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REGINA COELI MOURA DE MACEDO
CAMINHANDO POR ENTRE PRÁTICAS ESCOLARES
COTIDIANAS: CURRÍCULO E EMANCIPAÇÃO NAS SALAS DE AULA
RIO DE JANEIRO
2005
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Macedo, Regina Coeli Moura de
Caminhando por entre práticas escolares cotidianas:
Currículo e emanc
ipação nas salas de aula/ Regina Coeli Moura de
Macedo – Rio de Janeiro: UERJ, 2005. 196 p.
Inclui bibliografia
Dissertação de Mestrado –
Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Programa de Pós-
graduação em Educação da Faculdade de Educação,
2005.
I. Ed
ucação II. Currículo III. Cotidiano escolar IV. Dissertação de
Mestrado
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REGINA COELI MOURA DE MACEDO
CAMINHANDO POR ENTRE PRÁTICAS ESCOLARES
COTIDIANAS: CURRÍCULO E EMANCIPAÇÃO NAS SALAS DE AULA
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-graduação em
Educação da Faculdade de Educação da
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em
Educação.
Orientadora: Profª Drª Inês Barbosa de
Oliveira
RIO DE JANEIRO
Outubro/2005
REGINA COELI MOURA DE MACEDO
CAMINHANDO POR ENTRE PRÁTICAS ESCOLARES
COTIDIANAS: CURRÍCULO E EMANCIPAÇÃO NAS SALAS DE AULA
Agradecimentos
É com muito prazer que constato, neste momento, quão grande deverá vir a ser
este texto, tamanho é o número de pessoas com que pude contar para a realização deste
trabalho.
Antecipo, desde já, as desculpas que ficarei devendo a quem, porventura,
escape-me da memória.
Começo pela minha querida orientadora e amiga, Inês Barbosa de Oliveira, com
quem muito tenho aprendido e com quem sempre pude contar neste percurso. Seu
brilhantismo, sua busca constante de coerência, seu carinho e generosidade são
contagiantes! Nossos caminhos muito vêm se cruzando e, na realização deste
trabalho, sua atenção e disponibilidade para orientar-me foram fundamentais.
Além dela, pude contar com muitos outros, que, de alguma forma, estiveram
presentes, cada qual a seu modo, e a eles agradeço.
Às professoras Cristina, Lorena, Lourdinha, Patrícia, Rossana e Vanessa, que
participaram, generosamente, desta pesquisa e dissertação, oferecendo ao diálogo suas
práticas da sala de aula e suas histórias.
Aos alunos e às alunas, seus pais e suas mães e demais profissionais da escola
que, da mesma forma, fizeram parte deste trabalho. Sem eles, nada do que aqui
apresento teria sido possível.
Aos amigos, novos amigos, companheiros do grupo de pesquisa e do PROPED
(Programa de Pós-graduação em Educação) UERJ, pela partilha de reflexões, alegrias e
dificuldades desse período.
Aos antigos amigos e amigas, pelos constantes incentivos e demonstração de
confiança e solidariedade. Em especial, Lúcia, Adriane, Lourdinha, Sônia, Juliana,
Cristina, Denise, Marta, Valéria e Neila, pela atenção, carinho e socorro oferecidos nos
momentos em que precisei.
Aos meus filhos, Pedro, Maria Gabriela e Bárbara, pela compreensão que foram
capazes de ter nos vários momentos de ausência ou de distanciamentos necessários.
Também pelo carinho, atenção e entusiasmo que cada um, a seu modo, demonstrou
nesse tempo. Seria injusta se não destacasse o companheirismo da minha caçula,
Bárbara, com a sua presença constante, seus quitutes, seu auxílio técnico nos mistérios
da informática, enfim, seu cuidado especial com a mamãe.
Ao meu amor, Benjamim, sempre companheiro, disponível, incentivador e
confiante nesse percurso e em toda a minha vida.
A toda a minha família, pela compreensão nos momentos de ausência, pelo
incentivo e confiança sempre presentes. Em especial, meus pais, Francisco e Nilza, pelo
amor e zelo incomparáveis, e meus irmãos, sempre o participantes, mesmo quando
longe.
À minha querida irmã Stella, companheira nos caminhos dedicados à educação
pública das crianças, pela confiança e solidariedade.
Aos professores do PROPED, com quem tive a oportunidade de, no diálogo,
aprender.
A Deus, companhia e cuidado constantes em toda a minha vida.
À sociedade, representada pelas instituições públicas: UERJ, onde cursei
“gratuitamente” o mestrado, e Colégio Pedro II, especialmente a Unidade São Cristóvão
I, não por ter aberto as suas portas para a realização da pesquisa, como também por
ter me concedido os últimos três meses e meio de licença para estudo. Procurarei
retribuir na continuidade do caminho, que venho buscando seguir até aqui, de
compromisso com a educação pública de qualidade, com sucesso para todos, como
trilhas possíveis para uma sociedade mais justa, mais fraterna, mais feliz.
RESUMO
Este trabalho apresenta o percurso de uma pesquisa realizada no/do cotidiano de
algumas salas de aula das séries iniciais do ensino fundamental do Colégio Pedro II.
Narrando histórias acontecidas nesse espaço-tempo, caminho por entre rotas bastante
conhecidas, mas sempre cheias de “novidades”: as práticas das professoras, alunos e
alunas, pais e mães e outros sujeitos do cotidiano escolar. Em meio a essas práticas e
àquilo que os sujeitos contam sobre elas, vou tecendo redes de compreensão do que se
passa nas salas de aula. Parto da idéia de que a vida da escola está acontecendo no
cotidiano, que conhecimentos diversos estão sendo produzidos o tempo inteiro pelos
sujeitos, sempre de maneira articulada, em rede, e que, portanto, para conhecê-la
precisamos nela mergulhar. Esses modos singulares de fazer acontecer as salas de aula
que encontramos no cotidiano são complexos, pois há neles uma multiplicidade e
fluidez que torna seu entendimento um desafio. Exige maneiras próprias de pesquisar e
de contar que não podem pretender apreender, na sua totalidade, essas realidades
cotidianas, pois isso é uma impossibilidade. De modo articulado, tento evidenciar os
saberes e fazeres dos sujeitos que participam das redes tecidas nas e com as salas de
aula. Com eles e com a ajuda dos estudiosos do cotidiano e outros teóricos, busco
elaborar idéias que vão formulando possibilidades de compreensão do que ali se passa.
Penso que essa forma de conhecer e de narrar as escolas pode ajudar a criar, cada vez e
sempre mais, espaços parr-1(a)4( )801(a)4( )801(r)3(e)4(a)4(l)-2.00195(i)-2(z)-6(a)4(ç)4(ã)4(o )860(do )870(pr)3(uj)-2(e)4nto eu(c)4(a)4otio ema(c)4(i)-2(pa)]TJ345.6 0 Td[(t)-2(ór)3(i)-2(o )-70(que)4( )-70SPantos
ABSTRACT
This project presents the procedures of a research carried out during the routine of some
first and second grade classes at Pedro II Primary school. On telling stories that
happened in this period, I go through very well-known routes, and yet these routes are
always full of “news”: the practices of teachers, students, parents and other important
subjects of the school’s daily lives. Involved in these practices and in what the subjects
tell about them, I try to create understanding webs of what goes on in the classroom. I
start from the viewpoint that school life happens in its everyday routines, and that
diversified knowledge is being produced by the subjects all the time, always in an
articulate way, like a network. Therefore, to get to know that network better we have to
submerge in it. The singular ways in which classrooms operate can be quite complex,
because they carry a multiplicity and a fluidity that make their understanding a big
challenge. They require specific ways to research and to report, even though we know
that it’s impossible to grasp school life in its totality. In an articulate way. I try to
highlight the knowledge and the practices of the people who participate in the networks
created in and with the classes. With them, and with the help of school life theorists and
other scholars, I try to elaborate ideas which formulate possibilities of understanding
what goes on in the classroom. I think that way of knowing and narrating schools can
help create more and more room for the emancipated educational project proposed by
Santos (1996), a project that is already being carried out daily.
School life. Practiced curriculum. Emancipatory educational project.
Sumário
Introdução.........................................................................................
Capítulo I – Em meio aos cotidianos das salas de aula..................
I.1-As questões nossas de cada dia, como enfrentá-las?.....................
I.2 – Por onde andei, como e com quem caminhei..............................
I.3 – Afinal, que escola é essa?...........................................................
I.4 – E aí surgiram os “Pedrinhos”.....................................................
I.5 – A recuperação ou apoio..............................................................
I.6 – Recuperar o quê?........................................................................
I.7 – E como somos redes de subjetividades ricas e complexas.........
I.8 – E assim aconteceu a pesquisa.....................................................
Capítulo II – Histórias das salas de aula........................................
II.1 – Está certo professora?...............................................................
II.2 – Os tempos que tem o tempo das salas de aula..........................
II.3 – Percursos nos espaços-tempos da escola..................................
II.4 – A poética da vida nas salas de aula.......................................
II.5 – Movimentos e interpretações nas salas de aula.........................
II.6 – Diálogos nos silêncios das salas de aula...................................
II.7 – A presença dos saberes que vêm de fora...................................
Capítulo III – E a vida na escola vai acontecendo e nos
surpreendendo...................................................................................
Conclusão...........................................................................................
Referências Bibliográficas.................................................................
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194
“Algo (se) passa
entre
algo (se) passa
aqui
melancolicamente
algo (se) passa
agora
no alvorecer
no silêncio
algo (se) passa
no labirinto
adentro
algo (se) passa
distraidamente
como quem
nada quer”
(Larrosa, 2003)
11
Introdução
O “silêncio”, palavra recorrente entre os escritos de Larrosa é a idéia e a
sensação com que quero iniciar. Elas repercutem em mim de maneira bastante
significativa quando penso no que se passa nas salas de aula das escolas, espaço-tempo
de que me ocupo neste trabalho. É evidente que não estou falando do silêncio ausência
total de sons. Nesse, é praticamente impossível pensar quando falamos das salas de aula.
Digo o silêncio que faz ouvir. Melhor ainda, aquele que nos possibilita ouvir, conhecer,
encontrar, dialogar, aprender, ensinar. O silêncio a que me refiro é aquele que Larrosa
apresenta ao falar do texto que o professor lê na lição. Ele diz que
o professor lê o texto literalmente, e ao mesmo tempo com suas
próprias palavras, e simultaneamente atentando ao silêncio entre
as palavras, ao espaço em branco entre as letras, às margens das
páginas”. (idem, p. 141)
É desse silêncio que falo, o que representa um espaço existente entre os sujeitos
das salas de aula, todos os que participam dos sentidos que a elas é possível atribuir.
Aquilo que se pode ensinar e aprender, aprender e ensinar.
Existe um silêncio, um espaço entre os sujeitos, as coisas, os saberes, os
conhecimentos onde a interação e o diálogo vão acontecer.
Larrosa diz:
Elementos da lição, o texto, a voz do professor e esse silêncio que
é de todos e de ninguém, isso é da própria linguagem em sua
multiplicidade e em seu infinito, digamos, comum (idem, p.141).
Ele trata o silêncio como elemento da lição, como constituinte da lição que aqui
eu chamo de aula, tudo o que acontece na sala de aula.
O texto a que Larrosa diz serem os alunos convocados na lição
é o fluxo do que se vem dizendo, ou melhor, do que, dizendo-se,
vem. Sempre o mesmo, mas sempre cada vez...como sempre se
disse e como nunca se disse, numa repetição que é diferença e
numa diferença que é repetição (id. ib., p.141).
Se pensarmos numa idéia bastante divulgada sobre a sala de aula que,
particularmente, não me agrada aceitar, de que o que vivemos e podemos encontrar é
12
a repetição, teremos, com a ajuda de Larrosa, achado uma forma de dizer que ela é uma
repetição que é diferença e uma diferença que é repetição.
Quando um tempo atrás, apresentei como principal motivação para esta
pesquisa, uma pergunta lida em um livro
1
em que está pensando o nosso aluno
enquanto estamos ‘dando’ aula? estava próxima dessas idéias que repercutiram em
mim ao ler Larrosa: a do interstício, a do silêncio, a das possibilidades. Elas são
inquietantes no sentido de pensar no que se passa (Pais, 1993) nesses espaços especiais
da escola que são as salas de aula. Muitas vezes, pego-me notando e surpreendendo-me,
observando os inúmeros e variados processos que se dão, a pluralidade de sujeitos e
práticas que nele se fazem presentes.
“Em que está pensando o nosso aluno enquanto estamos dando aula?” nos
remete à idéia de que cada indivíduo constitui-se como uma rede de sujeitos (Santos,
1995) e, como tal, expressa e tece, nas suas ações cotidianas, os processos de formação
por que passou e passa em sua vida, seus valores, crenças, sentimentos e
conhecimentos.
Ela pode sugerir também a discussão entre duas idéias a respeito dos processos
de aprendizagem: a primeira, de que os alunos são receptores passivos de informações
ou conhecimentos que professores transmitem e a segunda que pressupõe que, durante
todo o tempo, os alunos estão elaborando os seus próprios pensamentos, sentimentos e
valores sobre o que está sendo ensinado, atribuindo significados ao que se passa na sala
de aula, mesmo que esses não sejam aqueles previstos e esperados pelos professores
(Certeau, 1994).
Ainda podemos pensar, a partir da pergunta, no quanto os acontecimentos das
salas de aula, aquilo que realizam, criam e produzem os alunos e professores, integram
redes de conhecimentos (Alves, 1999) tecidas, cotidianamente, por esses sujeitos, tanto
individual como coletivamente.
As idéias levantadas se entrecruzam e são uma grande oportunidade de voltar-
me para o que considero central neste trabalho: aquilo que efetivamente acontece nas
salas de aula com os seus sujeitos reais, concretos (Pais, 2003). Aquilo que pensam
esses sujeitos sobre ou enquanto se dão os processos cotidianos de ensinar e aprender.
Mais ainda do que aquilo que pensam, também o que sentem, considerando que, nem
sempre, pensamentos e sentimentos se manifestam claramente, mas certamente, tomam
1
Ronca, Paulo A. C. e Terzi. C. do A. A aula operatória e a construção do conhecimento. São Paulo:
Edsplan, 1995.
13
parte nos sentidos que professores e alunos atribuem ao vivido, ao ensinado e ao
aprendido nas salas de aula (Oliveira, 2003).
Eis um motivo para a importância que atribuí àquela pergunta: o fato de que
ela coloca em evidência a constituição de cada um como sujeito de conhecimento
(Alves,1998). Acredito que conhecendo esses sujeitos e os conhecimentos que
produzem e criam, estaremos nos aproximando de maiores possibilidades de
entendimento das realidades das salas de aula e desenvolvendo formas de nelas intervir,
no sentido de contribuir para a produção de práticas voltadas para a emancipação social.
Essa reflexão está inscrita no movimento de indagação, busca e pesquisa
(Freire, 1996), constituinte do meu ser professora em permanente
formação/transformação e seus desafios cotidianos e vai formalizando o que é esta
dissertação.
Junto a muitas outras cenas do cotidiano escolar que vivo como professora, as
histórias que fazem parte desta dissertação podem ser vistas/entendidas como não
importantes, podem passar despercebidas, incluídas numa invisibilidade (Pais, 1993) do
cotidiano e dos seus saberes/fazeres. No entanto, elas são, potencialmente, reveladoras
dos sujeitos enquanto sujeitos de conhecimento, produzindo sentidos sobre aquilo que
vivem, que experimentam no seu dia-a-dia. A pretensão desta pesquisa foi a de buscar
“descobrir”
2
e mostrar suas vozes, seus silêncios, múltiplas expressões de seus
sentimentos, gestos, movimentos, registros escritos e imagens que criam nas salas de
aula, sem a ilusão de apreensão das suas realidades em suas totalidades, mas
entendendo-os como caminhos para um processo interpretativo, colocando-me, como
pesquisadora, em diálogo com esses tantos sujeitos, com as teorias e comigo mesma.
Ressalto, então, que este trabalho pressupõe a sala de aula como um espaço-
tempo privilegiado para a leitura do texto que o professor , em que podemos ouvir a
sua voz e o silêncio entre as palavras. Elementos da lição de que fala Larrosa, o texto e
o espaço em branco entre as letras, as margens das páginas fazem com que a aula seja,
na linguagem em sua multiplicidade, um espaço-tempo de possibilidades, palavra que
representa, para mim, o melhor resumo dessa dissertação.
Resumir o todo de um texto em uma palavra, além de não ser possível nessa
situação em que me encontro, não é bem visto, nem facilmente aceitável como
“correto”. Afinal, qualquer conclusão, qualquer idéia final deve ser encarada sempre
2
Faço uso dessa palavra aqui com o sentido de “tirar cobertura, véu, tampa, ou qualquer outra coisa que
ocultava total ou parcialmente, deixando à vista” (Aurélio, Dicionário básico da Língua Portuguesa).
14
como provisória e parcial. Limitada, também, porque representa apenas o ponto de vista
daquele alguém que escreve. Mas nesse caso, em se tratando dessa palavra que uso,
sinto-me autorizada a dizer com a justificativa de que, durante todo o tempo de
realização deste trabalho, ela esteve presente em meu pensamento e em meu texto,
abrindo caminhos, nunca fechando. Possibilidades em dois sentidos basicamente. Um
como potencial, pois as salas de aula têm um enorme potencial, um leque de
possibilidades indescritíveis, imprevisíveis e incontroláveis. Outro como limite e isso
ao mesmo tempo. Justamente por serem incontroláveis, essas possibilidades de ser das
salas de aula são limitadas. Não temos como controlar os corpos, as mentes, os
sentimentos, os pensamentos, e nem mesmo as ações que nelas estão presentes.
Podemos pensar que é possível em alguns momentos, ou mesmo tentar em outros, mas a
plena realização desse controle é uma impossibilidade. Essa é uma aprendizagem muito
valiosa que pude fazer nesse processo de pesquisa e escrita desta dissertação, como
parte do meu processo permanente de formar-me professora.
Às idéias do silêncio, das possibilidades nas/das/com as salas de aula, relaciono
uma outra de Larrosa prosseguindo a discorrer sobre a lição, a leitura, para dizer deste
trabalho: “No ler a lição, não se buscam respostas. O que se busca é a pergunta à qual
os textos respondem” (2003, p.142).
O processo de compreensão que procurei desenvolver se assemelha muito a essa
busca da pergunta ou das perguntas. O levantamento de perguntas que as histórias
narradas foram e vão suscitando é o próprio processo de compreensão sendo tecido.
Interrogar as histórias vividas e os casos contados e também vividos foi o que procurei
fazer. A interrogação que pude e que imagino que os leitores poderão fazer a partir das
histórias das salas de aula, das práticas das professoras, dos alunos, dos pais e mães,
assim como o texto, como nos diz Larrosa, nos leva a pensar. Por isso,
depois da leitura, o importante não é que nós saibamos do texto o
que nós pensamos do texto, mas o que com o texto, ou contra o
texto, ou a partir do texto – nós sejamos capazes de pensar (id.ib.,
p. 142).
Terminando de falar sobre a lição, da experiência da leitura em comum como um
dos jogos possíveis do ensinar e do aprender, Larrosa estabelece o que tem a ver esse
jogo com a experiência da liberdade e com a experiência da amizade.
Começando pela amizade, como ele faz, o que diz é que essa leitura do texto
feita em comum é realizada numa forma particular de comunidade que é a amizade,
15
uma unidade que suporta e preserva a diferença, um nós que não é senão a amizade de
singularidades possíveis (id.ib., p.143).
O que vamos encontrar nas salas de aula, no jogo de interações que se realiza
nesse espaço-tempo de possibilidades é, muitas vezes, essa congregação de leitores em
torno do texto, da lição, da aula, em torno do que é comum às vezes falando, às vezes
em silêncio, mas sempre em relação a algo comum. E o comum não se refere ao
mesmo, ao igual para todos, ao realizado, feito da mesma maneira por todos .
O comum do texto é, assim uma comunidade de diferenças, ou
estritamente, uma conversação. Mas uma conversação que tem
também sua face silenciosa, reflexiva, solitária (idem, p.143).
Então, o que Larrosa provoca pensar é que, nas salas de aula, quando entre
professores e alunos acontece a leitura do comum do texto, o encontro nesse comum, no
espaço em branco de onde se mostram as diferenças, acontece o aprender, o movimento
de pluralidade do aprender (id. ib., p.144). Esse aprender implicado, ao mesmo tempo,
com o coletivo e com o individual significa a realização de um partilhar de sentidos que
se simultaneamente à atribuição de sentidos que se faz solitariamente, no silêncio.
Não se refere, portanto, à idéia de aprender como assimilar um saber, mas de pluralizar
sentidos possíveis, a diferença entre saberes.
A diversidade, a multiplicidade e a complexidade que caracterizam as salas de
aula são tecidas também com essa idéia de saber. Foi possível perceber, com essa
pesquisa, os encontros que se realizam no comum do texto que se a ler, a presença
dessa forma de aprender na amizade, na partilha de sentidos possíveis que se atribui a
esse texto, à lição, à aula. E as singularidades se fazem presentes mesmo quando se
coloca a homogeneidade do saber, outra forma de saber. Isso porque nessas relações
está presente também a liberdade de tomar a palavra de romper com o dito como está
mandado que faz com que pronunciemos a nossa própria palavra.
Quando nós, professores e alunos nos entregamos ao texto, àquilo que é a sala de
aula, à sua trama de sujeitos, de subjetividades, quando nos deixamos inquietar por ele,
vemos e dizemos o que não foi visto nem dito. Essa liberdade generosa de tomar a
palavra, que Larrosa apresenta como parte da lição, envolve um desejo, um querer dizer,
não porque se sabe o que dizer, mas porque se quer abrir para o novo, se abandonar à
palavra dizendo e ouvindo e às vezes, escrevendo (id. ib., p.145).
16
Ler é levar o texto ao seu extremo, ao seu limite, ao espaço em
branco onde se abre a possibilidade de escrever... alargar o que
pode ser escrito, prolongar o escrevível... (id.ib., p.146)
Este texto que apresento nesta dissertação foi produzido de uma forma nada
linear, foi se fazendo, sendo tecido com e nas histórias das salas de aula que conto no
segundo capítulo. Elas foram o meu primeiro texto, aquele que me provocou pensar em
todos os outros. Os acontecimentos da sala de aula e o que eles me levaram a refletir é o
conteúdo desse capítulo. São histórias que vivi porque, de alguma maneira, participei
como professora ou como pesquisadora, ao mesmo tempo sempre também professora.
Dialogando com as práticas dos sujeitos daquelas salas de aula, pude ir tecendo uma ou
algumas possibilidades de compreensão do que ali se passava. Além dessas
possibilidades, certamente, existem muitas outras. Nas que apresento no segundo
capítulo, busco captar e atribuir sentidos através das pistas que as práticas ofereceram.
Sentidos que têm a pretensão de, ao revelar o que são esses espaços-tempos com o que
têm, buscar evidenciar as possibilidades existentes de realização de um projeto
educativo emancipatório (Santos, 1996).
No primeiro capítulo apresento os meus caminhos, o que buscava encontrar, a
forma como os percorri, os parceiros com que contei para isso, além da escola em que a
pesquisa foi realizada. É um capítulo teórico-epistemológico e metodológico que trata
dos estudos do cotidiano e do cotidiano escolar. Ao mesmo tempo em que apresenta
esses estudos, defende a idéia de que através deles podemos chegar a possíveis respostas
para questionamentos que fazemos, cotidianamente, como praticantes da escola.
O texto do primeiro capítulo traz, portanto, considerações sobre os estudos do
cotidiano, a epistemologia e metodologia que vêm sendo elaboradas para eles,
procurando mostrar como podemos nos aproximar da realidade concreta das práticas
cotidianas nos espaços-tempos da escola, em especial das salas de aula e mais especial
ainda, neste caso, das salas de aula do apoio dessa escola, espaço-tempo privilegiado na
pesquisa. Entendemos que a leitura dessas práticas e tudo que elas implicam, permitem
compreender melhor o que são essas salas de aula, seus sujeitos, os conhecimentos que
em rede produzem, o que possibilita mostrar a complexidade que a constitui e o
potencial emancipatório que essas práticas inventam dia-a-dia.
Os estudos do cotidiano contrapõem, ainda, essa forma de pesquisar, de tecer
sentidos e de buscar compreender a outras formas que estão vinculadas a concepções
diferentes de pesquisa e de produção de conhecimento sobre a escola. Essas outras
17
concepções se vinculam, em sua maioria, ao pensamento ocidental moderno e se
propõem a responder as questões que fazem sobre a escola, tomando a realidade,
dividindo-a em partes. Extraem dessas partes, dados quantificáveis que possam ser
analisados, para chegarem, com essa análise, a explicações genéricas que vão responder
àquelas questões, apresentando soluções modelares e prescrições para a escola, também
genérica, que pesquisam.
No terceiro e último capítulo, apresento o que pude tecer ou, até onde pude ir no
tecido que as histórias compreendidas com a ajuda dos autores com que contei,
formaram. Esse é um tecido, ou uma parte de um tecido, ou ainda, a parte de um tecido
que foi possível tecer. Ele me sugere e espero que também aos leitores, inúmeras e
variadas possibilidades de respostas relevantes para as questões colocadas inicialmente
na pesquisa e outras que foram surgindo no seu decorrer. Faz isso, levantando também
perguntas e tentando escapar da síntese, pois isso significaria preencher os espaços
vazios, acabar com o silêncio.
Os personagens crianças, pais e mães das histórias tiveram os seus nomes
substituídos por nomes fictícios porque não foi possível obter, de sua parte, autorização
para que usasse seus nomes verdadeiros.
Já os nomes das personagens professoras são mesmo os seus, pois se propuseram
a participar e ofereceram, não só as histórias vividas nas suas salas de aula, como
também a autenticidade de sua forma de identificação. Uma dessas professoras fui eu.
Entro nas histórias no movimento, que é permanente, de formar-me professora, de estar
sempre me transformando impulsionada pela indagação, pela busca, pela pesquisa
(Freire, 1996).
Posso dizer que venho me tornando professora há muito tempo e esse tempo não
se restringe, certamente, aos vinte e cinco que se passaram desde a minha formatura no
curso normal. Em todos esses anos, vivo, cotidianamente, esse processo de formação,
portanto, de transformação.
Trago, em minha memória, os desafios da primeira experiência como professora,
na Escola Municipal Carlos Maul, onde ensinei (e aprendi), situada num conjunto
habitacional em Realengo, bairro da zona oeste do município do Rio de Janeiro. Aos
dezoito anos, recém-formada, antes mesmo de pisar na sala de aula, tive de viver os
conflitos de participar de uma greve
3
dos professores da rede municipal, a primeira
3
A greve aconteceu em 1979.
18
depois de quinze anos de ditadura militar, num momento de início de abertura política
que vivíamos no país. Não sei se tinha, na época, muita clareza do que isso significava,
mas entendia que não deveria “furar a greve” como fizeram todas as outras professoras
da escola. Mesmo tendo acabado de “tomar posse” como servidora pública municipal,
repito, sem ter dado uma aula sequer, fui a única na escola a participar do movimento
de greve, resistindo às pressões da diretora, Marilza, que até ligava para a minha casa.
Lembrava-me apenas do que havia dito, uma vez, uma professora de literatura do
Instituto de Educação do Rio de Janeiro, Zanelli: quando vocês forem professoras do
município ou do estado e houver uma greve, participem, façam a greve pela nossa
dignidade e a da escola pública também.
Sem dúvida, essa passagem, junto com tantas outras do meu processo de
formação que não se restringe, jamais, à formação acadêmica, fizeram com que não
conseguisse atender aos chamados da diretora da escola, mesmo que isso me assustasse
um pouco. Preferi e decidi atender a outros chamados, os do sindicato (o SEPE) para as
reuniões, atividades nas zonais (sedes regionais), passeatas e assembléias inserindo-me
concretamente na luta pela conquista dos direitos dos professores.
Quando o movimento de greve acabou, contando com certo “respeito”, mas
também alguma “desconfiança” das colegas e olhar atento da diretora, assumi a minha
primeira turma. Era uma turma daquelas sobre as quais conhecemos várias histórias de
professoras iniciantes: a “última” da escola, aquela que as professoras antigas não
queriam, pois as crianças, que tinham passado por alguns anos de escolaridade, não
haviam, ainda, aprendido a ler e escrever. Novos desafios se colocavam: o encontro com
esses alunos, tudo que eram e traziam, e, junto com eles, a busca de caminhos para que
se alfabetizassem.
De para cá, muitas são as histórias que poderia contar para falar de outros
desafios enfrentados nesse processo permanente de formação/transformação movido
pela indagação, busca, pesquisa. É nele que se inclui o viver, com todos os sentidos, o
cotidiano da escola a que pertenço, hoje, como professora e pesquisadora em sentido
estrito, pois é nesse espaço que se deu a pesquisa que resultou na dissertação que
apresento.
Nesse sentido, a sala de aula constituiu-se como um espaço-tempo privilegiado
da pesquisa, pois nela desenvolve-se, cotidianamente, a trama tecida pelos seus sujeitos,
os professores e os alunos: o que são e trazem, o que ensinam e aprendem, o que
produzem e criam de conhecimentos, imagens, sentidos e significados, o que envolve
19
também outros espaços-tempos e sujeitos, em rede. É uma trama, muitas vezes invisível
aos olhos que, se melhor compreendida, captada, com todos os sentidos, em sua
complexidade, pode nos aproximar de possibilidades de ampliação do entendimento das
realidades concretas das salas de aula e, com isso, conhecer melhor suas vozes e seus
silêncios, e os textos e lições que nela estão.
20
I. Em meio ao cotidiano das salas de aula
Nesta pesquisa tive como objetivos captar nas práticas cotidianas dos sujeitos
das salas de aula de uma escola, as formas como eles inventam dia-a-dia seus espaços e
seus tempos. Quis buscar os diferentes tipos de conhecimentos que ali produzem, em
redes, nas suas maneiras próprias de fazer acontecer, nas suas maneiras de ser, de sentir,
de pensar e de agir conforme os valores que os formam. Procurei com professoras
4
,
alunos, pais e mães, coordenadoras e outros profissionais da escola, com aquilo que
dizem sobre o que são e o que fazem, compreender o que nas salas de aula se passa,
tecendo redes com os fios do que cada um é e traz nos seus complexos processos de
formação ao longo da vida. As práticas de alguns sujeitos, de algumas salas de aula, as
do espaço-tempo do apoio
5
nessa escola tiveram na pesquisa um lugar especial. Como
professora do apoio que era, procurei também compreender o que se passava, de
forma articulada, estabelecendo relações possíveis entre as práticas do apoio e as das
salas de aula dos alunos que faziam parte desses grupos. Esse processo compreensivo
das, nas e com as práticas desses sujeitos pretende contribuir para ampliar
possibilidades de intervenção nessas realidades, principalmente no sentido de enfrentar
determinados problemas gerais da educação brasileira que identificamos e questões com
que nos deparamos dia-a-dia como praticantes dessa escola, inclusive as relacionadas ao
apoio. Tentei fazer isso, não identificando o que falta a essa escola e indicando a ela
regras a seguir, mas entendendo-a como positividade (Ezpeleta e Rockwell, 1986) no
sentido atribuído ao termo pelas autoras, que assim se referem ao que existe na
realidade escolar, sem proferir juízo de valor. Valorizando os traços individuais e
particulares, não somente enquanto tais, mas na tessitura que as ligações e continuidades
entre eles vão constituindo e no potencial emancipatório que as práticas e os
conhecimentos que, em rede, elas vão produzindo, têm. Tudo sem pretender unificar de
maneira abstrata e formal, os múltiplos aspectos da vida cotidiana (idem), mas
4
Usarei a palavra professora ou, no plural, professoras, porque todas as participantes da pesquisa são
mulheres. Além disso, na escola em que ela se desenvolveu, assim como na grande maioria das escolas de
primeiro segmento do ensino fundamental como essa, os professores são, quase que em sua totalidade,
mulheres.
5
O apoio é um espaço-tempo da escola em que se desenvolveu a pesquisa que existe para atender os
alunos considerados pelas professoras, no uso das normas da escola, com rendimento abaixo do
satisfatório. São tempos de aula que os alunos têm, às vezes com a sua própria professora, às vezes com
outra designada para isso.
21
chegando a resultados relevantes (Azanha, 1992), não totalmente conclusivos, mas
relevantes.
Ao longo deste capítulo, tentarei explicitar de maneira articulada e mais
claramente questões, objetivos e justificativas, juntando a eles como, com que e com
quem contei para esta desafiadora e envolvente aventura de pesquisar e escrever sobre
as práticas cotidianas das salas de aula. Assim procurarei expor os aspectos teórico-
epistemológicos e metodológicos de que me utilizei nesta pesquisa.
I. 1- As questões nossas de cada dia, como enfrentá-las?
Reconhecendo a riqueza do cotidiano e optando por um caminho de pesquisa
nas/das/com as salas de aula, tinha clareza de que as informações que poderia obter não
estariam dadas, não estariam colocadas com toda evidência na realidade do dia-a-dia.
Por isso me utilizei das duas noções de invisibilidade a de Pais (1993) e a de Gentili
(2001) desenvolvidas adiante.
E para captar e compreender essas informações foi necessário procurar examinar
os pormenores mais negligenciáveis, basear-me em indícios imperceptíveis para a
maioria (Ginzburg,1989, p.144,145). Aqueles que poderiam parecer detalhes
secundários, particularidades insignificantes (p. 147) ganharam a máxima importância,
pois poderiam ser reveladores da realidade que buscava conhecer.
Com isso, tive de buscar formas de encontrar parâmetros de compreensão da
realidade concreta das salas de aula, para que, a partir desses parâmetros, pudesse narrá-
la e interpretá-la, encontrando caminhos possíveis na busca de soluções para alguns dos
problemas que enfrentamos no dia-a-dia das nossas escolas.
De que tem nos servido, professores e professoras, tentarmos resolver esses
problemas recorrendo a discursos fundamentados nas estatísticas educacionais ou
buscando explicações que consagram princípios e idéias genéricos e generalizantes?
(Oliveira, 2001, p.39).
São inúmeras, diversas e freqüentes as situações que nos intrigam, nos
mobilizam fazendo-nos buscar respostas e explicações possíveis. Queremos e
precisamos entender o que acontece ali, pois essas situações nos exigem um
posicionamento, uma atitude para lidar com aquela realidade.
22
Nas salas de aula, temos, diante de nós, um aluno “que não aprende aquilo que
queríamos, ou que precisaríamos que aprendesse”, outro “que não mostra, não revela o
que aprendeu de forma que possamos ver, ter certeza que aprendeu”, outro ainda “que
briga demais com os colegas e com a professora” ou “que não participa das aulas”, “que
não acompanha o ritmo da maioria da turma”, enfim. E quando se trata do grupo? a
turma que é muito “agitada”, ou “pouco participativa”, “desinteressada”, com “baixo
rendimento”, aquelas cujos pais são “muito difíceis, complicados” etc. Essas são falas
que dizemos e ouvimos todos os dias nas salas dos professores, corredores, conselhos de
classe e outros espaços das nossas escolas. Elas demonstram o quanto e como as
realidades cotidianas afligem professores e professoras.
Também conhecemos algumas das explicações que se costuma dar com as quais
se pensa dar conta dos problemas: “a vinculação de classe e cultura dos alunos e suas
famílias”, “a carência nutricional e limite de inteligência”, “a falta de atenção e cuidado
dos pais para com os filhos”, enfim, explicações gerais e, ao mesmo tempo,
reducionistas. Das queixas às explicações, o que observamos é que as falas
desconsideram os processos histórico-sociais gerais e específicos que envolvem cada
situação e as ações e criações dos sujeitos reais, concretos nesses processos. Buscamos
essas explicações num certo tipo de conhecimento que se produz e divulga sobre a
escola. Ele resulta de determinados modelos de pesquisa, do “fazer científico” moderno,
muito utilizados na educação, que selecionam da realidade dados que, por sua
similaridade, possibilitam uma generalização sobre essa mesma realidade, mas sobre a
sua totalidade.
Enfrentar, então, as questões nossas de cada dia, impôs a necessidade
desafiadora de utilizar os tão novos caminhos metodológicos para o estudo e
compreensão do cotidiano das escolas que estão sendo formulados por alguns autores
citados ou ainda não, além de muitos outros. Aqueles caminhos que conhecemos e
aprendemos com a ciência moderna não têm levado em conta que não realidade
humana desvinculada da realidade concreta de uma cotidianidade (Azanha, 1992, 62),
que um modo de fazer e de criar conhecimento no cotidiano (Alves, 2000, p.13) e
que o cotidiano está impregnado de conteúdo histórico (Ezpeleta e Rockwell, 1986,
p.22). Todas essas considerações têm levado vários pesquisadores no/do/com
6
o
6
Nos chamados estudos do cotidiano autores que se utilizam das preposições em e de para se referir à
forma de realizar a pesquisa, no/do cotidiano. Alves e Oliveira (2001) assim o fizeram para dizer que não
se trata de uma pesquisa sobre algo que acontece fora de nós pesquisadores. Colocavam em questão a
23
cotidiano a essa busca e formulação de caminhos metodológicos dos quais me utilizei
para pensar nas formas de aproximação da escola e das práticas das salas de aula em que
mergulhei (Alves, 2000) no desenvolvimento dessa pesquisa.
A exigência de que fosse num mergulho (idem) ou, melhor dizendo, em vários e
constantes mergulhos na realidade, vinha com a constatação de que a vida dos
praticantes das escolas não se reduz ao que podemos observar e organizar formalmente
(Oliveira e Alves, 2000, p.8). Era preciso mais que olhar e ouvir o que fazem e dizem
esses praticantes, era necessário aguçar todos os sentidos para perceber as lógicas das
suas práticas, as próprias práticas e o que elas criam.
O mergulho na realidade cotidiana se fez necessário também para que pudesse
penetrar nas lógicas dos espaços e tempos das escolas e das salas de aula. Se o que
buscava era a “novidade” que rompe a invisibilidade dos fazeres dos sujeitos na rotina
do cotidiano escolar e os sinais e indícios presentes na realidade das salas de aula, a
compreensão das lógicas dos espaços e tempos como mais uma criação desses sujeitos
era fundamental. Esses espaços e tempos estavam, certamente, impregnados desses
sinais, pois eles são inventados cotidianamente por professores e alunos nas suas
criações cotidianas, os conhecimentos que produzem. São imagens que elaboram ou
utilizam, são gestos, expressões, comportamentos e palavras que ocupam e constituem
esses espaços e tempos, são indícios mínimos assumidos como elementos reveladores de
fenômenos mais gerais (Ginzburg, 1989, p.178). O que eles podiam revelar? Era a
pergunta que todo o tempo me fazia e com ela tentava penetrar mais profundamente na
rede de significados que nos forma, que foi se formando na pesquisa e que forma as
realidades que buscava melhor conhecer.
Sendo assim, estar “de fora” olhando e registrando não podia ser a forma de
viver o cotidiano da escola como pesquisadora. Procurei sentir, com os sujeitos das
salas de aula: movimentos, ritmos, gestos, expressões, cheiros, calores, frios, sons,
texturas e silêncios que eram produzidos no dia-a-dia. Entendia que essa maneira de
estar nos espaços era como poderia penetrar nas redes de significados em que as salas
de aula acontecem, as redes que as formam e que são formadas por elas, os fazeres e os
saberes dos seus sujeitos.
relação sujeito-objeto estabelecida pela chamada pesquisa científica como a única possibilidade dessa se
realizar. A esses termos, Ferraço (2003), na mesma perspectiva, acrescentou a preposição com para
expressar que além de estarmos realizando pesquisa do cotidiano e no cotidiano, estamos também com o
cotidiano. Novamente nos colocando, como sujeitos, envolvidos e até mesmo parte do que seria
considerado pela chamada pesquisa científica, o objeto.
24
Ao realizar esses mergulhos na realidade, com todos os sentidos, outras
exigências tive de enfrentar. A realidade das salas de aula e os conhecimentos
produzidos por professores e alunos nesse espaço estão relacionados a outras realidades,
sujeitos e conhecimentos que produzem. Eram fios das redes de sujeitos,
conhecimentos, espaços e tempos que formam e que se formam nessa realidade. Não
bastava, portanto, restringir-me aos limites espaciais e temporais das salas de aula,
mesmo que buscasse vadiar (Pais, 2003) por elas com todos os sentidos, percorrer os
caminhos, as rotas, permitindo me surpreender com as “novidades” que surgiriam. Era
preciso tecer sentidos, atribuir significados para o que iria captar nesses mergulhos,
estabelecendo múltiplas redes de relações (Alves, 2000, p.22) entre esses sentidos e
significados e outros atribuídos a outras realidades e por outros sujeitos dessas redes,
além dos professores e alunos.
No que concerne, portanto, aos parâmetros de compreensão do cotidiano das
salas de aula, tive de procurar superar os sentidos evidentes das situações, as
explicações estruturais e generalizantes sobre a realidade e utilizar os referenciais
teórico-metodológicos dos estudos do cotidiano. Está presente, então, a noção de vida
cotidiana orientando as interpretações, ela recupera conjuntos de atividades
caracteristicamente heterogêneas empreendidas e articuladas por sujeitos individuais
(Ezpeleta e Rockwell, 1989, p.22). E esse foi mais um grande desafio para e na pesquisa
e, ao mesmo tempo um grande valor e, por isso, mais uma justificativa para a sua
realização: as práticas dos sujeitos nos espaços e tempos das salas de aula como
referencial de análise e definindo os caminhos a percorrer.
I. 2- Por onde andei, como e com quem caminhei
Andar pela vida que está sendo vivida, cotidianamente, nas salas de aula das
escolas, eis a que me propus e continuarei me propondo. Percorrer caminhos familiares,
aparentemente conhecidos porque desde muito cedo percorridos em tantas escolas,
em tantas salas de aula por onde passei, mas, procurando estar atenta às particularidades
que esse conhecimento e essa familiaridade podem esconder, podem não me fazer
perceber. Foi dessa maneira que realizei a pesquisa no/do/com o cotidiano das salas de
aula, tentando, em meio às relações que ali se estabelecem, à vida que acontece, às
práticas dos sujeitos, captar os conhecimentos que elas produzem. Compreender um
pouco mais e melhor as próprias práticas, seu movimento e sua tessitura, buscando
25
perceber, além do que produzem, também o que são e como se constituem enquanto
práticas sociais.
Para isso ser possível, torna-se necessário considerar o cotidiano não apenas
como rotina, como aquilo que passa sem deixar grandes marcas de visibilidade (Pais,
1993, p.109) por tratar-se do que se faz todos os dias, supostamente, do mesmo modo.
Pois, pensado dessa forma, o cotidiano manifestar-se-ia como um “campo de
ritualidades na sua regularidade, normatividade e repetitividade” (idem, p.108) e nele
não poderíamos mesmo perceber nada mais do que aquilo que parece sempre igual.
Contudo, Pais nos ajuda a pensar o cotidiano para além desse significado, apresentando
as raízes etimológicas da própria palavra rotina. O que diz é que elas apontam para
outro campo semântico, associado à idéia de rota, (caminho) do latim via, rupta, de
onde derivam as expressões rotura ou ruptura (id. ib., p.109). Essa idéia possibilita o
nosso caminhar pelas rotas das salas de aula, percebendo o que acontece todos os
dias, não do ponto de vista de sua regularidade, normatividade e repetitividade, mas das
singularidades que irrompem dessas rupturas, esse outro sentido atribuído à palavra
rotina. Com isso, estamos considerando as escolas como espaços-tempos de
cotidianidade onde a vida está acontecendo e buscando caminhar por entre as rupturas
nas rotas do dia-a-dia, por entre as particularidades, as singularidades. Dessa maneira,
penso que seja possível atribuir a devida relevância “ao que no dia-a-dia se passa
quando nada se parece passar” (id. ib., p.108), às práticas dos sujeitos que fazem
acontecer as salas de aula, as escolas, cada uma a seu jeito, do seu modo particular e
próprio, nos múltiplos “modos de fazer” dos seus praticantes (Certeau, 1994). Isso
significa atribuir ao cotidiano a condição de “locus privilegiado” do conhecimento da
realidade social, reconhecendo que não realidade humana desvinculada da
realidade concreta de uma cotidianidade” (Azanha, 1992, p. 62). Essa realidade social,
em permanente movimento, se insinua para quem quer conhecê-la, porém sem pretender
apreendê-la na sua totalidade, pois isso é uma impossibilidade, mas revelando a
dinâmica da vida na “textura ou na espuma da ‘aparente’ rotina de todos os dias”
(Pais, 1993, p.111).
Uma outra noção de invisibilidade de que faço uso nesta pesquisa, diferente
daquela de Pais a que fiz referência, busco em Gentili (2001). Trata-se dos processos de
exclusão considerados “normais”, portanto, “passíveis de uma visibilidade artificial”, ou
seja, nem sempre percebidos enquanto tais. O autor apresenta uma das modalidades de
exclusão reconhecida por Castel (1997) que consiste em segregar incluindo. Isso
26
significa que os indivíduos que se encontram nessa situação são dotados das condições
necessárias para viver com os incluídos, que em uma condição inferiorizada,
subalterna (idem, p.33). Nos complexos espaços das salas de aula e das escolas, são
muitas as situações em que temos a produção desse tipo de exclusão. Os alunos e as
alunas que não têm o desenvolvimento esperado pela escola em suas aprendizagens
escolares, sobre os quais contarei algumas histórias nesta dissertação, são alguns desses
sujeitos. Falo dos alunos e alunas que, não tendo o rendimento médio esperado pelas
normas da escola, são considerados como crianças com alguma “dificuldade”
7
no seu
desempenho escolar, por isso “encaminhados” aos grupos de “apoio” ou “recuperação”
com os quais trabalhei como professora durante os dois últimos anos.
Nas conversas que pude ter com esses meninos e meninas durante esse tempo,
pedia que falassem e algumas vezes que escrevessem, sobre o que achavam de estarem
ali e quais os motivos que os levaram a terem de participar daquelas aulas. E muitas
vezes, o que diziam não tinha relação evidente com o que suas professoras falavam ou
escreviam para justificarem a sua inclusão nos grupos. Além disso, suas falas e escritos
sobre como se viam nos espaços-tempos das suas salas de aula e a maneira como
achavam que eram vistos, percebidos pelas suas professoras, sugeriam o quanto, muitas
vezes, passavam por processos de “exclusão includente” na escola. Estavam
“incluídos”, eram alunos e alunas das suas turmas, faziam parte das listas que estavam
nos diários de classe, eram reconhecidos como tais pelas suas professoras e o sistema
administrativo-pedagógico da escola, mas seu “ritmo”, sua maneira de falar, se
expressar, brincar, viver enfim, nem sempre eram entendidos como os comportamentos
necessários para que aprendessem o que era ensinado.
A questão da invisibilidade aparece na normalidade como encaramos tais
situações. É “normal” que certos alunos façam parte dos grupos do apoio ou
recuperação, em alguns casos, durante todos os anos da sua escolaridade. Sendo
“normal” torna invisível a segregação deles gerada pelo nosso olhar hierarquizante, que
seleciona e classifica os alunos, conforme o seu grau de “dificuldade”. É “normal”
também que a eles e/ou suas famílias seja atribuída boa parte das responsabilidades pela
situação, concebida também pelo nosso olhar hierarquizante, como de fracasso. Como
nos diz Gentili (2001), a questão central reside no fato de que fomos nos acostumando
7
Penso que teríamos muito que discutir em relação ao significado que se atribui a essa palavra no
cotidiano da escola, pois nem tudo que assim chamamos é realmente uma dificuldade. Mas, essa
discussão, apesar de pertinente, não pode ser aqui realizada, por isso faço apenas esse destaque.
27
a isso (p.41). É com muita freqüência que se manifesta, não somente entre as
professoras, mas entre pais e mesmo entre os alunos, a idéia de normalidade em relação
à presença de alguns nos grupos de apoio e à discriminação sofrida por eles.
Os motivos que os colocam nessa condição passam pelas diferenças existentes
entre os alunos e alunas nas suas formas de participar dos processos de aprendizagem e
de se expressar e na maneira como, muitas vezes, encaramos essas diferenças. Elas são
geradas nas diferenças culturais, emocionais, cognitivas, corporais, enfim, nas
diferenças que existem entre os sujeitos. Os grupos sociais são sempre plurais, pois são
formados por sujeitos com características diversas e múltiplas. Cada aluno, cada aluna,
assim como também cada professora vai se constituindo ao longo de sua vida, de
maneira sempre singular, nos variados processos interativos que vive nos espaços e
tempos em que se insere. Muitas vezes, a forma como tratamos essas diferenças gera
discriminação porque as hierarquizamos e classificamos, considerando algumas
características melhores que outras, logo, alguns sujeitos que têm essas características,
também melhores que outros. Além disso, esses processos fazem com que, algumas
vezes, enquadremos determinadas diferenças como dificuldades de aprendizagem e as
tratemos como tal. Não que não existam na escola essas dificuldades, mas nem sempre,
o que os alunos manifestam, pode ser assim considerado. Por fim, as possíveis
dificuldades de aprendizagem também são, em algumas situações, concebidas como um
fator de inferiorização dos alunos e das alunas que as demonstram. Então, a
invisibilidade está na “normalidade” com que vivemos essas discriminações que a
hierarquização entre maneiras diferentes de conhecer, de expressar, de sentir, de querer
e etc traz.
Ao atuar como professora e pesquisadora, nessa rede de relações e de
conhecimentos, trazendo à tona os saberes desses alunos e professores, praticantes das
salas de aula: como se vêem nesse espaço, por que estão ali, o que produzem e criam, o
que e como percebem esses processos cotidianos de ensinar e aprender, procurei
interrogar a normalização com que é vista a “exclusão includente” de alguns nas
práticas cotidianas das salas de aula. A pesquisa tentou contribuir para tornar visível o
que o olhar normalizador oculta (idem, p.42).
Com tudo isso, estou reconhecendo o lugar de centralidade do espaço educativo
como nos indicam Gentili e Alencar (2001), como espaço potencial de práticas
emancipatórias que podem participar da criação de uma sociedade mais democrática, e
esse foi também um dos objetivos desta pesquisa. Centralidade, contudo, não significa
28
exclusividade. Não concebo a educação como a responsável pela determinação dos
rumos da sociedade, porém não quero perder de vista o potencial libertador que está
presente nos seus processos cotidianos.
Os autores nos falam do poder do Império”, que Michael Hardt e Antonio
Negri conceituam como um poder sem fronteiras, sem limites, que funciona em todos os
registros da ordem social (Hardt/Negri, apud Gentili e Alencar 2001, p. 21). Mas
acreditam na
libertação que acontece nas ruas, escolas, oficinas, palcos e
escritórios que, em rede,[...] se intercomunica, que reconhece as
estruturas onde está inserida para superá-las, num projeto
militante de resistência criativa (idem, p. 21).
E nos convocam: “que nós educadores potencializemos esses sonhos e
possibilidades, recuperando a fundamental jovialidade rebelde e transformadora”
(id. ib., p. 22).
Entretanto, concordo com o que afirmam os autores que essa luta cotidiana e
resistência criativa dos educadores não se faz sem contradições. Experimentamos nas
nossas salas de aula, conflitos e tensões entre aquilo que pensamos que devemos
conservar ou transformar e mais: entre aquilo que podemos e o que pensamos que
devemos realizar, afinal, temos nossas práticas cotidianas tecidas a partir de redes,
muitas vezes contraditórias, de convicções e crenças, de possibilidades e limites, de
regulação e emancipação (Oliveira, 2003). Mas é nesse espaço de contradição e
conflito que atuamos e buscamos superar a lógica do “Império” como poder opressor,
“sem fronteiras, sem limites”.
Certeau (1994), usando uma idéia um pouco diferente da de resistência, provoca-
nos uma reflexão que pode a essa se articular, quando nos fala das trajetórias
indeterminadas, aparentemente desprovidas de sentido porque não são coerentes com o
espaço construído, escrito e pré-fabricado onde se movimentam”. Certeau está se
referindo às “maneiras de fazer e “às maneiras de utilizar dos usuários,
consumidores não passivos, como muitas vezes se imagina, os sujeitos reais que não se
inscrevem na lógica de organização social e de poder dos grupos dominantes. Esses
sujeitos, que são também os professores e desenvolvem ações criativas e plurais, nem
sempre demonstram coerência, pois essa coerência citada entre as suas palavras é a do
lugar ordenado das instituições e dos sistemas, a dos praticantes é outra.
29
De uma forma envolvente e sedutora, Paulo Freire (1992) fala também da
coerência como uma virtude que o educador deve exercitar. Reconhece que esse é um
exercício difícil que exige paciência e humildade, mas diz que, para ele, ela não pode
faltar. Entende que uma coerência absoluta é impossível, que exige, no trato com os
outros, essas outras virtudes das quais, às vezes, carecemos. E acrescenta, finalmente,
que o exercício difícil da coerência demanda de nós um permanente processo de busca
[...] que vá diminuindo a distância entre o que dizemos e o que fazemos (p. 66 e 80).
Essa é uma outra maneira de pensarmos nos conflitos e tensões gerados pelas
contradições que vivemos, como professoras, no cotidiano da escola. Ela se soma às
outras com um sentimento de esperança na luta pela transformação social, marcantes no
pensamento do autor, porque reconhece que, na vida real, nem sempre, podemos contar
com certas qualidades exigidas na busca da coerência. Nisso, cria possibilidades, que
a concebe como processo, como movimento, que todos podemos viver, procurando
chegar a um lugar de menor distância entre o que dizemos e o que fazemos e não a um
lugar absoluto que exclui, que coloca fora dele todos os comportamentos que podem
não ser entendidos como coerentes.
Mas não faço uso dos pensamentos desses autores, em especial o de Certeau,
para refletir somente sobre as práticas das professoras. Os alunos e as alunas, os pais e
as mães, as coordenadoras e orientadoras e os outros profissionais da escola são também
praticantes dos espaços escolares. E nesta pesquisa que procurou
estudar as práticas cotidianas procurando nelas... os traços de
uma lógica de produção de ações de sujeitos reais, atores e
autores de suas vidas, as noções desenvolvidas por Certeau a
respeito dos usos que os sujeitos reais dão às regras e produtos
que lhes são impostos, produzindo, como em um jogo, lances, de
acordo com as ocasiões ganham importância... na medida em que
nos permitem encontrar sentidos dentro das especificidades que
ajudam na busca de formulação desta metodologia de pesquisa e
de seus resultados (Oliveira, 2001, p.43),
A autora nos ajuda a entender a afirmação de Certeau (1994) de que as práticas
cotidianas estão marcadas pelas operações de que foram objeto, ou seja, que as
circunstâncias e as ocasiões em que as práticas são desenvolvidas distinguem-nas de
outras tantas práticas, pois são as circunstâncias particulares que vão definir os modos
de agir também particulares dos sujeitos. Isso significa dizer que a realidade da vida
cotidiana é tecida com e nas práticas que se constituem de maneiras variadas conforme a
especificidade de fatores que estão implicados nas situações em que os sujeitos têm de
30
agir. E essas práticas, essas operações, atos e usos de objetos, regras e linguagens (id.
ib., p.44) não estão isoladas umas das outras, elas se articulam em redes de relações
num movimento constante, como que um trançar de fios compondo as realidades
sociais.
Se as realidades das salas de aula e das escolas fossem, de fato, repetitivas,
acontecessem sempre do mesmo modo, da mesma maneira, ou se fossem a simples
reprodução da ordem social, das normas e das regras impostas pelas instituições e pelos
sistemas, elas seriam facilmente apreendidas, organizadas e definidas teórica e
totalmente pelos estudos científicos que a isso se propõem. Com a pesquisa no
cotidiano, o que percebemos é que podemos encontrar sentidos nessa variedade de
saberes dos sujeitos das salas de aula; seus valores e seus fazeres enredados tecem
maneiras de viver singulares, cuja organização, quantificação e classificação necessárias
àquele de estudo não podem se realizar. O que buscamos evidenciar é que essas
singularidades potencializam os processos pedagógicos protagonizados por professores,
alunos e os demais sujeitos desses espaços-tempos escolares e são satisfatoriamente
captados pela pesquisa no/do cotidiano.
Essas idéias, fundamentais para as pesquisas com o cotidiano como a que esta
dissertação apresenta, nos permitem estabelecer alguns elos com aquela idéia de
“exclusão includente” que Gentili nos apresenta. Isso porque, com elas, podemos pensar
que sendo os alunos e as alunas dos grupos do apoio sujeitos das salas de aula,
praticantes desse espaço, essas relações que com eles se estabelecem não são vividas
passivamente.
Certamente, delas eles fazem também os seus “usos próprios”, têm as suas
maneiras de lidar com essa situação em que muitas vezes se encontram. Criam suas
“táticas” e produzem com o que sabem, o que sentem e o que pensam as suas maneiras
próprias de viver cada uma delas a seu próprio favor, colocando então, em questão, essa
condição de “exclusão includente”. E para a compreensão das múltiplas realidades das
salas de aula, dos processos de produção da vida cotidiana, incluindo essa específica dos
alunos e alunas que pertenciam aos grupos de apoio, procurei, nesta pesquisa, buscar
algum tipo de lógica, de relações possíveis entre os usos e táticas desenvolvidas.
Certeau chama de táticas, as ações cotidianas que os praticantes - sujeitos reais que
praticam no cotidiano os diferentes espaços-tempos - desenvolvem, de forma criativa e
plural, fazendo usos próprios das regras e produtos que lhes são impostos pelos sistemas
e pelas instituições. São maneiras de fazer astuciosas, engenhosidades do fraco para tirar
31
partido do forte que se dão em momentos oportunos, conforme as circunstâncias e
aproveitando ocasiões (idem, p.47).
Assim, nesta dissertação, procurei, na aventura em que consiste a escrita,
envolver-nos a mim e aos leitores nas histórias que narram as práticas curriculares
cotidianas dessas salas de aula, seu potencial muitas vezes emancipatório e outras vezes
não e nas reflexões que vão traçando alguns percursos compreensivos que com elas
podemos fazer. Nessas narrativas, compostas de textos não verbais, mas também
visuais, incorporo não apenas eventos acontecidos na escola, mas considerando a
complexidade que os envolve, trago imagens e elementos do imaginário que se fazem
presentes na escola.
As imagens e o imaginário que nos envolvem como sujeitos das salas de aula se
ofereceram, também, como pistas sobre o que nelas se passava. Na medida em que elas
vão sendo formadas por nós e, ao mesmo tempo, nos formando cotidianamente,
compomos as nossas histórias da escola. Criar histórias falando sobre essas imagens
significa, portanto, criar também possibilidades de melhor nos conhecermos como
praticantes desse espaço-tempo. Como nos diz Manguel (2001) somos essencialmente
criaturas de imagens, figuras (p.21). As imagens que produzi em meio a essas salas de
aula e a essa escola que escolhi trazer para essa pesquisa e dissertação poderão ser
provocadoras de histórias que o leitor pode contar ao observá-las, histórias sobre si,
histórias sobre os outros, pois as fotografias, como todas as imagens, nos falam, as
imagens, assim como as histórias, nos informam (id. ib.). Apesar delas enquadrarem
espaços, tempos e experiências vividas, e portarem ainda o poder de mostrar que lhes
foi outorgado (Calado, 2002, p.12), elas não são fixas e nem vêm aqui apenas para
atestar uma realidade. Os inúmeros sentidos que suscitam buscam trazer uma sensação
de fluidez. Num movimento constante, vamos da imagem à palavra e da palavra à
imagem (Manguel, 2001) e podemos, então, contar várias histórias sobre elas. Esse uso
das imagens e do imaginário da escola é aquele que envolve os milhares de discursos
que possamos fazer sobre ela, dentro dela, atrás dela, em torno dela (Samain, 1997,
p.18).
Os leitores, acredito eu, terão, por conta das suas próprias andanças ao longo da
vida, muitos elementos para deixarem-se envolver por essas histórias das salas de aula e
seus sujeitos. Como professores, alunos, demais profissionais da escola ou como pais e
mães, farão as suas conexões lembrando, criando e trazendo as suas próprias histórias,
acontecidas ou imaginadas, para participar dessas outras que lerão.
32
Nesse processo, para me orientar nos movimentos de estar em meio às histórias
das salas de aula, vivendo-as, percebendo-as e narrando-as para procurar compreendê-
las, conto com autores que se dedicam aos “estudos do cotidiano”, alguns deles
citados. Ao longo do texto outros serão lembrados e esses mesmos voltarão. Esses
estudos, como entendem Alves e Oliveira (2002) possibilitam considerar o que se passa
dentro das escolas, os processos sociais que constituem as salas de aula e outros
espaços-tempos escolares, como importantes fontes para a compreensão do que elas são,
ou seja, desses mesmos processos que as constituem. Nessa perspectiva, incorporam as
práticas, os saberes e os fazeres dos múltiplos sujeitos das escolas como fontes
necessárias aos processos de conhecimento do cotidiano escolar.
As autoras nos mostram a importância dessa perspectiva dizendo que não é essa
a forma como se tem buscado conhecer as escolas e nelas intervir, principalmente
quando se conclui que algo não vai bem. O pensamento que se tornou dominante na
modernidade e o “fazer científico” que o caracteriza desprezaram esses processos
sociais nos seus procedimentos de pesquisa, por não se tratarem de elementos
facilmente quantificáveis, portanto, passíveis de controle e análise que pudessem levar a
generalizações. Como único paradigma aceitável para legitimar as idéias e os trabalhos
que tinham como objetivo descobrir/criar a verdade, a ciência galileo-newtoniana
acabou por criar a idéia de que os dados não quantificáveis e controláveis da realidade
não eram relevantes e, com isso, baniu do mundo das idéias os aspectos qualitativos e
singulares do real (idem, p.84). Essa maneira de buscar conhecer as escolas, de fora, de
longe, isolando alguns elementos de sua realidade e desprezando a vida tecida
cotidianamente pelos seus sujeitos com as suas práticas, costuma apresentar, aos que
estão na escola e à sociedade em geral, conclusões generalizantes acompanhadas de
uma série de prescrições que têm a pretensão de regulamentar essas mesmas práticas
dos sujeitos.
Entretanto, o que percebo, com a ajuda dos estudos do cotidiano escolar, é que
essa pretensão é uma impossibilidade. Ainda que os aspectos singulares e qualitativos
do real não sejam considerados em muitas pesquisas e prescrições sobre a escola, eles
estão lá e de forma “rebelde” (Oliveira, 2000) sempre se apresentam nas práticas das
professoras, alunos, pais, mães e outros profissionais. Dessa forma, as múltiplas
realidades que compõem o real das escolas, das salas de aula e de outros espaços do
cotidiano escolar não cabem nas formulações generalizantes sobre a escola e a sala de
33
aula. Logo, suas prescrições também não funcionam como o pretendido, pois elas são
feitas para um modelo ideal de escola que “não existe”.
Além disso, ao abdicar da pluralidade e da diversidade, dentre outras
especificidades das realidades concretas e de seus processos reais de construção”
(op.cit., 2001, p.40), esses estudos calcados no cientificismo, desprezam as
possibilidades de aprendizagem que o próprio cotidiano escolar nos oferece em virtude
da sua potencialidade como espaço-tempo no qual conhecimentos são produzidos
vividos e modificados.
Nesta pesquisa, faço a ousada opção de tentar compreender as potencialidades e
limites do fazer escolar pelos caminhos da concretude das práticas, seus modos de se
constituir, ae8-60(of)3(e)4, re(o )-310(pr)36 0 Td[(e)416 da5(o )-310(pr)36 0 Td[(e)415 3(e(ndi)-(ã)4(o )-50-(ã)do )oo stã la68]TJ330.(c)4(a)4(m)(o 2i)-2( )120(s)-1(e)4( -2(a68]-389.16 -20)4(ol)-2pr)3(á)4(t)-2(Td[(a)4(ud)-2(s)-134(a)4(g)10(e)4s)-1()3(e)41(i)-2(dadde)4( )-50((r)3(e)4n1( )-3( )-120(da)4s)-1()3(e)4cialid120(da)4s prenc4(s)-1(qui.a)4sams esouaprodu019acaoces20(s)-1((a)4( )-60(ouse)4(nc)4(2(da2)-2(49(voua)-1(e)4( )2419.J-330.6 -20pol)-2(a)46)-1( )998(de)43(( ))-24( )-120(da)4(6)-1()3oe)4(i)-2(t)-2(ndi)-(ã)polátihae-1( pa)4(i)-(ã)4( )-320(c(i)-(ã)o120(da)4(5j20(cáa)4(i)-(ã)p)4(ol)-2(r)3(e)4-2(t)-2(uo120(da)4(5d)-1(oc)4(e)4(s20(s120(da)4(598(de)43(á)4(ti)-2(hae)4(a)27 )]TJ372.9t)-2(ndi)-(ã)4( )-320(c(i)-(ã)-2( ))320(c(i)-(ã)bu-120(e)4(sa)-1(e)4( )27 )]T-389.16 -20de)4(nc)4(i)-2(110(L))4(ol)-2(a)4(raf)3(a)4(ç)i)-2(1n10(L)2a)4(ç)d2a)4(ç) o et3(ópr)3(i)-e(o )-60(a4( )-320((a)4(m)pç)4(ã)4( )-370(di)-2(s(i)-2(da(ã)4( )-320(c(i)5e)4( )-3)-2(uo120(da)45-2( ))-24(s)-1oc)4(e)4(s20(s320(c(i)5e-1005)-2( )-60(vde)4(r)3( de)4(r4( )-120(s))4(ra)4(l)-63 12 Tf69.2n)4( )-50(of)3(e)4, )-1e)4(s20(s60(vde)4(rpol)2i)-2( )a)-1(e)4( )63 12 J-330.6 -201( )-100(e)4-1(qui.a)os.
34
estabelecidas entre o processo educativo e outros processos estruturais como os
socioeconômicos acabam tendo, então, certo efeito paralisante, pois
negando-se qualquer grau de autonomia às práticas escolares
concretas e considerando-as invariavelmente como mero resíduo
de forças exteriores a elas, eventuais características que
assumam num certo momento seriam modificáveis por
alterações nessas forças e nunca por uma mudança interior nas
próprias práticas (Azanha, 1992, p. 48).
Esse tipo de pensamento não está presente somente nas pesquisas, debates e
ações desenvolvidas no âmbito da educação, assim como não se limita somente ao
“fazer científico”. São idéias que, desde a Grécia, foram formando o pensamento
ocidental hegemônico na nossa sociedade. Trata-se de um pensamento orientado pela
busca da certeza e da verdade, que separa o homem da natureza e pretende que ele a
domine e controle, através do conhecimento que sobre ela é capaz de produzir.
Esse tipo de conhecimento, fruto do paradigma da modernidade que se estende
como forma de pensar hegemônico nas sociedades ocidentais como a nossa, buscou
encontrar, inicialmente, no século XVI, a causa dos fenômenos naturais, mas depois,
sobretudo a partir do século XIX, também dos sociais e, de acordo com regularidades
que observa, formula leis gerais que devem ser aplicadas nessa realidade com
pretensões de prever para ela, comportamentos futuros. Nas ciências, o que não pode ser
quantificado é considerado irrelevante e o que não pode ser dividido e classificado para
ser conhecido, porque complexo, sofre a redução dessa complexidade e sua
simplificação (Santos, 1985).
A revolução científica do séc. XVI, a partir da qual esse modelo de racionalidade
foi instaurado, não pode ser considerada como fonte que lhe deu origem. As idéias que
embasam essa forma de pensar, fazer ciência e lidar com o mundo estão presentes
desde os gregos. A separação entre o que se pensa e o que se faz, a teoria e a prática, a
primeira precedendo a segunda, necessariamente, é uma delas. Outra idéia é a
formulação de leis que explicam os fenômenos da realidade, para aplicação destas leis
no sentido de ampliar o seu controle. A compreensão do mundo trazida pelo
conhecimento dessas leis poderia, então, ampliar o controle do homem sobre a natureza.
A possibilidade de intervenção nessa realidade, nesse tipo de modelo, estaria colocada
nas garantidas relações de causa e conseqüência estabelecidas por essas leis.
Ao longo dessa dissertação, nas histórias narradas, falaremos nós, professoras,
alunos e alunas, praticantes do cotidiano escolar, tentando incorporar os sujeitos da
35
escola em sua historicidade e seus fazeres/saberes ao processo de conhecimento da
escola, de uma escola específica e singular na qual desenvolvemos nosso trabalho e
nossa pesquisa, como nos sugere Stenhouse (1991) citado por Alves e Oliveira (2002,
p.82).
Com esta pesquisa, procuro compreender melhor as tramas que constituem as
salas de aula, buscando fazer com que ela mesma informe sobre a sua tessitura e,
portanto, sobre as suas possibilidades e limites, sobre a sua realidade cotidiana em sua
dinâmica permanente, que torna provisório todo e qualquer saber e discurso que
possamos produzir sobre ela nesse contexto de pesquisa (Victorio Filho, no prelo;
Oliveira, 2003). Faço isso porque entendo que, através das práticas dos sujeitos, seus
processos cotidianos de fazer as salas de aula daquela escola acontecerem, serem como
são, o que são, é que podemos conhecer melhor a vida real dessas salas de aula que
estão a ser inventadas todos os dias. Aquilo que trazem, o que ensinam e aprendem, o
que produzem e criam de conhecimentos, imagens, sentidos e significados as
professoras, alunos e todos os que, de alguma forma, fazem parte dessa rede constitui
fluidamente esses privilegiados espaços-tempos do cotidiano escolar que são as salas de
aula.
Ainda no sentido de potencializar as inúmeras possibilidades de conhecimento
que o cotidiano escolar nos apresenta, considerei, com Ginzburg (1989) que as práticas
cotidianas nos oferecem pistas e indícios que podem se traduzir em possibilidades de
compreensão e formas alternativas de ação sobre o que temos de enfrentar
cotidianamente. Com a ajuda de Ginzburg, podemos pensar que decifrando essas pistas:
comportamentos, gestos, expressões, falas, escritos, imagens e objetos que produzem os
professores, alunos e outros dessa rede que formam as salas de aula, temos como captar
uma realidade que, de outra forma, seria inatingível.
Ginzburg apresenta o paradigma indiciário como um modelo epistemológico
que, por volta do final do século XIX, emergiu silenciosamente no âmbito das ciências
humanas. Ele consiste em um método interpretativo centrado sobre os resíduos, sobre os
dados marginais considerados reveladores (idem, p.143 e 149). Aquelas explicações
generalizantes não oferecem as mesmas possibilidades porque estão vinculadas à idéia
de que podemos possuir o real em sua totalidade e, para isso tem de sacrificar o
conhecimento do elemento individual (idem, p.163). Além disso, conforme alerta Pais
(1993), a apreensão do real é uma impossibilidade e, diz o autor, a consciência
epistemológica dessa impossibilidade é uma condição necessária para entendermos
36
alguma coisa do que se passa no cotidiano (p.108). A ousadia a que me propus não
consistiu, portanto, em procurar obter um controle sobre a realidade a ponto de ter
respostas para todas as situações que surgiram, mas de encontrar os fios que
estabeleciam ligações e continuidade entre os variados e múltiplos aspectos da vida
cotidiana (Azanha, 1992) sem pretender unificá-la de maneira abstrata e formal
(Ezpeleta e Rockwell, 1986).
Esses procedimentos nos vinculam a uma outra idéia de totalidade que não
podemos abandonar. Ginzburg também ajuda nessa formulação dizendo que não é
possível o conhecimento direto da conexão que explica os fenômenos superficiais, mas,
no momento em que se reconhece isso, se reforça que essa conexão existe. Isso significa
dizer que aquilo que observamos, percebemos e sentimos são indícios mínimos que,
apesar de não revelarem por si essa conexão, permitem chegar aos fenômenos mais
gerais que se articulam no tecido que vai se formando no processo de compreensão.
Procuramos, dessa forma, trançar essa rede de sentidos que, através dos “sintomas”,
daquilo que tentamos captar, como pistas, nas práticas dos sujeitos, os pormenores
aparentemente negligenciáveis, permitem chegar aos fenômenos profundos de notável
alcance (idem, p. 178). Não se tratou, portanto, de pretender chegar a formular um tipo
de conhecimento que explicasse total e abstratamente “a escola”, “a sala de aula”,
através de dados quantificáveis que se poderia obter nesses espaços, mas de, não
negligenciando os traços individuais (idem, p.163), chegar a resultados relevantes
(idem, p.178), não definitivos, finalmente conclusivos, mas relevantes.
Michel de Certeau (1994), com o título de seu livro: “A Invenção do
Cotidiano”, provoca uma reflexão que considero ser bastante sedutora para a pesquisa
“com o cotidiano”. Quando ele diz que o cotidiano é uma invenção ou que está sendo
inventado, está dizendo também que é uma criação que está sendo feita a cada
momento. Essa idéia de invenção, de criação sugere movimento constante, fluidez,
possibilidades. Certeau nos ajuda a perceber que são os praticantes desse cotidiano que
o inventam com as suas “maneiras próprias de usar os produtos culturais oferecidos no
mercado dos bens (p.13). As escolas, as salas de aula e todos os espaços cotidianos
são, dessa forma, “um permanente devir (Ferraço, 2004) que estão para serem
pensados. Por isso, nos diz também Ferraço, trata-se de um desafio, pois, se estamos em
meio ao efêmero, ao passageiro, como captá-lo?
Um outro desafio a ser enfrentado é o de me desprender de certas formulações
com que tenho me deparado e mesmo elaborado ao longo de minha vida de professora,
37
seja na escola ou na universidade, que falam das escolas e das salas de aula como se
fossem todas uma só, como se o que realizam os sujeitos históricos desses espaços-
tempos seja sempre o mesmo e da mesma maneira. De certa forma, essa idéia se articula
àquela outra que concebe o cotidiano apenas como rotina, no sentido mais comumente
aceito, como “o que se faz, todo dia, sempre igual”. Mas o que apresento aqui são os
riscos que se colocam ao entender o familiar, o conhecido como já sabido. Podemos
pensar, como praticantes das escolas, que tudo conhecemos sobre ela. Conforme nos
dizem Alves e Oliveira (2002) aquilo que acreditamos saber em relação a qualquer
assunto dificulta nossa percepção de elementos que nos são desconhecidos” (p.90).
Para desenvolverem essa questão, as autoras apresentam três imagens. A primeira é a do
cego” que dentro da idéia da tessitura do conhecimento em rede” (Alves, 1998
a;
1998 b) significa o excessivo aprisionamento ao que julgamos conhecer sobre o que
queremos pesquisar. Esses “nós cegos” prejudicariam a articulação de novos fios de
saberes ao anteriormente sabido” (Alves e Oliveira, p.90). A segunda é de Maturana
(1998) que chama de “antolhos” os conhecimentos preexistentes que nos fazem, como
os cavalos, permanecer com o olhar fixo numa direção, sem condições de perceber
outras tantas possibilidades existentes à nossa volta. Por último, a terceira, de Von
Forster (1999), que inverte a máxima aprendida: “é preciso crer para ver” como nos
falam as autoras, para dizer que
se continuamos fechados em crenças preestabelecidas a respeito
do que podemos encontrar em uma determinada realidade
pesquisada, estaremos ‘cegos’ para aquilo que é transgressão em
relação ao que já sabemos (p.90).
Se entendemos que o cotidiano é inventado dia-a-dia pelos praticantes na sua
rica diversidade, múltiplas identidades, não podemos nos conformar com as explicações
que concebem um conceito de escola homogênea e homogeneizante (Ezpeleta e
Rockwell, 1986). Na distância (nem sempre física) em que são pensadas e ditas, essas
idéias tão propagadas sobre “a escola” e “a sala de aula”, essas explicações sobre o que
nelas não vai bem ou mesmo sobre aquilo que se quer conhecer um pouco mais, muitas
vezes, abafam uma inquietude e acabam se transformando em obstáculos para outras
proposições que podem ser feitas com o cotidiano. Parto da idéia, então, de que é esse
cotidiano que pode nos apresentar, quando se oferece para que o desvendemos, maiores
possibilidades de enfrentarmos determinadas questões que estão presentes no nosso dia-
a-dia.
38
Larrosa (2003) quando apresenta o seu livro “Pedagogia Profana” diz que os
textos que nele estão
talvez apontem na direção de uma outra forma de pensar e
escrever em Pedagogia: uma forma em que as respostas não
sigam às perguntas, o saber não siga à dúvida, o repouso não
siga à inquietude e as soluções não sigam aos problemas. (p.8)
Inspirando-me em suas palavras e estabelecendo com elas uma identificação,
busco compreender o cotidiano desses espaços-tempos tão fundamentais nas escolas,
que são as salas de aula, fazendo perguntas e tentando com elas tecer redes de sentidos
que possibilitem desenvolver formas de contribuir para a produção de práticas no
sentido da realização do projeto educativo emancipatório que nos propõe Santos (1996).
Esse é um projeto que pode nos permitir, diz ele, colocar sob suspeita a repetição do
presenteessa sensação de estarmos parados nesse tempo paradoxal da sociedade de
consumo e da informação pois é desestabilizador, potencializa o inconformismo,
recusa o aprisionamento ao modelo de estagnação. Entendo que com isso, Santos nos
convida a colocar em questão a idéia de que as realidades presentes que não nos
interessam, por não serem socialmente favoráveis a todos os sujeitos, não podem ser
modificadas, por isso têm de ser infinitamente repetidas. Se essas realidades foram
gestadas por nós mesmos, sujeitos históricos que inventamos o mundo a cada dia, por
nós também podem ser criadas no cotidiano e estão sendo, sempre foram, novas
experiências que significam novas possibilidades para o presente e também para o
futuro.
Nas escolas e na educação, essas experiências emancipatórias estão a se repetir.
Conhecemos as práticas de professores que buscam relacionamentos mais democráticos
e igualitários através da realização de trabalhos coletivos e de formas de avaliação mais
dialógicas, os projetos de escolas e de governos que desenvolvem práticas curriculares
inovadoras, as concepções também inovadoras das disciplinas escolares e até a busca de
superação dessa organização curricular por disciplinas que impõe a fragmentação e
desarticulação entre os conhecimentos, enfim, iniciativas que mostram recriações das
práticas educativas sob a referência da emancipação social.
A tarefa a que me propus traz as suas dificuldades também se considerarmos a
complexidade que caracteriza o cotidiano escolar. A limitação a que podemos estar
sujeitos com o aprisionamento às grandes teorias sobre a escola ou aos nossos conceitos
e crenças sobre essa mesma escola irreal e modelar, nos afasta do real complexo que é
39
tecido, cotidianamente, pelas práticas culturais reais das populações (Alves e Oliveira,
2002, p. 93). Esse real não se submete às lógicas explicativas com que nos
acostumamos a pensar e agir na escola e sobre a escola. Porém, apesar das dificuldades,
penso que não como escapar dessas realidades presentes que estão a fluir, se me
proponho também, como fizeram e fazem outros pesquisadores, a me defrontar com
algumas questões que envolvem a escola pública quando a reconhecemos como
instituição que tem responsabilidade social de educar com qualidade todos os cidadãos e
se buscamos nos comprometer com isso, na perspectiva colocada, de que novas
possibilidades estão sendo criadas cotidianamente por nós, sujeitos das escolas.
E como são muitas as concepções de qualidade existentes, torna-se necessário
que eu diga de qual estou falando. Certamente não me refiro à idéia de qualidade
bastante divulgada no início dos anos 90, vinculada ao projeto de educação neoliberal
que tem por base as idéias de eficiência e produtividade, associando qualidade à
competitividade. A educação com qualidade de que estou tratando é aquela que prevê
que todos possam ir à escola e ter experiências bem sucedidas de aprendizagem e de
formação pessoal e social, efetivadas a partir de relações democráticas, solidárias e
justas entre os sujeitos e com os conhecimentos. É a idéia de qualidade que está
vinculada à democratização da sociedade e ao desenvolvimento da emancipação social.
E essa é a questão que apresento como a primeira daquelas com que temos de
nos defrontar: a da garantia do direito à educação escolar com qualidade para todas as
crianças e jovens, além de adultos que queiram. Que todos possam ir à escola e
permanecer nela durante o tempo que lhe garante a lei e/ou o da sua vontade. Que
possam aprender sobre si mesmo, sobre os outros, sobre o mundo natural, social, sobre a
vida enfim. E, se não for querer ir longe demais, serem felizes, fazerem daquelas
experiências das suas vidas, experiências de criação, realizando seu potencial cognitivo,
emocional, social e cultural o mais plenamente possível. Como diz José Pacheco,
fundador da Escola da Ponte
8
, na região do Porto, em Portugal, fazer das crianças e dos
professores pessoas mais sábias e mais felizes (Pacheco, 2004, p.90).
Imagino que essa pesquisa poderá contribuir para ampliar algumas
possibilidades de compreensão das práticas dos sujeitos que todos os dias fazem as salas
8
A escola da Ponte é uma escola pública portuguesa que existe vinte e cinco anos, cujo projeto e
realização podem ser considerados como bastante ino
40
de aula acontecer e quem sabe, com elas, da realização do projeto educativo
emancipatório para o qual nos convida Santos (1996).
Quando Santos nos apresenta e propõe esse projeto, ele nos indica a perspectiva
de uma educação que recupere a capacidade de espanto e de indignação e a oriente
para a formação de subjetividades inconformistas e rebeldes, pois, denuncia: esse
tempo presente repete indefinidamente os conflitos e o sofrimento humano banalizando-
os. Mas,
a produção de imagens desestabilizadoras a partir do passado
concebido não como fatalidade, mas como produto da iniciativa
humana, [pode nos revelar que] tendo opções, podia ter evitado o
sofrimento causado a grupos sociais e à própria natureza (id.ib.,
p.17).
Ele anuncia, então, um projeto educativo que assuma a aprendizagem de
conhecimentos conflitantes, que para este projeto educativo não uma, mas muitas
formas ou tipos de conhecimento (id.ib., p.17); que transforme a sala de aula em campo
de possibilidades de conhecimento dentro do qual professores e alunos têm de optar.
Diz que ele pode produzir imagens desestabilizadoras que alimentem o inconformismo
perante um presente que se repete, repetindo as opções indesculpáveis do passado
(id.ib, p.18), assentando as opções de professores e alunos não em idéias somente, mas
em emoções, sentimentos e paixões que conferem aos conteúdos curriculares sentidos
inesgotáveis (idem). Na proposta que faz, de efetivação de um projeto educativo
conflitual e emancipatório, Santos considera as dificuldades, porém a afirma, a partir da
idéia de que existem energias, sobretudo no passado enquanto campo de possibilidades
e decisões humanas para a sua realização.
Esse processo de pesquisa que buscou compreender as salas de aula, as práticas
que as constituem, compreendendo que essas mesmas nos informam sobre os seus
limites e possibilidades, me compromete com a tentativa de entender as escolas como
positividade, não no bom sentido, mas simplesmente no sentido do existente (Ezpeleta e
Rockwell, 1986, p.10). Aquilo que não existe ou o que não se faz nas escolas, mas que,
segundo determinados modelos ideais de escola proclamados pelo pensamento
hegemônico, deveria existir ou ser feito, não é o que nos interessa neste trabalho.
Sem dúvida, trata-se de uma opção política que faço. Como nos fala Santos
(2000), não indissociabilidade entre pensamento epistemológico e político Os
percursos que tenho seguido até aqui, assim como os que pretendo continuar seguindo
são tecidos na, ao mesmo tempo em que tecem a rede da minha formação e
41
transformação permanente como professora e pesquisadora. Portanto, nessa rede estão
também os fios que passam pelas esferas políticas (Alves, 1998) ou, como no dizer de
Santos (2000), os espaços de formação também marcados por esse mesmo caráter. Essa
rede de sujeitos em que venho me constituindo faz a escolha de trazer para os primeiros
planos das cenas do cotidiano escolar, os seus atores, nós, anônimos sujeitos políticos
da história desse cotidiano com aquilo que somos e fazemos.
Por isso, é fundamental, nesse momento, considerar essa noção que nos
apresenta Santos. Alves e Oliveira (2002) se utilizam dela para falar dos complexos
processos que nos fazem ser portadores não de uma identidade monolítica e
hierarquizável no plano das grandes estatísticas (p.93). As nossas práticas estão
informadas pelo todo complexo em que nos constituímos, esse que se forma
permanentemente nas e com as experiências que vivemos nos múltiplos e diversos
espaços-tempos da nossa vida. São fios de nós mesmos e de outros que vão sendo
tecidos nas relações que estabelecemos com e nesses espaços-tempos variados e, ao
mesmo tempo, vão, ao se trançarem, tecendo a rede que somos e as que ajudamos a
tecer nesses mesmos espaços-tempos.
Alves (1998) trata dessa questão quando afirma que a nossa formação como
professores não se exclusivamente no âmbito da formação acadêmica e identifica
outras esferas:
da ação política do Estado; da prática pedagógica quotidiana; da
prática política coletiva e das pesquisas em educação [e diz que]
é nas múltiplas articulações dessas esferas que se coloca a
totalidade da formação dos profissionais de educação,
[lembrando que] as relações entre as várias esferas se
estabelecem dentro de uma rede intrincada de coerção,
cooptação, conflito e contradição (p.64).
Como bem nos diz, uma verdadeira rede de relações” se estabelece entre as
várias esferas (p.64) e é nessa rede de relações que vamos nos formando. Talvez,
melhor dizendo, seja essa rede de relações que vai nos formando, não havendo
prevalência de qualquer uma dessas ações sobre a outra.
Recorrendo a Santos (2000), também podemos buscar compreender melhor
esses nossos complexos processos de formação de identidades e porque não é possível
saber, por exemplo, onde se inscreve, exatamente, determinado comportamento que
temos em dada situação, seja como profissional de ensino, ou outra função qualquer que
desempenhamos. Ele nos fala de seis modos de produção da prática social à volta dos
42
quais, nas sociedades capitalistas, desenvolve-se a interação social, os seis espaços
estruturais:
o espaço doméstico, o espaço da produção, o espaço do mercado,
o espaço da comunidade, o espaço da cidadania e o espaço
mundial. Cada espaço estrutural é um conjunto de argumentos,
contra-argumentos e premissas de argumentação amplamente
partilhadas... constitui um senso comum específico... mapas de
significação amplamente partilhados (p.303).
Esses espaços não são isolados e como são campos simbólicos especialmente
poderosos e partilhados, marcam as nossas práticas, não da mesma maneira, que
temos, cada qual, as nossas próprias trajetórias e experiências, mas de forma subjetiva.
Portanto, assim como com Alves (1998) podemos pensar sobre a formação como
um processo que não se apenas no âmbito da formação acadêmica, nem
isoladamente, em qualquer outra esfera; com Santos (2000), pensamos que não um
senso comum único, mas sim seis grandes sensos comuns circulando na sociedade
(p.304) e que todos, em alguma medida e também enredados, influenciam na nossa
formação.
Nessa perspectiva, como essa reflexão se inclui no conjunto das reflexões que
têm a prática social como produtora e produto da tessitura de conhecimentos em rede,
ela busca ampliar a compreensão dos espaços e tempos de formação profissional para
além do acadêmico e apontar as múltiplas possibilidades de relações e articulações que
eles têm.
Essa é mais uma razão que torna difícil pesquisar e compreender o viver
cotidiano! Isso porque, em geral, a nossa pretensão é encontrar ou construir aquelas
explicações causais tão a gosto do pensamento moderno (Alves e Oliveira, 2002, p.93).
No desejo de entender, procuramos uma origem para aquele comportamento,
sentimento, valor ou idéia presentes na realidade. Mas reconhecer essa impossibilidade,
reconhecendo a noção de redes de sujeitos como a maneira como nos constituímos,
pode significar um movimento importante na busca dessa compreensão. As grandes ou
pequenas explicações, formuladas pelas teorias que conhecemos sobre a escola, que
conseguem elaborar causas para tudo ou quase tudo o que acontece nas salas de aula
com alunos, professores e outros dessa rede, chegando a conclusões generalizantes e
apresentando prescrições para os seus comportamentos, não servem para a
complexidade das nossas identidades dinâmicas e plurais e nem para a complexidade
das realidades cotidianas que praticamos.
43
Morin (1996) nos apresenta a complexidade como desafio. E coloca essa idéia
do desafio como fundamental, pois diz que não podemos conceber a complexidade
como resposta, como receita, mas como uma motivação para pensar” (p. 176). Pensar o
real sem buscar sua simplificação vai nos colocar, necessariamente então, diante desse
desafio. Se nos interessa considerar os múltiplos e variados aspectos que compõem a
realidade de forma articulada, as interações entre os sujeitos produzindo conhecimentos,
entre os diferentes conhecimentos e tipos diferentes de conhecimentos, assim dessa
maneira, nas suas diversas dimensões, sem reduzi-los, sem nos desfazermos do que não
pode ser calculadamente analisado e explicado, mas, ao contrário, tentando dar conta
dessas singularidades, teremos de reconhecer também o princípio de incompletude e de
incerteza que o pensamento complexo, do qual nos serviremos, comporta (id.ib., p.177).
Ao mergulharmos nessas realidades, esse desafio nos faz pensar que estamos em meio a
um tecido formado pelo entrelaçar de inúmeros e diversos fios, alguns deles nós
mesmos; que esse tecido é uno e múltiplo ao mesmo tempo e que, ao contrário do que
podemos conceber com o pensamento ocidental moderno, ele não destrói a variedade e
a diversidade das complexidades que o teceram e ainda o valorizam.
I. 3- Afinal, que escola é essa?
Estou chamando de escola, mas essa escola na qual realizei esta pesquisa traz
uma peculiaridade já em seu nome, que expressa uma marca de diferenciação em
relação a outras escolas também públicas do Rio de Janeiro e do Brasil: não é escola, é
colégio, trata-se do Colégio Pedro II.
Fundado ainda nos tempos do Império, por
decreto de 1837 levado para assinatura do Regente Pedro de
Araújo Lima pelo eminente Ministro Bernardo Pereira de
Vasconcellos. Esse, homem de sólida formação humanística de
irradiação francesa, tinha como objetivo criar no Brasil um
estabelecimento nacional de ensino que recordasse a grandeza do
Colégio de França, considerado o maior monumento cultural da
Europa (Doria, 1937, p.XI).
As pretensões do ministro para esse estabelecimento de ensino eram as “de dar
passos em caminhos trilhados, na certeza de um resultado positivo quanto à educação
de um povo” (idem, p.XI), por isso, no nome inscreveu essa semelhança com a
instituição francesa, o Colégio de França, chamando-o de Colégio de Pedro II em
44
homenagem ao jovem imperador do Brasil. À permanência desse nome, alterado
algumas vezes no decorrer da sua história, mas recuperado em defesa da tradição que
carregava, podemos relacionar um momento da história da educação, a partir do século
XVIII, em que
se inaugura uma duplicidade do sistema educacional, quando
cada ramo [do ensino] não corresponderia mais, exclusivamente,
a uma classe de idade, mas a uma condição social: o liceu ou o
colégio para os burgueses (o secundário) e a escola para o povo
(o primário) (Gondra, 2005, p.40).
Poderíamos pensar nessa marca em seu nome, que o distingue, até hoje, das
outras instituições de ensino, também sob esse aspecto da condição social daqueles a
quem atendia ou pretendia atender.
Essa diferenciação, que não está no nome, será facilmente confirmada pelo
leitor se passarmos a caracterizá-lo e a percorrer um breve caminho por alguns pontos
da sua história e tradição. Ao longo da pesquisa, essa diferenciação apareceu de forma
significativa em vários momentos e, por isso ganha aqui essa relevância.
Para a data de sua inauguração foi escolhido um dia “importante”, elegeram um
natalício, o do menino mais de vista no Império: D. Pedro II. Completava ele doze anos
a 2 de dezembro de 1837 (Dória, p.23). A abertura oficial do colégio aconteceu em
25 de março de 1838, mas a sua inauguração não poderia ocorrer num dia qualquer, por
isso o dia do aniversário de Pedro II.
O regente e o ministro queriam que o Brasil tivesse um estabelecimento modelo
de letras secundárias. E, diz o texto de apresentação que justifica a reedição e
atualização da obra: Memória Histórica do Colégio de Pedro II de Escragnolle Doria
(1937), do qual me utilizo:
Os mais de cento e cinqüenta anos de existência do Colégio
Pedro II respondem afirmativamente aos anseios de seu
idealizador. Durante esse período ele tem sido a centelha viva a
iluminar o aparecimento de novas instituições (idem, p.XI).
O Colégio Pedro II é hoje uma autarquia federal do Ministério da Educação. Um
complexo composto por onze unidades escolares que levam os nomes dos bairros em
que estão localizadas: Centro; Engenho Novo I e II; Humaitá I e II; São Cristóvão I, II e
III; Tijuca I e II e Realengo. As unidades I ministram ensino da classe de alfabetização
até a 4
a
série do ensino fundamental; as unidades II, da 5
a
até a 8
a
série e o ensino
médio; com exceção de São Cristóvão, onde a unidade III que oferece apenas o
45
ensino médio e Realengo que oferece o ensino médio. Essa última unidade é a mais
nova, seu funcionamento iniciou-se em 2004, fruto de um convênio com a prefeitura do
Rio de Janeiro que cedeu as instalações de uma de suas escolas até que o seu prédio
próprio seja construído, o que está previsto para acontecer brevemente. O colégio tem
hoje cerca de onze mil alunos no conjunto de suas unidades escolares.
Até 1984, o Colégio Pedro II tinha apenas as unidades que oferecem o que hoje
denominamos de 3
o
e 4
o
ciclos do ensino fundamental (5
a
à 8
a
séries) e ensino médio. A
primeira unidade de ensino do primeiro segmento do ensino fundamental (da classe de
alfabetização à 4
a
série), São Cristóvão, foi criada nesse ano. As demais foram criadas
nos anos seguintes: Humaitá (1985), Engenho Novo (1986) e Tijuca (1987).
Criado para ser um colégio modelo, desde a sua inauguração, o Colégio Pedro II
serviu como parâmetro para o surgimento de outros estabelecimentos de ensino. Seus
professores participaram diretamente da criação de outras escolas públicas, assim como
de grandes reformas educacionais que vieram a estabelecer padrões de ensino e
avaliação para toda a educação nacional. Desde os primeiros anos da república, durante
muitas décadas, o exame que conferia o grau de bacharel em ciências e letras aos alunos
que concluíam o ensino secundário em todo o país era realizado pelo colégio. A
obtenção desse grau, em alguns períodos, possibilitava o acesso direto aos cursos de
nível superior. Aos reprovados nesse exame restava apenas o certificado de conclusão
do curso. O título de colégio-padrão do Brasil, ainda hoje presente no imaginário social,
portanto, vem de longe, de um lugar de fato ocupado por essa instituição ao longo de
muitos anos.
Os registros e os discursos que lemos ou ainda hoje ouvimos lembram essa sua
participação na criação e influência acadêmica sobre outros estabelecimentos de ensino
e sobre a educação nacional. Além disso, lembram também “as personalidades ilustres”,
presidentes da república inclusive, que “em seus bancos se educaram” e um “quadro
docente memorável” que justifica o “alto padrão da qualidade de ensino”. São registros
e discursos sempre enaltecedores da instituição.
Como exemplo do que falo, trago uma reportagem de página inteira publicada
no Jornal do Brasil em janeiro deste ano de 2005 que anunciava a contratação de 100
novos professores para o colégio. Aprovados em concurso público desde 2003, esses
professores aguardavam serem chamados para assumirem seus cargos. Essa contratação,
feita às vésperas do início das aulas, acabou virando notícia porque havia sido
anunciado anteriormente que esse início seria adiado por falta de professores.
46
O colégio, que vem anos suprindo a falta de professores em seu quadro
funcional através de contratos temporários, dessa vez estava impedido pela justiça de
fazê-lo. Uma ação judicial, movida e ganha por esses professores aprovados em
concurso público no ano de 2003, questionava esse procedimento que vinha sendo
adotado, como parte da política do governo federal de não admitir novos funcionários
efetivos em seus quadros, já que havia um grupo de 100 professores concursados
aguardando chamada. Dessa forma, não podendo, por força de cumprimento de
mandado de segurança, contratar provisoriamente os professores de que precisava para
dar início ao ano letivo, o colégio obteve autorização do Ministério da Educação para
chamar os professores concursados a assumirem seus cargos e ingressarem no seu
quadro de funcionários efetivos.
Pois bem, essa reportagem que, na época, foi acompanhada de uma série de
outras veiculadas em outros meios de comunicação, teve muita repercussão, pois ela não
apenas anunciava o fato de que o colégio estava contratando 100 novos professores
aprovados em concurso realizado dois anos antes, mas denunciava um outro que era a
possibilidade inédita do início do ano letivo de 2005 ser adiado por falta de professores.
Dizia a reportagem:
o ano letivo da escola, programado para começar dia 21 de
fevereiro, poderia ser adiado. Seria a primeira vez que o colégio,
fundado em 1837, não começaria as aulas na data prevista por
falta de docentes (Jornal do Brasil, 16/01/2005, A15)
Ora, quantas escolas do Rio de Janeiro e do Brasil tiveram seu início de ano
letivo adiado, ao menos parcialmente, por falta de professores? Infelizmente, essa é uma
realidade que conhecemos e, na maioria das vezes, não provoca tanta indignação e
mobilização nem mesmo no bairro onde a escola está localizada. Mas nesse colégio isso
seria inédito nos seus 167 anos de existência e o fato é que não aconteceu.
Entre os argumentos para demonstrar e justificar o diferencial que tem o colégio
em relação a outras escolas públicas brasileiras e, portanto, o “absurdo” que seria ver o
seu início de ano letivo adiado por falta de professores, lemos no texto da reportagem:
Pelas salas de aula do colégio passaram os presidentes
Rodrigues Alves, Nilo Peçanha, Hermes da Fonseca e
Washington Luiz e até o imperador D. Pedro II. Do corpo
docente fizeram parte o Barão do Rio Branco, o escritor Euclides
da Cunha, o militar Benjamin Constant e o historiador e
sociólogo Aurélio Buarque de Hollanda...
47
- A base intelectual do país foi formada no Pedro II. Desde
Joaquim Nabuco a Manoel Bandeira diz Antonio Lopes,
presidente da associação dos ex-alunos.
Além de Nabuco e Bandeira, passaram por lá Álvares de
Azevedo, Visconde de Taunay e Afonso Arinos de Melo Franco.
48
É importante destacar que esse é, até hoje, o grau atribuído aos alunos que
concluem o ensino médio no colégio, apesar de não mais existir essa possibilidade de
acesso direto às universidades. Nos discursos feitos em cerimônias de formatura e até
nas conversas entre os próprios estudantes, isso é citado com orgulho: o diploma do
Pedro II não é igual aos das outras instituições públicas e particulares de todo o Brasil.
Em conversas com as professoras que participam dessa pesquisa, foi unânime o
sentimento de nos sabermos e nos sentirmos parte de uma instituição pública de ensino
que goza ainda de um certo prestígio social, pelo menos, no município do Rio de
Janeiro. Algumas delas disseram que quando falam que são professoras, principalmente
que são “professoras primárias”, é muito comum ouvir comentários do tipo: “Coitada!
Professora?”, por causa da falta de valorização por parte do poder público e da
sociedade em geral, o que aparece nos baixos salários, na ausência de política de
formação, na falta de condições dignas de trabalho e etc. Mas quando as pessoas sabem
que somos professoras do Colégio Pedro II, a conversa ganha outro tom e é possível
ouvir: “Ah! Professora do Pedro II é diferente!”.
Devemos dizer que temos mesmo uma situação de trabalho diferenciada da
grande maioria de nossas colegas professoras. Somos mais bem remuneradas, nossas
salas de aula têm menos alunos e a infra-estrutura pessoal e material do colégio é
superior à da maioria das outras escolas públicas municipais e estaduais do Rio de
Janeiro.
Uma dessas professoras, quando falava com seus alunos em algumas ocasiões
sobre o quanto deveriam estudar e até mesmo como deveriam se comportar e falar, fazia
referência ao lugar de destaque que o Pedro II ocupa no cenário educacional do Rio de
Janeiro e até do Brasil. Dizia que eles não eram alunos de qualquer escola, eram alunos
do “Colégio Pedro II”. Comigo, algumas vezes, para criticar o que “sabiam” os alunos
de uma de suas turmas quando chegaram à terceira série, também usou esse argumento
acrescentando a ele nomes de pessoas ilustres, importantes brasileiros que no colégio
estudaram: Como pode dizia ela uma turma chegar assim à terceira série do Pedro
II?
Ouvi também, em determinada ocasião, essa professora dizer aos alunos e aos
seus pais o quanto deveriam valorizar o fato de estarem ali naquele colégio. Era uma
festa em sua homenagem, preparada pelos pais e mães das crianças, por ocasião da
49
passagem do “dia do mestre”. No seu discurso de agradecimento, a professora disse que
estava muito contente com o resultado que vinha obtendo com os alunos:
Eles estão uns verdadeiros intelectuais. Hoje, eu saí da sala e eles
ficaram sozinhos fazendo trabalho sobre preposição. Imagina só!
Preposição que a gente nem deveria estudar na terceira série,
mas que eu achei que poderíamos. Quando eu voltei, estavam
todos fazendo o trabalho, concentrados, e olha que sobre uma
coisa chata, gramática! É isso aí, a turma tem 22 crianças com
toda capacidade de brilhar lá no Pedrão, na 5
a
série. Todos
podem! O Pedro II é uma escola com problemas, mas ainda é
uma boa escola. Vocês estão vendo na televisão, quem não
estuda não consegue nada na vida, vocês não podem desperdiçar
essa oportunidade!
Mesmo com todos os problemas, disse a professora, o Pedro II ainda é uma “boa
escola” e como “boa escola” que é e sempre foi, como dizem os escritos que contam a
sua história desde o ato de fundação, deve zelar pelo ensino que oferece, garantindo o
acesso dos alunos aos conteúdos escolares compatíveis com a série que estão cursando,
assim como exigindo deles um comportamento adequado aos padrões de qualidade da
instituição. Certamente essa idéia sobre o colégio e sobre o que se deve esperar dos seus
alunos não está presente somente no imaginário dessa professora. Como “praticantes”
de tempos e espaços comuns, muitos de nós partilhamos idéias semelhantes.
Minha história se embaralha com essas outras, já que minha família buscou para
os seus filhos uma formação escolar nos padrões da que oferecia o Colégio Pedro II.
Como os meus alunos de hoje, eu também sentei em seus bancos, pertenci ao seu grupo
de alunos e fiz parte dessa história “de glória” que se conta. Lembro que o uniforme
diferente do das outras escolas públicas que usávamos era também um distintivo – como
é até hoje a saia com três machos em vez de dois como era nas escolas públicas
municipais e estaduais, a blusa com outro corte, sem gola e um viés azul marinho à sua
volta, além de um emblema no bolso, indicador da série a que pertence o aluno. Minha
mãe falava vaidosa dessa diferença. Ela tinha duas filhas, dos cinco que tivera, que
estudavam no Colégio Pedro II. Tenho ainda vivo na lembrança, o tempo de espera, as
sensações e as impressões que tive ao entrar naquele imponente prédio da Unidade
Centro para fazer a prova do concurso de ingresso. E guardo até hoje, com carinho e
orgulho, um dos emblemas que usei nos meus tempos de aluna.
Quando, mais tarde, prestei concurso querendo ingressar no
quadro de professores, desejava um outro tipo de pertencimento,
trazendo comigo as marcas desse outro que se fora. Como
docente, atualmente pesquisando o cotidiano desse colégio, busco
50
compreender os sentidos que nós professoras vamos atribuindo
ao que vivemos em todos os espaços-tempos por onde passamos
em nossa vida, observando o quanto eles estão presentes,
participando dos sentidos que, junto com os nossos alunos, vamos
atribuindo às experiências que temos nas nossas salas de aula.
Tendo sido alunas ou não do colégio, em outros tempos, nós professoras e todos
os outros sujeitos que fazem parte das redes que são as salas de aula, temos sobre ele os
nossos conhecimentos, as nossas idéias, os nossos sentimentos e valores como teríamos
sobre qualquer outra escola em que trabalhássemos. Mas sendo o Colégio Pedro II o que
é, carregando com ele o peso da tradição de “colégio-padrão” do Brasil como foi criado
e como permaneceu por tantos anos, a idéia de qualidade de ensino que circula
hegemonicamente na comunidade escolar é uma idéia fortemente vinculada ao volume
de conteúdos que cada uma das disciplinas escolares deve ensinar, apesar de sempre
associada à formação cidadã. O acúmulo de conhecimento escolar a ser demonstrado
socialmente pelos alunos formados pelo colégio e a sua “postura” como verdadeiros
cidadãos do mundo é um nobre compromisso com a sociedade brasileira que se espera
da instituição. O CPII caracterizou-se por ter sempre proporcionado ensino humanístico,
sem prejuízo das disciplinas científicas, deixa claro o texto de seu projeto político
pedagógico (PPP, p.30).
Mas, não demonstram o colégio e nem estudiosos que um dia se dedicaram à
pesquisa sobre a sua história, preocupação com o que esse compromisso pode ter
causado além de “excelência”.
Galvão (2003), professora que participa dessa pesquisa e realizou estudo sobre o
expediente da jubilação
9
na história do colégio em sua pesquisa de mestrado, deixa claro
que pouquíssimos documentos encontrou nos arquivos do Pedro II sobre o assunto que
lhe interessava. Observa que o registro da história praticamente se restringe ao que foi
realizado com sucesso, apesar de, no passado, terem sido sempre muito altos os índices
de reprovação e jubilação. Aliás, a idéia que a autora transmite é a de que, ao contrário
do que prevalece nos dias de hoje entre os educadores, estudiosos da educação e
governos, de que qualidade na educação pressupõe não só o acesso à escola, mas
também a permanência e a adequação idade/série, o que percebe nos textos dos
documentos pesquisados, é que a qualidade do ensino no colégio se preservou
exatamente porque existiam esses altos índices de reprovação e jubilação. O padrão de
9
A jubilação é o procedimento que coloca para fora do colégio, os alunos que são reprovados duas vezes
seguidas, na mesma série, portanto.
51
excelência está, portanto, relacionado também a esses procedimentos que colocam para
fora os desviantes, os inadaptados, aqueles que não se adaptaram às regras da
organização escolar (Gondra, 2005, p.56), aqueles que não corresponderam aos
padrões de qualidade estabelecidos pelas normas da escola.
É possível que essa concepção também esteja presente em nossas redes de
sentidos, nas que nos formam e nas que nós ajudamos a formar nos espaços-tempos que
praticamos, com os sujeitos que também participam dessas redes. Talvez seja essa a
idéia que aquela professora de que falei anunciava algumas vezes aos seus alunos e até
aos pais desses alunos: a excelência do Pedro II, enquanto instituição de ensino
responsável por formar os seus alunos como portadores de grande quantidade de
conhecimentos escolares, conhecimentos de alto padrão de qualidade, inclusive os que
servem para orientar posturas e comportamentos de convivência social, a referida
formação humanística. Portanto, não poderíamos aceitar que os alunos seguissem para
as séries seguintes às que estão, sem saber os conteúdos que estavam previstos pelo
programa da série que cursavam. E ela, a professora, particularmente, estava contente
em ver que seus alunos estavam aprendendo até aquilo que era muito chato, mas
importante de ser aprendido, que era a gramática da língua portuguesa.
Galvão (2003) nos conta como se viu totalmente envolvida com a história do
colégio quando percorria atalhos na busca das primeiras fontes de jubilação. Na série de
visitas que fez à Unidade Centro onde fica o Núcleo de Documentação do Colégio
Pedro II (NUDOM), a arquitetura e os objetos amarelados a transportavam para um
tempo em que uma escola pública vivia um grande esplendor e pareciam querer lembrá-
la de que aquele fora o colégio padrão de ensino de humanidades e que traçara as
normas a que a Educação Nacional obedecera por mais de um século (p.24).
A professora responsável pelo NUDOM que a recebera logo lhe disse que
acreditava não terem sido feitos estudos ainda sobre o seu tema de pesquisa, a jubilação.
Sua fala reforça a idéia apresentada de que interessou e ainda interessa ao colégio e
àqueles que sobre ele escreveram, registrar e divulgar apenas a sua história de sucesso,
através das histórias de sucesso de alguns de seus alunos e professores, aqueles que
foram ou viriam a ser personalidades ilustres no cenário carioca ou brasileiro. Com o
que disse, podemos também ser levados a pensar na idéia de que até mesmo os números
que, porventura, possam ser avaliados como sendo uma grande quantidade de alunos
reprovados ou jubilados estão incluídos nessa história de sucesso. Para isso,
precisaríamos penetrar na concepção que sustentaria essa idéia, qual seja: escola boa é
52
aquela que reprova ou que coloca para fora aqueles que não querem estudar. De uma
forma ou de outra, o que busco destacar é o quanto esse peso da história e dessa história
que se conta sobre o colégio nos envolve e participa das nossas redes de sentidos,
daquilo que somos, principalmente como professoras do Colégio Pedro II.
Apesar do passado ser sempre a principal referência para explicar a
grandiosidade do colégio e justificar determinados atos e decisões políticas,
pedagógicas e administrativas tomadas pelos seus dirigentes e pelo governo, a
preservação dessa imagem grandiosa sobre o Colégio Pedro II dá-se dia-a-dia nas
práticas cotidianas dos sujeitos históricos que fazem parte da imensa rede que forma
essa instituição: alunos e alunas, professores e professoras, pais e mães, funcionários
técnico-administrativos, diretores, coordenadores e outros. São expectativas que se
transformam em projetos, realizados ou não, de diferentes dimensões e naturezas
dependendo de quem são os seus formuladores ou público alvo. São maneiras próprias
de ensinar e aprender, de conversar, de se reunir, de discursar, de se organizar, de
acolher, de exigir, enfim, de fazer acontecer o colégio cotidianamente.
Falar sobre essa história, em outros tempos e hoje, nos possibilita pensar sobre
um pouco do que somos nós, os seus sujeitos, como professoras, como alunos e alunas,
como pais e mães e etc. Certamente os sentidos que atribuímos às nossas experiências
cotidianas no colégio e fora dele não são os mesmos que atribuiríamos se fôssemos
parte de outras redes, que constituem outras escolas. Nossas práticas estão encarnadas
nessa história. História que está sendo tecida por todos os sujeitos que desde o projeto, a
fundação, os primeiros anos de funcionamento, até hoje, participam dela de alguma
maneira.
I. 4- E aí surgiram os “Pedrinhos”
Dessa história faz parte também o surgimento do “Pedrinho”. É dessa forma que
são chamadas, carinhosa ou preconceituosamente, como nos instiga a pensar Vinco
(2005) em seu projeto de dissertação – as unidades I, aquelas que atendem os alunos das
primeiras séries do ensino fundamental (da classe de alfabetização à quarta série). Como
mencionado, foi apenas no ano de 1984 que o colégio passou a oferecer vagas para
esse segmento. Fruto de “um sonho antigo” do diretor-geral da época, professor Tito
Urbano da Silveira, tornou-se possível de ser realizado por não ter ido adiante um
projeto do MEC de criação de uma escola polivalente naquele espaço que pôde então
ser disponibilizado para o que seria o primeiro dos quatro “Pedrinhos” que hoje existem.
53
Antes disso, aquelas áreas eram ocupadas por depósitos e almoxarifado do colégio
(Rocha, 2001).
Para concretização desse sonho, foi realizado um concurso público que
selecionou o primeiro grupo de professoras a quem o diretor-geral confiou a nobre
missão de elaborar todo o projeto político-pedagógico daquela unidade. Tudo deveria
acontecer naquele mesmo ano de 1984. A escola deveria começar a funcionar pouco
tempo depois da admissão daquelas professoras e, como esse projeto ainda não existia, a
elas caberia a sua elaboração e, ao mesmo tempo, realização. Baseada nos currículos e
conhecimento da história de algumas professoras, a direção-geral do colégio formou
uma equipe pedagógica que coordenou os trabalhos a partir de então.
Desde o início, o Pedrinho se inscreveu na história do Colégio Pedro II de
maneira também muito peculiar e é interessante que observemos essas peculiaridades,
pois elas participam dos sentidos que nós, professoras dos “Pedrinhos” atribuímos às
nossas práticas cotidianas.
A recepção feita a esse grupo de professoras que inauguraria o Pedrinho
aconteceu dentro do glorioso espírito de colégio-padrão que essa instituição ostenta
desde os tempos de sua fundação até hoje. O mesmo professor Tito Urbano percorreu as
instalações da unidade São Cristóvão, em pleno sábado, o primeiro após a divulgação
do resultado do concurso, apresentando às cinqüenta professoras classificadas os
espaços da sesquicentenária instituição de ensino à qual, a partir daquele momento, elas
teriam a honra de pertencer como docentes. Era esse o tom de sua fala. Além disso,
teriam também a honra e a responsabilidade de implementar seu sonhado projeto de
oferecer todo o ensino básico no colégio, da classe de alfabetização à terceira série do
ensino médio.
Quem nos conta esse episódio inaugural da história do “Pedrinho” é uma das
professoras que participa desta pesquisa, Cristina Galvão, no texto citado por Rocha
(2001):
Mal saiu o resultado do primeiro concurso para
professores de CA a 4
a
séries do Colégio Pedro II, os
cinqüenta primeiros colocados foram convocados para
comparecerem à Unidade São Cristóvão num sábado do
mês de fevereiro de 1984.
Esse grupo foi recebido pelo diretor-geral que passou uns
noventa minutos percorrendo com todos os concursados
as dependências vazias do colégio. Mostrava salas,
salões, refeitório, auditório, quadros do Imperador Pedro
II, móveis, banheiros, corredores, cozinha. Exprimia um
54
prazer incrível por estar entre as paredes daquela
instituição e procurava nos passar a distinção imensa que
teríamos daquele momento em diante por estarmos
ingressando no quadro de docentes do Colégio Pedro II.
Éramos alçados à condição de protagonistas de um feito
histórico, o colégio atenderia pela primeira vez a alunos a
partir dos seis anos e nós seríamos os mentores desta
empreitada. (Galvão, 1998, p.42)
As marcas da instituição incluindo as deixadas pela visita se fizeram
presentes em vários momentos dessa pesquisa nas aulas, nas salas de aula e nas
conversas que tive com professoras, mães, pais e alunos. Em conversa que tive com a
mãe de um aluno que fazia parte de um dos grupos do apoio do qual eu era a professora,
dizia que às vezes tinha a sensação de que o Colégio Pedro II não era a escola certa para
o seu filho. Como Flávio teve duas reprovações na mesma série desde a sua entrada na
C. A. (classe de alfabetização) até aquele ano 2004 em que cursava a terceira série,
sua família acompanhava de perto seu percurso escolar, pois esse exigia cuidados
especiais segundo a percepção das suas professoras, das orientadoras pedagógicas e dela
mesma como mãe. Na conversa, perguntei qual era a sua impressão sobre a escola com
relação ao Flávio, desejava saber qual era sua percepção, se se sentia satisfeita. Ela
respondeu que tinha tido vontade de tirar o Flávio do colégio quando ele repetiu a
primeira vez, mas seu marido não deixou. Perguntei-lhe por que teve aquela vontade e
ela disse:
Porque para mim, ele não estava se adaptando. Como até hoje,
tem hora que, sabe quando você acha que ele está no lugar
errado? Devido a essa dificuldade que ele tem de aprender, mas
só que é como eu falo também, se ele estivesse numa escola
pública, não iriam estar tão preocupados com essa dificuldade
que ele tem. Porque tem escola que não está nem aí para a
criança, se a criança apresenta algum tipo de dificuldade vai
indo, vai empurrando com a barriga, aquela coisa toda e aqui
não, aqui eles mostram esse interesse em querer ajudar ele, sabe?
Eles passam para mim as dificuldades dele, não as
professoras, essa parte assim, na área do SOE, todo mundo está
bem envolvido com a situação dele e procura ajudar. Então, eu
fico muito satisfeita em relação a isso, mas, às vezes, eu fico
preocupada porque todo mundo fala assim: ‘Ele está atrasado,
ele está muito atrasado, ele está com 11 anos na 3
a
série, com 12
anos ele ainda vai pra 4
a
série, aquela coisa toda.’
55
Interessei-me, em saber se quem diz isso para ela são as pessoas que trabalham
na escola, mas ela logo afirmou que não, que são os parentes, pois entre eles existe uma
concorrência:
‘Ah! Porque a prima tem tantos anos e está na série tal’. Está
entendendo? que a gente procura ver a qualidade de ensino, é
por isso que ele ainda está aqui. Porque é como eu falo, aqui o
ensino é muito bom, a qualidade de ensino é boa, eu tiro por
algumas sobrinhas que eu tenho, eu vejo a matéria que elas dão,
as atividades que elas dão, entendeu? A série que elas estão,
assim, não é compatível ao que ele já está.
Então o que faz ele ficar aqui é isso, essa preocupação que a
escola tem com ele, na parte de ensino e até comportamento
também, e a qualidade de ensino ser boa. E é o que eu falei com
ele: ‘De lá você só sai se te expulsarem’ porque, diante disso, não
vou desistir. Eu não desisto porque eu falei para ele: ‘Meu filho,
isso é uma oportunidade que muitos, milhares querem e não têm e
você conseguiu’ então, o que eu puder fazer pra ele permanecer
aqui, eu vou fazer. O que mandam eu fazer: procura isso eu vou,
vai ali, eu vou, porque a gente tem que investir.
Levantei outra questão sobre seu ponto de vista em relação ao trabalho, ao que
se estuda na série em que o filho está, se ela acha adequado para a idade, se ela acha que
o seu filho gosta, acha difícil ou fácil demais, se interessa, se envolve enfim.
Olha só, cada criança tem uma maneira de agir, conforme você
uma atividade. Aqui é uma escola assim, é uma escola de
tradição, então, quer dizer, tem um ensino um pouco elevado.
Tem criança, como o Flávio, que tem sim, apresenta algumas
dificuldades porque o ensino é mais puxado. A leitura, digamos,
não é uma leitura de uma página, é uma leitura de duas, três
páginas, isso, às vezes, se torna cansativo, não para todas as
crianças, como eu estou te falando. É claro que tem criança que
supera isso com muita facilidade, como têm outras que têm essa
dificuldade. Então, eu acho que tinha que haver uma maneira de
tentar, não diminuir, mas tentar de uma maneira, puxar, que eles
mostrassem mais esse interesse também. Eu digo pelo Flávio,
quando é muita coisa para fazer, ele reclama muito, sabe, mas
claro que a gente sabe que a leitura é a base de tudo! que a
criança que não tem dificuldade vai ler, ela vai embora, faz
aquela interpretação maravilhosa, mas tem criança que não tem
essa facilidade, mas, às vezes, já para outras coisas apresenta um
bom desenvolvimento. Então tem que rever um pouco mais essa
parte, porque, muitas crianças que vêm para cá, vêm de escolas
particulares boas, às vezes vêm com uma bagagem... tem
criança que quando vem para cá, lê, copia, são poucas as
crianças que vêm para que não sabem nada, que não sabem
ler, que não sabem escrever, que não sabem copiar o nome.
56
O rumo que a conversa tomou, me instigou a buscar saber como era a relação do
Flávio com a leitura dos livros que ele leva para casa todas as semanas, através do
Clube de Leitura que funciona na sua turma. Perguntei sobre isso e a mãe respondeu:
Ele às vezes, nem sempre ele lê. Ele às vezes não lê, vou te
falar, não é nem questão de ele não querer, é a questão do tempo
mesmo, porque como eu estou te falando, às terças e quintas,
quando ele sai, chega tarde e é muito dever, às vezes é muito
dever de casa que vem, aí, às vezes, eu pego ele às três horas vou
terminar seis horas da tarde com ele fazendo o dever, então, ele
está assim saturado. Aí, quando vê, vai jantar, pronto, porque
ele dorme oito horas da noite, oito, oito e meia da noite. Tem que
acordar cedo, a gente sempre coloca ele e a irmã para dormir
cedo por causa da escola de manhã. Então, às vezes, eu entendo
mesmo, quando ele termina, ele quer assistir uma televisão, ele
quer ver uma fita, entendeu? Ele não quer se prender na parte da
leitura, eu também não forço muito porque eu fiquei muito
tempo, sobrecarreguei ele muito tempo, entendeu, com a
questão do dever de casa. Às vezes, até eu leio pra ele, ‘deita lá’.
Perguntei: que ótimo, ele gosta? E ela continuou:
Ele gosta, deita ele e a irmã. eu conto, às vezes, quando eu
vejo, ele já dormiu.
Compreendi dizendo: É pesado pra ele. E ela concluiu:
E eu não vou desistir. Eu falo para ele: ‘Flávio, você pode
desistir de tudo, futebol, natação, agora, nada disso pra mim tem
valor, o ensino pra mim é fundamental’ O ensino, assim,
enquanto eu tiver força, sabe, que eu puder incentivar, tem que
ir...
O trecho da conversa que apresentei está tecido nessa história de glória que
apresento. Ele faz parte da idéia de que pré-existe ao aluno, uma condição de qualidade
da escola por vezes superior à capacidade dele. Tanto é assim que na sua vida escolar o
Flávio está sempre, com muito esforço, tentando se aproximar dessa condição e muitas
vezes não consegue. Essa dramática situação exige que a família se mobilize para
acompanhar as atividades escolares do menino além de providenciar outras atividades,
atendimentos de profissionais de saúde, recomendadas pela escola, como
fonoaudiologia e psicologia.
A mãe do Flávio expressa viver cotidianamente vários conflitos por conta de seu
pertencimento à escola. Acha que sua vaga foi uma conquista que não pode ser
desperdiçada de maneira nenhuma. Reconhece o Colégio Pedro II como uma boa escola
onde muitos gostariam de estudar e, tendo para ela e seu marido a importância que o
estudo tem, pensam que não podem deixar de fazer tudo o que for necessário para que o
57
Flávio se mantenha. Esse é um dos motivos pelos quais presta toda a assistência
considerada necessária ao filho. No seu conceito de boa escola ela inclui o cuidado que
seu filho recebe por parte das professoras e das orientadoras. Afirma que se ele
estudasse em outro lugar, como uma escola pública, por exemplo ela diz, excluindo o
colégio dessa condição provavelmente não teria tanta atenção como a que é dada no
Pedro II. Quando recorreu da jubilação que aconteceria ao Flávio na sua segunda
reprovação ao final da primeira série, foi esse um de seus argumentos. Tudo o que, até
então, tinham pedido as professoras e orientadoras ela havia providenciado, achava,
portanto, que merecia mais essa oportunidade.
Junto com isso, diz algumas vezes que pensa não ser essa a escola em que ele
deveria estudar, pois é uma “escola de tradição, com um ensino elevado” e o seu filho é
um aluno que tem “dificuldades”, não é como outras crianças. Mas, ao mesmo tempo,
percebe que algo diferente do que acontece deveria ser feito para que também o seu
filho se interessasse, como outros se interessam, pois, nem toda criança é igual, nem
toda criança consegue ler textos de muitas páginas, por exemplo. No caso do seu filho,
sua experiência diária na orientação dos deveres de casa mostra que ele desanima, fica
chateado antes mesmo de começar a fazer os trabalhos quando são muitas folhas, pois
sabe que aquilo é “demais” para ele. Acrescenta, como uma das circunstâncias que
propicia essa diferença, o fato de algumas crianças virem de boas escolas particulares ao
entrarem no colégio, o que, para ela, tem de ser levado em conta, pois eles já sabem ler
e escrever algumas coisas, inclusive o próprio nome.
Então, para essa mãe, seu filho tem o direito de estudar num bom colégio como é
o Pedro II, que conquistou uma vaga através do sorteio público de que participou,
mesmo com as dificuldades que demonstra ter para “acompanhar” o ensino que é
oferecido. Ela reconhece e aprova o cuidado que os profissionais da escola têm com o
Flávio na sua dificuldade. Procura atender todas as solicitações, apesar dos seus limites
financeiros, assunto de que ela fala em outro trecho da conversa. Porém, não deixa de
ser crítica, não deixa de pensar sobre o que é ou seria melhor para o seu filho, tanto na
forma de lidar com ele (fala disso também em outros trechos da conversa quando conta
como consegue dele certos comportamentos), como no que é ensinado e como é
ensinado. Valoriza o conteúdo escolar do currículo formal do colégio, contudo levanta
um questionamento sobre a quantidade e o tamanho das tarefas, pois percebe o quanto
isso desanima e “bloqueia” o seu filho para sua realização.
58
Por que essa história está aqui, em meio à história do Colégio Pedro II e do
“Pedrinho”?
Porque ela nos ajuda a compreender essa “aura gloriosa” que paira sobre cabeças e
corações.
Desde o início do funcionamento dos “Pedrinhos”, foi tudo muito diferente
daquilo que aquelas cinqüenta primeiras professoras já conheciam em seu pequeno
percurso como profissionais da educação a grande maioria era muito jovem, por isso
digo pequeno percurso. Não existia ainda uma escola e essa foi uma primeira diferença.
Existia apenas o espaço físico e um projeto, cuja apresentação ao MEC fora obrigatória
para que se realizasse o concurso e posteriormente a criação de mais uma unidade no
colégio. Mas esse projeto, que nunca foi visto pela maior parte das professoras, era
apenas uma listagem de conteúdos e essas professoras tiveram a responsabilidade de,
em um mês, colocar o primeiro “Pedrinho” para funcionar. Algumas delas contam que
foi um trabalho feito com muito envolvimento. As que foram escolhidas para integrar a
equipe pedagógica ficaram à frente, mas houve a participação de todo o grupo para
formular um currículo, incluindo a estrutura e o funcionamento da nova escola que
nascia. A elas foi dada toda a liberdade e como era um grupo muito jovem, com poucos
anos de magistério, boa parte cursando a universidade num período de certa
efervescência cultural e política, pois era época da abertura pós-ditadura militar, início
dos anos 80, esse currículo ganhou uma feição progressista. Havia uma tendência de
que aquela escola pudesse se ta(e)4içe
G-40Td[ – puelagural-110(dm)-2(s)-1(s)-1(no – ol-110(d1984.-1(. )]TJ27 -20.64 -210(C(a)4(m)-2( )os)-1( )-z)-6(a)4(s)-1((e)4)4(i)-21( )e)4(údos)-1( )-240(pr)3(i)-2(m)-2(e)0(i)-1.9180(p4(údos)-1( )-150(a)4(nos)-13 )-140(de)4(( )-70(f)3(unc)4(i)-2(ona)4(m)-2(e)4(nt)-21( )-130(e)4( ))-20(c)4(om)-2( )-130(a)42 criaçã2 údos ie-2(a387.372.96 0 uc)4(os)-1( )250414.6-378 -20.64 Td[(“)4(P)-4(e)4(dr)3(i)-2(nhos)-1(”)44 essepercurseequelcoração d(ã)4(o -150(c)4(ur)3(r)3(í)-(da)4.0(c)4(ul)-24( )-40(f)3()-70(m)-2(a)4(l)-4( )-70(c)4(ondr)3(iu)4(nh4 )-310(s)-1ndl)-24( )--2(a387.4329.88 0 Td[)-2(ui)-2(t)-2(o. O)0(i)-2.00195(195(o )250]87.432J27 -20.76 Td[(“)4(P)-4(e)4(dr)3(i)-2(nhos)-1(a)4( )-z)-6(a)4(s)-1((e)4)4(i(r)3(a)4(m)-240(i)-2(a)4( )-200(i)-1.99)-2(nt)-2(e)4(g)3((e)4)4(i)-214 estrutura-470(pa)(or)3.0ontasent0a que fdtasentns.
59
II. Convidou um grupo de assessoras que, na época, trabalhava no Laboratório de
Currículo da Secretaria Estadual de Educação
11
para que escrevessem o novo PGE e
acompanhassem sua implementação através de cursos que se realizariam no início do
ano letivo e encontros quinzenais com as professoras. A direção-geral do colégio
concordou em custear essa empreitada. Todos os “Pedrinhos” então, teriam de passar a
desenvolver o seu trabalho de acordo com o que estava sendo proposto por esse grupo.
Era um currículo que se dizia de orientação construtivista baseado na teoria de
desenvolvimento de Piaget. Essa concepção teórico-metodológica estava sendo bastante
divulgada naquela época e implantada em algumas escolas particulares e redes públicas,
principalmente no primeiro segmento do ensino fundamental.
Com a criação das três outras unidades: Tijuca, Humaitá e Engenho Novo, a nova
organização em um departamento com a chefia indicada pela direção-geral e a chegada
das assessorias para elaboração e implementação de um novo currículo, aquele
movimento coletivo inicial, que se deu em São Cristóvão para o funcionamento da
primeira unidade, foi bastante reduzido, mas a idéia de fazer dos “Pedrinhos” uma
escola ideal e exemplar na concepção daquelas que formulavam o seu projeto
permanecia presente. Não sem conflitos, pois estavam sempre presentes também, as
concepções de cada professora, formuladas ao longo de seus complexos processos de
formação.
Em muitos aspectos fomos nos constituindo como “diferentes” em relação às
escolas públicas municipais e estaduais. Tínhamos uma grade de horários diferente,
nossos alunos tinham aulas de educação física, música, literatura e artes. Desde o início,
nossas turmas tinham em média 25 alunos e podíamos contar com funcionários técnico-
administrativos participando da estrutura de apoio inspetoria de alunos, mecanografia
e etc. Depois de alguns anos, nós professoras passamos a ter o mesmo regime de
trabalho e fomos incluídas no mesmo plano de carreira que os professores das
universidades federais, conquistando inclusive isonomia salarial
12
. Contávamos com
uma equipe pedagógica que incluía os setores de coordenação pedagógica e
administrativa, além do de orientação educacional; a primeira organizada por série, por
11
Desse grupo faziam parte as professoras Maria Heloísa Vilas Boas Simões (Língua Portuguesa), Diva
Maria Bretas de Noronha (Matemática), Tomoko Yida Paganelli (Estudos Sociais), Maria Antonia Castro
Cruz (Ciências) e Zuleika Pinho de Abreu (Fundamentação na Psicogenética de Piaget).
12
Atualmente, essa isonomia não existe mais como conseqüência da política salarial dos governos Collor,
Fernando Henrique Cardoso e Lula que voltou a conceder remunerações diferenciadas aos professores das
universidades federais através, principalmente, de gratificações por formação e produtividade.
60
disciplina e por atividade; a segunda por turno e a terceira por grupo de séries. Toda
essa estrutura passou por modificações ao longo desses vinte anos, mas é possível
afirmar que ela continua se mantendo nas mesmas bases em que foi pensada e
implementada desde o início dos “Pedrinhos”. Grandiosa e fragmentada, essa equipe
conta hoje, em São Cristóvão I, com vinte e uma pessoas distribuídas nessas diferentes
funções, onde cada qual é responsável pelo acompanhamento de uma parte do trabalho.
A unidade São Cristóvão, onde trabalho e se deu esta pesquisa, tem atualmente 40
turmas e cerca de 1000 alunos.
Talvez houvesse e haja ainda hoje para alguns, a presença da idéia de que as
professoras do início e as que foram se juntando a elas posteriormente estavam
participando da história do Colégio Pedro II quando faziam nascer e crescer o
“Pedrinho” e como tal, não poderiam fazer uma escola semelhante às que existiam. A
diferença dessa escola com relação às outras que conheciam, suas especiais condições
pedagógicas e de infraestrutura fariam com que estivessem adequadamente inscritos
nessa história de glória do CPII, o “colégio-padrão” do Brasil.
Essa constituição como diferente do que já existia deu-se também dentro do
próprio colégio. Até o surgimento do “Pedrinho”, o ingresso de alunos, no que hoje
corresponde à quinta série ou ao primeiro ano do ensino médio, acontecia através de
concursos concorridíssimos e com fama de muito difíceis. Afinal, eram concursos que
precisavam eliminar muitos dos candidatos inscritos e selecionar “os bons”, “os
melhores”, viessem eles de onde fosse, da rede pública ou particular, das classes mais
ou menos favorecidas econômica e socialmente. Para a classe de alfabetização não
havia essa possibilidade, então, o sorteio público foi adotado como a forma de
selecionar as crianças que ingressariam nesse nível de ensino. Essa novidade trouxe
para o interior do colégio uma série de questionamentos presentes até hoje nos debates
formais e informais da comunidade escolar, principalmente depois que os alunos dos
“Pedrinhos” começaram a chegar às unidades II 5
a
à 8
a
séries. Muitos professores
dessas unidades, os professores do “Pedrão” não gostaram dessa nova realidade, alguns
não gostam até hoje e demonstram isso na forma como se dirigem diretamente ou se
referem aos ex-alunos dos “Pedrinhos”. Essa nova possibilidade de acesso a essas séries
trouxe uma diversidade muito maior para o grupo de alunos. Agora não seriam somente
os alunos aprovados no concurso, “os melhores” entre os que procuravam o colégio para
nele estudar. Seriam também aqueles que, sem passar por essas provas, tivessem
realizado sua escolaridade inicial naquela instituição. A implicação que essa
61
circunstância traria seria a de que todos os alunos oriundos do “Pedrinho” teriam o seu
acesso garantido, mesmo aqueles que em seu percurso escolar, tivessem estado em
situações consideradas pelas normas da escola como de fraco ou mau desempenho.
Também esses alunos passariam a ser alunos do “Pedrão” a partir da 5
a
série e esse é um
“fantasma” que ronda o colégio até os dias de hoje. Ele é motivo de preocupação de
muitos em todos os segmentos da comunidade escolar: os pais e mães, os alunos e
alunas, os professores e professoras, as coordenações e direções das unidades, direção
geral e secretaria de ensino. Penso que nem a reserva de 50% das vagas para os alunos
vindos das escolas públicas municipais e estaduais que se iniciou no ano passado – 2004
significou uma mudança tão grande de perfil de aluno que ingressa no Pedro II. Digo
isso porque esses alunos passaram também pelo concurso e tiveram de ser aprovados
para estarem incluídos nesse percentual de vagas. Os alunos vindos do “Pedrinho”
representam uma variedade e diversidade muito maior em termos de desempenho
escolar do que o tido até então, que todos os que conseguem chegar ao final da 4
a
série seguem adiante para a 5
a
.
Acompanhando essa grande e significativa mudança, havia uma circunstância que
participava desse mesmo contexto acrescentando preocupações aos professores do
“Pedrão” que era a opção metodológica que o “Pedrinho” tinha. Como já dito, ainda que
nunca tenha havido uma uniformidade pedagógica e metodológica do ensino nas séries
iniciais, houve um processo inovador nesse sentido iniciado por aquelas professoras do
começo e continuado pelos grupos que foram se juntando a elas nos anos seguintes. Os
professores e professoras do “Pedrão” receberiam alunos que não tinham estudado em
livros didáticos, que não tinham sido alfabetizados através de cartilhas, que
participavam de processos pedagógicos em que se buscava que eles fossem o centro,
suas perguntas e questões eram encaradas como desencadeadoras das situações de
ensino e aprendizagem, enfim, buscava-se tratá-los como sujeitos dos seus processos de
conhecer e aprender. Enquanto nas séries do segundo segmento do ensino fundamental
e no ensino médio o colégio conservava, em sua maior parte, feições bem tradicionais
nos métodos de ensino, avaliação e nas relações entre os professores e os outros sujeitos
da escola, nos “Pedrinhos” tentava-se praticar algo bem diferente disso.
A tudo isso, acrescento algo de que falei sobre as novas professoras do Colégio
Pedro II. Elas traziam expectativas de realização de suas utopias de escola. Vinham das
redes municipal, estadual e particular, conheciam e viviam os problemas de e tinham
nas mãos as possibilidades de fundar uma escola com “toda liberdade”. Até onde posso
62
perceber pela minha experiência no Pedrinho desde 1987, pelos textos dos primeiros
planos gerais de ensino e pelas conversas com as minhas colegas professoras dessa
época, houve uma projeção dos ideais desse grupo na implementação dos “Pedrinhos”,
houve a projeção de um modelo de escola em que julgaram ser possível superar os
problemas da educação vividos com concretude em suas experiências anteriores ao
CPII. Seus “sonhos de escola” poderiam agora se tornar realidade já que a elas foi
entregue a tarefa de inaugurar um novo projeto em condições históricas, humanas e
materiais diferentes das que conheciam até então.
Como todo modelo, esse também falhou desde o início e falha cotidianamente. E
isso não é, de forma alguma uma lamentação, mas uma constatação de uma
inexorabilidade. Dessa forma, nós professoras de qualquer época dos “Pedrinhos”,
como sujeitos históricos, temos de criar, de inventar essa escola a cada dia e fazemos
isso, mas não independentemente dessa história cujos trechos apresentei aqui. Ela faz
parte das nossas redes de sentidos e nos constitui da mesma forma como a constituímos.
I. 5- A recuperação ou apoio
Nos dois últimos anos (2003 e 2004), trabalhei, exclusivamente, nas atividades
com os grupos de recuperação ou apoio. Os alunos que as professoras indicam para
fazerem parte desses grupos têm aula uma vez por semana. Essa aula pode acontecer
fora do horário de todo dia, com os alunos chegando mais cedo se estudam à tarde e
saindo mais tarde se estudam de manhã ou durante o tempo do turno em que estudam,
ou seja, saem da sala com a professora do apoio e vão para outro espaço da escola para
participarem da aula. Algumas crianças fazem parte somente dos grupos que têm aulas
de língua portuguesa, outras dos que têm aulas de matemática, outras ainda participam
dos dois grupos. Isso varia conforme a necessidade identificada pela professora da
turma. Essa aula de apoio ou recuperação pode acontecer também com essa própria
professora, fora do seu turno principal de trabalho. Todas as professoras da escola que
trabalham em regime de dedicação exclusiva têm essa atividade incluída em sua carga
horária e a grande maioria atende os alunos da sua própria turma.
Assumi essa atividade, nos últimos anos, por minha solicitação associada à
necessidade da escola. Nesse tempo o fiz exclusivamente, porém, em outros anos, isso
também acontecia, em dois tempos de aula semanais, para os alunos da minha própria
turma.
63
Essa estrutura que o “Pedrinho” de São Cristóvão tem para atender os alunos que
estão em recuperação, o que acontece nessas aulas e com esses alunos sempre esteve,
para mim, entre as muitas questões sobre as quais reflito no meu cotidiano como
professora. São espaços-tempos que recebem os alunos com quem mais nos
preocupamos no que diz respeito ao desempenho escolar. Nesses grupos estão aqueles
que, em cada série, a cada ano, se tornam os possíveis reprovados, por nós professoras,
por serem os que não estão “se saindo bem” nos processos de ensinar/aprender que
acontecem nas salas de aula, segundo as nossas expectativas e as dos programas de
ensino em que nos baseamos para desenvolvermos o nosso trabalho. Alguns deles
possivelmente, vivem processos de “exclusão includente” sobre os quais falei
anteriormente. Essa estrutura e a forma como são vistos são quase naturalizadas no
cotidiano dessa escola. Em cada um dos três períodos letivos, que alguns anos tem
duração de um trimestre
13
, são identificados aqueles que precisam do apoio ou
recuperação. Esses alunos e seus responsáveis são comunicados, organizam-se os
grupos de que vão fazer parte, horários, salas que vão ocupar, quem serão as suas
professoras e então as aulas começam a acontecer. Toda a escola é, de alguma maneira,
envolvida nessa estrutura, ela ajuda a “tecer o cotidiano escolar” e todos nós vamos,
com os fios do que somos e fazemos, participando dessa tessitura sem muito nos
dedicarmos a refletir coletivamente sobre ela.
Com essa preocupação, desenvolvi essa pesquisa no/do/com o cotidiano escolar
das salas de aula. Ocupei-me em particular, mas não exclusivamente, desse espaço-
tempo que é o do apoio ou recuperação e dos seus sujeitos, tentando compreendê-los,
compreender as práticas que ali se desenvolvem e evidenciar relações entre elas e outras
nas quais estão enredadas, as demais práticas desses mesmos sujeitos, professoras e
alunos, seus pais e mães e os outros profissionais da escola.
Pude desenvolver com as professoras das turmas desses alunos relações de troca,
de partilha, de reflexões e ações que considerei muito produtivas e enriquecedoras. Não
foi do mesmo jeito com todas as professoras, e foi exatamente essa diversidade de
situações que trouxe muitas possibilidades de mergulhar no cotidiano da escola,
buscando captar as “novidades” que como pistas e indícios irrompiam na rotina. Com
ela, atribuí significados que me possibilitaram melhor compreender as realidades
13
Em janeiro deste ano, a direção geral do colégio publicou uma portaria que alterou o sistema de
avaliação da 3
a
série do ensino fundamental à 3
a
série do ensino médio, inclusive a duração do período
letivo, que voltou a ser de um bimestre.
64
concretas das salas de aula, procurando entendimentos possíveis para certas questões
que se colocam para mim, no dia-a-dia e se colocaram nessa pesquisa: os processos
cotidianos vividos pelas crianças que fazem parte dos grupos do apoio, as redes de
conhecimentos que vão tecendo e que os vão formando. Estive em várias salas de aula,
de séries e turnos diferentes, com várias professoras e alunos. Participei de diferentes
grupos e momentos de planejamento, com coordenadoras diferentes também, além de
ter estado em vários conselhos de classe e reuniões de pais ao final de cada trimestre.
Meu envolvimento com diversos elementos da realidade escolar foi diferente se
comparado com outros anos e outras atividades que desenvolvi na escola. Os espaços
e tempos que freqüentei foram bastante variados e a sua complexidade tornou-se mais
presente na minha experiência cotidiana da escola.
I. 6- Recuperar o quê?
Apoio ou recuperação, discuto o nome que recebe essa atividade, pois para me
utilizar de um ou de outro, ao longo da pesquisa e da dissertação, fez-se necessário, ao
menos, aprofundar algumas reflexões e tecer alguns comentários.
Particularmente, nenhum dos dois nomes me agrada. A idéia de recuperar um
aluno me lembra as “teorias da educação compensatória”, aquelas que estiveram tão em
voga no Brasil nos anos 70, que consideravam carentes culturais, sociais e econômicos
aqueles que eram identificados como os que não conseguiam aprender o conteúdo
escolar que era ensinado na escola. Nossos alunos “incompletos”, porque lhes faltava
cultura, cuidado, boas condições econômicas e sociais, deveriam ser “endireitados” para
conseguirem aprender, segundo essas teorias. Em consulta ao dicionário “Aurélio”,
encontrei um verbete que resume bem o meu incômodo no uso do termo “recuperação”:
recuperar significarecobrar (o perdido), adquirir novamente”. Nossos alunos que
compõem esses grupos estariam então perdidos, precisando ser recobrados, conduzidos
de novo ao caminho onde deveriam estar? Considero que não, e esse é um dos motivos
por que o nome não me agrada. Reconheço, porém, que essa idéia, muitas vezes, está
presente entre nós e em nós que formamos esse tecido, essa complexa trama.
Os alunos com quem desenvolvi esse trabalho nem sempre conseguem
corresponder às expectativas que nós professoras temos sobre o quê e como devem
aprender e nem mostrar que aprenderam num dado momento exigido. Todos apresentam
suas capacidades e possibilidades para aprender os conteúdos ensinados, mas, às vezes,
65
seu tempo e seu jeito de fazer isso são desfavoráveis a eles mesmos quanto ao
cumprimento do que é estabelecido pela escola. Sendo assim, mesmo reconhecendo a
presença em nossas redes de conhecimentos, da idéia de que algo, que nós deveremos
fornecer, falta a esses alunos para que sejam capazes de ter sucesso em seu percurso
escolar, podemos criar novas relações através dos modos como, cotidianamente, nos
relacionamos com os limites desses alunos, considerando também as suas
possibilidades.
A idéia de apoio sugere ajuda para que o próprio aluno possa encontrar os seus
recursos para lidar com os limites que têm de enfrentar no trabalho do dia-a-dia nas
salas de aula. Não sendo ainda o nome “ideal”, pois às vezes os sentidos das coisas não
cabem nas palavras, acabo optando por ele até que algum praticante invente outro.
I. 7- E como somos redes de subjetividades ricas e complexas...
Pois bem, todos na escola costumamos avaliar positivamente as atividades do
apoio, reconhecendo esse espaço-tempo da escola como importante para as crianças:
pais, mães, professoras, coordenadoras, diretoras e até os próprios alunos. Essa
avaliação, inclui vários critérios e podemos falar de alguns. Em primeiro lugar, as aulas
de apoio são um direito da criança, estão previstas em lei e todas as escolas deveriam
promovê-las. Em segundo, quando formamos grupos com os alunos que “não estão se
saindo bem” nas salas de aula para oferecer-lhes mais aulas, de certa forma, estamos
reconhecendo que o trabalho circunscrito à sala de aula, com a professora e a turma, tem
limites. Ao mesmo tempo, estamos vinculando esse reconhecimento à busca de novas
possibilidades e oportunidades, outros tempos, espaços, pessoas, atividades, para que
aquelas crianças possam se sair melhor em suas aprendizagens e nos resultados que
apresentam em sala e na escola. No entanto, penso que essa melhoria no desempenho
dos alunos e alunas e até mesmo as mudanças que muitas vezes observamos nos seus
sentimentos em relação a si mesmos, sua maior auto-confiança, sua segurança em
relação ao que são capazes de pensar e realizar, não devem levar à naturalização desse
espaço-tempo da escola, tendo-o como positivo sempre, independentemente da maneira
como é formulada a sua política, sua implementação e como se dão as suas práticas
cotidianas.
Não é o objetivo deste trabalho fazer uma discussão a respeito da pertinência da
existência dos grupos de apoio, sobre a maneira como são formados ou até sobre a
66
orientação dada ou não ao trabalho, mas sim destacar a possibilidade de naturalização
negativa desses procedimentos e comportamentos, assim como a forma como os alunos
são percebidos, como fatalidades e buscar tratar dessa questão de outra maneira. Nossa
pretensão é a de privilegiar a experiência comum... as maneiras de utilizar sistemas
impostos que constituem a resistência à lei histórica de um estado de fato e a suas
legitimações” (Certeau, 1994). Quero apresentar, utilizando, de novo as palavras de
Certeau,
as marcas de atos encaráveis como modalizações conjunturais da
prática que indicam uma historicidade social na qual os sistemas
de representação não aparecem mais como quadros normativos,
mas como instrumentos manipuláveis por usuários” (op.cit., 82).
Nessa discussão, importa conhecer e narrar os usos que os alunos, professoras e
outros sujeitos fazem desse espaço-tempo estruturado pela escola para cuidar dos que
“não vão bem” nas salas de aula, daqueles que não estão aprendendo como as
professoras e coordenadoras esperariam. Como as professoras percebem os alunos e as
aulas de apoio no cotidiano da escola? O que é que pensam os alunos sobre as aulas,
sobre serem parte desse grupo, como se utilizam daquela ordem construída que são os
grupos de apoio dentro da escola? Segundo Certeau (1994) “uma prática da ordem
construída por outros redistribui-lhe o espaço”(p.79). Com isso quero dizer que usos
próprios dessa ordem, dessa imposição institucional estão sendo feitos pelos
praticantes, alunos e professoras e que esses usos modificam essa ordem e criam
espaços porque na lógica dos jogos de ações (id.ib., p.83) os usuários vão produzindo
novos acontecimentos. Certeau chama de operações disjuntivas, aquelas que dão lugar
a espaços onde os lances são proporcionais a situações (id.ib.). O que somos e o que
sabemos cada um de nós, inventado, a cada dia, nessas relações vai fazendo acontecer
aquela sala de aula, daquela forma complexa que percebemos.
I. 8- E assim aconteceu a pesquisa...
Para a realização desta pesquisa, freqüentei seis salas de aula de turmas
diferentes da terceira série, série com que trabalhava nos grupos de apoio. Foram
também seis as professoras que participaram. Cada dupla de professoras tinha duas
turmas nas quais se revezavam no horário semanal organizado pela direção. Uma das
professoras dava aulas de matemática e ciências e a outra de língua portuguesa e estudos
67
sociais. Essas não eram as únicas professoras das turmas, pois além dessas disciplinas,
integram o currículo formal da escola, as atividades de música, artes, literatura,
informática e educação física. É assim que são chamadas: atividades, enquanto a outra
parte, a das disciplinas, é chamada de núcleo comum. As professoras do núcleo comum,
as de literatura e de informática são professoras com formação para 1
a
à 4
a
séries e, na
estrutura administrativo-pedagógico-política do colégio, pertencem ao departamento de
primeiro segmento do ensino fundamental. As outras, de artes, música e educação física
fazem parte dos departamentos dessas disciplinas. As aulas dessas atividades acontecem
em um dia da semana específico em que as professoras de referência da turma, as do
núcleo comum, não estão, necessariamente, na escola.
Durante o último trimestre do ano de 2004, estive nas salas de aula com essas
professoras uma vez por semana e com as turmas a cada quinze dias, pois alternava, em
uma semana passava a tarde ou a manhã em uma das turmas daquelas professoras e na
outra semana em outra turma. Nesse período, as minhas atividades com os grupos de
apoio dos alunos dessa série continuaram, cada qual em seu dia e horário. Trabalhava
com sete grupos em dois tempos semanais de 45 minutos de aula, uma hora e meia com
cada um, portanto.
No contato com as turmas e suas professoras, no envolvimento com as suas
histórias, suas vidas cotidianas, procurei captar através da observação, do registro
escrito e fotográfico, as práticas das professoras e/com os seus alunos, alunas e outras
pessoas que integram as redes que se formam a partir dessas salas de aula. Além disso,
conversei com as professoras, em duplas, em entrevistas que realizei seguindo com
todas um pequeno roteiro previamente preparado. Realizei também entrevistas com
algumas mães e com um pai de alunos. Para isso, convidei um grupo de responsáveis
pelas crianças dos grupos do apoio e aqueles que responderam ao convite, confirmando
presença e comparecendo em um dos horários oferecidos, foram os entrevistados.
Conversei também, da mesma forma, a partir de um pequeno roteiro, com o grupo de
coordenadoras pedagógicas da escola. E com os alunos e as alunas, as conversas
registradas surgiram no decorrer das aulas de apoio ou mesmo nas aulas com as suas
professoras. No desenrolar dessas conversas, as professoras, o pai, as mães, as
coordenadoras e os alunos contaram histórias sobre o que vivem na e com a escola. As
narrativas desses praticantes se juntaram às minhas próprias narrativas e, com elas,
procurei saber sobre esses sujeitos do cotidiano que fazem acontecer as salas de aula: o
que fazem, como e por que fazem, o que são e sentem e como foram se transformando
68
no que são na e com a escola. Essas histórias se transformaram em outras histórias que
contei sobre esses sujeitos e as realidades que suas práticas vão criando. Com isso,
tentei desvelar essas realidades das salas de aula e as questões cotidianas que nelas
enfrentamos como seus praticantes.
Como nos fala Bueno (2002), porque a vida humana e mesmo cada um de seus
atos se manifesta como a síntese de uma história social (p. 19), essas narrativas
justificam sua importância para o conhecimento científico do cotidiano escolar (Alves,
2000, p. 01). Num texto que Alves chamou: Romances das aulas
14
, ela convida a saber
da profissão docente através da narrativa que uma professora faz de sua vida, pensando,
não sobre ela, mas dentro dela. A autora não escolheu trazer um exemplo de professora
para demonstrar uma determinada tese sobre como são ou devem ser as professoras,
quis que a própria história de uma personagem professora nos envolvesse e fizesse
pensar. Uma personagem composta por ela mesma, no momento da própria narrativa em
que nos conta como chegou a ser o que é, uma professora.
É ela própria, com as escolhas e seleção que são minhas nela
enredada, que explica o que é possível comentar sobre a vida e a
formação de uma professora para dar aulas (Alves, 2000, p.10).
Para participar dessa discussão a respeito do uso das narrativas, trago também
Reigota (2003) que em um belo livro, trabalhando com a noção de “sujeito da história”,
de Paulo Freire, apresenta as trajetórias de alguns desses sujeitos, seus alunos. Com
elas, nos ajuda a pensar no que somos também cada um de nós, praticantes das escolas.
“Anônimos sujeitos da história”, somos nós, com a nossa vida, que fazemos as escolas
serem o que são e acontecerem como acontecem.
Um tipo específico de conhecimento pode fazer (e faz) a diferença
entre os sujeitos, da mesma forma com que os distingue a
interpretação e a ação que têm da e na história, [diz Reigota]
(2003, p. 9).
É através das narrativas, daquilo que contam esses sujeitos, do que contamos nós
sobre a sua história, que busquei, junto com eles, criar outros conhecimentos que fazem
parte do tecido interpretativo desta pesquisa. Fazer uso desse procedimento
metodológico é colocar os anônimos sujeitos da história” no lugar de importância que
devem ter.
14
Esse é o título do texto que uso como referência.
69
Busquei o que contam os sujeitos das salas de aula sobre as suas experiências
das escolas e os significados que a elas atribuem. Penso que isso possibilita a esses
sujeitos e a nós reconhecermo-nos como tais, compreendermos e, quem sabe,
transformarmos práticas e realidades, nos transformarmos no sentido de realização
daquele projeto educativo emancipatório para o qual convida Santos (1996).
Nas escolas, assim como nos outros tantos espaços e tempos cotidianos que
estão a acontecer todos os dias na nossa sociedade, os estudos e pesquisas feitas na
perspectiva dos processos históricos vividos vêm se tornando mais freqüentes. Elas vêm
no bojo de transformações culturais e da ciência ocorridas no decorrer do séc. XX, que
colocam em questão a exclusividade de utilização de métodos objetivos de investigação
de que vim tratando ao longo do texto e abrem espaço para o interesse pelo estudo dos
aspectos subjetivos dos atores sociais como expõe Bueno (2002).
Enquanto sujeitos da história, praticantes, atores sociais, na vida cotidiana
realizamos um movimento de criação permanente, porque os desafios com que nos
deparamos todos os dias em nossas escolas exigem muito mais do que a repetição de
formas e modelos formulados por quem está longe e do alto a olhar a escola. Quando
atribuímos sentidos às nossas experiências nas escolas, produzindo conhecimentos,
narrando a nossa própria história e ouvindo as outras, estamos criando e inventando
modos de fazer. O uso das narrativas pode ser então um espaço-tempo autoreflexivo, de
interação e recriação de sentidos de experiências passadas e presentes, por isso, de
muito valor para a vida das escolas e nossas e para essa pesquisa no/do/com o cotidiano
das salas de aula.
Dessa maneira, perceber as “novidades”, os múltiplos e variados “modos de
fazer” cotidianos desses sujeitos que tecem a história daqueles espaços-tempos daquela
escola, mergulhar nas suas lógicas e tentar ampliar a visibilidade de suas ações,
interpretando-as e narrando-as, nos limites de algumas interpretações e narrativas
possíveis desta pesquisa, procurando atribuir sentidos a elas que possam contribuir para
a sua valorização e reincorporação ao pensar pedagógico do qual têm sido banidas
(Oliveira, 2001), é o que ousei tentar fazer.
70
II. Histórias das salas de aula
II.1- Está certo professora?
Naquele dia, a professora mostrava para os alunos uma réplica do jornal
publicado no dia seguinte à libertação dos escravos com o texto da Lei Áurea que ela
tinha trazido. Mostrava também revistas e livros com imagens e textos da época final do
Império e início da República: lojas da Rua do Ouvidor no centro do Rio de Janeiro,
bustos de personagens conhecidos da história, esses trazidos pelas crianças. Ao mesmo
tempo, ia conversando e dando informações sobre acontecimentos e costumes daquela
época.
Logo depois, passou à correção do trabalho de casa. Havia questões para
responder no caderno e um texto para ler no livro de história. O texto era sobre D. João
VI, a vinda da família real para o Brasil e as transformações que a cidade do Rio de
Janeiro sofrera nessa ocasião.
Algumas crianças respondiam as perguntas sob a solicitação da professora. Eu
estava especialmente atenta às crianças que fazem parte do grupo do apoio ou
recuperação: Fernanda, Carlos, Sérgio, Flávio e Michel meus alunos, que falavam muito
pouco. Na hora de ler o texto para todos ouvirem, a maioria dos alunos da turma se
ofereceu. A leitura acabou sendo feita pelas crianças escolhidas pela professora: Ariana,
que leu uma parte do texto, Carlos e Flávio, que leram as outras partes. Em seguida,
foram corrigidas as questões que estavam na página seguinte do livro. A professora
também ia solicitando a um e outro aluno que lessem a sua resposta e em seguida, ela
dizia se estava certa ou errada para que todos os outros corrigissem as suas. Michel
olhava para mim, orgulhoso, toda vez que dava alguma resposta e acertava.
Foram muitas as situações em que experimentei este sentimento durante a
realização desta pesquisa, nas ocasiões em que estive nas salas de aula com os alunos e
suas professoras: uma certa busca de cumplicidade das crianças com relação a mim. Em
geral, as crianças me recebiam com satisfação e carinho. Ao me verem no pátio, logo
perguntavam se eu iria para a sua sala. Durante a aula, algumas vinham me mostrar os
trabalhos para exibirem seus bons resultados, tirarem dúvidas ou até para receberem
uma avaliação minha sobre o que estava “certo ou errado”. Outras vinham conversar e
contavam algo que tinha acontecido com elas na escola ou fora da escola. As
71
professoras notavam e a maioria até incentivava esse contato. Uma delas, em especial,
fazia comentários dizendo reparar que alguns alunos do apoio e, às vezes, até outros que
não fazem parte desse grupo, preferiam resolver suas questões com o meu auxílio e
orientação do que com ela mesma, a professora da turma.
Mas o orgulho com que Michel me olhava naquele dia e outras histórias do
cotidiano das salas de aula que pude viver e experimentar me fazem pensar sobre o
quanto estão presentes nos processos pedagógicos desses espaços-tempos, as idéias de
“certo e errado”. Esses conceitos ocupam um papel de relevado destaque nesse dia-a-
dia, pretensamente, conduzindo pensamentos, sentimentos e comportamentos de alunos,
professoras e outros que não estão nas salas todos os dias, mas fazem parte dessa rede
como os pais e mães, coordenadoras e orientadoras pedagógicas, diretora e outros
trabalhadores da escola.
O que esse julgamento significa para os alunos de uma maneira geral,
especialmente para as crianças que integram os grupos de apoio na escola e também
para nós, suas professoras? Sendo idéias que ocupam significativamente o nosso
cotidiano nas salas de aula, o que elas representam para nós, praticantes das escolas?
Quando Michel olha para mim, com seu olhar sedutor, “orgulhoso” da resposta
certa que dá, confirmada no ato pela professora, ele demonstra o quanto essa avaliação é
importante para ele se sentir feliz porque capaz de acertar e também porque, com isso,
estava correspondendo às expectativas da professora e dos colegas. A minha presença
ali para assistir esse feito era igualmente importante, que, oficialmente, eu era a
pessoa encarregada pela escola de cuidar do seu “fraco” desempenho e ajudá-lo a tornar
esse desempenho satisfatório dentro dos critérios e exigências formais do programa da
série que Michel está cursando, bem como dos modos de avaliação praticados.
Talvez, uma idéia presente nas práticas orientadas pelo julgamento do “certo e
errado” seja a de que é preciso controlar os resultados das aprendizagens para ser
possível ter certeza de que esses estão acontecendo e também para que se garanta sua
qualidade para todos. Nas situações em que nós, professoras, adotamos os mecanismos
de correção como os expostos anteriormente, estamos buscando conhecer as respostas
dos alunos às questões propostas para saber se aprenderam ou não o que foi ensinado.
Quando orientamos as crianças e “vigiamos” para que corrijam os seus exercícios
conforme o que foi considerado certo por nós, intencionamos controlar a qualidade do
trabalho que realizamos e das aprendizagens dos alunos. A partir dali, todos, tanto os
que acertaram como os que erraram, terão em seus registros as respostas corretas que se
72
transformarão em valioso material de estudo, podendo se dar, com isso, a efetivação do
ensino/aprendizagem pretendida.
Contudo, essa prática cotidiana orientada pela intenção de julgar aquilo que é
“certo” e o que é “errado” na busca de garantir um ensino/aprendizagem de pretensa
qualidade, ou seja, “sem erros”, para todos, está marcada por uma concepção
classificatória de avaliação, essa que “configura-se com as idéias de mérito,
julgamento, punição e recompensa” (Esteban, 2003, p. 15). Essa avaliação de que falo
não se restringe aos testes, trabalhos e provas que se faz para atribuir notas ou conceitos
ao final dos períodos letivos, ou mesmo para replanejar o trabalho de um período
posterior ao avaliado a partir daquilo que se identifica como aprendido ou não pelos
alunos. Trata-se de um processo muito mais complexo e capilar que envolve, além das
práticas diárias de correção de exercícios narradas e da preocupação com a
aprendizagem, o julgamento de comportamentos, sentimentos, idéias e valores como
bons ou maus, certos ou errados, portanto, voltados para a mera verificação e
hierarquização.
Nesse sentido, essas relações também podem ser pensadas como relações
baseadas em ações violentas que impossibilitam o diálogo e contribuem para o estado
de heteronomia” como nos fala Martins (apud, Sgarbi et al, 2003, p.109). No referido
texto, os autores nos apresentam uma alternativa, considerando as possibilidades de
“assumir a compreensão da compreensão de que no diálogo, ou melhor, na
comunicação, é possível trazer novos ares para avaliação da aprendizagem”. Nos
casos em que esse diálogo não ocorre e o que temos é apenas uma afirmação de que o
que é dito, pensado, sentido, manifestado está “certo” ou está “errado”, podemos
caracterizar as ações como violentas e que assim contribuem para o estado de
heteronomia dos sujeitos nas relações cotidianas nas salas de aula, nas escolas, na vida.
A busca da efetivação de um ensino/aprendizagem de qualidade para todos
estabelecida nesses termos, com a intenção de garantir encontrar e registrar a resposta
“certa” “cria maior visibilidade para tramas que entrelaçam avaliação e qualidade por
meio do controle dos sujeitos, de suas práticas, de seus saberes, de seus percursos”
como afirma Esteban (2003, p.18). Essa maneira de avaliar e de muitas vezes conduzir
as aulas, avaliando o rendimento escolar dos alunos e alunas, classificando-os, pode
significar a heteronomia de alguns nos seus processos de pensar e produzir
conhecimentos a partir das informações que circulam nas salas de aula e das relações
que as constituem. Os alunos, principalmente aqueles de quem, muitas vezes, se espera
73
maior incidência de “erros”, tanto no dia-a-dia das aulas, como nos testes, trabalhos e
provas, que, na situação real que narro, são os alunos que fazem parte dos grupos do
apoio, podem se sentir intimidados na elaboração e exposição das suas idéias, se a única
coisa que tiver valor nesse jogo for simplesmente ouvir da professora se o que dizem e
expressam está certo ou está errado.
Por isso, penso que Esteban nos chama a atenção para o que pode não estar
sendo percebido nas tramas que entrelaçam avaliação e qualidade por meio do
controle dos sujeitos, de suas práticas, de seus saberes, de seus percursos” (idem,
p.18). Podemos, com a nossa prática cotidiana de adoção de formas de avaliação
classificatória, estar “ensinando” aos nossos alunos que não vale à pena pensar, arriscar,
desenvolver novas idéias sobre algum assunto em questão, porque o que se quer é a
resposta certa, aquela que a professora ou algum colega “sabido” vai dar e ou outros vão
copiar. O tratamento que, nessas situações, acabamos dando ao “erro”, aos percursos de
pensamento inovadores, aos raciocínios parciais para se chegar a uma resposta pode
acabar sendo desestimulante para quem aprende.
Podemos estar “ensinando” também que aquele aluno que acerta bastante é o
“bom aluno” e o que não acerta tanto ou que nem se arrisca a responder é o “mau
aluno”. Nesse caso, mesmo que esses processos não sejam intencionais ou explícitos no
dia-a-dia, com eles estamos promovendo uma classificação e uma hierarquização entre
os alunos.
Trata-se também de estabelecer uma forma de relação em que nós, professoras,
atuamos como sujeitos e eles, alunos, como objetos que queremos e precisamos
conhecer. Ela nos vincula a uma concepção de conhecimento em que a fragmentação e a
apreensão do objeto são necessárias para que possamos manipular informações,
sujeitos e o próprio processo de aprendizagem, a fim de medir, classificar e
hierarquizar” (id.ib., p.16). Quando tentamos transformar nossos alunos em objetos de
conhecimento e buscamos uma pretensa objetividade, atribuindo a cada qual um valor,
nos arriscamos a romper as relações subjetivas que constituem os processos de interação
entre os sujeitos na dinâmica cotidiana das salas de aula. Essa relação é uma tensão que
se torna presente no cotidiano e suas marcas podem ser notadas tanto nos alunos como
nas professoras, pois, também nós sentimos julgadas as nossas práticas em função do
resultado que elas apresentam. Ao mesmo tempo em que avaliamos, somos avaliadas na
mesma perspectiva classificatória (idem, p.21), desfazendo com e no próprio cotidiano
aquela possibilidade de estabelecimento de uma relação em que exista uma “via de mão
74
única”. Essas salas de aula se constituiriam, portanto, com e nas práticas de avaliação
classificatórias das professoras com relação aos seus alunos, assim como nas dos alunos,
pais, mães, coordenadoras, orientadoras, demais trabalhadores da escola e diretora com
relação aos resultados obtidos pelos seus alunos em suas aprendizagens, julgados pela
própria professora.
Mas existem “outras” salas de aula se constituindo em dinâmicas nas quais
práticas diferenciadas e “usos não autorizados” (Certeau, 1994) dessas regras e
princípios fazem com que, ao contrário do que possamos pretender e achar, os sujeitos
não se submetam às tentativas de esquartejamento para se tornarem objetos de estudo,
mantendo-se inteiros, não se permitindo cindir para serem conhecidos e classificados.
As duas possibilidades e as inúmeras combinações produzidas no cotidiano das
escolas são parte de nosso complexo processo de formação. Podemos afirmar que são
fios do tecido que nos forma e que nós ajudamos a formar nos espaços que vivemos.
“Certo e errado” é um dos pares que compõe o pensamento dicotômico e hierárquico
que, na modernidade, se impôs como hegemônico para nós ocidentais.
Com essa discussão, não quero repetir as mesmas pretensões: julgar como bons
ou maus, certos ou errados os comportamentos e os sentimentos de quem quer que seja,
por isso busco compreender esses processos reais identificáveis no cotidiano escolar.
No entendimento de que as salas de aula se constituem como espaços-tempos
nos quais redes de conhecimentos múltiplas e complexas acontecem e interagem e que
nós também assim, em redes, nos constituímos, identifico esse fio no tecido da minha
formação como professora, mas tento desafiá-lo nessa pesquisa e na vida, puxando
outros tantos fios desse mesmo tecido.
Carvalho (1999) chama de “cuidado” o que observa se estabelecer nas relações
entre professoras e alunos, pais e mães com seus filhos e filhas, coordenadoras e
professoras, enfim, nas relações que tecem o cotidiano das salas de aula. Talvez
possamos dizer que esse é um outro fio que compõe essa tão complexa teia, porque
ainda que a indicação do que está “certo ou errado” nos pensamentos, sentimentos,
atitudes, valores, raciocínios e respostas de professoras e alunos oriente muitas vezes as
suas ações e, portanto, esteja presente no dia-a-dia da escola, há, sem dúvida, muitos
outros aspectos a considerar, também presentes nesse mesmo dia-a-dia, alguns deles
mencionados.
O “cuidado” de que falo se expressa em outros comportamentos cotidianos das
professoras nas aulas, que não são os de emissão de um julgamento como “certo ou
75
errado” e nem os de busca de uma qualidade das aprendizagens de todos através da
elaboração e registros de respostas certas para os exercícios feitos cotidianamente pelos
alunos. professoras, por exemplo, que indicam e insistem na participação de alguns
alunos, em especial, em determinados momentos da aula. A resposta àquela questão que
ela está corrigindo não pode ser dada por nenhuma outra criança, somente por aquela
que ela está solicitando porque essa faz parte do grupo de crianças que têm aulas de
apoio, logo ela precisa expor seu pensamento para que a professora o conheça e possa,
numa atitude que estou chamando de “cuidado”, como Carvalho, intervir no sentido de
buscar garantir seu bom desempenho escolar. Sem dúvida, existem outras tantas
circunstâncias que dão origem a querer este e não aquele aluno para responder que
implicam também em uma atitude de cuidado. Chamar o aluno que está distraído,
conversando ou brincando com algum colega para que ele participe da aula é uma
dessas circunstâncias, por exemplo, e poderíamos citar muitas outras.
Quando a professora prepara uma certa quantidade de exercícios “extras” que
alunos que estão no apoio levam para casa, fazem, trazem de novo para a escola, a
professora corrige, anota, faz observações e dá novas orientações, ela está também, além
de orientada pelos conceitos dicotômicos e hierarquizados do “certo” e do “errado”,
cuidando para que aqueles alunos tenham tudo que precisam para aprender, pelo menos
tudo que ela entende que dela depende, por isso dedica seu tempo de trabalho, muitas
vezes não remunerado, a essa atividade.
Ainda posso tratar de um outro procedimento, adotado por algumas professoras,
de informar constantemente aos pais e mães e também aos setores de coordenação e
orientação pedagógica da escola como estão as crianças nas atividades desenvolvidas
nas salas de aula. Além das reuniões de responsáveis organizada periodicamente pela
direção, orientação e coordenação pedagógica da escola, as professoras chamam alguns
pais e mães para conversar quando percebem a necessidade de ouvir ou falar sobre a
criança, mandam bilhetes através da agenda contando sobre algo importante que
aconteceu, se queixando ou fazendo cobranças sobre o que julgam ser responsabilidade
da família. O que pude perceber nas conversas que tive com as professoras, os alunos,
os pais e mães ao longo desse período da pesquisa e também de toda a minha vida nas
escolas, é que essas são atitudes de “cuidado” que as professoras têm com os seus
alunos para que aprendam e estejam bem.
Mas, sem excluir nenhuma delas, todas as situações que apresentei podem
também ser avaliadas como certas ou erradas dependendo das narrativas que a partir
76
delas desenvolvemos. Sim, porque cada ação, cada comportamento, cada atitude faz
parte de uma, ou melhor, de várias histórias que envolvem vários personagens e esses,
certamente, têm, cada qual, a sua versão e os seus sentimentos experimentados. Logo,
certo ou errado para quem?
Com essa pergunta, de difícil senão impossível resposta, podemos começar a
pensar mais amplamente ainda nos processos avaliativos que estão presentes no
cotidiano das salas de aula, já que, como foi dito, a avaliação não se restringe à
realização de testes, provas e trabalhos previamente programados para esse fim. Este
julgamento do que é considerado “certo” ou “errado” presente nas relações entre
professoras e alunos e entre esses e os conteúdos das aprendizagens programadas e
esperadas para um determinado período ou para todo o ano letivo, integra o conjunto de
práticas da avaliação classificatória que ainda é hegemônica em nossas escolas.
Penso que é importante que tentemos assim percebê-lo, pois essa percepção
pode significar a enunciação de atribuição de sentidos emancipatórios às práticas
pedagógicas vividas nas salas de aula. Ou, dizendo de outra forma, puxar esse fio da
nossa formação, da nossa prática, pode nos possibilitar compreender os espaços-tempos
das salas de aula como de possibilidade de serem espaços-tempos de diálogo entre todos
os seus sujeitos, sendo esse diálogo estabelecido a partir do pressuposto de que temos
todos algo a dizer e a expressar sobre o que vivemos e experimentamos. Estamos
falando de relações mais democráticas, em que professoras e alunos dialoguem sobre os
sentidos atribuídos ao vivido, ao lido, ao experimentado, sobre os conhecimentos
produzidos no cotidiano das salas de aula enfim, sem que isso se caracterize como uma
prática avaliativa do tipo classificatório por parte das professoras com relação aos seus
alunos ou suas alunas.
As práticas cotidianas das salas de aula apontam também para essa
possibilidade. Esse diálogo, em que tanto os alunos como as professoras expressam
aquilo que pensam e que sentem, se realiza em outros momentos dessa trama e isso
confirma a complexidade que caracteriza esses espaços-tempos. Apesar de se verem
como responsáveis por zelar pela qualidade dos processos pedagógicos, buscando
controlar as aprendizagens através da enunciação e registro do que é “certo” nas
atividades que os alunos realizam, as professoras, com a sua prática, também os
reconhecem como sujeitos de conhecimento. Ao mesmo tempo em que, por vezes, os
hierarquizam a partir do uso de critérios supostamente objetivos, têm atitudes de
cuidado, onde procuram “dar conta” daquilo que pensam precisarem os seus alunos.
77
Dessa maneira, estão, também, criando outras perspectivas para as suas possibilidades
reais de produção de conhecimentos.
Certo para quem? As redes que nos formam e que ajudamos a formar
Assim, como o texto que liam a professora e os alunos falava também sobre a
capoeira praticada nas ruas do Rio de Janeiro na época do “Brasil Império”, a professora
pediu que os alunos procurassem no dicionário o que significava a palavra “capoeira”.
Houve uma pequena agitação na sala, pois a maioria das crianças, mesmo sabendo o que
é capoeira, queria participar procurando no dicionário. A maior parte das crianças se
apressava para estar entre as primeiras a encontrar o significado e poder fazer a leitura
para a turma. Alguns daqueles alunos que fazem parte dos grupos do apoio estavam fora
dessa movimentação, pois não sabiam localizar uma palavra no dicionário sozinhos. A
professora não notava. Solicitava isso das crianças em todas as oportunidades que
surgiam, pois achava que fazer uso do dicionário era uma aprendizagem que todos
deveriam fazer.
Passado esse rápido momento, a professora perguntou quem sabia jogar capoeira
e chamou para que fizessem uma exibição à frente da sala. Foram até três meninos
que já tinham tido aulas, enquanto os outros alunos, a convite da professora, cantavam e
marcavam com palmas o ritmo da capoeira. As crianças riam e se divertiam com o que
estava acontecendo.
A professora se deteve um pouco no assunto: capoeira, falando sobre as pessoas
que a praticavam naquele tempo. Falou do preconceito, do medo que os brancos tinham
dessas pessoas, chegando ao preconceito que existia e existe até hoje contra os negros.
Para rechear a conversa, a professora contou uma história da sua família, disse que seu
avô tinha uma irmã que, na juventude, se apaixonou por um homem negro e fugiu para
se casar com ele. Essa mulher foi excluída da família. O pai do seu avô, seu bisavô,
proibiu, a partir daquele dia, que falassem no nome dela em casa. Continuaram
conversando sobre os medos de hoje. Se, no passado, havia o medo daqueles que
jogavam capoeira nas ruas do Rio de Janeiro, hoje se tem medo dos assaltos. As
crianças lembraram do “arrastão”
15
que tinha acontecido dias antes na praia do Leblon.
A professora tentava fazer com que as crianças pensassem no porquê de existirem os
15
Arrastão é o nome que foi dado a um tipo de assalto em que, em locais com grande concentração de
pessoas, passa um grupo numeroso de assaltantes que vai roubando e intimidando quem lá está.
78
assaltantes, então falou sobre a experiência que, provavelmente, essas pessoas tinham
tido na escola: ouvir de muitos professores que eles não eram capazes a ponto deles
acharem mesmo que não eram. Nesse momento, um aluno entrou na conversa dizendo
que entre os bandidos um diz para o outro que ele é capaz, eles dizem: vai, vai que você
é capaz, você sabe, você pode...E a professora: é, se eles trocam de roupa após o
assalto para ninguém ver que são eles é porque são espertos
16
.
Começaram a falar sobre os negros nos tempos de hoje e uma aluna falou que a
maioria dos que assaltam são negros. A professora concordou e perguntou por que.
Disse: Por que isso acontece? Quantos negros na nossa sala? As crianças
responderam: dois”. Houve controvérsias sobre esse número, mas a professora disse
que dois são negros mesmo, mas outros são mulatos, pois, como ela havia dito em
outras ocasiões, no Brasil ninguém é branco. Para exemplificar, voltou à história da sua
família. Disse que seu pai é filho de italianos e as irmãs de seu pai, suas tias, portanto,
se casaram com negros. Um aluno disse: Pegou o negão!” Todos riram. Um outro
menino contou que viu um filme em que uma menina branca, que estudava numa escola
americana onde a maioria dos alunos era formada por negros, sofria preconceito
também por ser branca. E outro aluno: é tia, nos Estados Unidos também tem
racismo”. A professora pergunta: Alguém mais viu esse filme? Pois é, no Brasil existe
uma lei que proíbe o racismo, mas vocês sabem que a lei não resolve tudo, a
mentalidade das pessoas é que tem de mudar e isso é mais lento”.
Enquanto isso, eu estava reparando nos negros da turma, inclusive aqueles que
tinham sido chamados de mulatos pela professora, eles estavam quietos, não
participavam da conversa. A professora continuava falando, agora sobre as menores
oportunidades que os negros têm no nosso país em relação aos que não são negros:
emprego e escola. Falou das cotas que existem hoje para tentar diminuir esse problema.
Maiara, que é negra, também aluna do grupo do apoio, pediu para recolher os livros que
já tinham sido corrigidos e o assunto acabou.
Não pretendo colocar em questão as concepções explicitadas pela professora e
pelas crianças em relação ao assunto: negros na nossa história, na nossa sociedade. Esse
é um tema bastante complexo, que vou tratar como mais um fio do tecido: a sala de aula
e os praticantes desse espaço-tempo. Esse acontecimento da aula que narrei nos oferece
inúmeras possibilidades de continuar a tecer sua compreensão.
16
Segundo o noticiário, assim tinham feito os assaltantes no “arrastão” ocorrido dias antes na praia do
Leblon, no Rio de Janeiro: trocaram de roupa e continuaram andando pela orla.
79
A começar pelas falas dos alunos e os saberes que elas expressam. A professora
convida os que praticam ou praticaram a capoeira para mostrar aos outros o que sabem.
Esses outros, por sua vez, também podem participar da “festa” se quiserem, batendo
palmas, cantando e marcando o ritmo para que seus colegas joguem. O tempo que
levaram nessa atividade foi pequeno, se considerarmos toda uma manhã de aula, mas
muito valioso como espaço de troca de saberes, de sentimentos, de expressão entre as
pessoas envolvidas.
Confesso que me surpreendi, assim como aconteceu em vários outros momentos
no decorrer desta pesquisa. Por conhecer a professora muitos anos e seu perfil mais
“tradicional” de pensar a prática pedagógica e a escola, não poderia imaginar que
viveria em sua sala de aula essa experiência tão bonita. Não supunha que além daquela
aparente rigidez dos corpos arrumados nas cadeiras, atrás das mesas, daquele silêncio de
alguns momentos, havia espaço-tempo para a dança, a música, as histórias do passado e
do presente, tudo se enredando, tudo fazendo parte da mesma coisa, a aula. A pessoa
que estava ali a conduzir daquela maneira a aula e promover aquele encontro entre os
alunos, dos alunos com ela e entre os saberes de todos, também era uma pessoa inteira,
não era um fragmento seu que se apresentava, mas algo que ela também é, que também
a constitui. Não somos portadores de uma identidade monolítica, somos redes de
subjetividades, como nos diz Santos (1995), nossas identidades são fluidas e complexas.
Não foram os alunos negros que tomaram a frente, jogaram capoeira e falaram
sobre o assunto na hora em que conversavam. Todos, de todas as etnias, estavam
“autorizados” a integrar esse momento. Aliás, alguns dos alunos negros nem pareciam
estar muito envolvidos com o que se passava. Como não desejo e nem posso discutir
aqui a questão da negritude, a forma como ela costuma ser tratada nas escolas e como
estava sendo tratada ali, não entrarei nas questões que dizem respeito ao comportamento
desses alunos. O que destaco é que aquela experiência, vivida daquela maneira por
todos, como grupo, e por cada um, em particular, especialmente por eles, passava a
fazer parte da rede de sentidos que formavam e que os formava. Para essa rede, todos
traziam seus fios, seus saberes de outros espaços-tempos e com eles se apresentavam e
participavam daquela conversa, sobre aquele assunto. E é assim com todos os
acontecimentos, com todas as experiências que dia-a-dia são inventadas por esses
sujeitos das salas de aula: as professoras e seus alunos e alunas.
Com essa história mergulhamos também nos processos de formação por que
passa a professora. Lembramos Alves (1998) quando nos apresenta as esferas de
80
formação que enredadas, ao longo da nossa vida, vão nos tornando o que somos como
professora. São processos permanentes e que acontecem durante todo o nosso tempo de
vida, em todos os espaços que praticamos.
Muitas vezes nos pegamos a pensar no(s) porquê(s) desse ou daquele
comportamento assumido pela professora na sala de aula ou fora dela. É muito comum
atribuirmos à sua formação, entendendo-a como a vida escolar que teve, as escolas onde
estudou, a faculdade que cursou (ou não cursou), a continuidade que deu aos seus
estudos (ou não), enfim, seu percurso acadêmico. Porém, o que Alves procura mostrar é
que contrariamente ao que se pensava e pensa, a formação do professor não se
exclusivamente no âmbito da formação acadêmica”. A essa esfera ela acrescenta: “a da
ação política do Estado; da prática pedagógica quotidiana; da prática coletiva e a das
pesquisas em educação”. Essas esferas não estão cada uma isolada em seu tempo e
espaço específicos na vida da professora. Entre elas estabelece-se uma rede de
relações, sendo nas suas múltiplas articulações que se coloca a totalidade da
formação”. Não é possível, portanto, pensar em uma separadamente das outras. Mesmo
quando privilegiamos uma delas, a da formação acadêmica, por exemplo, ou a da
prática cotidiana, podemos fazê-lo entendendo a existência dessa rede e as tensões
nela existentes” (Alves, 1998, p.63-4).
Considerando a história de vida da professora em questão e do acontecimento
que narrei, é possível articular os usos que fazia das narrativas sobre seus antepassados:
a discriminação dos negros por parte do bisavô italiano, branco, portanto, que a
expulsou da família a mulher, sua tia, que fizera opção por um homem negro para se
casar e, ao mesmo tempo, a mistura de etnias com que buscava demonstrar aos alunos
não existir brancos no Brasil. As histórias da sua família estão enredadas a muitos
outros acontecimentos da sua vida, inclusive às circunstâncias em que se deu a sua
formação acadêmica.
Quando em conversa que tivemos como parte dessa pesquisa, pedi que ela
contasse um pouquinho da sua história de professora ela disse:
Eu sempre quis ser professora e sempre quis ser professora
primária, que eu fui de uma geração, de um colégio... Eu fiz
primário e ginásio no Cap UERJ e as pessoas da classe média
tijucana, na minha época, consideravam ser professora primária
uma coisa menor, era uma profissão que tinha um desprestígio
social, professora primária era coisa de menina do subúrbio, não
era coisa de menina tijucana, ainda mais menina que estudava no
Cap UERJ! Então eu fui a única pessoa do Cap da UERJ que s
81
para fazer prova para o normal. E foi assim um escândalo porque
todas as minhas colegas do ginásio, uma foi ser médica e todas
as outras foram ser engenheiras civis porque era a época, foi a
época do “boom” da engenharia civil, do Sergio Dourado, da
especulação imobiliária, então a profissão em alta era
engenharia civil. Minha prima, que tem quase a minha idade, foi
ser engenheira civil e eu saí porque queria fazer normal, foi um
escândalo! As colegas, as mães das colegas perguntando à minha
mãe como é que ela ia deixar. A minha irmã, por exemplo, ficou
no normal, porque ela já era do ginásio do Instituto de Educação,
mas ela passou o normal inteiro dizendo que não queira ser
professora, tanto que o primeiro vestibular que ela fez foi para
arquitetura, ela não queria ser professora. eu não, quando ela
começou a fazer o normal então! Eu comecei a ficar assim
interessadíssima naquela coisa... Foi um estranhamento para
mim, chegar ao Instituto de Educação porque as minhas colegas
do Aplicação, do Cap, eram aquelas menininhas todas da Tijuca,
que no fim de semana, que nas férias iam para a Argentina que
era a moda, foi a época do milagre brasileiro. No Instituto de
Educação eram meninas de poder aquisitivo baixo e com muito
mais dificuldades, tinha um negócio que quem era de colégio
estadual passava direto da rede. Estudei em 70, 71 e 72. Então
o pessoal vinha do colégio estadual e era assim uma outra
realidade.
Nesse pequeno trecho da fala da professora, posso perceber a presença de mais
alguns dos fios de sua formação, as esferas de onde esses fios podem ser puxados e o
enredamento entre eles, inclusive com a sua prática cotidiana, especialmente com esse
acontecimento da sua sala de aula que contei. A professora fala de seu pertencimento a
uma classe social, a classe média tijucana, que marcada por uma cultura, a leva a
estudar em um colégio bastante prestigiado no âmbito dessa mesma classe, por ser um
colégio freqüentado por pessoas vinculadas a esse grupo, que partilhavam valores e
idéias, inclusive a de que o Cap UERJ preparava para a formação em determinadas
profissões de prestígio porque possibilitavam a ascensão social e econômica ou
simplesmente a manutenção dessas posições. Daí seu estranhamento quando ingressou
por vontade própria em uma outra escola pública, o Instituto de Educação, cujos alunos
tinham um perfil completamente diferente dos do Cap UERJ, filhos de uma elite social,
econômica e intelectual. Mudou de escola porque queria ser professora, mas a escola em
que passou a estudar era “estranha” a algumas marcas de sua cultura de classe média e
às suas expectativas de estudo. Em outro momento de nossa conversa, a professora
falou que...
82
O curso normal me deu, para o que eu faço hoje, poucas coisas.
Na época que eu fiz, eu tinha a sensação de que aquilo podia ser
um cursinho de um ano, não precisava ser um segundo grau. A
gente tinha um monte de didática, era um besteirol aquilo, eu
passei o curso normal sem estudar, eu estudava música, passei o
curso normal estudando música, estudei à beça, entrei para um
conjunto de música barroca, eu estava em todas! Aí, foi
engraçadíssimo, quando eu fui fazer faculdade, eu fiz vestibular
pra psicologia, meu irmão me disse: ‘pô, te vendo estudar de
novo!’ Porque realmente eu não estudava, era uma coisa ridícula
aquilo. Vinha didática da linguagem e perguntava: ‘como fazer
ditado?’ Bom, se você for idiota para responder aquilo errado
numa prova.
A cultura de classe em que estava imersa valorizava e podia custear uma “boa
formação” acadêmica e o acesso à cultura erudita, pois ela era uma estudante de música,
tocava piano, atividade que conta com muito poucas ofertas em espaços públicos.
Mesmo “fugindo à regra”, deixando uma escola pública “de elite”, o colégio de
aplicação de uma universidade e indo para uma outra, de acesso mais facilitado,
portanto com um público bem mais diversificado em se tratando de pertencimento a
uma classe econômica e social, levava consigo os valores que aprendeu a ter nesses
espaços-tempos em que vivia. Havia escolhido ser professora, apesar da profissão ter
pouco prestígio social e em seus espaços de convívio, provavelmente, por ter baixas
remunerações. E não queria ser uma professora qualquer, desejava trabalhar com
crianças portadoras de necessidades especiais:
Bem, fiz o normal sempre com essa intenção de ser professora
primária dando aula para excepcional. As colegas pensavam em
fazer faculdade, eu não pensava porque eu estudava música,
então eu iria fazer o curso superior de música. Depois é que eu
me interessei por estudar psicologia, mas eu fui estudar
psicologia porque eu queria entender o que se passava com
aquelas crianças. O início da coisa foi porque eu queria entender
aqueles alunos, os AEs
17
. Depois eu peguei a turma dos
chamados treináveis, que eram os alunos com síndrome de Down
ou com inteligência mais ou menos equivalente, depois eu fui
trabalhar na ABBR, era o primário comum, mas para as crianças
com deficiências físicas. Então, eu estou terminando a minha
carreira como eu comecei, dando aula, que é o que eu gosto de
fazer e sempre gostei. Eu acho assim, um lazer, eu venho pra
escola porque eu acho uma festa, eu adoro.
17
Essa era a terminologia usada na época para nomear os alunos hoje chamados de portadores de
necessidades especiais, excepcionais.
83
Ela disse essas últimas palavras chorando e, ao mesmo tempo, rindo da sua
própria emoção. É evidente todo o envolvimento que tem com o que faz. São evidentes
também as complexas redes de conhecimentos que foi tecendo ao longo da sua vida e da
sua formação sobre ser professora, especialmente de crianças.
Para tentar compreender os processos de formação por que passou e passa essa
professora, suas práticas nas relações com seus alunos, com os pais dos seus alunos,
com a coordenação e direção da escola, é fundamental que mergulhemos nessas suas
histórias de vida e o que elas podem nos revelar sobre seus valores, suas idéias, seus
sentimentos e seus conhecimentos enfim sobre tudo que ela é.
Nesse sentido, a sua trajetória, os caminhos por onde passou, suas práticas como
professora, também são importantes fios das redes que a constituem. Ela diz que está
terminando a sua carreira como começou, dando aula, fala disso com tanto gosto que até
se emociona. Na conversa que tivemos, a meu pedido, ela conta como chegou a ser
professora do Colégio Pedro II. Fala que foi professora da rede municipal do Rio de
Janeiro onde chegou a ser coordenadora de alfabetização da Secretaria de Educação,
deu aulas em faculdades particulares,
Mas as pessoas sabiam que eu gostava de dar aula para o
primário, não é? O Paulo, marido da Heloísa, (seu cunhado) leu
no Jornal dos Esportes que ia ter concurso para o Pedro II e a
primeira pessoa que ele lembrou fui eu: ‘Patricia, vai ter
concurso para o Pedro II, por que é que você não faz? Você gosta
tanto de dar aula para o primário!’
No Pedro II, Patricia exerceu várias funções técnicas e administrativas: chefia de
departamento, chefia de setor de ensino e avaliação numa das unidades do colégio,
assessoria na secretaria de ensino, órgão que é responsável por toda a política
pedagógica do Pedro II e até a direção da unidade onde hoje somos professoras. Mas,
nos seus últimos anos de trabalho antes da sua aposentadoria, conforme disse: está
terminando a carreira como começou, dando aulas”.
Os valores tecidos na sua vida em família, no seu percurso acadêmico, na sua
carreira profissional, fazem com que se sinta comprometida com a escola pública e que
essa ofereça um ensino de qualidade para os alunos que lá estudam. Sua concepção do
que é essa escola pública de qualidade, ela revela quando fala do que significa para ela
ser professora do Colégio Pedro II:
eu vim aqui perguntar se pagava por formação e quanto era o
salário, porque é claro que ninguém vai perder dinheiro, então o
que eu ganhava na SUAM, não podia deixar, mas era exatamente
84
a mesma coisa, os salários se equivaliam, na época era muito
mais do que o município, era bem mais do que eu ganhava no
município. eu resolvi fazer concurso. E a questão de ser o
Pedro II foi uma coisa assim, que era um colégio de nome... Vou
fazer um comentário, faltando um pouco com a ética, mas eu
acho que há pessoas que nem percebem o que é dar aula no
Pedro II, o que é ser professor do Pedro II, entendeu? Porque o
desânimo é tão grande! Não sei, o que é o Pedro II, o que poderia
ser de fato, essa riqueza que a gente tem aqui, eu acho que a
grande riqueza que a gente tem, principalmente no primário, é ter
juntos: alunos de classe média, de classe social mais baixa, as
trocas de experiência, essa é a verdadeira escola pública. Foi a
escola pública que eu estudei, acho que a escola pública que
vocês estudaram, não é? Quer dizer, hoje, escola pública do
município quase que se tornou um grande gueto de aluno da
classe popular, não é? Tinha gente na época do Brizola, dos
Cieps, que dizia assim: ‘Quer ver melhorar a escola pública?
Manda o Brizola fazer uns Cieps em bairro de classe média e
botar todo mundo junto, classe média com classe popular e tal.’ É
verdade, porque uns puxam os outros, entendeu? Trocam
experiência, eu acho que essa é a grande riqueza que a gente tem
aqui. Agora, eu sinto que tem pessoas que não percebem isso,
entendeu? Eu acho que essa sempre foi a riqueza do Pedro II.
Quer dizer, ser um colégio que, historicamente, se formou como
um colégio de elite, mas que, de muitos anos para cá, ele é um
colégio que tem heterogeneidade na clientela. Acho que isso é um
negócio importante.
Que lugar ela pensa poderem ocupar os alunos negros, os brancos, os pobres, os
ricos, os de classe média na escola pública? Que tipo de ensino, que bom ensino é esse
que ela pensa poder e dever oferecer como professora de uma escola pública como o
Pedro II? Que professora pode e deve ser essa de um colégio como o Pedro II?
E o que acontece na sua sala de aula, o que faz? O que seus alunos fazem e são
nas relações que estabelecem com ela, com os conhecimentos que são produzidos?
Enfim, quais são as práticas que se desenvolvem na realidade concreta da sua vida, na
vida de seus alunos, na sala de aula e na escola?
A aula continuou. Todos passaram a se preparar para receber alguém importante.
Pela maneira como a professora estava falando, inclusive alguns dias com as
crianças, até eu pensava que chegaria mesmo alguém importante dali a alguns minutos
na sala de aula. Os alunos começaram a especular: quem seria? Arriscavam: Choeri (o
diretor geral do colégio), Cesar Maia (o prefeito da cidade), Felipe Dylon (cantor
popular)... E a professora falou: Felipe Dylon a televisão apresenta, não precisa a
escola apresentar. A escola tem de apresentar pessoas que vocês não conhecem”. As
85
crianças diziam: Ah! Está dando curiosidade!” Esperavam que alguém fosse entrar
pela porta da sala e por isso estavam muito excitados! A professora passou a contar a
história do personagem que ela apresentaria hoje: Filho de lavadeira, pintor de parede,
morador do Morro do Livramento que fica atrás da Central do Brasil, se tornou um
grande escritor”. As crianças ficaram, por alguns segundos, decepcionadas quando
descobriram que se tratava de um personagem morto, Machado de Assis, que eles
conheceriam através da foto, biografia, informações que a professora dava e de um texto
do autor que eles leriam.
Apesar da decepção momentânea, aparentemente, logo em seguida, estavam
todos envolvidos com a conversa, levantando o braço para poder falar, dar a sua
opinião. No meio disso, Maiara levanta também o braço e a professora pergunta o que
ela queria dizer, como havia feito com outras crianças. Maiara queria ir ao banheiro e
algumas crianças comentaram o fato dizendo: pensei que ela ia falar alguma coisa, ela
pede pra ir ao banheiro”. A professora deixou sem contestar. Antes, durante a conversa
e as outras atividades, Maiara tinha comido todo o seu biscoito. algum tempo
estava percebendo o quanto parecia alheia ao que acontecia na aula. No outro momento
de que tratei anteriormente, ela havia pedido para recolher os livros, dando um corte no
assunto de que tratavam. Assunto que poderia ser de seu interesse já que estavam
falando do lugar dos negros na sociedade no passado e atualmente e Maiara é uma
menina negra, que mora em uma favela próxima à escola, a Mangueira. Bonita, usa
penteados que exploram as possibilidades estéticas que oferecem os seus cabelos
crespos: tranças com adereços coloridos, partições pouco convencionais em outros tipos
de cabelo, enfim, parece viver, em família, a valorização das características de sua etnia.
Mas esses assuntos que a professora trazia nesse dia não pareciam ser de seu interesse.
Por que, não sabemos.
A chegada da pessoa importante anunciada e esperada dias acontecia, enfim,
através de uma fotografia junto de um pequeno texto com a sua biografia entregue pela
professora a cada aluno. Alguns alunos foram escolhidos para ler em partes e a
professora ia comentando. O texto falava, por exemplo, da Academia Brasileira de
Letras que hoje tem um prédio próprio, mas que quando Machado de Assis a fundou,
realizava as reuniões com os acadêmicos em outro lugar. Perguntou se sabiam que lugar
era esse e disse que eles o conheceriam no passeio que fariam ao centro da cidade nos
próximos dias. Ulisses acertou: Confeitaria Colombo”. Aliás, ele acerta várias vezes e
a professora diz contente: “Ulisses matou!”
86
Para começar a leitura do texto de Machado de Assis: “Filosofia de um par de
botas”, a professora escolheu, entre aqueles que se dispuseram, os alunos que fariam a
leitura como narrador e personagens que eram a bota esquerda e a bota direita: Ulisses,
Lúcia e Maiara. Quando apareciam palavras e expressões “difíceis”, que as crianças não
conheciam, a professora pedia que procurassem no dicionário ou ela mesma explicava o
significado. Diante da palavra ventríloquo, por exemplo, a professora chamou um
aluno, o Carlos para, com ele, representar o que era. Depois da representação, uma
aluna contou que ela viu no “Programa do Faustão” quando a “Turma do Didi” trouxe
um homem com um boneco e eles faziam isso: o homem penteava os cabelos do
boneco e ele mesmo fazia o barulho da dor que o boneco sentia, era muito engraçado!”
Nesse momento, a professora ligou os ventiladores, abriu a porta e pediu para
que eu abrisse a janela. Com o barulho que os ventiladores faziam, a leitura,
principalmente das meninas, ficou baixa, difícil de ser ouvida e entendida. A professora
então, que tinha pedido para elas lerem alto algumas vezes, falou enfaticamente com
as duas dizendo que não podia ler baixo, que se elas não melhorassem não iam poder
continuar.
Chegou à sala, para acompanhar a atividade, a coordenadora pedagógica
responsável pela 3
a
série. Como acontecia toda 5
a
-feira nesse horário, ela participava,
ajudando a professora nas atividades de leitura e escrita que ela promovia toda semana.
Essa foi uma das estratégias adotadas pela escola para buscar suprir algumas
deficiências que as professoras observavam nessa turma desde o início do ano,
principalmente, mas não só, em leitura e escrita. Estava na hora do recreio dos alunos de
5
a
à 8
a
séries, o barulho começava a chegar na sala onde estávamos e a professora
resolveu fechar de novo a janela. Em seguida, escolheu outras crianças para lerem a
segunda folha do texto. Em alguns momentos, a professora ajeitava o corpo do Carlos,
aluno que integra os grupos do apoio, pois ele estava meio “jogado” na cadeira. Eu
observava o Flávio, que também faz parte desses grupos, espreguiçando de vez em
quando, jogando o corpo para trás. Quando a professora perguntou o que era
“maltrapilho”, rapidamente o Carlos disse: mau”. A professora então: “Não, mau
não!” - dando logo a explicação sobre o significado da palavra. Depois de terminada a
leitura, percebia que outras crianças, além do Carlos e do Flávio demonstravam um
certo cansaço. A professora perguntou o que eles tinham observado de diferente nesse
texto e as crianças começaram a falar: Palavras antigas, difíceis, que não se usa mais
disse a Helena que também faz parte do grupo do apoio. A professora: E sobre a
87
pontuação o que vocês observaram?” E outro aluno que também faz parte do grupo do
apoio, o Michel: Ponto e vírgula” E ainda: “Qual o tratamento usado?” As crianças:
“Tu, 2
a
pessoa”. A professora perguntou ainda: Que coisas aparecem na história que
nós já conhecíamos?” “Lugares da história do Rio de Janeiro, do Rio Antigo: a Rua do
Ouvidor, a Praia de Santa Luzia, O Beco dos Barbeiros” “E o que não é conhecido?”
E o Ulisses respondeu: “A praia vazia, a paquera através da bota embaixo da mesa,
são costumes antigos” A professora quis comparar com a paquera, o namoro de hoje:
E hoje, como é? Hoje em dia ficam, não é? Alguém aqui ficou? E alguma criança
disse: “Eu já!Todos se animaram com o assunto. A professora o tempo todo fazia:
psiu!”, pedindo menos barulho aos alunos e seguia com outras perguntas: “O que mais
vocês notaram?” Alguém disse: As profissões que existiam.” E vários outros
ajudaram: doutor, procurador, fiel de feitor, barbeiro, servente de obras, padeiro,
mendigo.” A professora ainda tinha pergunta para fazer: O que a história da bota, o
que a bota mostrou?” As crianças arriscavam, mas não diziam o que a professora
queria. Até que o menino Ulisses, novamente, exclamou: Ah! sei! As profissões
foram do mais rico para o mais pobre!” Estava quase na hora do recreio, então a
professora disse: Hoje não vai dar tempo, mas na semana que vem vocês vão escrever
como Machado de Assis, transformando objetos em personagens vivos.” Maiara falou
imediatamente: “Eu vou faltar!” E o Sérgio: “Aí você vai fazer em casa.”
A professora pediu que alguns alunos entregassem para os colegas o livro de
português. Pediu que todos devolvessem o livro do Clube de Leitura que tinham lido em
casa e outros alunos os arrumaram na estante. A movimentação acontecia e o barulho
era grande. Algumas crianças comentavam com os colegas que estavam por perto, o
livro que tinham lido, outras diziam que não haviam trazido. A professora explicou que
na outra semana, havia feito a chamada para a escolha dos livros pela ordem alfabética,
dessa vez faria também, mas de trás para frente. Conforme chamava, os alunos iam à
estante, pegavam o livro e ela anotava o título do que cada um levava. Alguns meninos
bagunçavam próximos à estante se empurravam, se escondiam atrás do armário, mas a
professora não percebia. Pediu que uma aluna, a Mirian, colocasse no quadro o lembrete
sobre o trabalho de casa que todos deveriam copiar na agenda. O título do texto que a
menina escreveu era: Pati (apelido da professora) e o texto: Livro de Português,
páginas: 45, 46 e 47” . Depois deu a ordem: “As meninas podem descer” e o Bruno
falou: “Ah! Que injustiça!”. Os meninos conversariam ainda com a outra professora da
turma, a que aulas de ciências e matemática, sobre o que eles tinham feito na forma,
88
no dia anterior. Ela, que estava dando aula na outra turma, chegou e conversou com eles
falando, repreendendo e também ouvindo suas explicações. Perderam com isso, cinco
minutos do seu recreio.
Essa sucessão e simultaneidade de acontecimentos que trago aos leitores
compõem a complexa trama que é a sala de aula, aquela sala de aula. Uma após a outra
e/ou ao mesmo tempo, são práticas da professora, dos alunos e das alunas constituídas
em meio aos seus sentimentos, seus valores, suas concepções e idéias sobre a vida,
sobre o mundo, seus conhecimentos, enfim. A extensão desse tecido que vai se
compondo não se limita às quatro paredes da sala de aula. Ele vai muito além. Envolve
as práticas de outros sujeitos, de outros espaços-tempos: as famílias, os outros
trabalhadores da escola, as pessoas que participaram de outras tramas das vidas dos
praticantes da sala de aula e etc.
O currículo praticado (Oliveira, 2003) é o que encontramos nas escolas, nas
salas de aula se vamos à sua concretude, àquilo que acontece, ao seu cotidiano. As
“surpresas” que temos quando realizamos as pesquisas desse, nesse e com esse
cotidiano são muitas se a nossa curiosidade epistemológica (Freire, 1996) nos conduzir
e nos desprender, o máximo possível, da maneira como a racionalidade moderna
ocidental nos formou e nos forma. Podemos, com aquilo que são as pessoas, com aquilo
que elas fazem, criam, realizam dia-a-dia, com toda essa complexidade, compreender
melhor aquelas realidades das salas de aula e das escolas. É a constatação, o
reconhecimento mesmo dessa complexidade que caracteriza esses espaços-tempos sobre
os quais tanto se diz e recomenda, que nos possibilita penetrar, melhor compreender e,
se for o caso, intervir e propor algo diferente do que acontece. Identificar e narrar a
diversidade de práticas e os diferentes fios do tecido que elas são e tecem, que são os
diferentes valores, sentimentos e idéias dos sujeitos, nos permite percorrer também
esses caminhos, neles nos reconhecer e reconhecer suas possibilidades emancipatórias.
Com isso, o que afirmo nesse texto é que as práticas de professoras, alunos, pais e
outros trabalhadores das escolas, sujeitos das salas de aula, carregam inúmeras
possibilidades, inclusive as que
nos permitem superar a verticalidade das hierarquias
apriorísticas, da opressão de grupos subalternizados mulheres,
homossexuais, negros, índios, não escolarizados, deficientes etc. -
, entre outras formas de discriminação e de silenciamento
produzidas em contextos não democráticos” (Oliveira, 2003, p.
17).
89
É possível perceber que, entre as práticas das professoras com seus alunos, com
os pais desses alunos e com outros dessa rede, estão presentes os processos cotidianos
de dominação cultural sobre os quais se erguem a exclusão social, a discriminação
(id.ib., p.16) e também aqueles que contribuem para a emancipação social na medida
em que consideram e reconhecem as diferenças culturais sem criar, a partir delas, uma
hierarquia entre as diversas culturas (id.ib.). É possível notar também que entre essas
práticas existem as que incluem maior participação cidadã, portanto, contribuem para a
criação de uma democracia mais democrática (id.ib.), assim como as que estão restritas
à idéia de que a cidadania se reduz a um conjunto de direitos pelos quais se luta
(id.ib.), idéia que reforça a caracterização das democracias contemporâneas como
democracias de baixa intensidade na forma como designa Santos (id.ib., p.15).
Com a chegada da outra professora, a Lorena, a história continua...
Após o recreio, a professora fez a correção do trabalho de casa que era um
exercício de lógica. Coletivamente, sob a coordenação da professora, os alunos foram
chegando às conclusões sobre o que pedia a questão. Havia também um texto que foi
lido e comentado por todos. O texto era sobre desperdício, tinha sido trazido por uma
aluna, a Ariana, e a professora o havia reproduzido para todos os alunos. Ao fazer a
leitura do texto, a professora pediu que as crianças fossem citando maneiras como o
desperdício pode acontecer. Aquilo que era dito por elas ia sendo anotado no quadro
pela professora. Essa lembrava que o que estavam fazendo era uma recordação já que
tinham estudado esse assunto. Durante o tempo em que essa atividade acontecia, os dois
alunos que estavam atrás de mim não paravam de conversar. Eram o Ulisses e a
Sabrina. A professora lembrou um fato ocorrido no dia anterior e a aluna que estava na
minha frente, virou-se para trás e me colocou a par do acontecimento: um menino
estava com a caneta na boca e essa estourou em sua boca. A intenção da professora foi
alertar uma outra criança que hoje estava fazendo o mesmo. Nesse momento, passou em
frente à sala, alguém que bateu na janela e saiu correndo. A professora saiu rápido para
ver quem havia feito aquilo e deu a maior “bronca”. Continuou com a leitura do texto e
comentários. Aliás, não era apenas um texto, eram dois, uma fábula e uma crônica, cujo
assunto era a água. Ariana, que trouxe os textos, sempre tinha o que dizer, acrescentava
informações que obteve em conversas tidas com a mãe que a ajudou em casa para que
prestasse essa colaboração. Num dos textos depararam-se com a palavra rarefeita.
Diante da explicação da professora sobre o significado da palavra (menos oxigênio à
90
medida que a altitude aumenta), começaram a falar sobre o que sabiam do assunto.
Rosa, uma outra aluna, lembrou do avião e a máscara de oxigênio que tem para as
situações de emergência. A professora disse: bem lembrado”, e completou falando
sobre a pressão dentro do avião e o que acontece quando fura a fuselagem como a gente
nos filmes. Como o texto era uma fábula recolhida por Leonardo da Vinci,
começaram a lembrar de outros também estudiosos de outras épocas, Galileu foi um dos
citados. Ao chegar perto do menino que lembrou de Galileu, esse estava desenhando um
personagem de desenho conhecido das crianças. Quando a professora perguntou o que
ele estava fazendo, respondeu, meio sem graça, que era água. As crianças anunciaram o
nome do personagem e mesmo assim o menino, Miguel, insistia que o que desenhava
era água. Depois chamou a atenção de outro, o que havia se sujado no dia anterior com
a tinta da caneta que colocava na boca. Disse que ontem tinha sido roxa, hoje seria
amarela, pois era a cor do marcador de texto que levava à boca. O menino resmungou
falando sobre a menina que estava ao seu lado. Ela reclamava muito dele dizendo que
ele fazia barulho e ele retrucou falando que iria pedir à sua mãe que ele trocasse de
lugar. Vai pedir para a sua mãe?” - a professora perguntou. E continuou o que estava
fazendo antes. Para escrever no quadro a moral da fábula, foi perguntando às crianças a
opinião de cada um. Elas foram expondo a sua compreensão sobre o que tinham lido e a
professora escreveu para que copiassem atrás da folha em que estava o texto: Devemos
sempre dar valor ao que nós temos, sem desejar algo que não podemos ter. Nesse
momento então, passaram a dar opiniões sobre o conteúdo da moral e a lembrar versos
populares cuja mensagem se aproximava desse conteúdo. Não tenho tudo que amo,
mas tenho tudo que tenho”, disse a Carolina, na verdade querendo dizer: Não tenho
tudo que amo, mas amo tudo que tenho. Algumas crianças começaram a comentar
baixinho se era aquilo mesmo que ela tinha dito e a especular de onde ela teria tirado
aquela idéia. A professora interrompeu dizendo que não importava de onde ela tinha
tirado, que foi bom ela ter falado e contribuído. Colocou no quadro: Agenda Lo (de
Lorena, seu nome)
1. Lembrando: tem trabalhos do livro de matemática para o dia 13/10, 4
a
feira. Veja o caderno de matemática, dia 4/10.
2. Não falte, semana que vem terá prova!!!!
Enquanto copiavam estavam num silêncio quase total! O menino atrás de mim, o
Ulisses, falava baixinho. Num determinado momento da conversa, a professora
ameaçou encher o quadro para eles copiarem porque estava conversando com eles,
91
tentando ouvir, deixando-os falar e havia participações indevidas, fora de hora, crianças
que falavam ao mesmo tempo em que os colegas. O Carlos virou para trás com uma
cara de apelo aos colegas para que parassem, demonstrando pavor diante da ameaça da
professora: Ah gente!” Quando a professora apagou o quadro e começou a escrever
para eles copiarem o trabalho, o Carlos reclamou, bateu na mesa etc. Andando pela sala
um tempo depois, a professora observou que nem todos tinham copiado tudo: Estava
de conversa não é Juliana? Você copia rápido! Você também Maiara!” Maiara
respondeu: Não tia, é que eu fui ao banheiro”. “Não sou eu que vou estudar com o
caderno incompleto, faltando partes” - falou a professora. Em silêncio todos copiavam
e faziam o trabalho de matemática. Conforme iam acabando, a professora ia mandando
os alunos irem embora, pois estava na hora da saída. Maiara copiou a agenda com uma
letra bonita e mostrou à professora. Pedi para ver também e ela me mostrou toda
orgulhosa do que tinha feito e com a certeza sobre o que pode fazer.
92
II.2- Os tempos que tem o tempo das salas de aula
Era dia sete de outubro. A professora Cristina corrigia o trabalho de casa: contas
(operações matemáticas) que ela ia olhando nos cadernos como alguns alunos haviam
feito e em seguida colocando no quadro para eles resolverem. Todos os escolhidos
faziam parte do grupo do apoio e haviam errado, em casa, alguma conta: Luiza, Mônica,
Claudia, Paulo, Francisco e Saulo. Ao terminarem de refazer a resolução ali, na sala,
mostravam à professora que olhava, via se estava certo e mandava que sentassem em
seus lugares. Terminada a correção, a professora escreveu no quadro com letras bem
grandes: LIXO, passando para outra atividade. Daí começou a conversar com eles sobre
o trabalho que estão fazendo sobre esse assunto. Mostrou uma revista: JB Ecológico que
é publicada pelo Jornal do Brasil uma vez por mês. As crianças conheciam a revista
porque a professora, freqüentemente, trazia para mostrar. Nesse número, havia uma
reportagem sobre uma empresa que resolvera reciclar o seu lixo do mesmo modo como
eles, os alunos da terceira série, pretendiam fazer na escola. A professora disse: Eles,
assim como nós pretendemos também, fizeram uma campanha para dar início à coleta
seletiva de lixo. estamos fazendo cartazes, vamos ver o que mais nós vamos fazer
nesse sentido”. Mostrou essa e uma outra reportagem sobre os recordes do ano obtidos
nessa área: o Brasil foi o melhor e também o pior em alguns aspectos, uso de madeira de
replantio e desmatamento respectivamente. Disse que iria reproduzir as informações da
93
revista para que eles soubessem quem faz o quê no mundo. Algumas dessas
informações, a professora leu naquele momento e, ao ouvi-las, as crianças vibravam ou
se surpreendiam. Duas alunas estavam com a mão levantada um tempo querendo
falar: Paula e Mônica. Num determinado momento, a professora pediu que a Paula
falasse e ela disse que havia tido uma idéia: organizar uma gincana com brincadeiras,
redação e etc sobre o lixo, cujas prendas seriam objetos reciclados que eles mesmos
fariam. Outros alunos começaram a dar outras idéias a partir dessa: concurso de
produtos reciclados (feitos com objetos recicláveis), por exemplo. A professora,
percebendo que se tratavam de propostas cuja realização não seria possível, os
interrompeu e antes de encerrar o assunto, deu algumas explicações como a de não
terem condições estruturais para armazenarem lixo na escola. Depois ela passou a
anotar no quadro: por que é importante a coleta seletiva de lixo? E, conforme as
crianças iam respondendo, anotava também: a) porque diminui a poluição, b) diminui a
quantidade de lixo, c) reduz a utilização de recursos da natureza.
Neste momento, fui levada a pensar na questão dos tempos presentes nas salas
de aula. O ritmo daquela aula, daquela professora, era ligeiro, ágil. Digo assim, mas não
sem levar em conta a relatividade da idéia que busco expressar com o uso dessas
palavras, pois os leitores poderiam perguntar: ligeiro, ágil em relação a quê? Tentando
então esclarecer, chamo de ligeiro aquele ritmo que procura não deixar muitos
intervalos entre as ações, que imprime um encadeamento às falas, às atividades que são
realizadas por todos, que procura não “perder” tempo talvez. A professora costumava
ter todas as atividades bem planejadas e, muitas vezes, o tempo de que dispunha com os
alunos para a sua realização não era suficiente. Isso fazia com que ela não conseguisse
cumprir com tudo que havia pensado em fazer, o que a deixava aflita e “acelerada”. Em
certa ocasião, diante de uma necessidade, pediu que eu orientasse uma tarefa que os
alunos deveriam fazer e, ao final, demonstrou um certo incômodo com o que eles
haviam conseguido realizar no tempo em que estavam comigo dizendo, num tom de
brincadeira, que eu conversava muito com os alunos, deixava-os falarem demais.
Quando tivemos, por conta desta pesquisa, a nossa conversa, eu, ela e a outra professora
das turmas, a Lourdinha, disse que, ao contrário do que a colega havia afirmado sobre si
mesma, ela se preocupa sim com o tempo. Não considera que tenha um ritmo rápido
com o desenvolvimento do programa, tanto que as outras professoras sempre estão à sua
frente, mas com o uso do tempo na sala, sim. Talvez seu comportamento se deva ao fato
de se sentir “pressionada” quando comparada às outras professoras, quem sabe? Mas,
94
em última instância, o que alega é que se sente comprometida com o cumprimento do
“plano” que é a forma como chama o programa previsto para a série. Vejamos o que
diz:
Para mim foi igual. As duas turmas queriam falar bastante
sendo que a ‘seis’
18
chegava mais às conclusões. A ‘seis’ era
capaz de descobrir mais as coisas dando jogos. Na ‘seis’ sempre
saía, sempre uma criança conseguia perceber; na ‘oito’ nem
sempre... E também, assim, eu achei que, é, eles queriam falar
muito, muito, principalmente nas questões de ciências e que nem
sempre dava espaço para falar, queriam falar muito assim, sabe?
Todos querem ler sua resposta, todos têm um caso pra contar...
Eu não deixava porque, ao contrário de você, eu me
preocupo com o tempo. E aí, eu também não sei... É, de repente
tem que pensar uma coisa diferente se eu pegar uma outra
terceira série, uma turma ano que vem, porque esses assuntos de
ciências; eles têm muita coisa pra falar então, dependendo do
exercício que você passe, tem que tirar o dia pra aquilo e
esquecer o resto, e ouvir as histórias, ouvir, ouvir, mas eu não
consegui. Eu sempre tinha um planejamento e ficava querendo
cumprir e acho também que eles ficaram um pouco silenciados
comigo.
Aparentemente de forma contraditória, em outro momento da conversa, quando
falávamos sobre a participação das professoras na elaboração do planejamento do
trabalho a ser realizado com os alunos, ela disse:
Eu também não imprimo ritmo rápido porque é aquilo que está
previsto não. Tanto que, por exemplo, sistema, algarismos
romanos, eu que não dei, nem sei se tem uma outra coisa, mas
se eu sentir que a turma está precisando ir mais devagar eu vou.
Mesmo que eu não tenha dado, isso, isso, aquilo outro. Eu não
me sinto na obrigação de, por exemplo, se já é pra começar o ano
fazendo um diagnóstico eu sempre levo muito mais tempo que
todo mundo, eu não consigo fazer um diagnóstico rápido, em uma
semana ou duas, pra ver se aprendeu as coisas que trouxe da
outra série. Nunca é rápido! E começo o conteúdo novo
também um pouco depois, é... Sempre vou mais devagar. Ciências
eu me sinto assim também, bem livre; a gente pode dar muita
opinião nas coisas como vão ser conduzidas, até pra o conteúdo
que vai ser dado. Todo trimestre eu me sentia... eu falava: “não,
isso vai dar, isso não vai dar”. É... e procurava trazer muitas
questões de jornal, de televisão, pra ciências, que na verdade
são tantas informações que você tem, que você tem cada dia para
trazer, que para você trabalhar bem um artigo de jornal também
leva tempo. Tem muitas palavras que eles não entendem, então,
às vezes, eu pegava o artigo e reduzia, ou botava uma parte;
18
Está se referindo à turma 306, uma de suas de terceira série. A outra é a 308 que ela chama de “oito”.
95
botar um artigo inteiro, às vezes aquilo se torna um complicador
porque coisas que eles não entendem, citações, são siglas,
então, às vezes, lamentava ter pouco tempo para não estar
trazendo mais coisa, usei muita coisa do JB ecológico muito
bom usei muito a revista Protesto, mostrava as reportagens,
deixava passar a revista, era uma coisa que estava assim bem...
tinha sempre coisas que atendiam.
Em meio às redes cotidianas da escola (Ferraço, 2004) e da sala de aula é
possível perceber, através dessas histórias, sua tessitura com a presença de diferentes
tempos. Participam dessas redes os alunos e alunas, os pais, as outras professoras – a da
turma ou não, as coordenadoras, o “plano”, as informações disponíveis nos meios de
comunicação e ela mesma, a professora Cristina, é claro, com seus vários tempos em
tensão e conflito dentro dela. É desses tempos que vou falar pensando que sua presença
e sua tessitura é bastante importante para a compreensão daquilo que se passa nesse
espaço-tempo, a sala de aula.
Como professora do apoio, conhecia aqueles que foram chamados ao quadro
para corrigir as contas do trabalho de casa, pois eram todos meus alunos. Conhecia
também um pouco da turma e do restante das crianças, pelo contato que tinha nos
momentos em que ia à sala buscar os que iam para a aula comigo, pelos dias em que
estava para a realização da pesquisa e também pelos comentários que as professoras
faziam sobre eles em reuniões de planejamento ou conselhos de classe. Sabia, então,
sobre aqueles tempos, da professora e dos alunos, que percebi tecerem aquela aula,
sabia que ora eles se cruzavam ora não. Em muitos momentos, traçavam linhas paralelas
em relação a alguns, enquanto que essas mesmas linhas em relação a outros se
encontravam. E tendo esse aspecto como parte do todo complexo que são as salas de
aula, buscarei compreendê-lo, narrando outras histórias, vividas com alguns desses
alunos. Na primeira delas, eles contam os seus sentimentos e as suas experiências com e
em alguns dos tempos da sala de aula.
96
Tempos e sentimentos de um espaço complexo
Como todas as semanas, cheguei à sala da turma 308 para buscar os alunos do
grupo do apoio de língua portuguesa. Ao chegar na porta, a professora Lourdinha, que
junto com a Cristina era professora da turma, me pediu que levasse para a aula naquele
dia um outro aluno, o Jeferson, porque no último texto que fez, ele se embolou um
pouco e fez um texto muito confuso” na sua avaliação. Não havia lido o que o Jeferson
escrevera, mas, dias atrás, a professora comentara que tem achado os alunos do
grupo de apoio melhor, em especial o Francisco, mas que tinha se surpreendido com
um outro aluno que não é do grupo, o Jeferson”. Esse era, então, o menino que ela
queria que tivesse algumas aulas comigo para que ele tivesse oportunidade de melhorar
a escrita dos seus textos. Apesar da explicação da professora, Jeferson fez uma cara de
susto e disse: “eu?”
Fomos para a sala onde seria a aula. Era fácil notar o quanto o menino estava
atordoado e incomodado com a sua presença entre aqueles outros alunos e comigo como
professora. Percebendo esse sentimento, falei de novo com ele, perguntei o que sentia e
ele, tentando explicar para si mesmo e ao mesmo tempo entender o que estava fazendo
97
ali, dizia que ele não era, não pertencia ao grupo do apoio, tinha ido naquele dia
porque a professora mandara. Perguntei ao Jeferson por que estar ou não na
“recuperação” era tão ruim para ele. Sua reposta foi que os colegas ficam zoando”.
Naquele dia mesmo, quando saiu da sala, o Fernando um outro menino da turma -
ficou dizendo: Ah! em recuperação!” E ele não gosta disso. Para tranqüilizá-lo e
tentar viabilizar sua participação na aula, falei que sua professora havia dito o que
tinha acontecido, me referindo ao tal do texto confuso feito por ele. Então, ele não
deveria ficar tão preocupado por estar ali, trabalharíamos juntos para que superasse os
problemas que vinha tendo na escrita. Tentei dar continuidade à aula, mas o assunto em
questão motivou os outros a contarem também as suas experiências com esses
sentimentos pelo fato de pertencerem ao grupo do apoio, a maioria desde o ano passado
ou mesmo desde anos anteriores. Francisco contou como era sua relação com a turma na
segunda série. Havia chegado, com a família, de um outro estado do país e sido
transferido para essa escola. Lá cursara a primeira série, que era bem diferente da
primeira série daqui, por isso havia muitas coisas que não tinha estudado ainda. Falou
que os colegas o chamavam de “burro”, diziam que ele não ia passar de ano,
cochichavam quando ele errava e isso o deixava triste. Mas, mesmo surpreendendo os
colegas, ele passou para a terceira série e ali estava. Perguntei ao Francisco sobre esse
ano, se as coisas continuavam iguais. Ele disse que não, que haviam melhorado. Mas o
Felipe entrou na conversa e disse que os colegas da turma ficam falando baixinho
quando o Francisco demora a responder o que a professora pergunta: “Ai! Não sabe!”
Disse isso reforçando o que os outros tinham acabado de falar: os que não são do
grupo de apoio, ficam zoando, dizendo que eles não sabem, falam, ficam olhando”. Os
olhos do Felipe, nesse momento, ficaram marejados. Ao perceber, pedi que falasse
como se sente e ele disse: mal”. Falou também que a professora não aceita quando
eles, do grupo do apoio, acabam rápido. Se for um outro aluno ela aceita, recebe o
trabalho, teste, prova o que for, mas se for um deles, ela diz: “Ah não! Você fez isso com
pressa, não aceito, ver o que você fez!” E sem nem olhar, devolve. E o trabalho
pode estar certo” diz o Felipe. Francisco voltou a falar, agora sobre o colega. Disse
que a turma fica impaciente com ele, reclamam que ele muito devagar e baixo, que
ninguém entende nada.
Lembrei de um outro dia em que eu estava na sala com eles e a Cristina,
professora a quem se referiam, estava apresentando uma carta de um índio americano,
escrita há muitos anos atrás para o presidente dos Estados Unidos. Esse seria o texto que
98
eles leriam no pátio, para todos da escola, no lançamento daquela campanha de
reciclagem do lixo que a terceira série estava organizando. Ouvi alguém dizer baixinho
que não poderia ser o Felipe o aluno que leria a carta. A professora reclamou com quem
havia dito isso. Falou: não quero saber disso!”. Lembrei também que várias vezes vi
ou ouvi comentários baixinhos sobre quem demora muito a responder quando a
professora pergunta ou quando ela desiste de esperar a resposta e faz a pergunta a outro.
Naquela semana, a mesma professora Cristina, havia vindo me dizer que o
Saulo, aluno que ela diz dar nervoso” nela, foi o único, entre as duas turmas com que
trabalha, que inventou uma história que não tem nada a ver com o que ela pediu, ao
analisar e dar a opinião dele sobre uma charge em que um homem segura a Terra e
sacode, dentro de uma privada, todo o lixo que está nela. O que ele escreveu foi uma
história que não tem nada do que eles vêm estudando sobre o lixo. Então ela pediu que
ele refizesse. No dia em que a professora cobrou o novo texto, ele também apresentou
um trabalho insatisfatório. Ela disse que ia mandar um bilhete para a casa dele para que
lá soubessem o que ele deveria ter feito e não fez. No final da aula, ela foi até o menino,
falou de novo com ele, analisou o que estava pronto, fez algumas perguntas para
ajudá-lo a avançar e pediu, a partir disso, que ele melhorasse o que já estava escrito ali.
99
Nesse mesmo dia, os alunos estavam fazendo um teste para avaliação e ela
autorizou que eles perguntassem, mas depois que tivessem pensado bastante. Uma
menina, que é considerada uma excelente aluna, veio me perguntar algo que talvez não
esperássemos que ela perguntasse, por imaginarmos que ela saberia resolver sozinha
aquele problema matemático. Sua dúvida era sobre como poderia ali, naquela situação,
realizar uma multiplicação, a operação que lhe parecia dever e 2(a)]29-395.68 0 Td[(s-2(he)4( )049(nã)44( )-70(e)4(r)3(a)4( )-oa)4(s)-1((r)352(í-6(i)-2.00v005(e)4(l)-2.00)4(o, )250]T29-395.84 -20.76 Tp-70(e)4(l)-2(a)4200(a)419 )-50(pe)4(r)3(g)10(unt)-2(a)419 considerar(unos)ut49(nã)“-1(ac)4(ons 220(a)4(l)-2(unos”(quequ)-2(a)4(nto -70(e)4(l)-2(.  2(a)]5.33.84 -20.76 TO)2ue)4( )-70(Sd[(ae)4(lo)-2(, nã)4440Td[(m)-2(e)4(ni)o)-1( )-40(que)4( )dr)3()-1(ie)4(x))-6(ou )a(que)4( )-70(prf70(r)3(e)4(s-70(s)e)4(r)3(a)4( )“-1(n-2(de)4(voe)4(sl)-2”)3(a)4( )-70(c)4(om-2(, nã)4440Ta)4(t)-2(e)4(x)t4(om)-2(( )-40(que)4( )-70(prdu-1(oz)-6(i)-2.00u4(o, )250]T5.33.84 -20.64 T-70(s)-1(obr)3or)310i)-2(a)41 )-70(h20(pa)4(r)3(g)-1(e)4(1 )f[()4(poi )4(x))-ut70(pr )4(x)-40(que)41 mepergunto1 alg1 sobr--90(umr-70(pr)3(obl)-2(e)4(m)-2(a-40(que049(nã))4(ut70(pf)3(a)4(zr)3(i)-2(a0(unt)ar(u2(a)425-395.68 0 T4(o, )250]425-395.32 -20.64 Tr(unos)-13( )-r)3(ar(unos)-13o )n293(e)4()-2(e)4(s-70(sápode)4(r)3(ir(unos)-13o ))-2(e)4-)-178)-70(pr)3(e)4(s-70(s)(unos)-13o ))-2(e)4(m)-2(7 )nú-60(m)-2(70(pr(unos,a)43o ))-2(ã)4.00(unoscpode)4(r)3(it)3(ir(unos)-13o )-70(c)4(o(r)36s)-13o )-50(a)4(l)-2(gapode)4(r)3(ie)4(s)-1(m)s0(ba)]TJ420.68 0 T,amasco(r)2.00a
100
outros sim. Esses que estão enquadrados no modelo de “bom aluno”: inteligente,
estudioso, cumpridor dos seus deveres, participativo, que sempre têm algo a dizer para
contribuir na discussão da turma, também têm as suas dúvidas, no entanto, nos
espantamos com elas como se isso não pudesse acontecer.
Como disse, são vários e variados tempos acontecendo simultaneamente. Isso é
o que podemos notar nessas e em tantas outras salas de aula que vemos e vivemos.
Ferraço (2004) nos apresenta uma idéia semelhante a essa como resposta a uma questão
bastante importante para nós que pesquisamos com o cotidiano. Ele diz que
cada vez tem sido mais difícil identificar com nomes o que
acontece nas escolas ... quando pensamos com o cotidiano das
escolas encontramos dificuldades em responder quando é que
acontece, por exemplo, o planejamento, a avaliação, a
aprendizagem, o ensino, entre outras tantas questões. De fato, se
nos situamos em meio às redes cotidianas das escolas, e com os
sujeitos, a resposta para essas questões é uma só: acontece tudo
ao mesmo tempo e com todos!
Sendo assim, no que isso implica? Se acontece tudo ao mesmo tempo e com
todos, se cada vez tem sido mais difícil identificar com nomes o que acontece nas
escolas quando estamos em meio às suas redes cotidianas, podemos, com essas
histórias, nessas histórias, penetrar nos espaços de vida que elas contam e tentar
caminhar por alguns percursos para buscar perceber esse tempo tecido com os diferentes
tempos como que tecendo um outro, próprio desses sujeitos nas relações que eles ali
estabelecem.
Temos a presença do tempo limite, produzido pela organização escolar, a norma,
que impõe à professora e aos alunos terminarem e começarem numa determinada marca
temporal preestabalecida. É uma das regras que, com nos diz Foucault (1987) define
uma ordem que a escola como sistema disciplinar faz respeitar. As micropenalidades
que o não cumprimento dessa ordem traz também estão presentes nos sentimentos e
privações que a professora e os alunos experimentam com aquilo que não puderam
realizar: o que ela não conseguiu ensinar, o que eles não conseguiram aprender, as
tarefas que ambos não conseguiram cumprir naquele tempo previsto. Sentimentos de
preocupação, angústia, baixa expectativa, baixa autoestima são exemplos do que pode
circular nas salas de aula por conta da presença desse tempo limite. Esse tempo se
coloca nas dinâmicas da sala de aula através das professoras que buscam cumprir, como
previamente definidos, os seus tempos de aula e o de suas imposições em relação à
duração de um aprendizado, ao tempo destinado a um exercício etc. Mas não só, ele
101
também se faz presente através dos próprios alunos, das coordenadoras, da diretora, dos
pais e mães, em práticas que fazem uso desse mesmo tempo limite ou experiências que
com ele têm relação.
Através do que disseram os alunos presentes à aula de apoio naquele dia, alguns
desses sentimentos foram também expressos. Apesar de participarem muito bem dessas
aulas, diziam claramente que não gostavam de estar ali porque “os colegas zoavam” e
eles se sentiam mal com isso. Não gostavam quando as atitudes diferentes da professora
com relação a eles lhes pareciam baixa expectativa. Apesar de reconhecer e tratar desses
comportamentos da professora como de “cuidado” com esse grupo de alunos, é
inevitável reconhecê-lo também como gerador de insegurança e até de indignação em
alguns alunos e em alguns pais.
Numa fértil conversa que tive com o pai de uma das alunas dessa turma, a Luiza,
que era minha aluna no grupo do apoio, também pude notar, entre outras coisas, o
quanto alguns dos sentimentos de que aqui tratei como possíveis micropenalidades,
participam da vida de alguns sujeitos dessa rede que é a sala de aula. A conversa me
provocou pensar na simultaneidade dos tempos, característica da vida, contraposta à
linearidade das tarefas escolares, com seus limites de início/fim e outros. Como a escola
também faz parte da vida e vive essa simultaneidade, muitas vezes, a linearidade e a
presença do tempo limite são incompatíveis, o que traz contradições, conflitos e
contraposições. Ainda foi possível refletir sobre os tempos partidos das várias aulas, das
várias professoras, das várias disciplinas criando uma expectativa de partição dos
sujeitos e de limitação clara e quase idêntica para todos. Apesar de ser uma expectativa
e de sua plena realização não ser possível, ela acaba gerando também conflitos,
contradições e contraposições, embora não em todos os sujeitos e nem da mesma
maneira.
Esse pai, que procurava acompanhar de perto a vida escolar de sua filha, admitia
que havia um problema da Luiza com a matemática desde anos anteriores e alertava
para a necessidade dos adultos que lidavam com ela terem cuidado com o que diziam e
o que faziam nessa relação, pois isso poderia fazê-la desenvolver “bloqueios” que
prejudicariam bastante sua vida escolar. Contava que como sua esposa não gostava de
matemática, conseguia influenciar as filhas nesse mesmo sentido. Falava também sobre
a professora que, preocupada com uma determinada resposta “absurda” que a Luiza
dera a uma questão, recomendou que ele a levasse para uma avaliação psicopedagógica.
102
Atitude que achou desnecessária, pois não considerava que a questão da filha com a
matemática fosse dessa natureza. Disse ele:
As professoras dela, desde o jardim, porque desde dois anos ela
está na escola, nunca reclamaram dela. Esse ano a professora de
matemática fez assim uma certa queixa dela, entendeu? Chegou
até a falar de problema, assim, aquele problema relacionado a
psicopedagógico entendeu? Aí, eu creio que não.
Diante da minha questão, perguntando se ele não observava isso, ele responde:
Não, eu não observo não, eu observo que é tranqüilo, a
aprendizagem dela é normal, que falta mesmo mais empenho,
entendeu?
A Luiza é assim, ela gosta de brincar, ela não se interessa pelo
estudo, ela está em recuperação porque ela estuda pouco, se
estudasse mais, se levasse mais a sério as tarefas, não estaria
assim, entendeu?
Talvez, como a minha esposa tem trauma de matemática, então,
começou a falar: ‘Ah! Eu não gosto de matemática e tal’. Então
já colocou na cabeça dela essa dificuldade, da mais velha.
Então, eu creio que é mais assim, pode vir da minha esposa, não
tem uma certa sabedoria na hora de falar, entendeu? É... e falta
mais o estudo mesmo, falta mais o estudo mesmo, porque
matemática se treinar não tem como dar errado, entendeu? E ela
não tem dificuldade não.
Tomando como referência essas últimas informações, gostaria de trazer aqui a
discordância da professora em relação ao que o pai da menina afirma ter sido sua
orientação. Segundo a professora, ela não fez esse tipo de recomendação a ele.
Considerei importante apresentar essas duas versões da história, que não pretendo,
neste trabalho, trazer a verdade sobre os fatos, mas sim as histórias que cada um conta, a
partir do que viveu, para que, com elas, possamos fazer nossas leituras.
Voltando ao que diz o pai da aluna, para ele, o tipo de incentivo que ele à
filha, confiando nas suas possibilidades, mostrando o que é capaz de fazer,
acompanhando de perto o que está estudando, orientando para que ela estude mais,
cuidando do que não vai bem e para isso se utilizando de todos os recursos de que
poderia dispor, era suficiente para que ela conseguisse superar os problemas com a
matemática e tivesse um percurso de sucesso na escola. Pensava que o tipo de
tratamento que, algumas vezes, a mãe, em casa e a professora, na escola, davam a ela
não contribuía para a segurança que precisava ter para enfrentar as questões com a
disciplina. Esse pai participava ativamente dos processos pedagógicos daquela sala de
103
aula, tinha seus saberes sobre eles e os valorizava, tanto que, na medida do possível,
tornava-os conhecidos das professoras. Alguns desses saberes eram sobre os
sentimentos que a filha poderia desenvolver a partir das relações que tinha com os
adultos e o que eles diziam sobre ela e suas aprendizagens. São esses sentimentos de
menos valia, de insegurança e de ansiedade percebidos pelo pai que busco tratar aqui
como possíveis micropenalidades fruto também de possíveis imposições do tempo
limite presentes na dinâmica da sala de aula.
Luiza, os outros alunos do grupo do apoio e porventura outros de que não
falamos aqui têm de lidar dia-a-dia com essas e com outras prescrições desse tempo. E
vale lembrar, como dito antes, que isso não se restringe aos alunos. Professoras, pais
e mães, outros profissionais da escola também vivem essas prescrições. E como será
para cada um? Como será que experimentam esse confronto dos tempos da vida de fora
e de dentro da escola? A professora que entra numa sala de uma determinada turma,
naquele tempo estipulado e “dá” a sua aula previamente planejada. Depois desse tempo,
essa mesma professora que sai, entra em outra sala, com outros alunos, para “dar”,
muitas vezes, a “mesma” aula planejada. E quanto aos alunos? Como devem
experimentar essas incompatibilidades entre o tempo da casa e da vida quando em
oposição ao da escola com as suas regras, suas normas? Como será que vivem os limites
das partições expressas nos tempos das diferentes disciplinas, na relação com as várias e
também diferentes professoras naqueles tempos, nos tempos previstos para a realização
das tarefas e por fim, naquele esperado para a conclusão de suas aprendizagens?
Um dado importante apresentado pelo pai na conversa comigo é o momento em
que ele fala da forma como a Luiza lida com sua vida escolar e suas questões com a
matemática. Conta que, em casa, ela brinca regularmente de “escolinha” com as suas
bonecas e ele fica escutando quando ela “ensina” o que está estudando em ciências, por
exemplo, cuja professora é a mesma que matemática. Percebe que ela tem uma boa
relação com a escola e com as professoras, demonstra gostar do que vive lá, comenta
muitos assuntos das aulas, inclusive as de apoio que tem comigo. Afirma que a menina
não é estressada, que ela se comporta de uma forma bem “light” em relação aos estudos.
E como durante toda a conversa, fez comparações entre as suas duas filhas, ambas
estudantes do colégio, para falar sobre esse aspecto:
Mas ela entende, não nesse estresse, entendeu? É uma
personalidade diferente, enquanto a outra (a irmã), ‘pô’, se
estressa quando tem uma tarefa, ela se estressa ‘pra caramba’, já
104
a Luiza não se estressa assim, então é uma coisa boa. É, tem uma
parte boa, entendeu? Dizem que os filhos mais velhos são mais
conservadores, os filhos mais novos, por exemplo, o caçula, é
mais light, entendeu? Tem uma parte que é boa e tem uma parte
ruim, para ser gerente de pessoal é bom não se estressar muito,
saber levar ali, mas talvez tenha um lado ruim também...
Podemos pensar que o que faz o pai é apresentar as suas preocupações e a sua
experiência tanto com a escola, como com o que a Luiza é, seu jeito de ser e de viver na
escola e fora dela. O que me parece é que ela tem uma outra maneira de lidar com esse
tempo sobre o qual estamos refletindo. A sua prática envolve também outros tempos
além do tempo limite que junto dela busca uma presença impositiva. Outros tempos que
estão dispersos nas práticas dos sujeitos da sala de aula.
Larrosa (2003) nos apresenta, em um belo texto, uma outra concepção do tempo
do estudo, do estudante, que podemos encontrar também na escola apesar dele não se
referir a ela, que pode não se restringir ao estudante, que pode estar enfim, presente
nessa trama da sala de aula que tentamos compreender.
“O estudante tem tempo. Todo o tempo.
Um tempo que é sempre agora. Um tempo
livre, liberado desse transcorrer crônico,
feroz, linear, cumulativo e sempre urgente
que escraviza e destrói com as suas rodas
aos que neles vivem. O agora livre do
estudante está fora do tempo: fora do
passado e do porvir, fora também da
presença do presente, desse presente que
quer ser outra coisa que não um instante
que passa e que incessantemente se dissolve
em passado e se abre ao porvir...”
(p.17)
Esse também é um tempo quando não vivido, desejado pelos sujeitos das salas
de aula, entre eles os estudantes de quem Larrosa fala. Esses vários tempos compõem
uma textura para o tecido que as práticas cotidianas vão tecendo dia-a-dia. São fios de
várias cores, de várias espessuras e de várias formações que se encontram, se cruzam, se
afastam, se trançam.
As situações que essas histórias apresentam nos permitem contactar e pensar
sobre as diferentes idéias, experiências, concepções e práticas do tempo de cada um e do
grupo para tecer possíveis compreensões com as perguntas feitas anteriormente. As
crianças puderam falar sobre isso. Disseram como se sentem envolvidas nesse ou
105
naquele, com esse ou com aquele tempo das dinâmicas da sala de aula, nas relações que
se estabelecem entre os sujeitos e com os conhecimentos. Da mesma forma o pai, ao
relatar como participa da vida de sua filha na escola e o que sabe sobre essas suas
relações. Nos diálogos que pude ter com as professoras, como professora de apoio e
com os alunos, pude perceber as oportunidades que todos tivemos de saber um pouco
mais de nós mesmos, da escola em relação aos conhecimentos escolares aprendidos e
das dimensões do tempo vividas e exigidas nesse cotidiano. Acontece tudo ao mesmo
tempo com todos nas redes cotidianas da escola e da vida (Ferraço, 2004). Alguns
desses sujeitos praticantes dessas salas de aula vivem esse tempo limite sofrendo
micropenalidades, como alguns dos alunos e como a professora de que falei. Contudo,
esses mesmos alunos e outros, ou essa mesma professora e outras vivem esse mesmo
tempo de maneiras diferentes dessa.
Luiza vive a vida de casa, da família, e também a da escola “ao mesmo tempo”
quando leva e traz de um lugar para o outro o que faz, pensa, sente e aprende. Ela “dá”
aulas para as suas bonecas, brinca e estuda simultaneamente, mas não que isso faça
parte dos seus planos, simplesmente ela está vivendo a sua vida de criança em interação
com as pessoas e as coisas que estão ao seu redor. Na avaliação do seu pai, ela brinca
até demais! Na escola, ela e todos os outros alunos experimentam o tempo único para a
realização das tarefas, as mudanças de enfoque provocadas pelo entra e sai das várias
professoras e as disciplinas que ensinam. Essas experiências são vividas por todos, mas
cada qual a sua maneira. O que posso pensar é que a Luiza consegue viver de maneira
íntegra, ou seja, sem se partir, as incompatibilidades entre o que se passa na “vida real”
e as prescrições escolares. O que não significa que essas incompatibilidades entre
tempos diferentes são vividas também sem insegurança, tensão e conflito entre ela e o
que é esperado pelos pais, pela professora e até por ela mesma em relação à matemática,
por exemplo. Assim pode ser com os outros alunos, ou não.
A essa reflexão, ajuda acrescentar, para melhor compreender o que pretendo,
Morin (1996) quando trata das sociedades históricas como mistos de coação e de ordem
imposta... e de interações espontâneas (p.113). Essa é uma idéia que ele desenvolve ao
apresentar e defender a necessidade da prática de um pensamento complexo. No
cotidiano das salas de aula, a presença de vários tempos em encontros e desencontros
constituindo, inclusive, os seus sujeitos, pode nos fazer perceber esse misto. Não
somente uma concepção de tempo que durante todo o tempo e na prática de alguns
sujeitos se coloca como hegemônica, estabelecendo uma ordem naquela sala de aula.
106
um misto dessa ordem que coage, com as interações espontâneas dos sujeitos que
fazem parte dessa rede. Compreender a complexidade dessas dinâmicas que no
cotidiano captamos com os nossos sentidos é importante porque dessa forma podemos
nos aproximar da potencialidade disso que Morin chama de interações espontâneas e
que nós poderíamos também chamar, como fez Certeau (1994), das astúcias dos
praticantes no cotidiano, ou seja, as maneiras astuciosas como os sujeitos usam as regras
estabelecidas nos espaços sociais, não nos permitindo, com isso, acorrentar pelas
previsões e determinações da ordem imposta às escolas e à educação.
107
II. 3- Percursos nos espaços-tempos da escola
Era uma aula na turma 306. A professora chegou e pediu que os alunos se
organizassem, sentassem em seus lugares e diminuíssem a intensidade do ventilador.
Algumas salas dessa parte do corredor, no andar superior da escola, onde ficam as
turmas de terceira e quarta séries são muito pouco arejadas. À frente das janelas um
paredão, que é a parte de cima de um outro prédio da escola onde funcionam a cozinha,
o refeitório e a cantina embaixo e outras salas da outra unidade em cima. Ao lado desse
paredão, em frente a outras salas de aula, o que se é um vão, com o pátio de entrada
abaixo e o restante do prédio acima. Ainda ao lado, um outro vão, esse um pouco mais
arejado, porque descoberto e com o outro prédio, onde funcionam outros setores do
colégio, localizado a uma distância um pouco maior. No térreo, nesse mesmo espaço,
temos mais um pátio interno. Percorrendo toda a extensão do prédio do “Pedrinho”,
mesmo em frente às salas de aula das outras séries, avistamos o concreto de mais
algumas construções do chamado Complexo de São Cristóvão que abriga três unidades:
a I (Classe de Alfabetização à 4
a
série), a II (5
a
à 8
a
série) e a III (Ensino Médio), além
de ginásio poliesportivo, piscina olímpica, quadras, pista de atletismo, capela, teatro,
biblioteca, estacionamentos e o prédio onde funciona a direção geral do colégio. O céu e
108
alguns desses espaços, nós podemos ver através dos vazios que se formam entre as
construções ou entre elas e o piso do andar térreo. São eles que permitem a tímida
circulação de ar que chega às salas de aula. Tudo isso faz com que o ambiente dentro
delas se torne bastante desagradável porque quente e abafado, principalmente nos
períodos do ano em que o calor é mais intenso. Sendo assim, os ventiladores são peças
imprescindíveis. Acontece que, muitas vezes, os aparelhos são tão barulhentos que
também acabam atrapalhando o desenvolvimento das aulas. Além de eles produzirem
um ruído desagradável e constante, são um obstáculo ao entendimento entre as
professoras e os alunos porque dificultam que todos possam se ouvir, por isso a
professora pediu, logo ao entrar na sala, que os alunos diminuíssem a sua intensidade.
Acabo de fazer, para explicar um comportamento da professora, um pequeno
“mapeamento” de alguns dos espaços da escola. Localizadas aqui e ali, essa ou aquela
construção ou parte dela estão a compor o cenário para as ações cotidianas, que, ao
mesmo tempo, está também sendo composto por elas. Compreendo que ele não se faz
isolado dessas práticas, mas na sua relação com o que acontece ali. O espaço, assim
como o tempo, vai se constituindo na medida em que vai sendo percebido, vivido,
sentido, ocupado, experimentado enfim pelos seus sujeitos. As histórias que conto não,
simplesmente, acontecem nos espaços-tempos das salas de aula ou fora delas, elas os
materializam, elas os formam, ao mesmo tempo, que esses espaços-tempos da escola
também vão constituindo e formando esses sujeitos. Procuro percorrer caminhos, já
antes ou agora mesmo, percorridos por muitos outros quando faço esse movimento
nos/dos/com os espaços dessa escola. Alves (1998), em meio a um processo reflexivo
que a conduzia a um determinado trabalho que realizaria, considerou que
o espaço é uma das dimensões materiais do currículo e está
sendo tecido cotidianamente, percebia, em cada pesquisa sobre o
cotidiano da escola que coordenava, em cada trabalho que
realizava, que o espaço escolar daria pistas sobre o não-explícito
na escola (p. 13 -15).
Desenvolveu com essa consideração, entre outras certamente, uma pesquisa que
se fixou na construção política e na tessitura cotidiana do espaço escolar.
E quero ressaltar que, ao tratar do espaço, não o faz separadamente do tempo.
Assim, declara que
na linguagem cotidiana, com muita facilidade, indicamos o tempo
pelo espaço e o espaço pelo tempo: ‘No espaço de uma hora
estarei aí. A distância entre minha casa e meu trabalho é de uma
109
hora’. No entanto, quando descobrimos que a metrologia está
pretendendo utilizar uma única referência para a medida do
espaço e do tempo (Noël, 1983), nós todos nos espantamos. Isto
tem a ver, antes de mais nada, com a prática humana cotidiana,
que tende a organizar a realidade e expressá-la no pensamento e
na linguagem em categorias contrapostas:” luz/sombra,
calor/frio, alto/baixo, sim/não, tudo/nada” Ginzburg (1989, p.
97), teoria/prática , certo/errado, espaço-tempo. (p.27)
Com essas palavras, Alves pode nos ajudar a entender o quanto que contando os
espaços-tempos praticados pelos sujeitos e refletindo sobre essas práticas narradas
podemos compreendê-los e compreendê-las melhor e é isso que busco fazer. Pode nos
ajudar a entender, também, que no espaço-tempo das práticas é possível nos perceber,
perceber os outros sujeitos e esses mesmos espaços-tempos que constituímos e que nos
constituem, na sua totalidade, procurando nos desprender das idéias de partição e
contraposição que aprendemos em nosso processo moderno de formação.
Desta maneira, fazendo o “mapeamento” dos espaços da sala de aula e da escola
e junto deles os seus relatos, procuro descrever percursos contando as práticas
cotidianas desses espaços. Mais uma vez recorro a Alves, que cita Certeau (1994)
quando ele afirma que não existe espacialidade que não organize a determinação de
fronteiras” (p.209) e sobre isso diz que “nesta determinação, é decisivo o papel do
relato que descreve fixando, mas também, criando, distribui e realiza, fundando
espaços” (id.ib., p.41). Considero que, nesses percursos, estaremos refletindo sobre os
usos do espaço (id.ib) ou dos processos de uso que fazem os praticantes transformando-
o, não somente enquanto espaço físico, mas sua apropriação definindo-o socialmente.
Voltando a um dos pátios internos, àquele descoberto de que falei, encontramos
uma estátua, um busto do professor Tito Urbano da Silveira, diretor-geral do colégio à
época da inauguração do primeiro “Pedrinho”, esse mesmo onde se passam as histórias
que conto, a Unidade São Cristóvão I. É uma homenagem àquele que, conforme conta
Patrícia Fernandes
19
, uma das professoras participantes dessa pesquisa e do grupo que
deu início à unidade, foi o grande responsável pela existência desse segmento hoje no
colégio. Era um sonho seu, ela diz, poder oferecer todo o ensino básico, desde as
primeiras até as últimas séries. Em muitas ocasiões, já tive de responder as perguntas
dos alunos e das alunas, que passando por ali, queriam saber quem era aquele da estátua.
Esses e outros que nunca vieram perguntar, de vez em quando, inventam muitas
19
Patrícia disse isso em entrevista concedida a uma outra professora do colégio, Sônia Vinco, que a
utiliza na pesquisa de mestrado que desenvolve. Para usar essa informação obtive autorização de ambas.
110
histórias sobre esse “personagem”, algumas delas de pavor e medo, como gostam de
fazer para se divertir.
Pois bem, para a realização do sonho do professor Tito, como, às vezes é
chamado, foi reformado um espaço existente na escola que antes desse tinha outro
uso, era um almoxarifado. O espaço onde hoje é o “Pedrinho” está literalmente
“espremido” entre vários outros do complexo de São Cristóvão. Acima, ocupando
outros andares, está a unidade III; à frente parte da mesma unidade e da outra, a unidade
II, além da cantina, cozinha e refeitório (esses bem próximos); a um lado, o direito, a
capela e parte de um estacionamento e a outro, o esquerdo, outra parte da unidade III.
Os demais espaços já citados estão um pouco mais distantes, separados do “Pedrinho”
por uma grade que ultrapassada, leva a um grande pátio com pilotis para onde converge
a maioria dos acessos aos espaços, portanto, a maior parte da circulação de pessoas.
Podemos pensar que foi também “espremido” entre as concepções e práticas
tradicionais do colégio que o “Pedrinho” surgiu
20
. Afinal, era uma escola de quase 150
anos
21
que nunca havia tido crianças tão pequenas entre os seus alunos, oferecera
sempre o que hoje corresponde ao ensino fundamental e médio. Logo, não tivera nunca
também professoras nem professores desse segmento de ensino entre os seus mestres. O
ingresso de alunos sempre ocorrera através de concurso público, prática que seria
quebrada com a novidade do sorteio que passou a existir e o que essa forma de ingresso
trouxe: uma diversidade bem maior da clientela. Enfim, havia, por causa de tantas
inovações, uma certa desconfiança de alguns em relação ao “Pedrinho”: uma nova
paisagem formada com a movimentação e o ruído das crianças; um pensamento mais
inovador por parte das jovens professoras selecionadas pelo concurso para o novo
segmento de ensino; uma nova estética nos espaços-tempos do colégio, tudo isso
desestabilizou imagens que os profissionais da escola e a comunidade em geral tinham
sobre o tradicional “colégio-padrão” do Brasil no Rio de Janeiro, o Colégio Pedro II.
Vinco (2005) em seu projeto de dissertação, demonstra certa desconfiança de que o
apelido “Pedrinho” significasse somente carinho pela nova unidade do colégio. Ela
levanta a idéia desse diminutivo ser mesmo uma forma de depreciação. Patrícia
Fernandes, entrevistada por Vinco, diz assim:
20
É interessante e foi nesse instante que me dei conta disso, que os outros “Pedrinhos”, Engenho Novo,
Tijuca e Humaitá inaugurados nos anos seguintes, também estão “espremidos” entre prédios mais antigos
daquelas unidades.
21
A festa do sesquicentenário aconteceu três anos após a inauguração do primeiro “Pedrinho”.
111
Os professores do “Pedrão” viam o “Pedrinho” como uma coisa
horrível, como uma coisa... Chamavam de “a banda podre” (...),
porque eles tinham horror, achavam que ia baixar o nível do
colégio aluno entrar por sorteio, que era um absurdo...
[Os professores de lá] eram muito velhos. A gente via muitos
professores aqui vindo dar aula de terno, de guarda-pó
compridão quando nós chegamos...
Os alunos tinham, assim, um certo horror... Professor de
Filosofia, aquele cara caqueeético, parecia que tinha vindo da
Grécia...Mas era aquela coisa estabelecida.
Então ninguém queria saber da gente!
As pessoas, de maneira geral, passaram um tempo se dirigindo às jovens
professoras como “as meninas do Pedrinho”, o que representava a forma como éramos
vistas na instituição. Essa designação trazia consigo a intenção de alguns de nos
desprestigiar, visto que, muitas vezes, não levavam muito a sério o que dizíamos e
fazíamos na nova unidade.
Precisávamos, portanto, estar “espremidas” naquele espaço que surgia
transformando um outro de aparente estabilidade.
Essa forma de estar “espremida” da Unidade São Cristóvão I traz, até hoje,
muitos problemas. Sobre um deles eu falei, os incômodos do calor que a falta de boa
circulação de ar faz aumentar nessa cidade tão quente. Um outro é o do barulho.
Como estamos cercados de unidades por todos os lados e, nem sempre um
entendimento entre as direções de todas elas
22
, ruídos ocasionados por grande
concentração de alunos no pátio em momentos de recreio ou de “tempos vagos”
23
trazem para dentro das salas de aula do “Pedrinho” mais calor quando a professora ou
os alunos resolvem fechar a janela, dificuldade de comunicação por causa do barulho
ninguém se ouve – , agitação e irritação de alguns, enfim, diferentes problemas gerados
pela espacialidade da escola e concretizados na espacialidade da sala de aula.
22
Em 1998 houve um processo de negociação entre as direções das três unidades para que o horário do
recreio fosse único. Nesta ocasião, o “Pedrinho” tinha, inclusive, dois recreios seguidos, para dois grupos
de séries diferentes. Isso acabou e todos passaram a ter o recreio ao mesmo tempo. Mas desde o ano
passado, 2004, houve uma mudança por decisão da direção da unidade II, apoiada, não pela maioria dos
professores, mas pela associação de pais, direção-geral e funcionários técnico-administrativos. Essa
mudança ocorreu porque, diante de algumas ocorrências, a diretora considerou que, tendo o recreio dos
alunos da unidade que dirigia separado dos outros, a convivência dos maiores com os menores seria
menor e suas atitudes melhor controladas pelos adultos.
23
De tempos vagos estou chamando os tempos em que não a presença do professor na sala de aula,
seja pela falta desse profissional ao trabalho ou pela organização da grade de horários. Nesses tempos, os
alunos são obrigados a descer para o pátio.
112
113
Tecer os espaços-tempos das salas de aula e melhor compreendê-las
Esse espaço enorme que descrevi, muitas vezes, faz com que alunos,
professores, pais e profissionais da escola experimentem sentimentos como os de
insegurança, de fascínio ou até um misto dos dois. E as suas práticas cotidianas, sejam
as das salas de aula, as de todo o complexo ou de partes dele, vão modificando-os,
nomeando-os e atribuindo-lhes sentidos (Alves,1998, p.42).
Conversando, no decorrer da pesquisa, com a mãe de um dos alunos de uma
turma de terceira série e meu aluno de um dos grupos do apoio, ela me contou que
quando o seu filho, Flávio, entrou para o Pedro II, na C. A., ele falava da piscina. A
fixação do Flávio nesse espaço do colégio era tanta, que ela acha que isso trouxe
problemas para ele no início do seu processo de aprendizagem da leitura e da escrita,
trabalho realizado mais intensamente na classe de alfabetização. Ele falava nisso,
queria saber de ir para lá. As professoras, depois de um tempo, ficaram preocupadas
porque o Flávio não se interessava por saber ler e escrever. Quando, na conversa,
perguntei sobre o percurso do seu filho na escola, ela logo lembrou desse acontecimento
e disse:
Assim, quando ele entrou aqui, ele ficou, assim, muito
deslumbrado com a piscina, sabe? Até na primeira reunião a
professora falou assim: ‘Nossa, o Flávio fica o tempo todo
falando na piscina’.
Então, ele não prestava muita atenção na aula, porque o negócio
dele era ir para a piscina. Aí, nós fomos conversando com ele, a
professora também, tentando mostrar a ele que a escola não era
114
só a piscina. Aí ele começou a ter mais atenção, só que ele
115
divididos por candidato. Tratava-se de um trabalho sobre as propostas dos candidatos a
prefeito do Rio de Janeiro. Estávamos em pleno período de campanha eleitoral para as
eleições municipais e a professora levara para os alunos um material publicado pelo
Jornal do Brasil. Havia na reportagem uma pergunta feita para todos os candidatos,
cujas respostas indicavam a forma como cada um deles resolveria um determinado
problema da cidade. Perguntou, trazendo os alunos à participação, qual era o número
total de alunos e quantos ficariam em cada grupo já que eram seis candidatos. As
crianças começaram a arriscar uma resposta, alguns buscando meios de calcular e
outros, a maioria, aleatoriamente. A professora ouviu algumas das respostas que os
alunos davam, mas, talvez achando que estavam longe de apresentar uma idéia que
ajudasse a efetuar o cálculo mentalmente, interferiu, colocando a conta no quadro e
pedindo que colaborassem na resolução. Alguns, mesmo com a conta, ainda não haviam
entendido o que a professora queria e como aquela conta iria ajudar. A professora então
chamava: Gente! Vejam, são seis candidatos, isso porque alguém sugeriu 7 em cada
grupo e um de 8. No fim, fizeram a conta “armada”, como se diz, 22 : 6 = 3 e como o
resto foi 4 , quatro grupos teriam 4 componentes.
Confesso que a situação narrada me fez ficar bastante intrigada e curiosa. Por
que os alunos não teriam conseguido ajudar a resolver uma operação, aparentemente,
tão simples? A questão que os impedia de apontar uma solução era a das quantidades
em jogo, ou seja, ter de pensar que se havia 22 alunos e seis candidatos e se a formação
dos grupos aconteceria por candidato, deveriam distribuir a quantidade de alunos pela
quantidade de grupos que poderiam ser formados, seis, portanto? Ou será que era a
questão da operação a ser feita, a divisão? Poderiam não estar relacionando a divisão,
conta, à divisão em grupos que precisava ser feita? O que os poderia estar impedindo de
realizar essa operação, ou mesmo de se aproximar dela através de raciocínios próprios
que buscassem ir ao encontro daquilo que precisavam fazer, qual seja, formar os grupos
para o trabalho? Estaríamos em meio a uma questão relacionada aos modos de ensino
daquela professora, daquela sala de aula? Teria o desafio formulado escapado dos
modelos através dos quais os alunos estariam “acostumados” a pensar? Ou estaria
havendo uma dissociação entre a vida - situação real que os interrogava, e a escola
operações matemáticas aprendidas? Tantas perguntas que não pretendem exatamente
uma resposta. Elas mesmas são os fios que vão tecendo, isso sim, sentidos que àquelas
práticas vamos atribuindo. Penso que, dessa forma, vamos compreendendo melhor o
espaço-tempo da sala de aula para também melhor agirmos nele e com ele.
116
A professora então dividiu as crianças, dizendo quem faria parte de que grupo e
sorteou o candidato do qual cada grupo analisaria as propostas. Para realizar o trabalho,
as crianças teriam de consultar o dicionário e recorrer aos adultos a fim de saberem o
significado de algumas palavras usadas no texto da reportagem. É importante destacar
que o tema da pergunta colocada aos candidatos era o tratamento dado ao lixo, o mesmo
que estavam estudando.
Em alguns momentos, a professora interrompia para arrumar a mesa de um
aluno que, segundo ela, estava torta. Num desses momentos, chamou a atenção desse
aluno por já ter feito isso quatro vezes. Fazia e voltava à condução da atividade,
passando pelos grupos e orientando as crianças que liam a reportagem e marcavam as
palavras desconhecidas. Caso não conseguissem descobrir o que significava ali mesmo,
no tempo da aula, com os recursos que tinham, levariam a tarefa para casa e pediriam
ajuda aos pais. Na próxima aula se reuniriam de novo para concluir o trabalho. Os
117
grupos tinham um comportamento muito variado em relação ao que acontecia na sala.
Alguns, muito envolvidos, selecionavam as palavras e anotavam, atentos às
orientações da professora; outros falavam, discutiam o significado de algumas palavras
e outros ainda faziam muitas outras coisas que, aparentemente, não tinham nenhuma
relação com o trabalho.
Outras práticas do espaço estavam acontecendo nessa sala de aula: do espaço da
cidade vivido e praticado, além do espaço de organização da sala de aula e de não
fixação de lugar da professora. Na atividade que os alunos e alunas junto com os adultos
a quem recorreriam e mais a sua professora desenvolviam, a cidade estava em questão.
Naquela rede de sujeitos e de saberes que se formava, várias possibilidades de
superação dos problemas da cidade seriam, certamente, pensadas, analisadas, criticadas
e sugeridas a partir da leitura das respostas dos candidatos à pergunta feita pelo
jornalista. Percursos seriam feitos, por espaços conhecidos ou não, narrados nos textos
das reportagens e nas histórias que sobre eles as crianças contariam ou criariam. Eram
práticas do espaço da cidade enredadas às práticas do espaço da sala de aula.
Certeau (1994) fala que o que se vê quando se olha a cidade
“do alto”, como “voyeur”, “à distância” é a “cidade
panorama”, “um simulacro ‘ teórico’(ou seja, visual)” e que
“sua condição de possibilidade é um esquecimento e
desconhecimento das práticas”. Diz que essa “representação”,
esse “artefato ótico” é o “análogo do fac-símile produzido... pelo
administrador do espaço, o urbanista ou o cartógrafo”. Mas que
“embaixo”, a partir dos limiares onde cessa a visibilidade, vivem
os praticantes ordinários da cidade... os caminhantes, os
pedestres. “Suas práticas organizadoras da cidade habitada
compõem uma história múltipla formada em fragmentos de
trajetórias e em alterações de espaços: com relação às
representações, ela permanece cotidianamente, indefinidamente,
outra (p. 170-171).
Permito-me estabelecer aqui um encontro desse ponto do texto de Certeau com
as práticas daqueles caminhantes e pedestres: os pais e mães, os alunos e alunas e a
professora que, analisando as propostas dos candidatos a prefeito, fazem uso das suas
representações desse espaço da cidade e projetam em desejos e propostas para resolver
os problemas que enfrentam dia-a-dia, possibilidades de transformação desse espaço.
Estamos mais uma vez em meio a práticas que enredam espaços, tempos, sujeitos e
saberes e notando as muitas possibilidades que essas práticas demonstram ter. Como
pedestres”, “caminhantes” da cidade, havia naquela atividade realizada na sala de
118
aula, oportunidades de, criativamente, serem sugeridas soluções para os problemas, ou
seja, possibilidades de transformação desse espaço, que revelariam, aos próprios alunos,
o potencial transformador de nossas ações. A relação que foi possível estabelecer com a
cidade, seu momento político, seus problemas, foi, por si só, uma relação
potencialmente transformadora. Isso porque ela envolvia um conceito de cidadania que
não se restringe à idéia de que ao morador da cidade, aos eleitores, basta votar para
participar da sua vida política. Além de estarem podendo exercitar, ainda enquanto
crianças, uma escolha refletida de um candidato a prefeito, estavam também pensando,
como cidadãos, ainda que pequenos, nos problemas que o espaço da cidade abarca e nas
soluções que esses problemas podem ter. Isso sem contar a participação dos pais e mães
e da professora nessa rede. Essa, então, é uma prática de cidadania diferente daquela,
pois vai além da mera ação de escolher e votar no melhor candidato. Ela amplia as
possibilidades de participação política e, de acordo com Oliveira (2003),“investe na
criação de uma democracia mais democrática que inclui uma maior participação
cidadã”. O que ela chama de democracia mais democrática é algo que vai ao encontro
do que diz Santos (1997, 2000) e que a autora referencia: a idéia da democracia de
alta intensidade, na qual a participação cidadã é ampliada” essa idéia, diz ela, se opõe
à forma como ele tem se referido às democracias contemporâneas”, que ele intitula
“como de baixa intensidade” (p.15,16).
Podemos perceber também na própria organização da sala, a divisão dos alunos
em grupos, a circulação da professora o tempo todo por esses grupos como uma prática
de espaço diferente daquela que, muitas vezes, se anuncia como “padrão” na sala de
aula. A dos lugares fixos de cada um, do professor à frente e dos alunos voltados o
tempo todo para ele. Esse é o modelo de ocupação do espaço exemplar para o objetivo
da educação na modernidade” que como apresenta Najmanovich (2001) foi o de
disciplinar a subjetividade para que não infecte’ com suas
deformações a imagem canônica aceita de mundo. O espaço
relacional esteve embebido de espírito disciplinar, o estilo
comunicacional adaptou uma forma radical, com o centro no
mestre e dirigido deste para o aluno. Finalmente, os alunos foram
tratados como indivíduos uniformes e não como sujeitos
encarnados diferentes, sensíveis e criativos. (p. 126)
Mas o que experimentamos nessa sala de aula não é isso. O que percebemos é
que as marcas dos objetivos da educação na modernidade estão, sim, presentes, como
fios do nosso complexo processo de formação. Acompanhamos, por exemplo, o esforço
119
de controle da professora arrumando quatro vezes a mesa de um dos alunos que,
segundo ela, estava torta. Contudo, além delas, junto com elas, enredadas a elas estão
outras marcas, que outras práticas nos mostram. São marcas de troca, de criatividade, de
valorização dos diferentes saberes e de solidariedade que a própria organização da sala e
do grupo, assim como a tentativa de envolvimento dos pais e mães na realização da
atividade, revela.
Podemos considerar certas práticas de espaço que acontecem nas salas de aula
das escolas como práticas emancipatórias dos sujeitos, que concorrem para a efetivação
do projeto educativo emancipatório proposto por Santos (1996), pois são práticas que
têm como base a horizontalidade e não a verticalidade das relações, seja as relações
entre os sujeitos ou deles com os espaços-tempos e conhecimentos.
120
II. 4- A poética da vida nas salas de aula
A Natália estava me contando, animadamente, que havia levado o livro “O anão
narigão” para casa, na sexta-feira passada, mas a semana se passou e ela esqueceu de ler
o livro. Lembrou disso apenas na véspera do dia que deveria entregar o livro lido, às dez
horas da noite. Foi quando começou a ler, passando uma hora seguida fazendo isso.
Terminou, portanto, às onze ou às vinte e três horas. Perguntei se havia gostado e ela
respondeu que sim. Então, pedi que me contasse a história. No instante em que ela ia
começar, viu que a professora ia chegando e foi correndo sentar em seu lugar.
Eu estava sempre nesta sala de aula às sextas-feiras, dia em que havia a troca dos
livros que as crianças costumavam levar para casa. Nessa escola, esta é uma prática
instituída em todas as séries, chamada “Clube de Leitura”. Trata-se da formação de um
pequeno acervo a cada início de ano, feito com a contribuição dos pais das crianças. As
professoras de uma mesma série estipulam, baseadas no preço médio dos livros, a
quantia que será doada pelos pais e, com esse dinheiro, percorrem editoras e livrarias
comprando os livros. No final do ano, as turmas dão um destino para eles, algumas
sorteiam entre os alunos, outras doam para a turma que será daquela série no ano
seguinte, outras ainda fazem as duas coisas: sorteiam uma parte e o que sobra deixam
para outra turma. Em alguns grupos, a escolha desses livros é feita com a participação
das crianças através de consulta aos catálogos das editoras. Essa é uma rotina das
professoras com os seus alunos a cada início de ano letivo na escola. Depois de formada
essa mini-biblioteca, o grupo combina como acontecerão, a cada semana, a escolha dos
livros que vão para casa e a sua devolução. Em geral, as turmas têm um cartão, como o
de uma biblioteca, onde são registradas as entradas e saídas dos livros. Essa atividade é
orientada por regras estabelecidas coletivamente, por exemplo, têm direito à escolha
do livro da semana, aquelas crianças que trouxeram o que haviam levado na semana
anterior. Talvez por esse motivo a Natália tenha ficado tão preocupada quando
percebeu, na véspera do dia da entrega, que não havia lido o livro. Uma outra regra do
“Clube de Leitura”, naquela turma, que pode tê-la mobilizado é o sorteio que a
professora faz para dizer quem vai, naquele dia, contar para todos a história que leu ou
comentar sobre o conteúdo do livro, caso não tenha se tratado de um livro literário.
121
Quando a professora entrou na sala, todos os alunos estavam acomodados ou se
acomodando. Ela deu boa-tarde e foi até o armário. Em seguida, foi até a frente da sala e
falou: gente, a gente está estudando o Rio de Janeiro, então eu trouxe umas poesias
sobre o Rio para vocês lerem, se vocês gostarem poderão ficar com os livrinhos. Eu vou
entregar”. E passou a distribuir os tais “livrinhos”. Eles eram pequenos, tamanho
correspondente a algo próximo de um sexto de uma folha ofício, suas páginas de cor
salmão, letras pretas e encadernação artesanal com uma espiral também preta. As
crianças começaram a folhear os livros e, aos poucos, foram encontrando seus nomes,
seus textos e os nomes dos colegas. Os olhos brilhavam nos corpos eufóricos que se
movimentavam por entre as mesas indo ao encontro dos colegas identificados como
autores e da professora para os agradecimentos e comentários. Perguntavam a ela, como
que duvidando, se aqueles exemplares realmente lhes pertenciam e diante da sua
confirmação, as crianças vibraram, bateram palmas e gritaram: Rossana! Rossana!
Rossana! A alegria e satisfação da professora eram evidentes.
Era um livro de poesias em homenagem ao Rio de Janeiro, feitas pelos alunos.
Eles haviam se inspirado no poema: “Cidadezinha qualquer”, de Carlos Drummond de
Andrade, que a professora apresentara. Na ocasião, depois que leram e conversaram
sobre esse poema, ela convidou-os a fazer o mesmo que o poeta havia feito: uma poesia
sobre uma cidade, o Rio de Janeiro. Podemos considerar verdadeiras preciosidades
muitos dos textos que os alunos escreveram. De forma simples, bela e bastante
expressiva, as crianças conseguiram traduzir, em palavras, sua experiência cotidiana e
também seus estudos sobre a cidade onde moram.
Dizendo que ofereceriam exemplares para algumas pessoas que trabalham na
escola, a professora sorteou os nomes de quem, como um dos autores, faria a
dedicatória. Houve torcida das crianças para serem as escolhidas, principalmente
quando a pessoa era muito querida por eles. Uma delas havia sido professora deles
desde a entrada na escola, na classe de alfabetização, até a 2
a
série, durante três anos,
portanto. A outra era a professora de literatura, suas aulas eram sempre lembradas
também nos momentos de avaliação da semana que faziam no final do dia, às sextas-
feiras. No momento em que fui citada, a torcida também cresceu. Algumas poucas
crianças, quando indicadas pelo sorteio para a escrita da dedicatória, não aceitavam e
pediam à professora para fazer a entrega do livro apenas, o que era aceito por ela.
Houve um momento do sorteio em que as crianças começaram a levantar e a
professora disse: “quem estiver em não vai mais participar” e as crianças correram
122
para sentar. Quando o nome de uma menina, a Isabel, foi sorteado, o Luis, um dos
alunos que correram para sentar minutos antes, disse à professora que a Isabel estava em
quando ela a chamou. A professora disse não ter visto isso (confesso que eu também
não). Ele continuou afirmando que ela estava em no instante em que foi chamada,
mas que sentou rápido. A maioria das outras crianças da sala ficou revoltada com o
menino e alguns diziam: isso porque não foi você o sorteado” ou “era eu que estava
em pé, não ela”. Mesmo diante da polêmica, a professora sorteou outro nome,
invalidando o anterior e com isso fez valer a sua palavra, cumpriu o que antes tinha sido
uma ameaça. Qual não foi a surpresa de todos, quando o próximo nome a ser sorteado
foi exatamente o da Isabel. Então as crianças se voltaram para aquele que tinha falado
para a professora que a colega estava de e disseram: “Ah! Bem feito!E ele falou:
“Agora sim ela estava sentada, naquela hora ela não estava, não podia!” E tudo se
acalmou. Os alunos que tinham de escrever uma dedicatória escreveram, os que tinham
de entregar livro entregaram e a aula continuou com outras atividades até a hora do
recreio.
Saí da sala conversando com a professora sobre o que tinha acontecido, a
surpresa que ela tinha feito para os alunos com a confecção dos livros, a forma como os
distribuiu na sala, a sua alegria e a deles, disse a ela que me emocionei com aquilo tudo
que tive o prazer de ver, ouvir e sentir naquele dia com eles. Ela me contou que quando
fez a atividade de leitura da poesia de Drummond, comentários e depois sugestão para
que as crianças escrevessem as suas próprias poesias, não imaginava que fosse sair tanta
coisa boa. Diante do que os viu produzir, criar, achou que seria um desperdício
simplesmente ler, devolver e mandá-los colocar na pasta onde guardam os trabalhos,
para que os pais vissem em casa. Percebeu que estava com um material de muito valor e
pensou na sua publicação. Sozinha, organizou o livro digitando os textos e diagramando
para depois procurar os serviços gráficos do colégio e solicitar sua impressão e
encadernação. Nem a coordenação pedagógica sabia da sua iniciativa, queria fazer
surpresa a todos.
123
Cidadezinha Qualquer
Carlos Drummond de Andrade
Casas entre bananeiras
Mulheres entre laranjeiras
Pomar amor cantar
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar as janelas olham.
Êta vida besta, meu Deus.
124
Pensamentos e sentimentos que vão tecendo a compreensão nas salas de aula
Suponho que a simples leitura desse trecho, narrando esse acontecimento, que os
leitores acabam de fazer, os tenha envolvido e feito sentir, pelo menos em parte, o que
nós, que estávamos lá, sentimos. O prazer com que a professora realizou todo aquele
trabalho foi contagiante. A alegria dos alunos também. Naquele dia e nos que se
seguiram a ele, pude viver, prolongadamente, esse sentimento. Tanto a alegria de ter
estado e podido partilhar com o grupo esse acontecimento, quanto a alegria como um
dos sentimentos que tecia aquela aula, aquela sala de aula. Perceber também o incentivo
que a professora Rossana dava aos seus alunos se empenhando na publicação dos livros,
assim como o respeito pela sua produção foi, igualmente, mobilizador.
Ainda naquele dia, na volta do recreio, tive outra surpresa na sala da turma 302 –
esse foi um dia de muitas surpresas! A atividade programada pela professora para
aquele momento era a escrita de um texto pelas crianças, um conto que poderia ser de
qualquer tipo entre os que tinham estudado: de terror, de fada, de aventura ou um relato
sobre algo que se passara com eles. Após o anúncio da professora, começou uma
conversa entre alguns sobre o que iriam escrever. outros alunos e alunas passaram
logo à escrita, sem se entreter com nada mais. A professora, de sua mesa, dizia: “302!,
chamando a turma em voz baixa. Por um tempo ficavam em silêncio, mas depois
continuavam a conversar de novo e não conversar, riam também, viravam para trás,
olhavam para longe etc. Novamente a professora falou: “302, se não pararem de falar,
não vai dar tempo!” Isso aconteceu várias vezes. Em uma delas, por causa de uma
resposta que consideraram engraçada dada por uma das crianças, houve uma risada
geral. A professora, fazendo uma “cara bem séria”, dizia: vocês estão conversando,
as idéias estão saindo na conversa, mas e o texto?” E o silêncio voltava.
Em um dado momento, um aluno saiu da sala, era a segunda vez que ele fazia
isso e a professora foi atrás dele. A mim pareceu que ele estava indo limpar o nariz.
Cabe dizer que eles tinham relativa autonomia para sair e ir ao banheiro ou beber água,
não precisavam pedir à professora. Havia um cartão exposto na sala, feito de cartolina
colorida com duas faces uma verde e outra vermelha. Se o cartão estivesse com o lado
verde virado para todos, a criança interessada em sair poderia fazê-lo, mas se, ao
contrário, fosse o lado vermelho que estivesse à vista, a saída não era permitida. A cor
vermelha significava que alguém estava fora ou que a professora havia colocado o
125
cartão daquele jeito para indicar que, naquele momento, todos os alunos deveriam estar
presentes. Bem, muitos alunos repararam que o menino saíra duas vezes e comentaram.
A professora esclareceu que ele estava muito resfriado e precisava mesmo sair. A saída
do menino foi notada também, em outro aspecto, por uma aluna, que riu da sua forma
de andar e por alguns que ficaram, a partir da sua observação, imitando o garoto.
Algumas crianças foram contar para a professora que, nessa hora, não estava na sala.
Outras ficaram comentando: “pôxa, ele é maneiro com ela e ela fica fazendo isso com
ele!” ou eu queria ver se fosse com você se você ia gostar que todo mundo risse de
você”. A professora entrou e perguntou para a menina o que tinha acontecido, pois
alguém tinha contado a ela o que se passara. Ela respondeu que tinha achado
engraçado o jeito dele andar, isso, coisa que ela tinha dito aos colegas que antes a
haviam questionado: estou rindo só, o que é que tem? A professora apenas ouviu.
Seguiram escrevendo os seus textos neste ritmo, entre barulhos e silêncios até o
final da aula. Os que terminavam entregavam para a professora e iam brincar ou
desenhar. A brincadeira acontecia no chão, era um jogo. De vez em quando, a
professora precisava pedir silêncio a este grupo que jogava. Alguns circulavam pela sala
fazendo outro tipo de brincadeira que os fazia escrever alguma coisa no papel, RPG da
vida real, me explicou o menino que estava ao meu lado, quando eu perguntei. Às 17h e
45 min. ainda havia alguns escrevendo o texto e a saída é às 18h. A professora mandou
os alunos copiarem a agenda e guardarem o material para irem embora.
Disse anteriormente, que tinha tido outra surpresa nesse dia além da entrega dos
livros e tive mesmo. Foi o sucesso dessa atividade de escrita dos textos. Mesmo naquela
aparente confusão, ao final da aula todos haviam feito a sua redação. Confesso que não
acreditei que isso fosse acontecer. Acompanhei todo o tempo as crianças envolvidas
com tantas outras questões e interesses além da produção do texto e a professora, na sua
tranqüilidade, a chamá-los à tarefa que, no meu pensamento, naquele momento
controlador e maniqueísta, tinha certeza que muitos não dariam conta do que tinham a
fazer.
Porém, esse meu pensamento, que poderia ter sido o de outros que, “de fora”,
acompanhassem o que se passava, era muito diferente do pensamento dos alunos. Mais
do que isso, essa não era uma preocupação deles. Estava na minha “cabeça de adulto”.
Seu conceito de ordem e da ordem necessária para a realização da tarefa apresentada
pela professora pareciam ser bem diferentes do meu. Conseguiam fazer tudo ao mesmo
tempo. Estou generalizando por conta do tratamento que dou à história como sendo do
126
grupo, mas é importante destacar que cada qual fazia à sua maneira, havia os que, desde
o início, estavam concentrados na atividade, os que, de vez em quando, só olhavam para
o que estava acontecendo à sua volta, os que participavam rindo ou dando alguma
opinião, os que promoviam o barulho fazendo outras coisas em vez do texto e havia
também os que faziam tudo junto, a conversa, a brincadeira e o texto.
O pensamento que estava me orientando naquele momento e dificultando meu
entendimento sobre as possibilidades de realização da atividade naquele tempo, daquela
forma como os alunos se comportavam, era o da “ordem” como pensou Foucault
(1987), que imposta pelas disciplinas, trata de organizar o múltiplo, de obter um
instrumento para percorrê-lo e dominá-lo” (p. 135). Esse imaginário da ordem, nesse
sentido, estava sendo tumultuado pelas práticas que ali se desenvolviam de formas bem
diversas, escapando às possibilidades de imposição pela disciplina. Não era possível o
total controle dos alunos. Eles estavam a praticar uma outra maneira de fazer (Certeau,
1994) o que era exigido deles naquele final de aula.
Quando saímos, contei para a professora esse meu sentimento e o que observei
em relação ao seu comportamento com os alunos. Disse que enquanto ela, uma vez ou
outra, os chamava calmamente para que fizessem os seus textos, eu previa situações que
acabaram não acontecendo. Achava que seria impossível alguns alunos, naquela
conversa e dispersão, terem possibilidades de escrever como e o quê a professora havia
pedido. Fiquei muito surpresa, portanto, com o desfecho do dia. As crianças, tão
tranqüilamente quanto a professora, guardando o seu material, comentando as suas
histórias e indo embora para as suas casas. Ela me respondeu que eles são assim mesmo,
cada um tem o seu jeito de participar desses momentos e alguns não fazem as tarefas
quietos demais, absolutamente concentrados no que têm de realizar. No entanto, isso
não se torna um impedimento para que tenham um bom desempenho. Ela já sabe disso e
não interfere muito nessa dinâmica porque não necessidade. Falei, então, o quanto
admirava essa capacidade que ela demonstrava ter de não exercer um controle excessivo
sobre os pensamentos, os corpos e a expressão das crianças, de procurar não invadir os
espaços de liberdade dos seus alunos.
Por várias razões, aquele foi um dia especialmente fértil para mim. Fui para casa
pensando muito naquelas experiências de sala de aula que tinha vivido junto com os
alunos e sua professora. Estava em meio a uma riqueza enorme de práticas e precisava
compreender o que havia se passado, comigo principalmente. Tinha muitas pistas e
estava ansiosa por começar a tecê-las. Conforme nos propõe pensar Santos (2003)
127
“todo conhecimento científico é autoconhecimento... Os
pressupostos metafísicos, os sistemas de crenças, os juízos de
valor não estão nem antes nem depois da explicação científica da
natureza ou da sociedade. São parte integrante dessa mesma
explicação”.(p. 83)
Discorrendo sobre a crise do paradigma da ciência moderna e apresentando o
que ele chama de paradigma emergente, Santos fala do desconforto provocado pela
distinção sujeito/objeto construída pela ciência moderna e da admissão, pelo paradigma
emergente, da idéia de que o ato de conhecimento e o produto do conhecimento são
inseparáveis, isso tanto nas ciências físico-naturais como nas ciências sociais (p. 82).
E o que é ser “(boa) professora”?
Algumas das minhas concepções e posturas de professora tinham sido abaladas
com aquilo tudo. Perguntava-me como podia a professora não fazer do jeito que eu
tinha aprendido ser o certo e obter sucesso como os seus alunos? Como podia não
exigir, do jeito que eu tento fazer, que as crianças ficassem quietas durante o tempo de
escrita do texto? Como conseguia manter a sua calma diante de alguns acontecimentos
que tumultuavam a ordem na sala de aula, ordem essa que ela mesma tinha imposto com
as regras que estabeleceu? Como se explicava aquela professora, com o perfil que tem,
conseguir, naquele aparente controle, exercer essa liberdade com os seus alunos?
Passava pelos meus pensamentos que alguém, também “de fora” que entrasse na
minha sala, participasse de alguns dos momentos em que estou com meus alunos em
aula e presenciasse determinadas atividades desenvolvidas por eles, comigo, poderia,
como eu naquela outra sala, imaginar que faltava “ordem” para que o pretendido
acontecesse. Mas, muito provavelmente, os processos pedagógicos se dariam e os
ensinos e aprendizagens se efetivariam, mesmo que “fora da ordem”. A multiplicidade
que constitui as salas de aula não é organizável a ponto de se conseguir seu total
controle. Mesmo em meio a uma ordem aparente, existe a diversidade de práticas, as
maneiras próprias de fazer dos praticantes (Certeau, 1994) conferindo uma certa
“desordem” a ela.
Existem muitas maneiras de fazer, nisso também eu pensava intensamente.
Aliás, existem inúmeras maneiras de fazer, de ser aluno, de ser professora e até de ser
128
“boa professora” se quisermos fazer referência aos modelos que ao longo de nossa vida,
de nossa formação se fizeram presentes. Seja no movimento de outras pessoas com
relação a nós ou de nós com relação a nós mesmos e a outras pessoas.
Desde que defini que queria ser professora, tinha em mente o modelo de
professora que queria ser, hoje eu percebo isso. Identificar as origens dessa idealização
é impossível além de ser também desnecessário no percurso compreensivo que
desenvolvo. Mas contarei uma parte dessa história, ela mesma pode nos ajudar, a mim e
ao leitor, a entender esse meu processo de formação como professora e assim, talvez,
outros tantos de outras professoras. Não se trata de percebê-lo como exemplo, mas de
aceitar a idéia de que a história de vida pode possibilitar o estabelecimento de relações
entre a vivência social e as escolhas profissionais.
Pois bem, quando criança, imitando a professora que me acompanhou durante
todo o curso primário, naquela época com duração de seis anos, brincava de dar aulas
para os meus alunos imaginários. Às vezes esses alunos eram “reais”: meus irmãos e
minhas bonecas. Tinha a Dona Nilza como modelo. Seu nome e sua imagem, até hoje,
eu tenho na lembrança junto com outras imagens da escola em que estudei: a rampa, o
pátio, o refeitório, a secretaria, a minha sala de aula, o lugar em que costumava sentar,
os “deveres” que fazia, os elogios que ouvia, os rostos de alguns colegas, enfim, lembro
até de alguns cheiros, gostos e sons da escola, daquele espaço, daquele tempo. Logo
pude viver de verdade esse desejo de ser professora quando, na adolescência, fui dar
aula de catecismo para as crianças da igreja que freqüentava. Entendia-me muito bem
com elas e tinha muito prazer em fazer isso. Não foi difícil escolher dar aulas como a
minha profissão. Estudava no Colégio Pedro II, essa escola em que hoje trabalho e na
qual desenvolvo esta pesquisa. Para tornar-me aluna do colégio havia participado de um
processo de seleção bastante concorrido, mas o colégio não tinha o curso normal e eu
queria ser professora. Queria dar aulas para crianças, conviver com elas, participar de
sua educação, ensinar e através disso ajudar a transformar o mundo fazendo-o mais
fraterno, justo e solidário. Acreditava nisso, que com a educação podíamos mudar o
mundo. Não me lembro de ter vacilado nessa escolha nem mesmo no momento de optar
por deixar o colégio em que eu amava estudar, o Pedro II, para ir fazer o curso normal.
Assim foi, fiz o concurso para o Instituto de Educação do Rio de Janeiro, passei e me
formei professora. Eu tinha três tias, irmãs de meu pai, que eram professoras e duas
delas haviam estudado nessa mesma escola também bastante tradicional na cidade.
Foram do tempo em que, depois de formadas, as professoras ingressavam direto no
129
magistério municipal se quisessem, não havia concurso, elas eram consideradas aptas,
com a conclusão do curso, para o exercício da profissão nas escolas municipais. A
escola não gozava do mesmo prestígio da época em que minhas tias estudaram,
década de 50, é verdade, mas ainda era muito bem conceituada como uma escola
pública de formação de professores. Não havia o que eu não gostasse de estudar. Aquele
universo me encantava: o conteúdo das disciplinas, o tratamento que recebíamos, os
estágios, o próprio clima que pairava nos corredores daquele lindo e antigo prédio
carregado de marcas da história da formação de professores no nosso estado e no nosso
país. Nossa, como gostava disso tudo! E como levava a sério a idéia de aproveitar todas
as oportunidades de formação que tinha para tornar-me uma “boa professora”.
A mesma convicção que me levou a cursar o Normal levou também aquela
professora da primeira história, a Patricia. Nós duas deixamos escolas de tradição,
consideradas de “bom” ensino para sermos professoras. No entanto, sua sensação era
bastante diferente da minha. Patricia considerava tudo ou quase tudo que “aprendia” no
Normal um “besteirol” e eu “adorava”. Nossos percursos pela vida, nossas histórias,
nossos jeitos de ser, de pensar, de sentir eram e são muito diferentes, apesar de termos
querido, ambas, aos quinze anos, nos tornar professoras de crianças. Nossas redes de
subjetividades (Santos, 1995) que nos formaram e que fomos formando ao longo da
nossa vida definiram, naqueles anos, para cada uma, relações muito diferentes com as
experiências que tivemos no curso de formação de professores, mesmo tendo sido igual
o desejo que nos moveu.
E o que era ser uma “boa professora?” Hoje, pensando nisso, acho que
imaginava ser aquela que teria tudo sob seu controle: a aula, que tinha de ser bem
planejada e depois registrada; os alunos, que tinham de ser por mim incentivados, para
estarem sempre motivados e assim concentrados para que pudessem aprender; a própria
professora que deveria estar sempre bem (deixar fora da sala de aula os seus problemas)
para que pudesse ter paciência e tratar bem os alunos; o conteúdo a ser ensinado bem
estudado, sabido; as técnicas e as metodologias sob domínio para que o ensino pudesse
gerar os resultados esperados. Mas nossas redes de formação, as redes de subjetividades
que somos são sempre muito complexas. Nossos valores, conhecimentos, sentimentos e
desejos estão enredados compondo o todo complexo (Morin, 1996) que somos. Além
disso, elas não têm somente os fios das certezas, dos modelos e das técnicas eficientes
para obtenção dos melhores resultados. A professora Rossana fazia da maneira dela e eu
começava a perceber que, como essa, existem muitas “boas” maneiras de fazer e que,
130
aquilo que muitas vezes pode nos ter sido indicado como o que não deveria ser
permitido aos alunos, seja porque feriria nossa autoridade como professora, ou porque
os impediria de aprender, não precisava ser entendido, necessariamente, dessa forma.
Nosso também complexo processo de formação, que acontece ao longo de toda a nossa
vida, nos diferentes espaços-tempos que experimentamos, é informado por
conhecimentos, princípios, valores e sentimentos, hegemônicos ou não em nossa
sociedade ocidental moderna. São fios de um tecido que nos envolve ao mesmo tempo
em que vamos ajudando a tecê-lo.
Do meu lugar de colega de trabalho da professora de que falo, tinha uma
impressão sobre a sua prática no que diz respeito à sua forma de se relacionar com as
crianças. Pensava, às vezes, quando passava em sua sala por qualquer razão ou nos
momentos em que a via no pátio e corredores com seus alunos, que ela devia ser uma
professora meio “dura” ou até um pouco fria no jeito de tratá-los, quem sabe. Presa,
como muitas vezes estamos, a concepções que nos orientam no sentido de perseguirmos
os modelos e as formas exemplares de ser e de estar no mundo, o que fazia era
classificar a outra professora segundo os critérios que aprendi a considerar como
aqueles que emolduram o modelo de “boa professora”. Essa, de acordo com o meu
modelo, seria aquela que, a todo momento, expressa o carinho que deve ter por todas as
crianças, através de palavras, gestos e expressões claros, explícitos, que não deixem
dúvida a quem com ela se relaciona. Isso é o que tinha aprendido, buscado ao longo da
minha vida de professora e o que me dava elementos para analisar o comportamento da
colega. Acontece que não é assim que a vida acontece cotidianamente. A professora
tivera com os seus alunos um comportamento bastante carinhoso quando preparou os
livros sem o seu conhecimento. Queria presentear as crianças e fez questão de incluir
nesse presente a surpresa que, na maioria das vezes, agrada mais ainda quem é
presenteado. A emoção que tomou conta dela, dos alunos e de mim que estava na sala
de aula com eles, mostrava o quanto fios de carinho e atenção estavam tecendo,
cotidianamente, aquela sala de aula. No entanto, nem sempre é isso o que percebemos
quando estamos de fora a observar e classificar os comportamentos baseados em
modelos e formas exemplares de ser.
Rossana é uma professora que pouco fala nos momentos coletivos em que
estamos a planejar nosso trabalho ou a discutir algum tema colocado em questão pelo
grupo ou pela direção e coordenação da escola. Seus gestos são sempre muito discretos.
Lembro-me que em vários conselhos de classe de que participei junto com ela, sem
131
nenhum alarde, agraciou a todos com quitutes feitos por ela mesma. Lembro-me
também dela ter sido a única professora, anos atrás, a se oferecer para ajudar num
momento de preparação de uma festa junina em que a coordenação e direção da época
decidiram solicitar essa colaboração aos professores. Um outro episódio significativo
foi o dia em que tive o primeiro contato com as professoras para conversar sobre essa
pesquisa. Perguntei sobre a possibilidade de estar com elas e os alunos em suas salas de
aula uma vez por semana e Rossana, em meio a outras mais falantes, me surpreendeu,
pois foi a primeira a responder dizendo que sim, que eu poderia estar, mas com a
condição de que depois eu dissesse a ela o que eu tinha visto de “certo e de errado” em
suas aulas. Falou que via naquele contato uma possibilidade de ter o seu jeito de ser
professora avaliado e a partir disso melhorado.
Se todo processo de conhecer como esse que nesse trabalho desenvolvo é
também um processo de autoconhecimento como nos afirma Santos (2003) aqui faço
nesse sentido mais um destaque. As surpresas que tive na convivência com a Rossana
como professora me fizeram “lembrar” de todos os indícios que tinha sobre a
qualidade da sua prática. Isso me faz pensar que os outros, que supunha serem indícios
de que ela era uma professora “fria” e distante dos seus alunos, por exemplo, eram
falsas pistas, pois sugeriam algo inexistente. Essa se tornou uma boa oportunidade de eu
aprender com Maturana (1998), quero dizer, de o que diz Maturana fazer sentido para
mim, que as relações podem ser consideradas sociais se estiverem fundamentadas no
amor. Para ele,
o amor é a emoção que constitui o domínio de condutas em que se
dá a operacionalidade da aceitação do outro como legítimo outro
na convivência, e é esse modo de convivência que conotamos
quando falamos do social” (p.23).
Maturana não se refere ao amor com base no cristianismo, diz que a emoção que
a palavra amor conota perdeu a sua vitalidade de tanto se dizer que é algo especial e
difícil. Para ele, o amor é constitutivo da vida humana, um fenômeno biológico, não é
nada especial, o amor é o fundamento do social. E vai adiante, afirmando que a
aceitação do outro como legítimo outro na convivência é o que constitui uma conduta
de respeito e que
sem uma história de interações suficientemente recorrentes,
envolventes e amplas, em que haja aceitação mútua num espaço
aberto às coordenações de ações, não podemos esperar que surja
a linguagem (p. 24).
132
Como se pode perceber, segundo Maturana, somente em processos de interação
onde haja respeito, ou seja, aceitação do que diz ou é o outro como legítimo, há
linguagem, uma relação social. Desse ponto de vista, que julgo contribuir com a
reflexão que busco desenvolver, relações que envolvem julgamento e/ou competição
não permitem o surgimento da linguagem, logo, impedem a efetivação do diálogo. Noto
que com a história que narro, esse diálogo está sendo possibilitado pelos pensamentos e
sentimentos que ela própria desperta.
Depois, em outro momento, Rossana também demonstrou a mesma preocupação
declarando ficar, às vezes, insatisfeita com o que realiza dia-a-dia como professora. Foi
na entrevista que fiz com as professoras com quem realizei a pesquisa, quando perguntei
se estavam satisfeitas com o seu trabalho, com a sua profissão. Quanto à profissão,
Rossana não teve dúvida, sempre quis ser professora apesar de não ter feito essa escolha
desde o início de sua vida de trabalhadora. Sofrendo pressão contrária por parte,
principalmente, de sua professora do primário, com quem encontrava sempre, estudou
primeiro desenho de construção, arquitetura e depois pedagogia. Trabalhou como
secretária na área de saúde, mas, como seu desejo era dar aulas para crianças, fez o
curso normal em um ano, novo concurso e passou a ser professora do município do Rio
de Janeiro. Já quanto à sua satisfação com o seu trabalho cotidiano, diz:
eu não sei se o que estou fazendo está dando conta do que as
crianças precisariam, embora eu saiba que não estou aqui para
dar conta de tudo. Tem horas que vejo um produto e... não, eles
podiam ter sido melhores, eu podia ter trabalhado de outro jeito,
para atingir outros objetivos. Eu não fico satisfeita com tudo que
eu faço, na hora ali, eu paro muito para pensar por que caminho
eu vou, o que eu vou fazer. Não é a coisa aqui tá pronta não, eu
fiz o que podia, eu estou feliz da vida. Termina o ano então...
nessa época do ano bate uma angústia que ...será que está todo
mundo feliz? Será que eu fiz tudo o que eles precisavam para ir
para a série seguinte? Será que eu fiz tudo o que eu podia fazer,
será que eu deixei alguma coisa por fazer? Acho que é
angustiante essa coisa de você ver o retorno, você ver que eles
cresceram, mas será que cresceram o tanto quanto deveriam ter
crescido, o quanto poderiam ter crescido?
Eis aqui revelada, nas palavras da professora, a presença do “professor
reflexivo” no cotidiano da escola. Não é necessário que nada nem ninguém lhe diga,
imperativamente, o quanto, como e sobre o quê deve refletir. Os processos que vive,
cotidianamente, como professora e as respostas que tem de dar, permanentemente, nas
suas relações com os alunos, com os pais e mães, com as coordenadoras, com a diretora,
133
com os outros funcionários e com os conhecimentos que circulam na escola ou fora
dela, exigem que pense sobre tudo isso.
Seu desejo de ser professora e de estar sempre buscando as melhores maneiras
de fazer para que todos se sentissem felizes marcava o seu cotidiano e era um dos
fatores que contribuía para que a sua sala de aula fosse um espaço-tempo tranqüilo e
acolhedor. Não falava muito sobre isso, mas suas poucas palavras não significavam que
isso não estava acontecendo. Pelo contrário, o prazer com o trabalho que demonstrou ao
preparar os livros e trazê-los para os alunos daquela forma, como uma surpresa,
evidenciou isso. O incentivo e o respeito à produção dos alunos também. Mas é
interessante perceber que tudo isso estava junto com atitudes que poderíamos entender
como opostas, logo contraditórias a essas. Falo da punição que ameaçou e cumpriu ao
sortear outro nome no lugar daquele da menina que estava em pé e, portanto, não
poderia participar. Ocorre-me pensar se não teria sido uma tática (Certeau,1994) sua,
pegar de novo o mesmo nome. Tivesse eu pensado nisso antes e teria perguntado a ela.
Certamente daria uma boa conversa em meio a muitos risos, é claro. Considerando,
então, mais uma vez, as redes de subjetividades que somos e o processo complexo em
que nos formamos, podemos ter outra compreensão. Não se trata exatamente de
contradição ou de incoerência, mas de complexidade no sentido que nos propõe Morin
(1996). Seria possível chamar, simplesmente, de contradição se pensássemos na pessoa
fragmentada, se pensássemos na professora como junção de pedaços, compreendendo
pedaços como os seus valores, os seus sentimentos, as suas atitudes e os seus
pensamentos, enfim. Porém, quero contar com esse autor que trata a complexidade
como um desafio, como uma motivação para pensar e diz que o
problema da complexidade é prestar contas das articulações
despedaçadas que o real lança a nossa mente (p.176).
Essas idéias auxiliam perceber a professora como um sujeito, um todo
organizado que não pode ser visto como a soma de suas partes. Ela é menos e, ao
mesmo tempo, mais que isso. Menos porque essa organização que é provoca coações
que inibem as potencialidades existentes em cada parte” e mais porque faz surgir
qualidades que não existiriam nessa organização” (p. 180). A professora Rossana,
como todos nós, tem esse e aquele valor, esse e aquele pensamento, essa e aquela
atitude, ao mesmo tempo, enredadas dentro dela, com ela, formando o todo organizado,
o sujeito social que é. Ela não se restringe a esse ou àquele valor, pensamento ou atitude
134
isolados, mas ao tecido que esses formam relacionados, trançados uns aos outros, eles,
portanto, não podem ser analisados separadamente.
Com isso, podemos também refletir sobre alguns comportamentos dos alunos e
alunas no também todo complexo que é a sala de aula. Temos, ao mesmo tempo, um
menino que aponta para a professora o que a colega havia feito de “errado” – o chamado
“dedo-duro” assim como uma rede de solidariedade que se forma tanto nesse
acontecimento como no outro em que uma aluna acha engraçado e ri do jeito como um
colega anda, ou seja, temos valores contraditórios circulando no espaço-tempo da sala
de aula. Da mesma maneira, a sala de aula, como um sistema, nos termos usados por
Morin, é também complexa e tem, ao mesmo tempo isso e aquilo formando o que não é
nem uma coisa nem outra, mas o todo que compõe.
135
II. 5- Movimentos e as interpretações nas salas de aula
Participando da dinâmica cotidiana das salas de aula, podemos notar que por trás
da aparente organização monolítica dos espaços, tempos, relações e expressões existem
realizações e criações que, simultaneamente, vão se dando e contradizendo aquilo que,
muitas vezes imaginamos e dizemos sobre elas.
Mesmo quando vemos uma sala de aula organizada na sua forma mais
tradicional, relações de todo tipo estão a acontecer, até aquelas não desejadas, esperadas
e valorizadas pela ordem. Os alunos participam das aulas com tudo que são e têm, não é
possível a eles, nem à professora, não levarem consigo até aquilo que supostamente é
tido como não pertencente ao campo de reflexão e ação da escola.
Nesse dia, a professora Cristina chegou alguns minutos atrasada. A turma 308
estava no pátio esperando e, durante esse tempo, se movimentavam pelo lugar. Algumas
meninas encontraram comigo, perguntei que horas seria a peça que fariam e elas
disseram: depois do recreio, no auditório. Uma delas, a Mônica, que na peça
representaria a professora aniversariante, me pediu que levasse a máquina digital da
escola para fotografar. A professora chegou e elas foram correndo ao seu encontro.
Subiram para a sala de aula, enquanto eu fui buscar a máquina fotográfica que fica
guardada na sala da diretora.
Ao chegar na sala, as mesmas meninas vieram pedir que eu não falasse nada
para a professora sobre a peça, seria uma surpresa. Contaram-me que a Rita, a aluna que
iria me representar, havia trazido uma roupa para vestir e também uma bolsa muito
parecidas com as que eu uso. A Claudia, que representaria a Marta, funcionária que fica
no corredor, contou que havia trazido um vestido laranja. Provavelmente, fazendo
alguma associação dessa cor da roupa à imagem que tinha da funcionária.
Lembrei do dia em que estive com eles quando tiveram a idéia de montar a peça.
Apresentaram à professora Lourdinha e pediram que ela os ajudasse. Eram todos
falando ao mesmo tempo e se movimentando na sala para dar sugestões de como tudo
deveria ser. A professora escrevia no quadro o que as crianças iam dizendo. As meninas
estavam mais à frente da organização e a maioria dos meninos e algumas meninas
também, da “desorganização”, na bagunça, como se costuma dizer na escola. A
professora falava alto com eles: assim não gente! Junto da professora, a menina que
representaria a Cristina falava alto também. Às vezes, ela desanimava com a bagunça
dos colegas, mas acabava recuperando o ânimo e voltava a gritar, ameaçar e pedir a
136
todos que ajudassem. Os outros se divertiam muito. Quando acabou a confusão, a
Mônica, essa que faria o papel da professora Cristina, disse que no dia viria com uma
mini-saia azul e uma meia da mesma cor, do mesmo jeito que a professora vem vestida
alguns dias. A outra, que representaria a professora Lourdinha, disse que viria vestida
com uma roupa normal que é como ela sempre se veste. Ao ouvir isso, nós duas rimos
muito. A aula havia terminado e ao sairmos, a professora comentou que naquele dia
havia sido muito confuso, mas que sabia que no dia da apresentação, estariam de outra
maneira, com certeza mais organizados, pois levariam a sério e também ficariam com
vergonha.
No dia da peça então, seu aniversário, a professora Cristina, ao entrar na sala,
pediu a um aluno que distribuísse o trabalho de casa e começou a explicar como
deveriam fazê-lo. Fez isso nesse momento inicial da aula, bem rapidamente, porque
depois daquilo eles iriam continuar o teste que haviam começado no dia anterior. Para
ter certeza que tinham entendido, pedia que alguns alunos respondessem a algumas
perguntas que ia fazendo. Esses alunos eram os que faziam parte do grupo que tem aulas
de apoio. A professora, como dito, costumava fazer assim em alguns momentos de
explicação ou de correção dos trabalhos: escolher esse grupo para responder as
perguntas feitas.
Após essa atividade, um outro aluno foi solicitado para entregar aos colegas os
testes de matemática que passariam a fazer. Lembrou a todos o que havia no teste:
textos que traziam notícias e reportagens com fatos reais sobre o meio ambiente. Ela ia
perguntando para todos e as crianças respondendo, em coro, quais os assuntos tratados
nos textos. Depois disso, arrumou as carteiras da frente em fileiras individuais e pediu
que os alunos se organizassem atrás de cada uma. Disse a eles que lessem, tentassem, e
que como as reportagens são sobre algo que aconteceu ou acontece, vocês vão precisar
137
ler, talvez, mais de uma vez para que entendam. Se o cérebro se esgotar, então venham
perguntar a mim ou à Regina.
Vale dizer que estávamos no início de novembro, praticamente, último mês de
aula. A professora Cristina andava bastante assoberbada com tantas atividades a realizar
antes do final do ano, entre elas algumas avaliações que preparara ou que outras
professoras e a coordenadora haviam preparado. Aproximava-se o momento em que
teria de decidir sobre a aprovação ou não dos alunos, tinha dúvidas sobre as
possibilidades de alguns irem para a quarta série e queria se certificar muito bem sobre
isso a fim de tomar as melhores decisões possíveis.
Esse teste, que estava aplicando nesse dia, tinha sido feito por ela mesma. Outras
professoras da terceira série resolveram não usá-lo como avaliação, apenas como
exercício de aula. Isso porque, embora as questões estivessem muito interessantes,
haviam ficado muito longas, por isso consideraram difíceis para os alunos. Para escrever
o enunciado, a Cristina tinha usado reportagens sobre os assuntos que estavam
estudando em ciências: lixo, água e ar e estabelecido relações entre os dados que a
reportagem apresentava e o conteúdo matemático que precisava ser avaliado. Além
dela, apenas uma outra professora, a Lorena, resolvera usar como teste esse material e o
resultado não fora muito bom nas suas turmas, assim como também não foi nas turmas
da Cristina.
Como ela nunca havia feito uma avaliação com questões daquele tipo, estava
naquele dia, cuidando para que os alunos não se atrapalhassem no desenvolvimento das
questões que eram de matemática, por conta das dificuldades que pudessem ter com a
leitura de textos longos, cheios de informações sobre conteúdos que não estavam sendo
avaliados, portanto, secundários na elaboração das respostas que deveriam dar. Por isso,
se ocupava em explicar aos alunos que deveriam ter muita atenção, ler mais de uma vez,
tentar e até pedir ajuda – apesar de somente após o cérebro se esgotar, como ela disse.
Muitas vezes, nós professoras adotamos esse tipo de procedimento nos processos
de avaliação que desenvolvemos nas salas de aula: estarmos entre a norma, a regra,
àquilo que temos de fazer e o que, dentro desse mesmo espaço, fazemos também para
reduzir os efeitos dessas normas, nossas táticas transgressoras (Oliveira, 2003, p.122 e
123). A rigor, a professora não deveria ter se detido em tantas explicações sobre o
conteúdo e a forma do teste como fez. Afinal, a validade de um instrumento de
avaliação como o que estava sendo usado, supostamente, dependeria, entre outras
coisas, dos alunos resolverem sozinhos as questões, sem ajuda. Somente dessa forma
138
poderiam demonstrar o que realmente aprenderam. De acordo com o imaginário
regrado/idealizado das práticas escolares, se assim não acontecesse, o resultado não
seria confiável.
A professora precisou sair da sala e passados uns dez minutos, chegou o
primeiro aluno para tirar as suas dúvidas. Logo depois, vieram mais quatro e, assim, não
parou mais de chegar aluno na mesa em que eu estava. Quando a professora voltou,
alguns foram falar com ela. Muitos outros continuaram a trazer seus testes para
conversar comigo, dizer o que não tinham entendido e pedir explicações.
Terminado o tempo de aula com a Cristina, professora de ciências e matemática,
a turma teria aula de informática, mas acompanhados da outra professora, de língua
portuguesa e estudos sociais, a Lourdinha. Como ela estava com a outra turma, a 306,
preparando, a pedido deles, uma pequena surpresa pelo aniversário da colega, solicitou
que essa levasse a turma 308 até lá, que, em seguida, ela iria. E foi assim que aconteceu.
Somente após a aula de informática passaram a se ocupar da festa e da
apresentação da peça teatral que fariam. Combinaram tudo, realizaram algumas
atividades na sala e depois do recreio, arrumaram a outra sala, onde aconteceria a festa,
com bolo, bolas e refrigerante e se prepararam para a peça que seria no auditório.
Ensaiaram mais uma vez e demonstraram estar bem mais organizados do que na outra
aula em que eu os havia visto ensaiar. As meninas que fariam os principais papéis
estavam caracterizadas como Cristina, Lourdinha, Regina e Marta, vestindo outras
roupas, segurando bolsas e maquiadas com o que haviam trazido de casa.
Quando tudo estava pronto, a Lourdinha foi chamar a colega homenageada, a
Cristina, dizendo que a turma 308 havia preparado uma apresentação sobre a Baía de
Guanabara e queria mostrar a ela. Essa veio meio a contragosto, pois não queria perder
tempo de aula com a outra turma em que estava aplicando, provavelmente, aquele
mesmo teste.
No auditório, o combinado era que eu ficaria na porta e, ao ver o meu sinal, as
crianças se organizariam para começar a surpresa, ninguém poderia mais falar, teriam
de terminar com todo aquele barulho que estavam fazendo e dar início à representação.
A peça de teatro começou
Assim foi, a professora homenageada chegou, sentou e as crianças então,
fizeram o combinado. A peça começava com os alunos mostrando parte da
139
movimentação diária das professoras entre as duas turmas: uma aluna, representando a
Lourdinha entrava, dava aula para a turma 308, se despedia e saía quando acabava o seu
tempo. Nisso, chegava na sala uma menina, representando uma aluna da outra turma, a
306, que trazia o material da outra professora, a Cristina. Como a turma 308 achava essa
aluna muito parecida com a Lourdinha, todos levantavam e faziam um “trenzinho” atrás
dela gritando: Lourdinha, Lourdinha! Ela saía e chegava a “professora Cristina”. A
“aula” começava e a turma estava na maior bagunça. A professora tentava colocar
ordem na sala e pedia o trabalho de casa chamando os alunos pelo nome. Nesse
momento, entra na sala uma aluna que me representava, era a professora de apoio, “a
140
oxítonas terminadas em “ens”. Usando o para que já tinha sido escrito antes pela
“colega”, termina de escrever: parabéns Cristina e todos cantam “Parabéns pra você”.
Para nós que estávamos assistindo, pareceu que, nesse momento, a professora
se deu conta do que se tratava, que a peça que os alunos tinham preparado era em sua
homenagem, pelo dia do seu aniversário. Ela, então, os elogiou, agradeceu e disse que
muitos ali poderiam ser atores.
Fomos até a sala ao lado do auditório, para comer bolo e beber refrigerante.
Perguntei se ela havia gostado e ela respondeu que sim, mas que tinha custado a
entender por que eles estavam representando somente ela e a Lourdinha não.
Completou, elogiando a atuação das crianças como atores, disse que vários ali poderiam
até pensar nessa profissão para o futuro, porém, não deixou de comentar que ela
considerou exagerada a forma como os alunos representaram-na como professora.
Tentando tranqüilizá-la, falamos que eles haviam feito uma caricatura, por isso o
exagero; usaram um recurso para tornar a peça engraçada. Contamos que as crianças
prepararam praticamente tudo sozinhas com muita empolgação e alegria: o roteiro, a
montagem das cenas, a escolha dos que participariam aqui e ali e que a Lourdinha
havia, apenas, criado espaços para os ensaios e ajudado na organização do grupo.
Depois que ela saiu para continuar a aula na outra turma, eu e a Lourdinha trocamos
nossas impressões sobre o que a Cristina expressou durante e mesmo depois da peça:
um certo incômodo por ter estado “na berlinda”.
Avaliações e conflitos
Essa história me leva a pensar nos processos avaliatórios a que estamos todos
nós, professoras, alunos e os outros sujeitos das redes das salas de aula submetidos no
cotidiano da escola. Ainda que essa não tenha sido a intenção, a peça preparada pelos
alunos para homenagear a professora no dia do seu aniversário foi percebida por ela
como um deles. Esses processos podem estar vinculados a concepções diferenciadas de
avaliação e muitas vezes, nos são incômodos porque, dependendo da concepção,
colocam sob julgamento os comportamentos, classificando e hierarquizando os sujeitos.
Nesse caso, ainda que a professora tenha gostado da peça, pela sua fala, ao final,
pareceu-me ter-lhe incomodado o exagero com que os alunos representaram alguns dos
seus comportamentos cotidianos e o fato de ter sido a única representada daquela forma.
141
Porém, podemos, em meio a essa opção das crianças de levarem para uma
homenagem justamente o jeito “brigão” da professora de cobrar os deveres de casa,
destacar que ela desmonta concretamente um padrão de comportamento esperado para
as professoras, principalmente, as de crianças pequenas. Esse padrão tem nas relações
carinhosas do tipo ternas um de seus fundamentos. O jeito “brigão” de cobrar os deveres
não caberia nesse comportamento, portanto. Apesar disso, as crianças se divertem com
ele levando-o para o roteiro da peça em homenagem à professora de quem gostam,
mesmo que “brigue” com eles, pois se assim não fosse não se dedicariam tanto como
fizeram naquelas semanas e no dia mesmo da festa. Penso que os alunos e as alunas
gostam da professora e não deixam que seu aniversário passe despercebido, porque
notam a espontaneidade, a sinceridade, a seriedade e o comprometimento dela com eles.
Em muitos momentos em que estive na sua sala de aula, presenciei cenas em que
as crianças se divertiam com ela, com as expressões engraçadas que usava para convidá-
los a participar, para chamá-los. Houve um dia, que fez para eles uma surpresa. Havia
ido à Brasília para um encontro com o ministro da educação em nome da associação de
docentes do colégio e encontrado os atletas recém-chegados das olimpíadas em Atenas.
Fez questão de pedir a eles que tirassem com ela algumas fotografias, mostrando as
medalhas que ganharam, argumentando que levaria a lembrança para os seus alunos que
a esperavam no Rio de Janeiro. Criou o maior clima de suspense antes de contar tudo
isso aos alunos e mostrar o que trouxera. A excitação tomou conta da sala no momento
em que a professora deixou que vissem as fotos. Depois de tudo, montou um mural com
as cópias que havia preparado para as duas turmas.
Quanto aos processos cotidianos de avaliação, os alunos faziam um teste de
matemática que a professora preparara, com muito cuidado e apreço. Não se limitara,
para essa elaboração, aos conteúdos e linguagem específicos da disciplina em questão.
Para formular os problemas matemáticos que os alunos teriam de resolver aplicando o
conteúdo específico dessa disciplina, utilizara-se de temáticas da atualidade, que se
dedicavam a estudar em ciências: a água, o lixo e o ar. Experimentava um outro modo
de fazer e reconhecia os limites disso, tanto que admitia as possibilidades de ajuda que
nós, as professoras presentes naquele momento, daríamos aos alunos. Porém, reconhecia
também o que eles eram capazes de fazer, tanto que exigia o seu empenho. Dizia que
teriam “direito” aos esclarecimentos que as professoras prestariam, aqueles que
tivessem pensado bastante, somente após o cérebro se esgotar como disse. Criara com
142
esse fazer uma situação desafiadora para seus alunos e disponibilizava, ao mesmo
tempo, o suporte de que precisavam para enfrentá-la.
Não é meu objetivo dedicar-me, neste trabalho, à análise das práticas das
professoras do ponto de vista da validade de suas opções, sejam elas de conteúdo, de
valores ou de uso de metodologias. Elas não estão sob julgamento. O que procuro fazer
aqui é compreender essa práticas, assim como as dos outros sujeitos, suas lógicas de
ação e através desse processo, potencializar aquilo que elas têm de conteúdo
emancipatório, pois penso que essa é uma possibilidade de investirmos na educação de
qualidade, em que a dinâmica aprenderensinar realiza-se plenamente (Esteban, 2003, p.
18) para todos nessa escola e quem sabe em outras escolas.
A história narrada me sugere algumas possibilidades nesse sentido e é delas que
trato. Apesar da professora estar ali querendo saber o que tinham aprendido os seus
alunos naquele novembro, tão próximo do fim do ano letivo, portanto, próximo do
momento conflitante em que ela definiria se seguiriam ou não para a série seguinte, a
quarta série, última série daquele segmento, apesar da sua referência ser o ensino, o
modelo de avaliação que estava tentando praticar era o de uma avaliação qualitativa e
não apenas quantitativa como se costuma fazer mais comumente na escola. Embora a
professora pretendesse atribuir conceitos aos alunos conforme o resultado que
apresentassem no teste e utilizar esses resultados na sua decisão de aprová-los ou não,
fazia isso transgredindo uma regra importante para a validade desse resultado, segundo
um modelo de avaliação quantitativo apenas. Quando optava por usar aquele tipo de
instrumento, esclarecia e me autorizava esclarecer as dúvidas dos alunos, dialogando
com eles e, portanto, considerando também o processo reflexivo de cada um, transitava
por outro modelo de avaliação, o qualitativo. Conforme diz Esteban (2003), esse é um
modelo de transição que acompanha o movimento de constituição das ciências sociais
caracterizado por duas vertentes. Uma que
apresenta epistemologia e metodologia positivistas em que a
manipulação do objeto de conhecimento está associada ao
processo de domínio de informações e cuja ênfase é posta nos
resultados alcançados e na possibilidade de sua quantificação e
outra que ressalta a especificidade do humano e tem como
centralidade a compreensão dos processos, dos sujeitos e da
aprendizagem (idem, p.25 e 26)
Esteban apresenta esse modelo de avaliação como sendo de transição porque
está considerando com Santos (2000) que vivemos num tempo em que o paradigma da
143
ciência moderna está sendo substituído por um novo paradigma que emerge de uma
nova revolução científica que atravessamos. Ele chama de paradigma de um
conhecimento prudente para uma vida decente. Diz que ele não pode ser apenas
científico, que a ciência não trouxe as respostas esperadas para questões concretas
como a melhoria da qualidade de vida da maioria dos sujeitos, ele tem de ser também
social. Esteban encontra relações entre essa transição paradigmática e as práticas de
avaliação que buscam romper com a consideração estrita dos resultados apresentados
em detrimento dos processos percorridos pelos sujeitos. Como ela, pude notar na
situação narrada, que a professora redefinia as suas práticas de avaliação buscando
relacioná-las a um tipo de conhecimento que não pretende dominar e manipular o
mundo, mas compreender o mundo.
Esse processo de avaliação, como disse, não estava restrito aos alunos, as
professoras estavam também sendo avaliadas nesse dia através das atividades que os
alunos e alunas prepararam para homenagear aquela que aniversariava. Sua sensação de
claro incômodo parecia estar relacionada a essa avaliação que estava implícita no
roteiro, ainda que não intencionalmente, nas falas e nos comportamentos representados
nas cenas da peça.
No entanto, o fato dos alunos terem apresentado de forma caricatural, portanto,
demasiadamente exagerada, alguns comportamentos cotidianos da professora, fez com
que ela não acompanhasse com tanta alegria a peça que a homenageava. Preocupou-se
com a avaliação que, no seu imaginário, julgava e classificava seu modo de ser
professora em alguns aspectos. Esse modelo de avaliação a deixava em conflito na sua
prática de professora, tanto que procurava se distanciar elaborando outro tipo de
instrumento e transgredindo certas regras ao utilizá-lo. No entanto, para os alunos, esses
comportamentos da professora serviram de material para o roteiro da peça que
organizaram. O uso que fizeram dele transformou-o em algo muito engraçado. Tendo a
intenção ou não de “avaliar” esse jeito da professora, colocando-a na “berlinda”, o que
os alunos fizeram foi se expressar, criar, brincando com aquilo, se divertindo e
divertindo a professora que queriam agradar.
144
As invenções curriculares das professoras
Outra questão que essa história levanta envolve ainda a outra professora, a
Lourdinha e as suas maneiras de fazer. Em alguns trechos da conversa que aconteceu no
momento da entrevista que realizei com as professoras durante a pesquisa, ela fez
comentários sobre o seu jeito flexível de lidar no cotidiano com as dimensões do tempo
escolar na sua relação com os conteúdos a serem ensinados-aprendidos e com os
interesses de aprender e de fazer que os alunos manifestavam no dia-a-dia. Disse:
Não tenho nenhum problema de rigidez com a questão do
trabalho, do conteúdo, da matéria que eu tenho que dar. Isso é
bastante flexível pra mim. Eu consigo mexer naquilo, se não der
para fazer eu vou fazer em outro momento e... Isso não me aflige
entendeu?
Quando perguntei sobre como viam a forma como eram tomadas as decisões em
relação ao trabalho a ser desenvolvido com os alunos, a participação delas como
professoras e da coordenação pedagógica, falou entre outras coisas:
Eu também tenho uma coisa, que eu considero uma qualidade no
meu trabalho, não sei, pode não ser, que é improvisar
determinadas coisas, eu acho que eu tenho muito essa
característica. Eu posso ter previsto uma coisa, mas se aparecer
um gancho, uma outra coisa, eu consigo mudar a minha aula. Às
vezes, vira uma aula completamente diferente daquela que eu
tinha imaginado pegando esse gancho, trazendo até um conteúdo
que nem era daquele momento. Então, eu tenho uma avaliação do
meu trabalho que eu faço isso, que eu consigo fazer isso bem e
considero positivo, não sei se todo mundo acha isso positivo, vai
ter gente que acha que não é bom, que sai muito do
planejamento, mas eu gosto disso.
E quando o assunto era a participação dos alunos nessas decisões do que vai ser
ensinado-aprendido e como isso vai acontecer, ela disse:
Eu acho que na turma como um todo, como eu falei, eu acabo
improvisando muitas coisas e não me sinto presa na questão
daquele conteúdo estar previsto ali pra ser trabalhado, eu acho
que eles têm uma participação importante, porque eu valorizo
muito determinadas atividades que a escola não valoriza e que se
eu fosse ficar me prendendo, aquilo ali não aconteceria, como
por exemplo, o teatro que eles querem fazer, os debates que, às
vezes, demoram muito. Então, quantas vezes eu já entrei na turma
com determinada coisa no meu planejamento para trabalhar, mas
eles queriam debater sobre uma outra coisa e eu deixei
acontecer, então acho que nesses momentos, em muitos
momentos, houve uma interferência mesmo deles e da expectativa
que eles tinham sobre determinada atividade. Quanta atividade
145
que eu planejei para ser individual e virou trabalho em grupo por
conta da solicitação deles e das argumentações, então eu acho
que nesse aspecto eles têm interferência. Na dinâmica e no tipo
de atividade que acontece, eles até têm alguma interferência. Na
escolha do assunto que vai ser trabalhado nem tanto, acho que
não tem ou tem muito pouco, talvez tenha uma coisa ou outra,
mas muito pouco.
Considero esse depoimento importante para uma compreensão do que, para
alguns, é possível fazer na e com a própria dinâmica cotidiana das salas de aula e do
que, potencialmente, essas práticas representam. Essa professora, a Lourdinha,
demonstra ser bastante autônoma para definir junto com os seus alunos muito do que
podem fazer e como isso pode acontecer. Suas maneiras de fazer criam possibilidades,
espaços para outros conhecimentos, novidades e invenções dos alunos, mesmo que
esses não dependam exclusivamente delas para isso. Aquilo que é definido pela
coordenação, a partir do que está previsto pelo currículo formal, ainda que com a
participação das professoras é recriado por ela em interação com os seus alunos. As
outras professoras, ainda que não falem tão explicitamente como ela sobre isso, também
estão a criar essas possibilidades com o que inventam cotidianamente, cada qual a seu
modo. Com as suas formas próprias, particulares de praticarem o currículo, seduzem e
envolvem os alunos e as alunas, desafiando-os também a produzir conhecimentos.
146
II. 6- Diálogos nos silêncios das salas de aula
Estávamos na sala de aula da turma 305 e a atividade que se realizava era de
recorte, ordenação e colagem dos textos de alguns problemas matemáticos para
posterior resolução no caderno. Éramos três professoras presentes: Lorena, a professora
da turma, Lívia, uma outra professora de apoio que ia à sala uma vez por semana
24
e eu.
Circulávamos pela sala, respondendo as perguntas que os alunos faziam e autorizando a
colagem quando eles encontravam a ordem das frases que dava coerência ao texto.
Aproveitei esse momento para contar à Lorena a conversa que tinha tido com as
mães de dois alunos do apoio que eram dessa turma, o Alberto e o Tiago. Quando
terminei a aula com eles, no dia anterior, elas estavam esperando e pediram para falar
comigo. Estavam muito preocupadas com a possibilidade de reprovação dos seus filhos,
24
Na escola existem duas formas de atendimento aos alunos que são “encaminhados” pela professora aos
grupos de apoio. Uma acontece fora do horário em que os alunos estudam, ou antes, ou depois. A outra
acontece dentro do horário com a presença da professora do apoio na sala ou com ela levando os alunos
indicados para terem aula em um outro espaço da escola.
147
por causa de uma nota baixa que haviam tirado no último teste, principalmente uma
delas, a mãe do Tiago. Perguntaram-me se eu não poderia passar uns trabalhos extras
para eles e se eu achava que seria bom procurar uma professora particular no caso do
Alberto, porque o Tiago tinha. Falei com as duas que não achava boa nenhuma das
duas idéias porque vinha percebendo que os meninos estavam muito cansados. Contei
que naquele dia, o Tiago tinha passado uma boa parte da aula se queixando de dor de
cabeça, deitado sobre o braço na mesa e alegando que não comera antes de entrar na
aula de apoio. Dessa forma, tinha aproveitado muito pouco a aula daquele dia. Disse
que se os sobrecarregássemos demais, fizéssemos muita pressão sobre eles, poderíamos
atrapalhar em vez de ajudar.
Uma das mães, a do Tiago, declarou que estava mesmo fazendo terrorismo
psicológico com ele. havia lhe dito que se não passasse de ano não ganharia presente.
Tentei reafirmar a idéia de que esse tipo de pressão poderia não ser boa para os meninos
e, para tranqüilizá-las, me comprometi a conversar com a Lorena sobre os dois na
primeira oportunidade que tivéssemos.
Lorena falou que as duas já conhecem a situação dos filhos desde o início do ano
e até mesmo de outros anos. Essa informação lhe havia sido dada pela Patrícia, a outra
professora da turma, que os acompanha desde a classe de alfabetização. Acrescentou
que a mãe do Tiago tinha uma entrevista marcada no SESOP (Setor de Supervisão e
Orientação Pedagógica) que aconteceria na semana seguinte. Essas entrevistas estavam
acontecendo com todas as mães e/ou pais das crianças que estavam no apoio e que
tinham alguma possibilidade, na avaliação das professoras, de ficarem reprovadas.
Tiago e Alberto eram alunos, como disse a Lorena, que, se passassem, seria sob
recomendação, pois não tinham as condições ideais para seguirem para a série seguinte,
a quarta série, a última desse segmento do Ensino Fundamental.
Perguntei se a avaliação em que tinham tirado a nota baixa a qual as mães se
referiam era a que a professora Cristina, das turmas 308 e 306 havia preparado.
Conhecia esse teste, porque tinha estado na sua sala em alguns dias em que ela o
aplicara e percebido o quanto estava difícil. Os alunos apresentaram várias dúvidas na
leitura dos textos que introduziam as questões, pois eram textos muito longos. Ela
respondeu que sim, que era esse o teste e que ali nas suas turmas eles tinham levado
quatro dias
25
para concluí-lo.
25
O horário de um dia de aula é dividido em seis tempos de 45 min. Nos cinco dias da semana o total é de
30 tempos. Em três desses dias, cada professora está com as turmas de terceira série durante três tempos.
148
Continuou a conversa fazendo comentários sobre cada um dos alunos do grupo
do apoio, que eu conhecia por ser a professora. Disse que havia falado com a mãe do
Alberto sobre o tipo de erro que ele costumava cometer. Eram pequenas coisas que
alteravam o resultado final: parte do cálculo, parte do que diz o texto do problema. Falei
que também percebia isso nas aulas de apoio, mas que não era sempre, não em todas as
situações. Na maioria das discussões que mantínhamos sobre os desafios que propunha,
ele contribuía com boas idéias e sempre conseguia propor resoluções possíveis, apesar
de, às vezes, precisar da minha confirmação para saber se o que havia pensado estava
certo ou errado e de também cometer alguns pequenos erros de cálculo. Mas admiti que
a dinâmica das aulas de apoio é diferente: o grupo é pequeno, menos dispersão e eu
posso dar mais atenção aos alunos. Passando a falar do Tiago, levantei a hipótese de que
seu ingresso recente no grupo teria restringido um pouco a sua participação que não era
tão grande como a do Alberto, por exemplo, que estava desde o início do ano. Percebia
que ele se sentia menos confiante para expor o seu pensamento acerca das questões
propostas.
Nossa conversa se estendeu ainda, até chegar em alguns alunos do grupo do
apoio da outra turma, a 307, dos quais eu também era a professora: Carlos, Flávio e
Marcelo. Perguntei sobre a possibilidade de reprovação dos três, pois sabia, através da
outra professora, a Patrícia, que a Lorena resistia ainda à idéia de aprová-los. Referia-se,
nesse caso, aos dois primeiros, porque em relação ao Marcelo, ela concordava com a
colega que não haveria jeito. Esse era um assunto que preocupava muito as professoras.
Meses atrás, a Patrícia havia conversado comigo sobre isso. Seu pensamento era que,
nem o Carlos e nem o Flávio teriam os seus problemas resolvidos com a reprovação
simplesmente. Pelo contrário, ela poderia ser um agravante. Dizia ainda que o que não
tinham aprendido naquele ano, continuariam aprendendo no ano seguinte. Ambos
haviam sido reprovados uma ou duas vezes, eram mais velhos que a maioria dos alunos
da turma e por conta de tudo isso tinham baixa auto-estima. Sabia que a Lorena não
pensava da mesma forma, as duas haviam conversado. A Lorena tinha mais
convicção de que o critério formal de exigência das condições mínimas para a
aprovação deveria ser seguido e ela trabalhava muito para que isso acontecesse.
Em um dos dias elas têm apenas dois tempos de aula, porque nos outros dois, os alunos têm aula de uma
das atividades, enquanto as professoras estão em horário de planejamento. No último, o quinto dia da
semana, as aulas são das demais atividades.
149
Porém, nessa conversa sobre os alunos Carlos e Flávio, principalmente, ela disse
que concordaria com a aprovação para a quarta série, mas também sob recomendação,
assim como os dois da 305, Alberto e Tiago. Pareceu estar convencida de que seria o
melhor para eles. Quanto ao Marcelo, teria de reprová-lo mesmo e no momento em que
falou isso, a professora se emocionou e até chorou. Conhecia muito bem as difíceis
condições em que o menino vivia: pobreza, falta de atenção e cuidado da mãe que tem
outros filhos menores e fora abandonada pelo pai, falta de tempo para estudar, que
também ajuda a mãe no cuidado com os irmãos, enfim, um quadro que fazia com que o
menino faltasse às aulas de vez em quando, não fizesse as tarefas de casa, não estudasse.
Mesmo assim, reconhecia que ele tivera uma aprendizagem surpreendente em
matemática, estava, sem sombra de dúvida, com melhor aproveitamento nos conteúdos
da série do que os colegas, principalmente se considerássemos as suas condições de
vida. Contudo, não acontecera o mesmo na leitura e na escrita, fato que comprometia
150
solução para esses problemas, ao contrário, ela poderia ser uma dificuldade a mais nas
possibilidades de sucesso no percurso escolar desses alunos dali para diante. Muitas
vezes, notamos que aquilo que, teoricamente, o aluno teria chance de aprender cursando
de novo a mesma série, é conteúdo também trabalhado na série posterior, portanto, esse
poderia ser, na continuidade, um outro lugar dessas aprendizagens se efetivarem. Essa
atitude envolveria a valorização dos processos vividos pelos alunos e não apenas dos
resultados finais obtidos por eles. Por outro lado, também as situações em que “não
conseguimos ver” determinado aluno em outra série, por conta do seu processo na série
que está cursando ter sido, de alguma maneira, comprometido por múltiplos fatores
internos ou externos a ele. E por fim, temos, todos nós do Colégio Pedro II, a presença
do expediente da jubilação pairando sobre nossas cabeças. Pois, embora não sejam
freqüentes as situações em que a norma prevê usá-lo, isso às vezes acontece. São os
casos em que a mesma criança passa por duas reprovações seguidas
26
.
As mães e os pais querem o melhor para os seus filhos, dizem eles, também têm
medo da jubilação e não deixam de se preocupar, tanto com o que eles vão sentir caso
haja uma reprovação, como com o que vão viver na série seguinte, caso haja uma
aprovação em condições de aprendizagem consideradas insuficientes. Suas
preocupações não param por aí, elas passam também pela reação que outras pessoas - da
família ou não – poderão ter se houver uma reprovação. Sabem que alguns falam,
comentam, comparam com outras crianças etc. É a velha competição e não aceitação de
diferenças como valores sociais circulando entre os nossos valores. Em meio a esses
conflitos e contradições vão agindo, tomando as decisões que acham que têm de tomar
para que aconteça o que consideram melhor para os seus filhos. Entre elas podem estar,
inclusive, iniciativas não recomendadas pela professora, que nessa história sou eu:
fazem ameaças e promessas chantagiando as crianças, contratam serviços de professoras
particulares sobrecarregando-os ainda mais quando dão sinais evidentes de cansaço e
etc.
Os alunos, cada qual a seu modo, experimentando os sentimentos que podem se
fazer presentes em momentos como esse em que a sua capacidade de aprender acaba
sendo colocada em questão. Colocar em questão a capacidade de aprender de alguém,
por si só, consiste num problema. Além do mais, caso esse questionamento
26
A jubilação está instituída no Colégio Pedro II, mas não sem o questionamento de muitos. Entretanto,
mesmo questionadas, a maior parte das direções gerais que passaram pelo colégio reafirmaram esse
procedimento. Ele está entre os muitos procedimentos que buscam manter uma tradição e diferenciar o
colégio das outras escolas públicas das redes municipais e estaduais.
151
procedesse, ele deveria se restringir apenas a algumas aprendizagens, de alguns
conteúdos, de algumas disciplinas e, muitas vezes, não é assim que acontece, pois ele é
estendido ao sujeito como um todo. Isso pode ocorrer num movimento que venha da
parte dos profissionais da escola e/ou das regras que normatizam os procedimentos de
ensino e avaliação, da parte do próprio aluno ou aluna, ou ainda da parte da família.
Sem contar que, muitas vezes, os modos de ensinar, os conteúdos de ensino, as relações
entre os sujeitos, suas culturas e seus saberes se interpõem às possibilidades de
efetivação das aprendizagens na escola. Então, são tantos elementos a serem
considerados nessa situação que, efetivamente, a sensação de incapacidade que alguns
alunos experimentam nesse momento quando, para eles, se coloca a reprovação ou
mesmo a sua possibilidade, não cabe. E, se não cabe para eles próprios esse sentimento,
muito menos para os que com ele convivem, aqueles que participam da sua educação.
Mas, com tudo isso, esse é mais um dos fios que tece essa complexa realidade.
Para terminar a leitura que faço dessa história e o momento dramático em que
ela nos envolve, destaco a forma singular como cada aluno e cada aluna vive a
reprovação ou a sua iminência. Mesmo quando as professoras, os pais, as mães e os
demais profissionais da escola se preocupam demasiadamente e muitos até não achem
que ela deva acontecer, situações em que os alunos e as alunas passam por essa
experiência, de uma maneira, surpreendentemente, positiva. Com o início do novo ano
letivo, nos dão sinais de que estão confortáveis na mesma série, enfrentando desafios,
aparentemente, ajustados às suas possibilidades e se relacionando muito bem com
colegas mais novos que eles. Essas evidências nos levam até a confirmar a decisão
tomada e nos perceber pensando se precisaríamos ter tido tanta preocupação. Mas
também situações muito diferentes dessa em que percebemos alunos reprovados e às
vezes, suas famílias, bastante desanimados com o que terão de enfrentar no novo ano ou
mesmo constrangidos, revoltados, tristes com eles mesmos ou com os profissionais da
escola que julgam responsáveis pela sua condição.
Entendo, portanto, que a reprovação consiste num problema a ser enfrentado nas
escolas que ainda a praticam. Pensando como um problema geral da educação, ela
envolve um dos indicadores de qualidade a que os cidadãos deveriam ter direito, que é o
da permanência com sucesso na escola. Não basta ter acesso à escolarização, é preciso
que não existam obstáculos ao prosseguimento dos estudos, ou que, ao menos, haja uma
política de superá-los. Outrossim, mesmo as escolas e sistemas que não fazem uso desse
expediente, adotando a avaliação continuada, organizando o ensino fundamental em
152
ciclos, têm problemas a serem enfrentados, pois embora, estatisticamente, essas novas
maneiras de fazer tenham “resolvido” a questão do fluxo, ou seja, do número de alunos
que progridem dentro dos sistemas de ensino, permanecem os obstáculos à
democratização do ensino, que não conquistaram a conclusão do ensino fundamental
para todos e nem garantem a qualidade do ensino oferecido. Então, todos esses fatores,
os mais gerais, que dizem respeito aos sistemas e os mais particulares, que dizem
respeito a cada um dos sujeitos envolvidos fazem com que essa questão da repetência
associada ao duplo: evasão/permanência continue merecendo toda a nossa atenção,
reflexão e atitudes que possam buscar garantir a todos os cidadãos o seu direito a um
percurso escolar fluente. E, de fato, essa é uma discussão ainda muito presente entre
professores/pesquisadores e governos ao tratar da educação no nosso país e levanta
muitas polêmicas que, nesse momento, queremos apenas trazer à reflexão como mais
um fio dessa rede.
Então, detendo-me nas singularidades, elas me interessam, pois consistem em
pistas que as práticas cotidianas dos sujeitos na sala de aula podem oferecer para nos
permitir melhor compreendê-las e assim melhor explorá-las em todo o seu potencial
emancipatório, como pretendo neste trabalho. Os alunos, as alunas, as professoras e
todos os outros envolvidos nesses processos não os vivem do mesmo modo. No entanto,
dizer que cada um é um sujeito singular e que, assim sendo, vai viver a seu modo cada
experiência não consiste, exatamente, numa novidade, ao contrário, faz parte de um tipo
de conhecimento chamado de senso comum. Acontece que nossos procedimentos na
escola, muitas vezes, desconsideram essa “obviedade”. Assistimos e muitas vezes
participamos de uma massificação desses procedimentos pedagógicos que tenta tratar
todos da mesma maneira através da elaboração do currículo formal, das recomendações
metodológicas e relacionais, das escolhas das disciplinas e dos seus conteúdos a serem
ensinados, da ordem disciplinadora dos espaços e dos tempos. Eles teimam em ignorar
que nas salas de aula estamos em meio a uma multiplicidade e diversidade de sujeitos e
que essa teia complexa não se rende às tentativas de massificação, pelo menos não para
todos e nem da mesma forma, apesar de não estarmos, como sujeitos da escola,
indiferentes a essas tentativas e praticarmos, no cotidiano, ações táticas transgressoras a
elas. Essas práticas nos vinculam ao imperativo formulado por Santos (1999) temos o
direito a ser iguais sempre que diferença nos inferioriza; temos o direito de ser
diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza.
153
Todas essas múltiplas e diversas realidades estão enredadas, entrelaçadas,
complexificando a questão da aprovação/reprovação dos alunos, uma das muitas
questões presentes no cotidiano das salas de aula. Umas realidades tendo implicações
nas outras no todo que esse cotidiano forma. Pudemos perceber que todos os sujeitos
envolvidos queriam e buscavam o melhor, aquilo que, para cada um, seria o melhor. Às
professoras cabia decidir e essa complexidade, entre outras coisas, impede que
possamos ter certeza sobre qual teria sido a melhor decisão, aquela que elas desejavam e
precisavam encontrar. Cada possível decisão envolve inúmeros e diversos fatores em
cada um dos sujeitos em particular e também na trama que eles vão formar. Porque uma
decisão exclui necessariamente a outra, podemos conhecer os cenários que se
compõem quando uma delas é tomada. Não é possível prever o outro cenário, aquele
que se comporia com a outra decisão, a que foi abandonada. Podemos até conjeturar,
supor, imaginar, mas a certeza de termos tomado a melhor decisão, nós, professoras não
teremos.
O fato de termos a palavra final sobre a reprovação ou aprovação dos alunos e
das alunas nos coloca num lugar especial nessa teia, pois recaem sobre nós as
responsabilidades da opção feita. Porém todos dela participam, cada qual do seu lugar,
trazendo as suas expectativas, os seus valores, os seus pensamentos e sentimentos e essa
teia vai sendo formada com e nos conflitos e tensões que esse movimento implica.
Pudemos percebê-la nessa história do cotidiano da escola e na leitura que fiz com ela.
Mas, pudemos perceber também que decidir da melhor maneira possível, que é o que
procuramos fazer, não é o mesmo que decidir da forma certa, aquela que, livre de
dúvidas, não implicasse em erro, essa opção é inexistente, por isso impossível de ser
feita.
154
II. 7- A presença dos saberes que vêm de fora
A professora Vanessa estava distribuindo as folhas que seriam feitas pelos
alunos como avaliação. À medida que iam terminando os exercícios, entregavam para a
professora.
Enquanto faziam o trabalho, aproveitamos para conversar um pouco sobre o
Antonio, aluno que fazia parte do grupo do apoio de língua portuguesa, com a outra
professora da turma, a Rossana, e do grupo de matemática, comigo. A Vanessa veio até
a mesa em que eu estava e contou que havia mandado um bilhete para a mãe dele,
contando que ele vinha sentindo muito sono na sala de aula e perguntando por que.
havíamos conversado sobre isso antes, todas nós tínhamos percebido que o Antonio
andava sonolento. A mãe mandou dizer que seu horário no trabalho havia aumentado,
estava trabalhando mais tempo e, por causa disso, levando o Antonio cedo com ela. Em
vez de pegá-lo em casa, o transportador escolar que o leva para a escola, o pegava lá.
Notáramos também o quanto o Antonio andava irritado, se aborrecendo por motivos,
aparentemente injustificáveis, que em outros momentos não o aborreceriam. Ao saber o
que se passava com ele, da alteração da sua rotina, atribuímos a isso sua irritação,
resistência ou entrega ao sono nas aulas. Tomar conhecimento das condições em que o
menino estava passando os seus dias permitiu que compreendêssemos os
comportamentos que vinha apresentando nas aulas e buscássemos animá-lo, tentando
envolvê-lo um pouco mais nas atividades. Com isso, tentaríamos evitar que o
desconforto e cansaço que sentia o tomassem por inteiro a ponto de o prejudicarem na
escola. Entendíamos que isso era o que podíamos fazer: compreendê-lo e procurar
seduzi-lo com o trabalho que desenvolvíamos. Buscar concorrer com a falta de tempo
que tinha em casa, com a falta de outras crianças para brincar, de tempo para dormir,
155
descansar, enfim, alterar as circunstâncias da sua vida, da vida da sua mãe não era
possível para nós. Contudo, conhecê-las foi bastante importante para as nossas relações
com o Antonio nesse momento da sua vida. A forma como passava os seus dias, antes e
depois da ida à escola eram também fios que o teciam e teciam as suas relações
conosco, com os colegas, com os conhecimentos escolares, portanto, o constituíam
também e passaram a se considerados.
Conversamos também sobre um outro aluno do grupo de apoio de matemática, o
Joaquim. Vanessa contou que a sua mãe tinha estado na escola para conversar com a
coordenadora de matemática. Segundo ela, sua intenção era obter algumas informações
que a coordenadora podia dar, pois tinha estado com as professoras e o SESOP (Setor
de Supervisão e Orientação Pedagógica) e levantado várias questões com relação à
condução do trabalho feito com seu filho. Na conversa, a coordenadora mostrou os
últimos exercícios que o Joaquim havia feito, preparados por ela mesma, que abrangia
todo o conteúdo considerado fundamental de ser aprendido na terceira série, portanto,
condição para a passagem à série seguinte. A mãe do menino se queixou à coordenadora
dizendo que a professora não corrigia os trabalhos de casa, que alguns daqueles
exercícios nunca tinham sido feitos na sala e que estavam muito difíceis para ele. A
coordenadora disse à mãe que não tinha como responder pelo que acontecia na sala, por
não estar todos os dias, mas, a orientadora pedagógica da série, também presente à
conversa, interviu dizendo que ela, sim, podia falar, porque, em alguns momentos,
ficava na sala com a professora e sabia que tudo aquilo tinha sido trabalhado e que a
Vanessa corrigia todos os trabalhos de casa. A professora me contava o quanto havia
ficado chateada com essa história, porque considerava o que vinha fazendo com tudo
que era possível para que o Joaquim conseguisse “passar de ano” e que não tinha mais
nada a dizer para a mãe do menino, que além de conversar com a coordenadora, tinha
estado também com a diretora e foi ela que recomendou a conversa com a coordenadora
de matemática. Vanessa disse que esperava que a coordenadora a apoiasse por todo o
trabalho que vinham realizando juntas. A mãe do aluno demonstrava não ter confiança
no que ela fazia, pois mesmo depois de terem conversado sobre a situação do menino,
havia ido procurar a diretora e depois a coordenadora. Nessa conversa, a mãe teria dito
também que confiava em Deus e que o seu filho iria conseguir passar para a quarta
série, pois ele sempre conseguia, era assim todo final de ano. No final, dera um cartão
para a coordenadora oferecendo os seus serviços como advogada e dizendo que sempre
que ela precisasse poderia procurá-la. O comportamento dessa mãe era conhecido e
156
comentado na escola, costumava ser assunto, nessa época do ano, nos encontros para o
cafezinho ou na sala dos professores. Nas três séries que seu filho já cursara, sua
aprovação havia sido colocada em dúvida pela professora, devido às suas condições não
ideais frente ao exigido pelas normas da escola. Em todas elas, agiu assim, oferecendo
presentes às professoras em datas especiais, como o dia do mestre, ou em outro dia
qualquer.
A professora Vanessa passou a me mostrar o que havia de novo nas produções
do Joaquim ou sobre o Joaquim. Era um trabalho que ele havia feito e um relatório
escrito pela professora Lívia
27
que o estava acompanhando também no apoio.
Não havia nenhuma conclusão que a professora pudesse tirar a partir daquilo
tudo que tinha nas mãos. Confessou estar com muita dificuldade de tomar a decisão de
aprová-lo ou não. O fato de ser uma “dificuldade” apresentada apenas em matemática
era, para ela, um fator importante. Apesar do comportamento que ela considerava
imaturo do Joaquim, comparado ao das outras crianças, seu desempenho era
considerado satisfatório. Repetir o ano, toda a terceira série, seria bom para ele?
Ajudaria? Seria isso o que ele precisava para superar os problemas que apresentava em
matemática? Uma das questões, motivo da dúvida, é que ele resolvia algumas situações
propostas e outras que, às vezes, envolvia os mesmos conceitos, ele não resolvia. Em
alguns problemas, ele ia até certo ponto num raciocínio compatível com o que estava
sendo pedido, coerente e satisfatório para as perguntas, mas não seguia até o fim assim.
No meio do caminho, fazia outras escolhas que o colocavam bem distante das possíveis
respostas às questões. Às vezes, também errava em alguns tipos de cálculos que em
outras situações, acertava. Enfim, terminamos e eu disse que imaginava o quanto estava
sendo difícil para ela esse momento. Ela concordou e falou de novo sobre o fato de o
Joaquim apresentar essa “dificuldade” apenas em matemática. Repetir o ano, cursar toda
a série de novo seria bom para ele? Ajudaria? Será que é isso que ele precisa para
superar os problemas que apresenta em matemática? Repetiu.
As crianças terminaram o pequeno teste que estavam fazendo enquanto
conversávamos e começaram a fazer um outro trabalho de matemática, aquele que
havia sido elaborado pela outra professora da série, a Cristina. Eram questões bastante
27
Essa professora, como já dito em outra história, era também professora de apoio e tinha sido designada
para trabalhar com um grupo especial da terceira série sobre o qual as professoras tinham muitas dúvidas
em relação à sua forma de lidar, especificamente, com a matemática. Suas aprendizagens nessa disciplina
tinham algumas marcas incompreensíveis para as professoras o que dificultava seu trabalho com eles.
Lívia teria, então, a tarefa de tentar decifrar essas marcas e entender o que acontecia com esses alunos e a
matemática.
157
complexas, introduzidas com textos bastante longos, carregados de novas informações
sobre os assuntos que estavam estudando: poluição da água, do solo e do ar. Sua escolha
foi de fazerem juntos esses exercícios e não usá-los como avaliação como haviam feito
outras professoras. Cada uma das questões possibilitava uma longa conversa e discussão
de idéias sobre o assunto. Havia um erro em uma delas, faltava uma informação que era
essencial para a sua resolução. A professora provocou os alunos pedindo sugestões,
formas possíveis de resolver e eles falaram. A cada idéia apresentada, ela perguntava o
que os outros achavam, se o que fora sugerido os levaria a uma solução. Alguns alunos
participavam, davam sugestões, mas outros, os do grupo do apoio, especialmente, o
faziam se a professora perguntasse diretamente a eles. Joaquim ficava olhando para a
professora, para os colegas, para a folha onde estavam as questões, mas não se integrava
ao que estava acontecendo. Luana, outra que faz parte do grupo do apoio, participava
um pouco mais. Isabela e Antonio também pouco participavam.
Vanessa, percebendo que as crianças estavam cansadas, permitiu que eles
fossem para as atividades do tempo livre. Foram então jogar sentados no chão, escrever
no quadro, brincar de boneca ou desenhar.
Convidei a mãe do Joaquim para uma conversa. Esclareci que se tratava de um
trabalho de pesquisa e ela aceitou. Marcamos o dia, o horário e a conversa aconteceu.
Estávamos nas últimas semanas de aula e a questão da aprovação ou reprovação dos
alunos estava colocada. No caso do Joaquim a reprovação era uma possibilidade, pois
ele era instável, não demonstrava segurança em relação ao que sabia, ora conseguia
resolver as questões de matemática, ora não. Solicitava muita ajuda e quando tinha
mesmo de resolver sozinho acabava errando muitas questões.
Célia veio à escola, mas não permitiu que eu gravasse a conversa que teríamos.
A impressão que tive nesse dia foi a de que ela estava muito desconfiada de todas nós,
158
professoras do seu filho. Para ela seria muito importante que o Joaquim passasse de ano.
Ela apontava que ele tinha tido um progresso fabuloso, que se esforçava muito, tinha
professora particular, estudava com ela mesma em casa, vinha às aulas de apoio, mais
cedo, duas vezes por semana, havia feito tratamento com fonoaudióloga e tudo isso
havia feito com que melhorasse bastante, inclusive em matemática que era o seu maior
problema. Seria para ele uma decepção enorme se, mesmo com tanto empenho, não
passasse de ano, tivesse que repetir e fazer a terceira série de novo. Fez referência ao
que nós sempre afirmávamos quando ela perguntava se ele passaria de ano ou não e
falava sobre como ele havia melhorado. Nós dizíamos que ela ficasse tranqüila,
confiasse na escola, pois nós faríamos o que achássemos que seria melhor para o
Joaquim. Ela disse então: como é que nós poderíamos saber que realmente seria o
melhor? Como poderíamos prever o seu desempenho caso ele seguisse para a quarta
série?
Quando perguntei a ela sobre o Joaquim em casa, com ela, com a família,
respondeu que ele é uma pessoa “normal”, igual às outras crianças e que dificuldade
todo mundo tem. Perguntei o que ela percebia, pelo que ele fala em casa e demonstra,
sobre o seu gosto pela escola e pelas professoras. Ela disse que ele gosta sim, que diz
gostar da escola e das professoras. Ela é que não sabe se a professora de matemática
explica ou não, diz que exercícios sem corrigir e que dessa forma ela não pode
ajudar. Na sala de aula ela diz que ele é um menino quieto, pois nunca recebeu queixa.
Afirma que ele é “normal”, gosta de brincar de bola, gosta de natação e que ela passa a
manhã toda estudando com ele, “puxa” muito para ele estudar.
A desconfiança que percebi ter a Célia, mãe do Joaquim com relação a nós,
professoras do seu filho, me chamou atenção. Penso que estava diante de algum dos
mitos que existem sobre a relação dos pais e mães com a escola em que os filhos
estudam. Talvez fosse melhor falar de modelos, aqueles com que aprendemos a pensar o
mundo, não na forma como é, mas com deveria ser. Era assim que estávamos tratando a
mãe do nosso aluno, quando recomendávamos que ela confiasse em nós, confiasse na
escola através de nós, nas decisões que tomávamos e tomaríamos no caso da reprovação
ou aprovação do Joaquim.
Na conversa, fazia questão de dizer que não tinha tantas razões assim para dar
todos os créditos a nós porque tinha a sua própria percepção sobre o Joaquim, sabia o
quanto ele estava melhor em vários aspectos, inclusive em matemática; sabia o quanto
ele estava se esforçando e como seria difícil para ele entender que havia valido a pena
159
todo esse esforço, caso não passasse de ano; sabia que ele é uma criança “normal”, pois
dificuldade todo mundo tem e por fim, sabia também que ela não via todos os deveres
corrigidos e, portanto, não podia garantir que a professora realmente explicava como
deveria, ela não estava lá para ver. O que ela podia ver, que eram os exercícios feitos em
aula e em casa, que ficam na pasta e no caderno, nem sempre estavam com as respostas
certas, logo, no seu entendimento, não estavam devidamente ensinados.
Naqueles dias, pensei bastante no que disse a mãe do Joaquim com relação à
confiança que nós cobrávamos que ela tivesse na escola. Pensei também, de maneira um
tanto indignada, admito, nas tentativas que ela fez de seduzir a professora, a
coordenadora, a outra professora de apoio, com ofertas de serviços e presentes.
Entretanto, as relações das mães com as professoras e com os outros profissionais da
escola não se caracterizam todas da mesma forma. Elas variam muito e são inúmeros os
fatores que determinam essa variedade. Além do mais, essa interpretação que faço da
sua atitude de tentar agradar aqueles que tinham relação com o seu filho e podiam, no
seu imaginário, influenciar na decisão a ser tomada, é, como disse, uma interpretação.
Não podemos tomá-la como certa e nem supor que não existam outras possíveis. A mãe
do menino poderia, por exemplo, querer ser gentil, agradecer o cuidado com ele e etc.
Essa mãe demonstrava não se conformar com a possibilidade de reprovação do seu
filho. Aparentemente, não aceita os seus limites. Mas ela comparece à escola todas as
vezes que é chamada e procura atender todas as solicitações que são feitas. Tem,
portanto, um comportamento que agrada os profissionais da escola, atende as suas
expectativas. No entanto, essa não aceitação dos limites do seu filho, da possibilidade
dele ser reprovado e as críticas que faz à professora parecem contraditórios a esse
comportamento. Pois, ao mesmo tempo em que é solícita e aceita as indicações e
orientações que são dadas, o que implica reconhecimento do problema e exige certa
confiança nos profissionais que trabalham com o Joaquim, não aceita a decisão de
reprová-lo que eles mesmos podem tomar.
Por outro lado, existem aquelas mães, assim como pais também, que aceitam
e/ou se conformam com uma situação como essa. Fazem dessa maneira por que confiam
na escola, nos seus profissionais? E se confiam, por que uns confiam e outros não? Do
mesmo modo que na história que conto, são inúmeros e variados motivos que os
colocam nessa condição. ainda, entre os que não se conformam, outros tipos de
reação: os que culpam o próprio filho, os que culpam a escola, os que se desesperam.
Talvez, todos nós fôssemos capazes de lembrar de algum comportamento desse tipo.
160
Como praticantes da escola, conhecemos algumas tramas que se constituem com essa
questão e temos até condições de antecipar alguns de seus possíveis desfechos. Esse é
mesmo um problema, pois envolve a nossa complexidade como ser humano: o
relacionamento dos pais e mães com a escola e a multiplicidade de reações à reprovação
ou à sua iminência. Ele se torna um problema ainda maior se deixamos de considerar
essa realidade e buscamos estabelecer relações lineares entre os fatos, levantando causas
e conseqüências para eles e a partir daí queiramos transpor de uma situação para outra
decisões tomadas, atitudes e comportamentos adotados. Ainda que tudo indique que
uma determinada alternativa é a melhor porque ela trará umas e outras circunstâncias e
condições que consideramos mais favoráveis aos sujeitos envolvidos, os processos e
esses sujeitos complexos podem alterar os fatores implicados, envolver outros antes não
presentes e aquela indicação da melhor alternativa pode não se confirmar. Nunca
poderemos ter certeza sobre as implicações da decisão tomada, somente quando ela se
realizar concretamente na vida.
Outra discussão importante que essa história suscita é sobre a participação dos
pais e mães nos processos decisórios da escola. Por que não poderíamos considerar os
saberes que a mãe do Joaquim tinha para pensar na questão da aprovação do seu filho?
Ainda que pudéssemos avaliar que as idéias que apresentava como saberes fossem
maneiras dela se proteger, que não aceitava nem os limites dele, nem a hipótese da
reprovação, por que não considerá-las como fios a serem incluídos no tecido que
envolveria uma decisão final? Talvez porque estivéssemos observando que ela, como
mãe, falava com o coração e para nós, essa é uma questão em que não se pode misturar
razão e emoção. Talvez porque achássemos que ela devesse confiar totalmente em nós,
imaginando que estamos acima de qualquer suspeita, isentas de qualquer julgamento,
livres de qualquer erro porque temos o conhecimento sobre os processos que se
desenvolvem na sala de aula e na escola, portanto, temos autoridade para decidir
sozinhas sobre eles. Essa é uma decisão que envolve, de forma muitas vezes marcante, a
vida de uma criança que vive com os seus pais, é educada e cuidada por eles e, nessa
questão, por sua mãe, que conhecemos, que vem à escola sempre que solicitada, que
procura os especialistas quando a escola recomenda, que estuda quase todas as manhãs
com o menino, que olha o seu material e acompanha através dele, o trabalho que se
desenvolve na sala de aula. Quem pode decidir sobre essa questão, a professora,
conjugando todos os dados que ao longo do tempo vai colhendo com os que trabalham
com o aluno, nos trabalhos que ele faz, com tudo que diz e é na sala de aula? Somente
161
ela, sem ao menos dialogar com esses saberes que vêm de casa, da família, como a mãe
reivindica?
No meu caso, e isso chegou também a ser objeto de uma das conversas que tive
com a Vanessa sobre esse assunto, esse encontro com a Célia, mãe do Joaquim, foi
determinante. Com ele, pus-me a pensar que poderíamos considerar sua percepção sobre
a impossibilidade de anteciparmos qual seria o desempenho do Joaquim na quarta série
e também que se havia dúvida é porque ele demonstrava que suas aprendizagens não
eram insignificantes, se fossem já estaríamos certas da sua reprovação.
Essa questão da participação dos pais na escola é bastante polêmica. Os diversos
pontos de vista e interesses dos grupos e dos sujeitos que a praticam estão
permanentemente em jogo. Há, portanto, nessa rede de interações, tensões e conflitos
sempre presentes, pois na lógica do pensamento dominante, os saberes são
hierarquizados e a legitimidade técnica é politicamente conferida àqueles saberes
chamados científicos e, em contrapartida, os saberes práticos e cotidianos são
considerados inferiores, havendo muito poucos espaços-tempos de diálogo e de debate
entre concepções distintas de conhecimento e entre os processos de sua validação
social (Alves, 2002, p. 63).
Nossa pretensão não é a de chegar a uma conclusão sobre a questão, mas de
participar dessa reflexão procurando encontrar a legitimidade que esse outro tipo de
saber que chega através da mãe do nosso aluno pode ter. É também a de romper com
essa lógica do pensamento dominante buscando horizontalizar as relações entre os
diversos saberes, afirmando que é possível colocá-los em diálogo, potencializando o
conflito entre eles naquilo que pode ser chamado de colegiado de saberes, onde as
redes de saberes sobre a escola vão sendo tecidas permanentemente (id.ib., p.68). Essa
ação e reflexão trazem uma perspectiva mais democrática e emancipatória para as
relações, pois envolvem o respeito mútuo dos múltiplos poderes, saberes e fazeres
presentes em cada unidade escolar (id.ib., p.63). Elas criariam espaço para que
percebêssemos de outra maneira as idéias que a mãe do nosso aluno apresentava. Essas
idéias poderiam, dessa forma, participar dos sentidos que atribuíamos aos processos
escolares vividos pelo Joaquim e ajudar na decisão que tínhamos que tomar.
162
163
III. E a vida na escola vai acontecendo e nos surpreendendo
No desenvolvimento desta pesquisa, o estudo da vida cotidiana das salas de aula,
caminhando pelas rotas dessa complexa trama, procurei exercitar, como sugere Pais
(2003), uma percepção dinâmicadas realidades. As surpresas tidas com todas aquelas
histórias, foram muitas. E se surpreender é um conselho que, outra vez, Pais para
seus alunos, acreditando que com ele, possam se tornar capazes de teorizar de forma
mais adequada em seus estudos sociológicos qualitativos:
Deixem-se surpreender! O importante é o cultivo da curiosidade
em relação àquilo que nos rodeia: a vida das pessoas que nos são
estranhas, as suas formas de entenderem a realidade e os
sentidos que a essa realidade dão não são necessariamente
coincidentes com as do sociólogo (p.146).
Compreender o que se passava no apoio, as práticas que se desenvolviam,
estabelecer entre elas relações e delas com as práticas das salas de aula, assim como de
outros espaços-tempos que com elas se articulam, era um dos objetivos dessa pesquisa.
Potencializar os conhecimentos que em rede são produzidos pelos sujeitos, nós,
professoras, nossos alunos, seus pais e mães e outros e evidenciar suas possibilidades
emancipatórias também.
Pois bem, pude notar que os alunos e alunas que faziam parte dos grupos do
apoio e que tinham aulas fora do seu horário – antes ou depois – em geral, não gostavam
desse pertencimento, não se sentiam contentes por estarem ali. Todos demonstravam
vontade de sair desses grupos e falavam disso sempre que tinham oportunidade. Os
motivos que os levavam a ter esse desejo eram vários: os colegas riem, debocham,
falam que eles são “burros”; eles mesmos, em alguns casos, têm sobre si esse
sentimento também; percebem que as professoras, em algumas situações, os têm como
menos capazes que outros; em casa, os pais e mães ficam decepcionados com eles, às
vezes os castigam, privam de presentes, passeios; sentem-se cansados quando têm de
sair de casa mais cedo ou chegar mais tarde por causa da aula de apoio; a família ou
aquela pessoa a quem a família confia a tarefa de levar e buscar na escola tem de criar
condições excepcionais na rotina do dia, pois o horário é diferente e isso nem sempre é
fácil. Porém, nenhum desses motivos impedia que estabelecessem boas relações
comigo, com os colegas e com as aulas. O que eu percebia é que essas boas relações
164
dependiam mais de outros fatores: a maneira como os tratava, a confiança que
demonstrava ter neles, as aulas mais ou menos interessantes e etc.
Os alunos e as alunas que eram atendidos no apoio durante o seu próprio horário,
saindo da sala ou contando com a presença da professora mesmo, também
demonstravam desejo de não pertencer a esse grupo, mas pareciam ter mais animação
para irem às aulas. Quando ia buscá-los, freqüentemente havia um movimento de outros
alunos da turma querendo ir junto com os colegas e comigo. Aparentemente, essa aula
implicava menos incômodo para eles e para as famílias, não precisavam chegar mais
cedo ou sair mais tarde e essa era uma das razões para a animação. Outros motivos
pareciam ser: podiam sair da sala para fazer algo diferente do que os outros colegas
faziam com a sua professora; se “desligavam”, por um tempo, daquilo que estava
acontecendo lá e arriscavam participar de uma aula até “mais legal” do que a que
teriam, o que gerava nos outros uma certa “inveja” e curiosidade. Para alguns, isso
funcionava, inclusive, como uma compensação de um outro sentimento, que os fazia se
perceberem menos capazes do que os colegas que não são do apoio, pois, mesmo se
julgando menos prestigiados por estarem com um mau desempenho, de acordo com as
normas da escola e por não estarem se saindo bem nas atividades, eles tinham a aula
comigo e a avaliavam como “vantagem” sobre os demais. Ainda podiam ter uma
sensação agradável gerada pelo fato de que, saindo da sala, eles não precisariam estar
numa aula em que, algumas vezes, não se saíam bem, numa aula “difícil” para eles,
no apoio, viveriam uma situação de sucesso possível.
Muitas vezes, quando conversávamos e eu perguntava se sabiam por que
estavam ali, diziam que precisavam das aulas. Pareciam responder aquilo que
imaginavam que eu quisesse ouvir. Afirmavam reconhecer que o apoio era bom para
eles, que os ajudava a melhorar. Entretanto, seu sentimento de se acharem piores que os
outros não mudava com essas afirmações, continuavam resistentes a terem de pertencer
ao grupo. E quando freqüentavam mais de um grupo, o de matemática e o de língua
portuguesa, permaneciam no apoio durante o ano inteiro, ou ainda durante todos os
anos, isso se agravava ainda mais.
Mas esses sentimentos estavam enredados a outros que experimentavam nesse
espaço-tempo complexo, os de alegria e satisfação pelo sucesso que tinham, quando
tinham, pelo cuidado de que usufruíam, pelo atendimento às necessidades que viviam.
Em muitas conversas que tive com as suas professoras eram evidentes as diferenças de
avaliação que tínhamos sobre as crianças. Em interação com elas, individual ou
165
coletivamente, tinha condições mais propícias de perceber o que pensavam e sentiam,
porque estávamos em menor quantidade e os alunos sabiam dessa minha intenção de
melhor conhecer seus pensamentos e sentimentos, pois eu a explicitava. Essas
circunstâncias das aulas de apoio definiam mais um aspecto de seu potencial
emancipatório, pois, em relações menos hierarquizadas, mais dialogadas, os
conhecimentos dos alunos se evidenciavam mais facilmente e muitas vezes, passavam a
participar da avaliação geral que era feita sobre o seu desempenho pela sua professora.
Na sala de aula, com toda a turma, os procedimentos que, na maioria das vezes, nós
professoras, adotamos são massificados, são para todo o grupo. No apoio,
possibilidade disso acontecer de outra maneira, pois no grupo menor, a maior
proximidade estabelece melhores condições para que sejam viabilizadas relações menos
hierárquicas e mais atentas às singularidades.
Detenhamo-nos nos diversos motivos que levavam as professoras a indicarem os
alunos para as aulas de apoio. Em alguns casos, elas buscavam oferecer mais uma
oportunidade de aprendizagem aos que julgavam não estarem bem, não terem aprendido
ainda esse ou aquele conteúdo ensinado. Essa oportunidade envolvia aquelas
condições diferenciadas em relação às que tinham na sala de aula: estariam com outra
professora, em outro espaço-tempo, participando de atividades distintas, em grupos com
menos alunos, portanto, podendo contar com mais atenção da professora, enfim,
maiores e melhores oportunidades de aprender. Em outros casos, as professoras
julgavam que alguns dos seus alunos e de suas alunas tinham alguma dificuldade de
166
aprendizagem e precisavam de um reforço, de uma ajuda para superá-la. Ainda havia as
situações em que avaliavam faltarem conteúdos a algumas crianças, considerados por
167
inclusive de uma maneira que outros alunos também ouviam. Achavam, e era isso que
falavam, que a situação deles em relação ao rendimento não era boa, logo, não podiam
“relaxar” com o cumprimento deveres.
Algumas professoras falaram sobre isso nas conversas que tivemos e até riram
de si mesmas, pois ao falar, perceberam que esse comportamento parecia uma
contradição. Sua intenção era a de melhor cuidar dos alunos do apoio e das suas
necessidades, contudo reconheciam que havia, nessa maneira de cuidar, implicações que
atuavam em outro sentido, pois alguns alunos se constrangiam e se intimidavam com
esse tipo de colocação. Disseram, então, quando falávamos sobre como percebiam os
alunos do apoio na sala e, se quando planejavam as aulas, pensavam, especialmente,
neles:
Cristina:
As crianças do apoio, eu acho que não faço muito... Apenas
assim, faço muitas perguntas, quero sempre que estejam
respondendo, estou sempre olhando. É como se fosse assim uma
perseguição (rindo), acho que mais que do que uma ajuda,
porque eu toda hora: “Fulano e Fulano e Fulano”, assim.
Porque acho que poderia levantar mais a auto-estima, ficar mais
feliz com os acertos. Acho que falta isso assim... Acho que
algumas vezes acertava, valorizava e elogiava, mas acho que eu
fico muito no afã dele corresponder e um pouco acho que perco a
questão do afetivo, apenas quero que eles fiquem na frente, quero
ver caderno, quero fazer perguntas, quero ver se fez o dever de
casa, mas... Não sei, poderia ter alguma estratégia melhor que
eles se envolvessem mais que se sentissem mais felizes. Talvez
tanta pergunta, tanta pergunta, não sei até que ponto eles
conseguem responder, poderia ser pior né? Poderia estar..., mas
eu vi crianças crescendo, eu vi crianças querendo acompanhar
isso: Pedro, Ramon, foram crianças que, vamos dizer, não se
intimidaram com a minha coisa de ficar puxando. Na “6”, o
Ramon, o Pedro, o Raul não se saiu muito assim, se oferecia
um pouco pra fazer as coisas, mas acho que eu poderia dar um
retorno maior do sucesso que eles estivessem tendo. Na 6” eu
acho que o Tiago, eu ajudei muito pouco...
Cristina:
Bárbara e Ana foram umas das que correram atrás e entraram no
ritmo, se é pra responder “vam´bora”. Agora, também não dou
destaque àquele “inteligentão” não, também não tem isso; de que
é o melhor pra mim, “que bonitinho que você é, que
organizadinho” sabe, também não tenho essa coisa de ah!
Prefere quem estuda, quem faz o trabalho... Pra mim não faz
mais que a obrigação ele estar aí respondendo tudo.
168
Lourdinha:
É, eu acho que criança do apoio eu vejo que eu tenho que ter uma
atenção maior em determinados detalhes que talvez em outros eu
não fique tão... Aí, isso se traduz numa cobrança maior. Se está
na frente, fez, escreveu, como é que está a letra, como fez isso,
consertou os erros? E com outras crianças que a gente já não tem
tanta preocupação, às vezes até vai passando...
Cristina:
Mas o que acontece é assim, eu me sentia planejando para a
turma, na verdade eu não parava para pensar neles e o que
acontece é que o resto da turma, muitas vezes, ficava esperando,
muitas vezes, não ia para frente porque aquele grupo não
correspondia, essa é a verdade. Aí, não sei se seria um trabalho
diversificado, mas não tinha muito tempo para um trabalho
diversificado, sei lá...
Lourdinha:
Eu não acho que fosse uma diferença a ponto de precisar de um
trabalho diversificado, eu tive turmas em que isso era mais
gritante... Essa diferença.
Cristina:
Mas na “8”, eu achava. Eu achava que o Lucas, Francisco,
Bárbara... Quem mais? O próprio Felipe, eles precisavam, acho
que ali precisava de um trabalho diversificado.
Lourdinha:
Acho que em relação a espaço de se colocar, isso eles tinham
igualmente aos outros é... Não sei, acho que, às vezes, alguns
comentários eu pudesse não ter feito, assim, sobre trabalho.
Cristina:
“Logo você que está precisando mais!”
Lourdinha:
(risos) É acho que alguns comentários (risos)
Cristina:
Você acha que pode fazer isso? Você acha que tem condições de
agir assim?
169
(risos)
Isso é horrível, gente, devem ficar traumatizados para o resto da
vida.
(risos)
Demonstravam o quanto sabiam que nem tudo o que faziam, correspondia ao
que gostariam ou mesmo entendiam que deveriam fazer. Agiam da melhor maneira
possível, exercitando a virtude da coerência que vai diminuindo a distância entre o que
dizemos e o que fazemos, difícil, mas fundamental ao educador progressista no
pensamento de Paulo Freire (1992, p. 80).
Os conteúdos escolares escolhidos para serem ensinados-aprendidos são, em sua
maioria, sugeridos pela coordenação pedagógica que segue, prioritariamente, o
programa das disciplinas registrado no projeto-político-pedagógico do colégio sob a
forma de competências a serem desenvolvidas pelos alunos. Em algumas poucas
situações, fazem também sugestões de acordo com o que julgam necessário para a série.
Algumas das atividades realizadas nas aulas ou em casa pelos alunos, são propostas pela
coordenação, mas muitas delas são planejadas pelas próprias professoras,
principalmente pelas mais experientes na série. Para essa elaboração, procuram observar
o interesse das crianças por determinados assuntos e também por formas mais
envolventes, participativas e dinâmicas de estudá-los. Não participação dos alunos e
das alunas na escolha dos conteúdos. Algumas vezes, com algumas professoras, essa
participação existe nas escolhas das atividades. O planejamento da série é geral. Não
diferenciações entre turmas e, dentro delas, entre alunos ou grupo de alunos. Nas salas
de aula, o tratamento diferenciado por conta das necessidades específicas, também
diferenciadas concentra-se na forma como as professoras os tratam, acompanham o que
fazem e intervêm nesses fazeres.
Essas formas de proceder das professoras geram, em algumas situações, com
algumas crianças, um sentimento de constrangimento, pois nos momentos em que elas
reservam apenas aos alunos do apoio a possibilidade de responderem as perguntas que
fazem nas aulas, esses se vêem “pressionados” a terem de responder corretamente, sua
sensação é a de que é essa a expectativa de todos ali, colegas e professora. Alguns
chegam a ficar por um bom tempo silenciosos na falta de uma resposta ou na dúvida
sobre o que seria correto dizer, o que acaba fazendo com que a professora peça a
resposta a outro aluno.
170
Entretanto, era possível perceber que a maioria desses alunos e alunas que
faziam parte dos grupos do apoio viviam o seu dia-a-dia como vivem os outros colegas:
brincam, se relacionam, estudam... As situações de constrangimento se davam quando o
conhecimento escolar estava em questão: na hora dos deveres, da correção desses
deveres, das provas, testes e etc. Nos momentos de brincadeira com os colegas, existia
sim a formação de grupos e até algumas situações de discriminação na formação desses
grupos, mas, o critério: “desempenho escolar” era absolutamente secundário para se
juntarem, serem amigos ou fazerem algo juntos. O que parece é que, fora raras
exceções, os alunos têm consigo recursos de várias ordens para lidarem com as
situações, inclusive aquelas adversas, as que trazem sentimentos de constrangimento,
logo, de sofrimento também. Esses recursos são gerados no decorrer da sua própria vida
que vai sendo tecida nas suas interações com os sujeitos, com os conhecimentos, os
sentimentos, com o mundo enfim. São as suas formas de viver, as suas maneiras
astuciosas de praticar os espaços, os tempos, as relações com os sujeitos e com as
aprendizagens. Como ensina Certeau (1994), eles não são consumidores passivos do
que lhes é oferecido: as normas, as regras e os artefatos culturais que circulam naquela
escola, entre aquelas professoras e aqueles colegas. Deles fazem seus usos próprios, o
que tende a lhes propiciar experiências mais favoráveis.
Isso não significa que os processos vividos nesses espaços-tempos do apoio e
nos que a ele estão relacionados, quando não favoráveis aos alunos e às alunas, aqueles
que podem ocasionar outros processos, os de “exclusão includente”, sejam desprezíveis
e possam estar sob o nosso “olhar normalizador” como nos alerta Gentili (2001). Notá-
los, atribuir ao que dizem os sujeitos sobre o que vivem, o que sentem e o que sabem a
relevância devida, realizar leituras em diálogo com eles, como busquei fazer aqui neste
trabalho e como as professoras buscam fazer no cotidiano, é importante, no meu ponto
de vista, para a compreensão da trama que se forma com as diversas dimensões
envolvidas nesses processos. Essa compreensão tecida com as práticas e o que os
sujeitos dizem sobre elas, imagino eu, pode ampliar as nossas possibilidades de ações
emancipatórias com esses espaços-tempos das salas de aula sejam elas do apoio ou não.
Isso porque estaremos potencializando as invenções que se realizam no cotidiano e
como essas invenções buscam saídas para as situações reguladoras que limitam e
oprimem os sujeitos individuais e coletivos que nela se encontram, nessa busca, elas
tecem redes criativas e solidárias. As relações interpessoais são um exemplo disso.
Como disse, em geral, os alunos e as alunas dos grupos do apoio ou não, formando
171
pequenos grupos ou envolvendo toda a turma, se juntam para tecer a vida brincando,
conversando, estudando, lendo, representando, dançando, desenhando, produzindo
piqueniques, festas, peraltices e etc. Nessas relações, eles vão desenvolvendo, em rede,
os seus saberes e valores, entre eles, os de amizade, de solidariedade, de criatividade, de
imaginação e de beleza, fundamentais para agirem taticamente nas situações adversas
ou não. As situações adversas não são, portanto, tudo o que na vida deles. O que
vemos é que alternativas possíveis para elas que estão sendo criadas no cotidiano e
não podem ser desperdiçadas, como diz Santos (2002). Apesar de, às vezes, essa
situações adversas serem “naturalizadas” pela nossa maneira de percebê-los,
classificando-os, tendo-os como menos capazes que outros, por conta das suas formas
particulares de aprender ou mesmo dos seus limites, quando eles existem.
Os pais e mães desse grupo de alunos eram também bastante cobrados pelas
professoras. Elas esperavam que eles fizessem um acompanhamento da vida escolar dos
seus filhos, pois concebiam esse fator como mais um dos que determinavam o baixo
rendimento desses alunos. No seu entendimento, muitos desses responsáveis deixavam
de cumprir com essa responsabilidade, que não davam assistência em casa para que
os alunos e as alunas fizessem os trabalhos, as pesquisas, as leituras e etc, ou permitiam
que fossem para as aulas sem os deveres prontos, que faltassem ou chegassem
atrasados.
Entre os pais e mães, o que pude notar, foi que a maioria tem preocupação com
os filhos, com o seu desempenho escolar por várias razões: não querem que se saiam
mal, querem que cumpram com os seus deveres de estudantes, querem que “passem de
ano” e aproveitem a “boa” escola em que estudam. Na medida de suas possibilidades e
em alguns casos, tentando ultrapassar os limites que elas impõem, com “sacrifícios”,
agem no sentido de que seus filhos tenham sucesso. Acompanham a sua vida escolar
eles mesmos, quando podem e quando se acham capacitados para tal. Procuram
médicos, psicólogos, fonoaudiólogos, psicopedagogos para obterem ajuda, por sua
própria iniciativa, ou quando as pessoas na escola solicitam. Matriculam os seus filhos
em atividades esportivas, às vezes também sob recomendação dos profissionais da
escola. Levam e buscam as crianças para as aulas de apoio em horários diferentes
daquele de todos os dias e quando não podem encarregam alguém de fazê-lo. E por fim,
inscrevem-nos em aulas particulares ou cursos que se propõem a ajudá-los a se saírem
melhor na escola, ajudando a superarem possíveis dificuldades nas disciplinas. Os pais e
as mães dos alunos, vão produzindo, nas suas práticas, os seus conhecimentos sobre a
172
vida escolar dos filhos. Eles têm os seus pensamentos, formulados individual ou
coletivamente, sobre o que fazem a administração do colégio e da unidade, as
coordenadoras, as professoras e os outros funcionários. Da mesma forma, sobre o que se
ensina e aprende, além das maneiras como isso acontece. Pensam também sobre os
comportamentos de seu filho ou sua filha e como eles se relacionam com as pessoas,
com as aprendizagens e com a vida na escola e fora dela. Enfim, eles participam das
redes das salas de aula e dos conhecimentos que são tecidos também em rede por elas.
Mesmo que, como professoras, tentemos em algumas situações, colocar “cada
qual em seu lugar” e “cada conhecimento em seu lugar” também, eles estão
entrelaçados, articulados, mais ou menos, aqui ou ali, na diversidade característica das
interações sociais, mas, inevitavelmente enredados. Não é possível isolá-los, pois, de
alguma maneira eles participam das redes das salas de aula. Entretanto, se as práticas e
os conhecimentos que elas produzem são reconhecidas e valorizadas, elas podem nos
ajudar a compreender mais e melhor o que se passa nas salas de aula de apoio ou não, os
processos pedagógicos vividos pelos pee,( )-270ul2(vi)-2(dos)-(o )-150(pr)3(of)3(e)4(s)-1(s)-1(or)3.-2(dos)A(. )-90(al)-2(e)4(26)-10(o )-1, os
173
Algumas professoras cuidam do espaço da sala de aula procurando fazer com
que sejam ambientes bonitos, agradáveis e estimulantes para as aprendizagens que ali se
dão. Tiram fotografias de momentos especiais da vida da turma, como passeios, festas,
algumas atividades excepcionais, ou até mesmo daquelas mais comuns, as que fazem
quase sempre no seu dia-a-dia. Escrevem com os alunos ou apresentam a eles textos que
possam ser de interesse da turma, juntam a fotos e/ou desenhos dos alunos e organizam
murais para comunicar e divulgar essas produções ou somente para embelezar a sala.
Outras, se colocam sempre atentas ao estado emocional dos alunos e alunas,
conseguindo notar quando algo não vai bem com eles. Ainda aquelas que,
intensamente, pensam em atividades, temas, passeios, surpresas para envolver, alegrar e
agradar os alunos. Cada uma a seu modo, vamos vivendo todas as dimensões da nossa
constituição como sujeitos e nos relacionando com os alunos em todas essas dimensões:
emocionais, cognitivas, profissionais, políticas, éticas, estéticas e outras mais.
Os alunos e as alunas vão vivendo a vida e a escola, como parte desse viver, com
tudo que ela é e tem. Conforme as suas necessidades e desejos, essa parte das suas vidas
vai tomando maiores ou menores proporções, tudo isso, dinamicamente, no fluxo da
vida que não pára, que é constante movimento. Alguns alunos dedicam mais atenção
quando determinados assuntos os interessam e mobilizam mais, alguns outros por
identificação com a(s) professora(s) ou mesmo com a sua profissão, outros ainda pelas
cobranças feitas pelos pais, as mães e as professoras. Sua relação de carinho com a
professora depende muito de como são tratados, cuidados, atendidos, mesmo que ela
seja exigente com eles. Não parecem cobrar que as manifestações dessa atenção e
cuidado sejam constantes, aconteçam o tempo todo, com gestos e palavras em todas as
situações. Perceber que esses sentimentos existem é suficiente para que tenham carinho
por elas.
Desde os primeiros contatos, professoras e alunos acabam desenvolvendo uma
certa “intimidade” pelas características que essa relação tem. Encontram-se, nessa
escola, quatro dias da semana, metade da tarde ou da manhã, além das aulas de apoio
para alguns; as professoras acabam sabendo ou procurando saber da sua vida fora da
escola; muitas vezes sugerem às famílias ações para essa vida: ida ao médico ou outros
profissionais de saúde, práticas de esporte ou outras atividades que possam significar
um bem-estar para a criança e, imaginam, melhores condições para que o seu
desempenho escolar seja o melhor possível. Tudo isso, acaba criando certos laços e
contribuindo para desenvolver determinados sentimentos de uns para com ou outros.
174
São também perceptíveis aos alunos e às alunas, quando as professoras demonstram ter
com eles e com o trabalho que desenvolvem, comprometimento e seriedade que, muitas
vezes, retribuem, demonstrando atenção, carinho e alegria.
As professoras agem conforme as circunstâncias, dentro das suas possibilidades
de ação. Lidam com as regras, as normas e as prescrições da escola taticamente,
inventando maneiras próprias de usá-las. Suas práticas não são determinadas por essas
normas e prescrições, mas pelas redes de sujeitos que as constituem ao longo de seu
tempo de formação, ou seja, da sua vida nos vários espaços-tempos por onde passaram.
Tudo isso no fluxo permanente das relações cotidianas que se estabelecem entre elas e
os alunos, os pais e as mães, os outros profissionais da escola e os demais sujeitos que
participam dessas redes que se formam nas e com as salas de aula.
Os espaços e os tempos das salas de aula, como evidenciam as histórias que
contei e os caminhos em busca da compreensão que percorri em meio às práticas
cotidianas dos sujeitos dessas histórias, são demasiadamente complexos, dinâmicos e
incontroláveis para elaborarmos sobre eles qualquer explicação totalizante ou prescrição
que a ela se associe.
Nas aulas de apoio ou nas salas de aula das turmas, podemos notar quantos
valores, conhecimentos e sentimentos estão em conflito e em interação. A minha
intenção nessa pesquisa e dissertação não foi de analisá-los, avaliá-los como bons ou
maus e ao final recomendar alguns, excluindo outros. Procurei reconhecer aqui, como
fazem Alves e Oliveira (2002), as redes de saberes, de fazeres e de poderes que se tecem
justamente nessa complexidade e evidenciá-las em todo o seu potencial transformador e
emancipatório, podendo ser afirmadas como caminhos possíveis para a superação de
problemas que enfrentamos no cotidiano como professoras, como alunos e alunas, como
pais e mães, como sujeitos da escola enfim.
Foi possível notar que circula entre esses sujeitos a idéia de incapacidade ou de
limite para aprender de alguns e o quanto essa idéia é um obstáculo para o desenrolar da
vida desses mesmos sujeitos na escola, que ela traz para os processos pedagógicos,
quando tida como princípio na relação com eles, empecilhos para o seu sucesso. Com
essa idéia, inviabiliza-se, pelo menos parcialmente, a realização do direito a um
percurso fluente e de sucesso na escola para todos, que está vinculado a um dos
princípios de democratização da educação escolar, o da permanência.
O apoio é o espaço-tempo destinado, nessa escola, às crianças que a organização
escolar identifica como os que têm esses limites; é onde se vai procurar suprir as suas
175
carências, aplacar as suas “dificuldades”. É nele que a escola busca preservar seu “bom
nome”. Ninguém pode acusá-la de nada fazer para dar conta das aprendizagens desses
alunos. No cotidiano das salas de aula, onde estão todos juntos, professoras e alunos, os
do apoio ou não, uma certa prevalência dos procedimentos destinados à turma como
um todo, ao conjunto dos alunos. As coordenadoras junto com as professoras, elaboram
os seus planejamentos e preparam as suas aulas para esse conjunto, não nenhum
conteúdo ou atividade pensada, particularmente, para os alunos do apoio. Porém, é
importante destacar que no cotidiano das aulas de apoio ou não e nas redes que eles vão
tecendo, encontramos vários outros procedimentos não massificados, tanto de alunos
como de professoras, que buscam nas singularidades, nas particularidades, as
alternativas possíveis para a superação dos obstáculos. Apesar de, para alguns,
constrangedora, a ação da professora que chama cada um desses alunos a participar,
destacando essa participação, elogiando, corrigindo, fazendo proveito dos pensamentos
que expressam tem, claramente, a intenção de particularizar esses procedimentos e
cuidar das necessidades que eles apresentam.
A observação constante na sala de aula e algumas formas de tratamento com os
pais e mães, também para alguns excessivamente reguladora, é outra expressão desse
cuidado e podem evidenciar caminhos emancipatórios possíveis. Essas ações inventam
novas maneiras de relacionamento com a idéia de que aqueles que não sabem e não
têm capacidade de saber como a maioria. Além disso, são também ações que
reconhecem e valorizam os conhecimentos criados pelos sujeitos, no cotidiano. A
promoção do diálogo na sala de aula onde se torna possível o desenvolvimento de
relações mais horizontais e menos hierarquizadas que percebem e não discriminam os
sujeitos pelas suas individualidades é mais uma dessas ações que inventam maneiras
mais democráticas e, portanto, mais emancipatórias de vivermos.
E como as ações táticas dos praticantes da escola podem ir transformando as
realidades, essas das professoras junto dos seus alunos enredadas podem desestabilizar a
naturalidade como, muitas vezes, as diferenças entre os alunos são percebidas, não
como diferenças, simplesmente, mas como desigualdades porque inferiorizadas.
Atribuir às diferenças o sentido de singularidades, sem classificá-las, sem conferir a elas
um juízo de valor, ajuda a desestabilizar, também, algumas maneiras como é visto e
tratado o espaço-tempo do apoio, assim como outros procedimentos e idéias pouco
democráticos e emancipatórios na escola. Poderíamos falar de alguns com que fomos
nos deparando no decorrer desta pesquisa, apresentados nas histórias narradas: a
176
superioridade atribuída aos saberes considerados científicos, “verdadeiros
conhecimentos” sobre os outros tipos de conhecimentos: os chamados de senso comum,
os saberes da prática cotidiana; a superioridade dos sujeitos a quem se atribui a posse
desses verdadeiros conhecimentos, sejam as coordenadoras em algumas relações ou as
professoras em outras, sobre os outros sujeitos portadores dos outros tipos de
conhecimentos pouco legítimos porque não científicos, os alunos em algumas relações e
os pais e mães em outras. Ainda poderíamos trazer a forma como são feitas as escolhas
para a organização do currículo formal: os conteúdos que são julgados fundamentais, as
opções metodológicas, as atividades selecionadas para o dia-a-dia e, além da forma, o
próprio conteúdo e as concepções de aprendizagem.
Nas relações aqui evidenciadas entre as professoras, a estrutura administrativa e
pedagógica da escola e alguns pais e mães, muitas vezes, percebemos o esforço desses
responsáveis pelas crianças, como se diz na escola
28
, no sentido de participar da vida do
filho ou da filha e contribuir com o sucesso de suas experiências escolares. Percebemos,
também, o valor que atribuem aos profissionais e à escola como tal. Esses movimentos
nem sempre são considerados pelas professoras quando elas cobram deles uma atuação
mais efetiva que elas acreditam poder contribuir e até determinar o alcance dos
resultados que buscam obter com os alunos. Outras realidades, nem sempre
consideradas, são as impossibilidades que têm os pais e as mães de alterarem a sua
própria condição econômica, social e cultural, que lhes daria as condições imaginadas
como necessárias para oferecerem aos seus filhos a ajuda que as professoras e/ou a
estrutura administrativo-pedagógica da escola esperam. As perguntas que faço diante
desses conflitos e tensões são: os pais e mães têm como ajudar? Sua escolaridade é
suficiente? Entendem a linguagem da escola? Suas condições reais de vida permitem? E
ainda: mesmo que aos pais fosse possível mudar, esse é o movimento que precisa ou
que deve ser feito para viabilizar a efetivação das aprendizagens esperadas? O baixo
rendimento dessas crianças, segundo as normas da escola, está de fato relacionado com
o comportamento dos pais e mães ou outros responsáveis?
Não é possível e nem desejável chegar a respostas simplistas ou explicações
totalizantes sobre essas realidades porque elas implicariam em generalizações e
tentativas de anulação da complexidade inevitável que as constituem. Mas é possível e
28
O termo “responsáveis” é usado na escola para nos referirmos àqueles que cuidam das crianças, na
família. Essas pessoas podem ser os pais, as mães, outros familiares ou, simplesmente, quem, diante da
instituição, responde pelo aluno.
177
desejável que percorramos os caminhos levantando questões e evidenciando aparentes
contradições que nos possibilitem refletir e compreender melhor as várias faces dessa
complexidade. Esse processo é, por ele mesmo, constituinte do projeto educativo
emancipatório (Santos, 1996) pois atribui aos sujeitos, aos praticantes (Certeau,1994)
das salas de aula e aos seus saberes, valores, poderes e sentimentos o lugar de
importância que devem ter nos processos de compreensão das escolas e nas propostas
de mudança que eles possam indicar, afinal, são eles que as fazem acontecer e serem o
que são.
Os alunos, nas inúmeras interações que vivem como partes dessas redes que são
as salas de aula, também estão envolvidos em processos semelhantes. Nas cobranças
que fazem as professoras porque querem que eles aprendam, estão também
desconsiderações às suas condições reais, não somente em relação aos seus saberes, mas
aos seus comportamentos, às suas ações. Como exemplo, trago a não realização dos
“trabalhos de casa” e mesmo as maneiras de fazer os “trabalhos de aula” ritmo, tipo de
raciocínio desenvolvido e etc. Muitas vezes esses comportamentos são tidos como
irresponsabilidades, falta de vontade de estudar ou desinteresse. Contudo, cabem, de
novo, algumas perguntas: são esses sempre os motivos que colocam os alunos nessas
situações? Podemos admitir a idéia de que existe uma razão para que elas aconteçam? E
se existem, podemos usá-las genericamente, para todos, como às vezes fazemos?
E em relação aos seus saberes, a idéia de que lhes falta algo que nós professoras,
as pessoas da família, os profissionais de saúde, as atividades esportivas e culturais
devemos oferecer, se sobrepondo a uma outra de que os alunos têm o que dizer, o que
mostrar, o que fazer, pois são sujeitos de conhecimento, portadores e criadores de
saberes, talvez não daqueles que lhes é exigido demonstrar, mas outros tipos de saberes,
aqueles que eles produzem no cotidiano nas interações que vivem nesse cotidiano da
escola e de fora dela. Essa produção de saberes dos alunos em geral e, em especial dos
alunos do apoio, podem ser potencializadas também como práticas de realização do
projeto educativo emancipatório já que ela altera o foco das relações de ensinar e
aprender. Não estamos pressupondo um sujeito que não tem um determinado
conhecimento e mais, alguns que têm pouca ou nenhuma possibilidade de ter e nos
propondo a ensiná-lo ou oferecer oportunidades para que aprendam. Estamos mostrando
que os alunos produzem diversos tipos de conhecimentos que, na escola, podem e
devem estar em diálogo e em conflito com outros tipos de conhecimentos, formando-
nos a todos e formando o mundo em que vivemos. Esses processos, que acontecem
178
no cotidiano, essa pesquisa e dissertação buscaram evidenciar, podendo se tornar mais
um meio de suscitar reflexões e usos que possam potencializá-los.
Que professoras, que alunos, que pai e mães são esses de quem estamos falando?
Em que circunstâncias se deram as suas ações?
As histórias dos sujeitos se entrelaçam nesse emaranhado, nessas redes de
saberes, de fazeres, de valores e de sentimentos que são as salas de aula. Onde começa e
termina a história de cada um: pais e mães, professoras, alunos, coordenadoras,
diretora? É possível saber, é possível determinar? E se pudéssemos, seria essa
determinação necessária para o que pretendemos? E a origem, a explicação para os
comportamentos de cada um desses sujeitos da escola, podemos encontrar?
Reconhecendo o limite, a impossibilidade e até mesmo a falta de razão de ser
desse conhecimento que quer a explicação causal sobre os comportamentos, podemos
buscar produzir outros tantos que possam ajudar a compreender melhor os processos
que se desenvolvem nas salas de aula e nas escolas, para podermos pensar melhor e
fazer melhor uma intervenção sobre essa realidade, tentando minimizar o que nela
parece negativo e/ou nocivo e maximizar os aspectos positivos.
Atribuindo à educação nas escolas um importante papel nas transformações que,
a meu ver, a sociedade precisa sofrer para que todos tenham direito a uma vida digna,
coloco a escola, a compreensão que dela podemos ter e as intervenções que sobre ela
podemos fazer, num lugar de centralidade, como nos sugere Alencar (2001), apesar dela
não ser a única instituição responsável por esse processo, de não depender do que
acontece nas escolas, apenas, o que acontece na vida de uma sociedade. Aprendemos
com o mestre Paulo Freire que enquanto prática desveladora, gnosiológica, a
educação, sozinha, não faz a transformação do mundo, mas esta a implica (Freire,
1992, p.32). Freire supera o
pedagogismo ingênuo, típico dos anos 60, em que se sustentava a
tese de que a escola tudo podia e o pessimismo negativista dos
anos 70 para o qual a escola era meramente reprodutora do
status quo (Gadotti,1998, p.32),
pois se não depende apenas do que acontece nas escolas, depende disso também.
As histórias dos sujeitos com quem dialoguei no percurso desta pesquisa se
entrelaçam, também à minha própria, de alguma maneira, em algum tempo-espaço ou
179
acontecimento. Esse entrelaçamento, essas redes que somos, em que estamos, que nos
constituem e que ajudamos a constituir vão formando os tecidos de compreensão que
apresento, pois são elas que contam não quem somos, o que fazemos, sabemos,
pensamos e sentimos, mas também o que dizemos sobre tudo isso que é o nosso viver
cotidiano. Os caminhos pelas redes formadas com essas histórias nos ajudam a tecer
outras e essa tessitura é que vai revelando as circunstâncias e as ocasiões (Certeau,
1994) em que as práticas são desenvolvidas, pois elas definem os modos como os
sujeitos usam as coisas e as palavras, ou seja, definem as próprias práticas (Oliveira,
2003).
Assim, o que investiguei e o que venho propondo ao longo dessa dissertação é
que pensemos em nossos processos de formação e nos processos de ser e de acontecer
das escolas como processos bastante complexos, que não se restringem a alguns
espaços e tempos e nem se dão de forma linear. Não são também meros efeitos
secundários de causas estruturais (Pais, 1993, p.110). As conjunturas em função das
quais os usos práticos, de objetos, regras e linguagens são historicamente constituídos e
reconstituídos, são plurais e móveis (Oliveira, 2003), por isso complexos, não passíveis
de análise quantitativa e nem de controle normativo (idem, p. 51).
Os trechos dos depoimentos das professoras que apresentarei a seguir mostram
parte dessa complexidade naquilo que se relaciona aos processos de formação e ao
modo de ser de cada uma. Elas contam sobre esses processos, sobre o seu desejo de ser
professora e sobre o que significa ser professora do Colégio Pedro II. Essa perspectiva
de entendermos as práticas sociais considerando que os conhecimentos são tecidos em
rede, torna possível potencializar a compreensão ampliada dos processos de formação,
porque considera que esta se dá em múltiplos espaços-tempos (Alves, 1998, 2000).
Estamos buscando compreender, então, que os acontecimentos das salas de aula,
nossos comportamentos como professoras, de nossos alunos e de outros sujeitos dessas
redes, as relações que estabelecemos, as práticas sociais que observamos e vivemos,
enfim, não são passíveis de análise para chegar numa explicação que, identificando uma
ou mais razões em sua origem, indica as soluções dos problemas existentes. Esse tipo de
explicação é insensível às pluralidades disseminadas do vivido, ergue fronteiras entre
os fenômenos, limitando ou anulando suas relações recíprocas (Pais, 1993. p. 110)
Essas práticas são tecidas em redes de muitos fios: espaços, tempos, sujeitos e
experiências diferentes, que constituem os valores, as idéias e os sentimentos que
informam essas mesmas práticas.
180
As professoras disseram:
Rossana:
Eu queria ser professora, todo mundo dava contra, aí eu fui fazer
desenho de construção, arquitetura e pedagogia foi a última
opção. Terminei pedagogia, não podia trabalhar com criança
pequena que era a minha vontade, fui fazer o curso normal em
um ano, e comecei a trabalhar no município. Trabalhava na
saúde também como secretária. Como eu estudei aqui, eu tinha
vontade de trabalhar aqui e aí fiz o concurso para cá e vim
trabalhar aqui que era o que eu queria fazer, trabalhar, dar aula,
como eu sempre quis, ser professora, mas muita gente me dizia:
“não, não vai, não vai” e eu ia correndo por fora, ver coisa aqui,
ver coisa ali. Não era na família essa resistência, eram meus
professores, meus amigos, minha professora primária, que a
gente se esbarra até hoje, o tempo todo reclamando: “por que
você largou tudo para ser professora? Eu não agüento, eu não
queria, eu não queria”. Era o tempo todo assim. Ela era
poderosa, foi minha professora durante todo o meu primário. E
virou uma amiga e a gente vivia se esbarrando por afora, e
quando eu dizia... “foi fazer pedagogia pra quê? Para quê você
foi fazer pedagogia? E foi assim.
Vanessa:
Eu nunca tive dúvidas que queria ser professora, entendeu? Isso
foi uma coisa que, não sei se posso dizer, nasceu comigo, que eu
sempre tive desejo assim, ao longo dos anos e eu estudei, fiz o
primeiro grau e o segundo, na época em São Paulo, porque
minha infância e adolescência eu passei e comecei a fazer a
formação de professores lá, terminei, fiz o último ano aqui e
logo comecei a dar aulas numa escola particular. Senti vontade
de ingressar no serviço público, por uma série de fatores que não
são desconhecidos de ninguém, por conta de você ter uma
liberdade maior de trabalho, por conta da estabilidade, uma série
de fatores me levaram a essa decisão de prestar concursos, eu
comecei então a me direcionar nessa área e fiz concurso para o
município, passei, comecei a trabalhar no município e fiquei
simultaneamente trabalhando aqui, como contratada? Entrei no
processo seletivo para a contratação, fiquei três anos aqui e
experimentei bem assim, a vivência de como funcionava a escola.
fiz o último concurso e, depois do concurso, eu fiquei aqui,
saí do município.
181
Lorena:
A minha primeira experiência foi aqui mesmo. Eu comecei aqui,
aprendi errando, acertando. É, eu entrei em 84. Não fiz concurso
para 1
a
à 4
a
no município, mas eu trabalhei de 5
a
a 8
a
no
município. Eu prefiro trabalhar com alunos maiores, até pelo
meu jeito, maneira de brincar, eu acho que eu me entendo
melhor, então eu gosto de trabalhar com terceira e quarta, mas
também sempre adorei trabalhar com 5
a
a 8
a
. Minha história
iniciou-se aqui, então eu tive que aprender mesmo com o pessoal,
vendo os colegas. Tem também meus pais que são professores,
então eu acho que tem muito da influência de casa, mas eu
sempre quis. Eu fiz o normal, não tentei concurso para outro
lugar, porque na nossa época era concurso, poderia ter tentado
vários locais, mas tentei mesmo para o colégio de formação
de professores, tinha pretensão de fazer Biologia mesmo.
Então, a minha vontade era trabalhar mesmo no magistério,
apesar de gostar muito da área de pesquisa também, trabalhar no
laboratório, mas eu me achei e nós estamos aprendendo esses
anos todos.
Patricia:
Ah! Vocês vão me fazer chorar aqui. (Risos)
Eu sempre quis ser professora e sempre quis ser professora
primária. Desde criança, eu gostava de ser professora primária,
que eu fui de uma geração, de um colégio... Eu fiz o ginásio no
Cap da UERJ e as pessoas de classe média tijucana, na minha
época, consideravam ser professora primária uma coisa menor,
era uma profissão que tinha um desprestígio social. Ser
professora primária era coisa de menina do subúrbio, não era
coisa de menina tijucana, ainda mais menina que estudava no
Cap da UERJ. Então, eu fui a única pessoa do Cap da UERJ que
saí para fazer prova para o normal. E foi assim um escândalo,
porque entre as minhas colegas do ginásio, uma foi ser médica e
todas as outras foram ser engenheiras civis porque era a época,
foi a época do boom” da engenharia civil, do Sergio Dourado,
da especulação imobiliária, então, a profissão em alta era
engenheira civil. Minha prima que tem quase a minha idade foi
ser engenheira civil e eu saí do Cap UERJ porque eu queria fazer
normal. Foi um escândalo, foi assim um escândalo. As colegas,
as mães das colegas perguntando à minha mãe como é que ela ia
deixar. A minha irmã, por exemplo, ficou no normal porque ela já
era do ginásio do Instituto, mas ela passou o normal inteiro
dizendo que não queria ser professora, tanto que o primeiro
vestibular que ela fez foi para Arquitetura. Ela não queria ser
professora e eu não, quando ela começou a fazer o normal
então, eu comecei a ficar assim, interessadíssima naquela
coisa. E eu gostava, me interessava muito por crianças
excepcionais, eu tinha muita vontade de trabalhar com
182
crianças..., tanto que as minhas primeiras turmas foram de
crianças ...
Eu tinha essa vontade de ser professora. E foi um
estranhamento para mim chegar no Instituto de Educação porque
as minhas colegas do Aplicação, do Cap, eram aquelas
menininhas todas da Tijuca que no fim de semana, nas férias, iam
para a Argentina que era moda, foi a época do milagre
brasileiro. E no Instituto de Educação eram meninas de poder
aquisitivo bem mais baixo e com muito mais dificuldades, tinha
um negócio que passava direto da rede estadual, quem era de
colégio estadual passava direto para o Instituto de Educação.
183
e já não tinha mais concurso. Acho que era isso, ia direto.
Porque a lei foi implementada em 70. Eu me lembro de não ter
feito concurso para a escola José do Patrocínio, ou fiz, bom...não
me lembro. Eu sei que eu fui para o José do Patrocínio direto,
onde meus irmãos tinham estudado e a minha mãe cismou que eu
tinha que fazer concurso para o Carmela Dutra, minha mãe
cismava da gente fazer concurso assim para as coisas, para as
escolas que ela achava que eram as melhores e até, um
semestre eu freqüentei um cursinho...Eu adorei ter freqüentado o
cursinho, achei tão importante...Saía da sexta série e ia à noite
para o cursinho. O cursinho era perto da escola Mato Grosso,
em Irajá. eu sentava atrás, alunos que chegavam naquele
momento sentavam atrás, os da frente eram aqueles que eram
antigos, que se saíam bem... Tinha a Tânia, que acabou indo para
o Carmela Dutra comigo, era da frente...Tânia, Leila. eu
peguei o ritmo do pessoal do cursinho, peguei, peguei. Fiz prova
para o Carmela, mas eram dez problemas e eu tirei 40, acertei
4... Português que eu tirei nota alta, mas mesmo assim, não fiquei
entre os 100... foram 100 alunas? Não sei, tinha uma cota lá,
alguém não foi. Eu me lembro bem, no dia que saiu o resultado
eu estava na cama e minha mãe comentando: “não faz mal, fica
no José do Patrocínio mesmo” e eu: “só sei que eu não passei”,
mas mandaram um telegrama me chamando. eu fui parar
numa escola normal, a Carmela Dutra porque minha mãe achava
que era uma escola boa. Assim, automaticamente eu fui fazer
normal. Enquanto que a Marilene, minha irmã, estudando no
José do Patrocínio foi chamada pra caramba”, porque, naquele
tempo, eles chamavam os melhores alunos das escolas estaduais
para fazer normal e ela disse:”Deus me livre!” Porque ela podia
ser qualquer coisa, menos professora. Mas eu fui ficando na
Carmela Dutra, porque estava lá, mas adorei. Hoje em dia, eu
acho que era a melhor coisa. Hoje em dia, eu não tenho dúvida
que é a minha área mesmo, que é a melhor coisa estar lidando
com crianças, estar lidando com ser humano eu me sinto assim,
contribuindo para a melhoria das coisas. Eu adoro, eu me sinto
realizada. Pretendo também trabalhar com adulto, estou cansada
de trabalhar com criança, um pouco cansada...são 27 anos!
Me sinto um pouco enjoada da escola de C.A até a quarta série,
estou um pouco enjoada desse “ti ti ti”, acho que tem uma
coisa de muitas mulheres juntas, acho até que eu demorei
bastante para me enjoar. Estou com vontade de continuar na
educação, mas em outras coisas, mas para mim, estar no
magistério tem tudo a ver. Não fiquei por comodismo não.
aconteceu muitas vezes na minha vida de eu entrar em sala de
aula e esquecer dos meus problemas. aconteceu de também
não conseguir, mas na maior parte das vezes, quando entro em
sala eu saio melhor, porque as crianças solicitam, é muita
energia. Eu gosto muito. É isso. Eu acho que é muito gratificante.
Agora, acho que também tem uma coisa de, como é que eu vou
dizer... de talento, dom, também não é dom (Lourdinha:
184
“vocação”). É, vocação. Acho que tem uma coisa de vocação,
porque é muito específico. Lidar com criança, ajudar na
formação, porque acho que uma coisa que me preocupa, acho
que a gente pode causar muito trauma nas crianças dependendo
de como você fale com ela da maneira como ela errou,
dependendo de como você se dirija, isso pode marcar muito na
criança, dela se sentir incapaz para alguma coisa para o resto da
vida enfim, eu acho que o professor é uma marca muito forte para
as crianças e acho que tem uma coisa de talento. Eu gosto muito.
Quando eu olho para trás eu não pensaria em ser outra coisa.
Lourdinha:
Eu fiz normal no Heitor Lira e fiz porque era o que eu queria.
Não foi assim por acaso e nem porque era perto de casa, essas
coisas não. Eu queria, estava no ginásio tinha essa idéia,
depois quando terminei eu tentei na Heitor Lira, o concurso
de lá. Eu não pensei em outra opção porque eu tinha certeza que
eu queria isso, eu não sei se é a tal da vocação, exatamente,
porque eu não consigo precisar o que me interessava tanto nisso.
Mas que era o que eu queria, eu tinha certeza absoluta. Eu fiz e
quando terminou, eu entrei logo aqui para o Pedro II. É claro
que foi bom para mim, para minha vida e tudo, mas por outro
lado, às vezes, eu me ressinto um pouco de não conhecer outra
realidade, outro lugar em termos de trabalho. Eu gosto, acho que
em nenhum momento me arrependi disso, acho que é realmente o
que eu gosto de fazer, não penso em fazer outra coisa e hoje eu
tenho essa valorização dessa questão da educação. O que é
trabalhar com educação, a importância que isso tem, que talvez
na época que eu fiz a opção por isso eu não tivesse ainda. Então,
eu não sei exatamente onde que eu tive vontade, mas eu sei que
foi por vontade. E adoro trabalhar com criança. Gosto mesmo,
acho que é muito rico trabalhar com as crianças, para a gente, a
gente descobre um monte de coisas e acho que tem uma
importância muito grande. Isso que a Cristina falou sobre
traumas que a gente pode criar, acho que a gente pode mesmo,
por isso temos que ter cuidado, mas a gente também pode
proporcionar muita coisa que a criança vai levar de positivo,
então eu vejo esse trabalho como realmente muito importante.
Agora, tenho até uma vontade de trabalhar com adulto, mas na
formação de professores, tamanha importância que eu acho que
tem que ter essa questão do trabalho com as crianças, então eu
acho que se a gente está se aperfeiçoando e com a nossa
experiência, a gente poderia ajudar as pessoas que estão
começando, pra continuar isso.
E quanto ao seu ingresso nos quadros do Colégio Pedro II Lorena e Patrícia
disseram:
185
Lorena:
Para começar, para mim, foi uma felicidade grande para a
família, até porque a minha mãe foi aluna do Pedro II durante
sete anos, então ela ficou muito feliz na época. Trabalhar na
instituição em que ela estudou. Eu acho que os ex-alunos têm
muito disso, aquele amor incondicional pela instituição. Assim
como eu trabalhei no município, eu gostava muito, tem tanta
gente que reclama tanto do município e eu adorava, quando eu
fui pedir exoneração no município eu pensei muito, quando eu
pedi exoneração para pegar DE foi porque o dinheiro aqui valia
à pena em relação ao município, mas olha, eu pensei demais
porque eu gostava de trabalhar com 5
a
série, com 5
a
e 8
a
,
trabalhar com os extremos. Eu pesei muito isso, aqui nós temos
um outro nível, um padrão social dos alunos até melhor que o
município, tinha sim em relação ao local onde eu trabalhava, mas
eu gostava. O que pesa muito no Pedro II eu acho que é o nome,
quando você fala que você trabalha no Pedro II as pessoas te
vêem com outros olhos, bem diferentes, bem mesmo, na
Universidade, na UFRJ, onde eu estudo, querem saber um monte
de informações, ficaram deslumbrados com aquele nosso livrão
do PPP e queriam xerocar. Então, acho que tem muita mística
mesmo em volta, daqueles áureos tempos de Pedro II, mas, acho
que isso é que nos traz vantagens. Não sei se poderia ser
vantagens, não é? Mas eu ainda sinto muita falta do município,
trabalhar com 5
a
a 8
a
séries, então, para mim, está ali o que é
bom, pela saudade que eu sinto. Toda vez que tem concurso para
o município eu faço para ver se eu passo.
Eu – Ah é?
No ano passado eu passei, passei bem. (Risos) É, toda vez que
tem eu faço, quero ver se eu passo, porque me dá aquela saudade.
Eu vou largar a DE, mas aí o salário não vale à pena, aí eu deixo
passar, então tem uns quatro concursos. E o último que teve
foi no ano passado e eu passei de novo. Meu Deus, fico tentada!
Ir lá pra Campo Grande.
Patricia:
Para mim, foi uma coisa especial, porque quando eu vim para o
Pedro II, eu já dava aula em faculdade, era coordenadora de
alfabetização da Secretaria de Educação, mas as pessoas que me
conheciam sabiam que me incomodava um pouco...Eu dei aula
primeiro na Gama Filho, depois eu fui pra SUAM. Aqueles
alunos, todos da baixada fluminense que iam para lá, queriam
fazer faculdade, curso superior, agora o nível, realmente, dos
alunos era assombroso, eu tenho cada história perto dessas que a
gente conta de alguns dos nossos alunos... Agora, então eu
trabalhava na Secretaria de Educação, mas as pessoas sabiam
que eu gostava era de dar aula para o primário. E o marido da
186
minha irmã leu no Jornal dos Esportes que ia ter concurso para
primário do Pedro II e a primeira pessoa de quem ele lembrou fui
eu: ‘Patricia, vai ter concurso para o primário do Pedro II.Por
que é que você não faz? Você gosta tanto de dar aula para o
primário! Porque a faculdade não era uma coisa que eu...
gostava. Ia, mas não era assim... eu vim aqui perguntar se
pagava por formação e quanto era o salário, porque é claro que
ninguém vai perder dinheiro. Então, o que eu ganhava na SUAM
não podia deixar, mas era exatamente a mesma coisa, os salários
se equivaliam, na época era muito mais do que o município, era
bem mais do que eu ganhava no município. eu resolvi fazer o
concurso. E eu deixei porque eu não queria trabalhar de
manhã, de tarde e de noite. Na SUAM, eu dava aula à noite. Tive
de deixar a noite e também na Secretaria era complicado, eu me
lembro que no primeiro ano que eu estava aqui, eu trabalhava o
dia inteiro, saía de às dez da noite, cargo de confiança, tinha
uma série de responsabilidades e tal. Aí, para mim, foi assim... E
a questão de ser o Pedro II foi uma coisa assim, que era um
colégio de nome, é isso tudo que a Lorena falou, foi uma coisa!
Eu acho que... vou fazer um comentário mais uma vez que ...
faltando um pouco com a ética, mas eu acho que pessoas que
nem percebem o que é dar aula no Pedro II o que é ser professor
do Pedro II, entendeu? Porque o desânimo é tão grande, não sei,
o que é o Pedro II, o que poderia ser de fato...essa riqueza que a
gente tem aqui, eu acho que a grande riqueza que a gente tem,
principalmente no primário, é ter juntos os alunos de classe
média, de classe social mais baixa, as trocas de experiência, essa
é a verdadeira escola pública, não é? Foi a escola pública em
que eu estudei, acho que a escola pública que vocês estudaram.
Quer dizer, hoje a escola pública do município ela quase que se
tornou um gueto de aluno de classe popular. Quer dizer, tinha
gente na época do Brizola, dos Cieps que dizia assim: Quer ver
melhorar a escola pública? Manda o Brizola fazer uns Cieps
assim em bairro de classe média e botar todo mundo junto, classe
média com classe popular e tal. É verdade, porque uns puxam
os outros, entendeu? Trocam experiência, eu acho que essa é
grande riqueza que a gente tem aqui. Agora, eu sinto que tem
pessoas que não percebem isso, entendeu? Não vou entrar em
comentários, assim mais detalhados. Eu acho que essa sempre foi
a riqueza do Pedro II. Quer dizer, ser um colégio que,
historicamente, se formou como um colégio de elite, mas que, de
muitos anos para cá, é um colégio que tem heterogeneidade na
clientela. Acho que isso é um negócio importante. Bom chega...
(Risos)
Todas nós, professoras envolvidas nessa pesquisa afirmamos ter em nossa
profissão motivos de realização pessoal. A escolha que fizemos, na juventude, veio se
delineando desde muito cedo para algumas de nós. Para outras, nem tanto, mas mesmo
187
aquelas que sofreram, na família ou em outro espaço, algum tipo de pressão para
exercer outra profissão de maior prestígio social, acabaram recuperando o seu próprio
desejo e voltando a buscar os caminhos de formação e de serviço no magistério.
Entretanto, cada uma fez esse percurso de maneira diferente. A forma como cada uma
chegou a ser professora do Colégio Pedro II também passou por um desejo, mas,
novamente, não o mesmo desejo para todas, variados desejos. As maneiras como se
vêem nessa condição, da mesma forma, é diversa. Todos esses fatores e outros mais
estão presentes nas maneiras de ser professora de cada uma, participam das suas
práticas, das suas formas de planejar, de elaborar as atividades, de se relacionar com os
alunos e com as alunas, com os pais e as mães, com as coordenadoras e demais
profissionais da escola. Eles não possibilitam a formulação de explicações gerais, pois
são diversos e dinâmicos, não entre as pessoas, mas em cada uma delas como redes
de subjetividades que são. Cada uma com as suas histórias, suas redes que as trouxeram
ao Colégio Pedro II e à terceira série vai participando da tessitura do cotidiano dessa
escola e das redes de subjetividades que são os sujeitos.
188
O que essa trama pode nos dizer...
Iniciei essa dissertação destacando a idéia do silêncio como bastante
significativa tanto para o percurso que fiz na pesquisa, como para o acontecer das salas
de aula. Caminhar por entre as práticas e ser capaz de me surpreender com o que se
passava, implicou reconhecer a existência do silêncio, do vazio, do espaço das
possibilidades. Até onde pude realizar esses percursos da forma pretendida não sei, mas
era o que perseguia, fazia parte da ousadia, também desde o início colocada. Sabia que
isso teria de ser feito através de mergulhos (Alves, 2001) naquelas realidades com tudo
o que isso significa. Aguçar os sentidos, buscar as pistas e indícios (Ginzburg, 1989)
que me levassem a tecer uma compreensão dos acontecimentos, dos sujeitos e práticas
que fazem existir os acontecimentos e das circunstâncias que os condicionam. Nada de
forma isolada, pois todos esses aspectos se enredam e se articulam. Logo, trata-se de um
trama, para mim, muito envolvente e com muito a dizer.
Para começar, a própria idéia de trama, que envolve articulação permanente,
enredamento, entrelaçamento de fios, foi, nessa pesquisa, fundamental para a
compreensão das realidades das salas de aula. Percebi que as práticas cotidianas não se
dão de forma isolada, a vida de um sujeito está enredada a outras vidas que são vividas
em diferentes espaços e tempos. Em nossos processos de formação, nos múltiplos e
diversos espaços sociais em que vivemos desde que nascemos, quem sabe até antes
disso, interagindo com outros sujeitos e com o mundo a nossa volta, vamos aprendendo
tudo que somos. Todas essas aprendizagens de saberes e de valores estão presentes no
cotidiano, nas práticas dos alunos e das alunas, dos seus pais e mães, das professoras,
das coordenadoras e de outros sujeitos participantes dessas redes. É com elas e a partir
delas que outras aprendizagens se dão e isso é inevitável. Participamos dessas redes,
produzindo novos saberes, formando nossas subjetividades, com tudo o que somos,
inclusive com os comportamentos e sentimentos que podem ser considerados, às vezes,
por nós mesmos, como não desejáveis.
Essa idéia de enredamento é fundamental porque ela ajuda a entender que não é
possível isolar determinados fatores, “dados” da realidade, analisá-los
desarticuladamente e chegar, ao final desse processo, a explicações totalizantes sobre a
escola que fundamentariam a formulação de prescrições de comportamentos para nós,
professoras, alunos e outros sujeitos. Essas explicações e prescrições estão presentes no
cotidiano da escola, mas elas se inviabilizam, entre outros fatores, por serem formuladas
189
através de processos desse tipo, que desconsideram a impossibilidade de isolamento de
alguns aspectos da realidade que estão, necessariamente, articulados a outros. Muitas
vezes, são formulações produzidas nas universidades, como resultados de pesquisas
acadêmicas, ou nos governos, como políticas a serem implementadas, às vezes
orientadas também por resultados de pesquisas, ou ainda nas administrações das
próprias escolas.
Encontramos também essa forma de pensar e de fazer no cotidiano, em
conversas que nós professoras temos entre nós, com os alunos, com seus pais e mães ou
com outros profissionais da escola sobre a situação das crianças em relação aos
processos de aprendizagem e avaliação dos conteúdos escolares. Especialmente quando
tratamos dos que “não se saem bem”, aqueles alunos do apoio, pois é muito comum a
busca desse tipo de explicação causal associada aos padrões modelares de
comportamentos definidos para todos a partir daquelas formulações. Falamos e ouvimos
sobre como deveriam agir as crianças em sala de aula e em casa, os pais e mães com
relação aos filhos e a outros aspectos da sua vida familiar e os profissionais da escola
quanto à maneira ideal de acompanhar, orientar e manter sob controle as ações
pedagógicas. Uma série de prescrições baseadas em conclusões simplistas, resultantes
daquele tipo de análise que isola “dados” da realidade e privilegia as relações lineares
de causa e efeito é feita, seu cumprimento perseguido e não alcançado na maioria dos
casos.
Se a idéia de trama, de enredamento, é fundamental para que entendamos porque
essas prescrições não funcionam no cotidiano das salas de aula, ela é também para
reconhecermos a sua complexidade (Morin, 1996). As situações vividas na escola são
composições que conjugam, simultaneamente, diversos fatores. São tecidos formados
com o entrelaçamento de vários fios, de texturas e cores também variadas. Essa
complexidade se defronta com o nosso pensamento que, muitas vezes, orientado por
padrões dicotômicos, opõe os pares: bem x mal, feio x bonito, saber x não saber e
outros, hierarquiza conhecimentos e sujeitos e busca, assim, encontrar soluções para os
problemas enfrentados no dia-a-dia.
Maturana (1998) ajuda a pensar nessa questão com a sua biologia do
conhecimento que concebe o humano como o entrelaçamento do emocional com o
racional afirmando que todas as nossas ações têm um fundamento emocional. Quando
diz que o peculiar do humano está na linguagem e no seu entrelaçamento com o
emocionar, coloca abaixo a supremacia da razão e com ela a oposição razão x emoção,
190
fundamentos do pensamento ocidental moderno. Ainda segundo Maturana, a evolução
do humano se na conservação de um modo de vida que se constitui na congruência
recíproca e não na competição que implica a negação do outro. A partir daí, afirma que
existe uma emoção fundadora do social que é o amor. Ela permite a aceitação do outro
como legítimo outro na convivência, ou seja, o respeito mútuo, e afirma que sem essa
aceitação não há fenômeno social. Acrescenta por fim, que
essa condição é necessária para o desenvolvimento físico,
comportamental, psíquico, social e espiritual da criança e do
adulto. A negação do amor origem a sofrimento e
enfermidades (p. 25).
Ao apresentar esse pensamento, Maturana desestabiliza a forma dualista de
pensar a realidade social que aprendemos com a ciência moderna e contribui para que
possamos entender a emoção como constituinte do humano, fundamento do social e não
como parcela insignificante dessa realidade, que deve ser desprezada nos estudos
científicos que, de alguma maneira, procuram compreender a vida social. E mais,
quando a autor afirma que a negação do amor como emoção que funda as relações
reciprocamente congruentes, de respeito mútuo, de aceitação do outro como legítimo
outro na convivência, gera sofrimento e enfermidades, está dizendo que a preservação
do humano depende desse tipo de relação, a social. Existe, portanto, na vida cotidiana,
escolar e de outros espaços, um movimento permanente de estabelecimento desse tipo
de relação, embora notemos que elas não sejam as únicas. A tessitura das redes
cotidianas de saberes e de fazeres que percebemos, das quais participamos e que
formam, a cada dia, os sujeitos e a vida nas salas de aula são constituídas nesse tipo de
relação social, sobre a qual pensamos com a ajuda de Maturana. Professoras, alunos,
pais e mães buscam, relações sociais, as fundamentadas no amor, na aceitação do outro,
na solidariedade, mesmo que, algumas vezes, expressem entendimentos diferentes e
mesmo conflitantes a respeito da complexa realidade cotidiana. Ainda segundo
Maturana, a prevalência de outro tipo de relação implicará sofrimento e enfermidade.
A pesquisa no/do/com o cotidiano que realizei nas salas de aula da Unidade São
Cristóvão I do Colégio Pedro II, com as professoras, Cristina, Lorena, Lourdinha,
Patricia, Rossana e Vanessa, nossos alunos, seus pais e mães e as coordenadoras,
sujeitos dessa investigação, pôde mostrar que essas relações acontecem o tempo inteiro.
O movimento de vida no cotidiano é, nesse sentido que apresenta o pensamento de
Maturana, saudável. Não sem tensão, porque não exclusivo. Na complexidade desse
191
cotidiano, onde tudo acontece ao mesmo tempo (Ferraço, 2004), notamos também a
presença de outros tipos de interação tensionando-o e, dessa forma, dinamizando a vida.
Penso que a isso podemos juntar elementos de A invenção do cotidiano de
Michel de Certeau (1994) que muito contribuiu para o desenvolvimento dessa pesquisa
e escrita dessa dissertação. A idéia de que a vida cotidiana é tecida pelos praticantes
através de táticas que usam astuciosamente as regras e os produtos que são oferecidos
pelas instituições, pelo sistema, envolve, a meu ver, esse mesmo movimento de
preservação do humano, na medida em que é também um movimento no sentido de
sobreviver melhor no espaço do poder. Podemos dizer que essa é também uma lógica
possível que percebemos no desenvolvimento dessas práticas. Inventando maneiras
próprias de agir nesse espaço, de acordo com as circunstâncias, aproveitando as
ocasiões, as professoras, os alunos, os pais e as mães individual ou coletivamente, de
forma, muitas vezes, rebelde, porque não passivas e submissas, criam situações mais
favoráveis a si mesmos e aos grupos. Além disso, essa criação cotidiana de alternativas
curriculares constitui-se como uma perspectiva progressista (Oliveira, 2003) porque,
ainda que não somente, participa da formação de subjetividades inconformistas (Santos,
1996). Os processos de compreensão e invenção de soluções para os problemas e
questionamentos levantados nessa pesquisa foram desenvolvidos tendo no cotidiano,
nos complexos e enredados processos de formação dos sujeitos e tessitura de suas
práticas, o espaço-tempo de produção de soluções possíveis, entendendo que, dessa
forma, podemos estar mais próximos da realização de um projeto educativo
emancipatório (Santos, 1996).
Quatro elementos encontrados no cotidiano permitem acreditar que esse projeto
está em andamento. O primeiro deles é que com o cotidiano estamos em meio a
situações reais de vida, situações concretas, em meio àquilo que os sujeitos são, fazem,
pensam e sentem. Nesse espaço-tempo da concretude das práticas não lugar para
comportamentos modelares, idealizados, pois nele o que existe, o que é possível
encontrar é a diversidade, a multiplicidade, a variedade de comportamentos e de
saberes. Isso quer dizer que no cotidiano não lugar para a recomendação de modelos
a serem seguidos por todos, que a sua realização é uma impossibilidade e, portanto,
cada um atua de modo relativamente autônomo.
O segundo é que é nessa diversidade que vamos encontrar as criações cotidianas,
pois os sujeitos praticantes das salas de aula inventam maneiras próprias de lidar com as
realidades que vivem, mesmo as mais adversas. Taticamente, fazem uso dos produtos,
192
das normas e das regras que a eles são impostas. Essas táticas, que são as inúmeras
maneiras de fazer de que os praticantes lançam mão de acordo com as ocasiões, com as
circunstâncias das situações em que se encontram, são elas mesmas as possíveis
soluções, sempre locais e singulares, para os problemas vividos no cotidiano da escola.
O terceiro deriva do reconhecimento da importância da emoção no cotidiano da
escola e do fazer pedagógico. A partir daí, podemos reconhecer a possibilidade de
questionamento da banalização dos conflitos e do sofrimento humano, característica do
tempo em que vivemos e da introdução de imagens desestabilizadoras nas salas de aula
onde as emoções, e não as idéias estão. Essa é a idéia central do projeto
emancipatório (Santos, 1996, p. 18).
A quarta e última, por ora, é que dia-a-dia, estamos todos, professoras, alunos,
pais, mães, outros profissionais da escola, nos diferentes espaços a que estamos
vinculados, nas relações que estabelecemos, produzindo conhecimentos sobre nós
mesmos, sobre o mundo, sobre a vida, conhecimentos esses que são de grande valor,
inclusive para a aprendizagem dos conhecimentos escolares. Se com esses fios do que
cada um é, a cada momento, do que somos e criamos coletivamente nas variadas
relações que estabelecemos, conseguirmos tecer redes de conhecimentos que nos
possibilitem compreender as práticas dos sujeitos e, a partir disso, formular nossas ações
pedagógicas, estaremos, quem sabe, potencializando essas mesmas práticas e o que elas
criam. Esse tecido compreensivo, cujos fios são as produções cotidianas dos sujeitos das
salas de aula, traz para outro lugar de importância os saberes desses, procurando
romper com a hierarquia entre os conhecimentos e entre os sujeitos que os produzem,
estabelecida pelos padrões do pensamento ocidental moderno. Com isso, busca afirmar
que podem existir alternativas para essas realidades das escolas e das salas de aula como
as das histórias que contei aqui. Talvez esses espaços-tempos cotidianos em que estão
os alunos e alunas dos grupos de apoio, as maneiras como esses alunos são vistos,
percebidos, não precisem ser naturalizados na forma como estão sendo e assim
possamos superar a hierarquização e a discriminação com que, muitas vezes, lidamos
com eles. Suas práticas, as das professoras e dos outros sujeitos da escola, podem estar a
inventar maneiras socialmente mais favoráveis a esses alunos e alunas. É necessário,
portanto, que elas sejam privilegiadas nos nossos processos de reflexão e ação.
Com as histórias narradas e as imagens do cotidiano das salas de aula
apresentadas, com o que dissemos sobre o fazemos, pensamos e sentimos, nós, as
professoras, os alunos, as alunas, os pais e as mães, procuramos evidenciar a reinvenção
193
curricular que está a acontecer no cotidiano das salas de aula. Com tudo que somos,
vamos vivendo: agindo, pensando, sentindo, criando...Compreender as práticas dessa
maneira, preocupando-nos com as formas como os sujeitos tecem em rede os
conhecimentos, formando suas subjetividades, potencializa o que de emancipatório elas
têm e são, o que pode contribuir para possíveis intervenções no sentido de superarmos
os problemas que enfrentamos por conta do que elas não têm e não são.
194
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