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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ÁREA: ESTUDOS DE LITERATURA
ESPECIALIDADE: LITERATURAS BRASILEIRA, PORTUGUESA E LUSO-AFRICANAS
LINHA DE PESQUISA: LITERATURA, IMAGINÁRIO E HISTÓRIA
A REPRESENTAÇÃO DO IMIGRANTE ALEMÃO
NO ROMANCE SUL-RIO-GRANDENSE: A DIVINA PASTORA, FRIDA
MEYER, UM RIO IMITA O RENO, O TEMPO E O VENTO E A FERRO E
FOGO
IVÂNIA CAMPIGOTTO AQUINO
ORIENTADOR: PROF. DR. LUÍS AUGUSTO FISCHER
Tese de Doutorado em Literaturas Brasileira,
Portuguesa e Luso-Africanas, apresentada
como requisito parcial para a obtenção do
título de Doutor pelo Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul.
PORTO ALEGRE
2007
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Ao Henrique, à Pietra e à Júlia, meus filhos, pelo amor
genuíno correspondido e pela ternura que me ofertaram
nesta etapa de meus estudos.
Ao Moacyr, que, compreensivo, com amor, renova o
sentido de tudo.
Aos meus pais e irmãos, pelos bons exemplos, pelo
interesse, pela torcida.
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AGRADECIMENTOS
No tempo em que me dediquei ao doutorado, foi fundamental o apoio das instituições a
que estive ligada e das pessoas que me permaneceram próximas.
Meu agradecimento à Universidade de Passo Fundo e a seu curso de Letras, meu local de
trabalho, que, além de criarem as condições práticas para prosseguir nos estudos, me motivaram
com a expectativa que alimentam em relação à formação de seus professores; à Prefeitura
Municipal de Passo Fundo e à sua Secretaria Municipal de Educação, meu outro local de
trabalho, por preverem uma organização de horários que me possibilitou freqüentar as aulas; à
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e a seu Programa de Pós-Graduação em Letras, pela
qualidade do curso.
Aos professores do programa com quem tive aulas expresso um muito obrigada especial,
pois foram excelentes socializadores do conhecimento que detêm e sérios mediadores da minha
construção de novos conhecimentos.
Ao Luís Augusto Fischer, meu professor e meu bom orientador, que me orientou e se fez
presença constante em todos os momentos da escrita da tese, com a exigência devida, a idéia
certa e a compreensão de que eu precisava, dizer obrigada é pouco. Pelo seu empenho como
professor atualizado teoricamente, cujos procedimentos metodológicos facilitam a aprendizagem
do aluno, e pela vivacidade contagiante ao tratar de assuntos literários, manteve-me segura e
motivada no desenvolvimento deste importante trabalho acadêmico.
Sou muito grata a três pessoas especiais que leram este meu trabalho e me ajudaram a
torná-lo melhor com os conhecimentos que possuem. Uma delas é a Maria Emilse, que fez a
revisão gramatical, outra é o Luciano, que me ajudou a fazer os mapas literários, e a outra é o
Cristiano, que se dispôs a descrever vários espaços de Porto Alegre citados nos romances. Foi
uma bela manifestação de carinho.
4
Agradeço aos meus pais, Vitalino e Therezinha, e aos meus irmãos, Elcinira, Claudionei e
Jeane, pelas palavras de incentivo e pela confiança que têm em mim. Foram todos sempre ternos
e carinhosos.
Aos meus três filhos e ao meu esposo, minha profunda e amorosa gratidão. Durante o
tempo em que cursei o doutorado, todos souberam esperar, silenciar e, também, me distrair na
hora certa. Esta minha busca de novos conhecimentos e esta minha vontade de realizar mais uma
etapa de formação profissional se completam em significado e importância porque eles
existem em minha vida.
5
RESUMO
Este é um estudo da representação do imigrante alemão no romance sul-rio-grandense.
Analisa cinco romances que tratam do tema: A divina pastora, de Caldre e Fião (1847), Frida
Meyer, de Vivaldo Coaracy (1924), Um rio imita o Reno, de Clodomir Vianna Moog (1939), O
tempo e o vento (sete volumes/trilogia), de Erico Verissimo (1949-1962), e A ferro e fogo (dois
volumes), de Josué Guimarães (1972 - 1975). A análise das obras foi orientada pelas categorias
Família, Trabalho, Religião, Espaço e deslocamento e Contatos. Para cada uma das categorias é
feito um levantamento minucioso das informações correspondentes encontradas nas narrativas.
Por meio desse processo investigativo são explicitadas as visões sobre a imigração alemã
construídas por escritores diferentes em épocas diferentes, formulando-se compreensões sobre
assimilação e preservação da identidade étnica e participação dos imigrantes na formação do
estado do Rio Grande do Sul.
Palavras-chave: romance – - imigração alemã – etnia – assimilação – identidade étnica
6
ABSTRACT
This is a study of the portrayal of German immigrants in romance written in Rio Grande
do Sul. An analysis of five literary works addressing the theme is provided. The works are A
divina pastora, by Caldre e Fião (1847), Frida Meyer, by Vivaldo Coaracy (1924), Um rio imita
o Reno, by Clodomir Vianna Moog (1939), O tempo e o vento (seven volumes/trilogy), by Erico
Verissimo (1949-1962), and A ferro e fogo (two volumes), by Josué Guimarães (1972-1975). The
analysis was directed by the following categories: Family, Work, Religion, Space and
dislocations and Contacts. A thorough assessment of the corresponding information found in the
narratives was made for each category. The views on German immigration as constructed by
different writers at different times are made explicit through such investigative process, which
has raised understanding about the assimilation and preservation of ethnical identity and the
participation of immigrants in the formation of the state of Rio Grande do Sul.
Key-words: romance – German immigration – ethnicity – assimilation – ethnical identity.
7
SUMÁRIO
1 - QUESTÕES INTRODUTÓRIA 09
1.1 – Apresentação do tema da pesquisa: a questão do romance 09
1.2 - Estudos anteriores sobre os romances 13
1.3 - Características dos romances estudados 17
1.4 - O que busco nos romances 25
1.5 - Estrutura da tese 29
2 - DADOS HISTÓRICOS DA IMIGRAÇÃO ALEMÃ NO RIO GRANDE DO SUL 32
2.1 - Os primeiros grupos de imigrantes alemães no Rio Grande do Sul 42
2.2 - A colonização provincial 55
2.3 – Alemães nas colônias do Rio Grande do Sul 59
2.4 – Alemães na capital do Rio Grande do Sul 66
2.5 - Os brummers 68
3 – OS IMIGRANTES ALEMÃES NO ROMANCE SUL-RIO-GRANDENSE 70
3.1 – A divina pastora 70
3.1.1 – Família 73
3.1.2 – Trabalho 76
3.1.3 – Religião 77
3.1.4 - Espaço e deslocamento 79
3.1.5 – Contatos 80
3.2 – Frida Meyer
3.2.1 – Família
3.2.2 – Trabalho
3.2.3 - Espaço e deslocamento
3.2.4 – Contatos
8
3.3 – Um rio imita o Reno
3.3.1 – Família
3.3.2 – Trabalho
3.3.3 – Religião
3.3.4 - Espaço e deslocamento
3.3.5 – Contatos
3.4 – O tempo e o vento
3.4.1 –Família
3.4.2 – Trabalho
3.4.3 – Religião
3.4.4 - Espaço e deslocamento
3.4.5 – Contatos
3.5 - A ferro e fogo
3.4.1 – Família
3.5.2 – Trabalho
3.5.3 – Religião
3.5.4 - Espaço e deslocamento
3.5.5 – Contatos
4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
4.1 – Contextualização dos romances
4.2 - Mapas literários
4.3 - Idéias conclusivas
4.4 – Questões que persistem
REFERÊNCIAS
9
1 - QUESTÕES INTRODUTÓRIAS
1.1 - Apresentação do tema da pesquisa: a questão do romance
De um tempo para cá, tem me interessado e me entusiasmado estudar o romance, sem
prejuízo, é claro, de meu gosto pelos demais gêneros literários. Acontece que a natureza do
romance é a de ser uma leitura totalizante da realidade. O romance é a forma da totalidade, na
versão de Lukács, e isso me estimula na medida em que, pela leitura, vou tomando posse do
mundo construído no discurso. Também a verdade que mora na história narrada num romance
me fascina, por me levar a experimentar um outro mundo, bem estruturado, com as dimensões de
um todo, um mundo que se deixa comparar com aquele que chamamos de “real” e que serve de
contraponto a este real.
É o romance, dentre as outras formas literárias, que consegue expressar melhor o embate
entre o homem e o mundo real a que pertence, bem como entre indivíduo e sociedade, e entre o
ser e o existir, explica Georg Lukács em sua obra A teoria do romance, de 1916. Nesse sentido, a
experiência do homem como sujeito da história é o que alimenta o romance.
Na minha dissertação de mestrado, realizei um estudo sobre romances e livros de história,
evidenciando, pela análise das técnicas discursivas utilizadas pelos escritores e historiadores, a
proximidade existente entre as narrativas de ficção e de história. Logo após, na universidade onde
sou professora e pesquisadora, passei a desenvolver o projeto de pesquisa “Narrativa: a relação
literatura e história”, por meio do qual analisei romances que representam histórias envolvendo
os principais movimentos messiânicos brasileiros: Mucker no Rio Grande do Sul, Canudos na
10
Bahia e Contestado em Santa Catarina. Assim, nesta tese de doutoramento, não foi outro meu
interesse senão construir mais conhecimentos sobre o romance.
O gênero literário romance é bem recente, se pensarmos que se faz literatura desde
Homero e de Safo. Contudo, foi somente no final do século XVIII que o termo se consagrou,
segundo Ian Watt em A ascensão do romance (1990). Desde que surgiu, afirma o autor, trouxe
como característica essencial o realismo, o qual se revela na maneira como o romance representa
determinada experiência humana, e não no tipo de experiência representada.
Amplamente, no gênero romance está implícita a premissa de que “constitui um relato
completo e autêntico da experiência humana e, portanto, tem a obrigação de fornecer ao leitor
detalhes da história como a individualidade dos agentes envolvidos, os particulares das épocas e
locais de suas ações detalhes que são apresentados através de um emprego da linguagem muito
mais referencial do que é comum em outras formas literárias” (WATT, 1990, p. 31). Dessa
forma, pratica-SE o realismo formal, “o mínimo denominador comum do nero romance como
um todo” (p. 33).
Assim caracterizado, o romance foi importado para o Brasil, o que se deu como uma
forma de conhecimento, ou seja, desempenhou o papel importantíssimo de ir apresentando o país
aos habitantes. Esse começo do romance coincidiu com o começo da história do Brasil como
nação autônoma. Assim, depois da independência, sob o domínio da expressão romântica, os
escritores empenharam-se em criar a nação por meio da abstração, da simbolização, processo no
qual a imagem do índio da natureza era a força maior. Em conjunto, colocaram em cena questões
históricas, vivificando épocas e sujeitos da formação nacional.
Com esses primeiros romancistas, atentos ao momento de formação que o Brasil estava
vivendo, surgiu a produção de um tipo de romance que ainda hoje permanece como um dos mais
praticados, o romance histórico, como relata Regina Zilbermam (2000, p. 33):
O romance histórico constitui provavelmente o projeto mais antigo e contínuo da ficção
brasileira. Os românticos adotaram-no porque correspondia a um gênero de vanguarda
na primeira metade do século XIX, criação exclusiva do período, que cabia transplantar
para o Brasil, pois o país em formação, logo após se separar de Portugal, precisava de
narradores de seu passado. Tanto melhor que fossem romancistas, que poderiam
recorrer à imaginação para conferir heroicidade aos episódios da conquista do território,
nem sempre conhecidos, nem sempre dignos de tratamento épico.
11
Entenderam os introdutores do gênero no Brasil que o romance histórico era a forma por
meio da qual melhor poderiam “fazer acontecer” o projeto nacionalista da nação que se formava,
no qual estavam empenhados. Foi, portanto, a forma que encontraram para fortalecer o
sentimento nacional e construir a identidade entre os brasileiros.
Entretanto, a referência sobre a forma de fazer o romance vinha da Europa. Antes de aqui
se começar, se conhecia o gênero pela leitura de obras vindas de lá. Por isso, quem leu
romances no Brasil - e quem depois escreveu, na época do romantismo principalmente - leu
escritores e obras europeus. Eram estes os grandes modelos e que traziam o molde geral de como
fazer, como Roberto Schwarz explica em Ao vencedor as batatas (2000). Assim, escrevendo
romances, os intelectuais dotavam o recém-independente país de mais uma expressão importante
do espírito moderno, como registra Antonio Candido na Formação da literatura brasileira, de
1959.
Machado de Assis escrevia romances na segunda metade do século XIX e início do século
XX e, ao mesmo tempo, refletia sobre o gênero fazendo considerações acerca da valorização
desta forma literária no Brasil e de sua caracterização, focado na recente experiência dos
escritores nacionais na época. No ensaio “Instinto de nacionalidade”, encontrado no volume III
de Obra completa (1992), afirma que o romance se constituía na forma mais apreciada então no
país, e descreve como era enquanto romance brasileiro:
Aqui o romance, como tive ocasião de dizer, busca sempre a cor local. A substância,
não menos que os acessórios, reproduzem geralmente a vida brasileira em seus
diferentes aspectos e situações. Naturalmente os costumes do interior são os que
conservam melhor a tradição nacional; os da capital do país, e em parte, os de algumas
cidades, muito mais chegados à influência européia, trazem já uma feição mista e
ademanes diferente. Por outro lado, penetrando no tempo colonial, vamos achar uma
sociedade diferente, e dos livros em que ela é tratada, alguns há de mérito real (ASSIS,
1992, p. 804-805)
No desenvolvimento do processo, foi necessário encontrar o jeito brasileiro do romance,
pois o molde europeu, se aplicado à matéria local, produzia desajuste, contra-senso (Schwarz,
2000). Assim, seria Machado que encontraria a forma adequada para representar o que era
brasileiro: “Caberia ao escritor, em busca de sintonia, reiterar esse deslocamento em nível formal,
sem o que não fica em dia com a complexidade objetiva de sua matéria por próximo que esteja
12
da lição dos mestres. Esta será a façanha de Machado de Assis” (1992, p. 36). Efetivamente, com
Machado de Assis, o Brasil tem um novo romance, portador de uma nova estrutura, na qual a
parte narrativa diminui e cede espaço para a reflexão. Além disso, não bastasse o bom uso da
língua portuguesa, encontramos o aproveitamento da realidade brasileira nas suas obras.
No Rio Grande do Sul, o gênero romance seria bem prestigiado, iniciando com a obra A
divina pastora, de Caldre e Fião, em 1847. Uma de suas marcas foi produzir o que alguns
chamam de “regionalismo”, ou seja, narrar histórias condicionadas ao meio social, evidenciando
o que é experiência própria da região – a relação do homem com a terra, o trabalho que realiza, a
tradição que o forma, a cultura que ele produz.
Assim compreendido, o regionalismo ainda persiste. Considerando a temática das obras
selecionadas para este estudo, constato que está havendo um regionalismo étnico no estado, por
meio da literatura. No contexto sul-rio-grandense, as diferenças locais e regionais não
sucumbiram. São, antes, matérias vivas para a produção romanesca.
O meu curso de doutorado nasceu justamente dessa constatação e afirma-se na idéia de
que o romance é uma forma estável e ainda hoje reconhecível de fazer literatura. Assim, este
trabalho analisa obras que se particularizam no conjunto de romances que fazem a literatura do
Rio Grande do Sul por tratarem de fatos e sujeitos históricos que participaram da construção da
sociedade rural e urbana do estado, no caso, especificamente, os imigrantes alemães.
Selecionei, para tanto, como corpus de pesquisa A divina pastora, de Caldre e Fião, Frida
Meyer, de Vivaldo Coaracy, Um rio imita o Reno, de Clodomir Vianna Moog, O tempo e o vento,
de Erico Verissimo, A ferro e fogo: tempo de solidão e A ferro e fogo: tempo de guerra, de Josué
Guimarães. São esses romances representativos da literatura sul-rio-grandense que trazem na
história narrada representações do imigrante alemão que viveu no Rio Grande do Sul e de seus
descendentes. Todos nos dão a impressão de fidelidade à experiência da imigração, cumprindo,
assim, a função primordial do gênero apontada por Watt (1990, p. 15).
13
1.2 - Estudos anteriores sobre os romances
Guilhermino César, em História da literatura do Rio Grande do Sul (1956), livro no qual
registra uma ampla pesquisa sobre a literatura produzida no estado e seus respectivos autores,
bem como contextualiza o momento histórico de cada fase literária, relata que Caldre e Fião
iniciou o romance gaúcho ao escrever A divina pastora em 1847.
Entretanto, no longo tempo que se passou desde a escrita da obra até pelo menos quase o
final do século XX, não foi possível estudá-la, porque permanecia desaparecida. O romance foi
redescoberto, mas nem Guilhermino Cesar o conhecia quando a ele se referiu; apenas mencionou
sua existência e lamentou seu desaparecimento. Contudo, o fato de informar sobre a existência do
livro instigou à sua busca, tanto que, anos depois, um exemplar seria achado no Uruguai.
Colocada novamente em circulação a partir de 1992, num trabalho de publicação da RBS,
A divina pastora passaria a receber a atenção de estudiosos. Flávio Loureiro Chaves foi o
primeiro a se envolver com a análise da obra, produzindo um texto que foi incluído na edição
citada. Posteriormente, na revista Letras de Hoje
1
foram publicados alguns ensaios sobre A divina
pastora, abordando, no geral, a importância deste romance para a literatura rio-grandense e
brasileira. Não há, no entanto, um estudo que focalize as personagens alemãs da obra. Assim, a
análise que faço neste trabalho, por ser dirigida ao universo germânico nela representado,
acrescenta uma outra visão da obra no conjunto dos estudos que a a tomam como foco.
Por sua vez, o romance Frida Meyer não foi ainda estudado. Poucas pessoas têm notícias
dele e, dessas, apenas algumas o leram. um exemplar na Biblioteca Central da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, mas tudo indica que é livro esquecido na prateleira. Luís Augusto
Fischer, trabalhando no projeto de recolocar a obra em circulação, prepara uma segunda edição.
O capítulo desta tese dedicado à análise deste livro é, portanto, o primeiro estudo acadêmico
referente à obra.
Sobre Um rio imita o Reno, constatei que, paralelamente às suas primeiras edições,
surgiram comentários críticos de intelectuais renomados na época, especialmente em jornais, os
quais explicitaram as suas visões do romance. O próprio Vianna Moog refere-se a eles e
transcreve suas opiniões em Breve história de um romance”, texto que trata sobre este seu
romance e acompanha a edição de 2005. Trata-se de Moysés Vellinho, Nelson Werneck Sodré,
1
Uma publicação do curso de pós-grduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
14
Rubem do Amaral, Ascendino Leal. Também faz menção a João Batista Souza Filho (Gazeta de
São Paulo), Luiz Forjaz Trigueiros (Diário de Notícias de Lisboa) e Plínio Barreto (Estado de
São Paulo). Edgar Cavalheiro, José Lins do Rego, Reinaldo Moura, Clóvis Ramalhete, Oscar
Mendes, Tullo Hostillo Montenegro também são referidos. A todos esses o livro agradara.
Todavia, Vianna Moog também registra opiniões de quem não gostara do livro, como um artigo
assinado e publicado na Gazeta de Notícias e um artigo de Carlos Lacerda publicado na revista
Diretrizes.
Victorino Serra e Alcides G. Mendonça Lima escreveram dois textos sobre o romance,
elogiando-o quanto à abordagem das questões relativas à comunidade germânica, que vinham ao
encontro das diretrizes do Estado Novo iniciado em 1937. Os textos foram publicados nos meses
de outubro e novembro de 1939, no mais importante jornal do Rio Grande do Sul na época, o
Correio do Povo.
A repercussão que o romance teve foi algo incomum para uma obra de literatura daqueles
anos e o mérito disso é a sua temática, apresentada num contexto de atritos e incluindo na
abordagem da comunidade germânica questões sobre o racismo de interesse geral da população
gaúcha e brasileira nos tempos de atuação do Hitler e da iminência da Segunda Guerra Mundial.
Contudo, a expressão maior do impacto da obra apresentou-se no romance-resposta que Bayard
de Toledo Mercio escreveu em 1940, chamado Longe do Reno: uma resposta a Vianna Moog,
contrariando, como já indica o título, a idéia formulada em Um rio imita o Reno sobre os alemães
de São Leopoldo
,
portanto com uma outra leitura da situação que envolvia imigrantes e
brasileiros.
Um dos estudos mais recentes sobre Um rio imita o Reno é de autoria de Luís Augusto
Fischer, que em 2005 escreveu a “Apresentação” da edição do romance publicada nesse ano.
Além da visão crítica sobre o tema, formulada com o devido distanciamento de tempo 1939 - e
dos fatos, o texto de Fischer traz uma leitura baseada em compreensões teóricas atualizadas sobre
o gênero romance e sua relação com o social, demonstrando, assim, o lugar importante ocupado
pela obra de Vianna Moog no conjunto da produção romanesca gaúcha, especialmente por ser um
romance que se dedicou a um debate contemporâneo ao seu surgimento. Para o autor, Vianna
Moog foi um escritor corajoso, por ter debatido o assunto do racismo, do preconceito étnico, da
resistência à miscigenação, no momento mesmo em que aconteciam os fatos citados. Identifica
15
em Um rio imita o Reno um romance de tese, tanto que Dreher, historiador que também vem
estudando a obra, faz debate ideológico com base na história narrada.
Martin N. Dreher relaciona o conteúdo de Um rio imita o Reno com dados históricos,
como podemos perceber em seu texto de 2006, Um rio imita o Reno ou Longe do Reno também
se é feliz: considerações sobre uma obra de Clodomir Vianna Moog e uma resposta de Bayard de
Toledo Mercio”. Propõe que no romance, Vianna Moog é favorável à miscigenação e critica-o
por não prever a hipótese da preservação da diferença. Por meio desta interpretação, podemos
entender que o romance é tão vivo ainda hoje que um historiador lê a ideologia existente por trás
da literatura. No entanto, é preciso perceber que o fato de Dreher fazer debate ideológico sobre a
ficção de Vianna Moog faz sentido, porque se trata de um romance de tese.
Continuando com as obras objeto da minha análise, é de salientar que a importância de O
tempo e o vento para o debate crítico da literatura já está devidamente consolidada por trabalhos
de estudiosos gaúchos, nacionais e internacionais. A questão mais investigada diz respeito ao
aspecto romance histórico e seu tema principal: a formação social, política e econômica do Rio
Grande do Sul. Todavia, mesmo que já se tenha observado que os imigrantes alemães ocupam um
lugar proeminente na narrativa, ainda são poucos os estudos que colocam na centralidade a
abordagem da etnia alemã feita por Erico Verissimo.
Encontramos isso na obra de Renate Schreiner, Entre ficção e realidade: a imagem do
imigrante alemão na literatura do Rio Grande do Sul (1996), na qual analisa, além de O tempo e
o vento, os romances A ferro e fogo de Josué Guimarães e Videiras de cristal de Luiz Antonio de
Assis Brasil, dirigindo sua atenção para a imagem do imigrante alemão que aparece em cada um
desses romances.
Também encontramos trabalhos de análise da representação do imigrante alemão no livro
organizado por Robson Pereira Gonçalves, O tempo e o vento: 50 anos, que comemora cinqüenta
anos de lançamento da primeira parte da trilogia, O continente. Ao todo são vinte textos: dezoito
artigos de análise da obra, um do próprio Erico (reúne várias páginas originais do autor, inclusive
com suas correções, e uma explicação ao texto feita por Vitor Biasoli) e o “Posfácio”. Os dezoito
estudiosos focalizam diversos aspectos de O tempo e o vento, porém os alemães que aparecem no
romance são tema central apenas de um dos textos, o de Lúcio Kreutz, “A imigração alemã em O
tempo e o vento”. O autor apresenta uma análise da maneira como Erico retrata a imigração,
enfocando questões que teriam sido referência para o autor criar as personagens e seus discursos
16
naquele momento histórico (entre 1947 e 1962). Segundo seu ponto de vista, a vivência cotidiana
de Erico com descendentes de alemães, tanto no círculo de amizades quanto na própria família - a
esposa, Mafalda Volpe, tinha ascendência alemã - possibilitou-lhe a criação das imagens do
grupo étnico alemão em O tempo e o vento.
Além dessa razão, Kreutz também aponta a observação que Erico fazia da vinculação dos
imigrantes às transformações sociais e econômicas por que passava o estado e aproxima a
evolução da escrita do romance, dada pelas suceção das partes que o constituem, da evolução
17
No livro Josué Guimarães: o autor e sua ficção, organizado por Maria Luiza Ritzel
Remédios, também há ensaios com significativas análises de A ferro e fogo. Dos dezoito textos
que compõem a obra, quatro se referem exclusivamente ao romance: “Colonização a ferro e
fogo”, de Terezinha Barbieri; “Josué Guimarães: o resgate da solidão”, de Lucia Helena; “A
trama dos tempos: um conceito de história em A ferro e fogo”, de Pedro Brum Santos e “Uma
perspectiva protestante da colonização do Rio Grande do Sul”, de Antonio Hohlfeldt.
Encontramos no primeiro uma interpretação da postura crítica que Josué assume diante da
história e da ficção já existentes sobre a imigração. No segundo há uma apresentação do texto
Tempo de solidão e uma reflexão sobre as relações entre a literatura e a configuração nacional
com base nas questões que Josué tematiza no romance. No terceiro é analisada a composição
entre o ficcional e o histórico que se constrói em A ferro e fogo, evidenciando a categoria do
tempo para situar a história ficcional dentro da história factual. Por fim, o quarto texto interpreta
A ferro e fogo como uma narrativa, do ponto de vista protestante, da formação do Rio Grande do
Sul, contrapondo-o a O tempo e o vento.
1.3 - Características dos romances estudados
Os romances estudados foram escritos no período dos 150 anos da imigração alemã no
estado do Rio Grande do Sul
2
, entre 1824 e 1974, sendo estas as datas de sua publicação, em
ordem cronológica: 1847 - A divina pastora; 1924 - Frida Meyer; 1939 - Um rio imita o Reno;
1949 a 1962 - O tempo e o vento, cujas partes assim se distribuíram: 1949, Parte I, O Continente;
1951, Parte II, O Retrato; 1961-1962, Parte III, O Arquipélago; 1972 - A ferro e fogo - tempo de
solidão e 1975 - A ferro e fogo – tempo de guerra.
Estudo, portanto, o caminho até Josué Guimarães; sem desconsiderar que há outros
romances posteriores, o meu ponto de chegada é ele. Ocorre que A ferro e fogo, em seus dois
volumes, dentre todos os que analiso, é “O” romance. Mesmo em comparação ao que se
escreveu depois dele, continua a ser “O” romance sobre o tema. Afirmo isso com base na
2
1824 é o ano inicial da imigração/colonização alemã no Rio Grande do Sul, quando chegou a o Leopoldo o
primeiro grupo de germânicos, atendendo à política do governo imperial para colonizar a então província do Rio
Grande de São Pedro. Completaram-se, portanto, cento e cinqüenta anos de imigração em 1974.
18
pesquisa feita em cada um dos romances, na qual realizei detalhadamente as questões relativas ao
tema, buscando ser precisa em termos de referência ao texto literário. Com esse procedimento,
descobri que, enquanto nos demais romances eu procurava e destacava elementos sobre os
imigrantes alemães, ou encontrava a representação de uma questão mais localizada dentro de toda
a história dos imigrantes alemães, o de Josué me surgia como um verdadeiro veículo exclusivo de
elementos sobre eles, uma vez que na história imaginada uma ampla totalidade, uma
completude no que se refere à representação da chegada e fixação do sujeitos históricos
imigrantes; há um tempo histórico longo através do qual as personagens constroem suas vidas,
que é de 1824 até o início do movimento dos Mucker, e um narrador em terceira pessoa que
nos dá uma notícia impactante, como que vinda de alguém muito próximo da comunidade
representada.
Na verdade, A ferro e fogo é o romance que me levou a produzir este trabalho: depois de
me decidir por ele como tema da tese, me dei conta de que poderia fazer um estudo de romances
escritos antes, descrevendo a representação dos alemães em cada um. O ponto de chegada do
recorte temporal que estabeleci para esta tese, que é a publicação do segundo volume de A ferro e
fogo, coincide, historicamente, como dito, com a comemoração do sesquicentenário da
imigração alemã. Nesse sentido, avalio que até 1974 um material de ficção suficiente e com
significativas abordagens que permitem tornar consistente este estudo.
Se continuasse investigando os romances escritos a partir de Josué - portanto, de 1980
para - que eu chamo de “presente”, eu encontraria todo um outro contexto social e econômico
a desenhar a época do escritor, pois a região, nesses tempos, começou a passar por significativas
modificações, dadas, sobretudo, por uma notável modernização. Agora, por exemplo, a
velocidade da passagem da população e da economia do campo para a cidade é mais acelerada,
como nos mostra Charles Kiefer, um dos romancistas que atualmente narram histórias
envolvendo personagens da etnia alemã. Ao contrário, no tempo dos romances pesquisados, a
referida passagem era mais vagarosa. Erico Verissimo, por exemplo, por meio da história dos
Spielvogel, permite-nos perceber que se passam duas gerações até que a atividade agrícola
iniciada pelos primeiros imigrantes na colônia seja substituída pelo comércio na cidade.
Dentre as modificações principais que marcam o tempo aqui considerado “presente” estão
o crescimento populacional das cidades e a luta por emprego e moradia, o abandono do campo,
os movimentos pela propriedade de um pedaço de terra. O sujeito histórico de origem alemã
19
passou por um longo processo de assimilação e é, hoje, um dos agentes principais da forma de ser
rio-grandense, por isso, sua imagem circula no imaginário popular, e até mesmo entre as
instâncias políticas e econômicas, como mais um gaúcho a figurar como comerciante, industrial,
colono, sem-terra. Assim, pouco é notado o seu pertencimento a uma etnia que não seja a luso-
brasileira. Como é próprio do escritor fazer sua literatura influenciado pelo seu meio, é diferente
ficcionalizar a comunidade alemã e a formação do espaço sulino a partir da presença do alemão
num tempo assim, no qual as relações interétnicas construíram várias similitudes, do que num
tempo em que qualquer pessoa destacava a produção agrícola, o comércio e a indústria como
atividade dos alemães ou herdada deles.
Kiefer, por exemplo, não vai mais falar desde as “Colônias Velhas” formadas pelos
imigrantes, nem das cidades industrializadas por eles ou de bairros repletos de casas de comércio
germânicas. O escritor posiciona-se num terceiro espaço, aquele onde a identidade étnica e as
atividades agrícola, comercial e industrial não são mais tão definidoras de comportamentos e
tratamentos sociais.
No período que contemplo no estudo a visão sobre o imigrante e a ação do imigrante
ascendiam, visto que a colonização e a industrialização do estado eram ações reconhecidas quase
que totalmente como trabalho dos alemães. É possível, mesmo, dizer que os autores que
escreveram até o sesquicentenário conviviam com a afirmação e os de 1980 para cá, com a
diluição da identidade. Busco, pois, a imagem de algo diluído para pensar que, desde o século
XIX, aos alemães foram se avizinhando de muitos outros imigrantes, de muitas outras etnias,
como nos mostra a Tabela 1.
Tabela No.1 - Origem dos colonos no Rio Grande do Sul na década de 1920
Origem dos colonos Número de propriedades Área
Alemanha 6.887 545.413
Áustria 4.292 214.892
Bélgica 82 12.306
Dinamarca 51 16.064
França 335 163.873
Espanha 4.725 449.024
Hungria 138 4.918
Inglaterra 110 9.349
20
Holanda 91 120.861
Itália 35.894 2.743.178
Noruega
9 4.070
Portugal 9.552 3.629.383
Rússia 4.471 197.508
Suécia 120 5.917
Suíça 386 57.591
Turquia 429 83.501
Outros países 7.764 297.435
Argentina 197 125.401
Bolívia 7 2.061
Estados Unidos 87 361.348
Paraguai 156 323.712
Peru 34 286.243
Uruguai 1.365 763.883
Venezuela 9 265
Outros países da América 33 15.923
Japão 1.167 43.239
China 771 1.498
Outros países 771 2.698.897
Total 79.169 10.748.987
Fonte: CHICERO, Lorenzo. L’imigrazione agli Stati del Brasile. Cinquantanario della colonizzazione italiana nello
Stato del Rio Grande del Sud:1875-1925. Porto Alegre: Globo; Roma: Ministero Degli Affari Esteri, 1925. p. .313.
Desde há muito tempo, provavelmente ainda no início da imigração, pois que havia
habitantes de outras etnias, especialemnte a lusa, no mesmo espaço onde se fixaram os
germânicos
3
, instalava-se um processo capaz de alterar a manutenção da diferença da identidade
dos imigrantes alemães. O restante das alterações deu-se por conta da força da organização
social, política e econômica do estado e do país e das ações governamentais e legais, construindo,
assim, a assimilação.
Quanto à participação do governo nesse processo, nada foi mais eficiente do que a
campanha de nacionalização aplicada aos teuto-brasileiros durante o mandato de Getúlio Vargas,
3
No livro de Marcos Justos Tramontini, A organização social dos imigrantes: a colônia de São Leopoldo na fase
pioneira 1824-1850, encontramos informações sobre a relação social entre os germânicos e os de outra etnia nos
primeiros anos da imigração.
21
na vigência do Estado Novo, mais de cem anos depois da chegada dos primeiros colonos alemães
ao Rio Grande do Sul. A este respeito uma posição de parte dos historiadores que assegura ter
sido um projeto luso-brasileiro imposto com o objetivo de, sem mais tolerar a diferença visível na
história social do país, fazer acontecer a assimilação dos ainda “estrangeiros”. Pelas
determinações da campanha, era obrigação dos alemães, por exemplo, falar a língua portuguesa e
expressar-se por meio da cultura dita “nacional”. Assim, conforme sustenta essa visão da história,
o projeto do governo era unidirecional, visto que não previa a integração do que era identidade da
etnia alemã, como o idioma e a cultura.
Com as práticas nazistas em desenvolvimento na nação alemã, a política do governo
brasileiro acentuou-se e os conflitos entre os cidadãos brasileiros tidos como nacionais e os
teutos, vistos como estrangeiros, aconteciam rotineiramente e, com freqüência, marcados por
sérias agressões.
4
Uma visão crítica sobre a questão da nacionalização, e que está de acordo com
a visão histórica descrita, encontramos em artigo de Flávio R. Kothe (1998, p. 206-207), no qual
o autor aproxima-se de Martin Dreher no que se refere à idéia do direito à diferença:
A solução histórica imposta foi de parte da oligarquia luso-brasileira a assimilação à
sua identidade lingüística e cultural; a minoria teuto-brasileira somente pôde contemplar
impotente a derrocada paulatina de sua proposição, de uma política de integração,
preservando a língua e as tradições dos antepassados. Aquela fez de conta que o
problema estava solucionado, em prol de uma integração nacional, e esta tratou de
esquecer seu passado, especialmente com a vergonha histórica que o povo alemão
atestou ao permitir a ascensão do militarismo prussiano e do nazismo, com todas as suas
seqüelas.
As diferenças étnicas, os conflitos entre teutos, brasileiros e governo, exincias de
assimilação em diferentes períodos históricos são temas abordados em quatro dos cinco romances
estudados, com exceção apenas de A divina pastora. No que se refere à relação da história
narrada com o contexto externo representado, dividi os romances pesquisados em dois grupos
distintos: um, A divina pastora, Frida Meyer e Um rio imita o Reno foram escritos na época
22
no sentido de tratarem de imagens de um tempo passado, distante em relação àquele em que
foram escritos.
Os dois últimos são romances históricos, segundo a acepção de Seymour Menton, crítico
estadunidense que teoriza sobre esta forma literária em La nueva novela histórica de la América
Latina: 1979-1992. Baseado na definição de Anderson Imbert, Menton reserva a categoria
"novela histórica para aquellas novelas cuya acción se ubica total o por lo menos
predominantemente em el pasado, es decir, um pasado no experimentado directamente por el
autor" (p.32). Seguindo este conceito, os escritores Erico Verissimo e Josué Guimarães,
distanciados cronologicamente dos eventos dos quais tratam, retornam a eles por meio da
narração, reinterpretando os acontecimentos e renovando as imagens das figuras históricas que os
viveram, além de construírem uma leitura dos problemas sócio-históricos existentes no processo
de colonização do estado desenvolvido pelos imigrantes alemães e contextualizarem os
movimentos de comportamentos dos homens e suas implicações. Dessa forma, alcançam uma
visão de conjunto maior, pois conseguem formar uma visão da colônia, da cidade e do mundo;
enfim, redescobrem uma imagem da história da formação do Rio Grande do Sul impregnada de
atitudes humanas que servem à caracterização de uma etnia e à identificação de um espaço social
e de um tempo histórico.
O que implica ser romance contemporâneo aos fatos e ser romance histórico? Implica o
comportamento do romancista no momento da composição da obra. É pelas condições que o
tempo (presente ou passado) fornece a cada escritor que ele estabelece ou não o distanciamento
do que é narrado, apresenta ou não uma visão de conjunto e constrói sua interpretação do mundo.
Os três romances que dizem algo sobre o presente estão mergulhados no mesmo horizonte
histórico dos fatos, o que significa que os escritores observam tanto quanto suas personagens.
Ocorre o contrário com os dois romances históricos, pois seus autores observaram os fatos que
suas personagens estão vivendo. Nesse sentido, aparecem três romances de cidade, os do tempo
contemporâneo, porque, no fundo, seus autores se sentiam urbanos em razão da força que o
surgimento das cidades estava exercendo sobre a sociedade, uma vez que se apresentavam como
o mundo futuro, e dois romances do meio rural e da transição para a cidade, que foi a conclusão
que a história nos ofereceu sobre o processo de colonização do Rio Grande do Sul desenvolvido
no século XIX e início do século XX.
23
Os primeiros três romances analisados, que não são históricos, caracterizam-se por uma
forma de narrativa que podemos chamar de “local”, ou seja, os espaços onde as ações acontecem
são uma pequena cidade – São Leopoldo, no caso de A divina pastora e Um rio imita o Reno ou
uma região dentro de uma grande cidade - a Praça XV e seus arredores, no caso de Frida Meyer. .28275( )-13.9969(a)1.(d)-3.71693(e)1.9626.8382(q)6.ç1568( )-17.2784(L)148.1181(c)12.2424(e)1.996388(t)-9.add maeL 8(e)1.996262(o)6.565593(a)-87.5583(d)6.56424(e)1.9c1568( )-17.2784(L)14l71693(r)-1.63635(L)142425(s)-1.63635(o)-396262(d)6.56299(e)1.97.557(a)-8.317715(m)2.6299(e)1.97.557(a)-8.317715(m)2.63635(,)3.28275( )-27.23798(ê)12.22(c)1.96262(t)0.4d6262(ç)1.9622(r)4.0428275( )-27.5d[( 475(97369(e)1.962715(m)2.6299(e )-109.796()-8.317715(m)2.6262(s)8.64357(o)-3.71262(d)-3.71693(o)6.09.796()-8.317715(m)2.56299(s)-1.63635(,)3.28275( )-1296262( )250262(r)4.0o32(i)-9.83821(35(m.71693(o)6.56299(s)-1.633635(a)500]T62(ç)1.963635(p)-13.992( )-1096262( )250()3338 Tf11.1663 0 Td[(U)8.867501( )3.28635(i)-996262( )2506262( )-4896262(i)0.441715(n)-3.755(a)-3.7n1693(s)-1.63635(t)0.56299(a)-3.71299( )-6.99717(5-9.83821(ó)6.56299(r)4.01443(t)0.0]TJ/R7 11.67986798 Tf96.1743 0 Td[(7( )( )501( )3.).796(u1.99.8(c)1.96262(2( )25063635(o)-3.7369(a)-8.3 -20.16 Td8.71.163635( u)27396(a)1.00596(a)1.9a.28275( ,1631(m)7.9536635)-27.5576(r)-6.28275( )-1202r)4.9c1568( )-1a)1.(d)-3.71693(e)1.9a)1.(d)-3.71693(e)1.99536635)-7.71693(a)-80432(e)15696388(i)0.441715(r)-696388(t)-9.41715(d)-3.71568(a)1.a1715(d)-3.7299(r)4.028275( )-27.557(nã)1.9536635)-7.a)1.(d)-3.71693(e)1.99536635)-7.6424(s)-1.63761( )-4r.796(u1.971693(o)6.56299(s)-1..71568(a)1.a1715( )-27.557(a)-8.3173635)-27d1693(l)0.441715(d)-37.557(a)-8.3173635 isar
24
A certa altura comecei a sentir a necessidade de criar uma personagem que pudesse
fazer o papel de coro daquela comédia provinciana. Devia ser uma personagem não
alfabetizada, mas também lidas e com pontos de referência geográficos e culturais que a
tornassem capaz de comparar aquela agreste e incipiente civilização sul-americana com
a européia, comentar consigo mesma ou com outras aquela gente, a vida de Santa Fé,
em particular, e a da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, em geral.
Querendo isso do doutor Winter, Erico lhe voz na narrativa, incluindo-o no mundo de
influências lusas desde sua chegada a Santa Fé, onde viria a influenciar a vida íntima do Sobrado,
principalmente por suas longas conversas com Bibiana sobre a nora Luzia. À força das relações
que constrói, essa personagem é também influenciada pelos bitos e pela cultura dos do local,
deixando muito daquele universo santa-fezense guiar-lhe as atitudes.
Não são muito diferentes das de Erico as opções de Vianna Moog, apesar de em Um rio
imita o Reno a ficção ter os alemães na centralidade, o que não acontece em O tempo e o vento.
Quando não é o narrador a relatar os fatos e a apresentar o que são, o que fazem, o que pensam,
como se comportam os moradores de Blumental, é o brasileiro Geraldo Torres que ganha a voz
na narrativa e observa o local, comenta, julga, expõe seus sentimentos relativos ao que o faz
sofrer e ser rejeitado na cidade e ao que ele mesmo rejeita. Blumental é germânica pelo olhar de
Geraldo, que tem em sua memória um dos melhores lugares do Brasil para fazer comparações, a
Amazônia.
Por sua vez, Vivaldo Coaracy, que, como Vianna Moog e Josué Guimarães, compõe uma
história exclusiva sobre alemães, também privilegia a voz do narrador para apresentar as
personagens, narrar os fatos de suas vidas e descrever os espaços por onde se movimentam. Ao
invés de dar a voz às personagens em todas as circunstâncias, que o universo constituído é
germânico, ele prefere limitar a expressão delas e conduzi-las mais como objetos de observação
do narrador. Freitas, um brasileiro, ganha voz em vários momentos, fazendo-se um interlocutor
naquele ambiente, o qual consegue discutir questões históricas que envolveram os imigrantes no
Brasil, como o “perigo alemão”. Freitas é o que vem de fora, como o foi Geraldo Torres, mas não
rejeita os alemães nem é rejeitado; ao contrário, apaixona-se por aquele universo, convive bem
nele, tem amantes alemãs, é aceito no clube sem questionamentos, é sustentáculo econômico da
família protagonista, e isso tudo sem ser porta-voz dos possíveis defeitos que circundavam as
personagens, como o faz muitas vezes o narrador.
Encontramos, em primeiro lugar, no romance a narração da história de uma personagem
feminina teuto-gaúcha, por meio da qual é apresentada a sociedade germânica urbana que se
25
formava na capital. Em Encontros com a vida (memórias) (1962), Coaracy, ao contar sobre como
a obra nasceu, explica que Frida foi inspirada em uma moça que ele conhecera quando morava
em Porto Alegre:
(...) passou de repente pelo quadro das lembranças a sombra de uma alemãzinha de
Porto Alegre. Era a figura miúda daquela ´Teuta, teuta franzinha, teuta da pele clara`
cantada por um dos poetas do Sul. Não lhe direi o nome verdadeiro, naturalmente.
Alguém havia me contado, mexericando, certa aventura meio escandalosa em que a
moça andara envolvida. Ocorreu-me que esse caso, bem disfarçado, temperado com os
acessórios de outros episódios e personagens, poderia servir de tema de novela
(COARACY, 1962, p. 189-190).
Dessa forma surgiu a primeira história ficcional sobre alemães em Porto Alegre, como o
escritor acreditava ter feito: “Que eu soubesse, ninguém ainda havia se ocupado em descrever a
intimidade da sociedade germânica de Porto Alegre vivendo, com as suas peculiaridades, em
relativo isolamento voluntário” (COARACY, 1962, p. 190).
Caldre e Fião, por sua vez, idealiza as duas principais personagens alemãs sem se
preocupar tanto com a realidade a que os imigrantes estavam submetidos nos primeiros anos da
colonização, esta descrita por historiadores. Os dados reais recuperados no romance e que se
relacionam aos imigrantes referem-se à situação histórica, social e geográfica de São Leopoldo e
a uma possível questão que envolvia os habitantes estrangeiros, a assimilação. Contudo, a julgar
pela voz que é dada às personagens alemãs na narrativa, as quais não sentem nem expressam
conflitos com os luso-brasileiros no processo que as levou a aceitarem e adotarem costumes, a
sentirem-se felizes com um casamento interétnico, é possível que o autor tenha criado os
acontecimentos ficcionais mais como expressão de uma vontade sua e, quem sabe, daqueles com
quem convivia na corte (RJ), do que por uma observação direta da realidade.
1.4 - O que busco nos romances
A experiência histórica dos imigrantes alemães e seus descendentes é tecida nos romances
em estudo a partir do misto de ficção e história. O entrelaçamento de dados que se forma dessa
união vem a ser a consistência das histórias narradas. É o que chamo de consistência” que elejo
colocar em evidência ao fazer o levantamento dos índices do tema imigração alemã nos romances
selecionados, atentando para o modo como neles se apresentam os dados referentes à Família, à
26
Religião, ao Trabalho, ao Espaço e deslocamento e aos Contatos entre personagens da mesma
etnia e, destas, com as brasileiras, abordando essas categorias ao longo do tempo conforme os
escritores foram registrando. Tais categorias investigativas flagram modos de vida específicos
pelos quais os alemães se mostram e, portanto, formam o centro da identificação das personagens
e suas ações em cada narrativa. Com elas traço uma linha imaginária de investigação que unirá
todas as obras do corpus da pesquisa.
As categorias escolhidas constituem, para este estudo, o núcleo da identidade alemã, em
razão do meu entendimento de que os imigrantes, em novo país, submetidos a novas
necessidades, ficam propensos a, geográfica e culturalmente, se distanciarem cada vez mais da
sua origem. Assim, necessariamente, a preservação da cultura de origem, quando do interesse dos
sujeitos, e a assimilação da cultura do local onde moram passam pela família, pela religião e pelo
trabalho, como também determinam a ocupação de certos espaços e a necessidade de
deslocamento, bem como são reflexos dos contatos que estabelecem. Os próprios romances
sugerem esse entendimento, visto que todos, à parte o tempo do escritor e o tempo da matéria
narrada, estruturam o enredo com essas categorias.
Eventualmente, busco na historiografia informações sobre a constituição familiar, a
religião, o espaço ocupado, os deslocamentos acontecidos no processo e os contatos mantidos
para melhor analisar o que está representado nos romances. Orientada pelas categorias
estabelecidas, minha atenção volta-se para o que os dados permitem afirmar. Assim, é preciso
deixar claro que este é um estudo empírico e, como tal, pretende, em primeiro lugar, fazer uma
descrição detalhada do que se apresenta em cada romance sobre os imigrantes alemães e trazer
para dentro do conjunto dos dados as informações históricas que se relacionam com os fatos
ficcionais. Com esse privilégio à descrição dos romances, focalizada no que dizem sobre
alemães, construo um texto que faz o papel de uma fotografia, o papel da presentificação, e a
leitura interpretativa surge dessa relação. Com esse propósito, as categorias também se justificam
em sua razão de ser por permitirem o acesso à descrição da intimidade do mundo do imigrante,
intencionando apreender os centros da vida descrita.
Ao longo do trabalho, desenho um quadro histórico duplo: uma de suas dimensões contará
a história da imigração alemã em si e a outra posicionará os romancistas em seus respectivos
momentos. Nesse quadro se relacionam o tempo do autor e o que aparece no seu romance, numa
27
reconstituição da imagem do imigrante alemão fixada pela história na época da escritura de cada
obra.
Recorro também à geografia para descrever e analisar os espaços sicos representados
pelos romances. Para tanto, os recentes estudos do teórico italiano Franco Moretti são a base.
Moretti, com base em leituras de romances europeus referenciais na literatura ocidental, constrói
uma íntima relação entre geografia e literatura. Seu olhar sobre a literatura é um olhar de
conjunto, buscando abranger, portanto, uma totalidade ampla. Ele olha documentalmente para os
romances e suas idéias sobre isso encontram-se em Atlas do romance europeu 1800-1900 (2003),
onde propõe construir uma geografia literária a partir de uma seleção de romances. Essa
geografia pode se referir a dois aspectos muito diferentes, conforme explica Moretti (2003, p.
13).: "Pode indicar o estudo do espaço na literatura; ou ainda, da literatura no espaço. No
primeiro caso, a dominante é ficcional. (...).No segundo caso, é um espaço histórico real". Trata-
se de usar mapas sistematicamente para interpretar o enredo de um romance. Para este autor, os
mapas são ferramentas analíticas "que dissecam o texto de uma maneira incomum, trazendo à luz
relações que de outro modo ficariam ocultas. Um bom mapa vale mil palavras, dizem os
cartógrafos, e eles estão certos: porque ele produz mil palavras: levanta dúvidas, idéias. Coloca
novas questões e nos força a buscar novas respostas" (MORETTI, 2003, p. 14).
Os mapas que construo com base na análise de romances não se explicam por situarem
um acontecimento do enredo ou um fenômeno literário em seu espaço específico; o, sim,
importantes como recurso visual que leva o estudioso a pensar sobre o que se formou no mapa,
que padrão se desenha, tentando compreender como determinados elementos originam uma
história. A questão principal é descobrir como a geografia configura a estrutura narrativa do
romance. Para isso, o caminho consiste, primeiro, em selecionar um aspecto textual; depois, em
encontrar no romance os dados sobre esse aspecto, colocá-los no papel e, finalmente, examinar o
mapa, tecendo uma interpretação da construção visual.
Primeiramente, as idéias de Moretti servem-me como técnica para descrever os espaços e
deslocamentos de cada romance, colocando em evidência, dessa forma, a sua especificidade;
após, sustentam a criação dos mapas apresentados e o sentido a eles atribuído. Em síntese, realizo
um estudo do espaço na literatura pelo qual são explicitadas versões da colônia
5
e da cidade onde
5
O termo “colônia” será usado constantemente neste trabalho para designar a área rural em sua totalidade na qual os
imigrantes alemães se fixaram como pequenos proprietários. Não se refere, portanto, ao lote particular de cada
família.
28
os alemães dos romances se encontram: São Leopoldo, Chuí, Porto Alegre, Santa Cruz, Cruz
Alta, Missões, Panambi, Ibirubá. Esse é o espaço onde a dominante é a ficcional, como diferencia
Moretti (2003) ao dizer que também o espaço histórico real quando o estudo é da literatura no
espaço.
Com o detalhamento dos aspectos presentes em cada romance, busco identificar questões
que são trabalhadas nos textos ficcionais analisados, apesar de terem sido escritos em tempos
históricos diferentes e ambientarem o narrado em espaços diferentes (urbano e rural). Uma das
questões é a caracterização de fortes personagens femininas na constituição da família alemã. No
capítulo da análise das obras procuro demonstrar concretamente como certas mulheres se
mostraram tão fortes aos olhos dos romancistas, especialmente de Vivaldo Coaracy em diante,
que chegaram a merecer registro especial.
Outra questão é a noção de trabalho, que é um termo definidor para se pensar a questão da
figura do imigrante. Com exceção de Caldre e Fião, os demais romancistas apresentam os
alemães vinculados a uma noção de trabalho diferente daquela que construiu a história do mundo
do trabalho no Brasil até a chegada dos estrangeiros para serem colonos pequenos proprietários,
artesãos, comerciantes. Da tradição de senhores e escravos até o final do século XIX, da prática
das charqueadas, os alemães diferenciavam-se por serem os donos da terra e, ao mesmo tempo,
os executores do trabalho nesta mesma terra e por produzirem outros produtos na parte do país
onde o dominante econômico era o charque dos estancieiros.
O trabalho manual, exemplarmente praticado pelos colonizadores alemães, era ausente na
sociedade dos proprietários de negócios ou de terras, onde o esforço manual era tarefa dos
escravos. Nesse sentido, a sociedade nativa valoriza, mas também se espanta, se admira diante da
força de trabalho do imigrante. Tomemos como exemplo a atitude do Capitão Rodrigo Cambará
na cena do romance O tempo e o vento em que ele pára e observa a família germânica
trabalhando na lavoura. O trabalho em si e a relação do homem com o trabalho aparecem como
acréscimos dos alemães à sociedade gaúcha, por não ser algo que estava inserido numa lógica de
rotina dos gaúchos.
constâncias também nos espaços e deslocamentos descritos: os romances são
ambientados nos lugares onde realmente aconteceu a colonização alemã e onde o
desenvolvimento do comércio e da indústria gaúchos foi obra maior dos alemães. Nesses espaços
são retratadas as principais referências visuais que indicam a presença alemã, como as lavouras,
29
as casas, as lojas, as fábricas, os bares com venda de cerveja, o templo luterano. Da mesma
forma, os contatos que as personagens imigrantes alemãs estabelecem na história narrada
evidenciam relações pessoais, comerciais e de outra natureza, com os da mesma etnia e com os
luso-brasileiros, que resultam tanto em progresso e harmonia quanto em conflitos.
Enfim, descubro uma relação orgânica que se constrói entre as obras no tratamento de
30
decorrência, sobretudo, do exercício do poder político, que estava completamente nas mãos dos
estancieiros e assim ainda se manteria por vários anos mesmo após a chegada dos imigrantes.
Além disso, o desenvolvimento do processo imigratório do ponto de vista das leis de terra
criadas pelos governos imperial e provincial é mais um questão abordada. Sobre isto são
destacados os períodos de maior fluxo de imigrantes alemães e a formação de outras colônias
além da de São Leopoldo.
Informações sobre os alemães da cidade também estão contempladas no capítulo 2,
destacando a constituição do núcleo de Porto Alegre, identificando o espaço geográfico ocupado
preponderantemente por eles e o desenvolvimento da atividade comercial da qual foram agentes
principais na capital. Por último, apresento algumas informações sobre os brummers, destacando
a figura do Koseritz, que veio para o Brasil no grupo dos brummers e, aqui permanecendo,
tornou-se um grande nome no meio intelectual do Rio grande do Sul.
No capítulo 3 analiso a representação do imigrante alemão nos romances selecionados
com base nas cinco categorias elaboradas: Família, Trabalho, Religião, Espaço e deslocamento e
Contatos. Aqui, realizo uma reconstrução detalhada dos elementos que existem no narrado e que
se enquadram nestas categorias, qualificada pelo acréscimo de informações históricas que se
relacionam a fatos descritos ou vividos pelas personagens. A seqüência dos entretítulos indica a
ordem cronológica do surgimento das obras, estando assim organizados: A divina pastora, Frida
Meyer, Um rio imita o Reno, O tempo e o vento, incluídas as três partes da trilogia, e A ferro e
fogo, também incluídas as duas partes da obra - Tempo de solidão e Tempo de guerra.
Neste capítulo 3 entrelaço informações históricas sobre acontecimentos da história do
Brasil ou do Rio Grande do Sul que envolveram os imigrantes e que estão representados nos
romances. Dessa forma, construo uma das dimensões do quadro histórico duplo a que me referi
anteriormente, a dimensão que conta da história acontecida no tempo em que o romance está
ambientado. A outra dimensão do quadro, a do tempo do autor, está indicada nas partes
introdutórias de cada texto de análise dos romances, além de informações incluídas ao longo da
análise.
Devo ressaltar que a forma de abordagem dos romances foi sendo construída conforme
cada obra exigia, num processo em que aparece como característica comum a todos um apego à
matéria-prima da ficção, mantendo-me presa à descrição dos aspectos que se relacionam a cada
31
categoria de análise, ao mesmo tempo em que insiro informações históricas a que são remetidas
as construções ficcionais. Por força desse procedimento metodológico, convivem no mesmo texto
a criação, a idéia do autor e as situações históricas representadas.
No capítulo 4 apresento as considerações finais da tese. Faço uma contextualização dos
romances, situando-os no tempo e relacionando o seu aparecimento a situações históricas e a
visões que tais situações produziram junto aos os alemães no Rio Grande do Sul. Além disso, crio
dois mapas literários: no Mapa 1 é visualizada a representação dos espaços geográficos incluídos
nas narrativas ficcionais onde as personagens vivem, localizando os atuais municípios que
correspondem aos locais recriados pelos escritores; no Mapa 2 é traçado o movimento das
personagens alemãs do campo para cidade, enfatizando a representação que nos romances
desta questão histórica que fez parte do processo de colonização do estado. Os dois mapas,
devidamente explicados no capítulo, não se constituem em meras imagens, mas são recursos
interpretativos dos espaços nos romances.
São esses, enfim, os elementos que sustentam o presente estudo da representação do
imigrante alemão no romance sul-rio-grandense.
32
2 - DADOS HISTÓRICOS DA IMIGRAÇÃO ALEMÃ NO RIO GRANDE DO SUL
Uma verdade que nas coisas anda,
Que mora no visível e invisível.
Camões
Mesmo depois de mais de trezentos anos de colonização portuguesa no Brasil, a maior
parte das terras do sul ainda estava por ser ocupada e acomodada dentro da fronteira nacional.
Essa extensão territorial inerte era potencial para o desenvolvimento integral do país, pois, uma
vez havendo pessoas produzindo nas terras e convivendo em sociedade, suas ações poderiam
contribuir com a economia, a política, a cultura do país, além de justificar a delimitação de
fronteiras. Da mesma forma, tendo em vista o conhecimento que a Europa tinha das grandes
dimensões do Brasil, havia interesse de países daquela parte do mundo de dar colocação a
parcelas de suas populações que, submetidas a crise
33
Com base nessas determinações governamentais, criaram-se muitas colônias para
estrangeiros. Como registra Emília da Costa Viotti, (1977), mais de 170 colônias oficiais e
particulares foram criadas no Rio Grande do Sul no período compreendido entre 1822 e 1914,
superando o número de qualquer outra região do país: do total das colônias oficiais criadas,
aproximadamente 48% situavam-se na província, o que demonstra o interesse que o governo
central tinha nas terras conquistadas pelos portugueses, razão por que queria impedir a tomada
destas pelas repúblicas platinas.
Esse interesse se manifestava tempos, ainda pela Metrópole portuguesa, tanto que o
governo do Brasil colonial proporcionou a imigração de açorianos para o território gaúcho,
concedendo-lhes lotes de terra para o cultivo e formação de povoados. A idéia primeira ainda se
mantinha quando se iniciou outro processo de imigração, desta vez com populações germânicas,
no início do século XIX, no Brasil independente: ocupar regiões de valor estratégico no país,
como as zonas fronteiriças da então província do Rio Grande, atual estado do Rio Grande do Sul,
sempre ameaçadas pelo domínio espanhol. Essas medidas atenderam, com os açorianos,
especialmente, objetivos nacionais de caráter político e militar de Portugal, que se preocupava
com a extensão territorial do Brasil meridional, indefinido ainda quanto ao seu dono: se a Coroa
portuguesa ou a espanhola.
Tratando da questão, Paul Singer (1968, p. 145):
Até meados do século XVIII, era bastante fraca a ocupação do Rio Grande do Sul
pelo colono brasileiro e português. A criação, principalmente extensiva, como se a
praticava, se caracteriza por condicionar uma dispersão, por vastas áreas, da população
nela ocupada. Ao governo português interessava, no entanto, constituir no Rio Grande
do Sul uma população mais concentrada e, portanto, mais aproveitável , do ponto de
vista militar, pois tratava-se de assegurar a soberania lusitana no território (e estendê-la,
se possível, até a embocadura do Prata) face às pretensões castelhanas. Resolve-se,
portanto, criar à ilharga da sociedade pastorial em formação, uma outra constituída por
pequenos agricultores, dedicados à lavoura, desentários, capazes de propiciar a
urbanização dos pontos fortificados. O elemento escolhido para esta tarefa foi o açorita.
Os açorianos chegaram logo após o Tratado de Madrid, em 1750, ocupando o vale do
Guaíba e as terras de Rio Grande, Viamão, Triunfo, Santo Amaro e Rio Pardo (1752) e Porto
Alegre (1753). Em 1763, ocorreu a invasão castelhana, com o que e a população espalhou-se para
o estreito de Santo Antônio da Patrulha, de Taquari e de Cachoeira (IVOTTI, 1997, p. 111).
Todavia, não era grande o número de açorianos fixados, em 1780 havia apenas 10.053 açorianos,
o que não atendia plenamente aos objetivos traçados para a sua instalação (LAYTANO, 1969, p.
34
408). Na verdade, a povoação existente era reduzida, pois os açorianos, com este número,
representavam 55% do total da população gaúcha; os demais eram negros e índios.
Mesmo cerca de vinte anos depois, ainda seriam poucas as terras ocupadas e a população
existente. Segundo Viotti (1977), em 1801, na região missioneira, onde havia existido uma
população de quase cem mil habitantes até o final do culo XVIII, encontravam-se estes
números: San Miguel, 1.900 habitantes; San Juan Batista, 1.600; San Lorenzo, 960; Santo Angel,
1.960; San Luis Gonzaga, 2.350; San Nicolas, 3.940; San Francisco de Borja, 130. Esse quadro
passaria a se alterar de forma programada após a independência (1822), seguindo os planos
governamentais de ampliar a ocupação, definir fronteiras, aumentar a população e isso seria
buscado nas nações européias.
Entretanto, em virtude da Independência de Portugal, como afirmam Loraine Slomp
Giron e Vania Beatriz Merlotti Herédia (2006, p. 5), não mais podiam ser importados colonos
portugueses. Tornara-se vedada a entrada de estrangeiros, como: portugueses, franceses,
holandeses, espanhóis e ingleses, em especial súditos de impérios que possuíssem colônias na
América. Os portugueses que vivem no Brasil são levados a se naturalizar, os demais são
considerados inimigos do império brasileiro”. Diante disso, criaram-se as condições para
importar imigrantes de outras nações e os primeiros viriam dos Estados germânicos.
Cabe lembrar que o processo de colonização dessa região apontava, desde os seus
primeiros sinais no século XVIII, a possibilidade d
35
qualificação e disposição para o trabalho, pelas profissões exercidas e constituição familiar. Entre
os líderes políticos fortificava-se, então, a visão de que a imigração estrangeira agiria como um
enxerto a dar vigor à população nacional, como afirma Paulo Pinheiro Machado (1999). Para
ilustrar esse fato, nas primeiras décadas do século XIX, quando já se discutia no governo a forma
de efetivar a emigração de europeus para a o Brasil, José Bonifácio, em 1821, manifestava-se a
favor da vinda de alemães para substituir a mão-de-obra escrava em São Paulo, “com o objetivo
de amalgamá-los aos nacionais, para imprimir maior atividade e moralidade à população local”
(apud MACHADO, 1999, p. 66).
Essa preocupação também foi manifestada por outro líder governamental, o marquês de
Abrantes, que foi ministro da Fazenda em 1827 e 1828. Em 1846, tendo, portanto, uma visão
concreta dos alemães trabalhando no Brasil, ele os qualificou como uma gente disciplinada e
conservadora: “Amor ao trabalho e à família, sobriedade, resignação, respeito às autoridades, são
as qualidades que distinguem os colonos alemães, em geral, dos colonos de outras origens”
6
(apud MACHADO, 1999, p. 66).
Notemos como essa idéia ficou profundamente enraizada na historiografia sobre a
imigração alemã no Rio Grande do Sul, ou seja, fixou-se no registro de todo o processo a visão
de que os alemães primam pela ordem, são exemplarmente empenhados no trabalho,
empreendem o progresso. Possivelmente, ajudaram a construí-la aqueles que vieram para o Brasil
desde o século XVI, como a história registrou. Carlos Henrique Oberacker Jr, em seu livro A
contribuição teuta à formação da nação brasileira (1985, p. 55), informa que registros da
chegada de alemães ainda em 1532, trazidos na companhia de Martim Afonso de Sousa,
conforme consta do diário de bordo, cujo fragmento o autorr transcreve: “Eu trazia comigo
alemães e italianos e homens que estiveram nas Índias e franceses.”
Ferdinand Schröder (2003, p. 34-35) faz menção a alguns nomes que ingressaram aqui:
O mais famoso do período colonial é certamente Hans Staden, de Homburg, no Hesse,
que esteve 1547/48 e 1549/55 no Brasil Central e descreveu seu próprio destino. Ele
próprio deparou-se em São Vicente com conterrâneos alemães, os comerciantes Peter
Roessel e Heliodorus Eobanus Hesse. (...). Por volta de 1600 encontra-se no Brasil uma
firma Schatz, sendo Paul Werner diretor de sua feitoria. Em São Paulo residem o
artesão alemão Joseph Pranta, pai de sete filhos, e diversos engenheiros de minas: Jacob
Calte (Palte, Walter), Gerhard Betting e wilhelm Glimmer. Este último escreveu um
roteiro sobre o caminho de São Paulo até o rio São Francisco. Também é conhecido o
6
A obra de Abrant está indicada no livro citado de Paulo Pinheiro Machado: ABRANTES, Visconde de (Miguel
Calmon du Pine e Almeida). Memórias sobre os meios de prover a colonização. Berlin: Typographia de unger &
Irmãos, 1846. CORSBHBC – Unicamp.
36
fato de que nas aldeias jesuítas na margem esquerda do Uruguai se encontravam
diversos padres jesuítas alemães: Karl Linges, Schwartelberger, Strobel, Johann
Hermes, Anton Sepp, Dominicus Meyer, Joh. Ph. Bettendorf e Samuel Fritz.
Também Maurício de Nassau trouxe alemães para aqui trabalhar, quando este era
governador da Companhia das Índias, de 1637 a 1644, os quais se fixaram em Pernambuco.
Dentre os do grupo o autor destaca “Zacharias Wagner, de Dresden, Joh. Georg Oldenburgk, de
Coburg, e Georg Markgraff, de Liebstadt na Saxônia, cuja ´Historia naturalis Brasília` foi
publicada em 1747, em Amsterdan” (SCHRÖDER, 2003, p. 35). Era o período do domínio
holandês no nordeste do Brasil e muitos imigrantes alemães vieram para atuar no exército, como
relata Oberacker (1985, p. 79): “Entre os imigrantes que vieram para Pernambuco, durante o
domínio holandês, havia muitos alemães. Unidades militares completas compunham-se de
mercenários teutos, e também quase toda a oficialidade era alemã. Foi então que se registrou na
história brasileira pela primeira vez, a chegada no Brasil de germânicos às centenas.”
A exemplo desses, até o século XVIII muitos outros alemães para cá vieram, alguns para
exercer papéis importantes nas lutas e organização da Colônia na época. Schröder cita Manuel
Beckmann, considerado um mártir no processo de libertação do estado do Maranhão, por ter
lutado e ter sido levado à forca; também o conde Wilhelm Von Schaumburg, organizador do
exército português no período de 1761 a 1764, bem como diversos oficiais trazidos por ele para
compor as tropas, um dos quais era o general Heinrich Boehm, que de 1774 a 1778 lutou contra
os espanhóis no sul do Brasil. Ainda vieram com o conde , Karl August Von Oeynhausen, último
capitão-geral de São Paulo e embaixador brasileiro junto à corte de Viena; Daniel Pedro Muller,
um general; Konrad Jacob Niemeyer, oficial engenheiro e Wilhelm Von Varnhagen e Ludwig
Wilhelm Von Eschwege, engenheiros de minas. Ainda, em 1820, muitos mineiros vieram para o
Brasil por intermédio de Vernhagen (SCHRÖDER, 2003).
Ainda na era colonial, alemães também fizeram parte da Companhia de Jesus, que passou
a trabalhar pela religião no Brasil em 1549. Segundo Oberacker, muitos foram os padres de
origem germânica que atuaram nas reduções brasileiras:
O primeiro jesuíta alemão no Brasil consta ter sido o irmão Pedro de Gouveia, cujo
nome alemão é ignorado e que veio da Alta Alemanha para o Brasil. Trabalhou
anteriormente a 1598, na aldeia de São Barnabé, perto do Rio de Janeiro e é mencionado
ainda em 1607. Em 1609, seguiu-lhe o irmão João Hermes, de Hamburgo. A partir de
1616, enviaram as casas das províncias da ordem, na Baixa Renânia, na Alta Alemanha
e na Áustria religiosos para a América do Sul (1985, p. 110)
37
A história confirma, portanto, que a etnia alemã fazia-se presente no Brasil tempos.
Como vimos, as razões para tanto não se encontravam apenas no trabalho em nova terra e o
deslocamento nem sempre dependia da devida combinação entre os governos ou algum seu
representante. Muitas vezes, eram interesses particulares que moviam os germânicos a visitar ou
a morar na ainda Colônia de Portugal na América. Alguns desses vieram com interesses voltados
à ciência, como foi o caso da expedição científica de 1817, que acompanhou a princesa e futura
imperatriz dona Leopoldina da Áustria (1797-1826). Dentre os que se destacaram nesta missão
estavam Johann Baptist Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius, cujos estudos ficaram
conhecidos.
Spix, que era zoólogo, faleceu logo depois de ter retornado à Alemanha, em 1826.
Martius, no entanto, com vida mais longa, dedicou anos de pesquisa e produção de obras sobre o
Brasil. Erwin Theodor, no artigo “Martius e seu único romance” (2005), sintetiza a atuação de
Martius no Brasil como pesquisador, dando-nos uma idéia do interesse que as características
naturais do recente país despertavam nos alemães. Theodor destaca que Martius era um
importante botânico da Baviera, que se incorporara à comitiva austríaca por instruções do rei
Maximiliano José I, o qual recomendara a realização de pesquisas na América do Sul, visando
ampliar o mundo das ciências e da cultura da época. A oportunidade de concretização de tal
missão surgiu com o Congresso de Viena, quando foi acertado o casamento da princesa austríaca
com o herdeiro do trono português.
A viagem iniciara em Trieste, em 10 de abril de 1817, e Martius ficaria no Brasil até
1820. Ele empreendeu seu trabalho de investigador científico da flora brasileira numa área
territorial bastante grande: iniciou no Rio de Janeiro, foi a São Paulo, Minas Gerais, Bahia,
seguiu por vários outros estados do Nordeste, chegando até o Pará e Amazonas. A experiência
aqui vivida e o material encontrado foram bases de suas pesquisas para até o fim de sua vida e o
Brasil passou a ser para ele a “segunda pátria”, pois sentia-se “como afilhado do Brasil”. Este
naturalista publicou em livros, na Europa, os resultados de suas pesquisas no Brasil, as
impressões obtidas desta terra, os conhecimentos adquiridos junto aos índios, enfim, numerosas
obras de Martius ocupam-se do nosso país, tais como O estado de direito entre os atóctones do
Brasil (1832); O passado e o futuro dos seres americanos (1839); Natureza, doença, medicina e
remédios dos índios brasileiros (1844), Os nomes de plantas na língua Tupi (1858); Glossaria
38
linguarum brasiliensium (1863), Observações a respeito da composição de uma história do
Brasil (1845). Do contato com a fauna e flora, surgiu-lhe a inspiração para um romance de
formação, romântico, que retrata a selva amazônica e seus habitantes, abordando o tema da
preservação da natureza. Chama-se Frey Apollonio, um romance do Brasil e foi escrito em 1831.
Com isso, Martius ajudou a difundir imagens do Brasil junto aos alemães e outros
europeus, tanto que podemos pensar que dentre os que vieram aqui a se estabelecer haveria
leitores de suas obras, os quais, pelas informações encontradas, não viam o país como uma
terra completamente estranha. A exemplo de Martius, outros alemães que realizaram
empreendimentos particulares, recomendados pelo governo ou por iniciativa individual,
aproximaram a distante terra da América à idéia de nova vida, com outras e melhores condições,
àqueles que mais tarde, em conseqüência dos acertos dos dois governos, rumariam para cá.
Certamente, não foram essas as ações que determinaram o interesse dos imigrantes
alemães pelo Brasil, mas podemos considerar que, de alguma forma, exerceram influência no
processo. O certo é que as relações entre o Brasil e os Estados germânicos tomaram força a partir
da união, pelo casamento, da princesa dona Leopoldina da Áustria e dom Pedro de Alcântara, o
imperador dom Pedro I. Essa ação, com fortes laços políticos, institucionalizou a abertura para
negociações de diversas naturezas. A de maior expressão social e econômica, e que até hoje
mantém estreitos vínculos, a ponto de se terem no Brasil cidades que parecem “partes” da
Alemanha, foi a imigração, que se transformou numa corrente a se desenrolar por muitos anos.
Com a proposta dirigida pelo governo imperial de buscar pessoas de outros países
europeus, o povoamento de regiões brasileiras ainda a descoberto e a colonização de terras
passaram a refletir uma política intencional do governo que buscava não a demarcação de
território, mas também a produção agrícola e industrial, que viria a trazer o crescimento
econômico do país. Essa mudança na forma de conduzir o desenvolvimento do Brasil teve seu
marco principal na vinda da corte portuguesa ao Brasil, que promoveu a abertura dos portos a
outras nações e iniciou a constituição de uma nova composição de forças produtivas. Em 28 de
janeiro de 1808, por meio desta medida, permitiu-se a entrada legal de estrangeiros no Brasil,
embasando, assim, um processo político-administrativo com vistas ao desenvolvimento
econômico e social, o qual teria no europeu o agente mais importante. Um passo a mais nessa
direção foi dado em novembro daquele ano, quando dom João “franqueou a posse de terras aos
estrangeiros residentes no Brasil. Até então, apenas os súditos portugueses possuíam tal direito. A
39
medida era necessária para promover a imigração não-lusitana para o Brasil”, explica Mario
Maestri (2000, p. 15). Assim, logo estaria instalada uma empresa de imigração com vistas à
colonização de várias regiões.
A colonização a ser praticada objetivava “a diversificação da atividade econômica e do
perfil da sociedade, tendo como base econômica a produção de alimentos para os núcleos urbanos
e a criação de um viveiro de força de trabalho para os outros setores da economia”, como relata
José Vicente Tavares dos Santos (1992, p. 137).
Temos de considerar que ao processo de mudança de investimentos no Brasil por parte da
Metrópole portuguesa ligam-se, de forma evidente, pressões econômicas. São conhecidas, por
exemplo, as imposições da Inglaterra nos acordos firmados com Portugal. Uma destas foi a
extinção do sistema escravista, por se constituir num obstáculo à expansão comercial programada
pelos ingleses, que, para se manterem como a principal nação capitalista da Europa, o que
ocorreria durante os séculos XVIII e XIX, necessitavam conquistar um maior mercado de
consumo para seus produtos fabricados.
A postura da Inglaterra em relação a Portugal e suas colônias é justificável no contexto de
expansão em que aquele país se encontrava, cuja expressão mundial conquistada permitia-lhes
considerar todos os demais países como parte sua, prestando-lhe serviços. Essa idéia foi
transmitida por muitos intelectuais da Inglaterra que acompanhavam o desenvolvimento do país,
como foi o caso do economista Jevons, que escreveu na segunda metade do século XIX:
As planícies da América do Norte e Rússia são nossos campos de trigo; Chicago
e Odessa, nossos celeiros; Canadá e o Báltico são nossas florestas madeireiras; a
Australásia contém nossas fazendas de carneiros, e na Argentina e nas pradarias
ocidentais da América do Norte, estão nosso rebanhos de gado; o Peru nos manda sua
prata, e o ouro da África do Sul e Austrália flui para Londres; os indianos e chineses
plantam chá para nós e nosso café, açúcar e especiarias estão plantados por todas as
Índias. Espanha e França são nossas vinhas e o Mediterrâneo, nosso pomar; e nossos
campos de algodão, que por muito tempo ocuparam o sul dos Estados Unidos, estão
agora sendo estendidos a toda parte cálida da Terra (apud KENNEDY, 1991, p. 151).
Segundo o texto, a interligação entre os países seria estabelecida por meio da dominação e
do fluxo de mercadorias; portanto, a busca de lucratividade dessa então potência mundial passava
pela reorganização econômica das demais nações. É o que verificamos no Brasil. Ora, o principal
passo a ser dado era transformar os habitantes desta vasta terra em consumidores potenciais visto
que, como escravos, não desfrutavam de poder aquisitivo, logo, não consumiam. Assim, como
40
eram em grande número, constituindo o mundo do trabalho na época no Brasil, os ingleses não
obteriam os lucros desejados ao expandirem aqui seu mercado.
Devemos registrar que à Inglaterra, principal nação capitalista da época, interessava
acabar com a escravidão onde quer que fosse praticada, forçando, com isso, a implementação do
trabalho assalariado ou a instituição de pequenos proprietários. A esse respeito, Lilia Moritz
Schwarcz explica: “A luta contra o tráfico inicia-se em 1807, a partir do momento em que a
Inglaterra o proíbe entre seus súditos e começa uma longa campanha para eliminá-lo em outros
países sujeitos à sua influência. O Estado brasileiro nasce sob essa pressão, visto que vários
tratados – 1810, 1815, 1817 – tinham sido impostos a Portugal” (1999, p. 571).
Proclamada a sua independência política de Portugal, o Brasil teve de ser mais objetivo na
evolução do seu sistema econômico e social, visto que era necessária a afirmação desta
monarquia dos trópicos, marcada pela presença étnica e cultural de mestiços, negros e índios,
perante as tradicionais nações européias. Nesse contexto, buscava-se, com empenho, diálogo com
a cultura e o progresso industrial da Europa, procurando dar forma à nação que acabava de
nascer. Nesse sentido, a substituição da mão-de-obra escrava pela mão-de-obra livre era
determinação que precisava ser levada a cabo. Assim, aconteceu em 1850 a extinção do tráfico de
escravos pela Lei Eusébio de Queirós, medida importante dentro do contexto de ampliação da
capacidade consumidora da população. Seguiram-se outras leis e outras pressões externas e
internas a alargar o caminho para a abolição, que resultou de um processo gradual, cujos passos
principais foram, além da lei citada, a Lei do Ventre Livre (1871), a Lei dos Sexagenários (1885)
e a Lei Áurea (1888).
Apesar da evidente ligação entre imigração e escravidão, apontada pela maioria dos
historiadores, do que é referência Sodré (1976, p. 245), o qual diz que “a questão da imigração
européia do século passado está intimamente ligada à escravidão”, outras análises históricas
propõem que o processo imigratório de europeus não lusitanos sustentou-se, a curto e médio
prazo, em outras razões, pois, como indicam as datas, iniciou seis décadas antes da abolição,
“quando os amos lutavam para ampliar, e não para pôr fim à introdução de africanos. Mesmo
após o fim do tráfico, em 1850, os senhores mantiveram o cativeiro ainda por 38 anos”
(MAESTRI, 2000, p. 16).
Considerando a imporncia das interpretações históricas, o interesse primordial deste
estudo consiste em buscar o entendimento sobre a instalação dos imigrantes no Rio Grande do
41
Sul. Para isso, convém relativizar a idéia da intimidade entre imigração e escravidão no quadro
deste estado brasileiro. Aqui, a mão-de-obra escrava era em menor proporção em relação aos
outros estados. O espaço para o trabalho livre do imigrante estava, portanto, mais aberto, e não se
atrelaria à substituição do trabalho escravo. Com isso, o imigrante alemão encontrava-se em
melhores condições de se lançar à atividade que viesse a escolher, pois poderia ser proprietário,
não empregado; além da condição de dono da terra, por doação ou financiamento, ocuparia terras
devolutas e não substituiria o negro junto aos latifundiários ou aos grandes fazendeiros.
Concretizar o estatuto de dono do território e garantir a manutenção por meio do povoamento,
bem como fazer agricultura, eram os principais objetivos do governo para com os imigrantes
dirigidos ao sul, não a substituição da mão-de-obra cativa simples e diretamente.
Portanto, o imigrante alemão instalou-se no Rio Grande do Sul seguindo uma política de
colonização dirigida, que se subordinava à política geral de imigração no Brasil, em tempos em
que dom Pedro I estava empenhado em desenvolver uma prática expansionista em direção ao
Prata. Da mesma forma, a necessidade de fazer a terra sul-rio-grandense produzir com mão-de-
obra branca era compreensão comum aos presidentes da província da primeira metade do século
XIX, que clamavam ao imperador que dedicasse atenção a esta região. Como exemplo, o senador
Manoel Antônio Galvão, ao tratar da colonização durante a abertura da Assembléia Legislativa
provincial em 5 de outubro de 1847, deixou clara a necessidade de trazer imigrantes, pois
considerava não ser possível povoar esta região com o crescimento natural da população
existente, e dizia ser desaconselhável recorrer ao elemento negro. Também Francisco José de
Souza Soares de Andréa, em 1849, afirmou ser necessária a instalação de colonos agricultores na
província para que fossem cultivadas as grandes extensões de terra existentes.
É assim que, determinada, nas primeiras décadas do século XIX, uma política de
recebimento de estrangeiros europeus para trabalhar na terra e já bem consolidado o fluxo
migratório, com várias comunidades de imigrantes estabelecidas, teve andamento um outro
sistema de mão-de-obra, o do trabalhador pequeno proprietário de terra, o qual visava não a
sobreviver, mas também a investir, lucrar e crescer economicamente. Com isso, o governo
tornava prática a sua meta de formação de núcleos agrícolas produtivos, que se consolidaram
como componentes decisivos na diversificação da estrutura econômica exigida pelo sistema
capitalista que se desenhava.
42
2.1 - Os primeiros grupos de imigrantes alemães no Rio Grande do Sul
Era 1824. 25 de julho. Trinta e oito
7
pessoas das famílias Bentzen, Hammel, pper,
43
Figura No.1.
Moradia dos primeiros imigrantes alemães, após sua chegada em São Leopoldo.
Fonte:
ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1969, p.2.
À altura da vida em que se encontravam, envolvidos quase todos como vítimas num
contexto social e econômico excludente, que os submetia a sérias dificuldades de sobrevivência,
os germânicos emigrados de seus reinos tiveram vida e pátria alteradas. Deviam reconstituir vida
e pátria em nova terra. Segundo o que a história nos mostrou, eles não deixaram para trás a
contribuição anteriormente recebida da nação que os gerava, especialmente a cultura, a religião e
a língua; ao contrário, na nova terra ergueram um mundo revelador do mundo que os fizera na
Alemanha.
Neste ponto é preciso esclarecer um problema conceitual: embora encontremos na
historiografia o termo “alemão” para designar os imigrantes que se instalaram em São Leopoldo e
nas colônias criadas posteriormente, de 1824 a 1870, o termo mais adequado é “germânico”,
porque nesse período da imigração não existia a Alemanha como país, e, sim, pequenos reinos
com povos germânicos, locais de onde aconteceu a emigração para o Brasil, tais como Prússia,
Hesse-Darmstadt, Oldenburgo, Hamburgo, Mecklemburgo, Pomerânia, Boêmia, dentre outros. A
44
Alemanha passou a existir a partir de 1870, depois da unificação, que desfez os diferentes reinos
e criou um só governo e um só reino, a Alemanha.
11
Em todas as épocas, escritos de diversas áreas do conhecimento, como literatura, história,
sociologia, antropologia, esforçaram-se para garantir a esses imigrantes germânicos o
reconhecimento de seu empenho pelo desenvolvimento do lugar que ocuparam. Fez-se, assim, a
afirmação do seu valor como verdadeiros desbravadores e empreendedores, principalmente pelo
papel que exerceram na consolidação do modo de produção baseado na pequena propriedade e no
trabalho livre.
Os germânicos emigraram, conforme contrato com o governo brasileiro, para se fixar no
campo e ali trabalhar. Assim, somaram-se a uma população não muito numerosa na época na
província, como mencionado. Conforme o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire relata
em sua obra Viagem ao Rio Grande do Sul, em 1820 havia no campo, onde estavam as estâncias,
um total de 66.665 habitantes, assim distribuídos quanto à etnia: “a população sobe a 32.000
brancos, 5.399 homens de cor livre, 20.611 homens de cor escravizados e 8.655 índios” (SAINT
HILAIRE, 1974, p. 46). Essa realidade pode ser visualizado na Tabela 1, a qual demonstra
também os percentuais da população do Rio Grande do Sul em 1820.
Tabela No.2 – População do Rio Grande do Sul em 1820
População Número Percentual
Brancos 32.000 58, 00
Pretos livres 5.399 8, 09
Índios 8.655 12, 98
Pretos escravos 20.611 30, 91
Total 66.665
Fonte: SAINT HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Trad. De Leonam de Azeredo Penna. Belo
Horizonte: Itatiaia, USP, 1974. p.46.
A etnia alemã, nesse cenário, constituiu um novo povoamento, que se defrontou com uma
sociedade organizada, a da província da Campanha, onde se encontrava a população contada
pelo naturalista Saint Hilaire, formada por luso-brasileiros, negros e bugres. Estes últimos
11
Neste estudo, todavia, utilizo os termos “alemão” e “germânico” indistintamente, uma vez que, em verdade, um
não é menos exato do que o outro para referir as pessoas da etnia estudada. Eles cumprem uma função maior de
diferenciação quando atentamos para tempos históricos de definições territoriais e políticas dos reinos ou, mais tarde,
país de origem dos imigrantes.
45
formavam uma província à parte e figuravam, como registra a historiografia, como seres
ameaçadores, que surgiam inesperadamente de qualquer lugar para intimidar ou atacar os novos
moradores da terra, que, certamente, representavam esta mesma ameaça àqueles.
Aos poucos, o enfrentamento das situações que se apresentavam permitiu-lhes o
distanciamento das dificuldades iniciais, marcadas, segundo muitos discursos históricos, pela
força humana e escassez de recursos, e ao desenvolvimento de produção, de organização social e
religiosa, do progresso da família, da comunidade e do estado. As terras silentes e misteriosas que
os receberam foram se deixando explorar e, não muito tempo depois, no imaginário social
eram “terras dos alemães”, pois que refletiam o modo de vida destes imigrantes, formando os
núcleos coloniais.
Contribuindo para a diferença entre o seu modo de vida e o dos nacionais estava também
a filiação à religião protestante, que trouxeram de sua região de origem e praticavam em meio à
sociedade provincial essencialmente católica, dada a determinação constitucional do Brasil. Nos
romances analisados, é dada ênfase à religião protestante, aopasso que a católica aparece como
uma exceção entre os imigrantes.
Sobre a religião praticada pelos alemães no Brasil, cabe considerar que os protestantes
foram, de fato, maioria, e isso representou uma mudança no aspecto religioso numa região de um
país que admitia em sua Constituição apenas o catolicismo. Todavia, essa maioria não era
absoluta, como muitas vezes sugere a historiografia, esquecendo-se de que havia também
católicos entre os imigrantes germânicos. É importante destacar também os católicos, sobretudo,
a questão de que a germanidade está muito presente também no catolicismo. Talvez aqui caiba
uma crítica àqueles autores que em suas pesquisas se esquecem disso, apresentando, portanto,
limites na abordagem que fazem da religião vivida pelos alemães no Rio Grande do Sul.
O significado da presença dos alemães católicos no conjunto dos imigrantes pode ser
dimensionado por meio de algumas obras visíveis atualmente. Foi um padre católico, Theodor
Amstadt, quem criou a sociedade que viria a ser uma das maiores potências econômicas do Rio
Grande do Sul, a União Popular. O início da atuação do padre Amstad na organização dos
colonos católicos e de seu progresso econômico deu-se em 1902, quando fundou a Cooperativa
de Crédito Rural em Linha Imperial Nova Petrópolis, Rio Grande do Sul. Sua intenção era que
os colonos depositassem na entidade o dinheiro que sobrava para que outros colonos pudessem
utilizá-lo, em forma de empréstimo, para desenvolver suas propriedades. Dez anos depois (1912),
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o religioso fundou a Sociedade União Popular, que passou a assistir comunidades de origem
germânica do Rio Grande do Sul e Santa Catarina quanto às necessidades religiosa, educacional,
cultural, social e profissional. A evolução desta sociedade gerou o Sistema de Crédito
Cooperativo – Sicredi, um importante banco cuja origem está nas caixas rurais.
12
O trabalho idealizado na sociedade União Popular não deixava de ser uma forma de
praticar a germanidade, especialmente na educação, visto que nas escolas criadas o ensino era
realizado em alemão, isso até ocorrer a proibição do governo brasileiro na campanha de
nacionalização. Além do sistema escolar particular, a germanidade era cultivada por meio de
publicações em língua alemã que circulavam nas comunidades.
O padre Amstadt foi quem assinou e editou o livro comemorativo aos cem anos da
imigração alemã no estado, que se chamou Centenário da Colonização Alemã. Rio Grande do
Sul 1824-1924, uma deferência que atesta a expressividade da ala católica da etnia. Outra
indicação de que os alemães católicos eram expressivos em número e importância na comunidade
imigrante é a denominação que a Igreja São José de Porto Alegre recebeu: chamava-se Igreja São
José dos Alemães, como René E. Gertz lembra (2002),
13
e apresenta-se como uma das igrejas
principais da capital. Essas obras se constituem em evidências do grande número de alemães
católicos e da sua participação efetiva, não dos alemães protestantes, na consolidação do
processo de colonização do Rio Grande do Sul.
Entretanto, no que concerne à minha análise, apesar de existir grande número de
imigrantes alemães católicos no Rio Grande do Sul, eles receberam representação positiva apenas
num dos romances analisados, que é A divina pastora, de Caldre e Fião. Em O tempo e o vento,
Erico Verissimo refere-se aos católicos, mas o faz com uma representação negativa de seus
papéis na Igreja e na comunidade, especialmente quando descreve as personagens padre Kolb e o
sacristão da matriz de Santa Fé, Jacob Geibel. Os demais romances não destacam os alemães
católicos entre suas personagens.
No mundo real, como os historiadores relataram, entre os pioneiros havia protestantes e
católicos e ambos foram responsáveis pelo povoamento de importantes regiões gaúchas. Suas
terras doadas pelo governo foram partilhadas entre as famílias, conforme consta na obra Cem
12
Informações disponíveis em www.brasilalemanha.com.br. Acessado em: 08 fev 2007.
13
Nesta obra, Gertz também apresenta um estudo sobre a atuação do conhecido arcebispo de Porto Alegre, o alemão
dom João Becker, um católico que exercia muito poder sobre a sociedade do estado e até mesmo do país, praticando
um catolicismo político com vistas a sustentar a causa do nacionalismo brasileiro.
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anos de germanidade no Brasil (1923). Assim, a região compreendida como a Depressão Central,
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O interesse do governo brasileiro pelos trabalhadores alemães chegava até estes por
intermédio dos agentes da imigração. Dentre estes, o major Jorge Antônio de Schaeffer foi o
recrutador dos primeiros grupos que vieram para São Leopoldo. No Brasil desde 1814, Schaeffer
conseguiu tornar-se amigo de dona Leopoldina pelo interesse que ambos tinham pelas ciências
naturais, como explica Egídio Weissheimer no texto “Imigração Alemã ao Brasil e Rio Grande
do Sul I”.
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Na sua relação com o governo brasileiro, ele acertava a procura de pessoas tanto
para a colonização quanto para a guerra.
Na verdade, seu trabalho para formar o exército brasileiro iniciou mesmo antes da
imigração de colonos. Em 1822, quando dom Pedro I quis ampliar as forças militares para
segurança do Brasil e enfrentamento aos portugueses no processo da independência, Schaeffer
seguiu para as cortes alemãs com uma procuração que o nomeava de "Agente de afazeres
políticos do Brasil" (WEISSHEIMER, 2006) e com as propostas do governo brasileiro aos
interessados em emigrar para e se tornarem colonos. Como sabemos, na época em que se
iniciava o processo de emigração para o Brasil, a Alemanha era formada por diversos Estados,
cuja unificação ocorreu em 1871, formando-se o país Alemanha. Nem todos os Estados
germânicos permitiam a emigração, o que causou certas dificuldades ao agente no momento de
fazer o recrutamento, mas maiores dificuldades ele teria para enviar ao Brasil os soldados
solicitados. Dentre os que concediam aos cidadãos o direito de emigrar estavam os da atual
Renânia. No relato de Weissheimer:
onde, pela proximidade com a França, a destruição tivera sido maior, e onde mais se
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primeiros anos, sendo 160 réis diários no primeiro ano e a metade desta importância no segundo
ano; passagens financiadas, isenção de pagamento de impostos nos primeiros dez anos, liberdade
religiosa e concessão imediata da cidadania brasileira. Tudo isso tornaria a missão de Schaefer
grandemente facilitada.
Assim, cumpria-se a missão do major na Alemanha, colocando em prática a estratégia
governamental para formar uma agricultura de pequenos proprietários, que produzisse gêneros
alimentícios, e, ao mesmo tempo, fornecer recrutas para o exército imperial. Por um certo tempo,
colonos e soldados embarcavam em navios rumo ao Brasil, embora estes últimos de forma
velada: “Amparado sob o nome de colonização, recrutava soldados para formar os batalhões
estrangeiros contratados desde 1823 pelo I Império. Essa tarefa era de caráter secreto, e encoberta
pela promessa de trazer agricultores para colonizar o Brasil” (LANDO; BARROS, 1992, p.26-
27).
O trabalho dos agentes de imigração passou para a história identificado com acusações de
proveitos pessoais, pois, como eram remunerados conforme o número de pessoas que
conseguiam trazer, visavam a altos lucros. Na verdade, criaram-se várias companhias de
imigração, que “transformaram o deslocamento demográfico em uma fonte de lucros, acenando
com as imagens de um ´novo mundo`, no qual a existência de terras abundantes aparecia como
condição de possibilidade de recompor a situação social arruinada dos camponeses e artesãos
emigrantes.” (SANTOS, 1992, p. 136).
Muitos historiadores retratam como uma figura que enganou os imigrantes por visar,
sobretudo, a lucros e benefícios pessoais. Liene Maria Martins Schütz (1974, p. 277), por
exemplo, ratifica a idéia corrente de que ele “usou, muitas vezes, de expedientes inescrupulosos,
criando o seu próprio elenco de vantagens para atrair imigrantes para o Vale do Rio dos Sinos”.
A autora refere-se às vantagens que o major incluía por sua conta nas promessas do governo, que
eram a cidadania brasileira, a liberdade religiosa e o não-pagamento dos impostos por dez anos,
todas descartadas pelo governo brasileiro após tê-las concedido a outros grupos anteriores de
imigrantes, os situados em Nova Friburgo, visto que contrariavam a Constituição da época,
tornando, portanto, impossível o seu cumprimento.Essas promessas, portanto, eram enganosas e
iludiam os alemães, servindo apenas para recrutar um mero maior deles. Eles recebiam uma
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proposta de garantia de boas condições para alicerçar a vida nova a que dariam início, no entanto
tão logo chegavam já descobriam que não passavam de
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redobrada desconfiança a respeito do Estado brasileiro e não lhes deixou senão uma única
oportunidade de sobreviver: a solidariedade étnica.”
Durante os seis primeiros anos de imigração (entre 1824 e 1830), embora os registros não
sejam unânimes, sabemos que não foi alto o número de alemães que entraram no país, que não
chegou a sete mil, contando os colonos e os soldados contratados para os batalhões de
estrangeiros formados dentro do exército brasileiro. A interrupção da imigração durou até 1844.
Os documentos não registram entrada de imigrantes na Província de 1831 a 1844. Depois disso
reiniciar-se-ia a imigração européia para o Rio Grande do Sul, conforme relata Tramontini (1999,
p. 289):
os primeiros ofícios de Caxias para Hillebrandt notificavam sobre aa chegada de
novos colonos alemães, 53 famílias, que se estabeleceriam em São Leopoldo,
ordenando que se lhes entregassem “terrenos e ferramentas”. Em janeiro de 1845, o
secretário do Governo, Domingos José Gonçalves, avisa que seguiriam para São
Leopoldo mais 38 colonos alemães, que acabavam de chegar à Província, e que
Hillebrandt deveria providenciar terras e ferramentas.
Entretanto, mesmo nesse período da interrupção da imigração houve expansão da colônia
alemã, com a ocupação de terras em direção às bordas da Serra Geral (MACHADO, 1999).
Embora houvesse esse alargamento territorial da colônia, os alemães tinham em haver do
governo imperial dinheiro e muitas outras coisas, como instrumentos de trabalho e animais,
recursos prometidos quando de sua vinda. Além disso, as demarcações, que haviam se iniciado
pela pressão dos colonos, foram interrompidas, pois a lei em vigor excluiu qualquer possibilidade
de dispender dinheiro com os imigrantes. Vivia-se então o período bastante conturbado da
Regência (1831 – 1840).
A Revolução Farroupilha também foi motivo de não ter sido dada continuidade ao
movimento imigratório, visto que as atenções e recursos do governo da província dirigiram-se,
sem escolha, ao combate aos revolucionários. Que espaço haveria, então, para exigir mudança de
postura do imperador quanto ao processo de imigração para o Rio Grande do Sul? Além disso, os
desdobramentos do conflito atingiram diretamente os estrangeiros de São Leopoldo, que se
envolveram no conflito participando de combates.
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Marcos Justo Tramontini, no livro A organização social dos imigrantes: a colônia de São Leopoldo na fase
pioneira 1824 / 1850, apresenta e analisa diversos documentos sobre a participação dos imigrantes alemães na
Revolução Farroupilha.
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A revolução interferiu na economia dos imigrantes, pela proibição do comércio dos
produtos coloniais, uma prática lucrativa em desenvolvimento pouco tempo depois da chegada
à província. Foi uma determinação que vigorou quando a capital sofreu o cerco dos farroupilhas
em junho de 1836, como explica Tramontini (2003, p. 255): “Nesse novo cerco da Capital, outra
conseqüência para São Leopoldo foi a interrupção total do comércio colonial.” A retomada dar-
se-ia somente no início da década de 1840, quando voltou a acontecer o intercâmbio comercial
com Porto Alegre, “o que implicou, igualmente, em medidas que garantiriam a segurança da
navegação no Rio dos Sinos” (p. 272).
Joahann Carl Dreher registra em suas memórias (WEIMER, 1988) episódios que
envolveram os alemães, explicando que o transporte entre Porto Alegre e São Leopoldo era
realizado por lanchões (pequenos barcos), sem toldos, cuja força motriz eram remadores.
pertencentes a alemães; eram estreitos e carregavam, além dos passageiros, caixas e sacos. A
viagem, certamente, era incômoda.
Na época da Revolução Farroupilha havia um rigoroso controle das embarcações, as quais
podiam fazer a viagem depois da inspeção da Marinha. Dreher lembra: “Ninguém podia ousar
deslocar-se de um lugar para outro sem uma licença por escrito da autoridade máxima da
Província” (apud WEIMER, 1988, p.22), Além disso, aconteciam saques aos lanchões: “Era
necessário fazer uma cara bonita para uma desfeita, atracar e assistir calmamente ao saque”
(p.23). “O caminho por Sapucaia era, naquele tempo, bastante inseguro por causa dos diversos
bandos que, sob o rótulo de um ou outro partido, roubavam e assassinavam” (p.28). O autor
também registra que havia tropas imperiais acampadas com a Companhia Alemã em Triunfo, sob
o comando do major Kersting, enquanto que, em São Jerônimo, que fica do outro lado, fazia-se
notar, de tempos em tempos, um corpo de forças revolucionárias dos “farrapos” (denominação
dada ao Partido Republicano).
Apesar dessas observações dos estudiosos citados sobre a interferência da guerra civil no
andamento da produção agrícola, artesanal e dos negócios dos alemães imigrantes,
informações sobre o comércio entre São Leopoldo e Porto Alegre no período dos dez anos da
Revolução Farroupilha que indicam não ter sido o prejuízo a marca maior e, sim, o
desenvolvimento, que era estimulado pelas necessidades de produtos criadas pelo conflito. Dois
importantes autores tratam dessa questão. Paul Singer não enfatiza a idéia de que a revolução foi
prejudicial ao comércio de São Leopoldo; ao contrário, na sua interpretação o período significou
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o início da segunda fase da evolução de São Leopoldo, em seqüência à primeira, que se
restringira ao desmatamento e à agricultura de subsistência. Assim ele explica: “Com a Guerra
dos Farrapos, Porto Alegre é isolada de grande parte da província em mãos dos rebeldes,
passando a ser abastecida por São Leopoldo. É a partir deste período que se desenvolve a
agricultura comercial da colônia. As exportações triplicam entre 1842 e 1853 e setuplicam entre
1854 e 1860” (SINGER, 1968, p. 157). Jean Roche, por sua vez, destaca o lado positivo da
revolução, e não para o comércio como também para a concessão da nacionalidade brasileira
aos alemães: “Não se deve, aliás, pintar demasiado negro o quadro da colônia durante a guerra
civil. Esta desenvolveu um frutuoso comércio de São Leopoldo com Porto Alegre e teve
conseqüência direta sobre o estatuto dos colonos alemães: receberam eles, em 1846, a
nacionalidade brasileira mediante simples declaração ao Conselho Municipal, e sem custas”
(1969, p. 100).
No interior da colônia, a Revolução Farroupilha separou os imigrantes em dois grupos
partidários: de um lado, os legalistas; do outro, os farrapos. Ambos os partidos arregimentaram
colonos para combater, mediante promessas semelhantes, “como o pagamento dos subsídios
atrasados e a naturalização, com exceção da separação da Igreja do Estado e da liberdade de culto
acenadas apenas pelos revolucionários” (TRAMONTINI, 2003, p. 242).
Os moldes em que se havia iniciado o processo imigratório estavam, então, revistos. Tal
revisão não significou, de imediato, organização quanto à execução dessa meta do Brasil. Quando
se reiniciou o movimento imigratório alemão em outubro de 1844, por exemplo, os governos
central e provincial ainda não dispunham de “um organismo que determinassrg635()6.56299(r)-6.236721693(n)6.562iadma e
localização desses novos imigrantes” (LANDO; BARROS, 1992, p. 28). Disso resultav2(m)7.443(a)1.96262( )-181.756(q)-3.71443(u)-3.71443(e)1.96262( )250]TJ-285.281 -20.16 Td[(m)7.00596(u)-3.71631(i)0.442343(t)0.442343(o)-3.71631(s)-1.63698( )-48.1175(g)16.8442(r)4.04195(u)-3.71568(p)6.56424(o)-3.71568(s)-1.63761( )-37.8382(t)0.441715(i)-9.83821(n)6.56424(h)-3.71568(a)-8.31605(m)7.00596( )-37.8382(d)-3.71568(e)1.96388( )-48.1181(s)-1.63635()6.2.2438( )-48.1181(a)12.2438(r)-6.23798(r)4.04195(a)12.2438(n)-3.71568(j)0.441715(a)-8.3173(r)4.0432( )-48.1169(p)6.56299(o)-3.71693(r)4.0432( )-37.8369(c)1.96262(o)-3.71693(n)6.56299(t)-9.83821(635()6.56299(48.1169(p)6.56371(r)-6.23672(ó)-3.71693(p)-3.71693(r)]TJ246.259 0 Td[(i)0.441715(a)1.96262(,)3.28275( )-48.1169(j)0.441715(o)-3.71693(g)16.8429(a)1.96262(d)-3.71693(o)6.56299(s)-1.63635( )-48.1169(q)6.56299(u)-13.9969(e)1.96262( )-37.8369(e)1.96262(r)4.0432(a)-8.3173(m)7.0047( )-37.8369(n)-3.71621(u)-3.71693(m)7.0047( )-37.8369(c)1.96262(o)-3.71621(n)6.56299(t)-9.83821(e)1.96262(x)-3.71693(t)0.441715(o)-3.71444( )-37.8369(e)1.96262(s)-1.63635(t)0.441715((a)12.2425(d)-3)4.04n)-3.71443(h)-3.71443(o)6.5655(,)-17.2771( )250]TJ-246.259 -20.16 Td[(d)-3.71631(e)1.96325(s)-1.63698(p)6.56362(r)4.04257(o)-3.71631(t)0.442343(e)-8.31667(g)6.56424(i)0.441715(d)-3.71568(o)6.56371( )-140.637(e)-8.31605( )-140.637(i)0.441715(m)-3.27396(e)1.96388(r)4.04195(s)-1.63761(o)-3.71568(s)-1.63761( )-150.917(e)1.96388(m)7.00596( )-140.637(i)-9.83821(n)6.56424(ú)-3.71568(m)-3.27396(e)1.96262(r)4.0432(a)1.96262(s)-11.9163( )-140.636(d)6.56299(i)-9.83821(f)4.0432(i)0.441715(c)1.96262(u)6.56299(l)-9.83821(d)6.56299(a)1.96262(d)-3.71693(e)-8.3173(s)-1.63635(.)3.28275( )-140.636(T)4.48492(u)]TJ259.587 0 Td[(d)-3.71693(o)6.56299( )-140.636(i)0.441715(s)-1.63635(s)-1.63635(o)-3.71693( )-140.636(f)-6.23672(a)1.96513(c)1.96262(i)0.441715(l)0.441715(i)0.441715(t)-9.83821(a)1.96262(v)6.56299(a)1.96262( )-140.636(p)-13.9969(r)4.0432(á)1.96262(t)0.441715(i)0.43958(c)1.96262(a)1.96262(s)-1.63635( )-140.636(d)-3.71693(e)1.96262( )-150.916(a)1.96262(l)0.441715(h)-3.71443(e)1.96262(i)0.441715(o)-3.71443(s)-1.63635( )-130.356(q)-3.71443(u)-13.9943(e)-8.3173( )250]TJ-259.587 -20.04 Td[(v)-3.71631(i)0.442343(s)-1.63698(l)0.442343(u)-3.71631(m)7.00596(b)-3.71631(r)4.04195(a)12.2438(v)-3.71568(a)-8.31605(m)7.00596( )-397.635(n)-3.71568(o)6.56424(s)-11.9175( )-407.915(r)4.04195(e)-8.31605(c)12.2438(é)-8.31605(m)7.00581(-)4.04195(c)1.96388(h)-13.9956(e)-8.31605(g)16.8442(a)1.96388(d)-3.71693(o)6.56299(s)-11.917( )-407.914(u)6.56299(m)-3.27522(a)1.96262( )-397.634(f)4.0432(o)-3.71693(n)-3.71693(t)0.441715(e)-8.3173( )-397.635(p)-3.71693(a)1.96262(r)4.0432(a)1.96333( )-407.914(a)1.96262(u)-3.71693(m)7.0047(e)]TJ294.166 0 Td[(n)-3.71693(t)0.441715(a)-8.3173(r)4.0432( )-397.635(s)-1.63635()6.56299(ru)-3.71693(s)-1.63635( )-407.915(l)0.441715(u)-3.71693(c)1.96262(r)4.0432(o)6.56299(s)-1.63635(.)-6.99717( )-397.634(A)2.40434(s)-1.63635(s)-1.63635(i)-9.83821(m)7.00721(,)3.28275( )-407.914(a)12.2425(l)-20.1181(g)16.8454(u)-3.71443(n)-13.9943(s)-11.9163( )250]TJ-294.166 -20.28 Td[(i)0.442343(m)7.00596(i)-20.1175(g)16.8435(r)4.04257(a)1.96325(n)-3.71631(t)0.442343(e)1.96388(s)-1.63761( )-130.357(j)0.441715(á)1.96388( )-130.357(i)0.441715(n)-3.71568(s)-1.63761(t)0.441715(a)1.96388(l)0.441715(a)1.96388(d)-3.71568(o)6.56424(s)-1.63761( )-130.357(n)-3.71443(a)1.96388( )-130.357(c)1.96388(o)6.56424(l)0.441715(ô)-3.71568(n)-3.71568(i)0.441715(a)1.96262( )-130.356(c)1.96262(o)6.56299(l)-9.83821(o)6.56299(c)1.96262(a)1.96262(v2(m)7.693(a)1.96262(m)7.0047( )-130.356(l)-9.83821(i)0.441715(5(o)-3.71695434(D)-7.o8442(r)4.04195(u)-3.76292343(u)-32v1695434(D)-8144u)6.56299(e)1.96262629 0 Td[(e)1.96262((e)1.908715(u)-3.71693(c)1.96265434(D)-814a)1.96262(s)-1.63635( )-1(D)-814r)-6.23798(a)12.2438((635()6.562ú)-3.71568(m)-3.2735434(D)-8144u)-8.31605(g)16.8442p)-3.71693(o).71568(i)0.441715(ar)4.0432( )-37.8369(c)1.96262(o)-D s1.96262(ó)6.56424(s16(g)6.5655(o)-3.71568(n)6.56424o)-D nt715(5(943(e)-8.3173( )250]TJ-264.629 -20.16 Td1( )250]TJ3( )250]TJ(i)-20.117(s)-11.4125(c)12.2438a)-8.31605(m)7.00596( )-3.71693(l)0-3.71631(a)1.96325l)0.441715(a)1.96388(d)-3.71568if ó nten(a)1.96388(0)6.56424(0)-3.71568())4.04
54
dispendiosas” (ROCHE, 1969, p. 705). Para quem era colono, este prazo foi reduzido, em 1843,
para dois anos. Logo após o término da Revolução Farroupilha, em 3 de setembro de 1846, criou-
se mais uma lei que favorecia a naturalização, por meio da qual foi concedida a naturalização
imediata a todos os colonos de São Leopoldo, conforme mencionado anteriormente. Esse direito
foi estendido aos colonos de Petrópolis e São Pedro de Alcântara pela lei de 31 de janeiro de
1850. Ainda, o decreto nº 1.950, de 11 de julho de 1871, representou um importante avanço nesse
processo ao permitir a naturalização de todo imigrante com menos de 21 anos de idade residente
no Brasil há, pelo menos, dois anos; em troca, o solicitante deveria prestar serviços na Guarda
Nacional.
Nesse processo de reorganização da política de imigração, foi definidora de rumos a lei
514, de 28 de outubro de 1848, que delegou às províncias do país a responsabilidade nas
definições e trâmites da imigração. A expressão maior desta lei era a destinação, por parte da
província, de 6 léguas de quadras de terras devolutas à imigração com vistas à colonização do
espaço territorial. “A introdução e o emprego dos escravos, nelas, eram proibidos, e os colonos
não se tornariam proprietários das terras concedidas senão depois de as haverem desbravado e
explorado num prazo máximo de cinco anos. A intenção do legislador era desenvolver a
agricultura, através da exploração direta. Foi essa lei que permitiu a criação de colônias
provinciais e que regeu, até a Proclamação da República, o domínio territorial da província”
(ROCHE,1969, p. 101).
A partir dessa lei, criou-se, em 4 de dezembro de 1851, a lei nº 229, do governo
provincial, em cujo texto eram claras novas disposições para regrar a imigração, como podemos
verificar nestes artigos:
Art. - O Presidente da Província mandamedir, demarcar, levantar mapas e arbitrar
o valor das colônias existentes, em que não tenha sido feito esse serviço, e das que de
novo forem estabelecidas.
Art. 2º - Outrossim, mandará explorar terras devolutas que forem apropriadas para
colônias e pedirá ao Governo Geral a concessão das de que trata o artigo 16 da lei de 28
de outubro de 1848, sob número 514.
Art. - É também o Presidente autorizado a nomear um ou mais agentes na Europa
para promoverem a imigração alemã para esta Província.
Art. - Estes agentes perceberão a gratificação de três patacões por cada indivíduo de
7 a 35 anos, que fizerem emigrar, e pelos maiores de 35 que forem chefes de família, e
receberão mais um conto e quinhentos mil réis por cada mil indivíduos que enviarem
dentro do prazo que for designado no contrato.
(...)
Art. 7º - Cada colono que, com guia de agente, se apresentar ao Presidente da Província,
receberá 100 mil braças quadradas de terras na Colônia de Santa Cruz, ou em outras
55
que de novo forem estabelecidas, e nos títulos que lhes serão logo dados se inscreverá o
valor das terras, e não só as obrigações a que são sujeitos os colonos, como os favores a
que os mesmos têm direito.
(...)
Art. 9º - As terras serão concedidas gratuitamente. (PORTO, 1934, p. 162-3)
Portanto, por essas leis, o governo do Império mantinha o interesse na imigração para
proceder ao processo de colonização de áreas estratégicas do Brasil, mas num período não
assumiu plenamente a responsabilidade para tanto, repassando a função para as províncias.
Assim, no período compreendido entre 1848 a 1874, a colonização do Rio Grande do Sul foi
praticada pelo governo provincial, não mais pelo governo central. Conforme dado da Estatística
Geral da Imigração no Rio Grande do Sul, transcritos por Ernesto Pellanda (1925), nesse período
ingressaram nas colônias 19.607 germânicos, o qual, segundo Roche (1969, p. 100-101) “foi mais
propício à colonização e viu-a provida do estatuto legal de que necessitava.”
2.2 - A colonização provincial
A província do Rio Grande buscava facilitar a vinda dos alemães, determinando a
concessão de vantagens por meio de leis próprias, porém as despesas tornara-na impraticável e
afetavam o orçamento provincial; desse modo, a legislação seria modificada novamente. Criou-
se, assim, em 1854 a lei provincial nº 304, que determinou a venda de terras aos colonos
interessados, deixando de existir a concessão gratuita de lotes aos alemães a partir de então. Esta
lei embasou o processo imigratório para a província até o final do Império e, em síntese, eram
estas as suas disposições: as terras passaram a ser vendidas para os colonos dentro de um prazo
de cinco anos, podendo ser pagas em três parcelas, sem juros, nos finais do terceiro, quarto e
quinto anos; de forma gratuita, oferecia transporte, hospedagem e manutenção dos colonos do
porto de Rio Grande até o lote colonial; além disso, os imigrantes poderiam receber, como
adiantamento reembolsável, 50 mil-réis por pessoa como auxílio nos tempos iniciais antes da
primeira safra e o valor mínimo dos lotes era de 300 mil-réis. O artigo previa também o
estabelecimento de famílias brasileiras agrícolas e laboriosas, sujeitas às mesmas condições dos
colonos estrangeiros, e o artigo proibia a presença de escravos nas colônias. Desse modo, o
governo contava ter um retorno financeiro programado em termos de valores e prazos sempre que
56
entregava terras da província a um imigrante alemão, que, por sua vez, agregava ao seu processo
de estabelecer-se no novo local a dívida a ser paga.
A continuidade da colonização da província com alemães viria a exigir do governo outras
medidas legais, como a organização da educação escolar. Embora provenientes de um contexto
marcado pela exclusão social e econômica, os imigrantes haviam desenvolvido a consciência
de que ler e escrever eram atividades vitais e tinham a ver com poder. Não existia entre eles a
idéia, ainda em pleno vigor no Rio Grande luso-brasileiro, de que escola e educação eram
privilégios dos elitizados. Portanto, sendo uma das características dos recém-chegados a
preocupação com a escolarização dos filhos, logo o governo foi solicitado a dar condições para
que isso acontecesse nas colônias. Assim, promulgou-se a lei provincial 579 em 1864, da qual
destaco os seguintes artigos:
Art. - Fica o Presidente da Província autorizado a contratar professores particulares
quer nacionais quer estrangeiros para lecionarem primeiras letras dentro das colônias
provinciais, devendo o professor saber o idioma dominante nas colônias.
Art. - Serão preferidos para estes contratos aqueles que se acharem habilitados para
ensinar a língua nacional aos seus alunos; porém, na falta destes poderão ser engajados
mestras que lecionem na língua que predominar no distrito em que houver de funcionar.
Essa lei pretendia ampliar o ensino público nas colônias, uma vez que, em 1854,
conforme relatório de João Daniel Hillebrand, diretor-geral das colônias da província, das trinta
escolas existentes na vila de São Leopoldo, apenas três eram públicas. Hillebrand também
apontava para a necessidade de se ensinar o português aos imigrantes, função esta das escolas e
de caráter essencial para se desenvolver o processo de integração dos estrangeiros à nova pátria.
O fato é que, uma vez constante na lei a legitimidade do ensino da língua alemã nas escolas, a
mencionada integração por meio da aprendizagem da língua portuguesa retardava a acontecer.
Juntava-se a essa ação a inoperância do governo da província em relação ao acompanhamento da
educação:
Um fato que veio agravar a dificuldade de assimilação dos imigrantes foi a inexistência
de órgãos próprios de supervisão do ensino por parte do Governo Estadual, o que, por
sua vez, levou os colonos a criar uma “União das Escolas Particulares Alemãs”. Partiam
dessa união os princípios que orientavam o ensino ministrado nas colônias. Por outro
lado, os professores para suas escolas vinham da Alemanha, o mesmo acontecendo com
os médicos. Buscavam, desta forma, os alemães dar continuidade à cultura de origem,
sem assimilar os valores e padrões de vida que a cultura de adoção lhes oferecia
(LANDO; BARROS,
1992, p. 32).
57
Nesse processo pensado e desenvolvido pelo governo provincial entre 1848 a 1874, com o
fim de continuar atraindo imigrantes alemães para colonizar as terras, verificamos que certas
medidas passaram a ser referências ao governo central quando, na década de 1870, retomou para
si a promoção da imigração:
Neste período, definiram-se as linhas principais do sistema oficial de colonização.
Definiu-se um espaço para o imigrante na Província e toda uma forma de tratamento
para que o mesmo pudesse alcançar e reproduzir a condição de pequeno proprietário. A
construção de um sistema de autofinanciamento e, paralelamente, da própria infra-
estrutura necessária ao desenvolvimento dos núcleos coloniais, infra-estrutura esta que
vinha ao encontro dos interesses das elites pecuaristas locais, foram elementos
importantes da experiência provincial incorporada pelo Governo Central no Regimento
das colônias do estado. A estrutura colonizadora da Província, pequena, mas
profissionalizada, com atividade contínua através de diferentes governos e identificada
com os interesses dos colonos e a superação dos problemas ligados às dívidas por preço
dos lotes e auxílio foram também incorporados pelo Governo Central. Nesse sentido, a
colonização imperial será a continuidade deste processo (MACHADO, 1999, p. 125-
126).
As dívidas a que Machado se refere foram contraídas pelos imigrantes com o Império e com a
Província por conta da lei que estabelecia a venda dos lotes, não mais a doação praticada pelo
governo imperial nos primeiros anos do processo colonizador e também com passagens e
adiantamentos. Então, muitos impasses se criaram entre os colonos e o Tesouro da Província por
causa das dívidas que cresciam e não eram pagas:
Com o tempo, a dívida aumenta: em 1862, ,há 5.581 colonos inscritos nos registros do
tesouro Provincial, suas dívidas (1847-1862) elevam-se a 195:905 mil réis (alimentos,
25:126; transporte, 43:520; auxílios, 76:008; ferramentas, 5:693; sementes, 132;
diversos 1:802), ou seja, a média de 28 mil réis por imigrante. Dessa dívida, 1:306 mil
réis foram reembolsados, isto é, apenas 0, 8%. Em 1865, a dívida monta a 201:973 mil
réis no que concerne somente asa colônias de Santo Ângelo e Nova Petrópolis
(
ROCHE, 1969, p. 148).
Na síntese estatística de Roche observamos, além do volume da dívida, a sua natureza e
complementando essa informação Machado (1999) explica que, de toda a dívida, 40%
correspondiam ao valor das terras. As dívidas vencidas foram motivo de amplas discussões na
Assembléia Legislativa Provincial, que, em 1866, ordenou o pagamento imediato. Como tal não
58
se realizou, em 1869 os valores correspondentes a auxílios e adiantamentos foram anistiados,
ficando os colonos obrigados a pagar apenas os valores das terras (MACHADO, 1999).
Apesar dessas discussões, novas levas de alemães continuavam chegando no período. Pelos
registros de Pellanda (1950, p. 39), de 1859 a 1875 entraram 8.412 imigrantes alemães no Rio
Grande do Sul.
Quando chegou a década de 1870, a verba provincial para a colonização das terras rio-
grandenses era bastante reduzida. Mesmo assim, no período de 1867 a 1875 foram assentados
750 imigrantes, em média, a cada ano (MACHADO, 1999). Contudo, acumulados os problemas
provenientes das limitações de verbas, da pouca estrutura para receber imigrantes e da vinda de
um número menor de estrangeiros do que o esperado pelo governo, a província deixou de
administrar a sua colonização e o processo passou, novamente, para as mãos do governo imperial
(1876).
Embora houvesse descontinuidade na política de imigração traçada pelo Império a partir
de 1824, persistiu com significativa renovação na década de 1870, quando se pensava em definir
ações que proporcionassem a vinda de estrangeiros para o Brasil em grande escala. Assim, o
investimento em núcleos oficiais de pequenos proprietários teve continuidade depois de 1875
com a administração do governo imperial, pois, nessa época, como mencionado, o governo
provincial havia abandonado a imigração e a colonização em razão, principalmente, “dos limites
orçamentários impostos pela Assembléia Provincial” (MACHADO, 1999, p. 80) e do débito
acumulado com as despesas feitas no período em que administrava a imigração.
Por meio do Aviso 56, de 20/10/1875, a Província devolveu o projeto de colonização ao
Império (PELLANDA, 1950). Foi quando chegaram os primeiros imigrantes italianos (1875), a
outra etnia de maior expressão na colonização do Rio Grande do Sul. E em 1879 suspendeu-se a
imigração oficial. A partir de então, por um breve período de tempo a imigração aconteceu de
forma espontânea, como muito o governo desejava. Na verdade, a esperança do governo de
que viessem a ocorrer entradas maciças de imigrantes alemães de forma espontânea, não sob
contratos de recrutamento, se realizaria com maior expressão no período da Primeira Guerra
Mundial, como relata Roche (1969, p. 124): “O princípio da espontaneidade da colonização, que
o Governo rio-grandense muito tempo quisera aplicar, não teve êxito senão às vésperas da
guerra de 1914-1928.”
59
Entretanto, em 1885 a política de colonizar as terras foi retomada pelo governo, que já
tinha como certa a abolição da escravatura e necessitava ampliar a participação da mão-de-obra
livre no mundo do trabalho, bem como a formação de pequenas propriedades, visando ao
desenvolvimento do país. Em 1895, na República, o Estado recebeu novamente a incumbência
de promover a imigração e são representativas desta nova etapa as “Colônias Novas”.
Iniciado o século XX, com ele o fluxo de imigrantes alemães para o Rio Grande do Sul
continuou, e de forma intensa, pois são dessa época os maiores números registrados de entradas -
mais de um terço da totalidade - desde o início do processo, com maior concentração em dois
momentos significativos historicamente: um pouco antes da Guerra Mundial e no início da
década de 1920, quando a crise da República de Weimar atingia o seu auge.
Carneiro (1950) e Willems (1946) apresentam as estatísticas sobre o total de alemães que
emigraram para o Brasil durante mais ou menos cem anos (séculos XIX e XX). O primeiro
registra que ocorreram 235.846 entradas no período de 1819 a 1947 e o segundo estima que o
Brasil recebeu cerca de 280 mil entre 1886 e 1936. Mesmo que as estatísticas informem números
diferentes, indicam que a imigração deu-se com uma certa constância desde 1824 até quase a
primeira metade do século XX.
2.3 - Alemães nas colônias do Rio Grande do Sul
De 1824 a 1830, segundo registros de João Daniel Hillebrand, 4.838 imigrantes, em
sessenta e uma levas, chegaram à colônia alemã de São Leopoldo. Além desses, 72 imigrantes,
em novembro de 1824, foram para São João das Missões e outros 54, em outubro/novembro de
1826, para Torres. No período indicado, muitos germânicos também se estabeleceram em Porto
Alegre e em alguns outros locais.
Retomada a imigração (1844), formaram-se várias colônias alemãs na província. O
projeto de ocupar mais território com povos germânicos, empreendido tanto pelo governo quanto
pela iniciativa privada, passou a se desenvolver após 1846, ano em que chegaram 1.515 colonos,
pois nos dois primeiros anos (1844 e 1845) o movimento fora modesto (SINGER, 1968). Assim,
além da colônia de São Leopoldo, em 1824, no vale do rio dos Sinos foram fundadas as
seguintes: colônia Mundo Novo em 1847, a leste de São Leopoldo, pelo comerciante Tristão José
60
Monteiro, cujos lotes foram vendidos para colonos de São Leopoldo e imigrantes novos; no vale
do rio Pardo foi fundada a colônia Santa Cruz em 1849, pelo governo provincial, do qual era
presidente o barão de Caçapava, e a colônia Monte Alverne, a partir de 1860; no vale do Jacuí, a
colônia de Santo Ângelo, em 1857, ano em que chegaram os primeiros alemães destinados a ela,
no entanto sua existência legal data de 1855, quando foi criada pela lei provincial de 30 de
novembro; criou-se, ainda, a colônia de São Lourenço em 1858, em terras compradas por Jacob
Rheingantz no município de Pelotas (SCHRÖDER, 2003).
Além dessas, fundaram-se também no Vale do Taquari a colônia Conventos em 1853, por
Antônio Fialho, a colônia Teutônia em 1858, por Carl Arnt, a colônia Estrela em 1846, por Vito
Barreto e a colônia Neu Berlin em 1868.
Na continuidade da ocupação de outros espaços do interior da província pelos imigrantes
alemães, foram criadas colônias também no vale do Caí. Em 1854, a Sociedade Montravel,
Silveiro & Cia fundou a colônia de Santa Maria da Soledade, e o governo imperial, a colônia de
Feliz em 1846. Sellin e Bartolomay fundaram a colônia Nova Petrópolis em 1858, considerada
uma ampliação da de São Leopoldo em direção ao norte. Montenegro, São Sebastião do Caí,
Pareci, Pareci Novo, Harmonia, Bom Princípio e mais algumas localidades do vale, cidades
existentes, receberam grupos de germânicos nessa época. Para o sul da província também foram
encaminhados grupos de imigrantes à colônia de São Lourenço do Sul, fundada em 1857 por
Jakob Rheingantz.
Desde as primeiras colônias, os alemães foram assentados próximos a grandes rios
navegáveis - Sinos, Caí, Taquari, Jacuí e Pardo - o que facilitava o transporte de seus produtos
coloniais e manufaturados. Estas regiões eram distantes das ocupadas pelos estancieiros, o que foi
positivo, relatam vários historiadores, para o desenvolvimento do estado, visto que eram
atividades econômicas diferentes das praticadas nas estâncias (o charque).
Para as colônias, no período de 1844 a 1874 a navegação fluvial assumiu importância
crucial, conforme explica Singer (1968, p. 159): “É o único meio de transporte economicamente
viável.” O mapa da Figura 3 mostra as antigas colônias alemãs.
62
No final do século XIX, com as regiões próximas a Porto Alegre bastante povoadas,
sem mais haver terras suficientes para serem adquiridas por novos imigrantes e pelos
descendentes daqueles já instalados, começaram a ser buscados outros espaços para assentar
colonos. Iniciava-se, assim, mais uma fase de colonização sob a administração do governo
estadual. Fundaram-se, então, as novas colônias na região do Planalto gaúcho, onde havia vastas
extensões de terras devolutas
.
Cruz alta apresentava-se como o maior município com áreas a
serem colonizadas, estas de mata, pois que os campos pertenciam aos estancieiros, categoria ali
instalada desde 1800, quando se iniciara a ocupação do local. Essas colônias passaram a receber
habitantes de diferentes nacionalidades.
Da última década do século XIX até 1914 foi mais rápida a formação dos núcleos
coloniais do que nos tempos anteriores da colonização. Para isso colaborou a iniciativa privada.
Em 1890, o governo fundou a primeira colônia oficial na região, Ijuí, com pessoas de diferentes
etnias, não da alemã. Roche (1969) registra que Ijuí foi a colônia que mais se desenvolveu
dentre as que foram criadas nesse período da colonização rio-grandense. Em 1891 foi criada a
colônia Guarani, que muito se desenvolveu após a estrada de ferro ser prolongada até Santo
Ângelo. Nesta, em 1914 viviam 4.200 alemães, e dentre outras etnias que ali se fixaram estavam
a russa, a polonesa e a italiana (ROCHE, 1969). Foram várias as colônias particulares povoadas
essencialmente por germânicos fundadas na época no Planalto. Tomemos o resumo de Roche
(1969, p. 130):
As colônias particulares de povoamento essencialmente germânico penetram no Planalto
subindo o Alto Jacuí ou acompanhando a via férrea. São assim fundados, de um lado, os
núcleos de Santa Clara (1896), Alto Jacuí (1897), Não-Me-Toque (1897), General
Osório (1898), Dona Ernestina (1900), Selbach (1906), na bacia superior de Jacuí; de
outro lado, no Município de Cruz Alta, barra do Colorado (1897), Boi Preto (1897), Neu
Württemberg (1899); no de Santo Ângelo, Ijuí Grande (1892), Vitória (1900), Buriti
(1908), Timbaúva e Boa Vista (1912), Steglich (1914); no de SãoLuiz Gonzaga, Cerro
Azul (1902); no de Passo Fundo, Bela Vista (1903) e Dona Júlia (1912); no de Erechim,
Rio do Peixe (1911).
Favorecia o trabalho dos colonos na região, especialmente o comércio, não um rio, como
nas outras colônias anteriormente fundadas, e, sim, a viação férrea, que também facilitava o
transporte dos produtos para outras cidades.
63
Valorizando a atuação do alemão no Rio Grande do Sul, Arthur Blasio Rambo assim se
refere à transformação que ocorreu nos espaços de terra mencionados a partir da fixação dos
colonos:
Os vales do Sino, da Caí, do Taquari, do Prado e do Jacuí, as Missões e o Alto Uruguai
tiveram suas fisionomias transformadas em menos de cem anos. No lugar das matas
quase impenetráveis, instalara-se por toda a parte uma paisagem humanizada sem
paralelo em todo o Brasil. Nela vivia e lutava uma estirpe de homens e mulheres que
haviam cruzado o Atlântico, para ficar. Estavam a construir o seu futuro e participavam
na edificação de uma nova pátria (RAMBO, 1998, p. 196-197):
A abertura de estradas de ferro foi uma das mais expressivas medidas estruturais tomadas
pelo governo na época da ampliação de área a ser colonizada e do investimento na continuidade
do processo imigratório, assim apresentadas por Singer:
Para que a colonização pudesse prosseguir, avançando para áreas mais afastadas dos
cursos navegáveis, era preciso um meio de transporte terrestre de maior eficiência que o
carro de boi. A estrada de ferro veio resolver o problema. Em 1869 foi iniciada a
construção de ferrovia que, partindo de Porto Alegre, alcança São Leopoldo em 1874,
Novo Hamburgo em 1876, Taquara em 1903 e Canela em 1924. Outra linha importante
começou a ser construída em 1877, ligando Margem (no Taquari) a Cachoeira em 1883,
a Santa Maria em 1884 e a Alegrete e Uruguaiana em 1907. Outra linha avançando de
santa Maria, alcança Cruz Alta em 1894, Carazinho em 1898, Passo Fundo em 1900 e
Erechim em 1910. Ao mesmo tempo o sul da província também recebe sua estrada de
ferro: entre 1881 e 1884 são interligados Rio Grande, Pelotas e Bagé. Em 1896
completa-se a interligação de Bagé e Cacequi, unindo-se a linha Porto Alegre-Cacequi,
na Depressão Central com a linha Rio Grande-Bagé no sul, ambas avançando reunidas
até Uruguaiana, na Campanha (1968, p. 159).
Essa estruturação de meios para promover o comércio desde as unidades produtivas dos
alemães possibilitou a formação de uma classe junto ao grupo, a dos comerciantes, que ascendeu
por meio da compra e venda dos excedentes produzidos pelos colonos. Em seus estudos, Roche
(1969) identifica esta classe como a única que enriqueceu nas colônias, originando o capital
acumulado que viria a possibilitar a criação de indústrias nas cidades.
Depois de 1914, colônias mistas continuaram a ser criadas nas terras devolutas,
evidenciando o interesse do governo em aumentar a área colonizada do estado. O número de
colônias foi menor do que o do período de 1890 a 1914, mas, mesmo assim, significativo. De
modo geral, luso-brasileiros foram estabelecidos ao lado dos descendentes dos antigos colonos
(ROCHE, 1969). Em 1915, foi fundada Santa Rosa. O projeto de povoamento e produção
agrícola também se estendeu para Porto Lucena, Tucunduva e Laranjeiras; ao norte fundaram-se
64
as colônias Guarita de Iraí, Capão Grande, Três Passos, Criciumal e Alto Uruguai. A esses
núcleos seguiu-se a instalação de colonos no município de Palmeira das Missões, nos arredores
de Erechim e de Lagoa Vermelha. Dentre essas colônias, as que tiveram alemães como a maioria
de seus habitantes foram apenas Santa Rosa e Alto Uruguai (ROCHE, 1969). Reproduzo na
Figura 4 o mapa das novas colônias de preponderância germânica.
66
2.4 - Alemães na capital do Rio Grande do Sul
A concentração dos primeiros grupos de alemães nas colônias serviu de base para a vinda
de outros interessados em exercer atividades na capital; assim, a população teuta foi, aos poucos,
também se estabelecendo em Porto Alegre. Nos primeiros anos da década de 1840, o comércio de
importação já estava se realizando, tendo à frente duas casas de alemães, a de João Diedrichs e de
Hermann Cordes. Duas casas de artigos coloniais (secos e molhados) eram, naquele tempo,
firmas importantes, Friedrich Bier e Bormann & Cia, representada por Bormann & Scheller.
Recorrendo, mais uma vez, às memórias de Joahann Carl Dreher, ficamos sabendo que
ainda não havia um grande número de pessoas da etnia alemã fixadas na capital. O autor informa
que “o elemento teuto ainda estava fracamente representado no início dos anos 1840 em Porto
Alegre e a gente conhecia pelo nome todas as famílias que aqui moravam” (apud WEIMER,
1988, p. 25). Contudo, a afluência dos alemães à cidade aumentava e a organização desta
sociedade de estrangeiros passou a ser de maior interesse de seu antigo governo, tanto que, em
1850, vários consulados de Estados germânicos estavam estabelecidos em Porto Alegre e
aproximadamente dois mil alemães viviam ali, conforme registros de Joseph Hörmeyer (1986).
Magda Roswita Gans (2004) contrapõe esses dados de Hörmeyer ao informar que,
naqueles anos, ainda não eram muitos os alemães em Porto Alegre. A autora apresenta uma
pesquisa sobre os teutos existentes na capital entre 1850 e 1889, fazendo um inventário da sua
presença por nomes, lugares onde moravam, profissões que exerciam e locais de trabalho, níveis
econômicos e até certas situações com que alguns se envolviam, como processos na Justiça,
dentre outras informações. Tudo isso foi buscado em registros reais, contados um a um.
Com essa amostragem que constitui a base de análise da pesquisadora, foi-lhe possível
afirmar que o número de teutos que viveram em Porto Alegre durante os quase trinta anos
considerados na pesquisa era de 2.093 e que em 1850 não eram tantos quanto afirmara Hörmeyer.
Contudo, também ressalta que o núcleo urbano de teutos era visível em Porto Alegre nesta
década.
O total indicado por Gans foi formado principalmente pela imigração direta da Europa,
mas não só. Muitos que haviam se instalado nas colônias se deslocavam para o centro urbano,
formando um grupo de emigrantes do campo para a cidade. Outra parcela, embora pequena,
identificada pela autora, era dos nascidos na capital e ainda havia aqueles que tinham vindo de
67
outros lugares da província, de outras regiões do Brasil e, mesmo, de outros países da América
Latina.
Havia alemães pobres, médios e ricos. Gans (2004) assim os classifica quanto ao nível
socioeconômico tomando por indicativos o trabalho que realizavam e o meio em que viviam. Se
na colônia tornaram-se referência no cultivo da terra e na produção de gêneros alimentícios, na
cidade não foi diferente quanto à notoriedade daquilo que realizavam, especialmente como
grandes comerciantes, industriais, donos de pequenos negócios, mas também no exercício de
profissões especializadas, como alfaiates, ferreiros, marceneiros, e, ainda, como executores de
tarefas mais populares e pouco qualificadas, como criadas em casas de família (mulheres),
afiadores e reparadores de guarda-chuva.
Como acontecia nas colônias, os alemães concentravam-se em núcleos urbanos na capital.
Dentre os bairros, no Floresta ficava um grupo maior da ala pobre ou popular, na classificação de
Gans (2004), mas não ali esta camada se concentrava. Segundo a autora, “não indicação de
uma área específica em que se encontrasse a população teuta de nível socioeconômico baixo. Os
teutos pobres pareciam distribuir-se de acordo com suas oportunidades de trabalho tanto no
centro como nos arrebaldes” (GANS, 2004, p. 37). No centro concentravam-se a ala de nível
médio e a afortunada. A rua Voluntários da Pátria, antigo Caminho Novo, chegou a ser conhecida
como a “rua dos alemães”, porque nela, no final do século XIX e primeiras décadas do século
XX, existia grande mero de casas comerciais de propriedade de alemães, principalmente os
ricos importadores. Outra rua que se fez notar pelo grande número de teutos ricos instalados
profissionalmente, mais do que a Voluntários, foi a rua da Praia ou dos Andradas e outra, ainda,
com expressiva concentração deles foi a Sete de Set
68
comércio exterior, consolidação do comércio interno e industrialização de produtos e a cultura
expressada foram as principais marcas de sua presença. Para Singer, no estabelecimento das
relações comerciais que caracterizavam Porto Alegre, notabilizaram-se os alemães,
que não somente expandem a agricultura como também se encarregam das atividades
comerciais dela decorrentes. São alemães os “vendistasque reúnem os excedentes da
produção de subsistência dos colonos, por meio do escambo na fase anterior à
generalização da agricultura comercial. São alemães os exportadores e importadores
sediados em Porto Alegre, que adquirem os produtos coloniais dos “vendistas” e lhes
fornecem artigos importados. São alemães ainda os que organizam a navegação fluvial
no Jacuí (Becker), no Rio dos Sinos (Irmãos Diehl e Blauth), no Caí (Keller, Jann,
Schaan, etc) e no Taquari (Jaeger, Ruschel, Arnt). É um alemão (Becker) que organiza o
primeiro estaleiro, em 1856, em Porto Alegre (SINGER, 1968, p. 164)..
O desenvolvimento da colonização do campo fez ressurgir a função comercial em Porto
Alegre no final do século XIX e início do século XX, afirma Singer (1968), num movimento
econômico que compreendia um processo circular no qual a produção da colônia era adquirida
pelos comerciantes da cidade e por eles negociada, ao mesmo tempo em que forneciam aos
colonos produtos industrializados. Tal movimento não se limitava às instâncias internas do estado
e do país, mas também envolvia as externas, pois já eram intensas a exportações e as importações
promovidas pelos alemães.
2.5 - Os brummers
Além dos imigrantes que aqui chegaram para trabalhar como agricultores, comerciantes
ou artesãos, instalando-se nos locais mencionados, em 1851 também vieram homens contratados
pelo governo de dom Pedro II, especialmente para formar o exército que lutaria contra Oribe
(Uruguai) e Rosas (Argentina), em mais um envolvimento do Brasil com questões platinas (1851-
1852). Dos Estados germânicos veio o grupo que ficou conhecido como os brummers,
18
uma
tropa mercenária que atuaria no Brasil como tantas outras que estiveram presentes em favor de
países europeus (CESAR,1971). Para essa missão, explica Bento (1974, p. 333), foi encarregado
“o deputado por Pernambuco, Sebastião do Rego Barros. Essa autoridade, após algumas gestões,
contratou uma Legião Alemã composta de cerca de 1.800 homens, através de agentes alemães,
18
A história dos brummers pode ser encontrada no livro de Aurélio Porto, O trabalho alemão no Rio Grande do Sul,
publicado em 1934.
69
aproveitando em grande número veteranos do exército do Schleswig-Holstein que havia sido
mobilizado para uma guerra contra a Dinamarca.”
Quando a guerra terminou, em 2 de fevereiro de 1852, na batalha de Monte Caseros,
tendo sido vitorioso o Brasil, o corpo militar foi dissolvido e a maioria dos brummers
permaneceu no Rio Grande do Sul: “Poucos regressaram à pátria ou saíram do Sul. Tornaram-se
colonos, artífices, industriais, espalhando-se por todo o Rio Grande” (CESAR, 1971, p. 249).
Dentre os brummers estava um alemão que, permanecendo no estado, veio a ser a voz referencial
dos imigrantes de sua etnia e reconhecido como o mais importante dos componentes da Legião
Alemã: Carlos von Koseritz (Carlos Júlio Cristiano Adalberto Henrique Fernando von Koseritz).
De origem nobre – era filho do barão von Koseritz, do ducado de Anhalt (CARNEIRO, 1959).
No Rio Grande do Sul, Koseritz foi uma referência da maturidade da colonização alemã
como um todo. Foi político (deputado) de grande expressão, jornalista, escritor, consagrando-se
como grande intelctual da época, empenhado em construir a relação da população germânica com
o Estado brasileiro. Segundo Reinhard Köhne, que estudou a obra e a vida de Koseritz, ele
foi o primeiro que compreendeu a situação peculiar do elemento alemão imigrado no sul
do Brasil e pode por isso ser denominado o pai do teuto-brasileiro. Isso significa em
termos negativos uma delimitação em relação aos alemães do Império Alemão, mas
também em relação aos outros brasileiros; em termos positivos, significa a aceitação do
Estado e da nova pátria brasileira, bem como o reconhecimento da velha pátria alemã,
com a qual o teuto-brasileiro continua a sentir-se ligado pela etnia (Volkstum) (apud
GERTZ, 1999, p. 7).
A divulgação das suas idéias era feita especialmente por meio dos jornais do Rio Grande
do Sul, escrevendo em alemão e em português. Fundou o Brado do Sul, colaborou no Jornal do
Comércio, o Rio-Grandense, A Reforma. Fundou também a Koseritz Deutsche Zeitung, o espaço
onde mais expressou seu germanismo. Dele também eram a Gazeta de Porto Alegre e o Koseritz
Deutsche – Kalender, um almanaque em alemão. Fazia, em todos esses veículos, um germanismo
espontâneo e familiar (CESAR, 1971, p. 255).
Todos os brummers que permaneceram na comunidade alemã imigrante são apontados
como “importantes agentes na divulgação do germanismo” (SCHREINER, 1996, p. 43), mas
Koseritz tornou-se o mais reconhecido nesse papel.
70
3 – OS IMIGRANTES ALEMÃES NO ROMANCE SUL-RIO-GRANDENSE
3.1 – A divina pastora
Vinde para o nosso teto que ansioso vos espera, porque ele se tem
acostumado a ouvir os vossos nomes ligados um com o outro!
Vinde, meus filhos!
Caldre e Fião
Miinha proposta de trabalho levou-me a estudar o primeiro romance gaúcho, A divina
pastora. Foi interessante descobrir que na obra que inicia o gênero entre os literatos do Rio
Grande do Sul encontra-se uma visão sobre os germânicos moradores de São Leopoldo.
O romance é do escritor José Antonio do Vale, que mais tarde se designaria
simplesmente de Caldre e Fião
19
. É o seu primeiro livro de ficção, tendo sido publicado em 1847.
Pouco tempo depois publicaria outro, O corsário, em 1851. O autor era um gaúcho que vivia na
corte, no Rio de Janeiro, e foi que publicou A divina pastora. A primeira edição manteve-se
como a única edição até o ano de 1992, quando a RBS promoveu a segunda, num trabalho do
qual participaram o professor Flávio Loureiro Chaves, que fez o ensaio crítico, notas e fixação do
texto, e o jornalista Carlos Reverbel, que fez o ensaio biográfico.
O fato de a segunda edição da obra ter demorado tanto tem a ver com a história incrível
que cerca esse romance pelo seu desaparecimento. Havia notícias de que ele existira, porém não
19
Segundo Reverbel (CALDRE E FIÃO, 1992, p. 237), “em fins de 1849, ele acrescentaria ao nome de família os
apelidos Caldre e Fião, palavras de feição inusitada, mas com raízes na toponímia lusitana.”
71
se conseguia encontrar nenhum exemplar. Guilhermino Cesar bem que o tentou quando
pesquisou a literatura gaúcha para escrever o livro História da Literatura do Rio Grande do Sul,
publicado em 1956, todavia não o localizou. Por isso, na introdução de sua obra fez um apelo aos
leitores como mais uma tentativa de achar o romance:
E o que me pesa é ainda ter escrito esta história antes de encontrar, após alguns anos de
afanosa busca, certos livros de alto valor documental ou histórico. Por exemplo, não
consegui sequer localizar o primeiro romance rio-grandense, A Divina Pastora, de
Caldre e Fião, sem embargo de ter feito o impossível para isso. Espero que algum leitor
magnânimo me dê esse prazer (CESAR, 1971, p. 22 -23).
Tempos depois, a história desse romance seria modificada e o responsável por isso seria
o livreiro Adão Fernando Monquelat, de Pelotas, Re oas a zens et,8-9.83821(o)6.5696262(p)6.5655(e)1v71568(q)-3.71693(u)z89(z)-1.eSeesLiaeo
72
Ao dirigirmos nosso olhar para o processo de construção do gênero, o que encontramos
nesta obra, em termos de estrutura e de conteúdo informativo, pode ser um defeito em relação ao
paradigma do romance do mundo urbano plenamente configurado. No entanto, é preciso dirigir-
lhe o olhar de uma perspectiva histórica: quando ele foi escrito, lia-se de tudo e havia poucos
livros para se ler num Brasil que ansiava por construir seus próprios padrões culturais. Nesse
sentido, o romance, que seria um espaço para narrar, também servia de espaço para dissertar,
opinar, informar. Além disso, notemos que, pela descrição do espaço, pelo uso do nome “pastora”
e pela construção das personagens, especialmente as femininas, o romance também se caracteriza
pelo aspecto pastoral, tributário da tradição classicista pré-romântica.
A época de ambientação da história narrada é a da Revolução Farroupilha, episódio
histórico do Rio Grande do Sul que ocorrido de 1835 a 1845. No cotejo dessa imagem do
passado, uma visão sobre o modo de ser da sociedade da província de São Pedro do Rio
Grande naqueles tempos, incluindo a etnia alemã, uma descrição da paisagem, um desenho dos
caminhos de acesso que formavam a região compreendida entre São Leopoldo e Porto Alegre,
bem como uma exaltação à bravura, à consciência de nacionalização e à virtude dos habitantes da
província. Nesse sentido, é um romance escrito sobre o presente na época, visto que a escritura
acontece quando as coisas ainda existem e o tempo dos fatos históricos representados, embora
represente alguns anos antes, é o tempo de existência do escritor. Assim, diferencia-se do
romance histórico, tipo de narrativa que traz algo não experimentado pelo autor, algo que não é
do seu tempo.
Predominam no enredo as ações de pessoas de origem lusa, porém, atento ao novo que se
apresentava no processo de colonização da terra, dado pelos germânicos ali instalados pouco
mais de vinte anos, o autor coloca uma família de imigrantes em relação direta com as
personagens do plano principal, como o Almênio, um destemido guerreiro farroupilha, e Edélia, a
própria divina pastora. Nesse sentido, observamos que o pouco tempo da presença alena
província rio-grandense já havia sido suficiente para, na visão de Caldre e Fião, serem os alemães
considerados moradores integrados ao sul tanto quanto os demais. Assim, o primeiro romance
gaúcho, e um dos primeiros nacionais, representa o imigrante alemão como parte integrante da
sociedade e do espaço territorial do Rio Grande do Sul.
A divina pastora é Edélia, uma jovem muito bela que ocupa a centralidade da história.
Apaixonada pelo primo Almênio, um tenente republicano que, depois de uma revisão de
73
consciência, resolve passar para os lados dos imperiais
20
, não vem a tê-lo como marido, porque
ele conhece Clarinda, filha do velho Hendrichs, imigrante alemão no vale do Sinos, e passa a
amá-la, casando-se com esta.
Além de Clarinda atuar na história como definidora do rumo da relação amorosa entre as
personagens principais, Edélia e Almênio, ocupando ela mesma o lugar da protagonista no
coração do militar, o autor ainda atribui importância aos imigrantes alemães pela da apresentação
que faz da família do velho Hendrichs, das menções a Werner, açougueiro em São Leopoldo; a
Rosinha, moradora de São Leopoldo, a qual também vem a desejar casar-se com Almênio, e da
incorporação ao enredo de uma história narrada por Almênio sobre um menino campeiro punido
por um alemão proprietário de terras nas redondezas de São Leopoldo. Segundo o episódio
narrado, este alemão, dono de um terreno sem cerca, mas divisado por ele, considera uma invasão
indevida a entrada de um menino de nove anos em suas terras para campear o gado de seu patrão
e manda açoitá-lo cruelmente. Anos mais tarde, o menino, que se tornara um homem, volta ao
local para vingar-se, matando o seu agressor.
Apesar da importância evidente de todos os assuntos abordados no romance, destaco neste
texto o mundo germânico nele presente. Para tanto, organizo o que está representado nas cinco
categorias definidas na “Introdução”, quais sejam, Família, Trabalho, Religião, Espaço e
deslocamento e Contatos. Lembro que o destaque ao assunto e a escolha de categorias serão
realizados em todos demais romances aqui estudados, pois constitui a forma de organização do
presente estudo.
3.1.1 - Família
Caldre e Fião coloca-nos diante de uma família alemã de origem nobre que se fixa em São
Leopoldo e passa a viver na maior simplicidade possível, integrando-se sem demora ao meio,
também simplesl.
20
Assim Almênio explica sua mudança: “Entrei no exército do Imperador, liguei-me à causa da minha pátria, porque
a liberdade não está naquele que a pronuncia todos os dias mas no mais reto e naquele que sabe melhor fazer
respeitar e sustentar os seus deveres e os seus direitos”(CALDRE E FIÃO, 1992, p. 144). Caldre e Fião, a julgar pelo
seu romance, posiciona-se contrário aos ideais e à luta dos revolucionários farroupilhas. Assim, promove essa
passagem de Almênio do lado dos farroupilhas para o lado dos imperiais, tratando isso como uma atitude correta,
que eleva o caráter do guerreiro, uma vez que reconhece o dever e o direito de lutar pela sua pátria, no caso o Brasil.
74
A família é a Hendrichs, constituída pelo pai, a filha Clarinda e o filho Antonico. A mãe
havia morrido, estando os filhos, portanto, a cargo do pai. Contudo, não lhe davam maiores
trabalhos, pois eram “ambos parcos pela boa educação recebida” (CALDRE E FIÃO, 1992, p.
158)
21
. Emigrados da Prússia, Hendrichs era “amigo e companheiro de dois grandes reis da
Prússia, tinha sido galardoado com o título de Marquês e servira com uma devoção nobre e sem
exemplo” (p. 85). tima de intrigas, conflituara-se com seu amo, razão por que julgara por bem
expatriar-se com sua família e seus poucos bens. estabelecido em São Leopoldo, esquecera-se
da vida na corte e concentrava-se na educação de seus dois filhos.
Os germânicos não eram nobres, nem nobreza era a ex
75
verdade é que a nação brasileira ainda era considerada bárbara aos olhos europeus, especialmente
aos ingleses, porque se mantinha o tráfico de escravos, “imagem esta bem oposta à feição
civilizada que o Império brasileiro sempre procurou passar” (SCHWARCZ, 1999, p. 101).
Portanto, apesar da vontade de dom Pedro II, o Brasil estava longe de ter a pretendida nobreza
nos moldes europeus.
Na primeira referência a Clarinda, Caldre e Fião sugere algumas características familiares
que orientavam a relação entre pai e filha, do que podemos depreender o anúncio de
comportamentos construídos segundo um padrão educacional de nobres, por certo idealizado, que
faz da jovem um modelo de heroína romântica: “Virgem que levantara-se aos primeiros anúncios
da aurora e aos cantos do canário que cativara com seus lacinhos de retrós e que conservava em
gaiola de arame feita pelas destras mãos de seu pai. Era Clarinda. Bela como a beleza, dardejava,
sem querer, a vida, o encanto e o prazer a todos os entes e ainda mesmo aos insensíveis” (p. 31).
Ao se dirigir, bem cedo, para o vale do moinho pela planície, ao convite do rumor das águas, ela
se depara com Almênio sendo tomada de imediato por sentimentos desconhecidos. Fica
apaixonada, sente o amor despertar e, pela relação harmoniosa com o pai, confidencia-lhe o que
se passa em seu íntimo. Assim é narrado: “dirigiu-se pois a ele, e abriu-lhe o mais recôndito
interior de seu coração. Hendrichs já tinha, antes de ouvi-la, tudo adivinhado” (p. 31).
Almênio é um rapaz “magro, de longos cabelos louros caídos em cachos sobre seus
ombros”(p. 29). Nascendo o amor também em Almênio, este passa a visitar a casa e a ter
momentos de convívio com os moradores. O narrador, em certo momento da história, retrata o
pensamento de Almênio relativo à família de Hendrichs: “Seria feliz, se unir-se pudesse, em
laços sagrados e indissolúveis, a essa família nobre, honrada e sem a menor mancha do aviltado
opróbrio” (p. 68). Esta família logo o considera um novo filho, dispensando-lhe o amor e o
carinho próprios de uma relação dessa natureza.
Tanto entre o pai e Clarinda como entre estes e os demais habitantes do local, a língua
usada pelos alemães no romance é o português padrão. Portanto, não é mencionado qualquer
problema relativo à comunicação verbal entre as personagens em ão. O elemento lingüístico é,
pois, um dos indicadores da integração imaginada pelo romancista da família imigrante à
sociedade gaúcha.
Outro elemento a sugerir isso é a comida servida na casa de Hendrichs. Em certa ocasião,
ocorre um almoço típico gaúcho: “(...) Clarinda punha o almoço sobre a mesa, que compunha-se
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de churrasco, de um frango ensopado, de algumas ervas, de abóbora com leite e do indispensável
mate. Era uma refeição frugal, um alimento rio-grandense” (p.80). Também o mate, bebida
tradicional dos gaúchos, é um hábito na casa. Clarinda o serve a Almênio na primeira visita que
este lhes faz. Diz o narrador que “ela obedecia aos usos do país hospitaleiro que recebera em seu
seio sua exilada família” (p. 35).
Nessa família, a filha aprende dotes artísticos comumente repassados às moças de famílias
mais refinadas, como o desenho e o bordado. Ao apresentar-se por esses meios ao futuro marido,
Clarinda expõe uma leitura de importantes regiões e fatos históricos do Rio Grande do Sul na
época. Dentre os quadros, um desenho que representa a cidade de Porto Alegre submetida à
Revolução Farroupilha, contendo a inscrição Dia 15 de junho de 1836 Reação contra os
rebeldes. Em outro encontra-se a vila de Rio Pardo, com seus rio Jacuí e rio Pardo, também em
momento de guerra, quando, em 30 de abril de 1838 o exército brasileiro, comandado pelo
marechal de Campo Sebastião Barreto Pereira Pinto e pelos brigadeiros Calderon e Cunha, foi
derrotado pelo exército republicano rio-grandense, que estava a mando do general Neto e do
brigadeiro Bento Manoel Ribeiro. Outro mostra a cidade do Rio Grande, com seu porto, suas
poucas ruas, a população e a igreja de São Pedro; ainda outro, incompleto, representa as Missões.
Nisso está sugerida mais uma evidência de que os alemães, no modo de pensar do autor,
interessavam-se, com empenho, pelas coisas daqui, valorizando-as e interpretando-as.
3.1.2 – Trabalho
Pelos discursos do velho Hendrich, a idéia de trabalho é relacionada à de dever. Como por
exemplo, prestes a casar-se com Clarinda, Almênio, ainda na casa da noiva, recebe esta ordem:
“Por ordem de Sua excelência, o Sr. General Comandante-em-Chefe do Exército, tem o corpo a
meu comando de marchar para a fronteira, a fim de entrarmos em operação com as forças
rebeldes; o que comunico a Vossa Mercê para apresentar-se quanto antes neste quartel e seguir o
dito destino com a sua companhia”(p. 165).
Para se apresentar e lutar pelas tropas imperiais, que é o seu trabalho no momento, visto
ser um capitão do exército, Almênio ouve estas palavras do alemão: Todo homem está
subordinado ao dever; e o dever do soldado lhe impõe a obrigação de correr imediatamente ao
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primeiro grito da pátria em perigo; aquele que o satisfaz o dever não tem jus aos privilégios e
garantias que a ele seguem”(p. 166). A esse dever ficam submetidas outras vontades e até mesmo
o dever de família, ao qual assim se refere o Hendrichs: “A família está contida na pátria!”(p.
166), que quer dizer, naquelas circunstâncias, no trabalho.
Essa vinculação do dever (trabalho) ao chamado do exército pode ser entendida como um
elemento que caracteriza a construção da personagem Hendrichs, porque é oriunda de um Estado
germânico (Prússia) no qual o exército era forte e bem constituído, e, ainda, participava da
nobreza, a quem o exército servia.
Não maiores referências ao trabalho alemão no romance. A família Hendrichs vive no
povoado, onde cultiva uma horta para uso próprio. Não são apresentados nem como colonos nem
como artesãos, as categorias que mais se sobressaíram dentre os primeiros imigrantes alemães
que se fixaram em São Leopoldo.
3.1.3 - Religião
O casamento de Clarinda com Almênio fornece-nos a informação de que a família alemã
segue a religião católica. É o vigário da vara de Porto Alegre, cônego Thomé Luiz de Sousa,
quem dá a licença, em nome do Juízo Eclesiástico, para os dois se casarem. No contexto histórico
da época, em São Leopoldo isso era uma exceção, pois a religião mais seguida pelos imigrantes
germânicos era o protestantismo.
Num dos quadros feitos por Clarinda, mostrado ao noivo em sua casa, está a pequena
cidade de Rio Grande, com sua praia, navios, muitas pessoas circulando e a igreja de São Pedro,
de onde sai uma família, “mostrando em suas faces a mais pura hospitalidade que caracteriza os
bons habitantes deste lugar e os torna amados de todos os estrangeiros”(p. 163). Podemos
perceber que essas características atribuídas às pessoas rio-grandenses representadas ligam-se ao
seguimento e à prática da católica, segundo a leitura da personagem Clarinda, que as fixa em
seu trabalho artístico.
Uma cena de devoção acontece quando Almênio sai da casa do velho Hendrichs para
cumprir ordens do Exército Imperial de lutar na fronteira contra os farroupilhas. Então, a jovem
alemã ajoelha-se em frente a uma imagem de Jesus Cristo crucificado, faz preces e chora, no que
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é acompanhada pelo seu pai. Esse comportamento pio reflete-se na postura familiar que orientava
a vida desses imigrantes, sempre dedicados um ao outro, convivendo em harmonia e cultivando
um clima de respeito e apoio mútuos.
Aos de fora também são dispensadas essas atitudes, na medida em que são bem recebidos
os que chegam àquela casa; mesmo quando o visitante demonstra não ter caráter, o velho
Hendrichs, ainda que seja de seu direito praticar algum ato de justiça, apela à religião para que
conceda ao aventureiro um castigo merecido. Assim o faz quando Francisco, conhecido homem
de má fé para com as famílias e, principalmente, com as moças, entra na casa dos alemães e passa
a ser cortesmente tratado, até que Ávila, o amigo da família, chega para uma visita de domingo,
encontra-o e expulsa-o dali à força, como castigo à audácia do famoso aproveitador. Então, o
velho Hendrichs: “- Deixai-o ir em paz e Deus que o julgue!” (p. 168).
O casamento dos jovens alemães Rosinha e Teodoro também é realizado segundo os
rituais da religião católica, sob as bênçãos de um padre, como nos informa o narrador: “Eram dez
horas do dia, depois da missa de Domingo, quando o Reverendo Pároco lançou a benção nupcial
aos dois noivos. Rosinha suspirou neste momento profundamente e Teodoro cheio de alegria
levantou-se para abraçar sua esposa como se não acreditasse na felicidade que tinha, como se
temesse que a realidade lhe fugisse” (p. 156).
Como aparece num dos fragmentos do romance copiados no próximo item deste capítulo,
que tratará dos espaços e deslocamentos, existiam em São Leopoldo, além da igreja católica, que
é a referência de das personagens, duas casas onde se realizavam os cultos protestantes. De
fato, na época do Império os protestantes podiam realizar seus cultos e outras cerimônias
religiosas em casas particulares, não em templos como os que havia em seus reinos germânicos
de origem. Essas casas não podiam ter nenhuma sinalização de igreja (torre, sino, cruz), nenhum
sinal externo de lugar de culto, o que era reservado à Igreja Católica. Tal determinação estava
expressa na Constituição imperial, como explica Telmo Lauro Muller (1998, p. 246), que também
transcreve o artigo da lei disciplinadora:
Antes de 1824 toda a Província professa a religião católica, a religião oficial estatuída
no artigo da Constituição Imperial de 25 de março de 1824: “A religião católica
apostólica romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão
permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casa para isso destinadas, sem
forma alguma exterior de templo”. Com esse artigo já foi confrontada a primeira leva de
imigrantes, porque, dos 39 componentes 33 eram evangélicos.
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Nenhuma personagem é protestante, ou seja, o catolicismo orienta a sua vida espiritual.
Nesse sentido, seguem a oficialidade religiosa do país que os recebeu, sendo esse mais um dos
elementos que os distanciam de conflitos com os luso-brasileiros. Além disso, a piedade com que
agem no dia-a-dia fá-los bons e amigos de todos.
3.1.4 - Espaço e deslocamento
Os espaços principais onde os fatos narrados acontecem são em São Leopoldo e Porto
Alegre, havendo deslocamentos para Viamão, Passo da Cavalhada e Belém Velho. No entanto, o
espaço onde os alemães estão ambientados é apenas São Leopoldo.
Na primeira referência aos alemães a apresentação realista de um espaço, a rua do
Paço, onde havia um açougueiro chamado Werner. O narrador, no dia 10 de fevereiro de 1832, ao
final da tarde, acompanha Rosinha, jovem alemã, até a vila: “No dia 10 de fevereiro de 1832,
quando o sol declinava em sua marcha, vi a bela Rosinha, e acompanhei-a até São Leopoldo,
onde morava, na Rua do Paço, de fronte de um açougueiro chamado Werner” (p. 30).
Caldre e Fião inclui em seu discurso a explicação sobre a criação de São Leopoldo,
retomando a história do local onde se fixaram, em 1824, os 38 alemães que deram início ao
processo de colonização da província do Rio Grande de São Pedro, assistida, então, pelo governo
imperial. O lugar chamava-se “Feitoria do Linho-Cânhamo”, mas, com a destinação das terras
aos recém-chegados da Alemanha, passa a se chamar “colônia alemã de São Leopoldo”, por
determinação do imperador dom Pedro I e em homenagem à imperatriz dona Leopoldina, sua
esposa. O autor assim descreve a colônia:
Na margem oposta em que ela está assentada começam as habitações dos colonos
alemães que, estendendo-se por uma vasta porção de terreno, vai terminar na encosta da
serra geral e para as bandas do Fachinal e Pinhal, tomando o nome de Colônia de São
Leopoldo. As línguas alemã e portuguesa são faladas simultaneamente até pela baixa
classe do povo. Existiam aí, em 1834, duas casas destinadas ao culto particular do
Protestantismo, da religião luterana; duas escolas alemãs, uma das quais freqüentei pelo
curto espaço de dois meses; e uma aula nacional. A indústria alemã, levada pelos
colonos, prospera sem entraves, no meio de uma liberdade constante que é partilha dos
brasileiros e que a ele bafeja agradavelmente. A agricultura, essa primeira mãe da
felicidade dos homens, única e verdadeira riqueza dos estados novos, é exercida pelos
seus habitantes e de seus contornos com admirável desenvolvimento. Entre alguns dos
colonos, expatriados de sua terra por motivos talvez bem justos, encontra-se uma pura e
adiantada ciência; conversei com muitos que conheciam de perto as ciências físicas, as
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matemáticas, a história natural, as ciências morais e muitas aplicações desses
conhecimentos abstratos aos usos da vida, como, por exemplo, um que tão bem me
desenvolveu a causa da elasticidade dos gases e de sua aplicação às máquinas de
navegação e outros princípios da mecânica que me maravilhou a ponto de acreditar ser
ele, como apregoavam, filho de um conde alemão, cujo nome é bem conhecido nos
gabinetes políticos da Europa (p. 153).
Essa descrição pormenorizada ainda inclui a localização geográfica da vila, à margem do
rio dos Sinos, quinze léguas acima da boca que o deságua no Guaíba. Suas casas são de estilo
gótico, possui uma pequena igreja católica (notemos a referência ao espaço usado pelos
protestantes, as casas, como mencionei no item anterior: “Existiam aí, em 1834, duas casas
destinadas ao culto particular do Protestantismo, da religião luterana”). Não edifícios públicos
e caracteriza-se pela simplicidade e alegria.
Num dos momentos da narrativa em que o autor se preocupa mais com o real do que com
a ficção, confirmando o caráter didático que convive com a imaginação na história construída,
Caldre e Fião faz uma nota de rodapé (p. 153) para acrescentar dados referentes a São Leopoldo:
“Esta povoação foi elevada à categoria de vila em virtude da lei provincial nº 4 do 1 de abril de
1846, cujo Projeto foi apresentado sob 7 à Assembléia Provincial desse mesmo ano, assinado
pelos deputados J. Rodrigues Fagundes, Dr. Luís da Silva Flores, Patrício Corrêa da Câmara,
Manoel José de Freitas Travassos Filho, Jacintho da Silva Lima, Oliveira Bello, João Capistrano
de Miranda e Castro, Ignacio Joaquim de Paiva Freire de Andrade.”
Como mencionei no início deste capítulo, a existência de tantas notas do autor a explicar o
mundo real sobre o qual ele assentou a história imaginada revela que A divina pastora é uma
forma imatura de romance do ponto de vista da fidelidade histórica. Há uma indistinção entre
ficção e jornalismo ou texto informativo, algo eloqüente da sua condição, da maturidade ou
imaturidade do sistema, da recepção.
Na vila enfocada no romance mora a família Hendrichs, a principal de origem alemã
representada nesta narrativa, para a qual Almênio se dirige quando ainda guerreiro farroupilha e,
adormecido, é encontrado pela jovem Clarinda próximo do moinho. Acolhido na casa do velho
alemão, este o convida a repousar e esconder-se de um grupo de caramurus - soldados do
imperador.
A casa fica no topo de um grande morro e parece ser simples, como seus moradores. É
pequena e tem uma laranjeira e uma horta, “onde couves, alfaces e ervilhas recebiam a pequena
cultura de seus habitantes’ (p. 34). Nada ali excede ao necessário, representando a sobriedade do
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estrangeiro que acompanha a colonização alemã. Os móveis também são simples e mostram um
gosto diferente, esquisito. Chamam a atenção dos que ali entram a boa ordem dos objetos e o
asseio do lugar.
O lugar dos imigrantes fica, como vimos, restrito a São Leopoldo, que se apresenta com a
arquitetura e a organização dadas pela cultura dos alemães. A atmosfera que por ali paira, no
entanto, não é um exclusivismo dos estrangeiros, pois suas relações são construídas com os luso-
brasileiros e os modos de ser de ambas as etnias se aproximam e se harmonizam.
Tramontini (2003) apresenta dados referentes à povoação de São Leopoldo na década de
1830, os quais indicam que uma parte significativa da população era formada de luso-brasileiros.
Do ofício que o piloto Miguel Gonçalves dos Santos envia ao presidente da província em 1833,
quando lá está trabalhando na medição e coordenação do arruamento da povoação, retira a
informação de que São Leopoldo contava “com 108 casas brasileiras, das quais 86 estavam
arruadas e 22 eram dispersas, e 113 casas de alemães, com 90 arruadas e 23 dispersas, possuía
ainda uma igreja católica e outra protestante, oficinas com muito bons mestres, na povoação, e
bons lavradores, na colônia. Chamam atenção os dados que afirmam ser expressiva, na povoação,
a população de nacionais” (p. 208).
3.1.5 - Contatos
O contato dos alemães com as pessoas originárias do local é revelador de integração
harmoniosa, visto que são corteses, admiradores dos comportamentos dos outros e desprovidos
de preconceitos. No reencontro de Almênio e Clarinda observamos isso: “Clarinda apenas viu
que os dois cavaleiros se tinham apeado junto à sua casa e reconheceu Almênio, correu para ele e
precipitou-se em seus braços, apertou-o com efusão de ternura e deu-lhe um beijo na face” (p.
157).
O pai de Clarinda, Hendrichs, caracterizado como um generoso ancião, não cultiva
nenhum preconceito em relação ao brasileiro Almênio, fazendo questão que sua amada filha se
case com ele: - Meu pai me ensinou a amar-vos. (..). Ele me assegurou que havíeis de ser meu
marido” (p. 157). O próprio Hendrichs, aproximando-se dos dois que estão abraçados, diz:
Meus filhos! (...). Deus vos lance a sua santa bênção! Deus vos guie à virtude que unicamente faz
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a felicidade da gente! Vinde para o nosso teto que ansioso vos espera, porque ele se tem
acostumado a ouvir os vossos nomes ligados um com o outro! Vinde, meus filhos! Minha testa
enrugada se expande pela alegria que me causa a vossa felicidade” (p. 157-158).
Assim, o casamento de Clarinda com Almênio, um brasileiro, é motivo de completa
felicidade para a família alemã. Na casa de Bernardo, pai do noivo, ocorre a festa, que dura três
dias e para a qual é convidada toda a vizinhança. Incluindo na comemoração uma forma típica do
gaúcho se divertir: um fandango, proporcionando, assim, grande alegria a todos. Clarinda, “a
inocente menina filha do velho Hendrichs, que neste dia solene havia dado a o de esposa ao
generoso Almênio” (p. 206). Almênio, por sua vez, era feliz havendo realizado o pensamento
mais nobre de sua alma, isto é, casando com a interessante Clarinda”(p. 206).
Clarinda é uma mulher virtuosa, inocente, terna, caridosa. Com esses atributos, seus
contatos são sempre amigáveis, seja ao receber amigos, seja ao colocar-se ao lado de Edélia, que
sofre na solidão, mesmo sabendo que esta ama Almênio.
Com Edélia constrói fortes laços de amizade, a ponto de visitá-la, com o marido e a filha,
na aldeia onde passara a morar depois de se decidir pela reclusão em virtude da não-realização no
amor. Chega a inventar, juntamente com Almênio, uma festa de aniversário para Edélia, para a
qual todos da aldeia são convidados, até mesmo o sacerdote, que reza missa para a aniversariante.
Nessa ocasião, Clarinda distribui chitas e algodões tecidos para roupa, ajuntando em nome de
sua filhinha brincos, lenços de seda e muitos objetos miúdos às raparigas e outros aos rapazes”(p.
231). Isso tudo recebem os pobres da aldeia, num gesto caridoso da alemã.
Edélia reconhece em Clarinda a sua melhor amiga e do velho Hendrichs recebe também
muita atenção. Este, numa atitude pica de quem se sente familiar, visita-a na aldeia. Vendo
todas as obras que Edélia faz no local, tanto de estrutura quanto de caridade, diz-lhe: “- deus vos
recompense, minha menina, por todos os vossos atos... Ele de recompensar-vos... de
lançar-vos a sua infinita e misericordiosa benção...”(p. 232). Filha e pai, assim desprendidos de
interesses, demonstram serem exemplos de pessoas regradas pela sinceridade, humildade e
altruísmo, sendo guiados por uma forte religiosidade que os leva a se empenharem a estar em
conformidade de sentimentos com os outros.
Rosinha é outra alemã moradora de São Leopoldo, que vem a nutrir também amor por
Almênio. Ela espera “dois anos, cinco meses e dois dias! Tanto te esperei! Pensei que não
voltasses!” (p. 154), mas não se revolta diante da opção do gaúcho de casar-se com outra sua
83
patrícia. Mostra-se compreensiva e deseja o bem do casal. Esta jovem alemã também é virtuosa e
sua família deseja que se case com um moço alemão de sua aldeia. Como Almênio se casaria
com Clarinda, Rosinha aceita o apelo dos pais e casa-se com Teodoro. A festa realiza-se na casa
do alemão Asmus.
O sobrenome Asmus faz referência direta a pessoas que de fato existiram na colônia.
Carlos Herique Hunsche, em seu livro O biênio 1824/1825 da imigração e colonização alemã no
Rio Grande do Sul (Província de São Pedro), registra que chegou a São Leopoldo em dezembro
de 1825, avulso, João Frederico Asmus, que fora chamado para ser soldado do Império, mas foi
recusado para o serviço militar. Então, servira como voluntário na Guerra Cisplatina em 1825.
A família do velho Hendrichs é amiga também dos Ávila, uma tradicional família de
portugueses. O jovem Ávila é quem providencia a documentação para o casamento de Clarinda:
“- Estão dadas as justificações, acudiu Almênio, o nosso amigo Ávila de tudo se encarregou,
durante o tempo que esteve em Porto Alegre; eu fui esperá-lo perto da cidade e, quando veio,
tudo trazia pronto”(p. 161). Chega à residência dos alemães em companhia de Almênio, quando
este fica noivo de Clarinda. A confiança que se estabelece entre Ávila e os Hendrichs é tamanha
que este faz visitas, a pedido insistente de Clarinda, à família enquanto Almênio permanece
lutando com as tropas imperiais, para as quais tinha sido convocado no momento em que acertava
o casamento com Clarinda: Vinde, senhor Ávila, disse Clarinda, tornar menos amarga a longa
ausência do virtuoso Almênio” (p. 166). Numa dessas visitas de domingo, surpreende o covarde
Francisco, que chegara à casa dos Hendrichs com a intenção de se aproximar como amigo mas
aproveitar-se da jovem filha, como o fizera com tantas outras famílias. Dessa forma, Ávila
passa a velar sobre a habitação de Clarinda.
O velho Hendrichs mantém bom relacionamento com o velho Ávila, pai do jovem Ávila;
com o velho Lessa, antigo conhecido de Almênio; com Paulo, pai de Edélia, e com Bernardo, pai
de Almênio, todos senhores de famílias tradicionais luso-brasileiras da região de Porto Alegre.
Após a festa de casamento de sua filha, estes permanecem juntos, na casa de Bernardo, por mais
alguns dias. Numa ocasião em que passeiam no campo, decidem fazer algo para simbolizar a
sólida amizade que existe entre eles. É o alemão que sugere, para tanto, plantar árvores, e assim o
fazem, dando ao local plantado o nome de “Pomar da Amizade” e, à estrada que conduz a casa,
“Caminho dos Amigos”.
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Se houve intenção do autor de representar a hostilidade a que o mundo real,
possivelmente, assistia entre o estrangeiro e o nativo, ele julgou por bem distanciar o fato do
enredo principal, fazendo aparecer como um caso destes “que se conta por aí”. Dessa forma, por
meio de um outro discurso é formulado um conceito negativo sobre o alemão, ficando
subentendidas as idéias de grosseria, de não-familiaridade com os costumes e códigos dos
estancieiros gaúchos. Trata-se da história contada por Almênio do menino de nove anos que entra
nas terras de um alemão e é por este castigado:
- Se o víssemos, continuou Almênio, nós que somos Rio-Grandenses compreendê-lo-
íamos e o respeitaríamos; mas um estrangeiro!... Oh! Um estrangeiro não o podia
compreender. Ele estava a serviço de um seu parente e, no empenho de recolher-lhe o
gado que se derramava na extensão das planícies e matas, esforçava-se com o maior
zelo em cumprir a sua missão. Um dia atravessou além dos marcos de divisa do campo
de seu amo e penetrou na estância de um alemão. (...) O alemão estranhou-lhe um ato
bem indiferente entre nós que jamais suscitaria uma dúvida entre estancieiros da nossa
nação. (...), mandou amarrá-lo pois a uma árvore e deu-lhe nove vergalhadas. (p. 109)
Como vemos, é uma diferença de culturas que o autor não se esquece de representar, algo
inerente a uma sociedade partilhada por nativos e estrangeiros. No entanto, são os aspectos
relativos ao que não difere, mas que se soma à formação dessa sociedade, que recebem a atenção
principal no enredo.
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3.2 – Frida Meyer
Frida recapitulava a sua existência e previa-a agora
mais áspera e árdua.
Vivaldo Coaracy
Frida Meyer, obra de Vivaldo Coaracy, conta uma história sobre alemães moradores de
Porto Alegre, cuja publicação se deu em 1924, o ano do centenário da imigração alemã no Rio
Grande do Sul. Pelo que sabemos, foi o único romance que, na ocasião, abordou a temática da
presença alemã no estado. Curiosamente, o autor não tinha origem gaúcha, era do Rio de Janeiro,
onde nascera em 1882, e veio para Porto Alegre em 1905, depois de ter frqüentado a Escola
Militar aqui, permanecendo por quinze anos. Seu interesse era trabalhar no sul, ganhar a vida.
Em Porto Alegre, conviveu de forma próxima com o cleo teuto-gaúcho: “Eu tivera
ocasião, por circunstâncias especiais, de manter contato direto com aquele meio, de conhecê-lo
de perto, de observar pelo avesso muitos de seus aspectos” (COARACY, 1962, p. 190). As fortes
impressões que essa convivência lhe deixou na memória levariam-no, mais tarde, a tomar a
sociedade germânica que conhecera na capital como assunto de sua ficção. Disse ele: “Possuía
todos os elementos para construir o romance que imaginara. (...). Foi assim que nasceu Frida
Meyer” (COARACY, 1962, p. 190).
O que lemos em Frida Meyer é, efetivamente, a subjetividade criada com base na
observação direta que o escritor fez do real, como ele mesmo testemunha:
Sou dotado, felizmente, de faculdade de observação fotográfica e possuo boa
memória. O cenário material eu o tinha bem presente. Os personagens, criei-os fundindo
num as características, que não fossem incompatíveis, de dois ou três indivíduos
reais; o entrecho, formei-o coordenando em cadeia episódios distintos, casos
esporádicos. A isto se limitou o trabalho de imaginação, porque minha fantasia criadora
é fraca. Aproveitei a oportunidade para inserir observações pessoais, minhas, sobre essa
peculiar sociedade teuta da capital rio-grandense. (COARACY, 1962, p. 190).
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O romance foi escrito e editado, mas não circulou entre a população. Não obteve nenhum
êxito, nem alcançou repercussão, confessa Coaracy (1962). Foi publicado pela editora de
Monteiro Lobato às vésperas da falência da empresa, o que se constituiria na causa do
aniquilamento do projeto literário de Coaracy, como ele mesmo explica:
O meu romance foi, creio, a última publicação da Editora Monteiro Lobato antes da
falência em que submergiu a empresa. O trabalho nem chegou a ser lançado
propriamente no mercado. A quase totalidade da edição foi arrolada entre os bens da
massa falida (...). Além disso, era livro de autor desconhecido. O seu desaparecimento
em meio do fragor da falência sensacional passou despercebido. A crítica dele não
tomou conhecimento. Apenas Sud Menucci, em rodapé do Estado de São Paulo, dele se
ocupou muito favoravelmente, apontando-lhe qualidades. Caiu sobre a obra um silêncio
sepulcral e a edição desapareceu não sei como. Muitos anos mais tarde, por acaso, no
Rio de Janeiro, descobri meia dúzia de exemplares, puídos pelo tempo, numa
liquidação de alcaides da Livraria Freitas Bastos. Comprei-os (COARACY, 1962, p.
192-193).
Depois disso, houve apenas mais uma manifestação de interesse pelo romance, de parte de
uma editora paulista, que procurou Coaracy e expôs o desejo de reeditar a obra, a qual faria parte
de uma de suas coleções. No entanto, quando o escritor já havia preparado os originais para o
novo trabalho, a editora comunicou-lhe que havia decidido incluir na coleção somente obras
inéditas (COARACY, 1962). Por esses fatos, Frida Meyer foi uma aventura terminada em
naufrágio, analisa o escritor. Apesar da reduzida circulação, um e outro exemplares de Frida
Mayer ainda existem. Seria um romance quase deconhecido não fossem algumas poucas pessoas
o terem lido.
O tema abordado na obra eram fatos e modo de vida que ainda, até as primeiras décadas
do século XX, não haviam sido incluídos com assiduidade na historiografia, apresentando-se,
então, como ineditismo na literatura gaúcha. A respeito, o próprio testemunho de Coaracy
sobre não conhecer outra obra sobre a sociedade germânica de Porto Alegre que antecedesse a
sua. Eram, portanto, senão ausentes, esparsas as representações da etnia alemã povoando o
imaginário gaúcho formado pela escrita artística.
Cronologicamente, pelas informações que obtive, Frida Meyer é o segundo romance da
história da literatura sul-rio-grandense a narrar acontecimentos imaginários de alemães,
antecedido, como vimos, por A divina pastora. Diferencia-se deste seu antecessor por focar
personagens de origem alemã, com suas ações, seus modos de ser e de agir, na centralidade do
enredo. Nesse sentido, Caldre e Fião fez a personagem feminina alemã se destacar pelo
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relacionamento amoroso com um nativo, numa história sobre gaúchos, aopasso que Vivaldo
Coaracy salienta a personagem masculina nativa pelo relacionamento amoroso com uma
estrangeira, numa história sobre alemães. Temos, então, entre os dois primeiros autores a tratar da
temática uma inversão de papéis exercidos pelas personagens representativas do nacional e do
estrangeiro, com uma bem definida focalização praticada pelo segundo no que se refere à
construção de uma imagem do universo urbano alemão no estado.
Além disso, Frida Meyer, da mesma forma que A divina pastora, é um romance sobre o
presente, já que, escrito em 1924, trata sobre poucos anos antes.
A análise deste romance apresentará uma diferença em relação às dos demais deste
estudo. Na leitura que fiz de Frida Meyer não encontrei referências à religião das personagens,
razão por que a categoria “Religião” não será trabalhada. Para refletir sobre esta ausência,
formulo duas hipóteses que podem explicar o fato de Vivaldo Coaracy não se preocupar em
inserir sua história e personagens no universo religioso – católico ou protestante - que circundava
os alemães na capital. Apresento simplesmente tais hipóteses, sem optar por uma ou outra como a
mais provável de ser a razão real do fato, pois, até o momento, não tenho elementos precisos que
me possibilitem definições.
A primeira hipótese surge das relações pessoais e profissionais que Vivaldo Coaracy
estabeleceu no sul. Ele foi professor na Escola de Engenharia de Porto Alegre, criada em 10 de
agosto de 1896, na qual foi expressiva a participação da elite germânica da capital, desde a
criação até a formação do corpo docente e do grupo de técnicos.
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Dentre seus colegas de
trabalho, ele cita professores alemães: João Ferlini, João Lüderitz, Diógenes Tourinho, Luís
Englert, Alfredo Wiltgen, Manuel Itaquy, Adolfo Stern, Egydio Hervé, Hans Goetze, Jorge Porto,
Pereira Neto, Coussirat de Aaújo, Rasmussen, Celeste Gobbato, Pita Pinheiro, Pereira Parobé e
João Simplício (COARACY, 1962, p. 147).
22
Gertz (2002) explica que a presença alemã na criação da Escola de Engenharia de Porto Alegre vai além da
participação de fundadores com sobrenomes alemães (Miller/Müller). Ela está nítida no delineamento da
característica educacional da instituição, que foi pensada “uma escola prática, inserida no contexto social
circundante” (GERTZ, 2002, p. 152). Essa definição veio do modelo da Technische Hochschule alemã e de algumas
referências norte-americanas. Nas primeiras décadas que se seguiram à sua fundação (1896), a educação que nela se
desenvolveu contou com a atuação de vários técnicos e professores alemães, especialmente convidados para melhor
colocar em prática o tipo de escola pelo qual se havia optado. Além disso, a instituição enviou professores à
Alemanha para estudar o ensino naquele país. Não no ensino, mas também na administração da Escola
encontramos sobrenomes alemães. O Conselho Escolar que atuava em 1908 contava com a participação de 36
membros, dos quais quatro eram de sobrenomes alemães. A Escola de Engenharia de Porto Alegre foi considerada,
pelo menos até 1930, “a mais germânica das unidades de ensino superior que mais tarde vieram a compor a
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.” (GERTZ, 2002, p. 159).
88
O grupo da Engenharia, segundo os estudos de René Gertz, especialmente em O aviador e
o carroceiro (2002), era um centro positivista e de protestantes. São vários os nomes alemães que
o autor relaciona e identifica como luteranos. Esses homens protestantes eram, provavelmente,
mais ou menos crentes ou fiéis
23
, ou, dito de outra maneira, eram pouco protestantes. Então,
possivelmente, Coaracy ignorou em seu romance tal questão porque não se discutia religiosidade
nesse meio ao qual ele pertencia. A Igreja a que se ligavam era vista mais como uma instância de
sociabilidade do que como uma instituição de exercício e aprofundamento da fé. Além disso, a
elite protestante pensamos que eram da elite os que atuavam na Engenharia - era filiada à loja
maçônica de Porto Alegre. Nesse sentido, a opção do autor é pertinente e justifica-se uma vez que
o mundo onde ele convivia não era um mundo religioso, apesar de ser um mundo germânico-
protestante. No romance Frida Meyer, criado com base no conhecimento que o autor detinha do
meio germânico porto-alegrense onde vivera, a ausência da religião fortalece o desagregamento
da família.
A outra hipótese diz respeito ao momento histórico da vivência da religião por parte dos
alemães e às relações da religião com as ações governamentais e populacionais contrárias à etnia
que vigentes na época em que se passa a história do romance, que é da Primeira Guerra Mundial.
Pode ser que no ambiente social no qual Coaracy se inseria (ambiente germânico) não lhe
surgiram propósitos definidos para expor uma visão sobre a religião dos alemães no Rio Grande
do Sul. Acontece que uma das características da religião era estar atrelada à política e ser
praticada como uma das principais fontes de cultivo da germanidade; por isso, passara a ser uma
89
instalados: por longo tempo, todos os pastores com formação teológica vinham da Alemanha e
eram remunerados com recursos de instituições eclesiásticas de lá. Muito do crescimento e da
organização dessa religião esteve vinculado a uma entidade fundada pelo pastor Wilhelm
Rotermund em 1886, a qual se chamou Sínodo Riograndense. Segundo Gertz (2002, p. 20), “veio
a tornar-se, por muitos anos, a organização eclesiástica que congregou a maior parte dos
luteranos do Rio Grande do Sul, e que em 1949 se associou a sínodos de outros estados
brasileiros, na Federação Sinodal, denominada desde 1952 Igreja Evangélica de Confissão
Luterana no Brasil; em 1968, os sínodos se fundiram, definitivamente, numa igreja nacional
brasileira luterana, com o mesmo nome (IECLB).”
Na época da I Guerra Mundial, quando as Igrejas Luteranas já estavam amplamente
fortalecidas no estado, os pastores tiveram de atuar sob o controle das autoridades brasileiras às
comunidades luteranas. O fato de todos os pastores serem alemães reforçou a perseguição, como
também a fortificou a prática da doutrina luterana que inter-relacionava evangelho e
germanidade.
A religião dos teutos apresentava-se como um caminho para a conservação da
germanidade, meta essencial a quem era de sangue alemão, segundo muitos líderes das
comunidades. Gertz (2002, p. 30) relata que “Rotermund
24
, por exemplo, defendia uma
vinculação inseparável, condicionando uma existência recíproca, entre igreja e germanidade.
Segundo o religioso, “abandonando a germanidade, começando a usar a língua portuguesa na
família, os membros das comunidades se perdem para a igreja evangélica; deixando de ser
evangélico, negligenciando a igreja, sua germanidade também desmorona” (apud GERTZ, 2002,
p. 30).
Aos olhos dos brasileiros em geral e mesmo de parte do governo, os alemães eram
articulados e influentes o suficiente para exercerem domínio sobre os demais e reverter qualquer
situação a seu favore. Assim, em razão de um bem arraigado pensamento suspeito em relação a
24
Wilhelm Rotermund Estudou teologia e atuou como professor na Alemanha. Secretário do Comipara os
Alemães Protestantes no Sul do Brasil, “uma instituição surgida no contexto de um movimento de reavivamento das
associações protestantes alemães” (GERTZ, 2002, p.28), decidiu vir para o Brasil e atuar junto aos imigrantes e
descendentes. O presidente do Comitê “recomendou que ele se doutorasse antes de fazer a viagem, pois o tulo de
doutor lhe conferiria maior autoridade em seu trabalho no Brasil” (p. 29). doutor, viajou para o Brasil com a
incumbência de assumir o pastorado na comunidade evangélica de São Leopoldo. Aqui desenvolveu longo e
conseqüente trabalho pastoral a1925, quando faleceu. Fundou o conhecido Sínodo Riograndense em 1886, “que
veio a tornar-se, por muitos anos, a organização eclesiástica que congregou a maior parte dos luteranos do Rio
Grande do Sul, e que em 1949 se associou a sínodos de outros estados brasileiros, na Federação Sinodal, denominada
desde 1952 Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil” (p. 29).
90
essa etnia, especialmente aos grupos de luteranos, como lembra Gertz (2002), pois que se faziam
ainda mais diferentes e enigmáticos por se orientarem na com outros princípios que não os da
religião oficial do país, a Católica, instalou-se um processo de vigia e espionagem por parte do
Exército Brasileiro u
91
3.2.1 - Família
Histórias sobre filhos que, por certos comportamentos dos pais, adversos a um conceito
tradicional corrente de hierarquia familiar e de responsabilidade no sustento dos membros da
família, são levados a assumir a manutenção do lar, financeira e afetivamente, foram tantas
vezes contadas. Mais uma destas está na vida pensada por Coaracy para a jovem Frida Meyer,
sua personagem principal do romance.
O autor contempla uma vivência dessa ordem, que envolve uma família de origem alemã
moradora de Porto Alegre, nos arredores da praça Quinze de Novembro, nas primeiras décadas
do século XX. Representa as conseqüências disso na vida de uma moça que se percebe como a
única do núcleo familiar a fazer algo concreto visando a obter dinheiro para prover as despesas da
casa.
É uma família que se formara sendo proprietária de casa comercial num dos pólos mais
importantes dos negócios de alemães, o Caminho Novo, no ramo de fazendas. Fora herança da
mãe, o que indica que a família pertencera à burguesia alemã da capital, a qual liderava o
comércio e a indústria local. Porém, passa por um processo de desagregamento, o qual se acentua
depois da morte da mãe. Falidos, pai e filho empregam-se como funcionários nas firmas de seus
compatriotas, e a filha, a protagonista da história, obtém algum dinheiro com o aluguel de três
quartos da residência, negócio substituído, mais tarde, pelo relacionamento com um amante, que
lhe o dinheiro necessário para as suas despesas e as da família. Nessas circunstâncias, o
declínio financeiro é acompanhado por uma mudança de valores familiares.
Frida é a filha mais velha do casal Meyer, tendo Ernesto, Olga e Elsa como irmãos.
“Desde pequenina vira-se sempre entre a figura silenciosa da mãe tristonha e o egoísmo feroz do
pai violento e acre” (COARACY, 1924, p. 2)
26
. Dessa mãe que externava sofrimentos sempre
dependera a sobrevivência financeira da família, pois que a casa comercial de onde vinha o
ganha-pão de todos era capital dela. O pai nunca construíra nada, apenas administrava a herança
da esposa: “Mayer desposara-a por interesse, pela pequena fortuna que possuía. Tudo o que
tinham era dela” (p. 3).
Essa mãe tivera uma vida de amarguras. Na família, coubera-lhe o papel de provedora e
submissa, o que a levava ao “choro silencioso e triste” (p. 2), sempre mergulhada em mágoas.
26
As citações do romance que seguem serão identificadas apenas pela página, uma vez que todas são retiradas do
mesmo volume, qual seja, o que está sendo preparado por Luís Augusto Fischer e será a segunda edição da obra.
92
Energia de sua parte surgia para impedir o marido de se desfazer da loja. Nesses momentos,
protagonizava uma “oposição calma, mas tenaz e irredutível” (p. 3). Com a sua morte, os filhos,
especialmente Frida, ficam a refletir sobre a existência da mãe e “a imagem que dela guardavam
e que agora havia de permanecer pelo resto de suas existências era a duma mulher magra e
pálida, sempre triste, criatura apagada que não sorria nunca, tíbia e sem vontade, com explosões
intermitentes de afeto pelos filhos, sem interesses na vida” (p.2).
O pai é uma figura desprezível e incapaz de transmitir afeto aos seus, como nos sugerem
as características gravadas no pensamento de Frida: “Sempre assim o conhecera, rude, autoritário,
apagando toda a família diante da sua personalidade, despido de afetuosidades, temperamento
azedado pelo meio doméstico, filhos que não desejara e que lhe haviam tratado sem ser
chamados, como dizia calmo e brutal quando a ocasião se apresentava” (p. 2).
Sem a mãe, os filhos passam a sofrer ainda mais com o pai. Uma vez vendida a loja, este
gasta seus dias em diversão, numa atitude egoísta de satisfazer-se ao invés de primar pelo bem-
estar dos filhos. Com estes, mantém-se numa irritabilidade contínua: “era todo espinhos, mais
rude e mais grosseiro, exigente e rixento, semeando de azedumes a alma da filha” (p.5).
O dinheiro que lhe resta quer usá-lo para si “e todo apelo ao mesmo para a vida da
família provocava nele erupções de cólera. Multiplicavam-se as recriminações, começando pela
acusação de gastos exagerados e desperdícios e terminando sempre por perguntar até quando
julgavam os filhos que era obrigação dele os sustentá-los. Que trabalhassem! Tratassem de
ganhar a vida!...” (p. 5). O que em outro contexto poderia ser uma forma de educação,
despertando a independência dos filhos, nesta narrativa, marcada por ações do pai que não são
outras senão a prática de um descaso, de uma revolta íntima e de uma insatisfação com o meio, é
a sugestão da troca de papéis no meio familiar e da irresponsabilidade paterna. Com um pai
assim, dado a um aborrecimento constante, a filha vai se construindo a partir de suas
possibilidades de lidar com as exigências diárias impostas pelas situações.
Nesse sentido, cresce em Frida o desejo de fugir àquela existência, e o casamento
apresenta-se como a única saída. Diante da responsabilidade que toma para si, de garantir a
sobrevivência da família, faz da residência um meio de ganhar dinheiro, uma casa para hóspedes,
criando, assim, o seu próprio trabalho. Com isso, transforma-se na figura referencial da família
Meyer.
93
Apesar de ser uma solução para as dificuldades financeiras de todos, o pai não lhe facilita
os momentos iniciais da abertura do negócio: quer ser consultado, exige submissão da filha,
numa clara imposição parcial do poder patriarcal. Como a filha não retrocede, ele “bufava, num
afrontamento de indignação real, e desandou, em dramática tirada, uma série de recriminações
sobre a ingratidão dos filhos e os desaforos que era obrigado, na sua idade, a ouvir duma filha
sem respeito a quem tinha faltado em tempo o rigor de que era merecedora” (p. 6).
Frida não mais ouvidos ao mau humor do pai, pois urge-lhe criar melhores condições
aos seus. Não tarda, pois, a aparecer o anúncio no Correio do Povo, divulgando que “família
alemã, ‘de tratamento`, dispondo de alguns cômodos, pelas bandas da Independência, oferecia-
se a aceitar como pensionistas dois ou três cavalheiros distintos” (p. 7).
A localização da residência dos Meyer numa região que, de fato, existe em Porto Alegre,
a da avenida Independência, ambienta a história no espaço que foi povoado na realidade por
famílias de origem alemã, conferindo maior veracidade à narrativa, que tem muito de romance
realista documental.
Pouco tempo depois, a família Meyer passaria a conviver com três outras pessoas, um
brasileiro, Henrique de Freitas, uma estrangeira, sem nacionalidade esclarecida, Mme. Servine, e
um teuto-brasileiro, Germano Weiss. Este é agente de outra mudança na vida familiar da casa, o
primeiro namoro de Frida. Diz o narrador que era “namoro franco, e à alemã, com intimidades
grandes e disfarçadas sensualidades hipócritas, incompletas excitações de excessiva
proximidade” (p. 10).
Germano faz a representação daqueles inúmeros teuto-brasileiros mencionados por Jean
Roche (1969) que foram atraídos pela capital, saindo da colônia de seus pais alemães e, muitos
com estudos e diplomas, desempenhando uma profissão na cidade. Como explica Luís Augusto
Fischer em nota que se encontra na preparação da reedição do romance Frida Meyer, que está
sendo preparada por ele, com a expressão à alemã,
o narrador diz, sem meias palavras, que o namoro à moda alemã é tipicamente mais
permissivo do que o que se praticava no Brasil, entre as camadas educadas. Essa de fato
foi uma impressão forte que a colonização alemã causou na América, provavelmente
porque na experiência dos imigrantes havia muito maior igualdade entre homens e
mulheres do que na experiência das populações luso-brasileiras (e latinas em geral),
como o atesta o fato de que desde o século 16 as mulheres de língua aleaprendiam a
ler e escrever, direito este vetado às mulheres dos países latinos, em regra.
94
Na família de Frida Meyer fala-se a língua alemã tanto entre seus membros quanto com os
seus patrícios. A língua portuguesa é buscada apenas em ocasiões especiais de comunicação com
os brasileiros - especiais porque a região onde vivia era habitada quase que exclusivamente por
alemães: a praça XV, em Porto Alegre
No interior da casa, com a presença de dois hóspedes de outras raças, a questão da língua
é tratada com cuidado por Frida, como acontece numa ocasião em que ela e seu namorado
Germano conversam: “Foi por uma destas ocasiões que eles descobriram, com surpresa, que ela
(Mme. Servine) não compreendia como falava com fluência o alemão. Tomou-os de começo
certo vexame, pensando em quanta frase comprometedora não teria apanhado; mas depois, como
falar o idioma da raça era um passaporte, tornaram-se mais confiados e lhe entreabriram as portas
da sua intimidade” (p. 12). Também fica claro que a família usa a língua de sua pátria-mãe e
dispõe da portuguesa quando necessário numa passagem que indica uma decisão de Frida quanto
à comunicação dentro de casa: “por uma cortesia para com Freitas que não falava alemão ela
impusera a regra de só se conversar em português” (p. 18).
Frida deseja casar “e não ia embarcar em aventura de cujos resultados não estivesse
segura: marido que lhe servisse houvera de ser um com energias capazes para vencer, com
ambições que igualassem as suas, sem delicadezas que representam tropeços” (p.12). Por isso,
seu namoro é guiado mais pela razão; busca, sempre que conversa com Germano, descobrir seus
projetos de vida, suas possibilidades de futuro promissor. Para ela, sair da família onde nascera e
construir outra é projeto para ascender social e economicamente, não apenas para realizar-se no
amor.
Com esse espírito mais racional do que afetivo, nota que Freitas a olha com certo
interesse. Com isso, surge-lhe
no cérebro afeito aos cálculos e a encarar o lado proveitoso dos acontecimentos uma
idéia que talvez de tempo estivesse semeada aguardando a hora de germinar.
Aquele seria outro e mais gordo pescado em sua rede; não mais um futuro hipotético
vencedor, mas quem já o era, assente de maneira firme na vida, com posição e dinheiro.
O sentimentalismo dos seus dezoito anos não era freio bastante para a fazer hesitar um
momento entre ambos (p. 13).
Empenha-se, portanto, no exame das duas possibilidades, pois, apesar da comunidade de
etnia e de afinidade que lhe inspira Germano, Freitas é rico.
95
A julgar pelas expectativas de Frida, o casamento é apresentado como uma instituição de
interesse para os alemães. Não Frida pensa assim, mas os homens também, como vemos pela
descrição que o narrador faz dos motivos que uniram Meyer à sua esposa. A mesma questão está
na referência ao casal Lang feita por Grimm a Freitas quando este a Erna Lang pela primeira
vez: “--O de direito está bem de ver que é o Lang. / --De Busch & Lang? / --Isso. Ela em solteira
era a Erna Busch; o Lang casou com a casa” (p. 14).
Na família Meyer as coisas tomam jeito: três hóspedes aumentam a renda mensal, o pai
resolve trabalhar, o irmão mantém-se no emprego, e ambos são solicitados a colaborar com uma
quantia mínima para as necessidades domésticas. Diz o narrador: “Tudo ia bem e Frida andava
satisfeita” (p. 17). Ocupa-lhe a mente, no entanto, a ânsia pelo casamento bem-sucedido. Numa
ocasião, em seu salão de beleza, madame Servine, atenta aos movimentos de Frida em relação
aos dois rapazes por quem cultiva interesse, tenta alertá-la para o “bom negócio” que fará se
admitir um homem como Freitas em sua vida para ser amante, pois homens como ele não se
casam. Diz a madame:
--O Freitas não é mais criança; deve andar pelos trinta e cinco. É a boa idade; a idade de
encontrar uma mulher para fazer dele o que ela quiser, exceto casar... e talvez a
casar... se tem visto disso. Porque, Fräulein, todos eles um dia, encontram a Mulher;
então pagam tudo por junto... O sonho de todas as moças, o seu também, é naturalmente
achar um rapaz do tipo do seu irmão ou do Weiss, que case. Mas, creia o que lhe digo,
si uma rapariga inteligente -- isto é condição essencial, muito inteligente -- tivesse
coragem bastante para meter os pés em todos os preconceitos e escrúpulos e agarrar um
homem desses no memento justo, na idade de que estou falando, daria o mais acertado
passo da sua vida (p. 32).
Frida não sabe o que dizer no primeiro instante. “Tudo o que ouvira era tão oposto a
quantos princípios e idéias tinham procurado lhe inculcar, era tão novo e tão estranho que se
sentia tonta, como que num começo de vertigem. Percebia vagamente que alguma coisa no seu
ser moral fora atacada de forma violenta nos próprios alicerces, alguma cousa estava em risco de
ruir...” (p. 33). Servine confirma que sua fala é um alerta, para o bem da moça, e que na vida a
única moral válida é vencer.
Em detrimento das razões do amor e da comunhão, interesse econômico, traição,
leviandade, falta de virtude são algumas das características atribuídas a famílias teutas
representadas. O casal Lang é um exemplo: com o casamento, veio a consolidação dos negócios
do marido; a mulher, Erna, tem amantes; ele, que parece não se importar com isso, também é um
96
declarado infiel, como sugere a cena do final de uma festa no Germânia, clube que faz parte dos
espaços citados no romance e que existiu no mundo real, tendo sido criado pelos alemães
endinheirados de Porto Alegre:
No vestiário o Lang e o Moritz enfiavam os sobretudos preparando-se para sair com as
duas artistas que lhes tinham feitos companhia. Moritz perguntou, de súbito:
--E sua mulher?...
--A Erna?... Ela sabe o caminho da casa: e encontrará alguém para acompanhá-la.
E lá se foram a rir, tomar o braço às companheiras alegres (p.
29).
Também na carta que Hans Lang envia a Freitas no dia seguinte à noite em que este fora
encontrado no quarto do casal com Erna fica claro que o marido sabe da prática adúltera da
mulher. Na carta,
o Lang procurava despertar em Freitas sentimentos de vergonha e remorso pela sua feia
ação, a perversidade com que fôra perturbar a paz dum lar feliz. Não lhe doía a
consciência de ter assim se apossado das afeições duma senhora casada? Pensasse bem
na responsabilidade moral que lhe cabia, abusando da confiança que nele depositava a
Sociedade. O ato que praticara não era digno dum cavalheiro. E depois de outras
considerações de igual jaez, passava Lang a expor as conseqüências que por certo o
outro não medira do feito vergonhoso: o abalo que podia ter introduzido na
homogeneidade da família; a necessidade em que agora se via ele, marido, com grave
prejuízo de seus negócios, em época tão inoportuna, de levar a esposa a viajar, afastá-la
de Porto Alegre, distrair-lhe o espírito para que ela o esquecesse, ao Freitas, e da sua
mente se apagasse a lembrança da lamentável ocorrência que lhe estava molestando a
saúde (p. 50).
Da mesma forma, na mesma ocasião, frau Thaler é caracterizada com tal comportamento:
“No estreito cubículo, em apertado abraço, a Frau Thaler e o Voigt beijavam-se freneticamente”
(p. 29). Também com os Fetter a moral é comprometedora: “Num dos sofás, muito agarrados,
muito unidos, palestravam a Lise Fetter e o Grimm, ele a brincar-lhe com os anéis nos dedos
delicados de unhas finamente manicuradas, enquanto na poltrona em frente, derreado, o Fetter
dormia, de boca entreaberta, um sono pesado e tranqüilo” (p. 30).
O comportamento de Erna atinge Frida diretamente, pois um de seus amantes vem a ser
Freitas. Os dois se encontram numa tarde na casa dos Meyer, no quarto alugado a ele, e Frida vê
a mulher à saída. A essa altura, a convivência na casa havia providenciado, entre Frida e
Freitas, momentos de carícias, de insinuações. Com a ocorrência envolvendo Erna, o jogo de
sedução que se armava é interrompido: “Isso acabou-se!...” (p. 39), diz Frida.
97
As palavras da madame Servine tornam a invadir o pensamento de Frida Meyer. Dois
caminhos lhe haviam sido apontados: ser esposa ou amante de um homem. Mas Frida não admite
fazer uma escolha. Sua condição é seguir as noções da moral transmit89.2366(m)7.0047(o)-3.71a q12.2433( )-27.557(u)692e29(e)-50.916tronã inao( )7723672(a)7.00e257(a)1.9v96(i)0.442917(d)-3.71568o( )772715(h)-3.73761(c)1.96156881.71.9388( )-89.a88( )-89.2378(e)1.96a88( )-89.956(a)-8.3168( )-89.96388(o)6.5262(n)-3.71693(t)0o hcoeimigurnou( )76221 -200.4413(m)-3.27522(e)-8.715(t)0.441l47(i)0.44171163(m)7.0a965(y)16.84 -200.4,173(m)17.2846(.( )762693(s)-11441715(r)4.0462(s)85.506 ( )]TJ262(n)-3.71693(t)0.440432(a)1.96715(89.236o57( )-781(-4 -200.4715( )-17.2771(s)-1.6,)(o)8)-32846(.( )762432( )-89.2366(a)1.962366(a)1.96715(t)0.441693(s)-11,)(o)8)-32846(.( )762432(v)-3.716932(a)1.96c93(r)-6.2365(t)0.4413173(g)6.56í83(s)-1.637611(n)6.56299(v)-3.71693(e)1.96n611(n)6.56299(v)-3.71693.( )762916(t)-9.8387(o)-3.71d478(c)1.693(m)-3.2752(d)-3.71693.( )7622366(a)1.961443(ã)1.96c93(s)-1.66388(v)6.56424(i)-1.6365)]TJ8811821(s)-11.fon oo1946473761(c)1.96325(a)-8.33761(c)1.961568(a)12.2v55(n)-3.71565(t)0.441693(s)-8.33761(c)1.962378(e)1.96,568(a)12.24388(a)10.3168( )-89.1568(a)1.96388(l)0.441568(e)1.996388(o)6.51715(ç)1.96361(c)1.961568(a)12.2p96262( q12.2433( )-2637(i)-9.8262(n)-3.71299(v)-3.71693(m)17.2693(m)-3.2753(o)-3.711693(m)17.284 -200.4566(s)-1.63635(e)-8.047(o)-3.71693(r)-6.2047(o)-3.71262(o)-3.71443( )-17.1693(m)17.23173(g)6.560462(s)8(o)25 ( )]TJ432(v)-3.71771(n)-3.71478(c-150.919(e)12.443( )-17.p478(c-150693(t)0.440432(a)1.96432( )-89.2366(a)1.96262(o)-3.71p478(c-150693(t)0.44l62(n)-3.71693(t)0..56299(u)-3.71693(s)-1.63635(a)1.o57( )-788.047(o)-3.71,)(o)8)-32846(.)-3.71753(o)-3.71424(i)-1.62366(a)1.96262(o)-3.71d478(c)1.692( )-89.2366(a)1.96692( )-89.j388(v)6.564241(d)6.56299(a)1.96752(d)-3.7693(t)0.44l62(n)-3.71h443(ã)1.961443(ã)1.96847(o)-9234417(i)-1.6847(o)-9234821(s)-11.)8(o)25 )]TJ-250.22366(a)19823173(g)6442917(d)-1.636356 amvotramy4ann4ao ec-150693(t)0.4471163(m)7.0045( )-150.916(t)-9.8.919(4a)1.1à32( )-17.2771(e)2.4055956 nggc-150693(t)0.440432(a)1.9616715(r)4.6299(ç)-8.3173(õ)-3.71666(a)1.962629(4a)1632366(a)1.961478(c)1.c93(t)0.4471163(m)7.0a93(t)0.4471163(m)7.02366(a)1.96.568(e)1.9715(e)-8.7.906
98
Acontecem discussões cada vez mais agressivas entre ela e o pai, freqüentemente por
causa do dinheiro que este lhe exige e que ela o mais está disposta a dar, pois o orçamento da
família já se torna insuficiente para as mínimas despesas. Não tarda a explodir uma forma
99
Nem aos de fora Frida tem a intenção de esconder sua condição. “Da casa as
familiaridades de Frida passaram para a rua onde, se o encontrava, ela o abordava e interpelava
com ostensivo desplante” (p. 70). E numa noite em que passeiam de carro pela cidade e o
automóvel se choca com um bonde, o acidente expõe a todos, com clareza, o caso amoroso dos
dois.
Os encontros, a partir de então, exigem-lhes mais discrição. Freitas muda-se da casa dos
Meyer e passa a residir num hotel. Aluga, novamente, o quarto na casa de dona Mariquinhas,
antes usado com outra amante, casada, Erna Lang, e recebe Frida. Esta não aceita a condição
de se esconder e incomoda o rapaz com suas atitudes de deixar sempre mais exposto o caso,
procurando-o em seu trabalho, telefonando, abordando-o na rua. “Freitas em quem, como sempre
lhe sucedera, a posse havia sido seguida pelo começo da saciedade, achava-a talvez já importuna”
(p. 77). Além disso, está cansando de arcar “com todas as despesas da casa da rua Coronel
Vicente, incluindo as das pequenas” (p. 77).
Em Frida, no entanto, acomoda-se a consciência de sua condição na vida. Nada mais é do
que
a amásia do Freitas. Todo o seu jogo teria de se cifrar em enleá-lo, prendê-lo,
comprometer-se cada vez mais com ele e de tal forma que o confiasse à obrigação moral
de a manter como cousa sua, pôr-se com ela de cama e mesa. As suas ambições de futuro,
os seus sonhos, os seus prospectos e planos estavam agora reduzidos a isso: uma
concubinagem vulgar que lhe proporcionasse uma aparência de lar e lhe desse uma
existência fácil. Frida nunca fora tão sincera, nem consigo mesma (p. 78).
Alarmada com a possibilidade de ser abandonada por Freitas, aconselha-se com madame
Servine, a qual lhe traça um plano de se fazer mais dependente: dizer-se maltratada em casa,
mostrar-se como se estivesse à beira de um abismo existencial. “Diga-se mal tratada pela sua
família; pinte-lhe a sua vida em casa como um verdadeiro inferno; queixe-se de que seu pai
explora a sua situação; diga que as suas irmãs não
100
assim do céu” (p. 82). O casamento arranjado por Freitas é uma dívida contraída com o futuro
casal germânico. Na verdade, Germano e Frida passam a explorar Freitas.
Dessa maneira, Frida galga alguns degraus na sociedade dos teutos e, passando a ser frau
Weiss, é bem recebida no Germânia, integrando-se ao grupo de Erna Lang, cujo comportamento,
mesmo casada, também imita: vai encontrar-se com Freitas num quarto suspeito, na véspera deste
viajar de volta para o Rio Janeiro.
Uma outra imagem de família alemã representada na obra é a de frau Baum: “Mãe de três
filhas casadoiras, era infalível a todas as festas da Germânia, da Turner Bund e da Leopoldina,
sempre amável, sempre de bom humor, numa jovialidade sadia, procurando cercar-se duma roda
de rapazes solteiros” (p. 27). Busca, sem cessar, marido para a Ilsa, a Ema e a Sofia. “Baum, o
marido, era uma figura apagada e imprecisa. Sabia-se-lhe da existência; era qualquer cousa na
administração duma das fábricas de tecidos; mas não aparecia nunca” (p. 27).
Os clubes citados nesse fragmento do romance são reais, tendo sido criados pelos
imigrantes alemães e seus descendentes para serem freqüentados especialmente por eles, pois
preferiam organizar os espaços de convivência à sua maneira de viver. Foram bastante
conhecidos entre a comunidade gaúcha a Sociedade Germânia, criada em 1855; a Sociedade
Leopoldina, criada em 1865; a Sogipa, que nasceu com o nome de Sociedade Ginástica, em 1867,
e a Associação dos Caixeiros-Viajantes, criada em 1885.
São marcantes as diferenças culturais propostas pelo autor que colocam a família teuto-
brasileira em certo distanciamento em relação à luso-brasileira. O doutor Aguiar, antigo juiz, tem
uma família que cultiva outros valores. Viúvo, “vivia com as filhas, Marieta casada com
Fernando Lins, um médico moço mas já de nome, professor da Faculdade, e Alice, solteira, ainda
quase menina” (p. 22). Neste grupo familiar, Freitas se sente acolhido e envolvido num
“ambiente de carinho e franqueza, de gentil hospitalidade que se transformara breve em real
estima. (...) O que mais atraía Freitas não o saberia dizer. Era tudo. Mais do que o resto talvez, a
agir sobre o seu sub-consciente, a atmosfera de lar feliz, de repousante paz que ali se respirava; o
halo de tranqüila espiritualidade que tudo pervadia e constituía um ambiente moral tonificador”
(p. 22)
Ali ele presencia a virtuosidade feminina em Marieta; o recato, a timidez, a suavidade em
Alice; o exercício dos papéis morais institucionalizados de um pai e de um esposo. O narrador
eleva, notoriamente, as características desse lar, que tem à frente um pai de
101
cultura vastíssima, inteligência brilhante, a sua palestra ática onde chispavam ás vezes
finas ironias, lembrava ao moço certos personagens de Machado de Assis. Era desses
belos espíritos que hoje se encontram entre os representantes da geração passada, os
que tiveram a mocidade nos últimos vinte anos do império. E sentia-se bem que sob
aquele sardônico cepticismo havia uma grande bondade, um caridoso sorriso para todas
as pequenas fraquezas da vida (p. 22).
Nos serões ouve-se boa música clássica, executada por Alice ao piano, como Beethoven e
Schumann, a clássica alemã, portanto, o que sugere uma pequena ironia do autor: a casa, que é
“cheia de alegria sadia” (p. 25), gosta e cultiva a música do mundo alemão e muitos
comportamentos das personagens desta etnia servem de motivo para pensarmos uma falta de algo
sadio no interior das famílias teutas. E mais, pode indicar que a noção de alegria sadia está com
os grandes mestres da cultura alemã e que seus descendentes estavam se distanciando disso. Em
todo o caso, fica claro que o oposto da convivência da família de Frida se apresenta na do doutor
Aguiar, estando ali o parâmetro para se atribuírem conceitos de boa e má estrutura.
No geral, nessa representação de uma constituição familiar dentro da etnia alemã, na qual
se elevam os conflitos internos, se delineia uma moral comprometedora diante das convenções
sociais, se anseia pela estabilidade econômica, encontramos, antes de tudo, reflexões sobre o
sofrimento, seja gerado pela qualidade das relações íntimas, seja pela frágil constituição de
valores humanos, pela volubilidade, pela pressão social, pela situação financeira ou por quaisquer
outras razões.
3.2.2 - Trabalho
Sem a mãe e considerando as atitudes do pai, especialmente seu egoísmo e incapacidade
para os negócios, os Meyer estaão prestes a se destruir. Frida, com dezoito anos, entende que “lhe
cabia agora, e não sabia como, manter a integridade do lar, ampará-lo contra a derrocada que
sentia iminente” (p. 3). A loja, à beira da falência, é vendida a um outro alemão, antigo freguês.
Pouco lucro resta, pois, pelas dívidas acumuladas, quase todo o estoque é deixado em pagamento
do passivo.
102
Cabe, de imediato, ao irmão Ernesto trabalhar: “O moço, reconhecido inteligente e ativo,
logo encontrou emprego em uma das firmas germânicas da rua Sete
27
, grandes importadores de
fazendas e miudezas” (p. 4). De fato, no mundo real, a rua Sete de Setembro ficou conhecida
como o local de concentração dos comerciantes teutos que importavam fazendas, vindo a ser um
dos pólos comerciais mais dinâmicos da capital, como lembra Gans (2004). Com sua pesquisa, a
autora informa que esta rua abrigava os negócios de importação dos alemães de alto poder
aquisitivo, que começaram a ocupar o lugar a partir de 1860.
É nesse espaço, então, que o autor coloca o irmão da sua personagem protagonista para
trabalhar como empregado, fazendo, assim, a referência a um outro dado real: o de que os
alemães empregavam outros alemães em seus estabelecimentos. Assim arranjado, o jovem passa
a ser, em parte, o provedor da família. Para as despesas da família, Frida, diante da intransigência
do pai, “recorria então a Ernesto, e este acudia-lhe às vezes, mas resmungando sempre: que
fazia demais; o seu ordenado era pequeno e não podia andar carregando toda a família às
costas!...” (p. 5).
O pai não toma para si a responsabilidade de sustentar a família pelo trabalho. Não iria se
submeter a ser empregado, visto que sempre fora patrão. Assim, “deixara-se ficar apático e inerte,
revoltado à idéia de servir depois de haver sido patrão, tomado daquele desânimo tão comum
entre os teutos pelo qual a um homem, depois da queda, não restam nem sequer energias para o
esforço de reerguer-se” (p. 4). Passa a gastar o que sobrara do negócio com a loja em bares da
redondeza: “À noite, após o jantar, derivava para o bierstube
28
de sua predileção, Zum Heidelberg
Fass
29
, onde, na sociedade das caixeiras sardentas e ásperas na caça às gorjetas, se animava um
pouco e sacudia dos ombros a moleza que o dominava” (p. 5).
Frida decide agir. “E um dia, quando Meyer entrou para o almoço, surpreendeu-o no
corredor um balde de cal; mais adiante uma escada de pintor deitada contra a parede; a um canto
da sala de jantar uma desordem de móveis retirados dos quartos e para ali encostados” (p. 5).
Esse é o ambiente que introduz Frida no mundo do trabalho com vistas a sustentar a família. Ela
decide transformar a casa numa pensão, explicando ao pai que é “preciso fazer dinheiro para
mantê-los a todos como vocês querem, não é? Mas com esse dinheiro vocês não entram! Tu não
27
É a rua Sete de Setembro, localizada no centro de Porto Alegre.
28
O bar-chope, estabelecimento semelhante ao boteco brasileiro, explica Fischer em suas Notas à edição
mencionada.
29
Quer dizer “Ao barril de Heidelberg” (FISCHER, Notas)
103
dizes sempre que preciso trabalhar, ganhar a vida? Vou fazer o que posso; só sei ser dona de casa
e portanto é como dona de casa que tenho de me arranjar” (p. 6). Aquilo passa a ser o seu
negócio.
Logo tem os três hóspedes para quem haviam sido preparados os três cômodos da casa.
Assim, Frida passa a ter seu trabalho remunerado. Dali vem o dinheiro, por algum tempo, para as
despesas da família. Ao velho Meyer, no entanto, ela não libera os valores que ele lhe pede, pois
sabe que serão usados tão-só para seus luxos. Diante da atitude da filha, ele resolve trabalhar.
Consegue emprego numa empresa de materiais de construção, de nome alemão, a Keller & Cia,
fazendo a fiscalização geral da serraria e do depósito de madeiras. Do que ganha contribui, por
exigência da filha, com uma parcela mínima, restando-lhe valor suficiente para o seu habitual
chope na companhia das caixeiras do bierstube. O velho muda um pouco seu comportamento em
casa, pois, ao “ver a capacidade da filha para ganhar dinheiro, Mayer criara por ela certa soma de
respeito, reconhecendo-a tacitamente como dona da casa” (p. 17).
Por essa idéia, o autor aborda uma forma de valorização do trabalho, especialmente por
resultar em lucro, esta uma das características da forma de pensar dos germânicos que muito se
fez notar aqui no Rio Grande do Sul. Observemos que, nesta história, a bem-sucedida iniciativa
de trabalho de Frida traz-lhe valorização pessoal por parte do pai, de quem muito recebia a
indiferença.
Também os hóspedes da casa estão inseridos no mundo do trabalho. Freitas é gerente de
104
compras dos fregueses novos que obtenho para o Keller. Tal foi o início do conchavo a breve
termo concluído entre Meyer e Germano para partilharem proventos a auferir das compras de
materiais que para o depósito de Keller & Cia., fossem encaminhados pelo segundo” (p. 19).
De fato, os materiais de que Germano precisa para as construções passaram a ser
fornecidos pela firma onde Meyer trabalha, o qual seleciona a mercadoria. Deflagra-se, então, a
falcatrua: abastecimento de material de última categoria para as obras contratadas ao Grimm &
Silva a preço de primeira. E o lucro era dividido entre os dois.
O caso torna-se público por meio da ação de Policarpo de Amaral Barbosa, um
contratante dos serviços do escritório dos engenheiros. Ao vistoriar a construção da sua casa, este
se choca com o que vê. Transtornado, vai à presença de Grimm e, aos berros, arma um escândalo:
“bufava, bramia, pigarreava, gesticulava de pés e mãos, todo ele numa cólera bravia que às vezes
o deixava sem palavras, entupidos os gorgomilos, a sapatear, agitando diante do rosto do
engenheiro o contrato amarrotado apenso à cópia azul da planta” (p. 54). A substituição do
material é algo inadmissível:
--Pinho!... Pinho nacional!... Pinho da Serra é madeira de lei?! Diga, seu doutor Grimm,
desde quando pinho é madeira de lei? E nem de (p.151) segundo é! Refugo! Refugo de
serraria!... Aqui (e amarrotava ainda mais o contrato) diz “madeira de lei!” E as
bitolas?... As bitolas estão também aqui registradas!... Pinho de refugo! E canela
branca! E açouta-cavalo!... Aqui diz “louro”, seu doutor!... Mas eu lhes mostro, olá se
mostro! Tenho um contrato!... Hoje mesmo vou requerer uma vistoria!... E arrebento
com esta sua arapuca!... Hei de lhes ensinar a se aproveitarem da doença dum velho!...
Pinho de refugo!... Terças de sete por doze!... Quem assalta na estrada é mais honesto.
Esquadrias de açouta-cavalo!... Isto é um conto do vigário (p. 54)!
Descoberta a falcatrua, Germano é demitido e torna-se pública sua reputação de desonesto
nos negócios. Daí por diante, ela engana os conhecidos quanto a novos trabalhos, faz promessas
falsas a Frida, que era sua namorada, até abandoná-la grávida. Ruma, às escondidas, para
Buenos Aires. Tempos depois retorna e, em novo arranjo escuso, desta vez com Freitas, que
andava envolvido com Frida, sendo seu amante e mantenedor das despesas da família, engana-a
novamente, dizendo-se trabalhando quando, na verdade, recebe dinheiro de seu comparsa para
casar-se com ela e, assim, livrar o outro do compromisso.
O escândalo envolvendo o escritório Grimm & Silva altera também a situação do pai de
Frida. Seu patrão, Keller, tendo seu negócio envolvido na prática desonesta, mostra-se intolerante
105
e “Meyer foi despedido abruptamente pelo Keller, austríaco violento e rude, que dizia não
conhecer dois nomes para designar um ladrão” (p. 54).
Com o tempo, Meyer consegue um outro trabalho, de pouca remuneração. Frida mergulha
num mar de decepções, tanto no ambiente familiar quanto no namoro com Germano. Seu
trabalho rendoso, mais tarde, seria ser amante de Freitas. No fim das contas, não bastasse tirar
deste o dinheiro para quase todas as despesas da casa, do pai, dos irmãos e para seus luxos, une-
se com Germano novamente e casam-se às custas do Freitas. A autorização para isso vem do
próprio Freitas, que oferece pagamento para o teuto assumir Frida, pensando, assim, livrar-se
daquela relação. No início, Germano faz tudo segredando a Frida o combinado com o brasileiro,
mas, como diz o narrador,
Germano não era homem que mantivesse por longo tempo a comédia. Eram ele e Frida
feitos para se um ao outro com a máxima franqueza. Corriam rápidos os aprestos para o
casamento que havia de realizar-se a breves dias e à socapa, sem estrondo, como
convinha, quando uma tarde, inesperada, Frida voltou aos aposentos do Freitas. E sem
longo preâmbulo passou a enunciar que as cousas eram difíceis para um casal que ia
iniciar a vida, principalmente tendo Germano ainda que abrir o escritório e achar os
primeiros trabalhos, sempre os mais demorados de encontrar. Afinal, o que Freitas lhe
dava para capital não era muito; ele bem podia acrescentar um pouco mais, porque se
era verdade que eles não tinham que montar casa, continuando na rua Coronel Vicente,
sempre havia despesas extraordinárias... (p. 83).
Ao abordar o trabalho, Coaracy privilegia a representação dos alemães que
desenvolveram o comércio e a indústria em Porto Alegre, exatamente na região geográfica em
que se passa a história. Lembra os donos das empresas e os empregos que proporcionavam aos de
sua mesma etnia. Nesse sentido, valoriza a idéia da dedicação ao trabalho como uma das
principais características da identidade da etnia.
Entretanto, juntamente com a importância conferida ao trabalho como meio de garantir
renda para sobreviver e prover certos luxos, também fica estabelecida, em primeiro plano, na
narrativa a não-seriedade para com o trabalho, especialmente por parte dos homens alemães de
uma camada socioeconômica baixa, representados aqui pelo velho Meyer e por Germano Weiss.
Estes realizavam um trabalho urbano não especializado. Se um deles fosse oficial de carpintaria,
de alfaiataria, de oficina artesanal, a visão sobre eles no mundo do trabalho talvez fosse outra,
pois seriam profissionais com alguma especialidade, a exemplo de muitos imigrantes que vieram
para o Rio Grande do Sul com profissão definida, aqui a praticaram e são tidos como os
iniciadores do processo industrial.
106
3.2.3 - Espaço e deslocamento
O espaço social onde acontecem as cenas do romance é a Porto Alegre das primeiras
décadas do século XX, ainda considerada aldeia, como dizem Freitas e dona Marieta neste
diálogo: “Então, sr. Freitas, agora está gostando mais da nossa terra? / --Estou me
convencendo, d. Marieta, de que Porto Alegre é uma deliciosa cidade. /--Cidade, não; “aldeia
grande”, como o senhor a qualificou, logo de chegada. / --Sim, tem ainda muita coisa de aldeia, lá
isso é verdade que a senhora há de reconhecer; mas apesar de tudo...” (p. 21).
Notemos que Porto Alegre é vista como aldeia por um homem que veio do Rio de Janeiro,
que era a capital do Brasil, portanto, cidade grande de verdade, que se afirmara como tal ainda
quando era a corte do Império e o reflexo cultural da Europa. Os daqui, no entanto, viam Porto
Alegre como a cidade grande do estado, principalmente por ser a sua capital e por concentrar o
mais desenvolvido comércio e a mais estruturada indústria. Além disso, a partir de 1900
desenvolveu-se notoriamente a estrutura educacional, como explica Luís Augusto Fischer em “O
Chalé e a Praça XV na cultura de Porto Alegre” ( 2006, p. 45).
Vários prédios novos eram inaugurados para os flamantes cursos superiores que a
Universidade passava a oferecer: em 1896 começa a funcionar a Engenharia, que ganha
prédio em 1900; a Medicina começa a funcionar em 1898, ganhando seu magnífico
prédio em 1914; a Engenharia Elétrica recebe prédio novo em 1910, mesmo ano do
prédio do Direito, curso que começara a funcionar já em 1900.
para constar: o período é fértil em novidades na área da educação. Basta ver a
lista de colégios que por essa época são criados e que permanecem até agora: o
Americano, em 1885; o Anchieta, em 1890; o Sévigné, em 1900; o Rosário, em 1904; o
Bom Conselho, em 1905; o Dores, em 1908.
São dessa ainda “aldeia”, para quem vinha do dito centro do país, e “cidade grande” com
muito desenvolvimento, para os daqui, os espaços reais dos quais o romance se apropria para
formar o seu espaço físico e nele colocar em circulação as suas personagens. Alguns desses
espaços, como ruas, bairros, bares, clubes, são tratados pelos nomes antigos, outros, pelos nomes
com que hoje são conhecidos. Esses espaços que abrigam os acontecimentos, que comportam as
residências das personagens, os bares freqüentados, as ruas transitadas, formam determinada
região de Porto Alegre, a da praça Quinze de Novembro, uma das mais famosas da capital, que
foi, de fato, berço de uma colônia de alemães e descendentes nessa época.
107
Lembremos que a praça Quinze de Novembro foi criada após a proclamação da
República, homenageando o episódio que mudou a forma de governo do Brasil. O local, no
entanto, era praça há muito tempo, com os nomes de praça do Paraíso, como aparece em
documentos de 1843, denominação atribuída, inicialmente, na década de 1830, por populares em
razão da existência de uma “casa de mulheres” nas proximidades, e de praça Conde D’Eu, nome
escolhido no ano de 1869 em honra ao homem do governo imperial que foi comandante-em-
chefe das tropas brasileiras na Guerra do Paraguai, agradando, assim, ao imperador dom Pedro II
e à sua filha, a princesa Isabel. O conde D´Eu era marido desta e, portanto, genro daquele. Como
diz Fischer (2006, p. 26), “perdia-se o nome antigo, de origem brincalhona e aspecto familiar, o
Paraíso, para adentrar no terreno simbólico dos nomes destinados a celebrar indivíduos
poderosos, cujos méritos pareciam merecer o bronze eterno”.
A praça Quinze, como é habitualmente chamada nos dias de hoje, é o maior ponto de
referência para localizarmos as personagens em movimento desde as proximidades da casa dos
Mayer. Situa-se em frente ao Mercado Público, próxima da Prefeitura Municipal. Nela ainda se
encontra o bastante conhecido “Chalé”, um tradicional bar e restaurante que, na época do
romance, já tinha uma longa história de existência e já estava confirmado como um dos principais
locais freqüentados por pessoas de todos os níveis, de Porto Alegre ou de fora.
Para o Chalé, o novo da praça Quinze, da segunda construção, feita em 1911 (o primeiro é
de 1880; o novo de que falamos é o que está na praça ainda hoje, restaurado em 1973), aonde o
velho Meyer vai beber cerveja diariamente. Da mesma forma, ao entardecer, o futuro esposo de
Frida, o teuto Germano, está na volta do trabalho, a beber antes de se recolher à pensão dos
Meyer: “Oriundo de Santa Cruz, filho de colono, vindo recentemente da Europa, as suas relações
em Porto Alegre eram nenhuma ainda. Depois do chope na praça Quinze com os companheiros
de escritório, recolhia-se a casa: sentia-se bem naquela atmosfera germânica” (p. 9).
À rua Sete fica o local do emprego de Ernesto, irmão de Frida, e do escritório Grimm &
Silva, onde o arquiteto Germano Weiss trabalha como desenhista. Esta rua se encontra com a
Independência do Brasil, onde também na realidade se fixou um bom número de imigrantes
alemães. Meyer, por sua vez, trabalha numa firma de materiais de construção que fica pelo
Caminho Novo
30
, longe de sua casa, acima da rua Sete de Abril
31
.
30
O Caminho Novo foi criado no início do século XIX; a partir de 1870, recebeu o nome de rua Voluntários da
Pátria, sendo esta a sua designação atual.
108
Esses locais de trabalho são de propriedade de alemães, numa clara representação do que
havia nessa região da Porto Alegre real em termos de comércio e indústria. O Caminho Novo, por
exemplo, ficou “gravado na memória dos moradores da capital como ‘rua dos alemães’” (GANS,
2004, p. 39). Os imigrantes alemães e seus descendentes já somavam em torno de 20% da
população da capital gaúcha na década de 1920. Em termos de trabalho e renda, aos primeiros
que chegaram à então província para cultivar a terra, a partir de 1824, seguiram-se inúmeros
outros que se tornaram comerciantes e industriais na cidade. Nesse sentido, nos mais diversos
ramos contava-se com a presença alemã. A cerveja, por exemplo, foi industrializada pelos
alemães. Fischer (2006, p.41 e 43) assim explica:
Alemães bebem cerveja, como se sabe. Não foram os inventores do precioso líquido,
mas o desenvolveram de modo particular, a ponto de ficarem identificados com ela.
Alemães em Porto Alegre produzem cerveja: a partir da década de 1880 a capital
gaúcha vai conhecer fábricas da bebida, sempre de propriedade de sobrenomes como
Bopp, Becker, Sassen e Ritter, algumas das quais, no futuro, vão-se fundir na Cervejaria
Continental, que vai ocupar prédios inaugurados em 1911 e ainda hoje existentes na
Floresta, prédios mais conhecidos como “da Brahma”, denominação esta que sucedeu à
Cervejaria Continental. (Aqueles belos prédios saíram da inventividade do arquiteto
Theo Wiederspahn, que nos anos seguintes seria responsável por vários dos mais lindos
prédios da cidade, como o atual prédio do Museu de Arte do Rio Grande do Sul e o
Memorial, ambos na praça da Alfândega). Um número eloqüente: na segunda metade
do século 19, nada menos que vinte e uma fábricas de cerveja viram a luz do dia na
cidade de Porto Alegre, dos seguintes proprietários, conforme anotação do cronista
Athos Damasceno Ferreira: Kauffmann, Christoffel, João Diehl, Polidoro & Irmão,
Isidoro Volkmer, Frederico Bohrer & Barth, Henrique Mariante, Hoffmann, Jacob
Braun, Theobaldo Friedrichs, Carlos Bopp, Sebastião Campani, Guilherme Becker,
Oliveira Alves, Frederico Schmidt, João Jorge Lemmertz, Henrique Lubb, Kessler, José
Varnieri, Francisco Riegel, Henrique Ritter (16 sobrenomes alemães no total).
A casa dos Meyer fica na rua Coronel Vicente
32
. Nas redondezas muitos botequins,
freqüentados assiduamente pelos personagens teutos, que encontra, em qualquer um “a mesma
atmosfera de taverna e a mesma alegria barulhenta e simples: cerveja, fumo, cantorias e mais
cerveja...” (p. 20). O velho Meyer é um fiel freqüentador desses locais. Vendida a loja, “passava
os dias pelas cervejarias do beco do Rosário
33
e adjacências ou à praça Quinze de Novembro,
31
Esta rua fica no bairro Floresta, sendo uma de suas vias mais antigas. Pelos registros citados por Sérgio da Costa
Franco no Porto Alegre: guia histórico (1992), existia já em 1834, como um local chamado beco do Motta. A partir
de 1857, passou a ser a Rua da Princesa, representando mais uma homenagem ao regime imperial. Com a República,
líderes do governo acharam por bem fazer outra homenagem, agora à abdicação do primeiro imperador, que se deu
em 7 de abril, e a rua passou a ser rua Sete de Abril, assim conhecida até hoje.
32
Rua da região central de Porto Alegre; existe desde 1877 e é assim chamada ainda hoje.
33
Este local, hoje, é a rua Otávio Rocha, na região central de Porto Alegre.
109
horas a fio a uma mesa, alongando e esticando um chope tanto quanto lho consentia a elasticidade
da sua sede e a paciência hostil dos caixeiros” (p. 4).
Possivelmente, muitos dos bares pensados pelo autor mantinham, ainda no tempo do
romance, os aspectos descritos pelo viajante alemão Victor W. Esche, que passou por Porto
Alegre em 1881:
Naturalmente não faltam bares alemães em Porto Alegre. Como isso também seria
possível, onde 4 a 5 mil alemães estão estabelecidos! Mas que bares engraçados são
esses, que são freqüentados aqui pela sociedade alemã da classe mais alta. o são
restaurantes grandes, claros, simpáticos, mobiliados de forma elegante, mas sim quartos
de fundos de armazéns de produtos coloniais, que parecem verdadeiras espeluncas. A
preferência dos alemães daqui por esses bares sujos, escuros e escondidos é totalmente
misteriosa para mim. O estrangeiro nem descobre um bar desses, já que não uma
placa afixada. Apenas sob orientação de pessoas conhecidas de pode-se encontrar a
entrada. Nas paredes, nas quais estão colados modelos de papel de parede dos mais
diversos tipos, há uma mistura de cartazes para fins de propaganda. Nos bares, nos quais
faltam cadeiras, existem caixas e barris em grandes quantidades, que podem ser usadas
como assento. O tamanho desses bares raramente passa dos 10 pés de comprimento e de
10 pés de largura (Apud FISCHER, 2006, p. 36)
Diferente nesse sentido era o famoso Chalé da Praça Quinze, que também pode ser
tomado por s como uma referência inspiradora do autor, pois se respira uma atmosfera
germânica, quer seja pelos chopes e cervejas servidos, quer seja pelo teuto que atende os clientes,
ou, ainda, pela cor, língua e estilo da maioria dos clientes, os teutos. Encontramos no texto de
Fischer (2006, p. 70) um fragmento do texto de Nilo Ruschel que nos leva a imaginar o clima
festivo que ali se cria:
O clima musical do Chalé pode ser avaliado por um testemunho carinhoso do cronista
Nilo Ruschel, que enfatiza a ligação da gente alemã da cidade com a tradição da música:
O certo é que esse belo cromo da paisagem urbana (...) estava mesmo à feição de atrair
a numerosa colônia alemã. Que melhor lugar para repousar o espírito depois de um
estafante dia de trabalho? Em mesa certa, servida pelo mesmo garçom, o volumoso
cidadão só dava o último gole depois de lida a última linha do Neue Deutsche Zeitung
[Novo Jornal Alemão] ou do Deutsches Volksblatt [Gazeta Popular Alemã]. Ou de
ambos, quando era maior a sede. Para acentuar a cor local o quiosque oferecia um
conjunto musical, empoleirado na pequena galeria, executando repertórios de Franz
Lehar e de Strauss, a Carga da cavalaria ligeira de Von Suppé. Até Chopin e Beethoven
eram docemente assassinados pelos trio — piano, violino, celo. E lá pelas tantas,
quando a loira espalhava véus de sentimentalismo, escutava-se o Grossmüterchen
(Vovozinha) entre uma atenção sonhadora e leve, apenas interrompida por uma
necessidade mais imperiosa: Noch ein, Jacó! [Mais um, Jacó!] Heinz Bittenhader,
com aquele olhar metálico luzindo atrás do pince-nez, ao piano conduzia o trio (o
“Petizono violino, seu Moreira no violoncelo). (...) Restou na memória de poucos o
hino de guerra que, quando a noite se enrolava na madrugada, fazia todos
confraternizarem, alemães e brasileiros (os “nátivos”, como repetia o Pelicheck). A
110
música era do próprio Heinz e a letra o se sabe de quem, mal sobrando estes poucos
versos: Heute gehen wir ins Chalet / zum guten Fritz / in dem schönen Garten ich / am
liebsten sitz / bei dem Chopp so golden klar / welch ein Hochgenuzs für wahr /
Tropenacht, Sternepracht / berühern mir / mit zaubernacht. Papeletas com essa letra
eram distribuídas pelas mesas cobertas de toalhas xadrez e rodelas de papelão. O
curioso é que essa marcha de acentos marciais era cantada com mais euforia pelos da
terra, com a complacente aprovação dos alemães. (...)
Trancrevemos aqui uma observação de Fischer (2006, p. 71) sobre a versão da letra da
música que aparece na citação:
A letra estampada pelo memorialista deixa a desejar em correção na língua alemã
(contamos aqui com a leitura atenta e a tradução do professor Cleo Altenhofen, da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul), mas diz mais ou menos o seguinte:
Hoje vamos ao Chalé
visitar o bom Fritz
no belo jardim em que eu
mais gosto de sentar
com um chopp tão claro e dourado
oh que prazer de verdade
noite tropical, céu estrelado
tocamos nós [apalpamos]
com a mágica noite” .
No geral, diariamente, a vida dos que fazem a história acontecer no romance gira nesse
espaço geográfico. Ali, na redondeza da residência dos Meyer, também está a rua da Praia
34
, por
onde Frida desce para ir até o salão da madame Servine, que fica próximo à praça da Alfândega
35
.
Cabe registrar que a rua da Praia, segundo a pesquisa de Gans (2004), foi a rua de Porto Alegre
onde, até as últimas décadas do século XIX, período em que o comércio da capital se
desenvolveu sob a ação dos alemães, instalou-se o maior número de estabelecimentos e
profissionais teutos. A autora explica: “Neste endereço concentraram-se principalmente teutos
atuantes no comércio de moda e nos ofícios do vestuário, (...) entre vários outros comerciantes,
artífices e prestadores de serviços variados” (p. 43).
34
O nome oficial desta rua é rua dos Andradas, mas se popularizou o zpeua o9( )-84.4157(r)-1.5.429(n)-7.81669(a)-7.816606(a)10.4989(d)-7.81669(a)-7.8166P6(d)4743569(e)-1.88689(r)-1.41569(r)10.9706(i)-6.87329(s)-7.34496()-1989(o89( )2.286069(r)10.9709(i)-19.2575(c)-7.81517(a)-1989(o)-324(z)10.6(p)4.569007(O)3.62714(a)-7.81669(t)-6.87173(g)4.56922(n)4.5720[(T)-8.2869(r)-1.51553(a)-7.816606 )-96.ó.
111
Assim, pelo caminho percorrido por Frida, o romancista apresenta o espaço comercial
dominado pelo trabalho dos alemães. No itinerário de Frida também está a rua de Bragança
36
, em
cuja esquina fica a Masson, loja de ias, objetos pelos quais anseia e que tomam importância no
cultivo de sua vontade de enriquecer.
Também é citado o lugar onde residem os alemães da alta sociedade: “Frida aspirava, em
suas ambições de vida elegante e gala social, chegar-se à parte da colônia que lá pelo Moinhos de
Vento
37
, que levava uma existência de luxo e fortuna, círculo em que a sua situação de falsa
mediania financeira não lhe dava entrada” (p. 8).
Essas redondezas da praça Quinze de Novembro, que nos dão a impressão de serem
habitadas e freqüentadas apenas por pessoas de nomes e sobrenomes germânicos, m sua razão
no mundo real que se formava de alemães ainda antes da virada do século XIX, como descreve
Fischer (2006, p. 39):
A cidade de Porto Alegre contava muitos alemães em sua população, especialmente na
região que começava a se estender justamente da região da Praça XV e do Mercado em
direção ao norte, pela Voluntários da Pátria, o antigo Caminho Novo, rua esta que, por
sinal, era conhecida como “rua dos alemães”, tal a quantidade de casas comerciais e
industriais dirigidas por gente oriunda da imigração teuta. Também era significativa a
presença alemã pelo Beco do Rosário, que viria a ser a rua Otávio Rocha no futuro: por
ali, saindo das imediações da Praça XV, chega-se à atual Senhor dos Passos, onde se
erguia a primeira igreja protestante da capital, e chega-se à atual Alberto Bins, antiga
São Rafael, onde se encontravam instituições profundamente ligadas aos alemães porto-
alegrenses como a Igreja São Joe o antigo colégio, fundado em 1886, origem do atual
colégio Farroupilha. (Quer dizer: saía-se da Praça XV pela Voluntários para o bairro
Floresta e toda a zona operária dos Navegantes e São João o Quarto Distrito —, e
saía-se da Praça XV para o bairro Independência e, depois, para o Moinhos de Vento,
regiões em que passaram a residir os descendentes teutos mais abonados.)
Na Várzea
38
fica a casa de Aguiar, cuja família torna-se muito amiga de Freitas. “A
Várzea, descampado chato e vasto, parecia na sombra densa ainda mais ampla, delimitada ao
36
Atual Marechal Floriano, rua que inicia na praça Quinze; nasceu como Bragança – os primeiros registros
encontrados por Franco (1992) datam de 1785 -; deram-lhe, em 1870, o nome de rua do General Silva Tavares e, em
1893, foi designada rua Marechal Floriano.
37
Moinhos de Vento é um bairro residencial de Porto Alegre tido ainda hoje como habitado por famílias nobres. No
início do século XX, era o espaço onde residiam os alemães ricos da capital.
38
Local hoje chamado Parque Farroupilha, um parque que se tornou um espaço geográfico referencial de Porto
Alegre. Conforme registros citados por Franco (1992), em 1807 era uma área plana e alagadiça situada à entrada do
portão da então vila. Serviu de depósito de animais mortos e de campo de pastagem para os animais vivos dos
carreteiros que vinham até a cidade. Passou por significativas transformações, desde serem enxugadas as águas até o
ajardinamento. Em 1870, Várzea recebeu o nome oficial de Campo do Bom Fim e, em 1884, passou a se chamar
Campo da Redenção. O nome atual foi dado em 1935.
112
longe pelas luzes esparsas do Bom-Fim
39
” (p. 25). Retornando da casa dos Aguiar para a casa dos
Meyer onde mora, Freitas passa pela rua da Conceição
40
.
O Teatro São Pedro, criado em 1858, que ainda hoje é o teatro mais famoso do estado, é
outro espaço referenciado. Ali se apresenta uma companhia alemã de operetas,
dessas que de tempos a tempos, a caminho do Chile e da Argentina, faziam curto pouso
em Porto Alegre desde que o Rosenkrantz, empresário judeu, havia descoberto as
possibilidades da praça. Alvoroçada, toda a colônia germânica despejava-se do
Moinhos de Vento, da rua de S. Rafael e das transversais da Independência para noite
após noite encher o velho teatro, a ouvir na ngua original as operetas de Lehar, pelos
mesmos artistas que as tinham perpetrado nalgum teatrinho dos subúrbios de Berlim
(p.26).
Numa noite, ali se realiza a festa artística de Minna, artista principal do espetáculo. Após,
ela é esperada no Germânia
41
, onde lhe é preparada uma recepção. Do Teatro São Pedro, “uma
fila intensa de automóveis que a buzinar, lentos, serpentearam pela Ladeira
42
abaixo e tomaram o
caminho da rua de Santa Catarina
43
. Iam todos, blico e artistas, desde a ´estrela` até a última
corista, até a orquestra, empilhados, semeando espanto entre os notívagos que perambulavam
pela rua da Praia” (p. 27).
No clube, as cenas de diversão dão forma a um ambiente descontraído, de gente que goza
de liberdade e busca aproveitar ao máximo as possibilidades de descontração. Na festa para
Minna há momentos de auge, como este:
39
Bairro residencial bastante tradicional de Porto Alegre que mantém este nome atualmente. É conhecido como o
“bairro dos judeus”, por ali ter se concentrado o maior número de imigrantes desta etnia que se fixou na capital
40
Conhecida rua de Porto Alegre; foi aberta ainda em 1845, com o nome de rua Nova da Brigadeira. Recebeu o
nome Conceição em 1874, mantido até hoje.
41
Referência à Sociedade Germania, fundada em 1855, em Porto Alegre, sendo a mais antiga sociedade recreativa da
cidade. Era freqüentada pela “elite alemã radicada em Porto Alegre, diferenciando-se, por isso, de outras associações
mais modestas que surgiram mais tarde” (Franco, 1992, p. 195). O autor deste romance, em seu livro de memórias,
assim se refere à Germânia: “A Germânia, com sede luxuosa na Rua Santa Catarina, era o clube seleto a agremiar os
elementos conceituados daquela sociedade exclusiva. Sócios brasileiros, quando elementos conceituados, podiam ser
admitidos no clube aristocrático; mas em categoria especial e inferior: sem direito a tomar parte nas assembléias
gerais nem exercer cargos. Tolerados apenas. Era dos estatutos” (COARACY, 1962, p. 65).
42
A Ladeira é a atual rua General Câmara. Na esquina desta rua com a rua da Praia havia o Café Colombo, outro
espaço famoso das cercanias da praça Quinze lembrado neste romance. Já existia no final do século XVIII, sendo
conhecida pelo nome de rua do Ouvidor. Em 1829, passou a se chamar rua da Ladeira e, em 1870, recebeu o nome
atual.
43
Rua que foi aberta ainda em 1814, na área central. Em 1873, passou a ser chamada rua Dr. Flores, seu nome atual.
Na época em que se passa a história narrada neste romance, a sede da tradicional Sociedade Germânia nele citada
ficava nessa rua.
113
Bebera-se muita champanhe de mistura com muito vinho do Reno e muita cerveja. Frau
Schck atravessava o salão de braço com uma corista, ambas de cigarro na boca, para ir
quebrar taças na mesa da Minna. A Tilde ensinava á Frau Fiedmann a coreografia
canalha da última dança em voga nos bailes públicos de Berlim. Grimm, sob um
pretexto qualquer, passou ao salão de fumar: a mesma atmosfera, a mesma
promiscuidade. Num dos sofás de couro, a Lise Fetter, mulher do Fetter farmacêutico,
no meio dum circulo masculino, a bebericar vinho louro, acompanhava com grande
interesse, a rir, o concurso que na poltrona próxima fôra instituído por uma das atrizes
que entregava os lábios a todos os homens da roda para decidir quem sabia beijar com
mais arte. Exatamente por trás dela, o marido, o Fetter, afundado, e uma corista que se
lhe encarapitara no braço da poltrona, bebiam pelo mesmo copo, fumavam o mesmo
cigarro (p. 28).
O Germânia era o espaço criado pelos imigrantes alemães ricos para se divertirem com
danças, encontros, bebidas. Enfim, pela descrição do romance, ali sempre se vivia a alegria
intensa.
As cercanias do Mercado Público também são consideradas, sendo valorizadas pelas
atividades que ali se desenvolviam: “Rodavam barulhentos pela rua os primeiros bondes de
Navegantes e S. João, a timpanar. A caminho do Mercado descia lenta uma fila de carroças,
transportando montanhas de verdura. Homens rudes, com os casacos atirados sobre os ombros, as
mangas vazias oscilando moles, levando numa cestinha à mão o farnel, passavam a caminho da
Doca
44
, já com uma antecipação de cansaço, olhar impassível, mãos cruzadas no punho do
gládio” (p. 30).
Na época do romance, o atual Mercado Público de Porto Alegre era o que se chamou, na
sua inauguração, em 1870, de “novo Mercado”, sendo ainda hoje um dos espaços tradicionais da
cidade. Antes existira o outro, o primeiro mercado, criado em 1844 e demolido em 1870. A
importância desta oirv81.757(o)-3ci eo,o ris cno65qo65qo65s onrrc
114
p. 25), “com um andar apenas, mas formando o quadrado de área grande, que acolhe bares,
açougues, frutarias, armazéns de secos e molhados, além de restaurantes.”
Os bondes barulhentos a que o romance faz menção são os elétricos, substituíram lugar os
antigos bondes puxados a burro, o que foi uma mudança importante para a cidade na época, como
explica Fischer (2006, p. 43): “Outra mudança importante, agora dizendo respeito diretamente à
região da Praça XV, ocorreu em 1908. Foi neste ano que os bondes passaram a ser movidos a
energia elétrica. Os antigos bondes puxados a burro progressivamente foram perdendo seu espaço
para os modernos veículos, que começavam a impor sua estrondosa presença no centro da capital
gaúcha.”
Erna Lang mora na rua Formosa, que existe ainda hoje no Moinhos de Vento,
pertencendo, portanto, ao núcleo social dos alemães ricos. Firmado o caso amoroso com Freitas,
ela passa a freqüentar um quarto alugado pelo amante na esquina da rua do Arvoredo
45
, de
propriedade de dona Mariquinhas, que ficava no alto da Bronze
46
, lugar
de ruas sinuosas e tristes, de velhas casas de telhados acurvados ao peso das memórias
do tempo em que o bairro dos guabirús tinha pretensões a zona aristocrática, vendo-se-
lhe desenvolver em torno o incipiente Porto dos Casais. Ali restam ainda alguns
sobrados vetustos a atestar a altitude das pretensões. Mas a gloria dessa época passara; a
cidade deslocou-se e os velhos sobrados vão lentamente a se arruinar, entre as casinhas
que se lhes apegam às fraldas, acachapadas, como que encolhidas (p. 34).
O mesmo quarto, tempos depois, viria a ser o lugar dos encontros de Frida com Freitas.
O fato de Erna ter amantes era conhecido de todos, entre os membros da comunidade
germânica a curiosidade era saber quem era o “da vez”. O alemão Stoltz, da fábrica de malharia,
interessado nela, resolve segui-la numa tarde chuvosa em que ia se encontrar com Freitas na rua
do Arvoredo. No episódio, é traçado pelo narrador o trajeto da perseguição: de bonde circular,
Erna vai à rua da Varzinha
47
, quase à rua da Figueira
48
, desce, entra na casa de uma modista
italiana; depois, disfarçadamente, sobe a ladeira do Liceu e percorre toda a rua do Arvoredo, a pé;
45
Rua que, mais tarde, receberia o nome de rua Fernando Machado, sendo assim chamada atualmente.
46
Hoje se chama praça General Osório, nome que recebeu em 1866. Fica na zona central da cidade. Além de alto da
bronze, o espaço foi também chamado de alto do Manoel Caetano, alto do Senhor dos Passos e alto da Conceição.
47
Rua do centro criada ainda por volta de 1810. Seu primeiro nome foi rua Nova da Vargem do Riacho. Em 1827,
passou a ser rua da Varzinha ou Varginha, denominação que mudaria para rua Dona Isabel em 1885. Em 1889, sofre
mais uma mudança, recebendo o nome com que é conhecida atualmente, rua Demétrio Ribeiro.
48
Mais uma rua do centro. Aparece nos registros da cidade em 1820. Foi mantido o nome rua da Figueira até 1874,
quando passou a denominar-se rua Coronel Genuíno, assim chamada até hoje.
115
chega ao beco do Meireles
49
e dali dispara a correr para a casa de dona Mariquinhas. Por causa
disso, Erna Lang exige que o amante arranje outro lugar para se encontrarem, o qual seria o lugar
será o quarto por ele ocupado na casa dos Meyer. Descobertos por Frida, a qual exige que Freitas
cesse tais encontros em sua casa, os amantes vão para a casa da Erna, onde são surpreendidos
pelo marido traído. Este, sabendo de tudo, resolve fazer uma viagem a Buenos Aires com a
esposa para se distanciar das reações dos conhecidos ao acontecimento, com o que tem fim o
romance dos dois.
Na rua da Alegria
50
, não longe da Santa Casa
51
, mora a espanhola Joana Huerta, que
livrara Frida da gravidez.
amante de Freitas e sem preocupação com que a comunidade viesse a saber de sua
forma de vida, Frida exige, certa noite, que passeiem de carro pela cidade com o seu par. Então,
passam pelo Menino-Deus
52
, pela Praia de Belas
53
, vêem “os Navegantes
54
com as chaminés das
suas fábricas destacando-se esguias e negras sobre o fundo claro da noite” (p. 72), seguem por
Santa Teresa
55
, avistam na ilha da Pólvora as Pedras Brancas
56
. Chegando ao alto da Tristeza
57
,
Freitas quer ir aa Pedra Redonda
58
, mas Frida não concorda e ordena ao motorista que a
Teresópolis
59
. Vão, então, em direção ao passo da Cavalhada
60
, percorrem as ruas de Teresópolis,
descem a Azenha
61
a entram na Várzea. “No momento de cruzar a esquina, Freitas viu de súbito
49
Hoje se chama avenida Borges de Medeiros, nome que recebeu em 1925; também se localiza na área central da
cidade. É recente em relação às demais que aparecem na narrativa, pois foi aberta na década de 1920. Antes disso,
era um espaço de circulação bastante estreito chamado rua general Paranhos, um beco que ficou conhecido por três
nomes, cada um se referindo a um de seus segmentos: travessa do Poço, beco do Freitas e beco do Meireles.
50
Rua do centro, cujo primeiro nome foi rua do Arco da Velha; também foi conhecida como travessa de Baixo, rua
da Prisão Militar (designação dada por populares devido à existência, por ali de uma prisão militar) e travessa da
Caridade. Em 1837 começa a ser adotado o nome de rua da Alegria. Em 1870 teve mudado o nome para rua general
Vitorino, o qual se mantém até hoje.
51
Santa Casa de Misericórdia é um dos mais famosos hospitais da capital gaúcha e está em funcionamento desde
1826. Foi o primeiro hospital de Porto Alegre.
52
Bairro residencial na região central de Porto Alegre, no qual está a Santa Casa de Misericórdia.
53
Avenida ainda hoje chamada por este nome. Também se chamou caminho de Belas. Existe desde o início do
século XIX.
54
Bairro da zona norte da cidade onde se concentram muitas das indústrias da capital.
55
Bairro localizado na zona sul da cidade. Pela sua posição geográfica, na qual se inclui um grande morro,
instalaram-se ali os meios de comunicação mais importantes, como rádio e televisão.
56
Local à margem oposta do Guaíba, uma das ilhas desse rio. JosGuimarães também cita esse espaço no romance
A ferro e fogo: tempo de guerra (1975, p. 27), dizendo que ficava ofuscado pelo derrame de luzes e de cores que o
pôr-do-sol produzia sobre ele.
57
Bairro residencial que tem um de seu limites nas margens do rio Guaíba.
58
Bairro da cidade próximo ao Tristeza, também se limita com o rio Guaíba.
59
Bairro residencial próximo ao centro da cidade, no sentido da zona sul.
60
Hoje se chama bairro Cavalhada e fica na zona sul de Porto Alegre. Nele há a importante avenida Cavalhada.
61
Trata-se da atual avenida Azenha, já chamada de caminho da Azenha e rua da Azenha.
116
surgir sobre o carro, enorme, a massa iluminada dum bonde que vinha em disparada pela rua
Venâncio Aires
62
, a recolher. Ouviu o brado de terror do motorista e ao mesmo tempo, sentia-se
atirado ao longe, por um choque formidável, no meio dum desmoronamento em que ele teve a
impressão última dum grito estrídulo de Frida” (p. 73).
Diante da exposição pública do caso amoroso, Freitas julga por bem mudar-se da casa dos
Meyer, passando a residir “na casa da Louise, uma manicura francesa que morava ao fim da rua
da Igreja
63
, quase à praça do Portão
64
(p. 74). Faz suas refeições no “Club do Comércio
65
,
querendo fugir por algum tempo à Germânia, evitar a curiosidade dos que teria de encontrar”
(p. 75)
Um ponto da rua da Praia foi o marco da decisão de Freitas de abandonar Frida. Numa
ocasião em que por ali passeiam, encontra Marieta Lins, a quem preza muito, bem como aos
outros membros da família Aguiar. Esta, sabedora do caso que o envolvia, ignora-o. “Foi para ele
um rude abalo” (p. 75). Após, segue até a rua Santa Catarina.
Em outra rua aparece-lhe a solução esperada. Freitas segue pelo Caminho Novo, vindo da
Estrada de Ferro
66
, e encontra Germano Weiss. Este chega à praça dos Bombeiros e entra num
hotel, onde Freitas o procura e propõe-lhe que se case com Frida em troca de dinheiro.
Após o casamento, Frida e Freitas encontram-se às escondidas às vésperas de ele
embarcar para o Rio de Janeiro. Da esquina da rua Tomaz Flores
67
com a Bom-Fim
68
seguem
para o Montmartre, um restaurante noturno estabelecido na Praia de Belas. À hora da saída, são
surpreendidos pelo alvoroço causado por um incêndio na região onde se concentram os alemães,
provavelmente uma vingança contra a comunidade germânica por causa da guerra: “Na sombra
62
Importante e conhecida avenida dos bairros Cidade Baixa e Santana. Foi aberta em 1845, tendo recebido o nome
de rua da Imperatriz em homenagem à imperatriz do Brasil Tereza Cristina, que veio ao Rio Grande do Sul com o
seu marido, o imperador dom Pedro II. Esta e a rua do Imperador (hoje rua284(d)-7.8195(n)-3.71693(h259(e)-1.886847o)-7.81517(m)-2.30115 222.96 283.60.0846( .96262(m(0284(R)-1.81517(e)-1.8Td[(r)-1.)669(o)-7.81669(r)-1.4f689(d)-7.81517(r)-7.81669(o)-7.8-7.8195(n)-0299(e)-1.88689(m)-8.81517(e)-1.86877(a)-1.88689(r-7.34496(t)-6.8.5563(i)-19.259(d)-7..6442(E196.2369(e)-1.28366(o)]TJ219(o)-7.813284(c)10.-7.8195(n)-3.71693(h25é259(d)-7.p6603(i)5.515603(i)5.51517(e)-1.8Td24(n)-7.81669(a)-1.88262(m)17.2.9993)250]TJ-427.47o)-7.8151449 -11.16 7173(m)-14.6884(r)-1.41599(b)-7.8159( )-72..259(d)-7.l517( )-47.2584(I)-1.41517(m)-2.30116(ea)10.4989(n)4.57057(t)-6.87176(m)--3.7167(i)-6.87173(d)-7.81669(o)-7.8-7.8195(n)-81517(m)10.1669( )-72.0284(r)-1.41517(e)-1.88689(c)-1.88689(a)-1.88689(g)4.58689( )-59.81517(m)10.-7.8195(n)-81517(m)10.6442(a)-1.8159( )-60.9706(22.88689(c)-1.87057(r)-13.8009(t)-6..8009(o)10.81517(m)10.888 -11.28 Td59(d)-7.l517( )-47.47o)-7.815144706(i)-181669(a)10.4989(m)-8.81012( )-590299(e)-1.88689(m)-8.86869( )-47.2569(1)-7.82569(1)-7.89284(S)-1.72689( )]TJ1669(a)-1.88689(,)2.21517(e)-1.81517(r)-7.87057(e)-1.88686(i)-6.87324( )-59.88689(,)2.2p517(r)-7.81669(o)21.82944(i)-6.81517(e)-1.8l906(e)-1.8009(t)-6.0299(e)-1.87324( )-59.ç324( )-59.ã517(e)-1.81517(r)-7.87324(z)-1.88689( )-72.7324( )-59.88689(,)2.29(e)-1.886847o)-7.81517(m)-2.30115 m)-2.3011b706(r)-13( .96262(m(0284(R)-1.81517(e)-1.8Td24(n)-7.816669(a)10.4989(.)-10.a517(e)-1.8l9259(s)50997( )-47.2569(t)-198689(d)-7.815.60.0846u689( )-7(-877(a)-1..6442(E)4.07057(t)-6.87176(m)-2.30418(a)-1.8866(m)-2.35125(i)-6.8.6427(n)4.5727(e)-1.88669( )-4 )-767(a)]TJ2589(,)2.2p517(r))10.-7.8195(n)-1669(o)-7.8-7.8195(n)-81517(m)7.81669( )-72.u3284(c)10.-7.8195(n)-3.142(o)4.571( )6)250]TJ-425.V)3.6271.4151745(e)630116(ea)10â517(m)-2.3018 -11.28 7057(e)-1.88689(c)-1.81517(r)-1.415528( )2.A706(-1.7.8159( )-72.1669( )-72.0284(r)-1.4.9706(22.8;159( )-72.28453( )2.e009(t)-6.0299(e)-1.8 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7/99.56603(i)5.51669(u)-7.8184(S)-1.96299(o)]TJ8689( )-72.0292(r)-1.8869(u)-7.816[(,)-3.d292(r)-1.8869(u)-7.81142(o)4.533.212)250]TJ-427.6442(I)-1.4g5.60porr o ruoraa22.80997( )-72.ê517(m)-2.3018 -11.28 7099(b)-7.81517(a-13.80o)-7.815128453( )2.éd[(s)-7.3 669(a )2.1669( )-72.0284(r)-1.4g442(a)-1.8157(r)-13.449 -11.16 7057(r)-13.8689( )-594496(t)-6.8.5563(i)10.-7.8195(n)-3.77(o)-7.8 Td[(B)10.5509(a)-1.018 -11.28 1517(i)-6.87173(d)-7.815453( )2.e073(d)-7.80299(e)41.07369(a)-1.6869( )-47.75.60F1a 9(e)1715(o)]TJL012( )-592944(i)-6.81517(e)-1.8a517(e)-1.8l9259(s)56906(e)-1.1517(e)-1.88689(z)-74(-877(a)-1..6706(i)-1e7.8195(n)-3.77(oa)10.5125(i)-6.8.6427a)-1.8867(oa)10.1517(e)-1.88689(c)-1.81517(a)-1.41517(a)10.4977(a)-1.1517(r)-7.87327(oa)10.2689(n)4.54496(t)-6.87369(a)-1.1599(b)-7.81259(s)52689(n)4.54496(t)-6.82689(n)4.56906(d)-7.81517(I)-03.71693(283.28 Tm( )Tj/R7 6.30708 Tf0.99198 0 0 1 529.8 276.68 4m[(6)-14.0216(2)500]TJ/R7 9.6942 Tf0.99197(o0 1 500.88233.0868P689( )8)-381517(e)10.4989(r)-13.ç517(e)-1.8a517(e)-1.8.88233.08689706(i)-6.87173(d)4.5.88233.085.1517(e)-1.88689(c)-1.81517(ea)10.497( )-72.1669( )-72.87173(d)4.5.8453( )2.284920.)50.08463.7436 Td[(s)-7.3l509(a)-1.87173(d)4.5.88233.085.018 -11.28 6442(d)-7.81517(o)-7.e517(e)-1.8.88233.083.7167(i)-6.81669(o)-7.8-7.8195(n)-ç517(e)-1.8a517(e)-1.8.88233.08541517( )-59.6442(d)-7.8732233.083.08463.7436 o5.60F aeroez81517(e)10.4989(r)-13.8184(S)24.1789( )]TJ1517(e)-1.8h6689(i)-19.259(x)4.57057(e)-1.8.296(t)-6.8.5689(n)4.54496(t)-6.8732233.083.e689(z)--6.0299(e)-1.8 51233.083.6869( )-47.25689(i)-12569(1)-7.892689(i)-1;159( )-.8732233.083.e689(z)--6.0299(e)-1.8 51233.083.6869( )-47.2569( )-47.7506(r)-133569( )-47.16669(a)10.498920.e e q-877(a)-1..6442(E)4.07057(t)-6.8717233.083.7167(i)-7.81669(o)-7.8-7.8195(n)-ç517(e)-1.8a517(e)-1.8.88233.0834g442(a208.30116(p)4.55125(i))5.516.8195(n)-1669(o)-7.8-720.9,
117
da janela donde ouviam sem ser vistos, Frida agarrou-se, trêmula, ao braço de Freitas e pôs-se a
soluçar baixinho” (p. 91).
Além de Porto Alegre, são citados alguns outros locais de onde certos personagens vêm
ou para onde se deslocam: Santa Cruz, cidade do interior do Rio Grande do Sul, de onde vem
Germano Weiss; Rio de Janeiro, cidade de Henrique Freitas, capital do estado do Rio de Janeiro;
Buenos Aires, capital da Argentina, para onde vão alguns alemães, como Weiss e o casal Lang, e
a Alemanha, país europeu, pátria-mãe das principais personagens do romance.
3.2.4 – Contatos
Meyer, viúvo e com o dinheiro da venda da loja, busca o contato das caixeiras em
botecos. Quando ali encontram outros alemães, estes não fazem questão de tê-lo em suas mesas:
“Buscava chegar-se, às vezes, às mesas dos patrícios, mas sentia-se acolhido com indiferença e
descaso. Recuava ante a agressividade dos monossílabos com que lhe respondiam, constrangidos,
os outros. Era um vencido e bem sabia que a sua gente, pelo próprio culto da força que professa,
sorri, prazenteira e obsequiosa, aos vencedores, os de negócios aparentemente prósperos” (p.
5).
Frida tem poucos contatos. Da época da escola é mencionada sua amizade com Erna
Busch, que depois vem a ser Erna Lang. Agora adulta, Frida tem seus contatos restringidos aos
membros da família e hóspedes da casa. “Conquanto vivessem em bons termos com a colônia
alemã, as suas relações eram muito limitadas; estavam os Meyer quase isolados desde muito
tempo, e a não ser os cumprimentos trocados de passagem ou as palestras de cortesia nas raras
festas a que iam nos clubes germânicos, não cultivavam conhecimentos; não tinham íntimos” (p.
8).
O primeiro pensionista de Frida Meyer é Henrique Freitas,
o gerente da filial recentemente estabelecida de Ramos, Freitas & Cia., firma fortíssima,
do Rio. Irmão dum dos sócios, interessado ele próprio na casa; diziam conversas de
caixeiros-viajantes que a sua vinda para gerir a nova filial era uma espécie de exílio
que lhe aconselhara o irmão mais velho em vista de certa aventura escandalosa em que
se tinha achado envolvido no Rio. Uma cousa era certa: tinha dinheiro, fortuna própria,
e sabia gastar (p. 8).
118
O segundo pensionista, uma mulher, é madame Servine, dona de um salão de beleza. O
terceiro é Germano Weiss, arquiteto formado na Alemanha. “O acaso dos anúncios o tinha
conduzido à pensão dos Meyer, e como pertencesse à raça privilegiada
69
passou rapidamente a
ser considerado quase membro da família” (p. 9).
Freitas não gosta do contato com o “alemãozinho”, como chama para si próprio a
Germano, o qual lhe vivifica a imagem que tem gravada dos alemães:
Chegando ao Sul fora, como todo o recém-vindo de outros Estados, tomado de violenta
repulsa por aquele tipo, para ele desconhecido, de brasileiros natos que ignoram a
língua do país, que não perdem oportunidade de manifestar o seu superior desdém por
tudo quando é nacional e que se dizem, ainda na terceira e quarta geração, alemães,
olhos voltados para a “Grande Pátria” de além-mar, todas as ambições para volvidas,
de recebendo todas as inspirações e todas as idéias, enquanto prosperam na
desprezada terra que lhes é berço e que lhes vida
70
. A essa antipatia geral juntava-se
no caso de Germano Weiss uma quase aversão pessoal. O rapaz tinha tal modo de falar,
evitando o olhar do interlocutor, certa forma imprecisa de se exprimir e que se refletia
em todas as suas atitudes e até no caminhar, a passos macios, hesitantes quase, que todo
ele traduzia dubiedade. Freitas estava convencido de que o seu caráter posto à prova
havia de revelar jaças formidáveis (p. 11).
Entretanto, esse seu pensamento não se trata de uma generalização irrefletida; toma, antes,
modos de ser conhecidos de grande parte dos de descendência alemã. Muitos de seus bons
contatos em Porto Alegre são com pessoas da comunidade germânica. Artur Grimm, por
exemplo, surge como um seu conhecido, a dar-lhe informações sobre Erna Lang, mulher casada
com quem viria a ter um caso amoroso mais tarde. Grimm também lhe explica quem é a senhora
que está em companhia de Erna:
--Ah! É a Frau Ritter, a senhora do Ritter da fábrica de chapéus. Modelo de mãe de
família, senhora honestíssima...
--E anda assim em tanta intimidade com a outra cuja reputação pelo que vodiz não
vale dois corações...
--E não vale mesmo. Mas que tem isso?
69
Fischer diz que, com a expressão privilegiada, “um pouco talvez por ironia, outro pouco talvez a sério, o narrador
repete aqui a idéia de que o povo alemão teria qualquer virtude superior; é de lembrar que o romance é anterior à
Segunda Guerra Mundial, quando tal idéia racista encontrou uma realização tragicamente assassina, com o nazismo
(Notas à segunda edição da obra que está sendo preparada).
70
Fischer considera que “toda essa passagem resume um sentimento realmente ativo no país, por esta época e depois,
especialmente na altura da Segunda Guerra (1939-1945): a sensação que os luso-brasileiros tinham a respeito dos
teuto-brasileiros, estes muitas vezes considerando-se pouco ou nada brasileiros (falava-se apenas alemão em várias
cidades, incluindo em vários grupos de Porto Alegre) e achando-se algumas vezes superiores àqueles, por outro lado
aqueles julgando que tal suposta superioridade era um escárnio, porque afinal todos viviam era aqui mesmo. Aqui,
Freitas e Germano resumem as duas posições, segundo o ponto de vista do narrador, que expressa uma percepção
bastante freqüente sobre tal circunstância” (Notas à segunda edição da obra).
119
--É que me parece que uma senhora exemplar, como Você diz, com amor ao seu bom-
nome, não deveria gostar de ser vista em companhia de pessoas com a fama que Você
empresta á tal Lang.
--São as melhores amigas do mundo. Este Freitas está me saindo mesmo ingênuo...
--Pode ser; mas ha cousas que nunca fui capaz de compreender muito bem. Estes seus
patrícios, Grimm, têm uma concepção de moral deferente da nossa...
Segue entre eles uma interessante discussão sobre a presença alemã:
-- “Nossos” patrícios, se me faz favor. A Erna nasceu aqui em Porto Alegre, Frau Ritter
é de S. Leopoldo, o Lang é de Montenegro e Moritz é também de Porto Alegre.
-- “Nossos” patrícios! Não posso me conformar com o admitir que esses nomes de
Ritters, (p.39) Langs, Mayers, Wolffs e quejandos sejam de brasileiros, com todas as
suas Frauss “Frau Doktor”, “Frau Direktor”, “Frau Konsul” e não sei mais o que... Pois
isto é Brasil?
--Na lista dos nomes você esqueceu-se de incluir os Grimms.
--Desculpe; mas você é uma exceção e se eu não o considerasse como tal, não teria me
externado com tanta franqueza. Andam aqueles idiotas no Rio a falar em perigo
alemão, vendo-o na possibilidade duma remotíssima tentativa de anexação de territórios
em Santa Catarina. Que venham cá para ver o que é “perigo alemão”; para verificar que
já o temos em casa, a crescer de dia a dia.
Freitas elabora um discurso de desabafo, externando a sua contrariedade ao modo de ser
de parte dos imigrantes alemães, expressando uma interpretação do futuro nacional marcado por
uma suposta intenção internacional:
--Onde é que você vê o perigo alemão?
--O “perigo alemão” é esta nucleação dum corpo estranho dentro da nossa
nacionalidade a produzir fatalmente no futuro a heterogeneidade da raça. Vi os italianos
em São Paulo: como os portugueses do Rio, eles ao fim da segunda geração estão
assimilados. O alemão não. Moro agora numa pensão de teutos e faço observações
diárias. Esta gente ao fim de não sei quantas gerações é tão alemã como os
antepassados que para cá vieram; não se amalgamam, não se absorvem na
nacionalidade; conservam a língua, os hábitos, as idéias, os costumes, tudo o que lhes
foi transferido no sangue. Nascem aqui, vivem aqui, aqui morrem sem nunca ter
transposto a barra do Rio Grande, mas são alemães até os fundilhos da alma... Haverá
raríssimas exceções, como você, mas o conjunto é isto que digo: um elemento nocivo
para a uniformidade nacional. E o que não posso suportar-lhes é essa arrogância, esse
desdém que não se dão ao incômodo de disfarçar e com que tratam tudo o que é
genuinamente brasileiro. Nós somos os indígenas e eles consideram isto aqui uma
espécie de Cameroun...
Por essa voz, Coaracy traz presente uma campanha deflagrada no Brasil contra o chamado
“perigo alemão”, conversa que andava por aqui há bastante tempo. Segundo Gertz, essa
campanha teve o seu auge nos vinte anos que antecederam a I Guerra Mundial. Surgiu baseada
120
“no pressuposto da existência de fortes interesses imperialistas da Alemanha em relação ao Brasil
e no papel que, para a concretização desses interesses, teria a população de origem alemã no país
em especial a dos estados do sul” (2002, p. 124).
Pode ter sido apenas uma fantasia, como disse o tenente J. Nunes Ferreira em O Echo
(apud GERTZ, 2002, p.129): “Quanto ao apregoado perigo alemão, ele jamais passou de uma
lenda inteligentemente explorada pelos seculares inimigos da Alemanha.” Contudo, muitas foram
as ações praticadas pelo governo brasileiro contra a população teuta com a determinação de
eliminar a ameaça do “perigo alemão”.
Outro passo de encontro com essa realidade ou idéia que se viu como verdade foi dado
pelos intelectuais intérpretes da relação Brasil-Alemanha, os denominados “francófilos”
brasileiros, como também pela imprensa, durante a Primeira Guerra. Com eles, tomou forma um
debate sobre o incômodo assunto, tendo do outro lado os germanófilos”, que se posicionavam
contra as acusações aos alemães. As complicações aumentaram quando os dois países entraram
em conflito aberto. Com isso, além da discussão em livros e protestos públicos, a população de
origem alemã que vivia no Brasil passou a ser o alvo real da campanha dos nacionais contra o
perigo alemão, sofrendo atos de violência nas mais diversas instâncias - culturais, materiais e até
pessoais (GERTZ, 2002).
O tema da assimilação é abordado por Coaracy por meio das vozes de Freitas e Grimm.
Este diz:
- (...) Para que o elemento germânico seja absorvido pela nacionalidade brasileira e a
esta se assimile, a única cousa precisa é o cruzamento.
--O cruzamento?...
--O cruzamento, sim. Todos aqueles que citei, os Voigts, os Grimms, os Brenners e
muitos outros que poderia apontar, contam, entre os seus ascendentes recentes, uma ou
mais brasileiras, mulheres de sangue português próximo ou remoto, ou, como dizem os
teutos puros, “luso-brasileiras”. Está o segredo da assimilação desse elemento
indigesto. Entendeu? E’ por isso que somos tão brasileiros como o Paiva e o Silva
filhos de pais brasileiros e que você nunca suspeitou que tivessem cinqüenta por cento
de sangre germânico.
Grimm complementa suas explicações com uma referência àqueles que se mantêm em
casamentos com pares da mesma raça: “Aqueles insuportáveis teutos do Moinhos de Vento a que
você se referia e que merecem em grande parte a sua objurgatória, na sua maioria descendentes
enriquecidos de imigrantes sem cultura, são produtos de intercruzamento no núcleo colonial,
sempre dentro da raça” (p. 16).
121
Freitas alarga seus contatos com os teutos quando entra para o Germânia, o que consegue
com a ajuda de Arthur Grimm. Na proposição feita por este são explicitados mais conceitos sobre
os alemães imigrantes:
--Pois então proponha-me para sócio.
--Você sujeita-se às condições?
--Que condições?
--Não sendo descendente de alemães, você será admitido numa classe especial de
sócios; terá que pagar uma jóia mais elevada, não poderá exercer cargos e nem tomar
parte nas assembléias deliberativas. Não terá voz ativa enfim...
--Mais um desaforado exemplo do exclusivismo desse pessoal. Grandes patifes! (p. 17)
Na passagem
Ernesto narrava, à hora do almoço, uma série de dificuldades que a casa onde
trabalhava estava encontrando na Alfândega a propósito de qualquer irregularidade de
faturas consulares. Foi o mote para Weiss desdobrar uma crítica violenta às repartições
públicas, com afirmativas da venalidade de todos os seus funcionários e arrematando
como sempre por formular comparações com casos análogos na Alemanha, cujas
instituições exaltava (p. 18).
encontramos uma forma de pensar que sugere, entre outras coisas, oposição à organização do país
onde o teuto mora, o que leva Freitas, ora representante dos brasileiros, a se incomodar com os
sentimentos manifestados pelo discurso do outro.
No Germânia Freitas encontra-se com Frau Lang. A conversa inicial, acalorada, vai
embasar um relacionamento amoroso, vindo Freitas a ser o sucessor de Moritz na lista de
amantes dela. É uma atitude imprudente da alemã, na visão dos seus pares étnicos, pois “o Freitas
não era um deles com quem essas cousas ficavam como que em família!...” (p. 48).
Um embate de grandes proporções e de conseqüências mais drásticas nos contatos dos
alemães com os brasileiros é representado quando estoura na Europa a Primeira Guerra Mundial.
O narrador, em tom de notícia, anuncia os principais fatos que dão início ao acontecimento
trágico que, embora mantido nos limites da Europa, teria extensas repercussões por todo o
mundo. Diz ele: “Rompera na Europa a guerra. As falanges alemãs, esmagada a resistência da
Bélgica, entravam no território da França como uma cunha irresistível. Os regimentos gauleses
em retirada desordenada, o governo da república transferido para Bordeus, a Inglaterra tardia e
lenta em seus aprestos, o exército de von Kluck a cinqüenta quilômetros de Paris, tudo
122
pressagiava a vitória fulminante das hostes germânicas” (p. 44). Essa expectativa de vitória era
expressada pelos germânicos de Porto Alegre, o que causava repulsa nos luso-brasileiros,
apoiadores dos Aliados. Freitas, nesse momento, demonstrando preferência pela vitória da
Alemanha, impressiona-se com “a arrogância, o orgulho que eles manifestavam, sem rebuços, a
todo propósito desde o começo da guerra” (p. 45). Isso era atitude clara dos grupos exclusivos da
raça que se dizia superior, quer estivessem no Germânia, quer nos bares que circundavam a praça
Quinze ou em qualquer outro lugar em que viessem a se reunir. Enfim, suas falas e seus gestos
certificavam a idéia formidável que criavam, a do triunfo, a do vencer, o que tornaria aqueles que
eram “os diferentes” em termos de etnia submissos a eles.
Reforçando as referências sobre os comportamentos assumidos pela colônia ale de
Porto Alegre diante da guerra e da pretendida posição de todos que tinham sangue germânico
sobre o mundo, encontramos na narrativa uma relação de sobrenomes alemães a dar realismo às
possíveis conversas de bar ou de restaurante. No Viena, Margen, Stoltz, Theler, Mons, Schack,
Diedmann, Loew, Hartamnn, Rapp o von Lindeberg, Sarakowsky e Ritter formam um grupo que
se reunia todas as noites, ao qual se incorporou Weiss. Em meio a inúmeros chopes, vinhos do
Reno e cantando o Deutschland über alles, celebram por antecipação o destino da raça sagrada.
A idéia de superioridade e orgulho da etnia, como que se aproveitando dos sucessos da
guerra para se exporem de forma clara como os eleitos dentre os outros, é notoriamente insistente
no romance. Possivelmente, com isso, ironizam-se fatos que se sucederam no interior da
sociedade teuto-gaúcha se sucederam na época, pois, diante da afronta ao Brasil por parte da
Alemanha, com o torpedeamento de um navio brasileiro por seus submarinos em águas de
França, recolhem-se dos costumeiros locais públicos de encontro os até então autodenominados
“superiores”, como observamos nesta cena que se passa no Clube do Comércio: “No salão ao
lado os bilhares abandonados pelos jogadores habituais, com as bolas esparramadas sobre o pano
verde e os tacos cruzados, exprimiam naquele descaso a preocupação que dominava os espíritos”
(p.88).
A questão é que os contatos dos alemães com os brasileiros não resultam mais em outra
coisa senão em agressões verbais, físicas, materiais. Numa exultação do patriotismo e em nome
da honra nacional, os brasileiros revidam às afrontas que os admiradores do Kaiser vêm causando
à bandeira nacional. A praça da Alfândega torna-se local de organização e discursos, esses que
123
inflamam os ânimos da multidão a ponto de esta cometer uma barbárie: incendiar as casas dos
alemães. Então, o que se vê nos céus da região da praça Quinze é aterrorizante:
À beira-rio, no porto, um incêndio formidável atirava para as nuvens labaredas que
jorravam, serpentiformes, entrelaçadas num delírio raivoso, extinguindo-se para ser logo
substituídas por outras nguas retorcidas que cortavam em golpes fulvos o negrume do
fumo espesso. O céu encima e o rio embaixo refletiam por uma larga extensão o clarão
vermelho do braseiro gigantesco que iluminava intensamente as embarcações mais
próximas, recortando-as vividamente contra o fundo trevoso da margem oposta. Noutros
pontos da cidade, duas fogueiras mais, enormes, atiravam para o espaço nguas de
chamas intensas (p. 90).
O incêndio da beira do rio da casa Bromberg, cujas chamas atingem os prédios vizinhos,
toma conta de todo o quarteirão. Outro incêndio que se mais no alto ocorre na Germânia.
Franco (1992) registra que a sede do clube ficava na rua Dr. Flores e que, de fato, foi incendiada
e saqueada por ocasião de manifestações antialemãs de 14 a 16 de abril de 1917.
Esse episódio, que finaliza a narrativa de Frida Meyer, lembra, então, os conflitos
acontecidos entre os cidadãos de Porto Alegre que defendiam a causa dos Aliados e os de origem
alemã que eram favoráveis às ações da Alemanha na guerra, foramando duas correntes de opinião
antagônicas. O próprio Coaracy, em seu livro de memórias, lembra a explosão popular que
irrompeu nas ruas de Porto Alegre quando os submarinos alemães atacaram os navios brasileiros:
“A fúria desvairada da multidão, incitada pela veemência sugestiva de oradores de comícios
improvisados nas praças da cidade, derramou-se em incontida violência pelas ruas, cevando-se no
incêndio e destruição de propriedades dos alemães” (COARACY, 1962, p. 150).
Em seu livro de memórias, o escritor registra que esse momento de explosão resultara de
um período anterior de preparação, no qual o grupo que ficara do lado dos Aliados, formado
pelos de origem não germânica, acompanhava as manifestações do outro grupo, formado não
exclusivamente pelos alemães e seus descendentes, pois alguns brasileiros genuínos
manifestavam-se simpáticos à Alemanha, por razões sentimentais(convívio, amizades, laços
fam23798(i).476(g)26299( )-150.45(e)1.96262(s)-1.636351-11.9163( )2502(m)7.0047(i)0.441715(z)-8.3173(a)1.966(à)1.96388( ) imn à e al pr A lda to de(o)6.5655(n)-3.71443(f( )3.28275(d)-3.71693(o)6.56299((,)3.28275( )-634.072(p)) )
124
Em Porto Alegre os elementos germânicos festejavam, na Germânia, seu clube social,
com grande pompa, as vitórias dos exércitos que invadiam a Bélgica e se aproximavam
de Paris. Contavam com o triunfo rápido e decisivo. Promoviam subscrições e
quermesses em favor da Cruz Vermelha alemã e celebravam com ceatas ruidosas no
Restaurante Viena as notícias divulgadas em boletins mimeografados. Não ocultavam o
soberano orgulho de que estavam possuídos, sem perceber que essa atitude arrogante
estimulava a hostilidade latente já antes existente entre grande parte da população
genuinamente brasileira.
Quanto às ações do grupo oponente, Coaracy observa que não atacava diretamente:
Os elementos favoráveis à causa dos Aliados mantinham conduta mais discreta, de certa
tolerância, tornando possível a coexistência sem conflitos das duas correntes de opinião
lado a lado. Mas a intensa propaganda dos Aliados, cuja causa era francamente esposada
pelo Correio do Povo, o órgão de mais acentuada influência sobre a opinião pública,
calava fundo no sentimento da população, estimulando e acirrando antagonismos”
(COARACY, 1962, p. 150).
Entretanto, este grupo de brasileiros agiu com furor quando o Brasil foi atingido pelo
ataque aos seus navios:
Massas populares, conduzidas e incitadas por agitadores que sempre surgem nessas
ocasiões, despejaram-se pelas ruas de Porto Alegre, em fúria de destruição, atacando,
invadindo, dilapidando, saqueando as propriedades dos alemães. Lojas foram
devastadas; residências familiares, apedrejadas. Para culminar, surgiram os incendiários.
Foi devorado pelo fogo quase todo um quarteirão da Rua Sete de Setembro, pela
propagação do incêndio ateado nos armazéns de Bromberg & Cia. Da sede luxuosa da
Germânia sobraram as paredes calcinadas. As chamas destríram um hotel na Rua
Voluntários da Pátria e os pavilhões da Turner Verein. A turba ululava, misturando o
hino nacional com os impropérios.
As autoridades omitiram-se. A população agiu com plena liberdade. Entendeu Borges de
Medeiros que a explosão das massas servia de advertência e escarmento à orgulhosa
coletividade germânica. Teria as suas razões, de ordem política. Quando, porém, ao cair
da noite lhe pareceu bastante a amostra do que era capaz o povo, mandou soltar na rua a
Brigada Militar. E, dentro de duas horas, estava restabelecida a ordem, a cidade calma e
silenciosa. os cavalariano da Força Pública patrulhavam, vigilantes, as ruas desertas
(COARACY, 1962, p. 72-73).
Contemplando essas reações de ambas as partes, situando-as como um desencadeamento
do clima da guerra que exacerbava as paixões, o romance de Coaracy faz a transposição dos fatos
de Porto Alegre com evidente fidelidade ao que o autor via e entendia na época. A ficção, pois,
consegue contextualizar sentimentos provocados e rompimentos estabelecidos.
Em Frida Meyer, os contatos dos teutos representados ocorrem, preponderantemente,
125
3.3 – Um rio imita o Reno
- Não suporto a idéia de ver-te casada com um homem
de raça inferior. Era só o que faltava.
Clodomir Vianna Moog
Em 1939 um livro que surpreenderia os leitores pelo acerto, ou afronta, da temática em
relação ao mundo real. Era a expressão de uma voz solitária no meio germânico do Rio Grande
do Sul, que se ligava diretamente a um amplo contexto situacional que se alastrava para, poucos
anos depois, desde a Alemanha, envolver todo o mundo. Era o contexto das vésperas da Segunda
Guerra Mundial, no qual o obcecado governo que provocou seu início creditou a toda a
Alemanha e a todos os seus descendentes, como aos nossos chamados “teuto-brasileiros”,
conceitos e preconceitos firmados na barbárie. Da mesma forma, foi o contexto que encorajou
alguns teuto-gaúchos a agirem como se a sua supremacia sobre as demais etnias fosse
inquestionável, pensando que as ações comandadas pelo líder por eles reverenciado, Adolf Hitler,
tornariam infalíveis seus poderes sobre a humanidade.
O que se propagava sobre a humanidade pertencente ao lado ocidental do mundo era, sim,
uma força emitida pelas ões e palavras de Adolf Hitler, a qual, ao mesmo tempo em que
alcançava o vigor para alguns desejosos do aniquilamento dos outros, condenava ao sofrimento e
à morte a grande massa populacional rotulada de inferior. Era isso que se desenhava no ano de
publicação do livro, como analisa Fischer na “Apresentação” à edição de 2005 de Um rio imita o
Reno (p. 6):
Hitller lidera uma escalada impressionante na Alemanha, recuperando a economia do
país ao custo de apelar para um obscuro porão da identidade germânica a pureza
racial e de perseguir os judeus, tidos como responsáveis pelas mazelas do país. Por
aqui, muitos descendentes de imigrantes alemães assistem ao espetáculo europeu com
entusiasmo pela recuperação da antiga pátria, a Vaterland, que de fato havia sido
humilhada no acordo que selara a paz da I Guerra, o Tratado de Versalhes. E alguns
poucos, extremados, esposam aqui o ponto de vista racista de Hitler e seus asseclas.
126
Nesse sentido, o mundo pensado pelo romancista ganha forma por um enredo do que
acontece enquanto escreve, ou seja, mais uma vez, é com o presente que o autor lida em seu
discurso, como haviam feito Caldre e Fião A divina pastora - e Vivaldo Coaracy Frida
Meyer. Aparecem imbricados profundamente, portanto, no seu texto, dois mundos daquele
presente, o mundo interno do romance e o mundo externo delineado pela política de uma nação,
dada pelo seu governo, em relação a outras nações.
Disso resulta uma história ligada a uma realidade extraliterária por um nexo bem
determinado, qual seja, as interferências do pensamento alemão dominante durante a Segunda
Guerra na comunidade germânica estabelecida na região de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul,
abordando a questão do racismo e da miscigenação. Essa questão é apresentada por meio de uma
“história de amor contrariado por preconceitos de raça”, como o próprio autor diz ao comentar o
assunto de seu livro no texto “Breve história de um romance”, incluído na edição de 2005 (p. 15).
Trata-se de um amor que nasce entre um rapaz brasileiro, da Amazônia, e uma jovem alemã,
habitante da fictícia Blumental, cidade germânica para onde ele viera a fim de, como engenheiro
sanitarista, construir uma hidráulica para tratar a água consumida pela população. No entanto, em
detrimento desse amor, sobrepõe-se o pensamento racista da família da moça.
Blumental é a São Leopoldo das décadas de 1920 1930, como afirma o historiador
Martin N. Dreher (2006, p.5): “Vianna Moog leva-nos para Blumental, indiscutivelmente, São
Leopoldo. Aqui uma hidráulica em construção, um Seminário de Formação de Professores
protestantes, uma igreja protestante de interior lúgubre, com relógio que bate de quinze em
quinze minutos, pastores protestantes, uma Sociedade Ginástica, indústrias alemãs”.
A hidráulica, motivo da vinda do protagonista Geraldo Torres para a cidade sulina não é,
então, uma invenção alheia à realidade. De fato, em 15 de maio de 1925 começaram as obras da
Hidráulica da São Leopoldo, na administração de João Corrêa. O sistema, quando pronto, possuía
16.748,09 metros de canalizações e um reservatório para 120 mil litros. Saturnino Britto elaborou
o projeto, Antônio da Siqueira fiscalizou a obra em nome do governo e os engenheiros locais
Alíbio Webwe e Rodolpho Laydner Filho executaram-na. As pessoas apontadas como
responsáveis pela conquista, por terem lutado para a concretização dessa necessidade dos
cidadãos, foram Corrêa e Frederico Wolffenbüttel, seu vice (GERTZ, 2002, p. 196).
O livro resultou num grande sucesso tão logo foi lançado. Teve duas edições no ano de
1939, com a primeira, de mais de cinco mil exemplares, esgotando-se em três semanas, como o
127
próprio Vianna Moog informa em seu “Breve história de um romance” (2005). Seguiram-se a
estas mais duas edições, em 1940 e em 1943. Depois, após um intervalo de tempo até 1958,
publicou-se outra edição, e mais uma em 1966; outra em 1973 e a mais recente em 2005. Além
das edições, Vianna Moog (2005) informa também que a Secretaria de Educação do Rio Grande
do Sul adquiriu muitos exemplares e distribuiu-os às escolas do estado.
Logo após o lançamento, com a repercussão do assunto nele tratado, o Consulado da
Alemanha hitlerista interviu na circulação do livro, dispondo-se a comprar todos os exemplares.
Esse fato colaborou para que autor e obra ficassem ainda mais famosos. Com isso, com os
comentários favoráveis da crítica e a grande vendagem de exemplares, Um rio imita o Reno
ganhou o prêmio Graça Aranha de Romance em 1939
,
o maior prêmio nacional na época.
Conseqüência também do sucesso do livro foi a eleição do autor para a Academia Brasileira de
Letras em 1945.
Nesses primeiros tempos do aparecimento do livro houve mais dois acontecimentos
interessantes: a Paramount Pictures manifestou a intenção de fazer um filme no Brasil com o
tema do livro, contudo o projeto não se realizou “devido a dificuldades de última hora
provocadas pela guerra submarina”, explica Vinna Moog (2005, p. 18), e foi adaptado para uma
novela radiofônica em Porto Alegre.
A história narrada seguiu paralela a uma situação de apreensão, medo, ameaça. Da parte
dos governos mais expressivos da época, tudo girava em torno da política totalitária, que
intentava tornar cada nação una, de acordo com o pensamento de seu der político. A força
concentrava-se em homogeneizar as instâncias sociais educação, por exemplo sob leis
ditatoriais. Fischer (2005, p. 7) lembra que o livro foi publicado quando Hitler
está no poder há alguns anos, assim como seu êmulo Mussolini, na Itália, e ainda
Franco, na Espanha. Mesmo o presidente do Brasil, Getúlio Vargas, não se pode dizer
que esteja no poder por méritos democráticos: depois do Golpe de 30, passou para
trás as expectativas democráticas em 34 e em 37 (isso sem falar de 32 e do combate aos
comunistas em 35). Quer dizer: o cenário é de ditaduras, regimes fortes,
antiesquerdistas e, na Europa, racista.
Todos os mandatários citados eram governantes de países periféricos que estavam
determinados a ascender economicamente; eram da periferia do capitalismo moderno ocidental e
queriam alcançar uma modernização acelerada para recuperar o tempo perdido. A possibilidade
para fazer isso era instituir um governo totalitário, sob a visão de que é preciso todos se
128
concentrarem num objetivo comum, isso no plano político. A política econômica resultante disso
é um Estado que concentra o poder e se imbui da função de conduzir o desenvolvimento.
Nessas circunstâncias, a nacionalização em vigor no Brasil estava entre as principais
medidas governamentais a ser implementada para o crescimento geral do país. As ações da
campanha eram dirigidas a todas as pessoas de origem estrangeira, mas a história mostrou que, no
contexto do Rio Grande do Sul, a etnia alemã foi uma das mais focalizadas no sentido de se
exigir sua transformação social e cultural. E para essa ação concentrada na etnia, tomando a todas
as pessoas a ela pertencentes como inimigas do Brasil, convergiam os acontecimentos que
envolviam o poder de Hitler no final da década de 1930 - véspera da Segunda Guerra Mundial -,
com sua extensão a países que abrigavam alemães. Sendo o Rio Grande do Sul o maior berço
dos alemães no país, a atitude do governo se fez notar profundamente por aqui, criando-se
inúmeros conflitos nas comunidades com presença maciça dos alemães.
Nesse sentido, os sentimentos de brasilidade despertados pela nacionalização encontraram
um atraente aliado em Um rio imita o Reno, haja vista a repercussão da obra nas diferentes
instâncias da sociedade e a recepção dos leitores, que resultou nas diversas edições do livro.
Corroborando essa idéia, Gertz, ao analisar a intelectualidade gaúcha que apoiou o Estado Novo,
assim se refere a Vianna Moog e a seu livro:
Não se pode esquecer que apublicação do romance Um rio imita o Reno, em 1939, teve
um sucesso estrondoso, que fez com que o livro tivesse esgotado sua primeira edição em
poucos dias e, assim, servisse à causa da campanha de “nacionalização”, uma das
princiapis metas do governo de Cordeiro de Farias.O fato de que a Secretaria de
Educalção tenha adquirido duzentos exemplares para distribuição às bibliotecas
escolares doestado demonstra a simpatia que as autoridades tributavam ao livro (2005,
p. 116).
São também indicativas da citada ajuda à nacionalização as manifestações da crítica que
se publicaram a respeito, conforme podemos concluir por esta síntese de Martin N. Dreher (2006,
p.4):
Em outubro e novembro de 1939, o mais importante jo
129
dominar pelas tradições de seus Paes ou antepassados, enraizados no paiz de origem
destes.” Segundo o articulista, Vianna Moog “exalta [...] o amor ao Brasil e a
necessidade de adaptação dos estrangeiros ao nosso meio e aos nossos costumes.” Creio
que já agora, podemos ver que os leitores de Vianna Moog o entendem como arauto do
nacionalismo brasileiro, de um anti-nazismo e da necessidade de se nacionalizar os
“alienígenas”, termo então em voga para caracterizar os descendentes de imigrantes.
“Os brasileiros têm, em ‘UM RIO IMITA O RHENO’ um estimulo ao amor da Pátria;
os estrangeiros têm uma advertência de que serão mais felizes se procurarem, amando
sua pátria de origem, viver a nossa vida, cooperando comnosco na grandeza do Brasil,
que não pode dispensar o trabalho honesto e constructor dos alienigenas, mas pode
viver sem os que tentam ferir a soberania e a integridade da Nação.”
Os dois textos foram redigidos “Especial para o ‘Correio do Povo’” e representam, pois,
a opinião do então mais importante jornal do Rio Grande do Sul, profundamente
comprometido com a então secretaria de segurança pública, através de um familiar,
Plínio Brasil Milano, Chefe de Polícia. Além disso, os autores reproduzem o senso
comum expresso pelo Secretário de Educação do Rio Grande do Sul, José Pereira
Coelho de Souza, além de outros representantes do Estado Novo.
Vianna Moog foi filho de seu tempo, como também o foram seus leitores e a crítica, que
tomaram o livro como verdade - verdade na época, verdade que pode parecer em outras épocas,
inclusive atualmente, pois podemos tomá-lo como a verdade do autor em meio a outras verdades.
Dreher (2006, p. 3) registra que “Vianna Moog brincou com seus pensamentos e vontades e seu
texto reflete sua forma de ver o mundo, mas também levou seus leitores a incorporarem
representações que ficaram em seu imaginário e passaram a fazer parte de sua inteligibilidade”.
Essa verdade se construiu especialmente pelos
pedaços do real que o romancista oferece ao leitor,
pela interpretação que faz dele e por fazer desta interpretação uma verdade.
O romancista traz duas etnias em sua origem, a lusa e a alemã. Segundo Dreher, ele teria
dito, em 1976, que queria ser mais “Vianna” do que “Moog”. Para além de possíveis gostos e
escolhas quanto às etnias, podemos pensar que esse comentário é revelador de sua construção
como escritor, que contava, dentre outras leituras, com as de Gilberto Freire, que era favorável à
miscigenação. Nesse sentido, o que ele condena na sua narrativa, o racismo, é fruto de idéias
fortalecidas no debate intelectual. Dreher (2006, p. 4) afirma: “No enredo do livro dedicado a
Marcos Mogg e a Maria da Glória Vianna Moog, seus pais, o autor deixa claro que,
pessoalmente, está entre o Vianna e o Moog, mas pende em sua propaganda pró Estado Novo
para suas raízes Vianna. Em conversa com Telmo Lauro Müller disse em certa oportunidade que
não era aceito nem como alemão nem como descendente de portugueses (diga-se: açorianos)”
Entendo, por isso, que Um rio imita o Reno é também uma narrativa da preocupação de
Vianna Moog com o sentido das relações humanas que o cercavam e, de maneira geral, com o
significado da sociedade teuto-gaúcha quando em contraposição à local, tendo a miscigenação
130
como referência maior. Por meio da história que cria, o autor sentencia que, naquele contexto
social germânico, a miscigenação era algo indesejado.
A história narrada por Vianna Moog atraiu, incomodou e desafiou os moradores e
intelectuais de São Leopoldo e arredores na época, de tal modo que houve reações contrárias de
peso: a do Consulado Alemão, já mencionada anteriormente, e a de Bayard de Toledo Mércio,
um desembargador, que resolveu, em seguida à publicação de Um rio imita o Reno, dar-lhe uma
resposta , escrevendo Longe do Reno: uma resposta a Vianna Moog, em 1940. Dreher relata q62(r)78(u)-3.7169.364
131
3.3.1 - Família
A família que protagoniza os principais acontecimentos da narrativa pode ser considerada
uma família burguesa. É a Wollf, uma família protestante, rica e influente na cidade. É
constituída pelo casal Wolff, a filha Lore, o filho Karl, este já casado com uma mulher da etnia
alemã, Irma, com quem tem um filho, Paulinho. Assim formada, é a referência do povo de
Blumental em termos de riqueza e poder político e social, sendo a dona do curtume e da fábrica
de sandálias. São referências também quanto a ser família alemã identificada por parte do
imaginário do Rio Grande do Sul: é rica, industrial, protestante; fala em alemão com os seus;
decora a casa com quadros que lembram a terra natal, como a vista de Heidelberg que esta na
moldura na sala; coloca à vista de todos uma reprodução em bronze de Bismarck no seu uniforme
prussiano e um retrato de Hitler; orgulha-se de ser ariana; cultiva em frente a casa lindo jardim
ensombrado de cipreste e persiste no uso da língua alemã. Em síntese, em seu lar é evidente o que
Epstein denomina “cultura íntima”, que m a ser os elementos que, no conjunto, sustentam a
etnicidade.
Tudo inicia com a vinda do velho Wollf da Alemanha para Blumental, no sul do Brasil,
não por uma proposta de governo, mas por exílio político. Seu filho Paul casa-se com frau Marta,
uma alemã que tem sangue de Mucker. É ela quem passa a dominar a família Wolff. É
determinada, autoritária, fala sempre, até coisas triviais, com uma ênfase de comando, impõe seu
modo de pensar a todos e comporta-se publicamente como superior aos demais por acreditar
pertencer à etnia superior, a ariana. Não publicamente, mas também em seu espaço familiar
suas maneiras de conduzir a família são embasadas em escolhas entre o que é dos arianos e o que
não é.
Judeus são, portanto, o alvo primeiro de ataques racistas da frau, num comportamento
extensivo dos deres alemães que fizeram a história de desprezo, perseguição e aniquilamento
das raças julgadas inferiores.
Uma das primeiras informações sobre isso que aparecem na narrativa é a vontade de frau
Marta, conforme relata Lore, de queimar os volumes das biografias de Goethe e Napoleão que
existem em sua casa quando descobre que seu autor é judeu. Com os brasileiros mostra-se
antipática, incluindo-os na camada das “raças inferiores” e, portanto, indignas de afeição por
parte de sua família. Por essas caracterizações, parece-nos que, ao pensar nesta personagem, o
132
autor tem o olhar fixo nas ocorrências da história. Como registra Fischer (2005, p. 8), “a mãe de
Lore simultaneamente é racista, considerando-se superior, e descende diretamente de um
´mucker`, portanto um fanatizado, um irracional.”
Nessa família há um neto, Paulinho, que sempre sofre maus-tratos de parte do pai e da avó
Marta. Eles ralham com ele, desaprovam suas atitudes, suas brincadeiras e amizades com outros
meninos da considerada raça inferior, razão por que ele apanha seguidamente. Numa tarde em
que Geraldo vai à casa de Lore com o violinista Raul Machado, o menino grita no quintal e uma
voz ralhou com ele: - Paulchen! Paulchem!
71
(Mogg, 2205, p. 60)
72
. Frau Marta, irritada com os
gritos da criança, sai da sala e, quando as visitas já saíram da casa e estão andando na rua, ouvem
“gritos lancinantes de criança, gritos de desespero, de dor, de aflição” (p. 63). Paulinho deve estar
sendo espancado pela avó Marta, diz o violinista.
Por essa representação percebemos que a atitude de superioridade dos adultos submete os
menores da família a uma dominação desmedida, estabelecendo uma educação pautada no
autoritarismo e no medo, tudo para a formação de uma consciência de superioridade étnica.
O racionalismo e o controle das emoções são marcantes no contexto familiar dos Wolff.
Lore analisa, em certo momento, a diferença das relações estabelecidas em sua família e nas de
brasileiros: nestas ela presenciava carinho, meiguice, abraço entre pais e filhos, ao passo que na
dela havia formalidades e distanciamentos: Sua mãe nunca lhe dera um beijo. Não que não a
amasse. Mas era o jeito dela. Horror ao sentimentalismo. O pai, para evitar olhares de censura da
mães, até se desacostumara de acariciá-la. Quanto a Karl, nesse nem era bom falar. Um bruto,
com seus ares de superioridade , a querer mandá-la, a querer fazer tudo melhor do que os outros”
(p. 97). De um modo geral, a mãe apóia o comportamento de superioridade do filho, comanda
todos os passos da filha, impondo-lhe medo, especialmente na fase em que está, a de namorar,
visto que cultiva escrúpulos e preconceitos relativamente aos rapazes brasileiros.
A família Wolff, além da submissão dos filhos às razões dos pais, tem outros hábitos
metódicos: aproveita a hora do almoço para conselhos, explicações, ajustes de contas,
importância ao levantar-se cedo, como diz no quadro bordado que está dependurado na parede do
quarto de Lore: Morgenstunde hat Gold im Munde (p. 95). Mais do que qualquer outra família de
71
Paulinho, Paulinho!
72
As citações do romance serão apresentadas, na seqüência deste texto, apenas pelo número da página, sendo que
todas elas pertencem à mesma edição da obra Um rio imita o Reno, de Vianna Moog, que é a edição de 2005,
prefaciada por Luís Augusto Fischer e publicada pelo Instituto Estadual do Livro e Corag.
133
origem alemã, esta cultiva as tradições germânicas. E colocar no quarto de Lore aquelas palavras
é expor uma das fortes tradições vividas nas casas dos alemães, especialmente para educar as
filhas.
Sabemos que fazer a decoração de interiores das residências com dizeres morais foi uma
das manifestações da cultura germânica trazidas pelos imigrantes e cultivadas pelos seus
descendentes. Assim é que se encontram, ainda hoje, em muitos lares quadros e panos de cozinha
veiculando dizeres com o objetivo de incutir um ideal de vida e de comportamento nos membros
da família. A esse respeito, Valesca de Assis, escritora teuto-gaúcha, testemunha que sua avó
distribuía pela casa esses verdadeiros painéis com provérbios e conselhos morais,
estrategicamente trocados semanalmente para que os diversos ensinamentos pudessem circular.
Por eles aprendia-se que “uma verdadeira alemã jamais acorda tarde, porque a hora matinal tem
ouro na boca. Mesmo que vivia em relativa abastança, inicia cedo o seu trabalho e, se acaso
não lhe aparece o que fazer, ela procura, porque a preguiça a espreita e ela sabe, de berço, que
somente “quem, diligente, obra durante o dia, se sente bem à noite”, além do que, “esforço traz
pão; preguiça, necessidade” (Assis, 1998, p. 65). Além desses, Valesca deparava-se com outros
mais, como um que instruía a frau quanto ao preparo das refeições: cozinhar com aplicação a
comida favorita do marido”; outro alertava para que ela não se deixasse ficar parada,
descansando, pois, “quem muito descansa, enferruja”; ainda: nunca te queixes do dia que traz
trabalho e fadiga; é tã6262( )-17.(s)-1.63698(,)3.28212e.914(p)-3. a;tusa ce q
134
Trata-se de Geraldo, um engenheiro nascido no Amazonas, um “negro”, no conceito de da
mãe de Lore, que assim chama a todos que não são arianos. Ela jamais admitiria sua entrada para
a família, que se mantinha dentro do círculo de casamentos somente entre germânicos. Marta é
descendente de alemães e orgulha-se de ter se casado com um filho de alemão. Assim deveria
fazer sua filha, unir-se a um filho de alemão, ou, melhor ainda, se conseguisse, com um alemão
nato, dos de agora, em que a Alemanha voltara a ser novamente a Alemanha, graças a Hitler. Não
poderia ser com aqueles que se criaram após a guerra, a Primeira Mundial, pois formavam uma
geração “avariada, de nervosos, de estropiados, de
135
esbofeteia o garoto no rosto. O que mais o incomoda é o fato de o filho brincar com os
“mulatinhos”. Para ele, a repulsa aos negros seria inata no branco (p. 119) e, sendo assim, como
pode seu filho não rejeitar tais meninos?
Tudo isso é fruto do orgulho de pertencer ao raro povo ariano. Mas o doutor Otto Wolff,
primo do herr Wolff, vem da Alemanha com uma informação chocante sobre o pertencimento
dos Wolff a tal parcela humana superior. Otto Wolff sempre fora elogiado e reconhecido em sua
capacidade por todos, pois era médico prestigiado em Berlim. Para frau Marta, ele é “a Alemanha
moderna... Primo Otto era, decerto, a ciência contemporânea do nacional-socialismo. (...) era a
Nova Germânia” (p. 182). E essa nova nação seria obra de Hitler, cujas idéias e postura política
são admiradas pelos Wolff e pelos demais alemães e seus descendentes de Blumental.
A idéia de participar efetivamente dos ideais de Hitler é de tal forma fixa que Karl,
perguntando-se sobre as razões que teriam trazido o primo ao Brasil mais uma vez, sem anúncio
prévio, quase em segredo, alegra-se ao pensar que ele viera para trazer-lhes uma missão do
governo alemão. É possível, pensa ele, uma vez que existem várias colônias alemães no sul do
Brasil. Então: “Era preciso organizá-las, levar para a Grande Pátria documentos que dessem ao
Führer uma idéia das possibilidades da colônia” (p. 183). E sendo Otto um privilegiado por
pertencer à raça superior, é de se esperar que receba uma missão secreta desse tipo. Karl acredita
a tal ponto nessa justificativa que lhe surgiu para a viagem do primo que chega a se lançar de
imediato ao estudo das teorias do nacional-socialismo, lendo Der Mythus des zwanzigsten
Jahrhunderts, de Rosenberg, a fim de poder dialogar melhor com Otto.
Entretanto, não era nada disso. O primo Otto não mais fazia parte do partido Nacional-
socialista e surpreende os parentes ao dizer que não sabe onde a Alemanha irá parar, conduzida
por aqueles “malucos”, os nazistas, e que é muito bom estar longe daquele inferno. Se eles aqui
continuam a achar a Alemanha um paraíso e a reverenciar Hitler é porque só lêem jornais
nazistas. Não, contestam os Wolff, lêem também cartas de amigos de lá, todos unânimes em
elogiar a situação. Otto, então, começa a explicar melhor: “- Mas é claro, prima Marta. E a
censura? O país tem 70 milhões de habitantes e 80 milhões de espiões. O marido não diz mal do
partido nem à mulher, nem ao filho, com medo de ser denunciado. Vive-se num regime de
apertos... Tantos gramas de manteiga e de carne por semana... Tudo em rações medidas... É
horrível...” (p. 190-191). Ainda fala dos campos de concentração, das perseguições, barbaridades,
banimentos, assassínios.
136
De Hitler, quando Karl o chama de “o maior de todos os alemães”, o doutor diz:
O Dr. Kurt Gleaser, psicanalista com quem conversei em Viena pouco tempo, em um
ótimo estudo sobre Hitler. Hitler é um desviado. Tem um complexo paterno. Impressões
da infância lhe deixaram marcas fundas... O pai era um beberrão, mulherengo, que fazia
a esposa sofrer... Hitler criou-se com horror ao casamento, às mulheres, a toda espécie de
vícios, até os mais pequenos. Não bebe nem fuma e não tolera que fumem e bebam na
sua presença (p. 191)
Mas o que é isso que dizem do grande exemplo dessa família alemã fixada em Blumental
(São Leopoldo), Brasil? Nesse momento, a indignação já toma conta dos grandes Wolff, como
também a desolação. Contudo, o golpe definitivo vem com esta grande revelação do primo:
haviam descoberto que tinham sangue judeu. Ele deixa a todos estarrecidos, assim esclarecendo:
“- Descobriram que o nosso bisavô, de Frankfurt, tinha sangue judeu. Coisa que nenhum de nós
sabia... Vi os documentos... Não há dúvida. (...). Mas que importa?” (p. 192). Esse é o verdadeiro
motivo de ele ter vindo para ali, pois, com a descoberta, a sua vida e o trabalho no hospital em
Berlim tinham se tornado insuportáveis.
Frau Marta sente que algo desmorona dentro dela. Então os Wolff não o alemães, não
são arianos, superiores? São da etnia inferior, judeus, os mais desprezados? Isso a destrói por
inteiro e a mudança, em tudo, é radical: “Ela parecia ter envelhecido muitos anos naqueles
poucos dias. não mantinha a mesma rigidez dos velhos tempos. Andava taciturna, perdera o ar
autoritário, a postura orgulhosa, não gostava de dar ordens com voz de comando. Freqüentava
ainda mais a igreja e, quanto à Alemanha, ao arianismo e à pureza racial, ninguém lhe ouvira
mais nenhuma palavra” (p. 196). Afinal, está casada com um bisneto de judeu.
Esse problema de fato existiu. Havia muita gente judia no Rio Grande do Sul que pensava
ser alemã de sangue. Segundo Klaus Becker (1974), o primeiro israelita que chegou a São
Leopoldo foi Siegmund, um ourives, que veio com a segunda leva de imigrantes, em 6 de
novembro de 1824. Em 1825 vieram mais quatro; em 1826, nove; em 1827, quatro e, em 1829,
“veio o maior mero de judeus alemães” (p. 183). Nos anos seguintes, formando outros grupos
de imigrantes alemães, também estavam vários judeus, porém muitos destes não sabiam que
pertenciam à etnia judia. Assim, na década de 1930 quantos não foram os estrangeiros
alemães/luteranos radicados no Rio Grande do Sul que vieram a descobrir que eram judeus e não
sabiam?
137
Com o desastre causado pela informação do doutor Otto, surgem na mãe expressões
reveladoras de remorso pelo que fizera com a filha, separando-a de seu grande amor por
preconceitos raciais. O pai suplica ao primo que nada seja dito a ninguém a respeito da
ascendência judaica dos Wolff e karl se torna ainda mais irritado e agressivo com a mulher e o
filho.
Então, na família Wolff, o poder de frau Marta se aplaca. Ela deixa o tempo passar
sentada na sua cadeira, com o olhar fixo no nada, sem expressão alguma no rosto. Tomam-lhe
conta o sofrimento, o vazio dos olhos, o desgosto pela vida. Afinal, tudo em que sempre
acreditara e tudo o que havia regulado as suas atitudes na família e na sociedade germânica, tudo
o que havia lhe dado status social junto a seus patrícios, caíra por terra. Aquela história de raças
trazida pelo primo Otto faz dos dias da matriarca dos Wolff dias de tormentos e culpas.
O preconceito não se restringe, em Blumental, a famílias determinadas. É, sim, algo que
se torna visível em muitas relações dos teutos com os brasileiros. No salão de refeições, do hotel
onde o engenheiro Geraldo Torres se hospeda, por exemplo, cujo proprietário é um alemão, quem
serve os brasileiros Geraldo e Armando é um rapaz, que, quando perguntado sobre o porquê de
não deixar a irmã servir a mesa, responde que brasileiro é bicho safado”. E Armando conclui
que ali não se tem futuro, quer dizer, só homem alemão se casa com mulher alemã.
Outra família bastante abonada de Blumental é a Kreutzer, ali instalada desde o início da
colonização, quando o chamado velho Kreutzer chegara com os primeiros imigrantes. Este viera
pobre, trabalhara e economizara muito. Seus descendentes herdaram o que ele construíra e o tino
para o trabalho e empreendimentos, mas não o seguem no modo de levar a vida sempre com
renúncias, pois que com a fortuna que possuem sabem aproveitar a vida, morar bem e viajar, indo
seguidamente à Alemanha.
Pela posição social de que desfrutam, os Kreutzer são referência quanto ao modo de ser
para a sociedade germânica da cidade. Nesse sentido, são reconhecidamente germanófilos, a
ponto de só empregarem em sua firma pessoas de origem alemã.
Na constituição familiar o autor representa também aquela mulher casada que, apesar da
sua condição limitadora, tem atitudes suspeitas para com outros homens, como a que está
assistindo ao concerto de Raul Machado e Lore no salão da Sociedade Germânica, inclusa no
grupo das famílias teuto-brasileiras, e conversa com o amigo de seu marido com ar enamorado (p.
64). Também, representando uma proximidade maior das mulheres com os homens e a liberdade
138
destas para se divertir em público, são narradas cenas de mulheres que formam grupo com
homens para tomar chope no quiosque.
As famílias divertem-se em festas típicas de sua cultura, como o kerb; promovem
quermesses e bailes; realizam atividades diversas na Sociedade Germânica; jogam bolão, tênis;
bebem cerveja, chope, vinho do Reno.
3.3.2 - Trabalho
Em Blumental, os alemães e seus descendentes trabalham em diversos ramos, exercendo
profissões que foram sempre características desses imigrantes. Assim, colonos circulam pela
cidade transportando produtos que cultivam em suas lavouras para comercializá-los, as quais se
estendem geometricamente depois do rio; ferreiros, alfaiates, marceneiros, sapateiros dão conta
de encomendas; médicos atendem os doentes; hoteleiros e donos de restaurantes prestam seus
serviços; comerciantes abastecem a comunidade com os produtos que se fazem necessários e há,
ainda, os que conseguem ser industriais, destacando-se na fabricação de produtos que conferiram
marca à região germânica, como os calçados.
73
Nesse sentido é expressão maior a Wolff & Filhos, cujos donos, a família Wolff, têm uma
indústria de sandálias e um curtume. O velho Wolff viera da Alemanha como exilado por
motivos políticos. Aqui não foi colono, lidou com indústria, de onde veio a base para a família
chegar à fortuna. No entanto, não chegaram a ter, com a sua atuação, mais do que a casa velha,
uma pequena fábrica e uma centena de contos no banco. Seu filho Paul Wolff, astuto para os
negócios, é quem consegue grande capital, especialmente por meio de um ato de esperteza que
pratica no tempo da I Guerra Mundial:
Logo que a guerra rebentou, em 14, empregou tudo o que possuía na compra de chapas
de ferro. Naquele tempo o ferro valia, no máximo, uns trezentos réis o quilo. Meteu
nisso todo o dinheiro (...). Endividou-se, hipotecou tudo ao velho Kreutzer e não
descansou enquanto não comprou todo o ferro existente nas redondezas. Uma partida
73
Vianna Moog apresenta um quadro do mundo do trabalho em andamento em São Leopoldo na década de 1930
tendo à disposição, além de suas próprias observações e vivências, estudos realizados sobre isso, como O trabalho
alemão no Rio Grande do Sul, de Aurélio Porto, publicado em 1934, e O patriótico governo do general Flores da
Cunha: o trabalho alemão no Rio Grande do Sul, de 1935. Esse romancista, portanto, esescrevendo num clima
real, vendo as coisas que estão acontecendo e acompanhando as racionalizações dos intelectuais. Além disso, o
próprio governo estava destacando o trabalho alemão na época.
139
que mandou vir da Europa e que estava num navio alemão, conseguiu safar-se, em
Lisboa. Depois foi o que se viu. O ferro começou a subir, a subir. E não podia ser
importado. (...). Só então é que ele resolveu aceitar a proposta de um truste da capital (p.
33-35).
Essa é a marca que alicerça o progresso financeiro da família Wolff em Blumental, que
segue o lema de “comprar quando toda a gente quer vender; vender quando toda a gente quer
comparar” (p. 35). Seu principal líder no atual momento dos negócios, Karl, comporta-se
arrogantemente em relação ao trabalho de que é um dos agentes, o do crescimento comercial e
industrial do Rio Grande do Sul. Nesse sentido, pensa que a “riqueza do Sul era produto
exclusivo do trabalho alemão. Com os colonos alemães é que tinham aparecido as indústrias no
Brasil” (p. 82).
Os Kreutzer possuem a firma Kreutzer Irmãos, “grandes armazéns de ferragens, de
fazendas e armarinhos, de jóias, de bijuterias, de calçados, amplos depósitos de fumo, de erva-
mate, de secos e molhados” (p. 31). São ricos, cuja fortuna só pode ser comparada à dos Wolff.
Tidos como grandes empreendedores, os cinco irmãos estão sempre ativos e atentos às novas
possibilidades de inserir-se no comércio. Montam até fábrica de conserva e estão fazendo
experiência com o bicho-da-seda. Não bastasse isso tudo, possuem uma casa bancária (p. 31),
embora, posteriormente, acabassem falindo. Então, do poder econômico e político que exercem
sobre os moradores de Blumental e os colonos, estes que chegam a confiar-lhes todos os seus
produtos agrícolas e o seu dinheiro, restam a revolta, a indignação. Os Kreuter dão prejuízo a
todos e se acovardam: Oscar fuge de Blumental e Kurt tenta suicidar-se.
O trabalho também é de muito valor para o engenheiro Geraldo Torres, que está ali para
realizar uma obra de muita responsabilidade, de projeção. A construção da hidráulica é uma
grande referência para seu crescimento profissional dali por diante. Afinal, a obra fora destinada,
por concorrência pública, a sua companhia graças a ele. Mesmo não sendo alemão, o que Geraldo
espera com o trabalho é fazer uma vida diferente, mas não centra sua expectativa somente no
enriquecimento, ou seja, no acúmulo de bens.
140
3.3.3 - Religião
em Blumental católicos e protestantes que convivem bem, sem rivalidades por causa
da fé. apenas uma disputa entre eles quanto a terem a igreja mais bonita. Nesse sentido,
próximo à praça Independente está em construção uma igreja católica, obra dos colonos que
professam esta fé.
Convém notar que nenhuma referência é feita a populações de origem alemã católicas. As
ações são praticadas por personagens protestantes. E Vianna Moog era católico.
O templo protestante fica no centro da cidade. É uma construção bem diferente de uma
igreja católica. Por dentro, correm as galerias dos dois lados, tem janelas e arcadas ticas,
nenhuma imagem de santo, santa, Deus, Jesus Cristo, Virgem Maria, a não ser nos vitrais, onde
se vê a imagem de Cristo. No altar, nenhum ornamento, não há pompa em nada.
Não se estabelecem lutas entre as duas religiões. No entanto, é lembrada na narrativa a
grande luta de caráter religioso que envolveu os alemães estabelecidos na região de São
Leopoldo, que foi o movimento dos Mucker. Armando assim o explica ao engenheiro
amazonense, que nunca ouvira falar no episódio:
Os Mucker haviam sido uma seita de fanáticos protestantes, que se tinha formado nos
começos da colônia, ao sopé do ferrabrás, ao longo da Serra do Mar, visível à distância
de léguas para quem viesse de trem a Blumental. Era uma rocha alcantilada, que se
erguia abruptamente por sobre uma vasta planície. Ali começou a pontificar uma tal
Jacobina Maurer, mulher de um curandeiro, uma sonâmbula que se dizia predestinada a
fundar um novo reino sobre a terra. Como um fanático que afirme, sempre acha
inocentes e fanáticos que o acompanhem, formou-se no Ferrabrás, em torno de Jacobina,
a facção que semeou a cizânia,a discórdia e o luto entre as colônias pacíficas e atribulou
seriamente a vida do Estado. Estranhos ritos tinham marcado o advento da nova seita.
Jacobina, apregoando-se como o novo Messias, escolhe doze apóstolos para constituir o
conselho supremo dos Muckers. Impõe a todos uma vida de ascetismo, proíbe o jogo, os
bailes, as diversões. Cria também uma milícia para a sua guarda pessoal. Faz construir
uma fortaleza sem substituição à antiga morada. Exige dos adeptos juramento de
absoluta fidelidade aos seus mandamentos. E, para que nada faltasse, estabelece toda
uma liturgia de novos gestos.
Além disso, concitava os colonos a se proverem para o dia da adversidade. Estavam por
vir dias terríveis. Os ímpios erguer-se-iam contra os eleitos e estes seriam obrigados a se
defender. Pelas estradas encontrar-se-iam cadáveres insepultos. Aos eleitos, porém, nada
sucederia. (p. 43)
Explica-lhe, ainda, que no início do movimento permaneceram recolhidos em suas
práticas aparentemente inofensivas e, por isso, foram considerados apenas grotescos. Porém,
tempos depois, passaram a perseguir e a odiar os opositores e indiferentes com um ódio sagrado,
141
com o que o Ferrabrás transformou-se num arsenal de guerra e a colônia ficou sob coação e
terror. Os Mucker passaram de pacíficos agricultores a assassinos, tudo sob o comando de
Jacobina.
Entretanto, se não discordâncias explícitas entre os praticantes das duas religiões,
quanto ao que foi o movimento dos Mucker. Karl Wolff, em conversa com Geraldo, justifica que
a história sobre a luta dos colonos Mucker fora mal contada por um padre, apresentava-se parcial,
mal intencionada, uma oposição de cunho católico aos protestantes
74
. Todos no Ferrabrás teriam
sido vítimas e a “culpa fora do governo, mandando a polícia resolver o caso pela violência. Os
padres também tiveram muita culpa. Os soldados agiram como verdadeiros selvagens. Não foram
só os Mucker que mandaram matar e incendiar. Na picada dos Portugueses os católicos fizeram o
diabo. Acabaram com os protestantes” (p. 84).
Ao abordar o episódio dos Mucker, o romance toca, mais uma vez, num tema espinhoso,
que o é o racismo germânico. Consideremos que, em 1939, estavam vivos os netos de muitos que
haviam se envolvido com o movimento messiânico como seguidores de Jacobina Maurer ou
como opositores. Por isso, a abordagem jornalística que Vianna Moog faz, incluindo no romance
duas visões diferentes sobre o mesmo fato.
Em Blumental existe, de forma bem clara, uma íntima relação entre religião e trabalho a
orientar a conduta das pessoas, especialmente as de protestante. Por essa relação sobrevive a
germanidade, conceito largamente construído pelos líderes religiosos junto aos .imigrantes e bem
recebido por estes, já que desejam manter-se ligados à sua pátria-mãe culturalmente. O pastor
chega a dizer: “O que é o Sul do Brasil deve-se ao trabalho alemão. Se fizermos abstração dos
alemães, restará apenas uma mísera carcaça” (p. 82). Notemos que por essa relação também se
concretiza o sentimento de superioridade da etnia.
3.3.4 - Espaço e deslocamento
Os fatos narrados no romance acontecem em Blumental, uma cidade criada por alemães
imigrantes e seus descendentes, sendo eles, ainda, quase que exclusivos moradores. Essa cidade
74
Referência ao livro real do padre jesuíta Ambrósio Schupp, Os Mucker, no qual se encontra essa crítica ao
movimento apresentada por Vianna Moog pela da voz da personagem Karl Wolff.
142
liga-se a Vila Velha. Pelas características apresentadas, é uma representação de São Leopoldo na
época da construção da hidráulica, em 1925.
O desenho da cidade é apresentado na visão do engenheiro amazonense Geraldo, que a
observa da janela do quarto do hotel onde se hospeda. Dali vê a praça, com o prédio da prefeitura
no centro, o quiosque à direita, o chafariz, os canteiros geometricamente planejados, com suas
rosas vermelhas e brancas, cravos, azaleas, girassóis, violetas e jasmins. Vê, rumo ao horizonte, o
rio, a leste, correndo sereno, sem pressa, a “serra que servia de pano de fundo à perspectiva, a
torre pontiaguda da igreja protestante, aponte que ligava os dois braços de terra, o pesado e o
soturno movimento do cais” (p. 36). Tem a sensação de que está longe de sua pátria.
Aquela paisagem a preencher o espaço o lhe traz lembrança alguma de algo parecido
em outra parte do país por onde já havia estado. Tudo ali é diferente: “Na praça, ranchos loiros de
moças passavam aos pares; no quiosque, ao redor das mesas, sob os plátanos, rapazes cobertos de
bonés universitários bebiam descansadamente o seu chope. Pareciam sentir-se ali tão à vontade,
como se estivessem num bar de Heidelberg ou de Munique” (p. 36). O garçom, como deveria ser,
é Frantz, um alemão.
Blumental é definida pelo ar grave, rígido, tedesco, que se faz visível desde o estilo gótico
da igreja até as fachadas austeras. Tudo ali forma um conjunto tipicamente germânico, o qual
ainda é confirmado pelos letreiros das casas comerciais, das fábricas, dos restaurantes e bares.
Dentre eles estão Apotheke, Schuhmacher, Bäckerei, Kreutzer Irmãos. Afastando-se do povoado,
seguindo o rio dos Sinos, tudo se parece ainda mais com os espaços da Alemanha. É como estar
vendo as paisagens que os livros trazem do Reno, da cidade debruçada sobre as águas, como
constata o engenheiro Geraldo quando, de automóvel, vai com os amigos Armando Seixas e
Ruben Tauben ao kerb em Tannenwald. O quadro de Blumental faz-se da
pracinha murada pelo cais, o jardim contornando o pesado monumento da imigração, a
rua larga e comprida afunilando-se ao longe; o correr de casas com platibandas,
fechando o cenário urbano; e dominando tudo, imponente e sobranceira, defronte da
ponte, como a dos antigos castelos medievais, a torre alta e pontuda da igreja protestante,
com os ponteiros do relógio a marcar duas horas. O rio coalhado de botes ligeiros,
pilotados por moças e rapazes. (...) No fundo, para o sul, a planície a perder de vista;
para leste, a serra densa e alcantilada (p. 108).
Blumental imita o Reno em tudo. Está fora do Brasil. É encantadora, mas não é brasileira.
143
Comportamentos das pessoas que ali moram também caracterizam o espaço. É exemplo
disso as velhas senhoras que, em pleno dia, sentam-se na frente das suas casas para fazer crochê e
falar em alemão. Fechadas em si, pouco importância dão a quem passa, especialmente aos que
não são alemães. Caracterizam, ainda, esse espaço de alemães a comida e a bebida servidas a
quem chega: é café com leite, pão preto com schmier ou manteiga, klösse, batatas, cerveja, chope.
Dizeres bordados em panos nas paredes, em letras góticas, transmitem mensagens ao que comem,
como o que está no restaurante do hotel onde Geraldo se hospeda: Grüss Gott! Tritt ein, Bring
Glück herein” (p. 39)
75
.
Além disso, em plena luz do dia, marcha um pelotão de vigorosos rapazes, claros e fortes,
em uniforme de escoteiros. Organizados em fila de três, mantêm-se num alinhamento impecável
e seguem a ordem de comando do chefe: Eins... Zwei... Eins... Zwei... (p. 44). Em frente ao
Seminário Evangélico
76
, segmento da religião protestante trazida pelos alemães para o estado do
Rio Grande do Sul, o pelotão faz alto e atenta para as ações do chefe, o qual empunha a bandeira
com a cruz da suástica e berra: - Heil, Hitler! (p. 45), ao que os moços acodem: - Heil! Heil!
Heil! (p. 45).
em Blumental a Sociedade Ginástica
77
- referência a uma das sociedades que de fato
existem em São Leopoldo. São locais indispensáveis, no mundo real, a qualquer comunidade de
origem alemã, pois a organização de clubes e sociedades é uma de suas identidades culturais. Por
eles também se difundiam os costumes e se cultivava a cultura germânica. Eram, portanto,
importantes espaços para a prática do germanismo.
Chama a atenção o fato de Vianna Moog citar a Sociedade Ginástica e calar sobre a
Sociedade Orfeu, que é o clube mais importante na história de São Leopoldo e o mais antigo dos
clubes fundados por imigrantes, tendo sido criado em 1848. A finalidade do clube é expressa
nestas palavras de José C. Eggers (1998, p. 12), as quais também sugerem que a sua existência
estava a serviço do germanismo: “A sociedade debaixo da denominação Orpheus é uma
sociedade de homens, que tem por fim exercitar, cultivar e enobrecer o canto alemão, influindo e
animando o gosto por ela, a fim de promover por meio dele, uma verdadeira vida sociável e
harmoniosa entre os patrícios alemães.” Contudo, o Orfeu sofreu um processo de nacionalização
75
“Deus seja louvado! Entre, e traga sorte para dentro”.
76
Hoje, este prédio é a Câmara Municipal de São Leopoldo, tendo à frente a estátua da imigração, no centro da
cidade.
77
Existente ainda hoje em São Leopoldo; foi fundada em 1885.
144
na Primeira Guerra; desse modo, com razão, de acordo com a idéia geral que circunda o romance,
de representar, sob a sua compreensão, o mundo germânico de São Leopoldo, Vianna inclui na
história narrada apenas a Ginástica, que, de fato, era e se manteve como o clube mais
germânico.
78
De início, na história da imigração, essas sociedades podem ter sido vistas pelos nativos
como uma diversificação da cidade de origem alemã, pois foi novidade para os do local. Com o
tempo, a prática da ginástica, do canto, dos jogos em geral, vista como do estrangeiro, foi sendo
admitida por todos. A exemplo da Ginástica, que aparece neste romance, os luso-brasileiros
participavam das atividades e eram sócios. Em Frida Mayer também aparece uma sociedade, a
Germânia, que possui freqüentadores nacionais. em O tempo e o vento é o clube de Santa Fé,
criado pelos luso-brasileiros e que recebe os alemães, os quais introduzem suas danças e seus
jogos no ambiente, como novidades para o luso-brasileiro. Exemplo é o jogo de bolão.
Na sociedade Ginástica reúnem-se os sócios para o lazer e diversão, estes de origem
alemã quase na totalidade. Os de outra origem, brasileira, por exemplo, são sempre exceções em
meio aos teutos, sendo admitidos como sócios somente mediante consulta aos dirigentes e um
exame de suas qualidades como pessoas, de sua condição financeira, de seus interesses no grupo
e na cidade. Evita-se, o quanto possível, ameaçar a caracterização germânica do lugar.
Nesse espaço de Blumental, a atmosfera germânica é cultivada não pelos sócios, com
seus costumes, jogos, cervejas, linguagem, mas também pela decoração, que se faz de grandes
medalhões com a representação das cabeças de personalidades alemãs, como Wagner,
Beethoven, Chopin, Liszt. A biblioteca, por sua vez, também garante a disposição de textos de
alemães para quem ali está. Ali se encontram obras de Goethe, Schiller, Schlegel. A Nova
Alemanha é informada pelo Mein Kampf, de Adolf Hitler; Das dritte Reich, de Moeller van den
Bruck; Staat, Bewegung, Volk, de Hans F. K. Günther; Praktische Kulturarbeit im dritten Reich,
de Hans S. Ziegler. Há, ainda, romances de Marlitt e Kurtz Mahler.
Os aspectos são, mesmo, de um mundo à parte. A política que ali acontece é também
particularizada: não se soma aos interesses de partidos nacionais e, sim, fica circunscrita aos
interesses do local; logo, o que acontece no estado e no país não tem maior repercussão entre as
78
Para saber da história do Clube Orfeu, podemos ler a tese de doutorado da professora Heloísa Elena Capovilla da
Luz Ramos, intitulada O teatro da sociabilidade. Um estudo dos clubes sociais como espaços de representação das
elites urbanas alemãs e teuto-brasileiras: São Leopoldo, 1850-1930, defendida em 2000 no Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
145
pessoas dali. Há, ainda, o apoio a quem segue a carreira política por parte dos sobrenomes
alemães mandatários no município, o qual funciona como uma aprovação em meios aos eleitores
e quem cedia são os Kreutzer e os Wolff.
Interessados ou não no restante do estado ou do país, os teutos também em Blumental
comportam-se conforme uma idéia geral que se formara sobre eles na história de sua presença no
Rio Grande do Sul: a de sempre estarem com o governo. Não é vantajoso atrelar ao trabalho e à
ascensão econômica as disputas de oposição, como diz Karl Wolff ao seu amigo Dr. Stahl: “-
Mas doutor, nós não precisamos de política. Não entendo como é que o senhor, que podia estar
rico, ainda se mete nessa sujeira...” (p. 125). Para o doutor, estar sempre com o governo é prova
de desinteresse e descaso.
Blumental é uma cidade do Reno perdida em terra americana, cuja descrição sugere que
nela impera um ambiente austero.
3.3.5 - Contatos
Até 1940, a região que compreende o vale do rio dos Sinos era essencialmente bilíngüe.
Usava-se sem medida a língua alemã juntamente com a portuguesa. Dinorá Hoeper (1998),
referindo-se a Novo Hamburgo - porém, pela proximidade geográfica e por também ser uma
cidade originada pela colonização alemã, podemos estender as características para São Leopoldo,
146
portanto, um ambiente ainda mais propício à produção da “cultura híbridade que fala Willems
(1946) ao se referir à identidade teuto-brasileira.
Em Blumental está demonstrada a preponderância dos alemães e de sua língua, mas
também o registro de que, junto à população que formava o bairro operário, ao redor da
fábrica de sandálias dos Wolff, há todas as cores e raças. Por ali, é uma variedade humana que sai
do trabalho ao soar da sirene, muitos deles manejando indiferentemente o português e o alemão.
Os contatos humanos e a industrialização da cidade haviam matizado a comunidade
antes essencialmente branca: “Havia ali casais curiosos: teutos e alemães casados com cabrochas;
alemãs repolhudas casadas com morenos e mestiços. A garotada que brincava junto às obras
afinava pelo mesmo diapasão: meninos loiros, morenos, tipos claros de cabelo vermelho, faces
cheias de sardas, sararás de olhos muito azuis” (p. 38). Contudo, esses matizados não são as
referências maiores na cidade, mas, sim, os que se mantêm na suposta pureza da etnia alee,
sobretudo, os que, além disso, são ricos.
Vemos que Vianna Moog não deixa de considerar a diversificação étnica e a convivência
de culturas e línguas que existiam em São Leopoldo na época da escritura de sua obra. O
ambiente dito germânico demonstrava muito da criação dos descendentes dos imigrantes, não
somente dos imigrantes nascidos na Alemanha, pois que se haviam passados mais de cem anos
desde o início da colonização,um tempo que, inevitavelmente, permite que se processe a
aculturação. Contudo, ele não atribui importância maior a essa realidade; interessa-lhe,
preponderantemente, a diferenciação cultural que persiste.
A diferenciação cultural que se fazia visível na década de 1930, que foi objeto dos agentes
de nacionalização e também de muitos intelectuais que interpretavam questões de etnicidade, foi
transportada para dentro da narrativa e serviu de caracterização dos indivíduos ficcionais que
protagonizaram a história, sendo expressões maiores dessa diferenciação o uso cotidiano do
idioma alemão, a forma de sociabilidade, a moral pela qual se orientavam, os costumes que
preservavam.
O romancista destaca que, em tempos um pouco anteriores ao crescimento da
industrialização, “Blumental era uma verdadeira Alemanha. se falava alemão, os próprios
editais da Prefeitura eram escritos em alemão” (p. 51). Se o uso da língua foi sendo adequado,
não só pelos alemães que já se dispunham a usar o português nas situações exigidas, mas também
por alguns brasileiros, que, pelo convívio e interesse, chegaram ao ponto de dominar a fala alemã
147
e usá-la, da mesma forma, quando necessário, como o faziam as duas negras que trabalhavam na
casa dos Wolf (p.62), os relacionamentos ainda careciam aplacar extensos distanciamentos,
demarcados principalmente por exclusivismos de grupos e famílias germânicos.
Nesse sentido, os brasileiros são objeto de exames demorados por parte dos teutos, os
quais geralmente se comportam com indiferença frente a eles ou empenham-se em não incluí-los
em sua convivência. É comum não receberem atenção e reconhecimento nem mesmo os que
exercem cargos importantes na condução da cidade, como o promotor, por exemplo, que, sendo
amável com senhoras que estão sentadas em cadeiras de balanço na calçada, atrapalhando a sua
passagem, do secretário do prefeito e do engenheiro e de quem mais precisasse ali passar, pede-
lhes licença e elas, simplesmente, afastam as cadeiras num gesto automático, sem se comover
com a amabilidade do promotor. Também, mais adiante, quando passam pelo doutor Stahl, este
os observa e aguarda a iniciativa do cumprimento, ao que corresponde com apenas um
movimento de braço. por isso podemos imaginar a disposição para o distanciamento e a
cautela que imperam na comunidade em relação aos brasileiros.
Por outro lado, os brasileiros também preferem destacar o que não consideram muito
admirável nos alemães, como o faz o secretário em relação ao doutor Stahl: “- Veio corrido da
Alemanha atalhou o secretário. – Esquisitão. Rixento. Oposicionista sistemático. Não tem
nenhuma educação. Vareja as casas de família, quando doentes, sem pedir licença. Confunde
fraqueza com grosseria” (p. 33).
Como o que acontece com a língua, moradias dos cidadãos de Blumental que apontam
para a interferência de costumes e de estilos dada pelo contato e pela convivência das etnias.
Numa ordem geral, são de uma família alemã os chalés com jardim na frente, cortinas nas janelas
e aparência agradável de asseio e de brasileira as casas descuidadas, de pintura desmaiada, com
portões a cair. Contudo, destoando, um chalé tipicamente alemão é habitado por pessoas negras,
que se vestem com camisas de brancura imaculada.
A esta Blumental chega Geraldo Torres, um brasileiro nascido no Amazonas, de pele
bronzeada e cabelos negros. É solteiro, com 28 anos de idade, engenheiro, que vem do Rio de
Janeiro para trabalhar na construção de uma hidráulica em Blumental. Seu primeiro contato é
com o pessoal do Hotel Centenário, de um alemão, onde ficaria hospedado até sair da cidade. As
primeiras palavras que ouve lhe deixam claro que ele é estranho ao ambiente. O funcionário
148
que está na recepção diz-lhe: Einen Moment, bitte (p. 25)
79
. O dono do hotel comunica-se em
português, mas com um bem claro sotaque alemão. Ali, como mais tarde lhe diria o promotor,
quem não sabe falar alemão não tem chances de crescer e se incluir na sociedade.
Vive na cidade a jovem Lore Wolff, filha do velho Wolff, da família alemã mais rica,
influente e importante do local. Tendo estudado dois anos na Alemanha, é excelente pianista,
muito bonita, educada. Entre ela e Geraldo desperta um grande amor.
Lore chega até Geraldo pela primeira vez por meio do som do piano que toca, numa tarde,
em sua casa. No jovem brasileiro, de imediato, por esse meio, planta-se o sentido de tudo, da
vida, do amor no mais profundo de seu ser. A sintonia estabelece-se de tal forma que ele “sentia
os graves do piano com todo o corpo. Um calafrio percorreu-lhe a espinha” (p. 33). E a força é
tanta e imediata que Geraldo tem a sensação de que lhe chegam aos sentidos os sons da
Amazônia: Viu-se transportado para a selva amazônica, no meio do rio, com a tempestade
desencadeada. Gigantescos cedros caindo sobre a corrente, levantando o rebojo. A selva se
contorce. Vibra no ar o estrondo de um desbarrancamento ao longe, logo seguido de uma
descarga elétrica. Vê-se abandonado na canoa, à mercê da correnteza. Ilhas flutuantes ameaçam a
embarcação e ele grita, mas só respondem as guaribas da floresta” (p. 33). Só consegue perguntar
“- Quem é?”, e ouv: “É Lore” (p. 33).
Lore e Geraldo ficam próximos pela primeira vez na residência dela, numa tarde em que
ele vai com o grande violinista Raul Machado, seu conhecido, fazer as tratativas para ela
participar dos concertos que seriam realizados na cidade, tocando piano. Geraldo a observa e
admira o quanto
lhe assentava bem a blusinha húngara, vaporosa e fofa, toda bordada, com mangas curtas
de elástico e realçar-lhe a carnação da pele rosada. E o cabelo loiro dividido ao meio por
duas bastas tranças enroladas em caracol sobre as orelhas! O mais bonito eram aqueles
fios rebeldes a lhe roçarem a nuca harmoniosa, por onde corria uma leve penugem de
pêssego imaturo. E a saia de plissê, ajustada numa cinturinha macia, caindo em nítidas
pregas verticais sobre os quadris (p. 58).
Geraldo está diante de uma moça de cor e jeito de vestir bem diferentes das que conhecera
no Amazonas, no Rio de Janeiro ou em outro lugar onde já havia estado. Está, também, diante de
uma mãe com características bem peculiares em sua autoridade, a frau Marta, que mostra de
imediato o seu jeito de lidar com os de fora quando Lore oferece licor ao visitantes e, diante do “-
79
“Um momento, por favor”.
149
Ora não é preciso... o se incomode” (p. 58) do violinista, ela, imóvel na alta poltrona de
braços, cabeça levantada, alvitra: Quem sabe preferem framboesa” (p. 58), deixando, com
isso, a filha corada. Também com voz imperativa, pergunta a Raul, que está em pé a observar os
quadros com inscrições góticas que enfeitam a sala: “- O senhor não se senta?” (p. 58). Dessa
forma, Geraldo, estando presente, confere o autoritarismo, a impassibilidade e o distanciamento
que a mãe de Lore impõe neste primeiro contato, o que é ainda reforçado pelo implacável
“Impossível” (p. 59) que frau Marta sentencia em resposta à “sugestão-pedido” do violinista para
que a moça ajude a sua mulher a vender as entradas para os espetáculos musicais. Como o
homem diz que esse tipo de ajuda é uma prática por onde tem passado, ela, como diz o narrador,
sibila, imperturbável, que cada terra tem seus costumes. Não bastasse as palavras a demonstrar a
superioridade da mulher, seu andar também indica isso: um andar de “bispo sob o pálio” (p. 60).
Só por isso o romance já consegue transmitir o quanto Blumental cultiva uma forma própria de se
relacionar, primando pelo distanciamento com os recém-chegados, ainda mais sendo de outra
etnia, e fazendo prevalecer o jeito de pensar gestado na cultura germânica.
Entre o casal Lore e Geraldo há bastante amabilidade nesse primeiro contato. Ela, ao
servir-lhe o licor, deixa seus olhos castanhos se demorarem nos dele, provocando perturbação e
frio na espinha do engenheiro amazonense. E o sinal dos olhos é a certeza absoluta para Geraldo
de que ela lhe tem afeição. Na despedida desta tarde, Lore pede-lhe que ao baile de Páscoa.
No caminho para o hotel, sua mente está completamente ocupada com o amor que se instalara:
Tinha vontade de gritar. Que lhe importavam agora noites de estudo perdidas, a cultura,
a serenidade? Ainda que o amor lhe trouxesse atribulações, contrariedades, humilhações,
ainda que lhe destruísse toda a serenidade interior, era melhor viver, viver na plenitude
do sentimento e do instinto. Iria ao baile de Páscoa, iria onde Lore quisesse. Sentia a
alma inundada da mais pura, da mais selvagem e, ao mesmo tempo, da mais casta
felicidade. Uma felicidade de bugre enamorado de deusa branca (p. 63).
Na noite do concerto na sociedade Ginástica, Geraldo é um dos primeiros a chegar,
acompanhado de seu amigo Armando, o fiscal. Quando o violinista e Lore aparecem e intentam
começar o espetáculo, Geraldo dá-se por conta de um barulho que vem de outra parte do edifício.
É o som do jogo de bolão que um grupo de teutos está fazendo. Parece trovoada e Raul Machado
se sente que atrapalha, ficando inquieto. O engenheiro resolve acabar com aquilo, considerando
completa falta de respeito com a música e seus executores e vai até o bolão. Ao entrar, a grande
algazarra cede lugar para a surpresa dos alemães diante da entrada daquele homem diferente ali,
150
num reduto de homens louros, brancos. Geraldo, com polidez, diz: “- Venho pedir aos senhores
um obséquio. O barulho do bolão está perturbando o concerto. Podiam interromper o jogo por um
instante?” (p. 66). Como não concordância dos jogadores, ele insiste explicando que se trata
do maior violinista do Brasil, ao que os teutos, às gargalhadas, dizem “- maior? Pois sim...” (p.
67). Incomodado ao extremo e constatando o menosprezo com que tratam o artista, o jovem
amazonense dá início a uma briga, segurando um rapaz de óculos, que o havia acusado de não ser
sócio, pela gola do casaco. Os alemães lançam mão de cadeiras e garrafas e atiram-nas contra o
engenheiro. Armando, que o está acompanhando, puxa o revólver e aponta contra os jogadores,
com o que todos correm para fora do local. Contudo, esse conflito, embora tenha resultado no que
Geraldo esperava, o silêncio merecido para o concerto, não o lisonjeia e deixa seu espírito
reprimido. Tudo fica em sua mente como uma grande preocupação, que lhe traz a certeza de que
aquela não era sua vontade e a constatação de que a sua diferença etnica determinaria suas
relações com a comunidade teuta da cidade.
Esse momento de imposição de uma idéia e de uma vontade do Geraldo, bem como todo
o estado de indignação que dele toma conta a partir da vivência em Blumental podem ser
relacionados com um caso real que aconteceu em Santa Cruz nas décadas de 1930 e 1940,
relatado por Gertz (2005). É a experiência vivida por alguém que vem de fora, que estranha, não
aceita o que vê nem se adapta ao comportamento da cidade, que se apresenta mais como
germânica do que como brasileira, recebendo também, diretamente, a rejeição de habitantes dessa
cidade. Trata-se do jornalista Evaldo Alarcon, autor do livro E o sangue brasileiro correrá...
(1942). Neste livro ele relata que não foi aceita a sua proposta junto aos jornais em língua ale
que circulavam na cidade, o Kolonie e Volksstimme, de incluir uma coluna sua, escrita em língua
portuguesa. Diante da negativa, fundou o jornal semanal O Nacional, que teve pouca duração,
pois quase nada recebeu de apoio e não lhe eram dirigidos os textos legais por parte das
repartições públicas, certamente administradas por teutos, o que representaria recursos
financeiros para manter o periódico. Seus sentimentos em relação aos insucessos junto àquela
comunidade, tanto como um profissional quanto como um cidadão, um “verdadeiro brasileiro”
(GERTZ, 2005, p. 166) disposto a fazer-se ouvir e exigir mudanças sociais e culturais que
resultassem no abrasileiramento das pessoas e do lugar, seriam opinião blica de boa parte dos
gaúcho-brasileiros e ditames da política implementada pelo governo na época do Estado Novo,
que realizou a campanha de nacionalização.
151
Nesse sentido, Geraldo espelha a situação de quem despreza e é desprezado, porque quer
mudar algo naquela comunidade, mas é de fora. No salão do concerto a música domina o
ambiente sem que ninguém se conta do que acontecera no bolão. Nessa mesma noite, Geraldo
acompanha Lore na said. Caminham pela rua, lado a lado, fazem silêncio, conversam, dão-se as
mãos. Numa correspondência mútua, olham-se nos olhos, vivem, enfim, momentos em que o
mundo lhes fica completamente alheio. Ambos sentem um grande amor um pelo outro.
Falta, ainda, o contato com o irmão de Lore, Karl Wolff. Geraldo conclui que ele é a cara
da frau Marta e em nada se parece com a irmã. A pele muito alva, os olhos azuis, aguados, os
cabelos de palha de milho” (p. 77). Possui movimentos bruscos, ginásticos, angulosos.
Diferentemente de Lore, o olhar de Karl “é duro, arrogante, visionário, fanático; o de Lore,
caricioso, quase humilde” (p. 77). Ainda, como um alemão característico, ao ser apresentado ao
engenheiro pelo fiscal Armando, junta os calcanhares num golpe militar e aperta a mão de
Geraldo com energia.
Muita coisa por ali depende da aprovação de Karl Wolff. O prefeito faz-se submisso e
busca sempre seu apoio político. A própria entrada de Geraldo para o tênis é coisa a ser proposta
a ele, que pode aprovar ou não. Mas Karl julga essas coisas sem importância. Interessam-lhe
sobremaneira os problemas europeus e, particularmente, a Alemanha, onde, felizmente, pensa ele,
velava um homem forte, batalhador em várias frentes e tendo atrás de si uma nação
invencível. Um homem extraordinário que de simples pintor de paredes, de simples
soldado na Grande Guerra se transformara, pelo próprio gênio, no maior dos alemães.
No princípio não simpatizara muito com Hitler. Combatia os nobres e os ricos e não
tinha se conduzido lá muito bem com Hindenburg. Mas depois foi obrigado a reconhecer
que o mundo nunca conhecera um político como aquele. Maior que Frederico II, maior
do que Bismarck! Salvara a Europa do comunismo, abaixava a proa da Inglaterra e a
livrava a Alemanha dos judeus, esses traidores. Além disso, reduzia o tratado de
Versalhes, essa vergonha, a um farrapo de papel (p. 80).
Apenas para lembrar, Karl reverencia a atitude de Hitler ao se impor contrariamente à
imposição feita à Alemanha no encerramento oficial da I Guerra Mundial e que vinha durando
quase vinte anos. Eram as circunstâncias a que ficou submetida a organização social e política
alemã por força do Tratado de Versalhes, assinado em 28 de junho de 1919 no Palácio de
Versalhes, em Paris, na França, como um acordo entre nações para manter a paz mundial, tendo
em vista os acontecimentos da Primeira Guerra Mundial. O alvo maior a ser atingido era a
Alemanha derrotada, buscando limitá-la em seu poder pela eliminação de seu potencial bélico,
152
para impedir novas investidas militares. Trinta e dois países assinaram o documento, que tinha
sido elaborado pelos EUA, por meio de seu presidente Woodrow Wilson, pela Inglaterra e pela
França, por seus seus primeiros-ministros David Lloyd George e Georges Clemanceau,
respectivamente.
Do Brasil pouco ele entende e nada admira: sua extensão territorial lhe é indiferente; sua
história é feita de fatos vagos, como o descobrimento pelos portugueses, algumas guerras da
época colonial, o 7 de Setembro, a Guerra do Paraguai, que o Brasil, na sua visão, venceu
graças à participação dos primeiros alemães no exército. Há, ainda, o 13 de maio, “que
proclamou a libertação da negrada, uma gente que podia, afinal de contas, continuar escrava e
não precisava andar por a faltar com o respeito aos arianos. O que veio depois eram
revoluções, correrias, requisições que atrapalhavam o comércio e a indústria, “fruto exclusivo
do esforço germânico” (p. 81). O modo racista de pensar, como vemos ao se referir à abolição da
escravatura no Brasil, impõe-se a tudo, como também um insulto generalizado, um sentimento
diminutivo a tudo o que não é feito de sua raça ou sua terra.
Quando se trata de sua etnia, Karl é corporativo e defensivo, como o faz ao se referir aos
Mucker, num discurso que inocenta os seguidores de Jacobina e também os demais colonos
alemães que aos Mucker se opuseram. Justifica que a polícia foi a culpada de tudo e que os
Mucker apenas se defenderam. “Bem se podia ver que os colonos alemães por si mesmos não
seriam capazes de barbaridades” (p. 84). E chama de vergonha a atitude de prender os chefes nas
cadeias de São Leopoldo e Porto Alegre, “só porque dirigiam as cerimônias religiosas do
Ferrabrás, umas festas inocentes de cantos e orações e leitura da Bíblia! E não havia nada que
justificasse a remessa para de tantas forças do Exército com o fim de chacinar os colonos,
como bichos. Degolamentos à vontade. E o pior é que a história nunca seria contada direito. Os
que restavam eram poucos e não podiam falar” (p. 84-85). Como reflete Geraldo, “Karl Wolff
defendia os Mucker, defendia Hitler, defendia com bravura os seus dolicocéfalos loiros de olhos
azuis, contra tudo, contra todos, contra os fatos, contra a própria evidência” (p. 90). Pelos demais,
nutre desprezo, antipatias, ódio. Não valem os indivíduos por si mesmos; valem, sim,
diferentemente os grupos étnicos, os povos.
Esse Karl auto-suficiente e sempre a desfrutar as benesses à disposição de quem seria
superior etnicamente, é derrotado numa partida de tênis pelo amazonense com sangue de índio,
que, para ele, pertence a uma sub-raça. O fato ocorre num dia de quermesse, à presença de muitos
153
teutos, o que não seria esquecido e funcionaria como mola propulsora no momento de dar um
jeito para que o engenheiro sumisse da cidade.
Lore encontra-se com Geraldo várias vezes para passear, oportunidade em que cultivam
os seus sentimentos e o amor se aprofunda. No baile de Páscoa, dança com ele à vista de todos,
inclusive do irmão Karl. O próximo encontro seria no kerb, em Tannenwald. Mas frau Marta
descobre o namoro e decide que não continuará. Na hora de ir, impõe à filha que esta deve
assumir o compromisso de não dançar nem falar com o engenheiro. mediante isso consentirá
que vá. Resta a Lore sair correndo para o quarto e chorar.
Dos contatos entre alemães surgem discussões sobre questões recolhidas do mundo real
que interferiram significativamente na vida dos imigrantes. É o caso da liberdade de profissão,
tema que muito ocupou o governo do estado no início do século XX e que se expressa numa
conversa entre o doutor Stahl, a frau Marta e Karl. É interessante observar que o assunto não é
um aparte do principal, a questão racial, mas, sim, um argumento dos Wolff contra a defesa que o
doutor vinha fazendo em favor de outras raças. Karl pergunta-lhe se ele continuaria a dispensar
bons pensamentos aos judeus caso o governo brasileiro desse licença para os estrangeiros
exercerem a medicina livremente no país sem a comprovação do diploma, atitude que permitiria
concorrência entre os médicos europeus para se instalarem no Brasil, sendo muitos deles,
provavelmente, judeus.
Ao doutor Stahl isso não preocupa. É diplomado, exerce a medicina em Blumental e
renova seu diploma periodicamente, cumprindo determinações legais, mas reconhece que muitas
vezes, mesmo diplomados, médicos não sabem o que fazer diante de um paciente. Para ele, a
ciência não teria estabelecido tudo e os livros de medicina deveriam chamar-se “tratados
provisórios”. Sua contrariedade maior é em relação ao poder do Estado, que, exigindo diploma,
impõe o selo de sua aprovação a doutrinas e teorias as quais poderiam vir a ser implodidas por
sucessivas descobertas da ciência. Além disso, Blumental é um exemplo da falta de médicos. Ao
abandono e morte de quem contrai doenças, como o tifo, seria preferível qualquer médico,
mesmo um curandeiro, a prestar alguma forma de assistência. Ainda que, dessa forma, muitos
erros pudessem ser cometidos, ele queria dos males o menor. E explica:
Entre decepar pela raiz a liberdade e cair no perigo de ressuscitar privilégios de casta,
num país de instrução escassa e difícil, onde as escolas superiores estavam ficando cada
vez mais caras e mais inacessíveis aos poucos protegidos da fortuna, onde a vida de
154
sacrifício do interior não seduzia aos moços formados das avenidas – era ainda preferível
a liberdade pletórica, com todos os seus abusos (p. 123).
Obstinado em suas idéias, o doutor recebe oposição dos Wolff a altura. Para estes, o Rio
Grande do Sul havia melhorado muito desde que extinguira a liberdade de profissão. A Stahl tudo
teria a ver com a concepção de Estado: se socialista, o governo centraliza tudo e controla a
liberdade individual; se liberal, conta a liberdade.
No início do culo XX, de fato, era preocupação para os brasileiros do Rio Grande do
Sul a liberdade profissional ainda garantida pela Constituição estadual. Muitos espaços eram
ocupados pelos estrangeiros, especialmente os alemães, sem que a oficialidade pudesse colocar
limites. Então, a classe médica resolveu polemizar, abrindo discussão em torno de uma
regulamentação da profissão. Momento alto disso foi o Congresso Médico Brasileiro realizado
em Porto Alegre, em outubro de 1926, quando o doutor Franco Simões, de Pelotas, apresentou
tese relativa à inclusão nos termos legais de exame obrigatório de competência a quem quisesse
exercer a medicina. Não houve avanços quanto a isso no Congresso, pois que o doutor Fernando
Magalhães, do Rio de Janeiro, que presidia a sessão, propôs encaminhar a questão às associações
médicas do Brasil e não permitiu o debate da tese de Simões. Segundo as pesquisas de Gertz
(2002), os arquivos da área médica rio-grandense registram que a atitude de Magalhães evitou
um possível caso de polícia entre os que exerciam a medicina no Rio Grande do Sul. Além disso,
a forma como o governo seria atingido também foi preocupação, a ponto de ter sido acertado nos
bastidores do evento que o tema da liberdade profissional não seria discutido ali, cabendo aos
próprios profissionais levar adiante a questão de seu interesse. Surgiram, então, os movimentos
em prol da existência do sindicato médico, instância cujo objetivo principal seria lutar contra a
liberdade profissional.
Por ocasião do Congresso Municipal de Saúde Pública, realizado em Rio Grande em
abril de 1928, algumas aspirações de trabalhadores da classe relativas à liberdade profissional
vieram a se concretizar por meio das normas que regeram o evento. Nesse sentido, apenas
poderiam ser congressistas “médicos formados pelas faculdades oficiais ou equiparadas do país, e
quanto aos médicos estrangeiros poderiam tomar parte aqueles que fossem especialmente
convidados pela comissão organizadora.” (GERTZ, 2002, p. 134).
Se, entretanto, os organizadores conseguiram eleger o grupo participante, determinando
quem era médico pelo diploma e pelo convite pessoal, não conseguiram garantir um único rumo
155
às discussões que se acenderam em torno das teses apresentadas, dentre as quais uma apontava
para ineficiência dos que eram reconhecidos médicos para com a higiene e saúde pública
80
. Isso
resultou num longo debate na imprensa e em sérias repercussões na sociedade médica de Porto
Alegre. Nesse entremeio, seguiram-se comentários de médicos sobre a liberdade profissional no
estado. O doutor Heitor Annes Dias, por exemplo, afirmou ao Correio do Povo que o
charlatanismo estava aumentando assustadoramente, e que os charlatães, em geral, vinham de
fora. E não seriam poucos, eles vêm aos bandos, tendo ultimamente apontado aqui uma
verdadeira troupe húngara” (GERTZ, 2002, p. 139).
O que faz o doutor Stahl, não se importando com a presença de médicos com ou sem
diploma, desde que os doentes tenham oportunidade de atendimento, não representa a prática
corrente nessa época no Rio Grande do Sul mesmo entre os médicos estrangeiros. Então, se
havia instalado a concorrência, a disputa de nomes, espaços e clientes. Gertz relata um caso
ocorrido entre médicos europeus que atuavam em Porto Alegre na mesma época e que diz
respeito à profissionalização. O doutor André Kiralyhegy foi acusado pelo doutor Hugo
Rothmann de não ser diplomado em medicina pela universidade alemã de Praga. Ouvindo a
acusação, o médico de São Leopoldo doutor Koloman Briglevies solicitou a Praga informações
sobre isso e recebeu documento que comprovava a diplomação de Kiralyhegy. Os dois dirigiram-
se à casa de Rothmann para desfazer a acusação e exigir dele a comprovação de sua titulação. Por
força disso, seu diploma foi examinado por um grupo de médicos, que atestou a validade e
procedência do documento: fora emitido pela universidade de Pressburg (Bratislava) em 28 de
maio de 1921 e revalidado para o Estado da Rumânia em 5 de março de 1923. Por conta deste
episódio, os ânimos foram tão alterados entre os envolvidos que de Rothmann teve até seu
enterro divulgado pelos outros dois médicos. Vemos, pois, que o mundo imigrantista alemão
colocou-se no Brasil com expressiva complexidade, visto que passava rapidamente de atitudes de
proteção e solidariedade incondicional entre os membros e comunidades a atitudes de disputa e
preconceito.
Quanto à questão da etnia, o doutor Stahl não é tão radical quanto frau Wolff. Não julga
que pertence a uma camada humana especial, superior, pura; pelo contrário, concluíra que não
80
Era a tese do doutor Ernst Wolfgang von Bassewitz, médico em Porto Alegre e membro da Sociedade de
Medicina, que se chamava “Cogitações sobre a necessidade da reorganização dos serviços de higiene e saúde pública
do estado do Rio Grande do Sul”. Antes de ser aceita como uma contribuição, foi apontada como ofensiva, pois nela
havia críticas contundentes à Diretoria de Higiene, acusando-a de ineficiência.
156
cabia falar em raça pura na Alemanha, pois seria uma nação que se formara de muitas raças, por
ter sido “o ponto de passagem de todas as invasões bárbaras do Oriente para o Ocidente, o
cadinho de cruzamento dos bretões, germanos, de chineses, tártaros, mongóis” (p. 117). Ele
explica à sua interlocutora, Marta, que os Bach, os Händel, os Nietzche tinham sangue de eslavos
ou de judeus e estavam dentre os maiores nomes da cultura alemã. Ela rebate que seriam exceção
e continua defendendo a pureza da sua etnia, pois que na Alemanha não haveria negros, nome
que ela estendia a todos os brasileiros. Estes é que contaminariam tudo. O doutor Stahl consegue
indicar vários negros importantes, especialmente nos Estados Unidos, onde a história contaria
com grandes escritores, músicos e cantores dessa cor.
Entretanto, se ele consegue fazer essa reflexão, é, de fato, calcada em pessoas que se
destacaram em suas nações. No dia-a-dia, o contato e a convivência com os de outras etnias,
especialmente os negros, são permeados por conceitos racistas que estão neles impregnados por
força da educação recebida. Quando Karl lhe pergunta se ele se casaria com uma preta, ele
explicita o que realmente se passa em seu interior: - Não, não gosto de negros. Mesmo que o
quisesse, por um ato de vontade, não podia. Fui educado com preconceitos raciais. Nesse
tempo a Alemanha andava maluca com as teorias de Chamberlain e Gobineau. Agora seria difícil
desintoxicar-me por completo. Infelizmente não purgativos espirituais para lavar a gente por
dentro” (p. 119). Com essa consciência de si, o doutor tenta demonstrar a Karl que a repulsa dos
brancos a outras etnias não é inata como este acredita, mas, sim, algo construído pela força das
relações sociais, que se iniciam bem cedo na família, como Karl está fazendo com seu filho
Paulinho, reprimindo-o e espancando-o sempre que o surpreende brincando com os moleques
mulatos da rua.
Outra questão histórica, talvez a que envolveu a comunidade germânica com maiores
proporções desde a chegada dos primeiros imigrantes, a campanha de nacionalização deflagrada
pelo governo brasileiro, acompanhada e apoiada por fervorosos patriotas, também é representada
no romance. Como foi, no mundo real, algo de cunho político e social, a cena que faz menção ao
fato histórico se desenvolve em num comício, ou melhor, na tentativa de comício do deputado
Eumolpo Peçanha em Blumental, pois que este nem chega a discursar: fica todo atrapalhado ao
não encontrar nos bolsos as folhas com o discurso que faria. Com isso, o consegue improvisar
algo que faça sentido aos ouvintes e sua única atitude é fazer gestos pedindo silêncio aos teutos
presentes, que já estão às gargalhadas diante da situação. O promotor adianta-se e toma a palavra,
157
conseguindo um pouco de atenção. Esmera-se em elogiar o deputado, mas sua fala não destitui a
platéia do fechamento e da hostilidade com que se apresenta. Esta se digna a dar aplausos às
frases que elogiam a etnia germânica e o progresso da cidade, chegando a dizer que ao trabalho
da imigração aleo Brasil tudo devia. A essa altura, com palmas mais vibrantes do auditório,
tanto o deputado quanto o objetivo daquele comício estão esquecidos pelo orador. O velho
Cordeiro, gaúcho de pala de seda envolvendo o pescoço, do meio do povo, pede a palavra e diz
ao nobre deputado que urge uma campanha de nacionalização da colônia alemã no Rio Grande do
Sul. “Era preciso acabar de vez com os incensos a outra raça que não a brasileira. Do contrário,
jamais se chegaria a dar início ao combate aos que viviam dentro do Brasil, a celebrar em vez da
sua, a pátria dos seus antepassados. E os tempos estavam mais do que maduros para uma cruzada
em prol da unidade nacional” (p. 146). Com isso, as autoridades perdem o rumo de vez, as
famílias começam a se afastar e ele continua a dizer que cultos cívicos heterogêneos não geram a
unidade, que o Brasil é grande e glorioso suficientemente para exigir o amor de todos os seus
filhos só para si.
Meine Herren (p. 147), são as primeiras palavras do deputado na ocasião. “Um negro
falando alemão”, diz um mocinho loiro. E com essas palavras, nessa língua, posiciona-se para
aquele público contrário à nacionalização, pois expressa admiração “à disciplina da colônia, à
ordem, ao seu espírito vico. O Rio Grande devia o seu progresso à colonização germânica. Por
isso o povo de Blumental fazia jus à gratidão imperecível de todos os brasileiros” (p. 148).
A comunidade estrangeira, cuja integração ao país se tornou o motivo das exaltações
discursivas desses considerados nativos, tanto para ser elogiada quanto para ser atacada, cala-se e
distancia-se dos contatos que suscitam tal questão. Os teutos sabiam que eram a centralidade de
toda uma postura do governo em âmbito nacional:logo, era melhor silenciar. No romance, tudo
indica que eles viviam aqui como se não quisessem se alhear do que viveram ou do que acontecia
na Alemanha.
Fica, assim, representado um dos projetos que se pretendia moderno e inovador no
processo desenvolvimentista, a nacionalização do estrangeiro. As ações para se chegar a tanto
fizeram parte da história do Brasil desde o governo Vargas de 1930 a 1945, vindo a percorrer um
itinerário que passou por Juscelino Kubitschek e seus sucessores imediatos, chegando até a final
fase autoritária militar e sua crise na década de 1980, da qual a ascensão política internacional do
liberalismo foi a principal causa.
158
As diferenças étnicas concretizadas por meio do uso da língua alemã, da circulação de
veículos de comunicação em alemão, de redes de escolas particulares idealizadas e mantidas pela
religião, tanto a protestante quanto a católica, da prática religiosa, foram o alvo da campanha de
nacionalização. Para muitos brasileiros em conformidade com o governo a etnicidade era
obstáculo à assimilação e ameaça à unidade nacional.
Giralda Seyferth, no artigo “Os alemães no Brasil: uma ntese”
81
, assim sintetiza a idéia
geral da campanha de nacionalização:
Instituída em nome da unidade nacional, a campanha de nacionalização do Estado
Novo, iniciada em 1937 com a pretensão de forçar a assimilação dos alienígenas (termo
indicativo de ausência de abrasileiramento), produziu a maior crise enfrentada por
alemães e descendentes: houve intervenção nas escolas e outras instituições
comunitárias, o uso da língua materna foi proibido em público e os militares procuraram
impor civismo através do elogio ao caldeamento étnico/racial. Tal experiência
nacionalizadora teve efeitos definitivos, entre eles o desaparecimento da imprensa e das
escolas étnicas e de algumas instituições culturais; mas não anulou alguns princípios da
etnicidade teuto-brasileira, especialmente aqueles vinculados à origem comum, ao
habitus e ao processo histórico de colonização (sob a chancela do pioneirismo) que,
simbolicamente, compõem as marcas distintivas de uma identidade étnica
persistentemente reconstruída.
Lore trava, a partir de agora, uma luta silenciosa com a mãe e início ao fim do contato
com Geraldo. Não vai ao kerb, causando grande tristeza, solidão e decepção no seu amado
engenheiro. Nascera, sim, um grande amor em ambos. Para Geraldo, pensamentos, trabalho,
ambições, tudo dependeria de Lore. Ela fizera com que descobrisse em seu interior “reservas
insuspeitadas de ternura, de carinho, de amor” (p. 139), algo, portanto, que nunca havia sentido.
E ele conclui logo que a ausência de Lore se devia a frau Marta, que a proibira de encontrar-se
com ele. Tinha tremendos e invencíveis preconceitos de raça...” (p. 149). Interrompidos os
contatos de Lore com Geraldo, não mais se vêem depois da Páscoa. Nem as janelas do palacete
dos Wolff se abrem mais para ele, que tem de viver sem nenhuma explicação, apenas com as
conclusões a que as evidências o levam.
Quanto a ela, tranca-se em casa a partir de então, e não tarda a adoecer, chegando a arder
em febre, balbuciando o nome de Geraldo em seus delírios. Tifo, abalo emocional em virtude da
separação do amado, imposição da mãe, todo um conjunto que a leva próximo da morte. Ao
81
Disponível no site www.comciencia.br/reportagens/migracoes. Acesso em: 10 nov. 2007.
159
melhorar, tempos depois, sente que ainda ama Geraldo, mas sabe que jamais o verá, pois sua mãe
já providenciara tudo para que isso acontecesse.
Os alemães da sociedade Ginástica decidem as coisas pela vontade dos Wolff e dos
Kreutzer, em vista do prestígio de que gozam. Diante da solicitação da entrada de Geraldo como
sócio, Karl, que não reconhece nenhuma qualidade no amazonense, somente o destaca pela
inferioridade da etnia a que pertence, na afronta da cor negra à cor branca do local, na insensatez
de querer Lore, empenha-se, com a ajuda de Oscar Kreutzer, pela não-aceitação do engenheiro.
Entretanto, os demais ouvem o discurso do doutor Stahl a favor da admisão de Geraldo na
sociedade e aprovam a solicitação.
No entanto, a providência tomada por frau Marta, conseqüência da sua visão do contato
de Lore com Geraldo, que os levara ao amor, muda definitivamente o rumo de tudo, sendo
drástica para o casal de apaixonados e para a população que aguarda a água tratada. Por força dos
Wolff, que, em troca de apoio nas eleições, exigem do prefeito que o engenheiro vá embora da
cidade para sempre, a companhia que o emprega Geraldo ordena que Geraldo saia imediatamente
da cidade, deixando interrompidas as obras. Diz o telegrama enviado a ele: “Suspenda obras,
dispense pessoal, embarque urgente” (p. 162).
O senhor Wolff fizera as tratativas com o prefeito, Karl concordara, considerando
excelente a solução, porém a grande responsável fora Marta. A sua forte vontade é que
prevalecera sobre tudo e sobre todos para “preservar um lar da contaminação do sangue
negróide” (p. 185). Nessas circunstâncias, venceram as armas do preconceito, do egoísmo, da
vingança, da insensibilidade, do poder de dominação, tudo a favor da separação dos dois, não
importando nem mesmo a urgência e a utilidade da hidráulica para Blumental.
A essa altura, a obra estava quase pronta: com “o motor instalado sobre o consolo; os
reservatórios concluídos; o conduto de recalque, a máquina elevatória, os cilindros, os tubos de
ferro fundido, as bombas montadas sobre o maciço, prestes a funcionar... Perfeitamente
ajustados, no nível regulando a primor... Mais um arranque, e a Hidráulica estaria concluída...”
(p. 170). Contudo, acima de tudo, era preciso dar fim à ameaça de Lore unir-se em casamento
com um negro. Assim, o amazonense “iria embora daquela terra que não o aceitara, apesar de
todas as suas intenções cordiais, daquela cidade onde ele se sentira como um estrangeiro” (p.
164). Partiria vencido, reflete ele (p. 165).
160
No dia seguinte ao telegrama, sem ter conseguido ver Lore, apesar da procura que
intentara, ficando um bom tempo em frente a sua casa, no fim da rua, indo ao templo protestante,
toma o trem na estação, às cinco da tarde, e volta para o Rio de Janeiro. Como lemos em O
arquipélago, v. 3, (VERISSIMO, 2004, p. 291), num discurso de Floriano: A Alemanha nazista
viveu recentemente um dos mais trágicos enganos semânticos de todos os tempos. Seu povo
aceitou como verdade provadas uma série de mitos, superstições e metáforas que Hitler lhes
impingiu em discursos repetidos e histéricos: a superioridade da raça ariana, do Herrenvolk, sobre
as outras raças da terra...” É desse mito que Vianna Moog se ocupa, fazendo uma estrita leitura
do mundo real que se submetia à ameaça do poder que de tal mito emanava. Percebia-o, muitas
vezes, como guia maior de diferentes contatos entre os alemães e os brasileiros, todos chamados
de “negros” nos espaços onde preponderava o jeito germânico de viver, como São Leopoldo e
Novo Hamburgo. Nesse sentido, seu empenho com essa escrita ficcional da história demonstra a
morte do mito, morte antecipada, pois ele a dita ainda quando são plenas a sua vivacidade e as
atrocidades que em seu nome se cometiam na iminência da Segunda Guerra Mundial.
3.4 - O tempo e o vento
Em princípios de 1833 Santa foi sacudida por uma
grande novidade: a chegada de duas carroças
conduzindo duas famílias de imigrantes alemães, as
primeiras pessoas dessa raça a pisarem o solo daquele
povoado.
Erico Verissimo
Erico Verissimo ocupa os primeiros lugares na lista dos mais expressivos romancistas
brasileiros. Com O tempo e o vento, referência maior de sua produção, é reconhecido como o
primeiro grande romancista da América Latina a fazer um grande e importante romance histórico
161
(MENTON, 1993), mérito este obtido por ter encontrado a forma madura desse tipo de romance
(VERISSIMO, 2000; ZILBERMAN, 2000). Assim, a trilogia que retraçou, esteticamente, a
trajetória da formação histórica e humana do Rio Grande do Sul, que vivifica, especialmente,
dentre as etnias que aqui se fixaram, a lusa e a alemã, é de muita expressividade para a literatura
universal.
Comumente, esse escritor gaúcho é classificado como um romancista de 30, o que tem a
ver com a atenção da crítica centrada nos muitos romances urbanos que Erico publicou nessa
década. No entanto, críticos recentes apontam dentro da sua obra total O tempo e o vento como o
carro-chefe, cujo ano inaugural foi é 1949. Assim, temos de perguntar pelo que estava
acontecendo no mundo do romance no período imediatamente anterior e posterior a essa data,
não em 1930. Assim, inscrevendo Erico na produção renovada do romance histórico da América
Latina, ele participa de um grupo de romancistas que se caracterizam por buscar a essência do
mundo sul-americano assumindo a experiência local.
Nesse sentido, faz par com o guatemalteco Miguel Angel Astúrias e seu livro O senhor
presidente e segue com os brasileiros Graciliano - Memórias do cárcere - e Jorge Amado - Os
subterrâneos da liberdade. Erico e esses dois vão fazer a revisão histórica de regiões, culturas e
acontecimentos do Brasil, encontrando-se, em termos de assunto, nos fatos da ditadura de
Getúlio. É a época, também, do surgimento de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa.
Ainda na literatura latino-americana, o cubano Alejo Carpentier escreve sobre o Caribe (O reino
deste mundo), criando o realismo mágico, uma nova roupagem para o regionalismo; o
colombiano Gabriel García Marques aparece com O outono do patriarca e o paraguaio Augusto
Roas Bastos publica Eu, o supremo. É como representante desse grupo de escritores que Erico
deve ser interpretado.
Como os demais desse grupo, foi um escritor que preservou na construção do romance a
experiência do narrar, dando importância à história em si. A respeito, ele chegou a declarar:
“Tenho dito, escrito repetidamente que me considero, antes de mais nada, um contador de
histórias” (2003, p. 28). Isso o liga muito mais à tradição narrativa do que aos estilos que ele
percebia estarem na moda. Przybylski 1(971, p. 21) registra um depoimento de Erico sobre como
ele se entendia na prática de narrar. O novo que era adotado por escritores de seu tempo não o
atraía: “Nesse ponto eu estou fora de moda, completa e irremediavelmente fora de moda.
Continuo a achar que a estória é importante. É um veículo, um tecido conjuntivo, por assim dizer.
162
Não sou formalista, nem inovador. Não tenho talento para aventuras verbais”. Em outro
momento, analisa a si próprio como contador de histórias, conceituando-se: “Se me pedissem um
adjetivo para me qualificar como contador de estórias, eu sugeriria engenhoso. Talvez este
qualificativo possa ter conotação irônica... mas que importa? ( apud D´AGUIAR, 2003, p. 33).
O ato criativo de Erico também tinha como referência a expressão do tema por meio de
imagens. Seus roteiros possuíam mapas, diagramas e desenhos, que, depois, eram postos em
palavras. Ao planejar O tempo e o vento, Erico assim se refere ao mapa:
O mapa não é o território. Um mapa não representa todo o território. Claro. Um
romance não é a vida. Não representa toda a vida. Afirmam os semanticistas que o mapa
ideal seria aquele que trouxesse também o mapa de si mesmo, o qual por sua vez devia
apresentar seu próprio mapa. Teríamos então o mapa, o mapa do mapa, o mapa do
mapa-do-mapa. Imagine-se um romance que trouxesse em seu bojo o romance de si
mesmo e mais o romance desse romance-de-si-mesmo. Nesta altura o romancista franze
a testa, alarmado. Que tipo de mapa me irá sair esse que estou projetando traçar do
território geográfico, histórico e principalmente humano de minha cidade e, mais
remotamente, do Rio Grande? (apud STRELIAEV, 2004, p. 7).
Por esse texto, percebemos a orientação plástica do autor na criação de seu grande
romance. É possível relacionar essa forma de criar com o seu modo de pensar e sua função como
escritor, uma vez que sempre se preocupava com a comunicabilidade em seu processo de criação.
A clareza, não o impedimento, da compreensão era o recurso buscado no intento de praticar sua
ética humanista.
À trilogia O tempo e o vento pertencem O continente, O retrato e O arquipélago. Nessas
partes são recobertos duzentos anos de história do Rio Grande do Sul, de 1745, época das
Missões Jesuíticas, até 1945, quando do fim da ditadura de Getúlio Vargas. Erico começou a
sonhar com esta obra depois de 1935, como ele afirma em “Sou contra a censura” (1973). Pouco
depois, em 1947, lançou-se à escrita do que viria a ser, nas palavras do autor, o mais importante
no seu rebanho (COSTA, 1968), dando forma a notas que vinha acumulando desde 1939.
A publicação da primeira parte deste romance de fundação ocorreu em 1949 e da última,
em 1962. Ao longo dessa obra, ele retoma as Missões Jesuíticas, a Revolução Farroupilha, a
Revolução Federalista, a Revolução de 23, a Revolução de 30 e o Estado Novo na Era Vargas. O
tempo e o vento, portanto, constitui-se num projeto literário do autor que faz a representação de
imagens históricas que formaram o Rio Grande do Sul e do complexo humano que colonizou esta
163
terra. Estampam-se, assim, uma realidade regional, histórica e uma fotografia regional
entrelaçadas.
Em O continente isso é a principal marca estruturante do texto, que chega a resultar num
sentido épico do narrado. A longa história ficcional ali registrada recobre o período de 1745 a
164
da Páscoa e da árvore de Natal, símbolos incorporados pela população nacional nas
165
É a única personagem de origem alemã que Erico toma como foco, dá-lhe a palavra para
se posicionar perante as personagens com quem convive e caracteriza sua parte introspectiva. É
uma personagem letrada que é ouvida pelo grupo dominante, como acontece nas discussões sobre
modelos de sociedade e economia. A permanência do doutor Winter imita o próprio processo
histórico de muitos estrangeiros de sua etnia: uma vontade expressada de passar apenas um
tempo por aqui e, depois, retornar à terra natal, porém foi ficando e adotando muito do que a
população local, com seus hábitos, lhe oferecia.
No romance, um dos papéis mais importantes atribuídos ao doutor Winter pelo autor é o
de passar a ser uma espécie de contraponto para olhar a história da Bibiana no confronto com a
Luzia na Teiniaguá. Assim, ele tem uma função narrativa que é muito importante no
desenvolvimento dos fatos. Regina Zilberman (2000, p. 36) refere que ele “atua como fino
analista dos comportamentos humanos no universo das personagens ficcionais.”
O doutor Winter é diferente, portanto, das outras personagens de sua etnia, que são
apresentadas pelos olhares dos de fora e cujos papéis pouco interferem na seqüência dos fatos.
Quanto à opção formal do autor, o ponto de vista dirigido a esse conjunto de personagens alemãs
é o da cidade, por meio de seus moradores natos, na maioria das vezes transmitido pelo narrador,
não sendo privilegiado o ponto de vista delas.
Assim acontece com a descrição das casas dos alemães, dos cheiros de suas comidas, da
dedicação ao trabalho e do jeito de trabalhar, do enriquecimento, dos costumes, das danças, dos
jogos no clube (bolão). Talvez dois dos melhores exemplos disso sejam os casos amorosos
vividos pelas duas personagens alemãs femininas de maior destaque, Helga e Toni. A primeira
envolve-se amorosamente com o Capitão Rodrigo Cambará e a segunda, com o político Rodrigo
Terra Cambará; porém não há comentários sobre como elas viveram seus casos intimamente. O
ponto de vista sobre os dois acontecimentos é o da população e o do homem amante, como
veremos no decorrer deste capítulo.
Como procedi com o romance A divina pastora, de Caldre e Fião, também com todos os
volumes de O tempo e o vento priorizo destacar as passagens que se referem ao objeto da
pesquisa, que é o imigrante alemão. Assim, para este trabalho, as personagens alemãs ganham a
centralidade da narrativa, embora Erico não as tenha colocado na centralidade do romance. É essa
seleção de informações que me permitiu reunir dados nas cinco categorias definidas para abordar
o narrado dos romances: Família, Trabalho, Religião, Espaço e deslocamento e Contatos.
166
3.4.1 - Família
Num dos textos intercalados aos episódios principais da obra, Erico volta-se diretamente
para a chegada dos alemães às terras gaúchas, remetendo-nos, assim, aos acontecimentos
históricos de 1824, quando se iniciou a colonização alemã no estado.
Famílias constituídas, com projetos de vida assegurados por promessas governamentais,
sobrevivência dependente do estranho e irredutível determinação chegaram ao porto em Porto
Alegre, onde estavam o presidente da província e outras autoridades à espera. Com isso e
algumas coisas mais, como sabemos, os primeiros grupos de alemães imigrantes aportaram na
província, e não nos é difícil imaginar possíveis expressões, olhares, sentimentos quando
desembarcaram no desconhecido. O autor nos instiga a criar uma imagem ao dizer: “Da amurada
do navio, Willy olha a cidade que os casais açorianos fundaram. Desembarca meio estonteado, de
mãos dadas com a mulher: Hänsel e Gretel
83
, coitados, perdidos na floresta” (O continente, v. 1,
p. 192). Essa idéia primeira sobre quem chega é de reconhecimento das incertezas, do abandono,
das dificuldades das famílias diante de um mundo novo.
Os primeiros passos deles são como se fossem os dos primeiros alemães que, na realidade,
chegaram a Porto Alegre e, depois, a São Leopoldo. Alguns fatos sempre descritos pelos registros
históricos são representados, resumidamente, nas ações da personagem Willy, que, com sua
mulher e mais outras famílias, faz a viagem dos reinos germânicos para São Leopoldo, onde
derrubam mata, fazem casas e lavouras, sofrem ataques de índios e animais, lutam e alguns
morrem: Heinrich ficou debaixo dum cedro com o peito esmagado. Kurt foi mordido por uma
cobra. Um índio furou o olho de Jacob com um frechaço (sic). Schadet nichts! (Não faz mal!)” (O
continente, v. 1, p. 193). Werner, na lavoura, é um dos doze colonos mortos num ataque de
índios.
Ao falar das mortes pelos índios, Erico aproxima-se da visão mitificada que se observa
em parte da historiografia sobre a imigração. Muitos narradores do processo inicial de
colonização alemã do Rio Grande do Sul acabam por fortificar, em algumas passagens de seus
textos, essa mitificação advinda das próprias relações sociais que se estabeleceram no início. Jean
Roche, por exemplo, assim relata: “O desajustamento mais completo depois de uma viagem de
quarenta a cinqüenta semanas, ao tempo da navegação à vela, a luta pela vida contra os índios e
83
Joãozinho e Mariazinha. A comparação com esses personagens do conto de fada sugere que o casal alemão,
distante de sua casa, no caso a Alemanha, procuram o caminho que os leve a um lugar seguro, a nova pátria.
167
contra a mata virgem, a existência bucólica de Robinsons de terra firme, sob as palmeiras dos
trópicos, a conquista de vastas áreas onde os pioneiros fazem surgir as colheitas, as povoações, as
fábricas e as cidades, a aventura aureolada pelo esplendor de um novo ´Eldorado`, o resumo
épico da História da humanidade, isto representa a colonização alemã no Sul do Brasil, no
começo do século XIX” (ROCHE, 1969, p. 1-2).
As famílias teriam de enfrentar também a falta dos alimentos com os quais estavam
acostumados, como a batata, pão de centeio e cerveja, e aceitar o charque, o pão de milho, o
feijão com arroz. Havia, ainda, de lutar na guerra, defendendo o Brasil contra os castelhanos,
onde serviram na companhia de Voluntários Alemães.
Tempos depois, na década de 1830, é a imaginária cidade de Santa que recebe os
imigrantes. São duas famílias alemãs, a de Erwin Kunz e a de Hans Schultz. O narrador assim
relata: “Em princípios de 1833 Santa foi sacudida por uma grande novidade: a chegada de
duas carroças conduzindo duas famílias de imigrantes alemães, as primeiras pessoas dessa raça a
pisarem o solo daquele povoado” (O continente,v. 1, p. 319).
Outra etnia, outra cor, outro visual deixam perplexa a gente do local: “Muitos dos santa-
fezenses nunca tinham visto em toda a sua vida uma pessoa loura, e aquela coleção de caras
brancas, cabeleiras ruivas e douradas, olhos azuis, esverdeados e cinzentos” (O continente, v. 1,
p. 319). Além disso, uma língua diferente: “Grupos cercaram as carroças e alguns tentaram
comunicar-se com as mulheres e os filhos dos colonos, mas sem o menor resultado, pois nenhum
dos estrangeiros parecia falar ou entender o português” (O continente, v. 1, p. 319). Como
também nenhum dos santa-fezenses que estavam ali sabem falar o alemão.
Erwin Kunz é alto, magro, de rosto vermelho e sardento. Estabelece-se no próprio
povoado abrindo uma selaria. Tem esposa e uma filha de aproximadamente vinte anos, Helga.
Hans Schultz viveria na lavoura, perto do povoado, onde, em terras que havia comprado, planta
batata, milho, feijão e linho. Tem esposa, duas filhas e cinco filhos, em idades que vão de oito a
dezoito anos.
Os Kunz e os Schultz podem ser tomados como representantes dos imigrantes que
adquiriram suas propriedades ao chegar ao Rio Grande do Sul. Houve boa parte de alemães que
não se incluíram na colonização imperial, pois algumas famílias que possuíam recursos
financeiros optaram pela aquisição de terras em locais comercializados por brasileiros ou pelos
próprios alemães que aqui se encontravam. Eram as chamadas “colônias privadas”. Como não
168
recebiam ajuda do governo como aqueles que se dirigiam para as colônias imperiais, precisavam
prover seu sustento e o de seus familiares pelos próprios meios (LANDO; BARROS, 1981). O
imigrante Josef Umann relata em suas memórias que, quando o grupo a que pertencia chegou no
Rio Grande do Sul, recebeu orientação do Diretor Geral , um alemão, sobre as terras:
Era Diretor da Colonização do Governo Central, e queria que nos dirigíssemos todos a
Conde D’Eu ou Campo dos Bugres, de colonização imperial. Algumas famílias
aceitaram, pois lhes faltavam recursos para o transporte, às próprias expensas, até as
colônias provinciais. (...). Acontece que o Governo Imperial pagava subsídios aos
imigrantes nos primeiros tempos, enquanto aqueles que se dirigiam às colônias
provinciais ou privadas precisavam prover seu sustento e o de seus familiares pelos
próprios meios (UMANN, 1981, p.48).
As famílias alemãs diferenciam-se das outras de Santa também pelas casas em que
residem, construídas segundo o modelo trazido da terra natal, a Alemanha. São os chamados
“chalés”, ornamentados com cortinas nas janelas e jardins com belos canteiros de flores na frente.
Nestas casas diferentes, de pessoas diferentes, os santa-fezenses observam uma preparação para
festas religiosas nunca antes vista. São as duas famílias que cultivam a experiência milenar de sua
terra relativa à Páscoa e ao Natal e a população local recebe, ao vivo, os costumes alemães:
No primeiro abril que os alemães passaram em Santa Fé, todos acharam muito
engraçada a maneira como eles festejaram sua Páscoa. Contava-se que ao acordar as
crianças encontravam debaixo de suas camas pequenos cestos em que havia ninhos de
palha cheio de ovos de galinha pintados de amarelo, azul, vermelho e verde. Os filhos
de Hans Schultz afirmavam que se tratava de “ovos de coelho” (O continente, v. 1, p.
330).
No Natal também os naturais do lugar são surpreendidos:
E na véspera do Natal de 1833 os que passaram a noite pela casa de Schultz tinham
visto na sala da frente uma pequena árvore toda coberta de flocos de algodão e cheia de
velas acesas. Dizia-se que Hans, com barbas postiças de algodão e metido num
camisolão vermelho, trouxera presente para os filhos dentro de um saco. Aos poucos as
coisas se explicaram. Aquele era um costume alemão: o velhinho barbudo chamava-se
weihnachtsmann, e o Menino Jesus era conhecido na Alemanha como Christkind (O
continente, v. 1, p. 330).
Havia até então, ali, o presépio, que, para o padre Lara, seria “mais bonito e muito mais
nosso” (O continente, v. 1, p. 330). Lang (1998) relatou que muitas tradições foram cultivadas
pelos imigrantes: a festa de Ano-Novo, de Páscoa, o pinheirinho de Natal e os ovos de Páscoa.
169
Roche (1969) explica que o pinheirinho de Natal e os ovos de Páscoa representam fidelidade às
tradições germânicas e que o costume de montar a árvores de Natal foi trazido pelos protestantes
que colonizaram o Rio Grande do Sul. Por aqui, foram os católicos que incorporaram à sua forma
de comemorar as festas esses símbolos, o que indica que a diferença de religião não foi obstáculo
para tanto.
Os luso-brasileiros da narrativa passam a praticar essas tradições. A família principal, a
Terra Cambará, arma seu presépio na sala grande do Sobrado à véspera do Natal (O retrato, v. 1,
p. 90), com naturalidade no ato, como uma tradição que não pode faltar dentre as
comemorações do dia, isso ainda no final do século XIX. Em sua última geração, este já é um dos
elementos agregadores da família na ocasião: “Flora armou no centro da sala de visitas um
pinheiro nativo de Nova Pomerânia, (...). Pendurou-lhe nos galhos esferas de vidro verdes, azuis,
solferinas, prateadas e douradas, bem como ajustou nele pequenas velas de várias cores. Maria
Valéria, como a própria Fada do Inverno, atirou chumaços de algodão sobre a árvore, num
simulacro de neve” (O arquipélago, v. 1, p. 217)
84
. Embora incorporado como tradição na
família, este mbolo cultural e religioso tem sempre lembrada a sua origem, especialmente pelos
mais velhos, como o faz num certo momento Maria Valéria, que, “como para tirar à festa o
sotaque alemão, colocou ao do pinheiro algumas figurinhas de presépio” (O arquipélago, v. 1,
p. 217).
O Papai Noel também passa a entrar na casa. Muitas são as vezes em que o alemão Júlio
Schnitzler, dono da Confeitaria de Santa Fé, chega ao Sobrado como a lendária personagem do
bom velhinho, “vestido de vermelho, com longas barbas de algodão, um capuz na cabeça, um
ventre enorme, o saco de brinquedo às costas” (O arquipélago, v. 1, p. 218).
No mundo vida real, não demorou a haver nas casas de todos os gaúchos, como costume,
ninhos, ovos, coelhos de Páscoa, árvores de natal e Papai Noel. A absorção foi tal que,
atualmente, vivemos esses costumes sem nem nos perguntamos pela origem deles, assimilados
que estão.
A atuação da mulher na família germânica também causa estranheza, visto que ela
participa do trabalho lado a lado com o esposo, tendo as mesmas responsabilidades, como
demonstra frau Schultz quando lidera as atividades na lavoura após a ida do marido para a
Revolução Farroupilha: “Na hora em que Hans deixou a casa, toda a família rompeu a chorar;
84
A colônia Nova Pomerânia que aparece em O tempo e o vento é Ibirubá, um dos municípios do Planalto Médio do
Rio Grande do Sul que formaram as Colônias Novas dos alemães.
170
mas no dia seguinte antes de nascer o sol foram todos como de costume trabalhar na roça, desta
vez comandados por Frau Schultz, que levava o filho mais moço escanchado na cintura” (O
continente, v. 1, p. 348). Essa atitude de mulher de força, mais independente, mais liberta
também é sugerida na lida diária das suas duas filhas na roça, na frau Kunz e Helga fazendo
doces e cucas, na delegação da responsabilidade a Helga para realizar as compras da família na
venda do Capitão. A laboriosidade das personagens feminias alemãs é elemento de contraposição
com as personagens femininas lusas, que não desempenhavam atividades iguais aos dos seus
maridos e filhos.
Não bastasse o trabalho a conferir este papel de maior proximidade com o dos homens da
família, ainda a marca da educação evoluída, moldada na sociedade de padrões civilizados,
que conferira maior liberdade de costumes às mulheres. Exemplo disso é o que acontece com
Helga, a qual, mesmo tendo se entregado ao Capitão Rodrigo Cambará, atrás do cemitério, quase
ao alcance da visão de todos, e isso ter se tornado um escândalo no povoado no dia seguinte,
não muito tempo depois casa-se com outro, empreendendo, assim, a continuidade de sua vida
sem abalar-se com o que houvera e com os falatórios que se fizeram. Tampouco sua família deixa
de uni-la a um homem de sua raça, o que sugere que não havia temor por parte de ninguém em
relação a possíveis conseqüências de ordem moral.
Helga e sua família continuariam a marcar suas diferenças de pensamento e de forma de
agir ao seguir sozinha com o noivo até São Leopoldo antes de se casar, pois que a cerimônia seria
lá, sob as bênçãos protestantes: “E quando a Filha do Serigote montou a cavalo e partiu em
companhia do noivo para empreender uma viagem que levaria muitos dias e muitas noites, os
moradores de Santa trocaram perguntas e comentários atônitos ou maliciosos: Mas ela vai
sozinha com o noivo?. Vão casar só em São Leopoldo. Cruzes, que gente!” (O continente, v. 1, p.
334).
Sempre que Erico se refere às mulheres alemãs, ele coloca em evidência características
que lhes conferem independência e participação ativa na família e na comunidade: é exigente e
determinada no trabalho, desinibida, veste-se com roupas bonitas e alegres, tem opiniões e as
expõe publicamente, cuida pessoalmente da casa, que sempre está atraente e limpa, e sabe
cozinhar muito bem, chegando a vender seus produtos (cucas, bolos, tortas e outros doces). A
família de origem alemã vive mais em quietude, o que causa especulações entre os nativos. Mas
também causa admiração, como acontece ao Capitão Rodrigo, que, observando a lavoura dos
171
Schultz, fica pensando que aqueles imigrantes estão meses no povoado e vivem quietamente a
vida, dedicados ao trabalho.
Carl Winter, médico alemão com mais ou menos trinta anos, natural de Eberbach,
formado pela Universidade de Heidelberg, é mais uma personagem alemã que se fixa no povoado
a partir de 1851. Mora numa meia água atrás da igreja, ao lado da casa do padre, chamando a
atenção de todos pelo modo engraçado como se veste: “Ninguém ali usava chapéu alto como
chaminé nem aquelas roupas estapafúrdias” (O continente, v. 2, p. 40), como também ninguém
mais fuma tais charutos do tamanho dum cigarro. A essa época, diz o narrador, a maioria dos
colonos alemães havia já abandonado seus trajes regionais e adotado os dos naturais da província.
O doutor Winter viera para o Brasil sem família constituída, e nem aqui constituiu uma.
As razões de sua vinda são por ele explicadas: “Estou aqui principalmente porque Gertrude Weil,
a Fräulein que eu amava, preferiu casar-se com o filho do burgomestre. Isso me deixou de tal
maneira desnorteado, que me meti numa conspiração, que redundou numa revolução, a qual por
sua vez me atirou numa barricada. Ora, essa revolução fracassou e eu me vi forçado a emigrar
com alguns companheiros” (O continente, v. 2, p. 47). O casamento não realizado com a noiva
que tivera não veio mais a se realizar com nenhuma outra mulher. Vinham-lhe, de vez em
quando, à mente as lembranças do amor que se desfizera na Alemanha, quando, então, revivia as
sensações desagradáveis que lhe haviam causado as atitudes da amada. Era o suficiente para
acomodar o seu espírito.
Se por essa ou por mais outras razões ele não formava família não nos fica claro na
obra, mas o certo é que a imagem que fazemos dele é de alguém dado à vida independente, em
nada submetido a encantos femininos nem apegado à instituição família. Sempre racional, analisa
os que estão ao seu redor e reflete sobre as situações e atitudes. Assim, é um grande observador a
conceituar as famílias dos luso-brasileiros, a sociedade que estas formam, o modo de ser.
O doutor Winter diz que as pessoas que habitam aquele povoado comportam-se com
expressivo primitivismo. Observamos em sua análise uma visão urbana dos fatos, talhada pelas
experiências de vida cuja civilização se deu por meio da cultura escrita, da arte, da música
erudita, dos conhecimentos científicos. Isso lhe permite reconhecer as diferenças sociais entre os
homens e as mulheres que caracterizam o cotidiano do povoado. Ele observa que as mulheres são
privadas de direitos e recebem quase todas as responsabilidades, pois a seu cargo estão os
trabalhos de criar os filhos, cuidar da casa, cozin
172
desta sociedade não admitem que elas falem com estranhos; são analfabetas ou de pouquíssimas
letras. A tristeza é marca comum a todas, bem como o luto imposto pelas contínuas guerras, “por
isso traziam nos olhos o permanente espanto de quem está sempre a esperar uma notícia trágica”
(O continente, v. 2, p.55). Os homens, por sua vez, são ligados à liberdade e ao machismo; dados
a aventuras amorosas podem ter filhos com as chinocas, as escravas e as concubinas. Importa-
lhes serem machos e não serem cornos. Winter considera-os bárbaros e diz que as glórias
supremas deles são “não levar desaforo para casa, saber montar bem e ter tomado parte pelo
menos numa guerra” (O continente, v. 2, p. 55). Nesses elementos ele identifica as características
de um nítido código de honra espanhol.
Outro alemão que se fixa em Santa sem família é Jacó Geibel: “Era um homúnculo
atarracado, de pernas arqueadas e curtas, barbas ruivas e olhos cor de malva. Viera da Alemanha
havia cinco anos e ali em Santa a arredores era conhecido como o ´Barbadinho do Padre`” (O
continente, v. 2, p. 280).
Nada de triunfo em sua vida de imigrante,pois é o sacristão que acompanha o padre Atílio
Romano nos compromissos religiosos. Não é apresentado como um alemão religioso, nem com
moral adequada aos princípios da Igreja para a qual trabalha. Traz sempre uma garrafa de
cachaça sob o poncho para beber a qualquer hora; é visto deitado na calçada da praça; tem
pensamentos inescrupulosos em relação a pessoas, como os que passam pela sua mente, na noite
em que os escravos de Licurgo Cambará recebem a carta de manumissão. Jacó está na esquina da
praça, de onde os vultos dos convidados para a ocasião se moverem no interior do Sobrado.
Contempla tudo com ressentimento e pensa que aquela casa deveria ser incendiada, com o que
veria as fêmeas saírem correndo e gritando, com as vestes em chamas; e se morressem todos os
que lá estão, seria bom, melhor ainda se também morresse o padre. Poderia também se despir e
invadir o Sobrado, escandalizando aquelas mulheres com sua nudez.
O ataque rancoroso às mulheres deveria ter origem num fato de sua mocidade, na
Alemanha, quando uma fräulein rejeitara seu convite para dançar e ele muito se envergonhara,
além de suportar as gargalhadas de todos. Um desajustado socialmente, este alemão, de mal com
o mundo, nem a mãe conhecera. Enfim, era uma estranha criatura. “Nas noites de ventania-
contava-se- o sacristão saía como um louco a andar sem destino certo pelas ruas, falando sozinho
e gesticulando, com o jeito de quem quer fugir de alguém ou de alguma coisa” (O continente, v.
2, p. 377). Com esse comportamento, sua distância com a sociedade santa-fezense é bem
173
marcada, a qual ainda se acentua pelo não-uso da língua local, pois que, mesmo cinco anos
depois de ali ter chegado, não fala português.
No tempo em que há um grande número de imigrantes alemães no Rio Grande do Sul,
início do século XX, durante a I Guerra Mundial, chega uma família de músicos, vinda de Viena,
para fazer concertos em Santa Fé. No tempo da narrativa é maio de 1915. O estado, pelo número
representativo de alemães em sua população, havia se tornado um local receptivo para artistas da
etnia. Herr Weber, que toca violino, clarineta e flauta, frau Weber, piano e órgão, Toni,
violoncelo e oboé, e Wolfgang, cordeona e xilofone, formam a Família Filarmônica
(Philarmonische Familie). Eles fazem o seu primeiro espetáculo e, no dia seguinte, tornam-se
assunto obrigatório em Santa Fé, pois o teatro ficara lotado e a apresentação fora um sucesso.
A família chegara ao povoado em situação crítica, pois fora enganada pelo empresário que
contratava as apresentações, estando sem dinheiro e sem lugar para ficar. É logo acolhida pelos
moradores do Sobrado, que fazem questão de receber a todos para os serões, os jantares,
estreitando, assim, as relações sociais. Toni torna-se, de imediato, um encanto para Rodrigo Terra
Cambará, que, preso a uma necessidade de manter os Weber por perto, movido por uma paixão
repentina pela moça alemã, dá-lhe a casa de propriedade de seu pai, na rua Poncho Verde, e os
Weber entregam-lhe o seu destino.
As visitas ao Sobrado o semanais, a família convive com várias famílias santa-fezenses
e com outras famílias de alemães. Seus membros chamam a atenção pelo jeito se ser e de vestir:
“Toda a vez que Frau Weber saía às compras ou com livros debaixo do braço dirigia-se à casa de
seus alunos, as comadres de Santa Fé mal continham o riso, achando-a esquisita no seu vestido
cor de chumbo, de golinha alta, cintura de vespa, saia rodada e comprida cuja fímbria varria as
calçadas por onde ela passava com seu jeito azafamado e seu caminhar miúdo e rápido” (O
retrato, v. 2, p. 241-242). Da mesma forma, herr Weber chama a atenção com seu chapéu-coco
pardo, gravata à Lavallière, guarda-chuva sempre à mão, andar sempre apressado. Wolfgang
também se diferencia com sua roupa de veludo verde, de casaco cintado, sapatões de alpinista e
chapéu de feltro com uma pena de pavão enfiada na fita. Toni provoca inveja nas moças de Santa
Fé, pois está a virar a cabeça dos rapazes. A jovem alemã destaca-se entre as jovens locais pela
cor da pele e do cabelo, pela beleza diferente, por tocar instrumento musical de sopro, o oboé,
ação julgada indecente para uma mulher, a quem só caberia tocar piano, violino e bandolim.
174
Com a presença desta família, fazendo concertos no teatro e tocando músicas no Sobrado,
Santa aproxima-se de grandes nomes da música alemã, como Schubert, Beethoven, Mozart,
von Suppé, Offenbach, Strauss, Wagner.
A representação da família alemã abastada, tradicional, que fez fortuna no Rio Grande do
Sul no ramo do comércio e da indústria, vem por meio dos Wolf. Estes são habitantes da colônia
alemã Neu-Württemberg, que é de existência real e hoje se chama Panambi, mais uma das
colônias novas da região do Planalto do Rio Grande do Sul. Panambi é termo de origem índia que
quer dizer “vale das borboletas”. A mudança de nome foi imposição da política adotada durante o
Estado Novo (1937-1945) em relação aos de etnia alemã residentes no país, a qual providenciou
o abrasileiramento da denominação de vários lugares e instituições que usavam nomes em
alemão.
85
Essa família é comandada pela frau Wolf, que vem a ser uma representante das matriarcas
que, ao seu redor, mantém os filhos, os genros, as noras, os netos, os bens. Nos seus quase oitenta
anos, viúva, gosta de poesia e executa músicas ao órgão de fole. Caracterizam esta família a casa
de madeira, de tipo bávaro; muitos livros; o apego à religião, simbolizado pela Bíblia da família
exibida aos visitantes, a qual fora impressa ainda no século XVIII; a senhora que se veste de
negro e penteia os cabelos brancos à moda do fim do século XIX; os móveis,os bibelôs, os
quadros, a louça, o cheiro da madeira envernizada e, principalmente, o sotaque alemão da
proprietária.
Tudo na casa lembra a Alemanha apresentada na literatura e nas gravuras de revista, diz
Rodrigo Terra Cambará, que é recebido pela frau quando, na época da Revolução de 1923,
permanece na cidade com a Coluna Revolucionária de Santa Fé, chefiada por seu pai, Licurgo
Terra Cambará. A coluna havia tomado Neu-Württemberg, “colônia alemã pertencente ao feudo
político do gen. Firmino de Paula” (O arquipélago, v. 1, p. 353)
86
. Com a impressão de ter
entrado em outro mundo, Rodrigo fica admirado com todas essas particularidades e, ainda, ouve
poesias de Heine e Goethe, música de Bach, toma café com leite, come bolos e Apfelstrudel e
saboreia vinho do Reno.
85
Essas informações sobre Panambi RS são de Luís Augusto Fischer, que as apresenta numa nota explicativa que
se encontra na nova edição que prepara do romance Frida Mayer de Vivaldo Coaracy (p. 4), já mencionada neste
trabalho. A colônia é citada naquele romance como o local de origem do colono alemão que comprou a loja da
família Meyer, a protagonista da história.
86
Referindo-se à pesquisa histórica que Erico implementou para criar O tempo e o vento e identificando vários fatos
reais que aparecem na narrativa, o historiador Gertz (2000, p. 203) afirma que “efetivamente aconteceram os
incidentes referidos sobre Neu-Württemberg – nome real de Panambi, na época – durante a Revolução de 1923.”
175
Na constituição do tipo de família, as famílias alemãs contrastam com as famílias
protagonistas da narrativa, de etnia luso-brasileiras, os Amarais e os Terra Cambará. Aquelas
chegaram a Santa Fé e cidades vizinhas para serem pequenas proprietárias de terra ou para
viverem na cidade como artesãos, a exemplo dos Kunz; com o crescimento econômico alcançado
pelo trabalho contínuo e pela forma de organização social na colônia, passam a ser comerciantes
e donos de indústrias. Estas são latifundiárias, cheias de agregados, possuem escravos, lideram a
política partidária, com o que mantêm muito do seu poder sobre a cidade. Diferentes, as alemãs
estruturam-se dentro de uma outra lógica, sem escravos ou ligações políticas. Os de Nova
Pomerânia, por exemplo, operam a transformação do seu local com o trabalho, buscando atender
às suas própria necessidades cotidianas e fazendo valer a determinação de progredir por conta
própria. Assim, constroem a ponte e a roda-d’água, montam a serraria e o moinho, chegam a criar
uma cervejaria. Escola e igreja para elas também são providenciadas, como também uma
associação e uma banda de música.
Spielvogel, Schnitzler, Schultz, Kern, Weber, Stumpf, Kunz, Schmitt, Schneider, Wolf,
são famílias diferentes na cor, na língua e na cultura que passam a modificar o modo de viver de
Santa Fé a partir de 1833 e, junto com as de Willy e Werner, o modo de viver do Rio Grande do
Sul desde 1824.
3.4.2 - Trabalho
Trabalhar na lavoura, ser alfaiate, ferreiro, seleiro, moleiro, padeiro. Os imigrantes
primeiramente mencionados no livro, que foram para São Leopoldo, altos da Serra Geral e Santa
Fé, exerciam essas profissões. Muitos ficavam desorientados diante da urgência de construir as
instalações primeiras para acomodar a família e se alimentar no lote que lhes coubera na colônia,
pois que não eram todos camponeses e sabedores da lida na terra. Willy é um exemplo do que
foram muitos imigrantes: não era agricultor ou construtor de casas em sua terra, mas alfaiate, e
aqui tinha de lidar com a terra para sobreviver e fazer sua casa para se abrigar.
Em Santa Fé, a família Schultz é chamada de “batalhão do Schultz”. Todos trabalham de
sol a sol, desde o filho mais moço até o velho Hans. O Capitão Rodrigo, numa madrugada em que
retorna da casa de Honorina, a sua amante índia, depara-se com a família dirigindo-se para o
176
trabalho. Aqui encontramos a informação sobre o início da lida na lavoura e as características
dessas personagens pequenas proprietárias rurais. Também fica marcado o contraste entre a
noção de trabalho dos alemães e a dos nativos, estes representados pela reação e pensamento do
Capitão. Assim descreve o narrador:
cada um deles levava a sua enxada e uma lata de comida. Iam todos de tamancos e
tinham nas cabeças chapéu de palha de abas largas. Rodrigo não pode deixar de sentir
um certo mal-estar quando passou por eles. Na província as gentes antigas afirmavam
que o trabalho é coisa honrosa e necessária e muitos continentinos olhavam com
desprezo para os vagabundos e os “índios vagos”. Diziam que Deus ajuda quem cedo
madruga. Pois Deus havia de ajudar os Schultz! – refletiu Rodrigo. Naquela madrugada,
mal o sol começava a raiar, lá se iam eles para a lavoura, falando muito alto a sua
língua doida e dando grandes risadas. Rodrigo buscara consolo num pensamento que
lhe vinha com freqüência à cabeça: “A vida vale mais que uma ponchada de onças”. No
fim de contas eles eram estrangeiros e tinham vindo com a tenção de encher os bolsos
de dinheiro para depois voltarem para sua pátria (O continente, v. 1, p.327).
Em todo o caso, ver a família toda em atividade parece bonito ao Capitão. De pele clara e
roupas coloridas, inclinadas a virar a terra, as gentes vindas da Alemanha causam-lhe boa
impressão. Ele se emociona diante dos cumprimentos que todos lhe dirigem, chegando a sentir
um nó na garganta e vontade de chorar.
Erwin Kunz torna-se seleiro na cidade, logo ficando conhecido como “O Serigote”. Faz
lombilhos e bate sola dia após dia. Frau Kunz e Helga fazem doces e cucas.
O progresso nesta terra é contribuição certa dos alemães, no entendimento do doutor
Winter, que reflete:
Os que ali haviam chegado até então lutavam com toda a sorte de dificuldades: a
distância, a falta de meios de comunicação, a ignorância dos nativos e a indiferença dos
governos. Faziam, entretanto, o que podiam. Aos poucos iam realizando coisas,
fundando colônias novas, cultivando a terra, exercendo, enfim, um apreciável
artesanato. (...). Existiam nas colônias alemães da Província mais de trinta engenhos
para a fabricação de aguardente, vários teares para linho (linho que eles próprios,
colonos, plantavam), curtumes, engenhos para mandioca, serrarias movidas a água,
olarias, cervejarias e até uma oficina para lapidar pedras finas (O continente,v. 2, p.
112).
Podemos perceber que Erico não se abstém de corroborar a idéia já universalizada sobre a
relação dos alemães com o trabalho, de que eram extremamente dedicados e se baseavam em
uma noção de trabalho diferente da que era corrente entre os nativos: resguardando-se em seus
universos familiares e culturais, todos os membros da família participavam das atividades,
177
inclusive as mulheres, tanto na lavoura como em qualquer outra área. Não dependiam de escravos
e agregados para se manter e progredir, situação esta bastante comum entre famílias luso-
brasileiras durante grande período histórico em que se passa O tempo e o vento (até, pelo menos,
a abolição da escravatura). Referindo-se à caracterização que Erico faz dos alemães na trilogia,
Lúcio Kreutz (2000, p. 159) assim se expressa quanto ao trabalho: “Uma das características
marcantes atribuídas aos imigrantes alemães é sua dedicação ao trabalho, o que era um dos
motivos da preferência do Governo, a partir do Império, para convidá-los a imigrar ao Brasil. A
laboriosidade e o espírito ordeiro dos mesmos entraram forte no imaginário popular. Erico
Veríssimo realça-o freqüentemente.”
A formação e o desenvolvimento de Nova Pomerânia, criada em 1855, também são
expressões do trabalho árduo dos imigrantes e uma referência a mais do contraste das noções de
trabalho mencionadas. Aos poucos, a paisagem vai sendo transformada e o local vai tomando o
jeito de povoado; aparecem valos, lavouras, cercas, roçados. Sobre um rio que por cruza, os
alemães constroem a ponte necessária para a travessia e, sem muita demora, Otto Spielvogel
monta um moinho d’água. Tudo isso causa admiração aos nativos de Santa Fé, que, quando por lá
passam, demoram-se para olhar os colonos e suas obras.
O trabalho dos alemães na cidade, exercendo domínio em algumas áreas do comércio e
da indústria, é bem lembrado pelo autor. A firma Bromberg & Cia. de Porto Alegre é a indicada
por Rodrigo Terra Cambará quando, como bom reformador, propõe ao pai Licurgo a realização
do projeto que tem em mente para levar iluminação elétrica a Santa Fé. A Bromberg & Cia. seria
a parceira na instalação da usina, mandando máquinas, engenheiros e mecânicos para o local.
Dessa forma, um dos maiores símbolos de modernização e progresso de Santa teria a
participação efetiva do trabalho dos alemães no Rio Grande do Sul.
No comércio de Santa Fé, o trabalho dos alemães é observado por todos mais de perto,
pois são casas freqüentadas para consumir, conversar com amigos, passar o tempo. É o caso da
Confeitaria Schnitzler, cujo proprietário, Júlio Schnitzler, atende a todos pessoalmente. “Era um
alemão retaco e musculoso, de cachaço de fora, olhos dum cinza esverdeado e bigode de guias
retorcidas para cima, à Guilherme II” (O retrato, v. 1, p. 150). A personagem principal da
narrativa, Rodrigo, é freguês assíduo e gosta do que come e da cerveja que bebe. Mas o local é
um aparte na cidade, caracterizado como de fora, “cheirava estrangeiro” (O retrato, v. 1, p. 151),
178
tanto pelo sotaque carregado do dono, quanto pela decoração do local, com quadros da Baviera e
do Tirol, e pelos cheiros alemães das comidas preparadas.
Especialmente em O retrato, parte da trilogia que se concentra nos acontecimentos
históricos das primeiras décadas do século XX, é representada a fase de forte ascensão econômica
dos alemães, resultante da sua fixação nas cidades e de seu trabalho na indústria e no comércio.
José Kern é outro alemão referencial no trabalho e progresso. Dono de uma grande
fortuna, tido como astuto para os negócios, a trajetória que o leva a esse sucesso caracteriza
alguém centrado na luta diária e na determinação, como podemos entender por esta síntese do
personagem Floriano:
Esse teuto-brasileiro começou sua carreira no interior do estado, como mascate: teve
depois em Nova Pomerânia um pequeno negócio que, com o passar do tempo, cresceu
de tal maneira, que o homem acabou transferindo suas atividades comerciais para a
sede do município. Este casarão observa Floriano - tem uma pesada arrogância
germânica, temperada aqui e ali por ingenuidades nova-pomeranianas. Sempre que se
refere a Kern, a Voz da Serra lhe chama ´o nosso magnata`, pois é ele proprietário de
várias fábricas –conservas, sabão, malas, artefatos de couro e nestes últimos cinco
anos tem andado metido em grandes negócios de loteamento de terrenos e na
construção de prédios de apartamentos (O arquipélago, v. 1, p. 62).
De sua casa de comércio, a Casa Edison, vem uma boa novidade para os moradores de
Santa Fé, a vitrola ortofônica e discos. Substituindo os gramofones de modelo antigo, dezenas de
vitrolas e centenas de discos são vendidos à maioria dos fazendeiros de Santa .
Ainda, emerge um político: “José Kern sempre teve ambições políticas; entre 1934 e
1940, foi ardoroso partidário da suástica e do sigma. Agora, candidato a deputado pelo Partido de
Representação Popular, mandou colar nas paredes e muros da cidade centenas de cartazes com
seu retrato e suas promessas eleitoreiras” (O arquipélago, v. 1, p. 62). Em sua ânsia de afirmação
política, passa de discursos em comícios integralistas, em que se fazem ameaças a quem não
colaboram com os camisas-verdes, para a defesa dos ideais democratas.
A ascensão econômica e social também se dá com os Spielvogel, que iniciam com a
abertura de picadas, na agricultura, e chegam a ser grandes industriais. O iniciador de tudo é Otto
Spielvogel, que se fez perceber como um chefe natural dos colonos com quem chegara a Nova
Pomerânia, em 1855. De seu empenho em abrir picadas no lote que lhe coubera, os descendentes
evoluem e se tornam os maiores comerciantes de madeira da região. Em 1945, com uma estrutura
comercial e industrial que inclui os Escritórios Centrais da Empresa Madeireira de Spielvogel &
179
Filhos, o velho Jacob Spielvogel, neto do Otto, é chamado pela imprensa de “o rei da madeira”
(O arquipélago, v. 1, p. 62).
Em verdade, o romance menciona a trajetória de vários nomes alemães que têm o trabalho
como mbolo do sucesso: “Os Kern e os Spielvogel, bem como os Kunz, os Schultz e muitas
outras famílias de origem alemã, hoje em muito sólida situação econômica e financeira,
começaram paupérrimos a vida no Rio Grande do Sul abrindo picadas no mato, mais de cem
anos” (O arquipélago, v. 1, p. 62-63). Os Wolf também assim se constituem. Na cidade de Neu-
Württemberg, próximo a Cruz Alta, são os mais ricos dentre os alemães que se fixaram nesta
colônia. O velho Wolf é o mais importante industrialista do lugar.
Nesse contexto de trabalho, o cenário econômico do estado modifica-se visivelmente,
chegando, junto com outras razões históricas, a se manifestar um fenômeno sociológico
importante e definidor dos rumos do crescimento da economia. É Floriano, em 1945, quem nos
explica esse fenômeno com o movimento do “declínio da aristocracia rural de origem lusa e o
surgimento duma nova elite com raízes nas zonas de produção agrícola e industrial onde
predominam elementos de ascendência alemã e italiana. Neste meio século, processou-se a
marcha do colono da picada para a cidade, da pequena plantação para o comércio e para a
indústria” ( O arquipélago, v 3, p. 279).
A repercussão disso logo se faz notar no cenário político, que também a essa altura, já
deixava de ser povoado somente por homens comandados pela força do boi. Floriano analisa que
hoje “os candidatos se chamam também Spielvogel, Greenberg, Lunardi, Schmidt, Kunz, Kalil”
(O arquipélago, v. 3, p. 279).
Além disso, é referido no romance que, antes da metade do século XX, grande número de
nomes alemães era encontrado entre os médicos, advogados, engenheiros, professores. Enfim, em
todas as profissões, no exercício da religião, no governo, a etnia já havia conquistado vasto
espaço, desenhando, juntamente com outras etnias imigrantes, novo quadro sociopolítico-
econômico do Rio Grande do Sul.
180
3.4.3 - Religião
Diante dos primeiros e mais difíceis problemas a enfrentar na colônia para estabelecer-se,
aparece a marca da religião, indicando que os imigrantes eram tementes a Deus. Willy, tendo de
construir sua casa e não sabendo como fazê-lo, “senta-se numa pedra e fica olhando as nuvens e
achando que Gott wird helfen(Deus ajudará) (O continente, v. 1, p. 192). Eles não entregam as
coisas à vontade do Senhor, mas, obstinados em construir o futuro desejado, confiam na
assistência divina e não abandonam sua luta.
Entretanto, eles trouxeram outro culto a Deus em terras de católicos. São protestantes
esses primeiros. Padre Lara, em Santa Fé, observando os doze alemães adormecidos debaixo das
carroças, sob a figueira na praça, logo formula para si próprio uma interrogação sobre a religião
deles: “Serão protestantes” (O continente, v. 1, p. 321)? Parece-lhe que sim, mas esperará o
próximo domingo para ver se eles virão ou não à igreja.
Pela menção ao casamento de Helga com um descendente de sua raça, que se realizaria
em São Leopoldo, por um pastor
87
, confirma-se que os alemães dali seguem a religião
Protestante.
88
Apesar da presença dos protestantes em Santa Fé, não há referência a um templo ou
casa para o culto deles. Na cidade há somente a igreja para os católicos.
Como diz padre Lara, todos os homens foram criados à imagem e semelhança do Senhor.
Ele é o fervoroso católico, o bom sacerdote, uma espécie de conciliador dos ânimos no povoado.
Ora, sua idéia dos homens estende-se até aqueles humanos de pele bem branca, olhos bem claros,
cabelos louros, falando uma língua estranha e, ainda, não católicos? Bem, a configuração moral
do padre, uma das mais fortes e construtivas em Santa Fé, talhada pelos preceitos de sua doutrina,
leva-o a agir de forma a que na terra onde lhe cumpre assistir as pessoas haja ordem e
cumprimento das convenções sociais. Parece que sabe melhor interferir a favor da existência
disso no universo católico, onde o mesmo conjunto de dogmas é crível aos seguidores.
No universo protestante a coisa era um pouco diferente. Ao saber da história de amor do
Capitão Rodrigo Cambará e de Helga na noite de Ano-Bom, padre Lara, parecendo aliviar-se por
não se sentir em condições de lidar com a moral dos alemães, encolhe os ombros e diz para si
87
Johann Georg Ehlers foi a primeiro pastor da Comunidade Evangélica de São Leopoldo.
88
Em nome da direção da Igreja alemã, buscando consolidar a religião entre os imigrantes e descendentes dos
alemães no Rio Grande do Sul, representantes permanentes da Igreja Evangélica Alemã instalaram-se no estado.
181
próprio: “Ela é protestante. O confessionário faz muita falta para essa gente” (O continente, v. 1,
p. 332). Em seu silêncio, ele conjuga as suas idéias e as idéias da Igreja e joga a culpa moral
apenas na moça alemã e protestante. Assim, transparece um julgamento de cunho religioso sobre
os alemães que se faz um preconceito: por serem do grupo dos homens, saíram, também, à
imagem do Senhor, mas com que moral vivem na terra?
A propagação de uma nova religião tanto no campo quanto na cidade, no caso o
protestantismo, viria a se constituir numa preocupação dos líderes religiosos, políticos,
econômicos, militares que faziam a ordem daquela sociedade. O major Graça, por exemplo, em
conversas com o doutor Carl Winter no Sobrado, numa noite em que ainda continua a Guerra do
Paraguai, portanto em meio a um bom mero de anos de colonização alena região e da
presença do culto protestante, defende o catolicismo como uma das tradições do país que,
juntamente com a idéia conservadora na política, nada teria em desacordo com o progresso e a
decência (O continente, v. 2). Ao fazer isso, deixa subentendido que a não-profissão da
católica seria algo indesejado nesta terra. Também Terêncio defende a resistência à colonização
alemã e afirma ser necessário repelir o protestantismo germânico (O arquipélago, v. 3), pois os
costumes sul-rio-grandenses, com a ação desses estrangeiros, estariam sofrendo deturpação.
Na Alemanha, entretanto, também a religião católica era forte e, como muitos dos que
emigraram para o sul do Brasil a seguiam, padres alemães para vieram exercer seu sacerdócio.
Santa é orientada, por muito tempo, pelo padre Kolb, uma personagem marcada por defeitos
no exercício de seu papel de religioso. Ao cuidar da de seu povo, de cumprir a missão da
Igreja, ele se faz homem comum junto aos homens do local, especialmente no hábito de tomar
cerveja, como a não negar a característica já bem conhecida dos de sua etnia. E faz isso
seguidamente, na Confeitaria Schnitzler, onde pode ficar numa sala privada. Em público, em vão
tenta impor os dogmas da Igreja, pois pouco é ouvido, como ocorre na noite em que o cometa
Halley passa pelo céu do povoado, em 12 de maio de 1910: “Deviam estar procurando não o
cometa, mas Deus” (O retrato, v. 2, p. 78), diz ele, ao perceber a agitação de tanta gente com o
rosto voltado para cima. Muitas vezes é até mesmo amoral, como quando negocia lugares no céu
para os moradores de uma colônia italiana, arrecadando, dessa forma, valores para a construção
da igreja, mostrando-se, assim, um bom vigarista. O alcance de sua pregação é bem limitado, e
mais cansa do que convence o ouvinte, que se enfastia com seus longos sermões.
182
Outra personagem alemã ligada à prática religiosa e apresentada com um comportamento
negativo é o sacristão Jacob Geibel, que exerce suas atividades na matriz, mas com ódio do que
faz; mostra-se sempre amargo e enraivecido com o que lhe cabe fazer e com a presença das
pessoas. Num dia, ao tocar o sino, comporta-se como se tivesse o demônio no corpo, fazendo
soar as badaladas e, junto com seu barulho ensurdecedor, gritando em alemão os piores nomes
que conhece. “Odiava Santa Fé, odiava aquela gente de língua bárbara, odiava o vigário e às
vezes chegava a odiar até as imagens dos santos” (O continente, v. 2, p. 281). Tamanho é seu
descaso com a religião a que deveria servir que, na missa, enquanto o padre faz o sermão, ele
dorme, ronca mesmo, atrás do púlpito.
No geral, a participação dos religiosos na sociedade gaúcha recebe no romance uma
abordagem marcadamente de desprezo. Quando em 1945, por exemplo, no quarto do doutor
Rodrigo Terra Cambará, este, seu filho Floriano, Terencio, Liroca, Zeca e Tio Bicho discutem as
causas do atraso do Rio Grande do Sul, Tio Bicho diz que não pode ser esquecida a qualidade do
clero no processo histórico de reconstrução do estado: “A Igreja nunca teve influência na nossa
política enquanto Borges de Medeiros se manteve no governo. Essa justiça eu lhe faço. Mas
depois de 1928, o clero ergueu a cabeça, um clero formado de elementos em geral saídos da zona
colonial italiana e alemã: homens pouco inteligentes, intolerantes, duros, sem o menor senso de
humor. E esse clero passou a dominar a crescente massa eleitoral do interior, principalmente das
colônias” (O arquipélago, v. 3, p. 283).
Uma visão assim negativa de representantes alemães da Igreja, que focaliza seus
comportamentos e ações em detrimento do compromisso com a doutrina a seguir e a pregar,
manifesta-se várias vezes na narrativa, tendo, quase sempre, a repulsa dos nativos.
3.4.4 - Espaço e deslocamento
O porto de Porto Alegre, onde está o bergantim “Protetor” atracado no trapiche, é o
primeiro espaço citado no romance em que se encontram imigrantes alemães. São os recém-
chegados de uma longa viagem por mar, que se deslocaram de sua terra natal e seguiram para o
Brasil, vindo a se fixar no extremo sul, onde receberiam terras para trabalhar.
183
Um dos imigrantes, Willy, lança um olhar sobre o espaço que o recebe e aos seus. Da
murada do navio, vê a cidade fundada por açorianos. Logo estão sobre o rio dos Sinos, “de águas
barrentas e margens baixas, rio sem história, sem castelos, sem ondinas nem Loreleis” (O
continente, v. 1, p. 192). Eles é que trariam sentidos a este rio ainda solitário. Em terra firme
novamente, são transportados por um carro de boi
89
. Estão, agora, no espaço reservado para eles
desde que saíram da Alemanha, a antiga Feitoria do Linho-Cânhamo. Willy, como os demais,
recebe seu lote. É mata o que está a sua frente, diante da qual desabafa: Verflucht! (Maldição!).
A Feitoria do Linho-Cânhamo foi fundada no sul do estado em 1783 pelo vice-rei dom
Luiz de Vasconcellos e Souza, para cultivo do linho-cânhamo, uma planta que fornecia a fibra
com que se fabricavam cordas, cordoalhas e velas utilizadas nas embarcações da época. Não
obteve muito sucesso, pois a produtividade fora baixa em razão, provavelmente, da qualidade da
terra. Buscando melhores resultados, em 1788, a feitoria foi transferida para as margens do rio
dos Sinos, mas novamente a produção fracassou, sendo, então, extinta em 31-3-1824. As terras a
ela pertencentes abrangiam uma área de duas guas, o mesmo que 180 colônias de 100.000
braças quadradas, as quais se transformaram nos lotes distribuídos gratuitamente entre os
primeiros colonos alemães que ali chegaram no dia 25 de julho de 1824.
No romance, a transformação do espaço inicia-se tão logo chegam os imigrantes, vindos
da Pomerânia, do Palatinado, de Hesse, da Baixa Saxônia e da Vestfália. Machados, serrotes,
martelos e vozes estrangeiras imprimem sons das atividades humanas naquele lugar que
repousava no silêncio singular da natureza. Árvores são tombadas e picadas são abertas, numa
adaptação do lugar aos moradores. Nasce, assim, a “Colônia Alemão de São Leopoldo”. Esta é a
colônia primeira, a referencial, portanto. É para ali que se dirige Helga Kunz, onde, sob a bênção
de um pastor protestante, casa-se com um alemão de barbas louras e olhos claros, proprietário de
uma chácara, que fora buscá-la em Santa Fé.
Santa é o outro espaço do romance a que chegariam alemães, porém num tempo
posterior ao do grupo de Willy em o Leopoldo, o tempo próximo da Revolução Farroupilha.
Não ocorrem alterações substanciais neste local, como se os alemães passassem a ocupar o que já
teria sido moldado geográfica e culturalmente pelos luso-brasileiros e pelos índios, todavia suas
89
De fato, pelo rio dos Sinos os alemães eram transportados em lanchões toldados, movidos a vela e a remo.
Chegados em terra firme, o meio de transporte eram carretas, sobre as quais os colonos chegavam à Feitoria do
Linho-Cânhamo, onde permaneciam até receberem os seus lotes de terras.
184
marcas são logo notadas naquele meio brasileiro, tanto no espaço ocupado no campo Schultz
quanto na cidade Kunz. As diferenças que se acrescentam com a presença deles são a lavoura
cultivada, os produtos feitos por “Serigote”, os cheiros das cucas e doces e as casas construídas,
estas, sim, acrescentando um aspecto peculiar ao lugar.
Em vez das costumeiras casas do povoado, ou até mesmo de mais um sobrado, o espaço
de Santa recebe chalés, um elemento identificador de alemães. Como diz o narrador, as casas
das duas famílias “ofereciam um contraste nítido quando comparadas com todas as outras do
povoado. Eram graciosos chalés de madeira, muito limpos, que tinham até cortinas e vasos de
flores nas janelas” (O continente, v. 1, p. 329). Não são espaços de sociabilidade com os nativos,
pois poucos deles entram nas casas de Hans Schultz e de Erwin Kunz, porém dizem que lá dentro
até o “cheiro das coisas era diferente” (O continente, v. 1, p. 329). São, sim, espaços de se
admirar, de se imaginar. Os jardins na frente dos chalés também chamam muito a atenção dos
santa-fezenses, sempre com canteiros bem cuidados e flores. Essa diferença toda resulta em
comentários especulativos entre os naturais do lugar, que dizem ser o estrangeiro um “bicho
esquisito”.
Uma vez fixadas em Santa Fé, tendo se deslocado da Alemanha, essas famílias teriam
dois movimentos espaciais importantes em sua história: primeiro, o dos homens de ambas que
são recrutados para a guerra e, mais tarde, a transferência dos membros da família Schultz do
campo para a cidade, representando o deslocamento que, historicamente, fizeram muitas famílias
de origem germânica que passaram a ocupar-se com o comércio e a indústria, considerado um
passo adiante no progresso que se iniciara na agricultura.
Carl Winter desloca-se do espaço de Berlim para o espaço de Santa Fé, fazendo curiosas
escalas.
Desembarcara no Rio de Janeiro com o diploma, a caixa de instrumentos cirúrgicos e
algum dinheiro no bolso, decidido a estabelecer-se ali, fazer clínica, juntar uma pequena
fortuna para um dia depois que seu governo tivesse indultado os revolucionários e ele
conseguido esquecer Trude weil retornar à Alemanha. Achou, porém, que o Rio era
insuportavelmente quente, tinha um incômodo excesso de mosquitos e mulatos, além da
ameaça permanente da febre amarela. Meteu-se com armas e bagagens num patacho
que se fazia de vela para a Província de São Pedro que lhe diziam ter um clima
semelhante ao do sul da Europa e desembarcou na cidade do Rio Grande, onde julho
o esperou com ventos gelados que cheiravam a maresia e nevoeiros que o lembraram
agradavelmente dum inverno que ele passara em Hamburgo, quando adolescente.
Apresentou suas credenciais à prefeitura e, sabendo existir na cidade uma grande
carência de médicos, ofereceu-ser para trabalhar gratuitamente no hospital de caridade
local (O continente, v. 2, p. 47).
185
Por indicação de outro alemão imigrante, de quem se tornara amigo, Carl von Koseritz,
Winter muda-se de Rio Grande para Porto Alegre, onde permanece um tempo clinicando. Porém,
não gosta dos açorianos que ergueram a cidade nem dos seus compatriotas que se estabeleceram
em São Leopoldo, cuja proximidade com Porto Alegre fora motivo para Koseritz encorajá-lo a
morar, pois seria fácil visitar a cidade quando sentisse nostalgia de Vaterland. Por isso, não fica
na cidade, não quer a proximidade com os de sua etnia; seus compatriotas o irritam tanto ou mais
que os nativos. Na sua visão, muitos deles são estúpidos e cheios de preconceito.
Segue, então, para a zona rural do Rio Grande do Sul, fixando-se em Santa Fé. Sua
intenção era permanecer pouco tempo, mas o fato é que ali foi ficando e fazendo sua história. É
grande observador do povoado, interessando-se tanto pela paisagem quanto pelas pessoas e seus
modos de ser. “A paisagem era civilizada, mas os homens não. Tinham rudes almas sem
complexidade, e eram movidos por paixões primárias. A lida dos campos e das fazendas tornava-
os ásperos e agressivos. Lidar com potros bravos, curar bicheiras, sangrar e carnear o gado, laçar,
fazer tropas eram atividades violentas que exigiam fortaleza não de corpo como também de
espírito” (O continente, v. 2, p. 54). Por seu olhar, o doutor Winter revela a formação do homem
do sul a partir das atividades que desenvolve em seu espaço.
Em 1855, a Assembléia Provincial autoriza o estabelecimento de uma colônia alemã
próximo a Santa Fé. A partir de então, várias famílias fixam-se no espaço chamado Nova
Pomerânia, nome que se deveria ao fato de a maioria dos colonos ter vindo da Pomerânia. Cada
família recebe um lote de cem braças de frente por mil e quinhentas de fundo, e a região tem,
com isso, bastante aumentado o número de alemães, que até então se reduzia às famílias Schultz
e Kunz e ao doutor Carl Winter.
Com esse grupo chegam os Spielvogel, que viriam a ser imigrantes bem-sucedidos.
186
Dessa forma, os Spielvogel, no romance, são os primeiros representantes dos muitos
imigrantes que se deslocaram do campo para a cidade na vida real, “abandonando a agricultura
para se dedicar ao comércio ou à indústria” (O retrato, v. 1, p. 189). Seu progresso é visível e o
acúmulo de riqueza proporciona-lhes apresentar-se às famílias tradicionais da cidade com
novidades tecnológicas, como o faz Jacob, que traz o primeiro automóvel para Santa Fé:
“Naquela madrugada de verão de 1914 um automóvel da afamada marca Adler parou à frente do
15 da rua do Comércio. (...). Era um estranho veículo elétrico de três rodas e dois lugares,
mandado vir da Alemanha pelo Spielvogel” (O retrato, v. 1, p. 146).
José Kern também constrói casa em Santa Fé, inaugurando-a com uma festa parecida com
um kerb. Os Schultz progridem com a sua casa de comércio no povoado, fazendo concorrência
séria com a Casa Sol, de propriedade do Veiguinha, descendente de portugueses
90
. Esta casa,
antes a mais procurada, quase uma exclusividade para toda a região, é parâmetro para se medir a
importância que também alcança para os consumidores o estabelecimento da família imigrante,
que se inclui no ramo com competência e toma o espaço dos autodenominados “donos da terra”.
Ainda, Júlio Schnitzler tem uma confeitaria, estabelecimento este que, pela função
exercida, sendo o único café e restaurante de Santa Fé, pode ser tomado como uma novidade
dentre outras no processo de modernização da cidade nos anos iniciais do século XX. Sua
importância é indicada pelo local onde se encontra, na rua do Comércio, a principal de Santa Fé,
onde também ficam o Cinema Recreio, o Café Minuano e o Clube Comercial.
Percebemos que o autor imita espaços e deslocamentos que, efetivamente, no plano
histórico, foram criados pelos imigrantes alemães. Assim, além de São Leopoldo e Nova
Pomerânia (Ibirubá), também Neu-Württemberg (Panambi), localizada próximo a Cruz Alta, é
uma colônia de alemães, portanto, todos lugares formados por e para eles, representando centros
de colonização do campo e, posteriormente, de comércio e indústria, quando já se transformaram
em cidades. Santa Fé, por sua vez, é a representação da cidade constituída por luso-brasileiros
que recebe o imigrante e é por ele modificada.
Quanto ao deslocamento, como também é considerado no real, o principal movimento que
ocorre com as personagens alemãs de O tempo e o vento é do campo para a cidade. Além do
90
A Casa Sol comercializava secos e molhados, ferragens e armarinhos. O narrador assim a apresenta: “Era aquele
um dos estabelecimentos comerciais mais antigos e mais fortes da região serrana. Fora fundado em 1860 pelo bisavô
do Veiguinha, um homem famoso pela avareza e pelo amor ao trabalho, e cujos pais tinham vindo de Portugal
dizia-se – no mesmo navio que trouxera dom João VI e sua corte” (O retrato, v. 1, p. 43-44)..
187
movimento, ganham destaque nesse romance a região das “Colônias Velhas”, por meio de São
Leopoldo, e a região das “Colônias Novas”, no Planalto Médio do Rio Grande do Sul.
3.4.5 – Contatos
Chegados a Porto Alegre, os alemães do grupo ao qual Willy pertence deparam-se com o
presidente da província e autoridades, que os recepcionam na terra que passaria a ser deles
também. Esse contato é apresentado mais como uma formalidade, sem expressão de um sentido
maior para o ato. É a lembrança do fato histórico. Aos contatos posteriores é que Erico se demora
em sugerir sentidos, começando pelos bugres, uma ameaça tão perigosa ou até mais do que os
outros elementos naturais, como os animais selvagens. Sempre na espreita, eles travavam
resistência cerrada aos recém-chegados exploradores do espaço, de fisionomia bem diferente.
Também com outros homens da província os contatos vão acontecendo, os quais lhes
passam costumes locais, como o chimarrão. Tomado ainda hoje como símbolo de boa
convivência e integração ao típico da terra, há quem o aceite e quem o rejeite, numa clara idéia de
que, dentre os imigrantes do mundo real nem todos se entregaram, se acostumaram com a nova
terra, como vemos representado na atitude de Willy, que experimenta o mate chimarrão, queima a
língua, cospe longe a água verde e amarguenta. Contudo, o autor também traz presente aqueles
que logo assimilaram o que havia por aqui na personagem Hans, o ferreiro. Este prova o
chimarrão, gosta, e mais, passa a vestir-se como o gaúcho tradicional, com chiripá, amanceba-se
com uma mulata e até muda o nome para João Ferreira, não sem ser visto, contudo, como a
vergonha da colônia. Se essa marca de assimilação envergonha os patrícios, indica que a idéia
suprema em voga nos grupos de imigrantes era a de manter hábitos e costumes adquiridos na
pátria-mãe, como também se unirem com mulheres e homens da sua raça.
Winter, ao circular pela colônia alemã,
encontrara compatriotas que haviam assimilado todos os maus hábitos dos naturais da
terra, e vira até colonos alemães que viviam amasiados com mulatas e negras, das quais
tinham filhos. Moravam em ranchos miseráveis, andavam descalços e já estavam roídos
de vermes e sífilis. Em sua maioria, porém, prosperavam, moravam bem, ganhavam
dinheiro, aumentavam as propriedades. Desprezavam o caboclo e eram por sua vez
desprezados pelos estancieiros, dos quais não gostavam, embora parecessem temê-los.
Era triste ver como em seus baús e sacos, junto com roupas e tarecos, haviam trazido
188
para o Brasil todos os prejuízos, rivalidades e mesquinhezas de suas aldeias natais. o
compreendiam os insensatos! que lhes seria possível passar a vida a limpo naquela
pátria nova (O continente, v. 2, p. 49-50).
Como vemos, a ligação com os da mesma etnia é apresentada como a ideal na nova terra
189
fome. Temos comida em abundância e nossa terra dá feijão branco e preto, milho, arroz
e batata. Imagina, Fritz, batata! Também planto fumo, que é da melhor qualidade.
Deves vir também para cá. A viagem foi longa e dura, passei perigos e agruras, mas
estou certo de que dentro de poucos anos serei um homem rico. Olha, Fritz, tu que tanto
gostas de frutas viverias aqui muito feliz, pois esta boa terra produz limas e limões,
bananas, laranjas, ananases, figos, pêssegos, maçãs, melancias e melões. Agora vou
plantar linho e algodão, e um dia talvez (O continente, v. 1, p. 193)
Entretanto, nunca ele a enviaria. Seu próximo contato, neste mesmo dia, é com índios, na
lavoura, os quais, num ataque, matam onze colonos. “Werner caiu de borco com uma frecha
cravada nas costas. A última palavra que disse, babujando a terra de sangue, não foi o nome do
Vaterland nem o de algum ente amado. Foi: Scheisse!” (Merda!) (OcContinente, v. 1, p. 193)
Entretanto, o autor escolhe uma das tantas perspectivas que há para olhar os desafios que
os alemães tiveram no processo de assimilação. Nesse sentido, lembra o do preconceito, o da
rejeição dos do local, que observavam o crescimento econômico dos estrangeiros e os traços da
raça, como fica claro na postura daquele gaúcho andarengo e pobre que passa por São Leopoldo:
Olhou a colônia que já tomava jeito de vila, viu homens trabalhando nas roças, ferreiros
batendo bigorna, seleiros fazendo lombilhos, moleiros moendo trigo, padeiros fazendo
pão, e como passasse por sua frente um filho de Willy, grandalhão, corado, feliz, bem
montado num alazão, o caboclo teve um súbito ímpeto de revolta e gritou:
Alamão batata! (sic)
E se foi, desagravado, erguendo poeira do chão com seus pés descalços (O continente,
v. 1, p. 194).
A representação da necessidade de contato com os compatriotas ocorre também na relação
de Winter com Carl von Koseritz, alemão de origem nobre que fez parte das tropas mercenárias
contratadas pelo governo brasileiro para lutar contra os soldados de Rosas. Koseritz, na história
do Rio Grande do Sul, como já referido neste texto, é conhecido como o representante da colônia
alemã,
91
grande intelectual e jornalista de renome. É assim que Erico o representa.
Koseritz é encontrado por Winter no hospital, a quem lhe conta a sua história. Era
descendente duma família nobre do ducado de Anhalt, seu irmão Kurt fora ministro do duque e
sua irmã Tony, dama de honra da duquesa. Ele tinha sido renegado pela família. Quando
estudante em Berlim, metera-se, contra a vontade dos pais, na revolução de 1848. “- E que
estava em ritmo de guerra, achei melhor vir para com os Brummers para lutar contra o tirano
91
Conforme interpretação dos estudos de Carlos Henrique Oberacker em seu livro Carlos Von Koseritz, publicado
em 1961.
190
Rosas. Sabe o que eu era? - perguntou a sorrir com malícia. – Canhoneiro do Segundo Regimento
de Artilharia! – Suspirou” (O continente, v. 2, p. 48).
Contato maior com os luso-brasileiros têm os alemães que foram para Santa Fé. Ao
chegar, os chefes de família dirigem-se logo ao mandatário do povoado, Ricardo Amaral Neto,
numa indicação do autor de que, em primeiro plano, para os alemães, está o reconhecimento da
autoridade política, com quem buscam acerto, não conflito. Enquanto isso, as famílias, esperando
o resultado da conversa com o coronel, permanecem na praça e ali pernoitam.
Outros contatos iniciais se dão por simples olhares e observações das duas partes, pois
que as línguas diferentes impossibilitavam os moradores comuns de dialogam com os recém-
chegados: “Grupos cercaram as carroças e alguns tentaram comunicar-se com as mulheres e os
filhos dos colonos, mas sem o menor resultado, pois nenhum dos estrangeiros parecia falar ou
entender o português” (O continente, v. 1, p. 319).
Helga Kunz causa nos moradores perturbação e perplexidade. Ela impressiona os que
vêem a sua beleza. Uma família estrangeira traz para aquele lugar de mulheres de pele mais
escura, de cabelos e olhos castanhos ou negros, uma outra figura feminina, vista como a uma
imagem. Seus olhos são de um azul vivo e limpo; seus cabelos são tão louros que parecem
polvilhados de ouro. Branca e delicada, falando outra língua e vestindo-se de diferentemente, faz-
se admirada pelos homens do lugar: “Uns a miravam com desconfiada insistência como que
procurando decifrar-lhe o semblante. Outros a avaliavam como fêmea, olhavam-lhe os pés nus
metidos em chinelos de couro, os seios pontudos” (O continente, v. 1, p. 320). E sua beleza só faz
aumentar. Não bastasse a naturalidade de suas feições, ela ainda se apresentava “com lenços de
cores muito vivas amarrados na cabeça” (O Continente, vol. 1, p. 327). Uma moça assim é, de
fato, um impacto naquele povoado amorenado.
Na chegada, necessidade de as famílias comprarem algumas coisas para passar a noite.
Kunz e Schultz, então, fazem compras na venda do Capitão Rodrigo, sendo este um dos
primeiros contatos dos alemães em Santa Fé. Esse contato se repetiria muitas vezes, quase
sempre por meio de Helga, que, depois de a família ter se instalado na cidade, vai ao
estabelecimento para comprar. Em meio as suas vindas e idas, suas características de mulher
diferente povoam o pensamento do Capitão:
Cada dia que a rapariga vinha à venda ele lhe descobria um novo encanto. No princípio
fora a voz, que às vezes era grave e seca, quase como de homem, mas de repente se
191
fazia fina como o som dum cincerro de égua madrinha; e aquela mudança grave e
agudo lhe dava assim uma impressão de quente e frio, e isso era uma coisa que lhe
bulia como sangue... Rodrigo também não cansava de apreciar o contraste entre os
cabelos cor de puxa-puxa e os olhos dum azul de açude em dia de céu limpo (O
continente, v. 1, p. 325).
Rodrigo Cambará não tarda a admitir que “daria de bom grado muitas moedas de ouro
para ter uma noite em sua cama a filha de Erwin Kunz” (O continente, v. 1, p. 327). Tais contatos
renderiam a favor dos dois, pois que logo aconteceria o desejado pelo Capitão, não em sua cama,
mas atrás do cemitério. É na noite de Ano-Bom que a moça alemã e Rodrigo se amam “com uma
fúria que o vinho, que ambos haviam bebido na festa, contribuíra para aumentar” (O continente,
v. 1, p. 331). Ele, acostumado a tantas mulheres de pele escura, pouco asseadas, à altura da
vida em que se encontra agora dorme com uma mulher tão loura, tão branca e tão limpa.
Na satisfação íntima do instante, o corpo branco de Helga, estendido sobre o capim, é
contemplado pelo Capitão, e seus beijos são por ele comparados aos de Honorina, sua amante
índia. Os de Helga têm um gosto diferente.
É interessante pensar que a jovem alemã desperta desejos em Rodrigo, realiza-os; as
sensações que ela lhe provoca e o corpo nu são comparados aos da amante, não aos da esposa
Bibiana. Este seria o papel dela em sua vida, uma posse de tempo marcado, apenas uma noite,
inesperada, que o deixou extremamente feliz e da qual muito ele sentiria falta. Porém, Helga
ainda deixaria nele ressentimento por não a ter mais e fúria por ela vir a se casar. Essa
impossibilidade de continuidade do contato, mesmo que no plano amoroso, sugere a permanência
do distanciamento entre as raças e as culturas nos outros tantos planos que se desenham no
convívio em sociedade, especialmente nos primeiros anos da imigração.
O narrador não nos conta o significado que Rodrigo teve para a Helga, mas é detalhista ao
descrever o que ela provocara nele, especialmente quando parte para São Leopoldo, onde se
casará:
No dia em que Helga partiu, Rodrigo tomou uma grande bebedeira e nas semanas que
se seguiram aliviou no corpo da chinoca cor de canela a saudade da alemã cor deleite.
Tratou Bibiana e os filhos com impaciência irritada, cuidou mal do negócio, mergulhou
fundo no jogo. Metia-se em carreiras, apostava alto e às vezes provocava brigas. Nos
fundos da venda do Nicolau reuniam-se tropeiros e peões, que bebiam cachaça e
jogavam osso: Rodrigo misturava-se com eles e lá ficava durante horas a jogar, a
blasfemar e a contar histórias de guerras, mulheres, cavalos e apostas. E em certas
ocasiões, na roda de bisca ou de voltarete, quando jogava com algum viajante
desconhecido cuja cara lhe parecia suspeita, antes de começar o jogo desembainhava
192
ostensivamente a adaga e cravava-a na mesa, ao alcance da mão, como uma advertência
que já era quase uma provocação (O continente, v. 1, p. 334).
Não houve outra mulher com quem ele tivera aventuras amorosas que marcasse tanto o
corpo e os sentimentos do Capitão. Helga, de corpo, cabelos e gosto diferentes, dominara-o
visivelmente, a ponto de Bibiana perceber que, com a alemã, a coisa podia ser séria e que
Rodrigo seria capaz de perder a cabeça, pois, além de ser bonita, sendo estrangeira e falando
outra língua, parecia ser uma feiticeira. Mas a moça, jovem e em idade para se casar, faz isso aos
olhos de todos, do que vem a providência para o fim do contato com Rodrigo Cambará, saindo de
Santa Fé e indo a São Leopoldo com o noivo para lá se casarem.
Não poderia ter se firmado ali o início da miscigenação? Do contato de estrangeiros com
os brasileiros nasceriam gerações miscigenadas. Isso é o que temia o padre Lara, não tanto pela
cor resultante e pelo sangue misturado, mas, certamente, pelo impacto na religião, uma vez que
seria o mundo protestante invadindo o mundo católico. A sua vontade é que todos nesta terra
professem a fé católica. Ele dá de ombros quando sabe do ocorrido, sentenciando, em seu
silêncio, que, afinal, ela é protestante, como se quisesse dizer que ela peca e ele não tem nada a
ver com isso. Mas o resultado de contatos como esse na província de São Pedro, ele desejaria, no
futuro, vir a saber, para o que queria viver tanto quanto Matusalém.
A questão da miscigenação retorna várias vezes ao longo da narrativa, como uma
preocupação dos que representam a cultura e a formação social tradicionais da terra. Liroca, por
exemplo, num tempo em que, na história, haviam se passado mais de cem anos do início da
imigração alemã, ainda teme os casamentos mistos e, desconfiado, diz que quer só ver no que vai
dar isso (O arquipélago, v. 2). Esse ceticismo também está em Bibiana, a qual, resoluta, declara
que filho dela não se casa com “gringa” (O continente, v. 2).
Na época da Revolução Farroupilha, os imigrantes conhecem outros contatos, agora
capazes de os fazerem interromper a seqüência que haviam destinado para suas vidas nestas
terras. É 1834, quando Santa Fé, então povoado, passa a ser vila. Arma-se a discussão em torno
de governo e emergem disputas políticas. À pequena Santa chegam as notícias do que se
conversava nas importantes instâncias da sociedade sobre a melhor solução para o governo do
país no período posterior à abdicação de dom Pedro I. Então, o fato de que o príncipe herdeiro
não podia ser coroado, porque ainda era criança, eleva ao poder um grupo de bem interessados
193
regentes, para o bem e para o mal do Brasil, que, oficialmente, mas não de verdade, se desfaz
quando decidem conceder a maioridade ao príncipe.
Nesse contexto é narrado um episódio envolvendo Bento Gonçalves: este teve de se
explicar perante os da Corte sobre a sua suposta ligação com Lavalleja no intento de anexar a
província à Banda Oriental. Nada de confirmação de tal falatório a Corte ouve. Bento consegue o
desagravo e volta com honras e privilégios novos. Chega a ser prometida ao Partido Liberal a
governadoria da província, com a nomeação de Fernandes Braga. No entanto, o Partido
Restaurador, rival do Liberal, como numa queda de braços, usa sua força política para reafirmar a
Sociedade Militar, cujo funcionamento viria a ser impedido pelo governo central, segundo
promessa feita ao Bento Gonçalves. A discussão entre os correligionários dos dois partidos ganha
as ruas de Porto Alegre, com o acréscimo de tapas e socos. Na troca de agressões, os liberais
recebem os nomes de “farroupilhas” e “pés-de-cabra” e os restauradores, de “retrógrados”,
“galegos”, “caramurus”.
A guerra civil está por rebentar. E os alemães, ainda se instalando nas terras gaúchas, o
que tinham a ver com isso tudo? O padre Lara, sempre atento à vida de todos em Santa Fé, é
quem nos diz, ao observar a família Schultz retornando da lavoura como que desligada do
mundo, a cantar uma cantiga alemã. Eles não sabem o que está se passando e por isso, diz o
padre, são felizes. Se a guerra viesse, não teriam nada a ver com ela, pois eram estrangeiros.
Também Erwin Kunz é um felizardo, sempre a cuidar de seus afazeres. Engana-se, contudo, o
padre. A guerra veio e, junto a inúmeros outros homens de Santa Fé, o coronel Amaral recruta
Hans Schultz, seu filho mais velho e Erwin Kunz.
Não bastasse a retirada dos homens das famílias, sob a justificativa oficial de passarem a
ser “soldados voluntários”, a guerra ainda retiraria o produto a ser colhido na lavoura dos Schultz
na safra seguinte, como bem reflete o padre Lara: “O que aquela gente colhesse na próxima safra
seria fatalmente requisitado pelo coronel Amaral, para alimentar seus soldados; e os Schultz
nunca veriam um vintém daquelas requisições” (O continente, v. 1, p. 348).
A guerra seria um fator de identidade do povo daqui, como explica o doutor Winter: “Era
raro passar uma geração que não visse pelo menos uma guerra ou uma revolução” (O continente,
v. 2, p. 54). Aos alemães a luta bélica também não era estranha. Tinham vindo de uma terra onde
o exército se constituíra num dos maiores investimentos dos governos e uma expressão de nação,
sendo reconhecido em sua capacidade por outras tantas nações, como o Brasil, que até contratara
194
soldados de para qualificar o seu exército. Os contatos, portanto, em campos de batalha,
recolocavam os imigrantes em numa situação já vivenciada, se não pessoalmente, por amigos ou
cidadãos que tinham defendido os interesses de sua pátria.
Neste novo lugar em que são convocados, agora, para guerrear, defrontam-se, entretanto,
com guerras primitivas – primitivas na estratégia e nos armamentos, como analisa o doutor
Winter - nas quais brasileiros e castelhanos se engalfinham (O continente, v. 2). Ele compreende
que a formação social da província é marcada pela ocorrência dessas guerras: “Mercê dessas lutas
haviam surgido verdadeiros senhores feudais na Província. Eram os estancieiros como o cel.
Bento Amaral, a quem o governo amparava e dava privilégios, na certeza de que na hora da
guerra eles viriam com seus peões, agregados, amigos e assalariados para engrossar o exército
regular” (O continente, v. 2, p. 55).
Em tese, com nada disso os imigrantes alemães que vieram colonizar as várias regiões
gaúchas tinham a ver. Assim, mesmo de leve, Erico lembra o envolvimento dos alemães
imigrantes nas lutas históricas brasileiras em solo rio-grandense, como a Revolução Farroupilha,
de forma a indicar que isso foi arbitrário e nada benéfico a eles.
Até poucos contatos, poucos acontecimentos envolvendo os alemães. Uma imitação,
talvez, do que se dera na história, pois, de início, como estreitariam laços com quem vivia, se
alimentava, se comportava de maneira bem diferente deles, que tinham se formado em outra
cultura, com quem era difícil até se fazer entender, pois a língua era outra?
Na evolução dos fatos gerais do romance, cresce a participação dos alemães e processa-se
uma maior integração. O doutor Winter é uma expressão disso. Sendo médico em Santa Fé, entra
em contato com as famílias, tendo estreitado mais as relações com os moradores do Sobrado.
Mantendo-se fiel a uma postura de alemão formada pela livre criação do autor, pouco absorve
dos costumes daqui, não aprecia pitar um crioulo nem dormir com mulatas. Ao Florêncio ele diz:
“Há muitos produtos desta terra que não são para o meu paladar” (O continente, v. 2, p. 42).
Com outras histórias e outra cultura que chegam com ele, os nativos. Isso é sugerido,
por exemplo, na passagem em que faz considerações sobre Luzia, comparando-a à musa trágica
Melpômene, vendo nela “uma aura de drama, uma atmosfera abafada de perigo” (OcContinente,
v. 2, p. 43). O doutor Winter expressa, de forma diferente dos nativos, as peculiaridades de Luzia,
pois tem outros referenciais para interpretá-la. Assim que a vê, conclui: “Melpômene”. E
imediatamente lhe vem uma idéia curiosa: “Nunca ninguém pronunciara aquele nome naquela
195
vila. Talvez nem naquela província...(...) Nunca – refletiu. – Eu sou o primeiro” (O continente, v.
2, p. 44). Seu espírito observador também é preparado pela poesia, pois lê muito: “Estendeu-se na
cama e apanhou um livro de poesia de Heine. (...). Abriu o livro e começou a ler um poema” (O
continente, v. 2, p. 46).
O médico alemão Winter consolida-se como o principal observador e analista da mulher
que desafia homens e intriga outras mulheres. Com seus conhecimentos mais amplos, ele
consegue nominar o que os outros sentem mais do que falam. Para ele, Luzia é uma
estigmatizada, é perversamente linda. Na sua análise, relaciona-a com seres lendários e
personagens consagrados culturalmente, como é o caso da musa da tragédia, Melpômene,
citada, e da bela e jovem bruxa moura, a Teiniaguá, que o diabo transformou numa lagartixa cuja
cabeça consistia numa pedra preciosa de brilho ofuscante. Ainda na tentativa de entender como
poderia existia uma mulher assim num lugarejo perdido nos confins do continente americano,
entre gente rude e primária, ele admite que poderia estar numa tragédia de Sófocles ou de
Schiller, ou, ainda, num conto de Hoffmann. Essas referências surgidas para ambientar a
construção da personagem Luzia é ponto que marca a cultura exclusiva deste alemão no conjunto
dos naturais de Santa Fé.
Com uma cultura assim tão refinada, elaboração de uma sociedade que já fizera história
no caminho da civilidade, Winter necessita, às vezes, de contatos mais elevados, capazes de fazer
ressonâncias a seus pensamentos, contatos diferentes daqueles que mantém no povoado. Quer
socializar a leitura que faz do lugar, das pessoas; quer discutir questões que entende poderem ser
tratadas diferentemente pelos do local; quer transmitir idéias que, a supor pela experiência de
progresso da -3.71568(o)( )3.28149(727.5583(c)12.24386388( )3.26S(e)-8.31605(g)16.8442(r)-628149(2)-3.71568(,)3441715(z)1.96388(a)1.6.5655(c)1.96262( )-3970596(e)1.96388(n)-3.442343(z)1.96325(a)1.5655(r)-6.23923(i)-3.71568((é)1.1693(e)1.27522(ã)12.2.278(é)1.96262( )3.28299(s)-1.63635(f)441715(u)-1.63635(e)1.96262(r)-6.23672(e)1.56299(n)-3.71693(s)-1..2.278(é)163635( )-377.074(d)-3.7262(s)62(7 11.6798 .0047( )-140.636(l)4-9.899(1228.96262(i)0.28299(s)-1.96262(m)7.025( 93))4.0432)2531733( )250]TJ-23N168 -20.14386388( )9.2378(a)1.96388(s)-1.4386388( )9.2378(a)1..83821(a)1.96388( )-17.2579(n)6.56424(u)-1.31605(r)4.04195(e)1.9438(n)-3.71568(t)0.441715(o)-3.71568(s)-1.63605(m)7.00596( )-48.1181(q)6.41715(o)-3.c3923(i)-3.96388(l)0.441715(a)-8..0432( 9789.2366(e)12.2425(n)-3.71693(t)0.28299(s)-.56424(e)1.96388(le)1.96262(x)-396262(q)-3.23672(a)1.96262(ç)1.9388(le)1.441715(a)1.96262(,)3.96388( )-17.2796(p)-3.56299(o)-3.713(o)-3.71443( )-13.9969(g)16.8429(a)63635(i)0.441715(t)0.441715(a)1.9699(s)-128275( )-202.316(c)1.96693(t)0.n)-3706(;)]TJ92(u)-13.9969( )-17J274.475 0 Td[(e)1.TJ92(u)-1328149(t)0.441715(a).83821(r)4.04195(i29.56299(t)-9.83821(o).4595 -20.163.9969(g)16.8429(a)J264.269 0 Td25(s)-11.9388( )-17.2796(p)-3.71693(o)-3.83821(o).K68(o6o)6.56424((a)-8.3171(à)12441715(z)1.96262(e)113.9969(m)7.0047(i)0.4z6299(u)-3.71693(e)1.9625(s)-11q6299(o)-3.3.155(o)-2.876(d)-3.71621(o).99717( )-202.916(d)-13.9943(e)1.85.88( )250]TJ-251“.8435(r)483758(l)0.442343(e)104257(i)0.442325(.)3.u71631(r)4.0.637(u)-3.71568(m)7.00568(o)6.1.9169(a)1.93821(r)4.04195(i)-941715(t)0.441715(u)-3.71568(r)4.71568(a)12.2438( )-27ú2438( )-2700596( )-4.56299(á)1.96262(l)-9.96325(n)-3.71568(r)4.71568(a)1263761(s)-1.63761((a)1.96262()-37.8382(d)-3.31605(g)1696388(n)-3.442343(z)1.04195(e)1.96388(n)6.56462(n)-3.71443(e)12.24693(e)1.96262( )-371693(i)0.441715(s)-1.63635(e)1.96262(n)-3.9388( )-1796262(d)-13.9969(i)0.441721(o).b0.916(q)6.56299(u)-3.56424(e)1.9633635(f)4441715(a)1.96299(s)1.211715(a)]T96262( )-36.8429(a)63635(i)0.4.83821(r)4.04195(i29.56262(d)-3.71693(o)-3..23672(a)12.149(t)0.441715(a).23672(a)1.9969( )-150.916(p)-3.63635(e)1.71568(l)0.441715(t)-15441715(a)-8.3173(g)6.23923(08-371693(i)0.4441715(a)1.9699(s)-1 Td[( )-377.074(f)-6.7648(u)-3.7262(d)-13.9969(i)0.441721(o).j5655( )-150.917(l)-96.8429(a).2425( )-89.2366(n)-33.9969(a)-8.3173(l)0.4417171(à)1263761((a)196262(n)-3.711715(a)1.9699(s)-13.71443(ô)6.5655(m)-363635(i)0.4.83821(r)4..2432(d)-3-.0432)2)1.2117)250]TJ-242.71631(n)6.56257(i)0.442974(e)1.56257(i)0.63761(i)0.441974(e)1..861 -20.04 Td[( )-4.56299(á)1.í3.9969(m)7.09969(a)-8.3173(l)0.496325(n)-3.71568(r)4.71568(o)6.e71568(r)4.71568(o)6.7.8378(W)29.0867(i)-9.83821(n)6.56424(t)0.44195(e)-8.31605(r)49.2378(a)1.96388(u)-3.96388(l)0.4v6299(v)-3.71693(o)13.9969(e)1.96388(r)-6.e71568(m)7.00568(e)12.2438( )-61.197(p)6.56424(e)1.96262(i)0.441715(a)1.962230.65 028275( )-202.316(c)1..56424(e)1.ô2796(p)-3.71693(o)-3.56424(c)1.96388(i)-9441715(a)1.9626299(m)7a.916(p)-3.71568(u)6.96262(r)-6.2262(s)9.74.835(s)]Tã6262(i)0.441715(a)1.962230.67813.9969(a)12.04069(,)3.28275( )-48.1169(d)6.56299(a)1.962230.65 0 T209( )-150.916(q)-3.a7648(u)-3.7262(d)-13.56299(a)1.962230.65 07.634(s)-1.63635(e)1..9969(i)0.44125(r)-6.23.316(c)1.96256.465 0 Td[(m)7.0432(o)6.562169(d)6.56299(a)1..9969( )-1544209(d)-31.96262(n)6.5655(c)1.e9969(i)0.44125(r)-6.96262( )-48.1169(d)-3.7168.67)1.96181(u71.a7648(u)-3.7655( )-150.917(t)0.441715(ó)6.2366(n)-33.9969(a)-8.27271(a)12.2425(”)1.96262( )-48.1169(()332.998]TJ/55(791.6798 Tf146.002 0 d[(O)-7.875654 )250]TJ-243.618 -20.26 Td[(c)1.96325(o)-3.71631(n)6.56362(t)-9.83758(i)0.442343(n)6.56362(e)1.96325(n)-3.71568(t)0.441715(e)444]TJ/R7 11.6798 Tf48.6275 0 Td[(,)3.28149(3716.99843(v)6.56424(.)-6.99843( )3.56424(.)-6f48.6275 0 Td[(,)3.2.2438( )-.99843(v)6.56424(.)-6199843( )3.9.2438( )-.99843(4)6.56424(6)-3.716424(a)1.963424(a)1.A168 -20.16 388(u)-3.71568( )333.157(e)1.96388(l)0.44388(u)-371568(i)0.441715(c)1..2425( )-89f63635(e)1.96262(r)-6.23672(e)1.56.155(e)1.2366(n)-3:2425(s)-1.4.0432)J/R7 11)250]TJ-2(40.48.441756942cm BT/R7 9626298 T1995( 1705(i0 0 1 4595 82e)1.o206.151789.4.570e)1.9695(7t)0.i9695(7t)0.n206.15178u.4.570e)1o206.15178.9626.1011..99.1598-3.83868 812.247.3.871.6375 8868-96.9.19e)1.962868 85163.95 8868-9p.4.5690-1.31.1598-3n206.16)12.245 8868-9s)5262(78.962868 8516o206.16)12.9626.03(e(D6388760)-36.9.19e)1..16828604.962868 8516C)8689e(W)(o6o21a).8319.25989.4.5690-1.9695(73a)1.963 8868-96.33.415178,16828604.96266.03(e(u206.16)12m.9.10 )-1962868 8516.963 8868-9x.4.5690-1i95.5173as060]TJ1.6798 Tf66.03(e(96266.03(e(u4.5690-13.72.30)-1396266.03(e(i9695(73a)1m.9.10 )-1.8319.259804195954896.3363800)1.875 8868-99.4.572081.9695(73a)1.963 8868-9,16828604.96266.03(e(u206.16)12m.72.30)-1396266.03(e(i9695(73a)19.4.5690-1.9695(73a)16.9.19e)1.u206.1a)1.965262)-3154.572081;8319.251396266.03(e(.963 8868-996266.03(e(.9695(700.4417.1598-3n206.1a)1.96206.1a)1.154.5720813.9943(e)1.060]TJ-262( J-255.3806.15178.963 8868-9962245.41.9663 8868-9.875 8868-9l9695(7t)0..875 8868-96.3363800)1 .71443045..875 8868-9962245.41.b206.16)12o2206.16)129663 8868-9.875 8868-9962245.4212m.72.30)-13417.1598-3.247.3.871.m8382o6o)12o2206.16)12962245.4212q419595489u206.1678.i9695(73a)19.4.5690-1.9695(73a)1o2206.16 sm
196
O contato com a gente do lugar provoca mudanças nele, das quais tem consciência e com
as quais não se deleita, pelo contrário, sente que está se diluindo em sua identidade. Depois de
quatro anos em Santa é, portanto, 1855 - não usa mais chapéu alto e as roupas européias
estão se acabando. Diante disso, escreve a Koseritz: “Isso me dá uma sensação de decadência, de
dissolução, de despersonalização. Sinto que aos poucos, como um pobre camaleão, vou tomando
a cor do lugar onde me encontro” (O continente, v. 2, p. 122). Também toma chimarrão, por
hábito, não por gostar da bebida, e traz para a sua cama chinocas, índias e mulatas. Confessa que
estar com essas mulheres, não com as louras como sempre quis, é uma exigência da carne fraca,
uma obra de seu espírito vacilante, tanto que, após as orgias, precisa tocar seu violino, tomar um
banho de música, abrir seu Heine e se encharcar de poesia, recompondo-se, assim, à própria
razão. Esses índices demonstram a continuidade da diferenciação da forma de pensar e sentir do
alemão em meio a outra cultura e a outras possibilidades de viver. É sempre o modo de ser de sua
origem étnica e cultural que lhe faz falta e pelo qual sempre reclama.
Sobre acontecimentos com os próprios alemães também socializa seus pensamentos com
o intelectual amigo. A respeito dos Mucker, seita de colonos alemães de Ferrabrás, próximo a São
Leopoldo, liderada pelo carpinteiro Jorge Maurer e sua esposa Jacobina, Winter escreve a
Koseritz:
Esse lamentável episódio vem confirmar a opinião que tenho de meus compatriotas:
individualmente são excelentes, sensatas pessoas, mas quando reunidos em grupos
acabam sempre fazendo alguma asneira brutal. Creio, porém, que Goethe disse isso
antes de mim e em muito melhor alemão. Seja como for, às vezes chego a achar que a
unificação da Alemanha foi um erro. Temo que depois da vitória de Sedan,
embriagados de orgulho nacional, os alemães tomem gosto pelas guerras (Há um ditado
gaúcho que conheces: “Cachorro que come ovelha uma vez...”) e o possam mais
passar sem elas. Parece-me que homens como Mozart e Heine podem ser produzidos
por nações que não perdem tempo nem energia em arquitetar guerras e muito menos em
levá-las acabo” ( O continente, v. 2, p. 378).
Winter ambienta-se no tempo inicial da colonização e dos contatos dos alemães por aqui,
quando formação cultural, sentimentos, sensação de pertencimento, reconhecimento das
singularidades dos locais ainda eram conteúdos acentuadamente confusos. Nesse sentido, o
distanciamento do real marca a sua visão de mundo, o que lhe condições de opinar com maior
isenção e de formular idéias de mudanças relativas a diferentes situações.
Com esse espírito, muitas vezes expõe o que pensa também para pessoas importantes do
povoado. Surge-lhe, em círculos de conversas e serões, a maioria no Sobrado, a necessidade de, à
197
sua maneira, interferir na história do local. Sobre uma das bases da economia, o charque, certa
vez opina: “- MtzqM- ó ine- eocddcddbr t, iedehMddr , aTJ118175( )-976424(t)-9.2585(,)-1.6363n2 oeaTJ16]TJ23c(v)-3.716[(s)-1.6369l(p)-3.7163t(p)-3.71632(p)-3.7163 -20.04 Td8(u)-3.71621(b)62576 (l)0.4162m2 qa ia(a)1.96383(M)4.92664(t)0.465948(i)0.441721(ó)6.564234231.9633”4231.96333(-e)128163(97.2-8.3/R280 0 cm BT/R116.2264
198
ofensa, Bolívar esbofeteia a mulher, vindo os dois a se isolar nos cômodos da casa. Este
acontecimento é relatado a apenas uma pessoa externa ao Sobrado, Winter, como nos informa o
narrador: “Bibiana contou-lhe em voz baixa, sem omitir nada, tudo quanto se passara ali no
Sobrado, após a chegada do casal” (O continente, v. 2, p. 144).
Também se torna o único confessor de Bolívar quanto aos casos ocorridos em Porto
Alegre envolvendo ações de Luzia, que iam do estranho prazer em ver as vítimas da peste até o
suspeito comportamento que levara o marido a desconfiar de que era traído.
Winter ainda tornaria mais próxima sua interferência na vida privada dos moradores do
Sobrado ao ministrar aulas a Licurgo. Por esse meio, faz-se agente da ciência e da cultura letrada,
bem desenvolvidas na Europa, num espaço social marcadamente distanciado, na época, dessas
conquistas humanas. No desenvolvimento desse processo educativo, introdutor do novo, aparece
Fandango, personagem que também ensina lições sobre a natureza e a vida ao menino Curgo,
criando-se, assim, um contraponto entre o saber sistematizado repassado pelo alemão e o saber
acumulado pela experiência de vida do nativo. Fandango chega a dizer: “Estrangeiro é bicho
besta. Esses negócios que aparecem nos livros são bobagens. Não hai nada como a experiência do
indivíduo” (O continente, v. 2, p. 202). Passagens assim sugerem as distâncias em termos de
conhecimento e de forma de conhecer que devem ter se revelado na convivência entre os
imigrantes e os do local, mas que, aos poucos, foram se amenizando, como se pode entender pela
aprendizagem que Licurgo faz, oriunda de duas fontes distintas.
Pode ser em política, religião, filosofia, arte, a personagem Winter constrói-se como
alemão que se faz notar no meio sem, contudo, se confundir com ele. Além de sempre recorrer ao
saber sistematizado historicamente para dialogar com os moradores do povoado, ele também os
leva a experienciar outras vivências, como o faz criando a Banda de Música Santa Cecília, a qual,
no dia em que Santa Fé é elevada à categoria de cidade, 24 de junho de 1884, percorre as ruas
principais tocando marchas festivas.
Sempre racional em suas discussões, chega a assim se definir, quando, com Curgo,
discute temas ligados à barbárie e ao progresso, à libertação dos escravos, ideologia e interesse
material: “- Sou um homem sem paixões (...). Não tenho partido. Nem sequer nasci neste país.
Um dia posso ir-me embora para a Alemanha e não voltar mais. Limito-me a ler, ouvir, observar
e tirar minhas conclusões. Os senhores botam todas essas questões num pé puramente ideológico.
Eu prefiro levar a coisa para o lado do interesse material...” (O continente, v. 2, p. 313-314).
199
Entretanto, se o doutor Winter tem espaço para expor sua visão de mundo diferenciada da
circulante naquele contexto, a maioria das personagens alemãs nesse período tem bastante
limitada a sua voz naquele meio social, como também no espaço que ocupa. Assim acontece na
chegada dos imigrantes que formariam a colônia alemã Nova Pomerânia. O coronel Bento
Amaral chama todos os colonos a sua casa para falar-lhes: “Tinha uma voz gutural, falava alto,
com ar patronal” (O continente, v. 2, p. 125). Não se manifestam os ouvintes, apenas “o
escutavam numa atitude entre respeitosa e assustada” (O continente, v. 2, p. 125). São informados
pelo coronel, chefe político de Santa Fé, de que devem obediência às autoridades.
Os cidadãos alemães já formavam, na segunda metade do século XIX, uma grande colônia
no estado, no entanto o têm muita voz na narrativa. A participação deles se mais no espaço
em que se fixaram, onde regram seu modo de vida com base na cultura germânica, e, nesse caso,
Nova Pomerânia é o lugar que recebe mais visibilidade no romance. No mais, seus contatos são
sempre marcados pela diferença, são sempre os outros, não os mesmos, em meio aos nativos.
Fica evidente isso quando se tornam freqüentadores do Clube Comercial de Santa , criado
pelos da elite luso-brasileira da cidade e onde são admitidos como sócios. Fundado em fins de
1899, o clube reúne a elegante sociedade do local, a “nata” da sociedade de Santa Fé. É bem
verdade que, com o passar do tempo, admitiria sócios de um nível mais inferior, tidos como
“gentinha de segunda”.
O certo é que o clube é um aquário onde se podem ver as diferentes camadas
socioeconômicas de Santa Fé: fazendeiros abastados, como os Macedo, os Cambará, os Prates, os
Quadros, os Fagundes, os Amaral, os Teixeira; comerciantes mais fortes da cidade, como
Marcelino Veiga, proprietário da Casa Sol. Com esses ficam toda a vida política e as decisões de
ordem pública que interferem na vida local, ou seja, ali se concentra todo o poder. Quase no
mesmo nível de importância, não pela fortuna, mas pelos cargos que ocupam, estão o juiz de
comarca, o juiz distrital, o promotor público, os oficiais da guarnição federal, alguns altos
funcionários e a maioria dos médicos e advogados. Diferenciados, numa terceira camada, estão
os estancieiros e comerciantes de menor importância econômica e a gente que, embora com nome
reconhecido, havia perdido a fortuna. Ainda há o “resto” (O retrato, v. 1, p. 163), que são os
funcionários públicos, os de profissão incerta e os inúmeros empregados do comércio.
E os alemães? Em nenhuma dessas quatro camadas eles estão incluídos como
representantes da sociedade gaúcha. Alguns são sócios do clube, mas não convivem com a
200
maioria brasileira que se reúne e se diverte; mantêm-se à parte, com divertimento separado,
como nos diz o narrador: “O bolão, jogo que o clube inaugurara havia pouco, atraía
principalmente os raros sócios de origem alemã, que a ele se entregavam com muito barulho e
muita cerveja” (O retrato, v. 1, p. 162). Com isso, ao invés de agradar com o entusiasmo a que se
entregam nesses momentos de lazer, provocam a ira dos sócios não alemães: “E freqüentes vezes,
ouvindo o rolar surdo das bolas de madeira no porão do edifício, seguido do claro pipocar dos
paus que tombavam, alguns dos sócios do Comercial que jogavam cartas no andar superior,
resmungava: Essa alemoada merecia que a gente descesse e tirasse eles debaixo a rebenque”
(O retrato, v. 1, p. 162).
E aqui está uma soante palmada na história da relação dos imigrantes com os locais,
naquela parte em que vingaram preconceitos da sociedade essencialmente luso-brasileira em
relação à estrangeira. Contra a cor e contra a posição econômica de cada indivíduo, valia manter
a distância, a estranheza, o desprezo. Até mesmo os fazeres profissionais dos alemães seriam
tidos como de pouco valor, como diz o doutor Rodrigo, quando ainda moço e bastante idealista e
questionador, conversa com o juiz de comarca, o doutor Eurípedes Gonzaga: “- O senhor não
negará tornara Rodrigo que existem profissões que, do ponto de vista desta sociedade,são
consideradas baixas: sapateiros, ferreiros, funileiros, seleiros, alfaiates e muitas outras ... enfim,
gente que faz trabalho manual,o senhor sabe...” (O retrato, v. 1, p. 165). E conclui dizendo que
todos os descendentes de imigrantes, tanto italianos como alemães, são apenas tolerados naquele
meio social. “São olhados de cima para baixo pela aristocracia local” (O retrato, v. 1, p. 166).
Outros alemães que se fixam em Santa e que também têm como o principal contato o
Sobrado e seus moradores são os Weber, a Família Filarmônica de Viena. Com ela chega também
outra cultura identitária dos alemães, a que nasce das artes, no caso a música. Santa Fé, então,
contata com algo diferente do que tivera oportunidade com os alemães que se fixaram como
colonos, que lhe trouxeram a cultura do campo, expressada principalmente na alimentação e nas
tradições das comemorações religiosas (Natal e Páscoa). A família aproxima-se, em termos de
interferência cultural, ao que Winter já apresenta, ou seja, o universo do mundo letrado e urbano.
Os fatos principais que envolvem a família decorrem das ações de Rodrigo Terra
Cambará, cuja trajetória está na centralidade de O retrato.
Os contatos iniciam-se na segunda noite de espetáculos no teatro, quando Rodrigo é
convencido a assistir às apresentações, coisa que havia recusado na noite de estréia da Família
201
por estar revoltado com o rumo da I Guerra Mundial definido pela Alemanha. Diante do convite
de Flora, sua esposa, na primeira noite, diz: “- Não vou. Não quero saber de nada com esses
boches” (O retrato, v. 2, p. 225). Insiste que guerra é guerra e que a Áustria-Hungria é aliada da
Alemanha, portanto, ninguém de Santa deveria assistir ao espetáculo para não sustentar a “tal
alemoada”. Contudo, as músicas apresentadas pela família haviam produzido em todos os que
foram ao teatro comentários cheios de encantamentos. Chega até Rodrigo essa emoção toda, e
seu colega, o doutor Carlo Carbone, interpela-o de um jeito que ele aceita o convite para a noite
seguinte.
Inicia-se a história de amor da musicista Toni Weber com o gaúcho Rodrigo Terra
Cambará. Nascida em Viena, Áustria, em 1895, esta alemã é uma mulher diferente das que se
conhecia, tanto física como culturalmente, e sem demora domina os sentidos de Rodrigo: “Sua
face era dum perfeito oval e os olhos claros duma tonalidade que Rodrigo de longe não podia
discernir. Entretanto, o que mais o fascinava naquele rosto emoldurado por cabelos castanhos
com reflexos de bronze, eram as zigomas levemente salientes e a boca rasgada de lábios polpudos
e sugestivos.” (O retrato, v. 2, p. 230)
A força de Toni sobre Rodrigo é tanta e imediata a ponto de encantá-lo e provocar
mudança repentina de opinião e sentimentos em relação aos alemães que o circundam e à etnia
em si, apesar da guerra. Quando, durante o espetáculo, o padre Astolfo conta que, em São Paulo,
durante uma apresentação, a família fora vaiada porque a platéia sabia que o filho mais velho do
casal estava na guerra, Rodrigo diz: “- Canalhas! (...). Onde está a nossa tradição de
hospitalidade? Que idéia essa gente vai fazer de nossa educação e de nossa cultura? Precisamos
prestigiar essa família” (O retrato, v. 2, p. 231).
A família, após o espetáculo, é logo convidada a ir ao Sobrado para tomar alguma coisa.
A recusa de herr Weber desaponta Rodrigo. No entanto, Toni, estando silenciosamente presente,
exerce fascínio sobre ele e atrai o intresse daquele homem de família tradicional, renomado líder
político e acostumado a muitas mulheres da terra.
Os contatos, então, da família com os Terra Cambará e alguns amigos destes efetivam-se
e tornam-se freqüentes. A vida dos Weber é conduzida pela vontade de Rodrigo, que até os
instala em propriedade sua. Não mais a música e seu trabalho artístico são as razões principais
para esses alemães ficarem no povoado, tampouco a impossibilidade de retornarem à Áustria, por
causa da falta de dinheiro e da guerra na Europa. É a filha Toni o motivo de atenções e aceitação
202
de toda a família por parte do líder Terra Cambará. Criado o vínculo pela ordem do interesse e da
conquista, os serões no Sobrado com a presença da família são certos nas segundas, terças e
sextas-feiras, o que determina que o amor entre Rodrigo e Toni cresça, se consolide e se
concretize.
Aquela menina com tranças e laçarotes azuis revelar-se-ia depressa uma mulher que
encantava, que fazia do homem uma presa. Além da beleza, outro elemento que arrebata Rodrigo
é o conhecimento que ela possui de música, de literatura, de arte em geral. Surpreende-o, em
certa ocasião, quando este um trecho de Chantecler: - J´aime bien Rostand diz-lhe Toni.
“Mas ele me parece um poeta menor, apenas hábil, brilhante, agradável. Corresponde em música
a Tchaikovsky ou Lizst. O mundo poderia passar perfeitamente sem Rostand e Lizst, mas duvido
que fosse o mesmo se nunca houvesse nascido um Goethe ou um Bach(O retrato, v. 2, p. 248).
Na análise de Rodrigo, “Toni era a Europa. Não tinha apenas vinte anos, mas dois mil, ao passo
que ali no Rio Grande, em matéria de arte e cultura, estava-se ainda numa espécie de idade da
pedra lascada” (O retrato, v. 2, p. 248).
Toni simboliza atitudes de uma mulher autônoma, sem receio de expor aos outros o que
pensa e o que sente. Nesse sentido, pode conversar com estranhos (Rodrigo), passear sozinha
com o namorado (Erwin Spielvogel), sem ser motivo de comentários maldosos por parte dos de
sua etnia. No entanto, por essas atitudes, ela choca os moradores de Santa Fé, como o fizera
Helga. Toni passa a receber Rodrigo, à noite, em seu quarto, na Poncho Verde, às escondidas de
todos, onde se amam por completo. Mas chega o dia em que acontece a gravidez da jovem alemã.
Rodrigo desespera-se com o fato e ela, mais ainda. Sem uma resolução da parte dele, noiva de um
rapaz de sua etnia, Erwin Spielvogel, contrariada em sua vontade e seu amor, ela toma veneno e
morre. Essa atitude é a que vai manter Rodrigo preso a ela para sempre, pois ele tem consciência
da razão que levara Toni ao suicídio; assim, a culpa e o remorso o acompanharão ao longo de sua
vida.
Outros alemães, já há algum tempo colonizando terras nas redondezas de Santa Fé,
estabelecem um contato mais frio com os nativos, restringindo-se a algumas necessidades de
saúde ou comercial. Sua característica é resguardarem-se como comunidade na colônia que
formaram. São os moradores da colônia alemã Nova Pomerânia, que nem em presença do
poderoso líder político Rodrigo Terra Cambará deixam de expor seus princípios de organização e
política, de dizer o que lhes dá significado em sua vida social e de confirmar suas crenças.
203
O civilismo de Rui Barbosa, em 1910, toma força total em Santa Fé por meio da liderança
política que o doutor Rodrigo Terra Cambará exerce a esse favor. Assim, quando Rodrigo está
em campanha a favor do candidato Rui Barbosa à presidência da República, realiza um comício
no salão do clube ginástico de Nova Pomerânia, à noite. Mesmo sabedores da visita do político,
poucas presenças, “umas duas dúzias de colonos” (O retrato, v. 1, p. 332)). No local, Rodrigo
depara-se com um retrato do imperador Guilherme II e um busto de gesso de Bismarck. Além
disso, no ambiente pouco receptivo, o seu discurso não causa o efeito esperado e, numa conversa
deste com o velho Jacob Kunz, homem influente entre os demais da colônia, revela-se uma
postura dos alemães em relação à política brasileira: Jacob, enfático, abrevia o tempo do diálogo
dizendo que “ele e toda a família votavam com o governo, sempre com o governo, e que jamais
se meteriam em política” (O retrato, v. 1, p. 333).
Lúcio Kreutz, no seu texto “A imigração alemã em O tempo e o vento” (2002, p. 172),
sintetiza a participação dos alemães na política, seguindo a representação dessa questão feita por
Erico:
Até o período da República os imigrantes normalmente são retratados sem participação
política. Organizavam-se comunitariamente, assumiam escola, professor, sociedades,
pontes, estradas e mantinham a maior distância possível de ingerências e disputas
políticas. Achavam que os políticos prometiam muito, mas não cumpriam as promessas.
Não tinham recebido nem professor. Havia o entendimento entre eles que teriam que
zelar por si mesmos, tornando-se assim bastate independentes dos estancieiros e do
governo, mantendo por muito tempo suas peculiaridades étnicas. Mesmo assim votavam
com o governo.
A mesma resposta que ouvira do velho Kunz Rodrigo ouve de José Kern, um jovem, na
ocasião, com vinte e poucos anos, que viria mais tarde a se tornar um político e um grande
comerciante e fora o intérprete na conversa. Com Kern Rodrigo ainda insiste dizendo-lhe: “_ (...).
E o senhor, seu Kern, que parece um moço instruído, não se sente diminuído por ser obrigado a
votar contra a sua consciência?” (O retrato, v. 1, p. 333). No entanto, a resposta soa arrogante ao
doutor: - Consciência é uma palavra, doutor, e eu não me fio muito em palavras.” (O retrato, v.
1, p. 333).
Essa representação de uma imagem de alemães encontra seu correspondente no mundo
real. São muitos os estudos que asseguram a verdade de um comportamento semelhante ao das
personagens de Erico no contexto histórico dos imigrantes. Estes cultivavam, por índole, extremo
respeito às autoridades governamentais. Além disso, o elemento alemão sentia-se devedor em
204
relação aos homens do governo, que lhes haviam proporcionado a vida no novo mundo. Aos
políticos do local interessava a conquista dos votos das colônias, pelo bom número de votantes e
pela combinação que se dava na comunidade, pois, quando em épocas de eleições, instalavam-se
os debates sobre a posição do elemento alemão que a ele e à colônia melhor convinha no contexto
político que os envolvia. Assim, muitos candidatos queriam ser os convenientes no grupo de voto
certo.
Justificativas para as posições políticas de muitos alemães em favor do governo existem e
são compreensíveis historicamente. Uma delas foi delineada na própria proposta inicial de
colonização, segundo a qual o Império cobria a parte principal das despesas da imigração, a
passagem da família, por exemplo, como a esperar do imigrante o trabalho e a dedicação. Assim,
o que era recebido do governo tornava-se uma dívida e o imigrante, uma vez instalado no país,
empenhava seu trabalho também para pagá-lo.
Além da dívida financeira, havia a ideológica, que se instalava em razão da completa
dependência do imigrante às resoluções do poder governamental, intermediadas pelos agentes
que organizavam as colônias. Tomava forma, então, uma servidão do imigrante para com o
governo, sem um tempo declaradamente determinado. O tempo-limite era a criação da
consciência do estrangeiro quanto ao seu espaço social, às suas razões de permanência e à sua
determinação de crescimento econômico. Assim, mantinha-se servil ao governo ou encontrava
meios de se opor. Essa servidão ou oposição tinha como receptor imediato o senhor de terras, que
detinha o poder representativo da oficialidade dos interesses governamentais.
Os alemães de Nova Pomerânia deixam o doutor Rodrigo alarmado. Além da resistência
às suas propostas políticas, que significariam mudança para país, outra coisa importante
constatada preocupa-o: é o fato de poucos falarem o português. Rodrigo pondera: “O velho Kunz
estava no Brasil havia mais de cinqüenta anos e parecia não saber uma palavra de nossa língua! A
única escola da colônia tinha um professor alemão e não ensinava português. De suas paredes,
como na sociedade de ginástica, pendiam retratos de Guilherme II e de Bismarck. Os padres
tanto o católico como o protestante – pregavam os sermões em alemão.” (O retrato, v. 1, p. 333).
O doutor Rodrigo é um formador de opinião. Tomado por sentimentos pessimistas,
escreve “um artigo sobre os perigos da colonização alemã” (O retrato, v. 1, p. 334). Atribui ao
governo a culpa de os alemães assim viverem e pensarem, pois nem professores lhes são
205
enviados. Diz que os núcleos poderiam vir a se transformar verdadeiros cavalos de Tróia. Esta é a
parte final do artigo:
Para que não se diga que ando enxergando fantasmas e, qual novo Quixote,
transformando o moinho d´água do velho Spielvogel em guerreiros fabulosos,
transcrevo um trecho tirado do livro A Arcádia da Alemanha, de Leyser, e citado na
obra Contrastes e Confrontos, do eminente escritor Euclides da Cunha. Ei-lo: ´Hoje,
nestas províncias (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) cerca de 30% dos
habitantes são germanos ou seus descendentes: e, por certo, nos pertence o futuro dessa
parte do mundo. De feito, ali, no Brasil meridional, paragens ricas e salubres, onde
os alemães podem conservar a nacionalidade, e um glorioso futuro se antolha a tudo
que se compreende na palavra germanismus (O retrato, v. 1, p. 334).
Temos, por esse texto, uma leitura de um gaúcho da terra sobre a colônia alemã, que
congrega também indivíduos que, apesar de instalados e/ou nascidos no Rio Grande, não se
sentem, não se dizem gaúchos e não são vistos como gaúchos. Nessa época, os acontecimentos da
I Guerra Mundial faziam da Alemanha uma nação criticada, odiada, desprezada por muitas outras
nações. O povo alemão era estigmatizado; pessoas de origem alemã, mesmo sendo cidadãs
comuns em qualquer parte do mundo, eram tidas como inimigas, manifestando ou não
publicamente apoio à pátria-mãe.
As que são de Santa também sofrem isso. Numa ocasião, no cinema, Júlio Schnitzler
cumprimenta Rodrigo, mas este, num primeiro momento, age como se não o tivesse visto. Flora,
que o acompanha, o adverte: “- Cumprimenta o homem, Rodrigo, não sejas rancoroso. O coitado
não tem culpa dos banditismos do Kaiser.” (O retrato, v. 2, p. 210). Ao que Rodrigo responde: “-
Quando me lembro do que os patrícios dele fizeram na Bélgica, o sangue me ferve. Depois, esse
tipo sempre que tem notícia de alguma vitória alemã reúne os patrícios na confeitaria para
comemorar.” (O retrato, v. 2, p. 210). A Confeitaria Schnitzler, desde o início do conflito, em
julho de 1914, “era o ponto de reunião dos membros da colônia alemã e dos teuto-brasileiros,
cujas simpatias naturalmente estavam voltadas para o Vaterland” (O retrato, v. 2, p. 165-166).
Enfatizando os contatos conflituosos entre os brasileiros e os da etnia alemã que aqui
moravam, relembrando a posição do Brasil na guerra, que se juntou aos Aliados, o autor nos
remete a situações que nos condicionam, diante de um sentimento patriótico, a culpar os
imigrantes e seus descendentes e até a compreender que, de fato, não se sentiam brasileiros.
Nesse sentido, lembra “que nas sociedades germânicas de Porto Alegre, São Leopoldo e Santa
Cruz faziam-se subscrições e festas em benefício dos soldados alemães e austríacos” (O retrato,
206
v. 2, p. 166), que em Nova Pomerânia “se faziam comícios e festas pró-Alemanha. Kerbs em que
se cantavam hinos alemães e em que o Deutschland über alles era repetido entusiasticamente
como um refrão de vitória” (O retrato, v. 2, p. 167). Nesse espírito antigermânico, um retrato de
Guilherme II recebe as seguintes palavras do doutor Rodrigo: “todo enfarpelado no seu vistoso
uniforme, o maldito Hohenzollern, de bigodes de guias torcidas para cima, o olhar duro e cruel
como o aço de seu antipático capacete (O retrato, v. 2, p. 166). Os alemães, para ele,
ameaçariam a civilização, a cultura e a democracia.
Os que têm nomes germânicos ganham a repulsa de Rodrigo Terra Cambará. Júlio
Schnitzler, os Spielvogel, os Kunz, os Schultz e outros mais deixam de ser cumprimentados.
São referidas no romance a batalha de Ypres e a atitude dos alemães de lançarem gases
asfixiantes contra tropas canadenses e argelinas
92
. Rodrigo é tomado de uma indignação tamanha
que tem vontade de “sair para a rua e quebrar a cara do primeiro alemão que encontrasse” (O
retrato, v. 2, p. 224). As notícias das campanhas submarinas dos alemães, nas quais destruíam
navios mercantes e de passageiros, tanto de nações inimigas como de nações neutras, também
ganham espaço no romance. O narrador informa que os jornais, no princípio de maio,
comunicaram que “um submarino alemão torpedeara em águas da Irlanda o transatlântico
Lusitânia, causando a morte de 1153 passageiros!” (O retrato, v. 2, p. 224). Com isso, uma fúria
desmedida envolve Rodrigo, que, deixando o Sobrado, encontra Otto Spielvogel às gargalhadas
em frente à Casa Schultz e o ameaça: “- Bandidos! Vocês todos deviam ser capados para acabar
com essa raça maldita! Enquanto existir um alemão na face da terra a humanidade não poderá
viver em paz!”(O retrato, v. 2, p. 224). Ainda, retira e rasga o retrato do Kaiser que está na
vitrina da loja do Schultz e sentencia a este: “- Não me exponha mais a cara desse bandido, ó
Schultz, senão eu mando prender fogo nesta pocilga, estás ouvindo, lambote?” (O retrato, v. 2, p.
225)
De pouco contato com os santa-fezenses é Jacob Geibel, que vive azedo, incomodado com
a proximidade das pessoas, avesso ao convívio humano no povoado (O continente, v. 2, p. 280).
Ao invés da vida, é a morte que lhe traz alegria. Quando alguém falece, ele toca o sino e, a cada
badalada, murmura: Wieder einer weniger! Menos um! Wieder einer weniger! Menos um!” (O
92
De fato, na segunda batalha de Ypres, de 22 de abril a 25 de maio de 1915, os alemães usaram gases asfixiantes
contra os inimigos de guerra.
207
continente, v. 2, p. 281). Verfluchte Stadt! (Cidade maldita). Para ele, em Santa Fé está em meio a
uma cachorrada do inferno, a porcos excomungados, e deseja, por isso, que Deus amaldiçoe a
todos, que um raio os parta.
Numa ocasião em que prepara o altar para a missa do padre Atílio Romano, num
embaraço frente aos fiéis, que o deixa vermelho, com as orelhas em fogo, incomodam-no
“aquelas mulheres gordas e peitudas, que tinham bigode e cheiravam a leite e queijo. E aqueles
homens escuros e cabeludos, de mãos rudes e vozes gutura6388(s)-1.6 0 cm BT/R7 119213(,)3.28186( )-130.356(q)-3.716l(s)-1.63635(e)1..56299(z)-8.3173(e)1.96262b.63 0 Td[( )-120.076(d)6.562935(a)1.96262(v)-3.7166(ã)1.96262(o)-3.71697(e)1.96262( )rue ovq r(odãaute635( )9163( )250]Td5(a)1.96325(q)6.56362(s)-1.6367(c)12.2431(e)1.9632v5(a)1.96321(e)1.9632lJ-264.63 -20.16 31667((d)6.5629( )-6.99843(d)6.562(,)-6.99843( )12.28468(e)12.2438(r)6.564248(e)12.2438(n)0.441715(h)-3.71563(e)1.9638-20.16 31669( )3.28149(p)12.2846AJ34.45955(r)-6.23799(r)-6.23675(R)-11.4746()3.28149(r)-16.5178(r)6.56424!(g)6.5996”s)-1.63761( )-6.9984(d. deee Sa, og
208
e em ataque a Borges de Medeiros. Nessa colônia, José Kern
93
se fizera importante cidadão em
razão do seu poder econômico e notabilidade social. Rodrigo ouve do teuto-brasileiro: - O
senhor não faz comício aqui porque a gente não somos políticos. O que queremos é trabalhar em
paz” (O arquipélago, v. 1, p. 174). Chama-o de “alemão patife” e inicia o comício mesmo assim,
mas é ouvido por quase ninguém e tem de se retirar com os companheiros, sob a ameaça de tiros
comandados pelo subdelegado.
Na história de Erico, a identidade política dos alemães e seus descendentes é sempre
outra, não a dos Terra Cambará, família que protagoniza toda a narrativa. Nesse campo,
portanto, os contatos são conflituosos. As opções de Kern, por exemplo, quando chega à
candidatura a deputado, são amplamente criticadas e caem no descrédito de seus opositores.
tinha sido um integralista e, no momento, é do Partido de Representação Popular: assim, se diz
cristão e pede os votos de todos os cristãos, proclamando-se democrata. Perpassa, entre as
personagens que se referem a ele, a idéia de que não é sério na política.
Também o retorno de Lindolfo Collor para o Rio Grande do Sul na época da Revolução
de 1930 é malvisto. Definida como uma vontade consciente de criar crise e de conspirar, essa
atitude não é tida como tentativa de salvar a revolução, como tentara fazer o povo gaúcho
acreditar. Isso seria crível se ele tivesse ficado no Rio ao lado de Getúlio, diz o doutor Rodrigo.
No entanto, vem com outros líderes políticos ao estado, onde se fazem de vítimas e “foram
conspirar debaixo das asas agitadas do general Flores da Cunha, sob o olhar benevolente do
doutor Borges de Medeiros” (O arquipélago, v. 3, p. 139).
A Segunda Guerra Mundial, no entanto, é o maior motivo de conflitos entre os contatos
mantidos pelas personagens alemãs com as nacionais. Erico recorre, abertamente, aos fatos
históricos para fazer a representação dessa imagem real do passado que horrorizou a humanidade
pouco antes da metade do século XX, bem como ao comportamento dos teuto-brasileiros e à
reação contrária a eles que se deu de parte da população local. Nesse sentido, faz o registro de
acontecimentos que se anteciparam à guerra e que a ela convergiram, como a fundação do núcleo
local da Ação Integralista Brasileira, em meados de 1933, cujos adeptos eram tanto teutos quanto
italianos e brasileiros. Esses “andavam fascinados pelos discursos de Mussolini e os
empreendimentos do fascismo” (O arquipélago, v. 3, p. 197). E o mero de adeptos aumenta
bastante depois da revolta comunista de 1935.
93
José Kern, mais tarde, muda-se para Santa Fé, onde passa a ser comerciante (O arquipélago, v. 2, p. 67).
209
O círculo nazista é outro evento lembrado na narrativa, tendo sido fundado no Rio Grande
do Sul logo depois que Hitler tomou o poder na Alemanha. Núcleos do Partido Nacional
Socialista surgem em Santa Fé e Nova Pomerânia. Como mais uma ão concentrada no interior
das famílias germânicas, tudo se iniciara com discrição, mas com “as vitórias de Hitler e o
fortalecimento de seu partido, os nazistas do Rio Grande do Sul alçavam a cabeça, faziam as
coisas mais às claras e até com uma certa arrogância” (O arquipélago, v. 3, p. 198). As escolas,
as sociedades recreativas e as congregações da Igreja Evangélica Luterana eram os veículos de
propagação dos ideais políticos hitleristas. Para isso, ajudariam os pastores e os membros do
partido, que, estrategicamente, se infiltrariam nessas entidades. Às crianças a doutrina chegava
pelo ensino nas escolas teuto-brasileiras, “onde se ensinava pouco ou nenhum português” (O
arquipélago, v. 3, p. 198).
A partir de 1937, a campanha nazista tornou-se ainda mais intensa, como também o
integralismo chegou ao seu auge. No desfile de 7 de setembro, em Santa esses dois segmentos
se apresentam:
A seguir surgiram os integralistas com suas bandeiras e charangas, garbosos em suas
camisas verdes. Fechava a parada uma centúria nazista o grupo local reforçado de
elementos vindos de Nova Pomerânia -, todos impecavelmente fardados: camisas
pardas, culotes pretos, botas de cano alto. Uma banda de música também uniformizada
tocava dobrados alemães, seguida duma banda de clarins e tambores. Cinco passos atrás
desta – altos, louros, musculosos: versões colônias de Sigfried -, marchavam quatro dos
principais atletas do Turnverein, cada qual empunhando a bandeira nazista com a cruz
gamada” (O arquipélago, v. 3, p. 199).
A reação dos locais aos nazistas é de indignação, instalando-se um mal-estar generalizado
entre quem assiste ao desfile. Antes disso, houvera manifestações racistas dos teutos nazistas, que
procuravam praticar por aqui o que ditava Hitler na Alemanha. Assim, judeus foram espancados,
primeiro o Arão Stein e, depois, o mascate bastante conhecido dos moradores de Santa Fé,
atacado à luz do dia “por três rapazotes alourados que tinham o aspecto iniludível de membros da
Juventude Hitlerista” (O arquipélago, v. 3, p. 202).
Os contatos desses imigrantes adeptos das práticas e das idéias de Hitler passam a sofrer
sérios embates com os tradicionais líderes locais. Instala-se o conceito do perigo nazista, cuja
origem estaria num antigo plano pangermanista relativo ao Brasil, formulado no tempo de
Frederico II, por volta de 1740. Os argumentos sobre a idéia do perigo são buscados em escritos
de intelectuais alemães, que o citados pelo doutor Rodrigo para dar sustentação e conferir
210
veracidade ao seu discurso sobre os nazistas. Cita a obra de Wilhelm Sievers, professor da
Universidade de Giessen, A América do Sul e os interesses alemães, de 1903, na qual defende
que a Alemanha deve dominar os países sul-americanos. Também faz menção ao volume Hitler
me disse, de Rauschning, ex-presidente do Estado de Dantzig, no qual está registrada a seguinte
frase do Führer: “- Edificaremos uma nova Alemanha no Brasil. Ali encontraremos tudo que for
necessário” (O arquipélago, v. 3, p. 236). Por fim, refere-se a Rudolf Batke, membro do Círculo
Teuto-Brasileiro de Trabalho, entidade formada por brasileiros de origem germânica que
estudaram na Alemanha, a qual defendia a idéia de dever ser prescrito o conceito “alemães-
brasileiros”, pois “todos os teuto-brasileiros fazem parte da etnia alemã... são alemães no sangue,
na espécie, na cultura e na língua” (O arquipélago, v. 3, p. 237). Havendo, portanto, tal plano,
teriam os alemães se organizado, minando o Rio Grande do Sul de núcleos nazistas. Diante disso,
os representantes dos gaúchos natos, no romance, estabelecem uma sólida linha divisória
imaginária a separar de seu convívio os alemães e seus descendentes.
No diário de Sílvia, esposa de Jango e nora de Rodrigo Terra Cambará, escrito entre 1941
a 1943, mas que registra fragmentos de sua memória do tempo passado, encontramos referências
aos acontecimentos da II Guerra, como a conquista da Dinamarca e da Noruega pelo exército de
Hitler em abril de 1940, da Bélgica, da Holanda e Luxemburgo em maio e, nesse mesmo mês, a
invasão da França, as primeiras vitórias dos alemães na União Soviética, em 1941. E estão
também representadas conseqüências do sentimento antinazista espalhado pelo mundo em razão
das ações sanguinárias do exército alemão contra outros povos, sentimento que muito se
fortificou por aqui. No Natal de 1941, por exemplo, já o pinheirinho não cintila na sala do
Sobrado e Schnitzler não aparece vestido de Papai-Noel, nem com seus familiares canta suas
canções.
Ao escrever sobre a declaração de guerra do Brasil ao Eixo
94
, Erico enumera atos de
revolta que os de origem alemã e seus estabelecimentos comerciais sofrem do povo de Santa Fé,
do que podemos depreender que, a essa altura, os contatos estavam todos manchados de
impressões contrárias a qualquer senso de compreensão dos nacionais relativo à etnia imigrante.
O Café Poncho Verde, que já havia sido local de convívio de teutos e gaúchos, de propriedade do
Kern, reconhecido líder político e militante nazista, é destruído num ataque de populares, sob o
olhar benevolente dos policiais. E a multidão segue pela rua do Comércio quebrando as janelas
94
O Brasil declarou guerra ao Eixo em 23 de agosto de 1942, numa reação imediata ao torpedeamento de navios
brasileiros por parte dos alemães.
211
das casas das famílias germânicas. Também os já consolidados nomes alemães que haviam
ajudado Santa a se desenvolver, com seu comércio e indústria, os Spielvogel, os Kunz, os
Schnitzler, declaradamente antinazistas, sofrem agressões pelo simples fato de serem alemães.
Vemos, assim, que os moradores de Santa e representantes do poder local não tardam em
julgar qualquer dos teuto-gaúchos pelos feitos dos nazistas.
René E. Gertz, em O Estado Novo no Rio Grande do Sul, apresenta informações
históricas sobre os conflitos entre alemães e gaúchos no período da Segunda Guerra Mundial,
relacionando-os com a nacionalização imposta pelo governo e por uma parcela da população rio-
grandense aos cidadãos de etnia alemã. Dentre as muitas situações de enfrentamento e agressões,
o autor aponta uma de 1942 como a mais intensa: “O maior volume de violência simultânea
ocorreu nos dias 18 e 19 de agosto de 1942, após o afundamento do quarto navio brasileiro por
submarinos alemães. As violências desse momento foram praticadas em grande parte por
populares, isto é, por manifestações de rua, não, diretamente, por instâncias estatais” (p. 174).
personagens que se orientam por outra forma de pensar e que conseguem separar os
fatos, como o faz Silvia, quando retruca a fala de seu marido que aprovara todos os atos de
violência: “Eles puseram a pique os nossos navios, mataram patrícios nossos.”, diz Jango, ao que
ela pergunta: Eles quem? Os Kunz? Os Schnitzler? Os Spielvogel?” (O arquipélago, v. 3, p.
348). Arão Stein é outro que lamenta “todas aquelas violências sem propósito prático, toda aquela
energia agressiva do povo tão mal dirigida” (O arquipélago, v. 3, p. 348). A narrativa, assim,
conta da idéia, também formulada historicamente, de que não se justificava atribuir a culpa dos
crimes nazistas a qualquer cidadão de origem alemã que habitava a terra sul-rio-grandense.
Os contatos dos alemães com os gaúchos finalizam-se, na narrativa, dessa forma,
marcados pela força da maior tragédia humana do século XX, que foi deflagrada por alemães,
submetendo culpados e inocentes ao mesmo julgamento dos outros.
Pensamos que a história mostra que a presença alemã por aqui tem o sentido que lhe
Floriano, não o de causar preocupações quanto ao futuro do Rio Grande dado pelas ações das
raças que aqui convivem, nem o de temer a agringalhação” da gente que forma o estado, e, sim,
de que Rio Grande do Sul é o que resulta do amálgama de raças no tempo e no espaço de sua
formação. A identidade se dá, portanto, por um “jeito peculiar de falar, de gesticular, bem como
um jeito de ser, de pensar, de amar e de odiar, de cantar e dançar, de trabalhar e de sonhar...” (O
arquipélago, v. 3, p. 294).
212
Erico captou muito bem o sentido dos contatos estabelecidos entre os imigrantes e os
nativos no mesmo espaço físico-social. Ele desenvolve a idéia, não propagada por grande parte
dos historiadores, de que os alemães não viveram, mesmo nos primeiros anos do processo
imigratório, em completo isolamento e, assim, insere os estrangeiros em Santa e em Panambi
(Neu-Württemberg); confere-lhes ocupações, trabalhos, que proporcionam uma relação próxima
com os do local, como comércio, indústria e vida política; estabelece críticas por meio da voz de
personagens brasileiros, o que indica que havia contatos entre as diferentes etnias.
Mesmo em São Leopoldo e em Nova Pomerânia, o autor imagina os alemães e a formação
estrutural dos povoados, bem como os contatos que tinham possibilidade de manter com os do
local, com os políticos da capital, com os compradores de seus produtos coloniais e, até mesmo,
com as informações sobre a região, o restante do Brasil, a Alemanha, o mundo, veiculadas pela
imprensa que existia na época. Nessa perspectiva, o isolamento era relativo. Para exemplificar
isso, vejamos que, a Alegrete (RS), as notícias chegavam três semanas depois de acontecidas ao
passo que a São Leopoldo (RS) vinham duas vezes por dia, pelo menos a partir de 1874.
Chegavam em alemão, mas as pessoas sabiam o que tinha acontecido em Berlim, em Londres,
em Paris, no Rio de Janeiro, em Porto Alegre, porque o trem ia duas vezes para São Leopoldo e
levava os jornais para a população.
Nesse sentido, relacionando a ficção com a história, a questão mais importante na
abordagem de Erico não é o isolamento e suas caracterizações, e, sim, a colonização homogênea
(Nova Pomerânia, São Leopoldo) e a colonização mista (Santa e Neu-Württemberg) e suas
implicações - esta última mais bem desenvolvida, historicamente, nas “Colônias Novas”, a partir
do final do século XIX e início do século XX.
3.5 - A ferro e fogo
Melhor será baixar a cabeça, esforçar-se com os
braços, pois é disso que se tira o pão e não com sonhos.
Josué Guimarães
213
Ainda quando as terras que hoje se encontram limitadas no mapa político do Rio Grande
do Sul não sabiam quem era, definitivamente, seu dono, se de fato o recém-declarado imperador
do Brasil, dom Pedro I, que pouco se dava a conhecer a elas e poucos de seus súditos aqui
colocara para ocupá-las, ou se os seus assíduos pisoteadores da Banda Oriental, os castelhanos,
que por elas lutavam com determinação, aos bons olhos dos seus governantes, inicia a história
narrada em A ferro e fogo – tempo de solidão e A ferro e fogo – tempo de guerra, um romance de
Josué Guimarães apresentado em dois volumes.
Neles encontramos representados sujeitos históricos que vieram de um mundo distante,
onde os limites territoriais definiam os reinos a que pertenciam, os germânicos. Esses reinos
tinham governo próprio, mas formavam, ao mesmo tempo, um conjunto unitário quanto à língua,
à religião, ao trabalho e à cultura. Esses sujeitos conviviam com a miséria construída pela
sociedade germânica, que também construía muito progresso, mas insuficiente para atender a
toda a população em termos de trabalho. Especialmente por essa razão, os governos impeliram
parte da população a se fixar em outros locais do mundo para buscar sobreviver e fazer capital.
Esse era o mundo das regiões européias,
chamadas de “principados” e “estados”,
que
viriam a ser a Alemanha unificada em 1871. Por aqui era o extremo sul do Brasil, ainda província
de São Pedro, pertencente, legalmente, ao Brasil, mas, de fato, com suas fronteiras ainda
movediças.
Lembremos que as tensões nas fronteiras do Rio Grande do Sul com seus países vizinhos
foram intensas até quase metade do século XIX. Os castelhanos queriam a terra para si, enquanto,
politicamente, depois do Tratado de Madri (1750), era de direito do Brasil. Historicamente, as
terras do atual Rio Grande do Sul aparecem como palco de disputas por mais de trezentos anos:
por um tempo, Espanha, que veio para a América em 1494, e Portugal, que se fez dono do Brasil
a partir de 1500, discutiram e negociaram divisões e posses da parte fronteiriça do que veio a ser
território brasileiro até 1801, quando estava em andamento a Guerra das Laranjas, entre Portugal
e Espanha, finalizada pelo Tratado de Badajoz, o qual fez cumprir o que se delineara no Tratado
de Madrid, ficando, documentalmente, certas as terras de Portugal por aqui.
“Certas” em parte, no caso a região dos Sete Povos das Missões, pois as fronteiras como
hoje as temos seriam definidas somente mais tarde, em 1828, no final da Guerra Cisplatina
(1825-1828), quando foi assinado o
Tratado do Rio de Janeiro, que criou a República Oriental do
Uruguai, espaço que estava sob o domínio do Brasil. Nesse contexto de disputas, castelhanos
214
moradores da bacia do Prata insistiam na tomada das terras, contra o que lutavam os brasileiros
da região, ancorados, quando se davam grandes conflitos, pelo governo central.
Para o mundo que passa a ser construído por alemães nessa região do Brasil ainda em
conflito por causa das fronteiras e com vasta terra desocupada, em virtude da falta de
colonização, é que o escritor Josué Guimarães se volta, construindo no universo textual uma
história de coragem, de luta sem trégua, de dor, sofrimento, progresso, guerras, em meio a
estranhos lugares e gentes. Dali surge uma longa história sobre a formação do Rio Grande do Sul
com a participação do imigrante alemão, o qual empreendeu uma luta a ferro e fogo, vivendo em
tempos de solidão e de guerra.
O romance, para retratar tudo isso, singulariza o imigrante pela etnia a que pertence,
construindo-o como sujeito que partiu de uma terra com problemas de exclusão, por causa das
poucas condições de sobrevivência da população, com o sonho de fazer outra vida num mundo
novo, trazendo os seus maiores bens por companhia: identidade étnico-social, a família, o
conceito de trabalho, a religião e a língua.
Pelo romance, o estado do Rio Grande do Sul forma-se a partir das diferenças e do embate
das diferenças. E as diferenças consideradas no enredo são as que se formaram no contato entre
os alemães e as populações nativas. Josué não julga a preservação da língua, da idiossincrasia e
das manifestações culturais identitárias das colônias alemãs. Ele se propõe construir um olhar,
narrar e descrever, num misto de ficção e história, recriando o passado de um ponto de vista
próprio.
Como afirma Otávio Paz (1976, p. 69),
o romancista nem demonstra nem conta: recria um mundo. Embora o seu ofício seja o de
relatar um acontecimento – e neste sentido parece-se com o historiador – não lhe
interessa contar o que se passou, mas reviver um instante ou uma série de instantes,
recriar um mundo. Por isso recorre aos poderes rítmicos da linguagem e às virtudes
transmutadoras da imagem.
Encontramos, assim, na construção literária de Josué Guimarães uma atribuição de
sentido ao período da colonização alemã no Rio Grande do Sul que nos vem em forma de
epopéia, abrangendo um tempo que vai do início do processo, 1824, até 1870 - o primeiro volume
narra o acontecido entre 1824 e 1835 e o segundo, entre 1835 e 1870.
215
Lucia Helena, ao analisar o narrado nos dois volumes de A ferro e fogo, afirma que o
romance reúne o épico ao dramático na constituição de seu discurso: o épico é “o caráter
guerreiro da formação a ferro e fogo na exigência de um heroísmo quase estóico na construção
das personagens centrais” e o dramático é “um certo tônus de vida, paixão e morte dos sonhos de
Daniel Abrahão e de Frau Catarina, além de um embate constante entre o éthos e o daimon no
percurso dessas personagens cheias de hybris(1997, p. 45). Dessa união vem a força do sentido
que emerge do romance e se imprime na visão histórica dos acontecimentos.
O primeiro volume vem a ser o primeiro romance escrito por Josué Guimarães, que era
conhecido de muitos leitores por seus trabalhos jornalísticos e por seus contos. Atento, ele buscou
na história do Rio Grande do Sul o tema para iniciar-se como romancista, dada a riqueza que
percebia no passado de formação do estado, como ele mesmo disse em depoimento registrado no
livro Josué Guimarães: escrever é um ato de amor (2006, p. 16-17):
Se examinarmos a história do Rio Grande, vamos notar que é uma história de riqueza
excepcional para qualquer criação literária. É uma história que atrai qualquer romancista.
História de grandes amores, de grandes lutas, de grandes violências. Historia de uma
gente que teve por missão marcar fronteiras. Isto é muito importante para a criação de
um espírito nacional, brasileiro, de uma interpretação histórica, sociológica. Vivemos
anos aqui, lutando para saber onde era a fronteira do Brasil em Santa Catarina, depois
o Rio da Prata. Com a Cisplatina começamos a definir essas fronteiras. E tudo isso com
grandes histórias. Se bem que a “história”, ela é, no fundo, bastante artificial. Por trás da
história, nas entrelinhas da história, podemos encontrar outras coisas muito mais
interessantes, muito mais vivas, em que os combates não foram tão “combates”.
muitos “heroísmos” por aí, motivados por interesses pessoais de riqueza, de domínio.
Nesse espírito, posicionando-se criticamente em relação à história, no caso a dos colonos
alemães no Rio Grande do Sul, publicou A ferro e fogo: Tempo de solidão em 197; em 1975,
surgiu o segundo volume, A ferro e fogo: Tempo de Guerra. Esses são a concretização de parte
do projeto que o escritor tinha em mente para abordar o tema, que se constituía na criação de uma
trilogia. O terceiro volume, que completaria o projeto, não chegou a ser escrito, apenas esboçado,
pois Josué morreu no dia 23 de março de 1986, vítima de um câncer, sem concluir o texto.
Segundo informações buscadas junto à sua esposa, Nydia Guimarães, o volume chamar-se-ia A
ferro e fogo – tempo de ódio-angústia e versaria sobre o acontecimento histórico dos Mucker.
A empreitada interrompida de Josué Guimarães Luiz Antonio de Assis Brasil seria
retomada mais tarde em Videiras de cristal (1990), seu romance sobre os Mucker, resultado de
muita pesquisa histórica, o que confere à narrativa uma clara característica de romance
216
documental. Apesar de ser outro autor, a representação da imigração alemã pensada para os três
volumes de A ferro e fogo assim se completa. Como afirma Antônio Marcos V. Sanseverino
(1994, p. 129), o romance pretende “mostrar o episódio dos muckers, a sua gênese, o seu
desenvolvimento e o seu pretenso extermínio, quando foi morta Jacobina Maurer”. A julgar pelo
enredo dos dois volumes de Josué, é bem possível que o seu terceiro também apresentasse uma
história totalizante do movimento dos Mucker, uma saga dos Mucker.
Mesmo assim, isto é, mesmo sem o terceiro volume de Josué, temos ficcionalizada a saga
da imigração alemã segundo um olhar atravessado por informações históricas acumuladas ao
longo do tempo. Partindo da oficialidade do passado que se efetivou pelos sinais (documentos)
que o acontecimento deixou, do que resultou uma narrativa avalizada, que retém o que aconteceu,
Josué Guimarães, pelo ato da narração, fez com que o episódio histórico da colonização alemã
fosse submetido a um sistema de experiência que o desprendeu da realidade.
A história contada, pelos recursos utilizados busca de fontes históricas, inclusão de
figuras históricas com seus nomes e ocupações reais, citação e descrição de espaços existentes,
narração das guerras verdadeiras das quais os imigrantes participaram, tudo incluso na livre
imaginação do escritor, sempre autorizado pela arte literária a inventar conforme a sua visão dos
fatos fornece-nos uma dimensão da verdade, porque transporta interpretações da história e do
real. E por essa dimensão nos vem uma visão ampla, abrangente, telúrica da realidade do Rio
Grande do Sul num determinado período do século XIX, aquela realidade na qual os alemães
foram inseridos e por eles foi marcada.
Nesse sentido, além do que é próprio do processo de colonização, desde a fixação na
colônia, a distribuição das terras e a formação das picadas, a demora do governo imperial para
cumprir com as promessas feitas aos imigrantes, como também o não-cumprimento de muitas
dessas promessas feitas quando ofertada nova terra na América, há a representação da
participação dos germânicos nos eventos históricos brasileiros acontecidos no período que a
narrativa abrange: a Guerra Cisplatina, a Revolução Farroupilha e a Guerra do Paraguai.
Não as guerras são mencionadas, mas também fatos brasileiros importantes que se
tornaram assunto na comunidade germânica, preocupando os estrangeiros que recém haviam se
fixado no país, ou, simplesmente, causando-lhes curiosidade e apreensão sobre as conseqüências
que poderiam atingi-los. São exemplos disso a morte da imperatriz dona Leopoldina, a abdicação
de dom Pedro I, a formação da regência provisória que governou o país logo depois da abdicação,
217
a proclamação da maioridade de dom Pedro II. Acima de tudo, entretanto, A ferro é fogo é uma
obra estética, quer dizer, não historiográfica e das referenciais na história do romance sul-rio-
grandense, que apresenta marcantes e bem construídas personagens, das que são expressão maior
Catarina, Daniel Abrahão e Gründling; desenha um espaço que interage com essas em sua
amplitude, isolamento e escassez de recursos materiais; um tempo passado, distanciado do agora
do escritor, numa evolução cronológica que se datou pela inserção das personagens em
importantes imagens da história do Brasil que envolveram o estado, como a Revolução
Farroupilha, a Guerra Cisplatina e a Guerra do Paraguai; um narrador que se dispõe a
universalizar o olhar e os sentimentos dos estranhos na terra, os imigrantes. Tudo isso se encontra
num enredo bem tecido, sempre protegendo, envolvendo e elevando a ação realista das
personagens imigrantes alemãs.
E nessa estrutura, quantas cenas deixam em nudez total a própria condição humana,
atraindo-nos com força máxima para o íntimo das personagens, sendo esta, ao nosso ver, uma das
riquezas maiores da obra. Como não sentir com Catarina e com Gründling o que sentiram, cada
um sem saber as reais razões do outro de estarem frente a frente, quando ela, resoluta em seu
propósito de vingança, vai à casa dele e encontra-o saindo com sua amada Sofia no caixão? É um
momento de intensa emoção, em que uma personagem se modifica no olhar da outra: Catarina
não é mais vista por Gründling como objeto capaz de arrecadar renda fácil para ele e, sim, como
uma solidária da mesma etnia que teria vindo para consternar-se pelo ocorrido; ela, por sua vez,
recua em seu plano de matá-lo, sabedora de que a vida tinha feito justiça em seu lugar. A
perplexidade da cena é a perplexidade deles e a nossa também, provocada pela leitura. E mais, a
comoção e a angústia deles também são as que em nós podem aflorar ao lermos na cena:
– Não esperava que a senhora viesse, não sei como agradecer.
Estava magro, olhos vermelhos e inchados, encurvado. Catarina desceu, empurrou para
debaixo da almofada do assento o pedaço de cano da espingarda que se deixava entrever.
Caminhou até Gründling; ele sem Sofia, ela sem o seu velho ódio. Os dois em solidão.
Catarina seguiu ao lado dele, sem uma palavra, olhando duro para a frente, com medo de
chorar (GUIMARÃES, 1972, p. 237)
95
.
95
As próximas citações do romance A ferro e fogo serão identificadas com a referência TS, quando forem do volume
Tempo de solidão, e TG, quando forem do volume Tempo de guerra, seguida da página correspondente. As edições
dos volumes são as primeiras, ou seja, Tempo de solidão é de 1972 e Tempo de guerra, de 1975. Os dados completos
encontram-se nas referências.
218
Assim, mais do que dialogar com a história, contribuir na sua função de narrar fatos e
questioná-la em suas versões, A ferro e fogo se faz uma história de vidas, não de vidas passivas
diante dos propósitos do mundo e dos outros, mas de vidas bem conduzidas por seus donos, vidas
determinadas pela resistência e coragem, pelo espírito que não se dobra, pelo esforço contínuo e
bem cobradas por tudo isso, cobranças medidas pelo sofrimento que advém das circunstâncias
produzidas numa nova terra onde devem se fixar.
São vidas que o romance reconhece como doadas para a formação do Rio Grande do Sul.
O autor mesmo explica em entrevista ao jornal O Globo, em 8 de fevereiro de 1973, ao se referir
ao primeiro volume: “Para contar qual foi a participação dos alemães na formação do Rio Grande
do Sul, narrei suas tragédias e desgraças, seus momentos de festa e suas glórias, enfim, a própria
vida desses colonos numa terra que foi por eles conquistada e que os conquistou definitivamente”
(apud INSTITUTO ESTADUAL DO LIVRO, 2006, p. 27).
Vemos que Josué, além de “representar” por palavras uma etnia que faz papel de sujeito
na história sul-rio-grandense, passa a “apresentar” uma vida possível experienciada nesse
processo formativo, tanto no espaço quanto na sociedade na qual se inclui e na cultura de origem
colocada em relação com a daqui. Nesse sentido, ele usa a palavra no mundo ficcional para
reviver imagens do mundo histórico por meio da força da linguagem. Dessa relação surge um
discurso motivado, capaz de presentificar o passado.
Nesse sentido, A ferro e fogo é o único romance da história da literatura sul-rio-grandense
que se volta para o tema da imigração alemã de forma a representar o maior número de aspectos
que envolveram, segundo diferentes perspectivas - social, política, econômica –, os colonos nas
primeiras décadas do processo imigratório. Assim, ele fixa a saga dos alemães no sul do
Brasil, história que se demorou a realizar: somente quando se comemorava o sesquicentenário da
imigração alemã é que ela apareceu na literatura. Jean Roche, em 1969, no livro A colonização
alemã e o Rio Grande do Sul, reclamava a inexistência de uma história dessa amplitude em
romance. Josué, então, vem a preencher uma lacuna na grande narrativa ficcional que vinha se
tecendo sobre os alemães no estado.
Também, depois de Josué, nenhum outro escritor se dedicou ao mesmo tema criando uma
narrativa ficcional totalizante como encontramos em A ferro e fogo. Os olhares das narrativas
focalizam episódios determinados, como os Mucker; aspectos específicos, como o modo de viver
baseado nos costumes germânicos, conflitos interiores, o fracasso na colônia, todas
219
representações também importantes, que cumprem outros papéis no imaginário do leitor,
diferentes do que cumpre uma história sobre o início da colonização. Portanto, não temos outra
epopéia dos primeiros protagonistas do processo imigratório idealizado pelo governo imperial
brasileiro para colonizar de uma vez por todas o Rio Grande do Sul. Dito de outro modo, não
temos outra narração brida literatura e história da participação da etnia alemã na formação
do Rio Grande do Sul.
A ferro e fogo, então, não tem, ainda, outra narração a lhe fazer paralelo, que lide com a
história desse modo totalizante e tenha alcançado a excelência narrativa.
A seguir, apresento a análise do romance A ferro e fogo reunindo as informações dos dois
volumes correspondentes às categorias que orientam todas as demais análises feitas
anteriormente, quais sejam, Família, Trabalho, Religião, Espaço e deslocamento e Contatos.
3.5.1 - Família
A família Schneider, formada por Daniel Abrahão Lauer Schneider, sua esposa Catarina e
seus filhos Philipp, nascido ainda na Alemanha, e Carlota, Mateus, João Jorge e Jacob, nascidos
na província do Rio Grande, Brasil, protagoniza a história representativa do processo de
colonização do Rio Grande do Sul erguido pelos imigrantes alemães, a história de A ferro e fogo.
Sua trajetória imita o drama da luta pela defesa da vida, pela fixação no espaço e pelo progresso
econômico na nova terra. Assim, toma forma um doloroso espetáculo, que lemos como
espectadores arrebatados pela força de um discurso capaz de diluir as fronteiras entre o real e o
ficcional: o que nos chega é o “possível”.
Essa família também espelha o tipo de família com que a sociedade da província passaria
a conviver a partir da imigração alemã. Ela se apresenta unida no trabalho, na religião e na
educação escolar. Os filhos realizam casamentos étnicos, mas continuam ligados às atividades
econômicas da família, formando um grupo com um forte apego entre os seus membros. Esse
apego tem motivos sentimentais e também de sobrevivência e progresso financeiro, que acaba,
por vezes, agregando várias gerações da família.
220
Daniel Abrahão era seleiro em Hamburgo, mas as necessidades impostas aos primeiros
que chegaram à antiga Feitoria do Linho Cânhamo, passada à colônia alemã de São Leopoldo,
trazidos pelo bergantim “Protetor”, em julho de 1824, exigem-lhe de imediato que se faça um
persistente lenhador a abrir caminho entre as árvores, um carpinteiro a erguer sua primeira casa e
uma resignada toupeira (TS, p. 8) a cavar a terra. É dos poucos do grupo de imigrantes que sabem
ler.
Catarina é a filha mais velha de Cristiano e de Maria Isabel Klumpp, de Lüdesse-Hanover.
Uma mulher de força na personalidade e no enfretamento do cotidiano e de visão mirada na
construção do futuro da família e, por conseguinte, da comunidade germânica de que faz parte; é
dela que emergem os maiores sentidos da narrativa, que se faz de dor, de luta, de perseverança,
de trabalho.
Ao espírito do marido um tanto alheio à realidade que os cerca, levando-o a sonhar com a
multiplicação dos pães pelas mãos de Jesus, que depois seriam as do imperador, pão igual ao da
Europa, de que ele tanto sente a falta, Catarina reage como alguém que encaminha a vida prática
com os pés bem colados ao chão: “Daniel Abrahão, isso não é de gente de miolo bom; melhor
será baixar a cabeça, esforçar-se com os braços, pois é disso que se tira o pão e não com sonhos”
(TS, p. 11).
O marido reconhece quem é sua esposa e até pensa que seria o caso de uma neta receber o
seu nome, Catarina, pois que é uma mulher “que tinha tido o seu valor, nunca temera os bugres e
nem as feras, atravessara o oceano sem uma queixa, soubera decidir as coisas na hora” (TS, p.
26). Daniel Abrahão pensa isso quando já estão instalados na Estância Jerebatuba, no Chuí - para
onde se mudaram, deixando São Leopoldo para trás, mas ainda ignoram as razões verdadeiras de
estarem na Banda Oriental, estas definidas pelo compatriota Gründling, um alemão comerciante
que mora em Porto Alegre e precisa de uma família para fazer o papel de depositária das armas
que ele contrabandeia.
Pelo espírito destemido da mulher, que se decidira pelo sim diante da proposta do patrício
Gründling e se lançara rumo ao desconhecido para, com a força do trabalho, construir o sustento
na nova terra e progredir, sua família está numa estância, “terra a perder de vista, gado que
começava a ser arrebanhado, teto seguro a ser melhorado, charque para todos os dias” (TS, p. 26).
E isso é o resultado da atitude positiva de Catarina.
221
À terra trabalhada e às construções feitas, Catarina toma amor e, diante de todas as
ameaças, que se iniciam com a passagem de tropas dos exércitos castelhano e brasileiro, ela não
pensa em deixar o que é de sua família. Na primeira incursão de inimigos, a providência de
defesa de todos depende dela: “Empurrou o marido atônito para os lados do poço, ordenou ao
índio que fosse deitar-se debaixo da carroça, escorraçou com gestos os escravos que começavam
a aparecer, cada um que entrasse e fosse deitar novamente, apertava os lábios com o polegar e o
indicador, dando a entender que ninguém falasse nada” (TS, p. 35). E luta como uma fera quando
é arrancada pelos soldados da porta de entrada de sua casa, tentando proteger os filhos Philipp e
Carlota da ira deles.
Sempre é ela quem pensa no que fazer diante de qualquer situação. Quando, por exemplo,
as tropas militares estão nas cercanias da estância por ocasião do ataque de Lavalleja Guerra
Cisplatina -, o marido, tempos morando no poço, local determinado por ela para ele se
esconder dos soldados que continuamente atacam o local, tanto castelhanos como brasileiros, não
a ajuda a planejar uma forma de todos se defenderem. “Só ela a pensar, Catarina, que o marido
desaparecera poço abaixo e de gritava histérico para a mulher, a tampa, a tampa na boca do
poço, que sobre a tampa botassem lenha, toda a lenha que existisse por ali. Naquele momento
Catarina pediu a Deus que não permitisse que Philipp saísse ao pai, nem Mateus.” (TS, p. 85).
Vivem um desordenamento na família, criado pela ameaça constante de sofrimento e morte, o
que está provocando o fracasso do indivíduo Daniel Abrahão, tanto no meio familiar quanto na
sociedade. Diante desse fracasso, fortalece-se a mulher.
Por essa passagem podemos observar a sugestão de que Catarina é não uma mulher que
despreza a ajuda do marido, mas, sim, uma mulher cheia de determinação, que se sente livre e
capaz para agir e que, levada pelas circunstâncias, torna-se astuta, corajosa e perseguidora de um
ideal, enfrentando, para isso, tudo o que a vida lhe apresenta de mal. Além disso, o que ela
também faz é prender “com unhas e dentes a sua inteira solidão” (TS, p. 86).
Daniel Abrahão tende para o lado menos prático do enfrentamento do cotidiano. Além
de refugiar-se nos sonhos, logo que chega à nova terra chora com freqüência pela saudade que as
coisas da Alemanha lhe causam: “Quando cantavam as velhas e marciais canções das Alemanha,
chupando das canecas o resto da cerveja, Schneider sentia na boca o gosto ardido das lágrimas”
(TS, p. 12). Assim, fechado em seu mundo, Daniel Abrahão é uma representação de uma
tendência masculina entre os alemães: o modo de ser depressivo, cabisbaixo, fechado em si
222
mesmo. Essa imagem, que é realista e adquire ares de alegoria no romance, é potencializada e
magnificada pela permanência da personagem no poço, que vira caverna, morada subterrânea.
Estando lá, fica inoperante no mundo externo. E a solidão, antes de ser um incômodo, é uma
condição apreciada.
Ao poço fora empurrado pela esposa para ser protegido das tropas militares que fazem da
estância um posto de passagem, tanto quando entendem a família alemã como inimiga, por causa
das armas de Gründling, como quando, em guerra, disputam as terras da região fronteiriça do Rio
Grande do Sul.
Num intervalo dos movimentos das tropas, passados vários meses desde que Daniel
Abrahão está “enterrado” no poço, Catarina ordena que ele suba. Sua aparência é a de um bicho:
unhas compridas, uma enorme cabeleira e barba chegando ao peito. Exercita o caminhar, janta
com a família, vê os dois filhos, o que lhe causa grande emoção, chegando a chorar, mas volta
para a sua toca. Desde então, sai apenas por alguns momentos, preferindo fazer isso durante o
dia, assegurado pela atenção do filho Philipp no alto da figueira, pronto a avisar se alguém se
aproxima. Dorme sempre no buraco. Com o tempo de permanência debaixo da terra, a vida fora
dali deixa de ser interessante. Ajudar Catarina no trabalho, no enfrentamento dos ataques de
soldados, na criação dos filhos, nada disso é para ele preocupação. Chega até um tempo em que
Daniel Abrahão aperfeiçoou a toca de maneira a passar nela o resto da vida. Gostava da
sua solidão, muito mais do que das vezes em que era chamado a sair do poço, nas breves
e inesperadas ausências de soldados. (...). Acostumara-se à escuridão. Ela era a mãe dos
seus devaneios. A luz do dia feria os seus olhos congestionados e sensíveis, mesmo ao
cair da tarde, quando não havia mais sol no céu. Numa furna onda quase não conseguia
sentar-se, ganhava uma sensação de segurança que lhe escapava quando sobre a terra. O
horizonte livre e infinito representava para ele um constante perigo. O céu aberto, as
nuvens e o próprio vento, podia ser uma leve brisa, passaram a ser uma permanente
ameaça. A amplidão era a sua cadeia. Liberdade para Schneider, deveria ter, para ser
completa, uma tampa rústica de tábuas; sobre ela, ainda, pedras e lenha (TS, p. 96).
A esposa a insistir que saia, quando não há soldados por perto, senão ficará aleijado; ele
223
Esse processo tem continuidade em São Leopoldo, onde, de volta do Chuí, a família se
fixa e torna-se comerciante, e ele passa a exercer sua profissão de seleiro, como fazia na
Alemanha. Apesar do envolvimento com o trabalho, não consegue mais morar fora de uma toca.
Assim que se instalam na casa recebida, ele trata logo de cavar um poço e nele se instalar.
Permanecendo quase completamente isolado da sociedade, toma a Bíblia como a única orientação
para a sua vida; o restante que o cerca não lhe causa impressão. Na oficina, por exemplo, repete
os gestos na fabricação dos produtos e faz o esforço exigido, mas é o cumprimento de tarefas.
Absorto, fica indiferente ao que lhe vai em redor. Dali não vem realização alguma para a sua
vida. Só se sente operante e atribui sentido ao que se refere à Bíblia. Diz: “- Tudo o que acontece
sobre a face da terra, debaixo dela ou nos céus, tudo está aqui neste livro” (TS, p. 133).
Nesse envolvimento espiritual com um mundo distanciado do concreto, vai ficando cada
vez mais soturno. Até conversar com gente morta, à noite, na sua caverna, conta a Catarina que
faz. Com esse comportamento, em nada ajuda a esposa a tomar conta dos negócios, apenas
fabrica seus serigotes, suas carroças. Quando ela se ausenta do empório em São Leopoldo para
buscar produtos entre os colonos ou mercadorias manufaturadas em Porto Alegre, quem toma
conta de tudo é o sócio da oficina, Jacobus, que, pela sua dedicação e experiência no comércio,
Catarina fez seu gerente e cio no empório que abre no Portão. Concentrada no trabalho e nos
filhos, ela conclui, a certa altura, que o marido “nunca mais ficaria bom, era a cruz que deveria
carregar” (TS, p. 160).
Os filhos bem cedo fazem tarefas necessárias à família. Philipp, por exemplo, na estância,
ainda menino pequeno, subia nos galhos da figueira que ficava perto da casa e cuidava a
aproximação de estranhos. Assim, do alto de sua vea, via os homens que chegavam com os
carregamentos de Gründling; depois, os soldados castelhanos, os soldados brasileiros, sempre
avisando prontamente os que ficavam embaixo, que logo iniciavam uma correria para se
protegerem de perigos que pudessem correr. Em São Leopoldo, ainda criança, sobe numa
banqueta atrás do balcão do empório para ajudar os caixeiros.
Os historiadores registram que a educação era prioridade dentro das famílias imigrantes,
nas quais os pais procuravam sempre um meio de fazer com que os filhos aprendessem a ler e a
escrever; se não havia escola formal, dava-se um jeito para alfabetizar, para ler a Bíblia. Em A
ferro e fogo essa evidência é representada por meio da personagem Philipp ainda menino. Na
colônia há o professor João Tiefenbach, mestre-escola que viera de Sockenfeld-Holstein. Philipp
224
está com dez anos e ainda não havia sido alfabetizado. Então, sua mãe o inclui nas aulas do
professor, onde ele passa pelo letramento. O menino precisa aprender a calcular e uma boa
caligrafia para fazer os registros nos cadernos de escrituração mercantil. Há, portanto, objetivos
bem práticos e imediatos a orientar a educação de Philipp. .
Carlos Frederico Jacob Nicolau Cronhardt Gründling, ou simplesmente Gründling, como
o autor o torna conhecido na história, é, até boa parte da narração, um homem sem família
constituída. Agente secreto da imperatriz, sua principal preocupação é ganhar mais dinheiro e
divertir-se, a ponto de o lucro, o acúmulo de riquezas, a satisfação plena de seus desejos materiais
e corporais serem os elementos prioritários a darem sentido à sua existência. Na sua ótica, o
mundo existiria e se organizaria em função do dinheiro.
Nascido em Ohlweiller-Simmern, viria a ser um rico negociante alemão fixado em Porto
Alegre. Seu progresso econômico liga-se, em grande parte, ao trabalho de muitos dos seus
compatriotas recém-chegados da Alemanha, os primeiros grupos de imigrantes formados pelo
major Jorge Antônio Schaeffer, com o qual mantém uma lida amizade e faz sociedade nos
negócios de contrabando da Alemanha para cá. Gründling os envolve nos contrabando, como faz
com a família Schneider, com Mayer e outros homens que ajudam no transporte das armas, como
também contrata outros para atuar nos empórios.
O papel de Gründling é representativo do que a história registrou sobre a exploração que
os colonos sofriam dos próprios compatriotas instalados na província. O romance sugere que,
na terra estranha, ainda sem recursos adequados para instalação e sobrevivência, à espera do
recebimento dos produtos e do pagamento que o governo prometera a cada imigrante no contrato
de imigração, morando em habitações precárias, ficava fácil àqueles que se encontravam nessa
situação acreditar em propostas dos da mesma etnia, com as intenções que a ficção aponta por
meio da persoangem Gründling, pois que a passagem dos dias trazia-lhes mais dificuldades e
mostrava que estavam relegados ao abandono e à violência.
Gründling fixa-se em Porto Alegre. Sendo um alemão rico, compra uma grande casa, a
chamada “casa cor-de-rosa”, na rua da Igreja. Esta rua é de existência real e, na época em que
acontece a história, como se mantém ainda hoje, era uma das principais ruas centrais da cidade. O
alemão ajeita a residência com belos móveis e muitos objetos de decoração, quase tudo vindo do
estrangeiro, trazidos por outro alemão, o major Schaeffer. Ali recebe amigos importantes, como o
próprio major e autoridades da província. Serve-lhes bebidas importadas, magníficos banquetes e
225
contrata mulheres para diversão. Com isso, mantém as amizades necessárias aos seus negócios e
ao seu exercício do poder.
De uma vida de muito dinheiro e ostentação, exploração de gente de sua etnia, bebedeiras,
mulheres, Gründling passa a uma vida mais regrada, com interesse centrado apenas numa mulher
e com responsabilidades de pai. Isso depois que conhece Sofia, uma menina ainda, germânica,
que estava frágil e abandonada em conseqüência de haver sido explorada por homens estranhos,
depois que sua família fora destruída violentamente.
Sofia fora largada na rua do Passo, no centro de São Leopoldo, por um homem índio ou
castelhano, com a aparência daqueles caudilhos errantes que se envolvem em guerrilha de
fazendeiro ou de posseiro, explica João Dieffenbach, que vira a menina sendo deixada no
povoado. “Devia ter, no máximo, dezesseis anos. O cabelo de um amarelo leitoso, terminando em
duas tranças esfiapadas, pele desmaiada, dois grandes olhos azuis espantados, seios miúdos que
desapareciam sob o vestido de lã que mais parecia um trapo, um balandrau sem cor e sem tempo”
(TS, p. 71). Tinha vindo de São Borja, local para onde sua família fora levada dos Sete Povos das
Missões. Aqui está a representação do grupo de colonos germânicos enviado à região das
Missões, numa tentativa do governo de também fazer a ocupação e a colonização daquele espaço
da província. Isso ocorreu na mesma época do início da imigração para São Leopoldo, quando 67
pessoas germânicas foram encaminhadas para São João das Missões. Contudo, viveram o
abandono por parte das autoridades governamentais e fizeram uma rebelião, com o que o grupo
se dispersou. Foi uma experiência de colonização de um espaço que não deu certo.
Da família Spannenberger, Julius e Cristina eram os pais de Sofia, vindos do Grão-
Ducado de Hesse. O pai fora degolado por gente de guerra e a mãe desaparecera. Ela havia
ficado, desde então, entregue às mãos de homens diferentes, todos selvagens, que a exploraram
desde bem menina e até entre os índios vivera. Já em São Leopoldo, é ouvida e cuidada pelo
doutor Hillebrand, que conta a história a Gründling, o qual a leva para morar com ele na casa cor-
de-rosa da rua da Igreja.
O solteirão encontra, então, em Sofia o amor; casa-se com ela e tem filhos. Apesar da
pouca idade e da história de vida marcada por perdas e sofrimentos, ela se impõe no
relacionamento com Gründling, não ficando em momento algum submetida à forma de pensar
dele. várias passagens da narrativa que sugerem isso: mesmo ele não aprovando, sai às ruas
para passear, na companhia da escrava Mariana; decide iniciar o relacionamento homem-mulher
226
depois de estar morando na casa algum tempo; quando o padre está tomando os dados dela
para realizar o casamento e Gründling tenta apagar a origem dela, dizendo ao padre que o
importava o sobrenome de solteira e que registrasse que os pais eram desconhecidos, ela
interrompe a conversa e dita todas as informações ao sacerdote; estando grávida de cinco ou seis
meses, não se intimida com os dogmas da Igreja pela qual vai se casar, a católica, e conta ao
padre o fato, perguntando-lhe se há algum problema quanto a isso.
Elevando essa independência moral, Sofia ainda recebe aulas de alfabetização de Felipina
Grub. “Uma moça deve saber ler” (TS, p. 93), diz Gründling, que havia providenciado as aulas.
Todo o ensinamento é em alemão, como se fez entre os colonos imigrantes por longo tempo.
Então, a casa cor-de-rosa, antes de um solteirão que recebia, noite após noite, mulheres-
damas vindas das casinholas da ladeira de São Jorge, modifica-se com a presença ao mesmo
tempo suave e forte de Sofia. Ali se constitui mais uma família germânica, de ricos, com marido,
mulher e serviçais escravos. O primeiro filho de Gründling e Sofia chama-se Jorge Antônio, em
homenagem ao amigo dele Schaeffer, agente de imigração e com quem tem sociedade no
trabalho de comerciante. O segundo recebe o nome de Albino, nome do pai de Gründling.
_ “Sinto-me tão branca, tão sem cor.” (TS, p. 193), diz Sofia ao marido. Eram sintomas de
uma doença que não foi possível ao médico Hillebrand curar. Palidez, fraqueza, cansaço, sangue
fraco, hemorragias. Até que um dia o doutor diz: “- Herr Gründling, lamento muito, sua esposa
morreu há quase meia hora” (TS, p. 233). É com as marcas dessa perda que Gründling vai chegar
à velhice, vivendo sem mais achar graça nas mulheres que antes de Sofia o divertiam e incluindo-
se na Guerra do Paraguai, de onde retornaria e o quereria mais cuidar de negócios, indo morar
em São Leopoldo, deixando Porto Alegre.
Jorge Antônio Schaeffer, um major, fora quem conseguira recrutar os colonos que
fundaram São Leopoldo. Não há referência à sua família, embora a historiografia registre que ele
tinha uma. Segundo o romance, no Brasil andaria sozinho. Gründling apresenta-o como sendo o
braço direito do governo brasileiro na realização do projeto de ocupar e colonizar as terras do sul
do país. Sua relação com a imperatriz era de tempos, destaca o romance: “A mando da imperatriz
fundou a colônia de Frankenthal, na Bahia, e uma outra, mesmo, em que homenageou a
senhora da casa dos Habsburgo” (TS, p. 13). Fora importante, também, em outras partes do
mundo, como nas ilhas do Havaí, onde comandara soldados e rebeldes, e, depois, em Sitcha, nas
ilhas Sandwich. Ainda, fora tenente de ordens do rei Kameaméa, cuidara de um negócio de
227
russos e americanos. Passou a ser pago pela Coroa brasileira como agente secreto da imperatriz
para trazer dos Estados germânicos colonos e soldados para servirem ao Brasil.
Na história de Josué, muitas outras famílias germânicas aqui se formaram com os filhos
dos pais que emigraram. Todos os casamentos se realizaram com jovens da mesma etnia, não
acontecendo casamentos mistos. Na constituição dessas famílias formadas em território brasileiro
também perpassa uma história de privações e sofrimentos, em razão, principalmente, da saída dos
jovens maridos para as guerras. Emanuel, por exemplo, funcionário dos Schneider, deixa a esposa
Juliana nos dias de nascer a filha Maria Luísa e vai para a Revolução Farroupilha na tropa de von
Salisch, do lado dos rebeldes. Quando retorna, recebe a notícia de que a filha havia nascido
morta. Da mesma forma, Philipp Schneider vai à Revolução Farroupilha ainda menino, com
dezesseis anos; quando volta, já é homem de barba. No intervalo entre essa guerra e a do
Paraguai, para a qual também foi, forma a sua família com Augusta Krumbeek, com quem tem
cinco filhos.
Carlota Schneider casa-se com um rapaz da mesma etnia, Joaquim Kurtz; Jacob casa-se
com Sofia Maria, filha de Pedro Martens.
Outra característica das famílias de etnia ale representadas na narrativa que se
formaram aqui no Rio Grande do Sul era o casamento com alguém que realizava o mesmo tipo de
trabalho. No caso das personagens em destaque, o trabalho no comércio. Augusta Krumbeek é
filha de comerciante e Philipp, filho da família referencial no comércio criado pelos alemães de
São Leopoldo, os Schneider. O pai da esposa de Jacob comercializa peles selvagens. Também
Jorge Antônio, filho do outro grande comerciante da narrativa, Gründling, casa-se com uma moça
alemã, Clara Hausmann, filha de Pedro Hausmann, dono de uma farmácia em Porto Alegre.
Gründling, que durante a Revolução Farroupilha opera no sentido de se acertar com os do
governo e manter seu negócio comercial, na Guerra do Paraguai é um combatente, o major
Cronhardt Gründling, do Serviço de Intendência, membro dos Voluntários da Pátria. Deixa os
filhos João Jorge e Albino em Porto Alegre. João Jorge tinha mulher e filhos; Albino é
homossexual e acaba morto por Augusto, de quem muito gosta, algo trágico, que se completaria
com o suicídio de Augusto na própria casa de Albino.
Os Voluntários da Pátria, grupo no qual Josué inclui várias de suas personagens
masculinas, dentre as quais está uma das principais, Gründling, foram batalhões criados por
228
decreto do presidente da província, conforme explica Klaus Becker no livro Alemães e
descendentes – do Rio Grande do Sul – na Guerra do Paraguai (p. 44):
Aos 16 de maio de 1865, o Presidente da Província, João Marcelino de Souza Gonzaga,
autorizou a formação de um batalhão de voluntários nos municípios de Porto Alegre e
São Leopoldo, incumbindo o Marechal Luiz Manuel de Lima e Silva de organizá-lo
dentro de três meses. O artigo 3º do respectivo decreto mencionava expressamente que
também os estrangeiros poderiam alistar-se. (...). Para o alistamento de voluntários
alemães, o Marechal designou desde logo o ex-Brummer Carl Ferdinand Schneider e,
pouco depois, também o cidadão Peter Weber, ambos residentes em Porto Alegre.
Aceitavam-se voluntários de 18 até 50 anos de idade, e de qualquer nacionalidade.
Com todos os que se alistaram formou-se, já nos campos de batalha, uma brigada de
infantaria, comandada pelo coronel João Manoel Menna Barreto. Foi o grupo mais importante
formado no estado para defender os interesses do Brasil junto aos aliados Argentina e Uruguai. A
atuação dos Voluntários na Guerra ainda hoje é lembrada no centro de Porto Alegre, no nome de
uma importante rua, a Voluntários da Pátria.
Gründling retorna da Guerrra do Paraguai com setenta anos. Seu filho fica tomando
conta dos negócios em Porto Alegre e ele resolve morar em São Leopoldo, terra que julga ser
dele também.
em A ferro e fogo a trajetória completa das famílias imigrantes, tanto das que
chegaram à província formadas quanto das que aqui se criaram. nascimentos, crescimentos,
envelhecimentos e mortes. a educação formal dos filhos e a sua entrada para o mundo do
trabalho, o mundo construído pelos pais. a preservação da língua alemã e a dificuldade de
aprender a língua portuguesa e de se comunicar com os brasileiros. a vivência das religiões
protestante e católica. Enfim, todo um processo narrado, desde o interior de cada família e
desta com as demais famílias da mesma etnia.
3.5.2 - Trabalho
Catarina logo compreende que a sobrevivência e o progresso na nova terra dependem
somente do trabalho que os imigrantes venham a realizar. Então, ao invés de esperar pelo
cumprimento das promessas do governo imperial, resolve lutar. Assim, os Schneider e os demais
colonos, diante do atraso do governo, especialmente na destinação do terreno a ser propriedade
229
de cada família, iam se esforçando para sobreviver: “Tratavam de tirar da terra provisória algo
que pudesse ser somado ao charque e às aguadas abóboras de Estância Velha, um reduto onde o
gado xucro estava sendo agrupado e as últimas sementes podres viravam adubo” (TS, p. 9).
O papel da família Schneider na ficção de Josué remete-nos aos estudos sobre a imigração
alemã que afirmam ter sido o objetivo da estrutura imigratória, calcada em fins econômicos, de
ocupação e cultivo da terra e de povoamento, trazer famílias, não tanto solteiros, para formar as
colônias no Rio Grande do Sul. Podemos pensar que a esse objetivo estava subjacente a idéia de
que as exigências impostas aos indivíduos pela constituição e manutenção do lar impelem-nos
para a fixação num lugar, a persistência no trabalho, o estabelecimento de comunidades, a
construção do bem-estar.
Nesse sentido, as políticas de imigração traçadas no Brasil tanto no século XIX quanto no
século XX “afirmavam o interesse do País por imigrantes agricultores que fossem assentados em
colônias, tendo como base fundiária e econômica a pequena propriedade e o trabalho familiar”
(SEYFERT, 1991, p. 166).
Lembremos que as atividades desempenhadas pela família imigrante não se restringiam
ao cultivo da terra e à produção de gêneros alimentícios, mas compreendiam também a produção
artesanal de vários produtos, que era a base da outra fundamental atividade econômica do estado
que os alemães desenvolveram, a indústria. Os Schneider também representam essas atividades.
Depois de terem sido colonos, também atuam como artesãos e comerciantes. Portanto, no
230
madeira para telhado, construir choupanas e galpões e muitas outras atividades, na
maioria pesadas e fatigantes.
Nesse discurso percebemos uma ideologização do trabalho e do progresso, marcados “por
duas dinâmicas que estão em correspondência: sacrifício e ordenamento familiar. Depreende-se
daí a esfera do trabalho, da terra, da hierarquia, da casa, do contato e domínio da natureza”,
conforme João Carlos Tedesco (2001, p 38).
As promessas do governo para incluir os primeiros colonos alemães na política de
imigração não são os fatores considerados no romance para as famílias sobreviverem e
progredirem. Afinal, como consta no relatório que o diretor da colônia, Hillebrand, entregou ao
presidente da província em 1854, o governo brasileiro desrespeitara cláusulas centrais do contrato
firmado com os imigrantes antes de saírem de seus locais de origem na Alemanha, mas, mesmo
assim, a colônia progredira. Na análise que Marcos Justos Tramontini faz do relatório, duas
cláusulas não cumpridas são destacadas por Hillebrand: “a de conceder terras de campo e mato
demarcadas, livres e desembargadas, e a de pagar subsídios por dois anos” (TRAMONTINI,
2003, p. 54). O autor ainda explica: “Inobstante a esta promessa, as terras não estavam
demarcadas quando os colonos chegaram e foi longa a espera que tiveram que suportar até os
lotes serem distribuídos, mesmo assim com total imprecisão de divisas e sendo, na sua maior
parte, apenas de mato. o pagamento de subsídios foi suspenso por lei em 1830, tendo efeito
retroativo” (p. 54).
A idéia que perpassa o romance é a de que os colonos não ficaram à espera; antes,
superaram a idéia de cobrança e foram à luta. Catarina é a grande referência disso: enfrenta todas
as dificuldades que aparecem e toma a sua vida e a de seus familiares nas mãos, fazendo sua
própria história.
Levados ao Chuí pela proposta de serem sócios no negócio do Gründling e do major
Schaeffer, os Schneider recebem uma vasta extensão de terra cultivável numa área do governo, as
ditas “terras devolutas”, e lá, com sementes enviadas junto com as cargas de contrabando e outras
que haviam carregado da feitoria quando de lá saíram, fazem grande produção agrícola. Além
disso, constroem benfeitorias e melhoram o aspecto do lugar, tudo em pouco tempo. Assim, na
Estância Jerebatuba,
o verão trouxera consigo as primeiras espigas douradas de milho, o gado crescera pelos
arredores, a casa ganhara mais uma peça e tinham agora a luz de dois candeeiros
231
chegados entre os apetrechos enviados pelo sócio e amigo Gründling havia hortaliças
apontando na terra e uma das escravas ficara prenhe. Schneider fazia incursões mais
distantes em busca de perdizes e de marrecões: sabia como apanhar capivara num
banhadão a cerca de léguas; aprendera a evaporar água do mar, trazida em pipas, para
com o sal preparar o charque. colhia mandioca, batata e cebola, que a terra solta era
especial para isso; a mesa começara a ficar mais farta e variada (TS, p. 32).
Catarina pega amor àquela terra, que é dela, chegando a dizer que força nenhuma a tiraria
dali. Contudo, se progresso e apego pelo trabalho no Chuí, também a dor do engano e da
violação física e moral a marcar a família Schneider: Gründling os retirara de São Leopoldo sem
revelar que o trabalho a ser feito para ele, no descampado, era contrabando. Por ser caminho
aberto para as tropas militares brasileiras e castelhanas, a presença de soldados na estância,
abastecendo-se de produtos ali produzidos, como carne, e a violação da mulher Catarina, marca
maior de seu sofrimento e conseqüente obstinação em se vingar, são constantes. Os patrícios de
São Leopoldo, ainda, tinham ficado com a imagem de que Daniel Abrahão era um contrabandista
que havia se mudado de lá para fornecer armas da Alemanha aos castelhanos.
Apesar disso, o trabalho na estância é contínuo, tendo à frente Catarina. Daniel Abrahão
em nada ajuda, pois vive os anos todos debaixo da terra, no poço, escondendo-se dos soldados
que poderiam matá-lo, como era prática naqueles lados da fronteira: já haviam enforcado o antigo
dono dali e, na Cisplatina, degolaram o dono da estância vizinha, a Medanos-Chico.
Logo depois do término da Guerra Cisplatina, Catarina, resoluta, decide negociar a
morada com o soldado Oestereich para retomar à vida na colônia. Todo o trabalho, de bons
resultados, porém permeado pelo sofrimento, deixa de ter sentido para ela. Parte, portanto, do
campo e instala-se na cidade, onde passa a desenvolver o comércio como dona de empórios. Ao
marido, que na Alemanha era seleiro, ordena que exerça a profissão, pois precisa de dinheiro.
Compra couros e correias, tachas, cordéis de selaria, ferramentas especiais, importadas,
entregando tudo a ele.
Está ali iniciada, no romance, a representação da atividade comercial e industrial que tanto
caracterizou, historicamente, o trabalho dos alemães e de seus descendentes que formaram e
fizeram crescer a cidade de São Leopoldo e, mais tarde, o estado. O romance sugere a visão
ampla de Catarina para os negócios com perspectivas de crescimento na província, que o
trabalho isolado no Chuí destina-se à sobrevivência da família, não ao comércio, este impedido
de acontecer pelo isolamento do local e pelas sucessivas guerras. A esse respeito, Paulo Pinheiro
Machado (1999, p. 20) faz a seguinte consideração: “A localização da Colônia de São Leopoldo
232
era privilegiada: situada nas margens do rio dos Sinos e a 28 quilômetros de Porto Alegre; o
transporte fluvial era rápido e desimpedido, o que facilitou o escoamento da produção da Colônia
para Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande.”
Fazendo sociedade com dois outros homens do ramo, Isaias Noll e Frederico Jacobus, a
oficina nos galpões dos Schneider cresce. Dali saem as melhores carroças, os melhores e mais
cômodos serigotes, que chegam, inclusive, a ser exportados para o Rio de Janeiro. Fala-se, até,
que o dono de um deles é o próprio imperador. Esse trabalho é Daniel Abrahão quem faz. Ela,
Catarina, trata de comprar e revender gêneros alimentícios produzidos pelos colonos em suas
lavouras; abastecer Porto Alegre e Rio Grande e trazer mercadorias da cidade para fornecer aos
da colônia. Com isso, entra em concorrência aberta com Gründling, que tem um empório e antes
comprava tudo o que os patrícios tiram da terra. A estratégia de Catarina para entrar no negócio é
pagar mais pelas mercadorias. Fechando acordos com os colonos, ela constrói outro galpão:
“queria instalar nele o novo empório da praça de São Leopoldo” (TS, p. 130).
A estratégia dá certo e em pouco tempo o movimento é intenso:
O empório crescendo, cheio de homens, movimento contínuo da manhã à noite,
mascates em lombo de burro comprando as coisas que vinham de Porto Alegre, linhas,
fitas, botões, agulhas, pavios de candeeiro, palitos de sforos, fazendinhas ralas,
xaropes, musselinas, pimenta, sal, garrafas de schnaps, toalhas tudo lotando os dois
sacos de couro, pendentes do lombo dos burros. Caixeiros-viajantes com seus largos
chapéus de feltro, palas de franjas e botas retinindo longas esporas. Metiam-se picada a
adentro, embrenhavam-se pelas linhas, vendiam de casa em casa as suas bugigangas
úteis, tão ansiosamente esperadas e, quando voltavam, traziam encomendas e recados
para Catarina, que fosse buscar lingüiça fresca, toucinho, torresmo, trigo, batata-inglesa
(TS, p. 134).
Entretanto, Catarina não fica somente com um empório. Abre outro em Portão, para o
qual precisa fazer de Jacobus, antes um ajudante, seu sócio, que passa a gerenciar o
estabelecimento. A idéia é chegar até a algumas picadas melhores, fazer mais clientes e mais
fornecedores. Mais tarde, é aberto outro em Porto Alegre. A oficina e os empórios
proporcionavam emprego a outros alemães, como o filho de Jacobus, Emanuel, e outros
rapazotes.
Gründling fora o primeiro a abrir um entreposto de produtos coloniais vindos das lavouras
dos imigrantes, ainda quando os Schneider estavam no Chuí, que ficava no caminho entre São
Leopoldo e Porto Alegre. Das picadas, as mercadorias vinham em lombo de burro e do entreposto
seguiam para a cidade nos seus lanchões.
233
Além desse tipo de comércio, Gründling entrara “no comércio graúdo de planchões de
grapiapunha, remos para lanchões, rodas ferradas para carretas, madeiras de lei, lombilhos
lavrados, obras de funileiros e couros curtidos” (TS, p. 90). Como podemos perceber, tudo o que
ele comercializava tinha a ver com as necessidades ou produções que se criaram depois da vinda
dos alemães: os lanchões se fizeram necessários no rio dos Sinos, que recebeu extrema
importância com a criação da colônia, sendo o caminho principal entre São Leopoldo e Porto
Alegre; os demais produtos também foram resultantes das profissões que muitos germânicos
exerceram aqui. Nesse ramo, comprando de e vendendo para os da mesma etnia, mas mais ainda
para os de fora, brasileiros – fora da colônia - e alemães – fora do Brasil, seus negócios cresceram
muito, a ponto de lhes exigir a ampliação dos galpões. A boa receptividade dos produtos
alimentícios pela população da capital - vemos aqui representada a realização de um dos
principais objetivo da imigração pensados pelo governo, que foi abastecer as cidades com os
produtos agrícolas – permite que Gründling abra um armazém no Caminho Novo.
E o comércio não se restringe a São Leopoldo e Porto Alegre. Muita coisa segue para Rio
Grande e é embarcada para Hamburgo, onde empórios em sociedade com o major Schaeffer.
Para lá, exportam milho, batata-inglesa, fumo em folhas, couros. No entanto, surge a
concorrência. Gründling fica sabendo, por meio dos dois homens que trabalham para ele no
empório, Schiling e Kalsing, que “apareceu em São Leopoldo uma mulher que está entrando no
negócio sem meias medidas. Paga um pouco mais, conta com muitos amigos nas colônias e
vende bem em Porto Alegre” (TS, p. 165). Trata-se de Catarina. É uma grande comerciante: tem
selaria, ferraria, fábrica de carroças, dos melhores serigotes da região e um empório crescendo em
disparada.
A freguesia de Gründling está sendo tirada por Catarina. Ele, inconformado e acreditando
que se trata de alguém a quem pode intimidar, vai a São Leopoldo para tirar satisfação junto a
ela. O que consegue é sair da frente da casa dos Schneider humilhado e espantado com tiros de
espingarda, numa reação de Catarina a tudo o que se passara no Chuí, cuja culpa era de
Gründling.
Entretanto, essa relação muda quando chega a Revolução Farroupilha e e ordens do
governo dificultam e, por um tempo, proíbem o transporte de mercadorias pelo rio dos Sinos.
Nessas circunstâncias, o trabalho no comércio passa a ser em sociedade entre Catarina e
Gründling, impelidos principalmente pela necessidade de fazer tudo se manter e progredir. Isso é
234
possível porque, no campo pessoal, as coisas se amenizam depois que Catarina presencia o
enterro de Sofia, conforme cena já comentada neste estudo.
Catarina e Gründling são os representantes, portanto, dos comerciantes intermediários que
surgiram ainda nos primeiros tempos da colônia, aos quais se refere Lagemann (1992, p. 129):
Nas colônias centrais alemãs, a maior parte com depósito e armazéns na margem de rios,
o comércio intermediário exercia, superando a atividade do vendeiro, a função de
redistribuidor das mercadorias destinadas às vendas coloniais e providenciava o
transporte fluvial das mercadorias agrícolas aos centros, geralmente em barcos próprios
(...) ou de seus familiares, lucrando tanto pelas comissões de revenda como com o
transporte. Até 1874, o transporte fluvial constituía-se na única via de comunicação de
Porto Alegre com as colônias.
Os filhos de ambos também seguem o ramo comercial, dando continuidade ao que a
família realizava de trabalho na nova terra. Jorge Antônio, por exemplo, filho de Gründling,
mantém os negócios enquanto o pai está na Guerra do Paraguai. No seu retorno, relata-lhe que os
comerciantes da capital haviam formado a Associação Comercial:
Os comerciantes chegaram à conclusão de que o melhor que tinham a fazer era se darem
as mãos, lutarem juntos e aos poucos foram entrando para a Associação Comercial que
até então vivia às moscas, terminaram por enxergar que a de Rio Grande estava
prestando bons serviços a todos. Heizen e Ebert lutaram muito para que nós, os alemães,
não ficássemos de fora, a conveniência era toda nossa; e agora estamos pensando nas
candidaturas de Haag e de Wolkmann para uma das próximas eleições. E assim é na
Praça do Comércio que agora nós tratamos dos nossos negócios (TG, p. 232).
A Associação Comercial a que Jorge Antônio se refere é a atual Associação Comercial de
Porto Alegre, fundada em 1858, sob a denominação de Praça do Comércio. A primeira comissão
administrativa dessa entidade contava com sobrenomes de comerciante alemães: Miguel
Heinssen e José Hébert (FRANCO, 1992). Essa representação no romance indica que o lugar dos
alemães no comércio da província, incluindo importação e exportação, estava se alargando e
ganhando relevância, constituindo até formas de organização, como a associação, que contava
com 37 alemães ao todo eram quase 150 sócios (TG, p. 232). O filho de Gründling cita estes
sobrenomes de sócios alemães: Heizen, Ebert, Schilling, Haag, Haensel, Ter Bruggen, Bier,
Daudt, Fraeb, Petersen, Issler, Wallau.
Luís Augusto Fischer, no texto O chalé e a Praça XV na cultura de Porto Alegre (2006, p.
27), registra a expressiva presença dos alemães no comércio da capital no início da segunda
235
metade do século XIX, época também considerada por Josué nesse momento da narrativa em que
faz referência aos negócios dos alemães:
Em 1866 se instala no Caminho Novo a fábrica de cerveja de Friedrich Cristoffel. Na
mesma rua, aliás, o que mais se via era comércio com sobrenome alemão podia ser
loja de ferros ou materiais para construção, fazendas, manufaturas, importação e
exportação em geral, assim como oficinas de marceneiros, latoeiros, serralheiros,
carpinteiros, alfaiates, sapateiros, ferreiros, e ainda restaurantes e hotéis. Nos anos 1880
aparece nova fábrica de cerveja, de Carlos Bopp, e logo outra, de Christoph Schmidt.
Alemães também estavam muito presentes na atual Sete de Setembro, com grandes
casas de comércio, e na Rua da Praia, especialmente em lojas de roupas e vestuário em
geral. Também na Rua da Praia estavam jornais, livreiros, editores, encadernadores,
ourives, padeiros, açougueiros, estofadores, professores.
Gründling e Catarina utilizam o trabalho de negros escravos. Também Jacob, filho de
Catarina, quando passa a morar em Porto Alegre, na casa que comprara de Gründling, na rua da
Margem, tem um escravo, o negro José. Além deste, diz à mãe que precisa arranjar uma boa
negra para a cozinha e que irá até um feitor de que tivera notícias. Isso lembra que os alemães
também, a exemplo da população rica do país na época, serviam-se do trabalho escravo.
O trabalho de Schaeffer é recrutar nas nações germânicas colonos para a região Sul do
Brasil e soldados para a formação do exército brasileiro, a pedido do governo imperial. Mantém-
se, portanto, na ficção, a mesma atividade que ele exerceu no mundo real. Josué, contudo,
caracteriza-o como um ser que privilegia seus interesses pessoais ao cumprir sua missão de
agente. Nesse sentido, aproveitando as ocasiões que o serviço lhe proporciona, desenvolve
lucrativo comércio entre Alemanha e Brasil. Esse comércio acontecia de duas formas: uma ilegal,
o contrabando, que se pelas armas e munições trazidas nos navios entregues aos castelhanos,
negócio este que envolveu a família Schneider; outra legal, transportando mercadorias produzidas
pelos colonos nas terras do Rio Grande do Sul para serem vendidas nos empórios de Hamburgo.
Quando recebe a notícia, na Europa, de que o imperador iria suspender a imigração, seu
negócio mais rendoso é arruinado. Até veio de com a intenção de fazer o imperador mudar de
idéia.
A referência ao que Schaeffer fazia aparece mais como um registro histórico do que como
um trabalho que identificava os da etnia alemã. O que marca mesmo o trabalho dos imigrantes
representados na narrativa é a agricultura, o comércio e a produção manufatureira, a qual
evoluiria para a produção industrial gaúcha. De fato, este trabalho era a marca dos alemães na
236
província na década de 1870, quando se encerra a história de A ferro e fogo. Fischer (2006, p. 41)
destaca esse aspecto:
Quantos seriam os alemães e descendentes? Em Porto Alegre, entre 10 e 20 por cento,
talvez. Mas esse número não é preciso. Além disso, é preciso lembrar que eram das
mais importantes casas de comércio, varejo e atacado, que ligavam a produção da
região de São Leopoldo, onde se haviam instalado os primeiros imigrantes no Rio
Grande do Sul, com o mercado exterior, fosse ele o da capital gaúcha mesmo ou o de
Brasil. Da colônia vinham itens preciosos para a vida de então, como a banha, o couro e
tantos outros.
Fica, portanto, bem caracterizado no romance de Josué Guimarães o trabalho na lavoura,
no comércio e na indústria. Assim, a idéia é a de que o imigrante alemão progrediu no Rio
Grande do Sul por meio da produção de alimentos necessários aos moradores das cidades, do
comércio destes produtos nas cidades e de outros manufaturados necessários aos que moravam na
colônia e da fabricação de objetos também necessários na província e fora dela.
3.5.3 - Religião
Ao ouvir as promessas de Gründling sobre melhorar as condições de vida e ganhar
dinheiro no descampado pelos lados do Chuí, Daniel Abrahão, de confissão luterana, faz sua
primeira manifestação de temente a Deus: pensou se Deus seria capaz de perdoar Gründling se
tudo aquilo não passasse de mentira” (TS, p. 16). Para ele, ficar em São Leopoldo, com seu
pedaço de chão, uma casinha, bichos de criação que o governo mandaria bastaria. Tendo isso,
esperaria que Deus resolvesse o futuro.
Deus sea expressão maior da luta dessa personagem. A Ele tudo reporta e Nele busca o
sentido de sua vida. Essa sua postura e as circunstâncias nas quais a vida o colocariam - morar
num poço, sem contato com o mundo externo, a não ser poucos momentos com a esposa e com
os filhos - levam-no ao fanatismo religioso.
No poço, a melancolia muitas vezes o domina. Nesses momentos, recorre à velha e
surrada Bíblia que trouxera da Alemanha. para si e chama Catarina para ouvir trechos. Ela,
embora também com um bom domínio dos textos sagrados, pensa em situações como essa que o
marido começa a endoidar.
237
De volta a São Leopoldo, trabalhando como seleiro, mesmo com alguns contatos com
pessoas fora da família, como os sócios no negócio e os rapazes ajudantes, o apego aos
ensinamentos da Bíblia acentua-se. Chega a influenciar o gosto de Isaias Noll, o qual, ao cair da
noite, ouve a leitura de trechos feita por Daniel, pedindo para repetir o que trata do Apocalipse.
Noll confessa ao amigo que chega a ter sonhos nos quais há uma luz brilhante no céu, de onde
vem uma voz, a de Deus. Pensa ele que é uma visão do próprio Apocalipse.
Daniel também usa a Bíblia como instrumento de cura. Quando a índia Ceji adoece, ele
este trecho: “Tendo entrado Jesus na casa de Pedro, viu que a sogra deste estava de cama e com
febre. E tocando-lhe a mão, a febre a deixou. Ela se levantou e o servia” (TS, p. 160). Como a se
sentir o próprio Jesus fazendo o gesto, ele põe a mão sobre a testa da doente e repete tudo no
amanhecer.
Pela casa, Catarina acostuma-se a escutar as histórias sobre a proximidade do Apocalipse,
que Satanás estaria solto de sua prisão e sairia a seduzir as nações do mundo. Todos os que com
ele convivem ouvem, para cada situação, rotineira ou extraordinária, que ocorre uma citação
bíblica a explicar ou profetizar algo relacionado.
A fé de Daniel é revigorada pelo seu estado de isolamento no poço, que ainda produz nele
loucura e artisticidade. Diz que ali nunca está nem abandonado, pois tem a companhia da
figura de Cristo, que reconstruiu para si. Uma noite, mostra à esposa a imagem que mantém
bem escondida: “Tirou os panos, surgiu um crucifixo de madeira entalhada, a figura de Cristo em
lavor de artista, as chagas, os cravos, a cabeça inclinada, cada músculo das pernas, os tendões dos
braços, até a expressão de dor do rosto crispado, parecendo mover-se pela luz irregular projetada
do pavio mergulhado no óleo” (TS, p. 194). Para Catarina, tudo naquele momento é muito
intenso, desde a impressão que a imagem lhe causa até os sentimentos em relação ao marido,
chegando a pensar que ele recobrara a razão.
Para atender os protestantes, religião da família Schneider e da maioria dos imigrantes que
fundaram São Leopoldo, na colônia, nesses primeiros anos, o pastor João Jorge Ehlers e o
pastor Frederico Cristiano Klingelhoeffer. Ao grupo destinado a este último é que Catarina
pertence, como sabemos pela menção que ela faz quando decide falar com ele sobre a situação
em que se encontra o marido, à beira da loucura, pensa, pois até com os mortos diz que está
conversando.
238
Sobre a atuação desses dois pastores na comunidade de São Leopoldo, os dados históricos
dão conta de disputas e desavenças criadas, dentre outras razões, pela divisão de fiéis e território
de atuação. Tramontini (2003, p. 225), buscando informações nos escritos do doutor Hillebrand,
de abril de 1834, assim relata a divisão das paróquias protestantes:
Klingelhoeffer possuía nove léguas, três picadas, três travessões e o distrito de Campo
Bom, onde ele morava, somando 600 colônias e cerca de 4,5 mil habitantes com cinco
capelas (Campo Bom, Dois Irmãos; Estância Velha e Picada Bernardino). Já o território
de Ehlers seria compreendido entre o arroio tiririca e a divisa de Sapucaia, com cerca de
três léguas e meia, teria 130 Colônias, 2,5 mil habitantes e apenas uma capela provisória
na Feitoria Velha.
Essa diferença fazia-se motivo de rivalidade e acusações. Klingelhoeffer, com tantos a
atender, sugeria Hillebrand, poderia justificar omissões e cobrança de indenizações de seus
fregueses. Além disso, a educação das crianças, a cargo do pastor, ficaria prejudicada. Queria o
doutor que fosse revista a divisão das paróquias, e mais, que fosse restituído o cargo de capelão
da colônia de São Leopoldo a Ehlers.
À religião mesclavam-se, portanto, interesse político e acúmulo de capital. Como analisa
Tramontini (2003, p. 226), que entende a religiosidade vivida em São Leopoldo nos primeiros
anos da imigração como instância privilegiada da organização do mundo colonial,
as disputas pela liderança das “comunidades” se reforçam aqui como disputas
verdadeiramente políticas, onde, inclusive, acusações sobre o “republicanismo” de
Ehlers, da “violência” de Klingelhoeffer, da imoralidade de Voges, além de
envolvimento de Hillebrand, apresentando um abaixo-assinado ofensivo a
Klingelhoeffer, com apenas 13 assinaturas, ou de Tomás de Lima, integram as disputas
pelo poder local com a discussão política provincial.
também o padre Antônio Nunes de Souza, colocado para atender os que seguem a
religião católica. Gründling é um católico e chama-o para fazer seu casamento com Sofia.
As duas religiões, portanto, eram praticadas pelos colonos de São Leopoldo. Porém, à
protestante pertencia a maioria deles. Tramontini (2003) relata que os católicos formavam um
grupo minoritário e cita o relato de Carlos L. Voges, pastor designado para Torres - e que
pretendeu ser pastor em São Leopoldo -, à Sociedade Bíblica Britânica sobre a colônia em 1827,
no qual informava que havia 108 famílias, que formavam um total de 1.380 almas, das quais
apenas 280 eram católicas.
239
O mergulho na religião por parte de Daniel Abrahão, com o passar do tempo, se
aprofunda e o fanatismo é a sua medida. Ao chegar à velhice, a entrega é total. Como também se
240
3.5.4 - Espaço e deslocamento
O grupo alemão do romance emigrara para o Brasil pelo trabalho de recrutamento feito
nos Estados germânicos por Schaeffer. O navio “Wilhelmine” trouxera-os até o Rio de Janeiro,
de onde seguiram até Porto Alegre pela sumaca São Francisco de Paula. Seu destino final era o
espaço da extinta Real Feitoria do Linho Cânhamo, no Faxinal da Courita, que viria a se chamar
São Leopoldo.
Fixam-se, portanto, no local onde o imperador dom Pedro I determinara que se criasse a
primeira colônia alemã da então província do Rio Grande de São Pedro, obedecendo ao que se
anunciava na proposta de colonização das terras do sul do Brasil recém-independente de
Portugal. Sobre esse espaço, que bem assim foi constituído na realidade em 1824, inicia-se a vida
de imigrantes das personagens da narrativa.
A ocupação do local pelas personagens é preparada pelas autoridades, transferindo para o
Rio de Janeiro o que era da feitoria e que não seria deixado para os novos moradores. Dentre os
objetos e mercadorias, 321 escravos restantes dos mil que haviam trabalhado ali foram dados à
venda na capital do Império. “Dali para a frente a terra seria dos alemães mandados buscar pelo
imperador, senhor do continente; a eles caberiam as dores e as alegrias daquela beirada de serra
onde índios e tigres espreitavam, enchendo as noites de rumores estranhos, de gelados silêncios”
(TS, p. 10). Tudo seria dos patrícios da esposa do imperador, dona Leopoldina da Áustria.
Um inventário feito registra a situação da terra doada:
A capatazia arrolou móveis e imóveis, semoventes e mudas, ainda mais 269 pés de
laranjeiras, 26 limeiras, 16 parreiras de pouca uva. Todo o Faxinal de Courita entrou no
inventário com duas léguas de comprimento pela costa do rio dos Sinos; mais um campo
fechado ao norte pelo mesmo rio, tudo somando seis ou sete léguas de circunferência;
mais um mato que fazia frente ao mesmo campo, com uma légua de fundo para noroeste
(TS, p. 10).
Nesse meio, é nos casebres de escravos que as famílias têm as suas primeiras habitações
na nova terra. Seria algo provisório, mas que demoraria a ser alterado, pois o governo parecia ter
se esquecido do que havia prometido quando oferecera as terras do local aos interessados
germânicos, como nos explica o narrador: “Na brumosa manhã do dia seguinte, domingo, o
seleiro Schneider e os outros trataram de voltar aos casebres da extinta Real Feitoria do Linho
Cânhamo, no Faxinal da Courita, onde mais de três meses aguardavam que o governo
241
cumprisse com o que lhes fora prometido na Alemanha: uma colônia, de terras de papel passado,
alguma ferramenta, sementes e animais domésticos” (TS, p. 9).
O clima da espera atribui ao espaço uma força sufocante, que age sobre o ânimo dos
moradores inconformados com as explicações que recebem do intérprete dia após dia. São as
desculpas transmitidas do juiz de sesmarias, Araújo Bastos, que mandam mensagens justificando
que a mediação das terras seriam adiadas por causa das chuvas torrenciais, dos chuvisqueiros e
do minuano; outra vez ele estaria impedido de fazer o trabalho devido às enxaquecas; ainda, era
preciso esperar tempo limpo, preparar a viagem até a colônia. Meses assim se passavam. A
irritação dos colonos aumentava, pois de julho as promessas se estendiam para novembro.
As personagens imigrantes formavam o estranho, o outro, naquele cenário que se
desenhava à sua volta, não só ocupando os casebres que ainda mantinham o cheiro dos moradores
de antes, os escravos. Ainda à chegada, quando haviam desembarcado em Porto Alegre, à
presença do presidente, contrastaram com os pretos, que, espantados, largavam seus afazeres para
olhar o grupo de gente branca como leite. Havia também os índios bravios, logo percebidos como
uma ameaça, os gaúchos mirando-os do alto de seus cavalos e os soldados de prontidão para
garantir a ordem.
Na colônia, no entanto, o ambiente forma-se entre conhecidos, pois que vivem na
comunidade somente os da mesma etnia, falando sua língua de origem sem necessidade da outra,
a portuguesa; socializam as mesmas preocupações com relação às terras de que seriam donos, as
moradias, a alimentação. Da mesma forma, sentem as ausências que se fazem presenças, como o
pão fresco da Europa, que ali não conseguem ainda fazer, cujo cheiro invade os sonhos noturnos
de Daniel Abrahão, como o perfume das cucas açucaradas, das salsichas fritas e do chucrute.
Essas ausências, para ele, transformam-se em promessas quando, ao amanhecer, preparando-se
para ir à lavoura, “jurava para si mesmo que um dia, um dia não muito distante, ainda plantaria
sementes de trigo na sua terra, terra de papel passado, e das sementes tiraria a farinha. Catarina e
Philipp comeriam com ele o pão, um cesto deles, com o mesmo aroma que teimava em não
esquecer” (TS, p. 11). São terras sem bonança que os recebem, porém à situação sem conforto
não deixam se sobrepor o cansaço: alimentam a esperança de construir a auto-suficiência tão
sonhada nas moradas européias que deixaram para trás.
Ao aviso de Gründling, a casa de Daniel Abrahão amanhece vazia. A família Schneider
deixa a colônia de São Leopoldo, deixa o seu grupo, portanto, e muda-se para os lados do arroio
242
Chuí, onde, enganada em seus propósitos, passa a trabalhar como intermediária no negócio de
contrabando de armas que os dois alemães ricos, Gründling e Schaeffer, mantêm. Ficam no meio
da luta entre castelhanos e brasileiros pela posse das terras da região.
As dificuldades da viagem como que preconizam o que os aguarda no espaço que irão
ocupar, o descampado: saem à noite, como determinara Gründling, a fim de que nenhum vizinho
bisbilhote. Chuvas, trovões e relâmpagos são os primeiros problemas da caravana, que inicia o
trajeto caminhando. Duas carroças juntas, com toldos, puxadas por bois, foram providenciadas
por Gründling, uma das promessas que fizera para facilitar o deslocamento, e assim o restante da
viagem é feito com elas.
Saem de São Leopoldo e vão em direção a Viamão. Passam por estâncias, seguem o
caminho que leva para os lados de Rio Grande, atravessam a freguesia do Estreito e Bujuru, o
arroio das Cabeças. Unindo estes pontos do caminho, largos descampados, que deixam ver ao
longe os sinais, pelas dunas, de que o mar está naquelas direções. Andam pela faixa do Albardão,
sentindo o cheiro de maresia. O lugar que os espera é perto da fronteira. Antes de lá chegar, ainda
passam pela lagoa Mirim e pela lagoa Mangueira.
Finalmente chegam à casa. Uma grande figueira caracteriza o lugar mencionado por
Gründling. também “pequenos capões de mato ralo, um olho d`água na beira de um banhado,
um córrego minguado correndo pelo campo, sinuoso, cobra molhada cercada por arbustos mais
encorpados” (TS, p. 24).
Os Schneider olham tudo curiosos. É o cenário onde fundariam uma estância. A tarefa
imediata que os aguarda é construir o rancho principal: “Paredes de varas trançadas, rebocadas de
barro, cobertura de palha, duas peças” (TS, p. 25). Para os escravos, fazem uma outra choupana,
mas Juanito não quer algo construído: prefere o chão duro, com a liberdade do céu e dos campos.
É o índio que insiste no nome do local, seria “Estância de Jerebatuba” - difícil de pronunciar,
dizem os novos os donos.
Juanito, por gestos, conta ao casal a história trágica que marcara aquele lugar: soldados
castelhanos tinham enforcado nos galhos da figueira o outro dono da estância, um francês de
nome Delmont. Como castigo pela ação cometida, desobedecendo às ordens de seus chefes, os
assassinos teriam sido também dependurados no mesmo galho maldito. Esse espaço ficava,
portanto, no corredor de passagens dos invasores, causando, inevitavelmente, violências e perdas
aos moradores. Mais tarde seria a família Schneider que sofreria enorme violência.
243
A água fresca para os moradores vem de um poço cavado pelos escravos, que o fazem
“não muito fundo, as laterais forradas com pedras, dois postes sustentando a trave onde corria a
corda de cânhamo, levando e trazendo o balde” (TS, p. 25-26). De resto, o que sobrara da
viagem: metade das galinhas, milho que seria plantado, meio saco de trigo em grão que viera da
Tapera, o qual também seria plantado. É arrebanhado gado xucro das redondezas para fazer um
rebanho próprio.
A estância, portanto, logo toma forma de morada, a despertar sentimento de perenidade
nos donos. Com o trabalho dedicado, logo produzem o que necessitam para viver bem, apesar
daquela solidão do descampado. Na história real que se conta sobre os primeiros anos da
imigração, relatos sobre a persistência diante do trabalho duro a realizar, a adaptação à casa
provisória em meio à mata, o enfrentamento da solidão. Pelas palavras de Umann (1981, p. 64),
podemos concluir algo a respeito:
A escura floresta virgem com suas árvores colossais e a impenetrável vegetação rasteira
que tínhamos de conquistar palmo a palmo, abrindo caminho com o facão, exigia de
nós um serviço árduo e não habituado (p.55).
Mais difícil que para o homem, foi o começo para as mulheres. Na pátria de origem elas
eram pobres e moravam em espaço limitado, mas podiam ter tudo escrupulosamente
limpo. (...) Como era tudo diferente aqui! Erguida a primeira choupana, minúscula e
improvisada, recebia os baús e pertences indispensáveis que haviam sido trazidos,
constatando-se logo que ela era por demais reduzida para acomodar os objetos e
permitir um lugar para dormir. O leito era geralmente feito de varas de palmito. Como
mesa serviam os baús, e para cadeiras usavam-se pequenos troncos de árvore, que
levavam a vantagem de não quebrarem e espaldar ao caírem. Em vez de polido fogão,
espetavam-se duas forquilhas no chão e sobre elas se deitava uma pequena vara e se
dependurava uma ou duas chaleiras. Nos primeiros tempos este fogão ficava no relento,
porque faltava tempo e também tabuinhas lascadas para erguer uma cobertura
provisória.
Para essa parte dos colonos que experienciou algo semelhante ao que Umann relata, havia,
ainda, que enfrentar a estranheza do espaço físico: desafiavam, sem tréguas, as noções de
natureza, de terra a cultivar, de recursos a utilizar que elas haviam dominado no lugar de origem.
A inadequação falava mais alto. Porém, a cultura acumulada dispunha de conceitos de dominação
da natureza, de desejo de adaptação, de elaboração de sentimentos relativos ao trabalho. Com
isso, sustentaram-se sentimentos práticos na relação do imigrante com meio. Assim, como boa
parte dos discursos históricos enfatiza, a rudeza foi o contraponto, o sinal de superação do
colono. Era preciso viver e vencer, pois com esses objetivos é que haviam partido da Alemanha.
244
“Muitos teriam regressado à pátria, se tivessem tid
245
ao falar, grunhe ou rosna; fica dentro da caverna com as pernas encolhidas, curvado como um
feto; a moradia ganha cobertura; ele recebe um cobertor para se aquecer.
Dias depois, “Daniel cavara mais, escorara as paredes e podia dormir com as pernas
estendidas. Tinha até o conforto de garrafas com água, charque cozido e pão(TS, p. 43). E
quando os soldados castelhanos vão para a fronteira, esvaziando o lugar, ele diz a Catarina que a
morada está boa, que ela não se preocupe, pois consegue até ficar sentado. Neste dia toma um
mate, e “jamais esqueceria o sabor daquele primeiro mate tomado nas trevas. Sua vida ganhava,
agora, uma nova rotina. Fazia as necessidades numa lata (...). Conseguia dormir no seco, sentindo
o corpo murcho e os membros lassos. Como um bicho. Lembrou-se da frase de Gründling ´cavar
a terra como uma toupeira`. Um verme” (TS, p. 43).
A tropa seguinte que aparece é de soldados brasileiros, que procuram pelo alemão fugido
da colônia São Leopoldo que trafica armas para os castelhanos, um tal de Schneider. Juanito diz
ao oficial que Daniel Abrahão havia sido levado de arrasto, preso, pelos castelhanos. Vasculham
tudo e, como não encontram o homem, deixam dito, antes de partir, que, se o encontrarem, ele
será passado pelas armas. “Ou degolado” (TS, p. 44). Catarina avalia que, por enquanto, a
solução é o marido permanecer no poço; ela enfrentará tudo e se preocupará com a sobrevivência
da família. Como já havia acontecido com os soldados castelhanos, é violada também pelos
brasileiros, ao que nem importância. É algo que mais alimenta o ódio que nascera dentro
dela e que, a essas alturas, se faz plenitude em sua alma.
A estância ainda receberia as tropas que disputavam aquelas terras de ninguém. “Ainda
não era bem uma guerra. Os piquetes avançados dos castelhanos invadiam a terra gaúcha, eram
enxotados pelos batalhões que partiam de Rio Grande. Arrebanhavam mais soldados, corriam
com os brasileiros. A terra de ninguém era, ora de um, ora de outro bando” (TS, p. 46).
A guerra estoura, a Cisplatina, e o dia em que um cavaleiro alemão vem de
Montevidéu e pára na Jerebatuba. Seu destino é o Rio Grande. Diz estar a serviço de um tal de
Frederico Bauer, um alemão que aparecera em Buenos Aires e que se dissera ser emissário dos
alemães do Brasil, conta Catarina ao marido. Envolvido com essa guerra também está outro
alemão que pela estância passa, Valentim Oestereich, que era de São Leopoldo e fora obrigado a
servir ao exército brasileiro.
Ao terminar a guerra, Oestereich volta para a estância. Em conversa com ele, ao ouvir que
os soldados ansiavam por voltar às suas casa, rever filhos, mulher, amigos, Catarina sente algo
246
que, depois de se estabelecer na estância, mesmo com o sofrimento que as tropas lhes haviam
causado, jamais imaginara sentir: voltar para São Leopoldo, o seu local de destino quando
emigrara. À vontade de nunca abandonar a terra do descampado, onde tanto trabalhara e muitas
coisas construíra, sobrepõe-se a desmotivação de ali permanecer. “Lutei o que pude por estas
terras, jurei a mim mesma que daqui ninguém me arrancaria com vida. Hoje, não vejo mais
motivos para isso” (TS, p. 106), afirma ela.
Faz negócio com o soldado alemão Oestereich. Ela lhe deixa a terra e ele lhe uma casa
na colônia. Conta-lhe toda a história vivida na estância, a enganação de Gründling, a inocência do
marido no negócio do contrabando e pede ao patrício que limpe o nome de Daniel Abrahão junto
às autoridades.
Ocorre, então, poucos dias depois, a troca de lugares: a família de Oestereich instala-se no
Chuí e a de Catarina, em São Leopoldo, na rua do Sacramento, sem número, numa casinha de
pau-a-pique, duas janelas e uma porta, paredes caiadas de branco, tudo muito pequeno. Por isso, a
primeira providência, tomada pela mulher, visto que o marido está acuado e sem iniciativa, é
aumentar a casa e construir um abrigo para os negros que ficaram com eles; ainda, um galpão
para as carroças.
O marido não consegue mais dormir sobre a terra. Então:
Num pedaço de chão do telheiro, Daniel Abrahão cavou um grande buraco, fez sobre ele
uma cobertura de madeira e bem ao centro engendrou uma porta de alçapão. Catarina
nem perguntou para que serviria aquele buraco. Sabia muito bem. Pronta a nova toca, o
marido cobrira o fundo com palha seca, ajeitou uma cama com varas finas de eucalipto,
forrou o tramado com um grosso cobertor, encheu uma fronha com feno, escondeu lá
embaixo suas varas-calendário, suas pedras trazidas de Jerebatuba, seu lampiãozinho de
óleo de peixe. Acabado o dia, se enfurnava ele, tomando o cuidado de prender a porta
do alçapão por dentro (TS, p. 128).
Muitos anos depois, quando à família Schneider haviam chegado genros, noras e netos,
Daniel Abrahão continuaria morando debaixo da terra. E quando Catarina resolve derrubar a casa
bastante velha e, no mesmo lugar, construir outra, ele avisa: “que se fizesse a casa dali para a
frente, daquele lado para o outro, que não tocassem na sua moradia, só ele e Deus sabiam por que
a sua casa era aquela, viessem os tempos que viessem” (TG, p. 169).
Entretanto, a nova casa é planejada e construída sem poço para Daniel Abrahão, que, a
partir de então, entraria em mais uma fase de aprofundamento de sua religiosidade, iniciada com
247
seu contato com Jacobina Maurer, no Ferrabrás, onde passa também a residir, não sentindo mais
falta de sua toca.
Outros deslocamentos dos imigrantes foram as saídas da colônia e de Porto Alegre para os
campos de combate da Guerra Cisplatina, da Revolução Farroupilha e da Guerra do Paraguai,
onde lutaram, adoeceram, morreram, outros retornaram para São Leopoldo.
3.5.5 – Contatos
Assim que o bergantim “Protetor” lança âncora, os colonos entram em contato com a
autoridade maior da província brasileira que os recebe, o presidente Fernandes Pinheiro. Este
aperta a mão de cada um e diz-lhes coisas incompreensíveis, ou seja, palavras em português que
não transmitem nada a quem só entendia a língua alemã.
A língua falada é a alemã, restringindo, assim, ao máximo, a comunicação verbal com os
brasileiros, como fica bem claro no início da narrativa: quando o capataz, que não entendia
uma palavra de alemão” (TS, p. 11), faz o inventário da feitoria, ameaça os imigrantes com o
chicote ou com os punhos ao entender, pelos gestos ou pela cara deles, que haviam dito algum
palavrão na língua de origem. Reclamar, portanto, sobre alguma coisa que julgassem indevida no
inventário não adianta, como pensa Daniel Abrahão, pois não sabem usar as palavras em
português.
Entre os da colônia, então, é a forma fácil de conversar, ninguém ali exige o domínio da
outra língua. O convívio maior é mesmo com os compatriotas. Até Gründling, com contatos já
mais tempo com pessoas de ngua portuguesa, como os da capital e da corte, sabe ainda poucas
palavras deste idioma e, mesmo assim, pronuncia-as mal. Não se preocupa em usá-las para
impressionar os colonos de São Leopoldo quando aparece por lá. Seus objetivos seriam mais bem
alcançados se ele se fizesse um igual no uso da língua. Além do mais, não há nenhuma
necessidade de ali, na colônia, falar em português. É, portanto, em alemão que fala a Daniel
Abrahão sobre a ajuda que está dispondo a ele e a sua família, uma oportunidade de saírem
daquelas péssimas condições nas quais o governo vem mantendo-os. E em alemão familiar vai se
fazendo próximo, dizendo que “podia ajudar o amigo, tinha influência no palácio da Província,
sócios na Corte, em Hamburgo, São Petesburgo, na Prússia, além da grande amizade que o ligava
248
a um agente secreto da imperatriz, um homem vivido, de nome Major Jorge Antônio Schaeffer”
(TS, p. 13).
Gründling entra em contato com a família Schneider com o objetivo bem claro de usá-la
para realizar seus negócios de contrabando, a forma de ganhar muito dinheiro que o mundo novo
oferece sem muita resistência. Instalara-se aqui para lucrar, em parceria com o major Schaefer,
responsável direto pela vinda dos colonos há pouco instalados. Assim, acerca-se dos novos
moradores de São Leopoldo de forma a seduzir-lhes e a ganhar a sua confiança, pagando-lhes
muitas cervejas nas noites de diversão na miserável cervejaria da praça do Cachorro, bem como
ostentando riqueza e satisfação conseguidas na nova terra, apontando para as possibilidades que
os compatriotas têm de chegar ao mesmo nível.
No meio das taperas, um dia, chega parecendo
um rei com sua grossa fatiota de lã, vistoso colete de veludo bordado, chapéu de feltro
peludo, pajeado por homens que lhe lambiam as botas, quatro negros carregando coisas,
um índio mestiço zelando pelo grande cesto de comes e bebes; dois outros escravos que
se apressavam em abanar mosquitos e varejeiras que importunavam o patrão, armando-
lhe os assentos mal demonstrasse vontade de parar. Ainda levavam consigo uma rede
trazida do Rio de Janeiro para quando ele quisesse repousar mais demorado (TS,
p. 12).
É dessa maneira que se apresenta no rancho de Daniel Abrahão e Catarina: parece um
imperador, diz Philipp à mãe. O impacto da aproximação deixa a família Schneider
desconcertada. Submetida a muitas dificuldades, a aparência externa de Gründling indica que
viver bem, fazer fortuna, enriquecer é possível. Portanto, a visita inesperada leva a família a
visualizar as marcas do dinheiro que, esperançosa, ela saíra da terra natal para aqui encontrar.
Gründling e Schaeffer têm um plano para ganhar muito dinheiro, comercializando
mercadoria que se faz necessária nesta terra que se caracteriza por guerras: as armas. Daniel
Abrahão é escolhido para servir-lhes no negócio, certamente depois de Gründling analisá-lo
durante as cervejadas. Para isso, a família Schneider deixaria a velha feitoria e passaria a morar
nas bandas do Chuí, sendo posteira a receber o produto vindo da Banda Oriental.
Enquanto ouve a proposta, Daniel recolhe-se em si mesmo para refletir sobre o que o
desconhecido lhe traria: Onde moraria? E os perigos do descampado? Onde haveria outro ser
vivente naquele local? Mas o proponente esforça-se em convencê-lo: teriam terra a perder de
vista, pois eram devolutas, ainda sem dono; em troca, faria um trabalho fácil: receber
mercadorias e armas, “arminhas passarinheiras de pregar susto em bugre selvagem” (TS, p. 16).
249
Daniel não se convence. É Catarina quem decide dizer sim a Gründling. “- Pode mandar
preparar o prometido, Her Gründling. Nós vamos” (TS, p. 18). E o futuro que passa a se desenhar
para a família Schneider, tornando-se real a cada dia vivido, fica atrelado a esse instante de
enfrentamento da mulher.
Gründling cumpre as promessas de arranjar os recursos para o deslocamento da família
Schneider. -lhe o índio Juanito, dois casais de escravos, negros solteiros, cavalos, bois, vacas,
carroças com toldos, produtos alimentícios, palitos de fogo, velas de sebo, cordas de cânhamo,
galinhas. Ele mesmo espera pela família no local combinado na noite da fuga de São Leopoldo,
onde lhe entrega tudo sem descer do cavalo, dizendo apenas: “- Alles in Ordnung, Daniel
Abrahão?” (TS, p. 20), promete-lhes notícias de Porto Alegre e avisa que em dois meses
começariam a chegar as mercadorias a serem guardadas. Em seguida, desaparece sob a grossa
chuva. Os Schneider o o veriam mais nem teriam mais notícias dele enquanto a morada da
família permanecesse sendo o descampado.
Juanito é um contato fundamental aos Schneider desde a decisão de se mudar para a
Banda Oriental. Ele está na comitiva de Gründling e é por este doado à família de Catarina para
orientá-la na viagem e servir-lhe na nova morada. Fora ele quem trouxera o bilhete de Gründling
que informava sobre os procedimentos para a saída de São Leopoldo. Desde então, entrara na
vida da família e fizera-se necessário, fiel, dedicado. A viagem acontece sob a sua guia e seu
exemplo de andar pelos caminhos que oferecem perigo.
Na estância, é sempre fiel à família diante das ameaças dos soldados invasores. Solícito,
ajuda em tudo e se faz muito próximo a Philipp, passando ao menino alemão costumes gaúchos,
como montar em pêlo e de bridão, preparar braseiro para assados, capinar a horta. Passa
também para os adultos o hábito do chimarrão, a técnica de fazer o charque, o churrasco,
assimilado pelos alemães.
Por esse índio, uma índia também se aproxima da família, Ceji, uma minuano que morava
na fazenda Medanos-Chico, a mais próxima da Jerebatuba. Juanito casa-se com ela e ambos
passam a morar com os Schneider, vindo com eles para São Leopoldo. Tempos depois, Ceji
adoeceria e seria muito bem cuidada por Catarina, numa demonstração de que o casal de índios é
como familiar seu. A índia morre e recebe um enterro cristão, pelas mãos do pastor Klinglhöefer,
numa exigência de Catarina. Juanito permanece na família, tendo sido o fiel seguidor de Philipp
na Revolução Farroupilha, onde morre em combate.
250
Com os soldados, os Schneider têm um primeiro encontro ainda na viagem para chegar às
terras da Banda Oriental. É na estância Medanos-Chico, na noite em que pernoitam, quando
dois homens montados em cavalos chegam dos lados de Uruguaiana e falam com o dono do
lugar, José Mariano, sobre “um movimento estranho na fronteira, assim como se estivessem em
preparativos de guerra” (TS, p. 23). Dirigiam-se a Rio Grande para avisar o comando da
guarnição.
Nessa mesma viagem também cruzam com espanhóis, perto da fronteira. São homens de
pele queimada pelo sol, de olhos espremidos de índio, que usam chiripá. No entanto, o contato
decisivo em suas vidas construídas na estância Jerebatuba dá-se com um outro da mesma etnia
que fora envolvido nos negócios de Gründling na Banda Oriental: Frederico Harwerther. Este faz
o transporte da mercadoria contrabandeada e tem a incumbência de depositá-la na morada de
Daniel Abrahão. Frederico chega com cinco carroções carregados, ajudado por dois índios e
muitos castelhanos. É o primeiro carregamento do amigo Gründling, explica ele, que ainda diz
como tudo aquilo chegara ali: tinha vindo com o major Sachaeffer, o qual deveria encontrar-se,
àquela hora, na corte, com Gründling, num rega-bofes: “- Esta mercadoria foi descarregada em
pleno mar. Passou de uma galera para uma sumaca e eu ali depois do Chuí, esperando” (TS, p.
28).
Aqueles caixotes fechados intrigam o casal e Daniel Abrahão quer saber que mercadoria
está recebendo, ao que Frederico lhe responde que nada deveria perguntar a Gründling e ao major
Sachaeffer. Basta aceitar, pois eles pagam bem e patrões assim é difícil de encontrar. Afinal, são
dois homens de lei e são os postos necessários aos negócios desses ilustres patrícios. - Eu aqui e
você do outro lado, se estou entendendo” (TS, p. 28), diz Daniel Abrahão. Sim, é isso. E ainda
havia mais pessoal de São Leopoldo envolvido, que viria ali buscar a carga. Melhor seria
construir um galpão maior para resguardar o carregamento. Está iniciada, assim, na vida desta
família germânica, enganada, a atividade ilegal para a qual fora convidada.
Não tarda a chegar o contato de São Leopoldo. O líder da caravana que levaria a
mercadoria é outro integrante do grupo de imigrantes instalado na feitoria, João Carlos Mayer.
Com sua chegada, mais algumas coisas ficam claras para Daniel Abrahão: então, as noites
passadas na companhia de Gründling na Praça do Cachorro, com cervejadas pagas por ele,
tinham sido momentos de preparação e escolha da sua gente para as tarefas do seu negócio.
Estabelecera ali, utilizando os patrícios recém-chegados, os prepostos necessários.
251
Até então, nada de prejudicial aos que trabalham no negócio. Os Schneider não sabem o
que na carga. O que sabm é coisa boa, pois dentro de quatro caixas endereçadas a eles estão
mercadorias necessárias na estância e que deixam a todos muito felizes. Ganham “ferramentas
para trabalhar a terra, sacos de sementes de hortaliças, pratos, xícaras e talheres, cobertores da
melhor lã, agulhas de aço, fazendas e caixas com linhas de várias cores. Quatro espingardas e
caixas de munição. Espingardas não mais de pederneiras, mas de cartucho com espoletas, tipo
Forsyth. Dois sacos de farinha de trigo, alva como a neve. Vidros com fermento especial” (TS, p.
29). De tudo, o que mais emociona Daniel Abrahão são a farinha e o fermento, pois podem,
agora, ter pão igualzinho ao que comiam em Hamburgo.
Não abririam os caixotes que continham as coisas a serem carregadas por Mayer. É como
se a satisfação do que haviam ganho suprisse qualquer necessidade de saber mais sobre o
negócio, ou de usar a razão e procurar descobrir o que realmente Gründling e o major Schaeffer
comercializam e que os colocara no trabalho de receber e despachar os caixotes fechados.
São quatro carregamentos ao todo, envolvendo os trabalhos determinados para
Harwerther, Schneider e Mayer. Com os caixotes sempre chegam produtos para a família. na
quarta carga é que Daniel Abrahão fica sabendo que o necio de que participava é comércio
ilegal de armas. Harwerther, preocupado com o movimento de tropas no outro lado da fronteira,
sobre o qual ouvira falar na viagem, diz que seria uma desgraça se Mayer não chegasse a tempo
de retirar dali as duzentas espingardas. Os soldados chegariam e puniriam os envolvidos à sua
maneira.
Daniel Abrahão e Catarina espantam-se com a descoberta de que, no galpão, escondem
armas e munição. Apreensivos, temem que Mayer não chegue antes dos “gringos”. Catarina
supõe que, se os soldados castelhanos descobrirem as armas, tomarão a todos dali como a
inimigos e o marido será dependurado num galho da figueira, como o fora o antigo dono do
lugar.
Mesmo que desejassem dar as armas aos soldados e explicar que nada daquilo pertencia à
família, em que língua falariam? Como se fariam entender se só sabiam o alemão? Daniel
Abrahão, na noite de medo e angústia, depois da última carga depositada no galpão, prevendo a
chegada dos inimigos castelhanos, que tinham fama de serem mais bandidos do que soldados, até
elabora um texto para dizer-lhes: “Deixaram isso aí, nem sei de quem é essa coisa, podem levar,
tomem conta. Fala-se com o chefe deles, com o general, podem levar as armas, elas são de vocês.
252
A gente conversando se acerta” (TS, p. 34). Mas a esposa Catarina, sempre racional a agir de
forma a não confiar em soluções cuja decisão dependesse de outros, e, sim, a encaminhar tudo
com as próprias mãos, dependendo apenas de suas ações para resolver os problemas que surgem,
aponta a inutilidade da idéia do marido: “- de vez em quando eu não te entendo, Daniel Abrahão.
Em que língua vais falar com eles?” (TS, p. 34) . É verdade, reflete ele, dizendo que o melhor,
então, é ir embora.
Catarina decide que enfrentará o que vier para defender o seu espaço. E quando as tropas
chegam, como temia, e o arsenal é descoberto, ela, que já havia escondido o marido no poço, diz,
em alemão, aos soldados que “foram uns homens que deixaram essas armas aí” (TS, p. 36). Mas
ninguém a entende, nem mesmo Juanito, que, embora convivendo com a família há tempos, ainda
não entende aquela língua estranha.
Os militares castelhanos causam medo, espancam Juanito, destroem muitas coisas da
morada, roubam outras e levam as espingardas que estão nos caixotes de Gründling. Além disso,
o que a passagem deles pela estância faz de mais marcante para a família Schneider é estabelecer
um novo espaço para Daniel Abrahão viver, o poço, um espaço subterrâneo do qual ele não se
livraria até a velhice, e estuprar Catarina, como se também seu corpo fosse um lugar de passagem
como a terra dali o era. Com essa experiência, ela sente que
algo se rompera no seu mundo. De dentro para fora. Algo que ela jamais saberia dizer o
que havia sido. Pensou, naquele momento, na figura alta e agitada de Gründling, a cara
de fisionomia indefinida, os seus olhos sem nenhum calor humano. Soqueou em
pensamento a figura imaginária, cortou-lhe o rosto com as unhas, como faria um gato ou
um tigre, arrancou-lhe os olhos, viu as suas órbitas vazias. Um ódio que nunca sentira
em toda a sua vida e que jamais imaginara pudesse ter. Pensou em Deus e pediu a Ele
que a ajudasse a alimentar aquele ódio, dali para a frente ele passaria a ser a razão de sua
vida (TS, p. 40).
Os planos que ela passa
253
três dias a senhora terá tudo pronto”. Não conseguia lembrar-se de nenhuma frase da
Bíblia, alguma que lhe desse conforto ou que justificasse a sua passividade. Não pensava
nela, por Deus Nosso Senhor. Não sentia mais nada a não ser ódio e nojo, inclusive de si
própria. O homem ficou de pé, com seu vulto tapou a fraca claridade da lua e falou com
outro. O retinir, agora, era de esporas diferentes. Sentiu-se novamente agarrada, outro
bafo, um cheiro diferente, mais uma vez Gründling insaciado, uma besta no cio, um
touro execrando a bufar, as suas carnes e entranhas massacradas, um fogo por dentro e,
finalmente – um minuto depois, meia hora, duas – a solidão (TS, p. 45-46).
Na época dos primeiros movimentos que vêm a resultar na Guerra Cisplatina, ainda em
1825, são muitos os soldados, das duas bandas que repetem a mesma história de violentar
Catarina. Daniel Abrahão, da sua caverna, sentidos aguçados, busca por um ruído qualquer da
esposa nessas horas de violação, e um arrastar de esporas leva-o ao desespero.
Essa guerra traz também à família Schneider soldados alemães que haviam sido
recrutados pelo exército brasileiro. Oestereich é um deles, acompanhado por uns vinte
companheiros. Em conversa com Catarina, explica como se dera a participação dele e de muitos
outros colonos no exército: o primeiro grupo de voluntários para ajudar as tropas brasileiras fora
oferecido pelo doutor Hillebrand; depois, para aumentar o efetivo, o próprio presidente da
província recrutara grande número de homens, criando a Companhia de Voluntários Alemães.
Parte deste grupo fora mandada para Rio Grande, a fim de atacar qualquer incursão de inimigos
naquela faixa de terras brasileiras; outra parte formava o grupo de batedores que avisava aos da
cidade sobre algum movimento suspeito.
O doutor Johann Daniel Hillebrand chegou a São Leopoldo em novembro de 1824, como
informa Gilson Justino da Rosa em seu livro Imigrantes alemães 1824 1853: Codice C333
do AHRS. Exercia o papel de diretor-geral das colônias da província. A formação da companhia
de que trata o romance teve, de fato, a sua participação. Josué apresenta o médico como
recomendado à imperatriz Leopoldina. Dentre os seus serviços junto à colônia, estava a
necessidade de auxiliar o governo em seus interesses. Nesse sentido, com o advento da Guerra
Cisplatina
redige um memorial endereçado ao Brigadeiro Salvador José Maciel, colocando os
alemães a serviço da causa nacional. Trinta e sete colonos marchariam como voluntários
para os campos de batalha. O presidente achou pouco. Finalmente havia cinqüenta
deles, treze dos quais no laço, arrancadas das suas mãos as enxadas e colocadas no lugar
delas velhas espingardas de carregar pela boca (TS, p. 53).
254
Assim se formou a Companhia de Voluntários Alemães, grupo que passa a ter um
contato direto com os militares brasileiros, falando em português. Ordens e instruções numa
língua que os alemães não entendem são passadas, exigindo-se o seu cumprimento. Como é
impossível obedecer, que não sabem o que devem fazer, são castigados com chibatadas. Além
da dor, sofrem a humilhação de apanhar na frente dos companheiros. Mais tarde, em plena
batalha, alguns alemães ainda apanhariam dos homens do exército brasileiro e um deles, Mayer,
inclusive, seria fuzilado.
A isso reage o doutor Hillebrand, que faz chegar ao presidente outro memorial com o
relato do tratamento dado aos alemães na tropa. Formam-se, então, os Lanceiros Imperiais
Alemães, sob o comando de oficiais que falam o idioma alemão, e os sobrenomes germânicos
ocupam as listas dos postos de guerra: lanceiro Mayer, cirurgião-mor Knapp, quartel-mestre
Dörnte, capitão de Friederichsen, capitão Plewets, capitão de Marsey, capitão Bülow, tenente-
comandante Gatiker, tenente Bormann.
Assim constituídos, lutam contra o exército do general Lavalleja, encontrando no campo
de guerra outros alemães que formam o grupo dos lanceiros do Barão Heine. Ao se enfrentarem,
dizem um ao outro que não querem se matar, que não têm nada a ver com a briga (TS, p. 77),
como diz no Passo no Rosário o soldado Peter Sem Ludwig, que era de Badenbach-Trier e servia
aos castelhanos, a João Carlos Mayer, que servia aos brasileiros.
Quando o general Lavalleja, à frente de seu Estado Maior, tornava mais intensa a luta
pela tomada das terras uruguaias em favor dos interesses de Buenos Aires, os Schneider, na
continuidade do que havia se tornado rotina, vêem-se, mais uma vez, ameaçados pelas forças
militares. A concentração de tropas castelhanas vizinha com a estância, e desta vez, pelo
movimento aumentado e grande número de soldados, o melhor, julga Catarina, é fazer descer
para o poço também as crianças. O lugar é preparado para virar morada temporária dos três
filhos que haviam nascido, Philipp, Carlota e Mateus: é feito o entulhamento do resto da água
que havia, armazenam-se sacos de mantimentos, corotes com água fresca. Então, fica uma
“gente subterrânea” (TS, p. 86), livre do contato com os inimigos.
Na manhã seguinte à descida dos filhos para o poço, passam por os soldados. Ouvem
do índio que a mulher alemã mora só, pois o marido e os filhos haviam sido levados pelos
brasileiros. Dizem: “- Volveremos a vernos, comadre” (TS p. 87) e rumam para a estância
Medanos-Chico, onde tudo destruoem e matam quem encontraram. Resta viva a índia Ceji,
255
estuprada. Juanito encontra-a e leva-a até Jerebatuba, onde a cuidam. Ela também passa um
tempo no poço, quando as tropas voltam por ali, mas desta vez estão debandando e nada fazem
aos moradores. Atrás deles estão grossos contingentes da cavalaria imperial brasileira.
Acabada a Guerra Cisplatina, o que ocorreu na realidade em 1828, o contato último da
família Schneider na Banda Oriental é com o compatriota Oestereich, com quem negociam as
moradas, vindo Catarina e os seus a se fixar novamente na colônia alede São Leopoldo.
Neste lugar, Daniel continua levando uma vida de quase completo alheamento em relação à
sociedade, às coisas do cotidiano e aos contatos com os outros, como também tem necessidade
de se manter vivendo num buraco. Catarina, como fazia antes, toma conta de tudo, e o primeiro
contato que faz para dar início a um trabalho que garanta a sobrevivência da família é com o
doutor Hillebrand.
Designada a ele a direção da colônia e, por isso, concentrando o poder de decisão,
Catarina o consulta para saber se podem, afinal, começar a vida na colônia, o trabalho.Recebe,
para tanto, a aprovação do médico, que a informa nada mais haver contra o marido. Então, “era
arregaçar as mangas, baixar a cabeça e tocar o barco” (TS, p. 129).
Quando os Schneider estão com dois empórios, um em São Leopoldo e outro em
Portão, e uma bem-sucedida oficina, onde fabricam carroças e serigotes, Gründling vem até eles.
Catarina, ao vê-lo se aproximar acompanhado de um desconhecido –Schiling - posta-se na porta
do empório com a espingarda: “- Se atravessar a rua, herr Gründling, recebe uma bala” (TS, p.
167). Ele quer se mostrar amigo e diz que alguém deveria ter feito intriga entre eles. Juanito, que
havia acompanhado todo o sofrimento de Catarina e sua família em conseqüência das mentiras
de Gründling, também aponta uma espingarda para o visitante indesejado. Mas este segue a
caminhada e, diante de tal impetuosidade, Catarina dispara a arma, fazendo os dois estacar.
Gründling ainda insiste com Daniel Abrahão na versão de inocente, que diga à esposa que ela
está enganada. Daniel, porém, amparado na Bíblia, sentencia que ele é o Satanás que havia se
soltado.
Como ele ainda continua a impor o discurso de amigo, dizendo que teria feito muito por
eles, Catarina, com voz decidida, resume o mal que ele causara ao levá-los para o Chuí: “- Nos
largou no meio de dois inimigos com as suas malditas armas de contrabando. Arruinou as nossas
vidas e a cabeça de Daniel Abrahão. Você quer dinheiro, Herr Gründling. o dinheiro tem
valor para você” (TS, p. 168).
256
Às razões que intensificam o ódio e o desprezo de Catarina por Gründling soma-se a
desconfiança dela de que era ele quem estava por trás das prisões, torturas e mortes que alguns
homens da colônia sofriam depois de serem presos por militares sem justificativas claras. Lucks,
Sperling e Richter tinham sido espancados; Schlaberndorf, Agner, Krieger, mortos. Ainda, por
brigas e acusações, João Thomaz Stottenberg matara João Stenzel; Germano Klinglhoefer matara
Frederico Weber. Para Catarina, quem deveria dar satisfação disso tudo, esclarecer a verdade, era
Gründling. Diz ela: “Para mim, nisso tudo dedo de Gründling, uma coisa aqui dentro me diz
isso, não posso estar enganada, nunca estive, a vida me ensinou certas coisas que não vêm nos
livros” (TS, p. 234). E com essa intuição que se faz certeza dentro dela, segue, de madrugada,
para Porto Alegre à procura de Gründling, levando consigo uma espingarda com a qual pretende
vingar-se.
Chegando à rua da Igreja, onde fica a casa cor-de-rosa de Gründling, o primeiro a falar
com ela é o doutor Hillebrand, que havia ido assistir Sofia. Este, ao ouvir dela que está ali para
ajustar uma velha dívida com o dono da casa, segura os cavalos para impedi-la, dizendo-lhe que
está enganada a respeito das atitudes do inimigo. Contudo, ela não quer lhe dar ouvidos. Então,
avista Gründling à frente do caixão que está sendo carregado. Dentro dele, a esposa Sofia.
Desfaz-se, nesse momento, dentro dela a resolução tomada na ânsia de vingar-se e não mais
prossegue em seu ódio.
Um novo contato entre eles, bem mais tarde, viria resultar num acordo comercial,
proposto por Gründling, tendo em vista os empórios dos dois. Ele queria trocar mercadorias
importadas por produtos coloniais. Isso aconteceu durante a Revolução Farroupilha, quando o
empório de Catarina, aquele que ficava no caminho Novo, foi esvaziado e fechado e seus
funcionários, presos. Ela receberia farinha branca como neve, cassinetas, agulhas, musselinas,
lampiões, novelos de linha, pratos, panelas, e entregaria a Gründling carne de porco, milho,
batata, toucinho, ovos. Sem muitas tratativas e abreviando o encontro, Catarina disse-lhe que
estava fechado o negócio.
Os bugres eram ameaça constante às famílias. Uma das atingidas é a do Francisco
Hormann, casado com Maria Cristina. Depois do ataque, ficara viúvo e seu filho de dois anos não
fora mais encontrado. Franz Bohrer matara um. Muitos alemães tiveram suas residências
saqueadas e as choupanas queimadas. Leopoldo Petry (1964) estudou o período inicial da
257
colonização alemã e relata ataques dos bugres. Tomemos a síntese deste relato feita Tramontini
(2003, p. 92):
os índios atacaram, em 26 de fevereiro de 1829, a Picada de dois Irmãos, matando três
colonos e ferindo um outro com flecha, e outra em 8 de abril de 1831, com três colonos
mortos e outros dois feridos, sendo uma criança raptada e resgatada mais tarde nos
campos de Cima da Serra. Como também em 15 de maio do mesmo ano, na Picada do
Hortêncio, com 11 mortos e dois feridos. Sendo que este teria sido o último grande
ataque dos “bugres”.
Ainda, em 1847, houve um ataque de índios à picada de Feliz. houve um confronto,
pois os colonos, que vinham sendo roubados há tempos, organizaram uma defesa.
(TRAMONTINI, 2003).
Na colônia representada no romance, com as terras já delimitadas pelo governo, tornando-
se propriedade de cada colono, nem tudo é harmonia. O pastor João Jorge Ehlers anda pelas ruas
a catar assinaturas para um abaixo-assinado em favor da expulsão do falso doutor Carlos
Godofredo Von Ende; outros preenchem um memorial para expulsar do povoado o pastor.
Oestereich, pronto para se mudar dali e viver com a família nas terras de Catarina, na fronteira,
diz: “Amanhã de manhã partimos daqui e nem olho para trás, muito ódio solto, ninguém se
entende. Não agüento mais” (TS, p. 110).
De fato, Johann Georg Ehlers foi o primeiro pastor da Comunidade Evangélica de São
Leopoldo, e a história registra muitos problemas provocados por ele ou que o envolveram.
Tramontini (2003) relata que o inspetor de São Leopoldo, Tomás de Lima, em 1925, ao informar
o presidente sobre as investigações de um assalto que houvera na casa do pastor, acaba
transformando Ehlers de vítima em acusado desconfiava, baseado em conversas de muitas
pessoas, de que o próprio pastor havia mandado realizar o roubo -, caracterizando-o como um
provocador de intrigas e patifarias. Chegou a afirmar que não havia um só colono que não fosse
seu inimigo. Tramontini, baseado em ofícios das autoridades da época, ainda traz a informação de
um abaixo-assinado com 36 assinaturas dos colonos acusando o pastor de não pregar e não dar
aulas às crianças. E com o doutor Carlos Von Ende as acusações eram mútuas. Tramontini relata
que o pastor acusava o médico de ser mau profissional e preguiçoso; este, por sua vez, “dizia que
desde Hamburgo a principal e predileta ocupação de Ehlers era a calúnia, e que já naquela cidade
foi em conseqüência de más ações por ele praticadas, publicamente demitido do posto
258
eclesiástico que ocupava, além de que teria o pastor perdido a estima e o respeito de todos e
que quase ninguém freqüentava suas práticas” (TS, p. 158-159).
Conflitos na comunidade, com ou sem a participação do pastor, aconteciam nos primeiros
tempos. Ferdinand Schröder (2003, p. 64-65), que fez pesquisas nos documentos escritos pelos
próprios alemães que viveram em São Leopoldo, como o diretor da colônia, doutor Hillebrand, e
o pastor Ehlers, e por Bösche, que esteve como visitante, assim sintetiza as informações
contidas no relatório de Hillebrand, as quais confirmam algumas dificuldades por que passaram
os colonos:
Algumas dificuldades e inconveniências são mencionadas nos relatórios do diretor da
colônia ao Presidente do estado, p. ex. Ver. Do Arch. Publ. 1924, p. 40, dificuldades de
adaptação e temores ante animais selvagens (1825, p. 60), o presidente tem a impressão
negativa quando de visita à colônia (´em sua maioria são gatunos`) (1826, p. 129), fuga
de colonos (1825, p. 134), o governo ameaça os que têm mau comportamento com
duras penas (1825, p. 197). Dois colonos atacaram o pastor Ehlers (1825, p. 200),
queixas a respeito do pastor Ehlers (1825, p. 221). Severas acusações contra o padre
Antônio Nunes da Silva (cura católico em São Leopoldo) (1828, p. 231), queixas
decorrentes da falta de subsídios (1829, p. 237). Incômodos por causa de indígenas
(1830, p. 240), queixas pelo não-pagamento de subsídios (1830).
Portanto, Josué Guimarães, ao mencionar relações conflitadas entre os colonos
germânicos, faz uma clara referência ao real da época. Relata que, quando da Revolução
Farroupilha, os colonos não ficaram neutros nem foram unânimes em suas opções políticas,
havendo adesão a ambos os grupos em luta: parte deles ficou do lado dos imperiais – liderada por
Hillebrand - e parte defendeu a causa dos rebeldes liderada por Von Salisch. Esses
envolvimentos em campos opostos intensificaram o ambiente conflituoso, como relata Joahann
Carl Dreher em suas memórias, ele que viera para São Leopoldo em 1940:
O aspecto de São Leopoldo era muito triste e esta característica havia se estampado no
semblante de todos os moradores de então. Inveja e traição haviam levado a que
ninguém confiasse em seu vizinho. Em conseqüência do cerco a Porto Alegre, bem
como a divisão em partidos opostos entre os alemães, os moradores de São Leopoldo e
das colônias careciam até do mais necessário. As pessoas estavam empobrecidas e o
plantel de gado era carneado ora por um, ora por outro partido; os cavalos eram
roubados a dia claro contra o que não se podia reagir para evitar o pior pois de muitos
dos desumanos partidários não se podia esperar nada de bom. (WEIMER, 1988, p. 25).
O romance também faz referência a conspiração, revolta, conjura (TS p., 141) entre os
colonos. Havia vizinhos brigando por divisas de terras mal definidas, tendo havido até mortes por
259
causa disso: Joaquim Hinrichsen assassinara seu lindeiro Fried Helms; Franz Elvers levara um
tiro de um desconhecido ao atender a batidas na porta,à noite. Era um mal-estar geral que tomava
conta do povoado, pondo todo mundo a viver apreensivo, desconfiando dos patrícios.
Gründling e o major Schaeffer, apesar de serem importantes contatos com autoridades
brasileiras, em nada se preocupavam com a situação da colônia. Podia ser o fato de o governo não
cumprir o que prometera por escrito, do que o próprio major fora agente na Alemanha; ou as
desavenças internas que se criavam entre os vizinhos; ou, ainda, qualquer outra dificuldade a
atingir a comunidade germânica, razão para que eles não se sentissem comprometidos.
Importavam-lhes apenas os negócios e os lucros. Nesse sentido, não a sociedade no comércio
de armas da Alemanha tornava-os mplices, mas também a forma de ver os colonos como um
grupo de necessitados, uma massa possível de ser manipulada. Na visão de Schaeffer, aquelas
famílias não passavam de uma “gentinha caçada” pelos arredores de Hamburgo (TS, p. 49).
O agente de imigração explica ao amigo Gründling que nenhum problema da colônia diz
respeito a ele: “Sua missão terminava quando o barco levantava âncoras” (TS, p. 49). Assim, o
fato de o governo não ter enviado aos colonos os animais e recursos prometidos não o afeta e de
nada é culpado. No entanto, colonos e o próprio doutor Hillebrand atribuem-lhe, sim, uma boa
parcela de culpa. Isso que está representado no romance também é fato registrado no relatório
que o médico e diretor da colônia remetem ao presidente da província em 1854, no qual aparece
um exame de questões conflituosas há muito surgidas na comunidade germânica. No documento,
ele ataca Schaeffer por este ser o responsável pelos contratos de imigração, conforme registra
Tramontini (2003, p. 53), os quais, “além de conterem promessas irreais, seriam ilegais ou
desautorizados.”
Entretanto, o governo brasileiro suspendeu a imigração dos germânicos por falta de verba,
após a votação da Lei de Orçamento de 1830, que proibia quaisquer gastos com a colonização.
Deixando de trabalhar como agente especial, Schaeffer, que já era dado a bebedeiras, mergulha
profundamente no vício. Quando chega da Europa, a fim de discutir o assunto da imigração com
o imperador, manda chamar seu melhor contato aqui no Brasil, Gründling, para encontrá-lo no
Rio de Janeiro. A essa altura, seus outros contatos haviam cessado, restando-lhe hospedar-se
num casarão “caindo aos pedaços”, na Armação, onde ficava bêbado todo o tempo. Gründling, ao
chegar ao local, não reconhece o amigo de tempos atrás: diante de seus olhos aparece uma
sombra do que fora Schaeffer. Nele tudo é abandono.
260
Acontece que, apesar do trabalho encomendado que realizara para a imigração, é tido
como criminoso. Ele conta ao amigo Gründling: “Andam me caçando como quem caça animal do
mato” (TS, p. 149). De fato, o governo brasileiro, ao ter de se justificar ao ministro prussiano
Eichmann que havia feito cobranças diante das informações contidas no relatório de 1854 do
doutor Hillebrand, afirmara que, quanto às vantagens oferecidas nos contratos, não tinha
responsabilidades, “uma vez que Schaeffer teria atuado sozinho, sem nenhuma autorização
oficial” (TRAMONTINI, 2003, p. 64). Sua vida está reduzida à humilhação e ao desprezo. Resta-
lhe somente as lembranças dos tempos em que o general Brant pagava os seus serviços com
barras de ouro e a imperatriz Leopoldina mandava-lhe cartas pessoais dizendo-lhe que era seu
único amigo. Seu fim é entre os índios, com quem passara a viver quando se lançara em busca de
pedras preciosas e ouro.
Numa seqüência cronológica da história, encontramos no romance, depois da Guerra
Cisplatina, a representação da participação de colonos alemães na Revolução Farroupilha. Como
dado histórico, lembremos que os alemães foram chamados pelo governo brasileiro em épocas
anteriores ao início da imigração para atuar em lutas no território do Rio Grande do Sul. Ainda no
século XVIII, de 1774 a 1777, houve a participação de militares alemães na Guerra da
Restauração do Rio Grande do Sul, na qual Portugal enfrentou os espanhóis nas disputas pelas
terras, como relata Cláudio Moreira Bento em seu livro A Guerra da Restauração do Rio
Grande: 1763-77. Contudo, por se tratar de uma narrativa sobre a imigração de colonos alemães
para a região de São Leopoldo, considerando os anos de 1824 a 1870, são incluídos no enredo
apenas os fatos que aconteceram nesse período da história brasileira.
Nesse sentido, para além da abordagem das guerras em si como imagens históricas
passadas, a participação dos colonos nos revela, na compreensão do autor, muitos dos seus
contatos políticos. A organização de grupos de soldados para combater a favor do governo
imperial e a ação daqueles que preferiram a ala dos revolucionários para se integrar à luta, no
caso da farroupilha, são dois lados da organização da colônia em relação aos interesses da nação
adotada.
Quando se armam os atos primeiros da Revolução Farroupilha, Hillebrand, mais uma vez
a favor do Império, logo se coloca a trabalho. Mantém-se fiel ao governo, pois pensa: “É sempre
melhor lidar com gente que se conhece, pelo menos se sabe o lado de montar. E isso é muito
importante” (TG, p. 3). Sua missão é comandar sua tropa legalista.
261
Catarina, em conversa com ele depois do enterro de Sofia, ainda em Porto Alegre,
posiciona-se contrariamente a essas idéias. Enquanto ele julga errada atitude de alguns
compatriotas que se envolvem com os revolucionários, como Oto Heise, Klinglhöfer, Kerst, von
Salisch, ela diz que, se esses homens estão na briga, é porque o lado deles é o certo de se ficar.
O major Heise, que fora combatente do governo na Cisplatina, exerce liderança dentro da
colônia nas questões militares e arregimenta vários homens voluntários para lutar contra o
governo e a favor de Bento Gonçalves. Já estão em São Leopoldo as armas enviadas pelo
presidente Braga para serem usadas pelos alemães na luta contra os revolucionários. No entanto,
o general Bento Gonçalves manda apreendê-las. está ele como presidente da província, depois
do ato de 20 de setembro de 1835, o que levara o governo legal a se refugiar em Rio Grande. O
major defende junto ao grupo que “deveriam ficar do lado da revolução, aquele governo não lhes
dera nada do que havia prometido” (TG, p. 17). São as lembranças dos materiais e pagamento dos
subsídios que o governo não mandara aos colonos e dos soldos de guerra que não pagara aos
soldados da Cisplatina. A causa rebelde é o motivo de lutar. Sabem que o governo farroupilha
não quer estrangeiros em seu exército. Porém, algo concreto a fazer ali mesmo em São
Leopoldo e que se alinha com as razões de Bento Gonçalves: limpar a colônia de inimigos da sua
causa.
Philipp, voluntariamente, inclui-se no grupo de soldados de Heine, pega em armas e segue
com a tropa a Porto Alegre. Tem apenas dezesseis anos, é muito menino, e o major julga uma
loucura admiti-lo na guerra. Determinado, dizendo a Heine que sua mãe apoiaria a sua decisão de
ajudar os rebeldes, recebe cavalo e lança e parte com os demais que se dispõem no caminho em
formação de guerra. A idéia é agir em favor da permanência do novo governo no poder. Não
chegam, contudo, a realizar tal intenção, pois são estrangeiros e, por isso, indesejados pelo
general Bento Gonçalves. Logo voltariam para São Leopoldo.
A missão de guerra é retomada mais tarde, quando o grupo do Heise se une às forças de
Lima e Silva para, em Rio Grande, encontrar a gente de Onofre Pires e desalojar o ex-presidente
Araújo Ribeiro. Os alemães revolucionários têm o seu primeiro combate, que é contra o grupo do
Juca Ourives e do Pinto Bandeira. Era 22 de abril. A este se seguem outros combates, mais
intensos, com mortes, muitas de companheiros alemães.
Philipp chega a ser preso pelos imperiais, permanecendo dias num porão do arsenal da
praia, de onde sairia por meio de um pedido de Gründling aos legalistas, o qual interfere tendo
262
em vista ser sócio de Catarina no negócio dos empórios. Depois disso, o menino retorna para
casa, restabelecendo novamente o contato com a família e sossegando o coração da mãe, que o
esperava meses e meses.
Encontra os irmãos crescidos e um novo membro na família, Jacob. O pai havia
envelhecido, marcando, assim, o tempo longo que ocupara lutando pela causa revolucionária.
Esse tempo o marcara também fisicamente, pois voltara com barba na face, o que surpreende a
mãe. Sobre a guerra diz pouco, sugerindo que com ela também acontece de se acostumar e, até,
de esquecer algumas coisas. O que quer mesmo não é relatar os fatos e, sim, descansar, dormir,
como a estabelecer uma linha divisória, pelo sono, entre o que vivera na guerra e o que viveria no
seio da família. A cama o espera e ele acorda quando a manhã está alta. Tempos depois, essa
estada com a família viraria passado, pois o contato de Philipp com a guerra voltaria a acontecer.
Era a Guerra do Paraguai.
Do lado dos legalistas também fica Gründling, que organiza um grupo fiel para ajudar o
major Marques de Souza a sair do 8º BC, onde está preso por ordem dos revolucionários. O que
faz de melhor é reativar sua velha experiência nas negociatas ilícitas de armas, a melhor forma de
lucrar em tempo de guerra. Fornece muitas delas ao major brasileiro, que as solicita para levantar
o quartel, soltar todos os presos e recuperar os postos tomados pelos rebeldes. É o período da
volta dos legalistas ao palácio, o que se dá pelo retorno do presidente Araújo Ribeiro de Rio
Grande. Para São Leopoldo, confiando a missão ao alemão Schirmer, envia no lanchão Dresden
homens, armas e informações a serem repassadas ao doutor Hillebrandt, que deverá passá-las a
Menna Barreto.
Os lanchões são o meio de transporte das mercadorias de Gründling para seus empórios.
As armas são escondidas no meio da carga. Cumprindo uma ordem rotineira da revolução, as
tropas rebeldes param o barco, fiscalizam-no e o apreendem. O comércio da colônia, que
utilizava a navegação no rio dos Sinos, foi, de fato, controlado durante a Revolução Farroupilha.
Aliás, qualquer transporte, não o comercial, podia ser feito com licença por escrito da
autoridade máxima da província (WEIMER, 1988).
A atitude de von Salisch, que estava do lado dos revolucionários, de fazer um grupo de
soldados agir auxiliando os farrapos no enfrentamento das forças de Menna Barreto às margens
do rio dos Sinos, na altura da feitoria, é também considerada no romance. Salisch, com um
número bem menor de homens do que os legalistas, faz-se estratégico e evita um massacre de sua
263
tropa: pede autorização a Menna Barreto para falar aos alemães legalistas. Depois da conversa,
que se dá em alemão, os soldados abandonam as fileiras, retornando às suas casas ou mesmo se
integrando aos farroupilhas. O resultado é a fuga dos imperiais e a frustração da sua tentativa de
atacar a capital.
À guerra os alemães do romance parecem já estar acostumados. Philipp, depois de tempos
em casa e de ter constituído família, segue com Frederico Bornemann, João Franke, Jorge
Lemmertz e Martin Luft, todos voluntários, para a revolução. Vão se encontrar com o
comandante Jacinto Guedes. Outros alemães fazem parte da tropa e, nos ataques, são sempre o
grupo de vanguarda, “carne para canhão”, como diz o comandante Oto Heise. Desta vez perdem
a batalha no Cati. Philipp, agora cabo do exército, recebe a função de comandar o grupo. Na luta,
é perfurado no ventre por uma lança. Muitas perdas de companheiros alemães, muita dor, e no
campo de batalha, “aos poucos, muito lentamente, chegava o sono incoercível, tranqüilo, suave,
definitivo” (TG, p. 146). Assim permanece até receber a ajuda de outros soldados, também
alemães, que levam os feridos até o médico no acampamento.
Outra guerra surge. Desta vez os imigrantes alemães que passam a ser soldados defendem
a causa do Brasil contra o Paraguai. Agora não formam mais dois grupos como aconteceu na
Revolução Farroupilha. O uniforme de todos é o do Império e muitos que haviam sido inimigos
na revolução estão lutando lado a lado. Philipp, nesta guerra, não é mais tão moço como na
outra tem quarenta anos - nem seu papel é de simples soldado ou cabo. É tenente. Outros
ferimentos o marcam e com mais outros tantos alemães combatentes tem contato.
No Paraguai se encontra com Gründling, que também é voluntário da pátria. está velho
e com netos. Passam pela derrota de Itaqui, onde enfrentam Estigarríbia; vivem os desastres de
São Borja e das margens do Mbutuí; lutam também em Curuzu; recebem a visita do imperador
dom Pedro II e sua comitiva; participam da rendição de Uruguaiana; atacam os paraguaios em
seu território; pegam cólera; são feridos; muitos morrem; seguem ordens de Caxias, do Conde
D´Eu; constroem e destroem pontes. Enfim, fatos, locais, deslocamentos, derrotas, dor,
sofrimento, tudo está historiado nas vozes das personagens alemãs que conseguem se encontrar e
conversar nos acampamentos, antes ou depois das batalhas.
Muitos são os sobrenomes alemães citados na narração da Guerra do Paraguai, remetendo
a figuras históricas que, de fato, fizeram parte dos Voluntários da Pátria. Houve também
contratação de militares alemães para essa guerra – os brummers -, mas o romance não se refere a
264
esse acontecimento, dando ênfase somente aos que eram imigrantes. As contratações
qualificaram o exército brasileiro, ainda bastante precário na época. A esse respeito, afirma
Schwarcz (1999, p. 314): “Em primeiro lugar, o combate fez nascer uma nova instituição no
cenário brasileiro: o Exército. Se em 1865 antes da assinatura do Tratado da Tríplice Aliança
o Exército brasileiro possuía 18 mil homens, um ano depois os meros variavam entre 38 mil e
78 mil.” Muitos que se somaram a esse número eram da etnia alemã.
Em São Leopoldo, a família Schneider estabelecia um outro contato muito importante,
que viria a redefinir as vidas de Daniel Abrahão e de Catarina. É o encontro com um curandeiro
alemão chamado João Jorge Maurer, que usa ervas para curar pessoas doentes. Catarina o
marido já doente piorar a cada dia, porque não aceita remédios. Quando fica dois dias sem sair do
poço, ela decide levá-lo até a casa de Maurer para uma consulta. É quando fecham a morada
subterrânea, apesar das súplicas de Daniel Abrahão para impedi-los do ato.
Catarina e o marido, acompanhados pelo filho Mateus, chegam à casa de João Jorge
Maurer no dia de seu casamento com Jacobina, filha de André Mentz e da viúva Maria Elizabeth
Muller. O curandeiro pede que esperem alguns dias para serem atendidos. Apresentados à noiva,
Daniel Abrahão diz-lhe: “- Deus ouve as súplicas dos seus servos enfermos e Ele nos ajuda
e misericórdia, a ele rendemos graça” (TG, p. 208). Está iniciada a relação entre o casal e
Daniel, relação esta marcadamente religiosa, que ma
265
O romance sugere que assim Jacobina se preparava para pregar a seus fiéis, que formaram
o grupo que a seguiria, chamado de Mucker pelos opositores, pelos outros grupos da mesma etnia
e também por brasileiros, os quais se levantaram contra a prática religiosa e social comandada
por Jacobina. Seria o principal conflito da colônia alemã, tido como movimento messiânico pela
historiografia, o conhecido movimento Mucker.
A representação desse movimento é incluída no final da narrativa de A ferro e fogo: tempo
de guerra, de tal forma que podemos pensar que tenha sido o início de tudo, com a referência aos
primeiros contatos de fiéis com a religiosidade de Jacobina. Um indicativo disso é o que Catarina
encontra na residência dos Maurer quando para retorna para encontrar seu marido: quatro
carroças paradas debaixo das árvores; Jacobina aparece na porta, vestida de branco; muitas
pessoas na sala; Daniel Abrahão pregando com a Bíblia aberta nas mãos; uma mulher de faces
lívidas permanece deitada sobre uma enxerga no meio da sala; um homem, possivelmente seu
marido, ao lado e uma criança dormindo entre os dois; Jacobina, transfigurada, de joelhos em
frente a Daniel Abrahão.
Nesse tempo, em terras paraguaias, a guerra termina: “Num dia claro de abril, a primavera
se fazendo presente nas árvores e nos campos, aquele troço dos Voluntários da Pátria levantava
acampamento (...) o objetivo era alcançar Montevidéu, a guerra havia terminado, Lopes resistira
até à morte cercado por dez batalhões e seis regimentos, num total de quinhentos homens,
nenhum oficial” (TG, p. 255). A tropa chega a Rio Grande, com o coronel Genuíno à frente. Os
alemães, representados por Philipp em sua reação, sentem-se como em uma distante e estranha
terra quando são saudados pela população da cidade. Porto Alegre inteira também está nas ruas
quando os soldados chegam. Ali muitos alemães encontram amigos e familiares. Philipp, por
exemplo, é recebido pelo irmão Jacob, a cunhada Sofia Maria e o filho Abrahão; Jorge Antônio,
filho de Gründling, e sua esposa Clara também foram esperá-lo.
Os anos nos campos de batalha haviam transformado a todos. Contudo, é realidade a ser
esquecida, como diz Philipp ao irmão Jacob: “É a mais pura verdade, esqueci de tudo o que se
passou na guerra e ainda pouco, quando experimentava essas roupas que vocês mandaram
buscar para mim, cheguei à conclusão de que não houve guerra, de que tudo isso não passou de
uma grande invenção” (TG, p. 259). A ânsia de esquecer o sofrimento assemelha-se à de querer
saber sobre os amigos que haviam ficado na colônia, os negócios, a família. Dali por diante,
interessar-lhe-ia só isso não o passado de guerra.
266
Assim, ainda na casa do irmão em Porto Alegre, o que quer é dormir em cama limpa e
travesseiro macio. E “quando assoprou a chama do lampião de bela manga lavrada e afundou a
cabeça nos panos macios, dormiu logo, como se fizesse aquilo pela primeira vez na vida” (TG, p.
259). O dormir, como o fez no retorno da Revolução Farroupilha, em casa de sua mãe, é para
Philipp o encerramento de um passado dolorido, de perdas, e o acordar significa o início de uma
outra vida. No tempo da revolução, acordara para a construção de sua própria família; agora,
acorda para a inclusão nesta mesma família, dez anos depois de sair de casa e permanecer nos
campos de guerra.
Pelo deslocamento dos Schneider do Chuí para São Leopoldo, pelo trabalho honesto e
contínuo de Catarina, pelo dormir depois da guerra do Philipp, pela adesão ao grupo dos Mucker
por parte dos protagonistas da ação, pela mudança de vida de Gründling, desprende-se que a
tragédia que marcou por um certo tempo o imigrante pode ser apagada dos sentimentos e neles se
incluir novos encontros, estes que levem à paz.
“A verossimilhança é muitas vezes toda a verdade”, dizia Machado de Assis. É com
verdade literária que Josué reinventa uma trajetória verossímil dos alemães pioneiros no Rio
Grande do Sul, criando, no processo discursivo, uma história da formação do estado. Assim,
coloca-se como articulador entre o rigor dos historiadores e as suas invenções de ficcionista. O
efeito totalizante dessa articulação é o alargamento da história possível dos imigrantes alemães
que colonizaram grande parte do Rio Grande do Sul e nele criaram e desenvolveram o comércio e
a indústria, os quais foram vivificados em A ferro e fogo: tempo de solidão e A ferro e fogo:
tempo de guerra.
267
4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não estamos feridos de morte, e sim, feridos de vida.
Mempo Giardinelli
4.1
268
observamos no romance de Caldre e Fião o elogio aos lusos e aos alemães e a tentativa de
evidenciar a harmonia do encontro das duas etnias.
Pensemos que a questão de lógica narrativa interna de A divina pastora, com um tipo
idealizado (alemão) que o autor elaborou é bem diferente ao que os outros quatro autores
sustentam como questão a conduzir a lógica narrativa interna: estes tiveram uma preocupação
explícita de conferir o que elaboravam na matéria narrativa ficcional com um dado real,
confirmando-o ou questionando sua verdade; aquele, por sua vez, imaginou livremente a
caracterização e as ações das personagens alemãs. De correspondência com o real, no que se
refere aos alemães imigrantes, há duas questões de fundo: a assimilação de costumes do gaúcho e
a miscigenação. Essa era uma idéia que sustentava a defesa do governo a favor de imigrações de
povos europeus para o Brasil, como explica Gertz (2006, p. 2):
Todos aqueles que têm algumas informações gerais sobre a política de imigração e
colonização no país sabem que um dos objetivos visados pela política de imigração era
o “branqueamento” da raça. Imaginava-se que com a mistura do sangue imigrante
269
envolviam alemães e brasileiros, como o “perigo alemão” e a repercussão na sociedade teuto-
brasileira dos acontecimentos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), além de o país estar às
vésperas da campanha de nacionalização.
Estava, então, instalado um ambiente que refletia a crença de gaúchos na possibilidade de
um domínio alemão sobre o estado (tese do perigo alemão), a qual já era percebida algum
tempo, e sentimentos vingativos dos mesmos gaúchos despertados pela prática alemã na guerra,
de modo especial o bombardeio contra quatro navios mercantes brasileiros em 1917, causando o
seu afundamento. Este ato do Império Alemão causara muita comoção entre os brasileiros, vindo
a determinar que o governo do Brasil deixasse a neutralidade que vinha adotando em relação ao
conflito e decidisse entrar na luta. Nessas circunstâncias, as pessoas da etnia alemã que viviam no
Rio Grande do Sul sofreram variadas agressões e foram submetidas a perseguições de parcelas da
população gaúcha, de órgãos da imprensa, de instâncias políticas e governamentais.
Acordada a paz na Europa e limitado o poder da Alemanha, no Rio Grande do Sul, aos
poucos, a hostilidade foi cedendo espaço para uma convivência mais civilizada, retomando-se a
aceitação dos teutos e tendo lugar um processo de reconhecimento de sua contribuição para o
desenvolvimento do estado.
Em 1924, ano em que Coaracy escreveu Frida Meyer, muito dessa realidade que
envolvera os alemães era apenas um acontecimento do passado. Esse foi, também, o ano do
centenário da imigração e, para festejá-lo, foram inúmeras as atividades, as quais expressaram o
reconhecimento público do papel da etnia junto à sociedade gaúcha. Certamente, isso foi uma
trégua, como a história nos mostrou, pois, com a campanha de nacionalização e com a Segunda
Guerra Mundial, os conflitos entre alemães e gaúchos novamente se acentuariam.
Por ter vivido e trabalhado em Porto Alegre, tendo colegas de origem alemã, o autor
contava com a referência de sua convivência pessoal com a comunidade alemã no momento da
representação daquele universo teuto-brasileiro em seu romance.Tinha também à sua disposição
uma consolidada história do romance brasileiro, que havia levado os intelectuais e artistas de
todas as áreas para o modernismo. Voltando para esta história, percebemos que ele adequou os
seus alemães a um modelo experimentado no período literário anterior e que trazia consigo a
transposição de vivências de lusos: é com Casa de pensão (1894), de Aluísio Azevedo, que Frida
270
Meyer tem vínculo. Em ambas as histórias a família vai se desagregando e hóspedes participam
desse desagregamento.
A envolver o romance Frida Meyer também há uma referência literária brasileira da
década de 1920 que serve de contraponto e que conta para a produção literária sul-rio-grandense:
em termos de data, é anterior a Amar, verbo intransitivo, de Mario de Andrade, que foi publicado
em 1927. Este romance tem uma personagem alemã, “Elza”, cujo papel é a iniciação sexual de
rapazes da elite de São Paulo.
Vianna Moog, por sua vez, está mergulhado num universo de teutos e destaca a parte
deles que morava, trabalhava e enriquecia no Rio Grande do Sul, denominando-se “alemã”,
irradiando orgulho pelo pertencimento à etnia - principalmente nesse tempo em que Hitler
impregnara nos seus a idéia de que eram superiores a outras etnias -, não pela condição de
brasileira. Na identidade étnica que esta parte aqui construiu prevalecia o caráter germânico,
cultivado, especialmente no uso da língua materna, no ensino em escolas particulares de
propriedade de alemães e na reverência ao que a Alemanha ditava em termos de cultura e de
política na época.
O Brasil, entretanto, tanto por parte do governo quanto por parte da população em geral,
reclamava mais brasilidade dos alemães. Acontece que, com o poder de Hitler ameaçando a
autonomia das nações e submetendo algumas etnias a um bárbaro sofrimento, mas conservando,
mesmo assim, a imagem de herói para muitos da sua etnia que viviam no Rio Grande do Sul, a
ponto de se unirem na captação de recursos para enviar à Alemanha,
96
os teutos chegaram a ser
temidos como possíveis agentes de enfraquecimento da nação brasileira em favor dos ditames de
Hitler.
Diante disso, formularam-se várias ordens capazes de impor uma transformação: escolas e
sociedades alemãs foram fechadas, o culto em ngua alemã foi proibido, o idioma alemão não
mais pôde ser usado em público, não foi mais permitida a circulação de jornais alemães. Essas
ordens foram traduzidas na campanha de nacionalização liderada pelo governo e apoiada por boa
96
Sobre os recursos que os imigrantes alemães e descendentes enviavam do Rio Grande do Sul para a Alemanha, os
estudiosos da imigração empreendem discussões que se confrontam: para alguns, eram remessas que auxiliariam a
causa nazistas; para outros, eram suprimentos para os parentes que lá viviam. Schreiner (1996, p. 46), por exemplo,
assim se posiciona quanto à questão: “Os descendentes de imigrantes, preocupados com seus amigos e parentes na
guerra, enviaram-lhes alimentos, especialmente café, chocolate e cigarros, que tinham bastante valor na Europa
destruída e propiciavam a aquisição de alimentos. Tais envios muitas vezes foram realizados com sacrifício e não
foram compreendidos por autoridades e população de descendência lusa, que viam neles, não a preocupação por
prestar auxílio a pessoas amigas, mas antes um auxílio à causa do nazismo.”
271
parcela da população “não estrangeira”, que deflagrou perseguições sistemáticas aos imigrantes e
seus descendentes, visando à assimilação dos mesmos.
As ações da nacionalização, os sentimentos de aversão aos alemães e a Hitler, a crítica ao
racismo alemão, as conseqüências da visível persistência da não-assimilação encontraram um
aliado em Um rio imita o Reno. Nesse sentido, o romance representou a mesma voz do senso
comum brasileiro num tempo em que o nacionalismo era a ordem. A obra circulou entre as
pessoas num momento em que as palavras que orientavam a sociedade eram “brasilidade” e
“nacionalização”. O sucesso da ficção, portanto, passando para o imaginário do público leitor
como um relato histórico, encontra aí a sua razão de ser nos anos finais da década de 1930.
No universo da teoria da literatura, Um rio imita o Reno pertence ao grupo de romances
de tese, em razão da constituição do “pano de fundo mental em que as coisas acontecem”, explica
Luís Augusto Fischer na “Apresentação” à edição de 2005 do romance (p. 8). Em primeiro lugar,
a sustentar o significado da obra estão as idéias, não a narrativa em si. E nesse espaço de idéias
ocorre uma espécie de confronto de perspectivas entre Geraldo (brasileiro) e os Wollf (alemães),
cujo ponto de reflexão é a convivência das etnias.
Uma referência de romance-ensaio ou de tese é Canaã, de Graça Aranha (1902), o
primeiro romance brasileiro a tratar da imigração alemã. Neste, as duas personagens principais
são os alemães Milkau e Lentz, que discutem sobre a fixação dos imigrantes nas terras do estado
do Espírito Santo, apresentando diferentes idéias sobre a assimilação. Vianna Moog liga-se a este
autor em termos de temática, da delimitação desta temática - ambos tratam dos problemas
referentes ao processo de integração dos alemães à sociedade brasileira - e da classificação do
romance.
Erico está de acordo com a concepção intelectual do pós-guerra de buscar a identidade
regional, que voltaria a ser uma preocupação importante para a literatura; por isso, segue o
caminho mimético de (re)criar o ambiente histórico como cenário acolhedor das personagens de
ficção. O ambiente recriado é aquele que formou o Rio Grande do Sul com a participação do
imigrante alemão. Menton (1993, p. 34) registra: “Tal vez la s sobresaliente de las novelas
históricas criollistas es O continente (1949) del brasileño Erico Veríssimo”. Gabriel Garcia
Márquez percebeu a inovação, a engenhosidade da forma romanesca em O tempo e o vento,
tomando-o como uma referência de criação para escrever o seu Cem anos de solidão (1967).
97
97
Conforme Luis Fernando Verissimo (2000)
272
A exemplo dessa crítica internacional, no Brasil Erico é amplamente reconhecido como o
escritor que, após anos de existência do romance histórico (desde o Alencar), encontrou a forma
madura desse subgênero literário. A esse respeito, assim argumenta Flávio Loureiro Chaves
(2000, p. 70):
Ocorre que o mural representativo da nossa formação, fixando tanto os mitos fundadores
quanto a seqüência dos fatos, também não era uma idéia nova. Vinha do romantismo
nacionalista (leia-se Alencar) e reapareceu em diversas correntes do modernismo a partir
dos anos 20, rodando até a concepção do Macunaíma de Mário de Andrade. O volume
inaugural de O Tempo e o Vento, em 1949, não incorporou, pois, à ficção o “projeto” do
romance histórico, que era antigo. Erico Veríssimo ofereceu, isto sim, a chave da sua
resolução formal que, fossem quais fossem os antecedentes, não havia sido encontrada
até então. Afinal, o triunfo da criação não residia na mera descoberta de um tema, mas
na sua expressão ótima, que acaba por incluí-lo definitivamente na nossa visão do
mundo.
Como podemos observar, também para este estudioso com O tempo e o vento temos o
exemplo da forma de fazer o romance histórico.
Erico inicia a sua leitura dos alemães no Rio Grande do Sul num período histórico em que
a cultura do imigrante alemão e seu trabalho eram reconhecidos como essenciais na mudança do
estado, que deixou de ser patriarcal e agrário e passou a se desenvolver pelo comércio e indústria.
Porém, muitos sentimentos contrários à etnia eram superiores a esse reconhecimento, pois havia
recém terminado a Segunda Guerra Mundial. No Brasil, antes disso (1930) e isto serve para
contextualizar também o momento de Vianna Moog - já
273
O nacionalismo alemão, então, que serviu até mesmo de rumo para o governo brasileiro
levar a nação ao desenvolvimento almejado, teve como culminância o nazismo. A literatura rio-
grandense, nessas circunstâncias, instalou um debate sobre questões determinantes na construção
da parte da identidade étnica alemã vista como negativa, resultando em críticas sérias ao
comportamento daqueles que, em denúncia do racismo praticado por muitos da etnia, ironizavam
a forma de expressão dos sujeitos, quer pelo uso da língua alemã, quer pelas manifestações
culturais, explicitando conflitos com os brasileiros, propagando, enfim, uma imagem repulsiva
dos imigrantes e seus descendentes, numa contraposição à imagem positiva dos nacionais. Assim
o fizeram Vianna Moog e Erico Verissimo.
A situação dos teuto-gaúchos era bem outra quando Josué Guimarães escreveu sobre a
imigração alemã: eles não não estavam mais sob a suspeita dos luso-brasileiros, como
também ocupavam os principais espaços no poder político. Basta tomar como exemplo a
elevação do general Ernesto Geisel à presidência do Brasil em 1974, este um descendente de
imigrantes alemães, nascido em Bento Gonçalves, de confissão luterana. Isso, definitivamente,
confirma uma mudança de mentalidade do Brasil em relação à imagem do imigrante alemão e de
seus descendentes.
Acompanhando esse status positivo conferido à etnia na época, grandes homenagens
foram feitas aos alemães por ocasião do sesquicentenário da imigração, com o apoio e atenção
especial do presidente da República e do governador do estado, Euclides Triches. A contribuição
alemã estava, a essas alturas, definitivamente admitida como parte assencial da vida gaúcha. E
Josué, nesse contexto, volta-se para tempos heróicos da formação do Rio Grande do Sul nos quais
viveram e trabalharam os primeiros imigrantes, reconstruindo a epopéia daqueles que estavam
sendo propagados como heróis da colonização do estado e protagonistas da sua ascensão
econômica. Nesse sentido, seu romance constitui um depoimento sobre uma época e seus fatos,
marcado por uma visão construída num tempo presente bastante rico em relação ao tema, como
foram os primeiros anos da década de 1970.
A ferro e fogo marca a estréia de Josué como romancista e, a julgar pela opção do tema,
confirma a atenção que o escritor tinha talvez sagacidade em relação ao momento histórico
em que vivia, no qual se afirmava o interesse pela interpretação do papel dos alemães na
formação social, política e econômica do Rio Grande do Sul, formulando-se uma imagem
positiva do imigrante.
274
É nesse contexto que também muitos intelectuais de diversas áreas do conhecimento
passam a se dedicar a pesquisas sobre a presença dessa etnia no Rio Grande do Sul. Dentre esses
intelectuais podemos destacar René E. Gertz, Martin Dreher, os autores dos textos constantes em
RS: imigração e integração, livro organizado por Sérgius Gonzaga e José Hildebrando Dacanal,
também os autores dos textos de Nós, os teuto-gaúchos, livro organizado por Luís Augusto
Fischer e René E. Gertz, Renate Schreiner, Magda Roswita Gans, Marcos Justo Tramontini,
Lucio Kreutz, Telmo Lauro Muller. Hoje, seus estudos continuam sendo referências para a
compreensão do processo desenvolvido pelos imigrantes alemães no Rio Grande do Sul,
incluindo questões como germanismo, educação, religião, política, economia, perigo alemão,
construindo uma renovação da pesquisa e da interpretação da imigração alemã.
O fato de Josué escrever uma história sobre um acontecimento bastante afastado no tempo
resulta num desprendimento da realidade, o qual se efetiva no ato de conceber uma história fora
do seu ambiente, fora da perspectiva real do presente, diferentemente dos romancistas anteriores
aqui estudados, com exceção do Erico Veríssimo. Estes, como referi, escrevem sobre algo de
seu tempo presente e que acontece no ambiente onde vivem (Vianna Moog) ou onde haviam
vivido há pouco tempo (Caldre e Fião e Vivaldo Coaracy).
Josué, por sua vez, volta-se para um período do século XIX, 150 anos antes de seu
presente. Dessa forma, coloca-se na tradição de outros tantos grandes ficcionistas que criaram
obras clássicas sobre temas históricos do passado de um país, de uma sociedade, a exemplo de
Tolstoi (Guerra e paz), Stendhal (O vermelho e o negro), Erico Verissimo (O tempo e o vento) e
Vargas Llosa (A guerra do fim do mundo).
Os romancistas, colocados na linha do tempo em que se construiu o caminho dos alemães
no Rio Grande do Sul, estiveram envolvidos em contextos culturais marcados por acontecimentos
históricos que fizeram do processo da imigração uma evolução de compreensões da identidade
étnica e da importância da contribuição dos alemães para o desenvolvimento do estado. Nesses
contextos criaram com suas narrativas ficcionais um efeito de verdade, conforme o sentido dado
por Jen Marie Goulemot (1990, p. 398): “A verdade está no fim de uma procura que é uma ascese
social e moral.” Embora exista muito de real nas histórias, a verdade contada emerge do íntimo,
por isso age sobre o sujeito que lê, levando-o a reconhecer no narrado um mundo possível dos
alemães imigrantes do Rio Grande do Sul.
275
Mesmo que os autores analisados tenham visões particulares dos alemães e se
diferenciem, por isso, no tratamento do conteúdo “imigração alemã”, eles se aproximam quanto à
forma de elaborar seus romances, são destaques disso os seguintes aspectos: os cinco textos têm
uma forma que está vinculada à terceira pessoa; revelam uma espécie de distanciamento da
matéria narrada; demonstram um apego à verossimilhança; têm um vínculo com a matéria-prima
histórica (referências reais - pouco presentes em A divina pastora no respeita aos alemães) e
existe uma prioridade do objeto representado.
Todos os romancistas refletem em seus trabalhos a questão da diferença étnica,
abordando, à exceção de Caldre e Fião, certos conflitos advindos dos contrastes que se formaram
na convivência entre alemães e brasileiros. A história narrou com insistência que, diante dos
desafios a que os imigrantes se viam expostos no Rio Grande do Sul, no que se referia à situação
276
Muito disso ganhou maior força na fase de colonização vivenciada até a década de 1870,
quando se fundou a maior parte das colônias homogêneas, oficiais ou particulares, as dos vales
dos Sinos, do Caí, do Taquari, do Jacuí e do Pardo.
277
Meyer. A força que esses blocos homogêneos adquiriram não deixou de causar
preocupações à administração.
O registro histórico de que havia olhares atentos dos nacionais voltados para os alemães,
por serem grupos que trabalhavam de modo diferente, que falavam uma língua estranha, que
tinham outras tradições culturais, que eram protestantes e priorizavam as escolas, conta das
muitas investidas de uma etnia contra a outra (lusa e alemã), as quais têm seus auges nas duas
guerras mundiais e na campanha de nacionalização do governo Getúlio Vargas. Isso tudo nos
remete à etnicidade teuto-brasileira que foi construída na prática dos imigrantes e nos discursos
de e sobre eles, cujos principais substratos são a religião, a língua, a nacionalidade e a capacidade
de trabalho alemã.
No contexto cultural rio-grandense, com a presença da etnia alemã, passou-se a conviver
com a noção de Deutschtum, nas acepções explicadas por Seyferth (1999, p. 1):
A palavra Deutschtum tem dois sentidos que convergem para compor a etnicidade teuto-
brasileira: expressa o sentimento de superioridade do "trabalho alemão" — e, neste caso,
remete ao progresso trazido pelos pioneiros à "selva" brasileira e define o
pertencimento à etnia alemã, estabelecendo seus critérios língua, raça, usos,
costumes, instituições, cultura alemães.
O primeiro sentido tem relação com o processo histórico de colonização associado à
idéia de Heimat: o trabalho "pioneiro" de construção de uma sociedade nova e
progressista, literalmente a edificação de uma nova pátria no Brasil ou, mais
restritamente, no Vale do Itajaí. Daí o emprego da palavra Heimat (pátria), derivada de
Heim (lar) — no seu sentido mais particularista a pátria deve coincidir com o lugar onde
o indivíduo tem o seu lar. Ou pode ser, simplesmente, a comunidade étnica que, para ser
alemã, deve expressar Deutschtume aí está o segundo sentido, englobando a idéia de
raça, língua, cultura e espírito. Desse modo, define-se o pertencimento à etnia/nação
alemã pelo jus sanguinis, instituindo uma germanidade materializada por intermédio da
"colônia alemã
99
.
Nos romances tudo isso aparece como uma expressão social que acompanhava os alemães
nas colônias e nas cidades. E a referência a essas condições existenciais dos imigrantes,
destacando o diferente, na maior parte das vezes sugere que o diferente é problema, é defeito da
etnia. Assim, tratando dessa questão, os escritores inserem-se num longo debate longo que
ocupou, e ainda ocupa, muitos intelectuais brasileiros que analisaram a imigração. Sempre os
preocupou qual seria a dimensão do alcance do efeito desse “diferente” da etnia alemã sobre a
formação social e cultural do país. Esse assunto já se colocava aos intérpretes do Brasil do século
99
Disponível no site www.scielo.br. Acesso em: 10 fev. 2007.
278
XIX, dentre os quais as maiores expressões do pensamento sobre a colonização alemã no sul do
Brasil foram Tobias Barreto (1839-1889) e Silvio Romero (1851-1914), que se revelaram
admiradores da Alemanha. Com suas idéias, eles instalaram uma problematização sobre as
questões miscigenação e germanismo.
O efeito das interpretações de Tobias Barreto pode ser dimensionado pela observação do
pastor Hermann Dohms, que o considerou “o brasileiro que mais profundamente compreendeu a
essência alee que com maior ardor ajudou a construir a ponte do pensamento alemão para a
maneira de ser brasileira” (apud GERTZ, 2006). Teria sido Barreto, segundo Gertz, precursor do
germanismo cultivado entre os intelectuais e políticos brasileiros, o qual se diferencia daquele
cultivado pelos imigrantes e seus descendentes em suas famílias, sociedades, escolas, igrejas,
cujas características foram antes apontadas. Guilhermino Cesar também assim considera Tobias
Barreto, por entender que seu trabalho de defesa e divulgação das idéias alemãs caracterizou-se
como “um verdadeiro apostolado cultural” (CESAR, 1971, p. 253-254). Nesse sentido, parece-
lhe certo reivindicar para esse sergipano, a exemplo do que fez Silvio Romero, “a iniciativa da
primeira campanha sistemática em prol do pensamento germanista no Brasil” (p. 253).
Silvio Romero deu continuidade ao legado de Tobias Barreto e interpretou a presença dos
alemães como um impulso para o desenvolvimento do país. Com essa concepção, e de acordo
com a ideologia do branqueamento, “pensava que, quanto maior fosse a importação de cultura e
sangue alemães, mais o país se desenvolveria” (GERTZ, 2006, p. 2). Seu pensamento em relação
a esse desenvolvimento pressupunha mudanças definitivas da relação dos imigrantes com a
Alemanha, como também a sua assimilação. Assim Gertz (2006, p. 2) explica:
Para Romero, os efeitos benéficos da imigração alemã se fariam sentir se oa
imigrantea rompessem de forma total seus vínculos com o país de origem, se ao piaarem
em território brasileiro abrasileirassem seu sobrenome, se não falassem maia nenhuma
palavra em alemão, se casassem com uma pessoa de origem étnica “antípoda”, o que
quer dizer preferencialmente uma pessoa negra. O caráter metafísico dessa concepção
eatava no fato de que se acreditava no e louvava piamente o valor da cultura e do aangue
alemães
100
, mas seus efeitos benéficos sobre a sociedade brasileira se efetivariam
caao ae diluíssem e desaparecessem de forma total no sangue e na cultura brasileiroa.
Noaso aangue e nossa cultura seriam tanto mais beneficiados, quanto maior foase a
diluição do sangue alemão. Isso significa que Romero foi um fervoroso “germanista”,
admirador e cultor da Alemanha e dos alemães, mas, na sua opinião, se um imigrante
alemão ou descendente manifestasse apego à cultura e à etnia alemãs, defendesse um
germanismo tal como era defendido por ideólogos de origem alemã, estaria
100
Numa nota, Gertz (2006, p. 2) explica: “Seu mestre Tobias Barreto chegou a editar um jornalzinho em ngua
alemã na caatinga nordestina.”
279
descumprindo a função que se lhe atribuía pela política de imigração.
101
O resultado
dessa concepção refletiu-se no conhecido livro O alemanismo no sul do Brasil: seus
perigos e meios de os conjurar, publicado em 1906. Pelo título, pode-se aquilatar a
avaliação que fazia da imigração alemã no sul do Brasil tal qual ela, na sua opinião,
efetivamente se dera.
Essa forma de pensar como os alemães que vieram para o Brasil e seus descendentes
deveriam ser e agir foi também cultivada pela literatura. Em Um rio imita o Reno e em O tempo e
o vento, mais do que nos outros romances desta pesquisa, observamos a presença dessa leitura de
Romero, que indica a defesa da assimilação. Todavia, é possível fazer uma observação que cabe
para todos os romances: paralelamente ao tratamento das diferenças, aparece o reconhecimento
do papel dos alemães na instituição e no fortalecimento da pequena propriedade rural e no
desenvolvimento do comércio e da indústria do Rio Grande do Sul. Considerando isso, a
literatura analisa e questiona o processo da colonização alemã, mas sem deixar de demonstrar que
a corrente imigratória foi de grande importância para o estado.
Por meio dos romances estudados, tive contato com instigantes pontos de vista sobre o
objeto de estudo. Como afirma Carlo Ginzburg (2002, p. 43), “todo ponto de vista sobre a
realidade, além de ser intrinsecamente seletivo e parcial, depende das relações de força que
condicionam, por meio da possibilidade de acesso à documentação, a imagem total que uma
sociedade deixa de si”. Nesse sentido, os cinco escritores, diferenciando-se quanto à época
histórica e à visão de mundo, acabam por tecer uma narrativa totalizante da imigração e
colonização ale no estado, pois contemplam, como grupo que formam, as mais diferentes
características que identificam a etnia, como espaços ocupados campo e cidade -, atividades
econômicas desenvolvidas e vivências culturais e religiosas.
Observamos, então, que a literatura gaúcha, embora tendo produção ainda pequena
quando a imigração iniciou, não demorou a dar atenção à nova realidade de colonização. Como
vimos, no primeiro romance sul-rio-grandense de que temos conhecimento, A divina pastora,
os alemães aparecem como personagens importantes. Desde então, tem-se escrito ficção como
leitura possível do mundo fundado por esses imigrantes e seus descendentes no Rio Grande do
Sul. A literatura tomou como seu o desafio da representação dos alemães em terras gaúchas,
garantindo, nessa escrita, o lugar da dimensão humana.
101
Gertz (2006, p. 2) observa: “Sem querer comprometer o autor com o conteúdo do resumo que acabo de fazer
sobre as concepções de Romero, esse tema foi abordado recentemente no capítulo O alemanismo no sul do Brasil do
livro Sílvio Romero, hermeneuta do Brasil, de Alberto Luiz Schneider (São Paulo: Anablume, 2005, p. 155-189).”
280
Mesmo que constantes nos registros históricos e sentenciadas várias verdades sobre a
imigração alemã, foi fundamental a atuação dos escritores ficcionais para a formação de
conceitos sobre a “etnia”, como também para interpretar as imagens desta elaboradas pela
história em diferentes épocas. Pelos romances nos são oferecidos elementos para realizarmos uma
preciosa reflexão acerca da vida alemã e sobre a importância das suas representações deles nas
obras para o imaginário dos leitores.
Dessa forma, a literatura acentua elementos que nos sugerem a dimensão do alcance da
iniciativa do governo imperial, que se desdobra em realidades brasileiras matizadas de
estrangeiras desde o início do século XIX. Não fica restrita, por exemplo, a sangue e língua para
particularizar a etnia alemã. Enfatiza, ao invés disso, uma luta de humanos em meio à natureza
estranha, impositiva, e a outros grupos humanos muito assimilados e dizendo-se donos da
terra e do modo de ser rio-grandense. Enfatiza também cultura própria, cultura assimilada,
críticas a comportamentos, preconceitos na convivência com os brasileiros e formação de núcleos
rurais e urbanos. Enfim, dessa forma é que os romances tornam singular a história dos alemães e
seus descendentes no Rio Grande do Sul. E a visão de cada escritor nos vem pela conjugação de
conteúdo selecionado e da forma construída. Como afirma Fredric Jameson (1992, p. 9), “a
produção da forma estética deve ser vista como um ato ideológico em si próprio, com a função de
inventar soluções imaginárias ou formais para as contradições sociais insolúveis.”
4.2 - Mapas literários
Uma boa interpretação do real acontece quando o texto representa o sujeito em questão,
conduzindo a que sua história concreta e seus sentimentos sejam objetivados em palavras. É algo
assim que ocorre nos romances estudados neste trabalho. Alguns estão mais presos ao real, outros
um pouco menos, mas todos se aproximam por trazerem características de romances
documentais, formalizando, dessa forma, uma leitura possível do processo por que passou a etnia
alemã no Rio Grande do Sul ao longo de 150 anos (1824 – 1974).
São os inúmeros aspectos dessa leitura que podem ser representados por meio de mapas
literários, conforme designação de Franco Moretti. Apresento neste estudo dois mapas: no Mapa
Literário 1 destaco os municípios reais do estado do Rio Grande do Sul em que foram
281
ambientadas as personagens dos romances estudados; no Mapa Literário 2, os deslocamentos das
personagens do campo para a cidade.
Observamos que os municípios destacados no Mapa Literário 1 são os espaços que
efetivamente os imigrantes alemães reais colonizaram. Nesse conjunto, São Leopoldo é o mais
contemplado nas histórias dos romancistas, tendo, assim, ressignificada pela literatura a sua
condição de berço da colonização alemã, a qual aconteceu desde quando ainda era feitoria (O
tempo e o vento e A ferro e fogo: tempo de solidão), passando pelos primeiros anos de sua criação
como povoado de características germânicas (A divina pastora, O tempo e o vento e A ferro e
fogo: tempo de solidão), pela época da Revolução Farroupilha (A divina pastora e e A ferro e
fogo: tempo de guerra) e chegando à situação de alvo dos discursos e de muitas ações da
população gaúcha e das autoridades governamentais, quando, no Estado Novo, pouco antes de se
iniciar a Segunda Guerra Mundial, quis-se neutralizar o poder da cidade e de seus habitantes,
ambos vistos como extensões hitleristas, bem como denunciar o comportamento racista que
caracterizava parte de sua comunidade (Um rio imita o Reno).
Porto Alegre é o segundo espaço mais representado pelos romances, onde as ações mais
importantes e a fixação das personagens são concentradas na praça Quinze e nos seus arredores.
Tudo é descrito de forma muito próxima do real, com o desenho das ruas onde se concentraram
os alemães com suas moradias, suas casas de comércio, seus clubes e bares (A ferro e fogo:
tempo de solidão, A ferro e fogo: tempo de guerra e Frida Meyer).
A Cruz Alta que aparece no mapa está no lugar de Santa Fé, a cidade imaginária de Erico
Verissimo. Pela descrição que dela aparece no romance, sabemos que o escritor a localizou
próxima de Cruz Alta, cidade onde nasceu e que também recebeu levas de colonos alemães.
uma compreensão corrente entre os estudiosos da obra O tempo e o vento de que Erico criou
Santa tendo como referência as características sociais e culturais de Cruz Alta, bem como a
sua localização geográfica.
A construção visual do Mapa Literário 1 mostra um padrão de exclusão, visto que um
grande número de colônias não aparece nos romances. É um espaço de colonização alemuito
pequeno o que os escritores refletem em suas obras, se considerarmos a grande região que
compreendeu as antigas e as novas colônias. Assim é que nenhuma colônia dos vales do Caí e do
Taquari recebeu a atenção dos romancistas que recontam a história dos imigrantes nos primeiros
150 anos de sua presença no estado. Temos, assim, uma informação importante que a geografia
282
oferece para a história do romance sobre a imigração alemã, a exemplo do que registra Franco
Moretti (2003): o que poderia estar nos romances estudados e o que realmente está neles. Dessa
forma, este mapa torna-se o mapa literário do espaço onde moram as personagens alemãs que
fazem parte dos romances gaúchos escritos durante os 150 anos da imigração no Rio Grande do
Sul.
No Mapa Literário 2 o aspecto textual selecionado é o deslocamento dos alemães do
campo para a cidade, trocando o trabalho na agricultura pelo trabalho no comércio. Os romances
que têm dados relativos a esse aspecto são Frida Meyer, O tempo e o vento e A ferro e fogo.
No primeiro temos o jovem Germano Weiss, um teuto-brasileiro que deixou a sua família
em Santa Cruz do Sul, uma das colônias antigas. A atividade da família Weiss era a produção de
fumo, espécie que, no mundo real, identificava a atividade dos colonos naquele espaço. Ele
emigrou para Porto Alegre a fim de trabalhar como arquiteto. Pela trajetória de vida que
implementa em Porto Alegre trabalhar desonestamente, enganar as pessoas e não progredir
economicamente sugere-se no romance que a saída da colônia e do círculo familiar torna o
indivíduo um desajustado, um “perdido”.
No segundo, as famílias Schultz, Spielvogel e Kern, que emigraram da Alemanha e
compraram terras aqui para nelas fazer a lavoura. A Schultz fixou-se próximo ao povoado de
Santa Fé e a Spielvogel e a Kern, em Nova Pomerânia. Com o passar do tempo, seus
descendentes fixaram-se na cidade de Santa Fé (representada no mapa por Cruz Alta) e
montaram suas casas de comércio. O desenho que as famílias imaginadas por Erico permitem
fazer no mapa remete ao tempo das primeiras décadas do século XX, quando se intensificou a
migração dos descendentes de imigrantes alemães à cidade, saindo das colônias criadas pelos
seus pais. Com isso, o Rio Grande do Sul ascendeu economicamente, desenvolvendo fortemente
seu comércio e sua indústria.
No terceiro temos os Schneider, que saíram de São Leopoldo para serem colonos no Chuí,
mas, quando terminou a Guerra Cisplatina, voltaram para São Leopoldo, onde montaram seu
primeiro empório, ainda em 1828. Assim, é representado o início do comércio dos alemães, com
produtos excedentes dos colonos dentro do período inicial da imigração, o que a história chama
de “primeira fase” (1824-1830).
A família alemã constituía-se na célula de produção na pequena propriedade, como está
representado nesses romances. Muitos discursos históricos que elevam a capacidade para o
283
trabalho que particularizava o alemão destacam que todos os membros se empenhavam no
desenvolvimento das estratégias de sobrevivência e progresso e tinham assimilada uma divisão
social do trabalho. Primeiramente, era necessário atingir a auto-suficiência; posteriormente, os
excedentes da produção familiar passariam a ser vendidos aos comerciantes, também conhecidos
como “vendeiros”, embasando, assim, o forte comércio que se desenvolveu e se consolidou no
estado pelas mãos dos alemães.
Diferentemente do que é sugerido por Vivaldo Coaracy por meio do deslocamento da
personagem Germano Weiss, os romances de Erico e Josué propõem que o trabalho na cidade
leva ao progresso. Os alemães que estão ricos na história de O arquipélago, quer dizer, no fim da
trajetória da formação do estado, não estão no campo: eles fizeram a modernidade das cidades
com seu comércio e indústria. O campo é visto por Erico como decadente. Na página 202 do v. 1,
Rodrigo Cambará diz ao irmão Toríbio: “O mundo progride, mas o Angico fica para trás, atolado
no passado.” Sabemos que o Angico é a representação do mundo rural. Em Josué a idéia se
repete: os Schneider progridem mais a partir do retorno do Chuí a São Leopoldo, onde não mais
trabalham como colonos, mas como artesãos e comerciantes.
284
285
286
4.3 – Idéias conclusivas
A literatura sul-rio-grandense, ao longo do tempo compreendido na pesquisa, foi criando
imagens sobre a família, o trabalho, a religião dos alemães imigrantes e dos seus descendentes,
bem como ressignificou espaços do estado que foram por eles ocupados, tanto no campo quanto
na cidade, recriou os seus deslocamentos entre esses espaços e reconstruiu contatos mantidos
com os da mesma etnia e com os brasileiros. Nesse sentido, com o trabalho dos romancistas
Caldre e Fião, Vivaldo Coaracy, Vianna Moog, Erico Verissimo e Josué Guimarães,
institucionalizou-se, no universo ficcional, a existência social de um dos povos que formaram o
Rio Grande do Sul. Dessa forma, foi fundado um mundo possível da gente que deixou a
Alemanha para trabalhar no extremo sul do Brasil, participando, assim, da formação social,
religiosa, política e econômica desta região.
Os escritores acompanharam a longa caminhada da história da imigração num período de
150 anos, tomando-lhe alguns trechos e fazendo destes o fermento para seus romances. Eles
recriaram o mundo do imigrante alemão no plano do imaginário, buscando para isso, às vezes,
narrações feitas por historiadores, incluindo, assim, em suas construções discursivas visões e
fatos pertencentes ao real. E as escolhas do que havia no real foram entretecidas à imaginação dos
autores, com o que surgiram histórias sobre a etnia, histórias estas carregadas de imagens dos
indivíduos, sejam eles figuras históricas, sejam personagens puramente ficcionis. Mais que tudo -
para dizer do jeito que Octávio Paz disse sobre o gênero romance em Signos em rotação (1996) -
eles reviveram instantes ou uma série de instantes e suas obras não são outra coisa senão uma
imagem.
102
Os romances estudados permitem afirmar que no Rio Grande do Sul se praticou, com
ênfase, uma literatura de cunho documental, como observamos no restante da produção
romanesca nacional. Essa característica indica uma busca de diferenciação em relação ao
romance europeu, modelo primeiro apropriado pelos escritores que iniciaram o gênero no Brasil
(Alencar), no sentido de representar a nacionalidade. Os rio-grandenses voltam-se para a
representação do que é do estado. E a parte da produção romanesca gaúcha que representou os
imigrantes alemães até Josué Guimarães estreitou, visivelmente, a relação de proximidade com a
pesquisa e a escrita da história.
102
Octávio Paz diz que um romance inteiro é uma imagem. O romancista, “por um lado, imagina, poetiza; por outro,
descreve lugares, fatos, almas” (PAZ, 1996, p. 69).
287
No início, os romances sobre os imigrantes alemães são urbanos; depois, com Erico e
Josué, são rurais, o que tem a ver com a história da literatura nacional. Como por exemplo, o
primeiro romance gaúcho, A divina pastora, foi escrito no romantismo, quando Macedo e outros
faziam também romances urbanos. E assim seguem-se os outros dois Frida Meyer e Um rio
imita o Reno -, que têm seus correspondentes no modernismo, como Amar, verbo intransitivo e
os urbanos de Erico, respectivamente. Quando Erico e Josué escreveram sobre a imigração
alemã, no Brasil outros romancistas importantes ajudavam a definir os rumos das narrativas
rurais, como Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. Quando o campo deixa de existir como único
centro produtor e a cidade começou a tomar o seu lugar, a vida rural tornou-se assunto de
romance. O movimento que se na literatura é um paradoxo em comparação com o do mundo
real: foi da cidade para o campo, ao passo que, no tempo cronológico do processo de colonização
do estado, o movimento que os alemães fizeram foi do campo para a cidade.
Dentre os romances, aquele que mais aponta para as possibilidades da integração dos
alemães é A divina pastora. Nele, a caracterização que o autor faz da personagem Clarinda
representa uma vontade de integração, talvez a realidade de Porto Alegre, que tinha, na época,
bastantes imigrantes alemães urbanos, os quais, provavelmente, conviviam bem com os luso-
brasileiros.Essa integração acontece pela língua portuguesa adotada pela família, pelo casamento
com um luso-brasileiro, pela culinária gaúcha e pelo chimarrão, pelas amizades com os do local,
pela religião católica praticada.
Entretanto, o que os romances analisados mais destacam é a diferença dos alemães em
relação aos brasileiros. Não que não houvesse semelhança, mas esta não se sobrepõe à diferença.
Como disse, foi Caldre e Fião quem mais deu espaço para ações e comportamentos parecidos
entre as personagens de origem germânica e luso-brasileira; aos demais romancistas, parece não
ter interessado destacar o que faz dos indivíduos ou grupos alemães iguais aos de outras etnias,
mas confirmar a idéia de que a identidade étnica é construída pelo contraste.
São sugestões dessa visão dos escritores as características do grupo hegemônico da região
da Praça XV no início do século XX que aparece em Frida Meyer, todas as questões de
relacionamentos interétnicos; os comportamentos apresentados pelos alemães de Blumental (São
Leopoldo) de Um rio imita o Reno, juntamente com o espaço germânico ali reproduzido; a
apresentação dos descendentes como se fossem pequenas ilhas em O tempo e o vento, sendo
tolerados pela aristocracia local, mas nunca considerados como partes constituintes “do grupo”; a
288
língua alemã que se torna problema sério para os soldados nas guerras de que participaram, sendo
motivo até mesmo de agressão física por parte dos soldados brasileiros, a iniciação do comércio
na colônia e o abastecimento da capital com produtos coloniais, o trabalho artesão e a vivência
religiosa em A ferro e fogo. Em síntese, o que os romances mais fazem é trazer imagens dos
estrangeiros imigrantes no espaço estrangeiro por eles formado dentro do Rio Grande do Sul. E
essa é uma evidente questão de identidade.
Mapeando os contatos entre imigrantes e seus descendentes com a sociedade nativa,
temos os seguintes focos principais: Em A divina pastora é um namoro; em Frida Meyer, é um
caso amoroso às escondidas e agressões em virtude da primeira Guerra Mundial; em Um rio imita
o Reno, é um amor proibido e convívio de crianças, também proibido; em O tempo e o vento, são
dois casos de amor às escondidas e agressões por causa das duas guerras mundiais; em A ferro e
fogo, é a humilhação dos colonos no campo de guerra em razão do não-entendimento da língua
portuguesa. O trabalho e a família não aparecem nos quatro últimos como elementos de
integração; são, antes, visões admiradas.
Os romances constroem personagens femininas com papéis fortes, que buscam sua
dignidade e seu espaço no grupo em que convivem, tendo significativa inserção social. Pela
representação que fazem, temos imagens de mulheres alemãs com responsabilidades tanto no
interior do grupo familiar quanto na sociedade onde estão inseridas. Acompanhamos uma
desestabilização de outras representações de mulheres feitas pela literatura, como as que a
interpretam como sendo seres frágeis e mais suscetíveis a serem atingidos física e
emocionalmente do que os homens, ou as que as caracterizam como alguém que necessita de
permanente supervisão de outro (pai, irmão, marido). O modo de viver a vida das personagens
femininas significa mais uma expressão de diferença com a sociedade luso-brasileira. Os
romancistas colocaram-nas no papel de agentes provocadores de rupturas, capazes de desarticular
as relações vigentes no meio da comunidade.
Outra questão que perpassa os romances, com exceção de A divina pastora, é a existência
de um sentimento de nativismo dos brasileiros que interfere na sua relação com o imigrante, fato
este que leva muitas vezes à repulsa do estranho, do outro (alemão). Por certo, a expectativa dos
“nativos” rio-grandenses era de logo observar nos imigrantes um envolvimento emocional com a
pátria brasileira tanto quanto o que eles cultivavam. Contudo, “nenhum estrangeiro jamais um
país como os autóctones gostariam que fosse visto” (BRUNEL et al., 1990, p. 53).
289
Os três primeiros autores escreveram sobre o tempo presente e os dois últimos, sobre o
tempo passado. Disso resultou que os do tempo presente expressaram melhor seus desejos, seus
pensamentos em relação aos alemães, pois constituíram suas visões pela observação direta do
real. Por sua vez, os demais ficaram presos a versões da historiografia ao exprimirem suas visões,
porém, com a liberdade que a distância temporal permite e a recorrência ao conhecimento
acumulado sobre a etnia e sua atuação no estado, criaram personagens mais fortes, além de seus
textos serem mais bem estruturados e terem muito de épico.
Mais do que Erico, Josué Guimarães é quem faz isso, conseguindo preencher uma lacuna
da literatura sobre a imigração alemã que até então persistia. Assim, A ferro e fogo também
significou uma resposta à reclamação feita por um dos maiores historiadores dos imigrantes, Jean
Roche, em 1969. Os livros anteriores existiam nesse período histórico reclamado por Roche, mas
suas particularidades ao representar o mundo dos alemães, sempre em partes, não permitiram
que fossem vistos como histórias que dessem conta da abrangência que os alemães, efetivamente,
atingiram sobre a terra, o comércio, as manufaturas (a origem da indústria gaúcha) e sociedade do
Rio Grande do Sul. E isso Josué fez.
As razões disso podem estar na própria limitação dos romances, o que de fato é possível
afirmar, pois não tomam uma época prolongada para representar nem narram uma saga; dirigem-
se a algo mais pontual, num espaço mais reduzido e num tempo mais curto. Erico até se aproxima
de Josué, mas com uma diferença fundamental: os alemães não são os protagonistas principais da
história nem da formação do Rio Grande do Sul. Todavia, as razões também podem estar na
relativa imaturidade da questão da imigração quando os outros romances apareceram, quer dizer,
pelo fato de a imigração ainda não ter completado o ciclo de 150 anos de presença no estado, que
era um tempo longo e, por isso, que produziu mais elementos que proporcionavam contar uma
história abrangente sobre um passado assimilado, com muitas das diferenças da etnia diluídas
entre as demais.
Além dessas possíveis razões, a lacuna mencionada ainda apresenta outra questão: pode
ter a ver com o fato de os escritores, com exceção do Vianna Moog, não serem teutos - e mesmo
ele era meio luso. A esse respeito, podemos pensar, apenas como uma hipótese, que era
necessário tomar distância do fato, razão por que os teutos não escreveram sobre sua história.
Sendo teuto, ficava mais difícil ou comprometedor escrever um romance histórico sobre os
ascendentes, pois poderia, até mesmo, surgir a dúvida sobre como contar a história.
290
E mais: quando o romance A ferro e fogo apareceu, já na década de 1970, estava
enterrada, definitivamente, a vigência histórica da oligarquia dos fazendeiros e charqueadores
gaúchos, um ciclo que começara no século 19, talvez na Revolução Farroupilha mesmo,
alcançando a República modelar inventada aqui, depois Vargas e o fim. Nesse processo, a
evolução histórica dos alemães no Rio Grande do Sul chega à ocupação do espaço maior, a
presidência da República brasileira: em 1974, a lista dos generais-presidentes que dirigiram o
Brasil, durante a ditadura, teve um inédito sobrenome, Geisel, um gaúcho filho de imigrante
alemão.
Diferenciação e assimilação são questões sempre vivificadas pelos romances estudados.
Um grupo em relação a outro grupo produz a diferença. Se os grupos estão assimilados, quem
reclame a ausência de etnia. Ser cidadão brasileiro, como foi possível aos imigrantes, não elimina
a condição de estrangeiro. Para além do discurso teórico, devemos observar a prática: o processo
desenvolveu-se de tal forma que hoje o belo, o desejado, é visitar cidades típicas, que expressam,
principalmente na arquitetura e na cultura, as particularidades de uma etnia, como o fazem as
cidades conhecidas como de alemães no Rio Grande do Sul, que se constituem em verdadeiros
espaços étnicos.
4.4 – Questões que persistem
A epopéia dos alemães que se fixaram no Rio Grande do Sul no século XIX e histórias de
vida de seus descendentes não são tema somente dos romances estudados neste trabalho;
constituem o marco principal da produção romanesca sul-rio-grandense sobre imigração, seguida
pela italiana, mas não ainda superada. Nesse sentido, para termos uma idéia do volume de obras
literárias que se produziu no estado sobre a temática, cito, além dos romances que formam o
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291
de medusa e, em 1991, novamente Valesca de Assis com A colheita dos dias; em 1993, com
Fernando Neubarth, Olhos de guia, e, em 1999, À sombra das tílias; em 2001, Pedro Stiehl, com
Bárbaros no paraíso. Na poesia, destaco dentre os poetas Paulo Becker.
Ficcionistas, portanto, continuam apresentando novas visões e formulando questões para
se interpretar a imigração alemã com base em diversos aspectos. Inserem-se, assim, no contexto
de discussão sobre integrar e conviver versus diluir e perder a identidade, que resultam em
diferentes visões sobre as relações interétnicas.
No futuro, talvez, a sociedade brasileira, por ter se constituído como uma sociedade
miscigenada, tenha de voltar a discutir esse assunto como tema importante, porque resguardar a
diferença é algo de muito significado para vários grupos. Talvez, ainda, precise começar a pensar
em manter espaço para a preservação das identidades. A literatura produzida é uma das principais
fontes para motivar reflexões sobre a questão das etnias, porque explicita diferentes posições,
porém não é ela que tem de resolver o problema, embora registre tudo e pense sobre isso.
Esta tese despertou em mim a vontade de contribuir mais com a construção de
conhecimentos relativos a questões que envolvem relações interétnicas, especialmente no que se
refere à preservação da identidade. Procurarei, na medida do possível, incluir nos meus estudos
futuros outras pesquisas sobre a literatura que trata do tema. Um elemento interessante de
estudar, por exemplo, é a língua.
Tomando como base os romances estudados, posso afirmar que a ficção fala de vida em
ação dos imigrantes alemães, levando, assim, até os leitores imagens que remetem ao sentido que
a epígrafe deste capítulo sugere, ou seja, são imagens de sujeitos feridos de vida, não de morte.
292
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