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Márcia Pereira Guerra
A BANDA “PELOS DE CACHORRO”
UM ROCK QUE VEM DO MORRO
Escola de Música
Universidade Federal de Minas Gerais
Abril de 2007
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Márcia Pereira Guerra
A BANDA “PELOS DE CACHORRO”
UM ROCK QUE VEM DO MORRO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação da Escola de Música da Universidade
Federal de Minas Gerais
Área de concentração: Práticas Musicais e Sociedade
Orientadora: Professora Rosângela Pereira de Tugny
Universidade Federal de Minas Gerais
Escola de Música
Universidade Federal de Minas Gerais
Abril de 2007
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Para Lygia,
minha mãe.
AGRADECIMENTOS
A um anjo de chapéu que palitava dentes, que me mostrou os pássaros e me
encorajou a buscar o mestrado;
A Rosângela Pereira de Tugny, minha orientadora nessa pesquisa, pela forma como
me acolheu, quase por acaso, no estacionamento da escola, desde o início uma
escuta sensível, capaz de me encorajar a mergulhar em abismos, correr riscos,
ousar;
Ao Manuel, pela delicadeza e eficiência em me apoiar em todos os momentos desse
trabalho;
À amiga Glaura Lucas pelo constante apoio e incentivo;
A Flora, filha e companheira de bordo, por tudo;
Ao meu pai pelas palavras carinhosas de estímulo, sempre pontuais ao telefone, em
tempos de aridez de idéias;
Ao Gobira e Tyr, pelas fotos e companhia em passeios pelo Cafezal;
Em especial aos amigos Robert, Mariana, Beto, Joana, Edinho, Rosânia, Heberte,
Simone, Kim e Carol, pela alegria de nossos encontros, pela disponibilidade e
confiança que depositaram em mim;
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................7
APRESENTAÇÕES..............................................................................................................17
O AGLOMERADO DA SERRA........................................................................................................17
AS FAVELAS NO BRASIL E NO MUNDO...................................................................................................20
A ESTÉTICA DAS FAVELAS.......................................................................................................................24
A FAVELA NA VISÃO DOS MÚSICOS........................................................................................................28
A BANDA PELOS DE CACHORRO................................................................................................35
OS MÚSICOS..................................................................................................................................46
ROBERT FRANK FERREIRA......................................................................................................................46
EDSON PINHEIRO DOS SANTOS..............................................................................................................50
HEBERTE DA SILVA ALMEIDA...................................................................................................................57
CARLOS ALBERTO ASSENÇÃO................................................................................................................58
KIM GOMES.................................................................................................................................................59
COMO UM LABIRINTO........................................................................................................61
O INÍCIO DO INTERESSE PELO ROCK........................................................................................61
GOSTO MUSICAL E SUBJETIVIDADE..........................................................................................69
NEGRITUDE.........................................................................................................................78
ROQUEIRO NEGRO.......................................................................................................................78
ROQUEIRO NEGRO BRASILEIRO.................................................................................................84
A BANDA DEPOIS DO FAN............................................................................................................96
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO................................................................98
O ROCK..........................................................................................................................................98
A ESTÉTICA DA BANDA E SUAS INFLUÊNCIAS........................................................................105
THE PUTA MADRE BLUES..........................................................................................................117
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................131
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................................141
LISTA DE CDs CITADOS..................................................................................................144
ANEXO...............................................................................................................................145
INTRODUÇÃO
6
INTRODUÇÃO
Durante um processo de seleção de alunos para as oficinas de música do
Programa Arena da Cultura em 1998
1
, uma imagem nos chamou a atenção, a mim e
aos meus colegas responsáveis pela condução das entrevistas dos candidatos: um
grupo de jovens quase todos negros, vestidos de preto, que usavam piercings pelo
corpo, correntes, esmalte preto nas unhas e os cabelos arrumados de forma criativa,
nos aguardava na ante-sala junto aos outros candidatos. Na medida em que iam se
apresentando (as entrevistas eram feitas individualmente), fomos percebendo que
eram todos moradores do Aglomerado da Serra, um conjunto de vilas e favelas
localizado na região centro sul de Belo Horizonte, e que eram integrantes de bandas
de rock. As bandas tinham nomes estranhos como “Molusco”, “Pelos de Cachorro”,
“Pulgas”, dentre outros. Das trinta vagas oferecidas para a oficina, vinte foram
ocupadas por esses roqueiros. Durante o processo de trabalho, esse grupo
começou a se destacar, demonstrando um alto grau de disciplina e de
comprometimento com as atividades, e ao mesmo tempo deixando transparecer
uma convicção muito forte do que queriam. Formavam um grupo coeso, havia
respeito e união entre eles, mesmo entre os que pertenciam a bandas diferentes. As
afinidades musicais somadas ao fato de viverem no mesmo Aglomerado, apesar de
que em vilas diferentes, pareciam ser os fatores que fortaleciam essa união. Como
1
Esse programa, uma iniciativa da então Secretaria Municipal de Cultura, em ações descentralizadas,
busca oferecer formação no campo das artes através de oficinas, nas nove regionais da cidade, além
de promover a difusão dos trabalhos feitos pelos artistas das comunidades através de eventos
chamados “Circuitos Culturais.
INTRODUÇÃO
7
profissional atuante há muitos anos nas periferias de Belo Horizonte
1
, pude constatar
que ali existia uma experiência inédita, ou pouco comum em outros locais da cidade.
Até então não tinha visto uma concentração tão expressiva de jovens ligados a um
mesmo gênero musical interessados em estudar música e em especial, interessados
em rock.
A curiosidade em conhecer os trabalhos desenvolvidos pelas bandas e outras
necessidades de caráter didático e pedagógico me fez propor ensaios abertos fora
do horário de oficina
2
, num local mais adequado, com estrutura apropriada de
equipamento de som. Durante dois finais de semana acompanhei ensaios de sete
bandas que tinham integrantes matriculados na oficina. Esses ensaios aconteceram
no teatro de arena do Parque das Mangabeiras que fica próximo ao Aglomerado da
Serra. As famílias e amigos desceram o morro para prestigiar os ensaios das
bandas (que na verdade tomaram um caráter de apresentação), os freqüentadores
habituais do parque estranhavam aquela sonoridade “barulhenta” em plena luz do
dia. Alguns grupos faziam cover de bandas conhecidas, outros já tinham um trabalho
autoral, percebia-se influências de um rock mais pesado, mas também do pop rock.
De todas as bandas, uma em especial chamou muito a minha atenção: a banda
“Pelos de Cachorro”. Tinha alguma coisa que extrapolava a idéia de música, os
elementos visuais da performance eram impressionantes maquiagem, figurino, os
cabelos absurdamente enlouquecidos, e o som, apesar de que eu entendia muito
pouco de rock, alguma coisa me dizia que ali existia qualidade, algo consistente. Era
1
Em 1981 realizei o meu primeiro trabalho no Aglomerado da Serra, ministrando oficinas de música
para crianças da vila Marçola, no Projeto Criarte da FUNARTE e Fundação Clóvis Salgado
2
As oficinas de música da região centro sul aconteciam numa sala da Escola Estadual Pedro Aleixo,
no bairro Mangabeiras, duas vezes por semana, de 19:00 às 22:00 horas, numa parceria entre essa
instituição e a então Secretaria Municipal de Cultura, já que o Programa Arena da cultura não possuía
uma sede própria.
INTRODUÇÃO
8
um rock pesado, o vocalista soltava aqueles sons guturais com uma voz muito
grave, provocava um silêncio, trazia uma certa melancolia. Isso aconteceu em 1999.
Em 2000 não atuava como professora do programa
1
, os contatos com eles
ficaram mais espaçados. Nesse período tive notícias da articulação dessas bandas
em um movimento, o Faverock. Desde então, um dos objetivos desse movimento,
junto ao de divulgar os trabalhos das bandas, tem sido o de “mudar a imagem da
favela e resgatar o verdadeiro rock”. Esperam também contribuir para acabar com os
estereótipos comumente associados à juventude negra das favelas. Para isso
organizam eventos anuais na fronteira entre a favela e o bairro Serra de classe
média.
Em 2004 decidi apresentar um projeto de pesquisa no programa de mestrado
da Escola de Música da UFMG, cujo tema central seria o movimento Faverock. No
início da elaboração do projeto, propus alguns encontros com representantes do
movimento com a finalidade de discutir com eles a pesquisa, consultá-los sobre a
importância dela para o movimento e para as bandas. Ficou estabelecido que
haveria uma parceria, o grupo apontou suas questões fundamentais naquele
momento, questões que a pesquisa os ajudaria a esclarecer: o porque do rock na
favela, e como é esse rock. Haveria diferenças significativas em relação a outras
bandas da cidade, vindas de outros contextos sociais?
Após alguns encontros e reflexões, decidi por mudar o meu foco de
pesquisa. As questões permaneceriam basicamente as mesmas, mas a pesquisa se
direcionaria para um acompanhamento e observação feitos em “close” da trajetória
dos músicos e da produção artística de uma das bandas do movimento Faverock.
1
Nesse ano fui transferida da função de professora para a de coordenadora da área de música do
Programa Arena da Cultura
INTRODUÇÃO
9
Uma abordagem “micro que possibilitaria a meu ver, um aprofundamento e
compreensão mais consistente dos significados e objetivos contidos em suas ações
expressivas. A escolha pela Banda “Pelos de Cachorro” se deu naturalmente: além
de ser uma das fundadoras do movimento Faverock e uma das precursoras desse
gênero no Aglomerado, dois de seus atuais integrantes foram alunos do Programa
Arena da Cultura em 1998, o que me proporcionou acompanhá-la desde o início.
Exatamente por essa época, o grupo estava se reestruturando, com a saída de dois
integrantes e entrada de três músicos novos, após um período de crise que quase
resultou no fim da banda.
A música da banda “Pelos de Cachorro” é um rock influenciado por várias
correntes do gênero, mas principalmente pelo rock underground e alternativo da
Inglaterra. Rejeitam a utilização de elementos que remetam às raízes africanas da
música brasileira em suas composições, apesar de se dizerem ouvintes abertos a
qualquer gênero e estilo musical e de darem valor às tradições. Entretanto se
mantêm rigorosos ao não fazerem qualquer tipo de concessão às expectativas de
mercado; vêem as fusões tão em voga no rock atual como “um modismo imposto
pela mídia”. Insistem em permanecerem coerentes com algo com que realmente se
identificam.
O fato de serem negros e moradores de favela e optarem em fazer uma
música como o rock vem causando reações que fazem com que tenham que
explicar e justificar o seu gosto musical tanto no local onde vivem quanto para a
sociedade de uma maneira geral. O que se espera de jovens vindos desses
contextos é que façam rap, funk, pagode, ou músicas inspiradas nas raízes
africanas ancestrais. No Guia Cultural das Vilas e Favelas de Belo Horizonte, de
INTRODUÇÃO
10
2004, resultado de um mapeamento de artistas e grupos culturais em 226 vilas,
favelas e conjuntos habitacionais públicos de Belo Horizonte, coordenado por
Clarice de Assis Libânio, a autora constatou que “o pessoal do funk e do rap;
pagodeiros e forrozeiros e evangélicos em geral são os que mais se destacam
numericamente nestas áreas e que conformam as principais correntes e expressões
musicais atuais nas vilas da capital”. (Libânio, 2004, p. 30)
Em Belo Horizonte, o rock tem sido associado à juventude branca de
classe econômica alta e vem representando nas últimas décadas uma referência
importante desse gênero para o Brasil e para o mundo. Várias bandas mineiras vêm
conquistando o mercado internacional, dentre elas a banda Sepultura, que é
considerada uma das melhores do mundo dentro da corrente ligada ao metal
pesado.
Se o rock não é um gênero normalmente associado à juventude das favelas,
também não tem sido considerado uma música tipicamente negra, acredito que não
no Brasil, apesar de suas origens remeterem ao blues, uma música dos negros
norte-americanos. Isso pode ser facilmente constatado quando tentamos enumerar
quantos roqueiros negros conhecemos através da mídia, pertencentes a qualquer
subgênero ou corrente do rock.
Carlos Alberto Assenção, baterista da banda ”Pelos de Cachorro”, em artigo
“Rock que vem do morro” no jornal “Tá na rede 3 ,expressa um pensamento
compartilhado pelos roqueiros do movimento Faverock, sobre a sua opção pelo rock:
Porque os brancos do asfalto podem fazer rock? A proposta é
quebrar a idéia de que o rock é predominantemente ouvido pelas
classes mais ricas. Samba, pagode, axé e funk seriam os únicos
ritmos capazes de embalar as vidas dos aglomerados. Puro engano!
INTRODUÇÃO
11
nessa fala uma espécie de denúncia a um tipo de discriminação que
sofrem, originada numa visão dualista da sociedade, que divide brancos e negros, o
“asfalto” e a favela, os ricos e os pobres. Na fala do Beto, fica claro que uma
intenção de romper com os estereótipos associados à negritude e à classe social a
que pertencem. uma “proposta” colocada com clareza, que se concretiza
inicialmente através da união, organização e articulação em torno do gênero rock,
com a formação das bandas, e posteriormente em um movimento, o Faverock, que
agrega atualmente catorze bandas das periferias de Belo Horizonte. Não é por
acaso que os eventos anuais do Faverock acontecem na fronteira com o bairro
Serra, de classe média. um recado a ser mandado do morro para o resto da
cidade.
As questões mais fundamentais que tento abordar nesse trabalho dizem
respeito ao que estaria por trás dessa opção pelo rock, que elementos trazidos de
suas experiências de vida teriam contribuído para isso. Como vivenciam a negritude,
e se posicionam diante de situações deflagradas pelo preconceito racial, diante da
visão que a sociedade tem deles? Fazer rock, se organizar num movimento, seria
uma resposta a essas situações vividas? Trata-se de um processo de reapropriação
de um gênero que na sua origem era negro? O que significa “resgatar o verdadeiro
rock”, uma das missões explicitadas em vários momentos por eles? Para fazer tais
reflexões tornou-se necessário compreender a relação que estabelecem com o meio
onde vivem, conhecer o percurso que fizeram até chegar a essa opção. Nesse
trabalho de pesquisa, abordei temas que estão diretamente ligados à formação do
gosto musical, e às formas de composição das suas subjetividades. A observação
de como as condições econômicas, raciais, do local onde moram determinaram ou
INTRODUÇÃO
12
não essa escolha, passou inevitavelmente por questões da vida particular de cada
um deles, mas também por questões mais gerais como negritude, juventude, favela,
a partir do que eles sentem ou recebem da sociedade em seu cotidiano. De que
forma e em que dimensões essas “categorias” sociais e a relação com o meio e
sociedade em geral determinam nas escolhas, incluindo as musicais?
Estudar um grupo de jovens negros de favela provoca reações controversas,
percebidas inclusive no meio acadêmico. Quando era convidada a expor a natureza
da minha pesquisa nas disciplinas do mestrado ouvi comentários e perguntas que
me fizeram ver a dimensão dos estereótipos do ponto de vista de quem está de fora
desses contextos. Ouvi perguntas, por exemplo, se a minha pesquisa abordaria o
funk ou o rap, minutos depois de ter feito uma longa explanação sobre o rock na
favela, ou de como eram as pessoas que eu estaria “ajudando a formar na periferia”.
Em outras situações, as perguntas vinham em tom de quase acusação: se eles são
vítimas de um sistema econômico e social que os faz alienados de suas verdadeiras
raízes culturais, como valorizar essas posturas e não tentar corrigi-las?
A experiência estética e social apresentada por esses jovens nos faz refletir
sobre algumas questões associadas às realidades do mundo urbano na
contemporaneidade: a complexidade dos processos de formação da subjetividade
nos contextos urbanos, a relação entre os centros e as periferias, a discriminação
INTRODUÇÃO
13
experiência dos quatro que são moradores do Aglomerado: Robert, Edinho, Heberte
e Beto (que, apesar de não morar mais lá, nasceu e viveu até pouco tempo atrás
na vila Cafezal). Kim, o único que mora em outra região da cidade, e que se integrou
mais recentemente na banda, contribuiu muito na parte do texto em que falo
especificamente sobre o rock feito pela banda e suas influências mais significativas.
Contei com a colaboração constante e fundamental da Mariana, uma das “cabeças”
do movimento Faverock, produtora da banda “Pelos de Cachorro”, além de ser a
namorada do Robert, e sua parceira nas produções gráficas dos materiais de
divulgação e encartes de CDs. Os laços de afeto e amizade vêm se fortalecendo
naturalmente, sou convidada para festas de família, aniversários, noivados, me
tornei amiga das namoradas, assim como eles são presenças constantes também
na minha casa.
As estadias no Aglomerado, em especial na vila Cafezal, onde acontecem os
ensaios da banda, deram uma outra dimensão à pesquisa. A experiência de
caminhar pelos becos e ruelas dessa vila e de me perder algumas vezes naqueles
labirintos suscitou em mim um desejo de conhecer mais e mais os segredos
contidos ali, que iam além da visão carregada de preconceitos e idealizações que
nós, moradores da parte rica da cidade, costumamos ter desses locais. Em algumas
situações me senti uma estrangeira, surpresa diante das diferenças entre lugares
tão próximos no espaço da cidade. Da janela da minha casa avisto parte do morro.
Mas quando volto de lá, a sensação é de que estou chegando de viagem, vinda de
um lugar distante. Pois basta virar uma esquina, ou atravessar uma rua, que como
num passe de mágica, tudo se transforma. Da favela para o bairro, do bairro para a
favela, as cores, os cheiros, os sons, os cães, os gestos, o jeito de andar, o
INTRODUÇÃO
14
comércio, o refrigerante, a arquitetura, tudo fica diferente. O ônibus que circula
dentro da favela passa também pelas principais ruas do bairro Serra; no entanto
é utilizado pelos moradores do Aglomerado. Enquanto o micro-ônibus amarelo sobe
a rua do Ouro, importante via de acesso do bairro, observo o seu interior “negro”,
denúncia móvel de discriminação da pobreza e das pessoas que vivem em favelas.
Da vasta bibliografia existente sobre o rock, busquei me centrar no que os
músicos da banda tinham a me informar, e a partir dessa escuta tentar
complementar as informações com pesquisa bibliográfica e audição de CDs, muitas
das vezes indicados por eles. Mas é bom lembrar que esse não é um trabalho sobre
o rock. O que é central na discussão que estou propondo se refere a como esse
gênero é traduzido por esses jovens na forma de uma expressão que, por sua vez, é
resultante de um meio de perceber a realidade e de absorver as diferentes
influências vindas de fontes de naturezas diversas literárias, musicais, dentre
outras. Na maneira como vivenciam, de uma forma geral, o cotidiano da favela e da
cidade, estaria uma das chaves que possibilitam compreendermos a música que
fazem, como uma tradução sonora de um jeito de ver as coisas.
A apresentação dos integrantes da banda “Pelos de Cachorro” é feita com
a transcrição de depoimentos quase na íntegra de dois deles Robert e Edinho
onde narram sua trajetória de vida; tive dificuldades em selecionar trechos mais
significativos. Acredito que a fragmentação do discurso não empobreceria o
sentido, como tiraria a oportunidade do leitor ter acesso ao fluxo de idéias muito
particular e, portanto, revelador das pessoas que são. Os depoimentos do Hebert,
do Beto e do Kim serão mostrados também ao longo do texto na forma de citações
que vão conduzir ou indicar o caminho das reflexões pretendidas nesse trabalho.
INTRODUÇÃO
15
Encerro com algumas observações sobre a música “La Puta Madre Blues”,
por sua temática ser recorrente na produção da banda, e também por ela conter
elementos que talvez apontem para novos procedimentos composicionais, além de
ser uma música representativa da nova formação.
Tive sérias dificuldades em encontrar uma seqüência na apresentação dos
capítulos que contemplasse de forma satisfatória o desenvolvimento das reflexões e
idéias desenvolvidas durante a pesquisa. Percebi que essa dificuldade se dava pela
própria forma com que o assunto se apresentou a mim. O ideal seria que o leitor
pudesse perceber o quão entrelaçados e conectados estão os conteúdos
apresentados aqui. Tenho convicção de que não são lineares. O que se segue nada
mais é do que um exercício e apresentação de uma das seqüências possíveuiys de
APRESENTAÇÕES
16
APRESENTAÇÕES
O AGLOMERADO DA SERRA
O Aglomerado da Serra é um conjunto de sete vilas localizadas na
encosta da Serra do Curral junto à divisa do município de Nova Lima, no limite
sudeste do município de Belo Horizonte. Formado pelas vilas Santana do Cafezal,
Marçola, Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora da
Conceição, Novo São Lucas e Fazendinha, o Aglomerado da Serra é o maior da
Região Metropolitana de Belo Horizonte, com população superior à maior parte dos
municípios mineiros, com aproximadamente 46.000 habitantes, numa área de
149,93 ha
1
. O Aglomerado faz fronteira tanto com os bairros populosos do sudeste
da cidade Serra, São Lucas, Santa Efigênia, Paraíso e Novo São Lucas como
com os vazios urbanos do Parque das Mangabeiras e do Hospital da Baleia, na área
de proteção ambiental da Serra do Curral.
Segundo levantamento realizado pela prefeitura, a renda média familiar
da população é de até dois salários mínimos. Todas as vilas possuem uma
Associação Comunitária. A vila Conceição é a mais antiga; o início da ocupação se
deu em 1920, seguida da vila Fátima (1940), e Aparecida (1950). Apenas três
possuem Centros de Saúde: Conceição, Cafezal e Aparecida. Em cada vila uma
1
PGE, 1999
APRESENTAÇÕES
17
escola municipal de ensino fundamental e uma creche comunitária (com exceção da
vila Fátima que possui três creches), mas praticamente não têm áreas de lazer:
registro de apenas um campo de futebol, localizado na Vila Aparecida, o “Campo de
futebol Bola de Ouro”.
Na vila Cafezal encontra-se um dos comércios mais variados e ricos do
Aglomerado da Serra. Ali se de tudo: supermercados, sorveterias, locadoras de
vídeo, sacolões, açougues, salões de beleza, bares, casas de jogos eletrônicos,
mercearias. As ruas estreitas são ocupadas pelos transeuntes que, de tempos em
tempos se apertam nas laterais, para que um carro possa passar. Como na maioria
das favelas, num beco a ocupação de um terreno se dá com construções que vão se
agregando a outras, os “puxadinhos”, atendendo a demandas emergenciais: um filho
que se casa, um parente vindo do interior. Todas as ruas e becos dessa vila têm
nomes que fazem referência à música: Serenata, Binário, Seresta, Sol Menor,
Sustenido, Harpa, Guitarra, Bemol, Compasso, Bandolim, Tonalidade, Banjo, Ritmo,
Flauta, Cavaquinho e outros. Esses nomes foram dados por um antigo presidente da
Associação de Moradores que era maestro de banda de música. Na verdade ele
iniciou esses “batismos” algumas décadas e os moradores vêm dando
continuidade a essa idéia, sugerindo novos nomes na medida em que vão surgindo
outros becos e ruas.
Figura 1 - Placas de ruas da vila cafezal
APRESENTAÇÕES
18
Na Vila Cafezal uma guarda de congo responsável pela festa de Congado
na igreja da vila que acontece todo ano no mês de outubro. No levantamento
realizado no Guia Cultural das Vilas e Favelas de Belo Horizonte foram cadastrados
apenas quatro grupos musicais na Vila Cafezal: dois de samba e pagode, um de
reggae, e um de rock. A rádio Favela é apresentada como o único e importante meio
de comunicação local. Na Vila Marçola, foram cadastrados cinco bandas de rock, um
grupo de rap e um de samba e pagode. também tem uma rádio comunitária, “A
voz da Comunidade” 104,3 FM. Na vila Conceição, outra rádio comunitária:
“Conexão” FM 103,3.
Segundo Maria Cristina F. de Magalhães, diretora de Planejamento da
URBEL, a utilização do termo “vila” em substituição ao “favela” veio como
reivindicação das lideranças comunitárias nas discussões e negociações com
técnicos da prefeitura para implantação do Plano Global de Urbanização. O termo
“favela” estaria impregnado de sentidos negativos, reforçando o estigma com
relação aos habitantes desses locais. Nos documentos oficiais passou então a
vigorar a utilização de “vila” no lugar de “favela”. No Aglomerado da Serra, entre a
população, já se convencionou chamar o lugar onde moram de “Serra”; regiões
próximas ao Aglomerado chamar de ”bairro” e mais genericamente, ”asfalto”. Entre
os músicos entrevistados percebe-se a utilização tanto de “favela” quanto de “vila”.
O fato do nome do movimento Faverock conter parte da palavra “favela”
pode ser visto como um indicador de um desejo de recuperar um valor a esse nome.
Sugere uma associação, uma aliança entre o rock e a favela. O rock traz uma
conotação cosmopolita, de modernidade. Um dos objetivos mais citados nos
APRESENTAÇÕES
19
documentos desse movimento é o de “mudar a imagem da favela”. Afinal, esses
músicos gostam muito do lugar onde vivem; costumam dizer que nunca vão querer
mudar de lá, como nunca vão deixar de ser roqueiros. Mudar a imagem da favela
significa contribuir para acabar com estereótipos comumente associados a ela: de
um lugar violento, onde as pessoas são ignorantes, sujas, “primitivas”.
AS FAVELAS NO BRASIL E NO MUNDO
No livro “Favela: alegria e dor na cidade”, os autores Jailson Silva e Jorge L.
Barbosa abordam questões relativas às favelas nos grandes centros urbanos
brasileiros, dando ênfase à realidade urbana do Rio de Janeiro. Apesar de haver
diferenças entre favelas de uma mesma cidade e entre a realidade urbana do Rio e
a de Belo Horizonte, existem características que são comuns. Nas descrições e nas
análises da relação entre a casa e a rua feita pelos autores, por exemplo, uma
semelhança com o que se observa em favelas de Belo Horizonte:
A casa na favela está intimamente ligada à rua. Até mesmo por
serem edificadas em ruas estreitas, os parentes e vizinhos estão
mais próximos... A rua é um prolongamento da casa. As crianças
brincam nas ruas. Os jovens encontram-se para conversar, jogar ou
namorar. Os adultos e idosos fazem delas uma sala de estar com
amigos e vizinhos. problemas, desentendimentos e disputas, sim,
mas tambémacordos, pactos e regras que celebram convivências
solidárias. (Silva e Barbosa, 2005, p.98)
APRESENTAÇÕES
20
Os autores chamam a atenção para os sentidos e funções que as residências
assumem no cotidiano, na vida dessas populações:
Uma delas está vinculada às oportunidades de geração de trabalho e
renda. Nas favelas, a moradia pode ter um puxadinho para frente ou
para trás, dando lugar a uma mercearia, um bar ou um salão de
beleza. Multiplicam-se as oficinas, os depósitos de bebidas, lojinhas
de roupas, todas intimamente associadas à habitação. São pequenos
negócios de origem familiar que se mantém graças ao mercado local
constituído pela própria favela. Na esquina, uma farmácia, em outra,
uma padaria. Ali um restaurante. Do outro lado um açougue. É desse
modo que os moradores dos espaços populares enfrentam o
desemprego, os baixos salários e a discriminação do mercado formal
de trabalho (Silva e Barbosa, 2005, p.96).
Para o senso comum, a favela é vista sempre pela representação da noção
de ausência: um lugar sem infra-estrutura urbana, sem ordem, sem lei, sem moral. A
visão que se tem desses locais e de seu habitantes é homogeneizadora, como se
todas as favelas fossem iguais, dentro de um padrão idealizado. “Como esses
espaços se tornaram tão invisíveis, sendo identificados muito mais com bases nos
juízos pré-concebidos do que nas suas características reais?” Os autores
esclarecem que a origem disso se encontra no processo de aparecimento das
primeiras favelas no Rio de Janeiro, na virada do século XIX para o XX. Nesse
período, a cidade passava por uma crise habitacional causada por um aumento da
população em cerca de 120%, gerado pelos movimentos migratórios crescentes. Os
cortiços nas áreas centrais da cidade eram ocupados por trabalhadores e moradores
identificados como “capoeiras, ladrões, meretrizes de baixa classe e
assassinos” (Vaz apud Abreu, 1986). Apesar da precariedade, esses cortiços
ofereciam a vantagem para os trabalhadores de morarem próximo às ofertas de
APRESENTAÇÕES
21
trabalho. Com as reformas urbanas do início do século XX, a cidade assistiu a um
esvaziamento das suas áreas centrais. A única solução de moradia encontrada pela
população pobre, era a ocupação dos morros.
Foi a partir do ‘Morro da Favella’ que se começou a generalizar, na
imprensa, a associação do termo ‘favela’ à imagem de ‘perigo’ e de
‘desordem’. A favela era lugar de malandros e marginais. Na
crônica policial, o local é tomado de forma exemplar como ‘um foco
de desertores, ladrões e praças do exército’, como declara, em 1900,
o delegado da 10ª Circunscrição ao chefe de polícia. Na mesma
carta sugere-se que, para a ‘completa extinção dos malfeitores
apontados’, faça-se um grande cerco, com pelo menos ‘oitenta
praças completamente armadas’. (Silva e Barbosa, 2005, p.27).
Apesar dos constantes ataques da imprensa, o poder estatal não chegou
a tomar nenhuma medida drástica em relação às favelas. Elas eram permitidas,
segundo os autores,
[...] desde que obedecesse a uma condição fundamental: ser invisível
aos olhos burgueses ofuscados pelo glamour da arquitetura
parisiense e pelo modo de vida moderno. Nesse caso, reconhece-se
ao pobre o ‘direito’ de estar no seu lugar, porém fora das áreas de
interesses de capital e dos grupos dominantes. Por outro lado, a falta
de reconhecimento do direito desses moradores ao acesso a
equipamentos urbanos fundamentais caracteriza os juízos difundidos
na época. Dali em diante, esses juízos vão ficar cada vez mais fortes.
(Silva e Barbosa, 2005, p. 27)
Existem provavelmente mais de 200 mil favelas no mundo atualmente.
Embora algumas favelas tenham uma longa história a primeira favela do Rio de
Janeiro, no Morro da Providência, surgiu na década de 1880 -, a maioria das
megafavelas cresceu a partir da década de 1960.
APRESENTAÇÕES
22
Slum é a palavra inglesa que significa favela. Segundo Mike Davis, no livro “Planeta
Favela”, a primeira definição é de 1812, como sinônimo de racket, “estelionato” ou
“comércio criminoso’. Slum, como cômodo onde se faziam transações vis. Em
meados do século XIX, identificam-se slums na França, na América e na Índia, vira
fenômeno internacional.
Essas favelas clássicas eram lugares pitorescos e sabidamente
APRESENTAÇÕES
23
A ESTÉTICA DAS FAVELAS
No livro Estética da Ginga, Paola Jacques (2001) faz uma abordagem da
arquitetura e urbanismo das favelas partindo da hipótese de que as favelas têm uma
estética própria. Para demonstrar essa hipótese a autora usa de três figuras
conceituais: o Fragmento, o Labirinto e o Rizoma.
Dentro da idéia de Fragmento, a autora inicia dizendo que o construtor,
geralmente o próprio morador que recebe ajuda de parentes e vizinhos, tem como
objetivo primeiro construir um abrigo para os seus. O abrigo se ampliado de
acordo com as necessidades: “o ‘jeitinho’ é a condição sine qua non para se
construir um barraco numa favela” (Jacques, 2001, p.23). A construção, feita de
materiais em fragmentos heterogêneos é forçosamente “fragmentada no aspecto
formal”.
A construção é contínua, pois sempre haverá melhorias ou ampliações a
fazer. Ao contrário da arquitetura convencional, é uma arquitetura sem projeto.
“Quando não projeto, a construção não tem uma forma final preestabelecida e,
por isso, nunca termina”. A autora cita a idéia de “bricolagem” que tem a ver com o
processo de construção nas favelas:
Bricolagem que tem a ver com o acaso e a incompletude. (...) é o
incidente, ou seja, o pequeno acontecimento imprevisto, que está na
origem do movimento. Bricolar é, então, ricochetear, enviesar, zigue-
zaguear, contornar. O bricoleur, jamais vai diretamente a um objeto ou
em direção à totalidade: age segundo uma prática fragmentária, numa
atividade não planificada e empírica. A construção com pedaços de
todas as proveniências, a bricolagem será, portanto, uma arquitetura
APRESENTAÇÕES
24
do acaso, do lance de dados, uma arquitetura sem projeto. (Jacques,
2001, p. 23, 24)
Essa autora ao se referir a uma “lógica fragmentária” presente nesses
espaços, diz que nela somos “confrontados com o acaso, o aleatório, o ocasional, o
efêmero e com a incompletude”. (idem, p. 46) “Para captar o raciocínio
fragmentário”, ela diz, “é necessário renunciar à causalidade, à explicação por
causas e efeitos, à cadeia do desenvolvimento conceptual e, sobretudo, a qualquer
cronologia”. (idem, p. 47). A autora diz da necessidade de familiarizarmos com as
misturas, com os esboços, com as superposições e as diversas formas resultantes
de outra concepção temporal. “A arquitetura sempre esteve ligada à idéia do
durável. O que mais nos interessa no Fragmento é da ordem do efêmero e do
inconstante. O tempo temporário, heterogêneo, não mensurável ou desmedido”.
(idem, p. 47)
Do conceito de Fragmento, a autora parte para a idéia de Labirinto, o espaço
deixado entre os barracos, que forma as ruelas e os becos das favelas. “Um espaço
efetivamente labiríntico, tal é o emaranhado dos caminhos internos, e, ainda, como
Figura 2 - Construções da Vila Cafezal
APRESENTAÇÕES
25
não sinalização, placas, nomes ou números, qualquer pessoa de fora, ali, se
perde facilmente”. (idem, p. 65)
Ao Labirinto, um dos componentes do que a autora denomina “espaço urbano
espontâneo”, se contrapõe o “espaço urbano planificado” dos arquitetos e urbanistas
que segue uma ordem previsível e linear. Ela descreve o labirinto como sendo “um
estado sensorial”, “um espaço em movimento”, onde a incerteza de se estar no
caminho certo é intrínseca a ele. O estado labiríntico é o de quem vaga, “um estado
errático”. (idem, p. 86) [...] “do percurso, da descoberta, da surpresa, da experiência,
da multiplicidade e, sobretudo, da liberdade”.(idem, p.95)
Para se referir à forma como se a ocupação dos terrenos pelas
favelas, a autora utiliza-se do conceito de Rizoma, vindo da observação de que o
crescimento das favelas assemelha-se ao do mato que cresce nos terrenos baldios
da cidade. Segundo ela, a ocupação se em três níveis: ocupação propriamente
dita de terrenos vagos na cidade; deslocamentos de favelas na cidade; relações dos
favelados com a cidade formal (elos que se estabelecem de forma sutil, de um modo
mais subterrâneo, em relações individuais, que a maioria trabalha nos bairros
Figura 3 - Becos da Vila Cafezal
APRESENTAÇÕES
26
formais da cidade, e muitos moram, durante a semana, em apartamentos dos
bairros ricos)”. (idem, p. 106) Esses três níveis seguem a lógica do mato, em
oposição à lógica da árvore e do arbusto da cidade convencional. Sobre essa
oposição - lógica da raiz-árvore, e lógica do rizoma, (desenvolvida por Deleuze e
Guattari), a autora completa dizendo que: “a cidade projetada a cidade-árvore,
como a árvore e o pensamento em árvore – está fortemente enraizada num sistema-
raiz, imagem da ordem; a favela, cidade sem projeto, a cidade-mato, segue o
sistema rizoma”.(idem p. 108)
Para Deleuze e Guattari, o sistema erva / rizoma
1
corresponde ao
pensamento da multiplicidade, em oposição ao pensamento binário da árvore / raiz.
Segundo esses autores, um rizoma tem possibilidades múltiplas de fazer conexões:
1
Em termos de botânica, o rizoma é o caule subterrâneo das herbáceas sob diversas
formas (bulbo, tubérculo), e é diferente das raízes e radículas. (idem p. 107).
Figura 4 - Fronteira entre o Aglomerado da Serra e o bairro.
Fonte: Google Earth.
APRESENTAÇÕES
27
qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro, a natureza do
que está em conexão é variada, cabendo todo o tipo de cadeias semióticas.
Um agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões
numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza à
medida que ela aumenta suas conexões. Não existem pontos ou
posições num rizoma como se encontra numa estrutura, numa
árvore, numa raiz. Existem somente linhas (Deleuze e Guattari, p.
17).
A FAVELA NA VISÃO DOS MÚSICOS
O que pensam os músicos da banda “Pelos de Cachorro” sobre o lugar onde
nasceram e moram? Um certo orgulho e um afeto pelo lugar se mesclam com a
constatação das dificuldades e precariedades na infra-estrutura urbana e na
realidade sócio cultural. O tipo de percepção dessas realidades e o grau de
insatisfação variam entre esses músicos e muitas vezes são determinados pela vila
ou região do aglomerado onde vivem, pela situação econômica da família e pela
própria trajetória de vida. Robert, Heberte, Beto e Edinho nasceram no Aglomerado,
em regiões e favelas diferentes. Robert na Vila Marçola numa parte muito próxima
do bairro; Heberte, na Vila Conceição, mais no alto do morro e Beto e Edinho no
Cafezal.
Quando peço a eles que falem sobre o lugar onde moram, iniciam
comentando sobre o que acreditam ser a visão que a sociedade tem da favela. “A
APRESENTAÇÕES
28
favela é vista como zona inimiga, como se fosse andar e tropeçar em corpo no
chão”, diz Heberte, que considera esse “um mito criado pela mídia”. Ele aponta duas
visões diferentes e contraditórias que considera como predominantes na maneira
como a sociedade percebe a favela: uma visão que exagera “nas cores”, reforçando
sempre o lado da violência (a mídia sensacionalista seria uma das responsáveis por
essa visão) e uma outra que idealiza a favela como um lugar da pureza, da alegria,
“onde se dança o carnaval”. Segundo ele, “muita gente tem uma ilusão das pessoas
serem felizes na favela”. Contrapõe ao que percebe como idealização, a sua própria
experiência como alguém que nasceu e viveu até hoje numa favela:
Eu sempre vi as coisas muito difíceis aqui; tudo muito precário, é difícil
mudar a estrutura, às vezes o pai não estudou, o filho vai pra escola, a
escola é ruim, começa a trabalhar, sai da escola, depois casa, tem
filho e aí repete a história da família. Isso está presente nas letras e na
sonoridade das músicas que eu faço: quero estar num lugar e
expressar o sentimento meu do lugar. Acho que morar na favela é
difícil, não tenho a visão das pessoas felizes aqui, não. Um povo
explorado e feliz? Isso não é real pra mim.
1
A favela é apresentada por Beto como um lugar onde as pessoas ficam
vulneráveis ao “poder” manipulador da mídia. Absorvem uma imagem que
constroem sobre elas e continuam reproduzindo passivamente um padrão de
comportamento, inclusive com relação ao consumo, ao “correrem atrás” daqueles
bens que vão “aproximá-las” de outras classes sociais. “Tá na moda tal coisa, o que
a pessoa quer é ter tal coisa para se justificar como pessoa. Quem é da favela não
quer ser excluído da sociedade, sendo que é, né?” Essa colocação do Beto se
refere ao constante incentivo ao consumo a que a população em geral está exposta,
1
Entrevista concedida à autora, Belo Horizonte, 2005.
APRESENTAÇÕES
29
como parte de uma lógica capitalista, que se torna mais perversa nesses contextos,
ao intensificar as diferenças econômicas e sociais. O que se espera ser o elemento
que vai aproximar, no caso a aquisição de um bem, torna-se justamente o que vai
denunciar as diferenças. A exclusão é um fato, localizado na geografia, nas
dificuldades de acesso aos bens de consumo. Para ele, adquirir produtos
consumidos pelas outras classes sociais não significa romper a barreira da exclusão.
Isso ele aprendeu com a mãe desde cedo. “Minha mãe sempre me dizia: - você tem
que estudar, fazer alguma coisa, meu filho”. Alguns hábitos de sua família, como o
irmão que gosta de ouvir ópera, o valor que a família ao estudo e à cultura
causam estranhamento naquele contexto. Além desses, o Beto inclui também o fato
de pertencer a uma banda de rock. Esses são os elementos, segundo ele, que o
diferencia da maioria da população do Aglomerado. uma referência a um tipo de
discriminação sofrida por sua família dentro da favela, que Beto aponta como uma
conseqüência por ser “diferente”, o que acabou contribuindo para que sua mãe
quisesse tirar a família daquele lugar. “O povo tinha inveja da gente porque em
casa minha mãe prezava muito essa coisa de educação. Para aquelas pessoas,
mexer com cultura era uma aberração. Se você tem uma banda de rock, pior ainda.
Porque não tem nada a ver com favela. ‘Não meu filho, você tem que fazer é
pagode, eles falam’”. Apesar de não morar mais no Aglomerado, (a família se mudou
para o município de Nova Lima, próximo a Belo Horizonte), Beto continua indo
com freqüência para ver os amigos e para os ensaios da banda que acontecem na
Vila Cafezal. Enquanto caminhamos, vai me mostrando a casa onde morou na
infância, o beco onde jogava bola, me apresenta o tio maratonista, pede a bênção
de uma velha senhora conhecida da família, dando a entender que ali estão muito
APRESENTAÇÕES
30
bem guardadas as lembranças de um tempo precioso, talvez suas raízes afetivas. A
sensação é de que ele ainda pertence àquele lugar.
Sobre as diferenças entre a favela e o bairro, Robert comenta:
Pra gente é bem comum essa diferença. Desde moleque você está
acostumado em ter que sair pra comprar coisas que não têm aqui. A
gente sempre precisa de sair. A gente acostuma até com a
desigualdade. Eu acho que a gente tem que brigar por igualdades.
Tudo tem de ser batalhado. Muitas vezes eu me senti limitado pra
usar coisas que eram do meu direito.
1
Os quatro conhecem pessoas e tiveram amigos envolvidos no mundo
do tráfico. Edinho é quem fornece de forma contundente, detalhes do lado obscuro e
triste dos meninos de cabelos coloridos e tênis “estribados”, que passavam por nós
numa manhã ensolarada de um sábado, na inauguração de uma área de lazer do
Cafezal. Eram empregados da “firma”, matadores profissionais. Porque é assim;
os espaços são compartilhados por todos, sem exceção. Todos sabem quem são os
que matam. Edinho me contou um fato ocorrido uns anos atrás, em que um
desses matadores tinha acabado de atirar, no meio da rua, em plena luz do dia. Foi
em casa, guardou a arma, e em seguida voltou para observar o morto. Todos eram
testemunhas, mas não “viram” nada. Os moradores aprendem a ter uma convivência
com o crime que envolve respeito mútuo, distância e silêncio. Não se olha nos olhos
de um matador; tudo num olhar pode ser interpretado como um sinal de medo, de
culpa. Sabem do risco que correm aqueles que delatam algum criminoso. Mariana, a
namorada de Robert, moradora da parte rica da Serra, comenta com surpresa o que
vivenciou na casa do namorado recentemente: todos “cochichavam” para contar
1
Entrevista concedida à autora, Belo Horizonte, 2006.
APRESENTAÇÕES
31
sobre um fato ocorrido na véspera, pois sendo as casas muito próximas umas das
outras havia o risco de um vizinho ouvir a conversa e caso o criminoso fosse pego,
da suspeita de delação recair sobre alguém da família. Como moradora do bairro,
vez por outra tenho notícias de conflitos sérios que estão ocorrendo num
determinado ponto do Aglomerado. Quando vou comentar com eles, a impressão é
sempre de que é tudo um exagero, e que na verdade não tem nada de diferente
acontecendo. Esse tipo de posicionamento pode ser interpretado como uma maneira
de não supervalorizar esses acontecimentos. Há um certo sensacionalismo em torno
dos fatos que ocorrem com o qual não querem compactuar. “Não é assim como
as pessoas falam”. O tom é sempre o da serenidade e elegância.
A proximidade das casas provavelmente contribui para alguns padrões de
comportamento dentro dessas comunidades. A divisão entre o que é público e
privado, o que é particular e coletivo, não é muito clara, o que acaba favorecendo
laços de solidariedade. Uma situação durante um almoço na casa do Heberte
exemplifica bem um tipo de convivência: tínhamos acabado de comer, quando um
primo do Heberte que mora no mesmo beco, chegou querendo almoçar. Como o
feijão tinha acabado, ele fez o prato, saiu para o beco e gritou: - quem tem feijão
pronto aí”? E saiu com o prato em direção à casa do lado.
Segundo depoimento de uma moradora da Vila Marçola, a vida difícil e o
sofrimento ajudam a aproximar as pessoas. Considera também que os núcleos de
amizade vão se formando muito em função da proximidade física, dificilmente
pessoas que moram parede e meia com outras, não se tornam amigas. Quando
alguém adoece, os vizinhos se unem para ajudar com remédios, chá, alimentação.
APRESENTAÇÕES
32
No dia que eu faço compra é comum chegar uma vizinha pra me pedir alguma coisa
emprestada. quando ela faz a compra dela, ela vai e me devolve o que eu tinha
emprestado. Nunca aconteceu de alguém não pagar; todo mundo sabe que a gente
vai precisar daquilo, é como se diz: aqui todo mundo trabalha de dia para comer de
noite.
1
Heberte conta que durante os finais de semana é difícil ficar em casa em
função da “barulheira” que a vizinhança faz. No beco onde mora todos resolvem
ouvir música ao mesmo tempo. Simultaneamente se ouve pagode, funk, rap, música
evangélica e sucessos mais recentes exibidos pela mídia.
A forma como os músicos da banda “Pelos de Cachorro” vêm abordando
temas referentes ao contexto em que vivem, aponta para uma percepção que não
banaliza a realidade, ao contrário, os fatos remetem a reflexões sobre a existência, a
finitude da vida, que vão numa cadeia, passando pelas questões políticas, sociais e
filosóficas. Passa também uma impressão de um olhar meio estrangeiro, que não se
deixou contaminar totalmente por uma realidade local, não se misturou
completamente com ela, de quem vivencia aquela realidade, mas também circula
por outros universos de referência, interagindo com esses outros universos de forma
diferenciada da maioria dos habitantes do Aglomerado. Essa maneira de romper as
barreiras que separam esses universos é um fenômeno social relativamente recente,
e é protagonizado pelos jovens. Há diferenças no tipo de relação que se estabelece,
por exemplo, entre os trabalhadores que prestam serviços para as classes sociais
mais abastadas e seus patrões, fora do espaço da favela. a relação é
determinada por uma hierarquia muito bem definida inclusive no que diz respeito ao
acesso aos bens culturais. Parte significativa dessa população não circula pelos
1
Entrevista concedida à autora, Belo Horizonte, 2006.
APRESENTAÇÕES
33
mesmos espaços freqüentados pelas classes mais altas. O que se observa no caso
desses jovens é uma ocupação mais fluida dos espaços da cidade, inclusive
daqueles relacionados à cultura. Freqüentam festivais de cinema, exposições de
arte, concertos, e shows diversos. Mas não se trata de uma conquista simples.
Segundo o que Robert relata, levou um tempo até se sentir à vontade para entrar em
determinados locais:
Eu fui entrar no Palácio das Artes com 22 anos de idade. Eu passava
e ficava na dúvida se eu podia entrar mesmo. ‘Será que eu posso
pisar ali sem o segurança me botar pra fora?’ Tinha “grilo” de entrar
em shopping. eu me toquei; porque que eu não posso entrar
aí?
1
Para o pesquisador Juarez Dayrel (2005), a cultura tem sido a grande
articuladora no surgimento de novas maneiras de ser jovem no Brasil, como espaço
democrático, de possibilidades de construção de sujeitos. Nas periferias, os jovens
vêm atuando ativamente através de movimentos culturais, fazendo alianças com
segmentos de partidos políticos de esquerda, ONGs, setores da política pública, no
sentido de contribuir efetivamente para a melhoria das condições de vida desses
locais. Não como negar que a participação nos chamados projetos sociais, que
buscam atingir as populações jovens das periferias, apesar das críticas que se
possa fazer a eles, vêm cumprindo um papel de oferecer meios para amenizar as
distâncias entre centro e periferia.
1
Entrevista concedida à autora, Belo Horizonte, 2005.
APRESENTAÇÕES
34
A BANDA PELOS DE CACHORRO
A banda “Pelos de Cachorro” foi formada em 1997 por jovens da Vila Marçola.
Robert, da atual formação, é o que está a mais tempo na banda. Conta que um dia
saindo da escola encontrou um amigo, o Hélio, que o convidou a participar de uma
banda de rock que estava precisando de vocalista.
Tinha uma ‘pá’ de gente: Lú, Leleu, Bricth, Té, Lana e Hélio. O
pessoal foi desanimando, e aí sobramos eu e o Lú; resolvemos então
chamar o Sandro pra tocar guitarra com a gente.
1
O nome Pelos de Cachorro já existia quando Robert entrou para a banda.
Esse nome veio do título de uma música que os integrantes gostavam, Hair of the
dog, da banda de rock “Nazareth”
2
. recentemente ouviram dizer que é uma gíria
que se refere à ressaca: “estou com pelo na garganta”. Contam que o pessoal na
rua começou a “zoar”: _ “olha os pelos de cachorro!”. E o nome acabou
pegando.
No início a banda fazia cover, mas tinha também composições próprias,
sempre com as letras em português. Em 1999 a formação que permaneceria até
2004 se completa com a entrada do Beto na bateria. A banda “Pelos de Cachorro”,
durante esses cinco anos fica com a seguinte formação: Robert Frank na guitarra,
violão e vocal, Sandro Cachorrão, guitarra e vocal, Luciano Rodrigues (Lú) no baixo
e Beto Assunção na bateria. Em 1999 havia um núcleo de bandas de rock no
1
Entrevista concedida à autora, Belo Horizonte, 2006.
2
Banda de hard rock escocesa, formada no final dos anos 60. Hair of the Dog é o nome do álbum
mais famoso da banda, que foi produzido pelos próprios músicos e lançado em 1975, sendo
considerado um marco do rock dos anos 70.
APRESENTAÇÕES
35
Aglomerado: “Núcleo Base”, a mais antiga, “Molusco”, “Anjos de Metal e “Pulgas”
eram as mais conhecidas. Há um consenso entre os músicos entrevistados de que a
“Pelos de Cachorro” trazia novidades para a “cena” roqueira do morro. Beto
expressa isso quando narra a primeira vez que ouviu a banda se apresentando:
Quando eu ouvi o “Pelos” adorei o som deles, mas achei que o
baterista não combinava com eles. Era um som diferente, a música
não tinha começo nem fim. tocaram músicas próprias. Tinha
muita letra ruim no início. O que me atraiu era a inovação, o som era
diferente, não seguia o que tava tocando na mídia. Eles queriam um
som novo. Eu me enxergava neles, trabalhavam o visual, usavam
uma maquiagem muito louca, tinha o Sandro que faltava um dente,
fazia parte do visual. Na época eu não tinha noção do que era ser
gótico. Aliás, essa influência gótica, acho que não tem mais na nova
formação. Robert e Sandro tinham mais influência dessa cultura
gótica, ouviam “Nick Cave”, System of Mercy”, “Jesus and Mary
Chain”.
1
Consideram que essa formação foi responsável pela fase mais produtiva
da banda. Em 2000 participaram de uma coletânea do Projeto “Meninos do Parque”,
que envolvia grupos musicais do Aglomerado da Serra, e como conseqüência foram
convidados a abrir o show da banda “Titãs”, no Circuito Cultural Banco do Brasil, na
Serraria Souza Pinto em Belo Horizonte. Beto fala do processo vivenciado pelo
grupo nesse período, das repercussões no meio, e do que percebia como diferente
na dinâmica de trabalho do grupo. Segundo ele, o que chamava a atenção é “que
era uma banda da favela que tocava as suas músicas, as suas letras, as suas
expressões sem ter medo”. O jeito diferente da banda despertou, segundo ele, o
interesse em outros jovens em fazer também alguma coisa diferente. Mas diferente
1
Entrevista concedida à autora, Belo Horizonte, 2005.
APRESENTAÇÕES
36
do quê e em que sentido, poderíamos perguntar. Segundo a sua percepção, na
maioria das bandas “acontece de tudo girar em torno de agradar o público, uma
imposição; pra gente o importante é fazer o que é nosso, voltado pra gente
primeiro”, esclarece.
Figura 5 - Formação da Pelos de Cachorro, de 1999 a 2004. Da esquerda para a
direita; Sandro, Robert, Lú e Beto.
Os ensaios aconteciam na casa do Lú, no alto do morro, na Vila Marçola.
Em 2000, Robert e Beto fizeram um curso de direção cinematográfica com duração
de uma semana, com o objetivo de aprender a montar o vídeo clipe da banda. Esse
curso foi oferecido durante a Mostra Itinerante de Cinema de Tiradentes, na Casa do
Conde em Belo Horizonte. A experiência os motivou a continuar “fazendo outras
coisas”, como nos conta Robert:
A gente ficou um tempão depois filmando várias coisas em VHS, mas
tudo fragmentado. A gente filmava no parque, na Serra do Curral, e
na casa de um chegado nosso até três horas da manhã. Tem
imagens bem engraçadas. Tem uma cena muito, muito legal da
APRESENTAÇÕES
37
gente de madrugada na casa do Neco, o Sandro ‘panguão’
cochilando, e a gente ‘zoando’ com a cara dele. Nessa época ficava
pesquisando, queria fazer sangue cenográfico. um dia por acaso,
tava vendo televisão e uma mulher apareceu ensinando fazer
sangue artificial: mistura mel com anilina, e uma textura muito
parecida com sangue de verdade, muito doido. Tem umas cenas
legais dessa época, que a gente pode aproveitar, de gente que
morreu, tipo o avô do Sandro tocando violão e cantando, a avó do
Lú, que a gente considerava nossa avó também; a gente queria uma
imagem duma senhora numa deprê e tudo, inclusive ela ficou
olhando a foto do irmão do que tinha morrido; quando a gente
falou como queria a imagem, ela falou: ‘então posso pegar a foto do
meu neto aqui e ficar lembrando dele.’ Ele tinha morrido assassinado
porque estava envolvido com tráfico. Quando ele morreu inclusive,
estive no lugar, vi ele e tudo. Isso foi em 1998. Essas filmagens
têm imagens bem legais. saudade dessa época; foram tempos
legais, de sonhar pra caramba. Depois disso, a gente acabou
deixando isso de lado, o clipe não deu certo. a gente estava no
Arena, a gente fez um curso de direção de curta metragem de oito
meses no *Centro Cultural. Cada um fez um curta, e a trilha, tanto
minha quanto do Beto, foi com música do Pelos de Cachorro. Antes
desse curso, a gente tinha feito umas imagens numa mineradora
abandonada, com idéia de fazer um clipe.
1
Em 2001 gravaram o primeiro CD demo, “Enquanto isso, o mundo se
move fora”, contendo cinco músicas, todas de autoria do grupo: “Solidão”,
“Enquanto isso o mundo se move fora”, “Morte e destruição”, “Uma mãe chora
sobre o cadáver de seu filho”, “Sentimentos mortos”. No mesmo ano foram
convidados para uma apresentação no teatro Noel Rosa, na UERJ, no ano seguinte,
em 2002 para tocar numa festa de encerramento de um congresso de trabalhadores
na Câmara Municipal de São Paulo, e em 2003 voltaram ao Rio de Janeiro para uma
1
Robert em entrevista; Belo Horizonte, 2006.
APRESENTAÇÕES
38
apresentação na Favela do Jacarezinho: “tudo o que a gente mais queria; que é
viajar, conhecer pessoas diferentes, outras culturas”.(Robert em depoimento).
Em 2002, Beto e Robert foram convidados a participar do curso de
Formação de Agentes Culturais promovido pelo “Observatório da Juventude” da
Faculdade de Educação, no Centro Cultural da UFMG. A organização do curso tinha
como meta convidar duas pessoas de cada grupo musical em diversas regiões da
cidade. Segundo Robert, os dois escolhidos sempre tiveram “mais iniciativa”:
Rolou um processo de crescimento no curso que não conseguimos passar
para os outros integrantes da banda. Eles ficaram pra trás com relação a
trabalho em grupo. Ficavam numa idéias informais de banda, de continuar
tocando, esperando alguma coisa acontecer, tipo um olheiro de gravadora pra
descobrir a banda. A gente insistiu para que os outros participassem de uma
nova edição do curso, mas eles não se empenhavam e logo abandonaram o
curso. Aí começou uma certa tensão.
1
1
Entrevista concedida à autora; eelo Horizonte, 2006.
Figura 6 - Idem. Da esquerda para a direita: Lú e Robert, à frente; Sandro e
Beto, atrás.
APRESENTAÇÕES
39
Na versão apresentada por Robert da crise vivida pela banda, ele aponta
outros fatores que envolvem questões particulares da vida dos companheiros, que
optamos em não citar neste trabalho. Na época da crise, evitavam comentar sobre o
assunto comigo; apenas diziam que a banda ia acabar por falta de disponibilidade
de alguns integrantes para ensaiar. O que pude observar na época foi uma mudança
de ‘foco’ nas prioridades do Beto e do Robert ao se envolverem muito com as
questões políticas do Movimento Faverock e com outras linguagens artísticas. As
prioridades do Sandro também começaram a mudar. Sua namorada estava grávida,
e ele arrumou emprego como porteiro em um condomínio de luxo na Serra. Robert
conta que nesse período sofreu muito com a possibilidade da banda acabar.
Começou a adoecer, sentir dores pelo corpo, ficar muito angustiado.
Antes de tudo eu penso na banda. Se eu aprendo uma coisa nova,
como fotografia, é pensando na banda. O estudo de designer, de
cinema, a mesma coisa. eu sugeri da gente se separar. Ou a
gente trabalha direito ou a gente pára. Depois de muito choro, o
sentimento de amizade começou a voltar. A gente decidiu que
mesmo assim a gente ia gravar um CD pra ficar como registro.
Fizemos alguns ensaios, gravamos, e dispersamos: o resolveu
ir pra São Paulo morar com a mãe, o Sandro virou pai. Na gravação
do CD o clima estava tranqüilo, eram canções que estavam
prontas, foi bem fluente, um arranjo feito no coletivo, com
compromisso de deixar uma coisa legal: fomos empolgando, tem
músicas com nove vozes, seis guitarras. O processo de gravação foi
muito legal. Depois disso, o CD ficou parado por um ano porque a
gente não tinha dinheiro pra fazer o lançamento. Sandro não quis
participar do lançamento, estava em outra, Lu estava em São
Paulo. o encarte levou oito meses. Tudo tem um sentido, tem
APRESENTAÇÕES
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uma estória sendo contada através da seqüência das músicas,
dentro de uma proposta conceitual.
1
O CD “Alegrias Paliativas do Leprosário” foi lançado em dezembro de
2005, no Centro Cultural da UFMG com a participação de músicos convidados,
integrantes de outras bandas de rock. Kim e Edinho foram convidados pela
“capacidade musical e técnica em pegar as músicas” e o Heberte, que tem o apelido
de “Tambor”, até então guitarrista de outra banda, foi chamado para tocar baixo no
show.
O entrosamento que aconteceu foi tão bom que os novos quiseram
continuar. Eu e Beto estávamos deprimidos, órfãos de banda,
trocamos idéia e assumimos que queríamos voltar. dando muito
certo, o som tomou uma encorpada cavalar com as três guitarras. A
gente sempre quis botar teclado, mas a gente nunca achou um
tecladista: só tem tecladista evangélico, sertanejo ou ‘enrolado’.
Os ensaios da banda vêm acontecendo num estúdio comunitário na sede
da Associação dos moradores da Vila Cafezal. No mesmo espaço, numa sala ao
lado do estúdio, funciona a cooperativa das costureiras do Cafezal e também
uma horta comunitária.
Essa parceria se iniciou com as bandas Distúrbio e Insólidum, favorecida
por laços familiares e de amizade. Uma das costureiras é sogra de um dos
roqueiros. Em troca da utilização do espaço, ficam responsáveis pelo pagamento
das contas de água e luz.
1
Robert em entrevista concedida à autora, Belo Horizonte, 2005.
APRESENTAÇÕES
41
Hoje a banda está em fase intensa de ensaios, se prepara para dois
shows que estão agendados, falam com entusiasmo dessa nova formação, fazem
planos para o futuro. No release da banda se apresentam como uma Art Band que
traz uma combinação de música, elementos cênicos, cinematográficos, literários e
plásticos”. Ser uma banda alternativa e underground continua sendo uma opção
importante. Entretanto querem reconhecimento e consideram a possibilidade de
“viver da banda”. A relação das bandas alternativas com o mercado, o pop x
underground, é sem dúvida um assunto delicado que carece de uma longa
discussão:
A gente não quer o pop; mas se a gente quer transmitir uma idéia,
precisa de um público, vira pop... isso é doido, né? Não é
Figura 7 - Estúdio comunitário, na Associação dos Moradores da Vila Cafezal; ao lado do
estúdio, funnciona a cooperativa das costureiras do Cafezal. Acima, à direita, Heberte
conversa com Dona Graça, da cooperativa.
APRESENTAÇÕES
42
contraditório? Internet é uma mídia, o que vincula é uma mídia, o
jornal também, então dentro desse contexto nós somos pop. Mas
não ser pop pra gente, é querer ser verdadeiro, mostrar sentimentos
nossos e quem se identificar com aquilo que se una à gente. Sem
querer que algo do alto faça com que isso seja bonito. É possível
driblar isso, mas é difícil. Um único ouvinte pode fazer sua banda ser
o máximo. Acho que a gente precisa repensar algumas coisas da
banda, com relação à mídia, principalmente.
1
A entrada dos novos integrantes - Edinho, Kim e Heberte - trouxe algumas
mudanças na estruturação das músicas, nos processos de composição e
metodologia utilizada nos ensaios. Na visão do Robert isso se deu pelo fato dos três
virem de experiências musicais diferentes, cada um “com um perfil musical bem
definido”. Edinho, um guitarrista mais virtuosístico, com influências vindas do heavy
metal
2
, o Kim, um guitarrista mais intuitivo, mais “loucaço”, sua contribuição mais
expressiva vem do gosto pela experimentação timbrística, é o que faz muitos
“barulhos” na guitarra. Robert aponta também o fato de ser o único do grupo que
nasceu e se criou fora do Aglomerado, e o único que não é negro. Sobre o Heberte,
Robert diz ser o que tem mais conhecimento de teoria musical e harmonia, vem
experimentando seqüências harmônicas “tipicamente brasileiras” nas composições
da banda.
Os processos de composição costumam ser coletivos, não havendo funções
específicas muito claras. Há uma tendência crescente de um rodízio na criação das
1
Beto em entrevista concedida à autora, Belo Horizonte, 2006.
2
uma boa maneira de definir o heavy metal para Tom Leão: “pegue um bom riff de guitarra, adicione
peso com baixo e bateria e acrescente um vocal forte e gritado. Presto! está uma banda de heavy
metal básica”. (...) foi através do heavy metal que aconteceram os grandes avanços no mundo das
guitarras, antes soladas apenas pelos bluesmen”. Típico dos anos 70, as bandas mais
representativas desse rock são “Led Zeppelin”, “Black Sabbath”, “Deep Purple” dentre outras. (Leão,
1997, p. 16 e 17)
APRESENTAÇÕES
43
letras, por exemplo, que inicialmente era uma “especialidade” do Robert. Percebi
numa conversa, um estimulando o outro a se arriscar na criação poética.
Um método muito utilizado na criação das músicas tem sido o de começar
com uma base (seqüência harmônica feita na guitarra) trazida por um dos
guitarristas. A partir daí, começam a fazer o que chamam de “embromation”, que
nada mais é do que um experimento lúdico, uma improvisação melódica utilizando
palavras inventadas: “às vezes sai em inglês, outras em alemão” como esclarece o
Beto. Segundo eles, isso faz com que comecem a sentir que sonoridades
“verbais” combinam em cada melodia que estão trabalhando, indicando também
uma temática possível de ser abordada na canção que estão compondo.
No final de 2006, um músico que é também produtor se interessou em fazer
um trabalho com a banda. Esse músico conhecia esses músicos alguns anos
atrás, quando foi professor do Edinho e do Heberte no Programa Arena da Cultura.
A partir das notícias sobre a realização desta pesquisa, o interesse em “dar uma
força para os meninos” se intensificou. Nas reuniões para acertar em que consistiria
essa parceria, estavam muito receptivos e animados com a possibilidade de
trabalharem com um músico mais experiente, com atuação sólida no mercado da
cidade. Heberte chegou a dizer que considerava que estavam dando um passo
importante, significava subir um degrau, “atingir um patamar mais elevado”. As
estratégias que vinham utilizando até então, estavam coerentes com a postura do
“alternativo” com divulgação feita via “marketing de guerrilha” que, segundo me
informaram, consiste em “uma estratégia de burlar o sistema de divulgação com
meios surpreendentes e com baixos custos”. Pelo que pude observar, não uma
intenção em abandonar os métodos de divulgação típicos do underground e do
APRESENTAÇÕES
44
alternativo, mas sim ampliar esses métodos, como aposta numa experiência
diferente e nova. Entretanto, faltava um material gravado que correspondesse ao
que a banda estava realizando em sua nova fase e formação. O produtor sinalizou
com a possibilidade de conseguir um estúdio gratuito para que gravassem um
“demo” com três canções. Com esse material em mãos ficaria mais fácil divulgar o
trabalho da banda e conseguir mais espaço para tocar. A experiência vivida no
estúdio não foi muito feliz, na avaliação dos cinco músicos da banda. Havia muita
pressa em finalizar o trabalho, o técnico do estúdio se mostrou impaciente, além da
pouca competência para mixar, segundo depoimento do Robert e do Heberte. Além
disso, não gostaram da maneira como foi feita a direção musical no estúdio. Avaliam
que houve tentativa de interferência excessiva na mixagem, por falta de
compreensão ou de conhecimento da estética da banda. Isso tudo resultou num
material que não satisfez a nenhum dos músicos.
Decidiram procurar um outro estúdio, desta vez uma indicação do irmão do
Kim, de um músico de uma banda de rock com uma proposta estética semelhante à
da “Pelos de Cachorro”, chamada “Cinco Rios”. Esse técnico-baterista, chamado
Fabrício, iniciou o processo de gravação propondo um ensaio no estúdio para que
ele pudesse conhecer o trabalho da banda. A idéia é não ter pressa em finalizar as
gravações, “fazer tudo com calma, garantindo que saia como a gente quer”, me
disse Heberte. Fabrício tornou-se o diretor musical da banda, pelo menos durante a
gravação do CD
1
.
1
O método de gravação utilizado é a “gravação multipista” que consiste em gravar cada canal
separado. Esse tipo de gravação facilita um melhor aprimoramento de cada instrumentista, pois torna
possível consertar erros de execução. A pouca experiência em gravar em estúdio torna difícil,
segundo Fabrício, a gravação de todos tocando juntos. Quanto ao tipo de mixagem utilizada, o
técnico se baseou num plano de voz “que fica dentro da música”, a voz não se sobressai tanto
ficando quase no mesmo volume dos instrumentos. Esse tipo de equilíbrio entre voz e instrumentos é,
segundo o técnico, típico do rock inglês, a influência mais significativa da banda. (Fabrício em
entrevista, janeiro de 2007).
APRESENTAÇÕES
45
OS MÚSICOS
ROBERT FRANK FERREIRA
“Nasci em 1980, em Belo Horizonte. Sou o último de seis filhos de minha
mãe, dos quais quatro são do primeiro casamento dela, e depois do segundo
casamento. O meu pai nasceu em Ponte Nova e a minha mãe em Nossa Senhora
dos Ferros, interior de Minas Gerais. Minha mãe apanhava muito do primeiro marido
dela, depois ele abandonou a família deixando ela com os quatro filhos para ela criar
sozinha. Minha mãe fazia salgado para os meus irmãos venderem no ponto do
ônibus. Depois ela conseguiu emprego num restaurante como chefe de cozinha.
conheceu o meu pai que era garçom do restaurante. eles se juntaram,
compraram uma casa na vila Marçola, onde eu nasci, que é uma eterna construção,
até hoje eles aumentam ela, quebram parede, abrem porta, e assim vai. A primeira
escola que eu estudei foi o Jardim de Infância Efigênio Sales, no bairro Serra. Foi a
melhor fase da minha vida, meu primeiro contato com essa coisa de arte. No
primeiro dia de aula já peguei em massinha, fiquei louco. Até hoje gosto de
comprar massinha e ficar fazendo umas coisas. Depois fui estudar no Lauro
Chagas, uma escola aqui dentro do Aglomerado, e da quinta série ao primeiro ano
do ensino médio, na Escola Estadual Pedro Aleixo, no bairro da Serra. Tive
problemas na escola, apanhava dos colegas, era meio fracote. Isso foi até a sexta
APRESENTAÇÕES
46
série, quando comecei aprender a reagir. A convivência com meus irmãos era muito
boa. Eles são bem mais velhos e eram meio pai e mãe pra mim. Minha mãe
trabalhava como costureira durante o dia, e o meu pai trabalhava à noite como
garçom. Quase não convivia com eles. É muito marcante uma lembrança do meu
pai chegando no domingo de manhã em casa, com duas bisnagas debaixo do braço,
um leite e iogurte. Essa é uma lembrança que eu acho que vou levar pra sempre. O
clima era muito tenso entre meus irmãos e meu pai. Lembro que via quebradeira,
coisas voando, faca voando e não entendia o que estava acontecendo. Meu pai
tinha um certo problema com o alcoolismo. Mas ele nunca foi violento nem com
minha mãe nem com os filhos mais novos. Eu tenho muito orgulho dele porque ele
conseguiu largar o álcool sozinho, por vontade própria. Uma época ele tinha umas
crises acho que psiquiátricas. Numas dessas, falava muito em morrer, ficava
preocupado em deixar os filhos, eu era muito pequeno, não entendia as coisas
direito. Chegou a ficar internado no Galba Veloso, e foi melhorando, resolveu
parar de beber sem precisar de procurar religião. Tenho muito orgulho dele. Meu pai
não vai à igreja, não reza, não benção. Considero ele uma pessoa muito forte.
Teve uma época que minha mãe teve que largar o serviço pra ficar cuidando de
mim. Na infância eu tinha muito problema de saúde que até hoje eu não sei o que
era. Sei que tenho lembranças muito ruins de hospital, é um lugar que eu odeio
entrar, aquele cheiro esquisito. Daí ela e meu pai resolveram comprar uma máquina
e ela passou a costurar em casa. Aí eu passei a ter um contato muito grande com a
minha e. Dizem que eu falava que minha mãe era minha namorada. No decorrer
do tempo, a gente passou a se desentender muito, não sei bem porque. Meu pai
apoiava os dois lados. O convívio em casa é mais ou menos seco; não tem muito
APRESENTAÇÕES
47
carinho um com o outro; o carinho às vezes fica pra ser subentendido. Eu nunca
quis andar de roda gigante com a Mariana no parque, porque eu sempre lembrava
do parque, eu e minha mãe. Toda vez que ela me levava no médico, na volta ela
passava comigo no parque pra me agradar. Lembro disso com tristeza, penso no
tanto que ela sofreu pra criar os filhos dela. A coisa de sonhar acho que veio do meu
pai. Quando comecei a fazer uns bicos, rolou muita pressão em casa. Minha mãe
queria que eu tivesse um emprego formal. Teve uma época que eu ficava nervoso,
quebrava tudo, até que um dia minha mãe disse que estava com medo de mim. Ela
falou com meus irmãos, foi que eu parei pra pensar. Mas a agressividade era pra
mim mesmo. Meu pai nunca teve oportunidade de se envolver em nada com arte,
nem meus irmãos. Minha primeira ligação com a música foi com um irmão. Ele
ficava ouvindo rock em casa e eu ouvia de tabela. Meu pai gosta de sica
sertaneja e de Julio Iglesias. Eu também gosto de Julio Iglesias; porque eu fico
lembrando do meu pai no muro olhando pra cidade, de lá dá pra ver grande parte da
cidade, ele ficava olhando e viajando na música. Minha mãe gosta muito de Roberto
Carlos, que eu também gosto muito, principalmente da produção dele da década de
setenta. Quando eu era criança gostava muito de desenhar [...]. Meu irmão tinha
uma guitarra muito ruim, que era pra enfeitar o quarto; deve ser influência de
filme americano. Peguei a guitarra escondido; que ela estava sem corda. Nessa
época eu gostava de andar de bicicleta, gostava de ir pra longe. Meu amigo me
disse que a guitarra precisava de seis cordas: ‘a de cima é a mais grossa, vai
afinando.’ pensei: vou pegar uns cabos de aço da bicicleta, vou trançar uns
quatro, depois uns três e vai afinando. Tinha bolinha pra prender em baixo, ficou
uma coisa bem ‘toscona’. Eu não lembro do som direito, mas devia ser muito ruim.
APRESENTAÇÕES
48
Na época eu ouvia muito, muito, muito Renato Russo. Meu negócio era cantar igual
o Renato Russo. Meu irmão ouvia, meu amigo também. em casa se ouvia muito
disco, não tinha paciência pra ouvir rádio; mas na lanchonete que eu trabalhava, o
rádio ficava ligado o tempo todo. Minha patroa ficava me apresentando umas coisas
de música instrumental de um programa de uma rádio que não lembro o nome
agora. Depois trabalhei num silk, depois numa padaria. Gostava de usar calça
rasgada, umas correntes penduradas na bota ou na calça e sobretudo preto. Não sei
em que eu me inspirava. Acho que era uma forma de agressão que considero até
saudável. Se você ta puto demais, você se veste como quiser e sai na rua assim,
quem não gostar, que ótimo que você está desagradando. Vários amigos meus
andavam assim também.(...) Numa época fomos pro Fórum Social Mundial em Porto
Alegre, essa experiência do Fórum meio que colocou uma pilha na gente, sabe, era
um monte de gente com idéias bem parecidas; de que a gente pode conseguir
coisas, que a gente pode conseguir chegar onde a gente quer, pessoas que
batalham por ideais. Voltei outra pessoa, com vontade de fazer coisa demais, voltei
mais sonhador ainda. Sobre o que eu sonho? De ter uma condição melhor do que
eu tenho agora, sabe, um compromisso que eu tenho pra mim e nem gosto muito de
mostrar isso sempre, que é de dar uma vida legal pra minha mãe e pro meu pai.
Nem sei se vai dar tempo disso, se ainda vou ter oportunidade ainda de fazer isso
por eles. Mas é um compromisso que tenho comigo de falar: agora vocês ficam
que eu vou cuidar de tudo. Mas não sei se vai dar tempo. No Fórum, conheci uma
família do Uruguai que me impressionou muito; um senso de humanidade muito
grande, um respeito, por qualquer pessoa que chegar próximo. Acho isso muito
massa. A mãe da família, nunca vi uma pessoa tão humana; é muito louco. A gente
APRESENTAÇÕES
49
queria arrumar uma câmeras digitais e fazer uns registros da América Latina
registrando tudo, começando pelo Uruguai, passar pela Colômbia, e depois descer
pelo Amazonas. Antes eu achava que não precisava estudar, fazer faculdade,
porque eu queria mesmo era viver da banda. Queremos um reconhecimento, sem
nos prostituir musicalmente, manter o respeito pelo trabalho. Mas hoje, quero voltar
a estudar por uma questão de buscar conhecimento; se eu falar que é pelo
conhecimento eu vou estar mentindo. Porque tem um atrás, buscar segurança; e
se a estória da banda não der certo, né? Por isso quero fazer designer na UEMG.
Abandonei a escola no final do terceiro ano do ensino médio. Agora estou
estudando para prova do supletivo, pra depois fazer o vestibular. Por um tempo
passei muito aperto financeiro. Depois de um emprego na padaria, deixei o cabelo
crescer e fiquei um tempão trabalhando com minha mãe numa barraca de roupa no
centro e também pintando umas roupas que minha mãe fazia. Nessa coisa da
prefeitura tirar os camelôs da rua, a minha mãe abriu uma lojinha aqui perto, na vila
mesmo, eu ajudei ela lá durante um tempo.”
EDSON PINHEIRO DOS SANTOS
“Tenho 28 anos, tudo o que eu conheço na Serra. É muito gostoso,
desde que eu era criança, tem os meus colegas, a gente brincava no beco, jogava
bola no beco, um beco íngreme, imagina a gente jogando lá, a bola ia sempre pro
mesmo lado, brincava de pegador... Muito gostoso. Cresci nesse ambiente. Estudei
numa escola da Vila Conceição, depois fui estudar no Pedro Aleixo, no
Mangabeiras. Até os quatorze anos fui muito bom estudante. Aí, não sei porque, me
APRESENTAÇÕES
50
deu vontade de conhecer outras coisas, minha mãe me protegia muito, tinha muito
medo de eu me envolver com coisas erradas. Minha mãe é de criação antiga, veio
do interior, ela é de Ponte Nova, veio pra com vinte e oito anos, hoje ela tem 58
anos. Era como se eu vivesse numa caixa de vidro. Eu era o único filho homem,
tinha que ajudar a olhar minhas irmãs, arrumar a casa enquanto ela ia trabalhar. Eu
tinha necessidade de conhecer outras coisas, outras pessoas. Antes eu brincava
no beco lá de casa, o beco “Ritmo”. Minha mãe é faxineira, sempre trabalhou pra dar
as coisas pra gente; meu padrasto também nunca deixou faltar nada em casa. Eu
comecei a me envolver com droga. Fiz uns amigos novos, um dia eu fui num
campinho atrás deles, e vi eles ascendendo um baseado. Eu nunca tinha visto
aquilo. Fiquei curioso, perguntei: é igual fumar folha de chuchu? Experimentei,
passei um pouco de mal, mas no dia seguinte fui procurar de novo, comecei a
matar aula, passei a fumar todo dia. No início eu não precisava comprar, sempre me
davam. Me achava um Super Man porque fumava maconha. Queria aparecer. a
oitava série era, não tinha média nem nada. Comecei a ser conhecido, porque o
que a gente quer é isso; as pessoas me chamando pelo nome quando eu passava
na rua: ô Edinho, chega mais... Comecei a chegar tarde em casa, e tem um
sistema da porta ser fechada por dentro, não dá pra entrar sem bater. Meu pai muito
sistemático, não gostava de ser acordado. Era gostoso porque aí passava a noite na
rua. Podia fumar a vontade, não tinha polícia nem nada pra incomodar. E eu tenho o
mapa da Serra na cabeça, eu fecho o olho e falo pra você como se sai em qualquer
beco de pra fugir. Comecei a me aprofundar mais nas drogas, usar cola, depois
cocaína, crack, barbitúricos, não ia mais em casa. Fui morar com uma mulher,
hoje sou padrinho do filho dela, porque ela era dona da boca de fumo. Eu cuidava
APRESENTAÇÕES
51
dos filhos dela, em troca ela me dava comida e droga. Minha mãe ficou
envergonhada, emagreceu, mas nunca falou nada comigo. Até eu fazer dezoito
anos eu fiquei à vontade, era menor de idade, não podiam me prender. não
roubei, nunca ataquei ninguém, nem usava droga injetável. Meus amigos roubavam,
tiravam bolsa das pessoas, eu ia com eles, mas nunca tive coragem de fazer nada.
Dava um peso na cabeça. Hoje eu to falando isso aqui, mas uma vergonha, é
uma monstruosidade. presenciei mortes, sabia quem ia morrer, mas não podia
falar nada. Em 98 eu não estava agüentando mais. Não sabia nem falar mais.
Tinha esquecido tudo que eu sabia. Tudo que eu fazia era voltado pra essa vida. Eu
vendia até minhas roupas pra comprar droga. Comecei a vender droga na boca,
muito dinheiro passava pela minha mão. Final de semana chegava a pegar seis a
sete mil. Não era meu era da ‘firma’. Eu voltei pra casa, as pessoas tinham medo de
mim, fiquei muito triste, mas continuava usando droga. Meu pai ficava muito bravo
comigo. Parei de fumar cigarro por causa da minha mãe. Fiquei com pena dela
porque o médico proibiu ela de fumar, ela tava com problema no pulmão. falei; ó
mãe eu vou parar de fumar pra ajudar a senhora a parar também, é bom que eu
também me preservo. Parei de fumar até hoje. Arrumei um serviço de servente de
obra, fiquei um ano lá. Eu tinha uns amigos, uns meninos que não mexiam com
droga, que a gente ia pro Fliperama jogar vídeo game quando era menor. Eu tinha
distanciado deles. Um dia eu passei muito mal, me levaram pro hospital, de tanta
droga que eu tinha usado. eu fiquei com medo. O médico disse que meu
organismo não tava agüentando mais, que eu tinha que parar. Parei com tudo, fiquei
com a maconha, daí um tempo larguei ela também. Meus amigos do Fliperama
falavam comigo: “pô Edinho, você é tão legal, você não precisa dessas coisas pra
APRESENTAÇÕES
52
ser legal, pára com isso. Um dia eu tava passando em frente da casa desse meu
amigo ‘Popinho’, e ele tava tocando violão. Eu falei: Popinho, você sabe tocar
violão? Ele disse que tinha comprado o violão, umas revistas com música e que tava
dando certo, ele tava conseguindo aprender. Pensei: nó, eu ficando pra trás,
saiu um monte de fliperama novo, jogos novos e eu não sabia jogar. Os meninos
detonando e eu ficando de fora. Porque quando eu era mais novo, eu e Popinho era
famoso no Fliperama, ninguém ganhava da gente. Comecei a me aproximar dele de
novo. que ele andava com Robert, Sandro, Hélio, aquela galerinha do rock, todo
mundo de preto, aquela coisa gostosa. Eu passava e só olhava. Só que música para
mim até aquela época era voz e a letra que eu prestava atenção. Não pensava
em harmonia nem nada disso não. Eu percebi que tinha ficado pra trás; não sabia
tocar violão, não sabia mais jogar Fliperama. Eu não conseguia nem olhar pra cara
dos meninos; Robert, Sandro, Lú. Ciúmes né? Eles não usavam droga, bebiam
‘umas’ de vez em quando. Comecei uma luta pra ser aceito. Senti um preconceito,
porque eles não gostavam dessa coisa de droga. Fui me aproximando aos poucos,
falei que queria aprender a tocar violão. Pedi pro Popinho me ensinar. Porque nas
máquinas, era eu treinar um pouquinho que eu tava bom no negócio. Eu
sempre tive o dom de jogar bem. Eu insisti até ele resolver me ensinar. Mas ele
disse que eu tinha que ter um violão e ficar grudado com ele o tempo todo. Aí desisti
das drogas de vez. Ele me falava: “enquanto você estiver usando droga você o
vai conseguir aprender nada. Música e droga não combina. Você fica retardado
quando fuma.” eu fiquei careta de vez, trabalhei um mês e comprei um violão.
Comecei a tocar violão, tentava tocar as músicas que eu ouvia no rádio. Mas não
conseguia fazer ‘pestana’, aí ficava nervoso. O Popinho falava: não desiste não; isso
APRESENTAÇÕES
53
é que nem fliperama. O que você faz no fliperama, violão procê é o de menos.
Aprendi a ler as cifras, lia as músicas das revistinhas. Tocava forró pro meu pai, ele
ficava feliz. Popinho montou uma banda, comprou uma guitarra. Rapidinho eu
também juntei uma galera e comprei um baixo. Começamos a ensaiar. A então o
rock não fazia parte da minha vida. O Popinho começou a me mostrar uma coisas.
Um dia Popinho me chamou na casa dele pra me mostrar uma fita de vídeo do Guns
N’ Roses. Ele adiantou a fita e me disse: aqui Edinho, estudando pra conseguir
fazer isso daqui. Passou uma parte que o Slash detona, aquele monte de dedo,
aquele som maravilhoso vindo do que ele tava fazendo com os dedos. Eu fiquei
parado na frente da televisão sem acreditar no que eu estava vendo. ‘Mas não é
computador que faz essa sonzeira toda não?’ Perguntei pro Popinho. Era muito
rápido. Olhei pra ele e falei: quero ser guitarrista. O Popinho me mostrou o que ele
estava conseguindo fazer; fiquei doido. Entre a gente sempre houve uma disputa,
desde o tempo do fliperama. Eu fiquei ‘hipnotizado’ pela guitarra. Saí do emprego e
com o acerto comprei uma guitarra. Custou 60 reais, porque o menino que me
vendeu estava ameaçado de morte, teve que vender tudo e sair da cidade. Mas eu
tinha 30; eu fazia um bico num aviário, matando frango no final de semana,
pedi pro patrão um adiantamento e ele mesmo comprou a guitarra pra mim. Mas
faltava a caixa amplificada. Nessa época comecei a ouvir uns “grunge”; Nirvana e
outras coisas. Comprei uma camisa de rock, conheci bandas que tinham mais
técnica como ‘Iron Maiden’ gostei mais ainda. Eu queria fazer aquilo. Consegui
emprego como faxineiro no clube dos tenentes e sargentos na sauna, no vestiário
masculino. Comecei a pagar aula de sica na Guitar Player. Era quase a metade
do meu salário. Fiquei desempregado, com o acerto paguei uns meses adiantado de
APRESENTAÇÕES
54
aula. Nessa época Popinho tocava mais que eu. Continuei no aviário, pedi pra Dona
Cota. Fiquei desempregado dois anos. Falei com minha mãe que eu tava
desempregado, mas tava fazendo uns bico com a D. Cota, porque queria continuar
estudando música. Minha mãe me apoiou, disse que eu podia ficar em casa que ela
e meu pai estavam trabalhando pra cuidar de mim. Era pra eu estudar que Deus ia
ajudar que ia aparecer uma coisa boa pra mim. - “Fica no seu quarto tocando a
sua guitarra; não vai pra rua não”. Eu acordava de manhã, às sete horas, tomava
meu café e ia direto pro meu quarto estudar guitarra. tinha amplificador e uns
pedais; ficava trancado no meu mundinho. Estudava os exercícios que meu
professor passava, ia até às dez da noite; parava pra comer e tomar banho.
Fiquei dois anos assim. Alcancei um certo nível musical, meu gosto começou a
mudar, descobri uns virtuoses, Eric Clapton e outros. Eu tinha um sonho: um dia eu
quero ser o melhor guitarrista da Serra. Pus isso na minha cabeça. Tenho esse
sonho ainda. Dizem por que eu sou o melhor; mas acho que não, tem uns
caras evangélicos muito bons. Popinho tem o mesmo nível que eu. Eu tenho
aquele gosto de competir com ele. Tudo que o professor passava, eu ia lá e passava
pra ele também, pra ver quem conseguia fazer melhor. Uma competição saudável.
Não tem briga nem nada não. O rock tem essa coisa de puxar o máximo da gente.
Agora o meu sonho de consumo é aprender a tocar jazz. Acho o máximo de música.
Tem possibilidades infinitas. De rock eu adoro uma banda chamada Dream
Theather, o guitarrista é muito bom. Brincam com o ritmo, têm muita técnica. O que
eu mais gosto é de desafio. Ouvir uma coisa difícil e tentar fazer igual. Depois disso
passei no concurso de agente de saúde da prefeitura, passei em primeiro lugar.
Conclui o ensino médio, fazendo supletivo. no cafezal todo mundo me conhece.
APRESENTAÇÕES
55
Não namorava, minha namorada era a guitarra. Trabalhava como agente
comunitário na minha própria rua. Fazia meu serviço, adiantava bem e ia embora
pra casa pra tocar guitarra. Fiquei nesse trabalho uns quatro anos. comecei a
inventar meus links, comecei a tocar em bandas, que os meninos eram muito
iniciantes, custavam pra pegar música, vi que não era pra mim. fui pro Arena,
fiquei dois anos lá, foi muito legal; foi que eu tive minha primeira experiência em
estúdio. Me esforço pra ser sempre o melhor; podem dizer que eu sou egocêntrico,
mas quero que as pessoas saibam que eu sou o melhor. Mas aí eu precisava passar
pra frente tudo o que eu estava aprendendo. Comecei a fazer um trabalho voluntário
numa instituição no Cafezal chamada Conselho de Pais Criança Feliz. Tinha
setenta e três alunos de violão, de todas as idades, de crianças até idosos. Fiz esse
trabalho durante um ano. Tava insatisfeito com o trabalho no posto de saúde porque
ganhava muito pouco. Apareceu uma oportunidade pra trabalhar como educador em
um projeto social, Projeto Providência. Eles têm apoio de várias instituições
estrangeiras; da Itália e da Suíça. Fiz uma entrevista, contei tudo o que eu tinha
passado na minha vida, eles gostaram muito de mim. Uma semana depois fui
chamado, fiquei maravilhado, ia ganhar o dobro e trabalhar com o que eu mais gosto
que é sica. Comecei em 2005, na Fazendinha, num projeto que atinge crianças
de várias vilas. A gente atende mais de 600 crianças. Estamos numa luta. Nós
oferecemos várias aulas especializadas, inclusive de música que é a minha. O
tráfico oferece dinheiro fácil. A nossa luta é ganhar do tráfico. Estou engajado nela
de corpo e alma, adoro o que eu faço. Meu sonho é me realizar profissionalmente
como músico. Não sei se eu quero fazer faculdade de música. Sei que eu quero me
realizar profissionalmente como músico, quero ser reconhecido, atuar no mercado,
APRESENTAÇÕES
56
quero um retorno do meu investimento, porque foi a melhor coisa que aconteceu na
minha vida. A música literalmente me salvou.”
1
HEBERTE DA SILVA ALMEIDA
Tem 22 anos, nasceu em Belo Horizonte no Aglomerado da Serra, onde
vive até hoje, na Vila Conceição. Mora com a mãe e a irmã. Conta que foi criado
pelo padrasto e que conheceu o pai biológico somente no ano passado, em 2005. A
mãe é diarista. Estudou numa escola municipal dentro do Aglomerado, e terminou o
ensino médio no Instituto de Educação, uma escola estadual no centro da cidade.
Trabalhou na ASPROM (associação profissionalizante do menor) uma entidade que
oferece trabalho e cursos profissionalizantes, quando comprou o primeiro violão, no
último ano do ensino médio. Atualmente é agente de saúde do posto de saúde da
vila Fátima, no Aglomerado da Serra. É guitarrista da banda Distúrbio, e a partir de
2006 é também baixista da banda “Pelos de Cachorro”. Começou a estudar música
no Programa Arena da Cultura no ano de 2000, onde permanece ainda hoje. No final
de 2006 prestou vestibular para o curso de Licenciatura em Música na UEMG, e foi
aprovado.
1
Entrevista concedida à autora, Belo Horizonte, 2006.
APRESENTAÇÕES
57
CARLOS ALBERTO ASSENÇÃO
“Nasci no dia 29 de novembro de 1976, no Cafezal no Aglomerado da
Serra. Estudei também, no Grupo Lauro Chagas, e depois no Colégio Estadual
Pedro Aleixo, fora do Aglomerado da Serra, perto do Mangabeiras, um outro mundo.
Na época era um outro mundo, porque a gente viveu o tempo inteiro na favela,
minha mãe era aquela mãe que segurava o filho, o nosso limite era o Lauro Chagas.
Era da casa pra escola da escola pra casa. Amigos, dentro de casa. A gente não
podia ir pra casa do vizinho, o mundo era só aquele. O “Pedro Aleixo” trouxe o novo,
um bairro da zona sul, passar pelas mansões, um outro mundo. Isso de uma certa
maneira foi de grande valia, sair do mundo periférico foi uma grande descoberta.
Tinha onze anos, ia pra escola sozinho, tinha autonomia, era muito bom. Tenho
cinco irmãos, três homens e duas mulheres. Minha mãe foi pro Cafezal na década
de 60. Ela é de Ladainha no norte de Minas, fugiu de casa porque apanhava muito,
teve o primeiro filho ainda muito nova. Eu tenho uma filha de seis anos que mora
atualmente comigo. Eu sou o único que mora com minha mãe ainda. Eu morei no
Cafezal até os vinte e dois anos. Hoje estudo Ciências Sociais na PUC. [...] Eu
trabalho aqui no Centro Cultural como estagiário, num projeto que chama Rede-Lê
com letramento digital, na parte de áudio. Levar o acesso à informática para as
pessoas mais desprovidas; porque a tecnologia tem a capacidade de desprover as
pessoas, principalmente quem é mais velho e quem é mais pobre. A gente trabalha
com Linux, Software Livre, feito por pessoas comuns. É acessível e fácil de mexer.
APRESENTAÇÕES
58
Eu queria mesmo é fazer faculdade e viver da banda, que é o que eu gosto de
fazer.”
1
KIM GOMES
“Eu sou o Kim Gomes, sou o guitarrista da Pelos de Cachorro, tenho 23
anos, nasci em Belo Horizonte, sempre morei no bairro do Bonfim. Até então nunca
tinha estado na favela né, tem uma favela perto de casa, mas não tem nada a
ver a favela com a serra. A favela da serra eu acho que uma favela bem mais
cultural que todas as outras que eu já vi. (...) Na verdade eu era baixista, eu comecei
tocando contra baixo, um belo dia peguei a guitarra e fui desenvolvendo isso,
deve ter uns oito, nove anos que eu toco, e to aprendendo né, até hoje. Bom, cresci
escutando “Led Zeppelin”, “Beatles”, essa coisa do pós - punk, “Joy Division” ,
“Bauhaus”, eu cresci escutando isso. Influenciado pelo meu irmão... E de certa
forma eu, meu irmão, a gente meio que fundou esse movimento gótico aqui em Belo
Horizonte sabe (pós punk, gótico). Na verdade eu nunca fui ligado a essas coisas
né, pra mim é rótulo, se é gótico se num é, eu sou o Kim. Meu irmão tinha uma
banda, eu tinha a “Voz e Água”,“Soturna” posterior, então isso foi o início assim né,
hoje em dia é uma febre né, essa coisa do gótico aqui na capital.(...) Eu sempre
gostei muito de som cara, muito rock’n roll, cresci ouvindo né, então acho que é isso,
a coisa mais no sangue mesmo, né. Por que em casa quem começou foi meu
irmão mais velho, meus pais gostam de “breganejo” aquelas coisa ruim. (...) Bom, eu
estudei perto de casa oito anos, na escola Silviano Brandão, escola pública,
1
Entrevista concedida à autora, Belo Horizonte, 2006.
APRESENTAÇÕES
59
depois eu passei pro Estadual Central, fiz o 1°, 2°, ano. Gostava de lá, essa
escola foi uma reviravolta na minha cabeça, por que eu comecei a descobrir muitas
coisas nessa escola , inclusive drogas. Drogas, sexo e mais rock’n roll, era muito
doido essa época. Pulava o muro pra tomar cachaça, fumar maconha e etc. Hoje em
dia só o álcool de leve, de leve mais ou menos né, mas tudo bem; eu me sentia bem
usando droga, então usava tudo quanto é coisa que possa imaginar, mas, chegou
um momento que eu falei “ah não, isso por fora, porque que eu fazendo isso?
me regaçando a toa né?”. Eu abandonei mesmo foi quando eu soube que eu ia
ser pai, dois anos atrás. (...) sica é tudo pra mim, tudo o que eu faço gira em
torno da música, tudo. Se eu vou na padaria, eu tenho que escutar uma música na
orelha. Pra eu ter a inspiração de fazer outra música, de compor, eu tenho que
escutar música, então pra mim, minha vida é música. Acho que a única coisa que eu
sei fazer direito ésica. Sempre aprendendo né, eu acho que música é uma coisa
que você aprende o resto da vida né. (...) Eu acho que é isso que a gente quer, viver
de música nesse sentido, sobreviver dela. Não precisa ficar milionário não, isso aí ta
por fora. Negócio é viver da música, que é a única coisa que a gente sabe fazer
mesmo. Música pra mim é coisa mais sentimental, mais particular. Não vou ficar
tocando música dos outros pra ganhar dinheiro não.”
COMO UM LABIRINTO
60
COMO UM LABIRINTO
O INÍCIO DO INTERESSE PELO ROCK
O rock vem se consolidando nos últimos cinqüenta anos como símbolo da
cultura juvenil, se expandindo para todo o mundo como “a linguagem internacional
da juventude”. Esse estilo musical vem associado a padrões de comportamento e de
valores, centrados, dentre outros, na liberdade, na autonomia e no prazer imediato.
Valéria Brandini esclarece os pontos centrais que conectam o gênero rock com a
fase da juventude:
Essa estética subversiva – a transgressão dos padrões de beleza, da
harmonia ou do politicamente correto funda-se na necessidade de
afirmação do grupo como culturalmente independente dos mais
antigos. Decorre da necessidade de transgressão e auto-afirmação
de uma juventude que se encontra submetida a um sistema de
práticas e valores social e economicamente padronizado por outras
gerações (Brandini, 2004, p.16).
No caso específico desses roqueiros do morro, toda a carga contestatória
contida no rock fica potencializada em função dos deslocamentos que provocam
quando fazem uma opção por uma música não associada à sua raça, nacionalidade
e classe social.
COMO UM LABIRINTO
61
Juarez Dayrell (2005), que vem estudando a juventude nos contextos
urbanos no Brasil, nos alerta para as teorias que abordam a juventude de forma
homogênea, como época de transitoriedade, tempo de prazer marcado pela
irresponsabilidade e experimentações, como momento da crise, dos conflitos de
auto-estima. Essas generalizações impedem, segundo o autor, que os jovens sejam
vistos de forma real, principalmente os de periferia. Para ele, é necessário que se
pense os jovens no Brasil levando-se em conta a enorme diversidade contextual e
sócio-cultural existente, diversidade esta que se acentua em função da crise pela
qual passa a sociedade brasileira, refletindo “nas instituições responsáveis pela
socialização, como o trabalho e a escola”. (Dayrell, 2005, p. 22) Dayrell, citando
Pochmann (1998), atribui ao modelo econômico implementado a partir da década de
1990, o surgimento de um “movimento de desestruturação do mercado de trabalho
que se manifesta na expansão das taxas de desemprego aberto, no
desassalariamento e na geração de postos de trabalho precários, atingindo
principalmente os jovens”. (idem, p. 22) Segundo o autor, afora as diferenças
percebidas entre os jovens na forma de vivenciarem a crise, de uma forma geral, o
trabalho não vem se constituindo como fonte de expressividade, “reduzido a uma
obrigação necessária para uma sobrevivência mínima, perdendo os elementos de
formação, que derivavam de uma cultura que se organizava em torno dele”. (idem,
p. 23) Por outro lado, a instituição escolar vem apresentando dificuldades em
atender as demandas desses jovens, parecendo “não constituir uma referência de
valores na sua construção como sujeitos”. Segundo esse autor, apenas 24% dos
jovens hoje no Brasil, tem o equivalente ao ensino fundamental ou mais. (idem, p.
23).
COMO UM LABIRINTO
62
A opção em fazer música e formar bandas seria uma das maneiras
encontradas para suprir a falta de amparo e segurança não encontrados nas
instituições. A escola estava desinteressante, não havia boas perspectivas de
trabalho, a solução é investir em algo que prazer, e ao mesmo tempo uma
sensação de pertencimento. Diante da insatisfação com a realidade e do sentimento
de ser excluído e marginalizado,
[...] tendem a formar ‘subculturas’ onde conseguem encontrar entre si
uma solidariedade e uma compreensão que faltam na sociedade em
voga. Parecem recuperar o sentido de si mesmos e dos outros que,
anteriormente, havia sido perdido, esquecido ou roubado (O’Hara,
2005, p. 29).
Vejamos como foi o início do interesse pelo rock e em formar uma banda, na
experiência de quatro músicos da “Pelos de Cachorro”:
Para o Robert, guitarrista e vocalista da banda, o início de seu interesse em
montar uma banda de rock coincide com uma fase de muita insatisfação com a
escola, somada a problemas familiares, incluindo os financeiros:
na adolescência que me despertou a vontade de montar uma
banda; porque eu sentia muita necessidade de dizer alguma coisa.
Muita coisa eu tinha guardada comigo mesmo; até essa questão de
ser reprimido na escola. Eu queria me sentir importante pra alguém.
Com treze anos comecei a trabalhar numa lanchonete; estudava de
manhã e trabalhava à tarde. Trabalhava com um cara que começou
a me apresentar umas músicas que eu não conhecia. convidei
esse cara pra montar uma banda. Desde o início meu interesse
maior era por escrever as letras das músicas. Gostava de falar de
sentimentos - raiva, amor -, das relações humanas, de como são
difíceis essas relações. Na época eu ouvia muito, muito, muito
Renato Russo. Meu negócio era cantar igual o Renato Russo (...)
COMO UM LABIRINTO
63
Gostava de usar calça rasgada, umas correntes penduradas na bota
ou na calça e sobretudo preto. Não sei em quem eu me inspirava.
Acho que era uma forma de agressão que considero até saudável.
Se você ta puto demais, você se veste como quiser e sai na rua
assim, quem não gostar, que ótimo que você está desagradando.
Vários amigos meus andavam assim também.
1
Heberte, o baixista da “Pelos de Cachorro”, conta que o fato de estudar numa
escola no centro da cidade, no Instituto de Educação
2
, onde convivia com pessoas
de outras classes sociais, foi determinante para que começasse a se interessar pelo
rock. Nessa época sentia um certo preconceito na escola com relação a quem
morava em favela e se depara com as dificuldades de convivência num lugar
distante de onde mora.
O mito da favela, construído pela mídia, de um lugar perigoso, fazia
com que estranhassem qualquer ato inteligente ou interessante vindo
de nós moradores de favela. Os alunos de classe média alta que não
tinham muito contato com a realidade de lá, faziam alguns
comentários às vezes que dava para perceber o preconceito.
O fato de morar em favela e de se sentir discriminado por isso na escola,
torna-se um fator determinante para uma aproximação com a estética do rock. Ao
mesmo tempo em que uma identificação com as atitudes e sonoridades vindas
do rock, também um desejo de se sentir incluído no grupo e como extensão,
incluído também na cidade:
Hoje vejo que era uma influência forte vinda do grupo de colegas; se
você está num grupo, existe uma espécie de acordo do tipo de roupa
que se usa, da música que se ouve para se enquadrar e ser aceito.
1
Entrevista concedida à autora, Belo Horizonte, 2006.
2
O Instituto de Educação, apesar de ser uma escola pública, atende a alunos de rias classes
sociais, talvez pela localização no centro da cidade e pela tradição de ensino de boa qualidade.
COMO UM LABIRINTO
64
(...) Na favela, o som que geralmente se ouve é funk, rap ou pagode.
Fico até pensando porque eu comecei a escutar o rock. (...) O rock é
atitude, é pioneiro em misturar com outros gêneros, é contraditório,
porque ao mesmo tempo que ele nasceu marginal, foi o boom da
indústria de massa. (...) Eu faço rock por uma questão de inquietude.
Heberte diz que o que chamou a sua atenção nesse tipo de música foi
“principalmente a atitude”. Se impressionou muito com a história que contaram do
Kurt Cobain quando ele destruiu a guitarra num segurança, porque ele tinha batido
num fã.
(...) ouvi contar do Kurt Cobain que tinha destruído a guitarra num
segurança, porque ele tinha batido num fã, achei essa atitude muito
doida. O som pesado e agressivo chamou também muito a minha
atenção. O satanismo no rock me deu a maior curiosidade, achei
aquilo muito doido. Nessa época comecei ouvir rock O grupo era
muito doido, gostava de som pesado, tinha uma galera barra pesada
que me apresentava sempre músicas novas. No Instituto tinha gente
de todo lugar da cidade, e de classes sociais diferentes. Havia um
certo preconceito por quem morava em favela. no final do ensino
médio foi que eu comecei a conhecer as bandas aqui da Serra. Tinha
o Faverock, fui assistir, achava curioso o nome das bandas, mas não
era amigo de ninguém. Lembro do Palco da Periferia, da Rádio
Favela, do cara do som da favela. Mas o rock eu conheci através dos
amigos da escola.
1
Aconteceu com Heberte algo muito comum entre jovens: um tipo de
identificação com a atitude de alguém distante geograficamente (nesse caso um
roqueiro famoso) que através de informações difundidas pela mídia, se torna uma
referência criando uma ilusão de proximidade.
1
Entrevista concedida à autora, Belo Horizonte, 2005.
COMO UM LABIRINTO
65
O processo de formação da identidade pressupõe a escolha das
referências. Essas referências gravitam nos mediascapes
1
, as
noções do eu e os outros estão agora mergulhados num território
imagético e indefinido (Contador, 2004).
Como se o ídolo, capaz de defender em atitude radical e pública uma fã,
demonstrasse ser uma espécie de protetor das pessoas desprovidas de poder, com
as quais muito provavelmente o Heberte se identificava. Ao mesmo tempo, houve a
identificação com o ato “heróico”, muito comum entre adolescentes do sexo
masculino. A admiração pela atitude se associa então a um conjunto de outros
signos: visuais, sonoros, dentre outros.
Para o Beto, a influência veio de dentro da própria família, de um irmão
mais velho que ouvia muito rock. O tipo de educação que recebeu fez com que
circulasse pouco por outros espaços da cidade. Suas referências estavam mais
localizadas no meio familiar e no lugar onde morou, na vila Cafezal. Quando relata a
primeira vez que saiu para estudar fora da favela, numa escola estadual localizada
num bairro próximo, de classe média, diz de um encantamento, como se estivesse
“descobrindo um mundo novo”. Nesse período, conheceu um colega de sala que
tocava violão, um encontro decisivo para solidificar o seu interesse pela música. Até
então fazia música com lata, com um amigo e vizinho, não conhecia ninguém que
tocasse violão, “somente acordeom e cavaquinho.” Interessante observar que o
Beto foi o único dentre os músicos entrevistados a fazer alguma menção à
existência desse tipo de músico no Aglomerado. Rica também é a descrição que faz
1
Conceito apresentado por Appadurai (p.35), territórios globais de imagem do real capturadas e
difundidas através dos canais mediáticos, criando um espectro alargado de experiências não
vividas, disponíveis, assimiláveis, interpretáveis, confundindo o real com o ficcionado.
COMO UM LABIRINTO
66
das peripécias para conseguir comprar a primeira bateria, nos dando uma idéia da
intensidade do seu desejo de montar uma banda:
A minha história com o rock começou assim: o meu irmão Geraldo,
por volta de 85, escutava muito rock, escutava umas coisas tipo que
a gente não tinha muito acesso. Coisas que não estavam na mídia.
Não sei como ele descobria essas coisas. Apareciam uns discos
muitos bons, fora do contexto que a gente tava acostumado. Uns
vocais, umas guitarras diferentes. Foi que eu comecei a me
interessar por rock. Nessa época eu imaginava que um dia ia ter uma
banda de rock, tendo como referência aquelas músicas que meu
irmão ouvia. Eu tinha uns onze anos, tinha um amigo, um vizinho que
a gente tinha mania de fazer música com lata. Vi que eu tinha
facilidade pra criar ritmo, me deu vontade de tocar bateria.
surgiu a rádio Terra, meu irmão mais velho era programador dessa
rádio, era o auge do rock nacional, bandas de responsa, com letras
boas, como Legião Urbana. A rádio Terra acabou, eu estava na sexta
série e não pensava mais nessa coisa de banda. Não existia banda
de rock na Serra. Eu tinha um colega de sala que tocava violão; até
então eu não tinha conhecido ninguém que tocava violão.
cavaquinho, sanfona, e tinha um saxofonista que morava na Serra.
Esse amigo da escola queria ter uma banda. Isso me animou, fui ao
centro ver preço de bateria. Era muito caro, resolvi comprar uma
gaita. Duas semanas depois achei no jornal Balcão uma bateria de
trezentos reais. Juntei dinheiro e fui no Barreiro buscar: era um
‘caco’ de bateria. Mas tinha um som ótimo. Levei pra casa do meu
amigo, que virou o guitarrista e vocalista da nossa banda. Tentamos
fazer uma música, só que não saía nada. Saiu uma música reta, sem
virada. Começamos a procurar os outros integrantes.
1
Edinho, diferentemente dos outros integrantes da banda, teve uma
adolescência marcada por uma passagem no mundo do crime, por um longo período
sendo usuário de “todo tipo de droga”. Aponta a descoberta do rock e “das pessoas
COMO UM LABIRINTO
67
que curtem rock” como decisiva para mudanças que aconteceriam na sua vida a
partir daí:
[...] mas depois que eu conheci as pessoas que curtem rock, elas são
diferentes do resto: as idéias, as frases, o jeito de pensar. Os
roqueiros têm atitudes mais revolucionárias, têm idéias que levam a
gente pra frente. Diferente de uma pessoa que curte funk; são mais
‘bitolados’. Quando eu digo pra você que eu amadureci, eu me refiro
também à opção que eu tenho de dizer sim ou não. Eu vou
absorver o que eu quero. O que eu acho que é bom pra mim. Eu
procuro ouvir as melhores coisas; o que eu acho que vai trazer algo
de bom pra mim. O que eu acho que não vale nada, eu deixo pra
quem gosta.
1
Nesse depoimento, Edinho deixa muito claro como para ele, droga e rock
estão em campos opostos. Quando fala do “amadurecimento” está se referindo ao
longo e árduo processo que vivenciou para largar as drogas. Passou então a
aprender a selecionar o que é “bom” para ele. O rock estaria no lado do bem, por
representar naquele momento a possibilidade de ser diferente de um padrão que
inclui uso de droga, criminalidade, mas também o funk e o rap; tudo fazendo parte
de um “pacote” típico de jovens que moram em favelas. Romper com esse padrão,
se libertar dele, significou virar roqueiro. O rock para o Edinho vem também
associado à capacidade de superação de desafios (físicos, mentais), como num jogo
de fliperama. No seu depoimento essa associação é explicitada em vários
momentos. Colocou para si o desafio de se tornar “o melhor guitarrista do
Aglomerado”, como tinha sido “o rei do fliperama”. Tanto na guitarra quanto no
jogo eletrônico a presença do parceiro Popinho tem sido fundamental. uma
espécie de acordo entre eles; uma parceria onde a competição tem a função de
1
Entrevista concedida à autora, Belo Horizonte, 2006.
COMO UM LABIRINTO
68
impulsionar sempre os dois a serem os melhores. Quando Edinho via o Popinho em
companhia dos caras do rock, “com aquelas roupas pretas, diferentes, que sabiam
levar uma idéia”, e ainda faziam parte de uma banda, sentiu misto de inveja,
antipatia, curiosidade. Decidiu que seria melhor músico que eles. Passou a estudar
uma média de oito horas por dia. Hoje é considerado o melhor. “Mas o Popinho é tão
bom quanto eu”. Essa é a opinião do Edinho.
GOSTO MUSICAL E SUBJETIVIDADE
Para Simon Frith, as decisões que tomamos quando vamos escutar música
são decisões aparentemente individuais. Na verdade trata-se de uma questão de
“sucesso, gosto e estilo” que podem ser explicados sociologicamente. “A questão
que deveríamos fazer não é sobre o que a música popular revela sobre as pessoas,
mas como a música às constrói”. (Frith, 1987, p. 138) Para ele, a venda das paradas
de sucesso é somente uma medida de popularidade; e quando olhamos para outras
medidas de popularidade fica claro que seu uso é sempre para a criação (em vez de
reflexão) do gosto das sociedades. “Música feminina”, por exemplo, é interessante
não como uma música que de alguma forma expressa “as mulheres”, mas uma
música que parece defini-las, como a “black music trabalha para estabelecer uma
noção específica sobre o que significa “negritude”. Cabe então à mídia de massa o
uso de técnica apropriada para falar com seu público, “para criar momentos de
reconhecimento e exclusão, para nos ajudar a nos reconhecermos”. Segundo ele, a
experiência da música popular é uma experiência de posicionamento: “ao responder
COMO UM LABIRINTO
69
a uma música, somos atraídos, atropelados, em laços emocionais e afetivos com os
performers e seus outros fãs”.(idem, p.138) Frith considera “a moda e o estilo” como
construções sociais que permanecem como chaves para as formas pelas quais nós
como indivíduos, nos apresentamos para o mundo: “usamos significados públicos
nas roupas para dizer ‘essa é a forma como quero ser notado’”. (idem, p. 139) Mas,
segundo ele, a música é especialmente importante para este processo de
posicionamento por causa de alguma coisa específica da experiência musical, que
ele aponta como sendo “sua imediata intensidade emocional”. Por causa das
qualidades de abstrações que a música possui, ele a considera como uma forma
individualizada.
Absorvemos música para dentro de nossas vidas e ritmos para dentro
de nosso corpo. Ouvimos coisas como música porque seus sons
obedecem a uma lógica familiar específica e para a maioria dos fãs
esta lógica está fora de seus controles. (idem, p.139)
Para Frith, um mistério em nossos gostos musicais: (...) “alguém
estabeleceu as convenções; elas são claramente sociais e estão além de nós”. A
primeira razão pela qual gostamos de música popular seria, segundo esse autor, por
causa do seu uso para responder às nossas questões de identidade: “usamos
músicas pop para criarmos em nós um tipo pessoal de autodefinição, um
determinado lugar na sociedade”. O prazer que ela nos é um prazer de
identificação com a música que gostamos, com os performers daquela música,
com outras pessoas que gostam dessa música. Ele ressalta que a produção de
identidade é também uma produção de não identidade – “é um processo de inclusão
e exclusão”, o que considera um dos aspectos mais impressionantes do gosto
musical: “as pessoas não sabem somente o que gostam, mas têm também uma
COMO UM LABIRINTO
70
clareza do que não gostam e normalmente têm formas agressivas de declarar o que
não gostam”. (Frith, 1987, p. 140)
Simon Frith (1997) diz também que a formação da identidade é um
processo de permanente construção e desconstrução “que põe em relação estórias,
ou parcelas de estórias recortadas do vivido, com outras ficcionadas e não menos
válidas na delimitação das identidades”. Antônio Contador completa esse raciocínio
dizendo que
[...] identidade faz referência à relação móvel ao eu e aos outros,
através da escolha de estórias e fios narrativos que devem tanto à
estética (gosto individual) quanto à ética (lógica cultural) No passado,
a identidade era delimitada por um posicionamento físico, cultural e
social bem definidos e circunscritos, que refletiam “um sentido de
lugar”; hoje a identidade é definida, segundo Simon Frith, pela
“experiência do movimento entre posições”, que pode ser traduzido
“num perplexo ‘andar sem óculos’ ou ‘andar no escuro’, na incerteza
do que vai encontrar pelo caminho, mas fazendo desse
constrangimento um apelo à marcha, à andança. (Contador, 2004, p.
156)
O fenômeno da música pop e mais especificamente do rock, sua difusão
nas partes mais remotas do planeta, faz parte de um processo típico da era pós-
moderna que se convencionou chamar de “globalização”. Para Stuart Hall (2003), as
dimensões de espaço e tempo são determinantes no impacto da globalização sobre
a identidade e são também as coordenadas básicas de todos os sistemas de
representação
1
.
1
Hall, citando McGrew (1992), traça algumas considerações sobre o conceito de
globalização: o conjunto de processos ocorridos numa escala global, que integram e
conectam comunidades e organizações “em novas combinações de espaço-tempo,
tornando o mundo, em realidade e em experiência, mais interconectado”.
COMO UM LABIRINTO
71
A globalização substitui a idéia clássica de ‘sociedade’ como sistema bem
delimitado, por uma perspectiva que considera o tempo e o espaço como
determinantes da forma como a vida social se ordena. Essas duas dimensões - de
tempo e de espaço - são os aspectos da globalização que mais têm provocado
efeitos nas identidades culturais. A partir dos anos 1970, houve uma aceleração dos
fluxos e dos laços entre as nações, causando impacto também nas identidades
culturais. Para uma melhor compreensão desses impactos é preciso que se
considere uma de suas características principais, que é a “compressão espaço-
tempo”: [...] “de forma que se sente que o mundo é menor e as distâncias mais
curtas, que os eventos em um determinado lugar têm um impacto imediato sobre
pessoas e lugares situados a uma grande distância”. (Hall, 2003, p. 69) Como a
identidade é algo profundamente envolvido no processo de representação, para
esse autor, [...] “a moldagem e a remoldagem de relações espaço-tempo no interior
de diferentes sistemas de representação têm efeitos profundos sobre a forma como
as identidades são localizadas e representadas”. (Hall, 2003, p. 71 e 72).
Talvez venha daí a surpresa que os roqueiros demonstraram diante da minha
pergunta se havia algum tipo de compromisso em fazer uma música que fizesse
referência ao fato de serem brasileiros. “Somos cidadãos do mundo”, assim me
responderam. A nacionalidade não é citada nos depoimentos, em conversas
informais ou nas letras das músicas. Não um sentimento manifesto de
insatisfação com o país, ou valorização de um outro. Simplesmente desconsideram
ou não dão importância a essa delimitação geopolítica. Para Guattari (1992), o ser
humano contemporâneo é fundamentalmente desterritorializado:
COMO UM LABIRINTO
72
Com isso quero dizer que seus territórios etológicos originários - corpo,
clã, aldeia, culto, corporação... - não estão mais dispostos em um
ponto preciso da terra, mas se incrustam, no essencial, em universos
incorporais. A subjetividade entrou no reino de um nomadismo
generalizado. Os jovens que perambulam nos boulevards, com um
walkman colado no ouvido, estão ligados a ritornelos que foram
produzidos longe, muito longe de suas terras natais. Aliás, o que
poderia significar ‘suas terras natais’? Certamente não o lugar onde
repousam seus ancestrais, onde eles nasceram e onde terão que
morrer! Não têm mais ancestrais; surgiram sem saber por que e
desaparecerão do mesmo modo! (Guattari, 1992, p.169,170)
Considera que “as terras natais estão definitivamente perdidas”, portanto
não tem como os homens restabelecerem relações com elas. O que resta, segundo
Guattari, seria a possibilidade do homem “se recompor em sua singularidade
individual e coletiva”.
Hall faz uma distinção entre a idéia de “espaço” e de “lugar”. O “lugar” é
específico, concreto, conhecido, familiar, delimitado: o ponto de práticas sociais
específicas que nos moldaram e nos formaram e com as quais nossas identidades
estão estreitamente ligadas. Na modernidade, espaço e lugar se separam cada vez
mais porque reforçam as relações “entre outros que estão ausentes, distantes (em
termos de local), de qualquer interação face-a-face”. Diz ainda que os locais o
penetrados constantemente por “influências sociais bastante distante deles”. O
autor conclui sobre a relação entre “lugar” e “espaço”, dizendo que os lugares
permanecem fixos, é neles que temos “raízes”; entretanto o espaço “pode ser
cruzado num piscar de olhos por avião a jato, por fax ou por satélite”. (Hall, 2003,
p. 73) O mercado global de estilos, lugares e imagens torna-se mediador da vida
COMO UM LABIRINTO
73
social, via imagens veiculadas pela mídia e pelos sistemas de comunicação
globalmente interligados. As identidades se tornam então desvinculadas “de tempos,
lugares, histórias e tradições específicos” (Idem, p. 75).
A favela, para esses sicos, constitui o “lugar”, uma espécie de
referência espacial primeira, a “raiz”; o “espaço” seria a infinidade de possibilidades
de interconexões com o mundo. A democratização de acesso às tecnologias vem
enriquecendo as possibilidades de novas conexões. O avanço tecnológico vem
proporcionando ao mercado opções de equipamentos cada vez mais modernos que
são substituídos com a chegada de outras novidades tecnológicas. Isso contribui
para o barateamento dos custos de equipamentos considerados obsoletos, tornando
acessível a sua aquisição para um mero maior de pessoas. Com o acesso às
tecnologias, vem a facilitação da troca de sinais entre realidades sócio-culturais
diversas. A informação não fica limitada à grande mídia e aos meios de
comunicação de massa. Cria-se com isso uma certa autonomia na busca de
conhecimentos e informações que se encaixam nos processos de construção da
identidade. Isso cabe como uma luva no universo juvenil, fase marcada pelas
grandes inquietações, questionamentos e insatisfações frente ao mundo adulto
estabelecido. Nesse “labirinto” que se constitui o processo de construção da
identidade, jovens inquietos de várias partes do mundo lançam mão da tecnologia,
se apropriam de seus meios, ampliando o leque de opções numa rede de
comunicação muitas vezes invisível ao mundo adulto.
Os exemplos trazidos por essa pesquisa não podem servir como
referência de maioria de jovens que moram em favelas. Mas apontam para uma
constatação de que há diferenças entre jovens vindos de um mesmo contexto social;
COMO UM LABIRINTO
74
pois como nos esclarece Guattari (1992), subjetividade é algo que não pode ser
explicado via apenas uma referência: espacial, econômica, ou qualquer outra. Para
esse autor, a subjetividade é algo produzido nas instâncias individuais, coletivas e
institucionais. Fatores variados contribuem nos processos de formação da
subjetividade, não havendo uma hierarquização entre eles ou um único fator
determinante. Daí, segundo ele, se origina o caráter plural e polifônico desses
processos. Enfatiza a heterogeneidade dos fatores que produzem subjetividade:
componentes significantes (família, escola, religião, dentre outros); elementos
midiáticos e tecnológicos; e dimensões a-significantes (que não passam pela
palavra). A heterogeneidade dos fatores que formam uma subjetividade, levantada
por Guattari, nos ajuda a compreender que a opção estética desses jovens se
origina num emaranhado de referências vindas de diferentes vivências que precisam
ser vistas em sua totalidade, sem uma hierarquia entre elas. Para compreendermos
quem é o Robert, ou a música que o Robert faz, é necessário que levemos em conta
essas instâncias individuais, coletivas e institucionais presentes na vida dele. Essa
teoria é interessante porque nos ajuda a perceber indivíduos como “universos”
complexos; os estereótipos não seriam conseqüências de uma visão “hierarquizada”
dos componentes formadores da subjetividade?
Indivíduos são universos de semelhanças entre si, mas de diferenças
também. Isso causa surpresa no senso comum que consegue enxergar as
favelas e as pessoas que moram como padrões homogêneos de existência. Mas,
por outro lado, é importante lembrar que morar em favela é um dado significativo nos
processos que os levaram a ser as pessoas que o. Como pudemos ver em seus
depoimentos, o lugar é sempre citado para contextualizar as experiências da
COMO UM LABIRINTO
75
infância e adolescência, como o “cenário” onde as vivências mais significativas
acontecem, mas também pela negação dela, que a fase da adolescência costuma
ser a época da necessidade de expansão de território; a favela fica pequena, é
necessário buscar outros horizontes. Como no “espaço” de Hall, estão expostos e
abertos a novas conexões.
Vejamos o que Félix Guattari (1992) tem a nos dizer sobre a relação do
espaço urbano com a formação da subjetividade. Esse autor acredita que “quer
tenhamos consciência ou não, o espaço construído nos interpela de diferentes
pontos de vista: estilístico, histórico, funcional, afetivo”. Considera os edifícios e
construções como sendo “máquinas enunciadoras”
1
capazes de produzir “uma
subjetivação parcial que se aglomera com outros agenciamentos de subjetivação”
2
.
Um bairro pobre ou uma favela, ainda segundo esse autor, “fornecem-nos um outro
discurso e manipulam em nós outros impulsos cognitivos e afetivos.(...)” (Guattari,
1992, p. 158)
Não se trata aqui de buscarmos enumerar os tipos de “impulsos cognitivos e
afetivos” que os músicos da banda “Pelos de Cachorro” estariam recebendo por
viverem numa favela, ou ainda, apontar de que forma isso vem se manifestando na
música que fazem. Guattari esclarece que essa subjetividade coletiva “não diz
respeito unicamente, nem mesmo essencialmente, às cadeias significantes da
linguagem”. As formas espaciais possuem um sentido a-significante, que Guattari
1
Segundo Guattari, “o alcance dos espaços construídos vai então bem além de suas estruturas
visíveis e funcionais. São essencialmente máquinas, máquinas de sentido, de sensação, máquinas
abstratas, máquinas portadoras de universos incorporais que não são, todavia, Universais, mas que
podem trabalhar tanto no sentido de um esmagamento uniformizador quanto no de uma re-
singularização liberadora da subjetividade individual e coletiva”. (idem, p. 158)
2
Guattari completa dizendo que “pode parecer paradoxal deslocar assim a subjetividade para
conjuntos materiais, por isso falaremos aqui de subjetividade parcial; a cidade, a rua, o prédio, a
porta, o corredor... modelizam cada um por sua parte e em composições globais, focos de
subjetivação.”(Guattari, 1992, p. 161)
COMO UM LABIRINTO
76
distingue de uma função de significação, “pelo fato de ter como papel ser o suporte
existencial de um foco enunciativo”. Ela é formada por componentes semióticos
irredutíveis a uma tradução “em termos de significantes estruturais ou sistêmicos”.
Não seria adequado, portanto, tentar reduzir essa questão a uma relação de causa e
efeito.
Entretanto, não consigo deixar de ver esse lugar - a favela - como uma
imagem que ilumina a minha tentativa de compreensão de um jeito que esses
músicos têm de se relacionar com as informações, na maneira nem sempre
previsível de processá-las, na transversalidade presente na relação com o “outro”,
tudo isso resultando em música. Vejamos uma breve descrição vinda da minha
percepção daquele lugar: sinuosidade, ausência de simetria, os becos e ruelas
fazem ‘teias’, nas habitações são comuns os “puxadinhos”, construções que vão se
agregando a outras pela necessidade de ampliação de espaço, tornando difícil saber
onde termina o espaço de um e começa o do outro...
NEGRITUDE
77
NEGRITUDE
ROQUEIRO NEGRO
“Música Negra é restrição?...”
Nas composições dos músicos da banda “Pelos de Cachorro”, não se
percebe a utilização de elementos estéticos que remetam às raízes negras da
música brasileira. Nesse sentido vão contra a corrente dos principais movimentos
musicais que envolvem jovens negros no Brasil atualmente, que em na busca de
suas raízes ancestrais um veio importante de fortalecimento na luta contra a
exclusão social.
Segundo Antonio Contador,
[...] essas raízes ligam de forma vincada Brasil e África. Uma África
mítica e ficcionada no ritmo, enquanto referência de um passado
original que não se viveu, mas que serve para validar a excelência de
um elemento de identificação do ‘nós’ face aos ‘outros’. Nós, jovens
negros brasileiros de hoje, cuja memória coletiva recorda estórias da
experiência africana cruzando-a com a experiência da negritude.
(Contador, p.161: in Pais, 2004)
Africanidade e negritude, segundo o autor, percutem-se no ponto em que
ambos partilham do mesmo signo de valor coletivo: a negritude física. Esse signo,
“última certeza num mundo de dúvidas”, não representa uma escolha, mas sim “uma
NEGRITUDE
78
certeza a partir dos outros e não uma verdadeira escolha identitária: não se escolhe
a cor da pele, não se escolhendo as referências e signos que a mesma transporta e
valida”. (Contador, p.161: in Pais, 2004)
O autor apresenta três “espaços de referência” que são, segundo ele,
fundamentais no processo coletivo de formação da identidade dos jovens negros
brasileiros: de referência a africanidade, à negritude e à brasilidade. Essas se
intercruzam criando zonas de vizinhança. Zonas de vizinhança seriam os novos
espaços resultantes do confronto entre referências consensuais com outras
conflituosas, “em órbita nos mediascapes ou presentes nos espaços referenciais,
mas sob outra articulação”. O autor enfatiza o caráter rizomórfico contido nessas três
referências (africanidade, negritude, brasilidade), e as conseqüentes
“desterritorializações” que são, segundo ele, decisivas para dar conta da
complexidade identitária dos jovens negros brasileiros. Ao buscarem o direito à
escolha de referências, a liberdade de serem negros transcendendo o conceito e
signos associados à idéia de negritude, os jovens roqueiros do morro optaram em se
fixar nas referências conflituosas, naquelas que o estão vinculadas a um
consenso, ao que a sociedade no geral espera que tenham.
Importante discutir o grau de intencionalidade e de consciência da
transgressão contida nessa escolha. Haveria uma negação mesmo que inconsciente
da negritude? Estariam se tornando “brancos”, como uma estratégia de
sobrevivência num mundo que discrimina os negros? Heberte esclarece essa
questão:
Eu acho totalmente natural, não acho necessário dar qualquer
justificativa pelo fato de eu ser negro e gostar de rock. Apesar da
origem do rock ser negra através do blues, a música é universal,
NEGRITUDE
79
acho uma bobagem delimitar barreiras entre raça e música, gênero e
música, ou entre qualquer outra coisa. Eu sempre achei natural
gostar de rock apesar de muita gente estranhar; não gosto de ficar
justificando, eu gosto e tá bom assim.
1
Paul Gilroy (2001), no livro O Atlântico Negro, afirma que “as cores - preto e
branco - sustentam uma retórica especial que passou a ser associada a um jargão
de nacionalidade e filiação nacional, bem como aos jargões de ‘raça’ e identidade
étnica.” Segundo o autor, haveria relações políticas embasadas em discursos
“racista, nacionalista ou etnicamente absolutista” que contribuem para que as
identidades pareçam ser “mutuamente exclusivas”. Desse modo, “ocupar o espaço
entre elas ou tentar demonstrar sua continuidade tem sido encarado como um ato
provocador e mesmo opositor de insubordinação política”. (Gilroy, 2001, p.34)
A opção por fazer uma música não associada diretamente à nação brasileira,
e à raça negra nesse contexto, faz dos roqueiros do morro protagonistas de uma
espécie de transgressão a um modelo que no signo da pele negra um
aprisionamento a formas idealizadas de expressão da negritude que, segundo
Gilroy, vêem a representação do corpo humano como “repositório fundamental da
ordem da verdade racial” (Idem, p.24). A essa perspectiva, que tem uma “idéia
unitária” de comunidade negra e denominada pelo autor de “essencialista”, se
contrapõe uma outra mais libertária que leva em conta “as qualidades polifônicas” da
expressão cultural negra. (idem, p. 87) Essa segunda perspectiva traz a dificuldade,
segundo Gilroy de “ao deixar para trás o essencialismo racial por ver a ‘raça’ em si
mesma como uma construção social e cultural, (...) tem sido insuficientemente
consciente do poder de resistência de formas especificamente racializadas de poder
1
Entrevista concedida à autora. Belo Horizonte, 2005.
NEGRITUDE
80
e subordinação”. (idem p. 87) Segundo esse autor, a música tem cumprido um papel
muito importante no desenvolvimento das “lutas negras”, e destina um capítulo do
livro para analisar a fundo as funções que ela tem exercido na comunicação de
informações, organização de consciência, articulação de “formas de subjetividade
exigidas pela atuação política, seja individual ou coletiva, defensiva ou
transformadora”. Gilroy faz referência ao tempo da escravidão para explicar as
origens do que denomina “política da transfiguração”. Essa política tem como
referência a “invocação da utopia”, aponta para a formação de uma comunidade de
necessidades e solidariedade, “que é magicamente tornada audível na música em si
e palpável nas relações sociais de sua utilidade e reprodução culturais”.
Criada debaixo do nariz dos capatazes, os desejos utópicos que
alimentam a política complementar da transfiguração devem ser
invocados por outros meios mais deliberadamente opacos. Esta
política existe em uma freqüência mais baixa, onde é executada,
dançada e encenada, além de cantada e decantada, pois as
palavras, mesmo as palavras prolongadas por melisma e
complementadas ou transformadas pelos gritos que ainda indicam o
poder conspícuo do sublime escravo, jamais serão suficientes para
comunicar seus direitos indizíveis à verdade. (Gilroy, 2001, p. 96)
Segundo esse autor, essa política de certa forma inaugura no ocidente uma
possibilidade de expressão que se configura como uma “contracultura expressiva”
contendo um discurso filosófico que rejeita a separação moderna e ocidental, entre
ética e estética, cultura e política. “Esta tradição havia mantido a idéia de que a vida
boa para o indivíduo e o problema de uma ordem social e política melhor para a
coletividade poderiam ser alcançadas por meios racionais”. A memória da
escravidão, “ativamente preservada como recurso intelectual vivo em sua cultura
NEGRITUDE
81
política expressiva”, teria contribuído para gerar um novo conjunto de respostas para
essa indagação (Gilroy, 2001, p.96).
No início da pesquisa perguntei ao Heberte sobre a pertinência de
investigar e buscar compreender a produção da banda também pelo viés da
negritude. Ele respondeu que era evidente que sim, pois a cor de sua pele era algo
de que era lembrado o tempo todo
1
.
Uma das formas de ser “lembrado”, com certeza se através de encontros
com a polícia, que acontecem a qualquer hora do dia e da noite, dentro ou fora do
Aglomerado. Quando abordam esse assunto, os relatos são carregados de muita
indignação. Beto conta de uma vez em que estava dentro do ônibus e do nada
apareceu um policial gritando com ele: (...) “aí foi me empurrando pra fora do ônibus.
Eu senti muita vergonha, nesse dia eu chorei demais, cara, foi muito humilhante”. As
“batidas” são comuns: mãos para o alto, revista pelo corpo todo, em qualquer lugar
da cidade a qualquer hora. Pergunto se sabem o porque disso. A reposta: “negão e
favelado, vai querer o quê”? Robert me conta de uma vez em que estava andando
de bicicleta no bairro Mangabeiras, próximo ao Aglomerado. Gostava de ficar
“pensando na vida, refletindo sobre umas coisas, quando chegou um ‘guardinha’ e
com muita educação me disse que era melhor eu ir embora dali, porque a minha
presença tava incomodando uns moradores. Cara, eles tavam com medo de a
NEGRITUDE
82
impossibilidade de dar respostas imediatas e explícitas às agressões que sofrem por
serem negros e pobres. Ele fala sobre rock:
A identificação com o rock tem a ver com não ter limites. Apesar de
que é encarado como música de vagabundo. Mas ele é transformador
porque é uma espécie de ‘chuta-balde’. Eu posso mostrar a minha
angústia emocional diante da repressão, do racismo, de ter que viver
no sistema. Esses sentimentos são mais fáceis de mostrar através do
rock. Ele veio do blues, da lamentação, da tristeza, era a expressão do
que eles passavam. O rock carrega essa coisa do blues de falar de
sentimento. Alguns segmentos distorceram isso. Porque cabe de tudo
no rock; é uma música acessível, todo mundo pode fazer. Posso
‘chutar o balde’ pra demonstrar um ódio que eu estou sentindo, como
mostrar um sentimento de amor. Ele tem um poder de transmitir
sentimentos. O rock não cai de moda. Tem as distorções, mas ele está
vivo, fazendo o papel até de transformador social. Para alguns garotos
da Serra, o rock teve esse papel transformador, principalmente no
quem sou eu, eu posso fazer isto, eu posso subir no palco e clamar
por determinadas coisas, eu posso ser o diferente principalmente da
favela.
1
O rock é apresentado como um meio possível de reação ao racismo e às injustiças
sociais, um “chuta-balde”, no sentido de que é uma forma de desabafo mas também
de superação de limites, como elemento de transformação. Como na relação com os
capatazes, trazida por Gilroy, a resposta é dada através do rock, de uma forma
“opaca”, velada, não explícita. Beto ao fazer referência ao blues como gênero que
originou o rock, acaba por manifestar o desejo de se incluir numa linhagem de
1
Beto em entrevista concedida à autora. Belo Horizonte, 2006.
NEGRITUDE
83
descendentes de africanos. O rock feito na favela também é apontado como
possibilidade de transformação na vida de jovens daquele contexto.
Talvez esteja o aspecto mais negro contido na ação dos músicos das
bandas de rock do Aglomerado da Serra, em que a música vem sendo utilizada
como um “grito para ser ouvido”, onde não se percebe uma separação nítida entre a
ética e a estética, entre a cultura e a política. A música não é concebida
prioritariamente como mercadoria, mas é um misto de lazer, ferramenta política,
meio de expressão. Através de um rompimento com associação imediata com o
valor étnico das composições, ao fazerem uma música “branca”, e ao causarem com
isso um deslocamento, estariam também, marcando uma posição e uma postura
que é política em sua essência.
ROQUEIRO NEGRO BRASILEIRO
Do estranhamento percebido pelos jovens da banda “Pelos de Cachorro”
pelo fato de serem negros, brasileiros, moradores de favela e escolherem o rock
como meio de expressão, viria a constatação de que uma “regra” colocada no
senso comum em que se espera que os negros brasileiros façam um tipo
determinado de música e que essa música contenha elementos que remetam a uma
raiz africana, representando, portanto, uma manifestação da “autenticidade racial”.
Associada à idéia de negritude, vem a referência à brasilidade.
NEGRITUDE
84
Edinho descreve situações em que é cobrada dele uma posição quanto a
sua cor e nacionalidade, e em que presencia o estranhamento manifestado por
jovens brancos da classe média ao se depararem com um roqueiro negro:
Inclusive eu sofro muito preconceito: ‘puxa você é negão e curte
rock’n’ roll? Não te entendo, você tinha que tocar um cavaquinho,
porque você toca demais, imagina você com um cavaquinho... eu
falo: olha gente, gênero musical não está na cor da pele não; é uma
questão de senso, de gosto. Eu gosto de rock, sou guitarrista e faço
jus à pose de guitarrista. Não me sinto menor por ser negro e tocar,
não. Acho até bom porque eu vou e provo que sou bom. Vou e
mostro que no Aglomerado também tem gente que sabe fazer. [...]
Tem preconceito dentro e fora do Aglomerado. Um dia eu fui tocar
com a minha banda no Cursinho Soma; meu colega estudava lá.
Quando a gente tava arrumando as coisas pra tocar, um engraçadinho
na platéia gritou: - vai Cafezal! Eu abaixei a cabeça e pensei
comigo: - vou sim, espera um pouco que eu to indo mostrar procês.
Tocamos, todo mundo agitou, ‘balançou cabeça’. No final a gente
saindo e eu ouvindo comentário: ‘nó, aquele negão toca pra caramba!’.
Foi uma coisa muito boa pra mim, foi uma vitória. Eu consegui
defender que aqui no morro também tem gente que sabe tocar. Tem
coisa ruim? Tem. Mas também tem coisa boa. Através da música
pra mostrar isso; pra mim isso é muito gratificante.
1
A colocação inicial “puxa, você é negão e curte rock’n roll?”- aponta um
desvio, um negro que gosta de rock, para em seguida sugerir uma mudança, a
retomada do caminho certo esperado por todos: que o Edinho faça uma música
coerente com a sua raça e a sua nacionalidade. O cavaquinho é citado como uma
referência ao samba e ao pagode, símbolo musical de brasilidade. Sabe-se que o
samba, junto à idéia de mestiçagem, a partir dos anos 30 se consolidou como
1
Entrevista concedida à autora, Belo Horizonte, 2005.
NEGRITUDE
85
símbolo da nacionalidade brasileira. Estão embutidas nessa fala aparentemente
banal, noções e conceitos internalizados pela sociedade brasileira como
autenticidade racial, ideais de brasilidade, etc. Mas onde estaria a origem desses
conceitos, onde tudo começou? Como as elites econômica e intelectual têm se
comportado nesses processos? A presença de traços africanos na produção musical
de uma banda de rock formada por jovens negros seria “visível” a olhos nus, ou se
faria presente nas essências, traduzida na postura e no comportamento frente ao
fazer musical, em procedimentos musicais menos evidenciados na forma e
estruturação sonoras?
Pretendo fazer aqui algumas reflexões sobre o que estaria nas entrelinhas
dos processos que levaram a sica dos negros descendentes dos escravos
africanos vir a se tornar símbolo por excelência da nacionalidade brasileira, a partir
da compreensão e contextualização de como se construiu a idéia de Brasil e de
identidade nacional.
Inicio com uma descrição feita por Paulo Dias no texto “A outra festa negra”,
onde o autor descreve o início de um interesse e curiosidade por parte da elite
branca, pela música dos escravos:
Os patrões não embalavam seu sono com os sons distantes dos
negros, como também não raro presenciavam a festa de perto. A falta
de opções de lazer para a elite branca da zona rural aproximava-a
naturalmente das funções dos escravos, na qualidade de
espectadores participantes. (...) Lembremos que danças como o lundu
e o baiano, em voga nos salões a partir do século XIX, originaram-se
dos batuques dos escravos. (DIAS, p. 862).
NEGRITUDE
86
Esses primeiros contatos com a cultura de origem africana por uma elite
muito identificada com os padrões estéticos e culturais europeus parecem ser, além
de um espaço onde as trocas simbólicas começam acontecer, um anúncio do que
viria a se consolidar no século seguinte como possibilidade de invenção de um Brasil
“original” em relação ao resto do mundo ocidental. Entretanto, essa super
valorização do que vinha do continente europeu em detrimento de uma menos valia
do que acontece em terras brasileiras, onde a presença do negro e do mestiço eram
apontadas como “degenerativa e causa dos grandes males nacionais” (Vianna,
1995, p. 76), ainda perdura por um longo período. Mas qual seria o sentimento dos
intelectuais brasileiros no início do século com relação ao Brasil e sua posição diante
do mundo ocidental? Joaquim Nabuco, político pertencente à elite intelectual
brasileira, no ano de 1900, lança um paradigma que será revisto e repensado nas
décadas de 20 e 30. Define a cultura brasileira como “síntese de tendências
particularistas e universalistas”. (Santiago, 2004, P. 12). No capítulo intitulado
“Atração do mundo” do livro Minha Formação, assim se expressa: “Sou antes um
espectador do meu século do que do meu país; a peça é para mim a civilização, e
se está representando em todos os teatros da humanidade, ligados hoje pelo
telégrafo”. (Idem, 12) A metáfora da representação teatral, segundo Silviano
Santiago (1994) diz de um Nabuco espectador mais interessado pelo “drama teatral
do século do que pelo país onde nasceu (...) morando em um país provinciano, está
distante do palco onde a grande peça se desenrola”. Para Machado de Assis, a
consc,convio Pndo PnMÊnacionaàlidrdo PdF%esVao Pnåmedom PnM€de odAÊénvimento Pnd•o PdC-s
NEGRITUDE
87
colonização européia”. (Santiago, 2004, P. 17) Mas o que nos interessa por hora é
compreender que essa postura eurocêntrica e cosmopolita expressa por Nabuco e
outros intelectuais do início do século XX convive com tendências regionalistas nas
primeiras décadas até desembocar numa constatação de uma necessidade de
busca de uma unidade da pátria
1
, que vai servir de pano de fundo para a revolução
de 30 e o período histórico de consolidação do samba em música nacional.
Hermano Vianna no livro “O Mistério do Samba” faz uma longa e rica reflexão
sobre os processos que levaram o samba a se tornar um símbolo nacional. Sabe-se
que a os finais da década de 20 o samba ainda era tido como próprio de
malandros e vagabundos, era reprimido com violência pela polícia e tinha sua
produção e consumo restritos aos morros cariocas. “Como se essa passagem do
samba como ritmo maldito à música nacional e de certa forma oficial?” Esta é a
pergunta fundamental que o autor pretende responder ao longo do livro. Inicia sua
reflexão fazendo referência a um fato ocorrido em 1926, envolvendo intelectuais e
músicos populares. Gilberto Freyre, um então jovem antropólogo pernambucano em
sua primeira visita ao Rio de Janeiro, descreve um acontecimento “singular”:
Sergio e Prudente conhecem de fato literatura inglesa moderna, além
da francesa. Ótimos. Com eles saí de noite boemiamente. Também
com Villa-Lobos e Gallet. Fomos juntos a uma noitada de violão, com
alguma cachaça e com os brasileiríssimos Pixinguinha, Patrício,
Donga (citado por Vianna, 1995, P. 19).
Para Vianna, o referido encontro entre representantes da intelectualidade e
da arte erudita e músicos negros vindos das camadas mais pobres do Rio de
1
Afonso Arinos foi um dos intelectuais empenhados nas questões de unificação nacional, autor do
livro A unidade da pátria, lançado no ano de 1900.
NEGRITUDE
88
Janeiro, pode servir como uma alegoria da “invenção de uma tradição”, onde o
samba ocupa “lugar de destaque como elemento definidor da nacionalidade”.
(Vianna, 1995: 20) Ressalta que esse acontecimento não deve ser visto como algo
natural, mas sim, como uma construção que envolveu inúmeros contatos entre
grupos sociais distintos, na tentativa de inventar a identidade e a cultura popular
brasileira. Não cabe aqui uma apresentação detalhada dos processos descritos por
Vianna em seu livro. Meu interesse no momento se refere ao que o autor levanta no
sentido de desmistificar qualquer idéia de autenticidade e tradição natural”, e
também quando considera a cultura popular e especificamente o samba, como
invenção não de um único grupo social, e sim resultante de uma “rede” que envolve
interesses de classes e raças diversas. Da aproximação entre Gilberto Freyre e
intelectuais no Rio de Janeiro teria surgido o interesse do antropólogo pela cultura
popular carioca, e feito com que, dentre outras coisas, publicasse em 1926 um artigo
no Diário de Pernambuco intitulado “Acerca da valorização do preto”, levantando
idéias que seriam desenvolvidas posteriormente, no livro Casa-grande e senzala, um
dos livros fundamentais na definição do que seria brasileiro no Brasil. Reproduzo a
seguir um trecho desse artigo:
Ontem, com alguns amigos - Prudente, Sérgio - passei uma noite que
quase ficou de-manhã a ouvir Pixinguinha, um mulato, tocar em flauta
coisas suas de carnaval, com Donga, outro mulato, no violão, e o preto
bem preto Patrício a cantar. Grande noite cariocamente brasileira.
Ouvindo os três sentimos o grande Brasil que cresce meio tapado pelo
Brasil oficial e postiço e ridículo de mulatos a quererem ser helenos
(...) e de caboclos interessados (...) em parecer europeus e norte
americanos; e todos bestamente a ver as coisas do Brasil (...) através
do pince-nez de bacharéis afrancesados. (citado por Vianna, 1995, p.
27)
NEGRITUDE
89
Interessante observar como quase imediatamente à construção de uma
identidade brasileira associada à raça negra e à mestiçagem, vem o repúdio a
qualquer tendência cosmopolita presente em cidadãos negros ou mestiços. uma
ênfase na questão racial, na descrição classificatória de raça de cada músico
presente no encontro. Junto a uma valorização do “preto” vem a valorização de um
“Brasil real” em contraposição a um Brasil “oficial e postiço e ridículo”. Freyre inicia o
artigo com a afirmação: “Há no Rio um movimento de valorização do negro”. Uma
das causas para o surgimento desse movimento seria, segundo Freyre, a “influência
de Blaise Cendrars, que vem agora passar no Rio todos os carnavais”. Cendrars,
poeta vanguardista francês, teria sido o responsável pelo encontro de jovens
escritores ligados ao movimento modernista com Donga e Pixinguinha, integrantes
do grupo musical “Os Oito Batutas”, no ano de 1924
1
.
Segundo Hermano Vianna (1995), foi pela força do rádio como meio de
comunicação de massas e também pela crescente importância do carnaval, que o
samba passou a ser consumido pelo resto da população brasileira e se transformou
na música brasileira por excelência
2
. Para José Miguel Wisnik, “a fisionomia musical
do Brasil moderno” se formou no Rio de Janeiro.
Transformando as danças binárias européias através das batucadas
negras, a música popular emergiu para o mercado, isto é, para a
1
Quando o poeta francês chegou ao Brasil pela primeira vez, já tinha sido instruído sobre a música e
os músicos brasileiros pelo compositor Darius Milhaud, que havia morado no Rio de Janeiro de 1917
a 1919, como secretário do embaixador da França, o poeta Paul Claudel. Milhaud era um entusiasta
da música brasileira, tendo declarado que: “Os ritmos dessa música me intrigavam e me fascinavam.
(...) Havia, na síncope, uma imperceptível suspensão, uma respiração molenga, uma sutil parada que
me era difícil captar.”(citado por CABRAL, 1997)
2
No início do século XX no carnaval eram tocados uma extrema variedade de estilos e ritmos,
incluindo aqueles não considerados brasileiros como polcas, valsas, tangos, mazurcas, schottishes e
outras novidades norte-americanas como o charleston e o fox-trot. Do lado nacional, a variedade
também imperava: ouviam-se maxixe, modas, marchas, cateretês e desafios sertanejos. (...)
NEGRITUDE
90
nascente indústria do som e para o rádio, fornecendo material para o
carnaval urbano em que um caleidoscópio de classes sociais e de
raças experimentava a sua mistura num país recentemente saído da
escravidão para ‘o modo de produção de mercadorias’. (Wisnik, P.119:
in Bosi, 1992)
A partir dos anos 30, o Estado, com Getúlio Vargas no poder, se empenha em
busca de uma unidade nacional e na construção de uma “brasilidade autêntica“. A
música, especificamente o samba, vai ter um papel de destaque nesse processo.
Nesse sentido “o Estado Novo acaba por explicitar as relações entre a música e
política no Brasil de um modo muito significativo”, segundo José Miguel Wisnik
(1992)
Mas o que teria levado, no Brasil, a escolha dos símbolos nacionais recair em
itens culturais produzidos “originalmente por grupos dominados”? Uma das
hipóteses foi levantada por Peter Fry, que diz o seguinte: “a conversão de símbolos
étnicos em símbolos nacionais não apenas oculta uma situação de dominação
racial, mas torna muito mais difícil a tarefa de denunciá-la” (citado por Vianna, 1995).
Roberto da Matta considera que “não haveria necessidade de segregar o mestiço, o
mulato, o índio e o negro, porque as hierarquias asseguram a superioridade do
branco como grupo dominante”. (citado por Vianna, 1995, p. 32) As sínteses
ocultariam os mecanismos de exploração social e política impedindo a possibilidade
de conflito entre essas categorias sociais. Para Rita Segato, trata-se de apropriação
pelos representantes do poder dos elementos de “identidades subalternizadas”.
(...) como um franco ‘direito de pernada’ simbólico, de um seqüestro e
apropriação simbólica nem sempre consentida para ‘nacionalizar’, no
sentido de ‘expropriar’, os ícones de cultura dos grupos sob o domínio
da sua administração. As elites se etnicizam e folclorizam para incluir
NEGRITUDE
91
na sua heráldica os símbolos dos territórios apropriados. (Segato,
2005, p. 7)
Alguns autores defendem a idéia de que os produtos culturais não estão
ligados organicamente a esta ou aquela classe ou grupo social. O que ocorre,
segundo esses autores são apropriações e trocas constantes entre classes distintas.
No séc. XIX, por exemplo, as classes populares se apropriaram de árias de óperas,
originalmente produzidos pela cultura burguesa, enquanto as classes altas se
apropriaram da valsa, derivada de formas populares de dança. Middleton defende a
abordagem das questões de recepção e audiência musical através do “princípio de
articulação”. Esse princípio é baseado em reflexões de Antonio Gramsci e defende
que:
(...) os elementos da cultura não são exclusivamente ligados a fatores
especificamente econômicos como a ‘posição de classe’ ocupada pelo
indivíduo e pelo grupo em questão. Estes seriam determinados, em
última instância, por estes fatores através de princípios articuladores,
cujas operações estão ligadas às posições de classe, mas não se
reduzem a elas. Estas operações atuam pela combinatória de
elementos culturais já existentes dentro de novos padrões ou
acoplando novas conotações àqueles elementos. (Citado por
Napolitano, 2002, p. 32)
O sentido das obras musicais seria o produto de convenções socioculturais,
e não de “efeitos naturais” e intrínsecos à obra musical. Estas convenções são tão
enraizadas socialmente que tendem a informar a apropriação dos diversos grupos
sociais que formam a estrutura de audiência musical em sociedades complexas.
Segundo Middleton (apud Napolitano, 2002, p.32), geralmente o processo de
apropriação e construção de sentido para os textos culturais (incluindo a música)
NEGRITUDE
92
está ligado a certas composições e alianças ideológicas e culturais entre os vários
grupos e classes sociais, que são continuamente refeitas. A idéia de MPB, por
exemplo, expressaria a aliança social e política entre diversas classes sociais em
torno de um ideal de nação, defendida primordialmente por setores nacionalistas de
esquerda.
A apropriação do samba pelas elites, resultando em consolidação de um
elemento de cultura marginal em símbolo da nação brasileira, traz ironicamente
como conseqüência, a expectativa com relação à população de cor negra, de que se
comprometa com os sons de suas raízes ancestrais, um certo aprisionamento aos
estereótipos associados à raça negra. Como se a voz do poder de repente se
fizesse ouvir: “agora podem tocar seus tambores com vontade; pois eles alegram
nossa alma, fazem remexer nossos quadris, nos fazem exóticos e diferentes num
mundo padronizado pelos efeitos da globalização”.
Na edição 2006 do FAN, Festival de Arte Negra patrocinado pela Prefeitura
de Belo Horizonte, a banda “Pelos de Cachorro” se inscreveu para participar do
evento. Isso gerou uma ampla discussão interna da comissão encarregada de
selecionar os artistas e coordenação do evento, quanto à adequação da produção
musical da banda à proposta do festival. A música que fazem pode ser considerada
uma música negra? Para o senso comum, e para a coordenação do evento, formada
por pessoas negras, há um conjunto de gêneros aceitos como legitimamente negros:
aqueles com elementos rítmicos vindos da música de tradição negra religiosa, como
do congado, candomblé, maracatu, outros consensuais resultantes da fusão entre
músicas africanas e européias como o samba, o jazz, o blues e a soul music., e
ainda aqueles associados à juventude urbana das últimas décadas, como o rap, o
NEGRITUDE
93
funk, o reggae. O rock, apesar de ter se originado do blues, uma manifestação dos
negros americanos, estaria se “embranquecendo” ao longo dos anos, ao se tornar
uma música de mercado, da cultura de massa. Segundo meus interlocutores da
pesquisa, Elvis Presley teria sido o causador do “embranquecimento” do rock. No
discurso dos músicos da banda “Pelos de Cachorro” um objetivo que encaram
com muita seriedade: o de resgatar as raízes do verdadeiro rock. Quais seriam
essas raízes?
Segundo o pesquisador Paul Friedlander, em suas origens o rock and roll era
uma sica essencialmente afro-americana, resultante da fusão do blues rural do
início do século XX, do blues urbano, do gospel e do jump band jazz que resultou no
chamado rhythm and blues, a maior fonte do rock and roll. Sobre o blues do início do
século XX, o autor descreve:
[...] homens negros desempregados, carregando seus velhos violões,
cruzavam o Sul durante os piores dias da Depressão, cantando sobre
a vida difícil e dolorosa que levavam (Friedlander, 2004, p. 32).
As letras desse blues rural, segundo esse autor, falavam de adversidades,
conflitos e, muito raramente de celebrações da vida cotidiana. Houve uma maciça
migração negra durante a depressão e final da Segunda Guerra Mundial que acabou
por criar um grande número de comunidades afro-americanas nos centros urbanos
do norte dos Estados Unidos. “As novidades e a alienação da existência urbana, a
ausência do lar rural e da família e de seu apoio emocional e material ajudaram a
criar o cenário no qual o blues urbano floresceu”, esclarece o autor. Philip Tagg
(1997) chama a atenção para as novas “paisagens sonoras” que serão
determinantes para as diferenças entre o blues urbano e o blues rural norte-
NEGRITUDE
94
americano na década de 20, quando trabalhadores rurais migravam para a cidade
para trabalhar nas fábricas:
Obrigados a viver em conjuntos habitacionais geométricos, tomar o
ônibus ou o trem em horários específicos através da grade
quadriculada das ruas da cidade até o prédio retangular da fábrica
onde linhas de montagem se moviam em velocidade regular e
máquinas faziam barulhos metronomicamente regulares, tendo que
bater o cartão na entrada e na saída, voltar para casa novamente em
um horário específico através da grade das ruas e semáforos, o
trabalhador imigrante afro-americano exigia uma música que refletisse
essa nova vida em um nível perceptivo afetivo. (Tagg, citado por
Ferreira, 2006, p. 255)
No final dos anos 40, um apanhador de algodão e cantor de blues rural do
Mississippi chamado Muddy Waters formou uma banda de blues em Chicago cuja
formação tornou-se modelo para as bandas de rock moderno. Essa formação se
constituía de: bateria, baixo, uma guitarra rítmica, um piano, na seção rítmica básica
e uma guitarra base e harmônica como instrumentos solo.
O estilo de cantar do blues urbano manteve a forte carga emocional
das letras e as notas sustentadas (blues notes) do seu predecessor
sulista. No entanto, o tema das letras foi expandido, para incluir a
paisagem urbana e uma dose de positividade e orgulho, e
prosseguindo com temas como a Depressão e a catarse rural.
(Friedlander, 2004, p. 33)
A música religiosa chamada gospel é a outra importante raiz negra do
rock, segundo o autor. Este estilo musical se originou na “igreja invisível” do final do
período da escravidão, “e era um formato que incluía palmas, chamado-e-resposta,
complexidade rítmica, batidas persistentes, improvisação melódica e
NEGRITUDE
95
acompanhamento com percussão”. (Friadlander, 2004, p. 33). O autor aponta
também uma ênfase no fraseado interpretativo, a expressividade emocional e a
excelência vocal, o uso de gestos corporais entusiasmados e livres como elementos
característicos deste estilo. O terceiro estilo formador do rock, o jump band jazz, se
caracterizava como animado, que fazia a platéia dançar. As bandas eram formadas
por cinco ou seis instrumentos, incluindo um saxofone. Da fusão desses três estilos,
surgiu o rhythm and blues, cuja formação era a básica do blues, complementada por
um solista de sax-tenor. O importante nesse estilo era o swing, o virtuosismo vocal e
a criatividade no palco.
“A visão de mundo do R&B era mais otimista do que o estilo
predecessor, o blues da época da Depressão, embora ainda tivesse
raízes profundas na liberdade e nas experiências da vida real... o
poder musical do R&B, a ênfase rítmica no backbeat (‘a batida’) e a
autenticidade das letras atraíam um novo público de jovens ouvintes
negros do pós-guerra”. (Friedlander, 2004, p.34).
A BANDA DEPOIS DO FAN
A experiência vivida no FAN parece ter representado um marco importante na
trajetória da banda “Pelos de Cachorro”. Em primeiro lugar, o tratamento dispensado
pela organização do evento demonstrou um grau de profissionalismo ainda não
vivenciado pela banda; uma van à disposição para buscar e levar em casa, incluindo
amigos e namoradas, camarim com infra-estrutura profissional, tudo dando uma
NEGRITUDE
96
dignidade, como equipamentos de som e iluminação de qualidade, um cachê de
valor acima do que costumam receber em outras apresentações. Durante o show, as
falas entre uma música e outra, feitas pelo Robert, deixavam bem claro a origem da
banda, o Aglomerado da Serra, com referências e agradecimentos “à galera” da
Serra ali presente. Na parte do discurso em que faz os agradecimentos à direção do
evento, ressalta o fato de que pela primeira vez o rock estava sendo representado
no festival destinado à música negra. Essa experiência vem proporcionando alguns
desdobramentos, inclusive no que diz respeito à estética de suas composições. A
experiência vivenciada no FAN fortaleceu a tendência de aproximação com o blues,
que vinha acontecendo “naturalmente”, segundo afirmação do Robert. No release
que mandaram para a coordenação do evento, citam o blues como um estilo com o
qual dialogam. Segundo eles, se tratava também de uma estratégia para que fossem
aceitos no festival. O que demonstra a preocupação em se manterem coerentes com
seus princípios (o blues foi citado em documentos do Faverock, por estar nas
origens negras do rock) e o rigor em não abrir para outras concessões apesar do
desejo em estar incluído no festival. Pela primeira vez toparam tirar proveito do fato
de serem uma banda de jovens negros? Robert me disse recentemente, com
relação à nova formação da banda, que considera um ponto positivo a entrada de
mais dois músicos negros no grupo. Essa colocação do Robert relacionada à cor da
pele dos dois novos integrantes, talvez nos indique que esse seja um traço que têm
interesse em agregar à imagem da banda como valor positivo. No último release da
banda, feito no final de 2006, quando fazem referência ao Faverock, dizem: “um
movimento de bandas independentes e de periferia, que tem como uma das
propostas, a defesa do rock como uma expressão afro-descendente”.
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
97
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
O ROCK
(...) Como distorção, na forma de ruído novo que agrega essa coisa do sentimento.
Ele não precisa ser redondo, ele pode ser quadrado, triangular...
Mas como é o rock produzido pela banda “Pelos de Cachorro”? Dizer que
fazem rock não esclarece muita coisa, haja visto a variedade de estilos sob essa
denominação atualmente. Nas últimas décadas, esse gênero vem se dividindo em
correntes e subgêneros com propostas estéticas diferentes, direcionadas a públicos
também distintos. Essa fragmentação do rock em estilos bem diferentes se acentuou
a partir dos anos 80, que gerou, segundo Brandini (2004), o fenômeno da
tribalização. “Assim, o rock tornou-se uma bandeira ideológica de grupos distintos e
representou universo de práticas e valores desse novo espaço urbano”.
1
(Brandini,
2004, p. 13)
1
Essa autora cita o editor da revista especializada Dynamite, André Cagni, que diz o seguinte: “o que
aconteceu a partir da década de 80 parece uma coisa bem clara: é que antes era rock, tudo era
rock, e depois começaram a aparecer subgêneros, começou a surgir o punk rock, o heavy metal.
começaram a surgir as tribos, os punks, os heavies, os góticos.” (idem)
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
98
A banda “Pelos de Cachorro”, na visão dos músicos que a compõe, é uma
banda pertencente à chamada “cena alternativa”
1
e underground. Antes de
entrarmos na produção musical dessa da banda, de conhecer suas características
de estilo, suas influências mais significativas e os valores ideológicos que estão
agregados à sua expressão sonora, acho interessante termos acesso ao que
pensam os sicos sobre o rock de uma maneira geral, ouvir como se posicionam
diante de questões que dizem respeito a ser roqueiro no mundo contemporâneo e
no contexto brasileiro. Apresento a seguir trechos de um debate sobre o rock
realizado em julho de 2005, com a participação de dois integrantes da banda “Pelos
de Cachorro” e também de músicos de outras bandas que compõem o movimento
Faverock.
2
Nesse seminário foi proposto que se fizesse uma discussão sobre o que
é o rock, quais os elementos da música que não deixam dúvida quanto a ela ser um
rock ou não, e também que trouxessem exemplos musicais de bandas que fossem
significativas para eles com a finalidade de fazermos uma audição comentada
dessas músicas. Selecionei e apresento a seguir alguns momentos do debate que
considerei mais esclarecedores no sentido de nos ajudar na compreensão e na
localização da produção sonora da banda Pelos de Cachorro dentro do universo do
rock contemporâneo.
No geral sentiram dificuldade em definir o que é rock. Nas primeiras
tentativas, “um som que causa arrepio na gente”. Essa definição não pareceu
1
Essa denominação, típica dos anos 90, é apresentada por Brandini em três dimensões: a estética, a
ideológica e a mercadológica. Na estética, o rock alternativo apresenta “um apanhado de estilos e
bandas pós-punk norte-americanos, na reunião de diversos estilos num todo”. Na área ideológica,
como negação do universo pop. “A produção padronizada de hits (sucessos) gerou essa inquietação
entre os que buscavam atitude, inovação e diversidade no rock”. No mercadológico, formação de um
mercado intermediário gerado pelo “circuito alternativo de shows, divulgação pelas college rádios e
fanzines e a emergência dos selos especializados em segmentos musicais específicos”. (Brandini,
2004, p. 21,22).
2
Este seminário, uma iniciativa minha em conjunto com membros do movimento faverock, aconteceu
no Centro de Cultura Belo Horizonte, um espaço da prefeitura de Belo Horizonte.
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
99
satisfatória quando o Robert ponderou que não o rock provoca arrepios nele:
“outras coisas que ouço também me causam isso, as músicas de um coral que
participei uma vez, o Chico Buarque também”. Então chegaram à conclusão de que
o que mais caracteriza essenero seria a guitarra distorcida e o ritmo acelerado. A
guitarra distorcida, porque “foi a primeira transgressão”; “eu arrepio com o barulho”,
diz o Robert. Dos instrumentos, a guitarra é o que tem o som “mais impressionante”.
Heberte busca definir o rock também pela“atitude”, apesar de admitir que para ele
“às vezes a música em si é mais importante que a atitude, ‘toca’ mais”. Para
Fernando, guitarrista da banda “Formes” do bairro Concórdia, as letras das canções,
mesmo sendo em inglês, “fazem toda a diferença, porque fazem refletir”. Considera
“a interação entre a letra e a música” o mais importante de tudo:
O rock era uma forma de protesto. Hoje o rap é uma forma de
protesto. Eu moro num lugar violento, como que eu vou falar de amor?
O rock hoje, pra ser aceito tem que falar de amor. O rock se vendeu. O
rap está indo pro mesmo caminho, desceu do morro foi pro asfalto. A
gente quer resgatar é o rock que tem letra, a guitarra distorcida
vontade de mandar palavrão em todo mundo, quando você ouve uma
guitarra distorcida, você pode não entender a letra, mas você sabe
que não estão falando de amor.
As bandas mais citadas foram “Led Zepelin” e “Pink Floyd”
1
por que “são
bandas que fizeram uma revolução”. Robert diz que essas bandas conseguiam levar
para as massas um conteúdo bom, o que o fez concluir que “talvez o mercado na
época fosse um pouco mais generoso”. “Led Zepelin”, por ser uma representante
“dos primórdios do rock”, e também pela influência do blues e pelas letras que
1
Curiosamente essa escolha não corresponde ao que gostam muito de ouvir atualmente - bandas
alternativas da Inglaterra, que serão citadas mais adiante, quando falam das referências musicais
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
100
“fazem refletir”. Consideram essa banda “uma revolução e manifestação de
excessos sob vários aspectos: drogas, virtuosismo, lendas. Sobre “Pink Floyd”,
Robert disse nem acreditar que sejam pessoas que fazem aquele som: - “parece
extra-terrestre, cara. Acho muito mágico. Bonito é pouco”.
Num determinado momento, a discussão tomou um rumo novo: o alternativo e
o pop, o rock no mercado da música. Mariana considera que “o capitalismo roubou o
rock”, e Robert complementa dizendo que “hoje, o que o mercado mostra é esse
‘roquisinho’ fraco, vendendo coca-cola”. Acredita, entretanto, que o rock verdadeiro
continua sobrevivendo “aí nos buracos, nos becos”. Grupos pop ele nem considera
como sendo rock. Para Fernando, o capitalismo transformou o que era “atitude” em
algo comercial, afirma que “a arte é coragem, o rock também é coragem. O mercado
está absorvendo o que é óbvio, não quer correr riscos”. Ficou evidente nessas
falas, a presença de um forte dualismo entre de um lado o mundo capitalista,
responsável pela massificação e adulteração do rock, e de outro, uma espécie de
resistência expressiva, que apesar de marginalizada, busca espaço para se
posicionar diante da realidade vivida no cotidiano. O pop representado aqui pelo
“roquisinho” fraco, o mainstream, uma música de mercado, sem inventividade, que
não “corre riscos”; e do lado oposto o underground ou independente, pela resistência
e “coragem” presente “nos buracos e becos”, numa alusão à cultura underground via
imagem metafórica que pode muito bem ser interpretada como referência à favela.
Vale a pena, a título de curiosidade, citar aqui o que Deleuze e Guattari disseram
sobre formas underground de expressão e o rizoma: “o que vale é que tudo o que
aconteceu de importante (aqui se referindo aos Estados Unidos), tudo que acontece
de importante, procede por rizoma americano: beatnik, underground, subterrâneos,
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
101
bandos e gangues, empuxos laterais sucessivos em conexão imediata com um fora”.
(Deleuze e Guattari, 2005, p. 30)
Robert me esclarece sobre como percebe as diferenças entre underground e
alternativo. Esses dois conceitos aparecem quase como sendo sinônimos em alguns
autores, em outros como se referissem a idéias diferentes. Para o Robert, o
underground tem a ver com as bandas que não estão na grande mídia que podem
até ser muito conhecidas, mas não o mainstream. Uma banda underground
equivale a uma banda independente. o alternativo “tem a ver com um estilo de
fazer música”, bem localizado na década de 90, que se caracteriza “pela mistura de
vários estilos”. Neste trabalho estou adotando os conceitos na maneira como Robert
os concebe, e optei em citar sempre os dois juntos, quando me refiro a esses rótulos
aplicados à banda, já que nesse caso específico eles são complementares.
A posição do grupo frente a esse antagonismo pop x underground é muito
clara: ficou evidente que pertencer à cena independente é um valor muito caro a
eles, do qual não estão dispostos a abrir mão. Brandini (2004) diz que a recusa ao
consumo da produção em massa, “orientada pela ‘oposição à burguesia capitalista’
e à indústria cultural, representou a resistência adotada por muitos movimentos e
tribos”. Segundo essa autora, foi a partir do movimento punk que esse tipo de
resistência adquiriu consistência e notoriedade. Considera também que “a idéia de
revolução e insubordinação deriva do sentimento de opressão gerado por valores
impostos. D a busca da liberdade de criar seu sistema e a marca de sua
identidade”. (Brandini, 2004, p.9) Essa “insubordinação” a “valores impostos” toma
uma dimensão mais abrangente em se tratando dos jovens presentes nessa
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
102
pesquisa porque fazem uma música que não é comum entre pessoas da mesma
faixa etária do lugar onde vivem. Essa autora acrescenta que:
Movidas por esses sentimentos, compartilhados no rock, muitas tribos
desenvolveram-se no Brasil dos anos 80, gerando a tribalização
influenciada pela notoriedade dos movimentos que ocorriam nos EUA
e na Inglaterra destaque para os punks e os heavies.”Os punks
praticando o ‘Do it yourself’, iniciaram a produção autônoma, formando
bandas e abrindo pequenos selos, criando locais para
shows,”alavancando a produção dinâmica e o mercado independente”.
(Brandini, 2004, p. 9)
Sobre a situação atual em que se encontra o rock alternativo e underground,
dizem que existe um “circuito” próprio, mas falta mais espaço de divulgação “pra
gente conhecer o que está rolando”. A MTV, um espaço importante para o
alternativo até uns anos atrás, “tinha muito da atitude do rock”, mas “já perdeu
muito”. Até o “Rock in Rio” já foi invadido por “Sandy e Júnior” e “Ivete Sangalo”. O
ideal, segundo Heberte, é que as rádios tivessem em sua programação pelo menos
uma hora destinada a esse tipo de rock. A falta de conexão entre as bandas
independentes e o público seria, segundo ele, uma das causas do enfraquecimento
do movimento em Belo Horizonte. “Aqui teve umas rádios que tocavam o rock
alternativo, como a Rádio Terra, a 107 FM, a Savassi FM”. A falta de incentivo e,
sobretudo de mobilização das bandas, segundo ele, acabaram por fazer com que
essas iniciativas”não fossem pra frente”, e que muitas bandas acabassem. Robert
concorda com essa colocação dizendo que “rola muito individualismo, tem banda
que não tem consciência ainda do trabalho em grupo, que é fechada nela mesma,
‘viajando’ na idéia de que um dia vai aparecer um produtor”. Por outro lado, aponta
saídas criativas vindas do cenário underground “com formas de difusão que são do
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
103
‘caralho’, até aqui em Minas”. Cita o exemplo de uma banda de Governador
Valadares, “Silent Cry” que ele admira porque “mesmo não estando na grande
mídia, hoje estão com cinco CDs, rodaram a Europa toda, foram até no Japão”.
Os meios de divulgação utilizados por essa banda são os usuais dentro do
underground: “através de cartas, fanzines, revistas especializadas e rádios piratas e
comunitárias que tocam somente esse tipo de música”. “Acho uma ‘viagem’,
rodaram tudo e tem gente aqui que não conhece”, conclui. Admitem a possibilidade
do underground também entrar no mercado, sobretudo “aquelas bandas que querem
viver da música”. Nesse caso, o fato de uma banda conseguir espaço na grande
mídia “não significa necessariamente que ela está se vendendo, pode acontecer da
banda se impor pela qualidade do seu trabalho”. (...) “Se vo tem uma postura
agressiva ou diferente, se vose assumir num programa ‘escroto’, e mesmo assim
for aceito lá, é porque está tendo uma mudança”, acrescenta Heberte. Quando
perguntei se eles tinham clareza do tipo de público que querem atingir, Robert me
respondeu: “o que acaba acontecendo é tocar para quem quer ouvir”.
O que se percebe é que o discurso ideológico desse grupo de roqueiros está
sintonizado com a postura do rock independente e alternativo dos anos 90: como
nos termos de Frith, “(...) combinam habilidade e técnica com o conceito romântico
de arte como expressão individual original e sincera. Não procuram ser comerciais; a
organização lógica não visa, necessariamente, fazer dinheiro ou atender a demanda
de mercado”. (Frith, apud Brandini, p. 25)
Ser morador de favela influencia a gente no sentido de fazer a gente
buscar o seu eu ali dentro. É individual, mas aparece nas letras às
vezes de forma implícita. A gente carrega essa coisa de que o
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
104
favelado não tem sentimento. A gente busca mostrar que a gente tem
sentimentos, mostrar essa busca do eu, quem sou eu. Quero me
identificar com algo, mas que algo é esse? Buscamos explorar outras
culturas, buscamos um rock diferente principalmente nas letras. A letra
tem a coisa da transformação. A gente busca fazer letras da nossa
realidade e que sejam verdadeiras. E não simplesmente pra inglês ver.
A música como fonte pra mostrar quem eu sou. Apesar de que é
encarado como música de vagabundo.(...), eu posso ser o diferente
principalmente na favela. Os grupos de pagode querem glamour, não
tem envolvimento com nenhuma causa, nem com a música. A
diferença do rock é que a gente sobe no palco, quer mostrar um
trabalho que é nosso, que tem uma referência do passado, tem um
legado, e um legado que nos foi passado, e a gente pode pegar esse
rock, e fazer uma coisa diferente com ele. Não precisa seguir um
padrão, isso é legal no rock. Como distorção, na forma de ruído novo
que agrega essa coisa do sentimento. Ele não precisa ser redondo,
ele pode ser quadrado, triangular...
1
Como se pode observar, essa individualidade trazida por Beto não está
relacionada ao artista “egóico”; aqui, individual tem a ver com subjetividade, como
negação de massificação.
A ESTÉTICA DA BANDA E SUAS INFLUÊNCIAS
Para falar especificamente sobre a produção musical da banda, foco a minha
atenção ao que o Robert tem a dizer sobre ela. Esse foco se pelo simples fato
1
Beto em entrevista concedida à autora; Belo Horizonte, 2006.
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
105
dele ser uma espécie de mentor intelectual da banda, além de ser o letrista com um
volume maior de produção, e junto ao Beto ser dos mais antigos do grupo.
“Eu não sinto necessidade de fazer uma coisa alegre. Esse negócio de
incomodar eu acho legal, usar a arte para isso”. Com essa afirmação Robert
algumas pistas importantes para entendermos a proposta musical da banda. A
intenção é fazer uma música que não seja de assimilação fácil, mas que ao
contrário, provoque um certo estranhamento, uma reflexão. “Não queremos facilitar
nada para o ouvinte”, ele fala, dando uma justificativa para o fato de não utilizarem
ritmos brasileiros em suas composições. “Não facilitar” talvez signifique evitar algum
tipo de associação com a idéia de que “somos o país do carnaval”, e que apesar das
dificuldades, somos um povo alegre. Para ele, ao contrário, é interessante que sua
música provoque uma certa introspecção. Trata-se de uma estética da melancolia,
do pessimismo e que tem a morte como um tema recorrente. Robert denomina essa
estética de “existencialista”, que para ele tem o significado de “questionar as coisas
que as pessoas fizeram com você, a relação das pessoas, dizer que as relações
humanas são difíceis na maioria do tempo”. Sobre o termo “existencialista”, diz que
“veio da poesia ultra-romântica, que tratava desses sentimentos”, e com os quais se
identifica. Considera que independente de existir um “rótulo”, falar dos sentimentos é
uma coisa natural, porque vem de sua “vivência como pessoa”. Na medida em que
vai comentando sobre sua música, vão se evidenciando as influências musicais e
literárias mais marcantes, e os caminhos que percorreu, bem como os meios que
utilizou para chegar até elas. Vê-se o labirinto onde vai encontrando elementos
com os quais se identifica. Interessante as teias identitárias que vão se formando, as
conexões ligando experiência de sua vida pessoal, com experiências de jovens de
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
106
locais distantes, levando à descoberta da literatura, para desembocar na produção
musical de uma banda de rock. O objetivo aqui não é o de aprofundar nos assuntos
e temas levantados por ele, mas sim tentar compreender como essas informações,
que o Robert assume como influências, são traduzidas e incorporadas em suas
composições.
Robert aponta um marco que considera decisivo:
Tudo começou quando ouvia Legião Urbana, foram abrindo novos
caminhos para eu conhecer outras artes, outras bandas, e uma coisa
foi levando à outra. Eu ficava lendo entrevista do Renato Russo, ele
falava: Jesus and Mary Chain” eu deve ser legal, se o cara
gosta disso, eu gosto da música dele, então deve ser interessante.
eu ia procurar.
1
Ele ainda conta que as informações vinham também através da leitura de
revistas especializadas, dos fanzines
2
, e da correspondência com pessoas que
tinham o gosto musical parecido com o dele (que ele detectava na seção de correio
das revistas) e com outras bandas “de fora”: “Eu me identificava com as bandas,
vestia roupa preta, identificava com os caras da banda”.
O “visual” que Robert tinha no final da década de 1990, quando o conheci, era
apontado como sendo gótico
3
. vestia roupas pretas, tinha o hábito de usar batom
1
Em entrevista concedida à autora; Belo Horizonte, 2006.
2
Fanzines são publicações que circulam de forma independente da indústria cultural, veiculando
informações produzidas e dirigidas a um público identificado com manifestações ditas marginais. Os
fanzines especializados em música têm no rock alternativo o seu tema principal, com divulgação de
trabalhos de bandas do circuito alternativo.
3
Esse movimento apareceu na maioria dos centros urbanos do Ocidente durante os anos 80. Suas
origens estão nos grupos musicais da Grã Bretanha, no final dos anos 70, com certeza se origina
do punk rock. A música gótica como em todas as formas contraculturais, articulava um não
conformismo explícito com os poderes estabelecidos. A música celebrava o lado negro e obscuro da
vida e tinha uma especial fascinação com a morte. Seu som lento e penetrante era freqüentemente
descrito como melancólico, tenebroso e até mórbido. Homens e mulheres se vestem de preto. As
bandas mais representativas do rock gótico são”Bauhaus”, “Siouxsie e os Banshees”, “The Cult”, “The
Cure” e “The Sisters of Mercy”. Em meados da década de 1980, o movimento mostrou sinais de
declínio na Inglaterra.(Melton, 1996, p. 334, 335)
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
107
preto nos lábios e nas unhas também esmalte preto. Pergunto ao Robert se no
passado se considerava gótico, e se havia outros jovens góticos no Aglomerado. Ele
demonstra um certo constrangimento em admitir o breve “namoro” que manteve com
essa tribo
1
, evita aprofundar no assunto dizendo apenas que na verdade o seu
interesse real era pelo movimento pós-punk, que tinha a ver com o gótico. Diz nunca
ter mantido contacto mais próximo com pessoas pertencentes a essa tribo e
tampouco teve notícias da existência de “góticos” moradores do Aglomerado da
Serra. Sobre o pós-punk esclarece que surgiu do desgaste de temáticas muito
“politizadas” apresentadas nas bandas ligadas ao movimento punk
2
, e da
necessidade que as pessoas tiveram de falar de sentimento em suas músicas. As
bandas desse período se formavam com gente “que não sabia tocar direito”,
abordando uma temática inteiramente diferente do punk rock, “que era muito
panfletário”. “Eram coisas que me contemplavam, o que eu queria dizer estava ali”.
3
Desde o início meu interesse maior era por escrever as letras das
músicas. Gostava de falar de sentimentos; raiva, amor, das relações
humanas, de como são difíceis essas relações.”(...) “gosto de construir
imagens, usar de fragmentos, tudo recortado. Tem muitas músicas
1
Rótulo muito utilizado a partir dos anos 1980 para designar agrupamentos de jovens em torno de um
estilo musical nos contextos urbanos. Para Brandini (2004), as tribos urbanas estabelecem-se através
de uma noção de ética comunitária descentralizada e fundamentada no âmbito emocional, no lazer e
no prazer de compartilhar os mesmos valores por meio de rituais, de produzir identidade própria e
expressá-la na composição estética.
2
A data e o local de nascimento do movimento punk são discutíveis. Ou a cena de Nova York do final
dos anos 60/início dos anos 70 ou os punks ingleses de 1975-76 podem receber as honras.(...) a
formação genuína e a política específica do movimento se deram no final dos anos 70. O punk na
Grã-Bretanha era essencialmente um movimento composto de jovens brancos da classe operária
desprivilegiada. Muitos deles sentiram fundo sua situação social e usaram o meio punk para
manifestar sua insatisfação.” (O’Hara, 2005, p.32) A música dos “Sex Pistols”, a banda mais
representativa desse movimento, era uma explosão de ódio e desespero. ‘Encare a vida como a
vemos’ berravam eles frustrante, sem sentido e horrível. Berrem a plenos pulmões conosco: ‘não
existe futuro’ (Henry, 1989, apud O’Hara, 2005, p. 31.)
3
Segundo Brandini, na década de 80, a relação se efetuava entre “nós, a banda, representantes da
tribo” e “vocês, fãs, por nós representados como comunidade tribal”. nos anos 90, essa
proximidade se deu entre a expressão do universo particular do artista e o como indivíduo.
Começam a compor de forma mais poética e individualista, usando a primeira pessoa. (Brandini,
2004, p. 25)
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
108
que são na verdade várias imagens, que é uma influência do cinema.
Uma imagem traz sentimento, né? Diferente do rap que tem um
discurso bem direto. Nada contra o rap, mas nosso lance é diferente.”
A favela desperta em mim sentimentos e sensações que são
universais.
Robert me apresentou uma banda chamada “Smashing Punpkins”
1
que “faz
um som” que vem impressionando muito a ele nos últimos tempos e é uma das que
vem servindo de modelo e inspiração para o trabalho musical da banda “Pelos de
Cachorro”. Enquanto põe o CD para tocar, vai me dizendo com entusiasmo porque
essa música provoca nele tamanho encantamento:
O que eu acho do caramba é que eles misturam diversas vertentes do
rock dentro de uma banda : Hard rock, metal, gótico, elementos do
grunge
2
tipo as guitarras pesadonas, uma coisa de rock meio
garageiro”. Uma banda que nunca se encaixou em nenhum
movimento específico. Usam elementos do gótico no visual, as
temáticas eram mais deprê. Tem a ver com a história dele
3
: a mãe
dele o abandonou quando ele era bebê, depois ele reencontrou ela,
mas pouco tempo depois ela morreu. Tinham uma coisa meio
psicodélica. Como eles não se encaixavam em nenhum estilo
específico, eles se consideravam uma banda alternativa. A gente se
identificou e passou a se chamar assim também. Não tem
classificação nenhuma. Eu tinha esse dilema; como fazer uma música
pesada e leve ao mesmo tempo? Aí, depois que eu ouvi “Melloncollie
and The Infinite Sadnnes o trabalho deles, eu falei: puxa isso é mais
que possível! Um álbum que trás eletrônico, folk, músicas nirvanianas
4
tem coisas tradicionais de piano e orquestra, muito bonito, mudou
1
Essa banda é uma representante do rock alternativo norte-americano dos anos 90.
2
Assim como o punk, o grunge foi uma manifestação espontânea de jovens surgido no começo dos
anos 90, nos Estados Unidos.O que caracteriza o grunge como estilo musical: um rock de garagem
barulhento, distorcido, com letras desesperançadas. Visual resgatava a calça rasgada dos punks com
um toque local: as camisas de flanela, as toucas de lã, e os calçados pesados tipo bota. As bandas
mais conhecidas são: “Nirvana”, “Soundgarden” e “Pearl Jam”.
3
Robert se refere ao vocalista Billy Corgan.
4
Numa referência à banda Nirvana, do movimento“grunge” americano.
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
109
minha concepção toda de rock. Essa banda acabou em 2003, eu
acho.
Sobre essa banda ele ainda cita o fato dos integrantes pertencerem a origens
musicais diversas: “um veio do jazz, o outro do heavy metal, uma misturada danada”
e também o de ser uma banda que faz um trabalho “conceitual”. Em sua fala fica
muito evidente o quanto se identificam e como se inspiram nesse tipo de proposta,
que define como sendo uma forma de “trabalhar em torno de um conceito ou idéia,
onde todos os elementos utilizados têm um sentido, e onde nada é gratuito”.
Exemplo disso, quando narra o fim da “Smashing Punpkings”, os “rituais” que
fizeram parte desse final, para em seguida, numa comparação explícita, narrar o
final da “Pelos de Cachorro” em 2005, e as formas que utilizaram para expressar o
luto. Robert conta como foi concebida a idéia do projeto gráfico para o encarte do
CD “Alegrias Paliativas do Leprosário” (realizado por ele e a namorada Mariana),
dentro de uma proposta de trabalho “conceitual”.
O último CD da “Pelos de Cachorro” tem a ver com perdas, com o final
da banda. Procurei uma forma de contar que a banda estava
acabando. Tem uma faixa que é quatro minutos de silêncio, que é um
minuto para cada um da banda. Depois tem uma faixa que é toda ao
contrário, que é voltando no tempo, tem uma poesia da Mariana, e
várias outras referências literárias. O poema da Mariana diz que o
poeta está morto, e o pranto se fortalece. Dizendo que tava tudo
acabando, e que a partir disso a gente ia estar pior do que antes. A
idéia era trabalhar com a idéia de lembrança. [No encarte] Pegamos
prédios antigos, a roupa (ternos) tinha a ver com isso, roupas mais
antigas, idéia de nostalgia. Mas botamos umas interferências, como
batom escuro”.
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
110
Vale aqui algumas breves considerações sobre o papel que esses elementos
visuais presentes nos encartes dos CDs, figurinos dos músicos e outros,
desempenham na estética do rock. Alguns estudiosos desse gênero, dentre eles
Simon Frith (1998), vêm discutindo as estratégias que estão implícitas nesses
elementos visuais. Segundo ele, a fim de promover uma maior interação com o
público, o músico dispõe de sinais de gênero específicos que são usados a fim de
orientar seus ouvintes como as capas dos CDs, os nomes das sicas, os solos
de guitarra, os refrões, dentre outros para os sentidos e rituais que querem
instaurar. Essas marcas teriam a função de antecipar algumas experiências, dando
pistas de “quais sentidos as expressões adquirem, quais efeitos estéticos produzem
e, sobretudo, quais experiências representam”. Os encartes de CDs devem ser
incluídos, portanto, no que se denomina performance, entendida de forma mais
ampla, como “uma forma de comunicação que engloba recepção, produção e
ambiente”.(Frith, 1998, p. 149)
No encarte deste CD citado por Robert, além dos itens que ele apontou,
pode-se observar também o tipo de letra utilizado em todo o encarte – das letras das
músicas à ficha técnica - numa grafia imitando a escrita manual de estilo antigo. Na
capa de fundo preto, algumas velas acesas, como num velório. Dentro do encarte
uma simulação de páginas antigas, como se fossem cadernos ou livros gastos pelo
tempo. Numa das páginas, a foto do grupo tem como fundo um papel de parede com
estampa rendada, duas folhas num canto dão a dimensão de um tempo que passou;
estão murchando. Esses elementos servem de moldura para a fotografia dos quatro
músicos em pose e postura que remetem a fotos antigas: Robert e Beto estão em
pé, Sandro e estão sentados num banco de praça, embaixo de uma árvore
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
111
centenária com raízes vigorosas; tudo em preto e branco. Curiosamente, os que
estão de foram os que deram continuidade ao trabalho da banda “Pelos de
Cachorro”. A primeira gravura na contracapa do encarte é uma imagem de um ser
mitológico que representa a morte: uma mulher segurando uma foice está sentada
no alto da lua, um pássaro negro voa entre as nuvens. Essa gravura, feita por
Gustave Doré, um ilustrador francês do séc. XIX, foi originalmente feita para ilustrar
um conto de Edgar Allan Poe intitulado “O Corvo”. A gravura da última página
mostra um cadáver putrefato que nos “olha”, com a boca aberta, os olhos vazados.
A data que colocaram é a de 1947.
Outra influência marcante vem do rock underground inglês, através do músico
Nick Cave, porque além dele ser músico é também artista plástico, trabalha com
vídeo e cinema. Como um exemplo a ser seguido, porque Robert e Beto também
não conseguem se ver como somente músicos. A intenção dos dois é cada vez mais
equilibrar o tempo entre atuações em diferentes linguagens artísticas, principalmente
artes visuais e música. “Nas letras dele tem aquele lance de ‘linguagem da
violência’, eu li outro dia não sei aonde, preciso pesquisar melhor sobre isso”. Robert
cita ainda a participação desse artista, no filme Asas do desejo do cineasta alemão
Wim Wenders, um dos filmes de que ele mais gosta, e que considera uma poderosa
fonte de inspiração.
Na literatura, os autores que o Robert cita como referências importantes são
Álvares de Azevedo e Augusto dos Anjos no Brasil, mas também Edgar Allan Poe e
Lord Byron. A descoberta desses autores e a identificação com a estética romântica
e simbolista também se deram através de Renato Russo, na busca de seguir os
“passos literários” de seu ídolo durante a adolescência. Esse músico por sua vez,
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
112
estava ligado ao movimento pós-punk de Brasília, “bebeu” de fontes góticas
1
muito
provavelmente com interesses literários que tinham a ver com essa estética,
influenciado por grupos e movimentos do rock europeu.
Álvares de Azevedo (1831-1852) é um poeta representante de uma corrente
do Romantismo da segunda metade do séc. XIX no Brasil que tinha como
características, segundo Coutinho (1976), “o individualismo e subjetivismo, a dúvida,
a desilusão, o cinismo e negativismo, a melancolia, o pessimismo, o senso de
inanidade das coisas terrenas, os estados mórbidos de dúvida”. Sua obra, toda ela
escrita no período entre 1848 e 1852, tinha como temas recorrentes o amor e a
morte. A saúde precária e os cuidados constantes seriam, segundo Maria José
Negrão (1977) determinantes na fixação do poeta com a idéia de proximidade da
morte e sobretudo no apego à mãe, “não apenas natural ternura filial e o desejo de
proteção, mas principalmente porque mulher, e como mulher, símbolo de
fecundidade e vida, de força criadora”. (Negrão, 1977, p. 13) A semelhança entre
esse aspecto da vida de Alvares de Azevedo com a do Robert Frank e o efeito disso
na poesia será abordada mais adiante, quando nos aproximaremos de uma de suas
composições, “La Puta Madre Blues”.
Augusto dos Anjos (1884-1914) era um poeta paraibano, identificado como
simbolista ou parnasiano, também tinha na morte a personagem central de sua
poesia. Inspirado pela filosofia de Schopenhauer, percebia “o aniquilamento da
1
Na literatura, o termo “gótico” se refere a uma forma peculiar de romance popular do séc. 18.
Romances góticos têm reaparecido com grande intensidade na última metade do séc. 20. Pode ser
definida como a literatura do pesadelo. A literatura gótica evoluiu das explorações do eu interior com
toda a sua emotividade e aspectos intuitivos, como uma forma de romantismo, mas confrontando o
lado mais negro e mais obscuro do ser. As obras góticas forçam o leitor a considerar tudo o que a
sociedade chama de maldade na vida humana. Os autores góticos têm desafiado as estruturas
sociais e intelectuais pela intensa presença do não-racional, da desordem, e do caos. Criava uma
mistura de três elementos distintos: terror, o horror, e o misterioso. A ficção gótica chegou ao ápice
em 1897 com a publicação do romance de vampiro “Drácula”. (Melton, 1996, p. 332, 332)
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
113
vontade de viver” como a única saída para o ser humano. Essa filosofia era como
um reflexo do que via ao seu redor, com a crise de um modo de produção pré-
capitalista, proprietários falindo e ex-escravos na miséria. Segundo Ferreira Gullar,
“o mundo seria representado por ele, então, como repleto dessa tragédia, cada ser
vivenciando-a no nascimento e na morte”. O uso de uma linguagem “orgânica”
muitas vezes cientificista e agressivamente crua, causava repulsa na época. O
aspecto melancólico, que é uma marca da sua poesia, é interpretado por Ferreira
Gullar como conseqüência da biografia do homem Augusto dos Anjos. A arte desse
poeta, segundo Haddad (1981) procura ser também uma filosofia que concilie
ciência e fé. Uma que vem do bramanismo e do budismo, da teosofia, do
ocultismo, do esoterismo, de todo esse mistério oriental.
O ideal da unidade desse poeta vem da ideologia de noções de
“totalidade, universo, sistema cósmico, que se relaciona com o grande
lugar-comum da filosofia hindu: ‘Não outro ser senão o Ser, uno,
imutável e absoluto. O mundo exterior, o mundo dos nomes e das
formas (‘o mundo fenômeno das formas’ de Augusto dos Anjos’) não
apresenta estes caracteres, é feito de dados múltiplos, mutáveis,
relativos. Nesta imagem do mundo externo, o poeta procura descobrir
o invisível que o visível oculta, o inaudível que lateja sob o rumoroso, e
os elementos misteriosos que apreende, dão-lhe a visão unitária do
mundo em que o particular se dissolve no geral, o microcosmo
acabando reflexo exato do macrocosmo.” (Haddad, 1981, p. 53)
Essas reflexões que Haddad faz sobre a poesia de Augusto dos Anjos, me faz
lembrar de uma colocação do Robert ainda no início da pesquisa, quando me disse:
“A favela desperta em mim sentimentos e sensações que são universais”. “Gosto de
falar de um sentimento meu acreditando que outras pessoas vão se identificar com
ele. Uma coisa que parte do pessoal para o universal.” Nas letras de suas canções
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
114
não relatos ou denúncias explícitas de uma situação social concreta. A realidade
é traduzida em poesia que redimensiona a dor, a solidão, o abandono, a morte
vivenciados no lugar de origem, como coisas do humano, e não necessariamente
localizáveis em nenhuma sociedade ou geografia específicas.
Em vários pontos é possível identificar traços românticos e simbolistas tanto
na estética de composição da banda “Pelos de Cachorro” quanto na maneira como
concebem a expressão poética. A música costuma ser referenciada como algo que
tem a função de “descobrir o meu eu ali dentro”, como o Beto disse quando tentava
me explicar o que representava para ele ser um roqueiro na favela. Na banda,
mesmo sendo uma experiência coletiva, cabe a cada integrante “botar ali o que cada
um expressa, e respeitar a individualidade”. Sobre a música “La Puta Madre Blues”
que conheceremos a seguir, Robert esclarece que “de forma subjetiva são indiretas
para contar uma história”, deixando claro que a subjetividade, um valor no
romantismo e no simbolismo é o ponto de partida para a sua narrativa.
A entrada dos novos músicos na banda pode vir a alterar esse “tom”
melancólico presente na estética do Robert, ainda a estética dominante. Numa
conversa durante uma festa, ouvi o Kim dizer ao Robert: “cara, tenho achado as
nossas músicas muito deprê: começando a fazer umas letras mais psicodélicas,
meio eróticas”. Num outro momento, o Edinho despretenciosamente pergunta ao
grupo: “mas o quê que é gótico, esse negócio que vocês estão falando aí?”
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
115
Figura 8 - Nova formação da Pelos de Cachorro. Da esquerda para a direita: Beto,
Heberte, Robert, Kim e Edinho.
Figura 9 - Show da banda Pelos de Cachorro, no Teatro Marília, abril de
2006.
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
116
LA PUTA MADRE BLUES
A canção “La Puta Madre Blues” foi a primeira música feita na fase de retomada dos
ensaios, com a nova formação da banda. “O Kim levou a idéia de uma coisa meio
blues, arrastadona, e a gente começou a trabalhar em cima”, conta o Robert. Como
o Kim faltou em alguns ensaios, o grupo acabou alterando muita coisa da idéia
original “aí quando ele apareceu, falamos pra ele: ‘arregaçamos’ sua música toda. E
ele gostou”. Robert fez a letra. O Kim nos a sua versão de como aconteceu o
processo de composição e comenta sobre o que pensa de um trabalho de criação
coletiva:
Um belo dia eu tava tocando né, e saiu aquilo, eu gostei e mostrei pra
galera, perguntei ‘quê que vocês acham?’ Eles falaram ‘muito bom,
vão fazer né?” Isso que é bom, você trabalhar com compositores né,
eu acho que todo mundo na banda é compositor, então eu apresento
uma coisa, eles vêm com outras idéias encima e vão fazendo,
mexendo”. (Kim em entrevista, 2007)
O Título surgiu de uma brincadeira. Um sujeito espanhol andou frequentando
uns ensaios, toda vez que tocavam essa música, ele dizia: “puta madre, é muito
bonita essa música”. Como não aparecia uma idéia de título que agradasse a todos,
deram-lhe o apelido de “Puta Madre” que acabou pegando e virando o nome
definitivo. Robert nos diz sobre a temática que aborda nessa canção: “a letra diz de
uma mãe que morreu, cantando para uma filha que acabou de morrer de câncer
num barraco todo detonado. A primeira vez que a gente fala definindo o lugar uma
favela”.
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
117
Pelo dia em que então se curou
A voz fria se pôs a chorar
Era fim de janeiro ou abril
Se não me lembro não vá se importar
O barraco era todo feliz
Pelo chão corriam a sorrir
Um cão, um gato disputando um rato morto
E pelo chão se podia ver
A chuva que entrava
Se levantou e sorriu
Eram sinceros os seus sentimentos
Vendo isso, então a noite se abriu
A chuva cessou, assim como a dor
Afinal
Sofreu
Não será pior
Afinal
Sofreu
Não terá dor pior
E ao final
Sofreu
E sorriu, e chorou, e agradeceu
Por estarmos todos mortos
Ela questionou o que há depois
Se estaríamos juntos
No que há depois
Minha filha e o câncer
E a ingratidão da vida então lhe fez morrer em sangue
Há quanto tempo o tempo nos separou
Na solidão da vida se afogou
E mesmo sendo cedo demais
Abriu a porta e disse adeus
Afinal
Sofreu
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
118
Não será pior
Afinal
Sofreu
Não terá dor pior
E ao final
Sofreu
Silenciou
Sua vida era pobre
Mas podres não eram
Os tesouros em mente
Tumores transformam retratos
Transportam relatos
De tempos felizes
À sombra da morte
E nem mais um corte
Sangrias são só pesadelos
Então se despede
Do barraco se despe
De lona, tijolos e sonhos.
Nessa música o que nos chama a atenção inicialmente é a dificuldade de
enquadrá-la num único estilo ou gênero. Trata-se de um rock, mas que traz
referências de estilos representativos de épocas diferentes. Mas não é rock;
citações explícitas que remetem a que percebamos também um blues. Uma música
que não é rock, e nem um blues puro. Uma música feita de misturas, onde
podemos perceber as várias influências absorvidas ao longo de um período da vida
dos músicos da banda; não esqueçamos que essa música é resultante de um
processo de criação coletiva. Como bem disse Simon Frith (1987),
ao discutir os estratagemas da música popular contemporânea, em
particular, não estamos falando somente sobre música, mas também
sobre todo o processo envolvido. [...] Os cantores são raramente
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
119
ouvidos ‘naturalmente’ (sem mediação) e suas vozes contém
conotações físicas, imagens associadas e ecos de outros sons. Tudo
isso precisa ser analisado, para então sabermos se queremos tratar as
músicas como estrutura de narrativa”. (Frith, 1987, p. 146)
.
A divisão em blocos bem demarcados cria atmosferas diferentes como uma
colagem, várias “músicas” dentro de uma , remete à idéia de “bricolagem”, uma
“construção feita em fragmentos”, com vários climas dentro de uma música . Há,
por exemplo, elementos do rock dos anos 70, com solos de guitarra a la “Led
Zeppelin”, texturas de timbres que lembram o rock mais contemporâneo inglês, mas
também solos de guitarra que remetem aos velhos bluesmans americanos, dentre
outros. entretanto um elemento unificador, ou que proporciona uma noção de
unidade dentro da fragmentação: o ritmo, numa pulsação dentro do compasso de
12/8, percorre a música do início ao fim. Vejamos com maiores detalhes, como se dá
a “narrativa”, os vários elementos sonoros e temáticos desenvolvidos ao longo dessa
composição.
Na introdução, o “clima” é o da instabilidade; dois guitarristas (Edinho e Kim)
se empenham com os pedais para criar uma atmosfera ruidosa, o que Kim
denomina de “umas microfonias, umas guitarras malucas”, que preparam a entrada
de um riff, (pequenas frases que são recorrentes, em geral de guitarra), que lembra
um rock bem “visceral”, com uma seqüência de acordes típica do rock dos anos 70
(Led Zepellin e Deep Purple, principalmente)
1
. Esse trecho introdutório por sua vez,
leva à seção que chamaremos de blues. O que faz com que percebamos se tratar
de um blues? Primeiramente a linha do baixo com padrão rítmico de semínima
1
Uso de acordes onde há a omissão da terça do acorde, gerando uma indefinição entre o acorde ser
maior ou menor.
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
120
seguida de colcheia, num compasso 12/8. Essa linha, chamada no blues walking
bass, segue um desenho que caminha em graus conjuntos (nos três primeiros graus
da tonalidade de menor, depois nos do sexto grau, Maior) e se mantém durante
toda essa seção. Os solos de guitarra seriam um outro elemento que remete ao
blues, com o uso de notas prolongadas, num procedimento que os músicos
costumam chamar de “esmagar” as notas, pressionando o braço da guitarra, o flide
ou ainda bend, na terminologia do blues o que um efeito de indefinição da nota.
a harmonia utilizada não é a do blues tradicional
1
. O que ouvimos é uma
harmonia em “pêndulo” que fica oscilando entre a tônica e sexto grau, dentro da
tonalidade de menor (I I - VI VI). O início dessa referência mais explícita ao
blues prepara a entrada do texto poético, e permanece nas duas estrofes
intercaladas pelo refrão.
Na primeira estrofe, um narrador descreve uma cena. Este narrador, que na
segunda estrofe descobrimos ser a mãe, apenas descreve, mantendo um
distanciamento emocional. Essa idéia de alguém narrando um acontecimento é
reforçada pelo tipo de desenho melódico utilizado. Aqui, a melodia é estável sem
grandes ondulações, próxima a uma entoação de uma fala. Luiz Tatit (1995),
pesquisador da relação entre letra e melodia na canção, considera que uma linha
melódica estável que se assemelha a “uma inflexão entoativa da língua verbal cria
um sentimento de verdade enunciativa” que ele denomina de “figurativização”. Esse
tipo de articulação da letra com a melodia “sugere ao ouvinte verdadeiras cenas (ou
figuras) enunciativas”. Segundo esse autor “dois sintomas podem servir de ponto de
partida para o exame figurativo de qualquer tipo de canção: os dêiticos no texto, e os
1
A harmonia clássica do blues é baseada no modelo de três frases que se tornou uma marca: I7 –
IV7 – I7 – I7 / IV7 – IV7 – I7 – I7 / V7 – V7- I – I.
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
121
tonemas na melodia”. Os dêiticos são elementos lingüísticos que “indicam a situação
enunciativa em que se encontra o eu da canção”. Um exemplo estaria no terceiro e
quarto versos (Era fim de janeiro ou abril / se não me lembro não se importar),
onde o narrador se dirige a quem ele conta a estória, (uso do imperativo “não se
importar”) reforçando a idéia de que há alguém dizendo para um outro (nós ouvintes)
de uma cena distante no tempo e no espaço. O uso do imperativo nos faz lembrar
que “por trás da voz que canta uma voz que fala.” (Tatit, 1995, p. 22) Os
tonemas, inflexões que finalizam as frases entoativas, contam com apenas três
possibilidades físicas de realização (descendência, ascendência ou suspensão).
“Por exemplo, uma voz que inflete para o grave, distende o esforço de emissão e
procura o reforço fisiológico, diretamente associado à terminação asseverativa do
conteúdo relatado”. Uma voz que busca a freqüência aguda, mantendo a tensão do
esforço fisiológico, “sugere sempre continuidade de frases, ou de prorrogação de
incertezas ou das tensões emotivas de toda sorte”. (idem, p. 21, 22) Sobre a
importância do uso da voz nesse tipo de música, Simon Frith (1987) pontua que
através dela personalidades são construídas e seu tom costuma ser mais importante
que as articulações de determinadas letras de sicas.“Podemos assim nos
identificar com uma música se entendemos as palavras ou não, se conhecemos o
cantor ou não, porque é a voz e não a letra que respondemos imediatamente”. (Frith,
1987, p. 145)
Robert utiliza efeitos sutis na voz que reforçam e agregam mais informações
no texto. Nas notas agudas em algumas palavras, percebe-se que a maneira quase
meiga e delicada como canta acentua a intenção de fazer ironia, como no quarto e
sexto versos da primeira estrofe: nãose importar / pelo chão se via a sorrir. No
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
122
verso “se levantou e sorriu”, a melodia “se levanta” também num movimento
ascendente acompanhado de um crescendo. “Um cão, um gato disputando um rato
morto”, Robert acentua as primeiras sílabas e faz de forma brusca, destacada, não
prolongando as vogais. Com isso demarca o ritmo, dando uma idéia de movimento,
lembra passos sorrateiros, a mim me remete a trilha sonora de desenho animado, o
que realça a dimensão terrena simbolizada pelos animais. Nessa parte da narrativa
fica explícito o contraste de dois “mundos”: o mundo espiritual, mundo da
transcendência, representado pela mãe e filha mortas; o outro, o mundo mais
concreto, das necessidades humanas e terrenas, representado pelos três animais.
Robert diz que usou de ironia na descrição desta cena: “pelo barraco se via no chão
um cachorro e um gato disputando quem ia pegar o rato. A chuva entrando dentro
do barraco”. Dentro do cenário de desolação (uma mãe morta cantando para uma
filha que acaba de morrer num barraco ”todo detonado”), dois animais “correndo a
sorrir” disputam um terceiro (o rato). Ele esclarece também sobre essa cena: “o rato
e o gato fazem parte da desolação, eles sentem fome, por isso disputam um rato
morto; não estão indiferentes, fazem parte da cena, estão sofrendo também, o riso é
a ironia, mas é claro que eles não estavam felizes!”
Vendo isso, então a noite se abriu / a chuva cessou, assim como a dor a
palavra “vendo” cantada na região grave, com voz rouca, anuncia a gravidade da
chegada da noite, mas que afinal não é tão grave assim porque vem seguida do
verbo “abriu” num contraste que anuncia o fim da chuva e da dor, momento de
ascensão melódica e de expansão harmônica. Necessário fazer uma observação
quanto à referência à chuva (e ao fim dela) nesse contexto, que toma aqui uma
dimensão especial se lembramos do lugar em que essa sica foi concebida. A
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
123
chuva na favela é elemento desestabilizador: precariedades na infra-estrutura e nas
construções das casas causam alagamentos e goteiras, as formas como se dão as
ocupações dos terrenos, nem sempre as mais apropriadas, acarretam sérios riscos
de desabamentos.
Importante ressaltar que o procedimento analítico adotado por Tatit,
elaborado com a função de analisar a relação letra e melodia na canção popular
brasileira tem uma aplicabilidade relativa numa análise de rock. Primeiramente
porque a dissociação entre a melodia e outros parâmentros expressivos como
timbres e textura, por exemplo, é quase impossível de se fazer nesse tipo de
música. No rock feito por essa banda, que segue um padrão de mixagem do rock
alternativo inglês, a voz que canta fica num plano de volume próximo ao dos
instrumentos, não existindo uma hierarquia entre canto e acompanhamento como
acontece na canção brasileira, por exemplo, onde há uma preocupação em
preservar a inteligibilidade do texto e da melodia.
1
No caso desse rock em especial,
o uso dos pedais, os ruídos e efeitos somados às bases harmônicas, solos e
acompanhamento rítmico da bateria formam um bloco indissolúvel para se perceber
a música. Dão também um caráter de “opacidade” apontada por Gilroy como uma
das características da música dos afro-descendentes, originada no tipo de relação
que se estabelecia entre os negros e os capatazes nos tempos da escravidão. Esse
assunto foi abordado no capítulo em que trato de questões referentes à negritude e
rock.
Sobre as atmosferas ruidosas presentes no rock, Pedro Ferreira (2006) em
sua tese intitulada “Música Eletrônica e Xamanismo: técnicas contemporâneas do
1
A cópia de gravação disponível para apreciação ainda não é a que a banda considera com o padrão
ideal de mixagem. A nova gravação ainda está em andamento.
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
124
êxtase”, citando Phillip Tagg, demonstra como esses estilos baseados no ruído
amplificado e no ritmo extremamente marcado heavy metal, o industrial e o techno
foram influenciados diretamente pelas paisagens sonoras tecnológicas junto às
temporalidades a ela associadas. Tagg parte da idéia de que na nossa sociedade
tecnológica, uma sujeição social produzida pelas relações entre barulho e poder
(o fato de que quanto mais alto o som, maior o espaço acústico) Portanto, quanto
maior o espaço ocupado pelo proprietário do som, maior é o poder dessa pessoa
nesse contexto social. Isso estaria diretamente ligado “à importância ritual atribuída
a sons eletronicamente amplificados, distorcidos”. A apropriação dessa mesma
potência sonora pela amplificação e distorção, segundo o autor, foi a maneira
encontrada pelas pessoas de reverterem essa situação de sujeição, pelo menos
temporariamente.
Assim, se por um lado os sons intensos, constantes, implacáveis,
métricos e graves das máquinas são “os sons de uma máquina social
inexorável sobre a qual nós temos pouco ou nenhum controle”, por
outro, “se você é sujeitado a esses barulhos e ritmos que parecem
simbolizar o poder real em seu ambiente, eles podem se tornar menos
dominadores se você se apropriar deles, recriá-los e ‘fazê-los soar’ à
sua imagem”. (idem, p. 258)
O gosto pelo rock a partir da década de 50 e pelo Heavy Metal a partir dos 70
vindo de jovens sócio-economicamente desprivilegiados é explicado por Tagg como
uma maneira encontrada por eles “de sobrepujarem o barulho que expressa a sua
situação de sujeição e controlá-lo a seu modo”. Como uma maneira de se apropriar
ativamente dos sons e “temporalidades associados às máquinas que corporificam o
poder ao qual eles se encontram sujeitados”. (Ferreira, p. 259) (...) “Gritar, berrar,
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
125
andar por com um aparelho de som portátil poderoso, pilotar uma motocicleta
barulhenta são fonte de poder, pois se está controlando o ambiente acústico”. (Tagg
e Collins, 2001, p. 7, apud Ferreira, 2006)
Voltemos às considerações sobre a narrativa presente na primeira estrofe:
não se trata de uma descrição linear, ela vem de forma imprecisa, vaga, nebulosa,
sem muita lógica, de forma indireta e por vezes obscura. uma imprecisão
intencional na localização temporal (“Era fim de Janeiro ou Abril”) e a palavra
“barraco” vem como única referência explícita de localização espacial. O narrador é
um ser que morreu. Isso lembra muito os poetas simbolistas, que usavam de
associações de idéias, representadas por metáforas e símbolos para expressar sua
maneira de conceber a vida que para eles era algo misterioso e inexplicável. Como
nos esclarece Coutinho (1978), “em lugar da expressão direta, incapaz de captar as
essências internas e os sentimentos mais intimamente pessoais, o Simbolismo
usava processos indiretos, associações de idéias, representadas por feixes de
metáforas e símbolos”. (Coutinho, 1978, p. 217). Nessa música, percebe-se a
influência da poesia simbolista
1
também na temática, a morte como solução de todos
os problemas, no uso de metáforas e outras figuras de linguagem, na falta de
linearidade do discurso. No primeiro verso, “Pelo dia que então se curou”, a cura
vem como uma referência à morte, já indicando que a morte é vista como solução, o
fim do sofrimento. uma voz fria que chora. “Fria” uma figura de linguagem
sugerindo a idéia de morte. A influência da poesia de Álvares de Azevedo é visível
na maneira como a morte é concebida, como podemos observar em um de seus
1
“(...)O simbolismo repeliu o Romantismo devido ao seu emocionalismo e ao convencionalismo de
sua linguagem metafórica. (...) foi uma forma do espírito romântico, sob certos aspectos, uma sua
continuação, um Romantismo indireto e extremado, tanto quanto ele fugindo do mundo exterior por
acreditar que só é real aquilo que é refletido pela consciência individual”. (Coutinho, 1976, p. 217)
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
126
poemas, “Lembrança de Morrer”: (Quando em meu peito rebentar-se a fibra, / Que o
espírito enlaça à dor vivente, / Não derramem por mim nenhuma lágrima / Em
pálpebra demente. [...] Eu deixo a vida como deixa o tédio / Do deserto, o poente
caminheiro / Como as horas de um longo pesadelo / Que se desfaz ao dobre de um
sineiro. [...] levo uma saudade é dessas sombras / que eu sentia velar nas
noites minhas ... / De ti, ó minha mãe! Pobre coitada / Que por minha tristeza te
definhas!) O narrador é o poeta moribundo, recomendando que não chorem por ele
após a sua morte, porque para ele a morte traz o fim do tédio ou de “um longo
pesadelo”. A figura materna está presente no poema, como alguém que vela o filho
doente, e é o único “ser” merecedor de um sentimento de saudade do poeta. Robert
vai além: nos apresenta uma mãe que mesmo depois de morta, ainda está ao lado
da filha. A idéia de transcendência se acentua nesse caso, a mãe é ser onipresente,
capaz de acompanhar o sofrimento da filha, levá-la para uma outra dimensão, como
elemento de transição entre os dois mundos: morte como transcendência e,
portanto, fim do sofrimento, que se opõe à vida, espaço da dor e sofrimento. A figura
materna, como pudemos ver no relato do Robert, no início desse texto, é muito
presente na vida desse músico-poeta; elemento que traz sentimentos contraditórios,
a partir da adolescência, mas que representa apoio emocional e afetivo, um ser
capaz de todos os sacrifícios para cuidar de seus filhos. Sabe-se que a figura
materna na favela tem sido responsável pela sustentação, não apenas financeira, do
eixo familiar de grande parte de jovens que moram nesses locais. Juarez Dayrell
(2005) quando avalia as experiências familiares de jovens funkeiros em sua
pesquisa, no livro A Música entra em cena, diz o seguinte:
Grande parte das famílias desses jovens não conta com a presença
do pai, organizando-se em termos matrifocais, e nem por isso se
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
127
mostram ‘desestruturadas’, garantindo com esforço, a reprodução
física e moral do núcleo doméstico. [...] mais do que a presença ou
não do pai, o que parece definir o grau de estruturação familiar é a
qualidade das relações no núcleo doméstico e as redes sociais com as
quais podem contar. [...] nisso a mãe desempenha um papel
fundamental, [...] ela é a referência de carinho, de autoridade e dos
valores, para quem é dirigida a obrigação moral da retribuição”.
(Dayrell, 2005, p. 286)
Essa não é a única composição da banda em que a figura materna é central:
no CD Enquanto isso o mundo se move lá fora de 2001, Robert compôs uma música
intitulada “A mãe chora sobre o cadáver de seu filho”
1
, que relata uma cena que
presenciou na favela quando voltava para casa, de um conhecido seu que tinha
acabado de ser assassinado, a mãe com o corpo do filho no colo.
Na segunda estrofe se percebe uma retomada da idéia melódica da primeira,
mas agora com pequenas variações na melodia. Se na primeira estrofe a melodia
era estável, agora ela oscila mais e é acompanhada pelo texto com uma
intensificação no envolvimento sentimental de quem narra, a mãe se colocando
como mãe, utilizando um “tom narrativo” mais dramático: “minha filha e o câncer / e
a ingratidão da vida então lhe fez morrer em sangue”. O “tom” da voz é o da
angústia; as frases se desenvolvem como num jogo de pergunta e resposta como
numa conversa, com alternância de tessitura, tomando uma dimensão de um quase
desespero. A palavra “câncer” é cantada na nota mais aguda desse trecho da
melodia; Robert realça como num grito, uma palavra que normalmente as pessoas
têm medo até de pronunciar.
1
Esta canção e “La Puta Madre Blues” estão gravadas no CD em anexo.
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
128
no refrão, que intercala as duas primeiras estrofes, a intenção da fala se
altera, o narrador se posiciona diante do que acabou de narrar. Coincide também
com o momento de expansão harmônica (C D7 Am), e contém um certo colorido
modal. Pode ser interpretado como um quase desabafo, que é ao mesmo tempo
lamento e auto-consolo, num prolongado “afinaaaaal sofreeu numa região aguda,
cantando o alívio do fim, a morte. Luiz Tatit chama esse processo de
“passionalização”: a ampliação da freqüência e da duração valoriza a sonoridade
das vogais, tornando a melodia mais lenta e contínua. A tensão de emissão mais
aguda e prolongada das notas convida o ouvinte para uma sensação de menos
ação, de um estado de introspecção, desviando a atenção para o “nível psíquico de
uma expressão individual”. (Tatit, 1995, p. 22, 23) As guitarras nesse momento
apresentam pequenos desenhos melódicos “aflitos” que se entrelaçam, dando uma
idéia de “gemidos nervosos”, reforçando o clima de expansão emotiva do refrão.
não é mais blues, e sim rock, num arranjo instrumental que o Kim descreve como
sendo “um rock mais moderno, aquela coisa meio ‘Radiohead’”
1
.
No final do segundo refrão, a palavra silenciou é seguida de uma pausa
brusca, em seguida entra um riff nas guitarras, que depois é acompanhado pela
bateria criando um suspense para o que vem a seguir. A última estrofe é o lugar de
maior tensão da música, por causa do riff em mi (a dominante), que se mantém até o
final dessa seção e é reforçada na melodia, estacionada também na nota mi. Entra
um rock pesado, e junto, uma fala que comenta o acontecido, uma voz esbraveja,
num canto falado, na região grave, num arranjo que remete ao hard rock dos anos
1
Essa banda inglesa alternativa, uma influência muito citada por Kim e Robert, é considerada uma
das mais importantes bandas de rock da atualidade e surgiu no final dos anos 80. O álbum OK
Computer, de 1997, marca o amadurecimento musical da banda. “O clima é completamente soturno e
depressivo, com arranjos meticulosos, ousados e complexos. Usam muitos experimentos com
eletrônica, álbuns conceituais e muita melancolia”. (Wikipedia)
A MÚSICA DA BANDA PELOS DE CACHORRO
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70: “é a parte ‘insana’ da música”, nas palavras do Kim. Sua vida era pobre / mas
podres não eram os tesouros em mente”. “Tesouroscomo metáfora de “sonhos”. Se
na estrofe anterior o tom é o da angústia, aqui é o da revolta e indignação. A palavra
sangrias numa alusão a um tipo de procedimento da medicina do século XIX.
1
A
música se encerra com um “eh” na voz do cantor e é seguida por uma parte
instrumental com muita instabilidade e intensificação de tudo: as guitarras estão
“nervosas”, com frases na região mais aguda, a bateria também se “exalta”. No final,
a retomada dos mesmos elementos da introdução. Toda a tensão é solucionada no
blues (que resolve no centro tonal Am); mas um blues mais “moderno” por causa
do uso de ruídos, efeitos de pedais
2
. A tensão é solucionada e o repouso
acontece nessa parte instrumental do blues, na volta às origens, e porque não dizer,
nos braços e aconchegos da velha e ancestral “mãe África”.
1
Que consistia em uma modalidade de tratamento médico aonde há retirada de sangue do paciente
para o tratamento de doenças.
2
Instrumentos e equipamentos utilizados além da formação original: violão folk 12 cordas, pedal
SansAmp, Trêmolo, Delay, pedal Distortion, pedal Metalzone.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na primeira parte desse trabalho, apresentei em forma de depoimentos, a
trajetória traçada pelos quatro músicos, que possibilitasse identificar como surgiu o
interesse pelo rock. Nos quatro depoimentos ficou claro que o simples fato de se
interessarem em conhecer o rock, era um indicador de que havia uma
necessidade de ampliar o campo de escuta. Lembrando uma fala do Heberte, “na
favela só se ouvia rap, funk e pagode; fico pensando porque fui gostar de rock”.
O acesso à escuta se deu por vias diferentes, através de um irmão mais
velho, no caso do Beto e do Robert, na escola através dos colegas vindos de outro
contexto sócio-cultural, no caso do Heberte, e através de um amigo de infância, o
“Popinho”, na experiência do Edinho. Nos quatro casos havia a consciência de
rompimento com um padrão de escuta da favela. No discurso do Beto a intenção em
ser diferente em relação à maioria dos habitantes desse contexto fica mais explícita.
Uma quase afirmação de que “eu quero ser o diferente na favela”. No Heberte, o
desejo de se sentir incluído em um grupo (seus colegas de escola) que manifestava
preconceito por quem era de favela, fortalece o interesse pelo gênero; no Robert
uma identificação mais explícita com o discurso e postura roqueira, uma
necessidade de manifestar indignação, e é, dentre os quatro músicos, o que menos
explicita diferenças entre o meio da favela e o resto da cidade nessa opção. A
conotação de rebeldia e transgressão presente no rock é externalizada de maneira
mais evidente pelo Robert, Beto e Heberte. Para o Edinho era mais uma questão de
CONSIDERAÇÕES FINAIS
131
superação de limites, porque coincidiu com o período em que estava parando de
usar drogas, com necessidade de entrar num outro estilo de vida. Como se pode
observar, nesta favela especificamente, os roqueiros são os que não se drogam e
são mais intelectualizados.
Renato Russo foi citado pelos três músicos como a influência mais
decisiva para o tipo de rock que decidiram fazer, uma identificação com o discurso
existencialista do movimento s-punk. Esse artista representou, principalmente
para o Robert, uma espécie de mentor intelectual: passou a seguir os “passos”
literários e musicais de seu ídolo. A estética e temática adotada na produção da
banda “Pelos de Cachorro” é resultante das incursões literárias do Robert pelo o que
denominam de poesia “ultra-romântica” e escuta de bandas inglesas da cena
underground. As conexões foram se ampliando a partir daí, quando entraram na
rede underground de informações, através de fanzines e sessões de
correspondência de revistas especializadas em rock e também através da Internet.
A negritude passa a ser uma questão relevante para eles a partir de uma
visão que vem de fora, como manifestações de discriminação racial. A relação com
a polícia é a mais citada, quando relatam experiências de violência com agressões
físicas gratuitas, o que atribuem ao fato de serem negros e favelados. As reações de
estranhamento vindo de pessoas da própria comunidade onde vivem, e também de
outros meios, ao verem negros fazendo rock e não pagode, também reforçam a
noção de auto-imagem ligada à cor de pele negra. A partir da constatação desse
estranhamento é que vieram as construções dos argumentos para justificar e
legitimar essa opção. A origem negra do rock é um desses argumentos; mas a
defesa mais consistente na minha opinião vem na fala do Heberte: “não vejo
CONSIDERAÇÕES FINAIS
132
necessidade de justificar nada. Gosto musical não tem nada a ver com a cor da
pele”. Indiretamente, ou talvez de forma inconsciente negam a maneira mais
comum de se perceber e vivenciar a negritude: pela associação imediata com as
raízes africanas ancestrais junto à idéia de brasilidade. Pelo que observei, não se
trata de uma atitude deliberada de rejeição às raízes musicais afro-brasileiras. Mas
expressa o desejo de mostrar que podem ir além do que o signo da cor da pele
invoca no senso comum, e também como afirmação do direito a ter escolhas, a optar
em fazer a música que quiserem independente de raça, classe social e
nacionalidade. Beto sintetiza bem essa postura com uma pergunta carregada de
ironia: “mas quer dizer que ‘música negra’ é restrição?”
Um comentário trazido por Edinho feito por um vizinho seu, me fez sentir
a necessidade de buscar uma compreensão de como se deu a consolidação do
samba em símbolo de brasilidade. Impressionante observar como quase
imediatamente à construção de uma identidade brasileira associada à raça negra e à
mestiçagem, vem o repúdio das elites a quaisquer tendências cosmopolitas
presentes em cidadãos negros ou mestiços. A apropriação do samba pelas elites,
resultando em consolidação de um elemento de cultura marginal em símbolo da
nação brasileira, trouxe ironicamente como conseqüência, a expectativa com relação
à população de cor negra, de que se comprometa com os sons de suas raízes
ancestrais, um certo aprisionamento aos estereótipos associados à raça negra. Para
alguns autores, sobretudo para Rita Segato (2005) e Peter Fry (apud Vianna, 1995),
a conversão de símbolos étnicos em símbolos nacionais “oculta a situação de
dominação racial e torna mais difícil a tarefa de denunciá-la”. Vimos também como
as noções de africanidade, brasilidade e negritude estão misturadas nessa noção de
CONSIDERAÇÕES FINAIS
133
identidade. que esses jovens negros brasileiros preferem uma música que não
surgiu aqui no Brasil, que tem origem no blues dos negros dos Estados Unidos, e
que deixou de ser considerada uma música negra.
Sentem um compromisso em fazer um “resgate”, como gostam de afirmar, dos
valores contidos na origem do rock, uma manifestação vinda do blues, que seguiu
um percurso que culminou num “embranquecimento” do gênero. Tanto os meios
como os objetivos contidos na ação desses negros roqueiros brasileiros, são em sua
essência, profundamente negros. Pude constatar que de forma original estão dando
continuidade à sua linhagem africana; música não é concebida como mercadoria, é
um misto de lazer, ferramenta política, meio de expressão. O rock feito no morro
pode ser interpretado como expressão de apatia e alienação de uma juventude
vítima dos processos de massificação. Mas também como um “grito pra ser ouvido”,
resposta criativa e sofisticada pela capacidade de surpreender, de inverter a lógica
das divisões entre o que é ser pobre e rico, branco e preto, favelado e morador de
um bairro de classe alta.
Pois também um tom de desafio em mostrar que são capazes de romper as
“fronteiras simbólicas” que separam o bairro e a favela. Isso fica muito evidente
quando disseram que os eventos promovidos pelo Faverock têm a finalidade de um
contato com outros jovens que gostam de rock fora da favela, uma espécie de troca
de sinais. Querem uma aproximação, mas não querem se sentir discriminados.
Fazer um rock de qualidade tornou-se a forma mais inteligente de alcançar esse
objetivo.
A pesquisa apontou para a constatação de que o fato de não corresponderem
aos estereótipos ligados à raça negra e sua situação sócio-econômica, e de haver
CONSIDERAÇÕES FINAIS
134
uma intenção em romper com eles, não significa desconsiderar esses dados como
informações importantes na compreensão de subjetividades. Não como negar a
forte influência que cada uma dessas características, se é que podemos chamar
assim, exercem na formação de sujeitos. O que me interessou compreender foi
como se deram essas influências para além dos estereótipos. Os músicos
estudados nessa pesquisa são negros e moram em favelas. A forma que a
sociedade tende a enxergá-los vem com uma carga de informações pré-
estabelecidas e estáticas. Negros, por exemplo, tocam percussão, são pobres, não
possuem instrução, etc. Favelados fazem rap, ou funk, são usuários de droga, ou
traficantes, são mal educados, incultos, não dominam nenhuma língua estrangeira,
etc., etc. Os quatro músicos não se enquadram num perfil considerado o comum
entre jovens moradores de favelas. Mais significativo do que considerá-los como
uma exceção à regra, seria percebê-los como sujeitos que apesar de serem
impelidos a todo o tempo a serem objetos, reivindicam o direto à subjetividade.
Podemos relacionar a experiência espacial da favela com os processos que
envolvem a formação da subjetividade em alguns pontos. O conceito de Labirinto, os
labirintos numa favela, com a busca de identidade que não segue uma lógica pré-
estabelecida e previsível. Retomemos ao que Paola Jacques disse sobre labirintos:
“O estado labiríntico é o de quem vaga, um estado errático, do percurso, da
descoberta, da surpresa, da experiência, da multiplicidade e, sobretudo, da
liberdade”. Se a construção das cidades parte de uma lógica da árvore raiz, a da
favela é a do rizoma. Pode-se fazer aqui um paralelo com a falta de compromisso
com a idéia de raiz, aqui especificamente, à idéia de raiz afro-brasileira, no
comportamento musical desses jovens. Para eles, ao contrário, interessa ampliar as
CONSIDERAÇÕES FINAIS
135
possibilidades de fazer conexões novas, isso pode ser visto pelas diversas maneiras
como estabelecem contato com o mundo: via Internet, via fanzines, via leitura, via
escuta, via cursos de cinema, de artes, de música. As formas rizomáticas como se
dão as ocupações de terreno na favela, não previsíveis, múltiplas, não lineares, são
como eles: destreza em visualizar possibilidades novas de “ocupação” e de
aproveitar o que os espaços oferecem.
A visão de favela apresentada nesse trabalho foi coerente com a visão que eu
tive como pesquisadora a partir também do que meus amigos percebem e me
revelam sobre esse lugar. Em alguns momentos ela pode soar como idealização ou
uma visão romântica desse contexto social. Favela hoje no Brasil virou sinônimo de
violência, tráfico de drogas, ou o lugar onde o poder público e as ONGs exercitam,
através dos projetos sociais, maneiras de tirar crianças e jovens da situação de risco
social, usando a arte como ferramenta. O que pude constatar, entretanto, é que
esses espaços representam muito mais que isso: primeiramente porque é o lugar
onde esses jovens nasceram, de onde sentem orgulho, onde estão suas famílias,
onde possibilidades expressivas de ação são geradas a todo tempo, onde as
convivências são solidárias dentro das adversidades.
Nas letras das canções, Robert, o letrista com maior volume de produção até o
momento, não utiliza um tom de denúncia explícita de fatos sociais concretos. O que
ele traduz nas suas composições são sentimentos muito profundos que tomam uma
dimensão não localizável em nenhuma geografia específica. Naquela sua afirmação
(“a favela provoca em mim sentimentos e sensações que são universais”) o que fica
evidente é mais que o desejo de se libertar de um enquadramento sensorial, mas a
demonstração de que se sente livre dessas amarras, como cidadão do mundo, do
CONSIDERAÇÕES FINAIS
136
universo. Apesar do tom melancólico e pessimista presente na estética da banda,
seus músicos são pessoas alegres, delicadas e gentis, muito sinceros, capazes de
dizer as verdades mais difíceis de se ouvir com muita firmeza e elegância.
Nas observações feitas sobre a canção “La Puta Madre Blues”, onde o tive a
pretensão de esgotar as possibilidades de análise, pudemos perceber as influências
musicais e literárias presentes na composição; inevitável a associação com a
arquitetura presente nas favelas, com a idéia e conceito de “fragmento” apresentado
por Paola Jacques. A maneira como a figura materna está presente na temática
dessa música, como em outras composições da banda, provocou a associação com
traços biográficos de Robert Frank e coincidências com os de Álvares de Azevedo,
um poeta de quem ele gosta muito. Mas nesse caso a associação mais relevante me
parece a que apontou um dado mais abrangente: o papel que a figura materna vem
representando nesses contextos sociais.
Essa canção, como pudemos ver, inaugura uma fase pós FAN, a negritude
começa a ser incorporada como um valor positivo. A banda “Pelos de Cachorro” foi a
primeira banda de rock a ser selecionada para participar desse evento cultural; entre
os organizadores havia dúvidas quanto ao rock ser considerado ou não uma
manifestação da cultura negra. A sica “La Puta Madre Blues” representa também
a primeira mistura intencional com um outro gênero musical: até então queriam fazer
um rock “puro”.
Nesse trabalho não falei sobre as performances de palco da banda “Pelos de
Cachorro”. Lamentável, porque tenho consciência de que o rock de fato acontece na
relação direta entre a banda e seu público, através da expressão e uso de vários
códigos na comunicação que se estabelece num show de rock. A descrição de uma
CONSIDERAÇÕES FINAIS
137
apresentação da banda, ampliaria o campo de possibilidades de compreensão da
estética e dos objetivos contidos na trajetória desta banda. O fato de não ter
desenvolvido com profundidade essas questões nesse trabalho, não impede que eu
transcreva nesse momento conclusivo, uma breve descrição de impressões e
sensações que tive assistindo a um show da banda realizado em 2006, no teatro
Marília em Belo Horizonte, do tipo daquelas que as fãs costumam escrever em seus
diários,: No palco, cinco jovens com guitarras, baixo e bateria, produzem uma
sonoridade que por vezes parece querer rasgar o coração da gente, por outras soa
como um acalanto, ou um hino religioso. Em seu canto, surgem gritos e urros que
não nos convidam a dançar; provocam um silêncio interior, misto de tristeza,
angústia, melancolia. Dos cinco, quatro são negros. Dois estão de saia, camisa
social, paletó e gravata, um terceiro se sobressai, por estar sem paletó, o branco
reluzente da camisa em contraste com o negro de sua pele. O que predomina são
tonalidades fortes como preto e vermelho, tanto nas roupas quanto no jogo de
iluminação do palco. O vocalista tem uma voz grave, chegando às vezes a um baixo
profundo. Canta palavras de dor: “num inferno minha vida se transformou ... eu
prefiro a morrer... não me ensine a sorrir ... a verdade é que os sorrisos não m
CONSIDERAÇÕES FINAIS
138
dialogam entre si, com sonoridades que remetem a sirenes de ambulância ou de
viatura policial, resultando em textura sonora de entrelaçamento de linhas melódicas
na região aguda, timbres rascantes provocados por uma livre experimentação dos
pedais das guitarras.
Muito do que foi apresentado nesse texto sobre a banda e a vida dos
cinco músicos se alterou. Edinho decidiu que quer entrar na Universidade e se
prepara para fazer vestibular no final do ano, para o curso de Licenciatura em
Música. Ficou noivo de sua namorada Rosânia, uma bailarina de dança do ventre,
no início de 2007. Heberte está gostando muito da nova vida de universitário (está
cursando Licenciatura em Música na UEMG), continua um aluno assíduo nas
oficinas do Programa Arena da Cultura. Deixou o emprego de agente de saúde da
Prefeitura, agora é professor de música do Programa “Fica Vivo”, que funciona
próximo à sua casa. Beto está em dúvidas quanto a continuar o curso de Ciências
Sociais na PUC, pensa em mudar para algum curso mais ligado à área de
tecnologia. Recentemente foi contratado como editor de vídeo da “Associação
Imagem Comunitária”, onde trabalha junto com o Robert. Kim está estudando para
concursos públicos, preocupado com questões de sobrevivência, mas muito otimista
quanto ao futuro da banda “Pelos de Cachorro”.
Um dia antes de escrever a parte final desse texto, recebi a notícia de que
Robert não mora mais no Aglomerado da Serra. A casa onde morou desde que
nasceu e que seus pais vinham construindo 40 anos, foi desapropriada pela
Prefeitura, porque localizada numa área onde vai passar uma grande avenida, parte
de uma das ações de reurbanização da Prefeitura, o Programa “Vila Viva”. Afora o
CONSIDERAÇÕES FINAIS
139
difícil período de adaptação pelo que passa toda a sua família, está feliz com os
novos desafios profissionais: recentemente foi contratado pela “Associação Imagem
Comunitária” como monitor de filmagem e edição, onde fica durante todas as
manhãs. À tarde vai para “Macacos”, onde iniciou recentemente o trabalho como
designer e editor de vídeo do “Instituto Kairós”. Sua namorada Mariana inaugura
uma nova vida ao lado da mãe, se mudou para um apartamento bem próximo da vila
Cafezal e Marçola. A loja da família dele continua no mesmo lugar, numa das vilas
do Aglomerado. A banda, os amigos, também estão lá. Ele me disse que apesar de
estar achando difícil se acostumar com o novo lugar, (a casa fica no bairro Céu Azul,
na região da Pampulha) de forma positiva o fato dessa experiência de mudança
de espaço coincidir com mudanças profissionais, e outras mais internas, que ainda
estão se processando.
Ouvi-los, acompanhar o dinamismo de suas ações, e os movimentos, e
as mudanças durante este tempo em que estive perto deles, sempre me fizeram
pensar e aprender muito. Isso tudo me remete a Gilles Deleuze falando sobre
subjetividade: ”O sujeito se define por e como um movimento, movimento de
desenvolver-se a si mesmo. O que se desenvolve é sujeito. Aí está o único conteúdo
que se pode dar à idéia de subjetividade: a mediação, a transcendência”. (Deleuze,
2001, p. 93)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
140
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HOME, Stewart. Assalto à Cultura: utopia, subversão, guerrilha na (anti) arte do
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O’HARA, Craig. A Filosofia do Punk. São Paulo: Radical Livros, 2005.
SANTIAGO, Silviano.
LISTA DE CDs CITADOS
143
LISTA DE CDs CITADOS
PELOS DE CACHORRO. Enquanto isso o mundo se move fora. Belo Horizonte:
independente, 2001.
______. Alegrias Paliativas do Leprosário. Belo Horizonte: independente, 2005.
______. Postais de eletro. Belo Horizonte: cd demo, 2007.
ANEXO
144
ANEXO
Figura 10 - Matéria sobre o FAN no Diário da Tarde.
ANEXO
145
Figura 11 - Matéria do Diário da Tarde sobre a participação da Pelos de Cachorro no evento
Quarta Sônica.
ANEXO
146
Figura 12 - Flyer de divulgação.
ANEXO
147
Figura 13 - Flyer de divulgação do Faverock.
ANEXO
148
Figura 14 - Foto do acervo de divulgação da banda; 2007.
ANEXO
149
Figura 15 - Foto de acervo de divulgação da banda; 2007.
Livros Grátis
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