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...nenhum deus é, nem pode ser, nem eterno nem perfeitamente feliz, nem omnipotente nem mesmo
omnisciente, estando reservada esta última qualidade somente aos Budas. O Budismo nega a
existência de Deus único e pessoal, deste Içvara adorado por numerosos religiosos indianos e ao
qual eles esperavam unir-se pelo yoga. Ele nega igualmente a existência deste deus impessoal que é
o brahman, este “eu” cósmico que seria idêntico ao “eu” (âtman) individual de cada ser. É pois
inútil esperar socorro do primeiro, uma ajuda qualquer sobre o longo e difícil caminho da salvação,
tanto como sonhar unir-se a ele ou dissolver-se no segundo. É igualmente vão, adulando o Senhor,
Içvara, esperar falsear em proveito próprio o mecanismo da retribuição dos actos; nada, nem
ninguém, pode impedir que um culpado receba o justo e automático castigo dos seus crimes. O ser
está só, absolutamente só, em face da sua própria responsabilidade, no ciclo sem fim das
existências. Nenhum deus intervém, nem para condenar, nem para compensar, nem para perdoar,
nem para receber. (BAREAU, 1975, p. 31).
Se, por um lado, o poeta é o único responsável por sua solitária trajetória, por outro,
nenhuma divindade guarda o segredo de sua poesia, a nenhuma ele deve tributo. Assim, as
criaturas sagradas, como símbolos, são extremamente maleáveis para o poeta. Em
“Sonambulismos” (Evocações, p. 559), Cristo representa uma figura distorcida do antigo
Salvador que poderia trazer-lhe justiça; “A flor do Diabo” (Faróis, p. 103) mostra um Lúcifer
que envelhece, que pode ser ultrapassado por sua própria obra, que cai em tédio e perde um de
seus caracteres comumente mais valorizados, a jovialidade inquieta e rebelde. A manipulação
dos símbolos, assim como apontamos no satanismo, está submissa à vontade de expressão do
poeta. Sua sensibilidade coordena a linguagem simbólica, de maneira que um Deus de um
poema muda de significação, de peso, conforme o que busca o eu-lírico. O Satã finito e
ultrapassado de “A flor do Diabo” não é o mesmo, por exemplo, de “Spleen dos deuses”, em
que o tédio que promove a inversão de papéis, a inversão de valores do mundo, ainda
encontra Lúcifer na posição de debochada revolta:
Oh! Dá-me o teu sinistro Inferno
Dos desesperos tétricos, violentos,
Onde rugem e bramem como os ventos
Anátemas da Dor, no fogo eterno...
Dá-me o teu fascinante, o teu falerno,
Dos falernos das lágrimas, sangrentos
Vinhos profundos, venenosos, lentos
Matando o gozo nesse horror de Averno,
Assim o Deus dos Páramos clamava
Ao demônio soturno, e o rebelado,
Capricórnio Satã, ao Deus bradava:
Se és Deus e já de mim tens triunfado,
Para lavar o Mal do Inferno e a bava
Dá-me o tédio senil do céu fechado... (Faróis, p. 152).
Com o peso de todo o seu destino sobre os ombros, o eu-lírico poderia, mais do que
esperar ou valorizar a morte, buscar diretamente o suicídio. Porém, mesmo o eu-lírico que se