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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Faculdade de Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação
As representações sobre a infância em livros didáticos
de História para a 1
a
série do ensino fundamental
Virginia Santos Bordalo
Orientadora: Irma Rizzini
Rio de Janeiro
2006
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2
VIRGÍNIA SANTOS BORDALO
As representações sobre a infância em livros didáticos
de História para a 1
a
série do ensino fundamental
Dissertação apresentada ao
Programa Pós–Graduação em
Educação da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro como
requisito parcial para obtenção
do grau de Mestre em
Educação
Orientadora: Irma Rizzini
Rio de Janeiro
2006
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3
BORDADO, VIRGINIA SANTOS
As representações sobre a infância em livros
didáticos de História para a série do ensino
fundamental
168f.
Dissertação (Mestrado) Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Programa de Pós-
Graduação em Educação. Rio de Janeiro, 2006.
Área de Concentração: Ciências Sociais,
Pedagogia, Multidisciplinar
4
5
Agradecimentos
Muitas são as pessoas, que de uma forma ou de outra, contribuíram para
realização deste trabalho. Em apenas uma folha não conseguiria agradecer a todas, por isso
aquelas que não encontrarem seu nome aqui, não foram esquecidas, estão em outros
lugares: no meu coração e na minha memória.
A contar, desde o início da entrada na UERJ, fazendo parte da minha vida
acadêmica, minha gratidão: à professora Lia Faria pela oportunidade da iniciação científica
e à professora Yolanda Lobo pelo convívio amistoso durante a pesquisa; ao professor
Alfredo Faria Júnior pela orientação da minha monografia, por acreditar na seriedade do
meu trabalho e permitir que participasse de seu grupo de estudo; ao professor Gondra que
me resgatou no ProPED e a todos/as professores/as que deram este apoio; à professora Irma
Rizzini que me “adotou e orientou”; à professora Ana Chrystina Mignot pelos conselhos; à
funcionária Morgana da secretaria do ProPED que me incentivou a insistir no meu
propósito; às colegas do mestrado, especialmente, Luisa e Andréa e a amiga da Pedagogia
Elaine.
À minha família, meu marido e minha filha Renata que me acompanharam de
perto em todos os momentos de dificuldade, pelos quais passei.
E acima de tudo e de todas, agradeço a Deus pela força que me deu para chegar
ao fim desta etapa.
6
RESUMO
As representações sobre a infância em livros didáticos
de História para a 1
a
série do ensino fundamental
VIRGINIA SANTOS BORDALO
Orientadora: Irma Rizzini
Resumo da dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação
em Educação, da Faculdade de Educação, do Centro de Educação e Humanidades, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Educação.
A presente dissertação propõe-se a analisar os livros didáticos de História mais
adotados nas escolas blicas da cidade do Rio de Janeiro, de acordo com a indicação do
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD/2004-2006) para o período em curso, quanto
às representações sobre a infância. Para tanto, baseou-se no Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA/1990) buscando encontrar ou não a representação da infância cidadã.
Por outro lado, transcorridos dezesseis anos da promulgação deste importante instrumento
jurídico, verificar se o termo “menor” continua ou não sendo veiculado nos manuais
didáticos destinados à série do Ensino Fundamental. Como procedimento metodológico
empregou-se a “análise de conteúdo”, como sugere Bardin (1977). Foram analisadas cinco
obras didáticas de editoras diferentes, sendo encontrados cento e cinqüenta e um registros
(entre textos e imagens) para as oito categorias de representações sobre a infância. O
estudo revela que quase todos os livros analisados apresentam a representação de infância
cidadã, enquanto as representações relativas aos “menores” estão explícitas em alguns
manuais do/a professor/a e em uma das resenhas de parecerista do Guia do Livro
Didático/2007.
Palavras-Chave: Estatuto da Criança e do Adolescente, Educação, Infância,
Livros Didáticos.
7
ABSTRACT
The representations of childhood in instructional
history books for first grade students
VIRGINIA SANTOS BORDALO
Orientadora: Irma Rizzini
Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Centro de
Educação e Humanidades, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
The present dissertation proposes to analyze history text books that are widely
used in the public schools of the City of Rio de Janeiro, following the guidelines of the
National Program for Educational Text books (PNLD/2004-2006), on the subject of the
representations of childhood. The study is based on the Child and Adolescent Statute
(Estatuto da Criança e do Adolescente/1990). Sixteen years after the passage of this
important legislation, the research seeks to discover whether the term menor[1] continues
to be used in first grade, elementary school text books. The methodology involves “content
analysis”, as described by Bardin (1977). Five text books from different publishing
companies have been analyzed. They revealed one hundred and fifty examples (including
text and images) for the eight categories of representation of childhood. The study
discloses that almost all the books analyzed include the representation of children as
citizens while the representations with reference to the menores are explicit in some
professor’s manuals and in one of the collaborative summaries in the 2007 Guide to Text
Books.
Key Word:
Child and Adolescent Statute, Education, Childhood, Textbooks
[1] Discriminatory term for children under the age of majority (N.T.).
8
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AGB Associação Geográfica Brasileira
AMPUH Associação Nacional dos Professores Universitários de História
BIEF Bureau d´ Ingénierie en Éducation et en Formation
CBIA Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência
CCCS Centre for Comtemporany Cultural Studies
CFB Constituição Federal Brasileira
CNLD – Comissão Nacional do Livro Didático
COLTED Comissão do Livro Técnico e Livro Didático
CONANDA Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
CONSED Conselho Nacional de Secretários de Educação
CPC Centros Populares de Cultura
DCN Diretrizes Curriculares Nacionais
DNCr Departamento Nacional da Criança
DOU Diário Oficial da União
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
EMC Educação Moral e Cívica
FAE Fundação de Assistência ao Estudante
FENAME Fundação Nacional do Material Escolar
FUNABEM Fundação Nacional de Bem Estar do Menor
GLD Guia do Livro Didático
INL Instituto Nacional do Livro
9
IPT Instituto de Pesquisas Tecnológicas
LBA Legião Brasileira de Assistência
LD Livro Didático
LDBN Lei de Diretrizes e Bases Nacionais
MCP Movimentos de Cultura Popular
MEB Movimento de Educação de Base
MEC Ministério da Educação
MEC Ministério da Educação e Cultura (1953/1985)
ONG Organização Não Governamental
ONU Organização das Nações Unidas
OSPB Organização Social e Política Brasileira
PCN Parâmetros Curriculares Nacionais
PETI Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
PLIDEF Programa do Livro Didático para o Ensino Fundamental
PNAE Programa Nacional de Alimentação Escolar
PNLD Programa Nacional do Livro Didático
PNLEM Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio
PRONAICA Programa Nacional de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente
RD Recomendada com Distinção
REC Recomendada
RR Recomendada com Ressalvas
SAM Serviço de Assistência a Menores
SEB Secretaria de Educação Básica
SEF Secretaria de Ensino Fundamental
10
SENAI Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
SISCORT Sistema de Controle e Remanejamento da Reserva Técnica
SNEL Sindicato Nacional dos Editores e Livreiros
UNDIME União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação
UNESCO Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura
UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância
USAID United States Agency for International Development
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...........................................................................................
13
1
AS REPRESENTAÇÕES SOBRE A INFÂNCIA EM UMA DIMENSÃO
JURÍDICA ...................................................................................................
21
1.1
O CONTEXTO INTERNACIONAL E NACIONAL QUE ANTECEDEU
À DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA..........
.......................................................................................................................
22
1.2
DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA À
EMERGÊNCIA DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE .........................................................................................
32
1.3
O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E A PROTEÇÃO
AOS DIREITOS ...........................................................................................
40
1.4
REFLEXÕES SOBRE A PRÁXIS DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE .........................................................................................
42
2
AS REPRESENTAÇÕES SOBRE A INFÂNCIA EM UMA DIMENSÃO
ESCOLAR .....................................................................................................
47
2.1
A INFÂNCIA ESCOLARIZADA ................................................................
48
2.2
AS TEORIAS PEDAGÓGICAS E AS REPRESENTAÇÕES SOBRE A
INFÂNCIA NO SÉCULO XX .....................................................................
52
2.2.1
A INFÂNCIA MIDIÁTICA .........................................................................
58
2.2.2
A INFÂNCIA DESESCOLARIZADA ...........................................................
63
2.2.3
A INFÂNCIA CIDADÃ NA PERSPECTIVA DAS TENDÊNCIAS
PEDAGÓGICAS DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX.................
66
3
AS REPRESENTAÇÕES SOBRE A INFÂNCIA NOS LIVROS
DIDÁTICOS DE HISTÓRIA PARA A 1
A
SÉRIE DO ENSINO
FUNDAMENTAL ......................................................................................
79
3.1
O LIVRO DIDÁTICO COMO FONTE DE PESQUISA .............................
79
12
3.2 OS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS E A DISCIPLINA
ESCOLAR – HISTÓRIA ............................................................................
83
3.3
O PROGRAMA NACIONAL DO LIVRO DIDÁTICO E O GUIA DO
LIVRO DIDÁTICO ......................................................................................
87
3.4
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ..................................................
96
3.5
3.5.1
IMAGENS DAS INFÂNCIAS: REPRESENTAÇÕES CONTIDAS NOS
TEXTOS E NAS ILUSTRAÇÕES DOS LIVROS DIDÁTICOS DE
HISTÓRIA .................................................................................................
CATEGORIA: INFÂNCIA ESCOLARIZADA .........................................
117
117
3.5.2
CATEGORIA: INFÂNCIA CIDADÃ ........................................................
127
3.5.3
CATEGORIA: INFÂNCIA INDÍGENA .....................................................
131
3.5.4
CATEGORIA: INFÂNCIA TRABALHADORA ........................................
135
3.5.5
CATEGORIA: INFÂNCIA DESASSISTIDA .............................................
141
3.5.6
CATEGORIA: INFÂNCIA MIDIÁTICA ....................................................
143
3.5.7
CATEGORIA: INFÂNCIA ASILADA ........................................................
145
3.5.8
CATEGORIA: INFÂNCIA DESESCOLARIZADA .....................................
148
3.5.9
CONSIDERAÇÕES SOBRE AS IMAGENS DAS INFÂNCIAS ................
149
CONCLUSÃO .............................................................................................
152
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................
159
FONTES .......................................................................................................
168
13
INTRODUÇÃO
A presente dissertação teve como foco principal analisar as representações sobre
a infância, inscritas nos livros didáticos de História destinados ao ensino da série (série
intermediária do ciclo) do ensino fundamental adotados nas escolas públicas municipais
da Prefeitura do Rio de Janeiro, no período de 2004 a 2006 e que continuarão a serem
adotados para o período vindouro de 2007 a 2009. Busquei identificar possíveis mudanças e
permanências, investigando de que forma as infâncias estão sendo representadas nos textos
e nas ilustrações dos livros didáticos atuais de História. Pretendi relacionar os conteúdos
dos livros escolares, incluindo as orientações do Manual do Professor, com os direitos
estabelecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei nº 8.069/90).
A minha trajetória profissional e acadêmica foi fundamental para a escolha do
tema de pesquisa. Segundo Sonia Regina Miranda e Tania Regina de Luca (2004), “é
assente, entre os historiadores, que os sujeitos sempre se posicionam a partir de um lugar
social e que os olhares que assumem são permanentemente contingenciados por
circunstâncias que emergem em função de tais lugares”. Portanto cabe, inicialmente, um
esclarecimento sobre o meu “lugar social”, pois é dele que parte a análise deste estudo.
Assim, a minha trajetória profissional e acadêmica está aqui relatada de forma bastante
sucinta. Primeiramente, ao terminar o curso normal do Instituto de Educação e ao iniciar
minha carreira como professora primária, em Campo Grande (bairro do antigo Estado da
Guanabara), tive meu primeiro contato com crianças de classes populares, suas fisionomias
estão guardadas muito bem em minha memória. Muitas ou quase todas nunca haviam
experimentado o prazer de pegar em um lápis preto nem tampouco em lápis coloridos.
Dentre todos aqueles rostinhos um sobressaia, seu nome era Geneci, o mais baixinho da
turma, um menino negro de sete anos, com olhos muito vivos que me encantavam e que
estava pela primeira vez na escola, ávido por conhecer tudo com muita pressa. Pouco tempo
depois, ao concluir o curso de Licenciatura em História, prestei concurso para o magistério
para lecionar esta disciplina, mas a Reforma de Ensino (Lei n. 5692/71) instituiu a área de
Estudos Sociais em substituição às disciplinas de História e Geografia, assim passei a ser
professora de Estudos Sociais, Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política do
Brasil. Esta história está contada nesta dissertação e foi vivida por sua autora. Logo depois
14
(1975), de professora estadual passei a ser professora municipal em escolas de primeiro
grau, devido à fusão dos estados da Guanabara com o antigo estado do Rio de Janeiro. Em
1985, fui selecionada para integrar a equipe do projeto de implantação do primeiro Centro
Integrado de Educação Pública (CIEP) Avenida dos Desfiles, como professora regente.
Neste espaço escolar, com alunos e alunas de classes desfavorecidas, moradores/as dos
morros de São Carlos, da Mineira e outros, percebi a necessidade de introduzir noções de
cidadania nos conteúdos de História, a fim de que aqueles/as adolescentes se
reconhecessem como cidadãos e cidadãs. ouvia, pela primeira vez, a expressão: “essa
prof é sangue bom”. Aos poucos, fui entendendo esta linguagem. Muitos dos temas
apresentados nos conteúdos dos livros analisados neste trabalho, eram trabalhados por
mim nas turmas do CIEP. De acordo com o projeto, não havia um livro didático adotado,
mas sim vários livros disponíveis na sala de leitura e na sala ambiente da disciplina, além
de outros materiais didáticos. Cada professor/a escolhia os textos para suas aulas, que eram
reproduzidos pelo serviço de mecanografia, evitando o emprego do livro didático único.
Muitas vezes, utilizei livros de Literatura como um dos recursos pedagógicos para as aulas
de História. Entretanto, continuava adotando o livro didático na outra escola municipal
onde lecionava .
Paralelamente a este percurso profissional, havia um sonho muito antigo que
continuava adormecido: fazer um curso de pós-graduação. O tempo passou ... Ao me
aposentar pensei: está passando da hora de despertar o meu sonho. vi um caminho,
embora longo, fazer vestibular e cursar Pedagogia para chegar ao curso de Mestrado em
Educação da UERJ. Durante o curso de Pedagogia obtive uma bolsa de iniciação científica
(2002/2003) da FAPERJ para a pesquisa intitulada O empreendimento educativo-cultural
da fusão: memórias de Secretários de Educação, sob a orientação da professora Lia Faria
(UERJ) e coordenada pela professora Yolanda Lobo (UENF). Ao final do curso de
Pedagogia escolhi como tema para a minha monografia “As representações de idosos/as
nos livros didáticos de quinta série de História”, sendo orientada pelo professor Alfredo
Faria Junior. Logo ao terminar o curso de Pedagogia, concorri a uma vaga para o curso de
Pós-Graduação em Educação da UERJ (ProPed/2004) e ao concluir a presente dissertação
estou realizando aquele sonho acalentado durante tantos anos.
15
Para iniciar a reflexão sobre o tema desta pesquisa, recorri a Francisco Pilotti
(1995, p. 24-26) que distingue os conceitos de criança e infância. Para o autor, quando o
estudo refere-se à criança, sua visão envolve o desenvolvimento da criança como indivíduo,
que naturalmente “chegará à condição de adulto”. Nesta perspectiva, a “criança constitui
um objeto de análise a-histórico” como, por exemplo, para a Psicologia, especialmente na
Psicologia do Desenvolvimento. Entretanto, no estudo sobre a infância, trata-se de uma
análise de cunho histórico e sócio-cultural, ou seja, esta visão transcende à situação
individual de uma criança para buscar a construção social da infância e a sua posição na
estrutura social, dentro de determinado tempo e espaço. Assim, Pilotti a concebe como
“categoria estrutural [...] em permanente interação com outras estruturas, afetando os
processos de mudança aovel de sociedade, sendo por sua vez afetada pelos mesmos”. As
categorias estruturais gênero, raça, etnia e classe, principalmente, interagem com a infância
como categoria de análise estrutural, além de sua relação com outros grupos etários como
adultos e idosos.
A partir da metade do século XX, muitos são os estudos sobre a infância,
desde o clássico trabalho de Philippe Ariès (1981) – História social da criança e da
família. Ariès baseou-se em análises iconográficas, semiológicas, de textos e de relatos,
para explicar as mudanças de atitudes e de sentimentos diante das crianças. Após a Idade
Média, um novo conceito de infância foi incorporado às mentalidades da época, quer dizer,
uma nova percepção da especificidade da infância, qualitativamente diferente do adulto.
Criticado ou não, Ariès está quase sempre presente nos estudos relativos à infância, abrindo
caminho para muitas pesquisas. Inventariar e mapear este campo de pesquisa torna-se
impossível, dada a imensa produção científica, pois como afirma Sônia Kramer (1996, p.
27) “a infância é um campo temático de natureza interdisciplinar”.
Ao fazer uma revisão da literatura sobre o tema Infância, encontrei vários
trabalhos acadêmicos, dos quais destaco apenas alguns, pois em algum ponto podem
tangenciar com o estudo aqui apresentado. A pesquisa de campo realizada por Luciene P.
de Avelar Alberoni (2001) envolveu quatro professoras e doze crianças, sob o título
Infância e imagem nas transformações contemporâneas da subjetividade - o que a escola
tem a ver com isso? . Neste trabalho, a autora pesquisou os “possíveis efeitos que o mundo
das imagens pode ter sobre a infância”. Os livros didáticos, fontes de estudo desta pesquisa,
16
também apresentam muitas imagens às crianças, que podem ser consideradas como
elementos intervenientes nas representações sobre a infância.
Em A tela dos excluídos: a infância marginalizada no cinema brasileiro,
Maurício Caleiro (2002) faz uma crítica acerca da representação da infância marginalizada
no cinema. Este trabalho poderá ajudar a compreender como a representação categorizada
como “menor”, constitui-se ainda em uma das múltiplas representações sobre a infância no
Brasil, ponto que retornarei mais adiante (no capítulo I desta dissertação).
Franco (2001) em Desaparecimento ou uma nova conformação de infância?
coloca-se contra a idéia do fim da infância defendida por alguns estudiosos, entre eles
Postman (1999), que em seu livro O desaparecimento da infância afirma que o mundo da
criança está sendo ocupado pelo mundo do adulto, pois a criança quase não vive mais a
infância.
Entretanto, para a autora existe uma “nova forma de infância”. Seria uma outra
representação sobre a criança, que poderia ou não fazer parte dos textos e ilustrações dos
livros escolares a serem analisados. Este trabalho tem uma certa relação com “A construção
do ‘ser’ criança na sociedade capitalista”, no qual Furlan (2003) reflete sobre o “sujeito-
criança” na sociedade capitalista. A “nova conformação de infância” foi construída pela
sociedade capitalista e é marcada, principalmente, pelo consumismo. Por conseguinte,
Franco e Furlan apontam para as influências exercidas sobre a criança na sociedade de
consumo.
Nenhum destes trabalhos citados empregou o livro didático de História como
fonte de pesquisa. Em relação às fontes utilizadas nesta dissertação, é muito grande a
produção científica. Da mesma forma, destaco apenas algumas obras sobre o livro didático
de História.
Na revisão de literatura da produção acadêmica que utilizou o livro didático
como fonte de pesquisa, nestes últimos anos, foram registrados os seguintes trabalhos:
Franco (1982) em O livro didático de História do Brasil a versão fabricada, Telles
(1984) em Cartografia Brasilis ou: esta história está mal contada, Reznik (1992) em
Tecendo o amanhã (a História do Brasil no ensino secundário: programas e livros
didáticos, 1931 1945), Almeida Neto (2000) em O ensino de História no período militar:
práticas e cultura escolar, Martins (2002) em A história prescrita e disciplinada nos
17
currículos escolares: quem legitima esses saberes?, Ribeiro (2004) em Colônia(s) de
identidades: discurso sobre a raça nos manuais escolares de História do Brasil. Todos os
trabalhos citados utilizaram o livro didático de História como fonte de pesquisa, porém
nenhum deles contemplou a temática da infância como a presente dissertação.
Das três últimas décadas do século passado até hoje, a questão do livro didático
de História e o ensino desta disciplina escolar têm suscitado debates em encontros
organizados por associações da área e esses encontros têm gerado trabalhos importantes,
como Repensando a História (1989), organizado por Marcos A. da Silva. Muitas
investigações foram realizadas sobre o livro didático, como afirma Guimarães Fonseca
(1998/1999, p. 39):
[...] muito já se investigou sobre o assunto e, apesar de tudo o que se disse – sobretudo
‘contra’ o conteúdo e a forma do livro brasileiro ele continua caracterizado por um
baixo padrão de qualidade e constitui a principal fonte de estudo, o elemento
predominante e muitas vezes determinante do processo de ensino.
Portanto, a análise de livros didáticos de História e os possíveis caminhos a
serem trilhados pelos/as professores/as dentro desta disciplina foram alvo de preocupação.
Assim, escolhi esta fonte de pesquisa para trabalhar o objeto representações sobre a
infância. Como referencial teórico para as representações utilizei as contribuições de Roger
Chartier
1
(1990), o que me auxiliou na compreensão da construção histórica e cultural da
infância nos livros escolares.
A questão norteadora da pesquisa é : que representações sobre a infância estão
veiculadas nos livros didáticos de História para a série do ensino fundamental? Além
desta questão, investigo se as temáticas relativas à cidadania estão presentes nos conteúdos
desses livros didáticos.
1
A teoria da representação de Chartier (1990) vincula-se à história cultural, que “tem por principal objecto
identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma realidade é construída, pensada e dada a ler”
(p. 16-17). Esta realidade social pode ser percebida como as próprias “representações do mundo social”.
Outrora, outros historiadores privilegiavam as relações econômicas e sociais, que “não são anteriores às
culturais nem as determinam” (HUNT, 1992, p.9). Mais tarde, surge uma nova geração de historiadores da
cultura, entre eles Chartier, que usa técnicas e abordagens literárias para desenvolver novos materiais e
métodos de análise. Assim, Chartier evoca a história cultural como o caminho para o entendimento das
representações e práticas culturais “utilizadas pelos indivíduos para darem sentido a seu mundo”(HUNT,
1992, p.19-25).
18
A priori, o reconhecimento do livro didático como um instrumento cultural,
difusor de informações e de saberes sistematizados existentes em todas as áreas do
conhecimento e em todos os níveis de ensino.
No Brasil, o Governo Federal distribui, gratuitamente, livros didáticos para
alunos/as de escolas blicas de todas as séries do ensino fundamental pelo Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD) e, em 2004, foi criado o Programa Nacional do Livro
Didático para o Ensino Médio (PNLEM), com projeto-piloto, em 2005, distribuindo livros
didáticos de Português e Matemática para a série do ensino médio das regiões Norte e
Nordeste (Subsecretaria de Comunicação Institucional da Secretaria-geral da Presidência da
República, 06/março/2006)
2
. Assim, o livro didático acompanha o/a estudante brasileiro/a
durante toda a sua vida escolar do ensino básico.
Para entender como o livro didático chega às mãos dos/as alunos/as, procurei
conhecer o processo de escolha do livro didático. As coleções (1ª a 4ª série ou 5ª a 8ª série)
precisam atender aos critérios estabelecidos pelo PNLD para serem inseridos no Guia do
Livro Didático (GLD). O GLD é enviado para as escolas, servindo de orientação para que
os/as professores/as escolham a coleção por disciplina escolar. Cada escola, em formulário
próprio, indica duas coleções (1ª e opções) de diferentes editoras para todas as séries da
escola, embora somente uma coleção por disciplina seja enviada, cabendo ao Programa a
negociação para aquisição das coleções junto às suas respectivas editoras.
Os cinco livros didáticos de História para a rie do ensino fundamental mais
escolhidos pelas escolas da rede pública da cidade do Rio de Janeiro, no PNLD/2004,
transformaram-se em fontes desse estudo, sendo portanto uma amostra horizontal (livros da
mesma série) para análise das representações sobre a infância. A escolha recaiu nesta rie
por vários fatores: a faixa etária dos/as alunos/as corresponder à infância, o tema infância
nos conteúdos da série e a riqueza de representações sobre a infância nos livros didáticos.
Para subsidiar a construção da representação de criança-cidadã busquei historiar,
sucintamente, desde o início do século XX, o debate em relação aos direitos da criança. No
primeiro capítulo, é apresentada a categoria “menor” como uma construção social
recorrente no meio jurídico e assistencial, para quem eram dirigidas as políticas de
institucionalização. Esta representação sobre a infância pauperizada é discriminatória e
2
Disponível em: <www.brasil.gov.br/emquestao>. Acesso em:16/05/2006.
19
estigmatizante, assim o Estatuto da Criança e do Adolescente como instrumento jurídico
tentou bani-la. Entretanto, a mídia tem mantido o seu uso, principalmente, quando noticiam
delitos praticados por crianças de rua. Assim constam deste capítulo: a criação do Fundo
das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) após a Guerra Mundial, a proclamação da
Declaração dos Direitos da Criança (1959), a elaboração do Código de Menores (1927,
reformulado em 1979) e a sua substituição pelo Estatuto da Criança e do Adolescente
(1990), instrumento jurídico em vigor que passou a considerar as crianças e os adolescentes
como “sujeitos de direito” e não mais como “objetos de proteção”. Foram chamados e/ou
chamadas para interlocução sobre a questão dos direitos Norberto Bobbio (1992); Faleiros
(1995), Irma Rizzini e Irene Rizzini (2004) para conhecermos o percurso histórico da
institucionalização de crianças no Brasil, sob o estigma de “menores”, e Maria Luiza
Marcílio para o histórico dos direitos da criança.
Sendo o processo civilizatório pressuposto para a formação da cidadania e a
escola como um dos agentes que contribuem para civilizar o indivíduo, o capítulo II enfoca
o papel da escola na construção da representação da criança-cidadã. Neste capítulo, são
estudadas as razões que levaram à escolarização da criança, revisitadas as teorias
pedagógicas pertinentes ao século XX e aos nossos dias, além de outras representações
sobre a infância. Para debater o processo civilizatório estão presentes Norbert Elias e Roger
Chartier (1990); na escolarização da criança Philippe Ariès (1981), Julia Varela e Alvarez-
Uria (1992); para as teorias pedagógicas Varela (2002) e Aranha (1989), para outras
representações sobre a infância Narodowski (2000) e Postman (1994).
O capítulo III apresenta o livro didático como fonte de pesquisa, um breve
histórico do ensino de História e da política do livro didático, no século XX, a edição dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para o ensino de História e Geografia (1997), o
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e o processo de escolha dos livros didáticos
e, finalmente, a metodologia empregada para a análise dos livros didáticos com os
resultados obtidos. Os autores e autoras que embasaram esses estudos foram Circe
Bittencourt (2003), Kátia Abud (2001), Dominique Juliá (2002), Freitag, Costa e Motta
(1993), entre outros.
Para a realização desta pesquisa foram feitas algumas visitas às escolas da rede
pública do município do Rio de Janeiro, situadas na Tijuca. A finalidade destas visitas era a
20
obtenção de exemplares dos livros didáticos a serem analisados e dos Parâmetros
Curriculares Nacionais de História e Geografia (as duas disciplinas escolares estão no
mesmo volume). Nestas ocasiões, mantive contato com diretoras, diretoras-adjuntas,
coordenadoras pedagógicas e professoras regentes. Nos rápidos contatos, apresentava o
propósito do meu trabalho, havendo, algumas vezes, interesse de algumas professoras pelo
trabalho a ser desenvolvido. Devo registrar, que uma coordenadora pedagógica comentou
ser “a escolha do livro didático uma atividade nem sempre valorizada por todas as pessoas
envolvidas no processo”. Sobre a escolha do livro didático, Miranda e Luca (2004) afirmam
que:
Outro ponto sensível, identificado em todas as pesquisas mais recentes a respeito da
escolha de livro didático, está no desempenho agressivo das editoras no mercado, que
se valem de sofisticados esquemas de distribuição e vendas, a ponto de influir
decisivamente nos processos de escolha nas escolas de todo país. Naturalmente, as
empresas mais bem estruturadas desfrutam de larga vantagem frente às editoras
menores.
Neste sentido, aquela profissional da educação observou que encontros com a
participação de especialistas das disciplinas escolares e os/as professores/as do primeiro
segmento do ensino fundamental poderiam atenuar ou quase neutralizar a forte influência
exercida pelas editoras, aumentando as possibilidades de opções mais adequadas para cada
escola.
21
CAPÍTULO I
AS REPRESENTAÇÕES SOBRE A INFÂNCIA EM UMA DIMENSÃO JURÍDICA
Este capítulo trata das representações sobre a infância nas dimensões jurídica,
social e política, pois uma vinculação estreita entre elas, além da perspectiva histórica,
que permeia todas estas áreas do conhecimento.
Opta-se por uma perspectiva cronológica da história, chamada de conservadora
ou clássica, por ser didaticamente mais empregada, sem estar a favor de uma perspectiva
evolucionista ou linear da história.
Os objetivos deste capítulo são identificar as diferentes representações sobre a
infância, que foram e/ou estão sendo construídas no campo legal e entender como a
jurisdição brasileira tem tratado a questão da infância, principalmente, nos séculos XX e
XXI.
As fontes de pesquisa utilizadas são as normativas internacionais (declarações,
convenções
3
, regras e diretrizes), a legislação brasileira (constituições, estatutos, códigos
4
,
etc) e uma bibliografia específica sobre os direitos humanos e os direitos da criança. Na
contemporaneidade, as representações sobre a infância no campo jurídico podem ser
estudadas a partir das convenções internacionais e das legislações que lhes foram
destinadas, em âmbito nacional. Cabe a cada Estado soberano legislar, defender e respeitar
os direitos fundamentais que baseiam o regime democrático, expressos na sua Constituição.
Neste capítulo, são trabalhadas as influências na cultura brasileira do debate
internacional sobre os direitos humanos. A partir do século XX, teve início o processo de
construção dos direitos da criança que resultou na Declaração Universal dos Direitos da
Criança, em 1959, culminando com a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, em
1989. Como indica Norberto Bobbio (1992, p.9), estes direitos da criança são chamados de
3
“Convenção- instrumento de direito mais forte que uma declaração. A declaração sugere princípios pelos
quais os povos devem guiar-se. A convenção vai mais além, estabelece normas, isto é, deveres e obrigações
aos países que a ela formalizem sua adesão. Ela confere a esses direitos à força de lei internacional, não
sendo, no entanto, soberana aos direitos nacionais” (Disponível em: <http://www.risolidaria.org.br>, acesso
em 09/02/2006).
4
Código: “Conjunto de disposições legais sistematizadas, relativas a um ramo do direito” (SIDOU, 1996).
22
direitos sociais
5
, sendo na sua maior parte denominados direitos de segunda geração
6
e
aparecem nas declarações internacionais e nacionais.
23
princípios, a criança do mundo, ou seja, toda e qualquer criança de qualquer nação teria os
mesmos direitos:
1 – a criança tem o direito de se desenvolver de maneira normal, material e espiritual;
2 a criança que tem fome deve ser alimentada; a criança doente deve ser tratada; a
criança retardada deve ser encorajada; o órfão e o abandonado devem ser abrigados
e protegidos;
3 – a criança deve ser preparada para ganhar a vida e deve ser protegida contra todo
tipo de exploração;
4 a criança deve ser educada dentro do sentido de que suas melhores qualidades
devem ser postas a serviço de seus irmãos.
Nascia, principalmente, pelo princípio número 2 o paradigma
8
da criança como
“objeto de proteção”. De acordo com Helenice Braun (2001, p. 96), os direitos de segunda
e terceira ordem estão manifestados nos princípios de número três e número quatro,
respectivamente. No princípio de número dois, quando se lê: “a criança retardada deve ser
encorajada”, a visão da criança portadora de necessidades educativas especiais estava longe
de ser visualizada, pois isto ocorreu no final do século XX com a Conferência Mundial
sobre Necessidades Educacionais Especiais: Acesso e Qualidade, que resultou na
Declaração de Salamanca (Espanha, 1994), reconhecendo os direitos daquelas crianças.
Enquanto o princípio número três estava a serviço da relação capital-trabalho, alinhado à
perspectiva pedagógica da formação para e pelo trabalho.
Na verdade, os quatro princípios foram ampliados para dez, dando origem à
Declaração dos Direitos da Criança, firmada em Genebra, em 1924. Segundo Schneider
(1982), o Brasil reconheceu esses direitos em 1959, ano da Declaração Universal dos
Direitos da Criança.
Que representações sobre a infância brasileira podem ser identificadas nos
primeiros anos do século XX? Com o objetivo de encontrar respostas para esta indagação,
busco a partir do período republicano (1889), informações sobre que tratamento jurídico foi
dispensado à infância.
Francisco Quintanilha Veras Neto
9
(1996), em Breve história da evolução dos
direitos à cidadania das crianças e dos adolescentes no Brasil, considera a existência de
8
Cf. Maria da Glória Gohn (2004, p.13), em Teorias dos movimentos sociais: “Para nós um paradigma é um
conjunto explicativo em que encontramos teorias, conceitos e categorias, de forma que podemos dizer que o
paradigma X constrói uma interpretação Y sobre determinado fenômeno ou processo da realidade social”.
9
Disponível em: http://www.buscalegis.usfc.br/arquivos. Acesso em: 21/02/2006.
24
quatro períodos da assistência à infância e à juventude no Brasil: 1- “caritativo-religioso”
(de 1500 a 1889); 2- “filantrópico-científico-higienista” (de 1889 a 1964); 3- “militar-
científico” (de 1964 a 1988); 4- “democrático-humanista” (de 1988 até os dias atuais). É
uma classificação bastante coerente, a despeito do risco de se dividir os acontecimentos
históricos em períodos estanques, sugerindo-se que a emergência de novos modelos e
paradigmas suprimam os anteriores. Interessa ao presente estudo abordar o corte temporal
de 1889, pois foi na chamada Velha República (1989/1930) que o Decreto n. 17.943
A/1927 (Código de Menores ou “Mello Mattos”) “consolidava as leis de assistência e
proteção a menores”. Por esta lei, oficialmente, houve uma cisão da infância, entre duas
categorias sociais: a de criança e a de “menor”. “O fato de ser abandonado, moral ou
fisicamente”, transformava “a criança pobre em um ‘menor’” (RIZZINI, 1993, p. 44),
assim a separação entre a criança pobre e o “menor” era uma linha tênue que colocava em
risco, por qualquer desvio, sua ultrapassagem pelos pobres, mantendo, muito mais distantes
dela, as crianças das camadas médias e altas. Entretanto, Londoño (1991, p. 129) registra
que, entre o final do século XIX e o início do século seguinte, o termo “menor” era
freqüentemente usado no meio jurídico brasileiro.
Que “circunstâncias” levaram o Brasil a aprovar o Código de Menores de 1927?
Sabe-se que, desde os tempos de colônia e império, a infância abandonada e desvalida foi
alvo de atendimento asilar. Ao ingressar na era republicana (1889), nos primeiros anos
do século XX, o deputado Alcindo Guanabara enviou à Câmara dos Deputados um projeto
regulamentando ‘a situação da infância moralmente abandonada e delinqüente’ (RIZZINI,
1995, p. 120). Neste projeto de lei de 1906, o termo “menor” era empregado no sentido
de criança abandonada moralmente ou como vítima de maus tratos físicos.
Alguns pontos básicos deste projeto foram:
O artigo 1 referia-se à situação de abandono moral ou de maus tratos físicos
sofridos pelo “menor”, que passaria para a proteção da autoridade judiciária;
a) Os artigos 2, 3 e 8, # 1 apresentavam dispositivos para suspensão, perda ou
devolução do Pátrio Poder, caso a família fosse incapaz legal e moralmente para manter a
criança sob sua guarda;
25
b) A idade mínima para a responsabilidade penal passou de nove (revisão de
idade, imposta pelo Código Criminal de 1830) para doze anos. Os que agissem com
discernimento seriam enviados para as “escolas de reforma”;
c) Como medidas de prevenção e tratamento seriam criados: um “depósito de
menores” na parte urbana da cidade do Rio de Janeiro, destinado ao recolhimento da
criança sob a responsabilidade da autoridade blica até que fosse encaminhada ao seu
“destino legal”; duas “Escolas de Prevenção”, uma para meninos e outra para meninas
moralmente abandonadas, na zona urbana da cidade; uma “Escola de Reforma”, sendo que
em uma de suas partes funcionaria a atividade industrial para o trabalho de menores
absolvidos e na outra parte seria praticada a atividade agrícola por menores delinqüentes
condenados.
No entendimento atual, poder-se-ia considerar que as determinações contidas
nestes artigos apontavam para uma preocupação com a punição e a segregação da criança,
abandonando-se a tentativa e/ou intenção de um encaminhamento mais humano e educativo
como possibilidade de sua inclusão social. Todavia, para as autoridades da época a criação
de “escolas” destinadas ao atendimento das diversas categorias de “menor”, que vinham
sendo discriminadas, era o melhor atendimento a oferecer, de acordo com os debates
daquele momento e as experiências de diversos países, tidos por mais adiantados.
Irene Rizzini e Irma Rizzini (2004, p. 39) apresentam a categoria “menor”,
como uma construção social recorrente no meio jurídico e assistencial, para quem eram
dirigidas as políticas de internação. As autoras afirmam que:
As representações negativas sobre as famílias cujos filhos formavam a clientela da
assistência social nasceram junto com a construção da assistência à infância no
Brasil. A idéia de proteção à família era antes de tudo proteção contra a família. Foi,
sobretudo, a partir da constituição de um aparato oficial de proteção e assistência à
infância no Brasil, na década de 1920, que as famílias das classes populares se
tornaram alvo de estudos e formulações de teorias a respeito da incapacidade de seus
membros em educar e disciplinar os filhos.
Além da categoria “menor”, Adriana Vianna (1997) registra a categoria
“pivete” como uma representação policial, desde a década de 1910. Segundo a autora, o
“pivete” era o “menor” que havia marcado várias passagens pela delegacia policial, ficando
26
com aquele rótulo. Ambas são consideradas discriminatórias e estigmatizantes,
permanecendo como representações sobre a infância pauperizada até os dias de hoje.
Desde o início do século XX, existia uma nítida dicotomia entre a infância
brasileira. Para uns, a criança era símbolo de esperança, a geração responsável pelo futuro
do país, idéia que permanece, como, por exemplo, no “Projeto Criança-Esperança” da Rede
Globo de Televisão (FALEIROS, 1995, p. 96). Para outros, a criança não é nem inocente
nem pura, pois nela se manifestam sinais de malícia e maldade. As palavras do jurista Helio
Lobo (1907, p. 28, apud RIZZINI, 2002, p. 37) o bem significativas: “[...] contentamo-
nos de confessar que aquella lenda da alma infantil cândida e altruísta, está morta”.
De uma forma ou de outra, crescia o interesse pela infância, despertando na
sociedade brasileira, notadamente entre as elites formadas por autoridades públicas,
juristas, médicos, educadores e jornalistas, a idéia de protegê-la (RIZZINI, 1993, p.25).
Neste sentido, em 1922, o tema “proteção da criança” motivou o I Congresso Brasileiro de
Proteção à Infância, presidido pelo Doutor Moncorvo Filho. Este renomado médico já
havia criado, em 1899, o Instituto de Assistência e Proteção à Infância no Rio de Janeiro,
com o objetivo de “amparar e proteger a infância necessitada”, sendo, portanto, uma obra
médica- assistencial-filantrópica destinada às crianças pobres. Por seus relevantes serviços
foi reconhecido como de Utilidade Pública Municipal pelo Decreto 2.340/1920
(RIZZINI, 1995, p. 118 - 127), o que denota o apoio dado pelo poder estatal a certas
entidades privadas.
Em 1923, a Justiça do Distrito Federal foi reorganizada e, assim, criado o cargo
de Juízo de Menores, sendo Mello Mattos, o primeiro Juiz de Menores nomeado na
América Latina (RIZZINI, 2002, p. 26). Esta reforma foi realizada para que o Estado
criasse mecanismos de defesa contra a “criminalidade infantil” que começava a preocupar
alguns setores da sociedade.
Até 12 de outubro de 1927 (decreto 17.943 A), data da promulgação do
Código de Menores, uma gama de decretos foi aprovada, mas toda legislação baseava-se no
paradigma da “criança como objeto de proteção”. Mas, seria a “proteção do menor” ou a
proteção para algumas classes sociais diante de um suposto aumento da “delinqüência
infantil”?
27
O Código de Menores
10
(1927), bastante complexo em seus 231 artigos, foi
resultado da fusão entre a visão higienista dos médicos com a visão repressiva e moralista
dos juristas. A visão higienista traduzida, principalmente, pelos artigos do Capítulo II,
enquanto a visão jurídica estava expressa, especialmente, no Capítulo X, além da visão
assistencialista/institucional. O Estado reconhecia suas obrigações de proteção, marcando
as suas características como paternalista
11
, clientelista
12
e patrimonialista
13
(FALEIROS,
1995).
O Capítulo IX, que tratava da regulamentação do trabalho, trouxe mudanças no
sentido de proteger as crianças e adolescentes, da perversa relação capital x trabalho do
sistema capitalista. Ficou proibido o trabalho para menores de doze anos; entre doze e
quatorze anos de idade seria permitido o trabalho para aqueles com instrução primária,
salvo em casos autorizados por autoridade competente, quando necessário para subsistência
da família, desde que recebessem “instrução escolar”; os menores de dezoito anos não
poderiam trabalhar à noite (19:00h às 05:00h) e nem desempenhar atividades que
colocassem em risco a vida, a saúde e a moral; a jornada de trabalho foi estabelecida em
seis horas, no máximo, com um ou mais intervalos de no mínimo uma hora. No entanto,
houve resistências de alguns setores industriais à lei (FALEIROS, 1995).
As classificações sobre a infância e adolescência adotadas pelo Código de 1927
correspondem às representações correntes nos meios urbanos da época. A ampla categoria
“menor” recebeu as seguintes especificações: criança de primeira idade – aquela com
menos de dois anos; exposto criança abandonada com até sete anos de idade (categoria
existente antes de 1927, embora o sistema das rodas fosse excluído pelo artigo 15, do
10
Disponível em: http://www.risolidaria.org.br. Acesso em: 09/02/2006.
11
Cf. Nicola Matteucci: “na linguagem vulgar, Paternalismo indica uma política social orientada ao bem-estar
dos cidadãos e do povo, mas que exclui a sua direta participação: é uma política autoritária e benévola, uma
atividade assistencial em favor do povo, exercida desde o alto, com métodos meramente administrativos. Para
expressar tal política, nos referimos então, usando uma analogia, à atitude benevolente do pai para com seus
filhos ‘menores’” (2000, v. 2, p. 908).
12
Cf. Arno Vogel: “para a tradição política local as instituições assistenciais foram desde sempre
instrumentos de clientelismo, quer para a concessão de prebendas político-burocráticas, quer para o
apadrinhamento de eleitores...” (1995, p. 320). É exemplo de clientelismo na atualidade: Paternidade de
Bolsa Família em disputa” (Jornal do Brasil, 05/03/2006, p. A1), por esta matéria, grande parte dos
beneficiários pelo programa social do governo federal atribuem às prefeituras, encarregadas do
cadastramento, pelo benefício dado pelo Programa (ver p. A2-A3).
13
Cf. Vicente de Paula Faleiros: “significando a apropriação de um bem público de forma privada,
colocando-se o setor público a serviço de interesses privados, com o favorecimento de verbas, cargos e
privilégios em benefício privado. Ao mesmo tempo os atores ocupantes de postos públicos buscam favores,
legitimação e consenso em torno de seus nomes juntos aos setores privados” (1995, p. 50-51).
28
Capítulo III deste decreto); vadio - menor de dezoito anos ao ser encontrado vagando
habitualmente pelas ruas; mendigo – o que pede esmolas ou donativo sob pretexto de venda
ou oferecimento de objetos; libertino o que pratica a prostituição ou vive da prostituição
de alguém. Todos os casos de vadiagem ou mendicidade habitual (apreensão ocorrida mais
de duas vezes), de libertinagem e de criminalidade (incluindo os “excitados habitualmente
para a gatunice” Capítulo IV, artigo 26) implicariam na internação do “menor”. De
dezoito (18) a vinte e um (21) anos de idade correspondem às categorias de “vadios”,
“mendigos” e “capoeiras”, que seriam recolhidos à “Colônia Correccional” (Capítulo
VII, artigo 78) , permanecendo de um até cinco anos.
Enfim, o Código de 1927 trouxe não propriamente uma política de proteção,
mas firmou condições legais para institucionalizar a criança e/ou adolescente. Pilotti (1995,
p. 41) comenta que as pesquisas recentes sobre institucionalização apontam mais para os
prejuízos do que para os benefícios trazidos à maioria das crianças internadas. Os aspectos
negativos para o desenvolvimento do indivíduo são: falta de interação social fora dos muros
da instituição, limitando as relações sociais; permanente convívio dentro do mesmo espaço
físico, com os mesmos companheiros e as mesmas autoridades; atividades impostas às
crianças, que seguem uma rotina rígida; vigilância constante; exigência de disciplina,
subordinação e obediência irrestrita. Estes aspectos negativos limitam a inclusão social
destas crianças quando saem da instituição. Por estes e outros motivos, a institucionalização
parece não ser a melhor alternativa. A institucionalização nos remete a refletir sobre a
“panóptica” de Foucault, em sua obra Vigiar e Punir (1997).
Neste período (início do século XX), apesar do Brasil continuar a ser um país
de população predominantemente rural, a população urbana das cidades de São Paulo e Rio
de Janeiro aumentou muito. O crescimento populacional causado, principalmente, por
movimentos migratórios internos e externos provocou maiores demandas sociais. As
oligarquias da República Velha (1889/1930) se opunham a uma legislação social. Vale
lembrar as palavras de Faleiros (1995, p. 53):
A República, proclamada em 15 de novembro de 1889 pelo Marechal Deodoro da
Fonseca, representa, ao mesmo tempo, ruptura e continuidade com o Império. Ruptura
na forma de governo, continuidade no conteúdo. Ruptura com a forma pessoal de
governar do Imperador, mas continuidade das relações clientelistas e coronelistas,
29
que sustentavam o poder com troca de favores, com
30
controle e à sua orientação, entrosando-os na engrenagem de suas instituições oficiais
e administrativas e estabelecendo a progressiva identificação da assistência social
privada com a assistência social pública.
Como exemplo de articulação entre o público e o privado, o Departamento
Nacional da Criança (DNCr) prestava atendimento às crianças associando serviços médicos
com assistência privada, realizada pelo Serviço de Obras Sociais (SOS), fundado em 1934.
As necessidades infantis atendidas eram: hospitalização, doação de remédios,
institucionalização em asilos e orfanatos, além de ensinar higiene e trabalhos domésticos.
Cabe assinalar, que entre outras atribuições, o DNCr ocupava-se em combater as
“criadeiras”, mulheres que tomavam conta de crianças, sem qualquer orientação para a
atividade, em contrapartida incentivava a abertura de creches, havendo o predomínio das
creches particulares. O órgão fazia campanhas educativas, inclusive do aleitamento materno
(FALEIROS, p. 67 –70).
A atenção à criança e ao adolescente deve ser vista, também, por uma outra
face, quer dizer, fazia parte do plano anticomunista que resultou no Golpe de 1937 e
instalou o chamado Estado Novo. Este governo autoritário tinha como um de seus objetivos
a real industrialização do país, considerada como garantia para a defesa/segurança nacional,
adotando um modelo de desenvolvimento industrial estatizante. Para colocar em prática tal
objetivo era fundamental que a “instrução escolar” oferecida às crianças e aos adolescentes
das classes subalternas estivesse voltada para o setor secundário da economia a indústria.
Desta forma, na ditadura varguista (1937/1945) o ensino industrial foi estabelecido pela
Constituição de 1937 e incluído na Divisão de Ensino Industrial; em 1942, foi criado o
Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) destinado ao ensino profissional de
menores pobres, articulando-se o poder estatal com o setor privado (FALEIROS, 1995).
Também, foram criados os seguintes órgãos: o Conselho Nacional de Serviço Social (1938)
vinculado ao Ministério da Educação e Saúde, o Departamento Nacional da Criança
(DNCr, 1940) com responsabilidade sobre a questão higienista, o Serviço de Assistência a
Menores (SAM, 1941) estava vinculado ao Ministério da Justiça e aos Juizados de
Menores e a Legião Brasileira de Assistência (LBA, 1942). Portanto, Vargas adotou a
“política do menor” caracterizada pela repressão, assistencialismo e defesa da raça, no
sentido de promover a eugenia (FALEIROS, 1995).
31
No final dos anos 30, a conjuntura externa apresentava-se ameaçadora e a Liga
das Nações não conseguiu evitar que mais um conflito armado fosse deflagrado a
Guerra Mundial (1939/1945). Logo após o término desta guerra, foi instituída a
Organização das Nações Unidas (ONU 24 de outubro de 1945) com o objetivo de manter
a paz planetária, além de preocupar-se com os problemas econômicos e sociais do mundo.
Em 1946, a Assembléia Geral da ONU criou o Fundo das Nações Unidas para a Infância
(UNICEF), que inicialmente chamava-se United Nations International Children´s
Emergency Fund – Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para as Crianças
com o objetivo de salvar crianças dos países atingidos pela Guerra Mundial. Desta
forma, os países integrantes da ONU reconheceram que a infância merecia atenção
especial
14
. Naquele mesmo ano (1946), a ONU constituiu a Comissão de Direitos Humanos
que redigiu a Declaração Universal dos Direitos do Homem
15
, aprovada por todos os
membros da Assembléia Geral da ONU, em 1948.
Bobbio (1992, p. 23-24) adverte que não basta a formulação e proclamação dos
direitos bem fundamentados, mas criar condições para que sejam exeqüíveis, ou seja, um
direito ainda que revestido pelo poder de convicção de seu fundamento poderá não ser
colocado em prática. Ou nas palavras do autor: O problema fundamental em relação aos
direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de
um problema não filosófico, mas político”. Observa-se que esta assertiva é aplicada,
particularmente, em relação aos direitos sociais, também chamados de direitos de “segunda
geração”. Bobbio esclarece que as declarações nascem da filosofia, para depois os direitos
passarem da teoria à prática, ganhando concretitude e tornando-se direitos protegidos ou
direitos positivos, mas terão valor no Estado que os reconhecer. De direitos do homem
transformam-se em direitos do cidadão dentro de um determinado Estado, quer dizer a
Constituição será responsável por esta transformação, ao reconhecer a proteção jurídica dos
direitos. Lembrando, ainda, que o campo dos direitos sociais é dinâmico, a cada momento
14
Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br. Acesso em: 07/01/2006.
15
Existe a Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos, baseada no Alcorão Sagrado e na Sunnah
(Paris, 1981), proclamada na Conferência Internacional sobre o Profeta Muhammad e sua mensagem,
ocorrida em Londres, no período de 12 a 15 de abril de 1980. Nos “Direitos invioláveis e inalienáveis,
considerados ordenados pelo Islam” encontra-se o capítulo XIX- Direito de Constituir Família e Assuntos
Correlatos”, onde estão dispostos os direitos da criança (disponível em http://direitoshumanos.usp.br).
32
novas demandas de proteção social podem surgir, pois está atrelado ao processo histórico,
onde lutas por emancipação e de mudanças na vida de uma sociedade ocorrem.
Retomando a trajetória do UNICEF, em 1950, praticamente superada a
situação do mundo pós-guerra, a Assembléia Geral da ONU recomendou que o UNICEF
prestasse auxílio à infância dos países do Terceiro Mundo, com o objetivo de melhorar as
condições de saúde e de nutrição das crianças (MARCÍLIO
16
). Fica claro, que esta ação de
solidariedade encobre o interesse de deter o avanço do socialismo em direção aos países
pobres, ou seja, a Guerra Fria estava começando e esta era uma das estratégias dos países
capitalistas do Primeiro Mundo. Em 1953, o UNICEF passou a ser um órgão permanente
da ONU
17
e, em 1958, ampliou seu campo de ação para os serviços sociais destinados à
criança e à sua família (idem). O UNICEF elabora e divulga estudos, conferências regionais
e internacionais, como a Conferência de Santiago do Chile (1965) e assessora com seus
técnicos as instituições voltadas para a infância (ROSEMBERG, 2001, p.147-152). No
Brasil, o DNCr atuou como executor dos programas do UNICEF, este último até hoje, se
articula com várias organizações não governamentais, participou ativamente da elaboração
do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e mantém seu escritório em Brasília
(FALEIROS, 1995).
1.2 Da Declaração Universal dos Direitos da Criança à emergência do Estatuto da
Criança e do Adolescente
Em 20 de novembro de 1959, a Assembléia Geral da ONU proclamou a
Declaração Universal dos Direitos da Criança, documento inspirado na Declaração dos
Direitos Universais do Homem. No novo documento, a infância é reconhecida em sua
especificidade. Como Bobbio nos ensinou, toda declaração nasce de uma teoria filosófica,
assim também a Declaração Universal dos Direitos da Criança nasce de uma concepção de
infância e seus direitos sociais são justificados por condições históricas, que demandam
novos carecimentos e interesses da sociedade em relação à criança e ao adolescente. Mas,
para que os direitos sociais da infância se tornem positivos, é mister o seu reconhecimento
16
Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br>. Acesso em: 07/01/2006.
17
A UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), uma das agências da
ONU, criada em 1945 na Convenção de Londres (Inglaterra), com o objetivo de “promover a paz e os direitos
humanos”, começou suas atividades no Brasil em 1972 e possui escritório em Brasília (disponível em
http://www.direitoshumanos.usp.br). Acesso em: 07/01/2006.
33
jurídico por cada Estado, com o compromisso de protegê-los, para que crianças e
adolescentes possam ser vistos como cidadãos, o que levará um tempo para acontecer, pois
se trata de um processo gradual.
A Declaração dos Direitos da Criança enunciava que toda a criança teria direito:
[...] à igualdade, sem distinção de raça, religião ou nacionalidade; à especial
proteção para o seu desenvolvimento físico, mental e social; a um nome e a uma
nacionalidade; à alimentação, moradia e assistência médica adequadas para a
criança e a mãe; à educação e a cuidados especiais para a criança física ou
mentalmente deficiente; à educação gratuita e ao lazer infantil; a ser socorrida em
primeiro lugar, em caso de catástrofes; a ser protegida contra o abandono e a
exploração no trabalho; a crescer dentro de um espírito de solidariedade,
compreensão, amizade e justiça entre os povos (UNICEF, apud Rizzini, 1995, p.149-
150).
Entretanto, a legislação vigente e as condições desumanas de grande parte das
crianças brasileiras estavam (ou estão?...) destoantes com o conteúdo desta declaração.
Naquele momento (entre as décadas de 1950/1960) o SAM passava, talvez, por sua pior
fase, devido aos (des)cuidados que dispensava às crianças e aos adolescentes internados;
era chamado de “Escola do Crime, Fábrica de Criminosos, Sucursal do Inferno, Fábrica de
Monstros Morais e SAM – Sem Amor ao Menor” (RIZZINI, 1995, p. 278). Graças ao SAM
(1941/1964) disseminou-se o termo “menor transviado”, correspondente ao “menor
delinqüente”, como representação social da criança ou do adolescente que cometia ou era
cúmplice de crime ou contravenção (RIZZINI e RIZZINI, 2004, p. 91 e 93). As críticas ao
SAM feitas por jornalistas, juristas e pela própria opinião pública concorreram para sua
extinção.
Desta forma, uma parcela da sociedade clamava pela reformulação do digo
de Menores de 1927. Rizzini (2002, p. 56-57) destaca a proposta de reforma do Código de
Menores elaborada pelo Deputado André Araújo, o Estatuto Social da Infância,
considerado “revolucionário” para aquela época (anos 50) e, conseqüentemente, não foi
aceito com a justificativa de não possuir “rigor técnico”. Além deste, outros projetos
tramitavam pelo Congresso Nacional sem sucesso. Segundo Rizzini (1995, p. 285), as
críticas disseminadas pela imprensa e os resultados da Comissão de Sindicância do SAM,
instaurada em 1961, para investigar a corrupção e os abusos cometidos durante as várias
gestões do SAM, justificaram a extinção do antigo órgão pelo governo militar. Com os
34
militares no poder, instituiu-se a Política Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM),
alinhada à ideologia de segurança nacional. O SAM foi substituído pela Fundação Nacional
do Bem-Estar do Menor (FUNABEM) no mesmo ano do golpe militar.
Alguns autores como Bazílio (1985) e Rosemberg (2001) afirmam que o Estado
Militar de 1964 considerava o menor” como “objeto de Segurança Nacional”. Embora o
PNBEM apresentasse um discurso integrador, na prática predominavam a repressão e a
institucionalização das crianças e dos adolescentes. Utilizando-se a expressão “menor
desassistido”, a FUNABEM criou novas categorizações para a infância pobre e
marginalizada: o “menor carenciado”, popularmente chamado de “menor carente”, aquele
em situação de abandono, e o “menor de conduta anti-social” ou o menor infrator (RIZZINI
e RIZZINI, 2004, p. 91). Couto e Melo (1998) indicam a mudança de denominações
encontradas no Código de Menores para as empregadas pela FUNABEM, os “menores
moralmente abandonados” passaram a ser “menores carenciados” e os “menores
delinqüentes” passaram a ser “menores de conduta anti-social”, aumentando a possibilidade
de internação das crianças e dos adolescentes pobres. Mudaram-se os rótulos, mas o
estigma continuava o mesmo.
Como nos lembra Rosemberg (2001, p.142), durante a Guerra Fria foi
formulada a Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento, que culminaria com a
imposição de um sistema de controle e dominação contra os inimigos, identificados como
comunistas ou subversivos. Os chamados “bolsões de pobreza” representavam para os
idealizadores da Doutrina de Segurança Nacional um risco, pois poderiam servir de cleo
para a expansão subversiva. A preocupação com a população pobre orientou, também, a
teoria do Desenvolvimento de Comunidade (DC), que estrategicamente envolveria a
participação da comunidade na implantação de políticas sociais, como prevenção à
expansão comunista. A autora registra que, em 1956, a ONU definia o Desenvolvimento de
Comunidade como uma aliança entre o povo e o governo com objetivo de “melhorar as
condições econômicas, sociais e culturais das comunidades, integrar estas comunidades na
vida nacional e capacitá-las a contribuir plenamente para o progresso do país” (p. 146).
Assim, nos anos 70 houve uma associação de organismos internacionais, principalmente o
35
UNICEF
18
, com o governo militar para implantação de programas educacionais dirigidos à
infância pauperizada, empregando a estratégia de ‘participação da comunidade’ (p.141).
Concordo com a síntese de Rosemberg, que naquele momento para o Estado brasileiro:
“investir na criança significaria investir na segurança nacional” (p. 153).
Durante o governo militar, a redução da idade mínima para o trabalho infantil
aos doze anos, estabelecida pela Constituição Federal de 1967 (FALEIROS, 1995, p.81),
resgatou uma prática antiga na tentativa de solucionar o chamado “problema do menor”,
isto é, a sua inserção precoce no mercado de trabalho. Ou como afirma Bazílio (1998, p.
105):
Ao longo da história do atendimento à infância e ao adolescente no Brasil foram
formuladas diversas alternativas de atendimento que privilegiaram o trabalho como
princípio educativo. Desde a fundação da “Escola de Aprendizes e Marinheiros”
(1873) até as recentes “cooperativas” que reúnem e remuneram o adolescente
diferentes propostas foram elaboradas.
Congressos internacionais, realizados na década de 1970, já expressavam a
tendência de considerar o “menor como sujeito de direitos” e não “objeto de direitos”
(RIZZINI, 1995, p.155). Entretanto, esta tendência não encontrava eco no Brasil. Pelo
contrário, a situação do “menor” se agravou de tal forma, que em 1975 foi instaurada a
“Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Menor Abandonado”, calcada em uma
concepção que associava a pobreza da família ao abandono da criança. Neste período,
começa a se disseminar a noção de que 30 milhões de menores estavam abandonados no
Brasil, índice estimado de crianças e adolescentes vivendo em situação de pobreza. Para
Rizzini (1995, p. 315) as representações que embasam essa CPI são: menores carenciados
e/ou abandonados; menores marginalizados ou “quase” marginalizados (em vias de
marginalização). Em seu relatório, a CPI alertou para o aumento da taxa de criminalidade e
de insegurança gerada pelos “menores infratores”, praticando assaltos, furtos e outros
delitos, prejudicando a vida nas grandes cidades brasileiras. Até o turismo estava afetado,
visto que os turistas eram as maiores vítimas dos “menores infratores”. Apontaram, então,
para a urgência na aplicação de medidas preventivas e de recuperação dos “menores
18
Cf. Fúlvia Rosemberg (2001, p.147) no estudo A LBA, o Projeto Casulo e a Doutrina de Segurança
Nacional: “o modelo de uma pré-escola brasileira de massa, desempenhando também a função de assistência,
foi introduzido no Brasil sob a influência de propostas divulgadas pelas organizações intergovernamentais,
em especial o UNICEF e a UNESCO”.
36
infratores”, além de solicitar a reformulação do Código de Menores (FALEIROS, 1995,
p.79-80).
A partir de 1975, ocorreram mudanças no panorama político da ditadura militar
como: o lento fim da censura à imprensa, a anistia para os exilados políticos, o
abrandamento da Lei de Segurança Nacional e a revogação do Ato Institucional 5 (AI5).
Em 1979, tomou posse o último presidente militar, João Batista Figueiredo, que encerrou
esta lamentável etapa da nossa história em 1985. Foi nesse clima de mudanças, que,
finalmente, foi promulgado o novo Código de Menores
19
(Lei n 6.697, de 10 de outubro de
1979).
O novo Código de Menores, composto por 123 artigos, criou a categoria de
“menor em situação irregular”, com concepção não muito diferente da vigente no antigo
Código de 1927, pois “expunha as famílias populares à intervenção do Estado, por sua
condição de pobreza” (RIZZINI e RIZZINI, 2004, p. 41). Pelo artigo 2, o “menor” estaria
em “situação irregular” quando: privado de condições essenciais (subsistência, saúde e
instrução obrigatória), por irresponsabilidade ou omissão do responsável, vítima de maus
tratos, por perigo moral ou privado de representação legal, por desvio de conduta ou por
autoria de infração penal. Faleiros (1995, p. 80) comenta que este código legalizou as
práticas da FUNABEM, deu mais poder ao Juiz de Menores e transformou o “menor” em
réu, quando na realidade era uma vítima. Ao comparar os dois códigos, entendo que houve
mais um retrocesso, porque o de 1927 afirmava: “consolida as leis de assistência e
proteção a menores”, enquanto o de 1979 declara sua intenção também de “vigilância a
menores” (artigo 1).
Na verdade, o Código de 1979 culpabilizava os pais ou responsáveis pela
situação irregular e a questão social da criança permanecia como uma questão jurídica e
assistencial, onde o juiz tinha o poder de decidir sobre a vida do “menor em situação
irregular”. As categorias de “menor abandonado” e de “menor delinqüente” do antigo
Código de Menores (1927) foram substituídas por uma nova categoria a de “menor em
situação irregular”, percebidas como “farinhas do mesmo saco” e a miséria como
ingrediente comum a encher o saco...
19
Disponível em: http://www.câmara.gov.br. Acesso em: 06/02/2006.
37
A irregularidade da criança era causada, principalmente, por sua pobreza; não
havia um comprometimento efetivo em sanar suas causas, apenas de domesticá-la com
assistencialismo público ou privado. Não dando resultado, a saída era a repressão com o
confinamento em instituição.
O Código de 1979 foi bastante atacado em vários pontos, principalmente, na
Parte Especial, Título II, Capítulo II Da apuração de infração penal, artigo 99: “o menor
de dezoito anos a que se atribua autoria de infração penal será logo encaminhado à
autoridade judiciária” (grifo meu). Azevedo Marques, Promotor Público, referindo-se a este
mesmo dispositivo legal considerou que houve um “retrocesso de mais de 50 anos, tendo
em vista o Código de 1927” (apud RIZZINI, 2002, p. 72).
Com a chegada da década de 1980, o cenário político e social encontra-se
bastante agitado: greves de trabalhadores; denúncias dos métodos repressivos do regime
militar, como as torturas e o caso da explosão da bomba no Riocentro; reforma partidária;
eleições estaduais e a Campanha das Diretas Já. A mobilização social teve repercussões na
“questão do menor”, como os “projetos alternativos” dos movimentos sociais, os quais
negavam a internação e a repressão, pois apresentavam ações mais diretas junto às crianças
e aos adolescentes (FALEIROS, 1995; RIZZINI, 2002; RIZZINI e RIZZINI, 2004). A
atuação das Organizações Não-governamentais (ONGs) de apoio a esses movimentos
sociais dentro das comunidades deu um novo rumo ao problema do “menor”. Por princípio,
as Organizações Não-governamentais não reconheciam funções assistencialistas em seu
trabalho, porque criavam ões junto às comunidades prevenindo “o desarraigamento da
criança de seu meio ambiente” (PILOTTI, 1995, p. 43). Neste período, surgiu mais uma
representação sobre a infância “o menino e a menina de rua”, que passam a ser “objetos
de projetos” de movimentos sociais (talvez melhor seria chamá-los de movimentos de
mobilização política) e de ONGs. O Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua
(MNMMR)
20
se organizou, realizou encontros nacionais e teve papel de destaque, com o
apoio internacional do UNICEF, junto aos trabalhos da Assembléia Constituinte (RIZZINI,
1995; RIZZINI e RIZZINI, 2004).
20
Cf. Mapeamento do cenário dos movimentos sociais no Brasil –1972-1997, realizado por Gohn (2004, p.
379- 381). O MNMMR aparece dentro do ciclo de “institucionalização de movimentos: 1985-1989” como um
dos “movimentos sobre temas específicos”, por ser geracional.
38
Em 5 de outubro de 1988, foi promulgada a Constituição Federal Brasileira,
restabelecendo o Estado de Direito. A Carta Magna, em seu Título VIII, Capítulo II, Seção
IV, artigo 203, I e II, trata da proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e
à velhice e do amparo às crianças e adolescentes carentes, respectivamente. Como Bobbio
(1992) explica são direitos pela “especificação com relação às várias fases da vida”. No
Capítulo VII, os artigos 227 e 228 traduzem direitos contidos na Declaração dos Direitos
Universais da Criança de 1959. Segundo Bobbio, “a afirmação de um direito implica a
afirmação de um dever e vice-versa”, de onde depreendemos que a cada direito corresponde
um dever, ou seja, os direitos das crianças implicam em deveres dos pais, da sociedade, do
Estado e das próprias crianças. Mas, o artigo 229 vai mais além: “os pais têm o dever de
assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e
amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”. Assim, este artigo apresenta uma
visão prospectiva, quer dizer: as obrigações dos pais de hoje para com seus filhos
corresponderão às obrigações dos filhos com seus pais no futuro.
O próximo passo seria a elaboração de um novo instrumento específico, capaz
de romper com a “doutrina da situação irregular” (FALEIROS, 1995, p. 80) ou “modelo
correcional repressivo” (ARANTES, 1995, p. 217) do Código de 1979, para que todas as
crianças e adolescentes, sem distinção, pudessem viver na “era dos direitos” (BOBBIO,
1992).
Voltando ao cenário internacional, em 1989, a Conferência Mundial sobre os
Direitos Humanos promoveu a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança,
com base no conteúdo da Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 20 de
novembro de 1959: “a criança, em virtude de sua falta de maturidade física e mental,
necessita proteção e cuidados especiais, tanto antes quanto após seu nascimento” (Senado
Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2003). A elaboração da Convenção sobre os
Direitos da Criança foi proposta desde 1979, Ano Internacional da Criança, sendo
concluída dez anos depois, devido às muitas divergências de idéias, prevalecendo, por fim,
a concepção de proteção integral à criança. A Convenção sobre os Direitos da Criança
21
, de
21
Cf. Preâmbulo: “tendo em conta que a necessidade de proporcionar à criança uma proteção especial foi
enunciada na Declaração de Genebra de 1924 sobre os Direitos da Criança e na Declaração dos Direitos da
Criança adotada pela Assembléia Geral de 20 de novembro de 1959, e reconhecida na Declaração Universal
dos Direitos Humanos, no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (em particular nos art. 23 e 24), no
39
1989, é constituída por cinqüenta e quatro (54) artigos, dispostos em três partes. Os artigos
1 ao 41 (1ª parte) definem e regulamentam os direitos da criança; no seu Preâmbulo
destaca-se a cooperação internacional no sentido da melhoria das condições de vida das
crianças, principalmente, nos países não desenvolvidos, onde um maior contingente de
crianças excluídas. Preserva à família o direito e o dever de criar seus filhos e filhas em
ambiente saudável e para uma vida futura independente, cabendo ao Estado ajudar os
responsáveis com dificuldades de cumprir seus deveres. O Comitê sobre os direitos da
criança é o órgão responsável pela implementação dos artigos da Convenção. Pela
Convenção, todo ser humano com idade inferior a dezoito (18) anos será considerada
criança e como tal terá proteção integral, com direitos individuais de natureza civil, política,
econômica, social e cultural, além de merecer tratamento especial em questões peculiares.
A Convenção
22
é o primeiro instrumento internacional que eleva a criança à condição de
sujeito de direitos (BRAUN, 2001).
A partir da Convenção dos Direitos da Criança, o Estado brasileiro deveria
rever seu papel, dividindo suas responsabilidades com a sociedade civil. Os “projetos
alternativos de atendimento ao menor” já estavam em curso, dando força à tendência de não
institucionalização. No lugar da extinta FUNABEM foi criada a Fundação Centro
Brasileiro para a Infância e Adolescência (CBIA), dentro do quadro de reforma
administrativa do primeiro presidente eleito por voto direto após o período militar,
Fernando Collor de Mello, que apesar dos pesares manteve a atuação da LBA (FALEIROS,
1995, p. 90).
Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (em particular no art. 10) e nos estatutos e
instrumentos pertinentes das Agências Especializadas e das organizações internacionais que se interessam
pelo bem-estar da criança” (Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2003).
22
Cf. Artigo 54: “O original da presente Convenção, cujos textos em árabe, chinês, espanhol, francês, inglês
e russo são igualmente autênticos, será depositado em poder do Secretário-Geral das Nações Unidas”. Além
de citar em seu art. 20 (parte 1) a “kafalah do direito islâmico” (Senado Federal, Subsecretaria de Edições
Técnicas, 2003, p. 177 e 191).
40
1.3 O Estatuto da Criança e do Adolescente e a proteção aos direitos
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
23
- Lei 8.069, de 13 de julho
de 1990, vinculou-se aos postulados da Declaração Universal dos Direitos da Criança,
tendo por base jurídica o Artigo 227 da Constituição Federal de 1988. Desta forma, o
Código de Menores de 1927, reformulado em 1979, foi revogado. Em 24 de setembro de
1990, o Brasil havia ratificado a Convenção sobre os Direitos da Criança e como Estado
– Parte firmou sua responsabilidade pela proteção integral da criança, assegurando-lhe
assistência adequada. Para a Convenção, a idade de dezoito anos limita a condição de ser
criança, enquanto o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece duas etapas: até doze
anos incompletos a pessoa é considera criança e de doze anos aos dezoito anos é
adolescente (BRAUN, 2001). Muitas são as diferenças conceituais e doutrinárias entre o
Código de Menores e o ECA, mas destaca-se a mudança paradigmática: as crianças e os
adolescentes deixaram de ser “objetos de proteção” e para serem “sujeitos de direitos”
(RIZZINI, 2002). Está posta pelo Estatuto da Criança e do Adolescente uma nova
representação sobre infância: a criança-cidadã, que precisa ser reconhecida por toda
sociedade brasileira.
Magalhães e Barbosa (2004, p. 314) defendem a idéia de que o estudo sobre o
atendimento à infância brasileira pode ser sistematizado por cinco categorizações,
afirmando:
a quinta categorização se refere à criança cidadã, concepção que sobressai nas
décadas de 1980 a 1990 e se caracterizou pela ênfase dada ao trabalho de
Organizações Não-governamentais (ONGs), pelo desmonte que o Estado brasileiro
efetiva em suas instituições de atendimento e pela participação da sociedade civil na
elaboração de diversos documentos.
Outros autores destacam, também, a atuação das ONGs, por isso Gohn (2004,
p.335) fez o seguinte registro quando se referiu aos anos 90 do século passado:
na América Latina alguns analistas deslocam as atenções para outro fenômeno social
que esteve meio oculto durante a fase de apogeu dos movimentos sociais no Terceiro
Mundo, as ONGs: as Organizações Não-governamentais. Alguns autores passam a
23
Cf. Wanderlino Nogueira Neto (2005, p.37), em seu artigo Por um sistema de promoção e proteção dos
direitos humanos de criança e adolescentes, assinala: A promulgação do ECA teve diferentes significados.
Nas mediações políticas estava claro que o presidente Fernando Collor de Mello assinou essa lei não por
convicção política, mas por pressões internacionais e nacionais, já que seu governo estava desacreditado
internacional e nacionalmente”.
41
tratar os dois fenômenos como sinônimos; outros, a desqualificar os movimentos ,
como coisa do passado. Outros ainda retomam os estudos sobre os movimentos sociais
de forma totalmente inovadora, enquanto fenômenos de uma nova sociedade civil [...].
Em 1991, foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
42
O Desenvolvimento de Comunidade tanto na teoria como na prática camufla as
verdadeiras causas dos “problemas de fome, doença, analfabetismo, pobreza etc.”, que não
estão no “atraso cultural”, mas nas estruturas econômicas, sociais e políticas conservadoras.
Entretanto, é um discurso convincente para muitos, principalmente, porque conta com o
apoio de organizações não governamentais e com a propaganda feita pela mídia. Ainda
sobre o Desenvolvimento de Comunidade, para Pilotti (1995, p.27):
[...] manifestaram-se diversas formas de reações “anti-estatistas” nas últimas
décadas como o “desenvolvimento da comunidade” nos anos sessenta, que dava
ênfase ao estímulo da iniciativa individual em pequena escala e aos projetos
concretos; o enfoque neoliberal, a partir dos anos setenta, com seu empenho na
redução da intervenção estatal, o corte dos gastos públicos e a privatização dos
serviços sociais; e, nos anos oitenta, a perspectiva dos ‘movimentos sociais’ com base
no papel de tais movimentos frente ao burocracismo e tecnocracismo estatais, a volta
às noções de comunidade e solidariedade e o controle descentralizado dos serviços
sociais.
Considero que os ideais do Desenvolvimento de Comunidade, com novos
sentidos e acepções, permanecem nos nossos dias.
1.4 Reflexões sobre a práxis do Estatuto da Criança e do Adolescente
O Estatuto da Criança e do Adolescente, composto por 267 artigos, é mais
complexo que os códigos anteriores e foi influenciado por normativas internacionais, como
a Declaração dos Direitos da Criança. Transcorridos dezesseis anos de promulgação do
Estatuto da Criança e do Adolescente, este documento ainda divide opiniões, enfrenta
resistências e críticas. O Estatuto da Criança e do Adolescente traz a marca da divergência,
pois foi resultado do esforço de diferentes grupos compostos por representantes dos
movimentos de defesa da infância e do poder público, e consultores de organismos
internacionais, que defendiam concepções próprias. Contou, inclusive, com oposição de
uma minoria de magistrados desejosos em manter a figura do juiz protetor (SILVA, 2005,
p. 39- 40).
Entretanto, na prática social permanecem as mesmas representações sobre a
infância para diferentes classes sociais: criança e menor (ARANTES, 1995, p.219). Arantes
(1995) exemplifica através de manchetes comumente encontradas em jornais brasileiros:
“menor ataca criança”. No imaginário popular, outras representações estão vivas: ‘pivete’,
43
‘trombadinha’, ‘menino de rua’ e ‘menina de rua’, mas todas relativas às crianças e aos
adolescentes das classes populares. Por sua vez, os “menores” constroem representações
identificadas pela autora como: ‘otário’, ‘bacana’, ‘Mauricinho’ e ‘Patricinha’, como
expressões de resistência”. Comenta, ainda, que uma parcela da sociedade faz a seguinte
crítica ao Estatuto da Criança e do Adolescente: ‘é uma boa lei para a Suíça, mas não para o
Brasil’. Por que não é uma boa lei para o Brasil?
O Estatuto da Criança e do Adolescente é um instrumento legal inovador
comparado aos Códigos de Menores (1927 e 1979), pois reconheceu as crianças e os
adolescentes como cidadãos, portadores de direitos subjetivos e deu a todos a garantia de
“proteção integral” (artigo 1). Assim, as descontinuidades podem ser enunciadas, entre elas:
a que havia sido apresentada no artigo 228 da Constituição Federal de 1988 - “são
penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas de legislação
especial” - correspondendo ao artigo 104 do Estatuto da Criança e do Adolescente,
contrastando com o Código de Menores que previa a apreensão de todos os suspeitos de ato
infracional com privação de liberdade e sem direito de defesa; o artigo 204 da Constituição
Federal de 1988, que deu origem à regulamentação feita pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente para criação dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e dos
Conselhos Tutelares com a participação da sociedade civil, além da municipalização com a
transferência de ações federais e estaduais para as prefeituras, que firmam convênios com
instituições locais para prestação de serviços.
Vários autores têm posições divergentes a respeito do Estatuto da Criança e do
Adolescente. Rizzini (2002, p. 80 - 81) destaca as seguintes mudanças: a pobreza não é
mais motivo para a suspensão ou destituição do Pátrio Poder (artigo 23); não é mais
permitida a prisão por simples suspeição (artigo 23); é garantido o direito de defesa (artigos
110 e 111).
As pesquisadoras Irene Rizzini e Irma Rizzini (2004, p. 68 - 69) apontam para
avanços e retrocessos quanto à institucionalização (artigos 101 e 106). Por um lado, a lei
prescreve que “o abrigo é medida provisória” e “nenhum adolescente seprivado de sua
liberdade senão em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da
autoridade judiciária competente”. Por outro, quase todas as crianças e adolescentes
entrevistadas/os em pesquisa realizada em 2002 na cidade do Rio de Janeiro (cerca de 70)
44
“consideram que são percebidos pela sociedade com preconceito” por suas passagens em
abrigos.
Segundo Passetti (1999, p. 370 - 373), as políticas contra o infrator (artigo 103)
continuam iguais, mesmo sendo visto como “inimputável”, é tratado como “delinqüente por
juízes e promotores que atuam ainda segundo a mentalidade do Código de Menores”. O
autor também faz veementes críticas ao artigo 112, que trata das “medidas sócio-
educativas” a serem aplicadas ao adolescente quando verificada a prática infracional pela
autoridade competente.
A recente pesquisa de campo realizada por Alves (2005, p.67) constatou que,
muitas vezes, o Juizado da Infância e da Adolescência tem aplicado medidas de internação
em vez de implementar outras medidas sócio-educativas alternativas em meio aberto,
previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Reforça-se a posição de Passetti, como
foi visto anteriormente. A autora registra (p.211) que a medida de internação é aplicada de
formas diferentes, isto é, de acordo com a classe social do adolescente infrator, já que
maior incidência de medida de internação quando se trata de “classes sociais
desprivilegiadas”. Geralmente, a “instância judiciária” opta por aplicar medida sócio-
educativa em meio aberto para “adolescentes das elites”, conservando a idéia “que esses
possuem família estruturada”. Entendo que este fato contribui para a permanência da antiga
cisão entre criança e “menor”.
O livro de Ana Paula Motta Costa (2005), intitulado As garantias processuais e
o direito penal juvenil como limite na aplicação da medida sócio-educativa de internação,
coloca, mais uma vez, em evidência o artigo 122 do Estatuto da Criança e do Adolescente,
que trata de medidas de internação, pois considera sua “redação vaga”, levando a
“interpretações subjetivas” e conseqüentemente a “decisões díspares”; refere-se ao
acirramento da violência na sociedade contemporânea, que se “organiza pela e para a
punição dos miseráveis”; acentua que a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente
tem sido pouco eficaz, em decorrência de suas “deficiências hermenêuticas”.
A questão da violência é, também, abordada por Carmem Maria Craidy e Liana
Lemos Gonçalves (2005) na obra Medidas sócio-educativas. Da repressão à educação. As
autoras relacionam a violência ao “contexto político de impunidade e descaso pelos direitos
45
humanos e a cidadania”, que se estende até a criança e o adolescente, mesmo com a
vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente.
A dissertação de Ana Lúcia Seabra Bentes (1999), Tudo como Dantes no
D’Ambrantes: estudo das internações psiquiátricas de crianças e adolescentes através de
encaminhamento judicial, compara o Código de Menores de 1927 Capítulo VII (Dos
Menores Delinqüentes) parágrafo 1 ao Estatuto da Criança e do Adolescente Capítulo IV
(Das Medidas Sócio-Educativas) artigo 112 parágrafo 3, e afirma: “não percebemos
diferenças no que tange aos cuidados que se pretende assegurar aos adolescentes portadores
de doença mental”. O Código de 1927 determinava que o menor delinqüente (menor de 14
anos de idade) com deficiência mental fosse encaminhado para cuidados especiais e o
Estatuto da Criança e do Adolescente determina que “os adolescentes portadores de doença
ou deficiência mental receberão tratamento individual e especializado, em local adequado
às suas condições”. Entretanto, o que a autora sempre assistiu como profissional e
pesquisadora foi à internação psiquiátrica, fundamentada nas “Medidas Específicas de
Proteção”, de crianças e adolescentes em enfermarias de adultos. As internações por
mandado judicial eram, quase sempre, de crianças e adolescentes com “desvio de conduta”
- “categoria sócio-jurídica não clínica: roubo, destruição grave de propriedades, fugas de
casa, ‘níveis excessivos’ de brigas ou intimidação”.
Rizzini, Barker e Cassaniga
26
escrevem sobre o Título III, capítulo II Da
Prevenção Especial do Estatuto da Criança e do Adolescente. Os autores afirmam que o
Poder Público, seja em âmbito federal, estadual ou municipal, não tem promovido eventos
de cultura, lazer, esportes e/ou diversões dirigidos às crianças e aos adolescentes. Caso
contrário, poderia ser evitado um dos problemas urbanos - a existência de espaços
diferenciados para pobres e ricos (espaços segregados). Assim, apresentam possíveis
encaminhamentos para assegurar condições mais adequadas ao desenvolvimento integral de
todas as crianças, como o financiamento de “redes de suporte ao desenvolvimento somente
de crianças pobres” a serem aplicados pelo poder público. Estas seriam políticas
compensatórias?
26
Disponível em: http://www.educaremrevista.ufpr.br/arquivos_15/rizzini_barker_cassaniga.pdf. Acesso em:
20/02/2006.
46
O trabalho de Silva (2005, p.45- 46) é bastante contundente quando demonstra
ser o conteúdo filosófico do Estatuto da Criança e do Adolescente não de negação ou de
rompimento com o Código de Menores, mas reformista vindo a reboque nas mudanças
daquele momento.
As críticas e as defesas em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente são
muitas, mas aqui apenas exponho as condições para a sua emergência, tanto no plano
nacional quanto no internacional. Quanto à educação, a sociedade prevê a confirmação do
compromisso da escola na formação da cidadania. Para tanto, é esperado que a escola atue
como um dos agentes de circulação das representações sobre a infância-cidadã, assim como
no controle social do desvio, visto que a criança vive uma grande parte de seu tempo na
escola.
Dentro desta perspectiva, em 1990, a ONU lançou um documento Princípios
das Nações Unidas para Prevenção da Delinqüência Juvenil (Princípios Orientadores de
Riad), tendo em consideração os instrumentos internacionais relativos aos direitos e bem-
estar dos jovens.
27
Por este documento, os “Processos de Socialização” são de
responsabilidade da Família, da Educação, da Comunidade e dos Meios de Comunicação
Social, que devem cumprir seus respectivos artigos. Coube à Educação o maior número de
artigos, subentendendo, também, sua maior responsabilidade. Reforça-se o papel da escola
não como agente socializador, mas como divulgador dos direitos da criança, no sentido
de favorecer a desconstrução de representações sobre a infância do passado (mencionadas
ao longo deste capítulo) e, ao mesmo tempo, a construção das representações de criança-
cidadã e adolescente-cidadão.
No capítulo seguinte, recorro à construção histórica do processo de
escolarização da infância, buscando identificar como a escola assume o papel social e
político de formação integral de crianças e de adolescentes, tornando-se o acesso à mesma
um dever e um direito. Parto da concepção de que a criança é produtora de cultura, e não
apenas receptora, e de que a cultura escolar e o saber histórico na sala de aula são meios
privilegiados de disseminação dos valores atrelados à noção de cidadania.
27
Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br. Acesso em: 05/02/2006.
47
CAPÍTULO II
AS REPRESENTAÇÕES SOBRE A INFÂNCIA EM UMA DIMENSÃO ESCOLAR
A partir das representações sobre a infância em uma dimensão jurídica,
apresentadas no capítulo anterior, faço um paralelo com a dimensão escolar, para melhor
compreender as relações que ligam as representações de infância à pedagogia. Desta forma,
adoto o mesmo recorte temporal, ou seja, revisitando as teorias pedagógicas
28
pertinentes
ao século XX até chegar às propostas educacionais existentes atualmente. Por meio deste
recurso metodológico, pretendo contribuir para uma análise da escola como um importante
veículo de socialização e de divulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA/1990), expondo as tentativas legais de desconstrução das representações da infância
pobre ligadas à idéia de “menoridade” (estudadas no Capítulo 1) e a produção de
representações de criança cidadã e adolescente cidadão.
Todavia, antes de aportar no século XX, inicio com algumas condições que
levaram a criança à sua escolarização. Não se trata de um estudo de longa duração, mas se
torna pertinente um retorno mais distante para o entendimento do uso do livro didático
dentro do processo de escolarização da infância. Para tanto, o trabalho realizado sobre a
história social da infância por Philippe Ariès em sua obra clássica História social da
criança e da família trouxe importantes contribuições. Apesar das críticas atribuídas ao
trabalho de Ariès, em quase todo o estudo envolvendo a temática “infância”, esse autor não
deixa de ser citado. Ao falar sobre a condição e natureza histórica e social da criança,
despertou o interesse da pesquisa para este tema. Ficou afastada, definitivamente, a
possibilidade de entender a infância como uma mera fase biológica da vida
29
, mas sim
como uma construção cultural e histórica.
28
Cf. Julia Varela: “Para entender os processos escolares de socialização e as diferentes pedagogias é
necessário levar em conta a configuração que, em cada período histórico, adotam as relações sociais e, mais
concretamente, as relações de poder que incidem na organização e definição de saberes legítimos, assim como
na formação de subjetividades específicas” (Categorias espaço-temporais e socialização escolar, In: Escola
básica na virada do século, 2002, p.77).
29
A esse respeito, ver GONDRA (2005).
48
2.1 A infância escolarizada
A “descoberta da infância” teve início no século XIII, mas passou a ter um
desenvolvimento significativo no final do século XVI. Formaram-se dois sentimentos de
infância, no sentido da conscientização da especificidade infantil, distinguindo-se a criança
do adulto: o primeiro, emergente da própria família, chamado de “paparicação” e o outro
oriundo de fora da família, relacionado à disciplina
30
e à racionalidade dos costumes. Este
último foi incorporado pela vida familiar.
Essa separação e essa chamada à razão das crianças deve ser interpretada como
uma das faces do grande movimento de moralização dos homens promovido pelos
reformadores católicos ou protestantes ligados à Igreja, às leis ou ao Estado. Mas ela
não teria sido realmente possível sem a cumplicidade sentimental das famílias, e esta é
a segunda abordagem do fenômeno que eu gostaria de sublinhar. A família tornou-se o
lugar de uma afeição necessária entre os cônjuges e entre pais e filhos, algo que ela
não era antes. Essa afeição se exprimiu sobretudo através da importância que se
passou a atribuir à educação (Ariès, 1981, p. 11).
Como assinala Fernando Alvarez-Uría (2002, p. 134), os movimentos religiosos
chamados de Reforma (protestante) e Contra-Reforma (católico) tiveram papel
preponderante para uma nova configuração das instituições escolares, que tinham como
objetivo formar “bons cristãos” dentro de suas “respectivas ortodoxias”. Fernando Alvarez-
Uría (2002, p. 134) registra que no início do século XVI, dentro do reformismo, Lutero
apelou para os magistrados para que criassem e mantivessem escolas cristãs. Enquanto a
Companhia de Jesus, fundada durante o contra-reformismo católico por Inácio de Loyola,
publicou a Ratio Studiorum
31
(Ordem dos Estudos), pedagogia formada por um conjunto de
normas e estratégias adotadas nos colégios desta ordem religiosa católica durante culos.
30
Cf. Michel Foucault: “A disciplina é uma técnica de poder que implica uma vigilância perpétua e constante
dos indivíduos. Não basta olhá-los às vezes ou ver se o que fizeram é conforme a regra. É preciso vigiá-los
durante todo o tempo da atividade e submetê-los a uma perpétua pirâmide de olhares” (Microfísica do poder,
1979, p. 106).
31
Cf. Julia Varela e Fernando Alvarez-Uria: “A Ratio studiorum regulamenta a ocupação do espaço e do
tempo de forma tal que o aluno fica aprisionado numa quadrícula e dificilmente poderá questionar a separação
por seções, os freqüentes exercícios escritos, os distintos níveis de conteúdo, os prêmios, recompensas e
certames aos quais se vê submetido. Terá que estar permanentemente ocupado e ativo”(A maquinaria escolar,
1992).
49
A Ratio Studiorum era composta por 466 regras e estão entre seus temas os “compêndios e
manuais de ensino a utilizar”
32
.
Com a Contra-Reforma em curso, a Companhia de Jesus e as outras ordens
religiosas dedicaram-se ao ensino das crianças e dos jovens. Seus representantes ficaram
responsáveis pela alma e pelo corpo de todos os filhos a eles confiados. A criança como um
ser não maduro para a vida deveria permanecer em “quarentena”, ou seja, o período da
escolarização ou de preparação para a vida. Assim, temos a representação da criança
imatura.
Encaminhar as crianças à escola passou a ser um “dever” dos pais, como
declarava a Academia sive Vita scholastica (Arnheim), no início do século XVII:
“Os pais, diz um texto de 1602, que se preocupam com a educação de suas crianças
(líberos erudiendos) merecem mais respeito do que aqueles que se contentam em pô-
las no mundo. Eles lhes dão não apenas a vida, mas uma vida boa e santa. Por esse
motivo, esses pais têm razão em enviar seus filhos, desde a mais tenra idade, ao
mercado da verdadeira sabedoria”, ou seja, ao colégio, “onde eles se tornarão os
artífices de sua própria fortuna, os armamentos da pátria, da família e dos amigos”
(Ariès, 1981, p. 277).
Além de conclamar os pais para seu compromisso em mandar as crianças para a
escola, também a instituiu como a detentora do saber e a responsável por transmitir a
instrução necessária à vida política e social. A escolarização foi incorporada à vida infantil
como “um longo processo de enclausuramento das crianças”. O regime escolar,
verdadeiramente, enclausurou a infância na forma de internamento total, podendo ser
comparado ao regime prisional. As escolas de caridade (século XVII), destinadas à
institucionalização de crianças desamparadas, também receberam crianças burguesas. A
internação da criança era justificada pelas representações sob a forma de infância inocente,
carente de proteção e para que não fosse corrompida. O melhor seria o afastamento com
uma vigilância constante. A escola separou, com o consentimento da família, o mundo
infantil do mundo do adulto.
No século XVIII, associou-se àqueles dois sentimentos, citados por Ariès, a
preocupação com o cuidado do corpo infantil, visando à higiene e a saúde. Neste momento,
32
Disponível em: http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/jesúitas/_private/pc.htm. Acesso
em: 20/10/2006.
50
todos os sentimentos podem ser traduzidos por um “amor obsessivo”, em que a família se
organizava, passando a ter uma vida privada e centralizada na criança. Neste mesmo
período, as famílias burguesas afastaram seus filhos do convívio com as crianças pobres,
quer dizer, “daquilo que se tornaria um sistema de ensino primário popular”, separando e
classificando as escolas de acordo com a classe social das crianças que atendiam. Em outras
palavras, as representações de infância pobre e infância rica corresponderão aos diferentes
tipos de escola ou às diferentes formas de escolarização.
Varela e Alvarez-Uria (1992) em estudo sobre o “aparecimento da chamada
escola nacional” apontam para a especialização das instituições conforme o tipo de criança
a receber colégios para os filhos de famílias burguesas e internatos de caridade para as
crianças pobres. Distinguem a “infância de qualidade” - representada pelos “filhos de
família”, que recebe mais atenção, sendo preparada para exercer, no futuro, “funções de
governo”; da “infância necessitada” representada pelas crianças das classes populares,
que carece de um “programa de intervenção do governo”. André Petitat (1994) destaca o
“dualismo na escolarização elementar”, na medida em que os colégios preparavam os filhos
das famílias burguesas para os cursos superiores ou transmitiam uma cultura humanística,
enquanto as escolas de primeiras letras moralizavam e controlavam as crianças das camadas
populares.
No Brasil, desde o início da colonização, os jesuítas marcaram presença com
seus internatos, destinados “à nobreza e à burguesia ascendente, desejosa de alcançar postos
da administração pública, que aspirava tornar-se classe dirigente” (ARANHA, 1989, p.
100). Era a escolarização como forma de ascensão social e símbolo de poder. Alessandra
Schueler (2000, p. 32-33) registra que, no século XVI, os jesuítas criaram colégios no
Brasil (Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro) destinados à “formação de religiosos e de
jovens oriundos das camadas mais privilegiadas”, enquanto para as crianças índias,
mestiças e os filhos dos colonos pobres foram criadas “casas de ler e escrever”, onde havia
o ensino da doutrina cristã, destinado à catequese e conversão das almas.
Podemos considerar que a infância escolarizada foi uma invenção do século
XVI? Para essa resposta busco em Roger Chartier
33
(1990) algumas explicações: “após
33
Roger Chartier faz parte da quarta geração da Escola dos Annales, que se dedicou à história cultural,
investigando as práticas e as representações culturais. Reconheceu a influência do sociólogo francês Pierre
Bourdieu, que reformulou o modelo marxista relativo à vida social, dando ênfase à cultura. Chartier considera
51
Gutenberg, é toda a cultura do Ocidente que pode ser considerada uma cultura do impresso
[...]” (p. 139). Após a invenção da imprensa por Gutemberg, o livro passou a ter um custo
menor por ser produzido em maior quantidade, provocando o aumento da “circulação da
escrita”. Assim, para que um grande número de pessoas dominasse a habilidade da leitura e
a transformasse em habitus era necessária uma alfabetização em maior escala. A escola
surgiu em atendimento a esta nova necessidade, além de contribuir para a difusão da língua
nacional e transformar os cristãos em leitores de textos religiosos. Tudo isso ocorreu no
período em que o Estado Moderno foi constituído, entre os séculos XIII e XVII. Como
Chartier (1990, p. 217) afirma: “examinar as condições culturais do Estado Moderno é, para
começar, interrogar os laços existentes entre o seu desenvolvimento e os progressos da
alfabetização das populações”. O Estado Moderno trouxe em seu bojo, como denomina
Norbert Elias “o processo civilizador”. Chartier (1990, p. 110) explica que para Norbert
Elias:
O processo de civilização consiste, antes de mais, na interiorização individual das
proibições que, anteriormente, eram impostas do exterior, numa transformação de
economia psíquica que fortalece os mecanismos de auto controlo exercido sobre as
pulsões e emoções e que faz passar do condicionamento social [Gesellschaftliche
Zwang] ao autocondicionamento [Sellbstzwang].
Então, nada melhor, que uma instituição pública e obrigatória para que desde a
infância, a criança fosse iniciada no “processo civilizatório”. A educação escolarizada
permitiria à criança aprender a lidar e dominar os seus afetos e a se tornar civilizada. Por
isso, os manuais de civilidade foram sendo usados nas escolas. Para Julia Varela e Alvarez-
Uria (1992) a implantação da escola nacional (pública e obrigatória) serviu como
mecanismo de controle social das crianças de classes populares.
Chartier (1990, p. 193) escreve sobre as definições da palavra “povo”
encontradas em dicionário da época. Entre elas, cita uma indicação feita pelo Dictionnaire
de l’Academie do final do século XVII: o rei tem para com o povo “duas obrigações” -
“aliviar a miséria do povo” e “manter o povo na linha do dever”. A educação escolarizada
pública e obrigatória pode ser, também, entendida como uma estratégia usada, até hoje,
para “aliviar a miséria do povo” e “manter o povo na linha do dever”. O autor (1990, p.
que as práticas tanto econômicas quanto sociais dependem das representações empregadas pelo sujeito para
dar sentido a seu mundo (HUNT, 1992, p.9-17).
52
225) reafirma: “O Estado moderno entre os séculos XIII e XVII tem de estar sempre a
reiterar a sua legitimidade, a reafirmar a sua ordem, a representar o seu poder”. Pode-se
evocar a perspectiva foucaultiana: a escola e o exército ou a educação escolarizada e o
poder militar como sustentáculos do poder do Estado (Foucault, 1979, p. 105-106).
2.2 As teorias pedagógicas e as representações sobre a infância no século XX
Julia Varela (2002, p. 78) considera a existência de “três modelos pedagógicos”
no século XX e que permanecem até os dias atuais:
as pedagogias disciplinares que se generalizam a partir do século XVIII; as
pedagogias corretivas, que surgem em princípios do século XX em conexão com a
escola nova e a infância ‘anormal’; e, enfim, as pedagogias psicológicas, que estão em
expansão na atualidade.
Segundo esta autora, o Estado assume a responsabilidade pela educação do povo
como forma de evitar as lutas de classes, integrando as classes trabalhadoras através da
obrigatoriedade escolar. A escola pública obrigatória deveria cumprir sua função de
“civilizar” e domesticar as crianças das classes populares identificadas como selvagens”.
A pedagogia disciplinar (escola tradicional para vários autores) imposta causou estranheza
e resistência em algumas crianças, que seriam consideradas como de “má índole”. As
crianças que não se adaptavam àquele universo escolar eram representadas por “infância
anormal e delinqüente” e destinadas a “um novo campo institucional de intervenção”
(VARELA, 2002, p. 89). A autora registra que o Dr. Binet rotulava como “anormais” todas
as crianças ‘insolentes, indisciplinadas, inquietas, faladoras, turbulentas, imorais e
atrasadas’, enquanto Roso de Luna conseguiu reunir um número maior de atributos
depreciativos para as crianças resistentes à obrigatoriedade escolar: ‘abúlicos, teimosos,
mimosos, parabúlicos, cretinos, sem sentimentos, desconfiados, frios, desmemoriados,
memoriosos, visionários, terroristas, surdos-mudos, cegos, de gostos grosseiros,
inexpressivos, imbecis, histéricos, hiperestésicos, passionais e masturbadores’.
A escola como instituição obrigatória tem sido ora defendida, ora criticada,
principalmente, aquela que adota a pedagogia disciplinar. Esta escola conservava práticas e
ritos escolares bastante rígidos, preocupava-se excessivamente com a transmissão dos
conhecimentos acumulados, supervalorizava a produção intelectual dos alunos. Nela a
53
infância era representada através da criança universal ou idêntica a todas as outras, qualquer
que fosse a sua classe social e a sua cultura. Essa representação de criança universal foi
idealizada pela sociedade burguesa e divulgada pelas classes dominantes. Constitui-se no
modelo padrão de criança, a partir dos critérios de idade e de dependência do adulto,
característicos do papel social desempenhado por ela dentro daquelas classes sociais. Várias
são as tendências pedagógicas que procuraram dar à escola uma nova direção para que a
educação formal atendesse melhor a criança e/ou a sociedade.
A escola tradicional de tendência idealista e liberal não desapareceu até hoje,
mas outras tendências pedagógicas surgiram. A Escola Nova ou Escolanovismo, também
de tendência idealista e liberal, surgiu no final do século XIX, chegando ao Brasil no início
do século seguinte. Esta tendência recebe o título de Pedagogia Renovada, porque renova
os valores educacionais. A criança passa por outra representação, deixa de ser considerada
como um “ser inacabadopara ser o “sujeito da educação”, visto que dentro do processo
ensino-aprendizagem é o seu principal ator (pedocentrismo), devendo ser atendida de
acordo com as suas especificidades (ARANHA, 1989, p. 108). Na escola nova, a criança
desfruta de uma liberdade que era negada ao aluno da escola tradicional. Essa liberdade
escolar revela-se pela flexibilidade de horários, espaços livres e adaptados às crianças,
novos materiais educativos, currículos inovadores e afinados aos interesses da criança.
Segundo Julia Varela (2002, p. 91), a Escola Nova é uma das pedagogias
corretivas, possui base positivista e seus principais representantes tinham formação na área
da saúde (médicos, psiquiatras, psicólogos clínicos e biólogos), como Maria Montessori,
Decroly e, mais tarde, Jean Piaget. Para dar um estatuto científico ao seu trabalho, fizeram
observações e experiências com crianças assistidas por instituições especiais e, além disso,
estudaram as leis que determinam o desenvolvimento infantil. Quer dizer: inicialmente
trabalharam com crianças “anormais”, e depois, com crianças “normais”.
Os escolanovistas acreditavam em uma socialização universal, individualizada,
válida para qualquer criança, independente de sua classe social e do seu contexto histórico.
O movimento escolanovista encontrou adeptos entre os reformadores da instrução pública
no Brasil, na década de 1920, período em que especialistas da infância, especialmente
juristas e higienistas, debatiam a necessidade de se consolidar no país leis de proteção da
infância e de controle dos desvios de conduta entre esse segmento (os chamados
54
“menores”). Como foi visto no capítulo anterior, os possíveis desvios que envolviam a
infância foram, detalhadamente, descritos no Código de Menores de 1927, e atualizados na
sua revisão de 1979, com a figura do “menor em situação irregular”.
No início do século XX, começaram a chegar no Brasil vários livros sobre esta
nova tendência pedagógica, com ênfase nos aspectos psicológicos. A partir de 1920,
ocorreram reformas de ensino em alguns estados brasileiros e no Distrito Federal. Em 1924,
um grupo de educadores partidários da escola nova criou a Associação Brasileira de
Educação (ABE) com o objetivo de discutir os problemas educacionais brasileiros e indicar
ao Estado as possíveis soluções. Foi publicado, em 1932, o Manifesto dos Pioneiros da
Educação Nacional
34
que defendia “a gratuidade e a obrigatoriedade do ensino, a laicidade,
a co-educação e o Plano Nacional de Educação” em oposição aos interesses do grupo
católico conservador que, praticamente, monopolizava a educação de cunho particular,
elitista, tradicional e confessional (ROMANELLI, 1998, p. 128-130).
35
Contudo, não se
pode dispor estas disputas em posições rigidamente opostas. Como nos lembra Clarice
Nunes (2003, p.53) nem todas as escolas católicas adotavam a pedagogia tradicional,
embora fossem partidárias da “velha ordem”. A autora exemplifica com o Colégio
Jacobina, localizado na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, dirigido pela família
Lacombe, que na década de 1930 harmonizava os ideais escolanovistas com os ideais
católicos.
Alguns teóricos, entre eles Georges Snyders (1968), autor do livro Pedagogia
progressista
36
, criticavam a escola nova por ser responsável pela “transferência dos
princípios do liberalismo econômico ao âmbito da educação, que, de fato, ao deixar livre
34
Cf. Sônia mara: “A confecção do Manifesto representou o esforço dos educadores ‘renovadores’ em
firmar posições no sentido de defender uma proposta de educação nacional que, além de autorizada pela
experiência de grande parte dos signatários que realizaram nos Estados as Reformas de Instrução, também
constituía-se como um discurso competente uma vez que trazia o referencial da ciência como matriz de
intervenção pedagógica e social” (“Progredir ou Desaparecer”: o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova
de 1932 como itinerário para a construção do Brasil moderno, In: A reorganização do campo educacional no
Brasil: manifestações, manifestos e manifestantes, 2003, p.40).
35
Sobre os projetos em disputa no período, voltados para a reconstrução da nacionalidade a partir de uma
perspectiva educacional, ver Xavier, Libânia, 1999 (O Brasil como laboratório).
36
De acordo com a. Coordenadoria de Educação Aberta e a Distância (CED), as tendências pedagógicas
podem ser classificadas em liberais e progressistas, divididas em pedagogia tradicional, renovada e tecnicista
(1º grupo) e pedagogias libertadora, libertária e histórico crítica (2º grupo). Disponível em
http://www.ead.ufms.br/br/biblioteca_digital/artigos/tendencias_pedagogicas.php. Acesso em: 28/04/2006.
55
a concorrência entre os alunos, favorece a reprodução das elites e permite a ‘seleção’ dos
‘melhores’” (VARELA, 2002, p. 94). Voltarei a este autor mais adiante.
Na segunda metade do século XX, surgem várias tendências pedagógicas ainda
dentro da orientação idealista-liberal, predominando a pedagogia tecnicista implantada nas
escolas públicas brasileiras, durante ascadas de 60 e 70. A escola tecnicista no Brasil foi
marcada por acordos sigilosos com os EUA, os chamados acordos MEC-USAID
(Ministério de Educação e Cultura/ United States Agency for International Development)
que firmaram assistência técnica - financeira para implantação de reformas educacionais:
Lei 5540/68 no ensino universitário e Lei 5692/71 nos ensinos de 1º e graus (ARANHA,
1989, p. 116-117).
Retomando os modelos pedagógicos analisados por Varela, as “pedagogias
psicológicas”, que tiveram origem nas “pedagogias corretivas” são as mais adotadas
atualmente. A psicologia escolar abriu novos campos de conhecimento e de aplicação,
denominados de psicologia genética, infantil, evolutiva, da instrução, cognitiva, de
educação especial etc., revestindo de cientificidade a atuação educativa. O estudo do
desenvolvimento infantil dividido em “etapas ou estágios progressivos e diferenciados”,
mais uma vez representa a infância universal e a infância natural. Nos anos 60 do século
passado, são percebidas as diferenças individuais, que explicam o ritmo de aprendizagem
de cada criança. As atividades de comunicação, expressão, criatividade, esporte, dinâmicas
de grupo, entre outras, fazem parte dos novos currículos que vão perdendo, pouco a pouco,
seus conteúdos e saberes. Nesta pedagogia, não é a criança que deve se adaptar à escola,
mas a escola ser adaptada à criança. Na sala de aula, as relações interpessoais são
monitoradas pela ótica da psicologia; a sala de aula deixa de ser o lócus do saber e da
aprendizagem. A criança é personalizada e cada uma tem seu próprio estilo.
Paulo Ghiraldelli Junior (2000) elaborou um artigo que trata de representações
infantis a partir de teorias educacionais modernas e contemporâneas, mostrando as
transformações históricas nas formas de se conceber a infância. O autor emprega a história
de Collodi - As aventuras de Pinóquio - para apresentar uma alegoria sobre a infância.
Nela, um boneco de madeira seria transformado em criança, ou melhor, num menino como
qualquer outro. Para ser um ‘menino de verdade’, que antes era apenas “um pedaço de
pau falante”, Pinóquio precisaria alcançar as seguintes metas: “ser bom para seu pai e para
56
com os outros, ter responsabilidade, ter sua própria consciência” (p. 47). Gepeto, o
marceneiro, seu criador ou “pai” não teve dúvida: a escola poderia ajudá-lo a atingir
aquelas condições. Por esta metáfora, podemos entender a grande expectativa que a família
tem em relação à escola, como sendo capaz de operar transformações na criança,
trabalhando os sentimentos e o pensamento infantis, ou seja, a formação moral e intelectual.
Por outro lado, a escola é responsável pela fundação do estatuto civilizatório da sociedade
em que está inserida.
Façamos, agora, algumas reflexões sobre a narrativa de Collodi:
“Onde fica a escola? Na cidade” (p. 48). Mais uma representação relevante, a
escola cumpre o seu papel no processo civilizatório e a cidade é o símbolo da civilização,
por isso a escola poderia localizar-se na cidade. Segundo Varela e Alvarez-Uria (1992)
“a escola é originalmente urbana”, reforçando a relação escola-cidade.
“[...] a raposa e o gato, elementos que vivem na cidade mas que estão longe de
serem cidadãos” (idem). Por que a raposa e o gato não são cidadãos? Estes “elementos” são
excluídos da vida da cidade e não são reconhecidos como cidadãos. No Brasil, muitas
crianças vivem na cidade e não são cidadãs, ou seja, formam a infância sem cidadania, mas
nela estão também incluídas as crianças do meio rural.
“[...] cidades terríveis, cidades sem cidadania, como aquela que habitam as
crianças-asnos [...]” (idem). Quem seriam as crianças-asno? Por que a cidade onde viviam
era terrível, sem cidadania? Seriam as crianças-asno aquelas que não se adaptaram à escola
e representavam a infância “anormal e delinqüente”? Teriam as crianças-asno freqüentado
uma escola meritocrática e como não obtiveram êxito foram mandadas para a cidade sem
cidadania como castigo?
Esta parte da história de Collodi nos lembra as palavras de Varela (2002, p.88):
as crianças, e especialmente as crianças das classes populares, se identificam com os
selvagens. Civilizá-los e domesticá-los constituí o objetivo dessa escola pública
obrigatória na qual seguirão reinando as pedagogias disciplinares.
Com a alegoria do Pinóquio, o autor desenvolveu a idéia de que ser bom e
responsável, condições necessárias para torná-lo um “menino de verdade” foram resultado
de “várias forças culturais” (cidade e escola, principalmente).
57
A história de Charles Dickens sobre as aventuras e desventuras de Oliver Twist,
se aproxima de certa forma à saga de Pinóquio. Embora fosse uma criança, vivia sozinho
no “submundo londrino”, mas seu “lado bom” seria resgatado ao voltar para sua mãe e
freqüentar a escola. A alegoria de Oliver Twist nos permite concordar com Narodowski
(2000, p. 174-175) que na modernidade, grande parte da sociedade acreditava na salvação
das crianças pela escola, principalmente pela escola pública.
Ghiraldelli Júnior (2000. p.51) destaca quatro grandes teorias educacionais nos
séculos XIX e XX: a de Herbart
37
(início do século XIX), as de Dewey
38
e Paulo Freire
(século XX) e pós-moderna (em curso) de Donald Davidson
39
e Richard Rorty
40
. O autor
observa que a herança das três teorias modernas continua viva e que Paulo Freire
demonstrou “uma sensibilidade para a criança”, embora sua pedagogia tivesse sido pensada
para o adulto. Freire, representante da escola libertadora (como alguns autores consideram),
vê a criança, assim como o adulto, “sujeito” e não “objeto”.
Herbart percebe a infância “como um estágio negativo que devemos superar”
(GHIRALDELLI JUNIOR, 2000, p. 54). Entretanto, entendo que a concepção de Herbart é
a de infância universal a ser modelada através do desabrochamento individual. Dewey e
Herbart bebiam da mesma fonte - a psicologia, apresentando pontos comuns como a
experiência na construção pedagógica e a necessidade de despertar o interesse da criança no
processo educativo. Poder-se-ia afirmar que a representação sobre a infância de Dewey é a
criança descobridora.
A escola nova tem em Dewey um dos seus principais teóricos. Putnam e
Putnam (2000), em artigo originalmente datado de 1992, fizeram uma análise sobre as
37
C f. Japiassú e Marcondes (op. cit., p. 125): Herbart “pode ser considerado como o lógico e o organizador
da pedagogia moderna e o projetador da psicologia científica. São quatro os tempos do ‘ato didático’: a)
mostrar (descrever, observar, detalhar, analisar etc.); b) associar (comparar, ordenar, apreender relações, pôr
em ordem etc.); c) sistematizar (extrair a lei, fazer a síntese, induzir, deduzir, raciocinar); d) praticar
(executar o aprendido, reconhecê-lo no real, realizá-lo, aplicá-lo)”.
38
C f. Japiassú e Marcondes (op. cit., p. 70): “Tornou-se célebre por ter fundado a chamada escola ativa. A
didática se resume no famoso método ‘do problema’, que se desenvolve em cinco fases: a) a criança traz um
problema (um objeto, uma preocupação etc., relacionados com a sua vida); b) definição em comum do
problema; c) inspeção dos dados disponíveis; d) formação de uma hipótese de trabalho; e) comprovação da
experiência (da validade das informações, dos meios e dos raciocínios)”.
39
C f. Japiassú e Marcondes (op. cit., p. 63): “Davidson é um dos principais representantes da filosofia
analítica da atualidade, tanto por suas contribuições à filosofia da linguagem quanto à teoria da ação”.
40
C f. Japiassú e Marcondes (op. cit., p. 238): Richard Rorty, “filósofo norte-americano, professor na
Universidade de Virgínia desde 1982, estudou em Chicago e Yale, dentro da tradição da filosofia analítica,
para a qual contribuiu com a antologia The Linguistic Turn (1967)”.
58
idéias de Dewey apresentadas, principalmente nos seus trabalhos: Democracia e educação
(1915/1916) e Experiência e educação (1938). Vários pontos foram levantados pelos
autores, entre eles, se destacam: a defesa de Dewey por uma educação comprometida com
os ideais capitalistas-democráticos e por ter plantado as sementes do multiculturalismo.
Para Dewey é através da educação que a “sociedade civil se reproduz” (apud PUTNAM e
PUTNAM, 2000, p. 48). Este princípio será amplamente discutido, na segunda metade do
século XX, por Bourdieu e Passeron em Os herdeiros (1964) e A reprodução (1967). Em
Experiência e educação, Dewey (1938) afirmava que: “o objetivo ideal da educação é a
criação do poder de auto-controle” (apud PUTNAM e PUTNAM, 2000, p. 51),
confirmando a teoria do processo civilizatório de Elias.
Neste mesmo artigo, Ghiraldelli Júnior alerta para dois erros, freqüentemente,
encontrados em compêndios sobre filosofia da educação e didática: a ‘diretividade versus
não-diretividade’ e ‘progressista versus não progressista’. Exemplos em que estas
expressões são empregadas para caracterizar teorias pedagógicas: a escola nova é não-
diretiva ou a escola tradicional não é progressista. Tais classificações são “dualistas”,
“esquemáticas” e “maniqueístas”, não favorecendo um melhor entendimento das teorias.
Ghiraldelli Júnior (2000, p. 57) finaliza seu texto definindo a teoria educacional
pós-moderna como “a busca de realização dos melhores ideais modernos” e que “nada diz
sobre a infância”. Todavia, muitos são os trabalhos realizados, atualmente, que muito dizem
sobre a infância da pós-modernidade. O tema infância tem freqüentado assiduamente
artigos acadêmicos e jornalísticos, programas de rádio e televisão, filmes, seminários,
fóruns, enfim está em toda a mídia e em todos os espaços, até mesmo nas discussões
cotidianas de rua.
2.2.1 A infância midiática
A mídia com seu poder de comunicação e, também, como formadora de opinião
vai desenhando outras representações de infância, por exemplo a infância consumidora,
ou reforçando a imagem da infância que ameaça a sociedade os “menores”, em
contraposição às crianças.
Tenho verificado em alguns trabalhos acadêmicos uma polêmica sobre as idéias
articuladas por Neil Postman (1999) em O desaparecimento da infância. Para ele, a
59
infância moderna está em fase de extinção, assim como o conceito de adulto está
desaparecendo. Basta observar as crianças quanto às roupas usadas, à linguagem
empregada, aos regimes alimentares, ao acesso às informações, erotização, aos crimes
cometidos, tudo muito igual aos adultos. Postman explica que a separação entre o mundo
infantil e o mundo adulto era determinada pelo acesso a certas informações, ou seja,
algumas informações eram de domínio, exclusivamente, dos adultos. Para explicar melhor
todas as mudanças, o autor faz um retrospecto a partir da invenção da tipografia, quando foi
criado um mundo cujo acesso era permitido aos letrados. A estrutura social baseada na
família e na escola definia os papéis das crianças e dos adultos. A alfabetização oferecida
pela escola era o passaporte para a entrada no mundo letrado, assim a instrução
possibilitava o entendimento da cultura. Mais tarde, com a invenção do telégrafo, a família
e a escola começam a ter uma certa dificuldade para controlar as informações, que chegam
até as crianças. Com a invenção da televisão, aparelho que revolucionou a cultura onde
estivesse presente, a fronteira entre o mundo infantil e o mundo do adulto vai ficando cada
vez mais tênue. Este meio de comunicação que toca essencialmente os sentidos visão e
audição - envolve e atrai, especialmente, as crianças. Desde muito pequena, a criança (mais
ou menos a partir de um ano de idade) dirige sua atenção para tudo que nela é transmitido.
está popularizado o título que recebeu de babá eletrônica, devido ao seu poder de distrair
as crianças. As crianças ficam fascinadas por um mundo de imagens, de sons e de
linguagens, que antes era desconhecido, lembrando Desbord em A sociedade do espetáculo,
onde a pseudo-representação da realidade. Postman alerta: “a questão é que todos os
acontecimentos na televisão surgem completamente destituídos de continuidade histórica
ou qualquer outro contexto, e numa sucessão tão rápida e fragmentada que caem sobre a
nossa cabeça como uma enxurrada. Esta é a televisão como narcose, entorpecendo a razão e
a sensibilidade”. Para o autor, a família e a escola seriam trincheiras de resistência, mas
estão perdendo a guerra contra a televisão.
Pesquisas como a de Gilka Girardello e Orofino (2001)
41
mostram, que entre as
crianças de camadas sociais diferentes, a televisão ocupa lugar de destaque na sua vida
cotidiana. Esta pesquisa teve como sujeitos crianças moradoras na cidade de Florianópolis
(SC), que ao serem indagadas sobre: “O que você faz desde que acorda de manhã até
41
Disponível em: http://www.aurora.ufsc.br/artigos/artigos.sem_terrinhas.htm .Acesso em: 06/05/2006.
60
quando vai dormir de noite?”, deram respostas apontando para os seguintes resultados, de
forma sintética:
a) crianças matriculadas em escola particular no centro: 28 % - ver tv; 19 % -
brincar;
b) crianças matriculadas em escola pública no centro: 39 % - ver tv; 23 % -
brincar;
c) crianças matriculadas em escola pública na favela: 35 % - ver tv; 21% -
realizar trabalho doméstico;
d) crianças matriculadas em escola pública em comunidade pesqueira: 31 % -
brincar; 18 % - ver tv.
As outras atividades com percentuais muito baixos envolviam: videogame,
computador e livros. Mesmo considerando que nem todas as crianças possuem e/ou
dispõem dos mesmos equipamentos, assistir televisão foi atividade predominante,
parafraseando o anúncio comercial a televisão é a preferência nacional. Esta pesquisa nos
faz refletir sobre o alerta de Postman e sobre os efeitos da mídia sobre a infância.
Estudiosos responsabilizam a televisão pelo consumo desenfreado das crianças e até dos
adultos, poder-se-ia considerar o binômio - sociedade de consumo e televisão, que fabrica a
representação de infância consumidora.
Píer Cesare Rivoltella
42
, estudioso italiano, em seu livro Os meninos da web -
os pré-adolescentes e a Internet: uma pesquisa, compara o uso do computador com a
televisão. Suas considerações sobre seu estudo são: o computador é um “bem simbólico
capaz de conferir status social a quem o utiliza”; é possível decifrá-lo quando se usa,
diferentemente da televisão, ele recupera a autonomia do usuário, pois quem utiliza este
equipamento é o protagonista, ou seja, garante “um caráter manipulativo de interface e
interatividade na rede”. Esta nova tecnologia ajuda a enfraquecer a já tênue fronteira entre o
mundo infantil e o mundo adulto, porque como na televisão todos têm acesso às mesmas
informações, como já havia observado Postman. Não diferenciação de idades quando a
criança ou o adulto está na rede, quer dizer, há o favorecimento do processo de adultização
ou como coloca Postman do “desaparecimento da infância”, ameaçado pela pornografia e
pela pedofilia instaladas na rede.
42
Disponível em: http://www.aurora.ufsc.br/resenhas/resenhas_internet.htm. Acesso em: 06/05/2006.
61
O uso do telefone celular também reforça o processo de adultização ou de
“desaparecimento da infância”. Muitos pais disponibilizam este aparelho para seus filhos e
suas filhas pensando em uma forma de controle e de segurança para saber onde estão.
Entretanto, seu efeito pode ser inverso. Quer dizer, como saber com quem estão falando e
sobre que assuntos, além disso ao utilizar esse aparelho tornam-se mais vulneráveis à todo
tipo de violência. As desigualdades socioeconômicas nos remetem aos estudos de Mariano
Narodowski (2000, p. 174-176), quando trata da crise da infância moderna, estabelecendo
como “pontos de fuga dois grandes pólos”: o da “infância hiper-realizada” e o da “infância
des-realizada”. As diferenças entre as duas são socioeconômicas e culturais. Na primeira,
são as crianças da “realidade virtual” que têm acesso a toda uma parafernália
eletroeletrônica, “que em vez de depender do adulto são capazes de guiá-lo em um mundo
de caos”. Na segunda, as crianças pertencem a uma “realidade real”, são as crianças
violentas e marginalizadas, que se “des-realizaram” como infância. Quando as duas
infâncias vão para a escola, a “nossa idéia de aluno entra em crise”. Outro dispositivo que
está em crise é a “aliança escola-família”, porque um “conflito entre cultura escolar,
cultura familiar e cultura da mídia”. Ainda sobre os aparelhos celulares e o uso de outras
tecnologias pela criança, Marisa Vorraber Costa (2005, p.9), em seu artigo Crianças,
telemóveis e o desaparecimento da infância
43
declara seu apoio a Postman. Assim, a autora
afirma:
como se vê, por mais controvertidas que sejam, parece que as hipóteses de Postman se
confirmam, e a tecnologia tem sido central na reconfiguração da vida e dos
sentimentos nesta nova era. A infância como a fase da inocência, da dependência, da
insegurança dos segredos do mundo e da vida parece que está a desaparecer.
Como a escola poderia atingir um de seus objetivos - formar cidadãos e cidadãs
- tendo como clientela a infância midiática? Esta questão apresenta-se com dupla face. De
um lado, observa-se uma corrente pedagógica que defende a utilização da cultura da mídia
na sala de aula como um meio de construção da cidadania. Entretanto, isso só seria possível
na perspectiva do “alfabetismo crítico”: “o ensino de um alfabetismo crítico em relação à
mídia deveria se tornar parte central de um currículo educacional progressista”
(KELLNER, 1995, p.126). Douglas Kellner (1995, p. 127) sugere o modelo freireano
43
COSTA, M. V. Crianças, telemóveis e o desaparecimento da infância. A Página, ano14, n. 147, julho 2005,
p. 9. Disponível em: http://www.apagina.pt/arquivo/FichaDeAutor.asp?ID=547 Acesso em: 20/05/2006.
62
pedagogia emancipatória para o desenvolvimento do “alfabetismo crítico”, como
possibilidade de criar nos alunos e nas alunas habitus de reflexão sobre sua cultura e suas
experiências. O autor acrescenta: “para os/as estudantes, a familiaridade com a publicidade,
a exposição à televisão, ao cinema, à música, etc., possibilita que se envolvam mais
prontamente com os artefatos de sua cultura do que com a cultura mais tradicional do
livro”. A outra face, corresponde à posição daqueles que percebem o uso da cultura da
mídia na escola como fator de alienação, pois se contrapõe à pedagogia emancipatória.
Segundo Moacir Gadotti (2004), atualmente, os princípios educacionais são
“instrucionais”, ou seja, são baseados na instrução e na instrumentalização. Gadotti faz o
seguinte alerta: “Aprender, nessa visão instrucionista, é ‘acender’, ter acesso a
computadores, a uma informação. Ensinar se reduziria a aplicar uma receita, a saber
manejar um repertório de técnicas”. Teria a escola abandonado o seu ideal de formação dos
cidadãos, consolidado com a emergência da escola nacional? Trata-se de uma questão
complexa, que acredito estar profundamente arraigada aos desafios que a escola
contemporânea vem enfrentando no cumprimento de seus objetivos educacionais. As
concepções de cidadania vêm se transformando no mundo, e particularmente no Brasil das
duas últimas décadas, processo marcado por intensos conflitos ideológicos. Entre outros
grupos destacou-se, em 1986, a ação da Frente Nacional de Defesa dos Direitos da Criança
no sentido de incluir o artigo 227 na Constituição Federal de 1988. Este artigo corresponde
ao artigo 4 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/1990), no qual estão dispostos
os "direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à dignidade, ao respeito, à liberdade
e convivência familiar e comunitária". Esta agenda passa a orientar uma nova concepção de
cidadania e por ela a criança é representada como sujeito de direitos. O paradigma
instituído afeta a escola, pois tem que lidar com o desenvolvimento integral da criança-
cidadã para estar em consonância com a legislação vigente.
Em uma reflexão sobre a cidadania crítica, Jane Kenway (2000, p. 118) termina
seu ensaio - Educando cibercidadãos que sejam “ligados” e críticos - com uma indagação,
bastante complexa, que aponta para os desafios da educação na atualidade: “Como a
educação escolar, on-line, off-line e entre as linhas [between the lines], poderá produzir
63
cidadãos globais informados, cultos, criativos, críticos e compassivos, que possam ser
capazes de lutar pela justiça social na nova paisagem tecnocultural?”
Será que os livros didáticos dão conta dessa realidade? Quais são as
representações de infância que encerram? Voltarei a essas questões no próximo capítulo.
2.2.2 - A infância desescolarizada
A escolarização, como sabemos, passou a reger a infância a partir do século
XIX, quando se tornou obrigatória. Durante este período, ou seja, nestes dois últimos
séculos teria surgido alguma proposta contrária, que defendesse a desescolarização da
infância? Para os que incorporaram a escola à infância, ou vice-versa, torna-se difícil
imaginar a possibilidade desta representação de infância. Na verdade, ela existiu como uma
proposta bastante polêmica.
Em meio à crise da educação, na segunda metade do século XX
44
, provocada
pelas contundentes críticas dirigidas à escola oficial, surgiram idéias como de Ivan Illich
45
que em suas obras Deschooling society (1973) e Education without school? (1974)
combatia a crescente institucionalização de forma geral, e em particular, a escola como
instituição ideal para cuidar da educação. No Brasil, nos anos 70 do século XX “vai se
generalizando entre os professores a expectativa em torno da busca de alternativas” à
pedagogia oficial que adotou a teoria tecnicista com a implantação da Reforma de Ensino -
Lei 5.692/71 (SAVIANI, 1992, p. 93-94). A insatisfação do professorado refletiu-se na
maior divulgação da teoria de Illich e dos chamados crítico-reprodutivistas (voltarei a este
ponto mais adiante).
44
Cf. Dominique Julia: “Na década de 1970, o estudo sociológico das populações escolares, em diferentes
níveis de escolaridade, assim como a análise do sucesso escolar desigual segundo as categorias
socioprofissionais, conduziram numerosos historiadores, nas pegadas de Pierre Bourdieu e Jean-Claude
Passeron (mas também na agitação dos acontecimentos de maio de 1968) a ver na escola apenas ‘o meio
inventado pela burguesia para adestrar e normalizar o povo’, responsável, portanto, sob o manto de uma
igualdade abstrata, que veicula, intactas, as desigualdades herdadas, pela reprodução das heranças culturais e
pela reposição do mundo tal qual ele é”.(A cultura escolar como objeto histórico, In: Revista Brasileira de
História da Educação, 2001, p.11).
45
Ivan Illich nasceu na Áustria (1926) e morreu na Alemanha (2002). Formado em física (Florença), filosofia
e teologia (Roma) e doutoramento em história (Salzburgo). Na década de 60, no México, fundou o Centro
Intercultural de Formação (CIF) com objetivo de promover o trabalho missionário na América Latina. Nos
anos 70, Illich foi co-fundador do Centro de Informação e Documentação (CIDOC) uma universidade livre
que se destinava a estudar os problemas educacionais, principalmente, da América Latina. Nos últimos anos
de sua vida foi professor convidado na Pensilvânia (EUA) e também docente na Universidade de Bremen
(Alemanha) onde faleceu. Disponível em: http://www.educ.fc.pt/docentes/opombo/hfe/illich/. Acesso em
08.05.2006
64
Illich criticou a especialização dos serviços e a tecnocracia, observando que a
classificação de “competentes e incompetentes” de certa forma “infantilizava o homem”,
dependente sempre de um especialista para resolver todo e qualquer problema. Considerava
o homem moderno como um “aprendiz de feiticeiro”, que não conseguia controlar os
efeitos da sua própria “mágica”, ou seja, as invenções geravam novas necessidades num
processo tecnológico sem fim e aumentando o consumo de forma desenfreada. Para ele, a
escolaridade obrigatória e prolongada produzia a infância “artificial”, dependente da escola
para aprender o que não era necessário, pois a criança realiza a maior parte de seu
aprendizado fora da escola. A escola cria o mito do diploma, mantêm o mito do progresso,
da competência e do consumo, além de perpetuar as desigualdades sociais. Illich propôs
uma organização social mais simples, mais ecológica, o homem viveria sem agredir a
natureza como, por exemplo, sem automóveis poluindo o ar. A Sociedade sem escolas
(1973) seria regida pelo princípio de “convivialidade”, quer dizer, as pessoas interessadas
em certos assuntos formariam uma rede de comunicação cultural e assim outras e outras
redes. Este sistema, muito diferente da escola como a conhecemos, baseava-se na
“aprendizagem automotivada”. Illich era um visionário, pois seu projeto de “sociedade sem
escola” dependeria de um equipamento como computador para a localização e identificação
de pessoas interessadas nas mesmas questões, um sistema de correios e uma rede de
boletins informativos, o que hoje é possível com a internet e o correio eletrônico (e-mail).
Na verdade, o autor combatia a escola conservadora, mas parece estar afinado
com a educação à distância, amplamente disseminada nos nossos dias. Entretanto, não
percebeu a armadilha inevitável: “o ideal de convivialidade, segundo o qual a desigualdade
existente no nosso sistema de escolarização seria substituída pelo ensino em rede
igualitária, repousa na ingenuidade de supor que o sistema de redes escapa à pressão e às
contradições dos interesses estabelecidos” (ARANHA, 1989, p. 126).
Praticamente, fazendo contraponto com a proposta de Illich, Bernard Charlot
(1983, p. 297- 298) escreve sobre a necessidade da existência da escola, como mediadora
“entre a criança e os modelos sociais”. O autor ressalta: “a vida de grupo cria um quadro
relacional onde a criança se confronta com seus pares, e essa estrutura relacional adapta-se
melhor a uma educação social que a relação dual entre um adulto e uma criança”. Além de
valorizar a socialização da infância no ambiente escolar, Charlot destaca o papel do
65
professor / da professora como responsável “por articular a vida do grupo de crianças com a
própria realidade social”.
A escola permanece com sua função educativa primordial no processo
civilizador, quer dizer, com o objetivo de “domesticar os selvagens” ou a “infância rude”
(VARELA e ALVAREZ-URIA, 1992), desta forma concebe-se a cidadania como
prevenção da criminalidade. As Diretrizes de Riad
46
, normativa internacional (ONU, 1990),
determinaram os princípios orientadores para a prevenção da delinqüência infanto-juvenil,
cabendo à Família (9 princípios), à Educação (12 princípios), à Comunidade (8 princípios)
e aos Meios de Comunicação Social (5 princípios). Fica claro, que para aquele organismo
internacional as ações da família, da escola, da comunidade e da mídia têm um peso forte,
ou melhor, podem agir no sentido de controlar e/ou conter a criminalidade, mas atribuiu à
educação maior responsabilidade. Assim, a educação abarca o maior número de princípios
(12), o que nos sugere o seu maior compromisso e, sobretudo, a permanência da escola
como uma instituição especializada, indispensável às sociedades ditas civilizadas. Na seção
anterior, foi discutida a influência da mídia sobre a infância, por isso é oportuno citar um
dos princípios relativo aos Meios de Comunicação Social:
Princípio 43 - Os Meios de Comunicação Social, em geral, a televisão e o cinema, em
especial, devem ser encorajados a reduzir o nível de pornografia, droga e violência
retratados e a apresentar desfavoravelmente a violência e exploração, assim como
evitar apresentações de cenas humilhantes e degradantes especialmente no que se
refere às crianças, mulheres e relações interpessoais, e a promover princípios de
igualdade e os modelos igualitários.
Entretanto, o que assistimos, principalmente, na televisão brasileira contraria de
forma contundente este princípio. Para confirmar, uma pesquisa realizada sobre As
representações da infância no jornalismo impresso
47
apontou para as representações de
infância frágil, de infância vitimada, de infância sujeitada e de infância dependente. Outros
meios de comunicação, também, veiculam estas mesmas representações, como é o caso da
televisão, que tem como agravante ser o mais influente na vida infantil.
46
Disponível em: http://www.unicef.org.br . Acesso em: 19/03/2006.
47
Disponível em: http://seberi.prospeq.ufrgs. Acesso em: 20/03/2006.
66
Dos doze princípios orientadores para a educação, um deles pode ser entendido,
aqui no nosso país, como um dispositivo que poderia favorecer a divulgação do Estatuto da
Criança e do Adolescente. A saber:
Princípio 22 - deverá ser dada ao jovem informação sobre o ordenamento jurídico e
seus direitos e obrigações de acordo com a lei, assim como sobre o sistema de valores
universais.
Contudo, nesta perspectiva, atrela-se formação para o exercício da cidadania à
prevenção da criminalidade. Poderia o Estatuto da Criança e do Adolescente escapar desta
armadilha e ser um instrumento jurídico nacional a ser divulgado a todas as crianças e
adolescentes, preferencialmente nos espaços escolares? Para isso, seria necessário que seus
princípios estivessem presentes nos currículos de todas as escolas públicas e privadas do
ensino fundamental, no sentido de uma educação para a cidadania, ou seja, uma educação
fundada nos direitos sociais? Como o tema é abordado nos livros didáticos e como se
articula às representações de infância que emergem de suas páginas?
2.2.3 A infância cidadã na perspectiva das tendências pedagógicas da segunda metade
do século XX
Na segunda metade do século XX, várias teorias, especialmente, de
fundamentação sociológica fizeram severas críticas à instituição escolar. Pierre Bourdieu e
Jean-Claude Passeron, estruturalistas
48
franceses influenciados pelo lingüista suíço
Ferdinand de Saussurre, escreveram Os herdeiros (1964) e A reprodução (1975). Para eles,
a escola reproduzia os privilégios das classes dominantes, pois os herdeiros do sucesso
escolar e de uma escolaridade prolongada com acesso à universidade são os filhos das
classes dominantes. A ação pedagógica é compreendida como uma ação violenta, visto que
a escola pratica a violência simbólica, ou seja, os alunos são obrigados a agir e a pensar sob
coação, apesar de não terem consciência disto. A cultura e os sistemas simbólicos são
48
C f. Japiassú e Marcondes (op. cit., p. 92): “estruturalismo doutrina filosófica que considera a noção de
estrutura fundamental como conceito teórico e meto
67
instrumentos de poder e de legitimação da ordem estabelecida, enquanto a escola confirma
e reforça o habitus de uma classe (ARANHA, 1989, p. 129- 130).
Para Bourdieu e Passeron (1975, p. 259), habitus corresponde a “uma formação
durável e transportável, isto é, [a um conjunto de] esquemas comuns de pensamento, de
percepção, de apreciação e de ação”. A família inicia com a criança o processo de
inculcação do habitus, depois a escola continuação ao processo, de tal forma que as
normas de conduta são interiorizadas de acordo com a sua classe social. Assim, uma
criança oriunda de uma classe favorecida recebe uma educação da família muito
semelhante à dada pela escola. Sua linguagem se identifica com a língua culta, ensinada na
escola, tem contato com livros, viaja, visita museus, enfim suas experiências facilitam a
aprendizagem, alargando as possibilidades do sucesso escolar. Ao passo que, o mesmo não
acontece com a criança de classe desfavorecida, pois se depara com um fosso entre seu
ambiente doméstico e o meio escolar. A linguagem da criança sofre, freqüentemente,
correções, além de, muitas vezes, não compreender a língua culta e suas experiências não
serem valorizadas. Por tudo isso, a criança se sente inferiorizada e fadada ao fracasso
escolar. Dentro dessa lógica, a desigualdade social se reproduz e a herança social se
perpetua.
Na mesma época, além de Bourdieu e Passeron, surgem na arena de combate à
“escola capitalista”, outros nomes de destaqu3(e)-6(ç)0]TJç
68
elas destaca-se a escola, ou melhor, o sistema educacional público e privado (ARANHA,
1989, p.131-133). Nas palavras de Althusser (1969, p. 64) o AIE escolar funciona:
Desde a pré-primária, a Escola toma a seu cargo todas as crianças de todas as classes
sociais, e a partir da Pré-Primária, inculca-lhes durante anos, os anos em que a
criança está mais “vulnerável”, entalada entre o aparelho do Estado familiar e o
aparelho de Estado Escola, “saberes práticos” (des “savoir-faire”) envolvidos na
ideologia dominante (o francês, o cálculo, a história, as ciências, a literatura), ou
simplesmente, a ideologia dominante no Estado puro (moral, instrução cívica,
filosofia). Algures, por volta dos dezesseis anos, uma enorme massa de crianças cai
“na produção”: são os operários ou os pequenos camponeses. A outra parte da
juventude escolarizável continua: e seja como for faz um trecho do caminho para cair
sem chegar ao fim e preencher os postos dos quadros médios e pequenos, empregados,
pequenos e médios funcionários, pequeno-burgueses de toda a espécie. Uma última
parte consegue aceder aos cumes, quer para cair no semi-desemprego intelectual,
quer para fornecer, além dos “intelectuais do trabalhador coletivo”, os agentes da
exploração (capitalistas, managers), os agentes da repressão (militares, policiais,
políticos, administradores) e os profissionais da ideologia (padres de toda a espécie, a
maioria dos quais são “laicos” convencidos).
Althusser voltou sua atenção para a escola, porque nem um outro AIE “dispõe
durante tanto tempo da audiência obrigatória (e ainda por cima gratuita...), cinco a seis dias
em sete que tem a semana, à razão de oito horas por dia”. Observa-se que esta era uma
realidade da França
50
daquele momento.
Establet e Baudelot (1971), com formação marxista, escreveram A escola
capitalista na França, em que demonstram a teoria da escola dualista. Segundo os autores,
sendo a sociedade capitalista dividida em classes, a escola não pode ser única. A escola
capitalista divide-se em duas: uma para a burguesia e outra para o proletariado. A escola
destinada à burguesia e a escola destinada ao proletariado diferem quanto à duração da
escolaridade, os meios e os fins da educação. Cada uma das escolas possui uma rede de
ensino: a primária profissional (PP) destinada ao proletariado e a secundária superior (SS)
destinada à burguesia. A PP corresponde aos estudos básicos com formação profissional e a
SS conduz ao bacharelado. São escolas “opostas, heterogêneas, antagonistas” onde “desde
50
O mesmo não se aplica, ainda hoje, no caso do Brasil, visto que muitas de nossas crianças permanecem
cerca de quatro horas diárias nas escolas, durante no máximo cinco dias da semana; em contra-partida dispõe
de um tempo muito maior, durante todos os dias da semana, para um outro AIE da comunicação a televisão.
Em outras palavras, se adotássemos a noção de AIE do autor, teríamos que voltar nossa atenção mais para a
mídia tão encantadora, fascinando com sua tecnologia e exercendo, muitas vezes, um poder mais forte sobre
as crianças do que a escola.
69
o começo os filhos dos proletários estão destinados a não atingir veis superiores”
(ARANHA, 1989, p.134).
As teorias da “violência simbólica” e da “reprodução social” tiveram grande
repercussão naquela época, mas depois, outros autores demonstraram entendimentos
diferentes. And Petitat (1994, p.261) afirma: “a teoria da violência simbólica parece
resignar-se de má-vontade a uma escola eternamente dedicada ao papel de reprodutora, a
serviço da classe dominante: o pessimismo encontra-se aqui em seu auge”. A escola não é
apenas uma instituição responsável pela reprodução social, mas também de produção. A
ação educativa vai mais além da reprodução da dominação de uma classe social, caso
contrário, estaria muito limitada em suas relações com as questões políticas e sociais. Como
o autor esclarece (1994, p. 11):
Sem dúvida a escola contribui para a reprodução da ordem social: mas ela também
participa de suas transformações, às vezes intencionalmente, às vezes contra a
vontade, e, às vezes, as mudanças se dão apesar da escola. È que se trata de uma
ordem dinâmica, de grupos e de classes em mutação, de técnicas em permanente
renovação e de culturas que se redefinem periodicamente. Em dois séculos, o mundo
assistiu a perigosas transformações, e contudo ainda nos atemos a teorias mais ou
menos estáticas da escola como agente de reprodução social.
Apesar de André Petitat (1994) construir sua reflexão sociológica a partir da
crítica aos reprodutivistas, reconhece a escola por um lado como reprodutora e por outro
lado como produtora, porque embora pareça estar sempre comprometida com a ordem
vigente, nunca deixa de ser um agente social dinâmico que direta ou indiretamente,
intencionalmente ou não, pode ultrapassar aquela mesma ordem estabelecida.
A corrente dentro da pesquisa educacional que utiliza o método etnográfico
51
70
primeiros trabalhos sobre os Estudos Culturais britânicos surgiram no final dos anos 50, do
século passado, com Raymond Williams em Culture and society (1958) e em The long
revolution (1961), com R. Hoggart em The uses of literacy (1958) e E. P. Thompson em
The making of the english working class (1963). Segundo Alessandra Schueler, no ensaio
Marxismo e historiografia no reino de Vitória: as contribuições de Edward Palmer
Thompson (mimeo, s. d.), o autor escreveu uma “história vinda de baixo” na qual buscou
reconstituir as lutas e as experiências vividas pelas pessoas comuns. Thompson (1963)
afirma: “não vejo a classe como uma ‘estrutura’, nem mesmo como uma ‘categoria’, mas
como algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações
humanas” (apud Schueler, p. 8). Essas e outras afirmações denotam as críticas feitas ao
estruturalismo de Althusser.
Em 1964, foi fundado o Centre for Contemporany Cultural Studies at
Birmingham sob a direção de Hoggart, inicialmente. Os Estudos Culturais dão ênfase à
cultura popular, ao cotidiano das pessoas, envolvendo “a observação de que as lutas em
relação ao poder devem, de forma crescente, interagir e operar através das práticas
culturais, da linguagem e da lógica do povo” (NELSON, TRICHLER e GROSSBERG,
1995, p. 27 - 28). Os autores destacam que “povo” não pode ser considerado como um
conjunto de pessoas subordinadas sempre a uma elite. Transpondo essa noção dos Estudos
Culturais para a escola, pode-se inferir que as posições da teoria da reprodução escolar,
especialmente a de Althusser, da escola como AIE, estão em descompasso com a realidade
sociocultural. Autores como Henry Giroux (1992) e Jan Zita Grover (1992) indicam a “sala
de aula como um lugar onde os Estudos Culturais podem fazer uma diferença, mas a
variedade de intervenções apontadas nas diversas análises de Estudos Culturais abrangem o
a cultura como um todo” (NELSON, TRICHLER e GROSSBERG, 1995, p. 16).
A entrevista realizada por Roger Martinez (Tempo Social, 2005)
52
com Paul
Willis, autor do livro Learning to labour sobre a cultura da classe operária, publicado
originalmente em 1977, e de outras obras no campo da etnografia, leva-nos a compreender
a produção cultural dentro das mudanças sociais contemporâneas. Willis participou do
Centre for Contemporany Cultural Studies (CCCS) na Inglaterra, onde eram realizados
52
Cf. entrevista com Paul Willis por Martinez, R., In: Tempo social. v. 17, n. 2. São Paulo, nov. 2005.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php? Acesso em: 17/05/2006.
71
estudos que combinavam literatura, antropologia, sociologia, história e, “sobretudo, do
marxismo (Gramsci, Althusser)”. O autor confessou na entrevista que “a classe e a
exploração ainda são importantes” e se considera “um semiótico, culturalista e
estruturalista”. Seus estudos baseiam-se nas experiências vividas e cotidianas, estabelece
diferenças entre cultura popular e cultura comum (commom culture): “a cultura popular faz
referência a textos e objetos, aos lucros e ao mercado, enquanto a cultura comum faz
referência à utilização disso e aos significados culturais comuns, que também incluem os
significados tradicionais, os significados interpessoais e, se quiser, o que sobrou da cultura
original de classe”. Willis mostra quão importante é entender a cultura popular, suas
formas de utilização e possibilidades de mudança; a “cultura cotidiana” como mediadora
entre os indivíduos e as estruturas. Dentro da perspectiva etnográfica, analisar uma escola
com sua “cultura cotidiana” resulta em um estudo microssociológico que pode favorecer a
análise macrossociológica.
Georges Snyders, pedagogo marxista francês, escreveu Pedagogia progressista
(1968), Para onde vão as pedagogias não-diretivas (1973) e Escola, classes e lutas de
classe (1976). As reflexões de Snyders (1984, p. 28 - 33) foram sobre os fins da educação,
demonstrando que os sistemas escolares acentuam as diferenças sociais, porque “não se
educa inocentemente”. Criticou duramente a escola nova, por ser uma “pedagogia não-
diretiva” e por valorizar pouco os conteúdos: “a revolução da escola para mim é a
modificação dos conteúdos, sendo que os problemas de método não constituem a coisa
primeira, mas a conseqüência dos conteúdos”. Denunciou o preconceito, o racismo e a
xenofobia, dando exemplo: “as crianças mais mal vistas são as argelinas, mas
imediatamente a seguir vem as portuguesas”, e a passividade do professor que acabava de
reforçar os sentimentos discriminatórios em seus alunos e em suas alunas. Justificava que a
criança imigrante “não estuda na sua língua, tem um meio difícil e de pais
sobreexplorados”.
Snyders sonhava com uma escola que fosse o “lugar de congregação de todos os
que quisessem lutar contra o racismo e a xenofobia” e para o “professor uma espécie de luta
de todos os dias”, porque deveria dar às crianças a oportunidade de “sentir não as
diferenças, mas amar as diferenças, o valor criador das diferenças”. Snyders reconhecia a
pluralidade cultural não como uma dificuldade, mas como uma vantagem a ser aproveitada
72
“para que a escola seja viva”. Sua pedagogia partia dos conteúdos culturais para depois
fazer uma reavaliação crítica da cultura, compreendida em dois tipos uma cultura do
cotidiano, imediata e assistemática que denominou de cultura primeira e outra a cultura
escolar elaborada e sistematizada. A primeira cultura pertencia ao aluno e à aluna e a
segunda ao professor e à professora, ambas são diferentes, mas estabelecem uma relação
dialética. Para Snyders a escola democrática se insere na luta de classes e passa por uma
luta cultural, com objetivo de alcançar o “progresso do conjunto dos homens”. Pode-se,
então afirmar que Snyders foi também um multiculturalista
53
.
Em uma entrevista com Snyders, realizada por Loudes Stamato De Camillis
(PUC/SP)
54
, em Paris (1990), quando o autor havia publicado Alegria na escola (1986) e
a Alunos felizes (1991), este esclareceu que não se tratava de uma alegria descomprometida
ou irresponsável. A Alegria na escola pressupõe valorizar a experiência do aluno, que teria
alegria de compreender, sentir, descobrir, decifrar, atuar, criar, enfim tudo quanto pudesse
torná-los Alunos felizes, pois observava que “a alegria e o prazer na Escola parecem ser
uma questão de elite”.
Nas palavras de Snyders (1990):
A maior parte das crianças em situação de fracasso são as de classe popular e elas
precisam ter prazer em estudar; do contrário desistirão, abandonarão a escola, se
puderem. Se não puderem, continuarão, mas não aprenderão muito.
Quanto mais os alunos enfrentam dificuldades – de ordem física e econômica – mais a
Escola deve ser um local que lhes traga outras coisas. Essa alegria não pode ser uma
alegria que nos desvie da luta, mas eles precisam ter o estimulo do prazer. A alegria
deve ser prioridade para aqueles que sofrem fora da Escola
55
.
Snyders se manteve fiel aos seus ideais, nunca abandonando as crianças das
classes populares, sempre acreditando na possibilidade do “progresso” delas, desde que
tivessem a oportunidade de “mostrar a sua originalidade, pela própria experiência de vida”.
Acreditava no sucesso escolar das crianças desfavorecidas, na medida que a escola
superasse o seu “endoutrinamento”.
No Brasil, vários nomes podem ser destacados, dentre eles, o citado Paulo
Freire, de renome internacional e Demerval Saviani. No início dos anos 60 do século XX,
53
C f. Peter McLaren (1997): “identificam-se quatro posições em relação à presença de distintos grupos
culturais em uma mesma sociedade: o multiculturalismo conservador, o multiculturalismo liberal, o
multiculturalismo de esquerda e o multiculturalismo crítico”.
54
Disponível em: http://www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/ideias. Acesso em: 29 de maio de 2006.
55
Disponível em: <http://www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/ideias>. Acesso em: 29 de maio de 2006.
73
movimentos sociais, políticos e culturais se organizaram: o Movimento de Educação de
Base (MEB) ligado à Igreja Católica, os Centros Populares de Cultura (CPCs) e os
Movimentos de Cultura Popular (MCPs) e de formação estudantil (UNE). Neste momento,
Paulo Freire começou com a sua pedagogia dirigida às classes mais desfavorecidas, que
recebeu várias denominações pedagogia libertadora, pedagogia problematizadora,
pedagogia conscientizadora e pedagogia popular. Entretanto, o golpe de 1964 interrompeu
este momento democrático no Brasil, obrigando Freire a exilar-se até 1979. Contudo, as
idéias de Freire correram o mundo.
A pedagogia freireana ajudaria as classes populares a romperem o seu silêncio,
haveria a conscientização dessas pessoas, os “oprimidos”, que se engajariam na luta
política. O homem deixaria de ser “objeto” para ser “sujeito da história”. Esta educação
popular seria desenvolvida nas comunidades, respeitando a cultura local dos participantes
que discutiriam os seus problemas e, conscientes, poderiam agir coletivamente. Freire
classificou a educação tradicional como “educação bancária”, que considerava o aluno e
aluna como pessoas desprovidas de qualquer saber, ou melhor, o saber popular era
desprezado ou quase anulado, para receberem o depósito de tudo quanto o professor ou a
professora desejasse. A base da pedagogia freireana é o desenvolvimento dos “temas
geradores”, ou seja, temas de interesse da comunidade trazidos para a sala de aula e o
método dialógico fariam circular o “tema gerador”. A “conscientização” implicaria em uma
ação social transformadora com a participação de educandos e educadores
(GHIRALDELLI JÚNIOR, 2006, p.106-110). A idéia de “temas geradores” vem sendo
empregada como estratégia pedagógica, até hoje.
Ao comentar a pedagogia freireana, Michael Peters (2000), professor
universitário na Nova Zelândia, em seu artigo – Paulo Freire e o pós-modernismo confessa
que a Pedagogia do oprimido (Freire, 1980) “teve um profundo impacto sobre mim”.
Peters aproxima Freire a Jürgen Habermas
56
, visto que Freire “abraçou uma visão de
cultura como uma totalidade e ele baseava sua esperança na emancipação em cima disso”,
56
C f. Japiassú e Marcondes (op. cit., p.121): “filósofo alemão, pertencente à chamada ‘segunda geração’ da
escola de Frankfurt (...). A obra de Habermas desenvolve-se na perspectiva da teoria critica da sociedade
iniciada pela escola de Frankfurt, pretendendo ser uma revisão e uma atualização do marxismo capaz de dar
conta das características do capitalismo avançado da sociedade industrial contemporânea. A proposta de
Habermas formula-se em termos de uma teoria da ação comunicativa, recorrendo inclusive à filosofia
analítica da linguagem para tematizar essas condições de uso da linguagem livre de distorção como
fundamento de uma nova realidade”.
74
enquanto Habermas formula a ação comunicativa entre os indivíduos livres tendo o caráter
emancipador em relação à dominação técnica. Para o autor, a produção intelectual de Freire
atravessou três fases distintas: a primeira liberal, a segunda marxista e neomarxista e, por
último, uma fase pós-moderna, “onde ele estava preparado para abrigar as exigências de um
pós-modernismo social crítico (e não conservador) e reconhecer como tais exigências
condensavam e ajudavam a reescrever aspectos de seu próprio trabalho”. Vários teóricos
trabalham na esteira de Freire, entre eles: Henry Giroux, Peter McLaren e Tomaz Tadeu da
Silva (voltarei a este ponto mais adiante). Freire (1993) em Pedagogia da cidade reafirma a
sua utopia na crença da “criação de uma sociedade que seja menos perversa, menos
discriminatória, menos racista, menos machista que a sociedade que temos agora”. A
seguir, Freire (1994) em Pedagogia da esperança faz uma releitura de seus próprios temas
e se declara defensor da pós-modernidade progressista, inimigo da pós-modernidade liberal
e da “falta de tolerância para com a diversidade e a diferença”. Enfim, Freire nunca se
afastou da luta pela justiça social e por uma democracia participativa.
Nos anos 80, Demerval Saviani marcou forte presença no cenário da pesquisa e
da produção acadêmica no Brasil. O livro Escola e democracia (1984), de sua autoria,
ultrapassou mais de trinta edições, sendo ainda bastante consultado nos cursos de ensino
superior, além de outras obras. Saviani foi influenciado por Snyders e por outros autores
(GHIRALDELLI JÚNIOR, 2006), mas seus textos analisam a legislação educacional e a
realidade brasileira. Saviani (1992, p.74) criticou Baudelot e Establet por considerarem a
educação escolar como um “instrumento da burguesia contra o proletariado”, enquanto ele
admite a possibilidade de ser a escola um “instrumento na luta contra a burguesia”. O autor
cunhou a expressão “concepção histórico-crítica” para “reter o caráter crítico de articulação
com as condicionantes sociais que a visão reprodutivista possui, vinculado porém à
dimensão histórica que o reprodutivismo perde de vista” (1992, p.75).
Como principais críticos de Saviani, Gadotti (2004, p. 105) relaciona Nicanor
Palhares Sá (1985) e Luzete Adelaide Pereira (1985). Sá, entre outros pontos de sua crítica,
afirma que Saviani “aproxima-se mais da maiêutica socrática (ou sofista?) do que da
dialética da época do materialismo histórico”. Pereira acusa Saviani de criar “uma
identidade perfeita entre educação e política, no sentido de localizar o sentido político da
educação exclusivamente na sua própria especificidade”.
75
Saviani, em entrevista realizada por Helena de Sousa Freitas
57
esclarece que a
pedagogia histórico-crítica tenta superar tanto os limites das pedagogias não-críticas como
as teorias crítico-reprodutivistas. Comenta que o Brasil se orientava, no campo educacional,
76
características e especificidades. Não existe neutralidade no currículo, trata-se de um
dispositivo político-pedagógico de grande poder na cultura escolar. Tomaz Tadeu da Silva
(1997, p.14), um dos estudiosos no tema, explica:
A tradição crítica em educação nos ensinou que o currículo produz formas
particulares de conhecimento e saber, que o currículo produz dolorosas divisões
sociais, identidades divididas, classes sociais antagônicas. As perspectivas mais
recentes ampliam esta visão: o currículo também produz e organiza identidades
culturais de gênero, identidades raciais, sexuais. (...) O currículo produz, o currículo
nos produz.
Assim, modificar a estrutura de um currículo estabelecido é uma tarefa
complicada, visto que mexe com interesses sociais e simbólicos. As resistências,
provavelmente, surgirão. Em outras palavras: a desconstrução do currículo abala as
relações sociais opressivas, em que certos direitos são desrespeitados.
A partir de um texto de Michael Apple (2002), Tomaz Tadeu da Silva (2002, p.
61-72) tece alguns comentários dentro da perspectiva do currículo crítico. Ressalta o caráter
político da educação e do currículo, além do compromisso de ambos na construção do
‘outro’ e da alteridade. Os conhecimentos e o currículo têm caráter social, pois são
produzidos através das relações sociais entre determinados grupos e estão impregnados
pelos interesses desses mesmos grupos. A educação e o currículo estão vinculados às
conexões estabelecidas pelas relações de classe, de gênero e de raça, sendo “artefatos
históricos e culturais”. Também estabelecem relações entre as nações, quando se desvelam
as relações de subordinação entre raças e etnias, porque certas nações constroem sua
identidade de superioridade frente ao ‘outro’ identificado como “inferior”. Neste sentido,
Snyders já deu bons exemplos, como as crianças argelinas e portuguesas, na França,
vítimas do racismo e da xenofobia. O currículo pode ter a herança de um passado colonial
ou as marcas de um imperialismo recente, desta forma reproduzirá o racismo e/ou
etnocentrismo de um determinado grupo. Torna-se necessária uma revisão crítica para a
descolonização do currículo. Assim, a visão dualista da infância, que opõe menores e
crianças, continua a “colonizar” o currículo oculto
58
, pois ultrapassa o espaço escolar, uma
vez que está presente em outros espaços culturais.
58
C f. Tomaz Tadeu da Silva (2000) em Teoria cultural e educação: um vocabulário crítico, define currículo
oculto como “conjunto de atitudes, valores e comportamentos que não fazem parte explicita do currículo mas
77
Como afirma Silva (2002, p. 67):
é necessária uma compreensão de que o preconceito e a discriminação não
constituem apenas um desvio ou uma patologia individual ou psicológica, mas que
dependem de categorias e classificações que estão profundamente inscritas na história
e no tecido social.
Parece que não apenas a escola precisa discutir tais “categorias e
classificações”, o que deverá fazê-lo à luz de um “currículo crítico e político”, mas todos os
envolvidos com a educação informal. A escola constitui-se em uma instância formal onde
as identidades sociais são, também, formadas histórica e culturalmente, porém outras
instâncias contribuem para a formação das identidades sociais. Possivelmente,
enfrentaremos os desafios munidos de ações pedagógicas e currículos críticos, em que a
ênfase seja uma educação para a cidadania. A cidadania posta aqui seria a cidadania ampla
e ativa, acima de tudo participativa, dentro das esferas pública e privada, mais que
individual, coletiva.
De acordo com Magalhães (apud BRAUN, 2001), vimos no capítulo 1 que a
cidadania é constituída não por direitos individuais fundamentais, mas nela também são
incluídos os direitos sociais, os direitos econômicos e os direitos políticos. Sobretudo,
relembrando Bobbio no mesmo capítulo 1 quando alerta para a necessidade da proteção dos
direitos. A cidadania, portanto, implica na dinâmica dos direitos sociais e a cada momento
novas demandas de proteção social podem surgir, pois está atrelada ao processo histórico,
onde lutas emancipatórias e de mudanças na vida de uma sociedade ocorrem.
Como “descolonizar” o currículo? Silva (2002, p. 69) nos ensina que:
uma estratégia de descolonização do currículo supõe, evidentemente, o projeto, a
construção e a elaboração de novos materiais que possam refletir as visões e
representações alternativas dos grupos subordinados.
Neste sentido, iniciativas de inclusão da história das crianças no Brasil nos
currículos escolares favoreceriam a descolonização do currículo e o melhor entendimento
do Estatuto da Criança e do Adolescente, como uma conquista de direitos da criança, pois
foi resultado de movimentos de mobilização social, mas que sua práxis está apenas
iniciando. existem materiais como, por exemplo, Uma história da criança brasileira de
que são implicitamente ‘ensinados’ através das relações sociais, dos rituais das práticas e da configuração
espacial e temporal da escola”.
78
autoria de Ana Dourado e Cida Fernandez (1999), este livro poderia ser mais utilizado nas
escolas da rede pública e privada.
Enfim, como adverte Silva (2002, p. 71): “um currículo crítico não pode passar
ao largo das preocupações e vivências centrais das crianças e jovens deste tempo.
Descolonizar o currículo é também torná-lo relevante para a vida social dessa conturbada
época”. Esta é mais uma justificativa para que o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) e a educação para a cidadania marquem forte presença dentro das propostas político-
pedagógicas de todas as escolas públicas brasileiras.
Que escola favoreceria a construção da cidadania infantil? Muitas são as
possibilidades de respostas, mas enfatizo o peso que o currículo e as práticas escolares
carregam dentro desta construção. Miguel Arroio (2002, p. 276) adverte:
que a construção de sujeitos sociais, cidadãos, sujeitos humanos é algo muito mais
complexo e que a escola é, às vezes, uma gota d’água nessa complexidade. E não quer
dizer que essa gota d’água não seja fundamental.
A intenção de Arroio não é de desqualificar a escola, pois seu papel é
“fundamental” para que “se possam reconstruir noções de luta emancipatória e de cidadania
crítica” (GIROUX e Mc LAREN, 1995, p. 147).
Para finalizar este capítulo, cito J. Gimeno Sacristán (1995, p. 97):
A cultura escolar delimitada pelo currículo explícito e por esse currículo real que se
plasma nas práticas escolares ou por aquele que vemos refletido nos materiais
pedagógicos especialmente nos livros didáticos está longe de ser um resumo
representativo de todos os aspectos, dimensões ou invariantes da cultura da sociedade
na qual surge o sistema escolar. O currículo seleciona elementos, valoriza mais certos
componentes em relação a outros e também oculta dos alunos certos aspectos da
cultura que rodeia a escola. (grifo meu)
Com efeito, no capítulo a seguir, tento, entre outros objetivos, desvelar através
da análise de livros didáticos que elementos estão neles selecionados e quais os aspectos da
cultura são ocultados dos alunos e das alunas, especialmente as representações que
circulam em nossa sociedade sobre a infância, ou melhor, sobre as infâncias.
79
CAPÍTULO III
AS REPRESENTAÇÕES SOBRE A INFÂNCIA NOS LIVROS
DIDÁTICOS DE HISTÓRIA PARA A 1
a
SÉRIE DO ENSINO FUNDAMENTAL
Este capítulo tem como objetivo central analisar as representações sobre a
infância, contidas em livros didáticos, destinados à série do ensino fundamental de
História, utilizados nas escolas públicas de todo o Brasil. Os livros didáticos selecionados
foram os cinco mais adotados na rede pública municipal da Prefeitura do Rio de Janeiro na
escolha realizada pelos professores e pelas professoras através do Programa Nacional do
Livro Didático (PNLD) no ano de 2004. Estes livros escolhidos para o período de
2004/2006 serão ou não substituídos por outros títulos em 2007, visto que o processo de
renovação dos exemplares ocorre a cada triênio. No ano em curso (junho de 2006), foi
realizada nova escolha para o período de 2007/2009, mas as cinco obras selecionadas para
esta pesquisa continuaram a fazer parte do PNLD de 2007, assim os professores e as
professoras podem ter optado por manter as mesmas coleções. A escolha das fontes, isto é,
dos livros didáticos para a série intermediária do primeiro ciclo
59
do ensino fundamental
deu-se, em primeiro lugar, por ser neste momento que o ensino de História tem início. Em
segundo lugar, pela faixa etária dos/as alunos/as corresponder à infância, lembrando que o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990) considera como criança toda “pessoa até
doze anos de idade incompletos” (artigo 2). Estas fontes são ricas em representações sobre
a infância inseridas em seus textos e em sua iconografia, pois seus conteúdos apresentam
entre seus temas a criança. Entretanto, permanece uma dúvida depois de transcorridos
dezesseis anos da publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente: estariam ou não
esses livros veiculando a categoria social denominada “menor” relativa à infância e à
adolescência?
3.1 O livro didático como fonte de pesquisa
Desde Comenius, autor da Didática Magna (1632), imortalizado pela
pedagogia por sua célebre obra sintetizada pelo princípio de “ensinar tudo a todos”, que o
59
O primeiro ciclo corresponde aos três anos iniciais do ensino fundamental.
80
livro didático tem seu papel de destaque no processo ensino-aprendizagem. Comenius
ensinava que o livro didático seria “o único para os alunos, elaborado pelos sábios, e cada
professor, mesmo que não tenha muita habilidade para ensinar, o usará para comunicar e
infundir na juventude uma erudição preparada e com instrumentos também
preparados, colocados nas suas mãos” (BUFFA, 1991, p. 22). Desta forma, o livro didático
passa a ser um instrumento fundamental para os/as alunos/as e professores/as. Comenius
recomendava para o professor o “livro-roteiro”, hoje denominado de guia ou manual do
professor, com sugestões e orientações auxiliares ao desenvolvimento da tarefa pedagógica.
De para cá, não saiu de cena, mesmo sendo, muitas vezes, “criticado ou
idolatrado, o livro didático continua sendo uma referência de peso, um suporte pedagógico
de veiculação do saber histórico escolar, dos mais utilizados” (GABRIEL, 2000, p. 241).
Dentro desta mesma linha, Circe Bittencourt (2003, p. 71) confirma a divergência dos
professores quanto ao seu uso, uns “abominam”, outros “calam-se ou se posicionam de
forma positiva”. Entretanto, os pais e os alunos, principalmente, consideravam-no
referencial básico para o estudo”.
Há, uma estreita relação entre as propostas curriculares, os conteúdos escolares
e os livros didáticos, ou seja, estes são concebidos e produzidos de acordo com os
conteúdos escolares a serem ministrados ou desenvolvidos, para atenderem as propostas
curriculares de um determinado sistema de ensino. Bittencourt (op. cit., p.72) assinala que:
O livro didático é também um depositário dos conteúdos escolares, suporte básico e
sistematizador privilegiado dos conteúdos elencados pelas propostas curriculares; é
por seu intermédio que são passados os conhecimentos e técnicas considerados
fundamentais de uma sociedade em determinada época. O livro didático realiza uma
transposição do saber acadêmico para o saber escolar no processo de explicitação
curricular. Nesse processo, ele cria padrões lingüísticos e formas de comunicação
específicas ao elaborar textos com vocabulário próprio, ordenando capítulos e
conceitos, selecionando ilustrações, fazendo resumos, etc (grifo meu).
Portanto, o livro didático, como fonte de pesquisa, desvela preciosas
informações sobre uma sociedade em um determinado tempo, sua visão de mundo, seus
valores, sua linguagem e seus saberes a transmitir. Podemos afirmar que o livro didático foi
transformado, inegavelmente, em um “artefato cultural” (CHARTIER, 1990), difusor de
informações e de saberes sistematizados existentes em todas as áreas do conhecimento e em
todos os níveis de ensino. O livro didático faz parte da “cultura escolar”, expressão
81
82
sofisticada, utiliza pela primeira vez os textos didáticos para desmascarar a sua hipocrisia,
arcaísmo e carga ideológica” (FREITAG, COSTA e MOTTA, 1993, p.69-70). Bebendo da
mesma fonte, Deiró Nosella (1979) escreve As belas mentiras: a ideologia subjacente aos
textos didáticos, Franco (1982) em O livro didático de História do Brasil: algumas
questões. Dominique Juliá (2002, p.41) registra que na França:
Nos anos de 1970, a análise dos manuais escolares freqüentemente incorreu em
simplificações exageradas: importando, em uma perspectiva marxista, o modelo
sociológico de escola como modo de reprodução, idêntico às relações sociais a
serviço das classes dominantes, os autores procuram revelar, no conteúdo dos
discursos veiculados pelos manuais, a “ideologia” própria que mantinha as classes
subalternas no habitus de submissão.
O segundo momento corresponde à reabilitação, no Brasil, do livro didático
com a dissertação de Nicolas Davies (1991), publicada em 1994, com o título O livro
didático de História: ideologias dominantes ou ideologias contraditórias?, na qual analisou
livros e temas utilizados nas escolas da rede pública brasileira em 1988, com a conclusão
de que não há no discurso dominante unilateralidade. O autor exemplifica com a resistência
indígena brasileira descrita nos livros analisados, explicando:
[...] se o conteúdo dos livros didáticos de História refletisse apenas os interesses e
visões das classes dominantes, obviamente as resistências apresentadas pelos
oprimidos ou explorados nele não figurariam, pois as classes dominantes pretendem
representar a sociedade como desprovida de contradições e conflitos e caracterizada
apenas por harmonia social (DAVIES, 1994, p.33).
O terceiro momento é representado pela tese de Bittencourt (1993) Livro
didático e conhecimento histórico: uma história do saber escolar, pela pesquisa de
Gasparello (1988) A produção de um saber escolar: a história do livro didático, e pela
tese de Munakata (1997) Produzindo livros didáticos e paradidáticos. Por esses
trabalhos, o saber histórico escolar passa a ser entendido como uma categoria a ser pensada
no contexto dos livros didáticos.
83
3.2 Os Parâmetros Curriculares Nacionais
60
e a disciplina escolar – História
O texto dos Parâmetros Curriculares Nacionais (MEC/SEF, 1997, v. 5) traça a
trajetória do ensino de História desde o início do XIX no Brasil. Interessa-nos, de acordo
com o recorte feito nos capítulos anteriores, o século XX. Segundo aquele documento, no
início do século XX “surgiram propostas alternativas ao modelo oficial de ensino, logo
reprimidas pelo governo republicano, como as escolas anarquistas, com currículos e
métodos próprios de ensino” (p. 23). Na década de 30, foi criado o Ministério da Educação
e Saúde Pública e realizada a Reforma Francisco Campos, que entre outras medidas,
regulamentou e organizou os ensinos superior e secundário no Brasil (GHIRALDELLI JR.,
2006, p. 40). O ensino de História seguia a mesma orientação em todo país, com destaque
para o estudo de História Geral, enquanto a América e o Brasil estavam embutidos nesta
visão geral. Este foi, também, o momento da influência do movimento escolanovista norte-
americano com o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932). A Reforma de
Gustavo Capanema (1942) separou, em caráter definitivo, a História Geral e a do Brasil,
aumentando a carga horária de História no curso ginasial (ABUD, 2003, p. 33). Surge a
proposta da retirada das disciplinas História e Geografia do currículo escolar e a adoção dos
Estudos Sociais no ensino elementar. Apesar de algumas mudanças, as escolas, de maneira
geral, mantinham seus currículos de acordo com os conteúdos exigidos nos exames de
admissão ao ginásio e ao ensino superior, como forma de garantir a aprovação de seus
alunos e suas alunas nos concursos públicos (PCNs, p. 24).
Após a Guerra Mundial, houve uma preocupação não quanto aos
currículos que transmitissem conteúdos humanistas e pacifistas, mas também na preparação
84
secundário deu ênfase à História da América e, especialmente, para a História dos Estados
Unidos, dentro da perspectiva de sucessão linear. Em 1961, a Lei de Diretrizes da Educação
Brasileira (Lei 4.024/61) outorgou aos governos estaduais a elaboração dos programas
do ensino secundário. Kátia Abud (2003, p. 39) comenta que a LDB/61 foi:
Produto de uma “americanização” do currículo, promulgada num contexto histórico
no qual a industrialização buscava adestrar mão-de-obra para essa mesma indústria,
ela iniciou claramente um processo de tecnização da formação escolar, em oposição à
Lei Capanema, criticada como livresca e elitista, que não preparava o alunado para a
vida.
As escolas experimentais introduziam a área de Estudos Sociais. Nas escolas
primárias não experimentais, para as séries iniciais predominavam os conteúdos baseados
em datas cívicas para a transmissão do saber histórico, enquanto para as séries finais era
ensinada a História do Brasil, dividida em colonial, monárquica e republicana com o
objetivo de preparar as crianças para os exames de admissão ao ginásio (PCNs, p. 26).
No início da década de 70, a Reforma de Ensino
61
(Lei 5.692/71),
implementada pelo governo militar instalado desde 1964 no Brasil, determinou a
substituição das disciplinas História e Geografia pelos Estudos Sociais como área de
estudos, que englobava as disciplinas chamadas de Educação Moral e Cívica e de
Organização Social e Política Brasileira. Estas duas últimas disciplinas no ensino do
grau eram ministradas nas e séries Educação Moral e Cívica (EMC) e nas séries
finais – Organização Social e Política Brasileira (OSPB). A área de Estudos Sociais ganhou
“contornos ideológicos de um ufanismo nacionalista destinado a justificar o projeto
nacional organizado pelo governo militar implantado no País a partir de 1964” (PCNs, p.
26).
Kátia Abud (2001, p. 130-131) considera que:
Ao não reconhecer História e Geografia como campos epistemológicos independentes
e ao colocá-los, na organização curricular, no mesmo nível e grau de Educação Moral
e Cívica e Organização Social e Política do Brasil, os órgãos públicos ligados à
educação davam um sentido pragmático para as disciplinas, representando-as como
instrumento para “ajustar o indivíduo à sociedade” e formar o “cidadão consciente
preparado para o trabalho”. Não se colocava, porém, entre seus objetivos, a produção
de conhecimento na área de Ciências Humanas e Sociais, mesmo porque a escola era
61
Sobre este tema ver: Martins, M. C.(2002) A história prescrita e disciplinada nos currículos escolares:
quem legitima esses saberes?
85
vista como transmissora de um conhecimento produzido e sua finalidade maior era
preparar o aluno para, como trabalhador, contribuir para o desenvolvimento do país.
O ensino das disciplinas nas áreas das Ciências Humanas e Sociais, consideradas em
sua individualidade, representavam, na perspectiva dos donos do poder, um
instrumento revolucionário que não deveria ser posto em prática.
Vale a pena lembrar, como foi visto no capítulo anterior, que a Reforma de
Ensino (Lei 5.692/71) instaurou no ensino oficial a pedagogia tecnicista sob a égide dos
Estados Unidos. Naquele momento, vivia-se o clima da Guerra Fria e o controle norte-
americano sobre o continente americano era um fato, como está provado pela própria
História. A atenção voltada para a produção editorial era tão grande, naquela época, que o
Ministério da Educação e Cultura (MEC) assinou uma série de acordos com a United States
Agency for International Development (USAID) para a assistência técnica e cooperação
financeira dessa agência à organização do sistema educacional brasileiro. Estes acordos são
conhecidos como Acordos MEC-USAID”, tendo o Sindicato Nacional dos Editores de
Livros (SNEL) participado do Acordo de 06/01/1967. Como registrou Otaíza Romanelli
(1998, p. 213):
6 de fevereiro de 1967 – Acordo MEC-SNEL-USAID de Cooperação para Publicações
Técnicas, Científicas e Educacionais. Por esse acordo, seriam colocados, no prazo de
3 anos, a contar de 1967, 51 milhões de livros nas escolas. Ao MEC e o SNEL
incubiriam apenas responsabilidades de execução, mas, aos técnicos da USAID, todo
o controle, desde os detalhes técnicos de fabricação do livro (seria preciso?), até os
detalhes de maior importância como: elaboração, ilustração, editoração e
distribuição de livros, além da orientação das editoras brasileiras no processo de
compra de direitos autorais de editores não-brasileiros, vale dizer, americanos.
O crescimento da Associação Nacional dos Professores Universitários de
História (ANPUH) e da Associação Geográfica Brasileira (AGB) favoreceu as críticas à
pedagogia oficial, tornando mais caloroso o debate para a extinção de Estudos Sociais e o
retorno de História e Geografia aos currículos do segundo segmento do ensino de primeiro
grau, ainda na década de 70. O processo de redemocratização do país facilitou a luta pela
concretização dos ideais dos/das especialistas daquelas disciplinas, ou seja, a substituição
dos Estudos Sociais por História e Geografia, além da retirada das demais disciplinas que
formavam aquela área de estudos - Educação Moral e Cívica e Organização Social e
Política do Brasil (ABUD, op. cit., p. 131). Esta “reorganização curricular” ocorreu no
segundo segmento do ensino de grau (5ª a série) e as séries iniciais (1ª a série)
86
conservaram os Estudos Sociais. recentemente, em 2004, o ensino fundamental deixou
de ter em seu currículo a área de Estudos Sociais. A mudança foi iniciada em 2002 como
opcional e com a indicação de substituição por História e Geografia, como era reivindicado
pelos/pelas especialistas das duas disciplinas. Cabe ressaltar, que tal modificação curricular
ocorreu bem depois da aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBN 9.394/96), elaborada por determinação da Constituição Federal de 1988. A
LDBN/96 foi muito mais o resultado de um projeto do Governo Collor do que um projeto
popular representativo da defesa do ensino público e gratuito. Várias vozes manifestaram-
se, contrariamente, à Lei 9.394/96. Entre elas, a de Florestan Fernandes (Folha de São
Paulo, 1992) condenando o Senador Darcy Ribeiro por trair os princípios de Anísio
Teixeira e servir o governo (GHIRALDELLI JR., 2006, p. 170-171). Outra voz contrária
foi a de Sonia Kramer (1999, p. 166) pela falta da “discussão ampla e organizada de setores
e categorias profissionais de diferentes níveis [...] sem provocar a participação popular
[...]”. Após a aprovação da LDBN/96, o MEC editou os Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCNs) para o ensino de História e Geografia (SEF/MEC, 1997) nos e ciclos. A
respeito da disciplina História no ensino fundamental, Abud (2001, p. 138) afirma:
Os PCNs foram elaborados para produzir um tipo de conhecimento histórico escolar
voltado para a sociedade tal como se apresenta nos dias atuais, voltado para a nova
ordem mundial. Entre seus objetivos não se encontra mais um projeto de reconstrução
nacional. Objetivos como transformar a sociedade, fazer do aluno agente da história
foram substituídos por verbos como reconhecer, identificar, respeitar, analisar,
conhecer. Os PCNs abandonam as questões metodológicas sobre o conhecimento
histórico, escolar ou acadêmico e procuram substituí-las por “opções didáticas”,
distanciadas de linhas teóricas de explicação histórica, valorizando assim, sobretudo,
os aspectos pedagógicos do ensino de História. A discussão conceitual fica
minimizada, priorizando vocábulos, que dão forma e conteúdo histórico atemporal aos
parâmetros, o que permite que várias das sugestões se encerrem com “etc.”.
Por esta afirmação a autora critica os objetivos gerais de História para o ensino
fundamental, pois os verbos conhecer, reconhecer, identificar, respeitar, organizar,
utilizar, valorizar pressupõem um comportamento passivo do/a aluno/a frente a sua
realidade, estimula-se uma situação de acomodação e/ou conformação. Verifiquemos estes
objetivos prescritos nos PCNs (p. 41) para todas as crianças, cuja capacitação será de :
identificar o próprio grupo de convívio e as relações que estabelecem com
outros tempos e espaços;
87
organizar alguns repertórios histórico-culturais que lhes permitam localizar
acontecimentos numa multiplicidade de tempo, de modo a formular explicações para
algumas questões do presente e do passado;
conhecer e respeitar o modo de vida dos diferentes grupos sociais, em
diversos tempos e espaços, em suas manifestações culturais, econômicas, políticas e
sociais, reconhecendo semelhanças e diferenças entre eles;
reconhecer mudanças e permanências nas vivências humanas, presentes na
sua realidade e em outras comunidades, próximas ou distantes no tempo e no espaço;
questionar sua realidade, identificando alguns de seus problemas e refletindo
sobre algumas de suas possíveis soluções, reconhecendo formas de atuação política
institucionais e organizações coletivas da sociedade civil;
utilizar métodos de pesquisa e de produção de textos de conteúdo histórico,
aprendendo a ler diferentes registros escritos, iconográficos, sonoros;
valorizar o patrimônio sociocultural e respeitar a diversidade,
reconhecendo-a como um direito dos povos e indivíduos e como um elemento de
fortalecimento da democracia.
Os verbos em destaque não incentivam uma atitude contemplativa diante do
que está construído? A criança será sujeito histórico
62
ou estará assujeitada à História?
3.3 O Programa Nacional do Livro Didático e o Guia do Livro Didático
O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), órgão vinculado
ao Ministério da Educação (MEC), mantém o Programa Nacional do Livro Didático
(PNLD) com recursos financeiros do Orçamento Geral da União e da arrecadação do
salário-educação. De acordo com as informações disponíveis na gina do FNDE
63
, na
Internet, a política do livro didático teve início com a criação, em 1929, de um órgão
específico para este fim o Instituto Nacional do Livro (INL), que deu maior legitimação
62
Cf. os PCNs de História e Geografia (1997, p. 36): “o sujeito histórico pode ser entendido, por sua vez,
como sendo os agentes da ação social, que se tornam significativos para estudos históricos escolhidos com
fins didáticos, sendo eles indivíduos, grupos ou classes sociais. Podem ser, assim, todos aqueles que,
localizados em contextos históricos, exprimem suas especificidades e características, sendo líderes de lutas
para transformações (ou permanências) mais amplas ou de situações mais cotidianas, que atuam em grupo ou
isoladamente, e produzem para si ou para uma coletividade. Podem ser trabalhadores, patrões, escravos, reis,
camponeses, políticos, prisioneiros, crianças, mulheres, religiosos, velhos, partidos políticos, etc”.
63
Disponível em: http://www.fnde.gov.br . Acesso em: 10/07/2006.
88
ao livro didático nacional e aumentou a sua produção. O Decreto-lei 1006/38 criou a
Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD) com o objetivo de controlar a produção e a
circulação do livro didático nacional. O Decreto-lei 8.460/45 consolidou a legislação
sobre as condições de produção, importação e utilização do livro didático, dando ao
professor ou à professora a exclusividade de direito de escolha do livro para ser utilizado
por seus alunos e suas alunas.
Em 1966, o acordo entre o MEC e a USAID resultou na criação da Comissão
do Livro Técnico e Livro Didático (COLTED), com o objetivo de coordenar as ações
referentes ao controle da produção, edição e distribuição do livro didático. A Portaria
35/70, do MEC, implementou o sistema de co-edição de livros de editoras brasileiras, com
o financiamento do INL. Logo depois, em 1971, o INL instituiu o Programa do Livro
Didático para o Ensino Fundamental (PLIDEF), que assumiu as funções administrativas e
gerenciais dos recursos financeiros, desempenhadas anteriormente pela COLTED. Com o
término do acordo MEC-USAID, as unidades federativas passaram a contribuir
financeiramente para o Fundo do Livro Didático. A Fundação Nacional do Material Escolar
(FENAME) substituiu o extinto INL, na execução do programa do livro didático. A
Fundação de Assistência ao Estudante (FAE) substituiu, em 1983, a FENAME e o PLIDEF
que ficaram subordinados à FAE.
O Decreto 91.542/85 extinguiu o PLIDEF e criou o Programa Nacional do
Livro Didático (PNLD) com os objetivos de: facilitar a indicação e escolha do livro
didático pelos professores e pelas professoras; incentivar a reutilização do livro, abolindo o
livro descartável; estender a oferta de livros aos alunos e às alunas de e séries das
escolas públicas e comunitárias; extinguir a participação financeira dos estados e passar o
controle do processo decisório para a Fundação de Assistência ao Educando (FAE). Em
1992, houve um problema orçamentário e a distribuição ficou restrita até a série. Em
1995, foi retomada gradativamente a distribuição e dada prioridade aos livros de
Matemática e Língua Portuguesa; em 1996, de Ciências, e por último, em 1997, os de
Geografia e História. Foi aperfeiçoado o procedimento de indicação para o Guia do Livro
Didático (GLD), excluindo aqueles com erros conceituais, indução a erros, desatualização,
preconceito ou discriminação de qualquer tipo, critérios que vigoram até hoje. Extinta a
89
FAE em 1997, a responsabilidade pela política de execução do PNLD foi transferida para o
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), exclusivamente.
Esta é a história oficial da política do livro didático no Brasil. Entretanto,
controvérsias em alguns pontos dessa versão oficial. Para passar a limpo alguns dos pontos
pouco claros, recorro à obra – O livro didático em questão (FREITAG, COSTA e MOTTA,
1993, p. 11-19). Em 1937, o INL, criado durante a ditadura varguista - Estado Novo, tinha a
missão de divulgar e distribuir as obras educacionais e culturais. O INL, órgão do MEC, era
formado por órgãos menores e um deles fazia a coordenação do livro didático, também
responsável por sua produção. O Decreto-lei 1006/38, em seu artigo 2º, definiu:
“Compêndios são livros que exponham total ou parcialmente a matéria das disciplinas
constantes dos programas escolares” (OLIVEIRA, 1980, apud FREITAG, COSTA e
MOTTA, 1993). O capítulo 1 - art. deste Decreto fazia referência “às crianças
necessitadas”. As “caixas escolares”, mantidas nas escolas públicas primárias pelas
contribuições espontâneas dos responsáveis, deveriam prover as “crianças necessitadas”
com os materiais didáticos necessários ao bom desempenho escolar. A Comissão Nacional
do Livro Didático (CNLD) “tinha muito mais a função de um controle político-ideológico
que propriamente a função didática” (BOMÉNY, 1984, apud FREITAG, COSTA e
MOTTA, 1993), pois o Estado Novo, como qualquer outra ditadura, tinha esta forte
preocupação. Com o fim do regime, em 1945, surgiram muitas críticas questionando a
legitimidade do CNLD, mas a comissão foi mantida.
O acordo MEC-USAID datado de 06/01/1967, como atestam vários/as
autores/as, entre as quais Romanelli (1998, p. 14), foi denunciado como “um controle
americano do mercado livreiro, especialmente do mercado do livro didático”. Era mais uma
ditadura, a de 1964, e o “controle político-ideológico” se fazia necessário. A Fundação
Nacional do Material Escolar, criada em 1968, ficou encarregada do Programa do Livro
Didático a partir de 1976. Em 1980, o governo federal dirige sua política do livro didático
para as classes populares ou “alunado carente de recursos financeiros” com as diretrizes
básicas do PLIDEF. A FAE, criada pela Lei nº 7.091/83, ficou responsável pelos programas
de assistência às crianças das escolas públicas Programa Nacional de Alimentação
Escolar (PNAE) e Programa do Livro Didático para o Ensino Fundamental (PLIDEF), que
90
incluía a doação de bolsas de estudo. A FAE enfrentou vários problemas, entre eles, a
distribuição dos livros em todos os lugares do Brasil, nas datas previstas.
O Decreto 91542/85 tentou sanar os problemas criando o Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD) e uma de suas principais medidas foi instituir o “livro
reutilizável”, diminuindo as despesas financeiras, provocadas pelo desperdício do livro
descartável.
Atualmente, a política do livro didático está consubstanciada no PNLD e no
Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio (PNLEM). O PNLD distribui,
gratuitamente, obras didáticas para todos/as os/as alunos/ as durante todo o curso do ensino
público fundamental. Os livros são avaliados quanto ao seu conteúdo pela Secretaria de
Educação Básica do Ministério da Educação (SEB/MEC). O Instituto de Pesquisas
Tecnológicas (IPT) é responsável pela coleta de amostras e pelas análises das
características físicas dos livros, de acordo com as especificações da Associação Brasileira
de Normas Técnicas (ABNT), normas ISO e manuais de ensaios pré-elaborados para
garantir a qualidade e durabilidade materiais/físicas do livro.
Finalmente, os livros didáticos selecionados são incluídos no Guia do Livro
Didático (GLD). O PNLD envia o GLD para todas as escolas cadastradas no censo escolar.
A escolha é feita pelos professores e/ou professoras por escola via on line ou por formulário
próprio enviado pelos Correios. A equipe escolar é responsável por duas opções de
coleções para cada componente curricular, de preferência de editoras diferentes para não
comprometer a negociação entre o governo e os editores. A distribuição é feita,
diretamente, pelas editoras às escolas, com data prevista para outubro ou até o início do
próximo ano letivo. Os pedidos são realizados em anos alternados, quer dizer, um ano para
o primeiro segmento e o outro ano para o segundo segmento. Exemplo: 2004, ano para
pedidos destinados às séries iniciais, no ano seguinte, para as séries finais do ensino
fundamental. A renovação dos títulos acontece de três em três anos. Apenas a primeira série
tem seus pedidos feitos anualmente, pois os livros desta série não são reutilizados, assim
como as cartilhas. Os alunos das demais séries devolvem os livros, exceto o terceiro que
não o devolverá, passará a ser o seu dono. Cada escolar de qualquer série tem direito a um
exemplar das disciplinas de Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, História e
Geografia. Além dos livros dessas disciplinas, o aluno da primeira série recebe um
91
dicionário da Língua Portuguesa. Ocorrem reposições anuais por conta de extravios, perdas
ou complementação por aumento no número de matrículas.
De 1997 até 2002, os livros avaliados recebiam uma menção de uma, duas ou
três estrelas. A partir de 2002, a classificação das obras recomendadas é estabelecida por
letras correspondendo às seguintes categorias:
RD = recomendadas com distinção = obras com qualidades inequívocas e
bastante próximas do ideal representado pelos princípios e critérios definidos pelo GLD.
Propostas pedagógicas elogiáveis, criativas e instigantes.
REC = recomendadas = cumprem todos os requisitos de qualidade exigidos
neste processo de avaliação, asseguram a possibilidade de um trabalho didático correto e
eficaz para o professor.
RR = recomendadas com ressalvas = são isentas de erros conceituais e
preconceitos, obedecem aos critérios mínimos de qualidade, mas contêm algumas
limitações. O/a professor/a deve estar atento às observações, consultar bibliografias para
revisão e complementação da proposta.
Os critérios para a avaliação do livro didático foram definidos, inicialmente, em
1995, em reuniões e seminários com autores, editores e suas entidades representativas, do
Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED), da União Nacional dos
Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME) e de professores e professoras
especialistas. Os três critérios eliminatórios são: correção dos conceitos e informações
básicas, correção e pertinência metodológica, contribuição para a construção da cidadania.
Em relação a este último critério, o GLD (2004, p.27) determina:
Em respeito à Constituição do Brasil e para contribuir efetivamente para a construção
da ética necessária ao convívio social e à cidadania, a obra didática não poderá:
veicular preconceitos de origem, cor, condição econômico-social, etnia, gênero,
linguagem e qualquer outra forma de discriminação; fazer doutrinação religiosa,
desrespeitando o caráter leigo do ensino público. Qualquer desrespeito a esses
critérios é discriminatório e, portanto, socialmente nocivo.
A não observância aos critérios, excluirá o livro do PNLD. Basta um volume da
coleção ser excluído para que toda a coleção não faça parte do GLD.
92
O Guia do Livro Didático (2007) indica o livro de rard e Roegiers
64
(1998)
intitulado Conceber e avaliar manuais escolares para consulta dos professores e das
professoras. A obra é bastante técnica, sem uma teoria consistente, com características
fortes de pragmatismo. Destaco, a seguir, algumas partes que julgo serem as mais
importantes dentro de seu contexto. Esta exposição tem por objetivo ajudar-nos a perceber
o que o GLD, ou melhor, a Secretaria de Educação Básica do MEC considera relevante
para o embasamento pedagógico do/as profissionais da educação. Inicialmente, os autores
situam o livro didático no atual mundo tecnológico e as funções que desempenha:
Numa época em que se assiste a uma verdadeira explosão de suportes de ensino,
93
as crianças de classes populares, o livro abre as portas para o mundo da palavra escrita, um
universo pouco conhecido por elas, visto que possuem uma cultura eminentemente oral.
Empregando as idéias de Gèrard e Roegiers, o GLD (p.17) observa “como o LD pode ser
importante no cotidiano do aluno e do professor, ajudando um e outro na organização do
ensino e da aprendizagem”. Para os autores, o método indutivo é o que melhor se aplica
para o/a aluno/a se apropriar dos conhecimentos, sistematizando e organizando sozinho/a
seus conhecimentos. Em qualquer disciplina, o livro didático deve possibilitar a
transmissão de conhecimentos, o desenvolvimento de capacidades e competências, além de
consolidar os conhecimentos práticos e teóricos adquiridos. Há forte influência da
psicologia na didática indicada, com o emprego de fichas de controle e de auto-avaliação.
Para o/a professor/a o manual constitui-se em fonte de informação científica, assim os
autores recomendam àqueles/as que produzem livros atenção para a “qualidade, correção e
atualização das informações científicas e gerais” (GLD, p. 22), já que funcionam como
mecanismo de atualização do professor/a. Estaria a educação continuada sendo preterida ou
substituída por este mecanismo? O manual do/a professor/a transforma-se num guia
metodológico único? São dispensáveis o plano de curso e o plano diário?
Em visita a algumas escolas municipais da Prefeitura do Rio de Janeiro,
observei que ninguém (diretora, diretora-adjunta, coordenadora pedagógica, professora
regente) encontrou o documento oficial do MEC/SEF (PCNs/ 1997), quando este deveria
estar disponível para consulta. Finalmente, uma diretora retirou de seu acervo particular um
exemplar e o disponibilizou, em caráter de empréstimo especial, para esta pesquisa. Então,
comecei a refletir: será que os atuais manuais didáticos são tão completos que dispensam as
consultas aos PCNs?
A parte inicial do livro em questão traz um roteiro completo para aqueles que
pretendem produzir livros didáticos, sem nenhum defeito. Será que existe uma rmula
mágica para se elaborar um livro didático? um único livro adequado a qualquer criança
de uma determinada série? Devo acrescentar que, somente, algumas editoras enviam os
livros para exame dos professores e das professoras, muitas vezes, pode ocorrer a escolha
sem a possibilidade do manuseio da obra. Em visita ao setor de divulgação de uma das
editoras, fui informada que cada escola tem um perfil, segundo os critérios traçados pela
editora, por isso a escola recebe a coleção compatível com o seu perfil, caso contrário
94
haveria um prejuízo comercial. Não seria isto prejudicial ao processo de escolha do livro
didático?
Curiosamente, rard e Roegiers afirmam que a “obra pretende ser, ao mesmo
tempo, um instrumento de reflexão e de ação” (p.15). Entretanto, discordo, pois a obra não
consegue ou até mesmo não possui, verdadeiramente, a intenção de propiciar ao leitor
momentos de reflexão. Trata-se de um manual de instrução, com fórmulas esquemáticas,
que apenas poderão levar à ão. Neste momento, Nilda Alves e Regina Leite Garcia
(2004, p. 11) são lembradas:
[...] a nossa discordância em relação ao pensamento hegemônico que pretende tutelar
o trabalho docente; que fala numa assustadora qualidade total; que pretende
controlar a incontrolável complexidade do processo ensino-aprendizagem com provas
únicas; que acredita possível, treinar os professores somente pela televisão, pelo
vídeo, por meio de pacotes elaborados em gabinetes ou em redes de televisão e, até
mesmo, com importados do chamado Primeiro Mundo e por algumas editoras.
O GLD ao recomendar a leitura desses autores parece querer treinar os/as
profissionais da educação, de acordo com o pacote de instruções prescrito por Gèrard e
Roegiers, para que seja atingido o sucesso no processo ensino-aprendizagem.
Em os/na
95
c) saber – fazer gestual: realizar, construir, manipular, traçar, desenhar.
d) saber ser (considerados no sentido de hábitos interiorizados): descobrir,
investigar, imaginar, inventar, examinar, propor, consultar, criticar, avaliar, sugerir,
conformar, controlar, elaborar, experimentar, compor.
Esta extensa lista de verbos lembra a famosa taxionomia de Bloom (1956)
amplamente empregada pela pedagogia tecnicista. Deste extenso e complexo repertório de
verbos, identificar é o único a figurar tanto neste rol quanto nos objetivos de História para o
1º ciclo, reconhecer tem nestes objetivos a conotação de identificar. Nos livros analisados a
seguir, de maneira geral o verbo identificar aparece com maior freqüência em todos os
objetivos dos capítulos dos manuais do professor ou da professora. Com isso, podemos
afirmar que a capacidade ou competência de maior peso para a criança é identificar, que
pode ser considerada como passiva e não reflexiva ou não questionadora. Por outro lado, ao
examinar as Diretrizes Curriculares Nacionais
65
(DCNs), encontramos como princípio
fundamental orientador para as propostas curriculares a construção de identidade(s), como
um processo ativo e reflexivo. Desta maneira, a criança não aprenderá a identificar, mas
também a elaborar identidades, favorecendo a construção de sua cidadania. A este respeito,
Bittencourt (2003, p. 27) esclarece que:
Identidade e diferença se complementam para a compreensão do que é ser cidadão e
suas reais possibilidades de ação política e de autonomia intelectual no mundo da
globalização, em sua capacidade de manter e gerar diferenças econômicas, sociais e
culturais como as do nosso país. E, nessa perspectiva, é preciso considerar o papel do
professor na configuração do currículo real, ou interativo, que acontece na sala de
aula, lembrando que ele é sujeito fundamental na transformação ou na continuidade
do ensino da História.
O documento da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, O mundo
cabe na sala de aula (2000) também destaca identidade(s) como princípio fundamental
orientador para as propostas curriculares, justificando:
Na modernidade com a crescente complexidade das sociedades, a identidade tornou-
se móvel, múltipla, pessoal, auto-reflexiva e sujeita a mudanças.A identidade está
65
Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs): “conjunto de definições doutrinárias sobre princípios,
fundamentos e procedimentos na Educação Básica, expressas pela Câmara de Educação Básica do Conselho
Nacional de Educação, que orientarão as escolas brasileiras dos sistemas de ensino, na organização, na
articulação, no desenvolvimento e na avaliação de suas propostas pedagógicas” (Disponível em:
http://www.multirio.rj.gov.br. Acesso em: 28/07/2006).
96
sujeita a várias construções/transformações/influências, num processo constante.
Sendo um processo, a identidade se define nas relações vividas no cotidiano, podendo-
se dizer que sua construção ocorre à medida em que a criança, o jovem ou o adulto
têm a possibilidade de se ver como uma pessoa que participa de um grupo com
características próprias, que procura neste grupo uma identidade enquanto ser social
mas que, também, constrói sua individualidade como ser único. O processo de
construção da identidade é, portanto, um processo histórico. À medida em que cada
um se liberta das projeções que os “outros” fazem sobre si próprio, a identidade se
singulariza (s. p.).
Hoje ou nas “nossas civilizações técnicas”, no dizer de Ariès (1981, p. 29), a
questão identitária está muito presente. Desde cedo aprendemos o nosso nome, a data do
nosso nascimento, um pouco mais tarde, precisamos possuir a carteira de identidade,
além de outros documentos que nos identificam. Dentro desta perspectiva, encontramos,
atualmente, livros didáticos de História para a primeira série do ensino fundamental com
este tema, dando a conhecer à criança quais são esses documentos. Assim, é desejável que
todas as crianças tenham como traço comum a cidadania para construção de suas
identidades, cabendo à escola contribuir para a sua realização.
3.4 Procedimentos metodológicos
Para a abordagem metodológica foi empregada a análise de conteúdo. Segundo
Laurence Bardin (1977, p. 42) designa-se sob o termo de “análise de conteúdo”:
Um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por
procedimentos, sistemáticos e objectivos de descrição do conteúdo das mensagens,
indicadores (quantitativo ou não) que permitam a inferência de conhecimentos
relativos às condições de produção/recepção (variantes inferidas) destas mensagens.
Na análise de conteúdo foram consideradas “comunicações” não a palavra
escrita, mas também as imagens, principalmente desenhos e fotografias. Para a análise de
conteúdos foram escolhidas como fontes literárias os livros didáticos (instrumentos
educacionais). O “paradigma indiciário” (GINZBURG, 1989) foi utilizado no trabalho com
as fontes, buscando indícios, particularidades, pistas e vestígios, que poderiam passar
despercebidos a olho nu. Ginzburg compara o historiador ao médico, que para chegar à
doença de um paciente vale-se da descrição de sintomas e sinais. O historiador teria um
olho clínico como um médico, que acerta no diagnóstico da doença de seu paciente. Para o
autor, o conhecimento médico e o conhecimento histórico são fundamentados em indícios e
97
conjeturas. Neste procedimento metodológico baseado, principalmente, na semiótica, as
pistas e os sinais contidos nos livros didáticos foram analisados e interpretados até
revelarem as representações sobre a infância.
Para compreender a construção cultural e histórica da infância nos livros
escolares, foram utilizadas as contribuições de Roger Chartier (1990) como referência
teórica. O autor considera que as práticas tanto econômicas quanto culturais dependem das
representações empregadas pelo sujeito para dar sentido a seu mundo. Assim, as fontes
escritas (como os livros escolares), orais e iconográficas (encontradas nos livros didáticos)
podem revelar representações e práticas culturais predominantes num dado momento
histórico de uma sociedade, na medida em que são analisadas e interpretadas. Quanto ao
livro escolar, Chartier o apresenta como um “objeto de circulação”, ou seja, como veículo
para a circulação de idéias que traduzem valores e comportamentos a serem ensinados.
Pode-se afirmar que muitas das representações da infância podem ser percebidas, variando
com a identidade cultural de cada grupo social no tempo e no espaço.
Bardin (1977, p. 95) indica três fases para a organização da análise:
A) Pré-análise - esta fase compreendeu as seguintes etapas:
- escolha dos documentos para análise, feita de acordo com a consulta
realizada na página do FNDE, procurando os títulos mais solicitados para o ensino de
História na série do ensino fundamental, no período de 2004 a 2006, para as escolas
situadas no município do Rio de Janeiro (RJ).
- o corpus de análise foi formado por textos e imagens (desenhos e
fotografias) dos seguintes livros didáticos
66
:
DREGUER, Ricardo; MARCONI, Cássia. História: ensino fundamental. São
Paulo: Moderna, 2001. Com 6.569 exemplares solicitados ao PNLD.
LUCCI, Elian Alabi; BRANCO, Anselmo Lazaro.Viver e aprender história.
São Paulo: Saraiva, 2004. Com 14.112 exemplares solicitados ao PNLD.
MARIN, Marilú Favarin; ORDOÑEZ, Marlene; QUEVEDO, Júlio. História
com reflexão. São Paulo: IBEP, 2005. Com 10.038 exemplares solicitados ao PNLD.
66
Os livros didáticos analisados continuam sendo utilizados nas escolas municipais da Prefeitura do Rio de
Janeiro, com tiragens de 2006.
98
SOURIENT, Lílian; RUDEK, Roseni; CAMARGO, Rosiane. Interagindo com
a História. São Paulo: Ed. do Brasil, 2004. Com 8.174 exemplares solicitados ao PNLD.
VESENTINI, José William; SILVA, Dora Martins Dias; PÉCORA, Marlene.
Vivência e construção. São Paulo: Ática, 2004. Com 6.763 exemplares solicitados ao
PNLD.
- leitura flutuante, ou seja, um contato inicial com os livros analisados e seus
primeiros registros.
B) Exploração do material esta fase correspondeu a uma leitura detalhada e
dirigida dos livros didáticos, com o objetivo de identificar e marcar os eventos relacionados
às representações sobre a infância. Depois, foram elaborados indicadores (sistema de
categorias) para agrupar os eventos, segundo as categorias adotadas.
C) Tratamento dos resultados obtidos e interpretação esta fase permitiu
estabelecer um quadro de significados, mediante dados quantitativos, que foram tratados e
interpretados tendo como referência as representações sobre a infância.
Ainda sobre os procedimentos metodológicos, as palavras de Oliveira e Souza
(2000, p. 28 - 29) despertaram a minha atenção:
A forma de apresentação de um livro didático,isto é, a sua forma física, é um item
importante a ser analisado. [...] É preciso abordar o texto didático em toda a sua
materialidade, investigando formato, capa, qualidade do papel e a relação entre signos
e imagem.
Assim, a análise dos livros didáticos começou pela observação da capa e de sua
descrição, a capa seria a fisionomia do livro podendo ser ou não simpática, alegre e outros
atributos.
A delimitação feita para a escolha dos livros didáticos analisados circunscreveu
esses livros aos adotados na rede pública de ensino fundamental, na cidade do Rio de
Janeiro, para o período de 2004 a 2006.
A opção pelos livros da série do ensino fundamental baseou-se nos seguintes
critérios:
- ausência de trabalhos acadêmicos que contemplem o período, dentro do tema
proposto pelo presente estudo;
99
- as especificidades dessa série, ou seja, a faixa etária dos alunos e das alunas
corresponde à infância e, por outro lado, os conteúdos trazem como um de seus temas - a
criança;
- mudança no PNLD/2004, quando a disciplina de Estudos Sociais foi
substituída pelas disciplinas História e Geografia, oficialmente, da série até a série do
ensino fundamental. O processo de mudança teve início em 2002, mas em caráter opcional;
- a criança tem seu primeiro contato com o livro didático de História nesta
série, considerada como intermediária no processo de alfabetização.
Devo esclarecer que os livros de série do ensino fundamental são
descartáveis e a reposição dos livros didáticos é da responsabilidade do Sistema de
Controle e Remanejamento de Reserva Técnica (SISCORT).
A seguir, são apresentadas algumas considerações
67
gerais, para que o leitor
tenha informações sobre cada volume
68
:
a) História: ensino fundamental Possui 103 páginas com conteúdo
distribuído em quatro unidades: 1- Tempo de criança; 2- Registrando o tempo; 3- Tempo
em família; 4- Tempo de trabalhar. A capa é pouco colorida e simples, com a fotografia de
um menino negro. Quanto à iconografia, predomina a fotografia sobre os desenhos e as
reproduções artísticas. Nas fotografias aparecem representações de diferentes grupos
étnicos. Não possui glossário. Utiliza e indica textos de autores brasileiros. De modo geral,
há omissão da referência ao gênero feminino quando o autor e a autora propõem exercícios,
exemplo “você e seus colegas farão o levantamento [...]” (p. 15). Outro exemplo de
omissão da referência às mulheres: a fotografia com a legenda Índios ianomâmis na
aldeia Demini [...]” (p. 19), onde são vistos “os índios e as índias”. Há um cuidado na
redação dos textos quando, em exercícios, sugere que a criança recorra à família, nunca
fazendo referência ao pai ou à mãe: “em sua casa, peça a um adulto com quem vo
convive [...] (p. 49). Embora ocorra raramente, aparece uma informação naturalizada,
como é o caso do ano bissexto (p. 38), onde não explicação para o aluno, nem
solicitação ao professor ou à professora que o faça. Importante observar: é o único livro
67
As considerações não têm caráter avaliativo e/ou prescritivo.
68
foram citados os títulos das obras, ver nomes dos autores e das autoras em página anterior ou em
FONTES, no final da dissertação.
100
didático dos analisados que traz em todas as suas páginas “Reprodução proibida. Art. 184
do Código Penal e Lei 9.610 de fevereiro de 1998”. Contudo, não indícios na obra de
que a questão dos direitos autorais deva ser discutida com as crianças.
Na Unidade 1-Tempo de criança destacam-se como pontos positivos:
no manual do/a professor/a, a informação para ser transmitida às crianças
“[...] que o corte de palmito silvestre é proibido por lei” (p. 22);
no livro do/a aluno/a há a citação da “Emenda ao artigo 7º - XXIII da
Constituição Brasileira. Emenda publicada no Diário Oficial em 16 de dezembro de 1998”
(p. 25), referente ao trabalho infantil, além da referência ao Estatuto da Criança e do
Adolescente, que legisla sobre a mesma matéria, porém o correto é: XXXIII;
emprego de obras de arte como ilustrações (p. 30);
solicita que as crianças sejam alertadas para os “perigos existentes na prática
de soltar balões” (p.30), além de ser proibida por lei.
Como ponto negativo aponta-se, no livro do/a professor/a, o emprego da
expressão “instituições para menores” (p. 28), o termo - “menores” - tem conotação
pejorativa e discriminatória, como foi apresentado no capítulo 1 desta pesquisa.
Na Unidade 2- Registrando o tempo destacam-se os pontos positivos:
o livro do/a professor/a informa que há uma lei que “obriga os cartórios
de todo o país a emitir a primeira via da Certidão de Nascimento sem ônus para as famílias”
(p. 48);
alerta que “são vedadas por lei a menores de 16 (votar, trabalhar) ou 18
anos (dirigir)” (p. 51).
Destacam-se os pontos muito positivos na Unidade 3- Tempo em família:
o manual do/a professor/a alerta para que sejam percebidas as “diferenças e
semelhanças pessoais, econômicas, sociais, culturais...entre eles” (p. 59);
citação de trecho da Declaração dos Direitos da Criança (p. 63) no livro
do/a aluno/a;
sugestão para o/a professor/a visitar o “site:
http://www.direitoshumanos.usp.br” ;
101
sugestão para o/a aluno/a ler Os Direitos da Criança. Editora Ática”
(p.63);
o manual do/a professor/a alerta: “Ao corrigir esta questão, é importante
comentar acerca das diversas possibilidades de infância em nosso país” (p. 63);
solicita ao professor ou à professora: “Converse com os alunos sobre a
existência de outros direitos garantidos pela Declaração dos Direitos da Criança e pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente” (p. 64). O livro do/a aluno/a mostra através de
fotografias os direitos da criança à moradia, à educação, à saúde, à alimentação e ao lazer
(p. 64-65).
procura desenvolver a reflexão da criança com os seguintes
questionamentos: “Vocês conhecem crianças que não tem acesso a esses direitos? Para
você, é possível mudar a realidade? Como?” (p. 65);
nas orientações para o/a professor/a, um lembrete importante: “[...] ser
responsável por cuidar da casa sozinho é considerado trabalho infantil e isso é proibido por
lei” (p.76). O combate ao trabalho infantil pela sociedade é uma forma de garantir os
direitos da criança. Este tema foi desenvolvido na Unidade 1- Tempo de criança;
sobre a educação indígena, a indicação para o/a aluno/a ler O livro das
árvores. Organizado por Jussara Gomes Gruber. Organização Geral dos Professores Ticuna
Bilíngüe (p. 78) e recomenda informações sobre o bilingüismo para as crianças indígenas.
Entretanto, há registros negativos nesta mesma unidade:
o manual do/a professor/a indica na correção de um exercício: “se em sua
sala houver alunos que vivem em orfanatos ou instituições para menores[...]” (p.66, grifo
meu). O emprego do termo -menores” - mais uma vez, não aparece para o/a aluno/a , mas
ao induzir o/a professor/a a manter esta representação sobre a infância, não o
favorecimento para a sua desconstrução. que se ter cuidado com o currículo oculto
manifestado em sala de aula, pois neste caso está sendo facilitado pelos autores do livro;
um dos modelos de família apresentado nas fotografias é formado por mãe
e filha pertencentes à classe média. A menina estuda em escola particular e é cuidada
somente por sua mãe, valores a serem inculcados como os ideais (p.68);
102
pode se considerar que a obra tem intenção, apesar de algumas ressalvas, em
educar para a cidadania, pois enfatiza a divulgação da CFB/1988 e do Estatuto da Criança e
do Adolescente/1990;
De acordo com o PNLD/2004, dentre as cinco primeiras escolhidas, esta é a
segunda obra com REC (Recomendada). Ficou em segundo lugar na classificação entre as
cinco do seu grupo (Recomendada), quer dizer, apenas uma outra coleção Horizontes:
História com reflexão teve pontuação maior de acordo com a avaliação da SEB/MEC.
b) Viver e aprender História – Possui 80 páginas com conteúdo distribuído em
quatro unidades: 1- Você; 2- Você e sua família; 3- Você e sua casa; 4- Você e sua escola.
Tem capa colorida, onde vemos desenhos que representam o planeta Terra, numa ordem
evolutiva, de sua ocupação. Há a representação de um brinquedo masculino – um carrinho e
uma cena idílica de uma família indígena. Quanto à iconografia, predominam os desenhos.
Possui glossário como nota de rodapé. Utiliza autores estrangeiros. Há a omissão da
referência ao gênero feminino quando os autores formulam exercícios, exemplo “Como
bom detetive [...]” (p. 9). Naturalização de todas as diferenças: “Algumas crianças gostam
de dormir cedo, outras preferem ler ou ver televisão até mais tarde” (p. 7). Considera que
toda criança vive com a mãe: “Peça licença a sua mãe para trazer sua caderneta de
vacinações para a escola” (p. 16). Através de desenho representa a família ideal: mãe, pai e
filho, todos sentados juntos tomando café da manhã (p. 18). Em uma fotografia (p. 19) a
legenda: “Crianças procurando comida em lixão de Volta Redonda (RJ)”, não
correspondendo ao que é visto, porque as crianças catam materiais para serem reciclados,
sendo que uma das crianças até usa luvas para separar as embalagens. Trata-se de uma
afirmação enganosa, induzindo as crianças à formação de conceitos errados. uma
fotografia com a família modelo: pai, mãe, filho e filha, como se fosse uma família
brasileira, mas na verdade, todos são norte-americanos. A fotografia de um “iglu nos
Estados Unidos” (p. 60), não há iglus nos Estados Unidos, o Alasca é um dos estados norte-
americanos (território descontínuo) e existem essas moradias, mas os autores não fazem
esta observação, contribuindo para que as crianças construam concepções errôneas.
Destacam-se como pontos positivos, mas com ressalvas:
103
no manual do/a professor/a, os autores mencionam o ECA, mas não
trabalham com os direitos da criança e nem fazem a indicação, apenas observam que o
“trabalho infantil será abordado nos volumes da 3º e 4º séries desta coleção” (p.22);
solicita que o/a professor/a explique aos/às alunos/as como é feita a
“referência bibliográfica” (p.29);
no texto do/a aluno/a são descritos outros tipos de família (p.37-38), mas
nenhuma em que a criança viva sem seus parentes, havendo exclusão ou omissão de
informações;
inclui um tema atual e importante para a nossa sociedade “Convivendo com
os idosos” (p. 43), mas não cita o Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/ 2003);
a caracterização de “favela e cortiço” (p. 56) e, no manual do/a professor/a,
apresenta dados, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), como a “carência
de serviços públicos essenciais”.
As poucas informações que poderiam contribuir para uma educação para a
cidadania só aparecem no Manual do/a professor/a.
De acordo com o PNLD/2004, a obra está no GLD com RR (Recomendada
com Ressalvas), sendo a de menor pontuação dentro do seu grupo, ou seja, é a de maior
preferência dos professores e das professoras e, ao mesmo tempo, a última colocada na
classificação da SEB/ MEC.
c) História com reflexão Possui 192 páginas divididas em três unidades: 1-
Eu, a criança; 2- O mundo da criança e a criança no mundo; 3- Pequeno cidadão no mundo.
Apresenta capa colorida, com fundo azul escuro simulando o espaço cósmico, onde o
nascimento de uma criança e seu crescimento ano a ano até chegar 2007, quando
ingressaria na série do ensino fundamental. Há predomínio de fotografia, sem data.
Possui glossário ao longo das ginas. Emprega maior número de textos de autores
nacionais. Registra-se a omissão do gênero feminino quando o autor e as autoras escrevem
alguns enunciados: “Compare as suas respostas com as respostas de seus colegas” (p.17).
Em um mapa do Brasil (p. 28) foram representadas por desenhos crianças das cinco regiões
brasileiras, as figuras são estereotipias das representações dessas infâncias regionais. No
quadro “as pessoas com quem você convive” (p. 44), as profissões no feminino são:
104
“empregada doméstica”, “professora” e “diretora”, ou seja, a diretora de escola. Este é mais
um exemplo dos estereótipos. Com o tema Brinquedos e brincadeiras de crianças (p. 63) é
utilizada, inadequadamente, uma reprodução da tela de Pieter Brueghel (1560), pois vemos
nessa imagem os adultos e as crianças brincando juntos, confirmando a tese de Ariès
69
,
que no século XVI as crianças das classes pobres não eram diferenciadas dos adultos, quer
dizer, havia a indiferenciação das idades. Em outra parte do livro, os desenhos das crianças
na era da globalização estão estereotipados e os textos também exacerbam as estereotipias
(p. 130-131). O autor e as autoras ao afirmarem: “a invenção da escrita favoreceu bastante
as comunicações entre as pessoas e permitiu o registro das informações, o que é
fundamental para estudar História” (p. 136), desconsideram a importância da história oral e
das fontes não escritas. A naturalização da diferenças socioeconômicas é percebida quando
escrevem: “cada um é diferente do outro: uns têm muito dinheiro, outros, pouco ou
nenhum. Uns são altos, outros baixos” (p. 150). a idealização da escola particular (p.
161), demonstrando que o autor e as autoras desconsideraram a existência de escolas
particulares com baixa qualidade de ensino. O texto - Direitos sim, deveres também (p.
162) - é ilustrado com uma fotografia de criança indígena na escola, mas não referência
à educação indígena. A seleção do trecho do texto Cazuza de Viriato Corrêa não está
adequado ao tema “A criança e sua saúde” (p. 167).
Destacam-se como pontos positivos na Unidade 1- Eu, criança:
o manual do/a professor/a indica o Fundo das Nações Unidas para a Infância
(UNICEF) como organismo internacional de defesa dos direitos da criança e no livro do/a
aluno/a há a citação da Declaração dos Direitos da Criança, artigo 4º (p. 51);
o livro do/a professor/a faz um comentário sobre a Lei 10.639/03, que
torna obrigatório o tema História e Cultura Afro-Brasileira no currículo das escolas
públicas e estabeleceu o Dia Nacional de Consciência Negra em 20 de novembro (p. 64);
valoriza as tradições orais da cultura brasileira (p. 65).
69
Cf. Ariès (1981, p. 88): “Parece, portanto, que no início do século XVII não existia uma separação tão
rigorosa como hoje entre as brincadeiras e os jogos reservados às crianças e as brincadeiras e os jogos dos
adultos. Os mesmos jogos eram comuns a ambos”.
105
Na Unidade 2- O mundo da criança e a criança no mundo destacam-se como
pontos positivos:
solicita à professora ou ao professor que “discuta com os alunos o pátrio
poder, isto é, o conjunto de direitos e deveres dos pais ou responsáveis em relação às
pessoas e aos bens dos filhos menores” (p. 73), complementa indicando o Estatuto da
Criança e do Adolescente, em seus artigos 4; 18; 21; 22; 55; 129 e 130, mas não faz
menção ao novo Código Civil (2002), que mudou o antigo Pátrio Poder para Poder
Familiar
70
;
alerta para a necessidade de discussões em sala de aula sobre a “situação das
crianças que moram nas ruas, relacionando-as com os direitos da criança” e “a violência
contra os menores”. Neste ponto, o emprego do termo “menor” é pejorativo porque tende a
perpetuar o estigma e a discriminação da criança desprovida de seus direitos, não
contribuindo para a desconstrução desta antiga e resistente representação sobre a infância
(p.75);
muito produtiva a sugestão de atividades propostas (p. 83) a partir de trechos
do Estatuto da Criança e do Adolescente/1990 (artigo 25) e da CFB/1988 (parágrafo do
art. 226 e art. 227);
solicita ao professor ou à professora que “comente sobre a importância da
amizade no convívio social e na prática cidadã” (p. 86) e “com base na fábula de Esopo,
relacione outros acontecimentos que demonstrem a solidariedade e a ética” (p. 87);
sugere que seja abordado o “papel da escola como a instituição responsável
pela construção do conhecimento, pela troca de experiências e valores éticos que edificam a
cidadania” (p. 96). Entretanto, a escola não é a instituição responsável, mas uma das
instituições responsáveis, mesmo considerando-a como um lócus privilegiado no
desempenho daquelas funções.
Destacam-se como pontos positivos na Unidade 3- Pequeno cidadão no mundo:
70
Cf. Código Civil Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (DOU de 11/01/2002): “O antigo Pátrio Poder
mudou no novo Código Civil para Poder Familiar. Na época do antigo Código Civil (1916) quem exercia o
poder sobre os filhos era o pai e não se falava no poder do pai e da mãe (pais). Mas esta situação mudou e
hoje a responsabilidade sobre os filhos é de ambos”. Disponível em:
http://www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/11/2002/10406.htm#PEL4T1SB. Acesso em: 23/07/2006.
106
o objetivo desta unidade: “contribuir para que a criança tenha noção de que
a conquista da cidadania começa na infância, é uma luta coletiva que segue etapas e que se
estende a todas as crianças independentemente de cor, raça, sexo ou religião. A criança
deverá compreender que aos seus direitos correspondem também responsabilidades
adequadas à sua faixa etária” (p. 141). Esta conscientização do/a professor/a é fundamental
para uma educação para a cidadania;
o poema de Gilberto Dimenstein (1991) sobre os direitos da criança (p. 142)
para a conscientização de todas as pessoas;
o conceito de cidadania para o/a aluno/a (p. 145 - 146);
o conceito de ética (p. 149) segundo Herbert de Souza e Carla Rodrigues
(2000);
a representação da infância com necessidades educativas especiais (p.
156);
recomenda à professora ou ao professor que explique o papel do Estado no
desenvolvimento de políticas públicas como forma de garantir os direitos da criança;
importante reflexão para as crianças: “Se tantas pessoas passam fome no
mundo, será que é porque não há comida suficiente para todos?” (p. 171);
a questão ambiental está bem desenvolvida (p. 172 - 177).
De acordo com o PNLD/2004, esta obra está no GLD com REC
(Recomendada), sendo a segunda mais preferida, apesar de ter a maior pontuação do seu
grupo. Neste caso, não houve tanta discrepância entre a indicação oficial
71
e a escolha das
escolas. Apesar das ressalvas, dentre as coleções é uma das que possui conteúdo mais
comprometido com a educação para a cidadania.
d) Interagindo com a História Possui 122 páginas, com conteúdo distribuído
em quatro unidades: 1- Ser criança; 2- Para medir o tempo; 3- Conviver, ensinar e aprender;
4- É tempo de brincar. A capa é bem colorida, transmite alegria, com três fotos: uma
ampulheta, uma escola do século passado e outra com crianças negras. A representação dos
índios é feita por uma obra de arte, identificada somente no corpo interno do livro (p. 103).
Quanto à iconografia, além de desenhos e fotografias, apresenta muitas reproduções
71
Conferir a classificação das obras avaliadas pelo PNLD/ GLD, na seção 3.3 deste capítulo.
107
artísticas, mas muitas fotografias não apresentam legendas (p. 36 - 37). Não possui
glossário, incluindo, às vezes, um apoio de vocabulário para o professor ou a professora. Os
textos citados são predominantemente nacionais. um poema sem fonte (p. 116).
omissão de referência do gênero feminino em enunciados de exercícios: “escolha um dos
colegas da sala de aula” (p. 14). uma fotografia (p. 89) que as autoras classificam como
uma sala de aula de hoje, para o/a aluno/a pode parecer uma referência a uma escola de
ensino fundamental particular ou não, mas na verdade a sala pertence a um laboratório de
idiomas (p. 89). A mesma reprodução da tela de Pieter Brueghel (1560) apresentada (em
detalhe) no livro anterior (p. 63) está aqui ampliada (p. 99), mas não legenda nem
comentários das autoras sobre as crianças representadas.
Reprodução da tela de Pieter Brueghel (século XVI).
Fonte: SOURIENT; RUDEK; CAMARGO, 2005, p. 99.
Destacam-se como pontos positivos na Unidade 1- Ser criança:
orientação para o/a professor/a trabalhar os preconceitos (p.18);
lembra que “as diferenças não são apenas físicas, são também sociais,
culturais, étnicas” (p. 20);
recomenda à professora ou ao professor que fale sobre as crianças
portadoras de necessidades educativas especiais (p. 21-23);
oportuniza a discussão sobre as guerras (p. 40).
Na Unidade 3-Conviver, ensinar e aprender:
favorece a identificação dos diferentes tipos de família (p. 74-76);
o manual do/a professor/a introduz ao tema “planejamento familiar” (p. 80);
108
solicita a reflexão “com os alunos sobre a importância da escola e sobre os
vários motivos pelos quais muitas crianças não freqüentam escolas nem sequer são
matriculadas” (p. 82);
alerta para o dever da criança freqüentar a escola (p. 85);
refere-se à educação indígena (p. 87).
Na Unidade 4- É tempo de brincar destacam-se positivamente:
orientação para o/a professor/a denunciar ao Conselho Tutelar o “trabalho
infantil, bem como outros tipos de exploração de menores, como pedofilia, maus tratos etc”
(p. 117);
também o livro do/ a aluno/a comenta sobre algumas formas de exploração
da criança (p. 117, 119);
alerta para que o/a professor/a informe às crianças que o trabalho doméstico
infantil também é condenado por lei (p. 118);
informa sobre o programa do governo federal para a “erradicação do
trabalho infantil” (p. 119).
De acordo com o PNLD/2004, a obra está classificada com RR (Recomendada
com Ressalvas) no GLD. Foi reformulada para o PNLD/2007, propiciando a divulgação e o
entendimento da Declaração Universal dos Direitos da Criança (p. 36, 69 e 84). Pelos dados
do PNLD/2004, esta obra foi a terceira mais escolhida pelas escolas.
e) Vivência e construção Possui 142 páginas e seis capítulos compõem o
primeiro volume: 1-Várias maneiras de ser; 2- Qual é a sua história?; 3- Você e a família;
4- Onde moramos?; 5- A vida na escola; 6- Os direitos da criança e do adolescente. A capa
é pouco colorida, com desenho de um homem sentado com um álbum de fotografias e uma
menina, em pé, próxima ao homem, sugerindo ser pai da menina. Abaixo da numeração
gráfica de cada gina, o número está escrito por extenso, o que auxilia no processo de
alfabetização da criança. Possui glossário ilustrado no final do livro, dificultando a consulta
do/a aluno/a. Na iconografia predominam as fotografias e representações de obras de arte,
mas sem legendas. Poucos textos de autores nacionais. Todas as diferenças e semelhanças
entre as pessoas são naturalizadas (p. 8). Não é feita referência ao gênero feminino: “sente-
109
se ao lado de um colega” (p. 9). A figura materna está representada de forma idealizada e
naturalizada quando exerce qualquer atividade dentro do lar. Os autores deste livro didático
escrevem: “quem cuida de você, atualmente, prepara sua comida, avisa que é hora do
banho, colo quando você precisa, e faz um cafuné gostoso?(p. 46), nos lembrando
Ariès
72
que denomina de “paparicação” um dos sentimentos da família moderna em relação
à infância. Não considera a criança como cidadã, quando recomenda: “propor possíveis
soluções desperte o papel de cidadãos que eles exercerão no futuro” (p. 81). Há uma
naturalização da feminização do ensino primário
73
, demonstrada pela seguinte frase: “A
professora vai ajudar a dividir a classe [...]” (p. 88). O autor e as autoras consideram que o
capítulo 6: Os direitos da criança e do adolescente “tem uma estrutura diferente dos
capítulos anteriores”, pois nele os textos divulgam “os direitos específicos da criança e do
adolescente presentes no estatuto” (p. 99). De fato, este capítulo é importante para uma
educação cidadã, porém corre o risco de não ser explorado como merece, ou seja, o/a
professor/a nunca chegar ao último capítulo. um espaço para a educação inclusiva com
um erro conceitual: “surdos-mudos” (p. 103). As páginas finais do livro correspondem à
Minha Agenda (p. 116-139) funcionando, também, como um calendário de datas
comemorativas, com atividades para o/a aluno/a, relacionadas àquelas datas.
No Capítulo 1- Várias maneiras de ser, destacam-se como pontos positivos:
atividades facilitadoras para pensar sobre o trabalho infantil (p. 19);
solicita que o/a professor/a “fique atento às respostas que possam revelar
preconceitos ou estereótipos” (p. 24).
No Capítulo 3- Você e a família:
72
Cf. Ariès (1981, p. 163): “O primeiro sentimento de infância – caracterizado pela ‘paparicação’ – surgiu no
seio familiar, na companhia das criancinhas pequenas”.
73
O processo de feminização do magistério primário é observado nos principais países ocidentais, na segunda
metade século XIX. No Brasil, registra-se um considerável aumento no número de professoras primárias nas
duas últimas décadas dos oitocentos, passando a função a ser predominantemente exercida por mulheres no
século seguinte. Segundo a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, em 1999 apenas 2,6%
dos docentes de a série eram homens. A feminização do magistério não corresponde apenas à entrada de
mulheres na ocupação de professora, mas também a um processo de deslocamento de significados de
escola, ocupação, ensino, mulher, feminilidade, maternidade, masculinidade, criança, entre outros, resultando
na contigüidade entre as representações de mulher, mãe e professora primária (VIDAL, CARVALHO, 2001,
p.212-213).
110
são citados outros tipos de família, inclusive as crianças que vivem sem
família (p. 48);
incentiva a turma a conhecer e organizar um museu (p. 56).
No Capítulo 4- Onde moramos?
levanta a questão da falta de moradia, das condições precárias de habitação
e dos moradores de rua (p. 80-81).
No Capítulo 5- A vida na escola:
apresentação por fotografias de diferentes tipos de escola (p. 92-94);
discussão sobre o trabalho infantil (p. 95);
observação para o/a professor/a que a violência pode ser física ou moral (p.
97).
No Capítulo 6 - Os direitos da criança e do adolescente:
as fotografias são muito boas, visualizando crianças em diferentes situações,
mas todas em direção à formação de uma sociedade em que a criança seja de fato um
“sujeito de direitos”.
De acordo com o PNLD/2004, a obra está categorizada com RR (Recomendada
com Ressalvas), mas foi reformulada para o PNLD/2007. Difere das demais dedicando um
capítulo inteiro para a educação para a cidadania e o apêndice intitulado “Minha agenda”
valoriza determinadas datas relacionadas à cidadania, como por exemplo: “21 de março é o
Dia Internacional da Eliminação da Discriminação Racial” (p. 121), “7 de abril,
comemoramos o Dia Mundial da Saúde” (p. 123), “5 de junho é o Dia Mundial do Meio
Ambiente” (p. 127), “dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra” (p. 137), “no dia
10[de dezembro], comemoramos o Dia da Declaração Universal dos Direitos Humanos” (p.
139). Esta obra foi a quarta mais solicitada pelas escolas, de acordo com o PNLD/2004.
Reitero não ser minha intenção avaliar estes livros didáticos, nem tampouco
criticar os/as seus/ suas autores/as. Quando um livro didático, mesmo não tendo um
conteúdo de boa qualidade ou apresente erros, seu uso atento e adequado pelo/a professor/a
pode superá-los. Em contrapartida, um bom livro pode não ser bem explorado pelo/a
professor/a. Neste sentido, Bittencourt (2003, p. 73-74) lembra:
111
As práticas de leitura do livro didático não são idênticas e não obedecem
necessariamente às regras impostas por autores e editores ou por instituições
governamentais. Assim, mesmo considerando que o livro escolar se caracteriza pelo
texto impositivo e diretivo acompanhado de exercícios prescritivos, existem e existiram
formas diversas de uso nas quais a atuação do professor é fundamental.
Observa-se que, no atual Guia do Livro Didático - GLD (2007) os pareceres
dos especialistas, mas não há a classificação dos livros. Para todas as obras analisadas neste
estudo, realizei consultas ao PNLD/2004 e ao PNLD/2007 e aos respectivos GLD.
Categorias de análise
Com base na exploração detalhada dos conteúdos dos livros didáticos,
incluindo os textos e a iconografia, foram definidas as categorias de representações sobre a
infância
74
. Esta classificação é aplicada para fins deste estudo, cabendo destacar que as
categorias não estão, de modo algum, isoladas entre si, com fronteiras rigidamente
determinadas. Como se pode averiguar adiante, na descrição dos conteúdos textuais e
imagéticos atribuídos a cada categoria construída, há inúmeras interseções entre as mesmas.
Infância asilada: recolhida ou abrigada em asilo, também podendo ser
denominada de institucionalizada. Convém lembrar as palavras de Rizzini e Rizzini (2004,
p. 13): “o atendimento institucional sofreu mudanças significativas na história recente,
particularmente no período que sucedeu a aprovação do Estatuto da Criança e do
Adolescente (Lei n º 8.069 de 13 de julho de 1990). No entanto, [...] muitos de seus
desdobramentos são ainda marcados por idéias e práticas do passado”.
Infância desassistida: desprotegida ou desamparada, que não recebe
assistência da família ou da comunidade ou do Poder Público, estando privada de seus
direitos.
Infância indígena: os índios deixaram de ser considerados categoria social
em vias de extinção desde a CFB/1988(art. 231 e 232). Os PCNs determinam como
objetivos do e ciclos para a área de História que o/a aluno/a “seja capaz de descrever
o modo de vida de um grupo indígena, respeitando suas especificidades culturais e
74
Nesta dissertação é considerada como infância: o grupo etário formado por crianças “até doze anos
incompletos”, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990, Artigo 20).
112
identificando em que aspectos sua comunidade é diferente”, assim a categoria infância
indígena está representada em todos os livros analisados. Devo esclarecer que as crianças
negras, mestiças e brancas são representadas em conjunto, sugerindo a existência de uma
democracia racial no Brasil. O mesmo não ocorre com as crianças indígenas, porque
recebem “educação diferenciada, específica, intercultural e bilíngüe”, com professor/a
indígena.
Infância escolarizada: está em processo de escolarização ou de aprendizado
escolar. Exerce o seu direito à educação, cumpre o seu dever, visto que o ensino básico é
obrigatório, de acordo com a CFB/1988.
Infância desescolarizada: não freqüenta a escola ou não recebe ensino
escolar, está privada do seu direito à educação, mesmo sendo o “ensino fundamental
obrigatório e gratuito” (CFB/1988, art. 208 parágrafo I).
Infância midiática: vive em meio tecnológico avançado ou dispõe de
veículos de comunicação e dos suportes de informação, sendo influenciada pela mídia.
Infância trabalhadora: inserida, precocemente, no mundo do trabalho,
embora a emenda ao artigo 7 XXXIII da CFB/1988, publicada em 1998, determine a
proibição de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos de idade, salvo na condição de
aprendiz a partir de quatorze anos. O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI)
do Governo Federal tem por objetivo retirar as crianças e adolescentes, de sete a quatorze
anos, do trabalho para inseri-las nas salas de aula.
Infância cidadã: goza de “todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa
humana”, de acordo com os artigos 3º e 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente/1990. É
“sujeito de direitos” (Rizzini, 2002, p. 83).
Com as definições das categorias de representações sobre a infância, o corpus
de análise ficou constituído de cento e cinqüenta e um eventos. Este total compreende a
parte iconográfica ou das imagens e a parte textual dirigida à criança e as orientações para
o/a professor/a. As fontes são constituídas por cinco livros didáticos de História, destinados
à série do ensino fundamental, sendo os mais escolhidos no município do Rio de Janeiro
(RJ), de acordo com os dados indicados pelo PNLD/2004.
Os comentários sobre os resultados encontrados seguirão uma ordem
decrescente, ou seja, da maior freqüência para a menor freqüência das categorias.
113
A categoria infância escolarizada reuniu o maior número de eventos, a maior
freqüência pode ser explicada porque todos os livros dedicam um capítulo ou unidade à
família: Tempo de criança- a escola é representada como a instituição a ser freqüentada
por todas as crianças, isto é, ser criança corresponde ao tempo escolar; Você e sua escola;
O mundo da criança e a criança no mundo- a escola ocupa grande parte do mundo da
criança; Conviver, ensinar e aprender a escola faz a criança conjugar estes três verbos; A
vida na escola- ou a escola na vida da criança. A escola está presente em um dosobjetivos
de História para o ciclo: “reconhecer algumas permanências e transformações sociais,
econômicas e culturais nas vivências cotidianas das famílias, da escola e da coletividade,
no tempo, no mesmo espaço de convivência” (grifo meu).
A categoria infância cidadã foi a segunda a reunir o maior número de eventos,
entretanto registra-se a sua ausência em uma das obras, enquanto duas obras dão ênfase a
esta categoria. Contudo, devo ressaltar a existência do Plano Nacional de Educação em
Direitos Humanos, criado em 2003, com o objetivo de firmar o compromisso da escola
pública e obrigatória com a formação da cidadania.
A categoria infância indígena está representada em todos os livros, sendo que
em um deles, a representação quase passa despercebida, diferentemente, de outras obras
que dão mais espaço para esta representação. É, praticamente, uma representação
obrigatória, visto que o tema comunidade indígena faz parte do conteúdo curricular para
114
realizadas pela criança. Na tentativa de coibir todas as formas de trabalho precoce o
governo federal já executa o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI).
A categoria infância desassistida está representada em todos os livros na figura
das crianças de rua. Constatei que a categoria “menor”, que tanto se deseja desconstruir,
está presente no conteúdo ou no currículo oculto, quando o manual do/a professor/a faz
referência ao “menor”. Esta representação é reproduzida pelo próprio parecerista do MEC,
o qual, ao comentar uma das obras, escreve: “questiona a diversidade de tipos familiares e a
existência de menores de rua [...]” (PNLD/2007, GLD – História, p. 178).
A categoria infância midiática aparece em duas obras e a diferença das
freqüências é bem grande entre elas. A ausência desta representação pode ser entendida
como uma forma de desatualização ou de não reconhecimento da sua existência. Por outro
lado, a sua presença ocorre sempre em ambientes próprios das classes sociais mais
favorecidas e a sua representação é feita por crianças brancas.
A categoria infância asilada não é representada em dois livros. A internação
de crianças em instituições, ocasionada pela pobreza, foi banida pela legislação atual
(Estatuto da Criança e do Adolescente/ 1990), por constituir uma violação ao direito à
convivência familiar e comunitária. No entanto, o tema é abordado nos livros como uma
prática naturalizada ou de forma idealizada.
A categoria infância desescolarizada corresponde à representação sobre a
infância de menor registro. As infâncias trabalhadora, indígena e asilada, na maior parte das
representações, são escolarizadas.
Não é possível utilizar todos os dados, pois isso tornaria a redação muito longa
e a leitura muito cansativa. Assim, são apresentados apenas alguns exemplos de imagens e
de textos dos cento e cinqüenta e um eventos registrados ao longo da análise de conteúdo.
115
No quadro a seguir foi registrado o número de eventos por categoria de todos os cinco livros didáticos, totalizando 151 eventos:
CATEGORIAS DE INFÂNCIA
LIVROS
ESCOLARIZADA DESESCOLARIZADA CIDADÃ MIDIÁTICA DESASSISTIDA ASILADA TRABALHADORA
INDÍGENA
DREGUER,R.;
MARCONI, C. História:
ensino fundamental.
São Paulo:Moderna,
2001.
09 01 01 02 04 06
SOURIENT, L.;
RUDEK, R.;
CAMARGO, R.
Interagindo com a
História. São Paulo: Ed.
Brasil, 2004.
08 01 09 01 01 01 05 03
LUCCI, E. L .;
BRANCO, A. L. Viver e
aprender história. São
Paulo: Saraiva, 2004.
15 02 01 01
VESENTINI, J.W.;
SILVA, D.M.D.;
PÉCORA, M. Vivência e
construção. São Paulo:
Ática, 2004.
08 05 04 03 02 06
MARIN, M F;
ORDOÑEZ, M.;
QUEVEDO, J R .
História com reflexão.
São Paulo: IBEP, 2005.
21 01 12 09 03 03 03
TOTAL 61 02 27 10 11 06 15 19
116
O quadro abaixo apresenta, de forma sucinta, as categorias de maior freqüência e alguns
comentários dos pareceristas do MEC para o PNLD/2004 e para o PNLD/2007:
LIVRO CATEGORIA
PREDOMINANTE
PNLD/2004 PNLD/2007
DREGUER, R;
MARCONI, C.
História: ensino
fundamental. São
Paulo:Moderna, 2001.
Infância escolarizada,
seguida pela infância
indígena
Busca-se despertar as
capacidades das crianças e
fazê-las elaborar uma
representação pessoal sobre
um objeto da realidade ou
conteúdo a ser aprendido”.
(p.59)
A criança e o adolescente são
focalizados como sujeitos que
constroem a História, sobretudo
por meio de seus direitos e
deveres”. (p.156)
SOURIENT, L:;
RUDEK, R;
CAMARGO, R.
Interagindo com a
História. São Paulo:
Ed. Brasil, 2004.
Infância cidadã, seguida
pela infância
escolarizada
“O fio que alinhava os
diversos volumes é conduzido
pelo tema da cidadania[..]”
(p.92)
“As diretrizes para o ensino de
História estão comprometidas
com a cidadania, apoiando-se em
quatro princípios básicos:
dignidade do ser humano,
igualdade de direitos,
participação pela construção e
co-responsabilidade com o
destino da coletividade”. (p.129)
LUCCI, E.A;
BRANCO, A. L.
Viver e aprender
história. São Paulo:
Saraiva, 2004.
Infância escolarizada
“A preocupação com a
cidadania não se realiza
plenamente, em conseqüência
das simplificações presentes
nos textos e da falta de
historicidade das experiências
sociais”. (p.110)
“A formação de uma consciência
cidadã na escola encontram-se
apenas no Manual do Professor”.
(p.69)
VESENTINI, J.W;
SILVA, D.M.D;
PÉCORA, M.
Vivência e
construção. São
Paulo: Ática, 2004.
Infância escolarizada,
seguida pela infância
indígena
“Incentiva-se o estudante a
pensar acerca das
desigualdades existentes na
sociedade, dos direitos da
criança (em especial o
problema do trabalho infantil),
dos direitos humanos em
geral, do respeito à
diversidade cultural, da
questão ambiental e da
importância da consciência
ecológica”
(p.108-109)
“O professor é, em toda a
coleção, figura fundamental para
a consecução dos princípios
pedagógicos que visam à
construção da cidadania”.
(p.81)
MARIN, M.F;
ORDOÑEZ, M.;
QUEVEDO, J.
História com
reflexão. São Paulo:
IBEP, 2005.
Infância escolarizada,
seguida pela infância
cidadã
“Nos três primeiros volumes
são introduzidos temas como a
desigualdade social, o
abandono de crianças, a
exploração da mão-de-obra
infantil, a falta de condições
adequadas de vida em muitos
bairros, a carência de moradia
para a população, a exploração
da mão-de-obra infantil [...] e
situação em que se encontram
os meninos de rua e os
inúmeros problemas urbanos”
(p.55)
“Questiona a diversidade de
tipos familiares e a existência de
menores de rua; a abundância da
alimentação e a fome
materializada nos lixões; o
aumento de favelas e a
constituição de associação de
moradores e o papel dos
políticos”. (p.178) (grifo meu)
117
3.5- Imagens das infâncias: representações contidas nos textos e nas ilustrações dos
livros didáticos de História
Nesta seção, está apresentada uma parcela dos cento e cinqüenta e um eventos
registrados (correspondendo a um quarto, aproximadamente), relativos às oito categorias de
infância representadas através de imagens contidas nos textos e nas ilustrações dos livros
didáticos de História analisados. A apresentação está disposta por cada categoria de
infância (subseção), de acordo com cada um dos livros identificados apenas por seus
respectivos títulos
75
.
3.5.1 - Categoria: infância escolarizada
A- História: ensino fundamental
A infância escolarizada está representada pelo poema: A escola, de José de
Nicola
76
(1995, p. 5 , apud Dreguer, Marconi, 2001, p. 16)
A escola
O futebol, a queimada,
a pipa dourada,
a boneca sapeca.
A TV.
Eu e você
cara a cara
no pega-pega
tudo ao contrário
no esconde-esconde
(eu no armário!).
O canário na gaiola,
a figurinha,
ciranda-cirandinha,
guia a roda, pula a bola,
a bola, a bola
75
As referências dos livros encontram-se na seção 3.4 deste capítulo e em página anexa no final da
dissertação (Fontes).
76
NICOLA, J. Entre ecos e outros trecos. São Paulo: Moderna, 1995.
118
Toca o sino,
eu vou-me embora
porque a hora
(agora)
é da escola.
Estes versos descrevem bem as brincadeiras infantis, seus jogos e a rotina de
crianças que não vivem em grandes centros urbanos. Seria a rotina de crianças que ainda
possuem tempo livre e não uma agenda cheia de compromissos: natação, balé, escolinha de
futebol, curso de inglês, etc. Aqui o jogar bola é uma atividade espontânea, não orientada
por um/a professor/a, como na escolinha de futebol. Apesar dos brinquedos, jogos e
brincadeiras, a televisão não deixa de ser citada e com destaque, sozinha, ocupando o
quarto verso com letras maiúsculas, marcando o espaço-tempo dedicado a este aparelho por
todas as crianças. Neste ponto, a pesquisa de Girardello e Orofino (2001), citada no
capítulo 2 desta dissertação, dimensiona bem a importância da televisão no dia-a-dia das
crianças brasileiras. Os versos finais associam o sino, instrumento sonoro muito bem
utilizado pelas igrejas para chamar os fiéis, à escola em uma comparação e/ou associação
entre duas instituições tão respeitadas pela sociedade. O sino representa também a
marcação do tempo, dos horários da escola, o diferente das brincadeiras livres das
crianças, sem tempo e espaços demarcados. Ao tocar o sino é a hora do sagrado dever de ir
para a escola.
FIGURA 1 – Infância escolarizada / Fonte: DREGUER; MARCONI, 2001, p.8
119
A figura 1 não possui legenda no livro, porque é uma atividade para o/a aluno/a
“dar um título para cada imagem”, ou seja, uma leitura da imagem de acordo com a
vivência de cada criança. O livro do/a professor/a sugere: “crianças em sala de aula”.
Entretanto, esta não é uma sala de aula comum às escolas brasileiras, as carteiras são
contínuas, coisa que não se vê por aqui. Não seria de uma escola americana? Esta fotografia
(figura 1) parece ter sido preparada, ou seja, foi montada uma sala de aula em que aparecem
crianças de grupos étnicos diferentes e não são alunos/as de escola pública, pois estão sem
uniforme. É a representação da democracia multirracial no Brasil que se pretende difundir
com esta imagem?
B – Viver e aprender história
A infância escolarizada está representada pela atividade 3, citada a seguir
(LUCCI e BRANCO, 2004, p. 76), que propõe ao/à estudante conhecer como era uma
“escola antiga” através de objetos antigos:
Os objetos também nos ajudam a construir a história. Pergunte a seus pais, avós e
outros parentes mais velhos se eles ainda guardam objetos da época em que eram
estudantes. Valem fotos, boletins, medalhas, cadernos, livros, canetas, peças de
uniforme e qualquer outra coisa que mostre como era a escola antigamente. Peça
permissão para trazer esses pequenos tesouros para a escola. Organizar uma
exposição de todos eles na classe seria uma ótima idéia.
Os autores ao selecionarem esta imagem pretenderam transmitir a valorização e
preservação da cultura e das memórias escolares. Contudo, a “cultura escolar” (CHERVEL,
FORQUIN, VIÑAO FRAGO, JULIÁ) é formada não apenas pela parte material, mas
também de parte não material ritos, comportamentos, normas, práticas, etc, observando a
dinâmica da cultura escolar, que varia no tempo e no espaço.
120
121
FIGURA 3 - Infância escolarizada / Fonte: LUCCI; BRANCO, 2004, p. 75
A figura 3 não possui legenda e compõe uma atividade com duas outras
ilustrações, são datadas, no manual do/a professor/a, esta e outra como “do final da
década de 1990” e, a terceira fotografia pertence ao “início dos anos 1900”. Neste
exercício, a criança observará o vestuário de cada época. Os autores afirmam: “anos atrás,
as meninas não usavam calça comprida” (p. 75), no caso, prevalecem as informações dadas
pelos autores, visto que nenhuma delas permite esta observação. Onde se localizam as salas
de aula dessas escolas?
Provavelmente, a figura 3 corresponde a uma escola pública, porque as crianças
estão uniformizadas, pelo tipo de mobiliário e por outras características.
Além dessas questões, esta fotografia nos remete às palavras de Varela e
Alvarez-Uria (1992), em que o mobiliário escolar tem a função de controlar e disciplinar a
criança:
a invenção da carteira em frente ao banco supõe uma distância física e simbólica entre
os alunos e o grupo e, portanto, uma vitória sobre a indisciplina. Este artefato
destinado ao isolamento, imobilidade corporal, rigidez e máxima individualização
permitirá a emergência de técnicas complementares destinadas a multiplicar a
submissão do aluno. [...] À colonização exercida pela escola de alguns meninos
aprisionados na carteira junta-se então uma autêntica camisa de força
psicopedagógica, que inaugura uma neocolonização sem precedentes [...].
O desenho do mobiliário e a sua arrumação atendem ao disciplinamento dos
corpos, isto é, a carteira escolar é destinada ao isolamento, imobilidade corporal, rigidez e
máxima individualização” dos/as aluno/as. Os autores não teriam a intenção de disseminar
122
a representação de infância escolarizada disciplinada? Entretanto, uma diferença nesta
imagem um dos alunos burla o controle da professora, que está escrevendo no quadro de
giz, rompe o seu “isolamento” virando-se e comunicando-se com o colega de turma sentado
atrás. Apesar de vários métodos de controle e disciplina, alguns alunos e alunas não se
submetem às regras escolares, assim são rotulados de indisciplinados e de provocar
prejuízo ao bom rendimento escolar da turma. É a culpabilização do/a aluno/a que não
obedece ou reage às “técnicas de submissão” que lhe são impostas pela escola.
C – História com reflexão
A infância escolarizada é representada pelo seguinte texto (MARIN,
ORDOÑEZ e QUEVEDO, 2005, p. 100): “A escola é o lugar onde você aprende muitas
coisas. Você adquire, todos os dias, conhecimentos novos. O seu dia-a-dia é sempre repleto
de novidades.” Será que a escola representa tudo isso para todas as crianças? A criança é
uma “tábula rasa”? O conhecimento que o/a aluno/a leva para a escola não tem valor? Estas
questões nos remetem a um momento muito distante, lembrando Comenius: existe a
Didática Magna? É possível aplicar seu princípio: ensinar tudo a todos? Esta é uma visão
idealizada de escola e de infância escolarizada que permeiam quase todos os textos
escolares.
FIGURA 4 – Infância escolarizada / Fonte: MARIN; ORDOÑEZ; QUEVEDO, 2005, p. 103.
Alunos de uma escola do ensino fundamental no interior do Rio Grande do Sul, no horário de recreio.
123
Logo abaixo da figura 4 está escrito: “na escola você faz novos amiguinhos,
pois é o ambiente que favorece a ampliação de amizades”. Confirmando a idealização da
escola, em que a socialização é uma das principais funções da escola. A escola não é
também lugar de conflitos e disputas? Observa-se um menino no primeiro plano da foto em
posição de ataque. As duas meninas estão brigando ou brincando? Hoje, é freqüente a
notícia de que a violência atravessa a instituição escolar.
FIGURA 5 - Infância escolarizada / Fonte: MARIN;ORDOÑEZ; QUEVEDO, 2005,p.161
Sala de aula em Sumaré, São Paulo.
FIGURA 6 - Infância escolarizada / Fonte: MARIN; ORDOÑEZ; QUEVEDO, 2005, p.161
Laboratório de informática de uma escola particular de ensino fundamental, na cidade de São Paulo
124
As figuras 5 e 6 são utilizadas para uma comparação. O autor e as autoras
escolheram uma escola particular (6) que oferece laboratório de informática para seus/suas
alunos/as e uma escola pública (5) com condições bastante precárias. A criança deve
responder a seguinte pergunta: “Será que a escola mais bem aparelhada pode formar melhor
o pequeno cidadão?”
Este livro apresenta o maior número de registros de infância midiática. Entendo
que a representação idealizada é a infância escolarizada midiática (6).
As duas imagens lembram as palavras de Varela e Alvarez-Uria (1992): “A
infância ‘rica’ vai ser certamente governada, mas, sua submissão à autoridade pedagógica e
aos regulamentos constitui um passo para assumir ‘melhor’, mais tarde, funções de
governo”. Será que, num futuro próximo, as crianças da figura 6 estarão em postos de
comando e as crianças da figura 5 estarão em postos de trabalho subalternos? A imagem
associada ao texto relaciona o aparato tecnológico à cidadania e, portanto, a falta de acesso
à informática seria responsável pelo cidadão incompleto.
D – Interagindo com a história
A infância escolarizada está representada no seguinte texto (SOURIENT,
RUDEK e CAMARGO, 2004, p. 85): Ir à escola não é somente um direito da criança, é
também um dever. Na escola, além de aprender muitas coisas, a criança convive com outras
pessoas e desenvolve seu relacionamento. Como estão as suas atitudes na escola?” A
escolarização é entendida como direito e como dever, além de ser responsável pela
aprendizagem, pela socialização e pelo disciplinamento. Com tantas funções, ocupa grande
parte do tempo da vida da criança, quer deseje ou não. Todos e todas precisam estar
conformados com a sua necessidade, este é o discurso civilizatório, lembrando Norbert
Elias (apud CHARTIER, 1990). Varela e Alvarez-Uria (1992) confirmam: “O Estado
espera do professor [...] o emprego de técnicas para que os meninos aprendam os
rudimentos da leitura, da escrita e do cálculo que os capacite para conhecer e cumprir os
deveres de cidadão [...]” (grifo meu).
125
FIGURA 7 - Infância escolarizada / Fonte: SOURIENT; RUDEK; CAMARGO, 2004, p.116
A figura 7 não possui legenda. Nela estão confrontadas duas infâncias: a
escolarizada representada pelo menino louro que estuda, enquanto o outro menino (mestiço,
talvez) vende balas na rua. Esta seria a representação da infância desescolarizada que
precisa trabalhar, mesmo havendo a lei da proibição do trabalho para todos e todas com
idade inferior a dezesseis anos. Ao lado desta ilustração, lê-se: “Há crianças sem escola
com futuro incerto (...)”. Todas as crianças escolarizadas têm futuro certo?
E – Vivência e construção
A infância escolarizada é representada no texto (VESENTINI, SILVA e
PÉCORA, 2004, p. 86): “Na escola, quem é a pessoa que mais ajuda você a aprender?
Além da professora, outras pessoas trabalham na escola para que tudo funcione bem”.
Joan Scott (1995, p. 86) em sua teoria de gênero afirma a existência de duas
proposições, uma refere-se às relações sociais entre os diferentes sexos e o outro como uma
“forma primária de dar significado às relações de poder”. Neste caso, os homens não foram
incluídos por conta de se considerar o magistério, um local para a profissionalização
feminina. Que imagens sobre o magistério estão sendo transmitidas para as crianças?
126
FIGURA 8 - Infância escolarizada / Fonte: VESENTINI; SILVA; PÉCORA, 2004, p. 92
Crianças estudam no antigo quilombo Rio das Rãs, em Bom Jesus da Lapa, no estado da Bahia.
Na figura 8, vemos um ex-quilombo e as crianças negras estudam mesmo. O
livro possui uma parte anexa chamada de Minha Agenda, nela o autor e as autoras marcam
o dia 20 de Novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra e explicam o que era um
quilombo (p.137), havendo a preocupação de se referir ao negro em seu esforço de
preservar as suas raízes.
FIGURA 9 - Infância escolarizada / Fonte: VESENTINI; SILVA; PÉCORA, 2004, p.93
Meninos e meninas de rua recebem educação e afeto no centro educativo da Associação São Martinho, no Rio
de Janeiro, estado do Rio de Janeiro.
127
A figura 9 mostra que “meninos e meninas de rua recebem educação” em um
centro educativo. É o único livro com esta representação de infância escolarizada. Quantas
crianças continuarão a não conhecer esta representação de infância?
Contudo, não questiona porque as escolas regulares têm dificuldades em
absorver essas crianças.
FIGURA 10 - Infância escolarizada / Fonte: VESENTINI; SILVA; PÉCORA, 2004, p.92
Alunos têm aula na escola 25 de Agosto, mantida pelo MST em fazenda do estado do Paraná.
A figura 10 mostra uma representação de infância escolarizada pouco vista.
Mais uma vez, este é o único livro a apresentar uma escola freqüentada pelas crianças do
Movimento dos Sem-Terra (MST).
3.5.2 – Categoria: infância cidadã
A – História: ensino fundamental
A infância cidadã está representada no texto (DREGUER e MARCONI, 2000,
p. 64): “Os direitos da criança foram registrados num documento elaborado em 1959 pela
Organização das Nações Unidas (ONU). Esse documento é a Declaração dos Direitos da
Criança que pretende garantir que todas as crianças do mundo tenham plenas condições de
se desenvolver”. O autor e a autora não mencionam o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA / 1990), o que é feito no manual do/a professor/a (p. 64). Apesar disso, são
128
apresentados com o apoio de fotografias os direitos da criança: à moradia, à educação, à
saúde, à alimentação e ao lazer. Embora não estejam contemplados todos os direitos da
criança, de acordo com o Artigo 4 do Estatuto da Criança e do Adolescente, fica claro que o
acesso à educação por si só não torna a criança sujeito de direitos.
Todas as cinco imagens compõem a representação da categoria infância cidadã.
Com exceção da última ilustração da série, todas as crianças e adultos são brancos.
B – Viver e aprender história
Não foi registrado nenhum evento na categoria infância cidadã neste livro. Sob
o título Convivendo com idosos, os autores transcrevem um pequeno texto (p. 43-44): “a
pessoa idosa sempre tem alguma coisa a dizer: a sua experiência humana, a sua experiência
vivida. [...] Nós somos crianças, depois jovens, depois adultos e depois velhos, somos uma
coisa só, somos sempre o mesmo cidadão, com pleno direito a toda a sua cidadania”
(declaração de Lélia Abramo). Depois, sugerem como atividade uma entrevista com uma
pessoa idosa. Em nenhuma parte cita o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003). A palavra
cidadão consta do glossário (p. 44): “pessoa que obedece às leis do país em que vive e tem
direito aos benefícios que esse país oferece (direito a bens, à educação, à saúde, de votar e
ser eleito etc.)”. Além do conceito reducionista de cidadania, os direitos são apresentados
como dádivas do Estado, não conquistas obtidas por lutas sociais de grupos que se
empenhavam por conseguí-los. O “direito a bens” ratifica o ideal capitalista e o “votar e ser
eleito” é a visão estritamente política de cidadania.
C – História com reflexão
A infância cidadã está representada no texto (MARIN, ORDOÑEZ e
QUEVEDO, 2005, p. 44): “Todos precisam de alguém, ninguém consegue viver isolado.
Você tem direito e precisa do lar para morar, da escola para estudar, dos cuidados médicos
quando necessários e do lazer.” Como no livro A, este apresenta os direitos da criança de
acordo com o Art. da Declaração aos Direitos da Criança UNICEF e faz menção a
este artigo em outra parte do livro (p. 51). A infância cidadã está, portanto, mais expressa
em textos. Emprega o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) em seu artigo 25 para
definir “família natural” (p. 83). Cita o Art. 227 da CFB (1988) para apresentar os deveres
129
da família, da sociedade e do Estado para com as crianças e adolescentes. A definição de
cidadania para o autor e para as autoras se desdobra em direito de:
1 – Morar decentemente.
2 – Estudar.
3 – Ter lazer.
4 – Ter atendimento necessário nos problemas de saúde (p. 145).
O outro desdobramento da cidadania corresponde ao dever de:
1 – Não jogar lixo na rua.
2 – Não quebrar o orelhão.
3 – Ser solidário com as pessoas.
4 – Respeitar as leis.
5 – Preservar a natureza (p. 146).
Observa-se um elenco maior de deveres do que de direitos.
FIGURA 11 - Infância cidadã / Fonte: MARIN; ORDOÑEZ; QUEVEDO, 2005, p. 147.
A figura 11 corresponde a uma atividade pela qual pede-se à criança que “ajude
o pequeno cidadão a descobrir o caminho para a cidadania” (p. 147). Por esta atividade,
pretende-se que a criança reconheça os valores e sentimentos que são valorizados no ideal
de cidadania.
130
D – Interagindo com a história
Pelo poema intitulado Criança é vida (MACEDO e SALÉM, 2003, p. 8)
77
,
transcrito neste livro por seus autores (SOURIENT, RUDEK e CAMARGO, 2004, p. 8 -
9), está representada a categoria infância cidadã, que ao exercer os seus direitos, torna-se
feliz. Os versos traduzem os direitos de brincar, receber carinho, ter saúde, ir à escola, ter
um abrigo, ler, sorrir, crescer, descansar, não ser injustiçada, receber amor e sonhar. Desta
forma, temos um conceito mais amplo sobre a criança como “sujeito de direitos”. A
infância cidadã está mais representada em seus textos de prosa e de poema do que em
imagens visuais.
E – Vivência e construção
Este livro dedica um capítulo inteiro (p. 99-109) aos “direitos da criança e do
adolescente”. Em texto, explica o que é a Declaração Universal dos Direitos da Criança e a
importância do Estatuto da Criança e do Adolescente, dando ênfase à proibição do trabalho
infantil. Seus autores apresentam um enfoque de cidadania no sentido da ausência do
preconceito com justiça social:
Ser cidadão é respeitar a si próprio e aos outros e não ter atitudes preconceituosas. O
desrespeito aos direitos humanos e qualquer tipo de preconceito causam muito
sofrimento e não permitem o desenvolvimento de uma sociedade justa. Refletir sobre
os direitos humanos é o primeiro passo para se tornar cidadão (VESENTINI; SILVA;
PÉCORA, 2004, p. 109).
Acrescentam, ainda, o direito das crianças portadoras de necessidades
educativas especiais. Entretanto, cometem um equívoco quando afirmam: “elas estão
usando a Linguagem Brasileira de Sinais (LIBRAS), a língua gestual dos surdos-mudos”
(2004, p. 103).
77
MACEDO, L.; SALÉM, F. Criança é vida. In: Teorias da aprendizagem. Curitiba: IESDE, 2003.
131
FIGURA 12 – Infância cidadã / Fonte: VESENTINI; SILVA; PÉCORA, 2004, p. 100
Crianças participam de manifestação em 21 de março de 1997, Dia Internacional contra Todas as Formas de
Discriminação, no Rio de Janeiro.
Na figura 12, vemos as crianças exercendo o direito à manifestação, neste caso,
lutam contra todas as formas de discriminação “em favor da igualdade, sem distinção de
raça, religião ou nacionalidade”.
3.5.3 Categoria: infância indígena
A – História: ensino fundamental
A categoria infância indígena está representada pelo texto
78
transcrito no livro
(DREGUER e MARCONI, 2001, p. 22):
Lino, 11, é um garoto tímido. Ele é um índio guarani, e sua aldeia fica na periferia da
cidade de São Paulo, no Morro da Saudade. (...) Lino colhe palmito na Serra do Mar.
Ele caminha mais de 12 horas para chegar lá, onde pega o palmito e vende nas feiras
da região. Lino contou que o dinheiro ao pai. O saco de palmito pesa 12 quilos.
Lino disse que se cansava “um pouquinho”. Ele não estuda e não freqüenta a
escola da aldeia.
78
Folhinha, In: Folha de São Paulo, 25 abril 1998.
132
Este texto é rico nas categorias identificadas neste trabalho, além da infância
indígena, as representações da infância trabalhadora e da infância desescolarizada, que
não estuda em nenhuma escola. Como sabemos, a educação indígena é bilíngüe tem por
objetivo preservar a sua cultura da comunidade. A realidade de Lino não é a mesma de
outras crianças indígenas.
133
FIGURA 15 – Infância indígena / Fonte: LUCCI; BRANCO, 2004, p.26.
C – História com reflexão
A infância indígena está representada no texto (MARIN; ORDOÑEZ;
QUEVEDO, 2005, p. 64): “[...] Para as crianças indígenas a infância é uma fase de
aprendizado social, por isso elas são totalmente integradas à vida da comunidade
indígena.[...]”. Ao lado deste texto, há a figura 16:
FIGURA 16 – Infância indígena / Fonte: MARIN; ORDOÑEZ; QUEVEDO, 2005, p. 64.
Crianças Kayapó brincando na água, em Porto Seguro, Bahia
134
Esta infância indígena difere muito da infância de Lino
79
, pois estas crianças
Kayapó brincam no rio esbanjando alegria.
D – Interagindo com a história
A infância indígena está representada no texto de Daniel Munduruku (Folha de
São Paulo, 11 de abril de 1998, Folhinha 5, p. 9), transcrito neste livro (p. 87), que descreve
uma “escola na tribo”:
Os professores são os índios alfabetizados e treinados para dar aulas. Assim os
Munduruku unem o útil ao agradável: a escola tradicional em que aprendem as
coisas de índio e a escola formal, para aprender as coisas do homem branco que
irão ajudar o índio a compreender a sociedade em que vive.
Este livro informa sobre a educação indígena. Uma das imagens sobre a
infância indígena é a reprodução da pintura Mandi no balanço, de Waldemar de Andrade
(1983), apresentada na figura 17. Retrata as brincadeiras indígenas e transmite um
equilíbrio ambiental, onde as crianças estão bem integradas, livres e alegres. Esta ilustração
relaciona-se com o texto sobre os índios Waimiri-Atroari. Esta representação corresponde à
realidade vivida pelas comunidades indígenas? Não existem ameaças e conflitos? Os
direitos dos grupos indígenas são respeitados?
FIGURA 17 – Infância indígena / Fonte: SOURIENT; RUDEK; CAMARGO,2004,p.103.
79
Ver a história de Lino, em categoria: infância indígena, no livro A (DREGUER; MARCONI, 2001, p.22).
135
E– Vivência e construção
A categoria infância indígena neste livro (VESENTINI, SILVA e PÉCORA,
2004, p. 23) é representada por Celina Tembé. Esta menina, índia Tembé, passa a ser
personagem em alguns temas desenvolvidos ao longo do livro, por exemplo: família e
moradia. Assim são apresentados os familiares de Celina, onde moram e como vivem,
através de textos, fotos e mapa.
FIGURA 18 e FIGURA 19 – Infância indígena/ Fonte:VESENTINI; SILVA; PÉCORA, 2004, p.92-93
A figura 18 - Crianças caiapó aprendem em escola de Redenção, no estado do Pará e a figura 19- Professora
da etnia guató ensina na Ilha Insua, em Corumbá, no estado de Mato Grosso do Sul, em escola feita de pau-a-
pique.
Estas duas imagens representam duas categorias: a indígena e a escolarizada.
Por elas o/a aluno/a observa como são as salas de aula indígenas, diferenças e semelhanças
entre as escolas e, principalmente, a peculiaridade da atuação da professora indígena (19).
Na escola indígena, não vemos o que Varela e Alvarez-Uria (1992) chamam de “invenção
da carteira” individual, separando fisicamente e simbolicamente as crianças e os grupos. Na
sala de aula, prevalece o espírito coletivo da cultura indígena.
3.5.4 Categoria: infância trabalhadora
A – História: ensino fundamental
Este livro dedica um capítulo à questão do trabalho infantil sob o título: Está na
lei, mas... cita a emenda do artigo - XXXIII (erradamente, no livro, está artigo -
XXIII) da CFB/1988. A emenda foi publicada no Diário Oficial de 16 de dezembro de
1998, proibindo todo e qualquer trabalho para “menores de dezesseis anos, salvo na
136
condição de aprendiz, a partir de quatorze anos”. O autor e a autora (DREGUER e
MARCONI, 2001, p. 25) esclarecem que apesar da proibição por lei, muitas crianças
trabalham no campo e na cidade, umas trabalham e estudam (categoria infância
trabalhadora e escolarizada) e outras trabalham o dia todo e não estudam (categoria infância
trabalhadora e desescolarizada). Cita também o Estatuto da Criança e do Adolescente/1990
como um instrumento jurídico que “pretende garantir os direitos fundamentais” das
crianças e adolescentes. As imagens sobre a categoria infância trabalhadora são de crianças
em diferentes atividades, além do caso Lino”
80
. Duas fotografias são contextualizadas
com a história de cada criança.
FIGURA 20 e FIGURA 21- Infância trabalhadora / Fonte: DREGUER; MARCONI, 2001, p.24.
Na figura 20: “O estudante da 3ª série Emerson trabalha numa olaria há um ano,
à tarde, em Piracicaba. Estuda pela manhã.” Na figura 21: “A engraxate Tatiana, 14,
trabalha desde os 11 anos. ‘Gostaria de ser médica’, diz ela. Durante o dia, Tatiana engraxa
sapados nas ruas de Limeira, no interior do Estado de São Paulo. À noite ela estuda” (Folha
de São Paulo, 25 de abril de 1998, Folhinha). A história de Tatiana é pouco comum, pois
geralmente são vistos meninos como engraxates.
80
Idem.
137
B – Viver e aprender
O livro não trata da questão do trabalho infantil, apenas compara a vida de uma
personagem de uma história em quadrinhos com a vida de outras crianças que aparecem nas
seguintes fotos:
FIGURA 22 e FIGURA 23 – Infância trabalhadora / Fonte: LUCCI; BRANCO, 2004, p.19.
Na figura 22 vemos um Garoto vendendo chicletes em cruzamento de avenidas
da cidade de São Paulo (SP), como indica a legenda. Entretanto, a figura 23 não
corresponde ao que está escrito na legenda: Crianças procurando comida em lixão de Volta
Redonda (RJ), na verdade as crianças catam material reciclável no lixão, pois uma delas
usa luvas plásticas, por isso a categorização de infância trabalhadora.
Os autores não exploram a questão: por que crianças trabalhadoras? Não
discutem ou sugerem que o/a professor/a trate das desigualdades socioeconômicas.
C – História com reflexão
As autoras e o autor (MARIN, ORDOÑEZ e QUEVEDO, 2005, p. 23) partem
do pressuposto que criança trabalhadora também é criança desescolarizada. um poema
intitulado: Tem criança que é... e num trecho diz:
Tem criança que vai à escola,
brinca, e tem criança que
não brinca porque trabalha
138
FIGURA 24 – Infância trabalhadora / Fonte: MARIN; ORDOÑEZ; QUEVEDO, 2005, p.23.
Esta imagem não possui legenda, faz parte de um grupo de desenhos que
ilustram todo o poema. A criança da figura 24 trabalha, por isso “não vai à escola” e “não
brinca”? Não há infância trabalhadora e escolarizada?
D – Interagindo com a história
Ao tratar da questão do trabalho infantil, as autoras (SOURIENT, RUDEK e
CAMARGO, 2004, p. 119) referem-se à Lei de proibição do trabalho para menores de
139
FIGURA 25 e FIGURA 26 - Infância trabalhadora / Fon
140
E- Vivência e construção
Para tratar da questão do trabalho infantil, o autor e as autoras (VESENTINI,
SILVA e PÉCORA, 2004) empregam uma fotografia para que os/as alunos/as reflitam
sobre o problema.
FIGURA 27 - Infância trabalhadora / Fonte: VESENTINI; SILVA; PÉCORA, 2004,p.19.
A figura 27 não possui legenda para o aluno e para a aluna. O manual do/a
professor/a apresenta a seguinte explicação: “Oriente os alunos nesta atividade, ajudando-
os a perceber que as crianças da foto têm entre 8 e 10 anos e estão trabalhando em um
depósito de sisal (localizado no estado da Bahia)”. Junto a esta figura, propõem uma
atividade questionando se a “criança deve trabalhar” e “por que há crianças que trabalham”.
Em uma outra parte do livro (p. 95) há dois relatos
81
sobre infância trabalhadora,
um de uma menina que estuda longe de sua casa, para chegar caminha uma hora e meia,
além de fazer todo o serviço doméstico, o outro de um garoto que vende picolé na praia,
mesmo viajando duas horas em um ônibus até lá. Podemos visualizar este garoto na figura
28, que não tem legenda, só a história de cada criança.
81
Folha de São Paulo, 25 abr. 1998 e 13 jan. 2001 (Folhinha).
141
FIGURA 28 - Infância trabalhadora / Fonte: VESENTINI;SILVA; PÉCORA, 2004, p.95.
5.3.5 Categoria: infância desassistida
A – História: ensino fundamental
Não há, propriamente, nenhum texto sobre a categoria infância desassistida, ela
aparece entre outras fotos para que os/as alunos/as observem como vivem as crianças de
rua. A infância desassistida está representada na figura 29.
FIGURA 29 - Infância desassistida / Fonte: DREGUER;MARCONI, 2001, p.61
Com os colegas na rua.
142
B – Viver e aprender
A categoria infância desassistida está descrita em uma atividade (p. 65): “pense
agora nas crianças que não têm casa: as crianças que moram na rua. Será que elas se sentem
seguras morando na rua?”
C – História com reflexão
Neste livro, a figura 30 (p. 75) representa a categoria - infância desassistida. Os
autores utilizam a imagem para fazer perguntas sobre o tema. Recomenda aos professores e
professoras que: “na medida do disponível, discuta a violência contra os menores e os
direitos humanos na defesa da justiça social” (grifo meu). Ao usar a expressão “menores”
não estão contribuindo para a desconstrução deste (pre)conceito.
FIGURA30 - Infância desassistida / Fonte: MARIN; ORDOÑEZ; QUEVEDO, 2005, p.75
Meninos de rua em praça pública, na cidade de São Paulo.
D – Interagindo com a história
A categoria infância desassistida revela-se em um poema (p.116), cujos versos
dizem:
Tem aqueles que tens tudo
Tem aqueles que nada tem.
Estes versos retratam a exclusão social de crianças desprovidas de qualquer
assistência.
143
E – Vivência e construção
A categoria infância desassistida está representada em texto (p.48): “existem
ainda crianças que vivem nas ruas e que muitas vezes não têm quem cuide delas”. Esta
categoria também está representada pela figura 31.
FIGURA 31- Infância desassistida / Fonte: VESENTINI; SILVA; PÉCORA,2004,p.86
Esta imagem não possui legenda, pois faz parte de um exercício em que a
criança observará a “foto” para dar “um título para cada foto”. O menino de rua é a
expressão da infância desassistida.
3.5.6 Categoria: infância midiática
Apenas dois livros registram eventos na categoria infância midiática.
C – História com reflexão
Este livro apresenta o maior número de eventos nesta categoria.
No depoimento de Dona Déborah está representada a infância midiática
(MARIN, ORDOÑEZ e QUEVEDO, 2005, p.36):
Como estamos vivendo na época do consumismo, muitos brinquedos diferentes. As
crianças também ficam em casa vendo televisão, videogame e até manuseando o
computador.
144
No capítulo intitulado: A televisão e o computador ampliam o mundo
globalizado (p. 134-135) textos sobre televisão e computador, com exercícios
correspondentes. Os textos exaltam estes aparelhos e os exercícios enfocam a relação da
criança com os meios de comunicação. Algumas das imagens sobre esse tema são as
seguintes:
FIGURA 32 e FIGURA 33 - Infância midiática / Fonte: MARIN; ORDOÑEZ; QUEVEDO, 2005, p.134-135.
A figura 32 (p. 134) mostra, de forma alegórica, a forte influência da televisão
sobre a criança. A figura 33 (p. 135) traduz o grande interesse das crianças pelo uso do
computador.
A figura 33 (p.135) representa, também, a infância midiática com a inclusão
digital das crianças, embora esta não seja a realidade de muitas crianças brasileiras. Como
irão se sentir as crianças, que não fazem parte dessa representação de infância, diante de
perguntas como: “para quem você costuma enviar e-mail? Onde moram as pessoas para
quem você envia e-mail? Gosta de navegar na Internet?” (p. 135).
D – Interagindo com a história
Neste livro, existe um evento da categoria infância midiática, representado
pela figura 34 (p. 89). O livro sugere que esta imagem seja de uma sala de aula de escola
do ensino fundamental, mas não parece. Tudo indica ser um curso de idiomas (inglês) que
utiliza várias mídias como recursos didáticos.
145
FIGURA 34 – Infância midiática / Fonte: SOURIENT; RUDEK; CAMARGO, p.2004, p.89.
Esta imagem não possui legendas, faz parte de uma atividade em que a criança
irá compará-la com uma imagem de escola do início do século passado. Assim, irá
responder oralmente: “O que mudou? O que permaneceu?”.
3.5.7 Categoria: infância asilada
Somente três livros apresentam esta categoria.
146
A – História: ensino fundamental
A categoria infância asilada é apenas representada em fotografias dentro de
tema “organização familiar”, como pode ser visto figura 35 (p.60).
FIGURA35 – Infância asilada / Fonte:DREGUER; MARCONI, 2001, p.60
Com os colegas e os adultos, no orfanato.
Num exercício (p. 66) é recomendado ao professor ou à professora:
se em sua sala houver alunos que vivem em orfanatos ou instituições para menores,
oriente-os para que anotem os nomes dos parentes que conhecem ou escrevam o nome
das pessoas com as quais convivem e têm maior afinidade (grifo meu).
Ao empregarem o termo “menores” não estão contribuindo para a manutenção
do estigma da criança pobre institucionalizada?
D – Interagindo com a História
Este livro apresenta os diferentes tipos de família, as fotografias trazem as
representações de família que deverão ser associadas às frases explicativas. Em um
exercício, a infância asilada representada pela figura 36 (p. 74) estará relacionada à
afirmação (p. 75): “Rafael mora com outras crianças num orfanato.”
147
FIGURA 36 - Infância asilada / Fonte: SOURIENT; RUDEK; CAMARGO, 2004, p.74
Esta imagem não tem legenda, pois faz parte de um exercício, conforme
expliquei anteriormente.
E – Vivência e construção
Este livro em seu texto (p. 48) representa a categoria infância asilada: “há
crianças que vivem em orfanatos e recebem os cuidados e o carinho das pessoas que
trabalham.” A palavra orfanato faz parte do glossário como: “lar que acolhe crianças que
não têm família”. A figura 37 (p. 48) representa a infância asilada.
As explicações não estão idealizadas? A imagem nos transmite o mesmo que o
texto define?
148
FIGURA 37 - Infância asilada / Fonte: VESENTINI; SILVA; PÉCORA, 2004,p. 48.
Esta imagem não possui legenda, porque é uma atividade em que a criança dará
um “título para a foto”.
3.5.8 – Categoria: infância desescolarizada
Apenas dois livros representam a categoria infância desescolarizada.
C – História com reflexão
A categoria infância desescolarizada está representada no texto (p. 158): “Todas
as crianças têm direito à educação escolar. Mais ainda existem muitas crianças fora da
escola.” Há, neste livro, uma relação direta entre infância desassistida e infância
desescolarizada. No capítulo intitulado: “Direitos sim, deveres também”, parte do seu texto
(p. 162) diz: “Você também percebeu que, em nossa sociedade, muitas crianças não estão
na escola. Isso significa um desrespeito aos seus direitos”.
149
D – Interagindo com a história
A categoria infância desescolarizada está representada por parte de um poema
que diz (p. 116):
De um lado quem estuda
nem sabe que ali bem perto
Há crianças sem escola
E com um futuro incerto.
Os dois últimos versos representam, também , a exclusão social.
3.5.9 - Considerações sobre as imagens das infâncias
O uso das imagens em livros didáticos de História é mais antigo do que muitos
pensam, pois segundo Bittencourt datam do século XIX. As ilustrações facilitam a
concretização da noção de tempo histórico, que é muito abstrata para as crianças, além de
servirem de suporte a compreensão e a memorização. Segunto Bittencourt (2003, p. 75),
Lavisse (1887), historiador e autor francês de livros didáticos, cujas obras foram utilizadas
no Brasil, no século XIX, afirmava:
As crianças têm necessidade de ver as cenas históricas para compreender a história. É
por esta razão que os livros de história que vos apresento estão repletos de imagens.
Desejamos forçar os alunos a fixarem as imagens. Sem diminuir o número de gravuras
que existiam no texto, compusemos novas séries delas correspondendo a
150
Algumas imagens analisadas parecem ser fotografias montadas ou preparadas.
Quando a imagem é um desenho, geralmente, o ilustrador idealiza as situações e/ou as suas
personagens. Os textos são preparados ou escolhidos para retratarem as representações a
serem reproduzidas.
A representação da categoria infância indígena está apartada das crianças de
outros grupos étnicos e raciais. De maneira geral, a infância indígena é representada por
crianças felizes, livres e em relação harmônica com a natureza. As escolas indígenas são
diferentes por oferecerem educação intercultural e bilíngüe, além de não ter sido “inventada
a carteira” individual (VARELA e ALVAREZ-URIA, 1992), que afasta simbolicamente e
fisicamente a criança de seu grupo.
A questão racial não está bem definida, porque as categorias infância
trabalhadora, infância assistida, infância desassistida e infância desescolarizada são,
majoritariamente, representadas por crianças brancas, o que pode significar uma alternativa
para escapar ao problema do preconceito e da discriminação em relação ao negro, de
representá-lo sempre em situação de inferioridade. Entretanto, isto passa a ser uma
armadilha, pois a criança negra fica pouco representada. As crianças brancas, negras e
mestiças são representadas brincando juntas, somente, em desenhos. Quando a infância
midiática é representada, não vemos nenhuma criança negra. Neste caso, as crianças negras
estão excluídas da possibilidade de integrarem esta categoria de infância.
diferenças em uma mesma categoria - a infância escolarizada, na medida
que as escolas públicas são representadas em condições precárias e destinadas às crianças
pobres, enquanto as escolas particulares são representadas bem equipadas, com crianças
brancas usando computadores.
A família modelo formada por pai, mãe e filhos/as continua a ser representada,
apesar de alguns livros apresentarem outras formações familiares. Enquanto, a questão das
desigualdades socioeconômicas entre as infâncias vem sendo representada de forma
naturalizada.
Retomando a questão se os livros analisados conservam ou não a representação
de “menor”. Observou-se que nos livros didáticos dos/as alunos/as, o termo “menornão
aparece. Entretanto, em duas obras no manual destinado à professora e ao professor ele está
presente. Desta forma, o processo de desconstrução dessa representação sobre a infância
151
pobre torna-se mais lento, pois a orientação que é dada aos docentes se mantém calcada na
dissociação entre uma infância privilegiada e protegida, e outra infância percebida
socialmente como uma ameaça à vida social.Enfim, devo enfatizar que os livros didáticos
não apresentam todos as mesmas infâncias. Assim, as principais representações sobre as
infâncias identificadas, nos livros didáticos de História, para a série do ensino
fundamental são: a infância escolarizada, a infância cidadã, a infância indígena, a infância
trabalhadora e a infância desassistida. Entendo que estas cinco representações sobre a
infância, presentes nos cinco livros analisados, podem ser classificadas em dois grupos.
Esta divisão indica uma representação corrente em nossa sociedade, da dicotomia entre
uma infância idealizada a escolarizada e a cida(mais idealizada que a escolarizada) -
submetida ao processo civilizatório, sendo domesticada e socializada pela escola versus a
infância excluída da sociedade a indígena, a trabalhadora e a desassistida - pouco
permeável à principal instituição educativa dos nossos tempos.
152
CONCLUSÃO
Ao longo desta dissertação
82
, busquei identificar as representações sobre a
infância presentes, a partir do século XX até hoje, nos campos jurídico, escolar e, mais
especificamente, nos livros didáticos de História, destinados à primeira série do ensino
fundamental.
O corpus jurídico indicou a mudança paradigmática da representação de
infância como “objeto de proteção” para a representação de infância como “sujeito de
direitos”. Para o entendimento desta mudança paradigmática, percorri o século XX, quando
teve início o processo de construção dos direitos da criança, no contexto internacional.
Assim, foram examinados os conteúdos da embrionária Declaração dos Direitos da Criança
(1924) e da Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959), até chegar à Convenção
sobre os Direitos da Criança proposta no Ano Internacional da Criança (1979) e concluída
em 1989. Esta Convenção foi o instrumento internacional que elevou a criança à condição
de “sujeito de direitos”. O ponto de partida do percurso, no campo jurídico brasileiro, foi o
projeto de lei de 1906 que introduziu o termo menor”, no sentido de criança abandonada
moralmente ou como vítima de maus tratos físicos. O termo “menor” foi incorporado ao
Código de Menores (1927, reformulado em 1979), mas no texto do Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA/1990) foi substituído por criança e/ou adolescente. Com o Estatuto
da Criança e do Adolescente surge o novo paradigma da criança como “sujeito de direitos”.
Apesar disso, a categoria “menor” permanece como uma representação de infância
estigmatizada e discriminada. A partir deste enfoque, procurei entender como a escola tem
representado a infância dentro das teorias pedagógicas e se vem favorecendo a
desconstrução da representação de “menor”, simultaneamente à construção de infância
cidadã.
Como não é possível em uma única pesquisa abarcar toda a cultura escolar,
escolhi o livro didático, ferramenta de trabalho tão contestada por mim durante a minha
longa trajetória como professora regente de turmas de a séries, em escolas da rede
82
A princípio, a pesquisa tinha uma direção um pouco diferente, pois seriam usados como fontes os livros
didáticos das décadas de 1970 ou 1980 e 2000 para um trabalho comparativo, mas isto seria difícil de se
concretizar, pois os chamados “livros velhos” (1970 e 1980) não existiam mais naqueles espaços
procurados.
153
pública. Esta trajetória profissional imprimiu, neste trabalho, as marcas das minhas
experiências acumuladas. Ao tomar o livro didático como fonte de pesquisa, pretendi
analisar que imagens e idéias estão vinculadas neste material pedagógico, como os autores
e as autoras transmitem sua visão de mundo. Que representações sobre a infância procuram
disseminar? Neste processo, são selecionadas e/ou privilegiadas certas representações que
contribuem para a formação das identidades das crianças. Ao apresentar esta conclusão, não
tenho a intenção de julgar esses autores e essas autoras ou prescrever qualquer solução,
apenas apresento minhas interpretações, pois venho de uma prática de ensino, que não
consigo sufocar.
A escolha recaiu na 1ª série do ensino fundamental, por ser o primeiro momento
em que o/a aluno/a entra em contato com a disciplina História, como saber escolar
sistematizado, portanto significa o início de sua aprendizagem neste campo do
conhecimento, que julgo ser de grande importância para a interação dos indivíduos. Como
afirma Paulo Freire (1996, p. 20): “A natureza que a ontologia cuida se gesta socialmente
na História”.
A escola deve ser o lócus, particularmente a sala de aula, onde a formação
cidadã é direta, explícita e intencionalmente orientada. Entretanto, a formação da cidadania
em nossa sociedade tem uma base individualizante e a prática política, também, é
individualizante. Esta individualização se reflete na sala de aula, quando o/a professor/a
diz: “esses são meus alunos”. Os sentimentos de apropriação e de individualização
tomaram conta da sociedade capitalista. Como construir a prosaica sociedade solidária ou
comunidade solidária? Tenho aqui a intenção de parodiar o programa social do governo
Fernando Henrique Cardoso “Comunidade Solidária” (1995), influenciado pelo projeto
norte-americano denominado Desenvolvimento de Comunidade, como foi visto no capítulo
I desta dissertação. Neste sentido, é valiosa a entrevista de Habermas a Bárbara Freitag
(Folha de São Paulo, 1995, apud GOHN, 2004, p. 141): “declarou-se decepcionado com os
movimentos sociais contemporâneos, demonstrando receio de que poderão se desenvolver
também em direções adversas aos caminhos da liberdade, porque não têm projetos
universalistas mas operam a partir de demandas específicas.” Entendo que a escola,
instituição social responsável pela educação formal de crianças e de adolescentes, vem
perdendo seu espaço para iniciativas informais representadas por movimentos sociais,
154
principalmente, na educação de crianças das classes desfavorecidas ou populares. Assim, a
declaração de Habermas me leva a compreender que estamos na contra-mão da “liberdade”
ou da construção de uma sociedade mais democrática, a solução de “demandas específicas”
não criará uma sociedade mais justa como pode parecer. Algumas ações de movimentos
sociais são mecanismos de contenção social, no meu entendimento.
Mesmo reconhecendo que a escola tem papel importante no processo
civilizatório, ainda assim, é necessário não esvaziá-la de seu sentido, transferindo suas
funções para onde quer que seja. A maquinaria escolar parafraseando Varela e Álvarez-
Uria (1992), neste instigante artigo, não pode parar pelo menos enquanto optarmos por uma
sociedade capitalista. Sonho com uma maquinaria escolar que não distingue as classes
sociais, onde predomine a ação comunicativa (HABERMAS) entre os indivíduos livres
tendo o caráter emancipador em relação à dominação cnica. Em que a Pedagogia da
autonomia (FREIRE, 1996) oriente a prática educativa e que se possam “reconstruir noções
de luta emancipatória e de cidadania crítica” (GIROUX e McLAREN, 1995, p. 147), como
vimos no capítulo II desta dissertação. Esta cidadania crítica pode ser desenvolvida,
também, na escola com uma “pedagogia crítica que estivesse preocupada com a leitura de
imagens” (KELLNER, 1995, p. 109). Em um dos livros analisados (VESENTINI, SILVA e
PÉCORA, 2004, p. 104) encontrei um exemplo de prática cidadã na manifestação de uma
criança. Trata-se da reprodução do desenho de Lincoln Tadeu do Nascimento, menino de
dez anos e morador de São Paulo, que assim explica:
Eu olhava as reportagens sobre as crianças trabalhando e depois eu olhava pela rua e
via placas de proibido. eu tive essa idéia. Porque, quando a criança está
trabalhando, ela devia estar na escola aprendendo. E o lápis a criança usa muito na
escola.
Folha de S. Paulo, 25 de Abril de 1998 (Folhinha)
(apud Vesentini, Silva, Pécora, 2004, p. 104).
155
Este menino ao ler um problema social o trabalho infantil e ao representá-lo
está, de certo modo, demonstrando sua cidadania crítica. A imagem do exemplo citado
chamou minha atenção, quando realizava a etapa da “leitura flutuante” dos conteúdos dos
livros didáticos. Ao passar para a fase da “exploração do material”, as imagens continuaram
a sobressair em relação aos textos, pois vivemos num mundo de imagens e elas estão por
todos os lados e em todos os lugares. Aprender a ler imagens é uma habilidade necessária
no mundo de hoje, porém esta leitura deve ser crítica para escaparmos dos engodos. Neste
momento, lembro que um dos livros analisados apresenta uma fotografia em que as
crianças catam embalagens no lixão, mas os autores colocaram na legenda: “crianças
156
mais qualificadas - mestres e doutores/as estão se dedicando a produzir livros didáticos.
Fonseca, autora da citação anterior, também escreve livros didáticos para o ensino
fundamental, seu nome figura no GLD/2007. O livro didático continua sendo “elemento
predominante” e “determinante no processo de ensino”, a Introdução do GLD/2007
confirma este fato. Desta forma, o livro didático foi fonte para este estudo.
A questão norteadora da pesquisa que representações sobre a infância estão
veiculadas nos livros didáticos de História para a primeira série do ensino fundamental
trouxe como resposta a construção das seguintes categorias de infância: escolarizada,
cidadã, indígena, trabalhadora, desassistida, midiática, asilada e desescolarizada. Considero
que a representação de infância escolarizada predomina em todos os livros, exceto na obra
Interagindo com a História (SOURIENT, RUDEK e CAMARGO, 2004), na qual a
representação de infância cidadã supera, ligeiramente, a infância escolarizada, o que é um
indicador para a construção da cidadania. A representação de infância desescolarizada é
pouco significativa, visto que apenas dois livros apresentam esta representação. Embora a
infância midiática seja uma representação mais atual, do mundo contemporâneo, um dos
livros História com reflexão (MARIN, ORDOÑEZ e QUEVEDO, 2005) dedica um
grande espaço para representá-la, enquanto um outro livro tem uma tímida representação e
os outros três não a representam. A infância desassistida aparece em todos os livros, o que é
importante para o/a aluno/a refletir sobre as diferentes condições socioeconômicas da
população infantil brasileira e a insuficiência de políticas públicas para o setor. O livro que
mais trabalha com essas questões é Vivência e construção (VESENTINI, SILVA e
PÉCORA, 2004). A representação de infância asilada aparece em três livros, os outros
dois se omitem, como se a institucionalização de crianças não existisse no Brasil. a
representação de infância trabalhadora em todos os livros, oportunizando a discussão em
sala de aula sobre a proibição do trabalho para menores de dezesseis anos, como foi
citado no capítulo III. A representação de infância indígena está contemplada em todos os
livros, sendo que em dois deles: Vivência e construção (VESENTINI, SILVA e PÉCORA,
2004) e História ensino fundamental (DREGUER e MARCONI, 2001) é a segunda
representação com maior número de registros. Apenas a obra Interagindo com a História
(SOURIENT, RUDEK e CAMARGO, 2004) registra todas as oito categorias de infância,
selecionadas para este estudo. Devo ressaltar, ainda, que não há a representação de infância
157
cidadã em um dos cinco livros analisados - Viver e aprender História (LUCCI e BRANCO,
2004), além de não apresentar registros nas categorias de infância desescolarizada,
midiática e asilada. Apesar da pouca diversidade de representações sobre a infância, este foi
o livro mais adotado nas escolas públicas municipais na cidade do Rio de Janeiro, no
período 2004 a 2006. Esta pode ser uma proposta para outra pesquisa: por que as escolas
optam por um livro classificado pelo Guia do Livro Didático (GLD) como o último dos
“Recomendados com Ressalvas”?
Ainda assim, os livros didáticos analisados, com exceção de um que apenas
menciona o Estatuto da Criança e do Adolescente no Manual do professor, estão
contribuindo com a construção da infância cidadã. A desconstrução da categoria “menor”
está prejudicada, na medida que o termo aparece em livros do/a professor/a e no GLD/2006
(p. 178). Em algumas obras um descompasso entre o livro didático do/a aluno/a e o
manual do/a professor/a em relação à discussão sobre os direitos da criança.
O estudo gerou questões que não puderam ser respondidas no âmbito deste
projeto, mas ficam como sugestões para futuros trabalhos: os livros didáticos de História do
ciclo apresentam as mesmas representações sobre a infância como as encontradas nesta
pesquisa? Quais são as representações sobre a infância nos livros didáticos de outras
disciplinas escolares? Como os/as professores/as e as crianças percebem as representações
sobre a infância no livro didático? Os cursos de pedagogia ou o normal superior preparam
o/a futuro/a professor/a para análise do livro didático? A história social da criança no Brasil
faz parte do currículo desses cursos? Enfim, o campo é extenso e rico.
Bittencourt (2003, p. 14) em seu estudo sobre as atuais propostas curriculares de
História afirma: “A História oferecida para as novas gerações é a do espetáculo, pelos
filmes, propagandas, novelas, desfiles carnavalescos...”. Seria essa uma estratégia para
atrair a atenção da infância midiática para o ensino da História? Apesar disso, a cultura
escolar precisa sobreviver juntamente com o livro, aque o leitor passe a ser navegador
(CHARTIER, 1999), a cultura letrada depende desse instrumento cultural.
Para finalizar, apresento uma das ilustrações encontradas em um dos livros
analisados, a despeito das representações que encerra sobre o “bom aluno” e a professora
“maternal”. Esta imagem me remete às últimas reflexões, que desejo compartilhar com os
leitores desta dissertação:
158
O sonho de Snyders o acabou? Existe Alegria na escola (1986)? Existem ou
podem existir Alunos felizes (1991)?
Nós, professores/as, temos direito à utopia?
Fonte: MARIN, ORDOÑEZ ; QUEVEDO, 2005, p. 97
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FONTES
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