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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
CIDADES RIBEIRINHAS DO RIO TOCANTINS:
IDENTIDADES E FRONTEIRAS
MARIA DE FÁTIMA OLIVEIRA
GOIÂNIA – 2007
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MARIA DE FÁTIMA OLIVEIRA
CIDADES RIBEIRINHAS DO RIO TOCANTINS:
IDENTIDADES E FRONTEIRAS
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História da Faculdade de
Ciências Humanas e Filosofia da
Universidade Federal de Goiás, para a
obtenção do título de Doutor em História.
Área de concentração: Culturas, Fronteiras e
Identidades.
Linha de Pesquisa: Identidades, Fronteiras e
Culturas de Migração.
Orientador: Prof. Dr. Leandro Mendes Rocha
GOIÂNIA 2007
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MARIA DE FÁTIMA OLIVEIRA
CIDADES RIBEIRINHAS DO RIO TOCANTINS:
IDENTIDADES E FRONTEIRAS
Tese defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de
Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal de Goiás, aprovada em
_________de ________________ de _________, pela Banca Examinadora
constituída pelos seguintes professores:
___________________________________________
Prof. Dr. Leandro Mendes Rocha UFG
Presidente da Banca
________________________________________________
Profa. Dra. Lena Castello Branco Ferreira Freitas UFG
_____________________________________________________
Profa. Dra. Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante UCG
____________________________________________________
Profa. Dra. Tania Regina de Luca UNESP
____________________________________________________
Profa. Dra. Vanessa Maria Brasil UNB
____________________________________________________
Profa. Dra. Cristina de Cássia Pereira Moraes UFG
Suplente
Ao piloto Casemiro, “o mais afamado dos timoneiros”
tragado pelas águas do Tocantins
símbolo de todos os
ribeirinhos tocantinenses.
Ao mestre Palacin: você tem razão, “[...] nossas vidas
deviam ser vibrantes, [mas] não somos tão fortes, tão
perfeitos, nem tão puros, [mesmo assim] não cesso de
buscar minha verdade, sempre mais perto e sempre mais
distante.”
In memoriam
A G R A D E C I M E N T O S
Ao professor orientador desta tese, Dr. Leandro Mendes Rocha, pela
confiança e dedicação.
À UEG, pela licença concedida, e à UFG, pela oportunidade oferecida.
Às professoras que participaram da Banca do Exame de Qualificação (Dras.
Cristina de Cássia Moraes, Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante e Vanessa
Maria Brasil), pelas críticas e sugestões, muito úteis no aperfeiçoamento da tese. E à
Profa. Dra. Tania de Luca, por aceitar o convite para participar da Banca
Examinadora.
À Profa. Dra. Lena Castello Branco F. Freitas e Prof. Dr. Holien Gonçalves
Bezerra, que se dispuseram a ler o texto preliminar e ofereceram sugestões para
enriquecê-lo.
À Célia d’Arc, pelo trabalho de revisão do texto e às secretárias da Pós-
Graduação, Neuza e Elaine pelo apoio e bom atendimento.
Às amigas: Ledonias, que desde o mestrado tem me auxiliado e incentivado a
acreditar mais em mim; Anete, pelos poucos, mas bons momentos ao som de seu
violão; Noeci e Edma, pelo companheirismo e exemplo de mulheres lutadoras.
Ao AL, amigo e intelectual incomum, pelas boas conversas no Areião.
Aos novos amigos que conquistei nas cidades ribeirinhas (difícil citar todos),
principalmente àqueles que se dispuseram a responder às minhas intermináveis
perguntas. Érica, elo importante nos primeiros contatos com os pedro-afonsinos;
Odina e família, pelo total apoio nas cidades de Pedro Afonso e Palmas; Aos
médicos Eduardo e Eloísa Manzano; Ao professor Donald Sawyer da UNB e ISPN.
Aos meus pais, pelo exemplo de dedicação, perseverança e amor.
João Dirk (autor dos mapas) e Maria Carolina: suportaram minhas crises e
deram-me conselhos de gente sábia. É um privilégio conviver com vocês!
Ao Frank, que tão bem conheceu essa região (de um tempo em que se
desmontavam automóveis para atravessar os rios) e me levou até ela. Com
simplicidade e sabedoria, “empurrou-me” para a graduação, mestrado e doutorado.
Obrigada pelas leituras da tese em construção, você tornou-se parte dela.
Trovão (†), Black (†), Foucault (†), Babu e Kito, amigos incondicionais.
E a todos aqueles que de alguma forma participaram da minha caminhada.
S U M Á R I O
LISTA DE MAPAS.................................................................................... 6
LISTA DE QUADROS............................................................................... 7
LISTA DE FOTOGRAFIAS....................................................................... 8
LISTA DE ANEXOS.................................................................................. 9
RESUMO................................................................................................... 10
ABSTRACT............................................................................................... 11
INTRODUÇÃO.......................................................................................... 12
P R I M E I R A P A R T E
1 RIO TOCANTINS: ECOS DE DIFERENTES VOZES............................... 30
1.1 Uma fronteira sertão adentro: o rio, a natureza, o gentio, a região....
39
1.2 Uma fronteira sertão afora: navegando o Tocantins........................... 59
1.3
A Terceira Margem: vivendo o Tocantins, construindo identidades..
77
S E G U N D A P A R T E
2 PORTOS DO SERTÃO: IDENTIDADES E DIFERENÇAS.......................
103
2.1 Diversos portos em um: Real, Imperial e Nacional.............................. 110
2.1.1
A cidade e o rio..........................................................................................
112
2.1.2
O imaginário de capital cultural................................................................. 136
2.1.3
Identidades em processo de fragmentação/reconstrução.........................
145
2.2 Encontro de rios e povos: Pedro Afonso, a Travessa dos Gentios... 160
2.2.1
A cidade fora do lugar: da aldeia de frei Rafael às ruínas de Cipriano..... 163
2.2.2
A Belém-Brasília silencia os motores........................................................ 174
2.2.3
A convivência com os rios: da libertação dos jegues aos dias atuais....... 181
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................... 193
REFERÊNCIAS......................................................................................... 198
ANEXOS....................................................................................................
216
L I S T A D E M A P A S
Mapa 1 Rio Tocantins............................................................................... 36
Mapa 2 Região de abrangência do estudo..............................................
38
Mapa 3
Etnias
Século XVIII (norte de Goiás).......................................
46
Mapa 4 Cidades nascidas do cristal (primeira metade do Século XX) 76
Mapa 5 Origem de Porto Nacional........................................................... 108
Mapa 6
Província de Goiás (municípios
1872)....................................
119
L I S T A D E Q U A D R O S
Quadro 1 Povos indígenas do Norte de Goiás no século XVIII...............
44
Quadro 2
Movimento de barcos no rio Tocantins
1857 (P. Imperial)...
63
Quadro 3
Movimento de barcos no rio Tocantins
1857 (Palma)..........
64
Quadro 4 Botes de Porto Nacional e seus proprietários (1891-1907).....
67
Quadro 5 Origem dos imigrantes de Porto Imperial (1872).....................
117
Quadro 6
Distrib. da população por profissões
P. Imperial (1872)......
120
Quadro 7
Pagamento do imposto urbano
Porto Nacional em 1910.....
122
Quadro 8 Dieta alimentar na zona urbana de Porto Nacional (1976)......
129
Quadro 9
Distrib. das informações no jornal O Incentivo (1901-1902)...
142
Quadro 10 Reflexos da Belém-Brasília sobre a demografia ribeirinha.... 149
Quadro 11
Contingente de índios Crahô
Pedro Afonso (1856)..............
165
L I S T A D E F O T O G R A F I A S
Fotografia 1 Desenho de um bote em construção (Burchell -1829).......... 70
Fotografia 2 Barco a motor (década de 1950)..............................................
70
Fotografia 3 Chegada dos botes em Porto Nacional (1912).......................
91
Fotografia 4 Ribeirinhos no porto à espera do retorno dos botes............ 91
Fotografia 5 Barqueiros enfrentando corredeiras (1911-1912).................. 102
Fotografia 6
Rio “afogado”: Tocantins após construção de barragem....
102
Fotografia 7
Desenho de Porto Real
Burchell (1829)...............................
109
Fotografia 8 Rua de Porto Nacional (1911)...................................................
109
Fotografia 9
Porto Nacional
vista aérea....................................................
123
Fotografia 10
Catedral N. S. das Mercês (Porto Nacional)............................
123
Fotografia 11
Pedro Afonso
vista aérea......................................................
162
Fotografia 12
Igreja de São Pedro
Pedro Afonso.......................................
162
Fotografia 13
Festa da libertação dos jegues (1968).....................................
183
Fotografia 14
Panfleto do evento abastecimento de água (1968)............. 183
Fotografia 15
Casa em ruína
Pedro Afonso................................................
192
Fotografia 16
Balsa e turistas no porto do Rio Tocantins
Pedro Afonso
192
L I S T A D E A N E X O S
Anexo A Descrição de um bote.................................................................. 216
Anexo B Descrição de um batelão e de uma balsa.................................. 218
Anexo C
Abertura de uma estrada no norte de GO (início do séc. XX).
220
Anexo D Lenda do Rio Sono.......................................................................
221
Anexo E Os velhos casarões de Pedro Afonso....................................... 222
Anexo F
Lenda da Lagoa da Cruz..............................................................
223
R E S U M O
Trata-se de um estudo sobre identidades e fronteiras em duas cidades das margens
do rio Tocantins: Porto Nacional e Pedro Afonso. O objetivo principal é mostrar
como, em um determinado espaço e tempo, uma identidade foi se construindo, se
fragmentando e se reconstruindo ante as transformações ocorridas na região. Ou, de
outra forma, como valores sedimentados e partilhados por ribeirinhos ao longo dos
séculos, foram se transformando em resposta às rupturas. A pesquisa tem como
suporte uma multiplicidade de fontes documentais cuja finalidade é perceber tanto a
visão de fora (como os ribeirinhos eram vistos), quanto a visão que eles tinham de si
mesmos. A tese está dividida em duas partes: na primeira, intitulada Rio Tocantins:
ecos de diferentes vozes, subdividida em três capítulos, analiso, primeiro, o que
denominei de Uma fronteira sertão adentro os aspectos geofísicos do rio, a
natureza, o processo de penetração e ocupação da região e as relações interétnicas
resultantes do contato entre os diferentes; no segundo capítulo, Uma fronteira sertão
afora, considero os projetos, discursos e debates em torno da questão da busca de
uma saída via rio Tocantins, para a Província; e no terceiro capítulo, A terceira
margem: vivendo o Tocantins, construindo identidades, a intenção foi mergulhar no
cotidiano do ribeirinho e mostrar como ele reinventou um modo de vida pautado em
suas experiências, na convivência dentro do grupo, e com os outros, no constante
movimento em viagens rio adentro, rio afora. A segunda parte da tese, Portos do
Sertão: identidades e diferenças, é dedicada ao estudo das cidades de Porto
Nacional e Pedro Afonso, utilizando seu exemplo para entender a condição de ser
ribeirinha, analisando suas similitudes e diferenças, para mostrar como responderam
ao impacto das mudanças ocorridas na região. Finalmente, o estudo permitiu
compreender o processo de construção e reconstrução de identidades em uma
região de fronteiras.
Palavras-chave: Identidades. Fronteiras. Sertão. Região. Cidades.
A B S T R A C T
This is a study about identities and frontiers in two cities set on the riverbanks of the
Tocantins: Porto Nacional and Pedro Afonso. The main objective is to show how, in a
determined place and time, an identity has been built, fragmented and rebuilt in face
of the changes happened in the region. Or, in another way, how consolidated values
shared by the riverside community along the centuries became answers to the
ruptures. The research is supported by a range of documentary sources which aim is
to perceive both the outer view (how the riverside people were seen) and the insider
view they had about themselves. The study is divided into two parts: the first one,
named River Tocantins: echoes of different voices, is subdivided into three chapters.
I analyze first what I called A frontier to the sertão the geophysical aspects of the
river, the nature, the process of penetration and occupation of the region and the
interethnic relations resultant of the contact with the other’. In the second chapter, A
frontier out the sertão, I consider the projects, discourses and debates about the
search of a way out for the Province via River Tocantins; and in the third chapter The
third bank: living Tocantins, building identities, the intention was to penetrate the
riverside people daily life and show how they reinvented a new way of living based
on their own experience, on living together in their group and with other groups,
during the constant trips up and down the river. The second part of the study, The
sertão’s harbors: identities and differences, is dedicated to the cities Porto Nacional
and Pedro Afonso, using their examples to understand the condition of being
riverside cities, analyzing their similarities and differences, to show how they
answered to the impact of the changes happened in the region. Finally, the study
made possible the understanding of the process of construction and reconstruction of
identities in a frontier region.
Key-words: Identities. Frontiers. Sertão. Region. Cities.
12
I N T R O D U Ç Ã O
O homem da margem do Tocantins havia de ser
de aço [...]. Era preciso desafiar o rio, montar-lhe
no lombo e amansá-lo, como se domava um potro
chucro. Do contrário seria desmoralizado e jogado
para os gerais, onde permaneceria sempre como
um extraviado, um cisco atirado pelas enchentes.
Eli Brasiliense
É o momento da partida. O bote
1
está entulhado de couro de boi, carne
seca, peles de animais silvestres, fumo e outras quinquilharias. Inicia-se no porto o
ritual de embarque e saída dos botes da cidade ribeirinha com destino a Belém.
Emoção e tristeza dominam as barrancas do Tocantins, pois, além de demorada, a
viagem é muito perigosa. Os barqueiros bebem muito para vencer o primeiro
obstáculo, que é a despedida dos parentes e amigos. Apenas uma pequena parte
dos tripulantes se encontra no porto, os outros estão espalhados pelas ruas e
bodegas da cidade. Para reuni-los um método capaz de funcionar, é o uso da
bandeira vermelha do Divino Espírito Santo, que ao som dos tambores vai à busca
dos navegantes por todos os lugares. Devido à grande devoção dos barqueiros, e
para não perder a proteção divina em viagem tão arriscada, todos acompanham a
imagem sagrada até o porto. Ao chegar à beira-rio, a bandeira é colocada dentro do
bote e todos entram para beijá-la. Enquanto a reverenciam, a embarcação é solta e
começa a longa, demorada e arriscada viagem.
Essa é uma das muitas cenas que faziam parte da vida e dos hábitos dos
ribeirinhos do rio Tocantins. Os vestígios dessa memória encontram-se dispersos em
vários lugares
2
(arquivos, jornais, revistas, livros, fotografias, mapas, monumentos,
relatos dos ribeirinhos de ontem e de hoje, etc.) e foram contados de diferentes
maneiras por viajantes, administradores, memorialistas e recontados por moradores
da região. Com base nesses fragmentos de memória entremeados com a realidade
1
Botes: barcos de pequeno calado, com capacidade que variava entre 15 a 20 mil quilos, acionados a braços
humanos. Fonte: Ortêncio (1983). Entretanto outros autores que afirmam que esses botes transportavam até
40 toneladas de carga, como Silva (1972). Ver no Anexo A descrição minuciosa de um bote.
2
Os lugares de memória, segundo Pierre Nora (1981), pertencem a dois domínios (simples e ambíguos, naturais
e artificiais) e possuem três sentidos: material, simbólico e funcional. Le Goff (2003) completa seu
pensamento quando afirma que a história se fermenta a partir do estudo desses lugares da memória coletiva.
Lugares topográficos, como os arquivos, as bibliotecas e os museus; lugares monumentais, como os cemitérios
ou as arquiteturas; lugares simbólicos, como as comemorações, as peregrinações, os aniversários ou os
emblemas; lugares funcionais como os manuais, as autobiografias ou as associações: esses memoriais têm sua
história. Essa discussão será mais aprofundada ao longo da pesquisa.
13
atual, procuro entender o processo histórico da construção de identidades; e nas
características de duas cidades Porto Nacional e Pedro Afonso às margens do
rio Tocantins, busco elementos comuns às cidades ribeirinhas. A cada viagem ou
visita feita a essas cidades, descubro algo que apenas pela leitura bibliográfica e
documental não havia percebido. Esse outro tipo de revelação leva-me a partilhar da
experiência vivenciada por Georges Duby em seu itinerário por uma das mais
antigas abadias francesas:
Pode acontecer que o historiador descubra inadvertidamente muito do que
procura quando sai de seu quarto e olha ao redor [...]. O que buscava em
minhas viagens através dos campos e bosques era um contato concreto
com o real, para me sentir seguro. Aquele tecido esgarçado, cheio de
buracos, que eu remendava fio a fio na leitura dos textos em latim, era-me
indispensável depositá-lo num suporte firme, neste outro documento,
igualmente rico, de uma riqueza diferente é bem verdade, mas por sua vez
sem lacuna de espécie alguma, exposto à luz do dia, vivaz a paisagem:
mais ou menos como se restaura numa tela os fragmentos de um afresco
danificado, antes que virem poeira (DUBY, 1993, p. 39-40).
A viagem que ora empreendo no tempo/espaço tem como principal objetivo
compreender os valores partilhados pelos ribeirinhos, principalmente com relação
aos fenômenos culturais e identitários resultantes de transformações que
influenciaram seu modo de viver e de representar seus sentimentos. Escolhi Porto
Nacional e Pedro Afonso para estudos de caso, porque, além de representarem de
forma significativa as cidades ribeirinhas
3
do rio Tocantins, elas foram importantes
centros dinamizadores na região por longa data. Localizadas na margem direita do
Tocantins, funcionaram como pontos estratégicos para o comércio com o norte do
país, mais precisamente com Belém (PA), como mostram Borges e Palacin (s.d.,
s.p.): “[...] na segunda metade do século XIX, se estabelece uma linha contínua de
vilas, que marcam o pulsar do trânsito comercial pelo grande rio: Peixe, Porto
Imperial, Piabanha (Tocantínia), Pedro Afonso, Carolina, Boa Vista (Tocantinópolis).”
Essas cidades tanto podem ser vistas como propulsoras de integração e
fixação, como também de divisão e criação de limites, portanto, exemplos de
3
A partir do momento que recebe o nome de Tocantins no encontro dos rios Paranã e Maranhão, até sua
confluência com o Araguaia existem hoje em torno de trinta cidades ao longo de suas margens, mas se
considerarmos toda a extensão aa foz, são cerca de 50 cidades (ver mapa de n
0
. 1). Segundo Gomes e
Teixeira Neto (1993), o nascimento de alguns desses núcleos urbanos está ligado principalmente aos seguintes
fatores: aldeamentos e missões religiosas (Pedro Afonso e Tocantínia); presídios e registros (Peixe e Porto
Nacional); extrativismo vegetal (Babaçulândia, Itaguatins e São Sebastião do Tocantins); agropecuária
(Tocantinópolis).
14
cidades-fronteiras
4
. São elementos que estão diretamente relacionados com a
questão das identidades e fronteiras. Um rio sempre se constitui em elemento
importante de fixação da população em suas margens, ao longo da história. Sendo
ele caminho que anda
5
, a integração acontece por seu uso como meio de
comunicação, ou seja, pela navegação. Mas o rio também pode ser percebido como
um tipo de fronteira, e na relação com as cidades escolhidas para análise tal
fronteira tornou-se mais nítida após a abertura da rodovia Belém-Brasília, pois as
deixou do outro lado do rio, que passou a ser visto como obstáculo. Para o país, a
abertura dessa rodovia foi um dos grandes acontecimentos do século XX, de fato um
marco na história do Brasil. Mas os brasileiros que estavam tão próximos a ela - os
ribeirinhos das cidades que ficaram fora de seu traçado ao mesmo tempo em que
faziam parte dessa história, foram excluídos dela.
O recorte temporal
6
do trabalho, que vai do século XIX ao final do XX, é uma
delimitação que marca o nascimento das cidades focalizadas e vai até o impacto
causado por mudanças substanciais que afetaram a identidade dessas
comunidades. Valorizo os momentos de rupturas mais marcantes que influenciaram
de algum modo na construção/transformação da identidade local. O limite final para
a temporalidade proposta se justifica pelo fato de as transformações ocorridas no
referido período terem sido marcantes para as cidades ribeirinhas. São
transformações que vão desde a perda de poder econômico dessas antigas cidades,
devido ao nascimento de novos núcleos urbanos beira-rodovia, ao impacto causado
pela construção da nova capital, Palmas (1990), e da hidrelétrica do Lajeado,
concluída em 2001. No decorrer do trabalho discuto de que forma tais mudanças
trouxeram conseqüências para a identidade do ribeirinho, alterando sua relação com
o rio.
4
Porto Nacional e Pedro Afonso pertenciam à antiga região norte de Goiás. Após sua separação do sul,
passaram a fazer parte do Estado do Tocantins (1988). Do século XIX a meados do XX, funcionaram como
propulsoras de integração e fixação, devido à sua localização privilegiada beira-rio Tocantins. Tornaram-se
centros comerciais importantes de ligação do sertão com o litoral, atraindo migrantes de outras regiões,
podendo ser caracterizadas como cidades-fronteiras lugar de encontro/desencontro entre diferentes culturas.
Entre outros autores, o conceito de Cidades-fronteiras foi utilizado por Gandara (2004) em seu trabalho sobre
a cidade de Uruaçu: “[...] a cidade aparece como um lugar-fronteira, um lugar de afluência, de encontro, de
diferenças, de ‘modernidade’ e modernização, de busca do novo, mas também das permanências do ‘velho’”.
5
Expressão comum entre os ribeirinhos. Destaco aqui dois autores que a utilizam: Audrin (1963, p. 98): E
como os rios são ‘caminhos que andam’, é natural que a nossa gente aproveite dessa vantagem geográfica”;
Leandro Tocantins (1973, p. 279): “Os caminhos que andam trazem a fortuna ou a desgraça”.
6
Embora o recorte possa parecer muito ambicioso para uma pesquisa dessa natureza, não significa que farei
uma história linear dando conta dos acontecimentos de todo o vasto período. Mesmo sabendo das dificuldades
em trabalhar um período relativamente longo, sinto que esse é o melhor caminho - por se tratar de um tema
complexo e pelos objetivos propostos - pois a construção de identidades pode ser mais bem compreendida em
um contexto temporal que permita perceber a sua formação, sedimentação e modificação.
15
Além da investigação de temas recorrentes na historiografia - fronteiras,
identidades e migrações - o estudo faz uma reflexão também sobre questões atuais
da História do Brasil, questões que estiveram presentes no século XVIII (a
navegação fluvial) e nos séculos XIX e XX (navegação fluvial, ferrovias e rodovias).
Com a construção de 5 barragens no rio Tocantins (três em pleno funcionamento)
será viabilizado o sistema de hidrovias desse rio. Os debates sobre tais temas são
constantes nos meios de comunicação, principalmente entre parlamentares e
ambientalistas. Se nos séculos passados o problema da navegação fluvial era muito
mais de ordem financeira ou mesmo de descaso para com uma região periférica,
hoje existem também outros problemas, inclusive os de natureza ambiental. Como
afirma Fernand Braudel,
A história nada mais é do que uma constante indagação dos tempos
passados em nome dos problemas e curiosidades ou mesmo das
inquietações e das angústias do tempo presente que nos cerca e assedia.
[...] e que é a partir do que vemos hoje que julgamos e compreendemos o
passado – e reciprocamente (BRAUDEL, 1988, p. 1-4).
As inúmeras transformações que estão ocorrendo no rio Tocantins e,
conseqüentemente, nas cidades ribeirinhas com certeza inquietam não
historiadores, mas também antropólogos, geógrafos, ambientalistas e entidades
preocupadas com seus impactos no meio ambiente nas populações ribeirinhas.
Reconstituir a sua história a partir dos fragmentos dos diversos lugares da memória,
portanto, ajuda a compreender a natureza das mudanças e perceber quais foram as
respostas dadas pelos ribeirinhos e seus desdobramentos nos diferentes períodos e
contextos históricos.
Os acontecimentos nessa parte do país por mais de três séculos (XVIII ao
XX)
16
Como mencionado anteriormente, priorizei trabalhar uma região pouco
privilegiada e que não conta com bibliografia tão extensa
7
. A produção acadêmica
ainda é acanhada se comparada com a de outras regiões, mas é possível
visualizar algumas ações no sentido de produzir e divulgar a história do Tocantins. A
criação de cursos superiores na região vem contribuindo para mudar essa realidade.
Vale ressaltar que nos últimos anos o número de pesquisas acadêmicas em nível de
mestrado e doutorado, principalmente de docentes da Universidade Federal do
Tocantins, tem aumentado. Por outro lado, algumas fontes existentes se acham em
precária situação de manuseio, tendo sido pouco exploradas quanto a esse período
histórico.
A partir da análise das descrições sobre a região, o rio e a gente ribeirinha, o
intuito é cruzar discursos de escritores locais, regionais e de fora. Embora as obras
comentadas a seguir não sejam especificamente sobre as temáticas identidade,
fronteira e memória, são esses os elementos que busco ao analisá-las. Inicio a
análise com dois livros
8
de memórias sobre as duas cidades, que são reminiscências
de antigos moradores locais: Ana Britto Miranda (1973) escreveu História de Pedro
Afonso, no qual relata os principais acontecimentos da cidade e seu cotidiano, e
Durval Godinho (1988), a História de Porto Nacional, que apresenta características
semelhantes ao anterior. Ambos estão preocupados em escrever para preservar
suas lembranças (memórias individual e coletiva), para que não caiam no
esquecimento, pois, sendo moradores que nasceram e viveram nessas cidades,
sentem como sua a missão de garantir para a posteridade essa memória. Registram
de forma simples as suas lembranças, entrelaçadas com as de outros habitantes,
selecionando dados, acontecimentos, curiosidades e personalidades que
participaram da história. Não há rigor teórico-metodológico nem era a intenção dos
autores mas são escritos que fornecem dados riquíssimos sobre o cotidiano nas
duas cidades.
9
7
O levantamento bibliográfico nunca é totalmente completo, pois a produção encontra-se dispersa, podendo
ocorrer a omissão de alguma obra nessa discussão. Comento a seguir os trabalhos que considero mais
relevantes para o estudo.
8
O livro de Godinho (1988), História de Porto Nacional, foi escrito com o objetivo de atender a um pedido da
Câmara Municipal pelo centenário da elevação da povoação a cidade. O autor descreve, dentre vários
assuntos, as origens da cidade, sua evolução histórica, os acontecimentos mais significativos, dando destaque
aos homens ilustres de Porto Nacional. De modo semelhante procede a autora da História de Pedro Afonso.
Antiga moradora do lugar, Ana Brito Miranda exerceu a função de professora e foi participante ativa nos
eventos socioculturais da cidade.
9
Um diálogo mais direto e profundo com essas obras é feito na segunda parte da tese, nos estudos de caso.
17
O livro de Dalísia E. M. Doles, As Comunicações fluviais pelo Tocantins e
Araguaia no século XIX, é um trabalho científico que oferece uma visão geral da
utilização tanto do Tocantins como do Araguaia como meio de comunicação, desde
o século XVIII, mostrando suas poucas conquistas, as inúmeras dificuldades e as
tentativas de integração inter-regional e nacional no século XIX. Doles (1973, p. 145)
conclui que, “Apesar dos planos grandiosos, não concretizados, o sonho de Couto
de Magalhães e outros, orientado para a integração do sul da província ao comércio
litorâneo através do Araguaia e Tocantins, não se realizou”.
O tema central do livro é a política de navegação dos rios, não tratando
especificamente da história das cidades que estão às suas margens nem do
cotidiano do ribeirinho, pois essa não era a finalidade do trabalho. Mesmo assim,
propicia riqueza de informações e documentos que fornecem preciosas
contribuições para este estudo.
Recente publicação sobre o Estado do Tocantins é a coletânea organizada
por Odair Giraldin (2002), A (Trans)Formação Histórica do Tocantins
10
. Dentre os
temas nela abordados, estão as tradições regionais, os discursos autonomista do
Estado, os processos migratórios e as questões indígena, de nero e de
escravidão negra. São trabalhos resultantes de pesquisas sobre aspectos históricos,
sociológicos, antropológicos e políticos do atual Estado do Tocantins.
Em duas obras, a historiadora e estudiosa do Estado do Tocantins
11
, Maria do
Espírito S. R. Cavalcante (1999; 2003), discute, dentre outros temas, a formação de
uma identidade tocantinense. Segundo a autora, houve várias manifestações de
oposição entre o norte e o sul do Estado, desde o período mineratório e no século
XIX, na tentativa de separação da Comarca do Norte, visando tornar-se
independente do sul da Província. A análise das divergências e lutas pela separação
desde a mais antiga reivindicação, no século XVIII, até seu desfecho com a
criação do Estado do Tocantins (1988) fornece elementos importantes para
compreender como foi se construindo uma identidade tocantinense com base na
experiência vivida no dia-a-dia e no imaginário da população local. Sua análise
10
Nessa obra, encontram-se resultados de pesquisas especificamente voltadas para a região, inclusive resumo de
minha dissertação de mestrado intitulada Um Porto no Sertão: cultura e cotidiano em Porto Nacional
1880/1910, defendida em 1997 no Programa de Pós-graduação em História da UFG.
11
A autora dedicou-se ao estudo do Estado do Tocantins tanto em suas pesquisas de mestrado como no
doutorado, sendo a dissertação intitulada O Movimento Separatista do Norte de Goiás 1821-1988, e a tese, O
Discurso Autonomista do Tocantins, trabalho publicado em 2003.
18
contribui para conhecer o contexto regional, do qual as cidades das margens do rio
Tocantins são partes integrantes.
Dentre os diversos assuntos discutidos na produção bibliográfica regional,
destaco o tema do impacto causado pela abertura da rodovia Belém-Brasília para as
cidades que ficaram excluídas de seu eixo. Para tanto, apóio-me em autores que
são unânimes em afirmar que a chegada dessa rodovia na região trouxe a perda de
importância das cidades ribeirinhas e a conseqüente desestabilização da navegação
fluvial pelo rio Tocantins
12
.
A abordagem central da tese refere-se ao diálogo entre identidade
13
e
fronteira e, para melhor compreendê-las, é necessária a análise de categorias, como
memória, região, sertão e outras. Ao atentar para essa estreita relação, considero os
fatores históricos da ocupação e transformação das margens do Tocantins, a
utilização do rio como meio de transporte, o cotidiano marcado pelo ir-e-vir dos
botes, definindo um ritmo próprio de tempo , o imaginário e as representações, bem
como as teias das relações dos ribeirinhos com o restante da população. Priorizo,
para tanto, uma visão não essencialista de identidade, isto é, identidade como
construção histórica
14
.
Ao analisar os diferentes discursos sobre o Tocantins e os ribeirinhos,
percebo que, ao longo dos séculos, uma imagem
15
sobre eles foi se construindo e
sendo representada. Essa imagem adquiriu múltiplos significados, oferecidos ora por
viajantes, ora por presidentes da Província ou mesmo pelos próprios ribeirinhos, pois
a identidade é dependente de sistemas de significados e representações. Parto,
12
Em vários momentos da tese retomarei ao assunto referente à Belém-Brasília. Essa rodovia, segundo Gomes
(2000), foi planejada ainda no governo de Getúlio Vargas em 1934 e construída por Juscelino Kubitschek. Ela
“abriria a possibilidade de inserção no mercado brasileiro da chamada Amazônia Legal”. Sua construção
passou por várias etapas, sendo que em 1948 a estrada alcançou o município de Uruaçu e em 1957, a cidade de
Gurupi, e foi inaugurada em 1960. Com 2.123 km de extensão cruzou o país de norte a sul. Para mais detalhes
sobre a rodovia ver: Valverde e Dias (1967); Sawyer (1969); Bertran (1978); Nunes (1984); Gomes (2000);
Aquino, (2002).
13
Nos últimos anos o conceito identidade(s) tem recebido atenção especial. Publicações em diferentes áreas do
conhecimento, congressos voltados para essa temática e também nos cursos de pós-graduação, o estudo da(s)
identidade(s) é uma constante. Qual a razão de tanto destaque? Num primeiro momento poderia dizer que o
atual contexto é propício a tal discussão, pois um longo processo de mudanças vem ocorrendo, principalmente
ligadas à globalização. Esse processo não é recente e tem acarretado transformação cada vez mais brusca e
alterado os relacionamentos entre pessoas, etnias, regiões e países. Portanto esse é um conceito fundamental
para compreender o meu objeto de estudo.
14
Para este estudo, a orientação de autores que têm se dedicado à temática das identidades foi valiosa. Dentre
eles, destaco a contribuição de Stuart Hall (1997), Tomaz T. da Silva (2000), Boaventura de S. Santos (2000) e
Michel Agier (2001).
15
Na maioria das fontes consultadas, os ribeirinhos aparecem como homens fortes, valentes e corajosos,
contrastando com o abandono por parte dos poderes públicos. Na visão do médico Ayres da Silva, embora eles
se apresentem como fortes, aparece também um lado frágil e doentio, devido às más condições alimentares, de
trabalho e de falta de assistência sanitária.
19
então, do pressuposto de que uma identidade ribeirinha tocantinense foi se
construindo na vivência diária dos ribeirinhos entre si, com o rio e com o não-
ribeirinho, identidade essa o estática ou acabada, pois ao mesmo tempo em que
se construía também se modificava, devido a influências tanto internas quanto
externas. Apesar da ausência de rigidez, alguns elementos foram se solidificando
numa vivência continuada, em um espaço singular, com especificidades que vão
diferenciar essa identidade de outras, em alguns aspectos. Identificar é, na verdade,
um ato de exclusão, e ao falar em identidade se pressupõe algum tipo de
fronteira, pois, para identificar qualquer coisa, é preciso delimitar o que é diferente,
aquilo que não pertence, e é na fronteira que a exclusão fica mais nítida. É possível
afirmar que a vida a beira-rio e as longas jornadas em viagens influenciaram na
mentalidade e nos hábitos dos ribeirinhos tocantinenses. Como afirma Holanda,
É inevitável pensar que o rio, que as longas jornadas fluviais tiveram uma
ação disciplinadora e de algum modo amortecedora sobre o ânimo
tradicionalmente aventuroso daqueles homens. A própria exigüidade das
canoas das monções é um modo de organizar o tumulto, de estimular,
senão a harmonia, ao menos a momentânea conformidade das aspirações
em contraste. A ausência dos espaços ilimitados, que convidam ao
movimento, o espetáculo incessante das densas florestas ciliares, que
interceptam à vista o horizonte, a abdicação necessária das vontades
particulares, onde a vida de todos está nas mãos de poucos ou de um só,
tudo isso terá de influir poderosamente na mentalidade dos aventureiros,
que demandam o sertão remoto (HOLANDA, 1990, p. 72).
Identidade e fronteira estão intimamente ligadas, uma ajuda na delimitação da
outra. O conceito de fronteira tem sido objeto de preocupação de estudiosos de
diferentes áreas do conhecimento, principalmente de geógrafos, historiadores,
sociólogos, antropólogos e etnólogos. O termo tem sua origem na língua inglesa
frontier
e foi popularizado por Frederick J. Turner no século XIX, em seus estudos
sobre a expansão norte-americana, e estendido para a América Latina
16
. O autor
promoveu uma verdadeira revolução na historiografia norte-americana, defendendo
que as relações entre Leste e Oeste eram fundamentais para a compreensão dos
Estados Unidos (TURNER, 1921).
Do mesmo modo que as identidades fornecem segurança e referência,
também estabelecem limites e determinam fronteiras, pois, no processo de
construção de uma identidade, determina-se, consciente ou inconscientemente, o
16
Seu trabalho inspirou gerações, inclusive a obra de Sérgio Buarque de Holanda (1994), mas nesta pesquisa o
pensamento de autores, como Souza Martins (1997) e Robert Wegner (2000), se aproxima mais da realidade
estudada.
20
que fica de dentro e o que fica de fora, demarcando, assim, as fronteiras. Visto
dessa forma, diria que as fronteiras entre o ribeirinho e o não-ribeirinho o
dependem de influências políticas, mas das estruturas sociais, que podem ser
percebidas pelas diferenças no cotidiano, nas representações, no imaginário, nos
sentimentos, nas teias de relações entre os ribeirinhos e o rio. A fronteira oferece
múltiplas possibilidades de investigação. Percebo, nesse espaço, um locus
privilegiado para a discussão e enriquecimento da análise em diversos sentidos. As
fronteiras podem ser percebidas nas relações entre: porto/sertão ribeirinhos versus
interioranos; civilizados/índios “nós” versus os outros; atraso/desenvolvimento o
regional versus o nacional ou o norte versus o sul de Goiás.
De acordo com Lucien Febvre (2000), a fronteira é mais facilmente percebida
diante de situações que nos surpreendem e desconcertam, enquanto que a
identidade pode ser visível quando se estreitam as relações emocionais entre os
habitantes por meio de digos e teias de relações, em suas práticas na vivência
diária entre si. O ribeirinho tocantinense, embora sendo brasileiro, antigo nortense de
Goiás, hoje tocantinense, possui algumas características que o observador
apressado pode não reparar, pois elas são mais bem percebidas nos pequenos
detalhes. Mesmo que a noção de fronteira, em Febvre, tenha sido pensada para
uma outra realidade espacial e temporal (a primeira versão é da década de 1930),
quando discute os limites do Reno
17
, sua visão de fronteira é exemplar:
Não influenciar-se por limitações políticas, mas considerar, no interior dos
espaços entre fronteiras, as estruturas sociais que se desenvolvem ou
desaparecem, assim como as relações emocionais entre os habitantes.
fronteira quando, [...] encontramo-nos diante de um mundo diferente, de um
complexo de idéias, sentimentos, entusiasmos que surpreendem e
desconcertam o estrangeiro [...] não são as forças policiais, nem as
alfândegas, nem os canhões por trás das muralhas. Sentimentos, isto sim;
paixões exaltadas e ódios (FEBVRE, 2000, p. 44).
A fronteira da qual estou falando não se reduz à fronteira geográfica, mas são
construções humanas produzidas culturalmente, elementos que identificam os
ribeirinhos como tais, demarcando sua identidade, como bem explica José de Sousa
Martins:
17
Em um primeiro momento pode parecer inadequado o uso desse exemplo, pois Reno e Tocantins são
21
Ela é fronteira de muitas e diferentes coisas: fronteira da civilização
(demarcada pela barbárie que nela se oculta), fronteira espacial, fronteira
de culturas e visões de mundo, fronteira de etnias, fronteira da História e da
historicidade do homem. E sobretudo, fronteira do humano (MARTINS,
1997, p. 13).
O processo de modernização da região
18
– desencadeado, primeiro, pela
chegada dos barcos a motor e pelos aviões (década de 1930); em seguida pela
abertura da rodovia Belém-Brasília (1960); e mais recentemente, pela construção da
barragem/hidrelétrica do Lajeado - representou um momento marcante de mudança
ou de crise para a identidade dos ribeirinhos das cidades que ficaram fora do
traçado da estrada e do outro lado do rio, pois eles perderam o norte e não tiveram
acesso direto ao oeste. Essa nova realidade refletiu de forma direta na sua
identidade, pois as referidas cidades, situadas à margem direita do rio, não foram
beneficiadas diretamente e de imediato pela abertura da rodovia, ao contrário,
perderam para os novos núcleos urbanos nascidos na beira-estrada o privilégio de
continuarem como importantes centros comerciais. Após a mudança, a interação do
ribeirinho com o rio tornou-se mais fluida e frágil. Se antes da construção da estrada
a navegação via Tocantins era a atividade mais importante para essas populações,
com o seu advento o rio passa a ser visto, nesse sentido, como um empecilho. “O
caminho que anda”, em vez de ser considerado elemento de ligação, passa a ser
visto como um obstáculo a ser vencido, o que gerou mudanças na vida cotidiana do
ribeirinho e na sua mentalidade, provocando certo derrotismo.
Do mesmo modo, os efeitos advindos da construção da barragem (concluída
em 2001) foram sentidos de forma violenta, principalmente pela população da cidade
de Porto Nacional, pois refletiram de forma direta nos hábitos e na economia dos
moradores. A análise do historiador Luis Palacin sobre a psicologia dos goianos
quando houve a queda da produção de ouro no final do século XVIII e início do XIX
ajuda-nos a compreender melhor a questão. Palacin utilizou o termo derrotismo
moral para explicar o sentimento do goiano com relação ao fato. Para o autor, esse
18
Segundo o Dicionário do Pensamento Social (1996), modernização é um “processo de mudança econômica,
política, social e cultural que ocorre em países subdesenvolvidos, na medida em que se direcionam para
padrões mais avançados e complexos de organização social e política. [...] referência implícita ou explícita a
uma dicotomia entre dois tipos ideais: a sociedade tradicional (em que algumas versões também pode ser
chamada de ‘rural’, atrasadaou ‘subdesenvolvida’) e a sociedade moderna (ou ‘urbana’, ‘desenvolvida’,
‘industrial’)”. Para Goiás e, conseqüentemente, para essa região, Machado (1990, p. 39) explica bem essa
situação. Segundo a autora, “A modernização pode ser entendida então como um ajustamento social e cultural
a uma nova estrutura da economia em decorrência de fatores externos. Assim, modernizar-se o significa
transformar-se, mas ajustar-se”.
22
seria “um sentimento de fracasso e de derrota, de inevitabilidade dos males e da
incongruência de qualquer esforço para superá-los” (PALACIN, 1994, p. 139).
Poderia ter acontecido algo semelhante aos moradores dessas cidades com relação
aos projetos que visavam à melhoria da navegação e que nunca foram
concretizados, enquanto que, ao contrário, ocorreu a abertura de uma estrada
inatingível para eles? Após mais de dois séculos de esperanças e tentativas de
desenvolvimento, além de não terem conseguido solucionar os problemas, com o
advento da rodovia tais cidades perderam status e os ribeirinhos foram excluídos da
onda de desenvolvimento que ocorria na região. A estrada, com seu traçado, deixou
as cidades beira-rio à margem, isto é, fora de seu trajeto, fato que teria gerado um
sentimento de derrotismo e impotência diante da situação de abandono em que se
encontravam.
Segundo Hall (1997), a identidade muda de acordo com a forma como o
sujeito é interpelado ou representado, ela não é dada. O sujeito não é autônomo e
auto-suficiente, mas dependente da cultura na qual está inserido e das relações com
outros sujeitos que criam valores e símbolos com significados próprios. Essa
identidade enquanto construída não é unificada nem estável, do mesmo modo que
ela se forma, ela também se modifica, pois é construída historicamente.
Esta chamada “crise de identidade” é vista como parte de um processo
mais amplo que desloca as estruturas e processos centrais das sociedades
modernas e enfraquece os modelos que até hoje deram aos indivíduos um
lugar estável no mundo social (HALL, 1997, p. 3).
O conceito de crise de identidade proposto por Stuart Hall merece refleo diante
desse quadro, pois, a partir das transformações ocorridas na região, o ribeirinho perdeu
um lugar mais ou menos estável, sentindo-se desestabilizado, deslocado e
fragmentado. Com o advento da rodovia, algumas mudanças se processaram em seu
mundo; o outro, o diferente tornou-se uma amea. Esse outro pode ser representado
pelo beira-estrada, que foi conquistando o espaço e o poder que antes pertenciam ao
ribeirinho; os novos povoados nascidos à beira da rodovia logo tiraram a proeminência
das cidades ribeirinhas que ficaram fora de seu traçado.
Outro pressuposto da tese é o de que as duas cidades estudadas apresentam
tanto aspectos semelhantes, por estarem localizadas à margem do rio Tocantins,
quanto diferentes, principalmente pelo seu desenvolvimento diferenciado. Portanto,
em um mesmo contexto regional, numa aparente homogeneidade, as duas cidades
23
se diferenciam em alguns aspectos, mas os elementos identitários do “ser ribeirinho”
estão presentes tanto nelas como em muitas outras ribeirinhas em todo o curso do
rio Tocantins. Nem sempre os elementos formadores de identidades são claramente
perceptíveis. Eles precisam ser procurados no cotidiano, nos gestos, nas práticas,
nas representações, no inconsciente e na linguagem. A sua “leitura” e interpretação
permitem desvendar as teias de relações, apreender o seu sentido e mostrar a
cidade como espaço privilegiado da formação de novas identidades sociais.
Para caracterizar as cidades ribeirinhas e tentar mostrar que possuem uma
identidade própria, é necessário, em primeiro lugar, questionar o adjetivo ribeirinho.
Que imagens e representações ele sugere? A localização das cidades à beira do rio
é, sem dúvida, condição sine qua non para tal denominação, mas não contém em si
todas as peculiaridades do conceito, que é muito mais complexo. São necessários
mais elementos constitutivos que identifiquem a interação do ribeirinho com o rio,
num espaço socialmente produzido, nessa estreita relação tanto de forma material e
funcional meio de subsistência, via de comunicação e transporte quanto como
referencial simbólico, o rio como extensão da cidade e da vida do ribeirinho. E as
cidades ribeirinhas tocantinenses? Como defini-las, mostrar suas peculiaridades e a
forma como foram historicamente produzidas e representadas? A população
ribeirinha possui certos hábitos e costumes que lhe são bastante peculiares
19
. É
nessa perspectiva que abordo as cidades, analisando continuidades e rupturas,
semelhanças e diferenças, pois são em pequenos, mas significativos detalhes que
as identidades e as fronteiras podem ser identificadas.
A dinâmica dos processos migratórios e étnicos merece atenção, pois eles
marcam as diferentes fronteiras (culturais, sociais, políticas e econômicas) e,
conseqüentemente, está ligada à questão das identidades. O tema das migrações
tem sido bastante enfatizado nas últimas décadas. Otávio Guilherme Velho (1972)
afirma ter ocorrido uma mudança na forma de surgimento das cidades. Em geral
elas acompanhavam as margens dos rios, mas com a abertura de novos espaços,
19
O ritmo das cheias e secas do rio, o modo de vida, pautado pelo ir-e-vir de Belém (porto fluvial e marítimo
dinâmico que atendia às necessidades do comércio local e internacional), fazia com que a população tivesse os
olhos sempre voltados para o rio. Audrin (1963) afirma que as pessoas envolvidas diretamente com a
navegação passavam em torno de 6 a 8 meses em viagem de ida e volta. As que ficavam, embora mantendo
suas atividades diárias em terra, estavam de alguma forma ligadas ao rio: parentes esperando seus familiares,
comerciantes aguardando as mercadorias, a alta sociedade à espera das últimas novidades da moda. Hoje
não se fazem mais tais viagens, mas o rio continua presente e onipotente, seja para lembrar os moradores de
sua existência quando das cheias que inundam cidades e fazendas, seja por demandar construções de balsas e
pontes para ligá-los à rodovia os modernos caminhos que andam e de barragens para atender necessidades
energéticas.
24
em decorrência da construção de estradas, esse perfil foi modificado. Ainda sobre a
influência dos contatos migratórios na formação e transformação de identidades, na
recombinação de novos elementos com os antigos, Olga Cabrera esclarece que:
A identidade da região constitui-se não a partir de um território geográfico
subordinado à divisão política administrativa e sim pelas culturas criadas e
recriadas pelos que trabalham, sofrem e vivem relacionando-se no espaço
[...] (CABRERA, 2001, p. 54).
Nessa íntima relação identidade/fronteira, nesse espaço específico, a
formação histórica da identidade do ribeirinho foi se construindo e reconstruindo.
Hoje o ribeirinho das margens do Tocantins não é o mesmo que se estabeleceu na
região nos primeiros tempos da ocupação. Apesar da obviedade da afirmação, ela
reforça a perspectiva ou visão de identidade que privilegio neste trabalho, uma
identidade que não é fixa nem pronta, mas que se constrói na convivência diária
com o outro e com as mudanças ocorridas na região.
A memória é outra categoria importante para compreender a questão
identitária. Para Le Goff (2003, p. 469), “A memória é um elemento essencial do que
se costumam chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das
atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje [...]”. Arruda
(2000), em Cidades e Sertão, afirma que o que nos permite utilizar a memória como
fonte é a possibilidade de podermos articulá-la, e que devemos tomá-la não só como
fonte de informação, mas também como conhecimento, aproximando-a dos outros
documentos, não à procura de uma verdade realista e objetiva, mas estabelecendo
nexos e pontos de contato. Interessa-me aqui tratar a memória como um fenômeno
construído, seletivo e constituinte de sentimento de identidade, tanto individual como
coletiva; memória como suporte de identidades, na construção e reconstrução da
experiência humana no tempo.
Ao proceder ao estudo regional, parto do pressuposto de que a história
regional não consiste somente na análise da dinâmica dos processos internos da
região delimitada, mas é necessário considerar a interação dessa região com um
espaço mais amplo. Ela é uma dentre muitas perspectivas possíveis de análise de
uma sociedade, pois oferece elementos insubstituíveis para estudos comparativos, o
que já a justifica e a torna necessária, podendo trazer contribuições para a
compreensão de processos históricos invisíveis na história nacional. Enfim, estudar
essa região periférica aparentemente sem importância é uma forma de contribuir
25
para o conhecimento histórico e oferecer elementos importantes para enriquecer as
análises gerais. Ademais, vale lembrar que as pesquisas e debates de cunho
regional têm aumentado, e a sua validade, ou não, vai depender da forma como a
história regional for trabalhada
20
.
Algumas palavras sobre as fontes e a metodologia adotadas: há certo abuso
consciente do uso das mais diversas fontes em sua concepção mais ampla, como
documentos arquivísticos, relatos de viajantes, jornais, revistas, fotografias, mapas,
literatura, etc., que fazem parte do acervo aqui utilizado
21
. As principais fontes são
os periódicos das cidades ribeirinhas, destacando-se principalmente os de Porto
Nacional. Eles fornecem uma visão do funcionamento da vida pública e do cotidiano
desses lugares, no período. Utilizo, ainda, anotações manuscritas e entrevistas feitas
com antigos moradores das referidas cidades
22
.
Os relatos de viajantes nacionais e estrangeiros, dos séculos XIX e XX,
também são ricos em descrições sobre a região, e mostram que as mudanças
ocorriam de forma muito lenta e quase imperceptível durante séculos. É preciso
lembrar que são discursos, ou seja, como o de fora via a região e as pessoas que ali
viviam. Mas o ribeirinho, como ele se sentia de fato e como foi afetado pelas
mudanças que chegaram com os aviões, rodovias, abastecimento de água,
barragens, etc.?
É necessário lembrar que o progresso
23
, já sentido no Brasil há algum tempo,
chegou bem mais tarde ao planalto central. Quanto ao norte de Goiás, as
comunicações continuaram, por toda a primeira metade do século XX, como no
início da colonização: com simples caminhos para tropas e a rústica e perigosa
navegação com equipamentos elementares.
20
No primeiro capítulo discuto mais demoradamente o uso da categoria região e sobre as peculiaridades da
região delimitada para o estudo.
21
Utilizar um conjunto tão amplo de fontes pode trazer dificuldades para o procedimento metodológico a ser
adotado em sua análise, mas a justificativa para esse “abuso” é a de que limitá-lo seria perder possibilidades de
enriquecer a discussão com elementos que são importantes para a compreensão da identidade ribeirinha.
Entretanto, devido à sua diversidade, não será possível, no âmbito desta pesquisa, um maior aprofundamento
sobre questões teóricas referentes a cada tipo de fonte.
22
Dentre as leituras para um referencial teórico sobre o uso da metodologia da história oral, utilizo: História
Oral: a experiência do CPDOC de Verena Alberti (1989), Memória e Sociedade: lembrança de velhos de
Eclea Bosi (1994), Memórias da História de Marieta de Moraes Ferreira (2004), História Oral e Memória: a
cultura popular revisitada de Antonio Torres Montenegro (1994).
23
Progresso é um termo carregado de valores equivocados e muito difícil de ser definido satisfatoriamente.
Etimologicamente, do latim progressus, significa um avanço, e quando se trata de um fenômeno qualitativo, uma
melhoria. Alain Biron (1966) assim o define: “Desenvolvimento dos conhecimentos científicos, descobertas
técnicas, melhoras industriais, das instituições sociais, e da vida moral”. Pode-se dizer que a onda de
industrialização, projetos de modernização urbana, rodovias e ferrovias que ocorria no mundo e em algumas
regiões do Brasil não alcançou o norte de Goiás na primeira metade do século XX.
26
A obra de frei José M. Audrin (1946; 1963) é de fundamental importância
para a compreensão da vida ribeirinha. Audrin, dominicano francês, viveu na região
por quase meio século e descreveu com detalhes as condições de vida, a
mentalidade e os costumes de seus moradores.
Dedico atenção especial às obras do Brigadeiro Lysias A. Rodrigues
24
,
Roteiro do Tocantins (1978) e O Rio dos Tocantins
25
(2001), que resultaram de sua
viagem pela região por ocasião do levantamento feito por ele e sua equipe, para
instalação de campos de aviação no norte de Goiás, na década de 1930. É dessa
mesma década Reminiscências de um Juiz, de Souza Filho (1980), que, como o
próprio título sugere, são lembranças da época em que esteve como funcionário na
região, e sobre ela descreve suas impressões. As reminiscências, segundo o autor,
“não têm nenhum valor histórico, literário ou cultural”. Excesso de modéstia, pois
tanto a obra de Souza Filho quanto as de Lysias Rodrigues fornecem dados
interessantes e riqueza de informações sobre o rio, as cidades e as pessoas. Há que
se destacar, ainda, Diário de viagem de Francisco Ayres da Silva, médico portuense
que deixou significativa obra resultante de suas viagens em bote pelo rio Tocantins,
com rica descrição do cotidiano dos ribeirinhos.
Valorizo também as obras de ficção, principalmente os romances regionais,
pois, apesar de não terem compromisso com uma verdade histórica, contêm níveis
de aproximação com o real. Nesse caso estão quatro romances do escritor goiano
Eli Brasiliense - que nasceu na região e é seu profundo conhecedor que tratam
especificamente do espaço e assunto aqui abordados. São eles: Bom Jesus do
Pontal (1954), Rio Turuna (1964), Pium (1967) e Uma Sombra no Fundo do Rio
(1977). O autor entremeia na ficção fatos reais ocorridos do século XVIII ao XX,
respectivamente nos garimpos do extinto arraial de Bom Jesus do Pontal, em Pium,
em Pedro Afonso e nas margens do rio Tocantins próximo a Porto Nacional. São
24
De acordo com Cambeses Jr. (2007), o Major-Brigadeiro-do-Ar Lysias Augusto Rodrigues (1896-1957) teve a
incumbência de estudar as possibilidades de ampliar os vôos do Correio Aéreo Militar (CAM) pelo interior, a
fim de estender a rota Rio-São Paulo ao Estado de Goiás. Em 19 de agosto de 1931, é dada partida na
expedição composta por Lysias Rodrigues, Felix Blotner, inteligente e destacado funcionário da Panair do
Brasil, a serviço da congênere americana, e seu prestimoso auxiliar, um jovem chamado Arnold Lorenz, que
percorreram os estados de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Maranhão, até chegar a Belém. O objetivo era
reconhecer o território e implantar campos de pouso, de modo a viabilizar a navegação aérea e criar as
condições imprescindíveis que facultassem a execução de vôos dos grandes centros do Brasil para a Amazônia
e que permitissem também uma nova e econômica rota para os vôos realizados entre os Estados Unidos e o
Cone Sul do Continente.
25
As duas obras deixadas pelo Brigadeiro Lysias Rodrigues foram reeditadas recentemente em Palmas, por
Alexandre Acampora. Para não haver confusão nas citações, utilizo a edição de 1978 para Roteiro do
Tocantins e a de 2001 para O Rio dos Tocantins.
27
livros que tratam do cotidiano, superstições, amores e violência, e fornecem
elementos que mostram aspectos da identidade do povo da região.
Ao optar pelo estudo de duas comunidades contemporâneas e vizinhas, tanto
o pensamento de Marc Bloch (1963), um dos defensores da história comparativa,
como o de Cardoso e Brignoli (1979), que também discutem a utilização do método
comparativo na história, podem contribuir para essa análise. Esses autores
consideram que, a despeito de armadilhas e perigos, o método pode oferecer
vantagens e bons resultados.
Outros dois trabalhos são considerados nesta análise: Estudos de
Comunidades, realizados por antropólogos na década de 1950, de autoria de
Charles Wagley Uma comunidade amazônica; e de Marvin Harris Town and
Country in Brazil. Mais recentemente, no Brasil, outros historiadores
26
vêm utilizando
a história comparada de forma declarada em seus trabalhos.
A metodologia da história oral entremeada com informações fornecidas por
outras fontes permite compreender o dia-a-dia dos moradores em sua relação com o
rio e analisar os elementos simbólicos construídos por eles, seus sentimentos e suas
representações, e assim perceber o que lhes é atribuído ou imposto pela visão de
fora. O seu uso junto aos segmentos populares resgata um nível de historicidade
que comumente só era conhecida por ps
28
29
especificidades da região e os discursos sobre sua natureza exuberante e riquezas
extraordinárias. É abordada ainda a história da lenta ocupação das margens do rio,
os constantes conflitos interétnicos decorrentes do contato de imigrantes não-
indígenas com o gentio que, segundo os discursos oficiais da época, infestavam a
região.
O segundo capítulo, Uma fronteira sertão afora: navegando o Tocantins, é um
outro olhar sobre o rio e a população de suas margens, no qual analiso os relatórios
de presidentes da Província e obras de viajantes nacionais e estrangeiros. É a visão
de fora, na maior parte das vezes carregada de preconceito, sobre a região e seus
moradores. O tema central dos discursos é o aproveitamento do rio, na busca de
uma saída econômica para a província, para o sertão afora.
O terceiro capítulo, A terceira margem: vivendo o Tocantins, construindo
identidades, é uma viagem pelas águas do Tocantins em diferentes temporalidades,
privilegiando a visão dos ribeirinhos, valorizando as fontes deixadas por eles
livros, diários, artigos em periódicos locais além de entrevistas com antigos
moradores das cidades de Porto Nacional e Pedro Afonso. A intenção é
compreender o cotidiano dos moradores na convivência diária com o rio. Utilizo
também algumas fontes de não-ribeirinhos, para reforçar ou contrapor a visão de
fora com a local.
Na segunda parte da tese, dividida em dois capítulos, Diversos portos em um:
Real, Imperial e Nacional e Encontro de rios e povos: Pedro Afonso, a travessa dos
gentios, muda-se um pouco o foco do trabalho. O estudo sobre as duas cidades
ribeirinhas, Porto Nacional e Pedro Afonso, no Estado do Tocantins, valoriza mais as
particularidades locais e os momentos de rupturas voltados para a questão das
identidades, pois tem como questão central entender os elementos identitários
peculiares a elas e perceber a influência das fronteiras na construção/reconstrução,
perda ou fortalecimento dessa identidade. A posição estratégica às margens do Rio
Tocantins via de comunicação com outros centros comerciais, principalmente
Belém foi fator preponderante para o seu desenvolvimento.
30
P R I M E I R A P A R T E
1 RIO TOCANTINS: ECOS DE DIFERENTES VOZES
Veias de sangue da planície, caminho natural dos
descobrimentos, farnel do pobre e do rico [...]
amados, odiados, louvados, amaldiçoados, os rios
são a fonte perene do progresso, pois sem eles o
vale se estiolaria no vazio inexpressivo dos
desertos.
Leandro Tocantins
Na investigação sobre a existência de uma identidade ribeirinha, primeiro
procedo a uma leitura do espaço, para responder à questão: o que é o rio
Tocantins? As palavras de Braudel sobre o Mar Mediterrâneo, apesar de pertencer a
um contexto bem diferente, podem ser úteis para explicar a diversidade que é o rio
Tocantins, que se apresenta como:
Mil coisas ao mesmo tempo. Não uma paisagem, mas inúmeras paisagens.
[...]. A explicação não é somente a natureza, que, a esse respeito, terá
colaborado bastante. Nem apenas o homem, que reuniu tudo com
obstinação. São ao mesmo tempo as graças da natureza, ou suas
maldições – umas e outras numerosas , e os múltiplos esforços dos
homens, ontem como hoje. Ou seja, uma soma interminável de acasos,
acidentes e repetidos êxitos (BRAUDEL, 1988, p. 2-3).
O Tocantins
28
é um rio que possui uma pluralidade de sentidos: ele une e fixa,
mas também separa e divide. É uma fronteira geográfica por natureza, mas é
também fronteira econômica, cultural e simbólica. É visto como barreira, mas
também como via de contato, integrador de regiões e pessoas, espaço das relações
sociais e de identidades culturais.
Ao refletir sobre a história do rio Tocantins, minha intenção como a do
historiador francês Lucien Febvre em O Reno
é ouvir o rio. Isso significa atentar-
me para a pluralidade de sentidos atribuída a ele nos diversos discursos e tempos,
28
O mapa n.
0
1 Rio Tocantins (acompanhado de um esquema) permite visualizar alguns aspectos que são
analisados no texto. Ver também o mapa n.
0
2 Região de abrangência do estudo, que oferece uma idéia do
espaço abordado no trabalho.
31
acompanhar sua história por meio de quem a viu de fora, por relatos de viajantes e
administradores, mas também com a visão de dentro, dando atenção às memórias,
lendas e mitos deixados por moradores locais, de ontem e de hoje.
É preciso, pois, navegar com os barqueiros, e nessa viagem imaginária é
importante observar seus aspectos geográfico e histórico, as populações de suas
barrancas, valorizando as falas dos próprios ribeirinhos, pois, como afirma Febvre
32
mais as mesmas do final do século XX; à medida que o homem vai se integrando e
interagindo com o novo espaço e com o outro, acontece uma transformação, a
fronteira vai se tornando mais fluida e uma nova identidade vai se construindo.
As particularidades da conquista do oeste brasileiro observadas por Holanda
em Monções
29
podem ser consideradas, em parte, na análise do processo de
ocupação e conquista das margens do rio Tocantins. Robert Wegner (2000, p. 215)
explica de forma brilhante os momentos da fronteira, em seu estudo sobre esse
tema na obra de Holanda. Segundo ele, na conquista do Oeste brasileiro aparecem
dois elementos constantes, a adaptação e a lentidão, e a canoa é a imagem
emblemática usada para explicar os momentos da fronteira nesse lento processo:
num primeiro momento, uma adaptação do imigrante ao nativo, quando ele lança
mão das técnicas e recursos da terra; o segundo momento é marcado pela
mobilização ou recuperação do legado do adventício; o terceiro momento ocorre
como uma amálgama que envolve e influencia a tradição, que vai resultar em algo
novo.
Na minha percepção, quem consegue explicar de forma mais coerente a
realidade dessa fronteira, principalmente para o estudo em foco, é José de Souza
Martins:
[...] a fronteira de modo algum se reduz e se resume à fronteira geográfica.
Ela é fronteira de muitas e diferentes coisas: fronteira da civilização
(demarcada pela barbárie que nela se oculta), fronteira espacial, fronteira
de culturas e visões de mundo, fronteira de etnias, fronteira da História e da
historicidade do homem. E sobretudo, fronteira do humano [...] se
entendermos que a fronteira tem dois lados e não um só, o suposto lado da
civilização; se entendermos que ela tem o lado de e o lado de lá, fica
mais cil e mais abrangente estudar a fronteira como concepção de
fronteira do humano. (MARTINS, 1997, p.13 e 162).
Identidade e fronteira são, portanto, como dois lados da mesma moeda, às
vezes com uma diferença sutil e difícil de ser percebida, exigindo atenção aos
detalhes, ao cotidiano, à mentalidade, enfim, ao jeito de ser e viver. Busco, por
29
Na obra Monções, de Holanda, são encontradas algumas semelhanças entre a navegação do rio Tietê e seus
afluentes e a do rio Tocantins. Mas com relação ao período da prática da atividade, pôde-se perceber que o
diferentes. No Tietê, na terceira década do século XIX, esse tipo de navegação havia desaparecido: “[...]
sobretudo depois da Independência, as viagens fluviais tornaram-se cada vez mais raras, até desaparecerem
completamente por volta de 1838. Foi exatamente nesse ano que uma epidemia de febre tifóide apareceu no
Tietê, deixando poucos sobreviventes entre os últimos mareantes e pilotos de Porto Feliz” (HOLANDA, 1990,
p. 65). No rio Tocantins foi justamente nesse mesmo século que a navegação atingiu seu auge, como mostram
os dados levantados. Portanto se algumas observações do autor podem ser extrapoladas para as margens do
Tocantins, isso deve ser feito com cautela, atentando para as especificidades de cada uma delas.
33
conseguinte, nos documentos e nos discursos perceber elementos que me indiquem
tais fronteiras.
O espaço em que o ribeirinho tocantinense se encontra não pertence
completamente ao sertão
30
, mas também não pertence ao litoral, é um elo entre
ambos o meio. Há uma aparente contradição, pois enquanto o porto remete à idéia
de movimento, intercâmbio, ligação, o sertão, ao contrário, remete à idéia de
isolamento, ermo, fim de mundo. Mas o sertão aceita todos os nomes, não existe
apenas um; na realidade os sertões são múltiplos e múltiplas são suas
interpretações. Basta lembrar de obras consagradas, no Brasil, sobre sertão,
citando apenas alguns de seus autores: Euclides da Cunha, Afonso E. Taunay,
Afonso Arinos, Guimarães Rosa, Hugo de Carvalho Ramos. Além das obras desses
grandes escritores, o fluxo de publicações sobre o tema é contínuo, ora resultante
de congressos, ora de homenagem a datas comemorativas, como a recente
coletânea O Clarim e a Oração: cem anos de Os Sertões
31
. Dela faz parte o texto
do goiano Gilberto Mendonça Teles, intitulado O lu(g)ar dos Sertões, no qual analisa
desde a etimologia às diversas interpretações atribuídas ao termo ao longo dos
séculos. Segundo ele,
A palavra sertão tem servido, em Portugal e no Brasil, para designar o
“incerto”, o “desconhecido”, o “longínquo”, o “interior”, o “inculto” (terras não
cultivadas e gente grosseira), numa perspectiva de oposição ao ponto de
vista do observador, que se sempre no “certo”, no “conhecido”, no
“próximo”, no “litoral”, no culto”, isto é, num lugar privilegiado na
civilização. É uma dessas palavras que traz em si, por dentro e por fora, as
marcas do processo colonizador (TELES, 2002, p. 263).
Em meio à discussão geral que envolve o termo sertão, é importante perceber
que mudanças foram se processando nas formas de vê-lo e descrevê-lo. Se nos
primeiros séculos da colonização, a imagem do sertão era a do observador “de fora”,
do litoral, com a efetiva ocupação, indo sertão adentro, vai ocorrendo também uma
mudança na forma de ver, sentir e, conseqüentemente, de descrevê-lo. É ainda nas
palavras de Teles que encontro explicação significativa para tal transformação,
30
A categoria sertão foi consolidada no Brasil por autores como Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, José Lins
do Rego, Euclides da Cunha, e tem como alguns de seus representantes, em Goiás, os escritores Bernardo Élis
e Hugo de Carvalho Ramos. Seu sentido é geralmente empregado evocando significados diversos, como:
ermos hostis e agrestes, isolamento, deserto, grandes distâncias, obstáculos às comunicações, imensas
vastidões desabitadas. Para a região enfocada nesta pesquisa, essas características se aplicam parcialmente,
como bem mostra frei Audrin (1963), ao tratar do modo de vida do sertanejo, em que sertão está também
ligado à idéia de um ritmo lento, onde a “aceleração” do tempo ainda o atingiu as pessoas e os
acontecimentos.
31
Obra organizada por Rinaldo de Fernandes (2002), na qual reúne visões de críticos literários, jornalistas,
poetas, sociólogos e historiadores.
34
quando o autor cita o relatório de um governador de Minas Gerais, no qual ele afirma
estar o sertão quieto e sossegado. Nesse caso, o narrador escreve de dentro do
sertão, de um lugar que conhece, não de um espaço desconhecido, como constata
Teles:
No século XVIII, quando se vai consolidando a ocupação humana do
interior do Brasil [...] o sentido de sertão adquire conotações mais
concretas, sendo agora visto de fora e de dentro. Vira contexto e
circunstância e deixa de ser um lugar longínquo (TELES, 2002, p. 278).
Na interpretação da antropóloga Selma Sena, fica evidente a relação entre
sertão e identidade. Após ressaltar seus diversos significados desde a época das
grandes navegações e do período de conquista do interior do território brasileiro,
segundo ela, a idéia de sertão vai passando, de distante e vazio, a uma dimensão
positiva de vazio a ser conquistado e ocupado, referindo-se à grandeza do
patrimônio geográfico. A autora acrescenta que,
Como mito de origem da nação brasileira e dos goianos, o termo sertão
condensa diversos significados; um amálgama de imagens, experiências e
sentimentos. Simultaneamente descrito como um espaço geográfico, como
uma temporalidade, como uma forma de organização social e como um
conjunto de características culturais, o sertão é, ao mesmo tempo, singular
e plural... É esse material simbólico que, recozido, constitui a matéria-prima
de que são feitas as diferenciações regionais, isto é, as identidades
regionais (SENA, 2002, p. 85).
Para a região em foco, não há explicação melhor que a do dominicano
francês frei Audrin (1963). Embora um pouco idílica, é autêntica sua explicação para
o sertão do vale do rio Tocantins, na primeira metade do século XX. Segundo ele, é
preciso esclarecer que os sertanejos do antigo norte de Goiás não são como os
nordestinos descritos, por exemplo, por Euclides da Cunha. Audrin nos apresenta
um tipo diferente de sertanejo, o sertanejo ribeirinho, descrevendo em detalhes os
costumes desses moradores, a quem denominou de Os Sertanejos que eu conheci.
Para finalizar esta discussão, segue a descrição sobre os sertanejos dos quais ele
está falando e, por extensão, o significado de sertão:
Os sertanejos a que nos referimos e que chamamos “nossos” não são os
sertanejos em geral, e sim aqueles que vivem nas zonas centrais, tão mal
conhecidas, banhadas pelos Rios Tocantins, Araguaia, Xingu e seus
numerosos afluentes. [...] Se não podemos dizer nada de certo de muitos
sertanejos do Brasil, estamos em condição de afirmar que os sertanejos
que chamamos “nossos”, não vegetam em recantos desolados, onde
35
crescem apenas mandacarus, rasga-gibões e xique-xiques. Não são
vítimas de secas periódicas que aniquilam criações, inutilizam lavouras e
obrigam-nos a expatriar-se à procura do “Inferno Verde”. [...] Nada lhes
falta quando podem e querem trabalhar. Naquelas terras devolutas onde
moram, ninguém vai disputar-lhes o pedaço de chão que escolheram
levantar a sua choupana, ou vedar-lhes a orla de mata para organizar as
suas lavouras. São livres; vivem e pelejam num país de florestas, de
verdes campinas e várzeas, onde correm águas permanentes, onde o solo
é rico e fartas as pastagens, onde nunca faltam caças nas matas, onde rios
e lagos são piscosos. [...] Admiremo-los como os pioneiros silenciosos mas
teimosos da verdadeira “marcha para o oeste” (AUDRIN, 1963, p. 8-9).
Após essas considerações preliminares, passo a desenvolver a primeira parte
do trabalho, em três capítulos: Uma fronteira sertão adentro: o rio, a natureza,o
gentio, a região; Uma fronteira sertão afora: navegando o Tocantins; e A terceira
margem: vivendo o Tocantins, construindo identidades, nos quais analiso o processo
da construção identitária ribeirinha.
36
37
38
39
1.1 Uma fronteira sertão adentro: o rio, a natureza, o gentio, a região
Os rios, como seres humanos, têm um ciclo de
vida e conseqüentemente uma história. Mesquinha
ou grandiosa, simples ou complexa, curta ou
longa, essa história é sempre interessante.
Lysias Rodrigues
O rio Tocantins lugar de riquezas naturais, via de comunicação, elemento de
fixação populacional, lugar de convivência entre culturas diferentes, construtor de
memórias e identidades tem sua história de origem ligada ao mito de um lago
32
existente na parte central do território:
O lago unificador, que cumpre a função mítica de lugar de origem, recebeu
diferentes denominações: Dourado, Eupana, Laguna encantada del Paytiti e
Paraupaba [...] ele interligava as águas do Tocantins às do São Francisco,
localizando-se em terras logo alcançadas pelos exploradores (MAGNOLI,
1997, p. 46).
Holanda (1992) acrescenta que, mesmo destituída de fundamento histórico, a
lenda ilustra a noção corrente de que os vários rios que deságuam no Atlântico
tiravam suas águas de uma esplêndida e descomunal lagoa existente no íntimo do
continente”. O imaginário sobre a possibilidade da existência dessa lagoa dourada,
de localização bastante imprecisa, atraiu sertanistas por mais de dois séculos e
funcionou como incentivo ao conhecimento e conquista do interior e alargamento
das fronteiras para a Coroa portuguesa.
O nome tocantins, segundo Lysias Rodrigues, lhe “[...] foi aplicado por viver
em suas margens a poderosa e valente tribo dos índios Tocantins, daí ser conhecido
a princípio como rio dos Tocantins” (RODRIGUES, 2001, p. 39). O autor ressalta,
com base em diversas fontes, que a palavra tocantins significa nariz de tucano, e
que o rio teve outras denominações, atribuídas por diversos exploradores em
diferentes épocas
33
.
32
Os primeiros documentos que materializam a formação desse mito são as conhecidas Cartas do Brasil, de
Diogo Ribeiro, de 1525 e 1527, o Planisfério, de André Homem, de 1559, e Fernão Vaz Dourado, 1570. Mais
sobre esse tema, pode ser visto em Magnoli (1997) e Bertran (1994).
33
São as seguintes as variações do nome tocantins: Rio das Pedras, Rio de los Tocantis, Tucantins, Tocantin,
Pará-Upéba, Parahupeba, Parahupava, Pirahypáva, Paraypava e Paraupava (RODRIGUES, 2001, p. 40-41).
40
O Rio Tocantins recebe essa denominação a partir da confluência dos rios
Maranhão e Paranã, no Brasil Central, somando cerca de 2.400 km de extensão
34
até a foz. Os afluentes que o formam têm, portanto, suas nascentes no planalto de
Goiás, região de Brasília, como afirmam os geógrafos Gomes e Teixeira Neto (1993,
p. 113): “O rio Tocantins começa nas imediações do quadrilátero Cruls (porção
setentrional do Distrito Federal), a mais de 1.000 metros de altitude, resgatando a
sua total identidade a partir da confluência do Rio Paranã com o rio Maranhão.
Devido à natureza de seus terrenos e às diferenças pluviométricas, as condições de
navegabilidade de seu leito variam muito
35
. O rio Tocantins, portanto, corta o país no
sentido sul-norte e, na divisa dos Estados do Tocantins e Pará (local conhecido por
Bico do Papagaio), recebe as águas do rio Araguaia. A partir das cidades de
Filadélfia (TO) e Carolina (MA), divide os Estados do Tocantins e Maranhão e corta,
em seguida, o Estado do Pará, chegando à sua foz. Constitui-se de três trechos
distintos
36
: o Alto Tocantins, que vai das nascentes até a cachoeira do Lajeado,
medindo 1.050 km; o Médio Tocantins, da cachoeira do Lajeado à cachoeira de
Itaboca, com 980 km; e o Baixo Tocantins, da cachoeira de Itaboca até a foz, com
aproximadamente 370 km
37
. Alguns desses trechos são de considerável facilidade
de navegação, outros, mais difíceis, e há os que são dificílimos, devido às
corredeiras, cachoeiras e, em certas épocas do ano, devido à pouca profundidade
em alguns lugares.
Tanto no Brasil como em outros países, os rios foram, desde o início da
colonização, os caminhos naturais para o conhecimento do interior, mesmo em
condições muito precárias. Utilizados para a penetração no território, contribuíram de
forma significativa para a expansão da fronteira brasileira no período colonial,
servindo-se deles tanto os religiosos em busca de povos indígenas para a
34
Observa-se uma diferença referente à extensão do curso desse rio, provavelmente em conseqüência de
imprecisão dos dados ou pelos diferentes métodos utilizados para medi-lo. Gomes e Teixeira Neto (1993)
falam em mais de 2.400 km” desde as nascentes, Lysias Rodrigues (2001) fala em 2.640 km, enquanto que
Jardim (1911) considera aproximadamente 1.700 km desde a cidade de Palma (atual Paranã), pouco acima da
confluência dos rios Maranhão e Paranã.
35
Existe uma infinidade de relatórios técnicos com muita informação e descrições sobre o rio Tocantins, mas
para um trabalho histórico penso não ser necessário aprofundar nos detalhes sobre sua constituição física.
36
Há, entretanto, autores que utilizam outros critérios para estabelecer essa divisão. Valverde e Dias denominam
de médio vale do Tocantins goiano todo o trecho compreendido entre Tucuruí, no Pará, e Porto Nacional89(d)0.128290.247207(t7877(i)-3.98035(i)-3.98035(a)-17.4172( )2405( )Tj-213.36 -T)-108.882(T)-4.22756(o)12.9455(c)-4.60306(a)-4.60306(n)lin,( )-172030(c)-17.4203(o)ões(d)12.9455(e)-4.48259( )-160.153(T)8.58967(e)-4.6036(i)-16.7976(x)12.9455(e)-4.6.882(e)-4.60306(r)-0.247207(a)-4.48259(N )-172030(ei)8.83844não 113ã)(a)8.21417( )-31.9805( )-6.34603(e)-4.60306(s-4.60306(t)8.83688((o)12.9455(c)-83.2494(e)-17.4203(m)8.21417((n)12.9455(t)0.1282r)]TJ185ê)0.128297(e)-4.60306(s)8.21417( )-57.6149(.52 0 Td[(u)12.9455(r)-13.0644(s)-8.33308(e)-4.60306(s)6.34603( )-16.7976p)0.131427(a)-4.60306(r)-0.247207(a)-6.34603(ã)-4.60306(o)8.21417( )-108.884(r)-0.247207(i)-16.7976(o)6.34603( )-70.4306(T)-16.7976(o)12.9455(c)-83.2494(e)-17.4203(n)12.9455((t)8.83688(i)0.128297(n)12.9455(:a)8.21417(l)-12.9455()-0.247207(ã)-4.60306()(a)6.34603(ã)0.128297(o)08.21417( )-.247207(.52 0 Td[(u)12.9455(r)-13.0644(s)-4.60306(o)8.21417(r)-13.0644((o)12.9455( )-172.968(p)0.128612(e)-4.6153(()-0.247207(i)-16.598(é)-4.60398(e)]TJ207:a)8.21417(l)-8.21417(éd)12.9424(e)6.34603(q)0.125168(o)0.125168((s)17.2983( )2493998]TJJ-399.6 t)-4.6.882(e)-4.60399r)-0.247207(e)0.128297ha)8.21417(n)-12.6889(o)8.96674(10.68 Td[(d)0.128297(e)8.21417(n)-12.6889(d)12.8297(i)-3.97879(fí-0.247207(i)-57.6149(c)-4.6.796(i)8.83844((o)8.96674(i)-3.97879(c)-83.2494( )-83.2478(d)12.9455(g)-21.1503(u)12.9455((i)8.83688(ç)-4.60306(ã)-16.7976(o)25.7455(,)-8.96674( )-31.9789(q).68 Td[(d)0.128297(e)8.2129( )-83.2478(v)12.9455(e)-4.60306(e)-4.60306( )-19.1633(p)0.128297o)0.128297( )-57.6149(c)-21.1503(o)25.7628(n)0.128297(f)-0.2472707(l)-16.796(u)12.9455(ê)-4.22756(o)12.9455((D)4.23382(i)9(d)0.41(m)]TJ203a)-4.59993( ))8.21417(n)-12.6889(o)8.96649( )-108.884(r)-0.247207(i)-16.7976(o)3.98035( )-57.6149(P))4.61089(a)-4.60306(r)-0.247207(a)-4.60306(n)12.9455((a)8.21417( )-57.6149(c)-17.4203(o)0.128297(m)8.21417(i)-16.7976(o)3.98035(M)-1382r78(P))4.61089(a)-4.60306(r)-0.247207(a)-4.60306(n)0.128297(h)0.128297(ã)-16.7976(o)17.4203( )-57.6149 )-108.884(t)-3.98035((m)8.21417(i)0.128297(o)0.128297(g)-17.4172(u)12.9455(r))8.21417(p)-70.4322(n)0.128297(o)12.9455(10.68 Td[(d)0.128297(e).128297( )-57.6455(i)-16.598(é))12.9476(e)-4.6153((e)-57.6455( )-44.7955(o)]TJ19(l)8.83688(e)-4.60306(i)-3.9153(((n)12.9424(e)-4.60306a)-17.4172( )240.445]TJJ-399.6 i)-3.98035(d)0.128297(o)08.2141L)-160.153cjt0.128297zad ara ;ã)(a)8.2141do .52 0 Td[(u)12.9455(r)-13.0889(s)-8.33889o dd:s-4.60306.48 0 Td[(q)-31.9805(o)12.9455( )-6.34603(e)-40 Td[( )-83.2478(v)12.9455(e)-4.60306(e)-4.60306( )-121.701(d)0.128297(o)08.214011L js
41
catequese, quanto os bandeirantes, também no aprisionamento de indígenas e na
procura por metais preciosos.
Estudioso da bacia amazônica, o escritor e jornalista Leandro Tocantins
afirma que Diferente e multiforme é o rio Tocantins. Diferente das outras artérias
da Amazônia em sua avenida líquida, em sua navegação, no pálio de suas
florestas, nas manifestações da vida social e até no próprio curso, discordado,
contestado. (TOCANTINS, 1973, p. 185). O autor acrescenta que os rios,
caminhos que andam, podem trazer tanto a fortuna como a desgraça. O ribeirinho
conhece bem essa xima, pois retira dele, pela pesca, parte de seu sustento, usa
suas águas para abastecimento, lazer, meio de transporte e para plantios de
vazante. Por outro lado, quando, nas cheias, as águas sobem e chegam até as
casas e roças, inundam e destroem todo o trabalho, deixando a população sem
moradia e na miséria.
Ao tratar do transporte fluvial dos rios brasileiros, Sérgio Buarque de Holanda
(1990, p. 19) afirma que, “[...] fora da Amazônia, os cursos de água raras vezes
chegam a constituir meio ideal de comunicação”. Entretanto fica evidente que,
embora o rio Tocantins não se constitua em meio ideal para navegação devido a
inúmeras cachoeiras e outros obstáculos, mesmo assim sua utilização foi uma
constante, e a ocupação de suas margens, mesmo que de forma lenta, efetivou-se,
possibilitando a formação de um modo de vida peculiar.
Apesar das inúmeras dificuldades para a navegação e o povoamento de suas
margens questão que será analisada adiante os relatos sobre as belezas
naturais e a existência de inúmeras riquezas minerais no rio Tocantins foram
constantes, tanto por parte de viajantes estrangeiros e nacionais quanto por
administradores e técnicos, e mesmo pelos moradores locais. A proliferação de
discursos sobre as riquezas extraordinárias no rio Tocantins, divulgados em diversos
tipos de publicações, propiciou a criação de um imaginário triunfalista:
Quanto à riqueza mineral do Tocantins, sentimos não poder este ano [1910]
tratar dela embora perfunctoriamente. Cunha Mattos diz ser ele o rio mais
rico do mundo e o grande explorador James Orton no seu importante livro
The Andes and the Amazons diz o seguinte: É um esplêndido rio que rega
uma região do mais delicioso clima brasileiro, rolando sobre um álveo de
diamantes, rubis, safiras, ‘topázios, opalas, ouro, prata e petróleo’
(AZEVEDO, 1910, p. 70).
As idéias sobre a existência de inúmeras riquezas escondidas a serem
exploradas e de uma beleza idílica nas margens do rio Tocantins, que motivaram
42
tantos discursos, eram um meio de atrair a atenção do poder central, em forma de
investimentos e capitais. Os próprios moradores da região passaram a reproduzir
tais discursos, amenizando os obstáculos reais, principalmente para mostrar que os
investimentos na atividade da navegação trariam bons resultados para o país.
Mesmo sendo um caminho natural, sua constituição geográfica foi sempre o principal
problema para uma navegação regular e lucrativa, apesar da “teimosia” dos
ribeirinhos, que continuaram desafiando os obstáculos por séculos.
Ao tratar do processo de reocupação
38
das margens do rio Tocantins, não se
pode deixar de mencionar Capistrano de Abreu. Ao descrever as entradas e
bandeiras, ele ressalta o importante papel dos rios não como fonte de
alimentação e de vida, mas também como fator decisivo na penetração e no
povoamento do interior do Brasil e afirma que as bandeiras deveriam ser
classificadas não pelo ponto de partida, “[...] mas pelos rios que margearam ou
navegaram” (ABREU, 1982, p. 106).
São muitas as bandeiras
39
que visitaram a região central do Brasil desde o
século XVI, pelos rios Tocantins e Araguaia, apresentando maior ou menor
intensidade de ocorrência, dependendo da época; até o século XVIII os objetivos
foram quase que exclusivamente para o conhecimento do interior e aprisionamento e
descidas
40
de índios. A década de 20 desse mesmo século é que vai proporcionar
mudanças radicais com a descoberta do metal precioso, fase denominada de corrida
do ouro, tão bem descrita tanto por Antonil como por Luis Palacin. Sobre esse
período também o relato (publicado por Henrique Silva) de Silva Braga, um dos
dissidentes da Bandeira do Anhangüera (1722), no qual conta que, após abandonar
a expedição, desceu o Tocantins até chegar a Belém; fornece interessantes
informações sobre o curso do rio e os povos indígenas encontrados no percurso de
sua viagem, em que passou por trágicas dificuldades (SILVA, 1982). É possível
destacar cinco momentos desde as primeiras bandeiras até a ocupação de parte das
vastas margens do rio Tocantins: período de penetração (bandeiras), final do século
XVI, e intensificado no XVII; de proibição da navegação, século XVIII (alvará de 27
38
A expressão reocupação refere-se à chegada de colonizadores não-indígenas na região, pois eram muitos os
povos indígenas que viviam no vale do rio Tocantins antes do estabelecimento dos imigrantes, a partir do
século XVIII.
39
Bandeiras: [...] expedições exploratórias ao interior, partindo das capitanias da costa, com o fim de descobrir
riquezas minerais, ‘minas de ouro, pratas e pedras preciosas’” (PALACIN; AMADO; GARCIA, 1995).
40
Conforme Palacin (1989), o que se denomina de descidas é um outro tipo de expedição, ou seja, um sistema
bem estruturado de aldeias, criado pelos jesuítas na Amazônia para receber índios. Para isso, eles subiam o rio
Tocantins, chegando até Goiás, e os desciam para os locais já estabelecidos para esse fim.
43
de outubro de 1733, vigorando até 1782); de incentivos ao desenvolvimento da
navegação por meio de levantamentos, estudos e relatórios técnicos, mas sem
resultados efetivos, século XIX; de abandono de projetos de navegação e prioridade
para as rodovias, século XX; e, por último, período de construção de barragens e
projetos de hidrovias e eclusas, final do século XX e início do XXI.
Sobre a presença das bandeiras em Goiás, pode-se dizer que:
A primeira bandeira, que partindo de São Paulo, possivelmente chegou até
os sertões de Goiás no leste do Tocantins, foi a de Antônio Macedo e
Domingos Luís Grau (1590-1593). [...] a de Sebastião Paes de Barros
(1673). Esta bandeira, a maior das saídas de São Paulo para Goiás,
contava com uns 800 membros e se fixou na região da confluência do
Tocantins e o Araguaia, dedicada preferencialmente à mineração
(PALACIN; MORAES, 1989, p. 8).
O rio Tocantins era conhecido e navegado por bandeirantes e jesuítas
desde o século XVI, mas a ocupação de suas margens por povos não-indígenas
aconteceu a partir do século XVIII, em decorrência da descoberta de ouro
41
no antigo
norte de Goiás.
Os últimos anos da década de trinta são ainda ricos em novos
“descobertos”, sobretudo nas desoladas montanhas da região norte, entre
o Tocantins e o deserto sertão da Bahia: S. Luis mais tarde Natividade
(1734), São Félix (1736), Pontal e Porto Real (1738), Arraias e Cavalcante
(1740), Pilar (1741). Assim, vão se riscando de caminhos irregulares as
dilatadas solidões de Goiás (PALACIN, 1994, p. 27).
Com a descoberta de metais preciosos na região, os conflitos entre
colonizadores na tentativa de desinfestar a área e povos indígenas se
intensificaram, sendo comuns os ataques tanto por parte dos índios quanto dos
colonizadores.
O alvará
42
que proibiu a navegação desses rios no auge do período
mineratório pode ter sido um dos elementos responsáveis pela escassez e demora
da povoação das suas margens. Nessa época havia interesse em habitar a beira-rio,
41
Na citação que segue provavelmente Palacin enganou-se ao citar Porto Real entre os primeiros núcleos
mineratórios descobertos na região norte, pois em outro livro afirma o seguinte sobre a origem de Porto
Nacional: De início um simples ponto de passagem do rio entre os dois centros mineradores de Monte do
Carmo e Pontal, os mais setentrionais da Capitania, posteriormente tornou-se sede de um destacamento militar
encarregado da vigilância da navegação” (BORGES; PALACIN, s/d, s/p).
42
A proibição do uso de outros caminhos para as minas que não fosse o das bandeiras paulistas é determinada
por Carta Régia em 1730, determinação confirmada pelo Alvará de 27 de outubro de 1733, re-confirmado em
1737, tendo vigorado a1782 (DOLES, 1973, p. 29-39). Essa medida tomada pela Coroa Portuguesa, na
tentativa de controlar o contrabando do ouro, foi uma das razões do retardamento da ocupação da região
ribeirinha do Tocantins no século XVIII.
44
pois sua ocupação seria útil para a proteção do transporte do ouro e para apoio e
comércio de produtos agrícolas, tão difíceis de serem encontrados nas cidades que
se dedicavam à mineração.
A proibição da navegação (1733) com a finalidade de combater o
contrabando do ouro retardou a ocupação das margens do rio Tocantins.
Quando foi revogada (1782), a produção aurífera entrava em decadência
(PALACIN; MORAES, 1989, p. 21).
Antes da descoberta do metal precioso, a região tocantina era habitada por
inúmeros povos indígenas. Com a chegada dos mineradores, tornou-se alvo de
conflitos constantes desde o século XVIII, intensificando-se no XIX, como afirma o
antropólogo Odair Giraldin: “As fontes documentais, sobretudo do século XIX,
informam que os Xerente ocupavam terras das duas margens do rio Tocantins,
desde as proximidades do arraial do Pontal (atualmente no município de Porto
Nacional), chegando até à região de rio Sono e Pedro Afonso” (GIRALDIN, 2002, p.
117).
O autor acrescenta que, até o início do século XVIII, a região que forma hoje o
Estado do Tocantins era povoada por muitos povos indígenas, como mostra o
quadro n.
0
1.
Povo Tronco
lingüístico
Família
lingüística
Língua Dialeto
Karajá Macro-jê Karajá Karajá Karajá
Karajá Macro-jê Karajá Karajá Javaé
Karajá Macro-jê Karajá Karajá Xambioá
Krahô Macro-jê Timbira Krahô
Nhyrkwãje Macro-jê Kayapó -
Apinajé Macro-jê Apinajé -
Akroá Macro-jê Akwen Akroá
Xakriabá Macro-jê Akwen Xakriabá
Xavante Macro-jê Akwen Xavante
Xerente Macro-jê Akwen Xerente
Avá-Canoeiro Tupi Tupi-Guarani Avá-Canoeiro -
Quadro n.
0
1 - Relação dos povos indígenas do Tocantins, no norte de Goiás, no século XVIII,
segundo critérios lingüísticos.
Fonte: Giraldin (2002).
45
Portanto, são muitas as referências, por parte tanto de viajantes estrangeiros
que passaram pela região ao longo do século XIX como de estudiosos, sobre a
utilização dos Xerente como remadores e carregadores de mercadorias na
transposição das cachoeiras e nos portos.
A região leste do Tocantins era habitada (onde ainda habitam) pelos
Xerente. Estes são falantes de outra variação (o xerente) da língua Akwen.
Seu território confundia-se, em certos lugares, com o dos Xavante, sendo
que os dois povos são considerados como sendo uma unidade étnica até o
princípio do século XIX (GIRALDIN, 2002, p. 116-117).
46
47
Apesar das tentativas oficiais de controlar e povoar a região por meio de
aldeamentos indígenas, os resultados não alcançaram êxito. Em estudo sobre a
importância dos aldeamentos na política de povoamento de Goiás, a historiadora
Marivone Chaim mostra o papel relevante que eles tiveram no século XVIII, mas
atribui o seu declínio à administração e conclui que “Em Goiás os aldeamentos
não só revestiram-se de caráter efêmero, como falharam a sua função primordial,
qual seja, à da preservação do índio, dessa forma não atendendo a seus objetivos
maiores” (CHAIM, 1974, p. 157).
No século XIX outras tentativas de aldeamentos vão continuar,
principalmente na antiga região norte de Goiás, como, por exemplo, Graciosa e
Travessa dos Gentios (Pedro Afonso). Em 1806 Francisco J. Rodrigues Barata
afirmava que as principais dificuldades para a navegão dos rios Tocantins e
Araguaia se resumiam em quatro: a dificuldade de tripulão e de bens
transportáveis; a ausência de número razoável de moradores nas margens dos
rios, para dar apoio à navegação; inúmeros obstáculos naturais, como as
cachoeiras; e necessidade de tropas para acompanhar os barcos em proteção
contra ataques indígenas (BARATA, 1982). Em 1824 o Governador-geral das
Armas da Capitania de Goiás, Raymundo José da Cunha Mattos, fundou um
aldeamento para os Xerente. Tal aldeamento, chamado de Graciosa, situado na
foz do ribeirão Taquarussu com o rio Tocantins, não prosperou, por um lado,
devido aos ataques de outros povos indígenas, por outro, por falta de recursos
para sua manutenção (GIRALDIN, 2002, p. 117).
No primeiro periódico de Gos, o Matutina Meyapontense, já aparecem diversos
artigos sobre conflitos entre brancos e índios, bem como sugestões para pacificá-los.
Tais notícias têm icio em 1830, ano da fundação do periódico, e seguem por todo o
peodo de funcionamento do jornal, mostrando sempre que os índios faziam parte dos
obstáculos à navegação e, portanto, ao desenvolvimento da rego. Dentre os conflitos,
destaco um nas proximidades de Porto Real, que resultou em morte de brancos pelos
índios Xerente: [...] por terem morto [sic] sucessivamente trinta e duas pessoas do
Julgado do Porto Real” (MATUTINA MEYAPONTENSE, n
0
. 32, 1830). Noticia, em
seguida, a formão de destacamento militar para reprelia aos índios, considerada a
mais adequada providência para restabelecer a tranqüilidade entre aqueles miseráveis
habitantes. No ano seguinte há o relato de novo ataque dos Xerente a Porto Real,
sendo a falta de mantimentos nessas localidades atribuída ao medo que a população
48
tinha dos índios, afirmando ainda que foram mortas 66 pessoas em pouco mais de um
ano, nessa mesma rego. Em 1832 o mesmo periódico transcreve um ofício no qual o
presidente da Província autoriza a expulsão dos índios Xerente dos contornos de Porto
Imperial, Pontal e Carmo.
Esse é o contexto em que os povoados ribeirinhos vão se desenvolver no
século XIX, tornando-se arraiais ou vilas, enquanto outros vão surgindo. Em meados
do século XIX foi fundado o aldeamento de Pedro Afonso, que logo deixou de
cumprir sua função original, pois os índios foram retirados para outro local, passando
o aldeamento a receber imigrantes vindos principalmente do Maranhão.
Outra forma de ocupação e defesa das margens do rio Tocantins foram os
presídios militares
43
, que possuíam finalidades elásticas, funcionando como
estabelecimentos militares, penais e também como colônia agrícola. Rocha (1998, p.
74-75) enumera a fundação de quatro presídios na linha do Tocantins, todos no
início da segunda metade do século XIX: Santa Tereza (1850), Santa Cruz (1854),
Santa Bárbara (1854) e Santo Antônio (1854). Segundo o IBGE (1958, p. 259), “[...]
analisando-se a distribuição dessa população pela região verifica-se que o vale do
Tocantins é o principal condensador de população, não só porque ele é uma
importante via de comunicação como também pela riqueza que ele representa”.
A ocupação e desenvolvimento das margens desse rio se processaram de
forma lenta. Embora as cidades auríferas surgidas no século XVIII, na região norte,
não estivessem localizadas nas margens do Tocantins, contribuíram para o
aparecimento de povoados e cidades ribeirinhas, que funcionaram como pontos de
apoio e possibilitaram a ligação daquelas - via rio Tocantins - com o Pará. Foram
povoados fundados inicialmente sob a forma de aldeamentos indígenas ou de
presídios militares, núcleos esses que se desenvolveram, transformando-se em
pontos de comércio da região com o Pará, por meio do rio. Dentre eles, Porto
Nacional e Pedro Afonso são os dois maiores expoentes.
Não é possível compreender o processo de ocupação das margens do rio
Tocantins sem analisar o contexto regional
44
no qual está inserido. Mostrar as
peculiaridades da região onde estão localizadas as cidades ribeirinhas é oferecer,
43
Segundo Palacin e Moraes (1989, p. 42), “Presídios eram colônias militares de povoamento, defesa e
especialização agrícola.” O seu fracasso na maioria das vezes estava no fato de os soldados não terem
nenhuma aptidão pelas atividades agrícolas.
44
Apesar dos avanços nos estudos de cunho regional e de muitas contribuições que têm dado à historiografia, o
regional ainda é comumente visto com descaso, desprezo e como sinônimo de inferior. Mas acredito que
tomado os devidos cuidados e evitando suas “armadilhas”, essa modalidade de pesquisa pode enriquecer as
análises mais gerais.
49
segundo Amado (1990), além de “[...] novas óticas de análise de cunho nacional”,
possibilidades de fazer “[...] aflorar o específico, o próprio, o particular” e ainda
ressaltar as diferenças e a multiplicidade na aparente homogeneidade.
A historiografia regional tem ainda a capacidade de apresentar o concreto e
o cotidiano, o ser humano historicamente determinado, de fazer a ponte
entre o individual e o social. Por isso, quando emerge das regiões
economicamente mais pobres, muitas vezes ela consegue também retratar
a História dos marginalizados, identificando-se com a chamada História
popular” ou “História dos vencidos” (AMADO, 1990, p. 13).
No caso da região que corresponde ao antigo norte de Goiás, principalmente
na visão dos nortenses, ela se apresenta carregada de características de desprezo,
descaso e inferioridade. Esse discurso negativista foi utilizado largamente para
justificar a construção de uma identidade tocantinense, que pode ter suas origens no
século XVIII, ainda no período mineratório. Pela análise dos discursos sobre a região
norte, fica evidente a unanimidade de opiniões, expressas sobre três aspectos: a) o
isolamento, em contraste com suas riquezas inexploradas; b) o abandono pelos
poderes públicos; e c) a necessidade de solução para o problema da difícil
navegação.
No período colonial, após a revogação do Alvará que proibia a navegação
dos rios, diversas medidas foram tomadas para incentivar o povoamento das
margens dos rios e, conseqüentemente, o desenvolvimento da região, que
continuava pouco habitada. Segundo Alencastre, em 1811 o governador Francisco
de Assis Mascarenhas, por carta régia, concedia diversos benefícios a quem se
estabelecesse às margens dos rios Maranhão, Araguaia e Tocantins; dentre eles, a
isenção dos direitos de entradas e o perdão dos dízimos sobre as culturas e das
dívidas para com a Real Fazenda, isenção do serviço militar, etc. Essas medidas, no
entanto, não foram suficientes para garantir o desenvolvimento das margens dos
rios, que continuaram pouco habitadas por longa data.
A transição da economia aurífera para a agropastoril em Goiás é bastante
discutida por autores que estudam a Historia de Goiás. Paulo Bertran (1994), por
exemplo, defende que a pecuária precedeu a mineração.
Para Chaul (1997), o tão discutido conceito de decadência do referido período
é, na verdade,
50
[...] uma representação que foi gestada pelos cronistas, governadores
[presidentes] de Província e, posteriormente, reproduzida pela historiografia
goiana, com base no isolamento da Província, por meio da visão
europeizante dos que vieram a Goiás e dos que pensavam ter existido (o
fausto e a riqueza) na sociedade mineradora. Consideramos que muito
pouca diferença havia entre as duas sociedades no tocante à vida
sociopolítica e econômica, pensando no que ficou para Goiás em termos
de herança do período áureo do ouro (CHAUL, 1997, p. 76)
Palacin (1994, p.136), embora utilize o conceito decadência, afirma que “[...]
de forma nenhuma podemos representar a decadência de Goiás como uma
transição brusca de uma situação brilhante de prosperidade para uma ruína opaca.”
Anterior ou não à mineração, a agropecuária em Goiás foi uma atividade
complementar. Após o declínio da mineração a criação de gado desenvolveu-se com
mais ímpeto, por ser um produto autotransportável em região carente de meios
modernos de transporte.
Se para Goiás como um todo tal era a situação no período de transição, para
a região norte os relatos têm cores mais carregadas. De imagem em imagem foram
criados os estigmas que marcaram o norte de Goiás, tanto assim que:
Norte, em Goiás, deixou muito cedo de ser um denotativo meramente
geográfico para carregar um peso de oposição política, primeiro, todo um
quadro de involução social e atraso econômico, de subdesenvolvimento,
diríamos com uma expressão atual, mais tarde (PALACIN, 1990, p. 9).
No início do século XIX as descrições dos viajantes, em especial dos
europeus, fortaleceram a imagem pouco animadora que já se tinha dessa região da
Província goiana, que se apresentava de forma ainda mais negativa que a do sul.
Poder-se-ia alegar que sua visão eurocêntrica dificultava compreender a complexa e
diferente realidade, mas, por outro lado, percebe-se que a visão de viajantes
nacionais não diferia muito nesse aspecto. Em 1824 Cunha Mattos (1979) afirmava
que, na Comarca do Norte, os habitantes não se dedicavam à agricultura, havia
fome constante, e o maior empecilho à produção era a sua preguiça, que excedia à
dos moradores do sul.
A lentidão do tempo e a aparente imutabilidade dos costumes são destaques
dos relatos. No prefácio de sua obra, o viajante francês Saint-Hilaire, que visitou a
região em 1818, afirma que “O botânico George Gardner percorreu em 1840 uma
pequena parte do sertão que visitei em 1818 e viu o que eu próprio tinha visto - nada
mais” (SAINT-HILAIRE, 1975, p. 14). No final dessa mesma década (em 1849), o
51
presidente da Província de Goiás destaca como empecilho ao desenvolvimento as
longas distâncias, a precariedade dos caminhos e o perigo de ataques indígenas:
“Esta aldeia [Boa Vista] dista da capital mais de 300 léguas, seu trajeto até a Vila do
Porto Imperial é feito em parte por sertões infestados do índio selvagem, cortados de
ribeiros, que no tempo das águas se tornam caudalosos e intransitáveis [...]”
(FLEURY, 1996, p. 160).
Na seqüência, o relato do Juiz de Direito Vicente Ferreira Gomes, de 1858, e
do frade dominicano francês Laurent Berthet, de 1883
45
, mostram as mesmas
dificuldades relatadas desde o século XVIII. Comparando tais relatos do século XIX
com as obras do Brigadeiro Lysias Rodrigues, da década de 1930, e de Peixoto da
Silveira, de 1950, -se que as descrições do século XX
46
apresentam muita
semelhança com as do XVIII e XIX, principalmente no que se refere ao isolamento e
às distâncias. Pela análise desses escritos, é possível constatar um ritmo de tempo
muito lento. Em um período de mais de dois séculos foram raras as mudanças na
região e nos costumes da população. Exemplo singular dessa lentidão nas
mudanças é a declaração de Peixoto da Silveira (1957), quando de sua viagem à
região para demarcar o local destinado à mudança da capital do país, no Brasil
Central, na década de 1950:
O sertão pareceu-me mais estranho do que se fosse outro país.
Espantosamente infra-humanas as condições de vida naquela
decepcionante paisagem social. Aos olhos ofuscados pelas frivolidades
luminosas do litoral, a primeira impressão foi de haver ultrapassado, sem
saber, nossas fronteiras e caído num meio estrangeiro [...]. Vi, ali,
remanescente dos bandeirantes, feitos sentinelas que, na inconsciência de
seu próprio heroísmo, consolidando a posse da terra, o consentiram em
recuar [...] E vi também que mais terrível do que o insulamento no espaço é
o isolamento no tempo. As distâncias podem ser medidas em quilômetros,
ou guas, e podem ser encurtadas pelas modernas máquinas do
progresso. Ao passo que o abandono no tempo é imensurável como o
abismo e, como o abismo, atrai o abismo [...] Adentrar-se no sertão
equivale a retroceder no passado. Os mesmos marcos que separam as
distâncias separam também as eras. A cada centena de léguas de
penetração, talvez, o recuo de um século [...] (SILVEIRA, 1957,
Introdução).
Embora as impressões relatadas por Silveira não sejam especificamente
sobre a região ribeirinha, suas observações podem ser ampliadas para todo o Brasil
45
Esse documento resultado de sua viagem em 1883, acompanhando o bispo da diocese de Goiás por todo o
norte da Província fornece dados que ajudam a compreender a construção da identidade ribeirinha e é útil
também por oferecer a visão de como esses religiosos estrangeiros viam a população estudada.
46
Ver Anexo C Texto que retrata bem as dificuldades de comunicação no início do século XX, no qual
descreve a abertura de uma estrada entre Porto Nacional e Conceição do Araguaia.
52
Central. A diferença que pode ser ressaltada é apenas a da condição de a região
estar situada à margem de um rio que a ligava com o litoral, embora por meio de um
transporte rústico e demorado.
Apesar da aparente homogeneidade da região como um todo, os
documentos mostram uma nítida oposição entre norte e sul de Goiás, iniciada ainda
no período colonial; oposição que continuará por todo o Império, tendo seu desfecho
conhecido somente no final do século XX, com a separação do norte, criando-se o
Estado do Tocantins em 1988.
O sentimento de discriminação e abandono por parte dos moradores da
região norte ficou registrado nos periódicos do norte do Estado, claramente
percebido em meio às queixas, clamores e pedidos de justiça aos chefes políticos.
Os nortenses sentiam-se explorados e abandonados pelo sul, com a visão de que
havia parcialidade e injustiça quanto à distribuição dos benefícios, como explicitado
nos exemplos que se seguem:
Olha, nortense, o vampiro que suga o teu sangue, repele para longe de ti
fora dele, ou então, desligado de Goyaz, tu poderás, rico também, te
assentar ao lado dos prósperos no banquete da família brasileira (FOLHA
DO NORTE, n
0
. 12, 1891).
A região norte tem permanecido segregada dos grandes centros de vida e
progresso, sem a nima e a mais leve comunhão nas vantagens e
benefícios prodigalizados ao sul de Goyaz (NORTE DE GOYÁS, n.º 21,
1906).
A imprensa do sul do Estado quase não dedicava espaço em suas colunas a
notícias sobre a região norte. Após leitura de alguns desses jornais, nas poucas
referências à região também ficam explícitas as diferenças entre norte e sul:
Que tem feito o Governo pelo Norte? Nada [...] a região do vale do
Tocantins ainda espera a presença do governador para solucionar seus
problemas. [...] o norte está entregue ao mais absoluto esquecimento do
governo estadual [...] Não temos indústria, não temos meios de combater as
endemias que se alastram em toda a região. Não temos médicos, não
temos hospitais e não temos meios de transportes. temos a água do
Tocantins. E nada mais (JORNAL DE NOTÍCIAS, n
0
. 342, 1958).
Do mesmo modo se manifestava o Diário do Oeste (n
0
. 179, 1960), afirmando
que a região norte apresentava uma densidade demográfica baixíssima, pois com
mais de três milhões e meio de km
2
ainda não havia atingido a casa dos dois
milhões de habitantes: “1.844.655 habitantes dispunham de quase dois quilômetros
quadrados cada um”. O desfecho dessas divergências entre o norte e o sul de Goiás
53
marcadas por inúmeras reclamações e protestos por parte da população do norte
que iniciaram no século XVIII e atravessaram todo o XIX, só se efetivou no final do
XX, com a emancipação do Estado do Tocantins.
Os relatos são unânimes quanto às dificuldades das viagens, à natureza
exuberante e aos costumes da população. O que mais chama a atenção é o
estranhamento
47
dos viajantes estrangeiros ou não, e mesmo dos moradores do
sul do Estado, quando no desempenho de funções no antigo norte de Goiás com
relação às diferenças culturais, e seus sentimentos preconceituosos com referência
ao morador dessa região. Exemplar é o relato do Juiz Souza Filho (1980, p. 55-56)
que na década de 1930 foi designado para a comarca de Porto Nacional. Em sua
primeira sentença como juiz, ele próprio assumiu ter cometido injustiça por
desconhecer os costumes, os valores, enfim, as diferenças que existiam dentro de
um mesmo Estado, pois julgando um caso simples de desavença entre dois
moradores, por um ter quebrado uma panela de ferro do outro, ele julgou que uma
vaca solteira pagasse o prejuízo. Mais tarde, conversando com o promotor do local,
soube que naquela região uma vaca tinha valor muito baixo, apenas a metade do
valor da panela, que era de ferro e importada. Esse relato mostra a íntima relação
entre identidade e fronteira, e que o estranhamento com relação à região e à cultura
do outro reforça o sentimento de não pertencimento, enfim, um tipo de fronteira.
Tomando como exemplo o quadro de distribuição demográfica no território
goiano, nas regiões norte e sul (1738-1872), elaborado por Paulo Bertran (1978),
verifica-se que em 1872 a população de Goiás era de 149.743 habitantes. Desse
total, quase o dobro estava na região sul, ou seja, 96.490 habitantes, enquanto que
o norte contava com apenas 53.253 habitantes. Fato que torna esses números ainda
mais discrepantes é o de que, nessa antiga divisão, o norte de Goiás abrangia uma
área muito maior do que a de hoje, iniciando-se a partir de Traíras, próximo da
atual cidade de Niquelândia. Como mostra Palacin, o que se denominava norte
podia atingir uma região ainda maior:
O Norte economicamente é a parte de Goiás compreendida acima de uma
linha horizontal que passa por Pirenópolis. Essa latitude vem dividir o
Estado em duas grandes porções: a do sul que conta com recursos,
embora insuficiente ao desenvolvimento, e a do setentrião, que está
entregue ao mais criminoso dos esquecimentos (PALACIN, 1990, p. 14).
47
Questão analisada com mais profundidade no terceiro capítulo.
54
Os dados estatísticos mostram que, com o fim da atividade mineradora, a
tendência já existente de maior adensamento populacional na região sul vai
prevalecer e até mesmo aumentar. Isso ocorre devido, principalmente, à maior
proximidade do sul e sudeste goianos com o centro econômico nacional e porque
“se integravam às novas exigências por ele ditadas, de modo a responder aos
estímulos do tipo de economia desenvolvida e consolidava-se cada vez mais em
bases capitalistas” (CAVALCANTE, 1999, p.32).
Apesar dos diversos discursos, estudos e relatórios
48
ressaltando as inúmeras
riquezas e vantagens de investimentos em meios de comunicação no antigo norte
goiano, de concreto pouco foi feito em prol dessa região. Sem medidas realmente
eficazes, principalmente para a questão da navegação, desde o final do século XVIII,
com a queda da produção aurífera, ela permaneceu pouco povoada, ressentindo-se
desse problema até meados do XX. Além da escassa população, a maior parte
concentrava-se na imensa zona rural e às margens dos rios, havendo grande
dificuldade de comunicação. A economia era quase exclusivamente de subsistência,
salvo algumas exportações de excedentes pelos rios meio de comunicação
natural, mas problemático devido aos obstáculos naturais ou por tropeiros em
simples trilhos, pois estradas não havia. A comunicação do norte com a capital do
Estado era mais difícil do que com o Pará:
Em 1909 o padre João Lima de Boa Vista foi eleito deputado para a
assembléia. Devendo viajar para a capital [de Goiás], decidiu que o
caminho mais curto era o mais longo: de bote pelo Tocantins até Belém,
depois embarcado a o Rio [de Janeiro] pela estrada de ferro até
Uberlândia e daí a lombo de burro até Goiás. [...] Dez anos mais tarde, e
desde uma cidade muito mais próxima 900 km este mesmo percurso foi
seguido pelo Dr. Francisco Ayres, eleito deputado por Porto [Nacional],
para tomar posse de sua cadeira (PALACIN, 1990, p. 15).
O transporte de mercadorias e passageiros era feito principalmente pelo rio
Tocantins, para o Pará, ou por tropas em direção ao nordeste. Mesmo havendo uma
relativa melhora da incipiente e dificultosa navegação com a introdução dos barcos a
motor, o transporte ainda continuava bastante lento e impraticável em certos trechos
e em determinados períodos do ano. Enquanto para os botes a subida do rio era
praticável na época da vazante, quando o rio estava raso e oferecia apoio para
impelir o barco rio acima, com os motores ocorria o contrário, pois era possível
48
Ver também, na relação das fontes utilizadas, o alto índice de relatórios técnicos, discursos na Assembléia
Legislativa e as memórias dos presidentes da Província de Goiás sobre o assunto.
55
transpor certos trechos, como os encachoeirados, quando o rio estava cheio,
cobrindo os obstáculos.
A situação precária da região, principalmente ligada ao problema dos meios
de comunicação, vai persistir de forma mais contínua até a década de 1930, quando
se iniciam, no país, mudanças significativas que vão refletir em diversos setores.
Segundo Bertran,
A Revolução de 1930 no Brasil foi o coroamento, por cerca de 50 anos, de
uma série de mudanças econômicas, políticas e sociais, permitidas pela
crise internacional de 1929 e conseqüente retraimento das anteriores
junções do capitalismo entre nações (BERTRAN, 1988, p. 89).
Além das injunções internacionais, a ruptura interna mais importante foi a
emergência do processo urbano-industrial, que será intensificado com a instauração
do Estado Novo em 1937, pois “O desenvolvimento urbano-industrial do sudeste
reorientou a distribuição espacial das atividades econômicas no país, e reestruturou
o espaço agrário nacional” (BORGES, 2000, p. 16). É, pois, nessa conjuntura, que
os Estados de Mato Grosso e Goiás passarão a ocupar posições relevantes no novo
discurso nacionalista de Vargas, pois o Estado tomou medidas para que as riquezas
do interior fossem incorporadas ao Brasil; em outras palavras, a ideologia da Marcha
para Oeste. Segundo Rocha (1992), a Marcha para Oeste vai coincidir com outros
acontecimentos:
Nos anos 40, devido ao esforço de guerra, o governo americano garantiu o
apoio material necessário para que o Brasil promovesse o reaparelhamento
da Força Aérea Brasileira FAB e da aviação civil. O resultado, foi um
rápido incremento da utilização da aviação pelo Estado brasileiro, dotando-
o de meios necessários para a consecução de projetos, como o da
exploração das regiões centrais (ROCHA, 1992, p. 02).
Vejamos a situação da antiga região norte de Goiás numa conjuntura mais
ampla. Região periférica do Estado de Goiás, os moradores do antigo norte
conheceram o avião antes do automóvel
49
. O impacto da chegada dos aviões foi ali
sentido mesmo antes da década de 1940 e foi um marco importante e propiciador de
mudanças no cotidiano da população. A criação do Correio Aéreo Militar (1931), que
dez anos mais tarde passou a ser chamado de Correio Aéreo Nacional (CAN),
contou com os “bandeirantes do ar”, que deram início à tarefa de implantação de
49
Embora em Porto Nacional tenha ocorrido a chegada de um automóvel e de um caminhão em 1929, o seu uso
foi limitado pela falta de estradas.
56
campos de pouso
50
no interior do país, como mostra Cambeses Jr., (2007, s.p.):
“Naquela época, havia grande interesse da Pan American Airways em reduzir o
tempo gasto por seus aviões cumprindo a rota Miami-Buenos Aires, e não dispondo
de equipamento aéreo mais veloz, foi levada a procurar uma rota aérea que
encurtasse o caminho”.
Em 1935 foi feita a primeira viagem
51
na rota do Tocantins. O intinerário,
conforme Bacaleinick (2002), era o seguinte: Ipameri, Santa Luzia (hoje Luziâna),
Formosa, Calvalcante, Palma (atual Paranã), Peixe, Porto Nacional, Piabanha (atual
Tocantínia), Pedro Afonso, Carolina, Boa Vista do Tocantins (hoje Tocantinópolis),
Imperatriz, Marabá, Alcobaça (atual Tucuruí), Baião e Cametá, até chegar a Belém.
A partir da década de 1940 o transporte aéreo fazia parte da rotina dos moradores
da região. Segundo Borges,
No norte goiano, com a deficiência do transporte terrestre e fluvial, houve
um relativo desenvolvimento do transporte de passageiros e de carga via
aérea. Com o crescimento do comércio da carne bovina, os aeroportos de
Araguacema, Pedro Afonso e Porto Nacional foram muito utilizados na
região. Partiam, diariamente para Belém e outras capitais do Norte-
Nordeste, aviões carregados de carne verde proveniente dos matadouros
locais (CAPES, 1959 apud BORGES, 2000, p. 68).
a
De modo geral, as medidas tomadas e dirigidas pelo Estado na denominada
Marcha para Oeste não afetaram de forma direta o antigo norte do Estado de Goiás,
50
“Em 19 de agosto de 1931, é dada partida na expedição composta por Lysias Rodrigues, Felix Blotner,
inteligente e destacado funcionário da Panair do Brasil, a serviço da congênere americana, e seu prestimoso
auxiliar, um jovem chamado Arnold Lorenz, que percorreram os estados de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e
Maranhão, até chegar a Belém [no Pará]. O objetivo dessa árdua jornada era reconhecer o território e implantar
campos de pouso, de modo a viabilizar a navegação aérea e criar as condições imprescindíveis que facultassem
a execução de vôos dos grandes centros do Brasil para a Amazônia e que permitissem, também, uma nova e
econômica rota para os vôos realizados entre os Estados Unidos e o Cone Sul do Continente. Àquela época, as
aeronaves percorriam o arco irregular de círculo que descreve o litoral brasileiro para se deslocarem de um
extremo a outro do País, devido à existência de aeroportos em várias cidades litorâneas. Por sobre a Amazônia
e a região central, apenas mata fechada. Daí a importância da missão que foi atribuída a Lysias Rodrigues e o
ímpeto com que o notável desbravador abraçou o desafio, penetrando em profundidade, com destemor, na
natureza virgem daquela região, em realidade, um mundo desconhecido e cheio de mistérios sedutores para um
homem nascido e criado no Rio de Janeiro, então capital do País. Varando por terra o sertão bruto, com
galhardia e tenacidade, logrou alcançar Belém do Pará, em 9 de outubro daquele mesmo ano. Esta marcante
epopéia ficou registrada em seu diário de viagem e, mais tarde, foi incluída no livro que batizou de ‘Roteiro do
Tocantins’” (CAMBESES JR., 2007).
51
A viagem durou quatro dias, os dois enfrentando tempestades e pousos forçados, vendo pistas sendo abertas
com facões quase na hora da descida. O avião era um Waco CSO monomotor, biplano, com dois comandos e
duas nacelas. O bagageiro era pequeno e mal dava para acomodar a bagagem dos dois tripulantes, que podiam
até viajar com macacões, roupas mais confortáveis, mas precisavam descer nas cidades impecáveis, de farda,
botas lustradas, como convinha a militares na época. No entanto era uma missão do Correio Aéreo Nacional
(CAN), a primeira numa região completamente desprovida de comunicação, e o bagageiro viajava repleto de
jornais, revistas e cartas. Além disso, uma caixa de ferramentas era equipamento fundamental. Dentro dela,
martelo, pregos, chaves de fenda e alicates, além de tesoura, agulhas e pedaços de tela, importantes para
eventuais reparos no motor ou no revestimento do avião, todo de tela (BACALEINICK, 2002).
57
como será analisado a seguir. Abandonado, discriminado e explorado, na visão dos
nortenses, essa parte do Brasil vai continuar fora da onda de desenvolvimento que
atinge o país. Segundo Borges (2000), as ações podem ser apresentadas em três
blocos: “a) a construção de Goiânia e a transferência da capital; b) o prolongamento
dos trilhos da E.F. Goiás e a construção de uma rede rodoviária; c) a fundação da
Colônia Agrícola Nacional de Goiás e a criação da Fundação Brasil Central”
(BORGES, 2000, p. 73).
A construção da nova capital, Goiânia (na década de 1930), foi um fator que,
além de aumentar o percurso para chegar até ela, intensificou ainda mais as
diferenças entre o norte e o sul do Estado, pois uma capital moderna, deslocada um
pouco mais para o sul, significava novos investimentos e incentivos para essa
região, em detrimento do norte. Quanto às ferrovias e rodovias, as primeiras, só
atingiram a região sul, enquanto que a rede rodoviária
52
veio beneficiar o norte do
Estado na segunda metade do século XX. As duas últimas ações da Marcha
também não refletiram diretamente na região delimitada neste estudo: a Colônia
Agrícola Nacional de Goiás (CANG) foi implantada no Vale do São Patrício, no início
da década de 1940. Com a propaganda oficial, atraiu migrantes de todo o país. É
bom lembrar, entretanto, que é uma área bem distante da região em estudo e sua
ligação era muito mais direta com a parte sul do Estado. Por último, a Fundação
Brasil Central, criada em 1943, cujo principal objetivo era planejar e coordenar a
ocupação de áreas desabitadas na região central e oeste do país, visando o avanço
da fronteira agrícola, bem como a garantia da segurança na fronteira oeste. Dentro
dessa visão, foi criada a expedição Roncador-Xingu
53
, que também o atingiu a
região, pois o “[...] ponto de partida planejado para a cidade de Aruanã, localizada à
margem direita do rio Araguaia, foi transferido para Aragarças, passando pelo
sudoeste goiano, servindo a região com inúmeros projetos [...]” (BORGES, 2000, p.
79-80).
52
O primeiro Plano Rodoviário de Goiás, de 1946, tin
58
Não dúvida de que as ações políticas dos governos estadual e federal
desempenharam papel relevante no processo de ocupação do espaço regional, ou
seja, de Goiás como um todo. Entretanto, para o antigo norte do Estado, as
mudanças mais significativas vão acontecer após a abertura da rodovia Belém-
Brasília. De acordo com Borges (2000), o modelo de desenvolvimento capitalista
implementado no país que permitiu a integração intersetorial da economia brasileira
vai se completar nos anos 60.
A abertura da rodovia Belém-Brasília, que cortou a região na década de 1960,
faz parte de um contexto mais amplo. O país passava por transformações
importantes, sobretudo ligadas à infra-estrutura do setor de comunicação. O governo
de Juscelino Kubitschek, aproveitando-se de uma conjuntura favorável ao
financiamento externo para o setor rodoviário e para expansão da indústria
automobilística, vinculou a construção de Brasília à solução rodoviária para o país,
visando a sua integração física: o caminho para a integração do imenso espaço
vazio da Amazônia ao Brasil. A construção da rodovia permitia a incorporação da
região norte à fronteira agrícola, pois,
Antes da implantação da rodovia Belém-Brasília, as terras de mata da região
norte estavam ainda praticamente vazias e tinham pouco valor comercial.
Apenas algumas famílias de posseiros, provenientes sobretudo do Norte do
país, exploravam áreas de terras devolutas, dedicando-se às lavouras de
quase subsistência como atividade básica (BORGES, 2000, p. 87).
O intuito deste capítulo introdutório sobre o rio Tocantins foi mostrar seus
aspectos geofísicos, a penetração das bandeiras via rio Tocantins e o contato com
os povos indígenas da região, as medidas de incentivo para povoá-la e os discursos
sobre a natureza exuberante e riquezas extraordinárias de uma região abandonada
pelos poderes públicos. Ficou evidente que as medidas oficiais foram insuficientes
para resolver os conflitos étnicos e tirá-la do isolamento, e que as diferenças entre
sul e norte foram marcantes até a sua efetiva separação, com a criação do Estado
do Tocantins. É possível, portanto, considerar que todos esseslp emni ar ções
impormxp
59
1. 2 Uma fronteira sertão afora: navegando o Tocantins
Todos s sabeis que a navegação fluvial
poderá corrigir os defeitos resultantes da posição
central desta província e fazer desaparecer as
enormes distâncias e dificuldades do transporte
[...] que tem aniquilado quase completamente a
sua lavoura e comércio.
Francisco Cerqueira
Como visto no primeiro capítulo, havia uma contradição entre o discurso do
norte pobre, atrasado, isolado e sem assistência por parte do governo, contrastando
com uma outra idéia, também geral, de que ali havia inúmeras riquezas, fabulosas e
ocultas, a serem exploradas. Essa idéia, encontrada na memória tanto dos
habitantes da região quanto dos viajantes que por lá andaram, foi passada de
geração a geração e sedimentou-se no imaginário coletivo. Veremos agora como a
região, e principalmente a questão da dificultosa navegação pelo rio Tocantins, foi
apresentada nos relatos de administradores da província e em outros documentos. É
o olhar “de fora” sobre o rio e sobre o ribeirinho. Além dessas fontes, significativos
trabalhos acadêmicos sobre outros rios brasileiros trouxeram contribuições para a
elaboração deste texto
54
.
O título deste capítulo, Uma fronteira sertão afora: navegando o Tocantins,
tem sua razão de ser. A idéia que a expressão quer sugerir é a de que, num
momento específico, houve uma inversão no processo, passando o rio de via de
entrada, de penetração, a via de saída. Se antes, como visto no primeiro capítulo, a
conquista se deu do litoral para o interior - por terra e por rios - ou seja, sertão
adentro, na fase seguinte, quando acontece o esgotamento da mineração e o
conseqüente desenvolvimento de outras atividades na região central do Império, o
mote não é mais adentrar o sertão, e sim encontrar uma saída viável de contato com
o litoral, ou seja, ir sertão afora. A partir do século XIX, uma inversão da situação
anterior, o rio passa a ser visto como saída, ora como meio de transporte, ora como
fronteira a ser repovoada e como lugar de pacificação das tribos hostis. Essa visão,
constante principalmente nos discursos dos Presidentes da Província, defendia a
54
São eles: Os historiadores e os rios, de Victor Leonardi (1999); Cultura cabocla ribeirinha, de Therezinha
Fraxe (2004); Da foz à nascente, de Nancy M. Unger (2001); e a tese de doutorado da profa. Dra. Vanessa
Brasil, Margens e Veredas do rio São Francisco (1999).
60
necessidade de aproveitamento do Rio Tocantins (e Araguaia) como solução aos
problemas que entravavam o desenvolvimento da província.
É nessa conjuntura que os rios passam a ser vistos como uma nova fronteira
a ser conquistada e ocupada sistematicamente, para possibilitar uma ligação com o
litoral, uma saída em duplo sentido, como caminho e como meio de salvar a
Província do marasmo em que se encontrava. Essa era a solução defendida pelos
administradores ao longo do século XIX, como evidenciado a seguir.
Após uma série de leituras sobre a navegação do rio Tocantins, pude
perceber que os maiores obstáculos que impediam que esse meio de comunicação
proporcionasse maior desenvolvimento à região e às cidades ribeirinhas eram: os
obstáculos naturais, a fragilidade econômica da província, o vazio demográfico às
margens do rio e a falta de medidas concretas dos governos para solucionar os
problemas. Embora os empecilhos resultantes da formação sica do rio, armadilhas
comparáveis aos perigos das viagens em alto mar - cachoeiras, tropeções,
corredeiras e, em certos lugares, a falta de profundidade, principalmente no período
da seca apareçam como o principal e grande entrave à navegação, relatórios
técnicos mostravam que não seria muito difícil por fim a eles.
Na verdade, o dilema para a solução do problema era um círculo vicioso,
como afirmei em outra ocasião: se por um lado havia a necessidade de
investimentos, principalmente no setor de comunicações, para povoar e desenvolver
a região, por outro, não havia a certeza de que essas medidas proporcionariam os
resultados esperados (OLIVEIRA, 1997, p. 45). Uma análise mais profunda mostrará
que naquela época e contexto o havia condições econômicas nem vontade
política para uma solução satisfatória para os meios de comunicação em geral e
para a navegação em particular. Apresentando-se Goiás, tanto na época do Império
quanto nas primeiras décadas da República, como a periferia do país (CAMPOS,
1987, p. 20-21), o norte, em maior desvantagem ainda, podia ser visto como a
periferia da periferia.
Tanto administradores e funcionários designados para trabalhar na região
quanto os viajantes que por lá passavam, mostraram-se sensibilizados com as
dificuldades de comunicação e deixaram suas sugestões ao longo do século XIX e
na primeira metade do XX. Também os religiosos que lá se estabeleceram, e mesmo
os habitantes do lugar, deixaram registros, principalmente nos periódicos locais,
solicitando aos poderes blicos uma solução para tão custoso e perigoso meio de
61
transporte. Foram, portanto, constantes os discursos
55
sobre a necessidade de
alternativas que tornassem trafegável essa via de comunicação do interior, do
planalto central com o litoral. Mas o que se pode constatar é que as ações não foram
suficientes para a solução do problema, isto é, para tornar o rio francamente
navegável naquela época
56
.
Os discursos possibilitam compreender a extensão do problema, devido à
inoperância dos projetos e ao modo como a situação foi sentida e vivida pelos
ribeirinhos, sentimentos que certamente influenciaram de forma significativa na
formação de sua identidade e nas representações de seu mundo. Os investimentos
para a melhoria da navegação eram justificáveis na fase mineratória, quando a
capitania proporcionava algum lucro. Foi nesse mesmo período, entretanto, que a
proibição da navegação se efetivou, pelo Alvará de 27 de outubro de 1733, a fim de
combater o contrabando do ouro por outras vias de comunicação que não as
permitidas pela Coroa. Quando foi revogada, em 1782, a produção aurífera
entrava em franca decadência (PALACIN; MORAES, 1989).
Com o declínio da mineração, algumas medidas foram tomadas na tentativa
de povoar as margens dos rios: isenção do serviço militar a quem se dedicasse à
navegação; concessão de sesmarias às margens dos rios Araguaia, Tocantins e
Maranhão a sócios de companhias de navegação; isenção de dízimos da produção
agropastoril; moratória aos devedores da Fazenda; permissão de utilização de índios
hostis como mão-de-obra; e criação de presídios militares e aldeamentos indígenas.
Todos esses incentivos, porém, não trouxeram resultados efetivos para a região, que
continuou, por séculos, nas mesmas condições da época dos primeiros
povoamentos.
O periódico Matutina Meyapontense, editado na década de 1830, dedicava
algum espaço para tratar da atuante, mas dificultosa atividade da navegação fluvial
do rio Tocantins. No ano de 1831, esse veículo de informação transcreve a fala do
presidente da Província, Miguel Lino de Moraes, dirigida ao Conselho Geral, na qual
ressaltava que:
55
Para o estender muito nem tornar repetitivas as narrativas, escolhi apenas alguns dentre eles para se ter uma
idéia de suas visões sobre o assunto.
56
Atualmente estão ocorrendo intervenções no leito do rio Tocantins, não mais com o único objetivo de torná-lo
navegável. Os projetos prevêem que após a construção de barragens para hidrelétricas, sejam construídas
também eclusas que permitam o trânsito de barcos e balsas principalmente para o transporte de grãos da
região. Atualmente está em andamento a construção da eclusa do Lajeado, situada junto à UHE Luis Eduardo
Magalhães, entre as cidades de Palmas e Pedro Afonso.
62
A navegação de Porto Real e Carmo para o Pará continua com furor, este
ano desceram dezessete embarcações
57
, e mais desceriam se houvesse
cargas, o obstante os riscos que correm os navegantes e suas
carregações com os obstáculos do rio [...] e pelas ciladas, que o gentio
bravo procura fazer (MATUTINA MEYAPONTENSE, n
0
. 123, 1831).
O viajante francês Castelnau, em passagem pela região em 1840, afirmava
que, embora o Tocantins não fosse um rio próprio à navegação, era, entretanto, “[...]
por este rio, cujo curso pavorosas cachoeiras interrompem a cada momento, que se
fazem todas as comunicações com o Pará” (CASTELNAU, 1949, p.235). Somados a
essas dificuldades, destacava-se o constante perigo de ataques indígenas.
Entretanto, no coro em defesa da melhoria das condições de navegação dos rios
que cortam a Província, as vozes mais contundentes o as dos Presidentes da
Província. Em 1841, um ano após as constatações de Castelnau, o presidente da
Província, José Rodrigues Jardim, defendia que a solução para tirá-la do isolamento
e, conseqüentemente, estimular o aumento da produção da lavoura seria um melhor
aproveitamento dos rios como meios de transporte.
A lavoura é feita para o consumo do país, é esta a razão de
experimentarmos faltas consideráveis quando a estação não corre regular:
assim não aconteceria se barcos prontos a carregar para o Pará
demandassem os gêneros. Ah! Senhores o meu coração se contrita quando
recordo que na minha pátria se tem aberto o canal da prosperidade e este
se acha abandonado; parece-me que do túmulo hei de ouvir aos vindouros
incriminarem os seus antepassados (JARDIM, 1986, p. 197).
Esses relatórios, que tinham como característica principal destacar as
dificuldades de comunicação da Província e sugerir medidas voltadas para o
aproveitamento dos caminhos naturais, perpassam todo o período imperial. Em
1858, o Presidente Francisco J. da Gama Cerqueira (1997, p.151) argumentava que:
“[...] a falta absoluta de recursos nas vastas solidões banhadas pelos dois rios e a
presença de numerosas nações gentílicas que infestavam as suas margens eram os
primeiros e maiores obstáculos que cumpria fossem removidos”.
A defesa de Cerqueira por medidas em prol do melhor aproveitamento dos
rios para a navegação tem sua razão de ser, como mostra a relação, recebida por
ele em 1858, dos barcos e das mercadorias transportadas no percurso do Alto
57
Considerando que Monte do Carmo não é uma cidade portuária, e que as mercadorias provenientes de lá eram
embarcadas no Porto Real, esse número significativo de barcos ou era todo de Porto Real ou também de
cidades que ficavam à beira-rio, mais ao sul, como Paranã e Peixe.
63
Tocantins-Belém
58
, a qual era considerável. Seus relatórios contêm dados que
comprovam que a navegação era uma atividade importante, como mostram os
quadros seguintes.
Tempo da
viagem
Barcos
Denomi-
nações
Nome
dos
barcos
Tripulação
Lotações
Lugar de partida
Descida
Subida
Observações
Bote Imperador 21 2.000 @ Porto
Imperial
25 dias 6
meses
Igarité - 9 150 @ Idem Idem Idem
Bote Memória de
S. Anna
17 1.800 @ Idem Idem Idem
Igarité Catraia 7 100 @ Idem Idem Idem
Bote São José 21 2.000 @ Idem Idem Idem
Igarité - 9 250 @ Idem Idem Idem
Igarité Boa Sorte 11 300 @ Idem Idem Idem
Bote Santo
Antônio
19 1.400 @ Idem Idem Idem
Igarité - 7 150 @ Idem Idem Idem
Bote Bom Jesus 17 1.700 @ Idem Idem Idem
Bote Sr. do
Bonfim
11 300 @ Idem Idem Idem
Bote Santa Anna 17 1.500 @ Idem Idem Idem
Igarité - 9 220 @ Idem Idem Idem
Bote Sra. das
Neves
21 2.500 @ Idem Idem Idem
Bote Bom Jesus 19 1.400 @ Idem Idem Idem
Igarité Galiota 7 150 @ Idem Idem Idem
Bote Olímpio 11 250 @ Pedro
Afonso
23 dias 4
meses
Bote Sra. de
Natividade
21 1.900 @ Manoel
Alves
27 dias 6
meses
Igarité - 7 150 @ Idem Idem Idem
Além do sal
(mercadoria de
maior peso nas
importações), foram
importados outros
gêneros, como:
fazendas, secos e
molhados, farinha de
trigo, chumbo,
pólvora, aço e ferro
em barra.
A cada bote,
acompanha uma
montaria [um tipo de
canoa] com três
pessoas.
Os dados completos
do quadro original
mostram que os
únicos produtos
relacionados na
exportação são os
couros de gado, mas
sabe-se que
transportavam uma
infinidade de outras
mercadorias
produzidas na
região.
Total
- 261 18.220@ - - - -
Quadro n.
0
2: Movimento de barcos pelo rio Tocantins até o Pará – Porto Imperial (1857).
Fonte: Cerqueira (1979, p. 179).
58
Os quadros n.
0s
2 e 3 apresentam dados referentes aos
relatórios de autoria de Vicente Ayres enviados ao
presidente da Província Francisco J. G. da Cerqueira. Eles são apresentados em duas datas e locais: o primeiro
é da cidade de Porto Imperial em 25 de fev. de 1858 e o segundo da cidade de Palma (Paranã), 30 de abril de
1858. Embora datados do ano de 1858, os relatórios referem-se ao movimento da navegação do ano de 1857.
64
Tempo da
viagem
Barcos
Denomi-
nações
Nome
dos
barcos
Tripulação
Lotações
Lugar de partida
Descida
Subida
Observações
Bote Flor do Mar 17 1.600 @ Palma
59
30
dias
200
dias
Bote São João
da Palma
19 2.000@ Idem Idem 210
dias
Bote Bom Jesus 15 1.000 @ Idem 33
dias
260
dias
Bote Patacho 15 1.200 @ Idem 30
dias
210
dias
Bote Socorro 17 1.600 @ Idem Idem 200
dias
Bote Sant’Anna 15 1.200 @ Idem Idem 160
dias
Bote Espírito
Santo
19 2.000 @ Idem Idem 200
dias
Bote Aurora 13 700 @ Idem Idem [ileg.]
Bote Natividade 19 2.000 @ Idem 40
dias
200
dias
Bote Senhora da
Abadia
17 1.600 @ Idem 30
dias
200
dias
Bote Flor do Mar 17 1.600 @ Idem Idem 200
dias
Total
-
183
16.500
@
- - -
O preço dos couros na
ocasião do embarque
regula 2.000 réis.
Alguns desse botes
desceram em 1856
para o Pará, porém
todos chegaram em
1857, sendo que o
primeiro chegou nesse
ano, e fez outra viagem
redonda.
Quadro n.
0
3: Movimento de barcos pelo rio Tocantins até o Pará Palma (1857).
Fonte: Cerqueira (1979, p. 180).
Os dados aqui apresentados mostram que o maior número de embarcações
do Alto Tocantins partia de Porto Imperial (9 botes e 7 igarités) e Palma (11
botes). Embora na relação apareça como mercadoria exportada apenas o couro,
como demonstrado anteriormente, havia muitos outros produtos
60
,
principalmente para o comércio ao longo da viagem. Do mesmo modo acontecia
na viagem de volta, em que o produto de maior peso era o sal, mas
acompanhava-o todo tipo de mercadoria inexistente no sertão. Ayres da Silva
(1972, p. 18), em viagem de bote de Porto Nacional até o Pará, afirmava que
“Belém nada recebe do que o bote conduz ao descer, pois que tudo é vendido ao
correr da viagem, nos diferentes pontos ou povoados existentes à beira rio”. O
59
Palma é hoje a cidade de Paranã – TO, na confluência dos rios Paranã e Palma, afluentes do rio Tocantins.
60
Na viagem de ida, ou seja, descendo o rio em direção a Belém, após ter passado por Marabá, era costume se
desfazer de mercadorias invendáveis, como também deixar em diversos pontos produtos alimentícios
imperecíveis para quando estivessem retornando. Denominavam-se invendáveis os produtos estragados
durante a viagem ou aqueles que não alcançavam preço satisfatório: “A carga invendável, presentemente, é o
fumo, cuja colheita, neste ano, foi excessiva por toda parte das ribas do Tocantins [...]” (SILVA, 1972, p. 64).
65
autor referia-se aos produtos que interessavam aos moradores ao longo do rio,
preferencialmente aos rios, em Marabá, que compravam toda sorte de
mercadorias
61
. No caso dos couros - carga de maior peso nas viagens - eram
levados até Belém: “Estamos em Arumateua. Aqui o bote pára, durante algum
tempo, para descarga de objetos invendáveis e bater-se a polia dos couros, que
têm de ser levados ao mercado de Belém” (SILVA, 1972, p. 63).
Couto Magalhães, quando presidiu a Província (1863-1864), tomou medidas
práticas para incrementar o meio de transporte fluvial. Ele atribuía à grande
extensão do território o maior empecilho ao desenvolvimento da Província, pois a
pouca gente civilizada” era obrigada a conviver com os bravios povos indígenas.
Em sua opinião, dentre outros problemas, os mais evidentes eram os campos não
cultivados, pela falta de braços e ausência de embarcações nos rios, o que
entravava o desenvolvimento da Província.
Ter boas vias de comunicação eis o meio de ter rendas, de fazer prosperar
esta Província, eis a única coisa que [...] pode converter em florescentes
cidades essas matas sombrias que cobrem nossa terra; em núcleos de
população rica, industriosa e feliz (MAGALHÃES, 1998, p. 227).
O presidente Joaquim Leite Moraes (1881), após deixar o cargo administrativo
da Província, em viagem de volta para o litoral, via Araguaia-Tocantins, mostra-se
surpreso com a imensidão e isolamento das margens desse rio e admira-se da
aptidão e coragem dos barqueiros, exclamando:
Como estamos afastados do mundo! Que distância enorme nos separa do
século XIX. E o Tocantins é navegável? Sim porque o homem é o nio
da contradição com a natureza que o cerca, com o espaço, com o tempo,
com a vontade de Deus! É por isso que o nosso fleumático Valentin [o
cozinheiro], ao entrarmos em desfilada na garganta da Itaboca [cachoeira],
ele, que não se perturba nem com as tempestades do céu e nem com as da
terra, abandona o fogão às ondas, toma um lugar entre os remeiros, troca a
sua colher de pau pelo remo [...] (MORAES, 1995, p. 265).
Seu relato torna-se às vezes contraditório, ora elogiando os navegantes por
sua coragem e determinação, ora recriminando-os e tomando o partido dos patrões,
como quando se refere às suas inúmeras reclamações sobre a não observância dos
contratos e sobre a vontade dos remeiros em ocasiões como esta: “os
camaradas continuam com má vontade. O caboclo é assim; aqui gigante e ali
61
“O bote, chegando à Marabá é logo invadido pelos sírios à cata de objetos de comércio: carne, farinha, arroz,
feijão, doces, queijos, biscoitos, toucinho, etc., e de tudo se abastecem mais ou menos fartamente, inclusive de
galinhas. Pagam bem e com seriedade” (SILVA, 1972, p. 53).
66
pigmeu; agora um bravo e logo um covarde” (MORAES, 1995, p. 277). Os periódicos
eram também canais de desabafo dos patrões sobre as dificuldades e sofrimentos a
que estavam sujeitos:
Fora longo referir-vos quanto sofre um pobre homem, que empreende a
navegação do Pará [...] Para não ver seus barcos alagados ou
abandonados se coloca na dura necessidade de obedecer ao menor aceno
dos camaradas, de aturar suas injustas pretensões (FOLHA DO NORTE, n
0
.
47, 1894).
O conteúdo dos relatórios dos presidentes da Província evidencia que havia
unanimidade em seus discursos sobre a melhor solução para tirar a Província do
estado de estagnação em que se encontrava: a melhoria das vias de comunicação,
sendo que a navegação se apresentava como a oão mais viável. Como bem
observou Garcia
62
(1999, p. 142), “A luta pelo progresso e o desejo de alcançar um
outro patamar de participação na esfera nacional constituíram o horizonte maior
desejado pelos presidentes”. A autora acrescenta que “A localização central de seu
território, segundo opinião corrente na época, era um fator que, ao invés de positivo
pesava negativamente no desenvolvimento da Província”.
É interessante notar que a posição dos administradores ao reconhecerem a
deficiência de comunicação da província com o litoral, defendendo a urgente
necessidade de aproveitamento dos rios como meios de transporte e como forma de
povoar suas margens, coincide com o período de diminuição da produção aurífera
em Goiás. A questão da navegação não se apresentava como um problema isolado,
mas como solução para tirar a Província da estagnação em que se encontrava.
Enfrentar o problema da navegação proporcionaria soluções para outros problemas,
tais como: o ralo povoamento das margens dos rios, a catequese indígena, a falta de
mão-de-obra na região, a escassa produção agrícola e, evidentemente, a questão
da insignificante renda pública. Além das considerações de ordem econômica, o
fator mais importante era diminuir o isolamento da Província, portanto a solução
mais sugerida era investir nos caminhos naturais, ou seja, na navegação fluvial.
Apesar dos discursos em defesa de ações nesse sentido, o período imperial
chegou ao final e a situação da Província permanecia quase inalterada. Os
discursos sobre os ganhos com a integração da Província de Goiás ao comércio
62
Ledonias Franco Garcia é historiadora, professora aposentada da UFG. Em sua tese de doutorado (1999)
intitulada Goyaz: uma Província do Sertão, a autora procede a um estudo comparativo entre os sertões do
Brasil e os pampas da Argentina.
67
litorâneo, pelos rios, foram muitos, mas ações concretas não se realizaram, pois
passado o auge da mineração, o poder central perdeu em muito o interesse pela
região. A própria localização geográfica de Goiás, província central, eminentemente
pecuarista
63
e de expressão quase nula no contexto global do país, o impelia os
órgãos governamentais à execução de obras arrojadas que facilitassem as
comunicações, visto que o grande pólo de desenvolvimento econômico estava
concentrado na região centro-sul, integrada ao grande comércio de exportação.
Dessa forma, Goiás adentra o século XX sem que os sonhos de integração ao
território nacional fossem realizados. A navegação, entretanto, continuava
desempenhando seu imprescindível papel, como retrata o quadro seguinte,
demonstrando que, na virada do século XIX para o XX, o número de botes em Porto
Nacional ainda era bastante significativo.
BOTE PROPRIETÁRIO
Bantim Capitão José Theodoro
Conde d’Eu Major Joaquim Ayres da Silva
D. Pedro Major Mizael Pereira
Santo Antônio Idem
Cruzeiro do Norte José Ayres da Silva
Suzana Pedro Ayres da Silva
Tocantins Idem
Alcântara Frederico Ferreira Lemos
Mineiro Idem
Intendente Idem
Bemquerer Idem
Onça Idem
Passarinho Idem
Crixás Josué de Oliveira Negry
Prainha Idem
Tico-Tico Idem
Brazileiro Ten. Cel. M. Bezerra Brazil
Campo Bello Idem
Estado Maior Frederico José Pedreira
Paraense Srs. Lemos & Negry
Perseverança Idem
Tamandaré Major Raymundo Ayres da Silva
Humaytá Viúva Dona Rachel de C. Ayres
Tiradentes Idem
Porto Nacional Idem
O Lidador Capitão Raphael F. Belles
Corveta -
Aquidaban -
Quadro n
0
4: Alguns botes de Porto Nacional e seus respectivos
proprietários (1891-1907).
Fonte: Oliveira (1997, p. 55).
63
Após o declínio da mineração, a atividade de maior expressão na Província era o gado, que vinha sendo
criado solto, concomitante com a extração do ouro. Sendo as estradas simples trilhas e os meios de transporte
rudimentares, esse era o produto que melhor se adequava à sua localização, por ser um produto que se
autotransportava.
68
Mesmo levando em conta o número considerável de embarcações, as
notícias encontradas nos periódicos locais no início do século XX acenam para a
redução da atividade de navegação, com previsão de seu aniquilamento total. Pode-
se concluir que, se em Porto Nacional, tal atividade havia sofrido redução, nas outras
localidades a situação seria igual ou pior:
Estão prestes a descerem para o Estado do Pará os pouquíssimos
proprietários de embarcações que se abastecem naquela praça comercial.
[...] Ante as dificuldades enormes ocasionadas pela falta de braços e a vida
dispendiosíssima no custeio da viagem, o comércio pelo Tocantins tem,
como que, entrado em franco marasmo [...] O marasmo que se nota, de
certo tempo a esta parte é de caráter tal que prenuncia total aniquilamento
em futuro não remoto (NORTE DE GOYAZ, n.º 36, 1907).
Interessante é o depoimento de 1914 do juiz Manuel Buarque sobre viagem
de barco via Tocantins-Araguaia
64
. Seu relato, às vezes em tom de desespero, pode
ser melhor compreendido se levarmos em conta que ele se encontrava
acompanhado da família, daí uma maior preocupação com tamanho desconforto
enfrentado durante o percurso:
O Brasil precisa da verdade, e nós a diremos sobre o Tocantins e o
Araguaia, porque a verdade é que salva as nações. Sem contestação
alguma, o maior dos sacrifícios que um homem pode fazer, é realizar com a
família uma viagem de Belém a Conceição do Araguaia; e por maior
fecundidade que tenha, quem descrevê-la, dará apenas um lido reflexo
dos sofrimentos experimentados (BUARQUE, 1919, p. 33).
Nas duas primeiras décadas do século XX, as referências sobre o decréscimo
da atividade de navegação se multiplicam. Em 1917 consta a seguinte nota na
Revista Informação Goyana:
Em todo esse tempo, Porto [Nacional] se tornou o ponto do mais importante
escambo comercial do norte goiano, pois dali partiam nada menos de trinta
embarcações, anualmente, para o mercado do Pará e para ali convergiam
as tropas de todos os municípios da zona norte de Goyaz. Tal era a
situação do município goiano nortense ao defrontar-se com o novo regime
[...] Porto Nacional como que estacionara, e dos trinta barcos que
trafegavam o grande rio, passou a existir uma meia dúzia [...]
(INFORMAÇÃO GOYANA, ano I, vol. I n.
0
5, 1917).
64
O juiz Manuel Buarque saiu de Belém no início do século XX para assumir o cargo de juiz na cidade de
Conceição do Araguaia. Viajou até a confluência dos rios Tocantins e Araguaia, na região denominada de
Bico do Papagaio onde hoje se localiza a cidade de São João do Araguaia e seguiu pelo rio Araguaia até
seu destino.
69
As matérias referentes à esperança de melhoria da atividade de navegação
são comuns nas diversas fontes pesquisadas. Dentre elas, sobre a navegação a
vapor é uma constante. Se um barco a vapor chegou ao rio Araguaia ainda na
década de 1860
65
, por incentivo de Couto Magalhães, no Alto Tocantins sua
chegada se fez esperar por muito mais tempo. Em 1901 o periódico de Porto
Nacional noticiava como certa a sua breve chegada naquele porto: “A navegação a
vapor [...] não é mais simplesmente um projeto, uma idéia problemática. Ela está
definitivamente assentada, será em breve tempo uma realidade [...]” (O INCENTIVO,
n
0
. 1 e 3, 1901). Mas a região do Alto Tocantins precisou esperar por mais vinte
anos para que esse sonho se concretizasse. Segundo periódico local a primeira
lancha a vapor chegou em Porto Nacional em 1922. No ano de 1924 são constantes
as notícias sobre presença desse tipo de embarcação na região:
Acha-se ancorada no porto de Carolina desde o dia 4 a lancha Cel. Eugênio
Jardim de propriedade de uma empresa particular de Porto Nacional e em
trânsito para aquela região. [...] Por sua vez, Porto Nacional está servido
pela lancha ‘Mercês do Cel. Frederico Lemos, que faz o trecho livre
empreendendo entre as cachoeiras do Funil Mares Pilões e a da
Carreira Comprida, ou mesmo até o Peixe, aonde foi ultimamente
(INFORMAÇÃO GOYANA, ano VII, vol. VII, n.
0
11, 1924, p. 84).
Dois anos depois, a mesma fonte informa que a dificuldade de transporte
fluvial “agora é um obstáculo vencido”; afirma ser animador o movimento de lanchas
e motores no rio Tocantins e cita nomes de barcos e proprietários.
Eli Brasiliense, em seu livro Rio Turuna, também fornece informações sobre o
período de transição, em que os botes vão perdendo espaço para embarcações
mais ágeis e possantes para o transporte no rio Tocantins: “O início da decadência
dos botes fora a chegada de uma lancha a vapor, a N. S. das Mercês, cujo apito
fanhoso começou a espantar as assombrações do Tocantins. Simão
66
não
considerava aquilo invenção de gente” (BRASILIENSE, 1964, p. 18).
65
Um barco a vapor chegou ao rio Araguaia em 1868, mas a implantação da navegação a vapor nesse rio só
ocorreu de fato na década de 1870 (DOLES, 1973) e, no Alto Tocantins, somente no século XX.
66
Personagem de seu livro, homem que vivia na beira do Tocantins em completa interação com ele.
70
Fotografia n.° 1 – Desenho de um bote em construção – Burchell 1829.
Fonte: Ferrez (1981).
Fotografia n.° 2 – Barco a motor (década de 1950).
Fonte: Andreoni (1950).
71
As notícias sobre a inovação no transporte fluvial se sucedem:
Vencendo mil obstáculos, transpondo inúmeras dificuldades, vão
conseguindo de pouco a pouco efetuar a navegação a vapor dos rios
Tocantins e Araguaia. Alguns arrojados comerciantes de Porto Nacional e
Conceição, resolveram empregar capitais em barco a vapor e, podem
dizer, a navegação a vapor dos dois rios é um fato (INFORMAÇÃO
GOYANA, ano VI, vol. VI, n. 3, 1922).
O avanço tecnológico na atividade de navegação fluvial, com o advento dos
barcos a vapor e a motor
67
, traz algumas mudanças para a vida dos ribeirinhos, mas
não são transformações radicais. Seu dia-a-dia continua voltado para o rio, que
as viagens se tornam mais rápidas e o são mais dependentes exclusivamente da
força dos remeiros. O silêncio é preenchido pelo barulho mecânico, mas na
passagem das cachoeiras enfrentam o mesmo problema de antes, pois é impossível
fazer a transposição com os barcos carregados de mercadorias; daí ainda haver
necessidade de mão-de-obra nesses pontos para aliviar os barcos, ou seja,
atravessar a mercadoria por terra, nas costas ou em lombo de animais.
O Brigadeiro Lysias Rodrigues, ao viajar pelo Tocantins na década de 1930,
descreve criticamente a precariedade material encontrada em toda a rota percorrida
e, às vezes, deslumbrado com a paisagem, questionava sobre o progresso que
um dia haveria de chegar para aquela região:
[...] olhando aquele rio [Tocantins] que o luar transforma em prata líquida,
ficamos “imaginando” o que será toda essa riquíssima região, no dia que
tiver transporte fácil pelo rio ou uma boa rodovia ligando todos esses
núcleos de civilização [...] E pensamos quantas gerações passarão antes
que este sonho se realize?! (RODRIGUES, 1978, p.120).
As viagens pelo rio Tocantins tiveram diferentes significados para as
populações ribeirinhas. Além de serem o meio mais viável para a venda do
excedente de produtos e aquisição de bens indispensáveis à sobrevivência,
representavam também, como observou Julio Paternostro (1945, p.182), uma
possibilidade de trocas culturais: “Às trocas de mercadorias entre os homens
seguem-se as trocas de idéias, pensamentos”. As viagens, portanto, sempre
representaram tanto possibilidades econômicas quanto uma forma de contato com
outras culturas.
67
Detalhes sobre os “motores” encontram-se no capítulo sobre Pedro Afonso.
72
Ainda na década de 1940, após mais de um culo de discursos, relatórios e
clamores em prol da melhoria da navegação fluvial, os estudos das possibilidades de
incrementá-la continuam, pois os governantes ainda acreditavam que a saída para
desenvolver a região estava na navegação, como mostra a seguinte mensagem do
governador de Goiás, Jerônimo Coimbra Bueno:
[...] foi promovida a criação da Comissão de Estudos e obras do rio
Tocantins, mantida com verbas federais e estaduais, cabendo-lhe a
execução de uma enorme tarefa, com os trabalhos iniciados em julho de
1948 sob a chefia de abalizado técnico na matéria. A comissão tem sua
sede na cidade goiana de Porto Nacional (BUENO, 1949, p. 33).
Dentre os relatórios técnicos destaca-se o de Aldo Andreoni, incumbido de
examinar e formular sugestões sobre os tipos de embarcações mais adaptáveis à
navegação do rio Tocantins em 1948. Andreoni destaca que, na Ilha do Areião, entre
as cachoeiras de Itaboca e do Inferno,
[...] foi construída uma estrada de rodagem de 6,5 km servindo
perfeitamente para transpor esses obstáculos naturais [...] permitiu que
essas estradas entrassem em franca atividade, baldeando as cargas dos
50 barcos a motor que percorrem o rio na sua parte média e baixa. [O
empreendimento] apresentou no ano de 1947 um lucro de 400 mil cruzeiros
cifra nunca atingida pela estrada de ferro, nem no seu movimento bruto
anual (ANDREONI, 1948, p. 12).
Em 1960 o jornal Diário do Oeste (n.
0
105) estampa a seguinte manchete:
Usina do Lajeado será uma realidade do Norte. A cachoeira do Lajeado, à qual se
refere a notícia, está situada entre Porto Nacional e Tocantínia, onde
recentemente foi construída uma barragem. Apesar de os discursos e projetos em
prol da navegação e desenvolvimento da região terem sido constantes, não tiveram
o êxito esperado.
Mesmo sendo o rio Tocantins um caminho natural, a possibilidade de utilizá-lo
como meio de comunicação, pela navegação, foi possível pela intervenção do
homem, ao superar os obstáculos naturais, construindo embarcações próprias e
aprendendo a lidar com a força da correnteza. Apesar de todas as declarações
referentes às dificuldades enfrentadas pelos ribeirinhos, pode-se dizer que, até a
década de 1960, o morador das cidades beira-rio esteve menos isolado do que o
morador das cidades que estavam fora das rotas de um rio navegável. A navegação,
embora limitada pelo calendário pluvial, os colocava em contato com outros
povoados ribeirinhos e com o litoral.
73
A pesquisa nos jornais
68
O Popular, Jornal de Notícias e Diário do Oeste
possibilitou algumas observações sobre a região e os moradores, por ocasião da
abertura da rodovia Belém-Brasília. Em primeiro lugar, fica evidente que a região
norte quase aparece nesses meios de comunicação quando recebe a visita de
autoridades do sul, geralmente em campanha político-eleitoral. Mesmo em plena
abertura da Belém-Brasília, pouco se noticia sobre ela. Vale observar também o
modo como a região é apresentada aos leitores, pelo uso de expressões como:
mundo desconhecido, terra de ninguém, o norte entregue a sua própria sorte, sertão
inacessível. Em 1958 O Popular noticia que um “Mundo desconhecido está sendo
descoberto na selva amazônica”. E no ano seguinte afirma que “A rodovia Brasília-
Belém [como era chamada no início], com uma extensão de 2.500 quilômetros,
abrirá ao aproveitamento útil, uma área superior a 1.867.000 milhas quadradas de
sertão inteiramente inacessível no planalto central [...]” (O POPULAR, 09/01/1959).
Nesse mesmo período o Jornal de Notícias (n
0
. 60, 17/11/1957), traz
interessante matéria intitulada “O Norte entregue a sua própria Sorte”, sobre a
revogação, pelo governo, dos privilégios dos funcionários da região quanto aos seus
vencimentos: “Revogadas as Leis n.
0
[?] de 3/8/49 e 996 de 26/11/54 que concediam
vantagens aos funcionários do setentrião goiano”. Uma das vantagens referia-se ao
acréscimo de um terço ao tempo de serviço prestado no norte de Goiás pelos
funcionários públicos. A existência da Lei é, de certa forma, o reconhecimento oficial
das diferenças marcantes entre o norte e o sul do Estado de Goiás, na época.
É nesse contexto que chega a rodovia que irá mudar de forma radical a
ocupação da região. Primeiro foi o ouro a principal atração para um aumento
significativo do contingente humano no norte de Goiás; em seguida, principalmente
no século XIX, foi o rio que teve primazia como condensador de populações, mas,
como mostra Wagner Almeida, essa conjuntura vai se modificando:
Antes os cursos dos rios constituíam os indicadores básicos para a
localização de povoados, eram as beira-rio, que se opunham aos centros,
áreas de roças e de estradas de seringa na mata; agora as margens das
rodovias constituem os elementos prioritários na escolha (ALMEIDA, 1974,
p. 16).
A observação é válida para compreender as transformações ocorridas na
região aqui focalizada, pois a construção da rodovia Belém-Brasília promoveu
68
Foram analisados os números que correspondem ao período de 1957 a 1960.
74
alterações significativas no norte de Goiás, principalmente devido à contínua
chegada de migrantes para os núcleos nascentes às margens da rodovia
69
. Os
contatos entre etnias diferentes proporcionaram transformações tanto na paisagem
geográfica como na humana.
Pelas anotações de Lysias Rodrigues anteriores à abertura da rodovia
percebe-se que já havia a tendência de algumas localidades da margem esquerda
do rio Tocantins apresentarem maior desenvolvimento que as da margem direita.
Tocantínia perde seu prestígio para Miracema, lugarejo na margem
esquerda do Tocantins, vis-a-vis com Tocantínia, cada dia que passa.
Ligada como está Miracema a Peixe e aos garimpos de cristal por estradas
de rodagem, dia a dia ganha maior importância e mais se desenvolve. O
que se verifica, repete em quase todas as localidades da margem direita
do Tocantins, por longos anos com preponderância absoluta. Parece que a
civilização parou para adquirir forças e saltar o rio. As novéis localidades
criadas na margem esquerda do Tocantins progridem com a aviação,
geometricamente, breve superando as da margem direita, das quais se
originaram. Fenômeno singular (RODRIGUES, 2001, p. 127).
Apesar de a maioria das fontes apontarem para certa decadência das cidades
situadas na margem direita do rio Tocantins somente após o advento da Belém-
Brasília, é necessário considerar o depoimento de Lysias Rodrigues, que conheceu
bem a região tocantina. Uma explicação para o fato pode estar também na
descoberta e exploração das minas de cristal justamente na região localizada entre
os dois grandes rios, o Araguaia e o Tocantins, onde nasceram cleos urbanos
décadas antes da abertura da estrada (ver mapa n.
0
4), como ressaltado pelos
geógrafos Horieste Gomes e Teixeira Neto:
Esse fator de urbanização [garimpagem de cristal] foi muito importante,
especialmente no vale do Araguaia (Estado do Tocantins). Duas regiões de
garimpo bem distintas situam-se nos dois Estados. Ao norte, floresceram,
nos anos 40 e 50, os garimpos de cristal (quartzo), criando cidades como:
Ananás, Arapoema, Xambioá, Paraíso do Norte, Dois Irmãos, Pium,
Cristalândia, Dueré e Formoso do Araguaia (GOMES; TEIXEIRA NETO,
1993, p. 77).
Mostrar o desenvolvimento dos núcleos surgidos com o garimpo de cristal
antes mesmo do advento da Belém-Brasília ajuda a compreender que a
construção da rodovia foi um elemento que trouxe transformações significativas para
a região, mas que mesmo antes dela algumas mudanças estavam se
processando. É necessário considerar também que as rupturas não ocorreram de
69
Detalhes sobre o impacto da rodovia Belém-Brasília encontram-se na segunda parte da tese.
75
forma brusca, foi um processo lento; mesmo após a abertura da rodovia muitos dos
costumes dos habitantes persistiram por um longo período
70
.
Uma fronteira sertão afora mostrou que os debates sobre o aproveitamento
do rio Tocantins como meio de comunicação foram constantes tanto nos discursos
dos presidentes da Província, como em outros depoimentos e relatos na busca por
uma saída do sertão, no intuito de tirar a província do marasmo econômico em que
se encontrava, principalmente após o declínio da produção aurífera. Embora o
comércio com a capital do Pará tenha sido contínuo e o volume de mercadorias
significativo, essa via de comunicação não conseguiu dar à região condições de se
desenvolver satisfatoriamente. Como veremos mais adiante, o que vai propiciar
maior dinamicidade a ela como um todo será a abertura da rodovia Belém-Brasília,
mas que, mesmo assim, vai deixar fora da onda de desenvolvimento, num primeiro
momento, localidades que ficaram do lado direito do rio Tocantins. A tentativa,
portanto, de desenvolver a região com medidas específicas via sertão afora, pelo rio
Tocantins, não conseguiu atender as expectativas.
70
Voltarei a esse assunto na segunda parte da tese, onde abordo mais diretamente as conseqüências da abertura
da rodovia Belém-Brasília para as cidades beira-rio Tocantins.
76
77
1. 3 A Terceira Margem: vivendo o Tocantins, construindo identidades
Cena de nossa vida íntima: a partida de um bote
É o dia da partida. Em terra fazem-se as últimas despedidas. Uma banda
de música aguarda, a postos, a hora de acompanhar, ao som de notas
sonoras, aquele que vai ser o timoneiro do possante batel, que em breve
será entregue às ondas prateadas do majestoso Tocantins. Hei-lo que sai,
empunhando uma flâmula: seu rosto denota um quer que seja de
emocionante; as lágrimas parece quererem instantaneamente jorrar a
grandes jorros de seus olhos; a idéia, talvez, de ser homem, o hábito dos
dias de borrasca, das intempéries da carreira fazem-no, porém, refluí-las
para o coração, ficando-lhe apenas essa fisionomia característica de um
sentimento, de uma dor, a custo refreada.
Leva uma bandeira, dir-se-ia o auriverde pendão brasileiro; não,
infelizmente não. O barco tosco que vai por além Tocantins abaixo, não
pode ainda se acobertar só com a auriverde flâmula brasileira. Os escolhos
que a natura semeou em todo o percurso do colosso líquido, ainda estão
na sua primitividade. O auriverde pendão brasileiro ainda o foi
desfraldado, por essas plagas, ao som de hinos anunciantes de haverem
caído no domínio protetoral dos governos as incultas e ínvias extensões
por onde deva transitar; é necessário, portanto, que a maruja que segue se
acoberte sob a égide exclusiva da providência. A bandeira que o timoneiro
empunha, com o respeito e a veneração de um crente, é a bandeira do
Divino. É ela que vai ser desfraldada às beiras fagueiras do Tocantins. É
para ela que a maruja se volta em momentos de borrasca, de perigo.
Segue o cortejo. A banda marcial, em balde, procura quebrar a monotonia
do trajeto; suas notas, as mais vibrantes mesmo, servem apenas para
aumentar as saudades dos que partem e dos que ficam. Aqui e ali soluços
velados, dificilmente contidos: é uma mãe que chora a separação do filho
querido; é uma mulher que lastima o afastamento do marido; é um filho, é
um amigo, todos enfim que, lacrimosos, inquirem do futuro vê-lo-emos
ainda, será feliz em sua jornada?
Chega-se enfim ao Porto Real, ponto de partida. o povo se acotovela
em deferentes posições; vão todos levar as últimas despedidas, o adeus
último de boa e feliz viagem. O bote, carregado, apenas balouçando ao
fluxo e refluxo d’água, está ainda a receber os últimos componentes da sua
carga. Aqui são cães que entram, quase que arrastados, para serem
amarrados em diferentes pontos; para ali vai uma enorme capoeira de
galinhas, logo, em seguida aposta de outra e mais outras; acolá estão
espécimes variegados de papagaios, araras, etc. Cães uivam, galinhas
cacarejam; papagaios, araras, num grasnar confuso e comovente, como
que dizem o adeus último à terra amada de que se vão partir para todo o
sempre.
A tripulação está a postos; m as esmolas. Homens, sobraçando violas
uns, pandeiros outros, dirigem-se às duas casas dos botes e aí, em copas
plangentes, intercedem as esmolas e fazem ao mesmo tempo suas
despedidas. O piloto, no seu posto, tem hasteado no topo do leme a
bandeira que empunhava.
O bote é solto, e então, morosamente, pesadamente vai rio acima para
depois fazer a manobra e seguir rio abaixo. É então que a tripulação de
agita lenços, chapéus, dizendo aos que ficam, o último adeus. A música
envia-lhes ainda, através de sons melódicos, os desejos unânimes, de
próspera e venturosa viagem, da multidão que, pesarosa e ofegante, vê-os
afastarem-se... afastarem-se sempre até sumirem-se na amplidão sublime
do Tocantins (O INCENTIVO, nº.10, 1902).
78
Retomo aqui a cena da partida de um bote saindo da cidade de Porto
Nacional, em direção a Belém, para que o leitor possa sentir o clima carregado de
rituais e emoções e, assim, compreender melhor o significado e importância do rio e
das viagens para os ribeirinhos das margens desse rio, que foi contado e
cantado
71
em diferentes épocas. Neste capítulo, desejo levar o leitor a sentir o
barulho das águas, o cheiro do rio, das praias, a visão das belezas de suas
margens, mas também as dificuldades vividas pelas comunidades ribeirinhas. Uma
viagem pelo rio Tocantins, feita em botes
72
, com seus remeiros, popeiros e
proeiros
73
, cansados e, mesmo assim, cantando canções ritmadas pelos remos,
levando botes carregados de mercadorias no vai-e-vem do interior para o litoral e
vice-versa.
A partir do pressuposto de que a vida beira-rio Tocantins possui
peculiaridades que em alguns tros a diferenciam de outras identidades,
interessa-me agora mostrar como essa identidade específica e singular foi
construída. Para trilhar esse caminho, meu olhar se detém no rio como meio de
transporte, como lugar das lidas diárias e de lazer, e no imaginário e
representações sobre ele. Essa terceira margem”, enfim, é um olhar por dentro
no mundo das povoões beira-rio Tocantins, nas memórias dos e sobre os
ribeirinhos em sua íntima relação com o rio. Pode-se dizer que a tessitura deste
71
Ver detalhes sobre as viagens no final deste tópico, em poema de Abílio Nunes, com interessante descrição das
emoções vividas pelos barqueiros do Tocantins, publicado na Revista Informação Goyana no ano de 1935.
72
Ver no anexo A as descrições detalhadas de um bote e no anexo B, as de um batelão e balsa. Nos dicionários
brasileiros encontram-se diversas definições para os termos bote e batelão. Mas pelas entrevistas com antigos
construtores de barcos no Tocantins, o significado é o mesmo para os dois, sendo que enquanto em Porto
Nacional é mais comum usarem bote, em Pedro Afonso usam mais o termo batelão. Cito aqui algumas
definições somente como ilustração: segundo voa (2002, p. 38-44) no Dicionário Tocantinense de termos e
expressões afins,
79
tópico privilegia a fala dos sujeitos históricos que vivenciaram as experiências
aqui descritas
74
, pois, como afirma Stuart Hall,
É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do
discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais
históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas
discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas (HALL,
2000, p. 109).
João Guimarães Rosa, em seu conto A terceira margem do rio, retrata de
forma muito especial a vida ribeirinha, a convivência do homem com o rio, numa
estreita relação, que revela, dentre outras coisas, sua mentalidade, a rusticidade do
seu cotidiano e a integração que entre eles: “Nosso pai não voltou. Ele não tinha
ido a nenhuma parte. executava a invenção de se permanecer naqueles espaços
do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais
(ROSA, 1975, p. 33).
Essa terceira margem representa de forma singular a situação das
populações ribeirinhas do rio Tocantins e também do Araguaia, que durante séculos
desde o período colonial viveram nas suas margens, mas sentiam-se
marginalizadas
75
em relação ao país e ao sul de Goiás; simboliza também um lugar
imaginário que ajuda a entender como a identidade se construiu nesse ambiente
peculiar, entremeado de inúmeras fronteiras. Essa ligação íntima do ribeirinho com o
rio é sentida pelo estudioso do meio social e geográfico da região amazônica,
Leandro Tocantins:
O rio enchendo a vida do homem de motivações psicológicas, o rio
imprimindo à sociedade rumos e tendências, criando tipos característicos na
vida regional. [...] As ocorrências da vida de cada um estão ligadas ao rio e
não a terra [...] O rio, sempre o rio, unido ao homem, em associação quase
mística [...] (TOCANTINS, 1973, p. 280).
74
Mesmo consciente da impossibilidade da total imparcialidade e de que esta escrita é a de um outro”, não
ribeirinho, e o que se pretende neste capítulo é dar voz aos ribeirinhos, deixando-os falar ao máximo. Portanto
as longas e ricas citações aqui utilizadas têm como objetivo mergulhar no mundo ribeirinho. São diferentes
vozes que permitem investigá-lo sob diversos aspectos. Dentre elas, destaco a obra em forma de diário de
viagem de Francisco Ayres da Silva (1872-1957), natural de Porto Nacional. Ele nasceu e viveu nessa cidade,
exercendo a função de dico e político por décadas, desde o final do século XIX e ao longo do XX.
também os livros do frei José M. Audrin - dominicano francês que viveu por quase meio século na região e,
ainda, artigos de jornais locais que descrevem de forma exemplar o dia-a-dia do ribeirinho.
75
Importante salientar que, com a abertura da Belém-Brasília na década de 60 do século XX, esse sentimento de
marginalidade ou de exclusão não acabou para os ribeirinhos que ficaram na margem direita do rio, mas tomou
outra forma.
80
O rio, portanto, é visto e analisado para além de seus aspectos geofísicos,
numa dimensão mais abrangente que leva em consideração a constante interação
homem-natureza. O rio Tocantins e suas margens encontram-se hoje bem diferentes
da época da ocupação, devido às inúmeras transformações que vêm se
processando nas últimas décadas. Com base nas memórias deixadas pelos
ribeirinhos, ou sobre eles, por vozes do passado e do momento atual, é possível
perceber tanto a multiplicidade de sentidos que o rio adquire como os elementos
compartilhados no seu dia-a-dia, como nas suas representações culturais, além
desse sentimento de pertencimento entre eles e o estranhamento com relação ao
diferente. O antropólogo Carlos Rodrigues Brandão completa esse pensamento,
quando afirma que
[...] as identidades o representações inevitavelmente marcadas pelo
confronto com o outro; por se ter de estar em contato, por ser obrigado a se
opor, a dominar ou ser dominado, a tornar-se mais ou menos livre, a poder
ou não construir por conta própria o seu mundo de símbolos e, no seu
interior, aqueles que qualificam e identificam a pessoa, o grupo, a minoria,
a raça, o povo. Identidades são mais do que isto, não apenas o produto
inevitável da oposição por contraste, mas o próprio reconhecimento social
da diferença (BRANDÃO, 1986, p. 42).
O estranhamento do outro, tanto por parte do ribeirinho quanto do não-
ribeirinho, apresenta-se de diferentes formas nos relatos de estrangeiros, de
funcionários públicos do sul de Goiás designados para trabalhar no norte e de
visitantes que passaram por essas cidades e deixaram a impressão de ter
encontrado um mundo totalmente desconhecido. O que era natural e costumeiro
para o morador beira-rio era visto como estranho e exótico pelo de fora, que não
conseguia entender e aceitar costumes diferentes dos seus, como evidencia a fala
do juiz Vicente Ferreira Gomes
76
, quando em viagem pelo rio Tocantins em 1858:
Os usos e costumes ressentem-se de hábitos inveterados, da falta de
gosto, civilização e instrução; [...] as comidas são pouco delicadas, o prato
indispensável é o feijão com toucinho. [...] Os barqueiros, especialmente
parecem que vivem para comer, porque além da comida sem medida que
lhes dão os patrões na viagem, consomem a maior parte de seus salários
em comer e beber (GOMES, 1862, p. 506).
76
“Senhor! Quando eu abaixo assinado exercia o cargo de juiz de direito da comarca da Palma em Goyaz,
obtive do governo de Vossa Majestade Imperial três meses de licença, para gozar onde me conviesse, e
convencido de que em uma viagem por terra d’ali para esta corte gastaria quase todo o tempo de licença, e
talvez mais, o que não sucederia na viagem fluvial e marítima, e desejoso ao mesmo tempo de ver as cidades,
vilas, povoados e aldeias, que nas margens do rio Tocantins, de experimentar uma viagem que oferecesse
tantos objetos de curiosidade e de admiração, resolvi descer da cidade da Palma à do Pará pelo mencionado
rio” (GOMES, 1862, p. 483).
81
A permanência do sentimento de estranhamento com relação a seus
costumes é percebida também nos escritos do século XX. Se antes era a visão de
um juiz vindo da Corte, agora é a de outro juiz, Souza Filho (década de 1930), que
saiu do sul de Goiás para assumir sua função no norte, em Porto Nacional. Ele
demonstra estranhamento e preconceito sobre alguns costumes na cidade, como a
peculiaridade dos banhos: “Havia 3 portos destinados aos banhos: o da manga e o
porto real, para homens e um no fundo do colégio das irmãs [...] para as mulheres.
Homens e mulheres tomavam banho pelados”. Ressalta que havia muito respeito,
embora quebrado raras vezes por algum “taradinho” da época. “As alunas do colégio
banhavam de camisolão”, e, segundo o autor, quando sua esposa foi tomar banho
no poço, usando maiô, as portuenses não entraram na água. “No dia seguinte as
moças estavam todas de maiô. algumas velhas recalcitrantes não aderiram!
Continuaram peladas mesmo, exibindo suas pródigas e avolumadas banhas”
(SOUZA FILHO, 1980, p. 47).
Por outro lado, o processo de identificação
77
, o sentimento de pertencimento
entre a gente ribeirinha, pode ser observado por meio de uma cena que prevaleceu
por séculos nas cidades ribeirinhas e que mostra de forma bem clara como era o
ritual de chegada dos botes de Belém, após vários meses entre ida e volta:
A população corre ao porto em massa para assistir a atracação das
embarcações. Estas, antes de atracar, param do lado oposto do rio, onde a
marinhagem toma banho e muda de roupa. Daí trazem a vara dos batelões
embandeiradas até o porto e durante esse tempo fazem grande algazarra e
da terra soltam-se foguetes. Todas as bandeiras que ornamentavam os
botes eram as do Divino (INFORMAÇÃO GOYANA, v. II, n
0
. 1, 1918).
As mudanças concretas que acontecem para uma comunidade - como, por
exemplo, na economia, na política, no social e no cotidiano, afetam de alguma forma
sua identidade
78
. A comunidade ribeirinha que ocupou a região no período
mineratório não poderia ter os mesmos traços culturais dos que vivem nessas
margens hoje. São descendentes que ali permaneceram ou imigrantes que
chegaram mais tarde para as beiras desse rio, com interesses e atividades
77
Sobre o processo de construção das identidades, Boaventura de S. Santos (2000, p. 135) afirma que “Sabemos
que as identidades culturais não são rígidas nem, muito menos, imutáveis. São resultados sempre transitórios e
fugazes de processos de identificação”.
78
A partir dessas observações é possível afirmar que a construção histórica da identidade do ribeirinho não
permaneceu imutável, acabada e fixa, mas juntamente com as mudanças no processo histórico ela foi se
construindo e reconstruindo, dando sentido à experiência vivida.
82
diferentes, e vivem em condições diversas das de seus antepassados, embora
tenham herdado muitos de seus costumes.
Às transformações de ordem material e econômica, seguem as mudanças no
cotidiano e na mentalidade
79
. Um exemplo que ilustra bem tal situação é a
substituição de rústicas embarcações, os botes, por lanchas a vapor e depois pelos
barcos a motor. O uso do bote demandava muito mais tempo e esforço físico que o
uso dos motores, sendo também o contato com o rio mais intenso na época em que
havia as embarcações movidas a remo, pois tanto o tempo gasto nas viagens
quanto o número de pessoas envolvidas nesse transporte era maior. Com o advento
do motor, diminui a necessidade de braços para o serviço da navegação; as
pessoas, mesmo durante a viagem, não têm mais tanta intimidade com o rio, pois
uma proteção bem maior que as isola desse contato, diferente daquela do bote, que
era apenas uma cobertura de palha. Além disso, o viajante passa a conviver com a
poluição sonora e do ar, resultante do barulho e da fumaça dos motores.
Tais mudanças fazem parte de um processo longo e lento, mas que foi
significativo para o modo de vida do ribeirinho. As transformações concretas alteram
traços de uma identidade, mas alguns de seus elementos constitutivos sempre vão
prevalecer e conviver com outros que surgem, senão a cada mudança teríamos
novas identidades desvinculadas das anteriores.
80
Nesse processo de construção é
necessário um contexto no qual se possa pensar a si próprio, a partir de um olhar
externo, pois a realidade é construída pelas representações dos atores, e é a cada
situação específica que as crenças de um grupo encontram sua coerência, sendo
necessário, portanto, buscar a identidade nos limites, nas fronteiras, nos contatos.
As considerações acima o úteis na análise e compreensão da identidade
ribeirinha tocantinense, pois nela estão implícitos elementos importantes para
demarcar o seu campo. Dito de outra forma, a afirmação ser ribeirinho por si não
diz muita coisa, é preciso demarcar o que está implícito nela, buscando o que o
caracteriza, nos elementos históricos e no seu cotidiano.
A interpretação do documento de 1902, Cena de nossa vida íntima, que
retrata a saída de um bote de Porto Nacional em direção a Belém, pode evidenciar
79
Daí a necessidade de entendermos que “A identidade totalmente segura, completa, unificada e coerente é uma
fantasia. Ao contrário, à medida que os sistemas de significado e de representação cultural multiplicam-se,
confrontamo-nos com uma multiplicidade desconcertante e fugaz de identidades possíveis, podendo nos
identificar com cada uma delas – ao menos temporariamente” (HALL, 1997, p. 10).
80
Agier afirma que é necessário considerar no estudo da identidade seus mais diversos aspectos, pois “A
antropologia das identidades foi efetivamente constituída abordando seu objeto de maneira contextual,
relacional, construtivista, e situacional [...]” (AGIER, 2001, p. 8-13).
83
alguns traços que constituem o que eu chamo de identidade ribeirinha tocantinense,
pois ela representa de forma singular aspectos do seu modo de vida que perduraram
por um longo período de sua história. A rústica embarcação movida a remos,
utilizada no rio Tocantins para o transporte de mercadorias e pessoas, é, além de
objeto concreto, também um espaço simbólico, passível de representação de
sonhos, desejos e lutas dos ribeirinhos por uma vida melhor.
É possível perceber diversas características simbólicas e representativas de
cenas que foram tão comuns na vida dos ribeirinhos, por exemplo, a solenidade que
o momento representa: a presença da banda de música, com cortejo, e os
moradores participando da despedida; a emoção por ocasião das despedidas é
outro elemento de destaque nesse e em outros documentos. Com a saída dos
botes, sente-se um vazio na cidade; a descrição da fisionomia do timoneiro retrata
bem o sentimento que toma conta desse momento crucial:
[...] as lágrimas parece quererem instantaneamente jorrar [...]; a idéia,
talvez, de ser homem, o bito dos dias de borrasca, das intempéries da
carreira fazem-no, porém, refluí-las para o coração, ficando apenas essa
fisionomia característica de um sentimento, de uma dor, a custo refreada (O
INCENTIVO, n. 11, 1902).
O discurso do abandono fazia parte de um referencial caro e constante na
luta pela separação do norte, atrasado, da parte sul, desenvolvida, que o explorava
e nenhum beneficio lhe proporcionava. Identidade e diferença, portanto, o
criações sociais e culturais e estão estreitamente ligadas a sistemas de significação;
é por meio da representação que a identidade e a diferença adquirem sentido
(SILVA, 2000). O trecho seguinte representa bem o sentimento de abandono em que
a população daquela região se encontrava com relação aos poderes públicos, daí a
bandeira venerada não ser a do Brasil, mas, sim, a do Divino Espírito Santo:
O auriverde pendão brasileiro ainda não foi desfraldado, por essas plagas,
84
Cada ano, pelo mês das chuvas, ou seja, em março, carregam seus barcos
e afrontando as temíveis cachoeiras e as corredeiras, de que o Tocantins
está cheio, toca-se para o Pará a vender seus produtos. De trazem sal,
tecidos, ferramentas, mercadorias de toda espécie. o gastam menos de
seis meses nessa viagem, e o transatlântico que empreendesse a volta ao
mundo chegaria mais depressa ao ponto de partida que o bote fazendo
viagem de ida e volta ao Pará, com o seu carregamento (GALLAIS, 1942,
p. 123).
Conhecer o processo de sua construção
81
, o aproveitamento de cada espaço,
as funções de cada indivíduo no bote e a sua representação
82
para os ribeirinhos
contribui para apreender seus significados - tanto material quanto imaginário - pois
ele é um elemento da cultura e do contexto histórico no qual foi produzido. Para esta
análise, em suas múltiplas facetas, entremeada com a minha própria interpretação,
conto com descrições minuciosas de quem conheceu o rio e por ele viajou, de
desenhos e fotografias e de memórias vivas (depoimentos orais) de pessoas que
participaram de algum modo dessa singular forma de viver que não existe mais.
De acordo com diversas fontes, os botes maiores que navegavam o rio
Tocantins conduziam até 40 toneladas de mercadorias e eram movidos por 24
remeiros
83
, doze de cada lado. Nas longas viagens os botes eram geralmente
acompanhados por duas ou três pequenas embarcações chamadas igarités e
montarias. Segundo Silva,
As igarités são símiles do bote, apenas com uma casa ou toldo, a da popa.
São de tamanho diverso. As montarias são símiles de igarités em ponto
menor e sem casa alguma [...] As igarités são aliviadoras do bote [...] as
montarias são as canoas onde viaja o patrão em cobrança, venda e mesmo
em arranjo de alimentação para a tripulação (SILVA, 1972, p. 20).
O autor informa que as embarcações no Tocantins eram, em sua maioria,
construídas de casco escavado, com tábuas laterais imbricadas, ao contrário das do
São Francisco e Tietê, que eram somente de casco escavado. Quanto ao uso da
madeira para sua fabricação, enquanto no Tocantins usava-se geralmente o landi,
81
Ver fotografia n.
0
1, desenho de um bote em construção feito por Burchell, quando passou por Porto Real no
início do século XIX.
82
O conceito de representação possui íntima conexão com o conceito de imaginário. Entendo representação
como a forma pela qual um indivíduo ou um grupo vê e explica determinada imagem ou determinado
elemento de sua cultura. A forma de ler ou interpretar uma imagem depende do “lugar” de onde se fala, ou
seja, da posição social que se ocupa e dos valores nos quais se acredita. Nenhuma imagem expressa somente
as idéias de seu autor, pois remete sempre ao contexto histórico no qual ele está envolvido. Estar imbuído
desses pressupostos contribui para uma interpretação mais imparcial e destituída de valores predeterminados,
sendo que “O estudo das representações e do imaginário pode ser feito tanto sobre imagens iconográficas
quanto sobre discursos, pois ambos reproduzem figuras de memória, e cada imagem é um traço da
mentalidade coletiva de sua época” (SILVA, Kalina; SILVA, Maciel, 2005, p. 214).
83
Havia também botes menores como aquele em que viajou Ayres da Silva em 1920, com nove pares de
remeiros.
85
86
cascos não tinham quilha, sendo de pouco calado, portanto perigosos para esse tipo
de tração (eólica). Uma peculiaridade observada é que, nas viagens em que se
levavam mulheres, os tripulantes cobravam mais caro: a presença do sexo feminino
nas viagens os deixava com menos liberdade tanto nos momentos dos banhos como
nas travessias de cachoeiras. Para essas atividades eles se desvencilhavam das
roupas tanto para ter mais liberdade nos movimentos como para economizá-las, pois
sua bagagem era muito reduzida.
Com base em Sérgio Buarque de Holanda também é possível estabelecer
algumas comparações entre a navegação feita no Tocantins e as Monções do rio
Tietê. Em Caminhos e Fronteiras, Holanda afirma que as embarcações eram
cobertas de lona, brim ou baeta, para proteção dos passageiros, tripulação e
mercadorias. Era comum o uso de toldo e mosquiteiro. Quanto à posição dos
remeiros, ressalta que no Tietê eles se concentravam nos três primeiros metros da
proa e remavam em (HOLANDA, 1994), e no Tocantins as embarcações eram
cobertas com palhas de palmeiras e os remeiros remavam, na maior parte do tempo,
sentados ao longo das bordas laterais. As embarcações no Tietê, segundo o autor,
mediam em torno de onze metros, e “[...] por volta de 1720, começaram a descer
com regularidade o Tietê, procurando o coração do continente.” (HOLANDA, 1990,
p. 229). Acrescenta ainda que essas canoas transportavam em torno de 400 arrobas
(4,5 a 6 toneladas). Como visto anteriormente, os botes do rio Tocantins eram bem
maiores, com capacidade de até 40 toneladas. Para completar o quadro, a seguinte
observação de Holanda é elucidativa:
Com o tempo e o florescimento da nova via de comércio, muitos pilotos e
práticos acabaram abandonando o caminho fluvial de Porto Feliz a Cuiabá,
o que significou um sério golpe nas tradicionais monções de comércio, e
uma das causas de seu declínio, durante o segundo decênio do século
passado. No ano de 1818, o Capitão-mor de Porto Feliz chegou a queixar-
se de que não havia ali práticos, pilotos e proeiros para mais de seis ou
oito canoas. A partir de então e sobretudo depois da Independência, as
viagens fluviais tornaram-se cada vez mais raras, até desaparecerem
completamente por volta de 1838. Foi exatamente nesse ano que uma
epidemia de febre tifóide apareceu no Tietê, deixando poucos
sobreviventes entre os últimos mareantes e pilotos de Porto Feliz
(HOLANDA, 1990, p. 65).
Um elemento comum às duas situações (Tietê e Tocantins) e que merece
atenção são os povos indígenas em suas margens: eram numerosos e, como no rio
Tocantins, também são constantes as reclamações de que eles infestavam a região.
Pode-se deduzir, pelas afirmações de Holanda, que a navegação pelo Tietê e seus
87
afluentes, embora tenha sido intensa, foi abandonada bem mais cedo que a do rio
Tocantins, que permaneceu como meio de comunicação com o Paaté meados do
século XX.
Quanto ao remador, energia humana responsável pelo movimento e
velocidade dos botes, merece reflexão. Há situações em que ele aparece, tornando-
se visível e indispensável; já em outras circunstâncias, ele desaparece, fica
escondido como se o remo tivesse vida própria e substituísse o remador, como
mostra Neil Safier em Amazonian Subalternity:
[...] the figure of the rower appears infrequently and disappears soon
thereafter, occupying a symbolic place as something between a physical
extension of the raft itself and an active participant in the human world
embodied by the French traveler, his European companions (such as Pedro
Vicente Maldonado), and the Portuguese and/or Spanish missionaries or
guides who accompany him (SAFIER, 2001, s.p).
A contradição na valoração do remador é bem visível nos documentos sobre
o rio Tocantins: às vezes ele aparece como um trabalhador competente, quase um
herói, por exemplo, quando salva barco, passageiros e mercadorias na travessia das
cachoeiras; em outras, como preguiçoso e encrenqueiro. Seu trabalho, apesar de
reconhecido como árduo e perigoso, é muito mal remunerado, e é no olhar do de
fora que se torna visível o quanto essa tão importante tripulação, além de mal
remunerada, é maltratada durante as viagens. Eram péssimas as condições de
viagem e alimentação, como deixa transparecer em diversas ocasiões, em seus
escritos sobre o rio Tocantins, o Brigadeiro Lysias Rodrigues:
Nunca pensamos que alguém pudesse chamar almoço ao que o mestre
Abílio apresentou como tal; arroz cozido misturado com pedaços de carne
de vaca. A carne de vaca cortada em mantas é aqui exposta ao sol, mas
88
89
casamento em Carolina (MA), viajou de barco para Pedro Afonso, e entre os
passageiros havia um sanfoneiro cego e um outro que tocava reco-reco
86
:
A companhia deste ceguinho, com aquela sanfona, foi que me fez
achar a viagem menos penosa. Porque, olhem minha gente, passar
treze dias, remando rio acima, sem meu marido, sem experiência de
nada, achegar em Pedro Afonso, o foi fácil, para mim, foi uma
aventura muito grande (VASCONCELOS, 1995, p. 43).
Audrin (1963) também revela minúcias interessantes sobre as viagens.
Segundo ele, no período da saída dos barcos, as cidades portuárias se
transformavam com o grande movimento de pessoas de cidades próximas e de
produtores agrícolas da região. A cidade de Porto Nacional era uma das mais
animadas, além de ser passagem obrigatória dos botes que vinham mais do sul
como Paranã e Peixe recebia ainda a população mais interiorana, que trazia suas
mercadorias em tropas, para serem transportadas para Belém.
A época das chuvas era o momento certo para a saída dos botes em direção
a Belém, carregados com as mercadorias destinadas ao comércio. O mês de março,
na cheia de São José, era o mais apropriado, mas a partir de janeiro já começava o
movimento de descida, ou seja, de partida para Belém, dependendo do calendário
pluviométrico, que variava um pouco de ano para ano. Os navegantes usavam o
período das cheias para descer o rio, aproveitando a força das correntezas.
Para os barqueiros do Tocantins, não era possível marcar a data do retorno
aos portos de partida – a viagem de ida e volta demorava em torno de seis meses. O
máximo que arriscavam eram previsões do tipo: "Chegarei de tal mês em diante", ou
"Quando o rio vazar", ou ainda "Estarei de volta no finzinho da seca". Após a
chegada, sua mais importante missão era ir à igreja agradecer a sorte de estar de
volta com vida e muitas vezes orar pelas almas de companheiros que não
regressaram.
Sendo essas viagens demoradas, perigosas, desconfortáveis, em rústicas
embarcações e em péssimas condições de higiene e saúde, o retorno às cidades
ribeirinhas representava o fim de uma epopéia
87
. As aventuras que ficaram gravadas
na memória são cantadas em versos, como mostra o texto Barqueiro do Tocantins e
86
Segundo Bueno (1976, p. 964), reco-reco é um instrumento musical de percussão, constituído essencialmente
de um gomo de bambu com entalhes, nos quais se atrita uma varinha.
87
“Epopéia são eventos extraordinários, ações gloriosas, retumbantes, capazes de provocar a admiração, a
surpresa, a maravilha, a grandiosidade da epopéia” (Dicionário Houaiss). O uso da expressão se justifica
devido às inúmeras dificuldades da navegação e constantes riscos e acidentes aos quais os navegantes estavam
sujeitos.
90
também as fotografias n.
0s
3 e 4 que oferecem uma idéia da dimensão dos botes e
da solenidade do momento de partida para a longa viagem e de chegada dela.
Momentos antes da chegada ao porto, os botes são ancorados e os navegantes se
preparam para o grande momento, vestindo as melhores roupas e fazendo a barba.
Os moradores também se dirigem ao porto após terem se arrumado em grande
estilo para recepcioná-los, como pode ser visto na imagem n.
0
4: senhoras com
vestidos longos e xales e homens de terno.
91
Fotografia n.° 3 – Chegada dos botes em Porto Nacional (1912).
Fonte: Acervo particular Jamil P. Macedo. Publicada por Artur Neiva e Belisário Pena.
Fotografia n.° 4 – Ribeirinhos no porto aguardando a chegada dos botes (Porto Nacional, início do
século XX).
Fonte: Acervo particular Milton Ayres.
92
As notícias sobre naufrágios
88
eram constantes nos periódicos locais e em
relatos diversos sobre o rio: “Perdeu-se na cachoeira, o bote Tico-Tico do Sr. capitão
Josué Negry, tendo salvado-se felizmente toda a carga e tripulação do dito bote”
(FOLHA DO NORTE, n
0
. 31, 1892). Em viagem na década de 1920, o médico Ayres
da Silva relata:
O pobre homem, que com tanta perícia se houvera na passagem das
cachoeiras do alto e do baixo Tocantins, era, agora, enganado por um
rochedo profundo, e tragado pelas águas do grande rio, que a tantas vidas
tem servido de túmulo. É tragado para todo o sempre! Pobre velho
Casemiro, piloto! (SILVA, 1972, p. 61).
Havia bastante diferença entre a viagem de ida a Belém e a de volta dela. Na
descida, além de menos esforço dos remadores, gastava-se também menos tempo.
Na subida do rio, porém, exigia-se muito mais dos remeiros e o termo pressa tinha
de ser esquecido, pois eram necessários vários meses para o retorno. A demora
maior era na passagem das cachoeiras. Frei Audrin explica que em certos trechos
nem mesmo as varas eram suficientes para fazer com que o bote prosseguisse rio
acima: utilizava-se, então, outro modo, mais lento ainda. Era o chamado avanço a
gancho e forquilha, que consistia na utilização de ganchos, que eram presos a
árvores ou pedras que oferecessem resistência, possibilitando assim que o bote
subisse puxado muito lentamente (AUDRIN, 1963, p. 100).
O retorno, esperado com muita ansiedade, ocorria geralmente entre os meses
de agosto e setembro, na vazante, pois precisavam do leito do rio para apoiar as
varas e impelir o bote à frente. Os botes vinham carregados com todo tipo de
mercadorias do litoral e até do exterior, e isso fazia com que os moradores locais ou
dos arredores gastassem, às vezes, todas as suas economias para adquirir as
novidades para si ou para presentear alguém. Os ricos fazendeiros e comerciantes
trajavam as últimas novidades da Europa e da América. Além da função de troca de
mercadorias, as viagens representavam para os ribeirinhos um meio de estar em
contato com outras pessoas e regiões, o que favorecia também o intercâmbio
cultural (OLIVEIRA, 1997, p. 50).
88
Na passagem das cachoeiras, devido ao grande risco, geralmente a carga era atravessada por terra. O acidente
citado por Silva aconteceu por ocasião de sua viagem em 1920, quando o piloto foi jogado para fora do bote,
morrendo afogado.
93
O imaginário ribeirinho era povoado de mitos
89
, criaturas estranhas que
habitavam as águas do rio e a imaginação das pessoas. Acreditavam, por exemplo,
na existência dos negros d'água, que, segundo elas, pareciam com macacos – e das
Boiúnas, cobras muito compridas, semelhantes à sucuri, que possuíam duas presas
que davam voltas na cabeça, dando a impressão de chifres. Atribuíam a esses seres
monstruosos os acidentes causados por funis, rebojos e cachoeiras. Sobre tema tão
instigante, escreveu o goiano de Porto Nacional, Pery Br
94
Romualda, por exemplo, conta: “[...] quando criança nós tinha muito medo, tinha
essa conversa que tinha essa boiúna, esse negro d’água, minha avó falava e nós
tinha muito medo, hoje eu acho que não existe não, não sei não, eu nunca vi boiúna
e negro d’água” (FURTADO, R., 2006). A Sra. Bertolina, moradora de Pedro Afonso,
quando ia lavar roupa no rio, não gostava de ir sozinha, pois, segundo ela, “Dentro
do rio tem muita coisa, eu nunca lavei roupa no rio virando as costas pro rumo do rio,
de jeito nenhum, com medo porque não sei o que vem por aí [...]” (VILLARIM, 2006).
O Sr. Luis, por sua vez, diz que hoje não é incutido com negro d’água, mas que
quando criança “Cheguei até a sonhar com o negro d’água, agarrado na beirada da
canoa, fiquei apavorado [...]” (SANTOS, 2006). O depoimento do Sr. João B. Furtado
e de sua esposa a Sra. Pedra S. Rodrigues sobre a boiúna e o negro d’água são
muito interessantes, pois descrevem com detalhes a visão que tiveram de um negro
d’água por ocasião de uma viagem entre as cidades de Peixe e Porto Nacional:
Acho que isso é coisa particular, né? Boiúna, eu ouvi falar demais, eu
conheço um lugar aqui no Tocantins com nome Pedra de Amolar perto
de Marabá, por cima da boca do rio Araguaia, dizem que mora uma
Boiúna, diz que é uma cobra, né? Existe mesmo [...] negros d’agua existe
também, iiii existe também [...] o negro d’água sai para pegar a gente,
numa ocasião s vinha por cima do Peixe [...] era um barulho
medonho, ele tinha um soprado, um assobiado, um borbulhado n’água,
assobiava, parou depois que eu dei um tiro [...] Tava eu, essa mulher e
um rapaz, nós vinha do Peixe pra , nós vimos o trem, tava quase no
seco. Quer ver como ele ficava?[Gesticula explicando] Parece um demo!
(FURTADO, J., 2006).
Outro ser, menos popular, mas que também é conhecido nas margens do rio
Tocantins, é a Martinta Pereira. Segundo Odina Andrade,
A gente cresceu ouvindo isso, a história da Martinta Pereira que subiu o rio,
a gente estava tomando banho a noite [...] era um vulto, uma mulher muito
alta, de branco, ela entrava na água e não se molhava, ela vinha subindo o
rio acima, a correnteza não atrapalhava a caminhada dela e ela vinha
aparecendo pras pessoas [...], ela era tão alta, tão grande, que se ela
chegasse no beiral de uma casa ela punha o braço assim [risos] e
encostava o cotovelo ali para repousar igual a gente fica numa janela, ela
ficava no beiral da casa, era comum ouvir essas historias e a gente
adorava, era muito comum (ANDRADE, O., 2006).
Na busca por elementos que caracterizem o ribeirinho e mostrem suas
peculiaridades, recorro novamente ao Diário de viagem de Ayres da Silva, no final da
década de 1920. Seu relato possui semelhanças com as descrições de frei Audrin,
mas é uma análise mais voltada para questões de saúde da população, o que se
95
explica pela sua visão de médico. Embora admire e se encante com a paisagem,
seu olhar é bastante crítico quando descreve os povoados beira-rio. Ele se entristece
com a situação de miséria da população. Utiliza termos como decadência e ruínas,
arrolando uma extensa lista de doenças comuns à população, provocadas
principalmente pelas péssimas condições de higiene. As doenças mais comuns a
bordo são as diarréias com sangue, a malária, maleita ou impaludismo. Para quase
todas as doenças, o único redio era o quinino, e a população ribeirinha era
“quase toda de tez pálida, com os estigmas do impaludismo crônico” (SILVA, 1972,
p. 26). O tabagismo era um dos hábitos comuns aos viajantes. Segundo o autor,
enquanto o “civilizado fuma para se distrair, para se desopilar e matar o tempo”, o
matuto, ao contrário, “usa e abusa do fumo por necessidade” (Idem, p. 27). Usavam
o cigarro principalmente para se defender de mosquitos, muruins, borrachudos,
muriçocas e mutucas. Silva explica que nas viagens alguns hábitos eram
necessários para suportar a longa jornada:
No embarcadiço todos esses atos o margem a que o indivíduo estique o
corpo, estire os braços, proporcionando-lhe alguns instantes de repouso da
posição sedentária que leva, sempre a puxar a água com a pá, a fim de
fazer marchar o pesado bote (SILVA, 1972, p. 27-28).
A alimentação em viagem obedecia ao seguinte ritual: pela hora do almoço,
em torno do meio dia, era comum a expressão vamos ao boi rapaziada!, ao que
todos tomavam um pedaço de carne já preparada.
Cada qual lava sumariamente seu naco, espeta-lhe um pedaço de pau,
previamente talhado e aguçado, e leva-o ao lume. E quando está bem
assado, passa a saboreá-lo com a farinha de mandioca, ligeiramente
umedecida com a água do rio (SILVA, 1972, p. 21-22).
Pelas três horas da tarde os tripulantes faziam uma ligeira refeição,
geralmente com as sobras do almoço e farinha de mandioca. Sempre que sentiam o
estômago vazio, tinham a seu dispor o alimento mais comum utilizado nessas
viagens, a jacuba, que, “correntemente por nossas paragens, é a mistura de farinha,
rapadura ou açúcar e água” (SILVA, 1972, p. 23). É possível constatar que a maior
parte das doenças em viagens estivesse diretamente ligada à precariedade
alimentar e à falta de higiene, o que piorava o quadro geral.
O juiz Manoel Buarque (1919), em viagem de Belém a Conceição do
Araguaia, em 1914, ao referir-se às dificuldades do meio de transporte, afirmava que
96
97
Todos esses elementos vão mostrando que a vida às margens do rio
Tocantins possuía um ritmo próprio
91
, passado de geração a geração, pautado nas
formas de fazer e de ser dos ribeirinhos, como nos mostra o fragmento, referente
aos costumes ribeirinhos, deixado pelo médico Júlio Paternostro na década de 1930:
Vi juiz de direito, fazendeiros, comerciantes e vaqueiros em completa
identidade, nivelados no banho coletivo, que é bom para o físico e para o
espírito [...] Quando uma pessoa vai ao banho, atravessa as ruas de
chinelas e com a toalha nos braços, de modo que todos sabem para onde
nos dirigimos. Os naturais da região, porém, não usam toalhas; vestem as
roupas sem se enxugar. Se um indivíduo deseja falar-nos naquele
momento é encaminhado para o ‘ponto’ de banho, onde trata do assunto
que motivou a procura. Nos lugares como aqueles não horas marcadas
para se receberem os outros. De uma feita, um juiz de direito, enquanto se
banhava nu, ouviu com simplicidade e magnanimidade um vaqueiro que se
postou na ribanceira. Pouco depois, em casa sem dar conta da cena
estranha para mim, sentenciou a pendência do vaqueiro, conforme a
solução tomada durante o banho (PATERNOSTRO, 1945, p. 191-192).
Vê-se que à beira-rio lugar privilegiado de muitas atividades os eventos
ganhavam um aspecto informal; se realizados em outros lugares, ao contrário, eram
momentos carregados de formalidades. Esse traço fica bem visível em entrevista
com a Sra. Eurides Vieira
92
, sobre fato ocorrido por ocasião de sua posse como
tabeliã, na cidade de Paranã:
O Dr, Pedro Ludovico mandou eu ir pra Paranã eu levei uma carta de
apresentação pro prefeito ele ficou muito satisfeito que quando eu desci lá
de dentro meu deus [parte da fita ilegível] não via ninguém, [...] a praça que
tinha era o campo do avião eu falei é cadê eu cheguei fui tomar posse
cadê o juiz ta atravessando gado na beira do rio ai eu falei eu tenho que
levar este oficio falei meu Deus vamos ai o prefeito falou a senhora na
beira do rio a escrivã levou o livro eu tomei posse lá na beira do rio
(VIEIRA, 1999).
Segundo o entrevistado Rui Rodrigues, todas as crianças naquele tempo
sabiam nadar e promoviam competições para atravessar o rio. Eram raros os casos
de afogamento de pessoas que viviam nas suas margens. O rio representava lugar
de trabalho (buscar água, lavar roupa, transportar mercadorias), lugar de distração e
lazer (banhos, pescarias) e também “lugar de esperança das coisas que chegavam”
91
Esse ritmo vai se alterando pouco a pouco. A partir da década de 1930 ocorrem algumas mudanças,
principalmente nos tipos de embarcações no rio Tocantins. Até esse período prevalecia o bote e batelão, depois
vão surgir os motores. A discussão sobre o impacto dessas mudanças será feita na segunda parte da tese, no
capítulo que trata da cidade de Pedro Afonso.
92
Entrevista produzida em 1999 para o projeto de Iniciação Cientifica Vozes do Tocantins, na UCG, coordenado
pela professora Dra. Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante, e que contou com a participação das bolsistas
Laudicena Caixeta e Liliam Branquinho. Entrevista cedida a mim pela coordenadora do projeto.
98
(SILVA, R., 2006). No mesmo sentido, completa o Sr. Nazaré, quando recorda sua
vida de criança em Porto Nacional:
Nessa época não existia energia, não existia água encanada, nada, então,
chegava da escola ia pilar arroz, apanhar água no rio, para o uso geral era
do rio, pra beber era no Buracão e no Buraquinho [...] todo mundo sabia
nadar, muito difícil um afogamento [...] nessa época num tinha praia, tinha
praia, mas ninguém utilizava dela, ir pra praia é agora, de pouco tempo [...]
na minha opinião o rio acabou... (SILVA, N., 2006).
Nos dias de hoje, navegando pelo rio Tocantins, percebo que restam poucos
aspectos dessas viagens, tão reais para os que as fizeram por séculos. A realidade
mostra-se bastante modificada, com transformações de naturezas diversas, como a
devastação vegetal e mineral de suas margens, afetando suas barrancas efeito da
natureza e principalmente da ação humana. Algumas de suas temíveis cachoeiras
não existem mais
93
; as pequenas e pacatas cidades, com dimensões e
características inimagináveis no século XIX, e os ribeirinhos, também não são mais
os mesmos. Em A terceira margem, o objetivo foi deixar que os ribeirinhos se
mostrassem, em seu cotidiano, num ritmo próprio, com suas crenças, dificuldades e
alegrias, inventando modos de ser e fazer nessa terceira margem, um espaço real,
mas repleto de simbologia e representação.
Para finalizar a análise do cotidiano e representações sobre o rio Tocantins,
segue uma viva descrição na Revista Informação Goyana (n.
0
8, 1935), denominada
Barqueiro do Tocantins, que retrata de forma singular a difícil vida dos ribeirinhos
nas viagens em rústicas embarcações, num rio repleto de armadilhas, bem como
seus costumes e imaginário. As fotografias (n.
0
5 e 6) dos barqueiros na travessia de
corredeiras do rio Tocantins e do rio “afogado” completam essa visão.
Barqueiro do Tocantins
Num batido de vara, em cadência, rumorando sons distintos lá fora na
barranca que dominava aquela curva do rio, a montaria afocinhada à proa
obedecia ao braço do Manoelão, varejando a corredeira. Xuá!... xuá!...
xuá!... abrindo borbulhas e maretas que lambiam a praia nua. A baixa das
águas sobe de velocidade a corrente, onde o leito razeia à suave ondulação
das ladeiras submersas. Uma fita liquida, agitada e constante, desfia por
entre galhos, em oval, costejando ribanceiras, fugindo como perseguida de
tritões. É a corredeira, é o gorgulho. Aparece, ali, a praia que se distende,
caracola e brilha. Escameja aos fulgores do sol ardente. É a pátria dos
Massaricos e deleite dos Martins-pescadores. Os bancos de areia lhe
acresceram o volume e lhe deram novas formas vindas da última enchente,
93
Resultado de processo recente da construção de barragens em diversos pontos estratégicos do rio.
99
recuando, então, o canal a um dos flancos, que é margem verdejante
bebendo as águas cristalinas e puras. À descoberto fica o leito, por onde
enormes massas líquidas passaram, deixando à mostra o colossal
esqueleto. E a distância da borda da paria à margem oposta fica quase de
um espiro, mais apertada no pontão e afastada da costaneira dos secos, vai
bordando, refluindo em crivos e desalinhos. A ponta do estirão do “Pau
seco” em que a vista demora com desalento à ascensão de verdadeira
tangente sem fim, abria os portões a jusante, desafiando a energia do
caboclo afeiçoado a escalar os acidentes que enriquecem o vale da
formidável artéria fluvial. De pé, à proa, Manoelão media o tempo e o porto
montante, divisado no claro da mata que um roçado abrira. O gorgulho da
esquerda da caudal parecia ter maior velocidade em correnteza, marcado
nos troncos das velhas árvores ribeirinhas a mesma antiga cinta da
enchente que ali estivera. Na clareza das águas, baixas e vertiginosas,
galgadas à vara, sem desfalecimentos, são vistos os fundos povoados de
famílias felizes peixinhos brincalhões, “ladinas” velozes. Manoelão vareja,
concorveando a montaria, inquebrável. Das horas matinais ao repor da
tardinha, nenhum repouso digno, acontecendo, o preparo da jacuba e a
carne assada, às vezes ao sopé da elevação de morro de enérgica
vegetação. Morria em curva fechada aquele apreciável promontório,
sombreando remançoso e pitoresco trecho, curtíssimo, de dominação,
limitante da extensa praia. Findava ali, também, a secção gorgulhosa. Nos
instantes desse ligeiro repasto, o barqueiro canta, lançando desafio a
natureza, cobrando energias. Canta fechado na saudade de seus entes, na
fereza da luta. Romualdo dos Santos o põe em seu poemeto “Barqueiro
do Tocantins”, assim:
Recomeçada a labuta/Nova algazarra começa,
Mas, debaixo de um sol quente/A alegria logo cessa.
Só depois do jacubar/às duas horas da tarde
é que o povo se anima/pois frio o sol já não arde.
Cantando à faina, sob a ardentia daquela região selvática, Manoelão batia
vara num movimento de ndulo, rugindo, tonifroante, o descante da moda
para amenizar:
Lá em baixo, em Boa Vista/houve grande baruião
por milagre do Divino/não morreu “Carro Leitão
Xuá!... xuá!... xuá!... a montaria abicando espumas.
Urubu de Boa vista /escreveu ao presidente
que já está de penas novas/de comer carne de gente.
Faz-se noite. O porto montante. Montarias e igarités, batelões anoses [?].
O porto é a mesma casa do barqueiro, enquanto dura a viagem. Feliz, ao
abandono, afastado da residência do roceiro ou ligado à vazante, aparece
ao viajante como refugio do seio materno. O barqueiro ao chegar, ascende
a coivara e faz a ceia. É dele aquele pedaço de chão à beira d’agua, com
um caminho que o leva onde tem gente. Ali passa a noite em claro, ou em
baixo, de cócoras, linha à mão de olhar de pedido para a lua cheia,
também magoada, vertendo juntos o pranto mudo das ilusões e dos
sonhos. Parece ter de tudo em volta, até as sombras parecem viver e
cantar. Vez por outra, rumoreja na solidão o gemer de remos ou o piado
dos socós mudando pouso. Manoelão conta histórias. Fumareja o cigarrão,
aceso com tocha de facheadores de praias. Interessa o companheiro nos
lances mais arriscados das descidas ao Pará.
Tive muitas veiz com morte no zóio esclarecia.
É feio, assim, companheiro? o outro inquiria.
É pra cabra macho!
Quero vê.
100
A taboca!... a taboca veia, meu nêgo... amedrontava.
Que qui tem?
Contra-proeiro, rhan... Ah! Nego, ali é onde os fios chora e as mãe não
vê... É preciso fio do dirigo, rhan, rhan... explicava após uma palmada
achataste de um mosquito “prego”. Sucediam-se dias de penosa subida de
Carolina e Porto Nacional. Invariavelmente, nas 100 léguas que o Diabo
media, mudanças de aspecto topográfico, belíssimas paisagens, nunca,
porém, mudança de trabalho pra vencer a natureza hostil. O que mais
arrepiava o Manoelão era a lembrança da Itaboca, de inúmeras vitimas em
trágicos naufrágios, por ele testemunhados, com a generosidade da sorte.
Romualdo igualmente se lembra:
Por terra logo voltamos/em busca do “Trovador”
que até dar ao Zé Correia/gozou do mesmo favor.
Põem quando ele abicou/ao lugar que mais aperta
dois da meia-coberta/um rolo dagua tirou.
Bate vara, bate vara!/Alto o piloto gritou.
mas na aflição do vareio/da mão lhe a vara soltou.
Por um dos tristes azares/que a sorte manda jogar
foi o bote se quebrar /na pedra do Joaquim Ayres.
Uns ficaram na pedra/outros na água caíram
e heroicamente nadando/embaixo noutra saíram.
O patrão doido ficou/pois o bote e o conteúdo,
carga, bagagem e tudo/água abaixo rolou.
A Itaboca, de fato, é um pesadelo, Tauhiry-Grande não é menos, com a
funesta recordação do abandono em que morre a criatura:
Aqui morreu um na rede/e na rede apodreceu
por não ter quem o enterrasse/na rede urubu comeu-o.
A cachoeira! Deserto de esperanças! Tremendo obstáculos que as
populações sertanejas, que perdem constantemente os bens e a vida. Ali a
revolta. O estourar de rebojos. Convulsão de águas. Volumosa serpente
enfezada, se enroscando, crava à penedia as presas, retorcendo-se na
ânsia do velho ódio. Momentos rudes. Passa, em frenesis o regimento das
torrentes, enlouquecidas pelo mar. E tão desvairadas vão, pelo amante, que
a cegueira lhes arroja aos penhascos, em comoventes contorções, parecem
ir contentes as ninfas, esquecidas da dor, cada qual lutando por chegar
primeiro. A cachoeira percalço sombriodos dias de quem a vence.
Fervente e espumante nos batentes das quedas, contorcida e raivosa nas
rochas a volumosa massa excacando abismos, rolando numa dor jamais
sofrida, biparte-se, cercando furos, doidamente, numa alucinação sem
termos. É a vertigem da desordem. Depois, andeante, serena e mansa,
deslizando docemente deixa atrás as faces do monstro diante dos
rochedos. Esculpe, agora, no dorso, a volúpia da realidade da força dos
gigantes que adormecem. Tão calma as águas que a carícia e a ternura
prefeririam repousar sobre elas, eternamente. Aquele passado de aflições
e duvidas se assemelha a berços de criança a sorrir. Passada a cachoeira,
a alegria volta, o barqueiro volta-se ao passado. Terno como a expressão
fisionômica da saudade, à tona, abre o coração, romântico:
Ai! ai! ai!...
Quando a lua vem cobrindo/as foia do ingazeiro
a boca da gente sente/o gosto do amor primeiro.
Segue irônico:
Dei ni Anna um cocorote (peteleco)/Jurgando que era Maria
101
Peguei na perna de sapo/no caso foi na jia,
certei cá, perna de veia/pensando qui era da fia.
Como é cantada a decepção! Esperava a verde e enamorada perereca,
veio-lhe um asqueroso marmanjo de sapo. Estava certo na perna da moça
e bonita da filha, chocou-se com a da velha. No entanto, as desculpas
oportunas lhe chegam a modo.
Me perdoa minha veia/Era de noite eu não via.
Perna de veia é cascuda/Perna de moça é macia.
E daí sentimental:
Vai, vai meu barqueiro/Vai, vai, meu amo.
Vai, vai ó barqueiro/Onde tu fô tamem vô.
Alma rude dos sertões, animada das realidades, o barqueiro vive
dessivilisado, sob os encantos das leis reais da vida. Nasceu ali, alimentado
da pureza moral de seus campos, dos vergeis, das quebradas, dos serões
de pálido luar. O eito, as roçadas, as queimadas, o divertido lançamento
das redes e a apanha do pescado são todo o claro de felicidade de seus
dias. Tem uma mulher, um o de caça e um pandeiro. Nem o ganha o o
interessa. Todo mundo tem abundancia. Falta, porém, sal e ferramenta. A
que preço não os conquista? É o que o obriga, principalmente, aos lances
de audácia e destemor.
O sal com que faz o molho, tempera os banquetes das novenas, salga a
anta e o caititu, o sal tem o reinado nos campos, nas margens do grande
rio. Passou ao uso das saudações elogiosas, quando a pessoa tarda com
as visitas: Se fosse sal ninguém comia cumprimenta. Facão, chumbo de
caça, lvora, anzóis e linha completam a felicidade do barqueiro. É
freqüente batelões, igarités e montarias cursarem o rio, conduzindo,
invariavelmente, sal e ferramenta. Manoelão ia de regresso, à proa da
montaria, varejando a corredeira. Xuá!... xuá!... xuá!... abrindo
borbulhas e maretas que lambiam a praia nua.
102
Fotografia n.° 5 – Barqueiros enfrentando corredeiras no Rio Tocantins (1911-1912).
Fonte: Instituto Oswaldo Cruz/Thielen (1991).
Fotografia n.° 6 – Rio Tocantins após construção de barragem.
Fonte: João Dirk (2004).
103
S E G U N D A P A R T E
2 PORTOS DO SERTÃO: IDENTIDADES E DIFERENÇAS
As cidades, como os sonhos, o construídas
por desejos e medos, ainda que o fio condutor
de seu discurso seja secreto, que as suas regras
sejam absurdas, as suas perspectivas
enganosas, e que todas as coisas escondam
uma outra coisa.
Ítalo Calvino
A história/memória das cidades ribeirinhas é inseparável da história da
ocupação e da navegação do rio Tocantins. Numa época em que não havia estradas
na região, a posição estratégica das cidades às margens do rio via de
comunicação com outros centros comerciais, principalmente Belém foi fator
importante para o seu desenvolvimento. Ao proceder aos estudos de casos sobre
duas cidades ribeirinhas Porto Nacional e Pedro Afonso no Estado do Tocantins,
tenho como questão central entender os elementos identitários peculiares a elas e
perceber a influência das fronteiras na construção/reconstrução, perda ou
fortalecimento dessas identidades.
Indagações sobre as relações cidade-campo, cidade-sertão, cidade-fronteira
fazem parte da produção historiográfica e de publicações no Brasil e no mundo
atualmente. Ao longo da história, as cidades têm assumido diferentes sentidos,
finalidades e discursos. São vistas como espaços de agrupamento, segurança,
civilização, mas também de desigualdades, conflitos, violências e contradições. A
cidade permite, portanto, abordagens sob diversos ângulos, e a escolhida para este
estudo prioriza uma visão quanto à dimensão cultural, valorizando os pequenos
detalhes do cotidiano, dentro de um universo histórico. Busco decifrar os diversos
vestígios e, assim, demarcar o que cada uma das cidades tem de singular e, ao
mesmo tempo, os elementos que lhes são comuns.
Ulpiano Meneses (1996), em seu texto Morfologia das Cidades Brasileiras,
afirma que a cidade é um complexo de fenômenos diversificados e de articulações
multiformes e defende que:
104
[...] ao invés de tomarmos a cidade como uma categoria estável e
universal, de que se pudessem apresentar apenas variações ao longo do
tempo, convém aceitarmos a necessidade indispensável de historicizar a
cidade como ser social. Historicizá-la é defini-la e explorá-la levando em
conta sua prática e representações pela própria sociedade que a institui e a
transforma continuamente (MENESES, 1996, p. 147).
As duas cidades aqui observadas são constituídas por sociedades vizinhas no
espaço, compartilham de um mesmo tempo histórico e possuem muitas semelhanças
e algumas diferenças entre si. O método da história comparada vem sendo utilizado
algum tempo por autores de diferentes áreas do conhecimento. De acordo com
Marc Bloch (1963), o seu uso pode ser feito nas seguintes condições:
Incontestablement ceci: faire choix, dans un ou plusieurs milieux sociaux
différents, de deux ou plusieurs phénomènes qui paraissent, au premier
coup d’oeil, prèsenter entre eux certaines analogies, décrire les courbes de
leurs èvolutions, constater les ressemblances et les différences et, dans la
mesure du possible, expliquer les unes et les autres (BLOCH, 1963, p. 17).
Ciro F. Cardoso e Brignolli (1979, p. 410) chamam a atenção para o fato de
qualquer estudo não poder “[...] dispensar totalmente o método comparativo, pois é
impossível a introdução de novos elementos em um terreno qualquer do
conhecimento sem compará-los com os conhecidos”. Segundo eles, a aplicação
do método pode ser feita de duas formas: a) comparação de sociedades
contemporâneas e que possuem grande número de traços estruturais análogos; b)
comparação de sociedades francamente heterogêneas ou muito afastadas no
tempo. Os autores acrescentam que a primeira forma de comparação permite um
manejo mais fácil e seguro do método, enquanto que, na segunda, as dificuldades
serão enormes.
A antropologia tem dado bons exemplos da aplicação de tal metodologia,
como, por exemplo, os trabalhos dos norte-americanos Charles Wagley e Marvin
Harris, que desenvolveram pesquisas em pequenas comunidades, respectivamente
na Amazônia e na Bahia, na década de 1950. Em suas observações, Wagley (1957)
ressalta que, mesmo sendo Itá (nome fictício) uma comunidade com pouca
relevância econômica, “[...] sua história não deixa de ser significativa, pois reflete
praticamente as principais tendências da história do vale Amazônico”. O autor
reforça ainda que “Todas as comunidades de uma área compartilham a herança
cultural da região e cada uma delas é uma manifestação local das possíveis
interpretações de padrões e instituições regionais” (WAGLEY, 1957, p. 72). A
105
pesquisa de Harris é também um estudo comparativo sobre duas cidades na Bahia.
O autor parte da descrição geográfica da localidade e da região, descreve
minuciosamente os antecedentes históricos, a cena urbana, etc., para mostrar que a
formação histórica tem influências na diferenciação entre duas localidades
aparentemente iguais.
Em outro contexto e região, as duas cidades situadas nas margens do rio
Tocantins, que tomo para estudos de caso, também refletem muitas das tendências
históricas das cidades ribeirinhas e da região. A utilidade dos estudos em questão
para o meu trabalho possui certos limites, não sendo utilizados como modelos
fechados de análise. Embora sendo pesquisas antropológicas feitas na década de
1950, seus métodos são úteis para pensar e auxiliar na tese que ora desenvolvo.
São comparações bem distintas daquela a que me proponho, mas o importante para
o estudo das cidades ribeirinhas, ao flertar com os estudos citados, é o uso do
método, e não a comparação das realidades estudadas por tais autores com a que
ora analiso.
Estabelecer relações entre as duas cidades e a19(f)-9.2331disoõrlas 19(f)-762(o)13.4458(o)]TJ829.04 0 Tc068(o)2.80762(n)2.80t19(f)-9.23319(e)2.80x762(t)1.40511(o)2.80021( )-30.5808(r)3.21808(e)-7.82g11(d)13.4485(l)-12.0408(o)2.81n21(d)2.81021(a)2.81485(l)-12.0808( )277.998]T40.13.32 -19.56 Te51(a)2.8082(s )-73.7026(n)2.80821(a)13.4617(c)-10.638(ci)-1.40381(a)-7.82931(p)2.80892(a)2.80892(l)-1.40381( )-73.0551(p)2.8092(ce)2.80892(r)3.21319(m)-7.42551(i)-1.40279(t)1.40381(e)2.80892( )-73.0086(co)2.80892(n)2.80h83(õ)-7.82938(n)13.44762(e)-7.83d[(r)3.21279( )-73.715(m)-7.42558(e)13.4459(l)-1.40762(h)-7.83068(a)13.4459(r)-7.42 2(s )-62.4s459(u)-7.83068(a)2.80762(( )-73.551(p)2.80319(e)2.80c762(u)2.80511(l)-1.40511(i)-1.40515(a)-7.82808(r)3.21279(i)9.23511(d)-7.83061(a)-7.83061(p)13.4458(a)2.807.[(,)1.40511( )-73.P58(o)]T1313.32 0 T762(a)2.80762(r)-7.42551(a)2.80762s )-62.4715(m)-7.42551(e)2.80459(l)-1.40761(p)2.80762(o)2.80762(r)3.2162(s )-73.063(c)-10.6382(o)2.80472(m)-7.42551(p)1335808(r)3.21808(e)-7.82279(e)-7.82808(a)13.4485(d)-7.82808(e)2.81449(r)-7.42808( )277.998]TJ1-313.32 -19.32 T827(e)2.808892(sa)2.80511(s)-10.6383 relaçde, icaspirorme no trabelpo be solólonamezinhé
106
Brasil, principalmente no norte de Goiás, com um mundo mais dinâmico e acelerado,
de onde vieram; segunda, a fala dos próprios nortenses e ribeirinhos, pois atribuir
isolamento, abandono à sua região lhes interessava na medida em que chamavam a
atenção dos poderes administrativos e, de certo modo, defendiam, desde aquela
época, a bandeira separatista.
É inegável que a lentidão dos meios de comunicação, tanto fluviais como
terrestres, não possibilitavam contatos rápidos, mas apesar das longas distâncias,
da morosidade dos transportes e do ralo povoamento, por meio das viagens anuais
a Belém e, mais freqüentemente, entre as cidades próximas, os ribeirinhos trocavam
mercadorias, experiências e conheciam outros valores. Quando o bote saía em
direção a Belém, ou por ocasião de seu retorno, os barqueiros ficavam quase loucos
com os inúmeros recados destinados a parentes, amigos e namorados (as), recados
que eram levados por eles, os mensageiros do rio.
Em um estudo da natureza deste que realizo, o poderia deixar de
referenciar os conflitos étnicos, tão comuns na região desde a época da mineração.
O processo migratório de diversos lugares e em diferentes épocas proporcionou
contatos entre etnias e línguas diferentes e trouxe, além da troca de experiências,
desentendimentos e conflitos. A convivência entre povos indígenas, religiosos,
novos imigrantes e população local nem sempre foi pacífica, sendo mais comuns os
conflitos com os povos indígenas. Referências nos documentos sobre organização
de bandeiras para pacificar, catequizar ou matar índios hostis são constantes.
O objetivo não é fazer um relato da história linear e cronológica das cidades,
mas, sim, focalizar momentos de rupturas ou continuidades
2
. Para tanto, parto do
princípio de que Porto Nacional e Pedro Afonso são lugares de identidade, memória
e fronteira, lócus privilegiado para a investigação dessas temáticas, pois ocorreram
ali muitos contatos entre culturas diferentes, às vezes de forma pacífica, às vezes
verdadeiros conflitos armados.
No primeiro capítulo, Diversos portos em um: Real, Imperial e Nacional,
mostro a origem de Porto Nacional e seu crescimento como cidade portuária,
ressaltando sua importância como centro comercial na região. Em seguida analiso
2
Para evitar repetições desnecessárias, não analiso todas as rupturas comuns às duas cidades. Por
exemplo, embora a chegada dos aviões seja um fato comum às duas cidades, abordo o assunto de
forma mais detalhada apenas no capítulo referente a Porto Nacional. Do mesmo modo ocorre com
o assunto sobre os motores, que também é analisado com mais profundidade apenas no capítulo
sobre Pedro Afonso. Nas considerações finais é estabelecida uma comparação entre elas,
ressaltando suas diferenças e semelhanças.
107
os componentes simbólicos que contribuíram para que ela se transformasse em
símbolo do Norte de Goiás, conhecida como Capital Cultural, para depois abordar os
elementos que vão marcar uma ruptura mais brusca nos costumes diários dos
moradores: a chegada dos aviões e dos barcos a motor, a abertura da rodovia
Belém-Brasília, a construção da nova capital com a criação do Estado do Tocantins
(1988), e a construção da hidrelétrica do Lajeado (2001).
Algumas dessas mudanças
3
ocorreram simultaneamente para as duas
localidades em estudo, mas, em outros casos, as rupturas podem não coincidir,
como, por exemplo, a época de sua a ligação com a rodovia, por meio de pontes. A
ponte de acesso à rodovia para Porto Nacional foi construída no final da cada de
1970, enquanto que Pedro Afonso, ainda hoje, depende de balsa para atravessar o
rio e ter acesso à Belém-Brasília.
No segundo capítulo, Encontro de rios e povos: Pedro Afonso, a Travessa dos
Gentios, faço uma análise histórica ressaltando suas características, próprias da
localização em um lugar de passagem constante de migrantes e comerciantes
4
,
mostrando que o convívio entre os “diferentes” contribuiu para a construção de uma
identidade marcada por fronteiras. A metodologia aqui é semelhante à do primeiro
capítulo. Analiso seu surgimento como aldeamento, até sua “destruição” pelo
banditismo; e as mudanças mais significativas ligadas à troca do rio pela estrada e
pela água encanada, até as recentes transformações que ocorrem na cidade.
Embora possa parecer pouco atrativo conhecer a história de cidades
ribeirinhas sem expressividade no cenário nacional, gostaria de lembrar, com Kevin
Lynch, que
Olhar para as cidades pode dar um prazer especial, por mais comum que
possa ser o panorama [...] a cada instante, mais do que o olho pode ver,
mais do que o ouvido pode perceber, um cenário ou uma paisagem
esperando para serem explorados [...] cada cidadão tem vastas
associações com alguma parte de sua cidade, e a imagem de cada um
está impregnada de lembranças e significados (LYNCH, 1997, p. 01).
3
O impacto da barragem do Lajeado, por exemplo, foi menos sentido na cidade de Pedro Afonso,
pois diferente de Porto Nacional, a cidade de Pedro Afonso está localizada abaixo da barragem,
não tendo parte de sua área inundada por ela como ocorreu em Porto Nacional.
4
Migrantes vindos principalmente do Maranhão e Piauí e o constante movimento e contato com a
região da borracha, que ia do rio Tocantins e Araguaia até o Xingu. No início do século XX, também
a borracha de mangabeira, nativa no município de Pedro Afonso, fez dele um local de confluência
de indivíduos procedentes de diversos estados vizinhos à procura de riqueza.
108
109
Fotografia n. °7 – Desenho de Porto Real – Burchell 1829.
Fonte: Ferrez (1981).
Fotografia n.° 8 – Rua de Porto Nacional (início do século XX).
Fonte: Acervo Jamil Pereira Macedo.
110
2. 1 Diversos portos em um: Real, Imperial e Nacional
A população de Porto Nacional é a melhor da
diocese. Ali, nada de Partido político. A única
política é a de promover os interesses da
localidade. [...] Esta população nos deu grandes
consolações. e lá somente, os homens
importantes se confessaram.
Frei Berthet
Porto Nacional
5
, cidade beira-rio Tocantins, possui características bem
peculiares: fez parte da antiga região norte de Goiás, até sua separação para formar
o Estado do Tocantins, e foi destaque nas áreas educacional/intelectual, comercial,
política, médica e religiosa desde o final do século XIX. Chamados de portuenses, os
moradores “[...] escreveram sobre si mesmos e sua região e foram também descritos
por outros. Esses escritos formam um acervo em que a história se cruza com a
memória” (OLIVEIRA, 2005, p. 1186).
A história/memória de Porto Nacional está dispersa nos escritos de
portuenses e nortenses, de religiosos que viveram por muitos anos, bem como de
pessoas que “olharam de fora” os acontecimentos. Todo o material reunido fornece
informações ricas e minuciosas sobre a cidade, pois são lugares de memória
coletiva:
História que fermenta a partir do estudo dos “lugares” da memória coletiva.
Lugares topográficos, como os arquivos, as bibliotecas e os museus;
lugares monumentais como os cemitérios ou as arquiteturas; lugares
simbólicos como as comemorações, as peregrinações, os aniversários ou
os emblemas; lugares funcionais como os manuais, as autobiografias ou as
associações: estes memoriais têm sua história (LE GOFF, 2003, p .467).
Nesses lugares de memória estão os elementos que caracterizam a
singularidade de Porto Nacional, lugares que podem ser topográficos, monumentais,
5
Porto Nacional recebeu três denominações em diferentes épocas. Inicialmente surgiu como um
simples porto de passagem entre uma margem e outra do rio, principalmente atravessando
moradores procedentes de Pontal (do lado esquerdo) e Monte do Carmo (do lado direito),
recebendo, ainda no século XVIII, a denominação de Porto Real. Com o Decreto de 14 de
novembro de 1831, Porto Real passa a categoria de vila, e muda-se o nome para Porto Imperial.
Em 1861, pela Lei n
0
. 333, de 13 de julho, é elevada a cidade (BRANDÃO, 1978). Continuou como
Porto Imperial até o advento da República, quando o nome foi novamente mudado, passando a
Porto Nacional, nome que prevalece até os dias atuais. Será utilizada a denominação apropriada de
acordo com o período a que se refere cada uma.
111
simbólicos e funcionais (LE GOFF, 2003, p. 467); memórias construídas no seu dia-
a-dia, no mundo das atividades concretas, mas também no imaginário e nas formas
de representações da comunidade, como afirma Marieta Ferreira:
A memória é um elemento constitutivo do sentimento de identidade, tanto
coletivo, quanto individual. A construção da identidade não está, porém,
isenta de transformações, que se define em relação a um exterior, e
considera a aceitação, a admissibilidade e a credibilidade que se
estabelecem a partir da interação com os outros. Isto quer dizer que
memória e identidade são frutos de um trabalho de construção,
constantemente negociadas, e representam fenômenos sociais que não
devem ser compreendidos como manifestação de alguma “essência”
pessoal ou de grupo (FERREIRA, 2004, p. 98).
Michael Pollak (1989) mostra-nos a estreita relação entre
identidade/fronteira/memória, quando ressalta que pela memória é possível tanto
definir o que é comum a um grupo como o que o diferencia de outros e, ainda,
estabelecer fronteiras socioculturais, reforçando sentimentos de pertencimento. Noé
F. Sandes (2003, p. 153 apud RÜSEN, 2001) afirma que “[...] a memória organiza
uma outra percepção do acontecimento, o que permite vislumbrar a multiplicidade do
tempo histórico e até mesmo sugerir a especificidade da reflexão do memorialista na
composição de uma consciência histórica”. Sendo a memória, portanto, elemento
imprescindível para a construção histórica, valorizo-a em suas diversas
manifestações. As palavras de Ecléa Bosi ilustram de forma brilhante as
possibilidades e limitações de seu uso, pois, segundo ela, a memória
Não reconstrói o tempo, não o anula tampouco. Ao fazer cair a barreira que
separa o presente do passado, lança uma ponte entre o mundo dos vivos e
o do além, ao qual retorna tudo o que deixou à luz do sol. Realiza uma
evocação; o apelo dos vivos, a vinda à luz do dia, por um momento, de um
defunto. É também a viagem que o oráculo pode fazer, descendo, ser vivo,
ao país dos mortos para aprender a ver o que quer saber (BOSI, 1987, p.
47-48).
A cidade é um espaço privilegiado da formação de novas identidades, com
seus códigos implícitos e explícitos, e desvendá-los pode ser uma tarefa instigante.
Porto Nacional foi o núcleo urbano mais dinâmico do antigo norte de Goiás, e
aspectos como a convivência com o rio, a labuta diária, os valores e crenças são
elementos constitutivos da sua identidade. Quase sempre esses elementos não são
perceptíveis imediatamente, é necessário que sejam proc
112
Brasília, a fundação da nova capital do Estado do Tocantins e, por último, a
construção da barragem/hidrelétrica do Lajeado. A questão central é, portanto,
entender de que forma essas mudanças afetaram o modo de vida do portuense e,
conseqüentemente, sua identidade.
2.1.1 A Cidade e o Rio
Porto Nacional é uma cidade ribeirinha das margens do rio Tocantins,
pertencente à antiga região norte de Goiás, atualmente Estado do Tocantins. Suas
origens datam do final do século XVIII, como simples passagem entre dois ricos
núcleos mineratórios: Pontal
6
(1738) e Monte do Carmo (1746). Porto Real sua
primeira denominação funcionava como ponto de intercâmbio entre eles. O seu
desenvolvimento no século XIX, entretanto, está relacionado à atividade da
navegação e ao comércio com Belém. Relatos de administradores, viajantes e
moradores locais registraram impressões sobre a origem e o desenvolvimento de
Porto Nacional. Não unanimidade entre as diversas versões de sua origem
7
.
Segundo Godinho (1988, p.10), à margem direita do rio, local escolhido por um
barqueiro de origem portuguesa para fazer a travessia do rio entre os dois núcleos,
novos moradores foram se estabelecendo: “E assim, na última década do século
XVIII e alvorecer do século XIX, diversos barracões foram se aglomerando onde
passaram a residir pequenos agricultores, pescadores, fabricantes de barcos [...]”.
Conforme dados do IBGE, Porto Real
6
Pontal foi um importante núcleo mineratório do século XVIII. Diversos são os autores que
confirmam sua origem em 1738 (MATTOS, 1979); (SOUZA, 1967); (PALACIN, 1994). Segundo
Cunha Mattos, Pontal estava situado “na parte ocidental de uma grande serra do mesmo nome,
sobre o córrego do Lavapés, três e meia guas a oeste do Porto Real e da margem esquerda do
Tocantins”. O engano sobre a localização de Pontal é uma questão que vem se repetindo e
sendo reproduzida por diversos historiadores e geógrafos, pois na maioria dos mapas de Gos
em que consta esse arraial, ele aparece quase sempre na margem direita do rio, ou seja, do
mesmo lado de Porto Real e Carmo. Para sanar de vez essa dúvida, em visita, juntamente com
outros pesquisadores Mary Karash e Odair Giraldin (na década de 1990), às ruínas do antigo
cleo, pudemos verificar que sua localização correta é realmente na margem esquerda do rio. O
arraial de Carmo ou Monte do Carmo também tem sua origem no século XVIII, “fundado em 1741
sobre os rios da Água Suja e Sucuriú [...]” (MATTOS, 1979). De acordo com Souza (1967) e
Palacin (1994), Monte do Carmo foi fundado em 1746. Para maior clareza sobre suas
localizações, ver mapa n.
0
5.
7
Caio Prado afirma que a fundação de Porto Real data de 1791 “[...] cogita-se desde o terceiro
quartel do século XVIII em utilizar a via fluvial do Araguaia-Tocantins [...] Para atender a isso,
fundara o governador de Goiás, Tristão da Cunha Menezes, em 1791, o Porto Real, no Tocantins
que deveria ser o ponto de partida da navegação” (PRADO JR., 1996, p. 248).
113
114
O desenvolvimento do lugar se deveu, em parte, à seguida diminuição do
ouro nos dois arraiais, passando, então, Porto Real a sede do julgado, que lhe foi
transferida em 1810, de Monte do Carmo. Os habitantes locais são denominados
portuenses (IBGE, 1958; OLIVEIRA, 1997). Quando o padre Luiz Antonio de Silva e
Souza
11
visitou o arraial de Porto Real, em 1812, deixou interessantes dados sobre a
composição da população, como gênero, etnia e estado civil:
Julgado do Porto Real tem de habitantes brancos casados 18, solteiros 32;
pretos casados 25, solteiros 170; pardos casados 50, solteiros 182;
brancas casadas 19, solteiras 12; pretas casadas 30, solteiras 204; pardas
casadas 26, solteiras 255; escravos 625 e escravas 219 (SOUZA, 1967, p.
60).
O viajante austríaco Emmanuel Pohl, que também esteve no arraial (1819),
informou que o mesmo era constituído por 30 casas, igreja e cadeia, mas poucas
eram as casas cobertas de telhas, sendo a maioria de palha de palmeiras. Segundo
ele, Porto Real, embora modesta, constituía uma exceção, pois se apresentava mais
povoada que os outros arraiais da região do Tocantins, que se encontravam
decadentes. Deixou registrado também o assassinato de mineradores por povos
indígenas no garimpo de Matança (POHL, 1976). Cinco anos depois (1824), é
Cunha Mattos quem nos fornece uma descrição bastante positiva do lugar:
A situação do arraial é a melhor que se pode desejar; plana, sadia,
eminente às maiores cheias do rio; [...] tudo neste aprazível arraial é novo;
pode ser o empório de todas as riquezas do centro do Brasil, e tem um
excelente terreno para levantar uma cidade mais extensa do que qualquer
das mais famosas do universo (MATTOS, 1979, p. 128).
É visível, nos comentários de Cunha Mattos, uma significativa diferença entre
a Comarca do norte em geral, e Porto Real em particular; se por um lado a região
como um todo aparece como pobre e composta por uma população preguiçosa e
esfomeada, por outro, o arraial de Porto Real é bastante elogiado
12
. Esse contraste
pode ser explicado pelo declínio da produção de ouro em cidades vizinhas, como
Natividade e Carmo, enquanto que Porto Real se encontrava em localização
privilegiada para praticar o comércio com Belém do Pará (OLIVEIRA, 2005).
11
Luiz Antonio da Silva e Souza (1764-1840), natural de Serro Frio, MG, chegou a Goiás na última
década do século XVIII e exerceu diversos papéis na vida pública goiana: foi padre, professor,
político e escritor.
12
O autor ressalta que no arraial havia 47 casas pequenas, uma capela, registro das embarcações
que descem para o Pará, com um destacamento de 28 praças, duas pequenas peças de artilharia
de bronze e algumas munições.
115
Comparando as anotações de Emanuel Pohl, de 1819, com os relatos de
Cunha Mattos, de 1824, temos o seguinte: embora Pohl (1976, p. 228) afirmasse,
por ocasião de sua passagem pela região, que A jurisdição desse vilarejo [Porto
Real] compreende o arraial quase despovoado de Pontal”, em 1824, ou seja, cinco
anos mais tarde, os dados encontrados em Cunha Mattos (1979) atribuem uma
superioridade populacional de Pontal sobre Porto Real
13
. Mesmo com as
divergências nos relatos e nos dados estatísticos, o fato de Pontal ter convivido com
Porto Real fica evidente, não sendo necessário, portanto, decretar a ruína de um
(Pontal) para o surgimento do outro (Porto Real).
A Revista Informação Goyana (1920) traz uma longa matéria
14
sobre Porto
Nacional, que contribui para esta discussão. Segundo ela, “é o município de Porto
Nacional um dos mais prósperos daquela zona”, e segue afirmando que seus
primeiros delineamentos foram lançados pelo desembargador Joaquim Teotônio
Segurado, Ouvidor da Comarca do Norte, na primeira década do século XIX
15
.
Segurado teria incentivado os povos de Monte do Carmo e Bom Jesus do Pontal a
se mudarem para Porto Real, enaltecendo suas vantagens, pois os outros dois
arraiais encontravam-se estagnados, com a escassez do ouro. Porto Real passa a
desenvolver-se, sendo elevado a cabeça de Julgado
16
em 1810, tornando-se o mais
importante centro comercial do norte goiano, pois partiam de não menos de 30
embarcações por ano em direção ao Pará. “[...] tem uma população de cerca de
13
Os dados encontrados no Arquivo do IPEHBC diferem um pouco dos apresentados por Giraldin,
mas mesmo assim há superioridade numérica de Pontal sobre Porto Real. Segundo Giraldin (2002,
p. 133), o total dos moradores de Pontal seria de 780 pessoas. Cunha Mattos afirma que seriam
741 pessoas, enquanto que para Porto Real, 466 pessoas, incluindo, nos dois casos, livres e
escravos. No que se refere a Porto Real, Giraldin limita-se a apresentar apenas os dados
estatísticos deixados por Pohl, não mencionando os catalogados por Cunha Mattos. A dúvida sobre
a exatidão dessas fontes deve ser sempre acionada, pois mesmo os dados deixados por Cunha
Mattos, encontrados nos dois arquivos (AHE e IPEHBC), apresentam certa diferença nos totais
computados, sendo o primeiro em forma de correspondência e o outro em forma de tabela.
14
Como a matéria não foi assinada, provavelmente o autor tenha sido Henrique Silva, o editor da
Revista.
15
Teotônio Segurado, corregedor da Comarca de São João das Duas Barras, transferiu a cabeça de
julgado do arraial do Carmo para Porto Real. Percebendo a inconveniência de criar a Comarca do
Norte na confluência dos rios Araguaia e Tocantins, devido à distância dos demais núcleos
urbanos, após plantar um marco no local da futura vila de São João das Duas Barras, retrocedeu
até Porto Real, onde instalou a sede de sua administração.
16
Julgado: a palavra provém do latim judicatum e na organização judiciária portuguesa correspondia
a um termo de qualquer Comarca; no caso, as ouvidorias de Goiás estavam divididas em julgados,
com distritos delimitados legalmente, com sede em um arraial, onde ficavam o conselho de julgado,
o juiz ordinário, ou juízes ordinários, e o comandante (SILVA, 1982, p. 79). Segundo Palacin;
Garcia; Amado (1995, p. 171) “a carência de vilas emperrava o funcionamento do sistema judiciário
em Goiás. Sem vilas, não podiam existir juízes; sem juízes, a justiça não podia funcionar”. A
solução encontrada foi a nomeação de juízes e tabeliões para os principais arraiais que passaram a
centros de “julgados”.
116
2.000 mil almas, podendo-se calcular a população do município em cerca de dez mil
habitantes” (INFORMAÇÃO GOYANA, v. III, n
0
. 12, 1920).
A partir de diferentes versões sobre a origem de Porto, com base em
memórias de antigos moradores, viajantes estrangeiros e dados oficiais, algumas
considerações podem ser feitas sobre o mito de origem. Sabe-se que a busca pela
autenticidade da identidade é um recurso comum a muitas comunidades e
geralmente o caminho trilhado para justificá-la é a tentativa de comprovar a
existência de um passado supostamente comum, um mito fundador
17
. Essa é uma
forma de recuperar a verdade sobre seu passado, justificando uma história
partilhada, para então fundar uma identidade. No caso da origem de Porto Nacional,
é visível como um massacre indígena serviu para sedimentar a idéia de um mito
fundador para a cidade, que passou a fazer parte do imaginário local e foi
transmitido de geração em geração como incontestável. A necessidade de um outro
na demarcação dessa identidade se torna oportuna e bastante inteligível no caso.
Embora a versão de que a origem de Porto Real esteja ligada ao ataque indígena a
Pontal tenha sido aceita por longa data, uma pesquisa documental mais detalhada
confirma que os arraiais de Porto Real e Pontal conviveram por décadas antes da
total ruína do último. Segundo o antropólogo Giraldin,
Os habitantes de Pontal de fato realizavam garimpagem de ouro em
diversos locais nos arredores do arraial. Por volta de 1810, um grupo
estava garimpando no ribeirão Matança, local de extração abundante de
ouro, quando foram atacados pelos índios, provavelmente Xerente tendo
sido todos mortos (GIRALDIN, 2002, p. 137).
O autor conclui que “Este ataque permaneceu na memória como um fato
extremamente marcante, e deve ter contribuído para que algumas famílias, a partir
de então abandonassem Pontal, mudando-se para o destacamento do Porto Real”.
A sedimentação da idéia de um massacre de brancos por povos indígenas ocorreu
sem resistência, pois sendo os conflitos étnicos constantes na região como
mostram os diversos documentos tal ato de violência contribuiu para a construção
do mito fundador de Porto Real. Portanto, mesmo que o episódio não tenha sido o
fator determinante da extinção do Arraial do Pontal, ficou no imaginário da
17
Tomaz Tadeu da Silva explica que “No caso das identidades nacionais, extremamente comum, por
exemplo, o apelo a mitos fundadores [...] É necessário criar laços imaginários que permitam ‘ligar’
pessoas que, sem eles, seriam simplesmente indivíduos isolados, sem nenhum ‘sentimento’ de
terem qualquer coisa em comum” (SILVA, T. 2000, p. 35).
117
população como justificativa válida para a origem de uma cidade que iria se destacar
como Capital Cultural da região.
Como evidenciado em estudos anteriores, embora o surgimento de Porto
Real estivesse intimamente ligado aos dois núcleos mineratórios, seu
desenvolvimento se deveu à sua posição estratégica à beira do rio Tocantins, o meio
de comunicação mais viável para a região no período (OLIVEIRA, 1997). Portanto a
explicação mais plausível é a de que, devido ao esgotamento das minas auríferas e
com o fim da proibição da navegação pelo rio Tocantins, a conjuntura do século XIX
tenha sido mais favorável ao desenvolvimento de Porto Real, que se encontrava na
beira do rio, em detrimento dos antigos núcleos mineratórios, tornando-o um
importante porto comercial com o Pará.
O quadro n.
0
5 mostra que no final do século XIX Porto Imperial alcançou
desenvolvimento considerável, sendo um lugar de atração de migrantes de diversos
Estados limítrofes.
Estado Homens Livres Mulheres Livres Escravos Escravas Total
Maranhão 15 13 - 5 33
Piauí
111 91 7 15 224
Rio G. do
Norte
- - 1 - 1
Pernambuco 4 22 - - 26
Bahia 63 48 3 17 131
Sta. Catarina 4 9 - 5 18
Total 197 183 11 42 433
Quadro n.
0
5: Origem dos imigrantes de Porto Imperial - 1872.
Fonte: Oliveira (1997).
A análise dos dados do censo de 1872 permite concluir que a maior parte
dos imigrantes era constituída de nordestinos, sendo 224 do Piauí, 131 da Bahia e,
em seguida, mas com uma participação bem menor, o Maranhão com 33 e
Pernambuco com 26 imigrantes. Nota-se também a presença de 18 imigrantes de
Santa Catarina, não havendo, na época, em Porto Imperial, nenhum estrangeiro
18
.
Nessa mesma época o município de Porto Imperial apresentava uma
população de 4.926 habitantes, distribuída por mais de quarenta mil quilômetros
quadrados (ver mapa n.
0
6). É importante ressaltar, dentre os habitantes, a presença
de remanescentes de escravos que trabalharam nas minas auríferas de Pontal e
18
A chegada dos primeiros religiosos franceses na cidade ocorreu em 1886.
118
Carmo, fato também notado por Júlio Paternostro na década de 1930, quando
menciona que, com a aproximação de Porto Nacional, torna-se visível o aumento do
número de negros: “Quanto à cor, há uma divisão nítida da população do vale do
Tocantins. De Porto Nacional, rio abaixo, os negros são raros, rio acima, numerosos”
(PATERNOSTRO, 1945, p. 223).
119
120
Ao observar o quadro n.
0
6, pode-se verificar que grande parte da população
estava ligada à atividade agrícola, num total de 950 pessoas, sendo uma
porcentagem menor apenas que as atividades domésticas. Comparando esses
dados com os de outras fontes, é possível observar que o número de profissionais
dedicados à navegação é insignificante, apenas 10 pessoas, o que não daria para
mover um barco de 6 pares de remeiros, considerado pequeno; pois um bote grande
necessitava de até 12 pares de remeiros. Se considerarmos os números citados
anteriormente, com base em Doles (1973) e no Correio Oficial (1876), que fazem
referência a 5 botes grandes, com uma tripulação de 97 pessoas originárias de Porto
Imperial e Palma, para serem rebocados pelos vapores da empresa criada por Couto
Magalhães, pode-se cogitar o seguinte: a diferença nos números apontados pode
ser explicada pela não-exclusiva dedicação desses homens à navegação, praticada
somente em determinado período do ano, como visto na primeira parte da tese. Nos
demais meses, dedicavam-se a outras atividades, como o preparo de roças.
Também pode ser que foram considerados profissionais da navegação somente os
donos dos botes e os pilotos, sendo os demais contratados apenas para a viagem e
depois dispensados, ficando na categoria jornaleiros.
Profissões Homens
Livres
Mulheres
Livres
Escravos/as Total
Notário e escrivão 1 - - 1
Oficial de Justiça 5 - - 5
Artistas 15 - - 15
Militares 18 - - 18
Marítimos 10 - - 10
Capitalistas e proprietários 32 26 - 58
Manufatureiros/fabricantes 10 - - 10
Comerciantes/guarda-
livros/caixeiros
38 - - 38
Costureiros/as - 133 4 137
Serv. manuais e mecânicos 94 76 2 172
Atividade de calçados 77 - 4 81
Profissões agrícolas 773 74 103 950
Criados e jornaleiros 70 199 17 286
Serviços domésticos 3 1.020 67 1.090
Sem profissão definida 596 414 63 1.073
Total 1.742 1.942 260 3.944
Quadro n.
0
6: Distribuição da população por profissões em Porto Imperial – 1872
Fonte: Oliveira (1997).
Mesmo não sendo possível precisar com exatidão o total de barcos e o
volume das cargas que partiam e chegavam anualmente a Porto Nacional, pode-se
dizer que foi a partir da década de 80 do século XIX que a navegação, de modo
geral, recebeu maior impulso, sendo que desde a década de 60 já havia tentativas
121
para incrementá-la (OLIVEIRA, 2002). Em seu Itinerário, Gomes (1862, p.489-501)
afirmava que a cidade era habitada por negociantes, fazendeiros, agricultores,
artistas, etc. Segundo ele, Porto Imperial era a “que mais merecia o titulo de cidade
do adn ee s, r;26(S)-3.212792Td31.4251(e)2.80.616(se)2.80762Td31.4472(s,)-9.2o51(e)2.80d52(e)-7.82o22(e)2.808922Td31.4459( )278]TJ7(d)-7.83062Td3144593( )-62.427(i)9.23319(c)-10.6021(l)-1.40251(i)-1.405(c)-10.6s21(l)-1.40J/R15 11.282(a)-7.83062Td31.4“2(r)-7.42553( )-62.4ssa7(d)-7.83062Td3144c383(u)2.81459( )-349.658(a)13.445( )]TJ2677(d)-7.83062Td3144306.12 0 Tdo11(s )-62.4247(m)3.23062Td3144[(z)10.63551(a)2.803062Td3144q9( )278]TJ7(d)-7.8677(d)-7.83062224247(“)3.21p79(t)1.40511(o)2.80777( )-339.021(l)-1.4067.48 0 Td11(e)2.807626.12 0 Tdo11(s)13.4251(t)-9.23062Td3130.616(se8112808(e)-7.8892(cr)3082811(e)13.4485(s,)-9.2.12 -19.44 Td[(a)2.80827(a)-2.80c279(m)-7.42v279(m)-7.42892( )-115.892(a)-7.82938(d)2.8089(o)2.80892( )-73.0.383(a)2.82”1(o)2.807;6(P)-3.2127929a)2405f72(s,)-9.2o5( )-73.0383(u)3.2127929amus, eeras, e l p oica p
122
Ruas e logradouros
Públicos
N.
0
de casas
Largo das Mercês 10 casas
Rua da Intendência
21
21 casas
Rua Padre Antônio 18 casas
Rua das Flores 34 casas
Rua das Pombas 6 casas
Rua do Campo 21 casas
Rua do Sol 29 casas
Rua Pau D’óleo 2 casas
Rua de São José 28 casas
Rua 7 de Setembro 22 casas
Rua 15 de Novembro 19 casas
Largo Dr. Francisco 5 casas
Rua da Praia 20 casas
Largo da Baixa 16 casas
Total 251 casas
Quadro n.
0
7: Imóveis de Porto Nacional que pagavam imposto
da décima urbana em 1910.
Fonte: A.H.E. (caixa n.º 6); Oliveira (1997).
21
Pode-se notar que em 1910 os nomes das ruas já sofriam interferências e influências políticas,
como, por exemplo, em Porto Nacional: a Rua da Intendência era a famosa Rua do Caba-saco,
inspiradora de muitos poetas. Sua primeira denominação foi Caba-saco, depois Imperatriz,
Intendência e hoje Rua Coronel Pinheiro; a Rua 15 de Novembro foi Rua do Norte; a atual
denominação da Rua São José é Rua Mizael Pereira; a Rua Padre Antônio chamava-se Rua da
Cadeia (GODINHO, 1988, p. 270-275).
123
Fotografia n.° 9 – Porto Nacional – vista aérea.
Fonte: Autor desconhecido.
Fotografia n.° 10 – Catedral N. S. das Mercês – Porto Nacional.
Fonte: Maria de Fátima (2005).
124
Ainda em 1910, o periódico local comenta a insatisfação dos moradores com
relação à cobrança da décima urbana:
Tais reclamações merecem tanto mais esclarecimentos [...] o coletor
Negry, se de um lado aumentou, sem razão, os lançamentos, de outro lado
fez neles incluir prédios em construção, prédios em ruína, casebres de
pobres e miseráveis velhas, tudo isso de que a lei não cogita, mas que a
insaciável ganância do coletor não pode perdoar (NORTE DE GOYAZ, nº.
112, 1910).
Na divisão administrativa do Brasil referente ao ano de 1911 e nos quadros
gerais do recenseamento de 1920, o município de Porto Nacional figurava com três
distritos: Porto Nacional, Monte do Carmo e Jalapão e, até a década de 1950, era o
maior município goiano em extensão
22
.
É inegável o papel fundamental de Porto Nacional no desenvolvimento da
região norte de Goiás desde o final do culo XVIII; sua localização privilegiada
transformou-o em pólo de destaque pela intensa atividade da navegação. Os dados
a seguir mostram como a cidade consolidou-se como o mais importante centro
comercial da região ao longo do século XIX. A historiadora Dalísia Doles (1973)
afirma que em 1850 o número de pessoas empregadas na navegação no rio
Tocantins era de 400 a 500, sendo que o maior número provinha de Porto Imperial,
num total de 150 pessoas. Esse número de indivíduos dedicados à navegação é
significativo, superando até mesmo Carolina e Boa Vista, com 100 pessoas cada
uma. Nesse período cogitou-se formar uma sociedade mercantil na Província de
Goiás para explorar o comércio fluvial, mas chegou-se à conclusão de que seria
possível concretizar o projeto na rota do Tocantins, pois no rio Araguaia e no sul do
Estado não havia condições favoráveis a tal empreendimento. Dessa forma, "[...] o
ponto inicial da viagem foi a vila de Porto Imperial, na rota do Tocantins, onde não só
havia equipamentos, tripulação, víveres e produtos exportáveis [...]” (DOLES, 1973,
p. 61).
22
Dentre os municípios goianos, Porto Nacional era o de maior área, no período, com 40.300 km
quadrados, o que corresponde a 6,46% do Estado de Goiás, sendo maior que os Estados de
Alagoas e Sergipe. Segundo dados do IBGE, a cidade está sobre uma planície lida, seca e alta,
ligeiramente acidentada à beira do rio Tocantins. O mapa n.
0
6, que mostra a imensidão do
município, é de 1872, mas, mesmo após a emancipação de alguns distritos, ele ainda continuou
sendo o maior do Estado até a década de 1950. A partir daí torna-se difícil detectar o ritmo de
crescimento populacional do município por causa dos constantes desmembramentos ocorridos
principalmente como reflexo da rodovia Belém-Brasília, pois surgiram muitos novos municípios às
suas margens.
125
Porto Nacional foi, portanto, desde suas origens, um porto importante de
exportação dos produtos regionais e de abastecimento da região com as
mercadorias inexistentes e prioritárias, pelo comércio com Belém, como afirma
Godinho:
Em todo esse tempo Porto Real se tornou o ponto do mais importante
escambo comercial do Norte goiano, pois dali partiam nada menos de trinta
embarcações anualmente para o mercado do Pará e para ali convergiam
as tropas de todos os municípios da zona norte de Goiás (GODINHO,
1988, p. 188).
Nas primeiras décadas do século XX, as fontes já mostram um decréscimo
do trânsito de botes no rio Tocantins. Ayres da Silva ressalta que:
[...] do crescido mero de botes, igarités e canoas que demandavam à
praça de Belém, levando em especial peles de bovinos e de outros
animais, e para reminiscência desse ativo comércio, que se estendia a
todas as cidades à beira rio, desde Palma a Boa Vista, cidades de Goiás,
restam apenas os botes de Porto[...] (SILVA, 1972, p. 20-21).
Embora apresentando decréscimo no início do século XX, a navegação
continua sendo o principal meio de comunicação e transporte para Porto Nacional e
região. Essa comunicação se completava com a atividade dos tropeiros que
transitavam em direção ao nordeste e ao sul, rumo à capital, a cidade de Goyaz.
Ao mesmo tempo em que o rio Tocantins foi importante como propiciador de
desenvolvimento econômico e integrador da região com o norte do país, a
convivência diária dos portuenses com ele influenciou na construção da identidade
desse povo. A consolidação da cidade como centro comercial da região se deveu,
portanto, à atividade da navegação. Vejamos agora como era o dia-a-dia do
portuense na cidade.
O estudo das atividades diárias do portuense e sua convivência com o rio são
elementos importantes para entender como sua identidade foi se construindo. No
início do século havia apenas dois poços na cidade, um no convento das freiras
dominicanas e outro no seminário dos padres. A água era transportada da fonte para
as casas, na cabeça, em latas ou potes. Os mocos
23
eram de grande utilidade nessa
atividade. As casas eram servidas pela água do rio Tocantins ou por duas outras
23
Mocos: deficientes mentais, que viviam ou em casas da própria família ou de favor com outros.
Eram utilizados em serviços diários, como transportar água, buscar lenha no mato e prepará-la para
o fogão, limpar quintais, etc.
126
fontes existentes, o Ribeirão o João e o Buracão. Não era comum a existência de
cisternas.
Para apanhar água no rio, meninas e moças de 8 a 20 anos iam e vinham
das casas com os potes na cabeça ou, então, eram cretinos com enormes
bócios que faziam esse mister, tangendo jegues indolentes com duas latas
de querosene, uma de cada lado da cangalha
24
(PATERNOSTRO, 1945, p.
225).
Para os banhos diários, havia lugar pprio e separado por gênero, sendo
um para os homens e outro para as mulheres. Era comum tomarem banho nus,
mas as alunas internas e as freiras usavam camisolão. A distância entre os poços
era pequena, mas, segundo os entrevistados, havia muito respeito. O horário dos
banhos era geralmente antes do almoço e antes do jantar. Os doentes ou
mulheres de resguardo banhavam-se em bacias dentro de casa. De acordo com
os moradores, até o advento da água encanada, na década de 1960, era comum
buscar a água para consumo no rio ou nos ribeirões, que eram utilizados também
para a lavagem de roupas e os banhos diários. Segundo a Sra. Lélia Pinto
(2006), além dos banhos diários, havia uma programação especial para os
domingos: Todo domingo a gente ia pro rio, depois da missa das criaas... ia
todo mundo pro rio [...] as pessoas mais idosas tomavam banho sem roupa, a
gente usava mais era calcinha. Ela afirma ainda que [...] aqui não existia
diferea entre pobre e rico não... todo mundo carregava pote dágua na caba”.
A lavagem de roupas não era uma atividade isolada, ao contrário, era
compartilhada entre as mulheres e com a participação das crianças. Nos dias
reservados a essa atividade, geralmente as lavadeiras levavam o almoço em
marmitas; assim podiam esperar que a roupa secasse, ficando mais leve para ser
carregada de volta. Enquanto a roupa secava, mães e filhos se banhavam. Na volta
para a cidade, além das roupas, transportavam potes d’água para uso doméstico.
Era comum as mulheres utilizarem de um estratagema: “Botavam as roupas mais
bonitas por cima da bacia pra passar na rua” (MACEDO, M., 2006). Para engomar a
roupa, principalmente a roupa de passeio, elas preparavam uma mistura de tapioca
com sabonete raspado, algumas gotas de querosene e fragrância de oriza, em água
24
No próximo capítulo, o estudo sobre Pedro Afonso, fica evidente uma diferença na atividade diária
entre as duas cidades: a preponderância do uso dos jegues no trabalho de transporte de água dos
dois rios para a cidade. Segundo relatos e fotografias da época, usavam-se duas latas de
querosene ou ancoretas (vasilhas de madeira) de cada lado do jegue.
127
fervente. O ideal era retirar a roupa ainda úmida do varal, para passar melhor com
ferros de brasas.
Quanto à pesca, havia os pescadores “profissionais”, mas a atividade o era
privilégio só dos homens, era muito comum entre as mulheres e crianças. Não havia,
como na atualidade, toda a parafernália de equipamentos para esse fim. A tralha de
pesca era muito simples, sendo que as crianças inventavam seus anzóis. Nazaré
Silva (2006) descreve: “a gente usava um alfinete de fazer rede e a linha era a
cauda de cavalo. A isca era milho ou bolinha de farinha, e a vara era aquele “rabo de
raposa” que tem muito na ilha.”
Os entrevistados foram unânimes em afirmar que era muito difícil ocorrer
afogamento durante as pescarias ou nos banhos diários, pois se aprendia a nadar
muito cedo. Maria C. Macedo (2006) explica como aprendiam a nadar: “[...] pegava
uma vara seca de buriti... aquela varona grossa e leve, a gente jogava na água,
segurava e ia batendo o pé, como uma bóia”. Podia ocorrer de modo diferente para
os meninos, como nos conta Adelmo Silva (2006): “Todas as crianças naquele
tempo aprendiam a nadar muito cedo, tinha as pessoas que pegavam e jogavam a
gente pra se debater [...] jogava e o nego tinha que se virar pra não se afogar. Ou
aprendia a nadar ou nunca mais [...].”
De modo geral as residências de Porto Nacional eram rústicas, com móveis
simples, feitos geralmente de madeira da própria região. Utilizava-se muito a
madeira sassafrás para confeccioná-los ou material trazido do Pará pelos botes. As
camas, em sua maioria, tinham armação de madeira e estrado de couro cru
trançado, pois o couro era artigo abundante na região. Pedro P. Silva (1996) explica
seu processo de fabricação. Segundo ele, o couro de boi, cru, era colocado na água
para amolecer; cortavam-se as beiras para tirar as quinas e, então, faziam-se
contínuas e arredondadas tiras, que eram trançadas em uma armação de madeira
até formar um estrado forte; estava pronta a cama. Era e ainda é comum também o
uso de redes para dormir, tanto em casa como em viagens. O colchão era feito de
tecido de algodão grosso, recheado com capim, palha ou crina de animal. Não era
comum o uso de guarda-roupas como conhecemos hoje. Para guardar roupas e
valores, usavam-se caixas de sola ou baús. Pessoas de baixo poder aquisitivo
possuíam simples caixotes de madeira ou bruacas de couro, também utilizadas em
viagens para transporte de mercadorias em lombo de animais. As famílias abastadas
adquiriam, em Belém, produtos de luxo, como móveis finos e porcelanas.
128
Era bito levar o alimento à boca com as mãos (comer de arremesso),
principalmente ao comer farinha ou paçoca de carne. A maioria dos utensílios era
simples: panelas de ferro ou de barro, pratos esmaltados ou de porcelana e talheres
de prata ou latão. Segundo a portuense Sra. Rita Guedes, o fermento utilizado no
fabrico de bolos era o “fermento de cuia”, feito de fubá de arroz, uma pitada de sal e
água morna. Após cinco dias era colocado para secar ao sol. Guardava-se a mistura
em lata fechada para ser utilizada quando necessário. Como o açúcar era
geralmente escuro e empedrado, para clareá-lo procedia-se da seguinte forma:
colocava-se o úcar em um tacho com água e levava-o ao fogo. Com uma
escumadeira, ia se retirando a “sujeira” que transbordava. Quando atingia o ponto de
puxa, começava-se a bater, parando somente quando o açúcar começava a
enfarinhar. era peneirar e estava pronto. Segundo Rita Guedes (1996), era um
trabalho muito demorado e difícil.
O almoço era servido em torno das dez horas, e o jantar, pelas quatro horas.
As refeições principais consistiam de arroz, feijão, farinha, carne de vaca, de porco,
de galinha e caça. O inhame, a mandioca e a batata doce eram muito utilizados. Não
era comum a ingestão de saladas
25
, como visto anteriormente na fala de Rita
Guedes. A abóbora, embora consumida em larga escala, não era bem-vinda à mesa,
era considerada inferior, comida de porco. Os alimentos (galinhas, porcos, milho
verde, abóboras, quiabos, etc) procediam de fazendas e sítios situados próximo à
cidade, ou mesmo dos quintais. Com base no quadro n.
0
8, pode-se verificar que os
alimentos mais consumidos na cidade e região, na década de 1970
26
, não se
diferenciavam muito dos consumidos há um século.
25
Em tempos mais recentes (década de 1980), quando residi na região, tive oportunidade de
presenciar ainda o estranhamento dos moradores pelas saladas. Certa vez um fazendeiro, vindo do
sul de Goiás, produziu em sua fazenda, no município de Peixe, grande quantidade de tomates.
Levou uma carga para ser vendida na cidade. Resultado: teve que levar a mercadoria de volta. Não
era falta de dinheiro, era falta de hábito mesmo.
26
A obra da antropóloga, resultado de sua dissertação de mestrado, é um estudo amplo sobre os
cuidados com a alimentação e o corpo. A sua utilização nesta pesquisa é limitada, para não fugir do
eixo central aqui proposto; o visa emitir juízo de valor sobre os hábitos alimentares. Para a
elaboração do quadro, a autora entrevistou 506 pessoas na área urbana de Porto Nacional no ano
de 1976.
129
Alimento Consumo diário (%)
Arroz 97,2
Carne
58,8
Feijão
59,9
Farinha de mandioca
55,7
Leite
30,6
Mandioca
11,3
Café
71,7
Abóbora
16,8
Pão
42,5
Quadro n.
0
8: Dieta alimentar na zona urbana de Porto Nacional 1976.
Fonte: Campos (1982).
O resultado dos dados apresentados no quadro n.
0
8 é bastante real se
considerada a facilidade de acesso dos moradores a essa dieta básica, pois os
produtos são os mais encontrados ou cultivados na região. O único produto não
comum, um século, seria o pão, sendo mais costumeiro o consumo de beijus,
bolos e biscoitos. Embora houvesse fartura em certas épocas, acontecia, às vezes,
de faltar algum gênero na cidade, como mostram o periódico Folha do Norte (n.
0
24,
1892): “Há escassez de açúcar, aguardente e sal”; e os relatos dos dominicanos,
que afirmavam acontecer de ter carne em dias de abstinência e faltar nos outros dias
em que se podia comê-la.
As Leis de Posturas do Município de Porto Nacional do ano de 1903 também
são esclarecedoras sobre os costumes dos portuenses, como mostram as principais
preocupações administrativas com hábitos da população, como animais soltos nas
ruas e o uso diário de armas de fogo. Como o meio de locomoção mais usual em
terra era o lombo de animais, eram comuns atos de exibicionismo, podendo provocar
acidentes ou amedrontar transeuntes. Com relação às medidas de higiene, chamam
a atenção as seguintes proibições: fabricar sabão com ingredientes que exalavam
cheiro desagradável; doentes com moléstia contagiosa banharem-se nas fontes da
servidão pública; pescar utilizando timbó, tinguí ou outra substância venenosa.
Permeando todo o quadro traçado até aqui, um elemento de fundamental
importância na vida do portuense, as festas
27
. Falar das festas em Porto Nacional é
27
A festa não é necessariamente lugar de consenso, pois dizer que a festa produz identidade, não
significa que ela esteja esvaziada de seu caráter de conflito ou de tensão. Ao contrário, as
contradições, as diferenças, os jogos de poder estão presentes nas festas, portanto permeiam as
identidades, pois a festa é “Um lapso aberto no espaço e no tempo sociais, pelo qual circulam bens
materiais, influência, poder” (GUARINELLO, 2001, p. 972). A festa tanto pode unificar, quanto
diferenciar, havendo sempre uma fronteira explícita, ou não, que determina quem são os incluídos e
os excluídos. Uma “viagem” pelas festas em Porto Nacional permite visualizar um pouco mais de
suas peculiaridades, um conjunto que não é homogêneo, mas uma identidade em construção.
Embora muitas das constatações feitas sobre as práticas festivas nas cidades ribeirinhas do
Tocantins sejam também comuns em muitas cidades do interior do Brasil, acredito que na aparente
130
uma forma de mostrar traços formadores de sua identidade. Concordo com a
posição de Norberto Guarinello (2001) quanto a tratar a festa não como realidade
oposta ao cotidiano, mas integrada nele, pois o cotidiano não é uma dimensão
particular da existência humana, mas o tempo concreto de realização das relações
sociais. Portanto,
Uma festa é uma produção social que pode gerar vários produtos, tanto
materiais como comunicativos ou, simplesmente, significativos. O mais
crucial e mais geral desses produtos é, precisamente, a produção de uma
determinada identidade entre os participantes, ou antes, a concretização
efetivamente sensorial de uma determinada identidade que é dada pelo
compartilhamento do símbolo que é comemorado e que, portanto, se
inscreve na memória coletiva com um afeto coletivo (GUARINELLO, 2001,
p. 972).
As festas eram muito freqüentes, no momento em que se encerrava uma
comemoração se iniciava a organização da próxima. Em Porto Nacional, a festa
da padroeira Nossa Senhora das Mercês
28
realiza-se no dia 24 de setembro.
Após o novenário de estilo, realizaram-se no dia 24 do cadente os
pomposos festejos de N. Senhora das Mercês, excelsa padroeira desta
cidade. O vasto templo local revestiu-se de galas para a realização das
pomposas cerimônias que estiveram imponentes e concorridíssimas. Pelas
8 horas da manhã teve lugar solene missa cantada pelo Rvmo. Frei
Gregório Aleixo auxiliado pelo menorista Padre Selvino Pereira da Silva e
pela banda de sica portuense. A noite realizou-se deslumbrante
procissão, percorrendo as principais ruas desta cidade. Não obstante o
nublado que encobria o céu, com promessa de mau tempo, houve
extraordinário acompanhamento. Ao recolher-se a procissão, ocupou a
tribuna sagrada o ilustre Frei G. Aleixo e em eloqüente sermão [...] fez o
panegírico da excelsa Padroeira. Ao terminar a magnífica oração sacra que
sobre maneira agradou a onda de fieis que enchia o grande templo,
realizou-se solene benção do S.S. Sacramento. Nos dias 25 e 26
prosseguiram os festejos do Divino Espírito Santo, tendo lugar a 25 a
posse do imperador do Divino pelas 7 horas da noite. No dia 26 pelas 8
horas da manhã realizou-se solene missa cantada. Nessa ocasião ainda
proferiu eloqüente sermão o Rvmo. Fr. Gregório Aleixo. Ao terminar a
missa saiu a procissão do Divino Espírito Santo ao redor do Largo das
Mercês, havendo grandioso acompanhamento. Em seguida houve benção
do S.S. Sacramento. Foi sorteado imperador do Divino para o ano vindouro
o Sr. Luiz Gomes Leite. Todas as cerimônias estiveram
extraordinariamente concorridas. O nosso majestoso templo foi lindamente
enfeitado, tendo magnífica iluminação em todos os atos. A banda de
música muito concorreu para abrilhantar todas as cerimônias. Em
seguimento a esses pomposos festejos, que anualmente são feitos nesta
homogeneidade sempre algum detalhe peculiar, específico, que pode marcar algo de diferente
na forma de vivenciá-las e representá-las. Tanto as festas religiosas como as profanas faziam parte
da rotina; eram acontecimentos de grande significado no cotidiano de um pequeno povoado, onde
as mudanças ocorriam muito lentamente.
28
Em homenagem a essa santa foi construída uma igreja na qual foram gastos mais de 10 anos de
trabalho, sendo o lançamento da pedra fundamental em maio de 1891. Para maiores detalhes
sobre sua arquitetura e o processo de construção, ver Reis (1989); Oliveira (1997).
131
cidade em louvor a sua excelsa Padroeira e ao Divino Espírito Santo, um
grupo de moços distintos organizou o tradicional brinquedo denominado
cavalhadas de Carlos Magno - peleja entre Mouros e Cristãos - que foram
realizados em as tardes de 26 e 27 no Largo das Mercês, com numerosa
assistência de povo. Os moços desempenharam bem os seus papeis com
especialidade os embaixadores (NORTE DE GOYAZ, n.
0
121, 1910).
Uma peculiaridade observada por ocasião das festas era a presença do que
se denominava de bandos precatórios, organizados com o objetivo de recolher
donativos para as festas ou para as obras religiosas. Fora do perímetro urbano os
bandos eram compostos por rapazes e, na cidade, geralmente por moças:
[...] saiu o costumeiro “bando precatório” que, este ano, compoz-se de 25
moças suplicando esmolas para as obras da igreja, ao som de lindas peças
da Orquestra União. Estas moças, ao saírem do nosso modesto escritório,
onde amavelmente estiveram alguns instantes, levaram nos decotes dos
seus elegantes vestidos, em papelinhos de cores, umas inscrições
adequadas ao seu ato de filantropia e religião, com que tivemos a honra de
brindá-las (O INCENTIVO, n.
0
19, 1902).
A justificativa para a homenagem festiva a Nossa Senhora das Mercês, no
mês de setembro, em Porto Nacional, está ligada provavelmente ao período em que
os botes haviam retornado das viagens. Nas cidades ribeirinhas, o calendário das
festas estava muito ligado ao tempo das viagens ida e volta de Belém. Nos dias
de festa
29
realizavam-se também batizados, crismas e casamentos, e raramente
registravam-se roubos ou crimes, desordens ou escândalos. Especificamente sobre
as festas religiosas, frei Audrin (1963, p.126) ressalta: “Sendo tão numerosos e
variados esses cultos, praticados em muitas circunstâncias sem a fiscalização do
padre, não é de estranhar que se tornem facilmente ocasiões de gestos e práticas
um tanto contrários ao bom senso cristão”.
29
Sobre a difícil separação entre o sagrado e o profano nas festas, o depoimento do dominicano Fr.
Audrin é esclarecedor: Chegado o dia do santo, cantava-se a missa, com acompanhamento de
ruidosa orquestra, em presença dos festeiros coroados e assentados num trono em frente do
celebrante. Durante a missa havia sermão e no fim procissão solene. Os assistentes
acompanhavam então os dignatários até suas residências, ao trovoar de roqueiras” e de centenas
de foguetes. E começavam, debaixo de imensas latadas feitas de bambus e ramos de palmeiras,
os banquetes tradicionais, festins pantagruélicos, regados a vinho e “branquinha”, que faziam
naturalmente subir em alto grau os entusiasmos e inspiravam um sem número de oradores. Depois
do banquete, o indispensável baile para a elite. O comum do povo, a negrada, a caboclada, saltava
e sapateava tarde e noite inteiras, ao ritmo estonteante de enormes tambores de antiga importação
africana [...] É preciso ter vivido e sofrido com esses brasileiros privados toda a vida de qualquer
doçura e encanto da civilização, para compreender a alma sertaneja e, até certo ponto, excusar
essas expansões ruidosas, essa mistura de alegria religiosa e profana, nos dias bem raros em que
podem divertir-se” (AUDRIN, 1946, p. 207).
132
Embora houvesse certas condenações e proibições por parte da igreja, frei
Audrin (1963, p.126-127) reconhece que os fiéis não as obedeciam. Mesmo
desaconselhadas pela igreja, ele afirma que seria injusto e contraproducente
simplesmente condenar essas manifestações de sentimento religioso, preferindo
certa indulgência, pois, segundo ele, para essa gente as poucas alegrias são
motivadas justamente pelas festas dos seus santos: “Dias felizes, não tanto para os
coitados que podem saciar a “fome velha”, como para muitos parentes e amigos que
se encontram após longa separação”. Mesmo se expressando dessa forma, há
evidências de reprovação e proibição de certas práticas comemorativas em Porto
Nacional, como nos anúncios sobre a programação das festas nos periódicos locais,
no início do século XX:
Realizaram-se de 25 a 27 do corrente [setembro] as festas em honra ao D.
Espírito Santo as quais consistiram em um misto de cerimônias religiosas e
divertimentos profanos (NORTE DE GOYAZ, n.
0
25, 1906).
Extraordinariamente pomposos e deslumbrantes tiveram lugar nesta cidade
os festejos em louvor ao Divino Espírito Santo, constando de uma
verdadeira promiscuidade de festas religiosas e mundanas (NORTE DE
GOYAZ, n.
0
73, 1908).
As conclusões a que chega Maria B. R. Flores (1991), em pesquisa feita com
moradores da Ilha de Santa Catarina, são semelhantes ao que ocorre nas cidades
ora estudadas, pois lá, como aqui,
O lúdico se mistura ao religioso e também ao trabalho, e todas estas
dimensões são marcadas pela sazonalidade, que pode ser dada pelas
estações do ano e ou pela liturgia do ano [...] o uma extrema
133
do Carmo, apesar da perseguição, a festa não foi interrompida, e mostra uma rie
de relatos sobre derrotas dos religiosos que se posicionaram contrários a tais festas:
Assim é que, em sua saga, constam sempre episódios heróicos de derrotas
impingidas aos agentes religiosos oficiais que tentaram impedir sua
continuidade: do bispo (provavelmente D. Domingos Carrerot) que quebrou
a perna bem no lugar onde forçara o cabo da bandeira para parti-lo; do
padre que teve de mandar chamar o alferes para que este, com a bandeira,
benzesse a chave que o abria mais a porta da igreja onde pouco
havia sido proibida a entrada da folia; do padre que morreu em desastre de
avião onde propositalmente embarcara na véspera do dia em que teria de
rezar a missa do Divino, com a presença da folia (CAMPOS, 1988, p. 28).
Maria Inês Pinto (1994), em análise sobre o trabalhador pobre na cidade de
São Paulo, na passagem do século XIX para o XX, constata que as festas permitem
ao trabalhador fatigado, em sua extrema miséria, libertar-se, mesmo que por breves
instantes, do cansaço e das tensões do dia-a-dia, além de gerar momentos propícios
para bate-papos e começos de namoros, pois as festas:
Exerciam o papel de uma compensação emocional para os sofrimentos e
decepções, levavam a uma sublimação da miséria imediata. Expressavam
a reação dos trabalhadores pobres tentando fazer da vida algo mais
agradável. De fato, eles pareciam precisar recorrer a algum meio para
tornar a própria miséria mais suportável (PINTO, 1994, p. 248).
Nessa mesma perspectiva, frei Audrin constata que, quanto mais as pessoas
se viam privadas de recursos humanos em suas enfermidades ou em perigo, maior
era a sua fé. Segundo ele, a principal razão para que os protestantes das diversas
seitas pouco ou nada conseguissem no sertão, com seus cultos pouco expressivos e
a proibição de imagens, romarias, procissões, etc., é que a gente simples sente
necessidade de exteriorizar a sua crença pela nos santos, na bandeira do Divino
ou em diversos outros símbolos.
O significado e o valor das festas, tanto as religiosas como as profanas, para
aquela época, eram bastante diferentes do contexto atual, com inúmeros atrativos
diários, principalmente pela popularidade do rádio e da televisão. Para entender tão
grande peso e tamanha importância, é necessário vislumbrar, por um momento que
seja, um tempo em que as mudanças ocorriam muito lentamente e que havia, por
parte dos moradores, quase que uma necessidade em preservar tais tradições.
assim torna-se compreensível a importância e o significado das festas na vida da
população. Segundo Oscar Leal,
134
Estas festas religiosas no Tocantins, conquanto estejam longe de
apresentar o brilho e esplendor que tem no sul, despertam contudo
entusiasmo, dando lugar a que amigos, parentes, conhecidos e forasteiros
se reúnam e tomem parte em igual prazer. Não temos ai os fogos de
artifício, as luminárias, os jogos de flores, nem tão pouco os coretos
ornamentados, os espetáculos mímicos-equestres, nem mesmo as
tradicionais cavalhadas dos velhos tempos (LEAL, 1985, p. 63).
É preciso considerar também que a posição geográfica do norte, com maior
ligação com os estados limítrofes do que com o sul do Estado de Goiás, além da
composição da população, possuía outros aspectos diferentes, daí alguns traços
serem mais ou menos valorizados.
Além das festas ocorridas nos meses de seca de junho a setembro ao
longo de todo o ano sempre havia comemorações em homenagem a outros santos.
A festa de São Sebastião, comemorada com novenas e leilões, começava no dia 11
de janeiro e terminava no dia 20, dia de São Sebastião. Nos dias 4 e 5 de outubro
era homenageada Nossa Senhora do Rosário e em 8 de dezembro, a Virgem da
Conceição, todas com a presença da orquestra e dos homens importantes de Porto
Nacional, que conduziram o andor na magnífica procissão pelas ruas matizadas de
pétalas e arcos de flores. Também as festas juninas eram muito comemoradas,
principalmente São João, Santo Antônio e São Pedro, havendo ainda hoje, nessas
festividades, procissão fluvial no rio Tocantins
30
. Também em agosto comemorava-
se o dia de São Domingos, com muita pompa, por ser o santo onomástico da ordem
religiosa dominicana, que possuía bom número de representantes em Porto
Nacional e Conceição do Araguaia. Após essa festa, grande parte da população
dirigia-se para a romaria do Senhor do Bomfim, a 35 léguas de Porto Nacional, no
município de Natividade. Do mesmo modo que em outras regiões do país, o lado
profano, como leilões e cavalhadas, sempre esteve presente nas comemorações.
Fica evidente que não havia nítida separação entre o sagrado e o profano nas festas
ditas religiosas, desde as comemorações da santa padroeira à festa do Divino e às
romarias. Os leilões, as comilanças, bebedeiras e as danças eram tidos como uma
continuação natural da missa, das rezas e da procissão.
Além das festas propriamente religiosas, pelas notícias dos jornais da época
(passagem do século XIX para o XX), constatei que houve diversas outras atrações,
como apresentação de comédias e dramas, sempre muito concorridos. Os bailes,
30
Tanto em Paranã como em Pedro Afonso, próximas a Porto Nacional, realiza-se ainda, nos dias
atuais, esse tipo de cerimônia dentro do rio, em homenagem, respectivamente, a São João (24 de
junho) e São Pedro (29 de junho).
135
mesmo não sendo tão freqüentes como as festas religiosas, quando aconteciam,
eram muito bem organizados e apreciados. Pires (1979) informa que os aniversários
dos ricos eram comemorados com bailes, enquanto que para os pobres havia o
pipiral. O termo pipiral, usado por Pires (1979), designava também as moças de
classe menos favorecida, as ”pipiras”. A autora afirma que “A igreja, apesar da
seriedade do ambiente, sempre foi palco de desfile de moda”. Os bailes se
realizavam geralmente para comemorar casamentos, aniversários e principalmente
quando chegavam visitas “importantes” à cidade, como no exemplo que se segue:
De volta [da cidade do Carmo], o Sr. Coronel Lemos ofereceu-lhes um
grande baile no qual dançaram cerca de sessenta moças e a nobreza
masculina da nossa sociedade. Os salões do baile, caprichosamente
preparados com deslumbrante embandeiramento, lindos quadros e arcos
de palmeiras, tinham efeitos magníficos aos olhos do grande número de
convidados. Ao entrarem no salão principal, acompanhados por uma
comissão especial composta dos srs. Senador Maya, Dr. Ayres da Silva e
Ten. Cel. Benício Pinheiro, os Srs. Engenheiros foram saudados com
entusiásticas aclamações e [...] as moças presentes que lhes atiravam
pétalas de rosas a mãos cheias. Em seguida veio a presença do Dr. Thiéry,
chefe da expedição, uma gentil menina trajando rica vestimenta de anjo,
que lhe depôs nas mãos um bonito cartão especial, homenagem do Sr.
Coronel F. Lemos a Companhia Geral do Tocantins-Araguaia. Também a
senhorita Justina Braga inteligente empregada d’“O Incentivo” entregou ao
Dr. Thiéry um bouquet de rosas e lias em nome das moças portuenses,
na hora em que a orquestra executava a valsa “Ondas do Tocantins”
composta pelo bil músico carolinense Neco Ayres. As danças tiveram
muita ordem e animação. Nos intervalos falaram: O Dr. Ayres da Silva, -
em francês - felicitando a Companhia belga em nome do Porto.; o Sr. Joca
Ayres cumprimentando a expedição; e o Dr. Thiéry, que leu uma longa
exposição em francês a respeito da zona tocantina, fazendo ótimas
referências ao Porto Nacional, e antecipando suas congratulações ao povo
pela próxima navegação a vapor em nosso rio (O INCENTIVO, n.
0
1,
1901).
Papel fundamental para a vida social da cidade teve o Club Recreativo
Portuense, fundado em 1906, lugar de encontro para comemoração de aniversários,
casamentos e apresentações artísticas: “Club Recreativo Portuense. Concorre para
o abrilhantamento dos pomposos festejos da quinzena de setembro. Duas
comédias: O Tio Mendes/Apuros de Lú-Lú. Dramas: Honra e Desonra/Amor e
Pátria”. (NORTE DE GOYAZ, n.
0
73, 1908).
O carnaval também era comemorado, mesmo não tendo a mesma
importância das outras festas e sem a participação das mulheres. Nesse mesmo
jornal, sob o título Ordem Completa, que bem poderia ser vigilância total, consta que
ocorreu um pequeno incidente por ocasião da comemoração do carnaval. Um dos
carnavalescos se enfeitou de padre, e o superior dos dominicanos protestou contra o
136
ato, que, segundo ele, era uma profanação. Foi chamada a polícia e interditado o
desfile. Na maioria das vezes, porém, a comemoração era pacífica: “Não passaram
em completo olvido os dias de carnaval, pois que diversos rapazes, durante aqueles
dias, se fantasiaram e entretiveram o público da cidade proporcionando-lhe, com
suas pilhérias, ocasião de boas gargalhadas” (NORTE DE GOYAZ, n.
0
60, 1908).
Instrumentos musicais eram utilizados nas comemorações, sendo quase
todos fabricados pelos moradores locais: “[...] esse instinto artístico revela-se ainda
na destreza de muitos em tocar instrumentos fabricados por eles próprios, com os
limitados recursos de que dispõem: gaitas, flautins, violas, bandolins e violinos”
(AUDRIN, 1963, p.115).
A localização de Porto Nacional, nas margens do rio Tocantins, foi marcante
no modo de vida dos moradores, que desenvolveram um relacionamento íntimo com
o rio. Na descrição de seu dia-a-dia foi possível perceber tanto o lado árduo de uma
vida simples quanto seu lado festivo.
2.1.2 O Imaginário de Capital Cultural
Os epítetos de Capital Cultural do Sertão, Rainha do Norte e Princesa do
Tocantins, para Porto Nacional, são comuns nos discursos enaltecedores
encontrados em diversos meios de comunicação, por longa data. Esses discursos
extrapolaram a região, alcançando dimensões bem mais abrangentes, o que colocou
a cidade em evidência no âmbito nacional. Neste tópico analiso alguns aspectos que
considero relevantes para compreender de que forma foi construído o imaginário de
capital cultural: elementos como o estabelecimento e atuação da ordem religiosa
dominicana, a presença de um médico e a fundação de periódicos na cidade.
Um dos elementos que mais contribuíram para a sedimentação da idéia de
que a cidade fosse a capital cultural do norte de Goiás foi, sem dúvida, o
estabelecimento da ordem religiosa dominicana francesa em Porto Imperial, na
década de 80 do século XIX. De relato em relato pode-se perceber a formação
desse imaginário, tanto entre os moradores locais como também em uma escala
maior. Quando o missionário francês frei Laurent Berthet visitou a região em 1883,
acompanhando o bispo D. Cláudio José Gonçalves Ponce de Leão em viagem
pastoral pela diocese, ficou entusiasmado com a cidade: As ruas são limpas e bem
alinhadas [...] Encontram-se aí alguns ricos negociantes que anualmente descem até
137
o Pará, levando couro e trazendo vinho, farinha, tecidos, mantas, colchas, etc.” Seu
relato torna-se mais otimista ainda quando fala da população: “[...] é a melhor da
diocese. Ali, nada de partido político. A única política é a de promover os interesses
da localidade, [sendo que] lá, e somente, os homens importantes se
confessaram” (BERTHET, 1982, p.163-164). O religioso destacou ainda que a igreja,
embora pequena para o grande número de fiéis, era asseada e bem provida de
paramentos, e termina afirmando que os moradores fariam os maiores sacrifícios
para que os missionários se estabelecessem na cidade. Pode-se dizer que o lugar
impressionou de tal forma a comitiva pastoral que, três anos após a visita (1886), os
padres franceses já estavam se estabelecendo na cidade; em 1904 chegavam
também as primeiras freiras, após longa viagem em lombo de animais.
A partir do início do século XX, são constantes os relatos em revistas,
anuários, jornais do Estado e periódicos locais, enaltecendo as qualidades da
cidade, sendo o destaque para os aspectos educacional e cultural, atribuídas,
geralmente, à presença dominicana:
Devido às magníficas condições de situação vemos a muito que o Porto
salienta-se entre as cidades do Norte do Estado, e tudo faz crer que se
tornará um ponto de luz que começa radiar pelas colunas do Norte de
Goyaz. (NORTE DE GOYAZ, n.º 5, 1905).
Cinco anos depois a cidade continua sendo descrita de forma bastante
positiva:
Porto Nacional é entre as cidades do Estado de Goiás uma das mais belas,
das mais ricas e das mais fabulosas. Sita a 900 km ao norte da capital, ela
é a princesa do sertão nortense [...] As ruas são direitas, largas, arejadas
[...] o povo da cidade é culto e brioso (AZEVEDO, 1910, p. 185- 188).
Algumas décadas mais tarde, outro missionário francês, Estevão Gallais,
deixou registrada sua impressão sobre o local: “Graças a um pugilo de homens
inteligentes, ativos e empreendedores, graças também à sua feliz situação, a cidade
de Porto Nacional torna-se o centro comercial mais importante do Norte de Goiás”
(GALLAIS, 1942, p.122). Em 1935, o médico Julio Paternostro, em visita a Porto
Nacional, declara que ela “[...] distinguia-se de todas as outras povoações do
Tocantins pelo melhor nível cultural de sua população. Desde 1881
31
que o colégio
31
Paternostro se engana com a data da chegada dos primeiros frades dominicanos na cidade, pois
o ano do seu estabelecimento é 1886 e não 1881. E as irmãs dominicanas chegaram em 1904.
138
dos frades e das freiras dominicanas ministrava a instrução aos jovens de toda
aquela redondeza” (PATERNOSTRO, 1945, p.224). Outro depoimento importante
sobre a primazia cultural da cidade é do prefeito de Natividade, em sua obra
Natividade e seu município, na década de 1940:
Em todo este imenso norte que se mede por nações de outros continentes,
em Porto Nacional ao lado da Cruz do Redentor plantada pelos
beneméritos e saudosos Padres Dominicanos, a sementeira da instrução
rompeu e floriu; arrancando ao anonimato nomes hoje de relevo nos meios
culturais e em lugares de projeção no país (CASTRO, 1948, p. 5).
Por fim, a as últimas décadas do século XX, por ocasião da criação do
estado do Tocantins, ainda são comuns as matérias elogiosas a Porto Nacional,
como a publicada no Jornal O Popular de 1988, que, ao destacar suas
características, denomina-a, dentre outros adjetivos, de cidade meio mágica.
Segundo Borges e Palacin (s.d.), a atuação dos dominicanos(as) foi de
grande significado não só para Porto Nacional, como também para toda a região:
Maior impacto para o desenvolvimento ulterior da cidade exerceu a
chegada dos padres dominicanos franceses em 1884[sic]. Graças à sua
ação, Porto Nacional haveria de tornar-se centro de irradiação espiritual e
cultural para todo o norte (BORGES; PALACIN, s.d., s.p.).
A influência desses religiosos foi marcante em diversos campos. O que se
procura, entretanto, é saber o que resultou do contato e relação entre os religiosos
estrangeiros e a população local e quais as mudanças advindas desse contato. A
atuação da ordem dominicana, na região de modo geral e mais diretamente na
cidade de Porto Nacional, fez com que a cidade fosse vista como um centro
disseminador de cultura no norte de Goiás. Os escritos deixados por eles, cruzados
com outros documentos, fornecem algumas pistas para a questão:
A 8 de agosto de 1904, registra-se o fato de grande importância para o
apostolado e o ensino da cidadezinha do Tocantins; a chegada das
primeiras religiosas, que vieram auxiliar seus irmãos do Convento Santa
Rosa de Lima desta cidade no sublime mister da instrução e evangelização
(GODINHO, 1988, p. 75).
Não se pode negar que o contato entre religiosos, imigrantes estrangeiros e a
população local tenha provocado mudanças na cidade e no comportamento dos
moradores. Nessa interação, vários elementos entraram em jogo devido à sua
influência em âmbitos diversos, como no campo material, com as obras
139
institucionais, e nos campos sociocultural e educacional. Pode-se dizer que a
inserção desses novos elementos afetou comportamentos, gerando novos padrões
de conduta. Segundo ex-alunas do colégio, as freiras ensinavam também as moças
a andar e conversar, regras de etiquetas à moda francesa.
Após a chegada dos religiosos, ocorreram também, paulatinamente,
mudanças nos hábitos alimentares. Como afirma a entrevistada Rita Guedes (1996),
moradora de Porto Nacional, a introdução do hábito de comer verduras deve-se
muito à influência dominicana, pois várias delas, principalmente folhagens, não
faziam parte do cardápio da gente da região. Ela afirma que certa vez fez uma horta
e mandou um menino levar as verduras em uma bacia para vender na cidade. O
resultado foi o retorno do garoto com a verdura e chacota com sua pessoa: “Avisa
dona Ritinha que aqui não tem lagarta não”. Se por um lado os dominicanos
introduziram novos hábitos na cidade e na região, por outro, também assimilaram
novos costumes. Por exemplo, a ausência de certos alimentos em determinada
época do ano interferia em seus jejuns, obrigando-os a fugir de seus hábitos
alimentares. Tiveram então que se adaptar aos costumes da região até que
organizassem e enriquecessem o cardápio. Paternostro (1945, p. 222) ressalta que
“A única horta que mereceu esse nome em toda aquela extensão de 2.000
quilômetros foi a dos frades dominicanos”.
Em meio a todas as vozes concordantes sobre a obra dos religiosos franceses
na cidade e na região
32
, a voz da ex-aluna do colégio das freiras, Adozina Luzo
Pires
33
, destoa do coro elogioso aos dominicanos(as), pelo menos em um aspecto.
Seu desabafo contra eles refere-se ao seguinte:
Após 7 anos de lutas e despesas não sendo eu diplomada em coisa
nenhuma, por não ser o colégio equiparado e ele
34
não tendo ciência disto,
revoltou-se contra as irmãs, a quem pagava, em moeda corrente,
pontualmente, sendo o único, porque os pais das outras internas davam
como contribuição arroz, farinha e carne seca... e [sobre] minha idéia de
vida religiosa [disse] que nem um cinquinho gastaria comigo no colégio.
32
Além do trabalho missionário na cidade, uma extensa região era atendida pelos religiosos nas
denominadas desobrigas. As desobrigas consistiam de visitas dos missionários por toda a zona
rural, destinadas a atender aos moradores em suas necessidades religiosas. Segundo Audrin
(1946, p. 62-63), “Embora cansado pela longa jornada, embora às vezes com um resto de fome
depois de refeição insuficiente, era obrigado a ouvir confissões até alta noite. Tanta gente para
comungar, casar, crismar!”.
33
Adozina Luso Pires era natural da cidade de Carolina (MA). É de sua autoria o livro Meu Mundo
Encontrado, no qual relata suas memórias da época em que viveu em Carolina e em Porto
Nacional, durante seus anos de estudo, entre 1905 e 1912.
34
A autora refere-se ao Padre e deputado Carvilho, o qual chamava de “papai padre” Carvilho. Era
ele quem pagava seus estudos.
140
Daí o desmando. Como todo estrangeiro, as irmãs, cuja pátria vendeu
Joana D’Arc aos inimigos, viam a parte econômica. A inteligência e a
vocação religiosa eram irrelevantes (PIRES, 1979, p. 108).
Além da influência dos dominicanos franceses, destaca-se a presença de
um médico
35
e político influente na cidade. Esse fato contribuiu para que Porto
Nacional se tornasse um lugar com recursos médicos, para onde as famílias se
dirigiam para tratamento de saúde. A cidade se destacou no período da República
Velha, sendo por longa data um dos tripés políticos do Estado de Goiás. O médico
e deputado federal Francisco Ayres da Silva (com mandato entre os anos de 1914
a 1930) foi seu representante (CAMPOS, 1987, p. 81-82). A presença do Dr.
Chiquinho proporcionava um constante ir-e-vir de pessoas de outras cidades em
busca de tratamento médico. Essas visitas “forçadas” favoreciam o relacionamento
dos habitantes com as cidades vizinhas e aumentava o movimento da cidade e os
momentos festivos. Ayres da Silva mantinha uma coluna nos periódicos
denominada Miscelânea, em que se dedicava a dar conselhos sobre prevenção e
tratamento de doenças, deixando visíveis os principais problemas enfrentados pela
população ribeirinha, como, por exemplo, as contaminações resultantes de hábitos
comuns, como escarrar em locais públicos.
[...] um punhado de cientistas já deu o brado de alarme e sociedades
profissionais se vão formando no intuito de profligar o mais possível esse
hábito inveterado que cada qual de nós tem de, a cada passo, a cada
instante, projetar, no ambiente que ocupamos, enormes cuspadas ou
cuspinhadas sucessivas [...] É esta a razão porque muita vez em uma
cidade, de ordinário, certas moléstias esporádicas se transformam em
epidemias (O INCENTIVO, n.
0
4, 1901).
Em sua coluna, além dos esclarecimentos sobre os malefícios de
certos hábitos inveterados, como falta de higiene com o corpo, com a moradia e com
a cidade, Ayres da Silva sugeria medidas para combatê-los, como o uso de
escarradeiras, cuidados com o lixo, com os animais, com a alimentação, etc., um
tipo de medicina preventiva. Também o seu Diário de viagem fornece elementos
para a compreensão do modo de vida do ribeirinho. A descrição de suas viagens, a
primeira, de bote pelo rio Tocantins, em 1920, de Porto Nacional a Belém, e a
35
Este fato se torna mais relevante se considerarmos as observações de Paternostro (1945, p. 229).
Segundo ele, “Em 1935, no Norte de Goiás ou, em 2/3 da superfície do Estado, a única localidade
que possuía médico era Porto Nacional”. O Dr. Francisco Ayres da Silva, conhecido em toda a
região como Dr. Chiquinho, formou-se em medicina no Rio de Janeiro, em 1899, e voltou para sua
cidade natal. Pode-se calcular a importância de tal fato em uma zona distante dos centros urbanos,
como era aquela, na virada do século, onde quase só a capital de Goyaz possuía médico.
141
segunda, entre 1928-1929 (Rio de Janeiro, Bahia, Goiás), trazendo um automóvel e
um caminhão para Porto Nacional, ilustra de modo exemplar os hábitos e condições
de comunicação dos moradores da região. Como não havia estrada, na ousada
empreitada a picada foi aberta ao mesmo tempo em que se ia adentrando o sertão
com o automóvel e o caminhão.
Diferente dos relatos dos viajantes e administradores que por passaram
apressadamente, o diário de Francisco Ayres, mesmo não sendo imparcial, é a
expressão de alguém que conheceu por dentro a região, os ribeirinhos, o portuense.
Em suas memórias, são visíveis certos traços que caracterizam bem o ribeirinho:
seu modo de ser, de sentir, de agir, enfim, sua visão de mundo, o que mostra um
ribeirinho múltiplo, que tanto pode ser o remeiro do Tocantins como o proprietário do
bote ou o comerciante que dependia das mercadorias que eram levadas para Belém
ou de lá eram importadas. Além do diário de viagem e de artigos nos periódicos,
ainda seus discursos parlamentares
36
como deputado. Sua atuação política fez de
Porto Nacional um dos tripés da representação política de Goiás da Primeira
República, juntamente com a capital, cidade de Goiás, e Morrinhos.
Segundo Itami Campos (1987), enquanto a cidade de Goiás era a cidade
administrativa e representava a sede do poder, Morrinhos, situada em ponto
estratégico, no sul do Estado entre a capital, o triângulo mineiro, e a estrada de
ferro era lugar de grandes comerciantes que desempenhavam papel de bancos de
crédito, tendo como seu representante maior Hermenegildo Lopes de Moraes. E
Porto Nacional,
[...] era o principal centro econômico do norte do Estado. Sua influência
atinge toda a região a que abastecia com produtos trazidos de Belém
(Pará) em embarcações de até 24 toneladas. O que evidentemente lhe
primazia na região (CAMPOS, 1987, p. 82).
O terceiro fator que vai contribuir para que Porto Nacional seja vista como
capital cultural é a fundação de periódicos
37
. No primeiro, intitulado Folha do Norte
36
Francisco Ayres da Silva (1872-1957) foi eleito Deputado Federal em 1914 e teve seu mandato
renovado em 1918, 1922, 1926 e 1930. Segundo Altamiro de Moura Pacheco (1972), o Deputado
foi “Companheiro sempre leal dos Senadores Eugênio Jardim, Olegário Pinto, Hermenegildo Lopes
de Moraes e Antônio Ramos Caiado [...].” Como membro da Comissão Executiva do Estado, do
Partido Democrata, foi eleito 1
0
Vice-Presidente do Estado em 1922. Em seus discursos, é uma
constante a denúncia do isolamento da região devido à falta de meios de comunicação modernos e
a defesa da melhoria da navegação.
37
A multiplicação sem limites da imprensa escrita tornou-a uma importante fonte e também objeto de
estudo do historiador, mas o pesquisador sente-se às vezes confuso sobre como trabalhar com
142
(1891), consta a seguinte nota: Para ficar consignado entre os acontecimentos que
hão de figurar na futura história de Porto Nacional, noticiamos que a nossa
typographia é a primeira que se estabeleceu no Norte de Goyaz e em toda a zona
do Alto-Tocantins” (FOLHA DO NORTE, n.
0
1, 1891).
No início do século XX, a cidade contou com a impressão de mais dois
periódicos
38
: O Incentivo (1901), com apenas um ano de duração, e o Norte de
Goyaz (1905), com duração de quase meio século. A partir da análise de O
Incentivo, algumas observações podem ser feitas sobre os costumes na cidade. As
colunas de cunho local compunham-se, na sua maior parte, de propagandas e
anúncios socioculturais/cotidiano e muitas despedidas de viagens nas idas e vindas,
principalmente do Pará.
Categoria de
informação
N.
0
de
Jornais
% N
0
. de
Notícias
%
Sociocultural/cotidiano 22 100,00 91 20,0
Propagandas 22 100,00 91 20,0
O Jornal 18 81,82 24 5,29
Vários 18 81,82 33 7,27
Artístico/Literário 17 77,27 29 6,39
Religião/Dominicanos 16 72,73 19 4,19
Saúde 14 63,64 24 5,29
Internacionais 14 63,64 36 7,93
Navegação 13 59,09 17 3,74
Região Norte 13 59,09 15 3,30
Política Municipal 11 50,00 15 3,30
Crime/Justiça 11 50,00 12 2,64
Política Nacional 10 45,46 14 3,08
Comércio 08 36,36 09 1,98
Instrução 07 31,82 08 1,76
Política Estadual 07 31,82 08 1,76
Povos indígenas 05 22,73 06 1,32
Entretenimento 03 13,64 03 0,66
Total 22 - 454 100,00
Quadro n.
0
9: Distribuição das categorias de informações do jornal O Incentivo 1901 1902.
Fonte: (OLIVEIRA, 1997).
De modo geral, os assuntos tratados nos periódicos locais fornecem um
retrato da vida do portuense. O aspecto sociocultural é bastante explorado nas
essa fonte. Uma publicação que veio para auxiliar nesse difícil, mas interessante metier é o texto de
Tânia Regina de Luca (2005). Trata-se de um artigo sobre o uso das fontes impressas, resultado de
intensa pesquisa que apresenta a concepção historiográfica do uso dos periódicos como fonte e a
própria imprensa como objeto de estudo. No âmbito deste trabalho, devido à sua amplitude e à
pluralidade de fontes, é possível tomar os jornais como uma fonte dentre tantas outras, não
como objeto de estudo.
38
A publicação de periódicos nesse período era feita com um rústico maquinário, a tipografia, que
funcionava por meio de tipos, que eram peças metálicas com letras ou sinais, montadas para
escrever os textos. Havia em Porto Nacional uma equipe treinada para a tarefa de montagem dos
textos a serem impressos.
143
descrições das festas e anúncios de chegadas e saídas de visitas importantes,
sugerindo ser a cidade bastante animada. O assunto sobre a navegação aparecia
com mais freqüência nos meses de saída e chegada dos botes. Além das notas
sobre as viagens de bote, discutiam-se as dificuldades enfrentadas pelos
navegantes, além de discursos em prol da melhoria de suas condições. As
propagandas são preciosas, dão uma idéia das mercadorias oferecidas à população
portuense. Segue uma propaganda com a lista dos produtos oferecidos por uma
casa comercial da cidade:
A Casa de Josué de Oliveira Negry na rua da praça, acaba de receber um
deslumbrante sortimento de fazendas, ferragens, molhados, louças e
miudezas. Morins de todas as qualidades. Riscados das melhores fábricas
nacionais e estrangeiras. Chalés, chitas cores fixas, modernas e de
padrões elegantes. Brins superiores, de escamas, pardos, brancos e de
cores. Angolas em cortes e em peças. Cambraias, &&&. Camisas de
Oxford brancas a francesa e de chitas. Papel almaço, dito de peso, marca
pequena, róseo e diplomata. Extratos de opoponax, ixóra, oriza e rosa.
Tônico oriental e o famoso vigor do cabelo. Óleos especiais. Chapéus de
sol, ditos de cabeça. Botinas, vinho do porto, dito branco. Cerveja alemã,
conhac, vinho selubal, colares, vermut, vinagre. Anis, briolzinho,
aguardente do reino. Manteiga portuguesa, trigo, chá preto, biscuits, canela
em . Ferramentas para lavoura, espingardas e munições de caçador.
Rendas, tiras bordadas, franjas e enfeites. Linha para quinas, dita de
pescar. Cabos e agulhas de crochet. E muitos outros artigos de luxo,
economia e modéstia, que seria fastidioso enumerar. Preços razoáveis,
vendas a dinheiro. Rua da Praia, Porto Nacional (FOLHA DO NORTE, n.
0
32, 1892).
A temática índios aparece com uma porcentagem muito baixa, contando com
apenas 1,32% das notícias. As entrevistas junto aos moradores forneceram dados
significativos sobre a convivência da população com os índios. Nazaré Silva (2006),
por exemplo, ao ser questionado sobre o assunto, afirma que, “Em Porto [Nacional],
era muito difícil ter índio [...] o pessoal tinha medo demais, quando os índios
apareciam lá, menino corria, escondia, todo mundo tinha muito medo de índio”.
Outro elemento que concorre para o imaginário de capital cultural é uma idéia
muito presente nos discursos: a pacificidade de Porto Nacional em relação às
cidades circunvizinhas. Pela análise de processos criminais foi possível ter uma idéia
dos crimes mais comuns na virada do século, sendo que, em um período de dez
anos, aconteceram apenas oito assassinatos, e o número de roubos foi de apenas
cinco (OLIVEIRA, 1997). O intuito aqui não é o de passar uma visão ingênua de que
em Porto Nacional o havia violência, mas, levando em conta tanta evidência de
banditismo e lutas sangrentas nas cidades circunvizinhas, é de estranhar que nas
144
fontes pesquisadas não se tenha encontrado registro de violência desse tipo em
Porto Nacional, no mesmo período.
São muitos os escritores que escreveram sobre a onda de violência que
envolveu cidades do antigo norte de Goiás na Primeira República. Os conflitos
sangrentos ocorridos especificamente em Pedro Afonso mereceram a atenção de
três autores: Eli Brasilense (1977), Othon Maranhão (1978) e Ana Britto Miranda
(1973). Sobre a violência em outras localidades, que destacar: sobre
Tocantinópolis (antiga Boa Vista), Palacin (1990), com As Três Revoluções de Boa
Vista; sobre Dianópolis (antigo Duro), Osvaldo Póvoa (1979) escreveu Quinta Feira
Sangrenta; Bernardo Élis (1979) escreveu O Tronco, que resultou em filme, episódio
conhecido como a chacina dos coronéis; Souza Filho (1980), em suas
reminiscências, dedica um tópico aos conflitos ocorridos na cidade de Peixe
39
, no
qual relata a chacina de uma família (os Barbosas) na década de 1930; que se
lembrar ainda da cidade de Conceição do Araguaia, que também foi palco de cenas
violentas carnificina que terminou com a morte de um comerciante, seu filho e mais
treze pessoas (NORTE DE GOYAZ, n. º 86, 1909).
Porto Nacional, ao contrário, aparece como o lugar da ordem e da paz ao
longo dos séculos. Nessa “ausência” de notícias violentas, em 1910 uma nota
quebra a monotonia da cidade. Com o título Assassinato. Emocionante drama de
sangue,” segue, a notícia referente ao assassinato de um tenente morador da
cidade:
A nossa cidade, sempre acostumada a despertar-se todas as manhãs em
completa paz, principiando logo a sua pacífica população a dura labuta no
mourejar pela vida, foi alarmada, ao amanhecer do dia 12 do corrente, com
a triste notícia de um emocionante drama de sangue (NORTE DE GOYAZ,
ano V, n.
0
114, 1910).
Importante observar que Porto Nacional não estava isolada das demais, ao
contrário, era ponto de encontro para o comércio da região. O imaginário de Porto
Nacional ser a capital cultural do norte de Goiás tem, portanto, sua razão de ser.
Arraigado na mentalidade coletiva, foi passado de geração a geração e aceito com
valor de verdade inquestionável. Os elementos que contribuíram para que a idéia
39
Diversas são as notícias sobre situações de instabilidade e conflitos nas cidades do norte de Goiás,
principalmente sobre Boa Vista (Tocantinópolis) e Peixe, como a que se segue: “Segundo notícias
bem fundadas e insuspeitas, não é muito calma a atual situação em Boa Vista e Peixe. Fala-se a
todo o momento na organização de grupos armados com o fim de fazer valer direitos ou supostos
direitos” (Norte de Goyaz, n.º 125, 1910).
145
adquirisse validade são fortes e de fácil aceitação, pois foram inculcados por uma
elite que possuía meios de divulgação, principalmente pela facilidade de
convencimento pelo discurso dominante no exercício do poder.
2.1.3 Identidades em processo de fragmentação/reconstrução
Dentre as muitas rupturas em conseqüência das mudanças ocorridas na
região que trouxeram impacto direto para Porto Nacional, considero como mais
importantes a chegada do avião, a substituição dos barcos a remo pelos motores, a
abertura da Belém-Brasília, a construção da nova capital (Palmas) e a usina do
Lajeado. O contexto de algumas dessas rupturas foi analisado na primeira parte da
tese, porém a retomada do assunto, aqui, visa mostrar seu impacto no cotidiano dos
moradores de Porto Nacional e cidades circunvizinhas. Tais mudanças, a partir da
década de 1930, foram importantes, pois trouxeram conseqüências para o seu dia-a-
dia. Acostumados ao transporte lento e moroso, a sua rotina diária foi afetada pela
nova modalidade de transporte. Em Porto Nacional, ao contrário de suas vizinhas,
havia chegado o automóvel
40
, mas tanto o caminhão quanto o automóvel trazidos
pelo médico Ayres da Silva quase o rodavam por falta de estradas. Dessa forma,
a chegada do avião, inicialmente o Correio Aéreo Nacional (CAN
)
41
, teve reflexos no
comportamento dos moradores. Segundo os mais antigos, quando chegaram os
primeiros aviões na cidade a população ficou alvoroçada, corriam todos para o
campo de pouso, bem-vestidos, parecia uma festa. Viagens morosas e cansativas
são substituídas por viagens mais rápidas e cômodas, havendo uma ruptura
significativa no cotidiano dos habitantes, pois se antes seus olhares estavam
voltados para o rio, para o norte, à espera dos barcos, com a chegada dos aviões a
atenção volta-se para o alto e para o campo de pouso, atentos à sua chegada.
Pelas entrevistas pude perceber que os dominicanos, principalmente o bispo
D. Alano e as freiras, mantinham estreita relação com os aviadores. O depoimento
40
A falta de estradas retardou também o advento do automóvel como meio de transporte. Se em
1929, o visionário Francisco Ayres da Silva conseguiu levar um automóvel e um caminhão do Rio
de Janeiro até a cidade de Porto Nacional, uma verdadeira epopéia, a falta de estradas e os
inúmeros rios e córregos a serem atravessados, impediam seu uso constante. Portanto, antes da
abertura da rodovia Belém-Brasília havia pouquíssimo trânsito de automóveis na região.
41
O Correio Aéreo Militar, criado em 12 de junho de 1931, dez anos mais tarde passou a ser
chamado de Correio Aéreo Nacional (CAN) nome pelo qual ficou conhecido em todo o Brasil
(CAMBESES JR., 2007).
146
de Maria C. Macedo (2006) mostra bem a situação: “Com o nosso bispo aqui, as
irmãs criaram uma casa para os aviadores [...] elas faziam uma recepção no colégio
[...] a gente conseguia a passagem sem pagar nada, por intermédio das irmãs e de
D. Alano”. Segundo Rui Rodrigues,
A chegada dos aviões teve uma importância tão grande quanto a
importância que teve a chegada dos dominicanos, quer dizer, uma abertura
maior para o mundo [...] todo mundo esperava o avião como se esperava o
batelão, era muito importante [...] passou a ser um meio mais ou menos
acessível a muita gente (SILVA, R., 2006).
Ele acrescenta que, com a intensificação do transporte aéreo, foi criado um
aeroclube na cidade, com o objetivo de formar pilotos para toda a região. Ressalta
ainda que esse meio de transporte proporcionou maior contato do norte com o sul de
Goiás, causando, portanto, uma mudança significativa, pois antes, com os barcos, a
ligação da região era mais intensa com o Pará.
Embora a abertura de campos de pouso tenha ocorrido em meados da
década de 1930, como visto no primeiro capítulo da primeira parte, na década de
1940 é que seu uso se tornou realmente significativo com o trânsito constante de
aviões nessa linha
42
. São muitas as lembranças dos moradores sobre a chegada
dos primeiros aviões na cidade, e sobre os efeitos de tal inovação. A maioria dos
entrevistados afirma que a partir da década de 1940 tornou-se comum viajar de
avião; mesmo as pessoas de baixo poder aquisitivo conseguiam um lugar nas
aeronaves. A mediação para conseguir esse lugar era feita geralmente pelos
religiosos dominicanos
43
. Fato interessante é que o transporte aéreo funcionou não
para transporte do correio, passageiros e mercadorias nobres, mas também para
carne bovina, as chamadas charqueadas. Para José Edgar,
O progresso veio com essa época. Então as charqueadas, naquela época,
o nordeste e o norte o tinham [?], então a carne que o Amazonas comia,
a carne que o Pará comia, saia daqui [...] acabava de matar, os aviões
chegavam e levavam, saíam eram os quartos de carne dependurados
dentro dos aviões. (ANDRADE, J., 2006).
42
Registra-se em 1975 a suspensão dos vôos comerciais de aviões de grande porte (os jatos), devido
às más condições da pista de pouso da cidade.
43
A relativa facilidade para as pessoas que o podiam adquirir uma passagem aérea também foi
relatada em outras cidades, como o seguinte exemplo da moradora de Pedro Afonso, Sra. Nezina:
“O Douglas era um avião que levava gente pobre, eu cansei de levar periquito, curica pra eles
[pilotos], chegava lá ia bater em Goiânia, e eu não pagava a passagem” (RIBEIRO, 2006).
147
Outro depoimento que chama a atenção é o do Sr. Dejayme Silva (2006), no
qual fica evidente sua admiração pelo uso que ali se fazia do avião, em atividades
que em outros lugares seriam próprias, por exemplo, de carros de bois: “Quantas
vezes eu vi esses táxis aéreos teco-teco sair daqui carregado
148
situadas na sua margem esquerda, que, através de pequenos ramais, se ligaram à
Belém-Brasília. As cidades localizadas à margem esquerda, ou seja, do mesmo lado
da rodovia, tiveram acesso rápido e fácil a ela, mas para as que se localizavam à
margem direita,
[...] a abertura da Belém-Brasília veio acentuar-lhes a crise cio-
econômica por que passavam; isso porque as dificuldades de navegação
149
Município
1950
1960
1964
Miracema do Norte
8.750
15.376
12.000
Pedro Afonso
6.995
10.033
12.003
Porto Nacional
11.118
23.005
20.030
Total
26.863
48.414
44 033
Quadro n.
0
10: Reflexos da rodovia Belém-Brasília sobre a demografia ribeirinha.
Fonte: Valverde e Dias (1967).
Paulo Bertran, ao analisar a economia do Centro-Oeste brasileiro, observa
que, se por um lado, ocorreu ao longo da BR-153 o que ele denomina de
capitalização primária, houve, por outro lado, uma desestruturação de igual vigor na
economia das cidades ribeirinhas do Tocantins (BERTRAN, 1988, P. 126). Partilha
dessa mesma visão o jornalista Otávio B. da Silva:
Enquanto sobre a Belém-Brasília crescem e desenvolvem seus centros
populacionais, os barcos-motores são retirados de circulação. As linhas
hidroviárias Porto Nacional-Lajeado, Tocantínia-Pedro Afonso-Carolina,
Carolina-Tocantinópolis-Belém são desativadas (SILVA, 1996, p. 93).
Na verdade, essa linha hidroviária iniciava-se mais rio acima, desde as
cidades de Paranã (antigo arraial de Palma) e Peixe. Mas é bom lembrar que a
retirada dos barcos do rio, ou seja, o fim da navegação comercial não foi um ato
abrupto, mas que ocorreu paulatinamente. Como afirmam diversos entrevistados,
antigos moradores da beira-rio, o trânsito ativo de barcos continuou pelo menos por
mais uma cada entre essas cidades, atendendo suas necessidades comerciais.
Dessa forma, as cidades ribeirinhas, importantes centros comerciais por longa data,
foram perdendo a primazia para cidades nascentes às margens da rodovia. A
historiadora Heliane P. Nunes reforça a questão do impacto negativo da rodovia
para as cidades ribeirinhas, concluindo que, após sua abertura, muitos dos núcleos
localizados à margem direita do rio Tocantins se desarticularam, perdendo
importância e a função de pólos comerciais:
Localizados à margem direita do rio Tocantins, muitos dos centros iriam
desaparecer, em importância e função, com a abertura da BR-153. Isso
porque, em primeiro lugar, o transporte fluvial perdeu importância e não
pôde concorrer com o transporte rodoviário [...], em segundo lugar, não
tendo ainda sido construídas pontes sobre o rio, as cidades ficaram
isoladas e parte das funções locais e regionais que exerciam passaram a
ser executadas pelos novos centros que surgiram e surgem à beira da
estrada (NUNES, 1984, p. 169).
150
De onde a estrada vinha e para onde ela ia, os ribeirinhos tinham apenas uma
idéia, sua única certeza é que ela não passaria em Porto Nacional que ficava do
lado direito do rio mas do outro lado (a esquerda do rio), a mais de 50 quilômetros
de distância da cidade. Quando a estrada ficou pronta e ainda não havia ponte para
chegar até ela, restou aos moradores das cidades da margem direita ou
permanecerem e assistir de longe ao progresso, do outro lado, ou atravessar o rio de
barco ou balsa e participar da onda de desenvolvimento que a rodovia proporcionou.
O impacto da abertura da rodovia Belém-Brasília para a cidade e região,
portanto, é inquestionável. Seus reflexos foram diretos e indiretos, como no
transporte, no processo de imigração, nas relações de trabalho, no acesso à
terra e produção, etc. As cidades ribeirinhas que ficaram fora de seu traçado e
do outro lado do rio perderam proemincia para os novos núcleos. Napoleão
Aquino argumenta que
[...] apenas a estreita faixa de terra cortada pela estrada beneficia-se direta
e imediatamente dos resultados da referida obra. Dessa maneira, enquanto
a vida urbana ao norte do paralelo 13 limitava-se quase que
exclusivamente ao vale do rio Tocantins, com o advento da rodovia houve
apenas uma transplantação das margens do rio para as margens da
estrada (AQUINO, 2002, p. 333).
Além da concorrência com os novos núcleos, as cidades da margem direita
tiveram que concorrer também com povoados de pouca expressão, mas que se
situavam do lado esquerdo do rio, e que as suplantaram o logo a rodovia chegou.
Sendo excluída da beira-estrada, passou a concorrer com as cidades nascidas junto
à rodovia, que, beneficiadas pela localização privilegiada, tiveram pido
desenvolvimento. Exemplar é o caso de Miracema do Norte, localizada entre Porto
Nacional e Pedro Afonso, portanto do mesmo lado da estrada, que perdeu sua
importância econômica para Miranorte, situada na beira da rodovia. Para Porto
Nacional, a cidade de maior destaque da região, a situação mudou radicalmente: de
situação econômico-cultural privilegiada até a década de 60 do século XX, pode, a
partir dser vista como uma princesa destronada; de capital cultural e Princesa do
Tocantins, passa para uma situação de exclusão, pois a rodovia não chegou até
suas portas. Segundo Valverde e Dias (1967, p. 267), Porto Nacional “[...] é das
cidades goianas a que apresenta crise mais aguda com a rodovia Belém-Brasília.
Hoje é uma cidade estagnada”. De acordo com Aquino, porém,
151
[...] o impacto negativo sofrido por essa cidade [Porto Nacional] não foi
maior devido a influência que continuou exercendo sobre um grupo de
municípios limítrofes ao seu, enfim, sobre as populações sertanejas
situadas naquela sub-região da margem direita do rio Tocantins (AQUINO,
2002, p. 334).
Para evidenciar a nova e desfavorável situação de Porto Nacional, valorizo
também os relatos dos portuenses, com o objetivo de entender como os moradores
se sentiram e expressaram tal sentimento a respeito da nova condição. O escritor e
antigo morador de Porto Nacional, Durval Godinho (1988, p. 181), em tom
152
crescer e a ter maior acesso ao progresso. Mas o impacto da rodovia foi ainda maior
sobre as cidades de Carolina e Pedro Afonso: “Com a Belém-Brasília houve um
verdadeiro esvaziamento de Carolina porque toda aquela vida comercial saiu dali
para o Estreito e Imperatriz” (SILVA, D., 2006). Do mesmo modo que Carolina,
veremos, no próximo capítulo, que a situação de Pedro Afonso também se
modificou, ficando quase abandonada.
Mesmo que os reflexos negativos para Porto Nacional não tenham sido o
fortes como para outras cidades, não resta dúvida de que todas as que ficaram do
lado direito do rio e fora de seu traçado foram afetadas de alguma forma, inclusive
pela mudança de muitos moradores para cidades nascentes à beira da estrada. Rui
R. da Silva (2006) afirma que Houve certo impacto negativo, porque o transporte
não de pessoas, mas também de mercadorias passava longe de Porto Nacional,
e até a construção da famosa ponte em Porto Nacional, muitos anos se passaram”.
Alguns dados sobre Porto Nacional, divulgados pelo IBGE em 1961,
contribuem para uma visão mais geral do município por ocasião da chegada da
rodovia. Consta que a população era de 23.005 habitantes, distribuídos por uma
área de 15.306 km
2
, com uma densidade demográfica de apenas dois habitantes por
quilômetro quadrado. Sua principal atividade era a pecuária, contando com estrutura
de matadouros; os produtos agrícolas de maior valor eram a cana-de-açúcar, o
arroz, a mandioca e o milho. O município contava com 1 (uma) agência bancária e
10 (dez) veículos registrados na prefeitura (automóveis e caminhões). A zona rural
aparece com maior densidade populacional (quase 78%), enquanto a urbana e
suburbana juntas possuíam 22% da população. Nesse ano os cartórios de registro
civil apresentaram o seguinte movimento: 650 nascimentos, 60 casamentos e 64
óbitos. Sobre o comércio e meios de transporte, o documento informa que “A
abertura da estrada BR-14 [Belém-Brasília] fez derivar para as praças de Anápolis,
Goiânia e São Paulo o rumo dos negócios do município, antes mantido
preferencialmente com Belém, no Pará, e Carolina, no Maranhão” (IBGE, 1961, p.
8). Os dados mostram a inversão que estava se processando quanto aos meios de
comunicação.
Após considerar os diferentes discursos sobre as conseqüências da abertura
dessa rodovia para o antigo norte de Goiás e especificamente para Porto Nacional,
153
chamo a atenção para os relatos de um casal de médicos
47
que se estabeleceu na
cidade no final da década de 1960. Logo que chegaram, foram recepcionados pelas
irmãs dominicanas e o bispo da diocese, D. Alano, que os aconselhou a trabalhar
em Gurupi, cidade às margens da rodovia, pois em sua opinião “Porto Nacional era
como uma bananeira que já deu cacho”. O primeiro contato dos médicos com o lugar
não os deixou muito animados: “as casas sujas, sem pintura recente, as ruas todas
de terra e em um muro estava escrito visite Porto antes que acabe” (MANZANO,
Eloísa; MANZANO, Eduardo, 2005, p. 49). A descrição que fazem da cidade e dos
hábitos dos moradores é importante principalmente para mostrar como as mudanças
ocorriam lentamente e que o advento da rodovia por si não foi capaz de pôr fim a
hábitos seculares dos ribeirinhos. As mudanças ganharam um ritmo mais acelerado
somente após a construção da ponte sobre o rio Tocantins, o que colocou a cidade
em contato direto com a rodovia, e mais ainda depois do asfaltamento da estrada
que a ligava à Belém-Brasília. O casal conta que no começo enfrentou dificuldades
tanto materiais como socioculturais, pois, em termos de conforto, Porto Nacional
ficava muito aquém da sua cidade de origem; quanto aos hábitos dos moradores,
também se diferenciavam muito dos seus, inclusive na linguagem:
A cidade, com cerca de 20.000 habitantes não tinha uma única rua
asfaltada, a água era de poço, a energia elétrica, que vinha de uma
pequena usina hidroelétrica do Taquarussu, praticamente era inexistente:
além de ser muito fraca, na época das chuvas, de outubro a março, caiam
muitos postes com as tempestades e raios, interrompendo a transmissão e
nos meses de seca, de abril a setembro, a represa baixava muito [...] No
ambulatório havia uma atendente de enfermagem que nos ajudava a
entender melhor o que as pessoas falavam... Chegava uma paciente e
falava: “Este mês ainda não adoeci”. Ela queria dizer que não tinha
menstruado [...] As partes do corpo humano eram chamadas como as do
gado: tornozelo era o “peador”, local onde o gado é peado; quarto” é o
quadril [...] Caminhadeira era diarréia [...] Com a chegada da TV, durante a
copa do mundo de 78, o modo de falar foi mudando bastante, e muita
expressão não se usa mais (MANZANO, Eloísa; MANZANO, Eduardo,
2005, p. 52-62).
Outra conseqüência advinda das facilidades de comunicação e transporte
para a cidade de Porto Nacional foi a exploração do rio e suas praias. O historiador
francês Alain Corbin (1989), em O território do vazio, faz uma análise sobre a
mudança de comportamento dos europeus quando descobrem o mar e,
conseqüentemente, as praias como fonte de emoção e lazer. Segundo Corbin, essa
47
Os médicos paulistas, Eduardo e Eloísa Manzano, vieram trabalhar na antiga Organização de
Saúde do Estado de Goiás (OSEGO), com sede em Porto Nacional na década de 1960 e ainda
vivem nesta cidade.
154
mudança ocorreu somente depois da metade do século XVIII, pois antes disso o mar
era visto como coisa do diabo. O autor ressalta ainda que, as recomendações
médicas para tratamento de doenças, cenas de praias maviosas apresentadas em
pinturas do século XVIII e relatos românticos de escritores, concorreram para a
mudança de comportamento dos europeus com relação ao aproveitamento do mar.
A utilizão das praias do rio Tocantins, mais especificamente das de Porto
Nacional, como lazer e atração tustica aconteceu somente na segunda metade
do século XX e foi, de certa forma, conseqüência da mudaa de mentalidade
dos moradores, mas decorrente de transformões ocorridas na região.
Se a abertura da rodovia Bem-Brasília, num primeiro momento, foi um
esvaziador populacional, como já analisado, a situação vai se modificar a partir
da década de 1970, com a constrão da ponte ligando a cidade à rodovia, o que
facilitou o acesso de pessoas inclusive de turistas às praias, conforme contam
os médicos já mencionados: No Rio Tocantins formavam-se praias belíssimas na
época da seca, mas o havia o hábito de famílias freqüentarem as praias como
lazer (MANZANO, Eloísa; MANZANO, Eduardo, 2005, p. 62). Em entrevista
(2006), eles afirmam que o uso da praia como lazer e atração turística teria
comado na década de 70 e intensificado de 1980 para cá. Um fato interessante
lembrado por eles foi a falta de energia elétrica na cidade, no início da década de
1990, forçando os moradores a uma volta ao passado: Sem energia elétrica, s
o tínhamos também a água, então de um dia para o outro, estava toda a
população da cidade na beira do rio, pegando água pra beber, lavando a roupa,
tomando banho [...].
Tais exemplos mostram que nesse longo período histórico uma identidade
portuense foi se constituindo, mas ao mesmo tempo se transformando, influenciada
pela chegada de imigrantes, pelas mudanças ocorridas em seu cotidiano e também
pela onda de “progresso”, que trouxe transformações materiais. Ficou evidente que
algumas rupturas trouxeram conseqüências para a cidade e para a população, como
a mudança na forma da navegação, a chegada dos aviões e a construção da
rodovia Belém-Brasília. Foram transformações significativas na vida do ribeirinho e
do portuense em particular. Essa mudança está ligada diretamente à perda do rio
como referência diária na sua vida, relação que se tornou mais fluida, menos
necessária e menos freqüente. Se o rio havia perdido aquela importância capital
que possuía como meio de transporte, com a construção da hidrelétrica essa perda
155
será vista mais pelo prisma do lazer, é a perda das praias e de parte do patrimônio,
uma nova ruptura. Antes, porém, de analisar o impacto sofrido pela cidade por causa
da construção da hidrelétrica do Lajeado, algumas palavras devem ser ditas sobre
outras rupturas que afetaram o antigo norte de Goiás, de modo geral, e Porto
Nacional, em particular: a criação do Estado do Tocantins e a construção de sua
nova capital, Palmas
48
.
O movimento separatista do norte de Goiás tem suas raízes no século XVIII,
no período mineratório, quando eram visíveis as divergências e contrastes
existentes entre as duas regiões. A mais significativa na época foi a reação contra a
cobrança de um imposto mais elevado para as minas do Tocantins, em 1736.
Segundo Cavalcante (1999, p. 149), “O sentimento separatista, manifesto no
episódio dos mineiros, foi com certeza, o início de uma trajetória de lutas que
prosseguiu ao longo dos séculos XIX e XX, com manifestações ora organizadas e
contínuas ora isoladas e esporádicas”. Por ocasião da Independência do Brasil,
houve nova tentativa de separação sob a liderança do Ouvidor da Comarca do Norte
de Goiás, Teotônio Segurado. A justificativa novamente foi a de que a separação
seria a forma encontrada para que a região superasse o atraso em que se
encontrava devido à exploração pela excessiva cobrança de impostos, que não
eram revertidos para ela. Mas foi na metade do século XX que o movimento retornou
com ímpeto: “[...] em 20 de maio de 1956, foi deflagrado o movimento autonomista
do norte goiano, em Porto Nacional, com manifestações constantes até 1961”
(CAVALCANTE, 1999, p. 150). Depois de muitas idas e vindas, a autora conclui que
“Nos anos 80, souberam aproveitar, sem dúvida, o momento oportuno para mobilizar
a população em torno de um projeto que não nascera nessa ocasião, e nem
resultara apenas do trabalho de um líder político”.
Apesar de os portuenses terem participado de forma ativa da separação do
norte, na década de 50 do século XX inclusive com a criação de um jornal
49
para
divulgar o ideário separatista Porto Nacional não foi, como queriam os portuenses,
escolhida para capital do Estado recém-criado. No processo político pós-separação,
cogitou-se escolher uma das cidades que melhores condições oferecesse para
sediar a capital
50
: Porto Nacional, Gurupi ou Araguaína. Optou-se, porém, por
48
O objetivo aqui não é apresentar a história da construção de Palmas, mas apenas mostrar que a
sua localização, próxima à cidade de Porto Nacional, trouxe reflexos para a última.
49
Mais detalhes sobre esse assunto podem ser encontrados na obra da historiadora Maria do Espírito
Santo Rosa Cavalcante, citada na referência.
50
Durante o período de construção da capital, Miracema do Norte foi a capital provisória do Estado.
156
construir uma cidade planejada, que melhor atendesse aos interesses políticos e
econômicos do Estado. A escolha do local para construção da nova capital visava
alguns objetivos. De acordo com Souza (1992), uma das preocupações dos
idealizadores de Palmas era a de que ela representasse um novo impulso para o
desenvolvimento do Estado do Tocantins. A sua localização, à margem direita do rio
Tocantins, visava criar certo equilíbrio, articulando a parte desenvolvida das margens
da Belém-Brasília com as áreas estagnadas do leste do Estado, ou seja, da margem
direita desse rio. Nessas condições, a uma distância de apenas 60 km de Palmas,
por ser Porto Nacional a cidade mais próxima do local escolhido, ressentiu-se
diretamente dos reflexos do processo da construção, servindo prioritariamente como
cidade dormitório, abruptamente invadida por significativo contingente de pessoas
envolvidas com as obras da nova capital.
Na última década do século XX, os portuenses assistiram, portanto, a uma
verdadeira transformação a poucos quilômetros da cidade. Era a presença do novo
e moderno em contraste com o velho, tradicional e antigo. Como visto em tópicos
anteriores, a proeminência econômica e cultural de Porto Nacional se fez presente
desde o século XIX. A cidade que era, além de importante porto do comércio fluvial,
centro ativo de educação, com a abertura da Belém-Brasília passou a concorrer com
as cidades nascentes às suas margens, e em situação de desvantagem. Com a
construção da nova capital, passou a enfrentar uma nova concorrente; se no
passado o discurso era “tudo para o sul e nada para o norte”, com a separação do
Estado passa a ser tudo para Palmas, nada para Porto. Mas visto por outro viés, não
se pode negar que a sua proximidade com a capital lhe tenha trazido algumas
vantagens. Quanto ao impacto da barragem do Lajeado
51
, como visto na primeira
51
Nas últimas décadas a realidade ribeirinha tocantinense tem se modificado devido à construção de
grandes barragens em seu leito, como por exemplo, a de Tucuruí, que pôs fim à cachoeira de
Itaboca, e a do Lajeado, que fez desaparecer a cachoeira de mesmo nome. “A usina hidrelétrica de
Tucuruí foi concebida segundo as estratégias estabelecidas pela política do Governo Federal para
o desenvolvimento da região Norte, a partir da década de 60, em busca do crescimento econômico
da região [...] A UHE Tucuruí situa-se no rio Tocantins, Estado do Pará, distando aproximadamente
300 km em linha reta da cidade de Belém. Sua construção foi iniciada em 1976, pela Eletronorte,
sendo que sua operação comercial teve início em 1984, contando com 4.000MW de potência
instalada” (MINISTÉRIO de Minas e Energia, 2007). A usina do Lajeado, “A UHE Luis Eduardo
Magalhães Lajeado foi construída pela INVESTCO S.A., consórcio formado pelo Grupo REDE,
EDP, CEB e CMS Energy. Um dos mais arrojados projetos hidrelétricos do País, a UHE Lajeado foi
construída em tempo recorde - apenas 39 meses - constituindo-se num marco do Setor Elétrico: o
maior empreendimento de geração realizado pela iniciativa privada no Brasil. [...] A conclusão
dessa obra grandiosa, em 2001, proporcionou a independência energética do Estado do Tocantins
e energia excedente para o Sistema Interligado Nacional (SIN). Localizada no Rio Tocantins, entre
os municípios de Lajeado e Miracema do Tocantins, seu reservatório ocupa área de 630 Km² (63
mil hectares), para uma potência instalada de 902,5 MW” (ENGETEC, 2007).
157
parte da tese, em 1960 os meios de comunicação noticiavam que a Usina do
Lajeado se tornaria em breve uma realidade. Quando abordei, no tópico anterior, o
impacto sofrido pela cidade com a abertura da rodovia Belém-Brasília, a intenção foi
mostrar que, além de o rio deixar de ser uma referência diária para os moradores,
ele perdeu principalmente boa parte de sua função econômica como meio de
comunicação e transporte. Com a construção da estrada, mesmo que a cidade de
Porto Nacional tenha ficado fora do seu traçado e do outro lado do rio, a mudança
para o meio de transporte terrestre, em detrimento do fluvial, tornou-se predominante
em curto período de tempo, principalmente para as grandes distâncias. O que se
coloca agora como questão fundamental são as mudanças ocorridas no rio, nas
praias e no patrimônio arquitetônico da cidade, com a construção da
barragem/hidrelétrica do Lajeado: a perda do rio enquanto bem simbólico, e não
mais como meio de comunicação; a perda das praias enquanto lugar de lazer e
também como fonte de economia visto que parcela significativa da população da
cidade vivia em função delas nos meses de seca.
A temporada de praia começava pelo mês de maio quando as águas do rio
baixavam e continuava até setembro, quando iniciava o período chuvoso. No mês
de julho o movimento atingia seu ápice. Havia várias praias em Porto Nacional, mas
a Praia do Porto Real era a mais famosa e freqüentada. Para atender turistas e a
população local, era montada uma infra-estrutura com bares, restaurantes, barracas,
danceterias, posto telefônico, etc. O fato de esta praia estar situada em uma ilha
dificultava mais a montagem da infra-estrutura, além de ser necessário o transporte
constante de pessoas de um lado para o outro. Portanto a atividade voltada para o
turismo proporcionava trabalho e renda a uma parcela considerável da população
local. Soma-se a essa mudança, a perda de parte de seu patrimônio arquitetônico,
pois os prédios beira-rio foram destruídos para a construção de uma avenida
moderna. Percebe-se que, ao afetar o dia-a-dia do portuense, as transformações
aceleradas afetaram também de alguma forma sua identidade, pois as coisas já não
estão mais em seus lugares; perdeu-se a referência diária, gerando,
conseqüentemente, uma crise. A frase mais ouvida nos dias atuais em Porto
Nacional é: “o rio se acabou!”.
A cachoeira do Lajeado
52
foi, por séculos, uma referência para os ribeirinhos e
um dos maiores obstáculos para os navegantes do rio Tocant
158
ocorridas após a construção da barragem afetaram de forma mais drástica a
população de Porto Nacional, pois, além de ser um núcleo tradicional nas margens
do rio Tocantins, desde a década de 1980
53
, boa parte de sua economia girava em
torno do turismo que as praias proporcionavam. Em estudo sobre os impactos da
hidrelétrica do Lajeado para o patrimônio cultural de Porto Nacional, Noeci Messias
afirma que:
A população de Porto Nacional não conseguiu perceber antecipadamente a
dimensão dos danos que a hidrelétrica iria fazer em suas vidas [...] Os
portuenses desejavam o desenvolvimento, mas sem abrir mão do seu
passado, das suas praias, das suas casas, dos seus quintais, do seu rio
(MESSIAS, 2004, p. 131).
A perda de bens culturais decorrente da transformação do rio em lago,
submergindo parte da cidade, contribuiu para fortalecer o sentimento de identidade
dos portuenses. Segundo Larrain, “Para que la identidad se convierta en un
problema, se requiere de un período de inestablilidad y crisis, una amenaza a los
modos establecidos de vida” (LARRAIN, 1996, p. 93). O autor prossegue
assinalando algumas mudanças que teriam “erosionado” a noção de uma identidade
bem integrada, que seriam: o ritmo crescente e a rapidez das trocas, a redução do
espaço pela aceleração do tempo e a aceleração do processo de globalização ou
internacionalização da economia. No caso de Porto Nacional, esse processo se faz
mais presente a partir da década de 1960, com a abertura da rodovia Belém-Brasília,
e vai se acelerar principalmente após a separação do Estado do Tocantins (1988) e
conseqüente construção da nova capital e da hidrelétrica do Lajeado.
É inegável que mudanças bruscas interferem na organização social de uma
comunidade. Para Porto Nacional foi, afinal, a perda mais visível de certos bens
materiais e culturais que fez com que os moradores se sentissem ameaçados em
sua identidade. Poder-se-ia dizer que foi necessário que os portuenses vivessem um
momento de crise ou de ameaça - a perda de bens materiais e simbólicos atingidos
pela construção da barragem de Lajeado - para que a questão da identidade se
tornasse um problema. Eles só tiveram consciência de que estavam perdendo parte
de seus bens culturais, que eram traços importantes de sua identidade, quando na
verdade já os haviam perdido. Nesse sentido é interessante observar a constatação
53
As praias eram utilizadas pela população local, mas a partir da década 1980 foi montada uma
estrutura arrojada para atender o grande número de turistas que para se dirigia. A partir do mês
de abril se iniciavam os preparativos, que se prolongavam até os meses de agosto/setembro. O
ápice era o mês de julho, por coincidir com as férias escolares.
159
de Messias (2004, p. 38): “[...] observei que as pessoas não falam da catedral, como
falam do rio, das praias, e do coreto, dando claras evidências de que estão
preocupados com aquilo que se perdeu. O contrário da catedral que permaneceu”.
Outro exemplo significativo que a autora ressalta é o caso de uma moradora que
perdeu sua casa próxima à catedral e não conseguiu se adaptar em nenhuma outra,
longe dali. Após conseguir uma casa antiga cedida por parentes, naquele lugar, a
moradora afirmou querer reformá-la, modernizá-la, antes que chegue a lei de
tombamento dos prédios antigos na cidade.
Pode-se dizer que Porto Nacional teria perdido a referência cultural, pois as
antigas relações culturais foram afetadas e, a partir desse momento, surgiu um
sentimento de necessidade de reconstrução cultural. “[...] as pessoas se dão conta
do efeito das mudanças ambientais e socioculturais em suas vidas. O que era claro
para uma minoria crítica agora está se revelando para a maioria da população”
(MESSIAS, 2004, p. 117). É, portanto, nos momentos de crise que se percebe com
mais nitidez a preocupação com o fortalecimento ou reconhecimento da existência
de uma identidade. Nas diversas entrevistas realizadas com moradores de Porto
Nacional, pude perceber muita amargura quando tratam da construção da barragem
e seus reflexos para a cidade.
O rio era a vida da gente, o rio era belíssimo, agora acabou, a geografia
mudou, pode tirar o Tocantins do mapa, não é? Fizeram uma praia muito
mal feita, num lugar muito impróprio, [...] apelidaram ela de praia da bosta,
então ninguém vai, porque aquela rua lá, as casas tinham aquelas
privadas, tudo de fossa, então quando tomou, aquele negócio saiu tudo, foi
uma contaminação geral (MACEDO, M., 2006).
Finalizo com o poeta portuense Pedro Tierra (2005), referindo-se à
construção da barragem do Lajeado. Seus versos representam o sentimento da
maioria dos ribeirinhos de Porto Nacional, quanto à questão da mudança ocorrida no
leito do rio:
Um rio quando barragem tem a espinha quebrada/vira um rio paralítico
feito um animal vivo/que morreu só a metade:
a outra metade viva pulsando/solta, como veia aberta a foice [...].
160
2.2 Encontro de rios e povos: Pedro Afonso, a Travessa dos Gentios
161
vezes se apresenta de forma a encobrir ou omitir as histórias locais, e fornecer
aspectos relevantes da pluralidade que é o Brasil.
Em seu livro História de Pedro Afonso, Anna Brito Miranda (1973), antiga
moradora do lugar, propõe a seguinte periodização para o estudo da cidade:
primeiro, de 1847 a 1914, período que marca seu surgimento como aldeamento de
índios e seu primeiro momento de desenvolvimento como entreposto comercial
comércio com o Pará e Bahia. A autora afirma que a cidade possuía, nesse período,
quinze ruas muito bem tratadas e arborizadas, seis grandes casas comerciais, uma
bem montada farmácia, orquestra e banda de música. O segundo momento, que vai
de 1914 a 1930, seria o período caracterizado pela violência, divergências políticas e
rivalidades comerciais; Abílio Araújo, chefe de cangaceiros, com eles devasta a
cidade e fazendas da região, e a crise da borracha piora esse quadro de violência e
“decadência”. Nesse contexto, segundo Miranda, o isolamento do norte goiano era
sentido com toda a força, sendo que as correspondências da capital do Estado para
a região demoravam de quatro a seis meses. Por último, a autora considera a
Revolução de 30 como o marco que devolveu a paz à cidade.
Além desses momentos destacados por Miranda, constatei outras rupturas
importantes que se refletiram na vida do morador de Pedro Afonso. O capítulo está,
portanto, dividido da seguinte forma: a) origem da cidade como aldeamento, as
transformações ocorridas com a chegada de novos imigrantes e conseqüente
transferência dos índios para outro lugar, até os tumultos ocorridos nas primeiras
décadas do século XX; b) a mudança com a substituição dos botes a remo pelos
motores, e os reflexos ocorridos a partir da década de 1960, com a abertura da
rodovia Belém-Brasília; c) as mudanças no dia-a-dia do pedro-afonsino relacionadas
à convivência com o rio, à situação da cidade hoje.
162
Fotografia n.° 11 – Pedro Afonso – vista aérea.
Fonte: Cooperativa Agrícola de Pedro Afonso.
Fotografia n.° 12 – Igreja de São Pedro - Pedro Afonso.
Fonte: Maria de Fátima (2006).
163
2.2.1 A cidade fora do lugar: da aldeia de frei Rafael às ruínas de Cipriano
O missionário por si não pode efetuar o vosso
desejo, convidar a instrução religiosa e civil gente
nua, gente que vive de caçadas, sem ter meios
de socorrê-los. Motivos são estes, que me
desanimam, e por isso é melhor de ocupar-me de
outra tarefa, contentando-se de conservá-los
nossos amigos.
Frei Rafael
A origem de Pedro Afonso está ligada à fundação de um aldeamento
indígena, sob a direção do missionário capuchinho italiano frei Rafael de Taggia, em
1847. De acordo com Rocha,
Os capuchinhos surgiram em 1525, como resultado de um movimento de
reação à Reforma Luterana que ocorreu dentro da ordem de São
Francisco. Constituem, portanto, um dos ramos dos franciscanos [...]. A
ordem dos capuchinhos cresceu muito rapidamente, passando de
quinhentos religiosos em 1536, para três mil em 1571. No século XVIII,
atingiu seu auge, contando com cerca de 33 mil religiosos atuando na
Europa, África e Oriente (ROCHA, 1998, p. 87).
Ainda segundo Leandro Rocha, a chegada dos primeiros capuchinhos ao
Brasil ocorreu no início do século XVII (1612), mas no começo do XIX sua situação
era de decadência, tendo havido um ressurgimento da Ordem na década de 1840.
Tais religiosos passaram a ter papel semelhante ao dos jesuítas nos séculos
anteriores, com a diferença de que não havia, por parte dos capuchinhos,
concorrência com o poder da Coroa; não representavam, pois, ameaça, ao contrário,
mantinham boas relações com a monarquia. Dentre as diversas fontes, não há
unanimidade quanto à data da fundação da aldeia. Segundo o IBGE (1958) e
Rodrigues (1978), seu surgimento teria sido em 1845, mas 1847 e 1849 também são
datas defendidas por outras fontes. O ofício de criação do aldeamento, encontrado
no Arquivo Histórico Estadual, diz o seguinte:
Pelo ofício de V. Exª. n. 11 de 4 de fevereiro do corrente ano [1849] ficou
sua Majestade o Imperador inteirado de haver V. Exª. pela Resolução de 8
de Janeiro, de que enviou cópia, erigido o aldeamento Pedro Affonso na
confluência do rio do Sono e Tocantins, onde existe o crescido número de
800 índios Caraós sob a direção do missionário capuchinho Frei Raphael
Taggia. O que comunico a V. Exª. Para seu conhecimento. Deus guarde V.
Exª. Assinado Visconde de Montalegre (A.H.E., Cx. 01, Pedro Afonso).
164
É de conformidade com esse ofício o relatório de 1855, do presidente da
Província de Goiás, Cruz Machado, no qual constam os seguintes dados sobre o
aldeamento do povo indígena no local que deu origem a Pedro Afonso:
Pedro Afonso, fundada em 1849, na margem direita do Tocantins, acima da
confluência do rio do Sono, sob a direção de frei Rafael de Taggia,
povoada por 701 Carahós de ambos os sexos, que vivem em paz, e se
empregam na cultura e pesca, e alguns na tripulação dos barcos que vão
ao Pará (MACHADO, 1997, p. 234-235).
Em O Estado e os Índios, Rocha (1998, p. 101) informa que o aldeamento de
Pedro Afonso foi criado em 1849, à margem direita do Tocantins, sob a direção do
frei Rafael de Taggia, e abrigava principalmente o povo Krahó. Mesmo
predominando a data de 1849 como o ano da criação da aldeia, o marco
considerado para efeito comemorativo na cidade é 1847. O mais provável é que Frei
Rafael tenha chegado à região e iniciado o contato com os índios nesse ano (1847)
e dois anos mais tarde tenha sido oficializada a criação da aldeia, pois no mês de
maio de 1847 escrevia o presidente da Província, Joaquim Ramalho:
Havendo encarregado, como vos comuniquei no meu anterior relatório, ao
Coronel Ladislau Pereira de Miranda, a fundação de uma aldeia no antigo
presídio de Santa Maria [...]. Há pouco participou-me oficialmente, que
tinha avultado número de índios dispostos a residirem naquele, ou em
outro qualquer lugar, que lhes fosse designado. Para missionar nesta
aldeia mandou o Exm. Bispo Diocesano ao Missionário Frei Rafael de
Taggia, pouco chegado a esta capital, que seguirá a seu destino na
primeira ocasião oportuna (RAMALHO, 1996, p. 74-75).
No relatório do próximo presidente da Província, Antonio de Pádua Fleury, um
ano depois, temos notícias da atividade do missionário, estabelecido na
confluência do rio Sono com o Tocantins:
O Missionário Frei Rafael de Taggia [...] persuadido pelos povos, para que
com os índios Caraós em n.
0
de 300 indivíduos de ambos os sexos [...]
fosse fundar uma nova aldeia na confluência do Rio do Sono no Tocantins
[...]. Ali mandou Frei Rafael fazer roças [...] (FLEURY, 1848, p. 127-128).
A origem da Travessa dos Gentios, mais tarde Pedro Afonso, vinha atender a
mais de um objetivo. Se o primeiro benefício advindo de sua criação foi desinfestar”
as margens do rio Tocantins, pois a presença dos povos indígenas prejudicava a
navegação e causava danos às fazendas, amedrontando a população, apresentava-
se, num segundo momento, como ponto de ligação entre dois núcleos
estabelecidos e prósperos:
165
[...] a fundação desta Aldeia no lugar indicado favorece a abertura da
estrada, que a tempos se projeta da Vila do Porto Imperial pela margem
direita do Tocantins a Carolina, encurtam-se algumas léguas, e a própria
navegação pode receber socorros desta Aldeia (FLEURY, 1996, p. 127).
Em seu relatório do ano seguinte, o mesmo presidente informa sobre o
sucesso do aldeamento e esclarece sobre a mudança do nome Travessa dos
Gentios para Pedro Afonso, denominação que permanece até os dias atuais:
Tive comunicação [...] que tinham com bastante trabalho feito transportar o
resto dos índios que habitavam nas ribeiras do rio Farinha para a Aldeia do
rio do Sono, cujo número de habitantes sobe de 800 indivíduos; e em
consideração a grande vantagem que deve resultar ao público, resolvi, em
data de 8 de janeiro do corrente ano, dar a esta Aldeia a denominação de –
Pedro Affonso não para marcar a época da sua fundação, mas
também para colocar debaixo dos auspícios e proteção de um tão
Prestigioso Nome (FLEURY, 1996, p. 160-161).
Três anos após essa medida, em 1852
56
, novos dados
57
sobre o aldeamento
indígena o fornecidos por frei Rafael, os quais são publicados na Revista do
Instituto Histórico e Geográfico do Brasil:
Idade machos Fêmeas total
Abaixo de 4 anos 32 47 79
Entre 4 e 8 anos 49 78 127
Entre 8 e 16 anos 30 37 67
Entre 16 e 26 anos 38 49 87
Entre 26 e 40 anos 80 89 169
Acima de 40 anos 41 50 91
Total 270 350 620
Quadro n.
0
11: Índios Crahô, da Aldeia de Pedro Afonso, nas margens do rio Tocantins.
Fonte: Taggia (1856).
Nesse relato também informações sobre os hábitos do povo indígena. Frei
Rafael (1856) descreve e emite juízo de valor sobre os seus costumes e relata as
dificuldades encontradas no seu trabalho de catequese, sugerindo algumas medidas
para amenizá-las. Segundo ele, os índios viviam sem religião e conservavam muitas
idéias supersticiosas, resistindo aos medicamentos fornecidos pelos missionários,
bem como à conversão. Sobre a questão da tão incômoda nudez para os religiosos,
afirma que “andam nus, e somente as fêmeas [...] trazem um cordão na cintura, e
56
A data da publicação é o ano de 1856, mas os dados fornecidos por Frei Rafael são assinados em
1852, conforme consta na RIHGB, Tomo XIX, 1856.
57
Embora conste na Revista do IHGB que o total dos indivíduos de ambos os sexos apresentado na
primeira linha da última coluna seja 39, deve ter ocorrido erro de transcrição, pois a soma do
número de índios do sexo masculino e feminino dessa coluna é 79.
166
com uma folha qualquer cobrem malmente as partes pudibundas”. Embora os
apresente como um “povo bruto sem educação alguma”, reforça que o contato com
o branco propiciou algum resultado positivo: “conservam alguma ladinez, por serem
de 20 anos pouco mais ou menos a esta parte, que observam nossos costumes”.
Ainda de acordo com o missionário, os índios Crahô:
Habitam pacificamente as suas terras entre os confins desta província com
a do Maranhão, e tendo dado aos fazendeiros motivos de queixas, foram
removidos, e agora compõem a aldeia de Pedro Afonso, onde nas
epidemias sofridas nos anos de 1849-1850 ficaram bastantemente
diminuídos (TAGGIA, 1856, p. 123).
Quanto ao ano de 1859, Gomes nos fornece alguns dados sobre o local:
[...] povoação pequena, onde há um missionário capuchinho, frei Rafael,
que diz haver, na distância de quatro léguas, três aldeias de indígenas
mansos, os quais não foram por mim vistos [...] disse-me esse frade que
nada podia fazer para agradar aos indígenas, para induzi-los ao modo de
vida estável e ao estado social, porque lhe faltavam os meios [...] (GOMES,
1862, p. 490).
A descrição deixada pelo missionário dominicano francês, frei Laurent Berthet
(1883), na epígrafe deste capítulo, é bem menos entusiasmada se comparada com o
relato que fez sobre Porto Nacional na mesma época. Mesmo tendo permanecido
por cinco dias no lugar, não fornece detalhes sobre a situação do povoado,
centrando-se apenas na atividade religiosa desenvolvida pelos capuchinhos.
Percebe-se que, do mesmo modo que Pedro Afonso teve um rápido aumento
da população indígena após sua fundação, também sua derrocada como
aldeamento foi ligeira. Consta da obra de Rocha que o Relatório da Presidência da
Província, datado de 1857, evidenciava a gradativa presença dos brancos no
aldeamento: “Para esta aldeia tem entrado mais de 300 pessoas vindas das
Províncias da Bahia e Piauhy” (ROCHA, 1998, p. 101). Antes mesmo de completar
uma década, o aldeamento apresenta os primeiros sinais de fracasso. Em 1858
houve a remoção dos Krahô para outra aldeia às margens do Rio Sono e o
missionário pede dispensa de suas atividades junto aos índios, justificando a
impossibilidade de continuar a missão. Frei Rafael explica que a remoção se deveu
à afluência de moradores não-indígenas para a antiga aldeia.
Pedro Afonso não foi o único exemplo de aldeamento feito para povos
indígenas e “invadido” pelos brancos. Somente nessa região, temos como exemplo
167
de outros aldeamentos fracassados o antigo São José do Duro (atual Dianópolis) e a
aldeia de Formiga, também afetados pela imigração de povos não-indígenas para
seu território.
São José do Duro, que juntamente com a aldeia da Formiga, sua vizinha,
trinta e duas léguas na serra do mesmo nome a essueste da vila de
Natividade, foi fundada em 1754 pelo primeiro governador desta província
D. Marcos de Noronha, conde dos Arcos, que nela pôs os índios Acroás e
Chacriabás, catequizados pelos jesuítas, os quais pouco a pouco a
abandonaram, e hoje apenas restam alguns descendentes deles
misturados com a população: a Formiga está deserta, e o Duro é
atualmente uma freguesia (MACHADO, 1997, p. 29).
A razão mais óbvia da primeira atração da população não-indígena pelos
aldeamentos seria a presença de missionários, que dava às pessoas certa
segurança, pois elas estavam localizadas em espaços ainda muito vazios. Com a
chegada de imigrantes, os missionários passavam a dar-lhes assistência religiosa,
em detrimento dos indígenas, pois a tarefa era bem menos árdua e mais
compensatória. Para o fracasso contribuía também a convivência de diferentes
culturas em um mesmo espaço, o que gerava, com certeza, atritos. No caso da
Travessa dos Gentios, a explicação do missionário para a mudança de local da
aldeia deveu-se à afluência de novos moradores não-índios para a antiga aldeia.
Segundo Rocha (1998), entretanto, outros motivos podem explicar a remoção, como
a aliança do missionário com fazendeiros que cobiçavam as terras ocupadas pelos
índios e sua intenção de atuar junto à população branca.
A análise da carta de 1858, deixada por frei Rafael, evidencia bem os
problemas enfrentados pelos missionários e sua insatisfação com o ofício da
catequese. Nela frei Rafael reclama de problemas, como a questão da língua, da
estupidez e preguiça dos índios, bem como do desprezo dos governos para com o
aldeamento, principalmente quanto à falta de auxílio financeiro para a sua
manutenção.
Sempre vivem nus, os machos desejam vestidos para se defenderem dos
mosquitos. As fêmeas aborrecem totalmente com vestuários. o sei mais
qual meio usar para animá-los. Por três anos consecutivos trabalhei
pessoalmente nas roças [?] com eles: me cansei de fazer conhecer a
brutalidade de seu viver e nada consegui. A multiplicidade dos obstáculos
[?] faz que a dupla civilização destes índios seja um verdadeiro problema,
cuja solução depende do vencer as escolhas (?) que atravessam:
linguagem, estupidez, costumes, [...], preguiça sobre medidas, enorme
desprezo por parte do governo, eis Exmo [?] o que é necessário ao alcance
que se quer. Convêm o emprego destes dois partidos: ou acomoda-los em
168
famílias nas cidades marítimas, e serem empregados nos [?] e casas de
ensino nacionais; ou usar de algum rigor e assim prudentemente obriga-
los, para serem úteis em algum modo (A. H. E., Cx. n.
0
01, ref. ao
município de Pedro Afonso).
Além das diversas fontes que reforçam a dificuldade do missionário em lidar
com os indígenas, inclusive sua própria declaração, os dados oficiais do IBGE
comprovam essa informação:
[...] certo dia, em decorrência de uma repreensão feita pelo educador a
uma das crianças, os índios se revoltaram contra seu benfeitor que,
receoso, teve de regressar ao arraial em formação [...]. Ainda assim o
espírito de revolta e de vingança dos índios, qualidades que lhes são
peculiares, não calara de todo e, um belo dia, um poderoso exército
decidiu-se dar cabo do virtuoso desbravador. Aconteceu que, em marcha,
ao chegar ao ribeirão próximo do arraial, estacou surpreso, ficando os
agressores aterrorizados com o milagre que lhes deparava: o pessoal em
arma ao lado do padre era em numero superior, e, como era natural,
fizeram os índios renderem-se (IBGE, 1958, p. 331).
O relato de Miranda (1973, p. 21), antiga moradora de Pedro Afonso, sobre a
questão se resume em citação quase literal dos dados encontrados no IBGE. Ela
afirma que frei Rafael iniciou sua obra de evangelização “disposto a suportar todos
os dissabores”, mas, “Certo dia, foi forçado a repreender um aluno; os índios não
gostaram e revoltaram-se contra o seu benfeitor. Receoso de maiores
conseqüências, regressou ao seu arraial [...]”. O ato de repreensão de uma criança
indígena quase pôs fim à ação do missionário na Travessa dos Gentios.
Sobre a convivência do “branco” com o povo indígena nos arredores de Pedro
Afonso, o pastor Bacon (2006)
58
afirma ser a indiferença a marca da relação entre
brancos e índios e que poucas pessoas gostavam dos índios”. Segundo ele, “Havia
certo desprezo por ser de cultura diferente” e “quanto mais próximo de aldeias,
menos interesse o povo tem”. Para além dessa indiferença e desprezo, fica
perceptível também certo medo por parte da população branca. Esse fato pode ser
reforçado pela fala de entrevistados, que dizem ainda terem medo do elemento
indígena nos dias atuais, e pelas histórias contadas para amedrontar crianças
rebeldes. Segundo Rui Rodrigues da Silva, o se pode chamar de convivência o
que havia entre brancos e índios:
58
O pastor americano Glen Irwin Bacon trabalhou com esse grupo indígena no final da década de
1950, nas proximidades de Pedro Afonso. Partilha desse mesmo pensamento sua esposa, Sra.
Shirley Ann Bacon. Atualmente o casal reside nessa cidade.
169
Convivência não existia, o que havia era uma alteridade absoluta [...] a
imagem que se tinha dos índios era exatamente de selvagens, violentos,
faziam medo, tinha-se medo de jagunço e tinha-se medo de índios, às
crianças, as babás ameaçavam: olha que eu chamo o índio se você não
tomar a sopa (SILVA, R., 2006).
De modo geral os aldeamentos em Goiás não tiveram resultados satisfatórios.
Dentre outros motivos de seu fracasso, podem ser destacados dois principais:
primeiro, a ineficiência e despreparo da maioria dos religiosos para lidar com a
população indígena, além da preferência por trabalhar com a população branca, dita
“civilizada”, em detrimento desses povos; e segundo, o constante descompasso
entre a política dos governos central e provincial e o ideal dos missionários em seus
campos de trabalho. O fracasso do aldeamento foi, portanto, de certa forma, a razão
do crescimento de Pedro Afonso, não mais como lugar de índio, mas de imigrantes
vindos do nordeste, principalmente do Maranhão. Com base em escassos dados
encontrados no Arquivo Histórico Estadual, é possível afirmar que Pedro Afonso teve
um desenvolvimento bastante lento até o auge da exploração da borracha na região.
O ofício de 1864, dirigido ao inspetor das rendas provinciais, fornece as seguintes
informações:
A estreiteza que tem a pouca fortuna deste lugar e as receitas que ao
cofre provincial [...] o tem casas suficientes, que se possa estimar por
prédios urbanos, isto é, separando-se de sete a oito casas de telhas, estas
mesmas acham-se algumas de portas trancadas por respeito dos donos
morarem pelas roças, e as outras todas são cabaninhas de palhas, quase
demolidas em estado de não serem habitadas (A.H.E., caixa n.
0
1, ref. ao
município de Pedro Afonso, 1864).
Mais adiante, o mesmo ofício afirma serem os alimentos escassos, tanto por
indisposição da população como pela falta de dinheiro. Essa situação vai se
modificar mais para o fim do século XIX e início do XX, quando da febre da borracha,
passando Pedro Afonso à categoria de Vila (1903) e, conseqüentemente, sede do
município, com o nome de Vila de São Pedro Afonso (IBGE, 1958, p. 331).
Entre o final do século XIX e início do XX, a cidade de Pedro Afonso foi
influenciada pela expansão da exploração da borracha
59
na região norte. Tornou-se
59
Borracha é uma denominação genérica do látex, pois existem diversas plantas das quais ele pode
ser extraído: o caucho, a seringueira, a mangabeira, a maçaranduba (ou balata) e outras. O nome
científico do caucho é Castilloa elastica; é um árvore que alcança de 15 a 20 metros de altura,
tendo seu tronco cerca de meio metro de diâmetro (MATTOS, 1996, p. 26). Teriam sido os
170
um ponto importante de ligação entre o nordeste e o norte e um local onde as
mercadorias eram acumuladas para o transporte pelo rio Tocantins, até Belém.
Segundo os dados do Arquivo Histórico Estadual de Goiás, de 1910, Pedro Afonso
possuía 60 casas, e o imposto da décima urbana variava entre 2$000 e 4$800 réis
60
.
O Anuário organizado por Francisco Azevedo, da mesma data, fornece a seguinte
descrição do município:
Dista da capital do Estado 1.200 quilômetros, de Porto Nacional 300 km e
de Carolina 300 km. Tem uma praça e quatro ruas principais. O clima é
muito saudável e o calor não é o intenso como nas demais povoações
à beira do Tocantins. A principal indústria do município consiste na
extração da borracha de mangabeira. É avultadíssima a sua riqueza
mineral. A indústria pastoril está bastante desenvolvida e constitui um dos
primeiros ramos de negócio (AZEVEDO, 1910, p. 176-177).
Prefaciando o livro de Ana Brito Miranda, Amália Hermano Teixeira afirma:
Como a maioria dos aldeamentos, Pedro Afonso perdeu logo suas
características indígenas, se transformando em povoado sertanejo. Criadas
a vila e a paróquia, levanta-se a igreja de São Pedro no lugar da primeira
capelinha coberta de palhas de palmeiras. Pedro Afonso cresce, progride.
Município autônomo em 1898, desmembrado do de Porto Nacional, em
1907 é elevado à categoria de cidade [...]. A autora nos apresenta sua
cidade, nos primeiros anos dos novecentos, mantendo comércio ativo, vida
política intensa, dinheiro correndo fácil, atraindo baianos, maranhenses e
piauienses. (TEIXEIRA, 1973, p. 13).
Ao mesmo tempo em que a corrida da borracha provocou aumento da
população, intensificou o comércio e também os problemas: a chegada de
forasteiros gananciosos, a instabilidade e divergências políticas locais aumentaram a
violência na cidade. De acordo com Audrin,
Pedro Afonso, antigo Rio do Sono, é uma povoação goiana, fundada
outrora junto à confluência dos rios Sono e Tocantins, pelos missionários
capuchinhos, para ser o centro da Catequese dos Índios Cherentes e
Caraós. Com o decurso dos anos foi progredindo e chegou a ser vila
importante, depois da descoberta do caucho nas matas do Araguaia. Todo
o trânsito das tropas baianas e maranhenses em procura da nova riqueza,
efetuava-se por Pedro Afonso, que em poucos anos transformou-se em
empório comercial de primeira ordem. Esta prosperidade material foi causa
da sua terrível desgraça. O caso de Pedro Afonso teria certamente
interessado o célebre autor dos Sertões (AUDRIN, 1946, p. 240-241).
60
Havia nessa época apenas 60 prédios urbanos na cidade, distribuídos em 4 ruas: Largo da Matriz,
Rua Grande, Rua do Passeio e Rua do Sal (A. H. E., Cx. n.
0
1, ref. ao município de Pedro Afonso).
171
O período da Primeira República, conhecido também como República Velha
ou República dos coronéis, foi um período conturbado, de intensos abusos e
arbitrariedades políticas em todo o país. Marcado por diversos movimentos de
caráter social, teve como expoente mais célebre o caso de Lampião. Para Itami
Campos (1987), o ato da Proclamação da República por si não provocou
mudanças significativas na política brasileira. O processo engloba transformações
que vinham ocorrendo na segunda metade do XIX, como a diversificação da
economia. Mas, segundo ele, a conseqüência mais visível da mudança de regime foi
a quebra de centralização de poder existente no Império, dando maior autonomia
aos grupos políticos estaduais.
Palacin (1994), em seu estudo sobre o coronelismo no extremo norte de
Goiás, afirma que o abrandamento da função centralizadora do poder
[...] possibilitou a eclosão dos particularismos, a que naturalmente levava
uma organização social centrada na grande propriedade rural, e no
predomínio familiar de grupos instalados já desde o tempo da colônia. [...]
O relaxamento do poder central, trazido pela República, deu origem no
Brasil todo a uma reviviscência dos poderes locais, característica comum
do coronelismo (PALACIN, 1994, p. 38).
Em Pedro Afonso os reflexos desse período não foram diferentes, embora
com contornos bem peculiares. As rivalidades políticas e comerciais contribuíram
para um longo período de violência na cidade e região. Embora escassa, dentre a
documentação sobre esse período em Pedro Afonso, destaca-se um ofício datado
de 1910, do subdelegado da cidade ao Presidente da Província, no qual pedia
medidas urgentes para conter a desordem e a violência. No documento consta um
fato envolvendo um soldado, para mostrar que a autoridade não estava sendo
respeitada; necessitava, portanto, de reforço:
Em plena rua desta vila, o soldado foi atado e arrastado pela rua até
entregar um revolver de cinco tiros que havia tomado do sobrinho do
Borges [...] Estes fatos Exmº. Sr. Presidente, se dão pela mínima
garantia que possuímos e Vs. Exª. nos poderá tirar das dificuldades em
que vivemos mandando-nos uma força de 10 praças ao menos,
comandada por um oficial de vossa confiança e que não distribua espírito
político (A.H.E., Cx. n.
0
2, ref. ao município de Pedro Afonso).
Miranda (1973) define o ano de 1914 como o início do período de maior
violência, mas os ânimos andavam inflamados algum tempo, como mostra o
documento transcrito a seguir. Os dados oficiais confirmam que três anos antes a
172
cidade já teria sido arrasada e a maioria da população teria se mudado por causa
dos constantes conflitos.
Em 1911, a política e a ganância comercial ateiam fogo no seio da pacata
população e, três anos depois, Pedro Afonso era um montão de ruínas, de
que muito bem soube locupletar-se uma horda de bandoleiros chefiados
por Abílio Araújo. Em 1924, novas cenas de banditismo ensangüentam o
solo pedro-afonsino: Cipriano Rodrigues proclama-se chefe de bacamarte
no norte e como tal comete toda sorte de tropelia, roubo e assassinato.
Morto em 1925, consolida-se a ordem e a tranqüilidade. Os habitantes,
despojados de sua terra natal, que puderam escapar-se à fúria inimiga,
regressam de novo aos lares carbonizados (IBGE, 1958, p. 331).
Tais acontecimentos em Pedro Afonso são narrados também no romance
Uma sombra no fundo do rio, pelo escritor goiano Eli Brasiliense, natural da região,
onde viveu por longo tempo. Embora não tendo compromisso com a verdade, por
ser um livro de ficção, Brasiliense descreve com riqueza de detalhes as conturbadas
primeiras décadas do século XX na cidade. O autor inicia o romance mostrando o
resultado das desordens causadas pelos jagunços:
Quem havia tirado a cidade do lugar e plantado uma tapera? São
Caetano?
61
Restos de muros, bagaços de casas e de ranchos, quintalama
de árvores amarimbondadas, tudo era dele, para seu uso despótico.
Apoderara-se rapidamente da maior parte de uma cidade destroçada, onde
os riachos de sangue correram pegajosos no rumo do Tocantins e do rio do
Sono. [...] O povo que sobrara da tragédia estava doente de tristeza. Gente
bagunçada da cabeça e problemática da idéia (BRASILIENSE, 1977, p.
13).
Em conversa com os moradores, foi possível perceber que, tanto os episódios
relatados na obra de Eli Brasiliense (1977) como outros momentos de violência,
permanecem na sua memória:
ABC de Cipriano
Ai, morena, eu vou contar/A história de Cipriano;
Numa guerra de espantar/Que durou uns par de ano.
Bala perdida zunindo/Filho chorando sem mama,
Muito caboclo dormindo/Sendo sangrado na cama.
Da mesma forma que o surto da borracha foi responsável pelo grande
progresso de Pedro Afonso por sua localização privilegiada, ponto de parada
obrigatória e de passagem entre o nordeste e o vale do Araguaia a sua
61
Vegetação trepadeira, que invade e toma conta das taperas.
173
desvalorização teria sido também sua ruína, como mostra o estudo de Valverde e
Dias:
A crise da borracha atingiu profundamente todos aqueles que se
dedicavam ao tráfego de mercadorias em direção à bacia do Araguaia;
organizaram-se tropas de salteadores [...] saques e conflitos internos
causaram durante vários anos, a instabilidade em Pedro Afonso. Com a
desvalorização da borracha, perdia a cidade também sua função de
entreposto. [...] E assim, Pedro Afonso decadente, viu-se transformada em
um pequeno burgo, como tantas outras, da margem do Tocantins
(VALVERDE; DIAS, 1967, p. 266).
Além desses tumultos, Pedro Afonso também sentiu os efeitos da passagem
da Coluna Prestes, diferentemente do que ocorreu em Porto Nacional, onde a
população não teria fugido de suas casas. Segundo Miranda,
A sua passagem por esta cidade foi um verdadeiro desmoronamento. A
população, tomada de nico, deixa a localidade, abandona tudo e corre
apavorada em busca de abrigo pelos matos. [...] Destruíram tudo o que
estava ao alcance de suas mãos, queimaram os arquivos
62
, e alguns dos
moradores mais retardatários sofreram vexames, inclusive algumas
chicotadas, acompanhadas de deboches (MIRANDA, 1973, p. 20).
A partir da década de 1930, a cidade é marcada por uma onda de progresso e
ganha espaço na Revista Informação Goyana, publicada no Rio de Janeiro. Na
maioria das vezes são artigos que mostram principalmente suas potencialidades
geográficas e econômicas. A explicação para o aparecimento de tantos e tão
enaltecedores artigos sobre ela pode estar no fato de o diretor da revista, Henrique
Silva, ter sido escolhido como patrono de uma biblioteca fundada na cidade. Sobre
tal escolha, aparece a seguinte nota na Revista: “Temos o prazer e a honra de levar
ao vosso conhecimento ter sido o vosso nome por unanimidade de votos aprovado
para “patrono” de nossa biblioteca”. A resposta em forma de agradecimento foi
imediata: “O nosso diretor não sabe expressar o júbilo de que se acha possuído pela
subida honra conferida ao seu obscuro nome mas saberá corresponder a este
gesto de generosidade” (INFORMAÇÃO GOYANA, n.
0
4, 1929, p. 32).
Além de publicações sobre o município, a Revista trazia, na íntegra, os
estatutos da Biblioteca Henrique Silva, as atas das reuniões, os resultados das
eleições anuais da sua diretoria, além de fotografias da cidade e região. O fato de
ter emprestado seu nome à nascente biblioteca, deve ter contribuído em muito para
a formação de um rico acervo, com exemplares de publicações de todo o Brasil e do
62
A escassez de documentos sobre Pedro Afonso talvez possa ser explicada por atos como esses,
pois a cidade foi tomada e saqueada diversas vezes.
174
estrangeiro. Atualmente não resta vestígio da existência de tal biblioteca; nem as
autoridades, nem os moradores da cidade sabem explicar o desaparecimento do
acervo e o motivo de tal sumiço.
Constata-se que, após décadas de tumultos em seu território, a cidade
começa a dar sinais de certo progresso
63
, como mostra o médico lio Paternostro,
que entre maio e setembro de 1935 viajou pelo vale do Tocantins, com o objetivo de
colher material para o combate à febre amarela:
Em 1934, o Governo de Goiás instalou em Pedro Afonso a primeira
inspetoria da Fazenda do Estado e aquartelou uma companhia de polícia
para servir o Norte. Numa formatura dessa companhia contei 52 homens:
somente dois eram negros, poucos brancos e a maioria mestiça. Ganham
os soldados noventa mil réis por mês. Em Pedro Afonso, pela primeira vez,
depois que saí de Belém do Pará, tive a oportunidade de dormir em cama,
na casa de um sargento da polícia. Fiquei sabendo, depois, que era a única
existente na povoação e consideravam-na como objeto de luxo numa
região onde todos dormiam em rede. Exatamente como se pensava em
São Paulo no Século XVII [...] (PATERNOSTRO, 1945, p. 190).
2.2.2 A Belém-Brasília silencia os motores
[...] quando eu chegava no porto, o motor tava
dentro da minha cabeça.
Damásio Ferreira
Como visto na primeira parte desta tese, se até os anos de 1920 predominou
a utilização dos botes ou batelões para o transporte de mercadorias e passageiros
pelo rio Tocantins, a década de 1930 vai ser marcada pela proliferação dos barcos
movidos a motor
64
. Os primeiros barcos a motor eram embarcações bem menores
que os antigos botes. Como não dependiam mais somente da força humana, eram,
portanto, mais rápidos, o que tornava a viagem menos cansativa. Essa inovação na
63
Em 1937, Pedro Afonso foi elevada à categoria de cidade (IBGE, 1958, p. 331).
64
Necessário ressaltar que a atividade da navegação em Pedro Afonso não era feita somente pelo rio
Tocantins. O rio Sono sempre foi muito utilizado, principalmente no intercâmbio com a Bahia,
proporcionando, segundo alguns, um comércio até mais favorável: “Comercialmente falando, o rio
do Sono põe-nos em contato com a Bahia, numa extensão de 540 km [...] as mercadorias da Bahia
chegavam nesta vila com uma redução de 50% sobre as importadas das praças de Belém e São
Luiz [...]. Com as lutas de 1914, essas transações foram cortadas e, desde então, nunca mais
ninguém até hoje, cuidou de reencetá-las” (INFORMAÇÃO GOYANA, ano XVII, v. XVIII, n.
0
3,
1933).
175
navegação gerou mudanças no cotidiano do ribeirinho em geral e do pedro-afonsino
176
graças a Deus nós passamos em paz [...] e lá adiante torna a pegar a carga do
motor”.
Em alguns aspectos a mudança do tipo de embarcação não afetou muito o
cotidiano no porto. Segundo alguns depoentes, mesmo as viagens nos motores
sendo bem mais rápidas que as de botes, a expectativa no porto era maior na
chegada: “a gente corria pra ver o motor chegar, porque chegava mercadoria, gente
nova [...]” (PINTO, 2006). Ferreira (2006) completa: “Na época dos motores a gente
tinha muita alegria, quando chegava a hora marcada, a gente corria pra lá, a gente
ia fazer aquela espera lá, havia aquele apito, isso desapareceu [...]”. O Sr. Benedito
Lima (2006) explica que com os motores, diferentemente dos botes, “[...] subiam na
enchente porque as cachoeiras acabavam, quando o rio baixava, se estivesse
embaixo, ficava embaixo”. Essa mudança foi paulatinamente pondo fim à época dos
botes e sentida por todas as populações ribeirinhas. De Pedro Afonso até Carolina a
navegação era franca, isto é, não havia cachoeiras que impedissem seu curso
durante todo o ano. Dessa forma houve um aumento das trocas, que contribuiu para
o aceleramento do comércio da cidade e o funcionamento da navegação a motor.
Na opinião de Valverde e Dias (1967, p. 267), ela melhorou a situação caótica na
qual se encontrava a cidade: “[...] a organização da navegação a motor no Tocantins
a partir de 1930, devolveu-lhe em parte, a função de entreposto comercial”, [e] “as
charqueadas de Pedro Afonso ganhavam nova vida, tendo como principal mercado
a capital paraense”.
Para melhor compreender em que consiste um motor, segue a descrição de
Júlio Paternostro. A fotografia n.
0
2 mostra esse tipo de barco, em tamanho maior, na
década de 1950:
Na madrugada do dia 1º de junho prosseguimos no motor “Almirante”.
Chamam “motor” às faluas que possuem motor de explosão de 20 a 60 HP
e acionados com gasolina ou Diesel. Assenta-se o motor no meio da chata,
cujas dimensões variam em torno de 8 m de comprimento por 4 de largura
e 1,50m de calado. O leme na popa é uma comprida fixa numa
forquilha, dirigido pela mão firme do piloto que permanece atento durante
toda a travessia. Perto do leme, no tripé, um caldeirão de ferro se aquece
com carvão é a cozinha. O porão toma dois terços da falua; no seu cavo
se acumulam castanhas, sacas de sal, couros, utensílios e, por cima das
cargas mais variadas, descansam ou dormem tripulantes e passageiros. O
porão é a única parte coberta pela tolda; nesta, viajam ao sol ou ao relento
os passageiros que não se acostumam ao cheiro de petróleo e
mercadorias, exalados naquele. Na proa destaca-se o “bolinete”, um rolo
de madeira com manivela, onde um cabo de aço de 200m espera os
momentos de serventia na transposição das corredeiras. Em “motores”
luxuosos um camarim onde se acomodam quatro passageiros. A
tripulação compõe-se de um piloto, com salário mensal de 500$000, do
177
motorista com salário de 450$000, de 6 marinheiros e 1 cozinheiro que
recebem 2$000 por dia. Subindo o rio de Alcobaça a Marabá gasta-se
quase 1 litro e meio de gasolina por quilômetro. Como atualmente é
praticada, a navegação nas corredeiras depende das qualidades do piloto.
Quase sempre é um mestiço nascido na região, conhecedor prático de sua
arte, que nunca esteve na escola, geralmente analfabeto. Tendo
consciência do seu valor, o piloto é o dono do motor”, quando ele se
movimenta. É quem marca a hora da saída e decide sobre o percurso do
dia. Transporta gratuitamente quem bem entende, um amigo ou a amásia.
É considerado em todas aquelas povoações, quer pelo seu salário elevado
numa área onde o trabalho é miseravelmente pago, quer pela audácia com
que conduz o seu barco. Representa o homem que dirige o meio de
transporte mecânico; o prestígio que possui é análogo ao do chofer ou do
aviador nos municípios do Sul (PATERNOSTRO, 1945, p. 97-98).
A substituição paulatina do antigo bote pelos barcos a motor trouxe mudanças
para além da estrutura da embarcação. Quando Paternostro afirma que, a partir do
momento em que o motor se movimenta, “o piloto é o dono do motor”, faz-nos
lembrar das dificuldades para colocar o bote a remos em movimento, pois nele, ao
contrário, quem determinava quando e em que velocidade seguir eram os remeiros.
Mesmo com essas transformações, o cotidiano da cidade não sofreu
mudanças bruscas. Pela leitura das cartas
65
de amor entre um casal de noivos, ela,
de Carolina, e ele, de Pedro Afonso, é possível perceber que o noivo João
Damasceno estava insatisfeito com a monotonia do lugar, deixando transparecer
decepção com a vida social na cidade:
Bem, como vai a sua Carolina, sempre animada? Nem queira saber quanto
Pedro Afonso está ruim. Carnaval aqui foi uma verdadeira decepção. A
cidade aqui muito desanimada, parece que dia a dia mais vai piorando [...]
Aqui tudo velho e parado. Não posso tolerar essa vida de rapaz aqui, estou
quase desacostumado do nosso velho Pedro Afonso (SÁ, J., 1946).
Tendo permanecido na cidade a fim de explorar o melhor local para a
abertura do campo de pouso
66
, Lysias Rodrigues (1978, p.100) não deixa detalhes
significativos sobre a povoação. Escreve apenas que, em conversas com os
moradores, “O professor contou-nos que Pedro Afonso fora uma grande cidade,
65
Tema de minha comunicação no XXIV Simpósio Nacional de História ANPUH 2007 de São
Leopoldo, RS, publicado nos Anais do encontro com o tulo: Cartas de amor: memória e cotidiano
em duas cidades ribeirinhas.
66
De acordo com Valverde e Dias (1967), após a Segunda Guerra Mundial, o comércio de carne
fresca de gado, agora por meio do transporte aéreo, causou novo impacto na cidade, pois ali foi
estabelecido um matadouro e essa carne era transportada em aviões para Belém. Dessa forma, o
gado de todos os municípios próximos convergia para Pedro Afonso, transformando-o em
entreposto do comércio aéreo. Do mesmo modo que ocorreu em Porto Nacional, a abertura de um
campo de aviação na cidade favoreceu sobremaneira o desenvolvimento de Pedro Afonso no
período.
178
muito comercial e que o planalto coberto de mato que víamos, fora outrora coberto
de casas e de população densa”. Faz um relato sobre a lenda do rio Sono
67
e
demonstra desgosto pela mudança do nome de Travessa dos Gentios pelo “nome
inexpressivo de Pedro Afonso”.
Na mesma época, ao passar pela cidade, Julio Paternostro deixou algumas
impressões sobre o lugar e dados estatísticos que mostram um lento crescimento da
cidade em 60 anos:
Em 1875 possuía o povoado 400 habitantes e, em 1935, 800. Estes
residiam em 145 habitações, das quais 83 eram palhoças, distribuídas em
meia zia de ruas planas e arenosas. No largo que se logo ao
desembarcar ergue-se uma igreja de tijolos, ainda por terminar. Não havia
vigário nessa ocasião, e as portas permanentemente abertas permitiam a
entrada de cabritos, galinhas e garotos, que em grande algazarra levavam
do adro um “boi” de brinquedo, e no auge do folguedo repicavam os sinos a
mais não parar. Aliás, os sinos daquelas igrejas anunciam tudo: a chegada
duma pessoa grada, a demissão duma autoridade, a transferência de um
radiotelegrafista e os enterros. Como noutras povoações da redondeza,
encontra-se, no meio da praça, um quadro de paus fincados, como se
fossem um “goal” de campo de futebol. Serve para dependurarem a
balança romana, onde se pesam os couros de boi (PATERNOSTRO, 1945,
p. 189-190).
Essas características marcam uma época em que prevaleceu na cidade e
região o uso dos motores no rio, mas já dividindo com os aviões a concorrência do
transporte. A construção da Belém-Brasília, como analisada nos capítulos anteriores,
não trouxe benefícios diretos para as cidades das margens do Tocantins. Os novos
povoados que nasceram ao longo da rodovia passaram a competir com as cidades
ribeirinhas que ficaram fora de seu traçado, mudando, assim, o eixo de importância
econômica dessas cidades para as novas cidades nascidas na beira da estrada.
Segundo Borges e Palacin, Pedro Afonso fica em situação ainda mais desfavorável:
A abertura [...] da Belém-Brasília significou para Pedro Afonso uma nova
decadência. Como todas as cidades da margem direita do Tocantins, ficava
outra vez à margem do progresso. Dentro desse contexto aqui esboçado, é
fácil perceber que Pedro Afonso não oferece nenhuma antiguidade, nem
um passado historicamente denso, que tenha ficado plasmado em seus
monumentos (BORGES; PALACIN, s.d., s.p.).
Mesmo que o passado de Pedro Afonso não tenha ficado plasmado nos
monumentos, pois na cidade, nos dias atuais, há uma febre pelo novo e pelo
moderno, esse passado pode ser encontrado tanto em fragmentos escritos, nas
67
Ver Anexo D a lenda na íntegra.
179
ruínas dos casarões da cidade, como nas memórias dos pedro-afonsinos. Foi,
portanto, por acreditar que existe um passado, mesmo que o seja “historicamente
denso”, é que saí à procura de vestígios históricos da cidade, pois continuo
perseguindo aquele pensamento de Guimarães Rosa: onde, aparentemente, parece
não estar acontecendo nada, pode estar ocorrendo um milagre (ROSA, 1975).
A abertura da rodovia incentivou o transporte terrestre em detrimento do difícil
transporte fluvial. Pedro Afonso, diferente de Porto Nacional, não foi ligada por ponte
à rodovia até os dias atuais, necessitando de uma balsa para ter acesso à mesma;
apenas em 2006 teve início a construção de uma ponte sobre o rio Tocantins. O
impacto da rodovia Belém-Brasília na região desestabilizou a economia do município
no que se refere principalmente ao comércio de carne: “A abertura da Belém-Brasília
trouxe, como uma de suas conseqüências a formação de uma nova rota de gado; e
Pedro Afonso, não tendo acesso à rodovia, atravessa nova crise, talvez mais
profunda que a que passou com a crise da borracha” (VALVERDE; DIAS, 1967, p.
267).
As entrevistas com os moradores de Pedro Afonso evidenciam que, embora a
estrada tenha passado a quase cinqüenta quilômetros de distância da cidade, e do
outro lado do rio, a população se dividiu ao falar sobre a sua abertura. Para o Sr.
Luis Gonzaga Filho (2006), “[...] uma parte do povo achou que era bom, outra achou
ruim, né, porque passou longe daqui, pra [...] o transporte do rio acabou, porque
sai de Belém de manhã, quando é de noite aqui, e no motor é quinze, vinte dias
pra chegar aqui”. Dentre aqueles que vêem com satisfação a chegada da rodovia,
está, por exemplo, o Sr. Pedro Alves Sobrinho (2006), antigo estafeta do correio de
Pedro Afonso: “[...] isso foi um presente que nós recebemos”. Por outro lado a
Sra. Bertolina Villarim (2006) afirma que no início não trouxe grande mudança até a
instalação de uma balsa e a abertura de uma estrada que fizesse a ligação da
cidade com a rodovia, mesmo tendo ainda o rio como obstáculo: “As pessoas
atravessavam de barco e os carros ficavam do outro lado do rio, somente depois de
cinco anos é que veio ter a balsa pra ligar a cidade à estrada”. para o Sr. Telmo
Lima (2006), Pedro Afonso ficou nesse período em situação lastimável: “O comércio
de Pedro Afonso já foi muito bom, veio acabar essa navegação depois que a Belém-
Brasília passou [...] Pedro Afonso quase acaba aqui, ficou 40, 50 casas
desocupadas, nem de graça ninguém queria pra morar”.
180
Outro depoimento que ajuda a compreender o impacto da construção da
Belém-Brasília sobre Pedro Afonso é o de José Edgar Andrade (2006). Segundo ele,
houve um fluxo não da população beira-rio Tocantins para as cidades nascentes
beira-rodovia, como também a supressão de órgãos federais, ou seja, o seu
deslocamento de Pedro Afonso para as novas e promissoras cidades à margem da
Belém-Brasília: “Por exemplo, Pedro Afonso tinha a Receita Federal (RF), tinha o
Departamento Nacional de Endemias Rurais (DENERU), tinha o Batalhão da Polícia
Militar (BPM) [...] ficou quem não tinha como mudar, então era uma cidade pobre,
paupérrima”.
É preciso ressaltar que Tupirama, cidade situada em frente a Pedro Afonso,
mas na margem esquerda do rio Tocantins, também ficou quase abandonada,
porque a população foi em massa para a nascente Guaraí, na beira da rodovia.
Segundo Odina Andrade (2006), “Tupirama morreu totalmente, virou fazenda, o
pessoal mudou, todos! As casas caíram [...] tem ruas lá em Guaraí que são todas de
famílias que foram daqui”.
Segundo o recenseamento de 1950, o município de Pedro Afonso
apresentava os seguintes números:
Havia em Pedro Afonso 6.995 habitantes, sendo 3.529 homens e 3.466
mulheres. Estavam assim distribuídos: na zona urbana 698 homens e 797
mulheres; no quadro suburbano 93 homens e 95 mulheres; na zona rural
2.738 homens e 2.574 mulheres, sendo que 70% da população se
localizavam na zona rural. A densidade demográfica era de 1 habitante por
quilômetro quadrado (IBGE, 1958, p. 333).
A situação da cidade prevalece desfavorável até a década de 1980, quando
da criação do Estado do Tocantins e conseqüente construção da nova capital na
margem direita do rio Tocantins. Esta medida vai beneficiar todas as cidades
situadas do mesmo lado do rio (na margem direita), pela imediata construção de
uma ponte ligando a capital à rodovia. Mesmo estando Pedro Afonso situada a uma
distância de 173 km da capital, sua condição atual é, sem dúvida, muito melhor que
a anterior
68
.
68
A ligação mais freqüente se faz atravessando o rio Tocantins, tendo o viajante duas opções:
atravessar a ponte na saída de Palmas e ir pela Belém-Brasília até Paraíso e depois sair da rodovia
e atravessar novamente o rio, por uma balsa, na chegada da cidade. A outra opção é ir pela
margem direita até Lajeado, atravessar o rio, ir até Miranorte margem da rodovia), deixar a
rodovia, fazendo, a partir daí, o mesmo percurso da rota anterior.
181
2.2.3 A convivência com os rios: da libertação dos jegues aos dias atuais
É verdade, meu senhor/Essa estória do sertão
Padre Vieira falou/Que o jumento é nosso irmão.
Luiz Gonzaga e José Clementino
Por meio de entrevistas é possível perceber como era a convivência do
pedro-afonsino com os dois rios que margeiam a cidade e as mudanças ocorridas ao
longo do tempo. Do mesmo modo que nas outras cidades ribeirinhas, essa
convivência foi marcada por rupturas ocorridas principalmente por causa das
transformações materiais, com a chegada do “progresso” na região: motores, aviões,
rodovias, balsas, água encanada, etc. Alguns depoimentos orais podem ilustrar
melhor os reflexos dessas mudanças no cotidiano da população. Para José E.
Andrade (2006), “o que prendia os ribeirinhos à beira do rio era a atividade
econômica”; o advento da rodovia é que vai afastá-lo dessa convivência, pois,
“quando [as mercadorias] passaram a ser transportadas por caminhões, então a
pessoa do marinheiro, como era chamado, o porco d’água, ele deixou de existir”.
Apesar de a atividade econômica ser um ponto importante na convivência do
pedro-afonsino com o rio, outras atividades também marcavam de forma bastante
forte essa íntima relação. Antes de ter água encanada nas residências, tanto o rio
Sono como o Tocantins eram freqüentados diariamente para banhos, lavagem de
roupas e para buscar a água para consumo doméstico. Do mesmo modo que nas
outras cidades ribeirinhas da região, em Pedro Afonso também havia os locais
separados para os banhos diários. Conforme depoimento do antigo estafeta
69
do
correio, Sr. Pedro Alves (2006), ele se “banhava no rio todos os dias” e como nas
outras cidades da região, em Pedro Afonso também “tinha o poço das mulheres e o
dos homens”. Segundo a Sra. Odina Andrade (2006), “algumas mulheres mais
velhas, ainda tomavam banho nuas”, mas era comum utilizarem apenas calcinha ou
uma roupa apropriada, uma espécie de maiô: “era uma roupa de flanela, cheio de
botões, fechado [...] mas a maioria das pessoas tomava banho de combinação, um
camisolão de alça”.
69
Estafeta: pessoa encarregada de transportar as m7.959.20.24Lrrato deotro-.1282971(ã)4.8565u(ã)4.85656(n)4.859665(e)-7.9607((r)-13.688.)-0.2472077(e)7.95757Om eioem7.959.20.2nhga a(o)-7.95757(a)4.85966g dtrr rifaafatotosé elees e as
182
Em A terceira margem do rio, Guimarães Rosa mostra a simplicidade e
rusticidade do ribeirinho e como homem e rio estão interligados. Nessa perspectiva –
de unicidade, complementaridade e identidade - está a relação do pedro-afonsino
com os dois rios que margeiam a cidade, o Sono e o Tocantins, antes das
transformações que influenciaram e mudaram o seu cotidiano
70
.
Mas é importante
ressaltar que nem todo morador beira-rio tinha o mesmo grau de intimidade com ele.
Há, por exemplo, o caso da Sra. Dionéa (2006) bem diferente das outras
mulheres que mesmo morando à beira do Tocantins por toda a vida, afirma ter tido
pouca convivência com o rio, tanto na época em que viveu em Carolina quanto em
Pedro Afonso: “Eu tomava banho era em casa, tinha cisterna”, e em Pedro Afonso,
“o povo tomava banho no rio diariamente porque não tinha água em casa”, mas para
ela o marido instalou um chuveiro para que não precisasse ir ao rio todos os dias.
Segundo Othon Maranhão (1978, p. 10), embora Pedro Afonso esteja
localizada em um “terreno plano, sólido, próprio para uma grande cidade”, e
banhada pelo rio Tocantins a oeste, pelo Sono ao norte e por um ribeirão ao sul,
nunca se conseguiu uma cisterna na cidade, pois as escavações, em certa
profundidade, encontravam densa camada de areia e a perfuração não conseguia”.
Dessa forma, a saída foi a utilização do jumento, animal bíblico que desde a
Antigüidade foi muito utilizado para transporte de cargas e passageiros, e que
esteve prestes a desaparecer do Brasil. Padre Antonio Batista Vieira foi um de seus
defensores, chegando a escrever um livro intitulado O jumento, nosso irmão (1964),
que, traduzido para o inglês, foi publicado em New York, com o título The Donkey,
our Brother. Inspirados em Vieira, Luis Gonzaga e José Clementino (1968)
compuseram uma música em homenagem a esses animais, a qual expressa de
modo exemplar o cotidiano da convivência das populações interioranas com os
jumentos:
Até pr'anunciar a hora/Seu relincho tem valor
Sertanejo fica alerta/O dandão nunca falhou.
Levanta com hora e vamos/O jumento já rinchou
Bom, bom, bom.
70
As alterações ocorridas na relação do ribeirinho com o rio, a partir principalmente da segunda
metade do século XX, devido a mudanças concretas em seu cotidiano, trouxeram mudanças
significativas para sua identidade, que não é estática, ao contrário, como afirma Agier (2001), uma
identidade “[...] múltipla, inacabada, instável sempre experimentada mais como uma busca que
como um fato”. A diminuição e conseqüente desaparecimento do transporte feito pelos botes, via rio
Tocantins para Belém (PA), a existência de uma balsa para atravessar o rio e chegar à rodovia, o
abastecimento das casas por água encanada, são algumas dessas mudanças.
183
Fotografia n.° 13 – Festa da libertação dos jegues – Pedro Afonso (1968).
Fonte: Acervo particular Odina M. Sá de Andrade.
Fotografia n.° 14 – Panfleto do evento.
Fonte: Acervo particular Odina M. Sá de Andrade.
184
A libertação dos jegues
71
, ou seja, o abastecimento das casas com água
encanada, deixando os jegues ou jumentos livres do serviço de cargueiros, no árduo
transporte da água dos rios para as casas, foi um fato especialmente importante
para a população de Pedro Afonso, no final da década de 1960; tal acontecimento,
ao mesmo tempo em que facilitou a vida do pedro-afonsino, afastou-o da
convivência cotidiana com o rio. Esse ritual diário, ou seja, o abastecimento de água toedo lic 3319(o)13.48(.80892(çã)27.42421()13.4472(n)-7.2938(n)-3.21279(f)-3.4472(r)-[(7)0.24035d)13.4472( )-30.5098(o)2.80892(i)-1.4n2.80892( )-83.7026(p)13.4459(i)-1.-4T254arer-10.6383(ã)-3.063(a)2.80762(c)
185
cidades ribeirinhas. Segundo Cordeiro, o Brigadeiro Lysias Rodrigues ficava
nervoso, não sem razão, devido à ocupação do campo de pouso pelos jegues. De
certa feita, o piloto tinha urgência em aterrissar na cidade do Peixe, porque a
gasolina estava no fim, mas os jegues não saíam do campo. Após conseguir descer,
o brigadeiro ordem ao comandante do destacamento para fuzilar uma tropa de
jumentos que ali se encontrava. O fato não se efetivou por interferência do major
Bena, morador local, que lhe pediu que não os executasse, alegando a sua
importância para a população: “Não faça isso não, brigadeiro Lysias, porque estes
jumentos pertencem à pobreza. E é com eles que se busca água e lenha [...] sobem
a ladeira e trazem no lombo a água do Tocantins [...]” (CORDEIRO, 2003, p. 4). A
solução foi cercar os aeroportos de Peixe, Pedro Afonso e das demais cidades do
norte onde havia campos de pouso.
Odina Andrade (2003) faz um rico relato sobre a presença dos jegues na rua
mais importante de cidade, a Rua 15 de Novembro. Segundo ela, havia proprietários
de tropas e empregados, que marcaram época e fizeram história: Senhores Pedro
Gago, Zuza, Luís Caifás, Felipe, Major Solino (apelido, não patente militar), dentre
muitos outros. Ela recorda com saudades da época em que essa rua era palco do
desfilar dos jegues com suas pesadas cargas, no contínuo transporte diário
[...] de tropas inteiras dos inesquecíveis jumentos que por tantas e tantas
décadas serviram o povo de nossa cidade com o abastecimento de água
[...]. Desfilavam ladeira acima, em silêncio, passos firmes, fizesse chuva ou
sol, enchente ou vazante, com chão escorregadio ou arenoso, muitas
vezes açoitado por uma chibata e um grito de seu comandante. A cada
descida eram novas cargas d’água que se enchiam, em latas de 18 litros
ou ancoretas de madeira,em forma de pipa (ANDRADE, 2003, s.p.).
Em seu relato fica evidente que a constante presença dos jegues e seus
guias na cidade fazia parte da rotina dos moradores, que haviam incorporado de tal
forma sua presença que lhes parecia um despertador natural ao alvorecer, como se
os animais possuíssem um programa tecnológico ligado para tal. O burburinho era
como uma agradável sinfonia aos ouvidos, do qual, segundo ela, os moradores
antigos sentem saudades. Finalizando, Andrade (2003) afirma que aquela geração
aprendeu com os jegues “[...] o valor do trabalho, a importância da humildade, a
obediência, o saber economizar água e acima de tudo, conviver com pessoas e
animais, respeitando cada um, como seres criados por um mesmo Deus”.
Esse depoimento em tom saudosista mostra-nos certa mitificação do passado
de Pedro Afonso por seus moradores mais antigos. Fica evidente que a
186
modernização do sistema de abastecimento de água mudou os hábitos cotidianos
dos moradores, mas é preciso questionar que, na prática, a população, de modo
geral, aprovou e usufruiu de tal modernização, que veio facilitar o desempenho de
suas atividades diárias. O que é preciso ressaltar é que a mudança na rotina do
pedro-afonsino, em um determinado contexto, afetou, de algum modo, sua
identidade. Michel Agier (2001) nos ajuda a compreender a questão, quando fala da
constituição da antropologia das identidades. Segundo ele,
Os processos identitários não existem fora de contexto, são sempre
relativos a algo específico que está em jogo [...] o que está em jogo é
sempre passível de ser detectado na pesquisa empírica contextualizada,
aprofundando caso por caso o conhecimento de tudo o que cerca a
questão identitária, constituindo então a parte mais relativa da identidade,
aquela que se nota quando as identidades são consideradas como
processos localizados, datados, mas que desaparece quando se fala das
identidades como produtos já dados (AGIER, 2001, p. 9).
O abastecimento das casas por água encanada, trouxe, sem dúvida,
mudanças no cotidiano da população. No ano de 1968, em pleno Regime Militar
72
no
Brasil, falava-se e praticava-se um ato de liberdade em algum lugar do país: a
libertação dos jegues da cidade de Pedro Afonso. O termo libertação reveste-se de
uma conotação mais significativa devido à data do evento, 13 de maio, dia e mês da
Lei Áurea no Brasil. Na ocasião (1968), houve uma cerimônia sui generis, com a
participação do Governador do Estado Otávio Lage de Siqueira, banda de música do
Rio de Janeiro e, o mais importante, a presença dos jegues em traje de gala. A
fotografia n.
0
13 mostra detalhes da festa; os jegues enfileirados recebendo uma
ração especial e as fêmeas receberam um arranjo decorativo em suas cabeças; e a
fotografia de n.
0
14 mostra o simbólico panfleto confeccionado para divulgar o
evento. Fica evidente no episódio o seu lado lúdico; embora os organizadores
72
Os acontecimentos aqui analisados fazem parte do contexto mais geral da História do Brasil,
referente ao período de 1960-1970. Período de desenvolvimento extensivo do capitalismo que
acentuou as transformações econômicas e sociais na Amazônia. Destacaram-se, nessa época, as
seguintes ações desenvolvimentistas para a região, dentre outras: a inauguração da rodovia Belém-
Brasília (1960); a criação da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e a
reformulação do Banco de Crédito da Amazônia S.A (BASA) (1966); e a criação do Programa de
Pólos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia (POLAMAZÔNICA) (1974). Favorecidas por tais
ações, instalaram-se grandes empresas agropecuárias na região. Segundo Octavio Ianni (1986, p.
55), m70934.689(p)-7.957577091( )277.999]TJ.14179(o)4.85966(ri)4.10865(ã)-7.7.617(dTJ.1417( )-247.508(d)425 Td(u)-7.95757(e)-7.9575(d)4.85966(o)-20.7744(o)4.85966(f)-3.97878(d)425 Td(u)-7.95757(r)-0.247207(í)-35.638(l)4.10865( )-227.617(dTJ.14248(i)16.9259o1( )277.999]TJ.142(u)-7.919(7(a)-7.95757(n)4.85966( )-221.873(d)J.1427(e)-7.95757(n)-7.95753(d)J.142(n)4.85966(a)-20.7746(e)4.85966(x)0.12829(r)-0.247207(o)4.85966(pu)-7.95757(t)8.836883(d)J.142a12 0 Td[3 )-62.426(d))425 T96(r)-13.064ol)4.10865( )-2259665(o)-7.95755(i)4.10865(d)-7.95759(a)4.85966(s)12.94553(d)J.142(s)-12.6889(,)8.83844(a)-7.95757(v)0.12829(a)-7.95757(v)0.12829( )-221.873(d)425 T96(e)4.85966( )-247.506(1)J.1427(c)0.128297(a)-7.95757(p)-7.95757()-7.9607(s)0.1128297(ã)4.85966(o)-7.95757( )-3.9803( )-119.335(c)J.142(no)4.85966(t)-3.98038(e)4.85653(i)-8.7117(e)-7.96078(i)4.10552(ls)0.125168(i)4.10552( )-196.239(a)425 T96( )277.999]TJ-228 -10.8 d[3 atdovadponocsna4 0 Td6[(u)2.80762(o)-7.95757( )-3.98035(d)4.85653(i)4.10865(t)-3.980307(i)4.10865(n)-7.95757(i)4.14865(a)-7.9575(a)-7.95757(d)4.85966( )-119.335(c)4.85653(i)4.10865ude
187
tivessem consciência do alcance histórico do acontecimento, souberam aproveitá-lo
como algo especial e divertido em uma época de grandes tensões.
Para passar uma idéia mais precisa do que foi essa cerimônia, utilizo
novamente o rico relato de Odina Andrade, moradora que participou da festa:
Às 08:00 horas da manhã missa solene, Igreja de o Pedro, Matriz, lotada.
A animação musical ficara por conta da Banda de Música da Escola Naval
do Rio de Janeiro, trazida por uma aeronave da FAB - (Força Aérea
Brasileira), aqui chegando de surpresa. Logo após a missa, Sr. Ademar,
[Ademar Amorim, o prefeito da cidade na época] comunica a todos, a
chegada da banda e convida a população para recepcioná-la no aeroporto.
Por competência e arrojo tudo fizera em segredo. Ao descer do avião, a
Banda já entoava a famosa música A Banda”, de Chico Buarque de
Holanda, conhecida e cantada por todos. Cobertura jornalística feita pela
Rádio Brasil Central de Goiânia e empresas de filmagem também de
Goiânia. Um luxo para tão simples cidade, porém um direito e muita honra
para seu nobre povo. Presente, o Governador do Estado de Goiás, Dr.
Otávio Lage de Siqueira, braço forte, em apoio total para a realização do
inesquecível evento. Durante o dia, uma seqüência de solenidades tomou
conta da cidade como: Desfile cívico com a presença de todas as escolas,
Tiro de Guerra, Expedicionários da Guerra Mundial, Reservistas e
também a banda de música. A grande expectativa: o desfile dos jegues!
Todos enfileirados, como de costume ao desempenhar seu trabalho.
Trajados a rigor! As fêmeas usando chapéu de palha enfeitado com flores e
fitas, echarp no pescoço e laço no rabo. Os machos, chapéu simples
também de palha. Cada animal usava ainda no pescoço seu cabresto. Após
este momento lhes fora servido um coquetel, com fina organização, a cargo
do sr. João Damasceno de Sá. Cardápio: milho debulhado com ração
verde, servido em bandejas de papelão. Concluído este momento, realizou-
se solenemente, o ATO de LIBERTAÇÃO, pronunciado oficialmente pelas
autoridades presentes tirando-lhes um a um o “cabresto”, corda que os
prendia pelo pescoço e que durante século lhes impediram a liberdade.
Livres, alforriados, soltos para a festa e dispensados da obrigação de
transportar a água, das chibatadas de seus donos e principalmente das
traquinices da meninada, que os faziam sofrer quando estes estavam de
folga pelas ruas a pastar. Na praça da rodoviária, instalou-se o chafariz
inaugural, de onde jorrou água ao som de fogos, música, palmas, muita,
muita alegria mesmo e banho público em todas as pessoas presentes.
Chuva artificial à vontade! Ao meio dia fora servido um churrasco para toda
a população! Organização invejável e muita fartura. Vinte e uma reses
abatidas preparadas com sabor de companheirismo, realização,
solidariedade, compromisso, sensação de dever cumprido. Acompanhavam
o churrasco, o prato indígena, o “birarubu”, e o nosso tradicional “chambaril”,
muito usado pelos mais velhos nesta região. (Diga-se de passagem, usado
até hoje). À noite, grande baile no salão da União Artística Operária de
Pedro Afonso, tocado pela famosa e inesquecível “banda do Rio de
Janeiro”, como todos se referiam. Festa que amanhecera o dia e aqui os
músicos ainda permaneceram por mais três grandes dias e tocando
(ANDRADE, 2003, s/p).
De que forma esse episódio pode ter afetado a identidade do pedro-afonsino?
Como visto no tópico anterior, a presença dos jegues, conduzidos por seus
respectivos guias, nas ruas e no porto da cidade fazia parte do cotidiano dos
moradores. No mesmo porto onde se buscava a água para consumo doméstico, os
188
moradores tomavam banho, lavavam roupas e louças; utilizavam-no, enfim, para
todas as atividades de higiene. Os que possuíam melhor condição financeira
compravam a água transportada pelos jegues, sendo que os mais pobres faziam,
eles mesmos, o transporte da água do rio para suas casas, como, por exemplo, a
antiga lavadeira centenária, Sra. Bertolina Villarim (2006): “Eu lavava roupa no rio,
lavava pra fora [...] eu nunca paguei água, parei de carregar depois que puxou
essa água [referindo-se a água encanada]. A modernidade foi chegando, nem fui
mais no rio”. Gonzaga Filho (2006) oferece uma boa explicação para a forma usual
de carregar a água, quando por homens e não por jegues. Segundo ele, quem não
tinha os jumentos ou não podia pagar tal serviço, “Apanhava duas latas, arrancava o
tampo da boca, botava um pau atravessado nas bocas delas, amarrava uma corda e
enfiava um talo de buriti, fazia uma travessa ali, botava no ombro, ia lá no rio, enchia
e pra trás”.
A modernização decorrente do abastecimento por água encanada trouxe
consigo elementos capazes de alterar o cotidiano da população. Essa mudança
afetou tanto a vida material do ribeirinho como seu status social. Com o acesso ao
novo serviço, a relação do ribeirinho com o rio tornou-se mais fluida, menos
constante e menos direta. Em vez de ir até o rio para suprir suas necessidades, aos
moradores, agora, bastava abrir uma torneira, que a água jorrava dentro de casa.
Lavar roupas, louças e tomar banho passam de atividades socialmente
compartilhadas e públicas a atividade individual e privada. Desse modo, os contatos
entre os moradores se tornaram menos freqüentes; o porto deixa de ser local de
tantas atividades de trabalho; lugar de encontros para bate-papos e até mesmo para
decisão de questões judiciais, como visto em capítulo anterior; e lugar de fofocas,
rixas, brigas ou novas amizades e namoros.
É necessário lembrar ainda de outro aspecto da vida do ribeirinho: a saúde
pública, também afetada diretamente, pois a água encanada, passando por um
processo de tratamento, não era mais a mesma, tirada diretamente do rio, o que
implicava melhoria na saúde dos moradores.
A libertação dos jegues, portanto, mesmo não tendo ocorrido de forma
brusca
73
, foi uma ruptura importante no cotidiano do pedro-afonsino; alterou seu dia-
a-dia, por dispensar as idas e vindas constantes ao rio e por tirar das ruas os
73
De acordo com os entrevistados, a primeira água encanada para servir a população não era de boa
qualidade, era salobra, corrosiva, não tinha um gosto bom, mas, se deixada de um dia para o outro,
o gosto ruim passava. Portanto os jegues não foram dispensados de uma só vez, pois muitos
moradores não se acostumaram com essa água e continuaram a se servirem com a água do rio.
189
animais e seus condutores, que marcavam um ritmo e burburinho peculiares,
interferindo, assim, na relação do ribeirinho com os dois rios que margeiam a cidade.
Pelas entrevistas realizadas com os moradores de Pedro Afonso, foi possível
constatar significativas mudanças na sua convivência com o rio nos últimos anos,
mudanças que se refletiram em sua identidade. O rio era o centro da vida da cidade;
era uma dádiva, a solução, o caminho. Hoje o contato do pedro-afonsino com ele é
bem mais limitado: o transporte é feito por caminhões, que atravessam o rio por
meio de uma balsa nesse sentido, o rio tornou-se um empecilho; os banhos são
freqüentes apenas no verão (período da estiagem), não mais como meio de
higienização, mas como programa recreativo; a água chega encanada até as casas,
sem necessidade de descer e subir o barranco e sem utilizar o trabalho dos jegues.
A partir do final da década de 1980, modificações importantes vêm ocorrendo
em Pedro Afonso. Com a criação do Estado do Tocantins (1988) e a construção da
nova capital, Palmas (1990), pode-se verificar que, após longo período de
estagnação, Pedro Afonso conheceu um novo surto desenvolvimentista. Esse
desenvolvimento está relacionado também com a implantação de projetos agrícolas
direcionados ao município e, atualmente, com a construção da ponte sobre o rio
Tocantins, que vai ligá-la à rodovia Belém-Brasília, após quase meio século da
estrada pronta.
Ao visitante que chega a Pedro Afonso
74
,
é visível o contraste entre o arcaico
e o moderno. Ainda hoje, para chegar até ela é preciso atravessar o rio Tocantins
em balsa. A cidade é pequena, mas assim que acabam as casas começam os
imensos campos de plantio de soja. Para dar suporte a todo esse desenvolvimento,
boa infra-estrutura, como, por exemplo, a Cooperativa Agrícola de Pedro Afonso
(COAPA), um projeto de incentivo à agricultura, o Programa de Desenvolvimento do
Cerrado (PRODECER III)
75
, além de imensos armazéns e secadores de grãos. O
Programa está voltado para grandes lavouras de soja, que atendem 40 agricultores.
A sua implantação tem contribuído para que o município se destaque como produtor
74
Segundo dados do IBGE, em 2005 o município de Pedro Afonso possuía 9.019 habitantes, em uma
área de 2.011 quilômetros quadrados.
75
O Programa de Desenvolvimento do Cerrado (PRODECER) é um programa de cooperação Nipo-
Brasiliera, implantado pela Agência Japonesa para Cooperação Internacional (JICA), que financia a
compra de terras, equipamentos, insumos e construções para incrementar a produção agrícola e o
assentamento de colonos. Segundo Barbosa (1999, p. 119), “A primeira fase do Prodecer, que
incentiva a produção de empresas rurais, foi desenvolvida em Irai, no Estado de Minas Gerais; a
segunda, em várias áreas de Minas, de Goiás, da Bahia, de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul; e
a terceira, iniciada em julho de 1996, está em andamento nos municípios de Pedro Afonso, no
Tocantins e em Balsas, no Maranhão”.
190
de grãos na região. Os produtores esperam que em breve o custo do transporte seja
reduzido em até 50%, com o funcionamento da hidrovia Araguaia-Tocantins.
Com essa febre pelo novo e moderno, é lamentável que alguns prédios e
locais antigos só sejam visíveis, hoje, por fotografias, pois não existem mais. A
importância dada ao novo pode ser observada, por exemplo, na ausência do antigo
mercado municipal, na derrubada de imensas mangueiras e do quiosque situado no
porto. Alguns moradores de Pedro Afonso tentam, por meio de panfletos e artigos
em jornais, conscientizar a população sobre a necessidade de preservar o
patrimônio. Gylwander Peres
76
, por exemplo, deixou registrada sua indignação com
a situação em que se encontravam os prédios mais antigos, por ocasião da
comemoração dos 158 anos da cidade:
É muito triste caminhar pelas ruas Barão do Rio Branco e Anhanguera, as
mais antigas da cidade, e verificar que os velhos casarões do início do
século passado estão em ruínas ou sendo derrubados para dar lugar a
novas construções. O velho centro histórico do município perde suas
características a cada dia. [...] Falar em identidade cultural de nossa cidade
é dizer das múltiplas culturas que formam a história local e participam de
sua construção em cada momento do passado, da atualidade e do futuro.
[...] Uma cidade sem identidade é um povo sem rosto (PERES, 2006).
Encontra-se, no Anexo E, texto do mesmo autor intitulado Os Velhos
Casarões de Pedro Afonso, lamentando a situação de descaso para com o seu
patrimônio histórico e defendendo a sua preservação.
Ponto histórico da cidade, a Lagoa da Cruz
que até lenda sobre ela existe
(Anexo F) também não pode mais ser vista. O único traço visível da antiga
Travessa dos Gentios é uma lápide dentro da Igreja de São Pedro, com os seguintes
dizeres: “Aqui jazem os restos mortais do Pe. Frei Rafael, missionário [capuchinho]”.
Por outro lado, convivendo com o moderno, encontra-se a gente tradicional de Pedro
Afonso, simpática e hospitaleira, desejosa de contar seu passado ao visitante
curioso.
Da mesma forma que foi visto no capítulo sobre Porto Nacional, aqui também
é possível perceber que, em momentos de ameaça aos elementos constitutivos da
identidade, há certa tomada de consciência por parte de alguns moradores no
sentido de preservar um patrimônio em vias de desaparecer. Falo especificamente
da procissão fluvial em comemoração ao dia do santo padroeiro da cidade, São
76
Gylwander Peres é natural de Pedro Afonso, especialista em Administração Pública pela Fundação
Getúlio Vargas.
191
Pedro. Os pedro-afonsinos estão em polvorosa, pois, no momento atual, está sendo
construída uma ponte sobre o rio Tocantins e eles pressentem que este poderá ser o
último ano que acontecerá a procissão nos moldes tradicionais. Com a inauguração
da ponte, existe a ameaça de que a balsa que os fiéis utilizam para tal fim não
permaneça mais naquele porto. Segundo a moradora Odina Andrade, “já tem um
grupo se mobilizando p/ não deixar morrer a tradição”. Pode-se dizer que essa
tradição em Pedro Afonso é, segundo o pensamento de Hobsbawn (1984),
tipicamente uma tradição inventada, pois se iniciou “Há aproximadamente 10 anos,
quando surgiu a idéia da sua realização, fortalecendo as honras a São Pedro,
Apóstolo das águas, pescador tanto de peixes quanto de almas” (ANDRADE, 2006).
Segundo Ulpiano Menezes (1996, p. 149), “A cidade é artefato, campo de
forças e imagem”. As transformações ocorridas em Pedro Afonso e vivenciadas
pelos moradores ajudam a compreender suas especificidades e peculiaridades
nesse processo de construção, reconstrução e reelaboração identitária. Se a história
local não é um espelho fiel da história da nação, representa, mesmo assim, reflexo
de muitos traços que a história dessa nação às vezes esconde (IANNI, 1988, p. 15).
Todos os aspectos aqui analisados ajudam a mostrar que a cidade torna-se lugar de
cultura, memória e identidades, numa complexidade de sentidos e significados
vividos e representados.
192
Fotografia n.° 15 – Casa em ruína – Pedro Afonso.
Fonte: Maria de Fátima (2006).
Fotografia n.° 16 – Balsa e turistas no porto do Rio Tocantins – Pedro Afonso.
Fonte: Maria de Fátima (2006).
193
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A questão central do estudo foi tentar compreender o processo de
construção, reconstrução e fragmentação identitária da população ribeirinha do
Tocantins, em um contexto histórico específico: no século XVI o rio Tocantins
funcionou esporadicamente como caminho para o interior, na conquista e ocupação
do território. Mais tarde, como solução para o “isolamento” do sertão, funcionou
como saída do interior para o litoral. Atualmente sua importância se liga mais a
questões voltadas para o turismo, para o fornecimento de energia (pela construção
de hidrelétricas) e, futuramente, espera-se que volte a funcionar como meio de
transporte pelas hidrovias (já está sendo construída a primeira eclusa). Nesse
processo, os ribeirinhos tocantinenses foram adquirindo traços identitários bem
particulares, marcados por características regionais e culturais, resultantes do
contexto da região, das atividades desempenhadas por eles e dos contatos com
diferentes grupos étnicos e novos imigrantes.
O trabalho evidenciou que, na relação com os múltiplos sujeitos, o ribeirinho
assimilou muitos hábitos, em especial dos indígenas, na lida com o rio, na caça e
pesca, na navegação, no plantio de roças, etc. A documentação mostrou que a vida
dos moradores beira-rio era bastante dinâmica, repleta de experiências e de
conhecimentos peculiares. O elemento que mais contribuiu para essa dinamicidade
foi a atividade da navegação, predominante nesse meio, pois ela mantinha os
ribeirinhos em constante relação com outros moradores das margens do rio,
chegando até Belém. Mesmo o ribeirinho que não participava diretamente das
viagens, também estava ligado de alguma forma ao ir-e-vir dos botes.
De acordo com o conceito de identidade proposto por Stuart Hall, foi possível
perceber que uma identidade foi sedimentando-se nas margens do rio Tocantins
fluida, inacabada, em constante construção pois ela está intimamente ligada à
fronteira; a necessidade do outro, para haver o contraste da diferença. Esse
contraste torna-se mais visível quando o morador beira-rio é comparado, por
exemplo, com o morador beira-estrada, pois o que o diferencia desse outro são
elementos significativos de sua cultura, como a sua relação particular com o rio; a
atividade econômica pelo comércio, tanto com Belém quanto com as outras cidades
ribeirinhas ou interioranas; sua mentalidade marcada pela simbologia sobre os seres
194
estranhos que povoavam o rio, etc. Essas características, portanto, contribuíram
para um modo próprio de ser, fazer, pensar e reinventar, e são nesses traços que se
pôde perceber sua identidade.
Aspecto também importante da tese foi ter mostrado que as rupturas no
cotidiano dos moradores interferiram em suas relações de trabalho e afastaram-nos
do rio. Verificou-se que nos dias atuais a realidade do ribeirinho é bastante diferente,
e sua convivência com o rio se faz mais em função do turismo. Esse processo (de
rupturas) não foi linear, nem adquiriu contornos rígidos, ao contrário, à medida que
transformações diversas ocorriam na região, os ribeirinhos buscavam outros meios
para se readaptarem ao novo contexto que lhes era apresentado.
A pesquisa possibilitou constatar também que o processo de modernização
na região substituição dos barcos a remo pelos barcos a motor, advento dos
aviões (antes mesmo do automóvel), abertura da rodovia Belém-Brasília, construção
de pontes da barragem do Lajeado influenciou de modo marcante na
construção/reconstrução dessa identidade e fez com que mudanças passassem a
ocorrer com mais rapidez: aumento populacional com a imigração, crescimento das
cidades, desenvolvimento dos transportes e da produção agrícola, etc.,
acontecendo, de certa forma, o que tanto Pierre Nora como Jacques Le Goff
denominaram de aceleração do tempo e da história.
Como argumentei inicialmente, é em momento de crise que o sentimento de
identidade se torna mais forte e perceptível, como exemplificado pelo surgimento de
um movimento em prol da preservação do patrimônio histórico em Porto Nacional,
juntamente com o discurso dos moradores mais antigos, alertando para o fato de
que o rio se acabou. A ameaça, portanto, fez emergir uma consciência identitária .
Como foi analisado, a região norte, mesmo pertencente ao espaço nacional,
na realidade era uma região periférica, uma fronteira à espera do momento propício
à sua ocupação efetiva, com a expansão capitalista. Nesse sentido é que se pôde
compreender a função dos discursos sobre as inúmeras riquezas inexploradas do rio
Tocantins, que tinham como finalidade prática convencer o poder central da
importância de investimentos que possibilitassem integrar essa região central ao
país e conquistar essa fronteira. Desse modo, a região fez parte, por muito tempo,
de um mito que aparecia no discurso da nação, mas que continuou como reserva,
como fronteira que serviria para garantir a construção da identidade brasileira. Daí a
percepção de fronteira como um lugar de encontros e desencontros de culturas e
195
sentimentos no tempo e no espaço, marcada pelas relações entre seus
componentes, em uma estrutura dinâmica que se transforma continuamente.
A leitura da documentação evidenciou ainda que as relações de trabalho
eram permeadas de conflitos, como, por exemplo, no que se refere à contratação de
remeiros: são comuns os relatos de reclamações de patrões donos dos botes
quanto à irresponsabilidade dos remadores nos compromissos firmados e na
ocorrência de desobediência dos acordos, o que prejudicava a partida dos botes. Da
parte dos remeiros, a maior reclamação era quanto ao trabalho duro e perigoso,
contrastando com a baixa remuneração; podia acontecer de um remeiro retornar da
viagem de Porto a Belém tendo gasto todo seu pagamento, ou mesmo de não
receber em dia os seus direitos.
Conclui-se que duas palavras aparentemente contraditórias porto e sertão
se complementam e representam ligação entre litoral e sertão. O estudo sobre as
duas cidades evidenciou que elas apresentam semelhanças entre si, por serem
cidades ribeirinhas, mas também diferenças, devido ao processo histórico próprio de
cada uma. O estudo revelou suas peculiaridades nessa aparente homogeneidade.
Quanto às semelhanças, ressaltou-se que as duas: a) pertencem à mesma região, o
antigo norte de Goiás e estão à margem direita do rio Tocantins; b) mantiveram
décadas de atividade comercial com Belém, por meio de viagens de botes e depois
de barcos a motor; c) contaram com a presença de missionários estrangeiros em
seu território; d) foram escolhidas para sediar campos de aviação na década de
1930; e) e ficaram fora do traçado da rodovia Belém-Brasília na década de 1960.
Quanto às diferenças, elas se tornaram visíveis em alguns aspectos. Um
primeiro ponto a destacar refere-se à sua origem. Enquanto Porto Nacional surgiu
quase que por uma necessidade natural, como ponto de passagem e intercâmbio
entre dois núcleos mineratórios importantes do século XVIII, Pedro Afonso surgiu por
determinação oficial, por meio de uma resolução imperial, como aldeamento
indígena, em meados do século XIX.
A pesquisa revelou ainda que mesmo estando ambas localizadas na antiga
região norte de Goiás e à beira do rio Tocantins, a situação de Pedro Afonso, mais
ao norte, fez com que o contato dos pedro-afonsinos fosse bem mais intenso com os
estados nordestinos (tanto pelo rio Sono quanto por terra), principalmente com a
cidade de Carolina, no Maranhão, pois a distância era menor e o havia obstáculos
consideráveis nesse percurso do rio Tocantins. Por outro lado, a navegação entre
196
Pedro Afonso e Porto Nacional era dificultada por várias e perigosas cachoeiras. A
proximidade e maior ligação com o nordeste também explicam uma característica
marcante em Pedro Afonso, como foi visto em capítulo especial, onde tudo se
transportava em lombo de jegues, o que fez popularizar a profissão de jegueiro,
enquanto em Porto Nacional a água do rio era transportada muito mais na cabeça.
O aspecto educacional foi outro ponto analisado que reforçou a diferença
entre as duas cidades. A presença de um religioso capuchinho italiano em Pedro
Afonso, desde sua fundação (1847), não teve a mesma repercussão que a atuação
dos religiosos dominicanos franceses em Porto Nacional, pois o objetivo do primeiro,
em Pedro Afonso, foi a catequese dos povos indígenas. em Porto Nacional,
embora essa presença tenha ocorrido mais tarde (1886), os religiosos que se
estabeleceram direcionaram seu trabalho principalmente para a população “branca”.
Como resultado, tornou-se um atrativo de migração para a cidade, devido à fama
que a sua atuação adquiriu em toda a região.
Além desses, outros elementos foram ainda ressaltados como diferenciadores
entre os dois povoados: a presença de um médico e político influente, e a fundação
de periódicos na cidade de Porto Nacional (ainda no século XIX), elementos que
funcionaram como demarcadores de diferença, pois era rara, naquela época, na
região, tanto a atuação de médicos quanto a existência de tipografias. Esses traços
contribuíram para o fortalecimento do imaginário capital cultural para Porto Nacional.
Outra constatação da pesquisa refere-se à convivência com o rio, pois
verificou-se que, enquanto os moradores de Pedro Afonso ainda dependem de uma
balsa para chegar à rodovia Belém-Brasília, Porto Nacional, ao contrário, conseguiu
com maior rapidez acesso direto à rodovia, com a construção de uma ponte sobre o
rio Tocantins, no final da década de 1970. Na atualidade, em Pedro Afonso, apesar
de ainda não haver acesso direto à rodovia, o turismo continua animado em suas
praias naturais, especialmente no mês de julho, enquanto que em Porto Nacional a
praia artificial construída após a construção da hidrelétrica não conseguiu substituir a
natural satisfatoriamente. Por outro lado, enquanto Porto Nacional apresenta-se com
número maior de prédios e em melhor estado de conservação, em Pedro Afonso
considerável parte dos casarões está em estado lastimável, como mostrou o anexo
E.
Aspecto também destacado na pesquisa foi o contraste dos discursos sobre a
pacificidade de Porto Nacional, contrapondo-se ao discurso de violência de Pedro
197
Afonso e outras cidades circunvizinhas. Diante de tantos relatos, documentos oficiais
e livros sobre acontecimentos violentos que envolveram tais cidades, impossível não
levá-los em consideração. Como mostrado no decorrer do estudo, somente sobre
Pedro Afonso o três as obras que descrevem os conflitos sangrentos ocorridos na
cidade, sendo destaques de episódios violentos também Tocantinópolis (antiga Boa
Vista), Dianópolis (antigo São José do Duro), Peixe e Conceição do Araguaia, todas
na mesma região. Constatou-se, assim, que a posição privilegiada de Porto
Nacional, de fato ou por meio das representações, criou um diferencial, contrapondo-
se à violência das outras cidades, ou seja, uma identidade carregada de elementos
positivos; do culto à idéia de pacificidade juntamente com a de capital cultural. O
estudo comparativo das duas cidades evidenciou que, embora ambas apresentem
aspectos bem diferentes em seu processo histórico, possuem características
peculiares de cidades ribeirinhas tocantinenses.
Para finalizar, posso afirmar que o estudo sobre o rio Tocantins e suas
cidades permitiu compreender o processo de construção e reconstrução de uma
identidade nas fronteiras. A construção dessa identidade pôde ser percebida no
cotidiano dos ribeirinhos, em seu modo de ser e fazer. Por outro lado, as rupturas
devido às transformações ocorridas na região exigiram que o ribeirinho mudasse
alguns de seus hábitos para se adaptar à nova situação, daí a necessidade de
entender identidade como construção, nunca como algo fixo, imutável e acabado.
Para responder à questão da identidade ribeirinha, portanto, foi necessário
“mergulhar” no cotidiano, no imaginário, na alma do ribeirinho, ou seja, na terceira
margem do rio, enigmática, mas rica em experiências.
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Brasil. Rio de Janeiro: (1917-1935).
CORREIO OFICIAL (1864-1888).
O POPULAR. Goiânia: Organização Jaime Câmara. Diversos números. Década de
1950-2000.
DIÁRIO DO OESTE. Goiânia: Goiânia: Décadas de 1950-1960.
JORNAL DE NOTÍCIA. Goiânia: Décadas de 1950-1960.
INSTITUTO Histórico e geográfico de Goiás (IHGG). Goiânia-Go.
INSTITUTO de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central (IPEH-BC).
Goiânia-Go
Arquivos particulares
LEIS Municipais do Município de Porto Nacional (1902/1908)
FOLHA DO NORTE (do n.º 1 ao 51, de 1891/1894)
O INCENTIVO (do n.º 1 ao 22, de 1901/1902)
NORTE DE GOYAZ (do n.º 1 ao 121, de 1905/1910)
ECOS DO TOCANTINS de 1951 a 1961. Diretor: Trajano Coelho Neto. Pium - TO.
SÁ, Dionéa Aquino Maranhão. Correspondências. Pedro Afonso. (Década de 1940).
SÁ, João Damasceno. Correspondências. Pedro Afonso (Década de 1940).
DIÁRIO. Manuscritos das Irmãs Dominicanas de Porto Nacional (cópias em francês
e português).
MEMÓRIA Dominicana (Cadernos de uma Coleção publicada em Juiz de Fora pelos
dominicanos): Frei Gil Vilanova e suas excursões em busca de índios, Frei Estevão
Gallais, D. Domingos Carrerot e Cartas do Brasil - Frei Estevão Gallais.
213
ENTREVISTAS
Relação das Pessoas entrevistadas em 2006
ALVES SOBRINHO, Pedro nasceu em 1924 em Pedro Afonso, antigo estafeta do
correio.
ANDRADE, José E. de C. nasceu em 1943, agropecuarista em Pedro Afonso, ex-
prefeito da cidade.
ANDRADE, Odina M. de nasceu em 1949 em Pedro Afonso, professora e ex-
primeira-dama na cidade.
ARAÚJO, Rosalino F. de nasceu em Goiatins (TO) em 1936, mudou-se para o
município de Pedro Afonso em 1967. Profissão: produtor de vazante Pedro Afonso.
BACON, Shirley Ann – de nacionalidade americana, irmã da igreja Batista, nasceu em 1929.
Chegou em Pedro Afonso em 1957, onde permaneceu até 1959, e retornou para esta
cidade em 1999, onde mora atualmente.
BACON, Glen Irwin – de nacionalidade americana, nascido em 1932, pastor da Igreja
Batista em Pedro Afonso, chegou à cidade em 1957, onde permaneceu até 1959, e retornou
para esta cidade em 1999, onde mora atualmente.
CAVALCANTE, João Aires natural da Bahia, nasceu em 1925, órfão, foi levado
para Pedro Afonso aos 12 anos, onde praticou diversos tipos de trabalho como
pescador e ajudante de barcos.
COSTA, Joaquim I. da nasceu no Maranhão em 1928, e em 1951 mudou-se para
Pedro Afonso. Trabalhou como piloto de barco a motor e pescador.
FERREIRA, Damásio Alves nasceu em 1930, natural de Pedro Afonso. Profissão:
antigo ajudante de “motor”, hoje farmacêutico prático na cidade.
FURTADO, João B. D. nasceu em 1914, natural de Porto Nacional. O pai veio da
Bahia. Profissão: construtor naval. Ensinou a profissão aos filhos que constroem
barcos até os dias atuais em Porto Nacional.
FURTADO, Romualda F. natural de Porto Nacional, nasceu nas margens do rio
Tocantins (junto à Cachoeira Carreira Comprida). Os pais vieram do Maranhão.
Artesã, reside atualmente na cidade de Porto Nacional.
GONZAGA FILHO, Luis natural do Maranhão, nasceu em 1920, morador de Pedro
Afonso desde 1946. Profissão: construtor naval.
LIMA, Aldenora F. natural de Pedro Afonso, nasceu em 1929, onde reside
atualmente.
LIMA, Benedito de S. nasceu em 1919, chegou a Pedro Afonso em 1939, onde
reside atualmente.
214
LIMA, Manoel F. ex-seminarista, nasceu em 1916, viveu por muitos anos em Porto
Nacional, onde exerceu a profissão de professor. Reside atualmente em Goiânia.
LIMA, Telmo S. R. nasceu em 1922, morador de Pedro Afonso, pai do atual
prefeito da cidade.
LOSEIRO, Joversina nasceu em 1932 no Maranhão, moradora de Pedro Afonso,
profissão: lavadeira.
MACHADO, Erotides C. nasceu em 1920 em Pedro Afonso, morador na cidade
atualmente.
MACEDO, Jamil Pereira de natural de Porto Nacional, atualmente é PrJ.40511(u)2.8v2 61Td( )Tj13.089(A)-3.21279(C)9.29.4459(a)-7.82808(i)-1.40511(o)2.80762(r)3.21279(t.21279(C)9.o9.4459(a)- Td[(p)2.8082711.28 -.23384(9(t.T)-r)3n)2540511(a)2.80762(,)-1.4b772 Tf1 u49(e)2.80892(.)1.40279(e)2.80892(n)2.808892( )1.40381(ci)-1.43772 Tf1 0 (n)2.808J762(n)2.80485( )-9.2s2938(e)2.80892(s )-15ç0381(d)-7.822( )1.40381(ci)-1.43772 Tf1 0 2( )1.403G38(d)2.80892(e(C)9..1494(P)-3.â49(e)2.80892(.))Tj472( )-4-7.459(r)-7.4511(e)13.4459(s)-9(A)-3.21279(C)11.24(M)3.21449(E)-3.21279(D)-1.40381(O)1.40381(,)-9.23449( )-41.1494(Ja)13.4472(m)-7.425275.1.8092(o)2.80892(e)-7.820511(a)2.80762 e
215
VASCONCELOS, Sofia M. nasceu em 1916 em Carolina (Ma), hoje é moradora de
Miracema do Tocantins.
VILLARIM, Bertolina F. nasceu em 1905 no Maranhão, moradora de Pedro Afonso
desde 1943.
WANDERLEI, Adelaide C. nasceu no Maranhão em 1925, moradora de Pedro
Afonso desde 1952.
Entrevista realizada em 1999
VIEIRA, Eurides Entrevista realizada em 1999 para o projeto de Iniciação Cientifica
“Vozes do Tocantins”, na UCG, com a participação das bolsistas Laudicena Caixeta
e Liliam Branquinho. A entrevista me foi cedida para uso nesta pesquisa pela
Professora Dra. Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante.
Relação das pessoas entrevistadas em 1996
GUEDES, Rita natural de Porto Nacional, ex-aluna do colégio dominicano e viúva
do barqueiro e músico Mestre André Guedes.
SILVA, Pedro Pereira da artesão, natural de Porto Nacional.
216
ANEXOS
Anexo A
Descrição de um bote
“O Bote cristal é uma tosca embarcação de alguns metros de comprido, por 4
a 5 de largo, calando pouco menos. Compõe-se o bote de duas casas, sendo uma à
popa e outra à proa, esta maior que aquela, separadas por um pequeno espaço de
pouco mais de metro, forrado com tábua, chamado tombadilho.
À proa, o bote tem um outro espaço forrado, chamado forro de proa. As duas
casas são ordinariamente cobertas à palha, servindo tal cobertura durante o espaço
de um ano. A casa ou compartimento da frente, tendo um encaibramento muito
resistente, depois do que recebe ripas curvas e longas, servindo-se de madeira,
taboca e caranã, que por sua vez recebem a palha. Sobre a palha deitam ainda
ripas de caranã, paxibas, e amarram-nas a cipó. Esse conjunto às casas
resistência especial, de modo a poder receber muito peso em cima das casas e
dentro,. a poder-se armar redes sem o menor prejuízo. O compartimento de frente,
chamado proa ou paiol, é maior, quase o dobro, da casa de trás, a popa, e é que
se acumulam ou são conduzidas todas as mercadorias grosseiras, como sal,
ferragens, gêneros chamados de estiva, bem assim todo o reduzido serventuário da
população, tanto mais crescidas em número quanto maiores, os botes. A outra casa,
a popa recebe os gêneros mais nobres, como fazendas, etc., bem assim os objetos
mais nobres de alimentação: café, bolos e objetos de uso diário do patrão, piloto,
popeiros e passageiros.
A proa ou paiol, quando de descida, recebe todo o carregamento que vai
servir de objeto de permuta a dinheiro, gêneros de exportação, que darão margem à
permuta monetária, que por sua vez vai servir de valor aquisitivo em Belém. Assim,
pois, Belém nada recebe do que o bote conduz ao descer, pois que tudo é vendido
ao correr da viagem, nos diferentes pontos ou povoados existentes à beira do rio.
O paiol fica por tal forma entulhado que mal cabe os pequenosãc2.80892(r)-2.80762(o)2.800892(7r)3.21019(g)2.81021(e)2..4485(,)-9.235o
217
Constituindo assim, todo esse conjunto marcha à força propulsora exclusiva
do braço do homem, quer de descida quer de subida, e para tanto ora se servem da
e do remo, ora da vara, do gancho e da forquilha. Enquanto os remeiros dão
impulso e marcha no bote, o piloto, com o pesado leme, dá-lhe direção e afasta a
tosca embarcação dos escolhos que se encontram disseminados ao longo do rio em
percursos conhecidos. [...] É graças a esse sistema primitivo e das primeiras épocas
de uma civilização em começo que se faz a jornada na tosca embarcação chamada
bote”.
Fonte: SILVA, Francisco Ayres da. Caminhos de Outrora - Diário de Viagens.
Goiânia: Oriente, 1972, p.17 a 35.
218
Anexo B
Descrição de um Batelão, de uma balsa, e da rotina de trabalho dos
remeiros do rio Tocantins
1. O batelão
“Antigamente, quando não existiam os ‘gaiolas’ e os ‘motores’, os batelões
percorriam durante meses toda a extensão do rio. Agora, limitam-se a ligar
distâncias de cem, duzentos quilômetros, em viagens de oito, quinze dias.
O batelão do Tocantins lembra, em certos aspectos a ‘plancha’ do rio
Paraguai e, em outros, o batelão dos rios do sul.
A proa é ponteaguda e a popa larga, reta. O leme, preso numa forquilha, sai
da extremidade da popa, sem perfurar o barco como acontece na ‘plancha’ do rio
Paraguai. Um tripé sustentando um pequeno tacho de ferro constitui o fogão que se
acha na frente do leme.
A parte média do batelão é coberta por um toldo fechado como a tampa
cilíndrica de um baú, feito de talas e ramagens de palmeiras; assemelha-se ao toldo
de esteira empregado nos carros de boi de Mato Grosso. Em cima dessa coberta
dependuram vários objetos, inclusive a ‘carne de sol’ que se come durante a viagem.
Sob ela, vão as mercadorias, que na minha viagem foram substituídas por uma caixa
de material, permitindo espaço suficiente para me abrigar nas horas de sol ardente.
Debaixo do toldo, três homens podem se deitar ao comprido, sobrando altura de
meio metro até a arcada das ramagens.
De cada lado do batelão, da proa até quase a popa, uma tábua de 40 cm de
largura, chamada ‘plancha’ serve para varejar; corresponde ao ‘pisa pé’ do barco do
rio Paraguai.
O batelão é munido de varas ou croques de 4 a 5 metros, alguns ferrados, e
que se utilizam para atracações em árvores, pedras e barrancos.
Entre o tôldo e a proa vêem-se nos bordos dois ou três pares de forquilhas
onde se alceiam os remos de faia para ‘vogar’ (movimentar o barco a remadas).
Subindo o rio, os barqueiros procuram sempre as margens ou baixios do
meio, para alcançar o fundo com as varas e dizem que estas “chiam” quando
encontram firmeza. Varejam para que o barco ande mais ligeiro.
De torso nu, os remeiros vão e voltam nas ‘planchas’, jogando ritmicamente
as varas, o rax apoiado sobre elas, os músculos retesados desde os esternos-
cleidos-mastoídeos até às pantorrilhas, enquanto o barco avança contra a corrente.
De vez em quando alteram o varejar rítmico para um chiste ou uma marretada de
vara numa arraia mal percebida sob a água.
Na beira do rio, em Carolina, enquanto procurávamos um batelão que nos
conviesse, vimos remeiros com as mais diversas epidermes e estruturas físicas:
brancos, de pele afogueada com cabelos castanhos ou ruivos, negros grandalhões,
mestiços de negro e índio, e entre eles predominavam os cabras e mulatos.
Ora usam camisas, ora trazem o tórax nu. As calças de algodão, às vezes são
curtas. O chapéu de carnaúba, laçado ao pescoço, é da mesma cor da dos dentes
serrados em ponta, que estão constantemente à mostra na fisionomia acobreada e
angulosa dos remeiros. Seus bustos atléticos possuem a anatomia dos intercostais
vivamente desenhada.
No trabalho, cansam-se mais do que deveriam, com o físico que apresentam.
Fossem bem alimentados, possivelmente seriam gigantes. Ao cabo de três horas
param para descansar. Estão sempre alegres, cantando, falando, dizendo graçolas,
num linguajar que muitas vezes não podemos entender.
219
Nessa região, os remeiros intercalam a atividade no rio com as vaquejadas no
agreste e nos ‘gerais’. São campeiros e barqueiros ao mesmo tempo: ora correm
nos pingos, ora se movimentam nas viagens lentas dos batelões.
Trazem da campeiragem vocábulos que aplicam ao trabalho de barqueiro, e
vice-versa. Chamam constantemente boi’ a embarcação. E como boi para andar
direito, precisa ser xingado, ouvem-se o dia inteiro nomes dos mais inocentes aos de
mais baixo calão, dirigidos ao pobre barco. [...]. Atracado o barco, fazem um fogo
onde suspendem o caldeirão de ferro em que cozinham a ‘carne de sol’ com arroz,
prato que chamam de ‘Maria-izabel’. Usam uma beberagem, a ‘jacuba’, constituída
de rapadura, farinha de mandioca e água. Essa é a alimentação dos barqueiros e
peões.
cem anos, a saída ou a chegada de um batelão nos povoados era dia de
festa. Pipocavam foguetes, tangiam sinos, todo mundo corria para a beira do rio.
Hoje, toda a vila sabe quando chega um barco, mas não mais as demonstrações
efusivas do passado. Os barqueiros atuais, porém, continuam como seus
ascendentes na tarefa de ligar as aglomerações, ocupando função indispensável
para a vida daquela gente isolada nas margens de um rio que ainda não foi
aproveitado como eficiente aquavia.
Diariamente, na grande superfície de nosso país, os barqueiros dos rios que
correm para o norte como os choferes de caminhões das estradas do sul, em seu
trabalho de assalariados dos transportes estabelecem as comunicações das áreas
onde as estradas de ferro não penetraram, sujeitam-se aos obstáculos de caminhos,
que poderiam estar em melhores condições, alimentam-se mal, arriscam-se por
ínfimos salários e, nem suspeitam que são os heróis de nossa unidade”.
2. A balsa
“O outro tipo de embarcação é a balsa. se usa para descer o rio; tem o
aspecto de uma palhoça de terra firme. As toras de palmeiras, amarradas fortemente
com embira, constituem um quadrado que bóia em cima d´água. Nele, constroem
uma casa com porta e janelas; a cobertura é de capim de várzea.
No interior dessa cada errante cozinham, estendem a roupa lavada e dormem
em redes. Do lado de fora fazem um cercado onde encurralam uma vaca para se ter
leite em viagem e empilham a carga mais comum: couros de boi. Quando
transportam rezes, a embarcação afigura-se a um curral descendo o rio. Na parte
traseira, levantada numa forquilha de meio metro e meio, sai uma viga de conduru
que mergulha na água: é o leme.
Nas águas, quando a correnteza é grande, atinge a velocidade de 6 km
horários, viajando noite e dia. Seu dono é um sertanejo que nunca teve pressa.
Naquele mar grande, no coração de sua terra, deitado na rede, vai navegando e
tirando acordes da viola, sem incomodar-se com coisa alguma desse mundo...
Quase sempre, no fim da viagem, a balsa é abandonada, apodrecendo de
velha”.
Fonte: PATERNOSTRO, Julio. Viagem ao Tocantins. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1945.
220
Anexo C
Abertura de uma estrada no norte de Goiás sob o comando do frade
dominicano Domingos Carrerot em 1901, entre Porto Nacional e Conceição do
Araguaia
“A distância que separa Porto Nacional de Conceição é de 500 a 600 km
aproximadamente... Porto Nacional é dos nossos conventos o mais próximo de
Conceição. É que em caso de necessidade, nossos padres, que trabalham no
meio dos selvagens, vêm pedir socorro. Há, pois um interesse maior a que os dois
postos sejam religados um ao outro por um caminho tão direto e tão fácil quanto
possível. Ora, a zona habitada em torno de Porto Nacional é pouquíssimo extensa,
pelo menos daquele lado, uns quinze ou vinte km no máximo... Além disso é o
deserto; é a mata virgem; são as montanhas desconhecidas, sem nome em
geografia; são as vastas planícies, os imensos campos, de magníficas praias, tudo
isso coberto de uma vegetação luxuriante. Caminho porém, nada; salvo aqueles que
são traçados por certos animais selvagens.
Conceição só existe três anos, e pessoa alguma jamais sonhou ir de Porto
Nacional ao lugar em que foi construída; nada a fazer. Para ter uma estrada direta,
foi preciso fazer todo o percurso. O Homem corajoso, que não recuou diante de
semelhante empresa, foi frei Domingos Carrerot, e o que todo mundo em Porto
Nacional taxava de quimera irrealizável é hoje um fato real. Aliás, que ninguém
pense que se trata de uma estrada trafegável, construída com grandes reforços de
aterros e obras de arte. Corta-se, roça-se ramos e matos, derruba-se árvores se
necessário, de maneira a abrir uma passagem na qual um homem a cavalo possa
passar. Para saber seguramente a direção e indicar os viajantes a pista a seguir,
faz-se numeroso entalhes no tronco das árvores que margeiam o trilho.
Em teoria traçar um caminho deste gênero parece simples e fácil. Na prática
porém, é outra coisa. Partir de um ponto dado para ir finalizar a um outro ponto
situado a 500 km, sem outro meio para se dirigir senão o caminho do sol ou outros
dados mais ou menos vagos ou incertos, não é um pequeno problema. E depois ei-
vos na boa direção; de repente você se choca com uma montanha intransponível;
você alcança um pântano, um lamaçal onde cavalos e mulas afundam até a barriga,
de modo a ficar atolados de não os retiramos a força de braços; um rio lhe barra o
caminho; onde encontrar uma boa passagem? É preciso explorar o terreno em todos
os sentidos, às vezes voltar atrás, retomar de novo o trabalho que custara muita luta.
O frade, que traçou a modesta vereda conduzindo de Porto Nacional para
Conceição, o tem apenas um pequeno mérito diante de Deus e dos homens.
Vendo sua obra e ouvindo as explicações que ele me dava sobre a maneira em que
ele a havia executado, eu o comparava em meu espírito ao General Duschèsne,
que, para conduzir seu exército à conquista de Tananarive, lhe fazia construir
gradativamente (onde) ele devia passar. Sem vida, deve haver diferença entre a
estrada de Majunga a Tenanarive e a pobre picada que conduz de Porto Nacional à
Conceição. Mas também, o General Duschèsne tinha um exército à sua disposição
enquanto frei Carrerot, como um simples cabo, só tinha quatro homens para ajudá-lo
[...] Esta estrada, para a gente da região é uma maravilha, uma descoberta, um
serviço de primeira qualidade prestado à região.”
Fonte: GALLAIS, Estevão In: Coleção Memória Dominicana nº. 11 D. Frei Domingos
Carrerot Bispo de Porto Nacional, 1901.
221
Anexo D
Lenda do Rio do Sono
“Dizem os velhos moradores que:
muitos anos, no local onde é hoje Pedro Afonso, vivia uma família em
sua fazenda, única do lugar, muito feliz e contente, apesar da solidão, sob a chefia
do ‘pater familias’.
A neta do dono da fazenda, uma jovem de 16 anos, linda, virtuosa e
extremamente bondosa, era a querida de todos. Flor do Paraíso, assim se chamava
a moça, todos os dias, ao clarear, ia ao rio buscar a água necessária à vida da
fazenda, tomava seu banho, apanhava flores, e às vezes demorava-se pescando.
Certo dia, Flor do Paraíso não voltou; preocupados os parentes foram
procura-la, chamando-a aos gritos. Nada! Rebuscaram tudo. Não a encontraram.
Não podia ter se afogado, porque era eximia nadadora, e suas roupas não estavam
na margem do rio. Não havia sido devorada por uma sucuri ou jacaré, porque não
havia rastos na areia. Então, só podia ter sido roubada pelos índios! Foi um
desespero geral na família. Para que lado dirigir-se! Foi uma desolação. Na manhã
seguinte, com espanto e alegria enormes, de todos os da família, vêem vir descendo
o rio do Sono uma ubá, e dentro dela Flor do Paraíso. Correm todos ao porto para
esperá-la, ansiosos por saber o que acontecera. E ela contou então: Ontem de
manhã, como de costume, fui ao rio buscar água e colher flores, quando, de repente
saltou do mato um índio, não me dando tempo nem para gritar. Mais outros dois
índios o ajudaram a amarrar-me e por uma mordaça. Fui levada para uma ubá, que
logo foi dirigida pelo rio acima: os dois índios remaram todo o dia, e ao anoitecer
pararam em uma praia onde acamparam para fazer comida.
Ali me desamarraram e me ofereceram comida, mas eu só sabia chorar e
pedir a Deus que me livrasse desse suplício.
Mal acabava de orar com toda fé, vi uma nuvem de mosquitos descer sobre
os índios, que atordoados, pouco depois caíram em pesado sono. Pensei que fosse
um milagre. Corri, entrei na ubá, e remei o mais que pude, e, graças a Deus, aqui
estou.
Desde esse dia, o rio foi chamado Rio do Sono, e a localidade que ali se
fundou chamou-se também Rio do Sono.”
Fonte: RODRIGUES, Lysias. Roteiro do Tocantins. Goiânia: Lider, 1978, p. 100.
222
Anexo E
Os Velhos Casarões de Pedro Afonso
“Segundo a sua acepção clássica, o conceito de patrimônio refere-se ao
legado que herdamos do passado e que transmitimos a gerações futuras. No meu
entender, o patrimônio não é o legado que é herdado, mas o legado que, através
de uma seleção consciente, um grupo significativo da população deseja legar ao
futuro. Ou seja, existe uma escolha cultural subjacente à vontade de legar o
patrimônio cultural a gerações futuras.
Sempre que retorno à minha cidade natal, Pedro Afonso, percorro suas ruas
antigas em busca de sua história e de seu rico patrimônio.Nos últimos anos, tenho
verificado que parte da história de Pedro Afonso foi demolida e o que ainda resta
está em ruínas correndo o risco de desaparecer a qualquer momento. O pior é que
não existe providência para controlar essa tragédia, apenas meia dúzia de
moradores estão preocupados com esses acontecimentos.
Na minha ultima visita, percorri a Rua Barão do Rio Branco e suas ruelas
olhando aquelas janelas de casarões abandonados, abertos para o vazio,
emoldurando um passado que desmoronou. Os casarões de minha memória, em
sua maior parte não existem mais, pertencem a um mundo de memória que
permanece imutável somente nas velhas fotografias de meus avós.
O abandono do patrimônio histórico existente em Pedro Afonso é reflexo da
expansão descontrolada, em tempos que a valorização do novo, reflete a nossa
cultura sedenta pela manutenção de uma modernidade ignorante e retrógrada.
No desenvolvimento de Pedro Afonso, vão se perdendo peças
importantíssimas da sua memória urbana. Se não existirem mecanismos legais de
controle e direcionamento deste crescimento, nossa história estará fadada a
desaparecer.
É necessária uma reavaliação de valores de nossa parte, visto que a nossa
cidade cresce como reflexo da consciência e do senso de cidadania de nosso povo,
ou seja, mantendo-se a égide de efemeridade da falta de memória.
Cada povo é conduzido por sua história. A cidade madura é reflexo de
acontecimentos acumulados; de batalhas sofridas; de doenças e curas
empreendidas e de tempo de fartura e de miséria; exatamente como a história de
cada indivíduo. Negar, negligenciar ou camuflar a sua história é perder a própria
identidade, é se propor a viver sem valor, sem raízes.
A arquitetura contemporânea está tomando um novo rumo. O modernismo
impôs uma arquitetura de embate com a história, com a cidade pré-existente, com os
costumes arraigados da maneira de viver e projetar do século 19. Agora vemos que
o modernismo, octogenário, deixou herança de intolerância em toda a sociedade,
com sua sanha de demolir para crescer, inovar.
O patrimônio cultura de cada comunidade pode ser considerado sua célula
de identidade. Por isso, cada vez mais temos que transformar-se em agentes de
preservação de nossa própria identidade, garantindo assim o respeito a memória de
nossa cidade.
É doloroso, e por isso escrevo, ver a destruição da história de uma cidade
que por sua beleza e seu patrimônio merecia melhor sorte. Destruidores ou
espectadores, somos todos responsáveis e a perda de cada casarão, nos diminui,
nos faz menos gente, menos civilizados”.
Fonte: PERES, Gylwander. In: O Estado do Tocantins, julho de 2007.
223
Anexo F
Lenda da Lagoa da Cruz
“Conta-se que muitos anos, pelos idos de 1834, no povoado chamado
Corrente ou Travessia dos Gentios, hoje Pedro Afonso, no seio de uma família
tradicional, a filha mais velha engravidou, escondendo a gravidez até o final da
mesma. A moça deu a luz à beira do rio Tocantins, lançando a criança logo em
seguida, nas águas do rio, amaldiçoando-a com fortes palavras, desejando que esta
se transformasse em uma serpente para que sua gravidez jamais fosse descoberta.
Contavam os moradores da época que em dias festivos, naquele povoado,
aparecia um ser de forma inexplicável, transformado em um belo rapaz, porém
desconhecido e sempre durante a noite.
Num dos tais períodos, dois pescadores, retornando de sua pescaria,
observaram á beira do rio uma enorme serpente adormecida. Assustados ficaram a
olhá-la quando de repente viram o tal jovem des4892(,)1.40381
set.0.851.7864(p)2.80762(e)2.80762(l)irava7.42551(e)]TJ289.3l83rr qurel
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