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ALINE COELHO DA SILVA
A contística de Carmen Martín Gaite como alternativa ao
discurso franquista
Porto Alegre
2007
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2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ESTUDOS DE LITERATURA
LITERATURA COMPARADA
A contística de Carmen Martín Gaite como alternativa ao
discurso franquista
ALINE COELHO DA SILVA
Orientadora: Profª Dra. MÁRCIA HOPPE NAVARRO
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título
de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre
2007
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3
Agradeço
À Márcia Hoppe Navarro, a orientadora desta tese, que preencheu em mim uma grande
lacuna ao apresentar-me a Crítica Feminista. Seu olhar sobre o mundo se mostrou ser feito de
seriedade, comprometimento e generosidade, e assim ela conduziu nosso trabalho;
Ao PPGLet da UFRGS, a seus professores, alunos e funcionários;
Aos professores Gerson Luís Roani (UFVS), Maria Luíza Ritzel Remédios (PUCRS),
Rita Terezinha Schmidt (UFRGS) e Gilda Bittencourt (UFRGS), membros da Banca de Defesa
desta tese;
À Carmen Martín Gaite, que permitiu que me espreitasse em suas janelas;
Ao Borges e ao Cortázar que me fizeram entender o que é um conto (ou o que ele poderia
ser);
À Clarice, à Cecília, ao Quixote, à Sherazade e à Frida;
À Diva, mulher ventanera;
À Cinthia, à Thais e ao Gilberto.
4
¿De qué reino distinto habéis surgido,
quién os teje y defiende,
tenaces, inquietantes telarañas?
Carmen Martín Gaite
5
Resumo
Este texto propõe-se a analisar o discurso ficcional de Carmen Martín Gaite como um
discurso alternativo à nação espanhola dominada pelo regime franquista (1939-1975), que se
formou a partir da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e estendeu-se até a metade da década de
1970, com a morte do General Franco e com a pressão dos novos tempos. Esta discussão da
narrativa imposta pelo poder político, moral e religioso ditatorial é aqui balizada pelas teorias
críticas feministas, que se pautam por uma outra” leitura divulgadora das vozes marginalizadas
que compõem uma nação, proclamada pelos pronunciamentos oficiais como uníssona,
democrática e desenvolvida. As estratégias desta narrativa alternativa, proposta pela ficção, são
diversas, mas basicamente são inauguradas por um olhar silencioso, que resgata da memória uma
verdade banida da história do período franquista. Buscamos nos artigos e ensaios, produzidos
pela autora, referências à literatura feita por mulheres, assim como sua concepção acerca da
própria literatura, de modo a melhor compreender seu discurso e suas filiações levadas ao texto
ficcional. Os contos de Martín Gaite, reunidos nos volumes Cuentos completos e Cuéntame, são
pela primeira vez estudados na academia brasileira e revelam ser uma rica fonte para a
investigação dos estudos literários e para a compreensão da Espanha democrática. Estas
narrativas breves apresentam uma narradora ventanera que se espreita nas janelas, as poucas
aberturas das casas, para observar e denunciar um espaço em que as estratégias de dominação
perpassam as questões de classe e, principalmente, as de gênero. Esta narradora empresta sua voz
às personagens silenciadas, reivindicando o local de pertencimento da mulher, garantindo-lhe um
lugar em um enunciado oficialmente restrito aos divulgadores do “novo regime” e construindo
uma Espanha possível e real, na medida em que auxilia a desvelar uma verdade discursiva
imposta, indicando um caminho de libertação através da consciência do aprisionamento
contingente.
6
Resumen
Este texto se propone a analizar el discurso ficcional de Carmen Martín Gaite como un
discurso alternativo a la nación española subyugada por el régimen franquista (1939-1975), que
se ha erigido desde la Guerra Civil Española (1936-1939) y se extendió a la década de 1970, con
la muerte del General Franco y con la presión de los nuevos tiempos. Esta discusión de la
narrativa impuesta por el poder político, moralejo y religioso dictatorial es aquí jalonada por las
teorías críticas feministas, que claman por “otra” lectura, promotora de las voces marginadas que
componen una nación, proclamada por los pronunciamientos oficiales como unísona,
democrática y desarrollada. Las estrategias de esta narrativa alternativa, propuesta por la ficción,
son diversas, pero básicamente son inauguradas por una mirada silenciosa, que rescata de la
memoria una verdad rechazada por la historia del período franquista. Buscamos en los artículos y
ensayos, producidos por la autora, referencias a la literatura hecha por mujeres, así como su
concepción acerca de la propia literatura, de modo a mejor comprender su discurso y sus
filiaciones llevadas al texto ficcional. Los cuentos de Martín Gaite, reunidos en los volúmenes
Cuentos completos y Cuéntame, son por la primera vez estudiados en la academia brasileña y
revelan ser una rica fuente para la averiguación de los estudios literarios y para la comprensión de
la España democrática. Estas narrativas breves presentan una narradora ventanera que se asoma a
las ventanas, las pocas aperturas de las casas, para observar y denunciar un espacio en que las
estrategias de dominación ultrapasan las cuestiones de clase y, principalmente, las de género.
Esta narradora presta su voz a los personajes silenciados, reivindicando el local de
pertenecimiento de la mujer, garantizándole un lugar en un enunciado oficialmente restrito a los
divulgadores del “nuevo régimen” y construyendo una España posible y real, en la medida en la
que auxilia a desvelar una verdad discursiva impuesta, indicando un camino de libertación a
través de la conciencia del aprisionamiento contingente.
7
Sumário
Introdução
8
1 O discurso da mulher, o discurso de Martín Gaite
15
1.1 A escritura da mulher a partir das janelas de Martín Gaite 16
1.2 A crítica feminista na construção de um discurso da nação : o que
Martín Gaite não previu
37
2 O discurso da ordem franquista
57
2.1 A narrativa da história 58
2.2 O pensamento franquista (e o pensamento na era franquista) 71
3 Da ruptura
78
3.1 A contística de Martín Gaite 79
Outras considerações
133
Referências
143
8
Introdução
9
Quando se deu o processo de elaboração do projeto que se transformaria neste texto eu
preparava ao mesmo tempo aulas de literatura hispânica estando completamente envolvida com
os contos de Borges, Cortázar e outros mais. Na época eu trabalhava em duas Instituições de
Ensino Superior, em duas cidades distintas e morava em uma terceira e, assim, levava uma vida
dividida em três espaços. O que me habitava em todos eles era a leitura constante de narrativas e
minha observação sobre elas.
Nas viagens semanais que fazia a trabalho (cerca de 800 km), o ônibus passou a ser um
espaço para minha observação daquele (s) mundo (s) e, suas janelas, a perspectiva da minha
narrativa diária. A rotina cansativa e o escape pelas janelas da literatura me colocaram,
irremediavelmente, no universo dos contos de Carmen Martín Gaite. Em 1996, em meu primeiro
ano da Graduação em Letras, assisti a uma palestra e anotei vários nomes em um dos vários
bloquinhos de papel que me acompanhavam e um deles foi o de Martín Gaite. O “acaso” me fez
buscar sua obra e, desde então, passei a ser sua leitora. Soube que ela também produzira contos
que eram pouco divulgados e estudados e, curiosa, fui em busca deles.
Assim como eu contava os dias para voltar a casa depois das viagens a trabalho, quando
ali chegava parecia sentir certo estranhamento, habituada ao mal-estar do estrangeiro. Meus
estudos prosseguiram e as situações que vivi me aproximaram cada vez mais do universo de
repressão e libertação narrado naqueles contos. O contato com uma comunidade conservadora,
cuja moral católica se alia ao pensamento político e social da extrema direita, me permitiu
“experimentar” um ambiente pretensamente unívoco e soberano, em que a mulher parece
inexistir como ser político e em que os sujeitos padecem de uma severa cegueira frente às
diferenças.
A possibilidade de sair do labirinto não garante que não sejamos aprisionados por ele:
lutar diariamente para manter-se consciente das estratégias de dominação utilizadas, e posicionar-
10
se contrariamente à ordem imposta, é tarefa árdua e constante. Penso, de algum modo, ter
compartilhado do universo da ficção dos contos de Martín Gaite e este relato se justifica neste
aspecto.
A narrativa breve foi o primeiro resultado da aventura narrativa de Martín Gaite, que em
um segundo momento se dedicou quase exclusivamente ao romance. Estas primeiras incursões no
gênero são o novelo presenteado por Ariadne, permitindo que a saída do labirinto seja encontrada
em um tecer que não se afigura como definitivo. Assim como Penélope, que tecia a manta
fúnebre de seu sogro durante o dia e a desfazia durante a noite, apreendendo as ações impostas
pelo tempo, a narrativa de Martín Gaite permite a reconstrução, a circularidade e a espera em um
espaço do feminino a partir do qual uma perspectiva da realidade é vista. Esse fio mitológico é o
condutor do que se poderia entender como a narrativa feita pela mulher, perpassando narradoras,
personagens e autoras que prosearam sobre o que ouviram e viram: Penélope, Sherazade, Martín
Gaite, Úrsula Buendía, Celestina, Eva Luna, em um entrecruzar de representações da realidade e
de realidades.
A forma breve na escritura de Martín Gaite é acompanhada de uma espera que leva suas
narradoras a janelas, que serão a perspectiva de sua narrativa, e faz delas um espaço-tempo de
ilusões, de consciência do mundo circundante e de esperança e de resignação. Em sua estrutura, o
conto permite um olhar que recai sobre determinado momento na trajetória das personagens: um
passeio de trem, uma visita dos pais, uma tarde de sol, uma demissão, uma despedida em que
soluções aos conflitos não são apresentadas, mas asseguram um freio em um cotidiano
mecanizado.
Estes contos são cobertos de um realismo acompanhado pela possibilidade de escape que
aproxima o leitor a uma representação de seu cotidiano. Martín Gaite sabe utilizar
estrategicamente a estrutura da narrativa breve, narrando episódios em que as ações são contidas,
mas remetem verticalmente (no dizer de Cortázar) a outras narrativas, como a da própria nação
espanhola.
11
Como observaremos, a produção contística da autora se dá, em sua maior parte, no
período franquista e desmascara a idéia de transformação divulgada nos discursos do General,
propondo narrativas que adentram as casas do sujeito comum espanhol que vive cotidianamente
subjugado àquele regime totalitarista. Isto é feito através de personagens, espaços, tempo e
narração habitados pelo desassossego da coerção, pela angustia de estar-se preso a algo maior que
não tem cara ou nome, mas que podemos remeter à onipresença de Franco.
A tessitura da narrativa de Martín Gaite é feita de sua lucidez política e social conseguida
pelo lirismo que filtra seu olhar sobre as coisas do mundo, daí, no transcorrer deste texto, eu
recorrer à sua produção ensaística e lírica, pontuando esta leitura a suas filiações. Reconhecer
quem diz e a partir de onde diz é fundamental à perspectiva analítica aqui defendida.
Ler a nação através dos olhos desta ficção assegura a preservação de uma memória
guardada no silêncio e, ainda mais, garante um espaço representativo e enunciativo da mulher.
Buscar neste passado recente o papel da mulher e sua condição social como sujeito político e
social é fundamental para que pensemos nosso papel hoje e para que pensemos como se sua
representação nas ditas hoje nações democráticas. O legado desta memória é deixado a s, seus
leitores, em um registro coletivo sobre a experiência das nações e o olhar da mulher sobre ela, em
um jogo em que a memória e o discurso de um torna-se o do outro.
A metáfora da janela (através da qual se o mundo) revela o espaço de portas fechadas
em que os sujeitos estão confinados e denota a condição temporal deste aprisionamento. A
incomunicabilidade entre as personagens, e entre elas e o mundo, é constante, assim como o seu
não-pertencimento a sítio algum. E isto se dá no domínio que a autora tem das estratégias
narrativas, manipulando um universo perverso de vigilância do qual as personagens parecem não
ter saída.
Partilhamos com as narrativas (ficcionais e históricas) experiências que o tivemos, mas
das quais nos apropriamos, ao lê-las. Adentrar a Es
12
discursiva saudável e necessária para a conservação dos princípios democráticos de libertação
dos sujeitos e das nações.
um aspecto trágico que une estas narrativas: todos vivem um problema insolúvel
determinado pelo poder de Franco. As peripécias das personagens garantem (por vezes) a
consciência de sua desolação, mas seu fim é regido pela ação da não-ação, cuja morosidade aflige
o leitor que desperta para aquela (esta?) realidade. Porém, não somos levados aos grandiosos
conflitos e dramas das tragédias: nos são apresentados dramas cotidianos, sem o brilho dos
nobres representados nos clássicos; não são os sujeitos representados “melhores do que o são”,
são representados como seres aprisionados ao subjugo da ordem que tem o poder, mas não a
proteção ou a grandiosidade dos deuses.
Suas narrativas apresentam traços comuns, mas possuem um carácter mutante em sua
constituição. Se pensarmos um conto como uma narrativa de um nó, de um desfecho,
estaríamos apartando do gênero alguns de seus textos exemplares. Historicamente contraposto ao
romance, este gênero por alguns ainda é considerado menor ignorando-se, por exemplo, que os
mais importantes textos da literatura hispano-americana são os contos de Borges e Cortázar. Na
produção de Martín Gaite, o conto careceu atenção em sua maturidade literária, pois a ele pouco
se voltou depois de seu mergulho nos romances.
A maioria dos contos aqui analisados foi escrita na década de 1950 e reflete o momento
da geração neo-realista espanhola, que diferiu em alguns aspectos da consolidada geração
portuguesa. A produção da geração de Martín Gaite se vinculou a nomes como o de Camilo José
Cela e teve como contexto e promotora a era do General Franco. Este entorno ditatorial coibiu a
livre expressão artística, mas escritores como ela puderam romper o cerceamento oficial através
da ficção e o conto foi grande aliado neste processo, pois se prestava estruturalmente à
representação social pretendida.
A partir de determinada crise na trajetória das personagens, seus contos se desenvolvem
em um apelo à consciência sobre si e sobre o coletivo, em um uso historicamente estabelecido do
13
gênero. As soluções, os desfechos a estes conflitos e crises não se dão de modo concreto, dando
ao leitor espaço nesta tessitura. A possibilidade de mesclar as múltiplas realidades, conferida pela
narrativa ficcional, pode resultar na apresentação de um novo mundo, alheio aos domínios de
Franco, assim como também denunciá-lo. Aliada a isto, a perspectiva teórica da Crítica Feminista
permite uma ótica diversa da instaurada pela ordem patriarcal, e é através dela que observaremos
as estratégias de poder e as políticas de gênero na narrativa da nação espanhola.
Diante destes entendimentos, este texto busca examinar o discurso da contística de
Carmen Martín Gaite como alternativo ao da ordem hegemônica patriarcal e à dominação do
regime de Franco. Desse modo, fundamentado na Crítica Feminista, pretende revelar a escritura
da nação através da voz feminina, historicamente silenciada, sobretudo em tal sistema coercivo.
Para isso, este estudo estrutura-se em três eixos fundamentais: I O discurso da mulher, o discurso
de Martín Gaite; II O discurso da ordem franquista e III Da ruptura.
O primeiro deles, O discurso da mulher, o discurso de Martín Gaite se subdivide em
outras duas partes: A escritura da mulher a partir das janelas de Martín Gaite e A crítica
feminista: o que Martín Gaite não previu. Assim, propõe-se um passeio pela questão do discurso
feminino conduzido pelos textos ensaísticos da autora espanhola e pela crítica feminista
contemporânea, anunciando o lugar do qual parte minha perspectiva da literatura e explorando
um constructo teórico em alguns momentos questionado por Martín Gaite.
Desse modo, pretende-se que reconheçamos o lugar onde se forma o discurso ficcional, a
experiência teórica e a visão política presentes nos textos não-ficcionais da escritora, para que
conjuguemos sua prática acadêmica às questões de gênero e em um dado momento observemos
sua obra nesta perspectiva.
O segundo capítulo trata do discurso da ordem imposta pelo governo de do General
Franco, que pretendia uma Espanha uníssona, guiada, sem dúvida, pelo ideário do novo regime.
Para revelar tais afirmações, o capítulo se organiza em duas partes: A narrativa da história e O
pensamento franquista, nas quais se percorrerá a história oficial do período e a razão da gica
14
tradicionalista, através da análise de alguns pronunciamentos do Generalíssimo.
A narrativa da história oficial espanhola, escrita até a década de 1970, apresenta uma
nação arraigada a severos preceitos morais e regida por um enunciado predominantemente
patriarcal, voltado para a confirmação das instituições regimentais do país desde a década de
1940. Ainda que este não seja o objetivo principal desta investigação, através dos textos do
próprio Franco pode-se reconstruir o caráter que impôs à nação de modo a auxiliar a leitura
alternativa de Carmen Martín Gaite desta mesma comunidade.
O último capítulo busca aliar os aspectos apresentados nos capítulos precedentes à análise
da contística ficcional de Carmen Martín Gaite, por entender que esta narrativa ficcional é
potencialmente opositora à ordem, podendo assegurar um espaço de enunciação à mulher na
tessitura do discurso da nação espanhola.
A tentativa de desvelar a narrativa feita à margem do regime no período franquista até seu
processo de democratização, deve respeitar e difundir o discurso da mulher por ser, não apenas
um discurso fundamental na formação da nação e da identidade nacional, mas por permitir,
também, que o olhar atravesse as janelas da metade feminina da humanidade, promovendo os
meios para que a literatura possa ser, efetivamente, um veículo de compreensão do mundo em sua
plenitude.
15
O discurso da mulher, o discurso de Martín Gaite
16
1.1 A escritura da mulher a partir das janelas de Martín Gaite
O que entendemos por crítica feminista vem sendo, reiteradas vezes, investigada a partir
de campos diversos do saber, que se concentram em fins comuns. No âmbito literário, ela se
centra na representação e transformação social, construindo-se como um agente de câmbio
político, . O discurso literário masculino, como é sabido, escreveu a mulher a partir de sua
concepção de mundo, não raramente, patriarcal, e é através da pauta feminista que esta tessitura
será discutida.
Carmen Martín Gaite conheceu tardiamente a questão da Crítica Feminista, fato que se
deu quando de sua estada em Nova Iorque, em 1983, com a leitura de um texto de Virginia
Woolf. Em Desde la ventana
1
, a escritora relata esta sua experiência como leitora e ensaísta
desta linha de investigação. Conduzidos pelos textos ensaísticos de Carmen Martín Gaite,
visitaremos alguns importantes conceitos na questão do Gênero.
É interessante seu relato como receptora do texto de Woolf, que trata justamente de sua
condição de leitora e que, como não poderia deixar de ser, se assemelha a minha experiência
como leitora de Martín Gaite. Para ela, é como se tal texto sempre estivesse esperando por sua
leitura, como uma presença metafísica que se concretizou quando se deparou com a escritura de
Woolf, tamanha sua identificação.
Martín Gaite se posiciona como uma mera apreciadora da questão da crítica feminista,
mas, em verdade, se mostra uma estudiosa do tema já que sua tese de doutorado, e vários estudos
posteriores, trata da questão. Ao rever certas categorias da escritura feminina, baseada em textos
de Elaine Showalter, quando esta diz que o discurso feminino é duplo (formado pela herança
cultural e pela realidade atual), o que chama de double voiced discourse, e de Adriene Rich,
1 MARTÍN GAITE, Carmen. Desde la ventana. 3.ed. Madri: Espasa-Calpe, 1999.
17
quando, em Reading as a revision, aponta a escritura da mulher como uma chave para entender
seu vivido, Martín Gaite tenta afastar-se de determinada condição de sua escritura.
Showalter, como apontarei em outro momento, afirma que seria ilusório pensar a escritura
feminina como completamente marginal à escritura dominante, pois esta se gesta em um universo
de leitura de mundo masculino. Diante disso, Martín Gaite nega tal marca em seu discurso e diz
que esta se daria em escritoras de épocas pretéritas, antecipando a discussão acadêmica em torno
das idéias da ensaísta, mas logo assume que sua própria escritura é transpassada pelo que chama
de resabios académicos.
Habría que retroceder mucho atrás de las primeras reivindicaciones feministas
para indagar, a través del folclore y de los mitos, si se puede hablar de un
lenguaje específicamente femenino. Algunos de estos mitos atribuyen al habla de
la mujer un carácter enigmático y secreto
2
.
O desacordo de Martín Gaite em relação ao que se queira definir como uma escritura
feminina se localiza em sua não aceitação à posição anti-feminista que a escritura como um
desafio quase intransponível para a mulher. Em seu ensaio La mujer en la literatura
3
, assume
tentar fugir da discussão acerca da problemática da literatura feminina quando interpelada, em
entrevistas e palestras. Ainda que se considere conhecedora da “ginocrítica”, dizo poder
pensar na mulher escritora sem ligá-la à mulher leitora, que a figura feminina na instância
ficcional constrói a auto-imagem da mulher real. Confirmando tal posicionamento, cita seu
próprio texto, Cuento de nunca acabar, quando, ao remeter-se à leitora, diz “si no tienes a quién
contárselo, cuéntalo para ti; yo también estaba sola”
4
.
A escritura feminina, outrossim, tem na construção de sua historiografia, marcas que a
particularizam, que historicamente foi silenciada, salvo exceções que conseguiram entrar para
o cânone literário, é preciso uma revisão na historiografia literária das nações, que pôs à
2
MARTÍN GAITE, Carmen. Op.cit. nota 1. p. 32-33.
3
MARTÍN GAITE, Carmen. La mujer en la literatura. In: __Pido la palabra. Barcelona: Anagrama, 2002. p. 325-
341.
4
MARTÍN GAITE, Carmen. Desde la ventana. Op.cit. nota 1. p. 327.
18
margem discursos representativos destas mesmas nações e sujeitos. É a partir disso que o gênero
epistolar se afigurará como um veículo possível e será o primeiro no qual muitas mulheres
ocuparam seu espaço de enunciação. Observa a autora que o mote e o receptor desta mensagem
seria o objeto de seu amor, a exemplo de Mariana Alcoforado, sendo suas missivas escritas de
fato por uma mulher, ou não. O que interessaria nesta escritura seria, então, o caráter confessional
doado pela relação entre o eu escritor e o tu receptor, e este tu, como fio condutor do discurso
feminino
5
.
Assim, seria no próprio silenciamento que se daria a formação deste discurso literário
feminino, na reclusão do espaço solitário da casa que encontra no universo da palavra, seja em
cartas ou diários íntimos, um espaço primeiro de enunciação, para muitas das mulheres
espanholas.
Para Martín Gaite, Teresa de Jesús exemplifica a ruptura com o discurso da ordem
(religiosa, cultural, moral, literária) que, se cala o discurso da mulher, também é responsável por
fazê-lo brotar do cerceamento da voz feminina que se torna escritura. A angustiante tensão
apontada pela autora nos textos teresianos é também por nós, seus leitores, observada em sua
contística. Ora, a angústia e a reclusão são marcas do discurso literário como um todo,
indistintamente da questão do gênero. Então, como tentar caracterizar um discurso feminino a
partir de tais determinantes?
Parece-me fundamental que o discurso da mulher seja visto como um discurso marginal e,
portanto, de ruptura com certa ordem, seja em qual escala e complexidade for. Garantir uma
produção que narrasse um universo fabulado pela visão de mundo da mulher e que este fosse
19
Porém, ainda que seja óbvio que não fugimos ao sistema instituído, é preciso que o
discurso da mulher transcenda, principalmente, o espaço que lhe foi delegado, narrando os
s t0cm 530,695(r)M8769266.04069(r)-6.3.717(p)6.52438(r)-6.2í299(r)-6.23672(i)0.44169387.315(G)2.40434.a715(n)-3.7135(t)-9.83821(i)0.446262(l)0.4169387.314J259.707 0 Td9( )-253.821(n)6.53.821(n)6.5e715(n)-3.7135(t)-9.8a3821(p)6.171387.314J259.707 0 .71693(r)4.9969(e)1.9o672(i)0.44169387.314.8429(i)0.4462(i)713.71568(b)6.5655(v)-3.78429(i)0.6262(l)0.427522(e)1.96262(n)-3.7o672(i)0.44169387.314.R.82119464.5655( )-2538429(i7243â715(m)-3.2798(])-36299(s)-1.63635(t)-9.8c1693(a)12.298(])-3,695(r))3.21643(s)-11192.109
20
É assim que, na história da literatura espanhola, como aponta Martín Gaite, a mulher terá
no amor o refúgio de seus anseios, sejam religiosos, sejam existenciais. E justamente quando, no
século mencionado, a mulher se torna a maior consumidora da literatura, seu papel social será
guiado, cada vez mais, pela representação que de si mesma em obras ficcionais. O herói
romântico é um herói simbolicamente marginal (a exemplo de Don Juan
8
) em cujas façanhas a
mulher será tão só a musa e, portanto, idealizada. A literatura é inspirada e destinada às leitoras e,
no entanto, como 16 Td[(m)7.00596(u)-3.621(o)6.56424(5a)-89.23787re resanted aliccç-8.3173(ç)1.96262(o)-1.71693(a)3.28275( )-19.23766al
21
si feita pelo outro, também está enraizada nesta busca por identificação do que se lê, trazendo
duas implicações: a busca por identificar-se com a mulher descrita nas narrativas e o esforço para
estar conforme à ela.
Como é de consenso, Carmen Martín Gaite aponta Rosalía de Castro
11
como a única
mulher escritora a romper com certa ordem hegemônica, naquele período da literatura espanhola.
Rosalía conserva em si o caráter solitário da escritura feminina de então e o vê de modo benéfico,
como um espaço de reclusão necessário, quiçá a qualquer escritor.
Diz Martín Gaite
Jamás intentó Rosalía arrojarse ella misma el papel de filósofo en ninguna de sus
modalidades y por eso no se vio tampoco aquejada por la miopía que suelen acarrear los
planteamientos femenistas demasiados lineales, muchos de los cuales adolecen de los
mismos defectos que dicen querer combatir
12
.
Esta crítica a qualquer texto que se pretenda “dono” do discurso de determinado grupo é
reiterada na ficção de Martín Gaite, que desvela universos sem com isso articular uma narradora
que aponte soluções prontas (o que seria característico da geração neo-realista a qual se coadunou
em vários aspectos, essencialmente, no entendimento da literatura como libertadora e da
necessidade de transformação daquela sociedade), tampouco reivindicando uma “escritura
feminina” com características estáticas como docilidade, reclusão etc.
Abrindo caminho para a narrativa produzida por mulheres na Espanha contemporânea,
Martín Gaite aponta como fundamental o prêmio Nadal conferido à Carmen Laforet em 1944,
pois romperá com a tradição da chamada novela rosa, que havia contaminado a produção literária
no período pós-guerra-civil e que se caracterizaria, justamente, por corroborar com a repudiada
11
Rosalía de Castro (1837-1885) doou sua voz de desolação a uma Galicia emudecida, em seu célebre Cantares
Gallegos, cujos versos marcam definitivamente a própria reconstrução da identidade cultural galega e espanhola, de
modo geral. Na introdução a esta obra diz sua autora: “¡Queira o ceo que outro máis afertunado que eu poida
describir cos seus cores verdadeiros os cuadros encantadores que por aquí se atopan, inda no rincón máis escondido e
olvidado, pra que así, ó menos en fama xa que non en proveito, gane e se vexa co respeto e adimiración merecidas
esta infortunada Galicia!”. Edição digital disponível em http:cervantesvirtual.com/servlet/Siveobras.htm.
12
MARTÍN GAITE, Carmen. Desde la ventana. Op. cit. nota 1. p. 95.
22
docilidade da escritura feminina. O momento posterior à Guerra Civil Espanhola (1936-1939) foi
marcado pelo estabelecimento da ordem franquista, que pregoava à mulher que se afastasse dos
ares republicanos e, portanto, “libertários” que haviam contaminado o país; seu destino estava
assegurado pela razão tradicionalista, já que o casamento a protegeria das intempéries da vida.
Todo o movimento editorial em torno da novela rosa trazia ao homem espanhol a certeza
de que a feminilidade das leitoras do nero estaria preservada, pois o universo ficcional criado
seguia os mesmos moldes observados na literatura pretérita: o amor impulsionando a alma
feminina.
Cuando se produce el encuentro entre este hombre ideal y la mujer destinada fatalmente
a amarle, él o ella o los dos ya han vivido otras historias, a veces crueles, que han dejado
huellas en su alma, pero no por eso han conseguido deteriorar su moral inquebrantable.
Ellos aúnan la dignidad y la valentía con una profunda espiritualidad
13
.
O modelo masculino também é estabelecido, como aponta Martín Gaite, por homens
fortes, porém com talentos artísticos e com a nobreza de um cavaleiro medieval
14
. Neste aspecto,
que ao receber o prêmio referido em 1944, Carmen Laforet estabelece uma nova produção
feminina na literatura espanhola, garantindo, com o reconhecimento da crítica, um espaço na
tessitura desta historiografia.
Ao apresentar protagonistas que, de certo modo, se rebelam com a clausura da casa e da
sociedade, a literatura escrita por mulheres, a partir do ano mencionado, ganha novos rumos. Ao
negar a existência do amor ideal, que acompanha a figura feminina desde os primórdios da
literatura ocidental, e que fora excessivamente alvoroçado pelos romances do pós-guerra, os
romances das décadas de 1940 a 1970 promoverão a instabilidade da harmonia estabelecida neste
ficcional universo da mulher espanhola. Se o amor não era como pintado (lido), o destino da
mulher não está mais garantido pelo surgimento de um nobre cavaleiro.
13
MARTÍN GAITE, Carmen. Desde la ventana. Op. cit. nota 1. p.103.
14
Como é sabido, a primeira épica da literatura castelhana é o Cantar del mío Cid, que narra em versos épicos a
trajetória de um herói “real” Rodrigo Díaz de Vivar, que ajudou a coroa castelhana a expulsar os mouros do que seria
o território espanhol e a conquistar, então, outros reinos. Este mito está na base da formação da nação espanhola e é
constituído das características do “nobre cristão”.
23
A problemática real passa a romper com o mundo rosa desta literatura. O que assombra é
que, nos meios de comunicação de massa e na arte de corte comercial, a idéia do homem como
solução financeira e afetiva à mulher continue sendo promovida e aceita pelos leitores no século
XXI. Crônicas, romances e filmes que tenham como mote o relacionamento mulher/homem, visto
de forma maniqueísta e autoritária, são facilmente lidos e absorvidos pela sociedade. Títulos
como Por que o amor o vem? e Almas gêmeas, de Mônica Bonfiglio, asseguram que a mulher
deve “mudar” seu comportamento para que seja “escolhida” por um homem. Volta-se, desse
modo, à literatura neoclássica do século XVIII, que inspirou a novela rosa a estabelecer padrões
da estética e do comportamento feminino.
De seu interesse por questionar a relação entre escritor/leitor e a representação da mulher
/e a representação ficcional do amor, a tese de doutorado de Carmen Martín Gaite trata do amor
no século XVIII. Em seu ensaio Estilo amoroso de la mujer a través del tiempo
15
discute o amor
como representação da própria forma de viver da mulher espanhola de então. Como aponta a
a96262( )(u)-3.71631(l)0.496325(p)-3.716a(s)-1.63662(e)1.96325(274r)43735(m)7.00596(a9492 T438( )-68.678(m)7.00596(u)6.56424(l)-98.9579(a)1.963868(o)6.56424(284.51715(o)-13.9956(n)6.00596(a84.5171h2(ó)6.5642717(v)6.5655(i)-9.31605(s)-1.637ó2(ó)6.56424(p)-3.71568(r)4.04195(i)0.441715(274r)4374( )-150.917(d)-3.71568(a84.518886(é)1.96262(c)12.2425(u)-3.71693( )-37.8369(m)-7.8758(t)0.441715(r)4.0468(a84.51.917(f)4.04197(o)-3.71693(c)1.96265( )-37.8369(d)-3.71635(e)1.96265(n)-3.71443(t)0.4417l[(r)4.04315(274r)4693((d)6.56258.l)]TJ2669(m)7.00219(e)1.71693a84.51.92( )-6.99717(t)0.441715(e)1.9622(n)-3.71693(t)-9.83847(u)6.56299(n)-3.71693(l)-9.83821(a84.51.93(t)-9.83859(u)6.562962(c)12.24293(e)1.96262(s)-1.63635((M)4.92663(a)31.9715(a)132262(-)4.04069(s)-1.63615(274r)469715(r)4.0468(a9492 5169(a)-8.3173(c)1.96266(a)1.96262(i)-9.83821(l)0.4.0432(o)6.56521(a84.51.968(m)7.04693(n)-3.71643(a)12.2433(d)-3.71443()0.441715(õ)-13.9943(e)1.96262(s)-11.91.56258.l]TJ-385.178 -20.16 Td[(c)1.96325(o)-3.0559( )-4.71631(d)6.56365(p)-3.7162(n)-3.751568( )-58.398(a)1.96388(m)-3.27396(e)12.2438(n)-3.71568(t)0.44179(d)-3.71693(i)0.456424(r)-13.995d2(ó)6.564271o)-3.71693(l)0.441715(t)0.441788( )3.28149(o)-13.993(i)0.456424(rA)2.40559( )-48.118(m)-3.2733(o)-3.71693(l)0.3.9961(e)1.969(9(p)-3.71568(o)-3.71561( )-68.678(9(r)4.0432(a)-8.3173(m)7.004v(ô)-3.71693(n)6.5629g)271.62873( )-150.916(e)1.96262(t)0.441715(i)-9.838.72(I)4.0432(,)3.28277( )-37.8369(0.92 Tm[(i)0.441715(n)6.56293(i)0.441715(s)-1.63635(d)6.5o)-64c)]TJ239.295 0 T5(s)-1.63635(s)-1.6363 450.92 Tm[( )-37.8365(t)0.441715(a)1.96262( )-37.8369(u)-3.71693( )-37.83673(c)1.96266(a)1.96263(n)-3.7163( )-37.8369(m)-7.8758(t)0.441715(r)4.0468(,)3.2827é(u)-3.71693(e)12.2425( )-48.1196(u)6.564215(n)6.56292(o)-3.71693(m)7.0015(e)1.9622(n)-3.71693(t)-3.71643(a)1271693(d)-3.71693(oa)1.96262( )-48.1169(p)-13.9969(e)12.2425(l)-9.71443(o)6.5655( )-68.69(d)-3.71693(i)0.441715(s)-1.63635(c)1.96263(d)-3.7145(s)-1.63635(sm)7.00721(o)-13.9943o)-64c]TJ-232.331 -20.16 Td5( )-58.3974(a)1.963831(d)6.56365(p)-3.716 -20.16 Td[(d)-3.7165(o)-3.0558(s)-1.63761(a)1.96725( )-188.67u( )-48.118(m)-3.27361(a)1.9672h2(ó)6.564271o)-3.71698(í)0.441715(s)-1.63768(t)0.441715(o)-3.71568(r)4.04193(i)0.442343t)0.441715(a)-856388(m)-3.27396(e)1.96388 )-37.83673(c)1.37361(a)1.9672é(m)-3.27361(a)1.96722(s)-1.63635(p)-3.7162( )-58.3968(t)0.44138(r)4.04195(i)-9.83847(e)1.96269(r)4.043(t)0.4417l[(r)8.396173(m)7.0047(.)1.9626Q( )-37.83u(s)-1.63635(5(m)7.0047(e)1.96243(a)1271693(d)-3.7169693(r)4.0432(d)6.5o)56 58 Tf54.0305 0 Td[(n)-3.71647(.)1.96265( )-48.1169(s)-1.63635(é)1.96262n)-3.71669(e)1257[(n)-3.71647(.)1.96263( )-48.112(I)-6.233( )-48.1121(a)1.96262(,-6.9971F)26.9405572(e)12.2425(l)-9.838u(s)-1.636321(a)12.2425(b)-3.7162(o)-13.9969(r)4.04347(.)1.96262(s)-1.636362n)-3.71621(a)12.2422( )-37.8369(u)-3.716935(é)1.9623( )-48.1169(a)1.96262( )250]TJ/R216c)11798 Tf67M(u)38.18275( )-68.643(a)12.243a3(a)12.24821(e)1.9625(s)-1.63635(e)-8.313.7)6.550]TJ-353.96B.128 029831(d)6.5636v(d)-3.716a1(d)6.56365( )-48.117yo
A eintoa(e)12.2425(l)-9.83896(á)1.96388(t)0.44171v0305 0 Td[(n)-3.71647((o)6.5655( )-6.83821(n)6.56292(r)-1.63635( (r)4.0432(a)-8.31(t)0.441715(o)-3.71693)-1.6363f(p)-3.71693(r)-6.23698(e)1.96388(m)7.0047( )-150.916(v)-3.7169.0305 0 Td[(n)-3.71672(a)12.2425((o)6.5( )2998 Tf17.2(e)16871443(o)6.56593( )3.28275(m)7.0047(u)-3.71693(l)0.441715(h)-3.71693(e)1.96262(r)-1.63635(o)-3.71693(n)-3.716443(o)6.565o2n)-3.71621(g)16.8429(u)-31.975(t)0.441715(a)1.96268(9(r)4.0432(a)-8.3173(m)7.00461( )3.28149(q)-3.71693(u)6.56268(e)12.2425(s)-1.63633(t)0.441715(a)12.243672(I)4.0432(,)3.28272(s)-1.63635(m)7.007278(a)-8.3173l)-9.7144o)-13.9948512250]TJ-232.331 -20.16 Td5(t)0.442342( )-48.117 -20.16 Td[fo ro15.2066343tortío tdnteetepresentpesI cotoia grea qd p deomeneI-se apd d nom,(o)6-215.1.90]TJ-232.3(4 712.76-232( )Tj20.04 TLT*[(a)1.963896(u)6.564215l)0.441715(i)0.441715(t)0.441715 laturace peltolo nã a séeio X9(I)4.0432(I)-6.23I9(e)1.96262(-3.714459(u)6.5629á(l)0.441715(a)1.96263( )-150.916(a)1.63635(o)-3.71693(r)4.0432(e)1.96263( )-150.916(e)1.96262(n)-34.043a5(e)1.96574798 Tf55v(ô)-3.7163(l)0.441715(a)1.96264(t)0.441715(o))1.96269( )-58.3968(m)7.0047(u)6.56299(n)-3.71693(n)-3.71647(.)1.96263(r)-6.23672(m)7.002( )-58.3968(t)0.44138(n)6.562998(e)1.967(i)0.441715(o)-3.716993(é)1.96262(i)0.441793(e)1.96262(la)1.94195(i)-9441715(a)12.2438(o)-1371(299(m)7.0047(o)-3.7144u5(m)7.007278(a)1.271144o)-13.9948
24
O universo da corte ganha novo brilho. Avessos à “atrasada” sociedade espanhola, os
Borbón revolucionarão a recatada vida social com seus costumes inovadores. A vida em
sociedade ganha novas cores e a mulher passa a divertir-se sendo anfitriã de importantes
cerimônias para as articulações do poder. A nova moda propõe novos modos no vestir e a
brutalidade da extinta corte dá espaço à frivolidade cortesã.
O mundo feminino se expande, pois a mulher conviverá com um maior número de
pessoas, inclusive homens, que lhe irão promover o entretenimento necessário a sua nova
realidade na qual conhecerá o conforto. Estes novos costumes da mulher influenciarão o homem
espanhol, que também se servirá das jóias e do preciosismo estético da moda borbônica.
Não só as elites se viram tomadas por estes rumos sociais. As “criadas”, de figuras
resignadas, passam a invejar as roupas e jóias das “senhoras” e a rechaçar os modismos
estrangeiros, preservando o caráter tradicional autóctone. O caráter habitual do espanhol foi, de
certo modo, bastante cultuado. A exemplo disso, o chamado majismo
17
, tema da literatura
costumbrista dos séculos XVIII e XIX.
Voltando-nos à Martín Gaite, que considera o amor como fio condutor à análise da
representação feminina, lembramos que o amor como libertação sempre foi característico da
Espanha. Como relata a autora, desde o Siglo de Oro, no teatro de Lope de Vega, os maridos
eram alertados de que a essência do amor está em sua fragilidade. no século XIX sua marca
seria a “fugacidade” que provocaria insegurança frente a um possível abandono; desse modo, se o
amor no período era visto como libertação, o casamento era a submissão frente à virtude. Assim,
a mulher decimonônica, ficcionalmente, tem direito a apaixonar-se, mas segue sendo reprimida
pela moral burguesa do país
18
.
17
Maja (o) é o tipo burguês que passa a tomar os passeios espanhóis no século XVIII, com elegância e despojamento
até então desconhecidos. O pintor espanhol Francisco Goya (1746-1773) representou estes costumes burgueses em
suas obras que, apesar de seu cunho crítico à sociedade monárquica de Fernando VII, o levaram a ser nomeado o
“primeiro pintor da câmara”.
18
MARTÍN GAITE, Carmen. Pido la palabra. Op. cit. nota 3. p. 186.
25
A mulher passa a sofrer os conflitos representados pelos romances realistas do século
XIX, a busca de uma paixão idealizada pela literatura e todo o sofrimento que esta possa abarcar
e a aparente conservação do status quo da sociedade burguesa - que alimenta o sonho do amor
ideal, instiga a busca por aventuras amorosas, mas reprime qualquer movimento que possa abalar
a ordem de seu universo.
Desse mesmo modo se configuraria o amor na contemporaneidade, baseado na díade da
fugacidade da aventura amorosa e na eternidade do amor ideal, salvo sua maior fragilidade,
resultado, como argumenta Martín Gaite, do “deliberado afán por no expresarse retóricamente”
19
,
aspecto característico de tempos pretéritos, no qual a beleza do amor estava justamente em
divagar sobre tal sentimento.
A partir disso, como configurar o discurso da mulher no período franquista e no processo
de democratização do país? Será a partir da visão bipartida que a mulher do século XX terá do
amor? Cabe aqui buscar a resposta de Martín Gaite em seu texto, seja ele ensaístico ou ficcional.
Se a representação da mulher é decisiva para a afirmação e constituição da mesma, é
evidente o papel do discurso literário nessa relação. A representação da mulher no discurso
feminino será então uma construção fundamentada em imagens construídas, também pelo outro
masculino e que não dão conta da plenitude do ser em sua complexidade. Isso levaria a mulher
escritora a preencher as lacunas dessa trama imagética a partir do que lê e do como incorpora este
universo ficcional, lembrando que dentro da categoria gênero, não podemos pensar na construção
de uma imagem feminina uma, pois negaríamos os condicionantes raciais, religiosos, sociais,
políticos, familiares etc.
O resultado da escritura feminina partirá da decodificação do mundo narrado, cujos
modelos poderão tanto alimentar como frear os sonhos da mulher
20
. É a partir do sonho que
19
Idem. Ibidem. p. 191.
20
O sonho é elemento recorrente também na obra ficcional da autora e, me parece, sua significação pode ser melhor
comprendida no poema a seguir, Por el mundo adelante: Me atrapa como un pulpo /el color ya sabido de las
26
surge, na infância, a mulher escritora, que este é uma fuga da realidade opressora que não
raramente acompanha os primeiros anos da mulher, diferentemente da infância masculina,
impulsionada a buscar aventuras e a projetar uma vida fora do lar.
Em La mujer en la literatura
21
, Martín Gaite trata das questões da identificação da mulher
com seu mundo, e de que modo isto irá afetar a composição da mulher escritora e da leitora. Na
esteira disso, aponta
22
, era a figura masculina (pai, irmão, confessor) que barrava as pretensões da
mulher no mundo da escrita, para ela, não se pode analisar a escritura feminina sem antes pensar
sobre as questões que levam a ter determinada atitude frente à literatura e para tal aponta dois
fatores condicionantes a esta análise
a) actitud frente a la literatura, es decir el modo en que recibe e incorpora a la vida lo
leído y, b) los diferentes modelos de mujer que se le dan a elegir como rectores de su
comportamiento dentro de esas narraciones generalmente escritas por hombres, que, si
por una parte alimentan los sueños y ambiciones de una mujer, por otra los frenan
23
.
É recorrente, como assevera Martín Gaite, a tipologia da “mulher leitora”, construída a
partir de traços caricaturais cujas indicações apontavam para a atividade da leitura como perda de
tempo, ou ainda, como vício perigoso que, por fim, transformar-se-ia em loucura.
A leitura aficionada afastaria, de acordo com padrões estabelecidos desde a Idade Média,
a mulher de suas funções de mãe e esposa, impelindo-a para uma postura de isolamento e solidão,
comportamento considerado pouco feminino. No entanto, o desejo frustrado de isolamento
também pode resultar em experiências literárias produtivas, desde que a perspectiva adotada
examine o universo no qual transita a mulher dedicada à literatura.
cosas,/me asfixian mis sonrisas,/no respiro en las de ellos./Dormí noches y noches/ con el balcón cerrado/y al
recordar después/la imagen mentirosa,/multicolor del sueño,/siempre había a mi lado unos/oídos/y unos ojos
abiertos;/ me gustaba amasar/mi falaz pesadumbre/ante el espejo aquel./-/Abrid ya las ventanas./Adentro las
ventiscas/y el aire se renueve./Quiero huir de los ámbitos/calientes y tapiados,/salir sin compañía/por el mundo
adelante. In: MARTÍN GAITE, Carmen. Poemas. Barcelona: Plaza & Janés, 2001. p. 33.
21
MARTÍN GAITE, Carmen. La mujer en la literatura. In: ___. Pido la palabra. Op. cit. nota 3. p. 326-341.
22
Idem. Ibidem. p. 329.
23
Idem. Ibidem. p. 328.
27
A crítica voltada à mulher sonhadora instigada pela leitura de ficção perde sua força no
Renascimento, devido à ampliação de um público leitor feminino. No entanto, o caráter
pernicioso da literatura no que concerne ao afastamento da realidade, bem como à criação de
universos ficcionais fantasiosos, ainda perseguiria as imagens de leitoras até o século XIX.
A representação feminina na ficção, conforme rememora Martín Gaite, percorre a
trajetória tortuosa da indistinção entre fantasia e realidade, resultando numa existência infeliz e
trágica, como é possível examinar no exemplo da personagem Emma Bovary, criada por Gustave
Flaubert. Curiosamente, a protagonista do romance de Flaubert toma contato clandestinamente
com os livros, que marcarão, de maneira indelével, sua vida. Logo, essa relação com a leitura
afigura-se como um prazer proibido e arriscado para a mulher, uma vez que os livros,
especialmente os de amor, podem condicionar um comportamento, seja em busca do sentimento
descrito nas obras, seja na solidão e nos sonhos vinculados à ficção.
A temática amorosa é a base precípua sobre a qual se configuram as heroínas femininas
das novelas românticas, a partir do século XIX. Entretanto, se por um lado dar-se-á, uma
valorização a narrativas que representam o sentimento amoroso, por outro ainda há certa
desconfiança em relação ao público feminino, leitor desses textos, ou na expressão de Martín
Gaite, “la mujer ‘novelera’”
24
.
É impossível, portanto, o afastamento da experiência da mulher na condição de leitora
para o exame dos condicionamentos fundamentais e peculiares da escrita feminina. E, justamente
a partir do século XX, irrompe o discurso feminino criado pela mulher de modo mais difundido
que no passado histórico espanhol, agora portador de uma expressão verbal própria e que
incursiona pelo desconcertante e caótico, desconsiderando o paradigma da escrita até então
hegemônica.
Para Martín Gaite, o tom de desabafo seria outra característica de seu discurso, posto que
representa uma voz historicamente silenciada, e que nela teria nascido de seu “vicio de anotar
24
MARTÍN GAITE, Carmen. Pido la palabra. Op. cit. nota 3. p. 335.
28
alguna impresión de esas que caen del cielo como un rayo y estremecen todo nuestro ser”
25
. Essa
voz incipiente é ouvida, então, a partir de textos cuja busca passa a ser a de identidades
resistentes à tendência de uma classificação canica de uma escrita tradicional. Dessa forma, a
escrita feminina, materializa o caótico que é se afastar do discurso de uma ordem
superficialmente construída e começa a registrar sua visão desta ordem.
O mundo do cotidiano e do prosaico recebe especial tratamento na configuração narrativa
feminina e, por essa razão, entende Martín Gaite, dá-se a aproximação tão estreita
estruturalmente com a instabilidade e o caótico. Evidentemente, essas concepções não expressam
nem revelam definições absolutas, mas antes características relativas, porém não exclusivas, de
um tipo de discurso.
Com efeito, o signo do caótico prescinde de uma ordenação homogênea e harmônica no
âmbito narrativo. O discurso atribuído à narrativa masculina, por outro lado, é marcado
historicamente pela busca do entendimento e da organização como normas indiscutíveis e
estabilizadoras.
A desconfiança em relação a uma ordem absoluta traduz, muitas vezes, o que poderia ser
entendido como uma característica do texto feminino, como é revelado nos textos de Martín
Gaite. A aceitação do “não entendimento”, por vezes tomado como norma, implica proeminência
de um texto no qual emergem sensações fugidias e espaços veis, dentro de um universo cuja
significação encontra-se vinculada a um sistema social e histórico.
A alusão a fragmentos de um mundo que foi artificialmente ordenado, bem como as
imagens instáveis de uma simultaneidade aparente, instauram-se na escrita feminina como
reveladoras de uma história vivida e, recentemente, representada. Longe de um discurso que
traduza a essência, os reflexos de um espelho estilhaçado revelam uma realidade de impossível
apreensão e cuja carga histórica é parte indissociável de um passado de leituras proibidas, vozes
abafadas e escritas negadas.
25
MARTÍN GAITE, Carmen. Poemas. Op. cit. nota 20. p. 16.
29
Abrindo suas janelas ao mundo, Martín Gaite escreve De su ventana a la mía e Los
incentivos de la ventana
26
, cuja temática incorpora a visão do escritor remontada a seu fazer: a
arte que tem como função decodificar o mundo. O caráter liminar da janela caracteriza o discurso
da escritora como ponte de uma realidade que deve ser rompida através da arte, que, como
mencionado, o ser constitui-se a partir de sua representação. A autora diz ter sonhado escrever
uma carta à mãe, porém sua escrita seria um jogo de luz desde sua janela à de sua destinatária.
Este código teria sido ensinado pela sua genitora ao invés da prática do bordado e da costura.
Sua janela, distante do sonho, é uma ligação com todas as mulheres leitoras, com todas as
mulheres que imaginam. Se a solidão, por ausência ou por não aceitação do mundo exterior,
acomete a alma feminina, é através da janela que esta se liberta, é ela quem projeta a mulher para
outro espaço que não o da clausura da casa, mas para o seu mundo mais íntimo e, também, mais
universal, que possui um código de entendimento comum.
Porém, se a mulher se sabe possuidora de uma linguagem própria, sua relação com a
ordem patriarcal deveria estar calcada no rechaço a esta postura e não pactuante deste arranjo. As
janelas irmanam a mulher em sua condição de observadora e de projetar-se rumo a outros
universos, ainda que nem seus olhos o consigam avistar. A mulher ventanera é a grande
narradora do mundo. Temos de encontrá-la, que as janelas fascinam, pois tratam do mundo
possível, da escolha não feita, do caminho que ainda pode ser seguido. São elas que revelam o
sonho, que se abrem ao espetáculo da vida.
Martín Gaite relembra algumas narrativas ficcionais nas quais a janela teve determinada
importância simbólica, como é o caso da célebre “Morro dos ventos uivantes”, de Emily Brönte,
na qual Heathcliff e Catherine avistam e projetam, através deste limiar, a vida luxuosa do morro
dos Tobos, sem saber ainda o papel que este espaço teria em suas trajetórias. A janela é também
recorrente na obra de Martín Gaite.
26
MARTÍN GAITE, Carmen. Desde la ventana. Op. Cit. nota 1. p.123-141.
30
Isso se percebe, por exemplo, em Entre visillos
27
, romance ganhador do Prêmio Nadal de
1957, que narra a vida plana de uma cidade provinciana cujos habitantes são acometidos pela
angustiante ausência do sonho. Este relato vulgar do cotidiano desta província revela ao que estão
destinadas suas personagens, ver a vida obnubilada pelos visillos da janela.
Diz Martín Gaite “el juego entre la obligada permanencia en lo conocido y la añoranza de
lo desconocido se ha establecido desde que el mundo es mundo a través del marco de la
ventana”
28
, visto que a janela projeta a mulher para o espaço exterior ao da casa, lançando-se a
outro espaço-tempo no qual as relações de poder são outras. O evadir-se do local através desta
abertura, faz com que esta narradora da trajetória cotidiana transcenda o universo da ordem e se
lance ao sonho e à escritura.
É a partir da questão do sonho imprescindível, segundo Martín Gaite, ao entendimento da
escritura feminina, que a autora elabora o ensaio Brechas en la costumbre
29
alinhavando as
fissuras da orgânica hegemonia. É assim que discorda da definição do Diccionario de la Real
Academia Española quando este distingue categoricamente o fantástico da realidade, pois ficção
seria fingimento e estaria distante de apoiar-se em relatos históricos. Martín Gaite é do parecer de
que o fantástico pede uma outra realidade, já que transcende as leis do real, estabelecendo-se com
outras regras nas quais configurará seu discurso. A definição de fantástico estaria, pois, no tulo
de seu ensaio “Brechas no costume”. Assim, ao deixar-se entrar por estas brechas da ordem, se
obtém um novo olhar sobre o óbvio do real, redefinindo o “normal” como “extraordinário”
30
.
Tais ranhuras estão nos mais sedimentados constructos, ainda que sejam ignoradas.
Adentrar-se por estas fissuras garante um cataclismo ao absoluto da vida ordenada sob
determinados padrões estabelecidos. E a literatura de Martín Gaite tem a função de narrar a vida
tirando-lhe o caráter vulgar, cotidiano, morno, da rotina de não conceber a vida como algo
especial.
27
MARTÍN GAITE, Carmen. Entre visillos. 11.ed. Barcelona: Destino, 2001.
28
MARTÍN GAITE, Carmen. Desde la ventana. Op.cit. nota 1. p. 134.
29
MARTÍN GAITE, Carmen. Brechas en la costumbre. In: __. Pido la palabra. Op. cit. nota 3. p. 342-358.
30
Idem. Ibidem.
31
O fantástico mostra uma realidade absurda e a torna comum no universo que constrói.
Esta raia que separa o mundo do real e do fantástico é constituída pelo medo de que, se esta é
atravessada, o mundo anterior será questionado. Quando as leis de nosso universo são
questionadas, surge o desconforto e este cobra uma atitude.
A possibilidade de escape, provocado pela literatura, levou Quixote à loucura. Sua
trajetória é marcada pela presença de dois mundos, o da realidade e o da ficção e, se surge entre
nós (leitores) a dúvida sobre qual destes dois universos prevalece, logo percebemos que a
realidade é de tal modo invadida pela ficção, que a primeira se inebria pela segunda. É diante
disso que afirma ironicamente Zilbermann
31
que ler faz mal, pois a literatura faz imaginar, sonhar,
querer e até realizar utopias e, assim, é uma ameaça à ordem cerceadora. A narrativa do real
cotidiano não abarca sua amplitude, daí os obstáculos construídos no acesso da mulher à
literatura.
Em relação às fronteiras destes universos diz Martín Gaite:
Mi primera novela corta El balneario, que trata precisamente de la inconsistencia de las
fronteras entre lo real y lo imaginario. Es un sueño que hasta la segunda parte no se
sabe lo que es soñado durante una siesta de balneario por Matilde, una señorita soltera
de vida ordenada y rutinaria que nunca ha vivido emociones fuertes y está ansiosa por
vivirlas. O sea que entré a la literatura decrib81517(t)-6.87173(r)-a-7.8166.
32
A autora, ao analisar sua própria obra ficcional, diz ter-se influenciado por Todorov em
Introdução à literatura fantástica
34
a tal ponto que “o deixa cair” aos pés da narradora de seu
romance El cuarto de atrás
35
, quando esta encontra o “homem de negro”, personagem que abrirá
espaço ao fantástico na obra.
À idéia do fantástico Martín Gaite agrega a da morte, evento do cotidiano do ser, mas
visto como uma experiência inadmissível, que não aceitamos o fim de nossas próprias vidas.
Nas mais diversas culturas, a morte é vista como algo assombroso, pois nela se localiza o
desconhecido, o temeroso e a literatura se utiliza disso nos seus múltiplos gêneros, desde
romances policiais a contos de fadas.
La imposibilidad de concibir como posible lo que pasa todos los días es la prueba más
palmaria de hasta qué punto, sin que nos demos cuenta, se está mezclando
continuamente lo cotidiano e inocuo con la vivencia de lo espantoso, lo estable con la
amenaza de estar a punto de pisar arenas movedizas
36
.
O modo como cada cultura se relaciona com a morte pode, segundo Martín Gaite, ser
relacionado com os universos real e fantástico, e isto, como não poderia deixar de ser, se reflete
em sua literatura, que aponta, em sua tessitura, indícios da passagem de um mundo ao outro,
sinais estes que chamaríamos corazonadas no mundo concebido como real.
O fantástico, então, suporta o que a realidade não prevê, já que esta é a representação dela
mesma, e sua narrativa está guardada às vozes do poder que cercam o visível, tornando-o, muitas
vezes, o impossível. Daí a literatura utilizar-se da conexão destas duas instâncias para dar espaço
a enunciados que fujam da ordem estabelecida como verdade.
Em uma conferência em Nova Iorque, La libertad como símbolo
37
, Martín Gaite fala de
sua novela infanto-juvenil Chapeuzinho vermelho em Manhattan
38
. Para ela, é neste texto que
34
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975.
35
MARTÍN GAITE, Carmen. El cuarto de atrás. 19.ed. Barcelona: Destino, 2002.
36
MARTÍN GAITE, Carmen. Pido la palabra. Op. cit. nota 3. p.355.
37
MARTÍN GAITE, Carmen. La libertad como símbolo. In: __. Pido la palabra. Op.cit. nota 3. p.138-153.
38
MARTÍN GAITE, Carmen. Chapeuzinho vermelho em Manhattan. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
33
dará maior vazão ao fantástico, pois nele remete-se a seu sonho infantil: a ilha de Manhattan. A
longínqua ilha dos sonhos infantis, a terra da liberdade e prosperidade, torna-se símbolo da utopia
da jovem provinciana que escapa às fronteiras do real rumo à terra do nunca proclamada pelos
anúncios do poder imperial.
Obcecada pela liberdade, cujo mais famoso monumento é o da Estátua da liberdade nova-
iorquina, a autora povoa dita cidade com a versão pós-moderna do clássico infantil. Ao compor
esta narrativa, Martín Gaite elabora uma personagem de linde fabulosa para servir de ponte aos
universos mencionados (o real e o fantástico). Em seu processo de criação, após buscar
inspiração em algum evento sobrecomum, o encontrou, justamente em um livro de história dos
Estados Unidos: o relato da elaboração de tal monumento. Descobre, assim, que o rosto da
estátua é à imagem da mãe de seu criador, encontrando, por fim, a personagem que serviria de elo
aos dois mundos.
O que nos interessa, efetivamente, neste relato é justamente o fato de que o sonho
apresentado na literatura é tão uma das faces da realidade, ainda que Martín Gaite o tenha
encontrado justamente no que viria a simbolizar o cerceamento de tantos povos.
Dos deslocamentos entre o real e o irreal, o que se busca na narrativa que o pretenda é a
conjunção destes em um mesmo espaço-tempo. A memória, então, (re) constitui-se na narrativa
da história. É nesse espaço que o discurso feminino busca o lugar da enunciação: no recontar da
história.
Historia e historias
39
é um ensaio de Martín Gaite que se desenvolveu a partir da notícia
da morte do grande contista espanhol Ignácio Aldecoa
40
. Ao rever a importância do amigo em sua
trajetória, a autora se depara com a nostalgia em relação a um passado que tão é vivido no
39
34
fazer da narrativa. Em suas pesquisas sobre o século XVIII, Martín Gaite deparou-se com a
misteriosa trajetória de Macanaz, envolvido por 40 anos em um processo inquisitorial.
Este personagem real, cuja trajetória fragmentada se encontrava distribuída em arquivos
históricos da Espanha e da França, foi ordenada por Martín Gaite. Esta tarefa a leva a descobrir
em seu caráter decifratório a chave da literatura, como o decodificar dos pergaminhos de
Melquíades, em Cien años de soledad
41
, no qual está a chave dos segredos da humanidade.
Propor-me a estudar o discurso de Martín Gaite como uma outra opção ao discurso da era
franquista levou-me, muitas vezes, a ter de responder o seu porquê. Rememorar um espaço-
tempo que não compartilhei fez-me, por vezes, seguir uma certeza cega de que esta era uma
trajetória necessária para desvelar coisas que o sabia ao certo quais seriam. A identificação
com seus textos ficcionais não parecia justificativa suficiente.
Martín Gaite discorda, em alguns momentos, os estudos da crítica feminista de então, que
tentam caracterizar o feminino como “diferente” - ainda que faça uso dos mesmos –, e este foi
justamente o constructo teórico que me pareceu de maior operacionalidade para tal. Foi ao me
deparar com o ensaio em questão que um dos pergaminhos da personagem de García Márquez
pareceu decodificar-se diante de mim. O entendimento de Martín Gaite em relação à memória era
elo entre nossas narrativas.
Este mosaico de leituras encadeadas torna possível a compreensão do discurso feminino,
que Martín Gaite, como leitora, também produz uma narrativa outra a partir do que lhe é
proposto como a história da nação.
O desafio de reorganizar os documentos de Macanaz possibilita que sua trajetória não
padeça do esquecimento e, por meio da narrativa, seja resguardada na memória. Refazer o
percurso do personagem da história é embrenhar-se em seu caráter representativo do contexto no
qual viveu, pois nele estão encarnados a economia, a política, a sociedade da época. É desse
41
GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Cien años de soledad. Buenos Aires: Sudamericana, 2002.
35
modo que Martín Gaite compara esta tarefa à de construir uma personagem da ficção que não é
uma persona isolada, senão o entrelaçamento de vozes e sabores de um espaço-tempo
determinado.
El que siente esta llamada acuciante le venga de donde le venga primero quiere
revivir aquello como acontecimiento pero después comprenderá que lo que tiene que
hacer para salvarlo es reconstruirlo como narración. [...] Comprendí que [...] es vicioso
interesarse solamente por una historia particular, sin referencia a sus continuas
interferencias con las demás
42
.
A desordem nos documentos de Macanaz é o que dá o caráter mais instigante à leitura que
se constrói aos olhos de Martín Gaite. O ocultar e o desordenar, que são recursos utilizados por
muitos fabuladores, se mostram, aos olhos da Martín Gaite leitora, como fundamentais para o
entendimento daquela narrativa da história cujo único interlocutor era ela. As cartas redigidas em
defesa própria pela personagem eram o que, possivelmente, lhe garantia a sobrevida na clausura e
muitas destas sequer eram lidas pelas autoridades inquisitórias, como se pode comprovar pelas
observações de seus receptores.
Era Martín Gaite, então, a primeira a afastar do silêncio aquele relato de angústia. Ela o vê
envelhecer através da caligrafia e da senilidade do discurso que almejava outro destino, mas que
acabou por preencher seu espaço na lacuna da história como representante dos silenciados,
ajudando, assim, a recompor o que se chama de história oficial.
Desta pesquisa pela história de personagens reais surge a consciente reflexão da autora em
um romance que se destaca especialmente, Retahílas
43
, no qual o olhar da personagem recai na
filha do General Franco nos funerais do militar. A idéia do quanto possam estar comungadas as
vidas destas duas mulheres, sonhos, anseios, desejos, frustrações, dão a ambas, mais que aspectos
reais a uma, ou literários à outra, as irmanam em seu caráter feminino. O discurso de cada
existência nos leva todos a desafiar o tempo, inscrevendo-nos como seres da História, das
histórias.
42
MARTÍN GAITE, Carmen. Pido la palabra. Op.cit. nota 3. p. 361.
43
MARTÍN GAITE, Carmen. Retahílas. Barcelona: Destino, 1979.
36
En nuestro empeño del papel de testigos nos vemos a veces metidos en aventuras bien
novelescas por mismas, y que transcurren, es decir tienen lugar en el tiempo. Basta
con tener un poco de paciencia. Y esperar
44
.
Estaria no ofício da escrita inscrever estas narrativas na História? Certamente a escritura
de Martín Gaite garante um espaço no discurso da nação a vozes de personagens que ecoam a da
mulher espanhola. Perguntada pelo fazer literário, a autora diz ser a literatura transformadora dos
ambientes cotidianos em um espaço que nos liberta dos vícios aos quais nos aprisionamos
45
.
Este local da cultura, que aprisiona ou aprisionou a mulher a espaços fechados, não se
abriu, obviamente, ao relato de sua visão sobre o mundo, obtida, como comentávamos
anteriormente, através das janelas. A literatura feminina como ruptura deste universo brota na
constituição do discurso feminino como a visão do outro que é o mesmo. O olhar heteróclito da
literatura sobre o cotidiano concebe um maior estranhamento, necessário a seu caráter catártico,
sobre as verdades estabelecidas e concebidas como imutáveis.
Recuerdo [...], saqué un espejito, me miré y me encontré en el recuadro con unos ojos
ajenos y absortos que no reconocía noté que el botones, un chico de mi edad, me miraba
sonriendo y eso me avergonzó un poco, fingí que me estaba sacado una carbonilla del
ojo, pero pensaba angustiosamente que no era yo. Lo mismo que aquel sitio no era aquel
sitio. Y tuve como una premonición: “Esto es la literatura. Me está habitando la
literatura”
46
.
Aqui se o pertencimento a determinado lugar de recolhimento do eu feminino. Em seu
ensaio Tiempo y lugar
47
, a autora comenta justamente que é a partir de espaços (fechados) que
começa a povoar seus textos ficcionais, pois estes determinam, condicionam quem os habita.
Baseada nos estudos de Bachelard, em seu A poética do espaço
48
, Martín Gaite afirma que
o ser busca na literatura a ilusão de deter o tempo em um espaço determinado, pois, como
37
La Mancha em busca de seu pertencimento, por certo, em um dos movimentos aclarados por
Martín Gaite: a curiosidade, a busca de raízes e o desejo de esquecer. E estes elementos, que
impulsionariam a saída de personagens da casa, estão também no sonho da mulher ventanera que
tem sua “ação” historicamente limitada, restando-lhe o sonho, ao debruçar-se na janela e, a partir
dela, projetar para um mundo exterior possível que abarcasse o seu interior reprimido.
1.2 A crítica feminista na construção de um discurso da nação: o que Martín Gaite não previu
49
O que aqui se entende por crítica feminista é um constructo teórico-crítico que tem como
base a prática social em sua epistemologia e que abarca práticas e saberes diversos. As teorias
críticas feministas levam à academia as discussões surgidas nas relações político-sociais
questionadas, empiricamente, pelo movimento social feminista e se mostra como um pensamento
que cobra atenção a seu pertencimento. evidente que, nem todas as estudiosas estiveram
atreladas ao movimento social feminista. O que aqui se destaca é o surgimento desta área de
investigação científica). O lugar em que este discurso se constrói é o ponto-chave destas teorias,
já que deslocam para o marginal (a mulher), para o outro, sua perspectiva analítica.
O descentramento proposto pelas teorias pós-estruturalistas, que reivindicam um espaço
para a discussão do pensamento ocidental em que são questionados os discursos essencialistas de
poder, se aliam à Crítica feminista, mas se distanciam, entre outros fatores, como salienta
49
Este sub-título nos remete ao que a autora pensou
38
Buarque de Hollanda
50
pela segunda cobrar a visão filosófica e histórica banida da “categoria”
mulher.
Na introdução ao livro referido, Buarque de Hollanda pontua as diferenças entre as duas
grandes tendências de estudos da Crítica Feminista: a anglo-saxônica e a francesa. Na discussão
entre estes grupos indica como preocupantes as noções de “linguagem” e “identidade” femininas
investigadas por eles, identificando (e me coaduno à teórica neste aspecto) que esta pesquisa deve
considerar as condições históricas em que foram produzidos os artefatos culturais que são objetos
de análise. Na literatura, estas teorias, se propõem a buscar um discurso, uma identidade
“feminina” terá de comprometer-se em observar as formas em que os discursos de poder se
articulam em seu lugar de origem.
Em O inconsciente político
51
, Jameson pauta seu estudo na interpretação política dos
textos literários, para ele, o horizonte absoluto. Ainda em sua introdução reafirma sua herança
marxista e exclama que é preciso sempre historicizar. Diante dessa hist68.6767(e3698( )-120e )-17.2771(h)1.96262(i)-9.2425(t)-9.83821(a)1.2771(s)-1.6299(d)-3.7.0432(e) estorieie-3.71443(e)12.1715(d)-3.71443(e)dadez
39
Como ressalta Buarque de Hollanda
55
, a noção de historicização para Jameson “não
remete apenas ao estudo da natureza das estruturas objetivas de um determinado texto literário,
no modelo da historiografia tradicional. O que vai interessar “(...) é a análise dos códigos
interpretativos por meio dos quais lemos o texto literário”. Assim, teorias entendidas até então
como antagônicas são revistas e a interpretação de determinada obra passa a ser vista não como
um “ato isolado”, mas pautada em um modelo teórico vinculado a um contexto social e político.
As teorias críticas feministas vêm requerendo um debate produtivo no que concerne à
questão da literatura e da cultura de modo geral nas fissuras produzidas pela margem. Segundo
Eagleton
56
, o movimento feminista rechaçou a perspectiva marxista totalizadora, que se afigurou
como incapaz de responder às aspirações da mulher em sua condição de oprimida. Com efeito, o
movimento feminista destaca-se como uma reação à sociedade patriarcal e questiona as políticas
que não pautam em suas discussões a realidade de opressão às mulheres, condição para o
entendimento da sociedade e do ser humano como um todo.
Assim, a crítica teórica feminista busca articular elementos da vida pessoal, social e
política e não se afigura como um projeto isolado, pois seu questionamento representa uma
desestabilização ao poder hegemônico masculino (patriarcal), bem como sua condição ou papel
na sociedade. De outra forma, não a igualdade de poder é reivindicada, mas o sentido e o
descentramento desse poder.
Diante disso é que, como ressalta Schneider
57
, a desconstrução tradicional dos neros,
promovida pelo feminismo, busca a raiz histórico-cultural do processo de formação das
identidades masculinas e femininas, uma vez que o sistema de gênero se fundamenta
especialmente no aspecto biológico (?). Cumpre realçar que as representações do feminino,
construídas historicamente, são marcadas pela tessitura do discurso masculino, no qual a mulher
55
BUARQUE DE HOLLANDA, Heloísa. Seminário Internacional de História da Literatura, 5, 2003, Porto Alegre.
Anais. CD-ROM.
56
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
57
SCHENEIDER, L. A representação do feminino como política de resistência. In: PETERSON, Michael (org.). As
armas do texto: a literatura e a resistência da literatura. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2000. p. 119-139.
40
se identifica como o outro ou com uma imagem artificial de gênero, construída para a
manutenção da ordem patriarcal.
Daí a importância, como lembra Schneider, do sujeito feminino representado por
escritoras mulheres, haja vista a tentativa de fugir das distorções legitimadas historicamente dos
papéis da mulher e do homem na sociedade. Esse sistema de gêneros aduzido como natural deve
ser neutralizado a partir da libertação das subjetividades femininas e de uma atuação política (e
aqui se entende como cultural) dentro do tecido social.
A crítica feminista traz à sua pauta a experiência, esta vista como algo processado pela
subjetividade que se configura na posição do sujeito no discurso, daí ser uma teoria que se nutre
da práxis. A questão dessa presença discursiva foi um dos motes da crítica feminista na década de
60. Até então (e com isso não negamos que perdure até nossos dias) a representação artística mais
se detinha a heróis homens, construídos como representativos da experiência universal, da mulher
e do homem. Estas lacunas são percebidas e a investigação científica passa a questionar os
mecanismos da política textual
58
.
A identificação da experiência da mulher, quando representada artisticamente, não é
legitimada como da “experiência universal”. É vista como outro, posta à margem, e estas também
são estratégias da política textual, do poder cultural baseado em um modelo patriarcal de
sociedade.
Tal modelo, como destaca Schmidt
59
, distribui tradicionalmente papéis, status e
temperamentos próprios aos gêneros masculino e feminino, de acordo com sua condição
biológica de homem e de mulher, e são dados e exercidos em uma relação assimétrica de poder.
Diante disso é que a crítica feminista, na década de 70, passa a rever a categoria gênero de modo
correlacional, que a sociedade a em um sistema binário (homem/mulher) que assegura a
perpetuação do preceito patriarcal.
58
Este questionamento é comum à Martín Gaite, como apontei no capítulo anterior.
59
SCHMIDT, Rita Teresinha. Repensando a cultura, a literatura e o espaço da autoria feminina. In: NAVARRO,
Márcia Hoppe (org.) Rompendo o silêncio: gênero e literatura na América Latina. Porto Alegre: UFRGS, 1995.
41
O sistema sexo/gênero constituído na razão patriarcal é discutido por esta área de pesquisa
que o põe à prova como verdade absoluta e natural, que gênero é uma categoria constituída
pela sociedade e não determinada pelo sexo, como prega o patriarcado em sua ficção discursiva.
As representações de gênero, imbricadas na organização de desigualdade social entre os
sexos, configuram-se como instância primária de produção e reprodução da ideologia
patriarcal, pois operando na qualidade de uma tecnologia de controle em termos de
limites, modelos e significados socialmente desejáveis, gerou um processo disseminado
de repressão do feminino
60
.
Romper com os modelos dominantes é romper com a imagem imposta à mulher, que se vê
representada através do olhar do outro, é reivindicar um lugar como sujeito; é desarticular as
estruturas de poder institucionalizadas, que a diferença biológica homem/mulher não deve
significar diferença cultural.
Para Showalter
61
a crítica feminista caracteriza-se a partir de uma perspectiva revisionista,
já que questiona estruturas estabelecidas e, na prática, retifica e suplementa outras teorias críticas.
Contudo, a autora adverte que, muitas vezes, a obsessão feminina em revisar teorias críticas
masculinas não resolve a elaboração de um paradigma próprio, pois mantém a dependência ao
modelo existente. Assim, a busca por paradigmas androcêntricos para a configuração de um
quadro referencial feminino ainda se pauta na experiência masculina e, por conseguinte, na sua
apresentação como universal. Torna-se premente, portanto, ainda segundo a autora, uma crítica
feminista legitimamente centrada na mulher, cuja independência e coerência intelectual não
excluam nem separem, mas criem uma área teórica sólida e própria.
A trajetória crítica de definição do feminino alterou o enfoque da análise revisionista para
a busca de uma literatura feita por mulheres. Showalter discorre sobre o termo genocrítica
62
para
designar um discurso crítico especializado no estudo da mulher como escritora e uma redefinição
da postura teórica cuja questão essencial se pauta na diferença desse discurso. Assim, entendemos
60
Idem. Ibidem. p. 186.
61
SHOWALTER, Elaine. A crítica feminista no território selvagem. (Traduzido por Deise Amaral). In: BUARQUE
DE HOLLANDA, Heloísa. Op. cit. nota 50.
62
SHOWALTER, Elaine. Op.cit. nota 61.
42
que a crítica feminista deve voltar-se para a questão da mulher, seja como produtora de um texto
ficcional, expressão de sua subjetividade, seja em seu posicionamento teórico, mas que,
sobretudo, assegure o local da mulher como enunciadora do próprio discurso. Para tal, parte do
pressuposto da diferença, já que a mulher constituiria um grupo de leitura diferente do masculino.
A despeito de teorias fundamentadas na biologia, lingüística e na psicanálise, Showalter
63
fala de um modelo da cultura da mulher, estudado pela Crítica Feminista na área da
antropologia, a fim de possibilitar um modo de salientar a especificidade inerente aos discursos
femininos, explicando a relevância de uma experiência da mulher vista em sua idiossincrasia.
A cultura feminina, então, coloca como essencial uma perspectiva de análise da
experiência da mulher, bem como seus valores dentro de um ponto de vista independente e não
mais formado a partir de paradigmas do masculino.
Contudo, é complexo entender algo apartado da esfera dominante que o
publicação independente de determinantes econômicos ou políticos de uma sociedade ainda
abafada pela razão hegemônica masculina. Assim, o discurso da mulher torna-se duplo,
considerando que engloba suas heranças social, literária e cultural em sua experiência de
silenciada, guardando em si, igualmente, a voz do dominante.
Assim o lugar na história e na tradição crítica da escrita das mulheres reveste-se de
tradições simultâneas que são masculinas e femininas
64
. Cabe, portanto, definir o locus cultural de
sua identidade literária para, finalmente, circunscrever seu espaço nas fronteiras do gênero,
rompendo com a tradição de representação das formas simbólicas do imaginário masculino, e
assumindo o assim chamado “território selvagem” da diferença.
Como dito anteriormente, a questão do gênero em nossa sociedade está construída em
bases de extrema violência levando em conta que se calca em uma relação de poder assimétrica.
63
Idem. Ibidem.
64
SHOWALTER, Elaine. Op. cit. nota 61. p. 46-47.
43
Esta relação binária subjuga um pólo em detrimento do outro e, quando tratamos de gênero, o
masculino sobrepõe-se ao feminino, ocupando o posto de paradigma do humano. Sendo o
extremo dominado, o feminino ocupa a posição marginal nesse constructo. Cabe, então, ao
feminino representar-se e inscrever-se no discurso da história como sujeito, ainda que fosse
utópico buscar um discurso completamente autônomo, livre das implicações dominantes, que,
segundo Foucault
65
, o sujeito é um efeito de todo o sistema de significação no qual está inserido,
é um espaço no qual todos os discursos se atravessam e se agrupam.
Porém, as relações humanas se regularizam através do poder que tolhe e abrevia os
espaços de ação dos seres pertencentes aos diversos campos sociais. Neste aspecto está encarnada
a questão do status no que concerne à problemática do gênero. Linhas da crítica feminista
66
discutem o episteme da cultura ocidental. O que nos interessará será a busca pelas operações
expostas nesta inscrição do feminino, os movimentos do texto que revelam sua posição ética e
política.
Vale ressaltar que o discurso da mulher deve inscrever-se na verdade, no sentido
apregoado por Foucault
67
, o que significaria usar um discurso para determinado conhecimento
que seja compatível com o discurso disciplinar da ciência de sua época, então, tal conhecimento
seria legitimado. A legitimação do discurso feminino ocupa seu lugar no enunciado da história
somente quando passa a ser institucionalizado pelo discurso acadêmico.
Nesta ótica, o conceito de história escapa de uma designação totalizadora e homogênea,
pois se constitui em um campo fragmentado cujos conhecimentos estão desconectados e
dispersos. A história não é vista como um constructo centralizador, ordenado por um sujeito
consciente, o que seria uma falácia humanista, que regula todo funcionamento de uma sociedade,
a qual Foucault chamaria de carcerária. Esse cárcere é inerente às sociedades que em geral se
65
FOUCAULT, Michael. A ordem do discurso. 8.ed. Rio de Janeiro: Loyola, 2004.
66
SPIVAK, GAYATRI. Quem reivindica a alteridade? (Tradução de Patrícia Silveira de Farias). In: BUARQUE DE
HOLLANDA. Op. cit. nota. 50. p. 187-205.
67
FOUCAULT, Michael. Op. cit. nota 66.
44
constroem a partir de uma clara intenção de disciplinar e de treinar os indivíduos ao trabalho, à
conformidade e à conformação, excluindo o que não é previsto neste esquema.
O discurso para Foucault
68
é um espaço no qual operam forças políticas, econômicas,
ideológicas e de controle político-social, por meio de procedimentos de controle. Assim, este
conceito está estreitamente coadunado às relações de poder, gerando, por conseguinte, uma
utilização desse discurso na realidade. Da mesma forma, a concepção de prática discursiva
apresenta-se como um apanhado de regras que regem a escrita e o pensamento na esfera do
sujeito.
Admitindo o discurso em seu caráter heterogêneo, Foucault desestabiliza a noção de um
discurso puro, que este sempre será atravessado pelo discurso do outro e por outros discursos
cujas relações dar-se-iam a partir da dominação. Por sua vez, são as formações discursivas que
conferem certa unidade à multiplicidade de discursos de determinado contexto, pois elas
asseguram o paradigma semântico que regula e controla o sujeito.
Por mais que o discurso seja bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam
logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. Nisto não há nada de
espantoso, visto que o discurso como a psicanálise nos mostrou não é simplesmente
aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; e
visto que isto a história não cessa de nos ensinar o discurso não é simplesmente
aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se
luta, o poder do qual nos queremos apoderar
69
.
A legitimação do discurso do poder passa por sua estatização como discurso da ordem e
essa inscrição se perpetua na narrativa da história. Daí a pertinência do questionamento de
Spivak
70
quanto ao modo como são construídas as narrativas históricas. Para ela, é preciso
reivindicar o conhecimento, que na esfera político-cultural a separação para conjugar um eu
representativo é ignorada. Vale lembrar, então, que a posição da mulher põe-se à margem e que
ainda que apartada do cenário das ex-colônias, caso citado pela estudiosa, a mulher espanhola,
68
Idem. Ibidem.
69
FOUCAULT, Michael. A ordem do discurso. Op. Cit. nota 66. p.10
70
SPIVAK, G. Op. cit. nota 67. p.187.
45
como parte de um desmantelado império, também é vista como outro e deve garantir seu lugar no
discurso da nação, que se reinventa frente à nova configuração político-cultural.
Ao tratar de tais questões, Spivak afirma que, para refazer a nova escritura da história, é
preciso aceitar a pluralidade e a heterogeneidade local e observar seu caráter mutante, respeitando
suas vozes. Neste aszecto, atentamos para o multiculturalismo espanhol, confiscado pelos anos de
ditadura e pela imposição do (z)1.96325(a)1.96388(r)4.04195(a)1.96388(d)6.56299(i)-20.1181(g)16.8429(m)-3.27522(a)1.96262( )-37.8369(d)-3.71693(o)-3.71693( )-37.8369(h)6.56299(o)-3.71693(m)-3.27522(e)-8.3173(m)7.0047( )-37.8369(c)1.96513(a)1.96262(s)]TJ260.547 0 Td[(t)0.441715(e)1.96262(l)0.441715(h)-13.9969(a)12.2425(n)-3.71693(o)-3.71693(.)3.28275( )-37.8369(A)2.40434(s)-1.63635( )-48.1169(n)6.56299(a)1.96262(ç)1.96262(õ)-13.9969(e)12.2425(s)-1.63635(,)-17.2771( )-37.8369(e)1.96262(m)7.0047( )-37.8369(s)-1.63635(u)-3.71693(a)12.2425(s)-1.63635( )-48.1169(c)12.2425(o)-3.71693(n)-3.71944(d)6.5655(i)-9.83821(ç)12.2425(õ)-13.9943(e)1.96262(s)-1.63635( )-37.8369(d)-3.71443(e)1.96262( )250]TJ-260.547 -20.16 Td[(e)1.96325(x)-13.9961(-)4.04257(c)1.96325(o)6.56362(l)0.442343(ô)-3.71631(n)-3.71568(i)0.441715(a)1.96388(s)-1.63761( )-78.9579(o)-3.71568(u)6.56424( )-78.9579(e)1.96388(x)-13.9961(-)4.04195(i)0.441715(m)7.00596(p)-3.71568(é)1.96388(r)4.04195(i)0.441715(o)-3.71568(s)-1.63761( )-78.9579(n)6.56424(e)1.96388(c)1.96388(e)1.96388(s)-1.63761(s)-1.63635(i)0.441715(t)0.441715(a)-8.3173(m)7.0047( )-78.9566(r)4.0432(e)1.96262(f)-6.23672(a)1.96262(z)-8.3173(e)1.96262(r)4.0432( )-78.9566(s)-1.63635(u)-13.9969(a)12.2425( )-89.2366(h)]TJ249.501 0 Td[(i)0.441715(s)-1.63635(t)-9.83821(ó)6.56299(r)4.0432(i)-9.83821(a)1.96262(,)3.28275( )-78.9566(r)4.0432(e)1.96262(c)1.96262(o)6.56299(n)-3.71693(t)0.441715(á)-8.31659(-)4.0432(l)-9.83821(a)12.2425( )-78.9566(r)-6.23672(e)1.96262(a)-8.3173(v)-3.71693(a)1.96262(l)0.441715(i)0.441715(a)1.96262(n)-3.71693(d)6.56299(o)-3.71693( )-78.9566(s)-1.63635(e)1.96262(u)-3.71443(s)-1.63635( )-78.9566(m)7.00721(o)6.5655(d)-3.71443(e)1.96262(l)0.441715(o)-3.71443(s)-11.9163( )250]TJ-249.501 -20.16 Td[(b)-3.71631(a)1.96325(s)-1.63698(e)12.2432(a)1.96325(d)-3.71631(o)-3.71631(s)8.642362 na cultura do imperialismo em suas diversas faces.
Refazer a história é reescrever a história oficial das nações. É abrir espaço em um discurso
caracterizado zela inearidade para suas ondulações , para grupos e eventos que não são
contemplados nesse constructo elitista. Assim, cabe rever a categoria nação e suas implicações na
questão do gênero, cujo modelo, através da Crítica Feminista, pode ser questionado e cuja
história pode ser reescrita neste projeto de resistência.
Para tal, é interessante recorrer a Benedict Anderson e a seu Nação e consciência
nacional
71
. O historiador propõe a seguinte definição para nação: “uma comunidade política
imaginada e imaginária como implicitamente imitada e oberana”
72
. ão ma comunidade
porque prevalece a noção de um companheirismo horizontal, em uma fraternidade que torna
possível a morte e o genocídio de milhares de pessoas, em nome de imaginações limitadas. A
comunidade é imaginada porque os membros, até mesmo das menores nações, nunca conseguirão
conhecer a totalidade de seus compatriotas, embora haja na mente de cada um a imagem de
comunhão. A nação também é imaginada como limitada porque possui fronteiras finitas, para
além das quais se encontram outras nações. Finalmente, nação é imaginada como oberana,
porque é uma conseqüência da derrocada da legitimidade dos reinos dinásticos divinamente
instituídospara uma etapa da história humana, na q ual as nações livres viam o penhor e símbolo
dessa liberdade no Estado.
71
ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. (Traduzido por lio L. de Oliveira). São Paulo: Ática,
1989.
72
Idem. Ibidem. p.14.
46
A reverência pública e as imaginações outorgadas a monumentos, como os dos “Soldados
desconhecidos”, convergem para a compreensão desses como símbolos da moderna cultura do
nacionalismo. Isso mostra, segundo Anderson
73
, a afinidade entre as imaginações nacionalistas e
as imaginações religiosas. O teórico propõe que o nacionalismo deve ser entendido como
simultâneo a sistemas culturais amplos que o precederam, a partir dos quais, e contra os quais,
passou a existir.
Para Anderson, os sistemas culturais mais importantes são: a comunidade religiosa e o
reino dinástico, porque os dois eram aceitos, em seu apogeu, como a nacionalidade é aceita no
século XX. Assim, a possibilidade de se imaginar a nação surgiu na idéia de determinada língua
escrita como acesso privilegiado à verdade ontológica e parcela inseparável dessa verdade. A
crença de que a sociedade era organizada de modo natural em torno de centros elevados, e que os
monarcas eram pessoas distintas dos outros seres humanos, governando por uma disposição
cosmológica, divina, também foi uma concepção cultural que deixou de ter domínio axiomático
sobre o pensamento humano.
Vale ressaltar que o historiador aponta a cultura impressa como motriz na tessitura das
conexões invisíveis, que constituem a base da comunidade nacional imaginada. Assim que
passou a ter registro impresso a descoberta pela Europa de novas culturas pouco conhecidas,
como as da China, do Japão, do sudeste da Ásia e do subcontinente indiano, e outras
completamente desconhecidas como o México Asteca ou o Peru Incaico, os movimentos de
independência na América se tornaram “conceitos”, “modelos” e, de fato, “projetos”.
Ao apontar o espaço da nação como o espaço da totalidade, não se prevê a diversidade
cultural e, tampouco, os discursos que a margem produz, estabelecendo outras estratégias de
significação, que se contrapõem à idéia homogênea de uma nação sem fissuras e ao grande texto
cultural do colonialismo.
73
ANDERSON, Benedict. Op. cit. nota 73.
47
A razão pós-colonial substitui as relações binárias, atribuídas a esse texto colonialista,
pelas relações de suplementaridade que não negam as contradições e se aliam a esta episteme de
renegociação das tradições e da diversidade, a qual prevê uma nova visão da nação como um
espaço de significações repleto de afiliações discursivas. A nação está atravessada pelo seu outro
(outro que não está fora, que está contido na nação), o sujeito (do discurso) marginal. Assim, este
espaço da nação é visto em seu caráter liminar, não horizontal, que prevê as fissuras discursivas
da margem.
Anderson
74
ressalta ainda o afeto que as pessoas sentem pelas invenções de suas
imaginações (nações) e que, como destaca no início de seu texto, inclusive chegam a morrer por
elas. Assim, lembra, antes de tudo, que as nações inspiram um amor abnegado, que pode ser
representado pelos produtos culturais do nacionalismo. A experiência patriótica de cantar um
hino nacional, para ele, representa a imagem da simultaneidade traduzida na unissonância.
Assim, o som imaginado remete a um altruísmo entre pessoas que não se conhecem e, ao mesmo
tempo, a uma fatalidade histórica.
Já Homi Bhabha
75
revê as categorias nas quais se apóia Anderson e propõe que se conceba
nação como a articulação metafórica de um discurso no qual o indivíduo é sujeito e objeto de
uma série de narrativas que formam o discurso da nação. Este sistema de representação cultural é,
então, a nacionalidade, um espaço-tempo discursivo no qual o sujeito constrói sentidos que
influenciam e organizam a tessitura discursiva da nação.
O principal ponto de conflito entre o estudo dos dois teóricos é o fato de Bhabha pensar o
espaço da nação como algo não-horizontal, prevendo, assim, que tal construto não é um todo
orgânico e homogêneo. Desse modo, a questão da nação deve ser revista continuamente no
presente, pois, historicamente, muitas vozes foram silenciadas, excluídas desse enunciado. A
partir disso, Bhabha reivindica a representação da nação como processo temporal
76
.
74
ANDERSON, Benedict. Op. cit. nota 73.
75
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFGM, 2003.
76
Idem. Ibidem. p. 202.
48
Ao analisar a cultura, sob o viés da teoria crítica pós-colonial, o intelectual indo-britânico
discute existência nas fronteiras do “presente”. Para Bhabha, a cultura encontra-se na esfera do
além, cujo significado vincula-se menos a um abandono do passado e mais a um encontro “no
momento de trânsito em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de
diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão”
77
.
O espaço dos interstícios, das ondulações, torna-se, portanto, o local em que interesses
comunitários apresentam-se e em que os valores culturais são discutidos. Essa complexidade
presente na negociação busca a representação e a necessidade, além, evidentemente, do direito de
expressão, a partir do discurso dos que se encontram fora da ordem inscrita pela tradição.
O movimento de articulação ambivalente e ambulante, configurado por Bhabha, significa
o entendimento de “além” como promessa de um futuro e também progresso em relação a um
tempo e um espaço identificados em representações fixas. Dessa forma, o sentido do que o
teórico designa como “jargão de nossos tempos”, tais como, “pós-modernidade”, “pós-
colonialismo” e “pós-feminismo”, estão na transfiguração do presente para uma condição
excêntrica de experiência e aquisição de poder.
As idéias etnocêntricas constituem-se como fronteiras cujas vozes dissonantes e
disjuntivas irrompem no desejo de reconhecimento do “outro”. Esse processo de redefinição
espacial aponta para a imagem da fronteira, em sua constituição como lugar em que se nota a
presença de algo, ou ainda como caminhos que levam ao encontro com o “novo”. Essa relação
rompe com a causalidade de passado e presente, estabelecendo uma renovação, ou melhor, uma
refiguração, como acentua Bhabha
78
, desse passado na sua circunstância como “entre-lugar”
contingente e como ruptura e inovação do tempo presente.
Localizando o “estranho”, como tropos paradigmático do contexto colonial e pós-
colonial, a questão da diferença cultural evidencia uma negociação de poderes dentro de
77
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Op. cit. nota 77. p.19.
78
Idem. Ibidem.
49
especificidades históricas. Assim, Bhabha
79
ressalta que o feminismo, em sua tentativa de tornar
visível o momento considerado “estranho” na sociedade civil, especifica a natureza patriarcal
dessa sociedade na mesma medida em que perturba a simetria entre o público e o privado, uma
vez que se torna suplementar a eles. Essa perspectiva revela a história pessoal inextrincável a
uma existência política. O desvelamento desta esfera pública limitadora e limitada a alguns se dá
a partir das “brechas nos costumes” de determinada comunidade e as janelas de Martín Gaite
tentam assegurar o exercício político de cada sujeito-leitor.
Ao aproximar o seu argumento de ambivalência narrativa de tempos e significados
disjuntivos na configuração da figura do povo à concepção de tempo e espaço na figura da
finitude da nação estabelecida por Kristeva
80
, Bhabha busca mostrar o processo simbólico em que
o imaginário social torna-se sujeito do discurso, retomando a questão da nação, em sua
redefinição necessária, como espaço de emergência de identificações feministas políticas e
psíquicas.
A imagem de nação destacada por Kristeva inscreve-se na instabilidade latente de saberes
culturais cujas lógicas racionalistas de nação canônica são elididas em sua sedimentação coesiva.
Na leitura de Kristeva as fronteiras da nação se bifurcam, pois apresentam uma temporalidade de
caráter de conformação, como identidade construída em determinada dimensão histórica e como
representação da perda da identidade no processo de aproximação cultural.
A partir disso, Bhabha
81
assevera a discussão que ora se estabelece no que concerne à
linguagem da coletividade e da coesão nacional. Relaciona-se, portanto, ao processo de escrita
ambivalente que consigna a narrativa do povo na concepção dupla do performativo e do
pedagógico.
A nação, vista por esse prisma, incorpora a percepção de suplementaridade da escrita da
mesma forma em que é atravessada por essa. Nesse espaço suplementar de significação cultural é
79
Idem. Ibidem.
80
Idem. Ibidem.
81
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Op. cit. nota 77.
50
que emergem os discursos excêntricos” da nação, pois, além do sentido de acréscimo, ou ainda
secundariedade em relação ao que deva ser considerado original, existe uma sugestão subjacente
de mudança ou de alteração.
A problematização presente na questão da suplementaridade instaura a indagação a
respeito das origens ou da localização, espacial e temporal, nas quais a narrativa da nação deve
ter o seu início marcado. A partir disso, o jogo de relações, nessa noção suplementar, configura-
se no tempo, termos e tradições que, por fim, estabelecem um caráter significativo a uma história
que se escreve entre condições incertas e passageiras.
É nesse sentido que aparece um discurso distinto da construção memorialista histórica,
como é possível perceber a partir do excerto a seguir:
O discurso da minoria situa o ato de emergência no entre-lugar antagonístico entre a
imagem e o signo, o cumulativo e o ajunto, a presença e a substituição. Ele contesta
genealogias de origem que levam a reivindicações de supremacia cultural e prioridade
histórica
82
.
A narrativa disjuntiva de nação desestabiliza as representações pedagógicas de plenitude
do referente absoluto, do mesmo modo que aduz a instabilidade de significados e valores
culturais encontrados no espaço liminar do discurso nacional.
Relativamente à questão do gênero, cabe discutir a inserção da mulher na conjugação
desta comunidade imaginada. Admitindo a arte como uma das formas estratégicas de
enfrentamento de governos arbitrários, Nelly Richard
83
busca a expressão de novos sentidos para
a reconstrução da vida em sociedade no Chile, após a ditadura de Pinochet.
A corrosão do discurso hegemônico dá-se a partir da intervenção estética no permanente
espaço agônico da escrita e da elaboração teórica, bem como na preservação da memória como
matéria de resistência e reflexão crítica.
82
BHABHA, Homi K. Op. cit. nota 77. p. 222.
83
RICHARD, Nelly. Intervenções críticas: arte, cultura, gênero e política. (Traduzido por Rômulo Monte Alto).
Belo Horizonte: UFMG, 2002. p. 128.
51
A escrita feminina, compreendida na concepção de Richard
84
, vincula-se muito mais a
uma feminização da escrita do que propriamente a um determinante de gênero. Dessa forma, toda
a escrita que aduz um excedente em relação à significação masculina e que, por conseguinte,
desestabiliza o discurso majoritário, pode ser aproximada desse traço transgressor e
contradominante de uma linguagem feminina.
No entanto, a relação entre transgressão e gênero é condicionada por uma dinâmica de
signos que busca corroer a homogeneidade simbólica das significações masculinas. Cumpre
destacar, portanto, que esse traço crítico e desestabilizador pode ser igualmente compartilhado
por autores masculinos.
É evidente, contudo, o fato de que, se o autor de determinado texto é homem, isso não
significa, necessariamente, que compartilhe das codificações atribuídas pela cultura oficial. Do
mesmo modo, “ser mulher” não é pressuposto para um exercício de leitura crítica do discurso
masculino hegemônico, uma vez que a transgressão encontra-se presente no descentramento da
identidade provocado pelas experimentações da linguagem frente a um discurso dominante.
Richard
85
destaca ainda que identidade e gêneros sexuais são produções atreladas a efeitos
de significação cujo discurso cultural de uma ideologia hegemônica foi naturalizando, através de
uma metafísica das substâncias”. Assim, o determinismo da relação “sexo”, no que concerne à
mulher, e “gênero”, referindo-se ao feminino, existe sob a perspectiva de valor “construída”, e
modelada, a partir de convenções rígidas e estabelecidas.
Torna-se necessária, então, uma ruptura com a substancialidade da noção de feminino,
para que a reflexão referente à literatura escrita por mulheres não designe um viés a priori, nem
coadune, de maneira arbitrária, a questão do gênero à problemática da identidade.
84
Idem. Ibidem.
85
RICHARD, Nelly. Intervenções críticas: arte, cultura, gênero e política. Op. cit. nota 83.
52
As teorias contemporâneas, de certa forma, consagraram as questões referentes ao
descentramento do eu, fragmentando-o e (re)discutindo o papel do sujeito unificado, portador de
uma identidade plena. De modo que se torna praticamente impossível pensar identidades
(femininas e masculinas) de maneira invariável, pois essas são cruzadas, como lembra Richard,
“por uma multiplicidade de forças heterogêneas que as mantêm em constante desequilíbrio”
86
.
Vale apontar a discordância entre os entendimentos de Richard e Showalter, , que a
segunda clamava por um discurso feminino independente do hegemônico patriarcal e a primeira o
como algo mais complexo, apartando a utopia de um discurso não contaminado pelo centro,
mas feito dos divergentes e múltiplos universos que habitamos, em que os discursos se fundem e
se suplementam.
É diante disto que pondera que, temendo a particularização de seus textos, muitas
escritoras mulheres, conforme argumenta Richard, preferem consignar diferenças significativas
voltadas à qualidade de seus escritos, isto é, à existência de boa ou literatura. Porém, essa
aparente neutralidade esconde um operativo de força cuja universalização converteu o masculino
em representação universal.
A partir daí, é possível perceber que as características revestindo a literatura de mulheres
obedecem ao imperativo da tradição da literatura, incluindo, portanto, a questão do cânone, bem
como aspectos da instituição literária. A produção feminina tende a escapar da omissão ou
particularização apenas quando resgata o legado tradicional paternalista, ou ainda, quando o
mercado editorial busca a exaltação da diferença, a fim de multiplicar, sem problematizar, os seus
produtos.
A escrita é, sem dúvida, o espaço em que pode haver a contestação simbólica e cultural
em confronto com as ideologias da ordem. A palavra, a subjetividade e a representação podem
servir como registros ou pontos de transgressão de unidades lingüísticas, que se escondem sob
configurações normativas e repressivas.
86
RICHARD, Nelly. Op. cit. nota 83. p. 138.
53
As múltiplas dissociações das categorias “mulher”, “sexo” e “gênero”, além de implicar
no descentramento da identidade, assumem uma posição de ruptura mediante o percurso teórico
das oposições binárias absolutas (masculino/feminino). Assim, “identidade” e “diferença”
incorporam subjetividades descontínuas que desestabilizam o referente “mulher”, desvelando a
falácia da perspectiva hegemônica que se quer a única e a verdadeira, como apontei em outro
momento.
No entanto, essa “crise do sujeito” ou a dispersão de um referente identitário encobre
parcialmente a seguinte aporia: como falar a respeito de um “nós”, como unidade de signo das
mulheres se essa categoria apresenta-se tão fragmentada quanto contraditória? Essas
problematizações são pertinentes no estudo de Richard
87
, a respeito das possíveis relações e
desafios teóricos suscitados a partir do exame do feminismo e da desconstrução. Percorrendo as
teorias descentradoras do inconsciente, como ruptura da identidade una e da utópica coincidência
do sujeito consigo mesmo, bem como valendo-se das filosofias da desconstrução, em que
categorias absolutas se abrem ao heterológico, a autora trabalha com a estratégia necessária de
multilocalização do sujeito e da crítica.
Essa mobilidade torna-se precípua uma vez que do dilema entre a crítica da representação
e a política do sujeito irrompe a teoria feminista. Isso parece claro posto que a afirmação política
da identidade feminina é asseverada, mas, ao mesmo tempo, negada, em função da desconstrução
crítica de uma representação que oculte as diferenças, como se o referente “mulher” fosse uma
construção estabelecida.
O caminho possível para um processo de compreensão desse dilema encontra-se em
articulações contingentes, como se percebe no excerto a seguir:
O feminismo sabe que não tem que escolher entre estes dois momentos, mas, pelo
contrário, no mais puro estilo desconstrutivo, recusar o binarismo de uma oposição entre
87
RICHARD, Nelly. Op. cit. nota 83.
54
o sim e o não, mantendo entre ambos uma “tensão ativa” (Derrida), que se resolve
sempre provisoriamente – em função de cada articulação de contexto
88
.
Efetivamente, a proposta desenvolvida pela autora reside na mobilidade da identificação
“mulher” tendo em vista continuamente locais de redefinição contextual que escapem da
totalização da identidade definida a priori. O caráter relacional, portanto, é engendrado a partir de
articulações contingentes que se aproximam de encadeamentos provisórios para atender a
conexões e/ou afinidades específicas.
Dessa forma, teoria, estética e política configuram distintos e, por vezes, controversos “eu
(s)” que, ao intercalar planos, impedem a ação de esquemas homogêneos de identidade. Para
Richard, a própria arte é um obstáculo para a dogmatização do feminino, se a cotejarmos com
o sociologismo singelo de comissões públicas que se referem, por exemplo, aos “direitos das
mulheres”.
Mais uma vez a compreensão da politização do conhecimento, promovida pelos estudos
da mulher e do gênero, tem de ser vinculada à pretensa universalidade e naturalização do discurso
universalizante masculino.
A consolidação do feminismo redunda, igualmente, na discussão de estratégias de
dimensões políticas, já que descentra o poder estatal e transfere decisões para o âmbito da
sociedade civil. Esse processo atua, em sua complexidade, como expressão também originada de
políticas de identidade nas relações necessárias com a psicanálise e com a história.
O debate feminista funda-se, portanto, no processo de disputa contra configurações
hegemônicas e, em sua condição processual, questiona suas próprias teses iniciais.
Inevitavelmente, as revisões passam pela naturalização das diferenças observadas entre as
distinções sexuais (homem/mulher) e a necessária representação do que poderia ser descrito
como representação do “feminino”, como reclamavam as primeiras críticas feministas.
88
Idem. Ibidem. p. 164.
55
Esse interstício entre determinação sexual e representação da identidade foi o caminho
primordial para a fuga do realismo coadunado ao sexo que ficcionalizou, dentro de correntes
textuais, a condição ou a experiência feminina. A complexidade de cenários e as diferentes
linguagens do discurso feminino é que, de certa forma, ampliam alternativas subjetivas, sociais e
políticas próprias para a desestabilização de realismos categoriais, bem como aduzem
possibilidades de deslocamentos de saberes, de teorias, de estéticas e, finalmente, de identidades.
A elaboração teórica também aparece como uma discussão pertinente no debate político
feminista. A teoria, de certa forma, afigura-se como a tradução perfeita de um discurso de
autoridade que corrobora para a ordem conceitual da razão. De outro modo, equivale a dizer que
a conceitualização discursiva carrega o traço masculino da supremacia, deslizando para o
domínio da representação sobre a experiência.
Entendendo o sistema de representações como intermediário de processos integrados a
práticas culturais, é cito dizer que os signos “homem” e “mulher” como configurações
discursivas, como bem assevera Richard
89
, se inscrevem sobre a anatomia corpórea, fixando-se,
assim, como realidades naturais. Por essa razão, a relevância da linguagem, bem como o seu
entendimento como produção dentro de um sistema cultural, faz-se necessária para o
desvelamento de falsas essências, coordenadas pela convencionalidade sígnica.
Por outro lado, o trabalho teórico da crítica feminista pode representar também o corte
epistemológico necessário para a articulação em torno de uma crítica cultural, teorias políticas e
sociais, bem como relações com a psicanálise, a filosofia e a própria literatura. Logo, a teoria não
consignaria a superioridade de uma lógica representativa em relação a uma experiência feminina
historicamente subordinada. Em vez disso, a teoria habilitaria, com recursos heurísticos próprios,
uma produção de conhecimento voltada à emulação intelectual em paridade de condições.
Admitindo-se a procedência da desconfiança em relação à teoria, mas considerando-se a
necessidade de um exame consciente acerca do caráter social da realidade, acredita-se, portanto,
89
RICHARD, Nelly. Op. cit. nota 83.
56
que a omissão ou passividade frente a elementos teóricos se configuraria numa preservação de
mecanismos ideológicos e conceituais. A elaboração teórica permite, igualmente, a abertura de
um espaço de crítica e contestação aos códigos dominantes, evoluindo para a desestabilização de
ordenações conceituais estabelecidas. Neste sentido se compreende a argumentação de que as
categorias “homem” e “mulher” são construções lingüísticas e que as disjunções dos significantes
são aspectos necessários para uma perspectiva de caráter cultural e literário.
A teoria feminista assume, sobretudo, uma concepção de descentramento, a fim de
desorganizar as oposições binárias, de cunho substancialista, bem como interrogar os
mecanismos da ordem hegemônica masculina. Essa perspectiva do feminino é que explora as
diferenças, ampliando-as ao nível das combinações plurais e, por vezes, contraditórias.
A abertura à multiplicidade combinatória dessas diferenças é que insere o feminismo
numa noção de representação contingente, num espaço em que se aliam, por fim, a experiência
cotidiana, da vida social e o discurso, reflexão especulativa, conforme salientou, com
propriedade, Richard
90
. Neste sentido, configura-se o propósito deste trabalho, pois o discurso
ficcional de Martín Gaite desestabiliza o discurso da ordem, propondo uma alternativa a ele, e o
faz em um período histórico marcante para o que viria a ser a nação “democrática” espanhola,
envolvendo as relações sociais empíricas e culturais em sua representação.
90
RICHARD, Nelly. Op. cit. nota 83.
57
O discurso da ordem franquista
58
2.1 A narrativa da história
O processo ditatorial na Espanha é um processo que começa a se engendrar na (também
desastrosa) II República Espanhola. Sob o comando de Manuel Azaña, a República Espanhola
tentou afastar a Igreja do poder e obter o controle total das forças militares a fim de barrar
qualquer tentativa de golpe de Estado.
A constituição proclamada por Azaña não apenas eliminava as regalias aos eclesiásticos,
mas sancionava leis contrárias ao tradicionalismo religioso, como a legalização do divórcio, o
ensino laico, a liberdade de crença bem como a Ley agraria, que expropriava extensões de terra
dos grandes terratenientes. A República se posicionava de modo a trazer para si o poder político
unitarista conferido à Igreja. O apoio popular é tamanho que igrejas e mosteiros são incendiados
na capital
91
.
Passada a primeira tentativa frustrada de golpe que levou ao encarceramento perpétuo o
General José Sansurjo um novo confronto atingiu o governo de Azaña. Forças anarquistas se
levantaram em Cádiz e foram bombardeadas e fuziladas pelas armas governistas. A medida nada
popular fez com que Azaña perdesse seus aliados, chegando ao ponto de sua renúncia em 1933.
Com o corte de seus privilégios, as grandes instâncias de poder, Igreja e burguesia se
aliam, contrário ao que suas relações historicamente vinham apontando
91
THOMAS, Hugh. A guerra civil espanhola.vol. I. (Traduzido por James Amado) Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira. 1964.
59
El pacto de la Iglesia española con la burguesía va a ser duradero y sólo comenzará a
resquebrajarse en el ocaso de la era de Franco. Será entonces cuando la institución
eclesiástica intente corregir su trayectoria anterior, alentando la creación de estructuras
opuestas a la discriminación clasista. La Iglesia, que, consumado el triunfo de la
burguesía, se acercará y adaptará a la propiedad individual, esa misma, años más tarde,
no dudará en afirmar la convergencia existente entre determinadas metas del socialismo
y el apremio ético de la vida cristiana
92
.
Este pacto entre burguesia e Igreja foi consagrado por sua vitória nas eleições municipais
de 1933, quando, sob a sigla CEDA (Confederación Española de Derechas Autônomas), dão
direito de voto às mulheres. Por sua vez, o partido comunista espanhol era de pouca expressão,
ainda que alguns de seus componentes tivessem voltado ao país na II República. É neste mesmo
ano que Primo de Rivera funda a Falange española e se une com a JONS (Junta Ofensiva
Nacional Sindicalista).
Com o apoio das forças direitistas, Gil Robles torna- se chefe de Governo em 1934.
Porém, a insatisfação popular se manifesta através de movimentos como a greve dos
trabalhadores rurais apoiados pelos partidos socialistas, que promovem vários levantes na
chamada Revolución de Octubre. Em 1935 é empossado Ministro da Guerra e proíbe a
organização operária e a imprensa “socialista”. Neste mesmo processo, o General Francisco
Franco é encarregado Chefe Maior do Estado.
O retrato da Espanha nas primeiras décadas do século XX é de constante e irreparável
conflito entre as tendências, que separavam o mundo, que então se convencionou chamar de
comunismo, fascismo e democracia. A desigualdade social demarca também o desequilíbrio entre
o desenvolvimento do campo e da indústria.
A exemplo de Portugal, a Espanha se mantivera neutra na II Guerra Mundial, posição que
não a eximiu de receber os amargos reflexos do conflito no massacrado país. Tal guerra é
herdeira de uma séria crise político-social e econômica que percorreu a Espanha no século XX.
Um de seus graves problemas, como ressalta Vilar (1996), foi o do setor agrário que tenta ser
92
CORTÁZAR, F García de; VESGA, J.M. González. Breve historia de España. Madri: Alianza, 2003. p. 537.
60
resolvido com o então governo democrático espanhol, que, em 1931, começa a pôr em prática sua
insuficiente política de reforma agrária, que não contenta ao trabalhador do campo e tão
fortalece a direita conservadora no Parlamento Espanhol. Impulsionado pela revolução
bolchevista, o trabalhador rural entra em choque (1932) com a Guarda Civil. Tal conflito resulta
em várias mortes, na ruptura entre o presidente (Aza) com as camadas populares e na mal
sucedida proclamação do “Estado Catalán”, em seis de dezembro de 1934.
Dentre as diferenças surgidas entre as comunidades autônomas (um dos motivos do
eclosão da Guerra Civil) é importante mencionar o controle da sociedade castelhana católica
(desde a Idade Média, centro político espanhol) sobre sua classe operária, formando um sindicato
ideologicamente constituído pelo anti-socialismo e pelo nacionalismo cristão.
Observa-se a formação de um suposto contra-discurso da ordem erguido justamente nos
pressupostos constituintes dessa ordem, ou seja, o chamado corporativismo salazarista aliado aos
“sindicatos verticais”
93
de Franco, que encontram partidários carlistas
94
em Navarra.
O descontentamento era geral na classe trabalhadora. A jornada de trabalho foi novamente
elevada para onze horas diárias, o desemprego e as pessoas perseguidas e fuziladas alcançavam
números extraordinários. Assim, são proclamadas as eleições de 1936, cujo poder de força seria
medido. Diante das prévias eleitorais, a direita forma a chamada Frente Nacional, e a esquerda a
Frente Popular, uns procurando assegurar a onda fascista que cercava o país e outros tentando
freá-la. Para a surpresa dos grupos tradicionalistas, a esquerda alcança maioria nas Cortes.
Diante disso, Azaña volta ao poder como Chefe de Estado e concede anistia aos presos
políticos, recupera a abandonada reforma agrária, obrigando os donos de terras a readmitir os
trabalhadores grevistas e devolve às mãos do governo a educação. Parte da direita, tentando
93
VILAR, Pierre. La guerra civil española. Barcelona, 1996. p. 16.
94
Com a morte de Fernando VII (cujo reinado se estendeu de 1808 a1833) a coroa espanhola passa a ser disputada
por sua filha, Isabel II, apoiada pelos liberais e por seu irmão, Don Carlos María Isidoro. Assim se inicia o
“carlismo”, absolutistas e católicos fundamentalistas de razão anti-liberal e de costumes guerreiros que se opõem aos
liberais frente à Lei Sálica, revogada por Fernando VII e em vigor desde o Renascimento, que proibia a uma mulher
suceder ao Trono Espanhol.
61
reaver o poder governamental, opta pela luta armada como solução para reavê-lo e, por outra
parte, os trabalhadores organizados se desentendem com o governo e promovem grandes greves.
O ainda presidente Alcalá Zamorra é deposto de seu cargo já que, segundo a Constituição
vigente, ele estava impossibilitado de exercê-lo, pois havia destituído as cortes por duas vezes.
Quando assume a presidência do país, em maio de 1936, a imagem de Azaña frente à
população já havia sido demasiado massacrada pela direita. A crise política ganha mais um
agravo com a posse do novo Chefe de Governo, Casares Quiroga, que, em sua posse, desagrada a
todos ao posicionar-se contra fascistas e contra sindicatos. O desentendimento não era visto
somente no campo civil; os militares não se alinhavam a uma mesma ordem de pensamento.
Prova disso é a carta de desagrado que escreve o general Franco Sotelo, reclamando ao Chefe de
Estado sobre a situação de privação dos militares de direita e o alertando sobre um possível golpe
de Estado.
É desse modo que o assassinato de um membro das Cortes precipita a já esperada guerra
civil. Um levante militar em Marrocos, comandado por Francisco Franco, eclode em uma reação
em vários pontos do país em cujas regiões o governo republicano perde o poder.
Anos depois, Franco analisaria a II República Espanhola (1931-1936) da seguinte forma
La República compendiaba en sí todas las alteraciones, revoluciones, anarquías y
desenfrenos de la etapa que le precedió. (...) Si la democracia inorgánica de los partidos
políticos puede constituir para otros pueblos un sistema, si no de felicidad, al menos
llevadero, ya se vio por dos veces en nuestra historia lo que la República representó para
nuestra patria
95
.
Com a intenção de fortalecer o governo de Azaña, se formou um gabinete de coalizão
liderado por Giral, que depois é sucedido por Caballero; quando acreditavam estar fortalecidos, a
junta de Defensa Nacional, patrocinada pela Alemanha e Itália, nomeou Franco Chefe de
Governo e comandante das Forças Armadas. Em contrapartida, o governo republicano, apoiado
pelas brigadas internacionales, cria uma milícia popular.
95
FRANCO, Francisco. Discursos y mensajes del Jefe de Estado (1964-1967). Madri: DGCPE, 1968. p.87-88.
62
A pena de morte é aprovada na nova ordem espanhola e passa a ser prática comum,
muitas vezes sem um julgamento prévio. Quando feitos, os julgamentos eram emergenciais e os
generais encarregados disso chegavam a assinar vinte sentenças diárias.
Começa a formar-se, assim, a nova Espanha franquista. Em uma recepção a um
conselheiro alemão, o generalíssimo manifesta sua identificação com o pensamento nacionalista
do país homenageado e seu entendimento de que a monarquia não se encaixava aos novos rumos
da nação espanhola. Ainda em outubro de 1936, com a ajuda de seus aliados, Franco tornou-se o
único a governar seu país. Tal situação só muda com a morte do General, em 1975
Nuestros descendientes comprobarán que la nueva Monarquía española ha sido
instaurada en virtud de dos votaciones populares reiteradas en el plazo de veinte anõs.
(...) Bien podemos decir que la instauración de nuestra Monarquía cuenta con un
respaldo popular prácticamente absoluto y desde luego muy superior al que tuvo en 1700
el Rey Felipe V, en cuya entronización jugaron mucho más las maniobras políticas de
potencias extranjeras que la propia voluntad del pueblo español
96
.
Porém, as forças republicanas, com a ajuda da então União Soviética, conseguem
salvaguardar Madrid das forças franquistas. Após rias batalhas sucessivas, é com a famosa
batalla del ebro que o exército de Franco consegue que a capital seja cercada, e as forças
republicanas sejam praticamente vencidas.
O novo Estado Nacional é criado então com nova visão política. As terras desapropriadas
pela Ley agraria são reintegradas aos terratenientes, a legislação, agora em harmonia com a
Igreja, abole a lei do divórcio, bem como desautoriza a luta de classes (em sua organização
sindical), e os partidos políticos. sem saber como suportar o avanço franquista, Madri se rende
às forças nacionalistas, em 29 de março de 1939, e, em 1º de abril do mesmo ano, Franco declara
o fim da Guerra Civil Espanhola.
96
FRANCO, Francisco. Discursos y mensajes del Jefe del Estado: 1968-1970. Madri: Minsiterio de Información y
Turismo, 1971. p. 109.
63
Foi desse modo que o governo do General Francisco Bahamonde Franco se institui com a
Guerra Civil Espanhola (1936-39), que o precedeu e com a qual se tinha o intento de dar fim ao
Estado democrático que se estava instaurando desde 1931. A estratégia era que tal empresa fosse
levada a cabo em três dias e, no entanto, estendeu-se por três anos.
Para Cortázar e Vesga
97
a certeza de países, como Inglaterra e França, de que seu poder
não seria abalado com a ascensão de Hitler e Mussolini, deixou que Espanha fosse entregue à
própria sorte, tornando o que poderia ser mais um levante remanescente do século anterior, em
uma sangrenta guerra que levou o país à destruição
Como fenómeno social y político la guerra española iría mucho más allá de las propias y
graves consecuencias bélicas. Suscitó los recursos y la ayuda personal de numerosos
voluntarios, socialistas, comunistas, anarquistas, liberales, progressistas o fascistas del
mundo entero. Puso al descubierto las ambiciones expansionistas de Hitler y Mussolini y
su inequívoca decisión de controlar Europa. Y serviría para ridicularizar y bloquear la
capacidad política de Inglaterra o Francia
98
.
Como apontam os autores, a guerra não se acaba com um simples decreto, pois o país
tardará em reabilitar-se. Sem os milhares de espanhóis mortos ou exilados, Espanha perderá
grande parte de sua intelectualidade, o que auxiliará a tarefa franquista de moldar o “novo
espanhol”, de acordo com os novos padrões da ordem. O pensamento de sustentação da ditadura,
que terminaria tão só em 1975, começa a compor-se.
A década de 1940 não supera a crise provocada pelos anos de guerra. O governo espanhol
não consegue recuperar-se dos altos empréstimos obtidos nos anos anteriores, situação que é
agravada pela alta contingência de militares dependentes da folha estatal. As cidades são
assoladas por doenças ocasionadas pelas más condições do serviço de saneamento e higiene.
Gerado pelo desemprego e pela crise de modo geral, o poder de compra do espanhol cai
vertiginosamente.
97
CORTÁZAR, VESGA. Op. cit. nota 94.
98
Idem. Ibidem. p. 576-577.
64
Porém, a crise econômica favoreceu a muitos. Proprietários de terras, industriais e
financistas, bem como militares e eclesiásticos, formavam a base de apoio do regime, que não
suportaria sozinho o grande embargo internacional. Aliado a isso, a idéia de nacionalismo, que dá
ao povo espanhol asegurança” de um regime pautado nos valores da pátria e da família,
corroborou para fortalecer o franquismo.
O regime franquista impõe a verticalização da sociedade, destituindo a heterogeneidade
característica de qualquer povo, mas acentuadamente marcada naquele país que hoje tem cinco
idiomas oficiais, unindo trabalhadores em um mesmo sindicato “oficial”, coibindo manifestações
regionais e banindo o estrangeiro, ou seja, o que não se adequasse a esta configuração, que
passaria a ser chamada nação espanhola. O combate às forças liberais e socialistas também se
pautou nessa razão, que eram vistos pejorativamente como estrangeiros e, portanto, inimigos
da pátria. Estas idéias serão diacronicamente difundidas pelo Movimento Nacionalista, inclusive
em uma fase do regime em que a “abertura” começava a vislumbrar-se
(...) quiero reiterar a mis compatriotas la absoluta necesidad de que nos dirijamos hacia
el año que comienza con un espíritu de unidad, de c
65
proferido no final do ano de 1968, Franco admite a influência da crise internacional sobre a
Espanha.
La vida actual hace inevitable las influencias entre unos y otros países y las dimensiones
internacionales de determinados problemas; pero podéis estar seguros que desde la
experiencia de tantos años juntos contemplamos todos estos problemas con conciencia
de su existencia, pero con fe en que podremos superarlos, y superarlos ventajosamente,
mientras nuestra decisión política como pueblo sea la misma que hasta ahora hemos
tenido
101
.
Porém, como ressaltado, medidas tardiamente tomadas para apresentar a
operacionalidade e atualização do regime, não foram bem sucedidas. Assim o é quando, em 1969,
Franco delega ao Príncipe Juan Carlos a sucessão do comando do país, desconhecendo a visão
política democrática do monarca
102
.
A razão católica passa a incorporar-se ao regime franquista, como apontamos
anteriormente, a partir da constituição do poder ditatorial. Mediante este apoio, a Igreja do pós-
guerra viu seus seminários abarrotarem-se de jovens comovidos pelos horrores da guerra, que
promovera um verdadeiro fratricídio nos anos anteriores. A Espanha será o país da Europa com o
maior contingente de aspirantes que seguirão o ideal do nacionalcatolicismo, que se esvairão da
Instituição a partir de 1968, surpreendidos pela abertura do processo de democratização. Em
entrevista ao diretor do jornal “Arriba(Madri, 1 de abril de 1969), quando questionado acerca
do conflito geracional, da “crisis de obediencia”
103
,responde
- Siempre han existido conflictos generacionales, si bien los de esta hora adquieren
mayor extensión y resonancia por surgir en una sociedad de masas y en una etapa de
desarrollo de intercomunicaciones que generalizan los problemas e inquietudes. Por ello
las causas de una situación prácticamente múltiples: la materialización del sentido de la
vida, el fracaso e inoperancia de los sistemas políticos, la inquietud general por el
progreso y desarrollo que se oponen a la consolidación social de los jóvenes, el
perfeccionamiento de las tácticas de subversión con la profesionalización de los
agitadores, la falta de fe y, por consiguiente, de ejemplaridad en muchos de los que
tienen responsabilidad de dirección, son destacables, entre otras muchas
104
.
101
FRANCO, Francisco. Op. cit. nota 98. p. 57.
102
CORTÁZAR; VESGA. Op. cit. nota 94.
103
FRANCO, Francisco. Op. cit. nota 98. p. 86.
104
Idem. Ibidem. p. 73-74.
66
A política econômica do regime se mostrou intervencionista à medida que controlava o
fluxo de importações e estimulava o setor industrial, apoiando-se nas medidas aplicadas no
passado histórico espanhol e promulgadas pelo fascismo de Mussolini. Na verdade, tal posição
vem ao encontro do caráter nacionalista da nova configuração espanhola. Ainda que a extremada
burocracia tenha gerado o aumento da corrupção nos setores estatais ligados à indústria, esta
esfera teve grande desenvolvimento a partir deste período.
A questão agrária era mais complicada, já que nela se localizou grande parte dos conflitos
anteriores à vitória franquista. Com a esperada revogação da Ley agraria apregoada pelos
republicanos, o problema dos trabalhadores agrava-se ainda mais frente à escassez de incentivo.
Tão na década de 1950, o setor irá ensaiar certa recuperação, mas era evidente o desinteresse
do governo, que favoreceu o acúmulo de renda aos grandes empresários do setor industrial. O
descaso com o trabalhador da indústria também se manifestava, e foi justamente esta classe que
se ergueu em uma posição antifranquista, anunciando em grandes movimentos grevistas, a
inoperância do regime e o mascaramento da homogeneidade da razão espanhola.
El sistema mientras funcionó trajo grandes beneficios a los principales implicados: la
banca y la grande industria junto a los merodeadores del contrabando y la corrupción
administrativa. Fue un período floreciente para el aventurerismo social, la venalidad y la
degradación amplia de las condiciones humanas de supervivencia
105
.
Com o fim da II Guerra Mundial (1939-1945), o poder se configurará de outro modo na
esfera mundial, agora sob o domínio das forças liberais do capitalismo estado-unidense, que
impulsionarão a transformação de toda a ordem da economia global. O empresariado espanhol
rogará por reformas no então sistema de autarquias e intervencionismo do regime. Com a derrota
das forças aliadas de Franco, o general tentará recusar o resgate financeiro, oferecido pelo país
norte-americano e, quando se decidirá por aceitá-lo, os países europeus de maior relação com a
Espanha estarão em plena recuperação econômica e ensaiando os primeiros acordos de um
mercado financeiro comum, em 1957.
105
CORTÁZAR; VESGA. Op.cit. nota 94. p. 602.
67
Em 1951, se pode falar em certa abertura do regime, com mudanças ministeriais na área
financeira. Os salários continuam sendo controlados, mas o acúmulo de horas extras necessárias,
frente ao crescimento industrial, se soma à renda do operariado. Com o aumento da colheita no
ano de 1952, a opinião geral era a de normalização do cotidiano do país. Porém, a rotina de
contrabando seguiu seu curso a 1959, com os primeiros movimentos do regime rumo à
liberação do comércio internacional
106
. As mudanças ministeriais no início da década, e a entrada
da Espanha na ONU, anunciaram novos tempos. Universitários tomados pelas idéias comunistas,
assim como a diminuição do fervor católico da sociedade, vêm denunciar a fragilidade do regime,
que dominava o país desde o final da década de 1930.
Apesar do apoio à indústria e do abandono campestre, a Espanha, no ano de 1960, tinha
quase 40% de sua população dependente da agricultura ou da pesca, contra 32% dependente da
indústria. Eram os produtos rurais que garantiam os mais altos índices da exportação do país. O
crescimento deste meio foi bastante significativo, também em relação à pecuária, pois a melhora
das condições alimentícias promove a qualidade dos animais para o abate. No entanto, a falta de
apoio governamental não permite que haja um pleno desenvolvimento do setor.
Este não é o caso do turismo. Passada a II Guerra e o restabelecimento das nações
européias, este setor irá desenvolver-se muito e assim o é na Espanha, que se aproveita de sua
característica mediterrânea para atrair visitantes. É importante lembrar que isso também se deve
aos acordos firmados por Franco com os EUA e com o fim do embargo feito ao país, que
poderá unir-se à ONU em 1955.
Aproveitando-se da Guerra Fria, Franco se auto-intitula o defensor do mundo contra as
forças sociocomunistas. O estabelecimento e a manutenção do regime eram feitos a duras penas.
Continuavam as perseguições aos elementos contrários a esta ordem, porém, exigindo cada vez
maior esforço por parte das chamadas brigadas políticosociales
107
, que cegamente lutavam contra
os comunistas, de acordo com seu entendimento arbitrário do termo.
106
CORTÁZAR; VESGA. Op.cit. nota 94.
107
Idem. Ibidem. p. 611.
68
A crise era evidente. A Igreja, grande aliada franquista, abre-se a um entendimento mais
amplo da aceitação, ou não, do regime, com o papado de João XXIII e, desse modo, volta-se aos
movimentos populares. Essa situação de desacordo com o regime se torna insustentavelmente
contraditória quando, em 1969, os clérigos são considerados opositores à tirania do general. Uma
prisão é construída, neste mesmo ano, na cidade de Zamorra, para encarcerar os religiosos
“esquerdistas”.
Os estudantes universitários são incansáveis na luta contra a ordem de Franco, e
arrebatam inúmeros seguidores nos diversos protestos contra o regime. O discurso do General
parece alienar-se do discurso oposicionista, levando a cabo, desse modo, a unicidade de uma
Espanha supostamente liberta pelo Movimento Nacionalista. Observemos as palavras do General
em um pronunciamento de 15 de outubro de 1969
(...) os agradezco (...) a todos los esfuerzos, lealtad y espíritu de servicio que ponéis en la
labor. Yo guardo gran gratitud a la juventud. Se puede decir que la juventud me hizo a
mí, porque la juventud, combatiendo en los campos de batalla, he recibido con
generosidad su impulso y apoyo. (...) Considero que es la firme esperanza de España la
continuidad de esta obra, la disciplina y, sobre todo, que sean auténticos, que cuesta
trabajo algunas veces, pero que es una gloria
108
.
O Partido Nacionalista Basco se mobiliza a fim de garantir a unidade regional e integral,
em sua razão democrática, as sementes do incipiente grupo terrorista ETA, que se confirmará
como o maior movimento de oposição formado nos anos de governo do general.
Más allá de su protagonismo en el enconamiento de la crisis política de los postreros
años de la dictadura y en la desestabilización de la monarquía parlamentaria, hay que ver
en ETA la raíz de sustanciales transformaciones en el interior de la sociedad vasca. En el
carnaval trágico del País Vasco los eterras consiguieron vincular la conciencia vasca, el
ser vasco, al sentimiento antirrepresivo y al rechazo a las fuerzas de orden público de tal
modo que la comunidad nacionalista aceptó con facilidad, como señales de identidad
diferenciadores, la interiorización del hecho represivo y la repulsa a los agentes de la
represión
109
.
108
FRANCO, Francisco. Op. cit. nota 98. p. 101.
109
CORTÁZAR; VESGA. Op. cit. nota 94. p.614.
69
O País Basco gozará de uma situação econômica de pleno desenvolvimento na década de
1960, o que levou muitos espanhóis a migrarem para esta região. Com o fortalecimento do
partido, começa também sua cisão: seu caráter nacionalista de rechaço ao estrangeiro ia de
encontro às idéias socialistas. A partir dos desacordos desencadeados nesse processo, o Partido
Nacionalista Vasco se desintegra de modo a se tornar um grupo radical terrorista, que invadiria a
segunda metade do século até o presente com inúmeros atentados em nome da causa euskera.
O apoio dos EUA não era suficiente para frear a contenda da oposição. Em 1962 surge o
TOP, Tribunal de Orden Público, que tinha por objetivo o eficiente julgamento de operários,
intelectuais e todas as demais classes contrárias ao regime. No entanto, tal tribunal fez com que a
oposição ganhasse a simpatia popular, frente às barbáries praticadas em nome da ordem. Vários
integrantes do ETA são levados a julgamento em 1973 e, com a divulgação de sua causa, mais
uma vez a imagem da oposição se fortalece, em detrimento da governista. Neste mesmo ano o
grupo vasco assassina o vice-presidente espanhol, que se configurava como o possível sucessor
do general. Este processo desencadeia a derrocada da era franquista. A saúde do caudilho se
debilita, assim como a de seu governo, que tem sua morte em 1975.
Com a retomada da monarquia do rei Juan Carlos, a Espanha se abre finalmente a um
processo de democratização que, para o grande General, seria uma fase de desdobramento do
Movimento
La permanencia inalterable de los Principios de Movimiento, la solidez del sistema
institucional de Estado y la designación y juramento prestado por el Príncipe de España,
de cuya lealtad y amor a la patria ha dado sobradas pruebas, son firme garantía de la
continuidad de nuestra obra
110
70
constatação de que, com a eliminação das regras impostas pelo regime, outros condicionantes se
afigurariam na cena cultural do país.
Se se percebe este período como transitório, este se contrastaria à idéia de ruptura.
Segundo Moleón, na esfera política, esta mesma polêmica se criou, optando-se por um caminho
de transição, de evolução rumo à “plena” democracia com alguns objetivos de ruptura.
Fixar o ponto de partida desta evolução e crê-la como um processo ininterrupto de
ascensão democrática é inoperante, seja na esfera política ou cultural, que os quadros, que se
afiguram, começam a ser engendrados ainda na era franquista. Isso se deve à própria gênese do
Movimento Nacionalista que propõe uma “novaordem baseada na preservação dos modelos
mais tradicionais da história do país, contrária à proposta do próprio movimento, que se
promulgava como inovador e “futurista”
El resultado sería una suerte de “mística de la política” promulgada a través de un
discurso oficial necesitado de definir su programa como culminación de negaciones,
como síntesis (orgánica) de los “contrarios” históricos más que como proyecto
afirmativo y original fundado en una visión de futuro
112
.
Moleón ressalta a tríade basilar da razão franquista: espiritual, nacional e econômica, que
pode ser entendida através do pressuposto da unidade política, filosófica e cultural pretendida
pelo Movimento. A tal Espanha unitária se perpetuou na memória dos contrários ao regime como
imagem do cerceamento, morte e perseguição. Para o crítico, esta pretensa unidade reforçou a
divisão do país nas ditas dos Españas: a da ordem e a contrária a esta ordem.
Tal unitarismo se afigura, pois, como única via à imposição e manutenção deste regime de
cerceamento e, também, como seu ponto vulnerável. No que se refere à produção cultural, ainda
para Moleón, se a esfera blica era construída à imagem de Franco, à arte não restava
alternativa, senão representar esta realidade de modo distorcido, a exemplo do tremendismo de
Camilo José Cela.
112
MOLEÓN, José B. (org.). Op. cit. nota 113. p.7.
71
2.2 O pensamento franquista (e o pensamento na era franquista)
(...) palavras como “liberdade”, “igualdade”, “povo” (...) estão em um estado tão
deplorável que quase não dizem nada a ninguém. (...) Esforçamo-nos
continuamente em ressignificá-las, em dar-lhes uma
72
regime” nos discursos de Franco comprovam a apropriação de significantes desgastados pelo uso
arbitrário de seus significados. Palavras que remetem à liberdade, democracia e construção do
novo se chocam à essência do discurso “fascista” do General que encarna em si a preservação de
valores tradicionais e a manutenção de uma sociedade de controle.
Em um contexto de ditaduras, os discursos da ordem são ainda mais cerceadores. Na
Espanha da década de 1950, surge como proposta contra-hegemônica a produção não
ficcional, como teórico-crítica, de Carmen Martín Gaite, figura importante na afirmação do local
da mulher em um espaço dominado pelo extremismo da era franquista. Cabe lembrar o já
observado por Larrosa, em Inventar um povo que falta
115
, quando parte das teorias de Deleuze
para reclamar e pensar em um povo constituído pelo atravessamento do discurso literário, que
promove a invenção de um povo, de uma outra possibilidade de vida.
A era franquista consome grande parte da história contemporânea daquele país, de 1939 a
1975, e representa um retrocesso da evolução filosófico-cultural espanhola no século XX. Tal
período se pautou por um discurso reacionário, próprio do catolicismo hispânico e da inspiração
fascista emprestada de Mussolini. Como se apontava anteriormente, a razão franquista
caracterizou-se por uma visão totalitária, que se dividiu em católica, quando de sua implantação,
e tecnocrata em seu pleno desenvolvimento. Observemos o seguinte excerto do discurso
proferido por Francisco Franco em 9 de abril de 1964:
La trascendencia universal de nuestro Movimiento político está en ofrecer al mundo
soluciones cristianas, eficaces y justas que admitan parangón con ventaja con los
sistemas más justos avanzados en el orden social, pero conservando los bienes
espirituales y morales alcanzados a través de una civilización secular
116
Aqui se observa a base católica conservadora na qual se calcou o regime e sua inclinação
nacionalista, que expulsou do país aqueles cujos perfis não haviam sido previstos por este. Assim,
no final da década de 1930, vários artistas são exilados de Espanha e, nesse espaço-tempo
paralelo, fundam a literatura de exílio, na qual o ser da diáspora encontrará seu lugar de
115
LARROSA, Jorge. Op. cit. nota 115. p. 248-249.
116
FRANCO, Francisco. Discursos y mensajes del Jefe de Estado. Op. cit. nota 97. p.25.
73
enunciação. Distanciados do espaço-tempo da nação tomada pela ordem franquista, cria-se um
discurso paralelo, uma nação vivida e representada pela memória do ausente, do marginal que
recria a memória, a história da nação. Dessa mescla de olhares se forma a literatura espanhola da
era franquista, pelos exilados e pelos silenciados, que se entrelaça ao discurso pós-moderno, que
se institucionaliza com a democratização política. Ainda que não se possa falar em
homogeneidade em tal produção, temas que rememoram a Guerra Civil são reiterados e o vazio
com o distanciamento da pátria lhe é comum.
É sabido que a unicidade de pensamento do regime era falsa, que várias correntes
disputavam as mais altas instâncias de poder. No entanto, as forças opositoras irão romper-se
em meados da década de 1950
117
.
A literatura espanhola pós-guerra civil agoniza em seu caráter anedótico até que, na
década de 1950, se dá a superação desta prostração. Neste período, o embargo internacional
imposto pela ONU ao país tem seu fim e o regime franquista, declaradamente anticomunista,
recebe reconhecimento mundial.
No transcorrer da década, o país retoma seu cotidiano e a produção e a promoção culturais
voltam a receber fomento
118
. Ainda que modelos tradicionais tenham sido mantidos, é inegável a
renovação proposta pelo realismo social e pelo existencialismo, cujas características determinam
a literatura da década.
O grupo neo-realista se fundou no intento de aproximar arte e realidade. Esta geração, que
se uniu, principalmente, por laços de amizade e ideológicos, teve seu marco com El Jarama de
Rafael Ferlosio. Pode-se afirmar que, quase em sua totalidade, os neo-realistas passaram da
observação do social à do individual. Este é o processo que se dá na obra de Carmen Martín Gaite
(então casada com Ferlosio). A partir de Martín Gaite se inaugura a idade de ouro do conto na
literatura espanhola, já que tal gênero se adaptaria bem ao intento neo-realista e, futuramente, aos
117
DÍAZ, Conte. Pensamiento español en la era de Franco. Madri: Tecnos, 1983. p.12.
118
PÉREZ, Oscar Barrero. Historia de la literatura española contemporanea (1939-1990) S. L: Fundamentos
Mayor: s.d..p.99.
74
novos rumos que tomaria sua trajetória literária marcada pela interiorização da solidão e da
incomunicabilidade
119
.
A obra de Carmen Martín Gaite percorre todo o regime franquista e representa um
importante papel na construção de uma cultura espanhola que se pretende liberta do regime.
Assim, é de suma importância o trabalho criativo que sua geração manteve no período de
transição que encaminhou o país à redemocratização política (1968-1975). No entanto, Martín
Gaite esteve silenciada por um período de dez anos, o que a levou à ainda mais profunda reflexão
existencial, abandonando de certo modo sua preocupação social e declarando o ser humano como
incapaz de atingir a felicidade
120
.
O período pós-75 se caracteriza pela renovação cultural e pela busca da adaptação ao
novo cenário democrático. Tal fase pode ser vista também como de transição. Como salienta Paul
Ilie:
El concepto de transiciones es el principio preferido por las ciencias sociales cuando
explican los cambios efectuados durante los años que preceden la muerte de Franco
hasta la aparición del avanzado estado democrático en 1982
121
.
Ainda que de renovação, a crítica espanhola julga a literatura do período de
redemocratização vazia de sentido e sedenta pelo novo mercado
122
. Tal silêncio criativo é
75
Reafirmamos, desse modo, através da trajetória literária de Carmen Martín Gaite, o
comentário de Kristeva ao dizer que o pós-moderno permite aumentar o aspecto humano, o da
significação. Exemplo disso é a obra de Martín Gaite, que irrompe o século XX, com um discurso
que rompe com o do cânone hegemônico.
Os textos de Martín Gaite serviram de germe para mudanças no campo discursivo que se
deram na literatura feminina espanhola, ainda que acomodadas em um espaço restrito de
repressão das minorias e limitadas à resistência que a própria autora se impunha em não aceitar
sua condição de mulher como de diferente.
Na verdade, seu discurso rompe com a hegemonia imposta pelo franquismo, regime que
se filiou às idéias fascistas que abrangem uma postura deveras moralizadora. É o que aponta
Nichols em seu polêmico artigo sobre a narrativa escrita por mulheres.
El afán obsesivo del régimen por la unidad, o por lo que hoy llamaríamos lo falomórfico,
era hijo natural de la revaronil imaginería fascista, habido de la milenaria intolerancia de
la España católica hacia lo heterodoxo; este afán les cegó a la realidad plural de su tierra.
Las pretensiones de grandeza subrayan la identificación de esta unidad
124
.
Ainda neste artigo a ensaísta ressalta a visão da crítica espanhola em relação a esta
literatura que a em um montante homogêneo ou a ignora. O que se revela no discurso de
Martín Gaite se contrapõe ao unitarismo crítico, pois se constrói em um discurso que se
caracteriza por si, por sua ruptura e pela descoberta de um eu, também feminino. É a partir desses
entendimentos que vemos a escritura de Carmen Martín Gaite como um discurso que,
contrapondo-se ao imperialista totalizante, se constitui como construtor da identidade nacional,
caminho este adotado conforme a vertente latino-americana da crítica feminista, como aponta
Buarque de Hollanda
125
.
124
NICHOLS, Geraldine. Ni una, ni grande, ni liberada: la narrativa de mujer en la España democrática. In:
MOLEÓN, José B. Op. cit. nota 113. p. 197.
125
BUARQUE DE HOLLANDA, Heloísa. Op. cit. nota 50.
76
Diante dos graves feitos da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), que é seguida da
Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a literatura necessita de outros temas que não os da
chamada literatura bélica
126
. Assim, com a contribuição do social realismo, a literatura espanhola
do pós-guerra abre espaço a um novo contexto distinto do anedotismo da fase anterior,
estimulando uma narrativa de personagens urbanos individuais, que seria bastante explorada a
partir de então com o relato de “vidas parcialmente retratadas em sus momentos más
significativos”
127
.
Os anos que se convencionou chamar de “anos triunfais” pelos vencedores da Guerra
Civil Espanhola, que resultou no regime autoritário do General Francisco Bahamonde Franco,
são marcados pela total desolação do povo espanhol, que se depara com a miséria nos âmbitos
social, político e econômico.
Assim, a literatura se relacionará com a realidade ao refletir a situação vivida pela
sociedade espanhola do pós-guerra, da qual destaca os inúmeros sintomas do cotidiano de uma
coletividade marcada pela incerteza, pela opressão e pelo vazio. Passado este primeiro período,
essa proposta evolui com a própria evolução da leitura do cânone das teorias socialistas. É desse
modo que assistimos, entre outros, à superação desse realismo frente ao existencialismo, no qual
o individual ocupará a atenção antes dada ao coletivo, ao social.
As relações entre sujeitos, em uma sociedade estabelecida por uma ordem fixa, passa por
sua escritura e por sua ação política. Re-discutir as palavras-cliché, no dizer de Cortázar
128
, e
conjugar significantes e significados que aparecem na escritura normativa é viável à linguagem
126
PÉREZ, Oscar Barrero. Op. cit. nota 120. p. 23.
127
Idem. Ibidem. p. 149.
128
“Si algo sabemos los escritores es que las palabras pueden llegar a cansarse y a enfermarse, como se cansan y se
enferman los hombres o los caballos. Hay palabras que a fuerza de ser repetidas, y muchas veces mal empleadas,
terminan por agotarse, por perder poco a poco su vitalidad. En vez de brotar de las bocas o de la escritura como lo
que fueron alguna vez, flechas de la comunicación, pájaros del pensamiento y de la sensibilidad, las vemos o las
oímos caer corno piedras opacas, empezamos a no recibir de lleno su mensaje, o a percibir solamente una faceta de
su contenido, a sentirlas como monedas gastadas, a perderlas cada vez más como signos vivos y a servirnos de ellas
como pañuelos de bolsillo, como zapatos usados”. Cortázar proferiu tais palavras em Madri, no ano de 1981, em um
texto intitulado Las palabras, disponível em: http://lists.indymedia.org/pipermail/cmi-peru-impresos/2006-
June/0703-yo.html.
77
literária. O controle do regime de Franco deu-se em um discurso cuja regulamentação não
encontrou lugar no discurso ficcional de Martín Gaite, que promove questionamentos como: Se a
voz da sociedade, como um todo, é calada como se expressa a marginalizada voz feminina?
Como lembrar e como esquecer a humilhação de ser anulada pela história, por sua narrativa?
78
79
3.1 A contística de Martín Gaite
O conto é um gênero arrebatador, que toma o leitor, suspendendo-o em sua verticalidade
profunda. Os contos de Martín Gaite são assim: deixam-nos sem fôlego, pois são intervenções
críticas a outros universos, presentes em nós, e que, por vezes, desconhecemos. Dão espaço à voz
guardada no interior feminino, que esquece de falar ao pensamento, esquece de fazer parte de um
discurso individual formador do coletivo de uma nação erguida em um falso uníssono.
Em Hacia una poética de la ficción breve
129
, Clare Hanson aproxima a estrutura do conto
à do sonho, afastando-se da clássica relação entre conto e romance e propondo, a partir de teorias
lacanianas, que se o desejo está intrinsecamente ligado à linguagem, neste gênero literário o
escritor se utiliza deste jogo para alçar o desconhecido, “con su angustia y su rapto”
130
.
Este escape, sobremaneira observado nos contos de Martín Gaite, provocaria o interesse
no leitor em tentar preencher as ranhuras do texto com sua própria imaginação, assim
complementando a inter-relação defendida por Hanson, entre a fantasia e o desejo, para quem “la
fantasía se coloca en el punto donde convergen el deseo y la ausencia (...): al ingresar en la
fantasía tememos por lo (conocido) que debe morir y ser reconstruido a través de la fantasía
misma”
131
.
129
HANSON, Clare. Hacia una poética de la ficción breve. In: PACHECO, Carlos; LINARES, Luis Barrera. Del
cuento y sus alrededores: aproximaciones a una teoría del cuento. 2. ed. Caracas: Monte Avila, 1997. p. 269-279.
130
Idem. Ibidem. p. 273.
131
HANSON, Clare. Op. cit. nota 131. p. 274.
80
O sonho seria o ponto de transgressão à realidade, pois nele o que não é real se torna
possível. Esta característica pode ser igualmente atribuída ao conto, cuja estrutura (ordem, tempo,
espaço, personagens etc) permite serem narrados eventos da natureza do fantástico
132
, no qual o
espaço-tempo convencionado como real é raptado, dando lugar a um ambiente dominado por
outra ordem, por outros referenciais, nas quais nos permitiríamos expressar o que calamos no
plano do real.
Os procedimentos discursivos utilizados na contística de Martín Gaite se revelam
desconstrutores da ordem oficial imposta, que cala o que não está previsto em sua ótica. Pois
através de brechas (no plano espacial, as janelas, entre outros) as personagens e narradores
conseguem avistar o que não lhes é permitido. O que se mostra não é revelador pelo inusitado,
mas pelo inusitado de não ter sido observado. Das cinco décadas envolvidas pela figura de
Franco, quatro delas foram perpassadas pelo discurso ficcional de Carmen Martín Gaite, que
sofre as transformações da escritura da nação espanhola do período. Apreendemos seus contos
como constituintes da narrativa daquele período, suplementando, mostrando-se e explicitando a
nação da perspectiva do discurso aqui analisado. Diante disso, entendo seu discurso ficcional
como uma prática política que luta pela democratização, também de nero, pois ao representar
sujeitos conformes aos padrões tradicionais, denuncia sua angústia e o desejo de mudança
projetado em sonhos, em escapes.
Assim, falar a partir da questão do gênero na formação do discurso da nação espanhola,
implica pensar em campos outros que o estudo da literatura abrange, como os que conformam as
ciências sociais. Pensar a ficção e a formação deste discurso contestador é pensar no sujeito
social implicado e em suas relações com o meio, com os demais sujeitos, é observar este discurso
a partir de um viés teórico arraigado à Crítica Feminista.
um pacto de negociação simbólica que inclui a mulher no centro da sociedade como
cumpridora dos papéis destinados ao gênero feminino. Ela, porém, é isolada deste mesmo círculo
se não é cumpridora das determinações da ordem. Ao não serem incluídos no centro de
132
Idem. Ibidem.
81
discussões, os sujeitos femininos formam um “nós” agrupando-se, identificando-se e, sobretudo,
construindo discursos que não partem deste centro hegemônico. Criam assim esfera marginal que
se forma no patriarcalismo, mas que dele se desgarra por não lhe pertencer.
A sociedade espanhola do século XX, como pudemos observar em outro momento, foi
pautada pela catástrofe da tomada de poder do tradicionalismo ditatorial, destruidor do sonho
republicano. As vozes que compõem o discurso da contística de Martín Gaite tentam recobrar de
sentido o universo do sujeito, deslocado em seu próprio “lugar”. Pensar-se como outro seria, de
certo modo, reduzir o discurso que aqui analisamos, mas garantir-se como outro por não partilhar
dos mesmos ideais para uma nação e não representá-la a partir do ideal franquista,
operacionalizando esta negociação na narrativa da história em que aristocratas, militares e
burgueses inscreveram-se e representaram a totalidade da nação (formada a partir dessa dinâmica
cultural hegemônica).
Com o propósito de refazer o caminho de transformação da era franquista à
democratização, adentraremos na contística da escritora, especificamente pelos contos publicados
nas antologias Cuéntame
133
, que abrange um estudo sobre sua obra, e Cuentos completos
134
,
prefaciado pela autora em 1978.
Cuentos completos
135
é uma reunião de 17 de seus contos, a maior parte deles escrita nas
décadas de 1950 e 60. Conforme o prefácio, estes textos já anunciavam temas que seriam
recorrentes em sua obra posterior
Lo que más me ha llamado la atención es lo pronto que empezaron a aparecer en mis
tentativas literarias una serie de temas fundamentales, que en estos cuentos van casi
siempre combinados, a reserva de que predomine o no uno de ellos: el tema de la rutina,
el de la oposición entre pueblo y ciudad, el de las primeras decepciones infantiles, el de
la incomunicación, el del desacuerdo entre lo que se hace y lo que se sueña, el miedo a la
libertad
136
.
133
MARTÍN GAITE, Carmen. Cuéntame. Madri: Austral, 1999.
134
MARTÍN GAITE, Carmen. Cuentos completos. Madri: Alianza, 2002
135
Idem. Ibidem.
136
MARTÍN GAITE, Carmen. Cuentos completos. Op. cit. nota 136. p. 8.
82
Como comentado anteriormente, Martín Gaite compartilhava várias aspirações com a
geração neo-realista espanhola, e é a partir desse entendimento que começa a se aventurar na
prática da escrita por dito gênero, ensaiando” seu futuro de grande romancista. Os contos da
autora são escritos sob uma ótica muito particular, revelando a contradição entre o que se sonha e
o que se vive.
São as personagens femininas que irão conduzir a narrativa através de sua perspectiva
narrativa ou voz na narração, podendo esta antologia, segundo a autora, ter sido intitulada
Cuentos de mujeres.
Suelen ser mujeres desvalidas y resignadas las que presento, pocas veces personajes
agresivos, como trasunto literario que son de una época en que las reivindicaciones
feministas eran prácticamente inexistentes en nuestro país. Pero diré también que ese
malestar indefinible y profundo sufrido por las protagonistas de mis cuentos, ese echar
de menos un poco más de amor, creo que sigue vigente hoy día, a despecho de las
protestas emitidas por tantas mujeres emancipadas, que reniegan de una condición a la
que siguen atenidas y que las encarcela
137
.
Esta conformidade das personagens revela sua existência apartada de uma reflexão crítica
da história. Assim, a focalização da narrativa será posta nelas e revelará sua ação (em espaços
fechados, em tempos a-históricos) mecanizada e angustiante.
A disposição dos contos o é ordenada segundo uma ordem cronológica, mas temática,
distribuindo-se por temas que vão da questão rotineira à injustiça social. Assim sendo, esta
análise tampouco obedecerá à determinada ordem, respeitando, tão só, a formação de um
discurso que se opõe à ordem instituída.
Curiosamente, a primeira das narrativas a ser analisada trata da trajetória de um sujeito
masculino, podendo ser entendido como algo contraditório ao “rótulo” “cuentos de mujeres”, mas
não é. Os contos de mulheres são a perspetiva da mulher sobre o universo, especificamente, o
universo sob o domínio ditatorial. Se “são os olhares que colocamos sobre as coisas que criam os
137
Idem. Ibidem. p. 9.
83
problemas do mundo”
138
, como aponta Veiga-Neto, a personagem tenta cegar-se frente ao
universo. La trastienda de los ojos
139
é um conto breve de um só personagem, Francisco, e de sua
mãe, figura abreviada no final da narrativa. Tal conto não narra ações, Francisco não as tem. É
um jovem que encontra uma solução para si: colocar os olhos a salvo de modo que possa escapar
do universo exterior. Assim, fixando o olhar em algum ponto e com algumas interjeições, que lhe
sirvam de resposta às intervenções alheias, consegue isolar-se das vozes que brotam de vários
lugares, de outros sujeitos. Desse modo, seus sentidos são apreendidos pelo olhar a fim de poder
desviar seu foco do real, movendo sua câmara em direção ao nada.
La cuestión era lograr poner los ojos a salvo, encontrarles un agarradero. Francisco, por
fin, lo sabía. Él, que era un hombre de pocos recursos, confuso, inseguro, se enorgullecía
de haber alcanzado esta certeza por mismo, esta pequeña solución para innumerables
situaciones
140
.
Sua solução era o silêncio, não queria inter-relação, comunicação com o mundo senão
através do comando dos olhos, guardando em um lugar, no fundo dos olhos, a memória do que
apreendia. Ainda que o haja referências temporais ou espaciais, se revela evidente o momento
de repressão e clausura metonimicamente vivido pela personagem que, da janela de seu quarto,
avista o universo exterior e com ele não interage.
Vale lembrar que a ausência de diálogos não é substituída pela reflexão interior. A própria
estratégia da narrativa já indica a inoperância de Francisco como narrador, já que este desconhece
tanto os eventos interiores como os exteriores. O discurso do outro se mostra a ele com uma
niebla, ainda mais se determinado interlocutor perguntasse sua opinião acerca de qualquer tema.
Não consegue expressá-la, que os sons lhe são percebidos pelo olhar pelo qual tão deixa
abarcar a forma, e não os conteúdos da fala. Via-se como um náufrago, tentando isolar-se do
discurso do outro, temeroso pela possibilidade de não escapar das palavras à sua volta. E a partir
disso descobre que pode afastar seu olhar, pode pousá-lo em qualquer ponto a seu redor.
138
VEIGA-NETO, Alfredo. De geometrias, currículo e diferenças. In: ___. “Educação e sociedade”. São Paulo, vol.
23, n 79 (ago 2002). p. 163-186.
139
MARTÍN GAITE, Carmen. La trastienda de los ojos. In.: __. Op. cit. nota 136. p. 253-258.
140
Idem. Ibidem. p. 253.
84
Y oía las conversaciones desligado de ellas, desde otra altura, sin importarle el final ni el
designio que tuvieran distraído, arrullado por sus fragmentos. Sonreía un poco de cuando
en cuando para fingir que estaba en la trama. Era una sonrisa pálida y errabunda (…) y
desde ella podían soltar incluso tres o cuatro breves frases que a nada
comprometiesen
141
.
Em seu artigo Um outro olhar, Evgen Bavcar fala da cegueira de personagens
mitológicos, questionando o “saber olhar”. Ressalta, para tal, o embate entre Ulisses e o Ciclope
em que o herói sai vencedor pela maior abrangência de seu olhar e por saber usá-lo. Como
anuncia o filósofo, a visão monocular do Ciclope lhe garante um atributo intuitivo e elementar ao
mesmo tempo em que lhe reserva um olhar “inocente”, que um mundo paradisíaco. A grande
saída de Ulisses ao vencer o gigante é utilizar-se da fraqueza do oponente em não articular os
componentes de um signo. Como lembra o estudioso,
(...) o sacrifício do olhar do ciclope é necessário para pagar o privilégio de não
olhar sempre a mesma coisa, sem condições e sem esperança de também ver por
nós mesmos. O olhar monocular é o (...) da fatalidade que é, afinal de contas,
cega porque se refere a si mesma, se repetindo infinitamente como o fazem os
espelhos
142
.
Os espaços fechados da ficção representam o contexto daquele momento. A casa de
Francisco, vista de fora, apresentava, ao fundo, um espelho que refletia as luzes do exterior
recorrente a representação imagética do olho do gigante como um espelho que reflete a imagem
de quem o enfrenta), e assim o é nessa fala sem voz, nesse discurso que silencia, e então desvela,
por meio do olhar feito de “colheitas de silêncio”, olhar “que era todo lo que tenía, que valían fu60432( .71693(u)6.)7.00596(71443( )-)-388(i)0.44173.9969(u)6alormulue ooaa) aber 336.56424(t)-1.63761(i)0.96388(d)6.571568(o)6.571568(o)617.2784(“)1y.8429(42e.2814927)1.96262( )-.96262(i)03.71693(a)1.96262(r)-3.71693(o)6.56299( )-17.9717(d)-136299(e)1.96262( )-6.99717(t)-.0047(e)1.96262(n)-3.79969(o)6.571693(s)-1.63635(o)-” 30 714[(1)-14.0606(1)414.0227(2)439.999]TJ/R8 9.66798 Tf0.999435 0 0 1 117348 Td2716 6[(.)2.28275( )-37.9717( )-6.(7144324 Td70.28 Td[(p(j20.04 TLT*[(E)-A40559(s)-58.398(i)02.2438(e)1.931605(g)6.56424(é)13.71568(e)1.96438(e)19.83821(m)76.23798( )-.96388( )-48.1181(u)-d56424(e)1.96388( )-48.1178(p)-É.79501(m)7d56424(e)19.83821(m)7.56424(o)-3.71568( )-48.1181(e)-.441715(h)-3.71568(e)1.96388(i)058.398(i)03.71568(f)4.04195(o)-.96262(r)4.0432( )-.441715(a)1.96262(s)- 8.1169(v)-13.9969(m)7.0047( )-17.1169(t)-9.41715(e)1.96262( )-6.23672(a)1.96262(e)-8.6262(i)0.441715(o)-.0432( )-3.71693( )-418.169(o)-3.71693(l)0.441715(h)-13.1693(o)6.56299( )-17..169(o)-13.9969(u)6.571693(e)12.244.498(Td[( )-6.9.169(o)-1.63635(e)1.96262(u)6 8.1169(v)-3.6299(o)-3.71693( )-l441715(t)-9.83821(o)6a.2425( )-58.3968(u)-.56299(a)1.96262(r)4.0432(a)1.96262( )-48.1169(t)-1.6363538)-9.83821(l)0.28275( )-48.1169(o)-3.71693(a)1.96262(r)4.023672(a)12.2425( )-6.99767(q)6a.2425( )-58.3968(u)-2.2425(o)-3.71693(.)3.0047((v)-p.79956(4)4.04069(t)0e.3173(e)12.2425(n)-3.71693(s)-1.63635( )2.96262(o)-3.71443( )-17596(71443826 6.16 Td[(r)43.71631(e)1.96325( )-17.2095017-1.63698(c)1.96438(e)-3.71631(e)117.2095017-.96388(s)-1.63761(t)0.441715(i)-.96388(r)4.04195( )-17.209501)-3.71568(f)-.56424( )-17.2078(a)1.00596( )-3.71568(e)1n571568(o)6.5642437)-3.71568(f)4.28149( )-120.078(v)-A.87433( )-418209501)-p56424(e)1.96388( )-.04195( )-1.63761(o)-3.71568(f)43.71568(a)1.96388(o)-g56299(e)-8.3173( )-.0047( )-120.076(n)6.96262(l)0.441715(o)-á96262(s)-1.63635(s)-11.9635(i)0.441715(l)0.96262(a)1.96425( )-120.356(a)1.56299(ã)1.96262(o)-3.71693( )-120.09501)-1.63635(e)1.9261.748268Td[( )-120.076(e)1.441715(o)-3.6299(r)4.023672(a)1n56299(a)1.96262(r)4120.09501)-13.9969(e)1.96262( )-.56299(e)1.96262(r)43.71693(d)6.56299(o)-.96262(n)-3.71693(t)-9.83821(e)1.93173( )-17.209501a eerarar es el
85
nos lembra que estes olhos de argila são nosso suporte ao real, desvelando, assim, a visão de
Francisco: “(...) se às vezes somos forçados a observar o mundo de olhos fechados, é sobretudo
para conservar o caráter frágil dos sonhos que nos levam para os espelhos do invisível”
145
.
A dependência, a exemplo do herói trágico, que temos da luz limita nossa visão e o
período da cegueira imposta por Franco rouba as luzes de nossos olhos de argila. Porém, é a arte,
a literatura que irão dar luz a esta cegueira, guiando o sujeito em seu deslocamento e
reconhecimento espacial. O discurso do feminino, levado às margens pelo centro do poder
patriarcal, consegue, a partir desta perspectiva, vislumbrar as várias portas (e ventanas?) deste
labirinto, o da nação às cegas e assim o tecer da narrativa é feito às luzes do discurso ventanero.
Em sua análise da arte chilena no período ditatorial e pós-ditatorial, Nelly Richard
identifica os mesmos efeitos que se pode observar no conto em questão, também fruto de um
sistema de ordem repressora
O pólo vitimado aprende traumaticamente a disputar os sentidos com a fala oficial, até
conseguir rearticular as vozes dissidentes em microcircuitos alternativos que contestam o
formato regulamentar de uma significação única
146
.
A nostalgia do olhar de Francisco é o registro de um discurso abafado por uma ordem de
silenciamento promovida pelas redes de poder que se entrelaçam de modo a estabelecer e a
perpetuar o discurso cerceador, que cala o sujeito e o acomoda na razão autoritária. Ao “cidadão
comum” cabe a repetição do discurso oficial aos moldes da divisão de classes medieval, na qual à
nobreza cabia propagar o modelo da fé cristã ditada pelo clero.
As estratégias do discurso revelam a coerção do indivíduo que, embora deseje se
distanciar da circunstância, esta lhe impõe uma fala e uma razão: a da ordem. Pois, na razão da
mãe de Francisco, que mais almejaria um jovem senão um casamento heterossexual e a
aprovação em um concurso público?
145
BAVCAR, Evgen. Op. cit. nota 144. p. 22.
146
RICHARD, Nelly. Op. cit. nota 85. p.25.
86
Francisco é apresentado pela narradora como um homem “confuso, inseguro e de poucos
recursos” e, ao optar por se alienar de seu entorno, referenda as verdades do regime. A
problemática de Francisco está na carência de identificação com seu contexto que não o acolhe,
tampouco forma um ser capaz de reagir a este rechaço.
A introspecção de Francisco é entendida por sua mãe como conseqüência de sua completa
dedicação aos estudos (fato negado pela narradora), e pela paixão nutrida por Margarita. Quando
por primeira vez parece atender à fala de sua mãe, Francisco encara a possibilidade de amar a
Margarita, figura que sequer identificaria dentre as demais mulheres que freqüentam sua casa,
mas a quem poderia entregar o que resguardou na trastienda de seus olhos.
A narradora heterodigética empresta a Francisco mais que sua voz, ele decodifica em
signos o universo da personagem que é obnubilado a ela. Francisco parece compreender das
formas da fala do outro, mas seus significados não. Enquanto conversa com sua mãe, eleva o
olhar à lua e, como um eco de outro espaço-tempo, sua memória o remete ao recorrente sonho
com uma mulher que nada lhe diz e passa a gostar da idéia de que esta seja Margarita com quem,
quiçá, pudesse traçar rumos paralelos e lhe roga: “por favor, cuéntame alguna cosa”
147
. Desse
modo, entregando seu olhar e esta mulher, sua fala contida nos olhos ganharia som e sentido,
enroupando-se dos significantes e significados que preencheriam seu mundo interior. Aqui, ao
contrário das 1001 noites, é a vida do ouvinte que depende da narração, tentando experimentar
através de hipotéticas histórias uma saída (um encontro) para si (consigo) e encontrando, quiçá,
nestas narrativas o que Galeano entende por função da arte
148
.
Nas últimas palavras da narrativa, a personagem sai a passos largos de seu quarto, pela
primeira vez reagindo a algo. O deslocamento da casa da mãe, uma “casa tomada” pelo poder
147
MARTÍN GAITE, Carmen. La trastienda de los ojos. Op. cit. nota 141. p. 257.
148
Eduardo Galeano conta, em seu texto La función del arte, o seguinte episódio: o menino Diego não conhecia o
mar e foi levado pelo seu pai para conhecê-lo; quando avistou a imensidão do mar gaguejou, emudeceu-se e logo
clamou: “-Pai, me ajuda a olhar”. Assim, aponta a função da arte como condutora na descoberta do misterioso e
instigante mundo que habitamos.
87
onipresente de uma outra ordem, o remete a buscar um outro lugar ao qual verdadeiramente
pertença.
A obra de Carmen Martín Gaite percorre todo o regime franquista e representa um
importante papel na construção de uma cultura espanhola pretensamente liberta do regime, mas
parte dele, fatia silenciada que lutou para não ser totalmente absorvida, distanciando o olhar,
88
Encontramos novamente uma narradora heterodiegética cuja eleição reforça a idéia de
inoperância do sujeito em relação à fala. A diegese trata do cotidiano de uma mulher que, em um
dia do mês de março, passa a tarde no parque, em companhia de suas filhas, Célia e Niní. Sua
volta a casa é marcada pelo desconsolo de uma vida rotineira e pela espera de seu marido,
Eugenio. Ainda que a maior parte da narrativa se em espaços públicos (praça e ruas) eles são
restritos e fechados pela visão da personagem. A narrativa é mesclada pela brincadeira das
crianças imitando soldados, que se confunde com a retirada de um quartel e, a partir disso, as
apreensões da realidade e o onírico se fundem em um jogo de palavras:
– ¿Jugamos a los nombres?
– Bueno, sí. Pero estos niños no saben.
– Sí, sabemos, te crees que somos tontos.
– Tontos y tontainas y tontirrí.
(…) Venga, elegid la letra. No riñáis. “De La Habana ha venido un barco cargado de
…”
151
Nesse brincar de signos se a subversão dos soldados-crianças, regidos pela desordem
da retirada, que destrói o estandarte bordado em ouro cuja inscrição é o anúncio da primavera, e
prediz a resignação da personagem que observa cansada, buscando desviar de si os verbetes
negativos.
(...) los soldados habrían continuado avanzando calle adelante al son de sus cantos
cifrados, alimentando a expensas de su mero existir aquella irregular y empecinada
guerrilla que los erigía en dioses arbitrarios y sin designio, en individuos fuera de la
ley
152
.
A fusão dos dois universos no discurso da personagem revela a inconstância desses
mundos e seu não-pertencimento a nenhum deles, pois, quando, para as crianças, se acabasse a
brincadeira, ela continuaria limpando os restos da vida cansada e estaria pronta, então, para
esperar a chegada de seu marido, estafado demais para escutar seus relatos, repetitivos,
cotidianos. E assim se daria sua retirada. O tempo, então, se revela estático pela limitação
151
MARTÍN GAITE, Carmen. Retirada. Op. cit. nota 152. p. 164.
152
Idem. Ibidem. p. 165.
89
espacial, que não encontra nos deslocamentos entre estes mundo um lugar de libertação e
consciência.
Através do jogo infantil, a memória do que seja um quartel é revivida e a crueldade
militaresca elementos à construção do faz-de-conta das crianças, reforçando o “sentir-se presa
a algo” vivido pela personagem, que se resigna, esperando poder dizer mais um “boa noite”.
Ha bajado los ojos. Voz de capa caída, de acidia y de derrota ya pura y sin ambages es la
que, como remate a la expedición de esta tarde, hace un último esfuerzo para pronunciar
apagadamente la salutación vespertina de retirada (...)
153
.
O campo semântico que se abre, ao ser narrada a brincadeira no parque, encarna o ódio
que a personagem diz sentir, ao maldizer os soldados, a beleza dos soldados que desfizeram seu
estandarte.
O conto se estrutura em dois pólos que se misturam aos planos do real e do onírico, como
já referido; estes pólos mostram a construção binária de uma narrativa que confunde os conceitos
destes mesmos universos: o adulto e o infantil, que seria o mais frágil, bondoso e inocente, mas
que é narrado (a partir da perspectiva do adulto, a mãe) como feito de perversidade e de
segurança características garantidas pelos personagens que estão representando, os soldadinhos
militares.
A mãe é dominada pela força deste exército que a reduz
(...) ganas tenía de hundirse para siempre en uno de aquellos sumideros oscuros
que le brindaban al pasar sórdidas fauces oliendo a lejía, a berza, a pis de gato,
guardia y escondrijo de cucarachas viles como ella; se quedaría allí quieta por un
tiempo indefinido en el portal más lóbrego, oculta en sus repliegues, vomitando y
llorando sin que nadie la viera sobre un sucio estandarte hecho jirones
154
.
153
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 152. p. 168.
154
Idem. Ibidem. p. 165
90
Revela-se, naquela tarde, o que de mais rdido havia em si, em sua miséria como um
sujeito dominado pela força tenaz de um exército de faz-de-conta, erguido pelo estandarte que
tecera e que se solidifica em mais uma instância de poder a dominá-la. Esse estandarte feito em
retalhos destitui a mãe como autoridade, mas também a liberta de ser sua esta bandeira,
rompendo, pela tomada de consciência com aquela esfera que a comanda. O domínio do
cotidiano tenta tolher a voz e, ao contrário de Sherazade, sua narrativa não seduz a Eugenio, que
se entedia do relato repetitivo dos dias tomados pela mesmice, pelo abandono do universo interior
largado à poeira da memória do sujeito vitimado pela tradição de ter um universo limitado por ser
mulher.
A absurda configuração da ordem vigente é desvelada no lúdico
155
, a partir do qual se
perfaz a fatalidade do destino do povo oprimido. A voz de Franco, que pretensamente estaria se
apagando, deixaria marcas nesta nação, e esta narrativa aponta o quão difícil seria o caminho de
democratização. Na esfera da ficção, é na fusão dos universos que se desvelam alternativas à
ordem, identificando-a, apoderando-se também de um enunciado que se relaciona
suplementarmente ao de Franco; também nesta esfera é possível localizar o modo como se
engendra a política de gênero: a mulher, protagonista que não tem nome ou voz (mas cuja
perspectiva conduz a narrativa), é dominada pelos vários constructos de poder: pelo marido, pelas
crianças-soldados, pela sociedade e pela própria noção que tem de si, uma espectadora que se
anula ao não dominar a perversidade alheia.
Cabe a ela a retirada, pois se o temor frente aos “soldadinhos” desvela sua fragilidade,
pontua a espantosa segurança daquelas crianças que a massacram e que levarão a cabo a
circularidade da história que as gerou. O discurso do “Novo Regime” está tão absorvido pelo
local que a fala transita por um campo semântico bélico, caracterizando a socialização dos
objetos e atitudes reservadas ao militares. A representação que estas crianças têm de um soldado
é hierarquicamente superior a de sua própria e; o olhar seguro que lançam a ela é o olhar do
soldado que se torna figura superior a qualquer poder. O poder da mãe (do mundo adulto, o da
155
Neste aspecto, o entendimento de Hanson sobre o espaço real e a fantasia, na qual se concretiza a experiência,
parece fazer-se claro. In: HANSON, Clare. Op. cit. nota 131.
91
ordem) é transgredido, havendo uma inversão de papéis: a ética de afirmação militar se sobrepõe
a qualquer outra.
Em seu texto, Linguagem e educação depois de Babel
156
, Larrosa trata da libertação da
liberdade, em um capítulo homônimo em que discute desde as teorias de Heráclito, Kant e
Heidegger, a partir do enfrentamento simbólico da criança e do leão e diz: a criança abre um
devir que é (...) o espaço de uma liberdade sem garantias, de uma liberdade que não se sustenta
sobre nada, de uma liberdade trágica, (...) que não pertence à história, mas que inaugura um
novo começo, de uma liberdade libertada”.
157
Assim, a partir da postura transgressora dos filhos
se abre à personagem uma via desconhecida e temida rumo à manutenção de valores tradicionais
e, em lugar da certeza popular de que o futuro nos reserva o melhor, surge a perplexidade diante
da contrariedade do que para ela poderia ser a ruptura o que até então viveu.
O tempo cronológico da narrativa, pouco mais de uma tarde, se relaciona com um antes e
depois que encarnam a problemática histórica da repressão franquista (ao pensar na presença do
outro, a personagem os corpos dos transeuntes da seguinte forma: “tan presentes e
insoslayables que su evidencia era um puñalada”
158
). Se, como afirma Larrosa, a criança “não está
no antes nem no depois, mas agora, absolutamente atual, porém fora da atualidade”
159
, a luta da
mãe em libertar-se da história é vã, pois sua possibilidade de evolução está na projeção de um
futuro sem amarras, promovido por seus filhos, em que o progresso daquela sociedade estivesse
orientado por esta utopia de construção, que se daria em tempo futuro.
Esta arbitrariedade de um poder militar absoluto é herdada por gerações e gerações que
tardarão em ver qualquer força policial como protetora. Os caminhos rumo à democratização são
traçados pela ficção diacronicamente ao período franquista. Porém, o que esta suposta
democracia viria a ser é bastante questionada pelos críticos da literatura:
156
LARROSA, Jorge. Op. cit. nota 115.
157
Idem. Ibidem. p. 235.
158
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 152. p. 163.
159
LARROSA, Jorge. Op. cit. nota 115. p. 240.
92
No parece muy atrevido sugerir que el grado de democracia alcanzado por una sociedad
depende en buena parte del papel que representa en ella la libertad de expresión (...), o
que la libertad de expresión suele ser la mejor protección de otras libertades o derechos
fundamentales. Esto es sin duda suficiente para poner de relieve que se trata de una
cuestión de gran importancia
160
Como salienta Otero, uma das principais características do regime franquista, e de outros
regimes com ideário semelhante, é a enorme incultura. Com o fim do período ditatorial, a
abertura democrática balizada pela Constituição de 1978 não garante, de fato, a livre expressão
da sociedade espanhola.
Como la historia muestra abundantemente, los derechos existen en la realidad, y no sólo
en el papel, cuando han sido establecidos de hecho como parte de la vida de la
comunidad por un mero decisivo de ciudadanos organizados (...) y cuando el menor
intento de coartarlos choca de inmediato con la indomable resistencia de no pocos
161
.
A liberdade de expressão exigida por esta nova sociedade, formada depois dos longos
anos sob o domínio de Franco, não é prontamente incorporada ao cotidiano espanhol. A vitória
inconsciente das crianças sobre aquela que vitimam é a derrota da personagem frente ao poder
instituído pelo regime, cuja força se instala no que em Quixote se chamaria de la razón del
sinrazón”, já que o discurso do regime é feito da mesma falácia do tempo que apagaria a opressão
de então. Ainda que de “brincadeirinha” os soldados ganham o estatuto de qualquer militar
franquista e ainda depois de roto o estandarte, seguem dominantes.
(...) qué más querría ella que olvidarse de si quedaron o no quedaron patatas, dejar de ver
el habitual muestrario de colores, formas y volúmenes que se traía a la memoria, pero era
imposible que los ojos no se topasen con aquella ristra de imágenes cuyos nombres y
olores difícilmente disparaban hacia ningún islote mágico donde pudiese reinar el idioma
del imbo-cachimbo
162
.
O desprender-se de Alice (personagem de Lewis Carrol) que ruma a uma terra cuja razão
(estética e ética) é divergente do universo que até então lhe fora apresentado, não se dá com Celia
e Niní, tampouco com sua mãe. O universo lógico da brincadeira é conhecido e vivido por todas
160
OTERO, Carlos. La libertad de expresión como piedra de toque: hitoria y cultura. In: MOLEÓN. Op. cit. nota
113. p. 221-236. p. 226.
161
Idem. Ibidem. p. 233-234.
162
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 152. p. 163.
93
na esfera da realidade (a mãe, camada subjugada, parece querer ser levada a um “paíscujas
objetividades e obrigações com a vida sejam outras, em que ‘saber’ ultrapasse o saber da
quantidade de batatas restante para o preparo do jantar).
A ética de transformação proposta pela razão franquista centra-se na proposição de que,
em nome de Deus (e do Regime) tudo é possível. E o que se faça para a manutenção deste topos é
legitimamente aceito e, assim, perpetuado. Borges disse acreditar que, devido à tamanha barbárie,
inclusive para Hitler o nazismo não poderia vingar. Porém, parece que a razão patriarcal impôs-se
de tal modo como parâmetro de normalidade que é subjacente à quase totalidade do pensamento
epistemológico. Lutar contra uma instituição de poder como o Regime Franquista e ainda lançar-
se contra a repressão da mulher como motriz na construção da sociedade democrática parece ser
demasiado.
Esta mulher está sob domínios muito mais sólidos que o dos filhos e do marido, ela está
atada a uma condição da qual não consegue se libertar, ainda que dela passe a ter consciência.
(...) ella había abjurado por completo de semejantes sensiblerías patrioteras y la actitud
de aquella gente le traía a las mientes el entusiasmo con que emprendió la expedición y
embelleció ella también los rostros de los soldados, su perfil, su ademán (...)
163
As três horas passadas na praça lhe dão a consciência e a percepção desvelada daquele
contexto, o que antes parecia lhe significar algo, então, tornam-se significantes carentes de novos
e verdadeiros significados: ‘primavera’ que outrora fora coroada com um estandarte e
representada pela coroa de flores do quadro de Boticelli é então agrupada a ‘patatas’ por
iniciarem com ‘p’. As heresias se afiguram como a negação de uma ordem, mas muito mais com
a afirmação de um sujeito feminino que se vinha anulando como ser político e social, como
mulher e como narradora: “la moral falla a veces, mejor reconocerlo y confesar que la tentación
de herejía venía incubándose en su sangre casi desde que entraron en el parque (...)”
164
. Este
parque se torna o Jardim Botânico visitado por outra dona de casa, Ana, no conto de Clarice
163
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 152.p. 163
164
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 152. p.
94
Lispector, onde acaba por perceber as cores e os movimentos de outros seres em sua descoberta
de si.
Da mesma temática é composto Las ataduras
165
em que, liberta das amarras do pai e do
passado juvenil, a personagem tarda em se libertar da prisão, encarnada em sua memória. É outro
conto no qual uma personagem feminina, Alina, transita por dois universos, passado e presente
(Orense e Paris), que marcam dois espaços-tempo nos quais a mulher se sente presa a ataduras:
primeiro às de seus pais e, posteriormente, às de seu casamento apressado por uma gravidez.
A narrativa se desenvolve a partir do retorno dos pais de Alina a Orense, depois de uma
visita a ela e ao marido em Paris, e com a análise desta reunião feita pelos dois casais, Alina e
Phillipe e Benjamín e Herminia. O descontentamento com o encontro é comum às personagens
que, a partir de distintas perspectivas, o relatam de diferentes modos que revelam um
distanciamento não apenas espacial, senão maculado por um profundo corte.
Habitar um mesmo espaço não garante pertencimento a este lugar. Compartilhá-lo, então,
revela o quão dissonantes estão suas vidas. Ao perceber isso em relação à sua filha e à sua
esposa leva Benjamín à frustração. Sua frustração com a breve estada em Paris se soma à
sensação de abandono com a mudança da filha e a insatisfação com sua companheira, a seu modo
de ver, uma marionete. Na primeira noite não concilia o sono, remontando-se a um outro
tempo no qual a filha vivia na Galicia e era ainda uma menina. Ali, seu estar no mundo era
interdependente pela necessidade afetiva e social de viver-se em família.
Alina, niña, se sacudía el cabello mojado, riendo, y dejaba las brazadas de l
95
não é suficiente para barrar o tempo da memória que o acompanha quando sai da casa: “El tic tac
del despertador salía al jardín por la ventana abierta”
167
. Para ele, seu lar está sem vida, Le
pareció dibujo todo el jardín y mentira la casa; deparejada, como si fuera hermana de las otras del
pueblo. Las otras estaban vivas y ésta era la casa de un guiñol, de tarlatana y cartón piedra”
168
. O
concreto da casa, cujas paredes se haviam erguido como lar, não o era; a solidez do lugar se
pulveriza em relações que agora são entendidas como desarticuladoras.
O desassossego do pai se reflete no da filha em Paris, para onde a narradora desloca a
narrativa relatando os efeitos da visita no jovem casal. Alina tampouco concilia o sono naquela
noite e, aproximando-se da janela, pensa na recente visita dos pais. No entanto, logo tem que se
afastar da janela e voltar para o espaço fechado do quarto, pois seu filho tosse, trazendo-a
novamente à sua realidade em Paris. Questionada sobre o porquê de surpreender-se com o
desastre dos últimos dias, Alina culpa a Philippe por esse insucesso e este se defende dizendo ser
irrecuperável a distância entre eles e seus pais. A partir disso, a personagem sai sem rumo pelas
ruas da capital francesa até encontrar-se com o Rio Sena, o que a faz rememorar outros rios pelos
quais passou, principalmente o rio galego de sua infância, o Miño.
Como apontam Chevalier e Gheerbrant em seu “Dicionário de símbolos”
169
, o simbolismo
do rio pode representar “a possibilidade universal e a fluidez das formas”
170
, entendido na
narrativa em questão como a travessia de Alina do seu mundo presente em direção a seu mundo
pretérito. Como os autores asseveram, para Platão, um homem não conseguiria entrar duas vezes
em um mesmo rio assim como, na filosofia heraclitiana, há um rio para cada homem que nele
emergir
171
. Assim, a personagem se remete ao passado, encontrando nele a identificação que tinha
com seu pai, e a formação de seu próprio eu quando pela primeira vez visitou o rio Miño, e com
ele se deslumbrou. Mas agora, ponderava, que Alina emergiria por fim deste rio?
167
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 167. p. 93.
168
Idem. Ibidem. p. 94.
169
CHEVALIER, J.; GHEERBRANDT, A. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.
170
Idem. Ibidem. p. 780.
171
Idem. Ibidem. p. 781.
96
Miraba, sobre todo, el río, hechizada, sin soltarse al principio de la mano de su padre.
Luego, más adelante, cuando el sol iba ya bajando, se quedó un rato sentada en la
orilla
172
.
Estas águas às quais se transporta, são da mesma feitura das do Rio Lete, rio mitológico
do esquecimento, nas quais Alina se banha para lembrar o passado e para esquecer-se do
presente. Naquela Orense, ressurgida do passado, cuja quase totalidade das casas mantinha as
janelas abertas, as possibilidades de escolha da jovem Alina se apresentam a sua frente. A
alternativa de sair da Galícia, a exemplo do avô, que se havia aventurado na América, e
contrária ao pensamento do pai, para quem não se afastar daquela região não a impediria de
conhecer o mundo, se afigurava com os planos de um amigo que planejava fazê-lo e com a
própria remissão ao Miño: “El río era como uma brecha, como una ventana para salir, la más
importante, la que tenían más cerca”
173
. Àquela janela retornaria um dia a personagem, já adulta,
para adentrar-se nesta lacuna do espaço que a consolidaria em outro tempo.
Benjamín era professor e estudava com a filha para que esta prestasse exames em Orense
e as notas de Alina sempre haviam sido motivo de comemoração para a família. Quando a
menina alcança o “bachillerato”, o avô, Santiago, percebe a proximidade de sua própria morte, e
que esta virá durante a noite, por isso toma comprimidos e café para seguir sem dormir. Antes de
sua morte Alina pergunta ao avô sobre liberdade e diz que o pai a aconselha a nunca se casar. O
ancião argumenta, então, que Benjamín quer prendê-la a ataduras, das quais, um dia se libertará
já que vivemos sempre presos a algo, mas a algo que escolhemos, como um dia será, para ela, um
marido.
Recordando, Alina consegue compreender aquelas palavras, com a intensidade e o
estranhamento das coisas ouvidas pela primeira vez. Cada significante se preenche na construção
de novos significados e o desbotado dos conceitos gastos brilham naquela (re)descoberta.
(...) porque solo las mujeres entienden y dan calor. Por muy viejo que sea un hombre,
delante de otro hombre tiene vergüenza de llorar. Una mujer te arropa, aunque también
172
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 167. p. 107-108.
173
Idem. Ibidem. p.111.
97
te traiga a la tierra y te ate, como tu abuela me ató a mí. Ya no te mueves más, y ves que
no valías nada
174
.
As ataduras do feminino são as raízes que fixam o sujeito e o fazem “pertencer” a algo e
são também via ao imaginário e à capacidade de gritar silenciosamente, de janela a janela,
construindo um código comunicacional próprio.
Nessa longa conversa entre Alina e seu avô se percebe que a infância da personagem se
encaminha para o fim, assim como a vida de Santiago, que pede à neta que o escute, pois se
conseguir deixar-lhe sua memória, jamais morrerá. Desse modo, a narrativa se desprende do
passado galego e volta ao tempo presente de Alina, Paris e seus problemas com Philippe. Com a
juventude, Alina passa a não mais pertencer a seu lugar, e a não se identificar com as outras
mulheres de sua idade
Cargadas, serias, responsables. También las veía curvadas hacia la tierra para recoger
patatas o piñas. Y le parecía que nunca las había mirado hasta entonces. Nunca había
encontrado esta dificultad para comunicarse con ellas ni había sentido la vergüenza de
ser distinta
175
.
Aquela Orense banhada pelo Miño se apresentava muito estreita para Alina, que não se
coadunava àquele contexto fechado de papéis divididos entre homens e mulheres e,
principalmente, à vida dominada por Benjamín. Seu pai não queria vê-la presa a outro homem e a
prepara para ingressar na Universidade. Porém, Alina rompe o destino traçado por seu genitor e
se casa sem completar os estudos.
Las ataduras é um conto no limiar do gênero, pois, como aponta Manuel Llanos de los
Reyes
176
, carrega características de um romance, seja em sua extensão ou em seus diversos
conflitos. Percebe-se, a exemplo do que ocorreria em outros textos de Martín Gaite, como
Nebulosidade variável
177
, a importância da escrita no universo feminino. É com a palavra escrita
174
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 167. p. 118
175
Idem. Ibidem. p. 125.
176
REYES, Manuel Llanos de los, 2002. Espéculo. Revista de estudios literarios. Universidad Complutense de
Madrid. In: http://www.ucm.es/info/especulo/numero21/cuen_cmg.html. Acesso em 05 de setembro de 2005.
177 MARTÍN GAITE, Carmen.Nebulosidade variável. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
98
que Alina coma a dialogar, quando se distancia do mundo de Orense e, somente quando
encontra Philippe, mostra seus textos a alguém, ou seja, quando se torna uma mulher livre das
ataduras do pai, presa a outras, como havia anunciado seu avô Santiago. Seu pai esperou meses
por uma carta sua, mas Alina somente se encoraja a escrever-lhe quando foge ao rio, tentando
novamente encontrar-se: envia aos pais um postal com mentiras para confortá-los na Galícia.
As narrativas que ela compõe aos pais, através das cartas, são feitas por um eu que, ao
narrar-se, se transforma, pois comanda as personagens, espaço, tempo e ação de sua trajetória
real. Se “são os olhares que colocamos sobre as coisas que criam os problemas do mundo”
178
,
Alina apaga de seu enunciado o seu olhar sobre o mundo, pois não havendo palavra, as coisas não
o são. Assim, ao enunciar-se se inventa, veste-se de uma scara ficcional que protege seus
olhos do mundo que não quer viver.
Porém, sua luta se avista como uma luta contra a verdade do poder instituído. Em seu
texto Vendrán más años malos y nos harán más ciegos, Rafael Ferlosio comenta:
Não foram os que inventaram a mentira (pois a mentira nunca foi inventada, mas nasceu
como reflexo necessário da invenção da verdade), mas os que inventaram a verdade os
que fizeram falaz a palavra. A palavra que havia nascido para ser ficção ilustração
imaginária com a que os homens podiam repetir em simulacro suas ações, sentados junto
ao fogo –, fez-se mãe de enganos quando se erigiu em dizedora de verdades
179
.
Estas verdades se constituem como tal quando, por exemplo, ditas nos pronunciamentos
de Franco e nas estratégias de poder neles utilizadas. Como pudemos observar, em muitas de suas
falas o General agradecia o total apoio da nação (o que então passa a ser verdade) e mostra as
indiscutíveis melhoras do país depois da instauração do regime, levando aos seus “interlocutores”
certezas da força e solidez de seu comando. Mostrando sua gestão como um projeto contínuo na
restauração e instauração ‘democrática’, no registro de suas falas à nação, esta premissa passa a
ser verdadeira.
178
VEIGA-NETO, Alfredo. Op. cit. nota 140.
179
Rafael Ferlosio, como comentado em outro momento, foi um dos grandes escritores espanhóis a produzir uma
literatura pautada na transformação social, junto à geração chamada neo-realista. Ressalta-se, como informação
adicional, que foi casado com Martín Gaite e se aliavam à mesma luta. A citação referida está em: LARROSA,
Jorge. Op. cit. nota 115.
p. 198-199.
99
Levado para o plano da ficção, em que a palavra não é falácia, a frustração do sujeito que
vive sob o domínio desta ordem, que apregoa a recompensa católica ao bom cristão, outras
“verdades” se desvelam. Na trajetória de Alina, concordar em refugiar-se no labirinto da narrativa
é a consciência de si e dos profundos laços de expectativas que a atam a sua família: a
transgressão, a permancia, a aceitação e a negação que é herdada a cada um de nós e que,
certamente, o damos conta de equacionar, mas antes de tudo, ao viver esta narrativa fabulada
em suas cartas, vive suas possibilidades.
Resguardada pela razão católica, as ações cometidas e pautadas nesta tradição serão
observadas – assim como as penas, provações e sofrimento e recompensadas. Refazer-se
tentando localizar-se como sujeito resulta em cobrar este espaço garantido. A ação circular do
tempo reduz a existência do sujeito em um “como se nada tivesse acontecido”. Objetivados,
cumpridores de funções, seguidores da ordem: assim é o ser calado à força de um Estado
repressor. Esta nação constituída na ficção de Martín Gaite viu o sofrimento, mas para ele não
houve consolo, dele ficaram marcas que não seriam apagadas, pois estão aqui o testemunho e o
olhar da mulher que suplementa este período, também marcado pela construção coletiva e
individual da libertação
180
.
A circularidade então se mostra como característica nesta narrativa: novamente Alina se
ata aos pais com fábulas acerca de sua felicidade em Paris e Benjamín, a exemplo de Santiago,
passa a ter medo da noite, pois esta lhe trará a morte. Os conflitos surgidos com a visita de
Santiago a Paris se desenvolvem de modo a desatar a problemática de suas vidas, na qual se
concentra a narrativa, que não é resolvida. Dá-se o rompimento de uma pretensa harmonia que
tem como desfecho a busca de mascarar a narrativa de sua própria história, narrando uma de suas
possibilidades.
180
“sabía que estaban en mi bolsillo todas las cien mil figuras del juego de la vida: aniquilado, barruntaba su
significación; tenía el propósito de empezar otra vez el juego, de gustar sus tormentos otra vez, de estremecerme de
nuevo y recorrer una y muchas veces más el infierno de mi interior” In: MARTÍN GAITE, Carmen. El cuarto de
atrás. 19. ed. Barcelona: Destino, 2002.
100
Assim como em Las ataduras, Variaciones sobre um tema
181
apresenta uma personagem
distanciada do espaço de seu passado que, em uma viagem através da memória, tenta reviver. A
narrativa se desenvolve a partir da constatação de Andrea Barbero de que aquele é o quinto
inverno que passa em Madri; como anuncia a narradora, esta parece ser mais uma constatação
numérica que um balanço das emoções que ali sentia. É através dessa estação do ano que a
personagem trilha sua viagem pela memória, em busca de uma narrativa particular a essa
trajetória, cuja variação de cores e sabores não a distanciará do tema de sua rotina.
A estação que se acabara com os anúncios de março, de certo modo necessitava de um
“desglosar” que permitisse formar metonimicamente seu retrato, o retrato dos invernos que se
assomavam em Madri. A repetição dos anos parece uma seqüência fotográfica que não revela a
especificidade de cada um deles. Constituir-se como indivíduo, neste tempo sem marcas provoca
o esquecimento do eu. Como pensar no tempo se este, aparentemente, não deixa marcas no
espaço? Ver o tempo como um repetição (algo utópico?) faz o sujeito apagar-se, que nestes
cinco anos (que não consegue de fato registrar), abafou seus desejos, anseios e utopias (?).
A “comichão” que sente Andrea é o próprio querer narrar-se para acertar as contas
consigo mesma. A memória e a reflexão, até então abafadas pela urgência dos afazeres rotineiros,
tomam conta de seus dias. A narrativa se inicia no final do quinto inverno que se encerra
deixando à personagem uma necessidade súbita de enunciá-lo, de contá-lo, o que nos remete à
etimologia da palavra conto
182
. E é justamente um acerto de contas que a faz refletir e querer
101
personagem chega a questionar-se do porquê não recordar as primaveras, estação mais aprazível,
pois são os invernos que necessitam ser rememorados e equacionados, pois eles contêm
simbolicamente sua angústia.
Em meio a perguntas em relação à sua desatenção no trabalho, a personagem pensa no
melhor espaço para pensar o tempo e no porquê desta reflexão que lhe toma, e se remete às
margens do arroio de sua terra natal, espaço em que, quiçá, estivesse resguardada sua existência
nestes últimos cinco anos.
- Estaba contando cinco y tu me espantas el número; quítate de ahí, que se me va la
cuenta y no puedo dejarla de atender podría haber sido, en todo caso, la frase más
cabal de Andrea a su compañera, aunque de tan espontánea y directa resultaba en
verdad informulable, teniendo en cuenta las inaplazables llamadas del entorno
183
A intromissão da narradora na fala da personagem revela a estratégia discursiva utilizada,
em que algumas verdades parecem informuláveis perante determinado contexto. O voltar-se à
subjetividade e ao intento de conscientização das ações do sujeito parece um escape incabível
naquela “realidade” fechada em que o indivíduo é calado pela voz de uma nação que fala por ele.
A narrativa, então, passa a apresentar dêiticos temporais até então existentes na própria
trajetória da personagem através do referencial de sua mãe: “(...) las cuatro y media”
184
; “(...) eran
las cinco menos cuarto”
185
. Ao sair do café em determinado dia, deixa de fixar-se aos relógios,
pois percebe a circularidade do seu tempo e do feitiço que este exerce, que nele adentramos e
transitamos em espaços também circulares, mas que não a protegem dos efeitos do tempo:
confinar-se no café não coíbe a ação do tempo.
El tiempo, pues, venía a estar contenido mucho más en las historias deseadas – narradas
102
O suceder do tempo, marcado pelos acontecimentos lhe parece inútil, pois “feitas suas
contas”, encontrar-se com o hoje cinco invernos passados em Madri nada significava. A
noção do tempo só teria sentido se o presente cumprisse o sonhado no passado, com o carimbo de
“soy aquella que soñé” e, chegando-se a isso, restaria questionar a própria trajetória que, como
ironicamente, aponta a narradora, “cualquier medíocre y ordenado cronista, sin gran esfuerzo,
habría podido fielmente reproducir”
187
. A personagem tenta conter o tempo, através do que passa
a ser fundamental em sua tentativa de agarrar-se à vida, a observação e o contato com o outro. A
simples possibilidade de não rever os diversos clientes da cafeteria torna-se insuportável à
personagem, que tenta agarrar-se no espaço para controlar o tempo
188
, em um prolongamento que
a conecta novamente consigo mesma.
Andrea sofre este impulso de contar os anos passados em Madri por evento anterior a eles,
quando de sua primeira visita à capital, época em que seu pai ainda não havia morrido. Os anos
da rotina de louça por lavar e cafés por servir parecem não se somar àquela rememoração, como
se a rotina lhe devorasse o viver.
(...) ya que los inviernos gastados en Madrid se le presentaban simplemente como cinco
palotes pintados en el aire del local, sin más decirle nada, fuera de que eran cinco y,
además, apenas aquella terca voluntad de recuento cedía a las presiones insoslayables del
exterior, volvían a amalgamarse, incontrolables e indistintos, en el tronco confuso de lo
vivido
189
.
Segundo Chevalier e Gherbraand
190
este número, o cinco, representa a totalidade do
mundo sensível e concentra, simbolicamente, os cinco sentidos do ser, a ordem e a perfeição,
assim como a união. Os cinco invernos passados somam o eu de Andrea. Se o número cinco
representa, então, a harmonia de um homem “universal”, o período passado em Madri a faz
perceber o descontentamento com a vida naquela cidade, e sua total desarmonia com aquele
187
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 183. p. 19.
188
Borges traz na epígrafe de seu conto El milagro secreto o seguinte trecho do Alcorão: “Y Dios lo hizo morir
durante cien años y luego lo animó y le dijo: - ¿Cuánto tiempo has estado aquí? Un día o parte de un día,
respondió”.Esta narrativa narra a trajetória de um poeta judeu que roga a Deus um ano para terminar seu drama
inconcluso, antes que seja fuzilado pelo exército nazista. Ainda que na esfera exterior apenas transcorram minutos,
na esfera interior da personagem ocorre o milagre secreto da outorga deste ano solicitado. Referências a partir da
seguinte edição: BORGES, Jorge Luís. El milagro secreto. In:__ Artifícios. Madri: Alianza, 1995. p. 50-59.
189
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 183. p. 13.
190
DICIONARIO DE SÍMBOLOS. Op. cit. nota 171. p 241.
103
espaço/tempo. Passa, então, manipulando figuras que eram de épocas anteriores, a questionar o
tempo demasiado relativo para ser marcado por um re
104
personagem que se confunde à mulher do “real”, que então é vista e ouvida, ainda que em um
protesto quase silencioso.
A “edad de lo obvio”: esta é a expressão que lhe havia usado outrora um cliente do café
ao falar de sua própria infância e, ao dar-se conta dela como algo que está “delante de los ojos”,
Andréa toma consciência de sua identificação com a fala do outro. Os eventos exteriores, até
então invisíveis aos seus olhos, passam a interferir em sua ponderação, ao relacionar seu universo
com o do outro, e se sente transgredindo o estas fronteiras. Diante disso, os limites entre o
próprio e o alheio, entre as esferas particular e pública são estreitadas, “(...) la magia residia en el
poder de reducir a exterior cuanto se prefería tener lejos, mientras cabía, por otra parte, volver
propio lo que se prefería axionar”
192
e percebe sua prática de afastar de si o que rechaça não
seria possível.
O feitiço de deslocar espacialmente os fatos e as palavras faz com que a apreensão do
tempo também seja outra. Se, para ela, a existência dos clientes, que por ali passavam, somente se
dava naquele espaço, a sua própria também. A consciência do espaço a remete para a do tempo,
que lhe resultava falaciosa. O tempo, marcado pela circularidade da história, não deixa de
coexistir à inércia de sua trajetória. Tocar neste tempo vivido implica em desfazer uma trama
desconexa e estruturá-la. Para tal, é preciso analisar suas ações para depois ordená-las no tempo,
uma das estratégias de maior dificuldade no “contar”. O constituir doloroso desta narrativa é feito
da reelaboração do eu que se reconhece e desconhece neste jogo da linguagem que é o mesmo de
descobrir-se.
As referências temporais dadas por sua mãe, aniversários, dias santos, feriados, marcavam
sua trajetória na linha cronológica, mas se tornam insuficientes para falar de seu tempo, que se
na projeção do que sonhou, do que vive, do que se produz em seu universo sensorial e a constitui
como sujeito.
192
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 183. p. 14
105
Mais uma vez a narradora heterodiegética adentra no universo da personagem roubando-
106
Gino seguia adormecido, não diante dos vários destinos que se lhe abriam, senão frente à
consciência de sua esposa em relação a eles.
Temerosa e indecisa, Emilia desvia o olhar de seus acompanhantes, pois estes revelariam
mais que seus medos, escancarariam seus desejos e anseios escondidos na roupagem que se via
obrigada a usar, a de mulher naquela sociedade. Os gestos delicados e servis e as vontades
condicionadas às de seu marido compõem a função subordinada do feminino que é denunciada. O
discurso da ficção renegocia as políticas de opressão histórica, através das estratégias da
narrativa, apresentando uma personagem da ordem que mascara seu eu para segui-lo sendo.
Em uma breve parada de um quarto de hora em Marselha, a personagem escapa à estação
para encontrar-se com a irmã, Patri que ali vive. Proibida pelo marido, desde o casamento, de
relacionar-se com a irmã, “contaminada pelos hábitos franceses”, Emilia transforma aqueles
quinze minutos em uma descontinuidade de sua vida vigiada pelos olhos de Gino, mas ainda
coibida pelo poder remoto que ele exercia. Patri tenta aconselhar a irmã, mostrando-lhe que é
feliz, apesar de não viver dentro dos padrões comportamentais vigentes, chamando-lhe a atenção
para o seu aspecto físico, que denuncia a vida infeliz que leva, e para o falso moralismo de Gino -
“- Es que no aguanto a la gente como él. Yo seré uma tirada, chica, pero es cosa que se sabe. No
aguanto a la gente que deja los sermones para dentro de casa”, que aprisiona a esposa em um
universo do qual não comunga.
A noção do espaço e seus limites é marcado por dêiticos que orientam a esfera em que
atuam as personagens (“desde la puerta”; “permaneció unos instantes mirando la puerta”; “contra
la otra ventanilla”) e seus deslocamentos nestes limites. As portas são avistadas, porém se
apresentam como obstáculos difíceis de transpor, pois são de uma realidade concreta, feita de um
entorno de repressão. São, então, as janelas que remetem a personagem a um outro universo
possível, cuja construção é sólida e reveladora, as janelas são o espaço da mulher que se
descobre, a quem o universo desvela a consciência do ser e de suas possibilidades. Porém, não o
é para esta personagem que segue resignada a uma existência limitada à alienação.
Luces de ventanas, de faroles, de letreros, de altas bombillas, que entraban hasta el
107
departamento y algunas se posaban sobre el rostro dormido de Gino, girando resbalando
hasta su boca abierta. Pero ni estos reflejos ni el rumor aumentando de la gente (…)le
despertaron
194
.
O sono de Gino é seu fechar os olhos para Emilia, para seus anseios e necessidades, mas
que servia a ela como a segurança de seu estar no mundo. Quando se distancia do vagão em que
ele está, ela se sente desprotegida: “(...) a medida que andaba sentía alejarse a sus espaldas el
círculo caliente del departamento recién abandonado y con ello perdía el equilibrio y el
amparo”
195
. Mas a acolhida da irmã também lhe garante estar “segura do mundo” e por ela “se
dejó abrazar y conducir, encogida de emoción y pequeñez”
196
. Proteger-se do desconhecido e
desconhecer a própria força massacra a trajetória da personagem que diz não estar a felicidade
neste mundo, quiçá por não entender de sua própria capacidade de escolher e transpor aquela
prisão.
A liberdade, no entanto, parece ser um castigo a um ser constituído em um contexto de
cerceamento. O paralelo entre os universos íntimo e público é narrado em um tecer que não os
desvela, não os “agarra”. Este “alto no caminho” poderia ser uma mudança em seu curso de vida,
que segue atado aos trilhos impostos pelo marido, garantindo a ele o poder sobre ela e suas
escolhas. Emilia não se mostra, não revela sua dor e não deixa que sua voz a narre; a personagem
segue “altiva” em seu papel de submissão que assegura sua dependência.
São as janelas que, ao voltar ao vagão e àquela vida pequena e infeliz, são avistadas e que
remetem a outras vidas, a outros rumos que por ela agora serão habitados, mas tão a partir de
suas janelas. A viagem que poderia libertar a personagem, a aprisiona ainda mais, estendendo o
espaço de clausura a outros limites. Mais uma vez, o desprender-se se no imaginário e não na
ação da personagem, que apenas vislumbra, de cortinas fechadas à estrada, um mundo possível,
mas não concretizado. A dor da repressão parece instalar-se em seu caráter, impedindo que as
brechas desta vida segura se revelem, de modo que a narradora tão nos conduza ao que se
mostra em sua superfície.
194
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 195. p. 142.
195
Idem. Ibidem. p.144
196
Idem. Ibidem. p.145.
108
As personagens com as quais se relaciona (a irmã, o marido, o enteado e a passageira do
trem) emprestam seus olhos ao leitor, ávido por mais informações. São seus interlocutores
mulheres que a impulsionarão à busca, ao escapar-se. Porém, seu destino parece prender-se
àqueles dois homens que a dominam e dela são dependentes, em uma relação doentia de
aprisionamento que em nada se assemelha à paixão, a amor. Sua trajetória é paralela à da nação,
que apoiou um Estado autoritário cuja promessa era a de proteção aos males do mundo, - o
comunismo, por exemplo, - assegurada pela razão de que a mudança, a transformação social
necessária era a promovida pelas fortes mãos da ordem instituída. Esta experiência, de Emilia,
que representa metonimicamente a nação espanhola, é muitas vezes levada aos textos de Martín
Gaite e serve de motriz às transformações no campo discursivo da literatura, também feminina,
espanhola, ainda que acomodadas em um espaço restrito de repressão das minorias vistas como o
outro, como o diferente do núcleo de poder hegemônico.
É a continuidade formadora do discurso da história que institucionaliza o sujeito como
sujeito masculino subjugando o feminino, e essa assimetria está na base da sociedade ocidental,
balizada pela perpetuação do patriarcado. A ficção de Martín Gaite busca promover a discussão
desta construção, mas não a supera de forma absoluta, pois o patriarcado não está isolado das
relações culturais estabelecidas, ainda que estas possam transformar as sociais.
Esta preocupação está latente em La tata
197
, que narra uma sociedade católico-burguesa
preservadora da razão do franquismo, logo, como mantenedora da dita continuidade da história.
A resignação do sujeito “marginal” aqui se impõe como dispositivo de denúncia à
descontinuidade da história do franquismo mascarada pela pretensa harmonia da nação.
Este conto foi escrito em 1958 e teve sua primeira publicação em 1960. Nele é narrado
um breve período da cotidiana vida de uma jovem de pueblo que foi levada à cidade para servir a
uma família tipicamente burguesa. A narrativa se em uma noite em que os donos da casa saem
para jantar e a Tata, Asunción, fica responsável pelos seus filhos, Cristina e Luis Alberto.
197
MARTÍN GAITE, Carmen. La tata. In: ___. Op. cit. nota. 136. p. 259-269.
109
prestes a recolher-se e levar as crianças à cama, surge a presença da porteira do prédio, que
desfila pelos apartamentos a filha, Loli, que se prepara para a primeira comunhão, a fim de
receber ajuda financeira dos moradores para o traje branco, específico da ocasião.
A partir do parco diálogo com as crianças e com a zeladora são revelados traços morais da
sociedade em que viviam, reforçando o papel secundário da jovem naquele espaço, e da mulher
como um todo. O conto é narrado em terceira pessoa, mais uma vez revelando a inoperância do
sujeito como contador de sua história, e empobrecido de ações ou reflexões que não as da rotina
da casa. A Tata exerce uma função naquele agrupamento, não é sujeito, não é agente
transformador. Seu papel se limita a assegurar o funcionamento da casa, da sociedade.
Esta condição não lhe era exclusiva. A narradora mostra um contexto de repressão e
domínio que transcende a divisão de classe e em que a possibilidade de ser banido é moeda de
troca nas relações: “Eres mala; viene el hombre del saco y te lleva”
198
, ameaça Asunción à
menina. O medo é constante e é elemento estabelecido de modo a assegurar o poder. Ao sujar o
vestido branco com o chocolate oferecido por Luis Alberto, a porteira intimida a filha que reage
como elas (a porteira e a tata) frente à postura de suas empregadoras. A culpa por haver “errado”,
por haver descumpridoas normas acompanha as personagens subjugadas, assim como a dos
sujeitos em sociedade de forte domínio repressor.
A isto se alia a reiteração dos costumes católicos, que asseguram os céus a quem deles
comungar. A importância dada ao sacramento cumprido pela menina norteia seu futuro: “Ahora
ya lo que hace falta es que la vea usted bien casada”
199
, comenta Asunción com a mãe de Loli,
mostrando a função que ela terá, a de esposa. O organismo social e religioso daquele espaço se
estrutura em um mecanismo perfeito, em que os seres têm sua função, crença e desfecho
estabelecidos pela norma, que não comporta elementos exteriores a ela. Ao ouvir o simples soar
da campainha, Asunción se amedronta e se põe a orar, em uma ação que revela o quão frágil é
este universo da “ordem”, em que qualquer elemento imprevisto desestabiliza o sujeito, expondo
198
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 199. p.260.
199
Idem. Ibidem. p. 266.
110
o temor enraizado naquele cotidiano. Os padrões éticos são hegemonicamente impostos pela
esfera dominante, seja de classe ou gênero, e incorporados inclusive pela margem.
Mais uma vez, a janela aparece nos textos de Martín Gaite como espaço simbólico da
descoberta e à Asunción era costume assomar-se a ela para observar o exterior, quiçá, a seu
interior: Cuando se metió en su cuarto y se empezó a desnudar, habían remitido los ruidos del
patio y muchas ventanas ya no tenían luz”
200
. Assim, o desnudar-se da tata se no quartinho
reservado da área social do apartamento burguês que, já em sua arquitetura, a aparta da família. A
janela “lugar comum a todas as mulheres” é o espaço de fuga de um eu cada vez mais
distanciado, banido do espaço coletivo como representação de um eu sujeito em detrimento de
uma função servil.
Ao promover um discurso revelador da ordem, através da história de Asunción, o conto
propõe a desconstrução da leitura da História, que institui tal modelo de sociedade. Este
posicionamento do discurso de Martín Gaite se aproxima da noção de desconstrução de Jacques
Derrida, no que se refere ao seguinte aspecto observado por Culler
(...) a desconstrução nunca se preocupa apenas com o conteúdo significado, mas
especialmente com as condições e hipóteses do discurso, com os enquadramentos de
indagação, ela compromete as estruturas institucionais que governam nossas práticas,
competências e realizações
201
.
Os significantes do conto não se afiguram como repúdio ao universo burguês, porém, o
questionamento deste constructo se revela sutilmente através de mecanismos discursivos próprios
da narrativa. O foco da narrativa recai sobre a figura marginal da mulher que está em seus
primeiros dias em um novo emprego. Sua empregadora, cujo nome não é revelado, tem o
controle do universo apresentado na narrativa e nela é presença constante, ainda que sua aparição
só se dê em uma breve chamada telefônica
200
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 199. p. 112.
201
CULLER, Jonathan. Sobre a desconstrução: teoria e crítica do pós-estruturalismo. (Tradução de Patrícia
Burrowes). Rio de Janeiro: Reccord/Rosa dos Tempos, 1997. p. 180.
111
Nada, ya había colgado. Yéndo se la voz tan bruscamente del otro lado del hilo y con la
habitación a oscuras, volvía a tener miedo. Estaban los libros colocados en sus estantes,
los pañitos estirados y aquel cuadro de ángeles delgaduchos. Todo en orden. Olía raro.
Todavía daba más miedo con la luz
202
.
A ordem, como se revela nesse excerto, não conforta Asunción que, metonimicamente,
representa o sujeito comum espanhol da era franquista, cujo controle social se dava através do
medo na onipresente razão do Movimento. Referindo-se às condições de trabalho e aos
problemas sociais da Espanha de então, proferiu Franco
(...) El Movimiento no fue privilegio de vencedores ni sumisión de vencidos, sino la
oportunidad que se brindaba a todos los españoles para satisfacer sus anhelos de
revolución social, es posible que hoy podamos abordar de cara los problemas de su
112
Jean Franco
205
traz esta problemática da mulher como transformadora da esfera pública na
América Latina dos anos 80 que aqui aproximamos à mulher espanhola da era franquista, quando
a ensaísta aponta a literatura de testemunho como espaço de afirmação do discurso da mulher.
O relato de fragmentos cotidianos faz do conto em questão um testemunho das
conseqüências da gestão pública na esfera privada das famílias espanholas. O reforço das idéias
tradicionais pelo Estado baliza o estancamento dos costumes. O não diálogo entre Asunción e sua
“patroa”, que mal sabe seu nome, revelaa d aaq.96262(o)-a m ri.441715(s)-1.962(a)1.9n-3.71693(a)1.96262(6262( )-97.634(d)-3626.96262(i)0.4428149(-3.71568(t)0í.71693(o)-3.71693( c2.2425(l)-9.63635(p)6.56299(a)-6.99717(O)2.62(a)1.96.56299(u)-3.71693(i)06.56299(c)-8.3173(a.96262(i)0g1.63761(68.6817(d)-13.9943(a)1e)12.2425(m)7.96262(v)p.71443( )-e)4.0432(i.441715(s)-e)12.2425(m)73.71443(a).562-3(s)-1.63635(p1.96325(d) )250]TJ-a)1.96262(s)-11.9163(.16 Td[(t) )250]TJ-)-11.9163(c-13.9962(a6.56424( )-183821(i)0.441715(n)r)4.04195(9.83821( )-282438( )-27.56424(a)1.1631(n)-68.6817(d)--294.836(q)-1.63698(t)0.442343()1.96388(l))1.96388(l)68.6817(d)-12.2438(l)-)-3.71693(ã)-3.71568(o)6.564297c)1.96388(i)-9.83821(a)-9.83821(u)-3.71568(r)4.04195()-9.83821(u)-3.71568(r)4.04195(3.71693(n)6.56299(h)-3.71693(or)4.0432(e)1.97.635(c)1.96262(o)6)1.96388(s)-1.63886((r)4.0432(i)-9.83821(r)-6.2(á)12.2425(l)-9.8.96388(s3.71693(g)-3.71693(o)-3.56299(5.419397.634(3.71693(s))12.2425(ua)1.96262(6262( 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113
freqüentar os bailes da sociedade. Para tal, convidam à casa outras meninas da mesma idade e
condição social da filha.
As diferenças, até então desconhecidas pela jovem dupla, começam a despontar com a
presença das outras meninas; sem saberem o porquê, algo muda entre elas. Determinado dia,
Cecilia se muda, sem esperar por Paca para despedir-se, deixando apenas a antiga promessa de
escrever-lhe uma carta, que nunca chega. Ao esperar pela equipe que fará a mudança da amiga,
Paca lembra-se do sonho fantástico da noite anterior, no qual era uma das figuras de um presépio,
e pensa que não lhe incomodaria passar todo o ano presa a esta condição, desde que chegasse o
Natal e se reencontrasse com Cecilia.
Era increíble, portentoso, lo deprisa que trabajaban aquellos cinco hombres. Parecía
cosa de magia que pudieran desmontar con tanta seguridad, en etapas medidas y
certeras, una casa como aquélla, que era todo un país lleno de historia, lleno de
vericuetos y tesoros, que pudieran detruirlo, conquistarlo con tanta celeridad, sin dolor
ni desequilibrio, sin apenas esfuerzo, sin detenerse a mirar la belleza de las cosas que
estaban llevando, sin que ninguna se les cayese al suelo
208
.
Em um jogo do foco da narrativa, o motorista do caminhão passa a observar aquela
menina triste observando o apartamento ser esvaziado. Sua visão tão apegada ao real, pensando
no sanduíche que comeria mais tarde, na possibilidade de chuva, contrasta com a fantasiosa visão
de Paca, preocupada com todo o universo de magia a ser encaixotado. Este universo onírico que
criava era sua única via de acesso àquele mundo, seu consolo por não poder ocupar aquele espaço
reservado aos “escolhidos”.
Só a chegada da primavera tirou de Paca o desânimo que lhe acometera desde a partida de
Cecilia. O devir do tempo é marcado pela leitura do jornal que descreve um tempo difícil
Todos los periódicos traían grandes titulares, hablando de ventiscas y temporales de
nieve, de ríos helados, de personas muertas de frío. La madre, algunas noches, leía
aquellas noticias al calor del raquítico brasero, suspiraba e decía: Vaya todo por Dios”.
208
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 209. p. 76.
114
Leía premiosamente, cambiando de sitio los acentos y las comas, con un tonillo agudo
de colegio
209
.
Sabemos que a Espanha foi banida da ONU desde a Guerra Civil até 1955, tempo no qual
a economia interna teve grande declínio e o clima infértil de um país controlado pelos militares
doava cores mornas à nação, como se percebe na decoração da casa de Asunción
Había en la habitación un armário, con la foto de un militar metida en un ángulo entre el
espejo y la madera, cuatro sillas, la camilla, los vasares de encima del fogón y la
máquina de coser, que estaba al lado de la puerta del patio y era donde daba el sol lo
primero, después de bajar del calendario plateado, que tenía pintada una rubia comiendo
cerezas
210
.
Espaço e tempo pareciam conjugar-se de modo harmonioso à jovem Paca até os pequenos
inconvenientes de sua amizade. Na época, seu mundo dividia-se em dois, o da “verdadeira Paca”,
a que de fato lhe importava e o da “Paca de mentira”, aquela dos afazeres domésticos, das
obrigações cotidianas. Sua inocência se perde ao perder a amiga e com ela suas certezas. O
rompimento deste elo é divisor da infância e da alienação para a adolescência, que tentava
retardar, e a tomada de consciência de seu lugar no mundo, de seu pertencimento e sua afirmação
como “la chica de abajo”, a “filha da porteira”, como a havia chamado Cecilia.
Ao refletir sobre os novos coletivos sociais, Cláudia Perrone pontua que “há uma
interiorização das regras e imperativos pelos sujeitos mesmos via máquinas culturais”
211
e o
aparelho que negocia e prolifera esta norma, no contexto que aqui analiso, é o poder do estado
franquista. A insuficiência da força da ordem patriarcal é suprida pelas estratégias de
sobrevivência “eleitas” por cada sujeito, que não discute a coerência interna desta lógica
imperativa, nem tampouco vislumbra uma outra direção.
209
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 209. p.79
210
Idem. Ibidem. p. 82
211
PERRONE, Cláudia. Novos coletivos sociais: a multidão e o amo ao tempo a constituir. In: FONSECA; KIRST.
Cartografias e devires: a construção do presente. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. p. 129-136. p. 130.
115
O rompimento com o dogmático universo vivido pelas personagens de Martín Gaite se
através do olhar da angústia e do silenciamento. Este é a visão impressa pelo discurso feminino,
que não representa “o que poderia ser”, mas o que é: a mulher-personagem não rompe as
barreiras da sociedade franquista-patriarcal, quem o faz, por vezes, é uma narradora que adentra
no universo subjetivo da personagem revelando seu mal-estar no mundo.
Se “a pátria não é o lugar onde se nasce, mas onde se é livre”
212
, a mulher não encontra
seu lugar de pertencimento nessa pátria escrita por Franco. Ocupar um espaço na narrativa da
história é tarefa árdua para a mulher. Desde a formação da razão ocidental, o discurso
hegemônico masculino foi dominante e absoluto. Subverter esse discurso miserabilista da
opressão”, no dizer de Perrot, tornou-se parte da constituição do eu feminino no século XX. Nos
estados comandados pela força militar pode-se falar em uma dupla-opressão: se a oposição luta
pela abertura democrática, tal abertura não pauta em sua agenda a nova conformação do espaço
da mulher como pertencente a este topos.
La chica de abajo se relaciona com El pastel del diablo
213
, escrito em 1983, ano no qual
se estaria gestando a plena era democrática na Espanha. A ligação entre estas narrativas se
na perversidade do universo adulto levado à experiência do infantil, em que crianças têm seu
sonho contrastado às brutalidades que ainda estão por conhecer. Este conto é formado de oito
episódios cujo fio condutor é a trajetória de Maria Sorpresa, marcada por sua busca incessante
pelo conhecer.
Os pais de Sorpresa haviam apelado a quase todos curandeiros, santos e afins para que
pudessem ter um filho até que, em idade avançada, são contemplados com a vinda de um bebê
que, pelo inusitado, é chamado de María Sorpresa. Certos de que sua filha seria diferente das
demais pensam ser este o nome adequado, ainda que para sua aprovação até o senhor da casa
grande, homem viajado pelo mundo, tenha sido consultado pelo padre local.
212
In: Madri, El país- babelia, sábado 20 de julho de 2002, p. 2-4. Mario Onaindía é autor do livro La construcción
de la nación española; seu principal objeto de estudo é a questão euskadi e defende que o Estado pode defeder a
libertadade do sujeito.
213
MARTÍN GAITE, Carmen. El pastel del diablo. In: __. Cuéntame. Op. cit. nota 135. p. 121-208.
116
Desde seu batizado, que pelo empenho do pai fora encantador, seus olhos curiosos
chamaram a atenção de todos, inclusive a de Balbina, uma velha curandeira que predisse o futuro
da menina: ela sempre desejaria o que não pudesse ter. Assustados com aquelas palavras seus
pais, Zenón e Remigia, sentem a angústia de saber que jamais poderiam dar à filha o que ela
quisesse e buscam inutilmente a confirmação daquela sentença, mas Balbina é encontrada morta
na manhã seguinte.
Sua curiosidade por descobrir o novo é motivo de desagrado para sua mãe, erigida pelo
senso comum proclamado pelas mulheres do povoado, e de preocupação para seu pai, que
gostaria de lhe dar mais do universo que suas posses e condição permitem. De tanto perguntar,
esgotam-se as respostas de seu professor, que lhe veta a entrada na escola, por não ter mais livros
a dar à menina. Como saída a esta situação, Zenón, pensa em pedir auxílio ao dono da casa
grande, o homem de posses da cidade, mas é logo barrado por Remigia, por pensar que os hábitos
naquela casa não estejam nos padrões cristãos.
Impedida de acessar outros textos, Sorpresa decide inventar os próprios, sempre buscando
algo que lhe parece inatingível, que algo a surpreenda. Instigada pela proibição de sua mãe de
conhecer o dono da “casa grande”, “escolhe um espaço e começa a mobiliá-lo” com personagens
e ações. Aqui se percebe a multiplicidade de vozes já não silenciadas, o lado de dentro e o lado de
fora são expostos em um entrecruzar de vidas e idéias.
É assim que, ao entrar finalmente na casa grande, vive um universo guiado pelo
desconhecido e pelo imaginário, dando a entender a essência que encontrava nos contos: a busca
dos personagens por viver algo, conseguido ou não, para depois contá-lo. Esse mergulho na
ficção a distancia do que não está nela, afastando-a de seus arredores, onde vive sua família, onde
está seu povoado.
De pronto alzó los ojos al cielo y se dcuenta de que estaba completamente sola en el
mundo sin más compañía que aquel motorcito invisible que fabricaba imágenes por
117
dentro de su cabeza. Pero lo pensó con orgullo, y de aquella soledad le brotó un chorro
de fuerza dolorosa y desconocida
214
.
O poder do inventar brilha aos olhos da menina que não conheceu o medo de arquitetar a
realidade, de acomodá-la, senti-la de variadas formas, desde variados corpos, sabores, odores.
Comprendió que solo ella misma podía darle cuerda a aquel motorcito maravilloso de su
cabeza, que de vez en cuando se le paraba, como un gramófono sin cuerda, y la dejaba
con el mundo a oscuras. Ahora ya lo sabía: nadie la iba a ayudar a agarrar la manivela,
pero tenía toda a la vida por delante para aprender a hacerlo
215
.
Quando a narrativa da menina se acaba, também é abolido o tempo-espaço quixotesco de
sua ficção. As utopias são colocadas no plano da realidade e se desfazem, até que novamente se
transformem em utopia, como a plena democracia espanhola.
Este texto aqui nos serve para o melhor entendimento das outras narrativas de Carmen
Martín Gaite, mas é revelador de um porvir “democrático”. É pelo viés da literatura que se revela
um discurso feminino que almeja fugir da esfera social e ficcional para adentrar-se na esfera
política, discutindo, reelaborando, denunciando as relações assimétricas de poder existentes nos
constructos ditatoriais. Nesse sentido, os contos de Martín Gaite possibilitam o vislumbre da
emancipação da mulher espanhola, através dos sonhos, através do beiral das janelas. Isso nos
remonta ao dizer de Showalter
216
de que esse discurso (o feminino) apresenta um caráter duplo,
pois abarca a história dominante e a silenciada.
Em Un día de libertad
217
, conto escrito no ano de 1953, há o centramento em uma
personagem masculina estruturada em um narrador autodiegético. Aqui as relações de gênero são
discutidas a partir dos papéis socialmente pré-estabelecidos. A não comunicação e a angústia não
abandonam a personagem e revelam o cerceamento do sujeito no regime de autoritarismo
vigente. Recordemos que, desde 1946, as relações diplomáticas espanholas haviam sido banidas,
assim como a participação do país em órgãos da ONU. Somente em 1955 haverá a abertura
214
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 215. p. 206.
215
Idem. Ibidem. p. 207.
216
SHOWALTER, Elaine. Op. cit. nota 61.
217
MARTÍN GAITE, Carmen. Un día de libertad. In: ___. Cuentos completos. Op. cit. nota 136. p. 39-54.
118
política internacional, que irá ocasionar os primeiros diálogos com os pensadores espanhóis
exilados desde a instauração do regime franquista
218
.
O início de tal processo se a partir de 1950 quando os Estados Unidos da América, ao
protagonizarem a Guerra Fria, nomeiam um embaixador em Madri. O diálogo com sujeitos
exteriores ao espaço franquista traz à Espanha o Existencialismo que viria a rediscutir os modelos
literários apregoados pela geração Neo-Realista. Este percurso se coaduna à literatura de Martín
Gaite que, ainda que pertencente a concepções marxistas da arte, conduz suas personagens
através de questionamentos acerca da própria existência, deflagrando um sujeito apático em seu
presente, potencializando a reflexão do leitor. Como assevera Barrero Pérez, “los cuentos de
Carmen Martín Gaite son, como sus novelas interiorizaciones apesumbradas por los déficts
eternos del ser humano: la soledad, la incomunicación, el desamor”
219
.
No conto em questão é narrado um dia de liberdade de um homem que está preso a uma
circunstância: o desemprego. Em dez anos nada se modificara em sua vida até que em
determinado dia resolve transformar o curso de sua vida e pede demissão de seu emprego. Esse
dia de libertação o encarcera na angústia e desolação frente a uma existência amorfa. O narrador
não revela sua situação à Marta, sua esposa, e sai pelas ruas (pela primeira vez observando-as de
fato) com a pressa de um trabalhador, mas a mesma realidade que o condena a ser mais um entre
tantos se lhe revela alheia, tornando-se prisioneiro da situação que silencia
He ensaiado a ir más de prisa, a sacarme las manos de los bolsillos, pero me há parecido
que todos notaban que era mentira, que no lo sabía hacer. Entonces pensé que iban a
echárseme encima como policías pidiéndome la chapa verde, esa etiqueta de algo que
siempre hay que llevar
220
.
A menção ao controle militar é feita na mesma ordem das ruas e das multidão de
transeuntes dando-lhe o caráter das coisas estabelecidas, do curso natural daquele seu contexto,
218
DÍAZ, Elias. Pensamiento español en la era de Franco (1939-1945). Op. cit. nota 119. p. 52-66.
219
BARRERO PÉREZ, Oscar. Historia de la literatura española contemporánea (1939-1990). Op. cit. nota 120. p.
123.
220
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 219. p. 41
119
habitado pela desolação do período entre as duas Guerras Mundiais, que trouxe à Espanha sua
Guerra Civil (1936-39) e toda a calamidade do franquismo decorrente.
O desprender-se do entorno caótico o amarra a seu labirinto interior e à busca do fio de
Ariadne que o conduza à saída. A imagem de Marta o atormenta, e a raiva que sente por ela
parece ser o espelhamento da sua própria condição: a resignação que ela demonstrou em relação à
problemática da vida se assemelha à sua frustração diante da “liberdade” forjada que alcançou.
A rememoração da infância (elemento recorrente nos contos aqui analisados) se mistura
às suas últimas horas no escritório e o suor de seu corpo o leva a um rio ao qual nunca retornou
(outro elemento recorrente), e que parece conter o singo de seu retorno a si e não ao outro que
habita agora seu corpo: “sentía la camisa empapada, y me acordaba de un recodo que hace el río
de mi ciudad cerca de uma pequeña presa, donde iba a bañarme de chico com mis primos. No he
vuelto nunca allí”
221
.
A libertação então acontece: o homem que tomou seu corpo parece desprender-se e o
despertar da mulher “ventanera” se estende a um menino que sonha e que tem significação: Pies
de Plata esse era o nome do menino que se vestia de índio para brincar com os amigos. A
recordação do nome, a recuperação da palavra, o liberta do taquígrafo que redige uma carta ao
chefe em uma tarde de verão escaldante.
Pies de Plata, que fala a partir da praia da memória, não rereconhece seu “superior”, com
quem dez anos convive e lhe revela isso para o espanto de todo o escritório, que também não
lhe é familiar, e se pergunta “¿ Con qué ojos había mirado esto durante 10 años para no haberlo
visto nunca hasta hoy?”
222
.
O pico desta liberdade o acompanha a casa onde ensaia seu discurso à Marta e revê os
argumentos nos quais se alicerçam sua busca por liberdade: a guerra, a injustiça social, a
221
Idem. Ibidem. p. 43.
222
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 219. p. 46.
120
felicidade e os contra-argumentos nada hay s temible que los consejos de la gente
equilibrada, de buen critério”
223
.Quando sua esposa chega a casa está banhada pela escuridão que
a vivacidade do sonho não o havia deixado perceber. Guiado por Marta e calado por si, desiste.
Lendo em Marta um discurso que não lhe deu a oportunidade de proferir, decide, às luzes da
cozinha, que no outro dia tentará ser readmitido, decisão “equilibrada, de buen critério”.
Do mesmo universo sombrio da existência vulgar emergem os personagens de La
oficina
224
conto que também foi escrito na década de 50 (1954) e que apresenta um universo
ficcional povoado por anônimos que ganham sentido quando transportados à categoria de sujeitos
da ação, uma ação de inércia da qual se esvai a vida. Aqui é narrado o cotidiano de um escritório
por uma narradora heterodiegética que habita dois sujeitos Mercedes e Matías Manzano, “un
hombre adormecido, maquinal”
225
.
A crise identitária insurge da questão existencial revelada pelo discurso de Martín Gaite,
expondo um sujeito alheio a sua própria vida comandada pela engrenagem que reduz o
trabalhador a um mero cumpridor de tarefas. O enunciado ficcional cobra seu espaço no fazer da
história e garante o esboço de um testemunho mudo de uma mulher e de um homem
automatizados, domesticados pelo cerceamento.
Matías e Mercedes são colegas de trabalho e se conhecem superficialmente, o movimento
de seus corpos e as poucas palavras pronunciadas perdem seu sentido inicial pela reincidência,
mas não deixam de repetir os mesmos movimentos, o que são está preso à rotina do não ser.
Quando sai às ruas com uma amiga, Mercedes ganha certa liberdade, o cansaço inexiste perante a
sede que tem da paisagem sonora, plástica e pictórica das ruas, seu passeio lhe faz assistir o
mundo como em uma película na qual é espectadora. É através da história do outro que observa a
sua
223
Idem. Ibidem. p. 50.
224
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota.136. p .20-38.
225
Idem. Ibidem. p. 20.
121
Durante mucho rato se miraban los ojos de fuera y los del espejo se buscaban hasta
acercarse y fundirse. Y los de dentro, pronto tenían a flor el hilo del llanto. Al menor
temblor de pestañas, la primera lágrima caía, dejando una huella seca y ardiente en la
piel de la mejilla, un cauce tirante de sed que pedía más lágrimas. Era algo necesario y
natural, como la lluvia. Lloraban largamente los ojos de Mercedes, sintiendo la
compañía de aquellos del espejo, que por fin la habían reconocido.
226
O apartar-se de si marca este sujeito feminino que silencia o existir, que busca no espelho
a si e tarda a encontrar. Aqui se mostra a política da arte de Martín Gaite, cuja denuncia está na
elaboração de um sujeito que é anônimo a si mesmo, que não encontra sua representação e cuja
imagem não revela sua essência nesses olhos que são seus, mas que lhe são alheios.
Na perspectiva de um discurso da nação espanhola, observa-se aqui um discurso de fatos
reais que contrariam versões oficiais de um povo homogênico, de uma mulher e de um homem
cuja representação tenta resgatar a situação do sujeito espanhol de então.
Lo que queda enterrado
227
é um conto escrito em 1958 e estrutura-se a partir de María,
personagem e narradora homodiegética. Ao dar voz a esta personagem, o texto ganha a expressão
feminina que se lança ao sonho, à recordação, ao medo, ao pranto e ao silencio e que assim
constrói, na instância narrativa, a visão de mundo feminina, assegurando o domínio de seu
próprio discurso.
Ao transitar entre o sonho e a realidade, entre as esferas individual e coletiva, a voz da
narradora permite reestabelecer o discurso feminino a partir de sua experiência, subvertendo ao
mostrar um enunciado alternativo ao falocêntrico, de modo a buscar a identificação do feminino
na categoria discursiva da representação literária.
O conto se dá em Madri alguns dias do mês de junho – a inexistência de dêiticos
temporais mais específicos não nos permite precisar sua duração quando as vidas de María e
Lorenzo, seu marido, parecem não se encontrar, ainda que habitando o mesmo espaço. Maria está
226
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 226. p. 26.
227
MARTÍN GAITE, Carmen. Lo que queda enterrado. In:__. Op. cit. nota 136. p. 55-74.
122
grávida de seus segundo filho, mas o tormento da morte do primeiro não a abandona, deixando-a
cada vez mais alheia a seu entorno.
O desânimo com seu mundo e a dor da perda se dissipam com a mágica de sonhar e de
transportar-se para um espaço-tempo “seu”, que a isola da mediocridade cotidiana daquela Madri
escaldante. A disparidade do mundo que cada um vive faz com que o desentendimento se torne
costumeiro, assim como a solidão
Detrás de un silencio así, sin motivo, estallaba la riña. No le podía decir que me irritaba
que leyese el periódico. Nos habíamos reído tantas veces de los matrimonios de los
chistes. Me empezaba a quejar de soledad, de cualquiera cosa, ya no recuerdo. Todo lo
mezclaba: iba formando un alud confuso con mis palabras y bajo él me sentía aplastada
e indefensa.
228
.
María é uma dona-de-casa e seus dias parecem resumir-se à espera de Lorenzo, que as
tarefas domésticas não a interessam mais. O isolamento em seu próprio mundo a afasta também
de sua irmã, cuja experiência como mãe de quatro filhos e os conselhos que se mostram absolutos
lhe são enfadonhos.
O silencio então a toma e sua insatisfação se revela em um discurso povoado por
recordações da infância e da adolescência, que surgem a partir de um sonho no qual, em meio a
uma guerra instaurada nas ruas de Madri, reencontra Ramón, um amor da juventude. É assim que
as estratégias da narrativa se estruturam a fim de permitir a expressão dessa subjetividade
feminina, secularmente calada, em um sonho no qual tenta alçar, sem medo ou oscilação, as
âncoras do último navio que os levará daquelas ruas bombardeadas. Desse escape às concretudes
brota em María a necessidade por libertar-se. O sonho que tivera na sesta daquela tarde não lhe
permite conciliar o sono naquela noite. É a partir disso que, ao amanhecer, sai ao acaso pelas ruas
da cidade naquela manhã de domingo até deparar-se com o desejo de tomar um trem cujo destino
só se lhe define ao ser questionada por outra passageira.
228
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 229. p. 56.
123
Habéis empujado hacia estas piedras./ Me habéis amurallado/para que me
acostumbre./ Pero aunque ahora no pueda/ ni intente dar un paso/ ni siquiera proyecte
fuga alguna, ya que es por allí/ por donde quiero ir,/ sé por dónde se va./ Mirad, os lo
señalo:/ por aquella ranura de poniente
229
.
O poema de Martín Gaite se coaduna à sorte de María, que sabe ser necessário encontrar
um novo caminho, cujo destino lhe é desconhecido, mas feito da certeza de estar presa e da
projeção de desatar-se das pedras e amarras que lhe foram impostas pela condição de sujeito
feminino, pela condição de um sujeito oprimido na sociedade de Franco.
María passa o dia em outra cidade, e ali parece ver-se novamente como sujeito, ainda que
um sujeito anônimo habitando um espaço estrangeiro, e é também como estrangeira que retorna à
casa ao anoitecer. Lorenzo espera María na rua e ela lhe roga que o filho que nasça seja um
homem, pois conhece o destino da mulher: “las niñas sufren más”
230
e a certeza que não encontra
em si busca em seu marido que lhe “assegura” força para cumprir seu destino: “Ya vendrá.
Vendrá todo lo que tenga que venir”
231
. Assim tem término a narração, projetando a narrativa para
um desprender-se que ainda não encontrou seu tempo.
Onde, então, se articula a noção do discurso feminino que re-significa o discurso da nação
espanhola regulada por um sistema arraigado em modelos tradicionais? O discurso ficcional
permite que haja uma nova circulação da representação da mulher, que é determinada por este
contexto, fazendo de sua poiésis uma alternativa crítica ao sistema hegemônico. A representação
da mulher feita pelo outro (masculino) nos emoldura em categorias engessadas (Pero aunque
ahora no pueda/ ni intente dar un paso/ ni siquiera proyecte fuga alguna, ya que es por allí),
tornando nosso estar no mundo uma incoerência entre o ser e sua representação.
Butler insiste que refutar os regimes reguladores do gênero passa por uma rediscussão da
(...) possibilidade de subverter e deslocar as noções neutralizadas e reificadas do gênero
que dão suporte à hegemonia masculina e ao poder heterossexista, para criar problemas
229
MARTÍN GAITE, Carmen. Certeza. In: __ . Poemas. Op. cit nota 20. p. 69.
230
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 229. p.74.
231
Idem. Ibidem. p. 74.
124
de gênero não por meio de estratégias que representem um além utópico, mas da
mobilização, da confusão subversiva e da proliferação precisamente daquelas categorias
constitutivas que buscam manter o gênero em seu lugar, a posar como ilusões
fundadoras de identidade
232
Se a construção do gênero passa por condicionantes sociais que postularam a hegemonia
do homem, é através desta mesma sociedade que será possível buscar as ranhuras pelas quais o
feminino encontrará seu lugar no discurso da nação; posicionando-se como sujeito cujo discurso
político, transformador das “verdades” impostas pelas práticas e discursos contínuos do
cerceamento. Essa mudança de perspectiva das representações sociais altera categorias e
conceitos instituídos como verdades discursivas.
O percurso literário de Martín Gaite, que nasceu do movimento neo-realista, possibilita o
repensar das próprias teorias marxistas a partir da crítica feminista. Cabe, então, ressaltar os
posicionamentos de Buarque de Hollanda apontados em outro momento quando lembrava o dizer
de Benjamim (é preciso historicizar sempre) que se coaduna a Nicholson
233
quando esta reclama a
necessidade de re-historicizar a partir do feminino nas esferas política, social e cultural de nosso
tempo.
O re-historicizar desta ficção se através do relato de um mundo visto através das
janelas da mulher espanhola, que se abrem ao sonho e também ao fantástico. No primeiro
capítulo fez-se um passeio pela produção ensaística de Martín Gaite. Em um destes momentos,
foi apontado que para ela o fantástico possibilita à mulher escrever um universo que é de seu
domínio. Destacamos especialmente esta relação no conto Mujer de cera
234
, publicado em 1954.
Este texto comporta o universo fantástico através das visões que atormentam a Pedro Alvarez a
partir de uma borrachera, e é na sua embriaguez que suporta e projeta o que na realidade não é
capaz de se libertar: a inércia, o medo da perda e a repressão.
232
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. (tradução Renato Aguiar). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 60.
233
NICHOLSON, Linda. Feminismo e Marx: integrando o parentesco com o econômico. In: BENHABIB, Seyla;
CORNELL, Drucilla. Feminismo como crítica da modernidade. (Tradução de Nathanael da Costa Caixeiro). Rio de
Janeiro: Rosa dos Tempos, 1987. p. 23-37.
234
MARTÍN GAITE, Carmen. Mujer de cera. In:__. Cuentos completos. Op. cit. nota 136. p. 169-190.
125
Depois de passar o dia fora, vagando à espera de um valor a receber e de uma
oportunidade de emprego que não se concretiza, Pedro, como de costume, se dirige ao bar de
sempre com um amigo. chegando, recebe de imediato o aviso de que sua esposa, Marcela,
ligou sem deixar recado. Apenas em duas outras ocasiões Marcela havia telefonado ao bar:
quando sofreu um aborto e quando lhe “fueron a buscar aquellos tipos”
235
. Ainda assim, Pedro
ignora a possibilidade de urgência e não retorna a ligação, afirmando a si a inexistência de pressa.
Na noite anterior, o casal havia brigado e Marcela ameaçou deixá-lo
Pero Ramón ya la reconoce por la voz. El primer día, para darme a entender que la
compadece, me dijo que tenía voz de santa. Hoy dice que estaba nerviosa. Ella siempre
habla con esa voz dulce, como martirizada. En el fondo, me gusta que haya llamado. Es
buena señal. Se somete otra vez, ya se arrepiente del enfado de anoche, de sus escenas
histéricas. Me echa de menos, me llama.
236
O narrador homodiegético, que fala em silêncio, cala sua esposa, sentindo-se vencedor
por mais uma submissão daquela frágil e “martirizada” mulher. Os papéis sociais, dos quais se
revestem, se ajustam aos moldes impostos pela sociedade e mascaram a frustração do narrador,
que somente se revela quando está de fato só. Decidido a ir a casa e voltar ao bar assim que
possível, Pedro embarca em um trem que o levará aos seus medos.
Os instrumentos de cerceamento contínuos se mostram quando o narrador começa a
sentir-se observado por alguém neste espaço de transição em que se encontra. Vale observar que
o trem é recorrente nos contos de Martín Gaite como veículo de fuga; um veículo guiado pelos
trilhos dos quais não escapará, cumprindo inequivocamente seu percurso estipulado. Todas as
possibilidades de fuga que se pode acompanhar são frustradas, pois necessitam da ação da
personagem para desembarcar definitivamente em alguma estação que modifique em definitivo o
rumo de sua trajetória. Os passeios são escapes que levam ao sonho e ao fantástico e apresentam
uma visão outra da realidade com a qual se imagina, ou se nega.
Pedro recorre ao subterrâneo do metrô como a um labirinto que o protege da realidade
coletiva, na qual não encontra pertencimento, é neste universo oculto que se identifica com outros
235
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 236. p. 174.
236
Idem. Ibidem. p. 174.
126
seres “como posibles compañeros de muerte”
237
. Esta morte que o acolhe é da mesma trama do
fantástico no qual adentra: observando os demais passageiros e detendo-se em duas mulheres
acompanhadas de seus filhos, sente-se observar por uma outra mulher. Tenta evitar olhá-la, mas a
figura que o hipnotiza também o espelha Yo pertenezco a la misma órbita de esta otra”
238
. Este
portal que se abre revela o medo que sente, e que tenta esconder; já quando se encaminhava para
estação, suas faces de insegurança emergem “me empieza a disminuir la seguridad fanfarrona con
la que me quiero cobrir siempre”
239
.
A mi lado. Me estaba mirando. ¿Por qué me daba miedo levantar la cabeza? Era miedo,
realmente. Y estábamos todavía dentro del mismo túnel interminable. Sou imbécil
pensé - ; me estoy volviendo imbécil. Y decidí mirarla.
240
O medo que sente dos olhos desta passageira se concretiza quando os observa em um
rosto morto, no qual somente eles parecem existir. Assim assiste o espelhamento da própria alma
em um corpo aprisionado pela morosidade de um sujeito anulado e no olhar do outro (mulher)
seu próprio desassossego. A figura desta mulher desvela o que calou e a própria morte que se
disfarça em corpo que está à espera do nada.
Descoberto o rosto, a passageira lhe mostra o que traz envolto em um pano negro: um
bebê morto coberto de marcas de facadas e sangue. O horror daquela imagem mescla e representa
seus medos: a presença da esposa (que talvez tenha perdido na briga da noite anterior) e o filho
que jamais nasceu. Contente em ter sido o único em ver o corpo daquele bebê esfaqueado, Pedro
se encaminha para a saída do trem, estações antes da sua. A urgência por escapar daquela
imagem se soma à vontade de encontrar Marcela. Porém, ao chegar a casa percebe que a
submissão da esposa fora vencida por sua coragem e encontra um bilhete que comprova as
ameaças de abandono proferidas na briga
Estiro el papel y lo releo, sentado en la cama. Me tiemblan las manos. No lo que me
pasa. A mi furor a sucedido un bache de miedo, de sentirmme en atroz soledad. Pienso
237
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 236. p. 176-177.
238
Idem. Ibidem. p. 177.
239
Idem. Ibidem. p. 175.
240
Idem. Ibidem. p. 178.
127
en la taberna como en un refugio, pero me acuerdo de la mujer del Metro y no soy
capaz de salir al pasillo para irme
241
.
Novamente o medo lhe toma e é isto que o move a fugir daquela casa que cheira à cera,
buscando novamente seu anonimato da vida cotidiana e a valentia que a embriaguez lhe pode
garantir. Quando a casa retorna, completamente entorpecido pelo álcool, depois do reencontro
com os amigos, Pedro percebe uma mulher sentada na escuridão de seu quarto, através de seus
olhos fixos, no nada, descobre que esta é uma mulher de cera, comparando-a também à Marcela
em sua mudez e apatia. Suas obsessões se concretizam nestas mulheres de presença fantástica e
simbolizam o que abomina e o que ama. Estas janelas do fantástico libertam a expressão de Pedro
calada por suas máscaras, e denunciam o papel ao qual relega sua esposa, rechaçando-a a um
espaço de opressão do feminino submisso e servil.
Este escape ao fantástico se encerra quando Marcela retorna a casa, assegurando-lhe que
ali permanecerá e assim se revela sua solidão e a solidez de seus medos e inércia. Esta é uma
narrativa que se alicerça na narração de um homem atrelado aos princípios mais tradicionais da
relação de gêneros, mas através da representação do fantástico, a vulnerabilidade desse universo
de dominação masculina é abalada e, portanto, questionada.
As relações epistêmicas da crítica feminista se alicerçam justamente na contestação do
modelo patriarcal instituído. Esse constructo, como é sabido, interfere e condiciona as
representações sócio-culturais e, assim, o universo simbólico da ficção resulta de um imaginário
povoado de estruturas também falocêntricas. A mudança da perspectiva de análise deste “todo”
passa pela necessidade de uma revisão da história seja em seu discurso oficial, ficcional,
marginal. Como apontava Lucien Goldman, “toda sociologia do espírito admite a influência da
vida social sobre a criação literária”
242
Esta proposição nos remete às teorias marxistas (da arte)
que entendem as relações econômicas se relacionadas às sociais, culturais, familiares etc. Neste
241
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 236. p. 181.
242
GOLDMAN, Lucien. Materialismo dialético e história da literatura. In: Dialética e cultura. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1979. p. 71.
128
aspecto, é possível refletir acerca das aproximações e distanciamentos epistemológicos entre a
Teoria marxista e a Crítica feminista.
Benhabib e Cornell concluem, através da análise de Nicholson, que
(...) devemos re-historicizar as categorias da teoria social marxista, revelando suas
raízes na experiência da modernidade ocidental. É também à luz dessa teoria da
modernidade que podemos começar a compreender muitas divisões características entre
o público e o privado; o político, o social o econômico e o familial, em cuja esfera as
vidas e experiências das mulheres se desenrolam em nossa cultura e em nossas
sociedades
243
.
O discurso ficcional de Martín Gaite, como se vem apontando no decorrer deste texto,
surge calcado a concepções marxistas. O intento denunciatório de sua geração pede uma
transformação social através da conscientização das classes. Assim, é oportuno questionar o lugar
de seu discurso como revelador da condição de subjugação feminina e como possível
proclamadora de um materialismo histórico.
Esta discussão se ajusta ao propósito de revisitar o discurso preservado pela “verdade
histórica” que condicionou a geração espanhola da década de 1950 ao realismo social que
pretendiam divulgar. Neste aspecto, o artigo de Nicholson contribui para a reflexão sobre as
principais divergências das teorias em discussão, e permite o redimensionamento do espaço de
Carmen Martín Gaite como promotora de um discurso marxista e feminista, e as contradições que
este constructo pode gerar em sua obra ficcional. Pois, ao denunciar um arranjo social bipartido
em dominantes e dominados, restringe a reivindicação de um discurso de afirmação da mulher
como autora desta narrativa social.
(...) é nas próprias ambigüidades do conceito de Marx de “produção” que se juntam as
falhas da teoria em compreender gênero e sua tendência a universalizar relações sociais
capitalistas. (...) A crítica feminista vai além do que é em geral percebido como um
243
BENHABIB, Seyla; CORNELL, Drucilla. Feminismo como crítica da modernidade. (Tradução de Nathanael da
Costa Caixeiro). Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1987. p. 11.
129
apelo relativamente superficial a incorporar gênero; a tornar-se uma voz poderosa na
análise de sua fragilidade básica e um meio necessário na tarefa de sua reconstrução.
244
.
Quase vinte anos após a publicação deste artigo no Brasil e de ter sido a obra de Martín
Gaite acabada, percebe-se que o entorno de sua produção nos anos de 1950 não limitaram sua
contística à visão maniqueísta defendida por sua geração. Martín Gaite transgrediu as imposições
de sua época, reforçando um discurso que não somente se opôs ao franquista, mas que promoveu
um espaço de raízes profundas à enunciação do universo feminino.
(...) Para nosotros eran experiencias agotadas lo que para los demás eran cosas inéditas
y por venir. Nos encontrábamos en la fila de vanguardia de las transformaciones
históricas, dentro del mundo occidental (...) ¡Qué gran camino el hecho por España
desde los días en que el comunismo contaba con dominar en Nuestra Patria,
desconociendo los recursos de heroismo y de abnegación de nuestro pueblo!
245
.
Este fragmento é parte de um discurso pronunciado pelo General Franco em 1961 e
transparece o discurso ilusório de uma Espanha em progresso, na qual o comunismo” seria um
inimigo transposto, vencido pela democracia somente existente na voz do general cujo discurso é
banhado pelo autoritarismo. Esta suposta liberdade democrática é denunciada nos textos de
Martín Gaite que tecem o cotidiano de sujeitos comuns que vivem o desamparo, a angústia e a
solidão de viver naquela nação cerceadora e desigual.
Se me ha gastado el a,/atropelladamente/en idas y venidas,/en gestos y recados/que al
hacerlos juzgaba necesarios./-/Desperdiciado, débil y oscilante,/el número equis ene de
mis días/era un cabo de vela/y afuera lucía el sol de la mañana./-/ El sol se hunde en
silencio/y soplas la bujías/y se envuelve en su manto como rey./-/El número equis ene
de mis as/ murió de muerte necia./-/Ahora lo estoy llorando/cuando veo a las
nubes/ponerse un traje grana/para morir también
246
.
Este poema é tecido do mesmo desencanto que veste as personagens da narrativa,
enclausuradas em um período de desilusão e desconforto, do qual não conseguem se desprender.
244
NICHOLSON, Linda. Feminismo e Marx: integrando o parentesco com o econômico. In: BENHABIB, Seyla;
CORNELL, Drucilla. Feminismo como crítica da modernidade. (Tradução de Nathanael da Costa Caixeiro). Rio de
Janeiro: Rosa dos Tempos, 1987. p. 23-37. p. 37.
245
FRANCO, Francisco. Mensaje al pueblo español en el XXV aniversario de la exaltación a la jefatura del Estado.
p. 298. In:__. Discursos y mensajes del jefe del Estado: 1960-1963. Madri: DGCPE, 1964. p. 291-306.
246
MARTÍN GAITE, Carmen. Muerte necia. In: ___. Poemas. Op. cit. nota 20. p. 81.
130
A extensão do tempo é prolongada pela não-ação do sujeito-personagem que se liga aos
principais temas de Los informes
247
, do ano de 1954, o desamparo e a solidão. O conto acontece
em alguns minutos da vida de Concha, uma moça vinda do interior que busca um emprego como
doméstica.
A narradora heterodiegética e onisciente revela um traço determinante da personagem, sua
solidão; não são revelados dados de sua composição física ou psicológica, se sabe de suas
reações, nestes minutos em que se dominada pela completa solidão, em que seu próprio eu
parece não habitá-la.
Concha chega de trem àquela cidade sem ter destino certo. Deixa sua bagagem em uma
fruteira de bairro e logo sai em busca de trabalho. É que se dá a narrativa, quando a
personagem vai a uma casa de família, que precisa de uma doméstica, e espera. Esse período é
povoado da esperança em poder já passar a noite naquele lugar em que sonha envelhecer
Se pregunta si todo esto le llegará a ser familiar, si ya mañana mismo y todos los días
que sigan pasará delante de ello sin mirarlo más que para quitarle el polvo, sin que le
extrañe su presencia. Ella se piensa portar muy bien. A lo mejor se hace vieja en esta
casa, pisando por encima de esta alfombra, abriendo y cerrando estas puertas que ahora
no sabe siquiera a qué habitaciones corresponden
248
.
O desespero em nada possuir faz com que não se preocupe com o destino de seus
pertences, guardados de vontade no pequeno comércio; também o mesmo sentimento a faz
desabafar com a copeira que a atende, contando-lhe que havia retornado ao interior, após seis
meses trabalhando em casa de família, pois sua mãe estivera doente por dois anos até falecer.
Com a morte da mãe, Concha se vê sem ter a quem recorrer, sem ter para onde voltar.
Quando finalmente é atendida pela dona da casa, lhe como referência a família para
quem trabalhara. À espera da permissão para viver e pertencer, Concha ouve murmúrios que se
desfazem na distância, mas que a fazem perceber que algo não está bem naquele telefonema. Ao
247
MARTÍN GAITE, Carmen. Los informes. In: ___. Cuentos completos. Op. cit. nota 136. p. 300-15.
248
Idem. Ibidem. p. 305.
131
voltar à sala, a senhora não lhe dirige a palavra até que lhe informa que as referências haviam
sido as piores, pois supostamente a moça teria roubado na casa em que antes trabalhara.
Desconsolada e certa do equívoco, Concha sai daquela casa, sendo observada pela criança, que
poderia ter cuidado, acompanhando-a com o olhar, através da janela, até que se torne só um ponto
preto entre os transeuntes e comece a nevar.
¿Era por aquí?/ ¿O he perdido el camino?/ Casi llego a lo alto de la cima/ Y n
vislumbro un poco, / si vuelvo la cabeza,/ serpeando allá abajo, / la veredita aquella/
orla de manzanos. / Tal vez era la mía./ Y las voces de antaño me despiertan./ Sopla un
viento muy frío, / noto un poco de vértigo/y tengo que seguir/ subiendo como pueda, /
sin mirar para atrás. / Ya casi estoy llegando/a lo alto de la cima, / y me pregunto si era
por aquí
249
.
O destino de Concha parece trágico, pois o infortúnio lhe acompanha na prática moderna
de sobrevivência diária da mulher de então que busca caminhos sem saber que, labirinticamente,
está presa a injustiças políticas e sociais. Concha se sente inferior e se concebe inferior por ser
mulher ao questionar-se se teria conseguido melhor preço com a venda da casa da família. Estas
denúncias tácitas provocam o leitor que a tirania do real levada ao plano ficcional; a estrutura
da narrativa se serve de um espaço (a casa onde Concha busca emprego) que oprime a
personagem, colocando-a diametralmente oposta à situação privilegiada da “senhora”, que julga
sua “sofrível” aparência, mas não a observa de fato. Esse espaço de clausura permite a expansão
da futilidade burguesa e a inibição dos projetos futuros da mulher interiorana em um diálogo de
poucas palavras, mas revelador de posições adversas do mesmo universo feminino.
Pensar na estrutura estabelecida na ficção é pensar na ideologia falocêntrica que está
sendo contestada, introduzindo uma ideologia outra que parte de um eu criador feminino, com
ideais marxistas de arte, comprovados pelo seu (de Martín Gaite) comprometimento com a
geração de 1950, e que projeta um discurso politicamente engajado à luta do feminino como
construtor do discurso da nação espanhola.
249
MARTÍN GAITE, Carmen. ¿Era por aquí?. In: ____. Poemas. Op. cit. nota 20. p. 89.
132
As profundas desigualdades deste universo são expostas na obra artística de Martín Gaite
como reflexo de uma sociedade que se viu empoderada pelo patriarcado ditatorial de Franco, mas
que luta (ao representar) por uma transmutação em que a democracia fabulosa dos discursos do
Generalíssimo se transforme em uma efetiva realidade igualitária em cujo enunciado as margens
estejam inseridas.
Esta nação vista pela ótica franquista, historicamente marcada pela figura de grandes
cavaleiros, cobriu-se de um caráter predominantemente masculino, excluindo Celestinas
250
e
privilegiando Doñas Jimenas
251
que esperam pela volta solene de seu marido. As armas que a
literatura de Martín Gaite encontrou foram o desafio de mobilização e de combate através da
estrutura de um discurso ficcional que revela a mulher que sonha, através das janelas das casas,
em libertar-se de um mundo que lhe é estranho, mas que vive a realidade que a enclausura em um
modelo ético e estético imposto pela ordem política.
O “outro mundo possível” é construído, pelas personagens da constística de Martín Gaite,
no escape de um sujeito composto de dois elementos determinantes de sua condição: sua nação e
seu gênero. Estas categorias não são abolidas, porém, reescritas, remodeladas pelo outro que é o
si mesmo. O ser engessado pela ordem e que vive sob este domínio, mas que consegue narrar-se
como um outro que encontrará no discurso ficcional a consciência da repressão, a necessidade de
fuga e a certeza do não-pertencimento.
250
Celestina é personagem da obra homônima de Fernando Rojas, que marca a transição entre os períodos medieval
e renascentista. Prostituta e cafetina, a personagem promove, através do feitiço de seu discurso, o amor de Melibea
pelo apaixonado Calixto.
251
Doña Jimena é esposa de Rodrigo Díaz de Vivar, por quem espera e obedece, respeitando a imagem de
santificada da mulher medieval, no poema épico El cantar del mío Cid, já comentado em outro momento.
133
Outras considerações
134
Alheia a uma estética esvaziada de sentido ideológico imediato, a arte produzida por
alguns pensadores no século XX garantiu a sanidade de uma sociedade que por eles foi
representada como múltipla. Saber-se pertencente a um espaço de um saber, de uma razão,
sem compactuar com esta ótica, promoveu o isolamento do sujeito, banindo sua individualidade,
suas escolhas, sua liberdade.
A razão marxista do período não previu a diversidade, tampouco pensou a questão do
gênero, mas possibilitou a tomada de consciência de uma classe subjugada. Ao não se identificar
com sua representação midiática e cultural, a mulher que viveu a Espanha do período franquista
conformou-se, deformou-se ou, através da literatura ficcional, vislumbrou um discurso que se
assemelhava ao seu, ou que lhe mostrava alternativas de libertação. Nessa ótica surgiram os
primeiros textos de Carmen Martín Gaite, que superaram as limitações geracionais e alçaram um
questionamento que excedeu a luta de classes, descando seu foco sobre a perspectiva da
narradora “ventanera”.
Esta narradora surge na narrativa de Martín Gaite através de seus contos e desenvolve-se
como uma voz que transita entre o possível e o real, entre o sonho e a realidade, entre a apatia e a
consciência da mediocridade do universo que é narrado. O discurso “ventanero” não observa a
trajetória da personagem feminina, mas repousa sobre o sujeito de modo geral, em uma
perspectiva do feminino. Em uma perspectiva vista sobre as frestas das janelas cercadas pela
ditadura do período.
A nação espanhola ganha novo contorno ao ser personagem de uma ficção tão onírica
como real, cuja ideologia e estética ergueram importantes alicerces contra o regime franquista. As
estratégias de negociação entre o proibido e o permitido se arranjam de tal modo nos contos
analisados, que as denúncias feitas nestas narrativas parecem escancaradas ao leitor do século
135
XXI.
A estrutura vertical da narrativa curta permite que esta narradora “ventanera” remeta o
narrado a outros universos, externos à narrativa. Na maior parte dos contos de Martín Gaite
selecionados, o mundo é observado por este olhar que está preso a um corpo, que está preso a
uma casa, que está presa a um contexto de silenciamento, em que a simplicidade do cotidiano de
mulheres e homens “comuns” ganha a complexidade de sua existência feita de angustia,
frustração, renuncia, sofrimento e clausura.
Esse olhar observa o mundo em sua multiplicidade e representa, metonimicamente, o
sujeito espanhol cerrado em uma ditadura ferrenha, mas que, a partir das janelas que se abrem, se
prisioneiro da sociedade, mas especialmente de si. Assim, esta nação enunciada na ficção
ganha outro contorno ao saber-se capaz de ainda sonhar e lutar pela libertação individual e
coletiva.
A presença silenciosa da mulher na narrativa da história ganha sentido na narrativa da
ficção e estabelece uma nova verdade discursiva, que rompe com o discurso absoluto que bane a
memória coletiva da diversidade de então.
Não me parece viável uma análise da literatura, ou de qualquer outro artefato cultural,
senão ligada às relações sociais dos meios em que é produzida e consumida, mas, sobretudo, a
análise das nações e dos sujeitos requerem a análise de sua produção literária. A partir disso, a
Crítica Feminista se mostra como importante aliada na desconstrução de uma estratégia
discursiva que limitava à mulher uma identidade formada pela representação feita por um outro
que a diminui e restringe.
Pensar-se como actante em uma polis constituída pelos valores da hegemonia burguesa
patriarcal representa uma ruptura neste todo sólido e, por isto, passível de ser transformado. O
processo de libertação promovido pela narrativa ficcional é doloroso à mulher, que, ao mesmo
tempo que a desperta de um sono conduzido pelo abafamento histórico, a desacomoda diante de
136
sua ação no mundo. A obediência a uma ordem, a uma máquina excludente, parece conduzir à
recompensa que o discurso alternativo não tem: acomodação, pois este segundo mostra algo que
o sujeito quer, mas para o qual é indispensável o esforço contínuo necessário às transformações.
A nação proposta pelo discurso excêntrico de Martín Gaite resgata um universo
imaginário que busca preencher o vazio do não-pertencimento da mulher no discurso oficial,
apresentando-se como uma narrativa que transcende os limites da história, abrindo nesta um
espaço para as possibilidades de ação e reação diante das faces do poder instituído. As crises das
personagens que dão motriz aos contos são representadas a fim de mostrar o sofrimento do
indivíduo, que é compartilhado silenciosamente por muitos. Suas tramas inscrevem uma Espanha
habitada pela insatisfação e pela incapacidade de libertação.
A contemplação resignada das personagens diante de seus destinos é o que as conduz na
experiência diária de submissão, mas é o leitor quem vislumbrará as possibilidades de
reformulação desta nação, assim como sua constituição no período franquista. O sujeito assim se
constitui através de sua representação e observa como um outro as relações entre ele e as
instituições de poder que se encontram em seu próprio discurso que reproduz o que também lhe
oprime. Pensar a nação a partir do discurso da mulher e da Crítica Feminista garante, não que
o papel da mulher como sujeito político e social seja preservado em nossa sociedade, mas
também um olhar sob um prisma pouco respeitado em nossa história.
As realidades da nação espanhola na era de Franco são múltiplas, mas todas se viram
maculadas pelas barbáries utilizadas para a instauração e manutenção do poder. Afora a tortura
física, que levou à morte milhares de cidadãos, desde os primeiros movimentos da Guerra Civil, a
violência discursiva quiçá tenha sido a mais eficaz e nociva contra aquela nação. O silenciamento
e a maquiagem usada nos discursos oficiais omitiram ao sujeito a consciência histórica necessária
a qualquer transformação ou contestação.
O discurso da ficção de Martín Gaite é uma força de combate contra o poder totalitário
franquista, ultrapassando o discurso da ordem, de modo a revelar uma realidade diversa e
137
possível naquele entorno de dominação.
Os caminhos de resistência observados nestas narrativas são a consciência do indivíduo de
estar preso a algo, que não parece ser mais do que à própria rotina. Nesta estratégia, os contos de
Martín Gaite se coadunam à perspectiva teórica dos estudos da Crítica Feminista, mostrando um
mesmo universo visto de uma outra perspectiva. Assim, a narrativa de ficção revela as
conseqüências do exercício do poder advindo de um regime repressor, cujos princípios estão
balizados por um constructo muito anterior a ele, e que está na própria constituição de nossa
história, que é o poder patriarcal.
É neste aspecto que se propõe uma leitura destas narrativas apoiada na teorias da Crítica
Feminista, que possibilitam a observação e a desconstrução de uma estratégia discursiva que
limita à mulher uma identidade formada pela representação feita por um outro que a diminui e
restringe.
A mulher que empresta sua perspectiva a esta outra narrativa da nação é símbolo das
várias vozes que são caladas no espaço da casa. Mas esta casa tem janelas que permitem observar
o exterior com olhos de espera, assim como permitem o tecer de seu entendimento sobre as coisas
do mundo. O olhar através destes olhos ventaneros desvela o código comunicacional que une esta
mulher ventanera a outras. Como disse o escritor Amos Oz, na recente entrega do Prêmio
Príncipe de Astúrias, se a mulher da janela de um extremo do mundo pudesse ler a narrativa da
mulher da janela do outro extremo, entenderia que suas angústias e anseios são muito
semelhantes.
É assim que o texto de Martín Gaite se comunica com a mulher espanhola que vive o
aprisionamento mesmo de suas personagens, coabitando um espaço de clausura, de espera e de
desconforto. Todas são vítimas dos mesmos agressores e precisam saber que são vítimas, e a
narradora ventanera mostra isto a seus leitores: a angustia sofrida é comum a todos aqueles
sujeitos e é resultado da violência a qual são submetidos.
138
Como denuncia a denunciou a escritora espanhola Almudena Grandes: Um dos mais
severos crimes do franquismo foi cortar os fios da memória. O sujeito espanhol viu-se obrigado a
calar, a parar de narrar a própria trajetória que parecesse suspeita àquela ordem. Formou-se,
assim, um pacto de silêncio das narrativas individuais entre os que viveram o período franquista.
Hoje a necessidade de reconstrução da narrativa coletiva de um passado desconhecido, que o
processo de transição rumo à democracia não esforçou-se em explicitar. Os grandes e pequenos
segredos guardados colaboraram com o retrocesso moral e social de gerações que abafaram as
inovações trazidas pela II República Espanhola.
A narrativa de Martín Gaite é uma narrativa política, pois denuncia um regime que não
deu lugar às vozes individuais e aos anseios coletivos, revelando sujeitos insatisfeitos em um
espaço do qual o se libertam. Os contos de Martín Gaite escrevem um período extraordinário
da história da Espanha, em que o extraordinário é apregoado como normal e normal é regra, é
norma a ser seguida. A normatização do pensamento espanhol e o estabelecimento de uma nova
ordem naquela nação foi assegurada pela figura de um grande pai protetor, que varreria dali o que
ameaçasse a concretização de seu projeto alicerçado no poderio bélico de Hitler e Mussolini, que
puderam testar suas engenhocas, bombardeando a pequena cidade de Guernica, no País Basco.
As personagens dos contos de Martín Gaite sofreram este impacto velado em seu
cotidiano de alienação da história, mas dele também são vítimas. Não ver a realidade da história
não exime o sujeito de vivê-la e de por ela ser vitimado. Esta narrativa possibilita um
questionamento, já que revela uma insatisfação presente que se dá no desprender-se da norma em
uma descontinuidade nesta linearidade, estabelecida pelo cumprimento de uma determinação, a
de ser espanhol no período franquista.
Assim começa o romance Lo raro es vivir, de Martín Gaite, escrito em 1996, época em
que a Espanha completava vinte anos sem o Regime do General Franco.
Hay veces en que lo normal pasa a extraordinário así por las buenas y lo notamos sin
saber cómo. De entre la sucesión no contabilizada de gestos, movimientos y vislumbres
que van engrosando la masa amorfa de lo cotidiano, se separa de los demás uno de
ellos, aparentemente insignificante, y salta como la nota discorde de un pentagrama, se
queda resonando por el aire con zumbido de moscardón, qué pasa, ha habido una avería
139
o esto significa el comienzo de algo nuevo, nos miramos las manos, las rodillas, qué es
lo que se ha transformado, hacia dónde enfocar la atención, no sé. Y sobreviene el
miedo o la parálisis.
Esta relação entre o normal e o extraordinário é abordada na contística de Martín Gaite, e
é sua grande estratégia de denúncia, assim como anunciado neste trecho. Esta metamorfose do
normal ao extraordinário é observada pela narradora ventanera de sua narrativa, que questiona,
com seu olhar preciso, o que é estabelecido como norma. Suas personagens habitam um espaço
regulado por uma força que determina o sujeito de então, não apenas com o controle da força
estatal, senão utilizando-a para ditar comportamentos, crenças, valores e padrões a serem
seguidos.
Este discurso, que se forma a partir das janelas, mostra a Espanha que consegue avistar de
seu enquadrado horizonte, mas, ainda assim, mostra uma posição clara sobre o que foi este
período, do modo que poderia fazê-lo, desvelando o interior das casas que guardam sujeitos
isolados, banidos de individualidade, de escolhas, de liberdade. A exemplo disso, a narrativa
140
as brigas constantes pelo poder real e as peleias entre a monarquia e os liberais republicanos
impulsionaram a perda de suas últimas colônias americanas e levaram a uma profunda crise
econômica. A reconstrução e a modernização seriam “protegidas” pelos princípios tradicionais da
moral cristã defendida pelo regime.
Si alguna contrariedad nos ofrece la gobernación del Estado, tiene también sus
compensaciones, como en estos momentos, en que vemos vibrar en un solo
pensamiento y voluntad a los hombres y a los pueblos de España (...) El Movimiento
Nacional vino a volver a España a su ser (...).
252
Este reencontrar-se banhado pelos ares das melhorias de um povo foi a grande estratégia
dos discursos do General, nos quais elementos banais do cotidiano espanhol são trazidos à voz do
líder máximo, para deste modo assegurar a identificação e o comprometimento esperado pelo
sujeito comum. A razão condutora do discurso franquista é enroupada de significantes que
dificultam uma reflexão crítica do sujeito de então frente ao regime. Em um período em que se
viu a Guerra Fria separar o ocidente em dois los, não se previu o respeito à diversidade e
quando, no excerto anterior, Franco fala em “um pensamento”, em “uma verdade” dos
povos, seu entendimento em relação a ela é deflagrado. O pensamento único (franquista) é o que
pode dar à Espanha sua força necessária.
Diante destas formas de poder são constituídas formas de resistência a ele em uma relação
assimétrica de forças que buscam questionar e afirmar o direito à diferença. Nesta perspectiva, o
discurso da ficção de Martín Gaite é uma destas forças que se filiam ao combate contra o poder
totalitário franquista. Foucault, ao refletir sobre em que convergiriam estas lutas, assevera:
Estas luchas (...) luchan contra los privilégios del conocimiento. Pero son también una
oposición contra el secreto, la deformación y las representaciones mistificadas impuestas
a la gente. (...) Lo que se cuestiona es el modo en que el conocimiento circula y
funciona, sus relaciones con el poder. (...) Finalmente todas estas luchas giran en torno a
la pregunta “¿Quiénes somos nosotros?”(...)
253
252
FRANCO, Francisco. Discurso al pueblo de Cádiz In: ___. Discursos y mensajes del Jefe del Estado (1960-1963).
p. 169. Discurso pronunciado em 26 de abril de 1961.
253
FOUCAULT, Michael. El sujeto y el poder. Edición electrónica de la Escuela de Filosofía Universidad ARCIS.
Disponível em: www.philosophia.cl. p. 7.
141
Os caminhos de resistência a este poder são de grande relevância nos contos de Martín
Gaite, e eles se coadunam à perspectiva teórica dos estudos da Crítica Feminista, que também se
pautam neste princípio. Se nesta narrativa de ficção apontei como a grande faceta do poder
aquele advindo de um regime repressor, é importante que entendamos que este é balizado por um
constructo muito anterior a ele, e que está nos princípios de nossa história, o poder patriarcal.
Esta relação do sujeito com o poder está diluído em todas as esferas e contribui para o
silenciamento do sujeito; ao mesmo tempo em que lhe é garantida a individualidade do
capitalismo liberal, também o é a sina de um discurso e de um querer únicos, apregoados pelo
regime que os liberta a uma “nova Espanha” e os aprisiona a uma “Espanha unívoca”.
Se o poder é “una estructura total de acciones traídas para alimentar posibles acciones; él
incita, induce, seduce, hace más fácil o más difícil (...) una forma de actuar sobre un sujeto o
sujetos actuantes en virturd de sus actuaciones o de su capacidad de actuación”
254
o poder de
Franco foi ultrapassado pelo discurso de Martín Gai
142
Não raro é encontrar em suas alocuções “modestos” reconhecimentos de seu trabalho pela
Espanha, como no seguinte trecho de seu pronunciamento em laga, em 27 de abril de 1961:
“Solamente unas palabras porque la emoción me embarga al recibir vuestra entusiasta
adhesión”
256
. A reafirmação constante de seu papel de patriarca desta grande e unívoca nação
assegura seu incondicional vínculo ao progresso do país.
O modo de ação do poder franquista sobre outras ações se em seu discurso, aqui
analisado em seus pronunciamentos, e a reação a esta ordem imposta se também através do
discurso de resistência que nasce da ficção, mas que é experimentado no que se possa chamar de
realidade. As estratégias desta narrativa alternativa são diversas, mas basicamente são
inauguradas por um olhar silenciado.
Se eliminarmos da nossa história o discurso da arte, apagaremos dela as possibilidades de
transformação social, que a cura do real imposto se dá nas possibilidades da ficção, elaborando
uma trama em que metaforicamente são expostas as contrariedades que no plano do real não são
mostradas. Do mesmo modo, se a fala e o discurso da mulher não forem resgatados em nossa
memória, pouco se saberá das realidades de nosso devir. A escritura de Martín Gaite aproxima o
indivíduo de uma verdade discursiva que é banida da história, ela o defronta e desvencilha de sua
condição de aprisionamento. Ao enigma que indica o caminho da libertação, a literatura de
Martín Gaite não encontra solução, mas sim, mostra que podemos ser devorados por contingentes
da esfera do real, e ao mostrar isso, seu discurso representa uma alternativa profícua ao discurso
do poder oficial, na medida em que contribui para desatar suas teias, destecer suas tramas,
promovendo e autorizando o olhar de Janus, para dentro e para fora de todas as janelas.
256
Idem. Ibidem. p. 173.
143
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