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Universidade do Estado de Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação em Educação
Dissertação de Mestrado
CONTINUÍSMO PEDAGÓGICO E REFORMA EDUCACIONAL...
UMA LEITURA DELEUZEANA.
Rogier da Silva Viegas
Orientador: Walter Omar Kohan
Rio de Janeiro
2006
Rogier da Silva Viegas
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CONTINUÍSMO PEDAGÓGICO E REFORMA EDUCACIONAL...
UMA LEITURA DELEUZEANA.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Educação da Universidade do Estado do
Rio do Janeiro como requisito parcial para a obtenção
do grau de Mestre em Educação.
Orientador: Walter Omar Kohan
Rio de Janeiro
2006
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Viegas, Rogier da Silva.
Continuísmo Pedagógico e Reforma Educacional... Uma Leitura
Deleuzeana / Rogier da Silva Viegas.
133 f.
Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Programa de Pós-graduação em Educação. Rio de Janeiro, 2006.
Área de Concentração: Filosofia, Filosofia da Educação,
Filosofia Política, Fundamentos da Educação, Pedagogia.
Orientador: Walter Omar Kohan
4
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE RIO DE JANEIRO
Centro de Educação e Humanidades
Faculdade de Educação
Programa de Pós-graduação em Educação
Dissertação
Continuísmo Pedagógico e Reforma Educacional...
Uma Leitura Deleuzeana.
Elaborada por:
ROGIER DA SILVA VIEGAS
Aprovada pela Banca Examinadora
Rio de Janeiro, 28 de Julho de 2006
Prof. Dr. Walter Omar Kohan
Prof.a Dra. Inês Barbosa de Oliveira
Prof. Dr. Filipe Ceppas
5
Agradecemos aos amigos e amigas que contribuíram,
pela convivência acadêmica,
para a realização deste trabalho.
Para Helena.
6
Resumo
O tema de nossa dissertação é o continuísmo pedagógico que perpassa as
reformas educacionais promovidas pelos Estados modernos. Procuramos sustentar a tese de
que uma reforma educacional representa a continuidade de uma pedagogia dominante e que
sua função é apenas a de realizar modificações pontuais, variações específicas dentro de um
mesmo modelo de ensino. Dividimos nosso trabalho em quatro capítulos. No primeiro
capítulo, definimos o conceito de Imagem dogmática do pensamento, relacionando-o à
pedagogia dominante, ao Saber e ao Ensino. No segundo, apontamos os vínculos e as
relações entre o Estado, a forma-Estado e a Educação e entre essas figuras e a prática de
uma ciência gia e a formação de uma subjetividade geral, mediante o ensino de um Saber
oficial, cujas relações compõem o processo de produção do Sujeito e do Mundo e são
responsáveis, por conseguinte, pelo abandono da relação entre o pensamento puro e a terra.
no terceiro capítulo, descrevemos os pontos de dominância de um regime significante, a
estrutura e a organização arborescentes desses pontos, de que o centro é ocupado pela
Imagem dogmática de pensamento, a Imagem-Árvore, procurando apontar, ao mesmo
tempo, as linhas de fuga potenciais, rizomáticas, que lançariam o pensamento à superfície
da terra, sobre o plano de imanência, e para além da dominância do regime significante. No
quarto capítulo, recolocamos o problema do pensamento, “o que é pensar?”, cuja
construção de uma resposta redefine a prática do ensino e da aprendizagem; retomamos o
problema do pensamento à procura de buracos nas segmentaridades duras da Imagem
arborescente, os quais sejam linhas de fuga e limiar para a construção de uma
aprendizagem sem imagem, uma aprendizagem voltada para o pensamento puro, imanente-
criativo e que situe o pensamento num fora, segundo uma pedagogia menor. Por fim,
concluímos nossa jornada com as últimas palavras da conferência do Professor Challenger,
um ser de dupla articulação e criador, segundo ele, de uma nova disciplina, um novo saber.
Palavras-chave: Pensamento, Educação, Ensino, Aprendizagem, Reforma,
Estado, Deleuze, Guatarri.
7
Abstract
The subject of our dissertation is pedagogical continuity that permeates
educational reforms promoted by modern States.
We look to support the following thesis: an educational reform is the continuity
of a dominant pedagogy and its function is only to make punctual modifications, specific
variations in the same educational model.
This work has four chapters. In the first one we define the concept of dogmatic
image of thinking, pointing relations to the dominant pedagogy, to knowledge and teaching.
In the second chapter we point the relations between State, State-form and Education; and
between these figures, the practice of an official science and the formation of a general
subjectivity through teaching of an official knowledge. These relations form the process of
production of Subject and World and are responsible by the abandon of the relation
between pure thought and earth.
The third chapter describes the dominancy points of a significance regime, the
structure and the tree-organization of these points, whose center is occupied by the
dogmatic image of thought, the Tree-Image. It looks to point also to the potential escape
lines, rizomatic, that throw the thought to earth’s surface, over immanence plan, and
beyond significance’s regime dominance.
In the fourth chapter, we put the problem of thought, “what is thinking?The
answer to this question redefines the practice of teaching and learning. We discuss the
problem of thought looking for holes in the hard segmentation of the Tree-Image. These
holes should be escape lines and threshold for the construction of learning without images,
turned to pure thought, creative-immanent, a learning that situates thought in an out, as a
minor pedagogy.
Finally, we end our journey with the last words of Teacher Challenger’s
conference, a being with double articulation and creator of a new discipline, a new
knowledge.
Key-words: Thought, Education, Teaching, Learning, Reform, State, Deleuze, Guattarri
8
“As crianças são prisioneiros políticos”.
Jean-Luc Godard
In G. Deleuze. Conversações, p. 55.
9
Sumário
Apresentação ....................................................................................................................... 10
Capítulo I. Imagem dogmática do pensamento: por que somos
o que somos? ................................................................................................... 16
Capítulo II. Aparelho de Estado e regime significante ....................................................... 44
Capítulo III. Arborescência e rizoma: centro de significância e linhas de fuga:
variantes e invariantes do regime significante ............................................ 70
Capítulo IV. A relação entre o aprender e o pensar. Pensamento
e aprendizagem: deixar de ser o que se é ..................................................... 97
Conclusão .......................................................................................................................... 127
Referências bibliográficas ..................................................................................................131
10
Apresentação
O tema de nossa dissertação é o continuísmo pedagógico presente nas reformas
educacionais promovidas pelos Estados modernos. Procuramos sustentar a tese de que uma
reforma educacional representa a continuidade de uma pedagogia dominante e que sua
função é realizar modificações pontuais, variações específicas dentro de um mesmo modelo
de ensino. Essas variações ampliam e expandem a mesma pedagogia, universalizando-a,
estendendo seus círculos e tornando-a ainda mais dominante. As alterações advindas são
apenas secundárias, derivações que não afetam o núcleo paradigmático da pedagogia
dominante, isto é, seu centro de significância e de subjetivação. Não atingem a forma como
estão organizados e hierarquizados o conhecimento e o Saber, a forma como se organizam
o espaço e o tempo da escola, a forma como se estabelecem as relações de ensino-
aprendizagem, professor e aluno, mestre e aprendiz, assim como não afetam as formas
como são estruturados e legitimados os discursos e as práticas educacionais. São formas
que perfazem um conjunto, compreendendo elementos teórico-práticos de uma pedagogia
dominante e uma imagem de pensamento. Esses elementos definem o caráter político-
pedagógico do ensino, uma política educacional, como políticas de Estado. Uma reforma
educacional tem, portanto, dois objetivos complementares: identificar as alterações que
necessitam ser implementadas e reafirmar o mesmo centro de significância e o mesmo
modo de subjetivação. Para tanto, uma reforma procura adaptar, adequar o modelo de
ensino às exigências do tempo, da história, dos movimentos sócio-econômicos, das
migrações normativas globais. Sendo a Educação um ponto estratégico da interiorização da
forma-Estado e da política de Estado, é que se deve classificar as sociedades modernas
como sociedades educacionais, atribuindo a esse termo o sentido da universalização do
11
Ensino e do Saber oficiais do Estado, como política de produção do sujeito e de uma
cidadania conformes. Assim, uma reforma educacional não produz nada de
verdadeiramente novo, simplesmente deve reproduzir e adaptar segundo a perspectiva do
próprio Saber. É uma estratégia, um programa que realiza um movimento circular, uma
espécie de retroalimentação necessária ao combate e à dissipação da entropia interna do
sistema sócio-político-econômico. O ideal é interiorizar nos novos indivíduos uma
subjetividade geral conforme, processo de produção de significância e de subjetivação,
núcleo paradigmático da Educação. Nas sociedades modernas, mais do que nunca, educar é
uma atividade política precípua. A pedagogia dominante tem essa função: formar sujeitos,
cidadãos, homens que, por serem o que são, sejam capazes de reconhecer a legitimidade e a
legalidade das relações sócio-políticas próprias aos Estados-nação, reproduzindo as mesmas
relações, habitantes de um mesmo Mundo e dotados das mesmas faculdades e estrutura
psíquica. Enfim, a pedagogia dominante torna possível a conservação das relações
necessárias ao desenvolvimento da forma de organização do poder nas sociedades
modernas capitalistas, sendo, pois, uma instituição imprescindível ao funcionamento dessa
sociedade. Nesse sentido, ocupa o centro de significância e de subjetivação ou o núcleo
paradigmático da Educação.
Assim, o centro de significância da Educação institui condutas e práticas,
produz e reproduz discursos legítimos e legitimadores e reage, em sua prática cotidiana e
sua estruturação teórico-institucional, a renovações pedagógicas que lhe sejam contrárias
ou que estabeleçam caminhos que apontem para a transformação real e para a perda de
hegemonia da pedagogia dominante.
São os indivíduos ou sujeitos que agem e reagem. É que o centro de
significância opera e faz operar um processo de subjetivação que produz uma subjetividade
12
conforme. Desse modo, as tentativas de transformação do pedagógico encontram na
sedentarização subjetiva a barreira que repele, dificulta e desobriga a criação de formas e
relações políticas educacionais desviantes, ao mesmo tempo em que reproduz e expande a
mesma subjetividade geral, ciclo gerativo recorrente. E, quando alterações acontecem, são
capturadas pelo Estado para logo ser condicionadas a variações do núcleo paradigmático. O
centro de significância e o modo de subjetivação permanecem pois, em si mesmos,
invariantes. Reformas educacionais atuam como formas de captura e têm a finalidade de
modificar o ponto de subjetivação, segundo a constituição de um ideal de formação
pedagógica. São elas um modo de reorganização do poder.
Enfim, pretendemos mostrar que um continuísmo pedagógico perpassa as
reformas educacionais e promove a reprodução de um modelo educacional e de Ensino,
segundo o interesse do aparelho de Estado, processo que não prescinde da legitimação e da
organização hierárquica do conhecimento e do Saber, bem como da autoridade cognitiva,
sob a dominância de uma ciência régia e da Imagem dogmática de pensamento, essa
herdada da filosofia clássica.
Centro de significância e modo de subjetivação são conceitos criados e
desenvolvidos por Gilles Deleuze e Félix Guattari em Mil platôs. Deleuze e Guattari não
são pensadores que se dedicaram a temas e a questões especificas da Educação, não são
especialistas em Educação, nem filósofos da Educação nem pedagogos. Entretanto, os
problemas que apresentam atravessam secamente o território educacional e pedagógico, de
maneira a apontar uma linha de pesquisa e de ação prático-teórica, cuja força impele a um
movimento para fora do círculo de reprodução da pedagogia dominante. Os conceitos de
centro de significância e de subjetivação diagramam a trama da Educação e a sua relação
13
com uma organização de poder nas sociedades modernas. A escolha desses pensadores e a
leitura de suas principais obras moveram-se pela força da linha de pesquisa e conceitos por
eles criados. Pensamos a Educação, o tema e a tese proposta no interior do pensamento de
Deleuze-Guattari. Nossa dissertação é, antes de tudo, um esforço de acompanhar e de
desdobrar o pensamento desses pensadores, estendendo-o através de nossa questão,
encontro que a fez também deslizar. Trabalho de deslocamento conceitual e de aplicação
teórica que, segundo Deleuze, nunca é de semelhança, mas de revezamentos: revezamento
de uma teoria a outra, de uma prática a outra. Como uma caixa de ferramentas, uma teoria
não é o significante: “é preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma”.
São, pois, deslocamentos conceituais e não, reproduções de um modelo que foi apropriado
para ser fidedignamente aplicado sobre algo. Corremos o risco de deslocamentos mais
longos, vacilantes, impróprios ou forçados; não sabemos, contudo, no momento, como
julgá-los. Seriam eles comuns à própria aprendizagem sem imagem? Afinal, “nunca se sabe
de antemão como alguém vai aprender (...) não há método para encontrar tesouros nem para
aprender”.
1
É claro, o encontro com a obra desses pensadores, o sentido do encontro
decifrar-se-á no tempo, através das linhas do tempo. A aprendizagem e não o Ensino
oficial é uma trama de linhas e traços infinitamente tecidos e entrelaçados no tempo.
Nomadismo de pensamento: instalar-se num território por necessidade e ser movido, desde
seu interior, por uma necessidade que vem do fora... Aprender não é viajar, nem reproduzir
um modelo, não é um fazer como. O Ensino oficial pressupõe, ao contrário, o programador
inteligente e o turista itinerante, pressupõe um plano de pontos bem traçados e antecipados
pelo Sujeito, num espaço métrico, quadricular, num tempo cronológico e numa história
1
G. Deleuze, Diferença e repetição, p. 270.ze
14
conhecida e reconhecida, roteiro com pontos de partida e chegada bem definidos, toda uma
paisagem e os rostos que nela circulam. Desse Ensino, são abrigos o reconhecimento e a
recognição, assim como o senso comum e o bom senso. Formas do previsível. Por sua vez,
aprender é uma ruptura, uma fissura entre as coisas, no sujeito, no Eu, é deixar de ser o que
se é, movimento e coerção do fora.
Identifiquemos já um elo, um elo entre a tese inicial e Deleuze-Guattari: há uma
Imagem do pensamento em toda política educacional, em toda pedagogia dominante, em
todo Ensino, imagem que abriga pressupostos, postulados, idéias, conceitos gerais e valores
estabelecidos, uma estética. Tais pressupostos compõem o senso comum compartilhado
entre subjetividades produzidas pela interiorização da Imagem, tornando-as gerais e afins.
Interiorizar a Imagem é realizar um processo de individuação e de subjetivação de um
singular qualquer e inseri-lo numa paisagem, esculpir-lhe um rosto, dar-lhe um tempo e um
roteiro. Seria forçoso afirmar que o objetivo da política educacional promovida pelo Estado
é a produção de subjetividades gerais e afins como condição para manter e expandir sua
homogeneidade espaço-temporal, sua hegemonia política, a soberania? Seria prematuro
perceber a reprodução dessas subjetividades como constituinte da sujeição voluntária de
indivíduos, tornados sujeitos humanos? Sob o controle, o domínio de quem? Ao contrário,
é de uma raça que falamos, diriam Deleuze e Guattari, de uma raça menor.
Educação, Ensino, política e reforma educacional; Estado e organização de
poder; aprendizagem e filosofia... são sendas de uma busca decifratória que é, ao mesmo
tempo, ela mesma, um processo de aprendizagem. Longe de pretender ser uma dissertação
acadêmica e, muito menos, científica, nossa pesquisa será, quando muito, uma ação
política, uma ferramenta e uma peça de combate.
15
Desenvolvemos o nosso trabalho em quatro capítulos. No primeiro, definimos o
conceito de Imagem dogmática do pensamento, relacionando-o ao Saber, ao Ensino e à
pedagogia dominante. No segundo, apontamos os vínculos e as relações entre o Estado, a
forma-Estado e a Educação e entre essas figuras e a prática de uma ciência régia e a
formação de uma subjetividade geral, mediante o ensino de um Saber oficial, considerando
essas relações como o processo de produção do Sujeito e do Mundo e, por conseguinte,
como responsável pelo abandono da relação entre o pensamento puro, imanente, e a terra.
no terceiro capítulo, descrevemos os pontos de dominância de um regime significante, a
estrutura e a organização arborescentes desses pontos, cujo centro é ocupado pela Imagem
dogmática de pensamento, a Imagem-Árvore, procurando apontar, ao mesmo tempo, as
linhas de fuga potenciais, rizomáticas, que conduziriam o pensamento para além do regime
significante, retomar a terra, a imanência do pensamento. No quarto capítulo, recolocamos
o problema do pensamento, “o que é pensar?”: a resposta a essa questão define as práticas
de ensino e de aprendizagem; a retomamos, fuçando a terra à procura de buracos no
pensamento que sejam linhas de fuga e limiar para a construção de uma aprendizagem sem
imagem, voltada para o pensamento puro, imanente-criativo: uma aprendizagem que situe o
pensamento num fora, segundo uma pedagogia menor, pedagogia do sentido, da
singularidade ou da experimentação, que potencialize o pensamento criativo, numa nova
estética de aprendizagem, fora da pedagogia maior ou dominante. Concluímos citando a
parte final da conferência proferida pelo Professor Challenger, um ser duplamente
articulado.
16
Capítulo I
Imagem Dogmática do Pensamento:
por que somos o que somos?
17
O que significa pensar, orientar-se no pensamento? O que é pensar de forma
correta e verdadeira? Como pensar conforme a “forma” do verdadeiro? A tais questões é o
próprio pensamento que responde; responde com uma imagem, imagem por ele mesmo
inventada. Sobre essa imagem, o pensamento se move, se orienta e se define. Pensar
significaria então situar-se no interior de uma “imagem do pensamento”
2
.
Estende-se um círculo entre imagem e pensamento, onde a imagem erigida
passa a significar o próprio ato de pensar. Ao efetivar-se, o pensamento reproduz então, em
seus atos, variações da imagem que guarda de si mesmo, é um prolongar-se da imagem. E,
exatamente na medida de um pensamento que se move e situa-se sempre e tão-somente na
extensão da imagem que se e guarda de si mesmo, é que se afirma: “todo mundo sabe o
que é pensar”. A imagem é a condição que o pensamento se dá para pensar: seu
pressuposto. Não sujeito pensante que, como tal e por direito, não saiba o que é
pensar, como pensar e o que deve ser pensado. O pensamento situa-se assim, de saída, no
interior da imagem que o orienta e o define, tomando-a como ponto de partida; dentro dela,
instaurado, encontra-se o sujeito. Além dessa imagem ou no seu interior, somente um
fora, um impensável.
O pressuposto na imagem pelo pensamento apresenta-se-lhe como um dogma e
constitui a “imagem dogmática do pensamento”. O que é pressuposto: a afinidade entre o
verdadeiro e o pensamento; entre o sujeito e a boa vontade de encontrar a verdade; entre o
método e o bem pensar. Pressupondo o verdadeiro no interior do pensamento, a imagem faz
do pensador um amante do verdadeiro e do ato de pensar “um exercício natural de uma
2
A expressão imagem do pensamento foi formulada por Deleuze pela primeira vez em 1962, no livro
Nietzsche e a filosofia, e atravessa toda a sua obra filosófica. Está presente em Proust e os signos, 1964; em
Diferença e repetição, 1968, um extenso capítulo dedicado ao conceito; reaparece mais tarde, 1980, em
Mil Platôs, aqui concebida como um organon e relacionada à forma-Estado; por fim, em O que é a filosofia?,
1990, é relacionada ao conceito de plano de imanência.
18
faculdade”. Pensar seria um ato natural do sujeito pensante que tende por isso,
naturalmente, ao verdadeiro. Esse pressuposto converte o pensamento num atributo e
função da Razão e do Sujeito.
É dessa forma que a Imagem dogmática expulsa do pensamento o falso,
convertendo-o em erro, ilusão, loucura. O falso é, pois, sempre um que vai à margem do
pensamento. Para livrar-se do falso ou da ilusão, a Imagem dogmática institui um método
universalmente válido que estabelece os limites do bem pensar. Através dele, o sujeito pode
reconhecer o verdadeiro, num encontro que é, na verdade, um reencontro. Seguindo o
método, de ponto a ponto, movendo-se com cuidado, prudentemente, é certo que o
reencontro se dará. Mas, para que isso ocorra, é indispensável que se proceda de boa
vontade. Se assim procede, o sujeito pensante torna-se de fato o que sempre foi de direito: o
Eu penso.
O que a Imagem dogmática não questiona jamais não é o erro nem a ilusão
portanto para os quais deve ser sempre crítica mas sim, os seus pressupostos: o
verdadeiro no interior do pensamento, o método e a boa vontade do pensador.
Por conseguinte, não passa jamais pelo sujeito, situado no interior da Imagem
dogmática, que o não-verdadeiro decorra do pensamento ou a verdade, do erro:
nossas mentes rechaçam a idéia do nascimento de uma coisa que pode
nascer de uma contrária, por exemplo: a verdade do erro; a vontade do
verdadeiro da vontade do erro (....) Tal origem parece impossível: pensar
nisso parece próprio de loucos. As realidades mais sublimes devem ter
outra origem, que lhes seja peculiar. Não podem ser sua mãe esse mundo
efêmero, falaz, ilusório e miserável, esta emaranhada cadeia de ilusões,
desejos e frustrações. No seio do ser, no qual não morrerá nunca, num
deus oculto, na ‘coisa em si’ é onde deve se lobrigar seu princípio, ali e
em nenhuma outra parte.
3
3
Nietzsche, Além do bem e do mal, Cap. I, § 2.
19
Logo, a Imagem dogmática concebe sempre, para além de qualquer região do
espaço-tempo e sob quaisquer circunstâncias, o verdadeiro “como universal abstrato”,
como um atributo natural do pensamento e da Razão.
Segundo esta imagem, o pensamento está em afinidade com o verdadeiro,
possui formalmente o verdadeiro e quer materialmente o verdadeiro. E é
sobre esta imagem que cada um sabe, que se presume que cada um saiba o
que significa pensar.
4
A Imagem dogmática do pensamento está, portanto, no princípio de todo
pensar, mas também no fundo de todo princípio e fim do pensamento. É um círculo.
Trata-se de reencontrar no final o que está dado no início.
5
É essa a fórmula da filosofia
clássica. Como um fundo, um pressuposto, a Imagem dogmática atravessa,
recorrentemente, a história da filosofia.
Assim, a filosofia clássica pressupõe, de saída, a veracidade do pensador, sua
boa vontade, bem como a afinidade entre o pensamento e o verdadeiro. Isso, contudo, a
tornaria impotente para pensar e começar verdadeiramente, para ser um pensar autêntico.
“No caso da Filosofia, a imagem do círculo daria testemunho, antes de tudo, de uma
impotência para começar verdadeiramente e também para repetir autenticamente”. A
imagem dogmática impede que a filosofia clássica tenha um outro começo além do círculo
recorrente que instaura; impede que tenha um começo realmente autêntico e diferente dessa
mesma Imagem. Para a filosofia clássica, um começo repousa sempre na tranqüilidade de
“um pressuposto subjetivo ou implícito” no interior do próprio pensamento.
6
4
G. Deleuze, Diferença e repetição, p. 219.
5
Id., p. 216.
6
Da impotente da filosofia clássica de começar verdadeiramente, de ser um pensar autêntico, poder-se-ia
inferir, segundo Deleuze, a seguinte conclusão “de que não há o verdadeiro começo em Filosofia ou, antes, de
que o verdadeiro começo filosófico, isto é, a Diferença, já é em si mesmo Repetição”. Id., p. 216.
20
Os pressupostos subjetivos e implícitos estão “envolvidos por um sentimento,
em vez de o serem em um conceito”
7
e requerem um tipo de sujeito, um sujeito dado e
conhecido, e um saber implícito, não-conceitual, do que está dado a conhecer. Pensar é
concebido sempre como um reencontro com esses pressupostos, um reencontro com o
senso comum. O pressuposto subjetivo repousa na forma geral do senso comum: “todo
mundo sabe...”; “todo mundo sabe, ninguém pode negar, é a forma geral da representação e
do discurso do representante”.
8
Negá-lo é situar-se fora do pensamento, mas também do
bom senso; é comportar-se como um verdadeiro idiota, que nada sabe, porque nada
pressupõe. A forma geral do senso comum pressupõe, de forma implícita, a imagem
dogmática do pensamento. Do ponto de partida colocado e situado nessa Imagem, os
filósofos elaboram seus conceitos e suas proposições explícitas, acreditando ser esse um
começar verdadeiro do pensamento. Situados no interior da Imagem, não percebem que sua
atividade conceitual e proposicional “tem como pressuposto implícito uma Imagem do
pensamento, pré-filosófica e natural, tirada do elemento puro do senso comum”.
9
De forma
que não um verdadeiro começo, autêntico começo para a filosofia clássica, pois não
ruptura em relação à imagem do pensamento, presente no sujeito de modo subjetivo e
implícito.
Um semelhante trabalho filosófico repousaria, portanto, sobre uma ortodoxia,
sobre valores estabelecidos e verdades prescritas, não sendo mais do que a expressão
sistemática e sofisticada do senso comum e receitando, como remédio contra o falso e a
ilusão, o bom senso para o bem pensar. Dessa forma, a imagem dogmática do pensamento
7
Id., p. 215.
8
“A forma mais geral da representação está, pois, no elemento de um senso comum como natureza reta e boa
vontade (Eudoxo e ortodoxia). O pressuposto implícito da Filosofia encontra-se no senso comum como
cogitatio natura universalis, a partir de que a Filosofia pode ter seu ponto de partida”. Id., p. 218.
9
Id., p. 218.
21
guarda, mais intimamente, uma imagem moral e revela o sujeito cognoscente como um
moralista, dotado de uma Boa vontade à procura do caminho que o leve ao Bem pensar.
Pois, como diz Nietzsche, “só a idéia de Bem pode fundar a suposta afinidade do
pensamento com o Verdadeiro”.
10
O modelo da imagem dogmática do pensamento é a recognição. A recognição
consiste no reconhecimento de um objeto como o mesmo, mediante um exercício
concordante de todas as faculdades. A recognição pressupõe a dóxa, o senso comum, como
o elemento que possibilita, entre as faculdades, a concordância e, por conseguinte, o
reconhecimento do objeto como idêntico, como o mesmo.
11
A concordância pressuposta é
um princípio subjetivo do senso comum que, na filosofia, converte-se na unidade do sujeito
pensante: é o mesmo sujeito que percebe, sente, julga, quer; sujeito cujas faculdades são
modos. A identidade objetiva refere-se, portanto, à identidade subjetiva: é um mesmo
sujeito que percebe um mesmo objeto como idêntico.
12
Assim, basta ao eu empírico o bom
senso para julgar: “é o bom senso que determina a contribuição das faculdades em cada
caso, quando o senso comum traz a forma do Mesmo”. A concordância das faculdades
depende, pois, do bom senso para reconhecer esse objeto como idêntico. O bom senso liga-
se, assim, à boa vontade do sujeito pensante. Senso comum e bom senso encontram-se no
fundo da imagem dogmática do pensamento, como elementos imprescindíveis para que ela
permaneça também a mesma Imagem, para que ela o rache, não quebre: “o modelo de
recognição está necessariamente compreendido na imagem de pensamento”.
13
10
Id., p. 219.
11
“Um objeto é reconhecido quando uma faculdade o visa como idêntico ao de uma outra ou, antes, quando
todas as faculdades em conjunto referem seu dado e referem a si mesmas a uma forma de identidade do
objeto”. Id., p. 221
12
“(...) para o filósofo, a forma da identidade do objeto exige um fundamento na unidade de um sujeito
pensante do qual todas as outras faculdades devem ser modos”. Id., p. 222.
13
Id., p. 223.
22
Portanto, no seio da filosofia clássica e de suas emanações racionais, encontra-
se uma imagem: imagem do que é o Bem pensar e do que deve ser o Bom pensador. A
imagem dogmática define a forma geral de todo pensamento, bem como o seu modelo e sua
estética de apreensão do sensível, da forma da percepção e da sensibilidade. Ela sustenta a
identidade entre a Razão e a Verdade, entre o sujeito racional e o
23
denunciada como não-filosófica”
15
. Denunciar a Imagem é já se situar fora dela, é
apontar para um começar autêntico do pensamento. Para tanto, “é preciso conduzir a
discussão no mesmo plano de direito e saber se esta imagem não trai a própria essência do
pensamento como pensamento puro”.
16
Recoloca-se, portanto, novamente o pensamento
como problema, como questão: o que é pensar?
Encontramos o nascimento de uma nova imagem do pensamento, um começo
autêntico, em Proust e Nietzsche. “Proust constrói uma outra imagem do pensamento que
se opõe à da filosofia, combatendo o que de mais essencial numa filosofia clássica de
tipo racionalista: seus pressupostos”.
17
Também Nietzsche cria uma “nova imagem de
pensamento” ao afirmar que “o verdadeiro não é o elemento do pensamento”.
18
Ambos
criticam os pressupostos da Imagem dogmática: não afinidade entre o pensamento e o
verdadeiro, nem a verdade resulta da boa vontade do sujeito, uma vez que a verdade vem de
fora, de uma força exterior, que violenta e impele o pensamento a agir, a pensar
autenticamente, concretamente. Assim, segundo a nova imagem do pensamento, “o
pensamento nunca pensa por si mesmo, como também não encontra, por si mesmo, o
verdadeiro”.
19
A crítica radical da imagem dogmática do pensamento compele o sujeito
pensante a perder seus pressupostos: a afinidade entre o pensamento e o verdadeiro, a
15
G. Deleuze, Diferença e repetição, p. Id., p. 217-218.
16
Id., p. 221.
17
Em Proust e os signos, Deleuze procede a uma semiologia ou a um estudo das fases de uma sintomatologia
presente na obra literária de Marcel Proust, A la recherche du temps perdu. Uma semiologia ou uma
sintomatologia tratam da emissão e decifração de signos. G. Deleuze. Proust e os signos. Id., p. 88.
18
G. Deleuze. Nietzsche e a filosofia, p. 86.
19
Id., 84.
24
concordância entre as faculdades e o método. O Eu penso já não conjuga os atos do
pensamento, não é o mesmo sujeito que sente, quer, imagina, julga; atordoado, cambaleia,
desorientado, racha. O elemento do senso comum e o bom senso dissipam-se em névoa, à
superfície das coisas, e perdem a evidência e a sensatez. Com isso, o sujeito perde também
toda recognição e representação. Há agora um não-senso no pensamento, a discordância das
faculdades,
20
a divergência num alguém que desconhece o que todo mundo sabe e que nega
o que é por todos reconhecido. Esse alguém não é mais um sujeito “dotado de boa vontade
e de pensamento natural, mas um singular cheio de vontade, que não chega a pensar
nem na natureza e nem no conceito. ele não tem pressupostos. Só ele começa
efetivamente e repete efetivamente”.
21
Esse alguém é um intempestivo ou um aprendiz
decifrando signos.
duas imagens do pensamento distintas e opostas, para as quais não pode
haver convergência. A partir delas, distinguem-se também dois tipos. De um lado, o sujeito
pensante, racional, detentor da verdade universal, o sujeito moral cognoscente, o bom
sujeito; de um outro, o sujeito que perde o seu ser-sujeito e torna-se um singular qualquer
dotado de vontade, um privado de mundo, de espírito, de natureza, um Eu rachado. A
cada imagem, um tipo. É preciso então situá-los à própria imagem sobre a qual se movem.
Fazer uma tipologia a partir de uma topologia da imagem, porque a verdade está
20
“(...) contra a idéia de harmonia ou de colaboração, o fundamental da tese de Deleuze é que a relação entre
as faculdades é do tipo de um ‘esforço divergente’, de um ‘acordo discordante’, de uma ‘discordância
acordante’, em que cada faculdade disjunta comunica à outra a violência que a eleva a seu limite próprio
como diferente”. Roberto Machado, Deleuze e a filosofia, p. 152.
21
G. Deleuze, Diferença e repetição, p. 217. Em Além do bem e do mal, Nietzsche apresenta esta diferença
entre o filósofo dogmático e o filósofo do porvir. Diz: o “eu penso’ não tem para mim nenhum valor de
‘certeza imediata’. Em lugar dessa segurança em que o vulgo talvez venha a crer, o filósofo por seu lado não
retira mais que um punhado de questões metafísicas (...) Aquele que se atrever a responder imediatamente a
estas questões metafísicas alegando uma espécie de intuição do conhecimento, como se faz quando se diz: ‘eu
25
relacionada sempre a um quem e a uma região onde se situa e se move esse quem que a
enuncia ou se deixa por ela enunciar e anunciar.
22
A resposta ao problema “o que é pensar?é o que distingue as duas imagens e
seus tipos. Para Nietzsche, “pensar nunca é o exercício natural de uma faculdade”. É
necessário que algo ative o pensamento para que exerça a sua potência de pensar. Assim,
“pensar depende das forças que se apoderam do pensamento” e, o, de uma boa vontade
para pensar. São forças externas ao pensamento que se impõem de fora e elevam-no a sua
potência máxima que é pensar, lançando-o num “devir-ativo”.
23
Por sua vez, “Proust não acredita que o homem, nem mesmo um espírito
supostamente puro, tenha naturalmente um desejo de verdadeiro, uma vontade de
verdade”.
24
Ao contrário, a verdade decorre de uma espécie de violência que impele a
buscá-la concretamente. Ela se por uma força exterior que afeta de fora o pensamento.
“A verdade depende de um encontro com alguma coisa que nos força a pensar e a procurar
o verdadeiro”.
25
Sem esse encontro, a razão e a inteligência só alcançam verdades abstratas,
arbitrárias e sem autenticidade, nada mais do que verdades convencionais e comunicáveis,
às quais falta a força da necessidade.
A Imagem dogmática do pensamento estabelece o contrário: concebe o pensar
como uma atividade natural do sujeito. É o próprio pensamento que percorre, passo a passo,
o caminho que o conduz, cuidadosa e zelosamente, à verdade. Para isso, basta o sujeito
orientar-se no pensar, pela boa vontade e pelo bom método, para reencontrar, em si mesmo,
a Razão, harmonia das faculdades, livrando-se do erro, da ignorância, da ilusão e de toda
penso e sei que isto pelo menos é verdade, que é real’, com certeza provocará no filósofo de hoje um sorriso”.
Nietzsche. Além do Bem e do Mal, , aforismo 16.
22
G. Deleuze. Nietzsche e a filosofia, p. 87.
23
Id., pp. 88-89.
24
G. Deleuze. Proust e os signos, p. 15.
26
agitação do espírito. As verdades da inteligência nada perturbam ou comprometem, não são
“verdades” da turbulência. Assim também, movida por uma boa vontade, a filosofia
clássica parte do pressuposto de que a descoberta da verdade é um trabalho voluntário do
espírito que, livre do obscuro e das forças exteriores, se põe significações explícitas,
comunicáveis, capazes de serem identificadas e reconhecidas por qualquer outro sujeito
amigo da razão. Tudo decorre de atos de recognição de um mesmo sujeito no interior de
uma mesma imagem do pensamento onde, perdido num primeiro instante, reencontra-se no
final, com o Mesmo, com o Ser, com o Pensar, de que esteve, acidental e
momentaneamente, afastado por forças exteriores, que foram superadas, uma a uma, pelo
trabalho das faculdades, reconstituindo a unidade racional do espírito.
A Imagem dogmática do pensamento estabelece entre os diferentes filósofos
clássicos um grau de parentesco, que os reúne numa mesma linhagem ao agregar, num
mesmo sistema, os conceitos desenvolvidos. São, portanto, um mesmo tipo, não obstante as
variações que acrescentam à mesma Imagem. Como diz Nietzsche:
uma magia invisível os obriga a percorrer incessantemente o mesmo
círculo, por mais independentes que se creiam, um dos outros, em sua
vontade de elaborar sistemas, algo os impulsiona a sucederem-se numa
determinada ordem (...) Na verdade, seu pensamento consiste menos em
investigar que em reconhecer, recordar, voltar atrás, reintegrar uma zona
muito antiga e distante da alma donde saíram esses conceitos que não
procuram descobrir. A atividade filosófica, nesse aspecto, é uma espécie
de atavismo do mais elevado grau.
26
Em Lógica do sentido, Deleuze distingue três imagens de filósofos: os das
alturas, os da profundidade e os da superfície. Os filósofos das alturas, imagem criada por
Platão, são tipos ascéticos, que se purificam à medida que se elevam, mais e mais, ao céu
25
Id., p. 15
26
Nietzsche, Além do bem e do mal, aforismo 20, pp. 35-36.
27
do inteligível. Para tais filósofos, pensar ou orientar-se no pensamento é exercer o
movimento de ascensão, graças ao qual o pensamento retorna ao seu princípio superior e
transcendente, deixando abaixo e longe de si a profundidade, bem como a superfície das
coisas.
27
São o tipo que sai da caverna e encontra o fim da filosofia num ideal ascético,
posto num outro lugar, mais alto e elevado, ideal que só se realiza plenamente na boa e bela
morte.
Os pré-socráticos são filósofos da profundidade, imersos na caverna de que não
querem sair jamais e na qual é necessário permanecer, indo mais além do fundo: nela, ainda
não estamos suficientemente engajados, engolidos. Para isso, é preciso entrar nos corpos,
cavá-los, o mais profundamente, em seu abismo. A água, o fogo, a terra são elementos da
profundidade.
A terceira imagem de filósofo: os da superfície. Para esse tipo, não vale nem a
altura ascética platônica, nem o mais profundo da terra, mas, sim, a própria terra, a
superfície da terra e dos corpos; tudo se à superfície dos corpos. existe a superfície.
E, na superfície dos corpos, dão-se os acontecimentos, o sentido. Começa um novo tipo de
filósofo, uma nova imagem. Não mais o rosto voltado para cima ou para baixo, mas o rosto
colado à superfície. Começa uma nova orientação do pensamento.
Com a distinção das três imagens de filósofo, Deleuze traça uma geografia, uma
topologia do pensamento, de onde emerge o pensamento e sobre a qual passa a se mover e a
27
G. Deleuze, Lógica do sentido, pp. 131-136.
28
se orientar: cada imagem, cada tipo, tem sua região, sua paisagem peculiar, seu rosto.
28
E a
geografia que Deleuze identifica como a “nova geografia”, é a superfície, seja com os
Cínicos, mas também com os Estóicos:
é a grande descoberta estóica, ao mesmo tempo contra os pré-
socráticos e contra Platão: a autonomia da superfície,
independentemente da altura e da profundidade, contra a altura e a
profundidade; a descoberta dos acontecimentos incorporais,
sentidos ou efeitos, que são irredutíveis aos corpos profundos assim
como às Idéias altas.
29
Talvez, esteja nesse novo tipo de filósofo, o da superfície, onde se dão o
acontecimento e o sentido, o germe de uma nova imagem do pensamento, retomada por
Nietzsche e também presente na obra literária de Proust. Toda uma rivalidade contra a
filosofia clássica, presente na crítica dos pressupostos, nessa nova imagem também se
apresenta. A superfície não reivindica nem a Idéia no céu do inteligível, nem a substância
no fundo das coisas. Ela estende-se entre os corpos, na relação entre os corpos. A filosofia e
o pensar resultariam desse encontro, simplesmente do encontro inesperado com algo que,
de fora, se apresenta ao pensamento e o faz pensar. “Nada atrás da cortina, salvo misturas
inomináveis. Nada acima do tapete, salvo o céu vazio”.
30
A superfície é imanência, onde
não nada acima ou abaixo do pensamento que possa previamente orientá-lo. Pensar se
28
Em Consideração Intempestiva: Schopenhauer educador, Nietzsche reconhece e estima a grandeza de um
filósofo pelo exemplo, por seu tipo de vida: “o exemplo deve ser dado (...) pela expressão do rosto, pela
vestimenta, pelo regime alimentar, pelos costumes, mais do que pelas palavras e sobretudo mais do que pela
escrita”. O rosto e a paisagem em que se inserem o filósofo e sua filosofia, em que se insere o pensamento,
perfazem a topologia, a geografia que permite situar o pensamento numa imagem. Pode-se dizer então que
todo pensamento possui rostos e paisagens em que está inscrito e pelos quais fala. Os rostos não são
primeiramente individuais, eles definem zonas de freqüência ou de probabilidade, delimitam um campo que
neutraliza antecipadamente as expressões e conexões rebeldes às significações conformes”. “o rosto possui
um correlato de uma grande importância, a paisagem, que não é somente um meio mas um mundo
desterritorializado (...) Os manuais de rosto e de paisagem formam uma pedagogia, severa disciplina, e que
inspira as artes assim como estas a inspiram”. G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 3, Ano zero
rostidade.
29
Id., p. 136.
29
transforma numa espécie de perversão, perversão de todos os rostos e paisagens já
endurecidos, isso, “se a perversão implica uma estranha arte das superfícies”,
31
dos
encontros, dos acontecimentos, do sentido.
Tanto em Proust quanto em Nietzsche, a nova imagem do pensamento traz, às
avessas da Imagem clássica, a força exterior ao pensamento com a marca da necessidade.
Coação e acaso movem o pensamento. Pensar não é o exercício natural de uma faculdade:
“o pensamento nunca pensa sozinho e por si mesmo; como também nunca é simplesmente
perturbado por forças que lhe permaneceriam exteriores”.
32
Só começamos de fato a pensar
quando o pensamento se confronta com isso que lhe vem de fora e o faz agir: o
involuntário, o acaso, o desconhecido, o imperceptível. Enquanto a Imagem clássica
orienta-se pela afinidade natural entre verdade e pensamento, segundo a boa vontade do
sujeito e conforme o método, a nova imagem de pensamento concebe a verdade como o
resultado do acaso e da coação, que surgem, à superfície, pela ação de um signo exterior
33
.
Como sintoma de uma força que coage o pensamento, o signo imprime, no pensamento, a
30
G. Deleuze, Lógica do sentido, p. 136.
31
Id., p. 136.
32
G. Deleuze, Nietzsche e a filosofia, p. 88.
33
O signo desempenha um papel importantíssimo para o pensamento, segundo Deleuze. Pensar passa
necessariamente pelo signo, pela capacidade de produzi-lo e decifrá-lo. O pensamento é atravessado por
signos de todos os lados em todas as direções. Eis o que Deleuze fala da relação entre signo e o cinema: “com
efeito, o que poderia chamar de Idéias são essas instâncias que se efetuam ora nas imagens, ora nas funções,
ora nos conceitos. O que efetua a Idéia é o signo. No cinema, as imagens são signos (...) É a noção de signo
que sempre me interessou (...) se a semiótica de inspiração lingüística me perturba, é porque ela suprime tanto
a noção de imagem como a de signo”. G. Deleuze, Conversações, II Cinema, p. 83. Já em entrevista
concedida A Claire Panet, falando do estilo, confessa que “o importante no mundo é tudo o que emite signos.
A não-elegância e a vulgaridade também emitem signos. É muito mais isso que me importa. São as emissões
de signos. É certamente por isso que gostei tanto e ainda gosto de Proust. O mundanismo, as relações
mundanas são emissões de signos fantásticas. O que chamam de gafe é uma não-compreensão de um signo.
São signos que as pessoas não entendem. A mundanidade como um meio fértil de signos vazios,
absolutamente vazios, sem interesse algum, mas são as velocidades, a natureza das emissões. Isso tem a ver
com o mundo animal, pois ele também é um emissor de signos fantásticos. Os animais e os mundanos são
mestres em signos”. Abecedário de G. Deleuze, Entrevista a Claire Panet, Estilo.
30
marca da necessidade. Essa marca é que consistência e concretude à verdade. Resultante
de um encontro inesperado, a verdade revela-se a partir da decifração do signo. Sua busca
é, portanto, uma sintomatologia.
Em Nietzsche e a filosofia, Deleuze ressalta que um signo está sempre
relacionado à força que se apropria da coisa e se exprime através das coisas de que se
apodera. Assim, o signo é um sintoma da força e nela encontra o seu sentido. Somente
quando se relaciona um signo à força de que é um sintoma, é que se torna possível conhecer
o seu sentido. O signo teria, portanto, a qualidade de fazer conhecer a coisa, porque é
sintoma da força que constitui a própria coisa.
Jamais encontramos o sentido de alguma coisa (fenômeno humano,
biológico ou até mesmo físico) se não sabemos qual é a força que se
apropria da coisa, que a explora, que dela se apodera ou nela se exprime.
Um fenômeno não é uma aparência, nem mesmo uma aparição, mas um
signo, um sintoma que encontra seu sentido numa força atual.
34
Todo signo é exterior, pois age de fora do pensamento como o efeito de uma
força também exterior, que acontece na superfície dos corpos. O encontro se com o
signo e não, com um objeto, não supõe um objeto como o mesmo nem a unidade subjetiva
de um sujeito. O encontro com o signo exterior é o acontecimento necessário para que o
pensamento exerça sua enésima potência: pensar. Pensar é sempre uma atividade, uma
ação, um movimento que se diante de uma ausência de significação ou de um saber
produzido. Pensar é um encontro com um signo ainda por conhecer, o que faz com que o
pensamento se exerça, não na tranqüilidade dos pressupostos e dos conceitos explícitos,
mas numa ruptura, numa fissura de designação e de significação.
31
Em Proust, essa ruptura pode ser caracterizada pela decepção. A busca da
verdade e a unidade da busca serão acompanhadas pela decepção, a unidade sendo ungida
de sucessivas decepções, que se traduzem no constante conflito a que o sujeito está
submetido por forças exteriores. As idéias preconcebidas e os pressupostos racionais
esbarram, dissolvem-se no desconhecido, num vazio decepcionante. Nada que se deixe
apreender numa representação por um ato de recognição. A decepção faz o espírito
esvaziar-se de seus pressupostos, suas idéias, suas proposições. Não nada a antecipar,
nada para adequar-se a uma representação no espírito ou na inteligência. O sujeito se perde.
“Em cada campo de signos ficamos decepcionados quando o objeto não nos revela o
segredo que esperávamos”.
35
A busca da verdade não é fruto de um esforço de recordação ou de memória,
memória cujo trabalho dar-se-ia unicamente pelo reencontro, no presente, de recordações
de experiências passadas, de lembranças perdidas.
36
Conhecer não é lembrar, não é uma
reminiscência; experimentar não é reproduzir, não é adequar-se a uma situação vivida.
Assim também, a verdade não decorre de associações lógicas, de inferências quer dedutivas
quer indutivas; essas são tão-somente abstrações da inteligência, verdades abstratas. Ao
contrário, a verdade dá-se sem que a inteligência possa, de alguma forma, antecipá-la.
Aquele que busca a verdade, o aprendiz, vê-se diante de um mundo desconhecido, onde
sujeito e objeto, bem como as relações cognoscentes, dissipam-se por um segredo que o
signo contém. Assim, nunca se encontra o esperado. Perdido, o aprendiz decepciona-se:
“acreditava’, tinha ilusões”. O Eu e o Mundo estremecem: “o mundo vacila na corrente do
34
G. Deleuze, Nietzsche e a filosofia, p. 3.
35
G. Deleuze, Proust e os signos, p. 32.
36
A obra de Proust não é voltada para o passado e as descobertas da memória, mas para o futuro e os
progressos da aprendizagem”. Id., p. 25.
32
aprendizado”.
37
A busca dá-se por encontros inesperados, pelos quais se recupera o tempo
e, no tempo, a verdade revela-se. Esse processo de aprendizagem termina na unidade do
sentido a que o aprendiz chega após passar por séries de decepções descontínuas. O
aprendiz salta de mundo a mundo, superando cada decepção até encontrar, de signo a signo,
o sentido. Este, o processo de aprendizagem, esta, a busca da verdade: decifrar o
desconhecido, decifrar o que força a pensar, isto é, decifrar sempre um signo como sintoma
de uma força exterior.
A profundidade do signo como o fora do pensamento, que não está nem no objeto
nem no sujeito, nem no espírito nem no mundo, é isso que provoca a decepção e faz vacilar
o Eu e o Mundo. O signo é o que há de mais profundo e também o que de mais
superficial, de mais aparente. “O que é mais profundo do que todo o fundo é a superfície, a
pele”.
38
Isso, essa singularidade que aparece à superfície não pode ser antecipada pela
inteligência, uma vez que a singularidade não pode ser aprisionada “em indivíduos e
pessoas”. Escapando à imagem do pensamento que constitui tanto o sujeito quanto o objeto,
o signo escapa à subjetividade, ao senso comum e ao bom senso. Nada a designar, nada a
significar portanto. Nem um nem outro, sujeito e objeto, contêm o segredo do signo. O
signo contém o seu próprio sentido e, como efeito de uma força, surge na superfície dos
corpos. Ele acontece e, como acontecimento, suspende toda significação, designação e
manifestação: nada a representar, a indicar, a falar. A decepção ocorre justamente quando
se espera o contrário: quando se acredita que, às significações subjetivas, corresponde um
mundo fora do sujeito ou que tais significações resultam de percepções emitidas pelo
próprio objeto designado. “Confundimos o significado do signo com o ser ou o objeto que
37
Id., p. 25.
38
G. Deleuze, Lógica do sentido, p. 143.
33
ele designa”. Contudo, “o que está envolvido no signo é mais profundo que todas as
significações explícitas” (e também mais aparente, imediato, entre a profundidade e a pele
não mais mediações, forma ou matéria, substância ou idéia.) Assim, “cada linha de
aprendizado passa por esses dois momentos: a decepção provocada por uma tentativa de
interpretação objetiva e a tentativa de remediar essa decepção por uma interpretação
subjetiva, em que reconstruímos conjuntos associativos”. A decepção é essa fissura
provocada quer na associação das significações quer na percepção do objeto ou da coisa.
39
Mas o que pode o aprendiz encontrar além de suas crenças objetivas e subjetivas,
além da imagem do pensamento que o constitui como sujeito? Qual é o segredo do signo?
O que se revela no signo? O último momento da aprendizagem, da decifração das séries de
signos, a revelação final é a essência, isto é, a unidade do signo e do sentido.
40
A nova imagem de pensamento erigida por Proust não supõe jamais o Mesmo,
o Idêntico, o Igual, o Semelhante; não supõe o reconhecimento na unidade subjetiva do
sujeito e da identidade de um mundo desde sempre instituído como um campo do possível,
onde o sujeito se move com segurança; não supõe um conhecimento possível, uma
paisagem e um rosto. Nada é pressuposto no pensamento. Nenhuma recognição, nenhuma
representação. Antes, o que é um desfazer-se do Eu e do Mundo: aprender é antes um
desfazer-se e um desfazer. Dá-se, pois, um processo em que o aprendiz se atravessado e
entrelaçado por forças que rompem à rede de associações e de percepções onde estava,
39
G. Deleuze, Proust e os signos, pp. 26-34.
40
“Além dos objetos designados, além das verdades inteligíveis e formuladas, além das cadeias de associação
subjetivas e de ressurreições por semelhança ou contigüidade, as essências, que são alógicas ou
supralógicas. Elas ultrapassam tanto os estados da subjetividade quanto as propriedades do objeto. É a
essência que constitui a verdadeira unidade do signo e do sentido; é ela que constitui o signo como irredutível
ao objeto que o emite; é ela que constitui o sentido como irredutível ao sujeito que o apreende. Ela é a última
palavra do aprendizado ou a revelação final”. Para Proust, a essência revela-se somente na obra de arte, nos
signos da arte. “É apenas no nível da arte que as essências são reveladas. Mas, uma vez manifestadas na obra
34
desde sempre, situado. Percebe-se agora numa trama ofuscada por signos, num emaranhado
de linhas de tempo e signos que perfazem um jogo decifratório, de que o aprendiz pode
sair transformando-se. Regras previamente estabelecidas, as “verdades inteligíveis e
formuladas”, as “cadeias de associação subjetivas”, as representações e recognições “por
semelhança e contigüidade”
41
o rompidas por saltos, desvios, buracos. O aprendiz é
conduzido, movido assim, por forças que lhe racham a identidade e a unidade de sua
estrutura cognitiva, individual, pessoal, sendo lançado violentamente num movimento,
numa atividade, que é o pensamento. Então, o que é pensar? Pensar é a ação que,
inseparável de uma força, faz agir o próprio pensamento; é a irrupção dessa força por
decifração de signos.
Pode-se dizer que, na nova imagem do pensamento, seja proustiana, seja
nietzscheana, pensar é sempre um encontro com forças que fazem pensar. Esse encontro é
irredutível às formas da inteligência ou do Inteligível. Ele é a própria Diferença, isto é, um
encontro da diferença na própria diferença ou da diferença como diferença. Na Diferença:
cada sujeito exprime o mundo de um certo ponto de vista. Mas o ponto de
vista é a própria diferença, a diferença interna e absoluta. Cada sujeito
exprime, pois, um mundo absolutamente diferente e, sem dúvida, o
mundo expresso não existe fora do sujeito que o exprime (o que
chamamos de mundo exterior é apenas a projeção ilusória, o limite
uniformizante de todos esses mundos expressos).
42
A diferença como diferença é sempre um começo, “um começo radical e
absoluto”
43
, a partir do que se constituem o sujeito e o mundo, ou melhor, cada sujeito e
cada mundo expresso. Esse começo radical e irredutível a qualquer outro é a criação do
de arte, elas reagem sobre todos os outros campos (...) em todas as espécies de signos, em todos os tipos de
aprendizado”. Id., pp. 35-36.
41
Id., pp. 35-36.
35
sentido ou um acontecimento, “o acontecimento é o próprio sentido”.
44
É um começo que
aparece como um dado puro, é o dado puro, o pensamento puro sem uma imagem anterior,
ainda sem imagem. É o iniciar, o nascer do próprio pensamento e do mundo: acontecimento
puro. Ora, se nada antes, se há somente o dado puro, um começo absoluto, essa
diferença como diferença pode ser criação pura. Eis a essência: “sempre um começo do
Mundo em geral, um começo do Universo, um começo radical e absoluto”.
45
Em Proust, a
arte cria a essência: “a arte está para além da memória e recorre ao pensamento puro como
faculdades das essências”;
46
e, em Nietzsche, “a atividade genérica da cultura tem um
objetivo final: formar o artista, o filósofo”. Enfim, para a nova imagem do pensamento, o
que é pensar? Pensar é criar.
Em Proust, a diferença como diferença, a diferença absoluta é a própria
essência. A essência é a criação artística, que se materializa e eterniza-se na obra de arte.
Aqui também se apresenta mais uma característica dessa nova imagem do pensamento, que
a distancia da Imagem clássica e dogmática. A essência não é a identidade, Ser = Ser, a
partir de que se hierarquizam os entes sob conceitos de igualdade, semelhança, oposição e
diferença específica. Para a nova imagem do pensamento, a essência é princípio da
diferenciação, pois reúne as singularidades por um movimento de repetição, de auto-
repetição, em que não há uma diferenciação qualitativa, mas repetição da diferença original
por diversificação quantitativa. A diferença como diferença é, a um tempo, um mesmo
que só é semelhante a si como um outro:
42
G. Deleuze, Proust e os signos, pp. 40-41.
43
G. Deleuze, Proust e os signos, p. 42.
44
G. Deleuze, Lógica do sentido, p. 23.
45
Id., p. 42.
46
Id., p. 44.
36
a diferença, como qualidade de um mundo, se afirma através de uma
espécie de auto-repetição que percorre os mais variados meios e reúne
objetos diversos; a repetição constitui os graus de uma diferença original,
como, por sua vez, a diversidade constitui os níveis de uma repetição não
menos fundamental. Sobre a obra de um grande artista podemos dizer: é a
mesma coisa, apenas com a diferença de nível; como também: é outra
coisa, apenas com a s09(i)009.21764(é.8e)-1.( )-173.913(2-173.0.12 0 079.64 51 0 0J3047T/R9 9.96 Tf1 0 0 1.0.12-51 0 0J0 rgq96 Tf2 0 1 253224 [( )56 0J0 rgq27 )]TLT*8(z)94470(É)ee o.Oe oepread-432-feeçap.651(e)-41.62(a)4-173.80(007(e)-4pe)-4e ãod12.52246.17.1297(ba)4-173.80(p03(óp.651(03(i.62(a)4-173.80(d-432-f)-7.00195(e)-02.99805(e)-4nç)4(a)-6)-173.913(é)46.17-27 )]T297(a)-4nc)4(a)4-03(n.651(a)4-da)4-17331(e)-4m432-zd-432-ve.60nndae d-432-.60nde am.62(a)4-t.62(é)4-03(i.62(a)4-.60ndz)9.0(.6514dz)9.0(a)-6ai.62(z)-6e.1297(a2s)-2.30341(m432-z)9.0(.60ndi.62(4783(n1.956670(O)2-17320(e)-4.60nnde)-2)-432-1.62(o)-120(e)-4.60n(p-432-02.99805(-432.00195(t432.00195(Td-41.62.00195(-432.00195(z)-6)a)141( )]TJ294.62s)-2-27 )]T297(a)4-1m.62(a)4-t.62(é)4-03(i.62(a)4- p.651(e)-41.62(a)4-103(e)-4p.651(e)-4e)-2)-432-ç)4(ã)4(o)-1.0-dae007(e)-4nça2-17381 0 0 1079.16 515 8T/R9 9.96 Tf2 0 18.16 -515 o, l.6514dza 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37
filosofia implica sempre, de forma implícita, um pertencimento ao senso comum, assim
como um bom senso; pressupõe um: todo mundo sabe o que é ser, pensar; todos sabem
o que é o eu. “Pode-se tirar disto a conclusão de que não há verdadeiro começo em
Filosofia ou antes, de que o verdadeiro começo filosófico, isto é, a Diferença, é em si
mesmo Repetição”.
49
Diante de tal afirmação, pode-se entender que a filosofia clássica
tornou-se, não uma repetição autêntica, mas a reprodução de uma diferença absoluta e
original que esqueceu ou perdeu a sua força criadora, artística, não sendo mais do que
repetições mecânicas daquela diferença originária.
É que a filosofia clássica começa pressupondo não apenas um saber de um isto
qualquer, mas o Saber sob a forma geral de todo isto. Seu pressuposto é, pois, a forma geral
de toda representação e da recognição em geral. Assim, para esses filósofos não há nenhum
saber de um isto que não pressuponha o saber pensar em geral e sua adequação a uma
representação ou recognição presentes no interior do próprio pensamento.
A forma geral está presente, por sua vez, no elemento do senso comum, donde a
filosofia retira o seu ponto de partida, qual seja, a retidão do pensamento, guiado pela boa
vontade e sua afinidade natural com o verdadeiro. Isso faz com que a filosofia tenha uma
origem pré-filosófica, sempre referida a uma imagem de pensamento, tirada do elemento
puro do senso comum.
A Imagem dogmática ou ortodoxa, Imagem moral, tornou-se, ao longo da
história do pensamento ocidental, hegemônica e dominante em suas variações. De modo
que se pode afirmar que somente “uma Imagem em geral, que constitui o pressuposto
49
G. Deleuze, Diferença e repetição, p. 216.
38
subjetivo da Filosofia em seu conjunto”.
50
Não obstante suas variantes, a Imagem mantém-
se estendida no elemento puro do senso comum e do bom senso como Imagem moral.
É Nietzsche que a qualifica de moral. A Imagem dogmática pressupõe sempre o
Bem como condição do pensamento verdadeiro. Passa-se assim da ontologia para a ética,
do ôntico ao deôntico, do saber ao poder, estreita, íntima relação, uma vez que todo
conhecimento pressupõe um valor implícito e envolvido na Imagem, pressupõe um sentido
e um valor. Por conseguinte, “a verdade de um pensamento deve ser interpretada e avaliada
segundo as forças ou o poder que o determinam a pensar”,
51
segundo o seu sentido e o seu
valor. De modo que um verdadeiro começo em filosofia afirma-se pela crítica radical do
pré-filosófico presente na filosofia. O verdadeiro começo em filosofia consiste na diferença
como uma “luta rigorosa contra a Imagem, denunciada como não-filosófica”.
52
Sua
diferença e sua repetição autêntica dar-se-iam, portanto, num pensamento sem imagem,
pensamento puro, deformante de toda Imagem. O verdadeiro começo em filosofia
renunciaria, assim, ao elemento do senso comum e do bom senso, isto é, renunciaria tanto à
forma geral da representação quanto à recognição em geral, momento em que o pensamento
passa a agir sem pressupor uma imagem, passa a dialogar com o paradoxo. Não é uma
crítica conceitual, proposicional, lógica ou empírica que deve ser dirigida contra a Imagem
moral; é preciso conduzir a discussão num outro plano, o do direito. É preciso
problematizar a própria Imagem e saber se ela “não trai a própria essência do pensamento
como pensamento puro”, “como se o pensamento só pudesse começar, e sempre recomeçar,
a pensar ao se libertar da Imagem e dos postulados”.
53
50
Id., p. 219.
51
G. Deleuze, Nietzsche e a filosofia, p. 85.
52
G. Deleuze, Diferença e repetição, p.219-220.
53
Id., p. 220.
39
É no sentido desse começar verdadeiro e dessa crítica radical de todos os
pressupostos que se deve pensar numa outra educação, numa outra pedagogia e
aprendizagem. Talvez seja isso que Nietzsche quisera afirmar em seu Schopenhauer
educador: “educar contra o nosso tempo”
54
. O que significa essa nova educação? A
afirmação de uma outra imagem do pensamento, uma imagem sem pressupostos, sem
valores e poderes estabelecidos. Imagem sem ídolos. Essa pedagogia da imagem sem ídolos
deve investir contra a força da figura do professor público, tornado funcionário do
pensamento e do Estado, cuja função é propagar a Imagem dogmática. Liberar o
pensamento desse tipo e da forma-Estado é liberá-lo da Imagem moral. A pedagogia da
imagem moral não pode ser senão uma pedagogia do Estado e seu educador senão um
funcionário do pensamento e da moral de seu tempo. Eis o tipo formado pela pedagogia da
Imagem dogmática: um indivíduo de sua espécie, um homem de Estado, um erudito,
alguém plenamente integrado ao seu tempo e à história. É essa pedagogia da Imagem
dogmática do pensamento que se converteu em pedagogia dominante nas sociedades
governadas pelo Estado moderno.
A Imagem dogmática subtrai a autenticidade do pensamento em favor da
forma-Estado, que se apresenta, nesse processo de captura, como o fim e a possibilidade de
todo ato de pensar. Assim como a Imagem dogmática recobre todo pensamento, o Estado
captura e abarca, em seus limites, a Imagem e, por conseguinte, o próprio pensamento. Essa
captura é um processo de interiorização da Imagem, processo de subjetivação,
concomitante à expansão do Estado e a interiorização, no indivíduo, da forma-Estado. A
legitimidade do discurso e de quem o profere pode ser também compreendida na
perspectiva desse processo permanente de captura. O Estado captura por relações de forças
54
Nietzsche, Schopenhauer educador, p. 163.
40
que conjuga. Não é por nada que ao Estado interessa desde sempre o tipo de indivíduo que
se educa, que se forma; interessa-lhe o processo de individuação, de produção de
subjetividade. A pedagogia converte-se ou sempre foi um assunto de Estado. Platão o sabia
muito bem: expulsa os maus educadores em nome de sua República Ideal. Platão foi o
primeiro a colocar no coração do Estado a Imagem do pensamento e a estabelecer uma
rigorosa pedagogia para formar cidadãos conformes à Idéia e à república que imagina.
Formalizou, desse modo, o elo entre Estado e Imagem do pensamento.
Assim, o que se percebe é que toda captura do pensamento pelo Estado dá-se
exatamente através da Imagem. É uma captura mágica, porque fundada num pensar-
verdadeiro, nessa afinidade; mas, ao mesmo tempo, é a invenção de uma “república de
espíritos livres”, pois constitui uma “organização legislativa e jurídica”, sob o fundamento
de um logos
55
e, é claro, a proteção do Estado. De um lado, o pensamento ganha
universalidade, um centro de legitimação e irradiação, e empresta, de outro, em
contrapartida, universalidade à forma-Estado. Surge a soberania: “só o pensamento para
inventar a ficção de um Estado universal por direito, de elevar o Estado ao universal de
direito”.
56
Desse modo, o Estado torna-se racional e o pensamento deixa para trás a sua
própria contingência. Tal qual em Platão, quando o governante deveria ser o rei-filósofo, o
Virtuoso em pessoa, no Estado moderno, o legislador se transforma em sujeito racional: o
conflito deve ceder à Razão e ao consenso.
57
Através do Estado, o pensamento se
interioriza e passa a habitar o mais íntimo nos indivíduos, o que significa dizer que a forma-
Estado habita as pessoas. Opera-se um corte, portanto, legítimo e indispensável, que
denuncia uma das principais funções do Estado: a de ser um grande regulador e condutor de
55
G. Deleuze & F. Guattari, Mil Platôs, vol. 5, p.43.
56
Id., p. 44.
41
fluxos. Com a sua instituição mítico-racional imagética, “o Estado torna-se o único
princípio que faz a partilha entre sujeitos rebeldes, remetidos ao estado de natureza, e
sujeitos dóceis, remetendo por si mesmos à forma do Estado”.
58
Da Imagem dogmática do
pensamento, o Estado encarna o transcendente e torna-se o verdadeiro imanente sobre a
terra. Fez-se o pacto, pela Imagem, entre o pensamento e o Estado: “a razão realizada se
confunde com o Estado de direito, assim como o Estado de fato é o devir da razão”. O
processo de individuação e produção de subjetividade, a interiorização da Imagem
dogmática do pensamento, terá a marca de um poder racional, legítimo e legitimado,
exercendo-se sobre corpos singulares. Real identidade entre Razão e Estado, identidade que
apenas é abstraída pela razão para que essa se confirme como tal, ao mesmo tempo em que
atesta, a si mesma, a sua universalidade e, ao Estado, a sua soberania. A Razão, tornada
legisladora, aparece para o sujeito como o incondicional e o Estado, como um poder
irresistível e desejável: obedece sempre, pois quanto mais obedeceres, mais serás senhor,
visto que só obedecerás a razão pura, isto é, a ti mesmo”.
59
A sujeição é desejada e torna-se
então voluntária. Todo cidadão é um sujeito desejante disso que o faz ser o que ele é: essa
cidadania que é expressão de uma mesma subjetividade geral.
60
Fecha-se, pois, o cerco e
todo o espaço transforma-se em pontos traçados de um mesmo poder, cujo centro expande-
se e articula-se em grades estratificadas, coordenadas, organizadas vertical e
horizontalmente, instaurando-se assim um espaço estriado, geometricamente recortado e
57
A guerra é racionalmente justificada e estrategicamente executada e visa sempre à própria soberania.
58
Id., p. 46.
59
Id. 45.
60
O desejo nunca se faz sozinho, abstratamente, como alguém que desejasse apenas uma coisa isoladamente,
recortada da paisagem em que a coisa e o sujeito se inserem e se encontram; o desejo é sempre coletivo,
envolve sempre um conjunto num conjunto do qual o sujeito desejante não pode ser abstraído: “nunca desejo
algo sozinho, desejo bem mais, também não desejo um conjunto, desejo em um conjunto”. G. Deleuze,
Abecedário de Deleuze, Desejo.
42
organizado, ponto a ponto, segmento a segmento.
61
O processo de interiorização é, dessa
forma, territorial e geográfico. Assim também todo corpo singular, toda singularidade é
envolvida em corpos coletivos que os condicionam por meio de linhas e traços
hierarquizados e interiorizados no corpo singular.
62
O Estado moderno procederá aos cortes
que irão talhar o corpo, formando o cidadão, mas também o Mundo. A singularidade
desfeita como tal é agora o indivíduo, a pessoa, o sujeito. Não há, portanto, como fugir a
não ser estando situado, desde sempre, no interior do Estado, no interior da Imagem.
Talvez, seja por esse motivo que a pedagogia é uma disciplina rigorosa... Para os Estados
modernos, não há como efetuar o corte, talhar a pessoa, o cidadão, sem uma pedagogia, que
se efetiva e executa num espaço-tempo, estriado, controlado, organizado. Educar torna-se
uma estratégia de poder, de organização social, de estratificação política: a Educação
transforma-se em direito, num axioma. Quem pode estar fora? O que pode estar fora desse
processo de produção de subjetividade e de subjetivação da forma-Estado e da Imagem
dogmática? Quem pode ser, nesse processo, um estrangeiro?
Aparece aqui novamente a questão do fora: somente um pensamento do fora
pode, no interior do Estado e da Imagem dogmática, fissurar a hegemonia política e a
homogeneidade espaço-temporal do Estado. O fora é um contra-pensamento no interior da
Imagem e do Estado, o qual foge à captura, rompendo os segmentos e os corpos coletivos.
O fora ou o pensamento do fora é uma máquina de guerra: “colocar o pensamento em
relação imediata com o fora, com as forças do fora, em suma, fazer do pensamento uma
61
“Os gregos já passavam de um espaço estriado verticalmente, de cima para baixo, a um espaço centrado, às
relações simétricas e reversíveis em todas as direções, isto é, estriado em todos os sentidos de maneira a
constituir uma homogeneidade. Por certo havia ali como que dois modelos do aparelho de Estado, o aparelho
vertical do império, o aparelho isótropo da cidade. A geometria está no cruzamento entre um problema físico
e um assunto de Estado”. G. Deleuze & F. Guattari, Mil Platôs, vol. 5, p. 198.
62
“Os grandes corpos de um Estado são organismos diferenciados e hierarquizados que, de um lado, dispõem
do monopólio de um poder ou de uma função; de outro, repartem localmente seus representantes”. Id., p. 31
43
máquina de guerra, é um empreendimento estranho cujos procedimentos precisos pode-se
estudar em Nietzsche”.
63
Se Nietzsche foi o primeiro a criticar a Imagem dogmática de pensamento,
desmistificando-a, também foi o primeiro a denunciar a servidão do pensamento ao Estado.
Sob o domínio do Estado, “o pensamento seria por si mesmo conforme a um modelo
emprestado do aparelho do Estado, e que lhe fixaria objetivos e caminhos, condutos, canais,
órgãos, todo um organon”.
64
O interesse do Estado sobrepõe-se e subjuga o pensamento,
pois o Estado “não concebe um objetivo que não seja a seu bem e à sua existência”.
65
Nietzsche denuncia essa servidão pelas figuras do professor público e do erudito, homens
imbuídos do espírito de seu tempo: ambos enxergam no Estado, em sua conservação e
fortalecimento, o fim do pensamento e da educação: deve-se formar o bom cidadão, o
homem de negócios, o homem de ciência, o homem de Estado, o homem servil e útil.
Nietzsche expõe assim, materializado naquelas figuras, o atavismo da besta, a estupidez do
homem moderno, que quer somente o que quer o Estado, que busca somente o que está
dado na ciência pura e no puro conhecimento. Neles e por eles, o pensamento esquece a
verdade, porque pressupõe um verdadeiro no próprio pensamento; e eles, capturados pelo
Estado, tornados guardiães de valores e poderes estabelecidos, fazem do pensamento e
da educação — servidão, sujeição e clausura.
63
Id., p. 46.
64
Id., p. 43.
65
Nietzsche, Shopenhauer educador, p. 197.
44
Capítulo II
Aparelho de Estado e regime significante.
45
Não é o sujeito o autor dos atos de pensamento. Antes, todo sujeito é um
pensado pelo pensamento puro, donde eclode para permanecer sitiado pela Imagem que o
pensamento faz de si mesmo. O mesmo vale para o objeto e para a relação cognitiva que se
estabelece entre ambos, sujeito e objeto, que é a de reconhecimento, segundo a Imagem
dogmática, caso em que a cognição é, a rigor, recognição e representação. É no interior
dessa Imagem que tais conceitos e relações gerais são reproduzidos: todos produtos de um
ato de pensar anterior, ora suspenso na forma geral do senso comum e do bom senso. O
sujeito passa então a conceber a verdade e a reconhecer as coisas e a si mesmo pelas linhas
que demarcam as relações harmoniosas entre as faculdades que o constituem como tal. É a
razão, a inteligência, a imaginação, a percepção que atuam, portanto, no sujeito, como
faculdades, não mais o pensamento puro, aquele que o fez eclodir. Nos limites traçados por
essas faculdades é que o sujeito atua como legítimo ser pensante, o Eu penso, e não tem
mais nenhuma relação com o pensamento puro, a não ser como um seu fora.
Se o pensamento puro não se relaciona propriamente ou autenticamente com o
sujeito nem com o objeto, com o que se relaciona? É com a terra e o território que,
autenticamente, o pensamento puro relaciona-se: “pensar se faz antes na relação entre o
território e a terra”.
66
A terra é o solo sobre que se movem os territórios e, com eles, todas
as “coisas”, seus elementos. A rigor, é uma relação indiscernível, pois não terra sem
território e não território sem terra. A terra move-se ao mover-se o território e vice-
versa. Nessa relação, o que é o pensamento? É o que move ou o que faz mover, em
conjunto, terra e território. Pensar é puro movimento, é movimento puro em velocidade
66
G. Deleuze & F. Guattari, O que é a filosofia?, p. 113.
46
infinita
67
, produzindo planos. Não se trata de encontrar no território pontos fixos, de
referência, centros de significação e significância, muito menos de abrigar-se no interior do
sujeito ou na objetividade do objeto. O movimento infinito não opera por coordenadas
espaço-temporais, pelo deslocamento no espaço homogêneo: “orientar-se no pensamento’
não implica nem num ponto de referência objetivo, nem num móvel que experimentasse
como sujeito e que, por isso, desejaria o infinito ou teria necessidade dele”.
68
O infinito é o
movimento do próprio horizonte, horizonte absoluto que é, para o pensar filosófico, o plano
de imanência. Pensar é produzir um movimento que é, de uma vez e ao mesmo tempo,
um movimento de ida e volta, um raio que desloca terra e território. Contudo, “não é uma
fusão (...) é uma reversibilidade, uma troca imediata, perpétua, instantânea, um clarão”.
69
O
movimento infinito é, ao mesmo tempo, uma ida e uma volta instantâneas, em que o
pensamento e o verdadeiro aproximam-se e afastam-se de uma só vez e num mesmo
instante. Esse cruzamento instantâneo constitui-se num plano, que se perfaz num tear, um
gigantesco tear que não pára de tecer-se. Num raio, de uma só vez, constituem-se o
pensamento e a matéria do ser, Noûs e Physis, como a própria matéria expressiva do
pensamento, em que não se distinguem nem o conteúdo nem a expressão. Nesse sentido, a
imanência é esse pertencimento perpétuo entre o pensar e a terra, com seus territórios, um
girar composto por uma infinidade de cruzamentos singulares e dobras:
70
67
A imagem de pensamento só retém o que o pensamento pode reivindicar de direito. O pensamento
reivindica ‘somente’ o movimento que pode ser levado ao infinito. O que o pensamento reivindica de direito,
o que ele seleciona, é o movimento infinito ou movimento do infinito. É ele que constitui a imagem de
pensamento”. G. Deleuze, O que é a filosofia?, p. 53.
68
Id., p. 54.
69
Id., p 54.
70
“(...) há dobras por todos os lados, mas a dobra não é um universal. É um ‘diferenciador’, um ‘diferencial’.
Existem dois tipos de conceitos, os universais e as singularidades. O conceito de dobra é sempre um singular,
e ele só pode ganhar terreno variando, bifurcando, se metamorfoseando”. G. Deleuze, Conversações, p. 194.
47
diversos movimentos do infinito são de tal maneira misturados, uns com
os outros, que, longe de romper o Uno-Todo do plano de imanência,
constituem sua curvatura variável, as concavidades e as convexidades, a
natureza fractal de alguma maneira (...) Cada movimento percorre todo o
plano, fazendo um retorno imediato sobre si mesmo, cada um se
dobrando, mas também dobrando outros ou deixando-se dobrar,
engendrando retroações, conexões, proliferações, na fractalização desta
infinidade infinitamente redobrada (curvatura variável do plano).
71
É o pensamento que se dobra a si mesmo, como Physis, matéria expressiva, no
entrecruzamento das dobras, ao criar conceitos e ao instaurar um plano; de uma vez,
constitui conceitos e plano. É só depois desse instante, da dobra, do raio, dos conceitos e do
plano, que se percebem a paisagem e o rosto, que se distinguem o conteúdo e a expressão,
que se distinguem as formas do pensamento, a Physis do Noûs. O entrecruzamento entre o
pensamento puro e a terra, essa irrupção, é devir: pensar é devir. Paisagens e rostos são o
devir feito território, feito terra territorializada. Atravessada assim pelo movimento infinito
do pensamento, a terra constitui-se, de uma só vez, em territórios, paisagens e rostos: todos,
expressões imanentes da terra e do pensamento puro.
Embora seja expressão da terra e do pensamento, o Estado tem a função de
estriar, de dimensionar, de segmentar a terra em territórios hierarquizados e organizados em
coordenadas espaço-temporais. Nessas coordenadas, são enclausurados e acondicionados,
em estratos, os elementos da terra, isto é, as singularidades, os corpos singulares, o fluxo
turbilhonar da matéria, o phylum, o próprio pensamento puro. Cortar e canalizar o fluxo, a
matéria expressiva, conservar a forma, eis a função do Estado. Assim, por definição, o
Estado é sedentário e busca conservar-se. O que se estende, espraia sobre a terra é a
soberania política do Estado: o território ganha uma outra forma, as da paisagem e da
hegemonia do Estado. Desde então, o poder se exerce sob a dominância de dois pólos, uno-
71
G. Deleuze & F. Guattari, O que é a filosofia?, p. 55.
48
duo: o do rei-mago e o do sacerdote-jurista; o primeiro, corresponde ao “imperium do
pensar-verdadeiro”, o segundo, à “república dos espíritos livres”.
72
Se a Imagem dogmática
condiciona o pensamento puro a pressupostos, o Estado exerce o domínio sobre o território,
capturando, em seus pontos espaço-temporais, o movimento infinito do pensamento, as
forças da terra e o devir. Tudo o que é percebido e concebido são, portanto, paisagens e
rostos: as formas de expressão e as formas do conteúdo. Nesse sentido, pode-se dizer que
todo Estado, mesmo o moderno, é arqueológico. Assim, uma vez produzida a forma-
Estado, os processos de individuação de singularidades são, por ele, capturados, para ser
conservados e reproduzidos. O Estado conserva-se pela interiorização de sua forma.
73
Nesse processo de interiorização da forma-Estado, a Educação e o Ensino são
modos de individuação que atuam reproduzindo rostos e paisagens. Elevam a um ponto
ideal o processo de subjetivação, mediante a normalização do pensamento e da conduta.
Para isso, atuam diretamente sobre o fluxo material, a singularidade dos corpos, produzindo
cortes e reproduzindo uma mesma subjetividade geral, mediante a interiorização do Saber
e, por conseguinte, da forma-Estado. Nessa medida, são modos de subjetivação e de
significância que compõem o aparelho de captura do Estado. Pela Educação e o Ensino, o
Estado impõe seus traços e os traços que quer impor, suas variações, que são variações da
mesma Imagem. Para os sujeitos assim formados, o Estado aparece como realidade
indispensável, inultrapassável. Pela interiorização da forma-Estado, a ficção torna-se
realidade.
72
O rei-mago e o sacerdote-jurista “são os elementos principais de um aparelho de Estado que procede por
Um-Dois, distribui as distinções binárias e forma um meio de interioridade. É uma dupla articulação que faz
do aparelho de Estado um estrato”. G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 5, p. 12. Veremos que a forma-
Estado é a própria arborescência, que opera por uma lógica binária: um que se transforma em dois; dois que
se transformam em quatro... G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 1, p. 13.
49
Não se trata de conceber a Educação como um aparelho ideológico, à
semelhança da concepção althusseriano de escola,
74
mas unicamente de tê-la por um
processo permanente de produção de rostos — e paisagens, — que expressam e são
expressão de uma subjetividade geral interiorizada. A forma-Estado e o monopólio do
poder pelo Estado efetivam-se pela instauração e interiorização de uma semiologia geral,
cujo conjunto é composto por regime de signos significantes. Fazem parte desse processo
de subjetivação o Saber e a ciência régia, sem os quais o Estado moderno dificilmente
conseguiria efetuar e conservar a sua forma, em que assentam sua soberania e sua unidade
global. O Estado necessita de reconhecimento, daí o seu caráter permanentemente público:
o Estado não se oculta. A produção de uma subjetividade que reconheça a legitimidade e a
legalidade do aparelho de Estado é indispensável para a efetivação do poder e das funções
exercidas pelo Estado. A Educação, o Saber e a ciência régia, assim como a interiorização
da Imagem dogmática do pensamento, são processos que permitem a formação da
subjetividade geral conforme a forma-Estado.
73
“A forma-Estado, como forma de interioridade, tem uma tendência a reproduzir-se, idêntica a si através de
suas variações, facilmente reconhecível nos limites de seus pólos, buscando sempre o reconhecimento público
(o Estado não se oculta)”. Id., p. 24.
74
Em Aparelhos ideológicos de Estado, Althusser elege a Escola como o mais importante aparelho ideológico
da sociedade burguesa, o qual compõe, com as forças repressivas, o conjunto dos aparelhos de Estado. A
finalidade dos aparelhos de Estado é manter o poder da burguesia pela sujeição da classe proletária, ou seja,
reproduzir as relações de produção, que são relações de exploração capitalista. Já a ideologia não é mais do
que uma “representação da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência”. Para
Althusser, é na esfera ideológica que ocorre a verdadeira luta pelo poder. O poder não pertence ao Estado,
mas à classe que domina os aparelhos ideológicos, incluindo, sobretudo, a Escola. Daí, diz Althusser, a
preocupação de Lenin em revolucionar também o aparelho ideológico escolar para garantir, não apenas a
apropriação do poder pelo Estado, mas a passagem da ditadura proletária para o socialismo. Louis Althusser,
Aparelhos ideológicos de Estado.
Poderíamos dizer também que, para Deleuze e Guattari, as relações de poder não estão concentradas
num centro ocupado pelo Estado, mas que se dão em corpos diferenciados e hierarquizados sobre os quais o
Estado exerce o monopólio funcional e operatório da maquinaria social, produzindo cortes sobre o fluxo
desejante. Isso é possível porque, antes de tudo o Estado exerce o monopólio de uma subjetividade geral,
produzida pela interiorização da forma-Estado, pelo que o sujeito é, assim, capturado, fixado numa forma.
Não se trata, contudo, de um processo de reprodução ideológica, não existe ideologia, muito menos qualquer
coisa como a expressão imaginária de uma realidade não-explicitada, oculta. A máscara já é o rosto e o rosto é
50
O Saber constitui o oitavo postulado da Imagem dogmática do pensamento,
75
último postulado. Como último postulado, reúne em si os demais, recolhendo-os,
recapitulando-os. O Saber pressupõe, sob a generalidade dos conceitos, um conjunto de
regras e de soluções como respostas prontas a supostos problemas.
76
Assim, pelo Saber,
se problematiza o que tem uma resposta prevista e, consequentemente, uma solução
possível. O Saber funciona como um reservatório de enunciados para solução de supostos
problemas que estão dados no campo da experiência, do senso comum, do bom senso e
da recognição. Nessa medida, ele supõe a harmonia das faculdades na resolução desses
problemas ou o que quer dizer o mesmo, representa para essa harmonia um de seus
pressupostos. Entende-se porque o Saber é o postulado que recapitula os demais: nele, se
reproduzem, em silêncio, os demais pressupostos da Imagem dogmática, pois é de seu
interior que falam a boa vontade do sujeito e a afinidade do pensamento com o verdadeiro,
como fins do próprio exercício de pensar: conservar o senso comum, promover o bom
senso.
a própria máscara: “a máscara não esconde o rosto, ela o é”, não havendo, portanto, nada a revelar ou a ser
revelado atrás do que aparece. G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 2 e 5.
75
São oito os postulados que formam a imagem dogmática do pensamento, alguns mencionados e descritos
no primeiro capítulo deste trabalho. Tais postulados “esmagam” o pensamento na imagem dogmática do
Mesmo e do Semelhante, impedindo e traindo “profundamente” o verdadeiro pensamento, o pensamento
puro, “sem imagem”. São eles: “1°, postulado do princípio ou da Cogitatio natura universalis (boa vontade e
boa natureza do pensamento); 2º, postulado do ideal ou do senso comum (o senso comum como concordia
facultatum e o bom senso como repartição que garante a concórdia); , postulado do modelo ou da
recognição (a recognição instigando todas as faculdades a se exercerem sobre um objeto supostamente o
mesmo e a possibilidade de erro que daí decorre na repartição, quando uma faculdade confunde um de seus
objetos com outro objeto de uma outra faculdade); 4°, postulado do negativo ou do erro (onde o erro exprime
ao mesmo tempo tudo o que pode acontecer de mal no pensamento, mas como produto de mecanismos
externos); 5°, postulado da função lógica ou da preposição (a designação é tomada como o lugar da verdade,
sendo o sentido tão-somente o duplo neutralizado da proposição ou sua reduplicação indefinida); 6º,
postulado da função lógica ou da proposição (a designação é tomada como o lugar da verdade, sendo o
sentido tão-somente o duplo neutralizado da proposição ou sua reduplicação indefinida); , postulado da
modalidade ou da soluções (sendo os problemas materialmente decalcados sobre as proposições ou
formalmente definidos pela possibilidade de serem resolvidos); 8º, postulado do fim ou do resultado,
postulado do saber (a subordinação do aprender ao saber e da cultura ao método). G. Deleuze, Diferença e
repetição, p. 272.
76
Id., p. 269.
51
Pensar seria assim procurar soluções, uma vez que se sabe, de antemão,
distinguir o verdadeiro do falso. Não há dissenso no Saber, a não ser na forma de erro. Mas,
na posse da distinção, o mestre, o professor é capaz de identificar o erro e suplantar um
possível dissenso. É ele a autoridade que possui a solução, a resposta: é o que sabe. Sob
essa crença, repousa também uma expectativa: o Ensino. É preciso que soluções sejam
apresentadas, é preciso que se transmita o resultado, porque é necessário saber separar o
verdadeiro do falso, condição de todo Saber. Sob a Imagem dogmática, tanto o Saber
quanto o Ensino não dispensam, pois, o método pelo qual se possa descobrir a resposta
adequada a uma questão. É a subordinação do aprender ao Saber e da cultura ao método.
Desse modo, o Saber se reproduz e se acumula, expulsando do pensamento o contra-senso e
o paradoxo.
Contudo, semelhante prática está na origem “de uma grotesca imagem da
cultura, que se reencontra igualmente nos testes, nas instruções governamentais, nos
concursos de jornais (...) Seja você mesmo, ficando claro que este eu deve ser o dos
outros”.
77
O Saber reproduz, portanto, um mesmo Eu pelo formalismo dos conceitos, das
proposições gerais e da forma geral da recognição; mas também, pela interiorização de
regras de solução e do método como procedimentos que repetem mecanicamente modelos
cognitivos.
78
A normalização cognitiva não deixará jamais de ter reflexos sobre a conduta.
77
Id., p. 259.
78
Em Bergsonismo, Deleuze destacara também a concepção apresentada em Diferença e repetição, referente
à questão do problema, da solução e do saber: “cometemos o erro de acreditar que o verdadeiro e o falso
concernem somente às soluções, que eles começam apenas com as soluções. Esse preconceito é social (pois a
sociedade, e a linguagem que dela transmite as palavras de ordem, ‘dão’-nos problemas totalmente feitos,
como que saídos de ‘cartões administrativos da cidade’, e nos obrigam a ‘resolvê-los’, deixando-nos uma
delgada margem de liberdade). Mais ainda, o preconceito é infantil e escolar, pois o professor é quem ‘dá’ os
problemas, cabendo ao aluno a tarefa de descobrir-lhes a solução”. G. Deleuze, Bergsonismo, pp. 8-9.
52
Nesse processo de repetição mecânica de soluções pelo Saber, perde-se a
gênese de construção do próprio problema, pois o problema é justamente aquilo que
implica a solução e o o contrário. Não é a solução que define o problema. Nessa outra
perspectiva, desloca-se o sentido da distinção do verdadeiro e do falso, que não concerne à
procura da resposta conforme à solução esperada do já dado na experiência e no Saber, mas
justamente do que foge à própria distinção entre o verdadeiro e o falso. “O problema ou o
sentido é o lugar de uma verdade originária e, ao mesmo tempo, a gênese de uma verdade
derivada”.
79
Pode-se dizer que, agora, o problema põe à prova a imagem do pensamento,
uma vez que coloca em xeque o próprio sentido da distinção do verdadeiro e do falso. Ele é
anterior à própria proposição ou é o que cai fora do circuito proposicional, fora, pois, do
Saber.
80
E pode ser compreendido à medida de sua solução. Consequentemente, ao se
construir o problema como tal, deve-se recolocar a questão do método e do próprio pensar
verdadeiro, os quais o podem ser concebidos como pressupostos ao problema. Também
por isso é que o problema suscita o não-senso e o contra-senso, poder-se-ia dizer
igualmente, suscita a aparição de um sujeito de vontade, um eu rachado,
anticartesiano.
81
Assim, é o problema que implica a gênese de sua solução. Em síntese,
tanto o problema quanto a solução são invenções, nunca descobertas, nunca algo já dado na
experiência, nunca um Saber constituído, mas uma experimentação que implica uma
pedagogia que não mais submeta o aprender ao Saber, o pensamento ao método. Essa
79
G. Deleuze, Diferença e repetição, p. 259.
80
“Que sentido é esse que o problema confere à enunciação conceitual? Não se trata da significação imediata
das proposições: estas reportam-se apenas a dados (ou estados de coisas), que carecem justamente eles
próprios da orientação, do princípio de discriminação, da problemática que lhes permitiria ligarem-se, isto é,
fazerem sentido. Os problemas são atos que abrem um horizonte de sentido, e que subtendem a criação dos
conceitos: uma nova postura do questionamento, abrindo uma perspectiva inabitual sobre o mais familiar ou
conferindo interesse a dados até então reputados insignificantes”. François Zourabichvili, O vocabulário de
Deleuze, Problema, p. 90.
53
experimentação e essa pedagogia fazem-se na constituição do próprio problema, no
movimento do pensamento que pensa o seu próprio ato de pensar.
82
Contudo, decalcando o problema na solução e sem compreendê-lo como ato
constitutivo do sentido de suas próprias proposições, o Saber reveste-se de generalidades e
se satisfaz com verdades derivadas, verdades da inteligência, erigidas desde “a forma vazia
das proposições gerais (equações, teoremas, teorias...)”.
83
Ele não retém o singular presente
no problema, não problematiza as condições de sua constituição, isto é, não problematiza o
acontecimento.
84
Por essa razão, está restrito à forma lógica das proposições e aos estados
de coisas a que as proposições se referem, ou seja, estão restritos ao campo da experiência
dada, das formas e funções gerais. E a forma lógica não afasta, por si só, a besteira.
85
O Saber diz respeito, portanto, à proposição em geral, teoremas, teorias,
equações, e também aos estados de coisas. Implica a consciência da expectativa da prévia
solução e não, do problema, não remetendo, desse modo, a nenhum acontecimento, como
singularidade irredutível ao dado na experiência.
81
O método cartesiano (a busca do claro e do distinto) é um método para resolver problemas tidos como
dados, não um método de invenção, próprio para a constituição dos problemas e a compreensão das
questões”. G. Deleuze, Diferença e repetição, p. 263.
82
Um pensamento para o qual “não haja mais forma universal do objeto possível mas irredutíveis
singularidades, efrações de não-reconhecível às quais responde, a cada vez, ao longo de ‘uma experimentação
tateante”. François Zourabichvili, O vocabulário de Deleuze, Problema, p. 90. É nessa medida que o problema
suscita uma outra pedagogia que se estende para além da forma proposicional-argumentativa.
83
G. Deleuze, Diferença e repetição, p. 266.
84
É o conceito que diz o acontecimento, não a essência. E todo conceito remete a um problema ou a
problemas “sem os quais não teria sentido”. Daí que as condições do problema não podem ser um simples
estado de coisas, como coisas ou objeto referido no espaço; as condições não podem ser outra senão uma
singularidade, isto é, o próprio acontecimento. G. Deleuze & F. Guattari, O que é a filosofia? , pp. 27-35.
85
“(...) as condições de verdade de uma proposição, a validade de um raciocínio, em outras palavras, seu
caráter informativo, não garantem absolutamente que tenham sentido ou interesse, isto é, que reportem a um
problema. Isso significa que o ponto de vista da lógica não protege da tolice”. Fronçois Zourabichvili, O
vocabulário de Deleuze, Problema, p. 93. A consistência argumentativa dá-se então pela singularidade do
acontecimento, inseparável da colocação e da construção do problema, bem como da redefinição do que é
pensar.
54
É dessa mesma forma que atua a ciência gia. Ela condiciona e restringe o
elemento-problema em favor do elemento-teorema. A ciência régia é teoremática. Isso a
faz, diferentemente de uma ciência nômade ou ambulante, uma ciência de Estado. Ser
teoremática significa privilegiar a medida, a métrica, a lei, que apreendem a singularidade e
a multiplicidade a um estado de coisas ou a corpos organizados num espaço homogêneo e
num tempo cronológico e lidam somente com tais generalidades. A ciência régia corta o
fluxo material, o phylum, e o fixa em modelos reprodutíveis, tornando-os constantes
observáveis e previsíveis. “Reproduzir implica a permanência de um ponto de vista fixo,
exterior ao reproduzido: ver fluir, estando na margem”.
86
Esse estado exterior ao próprio
fluxo material confere à ciência régia poder para agir sobre ele e controlá-lo. Ela torna-se
então autônoma relativamente ao problema, passando a atuar unicamente na perspectiva da
solução. Sua estratégia é transformar o problema, “incluindo-o em seu aparelho teoremático
e em sua organização do trabalho”.
87
O aparelho teoremático da ciência régia assegura ao Estado o poder legislativo
sobre o território e a terra e os elementos que compõem esse território. Em vez de um plano
de consistência ou composição, sobre o qual se estendem e movem-se singularidades, tem-
se um plano de organização e de formação, povoado de organismos e relações sedentárias,
a partir do qual se ergue um esquematismo que reduz a matéria expressiva ao conteúdo
expresso e à forma de expressão.
88
Recai-se assim na forma gica proposicional e nos
estados de coisas e de corpos organizados no espaço-tempo homogêneo. Perde-se o fluxo.
86
G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 5, p. 40.
87
Id., p. 42. Diferentemente da ciência nômade e ambulante, que segue o fluxo material e não se cansa de
inventar problemas e confundir-se com a realidade, a ciência régia interpõe entre ela e a realidade um poder
métrico e legal, canalizando a multiplicidade e as singularidades do fluxo material num espaço estriado e
homogêneo, em vez de seguir a experimentação dessa realidade flutuante. A ciência régia elege como seu
paradigma a lei e o logos, isto é, a ordem das razões.
88
Id., p. 35.
55
A ciência régia não quer seguir, quer controlar. O plano de organização é onde se estende o
ordenamento dos estados de coisas, reunidos em estratos, por coordenadas proposicionais,
e expressos por equações, teorias, leis e todas as variáveis que o controle do fluxo material
exigir recortar e reproduzir.
89
A ciência régia organiza todo um sistema de controle teoremático sobre o plano
de organização, controle que a permite agir sobre o fluxo material, convertendo as
multiplicidades intensivas desse fluxo em formas úteis e controláveis. O teorema coagula o
fluxo em estado de coisas e aprisiona-o em modelos significantes de um regime de signos
significantes. Operação que distingue e separa o trabalho intelectual do trabalho manual, o
trabalho teórico do prático, “copiada da diferença ‘governantes-governados”.
90
Essa
distinção e coagulação molar permitem à ciência gia tornar-se, ela mesma, num saber
assimilável ao próprio Estado, compondo um de seus aparelhos, à medida que subordina a
produção intelectual ao léxico oficial.
91
É dessa forma que os grandes axiomatistas são homens de Estado da ciência
(...) e fazem uma política oficial da ciência. São os herdeiros da concepção teoremática da
geometria”.
92
Assim como o Saber apresenta respostas adequadas para a solução de
pretensos problemas, a ciência régia fornece ao homem de Estado “idéias justas”, que são
conforme a verdade ou ao verdadeiro pressuposto na Imagem dogmática do pensamento. A
ciência gia insere-se, portanto, na Imagem dogmática, que constitui a sua herança
89
“Tanto nas ciências nômades como nas ciências gias, encontraremos a existência de um ‘plano’, mas que
de modo algum é o mesmo. Ao plano traçado diretamente sobre o solo do companheiro gótico opõe-se o
plano métrico traçado sobre papel do arquiteto fora do canteiro. Ao plano de consistência ou de composição
opõe-se um outro plano, que é de organização e de formação”. G. Deleuze & f. Guattari, Mil platôs, vol. 5, p.
35.
90
Id., p. 34.
91
“O Estado não confere um poder aos intelectuais ou aos conceptores; ao contrário, converte-os num órgão
estritamente dependente, cuja autonomia é ilusória, mas suficiente, contudo, para retirar toda potência àqueles
que não fazem mais do que reproduzir ou executar”. Id., p. 35.
56
filosófica, o seu lastro e o seu plano formativo. É por isso que o filósofo oficial, de Estado,
pode ceder lugar a outros especialistas, ao sociólogo, ao cientista político, ao historiador, ao
lingüista, ao psicanalista... Mas também ao físico, ao químico, ao biólogo...
A captura é infinita, desde que se elimine a ação do pensamento puro, os
descaminhos da experimentação. Ter idéias justas é, pois, o requisito para se obter a patente
e o ingresso na forma-Estado e, para tanto, o pressuposto é ter uma subjetividade produzida
pela interiorização dessa forma.
93
A teoremática da ciência régia converte-se numa
axiomática de Estado, passando a vigorar entre elas uma relação circular e complementar.
Oportunas serão, para o Estado, as noções de universalidade, de método, de juízo, de
reconhecimento e de recognição, todas permitindo e possibilitando descobrir soluções para
supostos problemas que o Estado tem de dar conta. Os axiomas e os teoremas compõem o
rol das idéias justas. É dessa forma que se instituem, se organizam e trabalham uma
“república de espíritos livres”, “um tribunal da razão”, “uma sindicância do
entendimento”.
94
Sempre idéias justas, convertidas em axiomática pelo aparelho de Estado.
Assim, um axioma compõe uma organização de poder. Pertence ao plano de
organização, inserido na ordem das razões, sob a forma de teoremas e leis, demarcando um
estado de coisas correspondente. O axioma corta as conexões do fluxo material,
coagulando-o em pontos num sistema hierárquico. Faz situar, assim, o fluxo em pontos e
permite agir sobre ele através de comandos previamente estabelecidos. Elabora-se todo um
sistema de pontos hierarquizados sobre o que era antes um fluxo mais ou menos caótico,
imprevisível. É preciso pôr em ordem esse fluxo, ordená-lo em suas flutuações e variações
92
Id., p. 162.
93
Segundo a relação Imagem dogmática-Estado, o pensamento “inventa um Estado propriamente espiritual,
como um Estado absoluto, que não é de forma nenhuma uma quimera, visto que funciona efetivamente no
espírito”. G. Deleuze & Claire Painet, Dialogues, p. 20.
94
Id., p. 20.
57
caóticas, em vez de segui-lo. A axiomática é o que permite a execução de uma estrutura que
reconduz as flutuações e as variações ao ponto no sistema teoremático. Procede-se “uma
operação de recodificação, uma reposição em ordem nas ciências” ao se coagular as linhas
flutuantes descodificadas em pontos referidos no sistema. Desse modo, efetiva-se “toda
uma política que exige que tais linhas sejam colmatadas, que uma ordem seja
estabelecida”.
95
As linhas fogem com o sistema, são desestruturantes e desestruturadoras,
são desterritorializantes; a axiomática é, contudo, sua captura, a conservação variante do
plano de organização em sua universalidade. Pode-se afirmar que um axioma é a
redundância do enunciado, tornada palavra de ordem e compondo um Saber, que deve ser
exercido para que a estrutura não fuja por situações imprevistas e incontroláveis. O axioma
desempenha, nesse processo, a mesma função da lei.
O fluxo é a realidade ou a própria consistência, o devir, que se movimenta por
heterogeneidades, por multiplicidades singulares, conectadas através de linhas
entrecruzadas num emaranhado, compondo uma hecceidade.
96
A hecceidade é a
individuação das linhas, constituindo um singular qualquer, uma singularidade, que liga e
reúne sempre multiplicidades de multiplicidade conexas ao emaranhado de linhas num
plano de consistência. A hecceidade não é um ponto, um rosto, uma pessoa, um sujeito,
uma substância, uma coisa; é um singular, afetado e afetando outras singularidades,
movendo-se atravessado por linhas que o constituem e lhe dão consistência. O fluxo é esse
movimento de linhas emaranhadas. É o devir ou a própria consistência do real.
A lei ou o axioma cortam o devir, desconectam as multiplicidades, retendo o
singular na forma de uma substância, de um eu, de uma matéria dotada de logos. Instaura-
95
Id., p. 81.
58
se, para além da consistência, um plano de organização. Sobre um tal plano, aparecem as
formas, os sujeitos, os órgãos, as funções, os rostos, as paisagens, os estados de coisas.
Todos, compondo agora estratos e estratificações, linhas duras, segmentos que estabelecem
relações justas e previsíveis. É assim que um corpo singular torna-se um organismo, um
homem, uma mulher, uma criança, uma molécula qualquer, um móvel num plano
inclinado... O segmento é a soberania do ponto sobre as linhas: o devir tornado estrato.
Desde então, a linha não vai mais do que de um ponto a outro numa estrutura hierárquica e
homogênea, qual um móvel deslocando-se de um ponto A a um ponto B, na contiguidade
do espaço estriado e de um tempo cronológico.
O axioma instala condutos e canos para controlar o fluxo turbilhonar do devir.
Esse é o papel da ciência gia: controlar o fluxo e colocá-lo a serviço do homem de
Estado. O axiomatista é aquele cuja função é manter o caráter legislativo tanto do Estado
quanto da ciência régia. Em outros termos, sua preocupação é expulsar o que escapa ao
teoremático. Nesse sentido, a ciência gia de Estado é uma ciência hidráulica e também
cinemática:
o Estado precisa subordinar a força hidráulica a condutos, canos, que
impeçam a turbulência, que imponham ao movimento ir de um ponto a
outro, que imponham que o próprio espaço seja estriado e mensurado, que
o fluido dependa do sólido, e que o fluxo proceda por fatias laminares
paralelas”.
97
O Estado disciplina o fluxo em segmentaridades e o prende a um centro
gravitacional. Assim, o movimento é visto sempre de uma perspectiva estática, sempre a
partir de um ponto gravitacional, à margem do próprio fluxo, de um ponto que ocupa o
96
“... o devir e a multiplicidade são uma só e mesma coisa” e “o plano de consistência só contém hecceidades
segundo linhas que se entrecruzam”. G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 4, p. 33, p. 47 e p. 50.
97
G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 5, p. 28.
59
buraco negro central, pelo que tudo se articula. Toda captura dar-se-á desde esse ponto
situado sobre o plano de organização. O que é capturado é sempre o que quer, de algum
modo, escapar à ordem interna do sistema significante, ordem expressa pela axiomática do
homem de Estado e pela teoremática da ciência régia.
A forma-Estado ocupa, ao mesmo tempo, o fundo do buraco negro e a
superfície do muro branco: é o grande rosto sobre a paisagem e, ao mesmo tempo, todos os
outros rostos derivados que compõem a paisagem sobre a qual a forma-Estado se estende e
expande-se, como unidade global. É que o pensamento não se efetiva sem um sujeito real,
isto é, sem que o Eu penso esteja encarnado neste eu empírico. A relação entre a Imagem
dogmática de pensamento, tornada razão legisladora, e o Estado, tornado unidade política
soberana, não se realizaria, permanecendo uma ficção, sem o rosto que encarne a forma-
Estado.
98
O rosto é sempre um porta-voz e uma política. “Um rosto: sistema muro branco-
buraco negro”.
99
No Rosto, toda uma burocracia kafkiana que se mostra e se faz de
forma ostensiva, mas, ao mesmo tempo, cercada, desde seu interior, por uma neblina difusa
e discreta, dura em sua composição, atuando como ponto de subjetivação e centro de
significância: muro branco e buraco negro central ordenador. Assim,
o rosto não é um invólucro exterior àquele que fala, que pensa ou que
sente. A forma do significante na linguagem, suas próprias unidades
continuariam indeterminadas se o eventual ouvinte não guiasse suas
escolhas pelo rosto daquele que fala (...) Uma criança, uma mulher, uma
mãe de família, um homem, um pai, um chefe, um professor primário, um
98
“O Estado proporciona ao pensamento uma forma de interioridade, mas o pensamento proporciona a essa
interioridade uma forma de universalidade”. É nessa troca entre a razão e o Estado que “o senso comum, a
unidade de todas as faculdades como centro do Cogito, é o consenso de Estado levado ao absoluto”. E isso
não se efetiva sem que a forma-Estado não inspire uma imagem de pensamento e vice-versa. G. Deleuze & F.
Guattari, Mil platôs, vol. 5, pp. 44-45.
99
G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 3, p. 32.
60
policial, não falam uma língua geral, mas uma língua cujos traços
significantes são indexados nos traços de rostidade específicos. Os rostos
não são primeiramente individuais, eles definem zonas de freqüência ou
de probabilidade, delimitam um campo que neutraliza antecipadamente as
expressões e conexões rebeldes às significações conformes. Do mesmo
modo, a forma da subjetividade, consciência ou paixão, permaneceria
absolutamente vazia se os rostos não formassem lugares de ressonância
que selecionam o real mental ou sentido, tornando-o antecipadamente
conforme a uma realidade dominante. O rosto é, ele mesmo,
redundância.
100
A produção de rostos, a rostificação é, ao mesmo tempo, a produção de
subjetividade e de significância, respectivamente sistema buraco negro e muro branco. É a
individuação subjetivada, o singular sobrecodificado num rosto, tornado significante. Nesse
sentido, o rosto envolve e executa toda uma organização de poder. Ele não é o poder, mas
todo poder passa e se exerce através dele. Desse modo, a axiomática inscreve-se e emana
do rosto de quem fala e de quem ouve. “o rosto é, ele mesmo, redundância”. A redundância
filtra os enunciados e impõe uma gramaticalidade, convertendo-os em palavra de ordem. É
pela redundância ou pelo rosto que a palavra torna-se palavra de ordem, que o significante é
selecionado no interior da ressonância e é inscrito no muro branco da significância. É
através do rosto que toda palavra significante, toda significância pode ser considerada como
justa e também como um axioma. Um rosto apropriado a uma paisagem será sempre
razoável. O rosto é sempre uma política e a rostificação, uma ordem de razões.
101
A produção de rosto implica a passagem de um estrato a outro: de um corpo
singular tornado organismo, de um organismo tornado rosto em uma paisagem. São
movimentos de desterritorialização e reterritorialização. Com a rostificação, o corpo entra
nos estratos de significância e de subjetivação, tornando-se organismo. “A mão, o seio se
reterritorializam sobre o rosto, na paisagem: eles são rostificados ao mesmo tempo que
100
Id., p. 32.
61
paisageificados”.
102
Nesse processo, ocorre a organização de uma semiótica, de um regime
de signos que se inscreve no muro branco, ao mesmo que se interioriza no interior do
buraco negro: é a produção de subjetividade. A dominância de um regime de signos sobre
outro é correlatada à produção de uma subjetividade geral ou de um rosto e uma paisagem
dominantes, isto é, à constituição de um plano de organização ocupado por um centro de
significância. Esse centro é definido e demarcado pela redundância do rosto. O Rosto
dominante é, pois, um centro difuso e difundido sobre o plano de organização, que funciona
e faz funcionar os pontos segmentares e as linearidades duras dos estratos.
É preciso que o sistema buraco negro-muro branco quadricule todo o
espaço, delineie suas arborescências ou suas dicotomias, para que o
significante e a subjetividade possam apenas tornar concebível a
possibilidade das suas. A semiótica mista de significância e de
subjetivação necessita singularmente ser protegida contra qualquer
intrusão do fora. É preciso mesmo que não haja mais exterior: nenhuma
máquina nômade, nenhuma polivocidade deve surgir, com suas
combinações de substâncias de expressão heterogênea. É preciso uma
única substância de expressão como condição de qualquer
traduzibilidade.
103
A partir do buraco central ordenador procede-se uma função mais geral do
processo de rostificação: abiunivocidade” e a “binarização” dos rostos. “Só se pode
formar uma trama de subjetividades se se possui um olho central, buraco negro que
capturaria tudo o que excedesse, tudo o que transformasse os afetos atribuídos o menos
do que as significações dominantes”. Desde esse centro gravitacional ordenador, estende-se
101
Id., p. 35.
102
Toda uma animação de corpos acontece no processo de rostificação. Não apenas o organismo torna-se
rosto; coisas, objetos, ferramentas, utensílios animam-se, subjetivados e significados. “Mesmo um objeto de
uso será rostificado: sobre uma casa, um utensílio ou um objeto, sobre uma roupa, etc., dir-se-á que eles me
olham, não porque se assemelhem a um rosto, mas porque estão presos ao processo muro branco-buraco
negro”. Id., p. 41.
103
Id., pp. 46-47.
62
uma rede hierárquica de subjetividades dicotômicas, que captura os traços de rostidade
desviantes, condicionando-os a uma subjetividade geral dominante:
o deslocamento do buraco negro na tela, o percurso do terceiro olho na
superfície de referência constitui tanto dicotomias e arborescências como
máquinas com quatro olhos que são rostos elementares ligados dois a
dois. Rosto de professora e de aluno, de pai e de filho, de operário e de
patrão, de policial e de cidadão, de acusado e de juiz (...) os rostos
concretos individuados se produzem e se transformam em torno dessas
unidades, dessas combinações de unidades.
104
Com o processo de rostificação apresenta-se um campo de significância e de
subjetivação que situa cada rosto, organizado binária e biunivocamente, num lugar no
interior de uma paisagem, numa organização de poder que o permite passar ou não, agir
dessa forma ou não, conforme um ordenador de normalidade e de significação. O que pode
um rosto? A resposta a essa pergunta encontra-se na significância que envolve e atravessa o
próprio rosto, seus traços, suas linhas, suas possíveis flutuações e variações binárias:
de qualquer modo, você foi reconhecido, a máquina abstrata inscreveu
você no conjunto de seu quadriculado. Compreende-se que, em seu novo
papel de detector de desvianças, a máquina de rostidade não se contenta
com casos individuais, mas procede de modo o geral quanto em seu
primeiro papel de ordenação de normalidades.
105
A significância se expande e amplia-se ao capturar as variações do Rosto
dominante a partir da biunivocação ou da binarização. A função geral é uma função binária
e o rosto é toda uma política. O que pode um rosto dependerá então do ponto que se ocupar
na hierarquia do plano de organização, que elege um ponto central ideal inscrito no muro
104
Id., p. 44.
105
Id., p. 45.
63
branco, no centro de significância, e no fundo do buraco negro, no mais interior de toda
subjetividade. É dessa forma que
se podem constituir cadeias significantes procedendo por elementos
discretos, digitalizados, desterritorializados, com a condição de dispor de
uma tela semiótica, de um muro que os proteja. Só se podem operar
escolhas subjetivas entre duas cadeias ou a cada ponto de uma cadeia,
com a condição de que nenhuma tempestade exterior arraste as cadeias e
os sujeitos (...) É pelos rostos que as escolhas se guiam e que os elementos
se organizam: a gramática comum nunca é separável de uma educação dos
rostos”.
106
A forma-Estado, a ciência gia, os axiomas, os teoremas, a própria ngua
inscrevem-se nos rostos. Todos compõem um regime de signos que, longe de ser
ideológico, constitui concretamente tanto o significante quanto a subjetividade: demarca, no
plano de organização, o campo perceptivo, o léxico cognitivo, a língua, o discurso, a
realidade dominante, todos gravitando através das linhas duras e dos traços variáveis do
Rosto dominante.
107
É necessário assinalar sempre uma semiótica como uma estrutura significante a
que corresponde uma organização do poder, uma ordem das razões, uma razoabilidade.
Condutas razoáveis são as assimiláveis ao campo significante, conforme a hierarquização
binária dos traços desviantes capturados.
Fazendo da matéria forma de conteúdo e de expressão, a ciência régia compõe o
aparelho de Estado e a Imagem dogmática do pensamento. Tal qual o Estado, é sedentária e
trabalha sempre tendo em vista o Saber, a organização do Saber, bem como da experiência
106
Id., p.47.
64
dada, embora não dispense conteúdos apropriados de experimentações realizadas pela
ciência nômade. Assim como a axiomática, a ciência régia põe-se sempre do lado do Saber
constituído e do Ensino, de uma Educação oficial, pela qual será possível formar
subjetividades capazes de reconhecer suas proposições, formulações, teoremas e leis. A
ciência régia pressupõe, por conseguinte, a harmonia e a unidade das faculdades sob a
forma geral do senso comum, isto é, a representação e a recognição como pressupostos de
sua operacionalidade, de sua efetivação e de sua ão para controlar o movimento
turbilhonar dos fluxos materiais, das multiplicidades infinitas da terra. Assim, toda uma
percepção é igualmente formada: não se percebe o turbilhonar, não se percebem as linhas
flutuantes, os fluxos, as singularidades. O pensamento estancou e, coagulado, tornou-se
somente a expressão formal de um mesmo Mundo e de um mesmo Eu, sobre os quais
suporta apenas variações capturáveis e nada mais. O pensamento perdeu a terra e o fora
como uma força coercitiva; é agora calma interioridade. Não se é ou não se torna um
axiomatista, um homem de Estado, sem interiorizar os pressupostos da ciência régia e do
Saber, se não se é também um teoremático, um homem de ciência. A suposta neutralidade
das ciências é uma questão eminentemente política, visa a expulsar toda exterioridade em
favor do pensamento oficial de Estado. É que o Rosto dominante não deixa passar a não ser
o que lhe convém, o que é apenas sua variança binária biunívoca. A relação de poder é,
portanto, exercida e inseparável da ciência régia como constituinte do Saber oficial do
Estado, cuja interiorização representa a expansão da forma-Estado e da subjetividade geral
que essa forma exige. É desse modo que a ciência régia institui e propala o modelo legal do
107
A significância e a subjetivação “têm em comum exatamente o fato de esmagar qualquer polivocidade, de
erigir a linguagem em forma de expressão exclusiva, de proceder por biunivocização significante e por
binarização subjetiva”. Id., p. 48.
65
Saber e se entranha sorrateira no interior da Educação, do Ensino. É o triunfo do logos
sobre o nomos.
Esse triunfo representa a soberania da lei e do ideal de reprodução da ciência
régia sobre o fluxo material desviante, sobre a singularidade. Ao mesmo tempo e do mesmo
modo, significa a dominância do senso comum e da harmonia das faculdades do sujeito
pensante e razoável, do Eu penso como forma universal Rosto dominante de
recognição e de representação sobre “um singular cheio de vontade”, sobre o “homem
do subsolo”, o eu rachado, “que não dispõe de compasso para traçar um rculo”.
108
Traçar
círculos, fazer condutos, fixar a singularidade e a multiplicidade em pontos, submetê-las a
veredas métricas, a estratos e a segmentos no espaço estriado, eis a função da ciência régia.
O Eu penso é, ele mesmo, um rosto segmentar e segmentário. Seus traços são passos
ritmados por compasso, régua e esquadro. Saber usar tais recursos pressupõe a sublime
harmonia das faculdades e, assim, todos os pressupostos da Imagem dogmática do
pensamento.
O logos abandonou a terra. Essa a diferença entre a lei e o nomos
109
: a lei
abandona a terra, aprisionado-a. Não se trata mais de seguir o fluxo, mas de aprisioná-lo:
inconcebível pensar um corpo sem ligá-lo à lei gravitacional. A atração universal tornou-se
“a lei de toda a lei, na medida em que regula a correspondência biunívoca entre dois
corpos; e cada vez que a ciência descobrir um novo campo, tentará formalizá-lo segundo o
modelo do campo gravitacional”.
110
Assim, tudo deve ser dito e expresso sob um regime de
108
G. Deleuze, Diferença e repetição, p. 217.
109
“O nomos é a consistência de um conjunto fluido: é nesse sentido que ele se opõe à lei, ou à polis, como o
interior, um flanco de montanha ou a extensão vaga em torno de uma cidade”. G. Deleuze & F. Guattari, Mil
platôs, vol. 5, p. 51.
110
G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 5, p. 37.
66
signos ou uma semiótica específica e especializada. O nomos não acumula poder
justamente por não se desgrudar da terra, por segui-la e por não abandonar o turbilhão
próprio aos fluxos materiais. Encontra-se próximo demais do caos para dele separar-se
totalmente, para organizar-se num regime de signos autônomo e auto-referente. O nomos
está sempre conectado e em conexão com o singular e, desse modo,
tudo está tomado numa zona objetiva de flutuação que se confunde com a
própria realidade. Seja qual for sua fineza, seu rigor, o ‘conhecimento
aproximativo’ continua submetido a avaliações sensíveis e sensitivas que
o impelem a suscitar mais problemas do que os que pode resolver: o
problemático permanece seu único modo.
111
O nomos funciona por cortes descontínuos que não formam jamais um sistema.
Por isso, é sempre uma expressão singular da matéria, a forma de expressão de uma ciência
ambulante, nômade, que trabalha com a itinerância imposta pelos problemas. A ciência
ambulante está submetida assim à força da exterioridade.
A forma de exterioridade situa o pensamento num espaço liso que ele
deve ocupar sem poder medi-lo, e para o qual não método possível,
reprodução concebível, mas somente revezamentos, intermezza, relances.
O pensamento é como o Vampiro, não tem imagens, nem para constituir
modelo, nem para fazer cópia.
112
A exterioridade tem como forma um phatos no pensamento, faz do pensamento
um antilogos, um nomos irredutível ao sujeito, à recognição, à harmonia das faculdades e
ao senso comum. Enquanto a ciência de Estado baseia-se e opera por modelos, decalcando
o problema na solução, ao submetê-lo ao aparelho teoremático e à organização axiomática
do trabalho, a ciência ambulante faz do pensamento acontecimento, faz do pensamento um
problema que implica a redefinição do que é pensar, em vez de pressupor uma Imagem do
pensamento. A ciência ambulante é uma atividade própria do pensamento nômade. “A vida
111
Id., p. 40.
67
nômade é um intermezzo”,
113
um duplo devir, cuja consistência decorre entre-dois tornados
indiscerníveis. Processo que faz do pensamento um singular, também uma singularidade
que não pode ser reproduzida e, por conseguinte, interiorizada e decalcada na forma de uma
universalidade. O pensamento nômade “não recorre a um sujeito universal, mas, ao
contrário, invoca uma raça singular; e não se funda numa totalidade englobante, mas, ao
contrário, desenrola-se num meio sem horizonte, como espaço liso, estepe, deserto ou
mar”.
114
Inversamente, “a imagem clássica do pensamento, a estriagem do espaço
mental que ela opera, aspira à universalidade”.
115
A Imagem dogmática funciona apenas
mediante a instituição do imperium e da república. “Entre um e outro, todos os gêneros do
real e do verdadeiro encontram seu lugar num espaço mental estriado, do duplo ponto de
vista do Ser e do Sujeito, sob a direção de um ‘método universal”.
116
Assim, a forma-
Estado e o aparelho de Estado se constituem instaurando uma semiologia geral, pela qual os
traços de expressão do phylum material são convertidos em formas de expressão que
subjugam o próprio phylum capturado. Nessa captura, “a matéria não passa de um conteúdo
comparado, homogeizado, igualizado, ao passo que a expressão se torna forma de
ressonância ou de apropriação”.
117
O que começa pelo Estado é a captura do pensamento
por um regime significante. O aparelho de captura do Estado é uma operação semiológica:
“o aparelho de captura constitui um espaço geral de comparação e um centro móvel de
apropriação. Sistema muro branco-buraco negro”.
118
112
Id., p. 47.
113
Id., p. 51.
114
Id., p. 49.
115
Id., p. 49.
116
Id., p. 49.
117
Id., p. 140.
118
Id., p. 140.
68
Mediante esse processo de produção de subjetividade e de significância, o
Estado procede e define-se continuamente pela captura de singularidades desviantes
subjugadas por um semiologia geral num regime significante, fora do que a
exterioridade, o que não pode ser apreendido. A captura é essa potência de
apropriação
119
do Estado. Através dela, o Estado captura tudo o que pretende escapar à
axiomática, ao centro de significância, à sua semiologia geral. Desse modo, todas as linhas
são transformadas em segmentos duros, são estratificadas num esquematismo legal,
quadricular. “Quando o Estado surge, é sob a forma de um corte irredutível”.
120
Entretanto,
o corte não se dá num único instante e definitivamente; o corte é a própria potência de ação
do Estado: não Estado sem que não haja um processo permanente de produção de cortes
nas linhas que compõem a fluxo material, o phylum. Assim,
o Estado (...) é um fenômeno de intra-consistência (...) Ele opera por
estratificação, ou seja, forma um conjunto vertical e hierarquizado que
atravessa as linhas horizontais em profundidade. Ele retém, portanto,
tais e tais elementos cortando suas relações com outros elementos que,
então, se tornam exteriores em profundidade (...) se o Estado tem ele
mesmo um circuito, é um circuito interior que depende primeiro da
ressonância, é uma zona de recorrência que se isola assim do resto da
rede, pronto a controlar ainda mais estritamente as relações com esse resto
(...) Também o poder central do Estado é hierarquizado e constitui um
funcionariato; o centro não está no meio, mas no alto, uma vez que ele
pode reunir o que isola por subordinação”.
121
A recorrência é o rosto, o grande Rosto no interior do buraco negro, a forma-
Estado não existe sem esse Rosto, pois, em si mesmo, o centro de significância é vazio, é
um nada de significação, assim também toda semiótica, a língua, a linguagem: é sempre um
rosto que fala, que emite um enunciado, ordens, é sempre um rosto que ri, que mata. O
119
Id., p. 128.
120
Id., p. 118.
121
Id., p. 123.
69
muro branco inscreve-se sempre num rosto. E o corte, o corte é sempre a captura, processo
de produção em que a linha se converte numa estrutura de pontos mais ou menos maleável,
mas sempre fechada sobre si mesma, um estrato, um conjunto a abocanhar o que, de algum
modo, quer escapar ao sistema, ao regime significante. Além dessa estrutura, o que existe é
o fora: a exterioridade absoluta. A captura é o fecho do sistema, sua retro-alimentação, algo
que se estende entre a redundância e a ressonância, para eliminar a entropia. Por sua vez, a
linha de fuga é uma tangente singular ao sistema, não está nem num estrato, nem num
outro, mas exatamente entre, no meio. A linha de fuga é a dobra que resiste e recusa ser
redobrada sobre si mesma; resiste a converter-se numa linha presa de um ponto a outro.
Antes, é a linha que cruza perpendicular entre os pontos, fazendo-os convergirem num
indiscernível. Por isso, toda linha de fuga é uma intensidade, não por resistir, mas, e
exatamente por isso, por criar algo exterior e irredutível: o fora.
Portanto, tudo o que é capturado é uma dobra sobre si mesma, uma redobra: um
organismo, um rosto, uma coisa, um estado de coisas, um sujeito, uma palavra, um
enunciado, uma proposição, uma lei, um significado, um significante... Tudo isso faz
estratos e estratificações, hierarquias arborescentes.
70
Capítulo III
Arborescência e rizoma: centro de significância e linhas de fuga:
variantes e invariantes do regime significante.
71
Um rosto, um indivíduo, uma pessoa, as coisas, somos todos atravessados e
constituídos por linhas. São as linhas que compõem o que somos e a paisagem onde nos
encontramos. diferentes tipos de linha. As mais aparentes são as duras, as linhas do
rosto, da paisagem. Essas formam segmentaridades duras, estratos. São linhas que vão de
um ponto a outro num sistema horizontal e verticalmente hierarquizado. São elas que
estriam o espaço liso, esquadrinhando-o metricamente, tornando-o um espaço estriado,
onde se movem os indivíduos, os sujeitos, onde estão situados os estados de coisas, sobre
os quais paira o regime significante. Essas linhas compõem as segmentaridades duras,
como a significância, a subjetividade e o organismo, e constituem os aparelhos de Estados.
Assim, “todos os grupos centrados, hierarquizados, arborescentes, assujeitados: partidos
políticos, movimentos literários, associações psicanalíticas, famílias, conjugalidades...”
122
são compostos por essas linhas. Através delas, passa-se de um estrato a outro, de um
segmento a outro, de um círculo a outro, sem se fugir ao cerco subjetivo e significante:
existe aí, como para cada um de nós, uma linha de segmentaridade dura
em que tudo parece contável e previsto, o início e o fim de um segmento,
a passagem de um segmento a outro. Nossa vida é feita assim: não apenas
os grandes conjuntos molares (Estados instituições, classes), mas as
pessoas como elementos de um conjunto, os sentimentos como
relacionamentos entre pessoas são segmentarizados, de um modo que não
é feito para perturbar nem para dispersar, mas ao contrário para garantir e
controlar a identidade de cada instância, incluindo-se aí a identidade
pessoal (...) Conjugalidade. Todo um jogo de territórios bem
determinados, planejados. Tem um porvir, não um devir.
123
122
G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 2. p. 68.
123
G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 3, p. 67.
72
A segmentaridade é ao mesmo tempo binária: linear e circular. Atravessa-se e
se é atravessado por diferentes segmentos num processo ininterrupto.
124
O ponto é a
inflexão da linha, é ele que a faz dura e estabelece o limiar fronteiriço entre um estrato e
outro. A binaridade, circularidade e linearidade dos segmentos, faz-se nos pontos,
formando um tecido quadricular. Esse cruzamento, esse ponto de inflexão é o que demarca
o limiar e também o que permite a passagem de um estrato a outro. Num regime
significante, tudo deve convergir e emanar de pontos sobre uma linha, sobre a
segmentaridade dura.
São, pois, as linhas duras e os pontos, compondo estratos, que fazem de um
corpo singular qualquer um organismo e uma mulher, que é filha, aluna, cidadã, professora,
amante e mãe, com todas as paisagens e estados de coisas que envolvem cada segmento,
podendo existir, entre eles, num mesmo instante, passagens, sobreposições de linhas e
pontos. São estratos que um ”corpo singular qualquer” não pode não ser senão como um
negativo, isto é, como um corpo esfacelado, sem rosto, destruído. “Os principais estratos
que aprisionam o homem são o organismo, mas também a significância e a interpretação, a
subjetivação e a sujeição”.
125
A singularidade irrompe à superfície para ser logo recolhida
num centro, numa cavidade de subjetivação, a partir de que é praticamente impossível
liberar-se. Essa captura ocorre de forma tão imperativa, tão abrangente por todos os lados,
que se passa a desejar cada um dos estratos, deseja-se passar por eles, cada um a seu tempo,
como se passa assim pela vida.
124
“Ora os diferentes segmentos remetem a diferentes indivíduos os grupos, ora é o mesmo indivíduo ou o
mesmo grupo que passa de um segmento a outro. Mas sempre estas figuras de segmentaridade, a binária, a
circular, a linear, são tomadas umas nas outras, e até passam umas nas outras, transformando-se de acordo
com o ponto de vista”. Id., p. 84.
125
G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 2, p. 90.
73
A linha dura é binária, porque tem como eixo a Árvore. A binaridade
arborescente é o processo de produção de dicotomias hierarquizadas que parte e se refere
sempre a um ponto superior, a um centro de significância de um conjunto de signos
dominantes. A rotação do eixo binário é concêntrica, pois atrai todas as dicotomias a um
centro gravitacional, ao mesmo tempo em que se irradia ocupando todo o espaço. “A
Árvore é de arborescência ou princípio de dicotomia; ela é eixo de rotação que assegura
a concentricidade; ela é estrutura ou rede esquadrinhando o possível”. É dessa forma que a
mulher é possível em relação ao homem, a criança em relação ao adulto, os filhos em
relação aos pais, o aluno em relação ao professor. E, sempre quando arborescência,
um centro de poder convergente-irradiante: a segmentaridade não impede a centralização, a
centralização não impede a segmentaridade, pois um centro comum atravessa todos os
segmentos.
O centro arborescente o é localizável num único e mesmo ponto no espaço-
tempo. A Árvore é uma imagem: Imagem-mundo, Imagem-Estado a enraizar o homem
num território do qual não pode escapar, a não ser apenas negativa ou relativamente,
permanecendo, no centro, a Imagem invariante. Por essa razão, a arborescência é o centro
de significância de um regime de signos significantes. Por ser invariante e estar em todos os
lugares, a Árvore-imagem faz de si mesma o centro de significância e um lugar vazio: uma
universalidade interiorizada, habitando rostos e paisagens. Esse movimento de rotação
binária e biunívoca confere à Árvore-imagem toda a sua potência de captura.
74
O vazio do centro é o vazio do signo, extrema sobrecodificação redundante.
126
Esta a fórmula geral de um regime significante: “o signo remete ao signo, e remete tão
somente ao signo, infinitamente”.
127
Vazio do signo, redundância-ressonância do Rosto:
deslocamento invariante da Imagem. É somente nos limites da cadeia significante que o
signo confere a si mesmo a sua significância. Assim, “o ilimitado da significância substitui
o signo”.
128
O signo deixou de ser um fora do pensamento, pois alcançou um alto grau de
desterritorialização relativa e, sobrecodificado, não força mais a pensar, sem um
território para dar sentido, nenhum acontecimento. Toda relação passa a ser interna à cadeia
significante: “atmosferização ou mundanização dos conteúdos. Abstrai-se, então, o
conteúdo”. O significante torna-se um continuum amorfo. A terra é esmagada pelo Mundo
e toda potência do signo, da exterioridade do signo ao pensamento, esgota-se na remissão
de signo a signo numa cadeia, numa atmosfera sempre significante. Esvaziado de sua força,
“o signo que remete ao signo é atingido por uma estranha impotência, por uma incerteza,
mas potente é o significante que constitui a cadeia”.
129
O vazio do signo implica, pois, toda
potência do centro de significância e da Árvore-imagem, Imagem-Mundo. Percorrer esse
vazio ou deixar-se prender no significante é interiorizar a Imagem. É no percurso da
circularidade infinita que o signo significante efetua-se e efetua a produção de
subjetividades afins, desejantes de estratos arborescentes que as aprisionam.
130
126
O signo vazio é o significante, isto é, um signo preso na malha da lingüística, um signo que perdeu a força
da coerção, da violência que impele o pensamento a pensar desde de um fora, desde um não-pensado. Da
mesma forma, o vazio do signo significante não se compara jamais ao vazio dos estóicos, que faziam do vazio
o lugar do acontecimento e do sentido, lugar do não-senso e do paradoxo. O signo vazio é, ao contrário, o sem
sentido. G. Deleuze, gica do sentido, p. 139.
127
G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 2, p. 62.
128
Id., p. 62.
129
Id., p. 63.
130
Vale citar, à guisa de digressão, esta passagem e indagar até que ponto o paranóico não expressa o desejo
de reencontrar a terra, um território, encontrar o signo cuja força o faria lançar além do significante, sem,
contudo, poder livrar-se do vazio da cadeia, sucumbindo a esse vazio: “Eis porque o paranóico participa dessa
impotência do signo desterritorializado que o assalta por todos os lados na atmosfera escorregadia, mas ele
75
A circularidade infinita de signo a signo impõe uma tarefa igualmente infinita,
interminável. O regime significante detém o sujeito em círculos estratificados ou segmentos
significantes, dos quais não pode sair sem cair ou retomar um outro. sempre uma dívida
a ser paga e um credor a financiá-la infinitamente. E o sujeito é ao mesmo tempo credor e
devedor, uma vez que é ele quem percorre a circularidade infinita dos signos vazios. Cada
indivíduo e estado de coisas designado caem numa circularidade recorrente.
Contudo, a diversidade circular do regime significante não permite a qualquer
um que salte de qualquer maneira. “Não se salta de qualquer jeito, nem sem regras”.
131
toda uma axiomática do salto, que se justifica teorematicamente, isto é, moralmente. Os
saltos são regulados por proibições, das quais os pontos de inflexão do sistema arborescente
funcionam simultaneamente como porta de passagem e tranca. Há sempre um rosto que não
pode passar com suas linhas e suas coisas, assim como rostos muito bem-vindos. Um
dos modos de violar as regras de salto é a trapaça. O trapaceiro é o rosto que desloca a
cena, que faz passar sem dever passar, violando uma regra específica do salto, sem violar,
contudo, o sistema, pois a trapaça pertence ao próprio regime significante. “Há uma trapaça
fundamental no sistema”.
132
É pela trapaça que o sistema expulsa o ruído e tudo o que pode
destrui-lo, promovendo assim a recolocação do centro significante e a expansão incessante
dos círculos ou da espiral. Essa trapaça vital ao sistema é a interpretação. A interpretação
desloca o signo significante em direção ao significado para dar a esse uma nova forma. A
rede significante é agora um eixo paradigmático a moldar, pela interpretação, um
significado conforme. Ou seja, o a produção de um novo signo ou uma nova forma,
acede ainda mais ao sobrepoder do significante, no sentimento real de cólera, como senhor da rede que se
propaga na atmosfera. Regime despótico paranóico: eles me atacam e me fazem sofrer, mas eu adivinho suas
intenções, eu os antecipo, eu o sabia durante todo o tempo, tenho o poder até em minha impotência, ‘eu os
vencerei”. Id., p. 63.
131
Id., p. 64.
76
mas, sim, a expansão da malha significante sobre um conteúdo qualquer ainda não
abstraído ou capturado. Atividade também incessante, a interpretação opera fazendo passar
os signos entre os círculos, os círculos entre si, movendo a espiral e o centro significante
para que o sistema permaneça ainda o mesmo, isto é, invariável em seu centro de
significância. O grau mais alto de interpretação é o silêncio significativo: quando não
mais nada a interpretar, sinal de que o sistema tornou-se autônomo, se auto-interpreta. O
Mundo possui nele mesmo a chave de sua explicação, o Mundo se explica por isso que ele
é: nada há para pensar além do já pensado, somente interprete.
O signo vazio somente ganha corpo no rosto.
O significante se reterritorializa no rosto. É o rosto que a substância do
significante, é ele que faz interpretar, e que muda, que muda os traços,
quando a interpretação fornece novamente significante à sua substância
(...) O significante é sempre rostificado. A rostidade reina materialmente
sobre todo esse conjunto de significâncias e de interpretações (...) O deus
déspota nunca escondeu o seu rosto, ao contrário: criou para si um e
mesmo vários. A máscara não esconde o rosto, ela o é. O sacerdote
manipula o rosto de deus. Tudo é público no rosto do déspota, e tudo o
que é público o é pelo rosto. A mentira, a trapaça pertencem
fundamentalmente ao regime significante, mas não o segredo. .
133
A produção de subjetividade, o processo de subjetivação é, portanto, o
mecanismo pelo qual o signo ganha sua concretude, se efetiva e torna-se palpável,
perceptível e real. O centro de significância, bem como o eixo paradigmático de expansão
circular do regime significante, encontra-se instalado no interior da subjetividade de cada
sujeito situado num estrato arborescente e é expresso pelo rosto. O rosto é sempre um
132
Id., p. 64.
77
porta-voz. É pelo rosto dominante e pela paisagem que o Mundo é reconhecido. É nos
rostos que o sujeito enxerga as relações binárias dicotômicas, as hierarquias, as relações de
poder constituídas, todas as representações e as recognições para poder circular sobre um
plano de organização e, assim, passar de um círculo a outro. A rostidade é esse processo
pelo qual o significante se efetiva e se reproduz, estando o centro de significância no
interior de cada subjetividade e expresso pelas linhas duras e traços de cada rosto, sistema
muro branco-buraco negro: é sempre um rosto que fala, que emite e recebe o significante: o
rosto é o significante em pessoa.
Assim, o que impede que o significante caia dentro de si mesmo, do vazio da
remissão signo-signo, é a segmentaridade dura própria do rosto. Nesse caso, o rosto é um
ícone, é o que efetiva as “operações de reterritorialização que constituem, por sua vez, o
significável”.
134
É sobre a segmentaridade dura do rosto que a sobrecodificação do
significante se reterritorializa.
135
Mas, é sobre ela também, que o significante sofre
permanentemente sua desterritorialização, que é a do significante como significante ou a do
signo como expressão lingüística, ou a do signo como símbolo. Nesse ponto, o signo
alcançou seu mais alto grau de desterritorialização relativa,
136
ele flameja flutuante sobre
estado de coisas designável,
137
ele sopra da boca de um rosto para o ouvido ou os olhos de
133
Id., p. 66. “O rosto cristaliza o conjunto das redundâncias, emite e recebe, libera e recaptura os signos
significantes. É, em si mesmo, todo um corpo: é como o corpo do centro de significância no qual se prendem
todos os signos desterritorializados, e marca o limite de sua desterritorialização”. Id., pp. 66.
134
Id., p. 62.
135
“O rosto é o Ícone próprio ao regime significante, a reterritorialização interior ao sistema”. Id., p. 66.
136
Id., p. 62.
137
O índice são estados de coisas territoriais. É o designável. Contudo, no regime significante, tanto o índice
quanto o ícone estão submetidos a um processo de desterritorialização pelo significante, o qual faz deslizar o
signo numa rede infinita de significante a sigId.,1569(f)7.69778(i)7.01205( )-3.01205(p)6.0241(p)-6.0241(4241(i)0.891205(,)-3.0142(1569(f78252(n..89126(e)-1.241(o)-6.0241(s)(8252(o)-6.014) (,)-3.0142(1569(f)7.-1.241(o)(r)-4.35041(r( )-3.01205( )-3.01205( )-3.011(b)-18.0723(m)18..011(b)-181261205(,)-3.0142(1569(12051205( )90723(m)1( )-99.31205( )90723(m)1( )-99)0.89126(t)0.89126(a)-1.782u26(s)3.45,)-3.0142(1569(f)7.-14.35041(d)6.0241(.)-3.01205(,)-3.0241(a)-1.78252.89126(e)-1.782541(n)6.063976(a)-1.78252( )-98252(z)-1.73.01502(I)-4.35041(d)6t3(m)18..018(i)-11.1569( )-39.1566(m)6.9153998(e)]TJ0340(sTd[(s)3.45s)-8.58904()3.45915(i)0.89126(g)(t)0.89126(a)-1904(ú.0241(á)-1.78252(v)6.0241(e)02412 0 9)-3.01205(o)-6.0241(s)3.45768( )4202(i)0.894202(z)-1.78252(a)-3.45915( )-51.2048(o)6.6(e)-1..78252.891e)-1.78252( )-12 0 9) )-135.542(s)3.45915(i)]TJ207.96 0 Td[(g)-6.0241(n)6.09251205(,)-3.0142(6(e)-1.-3.4591-4.3-51.2048(o)6.0241( )-51.2048(de)-1.78252( )-12 0 9)8252(a)-1.78252(n)-6.é126(o)-6.0241(r)-4.302412 0 9)-3.01205(oJ199.8 0 Td[(2 0 9))-6.0241(4241(i)0.890241( )-3.01205(1(n)6.0241(t)-11u26(s)3.45,)-3.0142(ã1(c)-1.30241(u)6.02)6.0241(e)02412 0 9).78252.89126(e)-1.789.3976(s)3(i)]TJ207ü1(i)0.8901205( )-518252(s)-8.582(s)-8.59052(t)0.89142(1569(12051205( )90e)-1.78252( )-12 0 9)é199.8 0 Td[(2 0 9)051205( )902(r)-4.3508252(s)-8.58904(s)3.0142(1569(f78252(n..89414.48 -11-1.78252(v)6.0241(e)-1.78252(l)0.8.542(o)-6.0241( )-48(t)0.89126(e)-1.782( )-39.1566(u)-6.02.78252.891v2( )-99.3976(r)-4.d1(e)-1.782)6.0241(e)02412 0 9)241(.)-3.09126(o)-6.0241(r)-4.3 )-12 0 9) )a)-1.782526(c)-1.78252(a)-1.7041(e)10.2657(2 0 960241(o)-6.0241( )-27.1ó541(n)68063976(a)-1241(o)-6.0241( )-27.123(m)18..018252(a)-1.704142(073135.542(o)-6.025 0 Td[(s)3.45(n)6.0241(52( )-27.1084(c)-179( )250]TJ-412.32 3-1.78252(d)-6”12.32 3-1.6.0241(n)6.0241(i)-11.P)-1(.)-3.0.78252( )-98252(z)i)0.89126(g)-6.63(s)3.45768( )-39.156,.0241(n)6.0241(i)-11.8252(a)-1.7041(e)d)-652(o)-18.07.0241(d)-6.0241(o)-6.,.0241(n)6.0241(i)-11.q1(e)-1.782i psieopo: Ín(i)0.891l45915(i)-11.1569(g)-
78
um outro rosto. O signo flutua e atinge o seu significado na rede infinita do regime
significante.
138
Daí o trabalho infinito da interpretação, que é correspondente à expansão do
reino do significante. A questão das disciplinas da comunicação, marketing, a informática,
o design, deve ser vista a partir da supremacia da interpretação e do significante, que
representa o abandono do pensamento puro, do acontecimento e do conceito, abandono da
terra esmagada pelo Mundo.
O regime significante é produzido por uma máquina abstrata de
sobrecodificação. É essa máquina que define a segmentaridade dura, as linhas duras dos
segmentos. É ela a responsável pela disposição e pelas relações arborescentes dos
segmentos, pois os reproduz, “opondo-os de dois em dois, fazendo ressoar todos os seus
centros, e estendendo um espaço homogêneo, divisível, estriado em todos os sentidos”.
139
A máquina abstrata opera situando, deslocando os centros dos segmentos, dos estratos
arborescentes e hierárquicos:
organiza os enunciados dominantes e a ordem estabelecida de uma
sociedade, as línguas e os saberes dominantes, as ações e sentimentos
conformes, os segmentos que ressoam sobre outros. A máquina abstrata
de sobrecodificação assegura a homogeneidade dos diferentes segmentos,
sua convertibilidade, sua tradutibilidade, regula as passagens de uns sobre
os outros e sob qual prevalência.
140
Essa máquina não é o Estado, mas concerne sempre ao aparelho de Estado, uma
vez que a sobrecodificação consegue efetivar-se reterritorializada através dos
mecanismos de captura realizados pelo aparelho de Estado. A máquina abstrata de
sobrecodificação efetiva-se unicamente pelo Estado. É o Estado que captura a flutuação do
signo significante, atuando qual uma caixa de ressonância e, assim, procedendo a
138
Id., p. 62.
139
G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 3, p. 104.
79
redundância necessária para se manter a organização interna do regime significante. Sem
essa captura, o signo significante cairia no vazio ou flutuaria para longe do centro
gravitacional de significância. Isso faz com que o processo de captura seja uma “operação
semiológica por excelência”.
141
O que é capturado é o signo, remetido de centro a centro,
de estrato a estrato, inscrito no muro branco, atravessando o buraco negro, sendo fixado no
rosto, formando um sujeito. O modo de individuação por centro de significância e
subjetivação, o processo de rostificação ocorre, portanto, simultaneamente à interiorização
da forma-Estado, sem o que tudo fugiria pelos lados, por todos os lados. Esse processo de
individuação requer toda uma organização de poder, evidenciando tanto a fragilidade do
sistema quanto a necessidade de torná-lo ainda mais abrangente e universal. O controle
precisa ser exercido permanentemente, necessita ser interiorizado, tem de se tornar sujeição
voluntária.
Entende-se também porque a linguagem é palavra de ordem, da mesma forma
que toda verdade da inteligência é uma verdade abstrata, pois perdeu a força exterior que
move por dentro o pensamento puro. Perdeu-se, pois, a força do signo, a singularidade do
acontecimento. Restaram o enunciado e a arborescência da linguagem e da língua, que
aparecem e se estruturam sempre por uma organização de poder. A palavra de ordem é um
marcador de poder e compõe uma gramaticalidade arborescente.
142
É necessário situar o
140
G. Deleuze & Claire Parnet, Dialogues, p. 156.
141
“O aparelho de captura constitui um espaço geral de comparação e um centro móvel de apropriação.
Sistema muro branco-buraco negro (...) Um ponto de ressonância circula num espaço de comparação e,
circulando, traça esse espaço (...) Em vez de traços de expressão que seguem um phylum maquínico e o
esposam numa repartição de singularidades, o Estado constitui uma forma de expressão que subjuga o
phylum: o phylum ou a matéria não passa de um conteúdo comparado, homogeneizado, igualizado, ao passo
que a expressão se torna forma de ressonância ou de apropriação. O aparelho de captura, operação
semiológica por excelência...” G. Deleuze e F. Guattari, Mil platôs, vol. 5, p. 140.
142
“A unidade elementar da linguagem — o enunciado — é a palavra de ordem. Mais do que o senso comum,
faculdade que centralizaria as informações, é preciso definir uma faculdade abominável que consiste em
emitir, receber e transmitir as palavras de ordem (...) Uma regra de gramática é um marcador de poder, antes
de ser um marcador sintático. A ordem não se relaciona com significações prévias, nem com uma organização
80
signo vazio dentro do continuum amorfo donde extrai sua consistência significante e
remetê-lo ao trabalho permanente da interpretação para que, da rede significante, encontre e
expresse também um significado. A palavra de ordem desempenha então o papel de
autoridade significante pela enunciação de um discurso previamente reconhecido como
portador de uma autoridade de interpretância. Não é, não pode e não deve ser qualquer
rosto que fala sobre qualquer coisa.
143
Sobre um rosto adequado cola-se o signo vazio ou
significante, já pressuposto um ordenamento de poder expresso na palavra de ordem. Não é,
portanto, jamais o próprio enunciado que explica esse ordenamento ou que pode esclarecê-
lo, cai-se no círculo infinito da interpretose. Esse ordenamento encontra-se alhures, além do
processo infinito de interpretação, isto é, nos pressupostos implícitos da própria
enunciação: “um tipo de enunciado pode ser avaliado em função de suas implicações
pragmáticas, isto é, de sua relação com pressupostos implícitos, com atos imanentes ou
transformações incorpóreas que ele exprime, e que vão introduzir novos recortes entre os
corpos”.
144
Essa implicação entre o enunciado, o agenciamento coletivo, as transformações
incorpóreas e as circunstâncias externas à enunciação faz da pragmática e não da lingüística
uma política da língua. “A verdadeira intuição não é o juízo de gramaticalidade, mas a
prévia de unidades distintas, mas sim o inverso”. “Se a linguagem parece sempre supor a linguagem, que
não se pode fixar um ponto de partida não-lingüístico, é porque a linguagem não é estabelecida entre algo
visto (ou sentido) e algo dito, mas vai sempre de um dizer a um dizer. Não acreditamos, a esse respeito, que a
narrativa consista em comunicar o que se viu, mas em transmitir o que se ouviu, o que um outro disse. Ouvir
dizer”. G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 2, pp. 12-13.
143
“Ao eixo sintagmático do signo que remete ao signo se acrescenta um eixo paradigmático onde o signo
assim formalizado talha para si um significado conforme (...) O sacerdote interpretativo, o adivinho, é um dos
burocratas do deus-déspota. Surge um novo aspecto da trapaça, a trapaça do sacerdote: a interpretação
estende-se ao infinito, e nada jamais encontra para interpretar que não seja uma interpretação. Assim, o
significado não pára de fornecer novamente significante. A forma vem sempre do significante. O significado
último é então o próprio significante em sua redundância ou seu excedente’. É totalmente inútil pretender
ultrapassar a interpretação, e mesmo a comunicação, pela produção de significante, já que é a comunicação de
interpretação que serve sempre para reproduzir e para produzir significante”. Id., p. 65.
144
Id., p. 23.
81
avaliação das variáveis interiores de enunciação em relação ao conjunto das
circunstâncias”.
145
É no encontro dos corpos que se situa o lugar de produção do enunciado,
encontro cujas relações, os recortes, o enunciado expressa. É um outro vazio, o vazio de
significância provocado pelo acontecimento, o incorpóreo que se estende na superfície dos
corpos. Já o signo vazio pressupõe um recorte nos corpos e, do incorpóreo, o regime
significante consegue deter a forma do próprio significante, presente na estrutura
arborescente de uma axiomática e de uma teoremática, na estrutura da ciência régia e da
gramaticalidade de uma língua. Tudo isso é possível por um processo de subjetivação e
por um permanente movimento de significância que efetivam um regime de signos e se
efetiva pela enunciação.
146
A palavra de ordem é, por conseguinte, uma faculdade que
atravessa e imprime, no sujeito, o comando ou os comandos explícitos e que faz indolente à
consciência, ao espírito, à razão a ordem presente na enunciação.
147
Perde-se o
agenciamento coletivo dos corpos de que resultam as transformações incorpóreas expressas
no enunciado. Não é o agenciamento mesmo que é retido no enunciado, mas a
enunciação.
148
Constitui-se assim uma estrutura de sujeição pelo discurso indireto,
149
através da enunciação, do que se ouve dizer, na instantaneidade da palavra de ordem. É
dessa forma que a sujeição é, ao mesmo tempo, o abandono do acontecimento, do
agenciamento, da singularidade, do conteúdo expresso ou da matéria expressiva. Uma
145
Id., p. 23.
146
“Não existe significância independente das significações dominantes nem subjetivação independe de uma
ordem estabelecida de sujeição. Ambas dependem da natureza e da transmissão das palavras de ordem em um
campo social dado”. Id., p. 17.
147
A palavra de ordem é uma faculdade pelo que se interioriza a sujeição através das “características
estranhas” que a constituem: “uma espécie de instantaneidade na emissão, na percepção e na transmissão das
palavras de ordem; uma grande variabilidade, e uma potência de esquecimento que faz com que nos sintamos
inocentes diante das palavras de ordem que seguimos, e depois abandonamos, para acolher outras em seu
lugar; uma capacidade propriamente ideal ou fantasmática na apreensão das transformações incorpóreas; uma
aptidão para apreender a linguagem sob a forma de um imenso discurso indireto”. Id., p. 24.
148
“A palavra de ordem é, precisamente, a variável que faz da palavra como tal uma enunciação”. Id., p. 21.
82
sujeição que já se constitui como sujeição voluntária: um obedecer-se a si mesmo do Eu, da
razão, a palavra de ordem interiorizada.
150
O primeiro na ordem da sujeição, ou na ordem
das razões, é a palavra de ordem. Limiar do processo de subjetivação e de significância.
Eis o que se propaga na Imagem dogmática do pensamento: a sujeição
voluntária. A palavra de ordem marca o sujeito como o traço profundo da sujeição, tarefa
última da subjetivação, e o faz situar-se num ponto da segmentaridade dura de um plano de
organização arborescente; o faz desejar a hierarquia sobre um plano previamente
constituído, plano que se mantém suspenso no regime significante. A transmissão é a
palavra de ordem sob a qual se sustentam a coerência interna do senso comum e o bom
senso, formas pelas quais a sujeição se propaga.
Toda a teoria racionalista clássica, de um “senso comum”, de um bom
senso universalmente compartilhado, fundado na informação e na
comunicação, é uma maneira de encobrir ou de ocultar, e de justificar
previamente, uma faculdade muito mais inquietante que é a da palavra de
ordem. Faculdade singularmente irracional que caucionamos ainda mais
quando a abençoamos com o nome de razão pura, nada senão a razão
pura...
151
A palavra de ordem é a redundância do sistema, isto é, a sua variação
invariante. O que se ganha? O Mundo, a identidade do Eu, o Cogito, a Razão, a soberania
do Estado, a renovação infinita do Contrato. O que se perde? O pensamento puro, a terra, a
multiplicidade singular, a diferença como diferença. Tudo se conserva pela harmonia
binária realizada a partir do Mesmo, de que decorrem a igualdade, a semelhança, a
dicotomia dos rostos, os valores, o dever, tudo isso reunido em modelos axiomáticos
revestidos com a forma do racional. A transmissão e a comunicação dessa Imagem
149
“O discurso indireto é a presença de um enunciado relatado em um enunciado relator, a presença da
palavra de ordem na palavra”. Id., p. 23.
150
Id., p. 25.
83
dogmática reproduzem tanto a significância quanto a interpretose. Significância e
interpretação compõem uma segmentaridade tão dura e redobrada sobre si mesma, que faz
sentirmo-nos, quase todos, sempre saudáveis e curáveis: a sujeição voluntária se constitui
pela indolência da palavra de ordem.
152
O rosto dominante se impõe e, com ele, efetivam-se
o centro de significância e o significante. É a captura dos corpos e do desejo. A sujeição
voluntária é a interiorização do rosto dominante e a captura do desejo, ponto ximo do
processo de subjetivação. Tem-se agora, na forma da subjetividade geral, forma-Estado, um
desejo de repressão de tudo o que se desvia das significações dominantes.
153
Um corpo singular qualquer se tornou, portanto, mulher, filha, aluna... Deseja
ser mãe e também amante. Assim também, um professor deseja simplesmente ensinar aos
seus alunos; um aluno deseja tão simplesmente aprender o que se lhe ensina. São as formas
e as funções definindo, qualificando os corpos estratificados, o que os corpos podem e não
podem realizar sobre cada estrato. De um estrato a outro e de um lado a outro, somos
atravessados por segmentos, “somos segmentarizados por todos os lados e em todas as
direções. O homem é um animal segmentário. A segmentaridade pertence a todos os
estratos que nos compõem. Habitar, circular, trabalhar, brincar: o vivido é segmentarizado
151
Id., pp. 24-25, nota 15.
152
“A significância e a interpretação têm a pele tão dura, formam com a subjetivação um misto tão aderente,
que é fácil acreditar que se está fora delas enquanto ainda as secretamos. Ocorre que denunciamos a
interpretação, mas apresentando-lhe um rosto de tal modo significante que a impomos ao mesmo tempo ao
sujeito, que continua, para sobreviver, a se alimentar dela”. Id., 95. Podemos caracterizar essa aporia de o
paradoxo do mestre ignorante, que, apesar de sua ignorância, permanece portador das linhas significantes do
rosto de mestre.
153
“Não senão o microfascismo para dar uma resposta à questão global: por que o desejo deseja sua
repressão, como pode ele desejar sua repressão?”. G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 3, p. 93. “Como
é possível que pessoas que não têm interesse nele sigam o poder, se liguem estreitamente a ele, mendiguem
uma parte dele? ... investimentos de desejo que modelam o poder e o difundem”. G. Deleuze & M.
Foucault, Os intelectuais e o poder in Microfísica do poder. M. Foucault, p. 76.
84
espacial e socialmente”.
154
Parece, pois, impossível escaparmos aos estratos, uma vez que
somos atravessados binária, circular e linearmente por segmentos que nos compõem a cada
instante, em todos os lugares.
155
Tudo funciona. Contudo, apesar de todos os estratos e
segmentos, de tudo funcionar, há algo que escapa, que foge mesmo assim...
Uma profissão é um segmento duro, mas o que é que passa por debaixo,
quais são as conexões, quais as atrações e repulsões que não coincidem
com os segmentos, quais são as loucuras secretas e todavia relacionadas
com os poderes públicos: por exemplo, ser um professor, ou então um
juiz, um advogado, um contador, uma empregada doméstica?
156
Alguma coisa escapa à segmentaridade dura e aos cortes e recortes das
redobras: um traço do rosto estende-se para além do centro de significância, uma fibra, uma
zona de penumbra, uma sombra entre as redobras dos segmentos; uma linha que segue à
tangente, entreposta, nem em cima nem embaixo, nem ao lado, exatamente ao meio. Linha
maleável ou imprevisível que se prolonga perpendicular ao ponto central do círculo e que
escapa ao centro de significância, aos círculos intermediários e à redundância do rosto,
podendo iniciar um outro processo de individuação.
Diferentemente da linha de segmentaridade dura, outros tipos de linha que
podem ser um limiar para o fora.
Não se trata tão-somente de uma linha maleável em oposição ou em paralelismo
às linhas duras do rosto. Uma linha maleável é um desvio ou uma variante de traços, ainda
apensa ao rosto dominante e aos pontos hierárquicos de rostidade binária. É uma linha que
passeia mais soltamente através do centro de significância, ou sobre o muro branco, mas
154
Id., p. 83.
155
“(...) mal acabamos um processo e já estamos começando outro, demandantes ou demandados para sempre,
família, escola, exército, profissão (...) Ora os diferentes segmentos remetem a diferentes indivíduos ou
grupos, ora é o mesmo indivíduo ou o mesmo grupo que passa de um segmento a outro. Mas sempre estas
figuras de segmentaridade, a binária, a circular, a linear, são tomadas umas nas outras, e até passam umas nas
outras, transformando-se de acordo com o ponto de vista”. Id., 84.
156
G. Deleuze & Claire Parnet, Dialogues, p. 151.
85
ainda sujeita à atração gravitacional do centro, para o qual não pode ser, a princípio,
perpendicular. É esse o segundo tipo de linha, a linha maleável ou flexível. Ela não escapa
ao centro de significância e a segmentaridade dura, pois ainda habita o buraco negro da
subjetividade. Entretanto, implica uma certa instabilidade, uma zona de inderteminação,
pouco localizável, constituindo um fluxo, quanta
157
que corre entre estratos bem
determinados: entre classes sociais, entre sexos, entre pessoas, entre dois discursos, num
diálogo. Perfaz um segmentação molecular, maleável, em relação à segmentaridade dura ou
molar. Como uma espécie de limiar ou a tentativa de alguma coisa, essa linha pode ser
capturável pela redundância do centro de significância e do rosto. Na verdade, ambas as
linhas, a dura e a maleável, “não param de interferir, de reagir uma sobre a outra, e de
introduzir cada uma na outra uma corrente de maleabilidade ou mesmo um ponto de
rigidez”.
158
É sobre essa zona de interseção entre esses dois tipos de linha que atua, mais
freqüentemente, a captura, ampliando-se o conjunto de relações binárias biunívocas e as
relações de poder: um novo rosto é introduzido, nova dicotomia, uma outra paisagem, que
altera levemente a organização do poder. As reformas têm esse objetivo: reorganizar,
redistribuir as relações de poder, refazendo as hierarquias, estendendo e reforçando a visão
global sobre todos os traços capturados.
Assim, uma vez capturada, a linha maleável possibilita endurecer ainda mais os
estratos, os condutos e os pontos de arborescência. As variáveis de um sistema aumentam o
grau de sua redundância, ou seja, a capacidade de agir sobre o que se lhe escapa. É o
aumento do grau de sujeição e de intensificação do processo de subjetivação do corpo
157
As linhas maleáveis “traçam pequenas modificações, fazem desvios, traçam quedas ou impulsos: não são,
contudo, menos precisas, dirigem inclusive processos irreversíveis. Mas antes de serem linhas molares e
segmentares, são fluxos moleculares limiares ou quanta. Um limiar é atravessado e não coincide
forçosamente com um segmento de linhas mais visíveis. Passam-se muitas coisas por essa segunda espécie de
linhas, devires, microdevires, que não têm o mesmo ritmo do que nossa ‘história”. Id., p. 151.
86
singular. Essa a tarefa do axiomático da ciência régia, bem como do Ensino oficial:
com o objetivo de manter a ordem do plano de organização e dos estratos, o axiomático
está sempre encontrando soluções para capturar o fluxo desviante, desde o Saber dado, e
se esforça para prever e anular as linhas maleáveis, a fim de impedir que se convertam em
linhas de fuga; a fim de não deixar fugir, portanto, o sistema. O axiomático é o vigilante
pronto para apontar, denunciar, capturar o mínimo incidente que perturbe a organização de
poder das hierarquias arborescentes.
159
É o Homem do Estado de Direito, o social-
democrata, pronto para se valer dos axiomas que sustentam as sociedades modernas.
160
O terceiro tipo de linha não é um limiar, é um fora. A linha de fuga é uma linha
puramente abstrata, sem forma, absolutamente imperceptível e, portanto, impossível de ser
prevista. Ela atravessa o muro branco, sai do buraco negro, sendo, pois, a-significante. Salta
fora dos círculos significantes e escapa, como um fora, do centro e do rosto dominante. Ao
saltar, faz explodir as duas outras linhas, os pontos, os estratos, o rosto e a penumbra. A
linha de fuga é uma desterritorialização absoluta: o Eu rachado, o Mundo perdido. É devir
que faz do homem um passageiro clandestino de uma viagem imóvel, um imperceptível,
158
G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 3, p. 68.
159
dois tipos de vigilantes de linhas: os de visão curta, que vigiam através de lunetas, e os de visão ampla,
que seguem as linhas por telescópios. Ambos diferenciam-se não pelo instrumento de observação que
utilizam, mas também pelo propósito da observação e a conduta diante das linhas: a luneta corta e recorta,
enquanto o telescópio procura conectar, ligar uma linha às outras. Os axiomáticos são os vigilantes de visão
curta, pois, dotados de uma luneta simples, “vêem o contorno de células gigantes, de grandes divisões
binárias, dicotomias, segmentos eles mesmos bem determinados, do tipo ‘sala de aula, caserna, H.L.M
[conjuntos habitacionais] ou até mesmo país, estrias. Às vezes, descobrem, nas bordas, uma figura mal feita,
um contorno tremido. Então se vai buscar a terrível luneta de raios. Esta não serve para ver, mas para cortar,
para recortar. É ela, o instrumento geométrico, que emite um raio laser e faz reinar por toda parte o grande
corte significante, restaura a ordem molar por um instante ameaçada. A luneta para recortar sobrecodifica
todas as coisas; trabalha na carne e no sangue, mas é apenas geometria pura, a geometria como questão de
Estado, e a física dos de vista curta está a serviço dessa máquina”. Id., p. 74.
160
“Que social-democrata não dá a ordem de atirar quando a miséria sai de seu território ou gueto? Os direitos
não salvam nem os homens nem uma filosofia que se reterritorializa sobre o Estado democrático (...) Os
direitos do homem não dizem nada sobre os modos de existência imanentes do homem provido de direitos.”
G. Deleuze & F. Guattari, O que é a filosofia?, pp. 139-140.
87
num movimento de devir como todo o mundo, mais exatamente esse é um devir para
aquele que sabe que é ninguém, que não é mais alguém”.
161
A linha de fuga faz disso que
era um homem agora um sem rosto, um a-significante, um a-subjetivo. É o resgate do
corpo, da terra e do pensamento puro. Traçar a linha abstrata é fazer fugir toda
segmentaridade, todos os extratos; é afirmar: “eu é o outro”. Não o outro como um objeto
exterior ao Eu, mas como um dentro, isto é, como um fora interior e constitutivo do Eu,
“como o fora e o dentro do pensamento, o fora não exterior ou o dentro não interior”.
162
Seguir a linha é estender o Eu, pontual, esticá-lo sobre o outro, também pontual,
até que ambos devenham um mundo; é devir como todo mundo. Ocorre então um processo
de desestratificação do Eu e do Mundo através de um outro modo de individuação, não
mais significante, não mais por subjetivação.
Perde-se o rosto, portanto, e, com ele, a forma, a matéria, a subjetividade, o
significante: não se é mais do que uma linha. Processo que faz da linha de fuga uma
involução: jamais uma regressão ou uma involução ao passado, como a um sintoma ou a
um estado primitivo, perdeu-se todo o passado; mas uma involução que é o começo de
um outro processo de individuação. É o encontro de singularidades a-significantes e a-
subjetivas. Jamais um fugir do mundo. Antes disso: um fugir com o mundo, um estourar do
cano, rompendo a identidade pessoal e a identidade do mundo, todos os segmentos, seus
estratos. Fugir é traçar uma linha perpendicular entre dois pontos, para fazer desses pontos
um outro irredutível a qualquer um deles, a qualquer forma preexistente, e, assim, saltar
sobre o indiscernível. É encontrar a terra, o território, o pensamento puro. É situar-se sobre
o plano de imanência ou de consistência, quando a linha de fuga apresenta-se por uma força
161
G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 3, p. 70.
162
G. Deleuze & F. Guattari, O que é a filosofia?, p. 79.
88
inconsciente, uma intensidade que faz mover o pensamento puro em velocidade infinita.
Não se pensa por boa vontade, nenhuma verdade é voluntária: “a busca da verdade é a
aventura própria do involuntário”.
163
Pensar é um raio, um clarão, momento em que “não
somos mais do que uma linha abstrata, como uma flecha que atravessa o vazio”.
164
Seguir a
linha, uma outra imagem do pensamento.
Nesse sentido, fugir é também morrer. A linha de fuga é mortal e violenta.
de se entender o mortal por um desfazer do rosto, da subjetividade e do significante. O
mortal é então positivo e faz da linha de fuga uma linha ativa e criadora. Procede-se assim
uma desterritorialização absoluta. É o caminho do a-significante, do a-subjetivo, onde o
rosto tem um único destino: o de ser destruído, desfeito.
165
“Se o rosto é uma política,
desfazer o rosto também o é, engajando devires reais, todo um devir-clandestino. Desfazer
o rosto é o mesmo que atravessar o muro do significante, sair do buraco negro da
subjetividade”.
166
Aprender é desfazer o rosto, o sujeito. Mas se a linha de fuga é tangente
ao rosto, aos estratos, é o próprio rosto que se desfaz, desde um fora interior e de um dentro
exterior. Diferentemente do Saber a que o sujeito deve ser fiel, aprender é um ato de
traição, de infidelidade de um sujeito que se tornou um traidor, mas não um trapaceiro.
A flecha pode simplesmente cair no vazio e pode ser por ele engolida, caso em
que a linha de fuga ou ricocheteia no muro, sem atravessá-lo, ou recai num buraco negro,
sendo capturada pelo regime significante, pelo aparelho de Estado, tarefa precípua do
vigilante de luneta. Tem-se então uma desterritorialização relativa, que converte a linha de
163
G. Deleuze, Proust e os signos, p. 89.
164
G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 3, p. 73.
165
Id., p. 36.
166
G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 5, p. 58.
89
fuga em linha negativa e traça um movimento também relativo, que possibilita a passagem
de um estrato a outro, por exemplo, da cabeça ao organismo, desse ao rosto, mantendo-se o
mesmo modo de individuação, por subjetivação e significância. Trata-se, nesse caso, de
uma linha de fuga abortada, capturada, tarefa do vigilante axiomático, do homem de Estado
e do cientista teoremático:
os corpos serão disciplinados, a corporeidade será desfeita, promover-se-á
a caça aos devires-animais, levar-se-á a desterritorialização a um novo
limiar, já que se saltará dos estratos orgânicos aos estratos de significância
e de subjetivação. Produzir-se-á uma substância de expressão. Construir-
se-á o sistema muro branco-buraco negro, ou antes deslanchar-se-á essa
máquina abstrata que deve justamente permitir e garantir a onipotência do
significante, bem como a autonomia do sujeito.
167
Eis mais claramente a função do axiomático, que pode ser estendida à função da
língua e da linguagem como palavra de ordem, bem como do Saber e do Ensino oficiais:
barrar todas as linhas, submetendo-as a um sistema pontual, por uma vontade deliberada de
fixar, deter, formar, com um grau de abstração cada vez mais elevado, cada vez mais
significante, recorrência do signo vazio, que faz da axiomática um programa incapaz de
deter-se diante das menores circunstâncias, diante dos corpos singulares que passam a sua
frente.
mais um perigo da linha de fuga: a loucura. A morte pela loucura deriva do
peso gravitacional do rosto e da paisagem. A segmentaridade dura dos estratos rostificados
e das paisagens é uma organização forte e um agenciamento de poder tão homogêneos que
esmagam o corpo singular rebelde, as singularidades informes, e subordinam as demais
linhas ao jugo da segmentaridade dura. O rosto é uma imensa e vigorosa política e fugir
dele implica riscos tão imensos e igualmente vigorosos. Ninguém se desfaz de um rosto
assim... impunemente. É o caso do esquizofrênico: perder o sentido do próprio rosto e do
167
G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 3, p. 49.
90
91
sumir com a Árvore-imagem e reaver a cabeça, o corpo singular, por um devir-mulher, um
devir-criança, um diver-animal, sempre a-significante e a-subjetivo.
Para além do rosto, uma inumanidade ainda completamente diferente: não
mais a cabeça primitiva, mas a das ‘cabeças pesquisadoras’ onde os
pontos de desterritorialização se tornam operatórios, as linhas de
desterritorialização se tornam positivas absolutas, formando estranhos
devires novos, novas polivocidades. Devir-clandestino, fazer rizoma por
toda a parte, para a maravilha de uma vida não humana a ser criada.
171
Esquizofrenia criadora...
Fazer rizoma é seguir as linhas. As linhas são o que compõem o plano de
consistência, linhas imanentes do plano. A segmentaridade dura é, pois, atravessada pelas
linhas maleáveis e pelas linhas de fuga. Há, no plano, um emaranhado de linhas. Seguir as
linhas é traçar um diagrama. Traçar o diagrama é conectar todas as linhas do plano,
livrando-se dos pontos e da hierarquia axiomática. Se a arborescência constitui a submissão
das linhas ao ponto, o rizoma é justamente liberar as linhas dos pontos, fazer com que se
passe ao meio, num duplo devir da linha de fuga entre pontos até que esses se tornem
indiscerníveis.
172
O rizoma é liberar o desejo pelo diagrama da Árvore, expostas as linhas.
sempre uma arborescência que faz esconder, em suas entranhas, um rizoma
e um rizoma escondido nas entranhas de toda arborescência. “Árvores podem corresponder
ao rizoma, ou, inversamente, germinar em rizoma” e “existem nós de arborescência nos
171
Id., p. 61.
172
“Uma linha de devir só tem um meio. O meio não é uma média, é um acelerado, é a velocidade absoluta do
movimento. Um devir está sempre no meio. Um devir não é um nem dois, nem relação de dois, mas entre
dois, fronteira ou linha de fuga, de queda, perpendicular aos dois (...) O devir é o movimento pelo qual a linha
libera-se do ponto, e torna os pontos indiscerníveis: rizoma, o oposto da arborescência, livrar-se da
arborescência”. G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 4, p. 92.
92
rizomas, empuxos rizomáticos nas raízes”.
173
Há, por conseguinte, simultaneidade dos
pontos e das linhas ou sobreposição de planos, plano de organização e plano de
consistência. A predominância dos pontos e das segmentaridades duras sobre as linhas
maleáveis e as linhas de fuga representa, literalmente, o decalque das linhas sobre os pontos
ou nós de arborescência, a dominância do modelo sobre o fluxo, isto é, a coagulação do
fluxo sobre um plano de organização. Assim como a Árvore, o plano de organização é
vertical e transcendente. A hegemonia do modelo arborescente implica um permanente e
crescente controle do corpo e do desejo por meio do processo, também contínuo, de
educação do rosto. É a interiorização da Imagem dogmática da Árvore-Mundo, do Uno, do
Ser e do Sujeito.
174
Decalcar é projetar as linhas sobre os pontos hierarquizados do sistema,
é cortar o fluxo, estabilizando-o sobre o plano de organização, tal qual as coordenadas
sobre um plano cartesiano. O plano de organização, a arborescência são cartesianos. Mas
trata-se, antes de tudo, de um processo de subjetivação e significação: “os canais de
transmissão são preestabelecidos: a arborescência preexiste ao indivíduo que nela se integra
num lugar preciso”.
175
Daí a importante da rostificação, da educação do rosto, que se efetua
pela transmissão da redundância da informação, isto é, da palavra de ordem: reprodução,
recognição, representação a partir de um centro de significância: “os sistemas arborescentes
são sistemas hierárquicos que comportam centros de significância e de subjetivação,
173
G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 1, p. 28 e p. 31. “Bem mais, existem formações despóticas, de
imanência e de canalização, próprias aos rizomas. deformações anárquicas no sistema transcendente das
árvores; raízes aéreas e hastes subterrâneas. O que conta é que a árvore-raiz e o rizoma-canal não se opõem
como dois modelos: um age como modelo e como decalque transcendentes, mesmo que engendre suas
próprias fugas; o outro age como processo imanente que reverte o modelo e esboça um mapa, mesmo que
constitua suas próprias hierarquias, e inclusive ele suscite um canal despótico. Não se treta de tal ou qual
lugar sobre a terra, nem de tal momento na história, ainda menos de tal ou qual categoria no espírito. Trata-se
de modelo que não pára de se erigir e de se entranhar, e do processo que não pára de se alongar, de romper-se
e de retomar”. Id., pp. 31-32.
174
“A árvore ou a raiz inspiram uma triste imagem do pensamento que não pára de imitar o múltiplo a partir
de uma unidade superior, de cento ou de segmento”. Id., 26.
175
Id., p. 27.
93
autômatos centrais como memórias organizadas”.
176
Reproduzir o rosto é, portanto,
interiorizar a Imagem dogmática da Árvore-Mundo, é fixar o fluxo em pontos: teoremática
da ciência régia e axiomática do homem de Estado — produção do sujeito por uma
máquina abstrata de sobrecodificação. “No Ocidente a árvore plantou-se nos corpos, ela
endureceu e estratificou até os sexos”.
177
muito nos foi possível afirmar: temos uma
árvore plantada em nossa cabeça. Enxergamos os pontos hierárquicos, não vemos as
linhas... É assim que “a árvore dominou a realidade ocidental e todo o pensamento
ocidental, da botânica à biologia, a anatomia, mas também a gnoseologia, a teologia, a
ontologia, toda a filosofia (...): o fundamento-raiz”.
178
Tem de se reiterar, portanto, a função da Educação para a reprodução de
rostidade, tendo ao centro o rosto dominante. Pela Educação, o aparelho de Estado efetua a
captura do corpo singular pelo processo de subjetivação e significância, reproduzindo a
interiorização da Imagem dogmática e do modelo arborescente. O rosto é uma política, a
mais poderosa política. Política de enunciação, da palavra de ordem. De um modo geral,
pode-se considerar a Educação, o Ensino oficial, pertencente ao aparelho de captura do
Estado, porque nela e por ela vigoram a palavra de ordem, a coerção do enunciado e do
significante, bem como a reprodução do rosto dominante:
as diversas formas de educação ou de ‘normalização’ impostas a um
indivíduo consistem em fazê-lo mudar de ponto de subjetivação, sempre
mais alto, sempre mais nobre, sempre mais conforme a um suposto ideal.
Depois, do ponto de subjetivação deriva o sujeito de enunciação, em
função de uma realidade mental determinada por esse ponto. E do sujeito
176
Id., p. 26.
177
Id., p. 29.
178
Id., p. 29.
94
de enunciação deriva, por sua vez, um sujeito de enunciado, isto é, um
sujeito preso nos enunciados conformes a uma realidade dominante.
179
Percebe-se, desde sempre, no interior da forma dominante de Educação, que se
torna, ela mesma, realidade dominante, operando através de “enunciados conformes” a essa
realidade. A Educação trabalha, funciona por dentro, faz cortes que moldam um corpo
singular num sujeito, de tal forma que, constituído, esse mesmo sujeito se concebe o
próprio enunciador dos enunciados que se lhe ensinam, que se lhe transmitem e que passam
a constituir a sua realidade mental e real, a sua própria subjetividade geral. Ocorre um
fenômeno de rebatimento: o sujeito de enunciação é rebatido sobre o sujeito de
enunciado, podendo este fornecer novamente, por sua vez, um sujeito de enunciação para
um outro processo”.
180
Essa relação, esse rebatimento, é igualmente o da realidade mental sobre a
realidade dominante. Há sempre um apelo a uma realidade dominante que
funciona de dentro (...) Nem mesmo mais necessidade de um centro
transcendente de poder, mas, antes, de um poder imanente que se
confunde com o ‘real’, e que procede por normalização. uma
estranha invenção: como se o sujeito duplicado fosse, em uma de suas
formas, causa dos enunciados dos quais ele mesmo faz parte na sua outra
forma.
181
Estabelece-se uma circularidade entre as duas formas que constituem o sujeito.
Pelo processo de normalização, as duas formas convertem-se num mesmo ponto de
subjetivação, convergência que é um fenômeno de rebatimento. O sujeito de enunciação
rebate sobre o sujeito do enunciado, do mesmo modo que o Eu, o Ele e o Tu são sempre
reversíveis a uma mesma subjetividade geral. Esse percurso de interiorização do enunciado
179
G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 2, p. 84.
180
Id., p. 84.
95
designa uma formalização de expressão ou um regime de signos” que, antes de ser uma
operação lingüística, são constituídos por um agenciamento coletivo, implicando sempre
uma organização de poder.
182
O que não se percebe, contudo, é que o processo de
subjetivação, bem como o fenômeno lingüístico, é um efeito de agenciamentos coletivos. A
circularidade do rebatimento faz com que se perceba o contrário: o sujeito como condição
da linguagem e essa como fenômeno primário do Homem remissão de signo à signo e
redundância do Rosto. Dessa forma, o rebatimento opera o processo de reprodução de
arborescência, enrijecendo e aprisionando o pensamento num modelo de subjetividade e de
significância, modelo que passa a vigorar num dentro absoluto e, à princípio, inescapável.
O sujeito se fecha sobre si mesmo e torna-se, à primeira vista, uma substância insuperável,
um organismo, um Eu ou um Tu, para os quais um único Mundo real e possível. Esse
rebatimento passa a compor a mais dura redobra, a mais dura segmentaridade.
183
E, é exatamente por isso, ou seja, pela dureza dos estratos que fecham o corpo
singular no organismo, no sujeito, aprisionando-o dentro de si mesmo, onde o Eu não pode
ou não deve ser senão um idêntico, sob o risco da loucura, do caos e da morte, é exatamente
por isso que ninguém se desfaz de um rosto impunemente.
181
Id., pp. 84-85.
182
“Não se trata (...) de uma operação lingüística, pois um sujeito nunca é condição de linguagem nem causa
de enunciado: não existe sujeito, mas somente agenciamentos coletivos de enunciação, sendo a subjetivação
apenas um dentre eles, e designando por isso uma formalização da expressão ou um regime de signos, não
uma condição interior da linguagem”. Id., p. 85. Ou, em outros termos, “é absurdo que a linguagem enquanto
tal possa veicular uma mensagem. Uma língua está sempre presa a rostos que enunciam os enunciados dela,
que os lastream em relação aos significantes em curso e aos sujeitos concernidos. É pelos rostos que as
escolhas se guiam e que os elementos se organizam: a gramática comum nunca é separável de uma educação
dos rostos. O rosto é um verdadeiro porta-voz. Não é portanto apenas a máquina abstrata de rostidade que
deve fornecer uma tela protetora e um buraco negro ordenador, são os rostos que ela produz que traçam todos
os tipos de arborescências e de dicotomias, sem as quais o significante e o subjetivo não poderiam fazer
funcionar aquelas que retornam a eles na linguagem”. G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 3, p. 47.
183
Os três grandes estratos que amarram mais firmemente o corpo singular ao plano de organização: o
organismo, a significância e a subjetivação. “Você será organizado, você será um organismo, articulará seu
corpo senão você será um depravado. Você será significante e significado, intérprete e interpretado
senão será desviante. Você será sujeito e, como tal, fixado, sujeito de enunciação rebatido sobre um sujeito
de enunciado — senão será um vagabundo”. G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 3, p. 22.
96
E quanto ao sujeito, como fazer para nos descolar dos pontos de
subjetivação que nos fixam, que nos pregam numa realidade dominante?
Arrancar a consciência do sujeito para fazer dela um meio de exploração,
arrancar o inconsciente da significância e da interpretação para fazer dele
uma verdadeira produção, não é seguramente nem mais nem menos difícil
do que arrancar o corpo do organismo (...) e se acontece que se tangencie
a morte ao se desfazer do organismo, tangencia-se o falso, o ilusório, o
alucinatório, a morte psíquica ao se furtar à significância e à sujeição.
184
Apresenta-se novamente o problema do fora, que é, portanto, o da linha de fuga
ou do rizoma, mas também do plano: como fugir de um estrato que perpassa todos os
estratos? Como fugir do Eu, do Sujeito, e de uma máquina abstrata de rostidade que implica
o aparelho de Estado e toda uma organização de poder, um Mundo? Ou, formulando o
problema de forma positiva, como fazer do rizoma a Imagem do pensamento? Como
aprender a seguir as linhas de fuga criadoras a partir de estratos e do plano de organização,
onde desde sempre circulamos? Como fazer do pensamento um fora no interior do próprio
pensamento?
Será necessário mudar de plano, situar-se numa outra imagem do pensamento.
184
Id., pp. 22-23.
97
Capítulo IV
A relação entre o aprender e o pensar. Pensamento
e aprendizagem: deixar de ser o que se é.
98
O que se é fora dos estratos, do organismo, do sujeito, da linguagem, de todos
os conhecimentos que compõem a ciência régia, de todos os teoremas re
99
céu aberto, um deserto, um mar, espaço liso, onde se movem as singularidades. Nem o Ser,
nem o Mundo, nem o Sujeito, muito menos a Razão, nenhum deles é o primeiro na ordem
do sentido e do acontecimento, mas derivações em um outro plano. Todo indivíduo resulta
da convergência de singularidades. As singularidades habitam a superfície dos corpos,
abrindo-se para todos os lados e em todas as direções, fazendo n conexões no Caosmo. O
nomadismo é essa abertura infinita do acontecimento puro, quando se a individuação a-
hierárquica pela mistura de corpos: conjunção e disjunção de singularidades, acoplamentos
e disparidades, campo móvel e fluido do fluxo material. A superfície é o plano de
imanência, seu movimento em velocidade infinita, onde n conexões é sempre igual a
multiplicidades de multiplicidades. Os agenciamentos são, num tempo, esses
acoplamentos e essas disparidades (disjunção inclusiva e síntese disjuntiva), pelos quais um
corpo singular pode ser qualquer coisa: um animal, um sopro de ar, um rio, uma idéia, uma
coletividade: os corpos são múltiplos, disjuntos e divergentes neles mesmos, daí a relação
alógica paradoxal do acontecimento. Verdejar é muito diferente de dizer “a maçã é verde”:
“o expresso não se confunde com a expressão”.
186
A singularidade e o acontecimento puro
vêm antes de toda a predicação, de toda relação causal, de toda lei, de toda estratificação. O
que há é uma mudança de plano: o salto mudo do animal feroz.
São dois os planos e opostos: um, de organização, composto de pontos e de
estratos, de modelos arborescentes, formas e substâncias, de proposições e expressões;
outro, de consistência, composto de corpos, linhas e de singularidades múltiplas. Passar de
um a outro envolve risco, dito, abrir-se para o caos, o vazio da destruição, mas também
para a criação. Passar implica aqui desestratificar, isto é, seguir a linha de fuga, fazer do
organismo um corpo sem órgãos. Afirmar a passagem é produzir, é criar. Só a criação evita
186
G. Deleuze. Lógica do sentido, p. 187.
100
que a linha de fuga mergulhe no mais puro caos. A criação é sempre uma produção
singular, nunca uma cópia ou uma reprodução, jamais um mimetismo da forma, da
enunciação, da substância. Nesse sentido, criar é retomar a terra e encontrar o território, a
partir do que algo pode ser enunciado de modo radicalmente singular, sem ser uma simples
enunciação inautêntica. A criação é a cristalização do singular diante do caos
indiscernível.
187
Trata-se de uma experimentação, isto é, de um salto movido pelo devir,
pelo desejo.
“O desejo não é a representação de um objeto ausente ou faltante, mas uma
atividade de produção, uma experimentação incessante, uma montagem experimental”.
188
A
experimentação é uma máquina desejante em devir, quando se dá o expresso, o
acontecimento, o sentido.
No plano de organização, não devir, mas reprodução e imitação da forma.
Sua fórmula é n + 1, sempre algo, em desenvolvimento, em evolução; sempre um
princípio oculto sobre ou acima do dado. Trata-se de um plano transcendente, pois “só
existe (...) numa dimensão suplementar àquilo que ele (n + 1)”.
189
Não há, pois, nem
criação, nem experimentação, somente a experiência de reproduzir e desenvolver o que foi
dado, como o modo de se manter o princípio oculto disso para que o dado. Trata-se de
colocar em movimento as coordenadas dos pontos da estrutura arborescente e mover-se em
seu interior. São deslocamentos previsíveis e esperados num tempo exclusivamente
cronológico. O que ocorre nesse plano é da ordem do sempre já dado, do geral, do
187
“A questão não é mais absolutamente a dos órgãos e das funções (...) A questão não é de organização, mas
de composição (...) A questão é a dos elementos e partículas, que chegarão ou não rápido o bastante para
operar uma passagem, um devir ou um salto sobre um mesmo plano de imanência pura. E se, com efeito,
salto, fracassos entre agenciamentos, não é em virtude de sua irredutibilidade de natureza, mas porque
sempre elementos que não chegam a tempo, ou que chegam quando tudo acabou, tanto que é preciso passar
por neblinas, ou vazios, avanços e atrasos que fazem parte eles próprios do plano de imanência. Até os
fracassos fazem parte do plano”. G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 4., p. 41.
188
François Zourabichvili, O vocabulário de Deleuze, Máquina desejante, p. 69.
101
universal, do proposicional, onde o tempo não acrescenta nada ao real e o real, nada ao
tempo.
É claro que mesmo assim ou ainda assim, as coisas vibram, o Eu estremece,
pela incerteza, pelo erro, mas são ressonâncias que o sistema arborescente apreende ao
projetá-las sobre seus pontos. Assim, a singularidade é sempre remetida à representação,
segundo a relação Uno-múltiplo, a analogia e a forma do Mesmo e do senso comum. No
plano de organização, o que se é: uma pessoa, um sujeito, um organismo, uma coisa, uma
substância. Toda singularidade passou por um processo de individuação que a identifica
e a define, cortada e recortada por todos os lados, recortes que a aprisionam: clausura
ontológica e semiótica do plano de organização.
No plano de consistência imanente, um outro modo de individuação, não se
reproduz nem a forma, nem a substância, nem o sujeito, nem a pessoa.
190
Não mais o
rosto. Recupera-se o corpo em sua singularidade e multiplicidade. É sobre um tal plano que
se pergunta: o que pode um corpo? Esse outro modo de individuação é a hecceidade, puro
processo relacional feito apenas de linhas, sem começo e sem fim, sem origem e
destinação, processo que se atualiza por “movimento e repouso entre moléculas e
partículas, poder de afetar e ser afetado”.
191
Nesse processo de individuação, um corpo
singular não-formado é então uma multiplicidade infinita, uma infinidade tão singular sem
forma e sem função: n - 1. Assim, “cada indivíduo é uma multiplicidade infinita (...) uma
189
G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 4., p. 54. As formas e seus desenvolvimentos, os sujeitos e
suas formações remetem a um plano que opera como unidade transcendente ou princípio oculto”. Id., p. 55.
190
“Com efeito, o que nos interessa são os modos de individuação que não são os de uma coisa, de uma
pessoa ou de um sujeito: por exemplo, a individuação de uma hora do dia, de uma região, de um clima, de um
rio ou de um vento, de um acontecimento. E talvez seja um equívoco acreditar na existência das coisas,
pessoas ou sujeitos. O título Mille plateaux remete a essas individuações que não são pessoais nem de coisas”.
G. Deleuze, Conversações, p. 38.
191
G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 4, p. 47.
102
multiplicidade de multiplicidades”.
192
Cada corpo
193
é uma multidão e a multidão não
tem rosto. Um pode ser já qualquer coisa. Um é já muitos e infinitamente: singular-plural,
univocidade de multiplicidades ou singularidades múltiplas.
194
São esses elementos
moleculares, essas partículas, informes e abstratas,
195
que procedem a um modo de
individuação por agenciamentos coletivos e concretos. São eles que compõem as máquinas
abstratas singulares e imanentes.
O que pode um corpo? Sobre o plano de consistência, um corpo é uma
singularidade intensiva de criação, infinidade de partículas e infinidade de relações.
196
Ao
mesmo tempo, singularidade e multiplicidade, conteúdo e expressão ou o expresso. O corpo
é o plano de imanência ao produzir cortes no que vai sobre o plano de organização, a
atividade criadora de toda função e processo de individuação por diferença, antes de toda a
especificação: “criar é produzir linhas e figuras de diferenciação”.
197
Sendo singularidades
múltiplas e infinitas, intensidades, os corpos singulares implicam-se no plano de
consistência, sendo corpos sem órgãos, máquinas abstratas, sempre singulares e impessoais.
192
Id., p. 39.
193
Um corpo se define por sua longitude e sua latitude. Entendemos por longitude de um corpo qualquer
conjunto das relações de velocidade e de lentidão, de repouso e de movimento, entre partículas que o
compõem desse ponto de vista, isto é, entre elementos não formados. Entendemos por latitude o conjunto dos
afetos que preenchem um corpo a cada momento, isto é, os estados intensivos de uma força anônima (força
de existir, poder de ser afetado) (...) O conjunto das longitudes e das latitudes constitui a Natureza, o plano de
imanência ou de consistência, sempre variável, e que não cessa de ser remanejado, composto, recomposto,
pelos indivíduos e pelas coletividades”. G. Deleuze, Espinosa – filosofia prática, pp. 132-133.
194
“(...) as singularidades designam as ‘dimensões’ intensivas de uma multiplicidade (...) e a esse título
podem igualmente ser nomeadas ‘intensidades’, ‘afectos’ ou mesmo ‘hecceidades’; sua distribuição
corresponde portanto ao mapa afetivo de um agenciamento”. François Zourabichvili, O vocabulário de
Deleuze, Singularidade pré-individual, p. 102.
195
Esses elementos não são átomos, uma vez que os átomos são formados, organizados e perfeitamente
discerníveis e descritivos enquanto tais. Sem forma, as partículas são totalmente abstratas, plenamente reais e
indivisíveis, “são as últimas partes infinitamente pequenas de um infinito atual, estendido num mesmo plano,
de consistência e de composição. Elas não se definem pelo número, porque andam sempre por infinidades”.
G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 4, p. 39.
196
“... de uma forma geral, para Deleuze apenas corpos, e o acontecimento em sua superfície, o espírito
confundindo-se com as aventuras ‘cristalinas’ do plano de imanência ou do corpo sem órgãos” . François
Zourabichvili, O vocabulário de Deleuze, Multiplicidades, p. 71.
197
G. Deleuze, Diferença e repetição, p. 405.
103
Essa implicação ou complicação é a própria imanência, monismo da singularidade,
univocidade do ser: o real é singular e toda generalização é vazia. A imanência é a-
hierárquica, é puramente relacional, é o rizoma ou o devir-mundo, onde o menor é o
maior.
198
Tornar indiscernível, imperceptível, impessoal: devir como todo mundo num
plano comum de imanência e univocidade. Por ser o puro relacional, é que o plano de
imanência é a univocidade em que as singularidades se multiplicam infinitamente, fazendo-
se como o mundo, n 1, fórmula equivalente à conjunção “e”, de que o Uno é subtraído.
Nada mais de primado do Ser ou do Uno, molar e maior da Árvore binária biunívoca. O
“e” indica agora a infinidade bifurcante do rizoma. “Uma rizoma não começa nem conclui,
ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação,
mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo ‘ser’, mas o rizoma
tem como tecido a conjunção ‘e... e... e...”
199
Plano de organização: Imagem dogmática: forma-Estado: ciência régia: Árvore-
Mundo, modelo ou método arborescente de pensamento perfazem os principais estratos que
aprisionam o homem e o reproduzem tal como ele é. Ocupam o centro do modo de
individuação significante e de subjetivação e, como peças de um grande quebra-cabeça, se
encaixam e se sustentam. Dessa forma, reproduzem-se mútua e simultaneamente,
propagando, com isso, o centro de significância e de subjetivação e o corpo rostificado do
homem dominante.
198
“Quando ‘Alice cresce’, quero dizer que ela se torna maior do que era. Mas por isso mesmo ela também se
torna menor do que é agora (...) Tal a simultaneidade de um devir cuja propriedade é furtar-se ao presente. Na
medida em que se furta ao presente, o devir não suporta a separação nem a distinção do antes e do depois, do
passado e do futuro. Pertence à essência do devir avançar, puxar nos dois sentidos ao mesmo tempo: Alice
não cresce sem ficar menor e inversamente. O bom senso é a afirmação de que, em todas as coisas, há um
sentido determinável; mas o paradoxo é a afirmação dos dois sentidos ao mesmo tempo”. G. Deleuze, Lógica
dos sentidos, p. 1.
104
O Estado, a forma-Estado é a própria encarnação da Árvore-imagem,
interiorizada na subjetividade, é a Árvore plantada em nossas cabeças:
ao longo de uma grande história, o Estado foi o modelo do livro e do
pensamento: o logos, o filósofo-rei, a transcendência da Idéia, a
interioridade do conceito, a república dos espíritos, o tribunal da razão, os
funcionários do pensamento, o homem legislador e sujeito. É pretensão do
Estado ser imagem interiorizada de uma ordem do mundo e enraizar o
homem.
200
A Árvore-imagem, o modelo arborescente, dominou o pensamento ocidental,
tornou-se a realidade a vigorar sobre as singularidades e multiplicidades rizomáticas,
operando, em todos os lugares e tempo, cortes significantes do fluxo material, canalizando
os desejos, submetendo-o à forma da representação como falta ou como prazer. Assim, o
plano de imanência é sempre decalcado pelo plano de organização, que se converte num
modelo, numa estrutura, rebaixando a produção criadora à forma trivial, burocrática e
recorrente da inteligência. O decalque faz prevalecer, portanto, o senso comum, o bom
senso e a razoabilidade da subjetividade geral, processo de subjetivação que a pedagogia
dominante e a Educação sentem-se orgulhosas de realizar.
Se considerarmos o plano de consistência como o lugar comum onde se
agenciam acontecimentos puros, solo sobre o qual se produzem conceitos e sentidos,
teríamos de perguntar que pedagogia decorre de um tal plano.
199
G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 1, p. 37.
200
Id., p. 36. Eis a função macropolítica do livro como Árvore ou da Árvore como livro, portador emissário
das palavras de ordem, de cortes significantes, espelhando o Mundo. O livro Árvore é ele mesmo um
decalque do Mundo: “escreve-se a história, mas ela sempre foi escrita do ponto de vista dos sedentários, e em
nome de um aparelho de Estado, pelo menos possível, inclusive quando se falava dos nômades ... Como
encontrará o livro um fora suficiente com o qual ele possa agenciar no heterogêneo, em vez de reproduzir um
mundo? Cultural, o livro é forçosamente um decalque: de antemão, decalque dele mesmo, decalque do livro
105
No plano de imanência, são criados conceitos que se articulam em redes de
conexão, estendendo um território. Os conceitos insurgidos teriam componentes. O plano,
os conceitos e os componentes conceituais instaurariam esse território que, uma vez criado,
estender-se-ia sobre a terra, ao mesmo tempo em que passaria a impedir a aparição de
conceitos rivais.
O plano abriga essa pedagogia. Os conceitos são os diversos saberes, saberes
que constituirão disciplinas. Os componentes conceituais são os conteúdos e expressões
materiais que se transformam em teorias, leis, fórmulas e procedimentos disciplinares. Não
importam quais sejam as disciplinas e seus conteúdos, nem se foram recentemente
construídas ou não, mas o fato de serem saberes disciplinares e de terem atributos ou modos
de atualização similares. Assim, os saberes disciplinares e seus conteúdos podem variar,
mover-se, transformar-se sobre o plano, o que não muda é o plano sobre o qual se movem.
Isso demarcaria uma variedade de componentes, leis, fórmulas, procedimentos e, ao mesmo
tempo, uma diversidade de propriedades, atributos e modos pertencentes a um mesmo
plano. As leis e as fórmulas da Física não são, pois, as mesmas leis e fórmulas da Biologia,
nem são originadas dos mesmos procedimentos, embora compartilhem do mesmo processo
de individuação. Daí surgem, porém, um mesmo modelo e um método, um mesmo
processo de “descobertaou de verificação ou de falsificação de teorias, leis, fórmulas...
Uma legitimidade explicativa do que eram singularidades, multiplicidades sob os mais
infinitos acoplamentos e disparidades, sem distinção de conteúdo e de expressão. Ergue-se
uma espécie de cientificidade como enunciação legítima e legal. É a criação da ciência,
como um saber régio, simultânea ao primado da linguagem como palavra de ordem:
precedente do mesmo autor, decalque de outros livros sejam quais forem as diferenças, decalque interminável
de conceitos e de palavras bem situadas, reprodução do mundo presente, passado ou por vir”.
106
expresso que virou palavra, palavra que virou ordem. Pode-se afirmar então que esses
saberes, assim organizados e referidos, são o que são: Saber, Conhecimento, Ciência. Esse
processo de estratificação e sobrecodificação do fluxo material
201
transforma-se num
espectro geral, congregando em torno de si as diversas disciplinas, substâncias e formas, e
constituindo, doravante, o centro significante, onde antes havia, de comum, um único
plano de consistência, um corpo sem órgãos, singularidades múltiplas conexas relacionais.
Operam-se cortes e redobras, formam-se estratos bem determinados, demarcando
territorialidades específicas sobre a terra. Passa-se agora a um outro plano, de organização,
e a um outro regime de signos, regime significante, onde convivem congregados, segundo a
ordem hierárquica da ciência régia e do Saber, os teoremas, os axiomas e os sacerdotes
interpretativos.
Havia um processo de criação e de construção de conceitos no plano de
imanência que foi abandonado e decalcado sobre um modelo de pensamento, cuja forma
agora se expressa por enunciados proposicionais e científicos. O ato criador a-hierárquico e
unívoco é suplantado por agenciamentos que ora são organizados em estratos. Uma
imagem do pensamento é, pois, erigida e elevada ao modelo do pensar correto. A
pedagogia dominante reproduzirá esse modelo como seu pressuposto e objetivo a ser
reproduzido. Ergue-se uma estrutura arborescente e pode-se igualmente falar de sistemas. É
nessa perspectiva a da origem, que se diz também do plano de organização que ele é
genealógico e histórico.
201
“O mundo científico (Welt, por oposição ao Umwelt animal) aparece, com efeito, como a tradução de todos
os fluxos, partículas, digos e territorialidades dos outros estratos num sistema de signos suficientemente
desterritorializados, que dizer, uma sobrecodificação própria à linguagem. É essa propriedade de
sobrecodificação ou de sobre linearidade que explica o fato de não haver, na linguagem, somente
independência da expressão em relação ao conteúdo, mas também independência da forma de expressão em
relação às substâncias”. Id., p. 79.
107
O processo de sobrecodificação do fluxo material ensejou uma estrutura
hierárquica definida: singularidades sob n conexões disjuntivas inclusivas/conjuntivas
exclusivas, modos de individuação por diferenciação, acontecimentos, criação do plano e
de conceitos, expressos e enunciados, individualidades, proposições, formas e substâncias,
fórmulas, teoremas, teorias..., estratos, axiomas, saberes disciplinares. O conteúdo e a
expressão do fluxo material passam a figurar, desde então, como atributos predicados às
coisas, vozes significantes do sujeito de enunciação e do sujeito do enunciado, ou seja,
palavras de ordem: o incorpóreo é, portanto, condicionado, aprisionado no significante.
“Que curiosa desterritorialização, encher a boca de palavras mais que de alimentos e
ruídos”.
202
Servimo-nos mais de palavras do que de corpos, do que do burburinho dos
corpos. “A linguagem surge como a nova forma de expressão, ou melhor, o conjunto dos
traços formais que definem a nova expressão em todo o estrato”.
203
Daqui adiante, a tarefa
da semiótica é selecionar quais são os rostos que podem e devem passar e quais os seus
discursos correspondentes, conformes. O axiomático, o homem dos estratos ou o homem
sedentário de Estado, passa a fazer cortes significantes, reproduzindo uma organização de
poder.
204
O centro de significância e subjetivação, o núcleo duro da pedagogia
dominante, ocupa o lugar de onde se irradiam esses “cortes demasiado significantes”,
arborescentes, ou seja, processo de interiorização da Imagem dogmática e da forma-Estado.
Um tal processo de individuação funciona sempre por hierarquizações e modelos
representativos, que orientam o movimento das coisas nos estados de coisas, dos objetos
202
Id., p. 78.
203
Id., p. 78.
204
É que “a Máquina abstrata começa a se desdobrar, começa a se erigir, produzindo uma ilusão que
transborda todos os estratos, embora pertença ainda a um determinado estrato. É, evidentemente, a ilusão
108
disciplinares e das relações que devem ser esperadas e/ou antecipadas desses objetos e seus
atributos e qualidades. Captura do fluxo. Reproduz-se, desse modo, permanentemente, um
mundo estratificado e estruturado por pontos ligados por linhas metricamente traçadas. O
Saber é aquilo que antecipa o percurso, quando se tem de passar de um ponto a outro, e a
possível solução, quando a passagem se configura num estágio problemático a ser
decalcado pelo modelo. Nesse caso, aprender é interiorizar o percurso, fazer o roteiro e
prever as variações possíveis.
O centro paradigmático da pedagogia dominante e disciplinar compõe o eixo
genético, a unidade pivotante, donde se ergue e se propaga o centro de significância e de
subjetivação. Aprender a passar de ponto a ponto num estrato, aprender a passar de estrato
a estrato requer a interiorização do eixo genético da Árvore-imagem:
um eixo genético é como uma unidade pivotante objetiva sobre a qual se
organizam estados sucessivos; uma estrutura profunda é, antes, como que
uma seqüência de base decomponível em constituintes imediatos,
enquanto que a unidade do produto se apresenta numa outra dimensão,
transformacional e subjetiva. Não se sai, assim, do modelo representativo
da árvore ou da raiz-pivotante (...) Do eixo genético ou da estrutura
profunda, dizemos que eles são antes de tudo princípios de decalque,
reprodutíveis ao infinito. Toda lógica da árvore é uma lógica do decalque
e da reprodução (...) Ela consiste em decalcar algo que se feito, a
partir de uma estrutura que sobrecodifica ou de um eixo que suporta. A
árvore articula e hierarquiza os decalques, os decalques são como folhas
da árvore.
205
O que se reproduz e se interioriza é a imagem, a forma estrutural da Árvore, seu
eixo genético de rotação pivotante e sua unidade profunda, a raiz oculta do plano de
organização, a partir do que é possível capturar e representar as variações em relação ao
eixo, decalcá-las sobre a estrutura cartográfica dos pontos, as variações decalcadas são os
constitutiva do homem (quem o homem pensa que é?). É a ilusão que deriva da sobrecodificação imanente à
própria linguagem”. Id., p. 80.
109
galhos e as folhas da Árvore. Nesse conjunto, não há abertura nem conexões, só fecho. Fora
do fecho não nada: toda abertura ergue-se no vazio, longe da terra, à margem do fluxo
material, distante do devir e mais ainda do caos. Estamos enraizados no senso comum,
operando mediante a harmonia das faculdades do Sujeito pensante.
Esse conjunto não é rizomático. Um rizoma se constrói em mapas, que estende,
por todos os lados, aberturas e conexões para fora de si, cobrindo novos territórios. “Um
mapa tem múltiplas entradas contrariamente ao decalque que volta sempre ‘ao mesmo”.
206
Por isso, um mapa pode ser rasgado, decomposto, revertido, modificado constantemente,
movimentando-se com a terra, seguindo a terra. Ele não se converte jamais num modelo a
que as singularidades, a fluidez do fluxo material não são recortadas, decalcadas e anuladas.
Um mapa é uma questão de performance e não de imitação. Performance criativa, enquanto
o decalque reproduz o modelo. Ao contrário do mapa que segue o fluxo, as linhas, o
decalque elege e isola os pontos que ele tem a intenção de reproduzir e o faz por artifícios,
trapaças e procedimentos de coação. Essa a tarefa do imitador: estancar o movimento das
linhas rizomáticas e atrai-las ao modelo que ele produziu, em vez de implicações, o
imitador realiza aplicações.
207
É nesse sentido que “o decalque remete sempre a uma
presumida ‘competência”.
208
A grande habilidade do Sujeito competente é a de decalcar o mapa sobre o
modelo, livrar-se do mapa para agir mais sobre o estrato e melhor. Ele nunca salta, não se
arrisca; ele mede. Sua inteligência limita-se a reproduzir o mapa numa foto, o que o faz
205
Id., p. 21.
206
Id., p. 22.
207
Id., pp. 22-23.
208
Id., p. 22.
110
insensível às conexões e às linhas de fuga que, para ele, existem apenas como aparições
desviantes a serem suprimidas ou capturadas à medida do possível, isto é, do modelo ou do
método. O sujeito competente é o axiomático de plantão, o vigilante de luneta, o
funcionário do pensamento, sempre apto a operar cortes significantes. Se uma finalidade
maior para a pedagogia dominante é reproduzir também esse decalque como ideal do
processo de subjetivação. O competente é o bom imitador a-performático.
A imitação, a competência deve ser compreendida como derivações do próprio
processo de decalcomania. São figuras derivadas e erguidas sobre o decalque, uma vez que,
ao aparecem, é porque “o decalque já traduziu o mapa em imagem, já transformou o rizoma
em raízes e radículas”.
209
O decalque traduz segundo o eixo de significância e de
subjetivação que lhe é próprio. Ele neutralizou, organizou as multiplicidades, as
singularidades pré-individuais; fez do corpo formas, funções e substâncias, rebatendo-o
nos pontos da estrutura molar dos estratos. Com as palavras de ordem e por meio delas, o
decalque “injeta redundâncias e as propaga”.
210
E, assim, o que o decalque reproduz não é
senão ele mesmo ou o “mesmo”. Mas não isso: ao reproduzir-se, o decalque move o
processo de interiorização da imagem que reproduz, a sua unidade profunda ou o seu
princípio oculto; não requer a subjetividade adequada a sua reprodução como a torna
concreta e efetiva. É a interiorização da Imagem dogmática, a Árvore-imagem. Nesse
sentido, o decalque exerce toda uma pedagogia e, se “a árvore dominou a realidade
ocidental e todo o pensamento ocidental”,
211
a pedagogia do decalque merece a
classificação de dominante. É ela mesma a pedagogia-árvore ou a árvore da pedagogia. Isso
faz de todo rosto uma árvore e da árvore a macropolítica que canaliza e estrutura o desejo.
209
Id., p. 23.
210
Id., p. 21.
111
O Saber e o Ensino devem ser concebidos como o caule da Árvore, cuja raiz é a
Imagem dogmática. São eles que fazem a Árvore crescer e reproduzir. Esse movimento de
contudos é a via pela qual o desejo é canalizado e estruturado, processo que é de
subjetivação e de reprodução do centro de significância. Essa pedagogia dominante faz
então a política do rosto, lato mecanismo de rostificação, de que as palavras de ordem são
pílulas transmissoras, indispensáveis à interiorização da Imagem e à impressão dos traços
de rostidade. Não se efetuaria tal processo sem a transmissão de enunciados dominantes
próprios ao regime significante. É sempre um rosto que fala, um rosto é sempre um porta-
voz. O rosto é uma máquina abstrata de sobrecodificação,
212
máquina de rostidade,
desterritorializando o corpo e a cabeça, máquina de servidão, desterritorializando, ao
mesmo tempo, a terra e o desejo.
Pode-se dizer que a pedagogia dominante exerce um agenciamento molar dos
corpos singulares, segmentarizando as multiplicidades e canalizando os fluxos, estagnando,
portanto, o devir. Pertence tanto à teoremática da ciência régia quanto à axiomática do
aparelho de Estado. Esse agenciamento molar atualiza ou possibilita o ideal de formação,
ponto mais alto do processo de subjetivação. Em contrapartida, um fluxo material passa a
ser considerado aquilo que deve ser capturado ou expulso, superado ou reprimido. Ensinar
é, antes de tudo, cortar as conexões múltiplas desviantes de um corpo singular, tornando-as
descontínuas para reter e condensar o fluxo material, esquadriando assim o desejo. Segundo
211
Id., p. 28.
212
Existem três tipos de máquinas abstratas: “máquinas abstratas de consistência, singulares e mutantes, com
conexões multiplicadas; também máquinas abstratas de estratificação, que circundam o plano de consistência
com um outro plano; e quinas abstratas sobrecodificadoras ou axiomáticas, que realizam as totalizações,
homogeneizações, conjunções de fechamento”. G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 5, p. 231. Embora
esses tipos não parem de trabalhar umas nas outras, qualificando os agenciamentos, no caso da propagação e
dominância da Imagem dogmática, são as máquinas abstratas sobrecodificadoras que sobressaem, fazendo
dominantes os seus agenciamentos, isto é, os estratos, as totalizações, os fechamentos do devir.
112
esse processo de subjetivação, ensinar é dar ordens. Curiosa desterritorialização a do
ensino, sempre palavras em vez de corpos. É assim que:
a professora não se questiona quando interroga um aluno, assim como não
se questiona quando ensina uma regra de gramática ou de cálculo. Ela
‘ensigna’, ordens, comanda. Os mandamentos do professor não são
exteriores nem se acrescentam ao que ele nos ensina. Não provêm de
significações primeiras, o são conseqüências de informações: a ordem
se apóia sempre, e desde o início, em ordens, por isso é redundância, mas
impõe à criança coordenadas semióticas com todas as bases duais da
gramática (masculino-feminino, singular-plural, substantivo-verbo, sujeito
do enunciado-sujeito de enunciação etc).”
213
Constituintes da pedagogia dominante, a Educação e o Ensino situam-se no
mesmo plano de organização, onde estão também situados o Saber e a ciência régia. Tanto
o Saber quanto a ciência régia designam generalizações e normalizações estruturadas em
enunciados dominantes, transmitidos por palavras de ordem. É a soberania do regime
significante, em que o signo perde sua força paradoxal e funciona como signo vazio. Assim
também o Ensino coloca-se do lado das soluções acabadas e dos supostos problemas, seus
conteúdos são, na verdade, mandamentos e comandos, constituindo assim um importante
componente da axiomática. É preciso que se entenda a realidade a partir de um conjunto de
soluções e condutas que devem ser imediatamente interiorizadas. É nesse sentido que
ensinar é uma função essencialmente moral. Nada de seguir o fluxo, nada de formar um
“singular dotado de má vontade”. Ensinar é disciplinar, compartimentando o pensamento e
a conduta. Para isso é preciso e se faz mesmo socialmente necessário, eliminar o acaso e o
performático, o que se concretiza pelo programa, pelo currículo e os objetivos
213
G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 2, pp. 11-12. É neste sentido, da palavra de ordem ou do ensino
como um ato permanente de dar ordens, que é necessário compreender a afirmação de Jean-Luc Godard: “as
crianças são prisioneiros políticos”. As regras sintáticas e gramaticais são apresentadas às crianças “como se
ferramentas aos operários” e as palavras de ordem fazem com que se reproduzam os enunciados
113
programáticos. Nada de aprender por acaso. O ensino abole o acaso por uma conversão à
forma, isto é, por uma conversão ao senso comum e ao bom senso: trabalho moral. Perde-se
a atividade criadora da construção do sentido, do encontro com o acontecimento. O rizoma
some, transformado em raiz, num plano genealógico. Restam a estrutura arborescente, a
hierarquia da palavra de ordem e a burocracia institucional. Assim estruturada, a pedagogia
dominante subtrai do pensamento seu ato criador; antes, é virtuoso ensinar a fazer como,
segundo o mimetismo pedagógico. O Ensino ignora o rizoma e reproduz o decalque, o que
implica permanentemente a sua própria reprodução. A circularidade entre a interiorização
do modelo arborescente e o Ensino representa a mesma clausura do rosto e da
segmentaridade dura. O Ensino expressa e efetua a soberania do discurso indireto: não se
sabe e não se pensa, porque se enuncia o acontecimento, mas porque alguém comunica o
que se disse. O Ensino é, ele mesmo, um decalque, na exata medida em que é a reprodução
do Saber comunicado, na exata medida em que está do lado das soluções e dos resultados
predeterminados ou reformados, afastado, desde sempre, do problema.
Diferentemente do Ensino da pedagogia dominante, uma pedagogia baseada na
aprendizagem realiza um movimento contrário: do decalque ao mapa, da palavra de ordem
ao expresso, do plano de organização ao plano de imanência. Um movimento que se traça,
de modo imprevisto, a partir do problema, do que não tem ainda solução e que, por isso,
precisa ser seguido e ter o resultado inventado: movimento que se afasta assim do Saber
formal constituído. A aprendizagem não se realiza pela comunicação do que se disse, mas
por uma busca do que não se sabe, do que ainda não foi pensado. A aprendizagem está do
apropriados, conforme às significações dominantes. As “idéias justas” são derivações da ordem presente na
palavra de ordem e não, o inverso, embora se acredite no contrário. G. Deleuze, Conversações, p. 55.
114
lado do impensado no pensamento, de um pensamento sem imagem e que quer erigir para
si mesmo, desde um fora, uma imagem. Portanto, para um pensamento sem imagem ou que
perdeu a Imagem, que busca uma imagem e por isso se põe em questão, aprender é criar e
só se cria resistindo aos mandamentos, aos comandos. Aprender é conjugar, conectar
singularidades de n entradas e saídas, sempre sob a fórmula n 1, o ainda impensado no
pensamento, isto é, da diferença como diferença, irredutível a qualquer teorema, axioma,
forma de conteúdo ou de expressão. É por isso que, se existe método para ensinar, segundo
a Imagem dogmática e a pedagogia dominante, o há método para aprender. Não há como
estabelecer um roteiro para aprender, uma vez que a aprendizagem se faz por conexões
imprevistas, sempre singulares e múltiplas. “O método é o meio de saber quem regula a
colaboração de todas as faculdades; além disso, ele é a manifestação de um senso comum
ou a realização de uma Cogitatio natura, pressupondo uma boa vontade como uma ‘decisão
premeditada’ do pensador”. Diferentemente, aprender decorre de relações paradoxais entre
as faculdades, o não-senso, implicando fissuras, rachaduras, rupturas na sensibilidade, na
memória, no pensamento, contra-sensos, não-sensos, que são irrupções de signos, partículas
de devir a forçar, a violentar o pensamento, deslocando e fazendo o sujeito e o mundo
saltarem a um plano onde serão diluídos. É assim que “o mundo vacila na corrente do
aprendizado”.
214
A aprendizagem é, portanto, o processo de individuação, diferente da
subjetivação e da significância, pelo qual o Eu é fissurado. É sempre um processo de dupla
articulação, isto é, de devir.
Aprender é seguir as linhas de fuga ou ser arrastado pela força do signo, é dar o
salto do animal feroz. Nesse sentido, a aprendizagem nunca se pelo trabalho da boa
vontade e da inteligência, nunca se constitui pela assimilação de conteúdo, pela
214
G. Deleuze, Proust e os signos, p. 25.
115
comunicação intersubjetiva e significante entre inteligências. É, antes, um processo
inconsciente e involuntário. Se o Ensino diz respeito à inteligência, a aprendizagem
acontece no inconsciente, é produção de inconsciente e do inconsciente.
215
É ruptura a-
significante, descodificação, desterritorialização absoluta. É prolongar-se em n dimensões e
direções, seguir o rizoma e não, a árvore.
Mas, como aprender sem cair no abismo, sem desmoronar no caos? Como
desfazer os estratos arborescentes do Mundo e do Eu, sem sofrer uma queda suicida? Como
construir a passagem entre os planos? Se a aprendizagem é um desfazer-se, como evitar a
demência, a esquizofrenia patológica? Não seria mais confortável permanecer na segurança
dos estratos e, em vez de arriscar-se no desconhecido, assimilar o Saber pelo ensino, imitar,
em vez de saltar?
Para evitar os extremos, é preciso situar-se sempre no meio, mover-se entre um
ponto e outro e fazer-lhes ressonar numa linha reta e perpendicular, é sempre andar entre.
Em outros termos, se saltar experimentando. Aprender é experimentar. O meio nunca é
uma média ou um ponto fixo. A lógica do E é reverter o Ser e o Não-Ser, destituir todo o
fundamento sem cair num sem-fundo, anular tanto o fim quanto o começo,
216
sem a ilusão
ascética do céu nem a escuridão da caverna, perigos constantes do pensamento. se
aprende na superfície, onde os corpos acontecem. Assim, o meio é a superfície e, portanto,
a velocidade de transformação incorpórea das misturas de corpos, velocidade que o
pensamento só acompanha tendo idéias curtas. Afinal, pensar é um clarão, um raio.
215
“Aprender’ passa sempre pelo inconsciente, passa-se sempre no inconsciente, estabelecendo, entre a
natureza e o espírito, o liame de uma cumplicidade profunda”. G. Deleuze, Diferença e repetição, pp. 269-
270.
216
G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 1, p. 37.
116
Eis então o que seria necessário fazer: instalar-se sobre um estrato,
experimentar as oportunidades que ele nos oferece, buscar um lugar
favorável, eventuais movimentos de desterritorialização, linhas de fuga
possíveis, vivenciá-las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos,
experimentar segmento por segmento dos contínuos de intensidades, ter
sempre um pequeno pedaço de uma nova terra.
217
Experimentar é liberar as linhas, o que só pode ser feito sobre os estratos. Todas
as coisas, pessoas, todos os corpos materiais e espirituais são emaranhados de linhas.
Experimentar é traçar diagramas dessas linhas. Diagramar é conectar, conjugar, continuar
traçando o mapa para desfazer as segmentaridades duras dos programas significantes,
subjetivos, arborescentes. Nunca se pára de aprender, pois desprender intensidades
contínuas, experimentar são trabalho para toda a vida, a vida sendo a própria
experimentação. Assim, ao ensinar, aprende-se: o aprender estende sobre o ensinar e vice-
versa, um insiste sobre o outro. não hierarquias, haverá o institucional? Ensinar-
aprender: articular-desarticular. Lição do professor Challenger, indivíduo de dupla
articulação. Professor Challenger ensina uma disciplina, uma nova disciplina por ele
mesmo inventada, chamada de diversos nomes: rizomática, estratoanálise, esquizoanálise,
nomadologia, micropolítica, pragmática, ciência das multiplicidades.
218
Ao ensiná-la, o
professor, ele próprio, desarticula-se e se transforma, parece que não pode ensiná-la sem
isso, o que não deixa de ser um processo doloroso para os rostos e os olhos das pessoas que
assistem, elas não aprenderam a ouvir o inesperado. Talvez seja doloroso também para ele,
o professor Challenger, desfazer o próprio rosto, mudar a própria voz... Entre nós,
indivíduos e pessoas, quem está habituado a desfazer o próprio rosto? O eu tornou-se um
hábito imponente. Para muitos, mais do que um hábito, um princípio, a estrutura psíquica...
217
G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 3, p. 24.
117
O que impele a passar de um plano a outro? O que força a experimentar? O que
impede ou interdita a passagem, fazendo que se permaneça fixo nos estratos? Somente a
experimentação traz o hábito de passar, de saltar de um plano a outro. Não se pode aprender
a saltar sem saltar. E, para isso, é preciso desejar o salto. Se permanecer nos estratos
implica o bloqueio e a estruturação do desejo, experimentar é, inversamente, liberar o
desejo. Fazer aflorar o rizoma é liberar o desejo, já que
quando um rizoma é fechado, arborificado, acabou, do desejo nada mais
passa; porque é sempre por rizoma que o desejo se move e produz. Toda
vez que o desejo segue uma árvore acontecem as quedas internas que o
fazem declinar e o conduzem à morte; mas o rizoma opera sobre o desejo
por impulsões exteriores e produtivas.
219
Percebe-se de que lado encontra-se a pedagogia dominante, o Saber e o Ensino
oficiais, do lado da estagnação e do controle do desejo, que é um controle sobre o corpo e o
pensamento. O corte significante é um corte no desejo, a captura do fluxo material
desejante. O corte significante faz funcionar o modo de individuação de que decorre a
sujeição voluntária, tornando a repressão algo desejado. Nessa medida, a pedagogia
dominante compõe o aparelho de Estado, como um seu aparelho de captura. Enfim, o
Ensino forma por meio de uma semiologia geral e da produção da subjetividade global: o
aparelho de captura realiza uma operação semiológica por excelência.
220
O Saber, o
Ensino, a pedagogia dominante fazem parte dessa semiologia. São um excesso
transcendente retido do e contra o fluxo que pairam sobre o real, constituindo uma memória
longa, estendida sobre um tempo histórico-cronológico: mecanismo de captura
civilizatório. Sob o axioma do direito, a pedagogia dominante exerce uma captura própria à
218
G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 1, p. 37.
219
Id., p. 23.
118
organização do poder do aparelho de Estado, convertida em estado de Direito.
221
119
À ciência régia de Estado e ao Saber, se opõe uma ciência menor ou made.
Essa é uma ciência de memória e idéias curtas, por isso é difícil classificá-la e segui-la. É
uma ciência dos fluidos e dos fluxos, lidando sempre com o devir e com a heterogeneidade,
que se movimentam por turbilhões, o que lhe faz oposta ao sólido, ao idêntico, ao estável,
ao constante. Ciência do inconstante e do fragmentário, ela quer fazer do próprio devir um
modelo, o que é um traço problemático e paradoxal. Sua matéria não é, por conseguinte,
o teoremático, mas o problemático.
Enquanto o teorema é da ordem das razões, o problema é afectivo e
inseparável das metamorfoses, gerações e criações na própria ciência (...)
o problema não é um ‘obstáculo’, é a ultrapassagem do obstáculo, uma
pro-jeção, isto é, uma máquina de guerra. É todo esse movimento que a
ciência régia se esforça por limitar, quando reduz ao máximo a parte do
‘elemento-problema’, e o subordina ao ‘elemento-teorema.
223
A ciência menor trabalha por problemas e os acidentes que se juntam a eles. Ela
não conserva e nem prevê; ela segue. Tal característica a impede de ter uma história, tal
qual possuem o Saber e a ciência régia, e de pertencer ao aparelho de Estado. É nômade,
não sedentária: em vez de reter o fluxo para controlá-lo, segue-o. Fora do aparelho de
Estado, a ciência nômade liga-se à máquina de guerra pois, diferentemente das soluções,
dos teoremas e dos axiomas, os problemas operam uma máquina de guerra no pensamento,
máquina de guerra que “se projeta num saber abstrato, formalmente diferente daquele que
duplica o aparelho de Estado”.
224
O Estado funciona por soluções.
A ciência nômade “se desenvolve excentricamente, sendo muito diferente das
ciências régias ou imperiais. Bem mais, essa ciência nômade não pára de ser ‘barrada’,
223
G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 5, p. 26.
224
Id., p. 26.
120
inibida ou proibida pelas exigências e condições da ciência de Estado”.
225
Contudo,
captura do saber criado pela ciência nômade, há um saber por ela criado que se deixa
apropriar sob a uma forma do estático. É assim que a ciência de Estado bloqueia e limita o
pulso experimentador da ciência nômada, fazendo valer sua soberania legal, seu estatuto de
cientificidade contra as enunciações rebeldes da ciência nômade.
Como máquina de guerra, a ciência nômade implicaria uma pedagogia menor,
clandestina, vagabunda, uma pedagogia que correria ao lado, tangencial e
perpendicularmente, linha de fuga, um fora desde o interior do Ensino e do Saber oficial da
pedagogia dominante.
226
A pedagogia menor jamais se converte em maioria, uma vez que é
devir, transformação e heterogeneidade, que foge ao padrão, ao modelo, ao método e às
relações de dominação internas à forma-Homem, à forma-Estado.
227
A experimentação
opera a passagem da pedagogia dominante a menor. Assim, não se pode experimentar sem
se tornar estrangeiro, clandestino, nômade na própria língua, no interior do próprio
significante e da própria subjetivação, no interior do próprio pensamento. Experimentar é
romper a clausura; e não se rompe a clausura sem desdobrar-se, sem romper-se. Não
devir que não desfaça o rosto e a paisagem. Mais uma vez, o pensamento do fora: o fora
sendo o mais distante e o mais interior ao pensamento.
225
Id., p. 26.
226
O dilema do mestre ignorante, que não deixa de ser mestre, embora queira abandonar o monopólio do
Saber, é também um paradoxo de dupla articulação, corre para os dois lados: somente como mestre é que
pode tornar-se também clandestino, imperceptível, sumir lentamente, ou velozmente. O mestre ignorante não
é, portanto, um vagabundo qualquer, um sem rosto ou um cujo rosto é resto; é alguém que ultrapassou o
problema, que deu o que pensar ou que se deixou pensar pelo fora. O mestre ignorante é o professor
Challenger.
227
“(...) o homem é majoritário por excelência, enquanto que os devires são minoritários (...) Por maioria nós
não entendemos uma quantidade relativa maior, mas a determinação de um estado ou de um padrão em
relação ao qual tanto as quantidades maiores quanto as menores serão ditas minoritárias: homem-branco,
adulto-macho, etc. Maioria supõe um estado dominação, o o inverso”. Assim, “devir-minoritário é um caso
político, e apela a todo um trabalho de potência, uma micropolítica ativa. É o contrário da macropolítica, e até
da História, onde se trata de saber sobretudo como se vai conquistar ou obter uma maioria”. G. Deleuze & F.
Guattari, Mil platôs, vol. 4, pp. 87-89.
121
Pensar o fora é saltar sobre a imanência.
O plano de imanência não é um conceito pensado nem pensável, mas a
imagem do pensamento, a imagem que ele se do que significa pensar,
fazer uso do pensamento, se orientar no pensamento... Não é um método,
pois todo método concerne eventualmente aos conceitos e supõe uma tal
imagem (...) O que o pensamento reivindica de direito, o que ele
seleciona, é o movimento infinito ou o movimento do infinito. É ele que
constitui a imagem do pensamento.
228
se pode pensar a partir do que, no pensamento, é o mais fundo e o mais
distante ambigüidade e paradoxo da superfície. “O mais profundo é a pele”: “a
superfície não se opõe à profundidade, mas à interpretação”.
229
Pensar é experimentar e
jamais interpretar, é permanecer à superfície, onde os corpos se misturam e acontecem. O
encontro é essa mistura: são os corpos que se encontram. É na superfície que se anda mais
rápido, que correm os signos. Sempre relação de imanência e transversal
230
: experimentar é
ir de corpo a corpo, é retomar o corpo e os corpos num verdadeiro encontro com o
inesperado, longe da recognição e da representação de um Mundo conhecido, rasgando
assim o rosto e a paisagem. “Pensar é experimentar, mas a experimentação é sempre o que
está fazendo o novo, o notável, o interessante, que substituem a aparência de verdade e
que são mais exigentes que ela”.
231
A superfície é a imanência, onde circulam, sob n
direções e dimensões, as singularidades, linhas e movimentos onde se pode perguntar: o
que pode um corpo? É o lugar, não de um mundo possível, mas do real, onde pensamento e
228
Id., p. 53.
229
G. Deleuze, Conversações, p. 109.
230
A linha de fuga é uma linha transversal que rompe as coordenadas que situam as coisas num plano de
organização, alterando a identidade e o ser daquilo que atravessa transversalmente. “(...) é quando ligadas
transversalmente que as coisas perdem sua fisionomia, deixando de ser pré-identificadas por esquemas
prontos, e adquirem a consistência de uma vida ou de uma obra, isto é, de uma ‘unidade não orgânica’. A
transversal é como o corte da univocidade nas formas constituídas, o plano da experiência pura sobre o qual
tudo se comunica com tudo (e se compõe ou não), para além das barreiras de forma, de função e de espécie”.
F. Zourabichvili, O vocabulário de Deleuze, Linha de fuga, pp. 61-62.
231
G. Deleuze & F. Guattari. O que é a filosofia?, p. 143.
122
natureza se cruzam e se implicam, todos os lugares da complicação. Na superfície,
circulam, livremente, em todas as direções e velocidades os signos-partículas e as linhas de
fuga, tudo o que a pensar e que põe o pensamento em movimento, para mover a sua
potência criadora e produzir os agenciamentos coletivos de singularidades, acontecimentos,
sentidos, conceitos, functivos e sensações. Na superfície, nasce uma outra percepção, uma
outra estética, pois a relação paradoxal que o fora mantém com o pensamento impele-o a
criar. A enésima potência do pensamento é criação, uma vez que o pensamento não pode
encontrar nem em si mesmo nem no mundo exterior o que o faça pensar. O pensamento
não pode encontrar nada em si mesmo, salvo o fora de onde ele vem e que reside nele
mesmo como ‘impensado”.
232
O fora é o clarão, o raio, que faz do pensamento pura
criação. Isso não se dá, contudo, sem que o ser pensante não problematize a si mesmo, o
seu próprio ser, isso que se é. Desse modo, “o impensado problemático dar lugar a um ser
pensante que se problematiza a si mesmo, como sujeito ético”.
233
“É que não pensamos sem
nos tornarmos outra coisa, algo que não pensa, um bicho, um vegetal, uma molécula, uma
partícula, que retornam sobre o pensamento e o relançam”.
234
A pedagogia menor estaria envolvida diretamente no processo de criação pelo
fora e exerceria a experimentação através das multiplicidades que percorrem a imanência, a
superfície. O encontro com essas multiplicidades singulares provoca uma busca que se
converte em criação. E o que se cria são conceitos filosóficos, functivos ou funções
científicas e perceptos sensíveis da arte. As três disciplinas e sua pedagogia da criação.
Uma pedagogia menor conteria em si as criações das três disciplinas, instalando-se à
fronteira dos planos imanentes dos processos de criação filosófico, científico e artístico.
232
G. Deleuze, Foucault, p., 126.
233
Id., p. 126.
123
Seu propósito será seguir as linhas dessas criações por experimentação a-metódica e a-
sistemática, no limiar da enésima potência do que é pensar. Pensar é criar conceitos,
functivos, perceptos, em planos diferentes que se cruzam e se implicam.
235
São criações
sempre singulares e múltiplas: Idéias
236
curtas justo uma Idéia, nunca uma idéia
conforme Idéias sempre heterogêneas que, por esse motivo, não se deixariam apreender
pela axiomática arborescente do Saber e do Ensino oficiais, programa centralizador,
hierarquizante e formalizante. Nesse sentido, aprender é jamais imitar, não é fazer como, é
fazer com; é sempre resistir às normalizações e generalizações da percepção, da
sensibilidade, do pensamento. Aprender é resistir e resistir é se encontrar no trabalho de
criação, trabalho que, a rigor, nunca acaba, nunca começa, coincidindo com o movimento,
o ziguezague, o ritmo da própria vida. E a vida é injustificável, assume todas as formas,
mas nenhuma que lhe seja um modelo. “É um acontecimento transparente: a vida e o saber
já não se opõem, nem sequer se distinguem, quando uma abandona seus organismos
nascidos e o outro seus conhecimentos adquiridos, mas uma e outro engendram novas
figuras extraordinárias”.
237
A pedagogia menor tem de provocar, por conseguinte, a experiência do
pensamento, todo um fazer por experimentações, todo um saber menor paradoxal, de dupla
articulação, molar e molecular, que proceda por relações transversais
238
e não-hierárquicas
234
G. Deleuze & F. Guattari, O que é a filosofia?, p. 59.
235
“A relação cinema-filosofia é a relação da imagem com o conceito. Mas no próprio conceito existe uma
relação com a imagem, e na imagem uma relação com o conceito”. “Com efeito, o que se poderia chamar de
Idéias são instâncias que efetuariam ora nas imagens, ora nas funções, ora nos conceitos. O que efetua a Idéia
é o signo. No cinema, as imagens são signos.” G. Deleuze, Conversações, p. 83.
236
As Idéias são “instâncias que se efetuam ora nas imagens, ora nas funções, ora nos conceitos. O efetua a
Idéia é o signo”. G. Deleuze. Conversações, p. 83.
237
G. Deleuze. Crítica e clínica, pp. 29-30.
238
Transversalidade se opõe à verticalidade própria das estruturas organogramáticas, estrutura cujas
prerrogativas e atribuições de um indivíduo são selecionadas de acordo com o lugar que se ocupa na pirâmide
funcional, chefe, subchefe, coordenador etc; e opõe-se também à horizontalidade na relação entre coisas e
pessoas ajustadas numa situação já dada, que se organizam ao ocupar um lugar definido. Guattari, 1985, pp.
124
entre as Idéias: indiscernibilidade entre o aprender, o saber e a vida. Pela heterogenia das
Idéias, cada aprendiz encontra as linhas e o seu fora, que irão forçar o pensamento a seguir
os dados puros, imanentes e singulares, sem formas prévias, sem organização significante,
pelos quais possa fazer emergir novas formas, novas Idéia autênticas. É a diferença como
diferença, modo de individuação por diferença absoluta. Assim, cada aprendiz precipita-se
no abismo e devém outros... Não como pensar sem o risco de cair no caos e perder-se, a
não ser quando se escolhe a atmosfera infértil do senso comum. “A filosofia, a ciência e a
arte querem que rasguemos o firmamento e que mergulhemos nos caos”.
239
Bifurcações,
complicações inevitáveis do aprendiz: o aprendiz é um complicado. Por isso mesmo, para
aprender o método, não um caminho traçado ou objeto ou saber privilegiados,
não há nenhuma solução antevista, nenhuma antecipação de resultado. Ninguém sabe como
alguém aprende. Do mesmo modo, não um tempo exclusivo para aprender, nem para
ensinar, muito menos um lugar específico para exercer a aprendizagem. Desmoronam em
ruínas as colunas da academia de Platão. As linhas do rizoma cruzam todos os tempos e
todos os espaços: heterogenia da experimentação. Isso faz de todo tempo tempo de
aprender e de todo lugar, lugar de ensinar e aprender. Também por isso, aprender é perder
tempo, todos os tempos, para redescobrir mais tarde todos os tempos, as linhas do tempo,
pelos descaminhos da própria aprendizagem. Todo aprendiz é um mateiro, abrindo trilhas.
Para tanto, é preciso estar atento e, ao mesmo tempo, distraído: a heterogenia das Idéias é
93-94, In: Gallo, Sílvio. Deleuze e a educação, p. 96. Assim, “assumir a transversalidade é transitar pelo
território do saber como as sinapses viajam pelos neurônios, uma viagem aparentemente caótica que constrói
seu(s) sentido(s) à medida que desenvolvemos sua equação”. “A transversalidade rizomática (...) aponta para
o reconhecimento da pulverização, da multiplicação, para a atenção às diferenças e à diferenciação,
construindo possíveis trânsitos pela multiplicidade dos saberes, sem procurar integrá-los artificialmente, mas
estabelecendo policompreensões infinitas”. É desse modo que “o acesso transversal significaria o fim da
compartimentação” e “o processo educativo passaria a ser uma heterogênese (...) uma produção singular a
partir de múltiplos referenciais, da qual não sequer como vislumbrar, de antemão, o resultado”. Gallo,
Sílvio. Deleuze e a educação, pp. 96-98.
125
sempre uma traição à forma, à hierarquia dos saberes, à percepção. Para chegar, é preciso
partir sempre de onde se estar, traçar a linha de fuga. A aprendizagem dobra-se e desdobra-
se segundo linhas, linhas que são do tempo, que são de fuga, que são partigos, conjunto de
signos e partículas singulares e múltiplas sobre o plano.
É desse modo que uma pedagogia menor constitui-se ao limiar da abertura para
a Rizosfera, para a n dimensões e direções do real, para o Caosmo presente numa gota, num
vento, num acorde, num sibilar... As linhas e os signos sibilam e o aprendiz é uma cabeça
pesquisadora sempre à meio-caminho, catando cacos sobre o caos, um ritornelo a sibilar
com o Caosmo, entre a morada e o caos, entre o caos e a nova casa, numa ida e vinda, num
eterno retorno entre a terra natal e a terra prometida. “O que de comum ao caos e ao
ritmo é o entre-dois, entre dois meios, ritmo-caos ou caosmo”.
240
Aprender é abrir-se, portanto, a n conexões do real, às multiplicidades que se
movimentam no plano e entre os planos, à heterogeneidade de partigos. Por isso mesmo,
uma tal pedagogia menor poderia ser chamada também de pedagogia da singularidade, da
diferença, da multiplicidade, da sensibilidade, do sentido, do desejo, uma pedagogia menor
movida por outra imagem de pensamento: a do pensamento imanente, rizomático, nômade.
Pensamento jamais desejoso de ser tutelado ou tutor.
239
G. Deleuze & F. Guattari, O que é a filosofia?, p. 260.
240
O ritornelo é territorial, ele se constrói num agenciamento territorial, levando sempre a terra consigo, “tem
como concomitante uma terra, mesmo que espiritual, ele está em relação essencial com um Natal, um Nativo
(...) Ora se vai do caos a um limiar de agenciamento territorial: componentes direcionais, infra-agenciamento.
Ora se organiza o agenciamento: componentes dimencionais, intra-agenciamentos. Ora se sai do
agenciamento territorial, em direção a outros agenciamentos, componentes de passagem e até de fuga. E os
126
três juntos. Forças do caos, forças terrestres, forças cósmicas: tudo isso se afronta e concorre no ritornelo”. G.
Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, pp. 118-119. O ritornelo é um selecionador, um compositor de ritmos.
127
Conclusão
128
Ante o formalismo de retomar o tema de nossa dissertação e fazer redundante a
tese, quase inteiramente esquecidos desde a apresentação, pelos descaminhos de tantas
digressões, jorro de palavras, tilintar da língua, o que podemos falar da reforma
educacional, de nosso continuísmo pedagógico, a não ser, mui brevemente, tê-los numa
relação complementar: a reforma como reorganização de poder; o continuísmo como
redundância da significância e da subjetivação. Ambos pertencentes a estratos e a processos
de estratificação próprios do plano de organização. A relação complementar entre a reforma
educacional e o continuísmo pedagógico assemelha-se à pressuposição recíproca entre o
Saber e a organização do poder, pela qual todo o Saber reproduz e propaga, como oitavo
postulado, a Imagem dogmática de pensamento. Uma reforma educacional deve ser vista
então como uma axiomática, luneta de corte e captura, sobre linhas que querem fugir. Uma
reforma atualizaria novos axiomas, reforçaria outros, estabilizando, fixando e
homogeneizando as relações de poder entre os corpos, segundo a velha Imagem. Talvez,
por esse motivo é que a noção de reforma seja tão estúpida e hipócrita, parafraseando e,
mais uma vez, citando Deleuze: ou a reforma é elaborada por pessoas que se pretendem
representativas e que têm como ocupação falar pelos outros, em nome dos outros”, sendo
uma reorganização e distribuição do poder; ou são reivindicadas por aqueles a que diz
respeito.
241
Nesse último caso, extremo e exterior, ela deixa de ser reforma e passa a ser
ação revolucionária, devir minoritário e máquina de guerra. Uma verdadeira reforma seria,
portanto, muito mais do que uma reforma; seria o seu fora: uma ação de transformação
radical das relações de poder e a invenção de um outro saber. Mas isso jamais é o caso das
reformas educacionais promovidas pelo aparelho de Estado.
241
G. Deleuze & M. Foucault, Os intelectuais e o poder, in: M. Foucault. Microfísica do poder, p. 72.
129
É que uma ação revolucionária, um devir minoritário não são totalizações do
poder, expansão de dominação, mas, ao contrário, é o produzir, o liberar do desejo, como
resistência e criação. São pequenos atos, movimentos de corpos singulares de uma minoria
fixada e dominada num estrato qualquer, lutando inconscientemente contra o controle do
corpo e do desejo. Uma minoria é o turbilhonar da nova terra, seus movimentos visam a
instaurar um novo território nativo e desconhecido, imprevisível. No caso do sistema de
ensino, os estudantes, crianças e jovens são essa minoria, traços de linhas de fuga
potenciais, a infância estendida e grudada à terra. Contudo, ao mesmo tempo, a crise da
instituição escolar, a ausência de sentido, o distanciamento negativo da vida e do saber
como sintomas do que quer fugir implicam o aumento permanente do controle e a
ampliação da dominação. É sempre o revide do aparelho de Estado e do plano de
organização, canalizar, aumentar os condutos mais e mais. Controlar o corpo e o desejo na
escola e muito além da escola, nutrir permanentemente a insegurança social e econômica,
estimular a necessidade da formação permanente, sobrepor o estrato escolar ao estrato do
trabalho e vice-versa são mecanismos pelos quais se reorganizam as relações de
dominação.
Desterritorializar o mestre, o estudante, o operário, o homem, a mulher pela
ação do aprendiz, o aprendiz sendo um fora permanente, implica um combate, um processo,
um movimento de desarticulação: um devir revolucionário. Um deixar de ser o que se é.
Desmoronar e ir à terra. Fiquemos com o organismo desfeito, o rosto desfigurado do
Professor Challenger, tornado corpo sem órgãos, suas últimas palavras e burburinho:
Pronto, estava acabado. mais tarde tudo aquilo tomaria um sentido
concreto. A dupla máscara articulada tinha-se desfeito, mas também as
luvas e a túnica de onde escorriam líquidos que, em seu percurso fugidio,
pareciam corroer os estratos da sala de conferência ‘cheia das fumaças do
130
olíbano e forrada de papel com estranhos desenhos’. Desarticulado,
desterritorializado, Challenger murmurava que levava a terra consigo,
partia para o mundo misterioso, seu jardim venenoso. Sussurrava ainda: é
por debandada que as coisas progridem e os signos proliferam. O pânico é
a criação. Uma jovem gritou ‘debaixo da mais selvagem, mas profunda e
mais hedionda crise de pânico epilético’. Ninguém tinha ouvido o resumo
e ninguém tentava reter Challenger. Challenger, ou o que dele restava,
precipitava-se lentamente para o plano de consistência seguindo uma
trajetória bizarra que nada mais tinha de relativo. Tentava deslizar para
dentro do agenciamento que servia de porta giratória, espécie de Relógio
de partigos, com tique-taque intensivo, ritmos conjugados que martelavam
o absoluto: ‘A silhueta desmoronou numa postura quase nada humana e
começou, fascinada, um movimento singular na direção do relógio em
forma de caixão que tiquetaqueava seu ritmo anormal e cósmico (...) A
silhueta tinha agora alcançado o misterioso relógio, e os espectadores
viram, através de densas fumaças, uma indistinta garra negra arranhando a
grande porta coberta de hieroglifos. O toque da garra provocou um
estranho tilintar. A silhueta entrou então na arca em forma de caixão e
fechou a porta atrás de si. O tique-taque anormal recomeçou, martelando
o negro ritmo cósmico que está na base da abertura de todas as portas
ocultas (30)’ a Mecanosfera, ou rizosfera. (30 Lovecraft, Demons et
merveilles, Bibliothèque mondiale, pp. 61-62).
242
242
G. Deleuze & F. Guattari, Mil platôs, vol. 1, pp. 90-91.
131
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Dissertação de Mestrado
UERJ/PROPed/2006
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