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CAROLINE R. HECK
A GARGALHADA MOSTRA SEUS DENTES
O RISO COMO INSTRUMENTO DE CRÍTICA
EM CAMPOS DE CARVALHO
PORTO ALEGRE
2007
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ESPECIALIDADE: LITERATURA COMPARADA
LINHA DE PESQUISA: TEORIAS LITERÁRIAS E
INTERDISCIPLINARIDADE
A GARGALHADA MOSTRA SEUS DENTES
O RISO COMO INSTRUMENTO DE CRÍTICA
EM CAMPOS DE CARVALHO
CAROLINE HECK
ORIENTADORA: PROFª DRª. LÚCIA SÁ REBELLO
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Federal de
Rio Grande do Sul, como requisito parcial para a
obtenção de título de Mestre em Letras
Literatura Comparada.
PORTO ALEGRE
2007
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AGRADECIMENTOS
Agradeço à Universidade Federal do Rio Grande do Sul que me possibilitou um ensino de
qualidade e gratuito, tanto na graduação quanto no mestrado. Sem esses recursos, não teria
chegado onde cheguei.
Ao Departamento de História, onde obtive uma formação, possibilitando a procura e o
encontro de caminhos diferentes, ampliando o meu horizonte na busca por áreas de
conhecimento que se somassem à minha formação de historiadora.
Ao Instituto de Letras que me acolheu permitindo que, mesmo tendo uma formação
diferente, tivesse a possibilidade de aprender, além de ouvir o que eu poderia lhes dizer
sobre a História e, sobretudo, tomando minhas diferenças como soma na construção de um
conhecimento partilhado.
À minha orientadora, Lúcia Rebello, que me cedeu seu tempo, compreendeu minhas
dúvidas e tomou minha formação como acréscimo para a confecção deste trabalho.
Aos meus amigos que sempre estiveram presentes, ouvindo, discutindo, traduzindo
coisinhas de Latim (Guilhermóide), e entendendo como a gente fica quando tem que
escrever sob pressão. Ao Leonardo, que me possibilitou o conhecimento necessário sobre a
Noruega, indispensável para este trabalho. Em especial à minha querida amiga Cristiane,
que me apresentou a Campos de Carvalho e que, mesmo longe (Campo Bom fica na
Noruega), está sempre presente nas conversas do velho grupo.
Ao meu querido namorado Dante, que sempre, sempre está comigo, mesmo quando não
tinha mais ninguém, ele estava aqui, ouvindo, consolando, ajudando, procurando material na
internet, lendo os e-mails, me estimulando, lendo, corrigindo, sugerindo, etc. Sem ele,
certamente teria sido mais difícil.
Ao meu irmãozão Julius, que para mim foi e sempre será um exemplo, sempre me
“empurrando” para frente, mandando fazer as coisas que são importantes e que, quando
precisei, esteve aqui.
À mãe e ao pai que estão longe e estão aqui, que me deram todas as possibilidades para
estudar sem ter outras coisas para me preocupar, que sempre me incentivaram. Espero não
decepcioná-los nunca.
À minha Nona, que, mesmo sem saber ler, me ensinou e que sempre está em minhas
lembranças. Sinto demais a sua falta.
E, por último, mas não menos importante, ao Homem-Coelho e sua fantástica filosofia de
vida.
RESUMO
Este trabalho trata da abordagem de duas obras literárias como fonte de conhecimento
histórico e as implicações dessa forma de olhar para a história e para a literatura. A lua vem da
Ásia e O púcaro Búlgaro, obras do escritor mineiro Campos de Carvalho, são vistas sob a
perspectiva de obras que, analisadas dentro de seu contexto histórico, são lentes através das
quais podemos ver o que pensava o seu autor sobre a realidade que questionava, sem, no
entanto, associar-se a nenhuma linha de pensamento pré-determinada, razão esta que fez com
que seus livros desaparecessem das prateleiras e das análises de críticos especializados, numa
época em que o engajamento político direto era condição determinante para ser lido. A análise
da crítica social mordaz de Campos de Carvalho é feita através da perspectiva do riso e do
risível nos dois romances analisados. O riso é visto como uma forma de apontar as falhas da
sociedade massificante, consumista e belicosa que criticava. Os narradores de Campos de
Carvalho podem ser lidos como gêmeos: “noite”/“dia”, revelam seu descontentamento com o
mundo através do controle das narrativas, respectivamente, de A lua vem da Ásia e O caro
búlgaro, e apontam, de formas diferentes, sua desesperança frente ao mundo. A questão da
interdisciplinaridade também é discutida neste trabalho, num momento em que as diversas
áreas de conhecimento dialogam entre si para se enriquecer mutuamente, uma vez que, de
narrativas ficcionais, se podem extrair informações válidas para a pesquisa em história.
ABSTRACT
This work deals with the approach of two literary compositions as source of historical
knowledge and the implications in that way of looking for the history and literature. A lua
vem da Ásia and O caro Búlgaro, works of Campos de Carvalho, are seen under the
perspective of works that, analyzed inside of its historical context, they are lenses through
which we can see what its author thought about the reality that questioned, however, without
to associate it to any line of daily opinion. This reason that did whit their books disappeared
of the shelves and the analyses of specialized critics, at a time where the direct political
engagement was decisive condition to be read. The analysis of mordacious social critic of
Campos de Carvalho is made through the perspective of the laughter and of the laughable in
the two analyzed romances. The laughter is seen as a form of pointing the imperfections of the
society homogeneously, consumerist and belligerent that criticized. The narrators of Campos
de Carvalho can be read as twins: "night"/"day", they reveal his dissatisfaction with the world
through the control of the narratives, A lua vem da Ásia e O púcaro búlgaro, respectively, and
they appear, in different ways its hopelessness front to the world. The interdisciplinarity is
also discussed in this work, at a moment where distincts areas of knowledge dialogue
amongst itself to enrich mutually. From fictions narratives can be extracted valid information
for history investigation.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................................................
8
1 HISTÓRIA E LITERATURA..........................................................................................
13
1.1 A Interdisciplinaridade..................................................................................................... 15
1.2 A Nova História................................................................................................................
17
1.3 A História Lendo a Literatura...........................................................................................
27
1.4 A História Lê Campos de Carvalho..................................................................................
33
1.5 O Riso Critica a Sociedade...............................................................................................
36
2 UM MUNDO LUNÁTICO NA ÁSIA OU EM QUALQUER LUGAR........................ 44
2.1 Atem o Autor.................................................................................................................... 44
2.2 Um Louco Explica as Coisas............................................................................................
54
2.3 Capítulo Capítulo............................................................................................................. 61
3 A PROVA DE QUE ESTE CAPÍTULO EXISTE..........................................................
75
3.1 Um Eclipse para A Lua.....................................................................................................
75
3.2 E Agora Está Livre............................................................................................................
85
3.3 E a Gargalhada Fala..........................................................................................................
96
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................
98
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................
101
INTRODUÇÃO
Ao começar a leitura de um livro, o que se pode esperar dele? Essa é uma questão que
será respondida unicamente pelo leitor, pois será sua leitura que determinará o sentido que
esse texto terá para ele. Podemos buscar em um romance alguns momentos de distração e
diversão; podemos buscar informações específicas que respondam a perguntas que queiramos
ver respondidas; ou buscamos a confirmação e a legitimação de nossas próprias idéias sobre
um tema qualquer. Aparentemente, são diversos e distintos os elementos que podemos
encontrar em um romance, uma peça, um conto, etc. E o mais importante disso é que, em um
mesmo livro, diversas pessoas vão, provavelmente, buscar e, conseqüentemente, encontrar
conteúdos também distintos.
De duas obras de Campos de Carvalho partiu a escolha para este trabalho. São elas A
lua vem da Ásia e O púcaro búlgaro, abordadas sob a ótica da história e do riso. Leia-se o riso
como fonte de conhecimento para a pesquisa em história. Teoricamente, o trabalho está
embasado pelos pressupostos da Nova História e da Literatura Comparada que, por permitir
que o estudioso conheça e apreenda as redes de significado de dois ou mais campos de
conhecimento, possibilita o enriquecimento da análise. No caso deste trabalho, o encontro da
literatura e da história traz discussões que, vistas de forma independente uma da outra, não
teriam a mesma profundidade de análise.
Walter Campos de Carvalho nasceu no dia de novembro de 1916 em Uberaba,
Minas Gerais, e morreu em 10 de abril de1998, em São Paulo. Formou-se em Direito pela
Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em 1938, e aposentou-se, em 1969, como
9
Procurador do Estado de São Paulo. No início da década de 70, morou na Europa em razão de
problemas de saúde de sua esposa Lygia Rosa.
Publicou seis livros, sendo que entre eles estão dois que não quis ver reeditados pela
Obra reunida, publicada pela José Olympio, em 1995: Banda Forra (ensaios humorísticos) de
1941 e Tribo (romance) de 1954, este abordado na dissertação de mestrado de Alfeu
Sparemberger, Campos de Carvalho: a subjetividade condicional (defendida pela
Universidade Federal de Santa Catarina, em 1989) e na tese de doutorado de Geraldo Noel
Arantes, Campos de Carvalho: inéditos, dispersos e renegados (defendida pela UNICAMP,
em 2004). Publicou também A lua vem da Ásia (1956), Vaca de nariz sutil (1961), A chuva
imóvel (1963) e O púcaro búlgaro (1964). Trabalhou no jornal O Pasquim, em 1972, e
colaborou com o jornal O Estado de São Paulo de 1968 a 1978. Ainda jovem, adota uma
postura questionadora e anti-religiosa, posição que vai se refletir em sua obra.
Em Campos de Carvalho, a riqueza de possibilidades de que se falava anteriormente está
visivelmente presente, pois possui todos os elementos que podem vir a atrair os mais diversos
tipos de leitores. Ele tem um domínio raro do uso da linguagem e de suas diversas
possibilidades; constrói suas narrativas de modo que prende o leitor pela fluidez e facilidade
e, por último e o mais importante, tem algo a dizer. Os seus livros têm uma capacidade rara de
nos fazer pensar acerca de nossa própria realidade.
(...) é o herói em sua trajetória de superar-se a si mesmo apenas na medida em que se
torna capaz de superar a sociedade que o oprime. Homem versus homens. A
introspecção, ao desvelar-se, dissolve as fronteiras entre o autor e seus personagens
e, como conseqüência de seu movimento para baixo, traz para a tona a consciência
narrativa. E o autor revela-se: é também um homem ou seja, um poço de
problemas. E o homem que está a falar é aquele que mora ali ao lado e cuja
existência ignoramos – o homem ordinário dentro de uma vida ordinária cujos
problemas demasiadamente humanos dizem respeito a ele mesmo e à sociedade que
sobre ele se fecha.
1
Com uma franqueza desconcertante, faz-nos tomar consciência, com uma pancada forte,
de nossa própria condição mortal e passageira. Chama a atenção para as coisas pequenas e
1
BATELLA, Juva. Quem tem medo de Campos de Carvalho? Rio de Janeiro: 7Letras, 2004. p. 53.
10
sem sentido com as quais ocupamos nossa existência enquanto esperamos a morte e para tudo
que fazemos para nos esquecermos dela. Faz ver que, em uma instância bem mais simples do
que costumamos pensar, somos todos iguais, visto que morreremos e nos tornaremos um
dia. Ao mesmo tempo, faz-nos gargalhar de homens que se esquecem disso e se colocam em
posições mais “assépticas”. Apesar de todo esse choque de realidade ao qual nos submete, o
faz da maneira mais agradável possível – através do riso.
Por meio de sua postura cômica frente ao ridículo que na realidade, coloca-nos em
contato com um elemento de grande importância para análise dentro de um sistema de
pensamento, ou seja, do que ele ri. Ao revelar seus alvos de zombaria, evidencia aquilo que
desconsidera e que, de certa forma, condena. O riso torna-se um instrumento importante para
compreendermos uma parcela do pensamento de Campos de Carvalho em seu próprio
contexto.
Existe uma expressão bastante utilizada pelo senso comum para designar determinados
indivíduos: “foi um homem de seu tempo” ou a variação “um homem à frente de seu tempo”.
Vamos partir do pressuposto de que todo homem vive, no sentido estrito da palavra, em seu
tempo. Para tanto, ele terá que se submeter às possibilidades que esse “seu tempo” oferece, a
menos que disponha de algum mecanismo que lhe permita transitar entre “tempos” diferentes.
Analisando essas informações, e isso parece bastante óbvio, a expressão “homem de seu
tempo” é deveras redundante. Ora, não pode haver um indivíduo sequer, a menos que se
encaixe no requisito “máquina do tempo”, que não viva e não pense de acordo com seu
tempo! Todo homem nasce e cresce dentro de um sistema de valores e regras de pensamento
ao qual estará atrelado por toda a sua existência e, mesmo que não concorde com esse molde,
essa mesma discordância só será viável se o “seu tempo” lhe der condições para discuti-lo.
Assim, partimos já com a certeza de que Campos de Carvalho foi “de seu tempo” e viveu
de acordo com o sistema de valores ao qual estava sujeito. Por isso, podemos dizer que o que
11
deixou como legado, seus livros nesse caso, é um retrato da época e do lugar onde nasceu e
cresceu, e decorrentes de sua forma de pensamento. Mesmo questionando-as, ele as retratou.
Tudo isso nos leva a inferir que, mesmo partindo da leitura de uma narrativa ficcional,
teremos informações relevantes sob o ponto de vista da história, analisando a perspectiva
narrativa do autor, seu posicionamento frente ao seu mundo, suas escolhas, suas omissões etc.
O importante, contudo, é destacar que qualquer autor trata de seu tempo, retratando-o não
como ele “realmente era” mas como ele o via.
uma tendência de se ver a história como uma forma de conhecimento do passado que
retrata de forma fiel a realidade de outros tempos. Esse pensamento sugere que pode haver
uma maneira de se apreender o passado através de fontes que revelem instantâneos de
imagens do que não existe mais. No entanto, não se deve esquecer que mesmo a
permanência dos documentos que serão preservados é condicionada por posições e escolhas
daqueles que o fizeram. Portanto, a escrita da história será sempre a história das escolhas de
alguém em algum dado momento.
Assim, este trabalho é, também, resultado de uma escolha, a escolha da análise de duas
obras de ficção como representativas para o trabalho do historiador. Vejo possibilidades
múltiplas de extrair informações relevantes nos textos ficcionais de Campos de Carvalho.
Escolho também a perspectiva daquilo que era risível dentro de suas obras e parto do ponto de
vista de que saber do que ri uma sociedade é também saber o que ela como reprovável e
fora de lugar.
Nessa perspectiva, pode-se dizer que este trabalho não vai tentar encontrar um retrato fiel
de uma sociedade no passado e, sim, encontrar um reflexo, um vislumbre daquilo que
Campos de Carvalho pensava dela.
12
Campos de Carvalho costumava dizer, em entrevistas, que não assumia posicionamentos
políticos em seus livros. Por isso, foi criticado à época do lançamento de suas obras por
críticos vinculados tanto à visão política de direita quanto de esquerda, justamente por não se
associar a nenhuma dessas correntes. No entanto, pode-se dizer que Campos de Carvalho foi e
continua sendo um autor extremamente politizado, pois deixa bem clara, em sua obra, uma
postura crítica contundente frente à sociedade. Com este trabalho, proponho, também, uma
discussão acerca desse posicionamento e me oponho à idéia de neutralidade proposta pelo
próprio autor.
A escolha do tema está totalmente relacionada com as minhas posições frente à realidade.
Com isso, pode-se inferir que uma neutralidade científica esperada num trabalho acadêmico
será prejudicada. Entretanto, penso que esperar que uma pesquisa esteja isenta de
posicionamento é, além de ingênuo, bastante perigoso para a leitura e compreensão dessa
mesma pesquisa.
A atitude científica é definida como uma postura de constante interrogação e de
questionamento. Ora, ao afirmarmos que uma determinada pesquisa representa e ilustra “a
verdade” estaremos afirmando que ela é definitiva e livre de qualquer modificação ou
acréscimo. Sendo assim, o processo de questionamentos e de dúvidas, principal combustível
do pensamento científico, desaparece. Chegando-se a esse ponto, a construção do
conhecimento pára.
Portanto, posso dizer que tenho uma posição de análise adotada quando da escolha de
trabalhar com este tema e que se reflete na maneira como o trabalharei. Não pretendo escrever
a análise definitiva das obras escolhidas e nem penso que essa seja a única forma de fazê-lo.
Pretendo, contudo, acrescentar alguns elementos de discussão na pesquisa sobre Campos de
Carvalho.
1 HISTÓRIA E LITERATURA
Os homens, as pulgas e as ratazanas se
assemelham nisto: que hoje estão vivos mas
amanhã estarão mortos, irremediavelmente
mortos, e para sempre.
A lua vem da Ásia, Campos de Carvalho
O que leva um indivíduo, em determinado momento de sua existência, em determinado
meio social, em determinada sociedade a escrever um texto que tem origem na sua
imaginação? Por que determinados indivíduos são levados a juntar palavras unidas por uma
linha de pensamento que vai elaborar uma história? Enfim, essa história é construída baseada
apenas na imaginação do autor, ou é abastecida com significados fornecidos ao escritor ao
longo de sua existência?
A proposição deste trabalho é de responder a algumas dessas indagações, partindo do
pressuposto de que todo o sentido dado pelo autor à sua ficção parte de elementos reais
(construídos historicamente, mas reais, sentidos) que serão transpostos para seus escritos, daí,
sim, costurados segundo os seus atributos de criação e imaginação.
Assim, pode-se especular que, sendo determinada ficção dependente das construções
sociais nas quais o escritor está imerso, a obra em questão pode ser considerada digna de
análise de um historiador que esteja disposto a buscar esses significados embutidos no texto.
‘[...] Toda obra de literatura’ insiste Frye. ‘tem ao mesmo tempo um aspecto
ficcional e um aspecto temático’, mas quando nos movemos da ‘projeção ficcional’
14
para a articulação aberta do tema, a escrita tende a assumir o aspecto de
‘comunicação direta, ou escrita discursiva imediata’, e deixa de ser literatura.
2
15
O texto será, então, um campo repleto de informações e entrelaçamentos dos quais se
pode extrair uma significativa quantidade de análises distintas. Da busca desses
entrelaçamentos e como importante ferramenta para essa busca, surge a possibilidade da
utilização de uma área de conhecimento que aborda justamente a questão desses cruzamentos
de idéias: a Literatura Comparada.
1.1 A INTERDISCIPLINARIDADE
Os estudos de literatura comparada proporcionam uma diversificada rede de
possibilidades na análise de uma obra literária. Por permitir que o estudioso conheça e
apreenda as redes de significado de dois ou mais campos de conhecimento, o cruzamento
desses campos possibilita o enriquecimento de uma análise. No caso deste trabalho, o
encontro da literatura e da história traz discussões que, vistas de forma independente uma da
outra, não teriam a mesma profundidade de investigação.
Esse traço enriquecedor surge, principalmente, da necessidade de diversos métodos de
análises exigidos pelos diferentes objetos que analisa. Tania Carvalhal diz acerca da literatura
comparada:
Acentua-se, então, na caracterização da disciplina, um traço de mobilidade,
enquanto se preserva sua natureza mediadora, intermediária, característica de um
procedimento crítico que se situa ‘entredois ou mais elementos, explorando seus
nexos e relações. Fixa, enfim, seu caráter interdisciplinar.
6
Espera-se, dessa forma, um diálogo, uma conversa em que cada um dos enunciadores
contribua com o que lhe cabe para se chegar ao resultado esperado. Para tanto, o estudioso
6
CARVALHAL, Tania Franco. O próprio e o alheio: ensaios de literatura comparada. São Leopoldo, Editora
UNISINOS: 2003. p. 36.
16
deve ser capaz de “traduzir” essa conversa para que ela faça algum sentido. Deve conhecer os
dois campos para que possa compreendê-los.
Contudo, não se deve perder de vista que os estudos de literatura comparada não deixam
de lado o fator literário em detrimento de outras formas de análise, eles apenas aprofundam as
discussões acrescentando novos elementos.
Assim,
a literatura comparada é uma prática intelectual que, sem deixar de ter no literário o
seu objeto, confronta-o com outras formas de expressão cultural. É, portanto, um
procedimento, uma maneira específica de interrogar os textos literários não como
sistemas fechados em si mesmos, mas em sua interação com outros textos, literários
ou não
7
.
Partindo desse encontro de literatura e história, este trabalho pretende estabelecer um diálogo
entre as obras de Campos de Carvalho – A lua vem da Ásia e O Púcaro búlgaro – e o contexto
histórico no qual o autor cresceu e, a partir do qual, elaborou seus textos.
A Literatura Comparada oferece a perspectiva de análise ampla acerca de textos dos quais
pretendemos investigar em diferentes áreas do conhecimento, neste caso, a intersecção entre
literatura e história. A reconstrução de uma determinada visão do passado, através da
utilização de textos literários, é uma questão presente tanto nos teóricos da própria Literatura
Comparada quanto na historiografia. Relativamente recente nas análises históricas, o uso de
obras literárias como fonte histórica ainda é discutido e questionado por alguns historiadores.
7
Idem, p. 48.
17
1.2 A NOVA HISTÓRIA
Essa nova perspectiva do conhecimento histórico surgiu com força no início da década de
70 do século XX, quando Jacques Le Goff e Pierre Nora
8
organizaram três volumes que
discutiam a proposição de novas formas de abordar o conhecimento histórico. O movimento
passou ser chamado de Nova História. Nova, posto que veio para romper com antigas
concepções de história e, também, para estabelecer novos objetos de análise para o
historiador.
O movimento nasce em um momento em que a sociedade ocidental passava por uma
ruptura de seus valores e as propaladas conquistas sociais atravessavam séria crise, uma vez
que, depois de um período de entusiasmo pela democracia nascida no pós-guerra, via-se a
ascensão de ditadores em diversas partes do mundo. Desse momento de desilusão surge uma
descrença nos valores e conceitos que antes pareciam incontestáveis, inclusive o propalado
modo de vida ocidental, até então tido como o único possível e legítimo. Assim, a Nova
História vai colocar em cheque a história escrita aentão e passa a problematizar aquilo que
parecia incontestável. A tradição, antes comandante da ação dos homens, passa agora a ser
refutada e vista apenas como uma representante de determinados interesses.
O medo, o amor, a loucura, o sentimento, a infância, termos que pareciam conter um
sentido único e imutável ao longo do tempo, passam a ser questionados e vistos, então, como
historicamente construídos. A história das mentalidades põe, no centro da narrativa, a
8
Jacques Le Goff (Toulon, 1 de Janeiro de 1924) é historiador especialista em temas da Idade Média.
Pertencente à dita Escola dos Annales, sucedeu a Fernand Braudel em 1972 à frente da École des Hautes Études
en Sciences Sociales; em 1977, cedeu o lugar a François Furet. Posteriormente, consagrou sua vida à direção de
estudos de antropologia histórica do Ocidente Medieval. Pierre Nora (Paris, 17 de novembro de 1931), é
historiador conhecido por seus trabalhos sobre identidade francesa e memória, o oficio do historiador assim
como seu papel nas ciências sociais. É o representante mais significativo da chamada nova história. Desde 1977,
é professor da Ècole des Hautes Études en Sciences Sociales.
18
percepção que os “outros”, aqueles que viveram antes de nós, tinham do mundo que os
cercava.
A busca por novos objetos de análise é, talvez, a principal característica desse movimento
que pretende tirar a voz da narrativa histórica de sujeitos que a utilizam para perpetuar
determinados arranjos sociais justificados e legitimados pela história. Não se pode dizer, no
entanto, que a Nova História será um história neutra ou imparcial, até porque nenhuma
narrativa será imparcial. Ela representará, no entanto, um grupo que tem uma relativa
consciência da posição do historiador ao elaborar o conhecimento. Jean-Claude Schmitt, um
dos principais discípulos de Le Goff, em entrevista a Hilário Franco Júnior, quando
perguntado se acreditava que a escolha do objeto do historiador estava vinculada ao presente,
respondeu:
Sim, acho que conscientemente ou não, a escolha está relacionada com o presente,
relacionamento que aparece sobretudo na maneira da se tratar o objeto. O historiador
é uma peça construída pelo presente. A história, como já se disse, é filha do seu
tempo, e assim é melhor que isso seja consciente para, a partir de então, se poder
melhor colocar questões pertinentes para nós mesmos e para os nossos leitores.
9
A escrita da história é, portanto, um conjunto de escolhas, ou seja, a escolha do objeto, a
escolha dos documentos, do período a ser analisado, e todas essas escolhas podem dizer muito
acerca do discurso que será então construído. Apesar da proposição de uma escrita isolada de
qualquer tipo de tendência, o historiador não pode se afastar das suas intenções, mesmo que o
faça inconscientemente. Hayden White chama essas tendências de trópicos:
A palavra trópico, de tropo, deriva de tropikos, tropos, que no grego clássico
significa ‘mudança de direção’, ‘desvio’, e na koiné modo’ ou ‘maneira’. Ingressa
nas línguas indo-européias modernas por meio de tropus, que em latim clássico
significava ‘metáfora’ ou ‘figura de linguagem’, e no latim tardio, em especial
quando aplicada à teoria da música, “tom” ou “compasso”. Todos esses sentidos,
sedimentados na palavra trope, do inglês antigo, encerram a força do conceito
particularmente apropriado para o exame daquela forma de composição verbal que,
9
FRANCO JR., Hilário. Entrevista com Jean Claude Schmitt. Dossiê Nova História, n. 23, p. 14-21, set.-
nov./1994.
19
fim de diferenciá-la, de um lado, da demonstração lógica e, de outro, da pura ficção,
chamamos pelo nome de discurso.
10
.
O trópico será, por conseguinte, a maneira pela qual será contada uma determinada
história, o ponto de vista, a posição assumida pelo observador-narrador. É impossível,
portanto, uma narrativa cujo autor não esteja moldado por suas próprias visões de como essa
história deve ser contada. Portanto, configura-se como: “[...] a sombra da qual todo discurso
realista tenta fugir. Entretanto, esta fuga é inútil, pois trópico é o processo pelo qual todo
discurso constitui os objetos que ele apenas pretende descrever realisticamente e analisar
objetivamente”
11
.
Nesse ponto, passamos a abordar uma questão extremamente relevante para a elaboração
de um trabalho que pretende utilizar uma fonte bastante subjetiva como o texto literário na
busca de elementos que a relacionam com seu meio histórico. O fato de ser o próprio
pesquisador que constitui seu objeto de trabalho, é também o pesquisador que vai lhe atribuir
um sentido e uma unidade que não existiriam de forma natural. A constituição do texto terá
excluído elementos que o autor não considera relevantes e, por conseguinte, acrescentará
elementos que não serão de interesse comum a todos que se propuserem a dissertar sobre o
tema.
O problema da maioria dos historiadores é a dificuldade de aceitar e de reconhecer a
impossibilidade de se apreender os fatos como pré-existentes a sua análise. Não assumem o
caráter de construção, cuja forma é adequada às perguntas que se propuseram a fazer. Citando
Schopenhauer, White diz que “[...] toda tentativa de dar forma ao mundo, toda a afirmação
humana estava tragicamente fadada ao fracasso, mas que a afirmação individual alcançava o
seu valor quando conseguia impor ao caos do mundo uma forma transitória”
12
.
10
WHITE, op. cit., p. 14.
11
Idem, p. 14.
12
Idem, p. 57.
20
O principal argumento daqueles que se opõe à utilização da ficção como fonte digna de
representatividade histórica é o de que os autores não têm qualquer dever de se prender à
verdade; que podem “sobrevoá-la” sem ao menos aproximar-se dela. Ora, ao afirmar que
esses autores não têm compromisso com a “verdade histórica” pressupõe-se, a princípio, a
existência de uma verdade absoluta. O estabelecimento dessa verdade absoluta implica que
alguns estariam mais aptos a relatá-la, e que estes historiadores conheceriam as fontes mais
dignas de credibilidade e descartariam fontes que não se enquadrassem em seu julgamento de
veracidade.
O historiador deve
[...] ser visto como alguém que, a exemplo do artista e do cientista moderno, busca
explorar certa perspectiva sobre o mundo que não pretende exaurir a descrição ou a
análise de todos os dados contidos na totalidade do campo dos fenômenos, mas se
oferece como um meio entre muitos de revelar certos aspectos desse campo
13
.
Isso
obrigaria os historiadores a abandonar a tentativa de retratar “uma parcela particular
da vida, do ângulo correto e na perspectiva verdadeira”, como expressou um famoso
historiador anos atrás, e a reconhecer que não há essa coisa de visão única correta de
algum objeto em exame, mas sim, muitas visões corretas, cada uma requerendo o
seu próprio estilo de representação
14
.
Para Lucien Febvre,
toda história é escolha. É-o até devido ao acaso que aqui destruiu ali salvou os
vestígios do homem.É-o devido ao homem: quando os documentos abundam, ele
resume, simplifica, põe em destaque isto, apaga aquilo. É-o, sobretudo, porque o
historiador cria os seus materiais, ou se quiser recria-os: o historiador que não
vagueia ao acaso pelo passado como um trapeiro à busca de achados, mas parte com
uma intenção precisa, um problema a resolver, uma hipótese de trabalho a
verificar
15
.
Para White, o autor tem a função de construir um conhecimento, costurando elementos
que se constituírem relevantes para a função que se propuser a cumprir, atribuindo-lhe um
sentido que não tinha, até então. Será, portanto, um mediador entre informações isoladas e
13
Idem, p. 59.
14
Idem, p. 59.
15
FEBVRE, Lucien apud BOTO, Carlota Nova História e seus Velhos Dilemas. Dossiê Nova História, n. 23, p.
22-3, set.-nov. 1994.
21
uma narrativa constituída. A tarefa do historiador será, para Nietzsche, a de “[...] pensar uma
coisa junto com outra e tecer os elementos num todo singular, na presunção de que a unidade
do plano deve ser posta nos objetos se ainda não estiver aí”
16
.
Assim,
mediante a crítica dos documentos, o historiador estabelece a “moldura” de sua
narrativa, o conjunto de fatos a partir do qual uma “estóriadeve ser moldada no
relato narrativo que faz deles. O problema do historiador, uma vez estabelecida esta
moldura, é preencher as lacunas do registro por meio de uma dedução dos fatos que
“devem ter ocorrido”, a partir do conhecimento dos fatos que se sabem terem
efetivamente ocorrido
17
.
Da mesma forma,
os acontecimentos são convertidos em estória pela supressão ou subordinação de
alguns deles e pelo realce de outros, por caracterização, repetição do motivo,
variação do tom e do ponto de vista, estratégias descritivas alternativas e assim por
diante[...]. Por exemplo, nenhum acontecimento histórico é intrinsecamente trágico;
pode ser concebido como tal de um ponto de vista particular ou de dentro do
contexto de um conjunto estruturado de eventos do qual ele é um elemento que goza
de um lugar privilegiado. Pois na história o que é trágico de uma perspectiva é
cômico de outra [...]
18
.
A partir do que foi apontado, surge uma interessante discussão acerca da legitimidade
do conhecimento tido como interpretação, ou seja, para os historiadores que buscam uma
objetividade científica em seus textos, o fator interpretação não entra em questão. Dessa
maneira, o que eles relatam não é um ponto de vista e, sim, a apreensão do fato como ele
realmente aconteceu. Ora, em princípio sabemos que essa objetividade não é possível. Além
disso, eles partem do pressuposto de que essa tomada de posição assumida pelo historiador
desqualifica seu trabalho como conhecimento e o rotula como uma simples opinião. “[...]
deveríamos ser capazes de identificar o elemento ideológico, porque fictício, contido em
nosso próprio discurso. Sempre podemos ver o elemento fictício nos historiadores de cujas
interpretações de um dado conjunto de eventos discordamos.”
19
16
NIETZSCHE, apud WHITE, op. cit., p. 68.
17
WHITE, op. cit., p. 76. Grifo meu.
18
Idem, p. 100-101.
19
Idem, p. 116.
22
O que é, então, um fato histórico? Ele existe concretamente em algum momento? Ele
pode ser apreendido como uma totalidade? O relato de um determinado fato histórico pode ser
lido como um agrupamento de escolhas feitas pelo historiador que resolve relatá-lo (e
inclusive essa resolução de escolher certo momento histórico também tem sua carga de
interpretação), e também pode ser visto através dos elementos deixados de lado quando da
escritura da sua história. Isso leva-nos a concluir que a escrita da história será sempre
carregada de intenções, de posições. Mesmo que de forma inconsciente, essa história terá
sempre o objetivo de defender um determinado ponto de vista. Para Marx,todo relato
histórico, qualquer que seja o seu escopo ou profundidade, pressupõe um conjunto específico
de compromissos ideológicos nas próprias noções de ‘ciência’, ‘objetividade’ e ‘explicação’
que o inspiram”
20
.
O rótulo de “ciência” -nos a impressão de uma objetividade absoluta e, portanto, livre
de qualquer posicionamento por parte do “cientista”. Deve-se, contudo, observar que toda
ideologia que aspira esse título de “científica” também se propõe a apresentar uma perspectiva
“realista” acerca do passado e do presente.
É claro que a escrita da história será, invariavelmente, dependente de dados empíricos, e a
construção do conhecimento histórico não virá (exclusivamente) da imaginação e da vontade
do historiador. No entanto, é necessário não perder de vista o fato de que a permanência ou
não de um determinado dado ou documento também vai depender de escolhas feitas no
passado. Por isso, a confiança nesses dados deve ser, de certo modo, cautelosa e crítica.
Também é convém ressaltar que a existência de dois ou mais historiadores possibilita que
se tenha acesso a formas diferentes de contar a história, cada um explicando o passado de sua
maneira particular, com menos ou mais variações, dependendo das diferenças entre suas
visões de mundo. Afirma White:
20
MARX apud WHITE, op. cit., p. 87.
23
Um dos propósitos de uma explicação é substituir uma percepção vaga ou imprecisa
das relações predominantes entre os fenômenos verificados num dado campo por
uma percepção clara e precisa. Mas a noção do que possa parecer uma percepção
clara e precisa de um dado domínio do acontecimento histórico difere de historiador
para historiador.
21
A questão, nesse caso, não é cair na exaustiva discussão sobre a existência ou não de uma
verdade absoluta, uma história que transcende o trabalho construtivo do historiador. O
importante é colocar em pauta as relações existentes entre a literatura e a realidade (nesse
caso, tomo realidade por instância fora dos relatos do autor sua vida, seus hábitos, sua
conduta), aquilo que é dito e, principalmente, o porquê de ter sido dito pelo autor. O
romancista irá representar a sua concepção de realidade de maneira indireta, ou seja,
utilizando construções metafóricas (o que não implica o seu desligamento da realidade, até
porque isso não é possível) para descrever o que vê. Não será, no entanto, uma visão de
mundo menos significativa do que as convencionalmente propostas pelos historiadores.
Um escritor de ficção é um indivíduo inserido em uma realidade social, que recebeu de
seu meio normas de conduta moral, religiosa, ética, familiar, política, cultural, etc. Logo, esse
autor “faz parte” de uma determinada rede de ação da qual será impossível escapar.
Ao nascer em determinada sociedade (e como sociedade podemos ler desde os primeiros
grupos humanos que resolveram se unir para facilitar a caça, a coleta e posteriormente a
agricultura, até as estruturas ocidentais organizadas em torno de Estados), os indivíduos
recebem de seus pais, da escola, das estruturas religiosas etc., um “mapa” que vai orientar
suas ações, a saber, a língua que fala, a maneira como se portar à mesa, os hábitos de higiene,
as noções de certo e de errado (variáveis de um grupo para outro), os próprios sentimentos, o
riso, o choro, a alegria, a satisfação. Todas essas noções foram construídas por aqueles que o
precederam e serão transmitidas a ele para que possa andar entre os seus “iguais” e para que
possa entender o que acontece ao seu redor.
21
WHITE, op. cit., p. 81.
24
A História ensina que a trajetória dos homens sobre a Terra é permeada por diversas e
constantes rupturas, modificações que os próprios homens executam ao longo de suas
existências. O conhecimento histórico, por isso mesmo, possibilita o conhecimento das
condições que temos de alterar essas estruturas recebidas de antemão. O importante, nesse
caso, é perceber que mesmo as modificações mais radicais na estrutura da sociedade na qual
nos inserimos serão possíveis apenas porque essa mesma estrutura deu-nos os instrumentos
para tanto. Veja-se, por exemplo, a História, uma forma de conhecimento construída pelos
homens, um instrumento de que dispomos para alterar o indesejado.
Para destruir árvores, precisamos de machados; para construir machados, precisamos de
madeira; para conseguir madeira, precisamos de árvores; assim, só destruímos a árvore
porque ela nos deu o machado. Da mesma forma, serão as próprias estruturas que construirão
as armas para destruí-la. Os indivíduos serão, portanto, limitados pelos símbolos que são
capazes de dominar, logo, por aqueles a que estão expostos desde o nascimento. É claro que
essa rede de símbolos poderá ser ampliada, sem, contudo, escapar do número limitado dos
fornecidos por sua sociedade.
Logo, um autor “faz parte” de uma determinada rede de ação, o dito “sistema simbólico”
mencionado por Bourdieu:
Os ‘sistemas simbólicos’, como instrumentos de conhecimento e de comunicação,
podem exercer um poder estruturante porque são estruturados. O poder simbólico é
um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem
gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular do mundo social)
supõe aquilo a que Durkheim chama o conformismo lógico, quer dizer, ‘uma
concepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna
possível a concordância entre as inteligências’.
22
Conseqüentemente, espera-se que qualquer indivíduo, neste caso, um autor de ficção,
utilize, de uma forma ou de outra, essa rede de atuação quando da criação da realidade
paralela que será o seu romance.
22
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p. 9.
25
Assim, essas representações podem ser encontradas, na maioria das vezes, nas entrelinhas
da estrutura do seu texto. Até omissões e deturpações mais gritantes da realidade socialmente
construída servem como fonte para que se estabeleça sua motivação para tais criações.
Através da análise de uma obra de ficção, pode-se apreciar e destacar os aspectos
emocionais que, por fazerem parte das particularidades e especificidades da vida de um
indivíduo (o autor), não deixam de se mostrar relevantes na análise das particularidades e das
especificidades do grupo no qual ele se insere/inseria.
Trata-se da utilização da análise do particular para a compreensão de um universo
comum, compartilhado por um grande grupo de indivíduos. Para Lucas, “[...] a mera aventura
se colore de significado na ótica do subsolo, pois a personagem pode exprimir, em cores
vivas, um conflito essencial da sociedade”
23
.
Dessa maneira, a representatividade da ficção define-se por uma determinada
circunstância da qual uma construção imaginária específica passa a ser um reflexo. Será,
assim, a imagem de um espelho que refletirá conforme sua própria estrutura; não é uma cópia,
é um ponto de vista, o ponto de vista do autor, o que devemos considerar de extrema
relevância como forma de olhar para o passado, como forma de se examinar aquele meio que
proporcionou a sua construção. Tal qual Alice, que pôde atravessar o espelho e teve que fazê-
lo para perceber que ele não era igual a sua realidade, mas, sim, uma distorção, uma
conformação, que vê, mas não pode descrever com fidelidade. A fidelidade, no entanto, não
nos interessa, até por não ser plausível.
Além de espelho, a ficção é lente, é filtro, é intermédio sem o qual seria impossível
perceber particularidades de outro lugar, ou de outro tempo, que não é nada mais do que outro
lugar. A imagem que vemos através dessa lente será a visão de alguém, será a maneira como
23
LUCAS, Fábio. O caráter social da ficção do Brasil. São Paulo: Ática, 1985. p. 6.
26
ele viu o entorno, e nós nos propomos a utilizar essa mesma lente para tentar entender a visão
de mundo desse autor através de suas personagens.
Dessa maneira, sobre a personagem,
[...] podemos dizer que somente aquela identificada com o destino de sua classe ou
grupo pode ter visão totalizante da sociedade: na medida em que encarna a função e
as aspirações de classe [ou grupo], denuncia os obstáculos da emergência dela no
cenário social e ocupa lugar devido na mecânica do progresso humano, é que a
personagem se reconhece nas devidas proporções e contempla a humanidade, os
amigos, os conhecidos, os vizinhos, enfim, “os outros” numa perspectiva global e
histórica. Fecha-se o ciclo humano e o 'herói' se irremediavelmente ligado a ele.
Passa a ter, digamos assim, a totalidade da parcela e a visão do conjunto: entra na
dimensão smica para compreender as próprias dimensões e agir de conformidade
com elas. Torna-se real
24
.
No que diz respeito à imaginação, afirma Catroga:
[...] a imaginação memorial e a imaginação histórica (Collingwood) não podem ser
confundidas com a imaginação artística. É certo que também existe dimensão
estética nas explicações que visam produzir conhecimentos, e o contrário também é
verdadeiro. No entanto, na imaginação estética, a referencialidade e a veridição não
constituem condições essenciais de ordenação e de aceitação do discurso, sendo
relativamente indiferente o problema da verdade ou da verossimilhança. Mesmo o
romance histórico, o contrato que, tacitamente, o emissor celebra consigo mesmo
com as regras éticas e metodológicas exigidas pelo seu ofício, bem como os
hipotéticos destinatários do seu discurso, não será avaliado à luz dos cânones do
saber historiográfico (como o seria, caso quisesse escrever como historiador),
independentemente do uso que possa fazer de fontes históricas, o romancista será
julgado, sobretudo, em função dos efeitos estéticos que a sua obra poderá produzir
no leitor.
25
Percebe-se que a afirmação de Catroga contém um conceito que pode ser contestado de
maneira legítima: a fonte histórica. A questão da definição do que é legítimo enquanto fonte
histórica é bastante relativa. O autor, ao afirmar que nem romances de cunho “histórico”
podem ser usados como fonte, está, automaticamente, restringindo o conceito de fonte a
documentos encontrados em arquivos, cuja proposição (ao serem elaborados, guardados e
catalogados) é de serem considerados fontes de informações teoricamente verídicas para o
historiador.
24
LUCAS, op. cit., p. 7. Grifo meu.
25
CATROGA, Fernando. Memória e História. In: PESAVENTO, Sandra J. Fronteiras do Milênio. Porto Alegre:
EDUFRGS, 2001. P. 56.
27
Ora, justamente por não se propor a escrever uma verdade é que esses documentos
adquirem valor histórico. O problema é que esse tipo de fonte exige perguntas diferentes
daquelas feitas a documentos tradicionais. E é isso que muitos historiadores se recusam a ver.
Essa discussão acerca da construção do conhecimento pelo historiador leva-nos a pensar
na obra literária como uma forma de se olhar para o passado. Será, contudo, o olhar do autor
direcionado para o mundo que o constituiu e, portanto, uma forma de nós mesmos,
historiadores inclusive, olharmos para um determinado momento histórico através dos olhos
do autor em questão.
Entretanto, a literatura não será, nesse caso, apenas um meio de se atingir um
determinado contexto histórico, até porque essa não é a pretensão deste trabalho. Será, sim, o
objeto através do qual permeará uma análise histórica. Temos então um olhar específico que,
ironicamente, ampliará as possibilidades de comunicação do texto, como poderá ser visto no
próximo item.
1.3 A HISTÓRIA LENDO A LITERATURA
A partir do que foi apontado no item anterior, pode-se partir para outro questionamento: o
que faz com que determinados sujeitos aceitem um discurso como verdadeiro e legítimo? A
questão da autoridade como determinante na validação de um discurso pode ser vista de modo
cíclico. Na mesma medida em que um discurso é aceito, posto que é enunciado por uma
autoridade consolidada, o discurso pode ser também a causa da validação da autoridade do
enunciador.
28
O discurso terá validade no momento que estabelecer uma relação de poder entre o
enunciador e o receptor. Essa relação de poder se faz presente quando o receptor modifica seu
percurso de ação pela interferência do enunciador. No entanto,
[...] a capacidade de um discurso de exercer poder está definitivamente associada à
sua capacidade de responder a demandas, de se inserir no conjunto de significados
de uma dada sociedade, reconstruindo posições e sujeitos
26
.
Assim, a lógica de ação de um discurso está diretamente relacionada a sua capacidade de
criar novos significados para elementos já constituintes da sociedade na qual pretende se
inserir.
Em uma determinada sociedade, existem diversos discursos que tentarão se sobrepor aos
demais, buscando demonstrar que ele é o único a se adequar às necessidades daqueles a que se
propõe atingir. uma constante luta entre discursos dentro de uma cultura, e cada um deles
possui, à medida que tentam se construir sobre bases preexistentes, elementos que os tornam
convenientes aos objetivos que se propõem.
E é justamente essa possibilidade de constante troca de discursos aceitos, posto que
muitos deles convivem simultaneamente, que enfraquece a posição de poder de cada discurso
particular. “Sua condição essencial é a de que nunca está completamente instaurado, sua
permanência é sempre provisória.”
27
Por isso, um discurso deve, enquanto vigente e efetivo, transformar os elementos que
tornaram possível a sua emergência em elementos que assegurem a sua permanência dentro
de um sistema. Deve, enfim, institucionalizar-se.
Um discurso, ao criar significados dentro de um determinado sistema, estabelece novos
conceitos que não existiriam sem sua enunciação. Assim, pode-se citar como exemplo, a
questão do personagem de Machado de Assis, Simão Bacamarte.
26
PINTO, Céli Regina Jardim. Com a palavra o Senhor presidente José Sarney. São Paulo: Hucitec, 1989. p. 36.
27
Idem, p. 38.
29
Simão Bacamarte considera-se detentor do conhecimento relativo ao estabelecimento de
quem é ou não louco dentro da pequena cidade de Itaguaí. Ele cria em seu discurso a
categoria “louco” e a define. Sem a sua definição, ela não existiria.
Não se pode esquecer, contudo, a importância do sujeito receptor do discurso enquanto
inserido em uma determinada rede de significados, sendo de extrema relevância a maneira
como esse sujeito vai deixar que o novo discurso assuma seu papel de dominante.
Nenhum discurso, contudo, assume proporções tão assustadoras como as do “discurso
científico”, que nossa sociedade adotou como invariavelmente verdadeiro. Duas
características essenciais desse discurso, e que nos dão uma idéia clara de quanto devemos
temê-lo, são a negação da ex( )-120.219(d)-0.295583.74(o)293142(i)-2.1.295m2(i)-2.1.295m-2.16436(a)3.74( )-20.1584(d)-0são g ono(e)3.74(3.74(r)2.804(ã)3.7466359(g)95585()3.74(ç)74(n)-0.298027(q)-0.293142(u)-0.485854aq)-0.295585(295585( )-250.295(a5( )-120..74( )-120.217(q)-0.295585(u)-111111111111111111111116.1.295m-2.0.572(D)1.57371(d)-0.295585(e)3.7..63372c)3.74(a)3.(t)-2.10.2)3.7466221.5738142(u)-0.485854aqêuc816.74(d)-0.295585(217(q)-0.295585(u)-11111111 d)-0.295585(217(q)à2.295585(2c)3.74(a)3.(t)-2.10.2)3.746585(e)3.74(s)-1.22992997(s8746056(ê)3.7402h(t)-2.16558(e)3.74(m)1)-0.29558-0.2954(816.74(d)-0.2955894.774 -27.6.293142(s)4(d)-0.2( )-240.289(n)-0.295585)-250.2955853Oo nqo(e)3.74(3.298027(q)-0.293142(u)20.74(o)293136(a)3.74( )8393136(a)3.74( )8393136(7(e)3.74( )-120.219(d)-0.295585()-2.16436(o l)-10.3015(e)293142(u)20.74(o)293136(a)3.74( )839313661558-0.2954(293142(u)2095(a5( )-120..74( 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30
Contudo, apesar de sua construção ocorrer dentro de determinadas instituições, isso não
significa que ele não dependa da relação que estabelecerá com os sujeitos sociais. Do ponto
de vista de Pinto,
a ciência não interpela os sujeitos sociais em geral através de seus enunciados, mas
através da construção de um discurso de autoridade.
31
morte nas fogueiras. A analogia é latente, pois serão os indivíduos socialmente indesejados os
alvos desses dois momentos aparentemente tão distintos da história.
Na abordagem da questão do diagnóstico de loucura do personagem de A lua vem da Ásia
e seu conseqüente enclausuramento, Michel Foucault dá-nos uma visão da loucura como um
fenômeno visto de diferentes formas ao longo da história.
Contra a tendência de classificar a loucura como uma propriedade que encobre o
indivíduo de características essencialmente negativas, Foucault vê nela possibilidades de
novas apreensões da realidade. Em suas palavras,
diante de um doente atingido profundamente, tem-se a impressão primeira de um
déficit global e maciço, sem nenhuma compensação: a incapacidade de um sujeito
confuso de localizar-se no tempo e no espaço, as rupturas de continuidade que se
produzem incessantemente na sua conduta, a impossibilidade de ultrapassar o
instante no qual está enclausurado para atingir o universo do outro ou para voltar-se
para o passado e futuro, todos esses fenômenos levam a descrever sua doença em
termos de funções abolidas: a consciência do doente está desorientada, obscurecida,
limitada, fragmentada. Mas este vazio funcional é, ao mesmo tempo, preenchido por
um turbilhão de reações elementares que parecem exa
32
O doente será aquele que não se enquadrar nessa realidade construída, dir-se-ia,
arbitrariamente. “[...] aqueles cujos reflexos naturais caem neste arco de comportamento que
não existe na sua civilização.”
33
No doente, a sociedade vê algo que não quer aceitar como presente, ou seja,
[...] não quer reconhecer-se no doente que ela persegue ou encerra; no instante
mesmo em que ela diagnostica a doença, exclui o doente. As análises de nossos
psicólogos e sociólogos, que fazem do doente um desviado e que procuram a origem
do mórbido no anormal, são, então, antes de tudo, uma projeção de temas culturais
34
.
Assim, o doente é, antes de tudo, um indesejado, alguém fora do enquadramento, alguém
que diz o que não deve dizer, ou que não faz o que deve ser feito. Dessa maneira, o que os
identifica é
[...] a incapacidade em que se encontram de tomar parte na produção, na circulação
ou no acúmulo de riquezas (seja por sua culpa ou acidentalmente). A exclusão a que
são condenados está na razão direta desta incapacidade e indica o aparecimento no
mundo moderno de um corte que não existia antes. O internamento foi então ligado
nas suas origens e no seu sentido primordial a esta reestruturação do espaço social
35
.
Do ponto de vista de Foucault, são as contradições do mundo contemporâneo que vão
possibilitar a fuga da realidade e o conseqüente aprisionamento em sua própria realidade.
Como afirma:
O mundo contemporâneo torna possível a esquizofrenia, não porque seus
acontecimentos o tornam inumano e abstrato, mas porque nossa cultura faz do
mundo uma leitura tal que o próprio homem não pode mais reconhecer-se aí.
Somente o conflito real das condições de existência pode servir de modelo estrutural
aos paradoxos do mundo esquizofrênico.
36
Campos de Carvalho ilustra, dessa forma, através de A lua vem da Ásia um
entrecruzamento da realidade de um paciente psiquiátrico, com a sua própria percepção da
realidade na qual habitava.
33
Idem, p. 73.
34
Idem, p. 74.
35
Idem, p. 79.
36
Idem, p. 96.
33
1.4 A HISTÓRIA LÊ CAMPOS DE CARVALHO
A visão que nos chega de Campos de Carvalho, através de entrevistas e críticas de jornal,
é de um homem que não assumia uma posição política clara. Justamente por não fazê-lo, não
foi suficientemente lido no país onde a cena política parecia exigir uma tomada de posição.
No entanto, pode-se perceber em Campos de Carvalho posições muito claras (embora não
tomasse o partido de ninguém, e ao mesmo tempo tomasse o partido de todos), pois criticava
ferinamente uma sociedade baseada no consumo e na satisfação pessoal. Sua escrita, ainda
que intimista, leva-nos a observar a nossa própria condição de sujeitos sem ação, controlados
por determinados indivíduos que detêm a sua “verdade” e que fazem questão de impô-la a
todos.
Por não se vincular a nenhuma corrente de pensamento da época, direita ou esquerda, foi
taxado de alienado e fútil em um momento em que isso não era aceito. Em Campos de
Carvalho, vemos, contudo, a lucidez que percebemos em Heitor, Astrogildo, ou como se
chamasse o personagem de A Lua Vem da Ásia, ou em qualquer um de nós. A clareza de
pensamento de um indivíduo que, embora louco, e talvez justamente por isso, se mostra
imune às tentativas de extração de uma “verdade” una que não existe e que, por certo, jamais
existirá.
O texto de Campos de Carvalho permite olhar para os acontecimentos como eles
realmente são, isto é, um amontoado de vontades que conseguem se concretizar, mas que nem
por isso deixam de ser mutáveis e submetidas às vontades daqueles que estiverem dispostos a
perceber isso.
Assim, o conhecimento da história pode ser utilizado de modo a perpetuar determinados
elementos, justificados pela tradição, ou terá a capacidade de destruir aquilo que for percebido
34
como injusto. A função da história será a de, nesse caso, proporcionar, nesse olhar para o
passado, a possibilidade de mudanças reais na existência do indivíduo. Os personagens de
Campos de Carvalho apontam para uma realidade não muito distante do tempo atual, na qual
se percebe a sua insatisfação ao se defrontar com a realidade que os oprime de forma
concreta.
Assim, White, ao relembrar os grandes expoentes do historicismo realista, Hegel, Balzac
e Tocqueville, afirma que esses autores
[...] concordavam em que a tarefa do historiador era menos lembrar aos homens suas
obrigações para com o passado que impor-lhes uma consciência da maneira como o
passado poderia ser utilizado para efetuar uma transição eticamente responsável do
presente para o futuro. Todos os três viam na história algo que educa os homens para
o fato de que o seu próprio mundo presente existira outrora na mente dos homens
sob a forma de um futuro desconhecido e ameaçador, mas como, em conseqüência
de decisões humanas específicas, esse futuro se transformara em presente, naquele
mundo familiar em que o próprio historiador viveu e trabalhou
37
.
Do ponto de vista de White, eles
não viam no historiador alguém que transcreve um sistema ético específico, válido
para todos os tempos e lugares, mas viam nele alguém incumbido da tarefa especial
de induzir nos homens a consciência de que a sua condição presente sempre foi em
parte um produto de opções especificamente humanas, que poderiam, pois, ser
mudadas ou alteradas pela ação humana exatamente nesse grau. A história, assim,
sensibilizava os homens para os elementos dinâmicos contidos no presente, ensinava
a inevitabilidade da mudança e desse modo ajudava a libertar esse presente do
passado sem revolta nem ressentimento
38
.
E embora determinados discursos possam parecer verdadeiros (nesse ponto isso não
parece possível), a sua contestação vai parecer necessária à medida que interferir sobre a
capacidade dos indivíduos de agirem (dentro de um sistema de regras) conforme sua vontade.
Vê-se, por exemplo, no conto de Machado de Assis, O Alienista, o momento em que os
habitantes de Itaguaí se rebelam quando aquilo que era visto como uma exceção, a loucura,
passa a ser uma generalização, ou seja, o discurso do médico Simão Bacamarte, passa a
perder a cientificidade. Todos temem ser enclausurados como loucos e, então, saem às ruas
37
WHITE, op. cit., p. 61.
38
Idem, p. 62.
35
para protestar e mudar o tratamento dado a Bacamarte (antes tratado como cientista
incontestável, agora visto como opressor):
- Devemos acabar com isto!
- Não pode continuar!
- Abaixo a tirania!
- Déspota! Violento! Golias!
- Não eram gritos na rua, eram suspiros em casa, mas não tardava a hora dos gritos
[...] avizinhava-se a rebelião.
39
Ao se utilizarem de expressões como “tirano” ou “déspota”, os agitadores fazem
referência direta a um tipo de poder que se justifica apenas pelo uso da força. Esse poder não
tem, contudo, a legitimidade adquirida pela aceitação da maioria.
Os revoltosos começam, inclusive, a contestar os argumentos “científicos” do médico,
alegando que, apesar de não conhecerem a ciência, não têm certeza quanto ao fato de
determinados cidadãos serem loucos ou não. Assim, a autoridade científica de Simão
Bacamarte está sendo completamente desconstruída.
O discurso da ciência é “engolido” com tanta facilidade, que não é incomum políticos se
apropriarem desse discurso teoricamente isento para legitimarem a sua permanência no poder.
Por isso, é interessante destacar o papel decisivo que o discurso vai assumir enquanto poder
manipulador de opiniões. Ao exibir uma postura de isenção (artificial, é claro), o discurso do
cientista será de extrema importância para que o povo o aceite enquanto verdade.
No caso de Machado de Assis, bem como no de Campos de Carvalho, podem-se perceber
reflexos das representações que o autor apreendia de sua realidade, os significados que dava
às relações de poder entre governantes e cientistas e como percebia a manipulação dos
discursos em favor de determinados grupos.
O contexto que determinou a confecção das obras de Campos de Carvalho e,
principalmente, a forma poética como as elaborou pode ter desaparecido. No entanto, pode-se
39
ASSIS, Machado de. O Alienista. Contos Escolhidos. Rio de Janeiro: Donnelley Cochcrane, 2000. p. 58.
36
encontrar, em sua obra, elementos que explicam nosso contexto, nossa condição. O riso, ou
seja, do que riam nossos antepassados, do que ria nosso autor e por que o fazia, é um
elemento importante na busca da compreensão, mesmo que parcial, de como percebiam a
realidade. Por ser um elemento historicamente constituído, é, ao mesmo tempo, “um
componente e um elemento revelador”
40
.
1.5 O RISO CRITICA A SOCIEDADE
Marx diz que “a história age profundamente e passa por numerosas fases enquanto
conduz ao túmulo a forma caduca da vida. A última fase da fórmula histórica universal é sua
comédia. Por que o curso da história é assim? Isso é necessário para que a humanidade se
separe alegremente do seu passado”
41
. Desconsiderando, neste caso, o fato de Marx ver a
história como um conjunto de fatos que se sucedem evolutiva e previsivelmente, pode-se
inferir que, em algum momento de sua existência, os sistemas sociais, ou melhor dizendo, os
homens que o compõem, riem de sua condição. Riem quando não percebem mais esse
sistema como legítimo; riem para tirar dele sua importância; riem para destruí-lo.
Marx afirma que a sociedade ri de seu próprio passado. As novas configurações da
sociedade tendem a tentar se livrar de seu passado. Rir é uma forma de sepultar o que deve
desaparecer. No caso de nosso autor, ele ri dos aspectos da sociedade que percebe estarem
falidos e corroídos por formas de poder equivocadas.
Referindo-se ao riso rabelaisiano, Minois afirma que ele demonstra que instituições,
credos e combates travados pelos líderes de seu tempo são mais feridos pelo riso quando esse
40
MARX, apud MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. São Paulo, Editora UNESP: 2003. p. 194.
41
Idem, p. 278.
37
mostra o quanto são ultrapassadas e fossilizadas as suas preocupações. “As civilizações
também podem morrer de rir, quando seus valores se tornam derrisórios.”
42
Nesse caso, talvez possamos comparar a abordagem do louco risível, personagem
freqüente na dita Baixa Idade Média
43
, com os personagens de Campos de Carvalho. “A
loucura é utilizada como um repelente: trata-se de mostrar o absurdo de um mundo privado de
códigos e proibições, de um mundo que renega seus valores. Esse mundo é louco e rimos
dele, mas com um riso que não é alegre.”
44
O louco será o porta-voz da desilusão dos homens
frente às suas vidas que parecem perder o sentido. No caso da Idade Média, temos um mundo
que se desfaz em guerras, fome e peste. Para Campos de Carvalho, numa analogia
assustadora, um mundo que se desfaz em guerras, bombas e desilusão.
O poder do riso é praticamente absoluto. À medida que destrói o que não satisfaz,
também tem a função de criar, ou melhor, de recriar o mundo de maneira mais aceitável. Diz
aos poderosos que o povo tem o direito de tirar deles esse poder que passa por cima de todos e
substituí-lo por algo melhor. Talvez apenas um pensamento consolador, mas necessário para
manter os indivíduos relativamente satisfeitos com sua capacidade de mudar o mundo. “Cada
vez mais, o homem utiliza o riso de maneira consciente, com uma finalidade precisa que é,
freqüentemente, agressiva e destruidora. Dominando essa faculdade, faz dele um instrumento,
uma arma.”
45
O riso surge do medo, da inconformidade, da consciência de que as coisas não estão nada
bem. Perante nossa própria condição de desgraça e aparente impotência, nos resta rir.
Citando Montaigne, Minois especifica essa relação com a realidade:
42
Idem, p. 277.
43
Período compreendido entre a metade do século XIV e final do século XV, referindo-se aos territórios mais
ocidentais do continente europeu. Nesse período, começam a se configurar os Estados-Nação por conseqüência
do declínio do sistema feudal.
44
MINOIS, op. cit., p. 262.
45
Idem, p. 366.
38
Demócrito e Heráclito foram dois filósofos, dos quais o primeiro, julgando e
ridícula a condição humana, saía em público com o rosto zombeteiro e rindo;
Heráclito, tendo piedade e compaixão dessa mesma condição, mostrava o rosto
continuamente triste e os olhos cheios de lágrimas. ... Eu prefiro o primeiro tipo de
humor; não porque seja mais agradável rir que chorar, mas porque ele é mais
desdenhoso e nos condena mais que o segundo; e me parece que nunca podemos ser
tão desprezíveis quanto merecemos. [...] Nossa própria condição é tão ridícula
quanto risível.
46
Quando percebe que a realidade não satisfaz suas expectativas, quando percebe a
incongruência do mundo com suas esperanças, o homem, estranhamente, ri. Ri para conseguir
enfrentar essa realidade que o atormenta; ri para escapar; ri porque algo tem que ser feito:
O riso amargo que nos escapa, sem querer, quando descobrimos uma realidade que
destrói nossas esperanças mais profundas é a expressão viva do desacordo que
percebemos, nesse momento, entre os pensamentos que nos inspiraram uma tola
confiança nos homens e na fortuna e a realidade que agora está diante de nós.
47
O riso será, dessa forma, uma alternativa ao suicídio, uma forma de enfrentar uma
realidade opressora de se libertar.
Como afirma Minois,
é porque tomamos consciência de nossa condição desesperada que podemos rir
seriamente, e esse riso nos permite suportar essa condição. É por isso que é preciso
aprender a rir, meus caros amigos, se quereis permanecer absolutamente pessimistas;
talvez então, sabendo rir, um dia mandareis para o diabo todas as consolações
metafísicas, a começar pela própria metafísica
48
.
Campos de Carvalho apresenta um universo risível em seus romances através do
desmascaramento da sua realidade absurda. Os seus personagens habitam um mundo paralelo
que não é nada mais do que o reflexo do mundo exterior ampliado pela sua percepção. Rimos
com vontade de chorar; começamos a dar mais de nossa adormecida atenção ao entorno que
até então passava despercebido. Pode-se definir a sensação como “um soco no estômago”, um
amargo despertar de um sonho que não percebíamos ser ruim. Precisamos, então, fixarmo-nos
em um ponto determinado para permanecermos sãos.
Dessa forma, como afirma Minois,
46
Idem, p. 282.
47
Idem, p. 516.
48
Idem, p. 519.
39
quando nada que existe é sério, é possível ainda rir? O mundo deve rir para camuflar
a perda de sentido. Ele não sabe para onde se encaminha, mas vai rindo. Ri para
agarrar-se a alguma continência. Não é um riso de alegria, é o riso forçado da
criança que tem medo do escuro. Tendo esgotado todas as certezas, o mundo tem
medo e não quer que lhe digam isso
49
.
O século XX é o século do absurdo por excelência: as duas maiores guerras desde o
início da história; a primeira e conseguinte utilização de bombas devastadoras; regimes
totalitários levados ao extremo de suas possibilidades. O século que presencia os maiores
avanços da adorada ciência, também essa ciência sendo utilizada para destruir o maior
número de pessoas. É realmente difícil entender os acontecimentos. A perplexidade é a
palavra de ordem, e não poderia ser diferente. Como enfrentar o absurdo da realidade sem
perder a sanidade ou suicidar-se (uma atitude aparentemente coerente com a incapacidade de
conformação)?
O humor, escreve Keith Cameron, ‘foi sempre uma fonte de consolo e uma defesa
contra o desconhecido e o inexplicável. A própria existência do homem pode ser
considerada como uma brincadeira; sua significação está mal definida e é difícil
explica-la fora da religião’. O humor moderno é menos descontraído que o dos
séculos passados, porque incide não mais sobre este ou aquele aspecto da vida, mas
sobre a própria vida e seu sentido, ou ausência de sentido [...].
50
O risível, ou seja, a ironia, torna mais fácil o enfrentamento com a realidade, pois
no dualismo entre inferior e superior, ela sabota o superior em nome das
necessidades do inferior; assim que o superior é abatido, um novo dualismo se
instaura e a ironia retoma seu trabalho de sapa. Ela acaba por tornar tudo relativo:
religião, Estado, razão, valores e o próprio homem. Ela destruiu todos os elementos
de transcendência, tornando-os históricos, e a própria história é considerada uma
‘entidade transcendental não existente’, tal como a ‘posteridade’
51
.
Aqui, destaco a capacidade do humor de sensibilizar o leitor em determinadas situações.
Às vezes, o cômico é mais eficiente, posto que lúdico, na compreensão e na assimilação de
certas idéias. Rimos quando percebemos nossa própria realidade expressa de forma não
convencional. Isso Campos de Carvalho faz muito bem, sobretudo quando seus personagens,
loucos e absurdos, se em a questionar alguma coisa em suas próprias vidas, quando se
49
Idem, p. 554.
50
Idem, p. 569.
51
Idem, p. 571.
40
que as suas dúvidas também são as nossas. Observando-os chocados com situações que não
nos sensibilizam, percebemos que tais situações deviam nos afetar de algum modo.
Destaco a importância que Propp atribui ao riso como um desvelador de defeitos. Esse
efeito cômico é provocado quando um autor faz desse defeito, desse erro, algo ridículo. A
atenção é, portanto, atraída para eles. O riso provocado pela falha do “outro” chama a atenção
para nossas próprias falhas, antes imperceptíveis.
Um ponto de extrema relevância na obra de Propp é a ênfase dada às condições sociais e
históricas como determinantes daquilo que é risível em certo lugar no tempo. O risível, não é,
dessa forma, algo universal.
Além disso, o autor analisa a construção da situação cômica através da linguagem, fato
que, em Campos de Carvalho, se destaca à primeira vista. Alogismos, frustrações de
expectativas, o exagero cômico e muitas outras características da literatura desse ficcionista.
Em A lua vem da Ásia, o narrador está confinado em um espaço no qual ele não sabe ser
um hospital psiquiátrico. Pensa ser um hotel de luxo e, depois, um campo de concentração.
São, portanto, espaços nos quais os indivíduos estão submetidos a vontades que lhe são
alheias. Estão sob o controle de determinadas regras, são observados em tempo integral.
Em Campos de Carvalho, podemos encontrar diversas possibilidades de análise para não
menos diversos temas que reconhecemos em sua literatura. Tomo como ponto central da
discussão que pretendo entabular com seus discursos e personagens a questão do “riso” como
instrumento adequado para ressaltar aspectos da realidade que o desgostavam.
O riso é, acima de tudo, um instrumento para desvelar determinados defeitos que, se o
fosse através do cômico, passariam despercebidos. Nas palavras de Propp, Lê-se:
Podem ser micos os raciocínios em que a pessoa aparenta pouco senso comum;
um campo especial de escárnio é constituído pelo caráter do homem, pelo âmbito da
sua vida moral, suas aspirações, de seus desejos e de seus objetivos. Pode ser
ridículo o que o homem diz, como manifestação daquelas características que não
41
eram notadas enquanto ele permanecia calado. Em poucas palavras, tanto a vida
física quanto a vida moral e intelectual do homem podem tornar-se objeto de riso.
52
Para Propp, o riso é “uma arma de destruição: ele destrói a falsa autoridade e a falsa
grandeza daqueles que são submetidos ao escárnio”
53
. Campos de Carvalho utiliza-se desse
poder para ridicularizar uma sociedade na qual os que detêm o poder não têm legitimidade
para exercê-lo e, ademais, fazem-no de uma maneira que, para o autor, é absurda e vazia de
sentido.
As personagens apresentam, em seu comportamento aparentemente destituído de sentido,
uma coerência por vezes desconcertante: não se conformam frente a uma sociedade que faz a
guerra, prioriza a massificação e o consumo desenfreado e, além de tudo, esquece a sua
própria mortalidade. Tais personagens negam a condição de “cadáveres que andam”, para se
colocar na desconfortável posição de observadores excluídos do sistema e conscientes de sua
condição.
Para Propp, sentimos prazer ao rir daquilo que consideramos “errado” porque temos um
“[...] instinto de justiça que possui [...] um caráter profundamente moral. Vendo que o mal é
desnudado e ao mesmo tempo rebaixado e punido, sentimos por isso mesmo satisfação e
prazer”
54
.
Campos de Carvalho fixou em seus diversos personagens, que aparentemente vivem fora
da realidade como loucos amargurados e inconformados, características que, por parecerem
absurdas, chamam a atenção para o que eles, em seus desvarios, percebem. Para compreender
esse recurso cômico utilizado por ele, recorremos ao conceito de “exagero cômico” citado por
Propp:
52
PROPP, Vladimir. Comicidade e Riso. São Paulo: Ática, 1992. p. 29.
53
Idem, p. 47.
54
Idem, p. 181. Grifo nosso.
42
Na sátira, o exagero e a ênfase constituem a manifestação de uma lei mais geral: a
deformação tendenciosa do material da vida, que serve para revelar o vício mais
essencial entre os fenômenos dignos de ridicularização satírica.
55
No caso de A lua vem da Ásia, tem-se a caracterização do universo grotesco do hospício e
de seus internos. Percebe-se o seu caráter humorístico apenas porque o narrador está alheio à
sua própria condição. Para Propp,
o grotesco é cômico quando, como tudo o que é mico, encobre o princípio
espiritual e encobre os defeitos. Ele se torna quando o princípio espiritual se anula
no homem. É por isso que podem ser terrivelmente cômicas as representações de
loucos
56
.
Por sua vez, em O Púcaro Búlgaro, a manifestação de duas das principais abordagens
de Propp acerca do riso: o “malogro da vontade” e o “alogismo”. O “malogro da vontade” é a
situação cômica em que os personagens nutrem algum tipo de expectativa quanto a
determinado propósito e se frustram. “[...] é resultado de uma inferioridade oculta na pessoa,
que de repente se revela e acaba suscitando o riso. Numa certa medida a culpada desses
defeitos é a própria pessoa.”
57
O alogismo é o momento em que a fala do personagem
contraria a razão e a lógica.
Propp também apresenta o recurso da mentira como elemento cômico: “a evidente falta
de correspondência entre o que se pode ver e o que se pode pensar. [...] O que é pensável é a
consciência de sua impossibilidade. Essa falta de correspondência, diz Schopenhauer, é o que
suscita o riso”
58
. Em ambas as obras a serem analisadas neste trabalho, os personagens têm
suas falas perpassadas por esse elemento de impossibilidade de correspondência. No entanto,
parecem não ter consciência disso.
Propp expõe outro conceito que se encaixa nos instrumentos usados por Campos de
Carvalho em sua construção do discurso cômico: o calembur, ou jogo de palavras, ricamente
55
Idem, p. 88.
56
Idem, p. 92.
57
Idem, p. 97. Grifo nosso.
58
Idem, p. 117.
43
utilizado nas duas obras. Quando dirigido contra os aspectos negativos da vida, torna-se uma
arma de sátira afiada e precisa.
Diz Propp:
O calembur, ou jogo de palavras, ocorre quando um interlocutor compreende a
palavra em seu sentido amplo ou geral e o outro substitui esse significado por aquele
mais restrito ou literal; com isso ele suscita o riso, na medida em que anula o
argumento do interlocutor e mostra sua inconsistência.
59
Um aspecto importante da obra de Propp é a sua capacidade de definir o riso e o risível
como algo historicamente construído. Todo aspecto cômico pode ser lido dentro de sua
estrutura social de origem. Ou seja, a dificuldade de determinados indivíduos em
reconhecerem comicidade num discurso “[...] está no fato de que o nexo entre o objeto
cômico e a pessoa que ri não é obrigatório nem natural. Lá, onde um ri, outro não ri”
60
.
59
Idem, p. 121.
60
Idem, p. 31.
2 UM MUNDO LUNÁTICO, NA ÁSIA OU EM QUALQUER LUGAR
Et, ubicumque fueris, extraneus es et peregrinus.
(E, em qualquer lugar onde fores, estrangeiro
e peregrino) “do papagaio de Astrogildo”.
A lua vem da Ásia, Campos de Carvalho
2.1 ATEM O AUTOR
Ao entrecruzarmos a literatura e a história, tentamos encontrar naquela uma chave de
leitura para o mundo que Campos de Carvalho retratou. Deixou-nos relatos de profundo
descontentamento com a realidade da qual assustadoramente faz parte, nos quais notamos a
tônica que ditará a escrita de Campos de Carvalho em todos os seus romances.
Todos os seus protagonistas são marginais por excelência. Por marginal, nesse caso,
devemos entender aquele que está à margem, está fora dos padrões de aceitação e de
normalidade que o seu tempo ditava e esperava dos indivíduos. São naturalmente
descontentes e inconformados. Não aceitam a proposição de se conformarem. Talvez essa seja
sua principal característica. Querem a possibilidade de não ter que se adaptar ao mundo e
acreditam, quiçá, poder o mundo ser modificado de algum modo.
Em A Lua Vem da Ásia, um de seus principais romances, e o primeiro objeto de análise
deste trabalho é, certamente, um de seus libelos mais contundentes sobre a loucura do mundo
no qual vive o personagem Adilson, ou Heitor, ou Ruy Barbo (por sinal, uma erva medicinal
45
de sabor bastante amargo, difícil de engolir) ou Astrogildo, que é como se chama ainda hoje,
quando se chama.
Ele transmite essas informações através de um diário que se propõe a escrever para
informar a sua condição:
Tudo isso do meu passado eu conto para que se possa ter uma idéia exata da minha
situação presente, depois que me deram por excêntrico e me jogaram neste hotel de
luxo onde os garçons, o gerente e o subgerente andam todos de branco, e têm os
dentes brancos e não vermelhos ou amarelos como todo gente.
61
Aparentemente, através das informações que transmite, sabemos mais sobre sua situação
do que ele próprio. Logo de início, diz, depois de narrar uma inverossímil aventura de seu
passado, estar na condição de hóspede de um hotel. No entanto, sua própria narrativa
desmente, ou pelo menos faz desconfiar das informações que transmite, já que todos se
vestem de branco e a esposa do gerente, “uma senhora respeitável e vesga”, mede a sua
temperatura pelo “simples prazer de lhe ser agradável”.
Todavia, agiremos de forma condescendente com esse narrador que, em breve, tornar-se-
á simpático a nossos olhos. Ao dizer, quando da abertura de seu diário, que assassinou seu
professor de lógica aos dezesseis anos, “invocando legítima defesa e qual defesa seria mais
legítima?”, tratamos de nos conformar e estender as nossas expectativas a todas as
possibilidades, já que libertos da lógica.
A partir de então, encontraremos uma narrativa frenética sobre os acontecimentos diários
desse “hotel de luxo”, mesclados com as reflexões de nosso inquieto narrador, além de suas
interessantes aventuras ao redor do globo. Nesses três casos, pode-se antever a concepção de
mundo de nosso personagem.
61
CARVALHO, Campos de. Obra ReunidaA Lua vem da Ásia, Vaca de nariz sutil, A chuva Imóvel, O Púcaro
Búlgaro. Rio de Janeiro: Jo Olympio, 2002. p. 37. Todas as demais referências às obras do autor dizem
respeito a essa edição.
46
Certamente, ele está, ou melhor, ele é um descontente, um inconformado, alguém que,
apesar de ser considerado “excêntrico”, e talvez por isso mesmo, seja um observador tão
privilegiado. Despojado de todo e qualquer tipo de convenção social, desvinculado de
religiões e contumaz crítico do Estado, ele lança um olhar quase que infantil sobre a sua
realidade. Por infantil devemos entender limpo, sem nenhum tipo de filtro social capaz de
interferir em seus julgamentos. Para tanto, Campos de Carvalho se utiliza da cabeça de um
louco, já que
a “loucura” em Campos de Carvalho é um recurso de composição para a sátira
combinada ao lirismo, assim como a escala diminuta de Lilliput, por exemplo, eleva
a mil o ridículo das pompas dos governantes, das dissensões políticas, etc.
62
Na obra de Campos de Carvalho
mil rostos se sucedem nos espelhos, o mundo está em guerra, maltrapilhos enchem
as ruas, a família mudou depois da invenção da matéria plástica e do radar, os donos
do poder, entre outras brincadeiras, se bolinam nos palanques enquanto discutem as
altas razões do Estado. (mas ele fala da história recente ou de trinta anos atrás
[sic]?)
63
.
Talvez por tal atualidade encontrada nos textos de Campos de Carvalho, uma busca por
informações históricas no romance A lua vem da Ásia seja corroborada, pois acrescenta à
análise uma discussão recorrente ainda em nosso tempo. O inconformismo com uma realidade
que oprime os homens ainda está presente e, talvez, com mais força do que nunca (apesar de,
infelizmente, não generalizada) no século XXI.
Na obra em análise, encontraremos o crítico persistente aliado ao cômico, que será uma
de suas principais armas para despertar o leitor para o absurdo de suas próprias vidas. Se lido
com a atenção e a confiança necessárias, este romance pode, através de alguns sorrisos
constrangidos, levar o leitor a um estado de desconforto frente a sua própria existência.
62
ARÊAS, Vilma. “Campos de Carvalho e sua arte bruta – Saída pouco e já praticamente esgotada, a
primeira edição da ‘Obra Reunida’ do ficcionista mineiro nascido em 1916 mostra um autor originalíssimo em
que a ‘loucura’ é recurso de composição para a sátira combinada ao lirismo”. In: O Estado de São Paulo, São
Paulo, Cultura, sábado, 17 jun., 1995.
63
Idem.
47
Quando despertado para a sua condição de animal mortal, outrora contente, distraído de
seu sistema excretor e de seu inexorável destino, não se sente nada satisfeito, ao menos por
certo espaço de tempo, variável de acordo com a capacidade do leitor de se chocar com aquilo
que deve chocar.
Carlos Felipe Moisés, em matéria especial para O Estado de São Paulo, diz sobre o autor:
No início dos anos 60, ele agrediu, escandalizou, chocou, melindrou
suscetibilidades; hoje, o efeito já não será o mesmo. A obra perdeu o impacto?
Talvez não, talvez o impacto de agora seja ainda mais intenso. É entender que
chocar ou agredir não é, nunca foi, objetivo do autor. Como todo marginal autêntico,
Campos de Carvalho esconde um moralista: é um escritor que alimenta a ambição
de ensinar um pouco de humanidade ao leitor. O ponto de partida é eliminar toda
hipocrisia, e depois mostrar que enfrentar os porões sombrios da loucura, da morte,
do desespero e da danação nos torna mais humanos. De quebra, nos ensina a rir de
verdade.
64
Algum tempo depois da publicação de seu último romance, O Púcaro Búlgaro, Campo de
Carvalho desapareceu do cenário literário. Segundo suas palavras, em entrevistas dadas
posteriormente, afirma ter procurado por diversas editoras que se negaram a publicar outros
livros seus. Muitos jornalistas, que escreveram sobre suas obras quando da reedição de seus
livros, na década de 70 e, posteriormente, na de 90 a Obra Reunida, publicada pela José
Olympio Editora –, afirmam que essa resistência a novas publicações ocorre pelo fato de
Campos de Carvalho não ser um escritor “politicamente engajado”, de acordo com o que se
esperava de um autor que escrevesse nos tumultuados anos 60.
A partir dessa afirmação, pode-se dar início a uma discussão acerca do conceito de
“politicamente engajado” com o qual se trabalha. Nosso autor foi questionado tanto pelas
correntes políticas de direita, quanto de esquerda, o que leva a pensar qual seria a posição de
Campos de Carvalho sobre essas questões.
64
MOISÉS, Carlos Felipe. “Um autor marginal que de fato incomoda Campos de Carvalho, que escreve
admiravelmente bem, subverte, desmonta, contesta, desfigura, mas, ao contrário dos arrivistas da marginalidade,
conhece a fundo o que está subvertendo, desmontando, etc.”. In: O Estado de São Paulo, Cultura, sábado, 17
jun. 1995.
48
O engajamento pressupõe que um determinado indivíduo assuma posições, mostre qual é
sua maneira de pensar de forma clara; podemos admitir, de forma relativamente unânime, que
nosso autor deixa bastante claras as suas posições políticas em seus romances. Contudo, não
se vincula com nenhuma corrente política como partidos ou movimentos. Inclusive, assume
posturas que contestam tanto características da esquerda quanto da direita. Talvez por isso
mesmo tenha sido renegado por ambos os lados.
A atitude evasionista e mesmo a loucura confirmam a negação de qualquer realidade
positiva de qualquer postura racional. A capacidade de ver além do cotidiano
concreto, do despojamento, acaba por declinar a fragilidade do mundo e do homem.
O resultado é uma literatura narcisista, de percepção do declínio e enfraquecimento
dos valores.
65
Suas posições dizem respeito à forma como os humanos tratam uns aos outros e todas as
maneiras que foram e são utilizadas para que alguns oprimissem outros. Ora, tanto regimes de
esquerda quanto de direita podem se enquadrar, em algum momento, na condição de
opressores. Campos de Carvalho não redimiu ninguém da culpa pelas condições da
humanidade, e esse foi, certamente, o fato responsável pelo seu ostracismo. Não olhava
apaixonadamente para nenhuma causa que não fosse a sua própria, a de perceber, no seu
mundo, erros que comprometiam toda humanidade.
Em 1995, concedeu a Mário Prata, em matéria especial para O Estado de São Paulo, uma
entrevista. Depois de responder às questões feitas por Prata, Campos de Carvalho entregou-
lhe um papel com algumas perguntas feitas a si mesmo e suas respectivas respostas. Ele
pergunta a si próprio: “Você continua vendo hoje o mesmo sentido da vida que sempre
demonstrou em seus livros?” E responde:
Claro que sim. Afinal eu não sou exatamente como o protagonista de meus livros
que, a todo instante, é um ser diferente e cheio de contradições, como de fato
acontece com a maioria dos mortais e até mesmo com os imortais das academias de
letras. Mas afinal eu fiquei de dar aqui a minha atual posição face ao Sentido da
Vida e conseqüentemente da morte o que confesso me interessar pouquíssimo ou
mesmo nada, o que pelo menos uma vez na vida, me faz assim um sujeito lógico,
65
SPAREMBERGER, Alfeu. Campos de Carvalho: a subjetividade condicional. Dissertação de Mestrado em
Literatura Brasileira. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 1989.
49
perfeitamente cartesiano e idiota, como acontece comigo e com toda a
humanidade.
66
Ele oferece uma visão desconcertante do mundo que ainda o incomoda. Essas posições,
que costumam desaparecer à medida que o autor “amadurece”, continuam a conduzi-lo até o
fim de sua vida. Seria realmente frustrante vê-lo, além de não escrever mais, perder a veia
crítica que constitui a sua personalidade. Além de tudo, ele destaca, na mesma “entrevista”, a
importância que o humor tem em sua obra. Considera a ferramenta mais eficiente para
transmitir a sua mensagem: “O que realmente significa o humor para você?
Significa o auge de qualquer ficção ou de qualquer outra arte, no sentido de
sublimação do sublime, da efervescência do fervor ou da originalidade do original. É
um passo à frente de qualquer vanguarda, que se arrisca ao hermetismo da própria
linguagem, ao desconhecido, ao inefável.
67
Em entrevista concedida pouco antes de morrer, em 1998, a Antônio Prata, em matéria
especial para O Estado de São Paulo, diz, quando da pergunta: “O humor em seus livros
parece como uma única posição possível diante da vida? “A solução é o humor. Você pensa
que pode construir alguma coisa. Não pode construir alguma coisa.”
68
A sua postura continua sendo a daquele mesmo Campos de Carvalho de 30, 40 anos
antes, quando se propunha a destruir (ou ao menos contribuir com as ferramentas) o sistema
que sabiamente condenava. E a melhor ferramenta da qual dispunha era sua pena afiada com
o mais cortante humor, um elemento que atacava as estruturas da forma mais insidiosa
possível.
O caso das entrevistas concedidas por Campos de Carvalho é bastante interessante.
Geraldo Noel Arantes, em sua Dissertação de Mestrado, defendida em 2005, na Universidade
66
PRATA, Mário. Geração 90 vai ler Campos de Carvalho Editora JoOlympio relança no dia 10 a obra do
escritor brasileiro mais lido entre 1955 e 1965 e Best-sellers dos anos 50 e 60 são reeditados Aos 79 anos e
sem escrever 30, o escritor Campos de Carvalho, autor de obras como O púcaro Búlgaro e Vaca de nariz
sutil, editadas entre 1955 e 1965, diz que perdeu o humor e que sequer consegue ler. In: O Estado de São Paulo,
São Paulo, Caderno 2, quinta-feira, 6 abr.1995.
67
Idem.
68
PRATA, Antônio. Não gosto de mim trágico (entrevista). In: O Estado de São Paulo, São Paulo, Caderno 2,
sábado, 11 abr. 1998.
50
Estadual de Campinas
69
, chama a atenção para o fato de que a imagem que aqueles, os quais
chama de “comentadoresde Campos de Carvalho, têm do autor são baseadas nas entrevistas
concedidas por ele próprio. Arantes afirma que essa imagem foi deliberadamente construída
pelo escritor, numa tentativa de associá-lo à excentricidade de seus personagens. Seria,
portanto, uma “falsa” imagem de Campos de Carvalho, elaborada deliberadamente. Arantes
chama de “pseudobiografia teatralizada” a construção da imagem que o autor fez de si. Ele
também questiona o fato de que esses “comentadores”, que se propuseram a trabalhar com
Campos de Carvalho, se utilizavam do conteúdo dessas entrevistas como uma forma de
interpretar e explicar as obras do autor; partiam dos comentários de Campos de Carvalho
sobre sua própria visão de mundo para analisar a sua produção literária.
Muitos desses documentos, entrevistas (sic) sobretudo, tiveram lugar na
bibliografia de pesquisadores que se dedicaram ao estudo do escritor. A propósito,
não é rara a adoção dos mesmos com (sic) balizas definitivas para a interpretação da
obra, o que compõe, a meu ver, julgamentos precipitados. Suponho que o autor
tenha se valido dessas formas de discurso mais como uma espécie de gênero literário
alternativo do que propriamente como confissões. Ou seja: seus depoimentos –
especialmente as auto-entrevistas, um expediente praticado com rara capacidade
criadora configuram uma forma de pseudobiografia, ou, se desejarmos, uma
pseudobiografia teatralizada. Algo mais próximo de um gênero literário
performático que propriamente de um perfil biográfico. Nessas intervenções, eivadas
de humor corrosivo e de nonsense, Campos de Carvalho se comportou como
personagem de si mesmo.
70
Andrea Ferreira Delgado, em sua tese A invenção de Cora Coralina na batalha das
memórias, trabalha com a questão da construção da imagem de Cora Coralina e diz que
a invenção de si é, a um tempo, prática de sujeição e exercício de liberdade, pois
significa produzir e reativar para consigo e para com os outros as verdades das quais
se tem necessidade.
Neste processo, a escrita constitui-se em prática de si, gesto de ‘mostrar-se’, dar-se a
ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro e, simultaneamente, exercício do
olhar sobre si próprio. A narrativa do indivíduo, que se debruça sobre sua vida num
momento de produção de subjetividade, atua na transformação de discursos de
verdade em práticas de existência, ou de governo de si por si, na ‘elaboração dos
69
ARANTES, Geraldo Noel. Campos de Carvalho: inéditos, dispersos e renegados. Dissertação de Mestrado
em Literatura Brasileira. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2004.
70
Idem, p. 18.
51
discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros em princípios racionais de
ação’.
71
Gostaria de abordar a questão apontada por Arantes de modo a questionar sua posição
frente à suposta “falsidade” dessa criação” de Campos de Carvalho. Em primeiro lugar,
deve-se perceber nessa pressuposição de que uma imagem falsa do que era o homem
Campos de Carvalho, também haverá a suposição de um Campos de Carvalho verdadeiro, por
trás das impressões que se pudesse ter dele. Ora, por si esse argumento parece bastante
intangível, pois encontrar esse “homem de verdade”, além da “máscara”, seria possível se
fosse exeqüível entrar na sua cabeça e ver o que pensa em todos os momentos de sua
existência. E o mais importante é que nenhum tipo de relato, seja sobre outro indivíduo, seja
sobre si mesmo (e talvez mais ainda nesse caso), está livre de impressões e visões subjetivas;
algumas menos, outras mais. Contudo, a neutralidade é totalmente impossível.
Ao duvidar da validade da utilização das entrevistas como chave para a leitura das obras
do autor, Arantes parece dizer que a relação entre as declarações de Campos de Carvalho
sobre como a sua realidade e a forma como expressava seus pensamentos em seus livros
não existe. Mesmo romanceando sua própria personalidade em entrevistas e, por conseguinte,
criando o personagem Campos de Carvalho, a relação entre os dois casos é indiscutível.
Arantes não se propõe, contudo, a avaliar essa relação com o devido crédito. Justifica essa
desconfiança nos depoimentos de Campos de Carvalho, dizendo que este o fazia como
tentativa de chamar a atenção para seus romances, associando-os a um autor excêntrico.
Deve-se ressaltar, também, em relação à dissertação de mestrado de Geraldo Noel
Arantes, sua postura de certa forma arrogante em relação à produção acadêmica sobre a obra
de Campos de Carvalho. Primeiro, refere-se a outros pesquisadores como “comentadores”, o
que deixa transparecer certa desconsideração a outros trabalhos produzidos anteriormente;
71
DELGADO, Andrea Ferreira. A invenção de Cora Coralina na batalha das memórias. Tese de Doutorado em
História. Campinas, SP. Universidade Estadual de Campinas. 2003. p. 259.
52
segundo, em nenhum ponto de sua dissertação menciona nomes de outros pesquisadores que
tenham trabalhado com o tema, como, por exemplo, Alfeu Sparemberger, que defendeu sua
dissertação em 1989, e Juva Batella, em 2001, tendo, posteriormente, em 2004, publicado sua
dissertação em forma de livro. Aponta apenas críticas publicadas sobre os livros do autor,
críticas essas parte do objeto de seu trabalho; terceiro, menciona o fato de que os
“comentadores” se limitaram a trabalhar com as principais obras do autor, enquanto ele
próprio foi em busca de trabalhos inéditos de Campos de Carvalho. Ora, se trabalhos
demais sobre as principais obras do autor, por que nem sequer mencioná-los?
A imagem criada por Campos de Carvalho, principalmente suas prováveis intenções em
querer parecer ser aquilo que dizia ser, é deveras relevante para uma análise de suas obras,
principalmente sob o ponto de vista histórico. Nesse caso, pode-se destacar a relação direta
estabelecida entre o personagem de A lua vem da Ásia e o “personagem” Campos de
Carvalho.
Quando a obra foi lançada, em 1956, muitas das críticas editadas em jornais da época
viam o romance como um tipo de diário real do louco Campos de Carvalho. A voz do
narrador era também vista como a voz do autor. Ele teria a intenção de se passar por um louco
“de verdade”, o que é curioso, visto se tratar de um romance assumido. Como diz Sérgio
Milliet:
Essa aposta de passar por louco em cento e noventa páginas de uma novela, fê-la
Campos de Carvalho (A lua vem da Ásia) e quase a ganhou.
Digo quase, exatamente pelas considerações acima: sua loucura é de uma gica
artificial, de uma lógica de homem são, que um louco não teria. Entretanto, em mais
de um capítulo, a imitação é perfeita. Não se escrevesse a estória com tanta
segurança de vocabulário, tanta atenção à necessidade do absurdo e realmente
estaríamos diante de um êxito completo. Lembro de ter assistido em Nova York a
uma fita de Buñuel que me causou idêntica impressão. Ao terminar, perguntou-me o
diretor, em pessoa (então exilado nos Estados Unidos juntamente com outros D.
Quixotes do liberalismo), se eu não vira que, voluntariamente, ele evitara toda e
qualquer associação de idéias. Queria o absurdo em toda a sua pureza. ‘Foi
exatamente o que me cansou’, respondi-lhe.
Percebe-se esse artificialismo, e essa gica da ausência de gica destrói o absurdo.
O verdadeiro absurdo não se recusa a certa lógica, e em particular à das associações
de idéias.
53
É um pouco o que penso da novela de Campos de Carvalho, muito curiosa mas
deprimente pela insistência do humor negro. Salva-o a página menos louca do texto,
e por isso mesmo talvez a mais louca, em que se revela as causas do suicídio do
herói.
72
O curioso é a busca do crítico por uma coerência dentro de um livro, ou um diário, escrito
por um personagem louco, como se todos os chamados loucos tivessem o mesmo tipo de
comportamento e forma de pensamento; como se a loucura fosse um tipo único e específico
de problema mental limitado a um tipo de comportamento único.
Uma leitura atenta do livro, no entanto, vai mostrar que o personagem não se limita a
elaborar pensamentos absurdos e desconexos dentro do seu próprio mundo Há,
principalmente nos capítulos onde o narrador se volta para si mesmo e quando se enfurece
com a realidade da qual faz parte, uma lucidez desconcertante e bastante pertinente.
Quem chama a atenção para o fato de que alguma coisa está errada, apontando a loucura
do mundo, é esse cido psicótico encarcerado por não se conformar às esquisitices desse
mundo. Ele abre nossos olhos para a loucura de nosso cotidiano, para a facilidade de aceitar
as coisas como são, para a incapacidade de percebermos nossa própria condição mortal.
Essa suposta loucura alienada da parte de Campos de Carvalho também seria uma das
razões pelas quais o livro A Lua vem da Ásia tenha tido tão pouca repercussão e permanência
dentro dos quadros da literatura nacional de qualidade. A justificativa reside em não ter uma
relação direta e imediata com o mundo real. Isso parece bastante curioso, visto que, mesmo
numa primeira leitura do romance, sabe-se que o autor está questionando ardorosamente a
realidade concreta, fora dos muros de qualquer hotel de luxo, ou campo de concentração, ou
hospital psiquiátrico.
72
MILLIET, Sérgio. Suplemento da Tribuna de Imprensa, Ano I, n.4, 09-10 de fevereiro de 1957.
54
2.2 E UM LOUCO EXPLICA AS COISAS
O louco desvenda a verdade elementar do
homem: esta o reduz a seus desejos primitivos, a
seus mecanismos simples, às determinações mais
prementes de seu corpo. A loucura é uma espécie
de infância cronológica e social, psicológica e
orgânica, do homem. ‘Quanta analogia entre a
arte de dirigir os alienados e a de educar os
jovens!’, constatava Pinel. História da Loucura
na Idade clássica, Michel Foucault
E temos, então, um guia para nos conduzir pelos intrincados caminhos da realidade, a
qual, sem sombra de dúvida não conseguimos e, talvez, nem mesmo fazemos questão de
compreender, pois, às primeiras palavras do autor/narrador/personagem desse diário sem
datas, somos levados a ver o mundo através dos olhos desse indivíduo que, ao não se
conformar, conforma as coisas a seu redor. Comparando-o, às avessas, à narrativa de Fiódor
Dostoievski, Memórias do subsolo, necessita-se de fôlego para mergulhar nas memórias dos
dois personagens. Às avessas, porque, em Campos de Carvalho, o personagem olha para fora;
em Dostoievski temos um personagem que olha para dentro de si mesmo, ou melhor, ele
“desce” para dentro de sua própria miséria. Ambos despertam, nos leitores desses diários,
reflexão e, por que não dizer, aversão àquilo que é visto/lido.
Partimos, assim, para uma “viagem” dentro e através da cabeça desse indivíduo-
personagem que, apesar de assumidamente louco (afinal, é o próprio narrador que nos
concede indícios da oficialização de sua loucura, mesmo tentando nos despistar) tem
momentos de assustadora lucidez quando reflete sobre a situação em que vive.
Se partíssemos em busca de informações lógicas e procedentes dentro da narrativa,
poderíamos dizer que estamos lidando com um narrador em que não se pode confiar. A
questão, entretanto, não é essa. São justamente as contradições e desmentidos que vão dar a
tônica da presente análise desta obra. A estrutura narrativa, a escolha que o autor fez para
55
contar a sua história é deveras importante para podermos compreender suas intenções.
Portanto, como o próprio personagem anuncia sua renúncia à gica, não será através de uma
busca por coerência que decifraremos o romance, uma vez que minha proposição não é a de
dar uma interpretação definitiva e absoluta da obra.
Partindo da pressuposição da divisão do romance em duas partes, não falo da divisão que
o autor atribui à obra, leia-se “Vida sexual dos perus” e “Cosmogonia”, e, sim, de uma divisão
interpretativa que considero neste trabalho, talvez se deva dizer que o narrador, e não a obra,
esteja dividido em dois, os gêmeos, o duplo mencionado pelo personagem-narrador.
Cada um deles, uma vez que possuem características distintas, apresenta relações e
também posturas diferenciadas frente à própria narrativa. Poderíamos denominá-los de
“narrador-dia” e “narrador-noite”. Os epítetos noite” e dia” sugerem a temática abordada
pelo personagem quando da escritura de seu diário. Quando reflete sobre a condição de sua
existência, fala de um lugar bastante sombrio e assustador; insone, analisa sua realidade por
meio de noites nas quais só há o silêncio e a parede branca de seu quarto.
Exatamente: a noite foi feita para os galos dormirem e os insones roerem a sua
insônia. Roerem – não disse bem?
Assombra-me (sempre me assombrou) ver a facilidade com que certas criaturas se
recostam num travesseiro e caem logo num sono profundo, como se houvessem
suicidado inteiramente, sem problema nenhum a resolver no dia seguinte. Parecem
bonecos de corda a que de repente faltasse corda, e a sua consciência é também uma
simples questão de corda a mais ou a menos, como o é também a sua voz, em tudo
igual à de um boneco que fala mamãe. Em mim, o superlúcido, o sono foi sempre
uma conquista muito difícil, e sua escalada através dos anos sempre me pareceu
mais penosa e meritória do que a do Himalaia, ou mesmo a do monte Everest.
Agora a chuva baila em torno da minha cabeça, e no hotel todos dormem ou fingem
que dormem pelo menos, num silêncio que marca com exatidão o barulho da chuva
sobre o telhado. Se eu gritasse é possível que a chuva continuasse caindo, mas o
silêncio pelo menos deixaria de existir dentro do meu quarto e dentro dos quartos
vizinhos, e a chuva já não teria a marcá-la o compasso unânime do sono de todos os
imbecis da terra. Vou gritar, espera!
73
O sentido poético da Noite, do qual diversos autores se utilizaram, é o da noite como um
momento em que a solidão, a escuridão e o silêncio levam o homem a pensar sobre sua
73
CARVALHO, Campos de, p. 40.
56
própria condição, sobre a morte, levam-no a enfrentar seus medos etc. É nessa dicotomia que
surgem as contradições de loucura e de lucidez. Além disso, nesse momento, o narrador
revela-se como alguém que, apesar de todos “dormirem”, está atento a tudo que acontece. Ao
percebê-lo, choca-se com a ironicamente falta de lucidez dos homens frente a uma realidade
que não deveria permitir o sono de ninguém. Em História da loucura, lê-se:
Aquilo que há de próprio à linguagem da loucura na poesia romântica é que ela é a
linguagem do fim último e do recomeçar absoluto: fim do homem que mergulha na
noite e descoberta, ao fim dessa noite, de uma luz que é a das coisa em seu primeiro
começo; ‘é um subterrâneo vago que aos poucos se ilumina e onde se separam, da
sombra e da noite, as pálidas figuras, gravemente imóveis, que habitam a morada
dos limbos. Depois o quadro se forma, uma claridade nova ilumina...
74
O “narrador-dia” relata o cotidiano de seu confinamento, revela detalhes de seus
companheiros de clausura, a rotina alimentar, os procedimentos adotados pelos que controlam
essa prisão a qual justifica dando explicações para os fatos que se sucedem.
O “narrador-noite” está contido dentro de si mesmo, é o próprio isolamento. Através dele
percebemos as reflexões sobre a miséria da existência, sobre a efemeridade da vida, sobre a
condição de desgraça a qual está submetido. Não se pode saber qual deles se despe para
mostrar a sua face real: se o louco se disfarça com a lucidez, talvez para ganhar nossa
confiança; se o lúcido se disfarça de louco, para tentar entender a realidade ou se misturar a
ela. Talvez esse seja o conflito essencial ao qual devemos nos submeter, a batalha de uma
realidade que se faz perceber sob ambos os aspectos, loucura e lucidez, travando um embate
eterno em uma tentativa de explicar o mundo.
É apenas na noite da loucura que a luz é possível, luz que desaparece quando se
apaga a sombra que ela dissipa. O homem e o louco estão ligados no mundo
moderno de um modo mais sólido talvez do que o tinham estado nas poderosas
metamorfoses animais que outrora iluminavam os moinhos incendiados de Bosch:
estão ligados por esse elo impalpável de uma verdade recíproca e incompatível;
dizem-se, um para o outro, essa verdade de sua essência que desaparece por ter sido
dita de um para o outro. Cada luz é apagada pelo dia que ela fez nascer e se vê com
isso devolvida a essa noite que ela rasgava, que no entanto a tinha invocado, e que,
de modo tão cruel, ela manifestava. O homem, atualmente, encontra sua verdade
74
FOUCAULT, Michel. História da loucura: na Idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 510-511.
57
no enigma do louco que ele é e não é; cada louco traz em si essa verdade do homem
que ele põe a nu na nascença de sua humanidade.
75
Pode-se perceber uma divisão da personagem em cada um dos capítulos. Em alguns deles
quem nos fala é o “narrador-dia”; em outros, quem assume o controle é o “narrador-noite”.
Há, entretanto, momentos em que em que os narradores se confundem, momentos em que
a sensatez do personagem noturno consegue perpassar os julgamentos dos atos de seu duplo
diurno e de seus companheiros de prisão. Em outras situações, no entanto, vemos essa
sanidade esvair-se através de alguma frase sem nexo aparente ou de alguma memória cuja
verossimilhança é duvidosa.
58
narrador não abandona de todo a gica; ele abandona a objetividade, a forma racional de
observar a realidade. Diz Foucault acerca da loucura moderna:
O louco não é mais o insensato no espaço dividido do desatino clássico; ele é o
alienado na forma moderna da doença. Nessa loucura, o homem não é mais
considerado numa espécie de recuo absoluto em relação à verdade; ele é, aí, sua
verdade e o contrário de sua verdade; é ele mesmo e outra coisa que não ele mesmo;
é considerado na objetividade do verdadeiro, mas é verdadeira subjetividade; está
mergulhado naquilo que é sua perdição, mas só entrega aquilo que quiser entregar; é
inocente porque não é quilo que é, e culpado por ser aquilo que não é.
77
Assume o posto, então, a emoção, o sentimento, a percepção sensorial. Ele é aquilo que
sente do mundo.
Agora que já olhei a chuva mais uma vez, e que o silêncio persiste dentro deste hotel
mal- assombrado (mudar-me-ei amanhã) o que me resta a fazer é não fazer nada,
como sempre, e esperar que as horas escoem lentamente e que o meu corpo durma
antes de mim, ao peso do cansaço e da mais absoluta monotonia. Deitar-me-ei como
um faquir sobre os espinhos do meu leito bela imagem, sem dúvida apagarei a
luz, rezarei um padre- nosso (eu que não creio em Deus nem creio que ele possa crer
em mim) e fingirei de morto por algum tempo, só respirando e deixando que me bata
o coração, por via das dúvidas. No escuro a noite é completamente escura, como o
podem atestar todos os insones da terra, e o jeito que resta é a gente esperar que,
mesmo com chuva, a alvorada volte a raiar no vidro da janela, e com ela de novo as
esperanças e as idéias felizes, que são sempre as mesmas sempre, apesar de todas as
decepções ou talvez por isso mesmo.
78
O louco é, em essência, aquilo que diz; ele é a sua própria linguagem, e, por sua vez, sua
linguagem pode defini-lo como louco.
Assim, no discurso comum ao delírio e ao sonho, são reunidas a possibilidade de um
lirismo do desejo e a possibilidade de uma poesia do mundo; uma vez que a loucura
e o sonho são simultaneamente o momento de extrema subjetividade e o da irônica
objetividade, não há aqui nenhuma contradição: a poesia do coração, na solidão final
e exasperada de seu lirismo, se revela, através de uma imediata reviravolta, como o
canto primitivo das coisas; e o mundo, durante tanto tempo silencioso face ao
tumulto do coração, reencontra suas vozes: ‘Interrogo as estrelas e elas se calam;
interrogo o dia e a noite, mas não respondem. Do fundo de mim mesmo, quando me
interrogo, vêm... sonhos inexplicados.’
79
Pode-se dizer que esse louco faz perguntas que talvez não fizesse um homem “normal”.
Ele, involuntariamente, se defronta com uma realidade que lhe é totalmente estranha, que não
se mostra encadeada e coerente: como então fazer parte dela se nem ao menos consegue
77
FOUCAULT, op. cit., 2005, p. 520-521.
78
CARVALHO, Campos de, p. 41.
79
FOUCAULT, op. cit., 2005, p. 510.
59
compreendê-la? Sob esse ponto de vista, talvez até possamos entender essa condição e nos
solidarizarmos com ela. E por que não dizer que, em alguns momentos, também
compartilhamos desses momentos de estranhamento frente à nossa própria realidade? Em
menor número e em menor intensidade, sim, mas esses lapsos (ou seriam clarões?) por vezes
nos despertam da conformidade com que costumamos nos vestir durante a maior parte de
nossas vidas.
Sob essa perspectiva, podemos dizer que o louco é um indivíduo em que esses momentos,
tão raros na maioria das pessoas, são a regra e não a exceção. Na maior parte do tempo,
convivem com a inadequação, ou melhor, sentem-se inadequados em sua existência.
Nesse caso, a questão não é afirmar que indivíduos que apresentam algum tipo de
disfunção mental, em menor ou maior grau, são os únicos aptos a perceber as mazelas da
sociedade. O que nos interessa é o paralelo que podemos traçar entre o louco, um indivíduo
destoante, não conformado, desconfortável em relação ao seu meio, e o ponto de vista de
Campos de Carvalho, que sentia um desconforto análogo em relação à sociedade que
analisou, tanto que se utilizou da figura do doente mental como porta-voz de sua opinião.
[...] o louco desvenda a verdade terminal do homem: ele mostra até onde puderam
levá-lo as paixões, a vida em sociedade, tudo aquilo que o afasta de uma natureza
primitiva que não conhece a loucura. Esta está sempre ligada a uma civilização e ao
seu mal-estar.
80
Assim tem-se o personagem doido que se põe a avaliar e analisar o mundo desagradável
em que vive, e dele se pode esperar um descontentamento genuíno e uma perplexidade
admirável frente ao que lhe desagrada. “Muitos me julgarão excêntrico por isso, e eu sei que
julgam, mas o fato é que eu sou apenas sincero e não costumo ocultar as perplexidades a que
me submete minha natureza, como fazem as outras pessoas.”
81
80
Idem, p. 512.
81
CARVALHO, Campos de, p. 54.
60
Sem reações “médias”, ele avança contra tudo o que lhe parece estar fora de lugar. Nesse
mundo, não como ser diplomático, não possibilidade de acomodação. Está sentado
sobre espinhos e não há saída. Só resta gritar, gritar o mais alto possível. Ele escreve então, no
“Capítulo 333”, o que chama de “CARTA ABERTA AO TIMES ”, colocada dentro de uma
garrafa e despachada pelos canos do esgoto.
Embora de pijama, vejo-me obrigado a representar a VV. Exas. contra o abuso
inominável de que vimos sendo vítimas, eu e outras pessoas igualmente respeitáveis,
num campo de concentração dentre os muitos que devem existir por este mundo
concentrado de hoje [...].
82
O relato contido na carta tem, para ele, a função de chamar a atenção de um jornal
internacionalmente conhecido para um problema que acha, inocentemente, não terem
conhecimento. Quando suas expectativas em relação a sua certeza de estar em um hotel de
luxo são frustradas, passa, então, a achar que algo está errado, pois o embaixador da Abissínia
nunca ouviu falar o abissínio, e o sobrinho de Napoleão conhece o francês dos nomes de
boates famosas. Logo, estão em um campo de concentração.
Trata-se apenas de despertar a consciência de VV. Exas. para o fato de, em pleno
século XX, e ao que consta em pleno período de paz, ser permitido a um pequeno
grupo de idiotas manter presos e por vezes mesmo amarrados alguns cidadãos de
alta linhagem e de reputação acima de qualquer suspeita porque esses cidadãos,
entre os quais estou eu naturalmente, não pactuam e não poderiam mesmo pactuar
com suas idéias retrógradas e obsoletas, seja em matéria de religião como de
política, de amor como de finanças ou de arte. Pois o que ocorre neste campo de
concentração onde me encontro, como deve acontecer em todos os demais, é apenas
isto e que me parece de um absurdo inominável: uma minoria armada até os dentes,
inclusive com cadeiras elétricas, manda e desmanda sobre uma maioria de
indivíduos realmente individuais e tenta impor-lhes à força a sua cartilha de
primeiras letras, quando não o seu catecismo religioso dos tempos antediluvianos,
que é a quanto chegam no melhor dos casos as idéias ou que outro nome tenha a
intolerância desses senhores da terra e dos céus. [...] a liberdade aqui é uma palavra
que já não existe nem sequer nos dicionários e de que ouvimos falar quando
somos nós que a pronunciamos, em geral em voz baixa e para nós mesmos. E sem
liberdade, hão de convir VV. Exas. que este mundo, por melhor que seja, não passa
de um pesadelo e de uma farsa de mau gosto como de achar no front o soldado
com o seu fuzil e suas polainas, num dia azul de primavera.
83
82
Idem, p. 72. Grifo meu.
83
Idem, p. 73.
61
E A lua vem da Ásia será ao mesmo tempo um pedido de ajuda, uma denúncia, um enredo
e, além disso, executado com extrema delicadeza, uma delicadeza que agride nossos sentidos
à medida que os desperta.
2.3 CAPÍTULO CAPÍTULO
MERDA! MERDA! MERDA! MERDA!
MERDA! MERDA! MERDA!
Vaca de nariz suti,. Campos de Carvalho.
Devemos encarar a leitura de A lua vem da Ásia sob a perspectiva de uma visão
extremamente desagradável que o personagem-narrador tem daquilo que se propõe a narrar;
agressivo, cru, ácido. Não será imediata essa imersão nesse lodo que ele se dispõe a mostrar,
mas quando entramos, talvez seja irremediável esse contato desagradável com esse universo
que, queiramos ou não, também é o nosso.
O dia mais feliz da minha vida foi o dia em que escrevi minha primeira palavra feia
no muro alto do colégio exatamente essa bela palavra MERDA que agora me fita
do outro lado da rua, como um desafio. MERDA é tudo que não seja a morte, que
talvez também o seja, e disso sempre tiveram consciência os homens menos
mentecaptos em seus momentos de maior lucidez, e que são poucos. Merda é a
própria vida, mero eufemismo para uso dos salões elegantes e dos tratados
diplomáticos, que também são uma merda como tudo mais, como sempre o foram e
62
assinamos o pacto no qual aceitamos entrar nesse mundo sujo, sem, contudo, deixarmos de rir
dele.
Nosso personagem está, assim, disposto a questionar a realidade de uma maneira
debochada e irônica. Por vezes, utilizando-se de argumentos amargos e densos; por outras,
rindo ruidosamente através de frases risíveis. Nessa dicotomia, encaixam-se as personalidades
dos já mencionados “narrador-dia” e “narrador-noite”. Quando fala o primeiro, temos o
discurso daquele que ri da realidade e nos faz rir com ele; quando, por sua vez, assume o
controle o segundo, temos a profundidade, o subsolo, o lodo, a tristeza de sua condição.
Conheci, também, embora menos intimamente, um legado pontifício que se faz
passar por modesto funcionário bancário para melhor fiscalizar os altos interesses da
Igreja em todo mundo, e que de certa feita me confessou estar empenhado na criação
de um novo Deus coisa nunca vista que lhe permita, um dia, emancipar-se
economicamente. Esse mesmo legado, aliás, apresentou-me ao seu secretário
particular e possivelmente o futuro Messias redivivo, o qual, durante todo o tempo
em que conversamos, não disse bolacha nem se mostrou impressionado com o seu
bigode supersônico, limitando-se a sorrir vez por outra, a propósito das coisas mais
sérias.
85
As descrições de seus companheiros de clausura contêm, geralmente, justificativas para a
presença desses estranhos indivíduos nesse, até então, hotel de luxo. Como poderia estar ali
um modesto funcionário público? A verdade é que ele está apenas disfarçado. Ele é de fato
um importante membro do clero empenhado em garantir os interesses de sua igreja e
intentando a criação de seu próprio Deus: nada seria mais coerente.
Outras pessoas, mais distintas, que sou obrigado a ver sempre, por força do regime
de guerra a que estamos submetidos são, por exemplo, o grande artista de cinema
Heliodoro Papanatas (grego) irreconhecível em seu travesti de Dama das Camélia
(sic), e que por duas vezes tentou suicidar-se atirando-se contra a parede como
uma bola de pingue-pongue; o sobrinho torto de Napoleão Bonaparte a que me
referi antes, mas que por sua alta ascendência merece aqui nova citação, como se faz
nos campos de batalha; um misterioso senhor Valadão, de sobrancelhas espessas e
que tem o péssimo hábito de cuspir por todos os cantos (a mim já me cuspiu duas
vezes) e que ultimamente parece ter sumido de circulação, ou pelo menos já não o
tenho visto cuspindo sobre o próprio prato de comida; o astrônomo Dr. Keither, de
ascendência judia e prêmio Nobel de Química de 1952, e que se mostra sempre
muito afável para comigo, discorrendo horas seguidas sobre a importância das
migrações indo- européias sobre as descobertas etruscas e vice- versa, para falar
85
Idem, p. 43-44.
63
do seu assunto preferido; o estudante de filosofia que diz chamar-se Vinicius, mas
que desconfio tenha realmente outro nome.
86
O narrador aceita e justifica docemente a presença de um famoso ator grego, um sobrinho
de Napoleão Bonaparte (que estranhamente não está presente), um homem que cospe em tudo
e em todos e um agraciado com o prêmio Nobel, todos confinados no mesmo lugar, sem
nenhum questionamento. Entretanto, duvida da identidade de um simples estudante de
filosofia que, segundo o próprio, se chama Vinicius, o que nesse contexto até nos parece
estranho. Vinicius não parece fazer parte desse grupo de renomados indivíduos.
[...] o digno representante do imperador da Rússia veio a saber que o imperador da
Rússia não existe, o que o levou ao desespero por uns instantes e o fez criar um
pequeno tumulto à hora da refeição [...]. Afinal, acabou por apaziguar-se diante das
palavras sensatas do Dr. Keither, que lhe fez ver que, não existindo o imperador da
Rússia, poderia ele muito bem tornar-se representante do imperador da Abissínia, e
o empossou desde logo no cargo.
87
Para consolar o inconsolável rebaixamento de representante do imperador da Rússia para
representante do imperador da Abissínia, Astrogildo ou Heitor promete-lhe alguns aforismos
de sua própria lavra, já que a situação assim exige. Aforismos estes que têm grande
importância para nosso narrador. Neles, resume seus pensamentos em frases curiosas,
inclusive a que dá nome ao livro:
À noite a lua (sic)
88
da Ásia, mas pode não vir, o que demonstra que nem tudo
neste mundo é perfeito.
As flores m o perfume que a terra lhes sem ser perfumada. Assim, também
nós devemos dar a nossos atos aquilo que não trazemos em nós mas de que
somos realmente capazes, e que não morrerá com a nossa morte.
A mulher do gerente é vesga mas tem um belo par de pernas, o que não deixa de
ser uma compensação. (Não, isto não chega a ser propriamente um aforismo.)
89
Corpo, sinônimo de cadáver.
Quando Paul Claudel me perguntou se eu não acreditava em Deus, eu lhe
respondi: Qual deles?
Não me lembro de ter nascido. Meu registro de nascimento é um blefe. Sou tão
velho quanto a África.
Vou reescrever a história do Cristo. É só me darem lápis suficientes para isso.
90
86
Idem, p. 44. Grifos meus.
87
Idem, p. 51.
88
Aqui existe uma falha na impressão na edição da Obra Reunida de Campos de Carvalho, publicada em
2002 pela Editora José Olympio. A frase completa é “À noite a lua vem da Ásia (....)”.
89
Idem, p. 52-53.
90
Idem, p. 85.
64
O que significa a lua vir da Ásia? Não sabemos, e podemos ler a sentença de diversas
formas. Contudo, o que estranhamos é a sugestão de que o mundo não é perfeito pelo simples
fato de, às vezes, a lua não vir da Ásia.
A partir de um determinado momento da narrativa, há uma mudança substantiva na forma
como o narrador vê o mundo. Significativa para a percepção desse momento é a denominação
dos capítulos do livro, que, à primeira vista, não tem nenhum sentido, mas, à medida que
compreendemos a visão de mundo da personagem, conseguimos associá-la à suposta
arbitrariedade dessa divisão.
Como foi mencionado, o livro é dividido em duas grandes partes, “Vida sexual dos
perus” e “Cosmogonia” que, por sua vez, são dividas em 20 e 15 capítulos, respectivamente.
Os capítulos da primeira parte são dispostos sem ordem numérica, às vezes numerados, às
vezes nomeados:
Capítulo Primeiro
Capítulo 18º
Capítulo Doze
(Sem Capítulo)
Capítulo sem Sexo
Capítulo 99
Capítulo Vinte
Capítulo I (Novamente)
Capítulo
Capítulo CLXXXIV
Capítulo XXVI
Dois Capítulos Num Só
Capítulo 333
Capítulo 334
Cap. 71
Capítulo Não-Eclesiástico
Capítulo 103
Capítulo Negro
Capítulo 42
Capítulo LIV
65
a segunda parte é dividida pelas letras do alfabeto em ordem crescente, partindo do
“A”, até o “N”. O último capítulo do livro contém as letras restantes “O. P. Q. R. S. T. U. V.
X. Y. Z.”.
No primeiro capítulo, o personagem começa a sua narrativa e pressupõe que está
hospedado em um hotel de luxo. No capítulo denominado “Capítulo I (Novamente)” há, como
o próprio título prenuncia, um recomeço, uma retomada da história, agora sob o ponto de vista
de um prisioneiro de um campo de concentração.
Razão tinha eu de suspeitar. Dissipou-se afinal a cortina de fumaça que encobria em
parte o mistério deste hotel internacional em que me jogaram há mais de vinte
anos.
91
O tempo relativo à sua internação não fica claro durante a narrativa, pois, em diversos
momentos, o próprio narrador não parece ter consciência e nem conhecimento da passagem
objetiva do tempo. Em alguns momentos de reflexão, quando fala sobre o tempo, demonstra
critérios subjetivos para avaliá-lo. Como, por exemplo, “parece” fazer vinte anos que está
preso, mas mencionando, também, que bem poderiam ser apenas cinco.
Não estamos num hotel, e sim num tenebroso campo de concentração, com tortura e
tudo, a julgar pela que me infligiram ontem
Levaram-me, logo pela manhã, a uma câmara de gás onde havia uma cadeira elétrica
(que logo constatei ser uma cama e não uma cadeira) e na qual sem dúvida
pretendiam extorquir-me algum segredo de Estado, de que sou portador mas que
sinceramente ignoro qual seja. Fizeram-me deitar nessa pseudocama, inteiramente
nu e amarrado com toda uma equipe de guardas ao lado, disfarçados de
enfermeiros e puseram-me na cabeça uma espécie de capacete de aço (um pouco
mais confortável, sem dúvida) do qual saía ostensivamente um par de fios
elétricos.
92
É a partir desse momento que a amargura do narrador transparece com mais intensidade.
Ele não se conforma com a sua própria decepção frente àquilo que acreditava real. Não
consegue apreender o porquê de aqueles indivíduos estarem impingindo-lhe aquele tipo de
tortura. Vivia, até então, na mais completa inocência quanto à existência ou não de inimigos,
que, de um momento para o outro, se revelam.
91
Idem, p. 57.
92
Idem.
66
Agora pergunto: que querem de mim, realmente, esses senhores e essas senhoras que
até ontem eu tomava por gerentes e criados de um hotel de luxo, embora
estranhando sempre o regime severo de vigilância a que estava, como todos os
demais hóspedes, sujeito dia e noite, e até mesmo durante o sono? Que segredo
importantíssimo é esse que querem arrancar-me à força, lançando mão inclusive das
mais terríveis ameaças, como essa extrema da cadeira elétrica, sem julgamento
prévio e sem o conforto ao menos de um confessor?
93
Assim, sob imposição dessa tortura, Astrogildo deixará clara sua posição em relação à
autoridade a qual é submetido. O Estado, que ele desconhece o nome e talvez seja “Merda
7”, ou outro qualquer, representa, nesse momento, o seu maior inimigo. No entanto, durante
toda a narrativa demonstra seu descontentamento em relação a qualquer tipo de autoridade
que o submeta a regras que vão contra sua a individualidade.
[...] uma coisa porém eles não me tomam, eles os espiões de todas as nacionalidades,
as prostitutas húngaras ou mesmo iugoslavas, os falsos amigos e sobretudo os
verdadeiros, os membros de todas as orquestras sinfônicas do universo, os gaiatos da
polícia nacional e internacional; os búzios e os lutadores de jiu-jitsu de todas as
categorias ou faixas: é esta consciência que trago de eu ser apenas e cada vez mais
uma propriedade minha, exclusiva, indivisível, una, prima encher pares, NEC filos
ultra, e mais citações latinas que se façam necessárias [...].
94
Esse é o ponto principal de sua revolta, ou seja, qualquer coisa que atente contra a
possibilidade de exercer sua condição de indivíduo único (mesmo que plural, com o gêmeo
que habita seu interior). A uniformização dos pensamentos, aparências, modos de ver o
mundo, imposição religiosa ou política. De diversas maneiras, podemos ler a crítica de
Campos de Carvalho a uma sociedade que, no início da década de 50, começava a se delinear
de forma assustadora.
Estaremos porventura numa nova Inquisição, ou será a mesma antiga que nunca
deixou de existir e que agora, pela primeira vez, se faz sentir em toda a sua
plenitude sobre o meu peito cansado e meu olhar triste, por motivos que desconheço
e que aos outros parecerão óbvios? (Serei tão herege assim, eu que nem sequer
nunca pensei em criar um deus à minha imagem e semelhança e em adorá-lo como
se adora um senhor todo- poderoso, com subserviente hipocrisia?)
95
A única justificativa para estar sendo submetido a tudo isso lhe parece ser o fato de ser
portador de alguma informação da qual não tem conhecimento. Fora isso, não haveria razão
93
Idem, p. 58.
94
Idem, p. 56.
95
Idem, p. 58.
67
suficientemente legítima para o fazerem sofrer tanto. De todos os “crimes” que consegue
lembrar-se de ter cometido, nenhum seria suficientemente grave para justificar a tortura. O
capítulo que ele denomina apenas de “Capítulo” é um dois mais importantes e reveladores do
livro, que, por ser um diário, expressa as opiniões, diríamos, sinceras de seu narrador. É claro
que omissões e seleção de informações, como em todo tipo de registro. Contudo, como
foi dito anteriormente, assumimos um pacto de confiança com nossa personagem, para dela
extrair o maior número de informações possíveis. Portanto, olhemos para suas palavras acerca
da tortura a que está sendo submetida como se olhássemos para a palavra de um torturado.
[...] esta prova de fogo a que me submetem os carrascos de todos os tempos, ao
tentarem arrancar-me a verdade, que em mim está bem à flor da pele. [...] o objetivo
[...] é sempre o mesmo a Verdade como se eu tivesse uma única verdade e não
muitas, todas à flor da pele e lutando entre si como num campo de batalha.
96
Nesta citação, encontramos um dos aspectos mais importantes da personalidade e visão
de mundo do narrador, a revelação nt585(o)-0.297áv.297á8-0.155585(a)3.74(a7561(e)3.74217(e)-2.05734(r)-4.55n51 -27.6 Td[(d)-(-2.05734(r).74217(e)-4(s)-1.2312( )-100.206(d)-0.2955-3537(d)9)]TJ269.199 0 Td[(q)-0.29493.74t2r674(r)n51 -27.6 Td[(d)-(-2.05734(r)206(m)-2.452( )-100.206(d)-(-2.05734(r)206(m)-2.220.278(a)3.74122( )5O37.6 Td[(d)-(-2.05734(d)a4(r))3.74122( )5O37.6 5(.)-3.16695(])-4.55617( )2.1)3.74122( )-10.1537(i)-2.165535734(r)206u0(e)-2.05734(r)-4.5m)-2.220.278(a)3.74122( )5O37.6).295585(o)8500.206(e)ofscaraãuo o o
68
Aliás, estou decidido a calar-me agora mais do que nunca, a fim de não proporcionar
aos meus algozes o espetáculo de uma covardia que não tenho e que jamais será a
minha. Torturem-me até a mutilação ponham-me nu quantas vezes queiram, eu que
já vivo nu sem que eles o percebam; deixem-me incomunicável em minha cela como
se eu fora um anacoreta, eu que de fato sou um oásis cercado de deserto por todos os
lados; - força nenhuma me fará abdicar de minha força ou mesmo de minha
fraqueza, como nenhum instrumento de tortura me fará sair da minha pele, que
afinal é a minha cidadela. Posso gritar, e acredito mesmo que venha a gritar muitas
vezes, que para isso foi dado o grito ao homem e o grito é apenas uma forma de
defesa como outra qualquer, nem me crucificarão impunemente, sem que eu lhes
responda com um riso de escárnio na boca ensangüentada.
98
E ainda:
Dou minha verdade ao primeiro mendigo da esquina e sem que ele a peça, como a
dou de bom grado a quem se mostre humano como eu e me trate como a um amigo;
jamais, porém, a terão os que não confiem na minha sinceridade e usem de
processos violentos para abrir-me a boca e os olhos, que são apenas os olhos e a
boca do meu corpo, não da minha alma. Os carrascos, tenho-os na conta apenas de
imbecis a serviço do Estado ou de outra potência ainda mais impotente do que o
Estado – e com os imbecis a minha conduta foi sempre uma e única: eles de um lado
e u do lado oposto, com duas margens de um rio que nem o mar da morte conseguirá
jamais unir.
99
Não há, em sua concepção, como se dignar a responder aos seus algozes que tanto o
desrespeitam. Não são homens de verdade aqueles que o eletrocutam e exigem dele algo que
ele não consegue admitir. Eles não merecem ouvir a simples verdade que defenderá até a
morte, se for necessário.
Mas a verdade humana que descobre a loucura é a imediata contradição daquilo que
é a verdade moral e social do homem. O momento inicial de todo tratamento será
portanto a repressão dessa verdade inadmissível, a abolição do mal que ali impera, o
esquecimento dessas violências e desses desejos. A cura do louco está na razão do
outro – sua própria razão sendo apenas a verdade da loucura [...].
100
Nessa obra de Campos de Carvalho, que aborda a loucura em seu estado mais elementar,
percebe-se um conhecimento bastante aprofundado da questão da doença mental. É claro que
aborda o tema de modo romanceado, e nem devemos esperar outro resultado, visto que
trabalhamos com um romance. O próprio Campos de Carvalho, quando questionado sobre a
possibilidade de o livro ser autobiográfico (já que escrito em primeira pessoa), respondia que
98
Idem, p. 61.
99
Idem, p.67
100
FOUCAULT, op. cit., 2005, p. 514.
69
se fosse colocado entre loucos “de verdade” seria imediatamente reconhecido como “lobo em
pele de cordeiro”.
Apesar dessa “falha” em sua personalidade (sim, porque não ser louco foi considerado, na
época da publicação do livro um grande problema, pois apenas fingia ser o que não era
{malditos romancistas!}), vemos uma grande coerência do autor na abordagem do tema; o
louco visto, acima de tudo, como alguém que percebe a realidade de forma diferente da
maioria das pessoas. Além disso, mostra-o como um ser único, diferenciado dos demais
loucos. Até a metade do século XX, a doença mental era tratada de forma homogênea, não
havia diferenciação de tratamento entre os diversos tipos de doentes mentais. Nossa
personagem faz questão, em diversos momentos da narrativa, de deixar claro que possui uma
individualidade e que está disposta a brigar por ela.
Meu pai, que era um homem esperto, queria que eu fosse general ou papa, mas fugi
de casa muito cedo e aprendi a ser apenas eu mesmo, sem nenhum título permanente
o que, de resto, não considero nenhuma virtude de minha parte, mas simples
obrigação. No dia em que não puder ser eu mesmo, eu me matarei de vergonha;
aliás, nem será preciso que me mate: morrerei simplesmente. Já tentei o suicídio três
vezes por esse motivo mas, no instante mesmo em que me suicidava, compreendia
que afinal voltara a ser eu mesmo, e desistia do intento.
101
Poder-se- ia dizer que sua perspectiva da realidade é bastante negativa, apesar de sentir-se
satisfeito com o fato de ele próprio conseguir ver o mundo e as pessoas como elas
“realmente” são. Contudo, não está feliz. Sua satisfação está em, precisamente, conseguir
absorver a tristeza do mundo.
Que o otimismo é uma grande coisa não resta a menor dúvida, como o é também a
santidade, dentro ou fora da Igreja Católica Apostólica Romana. Só que não é
otimista quem quer, ao contrário do que pregam os norte- americanos, como não se é
santo pela simples extirpação dos testículos ou pelo desejo acirrado de servir ao
próximo, mesmo quando se trate de nosso maior inimigo. Ou se nasce inocente ou
não se nasce, e a inocência, que 7.5562(s)3.21905734(e)-2.05734(,)-v3345(n)5.721e xt xtoa sedOu4Cestíecadmomo, omcrOua
70
do que sou, ou menos baixo de estatura, ou ainda menos feio do que pareço diante
do espelho.
102
E continua:
Se o otimismo se vendesse a peso de ouro, eu o compraria por todo o ouro do mundo
e ainda daria de contrapeso o destino de minha alma imortal, já que por muito menos
a entreguei um dia ao diabo, que tem fama de bom cobrador. O que me enfeia é
justamente este ar de repugnância e tédio que, digam o que quiserem, trago de
nascença e ficará estampado ad aeternum na face do meu cadáver [...].Ao sacerdote
que me venha encomendar o corpo peço que respeite ao menos esse ricto de pura
náusea que por certo lhe de causar escândalo, e que os parentes, se os tenho,
atribuirão ao lenço amarrado no queixo ou a simples ilusão de óptica, mesmo porque
não lhes poderei cuspir no rosto em prova do contrário.
103
Sua opinião sobre a existência fica bastante evidente na citação acima, e como esperar
algo diferente de um indivíduo totalmente incompreendido pelos homens que deveriam
aceitá-lo como igual, apesar de suas diferenças. Ele defende a idéia de que o esforço não deve
ser o de tornar os homens iguais em sua “essência”, mas sim o de reconhecer as diferenças
como formas de enriquecer as relações humanas. Ele é o melhor exemplo dessa riqueza.
Não consegue e nem quer fingir qualquer tipo de aceitação quanto à condição dessa
humanidade que vangloriar-se de sua onipotência frente ao universo, enquanto se esquece
de sua própria mortalidade. E o melhor de tudo: consegue fazê-los ridículos. Em uma de suas
muitas aventuras, transformado em importante colunista social, passa a fazer parte de um rico
grupo de pessoas que o respeitam apenas porque os elogia semanalmente no jornal mais
importante da cidade. Campos de Carvalho mostra, aqui, a sua capacidade para explorar a
diversidade de personagens que nosso narrador incorpora, até o momento em que decide
despir-se deles para voltar à sua “antiga-e-sempre-presente-voz-irritante-da-verdade-que-
incomoda”:
[...] eu não me contive e bradei com todas as forças dos meus pulmões algumas
duras verdades que, mais cedo ou mais tarde, teria mesmo que lançar no rosto de
toda aquela gente reunida em torno de mim e vivendo à custa de meus elogios
diários ou hebdomadários. Algo assim neste estilo, se não me falha a memória:
‘Nem parece que todos vós tendes intestinos e, na ponta desses intestinos, um
102
Idem, p. 111.
103
Idem, p. 112.
71
lamentável cu, exatamente igual ao que m vosso açougueiro, vosso chofer, vosso
camareiro, vossos cachorros e vossos cavalos de raça. Vosso cu é a melhor arma que
tendes para afugentar os maus pensamentos, que são aqueles que vos afastam da
simplicidade humana e da humana aceitação da vida e é para o vosso cu que vos
conclamo olheis diante do espelho, se preciso de joelhos e com uma vela na mão
para enxergar melhor, toda vez que vos sentirdes possuídos de um orgulho oceânico
e vos julgardes tão poderosos quanto vosso Deus, que pelo menos (que eu saiba) não
tinha nenhum cu à vista’.
104
É claro que sua atitude não agradou ninguém, pois, afinal, algumas verdades são deveras
inconvenientes para serem lembradas assim, à luz do dia e em tão altos brados. Considerado
“elemento pernicioso e indesejável”, recebe ordens para abandonar o país. E ele não disse
mentira alguma.
Verdades inconvenientes até para ele mesmo que, por estar na condição de único que
consegue apreender as agruras do mundo, está sozinho e triste. No capítulo denominado “L”,
desabafa durante uma crise de choro que surge sem motivo imediato e sem controle. Chora a
ponto de procurar um médico que explique a sua situação. É claro que não consegue. O
parágrafo a seguir é extremamente significativo para explicar e revelar seu modo de pensar.
Nele, o narrador invoca seus leitores para que lhe ensinem a anestesiar seus sentidos para
poder viver sem a dor da existência repleta de insatisfações. Apesar de longo, sua transcrição
faz-se necessária:
Dai-me, eu vos peço, a receita de não chorar à toa sobre as mazelas e incongruências
deste mundo o cotidiano, e de ver com olhos de cego, como vós fazeis, e de ver
com olhos de cego, como vós fazeis, as aparentes belezas deste vasto cemitério
sobre o qual caminhamos e que, de tão repleto de mortos, está até cheirando mal,
apesar da primavera que no céu e nas flores. Dai-me a fórmula de sabedoria que
me permita, aos quarenta anos idade da minha imagem no espelho contentar-me
com o efêmero espetáculo do dinheiro e da mulher nua, e com os fugidios prazeres
que nos podem advir do corpo ou do espírito, QUANDO sobre nossas cabeças paira,
cada vez mais densa, a gigantesca sombra da morte, com a sua certeza que não
admite sofismas nem tergiversações, por mais que a queiramos ignorar em nossos
instantes de sono ou mesmo de vigília. Se a morte para qual caminhamos a passoa
(sic) rápidos e que ainda hoje pode colher-nos de surpresa, como nos colhe um
raio em meio à tempestade se essa morte é, cada dia mais, de minuto a minuto, a
grande verdade contra a qual não prevalece nenhuma filosofia do homem nem
tampouco sei incomensurável orgulho, dizei-me como e sobretudo por que devo eu
ignorá-la com um sorriso nos lábios, como se este mundo fora o paraíso terrestre e
não a terra deserta e sem caminho de que fala a Bíblia, livro que em tudo mais não
merece grande crédito. Eu que sempre levei uma vida aventurosa, modéstia à parte,
rindo-me de tudo e de todos sem pedir licença ao papa nem ao chefe de polícia,
104
Idem, p. 133.
72
sempre fui no íntimo um pobre espantalho dentro da noite, mais triste do que o
palhaço mais triste, com o riso da caveira à guisa de gargalhada. É que o meu riso,
que a muitos parecia louco, era em verdade e apenas um pranto disfarçado, como só
agora me dou conta de todo, em face desta lacrimorréia aparentemente absurda em
que me afogo. Em suma: nada mais vos peço senão que afugenteis a morte da minha
vista, que não podeis afugentá-la das minhas costas, e que me deis o segredo
desse filtro que vos faz tão tranqüilos e ao mesmo tempo tão vivos, mesmo com o
cheiro de cadáver exalando de vossas narinas. Dai-me, enfim, a arte de mentir a
mim mesmo, eu que não sei mentir nem aos outros, e fazei com que eu pise sobre os
mortos como se pisasse apenas sobre esqueletos antediluvianos, que não me
dissessem respeito e muito menos desrespeito, dada a minha alta qualidade de ser
imortal e indiferente aos abismos.
105
Aqui é revelado, em alto e bom som, a sua assustadora verdade que é a de colocar o
homem à frente de sua própria morte e futura decomposição. Em definitivo, não é agradável
constatar que nossa carne um dia se decomporá sob a terra e que, de nós, nada restará sobre a
face da terra. Assim, nossos atos deporão e serão, em última análise, os únicos resquícios de
nossa existência. Mas, mesmo que virtuosos, mesmo que justos, teremos sempre o mesmo
cheiro embaixo de camadas de terra.
Ao ler Campos de Carvalho, ficamos assustados, mesmo que por alguns instantes apenas,
sentimos uma dor que surge na boca do estômago, como se atingidos por um rinoceronte em
disparada. A dor intensa incomoda e por isso não queremos que esse rinoceronte seja
novamente posto em liberdade. Ele choca, incomoda, assusta. Tem a indubitável capacidade
de provocar uma reação no leitor que se propuser a lê-lo com profundidade.
Sua maior virtude, como prosador que tem algo a dizer, é a sua capacidade de fazê-lo
com uma simplicidade quase infantil. O romance A lua vem da Ásia contém informações
muito claras sobre quais aspectos da sociedade ele fala. O que critica, o que lhe causa esse
desconforto tão grande. Revela-nos, de forma muito simples, sem no entanto deixar de ser
denso e profundo, quais são seus inimigos e contra o que se propôs a lutar. Lutar, sim, pois
apesar de não assumir este ou aquele partido político, não se vincular diretamente a nenhuma
105
Idem, p. 141.
73
corrente de pensamento, ele lutou em defesa de suas idéias. Um livro sempre será também um
libelo, uma tomada eficiente de posições, algo que ele fez de forma muito eficaz.
O mundo se divide em duas partes bem definidas: eu e o resto do mundo, e a minha
defesa está justamente nos meus sonhos, ou desvarios como queiram, em cujas asas
vôo a alturas que vocês nunca atingirão de foguete, e de onde avisto as cúpulas dos
edifícios como se fossem cabeças de alfinete, como o são realmente. Se não posso
mudar o mundo, tampouco permitirei que o mundo me mude a mim, arrancando-me
esse câncer de mistérios e heresias que é toda a minha riqueza e que faz com que
minha voz não seja apenas um grunhido de porco, nem meu olhar apenas o olhar de
um peixe dentro do aquário.
106
O último capítulo do livro é chamado de “O. P. Q. R. S. T. U. V. X. Z.”, a “SEGUNDA E
DEFINITIVA CARTA AO TIMES (Com vista ao sr. redator da Seção Necrológica).
Contendo as últimas dez letras do alfabeto parece querer abreviar o final de sua conturbada
história. Neste ponto, ocorre o corte abrupto da narrativa, concluindo seus pensamentos com a
última coisa que escreverá: a sua carta de suicídio.
Um suicídio que bem poderia parecer uma desistência, mas que, em verdade, é de fato
um adiantamento daquilo que ele próprio compreende como inevitável. Além disso, é possível
perceber o pensamento entediado do narrador louco que não está disposto a continuar seu
diário e, por conseguinte, sua própria vida.
Como tudo que tenho feito na vida, decidi realizar minha morte sem pensar muito
tempo no assunto, mesmo porque sempre me pareceu que a morte não é tão
importante quanto querem fazer crer os vivos, dada a nossa perfeita insignificância
no universo. A morte de um mosquito é tão importante quanto a minha própria
morte, digo-o sem falsa modéstia, e disso o senhor mesmo terá prova ao ficar
sabendo do meu suicídio [...].
107
Não justifica seu ato com nenhuma grande razão, apesar de tê-las em profusão, pois,
depois de ler o seu diário, sabe-se disso, até porque tem consciência, como mesmo disse, de
sua insignificância perante todo o resto. Mata-se apenas porque quis, porque naquele
momento estava disposto a isso. Pragmático, confessa:
É possível que num dia de primavera e com os bolsos cheios de dinheiro eu não
pensasse em eliminar-me com tanta facilidade, mesmo porque o homem é
106
Idem, p. 148.
107
Idem, p. 149.
74
suficientemente tolo para contentar-se com pouca coisa, eterna criança que é;
acontece que hoje não é primavera, nem tenho os bolsos abarrotados de notas de mil
francos, de sorte que me sinto decididamente disposto ao suicídio [...].
108
Poderíamos dizer que o homem que ele quer morto é o que foi anteriormente chamado de
“narrador-noite”, aquele que não permite que durma, seu duplo “superlúcido”, seu gêmeo
adormecido em grande parte do tempo. Aquele que incomoda:
O certo mesmo seria chamar a este meu suicídio de homicídio, já que em mim eu
mato o homem que não me agrada e não o meu eu verdadeiro, que é até
simpático.
109
Ele se autodenomina “um pequeno monstro dentro da minha espécie”, não encontra,
portanto, par para sua insatisfação barulhenta, sua inconformidade pontiaguda. Está e, por
não estar entre as flores da primavera e não ter dinheiro para comprar um pouco de satisfação,
quer acabar com isso. Do choque entre a sua “multidão de almas e a alminha dos meus
pseudo-semelhantes” vem a necessidade de desaparecer.
Alguns críticos chamam a atenção para o fato de, nos quatro principais livros que
escreveu A lua vem da Ásia, Vaca de nariz sutil, Chuva imóvel e caro búlgaro –, termos
o mesmo narrador. Poder-se-ia dizer, de maneira mais precisa, que temos o narrador bipartido,
Noite/Dia, revezando-se no controle das narrativas. No primeiro livro, aqui analisado,
percebe-se uma divisão desse controle, já que, no fim, o “narrador-dia” termina por eliminar o
seu incômodo duplo. Nos dois livros seguintes, o “narrador-noite” retoma o controle e fica
com ele na maior parte do tempo, visto serem duas obras de caráter profundamente amargo e
denso. Por sua vez, em O Púcaro búlgaro, há a inversão dos papéis, uma vez que o “narrador-
dia” está à frente do lápis que engendra a história, tornado-a mais leve e engraçada do que
suas duas antecessoras.
108
Idem, p. 150.
109
Idem.
3 A PROVA DE QUE ESTE CAPÍTULO EXISTE
Mais uma vez, pergunto: quem o mandou entrar
no crocodilo? Uma pessoa séria, na posse de
determinado cargo, que vive em matrimônio
legítimo, e de repente... um tal passo! Há
coerência nisto?
O crocodilo, Fiódor Dostoiévski
3.1 UM ECLIPSE PARA A LUA
Se em A lua vem da Ásia recebemos do narrador um alerta que nos prepara para o
abandono da lógica, em O púcaro búlgaro seremos abandonados ao nosso próprio julgamento
para percebermos estar dentro de um universo de ação totalmente liberado de qualquer tipo de
razão.
A contraposição feita no capítulo anterior, a dicotomia entre o que chamei de “narrador-
dia”/“narrador-noite” desaparece por completo na narrativa de O púcaro. Aqui, pode-se dizer,
o “narrador-noite” será totalmente dominado e calado. Toda a ação é contada pelo “narrador-
dia”, agora totalmente liberto de suas amarras. Essas amarras se faziam notar através do
contato que tinha com a autoridade exercida pela instituição psiquiátrica na qual estava
aprisionado. Agora, está livre. O suicídio do personagem ao fim de A lua é bastante
conveniente para esse ponto de vista: quem morre é esse narrador noturno, obscuro, insone
76
e insatisfeito. Sobrevive aquele que vive de acordo com as possibilidades que lhe são
oferecidas. Não há estranhamento entre ele e sua realidade. Parece satisfeito: ele é o que é.
A impressão que se tem é de que o narrador sempre presente conseguiu o que queria
quando, durante uma crise de choro, implora a capacidade de “não chorar à toa sobre as
mazelas e as incongruências deste mundo tão cotidiano, e de ver com olhos de cego (...)”
110
.
Ele agora está, de certa forma, cego, pois consegue viver numa realidade que não se
modificou. Nesse momento, não a face da morte sempre rondando a existência; não
sente o cheiro dos cadáveres que antes estava sempre ali; consegue agora contentar-se com “o
efêmero espetáculo do dinheiro e da mulher nua”
111
, ou seja, ele parece ter assimilado a
maneira de sobreviver a um mundo tão doentio.
Contudo, quando parece que abandonou suas convicções e sua visão de mundo, paramos
e olhamos para o mundo que ele agora se propõe a descrever, ou seja, um mundo de cabeça
para baixo, onde ninguém parece conhecer a lógica da dita normalidade. Aqui todos os
professores de lógica estão mortos e enterrados, quiçá jamais nasceram. Não podemos esperar
a coerência com que nos deparamos, quando vemos o superlúcido narrador noturno de A lua.
percebíamos reflexões densas sobre questões que o incomodavam e uma percepção
aguçada da realidade. Em O púcaro o há reflexão; o narrador tem um objetivo que
poderíamos chamar de absurdo e elabora estratégias mais absurdas ainda para alcançá-lo.
Não mais sofrimento. Os lamentos pungentes de Astrogildo dão lugar a uma visão de
mundo em que o narrador possui a sede de descobertas de uma criança. Ele parte (ou quer
partir) em busca de uma fantasia que vai preencher sua existência. Paradoxalmente, não
loucos nesse mundo onde todos o são.
110
Idem, p. 141.
111
Idem.
77
Podemos pensar a narrativa como uma fuga eficiente daquela realidade que tanto
incomodava o noturno narrador. Agora não mais aquilo que o incomoda, mas isso,
lamentavelmente, não significa que aquilo que o incomoda não esteja mais presente.
O enredo de A lua começa com um narrador que não sabe exatamente onde está. À
medida que nos revela o que vive, vai descobrindo, a cada dia, mais sobre o lugar onde está
aprisionado. Ao fim, quando descobre toda a verdade, suicida-se, não consegue suportar a
realidade que, mais do que os muros do hospício, o aprisiona.
O narrador de O púcaro está satisfeito, de certa forma. Ele está alinhado com o próprio
mundo, o que não significa que tenha aceito o mundo de seu irmão gêmeo obscuro. O que
mudou não foi o mundo, mas sua forma de percebê-lo. Ele encontrou um modo de sobreviver
sem sofrer. O que importa é a sua percepção. É através dela que podemos entender sua lógica.
Todas as informações que temos vêm de seus olhos, mas como conhecemos nosso narrador
sabemos que podemos desconfiar de suas informações.
Como se pôde perceber, em A lua, momentos em que o narrador tenta camuflar, de
certa forma, os elementos que indicam que não está num hotel de luxo, como pensa (talvez ele
saiba de sua condição) nos capítulos iniciais. Isso leva a pensar na possibilidade de a narrativa
de O púcaro ser uma forma mais elaborada de camuflagem da realidade. Aqui, contudo,
parece que a sua fantasia é parte de seus pensamentos, ele, portanto, não consegue mais
perceber o caos que o cerca. Por isso, consegue viver como vive. Poderia, assim, estar
aprisionado, dopado, inconsciente ou impossibilitado de qualquer forma de consciência. Esse
pensamento parece absurdamente assustador, mas gostaria de considerar essa possibilidade,
pois até parece verossímil, quando vemos que o seu mundo parece tão louco quanto seus
antigos companheiros de clausura.
É claro que essa é apenas uma forma interpretativa que proponho. Não a intenção de
estabelecer uma visão única e absoluta sobre as obras de Campos de Carvalho. Como toda
78
obra literária, estas também oferecem uma gama diversificada de interpretações, o que serve
para enriquecer a sua leitura .
Nessa perspectiva, a análise poderia ser feita sob um ponto de vista totalmente distinto
daquele que vê a narrativa como algo que acontece de fato na vida de nosso narrador viajante.
Essa dupla possibilidade de significados oferece uma leitura bastante profícua da obra. Apesar
de parecerem excludentes, ambas podem ser interpretadas de modo que uma justifique,
espelhe e complemente a outra.
Em que mundo vivem esses personagens que se propõem e sair em busca de um reino
“imaginário” que, ao mesmo tempo, sabemos tão real (ao menos é o que dizem os mapas
escolares. Afinal, você foi à Bulgária? Conhece um búlgaro?). Serão todos habitantes dos
delírios psicóticos de seu narrador (talvez sejam apenas os búlgaros a existirem de verdade)?
Ou são seus reais companheiros de loucura em busca da comprovação de que apenas eles
existem?
Bem podem ser um grupo de indivíduos em cuja existência alguma coisa falta, o que
pode levar a dois caminhos distintos: homens “reais” precisando descobrir ou inventar a
Bulgária (estranho, mas quem não é?); ou “hóspedes-de-algum-estranho-hotel-de-luxo”? Nas
duas hipóteses, eles parecem escapar de alguma coisa que os incomoda, ou buscar uma
realidade mais viva e satisfatória.
O autor, em sua última entrevista concedida a Antônio Prata, alguns dias antes de sua
morte, esclarece algumas dúvidas sobre a inexistência dessa tão fugidia Bulgária:
Estado Hoje, com todo o progresso tecnológico, é possível dizer se a Bulgária
existe?
Carvalho Não, não existe. Ao contrário do Estado do Piauí, por exemplo, que
existe. É um Estado sofrido. Não tem nada a ver com a Bulgária. A Bulgária é uma
concepção, né? É uma imaginação que eu tive.
(...)
Estado – Algum outro país não existe?
79
Carvalho A Argentina. Eu estive dois anos, mas não me convenci, não. Fui a
Mar del Plata com a Lygia, minha mulher, para ir a um cassino, eu adoro cassino,
mas voltei desiludido. O cassino existia, deixei todo o meu dinheiro lá.
112
Na mesma entrevista destaca a importância que o humor desempenha em seus livros.
Menciona o fato de que as pessoas pensam que podem “construir alguma coisa” mas não
podem. Para ele, o humor serve para destruir coisas, ou seja, aquilo de que não gosta no
mundo em que vive. No entanto, sempre que revela sua visão sobre uma realidade que deve
ser condenada e destruída, apresenta, também, a possibilidade de construir outras visões e
possibilidades.
Estado O Pedro Bial viu na sua obra mais o lado trágico. Você se mais como
um escritor trágico?
Carvalho Trágico não, vejo sobretudo o humor, mas ao mesmo tempo sou
reconhecido como trágico. E.... não gosto de mim trágico.
Estado Não sei se pra separar o humor da tragédia, em seus livros. Às vezes,
lendo-os, você pára de rir e começa a perceber que aquilo é triste, mas você está
rindo...
Carvalho – Você ainda tem muita coisa que aprender da vida. Por exemplo, você vai
ver que aos 80 anos a pessoa está completamente desmiolada, procurando as
palavras para dizer as coisas e não as acha. Aquela palavra que eu procurava
pouco, ainda procuro até agora. E, depois dos 80, você não tem mais ilusão de
espécie nenhuma. Eu comecei cedo, como você, a descrer de Deus.
113
Em O púcaro, encontraremos, portanto, bastante destilado e aprimorado esse trágico
humor que surte o mágico efeito de percebermos os nossos próprios absurdos diários e toda
amargura que isso pode representar. Campos de Carvalho consegue fazer com que olhemos
para nosso próprio mundo com os olhos de um estrangeiro, um viajante de outro mundo e
outro tempo que consegue perceber o que nós não percebemos. Essa capacidade de olhar para
si mesmo e estranhar aquilo que deveria parecer comum possibilita entender o que está errado
e modificar o que deve ser modificado.
Talvez ele próprio não tivesse a intenção de modificar as coisas com seus romances.
Contudo, não se consegue sair imune à sua leitura. Náusea, riso contido, dor no estômago,
discordância, paixão declarada pelas suas idéias, achá-lo bobo, pois ele não é louco nem nada,
112
PRATA, Antônio. “Não gosto de mim trágico”. In: O Estado de São Paulo, São Paulo, Sábado, 11 abr , 1998.
113
Idem.
80
espirros (a maioria das edições é bem antiga), e tudo mais que se pode depreender de livros
que, falem bem, falem mal, sempre nos dizem alguma coisa. Não ideologicamente vinculados
a nenhuma corrente política, porém ideológicos. Defendem um ponto de vista, e isso basta.
Juva Batella chama a atenção para a crítica que Campos de Carvalho faz à sociedade:
Sua crítica, no entanto, que circula pelo texto sob a responsabilidade do bulgarólogo,
não se dispõe a ir até o fim, sob pena de tornar-se por demais evidente e, assim, cair
num didatismo que a enfraqueceria. Surge apenas como provocação e logo em
seguida cede espaço mais uma vez a algum humor que, entre outras atribuições, tem
a função de justamente ridicularizar a própria crítica. Caberá então ao leitor
estimulado desenvolvê-las a s. Quando Radamés diz: ‘Deixe-me gozar a vida’[p.
353], e interrompe seu discurso para deitar os olhos nos seios que passam, ele está
reproduzindo o mesmo comportamento que antes criticava; está retornando ao
‘acriticismo’ típico da normalidade que não quer saber de nada, senão viver bem. E
bem significará consumir bem.
114
Concordo com Juva Batella quando diz que o autor estimula o leitor a tirar suas próprias
conclusões sobre o assunto. Entretanto, penso que essa é a condição de um grande número de
autores que se propõe a utilizar seus romances para estruturar alguma crítica, excetuando
aqueles que fazem de seus livros panfletos explícitos em defesa de alguma causa. O que
pretendo dizer é que, mesmo não deixando explícita sua crítica social, Campos de Carvalho a
deixa, ainda assim, muito evidente durante toda narrativa.
O ponto em questão, e que foi mencionado no capítulo referente às discussões sobre o
uso de obras literárias como fonte de informações históricas, é de que não devemos procurar
nessas obras informações diretas que digam respeito a algum fato específico. O romance, a
poesia, o conto, a crônica revelam muito sobre a época em que foram escritas mesmo que
falando, por exemplo, de um tempo futuro, ou passado a seu próprio tempo. Os elementos
discursivos utilizados, a forma como o autor relata os episódios do seu mundo imaginário,
tudo isso é informação. Buscar apenas informações diretas tende a empobrecer a análise de
qualquer obra.
114
BATELLA, op. cit., p. 251.
81
No caso específico de O púcaro búlgaro, é bastante óbvio que o personagem Radamés,
mesmo no momento em que pede que lhe deixem viver a vida, assume o papel de
representante de um sociedade da qual o autor parece discordar. Assim, parto da
pressuposição de que o personagem narrador diurno presente em O púcaro é signatário de
uma condição alienada da realidade que, no caso do narrador noturno de A lua, lhe era
sobremaneira incômoda.
Essa condição, todavia, não faz do livro uma obra fora da realidade, alienada ou fútil, sob
o ponto de vista ideológico. Muito pelo contrário, revela a condição de um indivíduo que, de
alguma forma, por causa de sua realidade e apesar dela, é capaz de escapar e sobreviver.
Aqui não mais o sofrimento dos tempos de A lua. Ele agora vive uma realidade
paralela na qual jamais eslúcido. Aquele superlúcido foi sepultado para dar lugar ao “louco
feliz”, que, apesar de não perder sua capacidade de questionar o mundo que o cerca, apenas
desvia seu olhar para o lado em que luz. Agora o escuro o incomoda, o escuro que
ironicamente o induz a ver. Quer, então, olhar diretamente para a luz que o cega e o faz feliz.
O que resta é encontrar a Bulgária, ou inventá-la.
O racionamento de luz obriga-me a escrever de dia. A bruxuleante chama das
velas me faz mal à vista, sem falar da estranha sensação de defunto que me assalta
sempre que estou entre quatro círios, ou mesmo entre dois, ou mesmo entre um.
No alto da Gávea, não sei por que, a escuridão é mais espessa do que nos outros
bairros; outro dia fui visitar Ipanema e vi que sua escuridão é quando muito uma
escuridãozinha: podia-se até enxergar a cabeça do fósforo antes de riscá-la. O que
faz o governo para distribuir tão mal suas escuridões é o que ninguém sabe; e o que
Deus também faz, muito menos. De qualquer forma aqui estou sob esta luz solar
enquanto não a racionam (...).
115
Sua alienação desperta a imediata simpatia do leitor, principalmente se tivermos a
oportunidade de o comparar com o amargurado Astrogildo. Fica-se feliz em imaginar que
conseguiu escapar da caverna escura na qual sua mente se aprisionava durante suas
intermináveis noites insones. Por não ser capaz de descansar, transparece uma condição
115
CARVALHO, Campos de, p. 319.
82
desesperadora, apesar de lúcida e consciente. Tanto que, ao final do livro, quando acaba com
sua dor através do único meio que lhe parecia digno, aceitamos e concordamos, pois não
parece haver outra saída. Sai-se do romance um pouco suicida também. Agora, em O púcaro,
mostra a luz de sua cegueira como algo bom, e compartilhamos sua vontade de inventar a
Bulgária.
Em O púcaro, o narrador parece retornar ao tempo mítico de um mundo que lhe aprazia,
mencionado por Astrogildo, nosso narrador noturno no “Capítulo”, de A lua vem da Ásia:
Foi no tempo em que os bichos falavam.
Havia na minha cidade uma pequena praça mal iluminada, e nessa praça um circo. O
anjo da guarda ainda não me havia abandonado – eu era puro de alma e corpo – e me
apaixonei perdidamente por uma menina da trupe, que era loura e trabalhava no
trapézio. não foi o meu primeiro amor na vida porque antes havia amado
Clara, mas foi o mais distante e o mais impossível.
Daí nasceu, se não me engano, a minha vocação de clown para muitos frustrada,
para mim sempre vigilante – e que um dia explodirá de mim como fogos de artifício,
pasmando incrédulos e iluminando os céus. Eu, o clown Barnabó, ex-burocrata, ex-
espião comunista, ex-sentenciado à cadeira elétrica ex-tudo, enfim. Clown
simplesmente, o que é demais.
E é esse clown que agora me faz suportar com a devida filosofia esta prova de fogo a
que me submetem os carrascos de todos os tempos, ao tentarem arrancar-me a
verdade, que em mim está bem à flor da pele.
116
Parece ser nesse momento que nasce seu gêmeo diurno, o clown, aquele que se permite
debochar de tudo e de todos para conseguir sobreviver nesse seu mundo tão pungente. Os
bichos falavam porque admitia ouvi-los, como apenas as crianças e os loucos são capazes.
Sua condição sempre vigilante despertará novamente e por completo no narrador de O púcaro
que, mais do que ninguém, pasma incrédulos e ilumina os céus com sua busca doida, mas
justificada por sua querida Bulgária imaginária.
Essa sua nova forma renasce para tomar o lugar do “defunto ambulante” que era seu
falecido gêmeo sepultado dentro de si e, aparentemente, totalmente esquecido. Astrogildo, de
A lua, ao contrário, sentia a presença estranha dentro de si, esse mesmo clown, nascido
tempos, mas que não estava sempre no controle:
116
Idem, p. 60.
83
momentos em que me sinto mais lúcido, e outros em que pelo contrário sinto
uma presença estranha dentro de mim, como se devêssemos ser gêmeos e
houvéssemos nascidos dois num corpo só. Esse meu irmão sepulto em mim leva-me
a cenas de verdadeiro ridículo, quando não de desespero, como aconteceu ainda
pouco, quando eu queria dormir e ele teimava em ensaiar um novo passo de balé,
rodopiando pelo quarto inteiramente nu. Se os que acreditam em metempsicose,
eu tenho o direito de acreditar nessa dualidade de meu ser, ou antes, nessa existência
oculta de meu irmão gêmeo dentro de mim e que um dia brotará de meu corpo como
um dente de siso retardado. Muitos me julgarão excêntrico por isso, e eu sei que
julgam, mas o fato é que sou apenas sincero e não costumo ocultar as perplexidades
a que submete minha natureza, como fazem as outras pessoas.
117
Mais uma vez, ele aponta a sensação de que um dia esse seu irmão tomará conta dele,
assumindo o controle de sua existência. O mesmo personagem que dança balé nu em plena
madrugada em que todos dormem (ou tentam dormir), pode ser o mesmo que organiza uma
atrapalhada busca por um país que teme ser imaginário.
Como clown, ele agora abandona qualquer consideração que ainda poderia ter pelas
convenções, regras, leis, inclusive as físicas, e passa a seguir ao “pé da letra” a recomendação
de seu irmão de matar o professor de lógica e tudo que ele representa.
Essa condição “não-lógica” transparece desde o início, quando o autor justifica o livro
propriamente dito, que é escrito em forma de diário de viagem (ou não-viagem), com
explicações que servem para determinar o porquê da intenção de realizar essa expedição a um
lugar tão exótico”. Essas explicações são dadas em três capítulos que precedem o diário de
sua empreitada.
Como toda gente, também ele sempre ouvira falar, desde a mais tenra infância, sobre
púcaros e sobre búlgaros – mas sempre achando que se tratava apenas de um jogo de
palavras ou, na melhor das hipóteses, de personagens de contos de fadas, tão reais
quanto as aventuras do barão de Münchhausen. Nunca lhe passara pela cabeça que,
numa esquina qualquer do mundo, de repente lhe pudesse aparecer pela frente um
búlgaro segurando um púcaro, ou então um púcaro com um búlgaro dentro, ou ainda
e muito menos um púcaro simplesmente búlgaro – com data, etiqueta e tudo, e sob a
proteção da bandeira dos Estados Unidos da América. Afeito a indagações altamente
filosóficas, sem falar das metafísicas e das metapsíquicas, além das que m de
Nostradamus e de outros planetas dispôs-se o autor a, passado o primeiro instante
de surpresa que durou exatamente 18 meses, vir a campo e aceitar o desafio que
acintosamente lhe atirava a poderosa máquina de propaganda ianque, armando-se se
117
Idem, p. 54.
84
fosse preciso fosse até os dentes, sobretudo os caninos, em defesa de seus princípios
e conseqüentemente de seus fins.
118
E mais
Nada tinha como nada tem o autor, evidentemente, contra nenhum búlgaro em carne
e osso, desde que ele se dispusesse a exibir a sua carne e os seus ossos a quem os
quisesse ver, como terá que fatalmente exibi-los no Dia do Juízo. Nada tem
igualmente contra os púcaros na sua simples condição de púcaros, uma vez que não
se metam a búlgaros e saiam para a praça pública a gritar SOU UM PÚCARO
BÚLGARO, SOU UM PÚCARO BÚLGARO sem que se possa examiná-los de
perto e mesmo tocá-los com os dedos, como acontece nos museus.
119
A existência, ou melhor, a suposta existência deste curioso artefato búlgaro lhe desperta,
no espírito, uma vontade, mais, uma necessidade. Partir em busca desse reino perdido, onde
abundam os púcaros e, ainda mais, búlgaros, torna-se o objetivo de sua vida, pelo menos por
algum tempo.
O autor tentou honestamente imaginar-se um púcaro ou um búlgaro e não
conseguiu, e ainda menos um púcaro búlgaro ou um búlgaro com púcaros na mão,
na cabeça ou debaixo das axilas. Imaginou-se sem dificuldade um cavalo ou um
guarda-chuva, e até mesmo um cavalo com um guarda-chuva chegando ao
extremo de imaginar-se um dia o próprio Museu Histórico e Geográfico de
Filadélfia, mas sem púcaro búlgaro dentro. Essa experiência, também ela, lhe foi
decisiva.
120
Os dois primeiros capítulos do livro servem para definir o que vai conter o livro e quais
são as razões que levaram o narrador a escrevê-lo (já que se trata, mais uma vez, de um diário,
bem como em A lua vem da Ásia). São chamados de “Explicação necessária” e
“Prolegômenos”. No terceiro, chamado de “Explicação desnecessária”, fala da suposta oferta
de dez milhões de dracmas que uma comissão de búlgaros, berberes, aramaicos e outros
levantinos lhe fizeram para que não publicasse o livro, “pelo menos até o começo do século
XXI, quando certamente o mundo já não terá mais sentido”
121
.
Também destaca a relevância desse empreendimento em busca da verdade derradeira
acerca do famoso mito búlgaro:
118
Idem, p. 312.
119
Idem.
120
Idem, p. 313.
121
Idem.
85
E como a Verdade paira acima de quaisquer verdades, sejam elas quais forem, como
se ensina até nas escolas primárias, aqui ficam definitivamente entregues à
posteridade – precária e efêmera, pouco importa – estas páginas escritas com sangue
e com suor, e agora também com raiva, para que sobre elas se debrucem os
historiadores e os contadores de histórias de todos os tempos, os poetas e os
adivinhos, e todos quantos se interessem por outra coisa que não seja o seu próprio
interesse, como é o caso edificante do autor.
122
Bem como seu gêmeo sepultado, o nosso narrador tem a intrigante característica de
valorizar ao extremo sua importância perante o mundo. Invocando a história, e, ao mesmo
tempo, os contadores de histórias, a posteridade, ainda que efêmera, os poetas os adivinhos, e
todos que tenham algum interesse que não seja os seus próprios umbigos, ele deixa clara a
relevância de suas pretensas descobertas para o futuro da humanidade.
E como falamos de história, de se contar a história que foi deixada para a posteridade,
além de poder satisfazer o desejo daquela comissão de revelá-la apenas no início do século
XXI, quando o mundo já não terá mais sentido.
3.2 E AGORA ESTÁ LIVRE
Estou enxergando este azul, e não apenas
vagando nele como ele ao redor de mim, agora
dentro: estou enxergando-o. Com todos os meus
olhos e todas as minhas vísceras, assim colado a
este vidro: furiosamente à espreita.
A chuva imóvel, Campos de Carvalho
E eis que partimos para uma tentativa de expedição à Bulgária. Se não descobri-la, ao
menos inventá-la. Hilário, nosso “narrador-dia”, o gêmeo renascido que sepulta seu irmão
para assumir o controle, está inquieto, pois viu (não sabe se foi apenas uma alucinação), no
122
Idem, p. 315.
86
Museu Histórico e Geográfico de Filadélfia, um inverossímil púcaro
123
búlgaro. Isso lhe
desperta a consciência para o fato de que a Bulgária e, por conseguinte, o dito púcaro, talvez
existam deveras. Se tanto, deve chegar até ela.
Depois de começar com as explicações sobre suas motivações, inicia a escritura de seu
diário “de viagem”. Nos primeiros dias, está tão lírico, que acaba por esquecer a real
motivação do próprio diário. Este talvez seja o único momento do livro em que faça reflexões
sobre a realidade concreta que está fora de sua mente. Fala sobre o racionamento de luz, sobre
seus pais, sobre os vizinhos, sobre o tempo:
Saí para matar o tempo e matei-o.
Quando cheguei em casa o meu relógio de pulso havia parado, e numa hora que
nada tinha a ver com o tempo que passei na rua.
Pelo visto, meu relógio de pulso de pulso tem o nome ou é o meu pulso que
anda fraco, e de fato anda, e mal dá conta de mim e dos meus problemas. De
qualquer forma é um relógio cuja corda se move com o movimento do corpo, o que
não o torna muito recomendável para defuntos. Mas devo estar mesmo desvairando,
que até hoje não vi defunto nenhum carregando o seu relógio, talvez para que não se
ponha a cronometrar a eternidade e não acabe perdendo a paciência.
(...)
Em que adiantaria aos outros que o tempo, por minha culpa, se pusesse de repente
sempre o mesmo (...)?
(...)
Ou talvez seja isso justamente o que esteja acontecendo, o que sempre aconteceu, as
mesmas coisas sempre as mesmas, apenas passando de um dia para o outro como se
fossem outras. A mesma cara no espelho por exemplo, e a paisagem na janela, e os
amigos que chamam ao telefone, a obrigação da (sic) fazer ou não fazer, a hora de
defecar, o Deus nas alturas, os impostos, a gargalhada sempre igual, a demagogia do
governo, a ameaça de guerra, a guerra, as palavras de cada dia e de todos os dias
que sei eu?, e que não sei eu?
124
Ouvimos, talvez, a voz abafada de Astrogildo que amarga, porém rapidamente se deixa
figurar no pensamento de seu irmão. Não serão muitos os momentos em que poderemos
encontrá-lo novamente. A partir do momento em que descobre as motivações de seu diário,
parece que vai perder o contato com a realidade que Astrogildo ainda lhe proporcionava.
A maneira como descobre o real objetivo de seu relato faz desconfiar que inclusive o que
ainda lhe resta de contato com o mundo real seja duvidoso. Vai ao psicanalista. Este lhe faz
123
O púcaro e um pequeno recipiente assemelhado a uma xícara, usado para retirar líquido ou grãos de um
recipiente maior.
124
CARVALHO, Campos de, p. 321.
87
muitas perguntas, incluindo o ano em que estão, o século, se antes ou depois de Cristo, ao que
Hilário responde “que Cristo?”, se o mar é vermelho ou amarelo, para depois lhe dizer para
que diga tudo que lhe vier à cabeça, “e nada de escrúpulo”
125
:
Escrúpulo. Cabeça. O oceano é azul. Que calor está fazendo. A morte de Danton.
As metamorfoses de Ovídio. O senhor é uma besta. Com quantos paus se faz uma
canoa? Vinte e um, vinte e dois, vinte e três, vinte e quatro. As laranjas da Califórnia
são deliciosas. Umbigo. Rapadura. Otorrinolaringologista. É a tua, mulher nua, vou
pra Lua, jumento, pára- vento, dez por cento, Catão, catatau, catapulta que o pariu,
catástrofe, caralho, os medos, os vegas, as vegaminas, as sulfas e as para- sulfas,
diametilaminatetrasulfonatosótico, porra de merda, argentino, argentário,
argentículo, testículo, laparotomia, Boris Karloff, Irmãos Karamazov, Irmãos Marx,
Marx, Engels, Lenin, Lenita, onomatopéia, onomatopaico, onanista, ovos de Páscoa,
jerimum, malacacheta, salsaparrilha, Rzhwpstkj, Celeste Império, semicúpio,
Salazar, sai azar, seis e vinte da manhã, Dadá, Dodô, Dudu, holofote, oliveira, olá
Olavo, Alá, ali, alô sua besta já não basta?...
126
Depois dessa seqüência de palavras que, na cabeça de Hilário, fazem um grande sentido
quando associadas, o médico lhe pergunta calmamente: “O senhor já foi à Bulgária?
127
Aparentemente, na cabeça do médico, tudo isso faz sentido também, e tudo isso indica que o
narrador sofre de “bulgarite aguda”. O próprio médico já sofrera dessa doença, mas agora,
(...) com a invenção do radar e do avião-foguete o mal parece ter decrescido um
pouco no mundo (no píncaro e nas faldas do Aconcágua é onde a incidência ainda é
maior) e calcula-se que dentro de cinco mil anos não se falará mais em bulgarite
sobre a face da terra, a menos que nesse meio-tempo se venha a provar a existência
da Bulgária, da Atlântida e do Canadá (...).
128
Depois de concluir que, forçosamente e fatalmente, deveria um dia ir à Bulgária, e
sabendo-se tal feito difícil, para não dizer impossível, resolve reunir um grupo de
expedicionários dispostos a tal façanha. Coloca, então, um anúncio na página necrológica do
jornal (a mais lida) anunciando sua “EXPEDIÇÃO À BULGÁRIA” e sua busca por
voluntários.
Entra em cena, então, o personagem mais extremo desta narrativa: o professor de
bulgarologia Radamés Stepanovicinsky. Nele, estão contidas todas as características que
125
Idem, p. 320-321.
126
Idem, p. 328.
127
Idem, p. 328.
128
Idem, p. 329.
88
parecem reger o mundo de nosso narrador e que se mostravam presentes no narrador de A
lua, quando se fazia presente o chamado “narrador-dia”. Toda a ausência de lógica do
romance toma forma na figura de Radamés:
(...) o que me pareceu mais simpático foi um professor de bulgarologia o que me
poderá ser muito útil. Chama-se, ou chamava-se até pouco, Radamés
Stepanovicinsky, natural de Quixeramobim, no Ceará, e me pareceu dono de uma
cultura realmente fabulosa. Pediu-me explicações sobre um gato que eu não tinha,
examinou detidamente sob o tapete da sala para ver se não havia alguma Bulgária,
disse gentilmente até ontem e partiu.
129
O professor Radamés parece ser a voz de Campos de Carvalho na narrativa: ele parece,
através de um ar de despreocupação com que se apresenta sempre que se dispõe a falar sobre
alguma coisa, entender o profundo absurdo no qual vivem. Paradoxalmente, é o personagem
menos lógico e também o único que também pertence ao mundo real. Ao mesmo tempo em
que a busca pela Bulgária como de extrema importância (ao menos parece ser assim),
também será o único momento em que alguma voz narrativa se mostra preocupada com o
absurdo da realidade que está além de seu próprio mundo:
– Professor, como se explica que até mendigo hoje tenha rádio transistor?
– Não é o mendigo que tem transistor, e sim o transistor que já tem o seu mendigo
– respondeu Radamés, como sempre meio nebuloso.
(...)
Você sabe, as bundas, digo, os transistores se tornaram como que a palavra de
ordem de nossa época, eu ia dizendo a palavra da Ordem, o que viria a dar na
mesma. Ora, os mendigos fazem parte da paisagem, tanto quanto eu ou você, têm de
ouvir a palavra exata na hora exata para não serem presos como perturbadores da
ordem constituída ou reconstituída, o que chamam a pátria amada idolatrada. Mas
vejo que estou fazendo um discurso em vez de estar olhando as mulheres.
(...)
O que antes era a consciência, o anjo da guarda de cada um, hoje se chama O
TRANSISTOR: coisas da era nuclear ou eletrônica. Você deixa que os outros
pensem por você e decidam sobre o que você deve fazer; e como os outros, por sua
vez, estão deixando que alguém pense ou decida por eles, acaba ninguém pensando
nem decidindo coisa nenhuma, o que é justamente o que o governo quer e faz o
possível para que aconteça. Daí a Fábrica Nacional de Transistores, e daí a voz do
speaker que é a voz do governo anunciando sabonetes e uma era de franca
prosperidade – para ele naturalmente.
130
129
Idem, p. 331.
130
Idem, p. 352-353.
89
E termina com a voz que, em A lua, pede para conseguir parar de chorar e poder não ver
aquilo que está errado. Não uma voz inconsciente, mas que seja capaz de viver sem reagir:
Merda para você e os seus transistores! Deixe-me gozar a vida.
131
Como já foi mencionado, não creio que a crítica de Campos de Carvalho à sociedade que
viu se desenvolver no período pós-Segunda Guerra se limite, nesse livro, a este trecho. Ele
indica, no entanto, que parece ter aprendido a conviver de forma mais tranqüila com sua
inconformidade, sem, contudo, abandoná-la. A crítica que faz em O púcaro búlgaro é menos
amarga que a que a vista em A lua vem da Ásia. Hilário, um personagem menos fragmentado
que o multinominado Astrogildo, não provoca a tristeza que este fazia. Vemos como alguém
que parece satisfeito com sua própria loucura. Talvez por ser louco em tempo integral, o que
não o era seu irmão gêmeo, não sinta o mundo ao seu redor.
Campos de Carvalho não indica que tenha se conformado ou aceitado as coisas que antes
o incomodavam, mas, sim, que vê o mundo de forma mais irônica, e, portanto, tenha
aprendido a sobreviver nele sem sofrer, já que não parece valer a pena. Daí a voz de Radamés.
No que diz respeito ao seu papel de guia para Hilário, ele é a expedição à Bulgária, pois
detém todo o conhecimento que se pode ter sobre esse misterioso lugar e é o único capaz de
conduzi-los a ele. Da mesma forma, representa a falta de sentido que tem essa expedição, o
absurdo de tudo que serão capazes de fazer para alcançá-la. Suas falas são repletas de tiradas
desorientadoras e inesperadas.
Chegou o professor Radamés com mala e tudo.
– Vi que o sr. morava sozinho e resolvi vir morar sozinho com o senhor.
– Só que a Rosa, que também mora sozinha. Assim seremos três a morar
sozinhos.
A idéia lhe pareceu excelente, sobretudo depois que viu Rosa saindo do banheiro
envolta numa toalha felpuda.
(...)
– O sr. nunca andou no teto?
E diante da minha surpresa relativa, dado que eu mesmo não me lembrava se havia
andado ou não:
131
Idem, p. 353.
90
Pergunto porque não se notam marcas de s, ou pegadas como se diz em
Quixeramobim. (...)
De fato não havia marca nenhuma, e isso me deixou um pouco encabulado.
(...)
Quando perguntei pelo seu gato o sr. foi logo procurar pelo gato, como se isso
tivesse realmente a menor importância. Ainda bem que não encontrou gato nenhum,
o que não deixa de ser um castigo.
E começou a acariciar o gato que havia trazido para uso próprio, e que me pareceu
antes o dorso de sua mão esquerda – é verdade que bastante peluda e irritadiça.
132
O gato de Radamés é um personagem à parte, como se outro fazendo por ele aquilo que
ainda tem pudores de fazer. Veja-se uma das passagens mais engraçadas do livro, enquanto “o
gato” arranha a porta de Rosa na madrugada, para que lhe faça um lanche. Flagrado por
Hilário, faz o lanche sozinho mesmo:
O professor retirou leite, um pedaço de torta, queijo e, para espanto meu, um de
alface que em vão se escondia no fundo da última prateleira. Sem perder tempo
passou a servir o gato, que, genioso como todos os gatos, refugava o alimento e o
atirava na boca do professor, com uma precisão milimétrica. E assim lutaram
professor e gato até que o último resquício da torta desaparecesse na boca do
professor, que se mostrava visivelmente contrariado.
– É preciso prender esse gato – eu disse, já me dispondo a voltar para o quarto. – Ou
então deixar a comida ao lado dele já de uma vez.
O professor, a boca ainda cheia, nem respondeu, e abaixou-se para deixar o gato no
seu canto, bem ao lado da geladeira. Miau... fez em tom de despedida, mas o
ingrato se limitou a olhar-nos com um ar ausente.
133
Um outro momento do livro em que Radamés toma a palavra é de extrema importância
para a compreensão do que significa para ele, e para Hilário, essa busca pela Bulgária de seus
sonhos. Está além de uma simples expedição. Nesses momentos, percebem-se pequenas
ironias e críticas à tradição, à religião, aos sábios e a tudo mais que vier a calhar:
O que se convencionou chamar a Bulgária é sobretudo um estado de espírito.
Como Deus, por exemplo.
Mesmo que ficasse um dia definitivamente demonstrada a inexistência da Bulgária,
ou das Bulgárias, ainda assim continuariam a existir búlgaros do mesmo modo
como existem lunáticos que nunca foram e jamais irão à Lua. Eu mesmo conheço
mais de um marciano que nunca soube ou nunca souberam de que lado fica
exatamente o planeta Marte, como sei de sujeitos que usam camisas-de-vênus e nem
por isso são astrônomos ou fazem contrabando com aquele lírico planeta. Em suma,
não vejo nada de espantoso em que um dia venhamos a descobrir que também
somos e seremos eternamente búlgaros. (...)
Não adianta querer ou não querer protestar. Se não fossemos (sic) de certo modo e
até certo ponto búlgaros, não estaríamos agora aqui tão interessados em provar a
existência ou mesmo a inexistência da Bulgária, e estaríamos antes cuidando de ir
descobrir Portugal, o Estado de Massachussets, o Cáucaso ou simplesmente as
132
Idem, p. 333-334.
133
Idem, p. 361-362.
91
92
Apenas, dada a pouca probabilidade de que a Bulgária exista, parece-me uma
temeridade levar para descobri-la alguém que fora de qualquer dúvida não existe.
135
O fato de alguém dizer não existir simplesmente porque a data de nascimento de alguns
de seus antepassados foi alterada por alguma mudança de calendário não cause nenhum
estranhamento em seu interlocutor contraria todas as expectativas. Esse recurso cômico é
apontado por Propp como sendo de grande eficiência. Ele consegue inverter aquilo que
imaginaríamos como uma conclusão esperada para uma frase ou um fato. Ao surpreender, faz
rir. Em muitos momentos de O púcaro, vê-se esse recurso sendo utilizado com muita
eficiência.
O riso é uma potentíssima arma de destruição, pois além de apontar aquilo que está
errado, destaca a falsa grandeza, a falsa autoridade, desmonta tradições, etc. ao leitor,
nesse caso, a sensação de certa justiça sendo feita, pois ao desnudar o “mal”, rebaixa-o e, com
essa “punição” aparente, sentimo-nos satisfeitos. Propp aponta essas características como de
grande importância na força destruidora que tem o humor.
A realidade de O púcaro búlgaro é a de um mundo totalmente fragmentado pelas falas de
seus atores. Tudo está sujeito à língua búlgara e afiada de personagens que não estão presos a
nenhuma referência ou sacralidade. Podemos vê-los dispostos, mesmo que sem querer, a
acabar com todo respeito que a maioria dos seres humanos dispensa às suas instituições. Para
tanto, fazem uso de diversos recursos cômicos como o exagero cômico, o “malogro da
vontade” o “alogismo” e o “calembur”.
O exagero cômico mostra, como o próprio nome diz, o exagero, a potencialização de um
determinado ponto para dele obter o resultado mico. Em O púcaro essa potencialização é
bastante freqüente:
O também louco e famoso Estrabão, na sua desvairada ‘Geografia’ (Livro I, cap. IV,
par. 6) tenta, embora mui sutilmente (aplausos) insinuar a remota hipótese de algum
135
Idem, p. 348-349.
93
dia ainda vir-se a descobrir algo que mesmo de longe se possa assemelhar a qualquer
coisa parecida com a Bulgária, (...) Mas quem, eu pergunto, em seu perfeito juízo
pode levar a sério um sujeito que se chamava e sobretudo se deixava chamar
Estrabão e isso não durante a sua vida como através dos séculos quando
naquele tempo havia tantos nomes belos (...).
136
(...)
Descobri que estamos a 12 de outubro e não a 8 de dezembro.
Também, com este maldito racionamento não se pode Ter noção do tempo exato:
das tantas às tantas fica-se no escuro, é como se o tempo parasse; quando volta a luz
o relógio disparou para a frente, dando idéia de que nada tem a ver com a parada
do tempo. Uma confusão dos diabos.
137
Um belo exemplo desse “exagero cômico” pode ser visto na lista de viagem preparada
por Radamés (ele tinha de estar presente) e Hilário, onde consta tudo que vai ser necessário
em sua absurda expedição. Nesse caso, todos os itens da lista parecem mesmo
imprescindíveis, afinal, é a Bulgária:
Um quadrante. Um sextante. Se possível, um oitante.
Um astrolábio.
Um planetário.
Uma ampulheta.
Tábuas astronômicas da Lua.
Uma sonda de medir profundidade.
Um mapa-múndi (não desses que se vendem em qualquer bazar).
Um telescópio. Um microscópio.
120 escaleres.
Um canhão.
Uma porta de emergência (sobressalente)
Um saxofone.
Uma âncora, de preferência já ancorada.
Uma imagem de São Prepúcio, padroeiro dos bulgarólogos.
Um eletroencefalógrafo.
2.000 quilos de lastro (Livros de Academia, Dicionários, Gramáticas e Gramáticos,
Artigos de fundo, Fundistas, Tijolos, Paralelepípedos, Anais do Legislativo,
Coletâneas de leis e decretos, Suma Teológica de Sto. Tomás de Aquino, Livros de
Crônicas, Discursos políticos).
Um retrato do Papa, autografado.
Uma agulha mais ou menos magnética.
Um fio de prumo.
Um calidoscópio (sic).
Pequena Biblioteca: Ficção Científica, Folclore, Ocultismo, Magia, Mitologia, e
Estaduais (com as mais recentes emendas), As Profecias de Nostradamus, O
verdadeiro livro de são Cipriano, Manual de equitação sem mestre, o Kama Sutra
etc.
Um penico.
200 quilos de vaselina.
600 rolos de papel higiênico.
Um ventilador, com ventos nordeste, alíseos, etésios e outros.
Um caixão de defuntos (vazio).
Um espelho côncavo eu um convexo.
Um adivinho.
Um feiticeiro.
136
Idem, p. 344.
137
Idem, p. 348.
94
Um curandeiro.
Um paleontólogo.
Um maço de palitos.
Um livro de bordo, de preferência já escrito.
Um telefone.
200 garrafas de uísque, 400 de gim, 200 de vermute, 200 de vodca, 1.000 de cachaça
e 1 de guaraná.
Um oligocronômetro.
Uma cuíca.
Um sabonete.
Um desconfiômetro (para o Expedito).
8.000 baralhos.
Um caça-borboletas.
Um de cu-de-cachorro, ou cu-de-mulata, vulgo amarelinha. (Dois, um para o
professor Radamés).
Uma bicicleta.
Um mesolábio e um galactômero.
Um vidro de hexametilenotetramina.
Uma (sic) aparelho de clister.
Um estilingue.
Um tubo de comprimidos (bem comprimidos).
Duas caixas de serpentinas.
Um dicionário inglês-búlgaro (e um inglês-búlgara, para o professor).
5 guarda-chuvas.
2 pares de raquetes de tênis.
Uma faixa com o dístico ‘TODO RACISTA É UM FILHO DA PUTA’.
Um aparelho de ar-refrigerado.
Uma escada de subir. Uma escada de descer.
Uma luneta para avistar Bulgárias (último modelo dinamarquês).
Um piano automático.
5 frações da Loteria de Natal.
10 ampolas de vacina anti-rábica.
Uma pele de tigre da Bengala.
Um cocar de índio.
Uma corda de duas pontas.
Um saca-rolhas.
Uma máscara congolesa.
Uma cabra bem fornida (com pouco uso).
138
O “alogismo” é outro recurso cômico bastante utilizado por Campos de Carvalho. Trata-
se de alguma sentença, frase ou pensamento que contrarie a razão e a lógica. Parece
redundante afirmar que a ausência da gica esteja evidenciada nesse livro. Pode-se dizer que,
em O púcaro, é predominante e total, enquanto que, em A lua, com a presença do “narrador-
noite”, há uma alternância entre razão e absurdo.
Ainda bem que o racionamento do sol vem aí, segundo acabam de noticiar os
jornais.
139
Lá pelo meio- dia tocou à porta o tal Ivo que viu a
95
um royalty sobre todos os zeros usados no mundo até o fim dos tempos. Aproveitou
para, discretamente, cobrar-me o que lhe devia.
140
Nada tenho contra os ... algebristas, eu lhe respondi, embora os lamente
profundamente. Desde que o senhor não com a péssima intenção de ensinar
álgebra aos búlgaros ou a quem quer que apareça nos antípodas (...)
o infeliz me disse que sua intenção era a de abrir na Bulgária, ou nas Bulgárias,
quantas fossem, uma fábrica de acentos circunflexos na hipótese, bem entendido,
de a língua búlgara não possuir esse circunflexo, ou então e principalmente na
hipótese de possuí-lo. O acento circunflexo, acrescentou, obriga à circunflexão, e
quanto mais nos circunfluirmos ou circunfluirmos os outros, tanto mais
circunfluentes nós e eles ficaremos, o que não deixa de ser um consolo neste mundo
tão pouco circunfluído.
141
O dito “calembur”, ou jogo de palavras, também está ricamente representado nesse
romance que abusa das diferentes formas de fazer rir. Anula-se o argumento do interlocutor
através da substituição do sentido amplo de uma palavra por seu sentido estrito, ou vice-versa.
Fui ao psicanalista e ele me fez deitar num divã, sem o paletó, a gravata e os sapatos.
– Está se sentindo confortável?
– Muito. E o senhor?
– Desaperte o cinto.
– Quer dizer que já subimos?
(...)
– Quantos dedos o senhor tem nas mãos? Não, não pode abrir os olhos.
– Dez, até chegar aqui pelo menos.
Responda depressa: se ponho vinte e duas melancias nas suas mãos e depois tiro
cinco e acrescento três, com quantos dedos o senhor fica?
– Vinte. Contando os dos pés, naturalmente.
142
Ricamente utilizados por Campos de Carvalho, em O púcaro búlgaro, e usados de forma
mais discreta em A lua vem da Ásia, todos esses recursos cômicos parecem ter uma função
bastante definida, qual seja, a de evidenciar a dessacralização do mundo “real”. Esse mundo
que se mostra cruel e absurdo não deve ser considerado o único possível. O homem deve
assumir o controle sobre a sua própria realidade e não se submeter a ela como a uma entidade
com vontade própria. Cada indivíduo é único e capaz de transformar seu próprio mundo.
140
Idem, p. 331.
141
Idem, p. 333.
142
Idem, p. 327.
96
3.3 E A GARGALHADA FALA
Ao entrarmos por completo no universo invertido que Campos de Carvalho construiu em
O púcaro búlgaro, percebe-se que alguma coisa está fora de lugar. Não estranhamos essa
expedição em busca de uma Bulgária irreal e ideal, não estranhamos o comportamento
incomum de Radamés, o professor que ensina a ver o mundo como um grande apanhado de
ausências de razão que legitimem seus próprios atos. A partir de uma ótica distorcida da
realidade em que vive, podemos construir uma visão mais clara acerca do nosso próprio
mundo, pois, ao apontar com a segurança de alguém que pode caminhar pelo teto e saber tudo
sobre a Bulgária, mostra que buscamos todos, de certa forma, esse país imaginário onde nos
sentiremos totalmente confortáveis.
A literatura permite que, ao baixarmos os olhos para as letras que significam muito,
levantemos os olhos para nosso próprio entorno. Passamos a descobrir, dentro do pequeno
universo de um texto, a amplidão da representação: a representação de um universo maior,
que com seus mecanismos e significados até então ocultos por nossa própria desatenção.
Em O púcaro búlgaro a história pode beber um número infinito de informações e,
principalmente, impressões de uma determinada época sob a forma de texto. Um texto que
revela uma profunda insatisfação de Campos de Carvalho com seus contemporâneos.
Contudo, revela sua insatisfação de forma distinta do que fizera antes, em A lua vem da Ásia e
também nos dois romances que escreveu antes de O púcaro búlgaro, Vaca de nariz sutil e A
chuva imóvel. Nos três livros, mostra, apesar da mordacidade de seu humor corrosivo, uma
amargura cortante que não encontramos em O púcaro. Neste último livro, ele destila seu
senso de humor de forma totalmente “escrachada”, como se nos dissesse que não abandonou
suas posições e conclui que, contra tudo e contra todos, só o riso pode vencer.
97
Cada época, grupo humano, país ou cultura vai rir de coisas que, provavelmente, será
motivo de gargalhada apenas entre seus indivíduos, não o sendo para aqueles que fazem parte
de um grupo que não compartilha de seus códigos e regras, que não compartilha de sua visão
de mundo. O riso será, então, para o pesquisador de história, uma ferramenta, um método,
uma fonte vastíssima de conhecimento sobre sociedades que pretende estudar.
Neste caso, é uma ferramenta importante para compreender uma parcela da obra de
Campos de Carvalho sob a perspectiva do risível em sua narrativa, ou seja, porque
ridicularizava certos aspectos da realidade e porque esses aspectos o faziam rir.
O riso está associado diretamente a elementos que não controlamos e que consideramos
fora de lugar, portanto, aquilo que está fora de lugar em Campos de Carvalho e totalmente
fora de lugar em O púcaro búlgaro. Neste livro, encontramos praticamente todos os
elementos do cômico apontados por Propp, transformando-o, sob a perspectiva deste trabalho,
em um livro cômico por excelência, logo, um exemplo ideal de análise para a visão de mundo
de Campos de Carvalho naquele momento específico.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Literatura Comparada, por ser um ramo do conhecimento e uma ferramenta, possibilita
encontrar o que de mais proveitoso nos dois campos que foram trabalhados nesta
dissertação: a literatura e a história. Pode-se dizer que, neste caso, foi uma ponte, uma
intersecção que permitiu o cruzamento de informações para a construção da pesquisa aqui
realizada.
Ao entrecruzarmos literatura e história, encontramos caminhos para entender e interpretar
o pensamento do autor de ficção Campos de Carvalho e, partindo dessa interpretação,
concluirmos que ele representa uma parcela do pensamento de uma época, de sua época.
Vemos, em sua literatura, os reflexos da sociedade que ele reprovava e questionava.
Percebia ao seu redor algo que, para ele, não fazia sentido algum. Esse descontentamento e
pessimismo estão presentes nas duas obras que foram abordadas neste trabalho e também
fazem parte dos outros quatro livros que publicou.
A sua posição frente à realidade que o chocava é evidente e idêntica em todos os seus
livros. Contudo, percebemos formas diferentes de lidar com ela nos dois romances que
analisamos. Em A lua vem da Ásia, um narrador que desperta para o horror da realidade e que
não vê solução para a sua condição de alguém que vê sem poder alterar o que lhe perturba, ao
final, o suicídio lhe resta. Em O púcaro búlgaro tem-se o mesmo narrador agora
ressuscitado, ainda consciente do absurdo que o cerca, mas que escapa dele fugindo para sua
99
realidade particular na qual busca a satisfação através de uma expedição fantástica a um lugar
melhor, uma “Pasárgada” na qual será não apenas amigo do rei, mas será o seu descobridor e
inventor. A solução para esse narrador será passar pelo mundo sem, no entanto, fazer parte
dele.
Nesse seu último romance, Campos de Carvalho, mais maduro do que quando da escrita
de A lua vem da Ásia, deixa claro que não está conformado com tudo que parece chocá-lo,
mas se revela um homem que encontrou maneiras de sobreviver sem estar em constante
tormento por aquilo que, aparentemente, não pode modificar.
Numa época em que mudar o mundo era a palavra de ordem, pois este parecia estar de
cabeça para baixo (parecia?), com os regimes autoritários tomando conta de diversos países, o
Brasil, inclusive, Campos de Carvalho foi visto pela esquerda brasileira como alienado. Por
sua vez, a direita via o autor com olhos desconfiados, pois, em seus livros, é evidente a crítica
a autoritarismo, militarismo, religião, violência, massificação, sociedade de consumo, etc.
Naquele momento, não havia espaço para quem não tomasse uma posição clara e definida,
tanto que acabou no ostracismo.
A crítica literária é também um reflexo do que pensa uma determinada época. É claro que
a parcela da população que esses críticos representam é pequena, pois eles refletem apenas o
que pensa a “elite” intelectual e econômica de uma sociedade. Mas é essa parcela que vai
determinar o que deve ou não ser lido, o que é “bom” e o que não é. Quando lemos “bom”
devemos ler “aquilo que representa, reflete, dissemina” os interesses do grupo dominante. Na
situação de uma crítica de oposição, teremos vozes pouco ouvidas, o que, no caso de Campos
de Carvalho, não importava, pois era visto de forma negativa por críticos engajados na
esquerda.
100
Logo, ao constatarmos o que uma época lê e descobrirmos porque ela lê isso e não aquilo,
pode-se vislumbrar rastros de sua visão de mundo, elemento que a literatura pode emprestar à
história.
A Literatura Comparada fornece diversos instrumentos para que se possam compreender
esses mecanismos de intersecção entre esses dois ramos de conhecimento. Neste trabalho, que
tentou buscar elementos que pudessem contribuir para a construção de um conhecimento que
é a soma de áreas diferentes, encontramos diversas possibilidades de análise que se mostraram
extremamente férteis, mas ainda carentes dentro desse ramo de estudos.
Por fim, espero ter contribuído para que Campos de Carvalho volte às prateleiras de
leitores leigos e também letrados, principalmente nos cursos de Letras, onde ainda é
totalmente ignorado.
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