Download PDF
ads:
Tese de Doutorado
Natália Morais Gaspar
RELAÇÕES DE PODER E GESTÃO DO ESPAÇO: A CRIAÇÃO DE UMA ÁREA
DE PROTEÇÃO AMBIENTAL NO NORTE FLUMINENSE
PPGSA
IFCS
UFRJ
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
RELAÇÕES DE PODER E GESTÃO DO
ESPAÇO: A CRIAÇÃO DE UMA ÁREA DE
PROTEÇÃO AMBIENTAL NO NORTE
FLUMINENSE
Natália Morais Gaspar
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Sociologia e Antropologia do
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Doutor em Ciências Humanas
(Antropologia Cultural).
Orientadora: Beatriz Maria Alasia de Heredia
Rio de Janeiro
Janeiro de 2008
ii
ads:
RELAÇÕES DE PODER E GESTÃO DO ESPAÇO: A CRIAÇÃO DE UMA ÁREA
DE PROTEÇÃO AMBIENTAL NO NORTE FLUMINENSE
Natália Morais Gaspar
Orientadora: Beatriz Maria Alasia de Heredia
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e
Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor
em Ciências Humanas (Antropologia Cultural).
Aprovada por:
____________________________________________--
Presidente, Professora Dra. Beatriz Maria Alasia de Heredia
____________________________________________--
Professora Dra. Iná Elias de Castro
____________________________________________--
Professor Dr. José Sergio Leite Lopes
____________________________________________--
Professora Dra. Maria Rosilene Barbosa Alvim
____________________________________________--
Professora Dra. Elina Gonçalves da Fonte Pessanha
Rio de Janeiro
Janeiro de 2008
iii
Gaspar, Natália Morais.
Relações de Poder e Gestão do Espaço: a Criação de uma Área de Proteção
Ambiental no Norte Fluminense/Natália Morais Gaspar. – Rio de Janeiro:
UFRJ/IFCS, 2008.
xi, 197f.: il.; 31 cm.
Orientadora: Beatriz Maria Alasia de Heredia
Tese (doutorado) – UFRJ/IFCS/Programa de Pós-graduação em Sociologia e
Antropologia, 2008.
Referências: f 192-195.
1. Relações de Poder. 2. Meio Ambiente. I. Heredia, Maria Beatriz Alasia de.
II.Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais.
III. Relações de Poder e Gestão do Espaço: a Criação de uma Área de Proteção
Ambiental no Norte Fluminense.
iv
À Ana, minha amada filha. Muito obrigada pela
motivação, para esta tese e para a vida.
v
Agradecimentos
Agradeço à minha orientadora, Beatriz Heredia, pela leitura crítica e
atenta, pelo diálogo sutil e perspicaz, e por nunca ter deixado de acreditar que
seria possível, apesar de todas as dificuldades enfrentadas.
Agradeço à saudosa Ana Maria Galano, pelo despertar do
estranhamento em relação ao que parece natural. A José Sergio Leite Lopes e
Rosilene Alvim, pelos indispensáveis questionamentos e sugestões à minha
qualificação. E a todos os professores do PPGSA, pelo diálogo enriquecedor,
ao longo da minha formação.
Agradeço à CAPES, pelo apoio durante o Doutorado. À FAPERJ, pela
remuneração como auxiliar de pesquisa no projeto “Gestão Municipal e
Formas de Participação Popular”, da Professora Beatriz Heredia. E ao CNPQ,
por ter apoiado a minha formação na Iniciação Científica e no Mestrado.
Agradeço a todos os interlocutores com quem dialoguei ao longo do
trabalho de campo. Especialmente a Flor de Maria, Edgar Gomes, Olga e
Aldair Proença, Marcio Nascimento, Leandro Chevitarese, Rodrigo
Nascimento, Clara, Wili e Rafael.
Agradeço aos colegas de Graduação, Mestrado e Doutorado no IFCS,
pelas discussões instigantes e pela paciência. E agradeço aos meus amigos,
cujo apoio foi fundamental para que eu pudesse concluir minha formação
Renata Telles, Fernanda Passarelli, Bárbara Estrada, Ana Luiza Beraba, Bianca
Brandão, Luísa Helena Pitanga, Bianca Abreu, André Saldanha, Juliana
Loureiro, Flávio Neubauer. Agradeço à Bárbara Estrada, também, pelo lindo
mapa.
Finalmente, agradeço à minha mãe, Eliane Soares Morais, pelo
imensurável apoio, em todos os sentidos, sem o qual teria sido impossível
concluir esta tese. Agradeço, também, ao meu pai, Walter Gaspar Filho, e aos
meus avós, Dailton Moraes e Renée Soares Morais, in memorian, pelo seu
amor.
vi
RESUMO
RELAÇÕES DE PODER E GESTÃO DO ESPAÇO: A CRIAÇÃO DE UMA ÁREA
DE PROTEÇÃO AMBIENTAL NO NORTE FLUMINENSE
Natália Morais Gaspar
Orientadora: Beatriz Maria Alasia de Heredia
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Sociologia
e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de
Doutor em Ciências Humanas (Antropologia Cultural).
O objeto deste estudo é o processo de mudanças nas relações de poder ocorrido
em um distrito do norte fluminense transformado em Área de Proteção Ambiental
(APA). Em uma localidade que era quase que exclusivamente agrícola até os anos 80,
moradores de origem urbana vêm desempenhando um papel fundamental na
implantação da unidade de conservação. Até então, alguns grandes proprietários
intermediavam o acesso da população à maioria dos serviços públicos e aos benefícios
provenientes de relações personalizadas com políticos. Foi criada uma nova instância de
poder, o Conselho Gestor da APA. Com base no Zoneamento e nas recomendações
contidas no Plano de Manejo, foi atribuído ao Conselho Gestor o papel de promover
uma reconfiguração do espaço, através da regulação de toda sorte de atividades
interpretadas como interferências no meio ambiente. O processo de criação da APA do
Lima consolidou novas regras para a utilização do espaço e dos recursos, fundadas não
somente na premissa da preservação ambiental, como também na sua apropriação pelo
grupo que conduziu este processo. Assim, a criação da APA consolidou, também, a
inserção de neo-rurais que atuaram como ambientalistas locais nas relações de poder e
na disputa pelos recursos.
Palavras-chave: Relações de Poder, Meio Ambiente, Gestão Participativa, Unidade de
Conservação.
Rio de Janeiro
Janeiro de 2008
vii
ABSTRACT
POWER RELATIONS AND SPACE DISTRIBUTION: THE CREATION OF AN
ENVIRONMENTALLY PROTECTED AREA IN THE NORTH OF THE STATE OF
RIO DE JANEIRO
Natália Morais Gaspar
Orientadora: Beatriz Maria Alasia de Heredia
Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do
grau de Doutor em Ciências Humanas (Antropologia Cultural).
The aim of this study is to analyse the process of change in the power relations
that take place in a district in the North of the state of Rio de Janeiro, Brazil, in an area
which was officially declared an APA (Environmentally Protected Area). In a place
which was almost exclusively agricultural up to the 80s, residents of urban origin have
been taking on a fundamental role in the implementation of this Environmentally
Protected Area. Up until then some big land owners had served as middle-men in the
access of the local population to the majority of public services as well as to various
benefits they obtained through their personal relationships with politicians. An official
instance of power was created, the Managing Board of the Environmentally Protected
Area (APA). Based on Zoning and on the recommendations of the Administration Plan,
the Managing Board was given the role of implementing the space distribution, through
specific regulation of all activities thought to interfere with the physical environment.
The creation of the Environmentally Protected Area of Lima promoted the consolidation
of new rules for the use of space and resources, based not only on the assumption of
environmental protection but also on the empowerment of those individuals who
initiated this process. Thus, the creation of this Environmentally Protected Area has also
promoted the integration of the neo-rural residents who acted as local environmentalists
in the power relations and in the access to various resources.
Key-words: Power Relations, Environment, Participative Distribution, Protected Area.
Rio de Janeiro
Janeiro de 2008
viii
RELAÇÕES DE PODER E GESTÃO DO ESPAÇO: A CRIAÇÃO DE UMA
ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL NO NORTE FLUMINENSE
Sumário
Introdução - 1
Informações preliminares sobre o campo - 7
CAPÍTULO 1 - DAS PLANTAÇÕES DE CAFÉ À FRUIÇÃO DA NATUREZA -
14
1. Do café ao turismo - 14
2. Novos moradores em busca da natureza - 20
2.1. Os hippies dos anos 70 - 22
2.2. O turismo que veio para ficar - 27
3 – Convívio, compartilhamento do espaço e mudanças nas relações sociais - 34
CAPÍTULO 2 - FORMAÇÃO DA ONG AMBIENTALISTA LOCAL - 38
1 – Os guardiães voluntários do paraíso ameaçado - 39
2 – A institucionalização e profissionalização dos guardiães da natureza - 44
2.1 - A ONG e a APA - 45
2.2 - A ONG e os projetos - 48
CAPÍTULO 3 – A SOCIEDADE CIVIL E A APA - 57
1. A associação de comerciantes – 59
2 – A associação de moradores - 65
3 – A associação do Vale das Águas – 69
4 – A associação da Nascente – 71
5 - A formação do Conselho Gestor da APA - 73
CAPÍTULO 4 - ORGANIZANDO A RESISTÊNCIA - 81
1 – Formação e atuação da associação de produtores e trabalhadores rurais – 81
2 – Composição da diretoria - 84
3 – As assembléias e o discurso em favor do povo - 87
4– Classificações do espaço - 92
ix
5 – A atuação da associação nos fóruns da APA - 94
6 – O discurso dos moradores - 96
7 – O discurso de resistência, um princípio de agrupamento e as nuances apagadas - 99
CAPÍTULO 5 AS PRIMEIRAS ATIVIDADES DO CONSELHO:
REGULAMENTANDO, PLANEJANDO E CONSTRUINDO O DISCURSO
OFICIAL - 102
1 - A Elaboração do Regimento Interno do Conselho Gestor - 102
2 As representações sobre o Conselho Gestor da APA ao longo do processo de
elaboração do Plano de Manejo - 104
3 – A relação dos ambientalistas locais com a prefeitura durante o período de formação
do aparato institucional e legal da APA – 110
4 - A “participação” na elaboração do Plano de Manejo da APA – Fase 1 - 112
5 – Os embates na elaboração do Plano de Manejo - 121
6 – A construção do discurso oficial - 125
6.1 – Pensar globalmente - 127
6.2 – Agir localmente - 131
7 – O Plano de Manejo e as relações de poder que fomentaram sua construção - 138
CAPÍTULO 6 – A ATUAÇÃO DO CONSELHO GESTOR DA APA - 143
1 – O funcionamento do Conselho Gestor da APA - 144
1.1 – Composição e funcionamento da plenária - 145
1.2 –– A Secretaria Executiva - 151
1.3 – As Câmaras Técnicas - 153
2 – A proibição da pista de motocross e seus desdobramentos - 157
2.1 – A festa – 159
2.2 – A fazenda agroecológica - 166
3 – Disputas pelo Vale das Águas – 171
CONSIDERAÇÕES FINAIS - 182
REFERÊNCIAS – 192
MAPA DO LIMA – 197
x
RELAÇÕES DE PODER E GESTÃO DO ESPAÇO: A CRIAÇÃO DE UMA
ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL NO NORTE FLUMINENSE
Índice
Introdução - 3
Informações preliminares sobre o campo - 9
CAPÍTULO 1 - DAS PLANTAÇÕES DE CAFÉ À FRUIÇÃO DA NATUREZA -
14
1. Do café ao turismo - 16
2. Novos moradores em busca da natureza - 22
2.1. Os hippies dos anos 70 - 24
2.2. O turismo que veio para ficar - 29
3 – Convívio, compartilhamento do espaço e mudanças nas relações sociais - 36
CAPÍTULO 2 - FORMAÇÃO DA ONG AMBIENTALISTA LOCAL - 40
1 – Os guardiões voluntários do paraíso ameaçado - 41
2 – A institucionalização e profissionalização dos guardiões da natureza - 46
2.1 - A ong e a APA - 47
2.2 - A ong e os projetos - 50
CAPÍTULO 3 – A SOCIEDADE CIVIL E A APA - 59
1. A associação de comerciantes - 61
2 – A Associação de Moradores - 67
3 – Associação do Vale das Águas - 70
4 – Associação da Nascente - 72
5 - A formação do Conselho Gestor da APA - 75
CAPÍTULO 4 - ORGANIZANDO A RESISTÊNCIA - 82
1 – Formação e atuação da associação de produtores e trabalhadores rurais - 82
2 – Composição da diretoria - 85
3 – As assembléias e o discurso em favor do povo - 88
4– Classificações do espaço - 93
xi
5 – A atuação da associação nos fóruns da APA - 95
6 – O discurso dos moradores - 97
7 – O discurso de resistência, um princípio de agrupamento e as nuances apagadas - 100
CAPÍTULO 5 AS PRIMEIRAS ATIVIDADES DO CONSELHO:
REGULAMENTANDO, PLANEJANDO E CONSTRUINDO O DISCURSO
OFICIAL - 103
2 - A Elaboração do Regimento Interno do Conselho Gestor - 103
2 As representações sobre o Conselho Gestor da APA ao longo do processo de
elaboração do Plano de Manejo - 105
3 – A relação dos ambientalistas locais com a prefeitura durante o período de formação
do aparato institucional e legal da APA - 111
4 - A “participação” na elaboração do Plano de Manejo da APA – Fase 1 - 113
5 – Os embates na elaboração do Plano de Manejo - 122
6 – A construção do discurso oficial - 126
6.1 – Pensar globalmente - 128
6.2 – Agir localmente - 132
7 – O Plano de Manejo e as relações de poder que fomentaram sua construção - 139
CAPÍTULO 6 – A ATUAÇÃO DO CONSELHO GESTOR DA APA - 143
1 – O funcionamento do Conselho Gestor da APA - 144
1.4 – Composição e funcionamento da plenária - 145
1.5 –– A Secretaria Executiva - 151
1.6 – As Câmaras Técnicas - 153
2 – A proibição da pista de motocross e seus desdobramentos - 157
2.1 – A festa – 159
2.2 – A fazenda agroecológica
3 – Disputas pelo Vale das Águas
xii
RELAÇÕES DE PODER E GESTÃO DO ESPAÇO: A CRIAÇÃO DE UMA
ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL NO NORTE FLUMINENSE
Introdução
O objeto deste estudo é o processo de mudanças nas relações de poder ocorrido
num distrito do norte fluminense transformado em Área de Proteção Ambiental (APA)
1
.
O distrito de Lima foi produtor de café até os anos 30, cultivado por agricultores
familiares meeiros nas grandes propriedades. Com a decadência deste cultivo, houve um
período de retração da economia, com sensível diminuição da população, do comércio e
dos serviços. Neste período, aqueles que permaneceram mantiveram a agricultura
familiar de subsistência, enquanto que a banana tornou-se o principal produto
comercial. Nos anos 80, cresceu a pecuária extensiva e, ao final da década, com a
chegada da luz elétrica, o lugar começou a se tornar um destino turístico, tendo as
cachoeiras do Vale das Águas como principal atrativo. Na década de 90, houve grande
aumento do fluxo turístico e expansão do comércio, dos serviços e da infra-estrutura.
Ao mesmo tempo, crescia a presença da fiscalização ambiental, por parte de órgãos
federais, estaduais e municipais. Ao final da década e início da década seguinte, houve
uma proliferação de diferentes organizações da sociedade civil, tais como associações
de moradores, de produtores, de comerciantes e organizações não governamentais. Em
novembro de 2001, a totalidade do distrito foi transformada em APA por meio de uma
lei municipal. No ano de 2002, foi organizado um Conselho Gestor deliberativo para a
unidade de conservação e, em 2003, era publicado o seu Plano de Manejo, contendo o
Zoneamento da APA.
Os atributos naturais da área despertavam o interesse de pessoas da cidade
desde a década de 70, quando começaram a ser adquiridos terrenos transformados em
residências secundárias (para lazer e veraneio), algumas das quais vieram a se tornar a
residência principal de seus proprietários, muitos deles interessados em adotar um estilo
de vida diferente daquele que vinham tendo nas suas cidades de origem. A fixação de
moradores de origem urbana tornou-se uma tendência crescente desde então.
Associadas à presença de pessoas da cidade, cada vez mais numerosa, surgiram, na
década de oitenta, e avolumaram-se no final dos anos 90, as iniciativas em prol da
1
SNUC, Art. 15. A Área de Proteção Ambiental é uma área em geral extensa, com um certo grau de
ocupação humana, dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais especialmente
importantes para a qualidade de vida e o bem-estar das populações humanas, e tem como objetivos
básicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a
sustentabilidade do uso dos recursos naturais. (Lei nº 9.985/2000)
preservação do meio ambiente. Da comunicação de crimes ambientais aos óros
competentes, mais freqüentes nos anos 80, à formação de organizações da sociedade
civil e participação no Conselho Gestor da APA mais recentemente, moradores de
origem urbana que se fixaram no distrito vêm desempenhando um papel fundamental na
implantação da unidade de conservação naquele território.
Neste contexto, ocorreram algumas mudanças nas relações de poder locais, nas
quais, até então, alguns grandes proprietários intermediavam o acesso da população à
maioria dos serviços públicos e aos benefícios provenientes de relações personalizadas
com políticos.
Foi criada uma nova instância de poder, o Conselho Gestor da APA. Com base
no Zoneamento e nas recomendações contidas no Plano de Manejo, foi atribuído ao
Conselho Gestor o papel de promover uma reconfiguração do espaço, através da
regulação de toda sorte de atividades interpretadas como interferências no meio
ambiente. O conselho ficou composto, inicialmente, por seis organizações da sociedade
civil local e seis órgãos do governo municipal, sendo presidido pela Secretaria
Municipal de Meio Ambiente. E dispõe de uma secretaria executiva.
Antes de conhecer de perto o processo de implantação da APA, reuni
informações a respeito da implantação de outras unidades de conservação (UC), através
dos trabalhos de Menezes (2004), Barreto Filho (1999), Diegues (1996).
Recentemente, esta APA foi tema de trabalhos acadêmicos, destacando-se uma
dissertação de mestrado em Psicologia Social e uma tese de doutorado em Geografia.
Sem deixar de reconhecer a existência de grupos alheios ou contrários à criação da
unidade de conservação, ambos destacam a “participação” e o papel da “comunidade”,
através de seus representantes, no processo de implantação da APA (Seabra 2005: 127;
Cozzolino 2004: 121). E, inclusive, utilizam estes elementos para justificar a escolha
daquele local para a realização de seus estudos.
Além disso, nas comunicações públicas e documentos da prefeitura (órgão
criador da UC) e da própria APA, a sua criação e as medidas subseqüentes de formação
do Conselho Gestor e elaboração do Plano de Manejo são descritos como um “processo
participativo” (por exemplo, Viva Rio 2003: p. 6).
A princípio, esta APA difere da maioria das APAs brasileiras pela rapidez com
que foram instalados os seus instrumentos de gestão Conselho Gestor deliberativo,
2
Plano de Manejo, Zoneamento
2
. Segundo pesquisa feita com entidades presentes no
workshop Panorama das Áreas de Proteção Ambiental no Brasil
3
, com intenção de
obter uma visão do estágio de implementação das APAs: quanto à existência de
Conselho Gestor, 18% das APAs o possuem e 1% declaram estar em formação; das 64
APAs pesquisadas, 45% não possuem plano de manejo ou instrumento semelhante, e,
em apenas 23% do total das APAs, ele está em implementação; quanto ao Zoneamento,
apenas 18% das APAs possuem este estudo (Cozzolino 2004: 44). Esta situação permite
indagar a respeito dos elementos que, numa conjuntura específica, permitiram que esta
unidade de conservação tivesse a sua implementação tão agilizada.
Em 1997, tive meu primeiro contato com a ONG ambientalista local,
identificada pelos estudos acima referidos como a instituição que pôs em discussão a
idéia de criar uma unidade de conservação no distrito (Cozzolino 2004: 64), ou que teve
a iniciativa de “sensibilizar e mobilizar parte da comunidade e o poder público” para a
transformação da área do distrito em APA (Seabra 2005: 120). À época, eu freqüentava
a localidade na condição de turista. Filiei-me à instituição e participei de algumas
reuniões, além de desenvolver um trabalho, ainda na graduação, sobre o uso da
fotografia em mobilizações ambientalistas. Havia indicações de que os integrantes da
organização procuravam aliar uma sincera e obstinada vontade de evitar o que era
interpretado como a deterioração dos atributos naturais da região, especialmente das
cachoeiras do Vale das Águas, à aspiração de criar meios para fixar residência, ou ao
menos freqüentar assiduamente a região, através de trabalhos relacionados à proteção do
meio ambiente.
Em 1999, presenciei duas reuniões de lideranças locais com um facilitador do
SEBRAE, para elaboração de um planejamento “estratégico” para o turismo. Estavam
presentes não somente integrantes da ONG ambientalista, mas também da recém
fundada associação comercial, que sediava o evento. Boa parte daqueles que
participaram da elaboração do documento vieram, mais adiante, a participar, também,
das negociações e atividades de implantação da APA, na condição de lideranças
2
A lei 9998 de 2000, que cria o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), no Art. 27,
estabelece que o Plano de Manejo deve ser elaborado num prazo de cinco anos da criação da unidade, e
assegura a “ampla participação da população residente” no caso das APAs e outras UCs de uso
sustentável. O Decreto 4430, de 22 de agosto de 2002, regulamenta o Plano de Manejo (capítulo IV) e o
Conselho (capítulo V), que pode ser consultivo ou deliberativo.
3
Organizado pela Fundação O Boticário e pela The Nature Conservancy do Brasil, com patrocínio da
Agência de Cooperação USAID, o evento reuniu cerca de 70 pessoas, representando: 19 APAs federais,
38 estaduais e 12 municipais e 27 instituições (secretarias de meio ambiente, prefeituras e ONGs),
pertencentes a 17 estados brasileiros (Guaryasssu 2003 apud Cozzolino 2005).
3
comunitárias, à frente de organizações e associações civis locais que viriam a ser
fundadas ou revitalizadas nos anos seguintes. Estas observações conduziam à impressão
de que havia moradores e empreendedores locais efetivamente empenhados em
preservar os atributos naturais da região, que foram se organizando em instituições da
sociedade civil e se capacitando para tomar parte na gestão da futura unidade de
conservação.
A literatura que trata do movimento ambientalista tem elaborado tipos ideais
para compreender as diversas inspirações e aspirações das correntes e ramificações dos
ambientalistas e suas idéias, inseridos ou não em organizações civis ou órgãos do
governo (Castells2002: pp. 141-166), Diegues (1996), Milton (1993), Viola (1987).
Neste estudo de caso, contribui para a análise das motivações daqueles militantes não
a aproximação com os tipos de movimentos ambientalistas, mas também com reflexões
a respeito do neo-ruralismo (Chamboredon 1980), (Carneiro 1999), (Giuliani 1990),
uma vez que havia indicações de que o apreço pela natureza local também pudesse estar
associado ao desejo de se estabelecer e permanecer na localidade.
A análise das motivações que levaram aquele conjunto razoavelmente
heterogêneo de pessoas a tomar a frente do processo de criação de uma unidade de
conservação, naquela localidade específica, coloca questões em diferentes veis.
Primeiramente, é necessário indagar se, em que medida e como, as trajetórias,
características e motivações dos militantes, que chamarei daqui por diante de
ambientalistas locais, influenciaram a construção do processo de implementação da
unidade de conservação. E de que modo estes elementos se fizeram presentes na atuação
dos ambientalistas locais no âmbito de uma nova instância de poder, o Conselho Gestor
da APA, encarregado dali por diante de construir e implantar novas regras para a gestão
do espaço e dos recursos. E na interação dos ambientalistas locais, dentro do Conselho
Gestor, com as instituições já operantes, anteriormente, naquele território.
Em janeiro de 2001 (antes, portanto, da criação da APA), tive meu primeiro
contato direto com trabalhadores rurais e pequenos produtores, realizando entrevistas
em diferentes regiões do distrito, que deveriam subsidiar a elaboração do meu projeto
de mestrado. Constatei um grande descontentamento com relação à fiscalização
ambiental, especialmente em relação às queimadas que precedem a lavoura. Ao mesmo
tempo, a maioria desconhecia a realização de encontros para discussões e negociações
em torno da criação de uma área protegida. Havia indicações de diminuição das
lavouras e abandono das atividades agrícolas devido ao medo da fiscalização.
4
Retornei a campo em março de 2002, quando ocorreu a primeira reunião,
amplamente divulgada, a respeito da APA. Nesta reunião foram indicados os futuros
representantes da sociedade civil no Conselho Gestor, que veio a ser oficialmente
nomeado em outubro. A reunião foi palco de tensas e acirradas discussões sobre o
processo de criação da unidade de conservação. Pela primeira vez, veio a público o
descontentamento de uma grande parcela da população, especialmente dos produtores e
trabalhadores rurais, com a desinformação dos moradores a respeito da APA, com a
fiscalização ambiental e com escolha, aparentemente prévia, daqueles que viriam a
representar a “comunidade” no Conselho Gestor. Os descontentes se queixavam da
ausência de representantes do “verdadeiro povo do lugar”. Foi mencionado, também,
que alguns dos representantes escolhidos para falar em nome da “comunidade” eram
“funcionários da prefeitura” (terceirizados via uma cooperativa), o que os impediria de
defender os interesses da população.
A partir da percepção destes conflitos, orientei minha pesquisa de modo a captar
a interpretação daqueles que manifestaram seu descontentamento na reunião e da
parcela da população em nome da qual eles se pronunciavam. Dali por diante,
acompanhei todas as assembléias da associação de produtores e trabalhadores rurais em
vias de constituição, a única organização local visivelmente contrária ao processo em
andamento. Realizei 45 entrevistas com trabalhadores rurais e pequenos produtores,
desta vez concentrados em duas regiões do distrito, das quais provinha a maioria dos
freqüentadores daquelas assembléias – que chegaram a reunir duas centenas de pessoas,
num distrito de menos de 2000 habitantes.
Muitas foram as questões suscitadas pelas interpretações dos trabalhadores rurais
e pequenos produtores a respeito do processo que transformou o distrito em APA. E
tantas outras referentes à articulação daquelas interpretações com os discursos das
lideranças que falavam em seu nome, em diferentes circunstâncias. Em primeiro lugar,
era freqüente, tanto nas entrevistas quanto nos discursos públicos, a atribuição da
condução de todo o processo a pessoas de fora. Havia indicações, portanto, de uma
reivindicação de autenticidade e de vínculo com o território, e do acionamento deste
instrumento nas disputas pela definição das regras de gestão do espaço e seus recursos.
Além disso, as interpretações dos trabalhadores e pequenos produtores rurais permitiam
supor que eles compreendiam aquele processo sob uma perspectiva totalmente diversa
daquela que figurava nos discursos de ambientalistas locais e de autoridades do
5
governo, na qual tanto o espaço quanto os atributos naturais eram pensados e
valorizados de forma diferente.
Nas Ciências Sociais e, especialmente, na Antropologia, tem prevalecido a
perspectiva que não toma os problemas ambientais como dados, tampouco trata os
riscos ambientais como conseqüências diretas dos perigos inerentes à situação física. Os
estudiosos têm tratado as disputas em torno de questões ambientais como disputas de
diferentes concepções da natureza e do mundo, cujo desenlace sempre está imbricado
nas relações de poder (Douglas 1982, Parkin & Croll 1992, Ingold 1993, Milton 1993).
Este estudo de caso também pode ser pensado como uma análise do processo de
disputas em torno do significado e do uso do espaço e dos atributos naturais, cujo
desenrolar pode ser pensado se associado às relações de poder. No entanto, é preciso
compreender a forma e os mecanismos específicos através do quais vão sendo alterados
alguns padrões de uso do espaço e seus recursos, pois é necessário dimensionar e
conhecer os limites destas mudanças.
Residindo no lugarejo durante o ano de 2002, além de observar a organização
dos trabalhadores e pequenos produtores rurais, pude acompanhar semanalmente as
reuniões para elaboração do Plano de Manejo da APA, das quais tomavam parte os
indicados para representar a “comunidade” no Conselho Gestor (CG). Procurei,
também, informações a respeito das organizações da sociedade civil que viriam a
integrar o CG, através da imprensa, de atas e documentos internos, e da freqüência a
algumas de suas reuniões públicas.
Por um lado, havia indicações de que o processo de implementação da APA
havia sido excludente e autoritário, pelo menos em relação à parcela da população
qualificada, nos discursos das lideranças da associação de produtores e trabalhadores
rurais, como “o verdadeiro povo” do distrito. De outro lado, havia dirigentes e
integrantes de várias associações e de uma ONG ambientalista pessoalmente
empenhados e entusiasmados, muitas vezes sobrecarregados, buscando cumprir etapas e
atender parâmetros necessários à implantação da unidade de conservação. Estes
parâmetros incluem o modelo da gestão participativa e seus mecanismos específicos.
Assim, no seu modo de ver, pode-se dizer que estavam fazendo de tudo para implantar a
gestão participativa na APA. Diante disso, na visão dos ambientalistas locais, aqueles
que se diziam excluídos assim estavam porque, de fato, o queriam participar, ou
ainda, possuíam a disposição deliberada de atrapalhar todo o processo. O contraponto
entre estas diferentes versões constituía-se num problema a ser pesquisado.
6
Recentemente, alguns autores têm-se debruçado sobre o tema da implantação e
gestão de unidades de conservação. Multiplicam-se os estudos sobre as limitações do
envolvimento participativo das populações classificadas como tradicionais e dos grupos
étnicos na implementação destas áreas protegidas
4
. De uma maneira geral, estes estudos
apontam para a presença indispensável de intermediários e tradutores dos interesses
destas populações no processo dito participativo papel geralmente delegado às ONGs
e/ou antropólogos e/ou ambientalistas -, distorcendo as suas necessidades e aspirações e
adequando-as aos critérios da preservação ambiental. Simultaneamente, põem em
questão os efeitos da submissão destas populações à tutela do Estado em troca de alguns
direitos territoriais, geralmente operada por intermediários, sem que as mesmas estejam
sequer cientes de todas as implicações deste “reconhecimento”
5
. E ainda os casos,
como o deste estudo, nos quais a população que lida com os atributos naturais sequer
consegue ser reconhecida como tradicional.
Entre os mecanismos correntemente utilizados para implementar a chamada
“gestão participativa”, figuram como protagonistas as idéias de “empoderamento”
(empowerment) e stakeholders que, para Lobão, apesar de serem distintos e, em alguns
casos, apresentarem uma historicidade própria, nos cenários nos quais as políticas
públicas ambientais e de desenvolvimento sustentável estão sendo aplicadas, fazem
parte de um “pacote”
6
.
Ainda de acordo com Lobão, uma das principais ferramentas para a aplicação
deste pacote é o Projetismo. No âmbito dos projetos envolvendo os temas do
desenvolvimento e do ambientalismo, o projetismo designa “uma forma específica de
articular elementos, manifesta na concepção, realização e avaliação de ‘projetos’ que
muitas vezes independe do contexto e dos atores sociais para os quais são formulados”.
(Pareschi, 2002 apud Lobão 2006).
Informações preliminares sobre o campo
O distrito transformado em APA, que hoje possui cerca de 2000 habitantes,
caracterizava-se, até a década de 70, pelo largo predomínio da agricultura e da criação
4
Diegues (1996), Menezes (2004: 209), Lobão (2006).
5
Em sua tese, Lobão alerta para a contribuição de certos antropólogos para que a tutela de determinadas
populações seja regulamentada, sem que tenham sido devidamente esclarecidas sobre as condições nas
quais serão exercidos seus novos direitos (2006: 261).
6
“Este pacote também tem autoria e um momento de consolidação: as políticas do Banco Mundial e do
BID para os países do Sul, notadamente o Resource Book on Participation, do BID, e o World Bank
Participation Sourcebook, do Banco Mundial” (2006: 235).
7
de animais como atividades econômicas. A cultura do café predominou até os anos 30,
produzido principalmente por meeiros, que construíam suas casas nas terras do
proprietário e realizavam uma pequena lavoura, na qual trabalhava toda a sua família,
além de trabalharem nas plantações de café do patrão. Com a decadência da produção
cafeeira, a banana passou a ser a cultura dominante, produzida por terceiros,
praticamente nos mesmos moldes anteriores, com a ressalva de que iniciou-se um
período de progressivo abandono do lugarejo por diversas famílias de agricultores e de
decadência econômica, evidenciada pela sensível diminuição dos estabelecimentos
comerciais, dos serviços e da infra-estrutura de transportes, além do declínio
populacional.
Nos anos 70, o turismo começou a fazer parte do rol de atividades econômicas,
expandindo-se cada vez mais até os dias de hoje e mudando a configuração econômica e
espacial do lugar. Este turismo foi atraído principalmente pelas cachoeiras e corredeiras,
situadas num vale onde a mata atlântica passou por um processo de regeneração,
assumindo um aspecto de paisagem percebida como “selvagem” e “intocada” por estes
freqüentadores o Vale das Águas, além de outras paisagens consideradas de grande
beleza cênica.
É um distrito que tem como uma de suas características o isolamento infra-
estrutural e de comunicação, especialmente se comparado a outros distritos serranos do
mesmo município, um dos mais ricos do país em função da exploração do petróleo
7
.
Está localizado a cerca de 85km da sede do município, sem transporte coletivo que leve
diretamente à sede, devido, principalmente, às estradas sem pavimentação. somente
uma linha de ônibus, mal conservados, que conduz à cidade mais próxima a cerca de
30km, pertencente a outro município. A luz elétrica chegou à localidade em 1986, e a
telefonia fixa nas residências, somente em 2001, não havendo sinal, tampouco, de
telefonia móvel. Não policiamento local, havendo somente um posto da Guarda
Municipal estabelecido em 2002. O local não dispõe de serviços básicos, tais como
agência de correios, caixas bancários eletrônicos, posto de gasolina ou farmácia.
Em linhas gerais, o turismo que se desloca para a localidade busca contato com a
natureza e/ou a tranqüilidade atribuída ao meio rural, além da possibilidade de consumir
substâncias ilícitas com pouca ou nenhuma repressão policial. Os turistas costumam
fazer uso recreativo de recursos naturais, como cachoeiras e trilhas abertas na mata,
7
O distrito pertence a um município situado na região Norte Fluminense, mas apresenta várias
características da região Serrana. Giuliani problematiza a aplicação da noção de “região” ao meio agrário
fluminense (1998: pp.65-78).
8
além de desfrutarem da vida noturna que se desenvolveu no lugarejo, formada por
bares, alguns com sica ao vivo, e shows de forró. Não na localidade
empreendimentos turísticos de luxo, que exigiriam o emprego de grande capital. A
maioria das casas de aluguel seguem um padrão de construção barato e, com mais
freqüência no pequeno centro comercial, não dispõem de quintal próprio,
compartilhando o mesmo lote com outras casas.
Além dos turistas que freqüentam o distrito nos períodos de férias, feriados e
finais de semana, alojados em pousadas, campings e casas alugadas por temporada,
aqueles que adquirem ou alugam sítios, ou pequenas casas, como residência secundária,
para veraneio.
ainda pessoas que conheceram a localidade na condição de turistas e que
decidiram fixar residência. Desde a década de 70, este tipo de ocupação vem se
expandindo, empreendida tanto por aposentados e pensionistas quanto por jovens
mantidos pelos pais, ou empregados em profissões que permitem um deslocamento
temporário das grandes cidades, ou ainda que possibilitam a relação via internet com
clientes ou patrões como tradutores, roteiristas de televisão, artesãos, músicos, etc.
Este segmento de moradores do distrito costuma, também, investir ou empregar-se em
empreendimentos voltados ao atendimento do turismo, como lojas de roupas e
acessórios, lanchonetes, restaurantes, pousadas, bares e campings.
os moradores que viviam no distrito na época em que ele era quase que
exclusivamente agrícola e que permaneceram desde então, ou que habitaram outros
lugares e retornaram, estão ligados economicamente às atividades turísticas da
localidade em graus bastante variados, havendo ainda moradores que declaram não se
beneficiar dela em absoluto. Dentre estes, muitos têm como importante fonte de renda a
aposentadoria rural de um ou mais membros da família.
Estas variações apresentam, numa certa medida, uma distribuição espacial,
concentrando-se os moradores que abandonaram por completo as atividades agrícolas e
de criação de animais nas regiões do pequeno centro comercial e do vale onde estão
situadas as cachoeiras mais visitadas. Nestas regiões, estes moradores empregam-se
como caseiros, empregadas domésticas, cozinheiras e arrumadeiras, em pousadas,
restaurantes, pensões e campings. Alguns constroem casas ou suítes para aluguel, ou
montam pequenos estabelecimentos comerciais que vendem lanches e refeições.
9
Nas cercanias, outros vales de afluentes do rio principal, onde o turismo também
vem penetrando num ritmo mais lento, porém crescente, muitos moradores constroem
casas ou suítes para alugar, tanto por períodos mais longos quanto por temporada.
muitos cantões onde, no entanto, não existe sequer um estabelecimento
comercial; onde ocorrem, resumem-se a botecos e mercearias. Nestas regiões, ainda
muitos sítios de veranistas ou moradores recentes, onde são oferecidos empregos de
caseiro e empregada doméstica, além de serviços como faxinas, lavagem de roupas ou
jardinagem.
Outra importante fonte de renda para os moradores da localidade são os
empregos públicos na esfera municipal, diretos ou sob a forma de prestação de serviços.
A maioria das funções exercidas nas três escolas municipais do distrito (merendeiras,
faxineiras, secretárias, professores e outros funcionários), nos dois postos de saúde
exceção dos médicos) e numa espécie de centro cultural, fundado em 2000 (que realiza
exposições, oferece cursos diversos - informática, artesanato, violão, xadrez, corte e
costura, teatro, etc., além de sediar reuniões de associações e organizações diversas),
além de serviços como reparos nas estradas e no fornecimento de água, recepção e
distribuição de correspondência, transporte escolar, são contratados pela prefeitura
municipal via uma cooperativa, sem licitação ou concurso público. Estes empregos e
serviços são bastante disputados pelos moradores de maneira geral e o modo mais
freqüente de obtê-los é através de contatos personalizados com políticos da esfera
municipal, ou seus cabos eleitorais e assessores.
Recentemente, outras oportunidades de trabalho, temporário, têm sido criadas na
localidade, com a implantação de dois projetos ambientais financiados por medidas
compensatórias de empresas termoelétricas em vias de instalação no município. O
primeiro deles, realizado em 2002, consistiu na elaboração de um plano de manejo para
a unidade de conservação e previa, ainda, a criação de um sistema de sinalização e o
reflorestamento de uma área piloto. Foi coordenado pela ONG Viva Rio e teve como
coordenadora local uma ONG ambientalista, fundada no distrito em 1995. O segundo,
foi um projeto de recomposição de matas ciliares e nascentes. O projeto incluiu a
realização de atividades em outros municípios do estado do Rio de Janeiro, tais como a
revitalização de um horto que fornece as mudas para o reflorestamento. As atividades a
serem realizadas no distrito em questão consistiam na parte de educação ambiental,
coordenada pela mesma ong ambientalista local envolvida no projeto anterior. Foi
realizado um curso de capacitação de “monitores ambientais” e, em seguida, 15
10
monitores selecionados entre os diplomados pelo curso realizaram atividades de
“sensibilização” de proprietários rurais em relação ao reflorestamento, bem como
eventos nas escolas, igrejas e em locais públicos, com temáticas ambientais.
Simultaneamente, o IEF (Fundação Instituto Estadual de Florestas) coordenou o
reflorestamento de algumas áreas do distrito, atividade da qual a ONG ambientalista
local não participou formalmente mas, através de um de seus integrantes, realizou a
seleção dos “agentes de plantio” que trabalham no reflorestamento.
Assim, observamos que, hoje, as atividades em prol da preservação do meio
ambiente constituem-se, também, numa possibilidade de emprego e renda para os
moradores.
11
CAPÍTULO 1 DAS PLANTAÇÕES DE CAFÉ À FRUIÇÃO DA
NATUREZA
Os discursos formulados por moradores do distrito do Lima a respeito da
transformação da localidade em Área de Proteção Ambiental fornecem elementos para
pensar mudanças nas relações sociais associadas à criação da unidade de conservação.
Num determinado nível, estas mudanças aparecem, nos depoimentos dos
moradores de origem camponesa
8
, identificadas com o estabelecimento de um conjunto
de novos moradores na região, os “neo-rurais”
9
. Numa esfera mais ampla, estas
mudanças são associadas a um conjunto de transformações pelas quais vem passando a
localidade nas ultimas três décadas: o advento do turismo, o estabelecimento de
moradores de origem urbana, iniciativas em prol da preservação do meio ambiente e
melhorias da infra-estrutura e dos serviços.
A interpretação de grande parte da população local a respeito da criação da
unidade de conservação se organiza em dois eixos de oposições: antigamente/agora e
gente do lugar/gente de fora. Estas categorias são sempre relacionais e contextuais. O
seu uso, portanto, depende das circunstâncias em que são acionadas quem está
ouvindo, quando e onde - e de quem as aciona. E a sua compreensão é indissociável das
outras categorias em relação às quais são acionadas em cada discurso específico. Assim
sendo, é preciso ter em mente que são utilizadas de acordo com a necessidade e a
vontade de marcar posições em lutas materiais e simbólicas.
8
Shanin põe em discussão a definição de “camponês”, desde as tentativas de seleção de características
gerais que possam ser buscadas em quaisquer camponeses de qualquer parte do mundo até interpretações
segundo as quais o conceito de campesinato é dissolvido em seu contexto societário. Neste sentido, ele
propõe que “aceitar a existência e a possível transferência dos camponeses ‘intermodos’ [de produção] é
chegar mais perto das riquezas e contradições da realidade”, ou seja, “os camponeses representam uma
especificidade de características sociais e econômicas que se refletirão em qualquer sistema societário em
que operem”. Assim, “os camponeses e sua dinâmica devem ser considerados tanto enquanto tais, como
dentro de contextos societários mais amplos, para maior compreensão do que são eles e do que é a
sociedade em que vivem.” (1980:68-69) Neste estudo de caso, a generalização da especificidade
camponesa faz-se pertinente, pois, a despeito das amplas variações do campesinato local, especialmente
no acesso à terra, a identificação das suas espeficidades contribui para clarificar a sua diferenciação, ou
mesmo oposição, à outra parcela de habitantes daquele território, os neo-rurais.
9
Giuliani, a partir da análise de autores que estudaram o fenômeno do neo-ruralismo na França e,
primeiramente, utilizaram este conceito, entende o neo-ruralismo como um fenômeno nascido das
definições existenciais dos indivíduos e que responde mais a desejos e aspirações que a necessidades a
valorização da natureza e da vida cotidiana, a busca da autodeterminação, do trabalho como prazer, da
integralização do tempo e das relações sociais, e ainda a recusa do tempo e do espaço da indústria, a
crítica à ditadura dos papéis produtivos típicos da cidade que dirigem os indivíduos a labirintos de
frustrantes relações secundárias -, apontando para formas organizativas novas, com características e
limites a serem descobertos e definidos.
12
Dessa forma, o antigamente acionado nos discursos pode estar remetido a
diferentes momentos passados, em oposição a um agora que pode estar definido como
alguma transformação específica por exemplo, o estabelecimento de sanções a
determinadas técnicas agrícolas
10
ou como um conjunto de mudanças interpretadas
como interdependentes, como o estabelecimento de novos moradores e o crescimento
do turismo
11
. Do mesmo modo, dependendo do contexto, gente de fora tanto pode
designar turistas ocasionais que promovem desordem nos feriados
12
quanto moradores
de origem urbana estabelecidos no distrito há mais de trinta anos
13
.
Diante disto, este capítulo tem o objetivo de contribuir para a compreensão do
significado das categorias acionadas pela população para interpretar as mudanças nas
relações sociais a partir da transformação do distrito do Lima em APA. Com este
escopo, faço uma sistematização das relações sociais na localidade num passado
relativamente recente, cerca de um século, que remonta à geração dos pais dos
moradores mais idosos
14
. Ou seja, desde as fazendas de café no início do século XX,
passando pelo abandono dos cafezais em escala comercial nos anos 60, e o crescimento
da produção de banana e da pecuária. Em seguida, trato da fixação de novos moradores,
de origem urbana, na localidade do Lima, a partir dos anos 70. Foi entre estes novos
componentes da população local que surgiram e ganharam força as iniciativas em prol
da preservação do meio ambiente, que culminaram na criação da APA.
10
No depoimento de Zaqueu, trabalhador diarista de 39 anos, ele divide o tempo em antes e depois das
restrições ambientais e fala das implicações desta mudança para o povo: Acabou o lugar da gente.
Antigamente, podia produzir alguma coisa, agora não pode, não pode desmatar. O povo vai comer mato?
Se desmatar, você é preso.” (Entrevista 2004)
11
No depoimento de Sandra, dona de casa de 41 anos, a clivagem temporal está relacionada à presença de
novos moradores e freqüentadores do distrito do Lima: “O Lima, hoje, tem mais gente desconhecida do
que do lugar. De primeiro, você conhecia todo mundo. Hoje, não conhece mais ninguém. O povo é
culpado porque abriu mão das coisas, vendendo e alugando quase todos venderam terra. Com isso, vem
muita gente nem sempre boa. Eu moro distante, não me incomoda, mas eu sinto. Nem morar, eu sinto
mais no feriado.” Na fala de Sandra, ao contrário da fala de Zaqueu citada anteriormente, o povo aparece
como culpado pela mudança (neste caso, o estabelecimento de novos moradores), e não como uma vítima
vulnerável às restrições ambientais.
12
No depoimento de Esther, pequena produtora de 55 anos, ela qualifica os turistas ocasionais como
gente de fora: [Pesquisadora: “O que a senhora acha do turismo no Lima?”] “Da pior qualidade,
fumador de maconha. Isso é o que eu vi no Lima até hoje. trinta anos não era isso, a gente conhecia
todo mundo. Hoje, tem gente de fora.” Esther estabelece uma clivagem temporal com a chegada do
turismo.
13
Como na fala de Dario, trabalhador rural diarista de 22 anos, que qualifica como gente de fora alguns
moradores do distrito envolvidos com a implementação da APA: “Acho que funcionaria, mas teria que ter
uma reunião pra fazer um acordo com os moradores do lugar. Tem muita gente de fora querendo mandar,
de olho é nas verbas. A APA, esse projeto, vem de muito tempo. Deviam continuar a limpeza da
cachoeira, que eles já fazem.” (Entrevista Dario 2003)
14
A sistematização das relações sociais no passado, em relação às quais ocorre a mudança de que tratam
os variados discursos de moradores, apesar de ter levado em conta documentos históricos, dados oficiais e
a literatura pertinente (Antonio Candido 2001, Liana Cardoso 1985), está baseada, principalmente, nos
relatos de moradores a respeito de seu próprio passado e de seus ancestrais.
13
1. Do café ao turismo
O cultivo do café em escala comercial teve início na localidade ao final do
século XIX, com a vinda de imigrantes suíços provenientes de Nova Friburgo
15
. O
distrito do Lima viveu o apogeu das plantações de café no século XX, depois,
portanto, da abolição da escravatura. Não registro, oral ou escrito, de escravos na
região. Nas fazendas de café, a produção se organizava através da cessão de terras a
lavradores, que cultivavam café, milho e feijão, entregando uma parte da produção ao
proprietário, além de diversos gêneros alimentícios para consumo próprio. Os
lavradores se estabeleciam, com suas famílias, no interior das fazendas.
Estes lavradores, em virtude das condições do contrato de trabalho, segundo as
quais eram donos de, somente, metade do café que produziam, eram chamados meeiros.
O contrato era sempre oral e sem prazo determinado, estruturando-se em torno do
cultivo do café, principal produto das fazendas. Os meeiros recebiam um cafezal para
“tomar conta”, proporcional à quantidade de membros da sua família em condições de
trabalhar. Encarregavam-se de todos os cuidados necessários com a produção, desde as
três capinas anuais até a colheita, secagem e armazenamento do produto (geralmente
dentro de suas próprias casas) até o momento da venda. A venda era realizada pelo
proprietário e o meeiro recebia a metade do valor, descontando-se as despesas com
transporte e acondicionamento.
Entre as fileiras de pés de café, os lavradores cultivavam também milho e feijão,
arcando com as sementes e o material de trabalho (enxada, enxadão, foice, balaios e
sacas para armazenar os produtos), de cuja produção entregavam a terça parte ao
proprietário da terra, com o produto limpo e separado. No caso do milho, o
fazendeiro ainda ficava com a quinta parte do fubá produzido nas suas moendas, a
chamada “maquia”
16
. Esta forma de organização dos cultivos permitia a conjugação do
trabalho entre eles, devido à intercalação do ciclo dos produtos e, desse modo, da
demanda de trabalhos diferenciados em etapas distintas da produção.
O meeiro estabelecia-se com sua família numa casa, geralmente de pau-a-pique,
dentro da fazenda. Tinha “permissão” para cultivar outros produtos ao redor da casa,
para consumo próprio, como aipim, cana, banana, hortaliças e árvores frutíferas, além
15
Sardenberg 1960.
16
Como ilustram as lembranças de Bernardo, pequeno produtor que herdou o sítio do pai: “Meu pai tinha
engenho de farinha. Quando desativou, eu fazia no engenho do meu cunhado. De oitenta litros de farinha,
dava 10 para poder moer. Milho eu moía no moinho do Seu Edson. De cada 20 litros de fubá, a gente
dava 5 – a maquia.” (Entrevista Bernardo – 2002)
14
de “botar criação”, contanto que estes “bichos de terreiro” fossem devidamente cercados
para evitar estragos na lavoura
17
.
Muitas vezes, quando era necessário desbravar trechos de mata para cultivar
novos cafezais, o meeiro e sua família sequer recebiam uma casa, mas somente a
“permissão” para construir sua moradia no interior da propriedade. Entre algumas
famílias de lavradores, ocorria um certo nomadismo, com o estabelecimento em outras
propriedades, para iniciar novos cafezais, a cada 5 ou 6 anos. Daí, também, a
precariedade das casas construídas pelas famílias para sua própria habitação.
Com o sistema de meação, os proprietários das fazendas mantinham mão de obra
cativa no interior das propriedades, pois não o meeiro como toda a sua família é
envolvida pelo contrato de trabalho. Tanto que, para estabelecer-se como meeiro, é
necessário não somente possuir as ferramentas de trabalho, mas também ser casado,
pois há muitas etapas da produção em que todos os “braços” da família são exigidos. Os
filhos adultos trabalham na lavoura dos pais, até se casarem e poderem se tornar
meeiros também.
Assim, a relação de autoridade estabelecida entre o lavrador e o patrão é
reproduzida no interior da família do primeiro, que comanda a produção e gerencia os
produtos (o uso ou o produto da venda)
18
.
Os fazendeiros, de uma maneira geral, também desempenhavam um papel
fundamental na intermediação do acesso dos seus lavradores aos serviços públicos,
fossem eles de saúde, de educação ou vida civil. Os poucos plantadores de café que
tiveram acesso às primeiras letras o tiveram em escolas mantidas pelos fazendeiros no
interior das fazendas. Quando havia problemas de saúde, era o fazendeiro quem
providenciava o transporte para o hospital, bastante distante da localidade. Para tirar
documentos, registrar crianças, em caso de morte, era o fazendeiro quem providenciava
o transporte para a cidade e, muitas vezes, auxiliava os lavradores nos trâmites
burocráticos, com os quais a grande maioria deles apresentava grandes dificuldades.
O fato de cultivar milho, feijão (mesmo entregando ao fazendeiro a terça parte) e
outros produtos para o próprio consumo ser tratado como uma “permissão” do
17
As condições do contrato verbal de trabalho guardam significativas semelhanças com a cafeicultura
praticada nas fazendas do Espírito Santo nas décadas de 60 e 70 (Cardoso 1985: 51-83), à exceção das
diárias devidas ao fazendeiro que, no caso da localidade em estudo, são substituídas pela disponibilidade
dos lavradores em tomar parte em toda sorte de serviços necessários à fazenda, mediante a convocação
pelo fazendeiro.
18
Como aparece no depoimento de Esther, pequena produtora: “Antes, trabalhava a família toda. Nós era
tudo empregado de papai” (Entrevista Esther 2002)
15
fazendeiro, além da “concessão” de uma moradia, somados aos “favores” em relação ao
acesso aos serviços públicos e civis, contribuíam para construir uma relação de
dependência e eterna dívida de gratidão (quando não era, também, monetária) do
lavrador para com o proprietário da fazenda. O caráter pessoal desta relação, daquele
lavrador específico em relação àquele fazendeiro, era reforçado por laços de parentesco
e compadrio, numa região pouco populosa
19
e de grande endogamia. Assim,
freqüentemente, os lavradores de um determinado fazendeiro eram seus irmãos,
sobrinhos, primos
20
. Nestes casos, ou seja, quando considerados como parentes dos
proprietários, os lavradores tendiam a fixar-se nas propriedades às vezes pela vida
inteira, sendo menos freqüente o nomadismo.
Esta tendência se intensificou com o processo de desvalorização do café, que
começou a ser sentido na região a partir dos anos 30 e culminou com a paralisação do
cultivo em escala comercial deste produto no início da década de 60. O declínio
populacional, desde então, foi de 54,46%, estabilizando-se o número de habitantes de
1991 a 2000
21
. O distrito, até o início da década de 80, parecia mais “isolado” e carente
de serviços e infra-estrutura do que nos anos 20, no apogeu do café
22
. Muitos lavradores
migraram para São Paulo e para o Paraná, para continuar plantando café. Outros foram
para as cidades próximas, para o setor de comércio, indústria e diversas formas de
biscate e sub-emprego urbanos.
Durante o período da produção em larga escala do café, não foi possível obter
registro da existência de sitiantes ou pequenos produtores, o que tampouco permite
negar sua existência. Havia, nos cantões de relevo muito acidentado, no interior das
grandes propriedades, lavradores que arrendavam terrenos para produzir gêneros de
19
Em 1950, segundo o censo demográfico, o distrito contava com 2.872 habitantes, estando 2.753 deles
estabelecidos no “quadro rural”.
20
Jolas, Verdier & Zonabend estudaram, entre a população rural francesa, a designação das distâncias
relativas a ego no parentesco. De longe e de perto seriam categorias definidas a partir de relações
genealógicas, mas pesam, também, a vizinhança e o convívio nas atualizações dessas regras. (1970: 11-
16).
21
Em 1970, havia no distrito 2.195 habitantes (VIII Recenseamento Geral), 23,43% a menos que em
1950. Nos dez anos seguintes, a população decaiu em mais 34,43%, havendo em 1980 1.448 habitantes
(IX Recenseamento Geral). O Censo Demográfico de 1991 revela uma interrupção à tendência de
decréscimo populacional, totalizando o distrito 1.524 habitantes, estando 1.299 deles na área rural. Em
2000, novo decréscimo, o distrito passa a somar 1.184 habitantes, 344 deles na zona urbana, ou seja,
29,05%.
22
Sobre o tempo em que era lavrador numa fazenda de café, Alceu, aposentado rural, revela sua nostalgia
em relação à prosperidade do tempo do café: “No tempo que não tinha estrada, tinha farmácia. Agora tem
posto de saúde e não tem farmácia. Morre mais gente do que antigamente. Antigamente não tinha estrada.
A gente ia a cavalo, era 5 horas até [município vizinho]. Saía cedo e chegava 11 horas na estação de trem
pra embarcar a produção. E todo mundo era mais feliz que hoje, uma fartura danada. Quando eu fui
criado no Lima, tinha cartório, padaria muito boa. Agora, para cuidar de coisa de cartório, tem que ir
em [outro diatrito serrano do mesmo município].” (Entrevista Alceu 2002)
16
subsistência. Depois dos anos 30, registros de divisão das fazendas por herança e
indícios de estabelecimento de pequenos sitiantes como posseiros em terras
abandonadas.
Para aqueles que permaneceram trabalhando nas fazendas após a decadência do
café, o regime de trabalho e de propriedade da terra permaneceu o mesmo, sendo que a
banana passou a ser o principal produto comercial das fazendas, cultivado em meação (o
proprietário fornecia as mudas)
23
, e sem o mesmo sucesso mercantil do café de outrora.
nas fazendas em que o solo havia sido esgotado pelos cafezais, foi plantado capim
para criação de gado bovino. A pecuária foi um fator de expulsão de lavradores, uma
vez que um homem pode cuidar de uma grande extensão de pasto. Até os anos 80 a
banana predominou e, dali em diante, a pecuária passou a ser a principal atividade das
fazendas, por motivos que veremos mais adiante.
Durante este período de retração, quando baixaram bastante os lucros das
fazendas e a mão de obra se tornou relativamente escassa, intensificou-se a tendência de
os proprietários cederem em meação terrenos para parentes muito próximos, inclusive
filhos e irmãos. Passou a ser freqüente, também, a divisão das terras em vida entre os
filhos adultos
24
, mesmo antes de se casarem
25
. Alguns dos lavradores aparentados com
os proprietários conseguiram obter a concessão de continuar morando nas suas casas
mesmo depois da paralisação de muitas lavouras, nos anos 80, e a transformação das
terras em pasto
26
.
23
Como aparece no depoimento de Almir, pequeno produtor: “A gente mora aqui desde 68. Esses anos
todos, fui lavrador de seu Josuel Santana, como meeiro na produção de banana e dando a terça parte do
milho e do feijão. Seu Josuel dava as mudas de banana. 10 anos, ele assinou minha carteira pra eu
poder me aposentar pelo Fun-Rural. Ainda tenho plantio de aipim, mas diminuiu muito por causa desse
problema de não poder plantar.” (Entrevista Almir 2002) Almir e Olívia continuam a morar no terreno de
Seu Josuel, que é tio de Olívia, mesmo com a drástica diminuição da produção.
24
Como no caso do marido de Sandra, dona de casa de 41 anos, “Aí o pai dele [do marido] achou melhor
dividir para os filhos trabalharem, o pasto tava ficando mato e depois não ia poder derrubar. Ele não podia
fazer tudo sozinho, dividiu pros três irmãos, todos três quiseram. Um já morava lá, casou mas não saiu. O
outro não mora mas cuida da parte dele. meu esposo quis mudar pra [região da Seara]”
(Entrevista Sandra 2002) Antes disso, Sandra e o marido moravam num sítio de veranistas na região da
Nascente, onde ele era caseiro.
25
O pai de Joel, que fora grande produtor de café, dividiu, em vida, as terras entre os três filhos e duas
filhas. Joel é o caçula, está com 33 anos e ainda é solteiro. Trabalha o pedaço de terra que lhe cabe e o das
duas irmãs que moram na Região Metropolitana do Rio de Janeiro e são donas de casa. “Eu trabalho mais
com banana. (...) Não dou a meia pra elas [irmãs] porque a produção é pouca. Se desse, plantava mais...
Pro uso, tem feijão. Esse ano colhi 3 sacos de 60kg, mais ou menos 200 kg. Agora tenho umas 20
galinhas, tem época que chega a ser 50, 60, mas a gente vai matando, vai comendo.” (Entrevista Joel
2002)
26
Como ilustra o caso da família de Dario, que mora na propriedade em que o pai trabalhava antes de
morrer: “Nasci perto do Vale das Águas. Vim morar na Fazenda da Seara com um ano. Moramos até
hoje, não é próprio mas não pagamos aluguel. Quando meu pai era vivo, era lavrador, trabalhava à terça e
à meia para Seu Edson.” (Entrevista Dario 2002)
17
As migrações, seja para continuar plantando café, ou continuar na agricultura,
em outros estados, seja para trabalhar no comércio ou na indústria, configuram um
leque de possibilidades de reorganização das relações sociais. Em muitos casos, alguns
membros da família se estabelecem em outros lugares, mas mantêm vínculos com os
familiares que permanecem no distrito. Dependendo da intensidade deste vínculo, os
parentes estabelecidos em outras localidades atuam como pontos de apoio na busca de
serviços de saúde, educação e outros. Muitos dos migrantes que vieram a se estabelecer
em municípios relativamente próximos do distrito, ou na própria sede do município,
mantêm o seu domicílio eleitoral no distrito, constituindo-se o dia das eleições um dia
festivo de reencontro de famílias e de reafirmação de laços e compromissos
27
. Portanto,
a análise do decréscimo populacional deve levar em conta que freqüentemente ele não
significa o rompimento absoluto do vínculo dos antigos moradores com a localidade.
A trajetória do senhor Aristides ilustra a manutenção de vínculo com parentes na
localidade, mesmo com a migração para um estado mais distante como o Paraná.
Nasceu em 1932, em plena crise do café, no Lima, e foi criado no sítio de seu pai, no
Vale das Águas. Eram 12 irmãos e todos trabalharam na lavoura do pai, inclusive as
mulheres.
“Era tudo do meu pai e ele comprava o que precisava para nós.
depois eu casei, passei a ter minha roça e dar a terça. Depois
fui pro Paraná [em 1962], já tinha meus dois filhos, passei 32
anos trabalhando na agricultura. (...) [Pesquisadora E por
que o senhor resolveu voltar pro Lima?] Por causa do estado de
saúde da mulher, né, queria ficar perto dos parentes.”
Quando retornou, em 1994, Aristides comprou um lote no pequeno centro
comercial, onde construiu a casa onde mora e mais três suítes nos fundos do terreno,
que aluga aos turistas nos finais de semana e feriados.
Um dos principais motivos mencionados por Aristides para a sua mudança para
o Paraná, em 1962, foi o isolamento e a falta de infra-estrutura da localidade:
[Pesquisadora Por que o senhor foi para o Paraná?] “Porque a
coisa aqui tava ruim, né, as coisa aqui não é fácil. Pra pegar uma
condução do Vale das Águas a [cidade mais próxima] era difícil.
[Pesquisadora Não tinha condução?] “Não. Glicério, tinha que
27
“Das minhas filhas que moram no Rio, duas trabalham em loja, no comércio. As outras duas não
trabalham, têm filhos pequenos. De vez em quando elas vêm aqui, elas votam aqui.” (Entrevista Bernardo
2002)
18
sair de manhã cedo, de madrugada, pra pegar condução no
Glicério, tudo a pé, você sabe o que é isso? Muito chão. Até
achei por bem, eu tinha um colega no Paraná, achei por bem lá,
e lá me dei bem também.”
Do processo de desvalorização do café, que culminou com a extinção do seu
cultivo em escala comercial na localidade (início da década de 60), até a intensificação
do turismo no final dos anos 80, o distrito viveu um período de isolamento em relação
às cidades próximas, devido à crescente carência de transportes e precariedade das vias
de acesso. Além disso, grande parte do comércio local fechou as portas como
padarias, farmácias, mercados - e serviços como correio e cartório deixaram de existir
na localidade.
Esta situação contribuiu para aumentar a dependência da população em relação
aos favores dos fazendeiros. Além do transporte à cidade e o auxílio em trâmites
burocráticos, os fazendeiros mantinham relações pessoais com políticos e funcionários
do governo. Não os fazendeiros, mas também alguns de seus filhos e parentes, que
estudaram e empregaram-se nas cidades, possuíam laços de amizade e
comprometimento com pessoas influentes nos serviços públicos. Como se tratam de
relações personalizadas, cada fazendeiro ou pessoa a ele ligada possuía sua própria rede
de contatos, o que delimitava o âmbito das facilidades que ele poderia obter. Dessa
forma, da obtenção de uma vaga num hospital ou numa escola à habilitação para a
aposentadoria, diferenciavam-se os tipos de favores que cada fazendeiro era capaz de
obter
28
. Esta diferenciação contribuía para a personalização das relações de cada
morador da localidade com diferentes intermediários, de acordo com as suas
necessidades. Este emaranhado de comprometimentos gerava tensões e, ao mesmo
tempo, constituía-se na base das alianças no “tempo da política”
29
.
Durante este período de isolamento, nos anos 70, começaram a se fixar no
distrito do Lima os primeiros neo-rurais, na região do Vale das Águas. Ainda pouco
28
Karina Kushnir mostra como, do ponto de vista de determinados políticos e sua rede de relações, ocorre
o acesso aos recursos públicos. Segundo a autora, acesso é a categoria-chave para entendermos a natureza
das relações da rede social destes políticos. O acesso define a noção de política (onde se tem acessos), de
poder público (segundo os níveis de acesso) e a identidade de um político (aquele que tem “bons
acessos”). Amizade seria a palavra mais empregada para definir os sentimentos entre os membros da rede
porque, no mundo dos acessos, valoriza-se a lógica da emoção e do apego em detrimento à lógica
burocrática. (2000: pp. 88-107)
29
Palmeira demonstra a existência de uma certa autonomia entre a ‘lealdade do voto’ e as ‘lealdades
fundamentais’ a familiares ou parentelas. Para ele, a lealdade política tem a ver com o compromisso
pessoal, com favores devidos a uma determinada pessoa, em determinadas circunstâncias. A lealdade
política articula uma outra esfera de sociabilidade e, eventualmente, as diferentes esferas podem entrar em
conflito (1996: 46).
19
numerosos e em ritmo lento, novos moradores de origem urbana iam adquirindo
terrenos no Vale das Águas e no pequeno centro comercial. Foi o início discreto e
silencioso da transformação do uso daquele espaço: não mais para a produção agrícola,
e sim como lugar de fruição do contato direto com a natureza por pessoas vindas da
cidade.
2. Novos moradores em busca da natureza
Até os anos 70, os poucos novos moradores que se fixavam no distrito do Lima
possuíam laços com outros moradores do lugar, através de redes de relações familiares,
de compadrio, de amizade, que não estão atreladas somente ao critério territorial. Esta
forma de atração e fixação de novos moradores não implicava mudanças significativas
nas relações sociais da comunidade, uma vez que os novos moradores, além de pouco
numerosos, compartilhavam uma mesma “linguagem” (não apenas uma língua, mas
uma proximidade intelectual, responsável por transmitir, através das gerações, valores,
sentimentos e saber características relativamente homogêneas que se sobrepõem às
especificidades individuais de seus membros)
30
. Eles chegavam agrupados em famílias,
para empregar-se como meeiros na lavoura ou na criação de gado, ou adquirindo terras
para se tornarem pequenos produtores agrícolas e até mesmo através da posse.
A partir dos anos 70, passaram a fixar residência na localidade novos moradores
provenientes de grandes cidades, que, de uma maneira geral, não possuíam vínculos de
parentesco ou laços com a comunidade. No final dos anos 80, esta forma de migração se
intensificou sensivelmente, mostrando íntima relação com o turismo e apresentando
diversas formas intermediárias entre a fixação de residência definitiva e a freqüência
ocasional à localidade. Aparentemente, a motivação destes migrantes estava
relacionada à aspiração de adotar um estilo de vida em contato direto com a “natureza”.
As motivações destes novos moradores, e a sua forma de fixação no distrito, são
associadas a valores e aspirações construídos no âmbito da contracultura e do neo-
ruralismo.
Giuliani estudou neo-rurais estabelecidos no município de Nova Friburgo.
Segundo ele, a decisão de morar no campo, para estes neo-rurais, é uma escolha de
não mais morar na cidade nem tampouco trabalhar em profissões urbanas e,
principalmente, de valorização do cotidiano.
30
Baseado em Tonnies, para quem a comunidade é composta de indivíduos e famílias que se conhecem
intimamente, têm hábitos e uma história de vida comuns, para cuja constituição a existência de um
território comum pode contribuir, mas não é um critério exclusivo ([1931] 1957)
20
A designação de neo-rurais ajuda a compreender as motivações de alguns dos
habitantes do distrito serrano que venho pesquisando, principalmente em virtude de
serem pessoas vindas das cidades, que optaram por um estilo de vida pautado no
“contato com a natureza”. No entanto, este recurso analítico exige cuidados, pois não se
trata de tomar o “rural” ou o “urbano” como realidades empíricas, mas como
representações sociais e, portanto, sujeitas a apropriações diversas, de acordo com as
circunstâncias sob as quais são acionadas
31
. Assim sendo, é preciso compreender os
interesses e motivações que estão em jogo na opção daquele conjunto específico de
pessoas por um determinado estilo de vida.
Alguns aspectos diferenciam os novos moradores do distrito serrano no qual foi
realizada minha pesquisa de campo daqueles estudados por Giuliani. Os neo-rurais do
município de Nova Friburgo pareciam dispor de um volume maior de capital para
investir em suas propriedades, assim como de um planejamento concreto do
empreendimento a ser desenvolvido – criação de rãs, escargots ou cultivo de ervas finas
– e de uma formação escolar de, no mínimo, nível superior, além de contatos sociais nos
centros urbanos e experiências de viagens ao exterior. Sua organização produtiva é
decididamente capitalista, todavia com certas ambigüidades: “ao falar de suas
atividades, os “novos rurais” expressam uma satisfação com o fato de terem construído
as condições de uma vida mais serena, mais harmoniosa, na qual o tempo de trabalho
não contrasta com o tempo livre”. Todavia, os “neo-rurais” exigem de seus
trabalhadores uma “racionalidade urbana na organização do trabalho e no processo
produtivo, porém lhes impõem condições rurais ‘tradicionais” quando se trata de
salário, moradia ou jornada de trabalho (p. 65).
A inserção destes neo-rurais não parece ter provocado grandes mudanças no
local: “a introdução repentina de um grande volume de tecnologia moderna, assim como
contatos diretos e freqüentes com a grande cidade, coloca-os imediatamente no centro
da atenção. A sua maneira urbana de ser, de consumir, de se relacionar, começando com
31
É preciso não perder de vista que o termo “neo-rural” remete a uma noção do que seria o “rural” e
sugere uma inovação em relação a ele. Parece implícita uma referência ao rural tradicional, espaço de
produção agrícola, habitado pelos trabalhadores ligados a esta atividade que seriam os “rurais”-, em
contraposição à qual se desenha a figura do “neo-rural”, que valoriza aquele mesmo espaço em função de
outros elementos além dos produtivos especialmente aqueles que remetem à proximidade com a
“natureza” e à negação do estilo de vida associado ao “urbano”. Carneiro sustenta que a ruralidade não
pode mais ser definida em oposição à urbanidade e sugere “reconhecer espaços de sociabilidade e de
articulações econômicas distintos dentro de uma mesma localidade (...) para romper com as oposições
binárias e dar conta das inserções plurais dos indivíduos socialmente posicionados na sociedade urbano-
industrial” (1998: 73). Chamboredon propõe, ao invés de uma sociologia da sociedade camponesa, uma
sociologia do novo conjunto de utilizadores do território tido como rural e dos seus novos usos sociais
(1980: 97-98).
21
a construção da moradia, em geral muito superior ao padrão de conforto médio da área,
torna-os pessoas distintas. Sua influência, porém, não parece passar de objeto de
imitação dentro do possível (...) As relações com os vizinhos são mantidas no nível do
mínimo indispensável, sendo que os códigos sociais do meio são apreendidos para que
possa haver uma adaptação ao local, na medida em que as circunstâncias tornem isso
conveniente. Portanto, embora a inserção seja repentina, a assimilação é muito lenta.
Durante um tempo reativamente longo, funcionam formas de existência paralelas, sem
que o território seja significativamente afetado pela “nova inserção”.
Diferentemente dos neo-rurais estudados por Giulianni, aqueles que vieram a se
estabelecer no distrito que sedia minha pesquisa parecem ter trazido mudanças bem
mais significativas para a localidade a partir, principalmente, da década de 90, quando
alguns passaram a atuar como ambientalistas locais. No entanto, para compreender
estas mudanças, será necessário retornar à chegada dos primeiros neo-rurais ao distrito,
nos anos 70, alguns dos quais figuraram entre os ambientalistas mais atuantes
localmente no momento da implementação da APA.
2.1. Os hippies dos anos 70
Os primeiros neo-rurais que chegaram ao distrito, na década de 70, eram jovens
32
entre 20 e 30 anos de idade, provenientes de cidades grandes, fortemente influenciados
por valores propagados no âmbito do movimento da contracultura
33
, especialmente o
movimento hippie.
É emblemático desta influência o fato de alguns destes neo-rurais terem se
estabelecido no distrito com a intenção de formar uma “comunidade alternativa”, no
vale do distrito onde hoje se situam as cachoeiras mais visitadas pelos turistas o Vale
32
A juventude tem sido pensada como uma definição cultural, ao invés de uma condição biológica. A
interpretação da juventude como fase de transição e seus atributos são tratados como conotações culturais
de amplo significado que os indivíduos assumem como parte de sua personalidade em muitos estágios da
vida (Mitterauer 1986; Ziehe, 1991 apud Melucci 1997).
33
O historiador norte-americano Theodore Roszac designa como “contracultura” o movimento cultural
que teve lugar nos Estados Unidos entre 1942 e 1972 (1995: xii). A propagação internacional desses
valores em países com regimes políticos diferentes e de desenvolvimento econômico desigual tem origem
no que interpreta-se como o “nascimento e a formação de uma cultura adolescente no seio da cultura de
massas, a partir de 1950” (Morin 1997: 137). Segundo E. Morin, o termo “contracultura” é insuficiente,
uma vez que passou a existir um novo paradigma cultural “fundado sobre a recusa do princípio da
alternância e sobre a crítica da participação no mundo fundada no consumo” (Morin 1997: 135). Roszac
distingue esse movimento dos protestos das gerações anteriores por ter procurado colocar em prática as
críticas à sociedade em que viviam (1968: 26). Castells entende por contracultura “a tentativa deliberada
de viver segundo normas diversas e, até certo ponto, contraditórias em relação às institucionalmente
reconhecidas pela sociedade, e de se opor a essas instituições com base em princípios e crenças
alternativas” (2002: 147).
22
das Águas. A formação desta “comunidade” se deu através da aquisição de sítios
contíguos, em sociedade, por amigos que pretendiam produzir os próprios alimentos e
construir a própria moradia, coletivamente, acreditando, assim, estar rompendo com a
sociedade de consumo. Cultivavam, sem uso de fertilizantes químicos, milho, feijão,
frutas, hortaliças e ervas medicinais, criavam galinhas e chegaram a produzir vinagre de
banana e banana passa. A produção não visava o lucro, mas alguns dos excedentes eram
comercializados em um nicho de mercado que começava a se delinear, o de produtos
“orgânicos”. Segundo dois dos integrantes desta “comunidade alternativa”, as tarefas
eram divididas e as decisões tomadas coletivamente, de acordo com as necessidades e
aptidões de cada um.
A atitude de uma das integrantes da “comunidade alternativa”, que decidiu dar à
luz a um filho “da maneira mais natural possível”, no sítio, sem luz elétrica e muito
distante dos serviços de saúde, também demonstra o grau elevado de adesão aos valores
propagados pela contracultura. A recusa de uma visão científica do mundo foi uma das
atitudes típicas dos jovens que constituíram o movimento da contracultura. Um parto
sem assistência médica num local de difícil acesso e pouca infra-estrutura, para uma
filha de funcionários públicos, proveniente de uma grande cidade, que normalmente
teria acesso a boas maternidades, significava também uma ruptura com os valores
dominantes no seu meio social e uma tentativa de pôr em prática um pensamento crítico
em relação à sociedade industrial e de consumo. Neste caso, o parto num hospital foi
associado por ela a uma artificialização de um processo natural.
A tomada de atitudes e decisões com a intenção de romper radicalmente com a
sociedade de consumo acontecia em meio a jovens que, antes de optar por fixar-se na
localidade com o objetivo de transformar seus estilos de vida, já vinham se relacionando
e tomando parte em redes presentes nos seus centros urbanos de origem. E foi a sua
inserção nestas redes que alimentou seus planos de mudar seu estilo de vida.
As trajetórias de dois integrantes daquela “comunidade alternativa” permitem
antever que opções de vida à margem dos padrões dominantes entre pessoas da sua
idade e posição social vinham se delineando em suas vidas: ao invés de buscar
formação universitária e profissões estáveis, eles eram artesãos que começariam,
também, a tentar se tornar agricultores. E que a idéia de se fixar no distrito surgiu
através de sua rede de amizades:
Mara era artesã, fazia bijuterias de prata que expunha na Feira Hippie da Praça
Saens Peña. No início de 1974, havia morado quatro meses com o pai, funcionário da
23
Caixa Econômica Federal, em Brasília. Foi quando teve a idéia de comprar dois cavalos
para andar pelo interior. De volta ao Rio de Janeiro, expondo [artesanato] na Tijuca, um
amigo a convidou para conhecer o Lima e participar da “comunidade”, como ela narra:
“Esse final de semana estamos indo para Lima. Um amigo
comprou uma propriedade e está fazendo uma sociedade
alternativa, ou melhor [ela se corrige], comunidade. O Rodrigo
[seu marido] morava nessas terras dois anos. Houve uma
proposta do sócio dele para eu ficar para dar uma força, pois o
Rodrigo sozinho tinha que plantar, cozinhar... Resolvi dar um
tempo para ver como era. Nunca tinha cozinhado, feito nada
disso. Fui ficando. Surgiu um relacionamento e estamos juntos
até hoje. Dois anos depois o meu segundo filho nasceu. Mara
lembra com a exatidão a data da chegada ao distrito: 23/07/74.
Antes de ir morar no distrito em 1979, a convite do amigo Jaime (hoje
proprietário de um camping), para fazer uma “comunidade agrícola” ou “comunidade
ecológica”, Pedro, originário do subúrbio de Irajá, era músico e artesão no Rio de
Janeiro. Fazia toda sorte de objetos de madeira e, especialmente, instrumentos musicais
(berimbau, maculelê, etc.). Morar no Vale das Águas exigia uma certa infra-estrutura,
devido à distância e à irregularidade do terreno. Pedro explica que comprou o terreno
onde atualmente funciona seu camping, no centro comercial do distrito, com a intenção
de, em pouco tempo, mudar-se para o Vale das Águas:
“Para fazer uma base e depois subir. [Vale das Águas] tinha
que ter estrutura, cavalos... Aqui era uma chácara, com horta,
não tinha luz. Acabei ficando aqui embaixo, não inteirei o
dinheiro para a compra do terreno lá. Fiquei morando o tempo
que deu para viver. Pensava em fazer um atelier de percussão,
plantar cabaça, fazer berimbau; trazer um grupo de capoeira e
desenvolver um trabalho com as crianças.”
No entanto, o ímpeto de ruptura com a sociedade de consumo não surgia com a
mesma intensidade para todos os sócios proprietários do sítio no Vale das Águas. Além
disso, no tocante à criação dos filhos, o desejo de ruptura com a sociedade de consumo
mostrava seus limites:
24
Mara explica que sua partida, com sua família, para Cabo Frio, em 1980, teve
como motivações os conflitos no interior da “comunidade alternativa” e a falta de infra-
estrutura do local:
“Por sermos os únicos moradores naquele momento,
começaram a haver divergências de opinião com os outros
sócios, que faziam faculdade no Rio e vinham nos finais de
semana e feriados. Teoria é uma coisa, prática é outra. Passamos
a não nos entender e vendemos a nossa parte. Ao mesmo tempo,
o Lima não oferecia infra-estrutura para as crianças, médico,
escola... e o sítio não dava retorno financeiro para buscar esses
recursos fora”.
Pedro fala das dificuldades para construir, de fato, uma “comunidade
alternativa”. Diz que foi embora do distrito por causa da falta de retorno financeiro, da
frustração com alguns projetos que falharam em virtude dos conflitos com a
“comunidade local” e da dificuldade de formar a “comunidade alternativa”.
“Minha mulher fez um trabalho com as crianças, uma oficina de
percussão e confecção de instrumentos, mas houve rejeição da
comunidade. Alguns pais ameaçaram tirar os filhos da escola,
porque ela era hippie. Este tipo de problema foi um dos que nos
levaram a ir morar no Amazonas”.
Nem todos os neo-rurais que se estabeleceram na localidade na década de 70
integraram a “comunidade alternativa”, mas o fato de ela ter chegado a existir é bastante
revelador das motivações que moviam aqueles migrantes.
Além desta particularidade ou seja, a de terem sido fortemente influenciados
por valores associados à contracultura e ao desejo de ruptura com a sociedade de
consumo -, os neo-rurais que chegaram ao distrito na década de 70, apesar de fazerem
parte de uma classe de proprietários, uma vez que foram capazes de adquirir as terras
que ocuparam, diferiam daqueles estudados por Giuliani, verdadeiros empreendedores
capitalistas.
No entanto, significativas semelhanças podem ser encontradas. Os pretensos
hippies também precisavam contratar empregados para trabalhar em suas propriedades,
pois logo perceberam que não seriam capazes de cuidar dos terrenos, plantações e
afazeres domésticos. Estas contratações eram feitas de acordo com os padrões rurais
25
“tradicionais” no que se refere a salário, jornada de trabalho e moradia, assim como
procediam os neo-rurais de Friburgo.
O Vale das Águas, região do distrito primeiramente ocupada por estes neo-
rurais, assim como o pequeno centro comercial do lugarejo, passaram a ser alvo do
desejo crescente de pessoas das grandes cidades interessadas em adquirir sítios para
residência ou veraneio, que vieram a conhecer o lugar através de suas redes de
amizades. A especulação imobiliária provocou uma redução significativa dos terrenos
cedidos a lavradores locais como meeiros ou terceiros, muitos dos quais passaram a
trabalhar como caseiros ou diaristas, empregadas domésticas, faxineiras e lavadeiras
para os neo-rurais.
Apesar disso, o estabelecimento destes neo-rurais na década de 70 não chegou a
provocar grandes transformações no quotidiano local. Assim como em Nova Friburgo,
depois do estranhamento inicial, permaneceram como que formas de existência
paralelas.
No entanto, os primeiros neo-rurais deste distrito serrano não provocavam
grande admiração na população local, como aconteceu em Nova Friburgo. As suas
técnicas de produção mantinham muitos pontos em comum com a agricultura e criação
de animais praticada pelos lavradores locais, consistindo as diferenças basicamente na
utilização de adubos naturais e seleção de cultivos e métodos que evitassem a realização
de queimadas. A ausência de luz elétrica limitava tanto o emprego de tecnologia
avançada quanto o padrão de consumo, e suas residências, à exceção das instalações
sanitárias dentro da casa e dotadas de um pouco mais de conforto, seguiam os padrões
locais. Além de criticarem técnicas agrícolas e de criação de animais consideradas mais
trabalhosas, a população local apresentava grandes reservas em relação a hábitos pouco
ortodoxos dos forasteiros, tais como o banho de rio para recreação, que muitas vezes
dispensava roupas de banho ou de qualquer outro tipo, e o consumo de maconha.
O conflito de valores com os forasteiros aparece nas declarações da lavradora
Manuela, de 85 anos, que mora no Vale das Águas 60 anos. Quando o marido
morreu, ela permaneceu na mesma casa, morando com o filho caçula, de 54 anos, que é
“colono”, dá um terço de suas colheitas para o proprietário. Sobre o turismo, ela conta:
“Os primeiros da hippada foi Jaime e Rodrigo. Os turistas, pra
quem tem comércio e até pra quem não tem, são os únicos que
vêm trazer dinheiro. Minha nora trabalha no Jaime e no
Everaldo, fazendo limpeza de casa, lavando roupa. Pior é
26
quando vêm esses maconheiros. Deviam botar guarda pra
revistar os carros, porque vem gente boa, mas vem gente que
não presta.”
Apesar de Manuela se referir aos primeiros neo-rurais de maneira pejorativa,
como hippada”, valoriza o estabelecimento destes moradores como gerador de
trabalho para os moradores de origem camponesa, como exemplo a sua nora. O turismo,
que ganhou impulso na localidade a partir do final da década de 80, também é
valorizado por Manuela como gerador de renda, mas ela se ressente do consumo de
maconha pelos turistas. A fala de Manuela toca em dois pontos importantes da relação
dos moradores do Lima com o turismo: como fonte de renda, mas também como fonte
de conflitos de convivência devido ao uso de substâncias ilícitas, barulho noturno e
desordem.
2.2. O turismo que veio para ficar
A chegada da luz elétrica às regiões mais centrais do distrito, em 1986,
aconteceu num momento em que tomavam fôlego o crescimento do turismo e o
estabelecimento da pecuária extensiva em maior escala. Os neo-rurais da década de 70
que retornaram, outros que haviam permanecido e outros que começavam a chegar,
num ritmo crescente dali em diante, passaram então a investir em produtos e serviços
direcionados aos turistas.
“Em 85, colocaram luz no Lima e nós começamos a planejar
o regresso. Rodrigo estava trabalhando com marcenaria. Em 86,
voltamos para abrir uma marcenaria neste lote e construir uma
casa. que nesta época o Lima vivia uma realidade mais
voltada para o turismo. Quando eu fui embora, não havia
turismo algum. Então decidimos fazer daqui um comércio, mas
o sonho do sítio não acabou. A idéia era criar um comércio para
um dia vender e voltar às origens. Agora estou partindo para
isso” [entrevista de Mara, 2001 – naquele momento, proprietária
de um bar/lanchonete/loja de artesanato]
“Este tipo de problema foi um dos que nos levaram a ir morar no
Amazonas. Antes, ficamos um tempo em Trancoso [litoral sul
da Bahia], onde me aprimorei no artesanato com madeira. No
27
Amazonas foi onde consegui viver mais ecologicamente.
Moramos sete anos dentro de um barco. Minha mulher estava
fazendo um trabalho de biologia. Enquanto isso, várias pessoas
moraram nesse terreno: Rita [ex-proprietária
de um camping e
artesã], Dadá [ex-proprietário de uma boate] , D. [músico].
Eles criaram cavalos, a onda no Lima era andar a cavalo.
cinco anos voltei para cá. O projeto aqui é fazer mais que um
camping, uma coisa mais temática. É o projeto rasta-reggae,
que inclui fazer instrumentos, plantar ervas medicinais e um
camping temático, onde se pode escutar um reggae, fazer uma
comida natural, uma fogueira. O reggae é a música do futuro,
não fala em violência. É o que eu vivendo e é o que me
sustenta.” [entrevista com Pedro, 2001]
Os projetos de vida e trabalho destes neo-rurais permitem antever que, embora a
intenção de ruptura total com a sociedade de consumo não tenha perdurado em suas
vidas nos moldes previstos (sob a forma de uma “comunidade alternativa”), suas
ocupações ligadas ao turismo sofrem influência de discursos e simbologias propagados
pela contracultura, através, por exemplo, da utilização de imagens, músicas e objetos na
decoração de seus estabelecimentos comerciais que fazem referência àquelas
simbologias.
Isto ocorre em associação com características específicas do ramo do turismo
que predomina no lugarejo. Trata-se de um turismo que consome produtos materiais e
simbólicos relacionados a uma gama de manifestações culturais às vezes bastante
distintas, mas que apresentam pontos em comum. Algumas destas características em
comum, que procurarei enumerar aqui, o estão presentes em cada um destes
segmentos de consumo, mas eles compartilham uns com os outros vários destes
aspectos: a busca do contato com a natureza; o consumo de substâncias ilícitas; a
valorização de estilos musicais, movimentos religiosos, literários e artísticos, filosofias
e estilos de vida e toda uma variedade de símbolos a eles relacionados que pretendem se
constituir numa alternativa aos padrões dominantes na sociedade de consumo. Por
exemplo, um restaurante vegetariano; um camping rasta reggae; uma creperia e bar
cujo nome foi extraído da religião dos Maias; um camping sem luz elétrica e com
acesso somente por trilha, que incentiva a prática da meditação e o consumo de
produtos vagetarianos; uma lanchonete cujo nome fazia menção à fome que sucede o
28
consumo da maconha “Laricas”; a comercialização de roupas indianas e artesanais, e
daí por diante.
Os turistas, mais numerosos nos feriados, costumam fazer uso recreativo de
recursos naturais como cachoeiras e trilhas abertas na mata, além de desfrutarem da vida
noturna que se desenvolveu no lugarejo, formada por bares, alguns com música ao vivo,
e shows de forró. A maioria das casas de aluguel (assim como a maioria das pousadas)
seguem um padrão de construção barato e, com mais freqüência no pequeno centro
comercial, não dispõem de quintal próprio, compartilhando o mesmo lote com outras
casas. um sem número de campings, aparentemente a forma de hospedagem mais
procurada.
Além dos turistas que freqüentam o distrito nos períodos de férias, feriados e
finais de semana, alojados em pousadas, campings e casas alugadas por temporada,
aqueles que adquirem ou alugam sítios ou pequenas casas como residência secundária,
para veraneio.
ainda pessoas que conheceram a localidade na condição de turistas e que
decidiram fixar residência. Desde a década de 70, este tipo de ocupação vem se
expandindo, empreendida tanto por aposentados e pensionistas, pessoas que vivem de
rendas, quanto por jovens mantidos pelos pais, ou empregados em profissões que
permitem um deslocamento temporário das grandes cidades ou ainda que possibilitam a
relação via internet com clientes ou patrões como tradutores, roteiristas de televisão,
artesãos, músicos, etc. Este segmento de moradores do distrito costuma, também,
investir ou empregar-se em empreendimentos voltados ao atendimento do turismo,
como lojas de roupas e acessórios, lanchonetes, restaurantes, pousadas, bares e
campings.
Todos estes, provenientes de centro urbanos e cuja fixação de residência na
localidade figura em seus discursos como uma opção, agrupo sob a designação de neo-
rurais, sem que a unificação sob este conceito obscureça a diversidade dos indivíduos
que ele reúne.
A comparação com o conjunto de utilizadores do território de quatro villages
situados na região da Provence, na França
34
, contribui para lançar luz sobre esta
diversidade e, ao mesmo tempo, sobre os aspectos que permitem agrupá-los sob uma
mesma classificação. Chamboredon se refere ao espectro de posições sociais ambíguas,
situadas entre o pólo urbano e o pólo rural, e decisivas para o estudo das novas relações
34
Pesquisa comentada por Chamboredon (1980).
29
entre a cidade e o campo. Os autores da pesquisa comentada por Chamboredon
argumentam que a natureza das relações dos consumidores do campo e da sociedade
rural todos os não-camponeses freqüentando aqueles villages em tempo parcial - com
a sociedade rural (essencialmente comandada pelo passado social da linhagem e a
trajetória do indivíduo) determina suas relações com a terra e a paisagem. Assim,
“camponeses desenraizados querendo manter suas raízes ou burgueses fazendo um
retorno lúdico hebdomadário à terra têm em comum querer negar a definição da terra
como meio de produção e de definir tendencialmente o campo como paisagem.” (1980:
106)
Primeiramente, no caso francês, tratam-se de consumidores do rural “em tempo
parcial”. No caso desta pesquisa, bem como naquele dos neo-rurais estabelecidos em
Nova Friburgo, o consumo do rural pelos citadinos vai além do turismo e da residência
secundária, uma vez que eles de fato fixaram residência nas localidades rurais.
Outra diferença importante é que, no caso francês, uma valorização do
camponês, por parte dos consumidores urbanos, como modelo de um estilo de vida não
predador e não destruidor, livre dos hábitos de consumo urbanos, respeitoso dos ritmos
e dos equilíbrios naturais - como transparece na prática da agricultura parcialmente livre
das exigências de rentabilidade econômica (costume e estilo de vida, passa tempo, lazer)
- mesmo que como uma representação idílica que implica uma desqualificação
simbólica do agricultor, condenado a se “modernizar” para sobreviver.
No caso do distrito do Lima, os neo-rurais valorizam, essencialmente, o aspecto
selvagem e intocado das paisagens, e criticam os agricultores por derrubarem e
queimarem amata” com o objetivo de cultivar lavouras. Neste sentido, os agricultores
são considerados ora como destruidores da natureza que precisam ser punidos, ora como
pessoas que precisam ser educadas ou conscientizadas a respeito da necessidade de
manter intacta a natureza.
A fala de uma aluna durante o curso de capacitação de monitores ambientais,
promovido pela ONG ambientalista Grupo Germinal
35
, expressa com autenticidade as
35
As aulas do supracitado curso tiveram o mérito de reunir, pela primeira vez num ambiente de estudo,
moradores do distrito de diferentes pertencimentos - desde aqueles “criados na roça” até moradores de
origem urbana das mais variadas formações para discutir a transformação do distrito em APA. A
diferença desta reunião ter ocorrido no âmbito de um curso é que não estavam em jogo decisões a respeito
do uso do espaço e dos recursos, o que proporcionou um ambiente amistoso, no qual muitos alunos se
sentiram à vontade para trocar experiências. A análise dos efeitos deste curso são analisadas no capítulo
2.
30
motivações dos neo-rurais que se estabelecem no distrito do Lima, além de tratar da sua
relação com a população local de origem camponesa:
“Então, essa diversidade toda que a gente tá convivendo aqui no
Lima. Porque é, né, muito diverso esse lugar. (...) A gente não
nasceu nessa terra. Se está aqui, é por algo especial. Tem que
tratar com todos esses valores, né? Aqui, além de ser um curso
pra capacitar monitores ambientais, esse espaço aqui é muito
interessante porque a gente ta se reconhecendo como cidadãos,
moradores dessa terra. Acho que, mesmo com toda a dificuldade
de compreensão que a gente possa ter, a gente sabe que a gente
quer estar aqui e viver bem nessa terra. A gente gosta de estar
aqui, ninguém ta aqui obrigado. (...) Acho que existe a coisa do
se sentir ligado afetivamente a uma terra que está protegida. Eu
vim pra cá pensando em vir pruma Área de Proteção Ambiental.
Os meus valores estavam ligados a isso. Cheguei a denunciar o
cara que estava cortando árvore lá na Barra do Lima, e eu vi que
afinal eu deveria ter ido conversar com ele, porque eu sou uma
educadora. fui me dar conta disso depois que eu fui
conversar com ele. tinha passado o fiscal por causa do
problema. Eu me senti super mal por ter entrado em contato
assim, através da lei. A gente tem que se informar, a gente chega
muito idealista e o pessoal daqui fica com a coisa fechada.
Devido a isso, a gente tem que se comunicar.” [Laura, mestre
em Belas Artes, morando no distrito 2 anos e professora do
ensino médio na escola municipal local]
Laura, como ela declara, veio da cidade grande atraída pelo fato do distrito do
Lima ser uma Área de Proteção Ambiental, onde ela poderia adotar um estilo de vida
em contato com a natureza, de acordo com os valores que escolhera para sua vida. No
seu “idealismo”, acabou por denunciar um vizinho às autoridades, entrando em contato
“através da lei”. Subjacente à fala de Laura, primeiramente, uma concepção da
preservação da natureza segundo a qual toda e qualquer “interferência” humana na
natureza é nociva, uma vez que fica suposto que o ato de cortar a árvore é
31
indiscutivelmente ruim
36
. A sua auto-crítica se refere à atitude que tomou diante do
acontecimento. Fazendo uma denúncia, ela tratou seu vizinho como um criminoso que
devia ser punido. Ela se retrata e afirma que a atitude correta seria a de tratá-lo como
alguém que precisa ser conscientizado a respeito dos efeitos negativos do seu ato. A
visão de Laura expressa com autenticidade a concepção de preservação da natureza
professada pelos neo-rurais estabelecidos no distrito do Lima, bem como as suas
posturas diante das práticas da população local de origem camponesa e os conflitos
resultantes da sua convivência num mesmo espaço.
A interpretação dos moradores de origem camponesa do distrito do Lima a
respeito da convivência com “novos” moradores de origem urbana e com o turismo
difere da interpretação dos “neo-rurais” a respeito desta convivência. Muitos se
ressentem de mudanças nas relações sociais, estabelecendo comparações com um
passado anterior à chegada de novos moradores, quando havia um controle da
comunidade sobre quem circulava na localidade
37
.
A fala de Sandra, esposa de um pequeno pecuarista e pedreiro, quando indagada
a respeito de mudanças recentes no lugar onde mora, trata desta mudança nas relações
sociais:
“Mudou, mas ruim. Bastante coisa piorou pra quem sempre
viveu aqui. Todos os moradores falam também. Muita gente
estranha de fora, muito diferente, o Lima, hoje, tem mais gente
desconhecida do que do lugar.”
No caso deste trecho da fala de Sandra, ela havia sido questionada,
especificamente, sobre mudanças no distrito. A comparação com o passado, no entanto,
36
Esta não é a única concepção da preservação do meio ambiente possível, como sugerem as falas dos
neo-rurais do distrito do Lima. A questão ambiental institucionalizou-se e globalizou-se, mas a maneira
pela qual são concebidas medidas em defesa do meio ambiente difere. Galano resenhou um número da
revista Études Rurales que trata da aplicação de medidas chamadas de agroambientais em países como
França, Bélgica, Inglaterra, Irlanda e Estados Unidos durante a década de 90 (1999). A autora analisou
sete artigos produzidos por pesquisadores de dois centros de pesquisa franceses que oferecem um
panorama de análises de práticas de proteção do meio ambiente e de paisagens naquele país. Chamo a
atenção para a diferença da concepção das medidas ambientais adotadas num parque no Sul da França,
que associa a pecuária à proteção da natureza: “houve cortes de árvores em pontos estratégicos e criação
de faixas de centenas de metros sem vegetação, para impedir a propagação do fogo. Para conservar as
novas áreas desmatadas, recorreu-se à introdução de gado trazido de outras regiões do país, onde,
segundo as estações, era precária a situação dos pastos” (Galano 1999: 4).
37
O território comum não é um critério exclusivo, tampouco indispensável, para a formação de uma
comunidade. Bailey introduz o conceito de comunidade moral, que envolve as relações de conflito e
diferença, definindo um conjunto de indivíduos compartilham valores e categorias e que m sua
reputação conhecida por todos. Para demonstrar como ocorre a pequena política, na vida cotidiana de
cada um, ele recorre a um village nos Alpes Franceses com 400 habitantes, onde mulheres evitam ser
vistas conversando em público para não se tornarem alvo de fofoca. Há, portanto, por parte da
comunidade, um controle da circulação das pessoas.
32
surgia espontaneamente quando era requisitada a opinião dos entrevistados a respeito do
turismo no distrito do Lima.
Muitas das declarações sobre o turismo trazem uma nostalgia em relação ao
tempo em que não havia turistas na localidade, associando o turismo à desordem, ao
barulho, ao consumo de drogas. Como opina Ilka, ex-lavradora, hoje proprietária de
uma lanchonete situada num ponto privilegiado para o atendimento ao turismo:
De primeiro, não tinha turista no Lima. Tava melhor, o pessoal
vivia tranqüilo. Depois, as famílias vinham pra cá. E agora não
vêm mais por causa dessa turma que vem fumar e fazer
bagunça.”
Marieta, lavradora e professora primária aposentada, também identifica um
primeiro momento em que o turismo era constituído por “famílias”. Sua fala expressa o
sentimento dos moradores em relação à desordem associada aos advento do turismo:
“O turismo é coisa boa, sob um ponto de vista, porque traz
crescimento para o lugar. Por outro lado, houve muita piora
depois que o Lima virou ponto turístico, não sei se em todo
lugar é assim. De primeiro, tinha famílias que vinham e traziam
dinheiro. Eles têm deixado de vir porque tem pessoas que vêm
usar drogas, essa moçada nos feriados e finais de semana.
Amontoou muita gente. Os primeiros moradores do lugar se
sentem coagidos, à noite não dormem direito. Pode ter trazido
um resultado para o comércio, mas houve piora”.
Como apareceu na fala de Marieta, muitas das declarações sobre o turismo
ressaltam a sua importância para a geração de renda, mesmo que contenham queixas
com relação à desordem promovida pelos turistas.
Uma parte das respostas sobre o turismo revela conotações para o termo
“turismo” que são específicas daquela localidade e das mudanças nas relações sociais
locais. Quando indagada sua opinião a respeito do turismo no distrito do Lima, alguns
dos entrevistados associaram espontaneamente o turismo às restrições impostas a
determinadas técnicas agrícolas, como as capinas e queimadas.
As declarações de Edir e Maneco, trabalhadores rurais diaristas, contêm uma
associação direta entre turismo e proibições ambientais, enfatizando sua dimensão
negativa, embora não qualifiquem o turismo como algo de todo ruim:
33
“Turismo não é ruim, mas perturba. o pode queimar nada,
isso revolta qualquer um.” [Edir, 26 anos, entrevistado em 2002]
“Em parte é bom, mas não muito. É ruim porque não pode mais
botar roça.” [Maneco, 22 anos, entrevista de 2004]
A associação direta entre “turismo” e restrições ambientais, como mudanças que
vieram no mesmo pacote, sugerem que, nestes casos, os moradores de origem urbana
são considerados como responsáveis pela implantação destas restrições e, na
compreensão dos entrevistados, não se diferenciam dos demais turistas.
3 – Convívio, compartilhamento do espaço e mudanças nas relações sociais
Neste distrito serrano transformado em unidade de conservação, convivem
atualmente pessoas das mais variadas origens sociais e familiares, com valores, projetos
de vida e crenças bastante diversas. Varia também a sua posição social, havendo desde
proprietários de sítios e chácaras, pequenos lotes e outros que habitam casas ou
pequenas suítes alugadas, e até mesmo alguns que residem por longos períodos em
barracas de camping.
Ao contrário daquela comunidade rural tradicional que ainda figura em nosso
imaginário e que, apesar de socialmente estratificada, apresenta um grau elevado de
homogeneidade no tocante a crenças, valores e comportamentos
38
, a vida cotidiana nesta
localidade hoje apresenta alguns aspectos da convivência urbana cosmopolita vida
noturna movimentada; convivência entre pessoas de origem diversa, que não são
capazes de localizar umas às outras num mapeamento mental de parentesco
39
; relações
comerciais que já apresentam um certo grau de impessoalidade, entre outras
características.
Partindo da população atual desta localidade, poder-se-ia tratar os diversos
pertencimentos e interações de cada um de seus habitantes como teias, algumas das
quais possuem seu centro na localidade e lançam ramificações a distâncias variáveis
como as famílias de lavradores ou ex-lavradores que habitam a localidade há gerações, e
que possuem membros morando e trabalhando nas cidades, que mantêm um vínculo de
38
Na obra de Galpin, Sorokin e Zimmerman, são atribuídas ao rural características físicas claramente
observáveis, em função, principalmente, das atividades produtivas, conferindo-lhe uma referência
espacial nítida (1981).
39
John Commerford descreveu com acuidade o modo pelo qual os moradores da roça controlam a
circulação de pessoas nas localidades rurais da Zona da Mata de Minas Gerais, com base no princípio de
que “quem circula nessas localidades ou é morador do lugar ou é parente de morador do lugar” (2003:
19). Alguns moradores do distrito onde foi feita minha pesquisa se ressentem da perda da capacidade de
exercer este controle, como veremos na segunda parte desta tese.
34
intensidade variável com a família que permaneceu; ou as relações de amizade e
convivência entre os remanescentes daqueles que, 35 anos, vieram da cidade grande
para um vale do distrito com a intenção de fundar uma “comunidade alternativa de base
agrícola”, alguns dos quais hoje lideram o ambientalismo local, fazendo uso dos
contatos e acessos que mantiveram desde que moravam na cidade.
Outras destas teias, ao contrário, são pequenas ramificações provenientes de
centros os mais longínquos como o movimento Rastafari, originário de uma religião
jamaicana; a contracultura, surgida nos Estados Unidos nos anos 60, e dentro dela o
movimento hippie; o vegetarianismo, que encontrava adeptos na Inglaterra do início
do período moderno
40
; o Daime, religião organizada em torno do consumo de
ayhuasca
41
; as igrejas evangélicas Igreja Batista, Assembléia de Deus, Congregação
Cristã do Brasil, Igreja Presbiteriana – e a Igreja Católica; o pertencimento à clientela de
determinados políticos; militância ou engajamento em partidos políticos; afiliação a
sindicatos; afiliações profissionais as mais diversas; etc.
Considerando-se cada habitante desta localidade como um ponto ligado a outros
por fios de algumas destas teias, podemos imaginar que em cada um destes pontos se
interceptam em teias diferentes, de acordo com os pertencimentos variados de cada
indivíduo, e que a espessura dos fios que os ligam aos centros das teias varia de acordo
com a intensidade da sua ligação, numa hierarquia de prioridades dos pertencimentos
que em cada ponto cada indivíduo - pode ser definida numa ordem diferente
42
. Por
40
Thomas 1996: pp. 342-355.
41
Santo Daime é uma expressão multivocal, ou seja, pode ter vários significados. Refere-se
a um movimento religioso que teve início entre as décadas de 20 e 40 no estado
do Acre e a partir da década de 80 expandiu-se por todo o Brasil e posteriormente
para o exterior. O termo Santo Daime referencia também dois grupos religiosos:
Alto Santo e Centro Eclético de Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra, ou
CEFLURIS1. Além disso, Santo Daime é o nome que os participantes deste movimento
religioso dão à bebida que consomem em seus rituais” (De Rose 2006)
42
Clifford Geertz encontrou nas villages balinesas um conjunto de sistemas sociais complexos, que ele
procurou conceitualizar como “a interseção de planos de organização social teoricamente separáveis”.
Cada plano consiste num conjunto de instituições sociais baseadas em princípios de afiliação
completamente diferentes. Em qualquer village particular, todos os planos importantes estarão presentes,
mas a maneira pela qual eles se interceptam, se ajustam uns aos outros, difere, pois não um principio
claro em termos do qual esta interseção deva ser constituída. Assim, uma village é definida como uma
região vagamente demarcada na qual planos de organização social se interceptam de uma maneira tal que
as pessoas vivendo naquela região têm mais laços umas com as outras do que com pessoas das regiões
adjacentes (1967: 267). A contribuição de Geertz ajuda a pensar os diferentes pertencimentos dos
moradores daquele distrito serrano, a maneira como se sobrepõem e se ajustam uns aos outros. Neste
caso, é preciso notar, que o processo que teve por marco a transformação do distrito em unidade de
conservação contribui para a constituição de um plano de organização social no qual o pertencimento
territorial é acionado na reafirmação tanto de laços quanto de clivagens entre as pessoas que moram ou de
alguma forma se relacionam naquele espaço.
35
exemplo, Pedro trabalha com instrumentos musicais de madeira, mora neste distrito, é
adepto do Rastafarismo, gosta de escutar reggae e é proprietário de um camping. Estes
são alguns dos aspectos da sua vida que o ligam a determinadas redes de pessoas. O
entrelaçamento destas afinidades e pertencimentos, e a determinação daqueles que são
prioritários em sua vida, ocorre, no entanto, de maneira única na pessoa de Pedro.
No entanto, por detrás da aparente diversidade, nesta localidade específica
coexistem dois feixes de pertencimentos bastante nítidos. Ou seja, os fios das teias se
sobrepõem com muito maior freqüência em dois feixes distintos. Pode-se encontrar algo
em comum entre os citadinos que se estabeleceram nesta localidade: sejam quais forem
suas adesões políticas, espirituais, profissionais ou filosóficas, e sua posição social, de
alguma forma a busca de um estilo de vida em “contato direto com a natureza” figura
entre os fundamentos de sua visão de mundo, o que permite pensá-los como neo-rurais.
E é entre este segmento da população que se recrutam aqueles que hoje interagem com
o poder público e os políticos em favor da aplicação de medidas ambientais. Há,
também, algo em comum que abarca muitos moradores do distrito, apesar da sua
diversidade de pertencimentos: a racionalidade camponesa, mesmo que situada no
passado - na própria infância e/ou juventude, ou na geração familiar imediatamente
anterior -, continua irradiando valores e padrões de comportamento e relacionamento
43
.
Além disso, ambos estes feixes estão relacionados pelo menos em dois planos.
De uma perspectiva mais ampla, é o contato direto com a natureza o ponto de contato
entre eles. Enquanto os neo-rurais optaram por mudar suas vidas em busca deste
contato, os camponeses têm acesso ao conhecimento e à vivência de gerações cuja
existência esteve atrelada ao relacionamento direto com os elementos do mundo natural
(a dependência em relação ao clima, às condições do solo, etc.). É esta a dimensão
preponderante na construção deste rural específico, desta ruralidade que tem como
lócus aquele determinado distrito serrano.
O que nos leva ao segundo plano em que neo-rurais e camponeses têm seus
pontos de contato: o espaço territorial. Não pelo simples fato de o coabitarem, mas por
esta coabitação estar permeada de disputas em torno da utilização deste espaço e dos
recursos materiais e simbólicos a ele associados
44
.
43
Carneiro argumenta que a “racionalidade camponesa” pode persistir no contexto de predominância da
sociedade urbano- industrial, “desde que ela não seja percebida como um modelo cristalizado, uniforme e
a-histórico, mas no sentido de uma visão de mundo pautada em relações sociais específicas e que se
expressa ativamente, de forma a transformar e a recriar o seu mundo social e natural (1998:73).
44
Patrick Champagne expõe os limites das monografias villageoises , criticando o corte das populações de
acordo com a posição que elas ocupam no espaço geográfico. Para Champagne, as transformações que
36
afetaram as populações das aldeias podem ser analisadas como uma modificação da configuração do
espaço da aldeia que resulta do desprendimento parcial, em relação ao espaço físico, dos campos de
relações dos indivíduos que permanecem no interior das aldeias. Ele propõe tratar os villages concretos,
ou as diferentes formas tomadas sucessivamente por um mesmo village, como um dispositivo quase
experimental que permite estudar os mecanismos através dos quais se efetuam as transformações do
modo de agregação dos indivíduos que ocupam um mesmo espaço de residência. (1975: 66) Por outro
lado, Champagne chama a atenção para a interseção espacial destes campos de relações, uma vez que as
divisões administrativas fazem parte da realidade e impõem suas restrições específicas aos indivíduos,
notadamente fixando os quadros políticos no interior dos quais a concorrência para a ocupação das
posições locais de poder encontra-se regrada e organizada (1975: 60). Neste estudo de caso, há indicações
de que a dimensão política do compartilhamento do espaço, reforçada com a criação da APA coincidindo
com os limites administrativos do distrito, define um campo de relações cuja importância vem crescendo
na medida em que as restrições impostas aos indivíduos circunscritos naquele espaço têm sido
preponderantes sobre outros campos de relações, como veremos ao longo desta tese.
37
CAPÍTULO 2 - FORMAÇÃO DA ONG AMBIENTALISTA LOCAL
A ONG
45
ambientalista Grupo Germinal é identificada por estudos acadêmicos
que abordam o processo de criação da APA do Lima como a instituição que pôs em
discussão a idéia de criar uma unidade de conservação no distrito (Cozzolino 2004: 64),
ou que teve a iniciativa de “sensibilizar e mobilizar parte da comunidade e o poder
público” para a transformação da área do distrito em APA, caracterizando-a, ainda,
como “a organização mais atuante do local, reconhecida pela comunidade e pelo poder
público, em função de seu trabalho, anos, em prol da qualidade ambiental de todo o
distrito” (Seabra 2005: 120).
Esta organização não abarcou todos os componentes do ambientalismo local - ou
seja, todos os envolvidos na militância em favor da preservação ambiental e da
implantação da unidade de conservação - a não ser durante um curto período de tempo.
Mas tem-se constituído na instituição sob a qual o ambientalismo local encontra-se
melhor organizado e capacitado para construir o discurso ambientalista local e
influenciar a gestão do território da APA
46
.
Para efeito de análise, a trajetória do Grupo Germinal será dividida em duas
partes. A primeira delas, até a criação da APA, quando prevaleciam o voluntariado e o
amadorismo na sua atuação. Na etapa seguinte, quando teve início um processo de
profissionalização e institucionalização da entidade, sob a forma de parcerias com o
Estado e com organizações não governamentais maiores
47
.
45
O crescimento das ONGs em todo o mundo está relacionado à crise do sistema capitalista, nos anos 70,
e às políticas restritivas ao Estado de Bem-Estar Social, que se seguiram nos anos 80, no sentido de
garantir a “austeridade e o equilíbrio fiscal” a partir de políticas de ajustes estruturais justificadas pela
ideologia do neoliberalismo. Mas, no caso específico da América Latina, este crescimento deve-se
também ao “fechamento” da arena pública às organizações, aos partidos políticos de esquerda e às
universidades pelos regimes autoritários típicos da década de 1970. Organizações não-governamentais e
as organizações da igreja católica (como as Comunidades Eclesiais de Base - CEB’s - e as pastorais)
constituíram-se assim em lugares alternativos onde se podia fazer “um trabalho social”, dedicado a
atividades localizadas, em comunidades. Se, até a década de 80, o planejamento do desenvolvimento e a
sua implementação eram de responsabilidade exclusiva do Estado, a partir da década de 90, frente ao
discurso da “incapacidade” de cumprir estas funções, as ONG's (e o “mercado”) começam a suprir
parcialmente esta carência (Little, 1994: 78 apud Pareschi 2002: )
46
Foucault propõe estudar o poder em sua face externa, onde ele se relaciona direta e imediatamente com
seu campo de aplicação, onde ele se implanta e produz efeitos reais . Neste caso, trata-se de compreender
como um aparato legal e de diretrizes que foram concebidas por centros de poder longínquos foram
apropriados e instrumentalizados por grupos do distrito do Lima interessados em influenciar a gestão
daquele território. Foucault chama a atenção para a necessidade de uma análise ascendente do poder:
partir dos mecanismos infinitesimais que têm uma história, um caminho, técnicas e táticas e depois
examinar como estes mecanismos de poder foram e ainda são investidos, colonizados, utilizados,
subjugados, transformados, deslocados, desdobrados, etc., por mecanismos cada vez mais gerais e por
formas de dominação global (1996[1979]: 182-184).
47
Segundo Samyra Crespo, do ISER (Instituto de Estudos da Religião, uma ONG), em 1996, mais de
70% das ONGs existentes não tinham sido legalizadas, não tendo sede ou estatuto. Mesmo as maiores
38
1 – Os guardiães voluntários do paraíso ameaçado
Trata-se de uma organização não governamental que surgiu da mobilização de
um grupo de freqüentadores assíduos da localidade do Lima, no inicio da década de 90.
Entre uma e duas dezenas de pessoas se mobilizaram para remover do lixo deixado na
área das cachoeiras mais visitadas. Além de se organizarem para catar o lixo quase que
diariamente, estas pessoas começaram a produzir cartazes e placas, procurando
sensibilizar outros visitantes para que não deixassem lixo nas cachoeiras nem pelas ruas
e passaram a buscar apoio de alguns comerciantes locais, para realizarem estas
atividades e também para que cuidassem de seu próprio lixo. Este apoio consistia na
doação de materiais para confecção dos cartazes e placas, e eventuais refeições para
quem realizava as atividades. Passaram, também, a conversar com proprietários e
turistas, buscando paralisar os acampamentos desordenados na área das cachoeiras e
direciona-los para áreas de camping.
Quanto às motivações das pessoas que realizavam estas atividades, destaca-se o
apego afetivo de freqüentadores assíduos àquelas cachoeiras, como um local de refúgio
das tensões urbanas e contato com a natureza. Soma-se a estes fatores a perspectiva de
obter pequenos subsídios, na forma de refeições, que pudessem prolongar a estadia
destas pessoas no distrito, geralmente em condições bem mais precárias do que aquelas
que estas pessoas dispunham em seus lares, na cidade grande. A vontade destes
primeiros ambientalistas de permanecer na localidade estava ligada, também, à
aspiração de independência em relação aos recursos familiares e às regras da vida
familiar às quais estavam submetidos em suas residências de origem.
A permanência no distrito, prolongada tanto quanto possível em condições
materiais humildes, era vivida como um período de liberdade em relação à família e aos
compromissos, associada, às vezes, à possibilidade de consumir substancias ilícitas
dentre elas, dificilmente ultrapassavam a barreira de 20 militantes (Scharf, 1996: 5). Além disso, Crespo
as divide em dois grandes grupos, segundo suas linhas de ação. No primeiro, e majoritário, estariam
organizações onde o amadorismo e o voluntariado prevaleciam; onde haveria um nculo com a
comunidade com a qual trabalham, prevalecendo também posturas mais radicais, ligadas a campanhas de
denúncia e reivindicação. No segundo grupo, estariam organizações de perfil profissional, que recebem
verbas de outras organizações, em geral estrangeiras, e trabalham com projetos específicos. Arnt e
Schwartzman (1992) já haviam notado esta divisão entre as organizações existentes na ou voltadas para a
Amazônia em 1992. Por um lado, grupos de denúncia e crítica com falta crônica de meios para realizar
ações; por outro, grupos prestadores de serviços que giram em torno da órbita do Estado, que são mais
estruturados e tecnicamente capacitados. Segundo os autores, estes grupos sofrem de problemas
complementares. Carências de recursos, de capacidade técnica, jurídica e de pesquisa incapacitam a
sustentação de programas e estreitam as denúncias, tornando-as, às vezes, ineficazes. Ao mesmo tempo, a
cooptação e a cooperação com o Estado induzem à indulgência crítica e ao distanciamento dos
movimentos sociais (Arnt e Schwartzman, 1992: 131).[apud Pareschi]
39
despreocupadamente. Era comum, inclusive, que estes períodos fossem interpretados
com um certo misticismo, como momentos de busca espiritual e/ou existencial.
Aliada ao apego afetivo à localidade estava a idéia de preservação daquele lugar,
baseada em noções difusas de uma necessidade de preservação ambiental num nível
mais amplo. Como aparece na narração do fundador Matheus, a respeito do surgimento
do Grupo Germinal:
“As pessoas acampavam e não se importavam muito com a
natureza, apesar de viverem na natureza no acampamento.
Como, por exemplo, os lixos. O lixo produzido por essas
pessoas ficava no mesmo lugar. Essas pessoas acampavam nas
margens do rio e as suas necessidades, ou seja, necessidades
de ... é... biológicas, fisiológicas. E eram também de cozinhar,
lavar a louça, ficava tudo ali. E eu também não tinha noção do
quanto aquilo era nocivo ao meio ambiente. E a minha primeira
atitude foi começar a catar lixo. Catar lixo, catar lixo, e sempre
limpando, limpando...”. [entrevista 2005]
Embora seja admitido o pouco conhecimento sobre o meio ambiente e a
atividade de limpeza descrita quase como um impulso inconsciente, o relato destes
ambientalistas a respeito das iniciativas nas quais eles se dirigiam a outros
freqüentadores das cachoeiras, com apelos para que adotassem o comportamento
julgado adequado no momento de visita àqueles atrativos, revela uma postura de
autoridade e conhecimento, refletida na utilização de verbos como “ordenar”, “nortear”,
“zelar”. Ou seja, quando passavam da simples limpeza a atividades consideradas como
de educação ambiental, aqueles ambientalistas pareciam investir-se de uma autoridade
conferida a eles pelos laços afetivos que haviam estabelecido com a localidade. Esta
atitude perdurou e fortificou-se nos anos seguintes, como veremos.
Esta passagem, da humildade à autoridade, ocorreu quando alguns dos
praticantes da limpeza das cachoeiras decidiram se organizar coletivamente e
começaram a empreender outras ações com o objetivo de diminuir o turismo
considerado predatório. Por exemplo, eles começaram a tentar organizar a visitação de
ônibus de excursões, cujos passageiros costumavam trazer isopores com comidas e
bebidas e utilizar produtos como bronzeadores:
“Eu parava o ônibus, me apresentava. [Se apresentava
como?] Como Matheus, e que desenvolvia um trabalho dentro
40
da comunidade. Dentro dum projeto o qual o nome era
Germinal, que tinha uma perspectiva educativa para o
acampamento. E estava fazendo o ordenamento para essa
visitação. Eu entrava no ônibus, me identificava, e dizia o que
podia e o que não podia. E aí eu trazia essas pessoas pro arraial,
estacionava o ônibus deles e conduzia eles sem nada para as
cachoeiras. [sem nada, você diz, é sem isopor...] É, sem a
chamada farofagem.”
Ou seja, o ambientalista imbuía a si próprio da autoridade de proibir
determinadas práticas e ordenar a visitação das cachoeiras, sem que este poder lhe
tivesse sido atribuído por nenhuma instância pública ou pelos proprietários das áreas de
visitação. Para isso, apoiava-se no argumento de estar desenvolvendo “um trabalho
dentro da comunidade”, no âmbito de um “projeto” de educação para os acampamentos.
Posteriormente, uma artista plástica aderiu ao grupo de ambientalistas e
começaram a realizar “oficinas de educação ambiental” voltadas para o público infantil,
que consistiram na confecção de murais e de uma cartilha de papel reciclado e pintura a
mão de camisetas com temas ecológicos. O grupo passou a ter nome próprio e realizou
algumas atividades, como mutirões de coleta de lixo, gincanas e pequenas
manifestações de “conscientização ecológica”, integradas em grande parte pelas
crianças envolvidas nas oficinas. Neste período, as atividades eram registradas com
fotografias, que depois eram utilizadas na confecção de murais, afixados no caminho
para as cachoeiras e em alguns estabelecimentos comerciais. Entre as crianças de todas
as idades que participavam das atividades, predominavam os filhos de neo-rurais, mas
havia também filhos de famílias de origem camponesa, que passaram a morar no
pequeno centro comercial e trabalhar na construção civil.
Transformado em organização não governamental em 1995, o grupo foi
expandindo suas preocupações ambientalistas a problemas como o saneamento,
iniciando um levantamento da situação das fossas e sumidouros das residências e
comércio; especulação imobiliária, com a comunicação a um órgão público de um
loteamento considerado irregular. E passou a tomar força a idéia de criar uma espécie de
“parque” ou “área protegida”, no vale onde estão situadas as principais cachoeiras.
Naquele momento, começavam a ser travados os primeiros contatos dos ambientalistas,
organizados numa instituição, com órgãos governamentais, especialmente da esfera
41
municipal, através, principalmente, de comunicações sobre irregularidades que eram
chamadas pelos funcionários governamentais de denúncias.
Seguiu-se um período em que estudantes universitários de diferentes áreas se
interessaram em desenvolver atividades e pesquisas em conjunto com a ONG, como
trabalhos para disciplinas em suas faculdades. Estudantes de geografia realizaram um
levantamento topográfico da área das cachoeiras; futuros médicos fizeram um
levantamento parasitológico na população infantil; estudantes de psicologia
revitalizaram as oficinas de educação ambiental para crianças; eu mesma, cursando a
graduação em ciências sociais, desenvolvi um trabalho de final de curso sobre a
utilização da fotografia no âmbito destas mobilizações ambientalistas. Estes estudantes
permaneciam acampados na sede da ONG, situada num terreno cedido por um
comerciante local, durante a realização de suas pesquisas. Para eles, era também uma
oportunidade de realizar seus trabalhos de faculdade desfrutando da estadia num lugar
turístico.
Ao longo do tempo, variou bastante a composição do grupo de pessoas que
trabalhava ativamente na ONG ambientalista. Pode-se dizer que, para cada tipo de
atividade que ia sendo empreendida, pessoas diferentes se interessavam em participar.
No entanto, alguns elementos foram constantes, tais como a participação ativa de um
dos fundadores, em cujo relato a trajetória da instituição se confunde com sua própria
trajetória de vida
48
, e a manutenção quase ininterrupta da atividade, ora voluntária ora
remunerada, de cuidado com a área das cachoeiras do Vale das Águas, chamada de
“monitoramento”.
No capítulo anterior, veio se delineando o apreço dos neo-rurais pela natureza
local. E a escolha de determinados lugares principalmente as cachoeiras do Vale das
Águas como símbolo desta natureza e alvo das preocupações de ordem ambiental.
Esta tendência se manifesta claramente nas primeiras ações da ONG ambientalista local,
48
Ronaldo Lobão fala dos Indivíduos Não Governamentais (ING), que se movimentam de acordo com
seus interesses e ideologias particulares: “Quem ainda não conheceu uma ONG que é formada por apenas
uma pessoa, ou ela fala, age, decide, não em seu nome, mas em nome de sua ONG?” (2006: 214). No
caso da ong ambientalista do local da minha pesquisa, participam das reuniões e tomadas de decisões um
conjunto de pessoas que não moram no distrito, e um fundador residente local. Os demais integrantes da
ong que residem no distrito, que geralmente são a mão de obra local dos projetos e do “monitoramento
das cachoeiras”, não comparecem ou não se pronunciam nas ocasiões de discussões e decisões sobre a
instituição, tampouco na elaboração dos projetos. O fundador residente no local, Matheus, constituía-se
num elo entre os membros não-residentes e os residentes, geralmente monitores nas cachoeiras, além de
desempenhar o papel de “relações públicas” da ong, uma vez que era procurado para tratar de todo e
qualquer assunto relacionado à instituição.
42
direcionadas para a proteção daqueles sítios específicos, contra o turismo considerado
predatório.
Os apelos em favor desta proteção, é preciso notar, se faziam em nome de todo o
distrito: “O Lima é nossa casa, é nossa terra, o respeito pelo lugar é um princípio de
consciência e um dever de todos” (Boletim Vida, publicação da ONG ambientalista,
janeiro de 1999, matéria sobre o trabalho de ordenamento da visitação às cachoeiras);
“O projeto [de ordenamento da visitação às cachoeiras] alcançou os objetivos previstos
para esse verão, estando de parabéns a equipe composta por (...) [8 pessoas], que
estiveram prontos para dar o melhor de si por nossos rios, pela nossa floresta, pelo
nosso Lima (boletim Vida, fevereiro/março de 1999). A freqüência do pronome
“nosso” e suas variações também ajuda a construir a impressão de laços de ordem
afetiva com a localidade ou a parte da localidade escolhida para representá-la (o Vale
das Águas), englobada, nos discursos da ONG, sob o nome do distrito, Lima.
As manifestações de apreço pela localidade e seus atributos naturais se
mesclavam a concepções difusas da necessidade de preservação da natureza “intocada”,
como transparece na crítica a algumas construções e loteamentos, nos periódicos da
ONG: “Continuam as obras e a venda de lotes às margens do rio (...), que além de
agredir a caracterização do ambiente local(...)”; “O proprietário vem
descaracterizando totalmente a biota local(...)”; ou ainda “Ajude-nos a preservar a
natureza e manter a integridade do local” (Boletim Vida, janeiro de 1999).
Mesclavam-se, também, a clamores pela preservação da natureza enquanto
reserva de recursos para as gerações futuras. Por exemplo, a criação de uma RPPN
49
no
distrito, em 1999, com o apoio da ONG, foi associada, no periódico da entidade, à
entrada do distrito em “uma época de mudanças e de conscientização em relação a
necessidade de proteção ecológica através de instrumentos legais que garantam a
integridade do que estamos tomando de empréstimo às gerações futuras
Nesta fase inicial, os integrantes da ONG ambientalista local se aproximavam de
dois tipos, dentre os cinco elaborados por Castells para o movimento ambientalista: o
ambientalismo contracultural
50
, que compartilha idéias dos pensadores da ecologia
49
Reserva Particular do Patrimônio Natural, definida no art. 21 da lei do SNUC (Lei n 9.985/2000).
50
Roszac afirma que “o movimento ambientalista jamais teria ido além da sua orientação
conservacionista se não fossem aqueles que estavam querendo ponderar os limites da sociedade urbano-
industrial. A contracultura redescobriu a ecologia humana como uma força crítica que demandava uma
reavaliação do crescimento econômico, do estilo de vida baseado no consumo e da ciência
antropocêntrica. Encontrou uma nova leitura, ecologicamente fundamentada, do mito do nobre selvagem.
No coração da sociedade industrial, os jovens estavam dignificando as culturas dos povos primitivos,
encontrando uma sabedoria na sua capacidade de viver sustentavelmente no seu habitat. Isto conferiu ao
43
profunda (como Arne Naess), como a prioridade pelo respeito à natureza acima de
qualquer instituição criada pelo homem; e a mobilização das comunidades locais em
defesa do seu espaço, manifestando-se na defesa daquele local específico para o seu
próprio uso e deleite.
2 – A institucionalização e profissionalização dos guardiães da natureza
Ao final da década de 90, cresceu o interesse do poder público municipal em
relação à possibilidade de se criar uma “área protegida” na região. Desde então,
integrantes da ONG foram tomando parte em discussões e negociações públicas e
privadas, que culminaram na transformação do distrito em Área de Proteção Ambiental
(APA), bem como na aplicação de medidas ambientais que precederam e sucederam a
criação da UC.
É preciso abordar, aqui, as atividades específicas desta instituição, no contexto
da criação da UC. Estas atividades consistiram, principalmente, na execução de partes
de dois projetos de aplicação de medidas compensatórias
51
de usinas termoelétricas em
vias de instalação no Estado do Rio de Janeiro: a coordenação local da elaboração do
Plano de Manejo da APA Fase 1 e a parte de educação ambiental de um projeto de
recomposição de matas ciliares e nascentes da bacia hidrográfica
52
.
No presente momento, com o objetivo de conhecer melhor as motivações dos
ambientalistas que, ao longo do tempo, se dispuseram a atuar na localidade reunidos sob
a forma de uma ONG e a trajetória desta organização, procurar-se-á pensar a
participação da organização não governamental nas medidas ambientais locais
supracitadas sob o ponto de vista dos seus integrantes, situando os acontecimentos
locais na trajetória e no processo de constante re-formação da instituição.
2.1 - A ONG e a APA
movimento ambientalista um impulso cultural que foi além do mero gerenciamento de recursos”
(1995:p.xxvii-xxviii).
51
Para Leite Lopes, a noção de “compensação ambiental” tem uma conotação específica, “que é aquela
que tem sido lançada na esteira das privatizações: tratar-se-ia de saldar dívidas ambientais passadas,
monetizadas sob a forma de multas ou indenizações calculadas em processos judiciais, ou ainda
pagamento pela poluição futura, enquanto os investimentos necessários em equipamentos que controlem
a poluição não são efetivados. (...) é algo novo, algo que não era cobrado antes, decorrente da nova
questão ou causa ambiental, apropriada por diferentes atores sociais com interesses diversos” (2004: 278)
52
Projetos são considerados vetores de um planejamento capaz de produzir condutas que levem a
efetivação de resultados específicos” e constituem-se no modus operandi das ONGs “que vivem de
projetos”. (Pareschi 2002 apud Lobão 2006: 235).
44
Nas etapas que sucederam a transformação do distrito em APA, especificamente
no ano de 2002, as assembléias da ONG tiveram seu quorum bastante aumentado, pois
vários outros ambientalistas locais identificavam, naquele momento, a instituição como
a melhor preparada para participar da negociação sobre a aplicação de medidas
ambientais na localidade. Assim, lideranças de outras organizações da “sociedade civil”
local
53
, que também classificavam a si mesmas como ambientalistas, passaram a
freqüentar as reuniões da ONG e mesmo a integrar a sua diretoria e conselho fiscal.
Foi um momento, também, em que as pessoas que vinham se interessando por
questões consideradas ambientais na localidade, seja se organizando em instituições da
“sociedade civil”
54
, seja individualmente, através de reivindicações e denúncias de
irregularidades dirigidas a órgãos públicos e práticas consideradas ecológicas nas suas
propriedades como agricultura orgânica e preservação de matas ciliares se
interessaram em participar de várias instituições da sociedade civil locais, inclusive
tomando parte em suas diretorias, freqüentemente nas diretorias de mais de uma
instituição ao mesmo tempo. Houve, desse modo, uma explosão das organizações da
“sociedade civil” na localidade, com o fortalecimento das existentes e surgimento de
novas entidades, claramente estimuladas pela possibilidade de compor o Conselho
Gestor da unidade de conservação recém instituída.
Dentre estas, quatro organizações, que vieram a compor o Conselho Gestor da
APA a ONG ambientalista, a associação de moradores do distrito, uma associação
comercial e a associação de moradores específica da região do Vale das Águas
possuíam, em seus quadros de diretoria e conselhos, integrantes dos quadros das outras
três organizações. Ou seja, cerca de uma dezena de pessoas constituíam-se nas
lideranças destas quatro entidades que tomavam a frente nas negociações da aplicação
de medidas ambientais no distrito.
53
Da associação de moradores e proprietários do Vale das Águas, da associação comercial e agropastoril
e da associação de moradores do Lima, cuja atuação será analisada no capítulo 3.
54
De acordo com Napoleão Miranda, “a década de 90 tem se mostrado particularmente fértil no tocante
ao fortalecimento, no Brasil assim como em outras partes do mundo, notadamente na América Latina e na
Europa do Leste, de um setor da organização social que tornou-se conhecido como Sociedade Civil.
Ampliando em muito os limites deste termo, tal como ele foi originalmente usado nos séculos XVIII e
XIX, e que se confundia na prática com as relações econômicas e sociais típicas da sociedade burguesa
em luta para se afirmar na Europa implicando, portanto, naquele contexto, a diferenciação e o conflito
com o Estado -, a sociedade civil que se desenha neste final de século se desvincula estritamente dos
interesses econômicos dos mais diversos grupos sociais para incorporar questões e problemáticas que
envolvem direitos humanos e sociais os mais diversos, concepções normativas e valorativas amplas, e,
com freqüência, divergentes, assim como causas de interesse geral, como é o caso da defesa do meio
ambiente e da ecologia, das questões étnicas e de gênero.” (1998: 53)
45
Foi este grupo de pessoas que, naquele mesmo período, passou a participar das
reuniões da ONG ambientalista, somando-se a seus outros integrantes. A atuação destas
pessoas na ONG contribuiu para a organização de atas, balanços, cadastramento de
filiados. Mas, principalmente, constituiu-se numa tentativa de influenciar o
posicionamento da entidade nas questões relativas à APA dentro do Conselho Gestor e,
de um ponto de vista mais amplo, na implementação da UC.
Por exemplo, foi maciça a participação dos ambientalistas locais na assembléia
extraordinária convocada para discutir o posicionamento da ONG diante de uma
proposta de regimento interno para o Conselho Gestor da APA, elaborada pela
secretaria municipal de meio ambiente. Naquele momento, a questão mais polêmica era
se as reuniões do CG seriam abertas ou não à presença de qualquer cidadão, e se estes
teriam direito à palavra, pois o regimento interno proposto previa reuniões restritas aos
conselheiros. Muitos integrantes da ONG eram favoráveis à participação dos cidadãos
comuns, mas os ambientalistas recém filiados, em acordo com um dos fundadores da
ONG, insistiam que a proposta de emenda da ONG recomendasse somente a presença
dos cidadãos, sem direito à voz. A vitória por maioria simples da indicação de
encaminhar uma contra-proposta que recomendasse o direito à presença e voz dos
cidadãos foi fruto do empenho e das idéias democratizantes de integrantes da ONG que
não residiam no local, mas que tinham participação ativa nas reuniões ordinárias (ao
contrário dos integrantes moradores, que, em sua maioria, trabalhavam no
monitoramento das cachoeiras, e não tomavam parte das discussões em assembléias).
Eles conseguiram derrotar a posição dos recém-filiados ambientalistas locais,
integrantes também de outras organizações da sociedade civil, que defendiam reuniões
restritas aos membros do Conselho Gestor.
Esta polêmica, para ser compreendida, precisa ser situada no curso dos
acontecimentos. O ano de 2002 foi aquele em que ocorreram as primeiras medidas
oficiais de implementação da UC, tais como a formação do CG, a elaboração de seu
regimento interno e a elaboração da primeira fase do Plano de Manejo da APA. Foi
também o período em que uma parte da população conseguiu organizar a resistência à
maneira pela qual estas medidas foram implementadas, consolidada numa associação de
produtores e trabalhadores rurais, sobre a qual discorreremos no capítulo quatro. A
tentativa de participação das lideranças desta organização de produtores e trabalhadores
rurais nas reuniões públicas que tratavam das questões relativas à APA teve como
resultado o acirramento dos ânimos e de grandes hostilidades em meio aos
46
ambientalistas locais. Para eles, aquelas pessoas estavam criando obstáculos para as
suas ações, “atrapalhando” a instauração da preservação ambiental na localidade.
Procurando driblar estes inconvenientes, os ambientalistas locais se organizaram de
forma a representar o máximo possível de instituições da “sociedade civil”, obtendo
maioria no CG. E, na sua visão, a ONG ambientalista era a entidade melhor capacitada
para conduzir estas ações:
“Eu acho que o Grupo Germinal cada vez vai precisar
de mais coisas, porque tudo que é meio ambiente hoje passa
pelo Germinal. Tem que funcionar, porque veja bem, um
perigo aí, uma rejeição total, você quem aqui, um
perigo muito grande, vocês não estão vendo o que eu vejo.
Então o Germinal, todo mundo tem que entrar, tem que ampliar
mesmo porque tendo essa ampliação. vindo dinheiro, vem
muito dinheiro pro meio ambiente e todo mundo tem que
fiscalizar isso. (...) Tudo está sendo canalizado pro Germinal, é
uma história que você tem que ficar em cima. (...) O Germinal
veio vindo, isso tudo teve um fruto, agora não pode deixar cair,
porque tem dinheiro envolvido (...) Mas só o que eu quero dizer
é que aqui é uma comunidade onde um enorme índice de
rejeição ao meio ambiente e às pessoas que trabalham com o
meio ambiente. Nós temos que trabalhar em cima disso, com
disciplina.” [Jaime, presidente da associação de moradores do
Vale das Águas, em reunião do Grupo Germinal em setembro de
2002].
Portanto, a presença de outros ambientalistas locais no interior da ONG, que
não os membros que faziam parte da instituição, durante o processo de implantação
da APA, objetivava viabilizar, dentro do CG, a aplicação de medidas ambientais da
forma como eles julgavam adequada. E, também, de organizar a sua própria atuação
frente aos conflitos com os ditos representantes dos produtores e trabalhadores rurais e,
com menor freqüência, a outros opositores que viessem a se manifestar
55
.
55
É preciso notar que, naquele momento, a maneira escolhida para fazer frente a estas disputas foi a de
procurar restringir a presença, o direito à palavra e o acesso a informações por parte daqueles que se
opunham a algumas ou à totalidade das medidas ambientais, condicionando estes acessos aos
representantes de organizações formalmente instituídas e canalizando as discussões para o interior destas
organizações, quando inevitáveis.
47
2.2 - A ONG e os projetos
Para compreender a institucionalização e profissionalização da ONG
ambientalista no contexto local, procuraremos analisar a repercussão interna da atuação
da entidade em dois projetos financiados por medidas compensatórias de usinas
termoelétricas. A participação nestes dois projetos foi interpretada por muitos
integrantes da ONG como uma nova fase do trabalho da instituição, na qual o
envolvimento de maiores quantias de dinheiro foi apontado como o portador de
mudanças na configuração da entidade.
Nesta nova fase, vieram a fazer parte da ONG novos filiados que buscavam,
principalmente, oportunidades de trabalho que viabilizassem sua fixação e/ou
permanência no distrito. Entre os integrantes da instituição, passou a ser delineada com
mais clareza uma oposição entre os ideais ecológicos e o pragmatismo quanto à
necessidade de adequar a ONG às exigências de financiadores. Como aparece no
depoimento de Arthur, que trabalhou no ordenamento da visitação às cachoeiras e como
monitor ambiental no projeto financiado pela termoelética:
“Quando eu entrei no Germinal, é..., foi exclusivamente por
necessidade, mesmo, de ter uma outra oportunidade na
comunidade. Porque, até então, eu vinha como turista. (...) Mas,
com o decorrer do tempo, a gente via, eu, pelo menos, via o lado
ambiental, né?, que era pregado por todos. E com o decorrer, o
passar do tempo, eu fui vendo que os valores foram um pouco
esquecidos. Quando se envolvia grana, quando se envolvia isso,
não sei dizer até o porquê, mas acho que os valores se perdiam
no meio de tudo ali. Eu fiquei por algum tempo, até pela
necessidade de continuar, de receber o meu salário. E por
acreditar em algumas pessoas que tavam dentro. A partir do
momento em que as máscaras foram caindo, assim pra mim, das
pessoas que foram mostrando como é que eram, e que foram se
corrompendo ao decorrer. É... eu cheguei e contestei.”
[Entrevista 2005]
Arthur interpreta a sujeição às exigências dos financiadores como uma atitude
venal dos ambientalistas, que destoava de seus discursos em favor da preservação do
meio ambiente.
48
A primeira participação da ONG num projeto financiado por medida
compensatória foi a coordenação local da elaboração da primeira fase do Plano de
Manejo da APA. Durante cerca de um ano, pela primeira vez, a sede da instituição
funcionou equipada com computador moderno, duas linhas telefônicas e duas
secretárias. A coordenação local, exercida praticamente por um dos membros da
diretoria, auxiliado pelas secretárias, consistia em acompanhar a execução das tarefas
previstas nas rubricas do projeto, tais como os grupos de trabalho que realizaram
estudos sobre a APA, a preparação de um concurso de desenho nas escolas e todo o
processo que levou à escolha de uma logomarca para a APA, a confecção de um novo
sistema de sinalização para o distrito, e assim por diante, tendo sido a ponte entre os
participantes locais e a coordenação externa, realizada pela ONG Viva Rio.
Na prática, essa coordenação local consistia, também, num certo controle e
poder de influência sobre quais seriam as pessoas indicadas para trabalhar no projeto, o
que, sem dúvida, deu início à nova fase em que a participação na ONG passou a ser
vista pela população como oportunidade de trabalho. Não que isto não acontecesse
antes, pois, desde a primeira organização para remover lixo das cachoeiras, tinha-se em
mente a possibilidade de que a atividade viesse a se tornar remunerada. Mas, neste
período específico, esta passou a ser uma característica marcante das novas adesões aos
quadros da entidade.
O segundo projeto deste tipo, no qual a ONG tomou parte, foi o setor de
educação ambiental de um projeto de recomposição de matas ciliares e nascentes da
bacia hidrográfica, de 2004 à primeira metade de 2005. Esta participação consistiu na
elaboração e realização de um curso de “Capacitação de Monitores Ambientais”,
ministrada a cerca de 60 alunos divididos em duas turmas, dentre os quais foram
selecionados 15 para trabalhar no projeto, com atividades de educação ambiental nas
escolas, na casa de cultura do distrito e em locais públicos, tais como eventos com peças
teatrais, gincanas, mutirões de limpeza, etc. Além disto, mudas produzidas por
integrantes da ONG num horto situado na localidade, no interior do uma RPPN, foram
compradas para o reflorestamento, além do poder informal conferido a um diretor da
ONG de selecionar os agentes de plantio que trabalhariam no projeto.
Antes da própria execução do projeto, a análise das etapas da negociação em
torno do seu conteúdo entre os membros da ONG e os financiadores e órgãos
governamentais, durante mais de dois anos, revela bastante a respeito de como as
concepções iniciais dos ativistas da ONG foram sofrendo modificações e restrições para
49
se adequarem aos critérios dos patrocinadores, sob a forma de um projeto, e a respeito
das questões de ordem ética que estas modificações foram suscitando entre os
integrantes da ONG, ao longo deste processo de negociação.
Na segunda metade do ano de 2002, este projeto foi objeto de colocações e
discussões em reuniões da ONG e, também, de conversas informais, inclusive durante
as reuniões de elaboração do Plano de Manejo fase 1. Naquela época, os integrantes
da ONG negociavam a execução, inclusive, da parte técnica de reflorestamento, que
veio a ser executada pela Fundação Instituto Estadual de Floretas (IEF RJ). E eram
dirigidas constantes críticas aos cortes de verba nas negociações do projeto,
especialmente na parte de educação ambiental que veio a ser a parte executada pela
ONG.
Imaginava-se que a ONG Viva Rio, que, naquele momento, coordenava a
elaboração da primeira fase do plano de manejo, viria a ser contratada para gerenciar a
execução geral do projeto, e ela participava, então, das negociações com o IEF e a
empresa de consultoria representante do patrocinador, inclusive encaminhando
demandas da ONG ambientalista local. Uma conversa entre o coordenador do Viva Rio
e um integrante da diretoria da ONG, durante as reuniões locais do Plano de Manejo,
ilustra bem aquele momento das negociações. Negociava-se para que a totalidade das
mudas produzidas pela ong local, num horto situado numa RPPN do distrito, fossem
compradas para o reflorestamento, o que veio a se concretizar parcialmente, pois vieram
a ser utilizadas, também, mudas produzidas pelo horto do IEF. É evidente o empenho do
representante da ONG em “gerar empregos”, o que condiz com o fato de que o ano de
2002 pode ser considerado o início do período em que a participação na ONG era vista
como associada à possibilidade de conseguir trabalho na localidade
56
.
Desde o primeiro projeto, começaram a surgir entre os integrantes da ONG
questionamentos éticos relativos às negociações e execuções das atividades previstas
nos projetos. Por exemplo, na elaboração do Plano de Manejo, foi bastante contestada a
destinação de R$ 10.000,00 para a confecção de uma logomarca para a APA, chamada
de “identidade visual”. Integrantes da ONG reclamavam de uma decisão tomada de
56
Matheus [ONG] Se nós tivermos 70 mil mudas, serão absorvidas (...). E se nós tivermos as 170 mil
[previstas no projeto]?
Boris [Viva Rio] Tudo daqui. Uma coisa que eles colocaram foi a questão do custo do minhocário (...)
Aí eu não quis discutir muito com o IEF (...).
M – Esse tipo de coisa, eles dão continuidade, eles geram emprego.
B – Eles fizeram o orçamento de quanto custava um quilo de húmus.
M É mais barato, mas é uma coisa que não continuidade. Um minhocário não é pra produzir
húmus, é pra educação ambiental, de capacitação. E geração de emprego mesmo também.
50
cima para baixo, sem levar em conta as prioridades locais. Chegaram a ser questionados
os limites da tão aclamada participação comunitária, que não atingia todas as decisões a
respeito do projeto a ser executado.
Os sucessivos cortes na parte de educação ambiental no projeto de
reflorestamento, em vias de negociação, também foram alvo de críticas. Alguns
integrantes da ONG interpretavam estes cortes como a demonstração de que os
financiadores não atribuíam valor algum à educação ambiental, não se importando de
fato com as repercussões das medidas ambientais para a vida dos habitantes locais, mas
somente com a quantidade de árvores a serem plantadas e o tamanho da área do
reflorestamento. A seu ver, vinha-se impondo uma visão da preservação do meio
ambiente como uma compensação quantitativa e biológica, numa área qualquer do
Estado que sofreria o impacto da instalação da termoelétrica. A existência de moradores
e trabalhadores rurais na área a ser reflorestada parecia irrelevante.
Esta perspectiva provocou contestações entre integrantes da ONG que
propunham “uma abordagem sócio-ambiental” da preservação. Os mais utópicos
chegaram a questionar a validade de se preservar o meio ambiente firmando parcerias
com empresas altamente poluidoras, dando a elas o aval e a legitimidade para
continuarem poluindo. No entanto, prevaleceu, na ONG, a visão pragmática que toma
esta forma de financiamento como praticamente o único meio possível de sobrevivência
deste tipo de organização na atualidade
57
. Isto coincidiu, também, com uma adesão de
novos filiados em busca de oportunidades de trabalho, e com o desejo de crescimento da
instituição em termos de quantidade de capital movimentado e do poder de alavancar
oportunidades de trabalho para seus integrantes
58
.
57
Pareschi observa que as “relações entre as ONG's e as entidades financiadoras foram marcadas pela
ambigüidade pois a própria natureza institucional das entidades brasileiras é colocada em cheque a partir
das políticas de financiamento que secundarizam os custos de infra-estrutura e salários dos quadros que
proporcionam a profissionalização das mesmas. Fernandes chamou isso de uma relação paternalista pois a
resistência destas agências de conceder verbas de cunho “institucional” é justificada freqüentemente sob o
argumento de que as verbas para projetos não sejam “desviadas” para gastos burocráticos e por isso
predomina a forma de financiamento via “projetos” (Fernandes, 1985: 27). Esta “forma” de apoio cria um
“tipo de instituição que não é discutido, promovendo conseqüências para a qualidade e efetividade dos
projetos, já que as ONG's do Sul vivem num ambiente instável de financiamento, sendo obrigadas
freqüentemente, a se preocupar mais com a procura de novas fontes de financiamento e a aprovação de
novos projetos do que com a qualidade dos projetos em andamento”.
58
Lená, por exemplo, afirma que a competição das ONGs por “bases” pode ocasionar o estabelecimento
de relações clientelistas justamente pelo fato de as ONGs se colocarem como intermediárias entre
populações locais e agências financiadoras na expressão das “necessidades” daquelas, frente às
prioridades destas, para lograr o financiamento (Lená, 1997: 324).
51
A predominância desta vio o acarretou, todavia, o desaparecimento de
opiniões discordantes entre os demais integrantes da ONG ambientalista, tendo sido
aquele período marcado por acaloradas discussões a cada decisão que vinha sendo
tomada. O discurso de um diretor executivo da ONG, na cerimônia de entrega de
certificados aos monitores ambientais, foi permeado de críticas ao financiador do
projeto e ao órgão estadual que o coordenava. Sua fala, na presença do gerente de meio
ambiente da empresa termoelétrica e de autoridades do órgão estadual, num
determinado nível, parecia refletir as discussões e questionamentos que vinham
ocorrendo no interior da ONG:
“Na pessoa do Marcos Arruda [gerente de meio ambiente
da empresa financiadora], ele é um grande empresário. Uma
pessoa que tem a visão. Que talvez tenha esse carinho de fato
com o planeta, com o meio ambiente. Mas se a [termoelétrica]
está patrocinando projetos deste tipo, ainda não é bem porque
ela quer. É porque para se instalar ela precisa de licença. (...) E,
dentro do sistema político, ele foi obrigado a se curvar ao
sistema político do Estado, o qual estaria gerenciando essa verba
e aplicação.” [Encerramento do Curso de Capacitação de
Monitores Ambientais – 2004]
Matheus procurava demonstrar uma postura crítica em relação à medida
compensatória, contemplando a visão de muitos membros da ong. Seu discurso refletia,
também, a competição com o órgão estadual pelo fornecimento das mudas para o
reflorestamento e pelo aumento da área a ser reflorestada com estas mudas
59
. Refletia,
principalmente, a intenção de gerar empregos para moradores locais, trazendo para a
ONG ambientalista o poder de selecionar estes trabalhadores. Ficava claro, naquela
cerimônia cujo público era constituído majoritariamente pelos alunos do curso
acompanhados de suas famílias, muitos deles ansiosos pela divulgação dos nomes dos
15 escolhidos para trabalhar no projeto, que este poder conferia à ONG, naquela
situação, legitimidade para falar em nome da comunidade diante das autoridades
presentes:
59
“Eu fico triste também quando nós precisamos de no mínimo 200 mil mudas, e quando a gente chega
no horto do IEF, a gente observa que tem somente 14 mil disponíveis. (...) Valores diferenciados para
tamanhos de mudas. E as mudas que nos chegam não nos chegam com a qualidade. As mudas que nos
chegam nos chegam pequenas, mas com o valor daquela muda que seria uma muda de qualidade.”
[Encerramento do Curso de Capacitação de Monitores Ambientais – Discurso de Matheus – 2004]
52
“Nós temos na base de 60 indivíduos da comunidade,
formados e capacitados como monitores. E temos 10 vagas.
Meu Deus, que dor no coração, quando eu vejo um monte de
gente bonita, preparada, pra fazer um trabalho bonito. E cadê o
patrocínio, cadê o financiamento da educação ambiental? Cadê
as condições pra nossa comunidade realmente fazer o que tem
que fazer?”
E este poder e esta legitimidade foram trabalhados com muita habilidade pelo
autor do discurso, que arrancou longas palmas, de pé, ao término de sua fala.
O curso de capacitação de monitores ambientais foi a parte do projeto que a
ONG executou integralmente. Movidos, em muitos casos, pela possibilidade de
trabalhar no projeto, muitos moradores se interessaram em fazer o curso, e o número de
vagas foi ampliado procurando absorver todos que se inscreveram: duas turmas de cerca
de 40 alunos. Para os objetivos desta análise, é interessante notar que as aulas se
constituíram, em diversos momentos, em fóruns de discussão entre os moradores sobre
os problemas do distrito. Dois anos depois das acaloradas discussões que envolveram a
criação da APA, num ambiente de estudo, no qual não estavam sendo disputados
diretamente os recursos advindos da política – como as reuniões públicas realizadas nas
sucessivas etapas de criação e implantação da unidade de conservação -, foi possível
que moradores, na condição de alunos, se pusessem frente a frente para pensar sobre a
localidade.
Vale chamar a atenção para as implicações de alguns aspectos das etapas da
preparação e execução do curso sobre a trajetória e o funcionamento da organização
ambientalista local. O curso foi elaborado e ministrado majoritariamente por integrantes
da ONG de nível universitário e que não residem no distrito, são freqüentadores e
veranistas, e por profissionais do seu círculo de relações pessoais. Dentre os muitos
alunos, estavam os integrantes locais da ONG que trabalham no monitoramento das
cachoeiras (antigamente voluntário, hoje financiado pela prefeitura via uma
cooperativa) e nos empregos locais gerados pelos projetos dos quais a ONG toma parte.
Insuflado, talvez, pela adesão do diretor da escola municipal à ONG, tomando parte na
execução do curso, e pela divulgação da atividade nas escolas, houve grande interesse
de diferentes moradores do distrito em fazer o curso. O Relatório do Curso de
Capacitação de Monitores Ambientais, entregue pela ONG ao órgão estadual, procura
evidenciar os esforços e os resultados no sentido de envolver e mobilizar a
53
“comunidade”, com seus heterogêneos “segmentos sociais”: “É importante ressaltar
também que a ampla mobilização comunitária conquistada pelo grande número de
alunos envolvidos no curso, que acabou com isso atingindo indiretamente um número
significativo de familiares e amigos dos cursistas. Desde modo, por meio do Curso de
Capacitação de Monitores Ambientais, o Sub-Projeto de Educação Ambiental e o [nome
do projeto] tornaram-se, efetivamente, assunto do dia-a-dia na comunidade,
conquistando a simpatia e o interesse de diferentes segmentos sociais certamente uma
etapa fundamental para o processo de mobilização e sensibilização comunitária em
desenvolvimento.” O interesse despertado e a repercussão do curso e do processo de
seleção dos monitores trouxe, de fato, a ONG para muitas conversas quotidianas de
muitos moradores.
No entanto, não é possível dizer o mesmo do trabalho desenvolvido pelos
monitores, tendo havido, também, um número razoável de desistências e sucessivas
recomposições do grupo de trabalho. Com a exceção de um evento público que ofereceu
forró e teatro na praça, as demais atividades foram freqüentadas por um número mais
restrito de pessoas, muitas delas familiares e amigos dos monitores. O conjunto dos 15
monitores, também, veio a se cristalizar, nas etapas finais do projeto, como formado, em
sua maioria, por parentes e amigos, reduzindo o alcance das atividades de educação
ambiental tais como uma espécie de gincana para coletar caramujos, considerados
uma praga exógena; teatro e atividades educativas nas escolas, e assim por diante.
A atividade do horto escola, segundo o seu coordenador (em entrevista), apesar
de capacitar um número pequeno de pessoas, frutificou, pois alguns dos alunos criaram
seus próprios hortos. Ele também comentou o curso como uma atividade de sucesso,
que na etapa do trabalho dos monitores também resultou num número pequeno de
pessoas que passaram a se empenhar com as questões ambientais. Mas, quanto ao
reflorestamento, criticou a atuação do órgão estadual e ainda levantou a possibilidade de
dirigir-se ao Ministério Público para inviabilizar a licença da termoelétrica.
Pode-se observar que a participação nestes projetos trouxe um crescimento para
a ONG ambientalista local, em termos de popularidade e aumento do quadro de filiados,
bastante relacionados às oportunidades de trabalho nestes projetos. A coordenação local
da elaboração do Plano de Manejo contribuiu, também, para a participação na ONG de
outros ambientalistas locais, líderes de outras instituições da sociedade civil, tentando
organizar politicamente a sua atuação no processo de implantação da APA.
54
Neste novo momento da trajetória da ONG, assume ela estilos de atuação que a
aproxima das ramificações do movimento ambientalista que, na tipologia adotada por
Castells, recebem o nome de conservacionistas. O ponto comum das organizações
conservacionistas é a defesa pragmática das causas voltadas à preservação da natureza
mediante o sistema institucional: “a meta a ser atingida na escalada é a preservação da
vida selvagem, sob suas mais diversas formas, dentro dos parâmetros razoáveis sobre o
que pode ser conquistado no atual sistema econômico e institucional” (2002: 145).
Pode-se dizer que, apesar de discussões internas e até mesmo o desligamento de
alguns integrantes, prevaleceu o pragmatismo e a adaptação às regras do sistema
institucional. E que foi desta forma que a organização consolidou sua inserção nas
relações de poder locais, passando a usufruir de benefícios oriundos ou intermediados
pelo poder público e influenciando a construção de novas regras para a gestão do
território e dos recursos. E que contribuiu para esta inserção o poder de alavancar
oportunidades de trabalho para a população local, geralmente distribuídas através de
relações personalizadas, seguindo o padrão em vigor na localidade.
À exceção dos 15 monitores ambientais inicialmente selecionados, as demais
oportunidades de trabalho (agentes de plantio, monitores para o Vale das Águas,
elaboração do item “aspectos abióticos” do Plano de Manejo) foram intermediadas por
um dos diretores da ONG. De uma maneira geral, eram selecionadas pessoas do seu
círculo de relações pessoais, muitas delas compartilhando de sua afiliação religiosa. As
pessoas selecionadas, normalmente, desenvolviam uma espécie de dívida de gratidão
para com este diretor (como observamos na entrevista de Arthur, no início deste
capítulo), saldada por meio do apoio público ao trabalho da ONG em diferentes
circunstâncias. Assim, a seleção das pessoas beneficiadas pelas oportunidades de
trabalho parecia ocorrer tal qual são correntemente obtidos outros benefícios na
localidade (como prestações de serviços e empregos ligados à prefeitura, obtenção de
vagas em hospitais, etc.)
60
.
Por conseguinte, as oportunidades de trabalho assim distribuídas pela ong, por
intermédio de um dos seus diretores, eram interpretadas pela população, de uma
60
A obtenção de um trabalho suscita uma espécie de dívida, situação que apresenta semelhanças com a
“lealdade do voto”, observada por Palmeira: na hora de votar, as pessoas votam na facção em que votam
as pessoas com quem têm compromisso, e/ou se sentem mais comprometidas (1996: 47). Não seria
possível afirmar se, neste caso, a dívida de gratidão das pessoas empregadas pela ong se estenderia a uma
lealdade na hora das eleições mas, sem dúvida, estas pessoas se constituem na base de apoio da ong nas
negociações relativas à implantação de medidas ambientais.
55
maneira geral, como mais uma forma de acesso privilegiado a benefícios, como tantas
outras em vigor nas relações sociais locais.
O processo de seleção de 15 monitores, formados no curso supracitado, para
trabalhar no projeto de educação ambiental, apresentou especificidades reveladoras da
força desta representação a respeito da obtenção de benefícios.
Naquele período, havia uma divisão entre os integrantes da ONG que residiam
na cidade grande e tinham formação universitária encarregados de elaborar projetos,
atas, e que participavam ativamente das assembléias da instituição e os membros da
ong que moravam no distrito embora provenientes das cidades, geralmente tinham
formação escolar menor e se empregavam nos projetos e como monitores no Vale das
Águas. O Curso foi planejado e executado pelos membros da ONG residentes nas
cidades. Conscientes das representações a respeito da obtenção de oportunidades de
trabalho como baseadas em relações personalizadas, por parte da comunidade, os
organizadores do curso decidiram selecionar os contemplados com o “emprego” através
de um sorteio entre os alunos que haviam atendido a todas as exigências do curso de
capacitação (dos 80 inscritos, 53 formados). Mesmo assim, os comentários dos
monitores não selecionados e seus familiares, no dia seguinte da seleção por sorteio
público, iam no sentido de apontar critérios pessoais na seleção dos monitores seja
questionando a honestidade do sorteio, seja ignorando por completo a sua realização.
Desse modo, a partir da observação de um curso em que se mesclaram alunos de
diferentes origens e regiões do distrito, parece que a assimilação da ONG pelos
moradores e a sua inserção nas relações de poder se deu pela acomodação da instituição,
não aos critérios dos financiadores e do governo, mas também pela adequação às
práticas e regras que organizam a vida política local. Ou seja, o Grupo Germinal passou
a ser assimilado pela população como mais um forma de acesso personalizado a
empregos e benefícios.
CAPÍTULO 3 – A SOCIEDADE CIVIL E A APA
Nos dois anos que precederam a transformação do distrito do Lima em APA,
proliferaram as organizações da sociedade civil local, principalmente sob o formato de
associações
61
. Este movimento foi claramente estimulado pela prefeitura, através da
secretaria de meio ambiente, que acenava com a possibilidade de criação de uma área
61
Ronaldo Lobão fez uma boa síntese dos estudos sobre o associativismo no Brasil, desde as associações
livres do período do Império até as ONGs, desde os anos 90 (Lobão 2006: 210-213).
56
protegida no distrito. Era preciso, então, criar organizações que pudessem representar a
comunidade para integrar a “gestão participativa” da unidade de conservação
62
.
Em 1999, foi criada a associação comercial e agropastoril do distrito do Lima,
com uma confortável sede construída na propriedade do fazendeiro Bento, transformada
em RPPN no início daquele ano. E também a associação de moradores da Nascente,
formada por neo-rurais e sem grande apelo popular. No ano 2000, neo-rurais aliados a
uma parte da elite agrária local, vinculada à Igreja Católica, revitalizaram a associação
de moradores do distrito do Lima. Em 2001, começaram os esforços de proprietários do
Vale das Águas (área das cachoeiras) para fundar uma associação local. Estas quatro
associações, o Grupo Germinal (ONG ambientalista local, tratada no capítulo anterior) e
o “segmento religioso” foram escolhidos para representar a “sociedade civil” no
Conselho Gestor da APA, em 2002. Neste período, também, o clube de futebol local,
sediado na propriedade de Airton Rocha (que acesso às cachoeiras do Vale das
Águas), regularizou sua documentação para pleitear uma vaga no CG, mas não foi
contemplado.
A princípio, as lideranças destas organizações da “sociedade civil” pensavam
que o território a ser protegido seria uma área no Vale das Águas, que concentra
atrativos turísticos da localidade - cachoeiras e trilhas. Já no início de 2001, era sabido
pelas lideranças locais envolvidas nas negociações com a prefeitura que a UC recobriria
todo o território do distrito do Lima.
A notícia começou a se espalhar entre os moradores. Em meados de 2001, uma
minuta do texto da lei de criação da APA, elaborada pela prefeitura e discutida com
algumas lideranças locais, “vazou” e foi divulgada entre os moradores, causando revolta
com relação às proibições e restrições quanto ao uso dos recursos naturais. Sucedeu-se
uma mobilização para criação de uma associação de pequenos produtores rurais, núcleo
da resistência organizada à transformação do distrito em UC.
O objetivo mais comum dos moradores e proprietários locais que compuseram
estas organizações era, mais do que tomar parte, não ficar de fora da gestão de uma
unidade de conservação que viria a ser criada na localidade. Pois, para “participar”, era
62
Para Lobão, o associativismo vinculado às políticas ambientais geralmente se constitui “em decorrência
de uma determinada demanda ou, como no caso das reservas extrativistas, por determinação legal. De
fato, as associações são as únicas interlocutoras autorizadas a se relacionar com o Estado ou seus
representantes. E devo deixar claro que essa exclusividade não foi concedida pelos grupos sociais e sim
pelo Estado (...) As associações, no contexto do ambientalismo, são tratadas como intimamente ligadas ao
conceito de comunidade. Elas são vistas como representantes ou são criadas para representar os interesses
de uma comunidade.”. (2006: 206 - 207)
57
preciso fazer-se representar via uma instituição. Dentre estes moradores e proprietários,
havia aqueles que vinham lutando politicamente para implantar medidas de preservação
ambiental no distrito os ambientalistas locais. Engajando-se em diversas instituições,
segundo diferentes critérios como moradores, proprietários, comerciantes,
ambientalistas, etc. -, procuravam assegurar sua influência sobre o posicionamento
destas instituições quanto à gestão da UC.
Do momento da criação da unidade de conservação e formação do seu Conselho
Gestor até o final de 2003, os ambientalistas locais conseguiram representar quatro das
seis organizações da “sociedade civil” no CG – o Grupo Germinal, a associação do Vale
das Águas, a associação comercial e a associação de moradores do distrito do Lima. Foi
um período em que, aliados à secretaria municipal de meio ambiente, os ambientalistas
locais, à frente daquelas quatro organizações, conseguiram determinar os rumos da
implantação da unidade de conservação, através da definição das suas regras internas de
funcionamento (Regimento Interno do Conselho Gestor e a própria lei que criou a APA)
e da formulação de um planejamento (Plano de Manejo) e de uma organização
territorial para a APA (Zoneamento). Assim sendo, neste período inicial, no qual se
acirraram os conflitos relacionados à aplicação de medidas ambientais sintetizadas na
criação da APA, grupos que possuíam interesses em comum, mas que nem por isso
eram indiferenciados, se uniram para fazer frente à oposição e conseguiram estabelecer
a unidade de conservação e as suas principais regras de funcionamento.
As outras duas organizações da “sociedade civil” que compuseram o CG naquele
período a associação de moradores da Nascente e o “segmento religioso” foram
chamadas a comparecer aos diversos fóruns da APA (para elaboração do Regimento
Interno do CG, para elaboração do Plano de Manejo e do Zoneamento), e
compareceram ocasionalmente, mas não chegaram a influenciar as tomadas de decisão.
A única organização que conseguiu elaborar um discurso de resistência ao
processo de implantação da APA foi a associação de produtores e trabalhadores rurais
do distrito do Lima, que não chegou a integrar o Conselho Gestor. Esta associação
reunia uma parcela significativa da população de origem camponesa do distrito em
assembléias lotadas, sob a liderança de dois grandes proprietários aliados a neo-rurais,
que não estavam associados ao ambientalismo local. A associação atuou durante um
curto período, exatamente aquele que identificamos acima como o período de
implantação da APA. O seu curto período de atuação, no entanto, teve o papel de
58
impedir que as medidas ambientais que vinham sendo implantadas ignorassem por
completo a presença de produtores e trabalhadores rurais no distrito do Lima
63
.
As quatro organizações da “sociedade civil” que, naquele período, foram
representadas no processo de implantação da APA por ambientalistas locais, agindo em
bloco para promover a instalação da UC, não constituem, no entanto, um mesmo grupo.
As particularidades da composição de cada uma delas transparecem quando analisadas
em sua trajetória. A partir de 2003, com a APA instalada e começando a operar,
passado o momento em que era necessário fazer frente a toda forma de oposição para
viabilizar a criação da UC, as especificidades de cada uma destas organizações
ressurgiram em conflitos internos ao CG, como veremos no último capítulo. Por isso,
serão analisadas aqui as trajetórias de cada uma das associações que vieram a fazer parte
do CG na sua primeira formação.
1. A associação de comerciantes
O surgimento de uma associação comercial e agropastoril, em 1999, pode ser
tomado como marco inicial do período de organização da “sociedade civil” local
preparatório para a criação da APA. A fundação desta associação foi fruto da aliança
entre alguns neo-rurais favoráveis à implantação de medidas ambientais e um grande
fazendeiro, em cuja propriedade havia sido criada uma Reserva Particular do
Patrimônio Natural (RPPN)
64
com o apoio da ONG ambientalista local, o Grupo
Germinal. O fazendeiro era, também, proprietário de uma loja de materiais de
construção e, vez por outra, contratado pela prefeitura para construir pontes, consertar
estradas, etc. A sede da associação foi construída na sua propriedade e financiada por
ele
65
.
Alguns dos comerciantes militavam em favor da implantação de medidas
ambientais na localidade e da criação de uma unidade de conservação, ou seja, eram
ambientalistas locais. Foram eles que conseguiram arregimentar outros comerciantes
para integrar a associação. À época, um acontecimento considerado trágico contribuiu
para que os comerciantes locais se interessassem em se organizar e administrar a região
dos atrativos turísticos: um acidente com morte por afogamento numa das cachoeiras
justificou a sua interdição pelo Corpo de Bombeiros. Após a retirada dos bombeiros, o
63
A atuação desta associação será analisada no capítulo 4.
64
As RPPNs não se submetem à legislação da APA, pois estão sujeitas a legislação específica.
65
Ao mesmo tempo, era construído um horto para produção de mudas de mata atlântica em sua
propriedade, em parceria com a ONG ambientalista local.
59
proprietário do terreno que acesso às cachoeiras visitadas pelos turistas, Airton
Rocha, cercou e fechou este acesso por alguns dias, durante o mês de janeiro mês de
férias e, portanto, de aumento do fluxo turístico e do faturamento do comércio
66
.
Em janeiro de 2000, logo após o acidente, presenciei uma reunião na recém
inaugurada sede da associação, onde havia cerca de 20 comerciantes donos de
pousadas, campings, restaurantes, lanchonetes, lojas de roupas, etc. -, 3 integrantes da
ONG ambientalista, Grupo Germinal, que não eram comerciantes, e o fazendeiro-
presidente da associação, Bento. A presença dos integrantes da ONG se justifica pela
estreita parceria que vinha acontecendo entre o Germinal e o fazendeiro Bento – a ONG
apoiara a transformação de parte da fazenda em RPPN e vinha colaborando na
administração do horto construído em sua propriedade
67
.
A importância da parceria entre Bento e o Germinal para esta associação era
indiscutível, influenciando até mesmo sua denominação estatutária “associação
comercial, agropastoril e ecoturística do Lima” para englobar o fazendeiro e os
integrantes da ONG. Na fundação desta associação, estiveram em jogo a disposição dos
comerciantes em se unir para gerenciar os atrativos turísticos, evitando novos acidentes
e mantendo as cachoeiras funcionando, a intenção de ambientalistas locais e do
fazendeiro Bento em estar à frente de uma associação para integrar a gestão da unidade
de conservação e a intenção do Grupo Germinal de se manter à frente do
“monitoramento” das cachoeiras.
Na reunião que presenciei, naquele momento crítico que sucedeu ao acidente,
discutia-se a criação de uma espécie de parque particular na área das cachoeiras, com
cobrança de ingresso. A principal medida seria a cotização dos comerciantes para a
construção de um portal de entrada, e discutia-se o que deveria existir neste portal
banheiros, recepção, armários para guardar os objetos cujo porte seria proibido na
cachoeira, lugar para os cachorros (que os turistas tentam levar para as cachoeiras e que
ficariam retidos neste portal), etc. - e quem trabalharia nele pessoas contratadas pela
associação, a Guarda Municipal, ou a ONG ambientalista? Dois integrantes da ONG
ambientalista (universitários do Rio de Janeiro que passavam os finais de semana no
distrito) intervieram em favor da administração do parque por um “fórum comunitário”.
66
Como será analisado no capítulo 6, esta não foi a última vez em que o proprietário Airton Rocha
‘fechou’ o acesso às cachoeiras por dentro de sua propriedade.
67
Esta colaboração entre Bento e o Germinal ocorria através do então presidente da ONG, Matheus, que
era quem negociava com o fazendeiro e selecionava adolescentes da comunidade para trabalhar no horto.
Os membros da ONG que integravam sua diretoria mas não residiam no distrito, eram universitários do
Rio de Janeiro, não chegavam a influenciar as decisões a respeito destes “projetos”.
60
Indiretamente, estava sendo colocada em questão, naquele momento, a continuidade do
Grupo Germinal no “monitoramento das cachoeiras”. E quem administraria a
arrecadação com os ingressos: se os comerciantes se cotizassem para melhorar a infra-
estrutura do Vale das Águas iriam querer dispor do lucro. Além disso, discutia-se o uso
público ou privado da área, se administrada por uma associação de comerciantes ou por
um “fórum comunitário”. Como veremos mais adiante, no capítulo 6, esta discussão
retornará em outros momentos.
A matéria de capa do informativo desta associação, de janeiro de 2000, refere-se
à quantia destinada à empresa municipal de turismo naquele ano e expõe os projetos da
associação para o Vale das Águas - “Desapropriação da área das cachoeiras para criação
do Parque Ecológico, Portal de Entrada, Guarda Parques, Guias Turísticos e Posto de
Informação Turística”; e para todo o distrito - “Restauração da ponte sobre o rio Lima e
dos pontilhões de madeira entre a Barra do Lima e a Nascente (já temos projeto),
melhoria e conservação da estrada (...)”. Pouco depois, a prefeitura financiou a
construção de um portal de entrada, não na entrada do Vale das Águas, mas na entrada
do distrito pela Barra do Lima (o acesso mais utilizado) e a reforma da supracitada
ponte. O fazendeiro-presidente da associação de comerciantes foi contratado para
executar as obras. No texto do informativo, a associação expressa a intenção de tornar
pública aquela área particular, ao mesmo tempo em que reforça a idéia da criação de
uma área protegida, ainda restrita ao Vale das Águas. Ou seja, as reivindicações da
associação expressam o anseio dos comerciantes de evitar que os atrativos turísticos do
Vale das Águas tornassem a ser “fechados” pelos proprietários da região. Ao mesmo
tempo, são propostas obras que vieram a ser realizadas pelo seu presidente, o fazendeiro
Bento. Assim sendo, as reivindicações da associação vão de encontro não às
necessidades dos comerciantes, mas também favorecem a realização de obras pelo
presidente-fazendeiro-construtor, pois a aliança entre comerciantes e aquele fazendeiro
foi essencial para a constituição da entidade.
Paralelamente a estas discussões, a associação firmou uma parceria com a
Prefeitura para sediar a elaboração de um “planejamento do turismo”, conduzido pelo
SEBRAE. Esta atividade durou cerca de 4 meses, e o número de participantes diminuiu,
de cerca de 20 pessoas, no início, até 7, no final. Entre os 7 restantes, estavam um
integrante da diretoria da ONG ambientalista e outro, da diretoria da associação de
moradores, Mara. Outros três integravam a diretoria da própria associação comercial. O
planejamento foi elaborado a partir de reuniões quinzenais na sede da associação,
61
conduzidas por um “facilitador” do SEBRAE, através de metodologias ditas
participativas, baseadas em espécies de dinâmicas de grupo pré-formatadas.
Enumerados os problemas, foram selecionadas como ações prioritárias: “proporcionar
água com qualidade nas residências, criação de um parque ecológico, articular para a
implantação de uma subprefeitura e sensibilizar o poder legislativo para a aprovação de
uma lei de zoneamento, uso e ocupação do solo.”
É importante notar que cinco, daquelas sete pessoas, estiveram diretamente
envolvidas ao longo do processo de implantação da APA, ficando de fora o fazendeiro
Bento e um comerciante que deixou o distrito. Seja representando instituições da
sociedade civil no Conselho Gestor, seja como funcionários do CG ou contratados para
a execução de projetos ambientais, estas lideranças vêm trabalhando pela
implementação da preservação ambiental na localidade. A atividade com o SEBRAE
pode ser vista como um treinamento das pessoas identificadas como lideranças locais,
favoráveis à criação de uma unidade de conservação, para que pudessem atuar segundo
as regras e a linguagem das metodologias da “gestão participativa”
68
.
É também interessante o fato de que, seis anos depois, todas aquelas quatro
metas haviam sido, de certa forma, atingidas. A implantação da subprefeitura, cujo
objetivo era trazer para a localidade (distante da sede municipal) o acesso ao poder
municipal, teria sido alcançada através da formação de um Conselho Gestor com
representantes da prefeitura, presentes no distrito, no mínimo, bimestralmente, para as
reuniões do CG. A diferença de ser um Conselho Gestor é que, além dos representantes
municipais, representantes da “sociedade civil” que, supostamente, participam das
decisões em pé de igualdade com as autoridades públicas.
A criação do “parque ecológico” ter-se-ia transmutado na criação da APA. Esta
mudança não foi sem conseqüências, uma vez que o “parque ecológico” recobriria
somente a região do Vale das Águas, de uso quase que exclusivamente turístico. Com a
APA recobrindo todo o território do distrito do Lima, a população de origem camponesa
da localidade passou a ser diretamente afetada pelas restrições ambientais.
68
Henri Accelrad chama a atenção para “o esforço crescentemente generalizado de criação, em inúmeros
países da América Latina, de projetos voltados para a disseminação de tecnologias de resolução de
conflitos ambientais. Em muitos casos, originários em instituições sediadas em países centrais, voltados
para a “capacitação” de entidades e comunidades de países periféricos, tais iniciativas (...) pressupõem
(...) que a paz e a harmonia deveria provir de um processo de despolitização dos conflitos através de
táticas de negociação direta capazes de prover “ganhos mútuos”. Trata-se de psicologizar o dissenso,
prevenindo conflitos e tecnificando seu tratamento através de regras e manuais destinados a transformar
os ‘pontos quentes” em “comunidades de aprendizado’” (2004:10). No distrito do Lima, o SEBRAE se
encarregou de fornecer esta primeira “capacitação” das pessoas identificadas como lideranças, que
viriam, mais tarde, a atuar no processo de implementação da APA.
62
A lei “zoneamento, uso e ocupação do solo” havia sido estabelecida, através do
zoneamento do Plano de Manejo da APA Fase 1, e da lei de uso e ocupação do solo
elaborada pelo Conselho Gestor e aprovada pela câmara de vereadores. Com estes
instrumentos, os gestores do distrito do Lima, transformado em APA, conquistaram
um poder muito maior para regulamentar o uso do espaço e dos recursos.
o fornecimento de água com qualidade às residências pode ter sido o mote
para o projeto de recomposição de matas ciliares e nascentes da bacia hidrográfica.
Como havia rumores da negociação desta medida compensatória no âmbito estadual,
a meta pode ter sido estabelecida com vistas a obter parte desta verba para o distrito do
Lima, uma vez que algumas das pessoas envolvidas neste “planejamento turístico”
vieram a trabalhar no supracitado projeto.
Teriam aquelas cinco pessoas conseguido mobilizar os demais moradores para,
de maneira participativa, implantar as medidas identificadas por eles, representantes da
comunidade, como prioritárias? Ou estariam os métodos da gestão participativa
conduzindo a metas previamente estabelecidas pelo poder público, talvez em acordo
com algumas pessoas escolhidas para representar a comunidade?
Embora contando com poucos integrantes no momento da criação da APA (final
de 2001), a atuação dos representantes desta associação durante o processo de criação
da UC foi constante. Até 2004, a representação desta associação comercial no Conselho
Gestor da APA foi conduzida por ambientalistas locais, Ivan e Rô. Aliados aos
representantes da associação de moradores do distrito do Lima, da associação do Vale
das Águas, do Grupo Germinal, e do “segmento religioso”, e unidos aos representantes
do governo municipal, constituíram-se num grupo que liderou a implantação da APA.
Em 2004, a diretoria desta associação mudou de mãos, num processo conflituoso
que foi resolvido judicialmente ao final de 2006. Este processo está relacionado às
novas regras de gestão do espaço estabelecidas pelo zoneamento da APA, como será
melhor especificado no capítulo 6. Está relacionado, também, a disputas políticas
anteriores e paralelas aos efeitos da transformação do distrito em unidade de
conservação. E constitui-se num acontecimento propício para a observação de como
estes diferentes níveis das relações de poder se entrelaçam e interagem, com a
agregação de novos atores e o acionamento de diferentes mecanismos.
Um fazendeiro recém-estabelecido no distrito, Julio Bill, construiu, na sua
propriedade, uma pista de motocross, que foi embargada pela secretaria municipal de
meio ambiente por estar situada numa “zona de conservação da vida silvestre”. O caso
63
provocou polêmica nas reuniões plenárias do Conselho Gestor da APA, a partir de
2004, e parece ter sido o episódio que desencadeou uma série de conflitos entre este
fazendeiro e integrantes do CG da APA, como será analisado mais adiante.
Como parte do processo de disputas que se estabeleceu a partir de então, ocorreu
o conturbado processo eleitoral desta associação comercial e agropastoril, que passou a
contar com uma nova diretoria, presidida pelo supracitado fazendeiro, por algumas
lideranças da associação de produtores e trabalhadores (associação esta que construíra a
oposição ao processo de implementação da APA, em 2002)
69
, e mais três comerciantes
locais.
Seguindo as regras estatutárias, a chapa se inscreveu para concorrer à diretoria,
apesar dos protestos dos integrantes da associação com relação ao fato de serem pessoas
que nunca haviam participado da instituição. No dia das eleições, contando com o apoio
de lideranças da associação de produtores e trabalhadores rurais, muitos dos moradores
que freqüentavam as assembléias daquela associação compareceram para votar a favor
da chapa oposicionista, somando-se a moradores da região onde está situada a
propriedade de Julio Bill. Havia automóveis mobilizados para trazer eleitores de locais
mais afastados e “boca de urna” em todo o centro do distrito.
Por parte da chapa sucessora da diretoria, em contrapartida, também parece ter
ocorrido uma caça aos eleitores, com moradores de regiões mais afastadas sendo
buscados em casa para votar, em meio às redes de relações pessoais dos integrantes da
associação com o apoio de lideranças da associação de moradores do distrito, de
funcionários do centro cultural, que sediou as eleições, e da Igreja Católica.
Pela contagem de votos, a chapa de Julio Bill venceu as eleições, mas a chapa
perdedora levou o caso à justiça com acusações de compra de votos e coação dos
eleitores. Apesar disto, a nova diretoria tomou posse, estando apta, inclusive, a
administrar verbas municipais destinadas a realização de eventos. No entanto, a
representação desta associação do CG da APA ficou suspensa, por decisão da plenária,
até a decisão da Procuradoria do Município a favor da diretoria eleita.
Tratou-se de uma disputa entre os ambientalistas locais, que faziam parte da
chapa que perdeu as eleições, e que vinham representando a associação comercial no
processo de implementação da APA desde a fundação desta associação, em 1999, contra
remanescentes da associação de produtores e trabalhadores rurais. Esta última havia
liderado a oposição ao processo de criação da APA. Alguns de seus membros
69
Ver capítulo 4.
64
constituíram novas alianças, com o fazendeiro recém-chegado, Julio Bill, e com outros
neo-rurais (que não haviam integrado nenhuma das associações formadas no distrito até
aquele momento, por diferenças pessoais com os ambientalistas locais). Assim,
conseguiram assumir a direção desta associação.
2 – A Associação de Moradores
Entre as organizações da sociedade civil local que estiveram envolvidas na
implementação da APA, a associação de moradores do distrito é a mais antiga, fundada
em 1983
70
, a partir da iniciativa de alguns neo-rurais. Nos anos 80, esta associação
chegou a mobilizar muitos moradores, de diferentes origens sociais, mesclando neo-
rurais à população camponesa da localidade, e atingiu algumas conquistas, como
ressalta a lavradora e professora aposentada Marieta:
“A primeira associação que foi organizada aqui no Lima
conseguiu alguma coisa, reivindicou ao prefeito sala para o
jardim de infância, mais médico para o posto. Conseguiu
ambulância pro posto, dentista pro posto, a associação pediu e
chegou. As pontes dos córregos. Uma das coisas que havia uma
preocupação muito grande era o cemitério da Barra do Lima.
Isso não foi por conta do prefeito, mas do povo. Um proprietário
da Barra doou mudas para a cerca viva, o povo plantou, passou a
ter mais cuidado com o cemitério através da associação.”
Marieta chama a atenção não para as reivindicações atendidas pelo prefeito,
mas também para a organização do povo viabilizada pela associação. Mesmo tendo sido
fundada por neo-rurais, a associação foi capaz de mobilizar alguns dos moradores de
origem camponesa para objetivos comuns.
Ao final dos anos 80, a mobilização em torno desta associação havia
esmorecido. A instituição continuou existindo, dirigida por uma família de grandes
proprietários ligados à Igreja Católica, a família Miranda, realizando reuniões
esporádicas e geralmente vazias no “grupo escolar”. Neste período, sua atuação
restringiu-se ao encaminhamento de ofícios a órgãos do governo com reivindicações
relativas a cuidados com a estrada, luz elétrica, atendimento no posto de saúde, etc. A
instituição se manteve responsável, também, pela entrega da correspondência, uma vez
70
Acreditamos que na esteira da proliferação de associações de moradores na década de 80, analisada por
Renato Boschi e relacionada aos movimentos sociais urbanos.
65
que não há posto dos correios na localidade. Esta incumbência contribuiu, neste período
de esvaziamento, para que muitos moradores pudessem visualizar a continuidade da
associação, uma vez que todos contavam com este serviço. Além disso, havia o poder
da associação de selecionar um ou dois adolescentes para efetuar a entrega da
correspondência, através de critérios personalizados.
No início dos anos 90, houve um esforço por parte de neo-rurais que haviam
participado da fundação desta associação de moradores para reativá-la, como revela o
depoimento de Mara, comerciante e ambientalista local:
“Eu sempre entendi que uma comunidade que tem uma
associação de moradores tem meio caminho andado pra resolver
problemas de qualidade de vida. Tentamos um tempo
conscientizar a população do que ela [associação] é e o poder
que ela te de fazer acontecer. Mas foi um trabalho árduo, difícil,
e num momento eu acabei cansando.”
Um ano depois desta entrevista, ocorria uma nova tentativa de movimentar a
associação de moradores, insuflada pela perspectiva de fazer parte da gestão da área
protegida que viria a ser criada. As novas diretorias, daí em diante, foram compostas
pela aliança entre quatro neo-rurais três deles integrantes também das diretorias da
associação comercial e da ONG ambientalista – e a família Miranda, que se manteve na
diretoria da associação.
Nesta nova fase da associação, as reuniões, que ocorriam até então na escola
municipal, passaram a acontecer no recém inaugurado centro cultural do distrito
(mantido pela prefeitura)
71
. Esta localização permite a observação e a entrada de
curiosos, muitos dos quais não chegam a se envolver nas discussões. No período
observado (de 2002 a 2005), alternavam-se reuniões ordinárias mensais que chegavam a
60 presentes, e outras com somente uma quinzena de pessoas, ou somente os membros
da diretoria. As grandes mobilizações parecem ocorrer em torno de temas polêmicos:
problemas com a merenda nas escolas municipais; a proposta de implantação de uma
delegacia de polícia no distrito; a festa do distrito, financiada todo ano pela prefeitura
(como em outros distritos serranos do mesmo município). Nestas ocasiões, o público se
compõe, de uma maneira geral, de moradores dos arredores do centro comercial do
71
O centro cultural localiza-se na área comercial e turística do distrito, por onde transitam moradores de
diferentes regiões, em virtude do comércio. As reuniões ocorrem no pátio, ao alcance dos olhares de
quem passa na rua.
66
distrito neo-rurais e ex-lavradores ou pluriativos
72
envolvidos com atividades
turísticas. Os ambientalistas locais que passaram a fazer parte desta associação, devido
ao seu capital cultural, desempenharam papel determinante na convocação de reuniões,
e condução e organização das mesmas, bem como de sua documentação. Assim, houve
uma revitalização da associação, que passou a realizar reuniões mensais que, algumas
vezes, mobilizavam um número razoável de moradores.
Esta associação, após sua reorganização, ficou sendo liderada por ambientalistas
locais e grandes proprietários da família Miranda, ligados à Igreja Católica, que já
dirigiam a associação no período de pouca mobilização. Entre estes ambientalistas
locais estava Mara, que passou a dirigir o Centro Cultural onde ocorriam as reuniões da
associação e, com isso, passou a dispor do poder de selecionar funcionários para o
centro cultural. A aliança com ambientalistas locais proporcionou à família Miranda
uma retomada de seu poder político, uma vez que passou a influenciar a seleção de
funcionários para o centro cultural e a ter algumas de suas reivindicações atendidas por
órgãos municipais, devido à própria revitalização da associação, através de reuniões
organizadas e conduzidas pelos ambientalistas locais.
Ao mesmo tempo, a aliança com a família Miranda conferia credibilidade aos
ambientalistas locais junto à população de origem camponesa da localidade. No
entanto, a freqüência deste setor da população se limitava a moradores do pequeno
centro comercial e residencial, muitos deles ligados a atividades comerciais e turísticas,
embora alguns ainda mantivessem suas “roças”. A influência desta associação não se
estendia aos moradores de origem camponesa dos diversos cantões do distrito do Lima.
A aliança com a família Miranda permitiu aos ambientalistas locais a
representação da associação de moradores do distrito do Lima no Conselho Gestor da
APA. A participação desta associação no processo de criação da APA foi conduzida por
alguns membros da sua diretoria e raramente trazida à tona nas reuniões mensais
supracitadas. A titularidade da representação da associação de moradores do distrito do
Lima, de 2002 a 2003, coube à neo-rural e ambientalista local Lúcia, que alternava
períodos de residência na Região dos Lagos (RJ) e no distrito do Lima. A suplência
72
Pluriativos são pequenos agricultores que combinam a agricultura com outras fontes de rendimento
(Graziano da Silva, 1996). Carneiro sugere um movimento de reorientação da capacidade produtiva da
população residente no campo, que se expressa em novas formas de organização da atividade agrícola,
como uma alternativa ao êxodo rural, ao desemprego urbano, e ao padrão de desenvolvimento agrícola
dominante (1998: 56). No caso do distrito do Lima, membros das famílias de moradores cuja tendência
seria migrar para a cidade em busca de trabalho permanecem na localidade, empregados no atendimento
ao turismo. lavradores que mantêm suas roças, ao mesmo tempo em que trabalham como pedreiros,
ou mesmo constroem suítes e casas para aluguel em seus terrenos.
67
coube a Darcy Miranda, proprietária de terras e de uma pousada, filha de Alcina
Miranda, representante do “segmento religioso” no Conselho Gestor pela Igreja
Católica.
Durante o ano de 2004, um racha entre Lúcia, que representava a associação no
CG, e os demais ambientalistas locais que integravam o CG, por motivos pessoais,
levou à saída de Lúcia da associação de moradores. Aquela circunstância possibilitou
que um casal de neo-rurais recém-estabelecidos no distrito, Paulo e Lena Albuquerque,
que vinha participando das reuniões ordinárias e realizando alguns projetos em parceria
com o centro cultural, assumisse a representação desta associação no CG. Eles eram
amigos pessoais do proprietário do terreno de acesso às cachoeiras, Airton Rocha.
Haviam, anteriormente, tentado obter uma vaga para representar o clube de futebol local
no CG. Sua curta atuação no CG foi marcada por um discurso crítico ao distanciamento
da APA e do Conselho em relação à população nativa do distrito, caracterizada por eles
como “pobre”, “isolada nos cantões” e “analfabeta”, e em favor da “valorização do
homem do campo”.
Em 2005, a representação desta associação no CG foi retomada nos moldes da
aliança anterior, entre ambientalistas locais e a família Miranda, ficando a cargo de
Darcy Miranda, que teve Mara, diretora do centro cultural, como suplente.
3 – Associação do Vale das Águas
A região do Vale das Águas parece, hoje, um anexo, contíguo ao pequeno
centro comercial do distrito, que concentra os principais atrativos turísticos do lugarejo:
cachoeiras e trilhas. Foi nesta região que os primeiros neo-rurais se fixaram no distrito,
na década de 70, adquirindo propriedades e transformando o uso de terrenos que, antes,
eram cedidos em meação para a agricultura familiar. Atualmente, a região está
constituída por vários sítios, cujos proprietários moram em cidades e os utilizam para
veraneio. Alguns poucos fixaram residência no local, dois deles criando áreas de
camping. A maioria dos trabalhadores rurais da região, pouco numerosos, estão
empregados como caseiros. três famílias de moradores que se denominam
“colonos”, na propriedade de um sitiante veranista. Eram antigos “terceiros”, idosos,
que permaneceram como moradores que não precisam dar a terça parte da produção
ao proprietário.
68
Ao longo do ano de 2000, partiu dos proprietários de origem urbana, neo-rurais e
veranistas, a iniciativa de constituir uma associação para representar esta região,
considerada a mais importante do distrito, em termos turísticos. Na visão de muitos
comerciantes, sem aquelas cachoeiras não turismo, como transparecera nas reuniões
da associação comercial, ainda em 1999. Foi criada, então, a associação de “moradores
e proprietários” do Vale das Águas. Como outras que surgiram no distrito, neste
período, havia uma intenção inegável de garantir um lugar ao sol na gestão da unidade
de conservação que viria a ser criada. Esta associação foi citada nos informativos da
ONG ambientalista e da associação comercial como parceira no projeto de
monitoramento das cachoeiras. E, no jornal bimestral do distrito, que foi fundado quase
que concomitantemente à criação da APA com financiamento municipal, manifestou-se
duas vezes em favor do ordenamento do turismo no Vale das Águas. Ou seja, havia a
intenção de unir os demais proprietários do Vale das Águas (e não Airton Rocha,
proprietário do terreno que acesso às cachoeiras) para influenciar as decisões a
respeito dos atrativos turísticos e do monitoramento das cachoeiras. Nestas discussões, o
projeto desta associação para os atrativos do Vale das Águas coadunava com os
interesses manifestados pela ONG Germinal e pela associação comercial, em desacordo
freqüente com o proprietário Airton Rocha. Portanto, além de integrar o grupo de
ambientalistas locais empenhados na implantação da APA do Lima, as lideranças da
associação do Vale das Águas, proprietários de terrenos da região, pretendiam fazer
frente a determinados posicionamentos de Airton Rocha quanto ao gerenciamento dos
atrativos turísticos.
A discussão a respeito da utilização das cachoeiras do Vale das Águas esteve na
origem e permeou todo o processo de implementação da APA do distrito do Lima.
Projetos, acordos e desacordos referentes àquela região figuravam nas pautas de
reuniões da ONG ambientalista local desde 1996, e da associação comercial fundada em
1999.
A fundação da associação de moradores e proprietários do Vale das Águas, a
partir da mobilização de ambientalistas locais, proprietários de tios nesta região,
aliados a outros proprietários de terrenos no mesmo vale, pretendia influenciar as
decisões sobre a gestão daqueles atrativos turísticos, além de tomar parte na gestão da
APA como um todo. No entanto, o proprietário do principal terreno no Vale das Águas
(que dá acesso às cachoeiras), Airton Rocha, nunca chegou a participar ativamente desta
associação. Isto aconteceu por rivalidades pessoais entre Airton e alguns dos integrantes
69
da diretoria da associação, mas principalmente pelo posicionamento destes diretores
como ambientalistas locais, aliados à ONG Grupo Germinal e à secretaria de meio
ambiente na implementação da APA. Como já foi visto quando analisamos a associação
comercial, a ONG propunha uma utilização pública daqueles atrativos e pretendia se
manter à frente do “monitoramento” das cachoeiras. Já Airton Rocha apresentava o
projeto de cobrança de ingresso às cachoeiras e criticava alguns aspectos do trabalho de
monitoramento realizado pela ONG.
Assim sendo, durante todo o período analisado, a atuação desta associação no
processo de implantação da APA do distrito do Lima foi conduzida por ambientalistas
locais que eram, ao mesmo tempo, proprietários de terrenos no Vale das Águas.
A aliança destes proprietários com os demais ambientalistas locais e com a
secretaria de meio ambiente proporcionou a esta associação determinadas facilidades no
processo da sua institucionalização. Em setembro de 2002, com representantes
atuando como conselheiros (como será visto logo adiante) na gestão da APA, as
providências burocráticas para o registro da associação eram ponto de pauta da reunião
ordinária bimestral da entidade, com 6 presentes – 4 proprietários de sítios e integrantes
da diretoria, sendo 2 veranistas e 2 neo-rurais, e dois empregados destes sitiantes. O
registro oficial aconteceu no mês seguinte, às vésperas da oficialização do CG.
Ou seja, a associação do Vale das Águas, mesmo sem dispor da documentação
exigida no momento da formação do Conselho Gestor, foi considerada apta a ocupar
uma cadeira no CG. No momento da homologação do conselho pelo prefeito, esta
associação já se encontrava devidamente registrada. Assim sendo, a aliança pela criação
da APA permitiu que esta prerrogativa fosse utilizada pela associação. Outras
organizações locais, como a associação de produtores e trabalhadores rurais do Lima
(que liderou a oposição ao processo de implementação da APA), não contaram com a
mesma tolerância.
4 – Associação da Nascente
A região da Nascente é cortada pela estrada municipal, que atravessa o distrito
longitudinalmente. É a mais distante em relação ao município vizinho pelo qual é feito o
acesso à localidade. nesta região uma escola municipal e um sub-posto de saúde,
remanescentes de uma expansão da infra-estrutura e dos serviços municipais ocorrida
no final da década de 80, quando o acesso ao distrito pelo outro extremo da estrada
municipal, vindo dos distritos serranos, ainda era bastante utilizado. Atualmente,
70
predominam na região a pecuária, o cultivo de banana, pousadas confortáveis e casas e
sítios de veraneio. Trata-se, portanto, de uma região isolada das demais devido à
precariedade dos transportes e das comunicações, que apresenta suas especificidades
um turismo mais elitizado que se estabelece em pousadas e sítios de veraneio (não
campings nesta região); a ausência de vida noturna; a presença de pequenos produtores
e trabalhadores rurais, muitos deles envolvidos também em atividades turísticas.
Ao final da década de 90, ocorreram mobilizações para a constituição de uma
associação de moradores da localidade, que não chegou a ser registrada, tampouco
contar com uma diretoria estruturada. As duas principais lideranças foram um grande
proprietário e um filho de comerciantes da região, que se intitulava o “presidente” da
associação. No início do ano de 2000, alguns neo-rurais se uniram a dois proprietários
de terras para reestruturar a associação, com vistas, também, a tomar parte da gestão da
unidade de conservação que viria a ser criada no distrito. Em agosto, foi oficializada a
existência da associação, através de uma ata de constituição e da aprovação de um
estatuto. Em setembro, ocorreram as eleições, prestigiadas por cerca de uma dezena de
moradores, nas quais este novo grupo venceu, por ampla maioria, a chapa liderada pelo
antigo “presidente”.
Entre a eleição e o registro formal, em 25 de janeiro de 2001, problemas tais
como acusações de requisição de benefícios em nome da associação para uso particular
e realização de eventos considerados barulhentos resultaram na deposição da presidente
eleita. O registro foi realizado em nome da segunda diretoria composta pelos
mesmos membros da anterior, cada um “subindo” um cargo, e completada por um dos
membros do conselho fiscal. Durante o seu mandato, as principais atividades desta
diretoria foram a realização de uma festa junina e a organização, em parceria com a ong
ambientalista Germinal, do monitoramento de uma cachoeira que começava a se
constituir em atrativo turístico, durante um feriado. Além disso, o trabalho consistiu,
basicamente, no envio de ofícios a órgãos públicos e empresas prestadoras de serviços
de energia elétrica, telefonia, coleta de lixo, transporte coletivo, segurança,
monitoramento da qualidade da água, iluminação e construções públicas, solicitando
melhorias infra-estruturais e a manutenção da escola, do posto de saúde e do cemitério
locais. O resultado destes esforços foi a regularização da coleta de lixo, a obtenção de
uma ambulância para o sub-posto de saúde e obras de iluminação e calçamento da
praça. Quando solicitado pela secretaria municipal de meio ambiente e pela secretaria
de educação, a associação enviou representantes para as discussões a respeito da APA e
71
do centro cultural, respectivamente. E deu início a um cadastramento dos produtores
rurais da região, em parceria com a secretaria municipal de agricultura, que não foi
concluído. Segundo os integrantes da diretoria, o trabalho foi todo realizado por eles,
pois encontraram grande dificuldade em mobilizar a população local para participar de
reuniões e atividades. Somente dois temas, em momentos específicos, teriam sido
responsáveis por assembléias “lotadas”: “luz no campo” e “segurança”.
Em setembro de 2002, uma nova diretoria foi eleita por aclamação, num
contexto de pouca mobilização. Mantiveram-se dois membros da diretoria anterior e
entraram três pessoas não residentes no local, que o freqüentam nos finais de semana
dois, filhos de proprietários rurais locais que trabalham em cidades grandes e um filho
de um veranista. Naquele momento de pouca mobilização, um dos argumentos
destacados no processo eleitoral - na comunicação para formação de chapas e
convocação para as eleições era a importância da manutenção da associação para
conservar uma cadeira de conselheiro no CG da APA.
Em 2004, aquele primeiro “presidente” da associação da Nascente, de quando a
instituição ainda não havia sido registrada, nem começado a atuar formalmente,
constituiu uma chapa e venceu as eleições. Em 2005, a associação teve uma atuação no
âmbito do CG da APA, reivindicando atenção aos moradores atingidos pela construção
de uma estrada na Fazenda de São João, onde foi implantado um projeto de
“agroecologia”, como veremos no capítulo 6.
Assim sendo, a associação de moradores da Nascente foi, de início, conduzida
por neo-rurais aposentados que residiam no local e que buscavam melhorias infra-
estruturais para a região. Estes neo-rurais não se aliaram aos ambientalistas locais no
processo de implementação da APA, tampouco conseguiram mobilizar muitos
moradores para tomar parte nos trabalhos da associação. Dessa forma, sua atuação
restringiu-se ao encaminhamento de reivindicações tanto à Prefeitura quanto ao
Conselho Gestor. Ao final de 2002, o representante desta associação no CG encaminhou
ofício com críticas à falta de participação popular e de qualidade técnica na elaboração
no Plano de Manejo da APA, mas a associação não possuía força política para
apresentar qualquer forma mais eficiente de resistência ao processo em curso no distrito.
Em 2005, a diretoria da associação da Nascente foi assumida por uma chapa
liderada por um presidente proveniente de uma família de origem camponesa. Ao
mesmo tempo, a implantação do projeto de uma “fazenda agroecológica” na região da
Nascente trouxe risco de inundação das casas de alguns moradores. Estes fatores
72
contribuíram para uma maior mobilização em torno desta associação, que fizeram com
que suas reivindicações fossem tomadas mais a sério pelos gestores da APA. No
entanto, à exceção da questão pontual relativa a este projeto, a associação da Nascente
continuou sem força política para influenciar as tomadas de decisão relativas à unidade
de conservação, embora fizesse parte do Conselho Gestor.
5 - A formação do Conselho Gestor da APA
As instituições municipais e civis que viriam a integrar o Conselho Gestor da
APA (CG) foram definidas, publicamente, em março de 2002, numa reunião local
coordenada pela secretaria municipal de meio ambiente. No entanto, o CG só veio a ser
oficializado pelo prefeito em outubro daquele ano. O conselho ficou sendo presidido
pelo secretário de meio ambiente e formado por quatro secretarias municipais
(agricultura, meio ambiente, interior e obras) e duas empresas municipais (turismo e
saneamento), representando o setor governamental; representando a sociedade civil,
ficaram a ONG ambientalista Grupo Germinal, a associação de comerciantes, a
associação de moradores do Lima e as duas associações de moradores regionais (Vale
das Águas e Nascente) e, ainda, um representante do “segmento religioso”, cuja
titularidade coube à Igreja Católica e a suplência, à Igreja Batista.
A reunião local para definição dos integrantes do CG foi palco de grandes
confrontos verbais. O local da reunião, o centro cultural local, encontrava-se lotado,
com muitas pessoas em pé e até assistindo à reunião do lado de fora.
A secretaria do meio ambiente, único órgão público presente ao evento,
constituía a “mesa” e havia trazido uma proposta, definindo de antemão os integrantes
do conselho, até então 5 civis e 5 municipais (estavam de fora a secretaria de interior e o
“segmento religioso”). As 5 entidades da sociedade civil selecionadas haviam trazido
para a reunião o nome dos escolhidos, titular e suplente, para serem seus conselheiros.
Para as vagas municipais do CG, foram trazidos pela secretaria somente os nomes dos
órgãos municipais, sem indicação das pessoas. As entidades da sociedade civil
haviam trazido seus representantes escolhidos, devido aos constantes pedidos de
urgência por parte da secretaria, segundo o qual a nomeação do CG era iminente. As
instituições municipais, no entanto, não demonstravam o mesmo empenho com a
agilidade do processo.
Airton Rocha, proprietário do terreno que acesso às cachoeiras do Vale das
Águas, pleiteou vaga no conselho para o clube de futebol local, sediado em sua
73
propriedade, alegando ser uma instituição de grande aceitação da população. Esta foi,
também, uma maneira encontrada por Airton para ter seus interesses representados no
CG, uma vez que ele era proprietário de um terreno considerado estratégico e
apresentava divergências com outras instituições locais, como a associação do Vale das
Águas e o Grupo Germinal. O clube de futebol levou para a reunião a documentação
exigida e seus representantes escolhidos, Lena e Paulo Albuquerque, um casal de
neo-rurais recém-estabelecido na localidade e que possuíam relações pessoais de
amizade com Airton Rocha. No entanto, foi negada uma vaga ao clube de futebol, sob o
argumento de que o “segmento esportivo” não era uma instituição “essencial” e poderia
ser “contemplado num outro momento”.
Cerca de seis pessoas, três delas futuras lideranças da associação de produtores e
trabalhadores rurais então em vias de constituição, fizeram colocações a respeito da
transformação do distrito em APA, como um processo sobre o qual a maioria da
população não havia sequer sido informada, especialmente a população mais pobre e os
trabalhadores rurais. Alguns deles se referiram a esta parcela da população como o
verdadeiro povo do lugar e ao conjunto de pessoas que lideraram a implantação local da
APA como de fora. Estes pronunciamentos despertaram longos aplausos. E também
algumas vaias
73
.
Diante disso, os ambientalistas locais - alguns deles encarregados de representar
no CG da APA o Grupo Germinal, a associação do Vale das Águas, a associação
comercial e a associação de moradores do Lima - se uniram às autoridades municipais
na defesa da criação da UC, enfatizando a necessidade de união da população da
localidade e os prováveis recursos financeiros que seriam atraídos para a APA. Estas
lideranças foram, então, chamadas pelos questionadores de “tropa de choque do
governo”, e foi levantada a acusação de que muitos deles seriam empregados da
prefeitura via uma cooperativa terceirizada, o que os desqualificaria pra representar a
população dentro do CG
74
.
73
A informação sobre quem aplaudiu e quem vaiou seria esclarecedora, mas este foi o primeiro evento
público que presenciei desde minha chegada ao campo para a pesquisa do Mestrado e eu ainda não
conhecia as fisionomias de todos. Inclusive, antecipei a minha chegada quando meus informantes,
integrantes da ONG ambientalista local, me alertaram sobre a importância da reunião, que esperava-se
que fosse decisiva para o futuro dos moradores da localidade.
74
Outra dimensão relevante das ONG diz respeito a seu financiamento. A idéia de um “terceiro
setor” local, organizando-se e encetando uma ação coletiva em direção aos seus objetivos, não encontra
eco na realidade. Vemos como modelo geral um sistema de financiamento que é estatal na maioria dos
casos – estados nacionais ou estrangeiros. Quando não estatal, sua fonte são recursos internacionais
que tiveram origem em renúncia fiscal em seus países sede. ” (Petras & Veltmeyer,
2003, p. 133). Lobão faz uma ligação com o conceito de Projetismo, discutido. “O conceito de
“sociedade civil” seria desprovido do sentido virtuoso que lhe é assegurado.
74
Quanto aos questionamentos relativos à ausência de representantes do
verdadeiro povo do lugar, a secretaria apresentou a proposta de criação de mais uma
vaga no CG para um suplente e um titular representando o “segmento religioso”. Para
manter a “paridade”, foi acrescentada ao rol dos representantes do governo municipal a
secretaria de interior. Foi enfatizada a necessidade de urgência para indicação dos
nomes dos representantes religiosos, marcada para dali a uma semana, pois logo seria
feita a homologação pelo prefeito. E assim ficou definida a composição do CG. A
reunião acabou em balbúrdia, sem que houvesse votação ou anúncio da decisão que
havia sido tomada.
Na semana seguinte, foi colocado que a reunião seria restrita aos “membros do
conselho e a pauta era a elaboração de um regimento interno para o CG, que previa
reuniões bimestrais restritas aos conselheiros e possíveis técnicos que viessem a ser
convidados. Estavam presentes o secretário do meio ambiente e futuro presidente do
conselho, a futura conselheira representante da secretaria do meio ambiente, e
representantes das organizações da sociedade civil locais indicadas para fazer parte do
CG, inclusive os representantes do “segmento religioso”. A presença de outros
cidadãos, Margarida e Miguel Ângelo, que viriam a liderar a associação oposicionista
(de produtores e trabalhadores rurais), foi colocada pela mesa como aceita como uma
demonstração de tolerância e democracia. Eles questionaram a definição dos integrantes
do CG sem votação na reunião anterior, mas seus questionamentos não foram levados
em consideração. Ao contrário da reunião anterior, não havia umpúblico” assistindo à
reunião, estavam presentes os indicados para compor o CG, o que permitiu esta
postura da mesa. Esta observação fornece elementos para compreender por que os
representantes da população de origem camponesa tanto clamavam por reuniões
“abertas”: reuniões formadas pelos indicados para compor o CG possibilitavam que
as colocações críticas fossem desconsideradas pela maioria dos conselheiros.
Até aqui, a observação do processo que conduziu à transformação do distrito do
Lima em Área de Proteção Ambiental e da formação do Conselho Gestor deliberativo
da UC, passando pela organização e constituição das organizações da “sociedade civil”
que vieram a integrá-lo inicialmente, permite alguns apontamentos.
De fato, mesmo incorporando um ideário positivo, ou de esquerda, ele ainda é na maioria dos casos
exógeno e incompleto. Empoderamento, igualdade de gênero, desenvolvimento sustentável são conceitos
que acabam por servir como um arcabouço de colaboração com órgãos e agências do estado e dos
financiadores (Lobão 2006: 213-214). No caso do distrito do Lima, há indicações de que as contratações e
empregos gerados na esfera municipal comprometam a capacidade de determinadas lideranças da
“sociedade civil” em expressar os descontentamentos da população.
75
Como nas experiências de envolvimento público e participação popular no
controle da poluição industrial, que, segundo Leite Lopes, constituem-se “numa base
não desprezível para o aprendizado e para o estímulo generalizado à participação dos
cidadãos na melhoria do meio ambiente e de suas condições de vida” (2004: 250),
observa-se que, no distrito do Lima, a implantação da gestão participativa na APA
estimulou a formação ou reorganização de organizações da sociedade civil com base no
incremento da participação de uma parte da população na melhoria do meio ambiente e
de suas condições de vida.
Como vimos, a proliferação das associações e a seleção de algumas delas para
compor o Conselho Gestor da APA contribuíram para o “empoderamento” de, pelo
menos, um determinado conjunto de pessoas os ambientalistas locais -, que passou a
tomar parte na criação e implementação de novas regras para a gestão do espaço e dos
recursos. Ficou claro que, pelo menos no período inicial de implementação da APA, nas
quatro organizações da “sociedade civil” que vieram de fato a tomar parte nas decisões,
havia um conjunto de no máximo uma dezena de pessoas que se revezava na
composição das suas diretorias e tomava a frente das negociações em torno da unidade
de conservação. E que este conjunto era composto por pessoas semelhantes quanto à
origem urbana e à opção por se estabelecer no distrito, além, é claro, da sua simpatia ou
adesão pelo movimento ambientalista
75
.
Como nos casos analisados pelo grupo de pesquisa de Leite Lopes no estado do
Rio de Janeiro, além do movimento ambientalista representado neste caso pelo Grupo
Germinal -, diversas associações de moradores passam a atuar na questão ambiental (do
Vale das Águas, do Lima, da Nascente). Além disso, no distrito do Lima, somaram-se
às associações de moradores uma associação de comerciantes
76
.
75
As primeiras iniciativas ambientalistas daquelas pessoas que, mais tarde, vieram a atuar em conjunto e
constituir a base das associações fundadas no final dos anos 90 os ambientalistas locais - foram
denúncias de desmatamentos considerados “irregulares” no distrito do Lima, durante os anos 80,
encaminhadas de forma individual, porém, cada vez mais articulada. À exceção de Matheus, do Grupo
Germinal, os futuros ambientalistas locais integravam, à época daquelas denúncias, uma associação
ambientalista do município, fundada na esteira de campanhas populares contra os abusos da indústria
petrolífera no município (ver Cozzolino: 63). A militância naquela associação, na sede do município,
possibilitou que os ambientalistas que residiam ou eram proprietários no distrito do Lima se conhecessem
e até mesmo estabelecessem laços de amizade, passando a articular suas denúncias e ações de caráter
ambiental pensadas para o distrito.
76
A atuação destas organizações apresenta semelhanças com aquelas tratadas pela literatura, envolvendo
as mesmas questões não resolvidas: a preocupação com a “manipulação” do movimento por políticos ou
administrações, que lançariam mão da “legitimidade e do “prestígio” das associações; e o problema da
representatividade, que se torna crítico quando um ou alguns poucos militantes representam o
“movimento”, uma vez que a dinâmica da participação em conselhos e fóruns dificulta a permanente
76
A seleção das instituições, do poder público e da “sociedade civil”, para compor
o Conselho Gestor da APA, atende os critérios da legislação, mas não deixa de se
constituir numa apropriação local destes critérios, uma vez que eles são bastante gerais e
deixam uma considerável margem de arbítrio para o órgão criador da unidade.
As instituições que representam o poder público, que poderiam ser de diversos
tipos
77
, são todas secretarias e empresas municipais. A seleção destas instituições ficou a
cargo do presidente do conselho, o então secretário de meio ambiente Francisco Pinto,
que a justificou de forma sucinta na reunião de formação do CG, em março de 2002:
“Bom, meio ambiente é obvia, porque a APA é pra proteger o
meio ambiente. Obras, porque sempre precisa de obras no Lima.
Turismo porque é a vocação do lugar, e saneamento é
indispensável. Agricultura, porque tem agricultura. E interior
porque aqui é interior.”
Desde aquele primeiro momento a 2006, houve questionamentos por parte da
“sociedade civil organizada” quanto à necessidade de se incluir as secretarias de
educação e saúde, mas a presidência sempre protelou esta escolha para momentos
futuros. É possível imaginar que esta seleção tenha sido estabelecida com base nas
alianças do próprio secretário de meio ambiente, e não nas atribuições formais dos
órgãos municipais.
As organizações da sociedade civil, que também poderiam, de acordo com a
legislação
78
, abranger um espectro mais amplo de entidades, restringiram-se,
primeiramente, às instituições com sede no distrito. O critério assumido publicamente
pela secretaria de meio ambiente era o de que qualquer organização local poderia fazer
parte do CG, desde que dispusesse da documentação exigida. Este critério excluía a
associação de produtores e trabalhadores rurais, que ainda estava em vias de
constituição. Ao mesmo tempo, a documentação em dia não foi suficiente para que
fosse incluído no CG o clube de futebol local, sediado na propriedade de Airton Rocha.
consulta às bases. “É nessa dificuldade que se originam as suspeitas confirmadas ou não de cooptação dos
membros dos movimentos e das próprias entidades” (Lopes e alli 2004: 248).
77
Decreto nº 4.340, de 22 de agosto de 2002. Capítulo V – Do Conselho. Art. 17.
- A representação dos órgãos públicos deve contemplar, quando couber, os órgãos ambientais dos três
níveis da Federação e órgãos de áreas afins, tais como pesquisa científica, educação, defesa nacional,
cultura, turismo, paisagem, arquitetura, arqueologia e povos indígenas e assentamentos agrícolas.
78
- A representação da sociedade civil deve contemplar, quando couber, a comunidade científica e
organizações não governamentais ambientalistas com atuação comprovada na região da unidade,
população residente e do entorno, população tradicional, proprietários de imóveis no interior da unidade,
trabalhadores e setor privado atuantes na região e representantes dos Comitês de Bacia Hidrográfica.
77
Além disso, a associação do Vale das Águas veio a regularizar sua fundação em
outubro de 2002, às vésperas da nomeação oficial do CG. À época da reunião pública de
formação do CG (em março), não dispunha, portanto, da supracitada documentação.
Isto, no entanto, não veio a público, e a associação do Vale das Águas foi tomada como
apta para integrar o CG. Assim sendo, é possível observar que os critérios impessoais
ditados pela legislação foram apropriados de acordo com os interesses da aliança que
conduzia a implantação da APA, selecionando organizações aliadas e excluindo
organizações oposicionistas.
Dentre as seis organizações selecionadas para compor o CG, quatro foram
representadas no CG, naquele período inicial, por ambientalistas locais. A exceção foi a
associação de moradores da Nascente, representada, a partir da nomeação oficial do CG
(outubro de 2002), por um filho de lavradores, engenheiro agrônomo, residente na sede
do município. E o “segmento religioso”, cuja representante, como vimos, aliou-se aos
ambientalistas locais em virtude de sua parceria na associação de moradores do distrito
do Lima.
A inclusão, na última hora, do “segmento religioso” e da secretaria de interior
foi uma tentativa clara de amenizar as contestações a respeito da falta de representação
do verdadeiro povo do lugar no CG.
A Igreja Batista, que ficou com a suplência, de fato, possui um grande número
de freqüentadores no distrito do Lima e realiza uma série de atividades, como grupos de
jovens, aulas de música e de coral, encontros com Igrejas Batistas de outras localidades,
etc. A Igreja Católica parece ser bem menos ativa, não ocorrendo sequer missas na
localidade, mas conta com adeptos pertencentes à elite agrária local. Além destas duas,
no distrito diversas outras igrejas evangélicas, tais como Assembléia de Deus,
Presbiteriana, Congregação Cristã do Brasil, com templos também nas regiões da
Nascente e da Barra do Lima, que não foram cogitadas para compor o CG. A escolha de
instituições religiosas para representar a população foi justificada por serem as únicas
organizações oficialmente existentes que teriam o poder de reunir a população local.
Mas eram, também, instituições que não esboçavam qualquer atuação política no
sentido de defender os interesses da população.
A escolha da secretaria de interior, para manter a “paridade”
79
, não parece se
justificar somente pelo fato de o distrito ser “interior”, como disse o secretário
79
Decreto 4.430, de 22 de agosto de 2002. Art. 17
- A representação dos órgãos públicos e da sociedade civil nos conselhos deve ser, sempre que
possível, paritária, considerando as peculiaridades regionais.
78
Francisco Pinto. Como será visto mais adiante, indicações de que este seria o órgão
municipal com o qual o presidente da associação de produtores e trabalhadores rurais do
Lima, que vinha tentando construir uma oposição ao processo de implementação da
APA, Edson Aguiar, possuía uma aliança política. A indicação da secretaria de interior
parece ter sido, naquele momento, uma tentativa de incluir o senhor Edson Aguiar, sem
contemplar, no entanto, a organização de produtores e trabalhadores que ele vinha
liderando.
Assim sendo, durante o período de criação da Área de Proteção Ambiental e
formação do seu Conselho Gestor, prevaleceu o poder de mando da aliança entre os
ambientalistas locais e a secretaria municipal de meio ambiente. Como se tratava de
garantir a implantação da APA, os diferentes grupos dos quais faziam parte os
ambientalistas locais atuaram em bloco, obscurecendo diferenças entre eles. As
iniciativas para a inclusão de representantes do povo do lugar foram no sentido de
despolitizar a sua atuação, seja contemplando somente algumas de suas lideranças, seja
atribuindo sua representação às Igrejas, de fraca atuação política na localidade. Foram
indicadas pessoas populares, que contavam com a simpatia de parte da população de
origem camponesa, mas como representantes de instituições que dificilmente
encaminhariam questionamentos e reivindicações em nome daquela parcela da
população – a Igreja e a secretaria de interior, uma entidade do governo
80
.
80
Não houve, tampouco, intermediários capazes de tornar possível a passagem da qualificação de
“incompetentes” e “irracionais”, freqüentemente atribuída a comunidades atingidas, à oportunidade de
estas serem ouvidas, através de profissionais ou instâncias que constituem uma antiexpertise, como nos
casos de “participação da população” no controle da poluição industrial, analisados por Leite Lopes e alli
(2004: 259).
79
CAPÍTULO 4 - ORGANIZANDO A RESISTÊNCIA
1 – Formação e atuação da associação de produtores e trabalhadores rurais
A criação de uma associação de produtores e trabalhadores rurais concomitante
às primeiras medidas para a implantação de uma Área de Proteção Ambiental (APA) no
distrito do Lima constituiu-se na única forma de oposição organizada e formal ao
processo de criação da unidade de conservação naquele momento.
A análise das circunstâncias e características da formação e atuação desta
associação ajuda a compreender os elementos acionados nos discursos das lideranças,
em diferentes situações, que contribuíram não para construir uma resistência
organizada ao processo de implementação da APA, como também para a elaboração das
vivências relacionadas a este processo nos discursos dos moradores.
Os relatos de diferentes fundadores apontam uma situação controversa na
fundação da associação. Em meados de 2001, um grupo formado por ambientalistas
locais e funcionários da secretaria municipal de meio ambiente teria elaborado uma
minuta da lei de criação da APA, que teria “vazado” e se difundido entre a população. O
supracitado grupo nega a existência de tal minuta.
O conteúdo da minuta teria desencadeado a revolta “da população” que, após
tentar sem sucesso levar o assunto para as reuniões da associação de moradores, haveria
decidido fundar a sua própria associação. As lideranças convocaram, então, uma
assembléia, que ocorreu em setembro de 2001 e teve a lista de presença assinada por
cerca de 200 pessoas. Os artigos mais criticados no texto da minuta eram os que
estabeleciam proibições para o uso do fogão a lenha e a queimada de “capoeiras”
81
.
Esta situação fornece elementos para pensar a criação da associação de
produtores e trabalhadores rurais e a criação da própria APA. Primeiramente, se havia
necessidade de manter o conhecimento sobre o conteúdo da lei que criaria a APA
restrito a um determinado conjunto de pessoas aquelas empenhadas em viabilizar a
transformação do distrito em APA - , era porque este conjunto de pessoas previa que a
sua divulgação poderia provocar reações que poderiam atrapalhar, ou mesmo
81
Reproduzo trecho da “minuta” da lei de criação da APA:
“Art. 5º - Na Área de Proteção Ambiental constituída pela presente Lei, dentro dos limites constitucionais
que regem o exercício do direito de propriedade, não serão permitidas atividades modificadoras,
degradantes ou impactantes, tais como:
I Extração, corte ou retirada de cobertura vegetal existente, excetuados os parasitas, ervas daninhas e
exemplares de espécies exóticas que estejam degradando o ecossistema;
(...)
IV – Utilização de fogo para atividades de lazer, alimentação, agrícolas, pecuniárias e outras;”
80
inviabilizar, a criação da unidade de conservação. Ou seja, aqueles que estavam à frente
da criação da APA sabiam que se organizava uma oposição a este processo e que havia
uma parte da população descontente com a implantação de medidas ambientais.
Por outro lado, o conteúdo da minuta poderia ter sido divulgado em meio à
população de origem camponesa através de intermediários que leram e interpretaram o
texto legal. As notícias que se espalharam, de forma oral, eram, portanto, simplificações
do texto. O que se ouvia dizer, no distrito do Lima, era que “vão transformar o Lima em
parque”, “ninguém mais vai poder plantar”, “vão proibir o fogão a lenha”. Estas notícias
repercutiram de forma a incitar a mobilização de grande parte da população, que
vinha sendo afetada diretamente pela fiscalização ambiental, ou indiretamente pelo
medo da fiscalização.
Em larga medida, pode-se dizer que as assembléias foram a principal atividade
desta associação. Aconteceram, ao todo, 4 assembléias, no período de setembro de 2001
a dezembro de 2002, durante o qual estiveram concentradas as atividades da
associação
82
. Em todas as assembléias, entre os pontos abordados, figuravam questões
relativas ao posicionamento a ser tomado diante da APA: a decisão de enviar
representantes para as reuniões locais de elaboração do Plano de Manejo, a escolha
destes representantes, os informes a respeito do que eles (neste caso, as pessoas que
conduziam a implantação da APA) vinham decidindo e, principalmente, a decisão de
“entrar na justiça” para exigir participação na gestão da APA. À exceção desse tema,
houve a indicação e votação da diretoria e dos conselhos fiscal e sub regional, a sua
posse e, posteriormente, a escolha de uma substituto para o segundo secretário que
havia falecido. As assembléias eram os momentos em que o discurso de resistência ao
processo de implantação da APA era formulado pelas lideranças, diante dos associados.
Eram, portanto, o momento de constituição daquele conjunto de pessoas ali presente
enquanto um grupo, coeso na sua resistência e unido nos seus objetivos.
O conjunto dos pronunciamentos realizados nas assembléias da associação de
produtores e trabalhadores rurais constrói um discurso de reação ao processo de
implementação de medidas ambientais no distrito do Lima. Este discurso apóia-se no
direito à participação da população residente na gestão da unidade de conservação. Mas,
82
Além das assembléias, as atividades da associação consistiram em providenciar o registro da entidade,
montar uma barraca de doces e salgados na festa do distrito e encomendar 50 camisetas com o nome da
associação (através de doações em dinheiro dos próprios dirigentes, de uma deputada federal e do
trabalho de dirigentes e cerca de uma dezena de associados). Foi elaborada uma ficha de cadastro para os
associados, que não chegou a ser preenchida por todos.
81
mais do que isso, o cerne do discurso é a reivindicação do reconhecimento do vínculo
de uma parcela da população com o território, em função da antiguidade do seu
estabelecimento ali e do seu modo de vida o verdadeiro povo do lugar. Esta
reivindicação se baseia, também, na desqualificação dos moradores que estiveram
envolvidos na transformação do distrito em APA como gente de fora, negando, de certa
forma, a identificação daquelas pessoas com aquele território que foi um dos
argumentos centrais para a apresentação do processo como participativo pelas
autoridades municipais
83
.
Além disso, alguns dos dirigentes da associação de produtores e trabalhadores
rurais compareceram a reuniões coordenadas pela ONG Viva Rio para elaboração do
plano de manejo da APA, ou convocadas por autoridades municipais para tratar da
unidade de conservação. Foi elaborado um “manifesto” com as reivindicações da
associação relativas à APA, encaminhado às autoridades municipais. O discurso das
pessoas que falavam em nome da associação de produtores e trabalhadores rurais
Edson Aguiar, o presidente; Miguel Ângelo, segundo secretário; e, com maior
freqüência, Margarida, assessora técnica -, dirigido às autoridades municipais e aos
representantes das demais organizações da “sociedade civil”, era em defesa dos
“agricultores”, dos “pequenos produtores”, e da população do distrito do Lima, de uma
maneira geral. Eles questionavam a criação da APA sem prévia informação da
população, a ausência de representantes dos “pequenos produtores” no Conselho Gestor
da APA, a elaboração de um Plano de Manejo e de um Zoneamento, sem estudos
aprofundados sobre as atividades agrícolas na região e sobre as condições de vida da
população agricultora.
Os dirigentes providenciaram, também, a formação de uma comissão para uma
conversa com o promotor do Ministério Público a respeito da implementação da APA
a estratégia era de “provocar” a promotoria a entrar com uma ação civil pública, mas o
83
Para Boudieu, o discurso herético deve não somente contribuir para quebrar a adesão ao mundo do
senso comum (no caso do distrito do Lima, a assimilação dos ambientalistas locais como parte da
comunidade e a inatingibilidade do discurso pela preservação do meio ambiente), professando
publicamente a ruptura com a ordem ordinária, mas também produzir um novo senso comum e fazer
entrar nele as práticas e experiências até então tácitas ou recalcadas de todo um grupo, investidas da
legitimidade que conferem a manifestação pública e o reconhecimento coletivo (1988: 70). Neste sentido,
o acionamento do discurso em defesa do povo do Lima, em oposição aos ambientalistas locais ou às
autoridades municipais, como gente de fora, vai de encontro não ao descontentamento de parte da
população com as medidas ambientais, vistas como proibições, mas também com relação aos problemas
de convivência e assimilação dos novos moradores e freqüentadores de origem urbana ao quotidiano da
localidade. Portanto, o discurso das lideranças da associação de produtores e trabalhadores rurais tornou
público, organizou e institucionalizou, pela primeira vez, o descontentamento de uma parcela significativa
da população.
82
MP não agiu como esperado. Esta ausência de resposta do Ministério Público foi uma
grande decepção para os dirigentes da associação - especialmente para os neo-rurais,
Margarida, Miguel e Maurício, que apostavam na entrada do MP diante de tantas
“irregularidades” encontradas por eles no processo de criação da APA
84
.
Após a visita ao Ministério Público e diante do resultado negativo desta
estratégia, cessaram as atividades da associação, embora ela permaneça formalmente
existindo. Não o desânimo com a atitude do Ministério blico, mas a fraqueza de
uma diretoria apoiada no trabalho de poucas pessoas também contribuiu para o fim das
atividades desta associação. Os três neo-rurais que eram essenciais para a continuidade
dos trabalhos ficaram impossibilitados de continuar, por motivos pessoais ou morte.
Pouco depois, Edson Aguiar passou a representar a secretaria de interior no Conselho
Gestor. Desprovidos de suas lideranças, os pequenos produtores e trabalhadores rurais
não foram capazes de seguir com a associação.
2 – Composição da diretoria
Os dois dirigentes da associação que tinham maior visibilidade pública entre os
associados, faziam mais discursos e convocavam para as assembléias o presidente,
Edson Aguiar, e o assessor cnico, Carlos Santana pertencem a duas famílias
importantes na localidade. Tanto o presidente quanto o pai do assessor técnico são
considerados grandes proprietários, que procederam divisões das suas terras entre os
filhos e outros parentes, na condição de meeiros.
84
Estas irregularidades” foram apontadas pelo Manifesto elaborado pela associação de produtores e
trabalhadores rurais e encaminhado aos indicados para compor o Conselho Gestor da APA e copiado e
distribuído a moradores do distrito:
A Associação de Produtores e Trabalhadores Rurais do Lima
(APTRS) vem, por este meio, manifestar o seu repúdio ao processo anti-democrático de implantação da
Área de Proteção Ambiental (APA) do Lima, bem como às irregularidades que permearam a formação do
seu Conselho Gestor e as discussões de um Regimento Interno para este órgão e a elaboração do Plano
Diretor para a unidade de conservação deste distrito, recentemente re-nomeado de "Plano de Manejo -
Fase 1", sob a coordenação da ONG Viva Rio.
(...)
Por estas razões, cremos estar o Conselho Gestor
assim composto estruturalmente comprometido e inapto, portanto, a representar a comunidade do Sana
como um todo.
(...)
Ao invés de contratar profissionais capacitados para a realização de estudos,
extremamente necessários, a respeito dos meios físico, biológico e sócio-econômico que compõem o
distrito do Lima, formaram-se "grupos de trabalho" compostos, majoritariamente, por membros das
diretorias de algumas das instituições da sociedade civil representadas no Conselho Gestor. Estes, que
deveriam estar envolvidos, exclusivamente, no trabalho de representação dos seus respectivos segmentos
sociais através de um intercâmbio constante de informações com a comunidade, foram utilizados como
meros executores de tarefas, tendo ficado responsáveis pela realização de pesquisas para as quais não
possuem preparo profissional, apesar da boa vontade e empenho de alguns deles. Além disso, a execução
destas tarefas resultou na remuneração de alguns dos conselheiros que representam as instituições da
sociedade civil, embora ainda não estivessem oficialmente nomeados, o que, cremos, compromete
profundamente a sua capacidade de representar os interesses dos seus respectivos segmentos sociais.”
83
O presidente, Edson Aguiar, é uma pessoa popular e carismática entre a
população de origem camponesa do distrito do Lima. É considerado, pelos pequenos
produtores e trabalhadores rurais, como um grande proprietário. Sua popularidade se
deve, além de suas características pessoais, ao seu poder de intermediar o acesso de
moradores mais pobres a documentos civis
85
, vagas em hospitais, e até mesmo
empregos públicos ou contratações para prestar serviços a diferentes esferas do
governo. Seus acessos a órgãos e funcionários públicos se devem ao fato de que
trabalha, diversos pleitos, como cabo eleitoral de políticos do município, uma das
quais chegou a Deputada Federal
86
. foi encarregado de obras da prefeitura na década
de 80, período em que a população do distrito convivia com o isolamento viário e de
telecomunicações e não atraía muita atenção do poder público. Ou seja, na década de
80, Edson Aguiar fazia parte de uma elite política local, que intermediava o acesso da
população à maior parte dos serviços públicos e benefícios do governo.
Assim como o senhor Edson Aguiar, o assessor técnico Carlos Santana é
proveniente desta mesma elite política do passado. Carlos, autor de grande parte dos
discursos proferidos nas assembléias, trabalha na sede do município numa grande
empresa. Trabalha como cabo eleitoral da mesma deputada apoiada por Edson Aguiar e
tem ambições de fazer carreira política. Conhece políticos, tem acesso a informações a
respeito das administrações municipal e estadual e acompanha de perto os
acontecimentos na Câmara Municipal e os processos eleitorais.
Carlos e Edson constituíam-se nas lideranças que formulavam o discurso da
associação em nome do verdadeiro povo do Lima em contraposição à gente de fora, que
conduzia a implantação da APA. E eram eles que contavam com a credibilidade da
população e que eram capazes de mobilizá-la para comparecer em massa às assembléias
da associação.
A associação de produtores e trabalhadores rurais do Lima foi viabilizada pela
aliança entre aqueles dois dirigentes, Edson e Carlos, e três neo-rurais, Margarida,
85
Sua “ajuda” consiste, muitas vezes, em levar a pessoa ao órgão adequado e ajudá-la a preencher
formulários e preparar cópias da documentação. Acompanhei uma vez sua ida à cidade com um cidadão
do distrito que pretendia se aposentar e, pelo que pude observar, sua ajuda não consistia em privilégios
tais como passar na frente na fila ou deixar de apresentar algum documento, mas sim no auxílio em
relacionar-se com órgãos oficiais e documentos escritos.
86
Isso não significa que a sua influência se estenda a todos os órgãos públicos uma vez que, por exemplo,
teve construções embargadas e foi autuado por fiscais municipais do meio ambiente. Nem contribuiu para
facilitar o registro da associação em cartório, que foi bastante trabalhoso devido à necessidade de adequar
a documentação às exigências do Novo Código Civil. Tampouco influenciou o MP local a tomar
providências com relação às reivindicações da associação na tramitação da APA.
84
Miguel Ângelo e Maurício. Estes últimos ficaram responsáveis pela elaboração dos
documentos e lida com os trâmites burocráticos necessários à constituição da
associação. Mais do que isso, foram a assessora técnica Margarida e, com menor
freqüência, o secretário Miguel Ângelo, que acompanharam as etapas da implantação da
APA e compareceram aos fóruns formados por representantes das outras associações e
da prefeitura, falando em nome dos “pequenos produtores” e “trabalhadores rurais” do
distrito do Lima. Eles eram as pessoas habilitadas, não a estudar os textos legais e os
poucos documentos da APA disponíveis até aquele momento, como também a lidar com
a linguagem “técnica” e as metodologias participativas que vinham sendo utilizadas,
discutindo em pé de igualdade com os condutores da APA.
A motivação destes neo-rurais em participar desta associação está associada
tanto às suas opções ideológicas quanto a diferenças pessoais com os ambientalistas
locais. Margarida, Miguel Ângelo e Maurício, com um passado de militância de
esquerda, enxergaram na grande mobilização popular promovida pela associação de
produtores e trabalhadores rurais uma possibilidade de reação da população mais pobre
do distrito a medidas ambientais implantadas, a seu ver, de maneira autoritária e elitista.
O primeiro secretário, Maurício, reside no município vizinho e possui um sítio
de veraneio no distrito, na região do São Pedro. É engenheiro aposentado de uma
empresa estatal e participa da vida política do município onde reside como membro do
Conselho Tutelar e da APAE, atividades que qualifica como beneficentes, nas quais
contribui elaborando atas e outros documentos. Tímido demais para falar em público,
Maurício foi responsável pela elaboração das atas das assembléias e organização do
livro-ata, pela organização das listas de presença nas mesmas e pelo registro da
associação em cartório. Para ele, a “ajuda” a esta associação era mais uma de suas
atividades políticas de militância puramente ideológica, uma vez que não tinha
ambições de fazer carreira política ou profissional.
O segundo secretário da diretoria eleita em 2002, Miguel Ângelo, que veio a
falecer ao final daquele ano, era mergulhador aposentado da exploração de petróleo e
morava em seu sítio no distrito, na região da Fortuna, onde desenvolvia pequenas
experiências em agricultura orgânica. Foi fundador do sindicato da sua categoria e
presidente do mesmo por dois mandatos. Via sua participação na associação como uma
contribuição de militância ideológica. Foi ele quem encaminhou a proposta de que as
reivindicações da associação fossem encaminhadas ao Ministério Público.
85
Margarida se formou em enfermagem e trabalhou em comunidades carentes do
Rio de Janeiro. Posteriormente, graduou-se em Museologia e aposentou-se pela
prefeitura do Rio de Janeiro. É proprietária de um sítio de veraneio no distrito, na região
do São Pedro, onde residiu durante 10 anos depois de ter-se aposentado. Foi uma grande
entusiasta e incentivadora do trabalho da associação, contribuindo com a elaboração de
artigos para jornais locais e do “manifesto” da associação.
Completavam a diretoria da associação o segundo secretário escolhido para
substituir Miguel Ângelo e as duas tesoureiras. Eram jovens “nascidos e criados” no
distrito. Não chegaram a ter uma atuação significativa na associação.
3 – As assembléias e o discurso em favor do povo
As assembléias da associação de produtores e trabalhadores rurais do distrito do
Lima diferiam sensivelmente das reuniões de todas as outras organizações da
“sociedade civil” local.
Ocorriam na residência do presidente da associação, Edson Aguiar, num amplo
quintal de terra batida situado na frente da casa, ao ar livre, no final da tarde, aos
sábados. A maioria das pessoas ficava em pé, alguns se sentavam na escada que
acesso à casa, outros em tijolos ou pedras. Havia apenas uma mesa pequena, como uma
carteira escolar, com uma cadeira onde ficava sentado o secretário, Maurício, para a
qual todos se dirigiam antes e durante a reunião para assinar o livro de presença. As
pessoas encarregadas da coordenação da reunião ficavam de pé, de frente para os
demais associados, que hora ficavam todos de frente para a coordenação, hora
formavam uma meia lua voltada para a mesa. A quantidade de participantes variava de
uma a duas centenas de pessoas com uma leve predominância de homens adultos,
havendo também jovens e mulheres, muitas das quais com crianças.
As assembléias tinham início com um agradecimento do presidente pela
presença de todos e a Deus. Em seguida, o secretário lia a ata da reunião anterior,
sempre explicando a importância de fazê-lo para que os que estiveram presentes
confirmassem se foi aquilo mesmo que aconteceu e para que os ausentes tomassem
conhecimento. Nas quatro assembléias que presenciei, a ata foi aprovada sem ressalvas
e por unanimidade, através do gesto de cada um erguendo um braço.
A pauta era sempre conduzida pelo assessor técnico, Carlos Santana, que
discursava e atribuía a palavra a quem erguesse o braço. Cerca de uma dezena de
pessoas, sempre as mesmas, pediam a palavra nas discussões, entre elas quatro dos
86
dirigentes. O restante dos associados, em sua maioria, ouvia com atenção e tecia
comentários com as pessoas próximas. No momento de indicação da diretoria e dos
conselhos, houve conversações em voz baixa e indicações ao do ouvido do assessor
técnico. As conversas também proliferaram quando se decidiu fazer uma manifestação
pública, em torno da maneira como ela ocorreria – o local da caminhada, o conteúdo das
faixas e cartazes, sugestões de se bater panelas, levar instrumentos de trabalho e
instrumentos musicais.
Todas as propostas postas em votação foram aprovadas por unanimidade,
algumas delas precedidas por uma discussão para englobar diferentes proposições num
consenso. A diretoria também foi eleita por unanimidade, sem chapa concorrente. O
tom dos discursos sempre foi predominantemente calmo, variando entre a seriedade e
algumas brincadeiras. Os poucos momentos de exaltação faziam referência a pessoas
que lideravam localmente a implantação da APA e a autoridades municipais. A
assembléia em que a diretoria tomou posse (julho de 2002) foi tratada como a “festa de
posse”, e foram distribuídos cachorro quente e refresco.
As assembléias da associação de produtores e trabalhadores rurais do Lima
diferiam das reuniões das demais organizações da “sociedade civil” local em diferentes
aspectos. Primeiramente, chama a atenção o elevado número de pessoas presentes. A
rusticidade do evento também difere das demais associações: não havia cadeiras,
microfones, e ficavam todos ao ar livre.
Mas destaca-se, principalmente, a maneira de conduzir a reunião. Apesar de
muitos presentes, poucos se pronunciavam nestas assembléias, geralmente os membros
da diretoria. Os pronunciamentos eram feitos em tom de discurso político, muitas vezes
seguidos de aplausos. Assim, parecia haver uma distinção entre a “mesa” e o público.
Esta conformação parecia contribuir para a predominância da concórdia e da
unanimidade na aprovação dos encaminhamentos. Nas reuniões das demais associações,
havia menos gente e boa parte dos presentes se pronunciava sobre as decisões,
assemelhando-se as reuniões a conversas ou discussões sobre os pontos de pauta.
De uma maneira geral, o discurso dos dirigentes da associação de produtores e
trabalhadores rurais, durante as assembléias, atribuía a criação da APA à gente de fora,
à revelia do povo do Lima
87
. Permeava todo o discurso das lideranças a qualificação
87
Como na fala do presidente da associação de produtores e trabalhadores rurais do Lima, em que a
exclusão do povo é tratada como uma “disfeita”, ou seja, ele reivindica o reconhecimento da importância
daquela parcela da população: “Eu acho que até na verdade é disfeitar o povo do Lima. Porque eles
fizeram um trabalho muito grande pra fazer o Conselho Gestor da APA. Que que acontece? Não tinha
nem 3, nem 5 pessoas do Lima. Não tinha ninguém, né Carlos, lá na reunião deles. Aquele negócio lotado
87
daqueles ali presentes às assembléias, como “a nata do Lima”, “pessoas enraizadas no
Lima”, o verdadeiro povo do Lima. A utilização destas expressões demonstra o
reconhecimento da existência de alguns moradores favoráveis à criação da UC. No
entanto, estar-se-ia sugerindo que os vínculos dos membros desta associação com o
território do distrito seriam mais profundos - o verdadeiro povo do Lima -, conferindo-
lhes direitos relacionados à autenticidade destes vínculos
88
.
Eles botaram no jornal, eles falaram em público, mas ninguém
comunicou à população do Lima, não estava sendo sabedora e
consultada do que é a APA. E, na verdade, a nata do Lima, os
verdadeiros do Lima, não têm conhecimento do que é a APA.”
[Carlos, assessor técnico]
No início da fala de Carlos, não fica claro a quem o termo eles” se refere, em
oposição à população do distrito. Se às autoridades municipais, por exemplo, ou aos
ambientalistas locais, ou outras hipóteses. No entanto, a seguir, quando ele diz que a
nata do Lima, os verdadeiros do Lima, não sabem o que é a APA, transparece que
outros no local, menos verdadeiros e que não constituem a sua nata, que sabem, foram
informados e consultados. Nesta colocação de Carlos, as categorias nata do Lima e
verdadeiros do Lima soam ambíguas em relação ao povo do Lima, utilizado
anteriormente. Pois não fica claro se a nata ou os verdadeiros seriam toda a população
excluída da negociação em torno da APA, que estaria, neste caso, sendo qualificada
como melhor do que a outra parte da “sociedade”, ou se Carlos se refere à elite que
dominava localmente antes do advento do ambientalismo.
Cabe, ainda, aprofundar o olhar sobre a utilização freqüente da expressão povo
do Lima no discurso de mobilização da associação, produzido nas assembléias. Ela
parece atuar como um símbolo essencial na construção deste discurso
89
.
de gente de fora pra isso não resolve. Quem tem que resolver é o povo do Lima, que ta aí, ó que bonito aí,
graças a Deus que o povo chega junto. Mas eles não fez. Não pode ser assim”. [Edson Aguiar, assembléia
de 6 de abril de 2002, fazendo referência à reunião de formação do CG da APA, em 18 de março]
88
Nesta fala de Carlos, a utilização da categoria povo tem também o sentido de maioria da população,
além desta maioria ser caracterizada como a “mais enraizada” no Lima: “Uma vez que tem um projeto
que criou a área de preservação ambiental, a APA. Que na verdade não passou por essa parte da
sociedade do Lima. (...) então nós tivemos aqui [refere-se à assembléia anterior, na qual fora criada a
associação] pessoas enraizadas no Lima. Não desfazendo de uma associação que tem 11, mas uma
associação com 200 pessoas do alto do Firmamento ao alto de Geleira é a verdadeira associação que
representa o verdadeiro desejo e anseio do povo. (...) Se eles ousassem, eu digo eles os de , ousassem
passar por um plebiscito, de antemão teria rejeitado. Mas se eles convocassem os moradores para uma
conversa ampla, geral e irrestrita, com certeza a APA poderia ser criada, mas dentro dos limites da nossa
sociedade.” [Carlos, assessor técnico, na assembléia de 6 de abril de 2002]
89
David Kertzer chama a atenção para três propriedades dos símbolos, acionados nos dramas rituais
largamente encontrados na política. A condensação de significado se refere ao modo pelo qual símbolos
88
Primeiramente, a expressão povo do distrito traz a nítida associação de uma
população com um território, como vinha aparecendo nas citações anteriores. Esta
reivindicação de autenticidade tem também um aspecto temporal, que aparece no uso
concomitante de expressões como: os mais antigos no Lima, nascido e criado no Lima,
enraizados no Lima.
A palavra “povo”, contida na expressão povo do Lima, permite que seja também
associada à idéia de uma grande quantidade de pessoas, e, especialmente, de maioria. E
sugere, ainda, a idéia de pessoas mais pobres, em oposição a uma elite. Nesta fala do
presidente da associação, o povo aparece como maioria, comparada a “uma
mixariazinha”; e como os mais pobres, afetados pelas fiscalizações, em oposição a uma
elite de pessoas que estariam sendo beneficiadas pela APA:
O povo do Lima é esses que tão aí, tá vendo? Isso que é o povo
do Lima. Mas essa APA não foi feita pelo povo do Lima. Uma
mixariazinha falando pelo povo. fala em castigar o povo
do Lima. fala que não pode criar boi, fazer plantação. (...)
Porque nós estamos completamente na mão de quem não sabe o
que é agricultura, e que são, tão levando o deles, mas o povo do
Lima não tá. Eles, quando faz uma casinha, eles não traz
solução, traz pobrema. Eles não traz um prego pra ajudar um
pobre, mas traz pobrema, traz aqueles fiscais pra dizer que
não pode, que vai derrubar, vai fazer isso e aquilo. Nós não
queremos isso.”
Neste trecho do discurso de Edson Aguiar, povo assume o sentido de maioria
quando oposto àqueles que implementaram a APA dizendo-se representantes da
população. Ou seja, trata-se de dizer que a maioria da população não está representada
no processo de criação da APA. Quando Edson trata da fiscalização, o povo passa a
conotar também as pessoas mais pobres, “castigadas” pela fiscalização, e a oposição é
construída entre nós e eles. O presidente da associação se inclui na categoria vitimizada
individuais verbais ou icônicos representam e unificam uma rica diversidade de significados. a
multivocalidade seria a variedade de diferentes significados ligados ao mesmo símbolo. Enquanto a
condensação se refere à interação destes diferentes significados e sua síntese em um novo significado
para um indivíduo, a multivocalidade sugere o fato de que o mesmo símbolo pode ser entendido por
diferentes pessoas de modo diferente. Além da condensação e multivocalidade, os símbolos são ambíguos
– não têm um significado preciso. A complexidade e a incerteza de significado dos símbolos são fontes da
sua força (1988: 11).
89
pelos fiscais, em pé de igualdade com a população de origem camponesa, em oposição a
uma elite que estaria se beneficiando com as medidas ambientais. A divisão da
população de origem camponesa, entre uma elite agrária e os pequenos produtores e
trabalhadores rurais, fica, assim, obscurecida. Ou seja, a construção da divisão entre
uma população que seria autêntica do lugar e outros moradores está relacionada às
circunstâncias nas quais foi enunciada e a quem a enuncia. E, como outras
classificações, realça determinadas características e apaga determinadas nuances
90
.
A associação de produtores e trabalhadores rurais reunia tanto trabalhadores
diaristas - nas mais diversas funções que se podem entender como rurais atualmente
(lavradores diaristas, caseiros, pessoas contratadas por um dia para limpar quintais,
consertar cercas, tratar de animais, etc.) - e não proprietários de terras, quanto grandes
proprietários, cujas propriedades conjugavam agricultura, pecuária e a mesmo
turismo. Havia, também, alguns comerciantes e proprietários de tios para lazer e/ou
veraneio, muitos dos quais não se adequam à classificação de, propriamente,
“enraizados” no distrito.
O agrupamento daquelas uma ou duas centenas de pessoas ali presentes como
povo do Lima, em oposição àqueles que tomavam parte na implementação da APA
gente de fora ao mesmo tempo em que permitia acionar a autenticidade do vínculo
com o território para denunciar a falta de participação na criação da UC, obscurecia
divisões internas do conjunto de associados.
Principalmente, a enunciação da oposição povo do distrito X gente de fora
colocava, se levada ao extremo, os implementadores da APA como os inimigos do
povo, reunindo sob o nome de povo tanto patrões quanto empregados, proprietários e
meeiros, unidos contra uma ameaça externa, a gente de fora.
A composição da diretoria da associação, com grandes proprietários e veranistas
e proprietários de sítios para lazer e fruição da natureza, demonstra como a classificação
de gente de fora era acionada quando conveniente, pois havia neo-rurais entre os
dirigentes. Além disso, a colaboração dos dirigentes ex-moradores de grandes cidades,
com seus contatos, foi fundamental para o encaminhamento das questões levantadas
pela associação.
90
Segundo Bourdieu, a passagem do estado de grupo prático ao estado de grupo instituído supõe a
construção do princípio de classificação capaz de produzir o conjunto de propriedades distintivas que são
características do conjunto dos membros deste grupo e de anular ao mesmo tempo o conjunto de
propriedades não pertinentes que uma parte ou a totalidade de seus membros possui a outros títulos e que
poderiam servir de base a outras construções (1988: 70).
90
A retirada da palavra “pequenos”, antes de “proprietários”, da denominação
cogitada para a associação na primeira assembléia, demonstra como foi necessário criar
uma classificação mais ampla que desse conta da aliança em torno da qual se constituiu
a associação grandes proprietários pertencentes a uma antiga elite política, neo-rurais
que se diferenciavam dos ambientalistas locais pela militância ideológica a favor das
classes menos favorecidas, e os pequenos produtores e trabalhadores rurais do distrito
do Lima.
4 – Classificações do espaço
O discurso dos dirigentes da associação de produtores e trabalhadores rurais do
distrito do Lima e o discurso dos moradores de origem camponesa revelam uma forma
de classificar o espaço do distrito diferente daquela utilizada por ambientalistas locais e
autoridades municipais. A nomeação de lugares e a valorização positiva ou negativa
dos mesmos, contidas nestes discursos, fornecem elementos para analisar as
interpretações dos diferentes grupos a respeito do distrito do Lima.
Nas situações em que o discurso em nome do verdadeiro povo do Lima é acionado,
Lima engloba todo o distrito e é valorizado positivamente. Todavia, quando, nas
assembléias, estava-se falando das diversas subdivisões do distrito, Lima deixa de
constituir uma categoria inclusiva e valorizada positivamente. O Lima passa a designar,
somente, o lugar onde eso concentrados o comércio e algumas casas, e é associado aos
efeitos negativos do turismo barulho, bagunça, pessoas dormindo nas ruas e tráfego
intenso
91
.
A ocasião da escolha dos integrantes da chapa única que veio a ser eleita por
unanimidade para presidir a associação é reveladora das categorias de classificação do
espaço reconhecidas por aquele grupo de pessoas presente nas assembléias.
Especialmente a indicação dos membros do conselho sub-regional da associação, cuja
composição (inclusive quantas e quais regiões iriam integrá-lo) foi em grande parte
decidida durante a própria assembléia, através de indicações da mesa e de outros
presentes. A própria decisão da diretoria de criar um conselho “sub-regional”, com a
intenção de que fizessem parte da diretoria pelo menos um representante de cada
“região” do distrito do Lima, fornece elementos para pensar a formação de alianças que
91
Nas entrevistas com produtores e trabalhadores rurais, esta conotação do Lima se repete, nas
declarações de muitos entrevistados que dizem não freqüentar mais o Lima em função dos efeitos
negativos do turismo citados acima e do fato de que “não se encontra mais ninguém conhecido”.
91
estava na base desta decisão. Edson Aguiar e Carlos Santana, devido a relacionamentos
estabelecidos através de contatos políticos, como cabos eleitorais ou encarregados da
prefeitura, possuíam alianças com líderes de vizinhanças, de igrejas, de cada pequeno
cantão do distrito do Lima. Eles acionaram estes contatos para convocar o povo para as
assembléias e fizeram questão de incluí-los em sua luta contra a implementação da
APA, pois isto era um “trunfo” diante dos ambientalistas locais, cuja área de influência
se limitava, principalmente, ao pequeno centro comercial e ao Vale das Águas.
Ao todo, foram identificadas oito localidades que deveriam estar representadas
no conselho sub-regional: Barra do Lima, Nascente, São Pedro e Santa Rita (unificados
sob o nome do primeiro, mas citados separadamente), Seara, Firmamento, Fortuna,
Vitória e Lima.
Para os quatro primeiros lugares - Barra do Lima, Nascente, São Pedro/Santa
Rita, Seara -, logo surgiram indicações e foram preenchidas as vagas para titular e
suplente. Os três seguintes Firmamento, Fortuna e Vitória - tiveram indicado somente
um titular, enquanto o Lima ficou sem representação
92
. Foi decidido que os eleitos
estariam autorizados a nomear os cargos vagos, o que não veio a se concretizar,
permanecendo o conselho sub-regional conforme foi escolhido na assembléia.
E é necessário notar que a região do Vale das Águas não foi sequer mencionada
para integrar o conselho sub-regional, tampouco a diretoria ou o conselho fiscal, embora
faça parte do conjunto de categorias de lugar reconhecidas pelo grupo como existentes.
Isto fica evidente na fala do presidente da associação, na assembléia seguinte, sobre a
delimitação da APA, colocando que a unidade de conservação não deveria abranger
todo o distrito, mas: “só nas áreas como o Vale das Águas, que não tem nada pra lá,
aqueles cantão de Escola, aquela disgrama que ninguém aproveitando” (Escola é um
afluente do córrego da Pedra do Caju, em torno do qual se situa o Vale das Águas).
Sem que haja uma correspondência unívoca, é possível constatar que as regiões
cuja representação foi encontrada sem dificuldade concentram um número maior de
associados. Nas regiões do São Pedro, Seara e Barra do Lima, também, concentram-se
os membros da diretoria que de fato se empenharam na associação. As outras regiões
92
Ao procurar uma pessoa para representar o Lima no conselho sub-regional da associação, a pergunta do
dirigente Carlos Santana expressa a conotação do Lima como o pequeno centro comercial e residencial do
distrito, qualificado negativamente em função de malefícios associados ao turismo consumo de
substâncias ilícitas, barulho, desordem: “De dentro do Lima, do focozinho ali do fuzuê (...) Quem mora
no fuzuê do Lima?” A pergunta ficou sem resposta, e aquela região ficou sem representação no conselho
sub-regional.
92
escolhidas, embora com menos participantes das assembléias, figuram entre os locais
identificados e reconhecidos pelo grupo. Para duas das regiões que indicaram somente
um titular, foram selecionados representantes ausentes à assembléia, que tinham
mandado o recado de que “aceitavam”. Ou seja, era uma demonstração de que o apoio
àquela associação ia além dos associados reunidos, ali, em assembléia.
Os dirigentes da associação procuravam demonstrar que a distribuição dos
cargos da diretoria e do conselho fiscal também atendia, entre outras, a preocupações
com a divisão por localidade. A diretoria executiva tem dois representantes da Seara,
inclusive o presidente e sua filha, e os outros são de São Pedro, Santa Rita, Fortuna,
Lima e Barra do Lima. Ao anunciar a chapa única, o assessor confirmou:
“Então ficou bem dividido, né? Pegamos um bocadinho
de cada lugar. (...) [No conselho fiscal,] tem pessoas da Barra do
Lima, da Fortuna, da Nascente e outro da Barra também. Acho
que tá bem dividido.” [Carlos Santana, assessor técnico]
Reafirmando a autenticidade da associação de produtores e trabalhadores rurais
na representação da população, os discursos dos dirigentes, em assembléia, reivindicam
para a entidade o papel de representar cada pequena localidade do distrito, ao contrário
das outras associações locais existentes, que pareciam ter preocupações com o Lima
e o Vale das Águas. A estrutura de cargos criados para a diretoria e conselhos da
associação permite inferir a sua ampla área de influência, com representantes escolhidos
(mesmo que ausentes à assembléia, por meio de “recados”) de diversas regiões.
5 – A atuação da associação nos fóruns da APA
O processo de constituição da associação de produtores e trabalhadores rurais foi
concomitante ao processo de criação da APA. Paralelamente às medidas necessárias à
formação da associação, tais como a formação de uma chapa, a eleição, a elaboração e
aprovação do estatuto, vimos que todas as assembléias versaram sobre a atitude da
associação em relação à implementação da APA no distrito.
Desde a reunião para formação do Conselho Gestor da APA, em março de 2002,
a assessora técnica Margarida foi a dirigente da associação de produtores e
trabalhadores rurais que mais esteve presente nos diferentes fóruns que tiveram por
tema a implantação da unidade de conservação no distrito do Lima. Além dela,
estiveram presentes, em algumas ocasiões, o presidente da associação, Edson Aguiar, e
o secretário Miguel Ângelo.
93
Todos eles, mesmo antes da constituição formal da associação, fizeram
pronunciamentos em favor da população de origem camponesa do Lima, questionando a
sua exclusão das suas negociações em torno da APA. No entanto, havia diferenças nas
suas maneiras de se expressar.
O presidente, Edson Aguiar, ele próprio de origem camponesa, falava em nome
do povo do Lima e atribuía a implementação da APA à gente de fora, como em seus
discursos nas assembléias da associação. Ele esteve presente em três ocasiões: na
reunião de formação do Conselho Gestor; numa das reuniões para elaboração do Plano
de Manejo para a qual foram convocadas todas as pessoas identificadas, pelo
coordenador do Viva Rio, como “lideranças comunitárias”; e na apresentação do Plano
de Manejo à comunidade. Ou seja, compareceu somente nas ocasiões em que houve
uma convocação pública por parte da Prefeitura ou seus representantes. Nestas ocasiões,
em que havia diferentes moradores presentes, a fala de Edson se dirigia não só às
autoridades presentes, como também ao público. Dessa forma, Edson demonstrava ao
público, de uma maneira geral, que estava se posicionando em defesa do povo.
Já Margarida e Miguel Ângelo, neo-rurais, falavam em nome dos “pequenos
produtores”, dos “trabalhadores rurais”, ou, simplesmente, da “populão”. Além das
ocasiões em que Edson Aguiar esteve presente, Margarida e, com menor freqüência,
Miguel Ângelo, procuraram acompanhar as reuniões semanais para elaboração do Plano
de Manejo da APA. Naquelas ocasiões, geralmente, estavam reunidos somente
ambientalistas locais e autoridades municipais, e era a eles que se dirigia o discurso
formulado pelos representantes desta associação.
Em junho de 2002, a associação de produtores e trabalhadores rurais escolheu
Margarida e Miguel Ângelo como seus representantes no processo de implementação da
APA. Antes disso, eles procuravam não falar em nome da associação, colocando-se
como “cidadãos” que se atribuíam o direito de tomar parte nas discussões. Sempre se
manifestavam contra as decisões tomadas sem divulgação e sem tentativas de incluir o
restante da população.
Muitas vezes, seu papel foi o de informar aos membros da diretoria, ou nas
assembléias da associação de produtores e trabalhadores rurais, sobre o andamento da
implantação da APA, as decisões que vinham sendo tomadas e o que eles estavam
planejando fazer. As “informações” eram transmitidas com indignação, especialmente
pelo fato de os argumentos em defesa dos produtores e trabalhadores rurais não estarem
sendo levados em consideração, e eram seguidas de discussões entre as lideranças sobre
94
como encaminhar a atuação da associação diante das etapas do processo de
implementação da UC.
Depois de ter sido indicada como representante da associação de produtores e
trabalhadores rurais, Margarida assumiu uma postura mais combativa. Redigiu um
“manifesto” em nome da associação, “exigindo” o acesso a documentos como o
regimento interno do Conselho Gestor e as atas das reuniões de formação do Conselho
Gestor e aprovação do seu regimento interno, bem como a revisão destas decisões. O
manifesto foi entregue a cada um dos conselheiros (o conselho ainda não havia sido
oficializado pelo prefeito, como foi visto no capítulo 3). Diante da ausência de resposta
dos representantes da sociedade civil e do governo, decidiu-se levar a questão ao
Ministério Público Estadual.
Margarida e Miguel Ângelo recusaram-se a “participar” nos moldes pré-
determinados pelos preceitos da gestão participativa, e na forma sob a qual vinham
sendo apropriados e implementados localmente. Ou seja, recusaram-se a compor um
dos grupos de trabalho, formados por conselheiros e membros das organizações que
compunham o conselho, encarregados de realizar estudos para o Plano de Manejo.
Questionavam a falta de profissionais para conduzir estes estudos, que viriam a
subsidiar decisões a respeito do território e dos recursos do distrito do Lima. Nas
ocasiões em que foram utilizadas dinâmicas de grupo “participativas”, Margarida
questionou a finalidade daquelas metodologias e acrescentou que “a população” deveria
tomar parte, de fato, era das tomadas de decisão.
6 – O discurso dos moradores
De uma maneira geral, os moradores de origem camponesa, quando
interrogados a respeito da criação da APA do Lima, ou da implantação de medidas em
prol da preservação do meio ambiente, queixam-se das restrições ambientais. É comum
que surjam comparações com o passado, quando não havia estas restrições, valorizando-
o positivamente. O presente é, nestes casos, associado à escassez ou mesmo à miséria.
Como aparece no desabafo do lavrador Alceu, de 74 anos, diante da simples pergunta,
“o senhor é lavrador?”:
Agora aqui não pode roçar, trabalhar, fazer nada. (...) Hoje não
faço mais nada. Tem uma grotinha de roça, com inhame e
banana. Não compensa mais o trabalho de plantar.(...)
Antigamente, era muito trabalho, a gente trocava dia, fazia
95
mutirão. A vida era sacrificada, mas melhor que hoje. uma
miséria danada. Quem tem uma moitinha de terra bota boi, não
planta mais nada. Como essa APA, não pode mais queimar nada,
roçar nada.”
Sem que isso tenha sido perguntado, Alceu estabelece a comparação com o passado,
tendo como marco a criação da APA. O passado era de muito trabalho, mas o presente é
de “miséria”. Alceu foi meeiro, no distrito do Lima, até 1981, quando se divorciou e se
mudou para o município vizinho, onde teve diversos empregos. Aposentou-se em 1996
e retornou ao Lima, comprando um lote onde reside, na região da Santa Rita. Vive da
aposentadoria, de um salário mínimo, complementada por lavouras cada vez menores,
cultivadas em meação na própria região da Santa Rita.
No entanto, é preciso notar que a interpretação a respeito da implantação de
medidas ambientais varia segundo a posição social do morador. Como Alceu, outros
lavradores atribuem as restrições ambientais à agricultura à APA, ao IBAMA, ao
governo, de forma impessoal. Como declara Raul, lavrador (meeiro na região do Vale
das Águas) de 73 anos e aposentado:
Hoje em dia, a gente não pode plantar, o IBAMA não deixa. Se
tiver uma madeirinha, não pode arrancar.”
Os pequenos produtores, aqueles que possuem terra suficiente para produzir,
também se queixam das proibições ambientais, mas atribuem-nas à gente de fora. Como
na fala de Bernardo, pequeno produtor da região da Santa Rita:
Agora, não se pode mais derrubar capoeira para plantar.
Querem tomar conta da nossa terra, o dinheiro deles falando
alto. Mas eu não vendo minha terra, para evitar mais gente de
fora no lugar.”
Bernardo se sente capaz de fazer frente às mudanças, pois tem o poder de não
vender a sua terra. Esta alternativao figura no horizonte dos trabalhadores diaristas e
meeiros, que atribuem as restrições ambientais, de forma genérica e impessoal, ao
governo ou ao IBAMA. As proibições ambientais são associadas, pelo pequeno
produtor, ao poder do dinheiro da gente de fora, que quer “tomar conta” da nossa terra.
Assim sendo, o discurso que atribui as proibições ambientais à gente de fora,
construído nas assembléias da associação de produtores e trabalhadores rurais, expressa
categorias do discurso dos pequenos produtores a respeito das medidas ambientais e
trata esta interpretação como a realidade de todo o povo do Lima.
96
Algumas das respostas dos entrevistados sobre sua opinião a respeito das
atividades ambientalistas no distrito (2001) e a respeito da transformação do distrito em
Área de Proteção Ambiental (2002) evocaram a comparação dos fazendeiros com os
menores, ou ainda a comparação entre ricos e pobres. Estes pares de oposição, assim
como antigamente/agora e gente do lugar/gente de fora, são acionados para permitir
uma interpretação das mudanças nas regras de gestão do espaço e dos recursos. No
entanto, a oposição entre fazendeiros e menores, ou pequenos, não é reproduzida no
discurso das lideranças da associação.
A comparação, geralmente do próprio entrevistado ou da categoria na qual ele
se incluído, com os fazendeiros, está ligada a uma interpretação que tende a
minimizar a importância das mudanças relacionadas à criação da APA, uma vez que elas
são compreendidas sob o prisma de uma cisão queexistia e operava antes do advento
das medidas ambientais. Ou seja, é como se, apesar de algumas regras terem mudado,
permanecesse o poderio dos fazendeiros, imunes à fiscalização ambiental. Como
aparece no desabafo de Virgílio, de 21 anos, empregado como jardineiro na casa de um
neo-rural e que mantém uma plantação de banana na região da Fortuna, da qual entrega
a terça parte ao proprietário da terra:
[sobre a APA] “Em parte é bom, proteger o meio ambiente,
tem muitos fazendeiros com pasto. Mas não tão ajudando o
pequeno agricultor. Os pastos não dão emprego porque eles
botam veneno. Mas a gente não pode mais roçar as capoeiras.”
Na visão de Virgílio, a proteção do “meio ambiente” poderia ser positiva se
aplicada aos fazendeiros. Todavia, parece estar penalizando, somente, o pequeno
agricultor. Fica implícita a impunidade dos fazendeiros, tratados como eles, que
continuam botando “veneno”, em oposição a a gente, a quem as proibições de fato se
aplicam.
Em cerca de uma dezena de entrevistas, o fazendeiro Bento, proprietário de uma
fazenda transformada em RPPN (imune à legislação da APA e submetida diretamente
ao IBAMA) na região da Barra do Lima, é citado nominalmente. Ele aparece ora como
imune à fiscalização ambiental, ora como o autor de denúncias relativas a queimadas
realizadas por pequenos produtores. Como nas declarações do pequeno produtor
Bernardo, a respeito da criação da APA:
97
Bento é fazendeiro, entrou num negócio, negociou as terras,
recebeu mudas e dinheiro pra não desmatar. Mas os menores
não podem fazer isso.”
Quando entram em cena os fazendeiros, os discursos permitem que o conjunto
de mudanças supracitado seja melhor dimensionado nas relações de poder locais. Pois,
aos fazendeiros, é atribuída uma imunidade às restrições ambientais, vistas como
aplicadas somente aos pequenos ou menores. Assim sendo, apesar da inserção de um
novo conjunto de pessoas nas relações de poder e nas disputas pelo espaço e pelos
recursos, o poder dos grandes proprietários não teria sofrido abalos, aos olhos da
população.
7 – O discurso de resistência, um princípio de agrupamento e as nuances apagadas
Em contraposição ao discurso pela preservação ambiental e em nome da
comunidade, a associação de produtores e trabalhadores rurais do Lima elaborou um
discurso em defesa do verdadeiro povo do lugar, classificando os implementadores da
APA como gente de fora. Além disso, a categoria povo também é acionada para situar
os ambientalistas locais ao mesmo tempo como uma elite e como minoria.
Esta tentativa de introduzir uma nova classificação nos parâmetros da
negociação política pela gestão do território da APA e seus recursos deu voz a
ressentimentos latentes e tácitos na população de origem camponesa do distrito do
Lima. Para tanto, usou categorias acionadas pelos pequenos produtores para interpretar
a criação da APA, tornando-as extensivas a toda a população de origem camponesa do
distrito. Por isso, foi capaz de mobilizar tantas pessoas para as assembléias e angariar
tantos associados.
Ao contrário do que atestam os ambientalistas locais (que jamais presenciaram
sequer uma assembléia desta associação), as assembléias reuniam um conjunto de
moradores realmente animados com a formação da associação e com a possibilidade de
ter seus interesses representados no processo de implementação da APA. Isto não exclui
a possibilidade de que o seu comparecimento às assembléias tenha sido motivado, em
parte, por comprometimentos políticos com o senhor Edson Aguiar ou com a família
Santana
93
. A despeito de possíveis comprometimentos políticos ou dívidas de gratidão
93
Nos fóruns da APA, nas ocasiões em que os representantes da associação de produtores e trabalhadores
rurais mencionavam a quantidade de membros da associação e de pessoas presentes às assembléias,
ambientalistas locais atribuíam aquele número de pessoas aos “votos de cabresto” comandados por Edson
Aguiar. No entanto, nas assembléias desta associação que presenciei, o público parecia interessado nas
discussões e entusiasmado com a associação, embora não fizesse pronunciamentos.
98
que possam também ter contribuído para a presença massiva de moradores de origem
camponesa nas assembléias da associação de produtores e trabalhadores rurais do Lima,
os membros desta associação pareciam conhecer muito bem os objetivos daquelas
assembléias e demonstravam entusiasmo na mobilização “contra a APA”.
Era assim que os moradores definiam o trabalho da associação: como “a luta
contra a APA”. No entanto, os dirigentes da associação tomavam o cuidado de falar
“contra o processo de criação da APA”. Isto acontecia porque havia uma compreensão,
por parte dos dirigentes da associação, de que não podiam se posicionar contra a
“preservação do meio ambiente”. Sua mobilização era, dessa forma, contrária “à
maneira pela qual a APA foi criada” - sem participação popular.
Para dar visibilidade a este grupo na disputa política, foi preciso introduzir nas
discussões uma outra classificação, que opõe a gente de fora ao povo do lugar, que,
como qualquer classificação, para estabelecer-se, obscurece nuances e ambigüidades
os diferentes pertencimentos dos membros da associação que poderiam dar margem a
outras formas de classificação.
Observando de perto, alguns dos próprios membros da diretoria e dos conselhos
da associação, assim como a representante que mais falou em nome da associação nos
fóruns de discussão da APA, Margarida, poderiam perfeitamente ser classificados como
gente de fora. No entanto, sem a contribuição destas pessoas, a associação não teria
chegado a existir, pois eles detinham o conhecimento da linguagem e dos trâmites
burocráticos para criar a instituição, além de estarem aptos a negociar com os
ambientalistas locais e as autoridades municipais e questionar suas ações segundo os
critérios pertinentes. Como em outros casos analisados na literatura, são necessários
intermediários, geralmente profissionais ou instâncias que constituem uma
antiexpertise, para que as populações atingidas passem a ser ouvidas (Lopes 2004: 259).
Neste caso, os intermediários eram semelhantes aos ambientalistas locais quanto à
origem e posição social, mas a sua vivência em partidos políticos de esquerda ou
sindicatos tornou possível que a sua abordagem do problema de criação da APA
privilegiasse questões de desigualdade social sobre os problemas ambientais. Desta
forma, eles encaravam a sua participação na associação como um trabalho abnegado de
militância política.
A divisão entre povo do lugar e gente de fora também obscurece as diferenças
internas do povo do lugar, formado tanto por grandes proprietários de terras quanto por
trabalhadores diaristas, e todas as matizes intermediárias entre estes dois pólos. Não
99
dúvida de que estiveram envolvidos na formação desta associação grandes proprietários
de terras preocupados com a interferência da fiscalização ambiental em suas atividades
e com a inserção dos ambientalsitas locais na disputa pelos recursos públicos. No
entanto, a aliança indispensável com proprietários de origem urbana que militavam a
favor dos “pequenos” permitiu que fossem conferidas voz e visibilidade às necessidades
da população mais pobre do distrito do Lima.
Numa localidade onde não registro de qualquer tipo de organização de
trabalhadores rurais ou agricultores, tampouco sindicatos rurais
94
, a associação de
produtores e trabalhadores rurais do Lima desempenhou o papel de trazer à tona um
grupo até então marginalizado das discussões em torno da transformação do território
do distrito em unidade de conservação. As debilidades desta aliança impediram a
continuidade, de fato, da associação. No entanto, o seu curto período de atuação teve o
papel de impedir que as medidas ambientais que vinham sendo implantadas ignorassem
por completo a presença de produtores e trabalhadores rurais no distrito do Lima.
94
De acordo com Maria Isaura Pereira de Queiroz, os camponeses, no Brasil, sempre “dependentes de
uma camada superior fosse esta composta de fazendeiros, de criadores de gado, de comerciantes, de
chefes políticos, de citadinos endinheirados os camponeses esposavam-lhes as disputas e partilhavam-
lhes as lutas. (...) Não se desenvolve entre eles uma solidariedade horizontal ou classista. (1976: 28-30)”
100
PARTE II
CAPÍTULO 5 AS PRIMEIRAS ATIVIDADES DO CONSELHO:
REGULAMENTANDO, PLANEJANDO E CONSTRUINDO O DISCURSO
OFICIAL
Após a reunião pública para a formação do Conselho Gestor da APA, em março
de 2002, as primeiras medidas para promover a implantação da unidade de conservação
elaboração do Regimento Interno do Conselho Gestor e do Plano de Manejo Fase 1
(que contém o Zoneamento) transcorreram num período de conflito com a associação
de produtores e trabalhadores rurais, durante o qual prevaleceu a aliança entre
ambientalistas locais e a secretaria municipal de meio ambiente (órgão criador da UC),
permanecendo em suspenso as diferenciações entre os grupos que compunham esta
aliança .
1 - A Elaboração do Regimento Interno do Conselho Gestor
O funcionamento do Conselho Gestor da APA foi formalmente estabelecido
através do Regimento Interno (RI), cuja elaboração constituiu-se num processo tenso e
conflituoso. A primeira proposta de RI foi encaminhada pela secretaria de meio
ambiente e as discussões tiveram início antes mesmo da nomeação oficial do CG pelo
prefeito, simultaneamente às reuniões locais para elaboração do Plano de Manejo,
durante o ano de 2002.
As discussões locais para elaboração do Regimento Interno do Conselho Gestor
tiveram início logo após a conturbada reunião para a formação do CG (analisada no
capítulo 3), numa reunião no centro cultural. Dentre os representantes do poder
público, estiveram presentes somente o secretário de meio ambiente e as representantes
da secretaria de meio ambiente e da secretaria de obras no CG e, em nome da
“sociedade civil”, os indicados para representar todas as organizações, além de pessoas
que falavam em nome dos “pequenos produtores” e do clube de futebol local. Para
muitos dos indicados a representar as organizações locais, não havia ficado claro na
reunião anterior que a composição do CG estava definida.
A leitura da proposta de RI não chegou ao final devido às constantes
intervenções e críticas, especialmente com relação à previsão de reuniões restritas aos
membros do CG. Uma semana depois, reuniram-se somente os indicados para compor o
CG na sede da associação comercial local, em local distante do centro, na Barra do
Lima. Esta localização, bem como a não divulgação do encontro, permitiu que a reunião
fosse restrita aos indicados para compor o CG.
101
O tema do Regimento Interno do CG só foi retomado
95
em agosto, numa reunião
na sede do município entre os representantes do poder público, e em outubro, às
vésperas da posse oficial do CG, em duas reuniões locais. Posteriormente, a proposta foi
finalizada para encaminhamento à homologação do prefeito depois de uma reunião do
Conselho Gestor em janeiro de 2003.
De uma maneira geral, as alterações propostas pelos representantes das
organizações locais à minuta trazida pela secretaria de meio ambiente iam no sentido de
garantir uma freqüência maior das reuniões plenárias, dos relatórios do CG, estudar a
possibilidade de criação de um fundo para gerir a APA (embora o secretário tenha
esclarecido que as despesas com a APA competem à secretaria de meio ambiente),
garantir maior antecedência nas convocações de reunião e definição da sua pauta e
submeter todas as deliberações à aprovação dos conselheiros, como, por exemplo, a
escolha do Secretário Executivo. Ou seja, iam no sentido de assegurar maior freqüência
dos representantes do município à localidade e agilidade na atuação do CG, com
relatórios semestrais e pautas definidas com maior antecedência. Havia uma
preocupação, também, por parte dos representantes da “sociedade civil”, em assegurar o
seu poder de influenciar as tomadas de decisão.
A questão da “participação” dos cidadãos comuns, não integrantes do CG, nas
reuniões plenárias, foi tratada em todas as ocasiões e veio a ser definida ao final de
outubro de 2002. “Os conselheiros decidiram que as reuniões do [CG da APA] serão
realizadas em duas etapas, a primeira restrita aos conselheiros com caráter deliberativo e
a segunda aberta a comunidade em geral com caráter consultivo.” (Conselho Gestor
Ata de Reunião – 24/10/2002)
A proposta original previa reuniões restritas aos membros do CG, ficando
entendido que as colocações da população seriam debatidas no âmbito das organizações
locais e trazidas ao CG por seus representantes. A contra-proposta de reuniões abertas e
com direito a voz concedido aos cidadãos foi trazida pelo representante da ong
ambientalista local, Matheus, e foi fruto de acirradas discussões em reuniões internas
desta instituição
96
.
Quando encaminhada na plenária, esta contra-proposta provocou polêmica e sua
decisão foi adiada para a reunião seguinte, que resultou na decisão transcrita acima. As
atas oficiais, aprovadas e assinadas pelos conselheiros, revelam pouco a respeito das
95
Segundo o conteúdo das atas disponíveis para consulta na Secretaria Executiva do CG.
96
Ver capítulo 2, págs. 38 e 39.
102
discussões suscitadas por este ponto. O acesso a minutas destas atas que vieram a sofrer
alterações para sua aprovação pelo CG revela um pouco mais a respeito destes debates.
Não constam destas minutas os argumentos apresentados pelo representante da ong a
favor da proposição apresentada, não sendo possível imaginar se esta argumentação
chegou a ocorrer, tampouco seu grau de insistência (uma vez que os representantes da
ONG no CG eram justamente aqueles que se posicionaram contra a proposta de
conceder o direito à palavra aos cidadãos, na ocasião da reunião interna da ONG). No
entanto, foi possível identificar o conteúdo das manifestações contrárias a esta proposta
na reunião do CG, encaminhadas pelo presidente, Francisco Pinto, e pela representante
da empresa municipal de saneamento: os cidaos comuns deveriam participar das
organizações da sociedade civil local e estas encaminhariam suas colocações, pois havia
uma percepção de que sua presença nas plenárias do CG provocaria distúrbios no
andamento das mesmas. O presidente do CG ainda ressaltou o caráter democrático da
formação de um conselho deliberativo, ao invés de simplesmente consultivo, como
obriga a legislação federal. Ou seja, havia, também, uma preocupação do secretário em
reafirmar o caráter participativo do CG, apesar das reuniões fechadas.
Apesar de impossibilitados de tomar parte nas reuniões para elaboração do RI,
representantes da associação de produtores e trabalhadores rurais encaminharam uma
proposta alternativa de RI. Na reunião do CG de janeiro de 2003, última a tratar do RI
antes do seu encaminhamento ao prefeito, a representante da secretaria de meio
ambiente propôs a inclusão de três incisos referentes à criação de um Fundo Ambiental,
a ser estabelecido por lei municipal, para custear a APA, frisando ter utilizado trechos
da proposta encaminhada pela dita associação. A inclusão foi aprovada. Ou seja, havia
uma preocupação dos futuros conselheiros em demonstrar o caráter “democrático” e
“participativo” do trabalho do CG, documentando em ata a inclusão de parte da
proposta encaminhada pela associação excluída.
2 As representações sobre o Conselho Gestor da APA ao longo do processo de
elaboração do Plano de Manejo
Pouco tempo depois das reuniões para formação do Conselho Gestor e
elaboração do seu Regimento Interno, começaram as reuniões locais coordenadas pela
ONG Viva Rio para elaborar o então chamado “plano diretor” para a APA. A análise
das representações sobre o Conselho Gestor da APA que surgiram ao longo deste
processo, que durou de março a novembro de 2002, contribui para a compreensão do
103
significado do Conselho Gestor para os representantes da “sociedade civil” local que
dele tomaram parte no período que sucedeu à sua formação.
Durante a maior parte do processo de confecção do Plano de Manejo, de março
a outubro de 2002, o CG ainda não havia sido criado oficialmente, pois faltava que
fosse homologado pelo prefeito. No entanto, era freqüentemente tratado pelos
participantes regulares das reuniões de elaboração do plano como existente e
operante. Esta atitude das lideranças locais é reveladora do papel atribuído por elas ao
CG, como uma instância de poder decisório local cuja autoridade poderia ultrapassar a
do poder público municipal.
As primeiras reuniões locais para elaboração do Plano de Manejo da APA – Fase
1 foram tratadas pelos seus participantes como reuniões do Conselho Gestor. Somente
os indicados, titulares e suplentes, foram avisados sobre a primeira reunião. Entendia-se
que o plano seria elaborado pelo conselho e por pessoas indicadas pelos conselheiros
para executar as tarefas.
As reuniões eram semanais, coordenadas pelo representante da ONG Viva Rio, e
seus participantes regulares foram os escolhidos para representar quatro entidades da
“sociedade civil” local: Matheus, da ONG ambientalista Grupo Germinal; Lúcia e
Darcy Miranda, da associação de moradores do Lima; Jaime e Hermes, da associação de
moradores do Vale das Águas e Ivan e Rô, da associação comercial. A presença dos
futuros representantes do “segmento religioso”, Alcina Miranda e Brian, e da associação
de moradores da Nascente, Rogério e Cristina, foi esporádica e não houve de fato o seu
envolvimento com os trabalhos que foram realizados. Os futuros conselheiros
representantes das secretarias e empresas municipais não freqüentavam as reuniões,
exceto em ocasiões específicas
97
. Mesmo assim, até o final de junho, os participantes
regulares das reuniões se intitulavam o conselho, e neste título respaldavam muitas de
suas ações. Por exemplo, entrevistas com os “empresários” e “produtores rurais” do
distrito do Lima, para confecção de um diagnóstico sócio-econômico para o Plano de
Manejo, foram feitas em nome do Conselho Gestor da APA.
Esta pressa em se auto-intitular como o conselho estava relacionada a duas
circunstâncias. A primeira delas era uma compreensão do conselho como uma
autoridade xima local, uma instância pela qual toda e qualquer atividade realizada no
distrito deveria ser autorizada antes de acontecer. Era comum a repetição de frases
97
Quando se tratava da “recuperação de uma área degradada”, para a qual buscou-se uma parceria com a
empresa municipal de saneamento; ou para a elaboração de um “sistema de sinalização”, para o qual foi
contactada a secretaria municipal de comunicação social, que não dispunha de assento no CG.
104
como: “De agora em diante, tudo que for feito na APA vai ter que passar primeiro pelo
conselho”. Os ambientalistas locais ansiavam por este poder de fiscalização e
regulamentação muito tempo, desde que começou a ser cogitada a criação de um
“parque ecológico comunitário” na área das cachoeiras. A partir do momento em que
houve a definição das entidades e pessoas que integrariam o CG, e as constantes
afirmações da secretaria de meio ambiente de que a nomeação oficial era iminente, os
ambientalistas locais se sentiram imbuídos da autoridade que lhes faltava para iniciar
um processo mais sistematizado de normatização do uso dos recursos naturais no
distrito. A principal medida, neste sentido, foi a produção do Zoneamento da APA, que
passou a nortear, dali por diante, o uso do espaço no distrito do Lima.
A segunda circunstância era a necessidade de conter a atuação dos opositores do
processo de implantação da APA, que pareciam estar se organizando e ficando mais
eloqüentes a cada dia. Tratar a elaboração do Plano de Manejo como um trabalho do
conselho permitia limitar a interferência de outras lideranças locais que prejudicavam o
andamento das tarefas previstas no projeto de elaboração do plano principalmente da
associação de produtores e trabalhadores rurais. Este tratamento, associado a uma
exigência de rapidez nos trabalhos por parte da secretaria de meio ambiente
(inicialmente, foi dito aos participantes das reuniões que o plano deveria ser elaborado
em um mês), fazia com que qualquer questionamento soasse como algo que estava
atrapalhando o andamento das atividades. O conselho serviria, então, para agilizar o
envolvimento da comunidade, pois as decisões seriam discutidas no interior de cada
organização e trazidas ao conselho por seus representantes. Desse modo, também, a
presença de representantes da associação de produtores e trabalhadores rurais foi, até
determinado momento, tratada como uma concessão.
Por exemplo, diante das demandas por participação de lideranças da recém
formada associação opositora, o coordenador do Viva Rio, Boris, colocou que o CG
deveria ter representantes de todos os “atores sociais”. E acrescentou:
“Do ponto de vista de burocracia, se a associação de produtores
rurais vai entrar no conselho, eu nem sei como é que é, o que
precisa, tem que ver com o Francisco [secretário de meio
ambiente]. Do ponto de vista da construção do plano diretor,
vocês estão no conselho. O que vocês têm agora que negociar
com o secretário é a inclusão oficial.” [Reunião do Plano Diretor
– abril de 2002]
105
Ao que o representante do Grupo Germinal respondeu:
“O secretário não manda nada, quem manda são as pessoas de
que o conselho se compõe.”
Esta resposta de Matheus, representante da ONG ambientalista local,
exemplifica a intenção de construir uma espécie de poder local, que superaria o poder
público municipal. Isto porque, quando se refere ao conselho, Matheus se refere àqueles
conselheiros ali presentes, aos quais caberia a decisão de “permitir” a presença dos
representantes da associação de produtores e trabalhadores rurais, embora aquela
associação ainda não dispusesse da documentação exigida para compor o CG.
No entanto, Margarida e Miguel Ângelo, que naquele momento ainda não
haviam sido escolhidos pela associação de produtores e trabalhadores rurais para
representa-la nos fóruns da APA, recusavam-se a aceitar que sua presença fosse tratada
como uma concessão. Eles admitiam fazer parte da dita associação e falavam em defesa
dos “pequenos produtores”, mas faziam questão de deixar claro que estavam exercendo
o direito de tomar parte naquelas reuniões enquanto cidadãos, porque a elaboração do
Plano Diretor não deveria ser restrita aos membros do conselho. Ou seja, eles
questionavam a forma pela qual vinha sendo tratada a “participação” na elaboração do
Plano de Manejo
98
.
A resposta dos elaboradores do plano a estes questionamentos ia no sentido de
reafirmar o modelo de “participação” adotado. Como exemplifica o discurso do
coordenador do Viva Rio, Boris, numa apresentação do Plano de Manejo à comunidade,
em outubro, com o CG já oficializado:
“Até o final do mês de outubro, nós terminaremos a
composição desse plano, vamos montar o primeiro volume,
vamos apresentar ao Conselho Gestor, iniciando pelo presidente
do conselho. E a recomendação da Feema, e da Ecologus
[representante do patrocinador], sic é que a gente faça uma
reunião depois de apresentação geral do plano. Quem pode
98
A idéia da “participação popular” na gestão pública, ou envolvimento público, que começou a tomar
força, no Brasil, no período pós-constituinte, tem sido tratada na maior parte da literatura de forma
normativa, avaliando-se experiências de “participação”. Outra fatia significativa da literatura apresenta
discussões teóricas de filosofia do direito ou ciência política, calcadas na oposição entre “democracia
participativa” e “democracia representativa”. Para uma análise mais abrangente, Heredia e Palmeira
propõem que se incluam “as condições sociais e políticas que possibilitam a emergência de agentes e
forças políticas interessadas, de algum modo, nesse tipo de experiência ou, então, em oposição às
mesmas” (1999: 10).
106
agregar sugestões, alterações, são os membros do Conselho
Gestor, que representam os segmentos da sociedade. Outros
segmentos que não compõem ainda o conselho podem
encaminhar. A gente não queria, isso é uma preocupação minha,
é abrir assim pra toda a comunidade, todo mundo falando, senão
a gente não vai terminar nunca mais esse plano. A sociedade, em
seus segmentos organizados, encaminha. Então esses segmentos
ouvirão a apresentação do plano. Nesse último momento, a
gente ainda pode fazer algumas modificações, porque até o final
do mês de novembro a gente tem que entregar pronto o plano.”
As lideranças das organizações da sociedade civil local que estavam se
empenhando em realizar as etapas apontadas como necessárias para a implantação da
APA - ou seja, os ambientalistas locais - interpretavam os questionamentos dos
opositores locais (que, com o passar do tempo, ficaram sendo somente os representantes
da associação de produtores e trabalhadores rurais) como implicâncias e revanchismos
de ordem pessoal, provenientes de pessoas cuja intenção era, somente, atrapalhar a
implantação da APA. Alguns chamavam a atenção para o aspecto dito “político”,
interpretando a postura questionadora como motivada por alianças daquelas pessoas
com políticos, cujos benefícios diminuiriam com o poder do Conselho Gestor. Como
aparece no alerta de Jaime, representante da associação do Vale das Águas,
argumentando contra a presença de cidadãos comuns nas reuniões do Plano de Manejo:
“Não se pode usar a democracia em favor de pessoas que estão
contra tudo isso. O que acontece é que algumas pessoas que
estão aqui muitos anos no Lima, eles não são a favor disso,
não são a favor de nada aqui. Elas são a favor de suas facilidade
políticas. É preciso entender a comunidade do Lima pra tomar
uma atitude dessas. A democracia, nós estamos aqui para
proteger a democracia, mas não podemos com a democracia
facilitar pra outras pessoas que na verdade são anti-democráticas
impeçam essa coisa que é a APA” [reunião do Plano de Manejo,
em abril de 2002].
Com o passar do tempo e a demora na nomeação oficial do conselho pelo
prefeito, os ambientalistas locais passaram a questionar a ausência dos representantes
da municipalidade nas reuniões e o pouco empenho do secretário-futuro-presidente para
107
agilizar os trâmites oficiais, pondo em dúvida a sua auto-intitulação como conselho. É o
que aparece neste diálogo entre Matheus, do Grupo Germinal, e Ivan, da associação
comercial:
“Ele [Francisco Pinto, secretário de meio ambiente e presidente
do CG], como presidente, ele parado, essa é a verdade. Nós
precisamos do conselho preparar um oficio ou uma carta
convocando ele pra uma reunião do conselho.” [Matheus]
“O conselho não pode fazer isso porque não existe
conselho.” [Ivan]
“Então vamos nos intitular o conselho gestor da APA:
Germinal, associação de comerciantes, associação do Vale das
Águas e associação de moradores.” [Matheus, reunião do Plano
de Manejo, junho de 2002]
Diante da constatação da fraca atuação do presidente, o representante da ONG
explicita o desejo de estabelecimento de um poder local, formado pelos representantes
das quatro organizações locais empenhados na confecção do Plano de Manejo. O
representante da associação comercial, por sua vez, enxerga dificuldades para exercer
este poder sem o respaldo da prefeitura
99
.
Assim sendo, a atuação do conselho, naquele período, foi a projeção dos planos
dos ambientalistas locais para a gestão do distrito do Lima, o que se refletiu na
construção do Plano de Manejo. No entanto, para passar do planejamento à ação, era
necessário contar com as autoridades do governo.
3 A relação dos ambientalistas locais com a prefeitura durante o período de
formação do aparato institucional e legal da APA
A aliança entre os ambientalistas locais e alguns órgãos municipais,
especialmente a secretaria do meio ambiente, era repleta de tensões. Em parte porque
99
José Sergio Leite Lopes sugere considerar o envolvimento público “como um processo de comunicação
social no qual vários atores participam das tomadas de decisão em graus variados de intensidade,
juntamente com as autoridades blicas. Esse envolvimento público pode se fazer de forma fraca ou
forte, dependendo do contexto institucional mais amplo e da natureza e do grau de transparência, bem
como da abertura dos processos de interação e comunicação entre governos e cidadãos. Dessa forma,
passa-se a depender do exame empírico de cada caso, dando-se importância para a análise etnográfica e
historiográfica. (2004: 258)” Neste caso, embora houvesse um grupo organizado e atuante interessado em
trazer decisões e ações para a esfera local, sua atuação era limitada não só pela dependência em relação ao
orçamento municipal e da secretaria de meio ambiente, como também pela necessidade do respaldo e do
aparato institucional.
108
fora consolidada com a criação da APA, em 2002, após um período em que o poder
público, especialmente o municipal, era alvo de constantes críticas por parte dos
ambientalistas locais. Como atestam uma manchete do informativo da associação
comercial, de 1999 - “Poder público é o maior obstáculo ao desenvolvimento do
turismo” ou o informativo da ONG ambientalista do mesmo ano, em matéria sobre
loteamentos “irregulares” - culpando o “desinteresse e a inabilidade das Secretarias de
Obras e de Meio Ambiente do município”.
Cerca de 6 meses após a criação da APA, os ambientalistas locais
interpretavam as negociações com o órgão municipal como um mal necessário à
implantação da preservação ambiental no distrito. E questionavam a efetividade do
poder atribuído a eles pela prefeitura através do conselho, à medida em que iam se
deparando com os limites da cooperação do governo municipal.
A relação dos ambientalistas locais com a Prefeitura, de uma maneira geral, e
com a secretaria de meio ambiente, especificamente, por ser o órgão que alavancou a
criação da APA, era de constante cobrança. A sensação era de que o empenho por parte
daquelas lideranças locais na implantação das medidas ambientais era sempre muito
maior do que o das autoridades municipais
100
.
Enquanto os ambientalistas locais acreditavam fazer o seu papel dentro das
exigências de prazos e conteúdos exigidos pela prefeitura, tudo lhes parecia ficar
pendente e se arrastar quando era a hora da atuação das autoridades municipais,
especialmente nos trâmites considerados burocráticos assinatura de ofícios pelo
prefeito, aprovação de documentos, etc.
A necessidade de cobrança insistente era reconhecida até mesmo pelos
conselheiros governamentais. Na apresentação do Plano de Manejo à comunidade, em
outubro de 2002, o representante da secretaria de agricultura, Antônio Jardim, reafirmou
a importância da cobrança em relação ao poder público:
“Tudo a gente vai decidir no Conselho Gestor. Em que
depender do poder público, tem que haver decisão e cobrança
insistente.”
Diante disso, o representante da ONG local, Matheus, cobra:
100
Nos casos estudados por Leite Lopes (et allii), nos locais onde a participação é mais elevada, os
“movimentos populares” apresentam “a queixa de que os conselhos muitas vezes deixam a desejar por
decidirem com base na pressão desigual por parte do Executivo local, que detém as informações, os
quadros técnicos, e os meios políticos de executar.” (2004:254). O caso desta pesquisa, somando-se aos
estudados por Leite Lopes, fornece elementos para pensar as dificuldades de implantação de uma
participação efetiva da população em diferentes áreas de tomadas de decisão.
109
Então eu quero ouvir agora com a participação dos
representantes de cada secretaria que compõem o Conselho
Gestor do poder público. Se vão ouvir o que a comunidade
solicita e se realmente vão colocar em prática. O que sempre
faltou foi o poder público realmente participar.”
Outro integrante da ONG acrescenta:
“A gente gostaria de ter acesso a que as pessoas que são os
representantes do poder público no conselho, de alguma
maneira, tenham poder decisório.”
Ao que o secretário-presidente esclareceu que os conselheiros municipais
teriam, sim, poder decisório. Ou seja, havia uma desconfiança dos ambientalistas locais
em relação à efetividade do poder atribuído ao Conselho Gestor no discurso das
autoridades municipais. Pois de nada adiantaria que decisões fossem tomadas pelo CG
se não viessem a ser executadas pelos órgãos municipais.
Na apresentação final do plano, em novembro, o conselheiro representante da
associação de moradores do Vale das Águas, Jaime, expressou o seu temor em relação
aos compromissos do governo municipal e questionou o alcance do poder atribuído ao
CG:
“Essa participação, o poder das lideranças não tem. Na hora que
o pau quebrar, a prefeitura corta.(...) A comunidade vai ficar
contra a liderança porque a liderança não vai conseguir colocar
as coisas que ela quer colocar. Tem que ser dito que vai esbarrar
na prefeitura. Porque eles têm, como é que se diz, os
interesses...”
A conselheira da secretaria de meio ambiente diz ser preciso ver o poder público
como aliado, não como inimigo. E Jaime questiona os limites da aliança entre os
ambientalistas locais, chamados de lideranças, e a secretaria do meio ambiente, pois,
no âmbito da prefeitura, haveria outros “interesses” em jogo. Jaime percebe que outras
“lideranças” também possuem suas alianças dentro da prefeitura e, num momento de
conflito, não se sabe quais alianças falarão mais alto.
A necessidade de cobrança em relação ao poder público não é uma característica
exclusiva do município ao qual pertence o distrito do Lima. Neste caso, embora a
relação entre ambientalistas locais e poder público fosse tensa, não era percebida dessa
forma pela população. Aos olhos de muitos moradores, os ambientalistas locais
110
pareciam estar tirando proveito da aliança com o governo, especialmente pela
desconfiança de que alguns deles seriam contratados pela prefeitura via uma
cooperativa. Assim sendo, a cobrança por parte das lideranças em relação à Prefeitura,
muitas vezes, não encontrava reconhecimento na comunidade, como atestam os receios
de Jaime no depoimento acima. Ele temia que, passado o momento do conflito, no qual
todos apóiam a implantação da APA, a parcela da população simpática à implantação de
medidas ambientais começasse a perceber que as decisões tomadas pelo CG esbarravam
na necessidade de apoio material e institucional da Prefeitura e se voltasse contra os
conselheiros locais. Diante disto, o secretário reafirmou o poder de decisão dos
conselheiros governamentais no interior de suas secretarias ou empresas municipais.
4 - A “participação” na elaboração do Plano de Manejo da APA – Fase 1
A aliança entre ambientalistas locais e secretaria de meio ambiente, que
conduziu a implantação da APA, construiu um discurso em favor da criação da unidade
de conservação no distrito do Lima, alicerçado na participação da comunidade. Reza a
legislação que as unidades de conservação devem ter sua gestão orientada por conselhos
compostos por representantes do governo e da sociedade civil, de forma participativa
101
.
A contratação da ONG Viva Rio pela secretaria de meio ambiente, para
coordenar a execução do projeto de confecção de um Plano de Manejo para a APA, foi
orientada pela necessidade de utilizar métodos considerados participativos
102
. Como
explicou o coordenador do Viva Rio, Boris Tavares, na primeira reunião local para
elaboração do plano:
“Eles convidaram a gente não pela especialização específica em
algum assunto técnico, mas pela capacidade de gestão. Gestão,
mediação de conflitos e aproximação entre os diversos atores
103
.
101
A emergência de idéias em torno do desenvolvimento sustentável concorreu para o fortalecimento de
prescrições participativas, considerando o conhecimento local como essencial para a concepção de
projetos fundados na valorização dos recursos disponíveis. Ao mesmo tempo, as prescrições do programa
Comunidade Solidária estimularam, ao longo dos anos 90, a instalação de conselhos municipais em
diversas esferas da vida social.
102
Concordo com Lobão quando afirma que os conceitos de “empoderamento”, participação e
stakeholders, apesar da apresentarem uma historicidade distinta em alguns contextos, constituem um
pacote nos cenários nos quais as políticas públicas ambientais e de desenvolvimento sustentável estão
sendo implantadas (p.235). Ele questiona o efeito da implantação destes conceitos “exógenos” em
sistemas sociais distintos.
103
Nos documentos do PRONAF, por exemplo, o planejamento participativo é fortemente recomendado
“a fim de que os diversos atores implicados possam democraticamente influir nos planos e projetos
gerados, de uma maneira ascendente, refletindo, assim, os interesses das comunidades rurais”. (Governo
Federal, 1995).
111
Pra fazer qualquer trabalho junto às comunidades, usar como
base teórica a agenda 21
104
e o DLIS , que é outro marco teórico
do Desenvolvimento Local Integrado Sustentável
105
(...). Então é
constituir um conselho, e é basicamente isso que sendo feito
aqui, fazer um diagnóstico participativo, quer dizer, trazer até
dinâmicas, metodologias pra, junto com os atores sociais,
identificar não os problemas, as soluções, as fortalezas e
fraquezas, as ameaças e as oportunidades, o que tem na própria
comunidade que pode ser agregado aos projetos pra facilitar.”
Nesta apresentação feita por Boris, ele procura transmitir às lideranças locais
alguns dos princípios das metodologias de “participação” que seriam utilizadas para a
elaboração do então “plano diretor”, com base na desobrigação do poder público em
relação a determinados assuntos e a construção de “parcerias” com a população
organizada.
106
O Plano de Manejo da APA Fase 1 foi elaborado pelo coordenador da ONG
Viva Rio, com o apoio de técnicos contratados para itens pontuais como o
Zoneamento e, em reuniões semanais, realizadas no distrito do Lima, das quais
participaram regularmente representantes de quatro organizações da “sociedade civil”
local associação de moradores do Lima, associação de moradores e proprietários do
Vale das Águas, associação comercial e agropastoril do distrito do Lima e Grupo
Germinal (a ONG ambientalista local). Estas quatro organizações, juntamente com o
“segmento religioso” e a associação de moradores da Nascente, haviam sido indicadas
para compor o Conselho Gestor da APA. Embora a elaboração do Plano de Manejo
104
A operacionalização do desenvolvimento sustentável, como proposto pela Agenda 21, passa pela
negociação entre os principais grupos interessados, que elaboram em conjunto uma agenda integrada,
levando cada parte interessada a assumir responsabilidades, tendo como meta comum o desenvolvimento
local econômica, social e ambientalmente “sustentável”. Esta perspectiva tem sido denominada de
“Desenvolvimento Local”.
105
O Desenvolvimento Local estaria relacionado aos processos de descentralização, quando o poder de
decisão e realização é transferido de instâncias mais centrais para os municípios e comunidades,
simultâneos ao esvaziamento do poder dos estados nacionais. Como ponto fundamental da construção do
desenvolvimento local figura o “planejamento local”. Este processo de planejamento se baseia na
formulação de uma visão coletiva da realidade local, com base no “envolvimento dos atores sociais”.
106
Lopes (et allii) coloca que “a propalada retração do Estado com relação a assuntos públicos vem
acompanhada dessa perspectiva de consolidar a colaboração entre governo e população, e o vício da
desobrigação de antigas responsabilidades pode tornar-se a virtude das ‘parcerias’” (2004: 258). É
precisamente esta lógica que o coordenador do Viva Rio pretende expressar com seu discurso.
112
tenha tido início em abril de 2002 e o CG tenha sido oficializado pelo prefeito em
outubro daquele ano, os participantes regulares daquelas reuniões locais trabalhavam na
elaboração do plano, tratando a si mesmos como o conselho. Além destes, alguns
associados destas mesmas instituições, que não integravam suas diretorias, também
participaram das reuniões de elaboração do plano com regularidade.
A participação daquele conselho na elaboração de um Plano de Manejo para a
APA consistia na execução de tarefas relacionadas à elaboração do plano e a outros
“produtos” do projeto no qual ele estava inserido: realização dos estudos identificados
como necessários pelo coordenador externo; execução das tarefas previstas no projeto
de elaboração do plano, tais como: um sistema de sinalização para a APA (placas); a
escolha de uma “identidade visual” para a APA; e a recuperação demonstrativa de uma
“área degradada”.
O conselho que se envolveu ativamente na elaboração do plano constituía-se de
cerca de uma dezena de pessoas, metade das quais tiveram acesso à educação escolar
até o nível médio, três haviam completado o nível superior (Biologia, Jornalismo e
Publicidade) e as outras não o haviam concluído. Estas pessoas tinham acesso e
consultavam com freqüência diversas fontes de informação jornais, revistas, livros e
internet. Muitas delas tinham uma certa experiência no relacionamento institucional e
informal com políticos e órgãos governamentais, advinda da sua trajetória de
reivindicações ao poder público, em sua maioria de ordem ambiental e relacionadas ao
próprio distrito. Além disso, algumas destas pessoas possuíam empregos na esfera
municipal, contratados via uma cooperativa. Algumas delas eram proprietárias de terras
no Vale das Águas.
Sendo assim, pela sua formação escolar, sua trajetória de atividades e as áreas de
conhecimento para as quais estava voltado o seu interesse, eram pessoas que
compartilhavam um universo comum de conhecimentos não especializados a respeito
de alguns temas ambientais ou ecológicos. Eram capazes de discorrer fluentemente, sem
o compromisso do rigor técnico ou científico, a respeito de saneamento, reciclagem de
lixo, agricultura, uso de insumos químicos, ecoturismo, mapeamento, solo, clima, fauna,
flora, legislação ambiental e assuntos afins
107
. Além disso, alguns deles pareciam
107
Da mesma forma que um Plano de Manejo de uma Área de Proteção Ambiental, se feito de acordo
com o Roteiro Metodológico do IBAMA, um “pequeno projeto de desenvolvimento sustentável” “não
pode ser realizado por pessoas que não sejam formadas na mesma tradição cultural daqueles que
elaboram os roteiros ou serão seus avaliadores”. Os grupos aos quais os projetos se destinam, em geral,
estão situados em “outros universos culturais cujas lógicas diferem substancialmente da lógica cartesiana
e positivista dos projetos de desenvolvimento” (Pareschi 2002 apud Lobão 2004:241)
113
encarar a sua participação em assuntos de interesse coletivo, especialmente de caráter
ecológico, como uma espécie de missão ideológica em prol da ecologia, ou até mesmo
uma missão existencial.
Nas reuniões para elaboração do Plano de Manejo, era comum lançarem mão da
sua vivência de uma, duas ou até três décadas no distrito acumulando variadas
experiências em termos de produção agrícola, manejo de suas propriedades, convivência
com o turismo e a população local, encaminhamento de reivindicações ao poder público
como um conhecimento que lhes permitia proferir afirmações generalizantes e
concludentes a respeito da localidade. Esta postura, de acordo com algumas destas
pessoas e confirmada pelo representante da ONG Viva Rio, Boris, contribuiu para que
uma parte das tarefas previstas para a confecção do então denominado “plano diretor”
fosse trazida para a realização local, possibilitando o envolvimento desses indivíduos e
o aproveitamento destes seus conhecimentos
108
.
No início da confecção do plano, o coordenador externo Boris definiu quatro
áreas temáticas (fatores bióticos, abióticos, sócio-econômicos e jurídico-institucionais)
para os estudos sobre a APA. A participação das lideranças locais consistiria em dividir-
se em três grupos para levantar as informações existentes sobre estes três temas (a parte
“jurídico-institucional” caberia à secretaria de meio ambiente), que deveriam resultar
em textos para integrar o plano. O conselho foi mencionado pelo representante da ONG
local, Matheus, na divisão de tarefas para elaboração de estudos sobre a APA:
“Inclusive isso poderia ser partilhado entre os segmentos que
compõem o conselho. Por exemplo, a questão social, ela poderia
ser compartilhada entre o segmento religioso, associações de
moradores. Esses segmentos mais bióticos e abióticos poderiam
ficar dentro do segmento ambiental. E depois tudo ser discutido
em conjunto, em conselho, para que todos possam trabalhar, pra
que todos possam participar.” (reunião do plano diretor abril
de 2002)
A preocupação de Matheus em reafirmar a “participação” de “todos” se justifica
pela presença de Margarida e Miguel Ângelo, da associação de produtores e
trabalhadores rurais, e suas demandas por participação.
108
“Então, como a sociedade aqui do Lima já tá bem organizada, já tem Conselho Gestor, tem ongs como
o Germinal trabalhando anos, muita informação produzida, muitas universidades, a turma da Fabrícia
[Psicologia Social UFRJ](...) Vamos reunir toda a informação disponível porque isso vai ser a fonte,
subsídios para a elaboração do plano.” (Representante do Viva Rio na primeira reunião local para
elaboração do Plano de Manejo – abril de 2002)
114
Boris, o coordenador do Viva Rio, procurava valorizar esta forma de trabalhar,
tratada como uma “estratégia”:
“Pegar os quadros locais, não tão feras assim...”. “Mas
conhecedores...” [acrescentou Matheus, da ONG]. “Mas
conhecedores e que vão fazer o trabalho que esse ferão [um
técnico] produziria.”
E como exemplo da capacidade das lideranças locais em realizar os estudos
previstos, Matheus exemplifica com o caso da representante da associação de moradores
do Lima, Lúcia:
“Uma pessoa conhecedora de domínio histórico, porque ela tem
um laço muito forte com a comunidade bem nativa.”
Lúcia, por ser freqüentadora da Igreja Católica e amiga pessoal de Darcy
Miranda, é considerada integrada na comunidade nativa. A designação da população
local de origem camponesa como nativa, pelos ambientalistas locais, durante a
elaboração do plano, apresenta desdobramentos que serão analisados mais adiante.
Ou seja, a participação, inicialmente, foi interpretada por aquelas lideranças
como trabalhar, de forma remunerada, no projeto que previa a elaboração de um Plano
de Manejo para a APA. O fato de estarem realizando tarefas que normalmente caberiam
a especialistas era mencionado como o envolvimento de “atores sociais” na elaboração
do documento, agregando conhecimentos específicos frutos do seu vínculo com a
localidade – as suas vivências e experiências desde que haviam se estabelecido no lugar,
além dos vínculos afetivos com o território construídos ao longo desta permanência.
Inicialmente, as demandas por “participação” de Margarida e Miguel Ângelo, da
associação de produtores e trabalhadores rurais, foram respondidas de forma a incluí-los
nos grupos de trabalho”. Foi dito que aqueles representantes poderiam participar no
grupo que estudava a sócio-economia, trazendo demandas e informações sobre os
agricultores, apesar de a sua associação não estar formalizada para ser incluída
oficialmente no Conselho Gestor.
Aqueles que foram assimilados como representantes dos produtores rurais
declararam, então, fazer parte, de fato, da dita associação. Porém, estariam ali presentes
como cidadãos, pois não haviam sido escolhidos como representantes. E questionaram a
legitimidade das organizações da “sociedade civil” selecionadas para integrar o CG, na
115
condição de representantes da população local
109
. Questionaram a capacidade daqueles
representantes para realizar os estudos para o plano, ao mesmo tempo em que se
recusaram a participar daqueles levantamentos por não se sentirem capacitados para
tanto. Ou seja, nas suas demandas, a “participação” era entendida como a possibilidade
de questionar até mesmo a maneira pela qual estava sendo organizada a elaboração do
plano (sugerindo a contratação de especialistas), de pôr em debate o processo de
formação daquele Conselho Gestor, enfim, era uma demanda por uma discussão ampla
a respeito de todo o processo de implantação da APA.
O coordenador externo procurava trazê-los para a “participação” nos moldes
previstos, explicando que aqueles questionamentos teriam lugar nos capítulos seguintes
do plano, para os quais seriam feitas dinâmicas de grupo com identificação de
problemas e soluções por parte dos “atores sociais” locais. Naquele momento, a pauta
da reunião, todavia, seriam os estudos sobre a APA. Quanto à insuficiência cnica
daqueles que estudavam, Boris mais uma vez elogiou o envolvimento dos “atores
locais” na execução das tarefas, como parte da uma gestão participativa”. E explicou
que não se tratava de um Plano de Manejo, mas de um “plano diretor” acompanhado de
zoneamento, como fora previsto na lei de criação da APA, o que permitiria um limite
mais superficial para as informações levantadas.
Quando os questionadores, Margarida e Miguel Ângelo, compareceram a outra
reunião, em maio de 2002, os membros do conselho já estavam plenamente
empenhados nas suas tarefas. Conversavam sobre as informações que haviam sido
levantadas naquela primeira semana de trabalho pelos três grupos e sobre a maneira de
obter materiais, tais como fotos aéreas, imagens de satélite, mapas e levantamentos.
Empolgados com as suas atividades e constantemente apressados por uma exigência de
urgência por parte da secretaria de meio ambiente, sempre lembrada por Boris, os
109
Margarida (Segunda reunião do Plano de Manejo, maio de 2002) -“Eu vendo assim uma coisa
extremamente irregular em termos de legitimidade, em termos de trabalho envolvendo toda a população
de fato, tá entendendo? E, rapaz, eu não sei, esse conselho me parecendo bastante ilegítimo. Até
porque, ele também não foi precedido pelas organizações que representam a sociedade civil, de uma... Eu
queria saber assim das atas, entendendo? Como é que as pessoas foram, digamos assim, escolhidas,
entende? Não existe muitos dados a esse respeito. São coisas que nós, pelo menos eu enquanto cidadã,
apesar de eu fazer parte da recém formada associação de produtores e trabalhadores rurais, não estou
falando em nome dessa associação, estou falando enquanto cidadã, entende? Eu vi, acompanhei todo esse
processo e realmente foi um processo bastante conturbado e extremamente anti-democrático, entendeu?
Essa é a minha visão, não é só a minha visão. Nós temos cento e não sei quantas pessoas fazendo parte da
associação de produtores rurais, que têm essa mesma visão. São pessoas que trabalham, tiram o seu
sustento da pequena produção, mas são cidadãos, têm que ser considerados.”
116
ambientalistas locais interpretavam aqueles questionamentos como algo que estava
atrasando e atrapalhando a elaboração do então plano diretor da APA
110
.
A freqüência dos questionadores às reuniões semanais não foi regular, uma vez
que eles não se envolveram com a realização dos estudos e execução das tarefas. Foram
convidados a comparecer, a pedido do coordenador externo, nos dias em que foram
realizadas dinâmicas de métodos considerados participativos, quando suas colocações
provocavam discussões acaloradas e bastante hostis. Nestas ocasiões, foram trazidas
também lideranças do chamado “segmento religioso” e da associação de moradores da
Nascente, que, embora tivessem sido selecionados para integrar o CG, não se
envolveram com as demais atividades de elaboração do plano.
Na ausência de Margarida e Miguel Ângelo, foram tecidas uma série de
considerações sobre as suas reivindicações, por parte dos ambientalistas locais. Estas
considerações eram freqüentemente suscitadas por afirmações do coordenador externo
sobre a necessidade de envolver todos os atores sociais, ou ao menos identificá-los e às
suas demandas para que constasse no documento em vias de elaboração.
À pergunta de Boris - “esses outros segmentos que também deveriam ser
ouvidos estão representados no conselho?” -, Hermes, futuro suplente do representante
da associação de moradores do Vale das Águas, respondeu que “os que não estão é
absolutamente porque não querem”. E acrescenta que a vaga destinada ao “segmento
religioso” no CG estaria suprindo a necessidade de participação da população.
Os ambientalistas locais desqualificavam a demanda por “participação” das
lideranças dos produtores e trabalhadores rurais, lembrando que eles haviam se
recusado a participar dos estudos para elaboração do plano:
110
semelhanças com o caso da elaboração do Plano Municipal de Desenvolvimento Rural (PMDR),
pelo conselho municipal de desenvolvimento rural, em Lagoa Seca, na Paraíba. “Na lógica dos
representantes da prefeitura, o plano deveria ser elaborado rapidamente por ser (...) uma condição para o
acesso ao PRONAF (...). Pelo lado da concepção da maioria dos conselheiros aliados ao sindicato dos
trabalhadores rurais, o CMDR deveria ser um lugar de coordenação visando estabelecer um plano de ação
concertado.” (Marques & Flexor 2006: 17). Os autores mencionam este caso como um exemplo de como
a hegemonia dos “pleitos da prefeitura” pode sufocar a participação da sociedade civil. No presente
estudo de caso, este sufocamento parece ainda mais inevitável, uma vez que as pessoas que falavam em
nome dos trabalhadores rurais sequer estavam incluídas no Conselho Gestor. Por se tratar da gestão de
uma unidade de conservação (ao contrário de um conselho destinado especificamente ao
“desenvolvimento rural”), não era requerida especificamente a presença de representantes dos
trabalhadores rurais, mas dos “atores locais”, o que tornava possível o questionamento até mesmo da
existência de trabalhadores rurais naquela localidade, como veremos mais adiante. Ao mesmo tempo, os
próprios representantes da sociedade civil compartilhavam a pressa na elaboração do Plano de Manejo e o
interesse em atender às exigências de prazo dos financiadores, uma vez que a elaboração do plano
ocorreu financiada como um “projeto”.
117
“São pessoas que nunca vêm às reuniões” [Lúcia, representante
da associação de moradores]
“Se não participam, a culpa não é nossa (...) O grupo não
participa porque o querem participar.” [Jaime, representante
da associação do Vale das Águas]
O coordenador do Viva Rio, diante destas colocações, reafirmou a necessidade
de, pelo menos, fazer constar no plano as demandas de todos os segmentos
identificáveis. Respondia que aqueles “distoantes” deveriam ser incorporados.
Os ambientalistas locais questionavam, também, a qualificação dos “distoantes”
como “agricultores”:
“Sou agricultor também, olha as minhas mãos aqui.” [Hermes,
suplente da associação do Vale das Águas]
Tornou-se constante a preocupação do coordenador do Viva Rio com a
incorporação de outros “segmentos”. A partir de uma matéria de um jornal local, ele
perguntou aos ambientalistas locais sobre o clube de futebol que havia reivindicado
vaga no CG. Os participantes começaram a desfiar críticas em relação a um dos
fundadores do clube, Airton Rocha, atribuindo a reivindicação de participação à sua
pessoa. O coordenador pergunta a importância do clube enquanto “segmento”, que
todos reconhecem, e conclui-se pela necessidade de entrevistar um de seus diretores
para que conste no Plano de Manejo.
Ao mesmo tempo, o coordenador externo procurava evitar reuniões abertas às
colocações de qualquer cidadão, e não somente àquelas dos representantes de
instituições. Para isso, durante um planejamento da apresentação pública do plano,
mencionou o Conselho Gestor como um “instrumento” para tornar mais rápida a
“discussão” do Plano de Manejo com a comunidade, e de legitimá-lo enquanto
expressão da vontade da comunidade. Como fica claro no procedimento sugerido por
Boris para submeter o documento às opiniões dos moradores:
“Cada entidade do conselho leva pras suas bases. Acho
interessante que uma maneira da gente embasar essas decisões é
que cada entidade organiza uma reunião com seus associados
todos, mostra o material que produzimos, o que eles acham, se
tem alguma correção, não sei quê, pronto, volta pro
conselho. Porque se a gente levar ele inteiro pra discutir com a
comunidade, a gente vai perder (...) Isso vai dar respaldo pra
118
secretaria municipal de meio ambiente, porque de repente
alguém questiona, ah, isso aqui, eu não acho que seja isso. Você
não acha, mas o comitê gestor fez assim, convocou as
comunidades, então isso aí é o que a comunidade pensa.”
O temor do coordenador externo, e dos demais conselheiros, em relação às
reuniões “abertas”, provavelmente, era o de que se repetissem os acontecimentos das
reuniões de formação do Conselho Gestor e discussão do Regimento Interno do CG.
Quando era convocada uma reunião “aberta” e muitos moradores compareciam, os
questionamentos quanto à falta de participação popular, freqüentemente encaminhados
pelos membros da associação de produtores e trabalhadores rurais, costumavam
encontrar apoio no público presente à reunião. Quando as reuniões eram restritas aos
conselheiros, ou mesmo estendidas aos representantes de organizações que não
integravam o conselho, as críticas acabavam por ser enquadradas nas metodologias de
dissolução de conflitos, dentro da linguagem da “gestão participativa”.
Enfim, ao longo do processo de elaboração do planejamento para a APA, foram
atribuídos sentidos diversos à participação. Para os ambientalistas locais, participar era
empenhar-se na realização das tarefas previstas no projeto de elaboração do Plano de
Manejo, atendendo às exigências necessárias para dar encaminhamento a mais uma
etapa da implantação da APA. Para outros, questionadores daquele processo, participar
seria ter a oportunidade de debater os fundamentos da implantação da APA, a
legitimidade do seu órgão gestor. Para outros, ainda, seria ter a oportunidade de
acompanhar e debater, enquanto cidadãos, as medidas que estavam sendo planejadas
para o distrito.
No discurso das autoridades municipais, o empenho dos ambientalistas locais na
realização das tarefas e o empenho do coordenador externo em identificar possíveis
segmentos e procurar saber suas demandas eram demonstrações da “participação
comunitária” na elaboração do Plano de Manejo. A disposição em participar da
comunidade do distrito foi citada pelo secretário de meio ambiente como um dos fatores
determinantes para a criação da unidade de conservação. E aos conflitos foi atribuído
um sentido positivo, como um fator capaz de atrair a atenção do poder público para
pensar e trabalhar as questões trazidas pela população.
5 – Os embates na elaboração do Plano de Manejo
119
Ao longo do processo de elaboração do Plano de Manejo da APA, foi levantada
uma série de questionamentos, por parte de alguns moradores, em relação ao próprio
documento em vias de elaboração e ao conselho.
Algumas destas críticas foram pontuais, colocadas em ocasiões específicas. Por
exemplo, a associação de moradores da Nascente encaminhou um ofício, na reunião de
apresentação do Plano de Manejo à comunidade, em outubro de 2002, colocando em
dúvida a qualidade do documento elaborado e requerendo aprofundamento dos estudos
em relação ao distrito do Lima antes da validação do Zoneamento. As críticas foram
contornadas pelo coordenador do Viva Rio, com base no argumento de que aquela era
apenas a “Fase 1” do plano, que os estudos seriam aprofundados posteriormente. A
questão do Zoneamento foi deixada de lado. A associação da Nascente não voltou a
tocar neste ponto. Como se tratava de uma associação com poucos membros atuantes,
não havia base de apoio para que estes questionamentos fossem levados adiante.
Na mesma reunião, um membro da associação de pousadas, então em vias de
formação, levantou uma questão que havia surgido na ocasião da formação do
Conselho Gestor. Ele pôs em dúvida a legitimidade de alguns conselheiros indicados
por organizações locais em representar os interesses da população, uma vez que
acreditava serem alguns deles “empregados da Prefeitura”. Esta crítica não foi
respondida diretamente. O coordenador do Viva Rio colocou que o trabalho do CG, dali
por diante, seria de permanente tensão entre os diferentes interesses ali representados e
que outras organizações locais poderiam ser incluídas futuramente.
Esta questão, levantada vez por outra por diferentes moradores, fornece
elementos para pensar as condições em que se consolidou a aliança entre ambientalistas
locais e a Prefeitura e os efeitos desta aliança para as relações de poder locais e a gestão
do território da APA. As contratações pela Prefeitura, não para tratar de serviços
relacionados à proteção do meio ambiente, mas para os diferentes serviços de
responsabilidade municipal, eram instrumentos de criação de comprometimentos
pessoais e dívidas de gratidão de moradores do distrito do Lima para com políticos,
funcionários públicos e outros moradores locais que intermediavam estes benefícios. As
contratações municipais, num município que enriquecera recentemente em função do
petróleo, mas num distrito isolado e pobre, constituíam-se numa importante fonte de
renda para diversas famílias, uma vez que a agricultura diminuía e o turismo, sazonal e
de baixa renda, não assegurava rendimentos considerados suficientes.
120
Por um lado, a contratação de ambientalistas locais, que vinham militando
desde a década de 90 em favor da preservação ambiental, pela Prefeitura, permitia que
eles passassem a ser igualados, aos olhos da população, aos demais moradores que se
beneficiavam de relações personalizadas com políticos. As relações personalizadas de
moradores com políticos são prática corrente na localidade e não costumam abalar a
reputação destes moradores. No entanto, como os ambientalistas locais empreendiam
ações que interferiam e visavam restringir as atividades dos demais moradores, e faziam
isto em nome do bem da comunidade, o fato de que passassem a ser remunerados pelo
poder municipal, na visão da maioria da população, parecia contradizer as boas
intenções daqueles militantes e igualá-los a todos os demais na busca da satisfação de
seus interesses pessoais. Permitia, também, dessa forma, que eles fossem assimilados
pela população ao padrão das relações de poder da localidade, como novos concorrentes
sobre os mesmos recursos.
Por outro lado, simultânea à determinação em proteger a natureza na localidade
do Lima e especialmente o aspecto intocado das cachoeiras do Vale das Águas, havia a
intenção de muitos dos ambientalistas locais em obter rendimentos através de trabalhos
relacionados à proteção do “meio ambiente”. As contratações pelo poder público
municipal foram de encontro a esta ambição. No entanto, estabeleciam uma relação de
dependência em relação à Prefeitura que poderia contribuir para limitar o alcance das
suas cobranças e reivindicações políticas em nome da comunidade.
Além das críticas pontuais encaminhadas por diferentes moradores, durante o
processo de elaboração do Plano de Manejo, foram constantes os questionamentos de
membros da associação de produtores e trabalhadores rurais em relação à falta de
transparência e de participação popular na formulação do plano e na atuação do
conselho. Nas ocasiões em que estes questionamentos eram colocados, os
ambientalistas locais argumentavam tanto no sentido de desqualificar pessoalmente as
lideranças que falavam em nome daquela parcela da população, quanto no sentido de
desqualificá-los enquanto representantes legítimos dos produtores e trabalhadores
rurais. Além disso, eram desqualificados os trabalhadores e produtores rurais da
localidade como um todo
111
.
111
Bourdieu analisa a formação dos grupos de ação política. Para ele, a ação propriamente política visa
produzir e impor representações do mundo social que sejam capazes de agir sobre esse mundo, agindo
sobre a representação que os agentes fazem dele. “Ou, mais precisamente, a fazer e desfazer os grupos –e,
ao mesmo tempo, as ações coletivas que eles possam empreender para transformar o mundo social
conforme seus interesses produzindo, reproduzindo ou destruindo representações que tornam estes
grupos visíveis para si mesmos e para os outros e que possam tomar a forma de instituições permanentes
121
Os ataques à legitimidade dos representantes da associação de produtores e
trabalhadores rurais apresentavam como um de seus eixos principais o questionamento
ao enquadramento daquelas lideranças como trabalhadores ou produtores rurais
112
.
Nesta direção, iam também os questionamentos quanto à associação entre
conteúdo das críticas colocadas por aqueles representantes à vontade e às demandas dos
produtores e trabalhadores rurais da localidade. Como aparece neste diálogo entre um
membro da associação de produtores e trabalhadores rurais, recusando o convite do
coordenador do Viva Rio para trabalhar na pesquisa sócio-econômica para o “Plano
Diretor”, e um representante da associação comercial:
“Eu chegar em nome de fazer uma pesquisa para o Conselho
Gestor, que tem problemas com essas pessoas, que, de
repente, elas não consideram legítimo porque não conseguiram
participar, vai complicar pra mim como membro da associação,
e acho que também não tenho conhecimento para isso.”
[Margarida, assessora técnica da associação de produtores e
trabalhadores rurais]
“Se eles são desinformados, são analfabetos, como é que eles
têm essa visão de que eles não estão participando, que eles estão
de fora?” [Ivan, representante da associação de comerciantes,
em reunião do Plano de Manejo, maio de 2002]
Ivan estaria sugerindo que as reivindicações de participação estariam partindo
de lideranças, que não são produtores e trabalhadores rurais.
Ou, ainda, eram lançadas acusações de “degradação ambiental” a estes
representantes, que estariam ali apenas para defender seus interesses pessoais e
contrariando os interesses da comunidade
113
.
Na sua argumentação, durante os confrontos com representantes dos produtores
e trabalhadores rurais, os ambientalistas locais também criticavam os trabalhadores
rurais da localidade. Diante da afirmação de que os trabalhadores rurais seriam a
maioria da população, chegou-se a negar a existência de agricultura e de agricultores na
de representação e de mobilização.” (1988: 70, tradução livre).
112
“O que o senhor Edson produz pra se dizer produtor rural?” Representante da associação do Vale das
Águas – terceira reunião do plano diretor
113
“São pessoas que venderam lote na beirada do rio. Venderam pedaço de pedra na beirada do rio. Essas
pessoas são contra tudo, nunca são a favor de nada que possa facilitar a comunidade.” Matheus,
representante da ong ambientalista local, esclarecendo ao representante do Viva Rio sobre quem eram as
pessoas que haviam levantado críticas à falta de representação dos “pequenos produtores” durante o
processo de implementação da APA (terceira reunião do plano diretor, junho de 2002).
122
localidade, como aparece nesta discussão de Margarida com os elaboradores do Plano
de Manejo:
“Boris [Viva Rio] O pessoal fala de agricultura aqui, mas
não tem agricultura, tem agropecuária.
Margarida – É claro que tem agricultura.
Marcílio [Suplente da ONG Grupo Germinal] Eu posso
dizer que agricultura não existe.
Jaime [associação do Vale das Águas]Se existisse, as casas
de farinha não estariam abandonadas.”
Foi questionada, também, a defesa da importância da agricultura de subsistência
para a manutenção de determinadas famílias, alegando-se que, hoje em dia, muitos
possuem alguma fonte de renda relacionada ao turismo. Ou então, em outros momentos,
procurou-se reduzir a abrangência da categoria “produtores e trabalhadores rurais”,
localizando-os na região do Vale do São Pedro. Finalmente, os produtores e
trabalhadores rurais eram tratados, também, como “pessoas que nunca vêm às reuniões
e, portanto, não querem participar”.
Foram desqualificados, em diversos momentos, ainda, os conhecimentos e
práticas tradicionais relativos à agricultura local. As técnicas de cultivo e criação de
animais eram descritas como ultrapassadas. Frisava-se a necessidade de substituí-las ou
transformá-las em técnicas escolhidas como as ambientalmente corretas
114
. Neste
sentido, os trabalhadores rurais foram criticados por sua resistência à mudança e por
uma visão pragmática e interesseira, pois foi colocado que mudariam se houvesse
alguma contrapartida financeira
115
. Chegou a ser sutilmente sugerido que os
trabalhadores rurais da localidade eram preguiçosos
116
.
Assim, observamos que, neste caso, os ambientalistas desvalorizam os
conhecimentos e as técnicas dos agricultores locais, como causadores de “impacto” ao
114
Boris (Viva Rio, segunda reunião do Plano Diretor, maio de 2002) – ‘Como é que vai manter o cara na
terra? Trazendo técnicos, ensinando ele a trabalhar, porque ele acha que sabe trabalhar mas não sabe. Ele
sabe trabalhar como se trabalhava cem anos atrás, não pode parar no tempo. Tem que chamar a
Emater, discutir, fazer uma coisa que tenha um efeito demonstrativo”. Boris (quarta reunião do plano
diretor, junho de 2002) “Tá meio subjacente a esse trabalho todo que existe uma nova cultura a ser
promovida. Tem que ser mudada essa cultura, não só do cara que cria galinha.”
115
Eles “falam a linguagem do dinheiro” (Jaime, da associação do Vale das Águas).
116
Esta sugestão ocorreu quando, planejando soluções para associar turismo e agricultura, os participantes
regulares das reuniões pensavam sobre as casas de farinha desativadas e a ausência de mão-de-obra para
reativá-las. Naquele momento, estava presente à reunião a representante do “segmento religioso” no
Conselho Gestor. Ela afirmou, então, que o trabalho nas casas de farinha era uma “verdadeira escravidão”
e narrou a permanência de toda a família durante dias e noites ininterruptos nestas atividades. Diante
disto, Ivan, representante da associação de comerciantes comentou, em tom jocoso: “É, muito
trabalho...”
123
“meio ambiente” e como ultrapassadas. As técnicas de produção consideradas
adequadas, na visão dos ambientalistas locais, eram aquelas que vinham sendo
implantadas por “neo-rurais” em suas propriedades
117
.
Os embates durante a elaboração do Plano de Manejo fornecem elementos para
pensar a reorganização de determinados aspectos das relações de poder no distrito do
Lima. É indiscutível a posição conquistada pelos ambientalistas locais, aliados a setores
da Prefeitura, com a criação da APA. Além do poder de regulamentar toda sorte de
atividades e de empreender projetos, os criadores da APA passaram a dispor,
principalmente, do poder de enunciar o discurso oficial a respeito destas
transformações. Em cada um dos pontos críticos levantados ao longo do processo
estudado, coube aos criadores da APA a atribuição de decidir a respeito do
encaminhamento tomado e, mais do que isso, de formular a interpretação destas
questões em documentos oficiais e nos discursos públicos.
6 – A construção do discurso oficial
A associação entre duas ordens de representações no discurso ambientalista local
a preservação ambiental como de interesse planetário, de toda a humanidade e das
gerações futuras; e a preservação da natureza daquele território específico como um
local escolhido para ser um paraíso natural foi o grande “pulo do gato” que permitiu
que determinadas pessoas pudessem se organizar em múltiplas instituições da
“sociedade civil” e falar em nome da comunidade, durante a implementação da APA. O
ambientalismo local chegou até mesmo, sob certo aspecto, a tomar lugar normalmente
destinado às populações tradicionais, índios ou quilombolas em outras unidades de
conservação implantadas pelo Brasil
118
, quando o aproveitamento do seu conhecimento
sobre o local e da sua vivência (que às vezes chega a ser quantificada temporalmente,
como acontece com as populações tradicionais e semelhantes!) foram tratadas como
“envolvimento direto” dos “atores sociais locais”, no Plano de Manejo da APA. Como
pode ser lido neste trecho:
117
Diferentemente dos utilizadores do campo em tempo parcial encontrados por Chamboredon (1980) na
França, que desqualificam os agricultores que adotaram técnicas consideradas modernas, como a
mecanização, mas valorizam o agricultor tradicional, pelo seu contato com a natureza e, inclusive, como
espécies de guardiães de determinados valores.
118
Como nas Resex de Arraial do Cabo e de Pirajubaé, cujos Planos de Utilização foram resultado de um
processo de negociação entre diversos interesses de vários setores, de pesquisa inclusive. “As decisões,
todas votadas, tiveram não só o saber tradicional como fonte, mas também o saber científico, reivindicado
em caso de dúvidas, ou apresentado a título de sugestão.” (Lobão 2005: 56)
124
“A existência de um grupo organizado e atuante durante todo o processo de gestação da
APA DO LIMA, composto por futuros representantes da sociedade civil local no
Conselho Gestor, orientou o encaminhamento dos trabalhos.
A única possibilidade de sucesso na formulação (e futura implementação) de um
planejamento estratégico (...) seria o envolvimento participativo e eficiente desse grupo,
através da massa crítica de informações que detinha, dos relacionamentos amadurecidos
ao longo do tempo com a comunidade e da disponibilidade para dedicar parte de seu
tempo à consecução das tarefas associadas à elaboração do Plano de Manejo (...).
É considerável o desafio representado pela inserção direta dos atores locais num
processo que se inicia com o planejamento, considerando suas deficiências de
qualificação técnica e especificidades culturais, mas isso é fundamental para legitimar
os produtos gerados e para facilitar sua incorporação ao cotidiano das comunidades
contempladas.” (Viva Rio 2003: 42)
O Plano de Manejo da APA do Lima Fase 1, particularmente, é um documento
que cristaliza aspectos importantes do discurso dos ambientalistas locais naquele
momento. A sua análise deve levar em conta que há, também, elementos introduzidos
pelo coordenador da ONG Viva Rio com vistas a satisfazer as exigências dos
patrocinadores, da secretaria municipal do meio ambiente e dos óros governamentais
que ditam os critérios para a gestão de unidades de conservação.
A legitimação do “grupo organizado e atuante” como “representantes da sociedade
civil”, ratificado pelo Plano de Manejo documento cuja função é reger o uso daquele
espaço e seus recursos naturais não deixa dúvidas quanto à inserção daquele grupo de
pessoas nas relações de poder locais. As suas motivações envolvem um desejo de
preservar os atributos naturais daquele espaço específico, escolhido para a vivência do
contato direto com a natureza e ambicionado como local de moradia e sobrevivência. E,
no nível do discurso, a preservação daqueles sítios específicos está associada ao
ambientalismo como causa planetária, de interesse de toda a humanidade e das gerações
futuras.
Analiso, então, a construção do discurso ambientalista local em seus dois
aspectos fundamentais a preservação do meio ambiente global e a preservação do
meio ambiente local. E as implicações de um discurso construído desta forma sobre o
modo pelo qual os ambientalistas locais se inseriram nas relações de poder.
6.1 – Pensar globalmente
125
As variadas afiliações, não dos ambientalistas locais, mas dos neo-rurais de
uma maneira geral, a diversas correntes do pensamento “holístico” e do pensamento
ecológico
119
, contribuíram para consolidar no discurso ambientalista local a
representação da necessidade da preservação ambiental como global, planetária e
relativa a toda a humanidade. Vinculada a esta compreensão estaria o fato de a
preservação ambiental ser destinada à manutenção das condições de vida para as
gerações futuras.
As implicações do tratamento de questões ambientais como uma necessidade de
sobrevivência da espécie humana com repercussões planetárias e para as gerações
futuras são múltiplas. No caso estudado, este tratamento confere uma superioridade à
argumentação daqueles que defendem a implantação de medidas tidas como ambientais
na localidade, uma vez que qualquer posicionamento contrário a estas medidas passa a
ser visto como contrário à preservação ambiental e aos interesses de todos
120
. No
entanto, somente um pequeno grupo tem o poder de definir as situações identificadas
como problemas ambientais e a sua gravidade, bem como as medidas mais adequadas
para tratar destes problemas (desde que se adequando minimamente aos critérios mais
gerais, definidos por instituições externas ao local). Aqueles que se opõem, seja ao
conjunto das medidas ambientais, seja a alguma medida específica ou algum aspecto
dela, são tratados ora como egoístas e mercenários, que pensam nos seus lucros
pessoais e não se importam com problemas coletivos, ora como pessoas que
desconhecem a importância da preservação ambiental e precisam ser conscientizadas.
119
O pensamento ecológico, de acordo com Edgar Morin, está baseado em certos resultados da
ciência ecológica e procura objetivar e expressar a validade do movimento ecológico. Trata-se de um
pensamento sistêmico, de auto-organização. O ecossistema é entendido como um fenômeno organizador;
um fenômeno de computação, multiforme e global. Acrescenta que este pensamento, na atualidade, deve
ser enriquecido por duas contribuições convergentes: a da hipótese Gaia, que atribui propriedades auto-
reguladoras ao conjunto da biosfera; e a contribuição das ciências da terra, entendendo o planeta como
um sistema vivo homeostático e em constante evolução. Um sistema auto-organizado e não fechado. Os
ambientalistas locais se aproximaram do ambientalismo pela via de correntes de pensamento que se
pretendem alternativas à sociedade de consumo, e que se manifestavam entre os demais neo-rurais que
vieram a se fixar no distrito. Entre as pessoas que tomaram a frente da implantação de medidas
ambientais naquele distrito e outras, que simplesmente simpatizavam com estas medidas, havia desde
hippies que começaram a freqüentar a localidade na década de 70 até adeptos do Daime no final dos anos
90, passando por Rastafaris, ou simplesmente, pessoas interessadas em terapias ditas alternativas, padrões
de alimentação diversos da maioria da população (vegetarianos de diferentes abordagens, macrobióticos,
etc.), correntes de pensamento ditas “holísticas”.
120
Quanto aos apelos em nome da comunidade e do bem de todos, o discurso dos ambientalistas locais se
aproxima da caracterização feita por Bourdieu do discurso dos dominantes. Segundo ele, trata-se de uma
linguagem política “não marcada politicamente, (...) orientada em direção à naturalização da ordem social
e empregando sempre a linguagem da natureza”, sustentada por “um ethos da conveniência e da decência,
atestada pelo evitar das formas mais violentas da polêmica, pela discrição”, enfim, por “tudo que
manifesta a denegação da luta política enquanto luta” (1988:71, nota 3).
126
Ou seja, é negada a possibilidade de que o argumento do opositor esteja correto
121
. Ele,
de alguma forma, deverá ser obrigado ou convencido pelo discurso dominante, aquele
que defende a implantação de medidas ambientais no distrito. Como aparece neste
trecho da entrevista com Matheus, fundador da ONG ambientalista Grupo Germinal,
representante desta ONG no CG a 2004 e Secretário Executivo do CG a partir de
2005:
“Pesquisadora - E como é que é a coisa da participação da
população na APA do Lima?
Matheus Ô, Natália, na verdade, desde o começo da
história dos tempos, nunca se pôde agradar gregos e troianos.
(...) Como, por exemplo, pessoas que são malfeitores e destroem
o planeta. Nós, que amamos o planeta, mesmo divergindo de
certas idéias, nós vamos deixar de sofrer por causa disso? Nós
vamos sofrer as conseqüências. E eles, que também são
depredadores, eles vão ficar livres, não vão sofrer as
conseqüências planetárias? Eles vão sofrer. (...) Eu não tenho a
visão que a APA seja uma coisa ruim. Está sendo ainda mal
entendida. Mal agregada. Mal patrocinada, para aquelas pessoas
que ainda não entendem, ou precisariam de uma ajuda. Eu
também não sei se não tivesse APA, se elas aceitariam toda essa
assessoria, toda essas coisas técnicas, também não sei.
Pesquisadora Atualmente, você acha que a população
participa da APA do Lima? Uma parte da população, ou alguém,
de alguma forma?
M Querendo ou não, elas participam no dia a dia. Ou
acordando com as decisões e as gestões, ou não. Então, de todas
as formas, uma participação. Nem aquela pessoa que não
participa ali diretamente, ela às vezes faz coisas boas, ela é
afetada por alguma ação, ou por ela ter feito alguma coisa
errada, ou não. Então, de qualquer maneira, as pessoas, elas tão
participando, elas tão inseridas. Não tem jeito.”
121
Henri Accelrad critica a idéia de que existiria uma ‘consciência ambiental’ una, aquela correspondente
a um ambientalismo antecipatório fundado nos indicadores objetivos do colapso ecológico. (...) Nesta
ótica, a cooperação e o consenso ‘supraclassista’ seriam as categorias que melhor especificam a
problemática ambiental.” (2004: 13)
127
Neste trecho da entrevista com o secretário executivo do Conselho Gestor
(2005), ele classifica as ações dos moradores como boas ou ruins, segundo sua
adequação aos critérios ambientais. As pessoas que praticam ações ruins são
“malfeitores” ou precisam “de uma ajuda” para compreender estes critérios. E, na visão
de Matheus, deveriam aceitar estes critérios por boa vontade, ao invés de somente por
serem obrigados pela APA a aceitar. Ele salienta que as conseqüências destas ações
serão sofridas por todos, pois são agressões ao “planeta”. Assim, justifica a necessidade
de a população se adequar às regras da APA
122
.
A preponderância do discurso ambientalista é, dentre outros fatores, possibilitada
pela associação entre aquelas medidas ambientais específicas, cuja elaboração, conteúdo
e forma de aplicação são construídos em meio a relações sociais e disputas de poder
específicas
123
, e um discurso que proclama a necessidade da preservação ambiental
como global
124
e de interesse e obrigação de cada ser humano.
Esta característica do discurso ambientalista local vai de encontro ao discurso
ambientalista dos órgãos governamentais e agências nacionais e internacionais
envolvidos com a criação de unidades de conservação. O Plano de Manejo da APA do
Lima, apoiado em manuais elaborados pelo IBAMA e pela FEEMA e na experiência do
122
Ronaldo Lobão aponta com acuidade a assimetria numa interlocução em que uma das partes fala em
nome de interesses concretos e a outra parte alega interesses difusos (como o direito a um meio ambiente
saudável).
Este é infinitamente mais poderoso porque ele aciona adeptos que não necessitam atuar em
conjunto,
nem sequer se conhecer. Qualitativa e quantitativamente, os “interesses difusos” dizem representar
mais que interesses coletivos.” (p. 235)
123
Foucault propõe “fazer uma análise ascendente do poder: partir dos mecanismos infinitesimais que têm
uma história, um caminho, técnicas e táticas e depois examinar como estes mecanismos de poder foram e
ainda são investidos, colonizados, utilizados, subjugados, transformados, deslocados, desdobrados, etc.,
por mecanismos cada vez mais gerais e por formas de dominação global (184).
124
Tratando o ambientalismo como um discurso, Tim Ingold procura analisar o significado da
imagem do globo no debate contemporâneo sobre meio ambiente. Para ele, a noção de um meio ambiente
global assinala a culminância de um processo de separação entre a humanidade e o mundo. Como
contraponto, atenta para a idéia do mundo como esfera, ilustrando com um desenho veneziano de 1564
que mostra o homem no centro de várias esferas concêntricas. O globo pode ser percebido de fora,
enquanto as esferas o vistas de dentro. Numa perspectiva global, a vida é vivida na superfície do
mundo. No nível fundamental da realidade física, esta superfície teria existido muito tempo antes da
existência de qualquer forma de vida. Assim, o significado não está no contexto relacional do
envolvimento do mundo com aquele que o percebe, mas inscrito na superfície do mundo pela sua mente.
Conhecer o mundo, então, é uma questão de reconstrução cognitiva. E este conhecimento não é adquirido
pelo engajamento direto, de um modo prático, com os objetos que nos cercam, mas sim pela
aprendizagem de como representá-los, na mente, sob a forma de um mapa. Daí a idéia do meio ambiente
como um substrato para imposição externa de uma forma cultural arbitrária. O mundo se torna uma
tabula rasa para a inscrição da história humana. Uma vez que o mundo é percebido como um globo, nós
não pertencemos ao mundo, nem compartilhando da sua essência nem regulando com seus ciclos e
ritmos. Como a nossa verdadeira humanidade é vista como consistindo na transcendência da natureza
física, é o mundo que pertence a nós. Desse modo, a noção de agir sobre o meio ambiente como uma
intervenção planejada na natureza é fundamental para a noção ocidental de produção.
128
coordenador da ONG Viva Rio, contribui para consolidar esta apreensão da questão
ambiental encampada pelos ambientalistas locais.
Nas diretrizes para a “Educação Ambiental”, um dos objetivos básicos do Plano
de Manejo é “estimular uma visão global (abrangente e holística) e crítica das questões
ambientais”. Dentre as ações complementares de educação ambiental, sugere-se a
“formação de parcerias com instituições governamentais e ONGs: com o objetivo de
executar projetos multi/interdisciplinares, que visem solucionar problemas ambientais
locais (agir localmente, pensar globalmente)”.
A apreensão da questão ambiental como global está relacionada a uma apreensão
cognitiva do mundo através da mente, do conhecimento científico, que implica uma
separação entre a humanidade e o mundo. O Plano de Manejo da APA do Lima, como
outros planejamentos semelhantes elaborados para outras unidades de conservação,
encampa esta visão científica que implica a separação entre a humanidade e o mundo.
Por exemplo, o texto elaborado por ambientalistas locais para caracterizar os “aspectos
bióticos” da APA, quando trata da vegetação, coaduna com a visão de uma natureza à
parte, sobre a qual as ações humanas são tratadas como interferências, pois utiliza
classificações da biologia que reproduzem a idéia da floresta “intocada”
125
. Embutida na
terminologia técnica, uma concepção da verdadeira floresta como uma mata intocada
pelo homem a mais rica em espécies vegetais, em densidade, em espécies animais
da qual ainda podem ser encontrados “remanescentes”, ora chamados de mata
primária”. A mata recomposta após o toque das mãos humanas é tratada como
“secundária”. As atividades humanas são tratadas como “interferência” ou
“degradação”, mesmo se equiparadas a outros fatores dos quais dependem as
características “florísticas e fisionômicas”, como a “zona altitudinal”, o “relevo” e o
“solo”.
126
Em nenhum momento são pensadas situações em que o homem possa ser
visto como parte da natureza, como interagindo naquele ecossistema.
125
Diegues, a partir da literatura sobre a criação dos parques naturais nos Estados Unidos, analisa a
história do conservacionismo brasileiro. Os ambientalistas locais do distrito do Lima assemelham-se aos
“preservacionistas” que, segundo Diegues, “dominam as entidades conservacionistas clássicas e mais
antigas, como a FBCN (Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza), criada em 1958, e muitas
outras mais recentes, como a Fundação Biodiversitas, Funatura, Pronatura etc.”, assim como influenciam
instituições como o IBAMA e o Instituto Florestal de São Paulo. “Esses grupos são constituídos, em
geral, por profissionais oriundos da área de ciências naturais para os quais qualquer interferência humana
na natureza é negativa. (...) Para eles, a natureza selvagem é intocada, intocável(...)”. (1996: 236)
126
Warren Dean, em A Ferro e a Fogo, procurou demonstrar que a vida humana não é possível na mata
atlântica sem alterá-la, mesmo para os povos indígenas que a habitaram. Portanto, a idéia de uma “mata
virgem” é bastante improvável.
129
6.2 – Agir localmente
Ao mesmo tempo, além deste conjunto de argumentos em favor de interesses
difusos no nível planetário, o discurso ambientalista local trazia apelos em “defesa” do
Lima, da preservação do “meio ambiente” local, e da comunidade do Lima, baseados
em representações de apreço afetivo pela localidade, que encontravam eco no discurso
dos demais neo-rurais estabelecidos na região.
Muitos dos neo-rurais que se estabeleceram no distrito do Lima (dentre eles os
ambientalistas locais) e até mesmo alguns freqüentadores assíduos, que nunca
chegaram a residir no local, criaram representações de vínculos afetivos e existenciais
com o Lima. Era como se aquele fosse o local específico escolhido para a vivência de
suas opções alternativas aos padrões dominantes de consumo e comportamento. A
escolha deste lugar, por sua vez, está imbricada na sua apreensão como um recanto de
natureza selvagem, no qual são possíveis vivências do contato “direto” com a natureza –
como banhos de cachoeira e caminhadas por trilhas abertas na mata.
Mas é preciso salientar que sítios específicos, os mais freqüentados por estes
amantes da natureza, concentrados no córrego do Vale das Águas - principalmente as
quedas d´água e o caminho em direção a uma formação rochosa considerada de grande
beleza cênica – que, de certa forma, simbolizam a localidade para eles. Muitos dos neo-
rurais e freqüentadores assíduos, quando falam o nome do distrito, Lima, estão se
referindo àqueles locais específicos somados ao pequeno centro comercial que são os
locais freqüentados por eles.
Nestes locais específicos, escolhidos pelos neo-rurais e alguns turistas como os
mais propícios para vivências de contato com a natureza, a população rural foi bastante
reduzida pela expropriação, desde os anos 70 em virtude da especulação imobiliária
que permitiu a acomodação dos próprios neo-rurais - e, hoje em dia, é praticamente
invisível para quem percorre as trilhas que levam aos principais atrativos naturais. Esta
característica torna tais locais ainda mais propícios à construção de representações sobre
eles como recantos de natureza selvagem
127
.
127
Neste ponto, é interessante notar a diferença de valoração que a região do Vale das Águas recebe de
diferentes lideranças locais. O presidente da associação de produtores e trabalhadores rurais, Edson
Aguiar, discursando em uma das assembléias da associação, desvaloriza aquele local como improdutivo,
ao passo que o presidente da associação do Vale das Águas, Jaime, valoriza o local exatamente pela
ausência de atividades produtivas. Para Edson, a APA poderia ter sido restrita ao Vale das Águas, pois “já
não tem nada pra (...), aquela disgrama que ninguém aproveitando”. Para Jaime, ao contrário, “Esta
área da APA deveria ser destinada para criadouro de animais em extinção. Queremos toda essa área plena
de animais e árvores nativas.” Fica evidente a valorização, por um e por outro, de diferentes usos e
significados dos atributos naturais e do espaço. Para Jaime, a “mata” não é um vazio, é um “criadouro” de
natureza. Já Edson não vê sentido algum em recursos naturais não aproveitados.
130
A escolha deste conjunto de locais, agrupados sob o nome do distrito, como
especiais para a vivência do contato com a natureza es associada, também, a
representações de liberdade em relação a códigos de comportamento predominantes nas
grandes cidades e nas relações destes neo-rurais com suas famílias de origem. Além do
contato com a natureza, nestes locais, em determinadas épocas do ano, é possível
vivenciar o consumo de substâncias ilícitas sem repressão policial, e às vezes até mesmo
a abolição dos trajes de banho. Muitas vezes, estes comportamentos são representados
como associados ao contato com a natureza.
Previsivelmente, foi entre estes citadinos, encantados pela “descoberta” de locais
assim tão paradisíacos, que floresceu um misto de vontade e responsabilidade pela
preservação destes locais tal qual eles se encontravam quando foram “descobertos” por
eles. Somente alguns poucos neo-rurais e freqüentadores assíduos do distrito vieram a
se tornar ambientalistas locais, no sentido de se engajarem política e/ou
institucionalmente pela implantação de medidas ambientais na localidade. Mas foi entre
estas redes de pessoas que, primeiramente, se consolidou a idéia de que era necessário
proteger aqueles locais escolhidos contra o turismo predatório e a especulação
imobiliária. E é em meio a estas redes que as medidas de preservação ambiental, hoje
pensadas para a totalidade do distrito, encontram apoio, mesmo que tácito. Mesmo que
as lideranças e a forma pela qual a preservação ambiental está sendo implementada
suscitem críticas, a necessidade de preservar a natureza local jamais é questionada.
As representações de vínculo com a localidade constituem-se num dos pilares do
discurso construído pelos ambientalistas locais com vistas a interferir na gestão do
espaço e dos recursos. O seu pertencimento à comunidade é, também, um dos
argumentos chave nos discursos governamentais e de patrocinadores que pretendem
tratar a implementação de medidas ambientais como um processo participativo
128
.
Os laços pessoais e afetivos com a localidade figuram nos discursos públicos de
ambientalistas locais, sustentando tanto a sua reivindicação de legitimidade como
128
O Plano de Manejo, em diversos pontos, contribui para a oficialização deste discurso. Por exemplo, o
“histórico” do Lima, elaborado por um ambientalista local, descreve da seguinte maneira a criação da
APA: “Receosa da total descaracterização da beleza natural do lugar, a comunidade, através de suas
associações, reagiu e conseguiu, junto à municipalidade, que todo o Distrito do Lima fosse transformado
em Área de Proteção Ambiental (APA), através da Lei (...)”. Ou seja, a criação da APA figura como
uma conquista da comunidade.
131
representantes
da população quanto a atribuição a si próprios de conhecimento das
características locais
129
.
A análise de representações de vínculo com o território, contidas na entrevista
de um dos fundadores da principal instituição ambientalista local, permite perceber a
construção deste vínculo como imbricada, tanto em relatos de transformação existencial,
quanto de inserção num processo de mudanças ecológicas a nível planetário.
Na narrativa do fundador da ONG ambientalista, Matheus, a obtenção da sua
independência financeira em relação à família, através do trabalho em atividades
ambientais no distrito, é compreendida por ele como inserida em um processo de
evolução espiritual que incluiu a sua conscientização ecológica e que teve como marco
inicial o seu estabelecimento na localidade:
“E acabei me fixando na região. Propriamente o dia 7 de
setembro de 93, foi a minha independência! (...)Eu mesmo
fumava cigarro e jogava a binga no chão. Isso eu me lembro. [Aí
aqui mesmo você foi mudando ... ?] E me educando, isso aí,
entendeu? Eu não era uma pessoa como eu sou hoje em dia. Eu
era como toda a humanidade. E aproveitei a oportunidade que a
vida me deu e fui sensível o bastante pra poder deixar a coisa
fluir em mim e me transformar.”
Matheus evitou falar de sua afiliação religiosa, mas fica clara, em diversos
momentos, a situação dos acontecimentos relatados numa trajetória de aprendizado
pessoal de ordem espiritual proporcionada pela sua fixação no distrito. Por exemplo, ele
se refere ao seu estabelecimento profissional e financeiro como espécies de dádivas
recebidas do lugar e relacionadas ao seu trabalho ambientalista:
“[E porque que você decidiu vir morar no Lima?] É... Primeiro
porque eu... tive uma afinidade muito grande com o lugar. Eu
não sabia que o lugar iria me dar tudo que eu tenho hoje, com 13
anos aqui na região. Eu nem imaginava, eu não tinha idéia que
eu ia crescer, conquistar tudo o que eu tenho na vida. Mas, foi
porque, quando eu cheguei na região, eu brincando de... orientar,
de nortear condutas na região de visita aos atrativos, acabei
129
Por exemplo, na ocasião da “apresentação do Plano de Manejo” à “comunidade”, um comerciante local
questionou, diante da ausência de técnicos na realização de determinados estudos, em que conhecimentos
o texto estava baseado. Um ambientalista local, integrante do grupo responsável por aquela parte do
texto, respondeu: “São nove anos de trabalho aqui, eu tenho o coração nessa terra”. Os anos de trabalho
são tratados como vivência e como comprometimento afetivo em relação ao local.
132
idealizando e executando um projeto que tinha perspectiva
educativa para o acampamento. Isso foi me fascinando, esse tipo
de trabalho social com a questão de preservação ambiental e
educação ambiental. Isso que me atraiu vir pra cá. E a partir daí
eu fui recebendo tudo do lugar. (...) Porque eu cresci aqui. Eu
aprendi a ser grande, a respeitar. Eu aprendi a ajudar, colaborar
na construção e regeneração planetária. E recebi tudo da vida
aqui, não me falta nada. (...) Eu acho que a palavra que pode,
é..., dizer bem isso, é o coração que bate dentro do meu peito é o
mesmo coração quando eu piso nessa terra, que bate nessa
terra.”
Este trecho da entrevista fornece elementos para pensar não o apreço afetivo
(ou mesmo espiritual) manifestado por ambientalistas locais em relação ao Lima, mas
também a associação dos cuidados com aquele local com a “regeneração planetária”
130
.
Como representantes da comunidade e conhecedores da localidade do Lima, os
ambientalistas locais consideravam-se, também, aptos a caracterizar os demais
moradores da localidade, de origem camponesa freqüentemente chamados, nas
conversas informais entre os ambientalistas, de nativos. Todavia, a apreensão dos
ambientalistas locais do restante da população do distrito do Lima baseava-se nos
contatos travados, predominantemente, com nativos residentes no pequeno centro
comercial, o Arraial, e no Vale das Águas.
Estes locais, escolhidos como especiais para o contato com a natureza e a
liberdade em relação a alguns padrões de comportamento dominantes na sociedade em
geral, eram vistos como uma espécie de “paraíso natural”. Num cenário de redução das
atividades tipicamente rurais, como agricultura e criação de animais, os poucos
trabalhadores rurais que restaram no Vale das Águas e no Arraial tornaram-se caseiros
de sítios de veranistas ou empregados “a dia” que prestam variados serviços aos novos
proprietários como construção de cercas, preparação de canteiros para hortas, limpeza
dos arredores das residências; no caso das mulheres, faxinas, lavagem de roupas, etc.
Por seus patrões e pelos freqüentadores que notavam sua presença, eram percebidos
como “ignorantes”, que não desconheciam a importância da preservação da natureza
130
“Para autores como Thévenot e Lafaye, ao contrário de uma causa universal ecológica que se
manifestaria através de atores particulares, como sugere com freqüência o debate corrente, observa-se
uma busca pela universalização de causas parcelares através de valores compartilháveis que tornam os
atos justificáveis.” (Accelrad 2004: 19)
133
local
131
como também mostravam-se incapazes de compreender valores e
comportamentos alternativos àqueles predominantes na sociedade
132
. De uma maneira
geral, sua existência era quase invisível para os freqüentadores daqueles locais. Daí a
possibilidade de representar aqueles locais como desabitados.
Esta apreensão da população rural local era compartilhada pelos ambientalistas
locais, que tomaram parte nas negociações pela criação da APA. A decisão do órgão
municipal de estender a unidade de conservação a todo o distrito, e não somente ao Vale
das Águas, como fora inicialmente reivindicado pelos ambientalistas locais, não
suscitou grandes questionamentos entre aqueles ativistas. No momento da criação da
UC, muitos dos ambientalistas locais julgavam conhecer a realidade local, e baseavam
este julgamento nos seus anos de vivência na localidade. Não atentavam, no entanto,
para o fato de que a sua vivência, apesar de prolongada no tempo, muitas vezes
consistia na circulação por alguns locais específicos do distrito. O processo de
implementação da APA trouxe à tona o descontentamento dos produtores e
trabalhadores rurais, que se organizaram sob uma associação e passaram a “existir” aos
olhos de muitos dos ambientalistas locais que os desconheciam ou negavam a sua
existência.
O posicionamento dos ambientalistas locais, apoiados em sua aliança com a
Prefeitura e na retórica do coordenador da ONG Viva Rio, diante do surgimento do
grupo de produtores e trabalhadores rurais materializou-se no Plano de Manejo Fase
1.
No plano, as diretrizes para as atividades rurais, em primeiro lugar, submetem-
nas ao projeto da preservação ambiental, elegendo como modelo a “agroecologia” e
131
Arthur, que trabalhou por cerca de três anos na ONG ambientalista local – como monitor ambiental nas
cachoeiras e sob o projeto de recomposição das matas ciliares atribui às suas atividades na ONG
ambientalista local a sua conscientização ecológica, e atribui o uso de “mata mato” à falta de
conscientização: Na época, foram administrados alguns cursos [pela ONG], hoje em dia, eu sou uma
pessoa muito mais consciente do que eu era. Hoje em dia, eu tenho muitos valores. Hoje em dia, eu faço a
minha horta orgânica. Eu jamais vou roçar, como eu ouvi do cara, ‘ah, joga um mata mato”. Eles não
têm a noção de que vai pro lençol freático. Então, hoje em dia, eu tenho uma consciência da agressão que
eu posso fazer com pequenas coisas. Então eu acho que fiquei um pouco mais consciente pra esse lado
ambiental.” (Entrevista Arthur 2005)
132
Neste trecho do Plano de Manejo, são as pessoas “vindas de outros lugares” que contribuem para a
recuperação da floresta, ficando implícita a contribuição das pessoas do lugar para a “interferência
sofrida” e explícita a queixa da falta de empenho das “autoridades”: “Apesar de toda a interferência
sofrida, a área florestada no distrito tem aumentado nos últimos 25 anos, seja pelo abandono das lavouras
ou pela iniciativa de pessoas vindas de outros lugares, que acabaram por contribuir com o processo de
recuperação natural da floresta, através da aquisição de terras. Mas, infelizmente, nunca pela ação das
autoridades competentes ou pelo cumprimento das legislações específicas”. (Plano de Manejo da APA
Cap. 5)
134
atrelando-as às atividades turísticas. O planejamento adotado permite notar um certo
desconhecimento a respeito dos trabalhadores rurais locais, no tocante às suas técnicas,
costumes e visão de mundo.
Ao mesmo tempo, todas as diretrizes mencionadas têm, entre seus objetivos,
variações do mesmo tema: “o fortalecimento da identidade cultural, ao restabelecer
formas tradicionais de produção da comunidade, a partir da mobilização das pessoas
que detêm esse conhecimento” (promovido pela produção de doces em compotas,
licores, etc., associada ao “Ecoturismo”); o resgate da “cultura e do saber locais”
(associado à produção de “fitoterápicos”); a valorização do conhecimento dos
produtores rurais do Distrito do Lima acerca do seu ambiente, reafirmando
características culturais locais e seu papel como agentes do próprio desenvolvimento”.
Ou seja, é pressuposta a existência de conhecimentos, costumes e tradições específicos
da localidade, cuja valorização e/ou resgate imagina-se compatível com os objetivos da
preservação ambiental embora, em nenhum momento, sejam especificados quais
seriam estes conhecimentos, costumes e tradições, nem a maneira pela qual eles seriam
compatíveis com a preservação ambiental.
Assim sendo, as razões pelas quais os produtores e trabalhadores rurais resistem
às mudanças são tratadas, no Plano de Manejo, como interesses de ordem econômica e
de sobrevivência, que poderiam, portanto, ser atendidos parcialmente através de
atividades pertinentes aos novos padrões. A possibilidade de que a resistência possua
motivações de ordem cultural, identitária ou afetiva não chega a ser cogitada:
“Conservação da biodiversidade” e “formas de utilização
racional dos recursos naturais” não são idéias fáceis de ser
absorvidas por usuários tradicionais, pois estes têm outras
prioridades, mais urgentes, como alimentação, moradia,
segurança e emprego.
Os meios para motivar os “moradores e usuários” a seguirem os novos padrões,
pensados no Plano de Manejo, são, principalmente, de ordem ambiental e econômica.
Ou seja, além da “conscientização” a respeito dos “danos” ambientais provocados pelas
atividades “degradadoras” ou “impactantes”, seriam apresentadas à população
alternativas de atividades econômicas mais rentáveis, adequadas aos padrões da unidade
de conservação. Os “estudos complementares” para a área “sócio-ambiental” sugerem a
criação de indicadores mensuráveis de forma objetiva para o acompanhamento da
“transição tecnológica”, dentre os quais destaca-se o “retorno financeiro” das atividades.
135
Os argumentos são ilustrados com um quadro no qual se comparam vantagens e
desvantagens das agriculturas “orgânica” e “tradicional”, respectivamente. Em oposão
à “agroecologia”, definida como “um conjunto de princípios e técnicas que visam
reduzir o impacto ambiental da atividade agrícola, produzindo alimentos mais saudáveis
e valorizando o homem do campo, sua família, seu trabalho e sua cultura”, à
“agricultura tradicional” são atribuídas desvantagens que contribuem para elucidar quais
as práticas agrícolas que se agrupam sob esta denominação: suas monoculturas
degradam a paisagem; produz altos índices de toxicidade pelos agroquímicos utilizados;
elimina a biodiversidade; degrada o solo; polui os recursos hídricos; aumenta a
utilização de energia no meio rural.” Ou seja, é chamada de “agricultura tradicional”
aquela praticada nas grandes propriedades, quase que completamente substituída pela
pecuária nos dias de hoje, no distrito do Lima. As queimadas e a rotação de culturas e
de terrenos, técnicas mais utilizadas pelos agricultores locais, não são mencionadas no
quadro, deixando de lado a polêmica a respeito da inclusão destes métodos sob o
conceito de “agricultura natural”
133
.
Embora, o item denominado “Aspectos Sócio-Econômicos” do Plano de Manejo
tenha se apoiado em entrevistas com os produtores rurais, e tenha sido tomado como um
dos fundamentos para as diretrizes elaboradas, os problemas como a “baixa preparação
da comunidade (para enfrentar a nova situação)” e os indicadores, tanto censitários
quanto da pesquisa para o Plano de Manejo, de analfabetismo e pouca escolaridade, não
são mencionados quando se traçam diretrizes para a APA do Lima. Tampouco são
levadas em conta as expectativas de determinados produtores rurais, que se ressentem
da falta de informações e aspiram à possibilidade de continuar suas atividades sem
grandes mudanças.
De uma maneira geral, o conjunto de diretrizes estabelecidas no Plano de
Manejo sugere a priorização do Ecoturismo como atividade econômica, atrelando a ele
as alternativas para as atividades rurais. A preocupação com reduzir as “interferências”
humanas e submetê-las a padrões considerados pouco agressivos, ou menos
“impactantes” ao meio ambiente, permeia todo o planejamento. Os objetivos de
valorização da cultura e do conhecimento locais e de incremento das atividades
econômicas estão submetidos a esta diretriz principal. Orientando-se pela legislação e
por documentos elaborados por órgãos governamentais, é conferida prioridade às
133
Sobre a classificação de técnicas agrícolas segundo critérios ambientais, ver “Agricultura Sustentável”
– IBAMA (2001)
136
necessidades identificadas como ambientais àquelas de caráter social ou cultural.
Embora seja atribuída alguma importância à “conscientização de moradores e usuários”
e à gestão participativa”, fica clara a submissão destes objetivos àqueles de ordem
ambiental, planejando-se uma “transição tecnológica” para adequar as atividades atuais
ao modelo almejado:
“A participação da sociedade na gestão das unidades de
conservação, sobretudo as de uso sustentável, não pode
provocar o desvio dos objetivos de manejo pelos quais as
unidades foram tecnicamente estabelecidas ou propostas. (...) A
implantação dessas atividades deve ser gerenciada de forma
participativa pela comunidade, tendo como princípios o uso
sustentável dos recursos naturais existentes na unidade de
conservação e o respeito à capacidade de suporte dos
ambientes.”
7 – O Plano de Manejo e as relações de poder que fomentaram sua construção
O Plano de Manejo, além de refletir o planejamento dos ambientalistas locais
para o distrito do Lima, revela também o seu posicionamento em diversas disputas e a
maneira pela qual a posição de representantes da comunidade, conquistada por eles,
conferia-lhes vantagens nestas disputas. O Plano de Manejo também fornece elementos
para pensar as negociações e concessões, fruto da aliança entre ambientalistas locais e o
poder público municipal, e características da inserção dos ambientalistas nas relações de
poder.
Com relação ao posicionamento dos ambientalistas locais na disputa com a
associação dos produtores e trabalhadores rurais, que colocava em dúvida a sua
legitimidade como representantes da comunidade, em dois pontos distintos do Plano de
Manejo, os elaboradores do documento lançam mão de uma determinada divisão
espacial para “localizar” problemas.
Por exemplo, no item “Aspectos Abióticos”, elaborado por um grupo de trabalho
formado por integrantes da ONG Grupo Germinal, a identificação dos “usos” e
“problemas” de cada córrego e do rio parece obedecer não só a critérios técnicos, como
também ao posicionamento da ONG em determinadas disputas. A intenção de expandir
o trabalho de “monitoramento das cachoeiras”, realizado pela ONG ambientalista no
137
córrego do Vale das Águas, a outros córregos, nos quais também ocorre visitação
turística (embora em menor quantidade), pode estar associada à sugestão, no item
“problemas” associado a um determinado córrego, de que sejam realizados programas
de monitoramento e manutenção”, e à identificação da “invasão de turismo impactante”
num outro córrego (ambos na região da Nascente). Ao mesmo tempo, para o córrego de
São Pedro - que concentra os opositores ao processo de implementação da APA -, onde
é visível o crescimento da visitação turística, não há proposições neste sentido.
Por outro lado, na descrição de dois córregos que passam numa grande fazenda,
transformada em Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) com a orientação da
ONG ambientalista local, não consta o item “problemas”. Ou seja, quando se tratava de
“analisar” os córregos situados na propriedade do fazendeiro Bento, parceiro da ONG
na manutenção de um horto e de alguns “projetos”, os problemas não foram
mencionados. Assim, cabe questionar se a identificação de problemas como uso de
agrotóxicos”, “uso impactante”, “desmatamentos”, “ocupação irregular do solo”,
“despejo de esgotos”, a diferentes córregos, poderia estar permeada de influências do
posicionamento (ou ausência de posicionamento) da ONG ambientalista local, à qual
estão filiados os integrantes do grupo de trabalho que elaborou o texto, diante de
disputas sobre o uso dos recursos naturais em cada uma das áreas abordadas.
O item “Aspectos Sócio-Econômicos” apresenta uma pesquisa baseada em
entrevistas com “produtores rurais” do distrito do Lima. Foram entrevistados produtores
de oito regiões do distrito e as suas “expectativas em relação à APA” foram
sistematizadas num quadro dividido por localidade (embora não tenha sido especificado
quantos produtores de cada área haviam sido entrevistados). A decisão de dividir as
expectativas por localidade pode estar relacionada à constatação de uma certa
uniformidade entre as respostas dos produtores de cada uma das localidades,
diferenciando-se das demais. Mas pode, também, estar relacionada à intenção de
localizar em regiões específicas os produtores rurais mais resistentes à implantação de
medidas ambientais, em contraponto a outras regiões, nas quais os produtores rurais
clamam por preservação ambiental.
No Vale das Águas, do qual os agricultores começaram a ser expropriados
cerca de 30 anos, migrando ou empregando-se como “jardineiros da natureza”
134
e onde,
hoje, existem alguns poucos caseiros ou “tomadores de conta” que têm permissão para
fazer uma pequena roça, e algumas experiências com agricultura orgânica e cultivo de
134
Carneiro (2000).
138
ervas medicinais empreendidas por neo-rurais, as expectativas dos produtores são de
“preservação ambiental” e “assistência técnica”. É possível que estas expectativas
tenham sido mencionadas por neo-rurais” que foram entrevistados na condição de
produtores.
Já no Vale do São Pedro, entre as expectativas relacionadas no quadro,
encontram-se a “continuidade da agricultura sem mudanças radicais”, a “maior
liberdade nas técnicas de plantio” e a necessidade de “informação”. Numa outra região
onde também se concentram muitos produtores rurais, a Nascente, uma das expectativas
é a “volta da antiga agricultura”. Localizando este tipo de expectativas na região do São
Pedro e na região da Nascente, era possível tratá-las como reivindicações específicas
daquelas localidades, que poderiam não corresponder às expectativas da população do
distrito de uma maneira geral. Aos “produtores” do Vale das Águas (provavelmente
neo-rurais), por exemplo, foram atribuídas expectativas de “preservação ambiental”.
O financiamento para a elaboração do Plano de Manejo da APA do Lima havia
sido obtido através da intermediação da Prefeitura, através da secretaria de meio
ambiente. É evidente a obrigatoriedade de mencionar projetos e atividades dos órgãos
municipais, mesmo que os objetivos específicos ou a dimensão da sua atuação não
fiquem claramente definidos. Por exemplo, quanto ao “Ecoturismo”, a parceria com a
empresa municipal de turismo figura entre os “objetivos específicos”, “incorporando
seus projetos e experiência no desenvolvimento de um turismo mais adequado ao
Lima”. Ou, quando o tema é agricultura orgânica, há que se mencionar uma experiência
da prefeitura nesta área, mesmo que os seus resultados sejam considerados bastante
questionáveis, até pelos ambientalistas locais: “o Projeto de Agricultura Orgânica
Fruticultura, da Prefeitura de [município] em conjunto com a Secretaria de Agricultura,
é um passo inicial para a introdução do novo conceito de produção, baseado na
sustentabilidade”.
Os projetos em fase de negociação, envolvendo a ONG Viva Rio e a ONG
ambientalista local, aparentemente figuram entre os interesses subjacentes à ênfase em
determinadas atividades, principalmente na sugestão de implantação de “sistemas agro-
florestais”. Dois anos depois, em 2004, tinham início as atividades de recomposição de
matas ciliares e nascentes financiadas pela medida compensatória de uma multinacional,
dentre as quais previa-se uma experiência local em “agrofloresta”. Dentre as “ações
complementares” de “Educação Ambiental”, constam atividades para as quais tem sido
139
reivindicado financiamento, alguns deles realizados com financiamentos temporários
e voluntariamente por integrantes da ONG ambientalista local:
Ecoturismo: visando fornecer aos visitantes, na entrada da APA DO LIMA,
um conjunto de informações relacionadas à área e orientá-los sobre os procedimentos e
atitudes desejáveis durante a visitação, assim como orientar os empresários locais sobre
as práticas sustentáveis para o desenvolvimento de suas atividades.
(...)
Desenvolvimento Comunitário: com o intuito de incrementar a participação da
comunidade nos aspectos relativos ao conhecimento e à melhoria de seu próprio
ambiente, deverão ser organizadas e incentivadas atividades que envolvam toda a
comunidade, como campanhas, mutirões, eventos etc;”
Estas atividades, posteriormente, foram financiadas durante 18 meses pelo setor
de educação ambiental do mesmo projeto de recomposição de matas ciliares e nascentes
citado acima. A ONG ambientalista, Grupo Germinal, foi contratada para a execução
destas atividades. Ou seja, foram incluídos como objetivos prioritários, no planejamento
da APA, projetos que estavam em vias de negociação e que contemplariam a ong
ambientalista local.
Assim sendo, é possível perceber que, no período em que foi construído o
aparato legal e institucional no qual se apóia a gestão do território e dos recursos da
APA do Lima, as tomadas de decisão e o poder de enunciar o discurso oficial a respeito
da implantação da APA estavam nas mãos de ambientalistas locais, apoiados em sua
aliança com a secretaria municipal de meio ambiente
135
. Através de uma linguagem
“técnica” (tanto em relação à natureza quanto em relação à gerência participativa),
somada à associação entre questões locais a questões “globais”
136
, os implementadores
da APA do Lima conseguiram tornar vigente o seu projeto para aquele território. O
monopólio do discurso oficial a respeito da APA, ostentado por ambientalistas locais e
secretaria de meio ambiente, naquele período, tornou possível a justificação e a
legitimação de seu posicionamento em uma série de disputas locais, construindo o
135
De acordo com Hirschman, os “acordos negociados” e as “parcerias” entre agências governamentais e
grupos de cidadãos para propósitos de controle e gerenciamento conjunto podem ter como um de seus
mais efetivos instrumentos de sustentação o acesso maior e o compartilhamento de informações
ambientais (1984 apud Lopes et allii 2004: 243).
136
Segundo Accelrad, as lutas sociais envolvendo o meio ambiente tendem a ser despolitizadas pela
cientificização das políticas ambientais, sendo a própria despolitização, por certo, uma estratégia de
afirmação da distribuição de poder no campo de forças (2004: 21).
140
Conselho Gestor como uma nova instância de poder local, apoiado nos instrumentos de
manejo da APA.
141
CAPÍTULO 6 – A ATUAÇÃO DO CONSELHO GESTOR DA APA
Após um conturbado período de formação do Conselho Gestor da APA,
analisado no capítulo três, e construção dos instrumentos de manejo da unidade de
conservação, examinada no capítulo 5, neste capítulo é empreendida a análise da
atuação do CG após sua oficialização pelo prefeito.
O ano de 2002, que compreendeu os acontecimentos mencionados acima, foi um
período de acirramento do conflito em que, diante da perspectiva de organização de uma
oposição que pretendia até mesmo a inviabilização da criação da APA, houve uma
união de forças para garantir a implantação da UC.
Todavia, tanto o grupo que se constituiu, naquele momento, como
ambientalistas locais, quanto diferentes setores do governo municipal, apresentavam
diferenças internas e divergências de interesses. A partir do momento em que a APA, o
Conselho Gestor e os instrumentos de manejo tornaram-se realidades irrevogáveis, e
que o CG foi oficialmente nomeado e começou, de fato, a operar, começaram a surgir,
aos poucos, disputas que expressavam divergências entre grupos que, no momento do
conflito, atuaram como um bloco único. Além disso, remanescentes do grupo que
chegou a atuar como oposição organizada ao processo de implantação da APA, sob a
liderança da associação de produtores e trabalhadores rurais, e que foi desmobilizado,
começaram a se reorganizar de diferentes maneiras, não mais como um grupo único,
tomando parte nas disputas pela gestão dos recursos da unidade de conservação.
Com base no conteúdo das atas de todas as reuniões do Conselho Gestor da
APA, desde a sua constituição oficial, em 18 de outubro de 2002 (sem deixar de levar
em conta a maneira pela qual estas atas foram elaboradas), somado às vivências do
trabalho de campo, foi possível analisar a tradução de diferentes conflitos sociais,
concernentes às estruturas e às forças políticas locais existentes, e a construção de novas
disputas, numa linguagem que pode ser descrita como “ambientalizada”. E a maneira
pela qual esta linguagem se soma aos modelos de “participação” resultantes de uma
macro-política dirigida à população e ao local. Neste sentido, as reuniões plenárias do
Conselho Gestor da APA foram, cada vez mais, se constituindo num palco para a
expressão e o encaminhamento das disputas locais.
Esta análise leva em consideração as observações de José Sergio Leite Lopes (et
alli) sobre a “ambientalização” dos conflitos sociais, como um processo histórico de
142
construção de novos fenômenos, associado a um processo de interiorização, pelas
pessoas e pelos grupos sociais, das diferentes facetas da questão pública do “meio
ambiente”, notada pela transformação na forma e na linguagem de conflitos sociais e na
sua institucionalização parcial (2004: 17).
Entre os fatores que contribuem para esta transformação, encontra-se a questão
da “participação”
137
. A partir da análise de casos empíricos, relacionados ao controle da poluição, José
Sergio Lopes identificou, na construção do interesse público e de diferentes instâncias
de participação, uma tendência ao localismo, que se faz sentir nos seguintes aspectos: “à
medida que as prefeituras e autoridades locais são tomadas como responsáveis pela
solução dos problemas, e como são procuradas e exigidas para tal; o reconhecimento e o
peso dos conselhos no encaminhamento das questões; a ênfase cada vez maior no
estabelecimento de “parcerias” entre diferentes tipos de organizações locais” (2004:
248).
Para Acselrad, a emergência do meio ambiente como objeto da política
origem a novas institucionalidades e “formas de participação”, constituídas para
articular movimentos ambientalistas e Estado, em certos casos burocratizando
associações e obscurecendo conflitos, através da pretensão ao consenso pré-construído
(204: 21).
1 – O funcionamento do Conselho Gestor da APA
De forma sucinta, pode ser afirmado que a atuação do Conselho Gestor da APA
se sustenta nas reuniões plenárias, ordinárias e extraordinárias, nas câmaras cnicas
com prazo determinado e destinadas a tratar de problemas específicos e nos
encaminhamentos realizados pela Secretaria Executiva.
– Composição e funcionamento da plenária
Durante os dois anos iniciais de funcionamento do CG (2003 e 2004), o
Regimento Interno previa reuniões plenárias divididas em duas partes: a primeira,
deliberativa, restrita aos membros do conselho e técnicos ou autoridades convidadas; a
segunda, consultiva, aberta.
137
Esta transformação teria a ver com cinco fatores: o crescimento da importância da esfera institucional
do meio ambiente entre os anos 70 e o final do século XX; os conflitos sociais ao nível local e seus
efeitos na interiorização de novas práticas; a educação ambiental como novo código de conduta individual
e coletiva; a questão da “participação”; a questão ambiental como nova fonte de legitimidade e de
argumentação nos conflitos. (Lopes 2004: 20)
143
Na prática, esta prerrogativa era empregada quando compareciam muitas
pessoas à plenária, geralmente para tratar de algum assunto polêmico naquele momento,
ou quando estavam presentes pessoas dispostas a criticar alguma regra ou medida
adotada. Nestas ocasiões, as regras de funcionamento eram acionadas para que os
conselheiros pudessem conduzir o encaminhamento das questões, limitando as
interferências dos discordantes
138
.
Nas ocasiões em que a maioria dos presentes eram os próprios conselheiros, um
ou outro cidadão podia manifestar-se livremente, pois as reuniões plenárias, naquelas
circunstâncias, transcorriam como uma conversa sobre os pontos de pauta, com direito a
digressões sobre outros assuntos considerados razoavelmente pertinentes. Nestas
circunstâncias, a presença de cidadãos costumava ser aceita com bastante cordialidade,
pois os membros do CG procuravam demonstrar o seu empenho em orientar e auxiliar
os moradores na adequação aos critérios ambientais.
De acordo com as atas, as colocações de cidadãos comuns foram pouco
numerosas ao longo deste período, tornando-se mais freqüentes na segunda metade de
2004. Na maior parte dos casos, eram colocações pessoais, dúvidas ou queixas,
referentes a construções, limpeza de fossas, instalação de pequenos empreendimentos,
etc.
A exceção foi a presença, a três reuniões, do proprietário do terreno pelo qual é
feito o acesso às cachoeiras do Vale das Águas, Airton Rocha, para tratar de problemas
e soluções para o turismo naquele local, como será tratado logo adiante. Houve também,
mais raramente, colocações de moradores com críticas à atuação da prefeitura ou do CG
com relação a assuntos de interesse coletivo, tais como saneamento, monitoramento das
cachoeiras e atuação da fiscalização. Um deles falava em nome da Associação de
Pousadas, recém fundada, que em 2005 pleiteou assento no CG, mas, pelo que consta,
não dispunha, naquele momento, da documentação adequada. Como nem esta
138
Neste trecho da entrevista com Matheus, que passou de representante da ONG ambientalista local a
Secretário Executivo, ele defende esta forma de organização das reuniões plenárias, procurando
demonstrar a importância da aceitação das regras: “Inclusive, nesse segundo mandato, quando eu me
abdiquei de ser conselheiro, e assumi a secretaria executiva, olha as coisas como são, eu passei a ser
empregado. Eu não tenho direito a voz na reunião do conselho [risadas]. Eu taquei papel no chão, eu
tenho que ir e pegar, não tem jeito. Sacou? Eu passei a ser empregado. [Quem tem direito a voz na
reunião, no caso, são os conselheiros?] Os conselheiros. Entende? Se eu quiser ser representado, eu
tenho que ir na reunião do meu segmento e propor as coisas pra que aqueles representantes tragam.
Porque eu, ali, eu sou um empregado. Eu do lado de trás da mesa, eu não tenho direito de discutir e
falar, eu tenho que fazer os encaminhamentos, como secretário.” (Entrevista dezembro 2005). A
preocupação de Matheus em demonstrar a importância da aceitação das regras para a “participação”
revela que estas regras eram objeto de disputas, e continuariam sendo durante todo o período analisado,
como será visto.
144
associação nem o seu representante ameaçavam, naquele momento, o poder do
Conselho Gestor, muitos conselheiros da “sociedade civil” se uniram ao questionador
nas críticas à Prefeitura, enfatizando a necessidade de “união” para cobrar uma atuação
mais efetiva do governo. Ou seja, quando não estava em jogo a disputa pelo poder de
interferir na gestão da APA, os ambientalistas locais começavam a dar mostras da
fragilidade de sua aliança com o poder público municipal.
No período que vai até o final de 2004, com o Conselho Gestor sendo presidido
pelo secretário de meio ambiente que conduziu criação da APA, Francisco Pinto, não
ocorreram mudanças significativas na composição do CG
139
, que chegassem a abalar a
aliança entre ambientalistas locais e a secretaria de meio ambiente. Foram substituídos,
neste período, a representante da Secretaria de Obras e os representantes da associação
de moradores do distrito.
A mudança na representação da associação de moradores do Lima tem a ver
com tentativas de pessoas ligadas ao proprietário do acesso às cachoeiras, Airton Rocha,
de integrar o CG. Durante um ano, os representantes da associação de moradores foram
o casal Paulo e Lena Albuquerque, amigos pessoais de Airton e que haviam tentado,
anteriormente, integrar o CG pleiteando uma vaga para o clube de futebol local. Durante
sua atuação, discordaram pontualmente dos ambientalistas locais e dos conselheiros da
esfera municipal, com um discurso pela valorização do “homem do campo” e da cultura
local e reivindicando uma melhor divulgação da APA e “conscientização” da
população. Um ano depois, a associação de moradores voltou a ser representada pela
aliança que sustentava sua diretoria – ambientalistas locais e a família Miranda, da elite
agrária local e ligada à Igreja Católica.
Até o final de 2004, aparentemente, a maioria das decisões do Conselho Gestor
da APA foi acatada por “consenso”, não tendo ocorrido, sequer, uma votação. Os atritos
ocorridos eram mais no sentido da cobrança em relação aos representantes do poder
público e aos componentes das câmaras técnicas quanto a encaminhamentos definidos
na plenária, mas não executados. Ou seja, permanecia o poder da aliança na qual se
fundara a criação da APA, entre ambientalistas locais e Prefeitura, com as tensões
características desta aliança, como foi visto no capítulo anterior.
139
Relembrando, o CG ficou assim composto: secretarias municipais de meio ambiente, obras, interior e
agricultura, empresas municipais de turismo e saneamento; ONG ambientalista local (Grupo Germinal),
associação de comerciantes, segmento religioso, associação de moradores do distrito do Lima, associação
de moradores da Nascente, associação de moradores do Vale das Águas. Ver capítulo 3.
145
As atas do período 2005/2006, notadamente mais detalhadas e assinalando os
conselheiros presentes, bem como a entidade que representam e a sua classificação
como titular ou suplente, permitem refletir mais de perto sobre diferentes aspectos
relacionados ao funcionamento do CG da APA.
O primeiro ponto a chamar a atenção é a permanência de alguns conselheiros,
mudando, no entanto, a organização que representam. Esta variação se estende,
inclusive, às cadeiras ocupadas por instituições do poder público municipal. As
diferentes inserções destas pessoas, como funcionários públicos, proprietários de terras
no distrito, bem como por sua afiliação religiosa ou ideológica, permitem que se
mantenham no CG, apesar da renovação dos representantes de cada entidade que o
compõe, além da entrada de novas instituições.
Outro aspecto digno de nota é que, com a divulgação das plenárias abertas à
“comunidade” e a intensificação das fiscalização sobre obras, comércios e
empreendimentos, as reuniões do CG passaram a ser palco da expressão de uma série de
conflitos, alguns deles insuflados pelos efeitos da fiscalização, mas muitos deles, apesar
desta motivação última, traduzindo e ressignificando disputas pré-existentes. As novas
formas de expressão destes conflitos englobam a entrada em cena de novos atores e
novas regras de gestão do espaço e dos recursos, que precisa ser dimensionada e
compreendida na sua interação com as relações de poder vigentes. A ambientalização
dos conflitos sociais, conforme representações destes conflitos exteriorizadas nas atas
das reuniões plenárias do CG, será tema do próximo item.
Quanto à renovação dos representantes das instituições que compõem o CG, é
preciso levar em conta a renovação do presidente do CG, o novo secretário municipal de
meio ambiente
140
, bem como a renovação da Secretaria Executiva, ocupada por um dos
fundadores da ONG ambientalista local e representante desta organização no CG até
então. Todas as instituições governamentais mudaram, pelo menos, um de seus
representantes. Mas é essencial notar que muitos ex-conselheiros foram realocados em
diferentes funções na esfera de influência direta ou indireta do poder público municipal.
E que houve casos em que conselheiros, ou pleiteantes a conselheiros, da dita
“sociedade civil”, passaram a representar instituições públicas. Com isto, mais da
140
Na gestão do antigo prefeito, do mesmo partido do atual, Pedro Paulo era secretário municipal de
comunicação, tendo colaborado com a elaboração de um “sistema de sinalização” para a APA, no âmbito
do projeto de elaboração do Plano de Manejo e Medidas Iniciais, coordenado pelo ONG Viva Rio,
contratada pela secretaria municipal de meio ambiente. Ou seja, o novo secretário de meio ambiente e
presidente do CG, Pedro Paulo, já havia entrado em contato e trabalhado com os ambientalistas locais na
gestão anterior.
146
metade dos conselheiros do período 2003/2004 se mantiveram no CG no mandato
seguinte, muitos deles representando instituições diferentes.
Por exemplo, o representante da associação de moradores da região da Nascente
passou a representar a secretaria municipal de agricultura (em 2006, transformada em
empresa municipal de agricultura). Isto foi possível por ser Dalton um filho de
pequenos produtores rurais locais, da região da Nascente, que estudou agronomia e
trabalhou para a prefeitura por longos períodos, habitando atualmente a sede do
município. Portanto, Dalton podia ser inserido tanto como “morador” da Nascente
quanto como funcionário municipal.
O antigo representante da secretaria de agricultura, Antônio Jardim, deixou de
fazer parte do CG, mas compareceu a algumas reuniões na condição de responsável
técnico por um projeto de implantação de uma “fazenda agro-ecológica” na região da
Nascente. O ex-secretário executivo, Bianco Schmidt, passou a integrar a plenária na
condição de representante da secretaria municipal de meio ambiente.
Há, também, o caso do presidente da associação de produtores e trabalhadores
rurais, Edson Aguiar. Como foi visto no capítulo 4, após tentar acionar o Ministério
Público contra o processo de implementação da APA, sem sucesso, esta associação foi
esmorecendo, também em função da ausência de alguns componentes da diretoria (por
morte, mudança para outro Estado, doença, etc.). Em 2005, tendo apoiado a eleição do
atual prefeito, o presidente desta associação recebeu um cargo na Secretaria de Interior,
como “administrador do Lima”, e foi indicado para representar esta secretaria no CG.
No entanto, nunca chegou a conseguir encaminhar a documentação necessária para
efetivar esta representação. Ele participa de algumas plenárias, mas não tem direito a
voto, e a secretaria consta como ausente
141
.
A troca de instituições também ocorre entre os representantes das organizações
locais. A pessoa que representou a associação de moradores durante o ano de 2003,
Darcy Miranda, em 2005, passou a representar o “segmento religioso”, em nome da
Igreja Católica. O representante da associação comercial, Ivan, durante os anos de 2003
141
diferentes interpretações a respeito da demora de mais de dois anos no encaminhamento da
documentação da secretaria municipal de interior para o CG. Segundo ex-componentes da diretoria da
associação de produtores e trabalhadores rurais, em conversa informal, isso se deve à grande dificuldade
do presidente da associação com a linguagem escrita e os trâmites burocráticos. De acordo com eles, a
associação “aconteceu” sob a liderança dele porque foi assessorado por pessoas de fora que se
dispuseram a ajudar. Ivan, funcionário da Secretaria Executiva do CG, em conversa informal (2007),
aludiu à “ignorância” do representante escolhido e à falta de empenho da secretaria. Segundo ele, o dito
representante “se vendeu” ao atual prefeito, por isso, a associação deixou de “criar problemas”.
147
e 2004, passou a ser funcionário da Secretaria Executiva, manifestando-se nas plenárias
como “morador da comunidade”, a partir de 2005.
A despeito da manutenção de uma parte significativa dos conselheiros, houve
renovação da representação de duas associações locais a de moradores da região da
Nascente e a associação comercial, embora esta última tenha ficado sem representação
até o final de 2006, em virtude da contestação judicial do processo eleitoral pela antiga
diretoria.
Na associação da região da Nascente, foi eleita uma nova diretoria, composta
por proprietários rurais e moradores que haviam feito parte da primeira diretoria, em
1999, que o chegou a conseguir registrar a associação (ver capítulo 3). A
representação desta associação no CG passou a ser feita por um proprietário rural,
lavrador aposentado, e uma filha de lavradores, funcionária da escola municipal da
região da Nascente. Esta mudança significou um fortalecimento da população local que
quisera fundar esta associação em 1999, mas que não fora capaz de se organizar para
efetivar a institucionalização da associação e acabara se aliando a neo-rurais,
permanecendo a associação sem grande apelo popular e sem grande poder de
reivindicação. Com a organização de seus fundadores originais, a associação da
Nascente passou a mobilizar mais moradores e ampliou seu poder de reivindicação com
relação a assuntos locais, sem interferir, no entanto, nas decisões relativas à APA como
um todo.
A associação comercial e agropastoril teve sua diretoria renovada, em 2004,
num processo eleitoral contestado na justiça pela antiga diretoria, sob acusação de
compra de votos e coação de eleitores
142
. A nova diretoria tomou posse e passou a atuar,
tendo, inclusive, recebido verbas municipais para realização de eventos festivos no
distrito. Contudo, por decisão da plenária, ficou sem representação no CG até a decisão
da Procuradoria do Município, favorável à diretoria eleita, ao final de 2006. O
representante indicado para o CG foi o presidente da associação, o fazendeiro Julio Bill,
que teve embargado o uso de uma pista de motocross construída em sua propriedade,
em 2004 e, desde então, passou a contestar a atuação do CG e as regras de gestão da
APA. Este acontecimento desencadeou um processo de disputas, algumas delas
expressas nas reuniões plenárias do CG, como será visto logo adiante.
No início de 2005, foi aberta a inscrição para o CG de novas instituições. Quatro
organizações da sociedade civil local pleitearam vaga: a recém-fundada associação de
142
Ver cepítulo 3, página 50.
148
moradores da região onde está situada a propriedade de Julio Bill (Alto da Vitória) e de
outra região adjacente (Fortuna); uma OSCIP
143
fundada em 2003; a associação de
pousadas fundada em 2004, que solicitara inclusão no ano anterior; e a recém-
fundada associação de moradores da Barra do Lima. Apenas a associação de moradores
da Vitória e da Fortuna foi incluída, por ser a única a ter encaminhado a tempo toda a
documentação exigida pelo Regimento Interno do CG. Sua representação passou a ser
feita por um casal de moradores da região ele, músico, e ela, produtora cultural. A
efetivação da entrada desta associação, bem como da secretaria municipal de trabalho e
renda, só veio a ocorrer no inicio de 2006, pois precisou ser precedida de reformulações
no Regimento Interno que, anteriormente, continha os nomes das 12 instituições que
compuseram o CG na ocasião de sua homologação.
Em novembro de 2006, foram incluídas a associação de moradores da Barra do
Lima, que regularizara sua documentação, e a Guarda Municipal, que conta com um
posto no distrito desde 2004 e vem sendo chamada a atuar, tanto no uso turístico da
região do Vale das Águas, quanto em questões de ordenamento urbano, como será visto
logo adiante.
143
Organização da sociedade civil de interesse público, formada por neo-rurais, profissionais como um
jornalista, uma advogada, e trabalhadores da área de educação.
149
–– A Secretaria Executiva
De acordo com o que ficou estabelecido no Regimento Interno, cabe à Secretaria
Executiva do CG secretariar as reuniões, convocá-las, tratar das atas e controlar a
presença dos conselheiros, tratar da correspondência do CG, receber e encaminhar os
pareceres das Câmaras Técnicas e elaborar o relatório semestral de atividades do CG.
Este cargo, segundo decisão dos conselheiros no início de 2003, não é remunerado.
O exercício do primeiro Secretário Executivo, até o final de 2004, correspondeu ao
período em que o CG começou a operar, e era preciso dar início a toda a organização
burocrática e documental, além de estar previsto também o atendimento ao público por
parte da secretaria executiva, para informar e receber comunicados e denúncias. Pode
ser tratado como um período de estruturação do CG e da própria Secretaria Executiva.
A partir de 2005, cresceu a importância da Secretaria Executiva do Conselho Gestor no
encaminhamento de toda sorte de questões relativas à APA. Melhor equipada e
disponível para atender ao público, com a documentação organizada, a Secretaria
Executiva passou a intermediar o acesso dos moradores aos assuntos do CG.
Logo após a formalização do Conselho Gestor, o secretário do meio ambiente e
presidente do CG, Francisco Pinto, indicou um nome para ocupar o cargo de secretário
executivo: Bianco Schmidt. O indicado era proprietário de um sítio do Vale das Águas,
cerca de trinta anos, integrante da associação de moradores da região do Vale das
Águas, e funcionário da secretaria do meio ambiente, bem como professor do
município. Ou seja, uma pessoa que poderia ser enquadrada em diferentes
classificações, como ambientalista local, funcionário público, representante da
secretaria de meio ambiente, etc., porque transita entre estas diferentes inserções. Este
secretário permaneceu no cargo até o final do ano de 2004. Durante este período,
surgiram críticas à atuação da Secretaria Executiva, levantadas por conselheiros e por
cidadãos, que ficaram registradas nas atas das reuniões plenárias.
Ao final do ano de 2003, foi posta em questão a sua permanência no cargo,
através de carta subscrita por alguns conselheiros (sob liderança dos representantes da
associação de moradores, Paulo e Lena). O Secretário Executivo foi mantido por apoio
do presidente e parte do plenário, sob a justificativa de que a secretaria vinha
trabalhando com parcos recursos e nenhuma infra-estrutura. As principais solicitações à
atuação da Secretaria Executiva, naquele momento, eram: “atenção na organização das
150
pautas das reuniões plenárias, o envio de cópias das atas assinadas pelos membros do
[CG da APA], organização de arquivos para consultas de terceiros, cumprimento de
horário de funcionamento da Secretaria Executiva e comportamento e postura pessoal
do Secretário Executivo para com alguns membros do conselho e pessoas em geral
144
.
Ao longo do ano de 2004, surgiram críticas pontuais a alguns destes itens, por parte da
população e dos próprios conselheiros. Todavia, embora a atuação do secretário fosse
controversa, prevaleceu o poder da secretaria de meio ambiente aliada à maioria dos
conselheiros locais.
Em 2005, com a posse do novo prefeito, um novo secretário de meio ambiente
assumiu a presidência do CG. Na primeira reunião ordinária anual, o até então
representante da ONG ambientalista local no CG, Matheus, foi eleito Secretário
Executivo, por nove votos a um, tendo concorrido com o então representante da
associação de moradores no CG, Paulo Albuquerque. Do processo eleitoral registrado
em ata, merecem destaque a proposta do perdedor de promover uma aproximação da
APA com a população e a sua reivindicação de remuneração para o cargo, uma vez que
seria um “trabalho profissional” que requereria o cumprimento de um horário, ao
contrário do seu oponente, que é contratado pela secretaria de meio ambiente
145
. A
144
De fato, as atas do período 2003/2004 não contêm a assinatura dos conselheiros e a pauta,
freqüentemente, é definida somente como “assuntos gerais; andamento das câmaras técnicas”, além de
não constar menção à pessoa que as lavrou. À época, também, não se encontravam disponíveis para
consulta, sendo difícil, inclusive, encontrar a Secretaria Executiva aberta para atendimento ao público.
145
MatheusEssa função como secretário executivo não é remunerada. Eu tenho uma contratação para
prestar um outro serviço à Secretaria de Meio Ambiente. Não como secretário executivo. Secretário
executivo é uma função que ...
Natália – Mas é uma coisa que tem horário de trabalho, né?
M Tem horário de trabalho. Tem compromissos de trabalho. Não vou dizer que tem horário. Porque o
horário, na minha casa, às vezes batem gente meia noite. (...) eu abro minhas portas e recebo a demanda e
encaminho no dia seguinte.
N – Entendi. E essa outra função que você disse, pela qual você é contratado na prefeitura?
M – É uma função de... assessoria da Secretaria do Meio Ambiente.
N – Entendi. E essa função você exerce em qual horário?
M – Essa função eu exerço todo o tempo.
N – Por exemplo, alguém vai fazer uma construção e vem te perguntar se pode, é esse tipo de trabalho?
M – Isso, isso, isso, também.
N – Ou alguém vem encaminhar uma denúncia, por exemplo?
M – Isso também. Acompanhar a fiscalização, saber se eles estão fazendo as ações deles corretas, saber se
eles estão é... tipo ... é... burlando. Essas coisas todas, eu faço todo um acompanhamento.
N – e quando você faz isso, você vai junto com a fiscalização, por exemplo?
M – Vou, vou junto com a fiscalização. Recebendo a demanda da comunidade.
N – Todo tipo de fiscalização, estadual, municipal ...?
M – Não, eu trabalho com o município.
N – Isso inclui as diferentes secretarias?
M – Qualquer secretaria. Mas represento o Meio Ambiente na região.
N – Representa a Secretaria de Meio Ambiente?
M – Sou assessor da Secretaria de Meio Ambiente. Mas trabalho com todas as secretarias. Não tem como
a Secretaria de Meio Ambiente negar as outras, não tem.” [Entrevista Matheus 2005]
151
favor do atual secretário executivo, foram mencionados o seu envolvimento de longa
data com questões ambientais locais e a sua aproximação com a comunidade em virtude
desse “trabalho”. A condição de não remuneração do cargo de Secretário Executivo
favorece a escolha de funcionários da prefeitura, pois as atribuições do cargo demandam
bastante dedicação. Assim, mesmo sendo votado pela plenária, é pequena a margem de
escolha dos conselheiros. Desta forma, esta condição permite que o Secretário
Executivo seja percebido pela população, e até mesmo pelos próprios conselheiros
locais, como um entreposto da secretaria de meio ambiente
146
.
Os documentos produzidos pela Secretaria Executiva, no período 2005/2006,
particularmente as atas de reuniões plenárias, revelam um aprimoramento na
organização interna do CG. As atas, elaboradas a partir da gravação das reuniões,
tornaram-se muito mais detalhadas, além de passarem a ser assinadas pela maioria dos
conselheiros presentes. A Secretaria Executiva, no referido período, passou a realizar
um atendimento regular do público, recebendo queixas, denúncias, pedidos de
orientação e autorização para obras, fornecendo, inclusive, “plantas proletárias” de até
70 m2 para pequenos construtores. Toda a documentação referente à APA encontra-se
disponível para consulta na secretaria. A estruturação do trabalho da Secretaria
Executiva contribuiu para que este órgão pudesse ampliar seu poder de ação, passando a
intermediar a relação dos moradores com o CG.
– As Câmaras Técnicas
As câmaras técnicas, segundo o Regimento Interno do Conselho Gestor da APA,
são comissões formadas por membros da Plenária, ou seja, os conselheiros, o
Presidente, e seus respectivos suplentes, além de pessoas convidadas por sua capacidade
técnica, devendo conter, no mínimo, um representante do poder público e um
representante da sociedade civil. São criadas, segundo decisão da Plenária, com metas
específicas e prazo determinado, devendo produzir um parecer sobre o assunto tratado,
146
O poder do Conselho Gestor, em alguns momentos, no entanto, parece não ser exercido pela totalidade
do CG. Por exemplo, Matheus reclama da atuação de alguns conselheiros locais: “E é entendendo que o
conselho não é, ali, o presidente, a secretaria executiva. O conselho é a reunião de todos os segmentos da
sociedade civil mais o poder público. Isso que é o conselho da APA. São as representatividades que
deliberam sobre a questão da APA. [E você acha que pra alguns parece somente o quê?] O secretário
executivo. O secretário do meio ambiente, o presidente. Não é. Na verdade, o conselho, quem é? É
reunir... é essa... São aquelas mesmas pessoas que tão falando “pô, o conselho não faz nada”. Uma
pessoa, a própria, é do conselho e fala “Oh, você não faz...” e esquece que ele próprio é do conselho. Que
ele que representa o segmento.” Daí se depreende que, para os próprios conselheiros designados para
representar a sociedade civil local, o poder parecia estar sendo exercido pela secretaria do meio ambiente
e seu representante local, o secretário executivo.
152
propondo diretrizes e “soluções conjuntas” para os problemas, a ser aprovado pela
plenária
147
.
Cidadãos comuns também podem fazer parte destas câmaras. As câmaras
técnicas foram introduzidas na pauta pelo presidente do CG, no início de 2003, como
um espaço para “participação”, também, dos moradores. No entanto, o caráter “técnico”
atribuído a estas comissões, afastava da participação” as pessoas comuns, que não se
sentiam aptas a contribuir de forma “técnica”. Na prática, os “moradores” que tomavam
parte das câmaras técnicas eram ambientalistas locais que, por ora, não estavam
fazendo parte do CG. Ou, ainda, pessoas envolvidas, em diferentes graus, com o
ambientalismo local, por estarem trabalhando em atividades ou projetos tidos como
ambientais. Em alguns casos, integraram estas comissões, também, neo-rurais que se
interessavam em freqüentar associações locais ou se posicionar em alguma discussão
específica como a respeito da área das cachoeiras, por exemplo. Algumas câmaras
técnicas obtiveram êxito, ou seja, conseguiram atingir as metas a que se propuseram, e
outras não. Para compreender seu desempenho, é preciso levar em consideração os
objetivos perseguidos e a composição destas comissões.
Na primeira reunião ordinária do exercício de 2003, foram criadas 4 câmaras
técnicas: Agricultura (proposta pelo representante da secretaria de agricultura), uso e
ocupação do solo (proposta pelo Presidente), Ecoturismo (proposta pela representante
da empresa municipal de turismo) e Diagnóstico de Ocupação das Faixas Marginais do
rio Lima (proposta pelo presidente). Na reunião seguinte, criou-se a quinta câmara:
Geração de emprego e renda. Em maio, foi criada a câmara técnica para gestão do portal
de entrada no distrito (construído pela prefeitura em 1999).
Nestes dois primeiros anos, as câmaras técnicas que mais parecem ter avançado
foram as de Uso e ocupação do Solo e de Diagnóstico das Faixas Marginais. A primeira
produziu uma proposta de lei de uso e ocupação do solo urbano específica para o
distrito, que foi aprovada pela Câmara Municipal ao final de 2004. A segunda
conseguiu produzir o referido diagnóstico. Ambas possuíam em comum objetivos de
estabelecer regras e restrições ao uso do espaço e dos recursos naturais. Foram
147
Em relação, especificamente, ao meio ambiente, a idéia da participação popular foi reforçada a partir
da aprovação do Plano de Ação Global para o Desenvolvimento Sustentável, denominado Agenda 21, na
Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Rio-92). Este documento
relaciona os problemas “socioambientais” e suas soluções a ações locais, recomendando a participação e
a cooperação entre os interessados e das autoridades locais como fundamentais às experiências de
desenvolvimento sustentável.
153
constituídas por um representante local e por representantes da Prefeitura escolhidos por
sua competência técnica. No caso da CT que produziu a lei de uso e ocupação do solo,
era formada pelo representante da ONG ambientalista, Matheus, e por um urbanista e
um engenheiro da secretaria de obras. A CT de Diagnóstico da Faixa Marginal contou
com Mara, que não era conselheira e compôs a CT como representante da comunidade,
e com uma especialista em “gestão ambiental”, da secretaria de meio ambiente, e o
próprio secretário e presidente do CG. A partir de outubro de 2003, inclusive, estas duas
câmaras passaram a compartilhar informações e trabalhar juntas em algumas atividades,
produzindo cada uma os seus respectivos resultados.
A CT de Agricultura, embora não tenha produzido resultados a curto prazo, foi
um espaço de gestação do projeto demonstrativo de agrofloresta, que veio a se
concretizar em 2006. O então coordenador da CT e representante da secretaria
municipal de agricultura no Conselho Gestor veio a ser o responsável técnico pelo
projeto. O representante da associação da Nascente, Dalton, agrônomo, contribuiu para
a elaboração do projeto. A partir de 2005, como foi dito, ele próprio passou a
representar a secretaria de agricultura no CG. Os demais componentes da câmara,
representantes do “segmento religioso” e da associação de moradores, não parecem ter
interferido nos resultados desta câmara, por não possuírem formação técnica.
As CTs de Ecoturismo e Gestão do Portal não parecem ter contado com grande
empenho dos representantes do poder público (empresa municipal de turismo e Guarda
Municipal/secretaria de meio ambiente, respectivamente), que deveriam agregar sua
competência técnica. Assim, não chegaram a produzir resultados palpáveis. Ambas
foram formadas por um grande número de representantes locais.
No caso da CT de Ecoturismo, a presença dos representantes locais estava
diretamente associada à intenção de influenciar a gestão da região das cachoeiras o
Vale das Águas. Compuseram esta CT o titular e o suplente da associação do Vale das
Águas, o representante da associação comercial, também proprietário de um sítio do
Vale das Águas, e Lena Albuquerque, na condição de “moradora”, ligada ao
proprietário do acesso às cachoeiras, Airton Rocha. De março a maio de 2004, diante da
crise desencadeada pelo “fechamento das cachoeiras” durante o Carnaval, por Airton
Rocha, o representante da ONG ambientalista local tomou parte nesta CT, com o
objetivo de elaborar um parecer favorável à manutenção do monitoramento das
cachoeiras pelo Grupo Germinal.
154
No início de 2005, início do mandato do secretário de meio ambiente Pedro
Paulo como presidente do CG, foram criadas duas câmaras técnicas: uma para estudo da
lei de uso e ocupação do solo e outra, para estudo do Regimento Interno. Quanto à lei de
uso e ocupação do solo, foi manifestado tanto pelo Secretário Executivo, coordenador
da câmara técnica, quanto pelo presidente, que deveria ter sido apresentada à
comunidade antes do envio à Câmara Municipal, mas que isso não chegou a ocorrer.
Por isto, foi criada a câmara técnica. Suas conclusões foram trazidas à Plenária em
novembro de 2005, e o Presidente mencionou a existência de “erros grosseiros” na lei.
E leu a conclusão da câmara técnica: “1 Confecção dos mapas do zoneamento
ambiental com as especificações das áreas, para aplicação em lugares públicos,
facilitando a compreensão pela comunidade; 2 Fiscalização efetiva das Secretarias de
Obras e Meio Ambiente na aplicação da lei; 3 Conscientização, com diversos
métodos, da população sobre as leis que regem a APA; que seriam campanhas
explicativas da legislação para que as pessoas possam estar entendendo o que elas
dizem; 4 Proposta para estudo de legislação especifica para a Nascente; 5
Recadastramento dos imóveis construídos na área urbana.”
Quanto ao Regimento Interno, a mudança mais relevante referiu-se às reuniões
Plenárias, que passaram a ser divididas em duas partes: a primeira, consultiva, aberta à
“comunidade”; a segunda, deliberativa, restrita aos conselheiros. Ao final de 2006, a
questão da “participação da comunidade” nas reuniões do CG voltou a gerar
controvérsias, e foi prevista a criação de outra câmara técnica para uma nova revisão do
Regimento Interno ao início de 2007. Mas fica prevista uma “capacitação dos
conselheiros”, a ser realizada antes da criação da CT.
De uma maneira geral, as câmaras técnicas que conseguiram produzir resultados
imediatos foram fruto da associação dos representantes locais com técnicos da
Prefeitura, e tinham objetivos de normatização. As CTs que contaram com grande
número de representantes locais e pouco empenho dos técnicos do governo municipal
acabaram por reproduzir a tendência das reuniões plenárias do CG, de se tornarem palco
de disputas entre diferentes interesses locais.
155
2 – A proibição da pista de motocross e seus desdobramentos
Ao final de 2003, presenciei a inauguração de um campo de futebol na fazenda
recém adquirida por Julio Bill na região da Vitória. O proprietário daquela fazenda era
engenheiro e empresário, proveniente da Região dos Lagos. Estavam presentes
moradores daquela região do distrito, e alguns moradores das regiões da Barra do Lima,
do São Pedro/Santa Rita e da Fortuna, e os respectivos times de futebol, que disputavam
um campeonato. Enquanto os times competiam, alguns dos presentes se revezavam em
voltas de motocicleta na pista de motocross situada no interior da fazenda. Estava
presente o então candidato a prefeito, apoiado pelo então prefeito e posteriormente
eleito seu sucessor, o que revelava ligações políticas do dono da fazenda com ele,
naquele momento. Ou seja, o fazendeiro/empresário/engenheiro Julio Bill, que
recentemente adquirira uma grande propriedade numa região do distrito do Lima, e
estava investindo naquela propriedade, parecia bem relacionado com o futuro prefeito.
No entanto, as boas relações com o candidato a prefeito não foram suficientes para
impedir que a pista de motocross construída na propriedade de Julio Bill fosse
embargada pelo IBAMA, a partir de denúncia encaminhada pelo representante da ONG
ambientalista local – Grupo Germinal – no Conselho Gestor da APA.
No início de 2004, Julio Bill compareceu à reunião plenária do CG para explicar
seu projeto de construção de uma estrada. Segundo a ata daquela reunião, ele
“reconheceu que errou em não pedir autorização à [secretaria municipal de meio
ambiente] mas reclamou que a [secretaria municipal de meio ambiente] levou o seu caso
diretamente ao IBAMA sem seu conhecimento” (Ata de Reunião Ordinária do Conselho
Gestor da APA – Janeiro/2004).
Depois desta ocasião, Julio Bill só voltou a comparecer a uma reunião do CG em
2005. Ao final de 2004, no entanto, o seu caso foi comentado nas reuniões ordinárias do
CG de setembro e novembro. Em setembro, a representante da secretaria de meio
ambiente informou que Julio Bill havia entrado com pedido de autorização na secretaria
para um evento de motocross. Os membros do CG, então, reafirmaram seu repúdio
àquela construção: “A plenária ressaltou, que veta esta pista em Zona de Conservação
da Vida Silvestre, que não há contrapartida para tal empreendimento, que este assunto já
foi amplamente discutido, e registrado em ata anterior; que a Federação Brasileira de
Motociclismo inclusive proibe este tipo de atividade em unidade de conservação.”
156
A partir do conflito em torno da pista de motocross, o fazendeiro Julio Bill
passou a reunir esforços no sentido de construir uma forma de oposição à atuação
política do CG da APA. Buscou apoio em meio a moradores da região onde está situada
sua propriedade e em outro córrego adjacente, o Alto da Vitória e a Fortuna, alguns dos
quais eram seus empregados ou prestadores de serviços eventuais. Conseguiu insuflar a
constituição de uma associação de moradores local, expressando necessidades de uma
das regiões mais carentes do distrito em termos de saneamento básico, vias de acesso e
serviços de uma maneira geral, e aglutinando parte dos órfãos da associação de
produtores e trabalhadores rurais, estabelecidos naquelas duas regiões
148
. Esta
associação pleiteou vaga no CG da APA ao início de 2005, e passou a integrá-lo ao final
deste mesmo ano.
Julio Bill buscou apoio, também, em meio a algumas lideranças da associação de
produtores e trabalhadores rurais, que expressara o descontentamento de uma grande
parte da população durante o processo de implementação da APA e constituição do CG
e, posteriormente, deixara de atuar
149
. Assim, com o apoio de parte dos integrantes
daquela associação, muitos dos quais moradores de outras regiões menos privilegiadas
do distrito, tais como São Pedro/Santa Rita, Fortuna, Seara , Julio Bill formou uma
chapa que venceu as eleições da associação comercial e agropastoril do distrito
150
, que,
até então, estava nas mãos de ambientalistas locais, com o apoio do fazendeiro da Barra
que transformara sua propriedade em RPPN. Como vimos, o processo eleitoral foi
contestado pela chapa derrotada. A chapa vencedora assumiu a associação, mas o seu
148
Dos 12 sócios fundadores da associação de moradores do Alto da Vitória e da Fortuna, 6 se declaram
“produtores rurais”, 2 são “agricultoras”, um é engenheiro o próprio Julio Bill, e uma universitária.
também o casal que se encarregou da representação desta associação no CG, um músico e uma produtora
artística Priscila Vale e José. Dentre os 12 sócios fundadores, 8 são do Alto da Vitória e 4 da Fortuna –
2 produtores rurais e 2 agricultoras. Todos os produtores rurais e agricultores que integraram a diretoria
desta associação haviam sido membros da associação de produtores e trabalhadores rurais. O casal de
neo-rurais que assumiu a representação desta associação no CG não havia tomado parte nas demais
associações locais, tampouco nas discussões em torno da implementação da APA. Portanto, Julio Bill
uniu-se a pessoas que, até então, encontravam-se excluídas das negociações oficiais em torno de medidas
ambientais.
149
Ver capítulo 4.
150
Ao final de 2004, dei carona a um casal de lavradores idosos moradores da região da Fortuna.
Reconhecendo-os das assembléias da associação de produtores e trabalhadores rurais, perguntei sobre a
associação, sobre cujas atividades eu não vinha ouvindo falar recentemente. O lavrador respondeu que a
associação continua, agora com o apoio de Julio Bill. Perguntei se era a mesma associação, que era
presidida, à época daquelas assembléias [2002], pelo senhor Edson Aguiar. Ele respondeu que sim, que o
senhor Edson apoiava Julio Bill, e que aquela era a nossa associação, agora presidida por Julio Bill, e que
as reuniões continuavam acontecendo e que eu estava convidada a comparecer. Juntando informações,
concluí que o lavrador se referia às reuniões da associação comercial, interpretada como uma continuação
daquela outra, a de produtores e trabalhadores rurais.
157
direito de indicar representantes para o CG da APA foi reconhecido após decisão da
Procuradoria do Município em favor da diretoria eleita, ao final de 2006.
Em maio de 2005, Julio Bill compareceu à reunião plenária do CG, procurando
formalizar a sua condição de representante da associação comercial. Apresentou um
projeto de melhoria da estrada do Alto da Vitória, “doado à comunidade através das
associações da Vitória e comercial, no qual está prevista a doação de parte do seu
terreno para viabilizar a passagem da estrada. Em seguida, o representante anterior da
associação comercial no CG tomou a palavra no sentido de informar que a antiga
diretoria não reconhece a diretoria eleita. O presidente do CG afirma ter recebido
documentos de ambas as partes, que seriam encaminhados à procuradoria do município.
Os membros do Conselho Gestor protelaram ao máximo a aceitação de Julio Bill
como representante da associação comercial e agropastoril, uma vez que esta mesma
diretoria já havia sido reconhecida por outros órgãos da própria Prefeitura, que destinara
verbas para que esta associação realizasse a festa do distrito.
2.1 – A festa
A associação comercial e agropastoril, presidida por Julio Bill, foi responsável
pela realização de uma polêmica festa em 2005, que trouxe pela primeira vez ao distrito
um rodeio. As representações sobre esta festa acionadas em conflituosas reuniões
plenárias do CG são reveladoras da construção e reconstrução de disputas numa
linguagem ambientalizada.
Uma vez por ano, a Prefeitura financia a realização de uma festa em cada distrito
serrano daquele município. No distrito do Lima, a “festa do Lima” é, anualmente, objeto
de disputas quanto a quais instituições locais serão encarregadas de gerir os recursos e
colaborar na organização da festa e como será o evento.
No ano de 2005, a associação comercial e agropastoril, naquele momento
presidida por Julio Bill, assumiu a organização da festa, em parceria com a Prefeitura. A
proposta desta associação foi escolhida em detrimento da proposta encaminhada pela
associação de moradores do Lima, que defendia um evento com pouca ou nenhuma
divulgação turística, focado na valorização da “cultura local” e destinado ao
entretenimento da própria comunidade. A proposta derrotada previa shows com bandas
de forró formadas por músicos residentes no distrito e espetáculos teatrais organizados
pelo casal de neo-rurais que então representava a associação de moradores no CG, Paulo
158
e Lena Albuquerque. A proposta vencedora trouxe a realização de um rodeio, alvo de
críticas dos membros do CG e de diversos “neo-rurais”.
Na reunião ordinária do CG de julho de 2005, após a realização da festa, uma
série de queixas e críticas foi direcionada aos organizadores do evento, por parte dos
demais conselheiros e de moradores do centro comercial e residencial do distrito.
De uma maneira geral, a posição dos conselheiros representantes de
organizações locais foi a de manifestar respeito pela decisão da comunidade, que optara
pelo rodeio, sem deixar de mencionar o seu repúdio por um evento deste tipo, por
considerá-lo contrário aos princípios da proteção da natureza
151
. A postura do
presidente do CG, em nome da Prefeitura, foi a de garantir que o evento fosse realizado
de acordo com a legislação ambiental, eximindo-se da discussão sobre o mérito do
rodeio, atribuída à comunidade.
Os organizadores do evento membros da associação comercial, agropastoril e
ecoturística procuravam demonstrar o seu empenho em realizar o evento, apesar das
dificuldades com a estrada e com a infra-estrutura, e dos empecilhos cuja criação foi
atribuída à secretaria de meio ambiente e ao CG e interpretada como proposital, com o
objetivo de impedir ou atrapalhar a realização do evento. Eles colocavam-se como
vitoriosos, por terem conseguido realizar com sucesso um evento para o povo, apesar
dos obstáculos interpostos pelos ambientalistas locais e pela secretaria de meio
ambiente
152
.
151
Jaime, representante da associação do Vale das Águas, faz questão de mencionar que o rodeio não é de
seu agrado, devido a uma razão de caráter ambiental - os supostos maus tratos aos animais -, mas que
enxerga a necessidade de conciliar a conservação ambiental com a vontade da população. Esta
conciliação seria possível com a submissão das ações à legislação ambiental. Sua fala vai no sentido de
desqualificar a discussão como pouco prioritária, comparando-a com o objetivo maior de pensar medidas
para garantir a conservação dos atributos naturais da localidade para “o futuro”: “Jaime diz achar uma
pena e ser ridícula essa discussão, que não é a favor de certas práticas mas não pode ser contra tudo, se o
povo quer esse tipo de coisa quem for fazer tem que se adequar a lei porque a APA é irreversível, gostem
ou não. Não gosta de rodeio pôr sic causa dos animais, mas que o povo daqui gosta e está na moda na
televisão, mas que não está aqui defendendo o rodeio. (...) Que existem várias propostas ótimas, que o
Lima é maravilhoso, mas que ficam falando em dinheiro, em quanto ganharam, mas não vêem que o
maior ganho no futuro é ter um lugar como este. Que se deixe fazer o que o povo gosta, mas tudo dentro
da lei. (...)”
152
Neste trecho, Julio Bill procura atribuir à denúncia de cunho ambiental um caráter de implicância e
sabotagem a um evento que o povo aprecia, mas que não é do agrado dos moradores de origem urbana. E
coloca-se na posição de alguém que está se empenhando para viabilizar o que agrada a este povo, e elogia
o sucesso dos fogos como uma vitória daqueles que contribuíram para que isto acontecesse, sem antes
deixar de fazer uma concessão à vontade da comunidade no tocante ao volume do som: “Mas que houve
sabotagem, que o senhor Paulo Albuquerque [ex-representante da associação de moradores], que
trabalhou na festa, denunciou que estava havendo retirada de areia do rio. Que o rodeio vai acontecer em
setembro porque ele negociou e colocou dinheiro seu, que não é a prefeitura, e sim ele que irá
complementar o valor. Que a Sra. Luísa está certa, se a comunidade quiser pode se abaixar o som. Que os
fogos foram maravilhosos. Houve uma grande agitação no plenário e foi pedida pela mesa que houvesse
ordem.”
159
No trecho da ata da reunião do CG transcrito abaixo, a discussão gira em torno
de uma suposta denúncia, atribuída por Julio Bill ao representante da associação de
moradores, de que os organizadores do rodeio estariam retirando areia do rio para
viabilizar o evento. O secretário de meio ambiente e presidente do CG procura se ater ao
problema concreto da retirada de areia, sem se posicionar a respeito do rodeio em si,
decisão esta que caberia à comunidade. O representante da secretaria de interior, Edson
Aguiar, que fora presidente da associação que se opôs ao processo de implantação da
APA, transpõe a discussão da questão da retirada da areia para o mérito do rodeio. Ele
a entender que a acusação de retirada de areia do rio foi motivada, de fato, pelo
repúdio da maioria dos conselheiros ao rodeio, opondo-os ao povo. O presidente do CG
nega a denúncia de retirada de areia do rio e contra-ataca com a acusação de
proliferação de boatos em relação à secretaria de meio ambiente:
“Pedro Paulo [presidente do CG] diz que estava presente na hora da questão da
areia [preparação do espaço para o rodeio], que conversou com o secretário [de
interior], que a areia não foi retirada do rio e que ele se comprometeu a devolver a areia
para onde foi retirada. Diz que é preciso que haja um planejamento mais adequado
dessas festas, se é preciso oito caminhões de areia para se fazer um rodeio, tem que ser
previsto independente da discussão se é válido ou não, não vamos entrar nesse mérito,
isso tem que partir da comunidade, que escolhe o que quer. O senhor Edson Aguiar diz
que quem falou que foi tirada areia do rio é um mentiroso, que ela foi dada pela
proprietária da área. Que sabe que a maioria dos que estão presentes são contra o rodeio,
mas é o que mais o povo gosta, assim como de sertanejo e de fogos. Pedro Paulo
esclarece que não foi dito que foi retirada areia do rio. E que foi falado, no dia, que
quem atrasou o rodeio foi a Secretaria de Meio Ambiente. Tem gente que gosta de
produzir esse tipo de desinformação.”
Neste trecho, nenhum dos falantes põe em questão o pressuposto de que não se
pode retirar areia do rio. Ou seja, a necessidade de adotar atitudes compatíveis com o
que é definido como ambientalmente correto não é posta em dúvida, tampouco a
definição de que a retirada de areia do rio causa danos ao meio ambiente
153
.
153
Em outros momentos, surgiram críticas à inadequação do rodeio aos critérios da proteção da natureza,
como quando um monitor do Grupo Germinal questiona os maus tratos aos animais. Julio Bill, como no
caso da areia retirada do rio, formula uma resposta que reafirma a adequação do rodeio às normas. Ou
seja, não é posto em discussão o paradigma ambiental: “O Sr. Julio Bill diz que o som alto no rodeio é
tradição, e que é assim que acontece em todo o país. Os cavalos, como choveu e a estrada estava em
péssimo estado, chegaram machucados e estressados e aconteceu o rodeio no sábado, de forma
improvisada, devido ao número de pessoas que estavam esperando pelo evento. O Sr. Carlos Gustavo, do
160
Num outro momento da mesma reunião, no entanto, Julio Bill chegou a
questionar o paradigma da preservação ambiental, e até mesmo a escolha do que seria
objeto da preservação e de quais as medidas mais adequadas para realizar esta
preservação. Suas colocações, neste momento, causaram desordem da plenária e foi
necessária a intervenção do presidente do CG para organizar a polêmica, como aparece
no trecho da ata transcrito abaixo:
“O Sr. Rafael, do Grupo Germinal, fala que além da altura do som, existe a
incompatibilidade do uso de fogos. Sr. Bianco, biólogo da [secretaria de meio ambiente]
diz que é uma agressão a fauna. Julio Bill ironiza dizendo que as aves estavam nos altos
dos morros dormindo. [presidente do CG] pede que o Sr. Julio Bill encerre a sua fala,
pois está incitando a plenária.”
Desta vez, Julio Bill chega a esboçar uma contestação do argumento de caráter
ambiental quanto ao uso de fogos, minimizando o seu efeito sobre a fauna, de forma
irônica. É interessante notar o aposto atribuído a Bianco pelo relator da ata “biólogo”
da secretaria de meio ambiente. Em diversas outras atas, Bianco figura apenas como
“representante” desta secretaria. A referência à sua formação profissional parece querer
ressaltar o caráter “técnico” do argumento ambiental. A ironia do fazendeiro provoca
balbúrdia na reunião, pois ele chega perto de discordar do paradigma ambiental
raramente posto em discussão.
Ao final de sua fala, Julio Bill verbaliza um outro projeto para o distrito, que
incluiria medidas para trazer um outro tipo de turismo, “de classe média alta”, através
de eventos bastante diferentes daqueles que usualmente são pensados para a localidade
– shows de bandas de forró e reggae associados a cachoeiras e trilhas durante o dia. Ele
associa estas possíveis mudanças ao crescimento do Lima e ressalta sua vocação para
tanto. E coloca as restrições de ordem ambiental como algo que estaria “prendendo”,
“segurando”, “travando” este crescimento. Ou seja, ele apresenta um outro projeto para
a localidade, que talvez pudesse ser mais do agrado de uma grande parte da população
local que, no entanto, não parece ter tomado parte, até então, das discussões em torno da
implementação da unidade de conservação. No trecho abaixo, tornam-se claras as
divergências entre os ambientalistas locais e Julio Bill, expressando a opinião de outros
setores da população, em termos dos seus projetos para a localidade:
Grupo Germinal, interrompe, fazendo a observação que, mesmo estando os animais machucados e
estressados, aconteceu o rodeio. O Sr. Julio Bill informa que os animais foram vistoriados pelo
veterinário que estava presente e liberados para atuação.”
161
“Pedro Paulo [presidente do CG] diz ser esta uma discussão que precisa ser
aprofundada, frisa que isto aqui é do Conselho da APA do Lima e que o Sr. Julio Bill
que representa uma entidade de fato, porque de direito ainda não sabemos, está aqui
fazendo pronunciamentos contra o processo da APA dizendo que estamos segurando o
Lima. Esclarece ao Sr. Julio Bill, que está pleiteando vaga no Conselho, que este é um
fórum para se discutir a APA do Lima e que não pode ter aqui dentro posicionamentos
contrários a esse processo. Que ao final da reunião será colocado a questão do seu
ingresso. Nosso desafio aqui é igual a de qualquer lugar do País, o de como se adaptar a
legislação ambiental que existe e tem que ser cumprida, não adianta querer botar a
legislação de lado porque não bota. APA é uma unidade de conservação de uso
sustentável, não é de proteção integral, então é pensamento das pessoas que compõem o
Conselho Gestor que é preciso o desenvolvimento, ninguém quer parar o Lima nem
obstruir os processos.”
O presidente do CG reage, afirmando o imperativo do paradigma da conservação
ambiental e a consciência dos conselheiros a respeito da necessidade do
“desenvolvimento”, colocando em xeque a aceitação de Julio Bill como representante
da associação comercial e agropastoril no CG. Ou seja, posicionamentos críticos serão
aceitos até o limite de não colocarem em questão o paradigma da conservação
ambiental. Conseqüentemente, a discussão só é possível em torno das medidas
concretas adotadas para implementar a conservação, revestida de um caráter “técnico”.
Outro ponto a ser destacado, que permeia todo o processo de aplicação de
medidas ambientais no distrito do Lima, e, como tal, está presente nas discussões sobre
a festa, é o papel da “denúncia”. Mais especificamente, a denúncia de crime ambiental,
estimulada pelos criadores da APA, é percebida de forma bastante antipática pela
população. Assim, ao mesmo tempo em que pode ser usada como uma arma em
disputas locais, sejam elas de ordem pessoal ou coletiva, a acusação de ter realizado
uma denúncia faz com que o acusado de tê-la feito seja considerado um traidor.
No trecho abaixo, o representante da associação de moradores, Paulo
Albuquerque, que tentara adentrar as relações de poder locais com um discurso a favor
do “homem do campo”, procura livrar-se da acusação de ter atrapalhado o rodeio
através da realização de uma denúncia:
“O Sr. Paulo Albuquerque pede a palavra, para responder a acusação feita pelo
Sr. Julio Bill de que estaria sabotando o rodeio, denunciando a retirada de areia. Diz que
não denunciou nada porque não faz esse papel e que o motorista do trator conversou
162
com ele e disse estar apreensivo quanto a que atitude tomar, porque poderia ser
responsabilizado pôr (sic) qualquer atitude lesiva ao meio ambiente, que chamou Pedro
Paulo [presidente do CG] não com a intenção de denunciar, mas sim de viabilizar o
evento. (...) Que o que fez foi tentar resolver o problema com o mínimo de impacto.
Pedro Paulo diz que orientaram como fazer corretamente e diz que denunciar agressão
ambiental é um dever de cidadania. E que em momento algum houve a intenção de
obstruir nada.”
O presidente do CG reitera a intenção de viabilizar o evento, ao invés de obstruí-
lo. E reafirma o postulado da conservação ambiental, colocando a “denúncia de
agressão ambiental” como “dever de cidadania”. Ou seja, o secretário procurou
desconstruir a interpretação daqueles que fazem denúncias como traidores.
Num outro momento, no entanto, a denúncia de crime ambiental é utilizada pelo
próprio Julio Bill, para defender-se. Isto ocorreu ao final da plenária, quando foi tratada
a inclusão de novas entidades no CG. A vaga da associação do Alto da Vitória estaria
assegurada. a cadeira da associação comercial ficaria “suspensa” “até que se faça
revisão do Conselho ou até que se resolva a questão [na procuradoria do município]”. O
presidente do CG, então, coloca na berlinda a aceitação de Julio Bill como representante
da associação comercial. Para isso, ressaltou um artigo do regimento que diz que:
“O representante tem que ter comprometimento com o meio ambiente, então
que suas posições ter que estar muito claras em relação à defesa ambiental e a defesa da
APA do Lima, que o ouviu fazer alguns comentários bastante preocupantes. Que este
fórum é para gerir a APA do Lima, então não tem cabimento ter uma associação aqui
representada pôr (sic) uma pessoa que é contra os princípios da APA. Que não adianta
querer vir para querendo destruir a APA ou coisa parecida. Julio Bill então diz que o
Bianco não poderia estar aqui porque abriu uma área grande e botou fogo, que do sítio
dele dá para ver e que tem o Dom José como testemunha. Bianco desmente.”
Deste modo, o presidente do CG, mais uma vez, reafirma o imperativo da
conservação ambiental no território do distrito, tratado como APA, como um limite para
as contestações de quaisquer setores da população. Diante disso, Julio Bill reage com
uma denúncia contra o representante da secretaria de meio ambiente e proprietário de
um sítio no Vale das Águas, que, pelo mesmo raciocínio, não poderia integrar o CG. Ou
seja, ele deixa de contestar o postulado ambiental para movimentar-se dentro das regras
estabelecidas por ele. Assim, utiliza a denúncia de crime ambiental para defender-se.
163
Feita a “lavagem de roupa suja” da festa, o conflito entre moradores liderados
por Julio Bill e o CG da APA veio a se atualizar em casos de licenciamento de pequenos
empreendimentos locais especialmente uma oficina mecânica e um lava a jato -,
paralisados pela fiscalização da secretaria de meio ambiente.
Depois da plenária que versou sobre o rodeio, presenciada por muitos
moradores, ganharam força, novamente, percepções da APA como cerceadora das
atividades da população local.
Na reunião do CG que se seguiu àquela sobre a festa do distrito, destaca-se o
posicionamento do presidente do CG no sentido de desconstruir uma possível imagem
negativa da APA para a população. Esta reunião, de setembro de 2005, teve como um
dos pontos de pauta o “Controle e exame dos processos de projetos do Lima em
tramitação na Prefeitura”. Na ocasião, o presidente do CG esclareceu que “nem todos os
processos estão sendo analisados aqui, alguns estão sendo enquadrados diretamente
dentro da legislação, para o Conselho são encaminhados os processos polêmicos que
precisam ser discutidos. E não é porque é APA, mas todos os projetos de reforma ou
construção precisam ter autorização.”
Em seguida, os proprietários de um lava a jato e de uma oficina mecânica recém-
inaugurados, cujo funcionamento havia sido paralisado pela fiscalização da secretaria de
meio ambiente, pedem autorização para continuar suas atividades. Eles são orientados
quanto às medidas necessárias para se adequarem à legislação e recebem, por
unanimidade, autorização para continuar funcionando enquanto se enquadram nas
condições previstas, num prazo de sessenta dias. Julio Bill, como engenheiro, se dispõe
a elaborar os projetos para ambos os empreendimentos. O presidente do CG acrescenta
que “depois que estiver pronto vai lavar todos os carros inclusive os da Prefeitura, e que
quando a fiscalização pegar alguém lavando carro no meio da rua poderá dizer que não
e encaminhar ao lava a jato”, procurando demonstrar que basta que a população se
ajuste às regras para se beneficiar dentro da APA.
Até o presente momento, o distrito do Lima não é atendido por serviço de
telefonia móvel. No segundo semestre de 2005, duas operadoras iniciaram a instalação
de antenas na localidade, mas sofreram embargo da secretaria de meio ambiente. Sobre
isto, o presidente do CG informou: não é por ser APA mas sim porque iniciaram a obra
sem abrir processo nenhum, atropelando a legislação, sem autorização da Prefeitura.
Não havia nenhuma outra possibilidade que não fosse o embargo da obra pois foi um
desafio a lei sem precedente, não sendo admissível que isso aconteça principalmente
164
dentro de uma Área de Proteção Ambiental, onde existe restrições.” Uma das
operadoras, em junho de 2006, havia cumprido as exigências e estaria apta a se instalar,
enquanto que a outra permanecia irregular e paralisada.
Houve reclamações da população, que esperava dispor em breve da telefonia
móvel. E muitos demonstraram solidariedade ao proprietários dos terrenos onde seriam
instaladas as antenas, produtores rurais idosos que se beneficiariam com um vultoso
aluguel. Diante dos embargos e paralisações, que desagradaram parte da população, o
presidente do CG “faz um apelo a todos aqueles que compreendem a necessidade desse
fórum estar continuando, compreendem a necessidade da proteção ambiental que por
favor não estimulem a desinformação que o meio ambiente é restritivo, diz ser normal
isso acontecer, que colaborem porque é para o bem de todos e não para o bem de um
grupo ou outro.”
No caso da instalação dos empreendimentos mencionados, portanto, houve uma
preocupação por parte do CG em minimizar o caráter restritivo das leis ambientais aos
olhos da população, e tentativas de desvincular estas restrições da APA, informando que
se trata de uma legislação aplicável a qualquer parte do território, não só em unidades de
conservação. E em demonstrar a viabilidade dos empreendimentos, desde que
atendendo a determinadas exigências, acrescentando que as atividades regularizadas
seriam beneficiadas. Todos estes posicionamentos foram pensados em resposta à
generalização dos comentários sobre os embargos, paralisações e autuações como
proibições às atividades da população e à ampliação da infra-estrutura no distrito que,
segundo alguns dos ambientalistas locais, eram insuflados pela mobilização liderada
por Julio Bill.
2.3 A fazenda agroecológica
O caso da Fazenda de São João, na qual começou a ser desenvolvido um projeto
de “agroecologia”, produtos “orgânicos” e “recuperação de áreas degradadas”, revela
outras dimensões de conflito - desde a competição entre diferentes projetos para o
espaço e os recursos até a disputa entre diferentes formas de compreensão e previsão
dos mecanismos e processos naturais, apoiadas em conhecimentos construídos de
maneira diversa, e tratadas no âmbito das reuniões do CG como questões “técnicas”.
O projeto da Fazenda São João foi apresentado ao CG ao final de 2005. O antigo
representante da secretaria de agricultura, Antônio Jardim, engenheiro agrônomo,
assumiu o projeto como responsável técnico, enquanto o secretário executivo do CG,
165
Matheus, informou estar fazendo a “consultoria ambiental”. Antônio Jardim explicou
que “a primeira preocupação foi atuar nas capoeiras ralas, com roçadas simples e
brandas respeitando todos os arbustos encontrados, para estar se implantando um
sistema agroflorestal, respeitando-se todas as APPs
154
, não utilizando nenhum tipo de
herbicida, nem adubação química, gerando trabalho para a comunidade. Transformar
essa propriedade numa unidade demonstrativa de manejo consciente.”
Nesta ocasião, Julio Bill perguntou como seria escoada a produção, e Antônio
Jardim respondeu que a estrada seria pensada posteriormente. Dois moradores
levantaram questões a respeito do pressuposto do agrônomo de que “a partir do
momento que se recompõe a cobertura vegetal se propicia a maior absorção da água da
chuva pelo solo e conseqüentemente se terá aumento de volume, vai ser abastecedora de
água e a partir do momento que se exclui qualquer agroquímico vai ser uma
conservadora da qualidade natural das águas do Lima”. Um deles, proprietário de um
camping próximo à fazenda, na região da Nascente, se preocupa com o volume de água
a ser gasto na produção. O outro, João Santana, residente nas proximidades da fazenda,
defende uma tese oposta à do agrônomo, de que “teria que se ter cuidado com o plantio
de muitas árvores pois poderia interferir no volume de água do rio”.
De acordo com a ata, a observação deste morador tornou o “clima polêmico” e
houve uma intervenção do presidente do CG para que “assuntos de natureza técnica
sejam discutidos posteriormente”. A posição defendida por João Santana surgiu com
freqüência nas entrevistas com produtores e trabalhadores rurais. Contrapondo-se a
medidas adotadas para reflorestar nascentes, com o objetivo de aumentar o volume dos
rios, a população de origem camponesa local acredita que as árvores plantadas “sugam”
a nascente e contribuem para secar os riachos. Este caso, surgido na reunião do CG,
revela diferentes formas de apreensão e previsão dos mecanismos naturais. O saber dos
ambientalistas, apoiado numa visão científica, construída sobre suposições da Biologia
e da Geografia, contrapõe-se ao saber dos agricultores, construído a partir da lida
quotidiana com os recursos da natureza. A contestação pública do saber dos
especialistas põe em jogo o paradigma ambiental sobre o qual se funda a implementação
da unidade de conservação. Por isso, a discussão é encerrada pelo presidente do CG
como inadequada para aquele momento.
154
Área de Preservação Permanente. Inclui as áreas de nascentes, matas ciliares e áreas com inclinação
superior a 45º.
166
A polêmica sobre a Fazenda São João ressurgiu nas reuniões do CG a partir de
junho de 2006. Primeiramente, foram trazidos à tona os problemas gerados pela
construção de uma estrada para escoar a produção da fazenda. A questão foi trazida à
baila em tom de provocação pelo “morador” João Santana, estabelecendo uma
comparação com o caso da estrada construída para instalação da antena da CLARO,
embargada pela secretaria de meio ambiente, ao contrário da estrada desta fazenda.
Três pessoas saem em defesa da impessoalidade da fiscalização, mostrando que a
diferença entre os dois casos é que a fazenda apresentou pedido de autorização e
projeto, enquanto que a operadora não. João Santana, ao estabelecer a comparação,
expressou publicamente a interpretação de muitos moradores a respeito das restrições
ambientais. Para ele, a fiscalização obedeceria a critérios pessoais e políticos. Por isso, o
projeto da fazenda São João, implementado por pessoas ligadas ao grupo que criara a
APA, estaria imune às proibições, enquanto que a instalação de antenas de celular, que
beneficiaria moradores de origem camponesa pelo aluguel de suas propriedades, não
gozaria destes privilégios.
Mais dois moradores criticam a construção da estrada da Fazenda São João. O
representante da associação de moradores da Nascente demanda uma ação emergencial,
uma vez que “mesmo antes da abertura da estrada um grande volume de água desce da
grota (...) e invade as casas e com os cortes feitos esse fato tende a se agravar.” Fica
decidido que será marcada uma reunião com o técnico responsável pela obra, Antônio
Jardim, e fiscalização no local, devendo o laudo da vistoria ser apresentado na próxima
reunião.
Na reunião seguinte, é feita a leitura de um documento encaminhado pela
associação da Nascente que manifesta preocupação “com deslizamentos de terra no
período das chuvas que poderá atingir as casas abaixo da estrada”. O representante desta
associação mostra fotos em DVD tiradas das casas alagadas devido a fortes chuvas.
Diante disto, o responsável pelo projeto desvela uma série de explicações a respeito de
como foi feita a obra obedecendo aos parâmetros ecológicos:
“Antônio Jardim, representante da Fazenda, diz que tem total conhecimento do
problema e respeita a preocupação da comunidade que mora abaixo da grota e
passaram por momentos difíceis. A situação mostrada se deu antes do início do projeto.
O tamanho da estrada a princípio assusta, mas foi toda feita em curva de nível. Estando
em nível a água não escoa. Todas as estradas estão recebendo plantio de espécies
florestais de crescimento rápido e raiz pivotante que servem para fixar o solo. A
167
principal medida que vai minimizar o problema é a aração feita em todo o alto do morro
que circunda a grota, feita com tração animal, respeitando as curvas de nível. Esse solo
era totalmente coberto por pastagens que não absorviam nem um por cento da água com
qualquer quantidade de chuva. Hoje, acredita, vai absorver oitenta por cento. Diz que
são essas ações que o tranqüilizam em relação as preocupações da comunidade. (...) Diz
que é um projeto aberto e que quem quiser pode ir visitar, e que é preciso entender o
conjunto das medidas que foram tomadas. Em qualquer pastagem com situação
semelhante quando chove vira uma cachoeira. Foi tirada a compactação do solo causada
por anos de pisoteio animal. O objetivo do projeto é justamente trazer progresso,
apresentar uma proposta de exploração econômica.” (Ata de Reunião Ordinária do
Conselho Gestor – Setembro/2006)
Alisson Mauta, representante da associação da Nascente, procura deixar claro
que não se trata de uma disputa política, mas do fato de que alguns moradores estariam
em situação de risco: “a preocupação da comunidade não é com a estrada nem com o
projeto, que são a favor do progresso, mas que não traga risco para as pessoas”. A
associação da Nascente se fortalecera recentemente com uma nova diretoria formada
por moradores de origem camponesa. Contribuiu para o seu fortalecimento a união em
torno dos problemas dos moradores afetados pela construção daquela estrada. Assim, o
presidente da associação procura enfatizar as pressões sobre os problemas locais.
Julio Bill intervém, de início, com uma discussão “técnica”, que resvala para
um tom de denúncia:
“Julio Bill diz que em reunião no ano passado perguntou ao engenheiro Antônio
Jardim como seria escoada a produção da fazenda e ele respondeu que em outro
momento isso seria visto. Pergunta qual o ângulo de inclinação do talude na subida da
estrada que beira a mata. Antônio Jardim diz que varia de acordo com a situação do
terreno, que tem quarenta e cinco, cinqüenta graus. Julio Bill diz que tem mais de
noventa. Antônio Jardim rebate dizendo que ficou com mais de noventa com o aterro
colocado em cima. Julio Bill diz ter fotografias que mostram o caos que fizeram naquela
estrada, árvores arrancadas para todo lado. Diz que não vai mostrar para evitar maiores
confusões e quem quiser ver que o procure mais tarde. Menciona o fato de estarem
fazendo uma grande plantação de cipó do Santo Daime e que isso não está sendo dito.
A intervenção de Julio Bill vai no sentido de reafirmar seu posicionamento de
falar em nome dos interesses da população e contra os projetos, oficiais ou não, dos
ambientalistas locais para o território do distrito. A crítica é feita tanto à adequação da
168
construção da estrada aos critérios de engenharia e aos próprios critérios ambientais,
quanto à utilização do terreno para cultivar uma planta usada em cerimônias religiosas
que, se ocorrem no distrito, certamente são promovidas por moradores de origem
urbana, alguns deles atuantes no ambientalismo local. Ou seja, ele procura polarizar a
discussão e reforçar a clivagem entre a população e os implementadores da APA. Para
isto, utiliza o tom da denúncia, movimentando-se sob as regras do jogo introduzidas
pelos próprios ambientalistas e reconhecidas como válidas.
O representante da empresa municipal de agricultura, Dalton, rebate com elogios
à parte agronômica do projeto e com a denúncia de uma suposta invasão às instalações
da fazenda. Ou seja, a acusação de cultivo do dito cipó não foi respondida, o contra-
ataque consistiu também numa denúncia, de invasão da fazenda e danos às suas
instalações.
Na reunião seguinte, o representante da associação da Nascente encaminha um
laudo da defesa civil. “Alisson Mauta pede que os serviços apontados no laudo sejam
feitos com a maior brevidade possível, haja vista que os moradores em noites de chuva
têm deixado suas residências por medo que as enxurradas voltem a acontecer e relata
estar havendo problemas, pela movimentação de terra, em manancial que abastece
algumas casas próximas à fazenda.” O presidente do CG, Pedro Paulo, fica de enviar a
fiscalização ao local, mediante pedido formal de vistoria a ser entregue pela associação
da Nascente.
Em síntese, o conflito em torno da questão da Fazenda São João parece se
desenvolver em diferentes níveis. Em primeiro plano, encontram-se os moradores que
têm suas casas inundadas quando chuva forte e que atribuem esta situação à
construção da estrada para escoar a produção da fazenda. Em contraponto, o
responsável técnico, antigo membro do CG, presta esclarecimentos “técnicos” e explica
como os procedimentos ecologicamente corretos adotados resolverão os problemas da
comunidade da Nascente. Enquanto isso, representantes do CG procuram demonstrar
preocupação com os moradores e eficiência no encaminhamento da fiscalização, mesmo
se tratando de um projeto no qual tomam parte membros e ex-membros do próprio CG,
ou seja, um projeto que, dentro das relações políticas vigentes, seria apadrinhado pelos
membros do CG.
Num outro vel, uma politização do conflito, com Julio Bill “tomando as
dores” da população atingida e aproveitando para denunciar supostos erros de
engenharia e utilização da fazenda para objetivos não externados à população, como o
169
cultivo de um cipó utilizado em cerimônias religiosas, ao qual são atribuídas
propriedades alucinógenas
155
. A resposta acontece sob a forma de denúncia de invasão
da fazenda, encaminhada pelo representante da empresa municipal de agricultura que
fora representante da associação da Nascente no mandato anterior do CG. E de elogios
ao projeto formulados por diferentes membros da plenária. Ou seja, há uma
preocupação em defender o projeto da Fazenda São João, pensado como modelo de uso
sustentável do espaço e dos recursos, e implementado por ex-membros do CG, que não
pode ser assumida pelo CG enquanto instituição, vide as colocações do presidente, mas
é expressa pelos membros da plenária mais próximos aos membros diretamente
envolvidos no projeto, sob a forma de colocações individuais. Era preciso defender o
projeto sem abalar a impessoalidade e imparcialidade do CG.
2.4 – As cachoeiras: quem vai reinar no paraíso?
A disputa em torno do Vale das Águas, a região das cachoeiras, precede o
processo de implementação da APA. Como vimos, as primeiras pessoas da cidade que
chegaram ao distrito em busca de “natureza” encontraram sua expressão mais plena nas
cachoeiras do Vale das Águas. Logo a maior parte das propriedades foi mudando de
mãos e o solo foi sendo parcelado, para atender às demandas por natureza, das pessoas
vindas da cidade. Os lavradores que habitavam e produziam no vale foram buscando
novas propriedades, no distrito e em regiões próximas, para se estabelecerem como
meeiros, enquanto outros abandonavam suas lavouras e partiam à procura de empregos
e sub-empregos nas cidades. Alguns permaneceram, empregando-se nas propriedades
dos neo-rurais, freqüentemente como “jardineiros da natureza”
156
.
As cachoeiras continuaram atraindo pessoas da cidade, como visitantes
ocasionais os turistas, e, aos poucos, foram se tornando um símbolo da natureza do
Lima. Na década de 90, como foi visto ao longo desta tese, começou a haver uma
mobilização cada vez mais sistemática em prol dos cuidados com as cachoeiras do Vale
das Águas, que deu origem a idéias e ações voltadas para a transformação do lugar em
área protegida. Como foi exposto, estas iniciativas contribuíram significativamente para
que todo o território do distrito viesse a ser transformado em Área de Proteção
Ambiental.
155
A planta não é ilegal, desde que utilizada em contexto religioso. Mas apresenta restrições. Por
exemplo, para transportá-la, ou o chá feito a partir dela, é preciso autorização do IBAMA.
156
Carneiro (2000).
170
Com a APA estabelecida, as disputas em torno do Vale das Águas, com
diferentes interesses e projetos para o uso daquele espaço e de seus recursos, passaram a
ser expressas e atualizadas sob a forma de discussões no âmbito das reuniões do CG da
APA.
Primeiramente, é preciso ter em conta o manifesto interesse da ONG
ambientalista local o Grupo Germinal - na destinação daquela área. A própria
formação desta instituição esteve profundamente imbricada no “trabalho”,
originalmente voluntário, de cuidado com as cachoeiras, que veio a ganhar aspectos
mais profissionais e passou a ser denominado “monitoramento das cachoeiras”.
Atualmente, os monitores das cachoeiras constituem-se na base de membros do Grupo
Germinal que moram no distrito do Lima. Há tanto neo-rurais quanto pessoas de origem
camponesa, predominando os jovens com até 25 anos. O trabalho dos monitores
consiste em orientar os freqüentadores das cachoeiras quanto ao destino do lixo e
quanto ao comportamento a ser adotado nos locais de banho (não remover plantas, não
utilizar cosméticos, etc.), e auxiliá-los em passagens perigosas, prestando o atendimento
de primeiros socorros quando necessário. Os monitores são orientados e coordenados
pelo diretor do Germinal, Matheus, que trata aquele trabalho como uma espécie de
missão pela preservação da área. Muitos monitores mostram-se orgulhosos de seu
trabalho e atuam como voluntários quando a Prefeitura não se compromete com seu
pagamento. E os próprios monitores se encarregam de defender os méritos deste
trabalho nos fóruns da APA, uma vez que se trata, também, de um emprego considerado
bastante aprazível.
Esta atividade funciona como uma vitrine da ONG, diante de turistas e
freqüentadores ocasionais do distrito. São comuns comentários positivos destes
visitantes a respeito da ONG, em função desta atividade. Foi esta ONG quem primeiro
formulou a proposta de transformação da região do Vale das Águas em “parque
natural”.
Estão em jogo, também, os interesses e projetos dos proprietários da região do
Vale das Águas. Destaca-se o peso do posicionamento do proprietário do terreno onde
se situam as principais trilhas de acesso aos locais de banho - Airton Rocha, que
adquiriu a propriedade ao final dos anos 80. Ao longo dos anos, com o aumento
crescente da visitação turística e o desenvolvimento do monitoramento das cachoeiras,
Airton Rocha adotou posicionamentos ora de aliança ora de rivalidade com a ong
171
ambientalista local, tendo havido momentos tensos que chegaram a culminar, algumas
vezes, no fechamento do acesso às cachoeiras por parte deste proprietário.
Além destes dois interesses mais evidentes, que se levar em conta a opinião
dos demais proprietários do Vale das Águas, alguns mais interessados na utilização da
área para o lazer, pois obtêm algum benefício com o turismo, outros mais interessados
na preservação da área, pois a utilizam para o seu próprio desfrute. Entram em cena,
também, interesses dos comerciantes do distrito, diretamente beneficiados pela
freqüência à localidade, em função da utilização daquelas cachoeiras para o lazer.
Autoridades municipais, Corpo de Bombeiros, Guarda Municipal e até o Batalhão
Florestal da PM são frequentemente acionados para arbitrar conflitos que concernem o
uso daquela área. Há, também, os interesses dos próprios freqüentadores, que pretendem
que a área possa ser utilizada para lazer sem impedimentos.
O tema das cachoeiras do Vale das Águas começou a figurar nas atas de
reuniões plenárias do CG no segundo semestre de 2003, quando houve cobranças, por
representantes da ONG ambientalista local, à secretaria de meio ambiente, solicitando o
pagamento, atrasado, dos monitores. Foram ocasiões em que diferentes atores se
manifestaram a respeito da questão, revelando posicionamentos que podem ser
interpretados em diferentes níveis.
A associação de moradores do Vale das Águas co-assinou um dos documentos
que reivindicavam a remuneração dos monitores: “O Sr. Jaime, representante da
[associação de moradores do Vale das Águas] disse que o Vale das Águas está muito
pior do que quando tinha monitoramento e que a área deve ser atendida à noite pois
ouviu gritos de pessoas no último eclipse, a passagem de moradores com moto e a
recente queimada próximo à Pedra do Caju, em que desconfia-se que foi realizada por
turistas”. Ou seja, em nome da preservação da região e da segurança dos próprios
moradores, Jaime se posiciona a favor do monitoramento realizado pelo Grupo
Germinal. Jaime integrava o grupo de ambientalistas locais que liderou a
implementação da APA. A manutenção deste comprometimento explica o apoio à
ONG.
Representantes do segmento religioso e da associação da Nascente apoiaram a
cobrança de pagamento dos monitores, enfatizando a importância da atividade. Ou seja,
manifestaram o seu apoio ao monitoramento do Grupo Germinal. Na fala da
representante da Igreja Católica, o monitoramento é valorizado como um emprego para
os jovens egressos da agricultura: “A Sra. Alcina [segmento religioso] disse que os
172
moradores do Lima precisam desse emprego de monitores na cachoeira pois a
agricultura não está mais assegurando-os e que este trabalho se for correto, tanto na sua
forma de pagamento quanto na sua execução, estará sendo gerada uma nova fonte de
renda para os moradores.” Seu discurso expressa a base da aliança da Família Miranda
com os ambientalistas locais, visando compartilhar os benefícios da implementação de
projetos ambientais.
O representante da associação da Nascente, por sua vez, posicionou-se
valorizando o monitoramento, pela prevenção aos efeitos do turismo predatório, e
propôs a extensão do monitoramento à Cachoeira dos Gaturamas, na Nascente, que
começava a sentir estes efeitos. Sua fala foi no sentido de cativar o ambientalismo local
a estender os benefícios da implantação de projetos ambientais à região da Nascente,
através da associação.
o secretário executivo do CG, Bianco Schmidt, e os representantes da
associação de moradores do Lima, Paulo e Lena, questionaram a qualidade do
monitoramento. O casal Paulo e Lena, que, durante o ano de 2004, conquistou a
representação da associação de moradores no CG, procurava estabelecer uma distinção
entre a sua atitude e aquela dos demais conselheiros, coerentes com a maneira pela qual
vinham se posicionando em outras questões tratadas no CG. O secretário executivo, por
sua vez, ressentia-se das recentes críticas à sua atuação no cargo, lideradas pelo
representante do Grupo Germinal.
Seus argumentos foram contestados pelos próprios monitores presentes à
plenária. “Bianco [secretário executivo] disse que o grupo não está preparado e
capacitado para assumir a monitoria das trilhas. (...) A Sra. Lena [associação de
moradores] preocupa-se com a postura e apresentação dos monitores com o turista.” Em
resposta, Otílio, “morador do Lima e integrante do grupo de monitoramento das
cachoeiras, disse que no grupo haviam pessoas capacitadas e até mesmo os nativos do
Lima que trabalhavam no grupo e que não tinham muito estudo, realizavam bem o
trabalho e o que parou mesmo o grupo foi a falta de verba para pagamento dos
monitores.” Otílio, dirigindo-se a um público formado em sua maioria por neo-rurais,
trata a população de origem camponesa local como nativos, acionando categoria
utilizada pelos ambientalistas locais quando discutem entre si a implantação de medidas
ambientais, e pelos moradores de origem urbana de uma maneira geral. Como monitor
do Germinal, e nativo, ele encampa a visão dos neo-rurais de que a população local tem
pouca escolaridade, mas ressalta a capacidade dos nativos de trabalharem bem apesar
173
desta diferença, assim como a qualidade do trabalho de monitoramento como um todo.
Alinhando-se ao posicionamento da ONG, atribui as dificuldades à parte que caberia à
secretaria de meio ambiente, ou seja, o pagamento do grupo de trabalho.
Ao final do ano, o proprietário do terreno estrategicamente mais importante do
Vale das Águas, sob o ponto de vista turístico, Airton Rocha, solicitou medidas
imediatas de construção de instalações sanitárias e monitoramento, caso contrário
fecharia o local, proibindo o turismo. No início do ano seguinte, foi firmada uma
parceria entre a secretaria de meio ambiente e a ong ambientalista local para realização
do monitoramento. Ou seja, a secretaria se comprometeu em remunerar os monitores.
No entanto, quanto à reivindicação por instalações sanitárias, permanecia um impasse.
A secretaria de meio ambiente recusava-se a realizar investimentos em propriedade
particular. Para obter as construções, foi sugerido a Airton Rocha que encaminhasse um
projeto em nome de uma instituição, que poderia ser, por exemplo, o Grupo Germinal
ou a associação de moradores do Vale das Águas. Ou seja, ele precisava associar-se aos
ambientalistas locais.
Quando foi anunciada a parceria entre a ONG e a secretaria de meio ambiente, o
representante da ONG solicitou cursos de capacitação para os monitores do grupo e
“lembrou a necessidade de futuramente se construir estruturas maiores, como banheiros,
etc.”. Com esta solicitação, fica demonstrada a preocupação dos membros da ONG com
a preservação do local, mesmo que o problema da remuneração dos monitores e
continuidade do “trabalho” tenha sido aparentemente solucionado. Ou seja, ao contrário
do que Airton Rocha freqüentemente sugeria em relação ao Germinal, acima do
interesse de trabalhar remuneradamente no monitoramento das cachoeiras, havia a
preocupação com o cuidado com a região.
Ao que parece, estas medidas não vieram a se concretizar e, em março de 2005,
problemas relacionados à área das cachoeiras voltaram a figurar entre os assuntos
tratados pelos conselheiros nas reuniões do CG. Depois de um carnaval de chuvas
torrenciais e queda de barreiras nas estradas serranas, o Corpo de Bombeiros emitiu um
laudo, sugerindo a interdição das cachoeiras pela Prefeitura, “até que se tenha condições
mínimas de segurança a seus freqüentadores”
157
,
157
No laudo, são especificadas diversas necessidades a serem atendidas: “1 Guarda-Vidas; 2
Monitoramento acima da cachoeira em caso de chuvas; 3 Posto Médico (médico/enfermeiro); 4
Viatura para transporte de acidentados; 5 – Maca para transporte de acidentados; 6 – Preservação do Meio
Ambiente; 7 Banheiros; 8 Controle do número excessivo de banhistas; 9 Estrutura com cabos de
aço, acesso a pontos superiores e segurança do banhista; 10 Proibição de armações de barracas as
margens do riacho, reservado aos campings.”
174
Diante disso, o presidente do CG coloca que a secretaria de meio ambiente não
tem condições de proceder, sozinha, a interdição das cachoeiras. A postura do secretário
foi a de não encampar o fechamento das cachoeiras, como solicitava o proprietário
Airton Rocha, apoiado no laudo do Corpo de Bombeiros, sob o argumento de que tal
medida não seria de sua competência. Assim, ele se compromete a acionar as
“autoridades competentes” e a fazer a parte que lhe caberia: “precisamos nos preparar
para a Semana Santa, iremos tentar colocar aqui os salva-vidas, ver da viabilidade da
colocação de banheiros químicos, o apoio dos técnicos da [secretaria de meio ambiente]
para ajudar no monitoramento, e a guarda municipal no que diz respeito ao poder
público municipal assim de uma forma geral, pois sabemos que abusos acontecem.”
Entre a primeira e a última fala do presidente do CG, que deixam claro que a
secretaria não vai fechar o acesso às cachoeiras, como solicitava o proprietário e temiam
os comerciantes e os monitores da ONG, diversas pessoas se pronunciaram, em defesa
de diferentes interesses e idéias, declarados ou não.
A representante do Grupo Germinal leu um documento, entregue pela ONG ao
Ministério Público, no qual solicitam “que se faça respeitar o direito de uso da área de
‘interesse público’ compreendida na região das cachoeiras do córrego da Pedra do Caju
e faz observações quanto às necessidades que o laudo aponta”. A postura oficialmente
defendida pela ONG, através de sua representante no CG, entra em conflito com a
intenção do proprietário Airton Rocha, de organizar o turismo naquela região como uma
área privada.
O Sr. Airton Rocha carta assinada também pelo co-proprietário de seu terreno
e endereçada ao presidente do CG. Segundo a ata, “pedem apoio para uma série de
medidas que os proprietários pretendem tomar, tendo em vista sempre a manutenção do
patrimônio ambiental e ecológico do Lima. Que a intenção quando compraram foi de
preservá-la e protegê-la e que com o aumento da freqüência está se tornando impossível
mantê-la livre da depredação. Diz que louvam o trabalho feito em parceria com a
Prefeitura mas que está insuficiente para conter a degradação. Que investiram em
cercas delimitando trilhas, e que é preciso dotar a área de condições sanitárias e de
segurança. Solicitam as autoridades competentes o apoio para fechamento, por prazo
indefinido, o acesso as cachoeiras através de sua propriedade. Que durante o
fechamento pretendem tomar medidas práticas que prevêem a construção e manutenção
de banheiros; demarcação definitiva de trilhas a serem utilizadas (com placas
indicativas); a formação de monitores para orientar os visitantes, que gerará cerca de
175
vinte empregos diretos, além de dotar a área de infra-estrutura turística. Que após a
abertura será limitado a quatrocentas pessoas por dia, preservando-se sempre o livre
trânsito dos moradores. É intenção também passar a cobrar dos visitantes ingresso de
valor popular, cuja arrecadação será destinada a sustentar o projeto.”
Aqui, delineia-se claramente uma disputa pelo monitoramento das cachoeiras,
realizado cerca de doze anos pela ONG ambientalista local, atualmente em parceria
com a secretaria de meio ambiente. A ONG se coloca contrária à interdição e pretende
que a área seja considerada como de “interesse público”, acionando neste sentido o
Ministério Público
158
. Desta maneira, estaria garantida a continuidade do trabalho de
monitoramento das cachoeiras, tratado como o carro chefe das ações da instituição.
os proprietários da área em questão, pela qual é feito o acesso aos locais de banho, se
propõem a administrar o local, implementando as melhorias apontadas como
necessárias, mediante cobrança do ingresso. Os proprietários do terreno de acesso às
cachoeiras não chegam a explicitar qualquer intenção de retirar a ONG do
monitoramento, mas expressam a sua intenção de gerir os recursos advindos da sua
exploração econômica, em nome da preservação dos atributos locais.
Como nas disputas analisadas anteriormente, a discussão resvala para a denúncia
de crime ambiental. Neste caso, tanto o Germinal quanto Airton Rocha procuram deixar
clara a sua preocupação com a preservação do meio ambiente na região do Vale das
Águas. Assim sendo, a acusação de corte de árvores para mudança de lugar da principal
trilha de acesso, levantada na plenária por um monitor do Germinal, em tom de
provocação:
“Arthur Pereira, monitor do Germinal, ressalta que se for interditada
definitivamente as cachoeiras o comércio do Lima acaba, que o proprietário fechou a
porteira de acesso às cachoeiras no carnaval, diz que o proprietário não é tão
preocupado assim em preservação pois fez o corte de diversas árvores quando mudou o
caminho de lugar. O fiscal, na época, Sr. Elton diz que constatou o fato, que houve
realmente o corte de árvores no local. Airton Rocha esclarece que aquela é a trilha
original, que foi feito um mutirão em todo o caminho da Pedra do Caju, que existe a lei
158
“A propalada retração do Estado com relação aos assuntos públicos vem acompanhada dessa
perspectiva de consolidar a colaboração entre governo e população, (...). Para essa cooperação, a gestão
pública vem criando esses poros, como exemplificam os conselhos municipais e os programas de saúde
do trabalhador; e também possui apêndices, na forma de instituições montadas com a pretensão da
neutralidade técnica, como é o caso das universidade públicas e de agências específicas de ‘meio
ambiente’ Ibama e Feema -, ou neutralidade jurídica, como é o caso do Ministério Público.” (Leite
Lopes et alii 2004: 258)
176
e a sua defesa foi apresentada à Secretaria de Meio Ambiente e está para ser julgada,
foi pedida uma perícia técnica para apurar a veracidade dos fatos”. Deste modo, Airton
se defende da acusação de agressão ambiental sem pôr em dúvida a importância da
preservação, atendo-se a questões tratadas como técnicas ou seja, o desacordo quanto
à classificação do corte daquelas árvores como crime ambiental.
A acusação é respondida com outra denúncia, desta vez contra o Grupo
Germinal, acusado de incitar a agressão física à pessoa do senhor Airton Rocha, durante
o fechamento do acesso às cachoeiras por Airton durante o carnaval. Quem acionou esta
denúncia, durante a plenária do CG, foi Luísa Paiva, amiga pessoal de Airton e descrita
pela ata como “moradora”. Quanto à interdição das cachoeiras, ela coloca:
“A [secretaria de meio ambiente] teve uma atitude, a Germinal outra. E que
aconteceu um fato muito grave, nesse período de possível interdição ou de
esclarecimento, e que é claro que a comunidade tem que ser ouvida, mas não pode ser
manipulada, que é muito fácil chegar para o comerciante e dizer ‘você está ferrado, vão
fechar as cachoeiras’. Ficou perigoso. Diz que foi isso que o Germinal fez o carnaval
inteiro, pondo em risco a vida, principalmente, do Airton.”
Como no caso de Julio Bill, as divergências chegam ao nível da acusação de
ameaças de agressão física. Desta vez, no entanto, os integrantes da ONG ambientalista
não são vítimas, mas sim acusados de, no mínimo, disseminar boatos que puseram em
risco a sua segurança pessoal. O representante da ONG no CG, Rafael, nega as
acusações e admite ter mobilizado setores da comunidade interessados no
funcionamento das cachoeiras durante o feriado, essencialmente o comércio, para unir-
se à ONG num posicionamento contrário à interdição.
Diante de um impasse, com acusações de ambos os lados, o presidente do CG
coloca a possibilidade de transferir o monitoramento do Germinal a outras cachoeiras
do distrito, reafirmando a manutenção da “parceria” entre a ONG e a secretaria de meio
ambiente. Três diretores da ONG saem em defesa do monitoramento no Vale das
Águas. O representante da ONG no CG, Matheus, valoriza a possibilidade de
“expansão” do monitoramento a outras regiões e dispõe-se a continuar no Vale das
Águas, em “parceria” com a secretaria e com os proprietários. Leonardo Giovannini
sugere que o projeto dos proprietários seja “analisado coletivamente” e defende o
monitoramento como estratégia de controle do turismo. Gustavo Maccachero expressa
reconhecimento pelo direito dos proprietários de usufruir economicamente da região,
mas coloca que outros proprietários do Vale das Águas também têm o direito de
177
reivindicar a preservação da área. Neste sentido, valoriza o monitoramento como de
“reconhecimento público” e atribui os acidentes, como o que motivou a vistoria do
Corpo de Bombeiros, à imprudência dos banhistas. Acrescenta que o laudo interdita o
banho, mas não o acesso às cachoeiras. Diante do impasse com o proprietário Airton
Rocha e da proposta de retirada do Vale das Águas encaminhada pelo presidente, a
postura do Germinal passa a ser a de propor uma “parceria” para a gestão da área. Deste
modo, as colocações dos membros da ONG já parecem mais flexíveis do que a postura
adotada no início da plenária, com base no documento encaminhado ao Ministério
Público, no qual a área é tratada como “de uso público”.
O proprietário Airton Rocha nega ter alguma vez recusado a “composição” com
a ong e coloca a sua intenção de, apenas, melhorar as condições de trabalho da
instituição. E não deixa de chamar a atenção para os incidentes apontados por Luisa.
Ou seja, diante da recusa da secretaria de meio ambiente de implementar a
interdição das cachoeiras e da reafirmação do convênio com o Germinal para o
monitoramento, ao mesmo tempo em que o direito de exploração econômica pelos
proprietários foi reconhecido, tanto Airton Rocha quanto o Germinal, naquele momento,
terminaram por aceitar uma “parceria”.
A plenária seguinte ocorreu em maio, dois feriados após a reunião anterior
(Semana Santa e Tiradentes). O tom do pronunciamento do presidente do CG e
secretário de meio ambiente foi de avaliação positiva em relação ao resultado das ações
implementadas nos feriados, não para a área do Vale das Águas. Entre um feriado e
outro, houve uma reunião do secretário com a associação de moradores, na qual foram
pensadas mais ações emergenciais. O presidente se refere aos feriados de uma maneira
geral: “que foram feitas placas para as cachoeiras; (...) quanto a questão da interdição,
que não foi decretada e sim informada através de placas que as cachoeiras estavam
impróprias para banho, que havia perigo e que se alguém se aventurasse seria tentativa
de suicídio, resguardando assim o proprietário e o poder público de serem acusados por
omissão. Diz que o trabalho funcionou que entraram com a guarda municipal, com o
Corpo de Bombeiros, mobilizaram uma série de outras forças, de parceiros, que atuaram
em conjunto: o Batalhão Florestal esteve presente o tempo todo, o Corpo de Bombeiros
treinou Guardas-Vidas para atuarem nas cachoeiras, e estiveram presentes nos dois
feriados. O Portal funcionou com o apoio, fundamental, de voluntários da
178
comunidade
159
para ajudar o pessoal da [empresa municipal de turismo] no
cadastramento dos visitantes e na distribuição de folhetos. Que cada feriado agregamos
novas ações. Na Semana Santa o foco foram as cachoeiras e no feriado seguinte a
questão dos ambulantes e do ruído.”
A questão das cachoeiras só voltou a provocar discussões em reuniões do CG em
abril de 2006, depois de um feriado de Semana Santa em que monitores da ONG
ambientalista trabalharam voluntariamente nas cachoeiras, uma vez que o pagamento
pela Prefeitura estava suspenso. O proprietário Airton Rocha, mais uma vez, queixou-se
de que nada estava sendo feito desde a sua última solicitação de interdição, no início de
2005. Propôs novamente a interdição e pediu que fosse concedida licença para
construção de banheiros, requisitada mais de um ano. O presidente do CG,
novamente, solicita projeto por escrito com propostas claras. Que poderia ser em nome
da associação do Vale das Águas, “pois fica difícil para o poder público injetar recursos
em propriedade privada”. Para ele, “soluções precisam ser apresentadas tipo entregar
toda faixa marginal da área das cachoeiras para a Prefeitura desapropriar e assumir
como Parque Municipal ou é uso particular mesmo que se quer como em vários lugares
do País. Cita a cidade de Bonito como exemplo, referência em ecoturismo no Brasil,
onde todas as propriedades o privadas e funcionam perfeitamente. Que vem
sinalizando no sentido de que os proprietários, não só do Vale das Águas, mas como das
demais cachoeiras organizem a visitação.” Ou seja, o secretário deixa bem claro que
serão investidos recursos na região se a mesma passar para o controle do governo
municipal.
Quanto ao trabalho de monitoramento das cachoeiras, Carlos Gustavo, monitor
da ONG ambientalista, diz que os monitores trabalharam na semana santa “sem a
presença do poder público, apesar de estarem a quatro meses sem receber”, e pede apoio
da polícia ou da Guarda Municipal para dar mais segurança ao trabalho. O presidente do
CG, secretário de meio ambiente, “intervém dizendo que o melhor seria uma moção do
[CG da APA], destacando o trabalho heróico do Germinal, que sem o apoio do poder
público, conseguiram ordenar o fluxo de turistas e solicitando que remunere em dia o
159
Os voluntários foram alguns dos “monitores ambientais” formados no curso ministrado pela ONG
ambientalista local em agosto de 2004, em parceria com o IEF, no âmbito de um projeto de
“recomposição de matas ciliares e nascentes” financiado pela medida compensatória de uma usina
termoelétrica. Dos 52 formandos, 15 foram selecionados para continuar trabalhando no projeto. No
entanto, logo depois, a ong declarou sua parte no projeto concluída, por divergências com o IEF quanto à
implementação do reflorestamento (como foi visto no capítulo 2). Luisa Paiva era a monitora formada
selecionada para coordenar o trabalho do grupo de monitores. Após o rompimento da ONG, alguns dos
monitores continuaram trabalhando, voluntariamente, sob a liderança de Luisa.
179
serviço.” Assim, Pedro Paulo exime a secretaria da responsabilidade pelo atraso no
pagamento dos monitores, atribuindo-a para outras esferas da Prefeitura.
Em agosto de 2006, com a presença do prefeito à reunião ordinária do CG, o
proprietário Airton Rocha encaminhou por escrito uma solicitação de interdição das
cachoeiras até final de novembro e licença para cobrança de ingresso após a reabertura,
com a devida infra-estrutura instalada, agradecendo pela licença concedida para
construção de banheiros. O presidente do CG reafirmou a parceria da secretaria com a
ONG ambientalista, solicitando inclusive aumento da remuneração, com a qual o
prefeito se comprometeu, e condicionou a solução para o monitoramento a uma parceria
dos proprietários com a ONG e com a empresa municipal de turismo, que deveriam
formar uma comissão para formular um projeto com propostas claras e consistentes
160
.
Estes acontecimentos não deixam dúvidas quanto ao interesse da secretaria de
meio ambiente na manutenção da parceria com o Grupo Germinal. Isto significava não
ceder aos apelos de Airton Rocha, pois o monitoramento do Vale das Águas era
percebido pelos membros do Germinal como vital para a sobrevivência da ONG. Esta
atividade constituía-se num fator essencial para a manutenção da base de apoio do
Germinal junto à população local, pelo seu poder de selecionar os monitores para um
emprego ambicionado por muitos jovens moradores. Contribuía, também, para o apego
da ong àquelas cachoeiras, o apreço pelo Vale das Águas, enquanto símbolo da natureza
do Lima. Para a secretaria de meio ambiente, a aliança com o Grupo Germinal e,
especialmente com o diretor Matheus, nomeado a partir de 2005 como Secretário
Executivo do CG, era essencial para a implementação da APA. Esta aliança se manteve
e se fortificou com o trabalho do Conselho Gestor, apesar do surgimento de conflitos
entre os próprios ambientalistas locais, passado o momento em que fora necessário
garantir a criação da UC. Pode-se afirmar, inclusive, que, a partir de 2005, sob o
mandato do novo presidente do CG e de Matheus como Secretário Executivo, foi esta
aliança que constituiu-se no motor da implementação de medidas ambientais, a despeito
do próprio Conselho Gestor da APA.
160
Estava presente também o Procurador do Município, que prestou esclarecimentos pontuais com relação
à competência das diferentes instituições (Batalhão Florestal, para tratar das invasões de propriedades;
Polícia Federal ou Polícia Civil, para investigar crimes ambientais e uso de entorpecentes; Prefeitura e
Guarda Municipal, para implementar ações conjuntas com as demais no sentido de minimizar as situações
que vêm ocorrendo) e quanto aos procedimentos para implantação de um projeto para a área (contrato
entre o proprietário e a instituição que permita a exploração da atividade em sua propriedade; solicitação
da pessoa jurídica interessada em fazer a exploração econômica à Secretaria de Fazenda, que passará
também pela Secretaria de Meio Ambiente e pela empresa municipal de turismo.
180
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise das relações atualmente em vigor entre os interessados na utilização do
espaço e dos recursos do distrito do Lima revela que houve algumas alterações nos
critérios para a sua utilização. Estas alterações associam-se a mudanças nas relações
sociais a partir da inserção de um novo conjunto de moradores os neo-rurais - na
disputa pela definição das regras de gestão do espaço e dos recursos e pelo acesso a
estes recursos.
Os moradores de origem camponesa se ressentem de mudanças nas relações sociais,
estabelecendo comparações com um passado anterior à chegada dos neo-rurais, quando
havia um controle da comunidade sobre quem circulava na localidade. Além deste
estranhamento, a convivência entre neo-rurais e a população de origem camponesa no
território do distrito do Lima está permeada de disputas em torno da utilização do
espaço e dos recursos materiais e simbólicos a ele associados.
O processo de criação da APA do Lima consolidou novas regras para a utilização do
espaço e dos recursos, fundadas não somente na premissa da preservação ambiental,
como também na sua apropriação pelo grupo que conduziu este processo. Assim, a
criação da APA consolidou, também, a inserção de neo-rurais que atuaram como
ambientalistas locais nas relações de poder e na disputa pelos recursos.
Os ambientalistas locais compartilhavam com os demais neo-rurais a valorização de
um estilo de vida em “contato direto com a natureza”, segundo o qual a natureza”
assim valorizada era representada como selvagem e intocada. Desse modo, sua
apreensão da natureza do Lima ignorava a população local de origem camponesa, ou a
tratava como um obstáculo à preservação. Os nativos deveriam, assim, ser educados ou
submetidos às regras da preservação ambiental.
Muitos dos ambientalistas locais, além de preservar a natureza do Lima, aspiravam
criar meios materiais para a sua fixação na localidade através das atividades em prol da
preservação ambiental. Esta aspiração foi a base para a construção da aliança com o
governo municipal, através da secretaria municipal de meio ambiente, que viabilizou a
transformação do distrito do Lima em APA.
Esta aliança, que tinha como um de seus principais elementos a contratação de
moradores envolvidos com as atividades ambientais via uma cooperativa sem direitos
trabalhistas e dependendo, portanto, de relações personalizadas para a sua manutenção -,
foi o que permitiu que a inserção dos ambientalistas locais nas relações de poder fosse
interpretada pela população local segundo os padrões vigentes. Além disso, o advento
181
da APA foi acompanhado dos projetos ambientais. A participação da ONG
ambientalista Grupo Germinal em projetos tornou-a capaz de alavancar oportunidades
de trabalho para a população, geralmente distribuídas através de relações
personalizadas. As oportunidades de trabalho assim distribuídas pela ONG eram
interpretadas pela população como mais uma forma de acesso privilegiado a benefícios,
como tantas outras em vigor nas relações sociais locais.
A influência da aliança entre ambientalistas locais e a secretaria municipal de meio
ambiente, sobre a formação do Conselho Gestor da APA, foi decisiva para que esta
unidade de conservação tivesse sua implementação tão agilizada, em comparação com
outras unidades de conservação brasileiras da mesma categoria. À frente de quatro
diferentes organizações da “sociedade civil” e afinados com os objetivos do órgão
criador da APA, os ambientalistas locais e os representantes municipais conseguiram
superar suas diferenças e atuar como um bloco único durante o tempo necessário para
garantir a instituição das principais regras de gestão da APA. Para isto, foram afastadas
do Conselho Gestor as organizações que poderiam questionar o processo em curso. As
iniciativas para a inclusão de representantes do povo do lugar foram no sentido de
despolitizar sua atuação, seja contemplando somente algumas de suas lideranças com
empregos na esfera municipal, seja atribuindo sua representação às Igrejas, de fraca
atuação política na localidade.
Por outro lado, a criação do aparato legal e institucional não é suficiente para
garantir a implementação de todas as regras criadas. Para que as novas regras sejam
implementadas, é preciso que atue a fiscalização. E é neste ponto que se situam os
limites das mudanças associadas ao advento da APA. A maneira pela qual ocorre a
fiscalização das novas regras para o uso do espaço e dos recursos naturais pode variar
segundo a posição social do usuário destes recursos. Os poucos grandes fazendeiros da
localidade figuram nos discursos dos moradores de origem camponesa como imunes à
fiscalização ambiental. Assim, o advento da APA é percebido de maneira diversa por
diferentes setores da população.
Os trabalhadores rurais que não possuem terra para produzir, que anteriormente se
estabeleciam como meeiros, passaram à condição de trabalhadores diaristas, contratados
por fazendeiros ou neo-rurais, uma vez que diminuíram sensivelmente os terrenos
cedidos em meação, devido ao medo das multas por queimadas ou roçadas. Eles
costumam atribuir estas mudanças à APA, ao governo ou ao IBAMA, de forma
impessoal. Os pequenos produtores diminuíram sensivelmente sua produção devido ao
182
medo da fiscalização, mas atribuem esta imposição à gente de fora, responsável pela
criação da APA.
Os grandes proprietários que, no passado recente, constituíam-se numa elite política
que intermediava o acesso da população aos serviços e benefícios oriundos do poder
público, se ressentem da inserção dos neo-rurais na disputa pelos recursos e se queixam
da fiscalização ambiental sobre suas atividades. Ao mesmo tempo, muitos deles
conseguiram resolver este problema, substituindo as lavouras por pasto, deixando,
portanto, de ceder terras a lavradores em meação. Muitos deles, no entanto, mantiveram
as moradias dos antigos lavradores nas suas propriedades, renovando a dívida de
gratidão dos lavradores e suas famílias.
A mobilização para a formação da associação de produtores e trabalhadores rurais
do Lima surgiu, a principio, da iniciativa dos grandes proprietários aos quais
desagradava a fiscalização ambiental. Para constituir-se enquanto associação e
questionar o processo de criação da APA, todavia, eles precisaram se unir a neo-rurais,
que eram pessoas habilitadas não só a estudar os documentos como também a lidar com
a linguagem “técnica” e as metodologias participativas que vinham sendo utilizadas,
discutindo em pé de igualdade com os condutores da APA. Estes neo-rurais
diferenciavam-se dos ambientalistas locais pela militância contra as desigualdades
sociais, considerada prioritária sobre a preservação ambiental. Eles foram atraídos para
a associação por enxergar na mobilização popular arregimentada pelos “grandes”
proprietários uma possibilidade de reação da população pobre do distrito. A posição
deste neo-rurais na formação da diretoria desta associação foi o que permitiu que fosse
dada alguma voz e visibilidade aos setores mais pobres da população durante o processo
de criação da APA.
Em contraposição ao discurso pela preservação ambiental e em nome da
comunidade, esta associação elaborou o discurso em defesa do verdadeiro povo do
lugar, classificando os implementadores da APA como gente de fora. Este discurso deu
voz a ressentimentos tácitos e latentes da população de origem camponesa do distrito do
Lima. Por isso, foi capaz de mobilizar tantas pessoas para as assembléias desta
associação. A frágil aliança que sustentou a atuação desta associação, durante
praticamente um ano, apoiada no trabalho de poucas pessoas, não pôde perdurar. Mas o
curto período de atuação da associação de produtores e trabalhadores rurais do distrito
do Lima impediu que as medidas ambientais que vinham sendo implantadas na
183
localidade ignorassem por completo a existência dos produtores e trabalhadores rurais
na localidade.
Após a reunião pública para formação do Conselho Gestor da APA, em março
de 2002, as primeiras medidas para promover a implantação da unidade de conservação
elaboração do Regimento Interno do Conselho Gestor e do Plano de Manejo Fase 1
(que contém o Zoneamento) – transcorreram num período de conflito entre os criadores
da APA e a associação de produtores e trabalhadores rurais, durante o qual prevaleceu a
aliança entre ambientalistas locais e a secretaria municipal de meio ambiente (órgão
criador da UC), permanecendo em suspenso as diferenciações entre os grupos que
compunham esta aliança .
Durante a maior parte do processo de confecção do Plano de Manejo, de março a
outubro de 2002, o CG ainda não havia sido criado oficialmente, pois faltava que fosse
homologado pelo prefeito. No entanto, era freqüentemente tratado pelos participantes
regulares das reuniões de elaboração do plano como existente e operante. Esta pressa
em se auto-intitular como o conselho estava relacionada a duas circunstâncias. A
primeira delas era uma compreensão do conselho como uma autoridade máxima local,
uma instância pela qual toda e qualquer atividade realizada no distrito deveria ser
autorizada antes de acontecer. A segunda circunstância era a necessidade de conter a
atuação dos opositores do processo de implantação da APA. Tratar a elaboração do
Plano de Manejo como um trabalho do conselho permitia limitar a interferência de
outras lideranças locais que prejudicavam o andamento das tarefas previstas no projeto
de elaboração do plano principalmente da associação de produtores e trabalhadores
rurais. Este tratamento, associado a uma exigência de rapidez nos trabalhos por parte da
secretaria de meio ambiente, fazia com que qualquer questionamento soasse como algo
que estava atrapalhando o andamento das atividades.
Assim sendo, a atuação do conselho, naquele período, foi a projeção dos planos
dos ambientalistas locais para a gestão do distrito do Lima, o que se refletiu na
construção do Plano de Manejo. No entanto, para passar do planejamento à ação, era
necessário contar com as autoridades do governo. Havia uma desconfiança dos
ambientalistas locais em relação à efetividade do poder atribuído ao Conselho Gestor
no discurso das autoridades municipais. Pois de nada adiantaria que decisões fossem
tomadas pelo CG, se não viessem a ser executadas pelos órgãos municipais. Embora a
relação entre ambientalistas locais e poder público fosse tensa, não era percebida dessa
184
forma pela população. Aos olhos de muitos moradores, os ambientalistas locais
pareciam estar tirando proveito da aliança com o governo.
Além das críticas pontuais encaminhadas por diferentes moradores, durante o
processo de elaboração do Plano de Manejo, foram constantes os questionamentos de
membros da associação de produtores e trabalhadores rurais em relação à falta de
transparência e de participação popular na formulação do plano e na atuação do
conselho.
Quando era convocada uma reunião “aberta” e muitos moradores compareciam,
os questionamentos quanto à falta de participação popular, freqüentemente
encaminhados pelos membros da associação de produtores e trabalhadores rurais,
costumavam encontrar apoio no público presente à reunião. Quando as reuniões eram
restritas aos conselheiros, ou mesmo estendidas aos representantes de organizações que
não integravam o conselho, as críticas acabavam por ser enquadradas nas metodologias
de dissolução de conflitos, dentro da linguagem da “gestão participativa”.
Nas ocasiões em que estes questionamentos eram colocados, os ambientalistas
locais argumentavam tanto no sentido de desqualificar pessoalmente as lideranças que
falavam em nome daquela parcela da população, quanto no sentido de desqualificá-los
enquanto representantes legítimos dos produtores e trabalhadores rurais. Além disso,
eram desqualificados os trabalhadores e produtores rurais da localidade como um todo.
Os embates durante a elaboração do Plano de Manejo revelam a posição
conquistada pelos ambientalistas locais, aliados a setores da Prefeitura, com a criação
da APA. Além de poder de regulamentar toda sorte de atividades e de empreender
projetos, os criadores da APA passaram a dispor, principalmente, do poder de enunciar
o discurso oficial a respeito destas transformações. Em cada um dos pontos críticos
levantados ao longo do processo estudado, coube aos criadores da APA a atribuição de
decidir a respeito do encaminhamento tomado e, mais do que isso, de formular a
interpretação destas questões em documentos oficiais e nos discursos públicos.
O discurso construído pelos criadores da APA apoiava-se na associação entre
duas ordens de representações - a preservação ambiental, como de interesse planetário,
de toda a humanidade e das gerações futuras; e a preservação da natureza daquele
território específico, como um local escolhido para ser um paraíso natural.
As implicações do tratamento de questões ambientais como uma necessidade de
sobrevivência da espécie humana, com repercussões planetárias e para as gerações
futuras, são múltiplas. No caso estudado, este tratamento confere uma superioridade à
185
argumentação daqueles que defendem a implantação de medidas tidas como ambientais
na localidade, uma vez que qualquer posicionamento contrário a estas medidas passa a
ser visto como contrário à preservação ambiental e aos interesses de todos. No entanto,
somente um pequeno grupo tem o poder de definir as situações identificadas como
problemas ambientais e a sua gravidade, bem como as medidas mais adequadas para
tratar destes problemas (desde que se adequando minimamente aos critérios mais gerais,
definidos por instituições externas ao local). Aqueles que se opõem, seja ao conjunto
das medidas ambientais, seja a alguma medida específica, ou algum aspecto dela, são
tratados ora como egoístas e mercenários, que só pensam nos seus lucros pessoais e não
se importam com problemas coletivos, ora como pessoas que desconhecem a
importância da preservação ambiental e precisam ser conscientizadas. Ou seja, é negada
a possibilidade de que o argumento do opositor esteja correto. Ele, de alguma forma,
deverá ser obrigado ou convencido pelo discurso dominante, aquele que defende a
implantação de medidas ambientais no distrito.
Ao mesmo tempo,
as representações de vínculo com a localidade constituem-se
num dos pilares do discurso construído pelos ambientalistas locais com vistas a
interferir na gestão do espaço e dos recursos. Os laços pessoais e afetivos com a
localidade figuram nos discursos públicos de ambientalistas locais, sustentando tanto a
sua reivindicação de legitimidade como representantes
da população, quanto a
atribuição a si próprios de conhecimento das características locais. O seu pertencimento
à comunidade é, também, um dos argumentos chave nos discursos governamentais e de
patrocinadores, que pretendem tratar a implementação de medidas ambientais como um
processo participativo.
Assim, no período em que foi construído o aparato legal e institucional no qual
se apóia a gestão do território e dos recursos da APA do Lima, as tomadas de decisão e
o poder de enunciar o discurso oficial a respeito da implantação da APA estavam nas
mãos de ambientalistas locais, apoiados em sua aliança com a secretaria municipal de
meio ambiente. Através de uma linguagem “técnica” (tanto em relação à natureza
quanto em relação à gerência participativa), somada à associação entre questões locais a
questões “globais”, os implementadores da APA do Lima conseguiram tornar vigente o
seu projeto para aquele território. O monopólio do discurso oficial a respeito da APA,
ostentado por ambientalistas locais e secretaria de meio ambiente, naquele período,
tornou possível a justificação e a legitimação de seu posicionamento em uma série de
186
disputas locais, construindo o Conselho Gestor como uma nova instância de poder local,
apoiado nos instrumentos de manejo da APA
Passado o período do acirramento do conflito, com o CG operando, foram
ressurgindo diferenciações entre os grupos liderados por ambientalistas locais, que
atuaram como um bloco único durante o processo de implementação da APA.
A estruturação do trabalho da Secretaria Executiva contribuiu para que este órgão
pudesse ampliar seu poder de ação, passando a intermediar a relação dos moradores
com o CG. A condição de não remuneração do cargo de Secretário Executivo favorece a
escolha de funcionários da prefeitura, pois as atribuições do cargo demandam bastante
dedicação. Assim, mesmo sendo votado pela plenária, é pequena a margem de escolha
dos conselheiros. Desta forma, esta condição permite que o Secretário Executivo seja
percebido pela população, e até mesmo pelos próprios conselheiros locais, como um
entreposto da secretaria de meio ambiente.
Com o passar do tempo, as reuniões do CG passaram a ser palco da expressão de
uma série de conflitos, alguns deles insuflados pelos efeitos da fiscalização, mas muitos
deles, apesar desta motivação última, traduzindo e ressignificando disputas pré-
existentes. O caso de Julio Bill mostra como remanescentes da associação de produtores
e trabalhadores rurais tentaram se reorganizar, unindo-se ao fazendeiro revoltado com a
atuação do CG, para manter o discurso em favor do povo do Lima. O caso do Vale das
Águas revela a importância da aliança entre a secretaria de meio ambiente e o Grupo
Germinal para a continuidade das medidas relacionadas à APA, passado o momento de
união de diversos grupos pela criação da UC.
Parece ter havido, de fato, um aumento do poder do Conselho Gestor sobre as
questões relativas à APA, concretizando-se os desejos dos ambientalistas locais de que
o conselho viesse a ter maior poder de deliberação que os secretários e até mesmo que o
prefeito. Ao mesmo tempo, a exigência da presença de diversos integrantes do governo
municipal no distrito, bimestralmente, colocou o distrito de Lima sob a atenção da
Prefeitura. As instituições municipais que integram o CG, mal ou bem, têm que prestar
contas das medidas pensadas para os problemas e que eles se comprometem a tomar.
Por outro lado, é um espaço para o aumento da visibilidade política de alguns
secretários e funcionários de empresas municipais.
O Conselho Gestor se tornou, também, uma instância de poder local, capaz de
interferir em toda sorte de atividades realizadas no território do distrito, que pudessem
ser interpretadas como causadoras de impacto ao meio ambiente. Desse modo, supõe-se,
187
também, um crescimento do poder da secretaria de meio ambiente sobre outras esferas
do governo municipal, pelo menos no que tange às questões da APA. Pois o poder de
regular as ações de outros órgãos municipais no território da APA acabaria, então,
cabendo a ela.
Procurando relativizar o paradigma da prioridade da preservação ambiental
sobre outras questões, e observando o processo pelo qual são selecionadas as atividades
que serão tratadas como causadoras de impacto ambiental, poder-se-ia pensar que o
Conselho Gestor se tornou uma instância de poder local que viabiliza a ambientalização
de conflitos, com base na sua autoridade para escolher e priorizar os “problemas
ambientais” do distrito do Lima.
Considerando-se a vasta legislação aplicável àquele território, não sob a
forma de APA, mas incluindo a área de uma RPPN, diversas áreas classificadas como
APPs, além da legislação urbanística municipal e diversas outras, poder-se-ia supor que
nenhum morador ou proprietário local está isento de incorrer em algum tipo de ação que
poderia ser interpretada como lesiva ao meio ambiente de cortar o galho de uma
árvore a consertar um encanamento. Assim sendo, a escolha de quem será acusado e de
quais serão as atividades condenadas pode obedecer a critérios políticos.
Esta interpretação coincide, em muitos pontos, com as interpretações da
população em geral sobre o processo de implementação da APA, captadas em
entrevistas ou nas ruas, em conversas informais, na observação do quotidiano local.
Para muitos moradores, a APA significou o “empoderamento” de um determinado grupo
de pessoas, que se tornou capaz de interferir em toda sorte de atividades realizadas no
distrito do Lima, desde grandes empreendimentos até as ações consideradas mais
corriqueiras e quotidianas. Neste sentido, a denúncia de crime ambiental ter-se-ia
tornado uma arma em disputas pessoais e/ou políticas. E as reuniões plerias do
Conselho Gestor, um palco para a encenação pública destas disputas.
Ao mesmo tempo, a autoridade do Conselho Gestor aparentemente repousa
sobre argumentações “técnicas”. Ou seja, posicionamentos críticos são aceitos até o
limite de não colocarem em questão o paradigma da conservação ambiental. É
permitido discutir o que será tratado como agressão ambiental, como questões técnicas,
mas não se pode pôr em dúvida o postulado da prioridade da preservação da natureza
acima de todos os interesses. Dessa forma, a competição entre diferentes projetos para o
espaço e os recursos e a disputa entre diferentes formas de compreensão e previsão dos
188
mecanismos naturais, apoiadas em conhecimentos construídos de maneira diversa, são
tratadas no âmbito das reuniões do CG como questões “técnicas”.
Além disso, é possível inferir uma limitação do poder supostamente atribuído às
organizações da “sociedade civil por membros do Conselho Gestor, pois as ações
seriam limitadas àquelas que obtêm apoio material do governo municipal. Outra
limitação ao desempenho destas instituições no âmbito do Conselho Gestor é a
suposição de que muitas de suas lideranças possam de fato prestar serviços regulares ou
ocasionais à Prefeitura, que funcionam como os demais empregos concedidos como
beneces políticas. Esta dependência em relação à esfera municipal imporia limites à
capacidade destas instituições em aprofundar questionamentos da população.
Por outro lado, não resta dúvida de que a implementação da “gestão
participativa” na APA e a formação do Conselho Gestor constituíram-se num forte
estímulo à organização de grupos de cidadãos em organizações e associações.
Se, no momento da criação da APA, as decisões primordiais que passaram a
reger o território dali para frente foram tomadas pelos ambientalistas locais junto com a
Prefeitura, com o tempo, no entanto, foi havendo um incremento da organização local e
surgiram grupos de associações locais como nas regiões da Nascente e da Barra do
Lima. Ainda predominam as organizações encabeçadas por neo-rurais, dotados de
maior preparo para adentrar os fóruns da APA, mas despontam outras possibilidades
de organização da população local. E, ainda assim, houve um estímulo para que neo-
rurais, favoráveis à preservação ambiental, saíssem de soluções individuais para
preservar a natureza (hortas orgânicas, preservação de matas ciliares em suas
propriedades, etc.) para organizações coletivas.
Não há, no entanto, uma organização que represente o interesse dos camponeses,
tampouco que expresse a totalidade de suas insatisfações. Ou o povo adere aos
fazendeiros, numa tradição de organização política vertical, ou vai se adequando às
regras ambientais e “comendo pelas bordas” os benefícios, empregando jovens em
projetos ambientais, recebendo mudas para reflorestamento, recebendo auxílio para suas
construções.
Sob um ponto de vista mais geral, vão, aos poucos, sendo estabelecidos critérios
para a preservação de determinados recursos naturais escolhidos como prioritários
principalmente as águas – e vai sendo promovida uma lenta adequação das atividades da
população a estes critérios. Contudo, esta adequação está associada, freqüentemente, a
uma elitização do acesso aos recursos naturais e aos proventos do turismo, pois vão
189
sendo excluídos os empreendedores mais pobres, que não têm condições de atender a
todas as exigências.
Finalmente, é preciso não perder de vista que categorias como “neo-rurais”,
“ambientalistas locais”, e tantas outras mencionadas ao longo deste trabalho, são usadas
para organizar a compreensão dos acontecimentos em curso no distrito do Lima, na
medida em que contribuem para clarificar o posicionamento e as motivações de diversas
pessoas que, em determinados momentos, acionam determinadas características em
comum para perseguir seus objetivos. Assim sendo, o conjunto de pessoas designado
por estas categorias não é estanque. O significado de cada um destes termos deve ser
analisado levando-se em conta o contexto específico em que são acionados e as
categorias em relação às quais são comparados. Enfim, estas categorias devem ser
tratadas como construções mentais, instrumentos que têm por finalidade lançar luz
sobre aspectos que se pretende destacar em meio a um emaranhado de múltiplos e
complexos pertencimentos e afiliações que estão em jogo quando são analisadas as
relações sociais.
190
REFERÊNCIAS
ACSELRAD, Henri (org.) – Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2004.
.
ADHEMAR, MINEIRO, MOTTA FILHO, A. et alii. Nove Municípios
Fluminenses na Ótica da Democracia. Rio de Janeiro: IBASE, 1993.
BAILEY, Frederic G. Gifts and Poison, In: Gifts and Poison: The Politics of
Reputation. Oxford: Basil Blackwell, 1971.
BARRETO FILHO, Henyo – Notas para a história de um artefato sócio-cultural:
O Parque Nacional do Jaú, In: Terra das Águas Revista de Estudos
Amazônicos, 1999. n 1, p. 53-76.
BOURDIEU, Pierre – Décrire et Prescrire. Note sur les conditions de possibilité
et les limites de l´eficacité politique, In: Actes de la Recherche en Sciences
Sociales. 1988. N 38, maio, p. 69-74. Paris: Maison des sciences de l´homme.
______. Efeitos de Lugar, In: A Miséria do Mundo. Petrópolis: Editora Vozes,
1997.
CANDIDO, Antonio. Os Parceiros do Rio Bonito. 9. ed. São Paulo: Editora 34
Ltda, 2001.
CARNEIRO, Maria José. Agricultores familiares e pluriatividade: tipologias e
políticas, In: Mundo Rural e Tempo Presente. 1999. Rio de Janeiro: Mauad.
______. Descendentes de suíços e alemães de Nova Friburgo: de colonos à
jardineiros da natureza, In: Histórias de Imigrantes e Imigração no Rio de
Janeiro. GOMES, Ângela de Castro. 2000
CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
CHAMBOREDON, Jean-Claude. Les usages urbains de l´espace rural: du
moyen de production au lieu de récréation, In: Revue Française de Sociologie.
XXI – 1. 1980. Paris: Julliard.
191
COMERFORD, John Cunha. “Como uma família”: Sociabilidade, reputações e
territórios de parentesco na construção do sindicalismo rural na Zona da Mata
de Minas Gerais. UFRJ. PPGAS. Museu Nacional. 2003.
COZZOLINO, Luis Felipe Freire. Unidades de Conservação e os Processos de
Governança Local: o caso da APA do Sana (Macaé, RJ). Rio de Janeiro,
2005. 156 p. Dissertação de Mestrado - EICOS – IP – UFRJ.
CROLL, Elisabeth & PARKIN, David. Cultural understandings of the
environment, In: CROLL, E. & PARKIN, D. Bush Base, Forest Farm –
Culture, environment and development. London and New York: Routledge,
1992.
DEAN, Warren. A Ferro e Fogo: a História e a Devastação da Mata
Atlântica Brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
DIEGUES, Antonio Carlos. Populações Tradicionais em Unidades de
Conservação: O Mito Moderno da Natureza Intocada, In: VIEIRA, Paulo Freire;
MAIMON, Dália (orgs.). As Ciências Sociais e a Questão Ambiental: rumo à
interdisciplinaridade. Rio de Janeiro: APED/NAEA/UFPa. 1993.
______. As populações humanas em áreas naturais protegidas de mata atlântica,
In: Documentos do ISA, n. 1, São Paulo. 1996.
DOUGLAS, Mary & WILDAVSKY, Aaron. Risk and Culture – An essay on
the selection of technological and environmental dangers. Conclusion.
University of California Press. Berkeley/Los Angeles/London. 1982.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 1. ed. Cap. XII. Rio de Janeiro:
Edições Graal Ltda, 1996.
GALANO, Ana Maria. Cultivar a natureza: políticas agroambientais, In:
Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, UFRRJ. 1999. abril, n 12, p.
169-177.
GALPIM, Charles J.; SOROKIN, Pitirim A,, ZIMMERMAN, C. Diferenças
fundamentais entre o mundo rural e o urbano, In: MARTINS, José de Souza
(org.). Introdução Crítica à Sociologia Rural. Ed. Hucitec. São Paulo, 1981.
GEERTZ, Clifford. Form and variation in Balinese village structure, In:
POTTER et. al.: Peasant Society: A Reader. Boston: Little Brown, 1967. p.
255-278.
GIULIANI, Gian Mario. Neo-Ruralismo: o novo estilo dos velhos modelos, In:
Revista Brasileira de Ciências Sociais, 1990. nº 14, ano 5, outubro. São Paulo,
SP: Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais.
______. A problemática da regionalização agrária no Rio de Janeiro:
Observações Metodológicas, In: Campo Aberto, o Rural no Estado do Rio de
192
Janeiro. Carneiro, Maria José; Giuliani, Gian Mario; Medeiros, Leonilde
Sérvulo; Ribeiro, Ana Maria Motta (orgs.), 1998. Rio de Janeiro: Contra Capa.
HEREDIA, Beatriz & PALMEIRA, Moacir. Gestão Municipal e Formas de
Participação Popular. Projeto de Pesquisa. Nuap/PPGAS/Museu Nacional.
1999.
INGOLD, Tim. Globes and spheres: the topology of environmentalism, In:
Milton, Kay (ed.), Environmentalism: the view from Anthropology, ASA
Monographs n 32, Routledge, London, 1993. p. 31-42.
JOLAS, Tina, VERDIER, Ivonne & ZONABEND, Françoise. Parler Famille. L
´Homme, 1970. 10(3): 5-26.
KERTZER, David - Ritual, Politics and Power. Yale University Press, New
Haven, caps. 1 e 2, pp.1-34. 1988.
LOBÃO, Ronaldo. Cosmologias Políticas do Neo-Colonialismo: como uma
política pública pode se transformar em uma Política do Ressentimento.
Brasília, 2006. 313 p. Tese de Doutorado - Instituto de Ciências Sociais,
Universidade de Brasília.
LOPES, José Sérgio et alii – 1999 – “Audiência Pública em Angra dos Reis:
debate em torno do licenciamento de uma usina nuclear”, mimeo.
______. Espaços de Negociação: Empresas, Poder Público e Sociedade. Rio de
Janeiro, PPGAS, mimeo, s/d.
______. (coord.) A Ambientalização dos Conflitos Sociais. Rio de Janeiro:
Relume Dumará: Núcleo de Antropologia da Política/UFRJ, 2004.
MARQUES, Ana Claudia. Intrigas e Questões. Vingança de Família no
Sertão Pernambucano. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
MARQUES, Paulo Eduardo Moruzzi & FLEXOR, Georges. Conselhos
municipais e políticas públicas de desenvolvimento rural: indagações em torno
dos papéis sociais e ambientais da agricultura - Encontro Anual da ANPOCS.
Caxambu, 2006.
MELUCCI, Alberto. Juventude, Tempo e Movimentos Sociais, In: Revista
Brasileira de Educação. ANPED, 1997.
MENEZES, Thereza Cristina Cardoso. Da Cana ao Caos: Usos Sociais do
Meio Ambiente no Litoral-Sul Pernambucano em Perspectiva Comparada.
Rio de Janeiro, 2004. 276 p. Tese de Doutorado - PPGAS, Museu Nacional,
UFRJ.
MILTON, Kay. Introduction: Environmentalism and anthropology, In:
MILTON, Kay (ed.), Environmentalism: the view from Anthropology, ASA
Monographs n 32, Routledge, London, 1993. p. 1-18.
193
MIRANDA, Napoleão. Sociedade Civil e Cidadania: a Experiência do Viva
Rio, Rio de Janeiro, 1998. Tese de Doutorado em Sociologia - IUPERJ.
MORIN, Edgard. Por um pensamento ecologizado, In: Faces do Trópico
Úmido – Conceitos e questões sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente ,
Editora Cejup. 1996.
PALMEIRA, Moacir. Política, Facções e Voto, In: Antropologia, Voto e
Representação Política. PALMEIRA, Moacir & GOLDMAN, Marcio
(coords.). Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria. 1996.
PARESCHI, Ana Carolina. Desenvolvimento Sustentável e Pequenos
Projetos: entre o Projetismo, a Ideologia e as Dinâmicas Sociais. Brasília,
2002. 362 p. Tese de Doutorado - PPGAS – UNB.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O Campesinato Brasileiro: Ensaios
sobre Civilização e Grupos Rústicos no Brasil. 2. ed. Editora Vozes Ltda.
Petrópolis, 1976.
ROSE, Isabel Santana de. Repensando as Fronteiras entre Espiritualidade e
Terapia: Reflexões sobre a cura no Santo Daime. Campos, 2006. 7(1): 35-52.
SARDENBERG, Osmar. O Meu Distrito, mimeo. Centro de Memória Argêo
Victor Hugo do Brasil, Macaé, RJ. 1960.
SEABRA, Lilia dos Santos. Monitoramento Participativo do Turismo
Desejável – Proposta metodológica para os estudos de capacidade de
suporte turístico – Sana/Macaé/RJ. Rio de Janeiro, 2005. 261 p. Tese de
Doutorado - Programa de Pós-Graduação em Geografia, UFRJ.
SHANIN, Teodor. A definição de camponês: conceituações e desconceituações
– o velho e o novo em uma discussão marxista, In: Estudos CEBRAP, Editora
Vozes. Petrópolis – RJ, 1980. p. 41-80.
THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural – Mudanças de atitude em
relação às plantas e aos animais. São Paulo:Companhia das Letras. 1996. Cap.
I e cap. II.
TONNIES, Ferdinand. The Summing Up, In: Community and Society. New
york: Harper & Row, 1957 [1931] p. 237-259. VIVA RIO. Plano de Manejo da
APA do Sana. Rio de Janeiro: Mimeo, 2003. 123p.
194
195
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo