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O suceder do tempo, marcado pelos acontecimentos lhe parece inútil, pois “feitas suas
contas”, encontrar-se com o hoje – cinco invernos passados em Madri – nada significava. A
noção do tempo só teria sentido se o presente cumprisse o sonhado no passado, com o carimbo de
“soy aquella que soñé” e, chegando-se a isso, restaria questionar a própria trajetória que, como
ironicamente, aponta a narradora, “cualquier medíocre y ordenado cronista, sin gran esfuerzo,
habría podido fielmente reproducir”
187
. A personagem tenta conter o tempo, através do que passa
a ser fundamental em sua tentativa de agarrar-se à vida, a observação e o contato com o outro. A
simples possibilidade de não rever os diversos clientes da cafeteria torna-se insuportável à
personagem, que tenta agarrar-se no espaço para controlar o tempo
188
, em um prolongamento que
a conecta novamente consigo mesma.
Andrea sofre este impulso de contar os anos passados em Madri por evento anterior a eles,
quando de sua primeira visita à capital, época em que seu pai ainda não havia morrido. Os anos
da rotina de louça por lavar e cafés por servir parecem não se somar àquela rememoração, como
se a rotina lhe devorasse o viver.
(...) ya que los inviernos gastados en Madrid se le presentaban simplemente como cinco
palotes pintados en el aire del local, sin más decirle nada, fuera de que eran cinco y,
además, apenas aquella terca voluntad de recuento cedía a las presiones insoslayables del
exterior, volvían a amalgamarse, incontrolables e indistintos, en el tronco confuso de lo
vivido
189
.
Segundo Chevalier e Gherbraand
190
este número, o cinco, representa a totalidade do
mundo sensível e concentra, simbolicamente, os cinco sentidos do ser, a ordem e a perfeição,
assim como a união. Os cinco invernos passados somam o eu de Andrea. Se o número cinco
representa, então, a harmonia de um homem “universal”, o período passado em Madri a faz
perceber o descontentamento com a vida naquela cidade, e sua total desarmonia com aquele
187
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 183. p. 19.
188
Borges traz na epígrafe de seu conto El milagro secreto o seguinte trecho do Alcorão: “Y Dios lo hizo morir
durante cien años y luego lo animó y le dijo: - ¿Cuánto tiempo has estado aquí? – Un día o parte de un día,
respondió”.Esta narrativa narra a trajetória de um poeta judeu que roga a Deus um ano para terminar seu drama
inconcluso, antes que seja fuzilado pelo exército nazista. Ainda que na esfera exterior apenas transcorram minutos,
na esfera interior da personagem ocorre o milagre secreto da outorga deste ano solicitado. Referências a partir da
seguinte edição: BORGES, Jorge Luís. El milagro secreto. In:__ Artifícios. Madri: Alianza, 1995. p. 50-59.
189
MARTÍN GAITE, Carmen. Op. cit. nota 183. p. 13.
190
DICIONARIO DE SÍMBOLOS. Op. cit. nota 171. p 241.