Download PDF
ads:
FACULDADE DE FÍSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E MATEMÁTICA
Lia Bárbara Marques Wilges
A BIOÉTICA NUM ENFOQUE EDUCACIONAL: IMPLICAÇÕES NA FORMAÇÃO
DE PROFESSORES DE CIÊNCIAS E BIOLOGIA
Porto Alegre
2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
LIA BÁRBARA MARQUES WILGES
A BIOÉTICA NUM ENFOQUE EDUCACIONAL: IMPLICAÇÕES NA
FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE CIÊNCIAS E BIOLOGIA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação em Ciências e Matemática,
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, como requisito parcial para a obtenção do
grau de Mestre em Educação em Ciências e
Matemática.
Orientador: Drª Regina Maria Rabello Borges
PORTO ALEGRE
2007
ads:
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Bibliotecário Responsável
Ginamara Lima Jacques Pinto
CRB 10/1204
W677b Wilges, Lia Bárbara Marques
A bioética num enfoque educacional: implicações na formação
de professores de ciências e biologia / Lia Bárbara Marques Wilges.
Porto Alegre, 2007.
141 f.
Diss. (Mestrado) - Faculdade de Física. Pós-Graduação em
Educação em Ciências e Matemática PUCRS, 2007
Orientação: Drª. Regina Maria Rabello Borges
1. Bioética. 2. Professores - Formação Profissional . 3. Ciência -
Ensino. 4. Biologia – Ensino. 5. Formação. I. Título.
CDD : 174
AGRADECIMENTOS
Somos anjos de uma só asa e só voamos quando abraçados uns aos outros..”. Por
esta razão, agradeço aos “anjos” que cederam suas asas nesse vôo que desejei alçar.
Ao meu querido pai, que na sua presença espiritual, e sempre vivo em meu coração,
me guiou com sua asa de luz;
À minha amada mãe, primeira professora, grande amiga, que com sua asa de
perseverança e confiança soube-me mostrar a força interior que tenho nos momentos em que
desacreditei;
À minha querida Vó Ana, que enviada por Deus à minha vida, cedeu-me a asa da fé
deixando em mim a certeza que o amor e os planos de Deus são os verdadeiros sentidos de
nossa vida;
Às minhas irmãs, Laura e Anne, que com a asa da ‘impaciência’ peculiar da
modernidade, me incentivaram a criar ‘mais’ em ‘menos’ tempo;
Aos meus queridos sobrinhos, que no frescor de suas idades, cederam-me as asas da
esperança;
Aos meus cunhados, Marcello e Lucas, que, com as asas da intelectualidade,
incentivaram-me a não esmaecer frente às novas tecnologias;
À minha mestra querida, Professora Regina, que incansavelmente cedeu-me mais que
sua asa do conhecimento; presenteou-me com sua compreensão, companheirismo, confiança e
carinho;
Aos professores pelos quais passei ao longo da minha vida acadêmica, e em especial
ao professor Joaquim Clotet, que me cederam asas da inspiração, ao transformarem idéias em
sutil encantamento, peculiar aos grandes mestres;
Ao meu esposo Leandro, companheiro, amigo, cúmplice... Meu grande amor, que não
cedeu-me só sua asa, mas voou junto comigo em todos os momentos, mostrando-me que o
sentido da vida está no amor;
A todos que, de alguma forma, cederam-me suas asas de atenção, carinho, respeito,
preocupação, compreensão, confiança e que, embora não tenham sido mencionados, estão
guardados em meu coração e em minhas orações;
E finalmente, não por último, ao querido Deus, que me fez anjo e me deu a Vida, pela
qual agradeço todos os dias. A Ele que me proporcionou estar aqui, neste tempo, neste espaço
e protegida por todos esses anjos que me ajudam a voar.
RESUMO
Visando a refletir sobre fundamentos e aspectos envolvidos num tema de grande discussão
atual, a Bioética, e considerando a importância do processo de formação inicial de
professores, esta pesquisa focaliza implicações da Bioética na formação cognitiva e humana
de licenciandos em Ciências Biológicas. Num contexto que remete a Bioética a questões
educacionais, por meio de uma abordagem qualitativa, busca a compreensão dos fenômenos a
partir de uma análise textual discursiva das concepções de professores de uma universidade
quanto a implicações da Bioética na formação dos profissionais da educação em Ciências e
Biologia. Um dos poucos consensos referentes à Bioética é não ser possível conceituar algo
que não determine regras ou normas substantivas, mas se mantenha na reflexão, na
pluralidade e no contexto atual. Em coerência com o objetivo da pesquisa – investigar idéias e
percepções dos sujeitos sobre implicações do tema em cursos específicos de formação de
professores de Ciências e Biologia – as respostas a algumas questões selecionadas
configuraram compreensões emergentes, como: a possibilidade de uma abordagem integrada
da Bioética a outras disciplinas do curso; a educação para a argumentação e o senso crítico,
possibilitada pela aplicabilidade da Bioética através da discussão de situações de conflito e
estudos de caso; os medos e anseios de uma abordagem interdisciplinar; a Bioética vista como
uma atitude e a atitude como princípio básico para a abordagem bioética. Sobretudo, a
emergência dessa discussão é latente e relevante nas perspectivas do mundo atual, sendo tão
fundamental quanto o conhecimento do tema e sua divulgação a toda a sociedade. Todavia,
esta pesquisa não pretende resolver questões sensíveis aos olhos da educação ou mesmo
pouco discutidas no âmbito da educação nacional, mas se delineou no intuito de abrir novas
discussões sobre a relevância dessa vertente da Bioética e de um processo reflexivo em torno
dele.
Palavras-chave: Bioética. Educação. Formação de professores.
ABSTRACT
Aiming to reflect on beddings and involved aspects in a subject of great current quarrel, the
Bioethics, and considering the importance of the process of initial formation of professors,
this research focuses implications of the Bioethics in the cognitive and human being
formation of professors in Biological Sciences. In a context that sends to the Bioethics
educational questions, by means of a qualitative boarding, it searches the understanding of the
phenomena from a literal and oral analysis of the professors conceptions of a university about
the implications of the Bioethics in the formation of the professionals of the education in
Sciences and Biology. One of the few referring consensuses to the Bioethics is not to be
possible to appraise something that does not determine substantive rules or norms, but that is
kept in the reflection, the plurality and the current context. In coherence with the objective of
the research - to investigate ideas and perceptions of the citizens on implications of the
subjects in specific courses of formation of professors of Sciences and Biology - the answers
to some selected questions had configured emergent understandings, as: the possibility of an
integrated boarding of the Bioethics to others subjects of the course; the education for the
argument and the critical sense, made possible for the applicability of the Bioethics through
the quarrel of situations of conflicts and studies of case; the fears and yearnings of a boarding
to interdisciplinary; Bioethic seens as an attitude and this attitude as a basic principle for the
bioethics referring. However, the emergency of this quarrel is latent and excellent in the
perspectives of the current world, being so basic as much as the knowledge of the subject and
its spreading to all the society. Although, this research does not intend to decide sensible
questions to the eyes of education or even not very well discussed in the environment of the
national education, but it delineated in intention to open new quarrels on the relevance of this
source of the Bioethics and a reflective process about it.
Key Words: Bioethics. Education. Professors graduation process.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.........................................................................................................
7
2 ANTES DO PRIMEIRO PASSO, A ESCOLHA DA DIREÇÃO........................
9
3 RESGATANDO CAMINHOS JÁ TRILHADOS..................................................
16
3.1 Compreendendo Ética, Moral e Bioética................................................................ 16
3.2 Relacionando Bioética com a formação de professores de Ciências e
Biologia......................................................................................................................
22
4 DELINEANDO CAMINHOS..................................................................................
26
5 EDUCAR PARA A ARGUMENTAÇÃO: CRIANDO SITUAÇÕES DE
“PRÁTICA” DA
BIOÉTICA................................................................................................................
38
5.1 Argumentar é preciso............................................................................................... 38
5.2 A aplicabilidade da Bioética através de estudos de caso.......................................
46
6 A BIOÉTICA ABORDADA EM OUTRAS DISCIPLINAS DO CURRÍCULO
FORMATIVO: POSSIBILIDADE OU UTOPIA?................................................
58
6.1 Uma perspectiva interdisciplinar da Bioética........................................................ 58
6.2 A Bioética como disciplina específica......................................................................
62
7 FORMADORES DE PROFESSORES DE CIÊNCIAS E BIOLOGIA:
ANSEIOS E RECEIOS NA ABORDAGEM BIOÉTICA.....................................
71
8 ATITUDE: PRINCÍPIO NECESSÁRIO AO ENVOLVIMENTO COM A
BIOÉTICA................................................................................................................
82
9 UMA PAUSA NA CAMINHADA: REPENSANDO O QUE FOI E
SONHANDO O QUE HÁ DE VIR..........................................................................
95
REFERÊNCIAS........................................................................................................
103
APÊNDICE A – Termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE)................
109
APÊNDICE B – Transcrição das entrevistas......................................................... 113
7
1 INTRODUÇÃO
Percebe-se a cada dia a importância que uma aprendizagem humana, reflexiva, e
integral que objetive desenvolver a autonomia, a criticidade e a argumentação do educando,
seja oportunizada nos processos educacionais. O incentivo ao envolvimento do aluno nas
discussões éticas e o seu posicionamento perante as situações conflitantes, pode configurar
qualquer momento da sua formação.
Proporcionar ao aluno meios de envolvê-lo nas discussões de maneira participativa, de
modo que ele perceba que suas decisões estão sendo consideradas, incentiva uma concepção
de formação no qual o indivíduo passa a se sentir parte responsável por suas escolhas. A
aprendizagem possivelmente terá significado e se tornará efetiva. A formação educacional
deve configurar primeiramente uma face social e humana, não somente deter-se ao caráter
intelectual e cognitivo.
Esta pesquisa se delineou por um ramo especial da ética que prioriza a vida acima de
tudo: a Bioética. Num contexto que remete a Bioética às questões que envolvem a formação
de futuros professores de Ciências e Biologia, buscou-se a compreensão dos fenômenos e das
concepções dos sujeitos participantes, a partir das idéias referentes às questões de pesquisa.
No tocante a esta vertente da Bioética, constata-se um outro dilema: qual a forma mais
adequada de implementar-se a Bioética nos currículos formativos de professores de Ciências e
Biologia? O espaço às aprendizagens, seja este a escola ou a universidade, talvez possa ser
considerado também como espaço à reflexão e a busca da identidade do “ser” humano?
A urgente necessidade de resgate de valores como solidariedade, respeito, dignidade,
companheirismo, gratuidade, competência, disciplina, cidadania, liberdade, convívio com as
diferenças, são alguns desses desafios diários enfrentados pelo professor nas suas aulas e que
certamente, contribuirão para a formação integral do aluno.
O despertar para a solução dos conflitos surge com a reflexão ética. Quando a reflexão
perpassa o fato de apenas aceitarmos as regras de um determinado meio sem discutirmos ou
questionarmos a respeito, passamos da ação, que concorda com uma escolha teórico-moral,
8
para uma reflexão prático-ética da maneira como devemos agir. A ética surge da filosofia,
porém, ela ganha aspectos globais de envolvimento de todos que compõem um meio social.
Ela não configura algo exclusivo de discussões de um grupo de filósofos, pois ao atingir os
outros indivíduos, torna-se generalizada e presente na realidade de todos.
A Bioética, como um ramo especial da ética, ou uma ética aplicada, vai além e tenta
resolver os dilemas que envolvem a vida em todos os sentidos e as possíveis ameaças a sua
integridade.
Mas, como trabalhar esses dilemas na formação de professores? Qual a melhor forma
de trazer as reflexões bioéticas para a sala de aula dos cursos formativos? Haverá a
possibilidade de todos os professores, independentemente da área de conhecimento,
abordarem a Bioética nas suas disciplinas?
Algumas e inquietantes são as questões que ora são propostas. Sobretudo, faz-se
necessário ressaltar que a formação educacional do aluno talvez precise urgentemente
perpassar o aspecto cognitivo e passando a priorizar o verdadeiro valor das pessoas e sua
formação social e humana. Sobre isso, “[...] a valorização da vida humana é a pedra de toque
e o ponto de referência primordial da Bioética” (JUNGES, 1999, p.71).
Nesse contexto, que visa a abordar a Bioética como uma disciplina responsável por
discutir os conflitos emergentes da vida, numa relação com o processo de formação inicial de
professores – que pode ser considerada a porta de acesso à informação e conhecimento dessa
nova ciência – atribui-se a validade desta pesquisa. A busca pela compreensão das concepções
de docentes que participam desse processo de formação, pode ser um passo importante para o
reconhecimento de diferenciadas abordagens do tema. Com isso, será possível analisar as
idéias e percepções de como está sendo abordado o tema Bioética em cursos específicos de
formação de professores de Ciências.
Esta pesquisa se delineará através de uma análise textual discursiva (MORAES, 2003)
que buscou na construção do corpus de análise, o material substancioso e coerente com que se
pretende. Todo esse material de análise, foi sendo construído a partir de entrevistas gravadas
com os depoimentos dos participantes da pesquisa, buscando-se a compreensão dos
fenômenos investigados.
9
2 ANTES DO PRIMEIRO PASSO, A ESCOLHA DA DIREÇÃO
As razões que levam às escolhas são por vezes inexplicáveis. O consenso é que toda
escolha gera uma renúncia, e escolher é um ato extremamente delicado e complexo. Todavia,
uma escolha pode tornar-se perpétua ou remediável. Independentemente do caminho, da via
escolhida, toda escolha carrega consigo desafios próprios, expectativas, intencionalidade e
paixão.
Talvez a atualidade do tema, a preocupação pelo rumo que os valores e os julgamentos
morais vêm tomando ou até mesmo a fragilidade e, por que não dizer, a pobreza de
argumentação sobre o tema, somados à recompensa de cada novo significado, da
compreensão de cada descoberta, resulte no que hoje direciona e formaliza o tema desta
investigação: a Bioética numa vertente educacional.
Optar pela abordagem de um tema como a Bioética requer uma entrega intensa, mas
apaixonante. E, ao submergir nos tantos questionamentos que permeiam este assunto,
percebe-se que pouco se sabe ou pouco se procura discutir sobre a Bioética no contexto
educacional do país. Ações nesta área já corroboram explicitações enfáticas, promulgadas
como latentes e necessárias na área educacional em países europeus e norte-americanos. Não
somente isto, mas a soma de um todo que envolve expectativas, dúvidas e anseios, servem de
sustentação ao objetivo e condução desta pesquisa.
A participação em alguns seminários e cursos, intencionalmente procurados, e que
priorizavam o tema “Bioética”, contribuíram à percepção da necessidade de investimento num
trabalho que investigasse e argumentasse na busca pela compreensão daquilo que há muito
causava inquietação. Um movimento? Ou uma nova ciência a exigir métodos próprios para
sua produção de conhecimentos? Uma tendência, um constante debate renovável a cada época
e de acordo com cada tempo? Afinal, o que se deve procurar saber para compreender o
significado da Bioética, tão falada, tão oferecida no mercado das ciências da vida?
(BERNARD, 1994).
10
No curso de pós-graduação, evidenciou-se essa possibilidade: ir além e, juntamente
com outros interessados, consolidar essa compreensão através de um trabalho investigativo
estruturado na ação do pesquisador e seus interesses. A base para essa pesquisa, logicamente,
primou pela elaboração dos argumentos e a construção de um bom discurso, além da eminente
busca pelas respostas aos questionamentos. Respostas? Pode-se dizer que a Bioética é assim
fundamentada, em perguntas e respostas?
A participação em algumas reuniões numa faculdade de Biociências, onde na época
acontecia a reestruturação do currículo, permitiu a clara percepção da importância e do
interesse em se trabalhar a Bioética na graduação em Ciências Biológicas. Desde então,
implementou-se a disciplina específica de Bioética a ser ministrada por um filósofo e
creditada ao último semestre do curso. Além da satisfação em vivenciar as discussões em
torno desse processo, a maior recompensa foi perceber que o espaço para a educação bioética,
na formação dos licenciandos, estava sendo privilegiado.
Essa vivência contribuiu também para a reflexão e a percepção de que tal lacuna, a
partir de agora preenchida, ficara desde a formação acadêmica regida por um currículo que
não previa uma disciplina de Bioética. Uma lacuna que não trouxe consigo saldo negativo,
pois proporcionou a reflexão e a posterior intenção em investigar esse tema, vislumbrando
outras perspectivas.
As certezas em mergulhar nessa e não em outra abordagem aumentavam na mesma
proporção em que as necessidades de compreensão cresciam. Os caminhos se mostravam
convergindo para um só horizonte. Não restavam dúvidas quanto à escolha do tema.
Indubitavelmente, as linhas de discussão da Bioética são muitas, pois, além de sua
complexidade, trata-se de um tema conflitante, atual, desafiador, multidisciplinar. Então, o
que focalizar neste assunto tão amplo e com tantos aspectos importantes a serem
considerados? Não obstante, qual a melhor forma de explorá-lo dentro da área escolhida, a
Educação?
Unindo uma necessidade percebida desde a graduação com o desejo de
enriquecimento argumentativo através de novas compreensões, optou-se por explorar essa
11
disciplina priorizando a investigação da Bioética e sua relação com a formação de um
professor de Ciências e Biologia.
A análise dos princípios que guiam a Bioética - da justiça, da autonomia, da
beneficência e da não-maleficência - pode ser associada integralmente à relação professor/
aluno e ao processo de formação de um professor de Ciências e Biologia, cunhando a esta
investigação o caráter de viabilidade e sustentabilidade. Afinal, todo professor trabalha com
vidas, assim como o faz um médico. Todo professor encontra numa sala de aula uma
diversidade de contextos, de vivências, de sentimentos. Todo professor pode ter autonomia e
envolver-se na formação de pessoas que estão construindo seu caráter e sua própria
identidade; pode avaliar com os olhos da justiça a situação e buscar todos os benefícios
possíveis àquelas vidas que estão tão próximas de si. Contudo, indiscutivelmente, a formação
de um professor é construída numa perspectiva bioética.
A análise da “Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos”, adotada por
aclamação em 19 de outubro de 2005 pela 33ª Sessão de Conferência Geral da UNESCO,
também nos remete a esse entendimento quando na leitura do artigo 23, que considera
“Informação, Formação e Educação em Bioética”:
a) De modo a promover os princípios estabelecidos na presente Declaração e
alcançar uma melhor compreensão das implicações éticas dos avanços científicos e
tecnológicos, em especial para os jovens, os Estados devem envidar esforços para
promover a formação e educação em bioética em todos os níveis, bem como
estimular programas de disseminação de informação e conhecimento sobre bioética.
Os esforços em torno dessa consideração são pertinentes à vertente educacional da
bioética e reforçam as expectativas em investir no trabalho com afinco e responsabilidade. O
estudo da bioética nos cursos universitários já vem sendo percebido como necessário à
promoção da educação ética há algum tempo, todavia, deve-se destacar que esse interesse é
condicionado à implementação de disciplinas específicas de bioética. Nota-se que há uma
urgente exigência na formação de graduandos nas áreas das ciências da vida, e que essa
exigência é sensível à atual reflexão ética nas profissões.
A partir deste final de século, já se percebe que médicos, biólogos, ecologistas, etc.,
somente estarão preparados para o exercício profissional se, ao lado de competente
formação técnica, também tiverem sido treinados para o reconhecimento de
conflitos éticos, análise crítica de suas implicações, uso de senso de
12
responsabilidade e obrigação moral ao tomar decisões relacionadas à vida humana
(AZEVEDO, 1997, p.37).
Além disso, a formação de professores de ciências da vida, pautada no conhecimento e
na educação bioética, também se sustenta nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) do
Ensino Fundamental e nas Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio (DCNEM), que
enfatizam a relevância de uma abordagem ética no desenvolvimento dos conteúdos de
Ciências e Biologia, buscando com isso a ação dos professores voltada a essa preocupação em
todas as áreas do conhecimento. A Lei de Diretrizes e Bases (LDB), Lei nº 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, dispõe, em
relação ao ensino médio (Seção IV), no Art.35, que “terá como finalidades [...] o
aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o
desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico;” e, no Art. 36, indica as
seguintes diretrizes curriculares para o ensino médio:
I - destacará a educação tecnológica básica, a compreensão do significado da
ciência, das letras e das artes; o processo histórico de transformação da sociedade e
da cultura; a língua portuguesa como instrumento de comunicação, acesso ao
conhecimento e exercício da cidadania;
II - adotará metodologias de ensino e de avaliação que estimulem a iniciativa
dos estudantes
A partir de então, disponibiliza-se a estruturação das Diretrizes Curriculares Nacionais
para o Ensino Médio (DCNEM), pelo Ministério da Educação, Conselho Nacional de
Educação, sob o processo: 230001.000309/97-46, parecer CEB nº 15/98, aprovado em 01 de
junho de 1998, que “[...] integra, numa mesma e única modalidade, finalidades até então
dissociadas, para oferecer, de forma articulada, uma educação equilibrada, com funções
equivalentes para todos os educandos”, especificando:
• a formação da pessoa, de maneira a desenvolver valores e competências
necessárias à integração de seu projeto individual ao projeto da sociedade em que
se situa;
• o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação
ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico;
• a preparação e orientação básica para a sua integração ao mundo do trabalho
[...];
• o desenvolvimento das competências para continuar aprendendo, de forma
autônoma e crítica, em níveis mais complexos de estudos.
Ou seja, ideais de uma educação que contribua para que, gradativamente, supere o
tratamento estanque, compartimentalizado, que caracteriza o conhecimento escolar. Isso,
13
acima de tudo, representa um retorno à discussão destes aspectos na formação de professores,
investindo-se na latente preocupação destes aspectos. E a Bioética proporciona e privilegia a
percepção de que todo ser humano pode ser ético, autônomo e responsável pela orientação da
sua vida e das outras pessoas que habitam o mesmo contexto.
A abordagem da Bioética direcionada às implicações na formação de professores em
nível universitário, num sentido contextualizado e atual, também encontra sustentação na
LDB que considera, no Art. 43 do Capítulo IV, as finalidades da educação superior:
I - estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito científico e do
pensamento reflexivo;
III - incentivar o trabalho de pesquisa e investigação científica, visando ao
desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da criação e difusão da cultura, e,
desse modo, desenvolver o entendimento do homem e do meio em que vive;
VI - estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente, em particular os
nacionais e regionais.
A preocupação com a formação dos professores fica evidenciada nas discussões que
preconizam as diretrizes nacionais de ensino, as quais pretendem qualificar os aspectos
pertinentes a esse processo. Sobretudo, há referência à esfera do ensino superior, responsável
pela formação de licenciandos futuros profissionais da educação. Cabe, pois, referir a
afirmativa a seguir que relata essa preocupação:
A preparação de professores, pela qual o Ensino Superior mantém articulação
decisiva com a Educação Básica, foi insistente e reiteradamente apontada como a
maior dificuldade para a implementação destas DCNEM, por todos os
participantes, em todos os encontros mantidos durante a preparação deste parecer.
Maior mesmo que os condicionantes financeiros. [...] Um peso que deve ser
transferido às instituições de Ensino Superior, para que o considerem quando, no
exercício de sua autonomia, assumirem as responsabilidades com o País e com a
Educação Básica que considerem procedentes (DCNEM, p.100).
Considerando-se os aspectos até então mencionados e a necessidade de uma formação
docente pautada na reflexão ética, contextualizada na realidade cultural, histórica e axiológica
nacional, e percebendo-se a possibilidade de implementação de uma abordagem bioética
dessa ordem, configura-se, como objetivo desta pesquisa, investigar a percepção de docentes
de cursos de graduação quanto a contribuições da Bioética na formação dos futuros
profissionais da educação em Ciências e Biologia. Mais especificamente, esta pesquisa tem os
seguintes objetivos:
14
I - Identificar as relações estabelecidas pelos professores entrevistados entre o
conteúdo que lecionam e a Bioética;
II - Reconhecer se, e como, a Bioética poderia ser integrada ao programa de
disciplinas específicas do curso, ainda que de forma complementar a alguma disciplina sobre
Bioética.
III - Analisar considerações dos sujeitos da pesquisa sobre a importância da Bioética
na formação de professores de Ciências e Biologia.
Mantendo relação com estes objetivos, esta pesquisa será desenvolvida em torno de
um problema central:
Como os docentes de cursos de graduação de uma universidade percebem as
contribuições da Bioética na formação inicial de professores de Ciências e Biologia?
A partir deste problema, surgem as questões de pesquisa que nortearão o
desenvolvimento desta investigação, listadas a seguir:
I. Como os professores que lecionam num curso de formação de professores de
Ciências e Biologia percebem a relação entre o conteúdo específico que trabalham e a
Bioética?
II. Como os sujeitos participantes consideram a possibilidade de trabalhar as questões
bioéticas nas disciplinas específicas, ainda que de forma complementar a alguma disciplina
sobre Bioética presente no currículo?
III. Em que aspectos esses professores consideram relevante a Bioética na formação de
professores de Ciências e Biologia?
O que muito se discute atualmente e é tema de intensas reflexões, é a preocupação
com o rápido avanço e aplicação das descobertas científicas e tecnológicas e a adequação dos
valores éticos envolvidos. Sobretudo, esta pesquisa se justifica e se insere num contexto de
necessidade da abordagem e discussão em torno dessa vertente não menos importante da
bioética. Ademais, há também a possibilidade de que novas compreensões venham a emergir,
considerando as suas implicações sobre o processo de formação de professores de Ciências e
Biologia. De forma participativa e cooperativa, além dos objetivos específicos, ela também
buscará uma possível contribuição à formação de egressos no curso de Ciências e Biologia,
visando à qualidade profissional pautada na bioética e na conscientização da importância dos
atos de um professor na vida de outras pessoas.
15
Contextualizada nas perspectivas atuais de promoção e incentivo da educação bioética
e argüindo sobre a diversidade cultural, social, econômica e ambiental, na especificidade dos
problemas bioéticos frente à crescente e preocupante desvalorização moral; considerando os
problemas advindos dos avanços tecnológicos e as discussões éticas pertinentes, nestes e em
outros aspectos de igual importância, que por hora se bastam, articula-se a intenção da
abertura a novas compreensões advindas de uma intensa impregnação nos referenciais
teóricos disponíveis, integrados ao diálogo com os textos que compõem o corpus da análise.
16
3 RESGATANDO CAMINHOS JÁ TRILHADOS
Este capítulo apresenta os fundamentos teóricos da pesquisa organizados em dois
itens, um buscando a compreensão de Ética, Moral e Bioética e o outro envolvendo relações
entre Bioética e a formação de professores de Ciências e Biologia.
3.1 Compreendendo Ética, Moral e Bioética
O neologismo “bioética” tem sua origem a partir de dois termos gregos: bios (vida) e
éthos (ética). Sabe-se que a preocupação com a “ética da vida” tem seus princípios
fundamentados na deontologia médica. A bem da verdade,
[..] desde a noite dos tempos, o comportamento humano gerou questões. Que
atitude tomar em face da vida humana: nascimento, doença, sofrimento,
envelhecimento, morte? Não é de hoje que os seres humanos dão-se regras morais e
códigos deontológicos; sendo o código de deontologia médica, talvez o mais antigo
e o mais conhecido (DURANT, 1995, p.5).
Ao analisar-se os principais momentos da história que referenciam o surgimento do
conceito de “bioética”, verifica-se o seu início na década de 70, quando o médico oncologista
e professor da Universidade de Wisconsin, Van Rensselaer Potter, lançou o termo “Bioética”
em sua obra intitulada Bioethics: bridge to the future, reforçando a necessidade de se manter
uma estreita relação entre a ética médica e as ciências biológicas. “Potter usou o termo para se
referir à importância das ciências biológicas na melhoria da qualidade de vida; quer dizer, a
Bioética seria, para ele, a ciência que garantiria a sobrevivência no planeta” (CLOTET, 2006,
p. 21). Para ele a Bioética deveria ser a ciência da sobrevivência diante dos desafios e
ameaças à vida. Potter chegou a essa compreensão, de necessidade dessa ciência, a partir de
estudos sobre o câncer, que considerou não ser apenas uma doença física, mas uma
manifestação das ações do ambiente (JUNGES, 1999).
Primeiramente, a Bioética preocupou-se tão somente com os aspectos médicos, no
intuito de resolver questões que envolvessem a relação médico-paciente ou problemas dessa
natureza: vida, morte, doenças terminais, eutanásia. Contudo, esta parte da ética, passou a
17
abranger um campo maior de estudos, considerando todos os outros conflitos que afetam
diretamente a vida humana, numa visão global e interdisciplinar. Ou seja, a Bioética entra em
cena para defender a vida. No entanto, e considerando-se as indagações de Sanches (2004,
p.18), “nada mais importante, mas, ao mesmo tempo, mais vago e mais amplo do que a vida”.
Diante disso, o sentido amplo dado à Bioética contribuiu para que ela se apresentasse de
maneira aberta e articulada em diferentes temas, e, ademais, pudesse ser relacionada à
qualquer profissão, pois raramente se pode referir alguma que não vise promover a vida
(SANCHES, 2004).
Essa globalização do termo aponta, pois, para o interesse das pessoas, da humanidade
nos seus problemas do dia-a-dia. Então, “A Bioética precisa de um paradigma de referência
antropológico-moral [...] o valor supremo da pessoa, da sua vida, liberdade e autonomia”
(CLOTET, 2006, p. 23). A Bioética considera a pessoa no seu todo, com suas necessidades,
vivências, decisões, escolhas.
Na Bioética existem diversos conceitos de pessoa que podem ser referidos
(BELLINO, 1997), mas o conceito de pessoa, na visão kantiana, por exemplo, trata pessoa
como sendo ser racional que se distingue, por sua própria natureza, como fim em si mesmo,
não podendo ser usado meramente como meio. Sob essa visão, falar de pessoa requer falar de
respeito e dignidade. “A visão kantiana da pessoa como ser moral, em sua forma mais simples
de expressão e compreensão, reside em sua dignidade e liberdade para tomar decisões e, por
isso, merece respeito” (CLOTET, 2006, p. 167).
Há também argumentos que admitem: “O ser de relações é a pessoa: não um simples
fato biológico [...] uma existência aberta, porque somos capazes de perpetuar, questionar,
articular os sentidos dos outros entes e a ordem do mundo” (JESUS, 2005, p. 31). Sendo
assim, todo ser se faz pessoa nas relações com os outros, no mundo e com o mundo. E nessa
relação há uma pluralidade de respostas aos diferentes desafios, um contexto também
diferenciado, que se modifica na temporalidade, além da diversidade cultural e moral. Vista
dessa forma, a Bioética, acima de tudo, estabelece, na percepção de pessoa, a valorização do
indivíduo justificada na sua dignidade, sobretudo quando se interessa a discutir os problemas
que dificultam a manutenção da vida.
18
Se o outro é constitutivo da pessoa, não só as pessoas, mas também os animais, a
flora, o ambiente, os bens culturais são resgatados de toda função instrumental de
objeto, e adquirem valor [...] o homem, a vida, o ser não são rés, objetos, definíveis
uma vez para sempre de maneira essencial. São eventos” (BELLINO, 1997, p.
131).
A reflexão em torno desse conceito e de sua conexão com a Bioética remete à
identificação de um lugar comum a essa ética aplicada, na abrangência e preocupação com a
vida integral das pessoas e suas relações com as dificuldades emergentes da vida moderna.
Isso tudo, numa estreita busca de soluções possíveis e consensuais que comportem idéias
divergentes e contextos também múltiplos e diferenciados. Sobre isso “A identidade da
Bioética, é este lugar de disparidades posicionais que tende, por meio de diálogos
argumentados e ricos, a suscitar um consenso empírico sobre normas a serem realmente
implementadas” (LEPARGNEUR, 1996, p. 15).
Além do enfoque teórico-reflexivo que há por trás das discussões, é fundamentalmente
sobre as questões do cotidiano que a Bioética se baseia e discute na busca das possíveis
soluções e na formulação dos consensos. Ou seja, todos nós, direta ou indiretamente, estamos
envolvidos nesses conflitos e, freqüentemente, somos instigados a julgar e decidir assumindo
posicionamentos. Para Silva (2004, p. 24), “a bioética pode ser qualificada como reflexão
autônoma que se estende em duas frentes de problematização [...] O estatuto epistemológico
que a identifica como tal está caracterizado por uma espécie de “bifrontalidade”
Portanto, observa-se que um dos poucos consensos referentes à Bioética é o fato de
que não há como conceituar algo que não determina regras ou um código de normas
substantivas, mas que se mantém na reflexão, na diversidade e no contexto atual: “A bioética
não possui e não pode possuir uma fundamentação ética comum” (LEPARGNEUR, 1996, p.
14). Portanto, a identidade da Bioética “[...] é ser este lugar de disparidades posicionais que
tende, por meio de diálogos argumentados e ricos e experiências parcelares, a suscitar um
consenso empírico sobre normas a serem realmente implementadas” (LEPARGNEUR, 1996,
p. 15).
A escola, a universidade ou qualquer outra instituição de ensino, que trabalham na
formação dos sujeitos e que desempenham tal papel frente a uma diversidade de culturas e
idéias, precisam estar preparadas à discussão das questões éticas. Além disso, é importante
19
que nesses ambientes aconteça o incentivo primeiro ao envolvimento e à participação dos
alunos nas discussões dos problemas atuais.
Como princípio educativo, a ética só é eficaz quando desiste de formar pessoas
“honestas”, “caridosas” ou “leais” e reconhece que a educação é um processo de
construção de identidades. Educar sob inspiração da ética não é transmitir valores
morais, mas criar as condições para que as identidades se constituam pelo
desenvolvimento da sensibilidade e pelo reconhecimento do direito à igualdade a
fim de que orientem suas condutas por valores que respondam às exigências do seu
tempo (PCNs, 1999, p. 25).
Não obstante, pode ser esclarecedora nesse momento, a abordagem de alguns
conceitos pertinentes à Bioética, os quais, no limiar de possíveis “definições”, talvez sirvam
de base à sua compreensão.
Fala-se que a Bioética trata dos aspectos éticos relacionados com o fenômeno da vida
num contexto multidisciplinar. Então, como conceituar ética?
É preciso, inicialmente, referir alguns equívocos que normalmente ocorrem. A ética e
a moral, por muitas vezes, são confundidas e acabam se perdendo no espaço das incertezas
filosóficas. Há também uma grande discrepância no vocabulário quando alguns termos
básicos da ética são usados, como errado, por exemplo. Muitas vezes o que é errado pode
significar alguma coisa de que não se gosta, e por essa razão seja considerada como errada; ou
pode significar que esta coisa não é permitida, logo, é errada. Essa ambigüidade pode imbricar
problemas na concepção de alguns conceitos. Sobre isso, muitos acreditam que os diferentes
sentidos que podem ser atribuídos sirvam para justificar a importância da abertura a qualquer
interpretação que se queira dar. Mas este exemplo vislumbra uma visão relativista que poderá
admitir outras interpretações analisadas sob vários aspectos (BECKERT, 2004).
Na intenção de simplificar para compreender, longe de uma idéia reducionista, pode-
se dizer que “a ética é o espaço de e para estudar, trabalhar, garantir que os valores ‘tomem
corpo’, se concretizem nas relações humanas: dos humanos entre si, com o seu mundo, a sua
terra, o seu cosmos, os seus projetos e as suas utopias” (JESUS, 2005, p. 33). Ou ainda, que
“A Ética é uma disciplina filosófica que analisa o processo racional condizente à tomada de
decisões acerca do que é bom ou mau” (BECKERT, 2004, p. 4). Estas idéias de definição da
Ética tentam exprimir seu principal sentido: o de tentar refletir sobre os problemas que
atingem a todos e ao seu meio, sustentando-se, para isso, nos valores morais considerados
20
pelos indivíduos. O sujeito busca, através da Ética, refletir, argumentar e decidir sobre aquilo
que considera mais ou menos adequado, isso de uma forma relativa, individual e
contextualizada. Não deve se esperar uma decisão ética universal, pois os desafios são muitos
e diferentes, todos influenciados pelo tempo e espaço em que acontecem.
Perante isso, é importante que se diferencie e se delineie uma linha de pensamento
sobre o que é ética e o que é moral, sendo essa uma reflexão necessária ao entendimento que
se pretende.
Existem algumas teorias que se preocupam em explicar a fundamentação da Ética.
Outras questionam se existe para ela uma fundamentação única. Porém, o que se percebe são
várias posições em torno do que essencialmente a determina. Tendo em vista a dificuldade em
universalizar fundamentos, a Ética se torna esse ponto de relativismo cultural e temporal
(COMSTOCK, 2004; BECKERT, 2004).
Uma compreensão sobre ética considera-a como a “[...] teoria ou ciência do
comportamento moral dos homens” (2002, p. 23), sendo a moral o objeto de estudo da ética.
Mas, “A ética não é a moral e, portanto, não pode ser reduzida a um conjunto de normas e
prescrições; sua missão é explicar a moral efetiva e, nesse sentido, pode influir na própria
moral” (VÁZQUES, 2002, p. 24).
Também não se pode esquecer do “valor” que os códigos, regras e normas exercem
sobre a vida das pessoas e a possibilidade de convivência entre todos. Moral e ética andam
juntas na caminhada reflexiva. Não se pode objetivá-las em prol de definições fechadas que
satisfaçam alguns. É preciso que se verifique, na moral, o ponto inicial da discussão ética.
Pois,
Os valores morais impõem-se às pessoas com força normativa e prescritiva, quase
que ditando como e quando nossas ações devem ser conduzidas. Não segui-las nos
dá a impressão de estarmos fazendo o que não devíamos fazer, embora
continuemos com um nível proporcional de liberdade para não fazer como e quando
a norma parece nos impor (SEVERINO, 2005, p. 140).
Se for considerada a ética racional, que permite atribuir razões para as ações e os
argumentos, há que se considerar, sobre isto, dois pontos de vista importantes: o subjetivismo
psicológico e o relativismo cultural que há implícito nas decisões.
21
O subjetivismo psicológico envolve o fator da aceitação emocional diante das
situações. Por exemplo, a idéia do que é o bem e o mal envolve ações ligadas aos sentimentos
e emoções de cada um, não à razão. Sobretudo, o subjetivismo queda-se na explicitação dos
sentimentos de alguém capaz de julgar considerando, somente, a aprovação ou a recusa que
tem diante do que foi explicitado. Então, entre diferentes pessoas, é impossível falar-se de
acordo ou desacordo moral. A partir dessa posição subjetiva, tentar definir, de maneira
generalizada, o que é o bem e o mal, gera conflitos ou mesmo fracasso (BECKERT, 2004).
Da mesma forma, o relativismo cultural não possibilita uma tentativa de
universalização. Há, sobre isso, a percepção de que não existe um sistema moral
universalmente válido, pois todos dependem da cultura donde advém. E isto decorre, segundo
Beckert (2004, p. 5), de duas suposições importantes: “aquilo que é ou se acredita ser
moralmente bom e mau difere de cultura para cultura [...] Aquilo que é bom ou mau deve
diferir de cultura para cultura” .
Há uma possível tentativa de reducionismo moral implícita nesta posição. Os valores
constituem a moral e não podem ser reduzidos a meros costumes ou regras determinadas por
uma comunidade. É preciso que sejam considerados sob uma ótica diferenciada desta, sendo
os valores morais tão importantes e fundamentais quanto a discussão ética. “Os usos, os
costumes, as práticas, os comportamentos, as atitudes [...] que configuram o agir dos homens
nas mais diferentes culturas e sociedades constituem a moral”, sendo que “A moralidade é
fundamentalmente a qualificação desses comportamentos, aquela ‘força’ que faz com que eles
sejam praticados pelos homens em função dos valores que essa qualificação subsume”
(SEVERINO, 2005, p.139).
O momento atual remete a essa reflexão sobre a tentativa de resgate de valores morais,
subjacente às inovações científicas e tecnológicas e, sobretudo, ao crescente aumento das
populações e o desenfreado quadro de problemas ambientais. Compreender o significado da
ética e da moral implica reconhecer, nestes saberes, uma possível saída para tantos problemas.
“Em ética, muitas vezes iniciamos a nossa investigação com pouco mais que uma
intuição, e assumimos milhares de pressupostos ao tentar defender juízos morais”
(COMSTOCK, 2004, p. 13). Isto posto, elaborar um trabalho sob uma perspectiva ética não
determina que seja um bom trabalho. Agir eticamente está longe de significar agir da “forma
22
correta”, mas aproxima-se do principal objetivo dessa dimensão filosófica que é,
provavelmente, se dispor a discutir a adequação de cada valor moral para cada situação
diferente em suas individualidades e peculiaridades.
3.2 Relacionando Bioética com a formação de professores de Ciências e Biologia
Quando pensamos em alguns temas que geram disparidade de opiniões, como, por
exemplo, aborto, eutanásia, pesquisas genéticas em seres humanos, transplante de órgãos,
biodiversidade, etc., é comum relacionarmos estes assuntos às aulas de Ciências e Biologia.
Parece natural, ou pelo menos implícito, que o professor dessa disciplina esteja preparado a
conduzir e organizar qualquer discussão sobre estes e outros temas.
Há uma enorme gama de informações disponíveis nos meios de comunicação e que
estão ao alcance de todos hoje em dia. Embora, muitas vezes, nem tanto passíveis de crédito,
mas sempre prontas a “informar”. Fato é que todas as pessoas, por serem “pessoas”, integram
um meio social contextualizado numa dimensão de tempo mutável e relativa. Por sua vez, os
educandos pertencem a esse meio e carregam consigo conceitos que sustentam e estruturam
seus próprios argumentos. Além disso, a busca pela coerência entre o fazer pedagógico e o
pretender, na maioria das vezes, perde-se nos extensos planejamentos elaborados
configurando apenas material burocrático.
Nesse aspecto, percebe-se a importância da característica interdisciplinar da Bioética
na formação de professores, principalmente aqueles que trabalham no ensino das ciências da
vida. Entretanto, a intenção aqui proclamada não consiste em formar professores de Bioética
ou bioeticistas. Longe disso, a pretensão é suscitar novas compreensões que argumentem
sobre a necessidade moral e social de se estabelecer uma ponte entre os conteúdos trabalhados
nesses cursos e a Bioética. A finalidade, pois, é levar o conhecimento dessa nova disciplina
aos futuros docentes e estes socializarem com seus próprios alunos este novo saber. Ademais,
a Bioética proporciona a formação desses professores pautada na conscientização do valor
que essa profissão possui (não aquele valor atribuído à riqueza material, mas à riqueza moral)
23
“A Bioética representa atualmente a face mais dinâmica e atuante da ética. Ajudou a
recuperar o protagonismo da ética ao tentar responder a problemas concretos que hoje
ameaçam a vida humana e o ecossistema vital” (JUNGES, 1999, p. 265). No entanto, muitos
profissionais da educação ainda não se consideram preparados a enfrentar uma turma de
alunos que debatem, divergem das idéias dos professores ou que discutem a validade de
conceitos e leis encontrados nos livros didáticos. É nesse momento que emerge a reflexão
sobre quais aspectos estão envolvidos e contribuem para que os alunos sejam atraídos a esse
tipo de discussão e, também, os porquês que levam alguns professores a manifestarem certo
desconforto ao trabalhar questões desse âmbito.
A intervenção e o estudo da Bioética, por sua vez, podem ser vistos como algo
interdisciplinar, tornando-se possível a sua abrangência a outras áreas. A Bioética é
considerada como o ramo específico da ética filosófica que se ocupa em discutir os diferentes
desafios que ameaçam a manutenção da vida, e há nisso a intenção que todos sejam
conhecedores dessa ética (LEPARGNEUR, 1996). Cabe aos interessados propugnar as
implicações desse novo saber. As oportunidades viabilizadas na sala de aula, principalmente
nos cursos que formam professores, só têm a merecer créditos nessa perspectiva. Sobretudo,
no âmago dessa discussão, é relevante argumentar sobre o papel do professor como agente das
aprendizagens e mediador do conhecimento na formação das pessoas (DEMO, 1996).
Numa sala de aula, há um espaço pluridimensional de idéias, contextos, argumentos,
sobretudo nos cursos que formam professores de Ciências e Biologia, nos quais os
conhecimentos de outras ciências são ensinados. “A pluralidade refere-se a uma
multiplicidade de normas e formas de vida, teorias e idéias, modos de fundamentação e
filosofias, constituindo-se numa inegável marca da atual realidade sociocultural”
(HERMANN, 2001, p. 91).
Ao manejar com a ética, a educação abre-se à discussão da pluralidade
compreendendo que sua reivindicação não se limita ao contexto no qual foi
formulada. A reivindicação ética só é universal se considerada em si mesma e cada
ação educativa pode ou não preencher tal pretensão, sem que a reivindicação possa
superar essa relatividade estrutural (OELKERS, 1992, p. 90-91).
Quando se fala do valor moral responsabilidade, fundamental às relações
interpessoais, está se falando sobre responsabilidade na tomada de decisões que irão afetar um
24
determinado número de pessoas. Sendo assim, a responsabilidade daquele que decide precisa,
primeiramente, advir de um trabalho reflexivo e coerente com modelos axiológicos.
Essa reflexão precisa estar fundamentada na idéia sempre presente de que o ser
professor está relacionado ao ensinar conteúdos, mas também formar pessoas integralmente,
sociabilizadas, autônomas e críticas. Esse profissional está diretamente envolvido com a vida
de outros que dependem dele para isso e, sobretudo, são seres com dignidade e história
individual. Esta compreensão é explicitada na colocação de Grillo (2006, p. 78):
A docência envolve o professor em sua totalidade; sua prática é resultado do saber,
do fazer e principalmente do ser [...] ela necessita ser estudada sob a ótica de quatro
dimensões, distintas, mas relacionadas: dimensão pessoal, dimensão prática,
dimensão de conhecimento profissional e dimensão contextual.
Em se tratando dos cursos universitários que formam professores, essa mesma
responsabilidade social precisa existir, sobretudo, para incentivar o interesse em formar-se
cidadãos críticos, autônomos e responsáveis. Esse interesse já vem permeando as idéias
daqueles que se preocupam com o rumo das sociedades atuais, que se estruturam e se formam
a partir da educação. Sobre isso, Enricone (2006, p. 48-49) comenta: “Não são indicadas
apenas questões tecnológicas e ecológicas, mas também os dilemas morais, aos quais a
Universidade não pode permanecer indiferente sob o risco de não formar bons membros da
sociedade”.
Uma consideração relevante reitera que o professor só conseguirá trabalhar esses
aspectos se propuser-se a isso:
Os futuros mestres só poderão desenvolver as competências necessárias ao trabalho
interativo com seus alunos se conseguirem vencer a força das representações
subjacentes de ensino como transmissão de conhecimentos, de professor como
detentor dos saberes e de aluno como receptor passivo do que lhe é ensinado
(BOCCHESE, 2006, p. 36).
Não obstante, o sucesso pretendido na formação de professores dependerá, em muito,
do esforço do docente formador, sendo possível apontar aos seus alunos essas possibilidades.
Porém, é uma ação que depende do professor formador para o professor em formação,
segundo diversos autores:
25
Mais do que a modificação de programas ou metodologias, isso pressupõe uma
mudança paradigmática, capaz de valorizar o pensamento do professor como
variável mediadora do sistema aula, numa pedagogia centrada na relação dialógica
entre professor e aluno [...] que se nutrem de teoria para a ela retornar de forma a
enriquecê-la e a iluminá-la significativamente (BOCCHESE, 2006, p. 36).
[...] a educação é impensável fora de uma comunidade, o ato educativo pressupõe a
aceitação de um determinado ethos, de determinados princípios morais. Esses
princípios se presentificam na ação pedagógica, a ponto de a educação ser
impensável sem eles (HERMANN, 2001, p. 20).
Dentre os principais desafios atualmente enfrentados pela Educação, talvez esteja a
preocupação em formar pessoas para a humanização. Capacitar para transformar a própria
realidade ou as atitudes, e com isso promover mudanças, estão no âmago dessa discussão. Na
reflexão o indivíduo retoma o sentido e os significados que predispõe à sua própria vida e à
manutenção do meio em que vive.
Todo conhecimento é socialmente comprometido e não há conhecimento que possa
ser aprendido e recriado se não se parte das preocupações que as pessoas detêm. O
distanciamento entre os conteúdos programáticos e a experiência dos alunos
certamente responde pelo desinteresse e até mesmo pela deserção que constatamos
em nossas escolas (PCNs, 1999, p. 27).
Os aspectos discutidos nesta investigação debruçam-se sobre estas idéias, que instigam
um quadro de reflexão e pretensas transformações na abordagem da Bioética. Isso não só
decorre de uma perspectiva filosófica, em suas designações como “[...] um ramo específico da
filosofia moral com características próprias” (CLOTET, 2006, p.33), mas também da
perspectiva educacional, considerando a abrangência e acesso ao seu conhecimento em sua
condição de ética aplicada a todas as pessoas e seres que se sentem ameaçados e necessitem
de cuidados e atenção.
A discussão da Bioética numa vertente educacional tem a intenção de propor o
conhecimento da Bioética numa das principais áreas de acesso e disseminação de saberes: a
formação de professores. Essa idéia refletirá na compreensão e no reconhecimento das
diferenças, na importância dos consensos para a sobrevivência da humanidade e no resgate
dos valores morais que estão se perdendo na “selva de pedra” instalada nas sociedades
modernas.
26
4 DELINEANDO CAMINHOS
Esta pesquisa resulta de um trabalho delineado sob uma abordagem qualitativa,
valendo-se, para tanto, da Análise Textual Discursiva (MORAES, 2003). Através dessa
abordagem, buscou-se a compreensão dos conteúdos expressos nos depoimentos dos sujeitos
participantes a fim de responder às questões e ao problema de pesquisa. A abordagem, sendo
predominantemente qualitativa, permitiu compreender o fenômeno investigado sem a
intenção de generalizá-lo ou explicá-lo.
Na delimitação dos sujeitos da pesquisa, buscou-se, intencionalmente, definir um
grupo de pessoas que apresentassem uma característica comum: a atuação docente em uma
universidade. Ademais, para a definição da amostra que representasse uma contribuição
significativa para a produção de resultados válidos à pesquisa, a escolha também envolveu
outros aspectos não menos importantes, ou seja, procurou-se definir um grupo de sujeitos
participantes que, além da característica anteriormente citada, trabalhassem na formação de
professores de Ciências e Biologia e/ ou tivessem algum envolvimento direto ou indireto com
a Bioética.
A intencionalidade quanto à escolha dos sujeitos advém de uma importante
consideração enfatizada por Moraes, quando uma pesquisa é submetida a uma análise textual
discursiva:
Quando os documentos são produzidos no próprio processo da pesquisa, a amostra
27
uma amostra representativa e capaz de produzir resultados pertinentes aos objetivos desta
pesquisa.
Isto posto, um segundo momento importante foi estabelecer contato pessoal com os
sujeitos escolhidos, por telefone ou através de endereço eletrônico, a fim de agendar as
entrevistas e disponibilizar-lhes um resumo do trabalho proposto. Desse modo, estes se
tornavam conhecedores da proposta desta pesquisa e livres para aceitar ou não sua
participação na mesma.
Cabe ressaltar que esta pesquisa foi submetida à avaliação do Comitê de Ética em
Pesquisa da PUCRS (CEP - PUCRS), após a compilação de uma documentação exigida, para
fins de validação e comunicação do seu conteúdo e desenvolvimento. Ademais, uma pesquisa
que se fundamenta na importância da reflexão, no respeito às individualidades e às diferentes
opiniões, e que prioriza o direito ao julgamento e às decisões individuais, reconhecidamente,
não poderia se apresentar aos sujeitos envolvidos de outra forma a não ser esta.
Esta pesquisa passou a ter, desde então, um registro nesse comitê, que aprovou o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
1
(TCLE) elaborado especificamente para esta
pesquisa a partir de um modelo fornecido pelo CEP - PUCRS, que sugeriu seu conhecimento
e a liberdade para aceitar ou não a todos os sujeitos participantes. Pois, considerando o que
afirma Souza (2005, p. 59):
É importante notar que todos os requisitos para que uma pesquisa seja eticamente
adequada confluem para um ponto comum: a análise dos protocolos de investigação
deve ter como princípio norteador e como finalidade última a garantia dos direitos
dos sujeitos da pesquisa e a sua proteção.
A justificativa em comunicar esta pesquisa ao Comitê de Ética em Pesquisa da
PUCRS, e a elaboração de um termo de consentimento livre e esclarecido aos participantes,
partiu da compreensão emergente que, em se tratando de uma pesquisa que envolve seres
humanos e a utilização de informações fornecidas por eles, todos devem ser respeitados e
considerados em sua dignidade, autonomia e liberdade de escolha. Essa preocupação em
garantir com respeito a autonomia e a liberdade aos entrevistados, encontra na Resolução nº
1
O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido encontra-se no Apêndice A, no final desta pesquisa.
28
196/96 sobre Pesquisa Envolvendo Seres Humanos, os critérios que regulamentam este tipo
de pesquisa e que suscitam responsabilidades como essas.
A validação desta pesquisa pelo CEP – PUCRS reitera a relevância em se estabelecer
essa discussão dentro do tema Bioética numa vertente ainda pouco explorada tanto no
cotidiano educacional quanto na bibliografia local, embora seja a ética considerada e
referenciada como sinônimo de algo bom ou correto. Perante isso, a discussão dos muitos
conflitos que a Bioética se encarrega de estabelecer, se manifesta como uma necessidade
sensível aos olhos de quem trabalha como professor e que encontra numa sala de aula um
ambiente de diversidade de idéias, pluralidade de crenças, historicidade e percepções.
As entrevistas iniciavam com a leitura do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido – CEP/ PUCRS (TCLE – CEP/ PUCRS), através do qual o sujeito participante
avaliava a síntese do seu conteúdo, os objetivos e as questões propostas para a construção dos
dados de análise. Além disso, o TCLE apresentava ao entrevistado, itens que estabeleciam a
liberdade deste para autorizar ou não a gravação da entrevista, sua identificação na mesma ou
citações de trechos do conteúdo na comunicação dos resultados desta pesquisa. Buscou-se
estabelecer, desde o início da investigação, seu caráter ético e responsável, pois
[...] o caráter ético de uma pesquisa se materializa na garantia de que a participação
dos sujeitos, além de se justificar pela possibilidade real de contribuição para o
avanço do conhecimento científico, é voluntariamente consentida e apresenta mais
benefícios do que riscos (SOUZA, 2005, p. 59).
O TCLE priorizou, sobretudo, o respeito ao direito de livre escolha do entrevistado e o
acesso às informações necessárias ao conhecimento do conteúdo da pesquisa e às suas
condições como participante:
Pretende-se a autorização do entrevistado para que este seja identificado e até
mesmo citado na publicação de trechos da entrevista para fins de compreensão do
fenômeno investigado e enriquecimento da pesquisa. O entrevistado poderá
concordar ou não com os seguintes itens referentes à sua participação como sujeito
da pesquisa: gravação da entrevista; transcrição da entrevista; revisão e aval pelo
entrevistado do texto da entrevista; identificação do entrevistado; utilização de
citações identificadas” (Trecho do TCLE).
Após a leitura do termo, cada entrevistado foi convidado a dialogar, considerando o
tema em discussão. Há de se ressaltar que o participante não foi condicionado a responder
questões previamente estruturadas e isoladas. O objetivo da pesquisa, juntamente com as
29
questões formuladas em sua proposta, delineavam o andamento da entrevista e o
encaminhamento das respostas.
Mais uma vez, valendo-se do que pretendeu esta pesquisa, numa abordagem
qualitativa de análise textual, objetivou-se a abertura das questões a um diálogo com o
entrevistado a fim de uma reflexão maior e mais livre em torno do tema, na perspectiva de
enriquecimento mútuo.
As entrevistas foram transcritas
2
, como forma de ficarem registradas em documento
escrito e não somente gravadas em áudio. A transcrição dos textos constitui parte do processo
de análise textual, sendo esta etapa complementar à gravação, um passo importante no
exercício de “impregnação” com o conteúdo do material, que permite ao pesquisador um
maior envolvimento e reconhecimento do mesmo. “Somente essa impregnação intensa
possibilita uma leitura válida e pertinente dos documentos analisados” (MORAES, 2003, p.
196). Esse contato mais intenso com os dados coletados viabiliza ao investigador a
identificação inicial dos significantes e a emergência de novas compreensões referentes aos
fenômenos investigados.
O ciclo da análise textual qualitativa requer do pesquisador um movimento constante
de contato com o material e disposição ao diálogo com os significantes na busca de sentido.
São recomendados alguns passos importantes para esse processo, porém, é necessário um
esforço do investigador em atribuir significados, elaborar sentidos para que as novas
compreensões possam surgir. Considerando-se que “qualquer forma de leitura constitui-se em
interpretações que os leitores fazem a partir de seus conhecimentos e teorias, dos discursos em
que se inserem” (MORAES, 2003, p.205), os significados encontrados no material permitiram
construir novas compreensões.
Resumidamente, são três os principais momentos que viabilizam o processo de análise
textual qualitativa. Primeiramente o exercício de desconstrução textual, na busca pela
posterior organização dos elementos significativos em unidades de análise, o que constitui a
fase de unitarização. Segue-se a reunião dessas unidades, num esforço de comparação entre
elas a fim de agrupá-las, relacionando-se os elementos semelhantes, na fase de categorização.
2
As transcrições das entrevistas encontram-se no Apêndice B, na íntegra, ao final desta pesquisa.
30
Isso possibilita a captação de novas compreensões emergentes, por meio de textos que são
construídos permitindo a validação e a comunicação do material (MORAES, 2003).
Seguindo-se essas recomendações, os textos resultantes das transcrições das
entrevistas foram enviados a cada participante, respectivamente, para fins de avaliação e
possíveis reformulações em seus conteúdos. Os entrevistados depois remeteram à origem os
documentos já avaliados, para, só então, estas servirem como corpus textual da análise. Esse
procedimento encontrou apoio na afirmação de Moraes (2003, p. 194):
O corpus da análise textual, sua matéria-prima, é constituído essencialmente de
produções textuais. [...] São vistos como produtos que expressam discursos sobre
fenômenos e que podem ser lidos, descritos e interpretados, correspondendo a uma
multiplicidade de sentidos que a partir deles podem ser construídos.
Uma vez de posse do material revisado pelos entrevistados, iniciou-se o processo de
análise propriamente dito, em que o primeiro passo recomendado foi estabelecido através da
desconstrução dos textos. Esse momento do processo de análise textual compreende um
reconhecimento inicial dos elementos constituintes dos dados, em que o pesquisador
fragmenta o material a fim de focalizar os detalhes e estruturá-los, posteriormente, em
unidades de sentido. Seguindo as considerações de Moraes (2003): “[...] com essa
fragmentação ou desconstrução dos textos, pretende-se conseguir perceber os sentidos dos
textos em diferentes limites de seus pormenores [...] Da desconstrução dos textos surgem as
unidades de análise” (MORAES, 2003, p. 195).
O processamento das unidades de análise, ou seja, a unitarização, se dá através de um
movimento de desconstrução dos textos organizados, na busca de significantes que
possibilitem ao investigador a leitura dos diferentes sentidos, considerando suas teorias
prévias. Esse exercício de desconstrução, para posteriormente reorganizar os constituintes que
se relacionam, requer, do pesquisador, atenção ao que pretende a pesquisa e em que sentido
busca a compreensão dos fenômenos.
As unidades de análise são sempre definidas em função de um sentido pertinente
aos propósitos da pesquisa [...] o processo de construção de unidades é um
movimento gradativo de explicitação e refinamento de unidades de base, em que é
essencial a capacidade de julgamento do pesquisador, sempre tendo em vista o
projeto de pesquisa em que as análises se inserem (MORAES, 2003, p. 195).
A partir disso, criam-se as condições necessárias para o aprofundamento das leituras
dos constituintes que se relacionam, permitindo a identificação das partes com significados
31
comuns, na busca da construção de um todo em sentidos determinados pelo próprio
pesquisador. Por isso, há de se ressaltar novamente a importância da impregnação do material
analisado pelo pesquisador que, como próprio autor da pesquisa, disporá da sua
intencionalidade em todos os momentos do seu desenvolvimento. Todo o andamento da
pesquisa, desde a sua proposta até o processo de análise, será estruturado e mantido
considerando-se as intenções do pesquisador que, conseqüentemente, carregam características
próprias embasadas nas suas leituras e teorias prévias. Isto, de certa forma, justifica a
possibilidade de diferentes e novas compreensões a cada pesquisa realizada, mesmo quando a
tematização é semelhante, sendo, pois, o olhar e a interpretação de cada leitor, responsáveis
pela compreensão e significação das considerações.
Reconhece-se a reunião das unidades de análise em categorias como um segundo
esforço na estruturação do material investigado. Sobre a construção de novas compreensões
em métodos de categorização, dois tipos de categorias poderão ser utilizados na análise
textual qualitativa. Segundo Moraes, estes dois tipos podem ser descritos como “categorias a
priori e categorias emergentes, onde as primeiras correspondem a construções que o
pesquisador elabora antes de realizar a análise propriamente dita dos dados”. Já as categorias
emergentes “são construções teóricas que o pesquisador elabora a partir das informações do
corpus” (MORAES, 2003, p. 196). Ainda valendo-se das idéias de Moraes, identifica-se
também a possibilidade de uma terceira forma de constituição das categorias, seguindo
modelos ‘mistos’, onde o pesquisador parte de um conjunto de categorias definidas a priori à
sua reorganização a partir do processo de análise de seus constituintes (MORAES, 2003).
A reunião das unidades de análise em categorias permite ao pesquisador vislumbrar os
diferentes significantes disponíveis no material coletado no início do processo, porém, agora
sob uma ótica intencional e em coerência com o objetivo da pesquisa. Esse primeiro passo
reconstrutivo de organização do caos de informações possibilita também o surgimento de
novas compreensões e a homogeneidade dos aspectos nelas contidos. Sua validade também se
deve ao exercício fundamental para uma abordagem desse tipo, que é a preparação da
comunicação das novas compreensões.
Em cada categoria definida, a reunião das unidades de análise requer, do pesquisador,
a argumentação em torno dos constituintes, a fim de expressar suas principais idéias e
percepções, desafiando a que se assuma como autor dos sentidos que atribui a eles. Um
32
segundo grupo de categorias, que tem a intenção de reuni-las por semelhança de significados
ou sentido, caracteriza a continuidade da fase de categorização da análise. Este é um momento
de compilação das categorias iniciais em categorias mais abrangentes, reorganizando-as, de
forma que se pré-dispõem ao esforço em reconhecer, nesses subsídios, as idéias emergentes
sobre os fenômenos. Contudo, o pesquisador qualifica-se como participante efetivo do
processo, determinante para as novas compreensões e o delineamento do próximo passo a
empreender: a construção dos novos textos. Isto posto, o estabelecimento de pontes e
argumentos aglutinadores, entre as categorias reunidas, representa o grau de envolvimento do
pesquisador como autor das suas compreensões e responsável em criar as condições
necessárias à estruturação de um texto coerente e significativo.
A construção dos novos textos, a partir da desconstrução dos textos originais,
passando-se por todo um processo de unitarização e categorização, estrutura o cerne da
análise de uma investigação. Esses textos, além de servirem como material de divulgação dos
resultados, também se estabelecem como parâmetros para o reconhecimento do pesquisador
como responsável e atento em perceber o novo, atribuir-se o papel de autor e desafiar-se a
desconstruir e reconstruir, a partir de materiais repletos de diferentes significantes. Conforme
corrobora Moraes:
A pretensão não é o retorno aos textos originais, mas a construção de um novo
texto, um meta-texto que tem sua origem nos textos originais, expressando um
olhar do pesquisador sobre os significados e sentidos percebidos nesses textos. Esse
meta-texto constitui um conjunto de argumentos descritivo-interpretativos capaz de
expressar a compreensão atingida pelo pesquisador em relação ao fenômeno
pesquisado, sempre a partir do “corpus” de análise (MORAES, 2003, p. 202).
A construção dos novos textos permite a comunicação das novas compreensões acerca
dos objetivos da pesquisa, que são estruturados, como já visto, a partir de alguns passos
importantes do processo de análise textual qualitativa. A concretização das novas
compreensões sobre os fenômenos investigados é dada pelos textos resultantes da reunião de
idéias emergentes percebidas e argumentadas pelo investigador-autor que, a partir das suas
teorias e concepções, atribui significados aos diferentes significantes analisados.
A comunicação das novas compreensões a outros leitores é importante na medida em
que, a partir das considerações de outros, há a possibilidade de abertura às discussões e às
criticas que, certamente, contribuirão para o aperfeiçoamento ou novos entendimentos do que
foi investigado.
33
Ou seja, “é preciso levar a nova compreensão dos fenômenos investigados para os
interessados, mesmo que não tenham participado do processo de construção [...] o desafio é
tornar compreensível o que antes não o era...” (MORAES, 2003, p. 210).
Nesta pesquisa, a transcrição das entrevistas configurou-se como caráter importante no
processo de análise, posto que permitiu a “impregnação” dos materiais de investigação. A
desconstrução dos textos em unidades de sentido e a posterior reunião em categorias
organizadas por semelhanças de significados ou constituintes, viabilizou a criação de
capítulos e subcapítulos que retratam, por vezes inesperadamente, novas e desafiadoras
compreensões sobre o foco principal desta pesquisa: a Bioética e suas implicações na
formação dos professores de Ciências. Contudo, utilizando-se dessa metodologia de análise, a
compreensão do que se pretendia, desde a proposta inicial, foi viabilizada por se tratar de um
processo auto-organizado de construção de novos significados.
Desse modo, a análise textual qualitativa pode ser compreendida como um processo
auto-organizado de construção de novos significados em relação a determinados
objetos de estudo, a partir de materiais textuais referentes a esses fenômenos. Nesse
sentido é um efetivo aprender, aprender auto-organizado, resultando sempre num
conhecimento novo (MORAES, 2003, p. 210).
Importante ressaltar que alguns aspectos, não diretamente ligados à Bioética, presentes
nos depoimentos dos entrevistados, não foram descartados justamente por estarem
relacionados com a formação dos professores de Ciências e este configurar foco desta
dissertação. Os mesmos foram incluídos numa categoria denominada “outros” durante o
processo de análise e serão apresentados sob a forma de subcapítulos ao longo do texto.
As categorias finais criadas durante o processo de análise, serão detalhadas nos
capítulos a seguir, nos quais se buscará estabelecer um diálogo com os sujeitos da pesquisa e
com os autores utilizados como referencial teórico. Pois, neste capítulo, procurou-se examinar
os elementos que compõem os processos de análise textual em pesquisas que se delineiam por
uma abordagem qualitativa.
Contudo, após a desconstrução dos textos produzidos nas entrevistas, a reunião das
unidades de sentido em categorias iniciais e a posterior reorganização dos significantes em
categorias mais amplas, iniciou-se a estruturação dos capítulos do novo texto, que expõem as
novas compreensões e argumentos sobre o fenômeno investigado. As categorias mais
34
relevantes e que, de certa forma, mantém relação com os objetivos iniciais da pesquisa, serão
apresentadas sob a forma de capítulos e subcapítulos ao longo deste trabalho.
A seguir, podem ser vislumbrados relatos iniciais das categorias emergentes dos textos
das entrevistas que, na brevidade de conteúdo agora apresentado, buscam estabelecer a
perspectiva de atenção na leitura dos capítulos posteriores deste trabalho.
Conceituando bioética.
À procura do conceito mais adequado para este termo que não encontra uma
fundamentação comum, se percebe, nos textos das entrevistas, a preocupação em estabelecer-
se uma visão clara e consensual, na medida do possível, do que representa a Bioética, de
modo que esse entendimento facilite a convivência e as reflexões éticas em coerência com a
pluralidade e a proteção do bem comum (LEPARGNEUR, 1996).
A Bioética trabalhada de forma integrada a outras disciplinas do currículo.
Entre as idéias emergentes dos conteúdos dos textos, e que convergem diretamente
com as questões desta pesquisa, evidencia-se na maior parte destes, a preocupação em referir
as implicações da integração da Bioética noutras disciplinas já existentes nos currículos
formativos. Sobretudo, esse aspecto reflete uma perspectiva de viabilidade e adequação da
Bioética ao longo de todo o curso e como tema comum a todas as áreas do conhecimento. A
oposição a essa idéia de interdisciplinaridade da Bioética é abordada na categoria seguinte.
A Bioética trabalhada como disciplina isolada nos currículos de Ciências e
Biologia.
A importância da abordagem de questões bioéticas nos cursos de formação de
professores de Ciências e Biologia é ponto comum de entendimento. Porém, em contrapartida
à categoria anterior, surge e é discutida a idéia de se abordar a Bioética somente e/ ou
preferencialmente em disciplinas isoladas, fechadas e pragmáticas. Há, contudo, nesta
perspectiva, a apreciação de alguns aspectos que embasam essa argumentação e que
contribuem à reflexão de outras unidades emergentes.
35
Eventuais riscos em se propor para todos os professores a abordagem da
Bioética, independentemente da área de conhecimento trabalhada.
Talvez este aspecto permita a compreensão dos argumentos que propõem a idéia da
categoria anterior. Percebeu-se, nos discursos de alguns entrevistados, o receio da abertura e
da proposição de um trabalho integrado, sobretudo na eventualidade de riscos como o
autoritarismo, o despreparo e desconhecimento de muitos professores formadores, o que
culminaria com a desestruturação da essência e finalidade da Bioética.
Educar para a argumentação e para o senso crítico: uma via possibilitada pela
prática da Bioética.
A aplicabilidade da Bioética é possibilitada através da reflexão e do posicionamento
sobre questões conflitantes e que, de alguma forma, atingem vidas, num sentido global e
pluralista. Situações desse âmbito cotidianamente são apresentadas às pessoas e sobre isto se
pode referir a importância da participação de cada um na orientação do todo. A perspectiva do
“educar para a argumentação” é viabilizada e válida na proposta da Bioética, sobretudo
porque possibilita a aprendizagem integral da pessoa em formação. Para tanto, um meio eficaz
poderá ser a discussão dessas situações em sala de aula, incentivando o indivíduo à reflexão,
argumentação e ao posicionamento sobre a adequação da situação imposta. Todavia, este é
um trabalho que se fundamenta principalmente na confiança e na abertura do espaço tão
necessário à efetiva aprendizagem.
Bioética: além de uma disciplina específica, uma atitude.
Cabe ressaltar que a Bioética manifesta-se, a partir de uma visão educacional, como
uma atitude. Mais do que uma disciplina, dela surge a preocupação pela busca do sentido do
saber e do fazer. O envolvimento do indivíduo perpassa o conhecimento de conteúdos
previamente estabelecidos e abre-se à aprendizagem efetiva. A Bioética, vista sob esta ótica,
permite a valorização individual através da eqüidade e da autonomia, princípios tão
importantes ao indivíduo e, principalmente, ao futuro profissional da educação.
Atitude: princípio necessário aos debates bioéticos e à sua implementação nos
currículos formativos.
O professor que procura trabalhar com a Bioética, necessariamente, precisa manter-se
atento à sua própria postura e atitudes. A coerência entre teoria e prática, na forma como
conduz suas aulas, deve ser continuamente repensada para não se perder da essência ética e
36
reflexiva desse trabalho. Afinal, assumir posições num debate ou assumir-se como autor de
uma idéia também são pertinentes ao papel do professor.
A importância da abertura à discussão de situações conflitantes em sala de aula.
O espaço da sala de aula, seja na escola ou na universidade, é certamente o mais viável
e capaz de centralizar aprendizagens, reunir diferentes idéias e contextos, organizar debates.
Muitos apontam para essa premissa, porém reconhecendo que, eventualmente, há ainda pouca
abertura às discussões ou àquilo que não esteja planejado. Cabe discutir, então, se essa
perspectiva pode estar vinculada ao posicionamento do professor formador e suas concepções
sobre educação ou vem de uma tradição educacional baseada no “treinamento” dos alunos que
se formam após completarem os níveis de “ensino” pré-estabelecidos.
Situações de conflito comumente discutidas na bioética.
No conteúdo dos textos analisados, evidenciou-se a listagem de uma série de questões
atuais e contextualizadas que permitem ao professor abordar a bioética em suas aulas,
viabilizando com isso, a sua prática. Contudo, se faz importante salientar que nada pretendem
esses exemplos além da reflexão e do vislumbre sobre a possibilidade efetiva de
aplicabilidade da bioética contribuindo para a aprendizagem e formação do aluno.
Universidade: tempo e espaço às vivências e aprendizagens.
Relacionada à categoria anteriormente explicitada, esta trata, especificamente, da
relevância do espaço e das vivências possibilitadas pela universidade, especialmente na
formação de professores de Ciências e Biologia. Destacam-se, pois, as experimentações, as
atividades extracurriculares e as situações que surgem a cada período dentro do curso.
A formação humana viabilizada pela educação bioética: a valorização da vida em
todos os sentidos.
A Bioética, por sua estreita relação com os aspectos culturais, históricos e axiológicos,
busca no respeito e na valorização das diferenças o consenso para uma convivência pacífica
entre os coletivos que integram o todo. Valorizar a capacidade individual do aluno, investir no
desenvolvimento das suas habilidades e respeitá-lo como ser autônomo e individual tem como
fundamento essa intenção. Sobretudo, a formação humana do aluno, atualmente discutida
como importante aspecto de atenção, precisa com urgência ser revista por quem trabalha com
a educação. A discussão ética em torno desse aspecto contribui com veemência para isso, pois
37
se fundamenta sobre a reflexão e adequação dos valores de um tempo. Enfim, acreditar na
valorização humana como via de acesso à formação integral do indivíduo talvez seja o
caminho ao encontro do “ser” humano.
Posto isso, há que se salientar que as categorias apresentadas resultam da reunião de
idéias que preconizam, de alguma forma, a intenção dos objetivos desta pesquisa. Outras
categorias não menos importantes para a formação de professores foram percebidas, porém,
procurou-se manter o sentido primeiro dos objetivos propostos para este trabalho. Todavia,
percebe-se que há uma multiplicidade de aspectos relevantes e necessários que refletem as
implicações da Bioética numa relação direta de conformidade com a formação de professores
de Ciências e Biologia. Estas categorias iniciais, emergentes dos depoimentos, foram
reorganizadas em quatro categorias finais:
- Educar para a argumentação: criando situações de “prática” da bioética;
- A Bioética abordada em outras disciplinas do currículo formativo: possibilidade
ou utopia?
-Formadores de professores de Ciências e Biologia: anseios e receios na
abordagem bioética;
- Atitude: princípio necessário ao envolvimento com a Bioética
Cada uma dessas categorias finais constitui um capítulo da dissertação. Nesses
capítulos se buscará estabelecer um diálogo com os sujeitos da pesquisa e com os autores
utilizados como referencial teórico, na pretensão de suscitar novas compreensões ou idéias
sobre o fenômeno investigado.
38
5 EDUCAR PARA A ARGUMENTAÇÃO: CRIANDO SITUAÇÕES DE “PRÁTICA”
DA BIOÉTICA
As discussões em torno de temas educacionais geralmente deparam-se num aspecto
comum de debate: encontrar uma forma única e infalível de ensinar. O professor que se
depara cotidianamente com essa incógnita precisa reconhecer que as oportunidades são
construídas diariamente e na mesma proporção em que são pretendidas. Há que se esclarecer
que é quase impossível ensinar alguém a argumentar, mas criar um espaço propício e
oportuno à argumentação é possível em sala de aula.
5.1 Argumentar é preciso
Ao se tratar de um tema que, na sua própria essência, busca a reflexão sobre
argumentos e posições diversas e diferenciadas, vislumbra-se na Bioética, em seus quatro
princípios – autonomia, justiça, beneficência e a não-maleficência – a condição que um
indivíduo mantém como gestor e defensor das suas idéias perante uma determinada situação.
“A Bioética tem os quatro princípios, um deles é a autonomia, depois a justiça, a
beneficência e a não-maleficência. Então, a tendência das coisas, dentro do que é ideal, é que
se seja justo, que se faça o bem quando se pode, que não se faça o mal nunca e que se dê
autonomia para quem está envolvido” (CA).
Dentro de um contexto que enfatiza o aspecto cultural, os hábitos e costumes e a
historicidade do indivíduo, a Bioética se constrói num viés pluralista e tenta manter-se atenta
ao aspecto relativista, em vez do universalismo unificador. Sendo assim, a atenção dessa ética
aplicada evidencia-se como forma pertinente e válida ao trabalho do professor de Ciências e
Biologia (BECKERT, 2000). Ao se considerar a importância do professor na formação do
sujeito, buscando a formação integral do mesmo, a questão da aplicabilidade da Bioética nas
aulas de Ciências torna-se ponto pertinente de investigação a todos que se interessam por essa
vertente de estudo.
39
Certamente não existe um manual que oriente o professor às alternativas mais
favoráveis e viáveis de aplicação prática da bioética numa aula de ciências. Todavia, o
conhecimento dos princípios que são considerados pela reflexão bioética, por si só já serve de
parâmetro ao condicionamento e ao reconhecimento de um eventual “exercício” dessa parte
da ética durante o desenvolvimento de uma aula.
Faz-se importante ressaltar que a percepção do professor em atribuir a uma atividade
ou conteúdo em desenvolvimento seu caráter ético e estabelecer relação deste com os
princípios bioéticos, tornando-se, portanto, passível de reflexão e discussão em sala de aula,
não exige desse professor o preparo prévio de um plano de aula nem um estudo avançado em
Bioética. Eventualmente, não se espera que todo professor de Ciências e Biologia seja um
bioeticista para que o exercício prático das questões bioéticas seja possível. A aplicabilidade
da Bioética durante um processo formativo tem seu caráter de validez e viabilidade, sendo
possível o desenvolvimento de um trabalho integrado, transversal ou paralelo em qualquer
disciplina ou nível do ensino.
As oportunidades que um professor dispõe durante o desenvolvimento de uma aula
configuram-se num campo rico de discussões e argumentações, pois as diferentes
manifestações e as situações inesperadas, que muitas vezes surgem durante esse tempo,
exigem daquele professor mais do que planos de aula antecipados. O professor poderá
assumir-se como mediador de inexorável importância ao decidir estabelecer um debate que
leve todos à reflexão e à ação, ao exercitar a argumentação, ou, simplesmente, optar por
ignorar a situação.
Segundo enfatizam Comstock e Rosa (2004), “são os professores e investigadores
universitários que têm crédito e influência junto dos estudantes, e são eles que detêm o poder
de abordar e discutir questões éticas em nível de estudos de graduação ou de pós-graduação”
(2004, p. 28).
Numa primeira análise, a idéia de um trabalho que incorpore ativamente a Bioética no
processo formativo escrutina-se num cenário de simples aplicação e aceitabilidade no meio
acadêmico. No entanto, não são todos os professores que têm a percepção da importância e do
momento viável para intensificar o envolvimento com as questões éticas que, eventualmente,
surjam numa aula. Talvez o problema esteja em reconhecer a adequação do momento em
40
relação à situação de conflito, ou, então, no receio que esse profissional tem de não conseguir
direcionar o assunto e relacioná-lo produtivamente ao conhecimento específico em pauta.
É nesse aspecto que persiste o problema: não são todos os professores que conseguem
estabelecer momentos de discussão, reflexão, questionamento em sala de aula, pois, para
alguns, são momentos que não foram previamente planejados, tampouco estavam
predeterminados no material de apoio. Por outro lado, há aqueles que não consideram
produtivo esse envolvimento ou que julgam ser um desperdício de tempo discutir situações
que, para eles, não serão solucionadas na sua aula. Que grande pesar. Mal sabem estes que
aquele professor que faz desse exercício um
41
capacidade individual de cada aluno, e insistir nisso, o professor consegue perceber
visivelmente um retorno às suas expectativas e investimentos.
Cabe ao professor, no seu papel de orientador, instigar no seu aluno o interesse em
estruturar uma argumentação fundamentada, com tomada de posição frente às situações.
Quando o professor utiliza o período de uma ou mais aulas, dispondo ao seu aluno espaço à
reflexão sobre sua posição no todo, proporciona-lhe oportunidade para ao seu aluno
crescimento e formação, tanto cognitiva quanto pessoal e socialmente.
O professor que consegue e se permite trabalhar dessa forma se destaca, pois é no
mérito do reconhecimento axiológico que consegue manter com seu aluno valores como o
respeito, incentivo, tolerância... É latente, pois, a importância que deposita naquele sujeito em
formação. Isso tudo perpassa o conhecer de um tema específico e se torna, sobretudo eficaz na
aprendizagem integral do aluno.
Esse professor, mais do que um mediador entre o sujeito e o conhecimento, age como
um mestre, ensinando-o a pensar, julgar, argumentar, defender idéias, ou seja, mais do que a
formação exigida pelos currículos, ele proporciona ao aluno uma formação pessoal e humana.
Um tempo de descobertas, aprendizagens, encontros com o outro, conscientização do mundo
e dos conflitos que dele exigem um posicionamento; um tempo de confirmação do seu papel
de sujeito responsável por suas ações e pela preservação do seu meio.
42
parede branca? Então eu vou começar a achar a parede branca bonita!’ Porque é o
professor que tem o poder de passar o aluno, de dar a nota [...]” (AF).
Para tanto, o “mestre” procura organizar e dirigir situações de aprendizagem na
medida em que percebe o interesse do grupo e a adequação do momento. Esta é uma
competência fundamental também ao professor que trabalha numa perspectiva de aplicação da
Bioética (ANTUNES, 2001).
O reconhecimento da aplicabilidade de questões bioéticas, por parte do professor,
perpassa o conhecimento das áreas específicas do conhecimento e se manifesta perante a ótica
do profissional que se reconhece como peça importante na formação do outro.
O exercício da argumentação pode ser aperfeiçoado durante o processo de
aprendizagem natural da vida. A universidade, nesse caso o ambiente em que se desenvolve o
processo de formação do professor de Ciências e Biologia, pode ser vista como espaço
disponível e pertinente a um aprofundamento dessa aprendizagem. As vivências
disponibilizadas nas aulas, em todas as disciplinas do currículo, são momentos propícios para
isso.
Alguns depoimentos destacam aspectos vivenciais:
“Tem que aprender é no uso, como nós estamos fazendo agora [...] vai fazer com que
o aluno pare, pense, reflita” (VL).
“[...] existem pessoas que têm sorte de terem na família um pai ou uma mãe que se
preocupam em passar esses ensinamentos e há pessoas que não têm, e eu preciso ensinar
essas pessoas [...]” (CA).
“Não basta só ficar no discurso, se tu não crias situações que eles vivenciem, pois o
momento na universidade é o momento de vivenciar. Na hora em que ele vivencia em aula
uma situação de discussão contigo, ele vai refletir: ‘a professora argumentou, explicou os
porquês’, e isso é uma coisa que certamente afeta o aluno” (RM).
Exemplos que foram citados pelos sujeitos participantes desta pesquisa podem ser
vislumbrados a seguir e acenam para a possibilidade e viabilidade de discutir, em sala de aula,
43
dilemas atuais e pertinentes ao interesse de alunos de cursos de graduação em Ciências e
Biologia. Percebe-se o enriquecimento das aulas e a efetiva contribuição dessas situações para
a formação humana, aprendizagem moral e reflexiva do aluno. As situações listadas são
considerações feitas pelos professores entrevistados e relatam em breves passagens
vivenciadas a forma como trazem para as aulas que ministram situações passíveis de
discussão como perspectiva de aplicabilidade da Bioética. Todavia, não há a pretensão de
servirem como parâmetro de orientação ou planejamento de aulas, posto que, assim como
referido no início deste capítulo, não existem métodos ou estruturação prévia para a discussão
bioética. Sendo assim, estes breves relatos pretendem o reconhecimento de seu caráter
reflexivo na busca pela compreensão das implicações práticas da Bioética:
“Por exemplo, na Biodiversidade, eles irão fazer trabalho de campo. Já no primeiro
nível, eles vão lá para o Pró-Mata. E o que eles irão fazer lá? Terão o seu primeiro contato
com o campo, com o ser vivo. E o que eles farão com isso? Vão coletar, colocar no álcool?
Não, eles não fazem isso, eles tiram mais fotografias do que outra coisa, e aprendem a
conviver junto com aquilo lá” (EJ).
“Muitas vezes eles não se dão conta disso... ‘então nós vamos fazer um trabalho sobre
o corpo humano’. Então eles vão explorar questões do corpo humano, quais são as partes do
corpo humano, farão jogos com isso. E daí eu fico mostrando para eles, para que consigam
montar um projeto, ligando com a cultura, ligando com a história da família,
contextualizando aquele corpo na sua história. Isso é muito importante, e eu acho que é uma
questão de ética, que eu desenvolvo” (VL).
“Pode montar com massa de modelar, com sucata, enfim. Existem várias maneiras de
se visualizar de forma tridimensional, sem que seja matar um ser vivo. Da mesma forma que
tu não vais arrancar a folha de uma árvore, vais aproveitar o que tem caído no chão” (VL).
Percebe-se também no discurso dos entrevistados a preocupação ética com os animais
e o trabalho realizado com esses seres na sala de aula.
“E muita coisa também gira em torno de uma legislação, como o IBAMA, por
exemplo. Quando eu tenho uma atividade que envolve a coleta de animais, eu tenho que ter a
autorização do IBAMA. E os alunos sabem disso, que só terão aquela atividade na disciplina
44
porque alguns dos seus professores são cadastrados e têm autorização para tal atividade.
Não é sair por aí coletando... Então, é uma questão de legislação mesmo” (EJ).
“Eu trabalho Biologia Celular e Tecidual e nós trabalhamos com células-tronco,
diferenciação celular. Eles fazem trabalhos sobre o que seria terapia celular, por exemplo.
Na verdade a gente só aprofunda a discussão, avança até um determinado momento, deixa
mais pra outro tipo de coisa até surgir, num determinado assunto, um potencial de discussão
para que isso ocorra ao longo do curso, para que não se esgote numa aula só” (EJ).
O trabalho envolvendo a Bioética em sala de aula prioriza a discussão de questões
atuais, conflitantes e presentes na realidade social. Contudo, temas como aborto, eutanásia e
engenharia genética envolvem discussões que permeiam os meios sociais no mundo e que
podem ser abordados em sala de aula.
“Dentro das minhas atividades, mais especificamente, trago essa discussão. Hoje
mesmo, pela manhã, nós apresentamos o trabalho que trata da questão das células-tronco,
diferenciação celular, etc., daí vem aquele momento em que você vai trazendo para discussão
da questão: vamos usar célula embrionária ou não? Por que não, e por que sim? Quais são
os argumentos contra e a favor sobre este tema? Quais são as bases que sustentam essa
discussão? Chegam a perceber que tem a discussão científica, tem a discussão ética e tem a
discussão religiosa” (EJ).
“Quando eu dava aula de ‘Biologia do Desenvolvimento’ era a mesma coisa: uma vez
nós fizemos um julgamento sobre se era possível ou não a manipulação de embriões, em que
a turma foi dividida e tinha advogados de defesa, advogados de acusação, tinha júri, tinha
juiz, foi um mês inteiro nessa discussão... Aos pouquinhos a gente vai entrando no assunto ao
longo de todo o curso. E, lá no final, eles terão a discussão teórica na disciplina de Bioética”
(EJ).
“Nós trabalhamos com o código de ética do biólogo. Os trabalhos em grupo
acontecem, e todos devem colocar o nome, assinar e dizer quantos por cento foi a
participação deles no desenvolvimento do trabalho. E em cima está escrito o código de ética
do biólogo, e isso é discutido em aula com eles, e daí tem que colocar a assinatura, tem que
ter o compromisso com aquilo ali. E isso gera discussão no grupo. Provoca a inquietação,
45
não deixa aquilo parado... Então, são situações que a gente cria exatamente para ver se
conscientiza a pessoa” (EJ).
“A gente coloca a situação, faz a discussão, mas tem a prática. E como é que eu faço
a prática de ética? Ou prática de Bioética? É criar situações para que de fato isso aconteça,
a discussão aconteça. O fato deles saírem daqui e trabalharem com outros colegas, por
exemplo numa escola, como é que fica esse comportamento entre os profissionais? Existe um
código de conduta e é isso aí” (EJ).
“O corpo humano é outro assunto que eles trazem muito. Corpo humano, sexualidade,
etc., trazer toda essa discussão que tem hoje em dia a respeito de o corpo não ser
fragmentado, que aquele corpo tem toda uma história, uma identidade. E daí eu fico
mostrando para eles, para que consigam montar um projeto, ligando com a cultura, ligando
com a história da família, contextualizando aquele corpo na sua história. Isso é muito
importante” (VL).
“Um assunto agora tratado, próprio da Bioética, é a assinatura do Protocolo de
Quioto: liberar ou não o gás carbônico para a atmosfera, mais do que já se libera? E aí tem
os países signatários, como os EUA, que mais liberam, que não assinou (os EUA não estão
entre os países signatários, pois não assinou o tratado). Então, é um assunto que entra no
âmbito da Bioética entender por que o assinar ou o não assinar um protocolo de cuidado com
a emissão de gás carbônico na natureza. Eles tomaram essa decisão, e essa decisão de não
assinar foi porque eles terão um problema econômico importante e não interessa o resto do
mundo (na visão dos EUA). Então, para eles aquilo é o certo, para nós aquilo é o errado”
(CA).
Evidencia-se, pois, que a discussão ética está presente em vários aspectos da vida e
que envolvem vida. O cotidiano da sala de aula, seja este da educação básica ou superior,
apresenta um grande leque de oportunidades em investir-se num trabalho essencialmente
argumentativo, participativo e autônomo direcionado à formação humana e social dos
indivíduos.
46
5.2 A aplicabilidade da Bioética através de estudos de caso
A prática da Bioética se molda em exercícios que pressupõem situações de conflito
por serem abrangentes a um todo global e seus participantes disporem de idéias divergentes,
ainda que busquem discutir para o senso comum. A idéia de conflito e o viés reflexivo que se
sobrepõem ao debate bioético têm a pretensão de gerar discussões, instigar o interesse dos
alunos, “minar” a aula de argumentações e posicionamentos. O debate que, conseqüentemente
advém dessa aplicabilidade da Bioética, viabiliza também um momento de avaliação das
sensações, sentimentos, percepções e do grau de confiabilidade nas certezas e descrenças que
constroem o individual de cada um. São estas algumas das razões que sustentam a
compreensão da importância de se estabelecer em sala de aula uma relação contínua entre a
vida cotidiana e a bioética e nela construir bases fortes da aprendizagem humana.
Alguns exemplos de atividades são propostos a seguir, na intenção de vislumbrar essa
possibilidade de maneira contextualizada e atual. Todavia, os mesmos não pretendem
constituir-se em “receitas” aplicáveis indiscriminadamente como exercícios de bioética,
apenas exemplificam sua aplicabilidade prática.
Estudo de caso em Bioética: os embriões órfãos
3
A atividade aqui sugerida poderia iniciar com informações de base:
Após a fertilização, o ovo humano divide-se várias vezes durante os primeiros dias
dando origem a uma massa esférica de células não diferenciadas. Nesta fase as células são
consideradas totipotentes, isto é, cada uma delas pode dar origem a um embrião. Na fase
seguinte algumas das células dão origem ao que se chama de botão embrionário. Estas
células, por sua vez, já não são totipotentes.
As células do botão embrionário podem ser removidas do embrião e mantidas em
cultura. As células assim obtidas são as chamadas células estaminais embrionárias. Cabe
lembrar que a remoção das células do embrião nesta fase causa a sua destruição.
3
Exercício reelaborado com base num estudo de caso apresentado no Curso Internacional de Bioética,
ÂFLAD/NSF International Bioethics InstituteÊ, Lisboa, Julho de 2000.
47
Quando em cultura, as células estaminais podem ser induzidas a diferenciar-se em
vários tipos de células especializadas (por exemplo, tecido muscular, nervoso, fígado).
Espera-se que no futuro estas células possam ser usadas no tratamento de doenças
degenerativas, incluindo a doença de Parkinson e de algumas lesões.
Poderia, no contexto dessas informações, ser apresentado o caso em estudo:
Há cinco anos, o Sr. e a Sr.ª Smith freqüentaram uma clínica de fertilização in vitro no
seu hospital local. Após algumas tentativas, seis óvulos foram fertilizados com sucesso. Três
deles foram implantados, e oito meses mais tarde a Sr.ª Smith deu à luz um casal de gêmeos,
dos quais só um sobreviveu. O casal solicitou que os embriões excedentes fossem congelados
para eventual implantação mais tarde. Na época o corpo clínico do hospital não sugeriu
quaisquer outras possibilidades de destino dos embriões.
Tragicamente, o casal Smith morreu num acidente de avião um ano mais tarde.
Passados dois anos, quando a clínica de fertilização in vitro tentou contatar os Smith para
saber dos seus desejos quanto aos embriões congelados, tomou conhecimento da sua morte.
No hospital havia uma equipe ativamente envolvida na investigação de terapias da
doença de Parkinson. Essa equipe já tinha apresentado um projeto ao Comitê de Ética do
hospital no sentido de poder usar células estaminais oriundas de embriões congelados para a
sua investigação, e o projeto tinha sido aprovado.
O responsável pela equipe de pesquisa abordou a clínica de FIV para saber se teriam
embriões excedentes que pudessem ser usados. O diretor da clínica disponibilizou-lhe os
embriões excedentes dos Smith. No país em questão não existe legislação claramente
aplicável à investigação com células estaminais embrionárias.
Seria apresentado então o exercício:
Responda em grupo às seguintes questões. Em caso de divergências no grupo,
este deve buscar uma resposta de consenso a cada pergunta. Responda plenamente a
cada pergunta antes de passar para a seguinte.
Liste algumas das questões éticas detectadas associadas à situação descrita.
48
Se fosse membro do Comitê de Ética do hospital, você teria apoiado o uso de
embriões na obtenção de células estaminais para investigação sobre a doença de
Parkinson? Justifique.
Conforme o sentido da resposta anterior, elabore uma argumentação ética contra ou a
favor da destruição de embriões humanos para produção de células estaminais.
O diretor da clínica de FIV agiu eticamente ao fazer entrega dos embriões dos Smith à
equipe de investigação? Justifique.
Como ordenaria quanto à respectiva aceitabilidade ética os seguintes possíveis usos
dos embriões?
- Não fazer nada (mantê-los congelados).
- Destruir os embriões.
- Comunicar aos familiares do casal Smith a decisão tomada quanto ao destino dos
embriões.
- Oferecer os embriões para ‘adoção’ por outra família.
- Vender os embriões a uma empresa que trabalha com células estaminais
embrionárias. Consultar os familiares do casal Smith quanto ao destino dos embriões.
- Permitir o uso dos embriões em investigação sobre a doença de Parkinson com
financiamento público.
Apresente considerações éticas que justifiquem a sua primeira e última escolha em
relação à questão anterior.
Atividade: “A auto-estrada e as araucárias”
Um projeto idealizado pelo governo prevê a construção de uma auto-estrada na serra
do Rio Grande do Sul onde há grande concentração de exemplares de araucárias,
características daquela região e do tipo de paisagem.
Essa área, em sua riqueza de exemplares vegetais importantes, tem grande valor social
e patrimonial para a população local a qual, no entanto, tem também muito interesse na
construção da nova estrada.
49
A empresa concessionária responsável alega que desviar a estrada mesmo a poucas
centenas de metros, o que evitaria a destruição desta população de araucárias, geraria aumento
dos custos e atrasaria a obra.
Os ambientalistas opõem-se ao trajeto previsto, alegando publicamente que a espécie
vegetal em questão é protegida por lei e que a real utilidade da estrada é duvidosa.
Os responsáveis governamentais têm um compromisso político na aceleração e
entrega da obra, mas têm também afirmado dar prioridade à proteção do ambiente e à
manutenção do maior número possível de exemplares desta e de outras espécies nativas.
Dado o caso, e analisando-se as colocações feitas, o professor em sala de aula assume
o papel de mediador do debate e propõe que os alunos reunam-se em três grupos diferentes e
defendam, em cada um deles, suas posições frente ao dilema. Propositadamente, um grupo
deve assumir o papel da empresa responsável pela obra; outro, dos representantes locais; e um
terceiro, dos ambientalistas. Para um melhor desenvolvimento e resultado deste exercício,
intencionalmente, um quarto grupo deve ser estruturado, correspondendo estes aos
representantes do governo, cabendo-lhes deliberar sobre as posições expressas e os interesses
em jogo, anunciando e justificando a decisão final.
Estes dois exemplos, apesar de abordarem temas diferentes, têm por objetivo
vislumbrar ao professor que trabalha com Ciências e Biologia a viabilidade de discutir temas
de conflitos bioéticos de forma simples, possível e instigante.
O aluno é convidado a participar e a envolver-se no debate de forma reflexiva e não-
impositiva, tornando-se parte do discurso e argüindo sobre o que considera relevante em cada
situação.
Atividades como estas possibilitam trazer o aluno ao debate num contexto semelhante
ao seu, no seu ambiente, no seu tempo e considerando seu interesse como professores de
Biologia em formação.
A aplicabilidade da Bioética na educação se faz, sobretudo na discussão, na reflexão e
na interação das diferentes idéias e julgamentos. Tanto a racionalidade kantiana como
50
teorizações de Piaget e Kohlberg sobre o desenvolvimento moral, referidos por Habermas
(1989) em “Consciência moral e agir comunicativo”, quanto, em contraste, o utilitarismo de
Bentham (2000), correspondem a teorias que, mesmo implicitamente, são manifestadas nas
considerações feitas pelos alunos quando essas situações são criadas nas aulas.
É importante que a sala de aula seja um espaço aberto às discussões, a fim de
compartilhar idéias e reforçar no aluno em formação profissional o significado do “ser” e sua
importância no seu contexto ambiental. Aliado a isso, este espaço torna-se efetivamente
formativo, já que o trabalho desenvolvido baseia-se no aprender a pensar, argumentar e
justificar seus argumentos. A capacidade crítica é estabelecida como parâmetro condicionante
de um bom desempenho, tanto no seu grupo de estudos quanto nas suas relações sociais.
O segundo trabalho referido neste texto exemplifica a possibilidade do professor,
paralelamente, abordar as leis ambientais vigentes e discuti-las na sua atualidade. Este
exemplo também auxilia o professor a debater com os alunos e auxiliar a percepção de que
trabalhamos e estamos imersos nos conflitos de Bioética cotidianamente e somos habilitados a
discuti-los.
Ademais, conhecer a Bioética nos remete ao princípio de que todas as formas de vida
merecem respeito, atenção e cuidados.
Raciocínio, capacidade de argumentação e trabalho em grupo são capacidades
possíveis de serem trabalhadas quando “praticamos” em aula situações conflituosas e que se
fundamentam nas questões éticas ao conduzirem nossas ações morais. Dessa forma, além de
desenvolver conhecimentos sobre Bioética e temas biológicos e educacionais, é possível
contribuir para o desenvolvimento moral dos alunos, incentivando autonomia de julgamento,
respeito a idéias divergentes e busca de consensos direcionados ao entendimento recíproco
(HABERMAS, 1989), com todas as suas implicações pessoais e sociais.
Também nessa perspectiva, incorporam-se como diretrizes gerais, premissas que
orientam a proposta curricular, apontadas pela UNESCO, como eixos estruturais da educação
contemporânea:
É importante destacar, tendo em vista tais reflexões, as considerações oriundas da
Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, incorporadas nas
determinações da Lei nº 9.394/96:
a) a educação deve cumprir um triplo papel: econômico, científico e cultural;
51
b) a educação deve ser estruturada em quatro alicerces: aprender a conhecer,
aprender a fazer, aprender a viver e aprender a ser (PCNs Ensino Médio, 1999,
p.15).
As situações de conflito geradas pelo crescente desenvolvimento científico e
tecnológico do mundo atual vêm causando grandes inquietações na humanidade. O homem
cada vez mais, utiliza as tecnologias e as descobertas científicas para imprimir ao novo mundo
a imagem de um tempo de transformação necessário e solução dos muitos problemas
enfrentados pela população mundial. Estes aspectos vêm contribuindo consideravelmente para
o interesse da sociedade pelos aspectos éticos das inovações e aplicações científicas o que
torna a reflexão e a discussão bioética devidamente contextualizada e pertinente (ROSA e
COMSTOCK, 2004).
Sabe-se, porém, que na maior parte dos investimentos em pesquisas e experimentações
de novas tecnologias há duas faces: uma carregada de resultados positivos e inofensivos aos
organismos vivos; outra que leva consigo a intenção de atender a interesses políticos ou
econômicos antes de solucionar o problema em questão. Ocasionalmente, nesse segundo
aspecto, pode apresentar-se numa versão obscura do processamento científico que
desencadeará problemas futuros maiores do que aqueles que se pretende solucionar. Nesses
casos é extremamente importante que a reflexão ética entre em cena para discutir que valores
morais e que interesses estão em jogo. Sobre isso Vásquez (2002, p. 23) define ética como
“teoria ou ciência do comportamento moral dos homens” e entende que a moral é o objeto de
estudo da ética. Completa afirmando que “a missão da ética é explicar a moral efetiva e, nesse
sentido, pode influir na própria moral” (VÁZQUEZ, 2002, p. 24).
Sendo assim, a discussão sobre os determinantes éticos e os julgamentos morais
perante cada situação, subjazem à idéia de que, eticamente, o que se analisa, é a sua
adequação. E, “existem coisas que são eticamente deliberadas ou discutidas, ou coisas que
não são eticamente discutidas. Ou seja, se tu fores tomar uma decisão imediata sem nenhuma
discussão anterior, isso aí não foi eticamente discutido” (CA).
Quando numa pesquisa é criada essa discussão e dela surgem argumentos que a
defendem ou a condenam, em visões antagônicas, cria-se uma situação de conflito. Como a
ética enfatiza, que não existe o “certo” ou “errado” num julgamento moral, mas sim o que é
“mais adequado” ou “menos adequado” a determinada situação, todo dilema requer e prioriza
52
uma discussão e uma reflexão sobre os argumentos relativos a ele formulados durante um
julgamento, ou antes, de uma decisão. “Só que não existe o que é certo. As questões morais e
as questões legais ainda podem dizer se isso é certo e isso é errado, isso é legal e isso não é
legal, isso não é moral, passível de protesto, e isso é moral. Mas, na ética não tem o que é
certo ou o que não é. Tem o que é melhor de acordo com a discussão e a reflexão dos porquês
que cada uma das pendências está argumentando. Mas não existe quem diga se é certo ou é
errado. Será uma discussão a ser debatida eternamente. Então, não tem uma coisa que é
certa” (CA).
“Eu tenho que entender os porquês das coisas. Por que ele não quer? Ele não quer
por causa disso, disso, disso. Não interessa o porque ele não quer, não vem ao caso. Então,
eu não poderei obrigá-lo... Ou, eu tenho um paciente que tem uma doença rara, que se eu
fizer uma análise de DNA e publicar aquela raridade da doença dele, eu vou contribuir com a
comunidade científica, eu farei que o mundo inteiro saiba que aquelas alterações genéticas
dão aquele fenótipo, e isso vai ser uma contribuição importante, porque é a única pessoa no
mundo com aquela alteração. Mas, se aquela pessoa não quer que o seu DNA seja avaliado,
eu tenho que respeitá-la, e isso é o que vale” (CA).
Assim como um médico deve procurar entender os porquês que levam um paciente a
não aceitar uma determinada medicação ou tratamento, e a Bioética ensina isso, um professor
deve buscar entender os porquês que levam um aluno a não concordar com determinada lei ou
conceito estudado nas bibliografias. Até mesmo procurar reconhecer naquele aluno que não
consegue manter atenção em aula, ou não se interessa por um conteúdo, que razões o levam a
agir daquela maneira. Valorizar a individualidade e o contexto de cada indivíduo são aspectos
importantes e que requerem atenção no processo formativo. Não obstante, a busca pela
construção do conhecimento tão priorizada no ensino/ aprendizagem, se concentra e se
estrutura, indubitavelmente, numa relação de respeito e credibilidade no outro e pelo outro.
“Quem vai trabalhar com Biologia tem que aceitar determinadas coisas. Supomos que
eu ache que devo fazer um procedimento terapêutico, terapia gênica no paciente porque eu
acho que ele vai melhorar, porque eu vejo que ele vai se curar daquela doença herdada, que
ele vai ter uma qualidade de vida melhor, que eu quero, quero, quero... Mas se ele não quer,
eu não tenho que ficar revoltada, inconformada” (CA).
53
“Eu tinha uma colega que era do Marrocos, durante o meu doutorado na Espanha, e
ela usava aquelas roupas que cobrem todo o corpo, só não cobrem o rosto, e às vezes fazia
35° graus centígrados. E eu achava um absurdo que ela usasse aquelas roupas. E, na
verdade, aquilo me incomodava. Até uma vez que, eu e as outras colegas, na frente dela com
vestidinhos de alças na frente dela. Eu não falava com ela... E certa vez uma das nossas
colegas perguntou se ela não sentia calor. Na verdade, a pergunta não era pra saber se ela
estava com calor, mas para saber por que ela usava aquelas roupas. E ela disse que não
sentia calor e disse também: ‘eu fico com pena de vocês, porque vocês não são puras’. Então,
esse exemplo sempre foi legal para eu pensar que não tem quem diga o que é certo ou o que é
errado. Não existe um ser no mundo, um deus que diga ‘essa pessoa é certa e essa é errada’.
Não existe. Pra ela, pra religião dela, na cultura dela, ela é a certa. Para mim, para a minha
cultura, eu sou certa. E não tem quem diga que eu estou certa e ela errada. O que tem é o
seguinte: ambas vamos conviver naquele ambiente, e eu tenho que respeitar ela, não querer
que ela mude e ela não querer que eu mude. E a gente tem que saber conviver” (CA). Este
relato exemplifica a conveniência da reflexão ética sobre qualquer situação que exija um
julgamento moral. A divergência de idéias ou a diversidade cultural e histórica devem ser
contextualizadas e consideradas nas situações conflitantes buscando, contudo, um consenso
comum. Os argumentos podem ser variados e as conclusões nem sempre compartilhadas pelos
diferentes lados, mas devem existir e serem respeitados para a manutenção das diferentes
sociedades.
Essa questão fica ainda mais “real” ao cotidiano de um professor e seus alunos em sala
de aula, seja numa aula de universidade seja na escola, quando situações desse âmbito
acontecem e provocam a inquietação e a discussão com todo o grupo. É nesse momento que a
Bioética invade a aula com a pertinência de suas considerações pautada no ato reflexivo e
instigante de modo que todos os participantes do processo tornam-se parte importante daquele
momento. Todos então, têm o direito de se posicionar, questionar e intervir com suas idéias e
reflexões. E isso é relevante e de certa forma eficaz no ensino das ciências da vida, sobretudo,
conforme recomendam os PCNs:
Não é possível tratar, no Ensino Médio, de todo o conhecimento biológico [...] mais
importante é tratar esses conhecimentos de forma contextualizada, revelando como
e por que foram produzidos, em que época, apresentando a história da Biologia
como um movimento não linear e freqüentemente contraditório [...] é fundamental
que o ensino de Biologia se volte ao desenvolvimento de competências que
permitam ao aluno lidar com as informações, compreendê-las, elaborá-las, refutá-
54
las, quando for o caso, enfim compreender o mundo e nele agir com autonomia
(PCNs – Ensino Médio, 1999, p. 19-20).
Aprender a argumentar é um passo fundamental no processo de crescimento cognitivo
e construção pessoal, contribuindo para que o indivíduo adquira subsídios importantes para
sua vida escolar, profissional e social. E, aprender a argumentar não é tão simples;
diferentemente de quando se conhece um novo conteúdo, argumentar fundamentadamente
requer conhecer e acreditar naquela posição. É assumir uma posição e torná-la parte da
própria existência. É considerar as razões, os conceitos que os faz tornar parte de um
pensamento, de uma idéia que agora é característica daquele indivíduo mesmo que
compartilhada por outros. “Foi uma discussão que surgiu no meio acadêmico e para o
público em geral, e os alunos já trazem isso. As pessoas, de alguma forma, têm que se
posicionar, elas não podem ignorar a situação. Ou seja, se surge um questionamento a
pessoa tem que ter uma posição” (EJ).
Para que um indivíduo consiga argumentar sobre determinado assunto, este deve ter
internalizado aquilo em que acredita, o que ele defende, sentir sobre o que toma posição. Não
basta argüir sem conhecer e tampouco falar sobre aquilo que não “mexeu” com as sensações,
com os interesses. E essa capacidade pode e deve ser lapidada nos alunos enquanto estes
estão em formação como um processo de habituação desse exercício, na medida em que
desenvolvem outras capacidades, outros saberes. Mas isso não acontece necessariamente em
todos os alunos na dimensão esperada, tampouco no tempo projetado. As diferenças, as
pluralidades e a diversidade, num grupo de diferentes pessoas, merecem atenção e destaque
nesse aspecto. Pois, considerando o que diz Hermann (2001, p. 33):
Para a teoria da educação, hábitos são internalizações, disposições formadas a partir
de determinadas influências, que excluem outras. Desse modo, não é possível
assegurar o objetivo a ser alcançado. Não há uma relação causal entre os conceitos
e a realidade, entre o objetivo a ser atingido e a interioridade do sujeito.
Sobretudo, é dever, e este “dever” aqui mencionado refere-se ao “deve haver” do
professor que ministra suas aulas, independentemente da disciplina, a preocupação em
trabalhar o poder de argumentação, a capacidade que todos podem desenvolver e que muitas
vezes é tolhida em determinadas circunstâncias, quando o professor não reconhece que o seu
aluno clama por atenção e espaço à argumentação. Ele, de certa forma, exige essa chance de
mostrar-se numa relação de confiabilidade mútua a fim de compartilhar, nesse mesmo espaço,
55
suas necessidades, medos, angústias e idéias. Muitos professores acabam, pois, bloqueando
essa habilidade que é tão ou mais necessária que a assimilação de conhecimentos
predeterminados nos currículos. Mesmo que imperceptivelmente, ao fechar os olhos às
necessidades do aluno, o professor extingue as possibilidades de trabalhar o aprender a
pensar, raciocinar, posicionar-se e defender-se perante as situações apresentadas.
“Tu tens que ensinar ao aluno a importância da argumentação. Com uma boa
argumentação ele realmente consegue mudar conceitos e inserir valores novos. Então, tem
que aprender a argumentar, e tu só argumentas sobre aquilo que tu acreditas. E alguém só
acredita naquilo que internalizou, pensou, refletiu, e conceitua de uma forma própria. Então,
é um conceito que vem de dentro. Se tu acreditas, tu defendes, argumentas... e isso aí falta
muito para o nosso aluno, e em qualquer nível” (AF).
“Quais são os argumentos contra e a favor sobre este tema? Quais são as bases que
sustentam essa discussão? Eles chegam a perceber que tem a discussão científica, tem a
discussão ética e tem a discussão religiosa. E eles mesmos começam a fazer um princípio de
discussão” (EJ).
Embora, se observe que numa educação direcionada à formação autônoma do
indivíduo configure um passo importante na retomada de princípios e valores, essa não é uma
idéia compartilhada por todos. Muitas vezes se percebe quando um professor prefere
interromper o diálogo ou o debate gerado em aula a intensificá-lo e aproveitar aquele
momento para estendê-lo a outros aspectos, até mesmo aqueles que correspondem ao próprio
conteúdo trabalhado no momento. Infelizmente, essa sensação é freqüente no cotidiano da
sala de aula.
Talvez essa discussão traga vários aspectos à baila que tentem explicar que razões
levam um professor a agir dessa forma: um déficit, uma lacuna trazida por ele desde a sua
formação que não o proporcionou a vivência de situações conflitantes na sua vida acadêmica;
ou talvez, uma característica da sua própria personalidade, um perfil que assumiu quando se
tornou um “professor” e que agora não pode renunciar; talvez ainda, que o fato de
disponibilizar uma aula para discussões mais intensas sem conseguir estabelecer uma relação
com conteúdo que orienta, faça com que esse professor prenda-se a métodos arcaicos que não
permitem essa abertura já que ele não reconhece isso nos seus conceitos sobre educação. As
56
considerações certamente são muitas, porémo apontadas aqui apenas como ponto de
reflexão, sem a intenção de aprofundamento posto que o foco desta pesquisa prioriza outros
aspectos.
“Nós precisamos de professores que voltem a incentivar o aluno a dizer o que ele
pensa, a dizer o que ele acha, a orientar a que eles fundamentem de uma forma correta o que
eles pensam, porque às vezes eles acham sem fundamentar... Que o professor volte a ser um
orientador, não aquela pessoa que só ministra uma aula e que impõe porque é superior”
(AF).
Os dilemas mais conhecidos na área das ciências são, por exemplo, o aborto, a
eutanásia, as pesquisas com células-tronco, a clonagem e a preservação do meio ambiente.
São temas que geram conflito e divergências nas argumentações porque são vários os aspectos
envolvidos, muitas considerações a serem feitas e cada uma delas carregada de informações e
argumentos que, de certa forma, tornam cada uma delas passível de reflexão e de aceitação
enquadrando-se na situação analisada. Então são dilemas que precisam ser resolvidos. A
solução deve perpassar o que um grupo pensa a respeito ou considera viável ou adequado. A
ética, e a bioética especificamente, aponta para a necessidade de abertura às pluralidades e
diversidades de idéias, pessoas, contextos e argumentos. Se esta é uma disciplina que mantém
suas raízes à luz das considerações de todo organismo vivo como ponto fundamental na
manutenção da vida e voltada para suas vidas, é indiscutível que a bioética busque o maior
número de indivíduos envolvidos com suas diferentes visões, razões e argumentos sobre cada
dilema. “Então, não adianta ficar no discurso. A gente coloca a situação, faz a discussão,
mas tem a prática. E como é que eu faço a prática de ética? Ou prática de Bioética? E esses
exemplos que eu dei são a prática! É criar situações para que de fato isso aconteça” (EJ).
Ou seja, aprender a argumentar requer acreditar e habitualmente praticar a
argumentação. Expor-se não é tarefa fácil, mas é um exercício importante na formação da
identidade do indivíduo. E cabe ao professor proporcionar o ambiente no qual o aluno sinta-se
autônomo e livre para posicionar-se numa relação mútua de confiança e respeito com o outro.
A prática da Bioética está estreitamente relacionada a esse processo, tanto no ambiente
escolar como no grupo social ou na família. A habilidade de refletir, posicionar-se, defender
um ponto de vista, argumentar sobre o que pensa a partir de situações conflitantes trabalhadas
57
em aula, não se configura como única base para o desenvolvimento dessa capacidade tão
importante, mas destaca-se na perspectiva e intencionalidade da educação.
58
6 A BIOÉTICA ABORDADA EM OUTRAS DISCIPLINAS DO CURRÍCULO
FORMATIVO: POSSIBILIDADE OU UTOPIA?
Definir Bioética segundo uma concepção única seria tão incoerente quanto definir o
que é certo ou errado para todas as sociedades do mundo. Discutir a aplicabilidade da Bioética
em sala de aula de forma interdisciplinar, principalmente em cursos universitários, talvez
corrobore essa vertente de pensamento que sugere, entre diversas possibilidades, a
convergência do que se pretende, ou seja, abordar dilemas atuais formando pessoas
participativas e críticas.
6.1 Uma perspectiva interdisciplinar da Bioética
As diferentes percepções em torno do significado e relevância do tema Bioética, tanto
no meio científico quanto acadêmico, fez surgir nos últimos anos, grandes preocupações sobre
este assunto tão discutido nas diferentes sociedades. A sociedade exige, com toda a
legitimidade, assegurar-se de que a ciência e aqueles que estão envolvidos em pesquisas
científicas se atenham a princípios morais e éticos apropriados. Observou-se que,
essencialmente a partir do século XX, houve uma crescente preocupação com as questões
bioéticas, muitas delas relacionadas aos impactos ambientais que vêm ocasionando prejuízos
e ameaças à manutenção da vida de diferentes espécies. Outras implicações dessa crescente
preocupação vêm elencadas junto a conflitos eminentemente sociais, como as ligadas ao
controle de natalidade, sexualidade, pena de morte, igualdade ou direitos humanos. Há
também que se referir as questões de reflexão ética quanto à adequação da utilização das
biotecnologias e engenharias genéticas; organismos modificados geneticamente, agricultura,
pecuária, veterinária, experimentação e bem-estar animal, etc. (COMSTOCK e ROSA, 2004).
Esta ética aplicada, que é a Bioética, perpassa o conceito de uma “ética da vida”
estritamente ligada às ciências biomédicas. Trata-se de uma área transversal e multidisciplinar
que carrega, desde a criação do termo pelo médico oncologista Van Rensselaer Potter
4
, a
proposta de um conceito abrangente sobre todos os aspectos éticos das ciências da vida, ou
4
Van Rensselaer Potter. Bioethics: bridge to the future. Englewood Cliffs, N. J.: Prentice-Hall, 1971.
59
seja, seu sentido de uma “Bioética Global”. A Bioética não se restringe aos aspectos da
biomedicina, sendo hoje matéria de grande discussão e atenção também no meio acadêmico
(COMSTOCK e ROSA, 2004).
Muitos são os cursos universitários que se preocupam em abordar o tema com grande
empenho nos seus currículos. Isto se deve primeiramente à intenção, por parte de instituições
de ensino superior pretendem, de formar cidadãos aptos a discutir, argumentar, conhecer
valores e formar a capacidade de julgamento moral e ético, reconhecendo as individualidades
e respeitando as diferenças e o bem comum. Ademais, nas formações profissionais, a Bioética
pode ser considerada importante meio de resgate dos valores morais e a valorização das
relações estabelecidas na vida em sociedade, além da disponibilidade ao debate ético. Clotet,
em uma de suas afirmações, considera:
O fato de que os futuros profissionais da Odontologia, Medicina, Enfermagem,
Farmácia, Psicologia e Biologia tenham uma melhor prática ou exercício da sua
especialidade através do conhecimento desta disciplina na época da faculdade,
constitui um avanço extraordinário (CLOTET, 2006, p. 217).
Os valores e as condutas morais estão no âmago das discussões bioéticas, sendo que
todo conflito é gerado a partir de uma disparidade de intenções e percepções, encontrando,
pois, na sala de aula, uma importante via de resgate e reflexão sobre seus sentidos em
diferentes culturas e contextos.
Os cursos de formação de professores de Ciências e Biologia, principalmente, devem
estar engajados nesta busca. Os alunos que estão sendo preparados para atuar como
professores, provavelmente, enfrentarão situações de conflito em suas aulas e se faz
necessário que estes saibam administrar os acontecimentos, engajar-se nos debates e abrir-se
ao novo. Estes são fatores tão necessários às discussões éticas quanto o próprio conhecimento
da essência da Bioética, considerando que, ao “[...] afirmar o respeito devido a todo ser
humano independentemente da sua idade, cor, saúde e situação econômica, a Bioética está
contribuindo enormemente para o exercício da cidadania em nossa sociedade” (CLOTET,
2006, p. 217).
É importante trabalhar a Bioética durante a formação de estudantes universitários e,
considerando o foco desta investigação, durante a formação de licenciandos em Ciências e
60
Biologia. “A Bioética deveria estar presente em todos os currículos, principalmente de
professores, pois ela vai fazer esse profissional ser um profissional mais aberto. Mais aberto
aos problemas, mais crítico, no sentido da crítica construtiva, e vai sair, e isso seria um
diferencial, entendendo que vai construir uma nova sociedade a partir da sua ação e da ação
dos seus alunos que são cidadãos que ele está ajudando a formar” (AF).
Em bibliografias atualizadas de outros países, são vislumbradas argumentações
pertinentes, pautadas em considerações que corroboram fortemente a incorporação da
Bioética aos processos formativos.
Pode-se citar, como exemplo, uma sugestão da American Association for the
Advancement of Science que, em 1990, recomendava o tema diretamente ao ensino das
ciências e indiretamente à investigação científica:
Os cursos científicos devem disseminar os aspectos [mais vastos] da ciência,
realçando as suas dimensões éticas, sociais, econômicas e políticas. Tato o cidadão
como o cientista, devem ter a capacidade para avaliar os custos, benefícios e riscos
da ciência em termos econômicos, sociais e individuais, e para entender porque
devem as políticas públicas e os regulamentos governamentais serem tidos em
conta na aplicação prática do conhecimento científico (COMSTOCK e ROSA,
2004, p. 23).
As razões são muitas para considerar a relevância desse tema nos currículos dos cursos
de graduação. No entanto, a grande reflexão em torno desta questão instaura-se em outros
aspectos não menos relevantes ou até mesmo carecedores de maior atenção: a Bioética traria
maior contribuição à formação dos professores de Ciências, ao ser abordada como uma
disciplina autônoma e isolada? Ou, vislumbrando-se outra alternativa, seria mais conveniente
trabalhá-la de forma integrada e complementar às disciplinas específicas dos cursos
formativos?
Essa reflexão encontra sustentação nas considerações que podem ser feitas sobre as
atitudes e a preparação dos docentes que estão envolvidos no processo de formação desses
licenciandos. Ademais, nem todo professor é ou precisa ser um bioeticista. O que se requer é a
postura mantida por esse professor como peça fundamental para o desenvolvimento de um
bom trabalho. Manter uma conduta profissional que priorize a abertura às discussões, às
argumentações fundamentadas e o conhecimento da adequação dos valores morais são ações
que beneficiam a incorporação da bioética na formação dos futuros professores.
61
Além do que, “não se trata de uma disciplina como outra, se trata de uma dimensão
de realidade, de um registro de relação com a realidade que não pode, absolutamente, ficar
fora das dimensões básicas da formação de quem quer que seja, muito especificamente
daquele cientista que, trabalhando com Biologia, pode ter a tentação de afunilar o seu fazer,
no sentido de se concentrar excessivamente numa delimitação epistemológica muito estreita”
(RT).
A oportunidade de abordar as mais diversas situações numa pluralidade de contextos e
conhecimentos viabilizada numa sala de aula instala-se nessa necessidade de priorizar a
Bioética nos currículos dos licenciandos em Ciências e Biologia. “A possibilidade de
trabalhar a bioética parte da consciência do sentido que possa ter esse trabalho” (RT). A
disponibilidade e a intenção em envolver-se com a Bioética não bastam se partirem de
“modismos” num assunto que vem, progressivamente, ganhando espaço nos desafios atuais.
Evidentemente serão aspectos fundamentais quando percebidos como o primeiro e importante
passo ao trabalho com a Bioética. Sobretudo, necessitariam estar incorporados ao
conhecimento do propósito da Bioética, a fim de que não se desfigure a essência desta
disciplina. E, valendo-se das considerações de Comstock e Rosa (2004, p. 26), “a ética
aplicada é porventura a disciplina das humanidades mais alheia à ciência, visto que se centra
na tarefa normativa de justificar considerações sobre como o mundo humano deveria ser”
Sendo a Bioética uma “disciplina”, conforme é considerada por muitos autores, deduz-
se que seja, utilizando-se da semântica da palavra, relativa à ação de disciplinar conceitos e
conteúdos. Porém, o termo “disciplina” pode apresentar dois sentidos principais: “[...] pode
significar uma metodologia pedagógica e pode significar o corpus de verdades científicas que
resulta desta prática” (LEPARGNEUR, 1996, p. 89). O primeiro sentido pode e é
recomendado ao trabalhar-se a Bioética, desde que de forma contextualizada e atual. Dessa
forma, há possibilidade de atribuir à Bioética uma condição de concederaiTwdao mundo
62
Posto isto, trata-se de uma disciplina que não se limita ao fazer pedagógico tradicional,
tampouco àquele delineado em pragmatismos ou teorias estanques, mas que se debruça sobre
o sentido de uma disciplina mutável, pluridimensional e contextualizada na
contemporaneidade. Ainda, segundo Clotet, “a Bioética não é uma disciplina definida e
consolidada nem nos seus conteúdos nem nos seus limites. Trata-se de um estudo
interdisciplinar dos problemas éticos que se desenvolvem paralelamente ao progresso
biológico e médico” (CLOTET, 2006, p. 190).
6.2 A Bioética como disciplina específica
A evolução da Bioética, na tendência contemporânea de ciência, tornou a discussão
sobre a sua qualificação tão ou mais instigante do que a busca por um fundamento comum.
Nota-se que o desafio recai também sobre as perspectivas de ser ela – a Bioética: uma
disciplina? Uma nova ciência? Uma tendência atual? Sobre isto, Sanches argumenta: “alguns
defendem que a disciplina Bioética seja apenas uma ampla área de interesse comum, e outros,
no entanto, pretendem fazer da Bioética uma ciência à parte” (SANCHES, 2004, p. 20). A
partir dessa afirmação, pode-se iniciar uma reflexão sobre a aplicabilidade dos dois aspectos
mencionados, considerando-se que a Bioética pode ser vista como uma ciência específica ou
uma abordagem interdisciplinar. O importante é considerar e analisar, sob estas duas
percepções, as implicações dessa nova disciplina.
O que se percebe é a crescente preocupação em se estabelecer parâmetros que definam
o como ensinar Bioética, sendo talvez este o grande desafio pedagógico da atualidade.
Todavia, sem intenção de formular métodos ou formas miraculosas e precisas de ensinar a
Bioética, até porque já se argumentou sobre essa inviabilidade. O desafio está em determinar
a forma adequada de implementação da disciplina Bioética nos currículos formativos. A
magnitude do desafio é apontada em obras relevantes e que, comprometidas com a discussão
do tema, manifestam sua preocupação. A exemplo disso, pode-se citar Azevedo, que ao referir
um trecho de um artigo publicado por Lenoir (1996), reitera essa preocupação:
Se o escopo da Bioética deve ser multidisciplinar, resta saber se é preferível tê-la
dentro de uma formação disciplinar clássica – com o educador encarregado,
responsável por recorrer às competências de outros participantes [...] ou se deve
63
constituir uma disciplina por inteiro. Nesta última hipótese se coloca o problema da
concepção da formação a ser usada pelos futuros professores de Bioética
(AZEVEDO, 1998, p. 129).
Nota-se que o desafio transcende a preocupação metodológica e discute o como
implementar o ensino da Bioética nos cursos. Esta é uma questão central a ser discutida e
incessantemente repensada, pois, como já recomendado, não há, na abordagem da Bioética,
um procedimento metodológico específico tampouco limitado.
A implementação de uma disciplina isolada e formal de Bioética poderá não ser a
alternativa mais adequada, considerando-se que as ciências da vida tratam dos mais variados
assuntos e que, na sua grande maioria, mantêm uma estreita relação com as questões
discutidas por essa ética aplicada. Argüindo sobre essa afirmação, é possível admitir que:
A criação de uma nova disciplina nem sempre é a solução mais simples e
parcimoniosa [...] Existe uma outra alternativa complementar e promissora, que
consiste em dar meios aos docentes universitários para que possam incorporar
discussões e abordagens sobre bioética em disciplinas pré-existentes,
providenciando-lhes conceitos básicos, métodos e conhecimentos sobre ética
aplicada às ciências naturais e da vida (COMSTOCK e ROSA, 2004, p. 24).
As potencialidades de uma disciplina específica, quando dimensionada nos moldes
tradicionais que historicamente lhe atribuem o papel de produzir e transmitir conhecimento,
podem perder uma força importante entre questões que cotidianamente surgem durante as
aulas de quaisquer disciplinas curriculares. E, considerando a amplitude do tema e suas
dimensões de aplicabilidade, pode-se concluir que “a Bioética lida com saberes na
encruzilhada de várias disciplinas, sugerindo uma concepção interdisciplinar ou mesmo
transdisciplinar para seu ensino” (AZEVEDO, 1998, p. 127).
Entretanto, há que se discutir e refletir sobre outras possibilidades viáveis
argumentando sobre a adequação de ambas: uma disciplina específica, clássica e
sistematizada de Bioética, ou uma abordagem interdisciplinar e relacionada com os conteúdos
trabalhados em cada disciplina? Ao atribuir considerações às duas possibilidades, há que
atentar a um ponto essencial ao processo de ensino e aprendizagem: na formação dos docentes
envolvidos – independentemente da área de conhecimento que contemplem – a reflexão sobre
esse aspecto é imprescindível. E requer maior atenção se a sugestão considerada for
reconhecer a viabilidade e conformidade em integrar a abordagem bioética em toda e qualquer
64
disciplina do currículo formativo. Contudo, essa perspectiva é delicada, pois, no que já foi
referido, nem todo professor de Ciências e Biologia é, ou deve ser, um bioeticista.
Certamente essa é uma discussão inerente ao desafio pedagógico exposto e que requer
atenção maior nas reflexões, o que posteriormente, será priorizado.
Talvez, e percebendo-se isso nos relatos de alguns sujeitos, não seria suficiente
introduzir uma disciplina específica de Bioética. “Quer dizer, disciplinas são ‘cascas’, são
estruturas, são esqueletos, são andaimes... O que interessa é o que pulsa no interior da
disciplina” (RT). A Bioética, por si própria, não possui conceitos ou fundamentos
preestabelecidos, independentes de outras disciplinas. “A ética aplicada é porventura a
disciplina das humanidades mais alheia à ciência, visto que se centra na tarefa normativa de
justificar considerações sobre como o mundo humano deveria ser” (ROSA, 2002). “Acho que
deveria haver nesse momento, paralelo à idéia da bioética, no decorrer da formação do
aluno, essas reflexões, para que o aluno saia sabendo o que é Bioética, não um professor de
Bioética, mas sabendo o que é a Bioética; que estes professores também tenham esse tipo de
conhecimento. O que poucos professores têm” (AF).
A Bioética pode ser, e é relevante que seja, trabalhada em qualquer disciplina de forma
complementar, desde que seguindo parâmetros adequados. Ademais, debruçando-se nas idéias
de Azevedo, “a forma tradicional de ensino baseada na concepção disciplinar não é eficaz
para a completa compreensão desta nova área” (AZEVEDO, 1998, p. 127). Essa perspectiva
também é referida nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), por exemplo, que
explicitam a importância da implementação da ética como tema transversal, sugerindo ao
profissional da educação que procure mold892l a é.7( )]TJtagógico exposto nu]TJ6tiva d3(9(m)7. TD2)-026tiva6sver.955 -1.785 TD0.0003 Tc91 Tw[25trodu
65
Sobre isso, também pode-se dizer do caráter interdisciplinar como sendo um dos
aspectos fundamentais que moldam o perfil do professor moderno. É preciso atenção ao
verdadeiro sentido de interdisciplinaridade no tocante que há riscos de confundir-se essa
perspectiva com a perda de autonomia ou inabilidade do professor frente a sua área de
conhecimento. Pois, conforme corrobora Demo (2004, p. 123): “o conhecimento não deixará
de ser uma especialidade, sobretudo quando profundo, sistemático, analítico, meticulosamente
reconstruído. Interdisciplinaridade não pode significar a acumulação de incompetências, mas
precisamente o contrário”.
A necessidade da abordagem das questões éticas é imprescindível na formação de um
professor. Isto se justifica nas considerações promulgadas pelas leis que orientam o ensino no
Brasil e também nas necessidades de reflexão diante de um mundo repleto de problemas e
situações conflitantes. “Idéias, reflexões e análises que ofereçam padrões do que é bom e do
que é ruim, do que é certo e do que é errado, à luz dos valores morais vigentes, estão se
tornando parte integrante da formação profissional nas áreas da biologia, saúde, ambiente
[...]” (AZEVEDO, 1998, p.128). Essa preocupação instala-se no discurso de quem convive e
percebe essa premissa atualmente, então a “Bioética deve ser trabalhada sim, dentro da
universidade, com alunos, com professores, em grupos de estudo, seminários, tudo que a
gente puder fazer para conceituar bem a Bioética” (LB). A intenção dos docentes envolvidos
nesta pesquisa não se restringe apenas à idéia de implementação da Bioética nos cursos
formativos.A discussão pertinente articula-se às viabilidades e adequações em se pretender
um trabalho integrado, que contemple a Bioética nas várias disciplinas do currículo formativo
ou, por outro lado, considera as implicações dessa abordagem numa disciplina específica.
Muitos defenderão o modelo de disciplina isolada, com espaço determinado pelo
currículo do curso e que explora os valores morais e as questões éticas, fundamentando-se na
visão filosófica do tema, como forma mais adequada de inserção da Bioética nos cursos
universitários. Outros tantos, julgarão desnecessária, ou até mesmo incoerente, a
especificidade de uma disciplina isolada de Bioética, visto que a própria forma desta vertente
da ética aplicada não se detém em nenhuma teoria ou conceito, pois cada caso é único,
necessitando ser estudado na sua especificidade, temporalidade e adequação, permitindo a
abertura às discussões. “Uma disciplina de bioética num curso de Biologia é redundante. Ela
tem que ser transversal e todos os professores devem falar nisso. É um envolvimento muito
maior que não é de um semestre, é de todos os semestres” (VL). Ainda sobre isso, é preciso
66
ressaltar sua face integradora e transversal e “não deixar de trabalhar a Bioética na
graduação em Ciências Biológicas, integrada nas outras disciplinas, até porque a Bioética
não é uma disciplina avulsa, ela envolve um todo” (LB).
A abordagem interdisciplinar, integrada a qualquer disciplina do currículo dos
licenciandos em Ciências e Biologia, é vislumbrada como uma situação possível e, de certa
forma, tão ou mais recomendável ou eficaz do que o seu isolamento, assim como consideram
alguns sujeitos entrevistados em seus relatos:
“Não preciso ter dentro do meu cronograma aulas de Bioética, na Genética, por
exemplo. Mas, eu tenho que conseguir que ao ensiná-los, ao facilitar o aprendizado deles na
área da genética, conduzi-los para que vejam como as questões dos sujeitos envolvidos com a
genética têm valor, tem importância” (CA).
“É importante abordar questões de Bioética durante as nossas aulas e chamar a
atenção para isso durante o desenvolvimento delas. Se houver uma disciplina de Bioética, ela
é inútil. Ela tem que ser transversal, ou seja, todos os professores devem falar nisso, pois é
um envolvimento muito maior, não é de um semestre, mas de todos os semestres” (VL).
“O professor que ensina Entomologia tem que ensinar quantas pernas o animal tem, a
estrutura do seu abdome, etc. Ele tem que ensinar a parte da Entomologia para que aquele
biólogo a conheça, mas se, ao mesmo tempo, ele conseguir ensinar isso ensinando uma
percepção de respeito àqueles animais da natureza, como seres da natureza tanto como
qualquer um de nós, aquilo fará com que aquele profissional, além de saber entomologia,
seja um melhor profissional” (CA).
“Se estas questões forem abordadas em outras disciplinas, o aluno terá a
oportunidade de pensar nisso durante oito semestres, uma vez que seja em cada semestre, é
muito mais significativo do que ele ter uma disciplina específica sobre isso” (VL).
A viabilidade de uma abordagem integrada, independentemente da área de
conhecimento, surge de forma sensível aos olhos dos educadores que se preocupam com a
eficácia dessa proposta e percebem no professor formador o principal aspecto de atenção.“É
importante que os professores que não trabalham a disciplina específica de bioética tragam
67
para dentro da sua aula questionamentos, idéias, de uma forma complementar a sua
disciplina” (AF).
Há, de certa forma, uma considerável parcela de responsabilidade advinda do trabalho
docente nos sucessos ou insucessos educacionais. Talvez esta afirmativa cause certo impacto
e discordâncias, mas ser professor exige também atitude e um constante assumir-se como
parte integrante e responsável pelo todo - uma responsabilidade que atinge dimensões maiores
do que a ação pedagógica imediata. Talvez, essa relação - responsabilidade e ação docente -
atinja o próprio ser do professor, que é um dos fatores determinantes à viabilidade das
discussões bioéticas.
Aqueles que buscam novas alternativas e reconhecem na interdisciplinaridade a
oportunidade de crescimento e aprendizagem, se destacam. Realizam-se na felicidade de
abrir-se ao novo e integrar-se a ele. Promovem, pois, o encontro com essa via de acesso às
aprendizagens, sobretudo a aprendizagem reflexiva e ética.
Percebe-se na fala dos entrevistados essa possibilidade, reconhecida como viável e
válida num contexto que abrange as questões éticas numa relação direta entre o licenciando e
o conhecimento pretendido: “Eu posso não ser professora de Língua Portuguesa e mesmo
assim não deixar passar algum erro de acentuação gráfica em alguma palavra; eu ajudo e
dou suporte para que o aluno organize um texto com lógica, com coerência e tudo o mais.
Não adianta ter uma aula de Português, e da mesma forma eu vejo, aligeiradamente
pensando, com a ética ou a bioética: diferentes pontos de vista, diferentes professores falando
sobre isso e agindo sobre isso, porque nem todos os professores enxergam assim a
possibilidade de abordar questões éticas, ou bioéticas, nas suas aulas” (VL).
Sobre essas expectativas, vislumbra-se a viabilidade desse trabalho integrado, que
requer unidade para sua eficácia. Talvez, a contínua implementação da abordagem bioética
produza maior riqueza no ensino e na aprendizagem dos conhecimentos. Por exemplo: “[...]
eu vou ensinar a genética, dentro da Genética Humana, a transgenia ou a clonagem, que são
assuntos da genética, de um ponto de vista técnico, mas também dos outros pontos de vista.
Quanto mais amplo eu conseguir passar esse aprendizado, melhores eles serão como
profissionais. Profissionais que futuramente vão trabalhar com Genética ou que serão
professores de Genética e ensinarão também para os seus alunos do ensino médio (CA).
68
Ou seja, ao longo de todo o curso, percebe-se que a abordagem bioética manifesta-se
de alguma forma e em algum momento, mesmo que implicitamente nas atividades propostas
ou nas vivências comuns a esse espaço. Esta é uma possibilidade que não tem a pretensão de
ser referenciada como única e eficaz, mas que privilegia a promoção da Bioética no cotidiano
da sala de aula, num tempo de necessidades axiológicas à formação profissional.
“A Bioética poderia ser inserida em todos os currículos com inserções pequenas, no
decorrer de todos os semestres. Em determinada aula, vai o professor de Bioética e trabalha
‘onde surgiu a Bioética’. Outro levanta um problema de bioética relacionado ao uso de
animais. Depois, em outro semestre, será explorado o tema Bioética e o uso de cadáveres. E
assim o professor vai incentivando o aluno a desenvolver o espírito crítico em problemas
conflitantes do cotidiano da profissão dele. E isso pode ser feito em qualquer curso. Então,
um processo. Duas ou três aulas, que o aluno vai entendendo, vai madurecendo. E, no último
semestre, há um fechamento com uma disciplina de Bioética, ministrada por um bioeticista, e
daí, com estudo de caso, de avaliação” (AF).
A compreensão de que, sendo a universidade o espaço propício às vivências,
experimentações e aprendizagens profissionais, todo o período do processo formativo e todas
as atividades promovidas, contribuirão para a construção daquilo que se pretende no exercício
da profissão. Há que se dizer do hábito da reflexão e da abertura ao debate ético,
imprescindíveis no âmago das ciências da vida e que, certamente, serão representativas nas
atividades desse profissional que se está formando. “Não necessitaria ter uma disciplina
específica de Bioética. Por exemplo, no terceiro nível, das 13hs às 15 horas, aula de Bioética,
e ali tu vais aprender Bioética. Não. O ideal seria que, durante os quatro anos em que o
aluno vem para a Faculdade, todos os professores tivessem uma visão ampla o suficiente e
que, ao terminar aquele curso, os alunos saíssem bons profissionais” (CA).
Porém, “nem todos os professores enxergam assim a possibilidade de abordar
questões éticas, ou bioéticas, nas suas aulas” (VL). Há também as idéias que contribuem para
a compreensão de uma outra perspectiva, divergente à anterior, e que argumentam sobre a
eficácia de um trabalho específico e isolado da abordagem bioética na formação de
professores. Sobre isto, “ter uma aula de Bioética das 14hs às 15hs, durante um semestre, já
será um benefício” (CA). Então, é importante considerar a legitimidade das percepções
mencionadas, posto que, para toda situação de conflito, deve-se priorizar a adequação e a
69
necessidade cabíveis, além da pré-disposição e atitude dos docentes envolvidos no processo
formativo. “Nesse sentido é bom [o aluno perceber] que tem muitos autores, pensadores, que
se preocupam com [a Bioética] de forma teórica [...] E que aquilo possa ser discutido, duas
horas por dia, durante um semestre. Isso algum benefício vai ter. Se os currículos de
Biologia, de formação de licenciandos em Biologia, tiverem pelo menos isso, algum sucesso
já estará garantido para que aquele profissional seja melhor. E para isso se espera que as
aulas sejam bem aproveitadas, e não somente para cumprir carga horária” (CA).
Assim como a Bioética direciona-se à busca de consensos e a adequação das reflexões
e decisões, esses argumentos privilegiam uma análise da viabilidade dessa forma de
abordagem específica das questões bioéticas. Sobretudo, há também nessas considerações
aspectos representativos da sistematização dos conteúdos estruturados no currículo formativo.
Então, um processo. Duas ou três aulas, que o aluno vai entendendo, vai madurecendo. E,
no último semestre, uma disciplina de Bioética, ministrada por um bioeticista” (AF).
Não cabe a esta discussão, tampouco é sua intenção, renegar ou menosprezar a
intencionalidade e a eficácia do trabalho desenvolvido pelas disciplinas de Bioética já
existentes em muitos cursos universitários. Reconhece-se nessa proposta o caráter integrador
e necessário aos desafios vivenciados pelas sociedades modernas. Isto posto, há na
especificidade de uma disciplina de Bioética, uma importante parcela de complementaridade
aos aspectos e abordagens do tema nas outras disciplinas. Contudo, as disciplinas de Bioéticas
já existentes em muitos cursos formativos são um excelente ensaio da crescente necessidade
de reflexão ética profissional e social.
O que precisaria ser permanentemente discutido, de um modo geral, são as
perspectivas de adequação da implementação da Bioética nesses cursos, considerando-se cada
contexto e necessidade. Contudo, outra prerrogativa, e não menos relevante, seria trazer à
baila uma especial atenção à formação docente, que pode configurar um fator determinante à
implementação da Bioética, direcionando as possíveis soluções a esse desafio.
Talvez as idéias ora apresentadas sejam convergentes com a reflexão e
intencionalidade de muitos leitores. Se isso acontece é porque são idéias que manifestam seu
caráter de viabilidade nos tempos atualmente vivenciados. Quão feliz aquele que percebe
compartilhar idéias sem pretender impô-las a outrem. Quão satisfeito aquele que percebe que
70
diverge de outras idéias, mas, valendo-se do poder da comunicação, pode argumentar e
compartilhar novas compreensões.
71
7 FORMADORES DE PROFESSORES DE CIÊNCIAS E BIOLOGIA: ANSEIOS E
RECEIOS NA ABORDAGEM BIOÉTICA
A relevância em se trabalhar a Bioética em um curso de formação de professores de
Ciências e Biologia é ponto indiscutível perante o crescente interesse da sociedade em
questionar sobre as ciências e os valores éticos envolvidos. Todavia, todo curso que forma
esses professores é composto por um quadro docente multidisciplinar abrangendo diferentes
áreas do conhecimento, cada um com suas concepções, metodologias e ideologias peculiares.
“Nem todo professor é um bioeticista” (AF), e também nem todo aluno de cursos de
graduação em Ciências e Biologia será um professor de Bioética. O que se espera, no entanto,
é que este seja um profissional atento às suas atitudes e à sua postura na relação ensino/
aprendizagem, não deixando de ser conhecedor dos princípios da Bioética e da importância
em transferi-los ao seu trabalho como professor. E isso implica conhecer outros aspectos
fundamentais da formação, não somente os conteúdos comumente trabalhados nas ciências. E
“O que seria um bom profissional? Aquele profissional que além de realizar a sua tarefa, da
atuação profissional, pensa em todos os outros aspectos, e respeita os outros aspectos do
outro” (CA). Nessa relação professor/ aluno, pode-se argumentar sobre a relevância dos
aspectos cognitivos, mas também, a formação pessoal, emocional e social do aluno.
Considerando-se essa relação, a vertente educacional da Bioética viabiliza essa
perspectiva de formação profissional estruturada na reflexão e na autonomia argumentativa.
Portanto, o que se pretende evidenciar aqui é a importância que o envolvimento com a
Bioética mantém e dispõe nestes cursos de formação. A busca por um ponto comum, na
formação de profissionais da educação, passa pelo conhecimento – e envolvimento durante as
aulas – de situações de aprendizagem que implicam questões éticas e bioéticas cotidianas,
que, provavelmente, todo professor vivenciará na sua prática pedagógica.
Sendo assim, a discussão sobre a possibilidade de trabalhar a Bioética de forma
isolada, ou integrada a outras disciplinas já existentes, se detém num viés não menos
importante e, por vezes, fundamental: é recomendável que os professores formadores tenham
na sua própria formação bases para discutir Bioética? Que perfil deve ter o professor que
72
ensina e forma professores de Ciências e Biologia? É possível, em dias tão complexos e
mutáveis, exigir-se um perfil específico e idealizado do professor que forma professores?
Percebe-se a imensurável importância do docente universitário envolvido nesse
processo de formação. Pode-se discutir sobre que capacidades ou habilidades melhor se
integram ao trabalho docente e em quais circunstâncias devem ser mais exploradas. Ademais,
o professor formador deve primar pela mobilização das mais diferentes competências pessoais
(aprender a ser), relacionais (aprender a conviver) e cognitivas (aprender a fazer) na busca da
formação integral do seu aluno (BASSO, 1999).
Somente assim a possibilidade de uma formação autônoma, crítica e cidadã será
efetiva, como corroboram Laranjeira et al. (1999, p. 23):
Os professores são profissionais cuja ação influi de modo significativo na
constituição da subjetividade de seus alunos como pessoas e como cidadãos. Para
isso, precisam compreender os contextos sociais e as questões contemporâneas nos
quais eles e seus alunos estão envolvidos.
Esse envolvimento do docente que forma professores de Ciências e Biologia não se
limita ao conhecimento dos princípios da Bioética ou à exímia atuação profissional na área
em que ministra suas aulas, mas se estrutura numa relação de conhecer e reconhecer o seu
papel de mediador e orientador na formação de indivíduos inseridos numa pluralidade de
valores, história e vivências. Segundo Basso (2006, p. 100) “o professor não é mais o
depositário da verdade e de todas as certezas, a principal fonte de informação, mas continua
sendo uma referência axiológica, quando não destrói, seus modelos de vivência de valores”.
As competências elencadas ao professor de um curso de graduação podem ir além
daquelas determinadas por suas disciplinas específicas. Ao abordar um tema transversal e
interdisciplinar como a Bioética, nas diferentes áreas do conhecimento, ocorre
simultaneamente o trabalho de desenvolvimento de habilidades relacionadas à reflexão, à
argumentação, às escolhas e às decisões, que implicam valores importantes ao processo
educativo. Sendo assim, o professor aqui focalizado, ou seja, aquele que está diretamente
envolvido na formação de outros professores, precisa adentrar neste âmbito da discussão ética
com coerência entre suas teorias e sua prática e, sobretudo, estabelecendo uma relação de
respeito mútuo com o todo envolvido nesse processo.
73
Esta não é uma idéia unânime. Muitos são os professores formadores que preferem
manter-se alheios a essa dimensão e se deterem exclusivamente em suas aulas há muito
preparadas. Alguns aspectos colaboram para isso e é possível que sobre eles possa existir um
ponto de reflexão e entendimento.
Isso ficou evidenciado em colocações feitas por alguns sujeitos da pesquisa que
apontaram receio em “liberar” ou propugnar a Bioética como matéria interdisciplinar a ser
trabalhada por qualquer professor. Entre os aspectos citados, há indicação sobre o pouco
conhecimento que os professores geralmente têm sobre o que é bioética, por vezes
confundindo ética e bioética.
“Acho que muitos professores precisam também trabalhar a Bioética, porque é um
conceito novo. Claro que cada um tem a sua ética, mas, tem muitos professores que
precisavam se dar conta da importância que eles têm na formação das pessoas” (LB).Talvez
o receio de trabalhar essas questões, ou de envolver-se mais nesse tema, encontre neste
aspecto o entrave que dificulta o fazer pedagógico desses professores, pautado numa ação
mais pragmática na discussão dos princípios e questões bioéticas nas suas aulas, considerado
por muitos um tema extremamente delicado e conflitante e, portanto, impensável nesse
contexto.
Outra referência importante apontada nas entrevistas sugere que o cerne do problema
talvez se concentre na estruturação do “perfil” do professor envolvido nesses processos
formativos. O professor de Biologia, de uma maneira ampla, assim como o professor de
qualquer área de conhecimento, deveria agir pensando em todas as considerações, todas as
dimensões importantes que integram a formação do indivíduo. Sobre isso nota-se que, “se o
professor não entende, não internaliza o que é a bioética, a tendência dele é passar valores e
argumentos que vão defender a sua idéia para o seu aluno. Então, ele está “fazendo a cabeça
do seu aluno”, não levando o aluno a pensar de uma forma crítica, para que ele possa, numa
idade adequada, ter a sua própria opinião. Então isso é muito perigoso. Vai formar opinião
de uma forma impositiva” (AF).
Isso está diretamente relacionado ao propósito que se espera de todo educador e que
atualmente é apontado como um dos grandes desafios da educação: uma formação humana
74
contextualizada tanto na individualidade como na pluralidade cultural, histórica e ética de
cada ser em formação.
Certamente esta não é uma tarefa fácil. Rever os próprios princípios, “reavaliar” os
valores a fim de transformar a própria prática, promove no professor um processo de reflexão
e autotransformação necessárias quando se pretende ser um mediador desse tema nas
disciplinas específicas de qualquer linha do conhecimento. A palavra reflexão vem do verbo
latino reflectere, que significa “voltar atrás”, ou seja, no âmbito da formação de professores,
refere-se ao repensar, retomar continuamente os caminhos já percorridos, reexaminando a
própria prática na busca de significados. Como afirma Basso (1999, p. 114):
Para quem tenta romper com um círculo de posturas cristalizadas e respostas que,
na maioria das vezes, vêm prontas, acabadas, a primeira sensação e de desconforto
[...] repensar a prática docente universitária é um dos fatores de extrema relevância
para vencer os desafios impostos.
Esse processo é delicado e importante, mas há de se reconhecer que só torna-se efetivo
se o professor estiver disposto a rever e transformar também a sua postura e as suas atitudes
num limiar de atenção aos princípios propostos pela Bioética. “Talvez a idéia do que é
bioética, tão falada atualmente e tão pouco compreendida, isso sim deva mudar na formação
de um professor, para que o professor saia sabendo que ele pode não ser o conhecimento
maior em determinada área que ele assumiu a responsabilidade de ministrar para os seus
alunos, mas os alunos podem e certamente vão, ensiná-lo muitas coisas” (AF).
Assim como na Bioética não existem certezas absolutas tampouco situações que
possam ser julgadas como certas ou erradas eticamente, mas discutíveis sobre a sua
adequação, durante a sua formação, o aluno, futuro professor, precisa estabelecer uma relação
dialética entre o conhecer e transformar o conhecimento. Estruturar uma consciência de
responsabilidade com o outro e consigo mesmo pautada numa ação valorativa e de abertura às
novas aprendizagens.
A busca constante pela desmistificação do professor autoritário, detentor do
conhecimento e do poder como centro eficaz do processo educacional, é urgente. “A idéia de
‘eu não sou o dono da verdade porque eu tenho um diploma embaixo do braço; eu sou
professor e vocês são alunos’, isso a Bioética ensina” (AF). Aspectos como este
75
freqüentemente surgem na relação ensino/ aprendizagem e muitas vezes contribuem
negativamente para a eficácia das propostas curriculares que são boas, porém rejeitadas por
práticas impensadas. E a permanente atenção aos valores éticos privilegia a essência dessa
intenção, pois ensina a refletir e distinguir o que deve ser feito do que pode ser feito
(OLIVEIRA, 1997).
O problema muitas vezes vai além do não conhecer ou não compreender a Bioética e
acaba se relacionando essencialmente na falta de disponibilidade do professor ao “abrir-se” à
reestruturação, à transformação necessária. “Há pessoas que tem a cabeça aberta, e há
pessoas que continuam achando que são certas e que o resto é que está errado. Pode ser
excelente profissional, de renome internacional na sua área específica, mas no instante em
que tem que abrir um pouco mais a cabeça, não consegue. Isso acontece muito, não só na
formação do professor” (AF).
Infelizmente, evidencia-se isso nos dias atuais na maioria dos cursos de formação.
“Professores já formados têm essa dificuldade, porque às vezes tem que abrir mão de idéias
prévias, pré-estabelecidas, e isso é muito complicado. Por isso tem que ter um perfil. Então,
esses professores jamais serão professores de Bioética” (AF).
O receio de alguns entrevistados em “liberar” para todos os professores a
responsabilidade de trabalhar a Bioética fica evidenciado quando estes argumentam sobre o
eventual afastamento do objetivo do educar para a reflexão, para a argumentação, para a
valorização individual do aluno. Isto é apontado como decorrente da dificuldade ou da
resistência do professor em reestruturar sua metodologia. “A maior parte dos professores hoje
tenta mudar seus métodos, mas no fundo é o mesmo princípio de achar que está passando
conteúdo para o aluno, não deixa o aluno participar do processo” (RM).
O medo ou receio desses entrevistados fundamenta-se no eventual risco desses
professores imporem as suas próprias idéias, neutralizando as dos seus alunos. “Na própria
universidade muitos professores ainda pedem que seus alunos digam o que eles querem e não
o que seus alunos querem dizer, o que os alunos pensam, o que eles gostam, desde que bem
fundamentada” (AF). Ainda sobre isto, “uma educação democrática exige relações de
respeito mútuo, preocupação com a justiça, diálogo, possibilidade de questionamento e
argumentação” (LARANJEIRA, 1999, p. 23).
76
A fundamentação de uma educação direcionada para a argumentação, o debate e à
possibilidade de abertura a novas idéias, baseia-se numa relação de respeito ao ser e a
autonomia do outro. Isto confere aos formadores de professores de Ciências e Biologia, a
essência para adentrar a esfera da discussão bioética.
A massificação das atividades profissionais e a crescente necessidade de treinamento
de um maior contingente de pessoas reduzidas a “número”, num quadro de exigências por
mão-de-obra qualificada tecnicamente, tende a direcionar a educação ao descrédito das
capacidades individuais e na importância significativa da emoção em qualquer área do
conhecimento ou do trabalho. E, os professores às vezes convergem a essa massificação do
conhecimento e em detrimento a isso, manifestam imperceptivelmente suas descrenças no
poder de transformação que lhes são viáveis. “Todos os professores do curso de formação
deveriam, pelo menos, ter uma procura de algo comum, que é essa idéia do que é esse
professor que queremos formar. Mas a maioria não está preocupada com isso” (RM).
O trabalho desenvolvido na sala de aula fundamentado na aprendizagem do “valor”
dos valores, num contexto que prioriza o aluno, educando-o para a argumentação e para a
participação, permite o engajamento do professor numa árdua busca pela relatividade do ser
em sua concepção humana e emocional.
Nesse sentido, educar deve ter um fundamento, uma razão, algo que justifique a
ação que pretende transformar o ser humano naquilo que deveria ser, se realizasse o
fim definido pela sua natureza. Nesse contexto, entender qual a essência dessa
natureza, qual a relação com o universo, com os outros e consigo mesmo passa a
ser o objeto das primeiras reflexões sobre a formação humana (HERMANN, 2001,
p.21).
Dentre as dimensões axiológicas mais pertinentes, e considerando-se a importância de
uma formação ética pautada em valores, Masetto (2002, p. 15) aponta talvez para a mais
relevante e carecedora de atenção no processo educativo:
Encontramo-nos, aqui, no aspecto mais delicado da aprendizagem de um
profissional. É seu coração, em geral, o menos trabalhado pela universidade. Seu
coração porque, enquanto esse aspecto não for trabalhado, modificações
significativas de aprendizagem também não acontecerão.
77
Esta afirmação remete ao entendimento de que enquanto não houver uma atenção
especial ao “ser” na formação educacional e a prioridade desses processos continuar sendo o
“fazer”, muito será perdido das potencialidades e capacidades dos alunos. Uma formação
plena, efetiva em todas as dimensões esperadas para um bom profissional, só será possível
quando direcionar-se a devida atenção à formação integral da pessoa humana. Contudo, isso
deverá perpassar o interesse atual de muitos centros educacionais que pretendem o
massificante treinamento de um maior número de indivíduos a privilegiar as aprendizagens
humanas. Como resultado, tem-se uma educação preocupada em encher “copos” vazios (os
alunos) com o líquido do conhecimento (os conteúdos), sem considerar nesses indivíduos suas
capacidades, desejos e emoções.
Certamente a educação será eficaz quando não se condicionar exclusivamente à
formação conteudista. E essa preocupação recai, todavia, sobre o professor. Contudo, a
proposta precisa advir da intenção de ensinar e proporcionar ao aluno vivências, desafios e,
principalmente, momentos para conscientização da sua importância como ser integrante de
um todo. Falar em educação sob esta ótica implica considerar as propriedades emocionais
envolvidas nesse processo. É emergente a idéia de tratar o aluno na sua complexidade e
racionalidade como ser que necessita trabalhar a cognição, mas que exige atenção aos
aspectos emocionais.
Podemos incentivar o desenvolvimento dos alunos e a expressão de suas
potencialidades, proporcionando um clima favorável para que cresçam
individualmente e em grupo, colaborativamente, sem impor-lhes nossos próprios
padrões. Para isso, a educação deve abranger a pessoa inteira - a razão, a
imaginação, a vontade, o corpo, os sentimentos. Mas como isso tem se manifestado
na educação de professores? Essas questões têm sido consideradas? (BORGES,
2000, p. 37).
Ademais, isto se refere à realidade de muitos cursos de graduação que, por vezes,
preocupam-se demasiadamente com a formação técnica do indivíduo, uma crescente
exigência do mercado de trabalho. Porém, o envolvimento dos docentes formadores pode ser
determinante nessa transformação, quando há, na ação pedagógica, a preocupação em
trabalhar todos os aspectos que integram o ser. E isso requer desse professor mais do que
conhecimentos científicos, pressupõe vontade e interesse em investir numa educação
reflexiva, cooperativa e afetiva.
78
Sob essa premissa de cuidados e atenção às emoções do licenciando, convém evitar
um "currículo nulo", nas licenciaturas, em relação ao envolvimento afetivo e às emoções, à
consideração das experiências de vida dos alunos e em relação ao próprio corpo, incluindo
expressão, prazer, movimento e libertação (Moreira, 1992; Borges, 2000).
“A possibilidade de trabalhar a Bioética parte da consciência do sentido que possa
ter esse trabalho. Na medida em que as pessoas não conseguirem perceber o que pode
significar isto, ou seja, na medida em que elas não perceberem a historicidade delas, as
dimensões sociais, existenciais, psicológicas, etc, na medida em que elas continuarem com
aquela hierarquia perversa entre razão e emoção, onde a razão tem que violentar a emoção
para ser razão, se isso continuar acontecendo, então não há possibilidade nenhuma de
trabalhar a ética ou a bioética de uma forma adequada” (RT).
Os conflitos sempre existirão e serão importantes para a confirmação dos princípios
que regem a Bioética e a busca do bem ao maior número de envolvidos. Porém, o julgamento
moral e a criticidade ética priorizarão sempre especial atenção à propriedade emocional que
impulsiona as decisões.
Cabe nestas considerações, a perspectiva de concessão do espaço para debates,
discussões e troca de idéias. Para tanto, é efetiva a disposição do professor que forma esses
alunos, ao integrar-se a esse processo. Na formação do futuro professor, é esse o momento de
vivenciar e experimentar. Conhecer os conteúdos que são abordados em Ciências e Biologia
pode ser proporcionado por leituras de textos ou livros didáticos; saber conduzir suas aulas e
ministrar os conteúdos da forma mais adequada à aprendizagem efetiva e à formação integral
do aluno são pontos fundamentais e que não podem ser ensinados, tampouco aprendidos em
aulas expositivas num curso. O que há, são os momentos propiciados durante o período de
formação, quando as vivências das mais variadas situações e sensações acontecem.
Promover uma formação articulada depende, em grande parte, da disponibilidade e
aceitação do docente formador em reconhecer que esse é um tempo de experiências,
mudanças constantes, apreciação do novo e reconstruções do conhecimento, e, sendo assim,
não comporta a fragmentação de conteúdos ou o seu isolamento dos interesses e conceitos
prévios do formando.
79
Há grande responsabilidade do futuro professor em reconhecer-se como ponto
fundamental de conexão entre o seu aluno e o conhecimento pretendido. E é no espaço escolar
que este aspecto é efetivado:
Sendo a escola um espaço sistematizado de apropriação e reconstrução do
conhecimento, o professor desempenha um papel fundamental como liderança da
comunidade argumentativa que se estabelece em sala de aula na medida em que
seleciona, propõe e desenvolve atividades com os alunos, as quais precisam ser
concernentes com as motivações dos alunos, suas necessidades e possibilidades de
aprendizagem (MORAES, et al. 2004, p. 91).
Talvez o despreparo do professor para enfrentar situações adversas, tanto o despreparo
relacionado a sua formação como o fato de não estar preparado para enfrentar o novo, o
inusitado, contribuam para esse afastamento do trabalho que prioriza a discussão ética em
tempos de tanta necessidade de ressignificação dos valores morais. Quando o professor
prefere abdicar de seu direito de argumentação ou, de certa forma, não demonstra interesse
em intensificar uma discussão, considerando-a inviável, há nisso uma face de desistência que
não condiz com a intenção esperada do profissional da educação. Isso culmina com os receios
percebidos no discurso de muitos professores universitários em trabalhar com questões que
pouco dominam ou que consideram incompatíveis com os conteúdos específicos. Não
vislumbram, pois, a riqueza de possibilidades que há sob a abordagem de temas
interdisciplinares e compatíveis com as necessidades atuais.
“Existem muitos professores que não têm a vivência da Bioética... Tem muitos
professores que não passaram por isso e que não procuraram também” (LB). E essa
preocupação acaba semeando dúvidas sobre a verdadeira condição de trabalho de muitos
professores. A discussão acaba permeando o âmbito do despreparo quando são considerados
professores das mais variadas disciplinas num mesmo curso formativo. Docentes com
concepções e convicções próprias que muitas vezes não têm a intenção em atualizar-se.
Portanto, para fins de argumentação e reflexão, cabe aqui relatar uma experiência que
assemelha-se com a preocupação de alguns aspectos anteriormente discutidos neste capítulo e
que, após a sua realização, contribuiu para amenizar os problemas, as dúvidas e os receios que
os professores participantes encontravam em trabalhar a Bioética.
80
A partir de uma iniciativa euro-americana, desenvolveu-se o Curso Internacional de
Bioética, que recebeu o nome de FLAD – NSF International Bioethics Institute (FNIBI). Este
curso adaptou e trouxe a um nível internacional um modelo que fora aplicado com sucesso
nos Estados Unidos durante vários anos, na forma dos National Bioethics Institutes. Desde
1991 e durante dez anos, estes cursos tiveram lugar em várias das principais universidades
americanas, dando formação ética a mais de 400 docentes das ciências naturais e da vida. Na
sua essência, o FNIBI constituiu-se numa série de seminários intensivos que visou
especificamente apoiar docentes universitários das mais diversas áreas das ciências da vida,
selecionados em função, principalmente, do seu interesse em incorporar a Bioética nas suas
aulas independentemente da disciplina. “Foi concebido para transmitir conhecimentos e
capacidades em ética a docentes europeus e americanos, por forma a torná-los aptos a abordar
temas de bioética nas suas atividades letivas de graduação ou pós-graduação” (COMSTOCK
e ROSA, 2004, p. 25). Os participantes tinham, como trabalho prévio, a leitura de textos
introdutórios à ética. Em cada seminário participavam de sessões específicas sobre teoria
ética, estratégias pedagógicas, relação entre a ética e o ambiente, a biodiversidade, os
animais... Os participantes tinham também a tarefa de produzir recursos pedagógicos em
grupos de trabalho internacionais, como elaboração de estudos de caso e similares para a
introdução das discussões bioéticas na sala de aula (COMSTOCK e ROSA, 2004). É claro
que este exemplo baseia-se numa experiência internacional, sendo, eventualmente, o único
curso do gênero que preocupou-se com a incorporação das questões bioéticas nos currículos
pré-existentes, investindo para tanto na formação dos professores. Pois “são os professores e
investigadores universitários que têm crédito e influência junto dos estudantes, e são eles que
detêm o poder de abordar e discutir questões éticas em nível de estudos de graduação ou de
pós-graduação” (COMSTOCK e ROSA, 2004, p. 27).
Observa-se, neste relato, que a preocupação era atingir, através de um curso
estruturado e participativo, a formação docente dos professores envolvidos nos processos
formativos, oportunizando-lhes materiais e viabilidades de desenvolverem na prática, as
formas mais adequadas de introduzir a Bioética nas suas aulas. Comstock e Rosa (2004, p. 26)
esclarecem em seu relato que:
O objetivo não era necessariamente fomentar a criação de disciplinas de bioética. O
objetivo era, sobretudo formar, estimular e motivar os participantes no sentido de
virem a fazer alterações substanciais nos conteúdos e abordagens de disciplinas pré-
existentes, o que pode mesmo encontrar complementos e sinergias com eventuais
disciplinas específicas de bioética.
81
Este exemplo é importante para validar o sentido destas argumentações que
pressentem a necessidade urgente de incentivo e qualificação dos docentes formadores em
vislumbrar outros meios de introduzir a bioética em suas aulas ou continuarem seus trabalhos
implementando novas idéias. A intenção deste curso, embora estruturado nas expectativas e
problemas vivenciados por professores europeus e norte-americanos, traz à baila a reflexão
sobre a importância em investir-se na discussão e na formação bioética noutros enfoques,
destituindo dessa ética aplicada uma concepção restrita à área biomédica. Além disso, essa
experiência aponta outro aspecto: a relevância e a consideração que outros países denotam
para a relação entre Educação e Bioética.
Percebe-se que os anseios e os receios em abrir o espaço da sala de aula,
contemplando a discussão ética, não é uma preocupação exclusivamente da educação nacional
brasileira. A experiência relatada sugere uma alternativa que procurou amenizar os problemas
daqueles professores em implementar a Bioética nas suas práticas de aula. Sobretudo, a
essência dessa sugestão é possível e viável dentro das expectativas e do contexto vivenciado
pelos professores das universidades nacionais.
Felizmente, apesar dos medos e das angústias existentes, há vontade e disposição em
mergulhar numa ação pedagógica que se submete à discussão e à inovação, transpondo os
antigos conceitos de aprendizagem centrados no conhecimento e no autoritarismo do
professor.
82
8 ATITUDE: PRINCÍPIO NECESSÁRIO AO ENVOLVIMENTO COM A BIOÉTICA
Dissertar sobre qualquer assunto conflitante exige reflexão e posicionamento naquilo
que se pretende defender. Argumentar sobre a adequação da postura do professor quando
inicia sua vida profissional, ou mesmo quando já vivencia anos de trabalho, enfatizando-se
aquele que pretende abordar a Bioética nas suas aulas, requer especial atenção às propostas
pedagógicas que defende e qual sua atitude em relação a isto. Sobretudo, a pretensão não é
discutir como se estrutura a formação de um professor de bioética ou de um bioeticista, mas,
quais perspectivas são fundamentais para que qualquer professor, independentemente da área
de conhecimento, consiga abordar e envolver-se com as questões bioéticas na sua aula.
Alguns aspectos emergem como possíveis vias de acesso a essa perspectiva, de maneira que
denotam importantes observações na tentativa de vislumbrar um horizonte viável de
implementação: atitude reflexiva e transformadora, abertura ao diálogo, coerência entre a
prática e as teorias que defende e a valorização do aluno, surgem como alguns dos aspectos
considerados essenciais a essa possibilidade.
Percebe-se a partir da fala de alguns sujeitos, que no contexto escolar e universitário,
há por vezes uma contradição entre o pretenso discurso de muitos professores e a sua efetiva
ação, o que por fim, impossibilita qualquer tentativa de uma educação reflexiva e adequada.
Infelizmente, eu diria que todos os nossos alunos vivenciam uma escola que é muito
autoritária no sentido de não deixar que os alunos participem na discussão das questões [...]
somente algumas são as disciplinas que tratam o aluno como deve ser, com mais respeito,
que deixam o aluno falar, opinar. Ao praticar isto, essa abertura do espaço necessário às
discussões, é que entendo que se está propiciando espaços para aprendizagem e prática da
ética” (RM).
Essa reflexão reitera a necessidade primordial de que o desempenho do professor,
principalmente o docente envolvido na formação de professores de Ciências e Biologia, diante
dos desafios da sociedade moderna, alinhave suas intenções pedagógicas sob premissas de um
ensino voltado tanto para o conhecimento quanto para a educação, e que propicie espaços para
isso. Sobretudo, que o professor construa um perfil de comprometimento com o aluno e que
garanta a este a oportunidade de aprender. Conforme Demo (2004, p.120), “é fundamental
superar a marca histórica do professor como alguém capacitado em dar aulas”. Ou seja, ser
83
professor, principalmente para os dias atuais, representa saber fazer o aluno aprender. As
aprendizagens adequadas e efetivamente válidas estruturam-se no esforço reconstrutivo do
aluno com a orientação do professor, sendo considerado para tanto, uma forma de aprender
contextualizada e de interesse cognitivo, social e emocional (DEMO, 2004).
Há que se conferir à educação sua eminente preocupação em acompanhar esse quadro
atual. Entretanto, as propostas observadas e discutidas atualmente constituem-se por vezes,
em demasiada pretensão; projetam modelos vindouros e eficientes que vislumbram à
educação possibilidades idealistas. Em muitos aspectos pecam na inadequação ao contexto
social e histórico ao qual se aplicam, nos quais deveria ser revisto avaliando-se, por exemplo,
as organizações internacionais que financiam reformas na educação brasileira. Numa dura
crítica à legislação da educação nacional, Lombardi (2004) enfatiza:
Mudaram-se as roupagens, mas prevalece a lógica do mercado em relação à
educação [...] sob a argumentação mistificada de que as transformações econômicas
estão exigindo um outro perfil de trabalhador, apenas houve a recuperação da
concepção tecnicista de educação: o conhecimento é investimento (capital), e deve-
se exigir da educação a adequação a esses “novos” parâmetros (LOMBARDI, 2004,
p. 35).
Sobre isso, mais uma vez, emerge a preocupação inerente ao papel do professor na
visão contemporânea de educação. Surge também a preocupação quanto ao destino dessa
instituição; discute-se o que realmente pretende a escola (escola e universidade) na tentativa
de resgatar o seu sentido essencial.
A representatividade do professor e a revisão das suas ações talvez possam interferir e
serem determinantes nesse processo. Em torno disso surgem algumas questões: todos os
professores preocupam-se com a emergente necessidade de (re)ver conceitos e (re)pensar a
própria prática? E, sobre as perspectivas de um trabalho direcionado à abertura ao diálogo e
ao debate ético, convém afirmar que as possibilidades de implementação dessa idéia são
percebidas por todos? Será, pois, utopia ou uma possibilidade nos contextos atuais?
A partir dessas considerações, resgata-se a idéia do professor como elemento crucial
na preparação dos indivíduos (DELORS, 2001), sendo ele o responsável pela criação das
oportunidades de aprendizagem. O professor é um importante articulador do processo de
ensino e aprendizagem e cabe a ele o julgamento e as decisões sobre a adequação e o
84
direcionamento das suas aulas. Para a promoção desse processo, e antes mesmo dele, é
imprescindível a reflexão, vista como elemento capaz de estabelecer relação entre o que se faz
e o que se pretende fazer. A adequação desses e de outros aspectos, sugerem que as práticas
pedagógicas destinem especial atenção às atitudes do professor em relação a sua aula e aos
seus alunos, nos processos formativos.
Analisar os vários desafios considerando-os únicos, contextualizados e ao mesmo
tempo pluridimensionais em valores e interesses, na tentativa de suscitar um consenso sobre
as decisões a serem tomadas, analisando suas adequações, é certamente, a grande preocupação
da Bioética. Pautado nisto pode-se dizer que é possível sim discutir sobre Bioética e,
principalmente, no âmago da educação, é eficaz e contribui para o debate reconstrutivo e
resgate dos valores. A idéia de atenção às diferenças, às individualidades e aos contextos,
reiterando-se que a Bioética não é impositora, mas consensual, possibilita e enriquece
grandemente o ensino das ciências da vida. Principalmente e, sobretudo, na idéia central deste
artigo, identificar nos conteúdos programáticos os desafios passíveis de debate e reflexão, são
exemplos de situações de aprendizagem possibilitadas pela discussão bioética e que
concordam com a atitude esperada daquele professor que articula-se nessa busca. O exercício
da argumentação promovido pelo debate ético contribui para a formação humana do indivíduo
que se percebe parte de um meio diversificado e pluralista, e isto, de certa forma qualifica
quem participa desse processo.
O professor, tanto o professor da educação básica quanto o docente universitário,
talvez encontre na perspectiva de abordar a Bioética, alguns entraves que possam estar
relacionados a essas premissas. Reconhecer que a Bioética não se constitui em simples
disciplina curricular, mas é vista como uma atitude, representa o ponto central e crucial para
as compreensões sobre essa reflexão. Por outro lado, talvez esteja internalizada em muitos
professores, uma resignação característica daqueles que se cercam de medos e receios em
refletir sobre a própria ação docente. E esta não deixa de ser uma atitude, afinal discutir o
significado semântico da palavra não é o objetivo desta investigação, mas o sentido e a
interpretação a ela atribuídos definem a sua aplicação.
O sentido que se pretende é da atitude em relação ao fazer; ter atitude é assumir-se,
comprometer-se, posicionar-se e, a Bioética, privilegia o comprometimento, o posicionamento
dos envolvidos na busca do consenso. Ela considera cada situação como única e procura para
85
tanto, a adequação dos julgamentos. Ter esse tipo de atitude, requer uma ação dialética que
não se aprende e tampouco é ensinada de forma estanque nas disciplinas dos cursos de
formação, mas, sobretudo, é construída durante todo o processo e consolidada na pré-
disposição do professor responsável em qualificar a sua ação pedagógica e, em parte, do
aluno, responsável por reconstruir suas próprias concepções, percebendo o momento que lhe
foi disponibilizado.
De certa forma isso implica um constante “ir e vir” do professor. Na medida em que
avança nessa perspectiva de trabalho, também é importante um tempo de parada, não de
estagnação. Mas, um momento de reflexão, na intenção de um “olhar para trás” que analisa o
que vê, e que contribui ao examinar o rumo que se pretende dar ao fazer pedagógico.
Subjacente a isto, reitera-se também a busca contínua pela ressignificação dos conteúdos de
ensino e os fazeres pedagógicos como uma tentativa de aprimorar e satisfazer os objetivos
educacionais do processo formativo.“Todos os professores do curso de formação deveriam,
pelo menos, ter uma procura de algo comum, que é essa idéia do que é esse professor que
queremos formar (em qualquer disciplina). Mas a maioria não está preocupada com isso”
(RM).
Se essa preocupação fosse um consenso, e todos os envolvidos no processo
objetivassem algo comum, talvez os problemas fossem menores e pontuais. Não haveria
necessidade de, ainda hoje, investir-se em tantas pesquisas e debates sobre o melhoramento ou
a criação de métodos que viabilizem o sucesso escolar.
Há aqueles que tentam incorporar nas suas atividades disciplinares novas formas de
trabalho e de discussão dos temas. Mas, o que percebe são boas intenções e só. “A maior
parte dos professores hoje tentam mudar seus métodos, mas no fundo é o mesmo princípio de
achar que está passando conteúdo para o aluno, não deixa o aluno participar do processo”
(RM).
Por isso, vendo-se a atitude como “ponte” para a transformação, é pertinente discutir a
sua atuação e eficácia nos processos formativos. Abdicar das arcaicas formas de ensinar e
“transmitir” conteúdos, livrando-se da máscara que esconde o detentor do poder e do saber
absolutos, seriam formas atitudinais de rever e reconhecer no professor os seus verdadeiros
propósitos. No entanto, o que se observa em muitas realidades de cursos formativos, é uma
86
insistente abdicação a esses propósitos, o que causa desconforto nos alunos e insatisfação
sobre os objetivos educacionais. “Na própria universidade muitos professores ainda pedem
que seus alunos digam o que eles querem e não o que seus alunos querem dizer, o que os
alunos pensam, o que eles gostam [...]” (AF).
Essa nova visão de professor delineia-se numa perspectiva de autonomia,
interdisciplinaridade e rompimento com as tradicionais visões de superioridade e imposição
do conhecimento que fazem uso de medidas ameaçadoras e punitivas. “Não é porque são
professores que estão acima do código de ética, acima da lei. E essa é a idéia: que se crie um
ambiente saudável com regras, condutas, mas que se possa trabalhar tanto em relação às
pessoas quanto ao conteúdo que se trabalha” (EJ). E isto precisa ser revisto.
Quando o professor é um pouco mais aberto, ele se destaca. Por quê? Porque aquele
professor é legal, ele me ouviu [...] (AF). Há que se considerar as tentativas desenvolvimento
de um trabalho pautado no respeito e na valorização do outro.Pode-se ainda argüir que essas
tentativas se estruturam basicamente na intenção de resgate dos valores. “Não existe o curso
perfeito nem todas as matérias maravilhosas, e nem todos os professores são fantásticos. Mas
existe um respeito ao outro, que nesse momento é aluno, amanhã é colega” (AF).
Considerando-se esses aspectos, a proposta de um ensino que privilegia a formação
integral do indivíduo, pois não se preocupa somente em atender um número de conteúdos
programados ou condiciona pessoas à “números”, visivelmente é contemplada como algo
diferenciado e eficaz nas suas possibilidades. Entretanto, falar em propostas exige refletir
sobre o perfil de quem as elabora e se dispõe.
Demo (2004, p. 120) destaca uma importante perspectiva sobre o perfil do professor
moderno:
O professor precisa ser um formulador de proposta própria, ou seja, precisa saber
elaborar com autonomia [...] detém a competência humana de sujeito histórico
capaz de história própria [...] a elaboração própria é condição essencial da inovação
própria, porquanto somente se muda o que se elabora .
87
Acabam por vezes atrapalhando o desenvolvimento dos seus alunos e, normalmente,
são relutantes em considerar que o diploma que possuem serve como amparo às suas
deformações - não formações pedagógicas.
“Há pessoas que tem a cabeça aberta, e há pessoas que continuam achando que são
certas e que o resto é que está errado. Pode ser um excelente profissional, de renome
internacional na sua área específica, mas no instante em que precisa abrir um pouco mais a
cabeça, não consegue. Isso acontece muito, não só na formação do professor. Professores já
formados têm essa dificuldade, porque às vezes tem que abrir mão de idéias prévias,
preestabelecidas, e isso é muito complicado” (AF).
Com intenções de transformação e de reflexão sobre a validade e adequação do
processo, configura-se em ponto de partida ao debate educacional, principalmente, no que se
espera dos cursos que formam professores de Ciências e Biologia. Afirmar que a mudança de
atitude seja a única condição importante por quem assume o trabalho nesta área, mostra-se
demasiadamente astucioso, pois outros aspectos estão envolvidos, mesmo que implicitamente.
Só haverá necessidade de “mudança” se no âmbito das perspectivas houver notadamente essa
percepção. “Ainda tem muitos profissionais biólogos que não possuem a reflexão ética dentro
da sua profissão. E muitas vezes esses profissionais são professores de quem vai ser
professor. Ele gera alunos que também não pensam desse jeito. E isso é uma lástima” (CA).
Analisando-se sobre este aspecto, esta é uma prerrogativa que causa certa inquietação.
Perceber que ainda existem professores formadores que, infelizmente, não corroboram com as
condições mínimas de atenção e respeito à formação integral do aluno. Ou seja, “tem muitos
professores que precisam se dar conta da importância que eles têm na formação das
pessoas” (LB). O que, em detrimento ao trabalho com as questões bioéticas, seria essencial.
Mas o problema torna-se maior quando se percebe que esses professores, além de não
possuírem características importantes a quem pretende trabalhar nessa abordagem, não são
motivados por qualquer outra perspectiva que contribua com o êxito educacional. Não
aprimoram valores como o respeito, a responsabilidade, a coerência, a disciplina, a
democracia, a eqüidade... Valores que precisam ser urgentemente resgatados. E, isto é
possibilitado no contexto e pelo contexto escolar.
88
“Que o professor volte a ser um orientador, não aquela pessoa que só ministra uma
aula e que impõe porque é superior” (AF). O professor que consegue assumir-se e
administrar seus atos é, por essência, competente. Numa primeira esfera de entendimento,
todos possuem habilidades e capacidades para desenvolver competências e saberes.
Antunes (2001), lista algumas dessas competências que se pretendem nos professores
e que conduzem e estimulam o desenvolvimento das competências dos alunos. Algumas
dessas competências são: organizar e dirigir situações de aprendizagem, trabalhando a partir
das representações dos alunos e/ ou a partir dos erros e dos obstáculos da aprendizagem; fazer
permanente balanço de competências e tomar decisões de progressão, avaliando o progresso
das suas aulas periodicamente observando os anseios de cada passo; vivenciar e superar os
conflitos éticos e administrar sua formação contínua, desenvolvendo a consciência de sua
profissão e o sentimento de responsabilidade, solidariedade e justiça (ANTUNES, 2001).
“A teoria da educação sempre defendeu o professor que orienta. Por quê? Porque
eles tentavam colocar na prática o que defendiam na teoria, o que é muito difícil porque o
nosso aluno, pelo sistema educacional, enquanto está numa escolinha ele é uma pessoa
extremamente autêntica, ele decide o que gosta e o que não gosta. A medida em que ele vai
crescendo, vai aprendendo que para ele subir, para passar de ano, ele tem que agradar o
professor, ele acaba tendo que dizer o que o professor quer que ele diga. Então fica aquele
quadro de mediocridade, onde ele faz de conta que aprende e eu faço de conta que ensino. E
não é isso que se quer” (AF).
A atitude, a postura sugerida pela Bioética possibilita a visão de que é necessário o
rompimento com a visão tradicional de ensino que atua sobre o indivíduo desfigurando-o da
sua capacidade crítica, da capacidade de discernimento e de reconstrução própria dos valores
que lhes são atribuídos. É dessa forma que a Bioética se manifesta e se estrutura: na
diversidade e na relatividade de cada situação e na busca pelo consenso, tudo em seu tempo,
espaço e circunstâncias.
Sobre isso, pode-se alinhavar a idéia de busca pela identidade individual. De fato, a
escola possibilita esse processo e cria situações que permitem a identificação própria, o
reconhecimento do outro, do mundo em volta, ou seja, proporciona o conhecimento dos
outros e de si próprio num efetivo processo de relação. Semelhante ao que pretende a ética,
89
“que é o espaço para estudar, trabalhar, garantir que os valores ‘tomem corpo’ e se
concretizem nas relações humanas [...]” (JESUS, 2005, p.33), e, considerando as inter-
relações existentes, a educação também pode atribuir sua eficácia, a esse exercício de
construção de identidade individual. “É importante essa abertura para o aluno falar, porque é
assim que ele vai reconstruir o seu entendimento das coisas, a sua atitude em relação a isso”
(RM).
Por isso, se faz extremamente importante reiterar que “[...] o professor não deve impor
as suas idéias porque agora ele é professor. O professor deve orientar seus alunos que
desenvolvam o espírito crítico” (AF).
A validade dessa prerrogativa acontece nas alternativas que o professor cria no intuito
de oportunizar ao aluno esse momento de ouvi-lo, do fazer parte, tão fundamental quanto os
conteúdos e métodos utilizados para o ensino. Incentivar no aluno a capacidade de
organização do raciocínio e expressão de idéias, e dar-lhe a oportunidade pautada na
conveniência da situação, certamente constitui-se em aprendizagem. Sendo assim, o professor
deve fomentar nos alunos não a disposição a estabelecer irrevogavelmente o que
eles escolheram pensar (“a voz de sua espontaneidade”, sua “auto-expressão”, etc.),
mas a capacidade de participar frutiferamente numa controvérsia arrazoada, mesmo
que isso fira alguns de seus dogmas pessoais ou familiares (SAVATER, 2000, p.
161).
Do condicionamento a uma pluralidade de culturas, regidas por normas e pautadas
sobre valores morais e discussões éticas, surge de forma emergente o anseio pelo verdadeiro
significado de “pessoa” como um ser de relações que se faz com o outro, no mundo e com o
mundo, pois, como afirma Jesus (2005), “o ser de relações é a pessoa: não um simples fato
biológico, nem uma substância metafísica, dada plena e independentemente do tempo. Mas,
trata-se de uma existência, quando vai acontecendo ao longo de toda a vida” (JESUS, 2005,
p. 31). Paralelamente a essa proposta conceitual de pessoa, que só o é quando se relaciona
com o outro, com as coisas e transcende essa relação abrindo-se a outras dimensões, percebe-
se a necessidade de um exercício contínuo e progressivo de repensar ações e pretensões no
ensino das ciências. Todavia, um desafio para o professor que, como agente mediador das
aprendizagens, pode promover ações que efetivamente contribuam para essa constituição de
pessoa. Sobretudo, o professor das ciências da vida, tem, possibilitado pela área do
conhecimento que trabalha, um extenso leque de exploração das questões humanas e não-
90
humanas as quais se inserem na própria ecologia do aluno. Então, a Bioética justifica-se
nesses aspectos, como uma via de acesso à promoção da pessoa possibilitada em seus
princípios de autonomia, justiça e benefício.
A Bioética encontra no espaço da universidade e/ ou da escola, um espaço para sua
efetiva prática e viabilidade nas aulas de qualquer professor e em qualquer disciplina. E esta
prerrogativa é válida tanto durante o processo de formação do futuro professor quanto deste
nas suas aulas como professor. É a bagagem da prática educacional construída durante a sua
formação que, certamente, proporcionará ao formando a construção de uma vida profissional
assumida em bases atitudinais coerentes com o que lhe foi disponibilizado na vida acadêmica.
Porém, para que isto aconteça, se faz necessário que haja interesse e empenho dos professores
formadores em dedicar a esse espaço e, atribuir-lhe, o caráter de “um tempo de construção de
conhecimentos”, mas também de reflexão, discussão e valorização das dimensões cognitivas e
sociais que existem e devem ser trabalhadas no processo educacional.
Abordar essas questões durante a formação de professores, traz consigo inúmeros
aspectos positivos ao educando, dentre eles a possibilidade de conhecer e vivenciar na prática
acadêmica, e reconhecer posteriormente nas suas atividades como professor, quais posturas
são adequadas e recomendáveis ao exercício profissional do professor.
As atitudes de um professor em sala de aula, tanto no ambiente universitário quanto na
escola, devem ser, primeiramente, um ato de amor. É fato que não existem receitas que
ensinem a “ser professor” e tampouco são disciplinas que fazem o professor. “Os nossos
cursos de formação geralmente, até a Pedagogia eu poria junto, não tem um trabalho
integrado. A Pedagogia agora está criando um novo currículo. Só que a questão é que não
depende só de ter um currículo, mas se o professor não souber desenvolver atitudes, postura,
respeito com o aluno, não funciona” (RM).
Seguramente há o currículo pensado por quem se interessa e busca os melhores
caminhos para serem vivenciados nos cursos que formam professores, porém, nem o autor
mais conceituado na área da educação que se possa citar, pretenderia prescrever uma receita
mágica e infalível sobre o como projetar o professor perfeito.
Aprender a ser professor não é tarefa que se conclua após estudos de um aparato de
conteúdo e de técnicas para a transmissão deles. É uma aprendizagem que deve se
91
dar por meio de situações práticas que sejam efetivamente problemáticas [...] exige
ainda que, para além de conceitos e de procedimentos, sejam trabalhadas atitudes,
sendo estas consideradas tão importantes quanto aqueles (LIMA, 2004, p. 18).
Utopicamente, a imagem de um professor para os padrões atuais, projetar-se-ia
naquele “profissional da aprendizagem” (DEMO, 2004) pesquisador, autônomo, com
pensamentos direcionados aos assuntos da atualidade, interessado em rever sua prática
freqüentemente, aberto às discussões e ao diálogo, preocupado com sua formação continuada,
interessado em refletir sobre os conceitos que tem conhecimento não se prendendo a idéias
arcaicas; que saiba lidar com seus próprios conhecimentos e, principalmente, que centralize
nas oportunidades de aprendizagem seus principais investimentos. Que este professor seja
mais do que orientador ou mediador do conhecimento, seja exemplo de valores morais e saiba
criar momentos que possibilitem o aprender no aluno. Isto significa acreditar no seu aluno,
respeitá-lo e percebê-lo como parte da sua própria formação.
Respeito, caráter, afeto, valorização das individualidades, preocupação com a
formação humana do aluno, seria conveniente que cada valor destes e tantos outros,
estivessem na base profissional de qualquer professor. O que se percebe é que“a maioria das
disciplinas não assume a formação do professor, apenas quer passar conteúdos” (RM). Ou
seja, a busca por uma formação em moldes axiológicos, na contemporaneidade, é por vezes
substituída pelo massificante interesse em acumular conteúdos. Mais do que disciplinas
cursadas a duras penas, o professor não poderia, tampouco deveria, esquecer-se da própria
formação humana, de ser “humano”. Sobretudo, este adjetivo, que em primeira análise parece
natural aos olhos de quem o lê como condição de nascer humano, mas que, sob outra ótica, é
próprio daqueles que conseguem manter compaixão, solidariedade e benevolência pelo
próximo. Como afirma Savater (2000, p. 29): “Nascemos humanos, mas isso não basta: temos
também que chegar a sê-lo”.
E, voltando-se ao início da reflexão, quão mais propício do que o ambiente escolar
para a formação de seres verdadeiramente humanos, educados em valores como o respeito ao
outro, a valorização das diferenças, num processo que privilegia o convívio com o outro - as
inter-relações, na sua integridade e importância?
Essa percepção deve permear as idéias do professor que está envolvido nesse
processo. Não adiantam disciplinas, currículos bem estruturados, se a essência da educação
92
não se ater ao interesse do professor no aluno. As atitudes de um professor em sala de aula
precisam ser muito bem pensadas e antes mesmo de se tornarem ações, precisariam se
constituir em reflexões analisadas com os olhos de quem, intencionalmente, pretende
envolver-se na vida de outros indivíduos: “Tem muitos professores que precisavam se dar
conta da importância que eles têm na formação das pessoas. Tem professores ainda que
acham que o simples fato de eles estarem ali já é o exemplo. E não é bem assim. Tem alunos
que pegam exemplos muito ruins do professor, que só vêem uma coisa, e é o que fica (LB).
A intenção em se trabalhar a Bioética nas aulas, independentemente da linha de
conhecimento abordada, escrutina um ato de transformação do professor. Uma transformação
coerente e com a intenção de moldar-se num
93
Argumentar sobre a pretensa transformação do professor e a busca contínua por um
trabalho estruturado em posturas e atitudes responsáveis como formador, de nada servirão se
esse professor não priorizar algo tão fundamental quanto o próprio ato de ensinar: a
propriedade única do “ser” humano na figura do aluno envolvido no processo educacional. O
professor deveria, pois, constituir-se nesse ser humano que almeja trabalhar na humanização e
pela humanização.
Nesse momento a reflexão se faz necessária. Talvez este exercício de voltar atrás e
rever conceitos seja condição impensável para muitos professores que se enquadram numa
perspectiva pouco interessante para os dias atuais. Porém, as exigências de hoje induzem o
professor a freqüentemente fazer uma retrospectiva da sua vida profissional e analisarem em
quais aspectos podem modificar sua conduta ou seus métodos de ensino/ aprendizagem. “Se
tu estás vigilante, isso dificilmente acontece, se tu estás disposta a repensar a tua prática
permanentemente, tu te dás conta que em certo momento tua postura foi bem tradicional ao
trabalhar tal coisa” (VL).
Refletir já é um passo importante. Transformar-se e transformar o que há em torno é
fundamental quando as “coisas” não vão bem. Mas, para tanto é preciso vontade e coragem,
pois só muda quem tem atitude. Este parece ser um bordão já conhecido, mas que não perdeu
sua validade nos dias de hoje, sobretudo para os professores, pois a atitude aqui mencionada
refere-se ao ato de transformar o agir, colocar em ação as idéias de querer modificar o que não
está bom, objetivando o bem-estar e a satisfação daqueles que são atingidos.
A Bioética permite esse voltar atrás quando se pensa: “Que professor eu sou? Que
professor eu quero ser?” Se a Bioética surge para refletir e discutir sobre a ética da vida, quão
mais rico senão a face da educação humana para isso?: “O homem o é através do
aprendizado” (SAVATER, 2000, p.39). Sobre as aprendizagens que o sujeito adquire na sala
de aula, é que ele constrói e reconstrói sua vida na integralidade de ser cognitivo e social.
“Nós temos a necessidade de uma refundamentação do sentido dos fazeres. Dos quais,
o conhecimento e a aplicação do conhecimento é o fazer, e eu não falo aqui saber, mas fazer,
agir específico e de uma extraordinária responsabilidade” (RT).
94
Para se trabalhar a Bioética em quaisquer disciplinas é preciso, obviamente, conhecer
o assunto. Mas, o fator determinante para torná-lo eficaz, é a pré-disposição do professor às
possibilidades e desafios pertinentes a essa perspectiva. Ele precisa estar disposto a buscar
sempre estabelecer relações de confiança no seu trabalho com seus colegas e alunos, ter a
capacidade de se perceber como parte e aprendiz do processo, ter coragem para abrir-se ao
novo. E, “quantos professores, provavelmente, não fazem nada disso? Muitas coisas que
implicam o professor se transformar também [...]” (RM).
Não há um perfil específico do professor “perfeito” que garanta o sucesso educacional.
Todavia, é na aposta da vontade de arriscar-se e de envolver-se existentes em cada professor e
em todos, que se dispõem as condições para um trabalho satisfatório.
“Na dialética do aprendizado é tão crucial o que sabem aqueles que ensinam quanto o
que ainda não sabem os que devem aprender” (SAVATER, 2000, p.37). É nessa relação
dialética que se estabelecem os parâmetros e a necessidade contínua da reflexão docente;
refletir continuamente sobre a intenção e a ação na prática pedagógica.
Essa mudança de atitude pode acontecer de maneira efetiva se iniciar pela prática do
professor, ou seja, o fazer em sala de aula pode ser atribuído ao professor em concordância
com a sua postura e direcionando-a a própria constituição do ser. O professor assume então
uma proposta de coerência entre o seu discurso e a sua prática. E isso é fundamental para a
valorização mútua nas relações estabelecidas em sala de aula. Não adianta o professor falar
disso e o próprio professor não fazer, não mostrar essa compreensão na sua prática (RM).
Sobretudo, nessa perspectiva reflexiva que busca a harmonia entre a prática e o discurso,
“sempre existe uma distância entre a prática e a teoria que a gente tem que procurar
encurtar” (VL).
Metaforicamente, o ato de “refletir” sobre a postura e as atitudes escolhidas que, de
certa forma condicionam o trabalho do professor, seja talvez, pretensiosamente, como um
pequeno ponto de luz que atrai a atenção por seu brilho e insistência. Por alguns passará
imperceptível, aliás, sua intenção não é iluminar as ações pedagógicas, mas possíveis
caminhos. Restará ao professor refletir sobre as possibilidades da Bioética, vendo-a na sua
essência de interdisciplinaridade e, sobretudo, vislumbrando nas suas próprias atitudes os
aspectos determinantes para um fazer pedagógico de sucesso.
95
9 UMA PAUSA NA CAMINHADA:
REPENSADO O QUE FOI E SONHANDO O QUE HÁ DE VIR
Contemplando o percurso feito, e retomando algumas perspectivas importantes, tem-se
a sensação de que este caminho está em construção e que muito ainda há de ser feito. A
começar pelo próprio tema escolhido, já que poucas bibliografias em âmbito nacional foram
encontradas. Frente a algumas compreensões consideradas como necessárias aos dias atuais,
resta, contudo, ressaltar que essa questão não se esgota aqui, tampouco o faria em se tratando
desse tema, apenas vem reforçar essa emergente e fundamental reflexão que envolve soluções
dos desafios educacionais relacionados à formação de professores.
Esta pesquisa, que procurou estabelecer um franco diálogo entre os sujeitos
participantes e os autores utilizados como referencial teórico, teve, sobretudo, a preocupação
em evidenciar o momento que toda a sociedade vive atualmente e o quão importante é que a
sociedade seja conhecedora dessa ética aplicada, que se interessa pela manutenção e defesa da
vida.
O processo educacional passa por um movimento de reconhecimento dos seus
objetivos em relação à formação das pessoas. O desenvolvimento das capacidades do aluno e
a sensibilização do professor em proporcionar ao educando oportunidades às aprendizagens
que condicionam uma formação integral estão, freqüentemente, na pauta de muitas
discussões, sugerindo um quadro de preocupação geral e de interesse de todos nesse desafio.
“A mudança na educação só é possível se começar pela formação do professor”
(BASSO, 2006, p. 124). Esta afirmação condiz com o que foi discutido e proposto até aqui. O
processo é longo, sobretudo frente à rejeição da linearidade tradicional do ensino/
aprendizagem que sempre vislumbrou a “transmissão” do conhecimento como condição para
a aprendizagem, todavia, frente à diversidade dos desafios e das realidades, e considerando-se
o papel da escola e da universidade como responsáveis por formar cidadãos críticos e
autônomos, percebe-se que essa concepção de educação “eficiente” perdeu crédito,
confiabilidade e adeptos. É crescente a necessidade de abertura de um espaço a reflexões,
debates, interações, vivências, tudo isso em prol da formação pessoal e relacional que, em
conjunto com a formação cognitiva, constitui a formação integral do aluno.
96
Entretanto, essa formação integral que se pretende requer, especialmente do professor,
atitude. Longe de representar uma ação autoritária, há que se pensar em atitude como
sinônimo de inconformismo perante as situações inadequadas. Um constante “não conformar-
se” com o que não está bom. Sobretudo, essa transformação de postura do professor passa por
uma perspectiva de reconhecimento da sua responsabilidade em assumir-se parte e
participante do processo de formação do seu aluno. Essa é uma relação de confiança e desfaz
o rótulo de autoridade e centro do saber inculcado pela concepção tradicional de educação. O
professor não é mais o detentor do poder, tampouco o manipulador dos desejos e anseios do
outro. A idéia que ainda prevalece, da autoridade advinda de um diploma, precisa ter fim.
Qualquer profissional, em qualquer área, deve “transpirar” confiança e, indubitavelmente, o
professor é (ou deveria ser) um ativista na promoção desta idéia.
A formação humana, mais do que a cognitiva em alguns aspectos deveria ser o
objetivo central de todo e qualquer processo formativo. Ademais, formar cidadãos
responsáveis e autônomos, conscientes dos seus deveres e responsabilidades numa sociedade,
é papel das instituições educacionais. No entanto, o que ainda se observa são condições
contraditórias, que, na teoria e na intenção, são surpreendentemente transformadoras e atuais,
porém, na ação, incoerentes e inconseqüentes. Talvez haja uma carência emergente pelo
resgate dos valores e de uma concepção comum de ser humano. Há que se dizer da
discrepância entre as diferentes compreensões do que é e o que constitui o ser que ocasiona
essa ambigüidade de entendimento.
E o que identifica os seres humanos? O que faz os seres humanos serem diferenciados
de outros animais? Talvez a sua inteligência ou a capacidade de organização em sociedades?
Mas, basta observar um grupo de formigas para que essa idéia seja descartada. Talvez o DNA,
tão misterioso e exaustivamente pesquisado? Certamente a contradição a esse argumento
deparar-se-á com a constatação de que os chimpanzés apresentam aproximadamente 98% de
semelhança entre o seu material genético e o humano.
Afinal, o que faz o homem desejar ser diferente de outras espécies? Os sentimentos, as
sensações, a capacidade de alegrar-se ou de sentir dor? Adote um cãozinho e todos esses
“sentimentos” serão percebidos. Talvez a resposta seja simples: o ser humano é o único
animal que desenvolveu uma “consciência moral” capaz de julgar e distinguir o que é certo do
que é errado; o que é bom do que é ruim; o que deve do que não deve ser feito. Enfim, uma
97
forma de identificação própria da espécie humana que encontra nessa identidade a capacidade
de refletir, julgar, argumentar e decidir sobre todas as instâncias e momentos da vida.
E isto é a Bioética. Uma disciplina que não se fundamenta, não se restringe a normas,
não se conceitua, não se especifica. Entretanto, se percebe, se sente, se vive. Ela busca,
sobretudo, encurtar a distância entre os valores determinados como regras morais e as
humanidades. Encontra, como paradigma referencial, uma visão antropológico-moral, e
pressupõe o valor supremo da pessoa, da sua vida, liberdade e autonomia.
Analisando-se, então, sob estes aspectos, há uma urgente necessidade de disseminação
da informação da Bioética a todos. A principal exigência das sociedades atuais consiste em
questionar as inovações científicas e tecnológicas sobre suas implicações e adequações morais
e éticas. Esse engajamento da sociedade nas discussões e reflexões sobre os desafios e
dilemas éticos também justifica a importância do conhecimento dessa nova ética aplicada.
Entretanto, falar da importância da Bioética, desde o seu surgimento até os dias atuais,
predispõe falar de uma necessidade, também latente, e que já vem sendo percebida em muitos
cursos universitários. Particularmente, e considerando o foco central desta pesquisa - avaliar
as implicações da Bioética na formação de professores de Ciências e Biologia – essa
possibilidade de um trabalho integrado e pautado nas reflexões éticas, promovido pela
Bioética, se perfaz na estreita relação entre os conteúdos programáticos e a conseqüente
necessidade dessa discussão na formação do futuro profissional da educação.
A emergente percepção da interdisciplinaridade da Bioética viabiliza a sua
implementação nos cursos de formação de professores, principalmente em se tratando de
professores de Ciências e Biologia.
Essa mesma interdisciplinaridade que torna a Bioética um tema de alcance mundial,
tanto humano como ambiental, precisa ser reiterada por todo profissional que, estando em
processo de formação inicial ou assumindo sua educação continuada, tem a possibilidade de
vivenciar, experimentar, refletir e, posteriormente, resgatar essas aprendizagens na elaboração
do seu projeto de vida social e profissional. Esse indivíduo poderá reafirmar sua importância e
dignidade como pessoa e, sobretudo, reconhecer, na relação com os outros, que ser ético não
98
significa necessariamente estar certo ou errado, mas ser capaz de refletir, ponderar e
considerar todas as possibilidades antes de posicionar-se.
A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos apresenta essa
necessidade atual e refere, em um de seus artigos, que todos devem promover a formação e
educação em Bioética, em todos os níveis, além de estimular a disseminação de informação e
conhecimento sobre Bioética a toda a sociedade. Isto posto, implementar e incentivar a
Bioética nos cursos universitários, principalmente na formação de professores de Ciências
Biológicas, é uma medida que poderá qualificar mais a formação desses profissionais. A
contribuição se dará principalmente no resgate de valores fundamentais que proporcionarão a
eles uma percepção axiológica e reflexiva, uma tentativa de enfatizar o sentido do professor
na vida de outros. Sobretudo, poderá contribuir para que esse profissional seja mais crítico,
mais aberto às discussões e disposto a criar momentos de aprendizagem aos seus alunos que
os tornem também pessoas críticas, conscientes e autônomas.
A comunicação deste trabalho ao Comitê de Ética em Pesquisa da PUCRS (CEP –
PUCRS) e sua validação justificam a relevância deste estudo e da discussão em torno da
formação humana e cognitiva dos professores de Ciências e Biologia. A intenção em buscar-
se esse comitê emergiu da condição necessária ao expor-se o outro. A elaboração de um termo
de consentimento esclarecido refere-se a isto: os sujeitos da pesquisa são seres dignos,
merecedores de respeito e que, ao submeterem-se a participar de uma pesquisa, têm o direito
de conhecer as condições do estudo e de optar em que aspectos concordam, ou não, com a
participação. A partir de uma ação ética adequada e simples, porém extremamente necessária,
contribui efetivamente para a valorização do “outro” na condição de um ser livre, autônomo e
consciente. Não caberia outra ação senão esta, em conformidade com os argumentos
defendidos neste trabalho: o resgate de posturas axiológicas tão necessárias ao convívio social
em interação com o seu meio.
Algumas experiências internacionais revelam que o interesse pelo tema e a efetiva
busca pela implementação da Bioética, nos cursos universitários, já é uma condição assumida
por países europeus e norte-americanos, principalmente. Nestes, percebe-se o grande interesse
em discutir e viabilizar o acesso dos profissionais em formação ao conhecimento da Bioética
durante o processo formativo. Relatos sobre alguns investimentos nessa área, e que visam a
promover o acesso ao conhecimento dessa disciplina, sugerem que esse trabalho deve iniciar
99
pelo professor. O docente universitário é considerado como via de acesso responsável pelo
desenvolvimento dessas propostas. Diante disso, muitas ações práticas e simples são
construídas a fim de envolver o professor formador e torná-lo consciente das suas
possibilidades e condições na relação com os outros. Entretanto, há que se salientar que os
exemplos argüidos devem ser considerados na sua essência e intencionalidade, pois, em
alguns aspectos, somente são aplicáveis naqueles países. O propósito dessas idéias e o
engajamento nesse grande desafio mundial contribuem, consideravelmente, para uma visão de
necessidade global e viabilidade desse processo, bastando que se atente ao contexto e à
realidade de cada país para a adequação dessas ações.
Discutir sobre este grande desafio pedagógico fez emergir novas compreensões a
respeito do que se pretendia, mas, também fez surgir novos desafios a serem superados.
Algumas inferências sobre os objetivos propostos nesta investigação foram salientadas, ao
perceber-se, nelas, aspectos de conformidade com a discussão pretendida e que, de certa
forma, contribuíram para novos entendimentos sobre esse desafio:
A Bioética abordada em todas as disciplinas do currículo formativo: possibilidade
ou utopia? Em concordância com o caráter interdisciplinar da Bioética, a integração dessa
disciplina a outras do currículo formativo de professores de Ciências e Biologia é viável,
conforme a percepção dos sujeitos envolvidos. Ademais, falar em Bioética é falar sobre os
grandes desafios da atualidade, que envolvem ameaças à vida ou ao ambiente. E, na formação
de um professor de Ciências e Biologia, como não referir e trazer à baila essas questões?
Discutir sobre o que é vida, dignidade, respeito, direitos e deveres é fundamental em qualquer
momento da formação acadêmica, sobretudo nessas disciplinas, que comportam muitas
discussões desse âmbito. Mais do que um problema pedagógico, promover a integração da
Bioética nas disciplinas programadas é um desafio ético em tempos contemporâneos. É
concordar que a crescente necessidade de resgate moral, ético e reflexivo deve iniciar na
formação educacional, de qualquer pessoa e em qualquer profissão.
Entretanto, os entraves e os anseios em se propugnar a integração da Bioética a todo o
curso abrem precedentes para outra discussão: como ficam as angústias e os medos daqueles
docentes que, presos a antigas teorias educacionais, não vislumbram a possibilidade,
tampouco a necessidade de um trabalho integrado?
100
Em Formadores de professores de Ciências e Biologia: anseios e receios na
abordagem bioética, discute-se os medos inerentes à integração de uma ciência ainda nova,
da qual poucos conseguem compreender o sentido em termos de inserção no currículo.
Sobretudo, faz-se um resgate do papel do professor nos dias atuais, buscando, com isso,
vislumbrar a necessidade em desvencilhar-se de conceitos engessados que vêem na
transmissão dos conhecimentos a principal possibilidade de aprendizagem. Isto implica
superar conceitos ultrapassados de educação, pelos quais se compartimentaliza, em pacotes
chamados “disciplinas”, o conhecimento, entregando-o ao outro supondo que este irá absorvê-
lo todo e da forma como foi entregue. Algumas abordagens, como a Bioética, vêm a
contribuir para a reversão desse quadro.
“Educar para a argumentação: criando situações de ‘prática’ da bioética”, tem
essa intenção. Longe da pretensão de constituir-se como única solução, os estudos de caso
considerados e os relatos das vivências em sala de aula vislumbram, na aplicabilidade de
questionários, leituras atualizadas e dilemas peculiares da atualidade, a possibilidade de
formar pessoas autônomas, livres, críticas e responsáveis, que percebam na argumentação a
via de integração no mundo.
Contudo, essa é uma questão que perpassa as metodologias e as teorias pedagógicas.
Parte do professor, da intenção deste em fazer da sua ação pedagógica uma condição de
oportunidades e aprendizagens ao aluno. Muitos consideram que talvez esteja na figura do
professor a solução de grandes desafios da educação. Sobretudo, o aspecto atitudinal, ou seja,
a postura que adota no fazer e ser professor, é o fator determinante para o sucesso nos
processos de formação. Implementar a Bioética nas suas aulas é uma questão de “atitude” do
professor. Isso foi discutido em “Atitude: princípio necessário ao envolvimento com a
Bioética”, ao considerar que todo professor pode e deve continuamente refletir sobre sua ação
pedagógica e, se preciso for, mudar sua postura. Mas, para isso acontecer ele precisa ter
autonomia de escolha e deliberar sobre ela a postura mais adequada para o ser professor.
A reflexão sobre o desafio da implementação da Bioética nos cursos de graduação,
principalmente na formação de professores de Ciências e Biologia, faz referência a essa
dimensão que só poderá ser viabilizada pela escolha do professor. Talvez o problema, e
também a solução, persistam neste fator – na ação e postura do professor – e não no
desinteresse dos cursos em discutir a Bioética.
101
Depende do professor julgar e decidir a necessidade de incluir nas suas aulas a
Bioética. Entretanto, a intenção deve ser única: permitir autonomia baseada numa relação de
respeito e consideração do outro. A abertura ao novo, ao inusitado, são condicionantes dessa
atitude transformadora. Há necessidade de responder aos interesses individuais e coletivos e
isto relaciona-se ao eixo central dessa discussão. Analisando o processo de formação inicial
de professores, é imprescindível que, primeiramente, se leve em consideração o professor
formador. Esta condição surge como um aspecto eficiente na determinação das possibilidades
de inserção da Bioética, pois, conhecendo-se as concepções do professor e sua postura, pode-
se argüir sobre essa viabilidade. Cabe ressaltar que esta pesquisa tratou, sobremodo, de
professores que não possuem especializações na área filosófica e/ ou são bioeticistas.
Compreender que todo processo formativo pode ser concebido a partir de uma idéia
simples, integrando a vontade, o interesse e a disponibilidade do professor, trouxe à tona
outros aspectos. Perceber, na aplicabilidade integrada da Bioética a outras disciplinas do
currículo a formação autônoma, responsável e reflexiva da pessoa, estabelece uma importante
prerrogativa que se sustenta na intenção da própria Bioética em atender a todos os seres.
Ademais, a intenção, em nenhum momento, foi argumentar em favor da inserção da
Bioética na formação de professores a fim de formar professores de Bioética ou bioeticistas.
Em todos os momentos e aspectos discutidos, o que se pretendeu foi implementar a reflexão
sobre um tema grandemente discutido atualmente e que emerge das necessidades humanas
frente às ameaças que lhes são impostas. A concepção defendida por esta investigação
vislumbra, na Bioética, a possibilidade de formar cidadãos professores, conhecedores desse
novo ramo da ética, críticos e conscientes do seu papel na sociedade. Ou seja, profissionais
preocupados com os problemas decorrentes do progresso científico e tecnológico que atingem
a humanidade e o meio ambiente, e sabedores que podem ser a “ponte” entre o conhecimento
da Bioética e a sociedade que está sendo formada. Certamente este é um esforço que precisa
ser de todos, mas que pode iniciar pelo professor como exemplo e acesso a várias outras
pessoas.
A Bioética se relaciona à idéia de que é urgente, em todas as profissões, priorizar a
formação integral da pessoa, a fim de que não saia “treinada” para o mercado de trabalho, mas
preparada para se relacionar com os outros e com o mundo, convivendo e respeitando as
diferenças, individualidades e opiniões. A formação humana é tão ou mais importante do que
102
o conhecimento dos conteúdos programados, pois a partir dela os indivíduos assumem valores
e se tornam mais interessados ao partilhar de um todo com outros. O professor que recebe
esse tipo de formação poderá ter consciência de que um certificado de conclusão do curso não
garante sucesso profissional; um histórico escolar não se constrói somente em conhecimentos
específicos, mas em valores e sentimentos.
Resta dizer que o maior desafio em dissertar sobre este tema, talvez tenha sido, por
algumas vezes, perceber-se nesta caminhada sem ter certeza dos rumos a seguir. Mas, como
sutilmente expressa a letra de uma música:
[...] Nunca perseguí la gloria,
Ni dejar en la memoria
De los hombres mi canción;
Yo amo los mundos sutiles,
Ingrávidos y gentiles
Como pompas de jabón.
Caminante son tus huellas el camino y nada más;
Caminante, no hay camino se hace camino al andar
[...]
(Joan Manoel Serrat)
E assim, a caminhada foi sendo construída ao caminhar...
103
REFERÊNCIAS
ANTUNES, C. Como desenvolver as competências em sala de aula. 5. ed. Petrópolis, Rio
de Janeiro: Vozes, 2001. 86 p.
AZEVEDO, E. E. de S. Ensino da Bioética: um desafio transdisciplinar. São Paulo:
Interface, 1998.
______. III dia da bioética... a reflexão continua. Feira de Santana: Universidade Estadual de
Feira de Santana, 2006. 139 p.
BASSO, I. Uma ética para educar: valores da formação docente. Bauru, SP: EDUSC, 2006.
166 p.
BECKERT, C. Introdução à ética. In: ROSA, H. (Org.). Bioética para as ciências naturais.
Lisboa: Fundação Luso-Americana, 2004.
BELLINO, F. Fundamentos da bioética: aspectos antropológicos, ontológicos e morais.
Bauru, São Paulo: EDUSC, 1997.
BOCCHESE, J. da C. O professor e a construção de competências. In: ENRICONE, D.
(Org.). et al. Ser professor. 5. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006. p. 25-39.
BORGES, R.M.R. Além do cognitivo. Educação, Porto Alegre, ano XXV, n. 46, p. 249-263,
2002.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais:
introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Brasília: MEC/ SEF, 1997. 126 p.
BRASIL. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros curriculares nacionais:
ensino médio. Brasília: MEC, 1999.
BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: apresentação dos temas transversais: ética. 2.
ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº196/96. Diretrizes e Normas
Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos. [Brasília]: [1996].
Disponível em: <http://www.ufrgs.br/bioetica/res19696.htm>. Acesso em: 20 jan. 2007.
104
CHIAVACCI, E. Breves lições de bioética. Tradução Paulo Ferreira Valério. São Paulo:
Paulinas, 2004.
CLOTET, J. Bioética: uma aproximação. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006. 246 p.
COMSTOCK, G. L. A ética e a ciência. In: ROSA, H. (Org.). Bioética para as ciências
naturais. Lisboa: Fundação Luso-Americana, 2004. p. 85-120.
DECLARAÇÃO universal sobre bioética e direitos humanos. Trad. Ana Tapajós, Mauro
Machado do Prado. [sl]: [sn], [2005]. Adotada por aclamação em 19 de outubro de 2005 pela
33ª Sessão de Conferência Geral da UNESCO e recebido no 5º Curso Avançado de Bioética
realizado na PUCRS. Cópia impressa.
DELORS, J. Educação: um tesouro a descobrir. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1999. 288 p.
DELORS, J. (Org.). Educação para o século XXI: questões e perspectivas. Tradução Fátima
Murad. Porto Alegre: Artmed, 2005. 260 p.
DEMO, P. Educar pela pesquisa. Campinas: Autores Associados, 1996.
______. Professor do futuro e reconstrução do conhecimento. In: MACIEL, L. S. B.; NETO,
A. S. (Orgs.). Formação de professores: passado, presente e futuro. São Paulo: Cortez, 2004.
p. 113-127.
DURANT, G. A Bioética: natureza, princípios, objetivos. São Paulo: Paulus, 1995.
ENRICONE, D. O professor e as inovações. In: ENRICONE, D. (Org.). et al. Ser professor.
5. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006. p. 41-56.
FERNÁNDEZ, J. G. 10 palavras-chave em bioética: bioética, aborto, eutanásia, pena de
morte, reprodução assistida, manipulação genética, AIDS, drogas, transplante de órgãos,
ecologia. São Paulo: Paulinas, 2000.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo:
Paz e Terra, 1996.
GALLO, S. Disciplinaridade e transversalidade. In: CANDAU, U. M. (Org.). Linguagens,
espaços e tempos no ensinar. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
105
GRILLO, M. O professor e a docência: o encontro com o aluno. In: ENRICONE, D. (Org.). et
al. Ser professor. 5. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006. p. 73-89.
HERMANN, N. Pluralidade e ética em Educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. 152 p.
HABERMAS, J. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução Guido A. de Almeida.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. 236 p.
______. Comentários à ética do discurso. Lisboa: Instituto Piaget, 1991. 221 p.
JESUS, E. B. de. A humanidade em dores de parto: nascerá uma nova ética? In: AZEVEDO,
E. E. de S.; REIS, N. H. N. dos. (Orgs.). II dia da bioética: desafios éticos. Feira de Santana:
Universidade Estadual de Feira de Santana, 2005. p. 27-52.
JUNGES, J. R. Bioética: perspectivas e desafios. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 1999.
322 p.
LARANJEIRA, M. I. Da arte de aprender ao ofício de ensinar: relato, em reflexão, de uma
trajetória. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2000. 129 p.
LARANJEIRA, M. I. et al. Referências para a formação de professores. In: BICUDO, M. A.
V.; SILVA JUNIOR, C. A. (Orgs.). Formação do educador e avaliação educacional:
formação inicial e contínua. São Paulo: Unesp, 1999. v. 2. 263 p.
LASTÓRIA, L. (org.). Teoria crítica, ética e educação. Piracicaba/Campinas:
UNIMEP/Autores Associados, 2001.
LEPARGNEUR, H. Bioética, novo conceito a caminho do consenso. São Paulo: Edições
Loyola; São Paulo: CEDAS, 1996. 108 p.
LIMA, E. F. de. Formação de professores – passado, presente e futuro: o curso de Pedagogia.
In: MACIEL, L. S. B.; NETO, A. S. (Orgs.). Formação de professores: passado, presente e
futuro. São Paulo: Cortez, 2004. p. 15-34.
LOMBARDI, J. C. Ética, educação e os Parâmetros Curriculares Nacionais: algumas
reflexões histórico-filosóficas. In: LOMBARDI, J. C.; GOERGEN, P. (Orgs.). Ética e
educação: reflexões filosóficas e históricas. Campinas, São Paulo: Autores Associados, 2005.
p. 19-57.
106
MACIEL, L. S. B.; NETO, A. S. (Orgs.). Formação de professores: passado, presente e
futuro. São Paulo: Cortez, 2004. 128 p.
MARCOVITCH, J. A universidade (im)possível. São Paulo: Futura, 1998.
MASETTO, M. T. Professor universitário: um profissional da educação na atividade docente.
In: MASETTO, M. T. (Org.). Docência na universidade. 4. ed. São Paulo: Papirus, 2002. p.
9-26.
MORAES, R. Uma tempestade de luz: a compreensão possibilitada pela análise textual
discursiva. Ciência e Educação. Bauru: 2003, v. 9. n 2. p. 191-211.
______; ZANON, L. B. Situação de estudo: uma organização do ensino que extrapola a
formação disciplinar em Ciências. In: MORAES, R.; MANCUSO, R. (Orgs.). Educação em
ciências: produção de currículos e formação de professores. Ijuí: Unijuí, 2004. p. 43-64.
MOREIRA, A.F.B. A Formação do Professor em uma Perspectiva Crítica. Educação e
Realidade, Porto Alegre, v. 17, n. 2, p. 55-61, jul./dez.1992.
MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tradução Catarina Eleonora
da Silva e Jeanne Sawaya. 6. ed. rev. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2002. 118
p., il. Título original: Lês sept savoirs nécessaires à l’éducation du futur.
MÜLLER, M. C. Psicologia e bioética. In: CLOTET, J. (Org.). Bioética. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2001. p. 85-92.
PAULY, E. L. Ética, educação e cidadania: questões de fundamentação teológica e
filosófica da ética na educação. São Leopoldo: Sinodal, 2002. 176 p.
PESSINI, L. Bioética: um grito por dignidade de viver. São Paulo: Paulinas, 2006.
REIS, N. H. N. dos. Pesquisas e direitos em seres humanos. In: AZEVEDO, E. E. de S.;
REIS, N. H. N. dos. (Orgs.). II dia da bioética: desafios éticos. Feira de Santana:
Universidade Estadual de Feira de Santana, 2005. p. 87-113.
RIOS, T. A. Compreender e ensinar: por uma docência da melhor qualidade. São Paulo:
Cortez, 2003.
107
______.Ética e competência. São Paulo: Cortez, 1999.
ROGERS, C. Liberdade de aprender em nossa década. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.
ROSA, H.; COMSTOCK, G. L. A ética no ensino das ciências naturais e da vida: a
experiência do International Bioethics Institute. In: HUMBERTO, R. (Org.). Bioética para as
ciências naturais. Lisboa: Fundação Luso-Americana, 2004. p. 21-36.
SANCHES, M. A. Bioética: ciência e transcendência. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
135p.
SAVATER, F. O valor de educar. Tradução Monica Stahel. São Paulo: Martins Fontes,
2000. 267 p.
______. Ética como amor-próprio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
SERBINO, R.V. et al. (Orgs.). Formação de professores. São Paulo: Fundação Editora da
UNESP, 1998.
SEVERINO, A. J. Educação e ética no processo de construção da cidadania. In: LOMBARDI,
J.C.; GOERGEN, P. (Orgs.). Ética e educação: reflexões filosóficas e históricas. Campinas,
São Paulo: Autores Associados, 2005. p. 137-154.
SILVA, M. B. da. Bioética e a questão da justificação moral. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2004. 152 p.
SOUZA, L. E. P. F. de. Direitos do sujeito da pesquisa e termo de consentimento livre e
esclarecido. In: AZEVEDO, E. E. de S.; REIS, N. H. N. dos. (Orgs.). II dia da bioética:
desafios éticos. Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana, 2005. p. 53-66.
TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. 3. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2003.
325 p.
VALVERDE, A. J. R. Bioética e aporias da tecnociência. In: AZEVEDO, E. E. de S.; REIS,
N. H. N. dos. (Orgs.). II dia da bioética: desafios éticos. Feira de Santana: Universidade
Estadual de Feira de Santana, 2005. p. 11- 25.
VÁZQUES, A. S. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
108
ZILLES, U. Função humanizadora da universidade. Caxias do Sul: Universidade de
Caxias do Sul, 1978.
109
APÊNDICE A – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
110
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Título da pesquisa:
“A Bioética na formação de professores de Ciências”
Pesquisa em desenvolvimento no Programa de Pós-
graduação em Educação em Ciências e Matemática da
PUCRS, pela mestranda Lia Bárbara Marques Wilges.
I. Justificativa e Objetivos da pesquisa
Percebe-se a cada dia a importância de que uma aprendizagem reflexiva, construtiva e
com intuito de desenvolver a autonomia no educando, seja estabelecida nos processos
educacionais. Proporcionar ao aluno meios de envolvê-lo nas discussões, nos
questionamentos, de maneira participativa, de modo que ele perceba que suas decisões estão
sendo consideradas, configura-se em incentivo e premia a opinião desse indivíduo que passa a
se sentir parte responsável por suas escolhas. A aprendizagem passa a ter significado e por
isso torna-se efetiva. Contudo, percebe-se que a formação educacional deve configurar,
sobretudo, uma face social e humana, mais do que somente um caráter intelectual e cognitivo.
Num contexto que remete a Bioética às questões que envolvem a formação de futuros
professores de Ciências e Biologia, buscar-se-á a compreensão dos fenômenos e das
concepções dos sujeitos participantes, a partir das idéias que surgirão referentes às questões
de pesquisa.
O objetivo geral desta pesquisa é investigar a percepção de docentes de cursos de
graduação quanto a contribuições da Bioética na formação dos futuros profissionais da
educação em Ciências e Biologia. Mais especificamente, esta pesquisa tem os seguintes
objetivos:
I - Identificar as relações estabelecidas pelos professores entrevistados entre o
conteúdo que lecionam e a Bioética;
II - Reconhecer se, e como, a Bioética poderia ser integrada ao programa de
disciplinas específicas do curso, ainda que de forma complementar a alguma disciplina sobre
Bioética.
111
III - Analisar considerações dos sujeitos da pesquisa sobre a importância da Bioética
na formação de professores de Ciências e Biologia.
II. Procedimentos (Metodologia)
Esta pesquisa contará com a participação de um grupo de professores de cursos de
graduação (preferencialmente de licenciatura em Ciências Biológicas) de uma universidad07 ço (preft9111(preft911.000que dec0.rguu
112
V. Compromisso com a informação atualizada do estudo
A qualquer momento, o entrevistado poderá obter informações quanto ao
andamento da pesquisa, a partir de contatos estabelecidos com:
- a mestranda, Lia Bárbara Marques Wilges – Fone: 3248-3667;
- a pesquisadora/ orientadora, Profª. Drª. Regina Maria Rabello Borges
Fone: 3212-3249 (residência); 3320-3500 Ramal 4424 (PUCRS);
- o Comitê de Ética em Pesquisa da PUCRS – Fone: 3320-3345.
Declaro que recebi cópia do presente Termo de Consentimento.
Assinatura do Entrevistado Nome Data
Assinatura do Pesquisador Nome Data
113
APÊNDICE B – Transcrição das entrevistas
114
Entrevista com o Prof Dr Ricardo Timm de Souza (RT)
Em primeiro lugar, é necessário que a gente perceba claramente que quando falamos
em bioética estamos falando em ética, estamos falando em vida. Aliás, é um fato interessante
este que atualmente a Bioética, enquanto disciplina específica, está num processo crescente de
desenvolvimento no sentido de uma também crescente consciência das suas raízes vitais, no
sentido de que, como os filósofos sempre propugnaram, e a gente pode resgatar isso ao longo
da história do pensamento ocidental (historicidade do termo) como também na sabedoria
oriental não existe ética que não seja viva ou da vida, de uma certa forma. Então, não se trata
de uma disciplina como outra, se trata de uma dimensão de realidade, de um registro de
relação com a realidade que não pode, absolutamente, ficar fora das dimensões básicas da
formação de quem quer que seja, muito especificamente daquele cientista que, trabalhando
com Biologia, pode ter a tentação de afunilar o seu fazer, no sentido de se concentrar
excessivamente numa delimitação epistemológica muito estreita.
Isso, esse estreitamento, vai contra tudo isso que hoje em dia se faz. Hoje em dia se
tenta integrar os diversos caminhos da ciência, as diversas dimensões da ciência, a partir de
problemas que são significativos e que vão integrar “experts” das mais diversas áreas.
Justamente a bioética, como normalmente é pensada, surge a partir dessa preocupação
ou seja, não é possível pensar, por exemplo, uma questão de bioética clínica de um
determinado paciente, num determinado hospital, fora do conhecimento do seu contexto
psicológico, social, humano, existencial, etc. Nós temos aí muitas dimensões a resgatar.
Assim como não é possível também pensar na questão de um paciente, de um caso de bioética
clínica, ignorando as questões ecológicas, ou seja, do lugar onde se vive.
Quer dizer, a ecologia é outra palavra mal-entendida, e que na verdade se relaciona
também, é mais ou menos a mesma questão.
As pessoas têm muita tendência de centrar no “logos do oikos” ou seja, na intelecção,
ou na compreensão daquilo que seria o lugar, e esquecem, muitas vezes, que isso tem uma
dimensão muito mais rica do ponto de vista existencial. Isso significa a vitalidade da própria
cultura, imbricada com os conceitos de natureza que hoje se fundam, refugam, conforme o
conhecimento vai progredindo.
Então, o que nós temos na verdade: nós temos a necessidade de uma refundamentação
do sentido dos fazeres. Dos quais, o conhecimento e a aplicação do conhecimento é o fazer, e
eu não falo aqui saber, mas fazer, agir, específico e de uma extraordinária responsabilidade.
115
Por isso, esses seriam os argumentos que a gente poderia utilizar para propugnar que
ética que inclui “bios”, ou seja, bioética, nos seus mais variados sentidos, esteja na raiz da
própria construção, se assim quisermos, da própria estruturação do conhecimento de todo e
qualquer profissional, de toda e qualquer área, e aqui no caso, especificamente, daqueles que
são futuros professores na área da Biologia.
O ser professor é a profissão mais poderosa do mundo.
Veja bem, o juiz dá uma sentença louca, digamos assim. O que acontece: há uma
corregedoria, recursos, as mais diversas ordens. O médico chega e faz uma análise, um
prognóstico inadequado, logo existe a quem recorrer, para uma reparação daquele erro. E
assim com toda e qualquer área.
Agora, imagine a situação de um professor que é capaz de entrar em uma sala de aula
e insidiosamente tem a possibilidade de ir solapando aquelas sementes de humanidade que ali
estão, de tal forma que as pessoas não percebem, as crianças, os jovens, eventualmente os
adultos, não percebem, mas talvez daqui a dez anos tenham um problema psicológico muito
grave. Quer dizer, nunca vai poder se estabelecer o elo causal, portanto, ele tem o poder de
desagregar tudo.
Por outro lado, o professor tem o poder de tirar néctar das pedras. Se ele apertar, se ele
conseguir chegar na intimidade daquelas sensibilidades endurecidas, que muitas vezes nós
recebemos em sala de aula... Eu trabalho com jovens. Então a gente percebe ali, muitas vezes,
uma blindagem, porque houve tantos ferimentos, se tripudiou tanto em relação à
sensibilidade, que a pessoa não sabe às vezes como lidar com isso aí. Então, o professor tem
que achar um jeito de se aproximar intimamente, convidativamente, dessa alteridade, desse
outro que está ali (na sua individualidade, na sua historicidade), para poder, então, fazer brotar
a vida onde, aparentemente, ela já não existe mais. Eu comparo a um terraço, uma área
lajeada onde, contra todas as expectativas, por infiltração de água, de repente surge uma
plantinha num cantinho que ninguém esperaria que aparecesse. O professor tem esse poder.
Por isso é que eu digo que o professor é a profissão mais poderosa do mundo.
A possibilidade de trabalhar a bioética parte da consciência do sentido que possa ter
esse trabalho.
Na medida em que as pessoas não conseguirem perceber o que pode significar isto, ou
seja, na medida em que elas não perceberem a historicidade delas, as dimensões sociais,
existenciais, psicológicas, etc, na medida em que elas continuarem com aquela hierarquia
perversa entre razão e emoção, onde a razão tem que violentar a emoção para ser razão, se
116
isso continuar acontecendo, então não há possibilidade nenhuma de trabalhar a ética ou a
bioética de uma forma adequada.
Não adianta disciplinas. Quer dizer, disciplinas são “cascas”, são estruturas, são
esqueletos, são andaimes... O que interessa é o que pulsa no interior da disciplina.
Se nós conseguirmos, por outro lado, perceber que sem isso nós não conseguimos
avançar do ponto de vista da resolução de problema algum, do mais elementar problema do
próprio indivíduo, consigo mesmo, até os problemas sociais nas suas dimensões mais amplas,
aí, então, realmente não vai ter como não fazer isto.
Na verdade, o que a gente precisa é se desvincular um pouco dessa péssima hierarquia
entre razão e emoção. Não existe absolutamente nada na história do pensamento, da cultura,
que tenha sido feito sem paixão. Interessantemente, quando se fala em paixão, se pensa que é
para os momentos de lazer, não para os momentos profissionais. Se tenta ser frio nos
momentos profissionais, como se isso fosse possível, e depois ainda se pergunta por que tanta
gente tem problemas ocupacionais no seu próprio trabalho.
117
Entrevista com a Profª. Drª Anamaria Feijó (AF)
A Bioética é uma área multidisciplinar. E ela não deve ser dada por leigos, por alguém
que não tem a mínima idéia do que é a bioética. Por quê? Um bioeticista tem que ter uma
característica que nem todo excelente profissional tem, que é uma mente aberta para novas
verdades. Porque ele sabe que nem sempre a melhor ação, a melhor conduta, nem sempre é a
que ele acha mais adequada, mas aquela que aquele grupo que está envolvido naquele
momento, acha a mais adequada. Só que em função de um contexto, ele abre mão das suas
certezas, de valores pessoais, claro, mas ele tem a mente aberta para ouvir o outro. Saber que
de repente ele possa até mudar em função da opinião do outro.
Nem todo o profissional tem essa postura, senão o desqualifica como profissional, o
desqualifica como bioeticista, como professor de bioética.
Então, essa idéia do que é bioética, tão falada e tão pouco compreendida, isso sim deve
mudar na formação de um professor, para que o professor saia, e aí entramos mais na área
educacional, de formação educacional, para que ele não saia sabendo que ele pode ser o
conhecimento maior em determinada área que ele assumiu a responsabilidade de ministrar
para os seus alunos. Mas, os alunos podem e certamente vão ensiná-lo, muitas coisas. Então,
essa idéia de “eu não sou o dono da verdade, porque eu tenho um diploma embaixo do braço;
eu sou professor e vocês são alunos”, isso a bioética ensina. Nem todo professor é um
bioeticista. Então, eu tenho muito medo das pessoas que não são da área, trabalharem com
bioética. Por quê? Porque se nós falarmos: o que a bioética faz? Ela trata de uma forma
interdisciplinar de problemas conflitantes do nosso cotidiano. E se o professor não entende,
não internaliza o que é a bioética, a tendência dele é passar valores e argumentos que vão
defender a sua idéia para o seu aluno. Então, ele está “fazendo a cabeça do seu aluno”, não
levando o aluno a pensar de uma forma crítica, para que ele possa, numa idade adequada, ter a
sua própria opinião. Então isso é muito perigoso. Vai formar opinião de uma forma
impositiva.
Claro, terão professores que vão se interessar durante a graduação em fazer cursos
paralelos, de extensão, de especialização, que aqui na PUC tem um monte desses cursos. Pode
fazer um curso básico de Bioética, um curso avançado de Bioética, ler muitos livros, a PUC
publica por preços excelentes obras de bioética nas mais diversas áreas. Ou seja, as pessoas
que podem ir se autoformando, digamos assim, e conversando com professor da área,
fazendo um estágio, ganhando bolsa, coisas assim dessa área. Quer dizer, pessoas que já tem
um perfil.
118
Agora, eu teria muito medo de liberar para todo mundo que sai como professor, ter a
licença ou a liberdade de trabalhar a Bioética quando ele pode impor as suas idéias e não
puxar as dos seus alunos. É quanto a isso que eu fico um pouco temerosa.
É importante que os professores que não trabalham a disciplina específica de bioética,
tragam para dentro da sua aula questionamentos, idéias, de uma forma complementar à essa
disciplina?
Acredito que sim. No instante em que a gente fica ligado ao contexto em que se vive, a
opinião dos colegas, é extremamente importante. Agora, a mesma coisa acontece com quem
já é formado e dá aula há muitos anos. Há pessoas que tem a cabeça aberta, e há pessoas que
continuam achando que são certas e que o resto é que está errado. Pode ser excelente
profissional, de renome internacional na sua área específica, mas no instante em que tem que
abrir um pouco mais a cabeça, não consegue. Isso acontece muito, não só na formação do
professor. Professores já formados, têm essa dificuldade, porque as vezes tem que abrir mão
de idéias prévias, preestabelecidas, e isso é muito complicado. Por isso tem que ter um perfil.
Então, esses professores jamais vão serão professores de Bioética.
Agora, acho que deveria haver nesse momento paralelo à idéia da bioética no decorrer
da formação do aluno, para que o aluno saia sabendo o que é Bioética, não um professor de
Bioética, mas sabendo o que é a Bioética, que estes professores também tenham esse tipo de
conhecimento. O que poucos professores têm. Eles confundem ética com bioética. Quando a
ética é uma parte da Filosofia e bioética é uma área multidisciplinar de discussão crítica de
problemas do nosso cotidiano, de conflitos do nosso cotidiano. Então, cada um tem a sua
visão dependendo da sua formação, dos seus valores, da sua cultura, da sua moral. Então, é
uma discussão muito rica, a bioética é um campo muito rico.
Pouca gente ainda conhece e nem todo mundo tem o perfil.
Essa seria a sua avaliação sobre a importância da bioética na formação dos professores de
ciências?
Eu acho que a Bioética deveria estar presente em todos os currículos, principalmente
de professores. Porque ela vai fazer esse profissional ser um profissional mais aberto. Mais
aberto aos problemas, mais crítico, no sentido da crítica construtiva, e vai sair, e isso seria um
diferencial, ele vai sair entendendo que ele vai construir uma nova sociedade a partir da sua
ação e da ação dos seus alunos que são cidadãos que ele está ajudando a formar.
119
Então, ele não deve impor as suas idéias porque agora ele é professor, pelo contrário.
Porque agora ele é professor, ele deve orientar seus alunos que desenvolvam o espírito crítico,
coisa que a nossa escola, infelizmente, tende a abafar. Então, nós precisamos de professores
que voltem a incentivar o aluno a dizer o que ele pensa, a dizer o que ele acha, a orientar a que
eles fundamentem de uma forma correta o que eles pensam, porque as vezes eles acham sem
fundamentar...que o professor volte a ser um orientador, não aquela pessoa que só ministra
uma aula e que impõe porque é superior.
Penso que esse ciclo educativo tem que ser modificado. Eu acho que a bioética
ajudaria pessoas mais abertas, cabeças mais abertas aos problemas, uma crítica construtiva.
Uma vontade de crescer junto com o outro, não de uma forma sozinha. Principalmente na área
da educação. Parar com essa competição...a competição é uma coisa salutar até um certo
ponto. Mas quando se está tratando de sociedade, o mais importante é o coletivo não o
individual. Eu acho que isso tem que ser desenvolvido.
Bom, essa noção... eu tenho uma formação de bióloga mas, de repente, um advogado,
um filósofo, vai me ajudar a ver melhor aquele problema que nós estamos todos convivendo,
isso é uma riqueza para a sociedade. Pessoas com esse tipo de mente aberta.
Eu acho que é imprescindível a bioética na formação de educadores. Mas, não
necessariamente esses educadores virem a ser professores de Bioética.
A teoria da educação sempre defendeu, o professor que orienta... já nem sei mais quem
são os educadores agora. Por quê? Porque eles tentavam colocar na prática o que eles
defendiam na teoria, o que é muito difícil. E é muito difícil porque o nosso aluno pelo sistema
educacional, enquanto ele está numa escolinha ele é uma pessoa extremamente autêntica, ele
decide o gosta e o que não gosta. A medida em que ele vai crescendo, ele vai aprendendo que
para ele subir, para passar de ano, ele tem que agradar o professor, ele acaba tendo que dizer o
que o professor quer que ele diga. Então fica aquele quadro de mediocridade, onde ele faz de
conta que aprende, eu faço de conta que ensino. E não é isso que se quer. Então, quando se vê
a educação da época da Grécia, do Aristóteles conversando com seus alunos, ele queria
desenvolver o espírito crítico, pela observação, e isso se perdeu... mas eu acho que o cerne da
educação continua sendo o mesmo. O que está se tentando é de que maneira vai se colocar na
prática.
Agora, ainda no Brasil, a educação não é uma profissão porque não pagam o que ela
deveria, o que o educador deveria receber... É uma das mais importantes que tem, em
qualquer área. Um país sem educação é um país comandado.
120
Então eu acho que a bioética ajuda muito no desenvolvimento do espírito crítico,
mesmo dentro de um local que, teoricamente, deveria ser mais aberto. Mas, na própria
universidade muitos professores ainda pedem que seus alunos digam o que eles querem e não
o que seus alunos querem dizer, o que os alunos pensam, o que eles gostam, desde que bem
fundamentada.
Por exemplo, eu trabalho em bioética com o uso de animais. Então, se um aluno me
diz “eu acho que todos os ratos devem ser abertos sem anestesia”. Isso é absurdo. Mas ele vai
ter que usar argumentos muito fortes para me convencer. Muito fortes...isso seria uma coisa
muito radical, nunca vai acontecer! Mas, tu tens que ensinar ao aluno a importância da
argumentação. Com uma boa argumentação ele realmente consegue mudar conceitos e inserir
valores novos. Então, tem que aprender a argumentar, e tu só argumentas sobre aquilo que tu
acreditas. E tu só acredita naquilo que tu internalizou, pensou, refletiu, e conceitua de uma
forma própria. Então, é um conceito que vem de dentro. Se tu acredita, tu defende,
argumenta... e isso aí falta muito para o nosso aluno, e em qualquer nível.
As vezes o professor reclama: mas o aluno não sabe escrever. Claro que não sabe
escrever. Ele não sabe defender o que ele pensa, na verdade ele não sabe nem o que ele tem
que achar. “Professor, o que tu queres que eu ache? Queres que eu ache que é bonita aquela
parede branca? Então eu vou começar a achar a parede branca bonita!” Porque é o professor
que tem o poder de passar o aluno, de dar a nota...
Então, quando o professor é um pouco mais aberto, ele se destaca. Por quê? Porque
aquele professor é legal, ele me ouviu, ele não me ralou quando eu disse que é um “saco” isso
aí. Não, tudo bem. Eu só te dizer por que tu deves estudar isso, de repente na tua vida vai ser
importante... então ele tenta justificar por que é importante estudar aquela matéria que para
aquele aluno é um “saco”. Não existe o curso perfeito nem todas as matérias maravilhosas, e
nem todos os professores são fantásticos. Mas existe um respeito ao outro, que nesse
momento é aluno, amanhã é colega. Infelizmente isso não é vivenciado por todos os
profissionais, uma coisa muito complicada. E isso não tem nada a ver com a bioética.
Isso acontece muito de professores serem professores sem terem formação de
professor. Acontece muito. A pessoa pode ser um excelente profissional, mas não ser um
excelente professor. E uma coisa não tem uma ligação direta com a outra. Ele pode ser um
excelente conferencista, por exemplo, mas para dar aula tem que ter aquela interação com o
aluno: olho no olho, gostei e não gostei, o que tu estás pensando, vamos negociar...que é do
professor.
121
Professor, eu acho que é vocação. Eu sou professora, desde pequena eu quis ser
professora, adoro o contato com o aluno. Eu acho que me alimento do convívio com o aluno.
Tem gente que acha que é muito bom na PUC em julho e janeiro quando não há alunos, e daí?
É uma coisa meio contraditória. Mas não tem nada a ver com a bioética. Eu já estou levando
para o outro lado!
Se os professores não têm condições, de todos serem conhecedores da bioética, ela
poderia ser inserida em todos os currículos com inserções pequenas no decorrer de todos os
semestres. Em determinada aula, vai o professor de Bioética e dá “onde surgiu a bioética”, vai
outro e levanta um problema de “bioética e o uso de animais”, depois, em outro semestre, tu
vais ter Bioética e o uso de cadáveres, e assim tu vais levando o aluno a desenvolver o espírito
crítico em problemas conflitantes do cotidiano da profissão dele. E isso pode ser feito em
qualquer curso.
Então, um processo. Duas ou três aulas, que o aluno vai entendendo, vai madurecendo.
E aí tu fechas, no último semestre, com uma disciplina de Bioética, ministrada por um
bioeticista. Daí sim , com estudo de caso, de avaliação. Então o aluno já está mais maduro em
relação à profissão, está quase se formando, que ele vai entender o que é a bioética, o que não
o caracteriza como professor de Bioética ou como bioeticista. Mas, faz com que ele entenda a
importância de ter uma cabeça aberta, ouvir a opinião dos outros... então, uma coisa bem
interessante nessa formação.
122
Entrevista com a Profª. Drª. Clarice Alho (CA)
Irei começar antes da Bioética. Começarei pela Ética. Eu farei um esclarecimento
quanto à linha de raciocínio. A ética é uma parte da filosofia, e é uma parte da filosofia que se
dedica a entender o porque das coisas, não somente a entender, mas a refletir sobre o porque
das coisas. Então, entender por que determinadas condutas serão feitas ou não.
Os dilemas mais conhecidos na área das ciências são, por exemplo, o aborto, porque
tem todo o lado da mãe que quer abortar e que tem os seus argumentos e do bebê que está se
desenvolvendo e que tem argumentos para que ele continue vivo. Então é um dilema. E a
ética é a parte da filosofia que vai estudar porque as coisas vão ser definidas, porque num
dilema você tem que tomar um rumo, é sim ou não. Só que não existe o que é certo. As
questões morais e as questões legais ainda podem dizer se isso é certo e isso é errado, isso é
legal e isso não é legal. Isso não é moral, passível de protesto, e isso é moral. Mas, na ética
não tem o que é certo ou o que não é. Tem o que é melhor de acordo com a discussão e a
reflexão dos porquês que cada uma das pendências esta argumentando.
A Bioética é, nas questões da ética, tudo o que trata das questões da vida. Então, um
assunto agora tratado próprio da Bioética, a assinatura do Protocolo de Kioto: liberar ou não o
gás carbônico para a atmosfera, mais do que já se libera? E aí tem os países signatários, como
os EUA, que mais liberam, que não assinou. Então, é um assunto que entra no âmbito da
Bioética entender por que o assinar ou o não assinar um protocolo de cuidado com a emissão
de gás carbônico na natureza. Eles tomaram essa decisão, e essa decisão de não assinar foi
porque eles terão um problema econômico importante e não interessa o resto do mundo.
Então, para eles aquilo é o certo, para nós aquilo é o errado. Mas não existe quem diga se é
certo ou é errado. Será uma discussão a ser debatida eternamente.
Então, não tem uma coisa que é certa. Existem coisas que são eticamente deliberadas
ou discutidas, ou coisas que não são eticamente discutidas. Ou seja, se tu fores tomar uma
decisão imediata sem nenhuma discussão anterior, isso aí não foi eticamente discutido, porque
a ética é a parte onde tu vais refletir e essa reflexão ela tem que ser o mais abrangente
possível. Então, ela tem que ter todos os profissionais, todos eles têm que ser considerados.
Então, para essas questões da natureza, por exemplo, não adianta tu reunires, para essa
questão da emissão, por exemplo, eu chamei representantes de cinqüenta ONGs para o
benefício da natureza... claro que aqueles cinqüenta serão favoráveis. Então, isso não é o
ideal. Ideal é que venham aqueles de ONGs favoráveis mas que venham também aqueles
preocupados com o progresso da economia do mundo, o empresário que precisa manter a sua
123
empresa com quatro mil funcionários e se ele não puder emitir o gás carbônico ele terá que
fechar a sua empresa... Então, todos terão que entrar na reflexão, para que se tome uma
decisão sobre o que é mais adequado a se fazer no caso de um dilema.
Então, isso aí é uma área super vasta. O que eu foco agora é o foco para os professores
no ensino da Biologia. Esse foco, para os professores do ensino já é algo super rico, e para o
ensino da Biologia então, a riqueza aumenta e mais do que tudo, porque eu sou bióloga, eu
vejo a parte da Bioética voltada para todos esses profissionais. Então, o professor de Biologia,
a princípio o ideal, de uma maneira ampla, teria que para ser professor de qualquer área de
conhecimento, ou qualquer pessoa da face da Terra, tivesse capacidade de agir pensando em
todas as considerações. Que todos, homens e mulheres agissem coletivamente para um bem
comum, isso seria o ideal. Mas, não vamos ir tão além, vamos ficar mais voltados ao ensino
da Biologia.
Quem ensina os professores a serem professores de Biologia, são os professores dos
cursos de Licenciatura. Então, eu sou professora do curso de Licenciatura em Ciências
Biológicas e eu ensino os meus alunos Biologia, para que eles venham a ensinar. O meu
compromisso com eles, no caso eu sou professora de Genética, é ensinar Genética. Então, se
eu não ensinar, ninguém mais vai ensinar. Então, é uma tarefa minha. Se eles não souberem
genética ao serem biólogos, a culpa é minha. Tudo bem, que eu vou precisar que eles
contribuam para o aprendizado, mas essa é a minha tarefa. Eu posso ensinar genética das
formas mais variadas, cada professor fará isso, mas tem um conteúdo mínimo necessário que
eu tenho que ajudá-los a entender.
Muito bem. Eu não preciso ter dentro do meu cronograma aulas de Bioética, na
Genética, por exemplo. Mas, eu tenho que conseguir que ao ensiná-los, ao facilitar o
aprendizado deles na área da genética, conduzi-los pra que eles vejam como as questões dos
sujeitos envolvidos com a genética tem valor, tem importância. Então, eu vou ensinar a
genética dentro da genética humana, animal, ou a transgenia, ou a clonagem que são assuntos
da genética, de um ponto de vista técnico, mas também dos outros pontos de vista. Quanto
mais amplo eu conseguir passar esse aprendizado, melhores eles serão como profissionais.
Profissionais que futuramente vão trabalhar com Genética ou professores que ensinarão
Genética para os seus alunos do ensino médio.
Eu sempre digo assim: existem pessoas que têm sorte de terem na família um pai ou
uma mãe que se preocupam em passar esses ensinamentos e há pessoas que não têm. Então,
as vezes a gente encontra pessoas que já estão na segunda década de vida, e que não
conseguiram aprender coisas básicas, por falta de oportunidade de aprender. Se estas pessoas
124
um dia chegam na academia, e elas vão sentar na minha frente como alunos, e eu percebo que
elas não tiveram durante esse tempo de vida essa oportunidade de aprender, cabe a mim
ensinar, ou pelo menos, cabe a mim mostrar que existe aquilo. Isso faz parte da formação dos
alunos...
Então, eu tenho essa percepção. Eu tenho como tarefa, não como obrigação, dar
formação àquelas pessoas que semestralmente estão comigo; a formação profissional na área
da genética e a formação pessoal na área deles serem bons profissionais. E isso me importa
muito. Eu sempre digo que eu gostaria de ver os meus alunos como os melhores biólogos, eu
ficaria orgulhosa. Em verdade eu gostaria muito de saber que os meus alunos fossem ótimos
biólogos. Por outro lado, eu adoraria ver no mundo inteiro, quem fosse biólogo, fosse um
ótimo biólogo. O ideal seria isso. Mas, eu não tenho acesso ao mundo inteiro. Eu tenho acesso
àquelas cinqüenta pessoas por semestre que se eu puder contribuir para isso, já é um bom
avanço para o que é o crescimento da humanidade. Este é o meu papel dentro da genética.
O professor que ensina Entomologia, ele tem que ensinar quantas pernas, o abdome,
etc, ele tem que ensinar a parte da Entomologia para que aquele biólogo saiba a parte de
Entomologia, mas se ao mesmo tempo ele conseguir ensinar isso ensinando uma percepção de
respeito aqueles animais da natureza como seres da natureza tanto como qualquer um de nós,
aquilo fará com que aquele profissional biólogo, além de saber entomologia, será um melhor
profissional.
Muito bem, esse aspecto resume o que eu acho que não se necessitaria ter uma
disciplina específica de Bioética. Por exemplo, no terceiro nível, da 1 às 3 horas da tarde, aula
de Bioética, e ali tu vais aprender Bioética. Não, o ideal seria que durante os quatro anos em
que o aluno vem para a Faculdade, todos os professores tivessem uma visão ampla o
suficiente que, ao terminar aquele curso, os alunos saíssem bons profissionais. O que seriam
bons profissionais, aí voltando lá no início, é aquele profissional que além de realizar a sua
tarefa, da sua atuação profissional, ele pensa em todos os outros aspectos, e respeita os outros
aspectos. Eu tinha uma colega que era do Marrocos, durante o meu doutorado na Espanha, e
ela usava aquelas roupas que cobrem todo o corpo, só não cobrem o rosto, e às vezes fazia 35°
graus. E eu achava um absurdo que ela usasse aquelas roupas. Ela usava uma calça de abrigo
comprida e uma bata por cima, meia, sapato... E, na verdade, aquilo me incomodava. Até uma
vez que, eu as outras colegas, na frente dela com vestidinhos de alças na frente dela. Eu não
falava com ela... E certa vez uma das nossas colegas perguntou se ela não sentia calor. Na
verdade, a pergunta não era pra saber se ela estava com calor, mas para saber por que ela
usava aquelas roupas. E ela disse que não sentia calor e disse também: “eu fico com pena de
125
vocês, porque vocês não são puras”. Então, esse exemplo sempre foi legal para eu pensar que
não tem quem diga o que é certo ou o que é errado. Não existe um ser no mundo, um deus que
diga “essa pessoa é certa e essa é errada”. Não existe. Pra ela, pra religião dela, na cultura
dela, ela é a certa. Para mim, para a minha cultura, eu sou certa. E não tem quem diga que eu
estou certa e ela errada. O que tem é o seguinte: ambas vamos conviver naquele ambiente, e
eu tenho que respeitar ela, não querer que ela mude e ela não querer que eu mude. E a gente
tem que saber conviver.
Então, da mesma forma, quem vai trabalhar com biologia tem que aceitar
determinadas coisas que, vamos supor que eu ache que eu devo fazer um procedimento
terapêutico, terapia gênica no paciente porque eu acho que ele vai melhorar, porque eu vejo
que ele vai se curar daquela doença herdada, que ele vai ter uma qualidade de vida melhor,
que eu quero, quero, quero... Mas se ele não quer, eu não tenho que ficar revoltada,
inconformada. Eu tenho que entender os porquês das coisas. Por que ele não quer? Ele não
quer por causa disso, disso, disso. Não interessa o porque ele não quer, não vem ao caso.
Então, eu não poderei obrigá-lo.
Ou, eu tenho um paciente que tem uma doença rara, que se eu fizer uma análise de
DNA e publicar aquela raridade da doença dele, eu vou contribuir com a comunidade
cientifica, eu farei que o mundo inteiro saiba daquelas alterações genéticas dão aquele
fenótipo, e isso vai ser uma contribuição importante, porque é a única pessoa no mundo com
aquela alteração. Mas, se aquela pessoa não quer que o seu DNA seja avaliado, eu tenho que
respeitá-la, e isso é o que vale.
A Bioética tem os quatro princípios, um deles é a autonomia, depois a justiça, a
beneficência e a não-maleficência. Então, a tendência das coisas dentro do que é ideal, é que
se seja justo, que se faça o bem quando se pode, que não se faça o mal nunca e que se dê
autonomia para quem está envolvido. No caso dos exemplos que eu dei, se a pessoa não quer
participar, ela tem o direito de não participar e eu tenho que entender.
Bem, isso em relação ao ensino, eu estou dizendo o que seria ideal. Agora, do ponto de
vista prático, eu vejo que a situação atual é bem diferente da ideal. Ela não está tão afastada
do ideal, algumas coisas estão próximas, mas ela está diferente.
Primeiro, eu acho que esses pensamentos coletivos não são novos, não sou eu que
estou dizendo isso. Eu sempre digo, que nos achamos cheios de idéias, daí se lê os livros de
Aristóteles, que há dois mil e tantos anos ele já dizia aquilo, ou seja, nenhuma novidade. Só
126
que na minha cabeça eu nunca havia me dado conta que a importância desses pensamentos
coletivos não é nenhuma novidade. Jesus Cristo já falava disso.
Mas, a novidade que eu vejo é o acesso à informação. Eu acho que nessa última
década nós tivemos muito acesso à informação, mais do que antes. Nem todos os profissionais
têm interesse em acessar a informação. Todos os dias é um publicado um jornal, mas nem
todos nós lemos, as vezes por falta de tempo ou por falta de prioridade.
Então, a questão é esta, por conta disto, ainda tem muitos profissionais biólogos que
não têm essa reflexão ética dentro da sua profissão. E muitas vezes esses profissionais são
professores de quem vai ser professor. Ele gera alunos que também não pensam desse jeito. E
isso é uma lástima.
Por esse motivo, voltando a outra opção, ter uma aula de Bioética das 2 às 3 da tarde,
durante um semestre, já será um benefício. Porque, vamos supor que o aluno dê o azar que
durante os quatro anos de curso dele, nenhum dos seus professores teve esse cuidado. Pode
acontecer, não é? A gente pensa que aqui não acontece, não sei se aqui acontece. Então, pode
acontecer que haja uma convergência de professores que não estão nem aí pra nada, só estão
preocupados em dar seu conteúdo técnico, e o aluno pode passar quatro anos sem ter a
oportunidade de uma formação pessoal mais cuidadosa.
Nesse sentido é bom que tenha, nem que seja uma hora por semana, durante um
semestre, alguém que abra a cabeça do aluno. Ou seja, que veja que tem muitos autores,
pensadores, que se preocupam com isso duma forma teórica, e não só em relação aos
preceitos religiosos, mas uma coisa teórica da bioética. E, que aquilo possa ser discutido, duas
horas por dia, durante um semestre, isso algum benefício vai ter.
Então, por esse lado, se os currículos de Biologia, de formação de licenciados em
Biologia, que vai ser aquele habilitado para dar aula, tiverem pelo menos isso, algum sucesso
já estará garantido para que aquele profissional seja melhor. E para isso se espera que as aulas
sejam bem aproveitadas, e não somente para cumprir carga horária.
Penso que seja nesse sentido.
127
Entrevista com o Prof. Emílio Jeckel (EJ)
Eu vejo assim: dentro da nossa própria área, a área da Biologia, está direto.
Atualmente eu trabalho com duas disciplinas: uma que chama Seminário Integrador, no
primeiro nível, que tem a tarefa de integrar, de trazer o aluno à consciência de que ele entrou
para a vida acadêmica, é o primeiro nível, logo que o aluno chega. Esse é o currículo novo,
que nós montamos, de Ciências Biológicas, que na verdade está formando professores de
Ciências e Biologia. Tem essa proposta pedagógica, de formar professores de Ciências e de
Biologia.
Então, nesse primeiro encontro dos alunos com o meio acadêmico, situa eles, por
exemplo, o que é a vida acadêmica, o que é a universidade, o que é a profissão de biólogo,
áreas de pesquisa, e a parte do biólogo como professor, como educador. Seminário Integrador
I, são quatro Seminários. Então essa disciplina de Seminário Integrador tem essa função, no
caso do Seminário Integrador I, que os alunos estão chegando, tem esse enfoque. Então, no
primeiro nível os alunos têm outras disciplinas que tem que trabalhar em conjunto. Eles têm
Tecnologia da Informação aplicada às Ciências Biológicas, eles têm Biodiversidade I, eles
têm Matemática para biólogos, Biologia Celular e Tecidual. Então, no primeiro nível eles têm
ferramentas que irão precisar para o seu trabalho. Muitos já sabem mas, por exemplo, muitos
nunca tiveram um contato direto com a computação, trabalhar com um computador, internet,
essas coisas todas. Então, eles aprendem a buscar a informação na internet, nos bancos
científicos, etc., e depois os professores estarão utilizando essas ferramentas. E assim vai
indo. Então, nessa disciplina, como o aluno tem essa visão geral, essa entrada no mundo
acadêmico, é o momento também que eles serão apresentados ao que significa Bioética. Na
verdade, eles também serão apresentados ao que significa Ética também, a ética como um
comportamento. Então, a professora Anamaria Feijó, que trabalha com a bioética, tem uma
participação específica, ao trabalhar com as linhas gerais, o que significa, o que tem a ver a
bioética, e depois, esse tipo de coisa é trabalhado dentro do curso, não como uma parte da
disciplina, ou algo parecido, mas naqueles assuntos transversais dentro do nosso cotidiano. Da
mesma forma como a gente trabalha a evolução como um assunto transversal, ele trabalha a
bioética como um assunto transversal. Por exemplo, na Biodiversidade, eles irão fazer
trabalho de campo, já no primeiro nível, eles vão lá para o Pró-Mata. E o que eles irão fazer
lá? Já terão o seu primeiro contato com o campo, com o ser vivo. E o que eles farão com isso?
Vão coletar, colocar no álcool? Não, eles não fazem isso, eles tiram mais fotografias do que
outra coisa, e aprendem a conviver junto com aquilo lá.
128
No caso da minha disciplina, que eu trabalho Biologia Celular e Tecidual, eles têm
algumas atividades, nós trabalhamos com células-tronco, diferenciação celular, eles fazem
trabalhos, sobre o que seria terapia celular, por exemplo. Na verdade a gente só aprofunda a
discussão, avança até um determinado momento, deixa mais pra outro tipo de coisas até
surgir, num determinado assunto, um potencial de discussão para que isso ocorra ao longo do
curso, pra que não se esgote numa aula só. Nós temos uma disciplina de Bioética no curso, só
que essa disciplina está colocada no sétimo ou no oitavo nível, que é quando eles têm
maturidade e já conseguem fazer uma discussão sobre Bioética, numa base filosófica para
isso. Então, a estrutura curricular leva a isso.
Dentro das minhas atividades, mais especificamente, é trazer essa discussão. Hoje
mesmo pela manhã, nós apresentamos o trabalho que trata da questão das células-tronco,
diferenciação celular, etc., daí vem aquele momento em que você vai trazendo para discussão
da questão: vamos usar célula embrionária ou não? Por que não, e por que sim? Quais são os
argumentos contra e a favor; quais são as bases que sustentam essa discussão? Chegam a
perceber que tem a discussão científica, tem a discussão ética e tem a discussão religiosa. E
eles mesmos começam a fazer um princípio de discussão. Mas a gente não aprofunda pra não
dar aquele sentido de terminalidade: acabou a discussão, então era isso que tinha que se
discutir e não precisa discutir mais. A questão é deixar isso sempre em discussão. E isso vai
surgindo também em Genética, e a gente vai costurando em outras disciplinas. Quando eu
dava aula de “biologia do desenvolvimento” era a mesma coisa: uma vez nós fizemos um
julgamento sobre se era possível ou não a manipulação de embriões, onde a turma foi dividida
e tinha advogados de defesa, advogados de acusação, tinha júri, tinha juiz, foi um mês inteiro
nessa discussão...
E o senhor percebe diferenças, agora que existe essa disciplina específica de Bioética
no currículo?
Até por necessidade. Como foi uma discussão que surgiu no meio acadêmico para o
público em geral, e os alunos já trazem isso, as pessoas, de alguma forma, têm que se
posicionar, ele não pode ignorar a situação. Não digo que seja mais pelos professores mas
mais pelos próprios alunos.
Então, se dá um questionamento e o cara tem que ter uma posição. E muita coisa
também gira em torno de uma legislação, como o IBAMA, por exemplo, quando eu tenho
uma atividade que envolve a coleta de animais, eu tenho que ter a autorização do IBAMA. E
129
os alunos sabem disso, que só terão aquela atividade na disciplina, porque alguns dos seus
professores são cadastrados e têm autorização para tal atividade. Não é sair por aí
coletando...então, é uma questão de legislação mesmo.
Na própria disciplina de Seminário Integrador I e depois na de Seminário Integrador
II, nós trabalhamos com o código de ética do biólogo. Os trabalhos em grupo acontecem, e
sabe como é, e todos devem colocar o nome, assinar e dizer quantos por cento foi a
participação deles no desenvolvimento do trabalho. E em cima está escrito o código de ética
do biólogo, e isso é discutido em aula com eles, e daí tem que colocar a assinatura, tem que
ter o compromisso com aquilo ali, ...e isso gera discussão no grupo. Eu já estou com essa
ficha há quatro semestres, e tem um grupo pelo menos, a cada semestre, que “fecha o pau”.
Eu só digo a eles que a soma da participação tem que fechar 100%. Eu não estou falando
nada, só que todos devem assinar e determinar quanto foi a sua participação no trabalho. É daí
que aparecem as discussões nos próprios grupos. Provoca a inquietação, não deixa aquilo
parado. Outra coisa que eu costumo fazer é a chamada por assinatura. De vez em quando eu
confiro, daí surgem assinaturas diferentes e eu questiono. Então, são situações que a gente cria
exatamente para ver se conscientiza a pessoa. Não basta só ficar no discurso, se tu não crias
situações que eles vivenciem, pois o momento na universidade é o momento de vivenciar. Eu
digo isso a eles: aqui é o momento de vocês vivenciarem coisas, pra que depois, lá fora,
quando vocês estiverem sozinhos, por conta própria, as coisas estejam dentro da cabeça de
vocês como um comportamento, como um ato integrante do profissional que vocês devem ser.
Então, não adianta ficar no discurso. A gente coloca a situação, faz a discussão, mas tem a
prática. E como é que eu faço a prática de ética? Ou prática de Bioética? E esse exemplo que
eu dei é a prática! É criar situações para que de fato isso aconteça.
Até o fato deles saírem daqui e trabalharem com outros colegas, por exemplo numa
escola, como é que fica esse comportamento entre os profissionais? Existe um código de
conduta e é isso aí. E já no primeiro dia a professora Anamaria deixa bem claro isso: “esse
fulano é ético e esse outro não é ético. Não, o que existe é um comportamento eticamente
adequado e outro eticamente inadequado”. Então, aos pouquinhos a gente vai entrando no
assunto ao longo de todo o curso. E, lá no final, eles terão a discussão teórica na disciplina.
E com isso, eles também começam a observar os próprios professores. Eles começam
a questionar o comportamento dos professores. Não é porque são professores que estão acima
do código de ética, acima da lei, não é por aí. E essa é a idéia, que se crie um ambiente
saudável com regras, condutas, mas que se possa trabalhar tanto em relação ás pessoas quanto
ao conteúdo que se trabalha.
130
Entrevista com o Prof. Dr. Roque Moraes (RM)
Eu vejo essa questão de trabalhar a Bioética como algo semelhante a trabalhar a
interdisciplinaridade. Não é numa disciplina que se resolve. Eu acho que isso tem que ser uma
atitude, um modo de enxergar as coisas e isso tem que perpassar um conjunto de disciplinas.
E no mesmo sentido da questão da formação do professor, que também, num curso, não são
disciplinas especificas de Didática, de Prática de Ensino, que fazem o professor. O que tem
que fazer o professor é um conjunto das disciplinas todas que trabalham integradas e com a
visão mais ou menos compartilhada de que professor se quer formar. E isso significa
desenvolver atitudes de professor, desenvolver muito mais do que conhecimento
especificamente, ou seja, tem que saber lidar com o conhecimento, saber o que tem que ser
valorizado, o que significa ser professor. Vivenciar isso. É isso que a gente têm discutido
muito, porque os nossos cursos de formação, geralmente, até a Pedagogia eu poria junto, não
tem um trabalho integrado. A Pedagogia agora está criando um novo currículo. Só que a
questão é que não depende só de ter um currículo, pode ter uma idéia bonita, que as pessoas
que pensam o currículo acham que vão implementar, mas se o professor não souber fazer
aquelas coisas, não funciona.
Vamos lá pra Química, por exemplo, a maior parte dos professores hoje substituíram o
quadro negro pelas lâminas, mas no fundo é o mesmo princípio de achar que está passando
conteúdo para o aluno, não deixa o aluno participar do processo.
Todos os professores do curso de formação deveriam, pelo menos, ter uma procura de
algo comum, que é essa idéia do que é esse professor que queremos formar, se preocupar até
mesmo numa disciplina, de Química Geral, por exemplo, eles estariam preocupados com a
formação do professor. Mas a maioria não está preocupada com isso. Então o aluno começa a
ter contato com isso quando vai fazer as disciplinas mais específicas da área de formação, no
caso da Química nós temos o Tutoramento, quando começa a entrar em contato com a escola,
etc., mas, na verdade, aquilo que a gente discute com eles e defende, não é o que acontece nas
disciplinas que eles estão fazendo. Então é uma coisa totalmente contraditória, que não tem
coerência. A maioria das disciplinas não assume a formação do professor, apenas quer passar
conteúdos.
Então, o que eu estava dizendo que tinha uma aproximação com a idéia de Bioética, eu
não sou expert nisso, mas imagino que ela é algo que tem que perpassar um curso todo. As
pessoas têm que praticar isso. Não adianta o professor falar disso e o próprio professor não
fazer, não mostrar essa compreensão na sua prática. Eu acho que é uma atitude, um modo de
131
agir, um modo de fazer pesquisa, de se portar, e isso teria que se mostrar em qualquer
momento, começando pelo próprio professor no modo como ele considera o aluno. Quantos
professores, provavelmente, não fazem nada disso? Muitas coisas que implicam o professor se
transformar também, saber reconhecer mais o aluno, o trabalho que o aluno faz. E isso não é
muito simples, não é muito fácil. Talvez por aí comece o respeito às diferenças.
A própria Bioética é algo que implica em uma abertura que só apareceu agora com a
mudança em termos da concepção de mundo, de participação das pessoas, de valorização de
nós seres humanos num contexto maior, de respeito aos outros seres vivos, que até cem,
duzentos anos atrás, ninguém pensava nisso.
Eu me lembro de uma visita à África que nós fizemos, tinha lá, não sei se era um
museu, que eles explicavam como é que eles lidavam com os animais. Então há umas
centenas de anos tinha aquelas manadas de búfalos, que eles iam, por puro prazer, atiravam e
deixavam lá, matavam por matar. Nem aproveitavam os animais mortos. Agora, hoje as
pessoas já têm, eu acho que toda cultura humana já evoluiu nesse sentido. Hoje tu vais ao
interior e os “gringos” não matam mais passarinhos. Lá na minha terra, quando eu era guri, os
heróis eram aqueles que matavam mais. Mas hoje, tu vais lá e não é mais assim. Agora, isso é
uma atitude. E como é que apareceu? Eu acho que envolve toda uma série de transformações,
a cultura que evolui que é diferente, até porque quando essas pessoas vieram pra cá, os
alemães e os italianos, era uma questão de defender a sua vida, sua sobrevivência. Eles
estavam num ambiente hostil e essa era a forma de se defender.
Não sei se, necessariamente, essa mudança de cultura passa pela escola. Certamente
contribui, mas eu acho que é algo mais amplo. Acho que é todo um envolvimento nosso, da
humanidade, dessa abertura em termos de dividir o poder, das pessoas compartilharem o
poder e não como antes que o poder era absoluto. Isso começa a ser compartilhado. Então é a
cultura num sentido amplo que vai se transformando até por influência de outros tempos que
as pessoas não conheciam. Será que os chineses, os japoneses, como será que era a relação
deles com os animais?
(Pergunta sobre a sua vivência em aulas, com situações de conflito, nas quais o senhor
observou a falta da abertura ou preparação necessária para a discussão por parte de algum
aluno).
Atualmente aqui na PUCRS eu trabalho com professores de Ciências no mestrado. Na
graduação eu trabalho com a formação de professores de Química.
132
Infelizmente, eu diria que todos os nossos alunos vivenciam uma escola que é muito
autoritária nesse sentido de não participarem na discussão das questões. Agora nós estamos
com essa experiência de avaliação de livros de Ciências, de 5ª a 8ª série, e hoje o próprio
edital, via MEC - os PCNs, está exigindo que essas questões sejam trabalhadas, mas nos
livros, na verdade não tem. Então, tem no manual do professor, eles incluem algumas coisas
assim, mas no livro não tem.
Eu entendo que é ainda pouco valorizado isso. Até nessa questão de considerar
realmente o aluno na sala de aula, porque muitos professores acham que tem que tratar o
aluno, eles acham que tem que tratar o aluno a “pau”, porque ele tem que aprender, tem que
ficar quietinho na sala de aula, não tem direito a voz, a falar. O aluno só tem que ouvir e
responder depois. Eu acho que isso também é uma questão que está por trás de tudo. São
mudanças que custam, ao ponto que lá no mestrado mesmo, se tu fores ver, algumas são as
disciplinas que tratam o aluno como deve ser, com mais respeito, que deixem o aluno falar,
deixem ele opinar. Ao praticar isto é que entendo que se está propiciando espaços para
aprendizagem e prática da ética.
Acho que tem tudo a ver, não estou dizendo que é a ética diretamente, a questão da
ética. É importante essa abertura para o aluno falar, porque é assim que ele vai reconstruir o
seu entendimento das coisas, a sua atitude em relação a isso. Na hora em que ele vivencia em
aula uma situação de discussão contigo, ele vai refletir: “a professora argumentou, explicou os
porquês”, e isso é uma coisa que certamente afeta o aluno.
Essa questão da Bioética mais é pela questão cultural, de contatos, como por exemplo
a questão dos riscos nas atividades experimentais. Nesses livros nem aparece mais essa
questão, eu acho que para os autores dos livros foi tão cobrado isso em anos anteriores que
isso já está superado. Não tem mais nada disso. Ao contrário, deixa de fazer muitas coisas
práticas, até por medo que os alunos possam se machucar, se queimar, etc.
Aí vem essa parte de não trabalhar tanto com animais, essa coisa toda. Tem tanta coisa
que dá para se fazer de forma alternativa, muitos outros recursos de substituição, sem ter que
sacrificar os animais.
133
Entrevista com a Profª Drª Valderez Lima (VL)
Acho que, antes de falar em bioética, tem-se que falar em ética em relação à profissão.
A ética com relação não só a mim dentro da sala de aula como também, sabendo que a gente
acaba sendo um modelo, que é assumido pelos alunos até determinado ponto, quando eles
consolidam sua identidade profissional, eu acho de extrema importância essa perspectiva
ética, a preocupação com isso que o professor deve ter.
Então, eu como professora de ensino superior, trabalhando com licenciandos da
Pedagogia ou de outros cursos, no momento só da Pedagogia, eu acho que fica dentro desse
item de ética, algumas questões como a coerência que eu devo ter, que eu acho que eu devo
ter, uma certa vigilância em relação a prática que eu mantenho, de coerência entre o que eu
digo e o que eu faço.
Por exemplo, se eu me proponho, e é o que eu proponho, a defender uma perspectiva
sociointeracionista de trabalho, eu tenho que trabalhar dessa forma com os alunos. E eu me
lembrei disso agora, que me chama a atenção que os alunos mesmo apontam isso: “ah
professora, na minha turma de magistério eu aprendi tudo isso, só que a professora falou isso
expositivamente e a senhora está fazendo a gente vivenciar”. Então eu acho que, buscar essa
coerência entre a prática e aquilo que tu dizes que é bom, tem que existir. Que de vez em
quando a gente não escorregue, porque há uma tendência a se escorregar, mas se tu estás
vigilante, se tu estás disposta a repensar a tua prática permanentemente, tu te dás conta
“naquela hora eu fui bem tradicional ao trabalhar tal coisa”.
Uma outra questão que eu também acho que diz respeito a ética e o professor, é o que se
refere ao respeito ao aluno, a ser capaz de ouvir aluno, tentar entender o que ele está te
dizendo, o que ele quer dizer, mesmo quando ele diz o maior absurdo acadêmico, teórico.
Tentar entender por que ele disse aquilo, qual foi a lógica dele, e não ironizar, na pior das
hipóteses, ou fazer que não ouve, na melhor das hipóteses. Ou seja, tentar entender: “mas por
que tu me respondeste tal coisa? O que tu pensou pra me responder tal coisa?” eu acho que
isso é uma questão que tem a ver com a ética profissional também.
Outra coisa é acreditar no teu aluno. Eu acho que essa é uma questão ética. Todos os
alunos são capazes, todos eles são extremamente capazes de atingir os objetivos que tu propõe
aquela turma. Agora, tem que lidar com cada um de forma diferente pra que ele atinja esses
objetivos? Tem. Eu sempre penso nessa questão e falo com as minhas alunas sobre isso, afinal
elas serão professoras, que é muito importante a gente tentar dar aula para aquele aluno que é
desinteressado, que é rebelde, que sai várias vezes da sala de aula, porque, pra quem está ali já
134
todo motivado pra aprendizagem, para esse é fácil. O grande desafio que a gente tem é
conseguir fazer com que os outros também se interessem. O que não quer dizer que eu
consiga sempre, mas sabendo que esse é o ideal, a gente tenta ir até onde é possível ir.
Agora, indo para a área das ciências, eu acho que têm três coisas que são importantes e
que eu cuido muito nas minhas aulas na pedagogia, que eu dou Metodologia do Ensino de
Ciências: a primeira delas tem a ver com o que eu falava antes, fazer com que as alunas
entendam como é que se trabalha, e vivenciem, e experimentem, e se arrisquem a criar
propostas de trabalho numa perspectiva sócio-interacionista.
A segunda é que eu estou permanentemente trazendo questões ambientais pra que sejam
cuidadas. Cada vez que se fala nisso, seja porque a atividade que eu estou fazendo tem a ver
com isso, ou porque lá pela metade do semestre são elas que começam a construir projetos, eu
sempre faço com que as alunas insiram conteúdos atitudinais, não dá pra ter somente
conteúdos conceituais e procedimentais, tem que ter conteúdos atitudinais. E esse conteúdo
atitudinal, se é em relação a alguma questão ambiental que elas estão trabalhando, e elas
gostam de trabalhar esse tipo de assunto, então, é uma exigência daquele projeto que elas
coloquem oportunidades, que elas pensem em como fariam os alunos delas pensarem, e
refletirem e se conscientizarem sobre as questões ambientais.
A mesma coisa em relação ao corpo que é outro assunto que elas trazem muito. Corpo
humano, sexualidade, etc., trazer toda essa discussão que tem hoje em dia a respeito de o
corpo não ser fragmentado, que aquele corpo tem toda uma historia, uma identidade. Então,
nas séries iniciais é muito fácil de aliar essas coisas, mas muitas vezes elas não se dão conta
disso, pra elas...ah, então nós vamos fazer um trabalho sobre o corpo humano” daí elas vão
explorar questões do corpo humano, quais são as partes do corpo humano, farão jogos com
isso. E daí eu fico mostrando pra elas, pra que consigam montar um projeto, ligando com a
cultura, ligando com a história da família, contextualizando aquele corpo na sua história. Isso
é muito importante, e eu acho que é uma questão de ética, que eu desenvolvo.
A gente acaba discutindo os dilemas que surgem em torno daquele corpo, essas
questões, até porque tu não consegues propor nada para os teus alunos sobre o ambiente, se tu
própria não parar pra pensar e te posicionar sobre isso. E, freqüentemente, elas são remetidas
a leituras que elas têm que fazer, vão procurar material sobre isso, porque eu considero que
estas questões são muito relevantes de serem trabalhadas.
Também, as vezes aparece a idéia de se trabalhar com animais: ah, então vamos fazer a
dissecação de um peixe! Mas, tanto quanto eu sei, e da época em que eu trabalhava no
CECIRS, tem um parecer lá da década de 90, que proíbe isso em nível de ensino fundamental
135
e médio, não fora isso eu comento com elas a inutilidade que é da gente sacrificar um animal
se a gente pode montar com massa de modelar, com sucata, enfim. Existem várias maneiras
de se visualizar de forma tridimensional, sem que seja matar um ser vivo. Da mesma forma
que tu não vais arrancar a folha de uma árvore, vai aproveitar o que tem caído no chão.
Então, são questões que aparecem e eu estou sempre ligada nisso para não deixar passar,
porque eu acho que é em não deixando passar essas coisas, que elas vão criando uma posição
própria pra se trabalhar nos próximos trinta anos, porque nos próximos trinta anos serão elas
as professoras.
A senhora acha relevante ou necessário que se chame a atenção dos alunos para as questões
bioéticas quando estas estiverem sendo abordadas?Eu acho que sim. Eu acho que se tem uma
disciplina de Bioética ela é inútil, porque é aquela coisa, da mesma forma que eu peço no final
do semestre que elas escrevam um artigo científico sobre o que é o ensino de ciências pra
elas. Então depois de tudo que leram, depois das atividades que eu propus, das atividades que
elas propuseram, enfim, mas tem que ser em forma de um artigo cientifico. E volta e meia
vem alguém me dizer como é difícil escrever, que deveriam ter um curso de Português no
curso. E eu digo que não, que não deveria, que se tivesse seria inútil. Tem que aprender é no
uso, como nós estamos fazendo agora. Eu posso não ser professora de português e deixar
passar alguma acentuação de palavra, mas eu te ajudo e te dou suporte para que tu organize
um texto com lógica, com coerência e tudo mais. Não adianta ter uma aula de Português, e da
mesma forma eu vejo, aligeiradamente pensando, uma disciplina de bioética num curso de
Biologia, ela é redundante, ela tem que ser transversal, todos os professores devem falar nisso.
Porque é um envolvimento muito maior que não é de um semestre, é de todos os semestres, e
que vai fazer com que o aluno pare, pense, reflita, veja diferentes pontos de vista, diferentes
professores falando sobre isso e agindo sobre isso, porque sempre tem uma distância entre a
prática e a teoria que a gente tem que procurar encurtar, mas nem todos os professores
enxergam assim. Então tu dizes uma coisa e faz outra e o que vale é o que tu fazes. Então eu
acho que se o aluno tem a oportunidade de pensar nisso durante oito semestres, uma vez que
seja em cada semestre, é muito mais significativo do que ele ter uma disciplina sobre isso.
136
Entrevista com a coordenadora técnica do Centro de Modelos Biológicos Experimentais,
Luisa Braga (LB)
Sempre trabalhei muito com animais de laboratório. E o simples fato de trabalhar com
animais de laboratório, leva a trabalhar muito a bioética. Como trabalho com vidas,
fornecendo animais para pesquisa, então eu tenho que ter muito presente essa questão da boa
utilização do animal. A gente que trabalha nos biotérios, enfim, que produz animais de
laboratório, é muito visado por fundamentalistas, pelos protetores de animais, não que eu seja
totalmente contra eles, eu acho que eles tiveram um papel muito importante em fazer com que
pesquisadores e produtores de animais, se dessem conta que estavam trabalhando com vidas,
que precisavam restringir numero, aumentar qualidade.
Eu sou representante do Colégio Brasileiro de Experimentação Animal, aqui no sul, e
esse Colégio junto com o Conselho Regional de Medicina Veterinária, está promovendo
fóruns sobre o uso de animais de laboratório no ensino e pesquisa. Porque hoje se bate muito
no uso de métodos alternativos para animais de laboratório, essas coisas de métodos de
computador, cultivo celular, regeneração de tecidos, etc, qualquer coisa que possa substituir o
uso desses modelos, principalmente no ensino. Mas, também, há situações que coisas que
ainda não se consegue fugir, pois testes em células, em computadores, etc... não permitem
avaliação do funcionamento do organismo como um todo.... Então a gente estava levantando
nesse fórum que os alunos saem despreparados de dentro da universidade para a ética, que os
alunos não sabem seguir um manual de ética, que tem pontos que eles nunca tinham ouvido
falar, então que a ética devia ser trabalhada dentro das universidades. E eu disse pra eles: eu
concordo. Eu acho que os alunos precisam aprender, mas eu também acho que tem muitos
professores que precisam também trabalhar a bioética, porque essa bioética é um conceito
novo. Claro que eu acho também que cada um tem a sua ética, agora, tem muitos professores
que precisavam se dar conta da importância que eles têm na formação das pessoas. Eu acho
que tem professores ainda que acham que o simples fato de eles estarem ali já é o exemplo. E
não é bem assim. Tem alunos que pegam exemplos muito ruins de ti, que só vêem uma coisa,
e é o que fica.
Então eu acho que a Bioética deve ser trabalhada sim, dentro da universidade, com
alunos, com professores, em grupos de estudo, seminários, tudo que a gente puder fazer para
conceituar bem a Bioética.
137
Uma das coisas que nós estávamos conversando é sobre a disciplina de Bioética: em
que semestre coloca-la??? bem no inicio ou no final???? na veterinária, eu sou veterinária, a
bioética era no primeiro semestre, e os professores se deram conta que os alunos estão recém
saindo do ensino médio, eles não têm muita noção do que é a carreira deles, do que eles
precisam estar atentos, eles estão muito naquele deslumbramento de ter entrado na faculdade,
coisa e tal. Mas daí se levantou outra questão, e se trabalha essa disciplina lá no final, tu já
pegou todos os exemplos éticos e não-éticos, que poderiam ter sido trabalhados, com
professores que não fizeram bem isso ou aquilo, e tu estruturou isso dentro do aluno. Então, o
que a gente chegou mais ou menos num consenso, é que o ideal seria que tivesse uma
disciplina no início, Bioética I, por exemplo, no terceiro semestre, e que tivesse uma Bioética
mais pro final, onde daí eles já são quase profissionais, uma Bioética II, que tu só
aprofundaria o conteúdo. Mas não deixando de trabalhar a Bioética integrada nas outras
disciplinas, até porque a Bioética não é uma disciplina avulsa, ela envolve um todo.
Na verdade é uma coisa pra ser discutida. Eu há dez anos faço parte do Comitê de
Ética do Instituto de Cardiologia, e cada reunião que a gente faz a gente aprende um pouco.
Cada trabalho que tu lês e cada relato que é apresentado, tu aprende um pouco, porque é
muito diferente a maneira de ver das pessoas no mesmo tempo. Porque existe aquela ética tua
de família, tem outros que puxam mais pras crenças religiosas, outros pra parte do dia-a-dia, é
bem interessante de tu acompanhares o pensamento. Então, é uma coisa que deve ser
discutida, fundamentada.
Cada curso que eu faço de animais de laboratório, eu não sou professora, nunca fui, até
gostaria de ser um dia, mas em cada curso que eu faço, eu sempre procuro fazer com que eles
se dêem conta, primeiro mostrando tudo o que acontece de ruim no experimento de um
pesquisador se ele trata mal um animal. Os animais são super-estressados, principalmente
ratos e camundongos de laboratório, então, se tu não manténs esses animais em condições
ambientais adequadas, só ambientais já basta, tu vais ter resultados totalmente diferentes
daqueles que tu queres. O teu experimento em si vai estar totalmente prejudicado pelo estresse
do animal; o estresse aumenta corticóides, aumenta outros parâmetros, a freqüência cardíaca
aumenta, e assim por diante, uma série de alterações num animal que está estressado. E aí já
começa a ética.
Se tu vais trabalhar numa pesquisa, tens que olhar bem o número. Tu não precisa
trabalhar com cinqüenta animais. Por que tu precisas trabalhar com cinqüenta animais?
Procura na bibliografia, cuida, saber que tu trabalha com vidas, que tu estás sacrificando um
animal... porque é assim: quando tu estás trabalhando com um cachorro, e aí que vem a ética,
138
o cachorro te olha com aquela cara de tristeza, e tu quase morre e não sacrifica, e tu já lembra
do teu cachorrinho. Agora um rato, um camundongo, só porque eles são feios, eles são vidas
também, igual a um cachorro. Então por que tu não vais ter pena também? Então eu sempre
cuido muito isso, de levantar neles essa maneira de ver. Claro que tu não podes pegar uma
pessoa que não sacrifica um animal por nada desse mundo. Porque tem coisas que a gente
precisa fazer, principalmente eu que trabalho num biotério grande, a gente precisa sacrificar
animais, a gente tem uma produção, animais que não servem pra produção a gente tem que
sacrificar. Eu arrumei uma maneira, há uns três anos eu não sacrifico mais. Eu mando tudo
pra Fundação Zoobotânica, onde eles tem um serpentário que precisa de alimento para as
cobras, então, antes de criar animais pra alimentar as cobras, eu tiro o excedente da produção
que eu não vou usar e mando pra eles. Então, isso é uma cadeia alimentar que está mantendo
uma maneira mais ética de manter os animais.
Eu tenho sempre o cuidado de fazê-los entender que aquilo ali é vida. São seres
sencientes, são seres que têm as mesmas sensações que tu: medo, dor, etc. Por que o animal é
agressivo? Ele é agressivo se ele está com medo de ti. Assim como a gente quando está com
medo que corre, grita. E eles agridem pra se defender. Então, animais agressivos são animais
que estão estressados, porque o camundongo e o rato são animais extremamente dóceis.
Eu mostro que existem alternativas de trabalho. Eu só forneço animais se tiver o
aceite do Comitê de Ética, porque daí eu sei que outras pessoas já revisaram os
procedimentos, já revisaram o número. Então, se tem o aceite do Comitê de Ética vai, caso
contrário não.
A gente já conseguiu que fossem proibidos animais para feira de Ciências, o segundo
grau não usa, é proibido usar animais de laboratório pra qualquer experimentação de colégio,
porque não tem a mínima necessidade. Existem vídeos que mostram muito melhor porque tu
podes ir e voltar com as imagens mostrando muito melhor tudo que precisa ver.
A gente precisa tirar da cabeça das pessoas o uso excessivo de animais como única
forma, tem muitas universidades que quanto mais bichos melhor elas acham. E eu não acho
que tu tenhas que tirar de tudo no ensino, pó exemplo veterinária tem que treinar com
animais, mas existem alternativas, por exemplo em hospitais que tu vais tratar e curar o
animal e mandar pra casa, existem muitas maneiras alternativas.
Pra finalizar: tu achas que deve ser trabalhada a Bioética nos cursos que formam
professores de ciências?
139
Eu acho que sim, e que há essa carência, e que deve ser trabalhada tanto de forma
especifica quanto de forma paralela e integrada e com professores e alunos. Existem muitos
professores que não têm a vivência da Bioética. Vou te dizer assim, que eu saí da
universidade faz 25 anos, e na minha época não existia isso, não se falava em bioética dentro
das universidades. Eu nunca tive essa disciplina, eu nunca tive Bioética. E tu vês assim, tem
muitos professores que têm a minha idade, então tem muitos professores que não passaram
por isso e que não procuraram também.
Mas eu talvez, porque tenha uma maneira de estar protegida contra os protetores de
animais. Eles ficam meio desarmados quando vêm com agressividades, e eu explico, e tu
desarma as pessoas quando tu estás bem embasada eticamente.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo