso e delimitado: Juiz de Fora até o Morro do
Imperador, constantemente citado. A justificativa parece coerente: as descrições
singulares e observações demasiadamente precoces têm uma gica ‘espacial’, se
assim podemos chamar: ‘Escapando-nos o mar, oprimindo-nos a montanha relativa,
a gente se vinga com um desafio maior do cotidiano; a cidade pequena, ao mesmo
tempo que nos circunscreve, propõe-nos um treino mais intenso dos sentidos e da
imaginação. Evadimos da realidade transfigurando-a’. (MOREIRA, “Murilo
Mendes: a memória além dos limites da prosa”, 1991, v. 2, p. 229)
103
Estão circunscritas aos limites de certo morro de Juiz de Fora mas foram escritas em
Roma, por alguém que, na infância, cogitava ir à China a cavalo
104
, o que prova que, para as
reconstituições mnemônicas (verdadeiros mergulhos no inconsciente e na
extratemporalidade), a distância entre o “eu” da infância e o espaço que ele ocupou é tão
essencial quanto a que existe entre o “eu” de então e o “eu” da escritura. Ou seja, para se ter
uma noção exata daquilo que será evocado torna-se necessário ver “de fora” e “de longe”, em
tempo e espaço. Ao falar da relação entre os escritores mineiros e seu “apego” ao estado natal,
Humberto Werneck nota que, em muitos casos, a questão é compreendida com mais
profundidade por aqueles, tais como Drummond, Nava e Mendes, que discorrem sobre o lugar
estando “longe”, isto é, a partir da posição de “observadores” distanciados, quase
“imparciais”, e não como “protagonistas” “atuantes” e fisicamente envolvidos.
quem diga (...) que Minas se melhor à distância – como a viu Pedro Nava em
suas portentosas memórias, escritas num velho apartamento da rua da Glória, no
Rio. Ou o poeta Murilo Mendes, nas reminiscências em prosa de A idade do serrote,
destiladas ainda mais longe, na sua casa da via del Consolato, em Roma. Para não
falar em João Guimarães Rosa, reconstruindo grandes sertões pelo mundo afora, nos
meandros de sua carreira diplomática. (WERNECK, O desatino da rapaziada, 1992,
p. 186)
103
A passagem mencionada pela autora se encontra no capítulo “Florinda e Florentina”, MENDES, Murilo, A
idade do serrote, 1968, p. 95-6.
104
“O grande sonho: ir do Brasil à China a cavalo” (MENDES, Murilo, Origem, memória, contato, iniciação”,
A idade do serrote, 1968, p. 08)
356
Em suas Memórias, Augusto Meyer também “viu” Porto Alegre à distância, de sua casa
em Botafogo, no Rio de Janeiro. Sugestivo ciclo: a cidade que o acolheu e na qual recriou
seus paradigmas espaciais (a várzea e a Rua da Praia, a Praça da Matriz e o Guaíba), é a
mesma que, em seus “sonhos de guri”, aparecia-lhe, sob a forma de cartões postais enviados
pelo pai, como o “país das maravilhas”, digno de um cenário de As mil e uma noites e
destinado a compor, em sua mente exageradamente fantasiosa, povoada de “bolhas de sabão”,
o mesmo papel que a excêntrica e utópica Babilônia de Hamurabi e Nabucodonosor:
O meu namoro com esta enseada [Botafogo] começou muitos anos, no tempo do
era uma vez. Era uma vez um menino cheio de bolhas de sabão na cabeça e uns
cartões postais selados o retrato de Pedro Álvares Cabral, que o pai lhe mandava de
uma distante babilônia chamada Rio de Janeiro, com recomendações de bom
comportamento e aplicação nos estudos, prometendo um prêmio, ao regressar pelo
Itapuca. Lembro-me bem do Itapuca, sulcando os mares ovante, num dos cartões da
mesma série. Quando, mais tarde, em viagem para cá, mostraram-me o legítimo
Itapuca atracado ao cais de Santos, pareceu-me um vaporzinho de mentira: não
agüentaria as maretas que eu provocava no tanque de casa, para obrigar o meu
dreadnought, o Minas Gerais, a lutar com o temporal desencadeado, quebrando um
pouco a rotina do seu cruzeiro circular, movido a corda. (MEYER, “A casa de
Rubião”, A forma secreta, 4 ed, 1981, p. 45; grifo do autor)
Considerados os diferentes padrões temporais e espaciais dos quais nos valemos na
infância, é fácil compreender que, aos olhos de um menino que futuramente se dedicaria a
“encher de brisa o saco roto das cismas” (MEYER, “Carta aos meus bisavós”, 1997, p. 13), o
Rio de Janeiro é tão remoto quanto a Babilônia, assim como para Murilo Mendes a vizinha
Leopoldina parecia pertencer aos domínios da China ou da Síria:
Meu tio habituou-se (...) a viver praticamente dentro de uma barca amarrada a uma
árvore, no rio que passava defronte à casa avoenga, para os lados de Leopoldina.
(Leopoldina era para mim qualquer coisa tão distante como Pequim ou Damasco).
(MENDES, A idade do serrote, 1968, p. 92)
Além desta espacialização diferenciada, é muito comum o fato de o lugar ser
valorizado, quer pela criança, quer pelo adulto que a relembra, pelo conhecimento “afetivo”
do lugar amado, em detrimento da informação “oficial” a seu respeito ao tratar da Rua da
Praia, Augusto Meyer importa-se em defini-la como parte da “topografia sentimental da
cidade”, a merecer uma “crônica minuciosa” composta por algum habitante “dado às letras e à
357
saudade” (No tempo da flor, 1966, p. 123). Murilo Mendes também despreza os registros
burocráticos, referindo-se de maneira depreciativa a tais formalidades:
Nasci oficialmente em Juiz de Fora. Quanto à data do mês e ano, isto é da
competência do registro civil. Não me vi nascer, não me recordo de nada que se
passou naquele tempo. Na verdade, nascemos a posteriori. No mínimo uns dois anos
depois. Mesmo porque, antes era o dilúvio. (MENDES, A idade do serrote, 1968, p.
08)
105
Por isso, Murilo Mendes prefere descrever uma importante rua de Juiz de Fora, a Rua
Halfeld, “sem situá-la no espaço”, mas fixando gratas recordações de pessoas e de
estabelecimentos comerciais de ambos os lados da rua:
Escrevo sobre a rua Halfeld sem situá-la no espaço, ocupando-me somente com as
pessoas que a percorrem. Nada a fazer: assim sou eu, ponho sempre em primeiro
plano o homem e a mulher. Direi entretanto que a rua Halfeld é uma reta muito
comprida, começando às margens do Paraibuna e terminando além da Academia de
Comércio. Nos dois lados levantam-se casas, sobressaindo, pelo menos no meu
tempo de menino, a Livraria Editora Dias Cardoso, uma das minhas delícias de
então; e a Casa da América, sortida com uma infinidade de objetos e instrumentos de
toda espécie; delícia e terror, pois entre eles torqueses, serrotes, martelos, tenazes,
tesouras, alicates. (MENDES, A idade do serrote, 1968, p. 144)
Nos parágrafos iniciais de Baú de ossos, Pedro Nava, relembrando a mesma Juiz de
Fora de Murilo (o “Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais”), descreve “os dois mundos”
da Rua Direita (“o rumo do mato dentro, da subida da Mantiqueira” e a direção do oceano
afora, serra do Mar abaixo”, 1983, p. 19-20) e as “duas margens” da Rua Halfeld,
estabelecendo nesta, qual Marcel dividido entre Swann e Guermantes, duas diferentes
“direções”, que se materializam em dois tipos distintos de inclinação política, religiosa e
ideológica: a margem direita, “conservadora”, “devota” e “governista”; e a esquerda,
“revolucionária”, “irreverente” e “oposicionista”. (NAVA, 6 ed, 1983, p. 23)
Augusto Meyer também “hesitou” entre as duas direções do “seu” “Caminho Novo”
qual delas seguir definitivamente, a que sai do centro de Porto Alegre e, passando pelo bairro
Navegantes, chega à estrada que o levará a São Leopoldo, à Feitoria Velha, ao Cerro (o
105
Reação semelhante teve Humberto de Campos ao descrever suas impressões sobre Miritiba, a pequena cidade
maranhense na qual nasceu e que hoje leva seu nome: “Faltam-me elementos históricos e geográficos para
escrever sobre a pequena vila em que nasci. Sei, apenas, que foi uma antiga aldeia de índios, mas ignoro a data e,
mesmo, o século em que a Civilização começou a penetrá-la.” (CAMPOS, Memórias, São Paulo, W.M. Jackson
Editores, 1958, v. 17, p. 41)
358
“caminho de volta”, do “adulto” à “criança”, senda que despreza obrigações, regras e
disciplinas e encontra o natural, o lírico, o imprevisto das férias e dos retiros)? Ou a direção
oposta, a que parte do bairro e, passando pelos cafés, livrarias e pontos de prostituição, chega
à Rua da Praia e à Praça da Matriz (o “caminho” que vai do “rural simplório” ao “urbano
intelectualizado e sofisticado”)?
Sabemos que as atividades de Augusto Meyer como diretor de biblioteca, escritor,
acadêmico, professor, etc, impediam que ele vivesse longe de grandes capitais como Porto
Alegre e Rio de Janeiro, ou mesmo de cidades como Hamburgo, Bonn e Milão, onde
eventualmente desenvolvia trabalhos acadêmicos ou literários. Mas se ele não pôde estar
fisicamente presente nos amados campos do interior do Rio Grande do Sul, sua obra
representa um dos mais incríveis cantos de louvor ao vento e às várzeas, coxilhas e arroios
que caracterizam a paisagem dos pampas gaúchos. Refiro-me sim à poesia de Meyer, em
parte voltada à reconfiguração dos lugares freqüentados e das reminiscências sugestionadas
pelos sentidos (ver no Anexo II, p. 495-502, poemas como Flor de maricá”, “Sombra verde”
e “Distância”), mas falo sobretudo da obra memorialística, na qual, mais do que resgatar
eventuais lembranças fugidias, Meyer fixa na imagem da campanha gaúcha do Cerro
d’Árvore a “imagem inaugural” (e a mais essencial, porque a partir dela surgem todas as
outras) de seu “arquipélago” de recordações perdidas no tempo e recuperadas pela memória
involuntária.
Para Tania Carvalhal, esta “imagem inaugural” do memorialismo de Augusto Meyer,
refeita “(...) mais pela fantasia e pela memória lírica do que pela experiência continuada” (A
evidência mascarada, 1984, p. 167), encontra-se no seguinte parágrafo de “Cerro d’Árvore”:
“Estou vendo o nosso rancho, construído no alto de uma coxilha, a taquara e barro, com teto
de santa-fé. Abrem-se e ondulam, no fundo da memória, os horizontes de coxilhões, com
maravilhosos crepúsculos e um sol enorme, inundando os campos” (MEYER, 1949, p. 13-4).
359
O rancho no alto da coxilha, o vento açoitando o rancho, crepúsculos cobrindo o campo
aberto eis as primeiras imagens retidas na memória de Meyer, imagens cuja recuperação,
acidentalmente sugestionada pelo vento, “coincide com uma busca de raízes, a necessidade de
descobrir-se situado num ponto fixo, integrado com a terra” (CARVALHAL, 1984, p. 167).
Em 1935, o próprio Augusto Meyer anunciava: “O horizonte aberto é o fundo natural em
que se movimenta a minha primeira memória”. (“A criança e o homem”, Correio do Povo,
18.08.1935)
Meyer buscou realmente “integrar-se com a terra” e sentir-se “arraigado”, “adaptado”
ao solo amado, como demonstra nos versos de “Sombra verde”: “Volúpia de gozar as
sensações, / de sentir junto a mim o coração da terra, / no seu trabalho milenário e silencioso, /
como se eu fosse longamente uma raiz profunda...” (MEYER, Poesias, 1957, p. 30). “Raiz
profunda” a sentir a pulsação do “coração” da terra gaúcha, ele insiste na caracterização
onírica e extratemporal de uma várzea de sonhos” que, sempre “distante” e “do lado de lá”,
ninguém sabe ao certo “onde será” (“Distância”, 1957, p. 265), uma várzea “imensa” e “toda
fulguração”, invariavelmente localizada na “ilha” que, recortada “no mar do tempo e do
espaço” (“A ilha flutuante”, 1956, p. 127), não fixa “data, nome ou acontecimento”, mas
oferece ao memorialista a possibilidade redentora de recuperação dos espaços antes perdidos
e esquecidos.
À semelhança dos jardins, canteiros e igrejas de Combray ressuscitadas por Marcel,
praticamente todos os memorialistas proustianos brasileiros utilizaram suas obras poéticas ou
memorialísticas como expedientes para a “reconstituição” nostalgicamente idealizada da
“cidade da infância”: é dessa maneira que Murilo Mendes e Pedro Nava resgatam Juiz de
Fora, Drummond reconfigura Itabira, Cyro dos Anjos reconstrói Montes Claros, Augusto
Meyer relembra Porto Alegre, e assim por diante. Contudo, Meyer faz mais do que apenas
reconstituir a lembrança de Porto Alegre: partindo da “várzea ao sol” e do rancho de taquara e
360
361
4.4 RESGATANDO A UNIDADE DO EU: DO MENINO E MOÇO AO HOMEM
VIAGEM EM TEMPESPAÇO DE TICO-FOGUINHO-AUG-BILU-MEYER
“A vitrina rutilante entrou no espelho, / meu cigarro
apaga-acende que nem eu. / We are such stuff as dreams
are made on: / me belisco pra ver se eu sou eu...”
(Augusto Meyer, “Noturno porto-alegrense”, Poesias,
1957, p. 187)
“Augusto Meyer, porcelana / que deixa filtrar o
crepúsculo: / o coração é flor ou músculo?”
(Carlos Drummond de Andrade, “Na escada rolante”,
Poesia completa, 2002, p. 643)
No começo havia o menino Tico, o sardento tímido que, embalado pelo minuano,
ansiava por cinema, férias no interior e aventuras românticas à la Dumas e Alencar. No fim, o
maduro Augusto Meyer revivendo Augs e Foguinhos e recriando a si através da memória, da
introspecção e da investigação ontológica e genealógica. Entre a criança e o velho, a decepção
do atormentado Foguinho, as descobertas artísticas e literárias do jovem Aug e a filosofia
irônica do iconoclasta Bilu, os outros “eus” de Meyer, não os “trezentos e cinqüenta” de
Mário de Andrade
106
, mas em todo caso muitos, sem contar os “eus de fora”, isto é, os
parentes evocados liricamente que participam da história reconstituída, fornecendo ao
memorialista a chave de sua autocompreensão como sendo apenas uma pequena peça da
engrenagem familiar e social envolvida na aculturação do imigrante europeu às terras
tropicais, “pequena peça” em termos de quantidade mas não de importância, pois, eternizando
uma história a de seus antepassados que desaguará em sua própria vivência e com a qual
se identificará com extrema resignação poética, Augusto Meyer, em tom épico, sobrevaloriza
a “aventura” avoenga e a glorifica, reinventando a si próprio e buscando se aprofundar na
reconstituição de certa unidade pessoal e familiar anteriormente perdida.
A glorificação dos antepassados não poderia ter vindo em melhor estilo e de modo mais
comovente que por intermédio da “carta-confissão” que destina aos bisavós maternos, leitores
106
“Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinqüenta, / Mas um dia afinal eu toparei comigo... / Tenhamos paciência,
andorinhas curtas, / o esquecimento é que condensa, / E então minha alma servirá de abrigo.” (ANDRADE,
“Eu sou trezentos...”, Remate de males. In: De Paulicéia desvairada a Café – Poesias completas, 1986, p. 165)
362
“póstumos” que certamente se encantariam com as destemidas expansões da pena de um
orgulhoso “neto de farroupilha”. No trecho final da “Carta aos meus bisavós” (1997, p. 11-4;
conferir a carta, na íntegra, entre as páginas 483 e 485 do Anexo I), Augusto Meyer sente-se à
vontade para confessar, ao bisavô Felipe Klinger, morto na Guerra dos Farrapos, e à bisavó
Maria, corajosa viúva que enfrentara as “autoridades” da capital para reclamar a posse oficial
de sua terra, a admiração e o reconhecimento pelos atos de bravura nutridos por um
descendente que, livre das “cifras e dos dividendos” e contemplado com o “dom” da escrita,
pôde assumir aberta e orgulhosamente o destino superior que lhe coube de reproduzir, através
da imaginação e da narrativa alheia, a incrível saga destes humildes guerreiros de corpo e
alma:
Truncada assim, sacrificada aos ideais da guerra grande, a tua vida, meu bisavô,
renasce com toques de lenda na imaginação; fosses tu apenas um dos tantos colonos
enriquecidos, fundadores de gordas firmas, futuras indústrias, e teria sido outra a
história do teu bisneto; em vez de encher de brisa o saco roto das cismas, andaria às
voltas com cifras e dividendos. Perdeu-se um grande industrial, não haja dúvida
alguma. Do teu fracasso, em compensação, resulta um neto de Farroupilha. (...) E
me sinto mais nobre assim, magro marquês da quimera, sem títulos, prosápia,
linhagem a atravancar-me o passado. (MEYER, “Carta aos meus bisavós”, 1997, p.
13)
O “orgulho farroupilha da guerra contra o inimigo “exterior” de Felipe (os
“caramurus”) contamina o bisneto e o motiva a mover outro tipo de “guerra”, esta “interior”
(contra os “demônios” da criação literária e da reconstituição memorialística). Por isso,
Augusto Meyer não lamenta o fato de ter-se “perdido” um “grande industrial”, provável
herdeiro boçal de uma gorda firma” pelo contrário, “magro marquês da quimera” como
sempre fôra, comove-se com a oportunidade a ele concedida de resgatar o passado de sua
família, tarefa a que se impõe com o auxílio de uma viva imaginação de “poeta-cineasta”,
capaz de criar um cenário à altura dos grandes épicos da sétima arte:
Felipe e Maria... Como na mais linda história deste mundo, a história de um
caminho perdido, nada sei da vossa profunda humanidade, mas adivinho-a com a
resignação de um poeta que envelheceu aprendendo a trocar as coisas pela imagem
das coisas. Felipe, inquieto, magro, alto, cabelo cacheado e cor de fogo; Maria,
pequenina, vivaracha, sacudida, os olhos pretos furungando tudo em derredor, a
modo de camundongo... Como eu vos vejo bem na tela panorâmica, o morro de
Sapucaia ao fundo, e a roça aberta em plena mata, onde dois pobres bichos da terra
363
mourejam de sol a sol... (...) É assim que eu gostaria de abrir a filmagem da vossa
vida, para uso do meu cinema interior. Quantas vezes tentei criar em torno da vossa
aventura uma biografia qualquer de pioneiro, dessas que andam agora em moda,
graças ao cinema americano e sua possante vulgaridade, colorida e agressiva! A
chegada dos primeiros colonos; A Feitoria Velha; os trabalhos e dias de um pobre na
roça; as coivaras avançando pelo vale do Jacuí; a pregação farroupilha e a colônia
incipiente e já dividida em facções; todos os contrastes pitorescos da aculturação
aproveitados em episódios que servem de tempero ao entrecho... (MEYER, 1997, p.
13)
Imaginação poderosa que reconstitui com detalhamento de ficcionista uma história
contada muito tempo, a ponto de ser possível deduzirmos as peculiaridades de um
“enredo” ao qual não faltariam as reuniões dos partidários da causa farroupilha, os contrastes
da aculturação e a sedução do levante, bem como o trabalho emergente dos colonos em sua
labuta diária como “bichos da terra”. Se Meyer acredita que Felipe era “inquieto, magro e
alto”, e Maria “pequenina” e “vivaracha”, é porque, além do relato dos mais velhos, o escritor
se julga no direito de recorrer à fantasia para que o quadro se complete e a história pareça
verossímil. Dotado de tais “poderes”, confessa ao bisavô:
Nada sei, afinal, da tua aparência no tempo, a não ser o que me contavam em casa,
desde menino: que eras ruivo como eu, que vieste em vinte e quatro, com os
primeiros colonos, e abandonaste logo a tua pobre lavoura, encravada nos matos de
Sapucaia, para alistar-te entre os Farroupilhas. Por sinal que morreste na guerra
grande ah, isto sim, o guri curioso que eu era guardou para sempre num desvão da
memória. E a viúva, coitada, viu-se obrigada a começar tudo de novo. (MEYER,
1997, p. 11)
107
Eliane Zagury já havia observado, no início da década de 1980, que a imaginação tem
papel de destaque na memorialística de Augusto Meyer, evidenciando, sobretudo na “Carta
aos bisavós”, um “monólogo” que mais parece um diálogo do autor com seus próprios
fantasmas, pois
(...) o que (...) tinha sido uma tentativa paralela de historiografia o usar de
informações colhidas na memória alheia em Augusto Meyer adquire outro matiz,
que é o de recriar alguma coisa na própria imaginação, mais um monólogo interior
em busca do próprio passado que uma narrativa para informar o leitor. Seu primeiro
107
A respeito deste topus da “narrativa alheia” e do poder de reconstrução que a imaginação infantil possui, ver
na Introdução as citações feitas às páginas 14 e 15 (de Proust em Le de Guermantes e de Meyer em
Segredos da infância) e na nota 15 da p. 15 (de Goethe em Memórias: poesia e verdade). Em “Brinquedo de
esconder” (1997, p. 21-3), citado em 4.1 (p. 269, nota 28 e p. 270, nota 29) e em 4.2 (p. 299-300), Meyer
confessa que não se recorda de boa parte do episódio do índio acoitado por sua mãe no rancho da família,
conhecendo da história apenas o que lhe foi relatado: “Esta parte da narrativa, a ouvi contada por minha mãe,
e se de fato aconteceu, por malasartes do Diabo Rengo, escorregou da minha memória, pelo menos dessa ilha
consciente da memória, afiançada pela tranqüilizadora confirmação da voz interior, a murmurar baixinho,
pesando cada lembrança: eu me lembro, eu bem me lembro, foi assim mesmo...” (MEYER, 1997, p. 22)
364
capítulo [a “Carta”, texto que abre a segunda edição de Segredos da infância], por
exemplo, fala de antepassados que não conheceu; e se apresenta como uma carta a
eles, onde se desenvolve a imaginação sentimental do poeta; (ZAGURY, A escrita
do eu, 1982, p. 135)
Por outro lado, mesmo Zagury acreditando ser a “Carta” “mais um monólogo interior
(...) que uma narrativa para informar o leitor”, que se considerar que, diante de
informações tão imprecisas, é significativa a tendência à ficcionalização, a ponto de o autor,
em determinado trecho, policiar-se por utilizar expedientes de novelista e não de memorialista
(“Mas, ou eu muito me engano, ou desandei a escrever uma novela, traído pelas
incorrigíveis manhas da minha fantasia, que não respeita maneia nem soga e vive a retouçar
nos verdes da improvisação”; 1997, p. 12)
108
, não se furtando ao impulso de “adivinharas
feições do bisavô Felipe, “vulto” que caminha a seu encontro surgido das “sombras” (da
memória coletiva):
Não chego a ver as tuas feições, meu bisavô, apenas uma luz de presença; e às vezes,
de tanto fitar na escuridão do passado olhos indagadores, não sei que humana
projeção da tua sombra anima as trevas, parece que o teu alento perdido recobra a
forma viva, um vulto caminha ao meu encontro, acena um triste adeus no fundo
de tantos anos... (MEYER, 1997, p. 11)
Se o escritor acredita ter encontrado dessa maneira a “luz” da presença do bisavô,
“armado” de imaginação e “vidência” o zaori que havia nele consegue retraçar, no caso da
bisavó, o longo caminho percorrido por ela, de Sapucaia do Sul a Porto Alegre, apesar de se
dizer incapaz de tal abstração:
Pudesse eu, armado de vidência, acompanhar-te os passos, Maria Klinger, ver
claramente vistas as tuas andanças de colona; como venceste as veredas e picadas;
como tomaste o caminho que ia dar nos arredores da cidade; como paraste, cansada,
à sombra das árvores, ou foste pedir, na tua língua de trapos, um pouco de água para
a tua sede... O sol, a poeira, as horas intermináveis que pesam nas pernas... Sabes?
sempre, nesta dura terra, um Samaritano qualquer, alma limpa e mão aberta,
convidando a pousar, aquietando o cachorro ladrador, dando de graça um mate e o
sorriso. (MEYER, 1997, p. 11)
Augusto Meyer não se limita a recontar a história de seus bisavós e a imaginar seus
108
Assim como no poema “Minuano” (MEYER, Poesias, 1957, p. 152-3; conferir em 4.2 a nota 64, à p. 313),
aqui também o memorialista se vale da imagem do galope do cavalo como metáfora, desta vez não para exaltar a
força do vento, mas para ressaltar o alcance infinito de sua imaginação, que não respeita, como o cavalo livre,
“maneia” (“correia que prende o cavalo pelas mãos, para que não corra”, FERREIRA, Aurélio, 1986, p. 1078)
nem “soga” (“corda grossa”, “guasca usada para prender animais ao poste”, Idem, ibidem, p. 1604).
365
“vultos” e “feições” imerso no “saco roto das cismas” e afeito aos “passos” do “Não-Sei-
Onde”, o poeta-memorialista recria o trajeto épico da bisavó e visita em pensamento Felipe e
Maria, (...) peregrinando agora pelas mesmas terras” freqüentadas por eles, de quem, “numa
desesperada tentativa de entrevistar os [seus] fantasmas”, vislumbra uma “imagem frouxa”,
uma imagem que, em essência, “quanto mais vaga, mais viva”, impõe-se definitivamente
“clareada de poesia” (MEYER, 1997, p. 13). Augusto Meyer, em suma, parece ter conseguido
realizar, em prosa, através da carta aos bisavós”, aquilo que Carlos Drummond de Andrade
sintetiza nos versos de “Estrambote melancólico”:
Tenho saudade de mim mesmo, / saudade sob aparência de remorso, / de tanto que
não fui, a sós, a esmo, / e de minha alta ausência em meu redor. / (...) Tenho carinho
/ por toda perda minha na corrente / que de mortos a vivos me carreia / e a mortos
restitui o que era deles / mas em mim se guardava. (ANDRADE, Antologia poética,
2002, p. 55)
Talvez por todos estes motivos a admiração pelo caráter heróico da “saga”; a
fascinação por aquilo que “ouviu dizer” e pelos lapsos de uma história completada pela
imaginação; a revivescência de seus “fantasmas interiores”; e a comoção provocada pelo
sofrimento dos familiares é que Francisco de Assis Barbosa considera, em “Posso me sentar
na cadeira 13” (ver 4.1, p. 269), a “Carta aos meus bisavós” a única página “derramada de
toda a sua obra enxuta e magra”, que Augusto Meyer não poderia, evidentemente, “(...)
recordá-los mitigando a frase, suprimindo os adjetivos generosos”, tendo optado por fazer,
somente na “Carta”, “(...) tudo ao contrário do seu estilo temperado, do seu natural comedido,
com receio talvez de cair no pecado da restrição afetiva” (BARBOSA, 1971, p. 01). Tomado
de admiração e respeito, Augusto Meyer aproveita, segundo Francisco Barbosa, a atraente
sugestão da “página derramada” para declarar todo o seu entusiasmo por estes “heróis” da
imigração e da luta pela libertação, em terra “adotada”, do jugo monarquista, heroísmo
anônimo não fosse a homenagem prestada pelo bisneto:
Felipe Klinger morreu na Revolução Farroupilha. Abandonou a pequena lavoura
iniciada na Feitoria Velha para alistar-se entre os partidários de Bento Gonçalves.
Teria sido, em conseqüência, um dos muitos heróis anônimos da guerra civil que
durante dez anos ensangüentou a província de São Pedro do Sul, não fôra o
366
entusiasmo póstumo do bisneto, poeta e prosador ilustre, duplo e incontido
entusiasmo por Felipe Klinger e Maria Klinger. (BARBOSA, 1971, p. 01)
O “duplo entusiasmo” não se restringe ao fato de esta inusitada história seduzir sua
imaginação é notório o apego do escritor à decifração e à assimilação do legado da cultura
germânica, característica presente em várias obras, não apenas na memorialística, e que
Augusto demonstra através dos mais variados aspectos, desde os físicos (o cabelo ruivo, por
exemplo) até os intelectuais (estudioso metódico e disciplinado, “escravo” de horários,
homem extremamente culto capaz de absorver no mesmo grau o pensamento crítico e
analítico, as expansões líricas dignas de Hölderlin e o travo amargo da ironia). É como se o
memorialista pertencesse a um “entre-lugar”, pois, produto de uma miscigenação, não sendo
originalmente alemão nem brasileiro, sua visão de mundo é a de alguém que estivesse
simultaneamente “dentro” e “fora” de sua própria cultura. Por isso, observa Tania Carvalhal, a
tônica de sua poesia (e, de resto, de toda a sua obra), é a do “(...) sentimento forasteiro que
inaugura o que vê”, uma vez que a postura adotada por Meyer é a de quem “(...) Olha em
torno de si como quem descobre e firma a imagem do começo” (CARVALHAL, Augusto
Meyer Letras rio-grandenses, 8, 1987, p. 11), de um começo surgido não com seu
nascimento, mas com a chegada, em 1824, dos primeiros antepassados que para o sul
imigraram
109
. É em nome desse “olhar inaugural” que Augusto Meyer busca suas raízes e
ressuscita os “fantasmas” do passado. Esta preocupação aparece claramente nos “Cadernos de
viagem” que o autor inclui em A chave e a máscara (1964), sobretudo no capítulo
“Impressões de Hamburgo”, no qual se constata que a cidade alemã de onde seu apaterno
saíra, em 1851, exerce nele “(...) uma pressão da memória sobre as fronteiras da
109
Também em A evidência mascarada, Tania Carvalhal adverte sobre o forte traço germânico e europeu da
personalidade de Augusto Meyer: “Na verdade, nascido num Estado de tradições marcadas como o Rio Grande
do Sul, Meyer trazia no próprio nome o traço estrangeiro, que se prolongava na aparência física – os olhos azuis,
a cabeleira ruiva, as sardas na pele clara – e que foi seguramente preservado por uma formação de nítida
inclinação européia, como ocorria na época e particularmente, em sua família de ascendência germânica. Sua
mãe lia os autores europeus, sobretudo Heine como poeta predileto e a escola onde realiza seus estudos, do tio
Emilio Meyer, era de orientação claramente europeizante. Tudo, portanto, o afastava inicialmente da vivência
gaúcha, da qual só conhecia o lado urbano, também esse devedor da Europa.” (CARVALHAL, 1984, p. 167)
367
consciência”
110
, despertando “antigas ressonâncias” adormecidas nos “confins” da memória
coletiva:
A presença do grande porto,.7217(r)-4.556130.225(“)3.74()3.74(n)-10.3015(c)3.7483566.3339(,)-3.1214(e)-2.05734(n148 7217(r)-4.55l339(,)-3.1217(d)-6.33339( )-232.223(g)5.7734(n148 7217((o)-6.3339( )-232.223(g)5.7217(r)-4.420.)-27194(u223(g)5.7734(n148 7734(n148 7e(c)3.11(o)4()3.74(nad[(s)3-2.122( )-140l339(,)-3.1)3.7483566.3339(,)-3.1214)3.11(o)21099(o)-6.(r)-4.556130.22r)-4.55m)1(A)9847217(d)-6.333923(g)5.7i339(,)-3.1f)7A)994 7e(c)3.11(o)734(n148 7t339(,)-3.1217)3.11(-)7An148 7e(c(d)-46.3339(o)-6.3c(c(d)-46..221(A38613m)1)-3986.3339(o)-6.3217)3.11(734(n148 721-27.6 Td)3-2.122/R7 12 Tf[5734(n)5.72023(ç)-2.005734(s)3.2214(e)-2.05i339(,)-3.1217(d)-6.33734(n)5.7.46859.-12d5617(e)-2.0.168(p)-6.333171.945.74)3.74(nad168(p)-6.339(r)-4.55617(t)0.721099(o)-6.;339(,)-3.1.46859.-120.168(p)-6.c.168(p)-6.5617(t)0.7a(c)3.11(o)m)1(A)9847(r)-4.556130.2859.-12c.168(p)-6.5611(A38613m)1nã.168(p)-6.5617(t)0.70.2859.-12734(n148 7e(c)3.11(o)i339(,)-3.1.46859.-12q617(t)0.7u()3.74(n)-1)3.11(o).46859.-12295568(p45)mAtocn148 7ã.168(p)-6.5617(t)0.70.[(s)2 pg,n148 7t339(,)-3.1â17(d)-6.3339(e)-2.0c14(e)-2.05i339(,)-3.1217opn148 7217u9(e)-2.05734( )-22a(c(d)-46.5734( )-220.168(p447(r)-4.556130.2859.-1239(e)-2.0.223(g)5.773.7483566.21-27.6 Td)2)3.392556840.294974168(p)-6.5617(t)socd734(a)-2.5617(t)sen c(d)-AcoAto,dD.168(p)-6.217otni339(,)-3.1.4640148920734(n148 7217(e)-2.05i339(,)161(u9(e)-2.0.464-3)-23m)1coeenô617(t)0.70.240148920H.168(p)-6.2023(ç)-2.05734(a3.221099(o)-6.i339(,)-3.1q617(t)0.7u(34( )-220.168(p)-6.33[(s)5048312( )-140Mr)-4.139.2214(e)-2.05y)1/R77372023(ç)-2.005734(s)3.2,regn148 72174014892021739(e)-2.0.223(g)5.7734(n148 7217401489205734( )-220.168(p44721-27.6 Td)5048312/R7 12 Tf[5c14(e)-2.05i339(,)-3.15734(a)-2.q617(t))-2.ü734(a)-2.e(c)3.11(o)4()3.7,dç nad168(p)-6.j95568(p45)217(d)-6.33339( )-232.223(g)5.70.24014892239(e)-2.0a(c(d)-)-6.33340148920Lnçni339(,)-3.1ã.168(p)-6.5617(t)0.70.2401489200. l339(,)-3.1214odtçsc(d)-,e,dspt 7
368
brasileira, é natural que Augusto Meyer buscasse retratar, em sua obra, a origem desse
processo, tentando, pois, a todo custo, aproximar-se das “raízes” que o prendem aos
antepassados europeus e ao solo gaúcho, espécie de “terra prometida” adotada pelos
imigrantes que o antecederam. Mais do que entendê-las, o escritor alimenta o desejo de se
tornar, ele próprio, a “raiz profunda” que dará sustentação a um tronco milenar que continuará
se espraiando em múltiplos ramos e copas frondosas. Por isso, como vimos no item anterior
(4.3, p. 359), ele confessará no poema “Sombra verde” o desejo voluptuoso de “(...) gozar as
sensações, / de sentir junto a mim o coração da terra, / no seu trabalho milenário e silencioso, /
como se eu fosse longamente uma raiz profunda...” (MEYER, Poesias, 1957, p. 30). O
interesse de Meyer pelos mais variados gêneros é mediado, segundo Tania Carvalhal,
justamente por estas “raízes”, tanto genealógicas (parentes recriados desde seus pontos de
partida Hamburgo, Bremen) quanto topográficas (a campanha, a várzea, o pampa, a bacia
do rio), que o fazem decidir-se por retomar, com certa urgência, a sua infância, origem de
tudo e “raiz” da vida, à qual é necessário “voltar”, “voltar” enquanto houver “tempo” e
alguma possibilidade de redenção. Para Carvalhal,
Se é necessário entender sua obra, múltipla na investida de gêneros, na relação que
cada uma das manifestações literárias estabelece entre si, também é preciso
compreendê-la na íntima vinculação com as suas raízes. Assim, o apego à terra,
manifestado em livros como Coração Verde e Giraluz é ainda o sentimento que o
move na recuperação do passado em Segredos da Infância e No Tempo da Flor e o
interesse que o instiga nas pesquisas que resultaram no Guia do Folclore Gaúcho,
no Cancioneiro Gaúcho e nos ensaios de Prosa dos Pagos. (CARVALHAL,
Augusto Meyer – Letras rio-grandenses, 8, 1987, p. 12)
A autora argumenta que tal “apego à terra”, responsável pelo interesse pelo passado
pessoal (memorialística) e coletivo (pesquisa folclórica), justifica-se por um “(...) consciente
enraizamento no que lhe é particular”, que nele a “(...) afirmação das raízes corresponde
(...) a uma busca de autenticidade e a uma vontade de entender a si mesmo como um ser
situado no tempo e no espaço” (CARVALHAL, 1987, p. 11). Esta árdua e profunda tentativa
de compreensão de sua história pessoal e familiar supõe o convívio espiritual” não somente
com as diversas fases por que passou, representadas, como veremos, pela curiosidade de Tico
369
ou pelas descobertas artísticas do jovem Aug (vida que pulsa), mas sobretudo com os
“fantasmas do passado”, pesada “carga” da qual não consegue nem quer se livrar (morte
que se insinua e sentido à vida), como deixará claro em “Drama”, capítulo de Literatura e
poesia no qual admitirá a “presença” de
(...) mil vultos do passado que chegam na ponta dos pés, sem fazer barulho, e se
debruçam com a malícia do mistério sobre o ombro. Vem deles um aviso de morte,
um olá! do indecifrável. E pesam tanto que para aliviar a carga, suspiramos como o
doente se volta na cama, removendo o peso da febre. (MEYER, 1931, p. 27)
Mas Augusto Meyer não recriaria apenas os parentes que não conheceu (os bisavós) ou
que mal chegou a conhecer (os dois avôs): fazendo desta eminente figura uma espécie de
“ponte” entre os “outros” e “ele”, o escritor homenageia, em diversos momentos de No tempo
da flor, o tio Emilio Meyer, mestre e educador que Tico tanto admirava e que deixou funda
impressão em suas recordações, a ponto de citá-lo inúmeras vezes nas Memórias e dedicar um
capítulo inteiro a ele. Presença constante, o “Velho Meyer” aparece caminhando pela Praça da
Matriz (“ vai o Velho Meyer, corado e ágil, metido no inconsútil casaco de alpaca, a
recomeçar a sua volta higiênica de todas as tardes, sempre à mesma hora”; “Na Praça da
Matriz”, No tempo da flor, 1966, p. 14); “vigiando” os sobrinhos que, durante as rias,
faziam de sua espaçosa sala “onde acomodara o curso de preparatórios”, no andar de cima do
sobrado situado na praça, um vasto quarto improvisado
112
; ou ralhando com seus alunos, que
desciam correndo a escada do sobrado sem a mínima consideração pelos moradores (aqui
Augusto chega a reproduzir um trecho de um dos “sermões do seu repertório”, dando voz ao
“austero” tio). Vejamos:
Moços, os senhores são ou pelo menos parecem animais racionais, dotados de
consciência, e certamente aprenderam em casa as boas maneiras. viram uma tropa
quando se abre o curral? Façam-me o favor de considerar que no andar térreo mora
uma família e, quando descerem a escada, aprendam a pisar com os pés e não com
as patas... (MEYER, “Do tempo da espanhola”, No tempo da flor, 1966, p. 57)
112
“Como pouco lugar havia em nossa casa, meu irmão Henrique e eu aproveitávamos a pausa para instalar na
parte traseira da sala as duas camas de ferro e um lavatório, improvisando um quarto. Cabides não faltavam, e a
única dificuldade era abrir uma clareira no meio de tantos bancos. Para quem dormia em alcova e mais tarde em
porão, o grande quarto de férias valia por um autêntico apartamento de luxo, luxo no espaço, bem entendido,
porque ali dentro sentia-se o império vigilante de uma presença austera: a do Velho Emilio Meyer.” (MEYER,
“Do tempo da espanhola”, No tempo da flor, 1966, p. 59)
370
Personagem tão essencial à formação do jovem Augusto, por quem o futuro escritor
nutria grande respeito, Emilio Meyer é imortalizado no capítulo que leva seu nome, misto de
elogio ao homem e reconhecimento pela sabedoria e maturidade do mestre, características que
confirmam a superioridade intelectual e o amor irrestrito ao ofício de alguém tão “iluminado”
que, mesmo depois de morto, continuaria, na imaginação do sobrinho, a cumprir seu dever em
outras esferas:
Estava sempre dando aula: em casa, na rua, à mesa, na cama. Reatava em sonho as
aulas de cada dia. Formada esta segunda natureza, pertinaz como um vício – dar aula
–, é claro que resistiria a todos os achaques da velhice, às traições do reumatismo, às
revoltas do corpo, judiado por tantas orgias de regime espartano. Manteve até ao fim
o seu círculo atento de alunos, na verdade cada vez menor, minguando como o
fôlego do próprio mestre, que parecia eterno. (...) Seu primeiro gesto, ao entrar no
Paraíso, será retomar a última aula interrompida neste vale de confusões. Dirá aos
anjos das belezas irreplicáveis do binômio de Newton, discorrerá sobre o emprego
do que e as virtudes da Geometria. Ao fim da lição, dará de quebra àqueles espíritos
puros uma ode de Horácio, passada ao crivo da tradução, como ele sabia fazer.
(MEYER, “Emilio Meyer”, No tempo da flor, 1966, p. 52-3; grifo do autor)
Cultivando a mesma dedicação ao estudo literário que o tio demonstrava por sua
atividade docente, Augusto Meyer se identificava com o comportamento de um parente que,
assim como ele, entregava-se facilmente à solidão e ao isolamento do “caramujo” que se
esconde na própria concha. Se o capítulo não levasse o nome do tio, talvez não soubéssemos
se em seu parágrafo inicial o escritor se referia a outrem ou a ele mesmo, “carrasco” e
“devorador” de si e membro da “família espiritual” à qual pertenciam Nietzsche, Dostoiévski
e Machado de Assis:
Era realmente uma personalidade, um temperamento intratável de solitário, duro e
áspero consigo mesmo. Talvez muito sensível para se entregar abertamente, ou
demasiadamente lúcido – quem sabe – diante das fraquezas humanas e, portanto, das
próprias fraquezas. (...) Quem conheceu apenas o professor, não imagine que o
homem na intimidade era outro homem. Creio que nunca teve intimidade na
verdadeira acepção da palavra, nunca se confessou de todo, descansando o peso da
consciência no ombro de um amigo, para aliviar as penas do pensamento ou de
sentimento. (MEYER, 1966, p. 51)
113
113
Sobre a alusão à introversão de certos escritores (com a qual Augusto Meyer identificava-se plenamente), ver
em Machado de Assis os capítulos “O homem subterrâneo” (MEYER, 1952, 2 ed, p. 11-20) e “(Da introversão,
parêntese)” (Idem, ibidem, p. 75-82), sobretudo, neste último, a passagem: ‘Selbstkenner! Selbsthenker!’ Sem
dúvida foi esse o grito mais sincero de Nietzsche. ‘Carrasco de si mesmo’, verdade profunda que explica toda a
sua obra e nos diz por que motivo ele estava condenado a destruir os seus próprios ídolos, criados com tanto
esforço, e a cultivar contra as suas próprias tendências essa crueldade vertiginosa”. (MEYER, 1952, p. 80)
371
Augusto Meyer afirma, em diversas passagens de suas memórias, o quanto a figura
marcante do tio Emilio participou ativamente da formação de seu caráter e de sua
personalidade. Alguns indícios de sua presença o tão definitivos que o escritor consegue se
lembrar, proustianamente, do cheiro característico de seu quarto (sugestivas “emanações” de
espíritos do passado), odor associado, à época, ao significado de uma palavra que carrega em
si inúmeros componentes de ordem sensorial e que seria determinante para o tipo de “resgate
do tempo perdido” a que mais tarde o memorialista se dedicaria, efetuado numa espécie de
“penumbra inconsciente” a caracterizar os “becos” e “desvãos” de sua memória oscilante.
Dormia em alcova, entre o escritório e a varanda, que no sul é a sala de jantar.
Nunca poderei esquecer o cheiro particular daquela alcova, misto de mofo e maçã
madura, que então me intrigava muito, como se fosse a emanação de velhas vidas
anônimas, votadas ao Deus desconhecido que preside aos destinos heróicos e
apagados. No meu dicionário embrulhado e sentimental, correspondia perfeitamente
esse cheiro ao genuíno sentido da palavra penumbra. (MEYER, 1966, p. 52; grifo do
autor)
Ao declarar que a “voz” de Emilio Meyer “(...) ressoa e ressoará aos ouvidos interiores
da memória, ao longo da vida, na remembrança de várias gerações” (MEYER, 1966, p. 54),
Augusto Meyer tinha exata noção de que a admiração pelo tio não se reduzia ao círculo
familiar, estendendo-se aos estudantes que, por várias décadas, tiveram a honra de freqüentar
suas aulas. Prova desta “previsão” feita pelo poeta, a respeito da “imortalidade” de seus
ensinamentos, é a opinião, aparentemente casual, de Dyonelio Machado, manifestada logo nas
primeiras páginas do primeiro capítulo de Memórias de um pobre homem, intitulado “Imagens
fugitivas”, onde se que “Os três [Hermínio Freitas, João Leopoldino Santana e ele,
Dyonelio] que estudávamos com o Velho Meyer (o maior professor que conheci) saíamos
juntos da aula porque morávamos pra os mesmos lados, na Cidade Baixa” (MACHADO,
1995, p. 72). A casualidade da informação, dada entre parênteses (porém muito mais
importante que o restante da sentença, que apenas indica a direção que os três colegas
tomavam após a aula), não encobre a excelência do depoimento imparcial de um dos grandes
372
escritores gaúchos do século XX tratava-se Emilio Meyer de um dos grandes professores de
sua época, o maior que o autor de Os ratos conheceu.
Sua sabedoria era tão profunda e sua figura tão respeitada e admirada que Augusto
Meyer sequer “espera” a compilação de No tempo da flor para prestar-lhe homenagens, como
as que veicula em “Crônica da saudade” (Diário de Notícias, 29.07.1928) e em “Lembrança”
(Correio do Povo, 27.08.1930). Na primeira, Augusto se imagina no tempo em que o “tio
ilustre, o Velho Meyer, ensinava a analisar uma estrofe camoniana ou resolver as
complicações ingênuas do binômio de Newton”, e aproveita para ironicamente se desculpar,
com o parente famoso, a respeito de seu insistente e “estéril” trabalho com as palavras:
Professor Meyer, como você está vendo, conservei até hoje a mania de estragar
papel. Costumo enviar para o ‘Diário’ uma redação semanal que você encheria de
traços a lápis vermelho, rubramente indignados, se eu lhe entregasse a folha do meu
tema. (...) A Professora Vida só tem me dado zero nas sabatinas. E me passa
descomposturas muito piores do que os seus carões paternais. Tudo zero! O sr. tinha
razão em dizer: este menino acaba maluco... Eu era predestinado. (MEYER,
“Crônica de saudade”, 29.07.1928)
Em “Lembrança”, o fim da aula de Emilio é a senha para o ritual diário de descobertas
literárias e cromáticas na Biblioteca Pública:
Depois de ouvir o sermão cotidiano do velho Meyer sobre os moços que roubam o
dinheiro dos seus pais, eu largava os cadernos de álgebra e, entrando na Biblioteca,
mergulhava no primeiro volume dos ‘Maias’ com deliciosa broca literária. A
tonalidade da luz era uma transfiguração estética porque os vidros verdes diluíam
no ambiente uma tinta glauca e os leitores pareciam anfíbios sábios afogados num
aquário, curvados sobre a página, soletrando os segredos do oceano interior.
(MEYER, “Lembrança”, 27.08.1930)
Diante de tão sólida base cultural familiar, é natural que o inteligente e agitado Tico
demonstrasse, desde o princípio, certas características que de certa forma o diferenciassem
dos demais meninos de sua idade, tais como: o medo do “rei dos ratos”; o interesse pelo
cinema; a fascinação pelo “espetáculo da prostituição”; os primeiros contatos com a literatura
(Dumas, Alencar, Scott) e com o tabagismo. É óbvio que Tico se interessava sim por várias
“descobertas” comuns ao universo dos demais garotos (exploração da natureza, dos grandes
quintais e das praças da cidade, atitudes presentes, por exemplo, em certos capítulos de
Segredos da infância como “O menino da Floresta” ou “Na Praça da Matriz”), mas o que
373
claramente prevalece em suas confissões são os acessos de sua “ridícula timidez de bicho”,
muitas vezes mal compreendidas até por ele próprio. Esse aspecto marcante de seu
comportamento é evidente sobretudo nos capítulos que tratam de sua adaptação escolar,
adaptação complicada, como seria a de qualquer pessoa que, na infância, se “escondesse”
em sua própria “concha” e sofresse constantes “(...) crises de alheamento em pleno recreio,
quando encaramujar-se é quase um gesto de defesa” (MEYER, “Quê? Por quê? Pra quê?”,
Segredos da infância, 1949, p. 135). Em “No ginásio”, percebemos que a excentricidade e a
timidez do menino se manifestam mesmo quando ele não é mais “calouro”, aumentando
seu sentimento de inadaptação, sua vergonha e humilhação por ser “diferente” dos demais:
No começo do outro ano, quando fizeram a chamada para os alunos do segundo
preliminar, esgueirei-me de novo entre os alunos do primeiro curso; dominava-me o
pavor do mistério. Deixei-me estar assim, quietinho, esquecido, simulando distração,
na vaga esperança de poder continuar no mesmo aprisco, sem as complicações
imprevistas que me aterravam. (...) Descobriram-me afinal; uma voz severa
perguntou, na soleira da vida nova: está aqui um menino chamado Augusto Meyer?
E me fui, entre risos impiedosos, humilhado e encabulado, carregando o peso da
fatalidade sobre os ombros magros. O caso, narrado em família pelo meu irmão foi
considerado mais um acesso da minha ridícula timidez de ‘bicho’. (MEYER,
Segredos da infância, 1949, p. 113)
Não pode ser considerada “comum” a atitude de um menino que, com pouco mais de
cinco ou seis anos de idade, carrega sobre os ombros “o peso da fatalidade”, mesmo que
esse peso seja devidamente assimilado muitos anos depois, em sua reconstituição
memorialística. Por isso, discordo de Francisco de Assis Barbosa quando diz que Augusto
possuíra
(...) Vidinha igual à de todos os meninos até mesmo nas travessuras mais estranhas,
como as brincadeiras de feitor surrando dois pretinhos da vizinhança que se
compraziam no papel retroativo de escravos. Tico, o menino ruivo de Porto Alegre e
São Leopoldo, não difere em essência de outros meninos, ruivos ou morenos, de São
Luís do Maranhão, Maranguape ou Guaratinguetá. (BARBOSA, “Posso me sentar
na cadeira nº 13?”, 1971, p. 02)
Difere sim, e muito, até mesmo dos “guris” de Porto Alegre, que não perceberiam as
sutis complexidades de alguém que estivesse predestinado a futuramente “encher de brisa o
saco roto das cismas”. Sua dificuldade de adaptação é patente em “Caminho da escola”,
capítulo em que Meyer evoca a inveja que, durante o processo de alfabetização, Tico sentia do
374
irmão, “modelo incomparável” que “(...) possuía o garbo dos heróis que não temem a escola
porque conhecem aquele vago mundo ameaçador”, e que despertava nele a necessidade de
observar “(...) com o rabo do olho a expressão, o porte, o andar, o jeito de carregar a bolsa,
que lhe pareciam regras sublimes de conduta”. (1949, p. 46)
Mas não lugar somente para sentimentos negativos: no mesmo capítulo, o
memorialista relembra as peripécias de sua fantasia, capaz de pintar um amplo retrato da vida
nova que lhe afigurava possível:
Que comoção não ser mais o guri que brincava toda a tarde no largo do morro com o
filho do Sampaio e saía em bando para colher guabiroba! Enquanto caminhava para
a vida nova, a imaginação desandava a correr em sentido contrário, como querendo
agarrar-se inutilmente às saias da mãe, ao refúgio da casa, ao seu minúsculo
passado. (MEYER, Segredos da infância, 1949, p. 47)
Em “No Bom Conselho”, o mesmo fascínio pelo “sentido novo” que a escola, apesar
dos constrangimentos e das pressões, trouxe a sua vida:
A chácara do Ercole, o largo da capela, o morro, a volta do bonde, a rua dos Sapos, o
armazém, as fábricas, os terrenos vagos, tudo continuava no mesmo lugar, mas havia
nas coisas agora um sentido novo, uma sutil mudança de inflexão, pelo simples
motivo de existir escola todos os dias, e temas a compor, e livros complicados, e a
D. Clara explicando as questões com paciência de anjo; (MEYER, Segredos da
infância, 1949, p. 55-6)
Além disso, uma grande distância, explorada em ambos os textos, entre o sujeito da
memória e a criança evocada. Em “Caminho da escola”, Augusto Meyer opta por descrever a
si mesmo na terceira pessoa, como se estivesse, nas palavras de Freud, “alheio à cena”,
acentuando a diferença que vai do “Tico” da infância ao “Augusto Meyer” da maturidade (ver
citação feita na nota 32 da página 55). Tal alternância de vozes (entre o “eu” do sujeito da
memória e o “ele” de então) também aparece no capítulo “No Bom Conselho”, em que a
referência, na terceira pessoa, ao “dorminhocoque ele fôra se contrapõe ao “meu corpo” da
narrativa em primeira pessoa, permitindo aquilo que Tania Carvalhal chama de
“autocontemplação desejada”. Vejamos:
Todas as manhãs Idalina arrumava os livros e a merenda na mochila. Minha mãe
entrava no quarto, abria as janelas e o sol vinha bater em cheio na cara do
dorminhoco. Mesmo assim, de olhos fechados, enxergava a luz através do véu
vermelho das pálpebras, um vermelho quase transparente que ardia um pouco sobre
375
as pupilas. E que esforço para olhar de frente a claridade, descolar a cabeça do
travesseiro, sair do vale macio da cama, onde o meu corpo era uma primeira
consciência sem vontade, um delicioso torpor estirado em espreguiçamentos...
(MEYER, 1949, p. 55; grifo meu)
114
O distanciamento entre o “eu” (da escritura) e o “ele” (da infância) torna-se
efetivamente um “desdobramento” (dos efeitos tempespaciais, da personalidade e do próprio
Eu), manifesto sobretudo quando o “Outro” evocado recebe um nome, seja este, no caso das
Memórias, Tico, Foguinho (apelidos do menino), Aug (apelido do adolescente) ou Bilu,
“alter-ego” do escritor. Na memorialística meyeriana também está presente, embora de
maneira diversa (mais redentora e menos traumática), a “(...) fragmentação multiplicadora da
personalidade, que instaura a dialética entre ser e aparência”, que Tania Carvalhal aponta, em
A evidência mascarada (1984, p. 118), como o tema central de sua obra poética. O
“desdobramento” do eu poético em imagens de imagens, espelhos de espelhos que se
multiplicam ao infinito, aparece, na memorialística do autor, quando, por exemplo,
(...) Meyer se dispõe a rememorar a rua da Ladeira, em Porto Alegre, no tempo da
sua juventude. No passeio evocativo, a si mesmo sob a máscara do duplo que,
como na obra poética, ganha a designação de Bilu. ‘Passando para o alto da Ladeira
escreve está a Biblioteca Pública, onde o convalescente Bilu, macerado de
literatura e metido num casaco felpudo, ia ler todas as manhãs um estranho e
delicioso livro intitulado: À l’Ombre des Jeunes Filles en Fleurs.’ (CARVALHAL,
1987, p. 14)
115
Se os Segredos da infância de Augusto Meyer são protagonizados por Tico, o menino
que se entedia na escola e se diverte com aranhóis, pandorgas e brincadeiras de “feitor e
escravo”, No tempo da flor, volume que marca a transição da infância do autor para a
adolescência, é povoado por outros “eus” e por outras “máscaras”. Destaco primeiramente
114
Sobre a expressão usada por Tania, ver: “A introdução da terceira pessoa para designar a feição anterior do
Eu favorece a autocontemplação desejada. O procedimento de neutralização do eu acentua a visão do exterior e
lhe permite uma avaliação mais objetiva das mudanças, como ocorre no capítulo ‘Moço e velho’, (...) [em que] a
troca do ‘eu’ por ‘ele’ é quase imperiosa como recurso descritivo” (CARVALHAL, Augusto Meyer – Letras Rio-
grandenses, 8, 1987, p. 14). Além de “Moço e velho”, apontado por Carvalhal, e de “Rua da Praia” (“Pelo meio
da rua vão andando João Manuel de Azevedo Cavalcanti, João Santana, Sotero Cosme e os dois inseparáveis
pernaltas Aug e Théo”, 1966, p. 134; grifo meu), pertencentes a No tempo da flor, vemos, pelas citações feitas
acima, que o escritor se vale desse recurso nos capítulos “Caminho da escola” e “No Bom Conselho”, do volume
de 49, quando a distância temporal entre “eu” e “ele”, embora menor que em 66, já se fazia evidente.
115
A passagem citada está em “Ladeira da saudade” (MEYER, No tempo da flor, 1966, p. 91). Sobre o inevitável
distanciamento, ver também o seguinte comentário da autora: “Recompor as sensações experimentadas significa
reinventá-las. Por vezes, o distanciamento criado, em lugar de significar apenas um afastamento temporal, traz a
376
que, se por um lado as Memórias de Meyer são compostas por capítulos descontínuos, que
podem ser lidos separadamente (inclusive aqueles sobre os antepassados), por outro, se
levarmos em conta apenas a questão da reelaboração dos diversos “eus” que compõem sua
personalidade, veremos que a narrativa respeita a ordem cronológica dos eventos, pois o
memorialista parte, no volume inaugural, do menino Tico, para chegar, em No tempo da flor,
a Foguinho e a Aug, entremeados pela figura dupla e ambígua de Bilu, “cidadão da harmonia
cósmica”
116
e “malabarista metafísico”
117
a povoar os versos e o memorialismo do autor.
Todos esses “eus” que povoam a história de Augusto Meyer, Felipes e Marias,
Henriques e Carlos, Ticos e Bilus, Foguinhos, Augs e outros tantos que não chega a nomear,
são “inquilinos” de uma mesma casa que o escritor, julgando-se “proprietário do nariz” e de
“si mesmo”, constrói aos poucos, à medida que a “reconquista do eu” se alia à “reconquista
do espaço” (uma vez que, recriando-se o espaço, os eus” que o ocuparam “voltam à tona”,
reincorporados à lembrança que o Eu possui do tempespaço original). Sabemos, desde o item
anterior (ver trecho de “Na Praça da Matriz”, à p. 334), que nas Memórias de Meyer não
distância entre o eu e a paisagem”, pois ambos mudam simultaneamente, “ambos se desfazem
e se reconstroem sob novas formas ao longo dos anos” (CARVALHAL, 1984, p. 86), e,
embora Augusto insista em conservar (a ilusão de) um “mesmo nome” atestado pelas
“certidões do registro civil”, ele tem plena consciência de que Tico troca “de alma e de pele”
com Foguinho, este com Aug e todos com Bilu, “locatários irresponsáveis” capazes até de
ressuscitar “fantasmas” da memória coletiva e de “restituir a casa ao dono” ao “despencarem”
do “último andar do devaneio”. São tantos “eus” diferentes que alguns não tem nem nome e,
livres no inconsciente, perdem-se durante o sono ou nas “garras” do delírio insone,
necessitando o verdadeiro “Eu da gente”, ao despertar, de grande esforço mnemônico para
marca de uma emoção aguçada e o ‘eu’ original ‘morre’ no texto para dar vez a esse outro-eu que, agora, vive e
se emociona em seu lugar.” (CARVALHAL, Augusto Meyer – Letras Rio-grandenses, 8, 1987, p. 14)
116
MEYER, “Andante”, Poesias, 1957, p. 164.
117
MEYER, “Canção encrencada”, Poesias, 1957, p. 175.
377
que se recobre a identidade subitamente esquecida, como na cena inicial de Du côté de chez
Swann (ver sua transcrição em 3.1, p. 136) na qual Marcel demora a se lembrar onde está e
quem ele é, mesma sensação descrita por Pedro Nava em Cera das almas:
(...) o acordar se completa se condensa com a noção súbita do EU. Um pobre homem
acorda e é possuído de sua consciência individual quando cria o mundo abrindo os
olhos. Sua primeira percepção é a de límpidos floretes que se empilham: gretas de
venezianas e logo as pontas do universo convergem sobre o que vai se mover e em
quem as contrações musculares das intenções vão repetir EU e dizer MEU. Acordam
os pronomes pessoais, os possessivos e começa a defesa. (NAVA, 2006, p. 30)
Tania Carvalhal acredita que o “verdadeiro sentido” de No tempo da flor, mais do que
servir como “pretexto de reconstruir o início da adolescência”, é o de configurar (...) uma
profunda reflexão sobre a perda da identidade” (1984, p. 85), de uma identidade que, assim
como na poesia do escritor, representa a cisão de um “eu” fragmentado, imerso na
“exploração dos conflitos interiores” e que persegue insistentemente a fixação de imagens
fugidias que se dividem e/ou se multiplicam à exaustão
118
. A consciência da profundidade
abismal da fragmentação interior leva Augusto Meyer a empreender, nas Memórias, uma
busca incansável de um Eu a princípio dilacerado
378
esfacelada e ferida por tantos vácuos interiores
119
. É como se, ao conceber No tempo da flor,
Augusto Meyer conseguisse ser Tico-Foguinho-Aug-Bilu-Meyer sem deixar de ser Augusto
Meyer e sem deixar de manter uma certa unidade, mesmo ciente da auto-duplicação” em
variadas imagens a que “condenava” sua obra:
Captando a transitoriedade do ser, o instante fugidio entre o sou e o serei, Meyer
aponta para um paradoxo: a construção de si mesmo c
379
narcísica na qual a magnitude da ocasião (crepúsculo), do período (infância, pois o Eu
aprende “desde cedo”) e do lugar (uma “sanga funda”, isto é, um “pequeno regato” com
“remansos de água clara”) convergem para a constatação de ser o Eu (ou o que dele se
projeta) o “(...) segredo de algum segredo, / imagem, sombra de imagem”, joguete de heimlich
e unheimlich a estranhar o próprio rosto, sendo este o elemento que intermedia a “alma
profunda” e a “aparência superficial” do Eu, a ligação entre as sensações interiores e as
“máscaras” exteriores:
Vem ver esta sanga funda / com remansos de água clara: / embaixo o u se
aprofunda, / a nuvem passa e não pára. // Numa cisma vagabunda, / olhando-me cara
a cara, / quantas vezes me abismara: / água clara... alma profunda... // E que estranho
era o meu rosto / no momento em que o sol-pôsto / punha uns longes na paisagem! //
Aprendi a ser bem cedo / segredo de algum segredo, / imagem, sombra de imagem...
(MEYER, Poesias, 1957, p. 14)
O tema da imagem duplicada em espelhos e remansos é explorado também na prosa
poética de Literatura e poesia (1931). No citado “Drama” (ver p. 369), publicado em
Poesias (1957) sob o título de “O Outro”, o homem, enquanto caminha na rua mal iluminada
por lampiões, funde a própria sombra aos “vultos do passado”, formando uma imagem
delirante que, “removendo o peso da febre” e da tradição, “(...) espicha-se, comprida,
interminável, com pernas fantásticas de pau, até tocar no outro lado da calçada e trepar na
parede” (MEYER, 1957, p. 203). O resultado final? Novo enfrentamento do duplo que o
contempla e se deixa contemplar e que o faz acreditar na presença paradoxal de um “(...)
mesmo Outro, que era e não era ele mesmo...”. (1957, p. 204)
121
Analisados por Tania Carvalhal em A evidência mascarada, outros capítulos de
121
Assim como em relação aos demais capítulos de Literatura e poesia que citarei em seguida, opto por
mencionar trechos pertencentes ao texto “definitivo”, publicado em 1957 na mais completa antologia da
produção poética de Augusto Meyer, que inclui toda a coleção de poemas do autor e boa parte da prosa poética
em seções como Literatura e poesia e Folhas arrancadas, visivelmente inspiradas nos Petits poèmes en prose de
Baudelaire. No texto original, de 1931, lê-se no parágrafo final: “O indicador no botão da luz premeu a
claridade. Tirando o paletó, destramando o da gravata, foi até o espelho. Do outro lado, no gelo frio, sorria o
Outro” (MEYER, Literatura e poesia, 1931, p. 27). Na versão de 1957, o parágrafo se subdivide, o “gelo frio”
torna-se “lago emoldurado” e o “Outro” não sorri e exige explicação adicional: “O indicador no botão da luz
(...), foi até o espelho. (...) Do outro lado, no lago emoldurado, o mesmo Outro, que era e não era ele mesmo...”
(MEYER, Poesias, 1957, p. 204)
380
Literatura e poesia, dentre os quais “Não faça isso”, “Poema” e Auto-retrato”, também
privilegiam o tema do Outro que se duplica em imagens espectrais ou pictóricas, imagens tão
emblemáticas que se tornam, por vezes, mais “reais” que a própria essência: “Entrou no
quarto e acendeu a luz. O espelho ficava bem em frente da porta, e ao acender a luz, a imagem
dele, na claridade brusca, parecia mais real do que o seu próprio corpo” (MEYER, “Não faça
isso”, Poesias, 1957, p. 213). O Eu, desconfiado da “fidelidade” da imagem gerada e de sua
ousadia em tentar competir com a identidade “verdadeira”, aproxima o rosto para certificar-se
do engodo e da petulância do reflexo, “aparência” que se finge de “essência”:
Chegou perto, olhou. O outro olhava, lido, pálido, olhava no infinito das pupilas
refletidas. Era ele mesmo? Pensando bem, que coisa estranha esse desdobramento
sem fim, o diálogo do homem com a sua sombra. Na superfície lisa, a imagem vivia:
olhos grandes, parados, a testa pesando sobre o rosto fino. (MEYER, Idem, ibidem,
p. 214)
Em “Poema”, o Eu delira numa espécie de purgatório onírico onde, em contato com
gênios e diabos, passa por bares e por jardins nos quais as rosas representam a infância, para
terminar, em uma “galeria de espelhos”, vendo sua imagem, multiplicada aos milhares,
superar em muito os “trezentos e cinqüenta eus” fragmentados do poema de Mário de
Andrade:
A última porta revelou-me a Galeria dos Espelhos. Teto, paredes, chão, tudo
espelho. Minha imagem multiplicou-se tanto, que perdi a conta. Era eu, mais eu,
mais mil eus e atrás deles, mais outros mil. Fiquei espavorido com a idéia de ter de
suportar a companhia suspeita de tantos eus, quando um só, francamente, já me
enche... (MEYER, “Poema”, 1957, p. 220)
Podemos dizer, portanto, que o “horror” à “multiplicação de eus” (já que muitas vezes,
confessa o memorialista, torna-se difícil conviver com “um só”, quanto mais com milhares...)
é semelhante ao “horror ao espelho” que outro aficcionado pelo tema afirma possuir:
Yo que sentí el horror de los espejos / No sólo ante el cristal impenetrable / Donde
acaba y empieza, inhabitable, / Un impossible espacio de reflejos // Sino ante el agua
especular que imita / El otro azul en su profundo cielo / Que a veces raya el ilusorio
vuelo / Del ave inversa o que un temblor agita // Y ante la superficie silenciosa / Del
ébano sutil cuya tersura / Repite como un sueño la blancura / De um vago mármol o
una vaga rosa, // Hoy, al cabo de tantos y perplejos / Años de errar bajo la varia luna,
/ Me pregunto qué azar de la fortuna / Hizo que yo temiera los espejos. (BORGES,
Jorge Luis, “Los espejos”, 1976, p. 152)
381
Assim como nos textos de Meyer (“Espelho” e “Sanga funda”), no poema de Borges o
espelho como móvel da duplicação da imagem pode se insinuar tanto através do “cristal
inpenetrável” quanto da “água especular”. Além disso, se em “Los espejos” Jorge Luis Borges
percebe que não solidão em um quarto com espelho, pois a imagem do “Outro” sempre
servirá de companhia
122
, em seus Cadernos Augusto Meyer reporta-se à solidão como
companheira especial até mesmo na ausência de espelhos, que a imaginação é suficiente
para criar as “sombras” e “fantasmas” que ecoarão nossas palavras:
Quando eu me afasto dos amigos, quando eu estou a sós, quando a solidão me
envolve então é que chega esse que de perto e de longe me ‘segue’. (...) Quando
estou sozinho, vou falar com esse que me acompanha como se fôra a minha sombra.
Em verdade a solidão não é uma solidão. Ela se povoa dos fantasmas que criamos,
ela se enche de nossos pensamentos. A solidão torna mais sonoro o eco das nossas
palavras. (...) Ela nos deixa face a face com esse que nos segue como se fora uma
sombra. (...) Em verdade a solidão muitas vezes é um suplício. Porque torna sonoro
e terrível o eco das nossas palavras... Porque nos deixa face a face com esse que por
todos os caminhos nos segue, como se fora uma sombra... (Apud CARVALHAL, A
evidência mascarada, 1984, p. 60-1)
Assim, “sempre que a solidão se instala e reina o vazio e o silêncio, a duplicidade do Eu
se manifesta, dramatizando a expressão lírica” (CARVALHAL, 1984, p. 62), como no esboço
de um auto-retrato que, mesmo parecido com o original, nem por isso contribui para a
elucidação de detalhes do modelo, apenas acentua a solidão e o sentimento de inadequação
deste:
Aqui o poeta pára e, como o pintor que examina a tela distante fechando um olho,
inclinando a cabeça um pouco até chegar ao ponto ideal da visão, que o auto-
retrato pode estar muito parecido, mas nem por isso conhece melhor o modelo. Onde
está o original? Não sei. (...) Auto-retrato, quantas vezes recomecei o teu esboço
teimoso, como quem desenha a própria sombra na areia. (MEYER, “Auto-retrato”,
Poesias, 1957, p. 221)
Ainda sobre o tema do duplo, tão caro a Borges e a Meyer, convém lembrarmos que o
escritor argentino eternizou uma variante importantíssima da duplicação da imagem do Eu
em “Borges y yo”, o autor de El Aleph explora o inevitável conflito entre o escritor “imortal”
(cujas preferências não passam de “vaidades de ator”) e a personalidade do homem que se
122
“Nos acecha el cristal. Si entre las cuatro / Paredes de la alcoba hay un espejo, / Ya no estoy solo. Hay otro.
Hay el reflejo / Que arma en el alba un sigiloso teatro.” (BORGES, 1976, p. 153)
382
“esconde” atrás do nome famoso e que vive para que o outro possa sobreviver, relação
tumultuosa e complexa que faz com que ambos se interpenetrem a ponto de não sabermos
quem “assina a página em branco”:
Al otro, a Borges, es a quien le ocurren las cosas. Yo camino por Buenos Aires y me
demoro, acaso ya mecánicamente, para mirar el arco de un zaguán y la puerta
cancel; de Borges tengo noticias por el correo y veo su nombre en una terna de
professores o en un diccionario biográfico. Me gustan los relojes de arena, los
mapas, la tipografía del siglo XVIII, las etimologías, el sabor del café y la prosa de
Stevenson; el otro comparte esas preferencias, pero de un modo vanidoso que las
convierte en atributos de un actor. Sería exagerado afirmar que nuestra relación es
hostil; yo vivo, yo me dejo vivir, para que Borges pueda tramar su literatura y esa
literatura me justifica. Nada me cuesta confesar que ha logrado ciertas páginas
válidas, pero esas ginas no me pueden salvar, quizá porque lo bueno ya no es de
nadie, ni siquiera del otro, sino del lenguaje o la tradición. Por lo demás, yo estoy
destinado a perderme, definitivamente, y sólo algún instante de mí podrá sobrevivir
en el otro. Poco a poco voy cediéndole todo, aunque me consta su perversa
costumbre de falsear y magnificar. (…) Hace años yo traté de librarme de él y pasé
de las mitologías del arrabal a los juegos con el tiempo y con lo infinito, pero esos
juegos son de Borges ahora y tendré que idear otras cosas. Así mi vida es una fuga y
todo lo pierdo y todo es del olvido, o del otro. No cuál de los dos escribe esta
página. (BORGES, Jorge Luis, “Borges y yo”, El hacedor, 1995, p. 62-3)
123
Tudo que lemos até agora neste item confirma a observação de Tania Carvalhal em A
evidência mascarada, segundo a qual a obra de Augusto Meyer “(...) dramatiza o conflito
entre ser e parecer”, conflito que
(...) repercute necessariamente no tratamento dado ao tema do Outro, desdobramento
de si próprio que se manifesta com igual intensidade na poesia e na memorialística.
Assim, tornando ficção, anos depois, o Outro que ele foi, em No Tempo da Flor,
Meyer tenta captar o instante transitório em que o menino entra na adolescência, ‘a
meio caminho de si mesmo’. (CARVALHAL, 1984, p. 17)
124
123
Augusto Meyer também separa o homem do escritor. Falando sobre a morte de Machado de Assis, escreve
em Os galos vão cantar”, primeiro capítulo de Preto & Branco: “É assim que morre o homem para que a obra
possa viver. Morre a cada momento, em cada frase acabada, em todo ponto final. Em verdade, o escritor
procurava, talvez inconscientemente, essa outra forma de vida, mais grave e profunda, que principia na hora da
morte e se prolonga no tempo através da interpretação dos leitores”. E para caracterizar as múltiplas
possibilidades de interpretação, novamente a metáfora da imagem multiplicada pelos reflexos do espelho: “Seu
sentido interior não pára nunca, nem se deixa deformar pela interpretação parcial dos leitores. Cada palavra
impressa esconde um espelho de mil facetas, onde a nossa imagem pode multiplicar-se até a tortura dos
indefiníveis.” (MEYER, 1956, p. 13-4)
124
Ainda sobre a questão do eu fracionado que Augusto Meyer tenta recuperar através do memorialismo,
leiamos o pertinente comentário de Tania Carvalhal em Augusto Meyer - Letras Rio-grandenses, 8: “Não faz
Meyer um ‘roman-fleuve’, como La Recherche, nem mesmo escreve memórias’, no sentido exato do termo que
indica uma reconstituição centrada no histórico mas tende ao relato de natureza autobiográfica, por vezes quase
um registro descontínuo que intenta resgatar um Eu que no tempo se perdeu. Dito ainda de outra maneira, os dois
volumes de Meyer são tentativas de reencontro do autor com ele mesmo, pois o interessa pouco o que aconteceu
no passado, nem tem a preocupação cronológica com esses fatos, mas quer principalmente fixar os momentos
experimentados com mais intensidade para entender o processo pelo qual o Eu anterior se transformou no Eu
presente.” (CARVALHAL, 1987, p. 14)
383
São vários os capítulos de No tempo da flor que pontuam a transição da infância do
escritor para a adolescência, a começar pelo primeiro (o comentado “Na Praça da Matriz”,
em que “o Eu da gente é um inquilino que se imagina dono de si mesmo”, 1966, p. 07),
passando por “No tempo da flor” (o qual merecerá aqui atenção maior, justamente por conter
finas análises do assunto em questão) e por “Importuna memória” (em que a fascinação pelo
“espetáculo” da prostituição é o mais claro indício da transformação do menino em homem;
1966, p. 79-85), até chegar em “Rua da Praia” (“um dos primeiros sonhos dourados” do
menino “aluado”, 1966, p. 123-134), capítulo que registra as impressões do escritor a respeito
da rua onde convivia com seus companheiros de pena e de copo e que continha, além da
Livraria do Globo e dos principais cinemas, as redações do Correio do Povo (onde iniciou sua
vida literária) e do Diário de Notícias, local de “nascimento” de seu alter-ego:
Ali nasceu Bilu, cidadão da harmonia cósmica, a dialogar com Rampaglia, a furar o
toldo do circo em pulos funambulescos, e o seu salto mortal tríplice, mas um tanto
crispado, as suas cabriolas de volatim acabavam sempre irritando o alarmado Roque
Callage, entre duas bombeadas do vaporizador antiasmático. (MEYER, 1966, p.
129)
Quem leu apenas o primeiro volume das Memórias acredita que Tico é a única
“identidade” do menino Augusto, não desconfiando que o Eu do memorialista resgatará,
justamente no volume seguinte (No tempo da flor, compilação de suas reminiscências da
juventude e das reflexões sobre a “perda da identidade”), as figuras de Foguinho, Aug e Bilu,
este sim o verdadeiro “duplo” do escritor
125
, aquele que, na poesia e na memorialística de
Augusto Meyer, “pensa nas madrugadas que virão” e “aspira a força da terra possante e
contente” (“Chewing gum”, Poesias, 1957, p. 138), inspirando até mesmo uma inusitada troca
de acusações, em forma de soneto, entre a alma do escritor e ele, Bilu, que “coleciona grilos”
e se queixa da inexistência de uma “Bilua”!, inacessível donzela que lhe completaria a
existência.
125
“Em Meyer, Bilu é a sombra que se concretiza; a parte oculta do Eu que toma corpo, uma potencialidade de
sua personalidade que é subitamente liberada: o duplo.” (CARVALHAL, Tania. A evidência mascarada, 1984,
p. 89-90)
384
A culpa não é minha, a culpa é tua, / de tanto controlar, tu descontrolas. / Pois
coleciona grilos, ora bolas! / Planta um grão de feijão e vai pra lua! // Alma, sabes
que mais? Tu não me amolas! / Boto o chapéu na idéia e vou pra rua / ver se
encontro, imprevista, uma Bilua... / Por hoje, basta de caraminholas! // Crepúsculo
de maio, suave instante, / primeira estrela, brilha! Hoje tu dás / ao Poeta a mesma luz
que Deus te deu. // Alma, tudo é impossível e distante. / Vês? Ela brilha e me
namora, mas / quando a luz chega, a estrela morreu. (MEYER, “A alma e Bilu,
diálogo”, Poesias, 1957, p. 182)
Na crônica “A morte de Bilu Tragédia em dois minutos” (Diário de Notícias,
29.04.1928), sarcástico diálogo entre Bilu e o Diabo (Mefisto), surge uma nova esdrúxula
pretendente, tão diversa das sedutoras jeunes-filles de Proust. Assim diz Mefisto:
Não aconselho as injeções vitais. Elas revigoram formidavelmente os tecidos,
revitalizando o sistema nervoso, mas podem levar a um estado de euforia perpétua,
durante o qual, Bilu, você vai se apaixonar até pela Maria Caxuxa, quanto mais pelas
jeunes-filles que se miram no espelho róseo das unhas. O inconveniente é grande.
(MEYER, 1928)
No final da crônica, Augusto Meyer ridiculariza Coelho Neto e Alberto de Oliveira,
sugerindo que o suicídio é mais “vantajoso” que a tediosa leitura das obras destes.
Acompanhemos o estranho diálogo:
(Mefisto) (com seu risinho suave) (...) Para o suicídio conheço um meio mais
prático. (Vai a estante e escolhe dois volumes). Leia uma página do Coelho Neto,
príncipe dos prosadores, ou um soneto de Alberto de Oliveira, príncipe dos poetas...
(...) (Bilu) (um pulo e se rasga todo) ó morte horrível! três vezes horrenda! ó
atroz morte! Mefisto, tem pena de mim! (...) (Mefisto) (imperativo) Lê! (...)
(Bilu) Não é preciso ler: me declaro morto! (...) (Bilu morre mesmo, o que aliás é
muito natural). (...) PANO (...) (nota) O autor reserva-se o direito de ressuscitar
Bilu na primeira oportunidade. (MEYER, “A morte de Bilu”, 1928)
126
De modo semelhante a de Bilu, este impagável alter-ego que é puro deboche e acinte e
que pode “morrer” e “ressuscitar” a qualquer momento, a personalidade de Aug, alcunha do
jovem “aprendiz de poeta e pintor”, perpassa todo o volume, e sentimos sua “presença”
sobretudo no capítulo “Rua da Praia”, no qual, relembra o sujeito da memória, o “pernalta”
Aug (bem como toda a sua geração), no auge da juventude boêmia e libertária (e
126
Mais próximos à corrente” de Graça Aranha, muitos modernistas “elegeram” a figura de Coelho Neto como
paradigma do caráter oficial, superficial e caricaturesco da literatura brasileira no início do século XX. Além de
Meyer, Oswald de Andrade também “homenageia” o escritor maranhense em Serafim Ponte Grande (“O mal foi
ter eu medido o meu avanço sobre o cabresto metrificado e nacionalista de duas remotas alimárias Bilac e
Coelho Neto. O erro foi ter corrido na mesma pista inexistente” (ANDRADE, 5 ed, 1989, p. 09); e em Um
homem sem profissão: “Volto num desespero ao Rio. Sei que ela [a bailarina Landa Kosbach] está em casa de
Coelho Neto. Chamo pelo telefone o bestalhão máximo da nossa literatura. Mudando a voz, finjo de missionário
italiano, interessado em obter o concurso da dançarina para um festival de benefício. Irei raptá-la no antro
livresco do escritor que ela freqüenta.” (ANDRADE, 2 ed, 2002, p. 138-9)
385
freqüentando, com companheiros como Tostes, Athos e Vellinho, os melhores bares, livrarias
e cinemas da belle époque porto-alegrense), respira Modernismo e imprime novo e definitivo
rumo à literatura gaúcha. Para Tania Carvalhal, “Bilu opõe-se a Aug”, pois
Ao caráter rígido e controlador de Aug contrapõe-se a anarquia de Bilu, à sua
tendência reflexiva e séria, o riso irreverente e a descontração bilusiana, à sua
qualidade de inventor (leia-se Aug”, em Poemas de Bilu) as características
destruidoras e anticonvencionais do duplo. (CARVALHAL, 1984, p. 92; grifo da
autora)
127
as referências a Foguinho são raras e breves (praticamente restritas ao capítulo “No
tempo da flor”, que título à obra)
128
, expediente “freudiano” do qual o sujeito da memória
se vale para sufocar a recordação de um cognome “malicioso” que mexia com os nervos do
menino (em contraposição a Tico, familiar e “carinhoso”), alusão maldosa à cor avermelhada
de seu cabelo, apelido que despertou nele, na época, raiva e sofrimento (por ser “diferente”
dos outros, animal que sai marcado” e destinado a ser “gauche” na vida), mas que para o
memorialista é motivo de orgulho, que Augusto, ao herdar do bisavô Felipe “a juba ruiva
dos nórdicos” e transmiti-la ao neto José, é o elo de um ciclo interminável de nascimento,
vida e morte que se perpetua justamente através das características hereditárias e dos liames
físicos, sociais, morais e comportamentais que os unem.
Rebrotara comigo a juba ruiva dos nórdicos, o mesmo cabelo cor de fogo do meu
bisavô Felipe Klinger e do meu neto José Resende Costa. Assim se transmite, de
geração a geração, com intermitências, um pigmento, um nariz, uma luz de alma
debruçada nos olhos, a cor do cabelo, para lembrar que tudo é continuidade humilde,
através dos tempos, e a ilusão individual da vida não passa de um fragmento no
grande contexto, sem significado próprio e quase sempre acabando em reticências...
(MEYER, 1966, p. 41)
Característica que, tendo originado, na ocasião, vergonha e humilhação para o menino
que odiava o apelido (além de ter dificultado o “acesso” do adolescente a “quiméricas
Dulcinéias”), é exemplarmente interpretada pelo sujeito da memória, que demonstra ter
assimilado aquilo que Roland Barthes chamou, com muita propriedade, de “pré-história do
127
O poema cuja leitura Tania recomenda é o seguinte: “Nós inventamos palavras maravilhosas, músicas sutis. //
Porém ninguém não quis, / ninguém não quis ouvir a nossa voz. // Então nós inventamos músicas sutis / para
nós. // Nem por isso o inventor foi mais feliz” (MEYER, Aug”, Poesias, 1957, p. 184). Sobre o “personagem”,
ver também, em Literatura e poesia, o capítulo “Menino Aug”. (1931, p. 86-7)
128
Ver Anexo I, p. 492-494.
386
corpo”
129
, finalmente compreendendo o “sentido superior” da “sina” de ser ruivo (não mais o
de servir de chacota para os colegas de escola, mas o de propagar séculos afora um “sinal
hereditário”):
Mas Augusto então não queria saber de reticências. Palpitava uma labareda de
vitalidade naqueles cabelos fartos, rebeldes e ondulados, e o mesmo pêlo ruivo
começava a brotar no dorso das mãos sardentas. Como todo animal que sai marcado
e peculiar, de pinta diferente, no meio dos outros, Foguinho sofria do seu cabelo, das
suas sardas, do seu apelido coruscante e malicioso. (...) Enquanto vivia a turbulência
do futebol, do soldado-ladrão, da barra, do brinquedo de esconder um, dois, três
Foguinho! não sentia as malícias do apelido. Mas agora, aluno de preparatórios,
mocito espigado e vago leitor de Alencar e Victor Hugo, a reação era outra.
Foguinho parecia-lhe nome de guerra pouco romanesco e nada recomendável aos
olhos das quiméricas Dulcinéias, fabricadas com a brisa das leituras elegíacas, entre
uma lição de álgebra e os destroços de um soneto gorado. (MEYER, 1966, p. 41-2;
grifo do autor)
Apesar da rejeição à alcunha que o acompanha a contragosto, “No tempo da flor” é uma
espécie de encômio da adolescência, período confuso no qual, para Meyer, o jovem é mais
“vítima” do que “culpado”, já que não pode ser responsabilizado pelo fato de ser “homem
feito” “por fora” e, “por dentro”, ser “a mesma criança”, “mais criança ainda por contraste,
quando se revela a persistência do espírito pueril num gesto, numa palavra impensada, numa
simples inflexão de voz” (MEYER, 1966, p. 40). A mudança de voz, aliás, é, na opinião do
memorialista, um indício da profunda e definitiva transformação que o Eu sofre:
Na mudança de voz é que se manifesta, às vezes com efeitos muito engraçados de
falsete, esse diálogo entre o homem e a criança, verdadeiro dueto, em que o grave e
o agudo, o barítono e o tenorino, tentando colaborar na mesma frase, respeitam o
sentido oracional, mas quebram a unidade expressiva, alternando modulação,
volume e ressonância. (...) Com que boa risada se descobre que dentro do
grandalhão está escondido um guri. (MEYER, 1966, p. 40)
A valorização do adolescente como virtualidade transitória do Eu, esboço caricato do
homem que ainda não veio”
130
, e como símbolo máximo daindeterminação do futuro”
prossegue, culminando, à página 42, com o lírico e singelo elogio de suas potencialidades
latentes, o que o elevaria à condição de “herói dos quatro ventos”:
Digam o que disserem os críticos sisudos e adultos, babando sabedoria, na
virtualidade está a grande vantagem desse herói dos quatro ventos, e todos estes
129
Roland Barthes por Roland Barthes, 2003, p. 12.
130
“Já o sentimos dentro de nós, o herói virtual, como um apelo que vem de muito longe. A meio caminho de
mim mesmo, o homem que hei de ser começa a desencadear o gesto criador de um destino.” (MEYER, “No
tempo da flor”, 1966, p. 42)
387
lados que agora nos parecem tão ridículos no Adolescente, o ser mas não ser, o
andar e desandar, os tropeços do homem levado pela mão da criança, revirados pelo
avesso, apresentam outros lados positivos de compensação e desafogo, são outras
tantas janelas abertas para a deliciosa indeterminação do futuro. Quem tem razão é
sempre o amanhã que ainda não veio, a aventura dos dias escondidos na vaga
distância azul de outros dias... (...) Ébrio de nada e tudo, mas com não sei que toque
de sol nos olhos, ridículo e admirável, na sua riqueza potencial, o adolescente sofre
por não saber como é bom sofrer no tempo da flor. (MEYER, 1966, p. 42)
Por tudo isto, que se lamentar mesmo o “eu perdido” da adolescência, tempo que,
“visto de longe, e por saudade, (...) é só aroma; vivido, é espinho também” (MEYER, 1966, p.
40)
131
, embora o jovem não se conta do fato, pois ele sofre sem saber bem o motivo
(“espinhos” que ferem o corpo e a alma) e sem ter noção de que se trata do melhor período de
sua vida, período de rejeições mas de descobertas, de crises existenciais mas também de
experiências únicas: “Para quem nasceu com um pouco de imaginação, a adolescência é mais
ou menos como aprender a caminhar por entre os obstáculos de um caminho atravancado
com pernas de pau e sem tropeçar”. (MEYER, 1966, p. 40)
A metáfora das “pernas de pau” não é a única que Augusto Meyer utiliza para se referir
à adolescência: em sua visão retrospectiva, a juventude é o “sol” de nossas vidas, enquanto a
maturidade não passa de uma “sombra” que nos acompanhará até a morte:
Em vão nos voltamos, de vez em quando, para aquelas manchas claras de terra
insolada, nas dobras do horizonte. Para trás ficou a infância e a adolescência, que
é o tempo flor. Em frente, em frente seguem os nossos caminhos, todos eles voltados
para a zona de sombra. (MEYER, 1966, p. 39)
Mesmo na irremediável “zona de sombra” e deixando a juventude, “várzea ao sol”, para
trás, em essência a “memória sentimental” do poeta é a mesma, como afirma em 1930, na
crônica “Tema da infância”: “Meus olhos mudaram, (...) meus olhos mudaram mas no
fundo o coração é o mesmo”. (MEYER, Correio do Povo, 04.06.1930)
132
131
Notar a incrível semelhança entre esta passagem de “No tempo da flor” e a seguinte estrofe de “The ivy
crown”, do poeta norte-americano William Carlos Williams: “At our age the imagination / across the sorry facts
/ lifts us / to make roses / stand before thorns” (1999, p. 456), assim traduzida por Ana Cristina Cesar e Grazyna
Drabik: “Na nossa idade, a imaginação / levanta-nos / acima dos fatos tristes / colocando rosas / à frente de
espinhos.” (in CESAR, Ana Cristina, Crítica e tradução, 1999, p. 459)
132
Carlos Drummond de Andrade também encara a questão de forma semelhante: “Vamos, não chores... / A
infância está perdida. / A mocidade está perdida. / Mas a vida não se perdeu. // O primeiro amor passou. / O
segundo amor passou. / O terceiro amor passou. / Mas o coração continua.” (“Consolo na praia”, A rosa do povo,
1989, p. 117)
388
Desta curta frase, mais uma metáfora se depreende: os olhos representam o
outro/idem/same (ver 2.3, p. 117-8), o “eu” que varia conforme a passagem do tempo, ao
passo que o coração, sempre “igual”, equivale ao mesmo/ipse/self dos termos de Locke
recuperados por Ricoeur, “eu” perene que se afigura “ser” enquanto “ser” e que, no caso de
Augusto Meyer, materializa-se na “memória sentimental” daí a metáfora do coração que
pretende assentar recordações de lugares como o Cerro d’Árvore ou a Praça da Matriz e de
pessoas como os bisavós ou o tio Emilio Meyer, entidades indispensáveis à sua recriação
memorialística.
Recriação de um Eu que, incomodado com tantos “inquilinos” a habitarem a mesma
“casa”, decide transformar a “fragmentação interior”, tão cara a sua obra poética, em uma
espécie de reconstituição memorialística integral, que abarque simultaneamente a reconquista
do tempo, do eu e do espaço perdidos, pois “não há distância entre o eu e a paisagem” e muito
pouca entre o “tempo da flor” vivido (“espinho” também) e relembrado (só “aroma”). Se
Augusto Meyer realizou seu projeto ontológico a contento não o sabemos, uma vez que o
volume Becos da memória, terceiro e último de sua memorialística, onde provavelmente
chegaria à reunificação do Eu perdido, não chegou a ser efetivado. No entanto, tal lacuna não
inviabiliza a bem-sucedida reconfiguração do passado obtida através dos capítulos de
Segredos da infância e No tempo da flor. Apenas deixa no ar a sugestão de que, assim como
Proust, Augusto Meyer, caso tivesse tido tempo suficiente, teria conseguido se “reencontrar”
de forma integral e definitiva, afastando de vez os fantasmas da “fragmentação multiplicadora
da personalidade” que o perseguiam e que faziam dessa tentativa extrema a razão principal do
autoconhecimento que o escritor buscava atingir nestas Memórias que, por todas as
características vistas no presente item, bem poderiam ser definidas como a “reinvenção
memorialística do eu” que, a princípio subdividido nas personalidades de Tico, Foguinho,
389
Aug e Bilu, torna-se novamente uno através do lírico e nostálgico trabalho de reconstituição
mnemônica de Augusto Meyer, sujeito da escritura.
390
4.5 CONFLUÊNCIAS ENTRE AS MEMORIALÍSTICAS DE AUGUSTO MEYER E
DE PEDRO NAVA
“Méier, ier, Méier. Fui derretendo na boca,
repassando a bala do vocábulo méier, méier,
meiermeiermeiermeier até ficar com seu travo
acídulo, com seu som e dele varrer qualquer sentido
intrínseco. Abrindo apenas os caminhos das associações
abstratas. As das palavras mágicas. As das que
funcionam isoladas e dizem sem necessidade de frase.”
(Pedro Nava, Balão cativo, 1973, p. 185)
Este importante memorialista brasileiro adorava cinema e artes plásticas, tendo dado
vazão a suas “veleidades de pintor” e chegado a pensar ser esta sua verdadeira vocação.
Planejou a continuação de suas Memórias, mas não viveu tempo suficiente para cumprir o
projeto. Viveu no “Caminho Novo” e conviveu com a geração modernista de 22 (a de rio
de Andrade e Manuel Bandeira) e de 30 (a de Carlos Drummond de Andrade), teve um tio
como modelo intelectual em sua incursão pelo mundo das letras e da cultura, freqüentou as
principais rodas literárias e boêmias de uma capital emergente, apaixonou-se pela imagem da
Bela Adormecida no Bosque, a “própria imagem da poesia das coisas perdidas no tempo”
(MEYER, 1966, p. 97), e criou seu alter-ego. Afinal, de quem estou falando, de Augusto
Meyer (e Bilu) ou de Pedro Nava (e Egon)? De qualquer um deles, pois a ambos se aplicam as
características mencionadas acima, afora as convergências temáticas e intertextuais (Proust
sobretudo, mas também François Villon
133
e outros escritores franceses), envolvendo a
gênese, a estruturação e a realização da escritura das respectivas obras memorialísticas.
133
“Ah! onde? estais flores doutrora, onde? neiges d’antan? Onde? estais nossas Heloísas Brancas Bertas
Beatrizes Haremburges Joanas...” (NAVA, Beira-mar, 3 ed, 1985, p. 104). Na memorialística de Meyer, o topus
do ubi sunt? (“sont?”, “onde estão?” as pessoas de nosso passado) aparece de maneira subliminar, como em
“Mundo”, crônica de acento memorialístico presente em Literatura e poesia: “Mas onde está você, Aparício
Sampaio? A loja em que você morava continua com os rolos de fazenda na porta, o balcão e a vidraça. você
não pode mais (nunca mais) comparecer, porque a terra tomou conta do seu corpo. E onde estão os guris
camaradas? O magriça bilioso que me ensinou a pitar o primeiro cigarro (...)” (MEYER, 1931, p. 05). No ensaio
“Pergunta sem resposta”, veiculado em Preto & Branco (1956), Augusto Meyer se serve justamente das baladas
de Villon para discutir o caminho histórico da pica que “corria mundo entre as poesias populares latinas da
Idade Média” (1956, p. 106), acentuando a originalidade de um poema como a Ballade des dames du temps
jadis, no qual, “tomando como impulso criador a seqüela de nomes ilustres que formavam um catálogo dos
mortos” (a cortesã romana Flora, Heloísa, discípula e esposa de Abelardo, Berta, mãe de Carlos Magno, dentre
391
Não pretendo comparar, tola e ingenuamente, as “coincidências literárias” que cercam
as obras memorialísticas destes ilustres insones
134
, e sim demonstrar o quanto os projetos se
relacionam e os assuntos abordados são praticamente os mesmos, a despeito de uma diferença
fundamental: as Memórias de Augusto Meyer compõem-se de capítulos curtos, descontínuos
e sem ordem cronológica fixa, ao passo que as de Nava respeitam a narrativa cronológica e se
subdividem em longos capítulos que mantém, na medida do possível, uma certa linearidade.
Além disso, o projeto de Pedro Nava era maior e mais ousado, tendo o escritor mineiro
previsto a redação de catorze volumes, enquanto Meyer se atinha ao planejamento inicial de
produzir uma trilogia. Em comum, nesse caso, o fato de ambos não terem conseguido realizar
plenamente suas respectivas iniciativas Nava, como sabemos, interrompe-a durante a
redação do sétimo volume, Cera das almas, e Meyer nem chega a compilar os capítulos que
fariam parte do terceiro e último volume de suas memórias, ao qual intitularia Becos da
memória
135
.
outras; ver VILLON, 1986, p. 18-21), “o genial escholier conseguiu compor uma balada (...) que já não é dança
macabra, nem lição de moral, (...) é só poesia”. (MEYER, 1956, p. 108)
134
Além do episódio descrito em “O rei dos ratos” (Segredos da infância, 1949, p. 21-30), fonte primordial da
insônia do memorialista durante a infância, ver: “Fechar os olhos e dormir. Mas no fundo das pálpebras
fechadas, o olho da insônia abre um túnel. Vultos do passado chegaram na ponta dos pés e entraram no quarto,
como gente discreta de velório que não quer importunar o defunto. Vem deles o sussurro do absurdo, o cochicho
do irrevelado(MEYER, “Do fundo da insônia”, Segredos da infância, 1949, p. 70). E também: “Estirado na
cama, em noites de insônia, sinto que é inútil contar até cem, amil, até mil e um... São as mil e uma noites de
insônia. Filmes salteados e trêmulos perfuram-me a pupila interior. Um fervilhar de imagens atropeladas toma
conta da memória aturdida. O poço de esquecimento em que vão caindo as cousas, uma por uma, devolve à
consciência, uma por uma, as mesmas cousas esquecidas” (MEYER, “Cine Insônia”, No tempo da flor, 1966, p.
35). De Pedro Nava, conferir, por exemplo, o seguinte trecho de Chão de ferro: “Quando eu chegava [na casa da
cunhada dos Ennes] conversava um pouco e logo depois íamos para o vale de lençóis. Minha presença, o fato de
saber alguém ali com a possibilidade de buscar socorro, chamar tia Eugênia, o médico, ir à farmácia restituiu
tranqüilidade à família e passaram todos a dormir. Eu não. Foi nessa estada em casa da Clara que comecei as
faltas de sono e insônias de que dei alguma notícia contando [em Balão cativo] minhas noites no internato.”
(NAVA, 1976, p. 211)
135
Além desses dois escritores, outros importantes memorialistas brasileiros morreram antes de completar seu
projeto memorialístico, como por exemplo Humberto de Campos (tanto que o segundo volume de suas
reminiscências foi publicado sob o título de Memórias inacabadas) e Oswald de Andrade, que redigiu apenas o
primeiro dentre os quatros volumes planejados, de acordo com o depoimento de Jorge Schwartz e de Gênese
Andrade na “Nota Introdutória” a Um homem sem profissão. Leiamos: “Em duas entrevistas importantes (...),
Oswald menciona o projeto de suas memórias, com o título genérico Um homem sem profissão, em quatro
tomos: I. Sob as ordens de mamãe, que engloba o período de 1890 a 1919, relato de sua infância, adolescência e
primeira mocidade; II. O salão e a selva, que vai até 1929, sobre o movimento modernista, a Semana de Arte
Moderna, o Movimento Antropofágico, o ciclo áureo do café; III. O solo das catacumbas, de 1930 a 1942, relato
de suas experiências políticas; IV. Para do trapézio sem rede, como ele diz, ‘desde o encontro de Maria
Antonieta d’Alkimin até hoje’ [1954, data de sua morte].” (2002, p. 09)
392
Morando ambos no Rio de Janeiro a partir da década de 30 (Meyer a partir de 1937 e
Nava, de 1934), por pouco não se conheceram pessoalmente, conforme conta Raymundo
Faoro em texto sobre Sérgio Buarque de Holanda, convivência que poderia ter ocorrido
naturalmente que tinham amigos em comum não fosse o isolamento do “caramujo”
Meyer, que se trancara em casa depois da morte de Sara da mesma maneira que alguns de
seus grandes mestres (Proust após a morte da mãe e Machado de Assis após a de Carolina),
com o propósito de viver “confinado” aos livros e às lembranças pessoais o resto de sua
vida
136
.
Leitor compulsivo, é possível (mas, creio, improvável) que Nava tenha lido as
Memórias de Meyer (principalmente Segredos da infância, que é de 1949), mas Meyer, morto
em 1970, certamente não leu as de Nava, detalhe que releva o fato de possuírem as Memórias
de Meyer e de Nava, ambas assumidamente proustianas, impressionantes correlações
sobretudo temáticas. Se, no plano pessoal, os escritores não tiveram a oportunidade de se
conhecerem, no plano literário suas memorialísticas mantém uma estreita “convivência”,
tornando-se uma o complemento da outra, sendo que as motivações que as enformam são
praticamente as mesmas, o que me leva a adotar, neste item, a idéia de “trechos paralelos”
para caracterizar as confluências entre as duas obras, citando, inclusive, tais trechos lado a
lado a fim de reforçar a aproximação entre os temas abordados.
Tendo Augusto Meyer nascido em janeiro de 1902 e Pedro Nava em junho de 1903, é
perfeitamente compreensível que ambos tenham vivenciado, nas duas primeiras décadas do
século XX, as mesmas “seduções” infanto-juvenis, relacionadas à descoberta de interesses
restritos ao mundo dos adultos (sexo, prostituição e tabagismo) e a manifestações artísticas
136
Afirma Faoro, a respeito dos encontros na casa do autor de Raízes do Brasil: “Quando possível, formava-se
um grupo para o jantar, Francisco de Assis Barbosa, Pedro Nava, Afonso Arinos. Eu algumas vezes ligava para
Augusto Meyer, para que ele se juntasse a nós. Ele se mostrava decidido a comparecer ao jantar. Perguntava a
hora do encontro: ‘Meyer, às nove está bem?’. Quem sabe’, dizia, ‘às nove e quinze?’. Ele não aparecia nunca,
apesar da segurança da resposta.” (FAORO, Raymundo, “Mestre Sérgio”, Caderno Mais!, Folha de São Paulo,
23 jun 2002, p. 06)
393
em geral (pintura, cinema). Vejamos alguns dos inúmeros trechos “em comum”.
Primeiramente, o fascínio pela prostituição:
Além dos oradores de praça, havia os amorosos,
que traziam de olho a Sofia, renteavam a janela
baixa da Bola-de-Sebo, ambas italianas, ambas
maternais com a rapaziada. Eram o desespero das
famílias, a delícia dos pecados mortais.
Debruçavam-se na almofada do peitoril, para
alargar ainda mais a dádiva do decote. ‘Estão
verdes’, pareciam dizer os olhares tortos de alguns
hipócritas, que passavam de largo na calçada. Mas
nos olhos longos dos estudantes corria leite e mel...
(MEYER, “Do tempo da espanhola”, No tempo da
flor, 1966, p. 58-9)
Bem cedo começou a impressionar-me, na Praça da
Matriz, o espetáculo da prostituição. Naquela idade
em que as cousas deixam marcas profundas, era
abrir os olhos, para que tudo entrasse por eles e
ficasse gravado no íntimo, a vida inteira. (MEYER,
“Importuna memória”, No tempo da flor, 1966, p.
79)
Acontece que, desde seus primórdios, Juiz de Fora
tinha uma cloaca aberta a igual distância da Rua
Principal e das barrancas do Paraibuna. Era a Rua
do Sapo. Nela se abrigavam as biraias autóctones e
as zabaneiras que vinham do Rio em diligência.
Justamente a chegada de um desses carregamentos,
contendo até francesas para os nativos, foi
ruidosamente festejada pelos tios Zezé e Júlio, em
companhia do próprio Inácio Gama. Houve vinhos,
houve música e o chafurdamento final. Pois no dia
seguinte os dois irmãos foram ouvidos pela
Inhazinha quando rememoravam, deleitados, os
néctares de Siracusa que tinham bebido, os tabacos
de Alepo que tinham fumado, as harpas de
Alexandria que tinham tangido e as cortesãs de
Sagunto que tinham comido. Que mulheres! Que
chupetas! Eles ainda estavam frouxos, zonzos,
exauridos, sem tutano, desossados, os quartos
destroncados... O Gama, então, tinha ficado...
Surpreendido o relato da orgia, a mana s a boca
no mundo, com um acesso que era mais de raiva
que de mágoa. (NAVA, Baú de ossos, 6 ed, 1983,
p. 151-2)
137
Marcos de uma maliciosa iniciação, a da explosão dos apelos da carne (explosão que
permanece nos poros e na memória como a lembrança das “negrinhas”, evocação a penetrar
os cinco sentidos: “Pelos olhos. Pelos ouvidos. Pelo olfato. Pelo tato. Pelo gosto da comida
simples e clássica da Lúcia, da Justina, da Rosa, da Deolinda”, NAVA, Balão cativo, 1973, p.
137
Ver também, em Balão cativo, o interesse exacerbado do memorialista pela sugestão demoníaca do achado, a
manifestar-se na curiosidade etimológica: Para os meninos a garagem foi um elemento de deleite e passávamos
o dia vendo remendar pneus, colar maras de ar, soldar peças, brunir latões com caol, lubrificar engrenagens,
pôr carbureto nos faróis dentro dum cheiro de benzina, óleo, fumaça e gasolina. Sobre esse ambiente reinava
um mecânico, lusíada de grandes bigodes, fala macia e verbiagem porca. Um dia eu ouvi distintamente a palavra.
Puta. Foi como um rebentar de mina subterrânea. Eu devia, certo que devia, saber qualquer coisa que não
enfocava. Puta. Talvez nessas quatro letras estivessem, em síntese formal, as verdades difusas que eu ainda não
configurava. Era isso. Puta. Eram certas alusões sibilinas dos grandes. (...) Não resisti e perguntei. O que que é
puta, Seu Antônio? Ele nem hesitou. Putas, m’nino, são mulheres que dão. Mais não disse e deixou-me
perplexo. A mim e ao Tonsinho. Dão o quê? santo nome de Deus! Que dão elas? Esse dar intransitivado e assim
reticente perturbou-nos profundamente” (NAVA, Balão cativo, 1973, p. 56; grifo do autor). Drummond também
demonstra o mesmo interesse em Boitempo I: “Quero conhecer a puta. / A puta da cidade. A única. / A
fornecedora. (...) // É preciso crescer / esta noite a noite inteira sem parar / de crescer e querer / a puta que não
sabe / o gosto do desejo do menino / o gosto menino / que nem o menino / sabe, e quer saber, querendo a puta”
(ANDRADE, “A puta”, Boitempo, 2 ed, 1973, p. 98). Por fim, Erico Veríssimo confessa o choque ocasionado
pela descoberta do ofício da mãe de uma colega de escola: “Certo dia um de meus colegas, sujeito mais velho e
vivido que eu, me chamou para um canto e disse: ‘Sabes que a mãe da Emília é puta?’. Tive gana de esborrachar
o nariz do intrigante com um soco. Contive-me, fiquei olhando para o chão de terra do pátio da escola. Cedo,
porém, descobri que o meu companheiro falava a verdade. A mãe de Emília era uma das mais famosas
394
07), é comum, nessa idade, reconhecer sexo “em tudo”, até nas letras do alfabeto, “as
indecentes letras!”: “(...) O descomposto A de pernas abertas; o erecto I; o fingido Y se
encolhendo como quem não quer; o V vulvar; o O ultra-anal. E a indignidade dos ditongos?
das semivogais? se apanhando ora pela frente, ora por trás (...)”. (NAVA, Balão cativo, 1973,
p. 302)
138
Mas Meyer e Nava não estão sozinhos nem são os principais, em termos de
memorialismo modernista brasileiro, quanto à confissão do despertar do desejo sexual
experiências bem mais radicais que a “teoria” ensinada ao gaúcho e ao mineiro são vividas
por Oswald de Andrade, cujas primeiras recordações estão estritamente ligadas à masturbação
e à quebra de tabus sexuais
139
, e por José Lins do Rego, convivendo com os primos da roça e
conhecendo o sexo através do universo paralelo da zoofilia:
Sabiam demais os primos do Santo Antônio. Sabiam tanto que não havia segredos
para eles. E tanto não havia que andavam pelo cercado em libertinagens com as
vacas. Havia uma vaca chamada Selada, com defeito na espinha. Quando ia
prostitutas locais, a Palméria, de porte imponente, rico e branco colo, muito procurada pelos homens casados da
cidade.” (VERÍSSIMO, Solo de clarineta, 9 ed, 1976, v. 1, p. 88-9)
138
Em “No Bom Conselho”, Meyer também adjetiva as letras, demonstrando preocupações menos carnais e mais
“filosofantes”: “Começara a dança do alfabeto. O A de boca aberta, o B sempre de nariz entupido, o C, que
parece o simples, quase simplório como o O e o I, e afinal se revela torto e caprichoso no andar da leitura,
espécie de gancho desastrado, levando por descuido no arrastão o Q, o K e a minhoca do S” (MEYER, No tempo
da flor, 1966, p. 57). Quanto à iniciação sexual através do contato com as “negrinhas” agregadas, leia-se o
poema “Tentativa”: Uma negrinha, sem cama / salvo a escassa grama / do quintal, sem fogo / além do que vai
queimando / por dentro o menino inexperiente / de todo jogo. // Ai medo de não saber / o que fazer na hora de
fazer.” (ANDRADE, Carlos Drummond de, Boitempo I, 2 ed, 1973, p. 99)
139
“A mais longínqua lembrança que tenho de vida pessoal, destacada do cálido forro materno que me envolveu
até os vinte anos, foi de caráter físico sexual, evidentemente precoce. Está ela ligada à casa em que morávamos
na Rua Barão de Itapetininga, de jardinzinho ao lado. Sentando-me à porta da entrada e apertando as pernas,
senti um prazer estranho que vinha das virilhas. Que idade teria? Três ou quatro anos no máximo. (...) Acontece
terem as crianças ereção no primeiro mês de vida e iniciarem um inútil período de masturbação, enquanto
homens de quarenta anos e menos perdem estupidamente a potência para viver dezenas de anos como cadáveres.
Obra de Deus querem os padres e as comadres. O limite, o tabu dos primitivos. A adversidade metafísica. O
malefício eterno e presente que todas as religiões procuram totemizar. (...) Assim, cedo mergulhava eu nesse
maravilhoso universo da bronha onde permaneci virgem até quase a maioridade” (ANDRADE, Oswald de, Um
homem sem profissão, 2 ed, 2002, p. 36-7). Ver também: “O bordel passou a ser um ideal para a mocidade de
meu tempo. Das pensões, escapando à tirania das caftinas, saíram inúmeras senhoras da nossa alta sociedade,
pois as profissionais do amor sabiam prender muito mais os homens do que as sisudas sinhás da reza e da
tradição” (ANDRADE, Oswald de, Idem, ibidem, p. 99). Outros adeptos confessos da masturbação durante a
adolescência foram Erico Veríssimo: “Eu não saberia dizer com que idade me alistei como soldado na legião de
Onan. Mas me lembro isso sim de meu harém imaginário, composto de retratos de artistas de teatro e de
cinema, que as revistas do Rio de Janeiro (...) me forneciam” (VERÍSSIMO, Solo de clarineta, 9 ed, 1976, p.
78); e Murilo Mendes: “Masturbo-me, sinistro diálogo da mão com o pênis, o sêmen da vida é lançado no
esgoto, destrói-se um fragmento de eternidade, anulo um trilionésimo da posteridade de Adão, disparo
retrospectivamente contra os meus avós, a soma de terror supera a de prazer;” (MENDES, A idade do serrote,
1968, p. 69)
395
chegando a boca da noite, os moleques corriam com os primos para os fundos do
curral. Com pouco mais chegava-se para junto deles a pobre Selada. E começavam a
servir-se dela uns atrás dos outros. A vaca não se movia do lugar, enquanto Silvino
ou Moreira subia no barranco para cobri-la. Depois passei a fazer parte do grupo
dos libertinos. Mal chegava do pastoreador o gado, ficávamos a rodear a vaca
Selada. (REGO, Meus verdes anos, 1956, p. 98)
Em plano menos explícito, as referências às descobertas epifânicas da sedução do sexo e
da prostituição estão muito presentes nas obras de Meyer e de Nava, caminhando
paralelamente a outro tipo de prazer juvenil experimentado nas ruas e praças de Porto Alegre
ou de Juiz de Fora e nas dependências do Colégio Pedro II – o prazer da descoberta do fumo:
Contentava-me a princípio com o doloroso namoro;
[o cachimbo] parecia-me inatingível e distante, sob
o vidro da vitrina, como as Três Marias no céu e
o primeiro lugar da minha turma, no Ginásio. Mas,
quando Sherlock Holmes baixou da tela e se meteu
em mim, aureolado de fumaça e pensativo, estava a
sorte lançada e decidida. Juntei dinheiro, tostão a
tostão, e comprei o cachimbo. (...) Senti-me
perfeitamente reintegrado em mim mesmo.
Fechado no quarto, retirava do esconderijo o meu
cachimbo e fumava brisa, soprava baforadas de
vento, a tecer e destecer intermináveis e confusas
aventuras. Pairava numa radiante nuvem de
compenetração e quimera, exagerando a boca torta.
(...) O mal foi tentar descer ao mundo vão da
experiência. Pareceu-me pelas tantas, por
cochicho do Diabo Rengo, que cachimbo era
cachimbo e pedia fumo de verdade. Num recanto
mais discreto do Arquivo Público, a cavaleiro do
Guaíba, empanturrei de caporal Maryland o bojo
do meu cachimbo e comecei a nuvear os ares, os
telhados, as ilhas mergulhadas na generosa luz da
tarde. Foi um momento glorioso, que não devia
durar muito. De súbito, Sherlock Holmes sentiu
traspassar-lhe o peito um fino frio de angústia e
nojo. Todo o terraço desmoronava, enquanto as
águas empoladas do Guaíba subiam, subiam,
retornando ao caos... (MEYER, “Cine Insônia”, No
tempo da flor, 1966, p. 34-5)
Para trás [da casa da avó Maria Luísa] ficavam
outros dois quartos sempre prontos para receber
filhas, genros e netos. Davam para uma varanda
que também ostentava sua marinha. Nessa
varanda quase morri, por ter me apossado de um
pacote de cigarros de palha de meu avô, que fumei
escondido, um depois do outro (depressa, que
pode vir gente!), até o vômito e a perda dos
sentidos. O Dr. Dutra teve de vir e receitar seu
invariável calomelano. (NAVA, Baú de ossos, 6
ed, 1983, p. 291)
Era arqui-sabido que se fumava no colégio. Não
era crime. Mas era crime e grave, ser apanhado
fumando ou dono dos petrechos de fumar. Cigarro
na boca era delito tão sério quanto bolinha de
agora. Por isso os fumantes disfarçavam. Até na
latrina, trancados, sacudiam a mão, abanavam,
para a fumaça espalhar e não ser percebida. Esse
interdito vinha de longa tradição, dos tempos em
que os velhos podiam mostrar poderio,
ostentanto seu vício rapé, cigarro, charuto, fumo
mascado. Nosso mestre de Geografia, o Bacharel
Luís ndido Paranhos de Macedo, conhecido
como O Tifum, contava aperto por que passara
quando aluno. Ele fumava no corredor das talhas
da Chácara do Mata, quando viu surgir a figura do
Diretor se aproximando majestosamente e
arrastando a cauda da batina. Ele, Tifum, amarelo
de pavor, com a língua, virou o cigarro aceso para
dentro da boca e começou a encher um copo
d’água. Frei Santa Maria do Amaral parou, olhou
e esperou. Nas urgências da embrulhada o aluno
meteu o copo nos beiços e engoliu tudo água e
cigarro. Ia morrendo de intoxicação nicotínica e
depois de curado dos dias de vertigem, meia
cegueira, zumbidos de ouvido, suores álgidos,
vômitos e caminheiras ainda teve de curtir
cafua. (NAVA, Balão cativo, 1973, p. 325-6; grifo
do autor)
396
A esta dupla fascinação pelo “proibido”, soma-se a enorme atração pelos primeiros
cinemas mudos de Porto Alegre e de Belo Horizonte, a acompanhá-los na infância e seduzi-
los pela vida afora. Nenhum dos dois economiza elogios ao resgatarem as lembranças destes
lugares gicos que são, nas palavras de Augusto Meyer, verdadeiros “paraísos” de
“assombro, ternura, admiração e tristeza” (1966, p. 32), preenchendo os vazios de mentes
fantasiosas ainda precoces para o convívio diário com a literatura. Meyer os recria em No
tempo da flor, sobretudo nos capítulos “Cine Insônia” e “Rua da Praia”, enquanto Nava relata
seu deslumbramento em Balão cativo, volume dedicado às recordações de uma infância
dividida entre a austeridade do colégio interno e a alegria incontida dos raros momentos em
que, de folga, o menino se extasiava diante da grande tela.
O Paraíso, se bem me lembro, era o Cinema
Odeon, em frente da Livraria do Globo. (...)
Chumbados ao assento, com toda a vida saindo
pelos olhos, ficávamos, ficávamos, até à hora
melancólica de apear na realidade. Dentro da treva
mágica, os invisíveis dedos da pianola
recomeçavam o repertório... (...) A imagem
animada, que salta de um retângulo de tela na
escuridão da sala, cortada de legendas de vez em
quando, ou letreiros, como então dizíamos, vinha
completar a educação livresca e dispunha de
recursos gicos imediatos. (...) O acender das
luzes restituía-nos a uma feia realidade, de assentos
de poltronas batidas e arrastar de pés. (MEYER,
“Cine Insônia”, No tempo da flor, 1966, p. 31-3)
140
Quem não passou por uma orgia de cinema, dos
quinze aos vinte? Pois o meu Cine Insônia, em
festivais retrospectivos, costuma reproduzir trechos
salteados, às vezes um tanto herméticos, daquele
tesouro de imagens acumuladas nos porões do
inconsciente. (...) A imagem pode avivar num
relance de iluminação brusca toda uma constelação
de significados metafóricos. E por isso mesmo,
entregue ao sonambulismo da saudade, um pobre
insone, estirado em sua cama, encerrado em seu
quarto, voa a uma distância enorme no tempo e no
espaço, viaja ao fundo de si mesmo e à origem das
origens... (MEYER, “Cine Insônia”, No tempo da
Grandes e deleitáveis eram as saídas mais raras
em que íamos ao Cinema Odeon. Com nossa
melhor roupa, revisados pelo Jones, aprovados
pelo Sadler, em companhia dum mestre,
descíamos incorporados para a primeira sessão.
Nesse tempo os filmes eram anunciados pelas suas
partes e sua metragem. Grandioso drama em seis
partes e 960 metros. Eu tinha visto vagamente o
Kinema com meu Pai, no Rio, depois umas
projeções tremeluzentes no Farol, em Juiz de
Fora. Mas o impacto foi em Belo Horizonte. (...) E
começava o sonho acordado daquela noite
prodigiosa. Nunca me esqueci dum romance tão
longo que sua projeção foi feita em duas noites
seguidas. Milhares de metros. Decerto, um dos
primeiros seriados e havia de ter sido produzido
em 1911, 1912 ou 1913, pois foi passado em Belo
Horizonte em 14 ou 15. Seria anterior às séries de
Judex, de Fantomas e dos Mistérios de Nova York.
Talvez se situasse entre esses clássicos e os Nick
Carter de 1908. Não sei qual sua fabricação,
procedência, ou nome dos artistas. Nem qual o
título original. (NAVA, Balão cativo, 1973, p.
169-70; grifo do autor)
(...) acima de William Farnum, de Virginia
Pearson, de Theda Bara e de Pearl White com os
Mistérios de Nova York foi, na ocasião, o advento
de uma das coisas mais importantes de minha
140
Carlos Dante de Moraes também confessa sua devoção às primeiras fitas exibidas nos cinemas da capital
gaúcha: “Durante (...) três anos pachorrentos, eu suspirava por livros, mas poucos me vieram às mãos. Quase
sempre a imaginação trabalhava sozinha, encarniçada sobre si mesma, à falta de nutrição ou matéria-prima. Por
isto, o cinema era um regalo nas vesperais de domingo. Encharcava-me como esponja naqueles dramalhões
grosseiros, que me lançavam em longas cismas e devaneios febris.” (MORAES, Um solitário à procura da vida
– Fragmento de autobiografia, 1975, p. 154)
397
flor, 1966, p. 37-8)
Não sei se já falei no Cinema Ideal. Era o meu
predileto; dava brindes às crianças, nas suas
matinées, e, à saída, o tio de Athos Damasceno
Ferreira, como um dono de casa atencioso,
cumprimentava as distintas famílias. Talvez não
seja pieguice lembrar o nome dos outros cinemas,
gritando-os ao ouvido da História, que é muitas
vezes cega, surda e muda: o Smart-Salão, o
Variedades, o Avenida, o Odeon, o Petit-Casino e,
muito mais tarde, o Guarani e o Central. (...) Bem
entendido, os cinemas eram mudos, mas a nossa
gárrula imaginação falava por eles, assobiava e
cantava por eles, e com mais harmonia do que as
suas orquestrinhas. É a lei das compensações.
Pobres meninos e moços nascidos no tempo da
pedra lascada, não tínhamos televisão, nem rádio,
nem cinema sonoro. (MEYER, “Rua da Praia”, No
tempo da flor, 1966, p. 125-6; grifo do autor)
vida: o conhecimento de Charles Spencer Chaplin
e a adivinhação imediata posto que ainda obscura,
do gênio de Carlito. em 1916 eu alfinetara na
parede recorte igual ao pôster que hoje tenho no
meu escritório e onde está, de corpo inteiro, a
figura de um dos maiores gênios do nosso século.
Quem era aquele homenzinho? de coco, como um
corretor da City; de bengalinha de junco flexível,
como um elegante; geralmente de colarinho e
gravata, como um burguês; de fraque, como um
membro da Casa dos Lordes ou como um
mordomo, um maître-d’hôtel, um leiloeiro ou
ventanista que tivesse cambriolado a loja dum
adelo. Quem era ele? com aquelas calças de
defunto e aquelas imensas botinas de esmola ou de
lata de lixo. Quem era? assim sem amigos, sem
família, sem casa, sem conhecimentos. Um
clandestino, um apátrida, um fugitivo? Certo sem
outro crime além da roupa desmentida pelo seu
estado, a falta de dinheiro, a falta de domicílio, a
falta de identidade legal. (NAVA, Balão cativo,
1973, p. 199)
141
A identificação de Meyer com o cinema é tão grande que o memorialista recorre, em
diversos momentos de sua obra, às técnicas e processos desta manifestação artística como
metáforas da reconstituição de fatos vividos por sua família e que se elevam, aqui, à condição
de verdadeiras “cenas” no “cinema interiorde sua memória, como admite no “Prefácio” à
segunda edição de Segredos da infância:
O esforço da memória a desandar no tempo é tão mico e desatinado, então, como
aquelas experiências de movimento reversível no cinema, quando o cavalo, depois
de pular o obstáculo, se desmancha todo num vôo regressivo ao impulso do pulo,
restituído aos três segundos que já havia passado... (MEYER, 1997, p. 87)
142
141
Além de Nava, outros escritores mineiros apaixonados pelos primeiros cinemas foram Murilo Mendes e Cyro
dos Anjos. O primeiro asseverou em A idade do serrote que “O cinema (...) já constituía um divisor de águas, e
me dava um prazer enorme. Interferia nos meus estudos, alargava meu nascente mundo poético, criando uma
dimensão nova da vida. Contribuiu muito para estabelecer entre mim e a banalidade cotidiana uma larga faixa
defensiva. (...) Freqüentar o cinema queria dizer: afrontar uma realidade nova, entre riso e drama (naquele tempo
havia uma grande produção de fitas cômicas), depois cotejar as duas faces da vida, a corrente e a insólita. Alguns
anos mais tarde comecei claramente a perceber que o cinema integrava-se na vida, fazia parte dela; (...)
Desgraçados dos que admitem algumas parcelas da realidade(MENDES, 1968, p. 104-5). E o segundo:
“Quando o correio de Várzea da Palma não se atrasava e vinham a tempo as latas de filmes trazidas na mala
postal, podia-se, à noite, contemplar na tela o grande Psilander ou a glória nascente de William Farnum. Tal
prazer muitas vezes se substituiu em mim pela dor de não ver Priscila na platéia, pois não raro ela me deixava
incerto sobre se iria ao cinematógrafo como então se falava em Santana –, se ficaria para a víspora com Dona
Andresa, sua vizinha, ou se acompanharia a mesma Andresa à igreja, em caso de novena. Descobri, mais tarde,
não ser por gosto que se privava do filme dominical, e sim por lhe faltar a prata de dois mil réis para o ingresso.”
(ANJOS, A menina do sobrado, 1979, p. 138)
142
Vimos no item anterior (p. 362-3) que, ao resgatar a história dos bisavós, Augusto Meyer o faz com requintes
de cineasta, imaginando a Feitoria Velha como cenário perfeito para o “filme” que “produz”. Este procedimento
volta a se repetir em “Brinquedo de esconder”, onde o rancho do Cerro d’Árvore torna-se também cenário para
uma nova aventura cinematográfica: “Uma visão da rolling prairie no cinema, com toldos de carroções em longa
398
Além do cinema, o desenho e a pintura fascinaram e motivaram ambos, cujos caminhos,
desembocando na atividade literária, passam primeiramente pela plasticidade da sugestão
pictórica, interesse que Augusto Meyer fixou no soneto “A paleta do poeta”:
Tortura do desenho! Horas a fio, / seguindo o risco ideal de um vivo traço / que
está dentro de mim, faço e desfaço, / e sinto-o cada vez mais fugidio... // A cor e a
luz! Encher de vida o espaço / nu da tela, retângulo vazio, / sol interior que o
visionário viu / e o pincel torna cada vez mais baço... // Fecho os olhos; no escuro
tumultua / todo um formigamento furta-cor: arco-íris, aureolado astro violeta... // E
tudo o que eu não pus na tela nua / vejo-o de novo em luz, em linha, em cor, nas
manchas coloridas da paleta! (MEYER, Poesias, 1957, p. 17)
Mais tarde, Meyer relembraria, em “Quê? Por quê? Pra quê?(Segredos da infância,
1949, p. 133-5), o menino que, coroado de arco-íris numa confusão tumultuosa de imagens,
cores, ritmos cantantes”, compreendia o “paraíso que numa caixa de tintas, num vazio de
papel à espera do primeiro traço” (p. 134-5), e em “O caruncho” (No tempo da flor, 1966, p.
45-9), as aulas do “velho João Riedel”, aprendizagem considerada, à época, “a maior escola
de sua vida”, quando o futuro escritor se deliciava “a sondar a nobre arte do desenho” (p. 46).
Pedro Nava também se assumia entusiasta deste tipo de arte, e sabemos que, durante a gênese
de suas obras, o médico optava por desenhar os personagens que intentava descrever
143
.
fila, aprofunda-se na recordação de um minuto, e começo a ver em transparência os coxilhões do Cerro
d’Árvore. (...) Que cinema é este? Se não fosse o western um tanto arrastado e a sugestão de um episódio
semelhante, aquele relance das minhas recordações da infância, nos rincões da saudade, ficaria esquecido
como quase tudo que um dia foi vida em nós. Pois tudo aquilo aconteceu na minha vida, e mais tarde, homem
feito, ouvi o caso relatado em família” (MEYER, 1997, p. 21; grifo do autor). Tania Carvalhal observa que
“Reviver a infância e a adolescência foi, para Meyer, filmar retrospectivamente o acontecido e, nele, reconstituir
o experimentado. Uma espécie de cinema interior. É assim que o próprio autor se refere ao procedimento
adotado; os capítulos são quadros ou cenas que, como numa filmagem, permitem que ele se coloque no palco,
como um ator.” (CARVALHAL, Augusto Meyer – Letras Rio-grandenses, 8, 1987, p. 14)
143
Em “Por que os rascunhos?”, prefácio que Eneida Maria de Souza escreveu para Pedro Nava e a construção
do texto, de Edina Panichi e Miguel Contani, a pesquisadora esclarece-nos sobre o processo de composição
utilizado pelo memorialista mineiro: “O processo criativo é composto de três momentos, assim compreendidos: o
primeiro, organizado em fichas, contém pedaços de papel ou folhas soltas com anotações, além de recortes de
jornal, reproduções de obras artísticas, cartões postais de Belo Horizonte e desenhos ilustrativos de perfis dos
amigos; o segundo momento, denominado pelo autor de boneco, é constituído de roteiros dos capítulos a serem
escritos, mapas, questionários enviados aos colegas de geração e recortes de artigos sobre as personagens a
serem retratadas. O datiloscrito, terceira fase da gênese textual, tem como suporte uma folha dupla de papel
almaço que se compõe de duas faces, a da esquerda, reservada ao texto batido à máquina, com correções a tinta,
e a da direita, reservada aos acréscimos feitos à caneta, após a primeira revisão, ao lado de recortes de colagens
de textos e de desenhos assinados por Nava” (SOUZA, 2003, p. VIII). Além de Nava e de Meyer, Manuel
Bandeira também se encantou pelas aulas de desenho: “Sempre fui mais sensível ao desenho do que à pintura.
Lembro-me ainda de certos momentos da minha meninice em que me quedava maravilhado diante de certos
desenhos dos grandes mestre do Renascimento, especialmente de Leonardo. E foi intuitivo em mim buscar no
que escrevia uma linha de frase que fosse como a boa linha do desenho, isto é, uma linha sem ponto morto”
399
O fascínio pelo desenho leva Meyer a assumir um outro tipo de atração, descoberto
durante as aulas, e que também seduzia o jovem estudante de medicina recordado em Beira-
mar: a atração pela anatomia humana. Vejamos como Meyer relembra seu encantamento com
o desenho anatômico e como Nava credita aos poderes da memória e à curiosidade científica
sua fixação pelo estudo sistemático desta ciência.
Copiei traço a traço, fibrila a fibrila, com finíssima
ponta de nanquim, uns dois ou três cadernos de
desenho anatômico; a armatura do esqueleto,
revestida aos poucos de feixes musculares,
desvendava a harmonia das formas orgânicas, em
que tudo converge para o mesmo equilíbrio, e a
aparência tão simples da forma exterior era a
manifestação de uma profunda complexidade
interna, traduzida em adequação funcional, em
círculo indissolúvel de ser e de parecer. (MEYER,
“O caruncho”, No tempo da flor, 1966, p. 47)
Dotado de espírito visual, dono de uma memória
óptica que poucas vezes falha, ao ponto de saber,
até hoje, se na página da direita ou na da esquerda
de um livro que li muitas vezes (...) e na dita
página, se no alto, meio ou embaixo, está a figura
ou o trecho que procuro essa prenda concorreria
para fazer de mim o grande estudioso de
Anatomia que eu sempre fui. Se eu tivesse tido
conselheiros vocacionais a orientar-me no curso
médico não teria hesitado entre a clínica externa
e a interna, tampouco entre as especializações,
para escolher finalmente a Reumatologia. Teria
ficado com minha primeira namorada do curso
superior a morfologia do corpo humano.
(NAVA, Beira-mar, 3 ed, 1985, p. 72; grifo do
autor)
A curiosidade em relação ao corpo humano não se restringe à estrutura (anatomia) ou ao
funcionamento (fisiologia) em vida – percebe-se em ambos o quanto o primeiro contato com a
morte marcou definitivamente o menino até então alheio a questões tão “transcendentais”.
Morando na Praça da Matriz, Meyer se impressiona co
400
Lá no alto do campanário aparecia a cabeça do
sineiro, espiando a cena, andorinhas inquietas
voavam e revoavam sem parar. Moleques trepavam
nos estribos, revistavam os assentos. E tudo
continuava como sempre: o sol batendo nas
fachadas, o relógio marcando aquela hora com a
mesma indiferença. Mas a presença importuna do
morto que ia sair da Matriz para o último passeio
de carro, trazia à recordação outras imagens
encadeadas: Aparício, o companheiro alegre, o
caudilho que inventava guerras e assaltos, botando
o coração pela boca, de tanto correr onde estava
agora? E o matungo velho de olhos mansos que
certa vez caiu do barranco, lá no morro da Floresta,
e agonizou dias e dias, até deitar a cabeça comprida
e feia por cima da ração inútil de capim; moscas
passeavam no focinho. É a morte, é a morte, é a
morte, repetia comigo mesmo, e a palavra perdia o
sentido, acabava morrendo também na consciência,
como um sopro que expira nos lábios. (MEYER,
“Na Praça da Matriz”, Segredos da infância, 1949,
p. 79-80)
tia Iaiá, as coroas voltaram do cemitério e foram
guardadas no quarto em que a avó morrera, para
servirem outra vez no Dia de Finados. A
lembrança daquela sala fechada e cheia das
rodas roxas das flores de pano é um dos
assombramentos de minha infância. Eu tinha a
impressão de que a Inhá Luísa voltara morta e
que estava pendente naquele aposento, como no
delas, as esposas degoladas do Barba Azul.
Aliás sua presença começou a ser sentida na
casa em pânico. As negrinhas diziam que de
noite ela mexia no piano. Da cozinha ouvia-se,
de madrugada, uma batida de colher em fundo
de prato: era ela, era ela, fazendo maionese. E
uma noite, quando subimos para dormir, meu
mano José recuou, vendo nossa avó ajeitando as
cobertas de minha irmã Ana – deitada de mais
cedo. Mas pouco a pouco seu fantasma foi se
esbatendo... (NAVA, Balão cativo, 1973, p. 79)
Outras confluências igualmente sugestivas aproximam os jovens Augusto e Pedro, com
destaque para o impacto exercido pelas primeiras leituras feitas na infância e para a devoção à
literatura francesa, características de um apego que cresceria com a convivência com A la
recherche e que se justificaria posteriormente, em suas obras memorialísticas a incorporarem,
assim como Proust, as reminiscências das primeiras leituras como uma das responsáveis pelo
desencadeamento de “vibrações internas” alimentadas por um poder imaginativo e imagético
que ultrapassa as fronteiras espaciais, conforme vemos assentado em Du côté de chez Swann:
Si mes parents m’avaient permis, quand je lisais un livre, d’aller visiter la région
qu’il décrivait, j’aurais cru faire un pas inestimable dans la conquête de la verité. Car
si on a la sensation d’être toujours entouré de son âme, ce n’est pas comme d’une
prison immobile: plutôt on est comme emporté avec elle dans un perpétuel élan pour
la dépasser, pour atteindre à l’extérieur, avec une sorte de découragement, en
entendant toujours autour de soi cette sonorité identique qui n’est pas écho du
dehors, mais retentissement d’une vibration interne. (PROUST, 1954, p. 86-7)
144
Antes, porém, de referir os trechos paralelos sugeridos pelas leituras infantis, vejamos o
quanto a cultura francesa esteve presente na vida intelectual de ambos desde a juventude,
época do despertar da vocação literária durante a qual Augusto Meyer chega a versejar na
144
Ver, em 2.1, a nota 9 (p. 135-6), em que cito trechos do volume Sobre a leitura, de Marcel Proust, traduzido
por Carlos Vogt.
401
língua de Baudelaire e Pedro Nava, citando André Gide, a identificar em seu influxo um
verdadeiro “modo de ser” comum a toda a sua geração:
Lia, monstruosamente, desde menino, literatura
francesa e, aos vinte anos, versejava em francês,
enchia cadernos de apontamentos em francês.
Alguns volumes da Coleção Nelson, que ainda
conservo, trazem como indicação de data o ano de
1917. Das veleidades poéticas em francês, destaco
a seguinte sobra de uma estrofe, transcrita por
espírito de humildade e penitência: (...) Mon âme
est un jardin tout plein de fleurs d’ennui, / De ces
fleurs sans parfum dont le calice pâle / Cache un
poison subtil et qui parfois s’exhale / Dans la
nuit... (...) Transcrevo também um pobre fragmento
que me parece mais expressivo, por denotar certa
lucidez de autocrítica: ‘Tu raffines la finesse, mon
ami. Et pourtant, la vie est là... Il y a ce rayon de
soleil sur ma table. Au seuil de sa jeunesse, un
homme se penche sur son ombre. Il voudrait dire
des paroles sans suite, doucement, comme on sourit
à soi-même. La vie est là, quand même, toujours’.
(MEYER, “Moço e velho”, No tempo da flor,
1966, p. 117-8; grifo do autor)
Essa declaração de amor à França [‘Je me sens
issu de la culture française; m’y rattache de
toutes les forces de mon coeur et de mon esprit.
Je ne puis m’écarter de cette culture qu’en me
perdant de vue et qu’en cessant de me sentir
moi-même’, André Gide] pode ser subscrita por
toda minha geração, salvo, está claro, poucas e
aberrantes exceções. Em mim, esse estado de
espírito, melhor, esse modo de ser, derivam de
Antônio Sales, de Floriano de Brito. Mais tarde
seria completado pelas companhias e pela
influência literária de Aníbal Machado, Milton
Campos e Carlos Drummond de Andrade. Além
deles, trabalhou no mesmo sentido o espírito da
época em que me integrei nas humanidades: em
tudo se sentia a presença da França. Não foi
pela gramática de Jean-François Halbout e pelos
outros livros adotados pelo Floriano de Brito
que eu e meus colegas vivíamos naquele país
admirável. Mesmo nas outras disciplinas
estudávamos textos franceses, em livros
franceses. (NAVA, Chão de ferro, 1976, p. 25)
Quanto aos inesquecíveis “livros da infância”, que os unem ainda mais ao Marcel
admirador de François le Champi e das Mil e uma noites, as referências são inúmeras
Meyer os evoca em diversos capítulos de No tempo da flor, sobretudo em “Do ginásio
Anchieta”, “Alencar no telhado” e “Confissões de um leitor”, nos quais presta tributo às
leituras românticas de José de Alencar e de Alexandre Dumas que tanto marcaram sua
juventude; Nava, capitaneado a princípio pelo tio Antônio Sales
145
, um dos idealizadores da
“Padaria Espiritual”, trata do assunto em Baú de ossos, Balão cativo e Beira-mar, onde elenca
uma infinidade de autores que confirmam seu interesse precoce por literatura, de Alencar a
Euclides da Cunha, de Júlio Verne a Proust, passando por poetas e prosadores ingleses como
Byron, Shelley, Longfellow e Dickens. Selecionemos algumas passagens dos dois autores,
145
“Nunca eu tinha visto tanto livro como na biblioteca do meu tio. Do impacto com eles é que deve ter ficado a
substância de um sonho que às vezes me visita e inunda daquele contentamento fugaz cuja gratificação é o
próprio material que provoca o despertar.” (NAVA, Balão cativo, 1973, p. 191)
402
lembrando que muitos outros modernistas brasileiros também eternizaram, através do registro
memorialístico, suas primeiras leituras “infanto-juvenis”
146
:
Às vezes, quando nem sonhava em pensar naquelas
coisas de arrependimento e oração, crescia dentro
de mim uma estranha maré de náusea. Esvaziava-se
de súbito o gosto mais intenso da hora. Namorar o
olho-de-boi na coleção de selos? (...) Reviver as
aventuras interrompidas de Arnaldo Louredo, o
sertanejo, ou de Estácio, nas Minas de Prata?
Embarcar num daqueles devaneios em que a
evidência e a vaguidade se confundem na mesma
plenitude, e este mundo o áspero e tão agressivo
nas suas incógnitas quê? por quê? pra quê? se
dissolve em música e aceitação serena? (MEYER,
“Do ginásio Anchieta”, 1966, p. 23)
Era no telhado de nossa casa, na Praça da Matriz,
onde estendia um velho colchão para embebedar-
me de Alencar, gole a gole, de vez em quando
olhos pousados na copa da paineira gigantesca do
quintal de Marinho Chaves, que esgalhava muito
alto, por cima do telhado vizinho... (MEYER,
“Alencar no telhado”, 1966, p. 75)
Vinte anos depois! Sempre me pareceu impregnado
de não sei que triste advertência este famoso título
da obra de Dumas. Mesmo então, conquistado o
dinheiro para a leitura do romance, um vago anseio
assaltou-me, pressentimento e antecipada
desilusão. (...) E quando avancei afinal
cautelosamente no primeiro capítulo caminhando
ao encontro de um D’Artagnan quarentão, havia
travado relações com a amargura do irreparável:
vinte anos depois! (...) tentativa de reconquistar
sem maiores esperanças o Romance Perdido. Vinte
anos depois, tudo era estranho e demudado; os
mesmos nomes familiares soavam a eco e
arremedo, a paródia vazia de sentido. (MEYER,
“Confissões de um leitor”, 1966, p. 93-4)
147
Ali [nos quartos das tias Marout e Bibi] se me
desabrochou amor que nunca me deixou. O
amor dos livros, o amor da leitura. Eu tinha
diante dos olhos o exemplo de meu Pai, de suas
irmãs, de seus cunhados, permanentemente
atracados num volume da coisa impressa.
(NAVA, Baú de ossos, 6 ed, 1983, p. 414)
Passei aos livros da ‘biblioteca’ do colégio
[Anglo-Mineiro]. (...) Jamais esqueci, desde
então, de tratar bem os livros nossos escravos
da lâmpada, amigos de sempre, senhores
despóticos de nosso tempo. O mundo foi se
abrindo para meus onze anos e multidões
passaram a desfilar diante de meus olhos. (...) O
nosso José de Alencar, com Iracema, o
Guerreiro Branco, o frágil madeiro, os verdes
mares bravios, a jandaia, as frondes da carnaúba
e a informação de que havia talhes de palmeira,
lábios de mel, sorrisos doces como o favo do jati
e índias, cujo hálito recendia a baunilha...
Pensando nelas eu desconfiava e me
espreguiçava, Ubirajara, senhor da vara...
Chegou a vez de Mayne Reid, do Cavaleiro sem
Cabeça, dos Plantadores da Jamaica, dos
Náufragos de Bornéu. Em seguida Júlio Verne
com Miguel Strogoff, as Vinte Mil Léguas
Submarinas, a Ilha Misteriosa. (NAVA, Balão
cativo, 1973, p. 143-4)
Diante da livraria que se me oferecia tal qual um
mar oceano mergulhei! E me senti logo como
peixe n’água. Depois da biblioteca do Anglo que
eu esgotara, eu tinha ali [na biblioteca de
Antônio Sales] rumas de literatura nacional,
portuguesa, inglesa, francesa. (NAVA, Balão
cativo, 1973, p. 190)
Durante muito tempo coloquei Os Sertões como
146
Carlos Dante de Moraes relembra Júlio Verne como leitura marcante: “Agora podia fartar à vontade a fome
de livros. A biblioteca do Ginásio me oferecia uma profusão deles, ao preço de parca mensalidade. Júlio Verne
me conduzia por todo o globo e acentuava o meu gosto por paragens exóticas, a crônica das explorações, as
aventuras por terra e mar” (MORAES, Um solitário à procura da vida Fragmento de autobiografia, 1975, p.
155). No capítulo “Primeiras leituras”, Agripino Grieco rende tributo aos românticos Gonçalves Dias, Álvares de
Azevedo, Casimiro de Abreu, Laurindo Rabelo, Fagundes Varela, José de Alencar e Castro Alves, dentre outros
(ver GRIECO, Memórias, 1972, v. 1, p. 85-91). Oswald de Andrade também exalta o romancista francês e o
poeta baiano: “Dos livros que conheci na mais afastada infância, lembro-me de As espumas flutuantes, de Castro
Alves, que meu pai me deu. Não entendi nada mas gostei. na Rua de Santo Antônio, minhas preocupações
foram outras. Li deslumbrado Carlos Magno e os doze pares de França, que fiz questão de emprestar a todo
mundo, cozinheiras, amigos da família. (...) Passei grandinho para Júlio Verne, que foi meu mestre piloto no
maravilhoso dos doze anos. A ilha misteriosa encheu minha vida, povoou meus dias e minhas noites.”
(ANDRADE, Um homem sem profissão, 2002, p. 65-6; grifo do autor)
147
Notar a alusão de Augusto Meyer a Proust (“Vã tentativa de reconquistar (...) o Romance Perdido”), ao
criticar a decisão de Dumas de proceder à continuação de Os três mosqueteiros através deste romance intitulado
Vinte anos depois.
403
meu livro de cabeceira. Fiz com ele o que os
protestantes fazem com a Bíblia, o que faço hoje
com Proust. Depois de reler, que eu me lembre,
Euclides umas vinte vezes e a Recherche seis
toda noite, umas páginas ao acaso do livro
apanhado na estante. (NAVA, Beira-mar, 3 ed,
1985, p. 82)
Por participar 0564(i)-2.1655875.5006(r)-4rtiv-2.16558(p)-0.2955tpep aâ0.2955n-2.16558(p).2.1703é0.2955.165587525(q-2.16558(p)u-65583015 )0.2952.165587525(0564(i)-2.14.552 1 23 Tf41.66l8(.2.1703))-2.16543( v-2.165312(ir-(a)314.(0564(i)-2.165587525iv-2.16558(p)0564(i)-2l-2.16543( t-2.16543( -0.2955,05)]T5712.165587525in-2.16558(p)0564(i)-2.165587525ir-(a)314.(0564(i)-2m-2.14599p)-0.2955)-65583015 )-2.165)0.2952.165587525(e)-5583015 )0.2952.165587525()-2111.1042(v(a)314.(0564802(E)-2.165312(is-4.52316(t-2.16543( .165587525()0.2952442.165587525in-21.1659)-0.2952442sg)5.723712.13.16695(2 1 23 T-6.320.66 -26.2.14639(Pe0.2955)-4.14639(P05644995585(a)3.t)-2.16558(i-0.2955l-2.16558(ií-2.16558(is-4.526597(r)2.80561(t)-2.16558(i)-2.165-0.2955s-4.526597(e)-2587891(e)-.16558(p))0.2952.162587891()-1.57.33)u-65583015 g)9.39033)u-65583015 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folhas amarelecidas) histórias de familiares através de um livro francês que, tendo passado de
geração a geração, o escritor folheia enquanto procede à viagem de regresso ao “país da
memória perdida”, “remoçando”, “escurecendo os cabelos”, reinventando o passado:
(...) Fiz reencadernar os dois volumes [da obra Mathilde, de Eugène Sue] pelo velho
Berger e eles agora estão na minha estante fechada da Rua da Glória. Trazem
impressões digitais do Halfeld, de minha avó, de meu avô, de minhas tias e de minha
Mãe. Estão impregnados de mofo e poeira de Juiz de Fora, Belo Horizonte, Rio. A
Inhá Luísa não conhecia romance igual e era lê-lo, relê-lo, começá-lo, recomeçá-lo,
acabá-lo quem disse? O nome da heroína passou para minha tia Matilde Luísa.
Depois a novela transpôs uma geração que não lia francês e que o conhecia de
figura. Caiu nas minhas mãos nessas férias [de 1926] e devorei-o de cabo a rabo. Até
hoje gosto de retomar sua leitura porque suas páginas me trazem na hora específica
do desencadeamento do mecanismo da memória involuntária - olhares de minha avó
materna, cheiros da chácara de Juiz de Fora, dos ares lavados da Serra, sons do
piano de minha Mãe ou do seu ainda mais remoto bandolim, gritos de primos e
primas, relentos de nossas cozinhas com os ruídos das frituras e o taratatá das
tampas das chaleiras batendo à pressão intermitente da água fervendo, o chiado desta
quando irrompia e chispulava na chapa incandescente do fogão. Voz de meu avô.
Vultos da Rosa, da Deolinda. Pouso Alegre. Contorno. Jacuí. Timbiras. Outros
logradouros dantanho: a Rua Caraça, a Rua Aimorés, a Rua Padre Rolim. Os dois
volumes ligados ao nosso destino, reaparecendo, não sei como, no Rio. Grudados à
minha ilharga como ventosa. Embebendo-se de novas lembranças de nossa casa de
Laranjeiras, da minha, na Glória. Ao meu lado, enquanto escrevo, para sugerir-me
estas lembranças e ajudar-me, reabrindo-o, a reabrir as portas do Tempo criando o
pralapracá da galeria de espelhos como na da casa de Ennes de Souza. Nela eu entro
velho e meio curvo, vou escurecendo os cabelos, endireitando o talhe, diminuindo a
barriga, as banhas, remoçando, novamente correndo atrás dos bondes e da vida,
acreditando em mim e em vocês - seus filhos da puta! achando os homens menos
ordinários, quase bons, excelentes, estimando toda gente, amando, adolescendo e
recuperando tempinfância. (NAVA, Chão de ferro, 1976, p. 252-3)
Não apenas Marcel Proust e seu espetacular processo de recuperação involuntária da
memória serviram de base às incursões literárias e memorialísticas de Meyer e de Nava
além de diversos outros autores, ambos tiveram a oportunidade de poder contar com tios que
agiram em suas vidas intelectuais como verdadeiros “guias virgilianos” (a expressão é de José
Maria Cançado) a orientarem seus passos no árduo caminho de aprendizagem dos signos
lingüísticos e não-lingüísticos. Vimos no item anterior a importância que Augusto concede ao
professor Emilio Meyer, eternizando em No tempo da flor suas lições a respeito de álgebra e
da lírica camoniana, bem como suas manias e sua devoção irrestrita ao ofício de mestre. Já
Pedro Nava tem em Antônio Sales o maior exemplo de requinte intelectual do qual poderia
dispor em sua adolescência, tendo o tio lhe franqueado as portas do mundo literário ao
405
introduzi-lo no labirinto das bibliotecas e das agremiações culturais. Por isso, Cançado
acredita que
Para o adolescente Pedro Nava, a figura do Tio Antônio Sales representou a do guia
virgiliano. Jornalista, poeta, romancista, autor de Aves de arribação, nele uma
formidável altura intelectual articulava-se com uma compreensão nítida da
necessidade de um encaminhamento democrático-popular e socialista da vida
brasileira. Membro, como o pai de Pedro Nava, da ‘Padaria Espiritual’, uma
organização boêmia, política e literária existente em Fortaleza, socializante,
vagamente anarquista, de proclamado antagonismo ao burguês, Antônio Sales
escreveu um artigo pioneiro ‘O socialismo no Brasil’ a propósito do
aparecimento da primeira folha socialista no país, A Nação. (CANÇADO, Memórias
videntes do Brasil, 2003, p. 214)
É comum, nos dois memorialistas, o elogio incondicional aos parentes e à sua função
arquetípica de sedimentação de estruturas profundas da memória coletiva, base da memória
familiar. Por isso a exaltação da sapiência de Emilio Meyer e da bravura de Carlos Feldmann,
Henrique Meyer, Felipe e Maria Klinger na memorialística de Augusto Meyer (ver item
anterior, p. 361-372), e a apologia às genealogias, no caso de Pedro Nava. Ao descrever, em
Baú de ossos, um dos quatro retratos remanescentes do avô Pedro da Silva Nava, o médico-
memorialista destaca a importância dos “clãs” para a “veneração” do “deus lar” da família:
Esse retrato é que ficou como documento comemorativo, como ancestral tablet
chinesa, para veneração do deus lar que continuará a envultar a família enquanto o
tempo não tiver aniquilado sua lembrança e enquanto esta chegue aos seus, de
envolta com crenças atávicas, complexos animistas e pânicos metempsicósicos. Sem
reencarnação integral, mas aparecendo no fim de certos risos, no remate de dados
gestos, na possibilidade das mesmas doenças, na probabilidade de morte idêntica
reconhecemos o Avô, o passado, o manitô, o totem presente nas cinco gerações que
dele defluíram e de que nenhum membro ainda se perdeu de vista, e de que todos se
olham com simpatia, a solidariedade e a compaixão que fazem de nós um forte clã.
Não pela superioridade, porque não há famílias superiores nem inferiores que
todas são frágeis na carne provisória e indefectíveis na podridão final. Eu disse forte
clã – pela nossa consciência de diferenciação tribal. É por ser neto do retrato que sou
periodicamente atuado pela necessidade de ir a São Luís do Maranhão. (NAVA, Baú
de ossos, 1983, 6 ed, p. 28-9; grifo do autor)
148
148
Ver também, algumas páginas antes: “A memória dos que envelhecem (e que transmite aos filhos, aos
sobrinhos, aos netos, a lembrança dos pequenos fatos que tecem a vida de cada indivíduo e do grupo com que ele
estabelece contatos, correlações, aproximações, antagonismos, afeições, repulsas e ódios) é o elemento básico na
construção da tradição familiar” (NAVA, Baú de ossos, 1983, 6 ed, p. 23). A apologia da genealogia volta a
aparecer, em Baú de ossos, entre as páginas 205 e 214, onde Nava, confessando procurar na genealogia, “como
biologista”, suas “razões de ser animais, reflexas, instintivas, genéticas, inevitáveis” (p. 213), estabelece os
motivos do estudo genealógico, dentre os quais enumera valores físicos e categorias morais; herança; vaidade; e
necessidade (esta sobretudo no período colonial, quando para conseguir emprego e favores era preciso provar a
“pureza do sangue”). Em Beira-mar (1985, 3 ed, p. 13), Pedro Nava conta que salvara do fogo o espólio deixado
por Halfeld, primeiro marido de sua avó, e com ele reconstituíra a história da família materna e recuperara
detalhes e dados importantíssimos que puderam, dessa forma, ser veiculados em Baú de ossos. A despeito da
importância da genealogia para a reconstituição memorialística, nem sempre este tipo de recuperação é
fidedigna, como confessa Humberto de Campos no parágrafo de abertura de suas Memórias: “Nada é mais difícil
406
Desdobrados entre influxos de autores estrangeiros (Proust, Villon) e de familiares
intelectuais (Emilio Meyer, Antônio Sales), tanto Meyer quanto Nava fundiriam estes dois
tipos de “convivência” ao imaginarem encontros casuais e inusitados, nas obras crítica e
memorialística respectivamente, entre eles próprios e dois dos maiores prosadores brasileiros
do século XIX, como se estes tivessem deixado a condição de “escritores mortos” para
dialogarem com seus “fãs” modernistas. Augusto Meyer procede dessa maneira em “Um
desconhecido” (Machado de Assis (1935-1958), 1958, p. 233-8), no qual, tecendo ruminações
no gabinete de uma biblioteca (a do Instituto Nacional do Livro?), surgir na penumbra o
vulto de Machado de Assis, com quem trava sugestivo diálogo. Pedro Nava, tendo
conhecido Lima Barreto, através do tio Sales, nas dependências da Livraria Garnier
149
,
imagina-o posteriormente tomar, na estação de Cascadura, o mesmo trem em que ele, Nava,
viajava. Leiamos as duas cenas:
Sei dizer que, de súbito... sim... eis senão quando,
me aparece na meia penumbra do gabinete uma
estranha figura. (...) Não se daria talvez um espirro
pelo velhote. Sumido na sobrecasaca implacável,
cabeça descaída sobre o ombro esquerdo, olhar
qualquer através do pince-nez preso a uma fita,
bigodes recobrindo a boca sensual. Trazia um ramo
seco nas mãos murchas, como quem não acredita
na glória. De vez em quando um frêmito leve
encrespava o lábio, mal desenhado sob os fios
grisalhos; e logo fechava a sete chaves a expressão.
(...) Afinal, depois de um minuto que me pareceu
eterno, acomodou-se na cadeira mais próxima,
cruzando as mãos sobre o ramo seco. (...) Consegui
arrancar do meu espanto uma tentativa de voz: (...)
Com quem tenho... (...) A honra? – disse, e
cravou-me as pupilas que sorriam, ao prosseguir:
(...) Machado de Assis, falecido imortal. (...) ?
(...) Ah!, menino, suspirava, se você soubesse o
que é a imortalidade, não a das palmas acadêmicas,
Velhote, muito esverdeado, funcionário
preterido, dedos cheios de sarro, olho
empapuçado da cachacinha, jeito enxovalhado,
como se ele é que tivesse viajado a noite inteira,
palheta suja, ar vagamente senhoril – carioca dos
confins da Zona Norte, primo de Gonzaga de Sá,
irmão natural de Isaías Caminha, sobrinho do
Policarpo Quaresma e filho, como todos, de
Afonso Henriques de Lima Barreto. Com
licença. Bom dia para todos. Sentou-se, pôs-se a (l)-11.3345(m)18.49(s)3.21993(e)-2-3.16695(a)-2.05734(r)-4..3339( )a viaua-2.05734(,)-3.16695( )0.721099(a)-2.05734(s-256.335(s)3.21993(o)-6.3339(bv)5.7217(i)0.721099(a)-2.05734(n)5.7217(d)-721099(o)-6.3339( )-4.55617(a)-2.05734(l)0.721099(t)0.721099(o)-6.3339( ))-6.3339(a)-2.05734( )-618.003(Cg)5.7217(ab)5.7217(d)-721099(o)-6.3339(c)-2.0544(l)ga de
407
a do papel impresso... Imagine que estou
condenado a ser para sempre Machado de Assis,
letras de ouro na lombada e delírio de Brás Cubas,
Capitu, olhos de ressaca e Aires, flor na lapela, e o
caso da vara, e o velho Senado... E os críticos! E os
leitores! E a glória! Esgaravataram tudo, rasparam
tudo, recolheram todas as minhas sobras, pensaram
tudo por mim, não me deixam respirar! (MEYER,
“Um desconhecido”, Machado de Assis (1935-
1958), 1958, p. 237)
E as fusões se sucedem, não apenas nesse clima onírico e fantasmagórico presente nas
citações acima Augusto adolescente se funde ao reino vegetal e ao “sertanejo” Arnaldo de
José de Alencar, “imagens” extremamente “subjetivas de leitura”; Nava, mistura em sua
lembrança personagens proustianos e pessoas de sua relação familiar ou social, como vimos à
página 290, bem como na nota 48, do item 4.1:
Se bem me lembro, deu-se uma verdadeira
transfusão de almas; leitura e vida pulsavam do
mesmo ritmo da experiência. Eu, no alto do meu
telhado, como Arnaldo no alto do jacarandá,
éramos uma e a mesma pessoa. Por cima do
telhado vizinho, enfolhava a ramaria da paineira, e
alguns ramos vinham recobrir as telhas. Ao nível
em que me achava, parecia perfeita a confirmação
da imagem subjetiva da leitura; também eu era uma
espécie arborícola, como Arnaldo, e pendia de um
galho de árvore, embalando-me em pensamento na
mesma rede. Como o herói da história, ao devassar
num relance de olhos a devesa, bastava erguer-me
um pouco, e logo estendia-se a vista pelo pitoresco
amontoado de chácaras, quintais, casas e ruas, com
seu contraste de beirais e açotéias. (MEYER,
“Alencar no telhado”, No tempo da flor, 1966, p.
78)
Abençoada música que trouxe para nossa casa
três lindas meninas, justamente as filhas da D.
Sinhá Paula – a Oraida dos prantos, que pelo
nome e pelo tipo parecia saída das Mil e Uma
Noites; a Lalá dos risos, egressa dos livros de
Joaquim Manuel de Macedo; e a divina Jandira
antecipação, no tempo, das páginas que estava
imprimindo Proust. Oriane e Marie-Gilbert
foram copiadas dessa Jandira dos olhos verdes
que aprenderiam a varar o futuro... (NAVA,
Balão cativo, 1973, p. 103)
Sempre tive a mania de descobrir semelhanças
não entre as pessoas, entre as pessoas com
figuras da escultura e da pintura, como também
entre personagens da vida real e os da ficção. É
assim que não posso reler Crime e Castigo sem
dar a Raskolnikov a aparência do meu colega, o
radiologista João Fortes ou a do meu primo João
Batista dos Mares Guia; Os Maias, sem envultar
Carlos Eduardo (apesar de seus cabelos e barbas
pretas) em Rafael de Paula Sousa; O Crime do
Padro Amaro e A Relíquia sem r a São
Joaneira na Dona Bráulia da Pensão Mauriti, a
Ameliazinha na Nair Cardoso Sales Rodrigues e
a titi Patrocínio (que pecado!) na minha santa tia
Marout. E assim faço com os vultos de Balzac,
Anatole, Proust. Maria do Carmo Nabuco é a
Duquesa de Guermantes. (NAVA, Beira-mar, 3
ed, 1985, p. 201-2; grifo do autor)
Prostituição, cigarro, cinema, morte, leitura, antepassados, escritores e personagens
mesclando realidade e ficção, tantos interesses em comum e tanta preocupação em retratá-los
408
como partes de vidas passadas com a rapidez de um sopro, testemunhos semelhantes, até no
saudosismo, de dois dos maiores modernistas brasileiros que, desta vez em pensamento,
decidem percorrer novamente, cada um a seu modo e em sua capital, os mesmos caminhos
que levam aos bares, livrarias, redações de jornal e cinemas que jamais lhes sairiam da
memória.
Provincianas e acanhadas naquela época (início do século XX), as capitais gaúcha e
mineira são revividas nostalgicamente, sendo valorizadas por aquilo que atraía
entusiasticamente a primeira geração modernista, a qual ambos pertenciam, a saber: o
ambiente de intensa efervescência cultural simbolizada pela fidelidade dos escritores aos
estabelecimentos mencionados acima, para os quais convergiam intelectuais que viriam a
renovar a literatura modernista brasileira. Se os escritores simbolistas preferiam viver e
produzir enclausurados em inacessíveis “torres de marfim”, os modernistas propagavam seus
ideais em sonoras discussões de mesa de bar, ampliando seus horizontes e divulgando a nova
escola “aos quatro ventos”. Daí a necessidade da eleição de ruas paradigmáticas (a da Praia na
obra de Meyer, a da Bahia na de Nava) e, nestas, de bares (Antonello, em Porto Alegre; Bar
do Ponto e Estrela em Belo Horizonte); livrarias (Globo e Alves, respectivamente); redações
(do Correio do Povo e do Diário de Minas)
150
; e cinemas (Odeon, Ideal, já comentados).
Vimos também em 4.3, entre as páginas 341 e 344, que a Rua da Praia foi, para a
geração de Augusto Meyer, a “estrada real” da formação de todos eles, o ponto mais
representativo da “topografia sentimental da cidade”, “o vago e fascinante país dos cinemas”
150
Lemos em 4.3 (p. 343) que, além do Correio do Povo, outros dois jornais em que Meyer colaborava também
se situavam na Rua da Praia. Relembra o memorialista: “Posso dizer que o lanço da Rua da Praia mais
importante, na crônica da minha formação, é este mesmo em que andamos, assinalado agora pelas redações dos
jornais: Correio do Povo, A Federação, Diário de Notícias. Ficavam fronteiros o Correio do Povo e A
Federação; um pouco mais distante, o Diário de Notícias. No velho Correio do Povo comecei a minha carreira
de escritor, graças à amizade de Fernando Caldas, filho de Caldas Júnior, que um belo dia me convidou a
colaborar, sem mais nem menos, à razão de vinte e cinco mil réis por artigo” (MEYER, “Rua da Praia”, 1966, p.
128). Sobre o Diário de Minas, recorda Nava: “Subíamos às vezes até o ‘Diário de Minas’. A doce quase escura
redação. Horácio Guimarães na tarefa dormente. Carneiro na revisão. O ar impregnado do cheiro forte da tinta, o
ruído das máquinas, a delícia da conversa na sala agasalhada enquanto o vento corria solto na Rua da Bahia e
assobiava no torreão da casa de Leopoldo Gomes.” (NAVA, Chão de ferro, 1976, p. 352)
409
e “das vitrinas que enchiam o olho” e, por esse mot
410
Coincidentemente, tanto Augusto Meyer quanto Pedro Nava exaltariam o crepúsculo
visto (e, posteriormente, relembrado) a partir das ruas amadas, demonstrando que o espetáculo
do entardecer complementa e dá toques de requinte pictórico à paisagem já tão admirada, pois
do “artificial” da “reta urbana” (isto é, da “urbanidade” concreta de ruas, cinemas, espelhos e
flânerie) vislumbra-se o “natural” (a singeleza abstrata e adolescente do sol que, ao se r,
descreve a “imarcescível”, “inalterável” curva):
fora, na Rua da Praia, o longo e arrastado resto
do crepúsculo parecia espectral, irreal, quase
pesadelar. As vitrinas projetavam na calçada as
primeiras faixas de luz. Misturavam-se ainda os
dois mundos de imagens contrastantes, o da tela e o
da vidinha de todos os dias. Sherlock Holmes ia
conosco pela rua, cachimbando, meditando,
sorrindo a uma iluminação de pista inesperada, em
meio do labirinto das conjeturas... Cada qual, muito
lá por dentro e para si mesmo, entre duas baforadas
hipotéticas, discretamente e sem macaqueações,
reconhecia-se em cada traço do herói da história.
Os gordos sentiam-se aduncos e os magros
glorificados. (MEYER, “Cine Insônia”, No tempo
da flor, 1966, p. 33-4)
152
Esse encontro de ruas [Bahia, Espírito Santo e
Timbiras] era um dos locais preferidos pelos
amadores de crepúsculo, cotidianamente
postados nas cristas da ribanceira para o
espetáculo prodigioso e cada dia renovado
desses poentes que existem em Belo
Horizonte e mais particularmente no fim da
Avenida Álvares Cabral. (NAVA, Chão de
ferro, 1976, p. 349)
É por isso que, além do mais, a Rua da Praia simboliza todas as ruas do centro antigo de
Porto Alegre, assim como a Rua da Bahia é para os mineiros todas as ruas de uma certa
cidade romântica que, hoje irreconhecível, teima em se perpetuar pelo registro memorialístico
e pela imaginação de quem associa sua juventude ao “espírito” das “velhas ruas” de Belo
Horizonte:
152
Além desta referência, em “Cine Insônia”, ao crepúsculo acompanhado da Rua da Praia, há, em No tempo da
flor, um belíssimo capítulo a respeito do assunto (“Crepúsculos do Sul”, 1966, p. 99-103), no qual, convocando
“olhos” e “alma” e dando destaque aos insinuantes tons avermelhados, o memorialista compara a lírica e
“divina”, que ambos se devem a “Deus Nosso Senhor “transformação” do dia em noite ao processo de
cozimento do doce de tacho, típico do sul do país: “A culpa é destes crepúsculos, com Deus Nosso Senhor
avivando o fogo para o doce de tacho, atrás de uma cortina de névoa. Não se o fogaréu escondido no
horizonte, o que entra pelos olhos é um paredão de bruma rósea, com desmaios violáceos e uma tal vibração de
luz, que todo o céu é um poente escandaloso, um delírio de cromo ingênuo e cartão postal desaforo de cor.
Haja olhos, então, e alma bastante atrás dos olhos arregalados, para não se perder a festa, que não dura muito.
Como se não bastasse o desperdício aurirrosado, as coisas todas, as caras e as casas copiam o mesmo rosa de
baú, suspirado e virginal. Águas empoçadas abrem furos vertiginosos de céu e incêndio no meio da rua”
(MEYER, 1966, p. 99). Ver também, na página seguinte, a celebração dos crepúsculos outonais: “Sei dizer que
houve outros crepúsculos em minha vida, em maios de namoro e novena, com vozes seas dobrando a esquina
da saudade, revoadas de andorinhas, repiques de sino e foguetório... Sei dizer que nos mais antigos maios, para
explicar todo aquele desaforo de cor espalhado no céu, tia Mavuce me dizia: Deus Nosso Senhor está
fazendo doce...” (MEYER, 1966, p. 100)
411
Ruávamos quase o dia inteiro. Nossa vida era um ir e vir constante nas ruas de Belo
Horizonte. E o mais estranho é que hoje elas se esvaíram completamente. Mesmo
voltando, mesmo palmilhando os lugares esssenciais de nossa mocidade é
impossível captar as velhas ruas como elas eram a não ser refazendo-as
imaginariamente ou agarrando fragmentos fornecidos pelo sonho. E para isso não se
precisa nem voltar a Belo Horizonte. (NAVA, Beira-mar, 3 ed, 1985, p. 255-6)
Em seu “Noturno porto-alegrense”, poema que eu arriscaria chamar de peripatético”
(no sentido aristotélico daquilo “que se ensina passeando”), Augusto Meyer também se agarra
a “fragmentos fornecidos pelo sonho” para reconstituir a “via-crucis” que ele e Tostes faziam,
de madrugada, pelos bares e “ruas livres” de um centro embalado a chope, cigarro, canha,
música de vitrola e vento:
Vai começar a noite na cidade camarada. / Poeta, a canha tem uma estrela trêmula
no fundo. // (...) Agora estamos no Berger. / Marcelo adorava o camarão à baiana, /
oh ótimo! / Marcelo, ceguinho musical. // Agora vamos na rua, à toa, / o vento frio
limpa as estrelas de geada, / meu coração toca música serena, / vamos sem rumo na
noite camarada. // (...) Agora estamos no Antonello: / bar bruaá vitrola, / o chope
louro espuma a franja branca / e o meu chapéu tem cara triste de cabide. / Bebe a
melancolia dos goles sonolentos, / enquanto arde na ponta de cada cigarro / a poesia
impalpável do tédio feliz. // Ó madrugadinha das ruas livres... / Velório dos lampiões
na folhagem da praça. / Vagabundo assobia o último tango milongueiro. / Passa a
mendiga paralítica, / vem o primeiro verdureiro. // Que vontade de andar sem parar /
quando a bruma gelada enche o peito / e os galos cantam no arraial da madrugada...
(MEYER, Poesias, 1957, p. 187-9)
A fidelidade do grupo de Meyer ao bar Antonello parece ter sido incondicional em
1931, no iconoclasta Literatura e poesia, lemos no capítulo que leva o nome do recinto que,
para Meyer,
O bar é um mundo boiotas gravitam em torno das mesas. Como tudo é estranho
nas caras banais... O Anjo Azrael anda no meio dos grupos com a espada negra e
ninguém como é fino o fio de linha que nos prende. Os homens sofrem de uma
catarata preciosa. (...) Gira o disco, batem os dados, bebem as bocas. Seu Nunes
corta rodelas de presunto. (MEYER, “Antonello”, 1931, p. 20)
As referências aos bares prediletos não se restringem à memorialística ou à prosa
poética. Até mesmo em sua poesia pipocam alusões à boemia dos intelectuais que, cúmplices
de copo e tabaco, passavam a noite discutindo e bebendo, para tudo acabar em silêncio e
fumaça, como nos versos iniciais de “No bar”, pertencente a Giraluz:
Não vejo mais o espelho amigo dos teus olhos, / irmãos, nem a dor fina dos teus
dedos / que tremem sempre de emoção, erguendo o copo. // vejo as pálpebras
caídas / e a brasa ardendo no cigarro. // O resto é fumaça, / silêncio, fumaça, / a
eternidade da amargura entre dois goles. // (Tudo era um jogo luminoso de vertigens
/ que brincavam de roda sobre a morte / e giravam cantando sobre o amor...)
(MEYER, Poesias, 1957, p. 97)
412
Em “Balada e canha”, uma nova personagem se soma ao amálgama de literatura, álcool,
música e cigarro a mulher, “criatura sem destino” a acompanhar os boêmios nas incursões
noctívagas e hedonistas em busca do prazer da carne insaciável e do espírito inquieto que
desafia amor e morte:
413
feras-cuja-mente, uma rinha de valentões ameaçadores gente de cadeirada fácil e
garrafada pronta que respeitava Otaviano, seu temerário domador. O ‘Estrela’,
não... Ali havia paz. (NAVA, “Evocação da Rua da Bahia”, Chão de ferro, 1976, p.
353-4)
No volume seguinte, a caracterização do bar se mistura à dos companheiros, ambos
indissociáveis na designação geral de grupo do Estrela”, composto por “revolucionários”
respeitosos da tradição mineira:
Alphonsus de Guimaraens, respeitado pelos literatos de Minas do seu tempo, era-o
também pelos modernistas. Mário de Andrade, em 1919, fez uma peregrinação a
Mariana, especialmente para conhecê-lo. Nós, os iconoclastas do Grupo do Estrela,
tínhamos o maior interesse pela sua poesia e o maior respeito por sua grande vida de
poeta. (...) Eu terei de voltar a esse pesssoal do Estrela, falando de cada um e da
importância que esses rapazes tiveram desde aquele momento, na revolução literária
e artística passada no Brasil nos anos 20 e que se desdobrou, com repercussões
sociais, nas décadas porvindouras. Mas antes disto vamos dizer alguma coisa em
conjunto, de sua vida e de suas atividades. Eram todos estudantes de modo que suas
manhãs eram passadas nas respectivas faculdades. Seus encontros começavam de
tarde e aconteciam principalmente em lugares que teremos de descrever. A Livraria
Alves; o Café e Confeitaria Estrela; o Cinema Odeon sobretudo às sextas-feiras,
cujas noites eram ocasião de verdadeiro acontecimento social semanal, a chamada
Sessão Fox; a calçada em frente à casa do Seu Artur Haas; e a esquina de Bahia com
Álvares Cabral, nos diantes da Caixa Econômica. (NAVA, Beira-mar, 3 ed, 1985, p.
96)
Se os bares podem ser considerados extensões da atividade literária de Meyer e de
Nava, o que não dizer da importância das livrarias para a vida e a obra de ambos, afora as
redações e cinemas comentados? Certamente as livrarias do Globo, em Porto Alegre, e
Alves, em Belo Horizonte, forneceram aos jovens literatos, nas cadas de 20 e de 30, os
alicerces culturais que viriam a utilizar ao longo de suas férteis e copiosas produções
literárias, embasadas na leitura e na convivência com companheiros que possuíam
praticamente os mesmos gostos e interesses. Em “Rua da Praia”, acompanhamos a comovente
reconstituição que Augusto Meyer faz do ambiente de “comunhão literária” vivido, às portas
da Livraria do Globo, juntamente com Moisés Vellinho, Teodemiro Tostes, Rubens de
Barcelos, João Pinto da Silva, Vargas Neto e muitos outros, reconstituição para a qual o
escritor julgou necessário “avivar a fantasia”, “puxar pela memória” e “convocar engenho e
arte” a fim de precisar “o que chegou a significar” para ele “a Rua da Praia aos sábados, em
frente da Livraria do Globo” (MEYER, 1966, p. 129). Quanto à Livraria Alves, Pedro Nava
414
descreve, em Beira-mar, a chegada dos caixotes vindos da Europa via Rio de Janeiro, e a
surpresa dos intelectuais com a presença “ilustre” da Recherche no farto material recebido
(1985, 3 ed, p. 97). Destaca também a localização exata do local, no lado direito de quem
sobe a “eterna” e “polidimensional” rua:
A sucursal do livreiro Alves ficava no segundo quarteirão à direita de quem subia a
rua da Bahia, de que era, nesse ponto, o penúltimo prédio. Um simpático sobrado
pintado de claro e manchado da poeira sépia de Belo Horizonte. Tinha duas
numerações: 1.052, a livraria e 1.062, portãozinho que subia para o andar residencial
de cima, ocupado pelo Dr. Pedro Paulo Pereira, quando esse médico mudou-se de
sua aprazível residência à Avenida Afonso Pena, 2.484. (NAVA, Beira-mar, 3 ed,
1985, p. 96)
Uma última confluência: é incrível como as histórias de Augusto Meyer e de Pedro
Nava são coincidentes até na “ausência” – refiro-me ao fato, confessado nas respectivas
memorialísticas, de ambos não possuírem, quando jovens, dinheiro suficiente para adquirir os
livros desejados, o que confere ao “namoro” infértil com as vitrines das livrarias uma aura de
frustração que, convertida em abnegação e desprendimento material, possibilitaria aos futuros
escritores a tomada de consciência da valorização máxima de um tesouro que, perto dos olhos
e longe das mãos, converter-se-ia em uma espécie de “sonho de consumo” para além da esfera
física e do qual ficariam eternamente cativos, fazendo de tal “conquista” a motivação
essencial de suas literaturas renovadoramente modernas:
Venha daí comigo, a examinar a parte baixa da
quadra, onde passa a Rua da Praia. Aqui mesmo,
em frente do Café Colombo, achava-se instalada a
Livraria Americana, e na vitrina da Ladeira quantas
vezes namorei os livros expostos, coçando
desconsoladamente o forro do bolso! (...) Devo
àqueles momentos de contemplação da vitrina
séculos de sonho e entressonho, um mundo de
aventuras. E ao Pedro, ao prestimoso e cordial
Pedro de Oliveira, generosos abatimentos, que me
franquearam a Estepa de Gorki, o Paris dos
Miseráveis e as terras encantadas de Alencar.
Imagine-se o meu enlevo quando o Velho Meyer
abriu uma conta em meu nome, na Livraria
Americana... Mas foi entrever o Paraíso e levar
com a porta na cara, pois a primeira obra escolhida
tornou-se logo a última, e cancelou-se o crédito.
Era, nem mais nem menos, a tradução de Henri
Albert das Intempestivas de Nietzsche! Como
explicar a meu tio as razões imperiosas da escolha?
Eu comprara um nome, o mistério e a magia de um
Subíamos todos os dias até o Alves. A clara
livraria... A quietude da meiga livraria... Uma
tristeza leve no ar parado, nas estantes
inalteráveis, na vitrina onde os ‘in-18’
desbotavam, no Kneipp... O excelente, o
inesquecível Kneipp... Era com ele que nos
entendíamos para os livros comprados a crédito
– eu, o Cavalcanti, o Almeida, o Emílio e os
outros indigentes. Porque o Abgar, o Milton, o
Carlos, o equilibrado Capanema e o abastado
Gabriel estavam sempre em fundos e, como tal,
eram os primeiros admitidos à abertura dos
caixotes cerimonial de que participavam os
iniciados e que se realizava no corredor vizinho
à jaula do Castilho. Mas o igualitário Kneipp
velava pelos desvalidos e escamoteava do
banquete a iguaria que apetecíamos. E nos
entregava as brochuras com um jeito de
profundo e desanimado sofrimento. Tinha-nos a
todos na mesma simpatia reservada e nutria pela
literatura de cada um o mesmo desprezo
415
nome gravado a ouro na lombada, e que nome de
encher o olho, estranho e bem soante, com muitas
pernas de letras, não sei que audácia na brevidade...
Pouco importava o miolo, que me pareceu confuso
e mais tarde assimilei. (MEYER, “Ladeira da
saudade”, No tempo da flor, 1966, p. 87-8)
nivelador. Era dele, era do Kneipp, o
consentimento em se virar a livraria em
biblioteca pública, onde iam estudar e
desmantelar os volumes – os que não tinham
dinheiro para comprá-los. Lia-se ali a tarde toda
na sua presença favorável e no silêncio
propício. No silêncio, no vasto silêncio vesperal
da Rua da Bahia cortado de raro em raro
pelo arrastar dos bondes e pelas vocalises que
sonorizavam a sobreloja... (NAVA, “Evocação
da Rua da Bahia”, Chão de ferro, 1976, p. 353;
grifo do autor)
Todas estas “coincidências” biográficas e comportamentais são sintomáticas e
denunciam um certo tipo de engajamento que os modernistas lograram obter: aquele que
alia o fazer literário particular ao social, geracional e coletivo, à medida que o verso e a prosa
saem dos gabinetes e escritórios e passam a freqüentar as ruas, praças e cafés dos grandes
centros urbanos. Contudo, mais do que isto, as inúmeras confluências entre as obras
memorialísticas de Augusto Meyer e de Pedro Nava impressionam porque, semi-ocultas pelo
véu da afinidade entre os episódios narrados (interesse por leitura, sexo, cigarro, cinema, artes
plásticas, etc), as razões que orientam suas motivações mais profundas são especialmente
proustianas, e suas obras, reflexos da perplexidade de Eus que, fragmentados e enfeitiçados
pela “Bela Adormecida no Bosque”, colocam-se obstinadamente à procura dos “arquipélagos”
perdidos no “mar” do tempo, involuntariamente reencontrados através do vento, de casas,
rabanetes e rapaduras, as “bolachas no chá quente” das evocações daqueles cujos interesses e
tendências, aparentemente tão distantes (um, poeta e crítico, o outro, médico reumatologista),
congregam-se no memorialismo que reunifica identidades esquecidas, recupera paisagens e dá
sentido a histórias rememoradas com rara intensidade, despojamento e sincera saudade.
416
4.6 AUGUSTO MEYER E OS POETAS E MEMORIALISTAS PROUSTIANOS
BRASILEIROS: MEMÓRIA DOS SENTIDOS E ACESSOS INVOLUNTÁRIOS NA
“BUSCA DO EU PERDIDO”
“O tempo da infância: futuro, partido a priori em
fragmentos no cosmorama. / Os homens procuram
reelaborar o tempo perdido, oráculo do futuro; / Mas
nem todos possuem um estilo igual ao nervo, um
estoque inesgotável de asma, um detector das
ondulações humanas, um quarto forrado de cortiça, e
três mil anos de cultura.”
(Murilo Mendes, “Proust”, Transístor – Antologia de
prosa, 1980, p. 163)
No projeto inicial desta tese estava prevista, para este item, a confrontação entre a
memorialística de Augusto Meyer e as memórias, em prosa ou verso, de diversos escritores do
modernismo brasileiro, a fim de se determinar a verdadeira contribuição de Meyer e de outros
autores canônicos de nossa literatura para a configuração de uma certa tradição proustiana em
nosso memorialismo. Não pretendo abrir mão desta aproximação, por entender ser de grande
importância para a crítica memorialística praticada no Brasil a investigação das relações entre,
por exemplo, a prosa contundente das Memórias de Pedro Nava ou a prosa “agressiva” das
Memórias do cárcere e a poesia nostálgica e terrivelmente proustiana de Jorge de Lima ou de
Carlos Drummond de Andrade, para ficarmos apenas em alguns dentre os inúmeros
confrontos possíveis. No entanto, devido à extensão que este trabalho já atingiu e também
para não me desviar do foco principal, uma vez que as possibilidades de exploração de
assuntos em comum, entre as obras que compõem o corpus da tese, são praticamente infinitas,
opto por limitar a discussão, aqui, a duas questões fundamentais: à “memória dos sentidos” e
às manifestações involuntárias na literatura memorialística brasileira, ambas descritas sob
influxo explícito de A la recherche du temps perdu.
Se não me sentisse “forçado” a limitar os temas a serem desenvolvidos, quanto farto
material eu poderia dispor, mesmo somente entre os poetas, para exemplificar a prodigalidade
da literatura modernista brasileira em aludir aos mais diversos aspectos relacionados à
417
memória e à memorialística, tais como: a síntese das etapas da vida, efetuada, no Primeiro
caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade, por um eu-lírico “infantil” nada ingênuo ou
imaturo
154
; a lírica meditação acerca de passado, presente e futuro na “Louvação matinal” de
Mário de Andrade:
(...) Deflorar a virgindade boba do que tem de vir!... / Eu nunca andei metido em
sortes nem feitiçarias, / Não posso contar como é a sala das cartomantes, / E minhas
mãos foram lidas pelos beijos das amadas, / Porém sou daqueles que sabem o
próprio futuro, / E quando a arraiada começa, não solto a rédea do dia, / Não deixo
que siga pro acaso, livre das minhas vontades. / O meu passado... Não sei. Nem
nunca matuto nele. / Quem na noite? o que enxerga na escureza assombrada? / O
que passou, passou; nossa vaidade é tão constante, / Os preconceitos e as
condescendências são tão fáceis / Que o passado da gente não é mais / Que um sono
bem comprido aonde um poder de sombras lentas / Mostram que a gente sonhou.
Porém não sabe o que sonhou. / Não recapitular! Nunca rememorar! / Porém num
rasgo matinal, em coragem perpétua / Ir continuando o que um dia a gente
determinou! (ANDRADE, Mário de, De Paulicéia desvairada a Ca Poesias
completas, 1986, p. 201)
Na poesia de Manuel Bandeira, a presença constante de vários temas de orientação
memorialística, como a saudade dos entes mortos (“Profundamente”)
155
, a efemeridade das
coisas do mundo (“Os nomes”)
156
, ou o convite ao amor e ao carpe diem como compensação
para a inaceitável “fugacidade” dos eventos terrenos, triste constatação captada na “Paráfrase
de Ronsard”:
Foi para vós que ontem colhi, senhora, / Este ramo de flores que ora envio. / Não no
houvesse colhido e o vento e o frio / Tê-las-iam crestado antes da aurora. // Meditai
nesse exemplo, que se agora / Não sei mais do que o vosso outro macio / rosto nem
boca de melhor feitio, / A tudo a idade afeia sem demora. // Senhora, o tempo foge...
o tempo foge... / Com pouco morreremos e amanhã / não seremos o que somos
hoje... // Por que é que o vosso coração hesita? / O tempo foge... A vida é breve e é
vã... / Por isso, amai-me... enquanto sois bonita. (BANDEIRA, Estrela da vida
inteira, 10 ed, 1983, p. 25-6)
Sem esquecermos “O mundo do menino impossível”, de Jorge de Lima, que, para José
154
Ver “As quatro gares”, poema subdividido em “Infância” (“O camisolão / O jarro / O passarinho / O oceano /
A visita na casa que a gente sentava no sofá”); “Adolescência” (“Aquele amor / Nem me fale”); “Maturidade”
(“O Sr. e a Sra. Amadeu / Participam a V. Excia. / O feliz nascimento / De sua filha / Gilberta”); e “Velhice” (“O
netinho jogou os óculos / Na latrina”), ANDRADE, Oswald de, 2 ed, 2004, p. 25-6.
155
“Quando eu tinha seis anos / Não pude ver o fim da festa de São João / Porque adormeci // Hoje não ouço
mais as vozes daquele tempo / Minha avó / Meu avô / Totônio Rodrigues / Tomásia / Rosa / Onde estão todos
eles? / Estão todos dormindo / Estão todos deitados / Dormindo / Profundamente.” (BANDEIRA, Estrela da
vida inteira, 10 ed, 1983, p. 112)
156
Ver a última estrofe: “Os epitáfios também se apagam, bem sei. / Mais lentamente, porém, do que as
reminiscências / Na carne, menos inviolável do que a pedra dos túmulos.” (BANDEIRA, Estrela da vida inteira,
10 ed, 1983, p. 202)
418
Aderaldo Castello, “Traduz evocações de criança, sugerindo conflito de cultura e defesa de
tradições, rejeição ao importado e inclinação espontânea para a nossa criatividade popular,
peculiar ao meio rural”
157
, características demonstradas no início do longo poema, com a
“destruição” dos brinquedos importados:
Fim da tarde, boquinha da noite / com as primeiras estrelas / e os derradeiros sinos.
// Entre as estrelas e detrás da igreja, / surge a lua cheia / para chorar com os
poetas. // E vão dormir as duas coisas novas desse mundo: o sol e os meninos // Mas
ainda vela / o menino impossível / do lado / enquanto todas as crianças mansas /
dormem / acalentadas / por Mãe-negra Noite. / O menino impossível / que destruiu /
os brinquedos perfeitos / que os vovós lhe deram: // o urso de Nürnberg, / o velho
barbado jugoeslavo, / as poupées de Paris aux / cheveux crêpés, / o carrinho
português / feito de folha-de-flandres, / a caixa de música checoslovaca, / o
polichinelo italiano / made in England, / o trem de ferro de U.S.A. / e o macaco
brasileiro / de Buenos Aires / moviendo la cola y la cabeza. (LIMA, Jorge de,
Poesias completas, 1974, v. 1, p. 73; grifo do autor)
Todavia, nenhum outro poeta modernista brasileiro cantou o memorialismo tanto quanto
Carlos Drummond de Andrade, a ponto de ter escrito não apenas uma obra, mas uma trilogia
memorialística em verso (Boitempo, cujos subtítulos são: I “& a falta que ama”; II
“Menino antigo”; e III – “Esquecer para lembrar”). O primeiro volume tem como “epígrafe” o
sugestivo poema “(In) Memória”, brilhantemente iniciado: “De cacos, de buracos / de hiatos e
de vácuos / de elipses, psius / faz-se, desfaz-se, faz-se / uma incorpórea face, / resumo de
existido.” (ANDRADE, Boitempo I, 2 ed, 1973, p. 07)
Do segundo (“Menino antigo”), cito o poema “Memória prévia” como mostra da
preocupação drummondiana em captar a plenitude de uma essência que, sugerida en passant
na infância, mostrar-se-á integralmente no futuro, fechando um ciclo de desdobramentos
reflexivos semelhantes ao lago especular em que se mira o narcísico menino:
O menino pensativo / junto à água da Penha / mira o futuro / em que se refletirá na
água da Penha / este instante imaturo. // Seu olhar parado é pleno / de coisas que
passam / antes de passar / e ressuscitam / no tempo duplo / da exumação. // O que
ele / vai existir na medida / em que nada existe de tocável / e por isto se chama /
absoluto. // Viver é saudade / prévia. (ANDRADE, Boitempo II, 2 ed, 1974, p. 13)
Por isso, José Maria Cançado tem razão ao dizer, em Memórias videntes do Brasil, que
157
CASTELLO, “Memória, poesia e ficção em Jorge de Lima”, A literatura brasileira Origens e unidade
(1500-1960), 1999, v. 2, p. 213.
419
“(...) há, sim, todo um espetáculo urbano-itabirano (...) do sujeito que se vai criando e
apanhando aqui e ali (...) os elementos do seu romance familiar e da sua muitas vezes
estranhada inserção no mundo de Itabira e da sua classe” (2003, p. 93). “Estranhada” e
estranha “inserção” manifesta em quase todas as obras do poeta gauche, introspectivo e
nostálgico cujo “eu”, intermediado pela memória, mede-se com o “mundo” sem pudor nem
reservas, alternando “O pleno e o vazio”:
Oh se me lembro e quanto. / E se não me lembrasse? / Outra seria minh’alma, / bem
diversa minha face. // Oh como esqueço e quanto. / E se não esquecesse? / Seria
homem-espanto, / ambulando sem cabeça. // Oh como esqueço e lembro, / como
lembro e esqueço / em correntezas iguais / e simultâneos enlaces. / Mas como posso,
no fim, / recompor os meus disfarces? // Que caixa esquisita guarda / em mim sua
névoa e cinza, / seu patrimônio de chamas, / enquanto a vida confere / seu limite, e
cada hora / é uma hora devida / no balanço da memória / que chora e que ri, partida?
(ANDRADE, Carlos Drummond de, Corpo, 10 ed, 1987, p. 45-6)
Deitado “sob a racha da pedra da memória”, como dirá em um outro poema veiculado
em Corpo
158
, Drummond cinde-se entre as recordações fantasiosas da juventude e a dura
realidade da velhice e do passar dos anos, como em “Fazer 70 anos”
159
ou em “O ano
passado”
160
, lembrando o sentimento de nostalgia fixado por Augusto Meyer nos tercetos do
soneto “Era uma vez...”, em que o velho brinca de ser criança uma última e encantada vez:
“Era uma vez a minha infância linda / E o sonho, o susto, o vago encanto alado... / Vem a
saudade e conta-me baixinho // Velhas histórias... E eu velho ainda / Sou um Pequeno
Polegar cansado / Que pára e hesita, em busca do caminho...”. (MEYER, Poesias, p. 270)
161
158
Ver “O homem deitado”: “Não se levanta nem precisa levantar-se. / Está bem assim. O mundo que
enlouqueça, / o mundo que estertore em seu redor. / Continua deitado / sob a racha da pedra da memória.”
(ANDRADE, Carlos Drummond de, 10 ed, 1987, p. 23)
159
“Fazer 70 anos é fazer / catálogo de esquecimentos e ruínas. / Viajar entre o já-foi e o não-será. / É,
sobretudo, fazer 70 anos, / alegria pojada de tristeza.” (ANDRADE, Amar se aprende amando, 1995, p. 41)
160
“O ano passado não passou, / continua incessantemente. / Em vão marco novos encontros. / Todos são
encontros passados. // (...) Embora sepultos, os mortos do ano passado / sepultam-se todos os dias. / Escuto os
medos, conto as libélulas, / mastigo o pão do ano passado. // E será sempre assim daqui por diante. / Não consigo
evacuar / o ano passado.” (ANDRADE, Corpo, 10 ed, 1987, p. 75-6)
161
Outras belas imagens sobre o tema estão presentes na História da minha infância, de Gilberto Amado: “Na
adolescência cai-nos das mãos um cetro – o de rei de símbolos que é a criança no meio dos seus encantamentos e
do seu paraíso fabuloso. Cai-nos das mãos o cetro, e o que nos dão em troca? Uma bengala. Para... marchar?
Não! Um brinquedo que não é brinquedo, uma espécie de batuta para marcar o ritmo do passo regular do
comportamento social” (AMADO, Gilberto, 1954, p. 235); e na síntese inspiradíssima de Samuel Beckett: “Os
períodos de transição que separam adaptações consecutivas (já que nenhum expediente macabro de
transubstanciação poderá transformar as mortalhas em fraldas) representam as zonas de risco na vida do
420
Nesse contraponto amargo entre velhice e infância sempre alguns
“deslumbramentos” recorrentes e praticamente coletivos, comuns a toda uma geração no
caso do modernismo brasileiro, é notável a grande quantidade de escritores, pertencentes à
primeira ou à segunda fase, que descreveram, em suas obras memorialísticas, o efeito neles
exercido pela passagem do cometa Halley, em 1910, conforme observa Antonio Candido à
página 54 de “Poesia e ficção na autobiografia”, ao comentar as semelhanças entre obras dos
mineiros Murilo Mendes (A idade do serrote), Pedro Nava (Baú de ossos) e Carlos
Drummond de Andrade (Boitempo). Refere-se Candido a uma sentença de “Origem,
memória, contacto, iniciação”, capítulo inaugural de A idade do serrote
162
; à sensação de
pânico vivida por Nava na mesma Juiz de Fora de Murilo
163
; e ao seguinte poema de
Drummond, publicado no primeiro volume da trilogia Boitempo:
O sol vai diminuindo / de tamanho e calor e interesse em teu redor. / menos
razões de rir e até de chorar. / Alguém toca talvez a campainha. / Depressa! Não
mais tempo para te vestires, / o barco sombrio impaciente na rua. / Tudo é como
se não acontecido / pois depois de acontecer restou o quê? // Ah, sim, restou
Halley / iluminando de ponta a ponta o u de 1910. / O menino Murilo Mendes o
contemplava em Juiz de Fora / o menino Marques Rebelo em Vila Isabel / o menino
Carlos no mato-dentro de Itabira / os três absolutamente fascinados / como o
contemplaria no Brabante em 1302 o menino Ruysbrock-o-Admirável. // Halley
voltará / Halley volta sempre / com a pontualidade comercial dos astros. / Pouco
importa sejam outros meninos que o hão de ver em 1986 / iluminando de ponta a
ponta / a noite da vida. (ANDRADE, Carlos Drummond de, “Halley”, Boitempo I, 2
ed, 1973, p. 159)
164
indivíduo, precárias, perigosas, dolorosas, misteriosas e férteis, quando por um instante o dio de viver é
substituído pelo sofrimento de ser.” (BECKETT, Proust, 1986, p. 14)
162
Conferir: “Passagem do cometa Halley. A subversão da vista. A primeira idéia do cosmo” (MENDES, 1968,
p. 08). No “Prefácio” que escreveu para o Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade, Raúl
Antelo cita um outro comentário sobre o assunto, feito por Murilo Mendes no texto “Apontamentos”, veiculado
em “Letras e Artes”, suplemento literário de A Manhã. Leiamos: “Aos nove anos a irrupção do cometa
buleversou minha sensibilidade; mas ele desapareceu logo na sua carruagem de estrelas, abrindo em mim o sulco
da saudade eterna. Para que viver depois do eclipse da luz?...”. (Apud ANTELO, 2 ed, 1994, p. 11)
163
Ver: “O cometa esplendia nos céus indiferentes. Toda a luz das estrelas desaparecera comida por sua
refulgência. A noite alternava brancos cruéis e negros absolutos, como as xilogravuras de Oswaldo Goeldi. Juiz
de Fora tiritava de frio e pânico. Os ruídos morriam e a vida continuava no movimento e na sucessão das
imagens sem som que tinham aquela incongruência que se sentia nos tempos do cinema mudo, quando a
orquestra parava e o filme continuava. Eu corria na Rua Direita, mais isolado que o primeiro homem e a idéia
cataclísmica do fim habitou minha alma desde então e jamais consegui enxotar esse corvo do busto de Palas,
em cima de minha porta...”. (NAVA, Baú de ossos, 6 ed, 1983, p. 300-1)
164
Ver também, de Boitempo II: “Olho o cometa / com deslumbrado horror de sua cauda / que vai bater na Terra
e o mundo explode. / Não estou preparado. Quem está, / para morrer? (...) / O cometa chicoteia de luz a minha
vida / e tudo que não fiz brilha em diadema / e tudo é lindo. / Ninguém chora / nem grita. / A luz total / de nossas
mortes faz um espetáculo.” (ANDRADE, Carlos Drummond de, “Cometa”, 2 ed, 1974, p. 159)
421
Não apenas Mendes, Drummond e Nava pressentiram no cometa a “idéia cataclísmica
do fim”: Graciliano Ramos, Oswald de Andrade e José Lins do Rego também se referem a
esta apocalíptica noção equivocada mas largamente disseminada a cada início ou fim de
século. Em “O fim do mundo”, décimo capítulo de Infância, Graciliano Ramos discorre sobre
a interpretação errônea da mãe a respeito do “fim dos tempos”, concluída a partir da leitura de
um romanceiro de “intenções picarescas” e “confirmada” através de “profecias” e da
expectativa pela passagem do cometa:
Eu ignorava o século, os cometas, a tradição. E estendia fraternalmente a minha
ignorância a todos os indivíduos. Não percebendo o mistério das letras, achava
difícil que elas se combinassem para narrar a infeliz notícia. Provavelmente minha
mãe tinha se equivocado, supondo ver na folha desastres imaginários. Expus esta
conjectura, que foi repelida. A desgraça estava anunciada com muita clareza.
(RAMOS, 1995, p. 66)
Algum tempo depois, o cometa passou e o mundo não “acabou”, comprovando que a
incredulidade do menino é bem mais razoável que a superstição infundada da mãe:
O cometa veio ao cabo de uns dois anos e comportou-se bem. Minha mãe foi
observá-lo da porta da igreja, sem nenhum receio, esquecida inteiramente da
predição. Nesse tempo nós nos tínhamos mudado, vivíamos longe da vila. O mundo
estava imenso, com muitas léguas de comprimento – e desafiava, seguro, profecias e
cometas. (RAMOS, Graciliano, Infância, 1995, p. 69)
Oswald de Andrade também percebe o engodo com a mesma irreverência com que mais
tarde ironizaria a tudo e a todos:
Havíamos dobrado a esquina de um século. Estávamos em 1900. Eu tinha dez anos,
e morava (...) no alto da Ladeira de Santo Antônio. Lembro-me de que esperei
acordado a entrada do ano e do século, acreditando que, à meia-noite, qualquer coisa
como um sinal metafísico se descobrisse no céu, pelo menos a data de 1900. Mas
nada vi e fiquei cabeceando de sono, entre mamãe e as comadres. O que veio, creio
que logo depois, foi o cometa de Halley, resplandecente no forro do céu. Houve uma
correria na vizinhança. Toda gente foi para a rua e pela primeira vez ouvi falar em
fim do mundo. (ANDRADE, Um homem sem profissão, 2 ed, 2002, p. 53)
Impressionado com as estórias de Vitorino, amigo de seu avô, José Lins do Rego
participa do mesmo medo que aterroriza os meninos Carlos, Murilo, Pedro, Graciliano e
Oswald, demonstrando que a força da passagem do Halley (e do anedotário criado em torno
de sua aparição) foi sentida da mesma forma nos mais diversos pontos do país, em Minas, São
Paulo ou Nordeste:
422
O fim do mundo era um motivo constante de suas prosas: Vem o cometa, não
vai ficar ninguém para semente, vão morrer homens e bichos. (...) Perguntei a Tia
Maria se era verdade e ela me disse: Não atrás de história de Vitorino. (...) O
fim do mundo! As negras da cozinha andavam com medo. Neco Paca, que vendia
ovos na Paraíba, viera também com aquela conversa. Era que o rabo do cometa ia
bater na terra. E o mundo se acabaria. Ouvi Generosa com medo, a dizer que
descansaria se Dorotéia estivesse com ela. (REGO, Meus verdes anos, 1956, p. 76-7)
Aliás, vale destacar que os Meus verdes anos de José Lins do Rego, mais do que
aproximações temáticas com A la recherche, são acentuadamente proustianos sobretudo pelas
coincidências biográficas que aproximam os meninos Marcel e José e que os submeterão,
quando adultos, à assimilação e à confissão autobiográfica da criança asmática e cercada de
cuidados pela família abastada, que morre de ciúmes da namorada e de inveja daqueles que
gozam de perfeita saúde física:
A asma fez de mim um menino sem fôlego para as aventuras pelo sol e pela chuva.
Tinham cuidados demasiados com a criança franzina que não podia levar sereno e
tomar banho de rio. (...) Veio-me um apetite desesperado. Mas moderavam a minha
ganância. Tudo fazia mal. Tinha que medir as minhas vontades. (...) Ricardo podia
levar sol e chuva e nada sucederia, tomava banho de rio, montava a cavalo, tinha
pontaria no bodoque e sabia assobiar como os concris, comia fruta verde sem susto.
Admirava o moleque Ricardo e o colocava em plano superior aos outros. (REGO,
Meus verdes anos, 1956, p. 5 e 86)
165
Além da passagem do cometa e das inúmeras e diversificadas considerações a respeito
da efemeridade da vida e da contraposição entre velhice e juventude, grande parte dos poetas
e memorialistas brasileiros procurou descrever certas impressões da infância recorrendo a um
165
“Abandonara os moleques pela prima. Andávamos de pés no chão. Uma vez um espinho entrou-lhe dedo
adentro e arranquei-o com orgulho de gente grande. Lembro-me como se fosse hoje. O meu coração bateu de
alvoroço, quase a pular de meu peito. Vi a periquita da prima e aquilo me arrastou para a libertinagem da casa de
carros. Atravessou-me as carnes do corpo uma faísca que me queimou. Quis correr para não ver e a menina
pegou nas minhas mãos e se grudou a mim. Desabrochavam botões de flor ao calor de um sol misterioso. Até
hoje sinto nas mãos aquela quentura de fogo” (REGO, 1956, p. 110). Na página seguinte, o menino José delira
freneticamente, sonhando com a prima, espécie de “Albertine” alucinada e alucinante responsável por sua
iniciação, polarizado entre acessos de asma e de concupiscência, nos mistérios e temores do ciúme, do sexo, da
doença e do amor doentio: “Fora-se a prima e agora com os acessos de asma ficava dentro do quarto da Tia
Maria com as janelas cerradas. Faziam-me mal o vento, o sol, o mormaço. Os acessos me arriavam. Os ombros
subiam e em vão procurava ar para respirar. Tudo se
423
tipo “proustiano” de reminiscência, a chamada “memória dos sentidos”, também citada por
José Lins do Rego
166
. Em Boitempo, Drummond eterniza o gosto de todas as frutas exóticas
experimentadas em tenra idade, assumindo uma sensação hiperbólica que faz com que se sinta
“mastigando” o “próprio mato”:
424
espiritual ou intelectual em prol da evocação do prazer intenso das coisas simples, uma
vontade quase simplória, mas essencial, tão rejuvenescedora quanto nos versos de
“Veranico”:
Veranico de maio... paineiras em flor. / Azulínea transparência do ar puro e feliz. /
uma distância perfeita nos claros volumes / e a harmonia das linhas sobe na luz.
425
Thiers Martins Moreira elabora uma espécie de associação entre os sentidos,
sugerindo uma mescla curiosa de imagens “sonoras” e “luminosas” advindas de um dos
lustres do Palacete:
Em muitas ocasiões o Menino veio correndo dos fundos da casa, atraído pela música
do cristal quando o vento agitava as suas peças, e se detinha, fitando-o. O lustre se
movia então suavemente, e se moviam nele os pingentes grandes e pequenos e as
correntes de contas que tombavam do alto em curva graciosa até a ponta dos braços
sobre que repousavam as tulipas. Deve ter sido em um momento destes que, em seu
espírito, se confundiram as imagens sonoras com as luminosas, o que daria a
sensação diferente entre os sons do Palacete. (MOREIRA, O menino e o palacete,
1954, p. 83)
Na prosa memorialística de Augusto Meyer, como vimos em 4.2 (p. 297 a 325), várias
manifestações involuntárias estão ligadas a recordações associadas aos sentidos, a impressões
que “ressurgem quando menos esperamos” (1949, p. 108), “imagens vagas” que desaparecem
e voltam à tona, “como a um toque mágico” (1949, p. 12), “deturpadas pela necessidade
discursiva” (1949, p. 17): gritos de quero-quero, murmúrios de água corrente ou trens do
subúrbio estimulando a audição; o minuano, que penetra a pele, bate nas janelas e faz as
taquareiras tremularem, vento cujo “rumorejar” desperta esquecidas recordações” (1966, p.
39); maricás e papéis de parede, limoeiros, aranhóis e várzeas capazes de preencher as
sugestões deixadas pelo tato, pela visão, pelo paladar e pelo olfato, sinestesia total em corpo-
memória-imagem do memorialista que recria, no Rio de Janeiro, odores, sons e sabores do
Cerro d’Árvore e de Porto Alegre a partir de uma aparentemente precária “antologia confusa e
truncada, feita de fragmentos e alusões”. (1966, p. 76)
Pedro Nava, como podemos constatar na citação que encerra o item 2.4 (p. 132, nota
131), também relaciona certos acessos involuntários ao poder de sugestão dos sentidos de
alguém que, sob o influxo de um “sistema de paladar e evocação” semelhante ao de Marcel
reconhecendo o bolo, eterniza a recordação do gosto da rapadura da avó da mesma maneira
que outros imortalizariam “cheiro de mato” (Drummond) ou “farfalhar de galhos ao vento
noturno” (Augusto Meyer). Além da rapadura, o nos esqueçamos do papel desempenhado
pelos rabanetes no registro sensorial das “madeleines navianas:
426
Nada igual aos meus rabanetes. Hoje, cada vez que dum mastigo a casca ardida e
vermelha ou a polpa branca que estala e resiste ao dente sinto logo sabor de
infância. É uma de minhas madeleines. Mordo: nas minhas mãos o cheiro cru da
terra; nas roupas e botinas encharcadas, a frescura das regas à hora da noite descer...
(NAVA, Balão cativo, 1973, p. 142)
Não pensemos, entretanto, que o memorialista se restringe às lembranças do paladar
para Antônio Sérgio Bueno, “além da grande goela”, temos, no caso de Nava, “o grande nariz,
os imensos olhos, as mãos e dedos enormes, orelhas labirínticas, um ávido concerto sensorial
em demanda da totalidade das experiências possíveis ao corpo” (BUENO, 1997, p. 75). A
evocação dos rabanetes é somente um dentre os inúmeros acessos de recuperação do “gosto
perdido” relatados por um escritor que, quando triste, recorria ao expediente de relembrar a
criança que fôra, viajando, como fizera Xavier de Maistre, à roda de si mesmo”
169
e dos
objetos que o acompanhavam, na maioria das vezes resgatados involuntariamente, como o
pince-nez comprado em Paris e que o restituía, de uma só vez, as figuras de Rodrigues Alves e
de sua avó materna:
Onde estão? meus convivas e as flores d’antanho, onde estão? Mais: esse pince-nez
comprado num requinte de perseguição contra mim mesmo. Foi em Paris. A Nieta e
eu estávamos numa espécie de marché-aux-puces feito semanalmente nas calçadas
do Boulevard Richard-Lenoir (...) quando vi surgir das lajes, como emergindo dum
sepulcro, a figura do Conselheiro Rodrigues Alves, logo num passe de mágica
virada na aparição de minha avó materna. Espantado olhei com força o passeio e vi
entre pedras de dominó, dedais de osso, flores de chifre, talheres desemparelhados,
molduras sem quadro, pipos de irrigador, bobeches de vidro e argolas de guardanapo
o pince-nez que referi e que dava caráter às fisionomias da mãe de minha Mãe e
daquele político brasileiro. Era ele, com suas lentes e suas molas que estava me
restituindo impressões da infância. Comprei-o comprando com ele um pedaço de
Juiz de Fora, nossa sala de jantar da Rua Direita, todos meus verdes anos, minhas
coleções de selos com as caras de Floriano, Prudente, Rodrigues Alves, Pena,
Hermes e aquela transposição fisionômica que se me mostrou capaz de ser gatilho
associativo como a madeleine proustiana. (NAVA, Galo das trevas, 1981, p. 37-8)
Nava demonstra claramente, em sua obra memorialística, a mesma sujeição de Marcel
aos impulsos involuntários da memória, nomeando as dezenas de “gatilhos associativos” que
disparam suas recordações mais recônditas. Assim, já o vimos rendendo homenagens ao
resgate acidental de sobrados, rapaduras, rabanetes, pince-nez e livros tidos como “perdidos”
169
“Manuel Bandeira, que era amigo do rei, ia-se embora pra Pasárgada. Ai! de mim, sem rei amigo nem amigo
rei, que quando caio no fundo da fossa, quando entro no deserto e sou despedaçado pelas bestas da desolação,
quando fico triste, triste (...), quero reencontrar o menino que já fui. Assim, quantas e quantas vezes viajei,
427
mas recuperados pela memória involuntária. Nem é preciso conjeturar muito para filiar a
atitude de Nava ao procedimento de Proust – o próprio memorialista se encarrega de desnudar
o mecanismo já no primeiro volume de sua obra:
Todo mundo tem sua madeleine, num cheiro, num gosto, numa cor, numa releitura
na minha vidraça iluminada de repente! – e cada um foi um pouco furtado pelo petit
Marcel porque ele é quem deu forma poética decisiva e lancinante a esse sistema de
recuperação do tempo. Essa retomada, a percepção desse processo de utilização da
lembrança (até então inerte como a Bela Adormecida no Bosque do inconsciente)
tem algo da violência e da subitaneidade de uma explosão, mas é justamente o seu
contrário, porque concentra por precipitação e suscita crioscopicamente o passado
diluído doravante irresgatável e incorruptível. Cheiro de moringa nova, gosto de
sua água, apito de fábrica cortando as madrugadas irremediáveis. Perfume de sumo
de laranja no frio ácido das noites de junho. Escalas de piano ouvidas ao sol
desolado das ruas desertas. Umas imagens puxam as outras e cada sucesso entregue
assim devolve tempo e espaço comprimidos e expande, em quem evoca essas
dimensões, revivescências povoadas do esquecido pronto para renascer. (NAVA,
Baú de ossos, 6 ed, 1983, p. 343; grifo do autor)
Pedro Nava é certamente o escritor brasileiro que mais incorporou a experiência
proustiana às suas Memórias, dela se utilizando para canonizar um tipo de escrita literária que
só poderia ter se consignado através da confissão autobiográfica, expondo a todos, cruamente,
as impressões do “menino” (e as do “jovem médico”) subitamente tornado “velho”,
“Frankenstein hereditário” composto pelos ossos, carnes e cérebros dos seus mortos e
daqueles que viu morrer. É o mais proustiano, sem dúvida, mas não é o único, como quer José
Maria Cançado, que acredita que, no Modernismo brasileiro, além de Nava, somente Manuel
Bandeira recorreu ao “milagre miserável da memória involuntária”. (2003, p. 37)
170
primeiro no espaço, depois no tempo, em minha busca, na de minha rua, na de meu sobrado...” (NAVA, Baú de
ossos, 6 ed, 1983, p. 340)
170
Às páginas 36 e 37 de Memórias videntes do Brasil, Cançado argumenta que, “salvo engano e omissão” de
sua parte, “é estranho que as memórias e as autobiografias no Brasil”, à exceção da obra de Nava e do Itinerário
de Pasárgada de Bandeira, não acusem terem sido assaltadas em algum momento pelo fenômeno da ‘memória
involuntária’ ”. Veremos a seguir que o crítico “enganou-se” e “omitiu” trechos de Graciliano Ramos, Gilberto
Amado, Cassiano Ricardo e Cyro dos Anjos, dentre outros, que relatam sim, em seus volumes de reminiscências,
ocorrências involuntárias similares à cena da madeleine descrita na Recherche. A passagem de Itinerário de
Pasárgada mencionada por Cançado encontra-se no final do primeiro parágrafo da obra: “Verifiquei ainda que o
conteúdo emocional daquelas reminiscências da primeira meninice era o mesmo de certos raros momentos em
minha vida de adulto: num e noutro caso alguma coisa que resiste à análise da inteligência e da memória
consciente, e que me enche de sobressalto ou me força a uma atitude de apaixonada escuta” (BANDEIRA, 2 ed,
1967, p. 39; grifo meu). Além dessa confissão de “sujeição” aos desígnios inconscientes, identifico, no prólogo
“Biografia de Pasárgada”, uma outra modalidade excêntrica de manifestação involuntária a do poema que se
“constrói” acidentalmente, ressignificando recordações latentes da infância: “Não construí o poema [“Vou-me
embora pra Pasárgada”]; ele construiu-se em mim nos recessos do subconsciente, utilizando as reminiscências da
infância as histórias que Rosa, a minha ama-seca mulata, me contava, o sonho jamais realizado de uma
bicicleta, etc” (BANDEIRA, 2 ed, 1967, p. 31). Algumas páginas adiante, Manuel Bandeira admite, uma vez
428
Sabemos também que Augusto Meyer descreveu inúmeras ocorrências involuntárias,
em prosa e em verso, em crônicas ou em poemas paradigmáticos embalados pela lembrança
do minuano e do perfume de limoeiros e maricás. Tão proustiano quanto Nava ou Drummond,
o escritor gaúcho não deixaria de veicular as interferências involuntárias de sua memória com
a mesma intensidade lírica com que comenta, por exemplo, a obra de Cervantes ou a poética
de Rimbaud, fazendo de Segredos da infância e de No tempo da flor materializações de
lembranças perdidas e recuperadas, de forma similar à “folha súbita” que seu conterrâneo
Mario Quintana fixa em “Essa lembrança que nos vem”:
Essa lembrança que nos vem às vezes... / folha súbita / que tomba / abrindo na
memória a flor silenciosa / de mil e uma pétalas concêntricas... / Essa lembrança...
mas de onde? de quem? / Essa lembrança talvez nem seja nossa, / mas de alguém
que, pensando em nós, só possa / mandar um eco do seu pensamento / nessa
mensagem pelos us perdida... / Ai! Tão perdida / que nem se possa saber mais de
quem! (QUINTANA, Mario, Antologia poética, 1997, p. 152; grifo meu)
Diretamente envolvidos com a primeira versão brasileira de A la recherche du temps
perdu, Augusto Meyer e Mario Quintana (além de muitos outros modernistas brasileiros,
como veremos) narram indistintamente ocorrências ligadas ao fenômeno da recordação
involuntária, demonstrando uma rápida e definitiva absorção, por parte do escritor brasileiro,
do legado proustiano deste tipo ímpar de resgate sensorial das recordações anteriormente
perdidas. O curioso é que esta filiação” não está restrita aos modernistas já no século XIX,
conforme indica Maria Lídia Lichtscheidl Maretti em sua tese Um polígrafo contumaz (O
Visconde de Taunay e os fios da memória), o autor de Inocência, ao falar do modo como
lembramos do nome de determinadas pessoas, faz referência a esta forma de recordação que
surge “quando menos se espera” e sem que saibamos ao certo do que se trata. O trecho das
Memórias de Taunay mencionado pela autora é o seguinte:
Toda a nossa vida é tão complexa, tão cheia de minúcias e incidentes, que se torna
impossível narrá-la com o seguimento que tiveram os fatos. Terei, assim, não poucas
mais, a força das manifestações inconscientes sobre seu trabalho literário e sua vida pessoal: “Na minha
experiência pessoal fui verificando que o meu esforço consciente resultava em insatisfação, ao passo que o
que me saía do subconsciente numa espécie de transe ou alumbramento, tinha ao menos a virtude de me deixar
aliviado de minhas angústias. Longe de me sentir humilhado, rejubilava, como se de repente me tivessem posto
em estado de graça.” (BANDEIRA, 2 ed, 1967, p. 48)
429
vezes, de retroceder sobre os meus passos e, abrindo longos parênteses, referir-me a
fatos atrasados e que, por singular fenômeno mnemônico, de súbito, quando menos
se espera, se apresentam à memória, ao tratarmos de assuntos totalmente diversos e
muito posteriores. (...) Não é tão freqüente, ao ouvirmos ou escrevermos um nome,
recordarmo-nos, repentinamente, de outro quanto possível diferente, que nos fugira,
com rebeldia, da lembrança? (TAUNAY, Visconde de, Memórias, 1948, p. 124;
grifo meu)
171
Esta memória, que se manifesta “repentina e inesperadamente”, não escolhe data, local
ou escola literária na qual atuará – obviamente, devido à repercussão da obra-prima de Marcel
Proust, o Modernismo é o período mais talhado para a narração de eventos desta natureza, o
que não impede que um escritor romântico, como o Visconde de Taunay, dela faça uso,
mesmo sem compreender perfeitamente seu mecanismo. A manifestação involuntária de
fenômenos mnemônicos é tão “democrática” que, além de não privilegiar esta ou aquela
escola literária, descarta a “obrigatoriedade” de a descrição de sua ocorrência ser feita por
autores considerados “proustianos”. É o que ocorre com Graciliano Ramos, cuja obra pouco
ou nada se assemelha à Recherche, embora a memória involuntária se faça presente em um
episódio pertencente ao segundo volume das Memórias do cárcere. Durante uma das
inúmeras transferências a que se submeteu enquanto esteve preso, em 1936, na Colônia
Correcional da Ilha Grande, Graciliano, vendo novamente a praça de Mangaratiba,
subitamente se recorda de uma cena vivida “vinte anos antes”:
Chegamos à estação final. Desenrosquei-me vagaroso, aos últimos sacolejos do
trem, ergui-me, deixei o vagão, pisei na plataforma, fui coxeando entre os dois
fuzis. As dores eram fortes, até ali não me supusera tão combalido; mexia-me zonzo,
sem ver as coisas, as pessoas, o lugar. Os companheiros se distanciavam. Achei-me
na rua, levaram-me a uma calçada, parei: difícil subir ao meio-fio. Um dos soldados
mostrava impaciência: (...) Caminhe. (...) Um instante. (...) Procurei forças, dei
um passo custoso, sacudi-me com esforço desesperado, atravessei um portão de
ferro. Atarantado e bambo, a arfar e a suar, reconheci as cotias do Campo de
Santana. Escapou-me a vegetação, mas as grades e os bichinhos saltitantes
revelaram-me a praça enorme. Lembrei-me de haver entrado ali vinte anos antes, em
companhia de uma sirigaita. (...) Mas por que é que o senhor não anda? tornou o
soldado impaciente. (...) Diligenciei contentá-lo, avançar um pouco a marcha
capenga: (...) É inútil. Não que não posso andar mais depressa? (...) Afastei a
171
Remeto aqui ao comentário de Maretti sobre o trecho de Taunay: “A relativa frustração do método é aqui
explicada pela complexidade da vida. Mais do que isso, porém, a pressão da memória involuntária, que se
manifesta repentina e inesperadamente, causando estranheza e desempenhando um papel semelhante ao da
madeleine proustiana, revela a influência do presente (da rememoração) sobre o passado, que não pode ressurgir
mais com as garantias pretendidas de pureza, isenção ou neutralidade.” (MARETTI, Um polígrafo contumaz,
1996, p. 120-1)
430
exigência refugiando-me no passado. Vinte anos. Corrigi: vinte e um, vinte e um e
meses. (RAMOS, Memórias do cárcere, 1996, v. 2, p. 174-5; grifo meu)
Romântica ou modernista, proustiana ou não, o fato é que a recordação involuntária
acomete a todos, pegando-nos, nas palavras de José Maria Cançado, “no cochilo, no déficit,
na lacuna” (2003, p. 32). No entanto, parece óbvio que a maior tendência de sua manifestação
se dê justamente dentre os memorialistas que, leitores da Recherche, conseguem identificar no
processo descrito por Proust semelhanças com reminiscências ressurgidas em suas vidas
pessoais também de modo acidental. Não me refiro apenas aos casos descritos pelos já citados
Augusto Meyer, Pedro Nava e Carlos Drummond de Andrade a lista é grande, e inclui
escritores como Murilo Mendes, Gilberto Amado, Cassiano Ricardo e Cyro dos Anjos. O
primeiro, questionando em A idade do serrote a origem do pensamento, parece descrever o
exato momento em que a recordação involuntária jorra, como um “jato”, na mente e nos
sentidos. À página 163, admite querer saber
(...) exatamente o dia, a hora, o minuto em que irrompeu no nosso cérebro o jato, o
jeito de pensar; o minuto preciso, implacável; porque não ver o pensamento
crescendo na câmara escura? não vemos nossa mão, nosso pé, nosso nariz crescer,
por imperfeição de sentidos; e se não vemos o pensamento é também por
imperfeição de sentidos; virá um dia em que a ciência de criar instrumentos de
precisão aptos a suprir essas lacunas. (MENDES, 1968, p. 163; grifo do autor)
Em História da minha infância, sugestionado por um erro semelhante cometido, em
francês, pelo filho de seu senhorio, Gilberto Amado relata a súbita lembrança que lhe ocorrera
de um episódio envolvendo um equívoco de pronúncia que, quando criança, cometera durante
o processo de alfabetização – recordação involuntária que se origina da dificuldade de
compreensão da correta pronúncia das proparoxítonas:
Minha mãe sentava-se a coser e retinha-me de livro na mão, ao lado dela, ao da
máquina de costura. O livro tinha numa página a figura de um bicho carcunda ao
lado do qual, em letras graúdas, destacava-se esta palavra: ESTÔMAGO. Depois de
soletrar ‘es - to - ma - go’, pronunciei ‘estomágo’. Eu havia pronunciado bem as
duas primeiras palavras que li, camelo e dromedário. Mas estômago, pronunciei
estomágo. Minha mãe, bonita como pode ser mãe jovem para filho pequeno, o
rosto alvíssimo, os cabelos enrolados no pescoço, parou a costura e me fitou de fazer
medo: ‘Gilberto!’ Estremeci. ‘Estomágo? Leia de novo, soletre.’ Soletrei, repeti:
‘Estomágo.’ Foi o diabo. (...) Jamais tinha ouvido, ao que me lembrasse então, a
palavra estômago. A cozinheira, o estribeiro, os criados, Bernarda, diziam
‘estambo’. ‘Estou com uma dor na boca do estambo...’ ‘Meu estambo está tinindo...
Meus pais teriam pronunciado direito na minha presença, mas eu não me lembrava.
431
E criança, como o povo, sempre que pode repele proparoxítono. (AMADO, 1958, p.
51)
Passadas décadas do humilhante episódio, o riso acidental desabrocha repentinamente,
motivado pela associação de equívocos lingüísticos em culturas e circunstâncias distintas:
Uma vez em Paris, na casa de apartamentos em que morava, esta cena de Itaporanga,
esta minha pronúncia da palavra estômago, me veio bito à memória fazendo-me
rir, de um riso tão diferente que levou a pessoa, em cuja presença me achava, a
perguntar: ‘Por que ri assim?’ Evidentemente não pude explicar. Nessa casa havia
um pequenote, sobrinho da encarregada, Janot, engraçado e vivo. Eu brincava
sempre com ele ao sair e ao entrar, quando o achava ali, junto da concierge. Trazia-
lhe bombons, presentinhos. Nesse dia o pequenote, olhando-me com especial
interesse, disse: ‘Hoje é meu aniversário!’ ‘Que queres que te traga, Janot?’
Debatemos o problema brinquedo; ele fixou-se afinal num chemin de fer. Prometi.
‘Mas veja bem, monsieur Amadô, qu’il soit mécanique!Tive o súbito riso a que
aludi. Estômago, estomac... mecânico, canique. O garotinho francês solta a
palavra toda na cadência correntia da prosódia sem ter de arquear o acento na
corcova do esdrúxulo. (AMADO, História da minha infância, 1958, p. 52; grifo
meu)
Como vemos, inúmeros exemplos de ocorrências involuntárias na memorialística
modernista brasileira, implícita (como no caso de Murilo Mendes ou de Gilberto Amado) ou
explicitamente proustianas, como em diversas passagens dos mineiros Pedro Nava e Cyro dos
Anjos, ou no trecho em que Cassiano Ricardo, sentado na cadeira de seu dentista, recorda-se
subitamente de uma cena que remete a sua primeira sessão de cinema:
Minha surpresa maior seria o aparecimento do primeiro filme: nele vi um dentista de
avental branco arrancar da boca de um seu cliente nada menos que um dente
colossal depois serrá-lo pelo meio e sair de dentro nada menos que um coelho. Pois
havia desenho animado naquela ocasião? pergunto, hoje, já adulto ao menino que fui
e que ainda mora em mim. Era o cômico mais simples, rudimentar até, em assunto
de cinema; talvez nem fosse desenho animado mas algum passe de prestidigitação
visual que me foi algo inédito e espetacular. (...) Nunca iria supor que muito mais
tarde, já depois de maduro, fosse encontrar, suspenso à parede do consultório do
meu dentista, Acrísio Branco de Toledo, em São Paulo, uma sua caricatura
arrancando enorme dente e tendo pra fazê-lo o joelho encostado no peito do paciente
transformado em pigmeu no fundo da cadeira de sofrer. (...) O caso não tinha muita
relação mas me levava pelo subconsciente ao tempo do primeiro filme, por uma
questão proustiana de memória involuntária. (RICARDO, Viagem no tempo e no
espaço, 1970, p. 312)
Em A menina do sobrado, Cyro dos Anjos conclama as reminiscências a se
apresentarem à mente de forma inesperada, sem aviso ou cuidado prévio, contanto que
“venham espontaneamente à lembrança, e de bom grado confiem” a ele “seu tesouro
escondido” (1979, p. 110), e de fato é o que acontece quando, estando na Holanda para
conhecer o quadro de Vermeer tão amado por Proust, ouve, na casa da amiga Gilda Osvaldo
432
Cruz, a mesma composição schubertiana que acompanhara, na cada de 1920, a
apresentação de três amigas belorizontinas no palco do “Municipalzinho” da Rua Goiás:
Muitos anos passei sem ouvir a pequena composição que inspirou o bailado [no qual
as amigas Lea, Amata e Iolanda dançaram o Momento musical de Schubert]. Ou,
pelo menos, iria identificá-la transcorrido um tempo considerável, e numa rua de
Haia, tão distante da Belo Horizonte de 1926 como Sírius de Canopos ou de
Aldebarã. Esses desencontros. Certo livro, que amamos, nunca tempo de reabri-
lo. O amigo de adolescência, que estimaríamos rever, mora à beira da estrada por
onde vai passar o nosso carro, e o carro segue, não pára. Sente-se que a vida foge, o
adiamento é temerário. Urge voltar à música, ao livro, ao amigo. Corre-se para aqui,
para acolá corre-se para a morte! Música, livro e amigos são deixados para outra
ocasião. (...) Foi na Haia disse. E mais de quarenta anos depois. Eu tinha ido ao
Mauritshuis, com a minha mulher e um filho, a fim de conhecer o original da Vista
de Delft, de Vermeer, que muitas vezes examinara em reproduções, tentando captar
o mesmo sentimento que o petit pan de mur jaune despertou em Bergotte. E,
deixando o museu, sem haver progredido nessa prospecção, passara a girar toda a
cidade, para descobrir a rua onde morava uma jovem brasileira, pianista, a quem
queria visitar. Gilda Osvaldo Cruz nos recebeu, com as filhinhas, numa grande sala,
onde, conspícuo, descansava o seu Steinway. Depois das efusões do encontro,
pleiteamos um pouco de música, para nos indenizar daquele extravio de duas ou três
horas, na cidade varrida de chuva e vendaval. A anfitriã perguntou o que
preferíamos. Estávamos numa casa de três meninas, ocorreu-me a lembrança da
opereta. (...) O Momento musical de Schubert... (...) O Opus 94, número 3, em fá
menor, já sei! – adivinhou a amiga. (...) Eu ignorava que havia mais de um, e
compunham o Opus 94. Para mim, existia o que Lea, sua irmã Amata e Iolanda
Vernati, a gazelinha, dançaram, em Belo Horizonte, naquele recuado 1926. (ANJOS,
A menina do sobrado, 1979, p. 291-2; grifo do autor)
Conhecedor do “milagre proustiano”, Cyro dos Anjos sabe exatamente o que acabara de
lhe ocorrer – a partir da sugestão musical, o gatilho da memória involuntária acionava a súbita
recordação do bailado das “amigas-em-flor” e, em plena Haia, Belo Horizonte se tornava, em
uma fração de segundos, a Balbec de Cyro, simbolizando a felicidade nirvânica da “captação”
do “tempo em estado puro”:
Se o petit pan de mur jaune não me deu a chave das emoções de Bergotte, um
milagre proustiano repetiu-se, para mim, ao evadir-se do teclado a melodia alegre,
vivaz, que, apoiada num stacatto da mão esquerda, torna, insistente, e, vencendo o
acorde que duas vezes a detém, se entrega, depois a um pensamento nostálgico. Na
página de Proust, um ruído longo e estridente, semelhante à sirene dos iates de
passeio, restituiu ao Narrador, não apenas a lembrança, mas a genuína vivência de
Balbec, por antigo fim de tarde, com os seus barcos, a brisa, o dique, as moças-em-
flor. Na sala brasileira de Haia, a música schubertiana, de relance, me trouxe,
íntegro, intacto, o palco do Municipalzinho da rua Goiás, e Lea, Amata e Iolanda a
comporem, sob a irisada luz dos refletores, aqueles fluidos quadros, que, mal se
esboçavam, pronto se desfaziam, gerando outro e mais outro, em gestos e passos
diáfanos, ou etéreos saltos, imunes à gravidade. (...) Observo, de passagem, que, ao
fazer ressurgir essa noite de opereta, a peçazinha não me trouxe alegria nem tristeza,
mas um sentimento singular que, noutra altura da Recherche, Proust, enfim,
decifraria: a instantânea felicidade produzida pela captação do tempo em estado
puro. Ataraxia, talvez arrisco e não propriamente felicidade.
(...) E aqui volto ao
verso de Keats, que, na primeira parte destas memórias, me veio à meditação,
quando me afloraram à lembrança umas estações perdidas, uns vales que fugiam,
433
aquela roseira à margem da linha, ou Florisbela em Buenópolis, ou a Signora Paola
no hotelzinho de Benfica. A thing of beauty is a joy for ever... Eu já não poria
suspiro, onde Keats pôs alegria. Se uma coisa bela nunca se esgota e nos pode
propiciar infindo gozo, não será porque traga alegria ou tristeza, mas talvez porque,
transcendendo o alegre e o triste, nos mergulhe no cosmo da Recherche, quando a
coincidência de sensações do presente e do passado toma de assalto o Narrador. Do
mesmo modo que o passado e o presente, fundindo-se por obra da memória
involuntária, acordam em nós, pela duração de um relâmpago, um ser extratemporal,
que se nutre da essência das coisas e somente nesta encontrará as sua delícias o
belo também nos subtrai à temporalidade e, tal qual na experiência proustiana, nos
liberta, por momentos, das inquietações atuais e das vicissitudes futuras. A beleza,
fruição do Eterno, desconhece o triste e o alegre. (ANJOS, A menina do sobrado,
1979, p. 292)
Todos estes longos trechos confirmam um fato óbvio, nem sempre devidamente
reconhecido: a presença constante da obra-prima de Proust em todas as fases do modernismo
brasileiro (Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, José Lins do Rego e Augusto
Meyer no início do movimento; Cassiano Ricardo, Cyro dos Anjos e Pedro Nava na segunda
metade do século XX, para citar apenas alguns) e nos mais diversos gêneros na
memorialística, através de tantas alusões à memória dos sentidos e às ocorrências
involuntárias; na crítica, sobretudo nas crônicas veiculadas em periódicos, em ensaios de
autores como Tristão de Athayde e Augusto Meyer, e nos capítulos que compõem a
Proustiana brasileira; na poesia, em versos marcantes como os de Drummond em “Sombra
das moças em flor” ou de Meyer em “Elegia para Marcel Proust”
172
, provando que Pedro
Nava estava certo quando afirmou, à página 343 da sexta edição de Baú de ossos, que cada
escritor brasileiro
“(...) foi um pouco furtado pelo petit Marcel porque ele é quem deu forma
poética decisiva e lancinante a esse sistema de recuperação do tempo
”.
É verdade que a
literatura modernista brasileira “incorporou” sim técnicas, estilos e procedimentos de outros
autores do século XX, como James Joyce, Virginia Woolf e Franz Kafka, mas de maneira
172
“À sombra doce das moças em flor, / gosto de deitar para descansar. / É uma sombra verde, macia, vã, / fruto
escasso à beira da mão. / A mão não colhe... A sombra das moças / esparramada cobre todo o chão. // (...) No
meio da praça, no meio da roda / um cego querendo pegar um braço, / todos os braços formam um laço, mas
não se enforque e nem se disperse / em mil análises proustianas, / meu filho” (ANDRADE, Brejo das almas, in
Poesia completa, 2002, p. 60-1); e: “(...) Marcel, menino mimoso, estou contigo, Proust: / vejo melhor a
amêndoa negra dos teus olhos. / Transparência de uma longa vigília, / imagino as tuas mãos / como dois pássaros
pousados na penumbra. // (...) Marcel Proust, diagrama vivo sepultado na alcova, / o teu quarto era maior que o
mundo: / cabia nele outro mundo... // Fecho o teu livro doloroso nesta calma tropical / como quem fecha leve
leve a asa de um cortinado / sobre o sono de um menino...” (MEYER, Poesias, 1957, p. 115-6)
434
muito tímida e inexpressiva se comparada à fascinação, integral e definitiva, exercida em
nossas letras pela experiência do “menino mimoso” transformado em arauto da memória e
“zaori” da modernidade. Por isso, em verso ou em prosa, na ficção ou na confissão
autobiográfica, quase todos os memorialistas modernistas brasileiros “têm a sua madeleine”,
ocorrências sugestionadas pela fúria do vento, pelos sabores exóticos de frutas, rapaduras e
rabanetes, por encontros furtivos em praças, lições de gramática, consultas dentárias e
composições musicais, catárticas lembranças involuntárias que, uma vez percebidas,
apresentam-se ao memorialista em busca do eu perdido” com a mesma intensidade com que
a “bolacha no chá quente” revelou a Marcel o universo esquecido das “cidades, igrejas e
jardins” da memória momentos breves de resgate e de redenção, de encontro do velho com
o menino, “gatilhos” disparados que, no último “tiro”, eternizam-se pela escritura.
435
4.7 PROUSTIANOS E NÃO-PROUSTIANOS: EXPIAÇÃO DOS INSULTOS
SOFRIDOS NA ESCOLA E NA RUA
“Intrigou-me logo a divergência entre os caracteres de
imprensa e os modelos da escrita caligráfica. Por que
tanta variedade de sinais? Como se não bastasse a
diferença entre maiúscula e minúscula na escrita, versal
e redondo no texto impresso, mais tarde esbarrei nas
geminadas, tropecei nas estranhas parcerias do H,
escadinha de um só degrau, que não se encosta e fica em
pé, pedaço imprestável de cerca sem nada para cercar,
trambolho que se escreve mas não se ouve e deve ter
sido retirado de algum fundo de quintal do inferno pelo
diabo rengo em pessoa...”
(Augusto Meyer, “No Bom Conselho”, Segredos da
infância, 1949, p. 57)
É notório o influxo de A la recherche du temps perdu sobre a memorialística modernista
brasileira. Nos demais itens deste capítulo, vimos inúmeros exemplos da filiação ao universo
proustiano de escritores como Augusto Meyer, Pedro Nava, Murilo Mendes, Cyro dos Anjos,
Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, José Lins do Rego, Cassiano Ricardo, Gilberto
Amado e muitos outros. Entretanto, é impreciso e tendencioso supor que todo memorialista
brasileiro do século XX tenha se submetido à reconstituição do passado de forma semelhante
àquela efetuada pelo romancista francês. Obras como Solo de clarineta, de Erico Veríssimo,
apesar do título de alguns de seus capítulos
173
, a melancólica Um solitário à procura da vida –
Fragmento de autobiografia, de Carlos Dante de Moraes
174
, ou as catárticas Infância e
Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, nada têm de proustianas, pois se apresentam
173
Conferir o capítulo 5 do primeiro volume, intitulado “Em busca da casa e do pai perdidos” (VERÍSSIMO,
Erico, 9 ed, 1976, p. 235), ou o subcapítulo “Granada: Em busca do menino Federico”, presente na segunda parte
do segundo volume da obra. (VERÍSSIMO, 9 ed, 1976, p. 281)
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“Quando evoco a infância, não são as horas felizes que se me apresentam. Bem ao contrário, tenho de fazer
um esforço para arrancá-las do esquecimento. Noites de trovoada e relâmpagos, pavor de ver o sangue a correr,
medo de desastres e incêndios, medo dos mortos, histórias de almas do outro mundo, a ameaça de algo tenebroso
sem forma e sem nome... As lembranças mais remotas são positivamente aflitivas. Sou uma sensibilidade
doentia, estou sempre a tremer, sofrendo inerme, passivo, uma hemorragia de emoções que não posso estancar.
(...) Aos seis anos, porém, começa uma reação no sentido da dureza, da insensibilidade, do entono viril. A
princípio terá sido inconsciente, como a da plantinha tenra que, no seu impulso defensivo, se recobre de uma
crosta protetora. Depois, consciente. Envergonhava-me de ser tão vil e frágil, de ser alvo constante da zombaria
dos outros. Tal rijeza, buscada confusamente pelo instinto protetor, fez desabrochar o único dom precoce que me
concedeu a sorte: uma autocrítica amarga, incompatível com a alegria e o descuido infantil.” (MORAES, Carlos
Dante de, 1975, p. 152)
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muito mais como confissões feitas no sentido de se livrarem dos “fantasmas” do passado do
que como forma de enaltecer, valorizar e eternizar os odores e sabores experimentados na
infância e resgatados involuntariamente. Apesar desta diferença fundamental, não pretendo
contrastar o memorialismo proustiano brasileiro ao não-proustiano, sob risco de cair na cilada
de um comparatismo infértil e supérfluo, que pouco acrescentaria à crítica memorialística
nacional. Ao contrário, diante de tantos exemplos colhidos nos mais diversos autores, opto
por demonstrar, neste último item (espécie de “apêndice” da tese), o quanto o memorialista
brasileiro, proustiano ou não, deixou registrada sua imensa dificuldade de adaptação escolar,
dificuldade que se materializa em sentimentos como aversão ao estudo, revolta, humilhação e
vergonha, comprovando a iniqüidade dos métodos de aprendizagem no Brasil da primeira
metade do século XX.
Um rápido olhar pela produção memorialística brasileira desta época é suficiente para
percebermos que, curiosamente (uma vez que muitos se tornariam, no futuro, grandes artífices
da palavra), a maioria de nossos escritores considera a escola local de “suplícios” e de
“temores”, “fundo de quintal” de algum “inferno” como o imaginado por Meyer no parágrafo
que uso como epígrafe, recordações pesadelares cujas lembranças marcam negativamente esta
fase da infância em que são alfabetizados e “doutrinados” sob intimidante regime
ditatorial.
Acusa-se esta problemática, de modo mais grave porém não de maneira exclusiva, nas
obras Infância, de Graciliano Ramos, e Segredos da infância, de Augusto Meyer, justamente
aquelas identificadas por Eliane Zagury, em A escrita do eu, como as que dão início ao
subgênero “memórias de infância” no Brasil. Contudo, como disse acima, não são as únicas a
denunciar a pouca habilidade que a maioria de nossos educadores possuía, no decorrer do
século XX, no trato com as crianças em processo de alfabetização, gerando reações tão
negativas a ponto de estas recordações virem à tona, décadas depois, materializando-se e
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perpetuando-se na escrita memorialística como um profundo lamento contra a humilhação e a
injustiça.
Em Itinerário de Pasárgada, Manuel Bandeira relembra um episódio, eternizado no
poema “Evocação do Recife”, no qual José Veríssimo, à época professor de Geografia e
diretor do Colégio Pedro II, ridiculariza-o, na frente dos colegas, por ele ter pronunciado
equivocadamente o nome do maior rio de Pernambuco:
Era nosso professor o próprio diretor do Colégio José Veríssimo. Ótimo professor,
diga-se de passagem, pois sempre nos ensinava em cima do mapa e de vara em
punho. Certo dia perguntou à classe: ‘Qual é o maior rio de Pernambuco?’ Não quis
eu que ninguém se me antecipasse na resposta e gritei imediatamente do fundo da
sala: ‘Capibaribe!’ Capibaribe com a, como sempre tinha ouvido dizer no Recife.
Fiquei perplexo quando Veríssimo comentou, para grande divertimento da turma:
‘Bem se que o senhor é um pernambucano!’ (pronunciou ‘pernambucano’
abrindo bem o e) e corrigiu: ‘Capiberibe’. Meti a viola no saco, mas na ‘Evocação’
me desforrei do professor, intenção que ficaria para sempre desconhecida se eu não
a revelasse aqui. (BANDEIRA, 1967, p. 64; grifo do autor)
Outro grande escritor nordestino humilhado na escola foi José Lins do Rego. Às páginas
187 e 188 de Meus verdes anos, o autor de Doidinho recorda com amargura a “dura lição” de
seu primeiro mestre e as pancadas que recebia na cabeça:
Meu primeiro mestre me ensinava as letras, a princípio com agrado. Aos poucos foi
se aborrecendo e chegou até a gritar: - Menino burro! (...) apareceu dona Judite,
sua mulher, e corrigiu o nervoso do marido. Não havia jeito. As grimas corriam
dos meus olhos e comecei a ter ódio do dr. Figueiredo. (...) Não aprendia nada. ‘É
muito rude ouvi-o dizendo a dona Judite. Nunca vi menino mais rude’. Aquela
palavra rude se parecia com Rute. Ainda hoje as ligo. Era rude. Em casa perguntei a
Tia Naninha o que queria dizer rude. (...) É gente sem inteligência. (...) Os dias se
passaram e o doutor perdia ainda mais a paciência. Certa vez passou-me a régua na
cabeça, deixando um galo na testa. Caí num pranto que nem os agrados de dona
Judite deram jeito. Apareceu na porta Melu para saber o que era. Dr. Figueiredo
gritava como um desesperado. (...) – Nunca vi menino mais burro do que este!
(REGO, 1956, p. 187-8)
Como conseqüência de agressões tão covardes, impõe-se, na ótica do menino José, a
noção da escola como sinônimo de ameaça e de castração da liberdade, “prisão” cujo regime
disciplinar é tão ou mais severo que o de um quartel militar:
O colégio. Sempre me ameaçavam com esta palavra, e a minha imaginação o
concebia como um enorme muro a separar os meninos do mundo. Quando fazia um
mal-feito qualquer, vinham logo: ‘Vai endireitar no colégio. Silvino de Mercês
endireitou no colégio’. O colégio de Itabaiana. Vira os filhos de Medeiros com
farda branca de soldado. Eram do colégio da Paraíba. (REGO, 1956, p. 261)
438
Por isso, quando a tia o chamava para estudar as lições, José sentia-se como se estivesse
“saindo de um prazer” e passando “para um verdadeiro martírio” (1956, p. 264), martírio
semelhante aos de diversos meninos, de Raul Pompéia, ex-interno dos colégios Abílio e Pedro
II, a Pedro Nava, ex-aluno do Colégio Anglo-Mineiro, em Belo Horizonte, e do mesmo Pedro
II freqüentado por Pompéia e Bandeira. Ao recriar, em Balão cativo e Chão de ferro, o
ambiente vivido nos internatos, o memorialista mineiro registra as incongruências e
arbitrariedades do sistema escolar brasileiro, em obras que refletem a desilusão e a decepção
de quem foi obrigado a conhecer a fundo a estrutura de tais instituições intransigentes,
metódicas e autoritárias. Além disso, em Beira-mar, quarto volume de suas Memórias, Pedro
Nava evoca um incidente que iria marcar para sempre sua vida acadêmica: a reprovação, no
primeiro ano do curso de Medicina, no exame oral de Química, “terror” dos estudantes de
então:
Perdi a cabeça de todo e isto era justamente uma das habilidades dos professores de
outrora – mesmo justos, mesmo honestos. Porfiavam em tontear o aluno touro
metendo-lhe uma, duas, três, sem-número de farpas. O exame tinha de ser uma
charada. Respondi que a urotropina era a formina. Não era isso que tinha sido
perguntado. Que era a hexamina. Não era isso que tinha sido perguntado. Louco,
com três farpas no lombo passei a perguntar se era antisséptico urobiliar? Ainda não
era isso que o professor queria. Lívido arrisquei combinação do amoníaco com o
formol? Nonsinhor, moço! O sinhor num sabe nada e tinha de responder que a
unrotropina é o hexametilenotetramina. Tou satisfeito. Levantei-me numa tonteira e
saí da sala aos trambolhões, esbarrando nas carteiras, nas portas, nas paredes, nos
colegas que não reconhecia. Veio depois a leitura das sentenças no saguão. Uma
distinção, duas plenamente, um monte de simplesmente, uma reprovação. A minha!
Bomba. (...) Vai ser bomba. Foi. E desde que sofri essa injustiça clamorosa, essa
imerecida reprovação, descri para sempre do exame e do concurso. (NAVA, Beira-
mar, 3 ed, 1985, p. 21-2; grifo do autor)
Os exemplos de Bandeira, Rego e Nava servem para evidenciar uma triste realidade: a
da pressão exercida sobre os jovens alfabetizandos brasileiros da primeira metade do século
XX, pressão convertida em trauma, sofrimento e sensação de impotência e de incapacidade. E
nem é preciso “esperar” pelo depoimento de Pedro Nava, na década de 70, para termos noção
da gravidade do problema – já em 1945, em diversos capítulos de Infância, Graciliano Ramos,
desde cedo acostumado aos maus-tratos recebidos na forma de “bolos, chicotadas, cocorotes,
439
puxões de orelha” (1995, p. 15), coloca o “dedo na ferida” e confessa sua submissão aos
métodos brutais do pai ignorante, que investia contra ele de palmatória em riste:
Meu pai não tinha vocação para o ensino, mas quis meter-me o alfabeto na cabeça.
Resisti, ele teimou e o resultado foi um desastre. Cedo revelou impaciência e
assustou-me. Atirava rápido meia dúzia de letras, ia jogar solo. À tarde pegava um
côvado, levava-me para a sala de visitas e a lição era tempestuosa. Se não visse o
côvado, eu ainda poderia dizer qualquer coisa. Vendo-o, calava-me. Um pedaço de
madeira, negro, pesado, da largura de quatro dedos. (RAMOS, “Leitura”, Infância,
1995, p. 96-7)
O temor do “côvado” (palmatória de 0,66 m) multiplica a dificuldade de aprendizagem
do menino simples e assustado que, atordoado pela diferença entre maiúsculas e minúsculas,
julga-se habitante do pior dos infernos, “governado” pela figura diabólica do pai:
Enfim consegui familiarizar-me com as letras quase todas. me exibiram outras
vinte e cinco, diferentes das primeiras e com os mesmos nomes delas.
Atordoamento, preguiça, desespero, vontade de acabar-me. Veio terceiro alfabeto,
veio quarto, e a confusão se estabeleceu, um horror de qüiproquós. Quatro sinais
com uma denominação. Se me habituassem às maiúsculas, deixando as
minúsculas para mais tarde, talvez não me embrutecesse. Jogaram-me
simultaneamente maldades grandes e pequenas, impressas e manuscritas. Um
inferno. Resignei-me e venci as malvadas. Duas, porém, se defenderam: as
miseráveis dentais que ainda hoje me causam dissabores quando escrevo. (...)
Sozinho não me embaraçava, mas na presença de meu pai emudecia. Ele endureceu
algumas semanas, antes de concluir que não valia a pena tentar esclarecer-me. Uma
vez por dia o grito severo me chamava à lição. Levantava-me, com um baque por
dentro, dirigia-me à sala, gelado. E emburrava: a língua fugia dos dentes, engrolava
ruídos confusos. (RAMOS, Idem, ibidem, p. 97-8)
As surras, todavia, não se iniciaram com o aprendizado das primeiras letras. Antes
disso, o vemos apanhando por causa de um cinturão que desaparecera
175
, sumiço contra o
qual reage com ironia e amargura: “Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça” (1995,
p. 32). Mas o pior ainda estava por vir: a entrada para a escola, instituição associada, como
veremos a seguir na memorialística de Meyer, ao cárcere e ao exílio forçado:
A notícia veio de supetão: iam meter-me na escola. me haviam falado nisso, em
horas de zanga, mas nunca me convencera de que realizassem a ameaça. A escola,
segundo informações dignas de crédito, era um lugar para onde se enviavam as
crianças rebeldes. (...) Considerei a resolução de meus pais uma injustiça. Procurei
na consciência, desesperado, ato que determinasse a prisão, o exílio entre paredes
175
“Junto de mim, um homem furioso, segurando-me um braço, açoitando-me. Talvez as vergastadas não fossem
muito fortes: comparadas ao que senti depois, quando me ensinaram a carta de A B C, valiam pouco. Certamente
o meu choro, os saltos, as tentativas para rodopiar na sala como carrapeta, eram menos um sinal de dor que a
explosão do medo reprimido.” (RAMOS, “Um cinturão”, Infância, 1995, p. 32)
440
escuras. Certamente haveria uma tábua para desconjuntar-me os dedos, um homem
furioso a bradar-me noções esquivas. (RAMOS, “Escola”, Infância, 1995, p. 104)
176
E as experiências traumáticas se sucedem e se agravam de tal maneira que, aos sete
anos, o futuro escritor não passa de um semi-analfabeto fragilizado e atormentado, obrigado a
memorizar tabuadas, letras e a lírica camoniana em registro bem distinto daquele ao qual
estava acostumado no Nordeste:
Avizinhava-me dos sete anos, não conseguia ler e os meus rascunhos eram
pavorosos. Apesar disso emaranhei-me em regras complicadas, resmunguei
expressões técnicas e encerrei-me num embrutecimento admirável. (...) Foi por esse
tempo que me infligiram Camões, no manuscrito. Sim senhor: Camões, em
medonhos caracteres borrados e manuscritos. Aos sete anos, no interior do
Nordeste, ignorante da minha língua, fui compelido a adivinhar, em língua estranha,
as filhas do Mondego, a linda Inês, as armas e os barões assinalados. (RAMOS, “O
barão de Macaúbas”, Infância, 1995, p. 120-1)
Por tudo isso, pela dimensão da tragédia pessoal que caracterizaria sua experiência, é
que Graciliano, ao falar de sua infância, “(...) ausentou-se das expansões saudosistas que são a
melhor poesia da existência” (GRIECO, Agripino, Memórias, 1972, v. 2, p. 352). Não
somente não deu margem a “expansões saudosistas” como optou por descrever
dostoievskianamente seus tormentos e traumas, resumo de uma infância “não dourada nem
aprazível, que permanece no adulto sem nenhuma nostalgia, como marca indelével de um
mundo inóspito à criança (...)”. (ZAGURY, Eliane, A escrita do eu, 1982, p. 127)
Tendo sido agredido, física e moralmente, em casa, na escola e, mais tarde, durante o
longo périplo, do Nordeste à Ilha Grande, de seu inexplicável confinamento em “casas de
correção”, “pavilhões” e “colônias correcionais”, Graciliano Ramos evocaria novamente,
desta vez nas páginas das Memórias do cárcere, a gratuidade da violência com que fora
176
Tânia Regina de Souza define com propriedade a sufocante sensação de falta de liberdade exposta na obra de
Graciliano, “balança” a pender para “um único lado”, o do ódio, da incompreensão e da injustiça: “A palavra
‘infância’ nas memórias de Graciliano Ramos não carrega conotação lúdica, não implica travessuras, nem colore
com tons nostálgicos a lembrança do passado. (...) É dessa forma que, quando se pretende trazer à tona a infância
do menino Graciliano Ramos, trilha-se um caminho de desmistificação do aprazível e do romântico. A balança
insiste no desnível, pendendo para um único lado. emperra, sob o peso de injustiças, solidão e tristezas,
narrando uma história familiar e educacional reconstituída sobre repressões e violências que, por delimitar
espaços restritos, adquire a dimensão de um cárcere.” (SOUZA, A infância do velho Graciliano Memórias em
letra de forma, 2001, p. 111)
441
condicionado a uma sociedade cruel, impiedosa e autofágica, degradação que o faria
identificar-se com escravos torturados e aviltados pela mesquinharia humana:
A minha educação estúpida não admitia que um ser humano fosse batido e pudesse
conservar qualquer vestígio de dignidade. Tiros, punhaladas, bem: se a vítima
conseguia restabelecer-se, era razoável andar de cabeça erguida e até afetar certo
orgulho: o perigo vencido, o médico, a farmácia, as vigílias de algum modo a
nobilitavam. Mas surra santo Deus! era a degradação irremediável. Lembrava o
eito, a senzala, o tronco, o feitor, o capitão-de-mato. O relho, a palmatória, sibilando,
estalando no silêncio da meia-noite, chumaço de pano sujo na boca de um infeliz,
cortando-lhe a respiração. (RAMOS, Memórias do cárcere, v. 1, 1996, p. 141)
Assim como José Lins do Rego e Graciliano Ramos, Augusto Meyer também
considerava a escola uma espécie de prisão, e o caderno quadriculado de matemática, as
próprias grades do cárcere ao qual o menino Tico estava irremediavelmente condenado nas
manhãs e tardes de sol da capital gaúcha:
No caso de Tico, foi a dura experiência dos números que o trouxe acovardado diante
das quatro operações. Somar, subtrair, multiplicar, dividir, tudo isso era rima que
não rimava com ele, custou-lhe um esforço doloroso, deixando arranhões na pele
sensível do amor próprio. Ainda mais tarde, no ginásio, a aula de aritmética sempre
lhe pareceu aborrecida, e mal podia compreender o gosto de certos colegas por
aqueles momentos de aridez; os cadernos quadriculados, que usavam então,
pareciam-lhe as grades de um cárcere. (MEYER, “No Bom Conselho”, 1949, p.
58)
177
Os capítulos “Caminho da escola” (1949, p. 43-50) e “No Bom Conselho” (1949, p. 51-
61), de Segredos da infância, demonstram perfeitamente a diferença do tipo de vida que Tico
levava antes e depois de ingressar na escola, bem como a ambigüidade da reação do menino
em relação a esta mudança se, por um lado, o contato com as ruas e a guinada em sua visão
de mundo graças às primeiras leituras ampliam um horizonte até então deveras limitado, por
outro, rotinas, obrigações, deveres e horários fixos exasperam o espírito livro do “guri”
irrequieto e ansioso por aventuras. Esta oposição é formulada nos parágrafos finais de “No
Ginásio” (1949, p. 105-115), nos quais os muros do colégio são metáforas do desejo de
177
Sobre a imensa dificuldade de Augusto Meyer em lidar com o aprendizado desta ciência, ver também, em No
tempo da flor, o segundo parágrafo do capítulo “Do Ginásio Anchieta”: “Não me sorria muito o segundo ano
ginasial no Anchieta, sob a férula do padre Cipriano. O pior de tudo teria sido o meu talento para execrar as
matemáticas, não viesse em primeiro lugar a crise mística e a oscilação entre crer e descrer.” (MEYER, 1966, p.
21)
442
evasão levado a cabo pela imaginação do garoto, oscilante entre a pressão dos últimos exames
e o alívio da proximidade das férias:
A culpa era das férias tão próximas: cochichávamos o nosso contentamento. Durante
as horas morosas da aula, que vontade de arrancar de uma vez os últimos dias
cansados e compridos, caindo um por um da folhinha pendurada à parede... (...) Com
os dedos sujos de tinta, punha toda a graça das férias na touça de taquarinha que se
avistava pela janela dos fundos; havia um muro, sem dúvida, mas através do muro,
que delícia imaginar o verde dos campos... O vento mexia de leve na ponta dos
ramos, as manchas de musgo no muro tomavam estranhas formas e o sol nascente
das férias abria lá no fundo da imaginação do menino preso um leque de raios
dourados, promessa das livres manhãs de verão... (MEYER, 1949, p. 115)
Neste mesmo capítulo, Meyer formula um desabafo agredido por um professor, ao
qual aplica a alcunha de “Pata Larga”, o escritor serve-se da confissão memorialística para
admitir sensações hiperbólicas de vingança e desforra:
[O professor] Devia ter suas razões para me dar certo dia o empurrão brutal que me
deu, no intuito evidente de acelerar minha marcha até o quadro-negro, diante do qual
embezerrei, engolindo lágrimas de raiva, na mão trêmula o giz inútil, a sala a girar
numa vertigem. Era, naturalmente, uma lição de presteza na obediência, agilidade
nas canelas e entusiasmo pelas quatro operações, que mais tarde interpretei com a
devida gratidão compreensiva. Naquele momento, se estivesse em minhas forças e
não fosse o tremor nervoso, teria esganado o mestre. Ruminei longamente vinganças
que ninguém suspeitaria num menino tão mido; atrair o mestre a uma cilada e... ao
suspender minhas intenções nesta reticência, cerrava os punhos, o que é a linguagem
mais antiga sobre a terra e a mais clara também. (MEYER, 1949, p. 113)
No parágrafo seguinte, ao falar dos castigos impostos às crianças, Augusto Meyer culpa
a atitude equivocada de certos pais e professores que são, em sua opinião, os maiores
responsáveis pelos complexos e frustrações infantis, resultando em recalcamento e em
intrincadas “cicatrizações” morais e existenciais:
Doem muito as primeiras goas da criança, quando o castigo lhe parece injusto.
Pais e professores então nem sempre sabiam lidar com o pequeno monstro em
formação de modo a evitar esse recurso extremo da mão pesada, que às vezes deixa
marcas morais indeléveis. Mas, como a pele cicatriza, a aparência está salva, e o
esquecimento parece questão de um dia depois do outro. Na verdade, houve um
recalcamento e as reações tomaram formas dissimuladas; no meu caso, por exemplo,
a solução veio com o apelido que preguei mentalmente nas costas do pobre marista,
como se prega um rabo; para todos os efeitos, passou a ser o ‘Pata larga’. (MEYER,
1949, p. 113-4)
“Advogado” das crianças e dos adolescentes, “pequenos monstros” que, para não
parecerem tais, clamam por carinho e compreensão, Augusto Meyer acusa pais e professores
de deixarem indeléveis “marcas morais” no garoto e, posteriormente, no memorialista, que as
443
evoca para se livrar de vez do peso da “mão”, das lembranças e das “reações dissimuladas”
que o próprio escritor finge esquecer, embora conheça bem o processo freudiano de
recalcamento que gera o sentimento de raiva e de vingança, daí a necessidade do apelido
como compensação parcial da humilhação imposta pelo professor-diabo, com “mãos pesadas”
e endemoniados pés “de mau agouro”
178
.
Está claro que não trato aqui da questão do ensino rígido, tônica dos métodos antigos,
em oposição à forma de ensino mais branda e democrática que se constata nos dias de hoje.
Procedimentos pedagógicos à parte, interessa-me somente destacar, à guisa de conclusão, o
quanto esta atitude ditatorial dos professores marcou a infância da grande maioria dos
modernistas brasileiros, que a ela reagiram de modo diverso, dependendo de sua “orientação”
os proustianos, como Augusto Meyer ou Pedro Nava, registram a injustiça mas não se
deixam abater por ela (“peles” muito “cicatrizadas”), preferindo valorizar o resgate
involuntário e positivo do passado; os não-proustianos, como Graciliano Ramos, jamais
conseguiram superar o trauma dos métodos selvagens e desumanos de inclusão “escolar” e
“social”, externando em obras como Infância e Memórias do cárcere um tipo de sofrimento
que, tendo se iniciado em casa e na escola, perpetua-se no encarceramento absurdo que, como
no Processo de Kafka, instala-se sem acusação formal e destrói sua vida, deixando profundas
marcas que não cicatrizaram nem através de seu angustiante desabafo literário. Assim, vemos
que a obra de Marcel Proust fez muito mais do que sugerir a este ou aquele escritor as chaves
sensoriais da reconstituição mnemônica “edifício imenso” erigido em prol da recordação
integral, a catedral de Marcel possui mais esse mérito: a capacidade de separar, em duas
correntes distintas, nostálgicos e recalcados, vítimas que abstraem e timas que se vingam.
178
Augusto Meyer assim descreve fisicamente o “Pata Larga”, corporificação de seus pesadelos escolares: “O
professor, marista magro, alto, com todo o sangue na cara apenas falquejada, possuía s respeitáveis que me
pareceram de mau agouro”. (MEYER, “No Ginásio”, Segredos da infância, 1949, p. 113)
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: AUGUSTO MEYER POLÍGRAFO COESÃO E
COMPLEMENTARIDADE: A MEMORIALÍSTICA EM COTEJO COM OUTROS
GÊNEROS DE SUA PRODUÇÃO
“Etre poète, c’est mettre en oeuvre ce qu’on a conservé
d’enfance. ”
(Jean Cocteau, Apud Georges Gusdorf, Mémoire et
personne, 1951, v. 2, p. 411)
“Memórias! Bom ofício para quem perdeu o ímpeto
criador.”
(Cyro dos Anjos, A menina do sobrado, 1979, p. 381)
“Sacudida” pelo vento e sugestionada pela aventura do petit Marcel, a memória de
Augusto Meyer “oscilou” entre o Cerro e o centro (de Porto Alegre), entre Guaíba e
Guanabara, entre Tico e Foguinho e entre Aug e Bilu, entre o cheiro da flor de maricá e o
gosto do doce de tacho, entre os apelos da memória involuntária e as exigências da “memória
sentimental”, entre o passado relembrado (só “aroma”) e vivido (“espinho também”), entre a
realidade objetiva e a “saudade do tempo da flor”, para finalmente, a certa altura, “firmar-se”
através do sujeito da escritura, no bem-sucedido resgate do Eu que se dissolve em tantas
máscaras sociais, “inquilinos” a usarem e abusarem da “casa” que somente consegue se
recompor graças ao aprofundamento introspectivo e extratemporal nos desvãos de
recordações que, caso contrário, perder-se-iam no abismal e obscuro “passo do não-sei-onde”.
Procurei demonstrar, ao longo desta tese, o quanto o memorialismo de Augusto Meyer
se impregnou, implícita e explicitamente, desde o primeiro capítulo de Segredos da infância
ao “Epílogo” de No tempo da flor, de certa atmosfera que em tudo remete à Recherche de
Marcel Proust, seguindo os passos do romancista francês, assim como outros modernistas
brasileiros, no uso constante das sinestesias, no lamento do tempo perdido, na reconstituição
dos espaços edênicos da infância (o “Há uma várzea no meu sonho, / Mas não sei onde
será...”, Distância”, Poesias, 1957, p. 265, metáfora poética de seu pays de tendre ideal), no
445
eterno fascínio pelas primeiras leituras e sobretudo nas reminiscências que, vindas
subitamente “à tona” qual “ilhas” que “flutuam incertas” como “Delos floridas”,
desencadeiam uma espécie de pacto com as motivações ontológicas/genealógicas/coletivas
mais profundas do ser, tendo por fim último a tentativa, aplicada a toda a sua obra mas
principalmente à memorialística, de reaproximar-se da essência de si mesmo, reinventando
personagens complexos, caminhos tortuosos e intrincados “becos da memória”. Tornando-se
cada vez menos fragmentado à medida que, evocado, materializa-se e reincorpora-se
definitivamente a sua identidade, o Eu das Memórias de Augusto Meyer, alimentado pela
reconquista em tempespaço de Tico, Foguinho, Aug e Bilu, participa de uma busca literária
que, justificando a confissão autobiográfica, transcende o gênero e passa a enformar todo o
conjunto de sua obra, voltada para a decifração interior de abismos, sombras e espelhos
multifacetados e multiplicados ao infinito, à espera do “milagre” de recuperação da unidade
perdida.
Dessa forma, é compreensível que, caracterizadas por objetivos comuns (o que denota
uma coesão e uma visão invejável do sentido integral de sua obra), a poesia, a crítica e a
memorialística do escritor abordem os mesmos temas, capitaneadas pela busca de
autoconhecimento através da introspecção psicológica, filosófica e mnemônica, como acentua
Tania Franco Carvalhal em A evidência mascarada ao justificar o natural “(...)
encaminhamento do autor para a obra de memória, território privilegiado da análise de si
mesmo” (1984, p. 16-7):
Assim como a ensaística e a poesia, a memorialística prolonga a busca de uma
essência que ao longo dos anos se desgarrou. Por isso, Segredos da infância e No
tempo da flor tentam reconquistar não um tempo perdido mas sobretudo uma
identidade que nesse tempo se perdeu. (CARVALHAL, 1984, p. 17)
Como modo de demonstrar que seu interesse por determinados assuntos ultrapassa as
fronteiras entre os gêneros e visa a uma unidade absoluta, Augusto Meyer insiste em veicular
em mais de uma forma literária certas idéias iterativas que acompanham suas preocupações
446
mais constantes. É o que ocorre, por exemplo, quando o escritor relembra, em “Cerro
d’Árvore”, o grito do quero-quero (“(...) que estranha sensação me invadia dentro da noite ao
ouvir o grito do quero-quero, ou esse arrancar da grama, tão nítido no silêncio, que aproxima
do nosso inquieto sono a presença confortadora de um matungo pastando...”; Segredos da
infância, 1949, p. 18), também registrado em sua obra poética:
É o grito do quero-quero / sobre o sono da cidade; / escuta; é a hora que passa / no
relógio que não pára. / Quem foi que bateu na porta? / Foi o fantasma sonâmbulo. /
Vai na beira dos telhados / anda contando as estrelas / salta a cumeeira das casas /
pula por cima das ruas. (MEYER, “Quero-quero”, Poesias, 1957, p. 148)
Ou quando evoca o perfume suavemente inebriante da flor de maricá, nos mesmos
gêneros citados acima:
Os maricás da Tristeza! A princípio uns toques de verde-claro nos ramos, como
se ainda sobrasse da madrugada um resto de cerração enredado por entre as puas dos
espinhos. Ninguém diria que aquilo afinal acabava em florada. (...) E este perfume
tão fino, tão discreto (quase a sombra de um perfume), não podia deixar de ser assim
mesmo: a alma daquela penugem da flor que logo murcha, uma evanescência
cheirosa, muito mais imaginada que sentida leve pungir de saudade mal aflorando
na lembrança... (MEYER, “Férias na Tristeza”, No tempo da flor, 1966, p. 105-6)
Este perfume tão fino / é a saudade de um perfume / e parece que resume / o amor de
um poeta menino. // Era um doce desatino, / era este perfume / e em meu peito um
vivo lume, / um nome, um segredo, um hino! // (...) De tudo aquilo, ficou-me / o
vago aroma de um nome / e a saudade de um perfume. (MEYER, “Flor de maricá”,
Poesias, 1957, p. 16)
A memorialística e a crítica meyerianas também estão intimamente ligadas, a começar
pelo fato de o intelectual gaúcho ter sido um dos principais estudiosos da obra de Proust no
Brasil e de ter redigido as Notas para a leitura de No caminho de Swann que acompanham a
primeira edição da tradução de Mario Quintana. Vejamos alguns exemplos da aproximação
entre os dois gêneros em Confissões de um leitor”, Meyer tece comentários a respeito do
“leitor ingênuo”, de maneira similar aos conceitos presentes em “Do leitor”, pertencente a À
sombra da estante. Leiamos:
Quem não leu Dumas aos quinze anos não sabe o que é ler um romance. Pouco
importa aqui a qualidade literária, o que vale é a qualidade da experiência, a
repercussão que provocou na fantasia do leitor ingênuo, traduzido em reações
sentimentais e imprevisíveis, com toda a magia das coisas singulares que
intensamente vivem do efêmero e nunca mais se repetem. (MEYER, No tempo da
flor, 1966, p. 93)
E no ensaio:
447
O leitor ingênuo é simplesmente ator. Quero dizer que, num folhetim ou num
romance policial, procura o reflexo dos seus sentimentos imediatos, identificando-se
logo com o protagonista ou herói do romance. Isto, aliás, se mais ou menos com
qualquer leitor, diante de qualquer livro; de modo geral, s nos lemos através dos
livros. (...) Relendo, por volta dos quarenta, os romances devorados na adolescência,
quando o mundo é enorme, e parece inesgotável a disponibilidade da fantasia,
compreendemos a importância da educação sentimental contida nos livros de ficção.
(MEYER, À sombra da estante, 1947, p. 12 e 14)
Até mesmo a ambientação psicológica de “O homem subterrâneo” (Machado de Assis,
2 ed, 1952, p. 11-20), paradigmático ensaio em que Meyer sugere a existência do “monstro
cerebral” que por trás da atitude machadiana, reaparece em “Quê? Por quê? Pra quê?”,
último capítulo de Segredos da infância, sendo nesse caso o “habitante do subsolo” o
próprio memorialista, que se comporta praticamente da mesma forma que o “bruxo do
Cosme Velho”:
Ao lado da talha de água, no pátio do Ginásio, olhos enfiados para dentro, olhando
sem nada enxergar, sonhava umas coisas vagas; do rodapé verde-negro desprendia-
se uma indefinível impressão de tristeza. (...) Era sombrio aquele recanto, propício
às ruminações sem motivo; o ângulo da parede formava uma espécie de refúgio
discreto. Não sabia onde meter tanta cisma. (...) Resvalava insensivelmente para
uma vida de consciência intranqüila, as primeiras perplexidades começavam a
perturbar-me e do fundo de mim mesmo, como bolhas que sobem à superfície da
água lisa, irrompiam perguntas imprevistas, urgentes, imperiosas: a vida cheia de
verbos irregulares... (...) Como ondas recomeçando em ondas, as perguntas
emendavam em perguntas: quê? por quê? pra quê? Enovelavam-se, desdobravam-se,
e acabavam regirando em torno do mesmo ponto de partida, a modo de cobra que
devora a própria cauda... (MEYER, 1949, p. 131-2)
Além de “Do leitor” e de “Quê? Por quê? Pra quê?”, vários outros ensaios de Augusto
Meyer tocam em questões relacionadas à memória e à infância. “Simões Lopes Neto” e “O
espelho” iniciam-se pela evocação do ambiente em que o escritor leu, pela primeira vez, os
Contos gauchescos e o conto homônimo de Machado de Assis. No primeiro, é óbvia a
sugestão espacial semelhante à paisagem recuperada em “Cerro d’Árvore”, e a campanha
eternizada por Simões Lopes Neto é, na verdade, o mesmo ambiente que Meyer conhecera
no rancho da Encruzilhada:
Eu já tive a sorte de ler os Contos gauchescos numa velha casa de estância, com as
janelas abertas sobre os horizontes limpos da campanha. Recorro agora ao meu
caderno de notas, para reconstituir a poesia arisca daquele momento. Através das
linhas a lápis, quase apagadas, ressurge na memória a paisagem, em toques de
mancha impressionista. (...) Para as bandas do Loreto, uma casinha branca brilhava
entre as coxilhas, toda caiada de sol. E dentro daquela paz campeira, havia em tudo
o mistério da hora que passa. (MEYER, Prosa dos pagos, 2 ed, 1960, p. 145)
448
No segundo, a fazenda onde Jacobina se “exilou” faz o escritor reviver proustianas
sensações sinestésicas, bem como paineiras e crepúsculos também evocados em No tempo
da flor:
O Espelho é para mim uma história comprida, embora não passe de um simples
conto. As suas páginas estão impregnadas da nostalgia do tempo perdido, e basta o
título para interromper a irreversibilidade, transportando-me a um momento intenso
de adolescência, como a visão, o cheiro e o sabor numa evocação de Proust. (...)
Vencido pela neurastenia, triste como um pinto na chuva, gostava de ler a um canto
da varanda, perto da janela, para repousar os olhos cansados na linda paineira do
vizinho. Momentos indefiníveis de angústia, quando o crepúsculo, apagando as
palavras na página aberta, tingia as flores seas de um rubor vivo que parecia
humano – coisa de meio minuto ou menos. (...) Foi assim que li O Espelho. Eu era o
alferes do conto. Naquele tempo a minha alma exterior talvez fosse a vaga poesia
que os meus dezoito anos atribuíam ao mundo inteiro. (MEYER, Machado de Assis,
2 ed, 1952, p. 67)
Preto & branco (1956) é um dos volumes da crítica de Augusto Meyer em que mais se
reúnem ensaios relacionados à memorialística. A ele pertencem, além de “A ilha flutuante”
(texto inúmeras vezes comentado ao longo do trabalho pois nele é que Meyer analisa o
trecho de No caminho de Swann sobre a “Delos florida”, equivocadamente traduzido por
Quintana; 1956, p. 123-7), capítulos como “Pergunta sem resposta” (1956, p. 105-15) e “Da
infância na literatura” (1956, p. 116-22), nos quais o crítico trata, respectivamente, da
constatação de que ecoam na obra de Marcel Proust o tema medieval do ubi sunt de François
Villon (o “où sont les neiges d’antan?da Ballade des dames du temps jadis) e barroco da
vida é sonho de Calderón de la Barca; e da discussão, motivada a partir de considerações
sobre as obras Infância (Graciliano Ramos), Memórias: poesia e verdade (Goethe) e A volta
do parafuso (Henry James), a respeito da “ilusão de fidelidade” presente em toda “tentativa
autobiográfica”, onde afirma que
A reconstituição da infância, seja numa tentativa autobiográfica ou em qualquer
forma de evocação literária, se apresenta viciada na origem pela perspectiva de
ilusão e mesmo de transfiguração em que se coloca o adulto, para poder descrevê-la;
digo transfiguração num sentido geral e não somente a que retoca para melhor e
ameniza as recordações, avivando as ensolaradas e omitindo as sombrias. (MEYER,
“Da infância na literatura”, Preto & branco, 1956, p. 116)
Em “Cerro d’Árvore”, Augusto Meyer também lamenta o fato de a reconstituição da
infância ser necessariamente feita pelo adulto que, premido pelo discurso e pelo “crivo da
449
análise”, deturpa o sentido virginal da experiência infantil, privando o leitor do acesso a sua
verdadeira essência:
Segredos e caminhos da infância... De todo aquele mundo, ficaram apenas algumas
imagens vagas, reproduzidas grosseiramente a poder de concentração da memória
sentimental, mas tão deturpadas pela necessidade discursiva, tão diferentes e quase
irreconhecíveis depois de passarem pelo crivo da análise, que, em vez de aproximar-
nos da fonte viva do ser em sua ingênua frescura, aguçam cada vez mais a
consciência que nos separa daqueles rincões perdidos. (MEYER, Segredos da
infância, 1949, p. 16-7)
Mas nenhum dos diversos exemplos citados acima, sobre os mais variados assuntos,
pode ser comparado à recorrência com que o tema do minuano aparece e reaparece na obra
de Augusto Meyer. Vimos que o vento cortante está presente na poesia, na prosa poética e
no memorialismo do autor, repetição que se legitima se considerarmos que esta
manifestação da natureza simboliza, para ele, não apenas a volta aos pagos da infância, mas
o “batismo” de orgulho, valentia e força que todo gaúcho deve prezar. Vindo “de longe”,
“do pampa e do céu” (Poesias, 1957, p. 152), o minuano “levanta a poeira da rua em
450
em terras platinas. Em “Os dez maiores romances”, carta aberta a João Condé (A forma
secreta, 4 ed, 1981, p. 149-52), o apreço e a fidelidade de Meyer a A la recherche du temps
perdu se confirmam através da eleição do roman-fleuve como uma das obras mais essenciais
da literatura ocidental:
De fato, eu eliminara, com um sopro mental, a Comédia humana e Balzac, riscara do
mapa dos eleitos um território imenso com todo o seu mundo de personagens;
eliminara-os manhosamente, recorrendo a despejo, para acomodar no apartamento
confortável Marcel Proust e sua memória. (MEYER, 4 ed, 1981, p. 149)
Quanto ao interesse de Augusto Meyer pelo folclore e pelas manifestações populares de
sua terra, é evidente que, além da decifração interior e da recuperação do Eu fragmentado,
temas essenciais da poesia, da crítica e da memorialística autobiográfica, o escritor
procurasse, como forma de chegar a tão desejada reunificação integral, compreender as
raízes sociais e familiares que servem de sustentação à frondosa árvore literária plantada no
quintal da casa do zaori que olha sempre para o interior de seres e objetos, árvore cujos
frutos, diversificados, enchem-se do “saco roto das cismas” da imaginação e da
introspecção, frutos aparentemente vazios mas que abarcam, de um golpe, o íntimo e o
coletivo, o confessional e o histórico, o lírico e o cerebral.
Assim, à obra tão calculadamente coerente – ao equilibrar, sob os mesmos temas,
lirismo (poesia) e rigo de análise (crítica), sedução pelos abismos dos acessos involuntários
(memorialística) e pesquisa documental (folclórica, filológica, filosófica, hermenêutica) a
tal obra faltaria apenas o registro “social” das memórias de grupo (mais precisamente, do
grupo da “Rua da Praia” ou da Livraria do Globo”) e da memória coletiva (categoria na
qual se incluem obras-primas como “Gaúcho, história de uma palavra” e “Poesia popular
gaúcha”, estudos veiculados na segunda edição de Prosa dos pagos, 1960, p. 07-42 e 43-75;
Guia do folclore gaúcho, glossário etimológico de temas, expressões e costumes
gauchescos, 1951; e o Cancioneiro gaúcho, composto por uma “seleção de poesia popular”
e “um suplemento musical”, 1952).
451
A evocação dos hábitos da larga convivência, regada a literatura, cinema-mudo e chopes
no Antonello, do talentoso grupo da Rua da Praia”, é a oportunidade que se apresenta para
Augusto Meyer juntar a tendência à introspecção e ao isolamento, marcante em grande parte
de sua obra, a preocupações existenciais mais abrangentes, de ordem coletiva, do “neto de
farroupilha” que deseja conhecer o passado dos familiares e de seu povo como forma de
melhor compreender os “rituais de iniciação” de Tico, de Foguinho e de Aug, isto é, de seu
próprio passado, recuperado pela imaginação e pela memória involuntária. Ao lembrar a
“juba ruiva dos nórdicos” que caracteriza o bisavô, o neto e ele próprio, Meyer faz questão
de ressaltar que “(...) tudo é continuidade humilde, através dos tempos, e a ilusão individual
da vida não passa de um fragmento no grande contexto, sem significado próprio e quase
sempre acabando em reticências...”. (“No tempo da flor”, 1966, p. 41)
Entre o indivíduo fragmentado à cata de estilhaços e a vastidão cultural da herança
“nórdica”, “pena” e “espada” cruzadas no destino deste “magro marquês da quimera”, resta
apenas, para livrá-lo momentaneamente de suas “ruminações cerebrais” e da forte carga
ancestral a pesar-lhe nos ombros, o alento da lembrança do terno convívio, informal e
“adolescente”, com os companheiros de sua roda boêmia e literária, evocados em capítulos
como “Ruim esquisito” (No tempo da flor, 1966, p. 113-6), no qual Augusto Meyer relembra
o entusiasmo de Athos Damasceno Ferreira com a publicação dos versos de No turbilhão, seu
livro de estréia (entusiasmo injustificado, na opinião do memorialista, pois, assim como
Alegros e surdinas, de Zeferino Brasil, Caminho da vida, de Eduardo Guimaraens, A
degenerada, de Álvaro Moreyra, e seu próprio Ilusão querida, os livros de estréia valem não
pela qualidade literária, mas pela experiência, onde está “decerto o melhor da aventura
poética”, p. 114); e “Rua da Praia” (No tempo da flor, 1966, p. 123-34), espécie de ode ao
engajamento cultural de sua geração, composta por companheiros ativos, ávidos por
conhecimento e informação e que, maravilhados pelas descobertas literárias e
452
cinematográficas do século que se iniciava, compartilhavam suas expectativas no principal
cenário da belle époque porto-alegrense, a Rua da Praia, “estrada real” de suas formações. Por
conseguinte, nas páginas do penúltimo capítulo de No tempo da flor, desfilam novamente,
ante a evocação saudosista do escritor, a “prosa límpida” de Moisés Vellinho, a cumplicidade
de Teodemiro Tostes, a “ironia anatoleana” de João Pinto da Silva, as oportunidades
concedidas por Fernando Caldas, no Correio do Povo, e pelo “vibrátil Mansueto Bernardi”,
na Editora do Globo, o requinte intelectual e o ceticismo de Rubens de Barcelos, além de
muitos outros, citados de passagem: Darci Azambuja, Vargas Neto, Ruben Rosa, Eurico
Rodrigues, Rui Cirne Lima, Sotero Cosme, Pedro Vergara e Luís Vergara.
De toda a vasta gama de interesses demonstrados pela literatura meyeriana, fica-nos a
certeza de que seu universo, riquíssimo em todos os aspectos, comporta simultaneamente o
imprevisto das manifestações involuntárias e a segurança dos juízos críticos, o lirismo das
coisas simples do rancho, da várzea, da flor de maricá e o extremo racionalismo
labiríntico do “monstro cerebral” que atuava neste “iniciado do vento”, imagens formadas
tanto pela “memória sentimental” quanto pelo “crivo da análise”, para configurar uma obra
que, partindo do idiossincrático, torna-se, macrocosmicamente, uma das referências culturais
mais bem acabadas de toda a história do modernismo brasileiro, “vidência” que constrói,
desconstrói e reconstrói, a seu critério, um “mundo” de “formas, cores, visão”, uma vez que
(...) Em toda visão, por mais simples que seja, existe um princípio de vidência. Ver é
desprezar a forma pra sentir a essência. Uma paisagem com a sua diversidade
refletida na retina procura em nós a unidade. Árvore, coxilha, casa, nuvem, céu. Mas
tudo isso é apenas o material que eu emprego na construção do mundo. (MEYER,
“Psiu”, Literatura e Poesia, 1931, p. 99-100)
Vasto mundo que, longe de se esgotar no profundo e completo proustianismo que
caracteriza suas Memórias, espalha-se em infinitas possibilidades de leitura e compreensão,
dando margem a estudos que, na esteira deste que aqui se encerra, porventura ousem fazer
do memorialismo de Augusto Meyer a mola propulsora de toda a sua inspirada obra literária.
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480
(res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora da UNICAMP,
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Outras artes
AMNÉSIA. Direção: Christopher Nolan. Produção: Team Todo. Intérpretes: Guy Pearce;
Carrie-Anne Moss; Joe Pantoliano e outros. Roteiro: Christopher Nolan. Música: David
Julyan. São Paulo: América Video Filmes, c2000. 1 VHS (115 min), color. Produzido por
Paris Films e Newmarket. Baseado em “Memento”, de Jonathan Nolan. Título original:
Memento.
BALDUNG, Hans. The Three Ages of Man and Death. 1539. Oil on panel. 151x61 cm. In:
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BELÉM, Fafá de. Estrela radiante. Rio de Janeiro: Polygram, p1979. 1 disco sonoro.
BLADE Runner - Caçador de andróides. Direção: Ridley Scott. Produção: Michael Deeley.
Intérpretes: Harrison Ford; Rutger Hauer; Sean Young; Edward James Olmos e outros.
Roteiro: Hampton Fancher e David Peoples. Música: Vangelis. São Paulo: Warner Brothers,
c1982. 1 VHS (118 min), color. Produzido por Warner Video home. Baseado na novela “Do
android dream of electric sheep?”, de Philip K. Dick. Título original: Blade Runner.
BORGES, Lô. A via-láctea. Rio de Janeiro: Emi Odeon Brasil, p1979. 1 disco sonoro.
BORGES, e NASCIMENTO, Milton. Clube da Esquina I. Rio de Janeiro: Emi Odeon
Brasil, p1972. 2 discos sonoros.
BORGES, e NASCIMENTO, Milton. Clube da Esquina II. Guarulhos: Emi Odeon Brasil,
p1978. 2 CDs. Remasterizados em digital (1995).
BOWIE, David. Space oddity. Rio de Janeiro: Emi Odeon Brasil, p1990. 1 disco sonoro.
BRILHO eterno de uma mente sem lembranças. Direção: Michel Gondry. Produção: Steve
Golin e Anthony Bregman. Intérpretes: Jim Carrey; Kate Winslet; Kirsten Dunst; Mark
Ruffalo; Tom Wilkinson; Elijah Wood e outros. Roteiro: Charlie Kaufman. Música: Jon
Brion. Manaus: Microservice Tecnologia Digital da Amazônia, c2004. 1 VHS (108 min),
color. Produzido por Universal Studios. Título original: Eternal sunshine of the spotless mind.
BUARQUE, Chico. Ópera do malandro. Rio de Janeiro: Polygram, p1979. 2 discos sonoros.
COSTA, Gal. Gal tropical. Rio de Janeiro: Philips, p1979. 1 disco sonoro.
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DALI, Salvador. A persistência da memória. 1931. Óleo sobre tela. 24,1 x 33 cm. In:
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481
GUEDES, Beto. Contos da lua vaga. Rio de Janeiro: Emi Odeon Brasil, p1981. 1 disco
sonoro.
GUEDES, Beto. Sol de primavera. Rio de Janeiro: Emi Odeon Brasil, p1979. 1 disco sonoro.
NASCIMENTO, Milton. Caçador de mim. Rio de Janeiro: Polygram, p1981. 1 CD.
NASCIMENTO, Milton. Encontros e despedidas. Rio de Janeiro: Polygram, p1985. 1 disco
sonoro.
NASCIMENTO, Milton. Geraes. Rio de Janeiro: Emi Odeon Brasil, p1976. 1 disco sonoro.
NASCIMENTO, Milton. Minas. Guarulhos: Emi Odeon Brasil, p1975. 1 CD. Remasterizado
em digital (1995).
NASCIMENTO, Milton. Sentinela. Rio de Janeiro: Ariola, p1980. 1 disco sonoro.
O PAGAMENTO. Direção: John Woo. Produção: Hackett Productions. Intérpretes: Ben
Affleck, Aaron Eckhart e Uma Thurman e outros. Música: John Powell. São Paulo:
Microservice Tecnologia Digital da Amazônia, c2003. 1 VHS (119 min), color. Produzido por
Dreamworks LLC / Paramount Pictures Corporation. Título original: Paycheck.
O PLANETA dos macacos. Direção: Franklin J. Schaffner. Produção: Arthur P. Jacobs.
Intérpretes: Charlton Heston; Roddy McDowall; Kim Hunter; Maurice Evans; Linda Harrison
e outros. Música: Jerry Goldsmith. São Paulo: FoxVideo / Abril Vídeo da Amazônia, c1994. 1
VHS (112 min), color. Produzido por Twentieth Century Fox Film Corporation. Título
original: The planet of the apes.
SEIXAS, Raul. O dia em que a terra parou. Rio de Janeiro: WEA, p1988. 1 disco sonoro.
VELOSO, Caetano. Cinema transcendental. Rio de Janeiro: Polygram, p1979. 1 disco
sonoro.
VELOSO, Caetano. Circuladô. Rio de Janeiro: Polygram, p1991. 1 disco sonoro.
VELOSO, Caetano. Velô. Rio de Janeiro: Philips, p1984. 1 disco sonoro.
VERMEER, Johannes. A vista de Delft. Disponível em:
http://www.artehistoria.com/frames.htm?/genios/cuadros/3062.htm. Acesso em: agosto 2005.
ANEXOS
483
ANEXO I – PROSA MEMORIALÍSTICA: DO OVO À LARVA E À BORBOLETA
CARTA AOS MEUS BISAVÓS
Não chego a ver as tuas feições, meu bisavô, apenas uma luz de presença; e às vezes, de
tanto fitar na escuridão do passado olhos indagadores, não sei que humana projeção da tua
sombra anima as trevas, parece que o teu alento perdido recobra a forma viva, um vulto
caminha ao meu encontro, acena um triste adeus lá no fundo de tantos anos...
Nada sei, afinal, da tua aparência no tempo, a não ser o que me contavam em casa,
desde menino: que eras ruivo como eu, que vieste em vinte e quatro, com os primeiros
colonos, e abandonaste logo a tua pobre lavoura, encravada nos matos de Sapucaia, para
alistar-te entre os Farroupilhas. Por sinal que morreste na guerra grande ah, isto sim, o guri
curioso que eu era guardou para sempre num desvão da memória. E a viúva, coitada, viu-se
obrigada a começar tudo de novo.
Era mulher de olhos vivos e negros, pequenina, animosa, e não tinha medo de homem,
nem do ronco que ele tem. Todos os depoimentos concordam neste caso; de espada em punho,
aprendeu a defender o couro e os seus direitos. Chegou certa vez a vir a pé, de Lomba Grande
a Porto Alegre, para pleitear com a eloqüência da candura a posse do pobre pedacinho de terra
cultivado com suor e lágrimas, regado a sangue pelo marido.
Pudesse eu, armado de vidência, acompanhar-te os passos, Maria Klinger, ver
claramente vistas as tuas andanças de colona; como venceste as veredas e picadas; como
paraste, cansada, à sombra das árvores, ou foste pedir, na tua ngua de trapos, um pouco de
água para a tua sede... O sol, a poeira, as horas intermináveis que pesam nas pernas... Sabes?
Há sempre, nesta dura terra, um Samaritano qualquer, alma limpa e mão aberta, convidando a
pousar, aquietando o cachorro ladrador, dando de graça um mate e o sorriso.
Dizem que chegaste às falas com autoridades. As autoridades! O antigo palácio era ali
mesmo, no alto da Praça da Matriz, ao lado da venerável Igreja de Nossa Senhora Madre de
Deus, fortaleza da fé, que o delírio das grandezas deitou abaixo, num dos tantos assomos do
nosso novoriquismo arquitetônico.
Vejo-te, assim, Maria Klinger, pequenina, humilde, balbuciando, na tua algaravia de
colona alemã, diante das formidáveis Autoridades, não sei que vagas queixas, acerca de vagas
terras. As mãos nodosas, de unhas maltratadas, falavam muito mais que as palavras.
Enrolavam e desenrolavam o lenço grosseiro, que ajuda tanto a dissimular o embaraço, a
encher os buracos de silêncio. do alto das suas culminâncias, entre complacência e tédio
484
(mais um suplicante!), as Autoridades ouviam aquele cômico murmúrio, como quem se deixa
acariciar pelo fio de voz cantante e fresco de um regato na paisagem...
Mas tu não vês como és ingênua, avozinha, como és quase ridícula em tuas andanças
quixotescas? Pois tu não sabes que as terras não são dos humildes, do que as regam com o
suor do rosto, dos que sujam as mãos no seu amanho quotidiano? Que terras de sobra,
dizes tu, um fartão de terras? No mapa, sim, e na propaganda, mas isto são altas cavalarias, de
que não entendes patavina...
Recolhe a trouxa, apruma o busto e volta logo ao teu destino, avozinha. Não te demores
a admirar o portão do palácio, a bandeira no alto do mastro, a guarda rendendo guarda, o claro
panorama do Guaíba com veleiros e ilhas na bruma luminosa e aquele amontoado de casas
que se derramam ladeira abaixo, lomba acima, projetando sobre a rua o interminável recorte
dos beirais...
E nem deves ficar parada aí, no meio da rua, de boca aberta, diante da roda dos
expostos, ou deitar olhos tão compridos para o solar de Dom Diogo de Sousa, no Caminho
Novo, com seu portão imponente e as grades convidando à inveja; não são para o teu bico
estes requintes. Que entendes tu de jardins tosados à moda francesa, de canteiros almofadados
e altos, com lanternas e repuxos?
Sacode a poeira dos sapatos e trata de voltar para a tua picada...
Mas, ou eu muito me engano, ou já desandei a escrever uma novela, traído pelas
incorrigíveis manhas da minha fantasia, que não respeita maneia nem soga e vive a retouçar
nos verdes da improvisação.
Felipe e Maria Klinger, volto à pauta desta carta, mal traçada e comovida, por onde os
meus garranchos de menino se enroscam, atarantados, subindo e descendo... Sei dizer que,
peregrinando agora pelas mesmas terras, numa desesperada tentativa de entrevistar os meus
fantasmas, aos poucos vossa imagem frouxa começou a impor-se, clareada de poesia; quanto
mais vaga, mais viva. E o bisneto põe-se a aumentar um ponto no conto.
Felipe e Maria... Como na mais linda história deste mundo, a história de um caminho
perdido, nada sei da vossa profunda humanidade, mas adivinho-a com a resignação de um
poeta que envelheceu aprendendo a trocar as coisas pela imagem das coisas. Felipe, inquieto,
magro, alto, cabelo cacheado e cor de fogo; Maria, pequenina, vivaracha, sacudida, os olhos
pretos furungando tudo em derredor, a modo de camundongo... Como eu vos vejo bem na tela
panorâmica, o morro de Sapucaia ao fundo, e a roça aberta em plena mata, onde dois pobres
bichos da terra mourejam de sol a sol... A hora está parada no tempo. O calor ao longe
485
desmancha a grimpa das árvores numa ondulação tremida, que arde nos olhos. Nem um pio de
ave, sussurro de folha, estalido de graveto. O vôo altaneiro do urubu vai fugindo para o azul.
É assim que eu gostaria de abrir a filmagem da vossa vida, para uso do meu cinema
interior. Quantas vezes tentei criar em torno da vossa aventura uma biografia qualquer de
pioneiro, dessas que andam agora em moda, graças ao cinema americano e sua possante
vulgaridade, colorida e agressiva! A chegada dos primeiros colonos; A Feitoria Velha; os
trabalhos e dias de um pobre na roça; as coivaras avançando pelo vale do Jacuí; a pregação
farroupilha e a colônia incipiente e dividida em facções; todos os contrastes pitorescos da
aculturação aproveitados em episódios que servem de tempero ao entrecho... Mas depois
compreendi que o maior encanto da vossa história decorria da sugestão do anonimato; quanto
mais vaga, mais viva. Truncada assim, sacrificada aos ideais da guerra grande, a tua vida, meu
bisavô, renasce com toques de lenda na imaginação; fosses tu apenas um dos tantos colonos
enriquecidos, fundadores de gordas firmas, futuras indústrias, e teria sido outra a história do
teu bisneto: em vez de encher de brisa o saco roto das cismas, andaria às voltas com cifras e
dividendos. Perdeu-se um grande industrial, não haja dúvida alguma. Do teu fracasso, em
compensação, resulta um neto de Farroupilha.
E me sinto mais nobre assim, magro marquês da quimera, sem títulos, prosápia,
linhagem a atravancar-me o passado. Pensando bem, são estes os meus brasões de colono sem
terras; em campo de sangue, uma cabeça degolada, ou, para ser menos patético em campo
blau, uma espada e uma pena cruzadas –, a pena, esta mesma que assina a carta, e a espada,
bem entendido, da avozinha Maria...
Augusto Meyer (Segredos da infância/No tempo da flor, 1997, p. 11-14)
486
CERRO D’ÁRVORE
Figura 10 – Cerro d’Árvore, “tempespaço” reinventado
A memória da infância é uma ilha perdida. Navegando para lá, não sei por que, lembra-
me Fabini e a “isla de los ceibos”. A mesma incerteza dos compassos iniciais; depois, o
mesmo clarão de descobrimentos imprevistos.
Voltar à raiz da vida, reviver aquela fase em que a gente é ao mesmo tempo todas as
coisas, berço, aurora, sino e onda, uma parcela integrante da totalidade, sem o individualismo
exclusivista. No começo era a dispersão.
*
Minha primeira recordação é um muro velho, no quintal de uma casa indefinível. Tinha
várias feridas no reboco e veludos de musgo. Milagrosa aquela mancha verde e úmida, macia
ao contacto, quase irreal na sua beleza livre. Fecho os olhos, e ela me enche de luz, como um
aviso da vida teimosa.
Depois, o vento da campanha, sobre o nosso rancho no Cerro d’Árvore. Era uma voz tão
grave, que metia medo. Mais tarde, senti a mesma impressão ao atravessar os campos da
fronteira. Como a um toque mágico, restabeleceu-se a cadeia entre o homem e a criança.
Arquipélagos submersos de recordações vieram à tona.
487
A noite vinha do largo, devagar. O vento arredondava as nuvens, punha mais distância
no campo. E era o horizonte. Nos relevos um valor puramente acidental, nenhum toque
detendo a pupila. Fuga silenciosa para o além. Quem olha como eu olhava então, perde o
ponto humano de referência e fica, por assim dizer, no ar. Que sentido nesta visão diluída,
evaporada, esvaziada? Precisava de tocar, de sentir. A vacuidade me doía como um ferimento
vivo e me achava tão diminuído como aquele capão fantasma lá no fim do horizonte.
Daí o mal-estar que agora sentia. Porque, diante dessa paisagem reduzida a horizonte
puro, a minha inquietação não encontrava nada, nada. Fatalismo sereno do quadro pampiano,
raso, deitado, fechado em si mesmo. Nem ao menos uma pedra heróica, um mato crespo.
Parece que a terra diz ao homem: anda, briga, ama no fim, tudo se reduz a um gesto horizontal
de renúncia.
E como é sedutora a fatalidade que a curva riscada pela terra no céu me propõe...
Indiferença voluptuosa pelo amanhã, sensualidade. Se ninguém pode evitar o seu destino (o
destino é uma linha fechada como a paisagem presente) é melhor não sondar coisa alguma e
viver com a inocência dos brutos.
As manchas claras do gado no seu paradouro noturno me convidavam a pensar na
felicidade do ruminante. Mas eu não podia ser assim. No meio da paisagem crepuscular,
devorado pela sombra, me sentia profundamente vertical, insatisfeito, amargo, homem.
O vento era o mesmo vento do Cerro d’Árvore, os caminhos se perdiam na noite, não
havia mais caminhos. É quando um grande arrepio de medo penetra a carne frágil...
*
Nada sabemos do começo. O que os outros mais tarde nos contaram, tentando retraçar
aos nossos olhos a imagem da criança que fomos, não diz nada às vozes da memória, nem
de leve toca nas cordas da revelação. Os outros nos falam de outro; não podemos contam
com o auxílio de ninguém para dar os primeiros passos no tempo que passou. É dentro de nós
mesmos que ele dorme, como a verdade no fundo de um poço. Dura, estranha, absurda, é a
imagem que uma fotografia amarelecida recortou tantos anos na fluidez do instante, e
vale como documento na imaginação alheia. Na grande noite do começo, vagamente
pressentimos a escuridão do fim.
Para além desse muro velho, no quintal de uma casa indefinível, começa a treva do
mundo. Entrei para a vida consciente ou semiconsciente quando meu pai assumiu a
gerência das minas de Cerro d’Árvore, no município de Encruzilhada.
488
Estou vendo o nosso rancho, construído no alto de uma coxilha, a taquara e barro, com
teto de santa-fé. Abrem-se e ondulam, no fundo da memória, os horizontes de coxilhões, com
maravilhosos crepúsculos e um sol enorme, inundando os campos.
O vento mandava naquelas várzeas e canhadas. Senti-o, desde o começo, dominando
tudo, sacudindo o rancho nas noites frias, quando eu acordava com medo e ouvia lá fora o seu
gemido.
Ficamos no rancho até a conclusão dos reparos que se faziam numa casa de material.
Meu pai, minha mãe, tia Mavuce, Carlota e Henrique, meus irmãos, Idalina, a criada, e o peão
Felisberto. Que eu não esqueça os outros membros da família: em primeiro lugar o Sultão, um
terra-nova, e depois o Tobiano, o Zaino, o Malacara, o Alazão do meu mano, o meu petiço
Bragado... E as tambeiras.
O mundo era imenso. Começava muito além daqueles cerros quase apagados no
horizonte e vinha dar na sombra da casa, onde o peão Felisberto construía para meu uso uma
casinha de brinquedo, encostada à outra, com janelas, portas, telhado de barro e um forno.
Na casinha de brinquedo morava uma família minúscula, que meu pai recortara a
canivete em tala de jerivá. À beira da ramada, fazíamos um churrasquinho. O fogo ardia nos
olhos e ameaçava devorar a engenhosa construção do Felisberto. O naco de carne, tisnado e
enfumaçado, em vez de servido aos moradores da casinha, era reservado, como oferta votiva,
aos deuses cruéis que organizavam a cerimônia. Havia mangueiras de pedra e uma lavoura.
As guanxumas faziam de arvoredo.
Mas, toda aquela miniatura, como alimento da imaginação, desaparece diante da
grandeza do luminoso espetáculo aberto em derredor. No céu tão alto para os meus olhos de
criança, as nuvens tomavam todas as formas, numa cumplicidade imaginativa que parecia
inesgotável e sempre outra, apesar da monotonia da paisagem. Algumas pareciam formar-se
de um ponto de luz quase imperceptível, no profundo azul, cresciam e sumiam de súbito,
como ilhotas submersas num calmo oceano. Outras, enormes e bojudas, arredondavam-se
tanto, amontoando construções tão complicadas sobre alicerces de brisa, que desmoronavam
como castelos de espuma desmanchados pelo vento da tarde.
Às vezes, de um extremo do horizonte ao outro, o v
489
O vento enfurecido açoitava a rancharia, os primeiros frios penetravam pelas frinchas, o
gado procurava os paradouros.
E no outro dia, era o minuano. Bastava olhar a altura gelada e azul, com que outro
galope de nuvem, para reconhecê-lo. Havia todas as vozes, todos os lamentos naquela voz
poderosa. Zunia nos tetos, varria as macegas, corria três dias e três noites sem parar. Os
baldes de água gelavam ao relento. A geada branqueava os campos. De manhã, que bom que
era o café fumegantommem da ( )-50.1773e.16558(d)-0.29558o dm e tudma emeg 1( )-50.1761.15 0 T48.42 it deo aeian deo oz(a)3.74(n)- oeue
490
A todo momento, quando nos perturba a sedução da sua saudade, sentimos que é preciso
voltar de qualquer modo aos pagos da infância. Voltar! diz uma voz interior, voltar enquanto é
tempo à manhã da tua vida...
É verdade que é preciso deixar de ser criança para poder sentir em toda a sua plenitude a
força do espírito pueril; o homem feito pode compreender o mal de não ser criança. Mas
na sedução da infância talvez principalmente o desejo de retorno à paz de onde saímos um
dia, como quem voltasse à treva refrigerante do começo. Nesse ponto, um encontro de
tendências contraditórias, uma atração vertiginosa de não sei que renovo da vida por meio da
dissolução desejada e consciente.
*
Voltamos do Cerro d’Árvore em carreta.
Dias e dias, morei naquela casa de rodas, que se arrastava pelas estradas, sem vontade
de chegar. Parecia que cada trecho de paisagem, com pena de nos deixar, tentava seguir-nos
até a última curva do caminho. De vez em quando, bandos de avestruzes cruzavam os longes
da campanha.
Aprumado no seu tobiano de estampa, cavalo de estimação que só ele montava, meu pai
seguia, fechando a marcha. Alto, esbelto, sempre alegre, lenço branco ao pescoço e
barbicacho nos queixos, não me lembro de ter visto gaúcho mais folheiro. Sabendo que o
tobiano era o meu sonho de guri, tomava-me às vezes nos braços e enganchava-me à frente,
agarrado à cabeça do lombilho, para que tivesse a ilusão de dominar o pingo arisco.
Em noites de calma, fazíamos a cama no capim, entre as rodas da carreta.
Mais tarde, anos e anos depois, que estranha sensação me invadia dentro da noite ao
ouvir o grito do quero-quero, ou esse arrancar da grama, tão nítido no silêncio, que aproxima
do nosso inquieto sono a presença confortadora de um matungo pastando...
Era o lembra não lembra daquelas noites dormidas sob o teto de uma casa de rodas, com
seu vasto silêncio campeiro e a confusa palpitação de rumores indecifráveis, subindo pouco a
pouco à memória, do fundo do tempo...
Porém, há uma lembrança que apaga todas as outras, pela nitidez e pela singularidade, a
única organizada com seqüência, encadeada na memória em função do tempo. Foi durante
aquela viagem de carreta. Manhã cedo, o café fumegava nas canecas, a boiada solta, em torno,
imagens vagas, uma chaleira tisnada, seu Galdino carreteiro... Então, o milagre eu pulara
pra fora e, deixando a sombra do toldo, a claridade aberta me ofuscava, mas, de repente, que
maravilha era aquela? Diante de mim, uma várzea imensa, toda fulguração, irradiando ao sol
491
nascente pelos pingos de fogo no brilho da orvalhada, com flores de luz e capim de cristal, e
uma lagoa tão serena, que vinha uma vontade de ficar para sempre olhando o seu espelho.
Ainda me lembro que eu havia visto naquele inverno rigoroso uma crosta grossa de gelo nos
baldes que ficavam ao relento e queria por força que a lagoa tão clara também fosse de gelo.
Alguém me explicou que era simplesmente água da chuva e senti um espanto desiludido...
Não saberia dizer com palavras o que foi para mim a várzea ao sol. Tive alegrias e
revelações mais tarde, porém, nenhuma tão profunda como aquela. Porque era indefinível e
integral. Porque a consciência não me separava das coisas, como agora. A criança era,
naquele momento, a terra infinita com sua promessa, tudo possuía o sentido supremo, a força
definitiva, a luz perdida. O mundo existia, sem precisar de explicações. Mas no fato de ter
sido a lagoa milagrosa simplesmente água da chuva, começou a decadência do espírito pueril.
A evidência mata a revelação. E a criança morre para que o homem possa viver. Ao longo dos
anos, ainda assim, o homem continua a se debruçar sobre as vozes da infância porque, através
do seu balbucio pueril, distingue as palavras eternas da vida e morte.
Augusto Meyer (Segredos da infância, 1949, p. 11-19)
492
NO TEMPO DA FLOR
O rumorejar do vento nas árvores desperta esquecidas recordações. Como aquele azulão
pousado na ponta do mais alto ramo, antes de levantar vôo, a memória hesita, voltada para
todos os lados do passado. Mas, de súbito, a intuição acerta o prumo e vai direita e rápida,
como ave de arribação atraída pelo faro de outra querência: a saudade do tempo da flor...
Insensivelmente, ainda com um resto de sol nos olhos, chegamos um belo dia à linha de
sombra que marcava a entrada na maturidade. Linha indistinta, no momento a vivemos como
simples transição, uma espécie de arrepio leve, prenunciando a aragem da tarde. Só agora, por
efeito da visão distante, em recuo no tempo, é que a podemos ver nítida, implacável como
beirada sombria de nuvem no campo, a revelar uns longes batidos de sol.
Em vão nos voltamos, de vez em quando, para aquelas manchas claras de terra insolada,
lá nas dobras do horizonte. Para trás ficou a infância e a adolescência, que é o tempo flor. Em
frente, em frente seguem os nossos caminhos, todos eles voltados para a zona de sombra.
Quando muito, a uma curva mais brusca da estrada, torna a aparecer muito ao longe o relance
verde de um lançante afundando no vale, fresco e lavado de luz, como se ainda continuasse
amanhecendo em todo aquele trecho de paisagem...
Bem sei: visto de longe, e por saudade, o tempo da flor é aroma; vivido, é espinho
também.
Para quem nasceu com um pouco de imaginação, a adolescência é mais ou menos como
aprender a caminhar por entre os obstáculos de um caminho atravancado – com pernas de pau
e sem tropeçar. A um lado e outro, grandes letreiros dão conselhos fáceis de dizer, exortam,
advertem, refrescam a lembrança do fogo do inferno, sugerem novas e imprevistas
encruzilhadas, sacodem o sonâmbulo à beira do abismo de si mesmo, proíbem
terminantemente pisar fora do rego...
Para quem espigou no corpo mas não teve tempo de trocar de alma, as cousas parecem
desajustadas. Por fora, é homem feito, por dentro é a mesma criança, mais criança ainda por
contraste, quando se revela a persistência do espírito pueril num gesto, numa palavra
impensada, numa simples inflexão da voz. Na mudança de voz é que se manifesta, às vezes
com efeitos muito engraçados de falsete, esse diálogo entre o homem e a criança, verdadeiro
dueto, em que o grave e o agudo, o barítono e o tenorino, tentando colaborar na mesma frase,
respeitam o sentido oracional, mas quebram a unidade expressiva, alternando modulação,
volume e ressonância. O que devia sair grave e gordote, sai fininho e aflautado, ou, no fim de
493
uma frase que está confirmando a potência de um peito varonil, o tenorino indiscreto estraga
tudo e se esganiça como um coro de colégio... Com que boa risada se descobre que dentro do
grandalhão está escondido um guri!
Tudo aquilo que a convenção poética e o preconceito comum na mulher consideram
graciosos a transformação da menina em moça no homem, no adolescente candidato a
homem feito, parece desajeitado, engraçado, ridículo. Mãos e pés enormes, primeira penugem
de barba rebentando por entre as espinhas, cabeça de meninote plantada em corpo de adulto,
altos e baixos da voz que não acaba de acertar o timbre e, por cima de tudo, cada vez mais
envolvente, a imperiosa pressão do sexo reclamando os seus direitos...
De súbito, Augusto começou a crescer que não parava mais... As calças curtas foram
promovidas a canudos de homem, enquanto a voz engrossava e uma penugem ruiva punha
pingos de fogo na cara mais comprida. O espelho mostrava uma transfiguração dos traços,
acentuava-se o queixo, endurecia a boca, alongava-se o rosto, e tudo isto era salpicado
implacavelmente pelas sardas, algumas enormes, pintalgando o nariz, marcando a testa clara,
livre agora da franja de alazão, tosada um dedo acima das sobrancelhas.
Rebrotara comigo a juba ruiva dos nórdicos, o mesmo cabelo cor de fogo do meu bisavô
Felipe Klinger e do meu neto José Resende Costa. Assim se transmite, de geração a geração,
com intermitências, um pigmento, um nariz, uma luz de alma debruçada nos olhos, a cor do
cabelo, para lembrar que tudo é continuidade humilde, através dos tempos, e a ilusão
individual da vida não passa de um fragmento no grande contexto, sem significado próprio e
quase sempre acabando em reticências...
Mas Augusto então não queria saber de reticências. Palpitava uma labareda de
vitalidade naqueles cabelos fartos, rebeldes e ondulados, e o mesmo pêlo ruivo começava a
brotar no dorso das mãos sardentas. Como todo animal que sai marcado e peculiar, de pinta
diferente, no meio dos outros, Foguinho sofria do seu cabelo, das suas sardas, do seu apelido
coruscante e malicioso.
Enquanto vivia a turbulência do futebol, do soldado-ladrão, da barra, do brinquedo de
esconder um, dois, três Foguinho! não sentia as malícias do apelido. Mas agora, aluno de
preparatórios, mocito espigado e vago leitor de Alencar e Victor Hugo, a reação era outra.
Foguinho parecia-lhe nome de guerra pouco romanesco e nada recomendável aos olhos das
quiméricas Dulcinéias, fabricadas com a brisa das leituras elegíacas, entre uma lição de
álgebra e os destroços de um soneto gorado.
O esboço caricato do homem que ainda não veio lembra o ensaio malfeito e recomeçado
mil vezes de uma peça que tão cedo não podecontar com o bom desempenho do primeiro
494
ator. Onde anda esse protagonista de si mesmo, o dono da peça, que por enquanto vive no
cartaz?
o sentimos dentro de nós, o herói virtual, como um apelo que vem de muito longe. A
meio caminho de mim mesmo, o homem que hei de ser começa a desencadear o gesto criador
de um destino. Vivemos ambos do mesmo respiro, da mesma inflexão de voz, e, se eu avançar
um passo, ele há de avançar também, precipitado no rumo de si mesmo – de mim mesmo...
Digam o que disserem os críticos sisudos e adultos, babando sabedoria, na virtualidade
está a grande vantagem desse herói dos quatro ventos, e todos estes lados que agora nos
parecem tão ridículos no Adolescente, o ser mas não ser, o andar e desandar, os tropeços do
homem levado pela mão da criança, revirados pelo avesso, apresentam outros lados positivos
de compensação e desafogo, são outras tantas janelas abertas para a deliciosa indeterminação
do futuro. Quem tem razão é sempre o amanhã que ainda não veio, a aventura dos dias
escondidos na vaga distância azul de outros dias...
Ébrio de nada e tudo, mas com não sei que toques de sol nos olhos, ridículo e admirável,
na sua riqueza potencial, o adolescente sofre por não saber como é bom sofrer no tempo da
flor.
Insensivelmente, ainda com um resto de sol nos olhos, chegamos um belo dia à linha de
sombra que marcava a entrada na maturidade. E quem poderá dizer, em palavras medidas e
serenas, como dói a consciência da maturidade que atingiu o seu limite?
“Não basta, ainda não basta! Louvado seja o outono!”, dizia Conrad Ferdinand Meyer,
ao cantar a insaciável plenitude.
Mas a plenitude é também consciência de um limite; mais um passo, e o destino está
cumprido, a forma perfeita se desmancha, o fruto maduro apodreceu.
Copiei para meu uso, há muitos anos, estas palavras de um professor de angústia, que às
vezes me parecem pedras caindo num poço: “Toda cousa já traz em si mesma a tristeza da sua
forma, a tristeza de ser assim e não poder mudar – ser outra coisa...”
Augusto Meyer (No tempo da flor, 1966, p. 39-43)
495
ANEXO II - POEMAS DE AUGUSTO MEYER RELACIONADOS À MEMÓRIA, AO
PAPEL DOS SENTIDOS E À MEMORIALÍSTICA
FLOR DE MARICÁ (Alguns poemas. In: Poesias, 1957, p. 16)
Este perfume tão fino
é a saudade de um perfume
e parece que resume
o amor de um poeta menino.
Era um doce desatino,
era este mesmo perfume
e em meu peito um vivo lume,
um nome, um segredo, um hino!
Mas onde estás, poeta louro?
E onde está o teu tesouro
de amor, de mágoa e queixume?
De tudo aquilo, ficou-me
o vago aroma de um nome
e a saudade de um perfume.
SOMBRA VERDE (Coração verde. In: Poesias, 1957, p. 30)
Sobre o capim orvalhado e cheiroso...
Maciez das boninas,
espinho das rosetas,
cricris sutis nesse mundo imenso,
tão pequenino...
Volúpia de gozar as sensações,
de sentir junto a mim o coração da terra,
no seu trabalho milenário e silencioso,
como se eu fosse longamente uma raiz profunda...
Mãe-verde...
Reclinei-me em seu regaço,
onde há venenos e perfumes.
E todo o cheiro das suas folhagens,
toda a seiva dos seus frutos,
frescura de águas claras e de folhas verdes
vem banhar como um bálsamo as pálpebras fechadas.
496
GALPÃO (Giraluz. In: Poesias, 1957, p. 71)
A lingüeta clara, amarela e azul,
dança a dança do fogo, abraçando a chaleira.
Cada pulo é um clarão.
Vêm de fora os rumores do campo medroso
e o seu grulho noturno pede silêncio:
o vento o vento o vento viaja,
o vento viaja para o outro mundo...
Os campeiros são graves como a lembrança
de tudo tudo que já passou.
Morrem os olhos na cinza morta.
- a brasa viva se apagou.
Pula contente a lingüeta clara,
criança alegre no galpão.
Dança no teto, brinca nas traves,
brinca na sombra, de esconder.
(Foi a chaleira que chiou.)
O vento o vento vem e vai,
O vento vai para o outro mundo...
CANÇÃO DO MINUTO PUERIL (Giraluz. In: Poesias,1957, p. 83-4)
Uma nuvem passou.
Toda a casa mergulha
no halo negro da sombra,
na penumbra do outro mundo.
Luarizada, a janela da sala...
Chove cinza.
E o tapete agoniza
na penumbra do mundo.
Ninguém fala.
Brilha o vaso na mesa
e um pedaço do espelho.
Tenho medo...
Chove a sombra do mundo
sobre o ninho da sombra.
Oh a canção dos pomares!
497
Me dá o sol!
Dá-me a infância perdida
como um raio de sol!
A alegria subia
como aquele balão
que, uma tarde gloriosa,
fugiu da minha mão...
O relógio parou.
Arde o meu coração,
bate em meu coração
toda a angústia do mundo!
A rosa do tapete
É uma flor de penumbra.
- Mãe, eu quero o sol!
ELEGIA DO LIMÃO VERDE (Giraluz. In: Poesias,1957, p. 109-10)
Atirei um limão verde...
Não bota mais o teu vestido branco
era em janeiro:
as uvas ruivas muito doces,
quase tão doces como as palavras que eu dizia
(como eu sabia a forma doce das palavras...).
Teu lábio tinha o sumo das ameixas,
era em to ..147792(e)3.74(m)1LE.295187( )]TJ13.68 T792(u)-0.294974(m)-2.45995(a)3u58(i)-2.16558(n)-0.295585(h)-05(a)3.74(l)-997(u)-0.295571(d)-0.2es brbo ui..G
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o-253.749(-)-0.2989]T7503(t)-2.16558v
Aonhmu rbgi(u)-0.295585(m)-2.45995(b995( )-0.14585(i)--0.295585(r).3009(g)9.71093(i)-2.165-0.295585(r).30(u)-0.293015(g)8774126.2659(e)3.74(s)-7792(b)b4(u)-0.295585( )-03.74( )-0.147792(f)2.80-0.295585(r)2.804.295585(u)-0.295585(.)-0.14759187( )-0.147792(t))]TJT*[(t)-2.16558(o)-0.294974(d)-0558(i)-2.16574( )-0.147792(d)-0974(m)-2.45995( )-0.1463(o)-0.295585( )-0.147792(b)2.16558(v)-0.295585(a)358(o)-0.295585( )-0.147792(d)-0.295580.295585( )-0.147792(s)-1.222(M)-1.52556(ã)3.74(e)3.10.1537(a)3.7(u)-0.295585(m683-2.45995(a)3u58(i)-2.165-0.295585(r)7792(b)2.16558(v)-0.295585(a)3.295585(u)-0.2955874(u)-0.295585( )-0.14779585(r)2.80561(a)-0.295585(r)7792(b)36.7417 0 T*[(q)-03( )]T42111.39( )i147792(p)-0.29558?147477710.3015(o)-0.29436.1596(L)0.6187( )-0.147792(t))]TJh*[(t)-2.16558(o)-0.294974(d)-074(u)-0.29553.74(r)2.80561(d)-0.29558.16558(a)3.74( )-10.1537(a)3.74(r)2.80.74(s)-1.22997( )-0.294974( )-0.147792(e)3.p3(o)-0.295585( )-0.14Td[(P)0.6400260.295585(r)2.80561(m)-n2.4659(a)3.74( )-0.1472.16558(v)-0.295585(a)392(o)-0.295585( )-0.147792(t)-2.16558(v)-0.295585(a)358(o)-0.295585( )-074(o)-0.295585( )-0.1477-2.16558(x)-10.3015(a)3.74(s)-1.92(o)-0.295585( )- r en85( )- rrma brm ão vao ugcesom g arrgru !
498
Pensa na casa querida quando o vento noturno
vinha bater com a mão de um ramo na vidraça...
Ah brincar de passado brincar!
Atirei um limão verde...
Menina e moça entre as árvores velhas,
loura e linda ao sol, moça e menina,
por que foi que anoiteceu assim na tua vida?
quem botou luto nos teus olhos viúvos?
ELEGIA PARA MARCEL PROUST (Giraluz. In: Poesias,1957, p. 115-6)
Aléia de bambus, verde ogiva
recortada no azul da tarde mansa,
o ouro do sol treme na areia da alameda,
farfalham folhas, borboletas florescem.
Portão de sombra em plena luz.
Gemem as lisas taquaras como frautas folhudas
onde o vento imita o mar.
Marcel, menino mimoso, estou contigo, Proust:
vejo melhor a amêndoa negra dos teus olhos.
Transparência de uma longa vigília,
imagino as tuas mãos
como dois pássaros pousados na penumbra.
Escuta: a vida avança, avança e morre...
Prender a onda que franjava a areia loura de Balbec?
Cetim róseo das macieiras no azul.
Flora carnal das raparigas à beira-mar.
Bruma esfuminho Paris pela vidraça
Intermitências chuva e sol Le temps perdu.
Marcel Proust, diagrama vivo sepultado na alcova,
o teu quarto era maior que o mundo:
cabia nele outro mundo...
fecho o teu livro doloroso nesta calma tropical
como quem fecha leve leve a asa de um cortinado
sobre o sono de um menino...
499
MINUANO (Poemas de Bilu. In: Poesias, 1957, p. 152-3)
500
Eu sou o irmão das solidões sem sentido...
Upa upa sobre o pampa e sobre o mar...
PUERILÍSSIMA (Poemas de Bilu. In: Poesias,1957, p. 159-160)
O sino da Matriz bateu seis horas.
Viva o dia que foi-se embora!
É o momento musical tão suave
quando as árvores na praça conversavam.
Eu saía do Ginásio em fila,
carregando o peso leve da mochila.
Ainda sinto o cheiro bom de cola
dos meus livros cartonados na escola.
Tinha um mapa na parede que dizia:
vamos viajar no país da Geografia.
Colombo navegava nas naus.
Amazonas, capital? Manaus.
Tinha a janela para o céu eterno
na tarde mansa quando vem o inverno.
Também tinha a pedra negra sem um risco.
Dependurado lá no alto o crucifixo.
- Augusto Meyer,
seu comportamento deixa muito a desejar...
Infância, fonte clara... a vela
arde e treme no altar da capela.
O sino da Matriz bateu seis horas.
Viva o dia que foi-se embora.
O POEMA (Últimos poemas. In: Poesias, 1957, p. 260-1)
Corredor do tempo esquecido
Onde o eco responde ao eco,
Em vez de janelas, reflexo
De espelho a espelho, refletido.
Que passos repisando passos
Parados vão? A horas mortas,
501
Fria, uma presença esvoaça
De leves dedos, que abrem portas.
Longo é o caminho. Em qualquer parte
Rei dos Ratos rói os brinquedos.
Dos quatro cantos, lá no quarto
Sombras cochicham os teus segredos.
Onde a janela que se abria
Ao pôr do sol? Andando em frente,
Andando, andando, eu tocaria
No fim da terra, o ouro do poente.
Iriavam-se os cristais do lustre,
Na sala escura o espelho que arde!
Pulava a cortina, de susto,
Ao primeiro sopro da tarde.
Mas tudo agora é tão distante!
O rato rói o fio da história.
Só o arrepio de um instante
Sobe à surdina da memória...
Súbito, a hora morta no tempo
Amadurece como um fruto!
No misterioso aroma, o poema
Recolhe a essência de um minuto.
DISTÂNCIA (Últimos poemas. In: Poesias,1957, p. 265)
Há uma várzea no meu sonho,
Mas não sei onde será...
Em vão, cismando, transponho
Coxilhas enluaradas,
Cristas de serrilhadas,
Solidões do Caverá.
Leito de trevo e flechilha,
Várzea azul, da luz da lua,
Verde várzea - onde será?
No ar da tarde flutua
Fino aroma de espinilho
E de flor de maricá.
Era além do azul da serra,
Era sempre noutra terra,
Era do lado de lá...
Em vão, cismando, transponho
Poentes e madrugadas,
502
Intermináveis estradas
Perdidas ao deus-dará.
Há uma várzea no meu sonho,
Mas não sei onde será.
ERA UMA VEZ... (Últimos poemas. In: Poesias,1957, p. 270)
Quem passa? É o Rei, é o Rei que vai à caça!
Mal filtra o luar a sombra do arvoredo.
Joãozinho, a um restolhar, treme de medo,
Maria escuta, se uma folha esvoaça...
Era uma vez um rei... jogou a taça
Ao mar, e o amargo mar guarda o segredo...
E a princesinha que cortou o dedo?
Faz muito tempo... como a vida passa!
Era uma vez a minha infância linda
E o sonho, o susto, o vago encanto alado...
Vem a saudade e conta-me baixinho
Velhas histórias... E eu já velho ainda
Sou um Pequeno Polegar cansado
Que pára e hesita, em busca do caminho...
*
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