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mediante justificativa, então nos encontramos no nível de reflexão chamado
filosófico, desenvolvido e difundido exemplarmente no Ocidente
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Com o advento da Modernidade, da afirmação da razão e conseqüente
redução da ciência ao verificável e comprovável empiricamente, tudo o que não for
enquadrável nessa categoria passa a ser passível de suspeita. A religião, com seus
pressupostos e suas práticas, partindo da intuição e da experiência, é questionada
e, não poucas vezes, reduzida ou à sobrevivência de estágios evolutivos da
humanidade já superados ou à ideologia justificadora de interesses espúrios ou a
manifestações de problemas da infância, mal-resolvidos. Diz Sacristán (2002):
Se há algo evidente hoje em nossa cultura, é a defasagem entre o
desenvolvimento material e o espiritual, entre o científico e o moral, entre o
nível de compreensão dos problemas e a adesão desejosa que
desencadeia os comportamentos coerentes para resolvê-los entre os
valores de diversos tipos que assumimos. A sociedade e o ser humano
acham-se cindidos quanto à capacidade de compreender o mundo que
podem alcançar e a possibilidade de se comportar ‘adequadamente’ nele,
não só para poder desenvolver-se nas melhores condições, como, inclusive,
para salvaguardar seus próprios interesses em geral. As diferentes linhas de
progresso estão e evoluem um tanto deslocadas entre si
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.
Oportuno é lembrar que, na relação entre fé e ciência, nos tempos
modernos, os conflitos não nascem, via de regra, da ciência em oposição à religião
ou da rejeição da ciência, por parte desta, e, sim, de pressupostos ideológico-
filosóficos, incorporados ou defendidos por determinados cientistas. Quando se
reduz o homem à razão destituindo-o, por conseqüência, das demais dimensões,
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BELLO, Ângela Ales, op. cit., p. 150-151: “A presença ou não da postura crítica nas culturas nos
permite entender a relação com a tradição tanto por parte do indivíduo como também do grupo a que
pertence. [...] Não se trata, portanto, apenas e genericamente do tema da história, nem é por acaso
que o pensamento ocidental foi o único a elaborar sistematicamente uma reflexão sobre a história, a
ponto de torná-la a única dimensão do real. De fato, ele deu a respeito da história uma interpretação
em sentido evolutivo, entendendo-a como uma contínua e necessária transformação, e submetendo-a
à crítica do passado, conforme ao ensinamento do historicismo dos últimos dois séculos. Trata-se,
principalmente, no que diz respeito à tradição, das ligações com as raízes do próprio ser, com as
gerações passadas, sem captar qualquer interrupção e nem contraste. A partir deste ponto de vista,
por um lado, podemos compreender o culto dos ancestrais nas culturas hinduístas ou africanas e, por
outro lado, porque no Ocidente, a partir da especulação nascida na Grécia, foi interrompida a ligação
com a tradição por ter submetido à crítica o que era transmitido pelo passado. Tal afirmação, porém,
refere-se a uma visão do fenômeno, captando-o em suas grandes linhas e sem articulá-lo em todas
as suas manifestações. Podemos assim constatar que, o que permite manter fortes ligações com a
tradição, aceitas de forma acrítica, porém seguras e firmes, é a adesão à dimensão religiosa-sacral.
Assim, quanto mais o pensamento reflexo se afasta da dimensão religiosa, tanto mais tem o dever de
reconstruir com os próprios meios um sistema de certezas intelectuais que são válidas, na medida em
que correspondem à realidade. É este o ensinamento que está na base de todas as correntes
filosóficas realistas, sendo entre todas não última, mas sim a primeira no nosso século, justamente a
fenomenologia. De fato, é a exigência religiosa que guia, apesar de tudo, e provoca a resposta última
à pergunta radical. E isso ocorre também quando aparentemente tal pergunta é considerada absurda,
reduzível a problemáticas humanas muito mais concretas, como acontece no ateísmo”.
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SACRISTÁN, Gimeno, op. cit., p. 100.