Dessa forma, o antigamente acionado nos discursos pode estar remetido a
diferentes momentos passados, em oposição a um agora que pode estar definido como
alguma transformação específica – por exemplo, o estabelecimento de sanções a
determinadas técnicas agrícolas
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– ou como um conjunto de mudanças interpretadas
como interdependentes, como o estabelecimento de novos moradores e o crescimento
do turismo
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. Do mesmo modo, dependendo do contexto, gente de fora tanto pode
designar turistas ocasionais que promovem desordem nos feriados
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quanto moradores
de origem urbana estabelecidos no distrito há mais de trinta anos
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.
Diante disto, este capítulo tem o objetivo de contribuir para a compreensão do
significado das categorias acionadas pela população para interpretar as mudanças nas
relações sociais a partir da transformação do distrito do Lima em APA. Com este
escopo, faço uma sistematização das relações sociais na localidade num passado
relativamente recente, cerca de um século, que remonta à geração dos pais dos
moradores mais idosos
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. Ou seja, desde as fazendas de café no início do século XX,
passando pelo abandono dos cafezais em escala comercial nos anos 60, e o crescimento
da produção de banana e da pecuária. Em seguida, trato da fixação de novos moradores,
de origem urbana, na localidade do Lima, a partir dos anos 70. Foi entre estes novos
componentes da população local que surgiram e ganharam força as iniciativas em prol
da preservação do meio ambiente, que culminaram na criação da APA.
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No depoimento de Zaqueu, trabalhador diarista de 39 anos, ele divide o tempo em antes e depois das
restrições ambientais e fala das implicações desta mudança para o povo: “Acabou o lugar da gente.
Antigamente, podia produzir alguma coisa, agora não pode, não pode desmatar. O povo vai comer mato?
Se desmatar, você é preso.” (Entrevista 2004)
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No depoimento de Sandra, dona de casa de 41 anos, a clivagem temporal está relacionada à presença de
novos moradores e freqüentadores do distrito do Lima: “O Lima, hoje, tem mais gente desconhecida do
que do lugar. De primeiro, você conhecia todo mundo. Hoje, não conhece mais ninguém. O povo é
culpado porque abriu mão das coisas, vendendo e alugando – quase todos venderam terra. Com isso, vem
muita gente nem sempre boa. Eu moro distante, não me incomoda, mas eu sinto. Nem morar, eu sinto
mais no feriado.” Na fala de Sandra, ao contrário da fala de Zaqueu citada anteriormente, o povo aparece
como culpado pela mudança (neste caso, o estabelecimento de novos moradores), e não como uma vítima
vulnerável às restrições ambientais.
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No depoimento de Esther, pequena produtora de 55 anos, ela qualifica os turistas ocasionais como
gente de fora: [Pesquisadora: “O que a senhora acha do turismo no Lima?”] “Da pior qualidade, só dá
fumador de maconha. Isso é o que eu vi no Lima até hoje. Há trinta anos não era isso, a gente conhecia
todo mundo. Hoje, só tem gente de fora.” Esther estabelece uma clivagem temporal com a chegada do
turismo.
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Como na fala de Dario, trabalhador rural diarista de 22 anos, que qualifica como gente de fora alguns
moradores do distrito envolvidos com a implementação da APA: “Acho que funcionaria, mas teria que ter
uma reunião pra fazer um acordo com os moradores do lugar. Tem muita gente de fora querendo mandar,
de olho é nas verbas. A APA, esse projeto, vem de muito tempo. Deviam continuar a limpeza da
cachoeira, que eles já fazem.” (Entrevista Dario 2003)
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A sistematização das relações sociais no passado, em relação às quais ocorre a mudança de que tratam
os variados discursos de moradores, apesar de ter levado em conta documentos históricos, dados oficiais e
a literatura pertinente (Antonio Candido 2001, Liana Cardoso 1985), está baseada, principalmente, nos
relatos de moradores a respeito de seu próprio passado e de seus ancestrais.
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