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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL
LUCIANA FAGUNDES HAUSSEN
“DEU PRA TI, ANOS 70” E “A FESTA NUNCA TERMINA” (24 HOUR PARTY
PEOPLE) – JUVENTUDE, CULTURA E REPRESENTAÇÃO DO SOCIAL NO
CINEMA
PORTO ALEGRE
2008
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LUCIANA FAGUNDES HAUSSEN
“DEU PRA TI, ANOS 70” E “A FESTA NUNCA TERMINA” (24 HOUR PARTY
PEOPLE) – JUVENTUDE, CULTURA E REPRESENTAÇÃO DO SOCIAL NO
CINEMA
Dissertação apresentada ao Curso de
Pós-Graduação da Faculdade de
Comunicação Social da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do
Sul, como requisito parcial para obtenção
do grau de Mestre em Comunicação
Social.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Gerbase
PORTO ALEGRE
2008
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LUCIANA FAGUNDES HAUSSEN
“DEU PRA TI, ANOS 70” E “A FESTA NUNCA TERMINA” (24 HOUR PARTY
PEOPLE) – JUVENTUDE, CULTURA E REPRESENTAÇÃO DO SOCIAL NO
CINEMA
Dissertação apresentada ao Curso de
Pós-Graduação da Faculdade de
Comunicação Social da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do
Sul, como requisito parcial para obtenção
do grau de Mestre em Comunicação
Social.
APROVADA PELA BANCA EXAMINADORA
Porto Alegre, de de 2008.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________
Orientador: Prof. Dr. Carlos Gerbase
_____________________________________
Profª. Drª. Ana Carolina Escosteguy - PUCRS
_____________________________________
Profª. Drª Sandra Montardo - FEEVALE
Aos queridos Doris e Flavio, meus pais.
AGRADECIMENTOS
Ao professor orientador Carlos Gerbase.
À Capes.
Aos professores e funcionários do Programa de Pós Graduação da PUCRS.
Rechaço totalmente as histórias, pois para mim engendram
apenas mentiras, e a maior mentira consiste em que elas
produzem um nexo onde não existe nexo algum. Mas, no
entanto, precisamos dessas mentiras, pois que carece
totalmente de sentido organizar uma série de imagens sem
mentiras, sem a mentira de uma história.
Wim Wenders
RESUMO
O presente trabalho é um estudo comparativo dos filmes “A festa nunca
termina” (24 hour party people), de Michel Winterbottom (2002), e “Deu pra ti, anos
70”, de Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil (1981), que narram histórias de jovens em
diferentes centros urbanos. O estudo pretende identificar o papel do cinema como
representação do social e dos comportamentos e tendências da juventude entre as
décadas de 70 e 80. A análise aborda, além do conteúdo dos filmes, as situações
sócio-históricas dos distintos locais onde as histórias transcorrem, as condições de
produção e o papel dos realizadores. Dentro desta proposta, na perspectiva
apresentada pelos Estudos Culturais e pelas intersecções entre a produção
cinematográfica e a Comunicação Social, verificam-se as possíveis semelhanças
dos cenários sociais e artísticos de Manchester, na Inglaterra, e Porto Alegre, no
Brasil, durante o período.
Palavras-chave: Cinema. Cultura. Juventude.
ABSTRACT
This work is a comparative study of movies “24 hour party people”, Michel
Winterbottom (2002), and "Deu pra Ti, anos 70", Nelson Nadotti and Giba Assis
Brasil (1981), which tell stories of young people in different urban centres. The study
intends identify the function of cinema as a representation of social and behaviors
and trend of youth between the 70?s and 80?s decades. The analysis broach, in
addition to the content of movies, the socio-historical situations of different places
where the stories elapse, the conditions of production and the action of producers.
Within this proposal, in perspective presented by Cultural Studies and by
intersections between the cinematographic production and Social Communication,
identifies the possible likeness of social and artistic scenarios from Manchester,
England, and Porto Alegre, Brazil, during the period.
Keywords: Cinema. Culture. Youth.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................. 9
2 CINEMA – PRODUTO CULTURAL E REPRESENTAÇÃO ........................... 16
2.1 CINEMA COMO PRODUTO CULTURAL – UMA ABORDAGEM A PARTIR
DOS ESTUDOS CULTURAIS .............................................................................
16
2.1.1 Os estudos culturais encontram o cinema ................................................. 22
2.2 CINEMA E REPRESENTÃO DO SOCIAL .................................................... 28
2.2.1 Juventude e subculturas juvenis ........................................................... 30
3 IMAGENS DA JUVENTUDE – PORTO ALEGRE ...........................................
39
3.1 “DEU PRA TI, ANOS 70” JOVENS PORTO-ALEGRENSES EM BUSCA
DE ESPAÇO .......................................................................................................
39
3.2 OS REALIZADORES – CO-AUTORIA, GRUPO E PRODUÇÃO JOVEM ....
41
3.3 PORTO ALEGRE NA FOTO – ANOS 70 ......................................................
46
3.4 JUVENTUDE E MÚSICA NA PORTO ALEGRE DOS ANOS 70 ..................
52
3.5 DIÁLOGOS QUE RETRATAM UMA ÉPOCA ............................................... 59
4 IMAGENS DA JUVENTUDE – MANCHESTER .............................................. 69
4.1 “A FESTA NUNCA TERMINA” GAROTOS DE MANCHESTER AO
LONGO DE DUAS DÉCADAS ............................................................................
69
4.2 OS REALIZADORES PROFISSIONAIS LANÇAM UM OLHAR SOBRE A
HISTÓRIA APÓS MAIS DE 20 ANOS ................................................................
71
4.3 MANCHESTER SITUADA ............................................................................ 74
4.4 MANCHESTER “IN THE DANCE FLOOR” A MÚSICA CONTA A
HISTÓRIA ...........................................................................................................
81
4.5 DIÁLOGOS QUE MOSTRAM UMA ÉPOCA .................................................
90
5 DOIS FILMES – REALIDADES PARALELAS ................................................ 99
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................
110
REFERÊNCIAS .................................................................................................. 116
9
1 INTRODUÇÃO
O cinema, após mais de um século de existência, consagra-se como um
importante meio de comunicação social. A partir do registro da imagem em
movimento, das evoluções tecnológicas e narrativas, da inclusão do som e da cor,
passa a ter um papel importante como entretenimento, meio de registro e
representação de distintas re2(ê)-4(n) -20.64 T(a)6(p)-4(e)-4( )--2( )-102(5o)6(n)-4(sa)-(o)-.00293(r)3u(t)-2(a)293(5-4(r)3(t)8152(d)-4(i)24( )-152(d)-(m)-7(a)-4(g)5.9)2.0350.19 0 Td[(u)-4(sa)á(r)3(t)8(o)-4( )-472(d)-s(n)-2(a)-4(l)2(.)-472(d)-a(i)24( )-152(d)-l00195(st)o(n)-4(t)8go ddai
10
centros de irradiação cultural de seus países à época, no caso de Manchester
Londres. No caso do Brasil – o eixo Rio-São Paulo.
Além disso, verificou-se que a produção cinematográfica gaúcha do início da
década de 80 compõe um rico acervo de registro de um período de grande
efervescência cultural e de surgimento de novas tendências que, por sua vez,
abriram caminho para comportamentos atuais entre os mais diversos grupos que
circulam nos centros urbanos mundiais.
A partir das possíveis semelhanças, o que se pretende analisar é a
importância da tecnologia do cinema como representação de realidades sociais e as
suas diferentes formas de retratá-las. O estudo também pretende verificar como, em
locais distantes como Manchester e Porto Alegre, e em países com culturas tão
distintas como Inglaterra e Brasil, o consumo de tendências, sons e
comportamentos, já cruzava as fronteiras.
Assim, a presente proposta de estudo tem como hipóteses que:
a) o cinema feito nos anos 80 em Porto Alegre, a partir de “Deu pra ti,
anos 70”, e o filme inglês “A festa nunca termina” são fontes de
representação de uma simultaneidade de acontecimentos entre grupos
de jovens durante um período de tempo semelhante;
b) a simultaneidade de acontecimentos entre os cenários de Manchester
e Porto Alegre mostra a universalidade do imaginário coletivo juvenil
antes do surgimento das atuais tecnologias de comunicação;
c) o cinema produzido nos anos 80, em especial fora das fronteiras de
Hollywood, consolidou uma estética fílmica particular;
d) os filmes representam os cotidianos alternativos de Manchester e Porto
Alegre e mostram que juventude, música, bares e turmas funcionam
como importantes elementos formadores elos sociais.
Dessa forma, o capítulo dois traz uma abordagem mais geral do cinema a
partir dos Estudos Culturais. Segundo esta abordagem, tem relevância o contexto
social em que o filme é produzido e consumido. Ou seja, quem são os produtores,
11
qual é o produto, em que circunstâncias político-econômicas ele é produzido e quem
é a audiência.
No caso do presente estudo, no entanto, o foco está na produção dos filmes e
suas narrativas como representação das juventudes, isto é, a produção - tendo em
vista os autores, a época em que o filme é produzido, o contexto político e
econômico da época. E a narrativa - o cinema como um sistema de linguagens
capaz de narrar diferentes histórias que geram sentidos.
Os procedimentos metodológicos envolveram, principalmente, a pesquisa
bibliográfica e a análise fílmica. Como embasamento teórico são utilizados textos
dos Estudos Culturais, o aporte teórico da Sociologia Compreensiva, de Michel
Maffesoli e, ainda, obras de Mike Featherstone sobre a questão da pós-
modernidade.
Dentro dos Estudos Culturais, o presente trabalho tem como referencial
teórico a obra “O cinema como prática social”, do australiano Graeme Turner que
propõe uma análise do filme que considere o contexto da produção, quem o os
produtores, e o filme como narrativa, ou seja, o cinema como um sistema de
linguagens capaz de narrar diferentes histórias que geram sentidos e onde a
dimensão social ocorre no nível do discurso. Segundo o autor (TURNER, 1997, p.
83),
Esse nível discursivo é também o local da especificidade cultural onde
podemos diferenciar os discursos dominantes de uma cultura daqueles que
ocorrem em outras. Isso não deve nos impelir em busca da especificidade
cultural nos filmes convencionais. Mas nos alerta para a influência social do
cinema, uma influência que é muito ativa em estabelecer códigos e
convenções que tornam possível a comunicação.
Cultura e comunicação. Duas palavras chave para entendermos o cinema sob
o ponto de vista dos Estudos Culturais. Por tanto, para a avaliação da evolução do
termo cultura na sociedade, são utilizadas, como ponto de partida, as obras “Cultura
e Sociedade”, de Raymond William e “Dez lições sobre Estudos Culturais”, de Maria
Elisa Cevasco, que permitem perceber a relevância dos meios de comunicação,
12
onde se inclui o cinema, nesta transformação, onde a circulação da informação tem
papel fundamental nas mudanças sociais e vice-versa.
As análises fílmicas dos filmes “A festa nunca termina” e “Deu pra ti, anos 70”
têm como referências as obras “Análisis del film”, de Jacques Aumont e Michel
Marie, e “Ensaio sobre a análise fílmica”, de Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété. Mas
é importante ressaltar que, como expõem Aumont e Marie (1988, p. 95)
1
, “[...] os
instrumentos de que dispõe o analista e paralelamente, os objetos de análises
particulares e as vias de aproximação a um filme determinado são muito
numerosos, para não dizer inumeráveis.” E que “[...] não somente não existe uma
teoria unificada do cinema, como tampouco nenhum método universal de análise de
filmes.” (AUMONT; MARIE, 1988, p. 13).
2
Como o presente trabalho se trata de um estudo comparativo, buscou-se um
equilíbrio entre os elementos dos filmes a serem analisados. Dessa forma são
destacados os seguintes pontos: os realizadores e as condições de produção, a
trilha sonora e os cenários (a cidade, bares, apartamentos), os personagens
(comportamento, faixa etária), e a estética do filme (opções de montagem e
qualidade da imagem), além de diálogos pontuais.
Para uma análise sócio-histórica também são utilizados os mesmos autores.
E em “Ensaio sobre a análise fílmica” encontramos pistas para a definição do que
seria uma análise sócio-histórica. “Um filme é um produto cultural inscrito em um
determinado contexto-histórico.” (VANOYE; GOLIOT-LETÉ, 1994, p. 54) Onde a
proposta, segundo os autores (VANOYE; GOLIOT-LETÉ, 1994, p. 55) é:
[...] mais interrogar o filme, na medida em que oferece um conjunto de
representações que remetem, direta ou indiretamente, à sociedade em que
se inscreve. A hipótese diretriz de uma interpretação sócio-histórica é de
que um filme sempre “fala” de um presente (ou sempre ‘diz’ algo do
presente, do aqui e do agora de seu contexto de produção).
1
Tradução de: “[...] los instrumentos de los que dispone el analista y paralelamente, los objetos de
análisis particulares y las vias de aproximación a um film determinado son muy numerosos, por
no decir innumerables.”
2
Tradução de: “[...] no solo no existe uma teoría unificada Del cine, sino tampoco ningún método
universal de análisis de films.”
13
Assim, o capítulo dois, trata o cinema como produto cultural e como meio de
representação do social. Aborda ainda a questão das transformações dos
significados da palavra cultura ao longo dos tempos, ou seja, a cultura com a
relevância que tem hoje em diversos aspectos da vida social. Uma realidade que
começa a ocorrer com maior força em meados do século XX, quando a cultura
ganha espaço nas interpretações sociais anteriormente orientadas, basicamente,
pelos vetores econômicos e políticos.
Ainda no capítulo dois, a questão dos jovens, suas manifestações e
identificações, é abordada tanto pela noção de subculturas juvenis, apresentada
pelos Estudos Culturais, quanto pela noção de tribos, proposta pelo sociólogo
francês, Michel Maffesoli na sua Sociologia Compreensiva.
Estes dois modos de tratamento das questões juvenis ocorrem porque as
noções de subculturas juvenis, algumas vezes, podem estar muito próximas da
realidade de jovens da classe trabalhadora britânicos e da idéia de resistência, o que
no caso do movimento punk, em sua origem retratado rapidamente em “A festa
nunca termina” - tem aplicação. Mas nas relações entre os jovens, apresentadas
posteriormente, tanto em “A festa nunca termina” como em “Deu pra ti, anos 70”,
estas relações podem acontecer de modo mais espontâneo, sem um sentido ou
objetivo em si.
Além de textos sobre as subculturas juvenis, dos Estudos Culturais, as
práticas juvenis também têm o aporte da Sociologia Compreensiva, de Michel
Maffesoli, que em algumas relações pode ser mais adequada, como demonstra
Bennet (1999, p. 599),
Enquanto os princípios essenciais da teoria das subculturas do CCCS
(Centre of Contemporary Cultural Studies) têm sido enormemente
criticados e largamente abandonados, o conceito de subcultura’ sobrevive
como central definidora do discurso metafórico de muitos trabalhos
sociológicos que tratam a relação entre juventude, musica e estilo. Ao meu
ver, o termo ‘subcultura’ é ainda mais problemático no momento em que
impõe linhas rígidas de divisão sobre formas de socialização as quais
poderiam, de fato, serem bem mais fluidas, e em muitos casos arbitrárias,
14
do que o conceito de subcultura, com suas conotações de coerência e
unidade, levam em conta.
3
Para Maffesoli (1987, p. 105), um caminho para a compreensão das novas
relações sociais pode estar no que ele denomina neo-tribalismo.
[...] como a faculdade comum de sentir, de experimentar [...] Não podemos
deixar de assinalar a eflorescência e a efervescência do neo-tribalismo
que, sob as mais diversas formas, recusa reconhecer-se em qualquer
projeto político, não se inscreve em nenhuma finalidade e tem como única
razão de ser a preocupação com um presente vivido coletivamente.
Nos casos destas relações mais fugazes, portanto, a opção recai sobre a
noção de tribos, proposta por Maffesoli, onde uma abordagem estética, do cotidiano
comum, surge como resposta a uma lógica moderna da identidade, quando se
pensa a idéia de uma época pós-moderna onde o cotidiano e o estar-junto passam a
ter relevância nas análises dos cenários culturais atuais.
Os capítulos três e quatro abordam, respectivamente, as análises dos filmes
“Deu pra ti, anos 70” e “A festa nunca termina” (24 hour party people). Estas
análises, apresentadas em texto corrido, têm abordagens sociológicas, ao mesmo
tempo em que são permeadas por uma análise sócio-histórica. Na busca por um
equilíbrio na forma de tratamento dado aos dois filmes, ambos capítulos foram
divididos em cinco subitens.
Estes subitens aparecem na seguinte ordem: resumo da história do filme e
situação histórica da cidade e do país onde a narrativa se desenrola; os realizadores
dos filmes, as condições de produção; o papel da cidade como personagem.
Também são analisadas as opções de filmagem, os locais onde as histórias se
desenrolam; o comportamento dos jovens nos filmes. E, ainda, a música, as drogas,
os relacionamentos, os grupos, as atividades; os diálogos que representam as
3
Tradução de: “While the essential tenets of the CCCS subcultural theory have been variously
criticised and largely abandoned, the concept of subculture’ survives as a centrally defining
discursive trope in much sociological work on the relationship between youth, music and style. In my
view, however, the term ‘subculture’ is also deeply problematic in that it imposes rigid lines of
division over forms of sociation which may, in effect, be rather more fleeting, and in many cases
arbitrary, than the concept of subculture, with its connotations of coherency and solidarity, allows
for.”
15
épocas, onde são destacados dos filmes alguns diálogos acompanhados de
comentários.
Ao final de cada capítulo, há um breve resumo das questões levantadas e dos
elementos representados nos filmes, antecipando o capítulo cinco, onde ocorre o
cruzamento dos dados analisados. Nas considerações finais são apresentadas
respostas às hipóteses propostas nesta introdução.
16
2 CINEMA – PRODUTO CULTURAL E REPRESENTAÇÃO
2.1 CINEMA COMO PRODUTO CULTURAL UMA ABORDAGEM A PARTIR DOS
ESTUDOS CULTURAIS
Cinema, televisão, Internet, realidade virtual, telões nas grandes avenidas,
imagem digital... ver está na ordem do dia. A vida contemporânea é permeada por
imagens o que faz do olhar algo como um filtro das mais diversas informações e
sensações que preenchem os cenários urbanos atuais em todo o planeta. A imagem
circula, informa, persuade, ilude, cria situações, e é consumida com uma força sem
precedentes desde meados do século XIX. A formação das cidades, dos grandes
centros, o desenvolvimento tecnológico, o movimento constante e a
descontinuidade, as experiências efêmeras formam uma conjunção de fatores que
determinam a época em que vivemos. E que época será esta?
Ouvimos falar de modernidade, pós-modernidade, sociedades onde o cultural
ultrapassou o social. Mas que grupos sociais são estes, cunhados pela cultura? Que
narrativa pode nos guiar nessa busca por respostas? Acompanhar a trajetória do
cinema de sua origem aos dias de hoje talvez possa ser uma pequena fração - de
um universo maior a partir dos meios de comunicação - para desvendar os
cruzamentos que marcam a contemporaneidade. Partir do cinema parece ser uma
opção por ser este meio o primeiro a registrar, na virada do século XIX, o movimento
em movimento.
Com a aceleração das mudanças verificadas, após 1870, nas cidades em
formação, surge o questionamento: como reter o instante e viver a sensação dele
resultante? Segundo Charney (2001, p. 386), no artigo “Num instante: o cinema e a
filosofia da modernidade”,
Em meio a esse ambiente de sensações fugazes e distrações efêmeras,
críticos e filósofos procuraram identificar a possibilidade de experimentar o
instante. Essa experimentação, nesses contextos, significou sentir a sua
presença, vivendo-o por completo. O instante existe na medida em que o
indivíduo experimenta uma sensação imediata e tangível. Essa sensação é
17
tão intensa, tão fortemente sentida, que esvaece assim que é sentida pela
primeira vez.
O movimento impede a presença estável, e a sensação que sente o instante
no instante fica separada da cognição - que reconhece o instante somente após ele
ter ocorrido. “Juntos, esses dois aspectos do instante moderno criaram uma nova
forma de experiência no cinema.” (CHARNEY, 2001, p. 387). Essa percepção
escorregadia do instante levantou o problema da existência de um presente.
Junto com a modernidade veio a consciência de que as pessoas estavam
sempre, de antemão, alienadas do tempo que estavam vivendo. No entanto,
a sensação de deriva do presente podia ser parcialmente redimida caso
fossem valorizadas as respostas sensoriais, corporais e pré-racionais que
retêm a prerrogativa de ocupar um instante no presente [...] A presença do
instante pode ocorrer somente na sensação e como sensação. (CHARNEY,
2001, p. 389).
Ao citar o cineasta e pensador Jean Epstein, Charney afirma que para ele o
presente, devido a questão da sensação e da cognição, é apenas o local onde
passado e futuro colidem. Assim, “O cinema, para Epstein, marcou o surgimento de
uma forma de arte que podia refletir essa realidade temporal.” (CHARNEY, 2001, p.
398). Vale ressaltar que Epstein escreve em meados do século XX e o cinema, aqui,
é entendido como uma forma de arte, num período em que literatura e estética
dominavam as análises cinematográficas.
Aos poucos, porém, esta perspectiva do cinema como arte passou a
concorrer com outros tipos de análises sobre cinema que passam a ocorrer nos mais
diversos campos de estudos das ciências humanas. Esta realidade é relativamente
recente e ocorre quando disciplinas como lingüística, antropologia, semiótica, por
exemplo, voltam sua atenção a este meio de comunicação. Segundo o australiano
Turner (1997, p. 1), “Os estudos sobre cinema [...] têm sido amplamente dominados
por uma perspectiva: a análise estética para a qual a capacidade do cinema de se
tornar arte por meio da reprodução e arranjo de sons e imagens é o centro da
atenção.”
Quando surge o cinema, no final do século XIX, a idéia que se tinha da sua
aplicação era bem distinta àquela que os usos acabaram por concretizar. “A exemplo
18
de outros pioneiros do cinema, como Thomas Edson nos Estados Unidos, os
Lumière acreditavam que seu trabalho com imagens animadas seria direcionado
para a pesquisa científica e não para a criação de uma indústria do entretenimento.”
(TURNER, 1997, p. 11).
Logo, porém, o potencial de divertimento do cinema ficou claro e as primeiras
exibições ocorriam “[...] no vaudeville, no music-hall, nos parques de diversões, nas
feiras de exposições e nos shows itinerantes.” (TURNER, 1997, p. 36). É o período
que “Tom Gunning chamou de ‘cinema de atrações’ período anterior a 1908.”
(CHARNEY, 2001, p. 399).
Numa época em que a tecnologia do cinema não permitia narrativas de
longa-metragem, o cinema de atrações apresentava aos espectadores
breves imagens que chocavam, eletrizavam ou estimulavam a curiosidade
[...] em vez de inventar uma história elaborada, o cinema de atrações
interpelava o espectador com o próprio cinema; as atrações solicitavam a
atenção do espectador não como o voyeur absorvido pela narrativa do
cinema atual, mas como o observador boquiaberto, surpreso, também
envolvido pelo circo ou pelo parque de diversão. A atração ligava a nova
forma de cinema à cultura do instante da qual ela surgiu: A atração.
(CHARNEY, 2001, p. 399).
Ainda na primeira década de exibição são criadas salas de projeção, o que
não chegou a alterar a característica de “[...] um meio de comunicação que chegava
o mais perto possível a seu público.” (TURNER, 1997, p. 36). Nestas primeiras
exibições, os filmes eram registros, em tomada única, de fatos do dia-a-dia. Na
seqüência, passam a ser filmadas breves encenações cômicas. O surgimento do
longa-metragem narrativo, porém, é atribuído ao produtor francês George Méliès,
cuja maior contribuição “[...] foi libertar o ‘tempo da tela’ (o tempo que leva a projeção
do filme na tela) do ‘tempo real’ (o tempo que efetivamente se levou para executar
as ações ou concluir os eventos exibidos na tela).” (TURNER, 1997, p. 37).
O filme “O Assalto ao Trem Pagador”, de 1903, foi o primeiro longa-metragem
de faroeste a ser exibido, alcançando rápido sucesso. Mas o ano de 1915, com o
filme “O Nascimento de uma Nação”, de D.W. Griffith, é considerado um momento
chave para o cinema ocidental. “O Nascimento de uma Nação”, de acordo com
Turner (1997, p. 38, grifo do autor),
19
[...] foi lançado com uma extraordinária reação por parte do público e da
crítica. Em sua escala épica (era o filme mais longo até então) e na
qualidade pessoal de sua visão parecia definir o potencial de grande arte.
No mesmo ano, 1915, foi publicado The Art of Moving Picture, de Vachel
Lindsay. Enquanto filmes anteriores a O Nascimento de uma Nação tinham
sido alvo de condescendência por parte da classe média, Lindsay, um poeta
norte-americano, fez uso de um livro inteligente, ‘visionário’ e claramente
polêmico para reivindicar para o cinema o status de sétima arte. [...] Lindsay
não foi o único a defender essa opinião; boa parte da teoria que o procedeu
nos quarenta ou cinqüenta anos seguintes aceitou sua posição de bom
grado.
A década de 20 se caracteriza por uma preferência pelos filmes expressivos
europeus, geralmente definidos como remodeladores da matéria-prima impressa no
celulóide, [...] usando imagens do mundo real para ‘elaborar um enunciado’. As
imagens tornam-se algo mais, tornam-se arte.” (TURNER, 1997, p. 38).
O cineasta que consagrou a idéia do filme como enunciado e o cinema como
arte expressiva foi o russo Sergei Eisenstein, que, a partir da montagem, utilizou as
imagens para criar algo novo. Segundo Turner (1997, p. 39), “[...] a idéia de que o
cinema registrava ou reproduzia imagens do mundo real foi questionada. Em vez
disso se propunha que o cinema era um meio de comunicação que pode transformar
o real, e tem sua própria linguagem e seu próprio modo de fazer sentido.”
Posteriormente, a montagem deixa de ser considerada a base da linguagem
cinematográfica para ser mais uma maneira de se comunicar através do cinema.
Até o final da década de vinte do culo passado, portanto, predominava o
pensamento, promovido por teóricos, do cinema como arte, não apenas um simples
agente registrador. “De fato, vários teóricos argumentavam que as próprias
limitações do cinema como agente registrador eram fatores que determinavam seu
potencial artístico.” (TURNER, 1997, p. 39).
Em 1927, o som chega ao cinema com o filme O Cantor de Jazz. A novidade
tecnológica, porém, reforça as teorias que põem em oposição realismo e arte, como
esclarece Turner (1997, p. 39, grifo do autor).
20
Film as Art (1958, publicado pela primeira vez em 1933), de Rudolph
Arnheim, é apenas um desses argumentos que, por motivos estéticos, vê o
cinema mudo como um meio de comunicação superior. [...] A idéia de que a
arte é uma imitação do real, um princípio literário e estético convencional, é
negada para se propor as qualidades especiais do cinema como forma
artística. Um subproduto desses argumentos foi a investida contra ‘o anseio
de completa ilusão’ de som e cor na tela de cinema. Realismo e arte eram
assim colocados em oposição um ao outro, ao filme mudo sendo dado o
status de arte enquanto o filme falado era desprezado como grosseiro e
vulgar.
A introdução do som, além de representar um avanço tecnológico, reformula
os rumos da indústria e as teorias sobre o cinema. Sua utilização traz mais realismo
às narrativas e os diálogos nos longa-metragem passam a ser mais elaborados.
Neste momento ocorre uma aproximação das narrativas dos filmes com o
romance do século XIX e uma mudança em direção ao realismo pode ser percebida
em alguns filmes da cada de trinta nos Estados Unidos e, mais fortemente na
Europa do s Segunda Guerra Mundial. Como explica Christian Metz (1980, p.
114):
Com suas imagens e sons verdadeiros (exteriores) o filme romanesco
contribui para alimentar com uma substância suplementar e importada o
fluxo fantasmático do sujeito, a irrigar as figuras do seu desejo, e não é
duvidoso que o cinema clássico seja entre outras coisas, uma prática de
saciamento afetivo [...] O filme clássico, na medida em que propõe
esquemas de comportamento e protótipos libidinais, atitudes corporais,
gêneros de vestuário, modelos de desenvoltura ou de sedução, na medida
em que é uma instância iniciadora para uma adolescência permanente,
substitui historicamente o romance de grande época, do século XIX (ele
próprio descendente da época antiga): preenche a mesma função social,
função que o romance do século XX, cada vez menos diegético e
representativo tende em parte a abandonar.
O papel do movimento documentário, ocorrido no Reino Unido entre os anos
30 e 40 também é destacado por Turner. A qualidade desses filmes influencia o
cinema britânico nos trinta anos seguintes e também o realismo social dos filmes de
Hollywood, além de voltar a atenção a questões sociais e originar outros movimentos
importantes. Segundo Turner (1997, p. 42),
O impacto social do cinema também é reforçado pelo movimento
documentário, deixando a estética de lado em face dos movimentos e
convulsões sociais que fazem o cinema de arte parecer um pouco auto-
indulgente. Esse efeito também é enfatizado pelo movimento realista mais
21
importante da época, o neo-realismo dos diretores italianos do pós-guerra,
Rossellini, de Sica e Visconti.
Apesar de Hollywood viver seu apogeu nas décadas de 30 e 40 do século XX,
e passar a dominar o mercado de produção após a segunda-guerra, as teorias de
cinema desprezam as produções da indústria norte-americana e privilegiam a
estética realista européia. O francês André Bazin é central à abordagem realista ao
chamar atenção à composição da tomada como geradora de significado, mais do
que a montagem. Para ele real e estético não eram separáveis. O termo mise-en-
scène arranjo de elementos no quadro - entra para a gramática da linguagem
cinematográfica, como esclarece Turner (1997, p. 44, grifo do autor).
A passagem da montagem para a mise-en-scène prenuncia uma
reorientação na teoria do cinema. Finalmente, resulta numa reavaliação do
filme popular; e, o que é mais significativo, início a um movimento que
desloca o interesse nas relações entre cinema e realidade para uma
investigação da relação entre o cinema e o espectador.
Em 1954, o cineasta francês François Truffaut, a partir de um artigo publicado
em Cahiers du Cinéma início à teoria do cinema de autor que considerava que
mesmo filmes produzidos em Hollywood traziam a marca de um artista/autor. Para
Turner (1997, p. 45),
Por um lado, então, as teorias sobre o cinema de autor atribuíam autores
aos filmes e assim os juntavam ainda mais num modo de análise
literário/estético. Por outro lado, que Truffaut estava usando o cinema
norte-americano como clava para golpear seus antagonistas franceses, os
filmes norte-americanos, que tinham sido desprezados como previsíveis e
formulistas, foram resgatados. Os filmes de gênero em particular faroeste,
musicais, suspense, filmes sobre gângsteres agora eram considerados
interessantes.
As abordagens dos filmes de gênero revelam sua dinâmica e a existência de
convenções tanto pelo público quanto pelos cineastas. O gênero, portanto, ainda
segundo Turner (1997, p. 46),
[...] emerge como produto de uma tripla negociação entre blico, cineastas
e produtores. Isso levantou uma questão que mais tarde tornou-se
proeminente: o papel do cinema como uma mercadoria um produto
comercializável vendido ao público entre outras coisas por meio do gênero.
22
Mais importante, essas indagações deram início a uma série de
reavaliações da noção de gênero, o estudo das relações entre o público e
os filmes, e uma melhor compreensão do prazer daquilo que é familiar e
previsível no entretenimento popular – em parte atenuando o até então
convencional privilégio que se dispensa ao novo, singular e original.
Ao mesmo tempo em que a análise se volta ao cinema de autor e aos filmes
de gênero, os teóricos do cinema expandem seu campo de análise dos modos
literário e estético e passam a utilizar fundamentos de outras disciplinas, em um
rumo que indicava o futuro dos estudos sobre cinema.
2.1.1 Os estudos culturais encontram o cinema
Esta abordagem por diferentes disciplinas aproxima o cinema dos Estudos
Culturais ao re-associá-lo com a cultura por ele representada. Para Turner (1997, p.
48),
Os estudos culturais inicialmente analisavam os meios pelos quais
significados sociais são gerados pela cultura o modo de vida e os
sistemas de valores de uma sociedade conforme revelados por formas e
práticas aparentemente efêmeras como a televisão, rádio, esportes,
histórias em quadrinhos, cinema e música. A ‘culturafoi redefinida como o
processo que constrói o modo de vida de uma sociedade: seus sistemas
para produzir significado, sentido ou consciência, especialmente aqueles
sistemas e meios de representação que dão às imagens sua significação
cultural. O cinema, a televisão e a publicidade tornaram-se assim os
principais alvos da pesquisa textual.
Para uma melhor compreensão da aproximação entre cinema e os Estudos
Culturais é válido retomar a própria história dos Estudos Culturais, que surge “[...] de
forma organizada, através do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS),
diante da alteração dos valores tradicionais da classe operária da Inglaterra do s-
guerra.” (ESCOSTEGUY, 2001, p. 152, grifo do autor). Anteriormente, no final da
década de 50 e início da década de 60, Raymond Williams, com Culture and Society
(1958), o próprio Richar Hoggart, com The Uses of Literacy (1957) e Edward P.
Thompson, com The Making of the English Working Class (1963), criam a base para
23
o surgimento do Centro que é fundado em 1964, por Richard Hoggart, ligado ao
English Department, da Universidade de Birmingham.
No livro Cultura e Sociedade, Williams (1969) aponta cinco palavras que, no
inglês, passaram por alterações de sentido importantes a partir do final do século
dezoito e início do século dezenove e que possibilitaram, segundo ele, delinear um
sistema de referências capaz de acompanhar as mudanças que ocorreram na vida e
nos pensamentos deste período, pós-revoluções Francesa e Industrial. As palavras
são: indústria, democracia, classe, arte e cultura.
Das cinco palavras, cultura ganha um destaque especial na interpretação do
autor. Para Williams, a evolução da palavra cultura e seus significados mostram as
alterações sofridas nas demais palavras, e, desse modo, cultura pode “[...] ser
encarada, em si mesma, como um tipo especial de roteiro que permite explorar a
natureza dessas alterações.” (WILLIAMS, 1969, p. 18).
Segundo Williams (1969), é o vocábulo cultura que melhor traduz os traços de
um quadro geral de mudanças - quando surgem diversos elementos modernos. Para
ele, “[...] cultura significava um estado ou um hábito mental ou, ainda, um corpo de
atividades intelectuais e morais; agora, significa também todo um modo de vida.
Essa evolução, como a dos significados originais e a de suas relações, não é
acidental, mas geral e profundamente importante.” (WILLIAMS, 1969, p. 20, grifo do
autor).
Em sua análise, a cultura está relacionada à reação em pensamento e
sentimento às profundas mudanças nas condições humanas e “[...] as definições e
significados que demos a esses acontecimentos, cuja história é a história da idéia de
cultura, podem ser compreendidos no contexto de nossas ações.” (WILLIAMS,
1969, p. 5). A cultura como proposta do autor está em relação a um grupo de novas
atividades e práticas que formam uma sociedade. Para Featherstone (1995a, p.
180), Williams defenderia a posição que permitiria “[...] o desenvolvimento de uma
cultura comum autêntica, que combine a cultura das pessoas comuns (agora
avaliada positivamente) com elementos selecionados da tradição da ‘alta’-cultura,
incorporando-os num todo comum.”
24
Com relação à arte, Williams (1969, p. 306) fala sobre as três fases distintas
que marcam a atitude e a opinião a respeito do termo:
[...] a primeira ênfase se pôs não apenas em seu valor próprio e
independente, mas também na importância para a vida comum das
qualidades que a arte corporificava. Num caráter contingente, a atitude de
exílio e desafio manifestou-se na segunda fase, quando a tônica recaiu
sobre a arte como valor em si mesma, por vezes claramente separada da
vida comum. Num terceiro estágio, a ênfase veio a ser posta no deliberado
esforço por uma reintegração da arte à vida comum da sociedade: esforço
que girou em torno da palavra ‘comunicação’.
Esta colocação de Williams registra uma parte de um pensamento maior do
autor sobre o papel da arte dentro da cultura em uma sociedade em formação. Onde
existem significados conhecidos convivendo com novas observações e novos
significados. É quando se passa a pensar “[...] a cultura na sociedade e não
apartada dela, em um inexistente Reino do Espírito.” (CEVASCO, 2003, p. 50).
Neste momento se passa a pensar em uma cultura comum em oposição a uma alta
cultura, restrita ao controle de uma minoria. Uma idéia que começa a circular entre
as décadas de 50 e 60.
Em sua interpretação da obra de Williams, Cevasco (2003, p. 52) esclarece o
papel da arte dentro desse novo conceito de cultura:
Vê-se que quase tudo está em jogo na mudança conceitual de cultura como
apanágio de uma minoria versada nas artes para cultura como modo de
vida. Mas para entender a abrangência da mudança é preciso acompanhar
mais de perto as etapas do raciocínio de Williams.
A primeira providência é entender que a defesa de uma cultura comum não
implica um desapreço pelas artes. Wiliams modifica a relação entre arte e
sociedade [...] estabelece que o mundo das artes está inextricavelmente
ligado à vida social e depende dos meios sociais de produção de sentido...
para se fazer compreender e atingir seu significado.
A idéia de arte ligada à vida social, e o distanciada dela, e da cultura como
modo de vida estão na base dos Estudos Culturais. “Todas as práticas sociais
podem ser examinadas de um ponto de vista cultural, podem ser examinadas pelo
trabalho que elas fazem – subjetivamente.” (JOHNSON, 2004, p. 30).
25
Em meados da década de 70 as preocupações do CCCS giram em torno das
ligações entre pesquisa e grupos sociais e buscavam uma democratização do
ensino universitário. Neste cenário, mídias e subculturas são os temas
predominantes. Para Cevasco (2003, p. 76),
Os estudos das mídias começaram no Centro justamente como uma forma
de transcender o debate e estudar o valor cultural de produções de sentido
para além da classificação ‘alta cultura’ e ‘cultura de massas’. Nesse
contexto foi-se elaborando um interesse pela “cultura popular” não como
categoria fixa, mas como categoria relacional, ou seja, o que é excluído ou
posto em oposição às formas consagradas dominantes. Um dos terrenos
mais férteis destes estudos foi o das subculturas, em especial a dos jovens,
a das tribos que agitam o cenário cultural britânico.
A década de 70 também é um momento de crise mundial, e os Estudos
Culturais na Inglaterra passam a receber a influência de movimentos como a New
Left. A partir daí, começa a se “[...] repensar o marxismo e a sua teoria totalizante da
organização social em termos de novo momento histórico.” (CEVASCO, 2003, p.
85). Com a New Left a esfera da cultura ganha espaço, com uma interpretação do
capitalismo, e de uma sociedade cada vez mais complexa, não apenas do ponto de
vista econômico e político, mas também sob o ângulo da cultura. “Trata-se de um
mundo que assiste à mudança do estatuto da cultura, que sai da esfera do espiritual
e passa de vez a fazer parte do cotidiano das pessoas, com a proliferação dos meios
de comunicação de massa.” (CEVASCO, 2003, p. 87). Coube à New Left articular a
revitalização da cena cultural britânica, num movimento que reacendeu o
pensamento de esquerda da Grã-Bretanha e permitiu a estruturação e expansão dos
Estudos Culturais. O legado cultural da New Left na tradição dos Estudos Culturais
não deixa, porém, de gerar polêmica, como expõe Cevasco (2003, p. 97):
[...] o lado negativo desse legado, em especial na disciplina de Estudos
Culturais, é sua tendência de supervalorizar o cultural em detrimento do
político [...] A função social da política e da cultura são distintas. A cultura é
a instância da construção de significados e da veiculação de valores, tudo
isso impregnado de valores políticos. Mas a política é a instância da
deliberação, do que deve ser feito para assegurar um determinado estado
de coisas: se não o consegue por consenso, o faz por coerção. É na política
e não na cultura que a sociedade deve buscar respostas para a pergunta
fundamental: ‘Que fazer?’.
26
O breve relato serve para demonstrar que os Estudos Culturais britânicos não
nascem sem desacordos e tensionamentos:
Na realidade, os Estudos Culturais britânicos se constituíram na tensão
entre demandas teóricas e políticas. Embora sustentassem um marco
teórico específico (não obstante heterogêneo), amparado principalmente no
marxismo, a história desse campo de estudos esteve entrelaçada com a
trajetória da New Left, de alguns movimentos sociais (Worker´s Educational
Association, Campaing for Nuclear Disarmamente, etc) e de publicações
entre elas a New Left Review que surgiram em torno de respostas
políticas à esquerda. Ressalta-se, ainda, nas suas origens, um forte laço
com o movimento de educação de adultos em salas de aula não-
convencionais. (SCHULMAN, 1999 apud ESCOSTEGUY, 2001, p.161, grifo
do autor).
Nesse sentido, em sua abordagem sobre o cinema, Turner (1997) demonstra
uma preocupação com o contexto em que ocorre a prática cinematográfica. E ao
fazer uma análise do cinema dentro do contexto onde ele acontece, Turner (1997)
mostra como a mudança em um determinado ponto desse contexto pode reformular
toda uma prática social.
Como exemplo, o autor cita que, se no princípio, o evento era ir ao cinema, e
não assistir a um filme em particular, com o aumento da concorrência pelos lucros
de uma indústria cinematográfica (já consolidada), essa situação se alterou e, hoje,
os filmes devem ser direcionados a um público específico para ter sucesso. Para
Turner (1997, p. 19),
Outrora um pequeno negócio dirigido por empresários entusiastas, passou a
se concentrar num oligopólio dirigido por estúdios de Hollywood, que
também tiveram que vender sua parte para outros interesses
principalmente na área da comunicação e da eletrônica de modo que hoje
o cinema é simplesmente outro resultado da necessidade de diversificação
dos grandes conglomerados. Embora as atividades nos estúdios de som e
nas locações de filmagem possam ainda ser artesanais, as práticas
econômicas da indústria cinematográfica são as dos grandes negócios.
Os filmes, dentro de um novo contexto, são bens culturais (possuidores de
significados) que circulam no mercado. São produtos culturais.
27
Em nossas sociedades, muitas formas de produção cultural assumem
também a forma de mercadorias capitalistas. Neste caso temos que prever
condições especificamente capitalistas de produção [...] e condições
especificamente capitalistas de consumo. [...] nesses casos o circuito é, a
um tempo, um circuito de capital (e sua reprodução ampliada) e um
circuito da produção e circulação de formas subjetivas. (JOHNSON, 2004, p.
35).
O filme como produto cultural, no entanto, não deve ser analisado apenas do
ponto de vista de mercadoria, mas também levando-se em consideração todo o
processo que o torna um produto cultural finalizado para entrar em circulação. Esse
processo inclui perceber o contexto em que o filme foi realizado, quem são os
produtores e as condições de produção. Isto porque: “As condições de produção
incluem não apenas os meios materiais de produção e a organização capitalista do
trabalho, mas um estoque de elementos culturais existentes, extraídos do
reservatório da cultura vivida ou dos campos públicos de discurso.” (JOHNSON,
2004, p. 56).
O que se percebe, é que a abordagem do cinema dentro do contexto em que
ele é produzido, do seu papel como produto cultural, de um meio de comunicação
capaz de produzir sentido para um grande número de pessoas, despido, de certa
forma da roupagem de “sétima arte” para ser compreendido dentro de uma cultura
comum, é uma característica dos Estudos Culturais.
Mas também é importante ressaltar que, ao se analisar o caminho das
diferentes teorias do cinema asua introdução no campo dos Estudos Culturais, as
diferentes abordagens não desaparecem. Elas convivem de forma paralela e, em
alguns momentos se cruzam. O filme, até hoje é tratado por muitos como “sétima
arte” e as análises sobre o potencial artístico do cinema ainda são recorrentes.
A questão do realismo também está presente no cinema atual, com uma
atenção especial aos documentários (com festivais específicos, por exemplo), bem
como o gênero docudrama (que mistura ficção e realidade). E análises destas
produções são facilmente encontradas.
28
2.2 CINEMA E REPRESENTAÇÃO DO SOCIAL
Assim como produto cultural, o cinema funciona também como representação
do social, por ser um meio de produção de sentido, possuidor de uma linguagem
própria. Como foi descrito, o cinema ao longo do tempo criou uma série de
códigos que formam a sua linguagem para a produção de significado. Mas o
entendimento da imagem como representação possui uma trajetória particular que
nos remete a fotografia e ao desejo de captar o movimento contínuo.
Em estudos pré-cinematográficos, realizados no final do século XIX,
Eadweard Muybridge e Etienne-Jules Marey, “[...] captaram a natureza do
movimento como uma série de instantes e fragmentos, como uma descontinuidade
ilusória.” (CHARNEY, 2001, p. 401). Em suas experiências eles perceberam que
havia lacunas na continuidade do movimento como percebemos. Segundo Charney
(2001, p. 402),
As fissuras entre os instantes separados nos lembram que estamos vendo
algo que simplesmente reproduz um movimento contínuo, mas que jamais
poderá ser um. Entramos assim na zona de representação, que com a
ligação com o real introduzida pela fotografia tornou-se reapresentação. A
diferença da reapresentação está inscrita na representação do movimento
pelas lacunas que o tornam descontínuo e fragmentário, ao passo que o
movimento original – o movimento presente – era aparentemente contínuo.
Segundo o autor, o movimento é o que o corpo faz e o que a mente constrói,
de modo que o presente estaria sempre perdido entre o passado e o futuro, trilhando
um caminho fragmentário no tempo e no espaço. “A reapresentação em sua forma
genuína, contribuiu para o esvaziamento da presença que caracterizou o moderno.”,
afirma Charney (2001, p. 404). A partir desta análise, Charney (2001, p. 405)
destaca o papel do espectador:
Acima de tudo foi essa forma de experiência em movimento que ligou a
experiência do cinema à experiência da vida diária na modernidade. A
experiência do cinema refletiu a experiência epistemológica mais ampla da
modernidade. Os sujeitos modernos (re) descobriram seus lugares como
divisores entre passado e futuro ao (re) experimentar essa condição como
espectadores de cinema. Passado e futuro confrontaram-se não em uma
zona hipotética, mas no terreno do corpo. Essa alie
29
surgiu da aspiração moderna para apreender momentos fugazes de
sensação como uma proteção contra sua remoção inexorável.
Desse ponto de vista, a imagem em movimento e sua capacidade de
representação da realidade ou de uma experiência o mais próximo da realidade
possível passa por uma construção imaginária de um mundo entendido como real.
Segundo Aumont (1993, p. 248),
A representação do espaço e do tempo na imagem é quase sempre [...]
uma operação determinada por uma intenção mais global, de ordem
narrativa: o que se trata de representar é espaço e tempo diegéticos, e o
próprio trabalho da representação está na transformação de diegese, ou de
fragmento de diegese, em imagem [...] Toda construção diegética é
determinada em grande parte por sua aceitabilidade social, logo por
convenções, por códigos e pelos simbolismos em vigor numa sociedade.
Em uma análise mais psicológica da representação do real no cinema, Metz
(1980) retoma a questão da diegese para que se atinja a impressão de realidade
que o cinema proporciona.
Se o filme representa um cavalo a galope, temos a impressão de ver um
cavalo a galope e não manchas de luz em movimento que imitam o cavalo a
galope. Atingimos aqui a grande clássica dificuldade de interpretação
levantada por qualquer representação. Nas condições específicas do
cinema, pode enunciar-se assim: como o espectador opera o salto mental
que é o único meio que o pode levar do dado perceptivo, formado por
impressões visuais e sonoras em movimento, à constituição de um universo
ficcional de um significante objetivamente real mas negado a um
significado imaginário mas psicologicamente real? (METZ, 1980, p. 120).
O questionamento proposto por Metz (1980) talvez encontre possibilidades de
resposta no que Morin chama de ‘a alma do cinema’. Para o pensador francês, o
distanciamento da civilização das antigas magias não a afasta da necessidade de
participações afetivas e estéticas. Estas necessidades da alma encontrariam no
cinema um meio de satisfação que a “[...] vida prática não pode satisfazer [...]”
(MORIN, 1983, p. 170) uma vez que: “A civilização da alma interioriza a visão, que
se torna fluida, afetiva, confusa.” (MORIN 1983, p. 168) Assim: “O que de mais
subjetivo o sentimento infiltrou-se no que de mais objetivo há: uma imagem
fotográfica, uma máquina.” (MORIN, 1983, p. 171).
30
O cinema é um meio capaz de gerar significados e criar representações.
Estas características foram fundamentais para despertar o interesse dos
pesquisadores dos Estudos Culturais tornando-se necessário “[...] investigar mais de
perto o próprio cinema como meio específico de produzir e reproduzir significação
cultural. [...] essa inclusão do cinema na cultura [...] resultou numa maior
compreensão de sua especificidade como meio de comunicação.” (TURNER, 1997,
p. 49).
2.2.1 Juventude e subculturas juvenis
No caso específico do presente trabalho, os objetos de estudo são os filmes
“Deu pra ti, anos 70” e “A festa nunca termina” (24 hour party people), e a análise
das narrativas que trazem uma representação da juventude nas décadas de 1970 e
1980 em Porto Alegre, no Brasil, e em Manchester, Inglaterra. Como será abordado
posteriormente, o período e as questões da juventude representadas nos filmes
trazem uma enorme gama de informações sobre uma época, pós 1968, em que as
mudanças sociais começam a ocorrer com ainda mais velocidade, e onde os jovens
passam a ter um papel de destaque nestas transformações, a partir de suas práticas
sociais e culturais.
Em uma forma de abordagem, a questão do cinema como meio de
representação de um fenômeno social específico, como as manifestações juvenis,
ganha força a partir do surgimento das análises das subculturas na Inglaterra, e dos
estudos incentivados por Stuart Hall no Centre for Contemporary Cultural Studies
(CCCS).
Embora não seja citado como membro do trio fundador, a importante
participação de Stuart Hall na formação dos Estudos Culturais britânicos é
unanimemente reconhecida. Avalia-se que ao substituir Hoggart na direção
do Centro, de 1968 a 1979, incentivou o desenvolvimento da investigação
de práticas de resistência de subculturas e de análises dos meios massivos,
identificando seu papel central na direção da sociedade [...] (ESCOSTEGUY
2001, p. 154).
31
Em 1975 o Centro publica uma edição especial do seu Working Papers in
Cultural Studies destinada aos interesses e práticas que aglutinam os jovens dos
meios populares ingleses.
Relançada em 1976, com o emblemático título de Resistance trough rituals
(Hall & Jefferson, 1976), a coletânea de monografias sobre teds, rockers,
mods, rastafaris e skinheads almejava reformular, de maneira radical, o
debate a propósito da chamada ‘cultura juvenil’ – epíteto rotineiramente
acionado, àquela época, por profissionais da imprensa e do marketing, com
o intuito de qualificar uma massa indiferenciada de pessoas de idade similar
e de gostos e experiências afins, distinta não por sua juventude, mas
também por seu estilo particular de consumo conspícuo, orientado para o
lazer. (FREIRE FILHO, 2005, p. 140, grifo do autor).
O pensamento apresentado pelo CCCS era contrário à idéia de uma cultura
juvenil homogênea, que via sua identidade a partir de aspectos como música,
estilos, lazer, sem levar em conta a relação com outras formações culturais como
“cultura paterna”, “cultura dominante” e “cultura de massa”.
A proposta dos CCCS era, em síntese, desconstruir e destronar o conceito
mercadológico de cultura juvenil e, em seu lugar, erigir um retrato mais
meticuloso das raízes sociais, econômicas e culturais das variadas
subculturas juvenis e de suas vinculações com a divisão de trabalho e as
relações de produção, sem negligenciar as especificidades de seu conteúdo
e de sua posição etária e geracional (Clarke et al.., 1976:16). Não se tratava
meramente, pois, de produzir inventários de padrões de consumo e estilos
de vida subculturais; era impreterível avaliar que função o uso (criativo,
insólito, espetacular) de artefatos da cultura de consumo, do tempo e de
espaços territoriais assumia perante as instituições dominantes
hegemônicas da sociedade. (FREIRE FILHO, 2005, p. 141, grifo do autor).
Como foi colocado, os estudos do Centro tinham uma preocupação com a
questão da “cultura comum” e com as manifestações do cotidiano num momento em
que a sociedade passava por transformações estruturais onde novos sentidos eram
gerados. Assim, a própria idéia de “cultura comum” não deixa de passar por
transformações.
Se, como explica Featherstone (1995a, p. 185), para Williams, “[...] uma
cultura comum não deveria envolver somente a transmissão de valores superiores,
mas o respeito e a receptividade para com a cultura cotidiana das pessoas
comuns.”, é o mesmo autor que expõe que a partir de um determinado momento,
32
houve “[...] um deslocamento duplo na tentativa de teorizar a formação de uma
cultura comum.” (FEATHERSTONE, 1995a, p. 187), onde a idéia de um mundo
coerente e organizado de forma racional perde a força e se passa a celebrar a as
culturas incomuns.
“Nesse caso nada de dignidade, nada de ideais humanistas, nada de
desenvolvimento e progresso, nada de Bildungsprozess [...] somente o direito
igualitário de ser diferente da alteridade, de permanecer ‘outro’ em seus próprios
termos caóticos.” (FEATHERSTONE, 1995a, p. 188, grifo do autor). É um momento
em que a atenção das ciências humanas recai sobre outra expressão: o pós-
modernismo que “[...] é sob muitos aspectos a antítese da questão da cultura
comum.” (FEATHERSTONE, 1995a, p. 180).
O termo ‘pós-modernismo’ e o termo associado ‘pós-modernidade muitas
vezes são usados de maneiras confusas para sugerir: um movimento das
artes e da arquitetura que superou o modernismo; uma nova época; uma
nova série de sensibilidades culturais envolvendo a destruição da fronteira
entre a arte e a vida cotidiana; um modo de teorização antifundacional.
(FEATHERSTONE, 1995a, p. 192).
Seria o momento onde, os esforços unificadores e integradores para a
formação das nações, deixam de ter o monopólio das diretrizes do pensamento o
que vazão “[...] à descentralização e ao reconhecimento das diferenças locais,
regionais e subculturais do mundo ocidental.” (FEATHERSTONE, 1995a, p. 195).
A questão do cotidiano, da imagem e da pós-modernidade estão presentes
também na obra de Maffesoli. Pensador da nossa época, Maffesoli sugere um olhar
da pós-modernidade a partir da afetividade, e compreendê-lo é, entre outros
aspectos, pôr em perspectiva o cotidiano e tentar vê-lo como obra de arte, onde se
destacam o coletivo, a emoção, a astúcia e a comunicação. Segundo Silva (2004, p.
45),
Tudo é comunicação na obra de Michel Maffesoli. Tanto que ele não precisa
falar de comunicação, do termo em si, para chamar a atenção dos
interessados na comunicação como fenômeno relacional. Comunicação não
pelos meios, mas pelo fim. Maffesoli não está interessado em emissores,
receptores, canais, efeitos, impacto, manipulação ou crítica da mídia.
Comunicação para ele é socialidade, aquilo que faz com que a sociedade
33
não se dissolva no vácuo da lucidez extrema e da depressão. Na pós-
modernidade, a socialidade assume o papel de protagonista e ganha o
primeiro plano no palco do vivido cotidiano. Portanto a cena pós-moderna
constitui-se pela comunicação como desejo e prazer de estar junto válido
em si mesmo, como um ritual não formalizado da vibração em comum.
Ao sugerir a atenção aos fatos cotidianos - ignorados durante a modernidade,
mas “que constituem o essencial da trama social” (MAFFESOLI, 1984) – o autor traz
à tona a questão da socialidade, ponto que pode ser fundamental para uma
compreensão mais ampla do seu entendimento sobre a pós-modernidade. “Em
resumo [...] pode-se dizer que assistimos tendencialmente à substituição de um
social racionalizado por uma socialidade com dominante empática.” (MAFFESOLI,
1987, p. 17 grifo do autor), sendo o social o local onde “[...] o indivíduo podia ter uma
função na sociedade, e funcionar no âmbito de um partido, de uma associação, de
um grupo estável.” (MAFFESOLI, 1987, p. 108), e a socialidade, o lugar onde “[...] a
pessoa (personna) representa papéis, tanto dentro de sua atividade profissional
quanto no seio das diversas tribos de que participa.” (MAFFESOLI, 1987, p. 108).
A partir do termo socialidade, portanto, Maffesoli faz uma abordagem da
vitalidade que estrutura o conjunto social, pois “[...] muitas vezes, tal vitalidade se
retrai ou mesmo se esgota, brusca ou lentamente; contudo, jamais desaparece por
completo. Apenas sua inscrição se modifica ou sua expressão se desloca.”
(MAFFESOLI, 1984, p. 19).
Ao se pensar a socialidade chega-se em outra questão que permeia o
pensamento do autor, que é a ambigüidade do fenômeno humano, quando “[...]
convém restaurar um paganismo plural frente a um monoteísmo redutor e simplista.”
(MAFFESOLI, 1984, p. 20).
Ao citar uma análise de Edgar Morin sobre o cinema, Maffesoli pistas para
a compreensão dos elementos de uma socialidade vivida no presente, seu
antagonismo estrutural e outra questão de bastante relevo em sua obra o duplo.
“[...] esse fenômeno surpreendente onde a ilusão da realidade é inseparável da
consciência de que ela é realmente uma ilusão, sem que essa consciência destrua o
sentimento de realidade.” (MAFFESOLI, 1984, p. 20, grifo do autor).
34
Desta colocação pode-se partir para o que Maffesoli (1984, p. 20) chama de
“[...] antinomia entre o cotidiano e o imaginário [...]”, provocadora do curto-circuito
garantidor da vitalidade do cotidiano cuja força, segundo o autor, deve ser
reconhecida. Para ele
Existem múltiplas interações absolutamente sutis que não se deixam, strictu
sensu, reduzir, sendo vã a tentativa de negá-las. Sem dúvida, uma tal
perspectiva global é, de maneira marcante, esquecida e pode-se dizer que a
epistémê ocidental em seu apogeu (cartesianismo, Iluminismo, socialismo)
teorizou esse esquecimento. A lógica da disjunção constitui sua expressão
máxima. Nessa lógica, tudo é trabalhado para esvaziar a alteridade, tudo é
feito para estabelecer uma adequação entre real e racional. Mas esse
fantasma, que pode assegurar temporariamente sua hegemonia, não é total
nem eterno. Assim, do mesmo modo como se o retorno do recalcado, é
surpreendente perceber que a preocupação com uma globalidade aberta
ressurge regularmente. (MAFFESOLI, 1984, p. 21, grifo do autor).
A partir da idéia de globalidade que aprofunda a pesquisa sociológica,
Maffesoli parte para uma análise do tempo e do espaço, onde existem o tempo
linear, progressivo, homogêneo e exterior e o tempo da repetição, circularidade, do
vivido socialmente e individualmente, onde [...] no primeiro caso lidamos com um
sentido, uma direção; no segundo, existem ritmos, tempos mortos, mas o que
predomina é acima de tudo é o non-sense e a incoerência.” (MAFFESOLI, 1984, p.
22, grifo do autor).
A concepção de um tempo cíclico com seu eterno retorno, relativismo e
35
estabilidade, de que as coisas não mudarão remetem, segundo o autor, a uma “[...]
profunda convicção da necessidade da diferença, onde a ausência de concorrência,
seu corolário, fortifica a aceitação do trágico [...]” (MAFFESOLI, 1984, p. 24). Para
ele, isso representa um afrontamento do destino e demonstra que “[...] o drama (a
carreira) se inscreve na ordem do poder, enquanto o trágico (o sentimento do
destino) se inscreve na ordem da força social.” (MAFFESOLI, 1984, p. 24).
Ainda ao discorrer sobre o tempo, o autor afirma que a relação com o tempo
determina ao máximo a vida cotidiana e não considerá-la “[...] significaria falar de
sociedades desencarnadas, tanto quanto ao se desconsiderar as pressões
econômicas e políticas.” (MAFFESOLI, 1984, p. 24).
Maffesoli (1984, p. 24) ressalta ainda que a relação com o tempo é de uma
estabilidade surpreendente e que isto se deve ao fato de que o tempo “[...] sempre
tem como alvo o problema da morte [...]” Ele propõe, como hipótese, que o destino
pode ser definido como a reunião do retorno cíclico próprio e do tempo fragmentado,
do tempo a-histórico próprio da gnose. E sugere que esse misto engendra o cinismo
popular onde o tempo é vivido em sua incoerência fundamental.
“Obnubilada pela morte e suas diversas manifestações, a vivência cotidiana
deposita toda a importância num presente caótico que deve ser vivido numa
intensidade que transcende as projeções de todas as ordens (paraíso, sonhos do
amanhã, sociedades perfeitas).” (MAFFESOLI, 1984, p. 25).
Em uma relação entre cristianismo e paganismo a partir da análise do tempo,
Maffesoli (1984) coloca que o primeiro repousa sobre a História, o anúncio, e o
segundo sobre o mito que seria um discurso sobre a simultaneidade ontológica.
Que a repetição trágica do rito e o tempo circular incomodam a linearidade eficaz de
uma História dramática mas, “[...] enquanto esta permanece abstrata e geral,
aqueles se encontram bem mais próximos dos pequenos atos que pontuam o dado
cotidiano, sendo mais capazes de explicar ao mesmo tempo a intensidade e o tédio
que atravessam, de ponta a ponta, a vida diária.” (MAFFESOLI, 1984, p. 26). É esse
raciocínio que permite ao autor afirmar que o cotidiano mais banal é “o cadinho da
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permanência da socialidade”, ao contrário dos projetos exteriores, sempre
reformistas.
Uma socialidade conflitiva e ambivalente, da busca da alteridade e sua
recusa, cotidiana e palco de expressão da potência social, da qual: “Não se deve
esperar a realização da existência em amanhãs que cantam, em outros mundos
quaisquer ou em profundezas particulares, a sabedoria dos limites que se realiza na
massa ensina que é preciso encontrá-la no presente.” (MAFFESOLI, 1997, p. 49).
Mas o entendimento da relevância da socialidade presente na banalidade
cotidiana e que permite que a sociedade não se dissolva nem sempre ocupou um
papel central nas leituras do social. E o não reconhecimento da importância do
cotidiano “[...] atingiu seu apogeu na modernidade.” (SILVA, 1996, p. 77). Período
em que, devido ao vaivém da vida social irá privilegiar a sociedade, com suas
conseqüências racionais, em detrimento da socialidade, com sua conotação
emocional. Essa época se caracteriza pelo drama, linear, monoteísta, onde a quebra
da circularidade vazão à razão sã, ao procedimento seguro, ao caminho
claramente traçado e racionalmente previsível. “Enquanto o aspecto circular da
mentalidade politeísta admite o retrocesso ou a involução, o linearismo cristão é
essencialmente evolutivo e sua lei é o progresso.” (MAFFESOLI, 1997, p. 51).
Momento de domesticação dos costumes que, segundo Maffesoli, pode ser a
marca essencial, o resumo da modernidade. É quando a Razão toma o lugar do
Deus único, gerando uma racionalização que atinge os detalhes da vida cotidiana
em nome do controle da desordem. Racionalidade que vira racionalismo triunfante
no século XX. “Racionalismo triunfante que fa da ciência a teologia do mundo
moderno.” (MAFFESOLI, 1997, p. 53). Quando a religião se laiciza em político e o
refreamento da desordem visa substituir o politeísmo dos valores pelo monoteísmo
utilitário. Onde tudo que o tem lógica deve ser ultrapassado, sendo lógico
somente o que é útil, projetivo e rio. Assim, segundo o sociólogo (MAFFESOLI,
2005, p. 13):
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O estar-junto moral ou político, na forma em que prevaleceu na
modernidade, não passa de uma forma profana de religião. Ou, ainda,
exprime a história da salvação, inicialmente cristã, espera da parúsia, e
depois progressista, mito do desenvolvimento que dominou especialmente o
século XIX.
Mas com o enfraquecimento do divino e o quando o ideal do progresso passa
a ser questionado o mundo se volta à potência que o constitui e o cotidiano e suas
experiências retomam um lugar de destaque. “Neste momento, quando o mundo fica
entregue a si mesmo, cresce o que me liga ao outro, aquilo que se pode chamar de
religação.” (MAFFESOLI, 2005, p. 13).
É pensar a idéia de uma época da ética da estética onde todas as
situações e práticas minúsculas constituem a terra fértil sobre as quais
crescem cultura e civilização, e onde a estética é entendida como ‘vibrar em
comum, sentir em uníssono, experimentar coletivamente, tudo o que permite
a cada um, movido pelo ideal comunitário, de sentir-se daqui e em casa
neste mundo’. (MAFFESOLI, 2005, p. 8)
No momento em que as formas banais da existência passam a ter autonomia,
mesmo sem finalidade, mas carregadas de sentido - mesmo que se esgotem in actu,
e que as culturas dos sentimentos se estruturam e passam a fazer parte do corpo
social, ocorre o processo que, dentro do universo proposto por Maffesoli, distingue
os termos identidade e identificações. É quando ocorre “[...] o deslizamento de uma
lógica da identidade para uma lógica da identificação. A primeira é essencialmente
individualista: a última, muito mais coletiva.” (MAFFESOLI, 2005, p. 22, grifo do
autor).
Quando o eu, pilar da modernidade, é questionado, começam a transparecer
e se tornar evidentes as “rachaduras” do pensamento dogmático do progresso, do
futuro, da idéia do dever-ser, da Verdade única. “Da mesma forma, o indivíduo não é
mais uma entidade estável provida de identidade intangível e capaz de fazer a sua
própria história [...] (MAFFESOLI, 1997, p.18). Enquanto na modernidade as
identidades pressupõem uma cristalização, um contrato, uma moral do sacrifício, na
pós-modernidade as identificações são líquidas, remetem ao fluxo, ao nós, ao laço-
social. Um cotidiano de vivências diárias em contraposição às meta-narrativas, aos
grandes ideais futuristas.
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Há relativismo no ar, tudo está em relação. “A identificação liga cada pessoa a
um pequeno grupo ou a uma série de grupos.” (MAFFESOLI, 2005, p. 23). A
inconstância caracteriza os membros destes distintos grupos, que estabelecem
relações fugazes, instantâneas de certa forma impulsionadas por uma “atração de
sensibilidades”. O compromisso é com o agora. Aqui retoma-se o trágico do
presente em relação ao drama evolutivo. A ênfase é na sensação coletiva e não no
projeto racional comum ao qual se deve fidelidade eterna, como mostra Silva (1996,
p. 138):
Ausência de projetos monolíticos, ocupação de territórios reais e de
importância simbólica, predominância da sensibilidade coletiva, de ideais
efêmeros, de laços frouxos, de experiências artísticas, sexuais, políticas ou
com drogas, importando mais a reunião, a prática em conjunto e a
afetividade implícita do que a permanência, a lealdade a longo prazo, a
identidade ou o compromisso.
Para pensar a identidade, talvez seja interessante lembrar que a modernidade
tem como característica separar os indivíduos entre eles (classes, camadas,
categorias sócio-profissionais), o corpo do espírito, a natureza da cultura. Fazemos
parte de um ou de outro. O posicionamento é cobrado. E a política, forma
racionalizada dessa separação, era a responsável pela administração.
na pós-modernidade, onde florescem as identificações, uma
viscosidade, uma indistinção, um prazer no estar-junto através do mimetismo onde a
aparência ganha destaque. Segundo Maffesoli (1997, p. 251), vive-se em
[...] um eu poroso em estado de transe perpétuo que aderirá, com
maior ou menor intensidade, aos movimentos da massa, à
publicidade, às diversas modas, em resumo, aos sentimentos
ambientais que lhe garantem assim a calorosa segurança de uma
comunidade arquetipal.
É neste contexto, portanto, que a presente pesquisa analisa a participação
juvenil nos filmes “Deu pra ti, anos 70” (Brasil) e “24 hour party people” A festa
nunca termina (Inglaterra).
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3 IMAGENS DA JUVENTUDE – PORTO ALEGRE
3.1 “DEU PRA TI, ANOS 70” JOVENS PORTO-ALEGRENSES EM BUSCA DE
ESPAÇO
“Deu pra ti, anos 70” é um longa-metragem com 108 minutos de duração,
filmado em Super-8 entre abril e outubro de 1980. Co-dirigido e roteirizado por
Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil, “Deu pra ti, anos 70” se passa em Porto Alegre,
capital do Rio Grande do Sul, com algumas cenas filmadas no litoral gaúcho
Capão da Canoa – e no litoral catarinense – Garopaba.
O filme é uma ficção que tem como fio condutor a história de amor de Marcelo
e Ceres, no período que vai de 1971 até o último dia de 1979 e o amanhecer de
1980. Quando os protagonistas se conhecem, portanto, eles são adolescentes por
volta dos 13, 14 anos, que se vêem às voltas com questões como: primeiros
namorados, turmas de bairro, jogos de futebol e de cartas.
Nas cenas que representam o cotidiano de um grupo de jovens de classe
média porto-alegrense ainda na adolescência, as questões políticas não são
abordadas de forma direta. Nesta fase, a preocupação dos meninos é mais com a
virilidade, questões hormonais, e o conflito com a total dependência e resignação ao
controle dos pais. Todos freqüentam reuniões dançantes nas casas das famílias,
onde a presença paterna fica explícita. As meninas dançam com os rapazes,
algumas já trocam beijos em cantos das salas e fumam cigarros às escondidas.
A narrativa do filme não é linear e as idas e vindas do roteiro situam, desde o
início, o espectador no contexto de um país que vive sob uma ditadura militar. Logo
na primeira seqüência o filme faz referência a esta situação política por que passa o
Brasil e a década em que a história transcorre.
Os anos 70 começam sob a presidência do general Emílio Garrastazu Médici,
terceiro presidente na sucessão do comando militar, que em seis anos tinha
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consolidado uma forma própria de governar. “Médici chegou ao governo em
momento mais sombrio. Dez meses antes uma onda de repressão avassalara o
país. E agora o consenso militar exigia que a repressão continuasse. A linha dura
tinha as rédeas nas mãos.” (SKIDMORE, 1988, p. 214).
Mesmo que as preocupações dos jovens apresentadas em “Deu pra ti, anos
70” nos primeiros anos da década de 1970 estejam mais ligadas às descobertas da
adolescência, a forma narrativa do filme logo no início apresenta o panorama político
em que estes jovens se desenvolviam. Um momento em que a sociedade civil se
calava diante da repressão.
[...] a virada da década corresponde a uma nova derrota dos movimentos de
massa especialmente o de composição estudantil e das esquerdas. O
chamado ‘segundo golpe’ instala definitivamente a repressão política de
direita organizada pelo Estado e marca a abertura de um novo quadro
conjuntural onde a coerção política irá assegurar e consolidar a euforia do
‘milagre brasileiro’. (HOLLANDA, 1981, p. 90).
O passar dos anos mostra as diferentes preocupações que começam a
ocupar o pensamento dos protagonistas e do grupo em geral. Os questionamentos
passam a ser o futuro profissional, a repressão militar, o engajamento social, o sexo
antes do casamento. A representação do comportamento do grupo também dá
41
estudantil e também criticando o jeito ‘emocional’ de Marcelo em relação ao seu
modo mais ‘racional’ de encarar os fatos.
A questão que permeia “Deu pra ti, anos 70” é, entre outros pontos paralelos
da história, esta tentativa de aproximação de dois jovens com pensamentos e
posturas distintas. Um momento que novos questionamentos roubam a cena, e onde
a cultura ganha destaque.
A segunda geração que notamos não tem sua informação marcada pelos
limites dos debates dos anos 60: trata-se de uma geração que começa a
tomar contato com a produção cultural e produzir no clima político dos anos
70, quando a universidade e, de resto, o processo cultural apresentam
condições bastante diversas daquelas que marcaram a década anterior.
(HOLLANDA, 1981, p. 89).
Esta - e outras - representações da juventude como mostradas no filme serão
analisadas de formas separadas ao longo do texto. Fragmentos representativos de
cada tema foram selecionados de forma a permitir uma análise de aspectos que
possam dar uma idéia dos hábitos da época, tendo também uma preocupação com
o período sócio-histórico em que o filme se desenrola, o contexto em que foi
realizado, o papel dos realizadores e as condições de produção.
3.2 OS REALIZADORES – CO-AUTORIA, GRUPO E PRODUÇÃO JOVEM
No Rio Grande do Sul, a partir da década de 70, registra-se o início de uma
produção cinematográfica mais constante, a partir de produções em Super-8, de
curtas-metragens e alguns longas-metragens.
Como já foi dito, “Deu pra ti, anos 70” é feito em bitola Super-8, no período de
abril a outubro de 1980, ano em que sua história se encerra, na virada de 1979 para
1980. Nelson Naddotti e Giba Assis Brasil são co-autores do roteiro que tem
colaboração de Álvaro Luiz Teixeira - e dividem também a direção do filme. Eles
têm, respectivamente 21 e 23 anos quando rodam o filme. Percebe-se, portanto, a
42
proximidade da realidade vivida pelos realizadores, que também passaram a
adolescência em Porto Alegre, no mesmo período narrado no filme.
A questão da co-autoria e direção é uma característica que marca a produção
de filmes no Estado durante o final dos anos 70 e início dos 80, como explica
Gerbase, que atua como assistente de direção no filme e elenco de apoio e que,
mais tarde, co-dirigiria dois filmes com Nadotti e um com Giba Assis Brasil, além de
utilizar argumento de Nadotti para seu longa em Super-8, Inverno.
Outra característica fundamental dos Super-8 gaúchos entre 1976 e 1983
era o caráter coletivo e cooperativado de suas produções, que mantinha a
figura do ‘autor’ (os filmes eram assinados pelos seus diretores, sendo
Nadotti o mais prolífico), mas de certo modo diluía essa autoria pelo grupo
de realizadores (tanto de forma mais explícita, com o ‘Grupo de Cinema
Humberto Mauro’, entre 76 e 79, como de forma informal, fazendo alguns
críticos de Porto Alegre criarem a expressão ‘turma do Nadotti’ a partir de
1980). (GERBASE, 2005).
É também Gerbase que expõe algumas dificuldades inerentes à produção
fílmica gaúcha. Dificuldades que acabaram por contribuir para o surgimento de uma
estética característica da produção local no período:
Mesmo que eles desejassem copiar alguma cena ou reproduzir uma
determinada estratégia narrativa, a limitação dos equipamentos, os
orçamentos quase nulos (os filmes eram realizados em esquema
cooperativado) e a falta de uma estrutura de produção profissional
acabavam conferindo aos filmes grande originalidade e frescor. Nadotti e
Assis Brasil estavam mais interessados em resolver problemas pragmáticos
da realização que em copiar os seus cineastas europeus mais admirados.
De certo modo, continuavam a encarar os filmes em 35mm como objetos de
um outro mundo, bem distante da realidade urgente do Super-8 [...]
(GERBASE, 2005).
Esse esforço no sentido de produzir, de fazer cinema, mesmo com todas as
dificuldades encontradas, posiciona a produção local na contramão da tendência dos
cineastas do centro do país na década de 70, que tomavam um rumo distinto ao que
caracterizou a produção dos anos 60.
43
Na década anterior, o cinema fora talvez a manifestação mais crítica e
questionadora do papel de artista dentro das relações de produção. Na
década de 70 é o cinema que adere mais sintomaticamente às novas
exigências do mercado e à política cultural do Estado. Alguns dos principais
representantes do Cinema Novo lançam-se à produção cinematográfica em
grande escala e, além da qualificação técnica justificam-se politicamente
pela divulgação de conteúdos supostamente populares. (HOLLANDA, 1981,
p. 92).
Neste cenário, são buscadas alternativas para uma produção cultural mais
independente e novamente são feitas parcerias. No caso de “Deu pra ti, anos 70”, o
elenco conta com os grupos teatrais “Vem dê-se sonhos” e “Faltou o João”.
[...] é exatamente num momento em que as alternativas fornecidas pela
política cultural oficial são inúmeras que os setores jovens começarão a
enfatizar a atuação em circuitos alternativos ou marginais. No teatro
aparecem os grupos ‘não empresariais’, destacando-se o Asdrúbal trouxe o
trombone; na música popular os grupos mambembes de rock, chorinho e
etc.; no cinema surgem as pequenas produções, preferencialmente os
filmes em ‘Super-8’ e, em literatura, a produção de livrinhos mimeografados.
Todas essas manifestações criam seu próprio circuito não dependem,
portanto, da chancela oficial, seja do Estado ou das empresas privadas e
enfatizam o caráter de grupo e artesanal de suas experiências. É importante
notar que esses grupos passam a atuar diretamente no modo de produção,
ou melhor, na subversão de relações estabelecidas para a produção
cultural. (HOLLANDA, 1981, p. 96).
Mas essa busca de alternativas tem também relação com as importantes
mudanças ocorridas no cenário da produção cultural internacional que passa a
circular com maior facilidade dos centros mundiais para os países periféricos a partir
da década de 60. Essa troca de informações se torna viável através das viagens,
dos discos, das rádios, do próprio cinema e da televisão. Segundo Hollanda (1981,
p. 63): “É por essa época que começa a chegar ao país a informação da
contracultura, colocando em debate as preocupações com o uso de drogas, a
psicanálise, o corpo, o rock, os circuitos alternativos, jornais underground, discos
piratas etc.”
A respeito de uma possível influência européia nos filmes gaúchos, em
especial “Deu pra ti, anos 70”, quem comenta é Nadotti:
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O que houve de influência mais clara pode ser exemplificada pela
seqüência defronte ao antigo Cinema 1 (onde assistimos a muitas pérolas
do cinema europeu): o filme em cartaz é ‘Amarcord’, Pedro Santos e
Wander Wildner vestem figurinos idênticos a personagens daquela obra,
falas totalmente calcadas no Fellini (‘Voglio uma donna!’, ou melhor, Voglio
una [impublicável]!’) [...] (GERBASE, 2005).
Mesmo a realidade de uma produção cinematográfica ainda incipiente, sem
uma estrutura de indústria por trás das realizações, não impediu que “Deu pra ti,
anos 70” tenha tido uma receptividade bastante positiva, como relata Assis Brasil:
Auditório do Hotel Serrano, 24 de março de 1981. Naquela tarde de terça-
feira, pela primeira vez em cinco anos de Festival Super-8 de Gramado,
seria exibido um longa-metragem. Ainda por cima, gaúcho. Na sala, o
público normal da mostra (realizadores da bitola, amigos, parentes), mais
um grupo de curiosos, que estavam em Gramado para assistir ao festival
"de verdade", mas que foram atraídos pelo folheto distribuído desde o dia
anterior, e ainda um ou outro profissional (o diretor Romain Lesage, a
produtora Marisa Leão, o ator Walmor Chagas). Expectativa, nervosismo
dos realizadores durante as quase duas horas de projeção. Mas o filme
agradou, e mais do que isso: surpreendeu. Foi comentado e elogiado
durante quatro dias, chegou a roubar espaço na imprensa dos filmes
‘quentes’ (Eu te amo, O Homem que virou suco, Cabaret mineiro). No
sábado, ao receber o prêmio de Melhor Filme, foi reprisado com a sala
superlotada, estrelas do Rio e São Paulo sentadas no chão. Abriu um
caminho, formou uma equipe, lançou uma idéia: nos dois anos seguintes,
outros dois longas gaúchos em super-8 ganharam o Festival. Inventou um
mercado: foi exibido em salas alternativas para mais de 20 mil pessoas.
Fechou uma era: Deu pra ti, anos 70. (BRASIL, 1990).
Hoje, Nadotti é roteirista da Rede Globo de Televisão e reside no Rio de
Janeiro. Giba Assis Brasil é “o mais importante montador cinematográfico do Rio
Grande do Sul”, (GERBASE, 2005) e reside em Porto Alegre.
a trilha sonora do filme conta com nove músicas de Nei Lisboa e Augusto
Licks que, no final de 1979 realizam o show “Deu pra ti, anos 70” em Porto Alegre.
As músicas são “Delírio 32", "Do lado do avesso", "Nessa cidade", "Sumir do cais",
"Ano que vem", "Balada pra Margarete", "Maio", "Doody 2" e "A Tribo toda em dia de
festa". Duas faixas que constam no filme fazem parte do primeiro disco de Nei
Lisboa, lançado em 1983, de forma independente, com o título “Pra viajar no cosmos
não precisa gasolina”.
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Gaúcho, nascido em Caxias do Sul, Nei Lisboa reside hoje em Porto Alegre.
Possui nove discos gravados e também atua como escritor de romances. Ainda na
adolescência morou nos EUA o que traz para a trilha de “Deu pra ti, anos 70”,
algumas influências internacionais ou “[...] um apanhado de clássicos da música pop
e do repertório folk que influenciou o seu início de carreira nos anos 70.” (NEI...,
2007).
Com relação aos anos de ditadura militar, condição política do país durante
toda a narrativa, o irmão mais velho de Nei Lisboa, Luis Eurico foi o “[...] primeiro
desaparecido político brasileiro cujo corpo pôde ser localizado, no final dos anos 70.”
(NEI..., 2007).
Outros dois músicos, mas que atuam no filme como personagens, são Júlio
Reni e Wander Wildner. Assim como Nei Lisboa, ambos começavam suas carreiras
no período em que o filme transcorre e se consolidam na década de 80, quando o
filme é produzido. Em 1981 Júlio Reni lança, de forma independente, a fita “Último
verão” e Wander Wildner lança, em 1985, também de forma independente, um disco
como vocalista da banda Replicantes.
Esta participação nos remete também à produção radiofônica do período,
importante meio de difusão das músicas locais e internacionais. No texto
Woodstock em Porto Alegre”, Rogério Ratner conta a trajetória do programa Mister
Lee, transmitido pela rádio Continental entre 1975/77, e apresentado e produzido
por Júlio Fürst. Segundo Ratner (2007):
Não seria arriscado dizer que possivelmente muitos de nós hoje não
conheceríamos os excelentes músicos que afloraram daquela geração
portoalegrense e gaúcha, que Júlio catapultou em seu programa e nos
shows que promovia...se não tivesse acontecido o movimento capitaneado
pelo Mr. Lee naqueles frenéticos dois anos aproximadamente em que o
programa foi ao ar, do meio para o fim da década de 70 não seria delírio
pensar que muitos outros trabalhos importantes como os de Nei Lisboa,
Bebeto Alves, Gelson Oliveira, Totonho Villeroy, Vitos Ramil, Júlio Reny,
Jimi Joe, Wander Wildner, Frank Jorge – ou seja, um espectro que abrange
o próprio Rock Gaúcho dos anos 80, que estourou Brasil afora talvez não
houvessem obtido tanta repercussão.
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3.3 PORTO ALEGRE NA FOTO – ANOS 70
Algumas cenas de “Deu pra ti, anos 70” funcionam como uma apresentação
da Porto Alegre da época. Devido à proximidade no tempo entre a filmagem e o
período em que se passa a história, muitas cenas são externas, o que não exige a
reconstrução de locais de referência e nos permite identificar como era a cidade na
década de 1970.
A cena inicial funciona como uma apresentação da cidade. Contém planos
rápidos da Avenida Castelo Branco, do Monumento aos Açorianos e da Rua da
Praia, locais facilmente identificáveis àqueles que conhecem a cidade. Em seguida,
a protagonista Ceres, vestida de calça jeans, bata bordada, bolsa de tecido colorida
e com os cabelos crespos soltos, folheia a revista de informações semanal Isto É,
criada em maio de 1976, pelo italiano Mino Carta em uma banca de revistas. Com a
revista na mão ela entra em um ônibus, no centro da cidade. O fato de ler uma
revista Isto É, já dá uma indicação de tempo. Estamos entre 1976 e 1979.
Os planos médios fechados de Ceres, sentada no ônibus lendo a revista, são
intercalados por planos fechados nos títulos das matérias: “Os anos do sufoco”, “A
década da infâmia”, “Revolução frustrada”, “O recomeço do sonho”. O som é
ambiente, da rua, carros e som do ônibus. Ceres levanta o rosto suspira e olha pela
janela.
O que vemos até aqui é uma jovem bem informada (lê sobre as questões
políticas que envolvem seu país no período), e o suspiro tem um ar de cansaço, de
tédio, que talvez encontre ressonância na exposição de Hollanda (1981, p. 96):
Pode-se dizer que para a juventude tal descrença já estava ‘pronta’. O clima
político e cultural do ‘milagre brasileiro’, o sufoco da primeira metade da
década e a própria experiência social de cursar a universidade nesse
momento fornecem a essa geração o ambiente para a recusa e a descrença
das linguagens e das significações dadas. As linguagens do sistema, ‘as
formas sérias do conhecimento’ e especialmente ‘a forma séria do
conhecimento por excelência’ que é a ciência são rejeitados. O mesmo
parece acontecer com o discurso da esquerda burocratizada que passa a
ser confundido com o discurso da cultura oficial e, portanto, com o próprio
sistema.
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Ao olhar pela janela, temos o ponto de vista de Ceres de onde vê-se o início
da Av. Osvaldo Aranha. A câmera continua o passeio pela Avenida, que agora é
intercalado pelos créditos do filme. Os primeiros, escritos a mão em uma tarja
branca sobre uma foto preto e branco de Ceres e Marcelo, dizem: Pedro Santos a
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o bairro no anúncio dos anos 80, se pensarmos na cada que chega como cenário
de um “presente multifacetado” (SILVA, 1996; 138) como percebe Silva (1996, p.
139, grifo do autor):
Presenteísmo que se revelou, nos anos 80, no extremo de sua vitalidade no
bairro Bom Fim [...] O Bom Fim dividia-se entre a frieza do comércio, a
presença da morte (em função da presença do Hospital de Pronto Socorro),
o romantismo dos boêmios, nas noites e a afetividade das manhãs de
domingo [...] no chamado Brique da Redenção [...] Em bares com nomes
simples, Lola, Ocidente, João, Redenção, Luar Luar, Lancheria do Parque,
Escaler, Cais, ao longo de 100 metros da Osvaldo Aranha, entre as ruas
João Telles e Fernandes Vieira, o dionisíaco público noturno exalava sua
paixão pelo imediato.
Outra cena noturna - que caracteriza a cidade é a que se passa em frente
ao Cinema 1 Sala Vogue, na Av. Independência, cujos letreiros anunciam
Amarcord, de Fellini. O ano é certamente posterior a 1973, pois esta é a data de sua
produção. Em 1975 o filme ganha o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, o que indica
que estaria sendo exibido somente alguns anos após esta data no Brasil.
Na saída do filme, um grupo de amigos se reúne para fazer comentários. É
inverno e eles usam grossos casacos e blusões com cachecol. Alguns são casais e
outros apenas amigos. Esta tendência da reunião em frente aos cinemas para
discutir os filmes assistidos ocorria também nos centros do país, ainda na década de
60, mais especificamente 1964, antecipando um comportamento dos jovens da
década de 70, como mostra Hollanda (1981, p. 33):
É por essa época que surge a chamada ‘esquerda festiva’ ou ‘geração
Paissandu’. Ainda que pareça ambígua, a nomeação de uma esquerda
como festiva num momento em que a grave derrota política anterior não
poderia ser motivo para festas ou, ainda, o fato dessa esquerda deslocar-
se para portas de cinemas da moda (Paissandú), é importante ver que essa
ambigüidade traduz a própria novidade dessa nova geração que irá marcar
o período: a festa é a marca de uma crítica ao tom
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de 1970, o texto de Goellner, Rechenberg e Capparelli, ilustram bem o cenário da
redistribuição espacial por que passava Porto Alegre que, em 1973, passou a ter sua
primeira sala de cinema dentro de um centro comercial, o João Pessoa:
[...] se na década de 50 os cinemas encontravam-se distribuídos em 22
bairros, na de 70 esse número diminuiu para 13, sendo que a maior parte
dos bairros que perderam suas salas eram populares, e os que mantiveram,
de classe média [...] No Centro, pode-se dizer que o número de cinemas
manteve-se estável, apesar deste espaço, nas grandes metrópolis estar em
crise, face ao que Canclini (1996) denomina cidade policêntrica, realidade
imposta com a emergência dos centros comerciais e shoppings].
(GOELLNER; RECHENBERG; CAPPARELLI, 2000, p. 281-282).
Da frente do Cinema 1, o grupo segue pela noite. Um deles acaba de comprar
uma moto e ouve o comentário de Marcelo: “Depois que comprou a moto virou
“boyzinho” do Torta de Panela”, numa referencia a um local de encontro da época. O
restante do grupo sobe a Av. Independência, a maioria a pé, em direção ao Rib’s,
localizado no bairro Moinhos de Vento e que até poucos anos ainda mantinha
suas atividades. Um dos primeiros locais a vender lanches do tipo fast-food, como
hambúrgueres, em Porto Alegre, sendo pioneiro em uma tendência que
posteriormente se generalizaria pelo mundo todo e que envolve muito mais do que o
consumo de alimentos, como expõe Featherstone (1995b, p. 23) ao falar sobre a
macdonaldização da sociedade:
[...] não apenas ela implica ‘eficiência’ econômica (sob a forma
tempo/dinheiro) e lucros através da padronização do produto e da entrega,
como também representa uma mensagem cultural. O hambúrguer, além de
ser consumido fisicamente enquanto substância material, também é
consumido culturalmente como imagem e ícone de um determinado modo
de vida [...] o hambúrguer é claramente americano e representa o estilo
americano de viver.
A seqüência que se passa em agosto de 1978, quando Marcelo sai no meio
de uma aula da faculdade de jornalismo e vai procurar Ceres na faculdade de
arquitetura da UFRGS também é elucidativa. Na biblioteca, ela folheia um livro de
arquitetura de Le Corbusier arquiteto suíço conhecido mundialmente e ligado ao
modernismo na arquitetura do pós-guerra. Como propõe Harvey (1993, p. 71) no
livro “A condição pós-moderna”.
50
Foi quase como se uma versão nova e rejuvenescida do projeto do
Iluminismo tivesse surgido, como fênix, da morte e destruição do conflito
global. A reconstrução, reformulação e renovação do tecido urbano se
tornaram um ingrediente essencial desse projeto. Foi esse o contexto em
que as idéias do CIAM, de Corbusier, de Mies van der Rohe, de Frank
Lloyd Wright e outros puderam ter a aceitação que tiveram, menos como
força controladora das idéias sobre produção do que como quadro teórico e
justificativa para aquilo que engenheiros, políticos, construtores e
empreendedores tinham passado a fazer por pura necessidade social,
econômica e política.
Eles se encontram no bar da universidade e saem para caminhar na
Redenção. Sobre esta cena específica que mostra o parque em um dia típico do
inverno porto-alegrense e que tem um ar melancólico, é um dos diretores, Nadotti,
que revela que há aí uma certa inspiração em filmes europeus:
Existe outra cena com inspiração sutilíssima, aquela de Pedro Santos e
Ceres Victoria no parque da Redenção, sentados lado a lado, e ele se
declarando a ela: a fotografia é toda européia (graças a um dia nublado,
típico de Porto Alegre no inverno), num clima descaradamente romântico,
bem ao estilo das imagens de Nestor Almendros em filmes do Truffaut.
(GERBASE, 2005).
No diálogo Marcelo conta pela primeira vez seu desejo de sair de Porto
Alegre e ver coisas novas enquanto caminham pelas trilhas do parque. De certa
forma, o protagonista informa sua insatisfação com as respostas que vem recebendo
na cidade. O grupo, a família, a universidade já não são mais o suficiente. É como se
houvesse mais a ser visto, conhecido, experimentado. Enquanto Ceres se mantém
na sua posição segura estudante de arquitetura -, no lugar seguro sua cidade.
No caminho sem riscos.
Marcelo Eu vou cair mesmo, não com saco para aturar jornalismo agora. Enchi
de ficar matando aula. Eu devia ter feito isso antes, em julho. Eu não devia nem
ter me matriculado para esse semestre.
Ceres – Pois é... eu acho tão estranho largar a faculdade assim...no meio do
semestre. E para onde é que tu vai?
Marcelo Eu tenho uns faixas no Rio, eu acho que eu vou ficar um tempo.
Quem sabe eu não arrume um emprego, não sei. Depois talvez eu para a Bahia,
para o Ceará. Diz que tem uma praia tri bonita lá no Ceará...Canoa Quebrada. Mas o
certo é que eu vou cair...vou embora mesmo.
51
Ceres – E quando é que tu volta?
Marcelo Ah, eu nem sei se vou voltar, mas eu acho que acabo voltando. Mais
provável é passar uns meses fora e depois voltar. Talvez até o final do ano eu esteja
aqui, até faça a matrícula para o primeiro semestre de 79.
Ceres – Tu já falou com teu pai e com a tua mãe?
Marcelo – Eu não falei ainda, mas eu acho que não vai ter maiores problemas...
Ceres – Quem mais sabe que tu vais embora?
Marcelo – Ninguém, só tinha tu pra eu contar.
Ceres – Só eu?
Marcelo – Não tinha ninguém perto para eu ficar contando, só tu.
Ceres – Por que só eu?
Marcelo o sei, acho que porque tu morou no Menino Deus, porque tu não gosta
de Guaraná da Brahma, porque não tem saco pra agüentar reunião de movimento
estudantil, e tu nunca leu um conto meu, e porque...eu acho que eu gosto de ti.
Ceres – Eu acho que eu vou ficar com saudade de ti.
Como mostra o diálogo, entre os motivos que Marcelo encontra para explicar
porque escolheu Ceres para contar a novidade, ele diz que ela não tem saco pra
agüentar reunião de movimento estudantil”, o que pode apontar para o que diz
Hollanda (1981) sobre o período:
Estamos em dezembro de 1978 [...] no campo da cultura, o debate se
reacende agora tematizando a falência da produção ortodoxa de esquerda,
hegemônica no mercado e em fase de consolidação de alianças com a
burocracia do Estado: são os ‘patrulheiros ideológicos’. Essa polêmica se
desenvolve em ritmo de sensação, através das principais publicações da
imprensa no eixo Rio-São Paulo, promovendo divisões em torno de uma
suposta censura não-oficial da velha esquerda, mais conhecida como
‘camisa de força ideológica’ [...] A patrulhagem ideológica é identificada
como mais repressiva e controladora da produção cultural do momento do
que os, ainda em vigência, aparelhos de coerção do Estado. A instalação
dessa questão faz-se, não por acaso, num momento de abertura político-
institucional e de retomada do discurso político direto na imprensa, nas
mobilizações sindicais e no recrudescimento das manifestações estudantis.
(HOLLANDA, 1981, p. 118).
As cenas seguintes mostram Marcelo na estrada, viajando de carona.
52
3.4 JUVENTUDE E MÚSICA NA PORTO ALEGRE DOS ANOS 70
A cena que transcorre na lanchonete Rib’s é indicadora de alguns
comportamentos que caracterizam os jovens porto-alegrenses da cada de 70.
Eles iam ao cinema e depois seguiam a (a maioria não possuía automóvel) até
um local para comer e continuar a conversa. No caso específico, é ali que se
estabelece o primeiro diálogo representativo entre Marcelo e Ceres (que está
descrito no capítulo 2.5). Mas é também a seqüência desta cena, que mostra
integrantes do grupo ‘lotarem’ o fusca (único veículo) de um dos amigos para fumar
maconha. A música que acompanha a cena é “Rock do Diabo”, de Raul Seixas.
A trilha sonora musical de “Deu pra ti, anos 70”, tem um papel de destaque
em toda a narrativa do filme, e funciona também como condutora da história. A trilha
musical em sua maioria é composta pelas sicas de Nei Lisboa em parceria com
Augusto Liks, e fazem parte do show “Deu pra ti, anos 70”, que, como foi dito
realmente ocorreu em Porto Alegre em 1979.
Esse papel de condutor/narrador pode ser observado logo no início do filme,
quando, de dentro do ônibus Ceres levanta o rosto, e olha pela janela de onde se vê
o início da Av. Osvaldo Aranha. Neste ponto começa música “Delírio 32” de Nei
Lisboa, cuja letra em um determinado momento do passeio diz “Basta ler nas
entrelinhas e ficar acreditando que são minhas estas rimas, versos soltos, que eu
despejo entre arrotos nas sarjetas do Bom Fim.”
Aqui novamente o Bom Fim, suas sarjetas, seus versos. O próprio artista fala
do ambiente de boemia e temas que podem ter ligação com o conceito não pouco
escorregadio de pós-modernismo nas artes como coloca Featherstone (1995a, p.
25):
Dentre as características centrais associadas ao pós-modernismo nas artes
estão: a abolição entre arte e vida cotidiana; [...] uma promiscuidade
estilística, favorecendo o ecletismo e a mistura de códigos; paródia, [...]
ironia, diversão e a celebração de ausência de profundidade’ da cultura; o
declínio da originalidade/genialidade do produtor artístico e a suposição de
que a arte pode ser somente repetição.
53
Em outra seqüência do filme, agora em 1971, acontece uma “reunião
dançante”, na casa de uma amiga de bairro. Na porta da festa se ouve a trilha
sonora: rock com letra em inglês. Marcelo chega com um presente para a
aniversariante. As meninas usam shorts, mini-saias e mini-vestidos. Os meninos,
camisetas e “calças boca-de-sino”. Muitos fumam cigarro. Através dos movimentos
de câmera, vêem-se muitos discos de vinil. Os discos, assim como bens de
consumo culturais, funcionavam também como um produto de troca de informações
musicais e possibilitavam a formação de grupos a partir destes gostos. Mas não
apenas os discos possibilitavam esta troca.
Em termos midiáticos, até metade da década de 1970, o rock internacional
esteve presente nas principais mídias eletrônicas do país. Nesse contexto
merecem destaque o programa Rock in Concert da TV Globo e os diversos
programas especializados que se espalharam pelas rádios de todo o Brasil.
Mas no final dos anos 70, o espaço do rock era reduzidíssimo, praticamente
inexistente nos grandes conglomerados multimidiáticos. (JANNOTI JUNIOR,
2004, p. 35).
Em uma certa altura, a mãe de Sônia (a aniversariante) pede que ela baixe o
som porque está muito alto. Em outro momento, ela repreende Cíntia dizendo:
“Cíntia, tu tens treze anos. E não é a primeira vez que te vejo fumando. Tua mãe
não ia gostar [...]” Marcelo e Ceres sentam-se lado-a-lado no sofá da sala. Ele
interessado em outra menina. Ela insatisfeita com o namorado. Não trocam palavras.
O personagem Fred, interpretado por Julio Reny (que na época da filmagem
se destacava como músico e compositor de rock no cenário porto-alegrense),
aparece em um canto da sala próximo do aparelho de som, mexendo em discos de
vinil. Em seguida ele pede para ouvir George Harrison, guitarrista dos Beatles. A
música que vira trilha sonora da cena é “My sweet lord”, seguida por outra música do
Beatle John Lennon, “Mother”. O disco de Harrinson é um álbum, com encarte - que
Fred abre - com a foto do guitarrista. A idéia de álbum nos remete novamente a
circulação de bens culturais, na forma de produtos de consumo.
54
rotações por minuto que permitia aumentar a quantidade de dados
armazenados, alterando assim parte das relações de consumo com a
música popular massiva. (CARDOSO FILHO; JANOTTI JUNIOR, 2006, p.
16).
A trilha musical da seqüência da “reunião dançante”, pode ser um indício de
quais eram as paixões dos jovens na virada da década de 60 para 70, como diz
Ventura na introdução do seu livro: “Nossos ‘heróis’ são os jovens que cresceram e
deixaram o cabelo e a imaginação crescerem. Eles amavam Beatles e os Rolling
Stones, protestavam ao som de Caetano, Chico ou Vandré, viam Glauber e Godard,
andavam com a alma incendiada de paixão e não perdoavam os pais[...]”
(VENTURA, 1988, p. 15). Referindo-se ao Tropicalismo, em 1965, Hollanda (1981, p.
54) lembra que:
[...] um novo grupo de jovens artistas começa a expressar sua inquietação.
Desconfiando dos mitos nacionalistas e do discurso militante do populismo,
percebendo os impasses do processo cultural brasileiro e recebendo
informações dos movimentos culturais e políticos da juventude que
explodiam nos EUA e na Europa os hippies, o cinema de Godard, os
Beatles, a canção de Bob Dylan esse grupo passa a desempenhar um
papel fundamental não para a música popular, mas também para toda
produção cultural da época, com conseqüências que vêm até os nossos
dias.
As questões que permeiam os pensamentos e angústias dos jovens da
década de setenta, herdeiros das inquietações que alteraram as sociedades
ocidentais a partir dos anos 60 também estão presentes na seqüência em que
Marcelo, em 79, vai conhecer o apartamento em que, possivelmente, ele e Ceres
irão morar juntos. Ali ele deita ao sol que entra pela janela e lembra de alguns anos
antes, no seu quarto na casa dos pais.
A trilha sonora é um rock experimental do grupo inglês Gênesis. Novamente o
rock está presente no filme, mostrando a preferência musical dos personagens.
Como afirma Janotti Júnior (2000, p. 252):
O processo midiático que constitui a socialidade rockeira envolve a compra
(muitas das lojas especializadas acabam se tornado locais de afirmação
tribal) e a interação surgida na audição (shows, festas, espaço doméstico) A
imaginação rockeira é constituída por uma rede que engloba as imagens
55
dos ídolos, os locais de encontro, a audição e as imagens difundidas
através da confusão de gêneros presentes no rock.
Quando entra o vocal, começa a cena do quarto, no início da cada de 70.
Marcelo, de jeans e camiseta, está impaciente e, o quarto, bagunçado. No local
aparelho de som, bateria, cartazes do Jimmi Hendrix, revistas Veja. Na estante,
livros de enciclopédia. Na porta do armário aberta, estão coladas tiras de quadrinhos
e no chão, entre os livros há um intitulado: “Problemas pais e filhos”.
Marcelo escreve poesia, que vira narração, enquanto a música vai a BG. Em
seguida, ele põe os fones de ouvidos e dança pelo quarto, até deitar na cama e se
masturbar. Em seguida, ouve batidas na porta e recebe o pedido da mãe (que não
entra em quadro) para que ele saia para comprar leite, pão e alguma bebida porque
o pai está para chegar. Ele sai e segue cabisbaixo pela rua. Volta para a sala
ensolarada do novo apartamento.
O poema, aqui, pode ser destacado. Na poesia narrada em off, Marcelo fala
que “[...] poderia ter sido diferente se chovesse, ou mesmo se alguém morresse, ou
se pelo menos eu tivesse vontade de assistir televisão [...]” É novamente Ventura
que afirma: “A geração de 68 talvez tenha sido a última geração literária do Brasil
pelo menos no sentido em que seu aprendizado intelectual e sua percepção estética
foram forjados pela leitura. Foi criada lendo, mais do que vendo.” (VENTURA, 1988,
p. 51).
4
Outra seqüência de “Deu pra ti, anos 70” se passa em Garopaba. Aqui a idéia
da praia como local de liberdade e experimentação pode ser distinguida tanto nas
cenas protagonizadas pelo grupo que acompanha Marcelo, quanto por aquele que
se encontra com Ceres. No primeiro caso, a turma é formada apenas por rapazes. À
noite, à beira da fogueira entre barracas, eles fumam maconha e bebem, falam
bobagens e riem à toa. Nesta cena, o personagem Nei (vivido por Nei Lisboa)
dedilha no violão um blues. O dia amanhece e Marcelo e Fred, que não dormiram,
caminham pela praia deserta carregando um garrafão de vinho. Enquanto Fred se
4
A questão da literatura voltará a ser abordada no subcapítulo 3.5 que mostra o interesse de Marcelo
em publicar o próprio livro de contos.
56
preocupa em achar o ‘baseado’ perdido na areia, Marcelo divaga sobre o corpo das
mulheres.
No outro acampamento, no outro extremo da praia, Ceres faz amor pela
primeira vez com o namorado Jairo. A música que acompanha a cena é “Conflito”,
de Fagner, no trecho que diz “ai meu coração que não entende o compasso do meu
peito...”. Enquanto isso, Jairo pergunta a Ceres o quanto ela gosta dele e ela
responde: “Eu gosto de ti... o suficiente”.
A questão sexual também é abordada, do ponto de vista feminino, na cena
em que Ceres conhece Margarete, irmã mais nova de uma amiga de Ceres com a
qual a protagonista pensa em dividir um apartamento. Quando chega ao
apartamento, quem abre a porta é Margarete, que está sozinha em casa. Enquanto
aguarda a irmã, Ceres fica no quarto de Margarete que lê uma revista Status,
deitada na cama. Em seguida Margarete senta no chão, como está Ceres, e estica
os pés em direção aos de Ceres. As duas encostam as solas dos pés e sorriem da
troca de carinho. Na cena seguinte elas vão em direção a um minimercado, onde
Margarete, furta alguns produtos. A trilha é Beleza Pura”, da Cor do Som, e diz “[...]
não me amarra dinheiro não [...]” A esta altura, Ceres é universitária, aluna da
faculdade de arquitetura.
A questão política começa a ficar mais presente no filme quando se está
em 1976. E a cena que se passa no Bar Alaska (hoje extinto, mas que ficava na
Osvaldo Aranha) é, no mínimo, elucidativa. Marcelo e Ceres se reencontram. Ele
está sentado com os amigos que bebem chopp e caipirinha. Ela chega e fala, com
entusiasmo, de todas as suas atividades na faculdade de arquitetura: publicação de
jornais, murais e etc. Um dos amigos de Marcelo diz: “Pura burocracia”.
Marcelo convida Ceres a sentar. Mas ela diz que está com os amigos,
apresenta o namorado e segue para outra mesa. A turma de Marcelo fala do
surgimento da Isto É, de feminismo, comentam a morte de Heidegger, de orgasmo, e
de Glauber Rocha. Para um dos amigos de Marcelo, com um “visual”, de guerrilheiro
(boina, barba e óculos escuros), o cineasta é um fascista. Comenta que viu “Terra
em Transe” em uma das exibições promovidas no Bristol pelo Grupo Humberto
57
Mauro e diz: “Agora que ele voltou para o Brasil, todo mundo acha o que ele diz
importante”.
Introduzir a discussão das questões políticas no Bar Alaska nos leva de volta
a Zuenir Ventura, quando o autor fala da “esquerda festiva” comentado por
Hollanda - termo criado no início da década de 60 para designar uma terceira via de
esquerda, alternativa à “esquerda positiva” e a “esquerda negativa”, e que se
utilizaria da festa como forma de resistência.
Naqueles tempos, o trecho entre Ipanema e começo do Leblon tinha
reputação de pedaço mais inteligente e boêmio do Brasil. Personagens
mitológicos como Vinícius de Morais, Tom Jobim, Carlinhos Oliveira, Chico
Buarque, podiam ser encontrados ali com a mesma freqüência com que
outros, mais folclóricos, ou estavam ali, ou nos Choppings, quadrinhos que
jaguar publicava diariamente no JB. (VENTURA, 1988, p. 47).
na mesa de Ceres, a discussão gira em torno de uma amiga que teria
saído da faculdade com panfletos incriminatórios na bolsa. Como a menina
demorava a chegar, todos se inquietaram, pensando que a polícia poderia ter pego a
estudante.
[...] para mentes obcecadas pela segurança, não havia fatos sem relação:
todos eram pistas para tramas da oposição. Um gigantesco aparato de
segurança observava todas as fontes de possível oposição: salas de aula
das universidades, sedes de sindicatos, seminários, associações de
advogados, escolas secundárias e grupos religiosos. Os brasileiros,
geralmente um povo alegre e espontâneo, calaram a boca. (SKIDMORE,
1988, p. 261).
Entre os motivos da inquietação, estava um livro do pensador italiano Antonio
Gramsci, que Ceres levava na bolsa. Segundo Ventura (1988), em 68, foram
publicados três livros de Gramsci no país. Todos um fracasso de vendas. “Só mais
tarde, depois de estourar na França, foi que Gramsci passou a entrar como moda
nas universidades brasileiras, em meados dos anos 70.” (VENTURA, 1988, p. 58). O
insucesso das primeiras publicações pode ter uma explicação no momento político
de alta repressão em que eles foram lançados. Momento em que as universidades
passavam por um rígido controle, e que idéias tidas como subversivas não eram
toleradas. Como explica Johnson (2004, p. 55),
58
Gramsci foi talvez o primeiro importante teórico marxista e líder comunista a
considerar as culturas das classes populares como objeto de estudo sério e
de prática política. [...] O trabalho de Gramsci constitui o mais sofisticado e
fértil desenvolvimento de uma abordagem marxista via produção cultural.
Após a tensão provocada entre os colegas, a amiga retardatária chega e diz
que estava em casa lavando os cabelos, por isso não atendia o telefone... Durante a
cena, a trilha musical é de Elis Regina interpretando “Como os nossos pais”.
Nesta altura do filme, na verdade após a seqüência filmada em Garopaba, as
cenas do romance de Marcelo e Ceres começam a se intercalar com as do show
de Nei Lisboa, intitulado “Deu pra ti, anos 70”, e que, como foi dito, realmente
aconteceu em 1979. Neste meio tempo, os dois protagonistas se aproximam e se
afastam. Ele sai do Rio Grande do Sul e viaja de carona em direção ao Centro do
País e Nordeste. Em 1979 ele volta e eles assistem juntos ao show. No intervalo
eles encontram Margarete, e Ceres pergunta: “Ué guria, tu não tinha ido acampar?”
e Margarete responde: “Ah, eu fui e vim. A gente vai e volta!” Ceres apresenta
Margarete a Marcelo e ele pergunta: “Mas quem é essa louca hein?”. “Margarete,
geração 80”.
A sucinta definição de Margarete feita por Ceres encontra eco no pensamento
proposto por Maffesoli de se voltar a atenção para relações mais fluídas que passam
a se manifestar com maior intensidade, como expõe Featherstone (1995b, p. 72):
Maffesoli (1988, 1991, 1995) [...] enfatiza a emergência de novas formas de
solidariedade coletiva, encontradas especialmente nas metrópoles. Essas
afetividades coletivas transitórias, que Maffesoli denomina ‘neotribalismo’
[...] trata-se da persistência de laços afetivos fortes, através dos quais as
pessoas se unem em constelações com limites fluidos, a fim de vivenciar as
múltiplas atrações, sensações, sensibilidades e vitalidade de uma
comunidade extralógica [...] Todo o movimento pós-1960 de festivais de
rock e os concertos da década de 1980, do tipo ‘Alimente o Mundo’ [...]
proporcionam bons exemplos.
No final do show, Marcelo propõe a Ceres que eles passem a noite de ano
novo juntos no apartamento que ele visitou e pretende alugar (aquele do sol na
sala). Eles passam a noite do dia 31 juntos no apartamento. A trilha sonora é de Nei
59
Lisboa, a música “A tribo toda em dia de festa” e, a letra, diz: Kéka qué casá com
Zeca...
3.5 DIÁLOGOS QUE RETRATAM UMA ÉPOCA
O primeiro diálogo a ser destacado ocorre no apartamento da tia de Ceres,
que é arquiteta e mais nova do que a mãe da protagonista. A cena começa com um
plano fechado de um quadro com a foto clássica de Che Guevara. Logo de início,
portanto, este plano nos a posição político/ideológica da tia de Ceres. Como a
cena se passa na metade da década de 1970, a repressão ainda é forte e os
movimentos civis ainda estão de certa forma “desmantelados”. “Os estudantes, por
exemplo, um dos principais focos de oposição em 1968, foram silenciados pela
violenta intervenção nas universidades, que resultou em expulsões, prisões e tortura
para muitos.” (SKIDMORE, 1988, p. 215).
Neste contexto, até mesmo a resistência passa a ser feita através do
consumo de objetos e bens culturais que demonstrem os posicionamentos dos
consumidores. E a foto de Che Guevara na parede do corredor de entrada da casa
da tia não foge a esta realidade como esclarece Hollanda (1981, p. 93):
A esquerda parece precisar de heróis, de mitos, de mártires da resistência à
ditadura. E aos poucos um considerável público começa a se configurar, um
público onde a política é consumida comercialmente. [...] As obras
engajadas vão se transformando num rentável negócio para as empresas
da cultura: a contestação, integrada às relações de produção cultural
estabelecidas, transforma-se novamente em reabastecimento do sistema
onde não consegue introduzir tensões.
A questão do herói passa também pela relação da vida tida como heróica e a
vida cotidiana comum onde “[...] a vida heróica é a esfera do perigo, da violência do
risco que se corre, enquanto a vida cotidiana é a esfera das mulheres, da
reprodução e dos cuidados.” (FEATHERSTONE, 1995b, p. 87) e onde “[...] a
imagem do herói é retirada do seu contexto e entrelaçada com uma vida heróica, na
60
qual o contexto social passa a ser diminuído ou considerado um contexto em que o
herói se distingue e se eleva acima do social.” (FEATHERSTONE, 1995b, p. 90).
O plano seguinte, na seqüência da cena, mostra Ceres e a tia fazendo um
lanche na cozinha do apartamento. Interessante que nos contra-planos da tia, o
quadro de Che Guevara está sempre no campo de visão. O diálogo que se
estabelece é sobre o futuro. No caso o futuro profissional de Ceres.
Tia Ceres Olha Ceres, acho que a arquitetura da UFRGS não é grande coisa.
Quando eu saí de em 60 tinha passado toda aquela agitação de 68/69,
expulsaram os professores, a faculdade ficou uma merda. me disseram que a
Unisinos está melhor até. O problema é que ela não é reconhecida pelo MEC. Eu
não sei, acho que o melhor mesmo é testar na UFRGS.
Ceres Pois é, eu queria que tu me dissesse assim como profissional né?! Não
precisa dizer como tia.
Tia – Ah, vai a merda!
Ceres – Eu não tô a fim de fazer cursinho agora, só vou fazer depois de julho. Não tô
afim de me matar estudando também. A mãe é que enche o saco. Por ela, eu já tava
estudando desde o ano passado.
Tia - A Marisa vive preocupada, né?!
Ceres Sabe o quê que é? É que tem uma velha chata amiga dela que é
orientadora educacional. Bom, essa velha vai em casa e se pára a dizer assim:
Minha filha você tem que pensar muito bem no que você vai fazer. Pensa no que
você vai estar fazendo daqui a dez anos. Senão, depois tu vais te lamentar pela vida
inteira. Bom, a velha diz isso e a mãe acredita né!
Tia Mas essa velha é louca! Como é que tu vais saber agora o que tu vais estar
fazendo daqui a dez anos? Imagina Ceres, se tu planejar agora o que tu vais
estar fazendo daqui a dez anos , quando esses dez anos tiverem passado tu não
vais ter nem o direito de te arrepender.
Ceres – É, depois se acontecer tudo como eu planejei...
Tia Se acontecer tudo como tu planejou, daqui a dez anos tu é uma chata de
galocha, meu!
61
No transcorrer deste diálogo, poderíamos dizer que também dois aspectos
subjacentes ao simples questionamento sobre o futuro profissional feito por Ceres à
tia. O primeiro é a entrada no mercado da mão-de-obra qualificada feminina. A tia de
Ceres já é arquiteta, e toda a formação da protagonista aponta para o mesmo
caminho: formação superior e mercado de trabalho. Mas também a forte
presença da opinião materna a respeito do futuro da filha.
Um futuro que deve ser planejado, pensado e seguido à risca. Como se não
houvesse diferentes opções, espaço à dúvida. No caso de Ceres, são cobradas
certezas. Ao que a tia se posiciona de forma claramente contrária, por,
provavelmente, pertencer a uma geração intermediária entre a mãe e a sobrinha, ser
uma profissional, morar sozinha e poder sustentar as próprias opiniões.
No filme, como foi dito, Ceres e Marcelo se aproximam e se afastam. E,
apesar de fazerem parte de uma mesma turma de bairro e de terem a ido às
mesmas reuniões dançantes o diálogo, digamos, de apresentação entre os dois
ocorre em meados da década, após o grupo assistir o filme de Fellini, na sala Vogue.
Como descrito, uma parte da turma segue para o Rib’s. Ali eles pedem um lanche e
Marcelo e Ceres saem para comer na rua, no muro que cerca a lanchonete.
Marcelo Pois, eu acho que é meio certo que eu vou fazer para jornalismo, na
hora em que eu for me inscrever para o vestibular. A não ser que na hora me
uma luz e eu resolva botar engenharia ou matemática. Mas eu tenho quase certeza
que eu vou botar para jornalismo. E tu, prá que tu vai fazer?
Ceres – Vou fazer para arquitetura.
Marcelo – Ah, tu gosta disso é?
Ceres – É...acho que gosto né, é a opção que menos me desagrada.
Marcelo – Pô, mas por quê?
Ceres – Eu acho arquitetura muito bonito. Mas eu me sinto meio inútil com ela, sabe.
É como se fosse fácil decidir por arquitetura e...fim. Na verdade, eu gostaria de fazer
uma coisa que uma amiga minha faz. Essa amiga minha, toda a semana, ela e mais
três amigas vão para uma vila ou uma pracinha e ficam contando histórias para
crianças. Eu acho isso super bom, sabe?! Primeiro porque eu adoro criança, depois
porque é uma maneira de fazer uma coisa positiva por elas, né?!
62
Marcelo – É, se tu te sentes satisfeita com isso...
Ceres É que eu fico pensando...eu me formo daí vou ficar fazendo projeto de
banco, supermercado, casa para milionário...sei lá pode ser que seja uma coisa boa.
Pode ser que eu transforme em uma coisa boa. Mas não é o suficiente.
Marcelo Tem um outro conto meu que é um barato. É um cara que passa um ano
no CPOR chega no último dia e ele joga uma bomba dentro. Eu gosto muito
desse conto... tem um outro que é meio realismo fantástico...é um cara que tava se
masturbando e acaba se transformando na mulher que ele tava pensando. Tem
outro que é meio estranho. Tem um cara que resolve se atirar de um edifício daí
junta um monte de gente em volta dele, bom daí...daí ele se atira
Ceres – Mais ou menos quantos contos tu já escreveu?
Marcelo – Uns 25, mas eu gosto mesmo de uns seis ou sete...
Ceres – Eu queria ler, será que vou ter que esperar sair o livro?
Marcelo muda de assunto
Ao falar sobre a dúvida entre a arquitetura e o trabalho de certa forma,
voluntário, Ceres não cogita a hipótese de poder fazer as duas coisas juntas. Mas
mostra um pensamento que parece estar em voga desde a década de 60, que
propõe uma aproximação entre o artista, o intelectual com o povo.
O artista revolucionário popular poderia ser o indivíduo que mora na zona
sul, trabalha e ganha dinheiro, tem mãe mas vê que a favela é logo ali e que
na porta de seu edifício dorme um mendigo adulto. Sente-se então
compelido a renegar sua existência de burguês de doirada tez’ para juntar-
se ao povo. Sua opção é moral. Sua ação política é um problema de honra
e de doutrina. (HOLLANDA, 1981, p. 25).
Em seu livro, Hollanda (1981, p. 25) transcreve uma poesia do destacado
arquiteto Oscar Niemeyer que demonstrava esta preocupação.
O que fez você, arquiteto,
Desde que está diplomado?
O que é que você fez
Pra se ver realizado?
Trabalha, ganha dinheiro,
Anda bem alimentado.
Nada disso, meu amigo,
É grande para ser louvado
Você só fez atender
a homem que tem dinheiro,
63
que vê o pobre sofrer
e descansa o ano inteiro
na bela casa grã-fina
que fez você projetar
esquecido que essa mina
um dia vai acabar
Mas se você é honrado,
Não deve se conformar.
Ponha a prancheta de lado
E venha colaborar.
O pobre cansou da fome
Que o dólar vem aumentar
E vai sair para a luta
Que Cuba soube ensinar.
Outro diálogo que reflete a situação geracional vivida por Ceres e Marcelo é a
que ocorre entre Ceres e sua mãe, antes dela ir de carona para Garopaba com o
namorado. Ceres ainda mora com os pais. O primeiro plano mostra o dia
amanhecendo. Em seguida faz um passeio pelo quarto de Ceres, que tem um cartaz
do filme Pocilga, de Piero Paolo Pasolini na parede acima da cabeceira da cama,
uma estande com livros e discos de vinil muito organizados, a mesa de arquiteto e
objetos de estudo. Ceres pega a mochila que está em cima da cama e sai com um
“ar” de quem vai para um embate. Na sala espaçosa a mãe está à sua espera,
apreensiva, sentada no sofá.
Mãe – Olha Ceres, tu tens a passagem aí?
Ceres – Não mãe, tá com a Miriam, aliás ela já deve ta na rodoviária.
Mãe – Quem sabe teu pai te leva na rodoviária?
Ceres – Ah mãe, não vai acordar o pai essa hora.
Mãe Ceres, escuta, para onde é que tu vais mesmo? Eu não me importo, tu podes
ir para onde tu quiser. Tu é que sabe da tua vida, mas eu quero saber onde é que tu
estás criatura. Pode acontecer alguma coisa...
Ceres – Ah mãe, o que que vai acontecer?
Mãe – Eu sei que não vai acontecer nada mas eu me preocupo...
Ceres bom, nós vamos estar em Garopaba até segunda-feira, depois vamos
para a praia da Guarda tá legal
Mãe – De barraca!!!
Ceres – Claro mãe, qual é o problema. Eu sei me cuidar né pô!
Mãe – Claro, claro que tu sabes te cuidar... Ceres, com quem é mesmo que tu vais?
64
Ceres Mãe eu te disse né, vai o Carlinhos, a Miriam, o Jairo o Giba o Chico a
Beth...
Mãe – Tá, tá, tá, mas tem barraca para toda essa gente?
Ceres – Tem duas barracas grandes, bom agora eu já vou.
Mãe – Quem sabe o teu pai te leva lá na rodoviária hein?
Ceres – Ai mãe, eu já disse que não tá, tchau.
Daí ela sai, pega o elevador é um profundo suspiro que demonstra alívio.
O diálogo mostra a preocupação da mãe, que provavelmente depende do marido e
não tem como dirigir, pois sugere que ele leve a filha à rodoviária, e o desejo de
Ceres de sumir dali. De se encontrar logo com o namorado, pegar a estrada, ir para
a praia com os amigos e não ter que dar satisfações. A tradicional busca pelo
espaço próprio (Ceres) e o limiar entre preocupação excessiva e o descaso (mãe).
Em outro momento, desta vez político do filme, Marcelo encontra Ceres
novamente no bar da faculdade. Ele chega entusiasmado de uma passeata que
realmente ocorreu em Porto Alegre em 1977. A possibilidade da realização de
manifestações civis públicas, apesar de ainda controladas pela polícia, nos remete
ao contexto político de 1977 no Brasil presidido por Ernesto Geisel, quando: “Ainda
em 1977 surgiram sinais de oposição ao governo revolucionário de outra área mais
conhecida – os estudantes. Os protestos que eles haviam realizado em março
evoluíram para manifestações contra a revolução no mês de maio em diversas
universidades.” (SKIDMORE, 1988, p. 375).
Segundo o historiador, nesse ano
O ministro da Justiça vetou quaisquer novas manifestações, o que não
impediu novas tentativas de greve na Universidade de Brasília e um
encontro ‘nacional de estudantes em Belo Horizonte para exigir a
restauração da democracia. Pela primeira vez desde 1968, estudantes
ativistas perceberam que podiam desafiar o aparato de segurança.
(SKIDMORE, 1988, p. 375).
No diálogo, portanto, ocorrido em 1977 no bar da universidade, percebe-se
mais uma vez a diferente postura dos protagonistas diante dos fatos.
65
Marcelo Que coisa incrível tchê! Eu nunca pensei que fosse participar de um
negócio assim! Fiquei tri emocionado!
Ceres – Emocionado? Como assim hein?
Marcelo Pô, emocionado, pô! O povo, unido jamais será vencido! Eu nunca me
fixei nesses negócios, nessas frases feitas desse papo ... mas quando eu tava no
meio...eu tava berrando aquilo tudo.. eu tava disposto a morrer por qualquer pessoa
que tivesse berrando junto comigo. É tri bonito, é que nem jogo de futebol. É mais
bonito que jogo de futebol...
Ceres Pois é, por causa de ações como a tua é que eu acho muito relativo o valor
dessas passeatas e manifestações espontâneas. Ouve o que tu tá dizendo, tchê!
Emoção, jogo de futebol? Aparece que perdeu um parafuso na João Pessoa!
Tu não consegue te controlar, manter a cabeça no lugar? Muito menos compreender
o momento histórico que a gente tá vivendo?
Marcelo – Ah, não me vem com essa história de momento histórico. Não tem
momento histórico que explique a emoção que eu senti ...
Ceres – Emoção não! Aquilo é enfrentamento ideológico!
Marcelo Aquilo é tesão! Aquilo é tesão porra! Não existe porra de enfrentamento
ideológico que explique a tesão que eu senti. Parece que tu não entende isso...
Ceres Entendo sim. É claro que eu entendo. Mas para mim isso é aventureirismo.
Tu é que não entende, o movimento estudantil tem um papel a cumprir nessa
historinha toda. E é pura falta de responsabilidade deixar que a espontaneidade
tome conta do movimento pô! Vai acabar fechando com os caras da Perspectiva que
queriam fazer passeata até os Açorianos...
Marcelo Mas se não fossem os caras da Perspectiva, não tinha bosta nenhuma de
manifestação...
Ceres Eu achava melhor não ter tido mesmo...Te convence que os anos 60
passaram...prá sempre tá. Não sei se tu sabes, mas em 1968, teve uma
manifestação nos Estados Unidos que reuniu 20 mil pessoas. Eles se encontraram
na frente do Pentágono e estavam certos de que se todo mundo se concentrasse, o
Pentágono ia levantar e ficar flutuando no ar.
Marcelo – Tem certeza que não levantou?
Joaquim Olha, a polícia ta pegando todo mundo que passar perto ... acho até que
eles estão cercando isso aqui. É melhor todo mundo ir para casa, em grupo...
66
Para Ventura (1988), a critica de Ceres sobre a emoção de Marcelo ao
participar de uma passeata não detém toda a razão, tendo como exemplo o que
ocorria em 1968:
Apesar dos riscos que ofereciam, as passeatas são lembradas com doce
nostalgia, talvez porque, quando a polícia deixava, elas correspondiam ao
que havia de mais generoso naquela geração: a capacidade quase religiosa
de comunhão, o impulso irrefreável para a doação. Se houve um movimento
em que seus componentes não souberam o que era egoísmo, anulando-se
como indivíduos para se encontrar como massa, esse movimento foi o da
espetacular, pública e gregária geração de 68. (VENTURA, 1988, p. 86).
Talvez este ponto de vista encontre apoio na lógica da identificação de
Maffesoli (1987), para quem ocorre um “deslize progressivo da identidade em
direção à identificação”. Nesse processo, as manifestações são ambíguas sem
necessariamente apresentar uma coerência. Assim,
[...] uma explosão estudantil, uma greve surpresa nesse ou naquele meio
profissional o utilizar um conjunto de reivindicações racionais e
funcionalistas, enquanto a preocupação essencial é o desejo de estar-junto,
e o prazer dico de exprimi-lo. É aliás essa ambigüidade que pôde fazer
tomar por um retorno ao individualismo o que era apenas uma expressão de
um narcisismo coletivo. (MAFFESOLI, 1996, p. 302).
A questão da história, da existência ou não do momento histórico como
colocado no diálogo, onde os protagonistas discordam, também encontra eco na
obra de Maffesoli (1987, p. 16):
O proletariado, o burguês podiam ser ‘sujeitos históricos’ que tinham uma
tarefa a realizar. Tal ou qual o gênio teórico, artístico ou político podia
articular uma mensagem, cujo conteúdo indicasse uma direção a seguir.
Uns e outros permaneciam entidades abstratas e inacessíveis, que
propunham um fim a ser realizado. Em contrapartida, o tipo mítico tem uma
simples função de agregação...Exprime o gênio coletivo num momento
determinado. Eis a diferença que se pode estabelecer entre os períodos
abstrativos, racionais e os períodos ‘empáticos’. Aqueles se apóiam no
princípio da individuação, da separação, estes, pelo contrário, são
dominados pela indiferenciação, pelo ‘perder-se’ em um sujeito coletivo, o
que chamarei de neotribalismo.
Seria como se houvesse uma história moderna ocidental universalizante
ligada à idéia de progresso. Um progresso onde ciência e tecnologia garantiriam a
67
perfeição do homem e da sociedade. Segundo Featherstone (1995b, p. 125) ao citar
Vattimo: “O s-modernismo deve ser encarado como o ‘fim da história’, no sentido
do fim da crença na superação do presente, quando se busca o novo [...] ele não se
refere ao fim do processo objetivo na história, mas apenas ao fim de nossa
percepção da história enquanto processo unitário.” Assim, a história global passa a
ser compreendida de forma mais pluralista. O mundo é entendido como um local
onde particularidades, diferenças com as quais faz-se necessário aprender a
conviver.
Quando se fala de juventude, a questão das suas diferentes manifestações
pode ser bastante esclarecedora para não se cair na tentação de colocar o termo
jovem como um bloco fechado de consumidores que agem de forma igualitária
diante do mercado.
Neste sentido, não haveria uma determinação direta pela idade em
consideração ao ser jovem, senão diversas formas de realização deste fato
de acordo com os contextos sociais, econômicos e culturais em que vivam;
não existe uma Juventude, em maiúscula, resultado da cronologia, mas sim
muitas juventudes resultado das culturas. (SERRANO, 1998, p. 276, grifo do
autor, tradução nossa).
5
No caso da análise de “Deu pra ti, anos 70”, feita até aqui, e do papel
desempenhado pelos jovens no período, não seria equivocado dizer que a leitura
pode ser feita por duas vias, que ao final coincidem. a via representada no filme,
onde os jovens buscam um espaço diante de uma sociedade que vive sob um
regime de ditadura militar e também diante daquilo que os pais consideram o
caminho certo a percorrer. O filme mostra que os jovens ali representados estão
desafiando as formas de controle ao ler 4(t)7.99 alcáer -4(l)2(8182(l)2(e)-4-4(á)l)2(e)-02(d)-4(i)3015( )-1 s
68
shows, da música, da poesia, da arte enfim. Outra característica que “amarra” toda a
narrativa é a questão do grupo como ponto de apoio para todas as manifestações.
também a via dos realizadores do filme. Que viveram a década de 1970 e
que produziram o filme na faixa dos 20 anos. A história desses realizadores se
mistura com a dos personagens, uma vez que eles também trabalhavam em grupos,
também resistiam à idéia de completo silenciamento e resignação frente a um
Estado autoritário. Mesmo atuando fora do sistema de produção cultural instituído,
produziam cultura com as ferramentas que tinham: o cinema Super-8, sem
patrocínio, a produção de música e discos de forma independente. Tanto no filme,
como fora dele, os jovens da geração de 70 em Porto Alegre estavam sendo ativos
no processo de construção da sociedade.
69
4 IMAGENS DA JUVENTUDE – MANCHESTER
4.1 “A FESTA NUNCA TERMINA” – GAROTOS DE MANCHESTER AO LONGO DE
DUAS DÉCADAS
“Acima de tudo, amo Manchester. Seus armazéns em ruínas, seus arcos
ferroviários e suas drogas baratas e abundantes. Foi isto o que a fez, no final das
contas. Não foi o dinheiro, nem a música, nem mesmo as armas.” Esta narração em
off, sob uma imagem aérea de Manchester à noite, com uma música eletrônica em
BG, utilizada nos minutos finais do filme “A Festa Nunca Termina” (ou 24 Hour Party
People), pode ser um bom começo para tentar identificar os elementos da juventude
e das subculturas juvenis representadas no filme que conta a história da cena
musical da cidade inglesa, no período de 1976 a 1992.
O longa-metragem de 115 minutos do diretor Michael Winterbottom,
produzido em 2001, feito, na maior parte em DV (vídeo digital), é uma ficção com
base em fatos reais. O fio condutor é o personagem de Tony Wilson (representado
pelo ator Steve Coogan) no seu próprio papel de repórter/apresentador de uma
televisão local e, posteriormente, proprietário do selo de discos Factory que, como
veremos, Wilson chama de “experiência humana” e da casa noturna (posteriormente
club) Hacienda, durante todo o período. Ainda na primeira parte do filme, Wilson,
que apresentava o programa So it goes na TV Granada (local) afirma que, em 1976,
duas ou três pessoas controlavam a música na televisão. E que os mesmos não
tinham interesse pelo rock. Por um ano, segundo Wilson, apenas o programa dele
apresentava, em Manchester, o que havia de novidade e de melhor no segmento.
Esta colocação nos leva novamente ao encontro do pensamento desenvolvido por
Raymond Williams, como expõe Cevasco (2003, p. 110):
Williams estava muito atento ao fato de que vivemos uma época de
expansão dos meios de comunicação. Longe de lamentar essa expansão, a
atitude mais comum entre os que gostariam de manter a vida cultural sem
mudanças, ele dedicou parte de sua obra a pensar modos de usar os
avanços tecnológicos para inverter o fluxo normal da produção cultural: um
número pequeno de produtores controlando e impingindo sua versão de
70
cultura, hoje em dia mais comumente a de lixo cultural a uma massa de
consumidores.
Tony Wilson, portanto, é o narrador da história. Uma história repleta de
situações que representam aspectos característicos das subculturas juvenis do local
à época, como o movimento punk, as manifestações de skinheads, o consumo de
diferentes drogas (do haxixe ao ecstasy), a evolução da música pop do punk rock,
ao gótico, o new wave, até a música eletrônica e o início da cultura club.
Mas também é a história de um grupo de jovens amigos que se reúnem para
proporcionar espaço às manifestações culturais, bem como produzi-las. E, se Tony
Wilson é o personagem que amarra o filme, pode-se dizer que “A festa nunca
termina” é também a história dos grupos musicais Joy Division, posteriormente New
Order e do Happy Mondays. Como afirma o jornalista Paul Morley, em uma
entrevista feita durante as filmagens de “24 hour party people” onde ele define o
filme como
[...] uma história sobre a cena musical de Manchester do punk de 1976 ao
pós-acid de 1992, uma história sobre o suicídio de Ian Curtis (vocalista do
Joy Division) e uma história sobre o estilo manhoso e evasivo de Shaun
Ryder (vocalista do Happy Mondays), uma história sobre uma cidade que
mudou de rosto em uma década, uma história sobre o clube noturno
Hacienda, e, acima de tudo, uma história sobre Tony Wilson, herói, vilão,
intelectual, charlatão, perdedor, excêntrico, rainha do drama e último
romântico do norte. (24 HOURS..., [200-])
6
Todas essas manifestações são apresentadas numa narrativa
cinematográfica linear que conta, em quase duas horas, 16 anos de grandes
mudanças na sociedade contemporânea a partir de uma realidade local. Realidade
local centrada basicamente nos bairros e distritos de subúrbio situados ao sul de
Manchester e da Grande Manchester, como Hulme, Chorlton, Didsbury, Altrincham e
Hale.
6
Tradução de: [...] a story about the Manchester scene from the punk of 1976 to the post-acid of
1992, a story about the suicide os Ian Curtis, a story about the artful dodging os Shaun Ryder, a
story about a city that changed its face inside a decade, a story about Hacienda nightclub, and most
of all, a story about Tony Wilson, hero, villan, intellectual, charlatan, loser, eccentric, drama queen,
ultimate northern romantic.”
71
Ainda em 1970, Wilson decide diversificar suas atividades e não apenas
divulgar as bandas na televisão, mas proporcionar espaço para que elas se
apresentem. Cria então as sextas- feiras denominadas Factory, que aconteciam no
Russel Club. Conhece os rapazes do Joy Division e decide lançar um selo de discos,
o Factory Records. Em 1980, o líder do Joy Division, Ian Curtis se suicida. Na nova
década, Wilson abre a casa noturna Hacienda. Os ex-integrantes do Joy Division
formam o New Order, com uma proposta musical mais dançante.
O Hacienda se torna a Meca da cena musical e noturna não em
Manchester como na Europa. É no local que Wilson conhece os integrantes da
banda Happy Mondays. Do apogeu dos dias de glória, o filme mostra a decadência
decorrente de uma visão empresarial ingênua e da violência que toma as ruas da
cidade e as pistas do Hacienda a partir da consolidação do tráfico de drogas como
negócio.
4.2 OS REALIZADORES PROFISSIONAIS LANÇAM UM OLHAR SOBRE A
HISTÓRIA APÓS MAIS DE 20 ANOS
Em 2001, quando foi filmado “24 hour party people” o diretor inglês Michael
Winterbottom, era um diretor consagrado, sendo este seu 13º filme. Winterbottom
nasceu em Blackburn, no condado de Lancashire, vizinho do condado Greater
Manchester, onde se situa Manchester.
Apesar de assinar pela direção, Winterbottom contou com dois nomes com os
quais estabelece parcerias freqüentes: Andrew Eaton, produtor do filme, e Frank
Cottrell Boyce, roteirista com quem tinha trabalhado nos filmes Butterfly Kiss,
Welcome to Sarajevo e The Claim e que também cresceu em uma região próxima a
Manchester.
72
A idéia de realizar o filme surgiu quando Winterbottom e Andrew Eaton
estavam no Canadá, no ano anterior, procurando locais para as filmagens de The
Claim. Em um bar, pensaram que seria interessante fazer um filme sobre música, e
imediatamente o nome da gravadora Factory veio à tona. Quando retornaram à
Inglaterra fizeram contato com Boyce que topou o desafio de roteirizar a idéia.
Outro nome de peso que se juntou ao grupo na realização do filme foi o do
diretor de fotografia holandês Robby Müller. Quando entrou para a equipe, Müller
possuía na bagagem experiências de filmagens com Wim Wenders (Paris, Texas),
Jim Jarmusch (Down by low, Mystery Train e Ghost Dog: Way of the Samurai) e Lars
Von Trier (Breaking the waves e Dancer in the Dark).
A decisão de filmar em DV passou pelas experiências anteriores de
Winterbottom e Müller. Com o objetivo de captar o máximo do movimento dos atores
e ter mobilidade de câmera, as vantagens práticas do DV pesaram. Como explica
Winterbottom ao falar da experiência de fazer um tipo de filmagem semelhante em
Wonderland.
Então nós realmente olhamos para Wonderland que eu filmei deste jeito,
talvez com menos luzes do que agora, sem luzes totalmente em
Wonderland, mas em 16mm. E então olhamos Braking the Waves que
Robby filmou em 35mm mas em um estilo semelhante ao Dancer in the
Dark, que ele filmou em DV. E decididos que, no final, dadas as vantagens
práticas do DV e a atual estética do filme, era surpreendente o quão perto o
DV estava do filme. E as vantagens práticas pesaram sobre o meu instinto
natural de optar pelo filme. (WINTERBOTTOM, [200-]).
7
Sobre uma possível estética particular do filme, Winterbottom completa:
Do ponto de vista deste filme, eu acho que não é um filme que tem a ver
com o visual, não é um filme que esteja preocupado com o estilo do filme. A
razão para estarmos filmando do jeito que estamos é porque queremos
permitir performances o máximo possível, e, para s, termos a sensação
de estarmos gravando as coisas como elas acontecem em oposto a estar
compondo e organizando elas. Então o é realmente no sentido de atingir,
7
Tradução de: “And then really we looked at Wonderland which we'd shot this way, well, even less
lights than this way, no lights at all on Wonderland, but on 16mm. And then we looked at Breaking
the Waves which Robby shot on 35mm, but in a similar style, and Dancer in the Dark, that he shot
on DV. And decided in the end that well, given the practical advantages of DV and the actual
aesthetic of the film, it was surprising how close DV was to the film. And the practical advantages
outweighs some of my gut instincts to go with film.”
73
alcançar um estilo particular ou um visual para o filme, é mais pela sorte de
alcançar o melhor conteúdo para o filme. (WINTERBOTTOM, [200-]).
8
A importância da cidade e da questão do grupo, da amizade, também pesou
na decisão do diretor em realizar o filme.
Eu acho que a idéia era que havia algo de atraente sobre um longo período
de tempo, sobre ver um grupo de personagens que de certo modo se
mantém muito próximos durante um período de tempo, sem importar se eles
eram famosos ou não, apesar dos altos e baixos que apareciam, eles
continuavam se relacionando uns com os outros como um grupo de amigos
no começo e no final de tudo isso. E obviamente o contraste da extensão do
tempo foi que tudo aconteceu em um local. Nós nunca saímos da cidade de
Manchester, então este é o fato que amarra, une realmente. Personagens
realmente saem e desaparecem, e talvez voltem mais tarde, mas para
compensar isto de um jeito você tem todos estes eventos acontecendo em
torno de Manchester, então no final você tem um tipo de unidade de lugar.
(WINTERBOTTOM, [200-]).
9
Esta unidade de lugar gira sempre em torno de Manchester, e a equipe de
filmagem nunca saiu da cidade, em uma proposta que uniu os fatos realmente
acontecidos no local com o desejo do diretor (e do roteirista) de contarem uma
história próxima a eles. Como relata Boyce ([200-]):
Eu sou do noroeste (da Inglaterra), e o Michael (Winterbottom) é do
noroeste, e foi aí que nos vivemos. O Hacienda foi o clube que eu freqüentei
muito, logo que abriu, e foi um desastre. É autobiográfico, realmente. Eu
tenho muito em comum com muitos dos personagens do filme. E tenho
certeza que Michael também.
10
8
Tradução de: “From the point of view of this film I think it's a film that's not to do with the look, it's not
a film that's concerned with the style of the film. The reason that we're shooting the way we are is
that we want to allow performances as much as possible, and for us to have a sense of recording
things as they happen as opposed to composing and organising them. So it's not really in order to
achieve a particular style or look to the film, it's more just to hopefully achieve the best content for
the film.”
9
Tradução de: “I think the idea was that there was something attractive about a long period of time, to
see a group of characters which in a way stay fairly close together across a period of time, so that
whether they're famous or not famous, all the ups and downs that arise, they still relate to each other
as a group of friends at the beginning and end of it all. And obviously the contrast to the span of time
was that it was all going to be set in one place. We never really go outside the city of Manchester, so
that is the thing that binds it together really. So characters do come out and disappear and maybe
come back later, but to compensate for that in a way you have all these events taking place around
central Manchester so at least you have a kind of unity of place.”
10
Tradução de: “I’m from North West and Michael’s from North West and these are the ones that we
lived throught. The Hacienda was the club I went a lot, when it first opened, and it was a disaster when
it opened. It’s autobiographical, really. I’ve got lots in common with all the characters in it. I’m sure
Michael has as well.”
74
Para aproximar mais o filme da realidade do período nele representada, a
escolha do elenco também foi tratada de modo diferenciado com a intenção de
trabalhar com o maior número de pessoas possível que fossem realmente de
Manchester.
Porque há um elenco enorme, as pessoas vinham e iam muito rapidamente,
era mais o caso de pessoas que fossem capazes de vir e gerar mais
material enquanto estávamos filmando. Nós estaríamos mais capacitados
para algo que fizesse o personagem estar de alguma maneira mais
integrado com a cena. E por causa do modo como filmamos, de forma
bastante improvisada, nós precisávamos encontrar pessoas que se
sentissem confortáveis em fazer as representações sob as luzes, e fossem
capazes de trabalhar com novas idéias de outras pessoas sem ficarem
ofendidas com isso. Nós estávamos interessados na idéia da improvisação,
criar algo de um pequeno início, fazer algo mais do personagem, trabalhar
gradualmente deste jeito mais do que ‘esta pessoa é engraçada então
vamos colocá-lo no elenco para fazer um papel. (WINTERBOTTOM, [200-
]).
11
4.3 MANCHESTER SITUADA
A cidade de Manchester é palco central do desenrolar do filme “24 hour party
people”. Todos os acontecimentos narrados, com base em fatos reais, parecem
poder ter ocorrido naquela cidade, naqueles distintos momentos. A cidade, neste
caso, não é relegada a um segundo plano, é como uma personagem principal.
A posição vai ao encontro da própria história, uma vez que na metade do
século XIX Manchester era a cidade mais industrializada do mundo, com suas
atividades produtivas ligadas basicamente à indústria têxtil. Como centro industrial, a
cidade atraía um grande número de trabalhadores, o que fez necessário o
desenvolvimento da infraestrutura da cidade. Manchester foi o ponto de chegada da
11
Tradução de: Because there is a big cast, people come and go very quickly, it didn't seem like it
was a question of necessarily just getting an actor to perform what was written, but it was about
people who were able to come in and generate more material as we were filming. We would be able
to find things to do to make the character somehow more integrated into the scene. And because of
the way we filmed it, very improvised, we needed to find people to be comfortable with making stuff
up on the spot, and be able to work with other people's new ideas and not be fazed by it. So I think
in the end we started off by looking at people from Manchester and cast a lot of people from around
here. But at the same time, we also were interested in the idea of improvisation, creating something
from a small start, make something more of the character, just gradually work that way rather than
‘This person's funny so let's cast him for that part’.”
75
primeira linha de trem de passageiros entre cidades - a Liverpool and Manchester
Railway-, além de contar com a navegação como um eficiente meio de transporte.
Também foi uma das cidades da Inglaterra onde foram instaladas as primeiras linhas
telefônicas.
No final do século XIX foi criado o Manchester Chip Canal que permitiu aos
navios que navegavam no mar se dirigirem diretamente ao porto de Manchester para
estabelecer seu comércio. Mas as recessões do entre guerras e as mudanças nas
formas de produção ocorridas após a segunda guerra mundial mudaram o cenário
da cidade que, durante o século XX também foi vítima de inúmeros ataques
atribuídos ao IRA.
O período em que começa a narrativa de “A festa nunca termina”, segunda
metade da década de 70, não é animador. O quadro de declínio, a partir da crise de
petróleo, atinge Manchester em especial, por sua característica específica de cidade
industrial, mas também a economia mundial. A Inglaterra vive um momento de perda
da hegemonia e crise de desenvolvimento econômico, o que pôde ser,
ideologicamente, controlado nas décadas de 50 e 60. Mas nos anos 70 eclodiram os
problemas. “Os problemas que tinham dominado a crítica ao capitalismo antes da
guerra e que a Era de Ouro (1945-1970) em grande parte eliminara durante uma
geração ‘pobreza, desemprego em massa, miséria, instabilidade’ -, reapareceram
depois de 1973.” (HOBSBAWM, 1995, p. 396). A colocação ganha respaldo na
afirmação de Cevasco (203, p. 84, grifo do autor) ao falar do movimento que permeia
os Estudos Culturais à época: a New Left que surge num período de profundas
alterações na Inglaterra do pós-guerra.
No front interno, a crise de mudança é econômica e política. Apesar do
boom econômico do segundo pós-guerra, os sinais de declínio eram claros:
do ponto de vista da produção industrial, a Inglaterra ocupava cada vez
menos a liderança mundial trata-se, na avaliação de um estudioso do
assunto, do ponto de chegada de ‘um século de desindustrialização
psicológica e produtiva’ [...] A atmosfera de nostalgia pela perda do império
era nacional. A transformação marcante desses anos pode ser resumida, de
forma radical, no movimento que levou da ‘Great Britain’ a ‘Little England.
76
O cenário de Manchester era bastante desolador, como relata o jornalista e
crítico musical Savage (2007) ao citar o filme Factory Flick, feito em Super-8 em
1979, pela então adolescente Liz Naylor. O registro é um passeio pela cidade que
desvenda as zonas abandonadas: “[...] os crescentes monolíticos de Hulme, baldios
cheios de lixo e carros abandonados, uma igreja no meio do nada, uma sala de
cimento dos anos 70 com um telefone que nunca de tocar.” Na descrição do
filme, a narração, intercalada com batidas em teclas de uma máquina de escrever,
diz: “Não há lugar para os fracos. Sinto-me como em 1976.” Para Savage, os dizeres
revelam “paranóia, nojo, confusão de identidades”.
Para conseguir captar este clima setentista de Manchester, foram necessários
diferentes recursos e estratégias, uma vez que as filmagens ocorreram em 2001 e a
história contada aconteceu de 1976 a 1992. Neste ínterim, Manchester passou por
inúmeras modificações. Assim, prevalecem cenas internas, em ambientes
reconstituídos, em detrimento das cenas externas. Estas últimas se concentrando
basicamente em cenas noturnas (passeios de carro), cenas aéreas e dos telhados
dos prédios e algumas cenas próximas aos arcos ferroviários e aos canais que são
uma espécie de marca da cidade.
O que nos leva a mais uma interpretação de Savage (2007) publicada na
revista Melody Maker, de julho de 1979, sobre a cidade e a música produzida pelo
Joy Division.
Os temas especiais, circulares dos Joy Division e a camada brilhante de
produção de Martin Hannett são um reflexo perfeito dos lugares sombrios e
espaços vazios de Manchester: luzes de dio intermináveis vistas de um
carro em movimento, espaços industriais abandonados, os detritos
intermináveis do século XIX, Hulme visto de um quinto andar num dia
chuvoso e ameaçador.
O filme, portanto, conta com poucas e breves cenas externas realizadas
durante o dia. Todo o início se passa através de seqüências feitas nos arredores de
Manchester, onde prevalecem os campos, nos estúdios da TV Granada, no
apartamento do amigo de Tony Wilson, Alan Erasmus, e no Russell Club.
77
Uma cena que ocorre durante o dia é a que Wilson leva sua primeira mulher
Lindsay e o amigo Alan para conhecer o Russel Club, localizado no bairro de
subúrbio Hulme. Ao contrário da maioria dos outros dias, neste não está chovendo e
o dia é claro, apesar de ser inverno. O local é uma mistura de prédios de tijolos, com
áreas de terrenos baldios. Em meio ao cenário, Alan sugere o nome de Factory, para
as noites de sextas-feiras promovidas por ele e Tony Wilson no Russel Club. No
diálogo
12
Alan revela aos companheiros que optou pelo nome Factory ao ter
passado em frente a placas na cidade indicando “fábrica fechada”. As noites de
sexta-feira seriam, portanto, a única opção de fábrica abrindo suas portas.
O Peugeot de Tony Wilson também protagonizou cenas importantes do filme.
Quando termina a primeira sexta-feira Factory, quando Wilson conhece Ian Curtis e
o Joy Division, o carro roda pela madrugada lotado com os integrantes da banda,
além de Lindsay e o amigo e empresário do grupo Rob Gretton. Durante o passeio,
com o carro enfumaçado, Tony Wilson comenta que achava que o nome da banda
fosse Warsaw (primeiro nome do Joy Division). Ao que um integrante responde:
“Não para ter uma banda chamada Warsaw. Não dá para colocar num cartaz,
dá? Vão pensar que é uma propaganda de turismo. Joy Division. Sabe o que é isso,
Sr. Wilson?”.
Tony Wilson responde que era o termo usado quando “[...] nazis [...] pegavam
mulheres de raça pura e transavam com elas.” Outro integrante responde: “Joy
Division somos nós.” “É um nome bem nazista [...]”, argumenta Wilson. E ouve: “E
daí?”. O que é complementado por: “É, mas também é bem alegre. Sabe, joy,
alegria.” Neste ponto Tony Wilson concorda: “É, algo como divisão da alegria.”
Outra cena de passeio noturno no Peugeot, também lotado com Lindsay e os
integrantes do Joy Division, ocorre após a primeira gravação do grupo com a
influência de Martin Hannett, que misturou sons da cidade com o som produzido pela
banda. Wilson coloca a fita K-7 para tocar no carro. Aparecem rápidas cenas da
cidade à noite com suas poças luzes, dando a impressão de ser um bairro periférico.
Ao ouvir o som, Ian Curtis comenta: “Soa como (David) Bowie.” E completa. “Eu
12
O diálogo está transcrito no item 4.5 deste capítulo.
78
detesto o Bowie. Em All The Young Dudes, ele canta que se deveria morrer aos 25
anos. Sabe que idade ele tem? 30 ou 29 anos. É um mentiroso.”
Wilson diz que muitos artistas fazem seus melhores trabalhos com mais idade
e cita o poeta irlandês e ganhador do Nobel de Literatura William Butler Yeats. Ian
responde: “Nunca ouvi falar.” E ouve a explicação: “Yeats é o maior poeta desde
Dante. Se ele tivesse morrido aos 25 [...]” “Eu teria ouvido falar nele”, corta Ian.
Neste momento todos se calam e ouvem a música. Alguém comenta:
“Espere. Isso é ótimo. É brilhante.” E Tony Wilson completa: “Não nada por
que soe assim. É o melhor de todos.”
A crítica de Ian Curtis é dirigida ao cantor e compositor inglês David Bowie
que tem hoje uma trajetória musical de mais de 30 anos e que se tornou um
“superstar” na década de 80 quando lançou o disco Let’s Dance. Nos anos 70,
Bowie era conhecido como camaleão por transitar pelos estilos progressivo, glitter
rock e música ambiente.
Bowie flertou com diversos gêneros ao longo da década de 1970. Ao
dialogar com gêneros ‘nobres’ como o soul, Bowie propunha uma espécie
de retorno às raízes negras do rock. Ao travestir-se de alienígena,
assumindo-se bixessual e declarando que o ‘o rock’n roll não passa de uma
pose’, Bowie sintetizava o espírito transgressor e rebelde do rock, ao
mesmo tempo que questionava a suposta autenticidade inerente ao
discurso da geração contracultural. (MONTEIRO, 2006, .p. 48)
Os freqüentes passeios de carro à noite mostram também o clima chuvoso da
cidade e remetem à colocação de Savage (2007) sobre as “luzes de sódio
intermináveis vistas de um carro em movimento” (citado acima). É em uma destas
cenas, com as luzes “correndo” pelos vidros, que o empresário Rob Gretton
comunica ao Joy Division que eles farão sua primeira turnê pelos Estados Unidos.
Enquanto os integrantes da banda brindam e se divertem com a idéia, Ian Curtis
permanece pensativo. Ele acaba de sair de um show em que teve um ataque
epilético, não tendo conseguido completar a apresentação. Quem lembra o período
é Martin Moscrop, guitarrista do grupo A Certain Ratio (ACR), também vinculado à
Factory Records, que realizou inúmeras aberturas às apresentações do Joy Division.
79
Nos realmente demos suporte a eles na sua última grande apresentação
nós os colocamos fora do palco, as reportagens disseram. Não era um bom
momento para eles, porque Ian estava doente, as coisas estavam
desmoronando um pouco. Ele cantou duas melodias na apresentação
eles pediram ao Simon, nosso cantor, para cantar com eles, pois Simon
cantava um pouco parecido com Ian, mas ele não terminou cantando, outra
pessoa o fez. Não acho que as pessoas se preocuparam, porque se alguém
está doente, está doente, não é? Você não diz bem, queremos nosso
dinheiro de volta porque ele está doente’ [...] então a platéia entendeu.
(MOSCROP, [200-]).
13
Após a morte de Ian Curtis, que se suicida em 1980, uma cena em que os
futuros integrantes da banda Happy Mondays, os irmãos Ryder, aparecem em cima
de um telhado dando veneno dentro de pães para os pombos. A cidade, ao fundo
aparece de cima, em um dia que parece de outono. Em quadro, apenas os prédios
baixos e o céu amarelado. Na seqüência, Tony Wilson aparece em outro terraço,
com um fundo parecido, narrando as transformações que estavam ocorrendo.
14
Ainda no seguimento, a câmera faz um movimento que enquadra a cidade em
um dia chuvoso, com seus prédios de tijolos e os arcos sobre os canais. No passeio
a câmera passa por uma janela molhada e segue para dentro de um apartamento
também de tijolos, com pé direito muito alto, onde os remanescentes do Joy Division
ensaiam. A cena novamente nos remete a Savage quando diz “Hulme visto de um
quinto andar num dia chuvoso e ameaçador” (citado acima).
Em 1979, Savage se muda de Londres para Manchester, e ao lançar um olhar
sobre a cidade nesta virada de década ele a define assim:
Em 1979, Manchester ainda estava despovoada. Muito poucas pessoas
viviam no centro ou nas zonas pós-industriais, imediatamente adjacentes. O
erradicar dos bairros sociais nos anos 60 deixara grandes buracos no tecido
da cidade que, devido á recessão de medos dos 70, ainda não tinham sido
preenchidos. Combinado com a devastação dos complexos fabris, este
abandono criou um ambiente vazio e degradado. (SAVAGE, 2007).
13
Tradução de: “We actually supported them at their last ever gig – we lew them off stage, the reviews
said. It wasn’t a very good time for them, because Ian was ill, so things was falling apart a bit. He
only sung on two tunes at the gig they actually asked Simon, our singer, to sing with them,
because he did sound a bit like Ian, but he didn’t end up singing, someone else did it instead. I don’t
think people minded, becouse if someone’s ill, they’re ill aren’t they? You can’t say ‘well we want our
fucking monay back cos he he’s ill’...so people understood.”
14
A narração está transcrita no item 4.5 deste capítulo.
80
Em 1982, Tony Wilson inaugura a casa noturna Hacienda, que foi totalmente
reconstruída para o filme. Nos primeiros tempos, o local ficava vazio. Ao final de uma
destas noites, de madrugada, caminha pela rua, só. A locação é embaixo de um dos
inúmeros arcos da cidade. A luz é amarelada e o chão está úmido da chuva. No
local, sentado no chão, está um mendigo a quem Wilson um trocado. O que
revela mais uma faceta da situação da época em que se passa o filme.
Quanto à pobreza e miséria, na década de 1980 muitos dos países mais
ricos e desenvolvidos se viram outra vez acostumando-se a uma visão
diária de mendigos nas ruas, e mesmo com o espetáculo mais chocante de
desabrigados protegendo-se em vãos de portas e caixas de papelão,
quando não eram recolhidos pela polícia. (HOBSBAWM, 1995, p. 396).
O mendigo, surpreendentemente, após o gesto de Wilson, cita o filósofo
romano Boécio e sua obra Consolação da Filosofia, que origem ao conceito de
Roda da Fortuna, em que a sorte dos indivíduos se alterna. “Os bons momentos
passam, mas os maus também. Mutabilidade é a nossa tragédia, mas também a
nossa esperança. Os piores momentos, como os melhores, sempre passam.”, diz o
mendigo. Será então um mendigo, ou um desempregado, ou um louco? Ou um
desempregado, qualificado, que virou mendigo por falta de espaço no mercado de
trabalho? No transcorrer do filme, Wilson, que nunca abandonou seu trabalho na TV
Granada, aparece como apresentador do programa “Roda da Fortuna”.
Mas se falamos de Manchester no início da década de 1980, e da cena
musical, não como fugir ao fato de que muitos acontecimentos ocorreram dentro
do Hacienda. E que este foi totalmente reconstituído para o filme. Assim como o
perfil da cidade e o nome da gravadora, o Hacienda por dentro era como uma
fábrica, com pilares, teto que permitia a entrada de luz natural o que também dava o
ar de uma catedral. Muito do que ocorre após 1983 no filme se passa no Hacienda
reconstituído.
Os bares que funcionam como cenários têm, em geral um aspecto simples. A
maioria com mesas de sinuca e balcões de bar. Os arcos e os canais também
aparecem em algumas reportagens que Wilson faz pela cidade. E as chaminés das
81
indústrias aparecem ao fundo de uma externa, feita nos arredores da cidade, que
mostra Tony Wilson em uma reportagem sobre um pato que pastoreia ovelhas.
E, apesar das descrições pouco animadoras feitas do panorama da cidade no
período que retrata o filme, é Savage (2007) que revela que alguma coisa de
diferente e inovadora estava acontecendo naquele local: “Manchester era soturna,
com certeza, mas não era inteiramente monocromática. A música da cidade
certificava-se disso: um farol de luz e entusiasmo que simultaneamente iluminava e
refletia um ambiente esquecido e degradado.”
4.4 MANCHESTER “IN THE DANCE FLOOR” – A MÚSICA CONTA A HISTÓRIA
“A festa nunca termina” (24 hour party people) começa em 1976. Após
algumas cenas o protagonista aparece no primeiro show dos Sex Pistols (grupo
musical punk londrino que surge em 1975) em Manchester. É Tony Wilson quem
narra a cena: “4 de junho de 1976. Os Sex Pistols tocam em Manchester pela
primeira vez. Apenas 42 pessoas na audiência, mas cada uma delas está sorvendo
força, energia, magia. Com essa inspiração farão coisas maravilhosas. Por exemplo,
Howard Devoto, na frente e Peter Shelley nos fundos, eles organizaram este evento.
Eles estão à frente de todos os eventos em Manchester. Eles o na verdade os
Buzzcocs. Atrás de mim estão os Stiff Kittens, que depois seriam os Warsaw, depois
Joy Division e finalmente o New Order. O ruivo, Mick Hucnall (vocalista do Simply
Red). Este é John, o carteiro. Ele é carteiro. E o cara dançando na frente é Martin
Hannett o único gênio autêntico nesta história. Ou melhor, um dos dois únicos
gênios autênticos dessa história. Mais tarde ele tentará me matar [...]”
O local da apresentação dos Sex Pistols é um pequeno teatro, com palco e
poltronas vermelhas. As luzes ficam acesas durante o show. Os jovens presentes no
evento, na faixa dos 18 aos vinte e poucos anos, não usam o tradicional jeans e
camiseta, mas jaquetas de couro, camisas de botão, blusões e calças mais sociais
escuras. A maioria fuma e toma cerveja. No final da apresentação, o restrito público,
na maioria homens, pula em frente ao palco, de forma desorganizada. Ao final, John,
82
o carteiro, sobe no palco e faz um mini-show particular sendo vaiado e ovacionado
ao mesmo tempo.
A cena seguinte transcorre no apartamento de Alan onde este rasga
cartazes de antigos ídolos como o músico David Bowie. O ato de arrancar cartazes
pode ser interpretado como a chegada de uma nova tendência musical e
comportamental, como explica Amaral (2005).
O surgimento do movimento punk acontece justamente em um período em
que a subcultura do rock havia sido acolhida pelo mainstream e artistas
como Rolling Stones, Pink Floyd, Led Zeppelin haviam se tornado mega-
estrelas, o que causou um afastamento entre artistas e a sua audiência. O
punk tenta retomar a “interatividade” perdida entre as bandas e a audiência,
principalmente através de shows em locais menores como clubs e pubs [...]
Juntos eles fumam haxixe, sobre o qual Tony pergunta: - É caribenha? E
ouve a resposta: - Não, é galesa. O que demonstra a circulação da droga entre os
países e a preferência de Manchester à época, como expõe Savage (2007): “Cada
cidade e cada época tem seu próprio estimulante e na Manchester do final dos
anos 70 esse estimulante era o Haxixe.” O jornalista completa informando que
Manchester já tinha uma longa tradição no consumo de entorpecentes.
Os estados alterados muito que se introduziram no tecido da vida
macuniana (primeiro nome dado à cidade pelos romanos). Ópio e láudano
eram freqüentemente utilizados no século XIX para aliviar as doenças
respiratórias provocadas pela humidade e pobreza. Pânicos morais acerca
de comprimidos foram responsáveis pelo primeiro grande encerrar de
clubes em meados dos anos 60. Em Londres, as drogas eram usadas como
ferramentas: em Manchester utilizavam-nas para atravessar os espaços da
cidade e aumentar aquela sensação especial de suspensão que
caracterizava Unknown Pleasures (primeiro disco do Joy Division).
(SAVAGE, 2007).
Em seguida, Tony Wilson, Alan e Lindsay, saem em busca de um local para
promover apresentações de novas bandas locais. O local escolhido é o Russell Club
e o dia da semana para as apresentações é sexta-feira.
15
15
O diálogo desta seqüência está transcrito no item 4.5 deste capítulo.
83
Assim, ocorre o primeiro show da Factory. Músicos locais se apresentam para
um público pequeno, mas participativo, num ambiente enfumaçado, com mesas de
sinuca e “regado” a cerveja. Em uma destas apresentações Tony Wilson percebe o
talento do vocalista Ian Curtis e sua banda (Warsaw), que virá a ser o Joy Division,
num estilo musical pós-punk, o new wave (ou gótico como Wilson definiu o som da
banda).
Neste período, já final da década de 70 Tony Wilson, junto com alguns
companheiros, funda o selo de discos Factory. A conversa ocorre em um bar, com a
presença dos músicos do Joy Division. Em meio a algumas cervejas, Wilson afirma:
“As grandes gravadoras são conservadoras. Nós não. Somos anarquistas. Será
como uma cooperativa. Dividiremos o lucro. Pagamos os custos e o resto é meio a
meio.” Ele escreve o contrato, dizendo que não há contrato, com o próprio sangue. O
papel é, posteriormente, emoldurado. Surge a Factory Records, tendo como grupo
principal o Joy Division.
Neste período, Tony Wilson, continua atuando como jornalista da TV Granada
e insiste em fazer matérias “sérias”. “Sou um jornalista sério. Me formei em
Cambridge”, afirma. Aqui, talvez seja possível traçar outro paralelo com os Estudos
Culturais. Assim como no CCCS se tinha a idéia da democratização da cultura (bem
como da legitimação das culturas da “vida comum”) o personagem de Wilson, com
uma certa arrogância, parece demonstrar que, por ter estudado em Cambridge, tem
o papel de trazer “cultura à periferia” que seria a Manchester industrial, de
desempregados e em ruínas.
As reportagens de televisão permeiam todo o filme. Ainda nos anos setenta, o
filme mostra matérias da paralisação de transportadoras pela reserva de
combustíveis, devido a rumores de racionamento. As rodovias do país ficam
bloqueadas e volta a semana de três dias. Outra matéria de televisão denuncia o
caos no serviço público de Londres com montanhas de lixo “entupindo o Oeste da
cidade”. Ao mesmo tempo, coveiros de Liverpool se recusam a enterrar os mortos.
A cena que mostra a última apresentação do Joy Division, quando Ian Curtis,
doente tem um ataque de epilepsia, indica que a despreocupação do grupo ao
84
escolher uma expressão nazista como nome, com uma proposta de utilizá-lo em um
contexto diferente - de diversão, de juventude -, apresenta problemas. Aos poucos,
os skinheads começam a freqüentar as apresentações da banda, gerando
problemas como brigas. Como aponta Hebdige (2005, p. 128-129):
A subcultura punk, como toda subcultura, se estabelece em meio a uma
serie de transformações espetaculares de todo um ranking de convenções,
valores, atitudes de sensos-comuns e etc. Foi através destas formas
adaptadas que certas partes, predominantemente da juventude da classe
trabalhadora, foi capaz de reafirmar sua oposição aos valores e instituições
dominantes. Entretanto, quando tentamos nos aproximar de itens
específicos, nós imediatamente encontramos problemas.
16
Na seqüência, trechos de uma reportagem de televisão com imagens de
uma das maiores manifestações neofascistas desde os anos 30 na Inglaterra. A
música do Joy Division acompanha as cenas do filme.
É possível identificar o cruzamento e o convívio em ambientes iguais de
diferentes subculturas. O ambiente é o underground de Manchester, onde se
encontram músicos das tendências new wave, ticos, skinheads e a turma da
mídia (jornalistas), entre outros jovens. Mas este convívio entre as diferentes
subculturas o é algo incomum, como expõe Amaral: As subculturas o estão
fechadas para inter-relacionamentos, pelo contrário, elas interagem, misturando-se
e complementando-se; outras vezes, no entanto, elas adquirem outros rótulos e
situam-se em campos diferentes e até contraditórios com sua formação original.
(AMARAL, 2005).
A contradição também faz parte do jogo das subculturas, propondo uma
dissimulação, uma astúcia, que torna difícil qualquer tentativa de enquadramento
pelo sistema. O uso de símbolos nazistas, por exemplo, pelos punks, e de
expressões nazistas por outras subculturas apresentam diversos significados, como
mostra Hebdige (2005 p. 128-129).
16
Tradução de: “The punk subculture, like every other subculture, was constituted in a series of
spetacular transformations of a whole range of commodities, values, common-sense attitudes, etc. It
was through this adapted forms that certain sections of predominantly working-class youth were
able to restate their opposition to dominant values and institutions. However, when we attempt to
close in on specific items, we immediately encounter problems.”
85
O que, por exemplo, o uso da suástica queria significar? Podemos ver como
o símbolo se tornou usável para os punks (via a fase 'Berlim' de David
Bowie e Lou Reed). Além disso, o uso reflete claramente o interesse dos
punks em uma decadente e demoníaca Alemanha Alemanha sem futuro.
Convencionalmente, ao que diz respeito aos britânicos, a suástica
significava inimigo. Não obstante, o uso punk perdeu seu significado natural
fascismo. Geralmente os punks não eram simpáticos aos partidos de
extrema direita. Ao contrário [...] o conflito com o ressurgimento dos teddy
boys e a difusão do apoio pelo movimento anti-fascista (por exemplo a
campanha Rock contra o Racismo) parecem indicar que a subcultura punk
cresceu pquvulavuavudizntoci
86
A morte de Ian Curtis e a virada da década marcam um novo momento da
música de Manchester. No filme, é como se tivesse início a segunda parte quando
também é mostrada a separação de Wilson e Lindsay
18
. Porém, entre os dois
momentos, segundo o protagonista, há uma pausa.
Esta pausa referida por Wilson, coincide também com o momento político por
que passa a Inglaterra que, diante dos movimentos da contracultura e da
reorganização da classe trabalhadora que caracterizaram os anos 70, entra, a partir
de 1979, em uma nova fase, como mostra Cevasco (2005, p. 105).
Nesse quadro, o Estado britânico se preparava para endurecer e substituir o
consenso democrático pelo ‘populismo autoritário’ que iria caracterizar o
reinado conservador até os anos 1990. Na cartilha conservadora, o
patriotismo convive com a “ideologia de um mercado livre, com a defesa dos
valores familiares e com o ataque aos socialistas e às minorias”.
Segundo Thornton (2005, p. 191) em The Social Logic of Subcultural Capital
[1995],
[...] os anos oitenta foram radicais no seu conservadorismo. A mudança
ficou evidenciada como um movimento à direita, enquanto a esquerda
esteve efetivamente posicionada como reacionária na sua preocupação de
preservar o passado [...] a juventude da minha pesquisa eram, para citar o
clichê, ‘Filhos de Tatcher’. Bem versados nas virtudes da competição, seus
heróis culturais tinham a forma de jovens empresários radicais que deram
início a clubes noturnos e gravadoras de discos, ao invés dos poetas ou
ativistas do passado.
19
É neste cenário que Tony Wilson inaugura, em 1982, a casa noturna
Hacienda. O nome é influenciado pelo movimento Situacionista a partir do manifesto
de Ivan Chtcheglov, e das sugestões de psicogeografia, urbanismo unitário e teoria
da deriva. No ensaio, chamado "Formulário Para Um Novo Urbanismo", Chtcheglov
18
Transição da narração da está descrita no item 4.5.
19
Tradução de: “[...] the 1980s were ‘radical’ in their conservatism. Change was experienced as a
move to the right, while the left was effectively positioned as reactionary in its intent to preserve the
past ... the youth of my research were, to cite de clichê, `Tatcher´s children´. Well versed in the
virtues of competition, their cultural heroes came in the form of radical young entrepreneurs who had
started up clubs and record labels, rather than the poets and activists of yesterday.”
87
[...] imagina que uma nova forma de vida urbana pode ser criada, uma nova
cidade construída - ' nós estamos entediados na cidade, não mais
nenhum templo para o sol ' -'você nunca verá a Hacienda. Ela não existe. A
Hacienda deve ser construída'. Nesta nova cidade, ' cada homem viverá em
sua própria catedral' e ' a principal atividade dos habitantes será a contínua
deriva' através de zonas destinadas a alterar humores e percepções dos
habitantes. (ELIOT, [200-]).
Ainda, segundo a autora do texto, Eliot ([200-]),
Os Situacionistas cunharam a expressão urbanismo unitário para descrever
seus experimentos para criar uma nova cidade que permitiria os habitantes
jogar e realizar seus desejos. Arquitetura, colagens deturpadas de mapas,
instalações de arte e a deriva eram todas usadas pela IS nestes
experimentos. A deriva era uma prática experimental de urbanismo unitário.
A prática é efetivamente vagar sem objetivo e sem destinação através da
cidade, explorando suas ambiências. A Psicogeografia foi usada para
descrever o estudo dos efeitos do meio ambiente urbano na psique. A IS
produziu relatórios psicogeográficos baseados nos resultados de suas
derivas.
No início, o local ficava vazio. O que sustentava a casa eram os recursos da
Factory Records, vindos do sucesso de vendas Blue Mondays, lançado em 1983,
pelo grupo New Order que, em 1980 manteve a mesma formação do Joy Division, só
sem Ian Curtis. Sua música, seguindo a orientação do nome da banda, Nova Ordem,
apresenta uma música mais dançante, confirmando a tendência new wave (nova
onda).
As reportagens feitas por Wilson para a TV Granada também mostram um
momento que se caracterizava mais pela superficialidade e pelo espetáculo. São
reportagens sobre anões que dão banho em elefantes em zoológicos, discos
voadores e a fundação dos canais da cidade de Manchester, com um dos seus mais
antigos trabalhadores, que não lembra como era o serviço que fazia no início do
século.
Na metade da década, porém, Tony Wilson contrata a banda Happy Mondays
para a Factory Records, que ficou em último lugar em um concurso promovido no
Hacienda. Ele define o som produzido pelo grupo como “sentimental e roqueiro ao
mesmo tempo. Dance Music”. A casa noturna passa a ficar lotada de jovens que se
reúnem para dançar ininterruptamente. A droga não é mais a maconha, mas a
88
cocaína e o ecstasy, drogas estimulantes. Segundo Wilson, neste momento foi como
se:
De repente tudo se encaixou. A música, a dança, as drogas, a casa, a
cidade. Provei que estava certo. Manchester era como Florença no
Renascimento. Mike Pickering estava certo. Não precisa de bandas numa
boate. Shaun Ryder estava certo. O New order estava certo. Nos
encontramos todos. Todos vinham ao Hacienda. Era nossa catedral.
Manchester, onde nasceram as ferrovias, o computador, a bomba quicante .
E hoje, algo também histórico está para acontecer. Vêem? Estão
aplaudindo o DJ. Não o músico, não o criador mas o meio. Eis o nascimento
da cultura have. A beatificação da batida. A época da dança. Quando até os
brancos começam a dançar. Bem-vindos a Manchester.
Ainda na avaliação de Wilson, neste período “estar no Hacienda era como
estar na Revolução Francesa. Felicidade era, ao amanhecer, estar vivo. Porém, ser
jovem era o paraíso.” Aqui se percebe a questão da juventude atingindo um ponto
máximo. Como propõe Duarte (2002, p. 3, grifo do autor),
Uma das cenas que mais impressionaram no início dos anos 90
(particularmente na Inglaterra) e continua a existir é o que se chamou de
cultura rave. O conceito rave, nascido no final dos anos 80 e fortalecido e
advindo da produção da música eletrônica, foi formatado em festas em
espaços abertos fora do perímetro urbano das cidades ou em galpões
abandonados da periferia, ao som da música hipnótica tecno e de drogas
como o Ecstasy (ou MDMA, XTC, XTC, E., X, Adam) e o ácido (LSD). Como
idéias principais, os ravers acredita(va)m no dogma Plur (peace, love, unity
and respectpaz, amor, unidade e respeito). A música `executada´ em pick
ups (pratos toca-discos de vinil) por dee jays, envolvia os clubbers, ravers
em danças por horas a fio, numa grande celebração tribal de alegria e
êxtase.
Durante o período de grande sucesso do Hacienda, com a dance music em
alta e a casa lotada, verifica-se uma outra realidade a se consolidar em torno desta
“cena” musical. A do tráfico de drogas cada vez mais estruturado. Por estarem cada
vez mais armados, os traficantes passam a controlar o local, onde antes apenas
vendiam a droga. A violência chega ao Hacienda. Por outro lado, o consumo do
Ecstasy (por suas características específicas), ao invés de estimular, inibia a compra
de bebidas alcoólicas, o que reduzia os ganhos da casa.
O surgimento da cultura rave e a consagração da dance music, na chegada
dos anos 90, talvez possa ser entendida como a trilha sonora da globalização e da
89
consagração da sociedade pós-moderna, volátil e fragmentada. Neste sentido, pode
ser esclarecedora a colocação de Straw (2005, p. 475), no artigo Communities and
Scenes in Popular Music onde a cultura da dance music
É aquela na qual a diversidade espacial é perpetuamente retrabalhada
como uma seqüência temporal. Em um nível, a dance music é altamente
policêntrica, nisto é caracterizada pela existência simultânea de um grande
número de estilos locais ou regionais – música techno de Detroit, estilo bass
de Miami, o swingbeat de Los Angeles e etc. Outros centros regionais
como Nova Iorque ou Londres serão relevantes, menos como lugares
(para o) surgimento de estilos que podem ser chamados como nativos, do
que por ocupar posições de centralidade como espaços de retrabalho e
transformação de estilos originários de outros lugares. A cultura da dance
music é caracterizada por dois tipos de direcionalidade: um no qual a
atividade musical local se desenha local dentro da produção de estilo
musical de um ou mais produtores ou sons nativos, e outro que articula
estes estilos em outro lugar, dentro de centros e processos de mudanças
monitorados de perto pela comunidade internacional da dance music como
um todo. Um efeito deste tipo de movimento é que coexistindo no interior da
dance music os estilos regionais e locais estão quase sempre em diferentes
estágios dentro dos ciclos de influência de nascimento e declínio da dance
music. Uma confortável, estável diversidade internacional, pode ser
raramente observada.
20
A dinâmica característica da dance music e das raves, transterritorial,
diversificada e de constantes releituras atravessa a década de 90 até os dias de
hoje, com suas diversas adaptações e influências. E pode-se dizer que uma
relação entre as cenas musicais e os espaços urbanos. De acordo com Freire Filho
e Fernandes (2006, p. 31):
Um exemplo disso é a possibilidade de integrantes de cenas como a de São
Paulo se congregarem a cenas como a de Manchester, na Inglaterra, sem
que seja necessariamente uma modificação radical dos ideais estético-
ideológicos desenvolvidos na cidade de origem. A escola, a rádio, os clubes
noturnos espaços modelados pelo lugar que ocupam na metrópole
20
Tradução de: “Is one in wich spatial diversity is perpetually reworked as temporal sequence. At one
level, dance music culture is highly polycentric, in that it is characterized by the simultaneous
existence of large numbers of local or regional styles Detroit `techno´ music, Miami `bass´ styles,
Los Angeles ´swingbeat´, etc. Other regional centerslike New York or London will be significant,
less as places [for the] emergence of styles one could call indigenous, than because they occupy
positions of centrality as sites for the reworking and transformation of styles originating elsewhere.
Dance music culture is characterized by two sorts of directionality: one wich draws local music
activity into the production styles of one or more dominant, indigenous producers or sounds; and
another wich articulates these styles elsewhere, into centres and processes of change monitored
closely by the international dance community as a whole. One effect of this sorts of movement is
that coexisting regional and local styles within dance music are almost always at different stages
within their cycles of rising and declining influence. A comfortable, stable international diversity may
rarely be observed.”
90
contemporânea proveriam as condições de formação e a possibilidade de
existência de alianças entre estilos musicais e o estabelecimento de
ligações afetivas entre lugares geograficamente dispersos.
Mas neste processo, nos períodos de declínio, alguns breves ícones da moda
fenecem. No caso do filme A Festa Nunca Termina, o que se é que a festa às
vezes tem fim. A Factory Records quase é comprada pela London Records
21
. O
negócio não se efetua porque, como explica Wilson no filme, “a Factory não é uma
companhia, é uma experiência humana”, uma vez que existe através de acordo
entre amigos. Quanto ao Hacienda, as portas se fecham em 1994. Quem compra o
local é o proprietário da primeira casa noturna onde teve início às sextas-feiras
chamadas Factory.
4.5 DIÁLOGOS QUE MOSTRAM UMA ÉPOCA
Uma cena de destaque no filme “A festa nunca termina” (24 hour party
people), é a em que Tony Wilson, Lindsay e Alan, vão conhecer o Russel Club, que
sediará as sextas-feiras Factory, organizadas por Wilson. É neste momento que o
protagonista começa a diversificar suas atividades para a área musical, fora da TV
Granada. A escolha de um bairro de subúrbio vai ao encontro de uma tendência de
redescobrimento de áreas das cidades abandonadas e que viriam a ser exploradas
para o entretenimento, como explica Hobsbawm (1995, p. 297):
Velhas áreas industriais tornaram-se ‘cinturões de ferrugem’ termo
inventado nos EUA na década de 1970 -, ou mesmo países inteiros
identificados com uma fase anterior da indústria, como a Grã-Bretanha,
foram largamente industrializados, transformando-se em museus vivos ou
agonizantes de um passado desaparecido, que empresários exploravam,
com certo êxito, como atrações turísticas.
Ao considerar a sugestão do nome Factory, proposto por Alan, Tony Wilson
propõe uma relação com Andy Wharol, e Lindsay, com o artista L.S. Lowry, do norte
da Inglaterra. Estas considerações nos levam novamente a questão pós-moderna de
21
Diálogo transcrito no item 4.5 deste capítulo.
91
aproximação entre arte e vida cotidiana, onde a arte como algo distanciado e
separado é contestado.
Em primeiro lugar, o desafio direto contra a obra de arte, o desejo de
eliminar sua aura...Em segundo lugar uma suposição de que a arte pode
estar em qualquer lugar ou em qualquer coisa. Os resíduos da cultura de
massa, as degradadas mercadorias de consumo poderiam ser arte
(lembremos Warhol e a pop art). (FEATHERSTONE, 1995a, p. 99).
Lindsay – É um terreno baldio?
Tony Wilson – Não, é Las Vegas. Certo?
Lindsay – Tem bosta de cachorro por toda parte. É nojento!
Tony Wilson É urbano. É excitante. É justamente onde deveríamos estar...Essa
garotada não vai roubar o carro, né?!
Alan – Não, não vão roubá-lo.
Lindsay – Tem certeza?
Já dentro do bar
Tony Wilson Bom, a razão para estarmos aqui...com a explosão musical do New
Wave uma bando de bandas geniais surgindo e acho que, culturalmente,
Manchester está meio atrasada.
Lindsay É, para entrar numa boate você tem que estar vestido com um estilo de
cabeleireiro.
Tonay (Don) – Minha mulher é cabeleireira...
Lindsay – Legal.
Tony Wilson – Mas outros, não. E eles têm o direito de dançar.
Alan Tonay não acredita na televisão. Falei isto porque o engraçado é que Tony
está na TV.
Tonay (Don) – Sabe como eu chamo a televisão? A caixa idiota.
Tony –Certo tem muito lixo na televisão.
Tonay (Don) – Certo. Fico com 60% da bilheteria. A banda ganha cerveja. Pode ficar
com as sextas.
Na rua novamente
Tonay (Don) – Que tipo de música vai apresentar?
Tony Wilson – Um tipo de New Wave...
Alan – Um tipo de Indie...
92
Tonay (Don) – Indian?
Alan – Não, Indie.
Tonay (Don) Não quero Ska (predecessor do reagge). Não gosto de Ska...Não
gosto disso. Eu trago rock pesado. Uma dessas bandas... eles bebem como a porra
da Rainha-Mãe.
Já no carro.
Lindsay – Que tal um nome para a casa?
Alan – Chame-a de Factory.
Tony Wilson – Gostei, é meio Andy Wharol.
Lindsay – É meio L.S. Lowry.
Alan Acabei de ver cartazes dizendo: fábricas fechando e pensei que poderíamos
ter um dizendo: Abertura de fábrica. Inverter a tendência.
Apesar de todo o envolvimento com a questão urbana e com os movimentos
musicais de Manchester, Tony Wilson e Lindsay moravam fora da cidade. Numa
localidade próxima, mas com um cenário bastante rural. Em um dos poucos
momentos do filme que mostra a intimidade do casal, eles falam da possibilidade de
ter filhos, como narra Tony Wilson: “Não era sempre aquela loucura entre eu e a
Lindsay. Muitas vezes éramos um casal de jovens comum, querendo o que jovens
casais querem. Uma bela casa, um belo carro e um casal de filhos”.
Lindsay – Aproveite o passeio, somos só eu e você.
Tony Wilson – Não gostaria de ter um pequeno Tony e uma pequena Lindsay?
Lindsay – Seria um pesadelo. Gosto de ser livre. Mais tarde talvez.
Tony Wilson Vou dizer uma última palavra a esse respeito. Relógio biológico, ok.
Relógio biológico.
Este diálogo revela contradições com relação ao papel de Lindsay Reade em
“A festa nunca termina” (24 hour party people). No filme, ela aparece sempre
acompanhado o protagonista e parece ter suas opiniões respeitadas, num papel
ativo na narrativa. Em sua entrevista para o site do filme, no entanto, Lindsay Reade
apresenta uma postura distinta. Segundo ela: “Eu realmente não me via tendo um
papel nos negócios, porque eu era a esposa, e eu fui criada num clima diferente
93
daquele. Nossa crença era de que os homens fazem o dinheiro, e as mulheres, os
bebês. E os papéis eram estes.” (READE, [200-]).
A colocação é, no mínimo instigante, por ocorrer na Inglaterra, na segunda
metade da cada de 1970, quando o feminismo havia tomado as ruas. Mas a
conciliação entre ser mulher, mãe e profissional ainda parecia algo irreal. O que nos
leva a às colocações da socióloga húngara Agnes Heller, feitas quase no mesmo
período, onde afirma ser a maternidade motivo de alegria, mas que as pessoas
devem ter o direito de viverem suas vidas como bem entenderem: “[...] penso que
todas as mulheres que encontram uma justificação para não terem conseguido fazer
o que queriam no fato de terem tido filhos para criar ou são vítimas de uma tradição
social que aceitaram, ou fracassaram elas mesmas na realização de um objetivo que
podia ser efetivamente alcançado.” (HELLER, 1982, p. 198).
A chegada da década de 80 funciona como uma segunda parte de “A festa
nunca termina” (24 hour party people). Ian Curtis se suicida, o Joy Division vira New
Order, Tony e Lindsay se separam. Após deixá-la na rodoviária ele diz, fazendo uma
diferenciação entre os estilos de vida europeu e americano “Esse é um momento
difícil para mim. É óbvio. Mas eu acho que foi Scott Fitzgerald quem disse: ‘Vidas
americanas não tem segundo ato’. Mas isto é Manchester. Nós fazemos as coisas
diferentes aqui. Este é o segundo ato.”
Neste momento aparecem cenas dos integrantes do Happy Mondays dando
veneno para pombos em cima de um telhado. Em seguida Tony Wilson, também em
um terraço, narra:
A história da música popular é como uma dupla hélice. São duas ondas se
entrelaçando. Quando uma faz assim (desce) a outra faz assim (sobe). São
duas ondas fazendo assim. Quando um movimento musical está decaindo,
outro movimento está subindo. Neste instante, estamos no cruzamento,
uma espécie de pausa. Mas os dois caras que estarão no topo da próxima
onda serão Paul e Shaun Ryder. Isto aconteceu de verdade e como a asa
delta, funciona em dois níveis. Isto aconteceu em 1980, quando Paul e
Shaun puseram veneno de rato no pão e envenenaram três mil pombos.
Óbvio isto é uma reconstituição. Nenhum pombo foi machucado na
filmagem deste filme. Apesar de alguns dizerem que eles são uma praga.
Ratos com asas.
94
Falar da música popular num local como Manchester, dentro de um filme que
trata basicamente das variações do rock, nos leva a colocação de Cardoso Filho e
Janotti Júnior, onde o pop dialoga com a indústria e é disponibilizado para um
grande público.
[...] os dispositivos midiáticos englobam as pessoas que criam e interpretam
a música, as mídias e os locais de apresentação, os distribuidores, sejam
comerciantes, promotores de shows ou divulgadores; os críticos que
buscam padrões para avaliação das canções, e a audiência, que varia
desde consumidores ocasionais até colecionadores. É no desdobramento
desse cenário durante o pós-guerra que surge a música que marcou
profundamente o século XX e acabou forjando a idéia de música pop, o
rock. (CARDOSO FILHO; JANOTTI JÚNIOR, 2006, p. 16).
O surgimento do New Order, em 1980, pegou todos de surpresa e deu início a
um novo momento da cena musical mundial. No filme, a cena que mostra a nova
formação da banda, sem Ian Curtis, revela uma certa despretensão, inclusive dos
próprios músicos.
As imagens são do céu cinzento, sempre a partir dos telhados da cidade. A
câmera faz um passei e entra para um apartamento que parece ser em uma zona
industrial, vazio de tijolos. A nova banda ensaia. Tony Wilson, em off, diz: “Nenhuma
banda sobrevive à morte de seu líder. Então, quando o Joy Division virou New order,
ninguém achava que daria certo.”
Neste momento, a seqüência do filme mostra sempre duas cenas paralelas
na tela, dividindo a imagem ao meio. De um lado da tela, a banda segue o ensaio da
música “Blue Monday”, no outro ocorrem os diálogos. O primeiro é de Wilson com
baixista do New Order, Peter Hook, caminhando pelas ruas em uma noite chuvosa.
Peter Hook – Como você não tem imaginação visual, fiz uma maquete.
Tony Wilson – É um disquete!
Peter Hook – É um disquete.
Tony Wilson – É brilhante! É puro, profissional, poético.
Peter Hook - É caro. Impressão com quatro cores. Capa com dobra especial.
Tony Wilson – É lindo. Eu nunca economizo com beleza. Você sabe disso.
Em seguida, Wilson conversa com Alan, na Factory Records.
95
Alan – Podemos falar sobre as capas?
Tony Wilson – Claro.
Alan Você calculou? Porque eu calculei. Perdemos cinco centavos em cada disco
vendido.
Tony Wilson – Não vamos vender porra nenhuma, então, tudo bem.
Narração Tony Wilson: “Blue Monday se tornou o single mais vendido de
todos os tempos o que significava muito dinheiro para o New Order. Mas eles não
viram a cor do dinheiro. Pois cada tostão que eles ganharam foi tragado pelas
dívidas da Hacienda.”
A forma de trabalho de Wilson e do grupo sempre se caracterizou por uma
certa irresponsabilidade financeira e por experimentações. No início da Factory
Records, devido aos custos, os discos eram prensados na Inglaterra, mas as capas
eram produzidas na França. Assim, eles chegavam de forma separada na sede da
gravadora, e não poucas vezes, os próprios músicos se encarregavam de colocar os
discos nas capas.
A ousadia também está presente na cena em que Wilson mostra aos colegas
o prédio que será a casa noturna Hacienda, com um desing de vanguarda, que imita
uma fábrica.
Tony Wilson - Fac 51 istoé: a Hacienda. Prédios criam sinergia. São um foco para a
criatividade. Quando os vitorianos construíram ferrovias, não construíram
espeluncas. Eles deram tudo.
Alguém diz: Meu Deus!
Tony Wilson Ouçam a reverberação. Maravilhoso não? O som da minha voz.
Prédios mudam o jeito das pessoas pensarem. Como a Florença do Renascimento.
Martin Hannett – É. Mas isto aqui não é Florença no Renascimento. Isto é a
Manchester da Idade Média. Parece um matadouro, porra.
Hannett – Quanto isto custou no nosso orçamento musical?
Rob Gretton – 700 mil libras.
Hannett – Adeus. Nós obviamente não temos nada em comum. Sou um gênio, vocês
são uns bundões. Nunca mais vão me ver. Não merecem me ver de novo.
96
Ao final do filme, ocorre uma quase negociação entre a London Records, de
Londres e a Factory Records, de Manchester. Com a mistura de investimentos entre
Factory Records, o novo escritório e o Hacienda, a situação financeira se complica.
Tony Wilson não tem contrato com os músicos da Factory Records, a idéia é vender
o passe do grupo Happy Mondays à gravadora londrina London Records,
apresentando a nova produção musical do grupo.
No entanto, não há nova produção. Os Happy Mondays passaram vários
meses em Barbados, consumindo dinheiro da Factory Records e muitas drogas, e
voltaram sem nenhuma novidade musical que pudesse ser lançada no mercado.
Apenas o início de uma música, sem letra e que rapidamente se torna repetitiva. A
surpresa na negociação, é que o interesse da London Records não é apenas nos
Happy Mondays, mas na Factory Records como um todo.
Tony Wilson – Olá Roger. É Roger não é?
Roger (London Records) – Como vai?
Tony Wilson – Muito prazer. Tony.
Roger – Posso ver a banda?
Tony Wilson – Eles estão aqui...
Roger – Roger Ames, London Records. O que vocês fizeram é brilhante e se não se
importam, que mesa...
Tony Wilson – E há comida. Sirvam-se
Shaun Ryder Eu não comeria. É comida para coelhos. Nós gostamos de trepar
como eles, mas não de comer como eles.
Roger – Música é alimento para os negócios. Por que não comemos isso?
Alguém – Aumente o som. É excelente.
Roger – Toque mais.
Tony Wilson – Ouvirão a letra quando ouvirmos a oferta.
Roger – Tony, porque não escutamos a canção enquanto eles estão fora? Eu
entendo que Shaun é um pouco difícil.
Tony Wilson – É, mas ele é um gênio.
Roger Tem razão, é um gênio. E devo dizer que se eu tivesse uma gravadora e
tivesse contratado Shaun o o venderia por nada. Vou fazer uma oferta. Vou fazer
uma oferta pela gravadora toda. Cinco milhões.
97
Alan – O que quer em troca?
Roger Quero tudo. Quero o catálogo, esta mesa, estas janelas, a comida. Quero
tudo.
Tony Wilson – Quer a Factory? Certo, ficamos muito, muito lisonjeados de achar que
valemos esta soma. Porém tenho que explicar a você que é que a factory não é uma
gravadora de verdade. Somos uma experiência humana. Está enganado ao achar
que temos um contrato com as nossas bandas, um contrato qualquer, pois não
temos. Porque isto é toda a papelada que a Factory Records tem com suas bandas,
como contrato.
Roger “Os artistas são donos do seu trabalho. A gravadora não é dona de nada.
Nossas bandas têm liberdade de cair fora”. Não preciso negociar com vocês então.
Tony Wilson Correto. Mas meu epitáfio será que eu nunca, literal ou
metaforicamente, me vendi. Me protegi de jamais ter o dilema de precisar me
vender, por não ter nada a vender.
Roger – Você é maluco.
Tony Wilson - É um ponto de vista.
A negociação acima apresentada pode ser analisada através de um novo
momento da economia mundial, onde a circulação de dinheiro e de mercadorias
deixa de ter pátria, e se consolida o mercado de ações. Como expõe Harvey (1993,
p. 269):
A rapidez com que os mercados de moedas flutuam nos espaços do mundo,
o extraordinário poder do fluxo de capital-dinheiro no que é agora um
mercado financeiro e de ações global e a volatilidade daquilo que o poder
de compra do dinheiro poderia representar definem, por assim dizer, um
ponto alto da intersecção extremamente problemática do dinheiro, do tempo
e do espaço como elementos entrelaçados de poder social na economia
política da pós-modernidade.
“A festa nunca termina” (24 hour party people) termina em 1992. E deixa um
relato duplo, da história narrada, e da história que realmente aconteceu. Mas como
diz o próprio personagem de Tony Wilson, “entre o mito e a lenda, prefira a lenda”.
A ficção encontra a realidade, e, de fato, Manchester foi o local onde surgiram
as bandas representadas no filme. Também os locais representados existiram. E
98
os personagens viveram àquele momento. Tanto que a maioria foi consultada e
inclusive deu contribuições ao roteiro.
Isso significa que realmente houve um grupo de jovens, a partir dos 18 anos,
que realmente fez Manchester ser cenário de diversas manifestações juvenis entre
as cadas de 70 e 80. Ali estão, novamente, as questões da cidade, do bairro, da
música, dos shows, das drogas. Está presente também o rechaço ao controle da
mídia nas mãos de poucos grupos e da falta de espaço para manifestações fora do
mainstream.
O contexto em que se passa a história é o de mudanças nas regras do
capitalismo. Desemprego, falta de perspectiva e o questionamento por parte
daqueles que precisam ser adultos nesse cenário estão representados no filme.
Os próprios realizadores têm uma proximidade com a história. São da mesma
região da Inglaterra, freqüentaram espaços como o Hacienda e certamente
dançaram ao som do New Order.
99
5 DOIS FILMES – REALIDADES PARALELAS
“Deu pra ti, anos 70” e “A festa nunca termina” são filmes que narram dois
longos períodos de tempo. O primeiro, nove anos. O segundo, 16 anos. De 1976 até
1980, o momento representado é o mesmo. São filmes, portanto, ambiciosos em
suas propostas originais. Os fatos ocorridos anterior e posteriormente a estas datas
têm influência nas histórias, pois comportamentos surgidos nos anos 60 e que irão
marcar os anos 80 e 90 estão presentes e são sugeridos nas películas.
Os dois filmes contam histórias de jovens e se passam na década de setenta.
Apesar de “Deu pra ti, anos 70”, terminar na virada da década de 1980, apresenta
indícios de comportamentos que marcariam os anos seguintes. “A festa nunca
termina” (24 hour party people) começa na metade da década de 70 e se
desenvolve até o início da década de 90.
Do ponto de vista das histórias dos filmes, nas duas narrativas encontramos
elementos de representação da cultura juvenil à época. Os personagens de “Deu pra
ti, anos 70”, no início da história, têm por volta de 13 anos. Na segunda metade da
década de 70, estão com 17, 18 anos e chegam aos anos 80 com 20 anos,
aproximadamente. Em A festa nunca termina”, os personagens, a partir de 1976,
têm mais de 18 anos.
Os realizadores de “Deu pra ti, anos 70”, têm praticamente a mesma idade
dos personagens do filme “A festa nunca termina”. Em 1980, por exemplo, os
diretores, Nélson Nadotti e Giba Assis Brasil, m, respectivamente 21 e 23 anos.
Assim, o grupo de realizadores de “Deu pra ti, anos 70” é da mesma faixa etária do
grupo representado no filme inglês “A festa nunca termina” - um filme de ficção com
base em fatos reais, cujos personagens realmente existiram e muitos estão ainda
vivos.
Por outro lado, como relatou o roteirista de “A festa nunca termina”, Boyce
([200-]), ele e o diretor Michael Winterbottom são de regiões próximas a Manchester.
100
Na sua juventude freqüentavam o Hacienda e ouviam as músicas dos grupos
lançados pela Factory Records.
Aqui temos um cruzamento não apenas das histórias, mas também das
realidades. Tanto em Manchester quanto em Porto Alegre, na década de 1970, os
jovens estavam envolvidos com a produção cultural e com a questão da
comunicação. Nélson Nadotti e Giba Assis Brasil eram estudantes de jornalismo no
período. O protagonista de “A festa nunca termina”, Tony Wilson, também é
jornalista e trabalha em uma TV local, enquanto o protagonista de “Deu pra ti, anos
70”, Marcelo, opta pela faculdade de jornalismo.
O jornalismo, assim, é a profissão mais freqüente nas duas situações. O que
demonstra ainda mais a relevância da circulação da informação, que se torna mais
intensa a partir dos anos 70, bem como das novas tecnologias da comunicação. No
Brasil, o surgimento das faculdades de comunicação facilita esta escolha.
Ter informação e divulgar notícias é um fator de aproximação de distintas
partes do mundo. Passa-se a ter o acesso facilitado às realidades e aos modos de
vida existentes em países e localidades distantes e muitas vezes remotos. Os
protagonistas e os realizadores vivem esta situação, são consumidores, produtores e
reprodutores de informação.
Em ambos os contextos, os meios de produção são alternativos. Enquanto os
realizadores de Porto Alegre têm como meio o pouco ortodoxo cinema Super-8
como forma de expressão, em Manchester, Tony Wilson, é âncora de um dos
poucos programas de televisão que apresenta novas bandas de rock, além de abrir
espaço para suas apresentações em um clube noturno de subúrbio, o Russell Club,
chamando os eventos de “Sextas-Feiras Factory”. O fato de Wilson abrir espaço na
televisão para bandas novas, nos remete à idéia de Raymond Williams, que via nas
novas tecnologias de comunicação não apenas uma forma de manter um fluxo da
produção cultural de poucos para muitos, mas como meio de ampliar e inverter este
fluxo.
101
A televisão, no caso de “A festa nunca termina”, acaba tendo um papel de
destaque como mediadora entre os fatos do cotidiano e as notícias que são
veiculadas para um grande público através das reportagens feitas por Tony Wilson,
que mostram desde greves, paralisações, manifestações de skinheads, até assuntos
mais triviais, como vôos de asa delta, e espetáculos com anões que banham
elefantes em um zoológico. Mas o meio não é poupado de críticas, quando é
chamado de “caixa idiota” pelo dono do Russell Club, ao que Tony Wilson concorda
afirmando que “sim, há muito lixo na televisão”.
Em “Deu pra ti, anos 70”, a televisão não tem um papel de destaque. E o
protagonista Marcelo demonstra um certo desinteresse por ela ao citar em um
poema “se pelo menos eu tivesse vontade de assistir televisão”. Neste momento, ele
preferia escrever a sentar em frente à tela doméstica.
A poesia está presente nos dois filmes. Marcelo escreve poemas e contos. E
Tony Wilson compara as letras de Ian Curtis a poemas de Yeats. A literatura e a
leitura, ainda tinham papel de destaque entre as juventudes representadas. Papel
que aos poucos é substituído pela cultura da visão, da imagem.
Os atores de “Deu pra ti, anos 70” são, em sua maioria, integrantes de grupos
de teatro, revelando que, além de estarem atuando no cinema Super-8, estavam
produzindo cultura nos teatros da cidade. As discussões sobre cinema eram
promovidas pelo grupo Humberto Mauro. E também os atores que, como Nei
Lisboa (fazendo seu próprio papel), Julio Reny e Wander Wildner, são músicos que,
quase ao mesmo tempo do surgimento da Factory Records, lançavam seus discos e
fitas de forma independente.
A improvisação é uma marca do período. Em “A festa nunca termina”, os
próprios artistas embalavam seus discos e de outros, pois a prensagem do vinil era
feita em Londres e as capas, confeccionadas na França.
Em “A festa nunca termina” os jovens também formam grupos de
identificação, como o de Tony Wilson, Alan Erasmus, Martin Hannett, Rob Gretton,
Lindsay, os integrantes do Joy Division, posteriormente do New Order, os
102
componentes do Happy Mondays. Juntos eles movimentaram o cenário musical e
artístico de Manchester. É também do final da década de 70 o documentário Factory
Flick feito em Super-8 pela adolescente Liz Naylor, e que apresenta um passeio pela
cidade de Manchester.
O mesmo ocorre em Porto Alegre com o grupo de realizadores de cinema
Super-8. Além de “Deu pra ti, anos 70” eles fizeram outras películas em co-autoria. E
as parcerias também são encontradas entre os realizadores de “A festa nunca
termina”, uma vez que Michael Winterbottom, Frank Cotrell Boyce e Andrew Eaton
estiveram juntos em outros trabalhos cinematográficos.
Os locais onde os filmes são produzidos e onde se passam as histórias
também apresentam aproximações. Tanto Manchester quanto Porto Alegre são
cidades fora dos principais centros de irradiação cultural. São periféricas. Mesmo
assim, apresentam inovações nas formas de expressões artísticas e culturais.
103
Algum tipo de posicionamento ideológico pode ser encontrado nestas
manifestações musicais. Com o nome Joy Division, o grupo inglês propunha uma
subversão ao uso original do termo vinculado ao nazismo, com uma releitura para
“divisão da alegria”. Percebemos uma reapropriação característica da s-
modernidade. Ao se tornar New Order, o grupo também sugere uma nova tendência,
uma “nova ordem”, a partir de 1980. É como um rompimento ao que vinha sendo
feito até então. A própria música é mais dançante, num abandono ao estilo imposto
pelo ex-lider Ian Curtis, que imprimia uma visão mais melancólica do momento.
Em Porto Alegre, o show “Deu p ti, anos 70”, da mesma forma, sinaliza
novos tempos. Um adeus à época de repressão, da ditadura militar. Nos dois casos,
as manifestações musicais buscam novos ares, pedem novos caminhos.
Em ambas realidades se percebe, ainda, a proximidade dos músicos com os
grupos que protagonizam os filmes. Em Manchester, os integrantes do Joy Division e
posteriormente do New Order, freqüentam os mesmos bares, os estúdios de
gravação e a casa de Tony Wilson e Lindsay. No filme de Porto Alegre, Nei Lisboa
está no mesmo acampamento de Marcelo, em Garopaba. Não existe um
distanciamento do ídolo do rock como um ser inatingível, inacessível. Não são
megastars. Ainda não foram absorvidos pelo sistema das grandes gravadoras e do
consumo massivo.
A sica, aliás, funciona como um fio condutor nos dois filmes. Ela também
conta e é a história. A primeira música de “Deu pra ti, anos 70” é de Nei Lisboa, e os
prédios da cidade anunciam, através de pichações, tanto o show quanto uma nova
vontade política. “A festa nunca termina” tem como proposta mostrar a efervescência
musical de Manchester no período.
Logo no início de “Deu pra ti, anos 70”, ocorre a reunião dançante na casa de
uma das meninas do bairro. É 1971 e a trilha sonora da festa é basicamente o rock
inglês de ex-integrantes do grupo Beatles. O personagem de Julio Reny, Fred,
demonstra sua adoração pelo som e também pelo objeto “disco de vinil”. Em vários
momentos o disco de vinil aparece no filme. Na festa, no quarto de Marcelo, no
quarto da protagonista Ceres. Pode-se dizer que a partir destes discos, como bens
104
de consumo cultural, ocorre a circulação da informação musical nas sociedades
ocidentais no período representado nos filmes.
O disco de George Harrison que o personagem Fred manuseia é um álbum.
Este, além das diversas faixas musicais traz também outras informações como fotos,
letras das músicas e pensamentos dos autores. Com o álbum a circulação da
informação não se restringe à música, vai além. Traz imagens, idéias, visões de
mundo. Dados que acabam por influenciar todo um modo comportamental da
juventude da década de 70. Como os modos de vestir, de dançar, de fumar.
O vinil também é objeto de desejo em “A festa nunca termina”. Tanto que
Tony Wilson acaba por produzi-los, através da Factory Records. na cada de
80, estes discos ganham novo fôlego através dos Djs que os manipulam em suas
pick-ups e passam a receber as glórias no lugar dos artistas propriamente ditos.
Nos dois filmes os cartazes encartados em álbuns decoram os quartos e
apartamentos dos personagens. Marcelo tem um pôster do guitarrista americano
Jimmi Hendrix. Alan Erasmus rasga o cartaz de David Bowie que ficava na sala de
seu apartamento.
A questão dos ídolos também está presente nos dois filmes e gira em torno
da figura de Che Guevara. Na casa da tia da protagonista Ceres de “Deu pra ti, anos
70”, o retrato, hoje mundialmente conhecido, tem o significado político de oposição
ao regime militar, de esquerda política, de contestação e desafio à ordem vigente.
Em “A festa nunca termina”, durante o enterro do vocalista Ian Curtis, que se
suicida em 1980, Tony Wilson invoca o nome do guerrilheiro para fazer uma
comparação entre Guevara e Curtis. De mártir político ele passa a ser comparado a
um possível mártir da tendência gótica do rock´n roll. Aqui, novamente a apropriação
característica da pós-modernidade que descontextualiza determinados símbolos
para reutilizá-los em diferentes contextos.
As viagens também possibilitam a circulação de influências culturais. Em “Deu
pra ti, anos 70”, a trilha sonora composta é de autoria de Nei Lisboa e Augusto Licks.
105
Lisboa, antes de compor a trilha, havia passado parte da adolescência nos Estados
Unidos, onde teve acesso a diferentes ritmos musicais. “A festa nunca termina”,
transcorre em Manchester, na Inglaterra, berço dos principais grupos de rock a partir
da segunda metade do século XX, principalmente da década de 60. Mas é Tony
Wilson, ex-estudante de Cambridge, que traz uma visão mais empresarial à cidade
pois, como o próprio personagem diz, Manchester estaria “meio atrasada”.
Os meios de comunicação cumprem um papel importante nesta circulação de
informação, apesar de contarem com espaços restritos. Como foi dito, em
Manchester, Tony Wilson apresentava o programa So it goes, que trazia as
novidades do universo do rock para a televisão local. Em Porto Alegre, a rádio
Continental transmitiu, em meados da década de 70, o programa Mister Lee, que
abria espaço para músicos locais e também trazia novidades musicais.
O rock, portanto, permeia as atitudes dos jovens representados nos filmes.
Mais do que um estilo musical, o rock - com suas inúmeras variações, é
determinante na composição de comportamentos juvenis.
O rock´n roll rompeu fronteiras. Chegou aos lares, aos bares e tomou as ruas
onde os jovens de diversas partes do mundo conviviam. Seu consumo se tornou
massivo e suas diversas variações permitiram a formação de grupos distintos que se
identificavam a partir dos gêneros musicais do rock que elegiam como preferência.
Na cena da reunião dançante de “Deu pra ti, anos 70”, em 1971, os então
adolescentes dançam ainda em pares, fumam escondidos dos pais, ouvem rock
inglês, e música alta. Esta é a “curtição”. É a manifestação da sua diferença.
Na cena do Rib´s, a trilha sonora é de Raul Seixas, os personagens comem
lanches americanizados e lotam um fusca para fumar maconha após terem assistido
a um filme de Frederico Fellini. Também falam de suas incertezas sobre os rumos
profissionais e criticam a exigência de definições sobre o futuro.
“A festa nunca termina” está repleto de situações onde o rock determina
comportamentos. Do punk rock dos Sex Pistols, onde a platéia pula
106
desordenadamente aos shows do Joy Division em bares lotados e enfumaçados,
onde a participação do público é intensa. Da mesma forma, posteriormente, com a
Dance Music, no Hacienda, em meados da década de 80, quando a dança não
ocorre em pares, mas inclusive individualmente e o som eletrônico é o preferido em
detrimento ao artista.
No filme, os personagens também lotam o Peugeot de Tony Wilson e
escutam a fita K-7 recém gravada com músicas inéditas do Joy Division. Estes
passeios em carros lotados mostram outra aproximação entre as realidades locais
das duas cidades na década de 1970. Os automóveis ainda eram bens de consumo
raros entre os jovens da época. Poucos os possuíam e se encarregavam de levar o
grupo para passear.
Os passeios de carro noturnos são uma característica do filme “A festa nunca
termina”. Através deles vê-se a cidade à noite, com sua umidade e suas luzes em
movimento. Também em “Deu pra ti, anos 70” o passeio de Ceres, de dentro de
ônibus, que mostra a Av. Osvaldo Aranha, em torno da qual grande parte da história
se desenrola.
Aqui, portanto, a questão da cidade. Tanto Manchester como Porto Alegre,
como pontos de partida e chegada das narrativas. A Manchester de Tony Wilson,
Alan Erasmus, Martin Hannett, Rob Gretton, Lindsay, dos integrantes do Joy
Division, posteriormente New Order, dos componentes do Happy Mondays. Do
Hacienda e da Factory Records.
A Manchester dos arcos ferroviários, dos canais, da chuva, dos prédios
abandonados. Dos bairros de subúrbio ao sul. Também a cidade próxima aos locais
onde nasceram e cresceram o diretor do filme Michael Winterbottom e o roteirista
Frank Cotrell Boyce. E que produziu locais que eles freqüentavam e músicas que
eles escutavam.
A Porto Alegre dos personagens Marcelo, Ceres, Fred e Margarete. De Nei
Lisboa, Julio Reny e Wander Wildner. Dos grupos “Vem de-sê sonhos”, “Faltou o
João” e “Humberto Mauro”. Cidade dos diretores Nélson Nadotti e Giba Assis Brasil.
107
Porto Alegre dos bairros Bom Fim, Menino Deus e Moinhos de Vento. Do
parque da Redenção, do bar Alaska, da Faculdade de Arquitetura da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
Dois centros urbanos onde estes grupos de jovens circulavam, faziam
amizades, ouviam e produziam música, experimentavam amores e drogas. Palcos
de manifestações juvenis, de busca de espaços. De circulação e troca de
informações. Locais de consumo e produção cultural.
A cidade e a arquitetura também são temas tratados em “Deu pra ti, anos 70”
e “A festa nunca termina”. Ceres quer seguir os passos da tia e acaba entrando para
a faculdade de arquitetura. Não sem antes questionar o papel da profissão ao
afirmar que não gostaria de planejar mansões e bancos, mas de fazer algo de cunho
mais social.
Tony Wilson investe na construção da casa noturna Hacienda. Ao fazê-lo,
ao lugar os ares de uma fábrica. Marca da cidade de Manchester. E diz que os
prédios “mudam o jeito das pessoas pensarem”. Os espaços urbanos determinam e
são determinados pelos seus habitantes.
Ao traçarmos paralelos entre os dois filmes percebemos sempre a relevância
do grupo. Os mesmos personagens amadurecem juntos. Trocam informações entre
si. Influenciam-se. Não é a família, nem a escola, nem outros meios tradicionais de
educação que recebem destaque na formação das personalidades. São os amigos,
namoradas/os, conhecidos eventuais.
Em “Deu pra ti, anos 70”, a questão paterna é mais presente. Ceres e Marcelo
têm, claramente, desavenças em suas casas, até porque ainda moram com os pais.
Mas a narrativa nos mostra que a situação deve mudar. Ceres procura um
apartamento para dividir com uma amiga. Marcelo visita locais onde ele e Ceres
possam viver juntos. Os maiores conflitos ocorrem quando eles ainda são mais
jovens. E as viagens, o sexo, o uso de drogas e a música são compartilhadas entre
eles. Fora de um controle externo.
108
“A festa nunca termina” começa com os personagens em uma faixa etária
mais avançada. Eles, portanto, em sua maioria, moram em suas próprias casas ou
apartamentos. Também é o grupo que compõe o ambiente de formação.
Nos relacionamentos, em ambos filmes há o desejo do casamento. Apesar da
turbulência dos períodos, Tony Wilson demonstra querer ter uma família mais
“convencional” com Lindsay, ao propor a ela que tenham um casal de filhos. Marcelo
quer morar com Ceres. Escolhe um apartamento onde eles passam a virada de ano
(e de década) juntos. O amor entre homens e mulheres, mesmo após as
modificações ocorridas em 1968.
Outro ponto de aproximação entre os dois filmes se encontra nas estéticas
apresentadas. Ao realizar o longa-metragem “Deu pra ti, anos 70” em Super-8, os
realizadores portoalegrenses estabelecem um novo momento na produção fílmica. A
opção por este meio demonstra que as dificuldades financeiras e a falta de
incentivos não foram empecilho para a realização.
Enquanto as produções do eixo Rio de Janeiro São Paulo começavam a
atender as demandas de um mercado e a uma política cultural incentivada pelo
Estado, Nadotti e Giba Assis Brasil encontraram no Super-8 a forma de contar a
história que queriam. Uma história que possui uma crítica ao momento político
brasileiro diluída em sua narrativa,
A própria narrativa, não linear, também quebra com os padrões clássicos de
produção. As idas e vindas do roteiro, que exige uma maior atenção do espectador,
traz, com sua fragmentação, elementos de um cinema pós-moderno. A mistura de
ficção com fatos reais – o show “Deu pra ti anos 70” também confirma esta
tendência.
A pouca experiência dos realizadores é outro fator que marca a estética do
filme. Os planos são mais longos e a edição em cortes secos é mais lenta. A
limitação financeira faz com que as opções recaiam à simplicidade. Eslonge de
ser uma super produção hollywoodiana.
109
Ao filmar “A festa nunca termina” em Vídeo Digital DV, Michael
Winterbottom e Robby Muller, de certa forma, apresentam outro rompimento com a
forma clássica de fazer cinema, em 35 milímetros. O vídeo digital surge como uma
nova alternativa de produção, que permite mais agilidade de filmagem além de custo
reduzido. Mas a discussão em torno de sua utilização ainda não encontrou uma
unanimidade, que alguns realizadores permanecem firmes na posição de que um
filme se caracteriza pelo uso de película.
A edição veloz que se torna ainda mais rápida quando a história chega aos
anos 80, segue pontos característicos da s-modernidade. A divisão da tela em
duas partes, onde diferentes imagens são apresentadas paralelamente, é uma
referência às novidades visuais que apareciam no período, quando surgem na
televisão canais como a MTV, basicamente de clipes musicais que misturam
músicas e fragmentos soltos de imagens.
Outra opção do diretor e do diretor de fotografia foi aproveitar e permitir ao
máximo as improvisações, para aproximar o filme da realidade, uma vez que, como
foi dito, “A festa nunca termina” é uma ficção com base em fatos reais. A busca
por uma simplicidade estilística, em alguns momentos novamente aproxima os
filmes.
O que temos então são duas películas que em suas narrativas representam o
que faziam e pensavam jovens ocidentais de centros urbanos distantes
geograficamente. Mas que por diversas atitudes apresentam semelhanças. Por outro
lado, embora distantes geograficamente, os realizadores dos filmes apreenderam o
“espírito do tempo” que já despontava no ar e anteciparam muitas tendências que se
confirmariam no futuro.
110
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao nos propormos realizar análises de filmes, e, a partir destas análises, um
estudo comparativo entre distintas películas, nos deparamos com alguns desafios. A
análise, como já foi dito, não apresenta um método fechado, pronto a ser aplicado. É
preciso, a partir de algumas prerrogativas, achar um caminho próprio para responder
às perguntas que nos fazemos.
Um estudo comparativo, a partir de análises de filmes, exige que as mesmas
apresentem um equilíbrio de abordagens, para que possam ser estabelecidas as
comparações. Ainda neste tipo de trabalho, encontramos comparações a partir de
semelhanças e também de diferenças. Algumas vezes, a proximidade dos
conteúdos e das formas nos aponta as semelhanças. E o objetivo passa a ser
encontrar as diferenças. Em outras, a distância dos temas nos mostra as diferenças,
e o esforço é em encontrar as possíveis aproximações.
Este é o caso deste trabalho. Partimos de filmes que, em uma primeira vista,
nada têm em comum. Um é feito em 2001, conta uma história que se passa em
Manchester, na Inglaterra, durante um período de 16 anos, de 1976 a 1992. O outro
é feito em 1980, narra uma história que se passa em Porto Alegre, no Brasil, durante
um período de nove anos, de 1971 a 1980.
No Brasil, vivia-se o período de repressão militar, onde o Milagre Econômico
escondia a crise mundial e as manifestações de oposição estavam sem voz ativa.
Realidade que começa a mudar a partir de 1976. Onde o medo e a censura eram
aliados.
É neste contexto que os personagens de “Deu pra ti, anos 70”, se
desenvolvem. E também os autores do filme. Percebe-se, assim, que mesmo
durante um período de silenciamento, os jovens estavam insatisfeitos e se reuniam
para encontrar saídas. Onde a arte mostra ser um caminho de resistência a uma
realidade sufocante. Uma arte cotidiana presente nas pichações dos prédios, na
música, no teatro, no cinema Super-8.
111
Em Manchester, a crise econômica mundial. O declínio e decadência de uma
das mais importantes cidades industriais do mundo. Ruínas, desemprego, bairros
abandonados. Desesperança. Local onde também, a arte, através da música faz os
olhos do mundo reencontrarem a cidade. Onde os jovens se reúnem e utilizam seu
tempo vago para criar tendências que vão influenciar comportamentos nas décadas
seguintes. Em ambos centros urbanos, as discussões ocorrem nos bares, nas ruas,
nos parques. Locais de difícil controle. No cotidiano mais comum.
O que pode haver de semelhante nestes dois filmes? Neste ponto, se fez
necessária uma análise que nos permitisse identificar a plausibilidade de tal
hipótese. Ao se optar pelo caminho dos Estudos Culturais, onde o contexto em que
o filme é realizado e o papel dos realizadores tem grande importância no resultado
final, abrimos caminhos para um estudo que não se encerra no conteúdo dos filmes.
Vai além.
Assim, podemos dizer que as análises realizadas de “Deu pra ti, anos 70” e “A
festa nunca termina” (24 hour party people) ocorreram em quatro vias distintas. Nos
dois casos, portanto, a partir da história representada, da história real de realização,
do período fora do filme (em que o filme se desenrola) e da história dos seus
produtores.
Por ser um trabalho que se inscreve na tradição dos Estudos Culturais,
portanto, destacamos nas análises aspectos fílmicos e não-fílmicos. Esta “saída” do
filme nos traz perspectivas enriquecedoras para a compreensão do produto cultural
à qual o estudo se propõe.
Nos diversos cruzamentos estabelecidos constatamos muitas semelhanças
importantes e ligadas ao imaginário da juventude ocidental nas décadas de 70 e 80,
enquanto as diferenças parecem estar relacionadas com detalhes específicos das
narrativas e de seus contextos geográficos.
Percebe-se, por exemplo, que o resultado de um filme pronto contém mais
informações que apenas a história nele narrada. Que os elementos exteriores ao
resultado final são relevantes e muitas vezes determinantes na película. As
112
condições de produção, a bagagem cultural dos realizadores, os países de onde os
filmes são originários, os contextos políticos e econômicos do período da sua
produção influenciam os resultados.
A realização de um filme, desta forma, se caracteriza também por ser uma
prática social. Como um meio de comunicação já consagrado é uma forma de
produção e circulação cultural. Suas mensagens são constituídas por uma
conjunção de fatores que envolvem um grande número de pessoas.
E o resultado também funciona como uma representação do social. A partir
das análises feitas dentro da proposta dos Estudos Culturais, estas representações
passam a ter um entendimento mais completo.
No caso dos dois filmes estudados, percebemos que existe uma
representação do social. Mais especificamente das juventudes urbanas ocidentais
das décadas de 70 e 80 em diferentes localidades. O que está impresso nas telas,
no entanto, é também o resultado das experiências de quem as fez. As escolhas dos
realizadores são influenciadas pelos contextos de onde eles vêm.
“Deu pra ti, anos 70”, nos mostra como jovens portoalegrenses pensavam,
agiam, consumiam, se divertiam. O mesmo ocorre com “A festa nunca termina”, que
é um filme que fala de um período de Manchester que realmente existiu. Os dois
filmes, a partir de uma abordagem dos Estudos Culturais, nos mostram que os
próprios diretores tinham relações com as cidades e com os momentos ali
apresentados.
A questão política e econômica das épocas representadas também
determinam as histórias. A repressão no Brasil faz com que os jovens tenham que
buscar alternativas de expressão. A crise mundial e o declínio de Manchester
conduz sua juventude à uma reação, a manifestações grupais que mostrem seu
descontentamento.
A representação de realidades juvenis encontra algumas respostas ainda no
aporte teórico da sociologia compreensiva de Michel Maffesoli, para quem, algumas
113
relações se estabelecem de formas mais fluídas. Percebemos isto nos shows de
rock, na participação pouco engajada politicamente de Marcelo na passeata, atitude
criticada por Ceres, que apresenta uma postura mais politizada, mais preocupada
com o futuro, tanto próprio como de todo o movimento estudantil de sua cidade.
A personagem Margarete também é um vetor de uma tendência de
identificações mais voláteis em contraposição a identidades mais fixas. Ela vai
acampar, volta para o show, experimenta a sexualidade.
O consumo de drogas não está distante desta questão da experimentação. A
maconha e o haxixe são consumidos em grupos que se identificam com seu efeito,
passam de mão em mão alterando os sentidos e permitindo novas percepções.
Modernidade e pós-modernidade travam disputas nos filmes. As narrativas
fragmentadas têm características s-modernas. Tony Wilson, ao comparar o bairro
de Hulme a Andy Warol, e ver o subúrbio como um local que inspira arte, se
aproxima do pós-moderno. Ceres, na faculdade ao folhear um livro de Le Corbusier,
manuseia informações de um dos ícones da arquitetura moderna.
Assim, em resposta às hipóteses lançadas pelo presente trabalho, podemos
dizer que existem simultaneidades de acontecimentos entre os jovens representados
nos dois filmes. Nos dois casos os grupos de amigos têm um papel central.
O rock é consumido por estes jovens e está presente em vários momentos
das narrativas. A experiência com drogas é uma realidade em ambos. Os
realizadores têm uma proximidade com as cidades e com as épocas representadas.
Os jovens de Manchester e Porto Alegre da forma como representados em
“Deu pra ti, anos 70” e “A festa nunca termina” apresentam manifestações de um
imaginário coletivo juvenil ocidental em muitos aspectos semelhantes. Freqüentam
bares, têm na música e na poesia formas importantes de manifestação. Buscam nas
drogas formas de libertação de uma realidade muitas vezes monótona e sem
perspectivas. Experimentam o amor, tentam relacionamentos. Contestam estilos de
vida tidos como mais “convencionais”.
114
Esta simultaneidade de acontecimentos é favorecida pela troca de
informações que ocorrem a partir da circulação cada vez maior e mais rápida de
bens culturais, como os discos de vinil e das viagens. Mas também a partir da
televisão, do rádio, do cinema.
O cinema produzido na década de 80 em Porto Alegre, a partir de “Deu pra ti,
anos 70”, possui uma estética particular, fruto da imagem do filme Super-8, de uma
narrativa não linear, de algum tipo de improvisação para ultrapassar limitações
técnicas e financeiras. A co-autoria continua a ocorrer na década de 80 em diversas
outras produções.
“A festa nunca termina” é feito com câmera digital, que permite uma maior
mobilidade e um ar de improviso que lembra os filmes mais despretensiosos feitos
de forma independente na década de 80, principalmente na primeira metade da
narrativa.
As representações dos cotidianos alternativos de Porto Alegre e Manchester
mostram como juventude, música, bares e grupos são importantes formadores de
elos sociais. Nestes ambientes e contextos são produzidas diferentes manifestações
culturais, tanto dentro como fora dos filmes.
Grande parte de “A festa nunca termina” transcorre em bares e casas
noturnas. Muitos dos personagens são músicos. É em torno do grupo que gira a
história. Todos são jovens à época.
O mesmo ocorre em “Deu pra ti, anos 70”. São jovens que ouvem música,
freqüentam bares, viajam juntos, vão a shows. Há os músicos, sendo que Nei Lisboa
faz seu próprio papel. Nadotti e Assis Brasil também são jovens que fazem cinema e
são jornalistas. Há elos sociais que se formam nestas situações.
As hipóteses apresentadas, portanto, se confirmam. E esta constatação
demonstra a importância do cinema como representação do social. Representação
de uma época definidora de muitos comportamentos posteriores, porque quem
passou a adolescência e juventude em Porto Alegre em muitas situações freqüentou
115
o Bom Fim, ouve Nei Lisboa, Wander Wildner e Julio Reni. Assistiu a filmes
produzidos na cidade. Bem como dançou ao som do New Order, teve discos de vinil
do Joy Division e recebeu influências de culturas européias e norte-americanas.
No caso particular da autora, ainda a proximidade com a formação em
jornalismo, o estudo dos meios de comunicação social e sua importância nas
sociedades contemporâneas, cada vez mais dependentes das novas tecnologias e
das trocas de informações. A opção pela análise a partir dos Estudos Culturais
contribuiu para a percepção de que os estudos dos bens culturais não têm um fim
em si mesmo. Inúmeros fatores concorrem para que os produtos sejam como são.
As obras estão abertas a várias abordagens.
A partir daí, pode-se dizer que o presente estudo apresenta possibilidades de
continuidade, como por exemplo, através de uma análise econômica das produções
e das realidades das indústrias cinematográfica brasileira e inglesa no circuito
externo ao de Hollywood. A questão das co-produções entre países também pode
ser um caminho a ser trilhado, numa tendência cada vez mais presente no universo
da produção de filmes. Um maior aprofundamento da geografia e das histórias de
cada uma das duas cidades também é plausível. Enfim, os caminhos se abrem.
116
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