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lembrando que muitos outros modernistas brasileiros também eternizaram, através do registro
memorialístico, suas primeiras leituras “infanto-juvenis”
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:
Às vezes, quando nem sonhava em pensar naquelas
coisas de arrependimento e oração, crescia dentro
de mim uma estranha maré de náusea. Esvaziava-se
de súbito o gosto mais intenso da hora. Namorar o
olho-de-boi na coleção de selos? (...) Reviver as
aventuras interrompidas de Arnaldo Louredo, o
sertanejo, ou de Estácio, nas Minas de Prata?
Embarcar num daqueles devaneios em que a
evidência e a vaguidade se confundem na mesma
plenitude, e este mundo tão áspero e tão agressivo
nas suas incógnitas – quê? por quê? pra quê? – se
dissolve em música e aceitação serena? (MEYER,
“Do ginásio Anchieta”, 1966, p. 23)
Era no telhado de nossa casa, na Praça da Matriz,
onde estendia um velho colchão para embebedar-
me de Alencar, gole a gole, de vez em quando
olhos pousados na copa da paineira gigantesca do
quintal de Marinho Chaves, que esgalhava muito
alto, por cima do telhado vizinho... (MEYER,
“Alencar no telhado”, 1966, p. 75)
Vinte anos depois! Sempre me pareceu impregnado
de não sei que triste advertência este famoso título
da obra de Dumas. Mesmo então, conquistado o
dinheiro para a leitura do romance, um vago anseio
assaltou-me, pressentimento e antecipada
desilusão. (...) E quando avancei afinal
cautelosamente no primeiro capítulo caminhando
ao encontro de um D’Artagnan quarentão, já havia
travado relações com a amargura do irreparável:
vinte anos depois! (...) Vã tentativa de reconquistar
sem maiores esperanças o Romance Perdido. Vinte
anos depois, tudo era estranho e demudado; os
mesmos nomes familiares soavam a eco e
arremedo, a paródia vazia de sentido. (MEYER,
“Confissões de um leitor”, 1966, p. 93-4)
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Ali [nos quartos das tias Marout e Bibi] se me
desabrochou amor que nunca me deixou. O
amor dos livros, o amor da leitura. Eu tinha
diante dos olhos o exemplo de meu Pai, de suas
irmãs, de seus cunhados, permanentemente
atracados num volume da coisa impressa.
(NAVA, Baú de ossos, 6 ed, 1983, p. 414)
Passei aos livros da ‘biblioteca’ do colégio
[Anglo-Mineiro]. (...) Jamais esqueci, desde
então, de tratar bem os livros – nossos escravos
da lâmpada, amigos de sempre, senhores
despóticos de nosso tempo. O mundo foi se
abrindo para meus onze anos e multidões
passaram a desfilar diante de meus olhos. (...) O
nosso José de Alencar, com Iracema, o
Guerreiro Branco, o frágil madeiro, os verdes
mares bravios, a jandaia, as frondes da carnaúba
e a informação de que havia talhes de palmeira,
lábios de mel, sorrisos doces como o favo do jati
e índias, cujo hálito recendia a baunilha...
Pensando nelas eu desconfiava e me
espreguiçava, Ubirajara, senhor da vara...
Chegou a vez de Mayne Reid, do Cavaleiro sem
Cabeça, dos Plantadores da Jamaica, dos
Náufragos de Bornéu. Em seguida Júlio Verne
com Miguel Strogoff, as Vinte Mil Léguas
Submarinas, a Ilha Misteriosa. (NAVA, Balão
cativo, 1973, p. 143-4)
Diante da livraria que se me oferecia tal qual um
mar oceano – mergulhei! E me senti logo como
peixe n’água. Depois da biblioteca do Anglo que
eu esgotara, eu tinha ali [na biblioteca de
Antônio Sales] rumas de literatura nacional,
portuguesa, inglesa, francesa. (NAVA, Balão
cativo, 1973, p. 190)
Durante muito tempo coloquei Os Sertões como
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Carlos Dante de Moraes relembra Júlio Verne como leitura marcante: “Agora podia fartar à vontade a fome
de livros. A biblioteca do Ginásio me oferecia uma profusão deles, ao preço de parca mensalidade. Júlio Verne
me conduzia por todo o globo e acentuava o meu gosto por paragens exóticas, a crônica das explorações, as
aventuras por terra e mar” (MORAES, Um solitário à procura da vida – Fragmento de autobiografia, 1975, p.
155). No capítulo “Primeiras leituras”, Agripino Grieco rende tributo aos românticos Gonçalves Dias, Álvares de
Azevedo, Casimiro de Abreu, Laurindo Rabelo, Fagundes Varela, José de Alencar e Castro Alves, dentre outros
(ver GRIECO, Memórias, 1972, v. 1, p. 85-91). Oswald de Andrade também exalta o romancista francês e o
poeta baiano: “Dos livros que conheci na mais afastada infância, lembro-me de As espumas flutuantes, de Castro
Alves, que meu pai me deu. Não entendi nada mas gostei. Já na Rua de Santo Antônio, minhas preocupações
foram outras. Li deslumbrado Carlos Magno e os doze pares de França, que fiz questão de emprestar a todo
mundo, cozinheiras, amigos da família. (...) Passei já grandinho para Júlio Verne, que foi meu mestre piloto no
maravilhoso dos doze anos. A ilha misteriosa encheu minha vida, povoou meus dias e minhas noites.”
(ANDRADE, Um homem sem profissão, 2002, p. 65-6; grifo do autor)
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Notar a alusão de Augusto Meyer a Proust (“Vã tentativa de reconquistar (...) o Romance Perdido”), ao
criticar a decisão de Dumas de proceder à continuação de Os três mosqueteiros através deste romance intitulado
Vinte anos depois.