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DEISE LEANDRA FONTANA
ADAPTAÇÕES NO ENSINO DE MATEMÁTICA: UMA ANÁLISE DA
PRÁTICA DOS EDUCADORES DO CAMPO
Dissertação apresentada como requisito parcial à
obtenção do grau de Mestre, junto ao curso de Pós-
Graduação em Educação, Setor de Educação,
Universidade Federal do Paraná, sob orientação do Prof.
Dr. Ademir Donizeti Caldeira
CURITIBA
2006
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Catalogação na publicação
Sirlei R. Gdulla CRB9ª/985
Biblioteca de Ciências Humanas e Educação - UFPR
Fontana, Deise Leandra
F679 Adaptações no ensino de matemática: uma análise da
prática dos educadores do campo / Deise Leandra
Fontana. Curitiba, 2006.
174 f.
Dissertação(Mestrado) Setor de Educação,
Universidade Federal do Paraná.
Orientador: Profº Dr. Ademir Donizeti Caldeira.
1. Matemática currículos. 2. Matemática estudo e
ensino zona rural - Paraná. I. Título.
CDD 372.7
CDU 372.47
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DEISE LEANDRA FONTANA
ADAPTAÇÕES NO ENSINO DE MATEMÁTICA: UMA ANÁLISE DA
PRÁTICA DOS EDUCADORES DO CAMPO
COMISSÃO EXAMINADORA
_______________________________________________________________
_______________________________________________________________
_______________________________________________________________
_______________________________________________________________
_______________________________________________________________
Curitiba, _____de__________________de 2006.
AGRADECIMENTOS
A Deus, por ser a luz da minha vida, conduzir e guiar os meus passos.
Aos meus pais LEDA e AGENOR, por serem caminho da minha existência.
Ao Prof. Dr. Ademir Donizeti Caldeira, pela amizade, por ter acreditado no meu
trabalho e por ter transmitido seus conhecimentos nos diferentes momentos e
situações.
Às professoras das Escolas Rurais, pela confiança, pela amizade, pelos diferentes
momentos compartilhados ao longo da pesquisa.
A toda equipe da Secretaria Municipal de Educação de Rio Negro, por ter viabilizado
a realização desta pesquisa.
Aos agricultores, pelos momentos disponibilizados a mim e às minhas perguntas.
Aos colegas, pelas horas de alegria e tristeza compartilhadas no percurso das
discussões sobre nossos objetos de pesquisa.
À Banca de Qualificação, pelas valiosas sugestões e pertinentes questionamentos.
À Banca de Defesa, por ter aceitado ler meu trabalho e promover o debate em torno do
tema.
À Coordenação, aos professores e aos funcionários da Pós-Graduação, pela atenção
dispensada nos mais diferentes momentos do trabalho.
A todos os meus alunos e a todas as pessoas, por me ensinarem, mesmo sem títulos
acadêmicos, a ser um ser humano melhor.
FONTANA, Deise Leandra. Adaptações no ensino de matemática: uma análise da prática
dos educadores do campo. Curitiba, UFPR, 2006. (Dissertação de Mestrado)
RESUMO
A forma como percebemos e compreendemos os conceitos revela informações sobre a
natureza dos significados produzidos. Partindo desta consideração, com a finalidade de
conhecer as diferentes formas de perceber o currículo da escola rural, investigamos o
entendimento que as professoras têm sobre a adaptação do currículo de matemática no meio
rural. Inicialmente, fizemos um estudo acerca da escola do meio rural, do currículo e de uma
abordagem culturalista da matemática. Em seguida, apresentamos e analisamos
qualitativamente nove entrevistas com professoras da Educação Infantil e de Séries Iniciais de
três escolas rurais do município de Rio Negro PR. Para tanto, adotamos uma análise vertical
na tentativa de perceber convergências ou divergências entre as entrevistas. A partir desta
análise, buscamos olhar para o conjunto das entrevistas numa análise horizontal, visando uma
possível categorização não generalizável de adaptação no currículo de matemática. Desta
análise, surgiram cinco categorias que permitiram revelar a percepção dos depoentes sobre a
adaptação em diferentes contextos e revelar também uma possível compreensão sobre a
natureza das adaptações no currículo de matemática da escola rural.
Palavras-chave: educação matemática, escola no meio rural, adaptações no currículo.
RESUMEN
La forma como percibimos y comprendemos los conceptos revela informaciones sobre la
naturaleza de los significados producidos. Partiendo de esta consideración, com la finalidad
de conocer las diferentes formas de percibir el currículo de la escuela rural, investigamos el
atendimento que lãs profesoras tienen sobre la adaptación del currículo de matemática sen el
médio rural. Inicialmente, hicimos um estudio acerca de la escuela del médio rural, del
currículo y de um abordaje culturalista de las matemáticas. Enseguida, presentamos y
analizamos cualitativamente nueve entrevistas com profesoras de la Educación Infantil y de
Grados Iniciales de tres escuelas rurales del município de Rio Negro-PR. Por tanto,
adoptamos un análisis vertical en la tentativa de percibir convergencias o divergencias entre
las entrevistas. A partir de este análisis, buscamos mirar para el conjunto de las entrevistas em
um análisis horizontal, visando uma posible categorización no generalizable de adaptación em
el currículo de matemáticas. De este análisis, surgieron cinco categorias que permitieron
revelar la percepción de los entrevistados sobre la adaptación em diferentes contextos y
revelar también una posible comprensíon sobre la naturaleza de las adaptaciones em el
currículo de matemáticas de la escuela rural.
Palabras claves: educación matemáticas, escuela en el médio rural, adaptaciones en el
currículo
LISTA DE SIGLAS
EDURURAL - Programa de Expansão e Melhoria do Ensino
LDBEN - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
MEB - Movimento de Educação de Base
MEC - Ministério da Educação e Cultura
SENAR - Serviço Nacional de Aprendizagem Rural
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 Recortes do depoimento de Angélica e significação da pesquisadora
.................................................................................................................................67, 68
QUADRO 2 Recortes do depoimento de Bianca e significação da
pesquisadora............................................................................................................74, 75
QUADRO 3 Recortes do depoimento de Camila e significação da pesquisadora
.................................................................................................................................81, 82
QUADRO 4 Recortes do depoimento de Dirce e significação da
pesquisadora......................................................................................................91, 92, 93
QUADRO 5 Recortes do depoimento de Eduarda e significação da pesquisadora
................................................................................................................................99,100
QUADRO 6 Recortes do depoimento de Fabiana e significação da pesquisadora
.....................................................................................................................108, 109, 110
QUADRO 7 Recortes do depoimento de Gabriela e significação da
pesquisadora................................................................................................119, 120, 121
QUADRO 8 Recortes do depoimento de Heloísa e significação da
pesquisadora................................................................................................129, 130, 131
QUADRO 9 Recortes do depoimento de Isabel e significação da pesquisadora
.....................................................................................................................139, 140, 141
LISTA DE ANEXOS
ANEXO 1 Entrevistas com agricultores ..................................................................153
ANEXO 2 Questionário aberto ...............................................................................168
ANEXO 3 Carta de Cessão .....................................................................................170
ANEXO 4 - .................................................................................................................171
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................11
1 ESCOLA NO MEIO RURAL: TRAÇOS DE UMA TRAJETÓRIA
.......................................................................................................................................16
1.1 CURRÍCULO: UMA REFLEXÃO INTRODUTÓRIA..........................................30
1.2 UMA INTERPRETAÇÃO DO QUADRO RURAL-URBANO E DA ESCOLA..34
1.3 UMA ESCOLA DO CAMPO EM MOVIMENTO.................................................41
2 A RELAÇÃO EDUCAÇÃO-CULTURA...............................................................50
2.1 A ABORDAGEM CULTURAL.............................................................................50
2.2 A ABORDAGEM EDUCACIONAL......................................................................52
3 PROCEDIMENTOS ADOTADOS NA PESQUISA..............................................57
3.1 NATUREZA DA PESQUISA.................................................................................57
3.2 DELIMITAÇÃO DA ÁREA E DO GRUPO ESTUDADO....................................60
3.3 PROCEDIMENTOS PARA A OBTENÇÃO DE INFORMAÇÕES......................61
3.4 EM BUSCA DE SIGNIFICAÇÕES........................................................................62
3.5 ENFOQUE DE ANÁLISE......................................................................................62
4 IMPRESSÕES E RELAÇÕES................................................................................64
4.1 DESCRIÇÃO DO QUESTIONÁRIO.....................................................................64
4.1.1 ENTREVISTAS.................................................................................................64
4.1.2 PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES....................................................................142
4.2 DESCRIÇÃO GERAL...........................................................................................145
4.2.1 COMPREENSÕES DAS PROFESSORAS DE ESCOLAS RURAIS............145
4.2.2 SUGESTÕES SOBRE AS ADAPTAÇÕES DO CURRÍCULO DO MEIO
RURAL............................................................................................................146
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................147
5.1 SOBRE O DEPOIMENTO DAS PROFESSORAS..............................................147
REFERÊNCIAS..........................................................................................................149
ANEXO 1................................................................................................................................153
ANEXO 2................................................................................................................................168
ANEXO 3................................................................................................................................170
ANEXO 4................................................................................................................................171
INTRODUÇÃO
Na minha infância, brincava de professora. No verso de uma placa de fórmica
pendurada num abacateiro, escrevia as primeiras lições de matemática para um grupo
de crianças imaginárias. Essas crianças, algumas vezes, faziam-me perguntas para as
quais não havia respostas. Tais perguntas deixavam-me preocupada, pois acreditava
que uma professora deveria ter sempre respostas para todas as questões.
Com o passar do tempo, as crianças imaginárias passaram a ser crianças reais,
com sentimentos e maneiras próprias de pensar e agir. Essas crianças pareciam
diferentes daquelas imaginárias com que eu brincava, porém tinham algo em comum,
estudavam matemática a partir de uma relação de comunicação.
Buscando o “ser professora”, procurei compreender tanto as relações de
comunicação produzidas num espaço de discussão quanto com os significados
manifestos nestas relações. Nesta busca, percebia que, além da linguagem da
professora, o objeto de conhecimento influenciava na dinâmica da comunicação, pois
algum significado deveria ser manifesto em seus diferentes interlocutores.
Um diálogo constante entre os alunos, agora reais, e a professora possibilitou
uma série de reflexões sobre a prática escolar, bem como sobre a sua influência no
processo de aprendizagem. Percebia que diversas eram as maneiras de o aluno
expressar a compreensão ou incompreensão de um conceito. Ao possibilitar um espaço
de reflexão, sem medos ou culpas, percebia também que não haveria como obter
respostas para todas as perguntas.
O diálogo expandiu-se no interior do espaço escolar, e, nesse mesmo espaço,
questões intrigantes surgiam, questões para as quais, até então, não havia respostas
prévias. Para obtenção de uma possível resposta, tornava-se necessário ir além das
quatro paredes e perceber o que poderia existir além delas.
No decorrer de minha trajetória profissional, pude vivenciar a experiência de
lecionar no Ensino Superior. Nesta minha trajetória, do espaço escolar de Ensino
Básico para o espaço escolar de Ensino Superior, as reflexões assumiram
12
encaminhamentos diferenciados em função das expectativas, dos interesses e das
preocupações dos alunos com o conhecimento a ser adquirido.
As discussões com meus alunos universitários avançavam, tendo em vista a
diversidade dos contextos socioculturais. A todo instante, buscávamos respostas para
nossas angústias, que pareciam ser comuns em alguns momentos. Nos espaços de
reflexão, a convergência e a divergência de idéias favoreciam o surgimento de
propostas de ação e intervenção. Juntos observávamos que a viabilidade de tais
propostas, estaria condicionada a um contexto histórico-social.
Nas discussões produzidas nesses espaços acadêmicos e fora deles, pude
conhecer alguns profissionais da Educação Matemática que demonstravam um imenso
comprometimento e grande preocupação com o ato pedagógico e que auxiliavam-me
na constante busca do “ser professora”.
Acreditando num ensino que viesse a produzir significados entre seus diferentes
interlocutores em diferentes contextos, dos grupos de discussão com os meus alunos
de ensino superior nasceram grupos de estudos interessados em construir propostas
didático-metodológicas para o ensino de matemática. Esses grupos emergiam do
interior dos espaços de discussão com alunas de cursos de licenciaturas. Algumas
delas já atuavam como professoras das Séries Iniciais.
As propostas de ação desses grupos, por mim orientadas, surgiam
fundamentalmente a partir das experiências acumuladas tanto socialmente quanto
profissionalmente e de questões que eram formuladas de maneira natural. Percebia,
mais uma vez, que o número de questões superava o número de propostas de ação.
Questionávamos se haveria respostas a todas as questões. Tomar consciência da
impossibilidade de responder todas não se tornava nada fácil.
Nesses espaços, juntamente com as demais alunas-professoras que lá estavam,
eu aprendia cada vez mais, que “ser professora” se constituía numa busca contínua.
As propostas de discussão avançavam. E, agora, passavam a integrar novos
grupos de discussão alunas-professoras de diferentes localidades e regiões, do sul do
Paraná ao norte de Santa Catarina. Em função da realização de trabalhos de extensão
13
universitária, na medida em que conhecia a uma grande diversidade de espaços e
sujeitos, percebia o quão importante era ter informações sobre outras áreas do
conhecimento humano, como em Sociologia, Psicologia, Antropologia, visando o
aprofundamento do meu trabalho educacional, algumas vezes, em função da
diversidade de questionamentos propostos, sentia-me impotente e sem saber por onde
começar. Ao mesmo tempo, observava que tais questionamentos visavam à obtenção
de procedimentos que auxiliassem no processo pedagógico. No decorrer das
discussões, surgiram os relatos de experiência da prática escolar, o que possibilitava
uma melhor compreensão da origem das questões. Na maioria das vezes, o interesse
por um objeto de estudo articulava-se a uma curiosidade prévia e a uma necessidade de
obtenção de respostas práticas.
Na medida em que o grupo de alunas-professoras compreendia a importância
das questões, justificava-se a necessidade de explorá-las com profundidade em grupos
de estudos. Alguns trabalhos, surgiram desses grupos, possibilitando novos
questionamentos. Outras propostas surgiam de estudos individualizados, como é o
caso do estudo das formas singulares de cálculos geométricos para medidas de terreno
na zona rural. Este estudo teve origem no fato de uma aluna-professora do meio rural
perceber a grande dificuldade que tanto os proprietários de terras quanto os
trabalhadores braçais empreitados para capinar lavouras ou roçar determinadas áreas
para plantio enfrentavam para calcular a quantidade de litros de terra roçados,
plantados ou capinados, tanto para pagar quanto para receber pelos serviços prestados.
Dessas discussões nasciam questões até então não pensadas pelos demais grupos de
estudo.
Com o avanço das discussões, avançavam as propostas de estudo e de trabalho,
surgindo uma proposta didático-metodológica para uma escola rural, a qual utilizava o
conhecimento local como suporte teórico para desenvolver e orientar a prática
pedagógica da professora do meio rural. Para o desenvolvimento dessa proposta,
foram pesquisados, junto à comunidade da zona rural investigada, assuntos relevantes
para a melhoria do trabalho agrícola. Além disso, formulou-se um calendário de
acordo com as épocas de plantio e colheita.
14
Durante as orientações desse trabalho, percebia a necessidade de pesquisas
relacionadas à educação do campo, mais especificamente focalizando as professoras
do meio rural. Além disto, observava que alguns grupos de agricultores produziam
uma matemática própria do campo, a qual a escola do meio rural desconhecia.
Questionávamos, ainda sem encontrar resposta, sobre o modo como introduzi-la num
currículo oficial.
Nos estudos desenvolvidos com algumas alunas-professoras de escolas rurais,
percebia cada vez mais a importância de estudos envolvendo o currículo e a
matemática proposta nesses currículos. Estes questionamentos produzidos com o
decorrer do tempo, possibilitaram a percepção de uma unicidade de currículos,
manifesta na estrutura curricular. Os currículos, tanto os dos meios rurais quanto os
dos meios urbanos, apresentavam uma mesma forma de organização.
Concomitantemente com estes estudos tive, a possibilidade de orientar uma
proposta de ensino para uma escola situada no meio rural. Nessa proposta, foram
discutidas algumas questões referentes à comunidade, à melhoria do trabalho agrícola
e à elaboração de métodos de ensino. Na parte introdutória da proposta, destaca-se que
“a necessidade de vincular o estudo da etnomatemática com as escolas rurais surgiu da
preocupação em relação as práticas educacionais ministradas nestes estabelecimentos
de ensino”.
Considerando as peculiaridades destas práticas e a unicidade dos currículos nos
meios rurais e urbanos, as alunas-professoras revelam seus entendimentos sobre as
adaptações no currículo da escola rural, mas o que representam essas adaptações para
as demais professoras do meio rural? Buscando compreender o que as professoras de
escolas do meio rural entendem por adaptações no currículo de matemática, deu-se
origem a esta pesquisa. Muitas das reflexões produzidas no decorrer da dissertação
dizem respeito a essa questão e estão associadas a alguns dos estudos desenvolvidos
dentro do contexto da Educação Matemática, os quais me estimularam à realização
desta pesquisa.
15
Este trabalho busca não somente refletir sobre o assunto mas, também permitir
que as/os professoras/es do meio rural e/ou urbano reflitam sobre as adaptações no
currículo de matemática das escolas do meio rural.
As ações constituintes desta pesquisa desenvolveram-se com o objetivo de
estabelecer uma relação de comunicação para que pudesse:
Descrever o que as professoras das escolas rurais de um município
paranaense entendem por adaptações no currículo de matemática de escolas
no meio rural.
Assim, os motivos que impulsionaram essa pesquisa convergem para um
mesmo fim: identificar os entendimentos das professoras sobre as adaptações do
currículo de matemática de escolas do meio rural.
No primeiro capítulo, por meio de análise de alguns documentos, busca-se
estabelecer algumas idéias sobre a adaptação do currículo do meio rural sugerida nos
programas do governo federal. Inicia-se com uma breve descrição da trajetória da
escola rural levando em consideração tanto algumas passagens das Constituições
brasileiras como algumas idéias desenvolvidas por autores que discutem esta
abordagem. Considerou-se necessário também discutir alguns aspectos do quadro
rural-urbano e da escola rural situada nesse quadro. Nesse momento, admitiu-se a
importância de apresentar alguns indícios de diferenças entre os universos sociais rural
e urbano. Pensando no currículo como um dos objetos de discussão da pesquisa, torna-
se relevante apresentar um encaminhamento de reflexão. Ademais, admitiu-se
necessário promover um olhar para a escola do campo.
No segundo capítulo, busca-se apresentar uma reflexão sobre a educação
matemática e sobre a cultura, no sentido de manifestar uma forma de conceber o
conhecimento matemático na diversidade de espaços e contextos.
No terceiro capítulo, relatam-se as estratégias utilizadas para o levantamento
das informações e, no quarto capítulo, apresentam-se as descrições e as compreensões
obtidas através das análises dos depoimentos.
16
No quinto capítulo, a partir dos estudos e das análises, revela-se as formas de
compreender as adaptações sob a ótica das professoras de escolas rurais.
Para finalizar, apresentam-se as referências bibliográficas das obras consultadas
e os anexos, que contribuem para o entendimento dessa pesquisa.
1 ESCOLA NO MEIO RURAL: TRAÇOS DE UMA TRAJETÓRIA
A educação escolar constitui uma prática social e histórica condicionada a uma
estrutura política que reconhece as disposições constitucionais. No prefácio da obra de
COSTA (2002), BOAVENTURA afirma ser consciente a busca de adequação da
educação às necessidades sociais pela legislação como expressão das políticas
públicas. As leis educacionais passam a ser instrumentos de políticas coercitivas e
obrigatórias na ausência de outros expedientes mais condicionantes, eficientes e
efetivos.
Neste sentido, o interesse das políticas públicas pela educação escolar no meio
rural brasileiro acentua-se nos anos de 1910/20 por ocasião do forte movimento
migratório do campo para a cidade ocasionado pelo processo de industrialização e pela
legalidade social e trabalhista. Deste fato social surge o “ruralismo pedagógico”, que
pretendia uma escola vinculada às necessidades sociais e cujo objetivo principal era
manter o homem no campo. Para FONSECA (1985, p. 56), “o movimento ruralista
constitui-se um marco, pois pela primeira vez colocou em discussão problemas
concretos da escola rural, mas ao mesmo tempo imprimiu uma postura política
conservadora que estaria presente em todos os movimentos oficiais de Educação Rural
daí por diante”.
Na década de 30, um fato importante da legislação sobre a Educação Rural
deve-se à incorporação na Constituição de 1934 de um capítulo destinado à Educação
e à Cultura, enfatizando assuntos importantes, tais como: plano nacional de educação,
organização dos sistemas educacionais, obrigatoriedade e gratuidade do ensino
primário, liberdade de cátedra e vinculação de recursos de impostos na manutenção e
no desenvolvimento dos sistemas de ensino. Destaca-se a manutenção dos sistemas de
ensino, nas zonas rurais, nos termos dispostos a seguir:
17
Art. 156. A União e os Municípios aplicarão nunca menos de dez por cento,
e os Estados e o Distrito Federal nunca menos de vinte por cento, da renda
resultante dos impostos, na manutenção e no desenvolvimento dos systemas
educativos.
Parágrafo Único. Para a realização do ensino das zonas ruraes, a União
reservará, no mínimo, vinte por cento das quotas destinadas à educação no
respectivo orçamento annual. (BRASIL, 1934)
Na década de 40, em 1942, durante o VIII Congresso Brasileiro de Educação,
discute-se a necessidade de amenizar as diferenças culturais e sociais da população
brasileira. Em meados da década de 40, seguindo as diretrizes da política vigente, são
propostas as seguintes ações, visando suprir esta necessidade:
... implantação de projetos educacionais na zona rural e o desenvolvimento
das comunidades campestres, mediante a criação de Centros de Treinamento
(para professores especializados que repassariam as informações técnicas
aos rurícolas), a realização de Semanas Ruralistas (debates, seminários,
encontros, dia-de-campo, entre outros(...) e também a criação e implantação
dos chamados Clubes Agrícolas e dos Conselhos Comunitários Rurais
(LEITE, 1999, p.32).
Além destas propostas, outra estratégia da política vigente na tentativa de
cercear o êxodo rural constitui na criação dos programas de Extensão Rural. A
dificuldade em definir o termo “Extensão rural”, em função da sua complexidade, leva
alguns autores a perceberem a existência de duas dimensões em sua composição: uma
comunicacional e outra educacional. Nesse processo dinâmico, a dimensão
comunicacional consiste em levar informações aos produtores rurais, e a dimensão
educacional consiste em ajudá-los a adquirir conhecimentos para utilizar com
eficiência as informações recebidas.
A dimensão educacional, no Brasil, cedeu lugar à dimensão assistencialista no
conceito e, sobretudo, na prática extensionista. Para ALMEIDA (1989, p.11), a
Extensão rural dos países em desenvolvimento é marcada pelas seguintes
características:
o modelo de extensão rural transplantado para os países em desenvolvimento
é de origem norte-americana, caracterizado pelo assistencialismo. ...)Quando
da introdução da Extensão rural, estes países não possuíam colégios ou
18
universidades agrícolas. Na falta de ensino agrícola, foi sentida a escassez do
pessoal qualificado na área.
... Com o decorrer do tempo, e sob pressões tanto internas quanto externas,
em muitos países do Terceiro Mundo, a Extensão rural tornou-se um órgão
repassador das tecnologias dos países desenvolvidos para os países
subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento.
FREIRE, num de seus ensaios, nos mostra como o conceito de “extensão”
envolve ações que, transformando o homem em quase “coisa”, o negam como um ser
de transformação do mundo. Assim, extensão refere-se à ação de transferir, uma forma
de conhecimento estático de mundo. O conhecimento, de acordo com o autor, “...
reclama a reflexão crítica de cada um sobre o ato mesmo de conhecer, pelo qual se
reconhece conhecendo e, ao reconhecer-se assim, percebe o ‘como de seu conhecer’ e
os condicionamentos a que está submetido seu ato” (1977, p.27).
A idéia extensionista, introduzida no Brasil na década de 40, revelava um
modelo de educação que priorizava uma escolarização voltada à promoção do
desenvolvimento sócio-econômico do meio rural. Esse programa, na opinião de
Fonseca, limitava as responsabilidades dos órgãos públicos ao entender que
... os Programas Extensionistas como projetos educativos para as zonas
rurais, a partir de suas propostas teóricas, demonstram estar entre aqueles
programas educacionais que politicamente buscam uma conciliação aparente
entre o capital e o trabalho, para que a sociedade possa diluir em seu todo o
fantasma das desigualdades, fazendo com que os problemas sociais sejam
assumidos por todos em comunidade, adiando assim, mais uma vez, um
possível embate entre aqueles que fazem as leis, detêm o poder político,
controlam e regulam o mercado de trabalho e dos produtos e aqueles que, na
verdade, são donos só da força de seus braços (FONSECA, 1985, p.54).
Os princípios técnicos e teóricos que nortearam a prática extensionista brasileira
consistiam em transmitir à população rural práticas cientificamente válidas para
solução de seus problemas visando, conseqüentemente, obter o desenvolvimento
econômico-social esperado. Essa prática não vislumbrava os interesses reais e
imediatos das populações rurais, mas se fundamentava no princípio de que as
mudanças nas sociedades rurais se dariam por intervenções técnicas e não por
alterações nas estruturas político-econômicas do país. Desconsiderava-se também, no
19
encaminhamento dessa proposta, a quantidade de práticas agrícolas aperfeiçoadas
empiricamente que poderiam estar beneficiando os agricultores em diferentes
comunidades.
Ainda nos anos 40, a Constituição de 1946 (Brasil, 1946), no que se refere à
Educação Rural, limitava-se a uma série de questões relativas à fundação de
instituições nas áreas rurais e ao auxílio específico para manutenção dessas
instituições. Como inovação no plano geral da Educação, apresentava um artigo no
qual estabelecia que competia à União legislar sobre “diretrizes e bases” da educação
nacional (Art.5, XV, “d”), o que ensejaria mais tarde as discussões em torno da
elaboração da lei de diretrizes e bases LDB da educação nacional.
Na década de 50, as discussões em torno da elaboração de uma lei de diretrizes
e bases refletem as contradições da educação brasileira. Evidenciam-se
posicionamentos concomitantes que privilegiam aspectos distintos das dimensões
sociais, políticas e econômicas e suas inter-relações no contexto escolar brasileiro.
Leite (1999, p.38) afirma que “... a escola brasileira nessa época especialmente a
rural foi condicionada às intenções capitalistas”. Tal afirmação justifica-se a partir da
constatação, na política educacional, da negação dos valores locais em detrimento dos
valores globais.
A Lei 4024 - LDB, promulgada em dezembro de 1961, estabeleceu um
currículo mínimo determinado pelo Conselho Federal de Educação, deixando a cargo
dos Estados a ampliação do corpo disciplinar. Porém, “... na prática, as escolas
acabaram compondo o seu currículo de acordo com os recursos materiais e humanos
de que já dispunham, ou seja, continuaram mantendo o mesmo currículo de antes,
quando não puderam improvisar professor e programa” (ROMANELLI, 1982, p.181).
Essa LDB destaca, em um de seus artigos, a responsabilidade do poder público em
manter escolas e centros educacionais na zona rural. Desconsidera, entretanto, a
realidade sócio-econômica dos municípios do interior, uma vez que institui a
obrigatoriedade da educação sem levar em consideração as limitações financeiras da
prefeituras municipais.
20
Em meados da década de 60, o governo Castello Branco cria, através do
Ministério do Planejamento, o Plano Decenal de Desenvolvimento Econômico e
Social para o período de 67/76, no qual o processo educativo aparece como um
mecanismo que viabiliza a inserção do cidadão no mercado de trabalho.
Para LEITE (1999, p.43), “a ligação educação/trabalho/desenvolvimento
vinculada à educação rural, a partir da nova estruturação curricular, assume, por assim
dizer, uma dimensão de nivelamento, isto é, de anulação de dicotomia cidade/campo”.
A estrutura curricular sugerida no processo de desenvolvimento econômico do país
admite, mesmo que superficialmente, uma homogeneidade cultural. Parece-nos, no
entanto, complexo admitir esta homogeneidade em função da diversidade do povo
brasileiro.
A Constituição de 1967 apresenta marcas de um autoritarismo
institucionalizado pelo golpe de março de 1964. Na educação, em grande parte tratada
no título “Da Família, da Educação e da Cultura” (BRASIL, 1967, p.969), amplia a
obrigatoriedade do ensino primário, dos sete aos quatorze anos. Entretanto, tal
ampliação é desvinculada de um programa de desenvolvimento do ensino. A educação
inserida nesse contexto político representa-se em números e são limitadas as
apresentações de propostas educativas efetivas, possíveis de serem alcançadas
mediante um projeto escolar autônomo.
Ademais, com a reestruturação do ensino fundamental, institucionalizado pela
Lei 5692/71, mantém-se restrito o espaço para discussão sobre as peculiaridades
regionais, conservando-se os princípios de continuidade e terminalidade na educação
nacional. Para LEITE (1999, p.48), a Lei 5692, “distanciada da realidade sócio-
cultural do campesinato brasileiro, não incorporou as exigências do processo escolar
rural em suas orientações fundamentais nem mesmo cogitou possíveis
direcionamentos para uma política educacional destinada, exclusivamente, aos grupos
campesinos”.
Numa tentativa de reduzir o fracasso escolar no campo, o governo elabora um
programa nacional de ações sócio-educativas e culturais para o meio rural limitando-se
21
a recomendar um calendário escolar para toda escola rural, a partir dos referenciais
urbanos. Observa-se mais uma vez, a aplicação de uma solução superficial para as
questões referentes à educação no meio rural, a desconsideração do contexto
sociocultural em que essas questões se inserem. A adaptação ou adequação, restringe-
se nesse contexto, a uma ação prática representada na forma de uma mudança de
calendário.
Na década de 80, a implantação de projetos especiais do Ministério da
Educação, com vigência de 1980 a 1985, evidencia as tentativas de reduzir as
desigualdades sociais através de programas alternativos, como parte de uma política
social. O Programa de Expansão e Melhoria do Ensino Rural instalou-se basicamente
na região nordeste do país e contou com apoio financeiro do Banco Interamericano de
Desenvolvimento e do Governo Federal. As atividades desenvolvidas neste programa
foram avaliadas sistematicamente pela Fundação Cearense de Pesquisa e Cultura,
Departamento de Educação e Fundação Carlos Chagas. Esse programa destaca
fundamentalmente a necessidade de adequação das propostas curriculares às
especificidades do meio.
As propostas de alteração curricular, como as contidas nesse programa, bem
como em outros programas educacionais para o Nordeste, de acordo com BARRETO
(1985, p.122), induzem “à necessidade de alteração dos conteúdos curriculares
particularmente no que eles têm a ver com os componentes de uma cultura regional, e,
de modo nem sempre claramente expresso, com as características de classe que eles
vêm permeados”. A proposta de reformulação de currículo e de material didático
evidencia a necessidade de uma leitura da realidade, e toda leitura da realidade
pressupõe uma leitura anterior do mundo.
Nas análises presentes nos relatórios de pesquisa para o Estudo da Educação no
Meio Rural, BARRETO (1985, p.122) retoma uma observação freqüente à
inadequação curricular, “entendida fundamentalmente como inadequação do saber
transmitido pela escola, em particular, na medida em que este é constituído de
generalizações vazias e de conteúdos deturpados ou estranhos ao ambiente cultural do
22
aluno, termina assim apontada como um dos principais fatores intra-escolares
determinantes do fracasso nas escolas rurais”. Pode-se, assim, estabelecer uma
possível compreensão do que seja um currículo adequado à realidade rural. Nessa
perspectiva, um currículo adequado à realidade rural contemplaria os saberes locais e
os conteúdos oriundos do ambiente sociocultural do aluno.
O Programa de Expansão e Melhoria do Ensino Rural, implementado em alguns
municípios da região nordeste do país, elegeu como uma prioridade a melhoria das
condições de ensino nas Séries Iniciais a partir da adequação curricular às
peculiaridades do meio rural. De acordo com BARRETO (1985, p.121), “o exame dos
documentos e estudos que subsidiaram os projetos mais abrangentes atuando na
educação rural evidencia um grande consenso em relação à necessidade de adequação
das propostas curriculares às especificidades do meio”. Constata-se também a
necessidade de envolver a comunidade rural no planejamento de ações educativas mais
eficazes.
Um dos documentos produzidos pela Secretaria de Educação do Estado do
Piauí, na década de 80, representam uma tentativa de mudança no sistema educacional
a partir da elaboração de um currículo voltado para a realidade do campo. O processo
de elaboração desse documento compreendeu dois momentos:
1. inicialmente a execução da meta foi encaminhada para elaboração de
uma proposta curricular, para a zona rural na forma de Diretrizes Gerais
para as quatro primeiras séries do 1º Grau;
2. novo rumo dado ao trabalho, segundo orientações técnicas do
MEC/SEPS, converteu o Currículo destinado à zona rural, numa série de
livros com a observância dos conteúdos mínimos já especificados na
proposta curricular do Estado do Piauí, recebendo desta forma um novo
enfoque (SEED-PI, 1982, p.9).
Um dos Livros-Currículo elaborados pelas equipes de trabalho da Secretaria,
denominado Vivendo a Vida, afirma em sua fundamentação teórica que: “para
corresponder às perspectivas de um currículo para a zona rural, considerou a filosofia
do homem do campo e, na seleção dos conteúdos programáticos, a continuidade, a
exiqüibilidade, a integração, a flexibilidade, e levou a efeito a elaboração de textos
pelos alunos” (SEED-PI, 1982, p.12). Observa-se no encaminhamento metodológico
23
deste trabalho que um dos critérios utilizados para a elaboração deste material,
específico para determinados alunos e escolas, era a adequação do tema às
peculiaridades da região.
Ainda na década de 80, a Constituição de 1988 (BRASIL, 1988) ampliou e
fortaleceu os direitos individuais e as liberdades públicas, independente dos cidadãos
residirem nas áreas urbanas ou rurais. O texto institui no art. 62, do ato das
Disposições Constitucionais Transitórias, a criação do Serviço Nacional de
Aprendizagem Rural (SENAR), mediante lei específica, reabrindo o debate sobre a
política educacional para o campo e do campo. Nessa mesma Constituição, reafirma-
se, com força de lei, a idéia de um Plano Nacional de Educação, visando o
desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis.
Nos anos 90, a escola rural depara-se com uma complexidade ainda maior,
tendo por pano de fundo a Lei 9394/96, elaborada sem uma efetiva participação social.
Há uma certa repetição da Lei de Diretrizes e Bases 5692/71, que restringia as
referências ao ensino rural ao tratamento da organização dos períodos letivos. O
parágrafo 2º do artigo 23 da LDB 9394/96 novamente faz menção ao campo, para
favorecer a escolaridade rural, com base na sazonalidade do plantio/colheita:
Na zona rural, o estabelecimento poderá organizar os períodos letivos, com
prescrição de férias nas épocas do plantio e colheita de safras, conforme
plano aprovado pela competente autoridade de ensino. (BRASIL, 2004b)
... deverá adequar-se às peculiaridades locais, inclusive climáticas e
econômicas, a critério do respectivo sistema de ensino, sem com isso reduzir
o número de horas letivas previsto nesta lei. (BRASIL, 2004a)
As escolas rurais devem, assim, organizar um calendário escolar que atenda às
especificidades locais. Nesse contexto, a adequação curricular estaria vinculada a uma
proposta de reformulação de calendário. Neste sentido, observa-se uma similaridade
das questões referentes à educação rural tanto no início das discussões, década de
1930, quanto na atualidade.
Por outro lado, como inovação, a Lei 9394/96 apresenta o artigo 28, o qual
estabelece que:
24
Art. 28. Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de
ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às
peculiaridades da vida rural, e de cada região, especialmente;
I - conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades
e interesses dos alunos da zona rural;
II - organização escolar própria, incluindo adequação do calendário escolar
às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas;
III - adequação à natureza do trabalho na zona rural. (BRASIL, 2004a)
Nesse artigo, evidencia-se a necessidade de adaptações no sistema de ensino à
oferta de educação básica para a população rural. Mantém-se a necessidade de
adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas
mas também é apresentada a necessidade de adequação de conteúdos curriculares e
metodologias apropriadas às necessidades e interesses dos alunos da zona rural.
Assim, pode-se vislumbrar neste artigo a sugestão da necessidade de adaptação do
currículo escolar para a população rural.
O Parecer nº 36/2001, provocado pelo artigo 28 da LDBEN vem orientar os
sistemas de ensino no encaminhamento de propostas que contemplem os espaços do
campo como espaços heterogêneos. A educação do campo, tratada no documento,
“tem um significado que incorpora os espaços das florestas, da pecuária, das minas e
da agricultura, mas os ultrapassa ao acolher em si os espaços pesqueiros, caiçaras,
ribeirinhos e extrativistas” (BRASIL, 2002). Nesse mesmo documento, evidencia-se o
caráter inovador na redação do artigo:
... ao submeter o processo de adaptação à adequação, institui uma nova
forma de sociabilidade no âmbito da política de atendimento escolar em
nosso país. Não mais se satisfaz com a adaptação pura e simples. Reconhece
a diversidade sócio-cultural e o direito à igualdade e à diferença,
possibilitando a definição de diretrizes operacionais para a educação rural
sem, no entanto, recorrer a uma lógica exclusiva e de ruptura com um
projeto global de educação para o país. (BRASIL, 2002)
Assim sendo, no texto da Resolução que fixa as Diretrizes Operacionais para a
Educação Básica nas escolas do campo evidencia-se, novamente, o interesse para o
desenvolvimento de propostas pedagógicas que contemplem as especificidades do
espaço rural.
25
O documento também informa que, de uma maneira geral, o termo adaptação
surge nas legislações estaduais como uma necessidade, para a oferta da educação, no
meio rural, na medida em que, “... os legisladores não conseguem o devido
distanciamento do paradigma urbano. A idealização da cidade, que inspira a maior
parte dos textos legais, encontra na palavra adaptação, utilizada repetida vezes, a
recomendação de tornar acessível ou de ajustar a educação escolar, nos termos da sua
oferta na cidade às condições de vida do campo” (BRASIL, 2002). Assim, desde a
implementação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (nº 9394/96)
(BRASIL, 2004) vem sendo construída a tentativa de implementar propostas de ação
para o campo.
Um desafio, para CURY (1998) um dos autores que promove uma discussão
sobre as novas perspectivas da nova LDB encontra-se no processo de efetivação de
uma lei. Neste caso, a LDBEN caracteriza-se, segundo CURY, pela complexidade
deste desafio: “... uma lei nacional nos coloca diante de temas polêmicos como o de
integração em face das diferentes matrizes étnicas que compõem a nossa formação
histórica, como o de uma base curricular nacional” (1998, p. 74). Como integrar numa
base nacional comum a diversidade étnica do povo brasileiro torna-se uma importante
questão, na medida em que se considera a permanência temporal desta diversidade. Ao
mesmo tempo em que apresenta eixos muito claros e coerentes, o texto da LDBEN
apresenta uma redação que contém, tanto do ponto de vista da técnica jurídica como
do ponto de vista do vernáculo, expressões discutíveis.
Rocha (1998), autora que busca estabelecer relações entre o Currículo do
Ensino Fundamental e a Lei 9394/96, aponta as inúmeras tentativas de mudança na
estrutura educacional do país e os reflexos dessas mudanças na prática educacional
brasileira. Para a autora, os parâmetros curriculares nacionais são a resposta mais
imediata para sistematizar o ensino proveniente da nova Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional. Esse documento, segundo ROCHA (1998, p.38), “pressupõe para
o processo de construção curricular quatro níveis de ação: o primeiro é o nível da
União, com os parâmetros nacionais; o segundo o nível das Secretarias de Educação de
Estados e Municípios com suas propostas curriculares; o terceiro nível é o das
26
instituições escolares consoante seus projetos pedagógicos; e o quarto e último nível, o
da sala de aula, quando o professor organiza o ensino”. Neste sentido, o currículo
escolar integra a proposta pedagógica de uma escola e a auxilia na execução desta
proposta.
SILVA (2002, p. 116) afirma que “as escolas necessitam incorporar propostas
curriculares próprias, com projetos político-pedagógicos articulados e coerentes com
os projetos de vida dos povos; onde os trabalhadores do campo e os povos indígenas
sejam protagonistas e não meros destinatários”. Este direcionamento possibilita
compreender a necessidade de uma escola que incorpore elementos da cultura local.
Assim, a autora reflete sobre o currículo escolar como um dos instrumentos
usados na escola que pode ser utilizado para consolidação de propostas de ação que
agregam as atividades, as crenças e a cultura do homem do campo. Em acordo com a
autora, entendemos que o currículo é esse instrumento na medida em que representa e
incorpora a linguagem e a história do povo do campo. Desse modo, assumindo a
perspectiva de GIROUX, conforme apresentada por MCLAREN,
... o currículo deve ser entendido como uma teoria de interesse e uma teoria
de experiência. Por teoria de experiência, Giroux quer dizer que o currículo
reflete os interesses que o rodeiam: as visões particulares do passado e
presente que eles representam, as relações sociais que eles afirmam ou
descartam. Por teoria de experiência, Giroux quer dizer que o currículo é
uma narrativa historicamente construída que produz e organiza as
experiências do estudante no contexto de formas sociais, tal como o uso da
linguagem, organização do conhecimento em categorias de alto e baixo
status a afirmação de tipos particulares de estratégias de ensino...
(MCLAREN, 1997, p.197)
Partindo das considerações acima, percebe-se a necessidade de produzir uma
reflexão sobre a natureza do currículo, a sua finalidade e os diferentes modos de
descrevê-lo. No interior do espaço escolar, quem interpreta o currículo são os
professores, e a diversidade de interpretações reflete as resistências e, principalmente,
uma forma particular de perceber o conhecimento de modo geral e, no caso específico
desta pesquisa, o conhecimento matemático.
Alguns trabalhos de pesquisa desenvolvidos na década de 80, no Brasil,
manifestam preocupação com a educação da população rural. Dentre estes trabalhos,
27
destacam-se as pesquisas produzidas no contexto rural do Nordeste do país, mais
especificamente no interior dos estados do Ceará, de Pernambuco e de Piauí. Um dos
aspectos analisados nestas pesquisas refere-se à qualificação docente, aos cursos de
treinamento docente e ao material didático. Na opinião de Maia (1983, p.17), “... foi
possível observar nos ‘Estudos de Casos’ que os livros disponíveis são, por sua vez,
totalmente inadequados pois empregam vocabulário de difícil compreensão e textos
referidos a experiências muito distantes da zona rural”.
Embora não trate do contexto rural específico do Nordeste, ROCHA (1998),
que analisa algumas experiências nacionais de currículo e as inovações produzidas no
sistema educacional brasileiro, numa abordagem cronológica de análise, informa que
no início da década de 60, sob inspiração do Programa de Emergência do Ministério
da Educação e Cultura, elaborou-se um currículo, em formato de fascículos, para a
escola rural. Rocha indica que, contudo, “não se pode afirmar que o ensino na zona
rural haja logrado alteração sensível com o fato dos técnicos do MEC haverem
colocado nas mãos dos professores documentos curriculares científica e
pedagogicamente bem formulados para a época” (ROCHA, 1998, p.44). Entendemos
que uma das motivações para esta pouca alteração pode ser remetida à inadequação do
material e à conseqüente dificuldade de compreensão da linguagem adotada, apontada
por MAIA (1983).
Neste sentido, essas pesquisas alertam para a necessidade de pensar a educação
como um processo de formação/transformação humana visando a promoção do ser
humano e a produção de significados com relevância social e cultural. Destaca-se a
necessidade de uma proposta de ação formativa na qual seja possível criar e recriar
caminhos para uma pedagogia mais reflexiva, onde os sujeitos não sejam apenas parte
de uma ação cultural.
Nesta mesma perspectiva, destacam-se as reflexões produzidas pelos Estudos
Culturais, nos quais autores como CANEN (2000, p.137) reafirmam a importância de
se “promover práticas pedagógico-curriculares que problematizem a construção das
diferenças e que desafiem preconceitos àqueles considerados ‘diferentes’ ”. O campo
28
de investigação conhecido como Estudos Culturais concentra-se na análise da cultura,
compreendida em torno da significação social, estando, portanto, sensível a questões
que se situam na conexão entre cultura, significação, identidade e poder. Para SILVA
(2004, p. 134), as análises produzidas nesse grupo de estudos, “... parte da concepção
de que o mundo cultural e social torna-se, na interação social, naturalizado: sua origem
é esquecida. A tarefa da análise cultural, consiste em descontruir, em expor esse
processo de naturalização”. Nessa perspectiva, o currículo é concebido como um
campo de luta em torno da significação e da identidade.
Ao refletir sobre a escola rural, deve-se pensar a educação como uma questão
nacional Isso nos remete a uma análise simplificada do Plano Nacional de Educação
(P.N.E) no que se refere ao ensino no meio rural. O dispositivo legal estabelece que
escola rural requer um tratamento diferenciado, pois a oferta de ensino fundamental
precisa chegar a todos os recantos do País e a ampliação da oferta de quatro séries
regulares em substituição às classes isoladas unidocentes é meta a ser seguida,
consideradas as peculiaridades regionais e a sazonalidade (P.N.E, 2001, p.23). No
documento, destacam-se também os seguintes objetivos e metas:
15. Transformar progressivamente as escola unidocentes em escolas de mais
de um professor, levando em consideração as realidades e as necessidades
pedagógicas e de aprendizagem dos alunos.
16. Associar as classes isoladas unidocentes remanescentes a escolas de,
pelo menos, quatro séries.
17. Prover de transporte escolar as zonas rurais, quando necessário, com a
colaboração financeira da União, Estados e Municípios, de forma a garantir a
escolarização dos alunos e o acesso à escola por parte do professor.
(...)
25. Promover formas mais flexíveis de organização escolar para a zona rural,
bem como a adequada formação profissional dos professores, considerando a
especificidade do alunado e as exigências do meio. (P.N.E, 2001, p.26)
Algumas destas metas ou objetivos referentes ao ensino rural representam uma
tentativa de implementação de um modelo de educação e de escola, qual seja, uma
escola composta por mais de um professor/a e com formação adequada, em suas
especificidades, para o exercício profissional.
Dentre os estudos desenvolvidos sobre o Plano Nacional de Educação,
destacam-se os trabalhos de Campos. Em suas pesquisas, preocupa-se com a
29
diversidade cultural, identificando no texto do documento referências ao ensino no
meio rural. Esse autor observa que apenas um item do documento enfatiza como
objetivo: Organizar a educação básica no campo, de modo a preservar as escolas
rurais no meio rural e imbuídas dos valores rurais (P.N.E, 2001, p. 95). O presente
dispositivo preserva a cultura local e a história de seu povo; entretanto, no corpo do
documento, observa-se uma política de agrupamento de escolas do meio rural
contradizendo partes do documento.
Segundo CALDART (2002), as reflexões sobre a educação do campo
representam uma luta histórica pela constituição da educação como um direito
universal, de todos. Para a autora, ao discutir a ação educativa vinculada aos processos
de formação do povo do campo retoma-se o processo de humanização.
CALDART destaca a necessidade de políticas públicas que garantam o direito à
uma educação no e do campo. “No: o povo tem direito a ser educado no lugar onde
vive; Do: o povo tem direito a uma educação pensada desde o seu lugar e com a sua
participação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e sociais”
(CALDART, 2002, p. 26).
Nesta perspectiva, a partir do I Encontro Nacional de Educadoras e Educadores
da Reforma Agrária pode-se observar uma articulação para viabilizar políticas públicas
e projetos educativos para os povos do campo. Pode-se dizer, então, que uma das
conquistas no âmbito das políticas públicas deu-se com a aprovação das “Diretrizes
Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo” (Brasil, 2002).
A relevância e a necessidade de um projeto educacional político-pedagógico-
cultural, no Brasil vinculado a uma nova proposta de integração, evidenciam-se nas
discussões por uma educação no e do campo. Assim, além de reconhecer a existência
do campo como um meio cultural peculiar, considera-se fundamental reconhecer sua
realidade histórica e a de seu povo.
Neste contexto, o desafio do educador do povo do campo está em construir uma
pedagogia que articule as experiências da realidade local com a regional, uma
educação que assuma a identidade do meio rural. Parte deste desafio é constituída pela
diversidade de interpretações que podem suscitar das leituras de artigos da lei.
30
Esta situação permite que se reafirme a necessidade de uma proposta de ação
formativa reflexiva que aborde a apreensão dos textos legais e das propostas
curriculares pelos professores das escolas rurais. Semelhantemente, reafirma-se a
necessidade de pesquisas que tratem desta apreensão, focalizando o entendimento que
estes professores têm destes textos e destas propostas.
1.1 CURRÍCULO: UMA REFLEXÃO INTRODUTÓRIA
Uma teoria parece pressupor um objeto da realidade e surge para descobri-lo,
descrevê-lo, explicá-lo. Considerando que esse “objeto” se insere numa realidade
específica, na maioria das vezes, parece impossível desconsiderar a descrição
simbólica e lingüística presente no processo de sua descoberta. Parece relevante a
observação de que, ao explicar “objeto” de uma realidade, a teoria, de certo modo,
inventa-o. Nessa perspectiva a existência do objeto é inseparável da trama lingüística
que supostamente o descreve. Partindo destas considerações, SILVA (2004, p.11)
destaca que “um discurso sobre o currículo, mesmo que pretenda apenas descrevê-lo
‘tal como ele realmente é’, o que efetivamente faz é produzir uma noção particular de
currículo”.
Este autor entende que “o currículo é sempre o resultado de uma seleção: de um
universo mais amplo de conhecimentos e saberes seleciona-se aquela parte que vai
constituir, precisamente, o currículo” (SILVA, 2004, p.15). Assim, as teorias do
currículo decidem quais conhecimentos devem ser selecionados, buscando justificar a
necessidade desse conhecimento. A partir das relações que estabelecem sobre a
realidade e sobre seus sujeitos, deduzem o tipo de conhecimento a ser considerado.
Dessa forma, nenhuma teoria de currículo é neutra. Na medida em que procuram
justificar o que o currículo deve ser, as teorias de currículo não podem deixar de estar
envolvidas em questões de poder.
As teorias que se ocupam do currículo definem-se pelos conceitos que utilizam
para conceber a “realidade” e justificam-se na medida em que procuram compreender
o porquê do conhecimento selecionado. Dentre estas teorias, destaca-se a Teoria
Crítica do Currículo.
31
Um dos teóricos críticos que se preocupa com as formas pelas quais as escolas e
as práticas curriculares são organizadas é APPLE. Em seus estudos, destaca a
necessidade de reconceituar o campo curricular de modo a desvelar as tensões entre o
cultural e o econômico. Nessa perspectiva, busca entender as formas como as relações
de dominação e subordinação são construídas e contestadas nas instituições escolares.
Tais relações obedecem a uma dinâmica de funcionamento que nem sempre
pode ser facilmente observada. Para o autor, as escolas, entendidas como instituições
culturais e econômicas, refletem as mudanças na cultura e em sua legitimidade. Assim,
“o sistema educacional exatamente por causa de sua localização no interior de uma
trama mais ampla de relações sociais pode constituir um importante terreno no qual
ações significativas podem ser desenvolvidas” (APPLE, 1989, p. 27).
Nesta perspectiva, constata-se a necessidade de compreender o currículo numa
dinâmica social, mais ampla, observando que “a educação em geral, e a área do
currículo em particular, têm dedicado uma boa dose de energia à busca de uma coisa
específica: um conjunto geral de princípios que oriente o planejamento e a avaliação
educacional” (APPLE, 1989, p. 28). Esta busca tem em vista o importante papel que as
escolas e o currículo explícito e o currículo oculto
1
exercem no processo de
reprodução e de transformação de uma ordem social.
No que se refere ao currículo oculto, algumas suposições subjacentes a análises
anteriores, podem indicar que qualquer ação educacional produzida no interior da
escola representa um determinado modelo de socialização. Neste sentido, parece
relevante, ainda, a constatação de APPLE (1989, p.84) de que “ao focalizar as escolas
apenas como instituições reprodutivas, podemos deixar escapar a interação dinâmica
entre a educação e a economia e corremos o risco de reduzir a complexidade dessa
relação a uma mera paródia do que efetivamente existe ao nível de prática”.
1
Para Apple (1982), por trás de boa parte dessa discussão acerca do papel da educação formal nos
Estados Unidos durante o século XIX, encontra-se uma diversidade de interesses pela padronização
dos “ambientes” educacionais pelo ensino, através da interação escolar cotidiana, de valores morais,
normativos e de tendências e pela adequação ao sistema econômico. Hoje esses interesses recebem o
nome de “currículo oculto”, dado por Philip Jackson e outros.
32
Um ensino articulado com as situações específicas oriundas do local de
trabalho, do próprio e específico espaço físico da escola, descreve apenas de forma
parcial o que é experenciado neste local, em função da complexidade das
representações vivenciadas ao longo do tempo e nos diferentes espaços.
A cultura do trabalho, na opinião do autor, constitui uma área de ação na qual
atividades transformadoras podem ser produzidas. Assim, destaca-se a existência de
características, nos trabalhadores, vinculadas ao modelo econômico. Na perspectiva da
cultura do trabalho, a atividade dos professores pode ser direcionada para fins
educativos, possibilitando-lhes refletir acerca das restrições para o desenvolvimento do
trabalho educativo. Para esta atividade e no exercício dela, há a necessidade de
repensar continuamente os processos de elaboração de materiais curriculares e
estratégias de ensino viáveis que possam ser utilizadas de diferentes modos e em
diferentes contextos.
Para APPLE (1989, p.31), o “problema real não é apenas o de questionar a
realidade social das escolas para descobrir como as instituições estão relacionadas, e
como esses conjuntos de relações são constituídas, mas também onde há elementos
contraditórios, e, finalmente, onde esses elementos são parcialmente progressistas e
não reprodutivos”.
Para entender a ideologia em funcionamento nas escolas, faz-se necessário
olhar para os aspectos concretos da vida curricular e pedagógica. Dentre estes,
aspectos importantes são vistos nos materiais didáticos com os quais alunos e
professores interagem, sendo que o interesse maior está em focalizar a utilização do
material, não o conteúdo curricular. Isto porque observa-se uma grande escala de
materiais pré-empacotados, de modo que o planejamento é separado da execução. O
planejamento é feito ao nível de produção tanto das regras para o uso do material
quanto do próprio material. A execução é levada a efeito pelo professor ou professora.
Uma análise, mesmo que superficial, da prática escolar nos mostra que, ao
permitir a entrada na escola de materiais pré-planejados de ensino, os professores são
desqualificados e requalificados na medida em que se limitam a aplicar o material
33
segundo regras predefinidas. Na opinião do autor, “se tudo está pré-determinado, não
há mais nenhuma necessidade urgente de que haja interação entre os professores. Os
professores tornam-se indivíduos sem vínculos, divorciados tanto de seus colegas,
quanto da matéria real de seu trabalho” (APPLE, 1989, p. 162).
Outros elementos existentes no contexto escolar podem possibilitar um espaço
para que diferentes significados e práticas se desenvolvam no interior da própria forma
curricular. É na interação entre o conteúdo, a forma e a cultura vivida dos estudantes
que as subjetividades são formadas. Nenhum elemento dessa relação pode ser
ignorado. Assim, faz-se necessária uma leitura semiológica deste artefato cultural a
fim de extrair a estrutura de significações no interior do objeto que forneça um
parâmetro para suas possíveis leituras.
O questionamento do próprio conteúdo é importante não apenas para ver
quais ideologias são expressadas ou representadas no próprio material (a
própria noção de representação é uma noção complexa e difícil), mas
também para que possamos começar a decifrar tanto a forma sob a qual
qualquer conteúdo “é ele mesmo parte de um ativo processo de significação
através do qual o significado é produzido”, quanto compreender as possíveis
contradições dentro do próprio conteúdo, do próprio texto. (APPLE, 1989, p.
171)
Tendo em vista que o campo do currículo tem sido associado, tanto em suas
origens como em seu posterior desenvolvimento, às categorias de eficiência social,
visando a adaptação das novas gerações às transformações econômicas, sociais e
culturais, a fé na neutralidade do conhecimento ensinado, nos métodos e ações
constitui uma forma ideal para ajudar a legitimar as bases estruturais da desigualdade.
Articulada ao questionamento dos conteúdos, uma proposta de ação política e
educacional alternativa, de acordo com o autor, se desenvolve na elaboração de uma
proposta pedagógica e curricular clara a partir da articulação de diferentes atores
sociais, sendo portanto, um programa coletivo. Ocorre, neste processo, a reelaboração
de formas de conhecimento e de procedimentos.
34
1.2 UMA INTERPRETAÇÃO DO QUADRO RURAL-URBANO E DA ESCOLA
Para os cientistas sociais, as influências ambientais geográfica, social e
cultural explicam a maior parte das diferenças de comportamento ou socialização
entre grupos e indivíduos. No que se refere às diferenças rurais-urbanas, alguns
estudos afirmam que estas ocorrem ao longo de um continuum, e seus defensores
entendem que “as diferenças rurais-urbanas ocorrem em graus relativos numa
amplitude que se estende entre os dois extremos polares do rural e do urbano”
(BERTRAND, 1973, p.42). Este entendimento implica que as influências ambientais
correlacionam-se com as diferenças entre os grupos. As relações sociais produzidas
intra e extragrupo resulta nas especificidade culturais dos grupos, sejam esses urbanos
ou rurais.
No Parecer nº 36/2001, observa-se que “... o rural e o urbano constituem pólos
de um mesmo continumm, divergem quanto ao entendimento das relações que se
estabelecem entre os mesmos” (BRASIL, 2002).
Alguns dos sociólogos que se preocupam com os universos sociais rural e
urbano são Zimmerman, Sorokin e Galpin (1996). Na tentativa de delinear importantes
diferenças que sejam genéricas no espaço e relativamente constantes no tempo,
observam que “... a análise e o estabelecimento das variáveis diferenciais entre o
mundo rural e o mundo urbano é também absolutamente necessária para uma
explicação causal de várias outras diferenças entre o rural e o urbano” (GALPIN;
SOROKIN; ZIMMERMAN, 1986, p. 199). Destaque-se que essas diferenças tornam-
se perceptíveis em estágios mais avançados de desenvolvimento.
Na busca pela delimitação de termos, percebe-se a impossibilidade de
estabelecer de forma categórica as diferenças rurais-urbanas. Assim, sugerem
GALPIN; SOROKIN E ZIMMERMAN (1986, p.199) que “... a definição sociológica
dos universos do campo e da cidade não deve ser descrita em termos de uma
característica, seja esta tamanho da comunidade, densidade populacional,
nomenclatura administrativa, composição ocupacional da população ou outros
semelhantes”. Para a definição sociológica destes universos, faz-se necessária uma
35
combinação de traços típicos, na qual as diferenças fundamentais entre o mundo rural
e o mundo urbano podem se constituir a partir de uma composição de conceitos.
Dessa forma, o estudo produzido pelos autores citados permite identificar
algumas características diferencias, a saber: diferenças ocupacionais, diferenças
ambientais, diferenças no tamanho das comunidades, diferenças na densidade
populacional, diferenças na homogeneidade e na heterogeneidade das populações,
diferenças na diferenciação, estratificação e complexidade social, diferenças na
mobilidade social, diferenças na direção da migração e diferenças no sistema de
integração social.
Neste sentido a sociedade rural é composta principalmente por indivíduos
ativamente envolvidos em uma atividade agrícola. O caráter da ocupação agrícola faz
com que os agricultores trabalhem ao ar livre mais do que fazem os trabalhadores na
maioria das ocupações urbanas. O homem do campo percebe a proximidade da chuva,
da seca, das geadas prematuras que podem prejudicar a sua plantação. Desenvolve seu
trabalho, em associação com os elementos naturais, num contato íntimo com o solo.
Além disto, o caráter da atividade agrícola tem exigido que o agricultor more
próximo das terras cultivadas. Atualmente, para que uma família assegure através da
agricultura meios necessários à sua subsistência, é necessária uma grande extensão de
terras cultiváveis.
Uma diferença significativa entre a comunidade rural e a comunidade urbana
tem sido, na opinião de GALPIN; SOROKIN E ZIMMERMAN (1986, p. 203), “a
correlação negativa entre a densidade populacional e o caráter rural, e a relação
positiva entre a densidade e a urbanidade”. De uma maneira geral, a densidade
populacional de uma comunidade rural tende a ser mais baixa do que as comunidades
urbanas em função da natureza da ocupação agrícola.
Para os autores, outra diferença consiste no fato de que “a população da
comunidade rural tende a ser mais homogênea em suas características psico-sociais do
que a população das comunidades urbanas. Por homogeneidade entende-se
similaridade de características psico-sociais adquiridas, tais como linguagem, crenças,
36
opiniões, tradições, padrões de comportamento” (1986, p. 204). O ambiente urbano,
por sua vez, propicia outro modelo de integração entre seus habitantes em função da
variedade de elementos culturais, que formam a diversidade de grupos sociais.
Ademais, o corpo social urbano compõem-se de partes mais numerosas e
dessemelhantes, com funções diversificadas, e sua estrutura é muito mais diferenciada
do que o corpo e a estrutura de uma sociedade rural. Numa comunidade rural,
dificilmente tem havido multimilionários. Para os autores, “se a base da pirâmide
econômica nos aglomerados rurais tem sido freqüentemente tão baixa quanto a base
nos aglomerados urbanos, seu topo nunca se aproximou, mesmo remotamente, das
camadas superiores da pirâmide econômica das cidades” (1986, p. 205).
Outra diferença é que a população urbana apresenta uma maior mobilidade do
que a população rural. A mobilidade se manifesta nos deslocamentos de lugares e de
ocupações, de posições sociais. A classe urbana, comparada com a rural, apresenta em
seu interior uma dinâmica que possibilita identificar uma maior mobilidade territorial.
Uma evidência constatada pelos autores é de que “as populações urbanas possuem
proporções muito mais altas de pessoas nascidas fora da cidade ou da comunidade, e
proporções muito mais baixas de pessoas nascidas na própria cidade ou comunidade
do que as comunidades rurais” (1986, p. 209). Assim, a proporção daqueles que,
nascidos na cidade, nela permanecem é menor na população total da cidade do que em
um grupo similar na população rural.
Uma outra evidência relativa à menor mobilidade territorial surge da natureza
do trabalho das populações rurais em comparação com as urbanas. A terra não pode
ser movida ou levada para um novo local. Enquanto os agricultores permanecerem
agricultores, não podem se mudar facilmente de uma região a outra ou de uma terra a
outra, porque muito tempo e trabalho são necessários para preparar uma nova terra,
para torná-la produtiva e para aprender a conduzi-la com êxito.
Desta forma, pode-se, ainda, admitir como hipótese devido à pouca mobilidade
territorial que, a população rural permanece mais tempo numa mesma atividade
agrícola ou, em média, muda de emprego menos freqüentemente do que a população
37
urbana. Assim, acredita-se que a mobilidade ocupacional pode estar relacionada à
natureza das ocupações e aos incentivos dados para o seu desenvolvimento.
Uma outra diferença estudada pelos autores supracitados refere-se ao sistema de
relações dos membros de ambas as comunidades. A população urbana apresenta uma
dinâmica mais intensa do que a do campo, não apenas pela mobilidade social mas
também pela presença de um sistema de interação complexo que agrega relações
impessoais e, em menor escala, relações pessoais. O sistema de interação rural por sua
vez,
... é menos diversificado externamente e tem um número menor de padrões,
empregados para várias classes de pessoas. Mas é mais individualizado em
relação aos vários indivíduos. Ele é mais carregado de uma inseparável
atitude emocional, trazida à tona pelas peculiaridades do indivíduo em
interação. Ele vai além da ‘roupagem social’ de um homem e se aproxima do
seu coração, alma ou personalidade” (GALPIN; SOROKIN;
ZIMMERMAN, 1986, p. 224).
Outra diferença, aparentemente constante, na opinião dos autores, tem sido a
direção da migração rural-urbana da população. A cidade prevalece como direção da
migração, o que possibilita a percepção de que a migração populacional é
unidirecional. O fenômeno da migração rural-urbano do ponto de vista econômico
corresponde ao processo de mobilidade setorial de mão-de-obra, motivada pela
diminuição dos preços de produtos primários no mercado mundial.
Uma interpretação do quadro rural-urbano no Brasil, a partir dos estudos de
WHITAKER; ANTUNIASSI (1993, p.10), vem demonstrando que “o avanço da
agroindústria unifica o rural e o urbano, não sem antes desintegrá-los (no caso
brasileiro)”. Tal afirmação decorre da constatação de uma resistência em manter, no
espaço considerado rural, o rural tradicional. As novas condições de campo criadas
pela dinâmica capitalista, em algumas regiões do Brasil, determinam modos
“racionais” de administração e de produção. Esses estudos possibilitam a compreensão
de que o espaço sofre freqüentes transformações devido a uma política agrícola em
desenvolvimento. A presença das agroindústrias nos espaços rurais favorece uma nova
percepção de campo.
38
Os reflexos desse novo quadro podem ser verificados na organização dos
sistemas de ensino localizados no meio rural. Em decorrência do convívio que tive
com os espaços rurais e com as escolas rurais, pude observar a existência de dois
distintos espaços: o rural-urbano e o rural tradicional. A forma de organização escolar,
aliada à percepção das professoras sobre o meio rural, aponta para a existência desses
espaços. Uma evidência pode se constituir a partir da percepção de que espaços e
tempos podem ser percebidos de modos distintos.
A escola, segundo WHITAKER; ANTUNIASSI (1993, p.13), caracteriza-se
fundamentalmente como “urbanocêntrica, sociocêntrica e etnocêntrica”. Tal
classificação deve-se ao fato de a escola estar:
- voltada unicamente aos conteúdos formados e informados no processo de
urbanização;
- voltada para os interesses de certas classes sociais;
- privilegiando conhecimentos relativos ao mundo ocidental a chamada
nacionalidade do capitalismo atrelado ao avanço científico e tecnológico.
Longe de esgotar as demais possibilidades de classificação, a escola inserida
num quadro que unifica o rural e o urbano necessita ensinar os conteúdos universais.
No entanto, o problema é que “a nossa escola não cria condições para estabelecer a
ponte entre esses conteúdos e aqueles que são considerados ‘menores’, mas existem
em maior quantidade na sociedade brasileira” (WHITAKER; ANTUNIASSI, 1993,
p.13). Constata-se, assim, a necessidade de propostas curriculares que considerem um
conjunto de práticas culturais diversificadas.
No que tem de essencial, a pesquisa das autoras supracitadas pode, a meu ver,
indicar uma possibilidade de se abordar as questões relativas aos conteúdos
curriculares, não na visão dualista do mundo, mas numa razão dialética, que percebe
os fenômenos de forma totalizadora sem perder de vista as singularidades.
Para as autoras, se partimos da realidade de um rural-urbano unificado pelo
industrialismo, “os conteúdos considerados como típicos da cultura dita ‘urbana’ são
39
portanto necessários e o serão cada vez mais, quer as crianças vão para a cidade, quer
elas permaneçam no campo” (WHITAKER; ANTUNIASSI, 1993, p.15). Tal
percepção revela que, para acompanhar a evolução industrial, algumas competências
devem ser desenvolvidas nos alfabetizandos de forma consciente e política
principalmente no que se refere ao conhecimento e reconhecimento de cálculos
aritméticos.
Os modos de produção e exploração, instaurados com o processo de
agroindustrialização, têm dificultado a permanência das crianças nas escolas. A
motivação precoce ao trabalho, como uma possibilidade de melhoria das condições de
vida e aliada à emergência em compreender conteúdos dissociados do contexto sócio-
econômico, pode sugerir indícios da freqüência irregular à escola. Na opinião das
autoras, “o trabalho infantil é uma questão que não está ao alcance da escola resolver,
mas ela pode desenvolver estratégias para se adaptar às circunstâncias de sua clientela,
se conhecer as determinações de seu modo de agir como grupo” (WHITAKER;
ANTUNIASSI, 1993, p.17). Para atender às condições impostas pela nova estrutura
econômico-social provocada pela industrialização, faz-se necessário repensar o espaço
escolar no meio rural e seus sujeitos como sujeitos de direito.
Se, por um lado, a unificação rural-urbano, no que se refere à escolarização,
pode acarretar avanços no tratamento dos conteúdos curriculares, por outro lado, pode
implicar o desrespeito ao tempo próprio da criança, na medida em que se admite a
homogeneidade dos espaços culturais. Acredito que a criança inserida num quadro que
unifica o rural-urbano necessita adaptar-se a diferentes espaços e tempos. Dessa forma,
uma dificuldade que julgo ser inerente a esse processo de adaptação é a assimilação da
realidade, num espaço de tempo predeterminado. Observar a diversidade cultural
presente no interior da escola do meio rural torna-se relevante para o desenvolvimento
de propostas pedagógicas que contemplem a totalidade de espaços.
40
Nos espaços rurais, a presença de escolas multisseriadas têm diminuído, com o
passar do tempo, em função de uma política de agrupamento
2
. A lógica do
agrupamento ou nuclearização de escolas visa a otimização de recursos humanos e ma-
teriais. A política de agrupar escolas no meio rural, segundo WHITAKER;
ANTUNIASSI tem aspectos positivos e negativos. Na opinião das pesquisadoras,
“agrupar as escolas eliminando a mutisserialidade significa institucionalizar a
educação escolar, fornecendo a professores e seus alunos uma sociabilidade mais
elevada e a base administrativa necessárias ao bom desempenho da escola”
(WHITAKER; ANTUNIASSI, 1993, p.19). Como todo processo sociologicamente
determinado apresenta contradições deve-se reconhecer as desvantagens do
agrupamento de escolas. Na opinião das autoras, “fechar as escolas sem a certeza de
que estejam sendo adequadamente substituídas é eliminar do horizonte das pessoas um
símbolo importante, único foco da cultura institucionalizada a transmitir-lhes um
pouco de esperança” (WHITAKER; ANTUNIASSI, 1993, p.21).
Para dinamizar o ensino no meio rural, as pesquisadoras sugerem que as escolas
“sejam encarregadas de construir o seu currículo a partir das especificidades do meio,
estabelecendo uma ponte sólida entre a cultura da criança e a cultura escolar”
(WHITAKER; ANTUNIASSI, 1993, p.28). É em relação a esse universo cultural
cheio de fragmentos culturais que a escola deve ser pensada como espaço de produção
de conhecimentos.
Ademais, a escola, inserida em diferentes espaços, apresenta características que,
somadas, possibilitam identificar a existência de uma dinâmica cultural própria.
Conhecer e reconhecer essas características torna-se uma necessidade emergente se o
que se pretende é valorizar a diversidade em sua totalidade.
2
Na minha opinião, a política de agrupamento caracteriza-se como um modelo de gerenciamento, na
medida em que há uma lógica de minimização de custos.
41
1.3 UMA ESCOLA DO CAMPO EM MOVIMENTO
Prefaciando a Por uma educação básica do campo de KOLLING, MOLINA E
NÉRY (1999), Miguel Arroyo destaca a necessidade de garantir os direitos dos povos
do campo
3
à educação e à escola do campo. Nessa perspectiva, produz uma reflexão
sobre a política educacional brasileira e o sentimento desta sobre a educação.
Para ARROYO, algumas frases presentes nos documentos oficiais enfatizam a
idéia de uma proposta de “modelo de educação adaptável aos especiais, aos diferentes:
indígenas, camponeses, meninos de rua, portadores de deficiência e outros”
(KOLLING; MOLINA; NÉRY, 1999, p.7). A partir desta observação, o autor propõe
reflexões sobre o modelo de educação adaptável, sendo um dos pontos relevantes de
sua discussão o seguinte questionamento: a quem interessa a proposição deste modelo?
A I Conferência Nacional ‘Por uma educação básica do campo’ possibilitou
reflexões referentes às especificidades do campo no contexto educacional brasileiro.
No interior das discussões, indicou-se o interesse em compreender, “... o contexto do
campo em termos de sua cultura específica quanto à maneira de ver e de se relacionar
com o tempo, o espaço, o meio ambiente e quanto ao modo de viver, de organizar
família e trabalho” (KOLLING; MOLINA; NÉRY, 1999, p.14). Num consenso
aparentemente unânime, as reflexões apontaram para a necessidade de um projeto de
desenvolvimento para o campo como uma tentativa de avançar nos debates das
políticas educacionais.
Nesta Conferência, considerando que o campo, na maioria das vezes, apresenta
reflexos de um modelo social, político e econômico que parece estar condicionado a
componentes de desenvolvimento externo e buscando compreender a lógica funcional
das políticas educacionais, apontou-se para a relevância de averiguar “qual educação
está sendo oferecida ao meio rural e que concepção de educação está presente nessa
oferta” (KOLLING; MOLINA; NÉRY, 1999, p. 23).
3
“Povos do campo é o nome afirmado pela Conferência Nacional de 1998 para dar conta das
diferenças históricas e culturais dos grupos sociais que vivem no e do campo”. (Caldart, 2000, p. 71)
42
Assim, um dos propósitos dos grupos de discussão sobre a educação do campo
é construir um debate permanente e articulado aos ideais dos trabalhadores do campo.
Nessa proposta de discussão, argumenta-se em favor de uma educação que atenda às
especificidades locais, pensada a partir dos que vivem no e do campo, entendendo que
o significado do termo ‘campo’ remete ao “... pluralismo das idéias e das concepções
pedagógicas: diz respeito à identidade dos grupos formadores da sociedade brasileira”
(KOLLING; MOLINA; NERY, 1999, p. 29). Uma escola do campo deve estar
vinculada à cultura que se produz por meio de relações sociais mediadas pelo trabalho
na terra.
Essas discussões e reflexões se opõem ao fato de que as escolas do meio rural
aparecem, na maioria das vezes, apenas como dados numéricos nos documentos
oficiais sobre educação no Brasil. Na educação brasileira, há um modelo de
desenvolvimento instituído num contexto de relações sociais: um modelo excludente e
desigual, no qual as relações se estabelecem numa atividade vertical de comunicação.
Neste contexto, parece que as escolas rurais são resíduos do sistema educacional
brasileiro.
Neste sentido é interessante observar uma passagem do documento do Plano
Decenal de Educação para Todos (1993, p. 22) no qual se afirma o seguinte:
É elevada a heterogeneidade das condições de oferta entre as várias regiões e
dentro das regiões, entre redes estadual e municipal e entre as escolas
urbanas e rurais. Uma parte considerável de estudantes, especialmente na
zona rural, é atendida em escolas que não oferecem as oito séries do
primeiro grau. Cerca de 4,6 milhões de alunos estudam em escolas que
funcionam com três e quatro turnos, em jornadas escolares reduzidas,
recebendo, portanto, insuficiente atenção pedagógica.
Há cerca de 180 mil escolas que não contam com os equipamentos e
materiais mínimos para efetivação do ensino; essas escolas atendem apenas a
25% do total de alunos e situam-se, em sua maioria, na zona rural. (...)
(MEC, 1993)
Percebe-se, neste documento, a necessidade de um discurso diferenciado, que
enfatize as reivindicações de trabalhadores rurais, em especial daqueles que não
tiveram oportunidade, ao longo de suas vidas, para se dedicarem aos estudos. Na
perspectiva deste documento, a educação do campo é vista como fator de cidadania na
43
medida em que o discurso proferido por dezenas de trabalhadores rurais sugerem
mudanças no sistema educacional brasileiro.
Observa-se, também uma aparente preocupação dos órgãos públicos com o
trabalho pedagógico voltado às classes multisseriadas (várias séries em uma única
classe). Mas a diversidade brasileira associada a características regionais não
possibilita uma generalização do trabalho pedagógico produzido nessas classes.
Considera-se, portanto, fundamental possibilitar o acesso ao conhecimento na
diversidade de espaços e contextos. Nessa perspectiva, tornam-se relevantes as
palavras de Nascimento (2003, p.3): “... a educação não formal faz parte do cotidiano,
do fazer educação do campo, a partir das experiências alternativas de caráter popular
de resistência e recriação da cultura do campo”.
Por outro lado, o modelo de representação de escola, nos processos formativos
(especialmente na formação inicial), na sua grande maioria, inspira-se em ideários
urbanos. Assim, os encaminhamentos de estágios de ensino na formação inicial, cuja
característica principal consiste em observar padrões de comportamentos de alunos e
professor, estão voltados para a sala de aula convencional. Considerando a formação
como um processo contínuo e necessário para o aprimoramento das habilidades
humanas, o processo formativo deveria possibilitar a discussão da diversidade de
espaços e contextos nos quais se promovem atividades de ensino e aprendizagem.
Uma breve reflexão sobre o processo inicial das atividades pedagógicas, no
meio rural, a partir de conversas informais, com agricultores da região, (ANEXO I),
possibilitou a compreensão da importância dos professores para as comunidades
rurais. Segundo uma das agricultoras, a algum tempo atrás, “a professora aprendia a
ser professora na escola rural”. Observa-se, no relato da agricultora, um ritual de
iniciação; ou seja, a professora, ao ser aprovada em concurso público,
“obrigatoriamente” deveria cumprir seu estágio probatório em escolas rurais, mesmo
morando na cidade. Relata, também, que nunca conseguiu entender como uma
professora que não suportava o cheiro da terra poderia ensinar a alunos de uma escola
rural.
44
Ademais, Argentina Martins da Silva e Marilda Dias da Silva (1998, p.76)
afirmam que “... com o advento da nova Lei de Diretrizes e Bases, Lei nº 9394/96, os
municípios têm o compromisso de aplicar recursos para mudar a atual realidade da
Educação e, embora não existam soluções mágicas, acredita-se no potencial criativo de
educadores e dirigentes”. Assim, a preocupação em democratizar a educação articula-
se com a capacidade do educador em construir estratégias de ensino vinculadas a uma
realidade sociocultural específica. Acredita-se que o conhecimento fundamentado em
valores humanos possibilita tal manifestação criativa, na educação.
Entretanto, a realidade educacional brasileira apresenta-se carente de dados e
análises sobre temas que abordem a educação básica no meio rural. Embora
recentemente alguns grupos de pesquisas tenham aprofundado o debate sobre as
questões do campo, os resultados continuam restritos às comunidades de pesquisa.
Ademais, como apontam as pesquisadoras Maria Nobre Damasceno e Bernardete
Beserra, da Universidade Federal do Ceará, “o desinteresse pela educação rural e
consequentemente pela pesquisa nessa área do conhecimento também reflete,
obviamente, o limite da pressão dos movimentos sociais rurais sobre o poder público.
... A percentagem média de produção de dissertações e teses cai de 2,1%, na década
de 1980, para 0,9% na década de 1990, o que revela o crescente desinteresse por esta
área de estudo” (DAMASCENO; BESERRA, 2004, p.78).
Alguns dos quadros da educação brasileira retratam as diferenças sociais e
culturais do povo brasileiro decorrentes do esquecimento dos órgãos públicos. As
distorções sociais se evidenciam com o fechamento de escolas em locais isolados.
Paralelamente a isso, há um movimento crescente em defesa da escola pública e
gratuita no meio rural. A comunidade rural luta pela escola; seus membros unem-se
num único propósito: a garantia de acesso a e permanência das crianças e jovens na
educação no e do campo.
Algumas das observações oriundas da presente pesquisa possibilitam revelar
quadros, até então, não divulgados em relatórios oficiais: há professoras frustradas por
não serem lembradas e convocadas para a socialização de conhecimentos em
encontros e eventos que discutam as questões do campo; há professoras que lutam pela
45
escola no e do campo; há professoras que constroem a história da escola rural; há
professoras que apresentam dificuldades para interpretar o currículo instituído na
escola rural.
As desigualdades no meio rural acentuam-se na medida em que a existência da
escola está subordinada à quantidade de alunos matriculados. Pergunta-se, então: como
manter a qualidade de ensino no meio rural? Garantir as escolas com uma infra-
estrutura adequada, com professores permanentes e com os alunos da comunidade
pode ser o primeiro passo para se democratizar o acesso à educação. Mas por que à
garantia de acesso haveria de estar subordinada a quantidade de alunos matriculados?
Talvez porque exista uma lógica de minimização de custos em funcionamento,
favorecendo a algumas categorias sociais. Pode-se falar, então, da existência de uma
escola rural?
Percebe-se a existência de uma lógica social que busca “atender” às
necessidades do homem do campo, objetivando lá fixá-lo e evitando-se, assim, a
sobrecarga na área urbana. Acredito que, no entanto, não cabe a um ou mais homens
predefinir o rumo de outros homens. A liberdade de ir e vir deve existir sempre que as
condições de sobrevivência humana estiverem comprometidas.
Observa-se nas conversas com os agricultores a preocupação com o futuro da
terra em função da não existência de uma política agrícola igualitária. Os jovens do
campo sofrem as conseqüências dessa política na medida em que a liberação de
recursos está condicionada à garantia da terra. Neste sentido, a escola para as
comunidades rurais representa um espaço de luta, no qual as relações de amizade e
comprometimento social e humano se desenvolvem.
Alguns projetos têm nascido das lutas pela manutenção das escolas no meio
rural. Dentre estes projetos, destaca-se o Projeto das Escolas Comunitárias Rurais, com
uma proposta educacional que parte da realidade rural e para ela se volta. Segundo da
SILVA (1980, p.80), “o ponto de partida seria o respeito ao cotidiano e à história da
comunidade”. Experiências semelhantes a estas são as Casas Familiares Rurais, cuja
finalidade é “oferecer aos jovens do meio rural uma formação integral, adequada a sua
realidade, que lhes permita atuarem, no futuro, como um profissional no meio rural,
46
além de os tornarem homens e mulheres em condições de exercerem a cidadania em
sua plenitude” (SILVA, 1998, p. 82).
Para PORTO (1994), os planos e projetos referentes à educação rural, no Brasil,
são influenciados, por duas vertentes, a culturalista e a economicista. Em seus estudos,
constata que:
... em relação ao meio rural, mesmo quando idealiza, o culturalismo atribui-
lhe caráter conservador (portanto “atrasado”, isto é, ainda não submetida à
influência da industrialização), devendo receber especial atenção para que se
integre ao projeto de desenvolvimento do país e aufira os benefícios dele
decorrentes. (...) Por sua vez, a vertente economicista prega a necessidade de
um planejamento global de mudanças econômicas e sociais, através do qual
a modernização do campo passa a ser essencial para sua evolução. (PORTO,
1994, p. 118)
As tendências descritas pela autora, cada qual com um propósito definido, se
assemelham mais do que se diferenciam. Considera-se como um fator de semelhança a
forma de perceber os meios: ambas as tendências destacam a superioridade do meio
urbano sobre o meio rural.
A vertente economicista considera necessário que haja mudanças no plano de
ação econômico e social das sociedades. Na perspectiva de ação almejada, discute-se
uma modernização para o campo a partir da utilização de técnicas agrícolas eficientes
e modernas. Questiona-se, assim, a manutenção de uma agricultura de subsistência.
Assim, de acordo com a autora, descrevem-se as propostas de ação que:
(...) propõem medidas, entre as quais as relativas ao processo de
escolarização, especialmente a fundamental, que adaptem a escola rural às
suas necessidades, tais como: formação adequada do professor, utilização de
meios audiovisuais e instrumentos de difusão rápida a grande distância,
atendimento ao escolar, mudanças em currículos, programas, horário e
calendário de acordo com as necessidades sócio-econômicas da região,
ensino profissionalizante posterior ao primário e incentivos empregatícios e
culturais. (PORTO, 1994, p. 119)
No que se refere à constituição histórica destes projetos educacionais voltados
para comunidades rurais, convém observar que, segundo RICCI (1999, p.3), “... no
final dos anos 30, com a criação do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais), inaugura-se uma preocupação com a formação de currículos que
47
estimule hábitos sociais”. Um objetivo implícito nesta forma de operacionalizar
currículos é a definição de hábitos sociais ou de socialização de informações.
Uma experiência alternativa de escola surge na metade dos anos 80, a qual
recebeu o nome de Escola Família Agrícola, passando a ser a principal referência na
constituição do movimento ‘Por uma educação básica do campo’. Esta escola,
diferencia-se das escolas formais na organização e no planejamento de ações
educativas. Segundo RICCI (1999, p.7), “as EFAs utilizam planos de estudo
(elaborados em conjunto), cadernos de realidade (cadernetas de campo), visitas de
estudo, visitas às famílias e empreendimentos profissionais e projeto profissional
jovem”.
Os movimentos camponeses mobilizam-se com as escolas e com seus
formadores, buscando o desenvolvimento da educação brasileira em sua totalidade.
Esses movimentos “... foram descobrindo, aos poucos, que as escolas tradicionais não
têm lugar para sujeitos como os sem-terras, assim como não costumam ter lugar para
outros sujeitos do campo, ou porque sua estrutura formal não permite o seu ingresso,
ou porque sua pedagogia desrespeita, desconhece sua realidade, seus saberes, sua
forma de aprender e ensinar”. (CALDART, 2000, p.47)
No contexto da presente pesquisa, observa-se a resistência cultural e política da
comunidade rural e das professoras da escola em diferentes tentativas de justificar a
necessidade da escola no meio rural. Essa forma de atuação da comunidade e de suas
professoras reflete os traços de uma identidade em construção, a qual dignifica a
educação do campo e para o campo. Além disto, este tal fato se evidencia na tentativa
de construção de sentido para o currículo: nas demonstrações de dúvidas sobre o
currículo, sobre o conteúdo curricular e sobre a forma de participação na construção
curricular.
A conversa com uma das professoras, sujeito desta pesquisa, alertou-me para a
necessidade de conhecer as circunstâncias históricas das comunidades rurais. Destaca
essa professora que seus avós são oriundos de um espaço de resistência. Logo,
destaca-se a importância em desenvolver um trabalho de resgate dessa cultura em
conjunto com os seus descendentes e com aqueles que viveram e conviveram nesses
48
espaços. Portanto, há uma diversidade de situações presentes no contexto específico
que, nem sempre, são explícitas ou descritas no currículo escolar oficial.
Nos debates e encontros sobre a educação do campo reafirma-se a luta por
políticas públicas específicas para o campo e a necessidade de projetos educativos para
seus sujeitos. Um desafio evidenciado nos processos de discussão refere-se à
necessidade de clareza teórica e à compreensão da teoria no modelo de prática
pedagógica vigente. Segundo CALDART (2004, p.1), “este desafio exige um
permanente retorno a uma questão de origem: o que é mesmo a Educação do Campo e
quais são os fundamentos principais?”.
É possível pensar a educação do campo a partir de um trabalho articulado com
todos os sujeitos que vivem no e do campo. Aprende-se, assim, a elaborar um projeto
educativo com um olhar direcionado para a diversidade humana. Refletir a educação
com uma concepção de campo significa assumir uma visão de totalidade dos processos
sociais.
Um projeto de educação do campo é possível na medida em que se respeita a
diversidade dos povos do campo. Afirma-se, assim, a importância de uma proposta
emancipatória, que contemple um pensamento pedagógico coerente com os aspectos
sociais, culturais e históricos. Desta forma, as pessoas do campo, tornam-se autoras de
um projeto educativo, aprendendo a pensar relações entre os sujeitos da comunidade
local e os sujeitos de outras localidades.
A educação do campo, para CALDART (2004, p.5), “se afirma no combate aos
‘pacotes’ (tanto agrícolas como educacionais) e à tentativa de fazer das pessoas que
vivem no campo instrumento de implantação de modelos que as ignoram ou
escravizam. Também se contrapõe à visão de educação como preparação de mão-de-
obra e a serviço do mercado”. A autora também alerta para o fato de que no campo
existe um conjunto de práticas inovadoras que emergem do seu povo e das
características culturais da região.
Descobre-se, no decorrer de suas reflexões, que não há como predefinir um
modelo de escola que atenda a grupos específicos, com auto-regulação. Ao pensar a
escola, deve-se compreender a estrutura maior à qual se vincula, ou seja, a política de
49
organização e gerenciamento. Enquanto direito constitucional, “é a escola que deve
ajustar-se, em sua forma e conteúdos, aos sujeitos que dela necessitam; é a escola que
deve ir ao encontro dos educandos e não o contrário” (CALDART, 2000, p.47).
Percebe-se a necessidade da existência das escolas no campo, mas um campo
no qual haja possibilidades para o desenvolvimento social, econômico e cultural.
Portanto, deve-se pensar um projeto de desenvolvimento vinculado às necessidades
locais e articulado com um projeto de educação visando a expansão da educação para
todos e em todos os tempos e espaços.
Universalizar o acesso à educação e promover a eqüidade deve tornar-se um
compromisso efetivo e não apenas um registro esquecido. Neste sentido, são
fundamentais as observações dos grupos de pesquisa em educação do campo,
alertando para o fato de que:
... nem se tem satisfatoriamente atendido ao direito à educação básica no
campo (muito longe disso) e nem se tem delineada, senão de modo parcial e
fragmentado, mediante algumas experiências alternativas pontuais, o que
seria uma proposta de educação básica que assumisse, de fato, a identidade
do meio rural, não só como forma cultural diferenciada, mas principalmente
como ajuda efetiva no contexto específico de um novo projeto de
desenvolvimento do campo. E isso tanto em relação a políticas públicas
como em relação a princípios, concepções e métodos pedagógicos.
(KOLLING; MOLINA; NÉRY, 1999, p. 29)
Ao se enfatizar a universalização da educação, torna-se importante, também,
destacar a necessidade de um sistema de acesso efetivamente público. Ao se constituir
a educação como direito de todos, torna-se relevante conceber esse direito em sua
totalidade, ou seja, o direito de cada pessoa, tendo em vista o seu desenvolvimento
mais pleno. Deve-se compreender, portanto, que o direito universal à educação não se
restringe à garantia da seguridade das crianças às escolas, mas oportuniza uma
reflexão sobre quem são os sujeitos de direito dessa educação.
50
2 A RELAÇÃO EDUCAÇÃO-CULTURA
Neste capítulo, busca-se apresentar, inicialmente, a concepção de cultura na
qual se fundamentam os estudos da Etnomatemática. Em seguida, considerando a
perspectiva da cultura adotada, são apresentados estudos que se dedicam a pensar o
ensino da matemática em relação a ambientes culturais diversificados e em relação à
cultura da sala de aula.
2.1 A ABORDAGEM CULTURAL
Na busca por uma teoria de Cultura, D’AMBROSIO (1986) estabelece o
conceito de cultura a partir da análise de uma dinâmica de comportamento num
processo contínuo de desenvolvimento. O autor constrói sua argumentação baseada
numa hierarquia comportamental que parte do comportamento individual, passa pelo
comportamento social, que se complexifica, gerando o comportamento cultural.
O comportamento individual contém as estratégias de ação e organização
inseridas num contexto onde se dá a interação de um programa genético com o
ambiente. A partir da incorporação de elementos externos, o indivíduo modifica suas
estruturas internas, passando de um comportamento individual, egocêntrico, para um
comportamento social na medida em que reflete sobre as ações incorporadas. As ações
transformam a realidade através do acréscimo, a essa realidade, de fatos artefatos e
“mentefatos”, isto é, idéias de valores, ideologias, filosofias, entre outras. Essa
modificação contínua da realidade pela ação do indivíduo gera uma nova reflexão, um
novo comportamento e, portanto, uma nova ação, com imediata mudança na realidade
pelo acréscimo de novos fatos. É nesse ciclo realidade-reflexão-ação-realidade que
reside a busca pelo conceito de cultura.
Para o autor (1986, p.49), a aprendizagem “é uma relação dialética reflexão-
ação, cujo resultado é um permanente modificar da realidade.” Nesse modelo de
funcionamento, o comportamento individual se transforma em social na medida em
51
que o indivíduo socializa suas experiências e aperfeiçoa suas ações. O indivíduo
aprimora sua capacidade de reflexão ao perceber que para toda ação dirigida, existe
uma reação refletida. A tomada de consciência dessas ações manifesta-se num modelo
de ação.
O indivíduo cria modelos de ação que lhe permitem socializar conhecimentos.
Tais modelos se organizam a partir de modelos prévios e compartilham características
de diferentes grupos sociais. No processo de aprendizagem é importante que seja
respeitada essa dinâmica comportamental para que o indivíduo promova ações,
adequando-as nos diferentes contextos. Numa fase socializável, os modelos são uma
estratégia para ação. O ambiente deve possibilitar ao indivíduo reconhecer e conhecer
modelos, favorecendo a criação de seus próprios modelos.
O comportamento cultural compreende um conjunto de informações
acumuladas e compartilhadas por diferentes grupos em diferentes contextos. O
indivíduo modela estratégias de ação, representando-as através de seu pensamento,
demonstrando sua maneira própria de conceber uma realidade. A dinâmica do
comportamento individual, realidade-reflexão-ação-realidade, parece ser adaptável à
explicação de modelo cultural na medida em que a reflexão exercida por um grupo
socialmente identificável assume as características de seus componentes. Para
D’AMBRÓSIO (1986, p.53), “o impacto da realidade sobre a sociedade se dá através
de motivadores extremamente complexos, cuja natureza ainda não conhecemos
adequadamente (...) também pouco esclarecida é a maneira como as sociedades
desenvolvem estratégias de ação”.
A atividade humana manifesta formas de conceber a realidade que são
evidenciadas por uma prática social. Na busca pela interpretação da realidade, o
indivíduo elabora modelos de ação fazendo uso de conceitos e teorias. Nesse processo
dinâmico de interação entre a realidade e os sujeitos dessa realidade, elaboram-se
conhecimentos que se refletem em saberes e fazeres. As ações manifestadas nessa
realidade caracterizam uma cultura. Sistemas de explicações revelam uma dinâmica
de organização social que se formaliza através do conhecimento. Nessa perspectiva de
52
estudos, a cultura representa o conjunto de valores, de comportamentos e de estruturas
de conhecimentos compartilhados entre indivíduos de uma sociedade.
2.2 A ABORDAGEM EDUCACIONAL
Objetiva-se, neste tópico, descrever, de forma sumária e crítica, as principais
questões que as pesquisas sobre educação e cultura vêm enfatizando.
Partindo de uma análise superficial desses trabalhos e não de toda sua
produção desenvolvidos no Brasil, apresentarei duas linhas de estudo que podem ser
delimitadas a partir da maneira como os autores enfatizam aspectos da educação
matemática, a saber: a) o ensino da matemática em ambientes culturais diversificados
e b) a educação matemática e a cultura da sala de aula.
a) O ensino da matemática em ambientes culturais diversificados.
Um dos principais estudiosos a se preocupar com o problema do
conhecimento e, especial, do conhecimento matemático é Ubiratan D’Ambrósio. Sua
busca contínua em compreender a história do conhecimento científico e sua
preocupação com o desenvolvimento humano o levam a conceituar a educação como
uma “estratégia da sociedade para facilitar que cada indivíduo atinja o seu potencial e
para estimular cada indivíduo a colaborar com outros em ações comuns na busca do
bem comum” (D’AMBROSIO, 1996, p. 68.). Além desta busca pelo bem comum,
segundo D’ÁMBRÓSIO, na cultura ocidental, de uma maneira geral, utilizam-se
mecanismos que privilegiam um saber/fazer padronizado, eficiente como estratégia
para um sistema que busca manter uma mesma identidade sócio-cultural.
Parece relevante, ainda, a constatação deste autor de que a educação deve
conduzir o indivíduo a estabelecer uma visão crítica do presente com base em
instrumentos de orientação, disponíveis no sistema social vigente. Tendo em vista a
função da educação, o autor destaca a necessidade de reconhecimento das relações
produzidas entre indivíduos de uma mesma cultura (intraculturais) e entre indivíduos
53
de culturas distintas (interculturais), considerando-se a geração dos modelos de
sistemas explicativos elaborados no interior dessas relações.
Na opinião do autor, deve-se considerar o caráter holístico da educação. Assim,
um dos grandes desafios das estruturas pedagógicas, segundo D’AMBRÓSIO (2001,
p.82), está em “reconhecer que o indivíduo é um todo integral e integrado e que suas
práticas cognitivas e organizativas não são desvinculadas do contexto histórico no qual
o processo se dá, contexto esse em permanente evolução”. Imaginar uma educação que
se adeqüe a todos os homens em todos os tempos parece impossível, porém
proporcionar uma educação que respeite a diversidade, a partir de adequações, visando
a promoção dos seres humanos, parece ser bem possível.
É neste contexto que o autor apresenta o Programa Etnomatemática como uma
proposta de pesquisa que procura compreender o saber/fazer matemático em grupos
culturalmente diversificados. Como pressuposto inicial, deste Programa, entende-se
que “todo indivíduo desenvolve conhecimento e tem um comportamento que reflete
esse conhecimento, que por sua vez vai-se modificando em função dos resultados de
comportamento. Para cada indivíduo, seu comportamento e seu conhecimento estão
em permanente transformação, e se relacionam numa relação que poderíamos dizer de
verdadeira simbiose, em total interdependência” (D’AMBRÓSIO, 2001, p.18).
Um dos objetos de suas investigações, neste programa de pesquisa, é a
educação matemática, pois julga que esta especialidade é a que apresenta as maiores
distorções nos sistemas educativos. Justifica-se esta preocupação em função do caráter
histórico-social da matemática e de sua abrangência em todos os países do mundo.
Objetiva-se, com este programa, esclarecer a necessidade de uma educação
matemática voltada não somente ao desenvolvimento científico, mas principalmente
ao desenvolvimento humano a partir do respeito e da preservação à diversidade
cultural em suas diferentes formas e representações.
As pesquisas na perspectiva da etnomatemática parecem ter se acentuado no
Brasil somente a partir da década de 90, tratando da educação matemática nas práticas
cotidianas, nos movimentos sociais e nas comunidades indígenas. As pesquisas, de
uma maneira geral, procuram justificar a busca pelo entendimento da matemática
54
desenvolvida nas relações de grupos, respeitando-as e valorizando-as como forma de
representação social e cultural.
Nestas pesquisas, entende-se que o ensino de matemática só se justifica dentro
de um contexto próprio, de objetivos bem definidos, inseridos num quadro de
prioridades nacionais. Uma prioridade nacional, no momento atual, é a melhoria da
qualidade de vida em cada região. Com base nessas considerações iniciais, faz-se
necessário perceber se o processo educativo adotado nas estruturas de ensino conduz a
um processo de desenvolvimento que dá ênfase a uma:
... metodologia que desenvolva atitude, que desenvolva capacidade de
matematizar situações reais, que desenvolva capacidade de criar teorias
adequadas para as situações mais diversas, e na metodologia que permita o
recolhimento de informações onde ela esteja, metodologia que permita
identificar o tipo de informação adequada para uma certa situação e
condições para que sejam encontrados, em qualquer nível, os conteúdos e
métodos adequados (D’AMBRÓSIO, 1996, p.14).
b) A educação matemática e a cultura da sala de aula
Pesquisas sobre a cultura da sala de aula vêm sendo construídas por alguns
grupos de estudos a partir da década de 80. Esses grupos abordam a sala de aula como
uma microcultura, ou seja, uma representação significativa de uma cultura geral e,
portanto, possível de se estabelecer relações entre as diferentes linguagens produzidas
em seu interior.
Na sala de aula, há uma dinâmica de ensino que sofre influência de diferentes
linguagens que precisam ser decodificadas para que se conduza ao conhecimento
significativo. Pode-se dizer, então, que um dos princípios fundamentais do ato
educativo consiste em compreender a diversidade em suas diferentes representações.
Na sociedade atual, todo indivíduo participa de pelo menos um grupo cultural. Este
grupo se constrói e reconstrói continuamente, sofrendo influências da diversidade de
informações transmitidas num determinado momento histórico-social.
Partindo destas considerações, convém observar a matemática desenvolvida no
interior da sala de aula. Esta matemática apresenta-se segundo objetivos, conteúdos e
métodos previamente definidos e estabelecidos, sendo fundamentados por uma
55
proposta político-pedagógica. Nesse contexto formal, a aprendizagem, segundo
LAVE
4
, citado por Borba (1993, p.44), é situada “como uma forma de justificar que
temos que pensar o ensino da sala de aula como uma situação particular na qual a
“transferência” de experiências, oriunda de outras situações educacionais, não parece
ser possível”.
Nessa perspectiva de ensino, autores como SCHOENFELD
5
, citado por Borba
(1993, p.44), argumentam que “estudantes devem experimentar matemática de uma
maneira que seja coerente, ou seja, de modo semelhante a que os matemáticos a expe-
rimentam”. A coerência, para SCHOENFELD, se caracteriza pelo conjunto de
procedimentos e argumentos utilizados pelos estudantes. Nessa configuração, os
modos de elaboração e verificação de resultados matemáticos, produzidos pelos alunos
devem ser análogos aos adotados por matemáticos. Nesse processo de ensino, “o fazer
matemática dos matemáticos é então visto como o modelo normativo, que deve ser
seguido em sala de aula pelos professores para que os alunos possam ir vivenciando
aos poucos a experiência desse professor/matemático” (BORBA, 1993, p. 44).
Entretanto, considerando a diversidade de ambientes culturais, a valorização de
uma única matemática, que é a desenvolvida pelos matemáticos, pode não ser a mais
adequada para um único grupo cultural, mesmo que esse tenha habilidades
matemáticas, evidenciadas. Há condicionantes práticos que interferem na continuidade
da busca pelo saber. Ademais, há grupos heterogêneos: alguns buscam compreender a
fundo determinados tópicos, buscando aperfeiçoar e desenvolver conhecimentos
teóricos, enquanto que outros procuram apenas conhecê-los sem a preocupação do
aprofundamento teórico-abstrato. Para BORBA (1993, p.45), uma resposta ao
problema seria “estabelecer uma relação entre cultura e aprendizagem que levasse em
consideração, não só os condicionantes eco-culturais do meio, mas também como esse
indivíduo se relaciona com este meio, organizando e sendo organizado por ele”.
Uma alternativa de solução é elaborar uma proposta de estudo em sala de aula
baseada no enfoque da etnomatemática. No desenvolvimento da proposta, constrói-se
4
LAVE J. (1988) Cognition in parctice. Nova Iorque, NY, USA: Cambridge University Press.
5
SCHOENFELD (1987) Cognitive science and mathematics educations, Hillsdale, NJ:Laewrence Erlbaum
Associates
56
uma participação ativa entre alunos e professor, os quais apresentam os conteúdos e
objetivos a serem atingidos com esse estudo. O aprender, nessa proposta, não se
restringe à reprodução de procedimentos, mas se configura numa necessidade pessoal
de superação, ou seja, aprende-se para adquirir conhecimentos referentes a um objeto
de investigação que atenda a objetivos comuns.
57
3 PROCEDIMENTOS ADOTADOS NA PESQUISA
Neste capítulo, busca-se apresentar o método de investigação adotado,
enfatizando alguns momentos da atividade investigativa. A seguir, são descritos o
local e o grupo estudado, as técnicas para obtenção das informações e o enfoque
utilizado na análise.
3.1 NATUREZA DA PESQUISA
No intuito de tentar descrever a compreensão dos professores pesquisados sobre
as adaptações do currículo, a atividade de pesquisa foi desenvolvida segundo uma
abordagem qualitativa, cujo foco centrou-se no modo de pensar estas adaptações para
o meio rural.
Uma investigação qualitativa compreende as seguintes características, segundo
BOGDAN; BIKLEN (1994):
1.Na investigação qualitativa a fonte directa de dados é o ambiente natural,
constituindo o investigador o instrumento principal. (...) 2. A investigação
qualitativa é descritiva. (...) 3. Os investigadores qualitativos interessam-se
mais pelo processo do que simplesmente pelos resultados ou produtos. (...) 4.
Os investigadores qualitativos tendem a analisar os seus dados de forma
intuitiva. (...) 5. O significado é de importância vital na abordagem
qualitativa. (p. 47-50)
Nessa proposta investigativa, pode-se considerar a entrevista como uma forma
de “exercício” o pesquisador registra o discurso promovido numa situação de
comunicação inédita, contribuindo à divulgação e construção de categorias obtidas
numa análise social específica. Para BOURDIEU, o pesquisador é quem estabelece as
regras de um jogo lingüístico, ocupando uma posição de destaque essencialmente
cultural.
Na pesquisa qualitativa, um exercício considerado necessário ao pesquisador
consiste em buscar compreender o pesquisado como sujeito que apresenta uma forma
própria de pensamento e que se insere num espaço demarcado por condições
existenciais das quais ele é produto.
58
Para BOURDIEU (1998, p.700), uma informação prévia, relativa ao pesquisado
e ao seu espaço, permite ao pesquisador “improvisar continuamente perguntas,
verdadeiras hipóteses que se apóiam numa representação intuitiva e provisória da
fórmula geradora própria ao pesquisado para provocá-lo a se revelar mais
completamente”. O conhecimento prévio mais aprofundado permite conduzir a uma
verdadeira filosofia da ação, que se estabelece na prática. Buscar compreender as
certezas no meio de incertezas, o já dito ou o já ouvido, a partir de um drama
existencial passa a ser um desafio para o pesquisador. Assim, o pesquisador, ao propor
questões como ‘o que te leva a acreditar que...’, possibilita ao pesquisado rever
concepções previamente estabelecidas.
Essa pesquisa relaciona-se com estruturas conceituais e sociais que produzem
efeito sobre os resultados obtidos. Deste modo, as distorções produzidas devem ser
reconhecidas e dominadas na realização de uma prática reflexiva. Para BOURDIEU
(1998, p.694), “só a reflexividade, que é sinônimo de método, mas uma reflexividade
reflexa, baseada num “trabalho”, num “olho” sociológico, permite perceber e controlar
no campo, na própria condução da entrevista, os efeitos da estrutura social na qual ela
se realiza”.
Para que seja possível uma relação de pesquisa o mais próximo possível do
limite ideal, algumas condições devem ser satisfeitas: proximidade social e
familiaridade. Assim, deve-se agir sobre a própria estrutura da relação, portanto, na
própria escolha das pessoas interrogadas e dos interrogadores. Para BOURDIEU
(1998, p.697), “a proximidade social e a familiaridade asseguram efetivamente duas
das condições principais de uma comunicação ‘não violenta’ ”. Quando há uma
proximidade social entre o pesquisador e o interlocutor, possibilita-se uma análise não
reduzida a imediatismos objetivos, considerando-se as razões subjetivas dos fatos
vividos. Por outro lado, encontra-se também assegurado neste caso um acordo
imediato e continuamente confirmado sobre os pressupostos concernentes aos
conteúdos e às formas de comunicação através de sinais corporais ou verbais.
No universo social, as homologias de posição podem fundamentar afinidades
entre o pesquisador e certas categorias de pesquisados. Por exemplo, um professor
59
interrogando um outro professor compartilha características explicativas e práticas de
suas representações. BOURDIEU (1998, p.698) destaca que o interrogador “não pode
nunca esquecer que, objetivando o interrogado, ele se objetiva a si mesmo, como
provam as correções que ele introduz em tantas de suas perguntas”.
Ademais, só é possível compreender o que é dito numa entrevista/conversa, se
soubermos ler, nas palavras empregadas pelo entrevistado, a estrutura das relações
objetivas, presentes e passadas, entre sua trajetória e as estruturas invisíveis que o
organizam.
Numa transcrição literal de uma entrevista, faz-se uma tradução ou até uma
interpretação. Como diz BOURDIEU (1998, p.710), “transcrever é necessariamente
escrever, no sentido de reescrever”. BOURDIEU quer dizer que, ao transcrever uma
entrevista, os olhares incertos, os gestos constantes e as variações de entonações, que
se transformam em frações de segundo no decorrer da entrevista, podem ser reescritos.
As antinomias bem conhecidas da literatura popular lembram que dar realmente a
palavra àqueles que habitualmente não a têm é apenas lhes dar a palavra tal e qual.
As entrevistas transcritas exercem um efeito de revelação, principalmente
naqueles que compartilham do processo de elaboração e discussão das idéias
subjacentes a um objeto de investigação. Os interlocutores de uma situação de
comunicação tornam-se sensíveis as pronúncias, entonações, freqüência dos termos
empregados, sensibilizando-se a conceitos complexos e abstratos. Neste processo, a
intervenção do analista é tão difícil quanto necessária. Para BOURDIEU (1998,
p.712), “escolher a não intervenção, com a preocupação de recusar toda limitação
imposta à liberdade do leitor, seria esquecer que, o que quer que se faça, toda leitura já
está, senão obrigada, pelo menos orientada por esquemas”.
O sociólogo não pode ignorar que é próprio de seu ponto de vista ser um
ponto de vista sobre um ponto de vista. Ele não pode re-produzir o ponto de
vista de seu objeto, e constituí-lo como tal, re-situando-o no espaço social,
senão a partir deste ponto de vista muito singular onde deve se colocar para
estar pronto a assumir todos os pontos de vista possíveis. E é somente à
medida que ele é capaz de se objetivar a si mesmo que pode, ficando o lugar
que lhe é inexoravelmente destinado no mundo social, transportar-se em
pensamento ao lugar onde se encontra seu objeto e tomar assim seu ponto de
60
vista, isto é, compreender que se estivesse, como se diz, no seu lugar, ele
seria e pensaria, sem dúvida, como ele. (BOURDIEU, 1998, p.713)
Convém destacar que a entrevista deve possibilitar ao leitor uma compreensão
da razão de ser de um fato social e sua necessidade de existência, a partir dos
elementos que circunscrevem esse espaço, ou seja seus atores. Portanto, deve-se
construir cientificamente o discurso de tal maneira que ele forneça os elementos
necessários à sua própria explicação. Ademais, a validade e a confiabilidade das
informações podem ser garantidas na medida em que gravam-se os pronunciamentos
dos pesquisados; verificam-se divergências e correlações nas informações levantadas;
documentam-se comentários casuais; apresenta-se o contexto em que as perguntas
foram propostas; entrevista-se os sujeitos mais do que uma vez. Para VIANNA
(2003, p.63), “a validade refere-se, à propriedade, ao significado e à utilidade das
inferências feitas pelos pesquisadores a partir dos elementos que coletaram. A
confiabilidade está ligada à consistência ao longo do tempo”.
3.2 DELIMITAÇÃO DA ÁREA E DO GRUPO ESTUDADO
O presente estudo teve como sujeitos de investigação professoras de três escolas
rurais do município de Rio Negro - PR: Escola Rural Municipal Eraldo Germano
Plautz, Escola Rural Municipal José de Lima e Escola Rural Municipal Paulino
Valério.
A definição do local de estudo deu-se em função da pesquisadora ter realizado
trabalhos com a formação de professores na região e em suas proximidades.
Ao visitar cada uma das escolas, foi possível identificar diferenças entre as
localidades rurais. Essas diferenças confirmavam-se na medida em que conhecia
alguns dos aspectos históricos e geográficos de cada uma das localidades e que
conversava com alguns agricultores da região.
A princípio foram realizadas entrevistas com três agricultores de duas
localidades distintas (Anexo 1), a fim de conhecer melhor a realidade de cada região.
Convidamos o leitor a fazer, previamente, uma leitura dessas entrevistas.
61
3.3 PROCEDIMENTOS PARA OBTENÇÃO DE INFORMAÇÕES
Primeiramente, solicitou-se ao Secretário de Educação do município a sua
autorização e colaboração para a execução do trabalho de investigação. Após
autorização, iniciaram-se as visitas às escolas rurais do município.
A Escola Municipal Rural Evaldo Germano Plautz e a Escola Municipal Rural
José de Lima, por serem as mais próximas da sede do município, situadas a uma
distância de doze quilômetros desta sede, foram as primeiras a serem visitadas. Desde
o primeiro contato com as professoras, buscou-se esclarecer os objetivos da pesquisa e
a importância de sua participação no processo de investigação, por ser este único e
intransferível. A Escola Rural Municipal Paulino Valério, localizada na localidade de
Lençol, a trinta e cinco quilômetros da sede, foi a última escola a ser visitada.
Na primeira visita, buscou-se identificar as professoras regentes de classe e
verificar a possibilidade de as mesmas participarem do processo da pesquisa em sua
hora-atividade. As professoras interessadas responderam, já na primeira visita, a um
questionário aberto (Anexo 2). No questionário, as depoentes revelaram informações
sobre o currículo, sobre o conteúdo curricular específico e sobre a escola, contribuindo
para a elaboração de um roteiro de entrevista. O recebimento dos questionários
ocorreu no mesmo dia de sua entrega.
Tal procedimento possibilitou a não intervenção de outras pessoas no que se
refere ao como responder ou o quê responder. Após o recolhimento dos questionários,
enfatizou-se às professoras participantes da atividade investigativa a necessidade de
uma entrevista individual, a qual seria gravada, transcrita e depois analisada.
Com cada uma das professoras foi realizada uma entrevista. Foram atribuídos às
professoras nomes fictícios em ordem alfabética para a organização da análise das
informações e para “aproximar” o leitor ao depoente.
Cabe ressaltar ao leitor que convém que sejam feitas comparações relativas aos
modos de proceder no interior do espaço escolar e as formas de perceber a realidade
local, pois, do ponto de vista deste trabalho, o importante é compreender o que as
professoras procuram manifestar por meio de seus depoimentos.
62
As entrevistas com as professoras foram realizadas nos meses de março, abril,
maio e junho de 2005. As entrevistas foram registradas em áudio e, posteriormente,
transcritas integralmente sem inserções.
Os depoentes assinaram uma “carta de cessão” (anexo 3), cedendo os direitos
da entrevista, para que esta pudesse ser utilizada integralmente ou em partes, sem
restrições de prazo e citações.
3.4 EM BUSCA DE SIGNIFICAÇÕES
Para a análise das entrevistas, elaborou-se um quadro que contém recortes dos
depoimentos das professoras com o objetivo de descrever as compreensões e as idéias
principiais que elas tentam comunicar. Esses recortes contém um código constituído
de uma letra latina maiúscula e um número que representa um determinado trecho da
entrevista. Os quadros contêm, além dos recortes, a significação da pesquisadora. Na
significação da pesquisadora sobre os recortes dos depoimentos, considerou-se a
interpretação da pesquisadora, a partir da sobre os elementos aos quais alguns recortes
fazem referência. Apresenta-se, também, uma síntese de cada uma das entrevistas,
tendo como foco o objeto da pesquisa. Assim, algumas leituras da transcrição de cada
entrevista foram realizadas com o intuito de perceber os significados transmitidos
pelas depoentes.
3.5 ENFOQUE DE ANÁLISE
Numa relação de comunicação, há manifestação de diferentes linguagens. Neste
processo, apenas algumas linguagens são observadas e analisadas com profundidade.
Inicia-se, assim, uma busca por compreender para poder significar. Partindo destas
considerações, como procedimento desta pesquisa, à medida que as informações eram
obtidas, produziam-se análises parciais.
A parte inicial da transcrição das entrevistas, a descrição dos questionário, foi
textualizada a partir das respostas apresentadas pelos narradores. Na segunda parte da
transcrição, mantiveram-se as perguntas e as respostas, procurando conservar o
63
máximo de informações tanto lingüísticas como paralingüísticas (anotações dos
silêncios e de aspectos emocionais).
Realizaram-se leituras da transcrição de cada depoimento com o intuito de
compreender as percepções e as compreensões manifestadas por cada uma das
professoras. A seguir, extraíram-se trechos, isto é, produziram-se recortes em cada um
dos depoimentos. A partir dos recortes, buscou-se atribuir uma significação com base
nas respostas obtidas em cada um dos depoimentos. Os recortes e significações
contribuíram para a compreensão das percepções individuais e para a elaboração de
uma síntese da pesquisadora para cada uma das entrevistas, tendo como foco central o
objeto da pesquisa.
Nesta fase da atividade investigativa, que pode ser denominada de “análise
vertical”, procura-se analisar a singularidade de cada uma das entrevistas a fim de
compreender os significados que cada uma das professoras pretende comunicar.
A partir das particularidades de cada depoimento, investigou-se a existência de
convergências e divergências entre os recortes, numa “análise horizontal”, passando-se
a focalizar o conjunto das entrevistas. Nessa “análise horizontal”, identificam-se
padrões presentes nas informações recolhidas como parte de um processo indutivo.
Desse modo, busca-se, com os possíveis agrupamentos, constituir categorias de
análise. Na descrição geral, apresentam-se as categorias provenientes dessa análise
horizontal.
Finaliza-se o trabalho com a apresentação de algumas considerações sobre as
categorias reveladas e com a exposição de algumas reflexões sobre a educação no
contexto do meio rural.
64
4 IMPRESSÕES E RELAÇÕES
4.1 DESCRIÇÃO DO QUESTIONÁRIO
4.1.1 ENTREVISTAS
ANGÉLICA
DESCRIÇÃO
Esta professora tem formação em Magistério. Não foi especificado se esta formação é
superior. A professora atua em escola rural há mais de vinte anos. Atualmente, reside
na cidade.
Apesar de não ter participado de sua construção, a professora considera que o currículo
da escola é adequado à realidade da comunidade. Acredita, também, que o currículo
atual possa ser reformulado no momento em que houver necessidade, e isso pode
ocorrer quando sentir que as dificuldades aumentam. Nesta situação, uma sugestão
para a melhoria do currículo da escola seria adaptá-lo às necessidades e à realidade da
região. Concordando com a importância do conteúdo de matemática para a população
rural em função da ajuda proporcionada na resolução de problemas no decorrer da
vida, a professora afirma que este conteúdo na sua escola, é bem diversificado. A sua
forma de adaptar o conteúdo de matemática à realidade do meio rural é através de
pesquisa com as famílias e de projetos que partem da realidade local. Considera que
isso seja uma adaptação porque afirma ser possível, com essas atividades, ir
conhecendo mais o que fazem, como vivem, o que esperam melhorar e do que estas
famílias precisam para suprir suas necessidades.
A(Professora) e E(Entrevistadora) estão sentadas na sala da diretora e encontram-se
uma de frente para outra. A pesquisadora conversa com a professora sobre o
questionário respondido e sobre a necessidade de complementá-lo com uma entrevista.
E: Vamos começar a entrevista! Posso fechar a porta?
A: É!
E: (Levanta e fecha a porta) Por que ser professora de uma escola rural? Porque é
interessante: não são todos os professores que optam... Então, por que ser professora
de escola rural?
A: Porque, quando eu comecei, eu comecei numa escola rural. Já faz 27 anos que eu
trabalho como professora e... morei no interior, morei no meio rural, me criei lá, onde
eu nasci. Fiquei todo o meu tempo lá, de vida, né! Faz três anos só que eu me mudei
pra cidade. E todo esse tempo que eu trabalhei lá... foram 23 anos.
65
E: Onde?
A: Lá! No mesmo local, né! Onde eu ... Até foi onde eu estudei. Onde nasci, me criei,
estudei, né! Fiz minha primeira à quarta série. E, daí, peguei como professora lá! E,
desde então, eu comecei lá e continuo trabalhando no meio rural. Até hoje!
E: E você gosta?
A: Lá! Desde o começo. Porque, né, foi assim... Uma causalidade! Porque eu comecei
lá e fiquei todo esse tempo trabalhando lá, e, daí, quando eu me mudei pra cidade, eu
continuei aqui, daí. Quando eu fui pedir... a remoção, na secretaria, eles falaram que
tinha essa escola aqui, né! Disse, então, tá! Está bom pra mim! E vim pra cá e
continuei.
E: E até hoje você gosta?
A: Gosto muito! Gosto muito de trabalhar.
E: Eu não sei se você lembra, mas uma das perguntas que nós tínhamos, no
questionário, referia-se à adequação do currículo à realidade do campo, à realidade do
aluno, que, neste caso, é o aluno do meio rural.
A: (gesticula afirmativamente com a cabeça)
E: A pergunta que eu vou fazer é a seguinte: como que você adeqüa o currículo à
realidade do aluno através dos projetos? Porque alguns dos itens, lá, citados de
adequação, foram projetos... Como são esses projetos? E como é feita essa adequação
por meio de projetos?
A: Ahhh! Agora você me pegou! Não lembro. Faz tanto tempo... A gente procura
assim... sei lá... trabalhar da forma como eles precisam, né! Tipo... a realidade deles,
né!
E: Mas como são esses projetos? Vocês elaboram sozinhos? Como é?
A: É! A maioria elabora sozinha, né! Dependendo da situação, dependendo do quê a
gente precisa, a gente elabora... Cada um o seu.
E: Então! É mais do que um projeto?
A: É! É mais de um.
E: Então, como você faz isso no projeto? Você não sabe?
A: Só não sei explicar. Sei como faz. Mas, não sei...
E: Você teria algum para me mostrar?
A: Não tem nenhum desse ano. Daí?
E: E do ano passado, tem?
A: Não tenho também! No momento, não! A gente leva pra casa, né! E trabalho
também. Faz trabalho em casa também. Deixa! Não tenho nenhum agora.
E: Bem! Outra pergunta que eu fiz foi com relação a elaboração do currículo, né?
A: Sim!
E: E, daí, eu questionei vocês, perguntando o seguinte: se haveria alguma proposta de
reformulação. Mais do que isso, Perguntei se vocês participaram do processo de
elaboração do currículo. Então, a maioria respondeu que sim, que participou.
A: Não! Eu, não! Nessa escola, não! Daí, eu participei do outro, né!
E: Você, nesta escola, não?
A: Porque houve uma época em que eu estava trabalhando noutra escola.
E: E hoje! Você...
A: Eu conheço o currículo, mas eu não participei da elaboração.
66
E: Então, você desconhece como essa adequação se deu no currículo.
A: Desconheço daí, no caso!
E: Desconhece. E que adaptações, hoje, você julga necessárias para a realidade dessa
região rural? Dessa daqui, específica!
A: Como assim?
E: Adequação do conteúdo, adequação do currículo. Como você faria essa adequação
levando em consideração a realidade dessa região?
A: Uma mudança, no caso?
E: Se possível, uma mudança...
A: Uma mudança ou... colocar alguma coisa?
E: É!
A: É! Seria colocada alguma coisa assim... da realidade deles, porque eles aprendem
coisas assim... que não são do meio deles, muitas vezes! E deixa de lado aquilo que é
preciso, porque eles trabalham com lavoura, trabalham com criação de animais, né!
Talvez eu colocaria alguma coisa sobre esse assunto.
E: E como entraria a Matemática?
A: Pois é! Aí teria que pensar, né! Eu acho que teria que ser um estudo assim... bem
amplo, né!
E: Mas seria possível?
A: Eu acho que seria possível. Com certeza.
E: Já foi feita alguma adequação, aqui, com relação à Matemática?
A: Ainda não. Que eu lembre, não. Até que teve a professora, que foi nossa Secretária
anterior, ela até falou... que teria que ser reformulado e colocada alguma coisa assim...
pro meio rural. Só que daí, né, ela já saiu. Daí, agora, não sei como vai ser.
E: E essa proposta que estamos falando é a proposta anterior, da gestão anterior?
A: É! Ela já falou que teria que fazer, né! Na gestão atual ainda não teve nada, ainda!
Mas ela já falou que teria que fazer porque, né, é necessário, né! Tem muitas coisas
que as crianças precisam saber, né!
E: Você acha que é necessário?
A: Eu acho necessário.
E: E alguma sugestão, assim, que você gostaria de dar... no caso, se fosse possível
construir essa proposta para a Matemática? Que série você trabalha?
A: Segunda e pré.
E: Que adaptações, na segunda ou no pré, poderiam ser feitas?
A: Sei lá? Tipo... coisas de valores. Valores de terras, por exemplo, né! Valor do que
eles plantam. Trabalhar o dinheiro, o monetário, né! Tipo o valor. Quanto custa, hoje,
um litro de terra? Trabalhar também o litro, né, que eles não conhecem, não sabem
medidas das de litros, de alqueires... Porque eles trabalham muito com isso, né!
Alqueire de terra. De repente vende, não sabe se está recebendo um valor... o correto
ou não, do que ele vende. Porque tem muita gente que vende terra e não sabe, né!
Quanto que é o valor. Tipo assim... valor! Seria bom, né! Pra eles!
E: Agradeço sua contribuição para essa pesquisa. Muito obrigada!
67
QUADRO I RECORTES DO DEPOIMENTO DE ANGÉLICA E SIGNIFICAÇÃO DA PESQUISADORA
Recortes do depoimento Significação da pesquisadora
A1 “Gosto muito! Gosto muito de trabalhar.” - Gosta do trabalho que desenvolve.
A2 “Ahhh! Agora você me pegou! Não lembro
gente procura assim... sei lá... trabalhar da forma como eles precisam
,
né. Tipo... a realidade deles, né.”
-
Não lembra, em função do tempo, mas procura trabalhar com o
que alunos precisam, com a sua realidade.
A3 “É! A maioria elabora sozinho, né! Dependendo da situação
,
dependendo do que a gente precisa, a gente elabora... Cada um o seu.”
-
A elaboração de um projeto depende da situação e da
necessidade de cada professora.
A4 “Só não sei explicar! Sei como faz! Mas não sei...” - Tem dificuldade em explicar como ad
aptar o currículo através
de projetos, mas sabe como faz.
A5 “Não tenho também! No momento, não
! A gente leva para casa,
né! E trabalho também. Faz trabalho em casa também. Deixa!
Não
tenho nenhum, agora.”
- Não tem um projeto para mostrar.
A6 “Eu conheço o currículo, mas eu não participei da elaboração.” -
Não participou do processo de elaboração do currículo da
escola.
A7 Desconheço, no caso!” -
Não conhece a adequação realizada no currículo da escola onde
trabalha atualmente.
A8 Como assim?”
A9 Uma mudança, no caso?”
A10 “Uma mudança ou... colocar alguma coisa?”
-
Procura atribuir sentido aos termos adaptação e adequação.
Sugere que signifiquem ou que remetam a mudança ou a
acréscimo de conteúdos.
A11 “É! Seria colocada alguma coisa assim... da realidade deles,
porque eles aprendem coisas assim... que não é do meio deles, muitas
vezes! E deixa de lado aquilo que é preciso, porque eles
trabalham com
lavoura, trabalham com criação de animais, né!
Talvez eu colocaria
alguma coisa sobre esse assunto.”
-
Acrescentaria assuntos necessários para os alunos, como os
relacionados ao trabalho com a lavoura e com a criação de
animais.
A12 “Pois é! Aí teria que pensar, né! Eu acho que teria que ser
um
- Ter
ia que desenvolver um estudo aprofundado para incorporar
68
estudo assim... bem amplo, né!” a matemática.
A13 Ainda não
. Que eu lembre, não. Até que teve a professora, que
foi nossa Secretária anterior, ela até falou... que
teria que ser
reformulado e colocada alguma coisa assim... pro meio rural
. Só que
daí, né, ela já saiu. Daí, agora, não sei como vai ser.”
- Ainda não foi feita nenhuma adequação, apenas foi dito que o
currículo deveria ser reformulado e que deveria ser colocada
algumas coisa para o meio rural.
A14 “Sei lá! Tipo... Coisas de valores.
Valores de terra, por exemplo,
! Quanto custa? Hoje um litro de terra! Trabalhar também, o litro,
né, que eles não conhecem, não sabem medidas das de litro, de
alqueires
. Porque eles trabalham muito com isso, né! Alqueire de terra.
De repente vende, não sabe se está recebendo um valor... o correto ou
não, né, do que ele vende. ...”
- Sugere a inserção de questões relacionadas a valores de terras e
a medidas da região, como, por exemplo, o litro e o alqueire.
69
SÍNTESE DA PESQUISADORA SOBRE A ENTREVISTA DE ANGÉLICA
A pesquisadora admite ter utilizado previamente, em alguns momentos dessa
entrevista, o termo adequação em vez de adaptação. Apesar de não aparecer
explicitamente, no questionário, o termo adequação, Angélica afirma lembrar que uma
das questões do questionário referia-se à adequação do currículo à realidade do aluno.
Mostrando-se surpresa com a pergunta da pesquisadora, relata não lembrar, em função
do tempo, como seria uma adequação do currículo à realidade do aluno através de
projetos. Angélica demonstra uma certa dificuldade em explicar o que seja a
adequação do currículo através de projetos e, na tentativa de explicar, diz que procura
trabalhar com o que os alunos precisam, com a sua realidade. Relata também, não
saber como a adequação se deu no currículo da escola na qual trabalha, pois não estava
participando da elaboração deste currículo. Apresenta dificuldade para compreender as
adaptações. Interpreta, primeiramente, como uma mudança possível e, posteriormente
como um acréscimo de conteúdos. Sugere como possíveis assuntos a serem acrescidos
aqueles que se referem ao trabalho com a lavoura e com a criação de animais. Para
incorporar a matemática, acredita que teria que desenvolver um estudo aprofundado.
Relata que ainda não foi feita nenhuma adequação, apenas foi dito que deveria ser
reformulado e colocado alguma coisa para o meio rural. Para Angélica, uma adaptação
possível seria incorporar no currículo da escola questões relacionadas a valores de
terras e a medidas da região, como o litro e o alqueire.
BIANCA
DESCRIÇÃO
Com formação em Curso Normal Superior, a professora atua em escola rural há mais
de dez anos. Atualmente, reside no meio rural.
O currículo da escola, na sua opinião, contempla uma proposta de projetos, estando
aberto para discussões. Afirma ter participado de sua construção, durante a elaboração
da proposta pedagógica da escola, em conjunto com as demais professoras e com a
diretora. Acredita não haver propostas de reformulação do currículo atual da escola e
sugere que uma melhoria no currículo da escola rural poderia ser direcionar os
conteúdos mais para o meio de convívio dos alunos. Ao descrever o conteúdo de
matemática, resume dizendo ser adaptado por séries, concordando com a sua
70
importância para a população rural em função da utilidade desse conhecimento. Ao
mesmo tempo em que afirma adaptar o conteúdo de matemática à realidade do meio
rural através de atividades e de projetos diz acreditar não ser necessário adaptar o
conteúdo de matemática às especificidades do meio rural por já estar no cotidiano dos
alunos. Ao mesmo tempo em que afirma adaptar o conteúdo de matemática a realidade
do meio rural, através de atividades e de projetos. Considera isso uma adaptação por
ser necessário para a vida dos alunos.
B(Professora) e E(Entrevistadora) estão sentadas na sala da diretora e encontram-se
uma de frente para outra. A pesquisadora conversa com a professora sobre o
questionário respondido e sobre a necessidade de complementá-lo com uma entrevista.
E: Bom dia!
B: Bom dia!
E: Por que ser professora de escola rural?
B: Pois, olha! Eu nunca pensei em ser professora, né, de escola rural. Mas, quando
apareceu do concurso, me chamaram... Só tinha vaga nesta escola aqui. Então, eu
morava em Rio Negro e todo mundo falou que ... falavam que não, essa escola é perto,
é a mais próxima, até porque tinha escola mais longe. Então, eu peguei e optei por
Cunhupã e aqui eu fiquei. Estou até hoje! Treze anos. Claro que eu já trabalhei em
outras escolas. Na sede! Mas eu não troco sede pelo interior.
E: Não troca?
B: Não!
E: Por quê? O que te faz ficar aqui, no interior?
B: Uma que eu já moro aqui! De tanto que eu gostei, que eu já casei com um cara
daqui. Morei, né! Já estou [com ênfase] aqui. E, sei lá... tantos os alunos... como eu
lembramos até quando eu comecei no interior. Eu era chamada de professorinha, né!
Então, a minha comunidade, que eu moro, é a comunidade vizinha, né! Então, eu era lá
chamada de professorinha. Então, era tudo, era concentrado ali, na minha escola. Os
pais vinham tirar informações ali. Então, sabe! Eu gosto de trabalhar com as crianças.
Em termos de... Eh... sei lá... até de disciplina. Claro que a gente tem os probleminhas
da gente, mas é mais, sabe! Eles... O respeito, né! Eles, parece que eles... Você chama
atenção, você conversa com eles e parece que tudo fica gravado, né! Então, eles têm
um respeito tanto no prédio escolar como fora do prédio, né! Então, você vai passear
ali até numa casa: “Oh professora!”. Então, você tem um respeito. Hoje eu sou
madrinha de alunos. Madrinha de Crisma, madrinha de casamento de alunos que foram
meus.
E: Você percebe, então, que eles estudam por amor.
B: Exato!
E: Eles têm esse amor!
B: Eles têm! Claro que tem exceções, né! Parece que vive naquele mundinho e,
daquele mundinho ali, não vai sair. Dá impressão, assim, que é só aquilo, né que eles
vão crescer, casar, morar. Morar aqui mesmo! Trabalhar na roça. A mulher vai ser
dona de casa e vai cuidar dos filhos. Tem outros que sobressai, né!
71
E: Bom! Eu vou voltar agora um pouquinho para o questionário. O questionário trazia
algumas questões mas, dentre as principais que mencionei, algumas foram com relação
ao currículo onde, na verdade, eu perguntei se vocês adequavam o currículo à
realidade do aluno do campo.
B: Ahan, ahan!
E: E a grande maioria de vocês colocaram que sim! E a forma de adequar é através de
projetos. A pergunta que eu faço é a seguinte: como você, professora, adeqüa o
currículo à realidade do aluno através dos projetos?
B: Pois é! Nós, até o ano passado, a gente fez um projeto ...eh... “Contextualizando a
Matemática” e a gente... Primeiramente, a gente começou ... A gente fez um
questionário pros pais, pra ver se eles estavam gostando da Matemática como estava
sendo ensinada. E veio que não, né! Eles também achavam que tinha que colocar mais
coisa da realidade. Então, a gente trabalhou aquele projeto em cima de coisas do
campo mesmo, né! Trabalhar terreno! A gente levou os alunos pra plantar, né. Com os
alunos do Colégio Agrícola, a gente fez uma parceria com eles, pra eles medirem
terrenos, medirem as mudas. “Quantas mudas dá numa bandeja?” Então, aquele
projeto ... mas a gente, na verdade... Você pega alguns conteúdos e coloca tipo assim...
Situações-problema. Você coloca algumas coisas em situações da vivência deles. Mas
nunca você vai trabalhar todo, toda a vida! Porque você tem vários, né! Que nem
...eh... porcentagem. Tem coisas assim, que você encaixa, mas é mínima coisa. Você
pode trabalhar todos os conteúdos. Você encaixa uma coisa ou outra na realidade.
E: E, no caso, esses projetos... Você tem esses projetos?
B: Pois olha! Eu tinha, não sei se eu deixei em casa... Onde que eu deixei? A gente fez
o projeto a nível de comunidade escolar, né! A gente fez junto com a diretora e a gente
até apresentou ele numa amostra pedagógica, sabe?
E: Teria como você me mostrar esse projeto?
B: Eu não sei onde que está. Depois eu dou uma procurada ali. Quero ver uma
coisinha, então... Alguma coisa deve estar ali, que a diretora deixou.
E: Muito interessante essa sua colocação. Então, na verdade, são projetos específicos?
B: É! Nesse foi que a gente pensou num projeto assim, trabalhando a matemática pra
levar pra série, para conhecimento deles.
E: Que alunos? Que série?
B: Nós pegamos todos. Todos! Todas as séries. Cada professora adaptou, assim à sua
série.
E: E o resultado foi bom?
B: O resultado ficou bom.
E: E os pais gostaram?
B: Gostaram! Até a gente convidou alguns pais e a gente apresentou numa semana
pedagógica... Para os pais também, né! É... Como eu te falei! Se você fizer um projeto
específico pra eles, trabalha bem mais do que você trabalhar conteúdos. Você até
trabalha, mas é uma coisa ou outra, né!
E: E sobre o currículo? Eu não sei se você está lembrada também. Eu fiz algumas
perguntas sobre o currículo da escola, e na verdade, aqui, a grande maioria participou
da construção do currículo!
B: (Gesticula afirmativamente com a cabeça)
72
E: Eu farei uma pergunta em função de vocês terem participado da construção do
currículo. Em que momento das discussões da elaboração do currículo surgiu a
proposta de adaptação à realidade rural?
B: Pensa!
E: Como que surgiu essa idéia de adaptar o conteúdo, adaptar o currículo à realidade
rural?
B: Eu acho até que foi em cima... Acho! Eu não lembro bem. Na época, a gente até
comentou. Eu acho que foi já por causa do projeto.
E: Qual projeto?
B: Esse projeto, “Contextualizando a Matemática”. Daí, a gente até comentou alguma
coisa em relação a isso, né!
E: Essa idéia, “Contextualizando a Matemática”, de onde veio?
B: Essa idéia veio nossa mesmo! É um projeto! Daí, até a gente está fazendo em cima
do nome, né! Porque, na época, eu, a minha colega, a professora que era diretora, na
época, a gente estava fazendo faculdade, então, a gente achou... “vamos trabalhar o
projeto todo mundo junto, né!”.
E: Vocês não pegaram nenhum projeto anterior como referência?
B: Nãaao! Não! Não! Assim, foi uma coisa nossa. Assim, a gente talvez, assim, uma
intuição eu lembro, assim! E foi ali que a gente viu, né, que viu a necessidade, né! E eu
até lembro que a diretora até comentou! Ela foi numa reunião e ela comentou que a
Secretária queria fazer assim, eh... os conteúdos de matemática... e, pra o interior,
colocar mais... E até isso eu lembro, que a diretora chegou e comentou: “Ah! A
Secretária quer fazer isso. Ela quer fazer os conteúdos de matemática e adaptar, na
escola rural, mais coisas do convívio deles”. Pra eles saberem. Pra não ter aquela, ou,
né... o pessoal sair do interior. O êxodo rural.
E: Eu não sei se você sabe de um projeto que uma colega fez sobre a Etnomatemática?
B: Ah! Eu lembro! Até eu tenho o projeto, porque foi bem na época em que a colega
estava aqui.
E: Antes de vocês construírem esse projeto, vocês viram esse outro sobre a
Etnomatemática?
B: Eu acho que sim! Eu acho que... eu lembro que ela mostrou sim!
E: Ela quem?
B: Aaaa...
E: A colega?
B: A colega! Ela dava Educação Física pra nós. Então, agora eu não sei se a gente
pensou... Acho que nem pensamos, né! A gente pensou no nosso convívio. A
agricultura aqui, né, que é o fumo, né! O fumicultor. A gente pensou mais em relação a
isso.
E: Uma última questão! Que adaptações, hoje, são necessárias para essa comunidade
rural? Porque parte-se do princípio que nada é contínuo, que sempre há
transformações. E no caso, hoje, se fosse promover adaptações, como seriam? Seriam
as mesmas ou vocês apresentariam novas propostas? Ou se há possibilidades disso.
B: Ah! A gente teria que fazer um trabalho mais profundo, né! Tentar realizar a nível
de projeto talvez, né! E colocar os pais, chamar a comunidade tanto escolar como
73
comunidade em geral, né, pra colocar até os conteúdos, formar um documento, né! Pra
ver a aprovação dos pais, né!
E: Existe alguma proposta aqui, na escola, que trabalhe com as adaptações hoje?
B: Tem!
E: Qual?
B: Acho que... Não está dentro dessa proposta?
E: Nessa?
B: Nessa que você até leu algumas passagens.
E: No projeto político pedagógico?
B: Isso! Isso!
E: Vocês estão seguindo essa proposta?
B: Nós estamos seguindo. Sabe que nem mudou agora, esse ano, né! Então, tem coisas
ali, que nem a parte de jornal, que a gente trabalhava o jornal, né! Então, esse aí, esse
ano acho que já saiu. Não sei! Então, pedagogia empreendedora nós trabalhávamos.
Então, a gente está meio assim, né! Eu não sei... talvez tenha até falado que vai ter
mudanças. Eu não sei! Isso está dentro da Secretaria. Isso aí é uma coisa que a gente
agora que está... porque são pessoas novas. São propostas novas que vão vir, né!
E: Você concorda que as adaptações devam continuar?
B: Não! Tem coisas que sim, tem coisas que não.
E: Como assim?
B: Ah! Sei lá! Que nem, antes eram habilidades. A gente voltou pra conteúdos, né! Sei
lá! Eu gosto de trabalhar com conteúdos. Então é uma coisa positiva, né! Retoma
muitos conteúdos dos que foram deixados de Português. Eu acho que devem
permanecer ... Mudou já esse ano, né! A parte de conteúdo já está bem...
E: E de Matemática, você viu?
B: De Matemática também! Está bem bom.
E: Está bom?
B: Está!
E: Então você acha que com esses conteúdos é possível fazer adaptações?
B: Sim! Eu acho que bom professor consegue fazer adaptação, né! Em qualquer área,
ele consegue.
E: Muito obrigada!
QUADRO 2 RECORTES DO DEPOIMENTO DE BIANCA E SIGNIFICAÇÃO DA PESQUISADORA
Recortes do depoimento Significação da pesquisadora
B1 “.... Então, a gente trabalhou aquele projeto em cima de
coisas do campo mesmo, né! Trabalhar terreno! A gente
levou os alunos pra plantar, né. Com os alunos do Colégio
Agrícola, a gente fez uma parceria com eles, pra eles
medirem terrenos, medirem as mudas.
“Quantas mudas dá
numa bandeja?” Então, aquele projeto ... mas a gente, na
verdade... Você pega alguns conteúdos e coloca tipo assim...
Situações-problema. Você coloca algumas coisas em
situações da vivência deles. ...”
- O projeto desenvolvido na escola c
onteve alguns assuntos
relacionados ao meio rural, como medidas de terrenos e quantidades
de mudas possíveis numa bandeja, sempre buscando estabelecer uma
relação entre os conteúdos selecionados e a vivência dos alunos.
B2 “É! Nesse foi que a gente pensou num projeto assim,
trabalhando a matemática pra levar pra série
, pra
conhecimento deles.”
-
Pensa num projeto que envolva a matemática, para que os alunos
possam conhecê-la.
B3
“Nós pegamos todos. Todos! Todas as séries. Cada
professora adaptou, assim à sua série.”
- Cada professora adapta os conteúdos à sua série.
B4 “Eu acho até que foi em cima... Acho! Eu não lembro
bem. Na época, a gente até comentou. Eu acho que foi já por
causa do projeto.”
- Apesar de não lembrar bem, acha que essa idéia
surgiu devido ao
projeto em andamento.
B5 “... Como eu te falei! Se você fizer um projeto
específico pra eles, trabalha bem mais do que você trabalhar
conteúdos.”
-
Elaborar projetos e trabalhar a partir desta perspectiva exige mais
do que simplesmente apresentar conteúdos.
B6 “... E foi ali que a gente viu, né que viu a necessidade
,
né! E eu até lembro que a diretora até comentou! Ela foi
numa reunião e ela comentou que a Secretária queria fazer
assim, eh... os conteúdos de matemática... e, pra o interior,
colocar mais
... E até isso eu lembro, que a diretora chegou e
comentou: “Ah! A Secretária quer fazer isso. Ela quer fazer
os conteúdos de matemática e adaptar, na escola rural, mais
-
Percebe a necessidade dos projetos com o desenvolvimento do
projeto e também, com os comentários da diretora. Nos comentários
destaca-
se o interesse da Secretária de Educação em adaptar na
escola rura
l questões relacionadas ao contexto dos alunos, como uma
forma de diminuir o êxodo rural.
coisas do convívio deles.” Pra eles saberem. Pra não ter
aquela, ou, né... o pessoal sair do interior. O êxodo rural!”
B7 “ ...A gente pensou no nosso convívio. A
agricultura
aqui, que é o fumo, né! O fumicultor. A gente pensou mais
em relação a isso.”
- O projeto desenvolvido na
escola foi pensado em relação à
agricultura local e ao fumicultor.
B8 “Ah! A gente teria que fazer um trabalho mais
profundo, né! Tentar realizar a nível de projeto
, talvez, né! E
colocar os pais, chamar a comunidade, tanto escolar como
comunidade em geral, pra colocar até os conteúdos, formar
um documento, né! Pra ver a aprovação dos pais.”
- Para realizar adaptações no currículo, deve-
se fazer um trabalho
com profundidade. Talvez devesse ser elaborado um projeto que
envolvesse a comunidade escolar, os
pais e a comunidade em geral,
possibilitando a formulação de um documento.
B9 “Nós estamos seguindo. Sabe que nem mudou agora
,
esse ano, né! ... Eu não sei... talvez tenha até falado que vai
ter mudanças. Eu não sei! Isso está dentro da Secretaria.
- Está seguindo o projeto político-
pedagógico da escola, apesar de
não saber se haverá mudanças.
B10 “Não! Tem coisas que sim, tem coisas que não.” -
Pensa que há coisas que podem passar por adaptações e há coisas
que não precisam passar por adaptação.
B11 “Ah! Sei lá! Que nem antes eram habilidades. A gente
voltou pra conteúdos, né! Sei lá! Eu
gosto de trabalhar com
conteúdos. Então é uma coisa positiva, né! Retoma muitos
conteúdos que foram deixados de Português. Eu
acho que
devem permanecer... Mudou
já esse ano, né! A parte de
conteúdos já está bem...”
-
Um aspecto positivo das adaptações é o retorno ao trabalho com
conteúdos. Anteriormente trabalhava-se com habilidades.
76
SÍNTESE DA PESQUISADORA SOBRE A ENTREVISTA DE BIANCA
A pesquisadora admite ter utilizado previamente, em alguns momentos dessa
entrevista, o termo adequação em vez de adaptação. Ademais, a pesquisadora, em
alguns momentos, parece admitir uma forma de adequação do currículo através de
projetos. Apesar de não aparecer explicitamente no questionário uma pergunta sobre a
adequação do currículo à realidade do aluno do campo, Bianca parece manifestar uma
lembrança sobre o assunto. Ela relata que o projeto desenvolvido na escola conteve
alguns temas relacionados ao meio rural, como as medidas de terrenos e o cálculo da
quantidade de mudas possíveis numa bandeja. Bianca se preocupa em estabelecer uma
relação entre os conteúdos selecionados e a vivência dos alunos. Pensa, portanto, num
projeto que envolva a matemática e que cada professora possa adaptar de acordo com a
sua série. Admite que elaborar projetos exige bem mais do que apresentar conteúdos.
Apesar de não lembrar bem, acha que a proposta de adaptar o currículo à realidade
rural surgiu devido ao desenvolvimento do projeto “Contextualizando a Matemática”.
Percebe a necessidade do projeto para a escola nos comentários da diretora e no
interesse da Secretária de Educação em adaptar o currículo, na escola rural, a questões
relacionadas ao contexto dos alunos como uma forma de diminuir o êxodo rural. Dessa
forma, indica que o projeto foi pensado em relação à agricultora local e ao fumicultor.
Acredita que, atualmente, para promover adaptações, deva-se fazer um trabalho com
profundidade. Talvez devesse ser elaborado um projeto que envolvesse a comunidade
escolar, os pais e a comunidade em geral, possibilitando a formulação de um
documento. Bianca acha que a proposta de trabalho com as adaptações está inserida no
projeto político pedagógico da escola, apesar de não saber se haverá mudanças nessa
proposta. Não tem certeza se as adaptações devem continuar, pois antes eram
habilidades e agora houve o retorno para os conteúdos, o que é um aspecto positivo.
77
CAMILA
DESCRIÇÃO
Com formação em Magistério Superior, a professora atua em escola rural há vinte
anos. Atualmente reside na cidade.
O currículo da escola, na sua opinião, contempla todas as áreas do conhecimento e
direciona para um forma de trabalho com projetos. Afirma ter participado de sua
construção dando opiniões. Acredita que, no momento, não há necessidade de
reformulação do currículo. Por acreditar que este esteja bom, não apresenta sugestões
para sua melhoria. Com relação ao conteúdo de matemática, afirma estar dentro das
expectativas para cada série e em seu trabalho, busca o envolvimento desta com outras
áreas. Concorda que esse conteúdo seja importante para a população rural, pois é uma
necessidade para quem lida na lavoura. Acredita que na sua escola já esteja sendo
trabalhado de modo a adaptar o conteúdo de matemática às especificidades do meio
rural, e a forma utilizada é envolver os conteúdos em situações do cotidiano dos
alunos. Considera que isso seja uma adaptação, pois visa o empenho dos alunos em
querer aprender e passar para frente esse conhecimento.
C(Professora) e E(Entrevistadora) estão sentadas na sala da diretora e encontram-se
uma de frente para outra. A pesquisadora conversa com a professora sobre o
questionário respondido e sobre a necessidade de complementá-lo com uma entrevista.
E: Bom dia!
C: Bom dia!
E: Professora, eu farei algumas perguntas e gostaria que você me respondesse. Por que
ser professora no meio rural?
C: Porque sempre foi meu sonho ser professora, desde que eu era pequena. E quando
eu comecei a trabalhar, comecei já no interior, morando no interior. E sempre gostei.
Trabalhei na cidade, mas eu gosto mais do interior. Me identifico mais com o interior.
E: Você prefere as crianças do interior, o ambiente do interior?
C: É melhor! São crianças mais calmas e parece que participam mais. Sei lá! Eu gosto
mais de dar aula no interior.
E: Por que ser professora?
C: Porque é meu sonho, desde pequena, toda vida, toda vida, gostei de... Desde a
primeira série, primeiro ano, né, que via a imagem da professora como o ideal, né!
Acho que foi isso.
E: Você lembra que, na semana passada, nós respondemos a um questionário?
C: Sim!
E: E, nesse questionário, existiam algumas perguntas relacionadas ao currículo do
campo, relacionadas ao conteúdo. Eu vou voltar à questão do currículo. Em uma das
perguntas, eu questionava o seguinte: se eram feitas adequações no currículo levando
em consideração a realidade do campo.
C: Ahan, ahan!
78
E: E daí, a maioria de vocês, inclusive você, respondeu que sim, que são feitas essas
adequações. E, na verdade, essas adequações são feitas em forma de projetos.
C: De projetos...
E: Daí, perguntarei em função disso que li: como você, hoje, faz a adequação do
currículo à realidade do aluno através de projetos?
C: A gente trabalha sempre pensando no bem estar da criança, porque muita coisa que
está no currículo, ainda a gente vê que precisa ser mudado, mas a gente, na medida da
escola, a gente já vai mudando, adaptando, porque a realidade da cidade é bem
diferente da nossa, do interior, né! Se bem que é necessário trabalhar tudo, né! Tudo
um pouco. Mas, no sentido assim, que nem no interior aqui, que é mais na plantação,
mais usam muita matemática, né! Então, a gente trabalha nesse sentido.
E: Você acha que o currículo da cidade e o do campo são o mesmo?
C: Sim... Não importa que sejam a mesma coisa, mas muita coisa poderia ser mudada,
mais assim, na medida em que a gente, que a gente quase não... Como antigamente,
que os pais, né, das crianças, conhecem muito mais sobre... aquelas medidas de terra,
sabe, né? Deveria ser trabalhado mais nisso, ser batido. Creio que isso tudo mais é
nosso! Do ginásio, no caso, do ginásio, mas... deveria ser batido já na quarta série já...
essas medidas que estão sendo esquecidas. Eu acho assim, né, que até a gente, como
professor, também esquece muitas vezes. Tem que procurar, voltar e descobrir pra
ensinar.
E: Que série que tu trabalhas?
C: Eu estou com a terceira série. Trabalhei com primeira e segunda toda vida, né! Mas
eu vejo na quarta série aqui! Aqui, como é o caso de plantação, então eles precisam
muito de medidas, né!
E: E os pais pedem?
C: Eles não pedem... Mas a gente... Uma vez, quando houve um projeto que trabalhou
aqui, a gente notou, que... eles achavam assim, que estava bom, mas faltava mais
alguma coisa, porque a metade das mães dessas crianças, quando estudavam, elas
voltam tudo pra terra, né! Medidas de estufa, de... plantação de fumo, de pinus. Tem
várias medidas assim. Mais amplo fica... Ou trabalha o metro... mais as medidas...
E: Você conhece o currículo de hoje, atual, com os conteúdos propostos?
C: Sim. Estamos estudando ainda, né!
E: Mas você acha que aquilo é suficiente ou teria que estudar mais um pouco?
C: Não! Acho que mais um pouco. Pra sair com uma base bem boa.
E: A segunda pergunta refere-se à elaboração do currículo. Eu perguntei, no
questionário, se vocês tinham participado da discussão, da elaboração do currículo, e
vocês disseram que sim. O que você está chamando como currículo? É o projeto
político-pedagógico? É isso que você chama de currículo?
C: Sim!
E: Em que momentos das discussões, da elaboração do currículo, então, surgiu a
proposta de adaptação à realidade rural? Em que momento que vocês estavam
elaborando que de repente veio essa idéia? Não, vamos fazer adaptações porque o
currículo não está legal! Temos que modificar pra realidade do campo.
C: Eu sei que a gente viu, né, que estavam faltando algumas coisa. Já, nisso a quarta
série, no caso, aqui! Já não são mais a primeira e a segunda, mas elas... Acho que por
79
causa daquele projeto que trabalhou, que a diretora trabalhou antes, né, que já viu, que
elas fizeram pesquisa. Tudo com os pais. Projeto, daí!
E: (A pesquisadora apanha sobre a mesa um projeto de término de curso) Esse
projeto é este aqui?
C: Isso mesmo: “Contextualizando os saberes matemáticos”. A gente via que faltava
alguma coisinha, né! E esse projeto de trabalho foi muito, muito bom pra mim. Na
faculdade, elas estudavam à noite e eu de manhã.
E: Estudavam onde?
C: Magistério Superior, em Rio Negro. Agora vai fazer dois meses que a gente se
formou.
E: Então, na verdade, surgiu essa discussão tendo como ênfase para a matemática, só a
matemática?
C: Só matemática.
E: Não houve português? Não houve discussão nas outras áreas?
C: Não! Mais na matemática. Porque nas outras áreas é... é incompatível, né?
E: No caso, a matemática, por que a matemática? Porque vocês já tiveram
conhecimento de algum projeto anterior? Alguma coisa que deu idéia ou foi a
Secretária que, no caso, da época, colocou que seria importante fazer essas
adaptações?
C: Uma certa vez, a nossa, que era nossa secretária antes, ela comentava. Ela achava
que deveria ter mais coisa para o meio rural.
E: Ela comentava?
C: Comentava isso. “Agora, em matemática?” Comentava que precisava mais coisa
voltada para o rural.
E: Hoje, na realidade de hoje, nessa localidade, que adaptações são necessárias para
essa população rural? Ou você acha que está sendo tudo adaptado. Você acha que está
tudo pronto?
C: Não, não! Sempre vai ficar alguma coisa. Nunca está nada pronto, né! Porque a
gente está em mudanças, sempre mudando.
E: E hoje, que sugestões você daria como professora de terceira série? Se fosse adaptar
os conteúdos à realidade do campo, em matemática, o que você faria ou em quais
conteúdos você pensaria?
C: Mais na questão das medidas, ali! Eu também gosto de trabalhar assim... mais
assim... que tivesse mais os pais dentro da escola.
E: Os pais não vêm à escola?
C: Eles vêm! Mas deveria ter mais sugestões dos pais porque a gente vê que é uma
coisa, que é o futuro deles, a terra. Eles que convivessem mais, assim.
E: Você acha importante os pais falarem?
C: Sim. Muito importante porque a base é eles, né! Porque... porque não quer dizer
também que na cidade, também, né, os alunos de lá podem estudar, no caso, as
medidas porque querem de repente, mais tarde pode surgir um agricultor.
E: E esse pessoal que sai daqui, eles vão estudar na cidade?
C: Na maioria dos casos, vão.
E: Eles se adaptam facilmente à cidade ou têm dificuldade?
80
C: Puxa! Agora... no pouco tempo que eu trabalho aqui... Morar na cidade ou, no caso,
que vão estudar?
E: Estudar. Na quinta série, quando eles vão para quinta série, eles têm dificuldades
com relação ao conteúdo? No caso, assim, em termos de desenvolvimento, eles
conseguem acompanhar igual aos alunos da cidade?
C: Alguns acompanham ainda. Porque eu não sei como é o currículo lá da cidade. Até
a quarta série a gente sabe, mas os outros?
E: Até a quarta série, você julga que é igual o currículo da cidade e do campo?
C: Não! Acho que não. Nunca trabalhei na sede, na cidade, assim. Eu sei como é
interior. Não tenho muito conhecimento, mas deve ser mais o mesmo currículo. Mas
deveria ter bem mais coisa, deveria ter... no interior, deveria ter mais coisas no
currículo porque é a base mesmo, entende! Eu acho que falta muita coisa.
E: E muitas crianças estão saindo do campo e indo para cidade, né?
C: Sim!
E: Então, o papel da escola seria estimular as crianças para ficar no campo?
C: Também!
E: Você acha que o currículo contribui para que a criança fique no campo?
C: A gente já trabalha aqui nesse sentido, mas, se fosse ser um currículo, mas, se fosse
nesse modelo, é claro que seria muito mais fácil, porque os pais iam ver que a criança
estava aprendendo coisa que tem mais significado pra eles. Que nem, eu acho assim,
não sei como é que estão as aulas lá no ginásio. Tanta coisa que você estuda, no meu
tempo, que a gente nunca vai usar. Então, por que não trocar por uma coisa que é mais
significativa? Acho coisa muito distante.
E: Muito obrigada pela entrevista.
81
QUADRO 3 RECORTES DO DEPOIMENTO DE CAMILA E SIGNIFICAÇÃO DA PESQUISADORA
Recortes do depoimento Significação da pesquisadora
C1 “A gente trabalha sempre pensando no bem estar da criança
,
porque muita coisa que está no currículo
, ainda a gente vê que
precisa ser mudado, mas a ge
nte, na medida da escola, a gente já
vai mudando, a
daptando, porque a realidade da cidade é bem
diferente da nossa, do interior, né! Se bem que é necessário
trabalhar tudo, né! Tudo um pouco.
Mas, no sentido assim, que
nem no interior, aqui, que é mais pla
ntação, mais usam muita
matemática, né! Então, a gente trabalha nesse sentido.”
-
Percebe que algumas coisas que estão no currículo precisam
ser modificadas, adaptadas, porque a realidade da cidade é
bem diferente da realidade do interior.
C2 “... Não importa que sejam a mesma coisa, mas muita coisa
poderia ser mudada, ... os pais, né, das crianças, conhecem muito
mais sobre... aquelas medidas de terra, sabe, né? Deveria ser
trabalhado mais nisso, ser batido. . Creio que isso tudo mais é
nosso! Do ginásio, no caso, do ginásio, mas... deveria ser batido
na quarta série já... essas medidas que estão sendo esquecidas
. Eu
acho assim, né, ...”
-
As adaptações sugeridas visam à manutenção e à utilização
do conhecimento produzido no meio rural. Os pais das
crianças conhecem muito sobre medidas de terra. Esse
conhecimento poderia estar sendo trabalhado na escola. Essas
medidas são mais do meio rural, mas, com o tempo, estão
sendo esquecidas.
C3 “... Mas eu vejo na quarta série aqui! Aqui, como é o caso de
plantação, então eles precisam muito de medidas, né!”
- As crianças do meio rural precisam muito do conhecimento
de medidas.
C4
“ ... Uma vez, quando houve um projeto que trabalhou aqui, a
gente notou que.... eles achavam assim, que estava bom, mas
faltava alguma coisa, ... Medidas de estufa, de...
plantação de
fumo, de pinus. Tem várias medidas assim. Mais amplo fica. ...”
- Os pais das crianças percebem a falta de assuntos
relacionados ao meio rural, como as medidas de estufa, a
plantação de fumo e a plantação de pinus.
C5 “... Acho que por causa daquele projeto
que trabalhou, que a
diretora trabalhou antes, né, que já viu, que elas fizeram pesquisa.
Tudo com os pais. Projeto, daí!”
- As adaptações, propostas via Projeto Político-Pedagógico,
surgiram por causa do projeto “Contextualizando os saberes
matemáticos”.
C6 “Não! Mais na matemática. Porque nas outras áreas é... é
incompatível, né?
- As adaptações visavam apenas ao ensino da matemática.
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C7 “Comentava isso. “Agora, em matemática?” C
omentava que
precisava mais coisa voltada para o rural.
-
A Secretaria de Educação comentava que precisava, no
currículo, mais assuntos voltados para o meio rural.
C8 “Mais na questão das medidas, ali! Eu também gosto de
trabalhar assim... mais assim.
.. que tivesse mais os pais dentro da
escola.”
-
Se fosse possível propor adaptações, a depoente pensaria
mais nas medidas e na possibilidade de os pais estarem mais
na escola.
C9 “Eles vêm! Mas
deveria ter mais sugestões dos pais porque a
gente vê que é uma coisa, que é o futuro deles, a terra
. Eles que
convivessem mais, assim.”
- Deve haver mais sugestões dos pais porque o futuro dos
alunos, seus filhos, é a terra.
C10 “... Não tenho muito conhecimento, mas deve ser mais o
mesmo currículo. Mas deveria ter mais coisa, deveria ter... n
o
interior, deveria ter mais coisas no currículo porque é a base
mesmo, entende! Eu acho que falta muita coisa.”
-
A professora acredita que, o currículo do interior, deveria
conter mais conteúdos. Ainda falta muita coisa.
C11 “A gente já trabalha aqui nesse sentido,
mas, se fosse ser um
currículo, mas, se fosse nesse modelo, é claro que seria muito mais
fácil, porque os pais iam ver que a criança estava aprendendo coisa
que tem mais significado pra eles. ... Então, por que não trocar por
uma coisa que é mais significativa? Acho coisa muito distante.”
- Um outro modelo de currículo permitiria que os conteúdos
fossem abordados de maneira diferente, tornado-os mais
significativos para os pais e para as crianças.
83
SÍNTESE DA PESQUISADORA SOBRE A ENTREVISTA DE CAMILA
A pesquisadora admite ter utilizado previamente, em alguns momentos dessa
entrevista, o termo adequação em vez de adaptação. Ademais, a pesquisadora, em
alguns momentos, parece admitir uma forma de adequação do currículo através de
projetos apesar de não aparecer explicitamente no questionário uma pergunta sobre a
adequação do currículo à realidade do campo, Camila parece manifestar uma
lembrança sobre o assunto. Ela percebe que algumas coisas que estão no currículo
precisam ser modificadas, adaptadas, porque a realidade da cidade é bem diferente da
realidade do interior. Para Camila, as crianças do meio rural precisam saber sobre
medidas. Relata que os pais das crianças conhecem muito sobre medidas de terra e
afirma que isso poderia estar sendo trabalhado na escola. Essas medidas são mais do
meio rural, mas, com o tempo estão sendo esquecidas. A idéia de adaptar o currículo à
realidade rural surgiu principalmente devido ao projeto “Contextualizando os Saberes
Matemáticos”, tendo como ênfase a matemática. A Secretária de Educação também
comentava que precisava haver no currículo mais assuntos voltados para o meio rural.
Camila relata que, se fosse adaptar os conteúdos à realidade do campo, pensaria mais
nas medidas e na possibilidade de os pais estarem mais na escola. Acha importante
haver mais sugestões dos pais porque o futuro das crianças da região é a terra. Acredita
também que o currículo do interior deveria conter mais conteúdos, pois parece faltar
muita coisa. Um outro modelo de currículo permitiria que os conteúdos fossem
aprofundados de forma diferente, tornando-o mais significativo para os pais e para as
crianças. Embora nas respostas dadas ao questionário a professora afirme que não há
necessidade de reformulação do currículo, na entrevista Camila aponta não apenas
para esta necessidade mas também apresenta sugestões de conteúdos que poderiam ser
adaptados.
84
DIRCE
DESCRIÇÃO
Com formação em licenciatura e bacharelado em História, a professora atua em escola
rural há quase dez anos, tendo sempre residido no meio rural.
O currículo da escola, na sua opinião, é elaborado pela Secretaria Municipal de
Educação. Neste currículo, as disciplinas são divididas, respectivamente, com seus
conteúdos, os quais devem ser desenvolvidos no decorrer de um ano. Afirma não ter
tido uma participação direta na construção do currículo da escola. Observa que a
escola recebeu o currículo, o qual encontra-se em fase de experimentação e sujeito a
alteração. Acredita que haja propostas de reformulação do currículo atual, apesar de
não poder afirmar claramente quais seriam. Sabe que algo pode ser tirado do,
adequado ou reformulado no currículo, caso seja necessário. Como sugestão para
melhoria do currículo da escola do meio rural, destaca que gostaria de aprender, para
depois poder transmitir aos alunos, conteúdos referentes a este meio: conteúdos
relacionados a terras, a plantações, a madeiras; e gostaria de compreender, por
exemplo, o que é uma braça, um alqueire, um cargueiro. No restante, não vê a
necessidade de alterações no currículo e as que cita são pela necessidade de
conhecimento. Com relação ao conteúdo de matemática, algumas vezes, tem
dificuldade em identificar do que exatamente tratam, procurando a direção para
esclarecimentos. Sabe o que e como deve ser trabalhado, mas a linguagem é confusa.
Por exemplo, em qual conteúdo cabe o que vou trabalhar? Concorda que o conteúdo
de matemática seja importante para a população rural, pois essa população tem contato
com muitos setores, no seu meio e fora dele, e é preciso dominar e conhecer os
conteúdos matemáticos para um melhor relacionamento entre os meios. Apesar de
afirmar adaptar o conteúdo de matemática a realidade do meio rural através da
realização de multiplicação de pés de alface plantados na horta, entre outros,
relacionados com operações, gráficos, situações-problema com animais e colheita dos
produtos produzidos, julga apresentar dúvidas sobre a necessidade de adaptar o
conteúdo de matemática às especificidades do meio rural, pois a sua comunidade não
vive somente da produção rural. Considera que o uso de situações-problema do meio
seja uma adaptação porque usa o que tem disponível à sua volta para alcançar um
determinado objetivo. Conclui dizendo que, por morar na área rural, usa cavalos e
milhos, mas, se morasse no litoral, usaria peixes e barcos para facilitar a compreensão
da matemática.
D(Professora) e E(Entrevistadora) estão sentadas na sala do pré III e encontram-se
uma de frente para outra. A pesquisadora conversa com a professora sobre o
questionário respondido e sobre a necessidade de complementá-lo com uma entrevista.
E: Bom dia.
D: (Risos) Bom dia.
85
E: Eu não sei se você está lembrada? Mas na semana passada eu estive aqui, aplicando
um questionário com vocês.
D: Sim!
E: E nesse questionário fiz algumas perguntas.
D: Humm!
E: Dentre elas, sobre o currículo, sobre o conteúdo de matemática. E eu gostaria hoje,
de estar aprofundando um pouquinho mais essas questões. Então, vou fazer a primeira
pergunta: com relação ao currículo, o que é o currículo para você?
D: O currículo pra mim seria aquele rol de tudo o que você tem que trabalhar, tudo o
que você tem que desenvolver durante um ano éé... Seja pro aluno tanto na sua vida
familiar, social ou de conhecimento mesmo. Conhecimentos gerais, né, então é como
se fosse do A ao Z. Tudo que você trabalhar tem que estar no currículo, né, porque se
não, você fica solto não sabe o que dar, no meu ver.
E: (A entrevista é interrompida pela presença de uma outra professora na sala de
aula) Prosseguindo a nossa entrevista. Nós estávamos falando do currículo, né? Tem
mais alguma coisa que você gostaria de complementar?
D: Ah! Eu acho assim, como eu já falei, que um currículo é um rol que a gente deve
seguir. E ele é completo. Ele abrange todas as áreas. E eu acho assim, que facilita
muito o trabalho da gente quando você sabe exatamente que caminho seguir. Porque
quando está tudo solto que você tem que montar, então você tem dois trabalhos. Você
montar e ainda preparar a tua aula. Assim, já está metade do caminho andado. Facilita
muito o trabalho do professor. Principalmente eu, que tenho duas turmas, né? Trabalho
o dia todo.
E: Quais são as turmas?
D: Eu tenho pré-escola e quarta série.
E: Você considera importante a sua participação na elaboração do currículo da escola?
Por quê?
D: Eu acho que sim. Em alguns casos... em alguns até não, né, porque, que nem, tem
algumas questões como História, Ciências... são questões óbvias que você deve
trabalhar. Não vejo a minha, tanto a necessidade da minha participação. Mas eu acho
assim, que a linguagem e a matemática precisam muito da participação do professor,
porque quem está na sala de aula sabe até onde o aluno pode chegar, né! E, pra quem
não está é, fácil falar. Mas, quando cabe ao professor executar, tem coisas que o
professor não vai conseguir fazer porque o aluno dele não tem condições de chegar até
aquele ponto que foi determinado. Eu acho que seria importante...
E: Você considera que não é necessário fazer as adaptações nesta comunidade? Isso
você fala no questionário.
D: Assim... Aquelas adaptações que a gente vê... que por causa de determinadas
plantações, determinados tempo de colheita. Na nossa comunidade, não chega a esse
extremo.
E: No entanto, você faz adaptações no conteúdo de matemática.
D: Mas assim... simples.
E: Por quê? Você considera isso importante?
D: Eu acho assim, que, quando a criança usa o que está do lado dela, é mais fácil. Eu
lembro que num dos Cursos que a gente fez, quando comecei a dar aula, eh... uma
86
professora, a palestrante, colocou assim que, quando a criança ouve da boca do
professor, ela não guarda na mente, mas aquilo que ela vive, que ela vai lá, que ela
anda, que ela vê, que ela pega, ela diz que fica registrado pra sempre na mente dela.
Então, a gente? Como que eu vou fazer, por exemplo, de barco, de medida de praia se
tem crianças lá que nunca viram um barco, nunca viram uma praia? Então, eu acho
que é mais fácil usar as coisas, né! Mas não que isso, que o nosso currículo tenha que
ser diferente porque a gente é do interior. Eu acho que não! Está claro? Estou sendo
clara, ou não?
E: A pergunta foi, na verdade, se você considera importante as adaptações?
D: Eu considero importante.
E: As adaptações, que aqui eu me refiro, no currículo de matemática. E isso implica
também falar do conteúdo de matemática.
D: Ah, sim.
E: E você faz essas adaptações hoje? Continua a fazer?
D: Pouca coisa. Não muito. Mas a gente faz. Sempre que há a possibilidade, né! A
gente faz, sim.
E: O que você entende por adaptação no Currículo de matemática?
D: Seria... Não tenho bem certeza, né! O que eu acho, né?
E: O que você entende?
D: O que eu entendo? Seria eu usar, transformar algum... Por exemplo, lá você tem um
determinado conteúdo, por exemplo, para trabalhar, que eu vejo que não tem
necessidade na minha comunidade, que os meus alunos não vão usar aquilo, não vão
vivenciar aquilo. Trocar ele por uma outra situação que é o que se vive aqui!
E: Você poderia dar um exemplo?
D: Por exemplo, de... distância, né, um exemplo bem simples. Quem trabalha na
cidade pode usar quadra, pode usar quarteirão. Nós não temos isso aqui, né! Então, é
muito difícil pra gente trabalhar a sinalização de trânsito. Quando a gente recebe...
recebia, na gestão anterior, algumas coisas assim, diretas pra trabalhar. Só que nós não
temos isso aqui. Como que a gente ia educar os alunos pra atravessar a rua, na faixa de
pedestre? Nós não temos aqui. Então, não cabia pra nossa realidade. Então, nós
tínhamos que ensinar a eles o lado da rua que era pra andar, né, parar, observar onde
que era a parada do ônibus, que lado da rua eles tinham que andar com a bicicleta,
porque eles não tinham faixa, sinal, eh..., placas de calçadas pra se localizarem, né!
Então, a gente tinha que usar o que a gente tinha na mão. Não podíamos usar... “Oh!
Vamos pintar uma faixa, aí, porque se...”
E: Nos dias de hoje, então, isso seria um exemplo de adaptação?
D: Seria um exemplo de adaptação. Nossa! Porque nós não temos faixa! Nós temos
lombada assim, de terra, mas não tem sinalização. Nós não temos semáforo aqui! Nem
na nossa cidade, não tem, né? Então, fica difícil trabalhar. Então, o que é que a gente
fazia. A gente tem o material tipo placas e tudo... A gente subia na quadra, montava
uma cidade...
E: Isso pra ti é adaptação?
D: Olha, não seria bem adaptação. Eu estava cumprindo o currículo. Só que ele estava
fazendo e conhecendo coisas, mas eles não iriam pôr em prática porque eles não têm
87
na rua que eles andam. Então, era uma forma de eu fazer ele conhecer. Mas não que
eles iriam viver.
E: Mas isso faz parte da realidade do aluno?
D: Faz, né, porque eles vão para Rio Negro, né! Mas eu acho assim, que como
currículo tinha que ser selecio... estar usando a todo instante. Porque nós temos
crianças aqui que não vão para Rio Negro. Passam um mês, dois, sem ir para Rio
Negro. Então, como é que eu vou pedir para eles desenharem uma placa? Tal... Ou
semáforo? Ele vai ficar te olhando e imaginando do que você está falando? É difícil!
E: Por que ser professora de escola rural?
D: Olha! Não sei dizer exatamente porque de rural, sabe? Mas eu amo a minha escola.
A minha mãe foi a primeira professora. Eu fui aluna nessa escola. Eu tenho um amor
muito grande por ela. Eu trabalhei já em outros lugares, mas, assim, meu coração
acelerava porque eu não via a hora de voltar para minha escola. Porque a gente não
mede esforços pra fazer o que for preciso, a gente faz de tudo pro nome da escola ser
elevado, procura sempre fazer o melhor, porque são as nossas raízes, né! A minha mãe
trabalhou pelo que está hoje! Então, eu tenho que trabalhar o hoje pra amanhã
continuar cada vez melhor. Então... Eu gosto daqui! Eu não troco o meu lugar por
nada! (Risos) E a minha escola eu não troco por nenhuma também!
E: Se fosse possível fazer alguma adaptação, hoje, no currículo e se fosse possível a
sua participação, o que você faria?
D: O que eu faria? Desliga aí para eu pensar. Ah! Acho que podia, assim... mais
visitação, porque nós temos aqui o frigorífico. E nossos alunos moram aqui, mas não
conhecem o frigorífico. Então, de repente, conhecer alguma coisa do funcionamento
dele. Conhecer os processos do fumo. Eu acho muito interessante isso, porque eles
vivem aqui. Eles sabem que o pai planta fumo, mas se você perguntar: como é o
processo do fumo? Eles não sabem! Tem que semear; daí, tem que transplantar; daí,
tem que colher; daí, tem que amarrar; tem que secar, tem que classificar, tem que
enfardar, tem que bonecar, né! Eu acho muito interessante! E outra coisa também. A
gente vê... eu vejo pelo meu pai! Que ele fala muito em braça, em cargueiro de milho...
Eu não sei o que é isso! E eu nasci aqui! Sabe? Então, eu lembro um dia. Eu estava na
faculdade, Deise. O meu pai mandou eu sentar na mesa pra ajudar ele a fazer algumas
contas de terra. Daí, ele: “Então, põe lá” tantos litros mais não sei quantos arquere,
mais não sei ... Eu fiquei olhando pra ele! Ele: “Escreva!” Falei: “Mas que número que
eu coloco?” Eu não sabia, Deise. Aí ele disse: “Mas adianta você estudar tanto?” Eu
estava na faculdade! E não sabe fazer uma conta. (Risos) Então, você veja. A gente
fica assim. Porque... quantas vezes eles ouvem os avós falarem sobre isso, mas eles
não sabem o que é! Eu não sei o que é, né! Então, eu achava importante, não que eles
tenham que saber calcular, de repente, mas conhecer porque faz parte do nosso lugar,
faz parte da área rural, do campo, como diz você! Daí, esses termos assim, que as
pessoas usam, eu acho que deveriam aparecer... como lá da metragem... tem o
quilômetro, tem a tonelada, no peso. Então, eu acho que esses termos também
deveriam aparecer. Faz parte do nosso meio.
E: E neste currículo não aparece?
D: Não! Em alguns livros, há alguns anos atrás ainda tinha, sim! Mas eu confesso pra
você que eu lendo ali, eu não entendia. Tinha que alguém me ensinar pra eu poder
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entender como fazer, sabe. Então, eu acho interessante. Assim, em termos de conhecer,
né, de saber o que significa. Porque muitas coisas a gente ensina pros alunos para eles
aprenderem a calcular e muitas coisas a gente ensina pra eles em termos de
curiosidade, de conhecer, de saber que tem. Então, eu gostaria de saber. (Risos)
E: Mais alguma coisa que você gostaria de falar?
D: Que eu gostaria de alterar?
E: De falar, de obter, de alterar, contribuir...
D: Esse projeto das hortas, eu considero ele muito importante. Ele veio assim... muito
ao encontro com a nossa realidade aqui! Porque, você veja: nós moramos numa área
rural. Às vezes, tem famílias que se queixam que não têm o que comer. Eles mandam
bilhetes pra escola dizendo que a criança vem pra comer porque não tinha o que comer
em casa... Sendo que é fácil plantar um pé de couve, fazer uma farofa, alguma coisa!
Então, o que estava acontecendo. Esse projeto, ele veio... Os meninos orientam os
alunos. Só que eles não sabem! Eles orientam os alunos a eles fazerem porque, pra
quando eles chegarem em casa, eles fazerem a horta em casa. E sempre passando que é
um produto saudável, sem agrotóxicos, que vem a enriquecer a alimentação, que é
barato. Sem contar com o nível de saúde, né.
E: Fale um pouquinho mais sobre esse projeto. Quem trabalha nesse projeto?
D: Esse projeto é uma parceria da Prefeitura com o Colégio Agrícola. Então, a cada
quinzena, os alunos do terceiro ano do Colégio Agrícola, eles são divididos, e vai um
grupinho pra cada escola. Então, nesse dia que eles vêm, eles trabalham com os alunos
do quarto ano, da quarta série. Tem escola que não tem ferramenta, que não compra
sementes, nada, né. Mas, aqui, a gente sempre providenciou de tudo. A gente precisa
de estrume, os pais trazem de camionete, sabe? Precisa cinza pra fazer o composto, os
pais que têm estufa trazem de saco pra escola. Todo mundo colabora. Inclusive, tem o
projeto Verde é Vida, no município, onde algumas escolas pilotos fazem parte. Então
eles ganham da AFUBRA, que é uma parceira, elas ganham sementes, elas ganham
mudas...
E: O que é AFUBRA?
D: A AFUBRA é a Associação dos Fumicultores do Brasil. Então, eles comercializam
de tudo pro agricultor, né! Então, eles dão semente, eles dão as bandejas de semeadura,
eles dão regadores, eles dão adubo, eles dão uréia, as lonas pra fazer plucto. E essas
escolas, que fazem parte desse projeto, elas fazem viagens promovidas pela AFUBRA,
né! Até foi comentado que a nossa escola estava na lista... a primeira da lista! Se fosse
incluída mais uma escola, a nossa escola passaria a fazer parte. O ano passado foi dado
alguns roteiros de teatro pras escolas, né! E veio um pra nossa escola. Você veja. A
nossa escola não faz parte do Verde é Vida, mas foi a nossa escola que foi escolhida
pra apresentar o teatro num dos dias de fórum do Verde é Vida. A nossa escola que
apresentou. Então, a gente escolheu uma peça sobre a reciclagem do lixo, né! A
poluição do meio ambiente, de conscientização, de usar a escola e os alunos pra
conscientizar os pais e a sociedade, né! Então, a gente espera de repente! Porque
sempre a nossa horta, quando os meninos do Colégio Agrícola não vêm, eu faço esse
trabalho. Então eles vêm, eles começam. Na semana seguinte, eles não vêm. Só que eu
vou pra horta, dou uma recapitulada no que foi visto. Às vezes, a gente faz transplante,
os meninos tiram as medidas, preparam canteiro, preparam o composto, cavam a terra,
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pra mostrar como é que quando a terra está boa e tal. Então, eu acho que essa é uma
adaptação. Não é assim, do currículo, mas é um projeto que está inserido e que vem a
enriquecer a área rural. Na área urbana, muitas vezes, as crianças não vão se interessar
por uma horta porque, às vezes, elas têm outro, outra coisa pra se distrair, mas no
nosso meio, não. Você viu ali a criança dizendo. Eles brincam. Quem não vai trabalhar
na roça com o pai fica em casa brincando. De repente, se ela levar um pacotinho com
dez mudinhas pra plantar em casa, ela vai ter interesse em fazer um canteiro, molhar...
porque daí ela vai comer o que ela plantou. Então, a gente faz as crianças não só
participarem do transplante, da irrigação, mas como da colheita. E eles levam pra casa,
pra comer em casa, sabe! Isso tudo pra incentivar. Então, é um projeto muito bom. Eu
acho que é por aí o caminho: inserindo as coisas que vêm de acordo com o meio.
E: Eu gostaria de saber as dificuldades que você tem com relação ao currículo atual.
Há alguma dificuldade na interpretação do currículo? Há alguns conteúdos que você
tem dificuldade de interpretar e saber trabalhar? Há alguma normatização dizendo
como se deve trabalhar? Existe uma instrução...
D: Não!
E: Existe alguma... ou algum curso dizendo como vocês devem trabalhar, existem
esclarecimentos?
D: Foi proposto que, durante o ano, nós teremos vários cursos pra facilitar o trabalho.
Mas, quanto à interpretação dos conteúdos, tem alguns, não são todos, uma minoria
que está bem... assim, sucinto, difícil de entender. Então, assim como eu posso
interpretar de uma maneira, outra professora pode interpretar de outra maneira.
E: Você poderia dar um exemplo de conteúdo?
D: O conceito, que nem a gente conversou, de conceito numérico. Pra mim ali,
conceito numérico era o quê? Trabalhar os numerais. Fazer a criança contar e já
associar... Só que embaixo tem a outra questão... de relacionar quantidade ao símbolo
numérico. Então, na minha cabeça, aquilo ali estava confundindo, porque pra mim
estava sendo a mesma coisa. Aí, depois que a gente conversou e esclareceu, a gente foi
vendo que não, que era toda aquela caminhada que precede, né, a numeração em si.
Que nem na geografia, que eu fui fazer meu plano essa semana, os conteúdos acima
estavam sobre localização e tal. Então, eu fazia isso na vivência. Aí, até que eu
cheguei no conteúdo, que dizia que era pra transformar a vivência em símbolos ou
signos. Eu disse: meu Deus, o que é isso? Como que eu vou transformar isso? Aí, eu
comecei a folhear tudo o que eu tenho em casa pra esclarecer, porque eu levo duas
sacolas na sexta-feira de tarde pra casa. Então, lá eu comecei a olhar alguns exercícios
de apostila do curso do Positivo e tal... aí tinha aqueles exercícios lá, os desenhos, o
elefante de frente, o elefante de costa, atrás... o objeto em cima da cadeira, o objeto
embaixo da cadeira, eu interpretei assim. Então, eu trabalhei isso vivenciando com os
alunos. O que está em cima, o que está embaixo, quem está na frente, quem está atrás.
Então, agora eu vou pro papel, pra eles perceberem. Eu não sei se estou correta,
porque eu ainda não pude sentar com a diretora e conversar. Mas eu preparei o
desenho, preparei a matriz. Claro que eu não vou chegar e dar o papel. Eu vou
recapitular. Na vivência, primeiro, pra daí eu dar o trabalhinho pra eles colorirem,
observarem a escrita, identificarem as vogais que a gente está trabalhando...
E: E isso, na matemática, também ocorre?
90
D: Na matemática, também ocorre. Então, eu acho assim, que poderia ser um pouco
mais claro ou, tipo ali, pode até ser eh... conceito numérico, mas entre parênteses, o
que tanto... o que tanto cabe ali. Porque, você veja, do currículo anterior... Quando eu
comecei a trabalhar, vinha assim: no primeiro bimestre, vinham os conteúdos de
ciências, de história e de geografia a serem trabalhados no primeiro bimestre. Então
você trabalhava tudo aquilo ali, e tinha entre parênteses o quê, explicando até onde
você poderia ir. Eu não sei se eu ainda tenho isso guardado em casa, mas em algum
lugar na escola deve ter. Aí, depois vieram as habilidades. Algumas professoras
reclamavam daquele sistema antigo. Talvez até por isso que mudaram. Depois
mudaram para as habilidades. Ficou bem explicadinho o que está só que era tudo
global, junto. Então, isso eu achava assim que, às vezes, a gente acabava dando muito
uma coisa, menos outra, sem serem separadas por bimestre. É claro que se eu estou
trabalhando... Que nem, eu trabalhei o sol, depois trabalhei o ovo da páscoa. Eu fui lá,
no quarto bimestre, e puxei o círculo aqui, por que não? Não vira bagunça, eu acho. Eu
acho assim, que dividido, que nem está agora, é muito fácil. Porque, você sabe... Que
nem ali, eu dividi primeiro e segundo, o que eu tenho que dar conta no primeiro e o
que vai ficar pro segundo. Então, isso é muito bom, só que tem algumas coisas que não
estão bem claras onde chegar. Mas eu acho que ele está muito bom, está indo pelo
caminho certo, só melhorar um pouquinho, assim, abrir o parênteses do lado.
E: Muito obrigada!
91
QUADRO 4 RECORTES DO DEPOIMENTO DE DIRCE E SIGNIFICAÇÃO DA PESQUISADORA
Recortes do depoimento Significação da pesquisadora
D1 -O currículo pra mim seria aquele rol de tudo o que você tem
que trabalhar, tudo o que você tem que desenvolver durante um
ano, eh... seja pro
aluno tanto na sua vida familiar, social ou de
conhecimento mesmo. Conhecimentos gerais, né!”
- O currículo é uma lista
contendo tudo o que se deve
desenvolver durante o ano letivo.
D2
“Eu acho que sim. Em alguns casos... em alguns até não, né!
... Mas eu acho assim, que
a linguagem e a matemática precisariam
muito da participação do professor, porque quem está na sal
a de
aula sabe até onde o aluno pode chegar, né!...”
-
Acha importante a sua participação no processo de elaboração
do currículo da escola, especialmente durante as discussões
sobre a linguagem e sobre a matemática.
D3 “Assim... Aquelas adaptações que a gente vê... que
por causa
de determinadas plantações, determinados tempo de colheita
. Na
nossa comunidade, não chega a esse extremo.”
-
Considera desnecessário adaptar o calendário escolar de sua
escola a determinadas épocas de plantio e de colheita.
D4
“... Como que eu vou fazer, por exemplo, de barco, de
medida de praia se tem crianças lá que nunca viram um barco,
nunca viram uma praia? Então, eu acho que é mais fácil usar as
coisas, né! Mas não que isso, que o nosso currículo tenha que ser
diferente porque a gente é do interior. ...”
-
O currículo não deve ser diferente por ser dirigido a escolas
do interior.
D5 “ O que eu entendo? Seria eu usar, transformar algum... Por
exemplo, lá você tem um determinado conteúdo
, por exemplo, para
trabalhar, q
ue eu vejo que não tem necessidade na minha
comunidade,
que os meus alunos não vão usar aquilo, não vão
vivenciar aquilo. Trocar ele por uma outra situação que é o que se
vive aqui!”
-
Para a professora, adaptação no currículo de matemática
consistiria em
transformar ou substituir um conteúdo por uma
situação mais significativa para os alunos.
D6 “...
Como que a gente ia educar os alunos pra atravessar a rua
na faixa de pedestre? Nós não temos aqui. Então,
não cabia pra
nossa realidade. Então, nós tínham
os que ensinar a eles o lado da
rua que era pra andar, né, parar, observar onde que era a parada do
ônibus. ... Então, a gente tinha que usar o que a gente tinha na mão
.
- Um exemplo de adaptação pode-se descrever nas tentativ
as
utilizadas para ensinar as questões de trânsito propostas no
currículo da escola, uma vez que na comunidade não tem faixa
de pedestre, sinaleiro nem lombadas eletrônicas.
92
Não podíamos usar... Oh!...”
D7 “... Mas eu acho assim, que como currículo tinha que ser
selecio... está usando a todo instante. Porque nós temos crianças
aqui que não vão para Rio Negro. Passam um mês, dois, sem ir
para Rio Negro. Então, como é que eu vou pedir para eles
desenharem uma placa? Tal... Ou semáforo? Ele vai ficar te
olhando e imaginando do que você está falando? É difícil!”
- Apesar de fazer parte da realidade dos alunos, torna-se difícil
solicitar que desenhem uma determinada placa ou que
representem um semáforo, pois alguns não lembram ou nunca
viram.
D8 “Ah! Acho que podia, assim... mais visitação, porque nós
temos aqui o frigorífico. E
nossos alunos moram aqui, mas não
conhecem o frigorífico. Então, de repente,
conhecer alguma coisa
do funcionamento dele. Conhecer os processos do fumo
. Eu acho
muito interessante isso, porque eles vivem aqui.... Eu acho muito
interessante! E outra coisa também. A gente vê... eu vejo pelo meu
pai! Que ele fala muito em braça, em cargueiro de milho
. Eu não
sei o que é isso! E eu nasci aqui! Sabe?... Então,
eu achava
importante, não que eles tenham que saber calcul
ar, de repente,
mas conhecer porque faz parte do nosso lugar, faz parte da área
rural, do campo, como diz você! Daí,
esses termos assim, que as
pessoas usam, eu acho que deveriam aparecer... como lá
da
metragem... tem o quilômetro, tem a tonelada, no peso.
Então, eu
acho que esses termos também deveriam aparecer.
Faz parte do
nosso meio.”
- Os alunos vivem no meio rural e deveriam conhecer
primeiramente os elementos locais; por exemplo, perceber a
existência de um frigorífico na comunidade, conhecer os
processos de plantio e de colheita do fumo. A professora
percebe também a necessidade de as crianças conhecerem a fala
local e o significado atribuído aos termos locais, como a braça e
o cargueiro de milho.
D9 “Não! Em alguns livros, há alguns anos ainda tinha
, sim!
Mas eu confesso pra você que eu lendo ali, eu não entendia
. Tinha
que alguém me ensinar pra eu poder entender como fazer, sabe.
Então, eu acho interessante
. Assim, em termos de conhecer, né, a
saber o que significa. Porque muitas coisas a gente ensina pros
alunos para eles aprenderem a calcular e muitas coisas a gente
ensina pra eles em termos de curiosidade, de conhecer, de saber
que tem. Então, eu gostaria de saber. (Risos)”
- Alguns termos que apareceram em alguns livros didáticos são
de difícil compreensão. A professora acha interessante os
alunos conhecerem o significado desses termos.
93
D10 “Esse projeto das hortas, eu considero ele muito importante
.
Ele veio assim... muito ao encontro com a nossa realidade
aqui!
Porque, você veja: Nós moramos numa área rural.
Às vezes, tem
famílias que se queixam que não têm o que comer
. Eles mandam
bilhetes pra escola dizendo que a criança vem pra comer porque
não tinha o que comer em casa.... Sendo que é fácil plantar um pé
de couve, fazer uma farofa,
alguma coisa! Então, o que estava
acontecendo. Esse projeto, ele veio... Os meninos orientam os
alunos. Só que eles não sabem! Eles orientam os alunos a eles
fazerem porque, pra quando eles chegarem em casa, eles fazerem a
horta em casa. E sempre passando que é um produto saudável, sem
agrotóxicos, que vem a enriquecer a alimentação, que é barato
.
Sem contar com o nível de saúde, né.”
- Considera importante a realização do projeto das hortas, pois
orienta os alunos para construção de uma horta caseira. Mu
itos
que moram numa área rural não possuem uma horta. Com o
projeto, pode-
se informar aos alunos que os produtos são
saudáveis, sem agrotóxicos e de baixo custo.
D11- “... Só que eu vou pra horta, dou uma recapitulada no que foi
visto. Às vezes, a gente faz transplante, os meninos tiram as
medidas, p
reparam canteiro, preparam o composto, cavam a terra,
pra mostrar como é que quando a terra está boa e tal. Então
, eu
acho que essa é uma adaptação. Não é assim, do currículo, mas é
um projeto que está inserido
e que vem a enriquecer a área
rural....”
-
A professora acredita que transplantar mudas, tirar medidas,
preparar canteiro, preparar composto e, cavar a terra seja uma
adaptação. Apesar de não estar no currículo, é uma proposta
que vem a enriquecer a área rural.
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SÍNTESE DA PESQUISADORA SOBRE A ENTREVISTA DE DIRCE
Dirce afirma que o currículo é uma lista que contém tudo o que se deve
desenvolver durante o ano letivo. Acha importante a sua participação no processo de
elaboração do currículo da escola, especialmente durante as discussões sobre a
linguagem e sobre a matemática. Considera desnecessário adaptar o calendário escolar
de sua escola a determinadas épocas de plantio e de colheita. Acredita que o currículo
das escolas rurais não deva ser diferente por ser dirigido ao meio rural. Relata que
entende por adaptação do currículo de matemática a transformação ou substituição de
um conteúdo por uma situação mais significativa, mais próxima da realidade dos
alunos. Um exemplo de adaptação pode se descrever nas tentativas utilizadas para
ensinar trânsito para crianças do meio rural uma vez que não havia faixas de pedestre,
sinaleiros nem lombadas eletrônicas na comunidade. Apesar de fazer parte da
realidade dos alunos, a professora acredita que se torna difícil solicitar que estes
desenhem uma placa ou que representem um semáforo, pois algumas crianças não
lembram ou nunca observaram esses elementos. Dirce relata que, se fosse possível
fazer uma adaptação, seria importante lembrar que os alunos vivem no meio rural e
devem conhecer primeiramente os elementos locais; por exemplo, perceber a
existência de um frigorífico na comunidade. Para Dirce, os alunos deveriam conhecer
os processos de plantio e de colheita do fumo. Além disso, a professora percebe a
necessidade de as crianças conhecerem a fala local e o significado atribuído aos termos
locais, como a “braça” e o “cargueiro de milho”. Esses termos não aparecem no
currículo da escola, surgem em alguns livros didáticos, sendo de difícil compreensão.
Considera importante a realização do projeto das hortas, pois orienta os alunos para
construção de uma horta caseira. Muitos que moram numa área rural não possuem uma
horta e, com o projeto, pode-se informar aos alunos que os produtos são saudáveis,
sem agrotóxicos e de baixo custo. Dirce acredita que transplantar mudas, tirar
medidas, preparar canteiros, preparar composto e cavar a terra seja uma adaptação.
Embora não esteja no currículo, é um proposta que vem a enriquecer a área rural.
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EDUARDA
DESCRIÇÃO
Com formação em Curso Normal Superior e com pós-graduação em Psicopedagogia, a
professora atua em escola rural há quase dez anos. Reside, atualmente, no meio rural.
O currículo da escola, na sua opinião, é baseado nas leis que regem a educação
brasileira e tem alguns conteúdos que, às vezes, não coincidem com a realidade.
Afirma não ter participado da construção do currículo de sua escola, pois, ao iniciar
nesta escola, o currículo já havia sido elaborado, restando apenas interagir com ele.
Acredita que haja propostas de reformulação do currículo atual em função de algumas
mudanças internas na Secretaria Municipal de Educação. Dentre as propostas de
adaptação no currículo, sugere o retorno da seriação, o aprofundamento dos conteúdos
e o retorno de notas em vez de pareceres. Para a melhoria do currículo da escola no
meio rural, sugere a elaboração de livros didáticos com conteúdos e atividades que
venham ao encontro da realidade. Percebe que, hoje, os livros didáticos contêm a
realidade das cidades grandes, deixando a desejar para as cidades pequenas e para o
meio rural. Sobre o conteúdo de matemática, afirma ser bem amplo e muito
aprofundado para o nível de aprendizagem em que se encontram os alunos, devido ao
pouco acesso que têm no meio rural. Concorda com a importância desse conteúdo para
a população rural, pois acredita que o aluno que tiver oportunidade de estudar na
cidade, com certeza, precisará dele. Por outro lado, talvez os conteúdos pudessem ser
menos aprofundados e fossem mais ao encontro da realidade do aluno. Considera
necessário adaptar o conteúdo de matemática às especificidades do meio rural porque,
com certeza, o aluno que aprender integrado com sua realidade entenderá melhor e terá
menor dificuldade em aprender. Afirma adaptar o conteúdo de matemática à realidade
do meio rural através da utilização dos recursos disponíveis e enfocando a realidade
até chegar ao abstrato; por exemplo, utiliza situações-problema com objetos que estão
ao seu alcance, como formas geométricas e medidas, entre outras. Julga que isso seja
uma adaptação porque o aluno aprende melhor quando consegue vivenciar a situação,
e a adaptação está incluída na vivência do aluno.
E(Professora) e EN(Entrevistadora) estão sentadas na sala do Pré III e encontram-se
uma de frente para outra. A pesquisadora conversa com a professora sobre o
questionário respondido e sobre a necessidade de complementá-lo com uma entrevista.
EN: Bom dia!
E: Bom dia!
EN: Quais são as turmas que você trabalha mesmo?
E: Segunda e terceira séries.
EN: Vou começar com uma pergunta bem informal, porque eu acho que é importante.
Por que ser professora de uma escola rural?
E: Aqui as crianças são mais amigas tuas, você tem mais contato com elas. É diferente
das crianças que ficam no centro da cidade. Eu tive experiência em trabalhar em duas
escolas. Três anos que eu trabalhava numa escola da sede e numa escola rural. E as
96
crianças da sede, elas são mais dispersas do que as da escola rural. Então, você
consegue concentrar mais a atenção delas aqui.
EN: Bom! Não sei se você está lembrada, mas, na semana passada, eu apliquei um
questionário pra você.
E: Hum, hum!
EN: E nesse questionário tinham algumas perguntas que falavam do currículo, que
falavam dos conteúdos de matemática e das adaptações. Mas... o que é o currículo pra
você?
E: O currículo é um parâmetro pra gente. Eh... não consigo falar! Pra gente se basear
naquilo que você tem que trabalhar com os teus alunos, mas você vai usar o currículo
para... é como um apoio, né! Você não vai seguir ele completamente como ele está ali
porque você vai ter que adaptar o currículo à tua vivência do dia-a-dia, à vivência dos
teus alunos, como é a tua realidade, na tua comunidade. Então, o currículo serve como
esse parâmetro.
EN: Esse parâmetro, como que é? Você que cria ou já vem pronto?
E: O currículo vem pronto, né! A gente tem que adaptar conforme o que está no
currículo. Então, a gente adapta as atividades, o que você acha necessário pra aquele
momento, naquela atividade.
EN: Você fala em adaptação, né? Você diz adaptar o conteúdo de matemática
enfocando a realidade do aluno. Você poderia dar alguns exemplos dessas adaptações?
E: Bom! Sempre trabalhar com o que o aluno precisa e com o meio em que ele está,
né! Não adianta pegar um problema lá do livro que fala, eh... de prédios, né, de
apartamento, sendo que aqui é fora da realidade deles. Então eu tenho que adaptar, por
exemplo, dentro da sala: Quantas carteiras? Quantas cadeiras? Quantos pés tem a
cadeira? No dia-a-dia deles, trabalhar eh... quantos animais no curral ou quantos
animas num piquete. Quantos pinus? Então, trabalhar a partir daquilo que é a realidade
deles, que eles estão conhecendo.
EN: Você considera importante a sua participação na elaboração do currículo? Por
quê?
E: Eu considero! Porque a gente, sabe a realidade que está dentro da sala de aula, né!
Não adianta uma pessoa que não convive com os alunos... que não está por dentro, ali,
de como, como andam as crianças. Se uma pessoa que está por fora for tentar fazer um
currículo, porque... às vezes, vai ficar fora daquela realidade. Então, tem que ser... eu
acho que tem que ter ajuda desse professor que está ali, o dia-a-dia, com eles, sabendo
qual é a necessidade de cada um, de cada lugar.
EN: O que você entende por adaptação no currículo de matemática?
E: Você tem que fazer, tem que dar os conteúdos, mas adaptar à sua realidade. Colocar
eles no teu dia-a-dia. Você vai... não pode trabalhar coisas fora daquilo que você está
trabalhando nas outras disciplinas também, né! Então, você tem que fazer uma
interdisciplinaridade junto com isso. Isso seria adaptação, né! Você não pode fugir
daquilo que você está trabalhando nas outras matérias. Por exemplo, língua
portuguesa, se eu estou trabalhando uma história, eu vou enfocar a matemática naquela
história, né? Vou trabalhar a história, por exemplo, do patinho feio, né! Vou adaptar a
matemática conforme o que eu estou trabalhando ali, em língua portuguesa, também.
Trabalhar quantos patinhos tinha na lagoa ou alguma coisa assim, nesse sentido. Em
97
ciências, onde que o pato mora? Quantas patinhas, lá, tem o pato? Usar a
multiplicação, usar as situações-problema... tudo o que envolva o que eu estou
trabalhando também em língua portuguesa pra que não fique uma coisa eh...
descolada, né! Sem fundamento.
EN: Você acha claro o currículo aqui da escola?
E: Algumas questões a gente tem que rever.
EN: Na matemática?
E: Sempre tem que rever porque, às vezes, tem coisas ali que você fica meio perdido,
né! Então, você... às vezes, você conhece por um nome e ali tem um outro nome.
Então, você tem que correr atrás, perguntar pra saber o que que você trabalha com
aquilo ali, com aquele nome que está ali no currículo.
EN: Você consegue fazer adaptações, hoje, com as tuas turmas?
E: Consigo! A maioria das vezes, eu faço adaptações. Eu não sou muito de trabalhar
aquele, eh... aquele negócio pronto, que está ali, no livro e você tem que seguir. Eu não
sou assim. Eu prefiro trabalhar coisas que eu vejo que são necessárias pra que eles
aprendam, do seu cotidiano.
EN: Dá um exemplo pra mim na matemática... Específico, porque o enfoque aqui é a
matemática... de adaptação que você já fez com eles ou fará com eles, adaptações no
conteúdo.
E: Hum, hum! Bom! Quando eu trabalho, por exemplo, histórias, histórias em língua
portuguesa, eu vou tentar fazer um gráfico, pra ver uma tabela, e um gráfico colocando
quais as preferências deles. Então, isso aí eu já estou adaptando na matemática né!
Eh... As formas geométricas são encontradas nos desenhos. A gente transforma,
também ajuda na matemática. As situações-problema, a gente pega o que você está
trabalhando em outras matérias, você adapta também pra fazer tanto na adição,
subtração, multiplicação e divisão, né! A seqüência ééé... a classificação. Tudo isso a
gente tenta adaptar com o trabalho.
EN: Praticamente era isso! Você gostaria de fazer mais algum comentário sobre as
crianças. Como são as crianças do campo? O que chama mais atenção em você dessas
crianças?
E: Eles são muito atentos a tudo. Aqui, na nossa comunidade, as crianças, elas são
atentas e elas fazem você se sentir importante porque elas estão te solicitando. Elas
sempre estão querendo chegar em você de alguma maneira e aquilo que você fala pra
elas, elas levam junto com elas pro dia-a-dia. Porque a gente percebe que coisas que
você trabalha na escola e você percebe que eles falam, comentam com os outros
colegas, saem falando por aí e sentem falta da escola porque eles gostam de vir pra
aula. E eles se sentem bem aqui e transmitem isso pra gente.
EN: No dia-a-dia deles, eles devem conviver muito com plantas, com animais, até
porque muitos alunos... eu acredito que ajudam os pais na plantação.
E: Ajudam!
EN: Eles comentam alguma coisa sobre o que fazem? E você utiliza isso dentro da
sala?
E: Comentam. Agora é época da colheita do fumo, né! Então, eles sempre estão
conversando, falando.
EN: E você utiliza esses dados, essas informações?
98
E: Na medida do possível, eu utilizo.
EN: Como?
E: Eh! Através também de contagens, de situações-problema, de operações, pra ver,
né, quanto tempo eles gastam, quantos fardos de fumo... Então, a gente também utiliza
esse tipo de atividade assim.
EN: Você gostaria de falar mais alguma coisa?
E: Acho que eu já falei tudo!
EN: Eu gostaria que você falasse um pouquinho sobre as diferenças na sala de aula...
porque as crianças são diferentes umas das outras.
E: Hum, hum!
EN: Uma é diferente da outra. Como trabalhar as diferenças?
E: Eu acho que você tem que tratar cada um como ele é. Tem crianças que gostam que
você bajule mais, tem outras que menos, tem outras que você tem que levar por bem,
outras você tem que levar mais rígida. Então, eu tenho que respeitar as diferenças,
porque cada um é cada um. E eu procuro nas minhas aulas não ficar comparando. Oh!
O fulano tem a letra assim, o ciclano tem a letra assado. Então, eu não comparo. Eu
prefiro comparar eles com eles mesmos. “Oh! Hoje a tua letra não está legal. Olha lá
no teu caderno, como que estava antes? Vamos tentar fazer melhor?” Então, eu
procuro incentivar pra que eles melhorem por si, não porque o outro é melhor ou pior
que ele. Eu acho que a gente tem que respeitar essas diferenças porque as pessoas não
gostam de ser comparadas com outras pessoas. Cada um é cada um. Como a gente tem
que trabalhar a individualidade de cada um, você tem que respeitar porque, se você
não gosta que te comparem com os outros, você também não vai fazer isso com eles,
né! A gente sempre conversa, na sala, que cada um é cada um. Então, se eu não gosto
que façam isso pra mim, por que que eu vou fazer pro outro? Então, essas
individualidades têm que ser respeitadas, têm que ser levadas a sério. Tem aqueles
alunos que gostam de falar mais, aqueles que gostam de falar menos, aqueles que são
mais quietos, mais tímidos e você tem que respeitar isso em cada um porque tem um
momento que mesmo aquele, aquela criança tímida que fica num cantinho, se ela
pegar confiança em você, ela vai chegar em você, ela vai te procurar como um apoio.
E isso acontece! Então, não adianta forçar uma criança a falar, ou a ler, ou a escrever,
sendo que não é o momento dela, né!
EN: Obrigada!
99
QUADRO 5 RECORTES DO DEPOIMENTO DE EDUARDA E SIGNIFICAÇÃO DA PESQUISADORA
Recortes do depoimento Significação da pesquisadora
E1 “O currículo é um parâmetro
pra gente. Êh..., não consigo
falar! Pra gente se basear naquilo que você tem que trabalhar
com os
teus alunos, mas você vai usar o currículo para... é como um apoio,
né! Você
não vai seguir ele completamente como ele está ali porque
você vai ter que adaptar o currículo à tua vivência do dia-a-
dia, à
vivência dos teu
s alunos, como é a tua realidade, na tua
comunidade. Então, o currículo serve como esse parâmetro.”
-
O currículo serve como um parâmetro de trabalho. Assim,
algumas adaptações tornam-se necessárias.
E2 “O currículo vem pronto, né! A gente tem que adap
tar
conforme o que está no currículo. Então,
a gente adapta as
atividades, o que você acha necessário pra aquele momento
, naquela
atividade.”
-
A adaptação é realizada em algumas atividades, tendo em
vista as necessidades da situação, sempre respeitando o
conteúdo curricular.
E3 “Bom!
Sempre trabalhar com o que o aluno precisa e com o
meio em que ele está
, né! Não adianta pegar um problema lá do
livro que fala, eh... de prédios, né, de apartamento, sendo que aqui é
fora da realidade deles. Então eu tenh
o que adaptar, por exemplo,
dentro da sala: Quantas carteiras? Quantas cadeiras? Quantos pés
tem a cadeira? No dia-a-
dia deles, trabalhar eh..., quantos animais
no curral ou quantos animas num piquete. Quantos pinus
? Então,
trabalhar a partir daquilo que é a realidade deles, que eles estão
conhecendo.”
-
Desenvolver um trabalho utilizando os elementos internos e
externos à sala de aula, como questionar o número de cadeiras
da sala de aula, o número de animais de um determinado
curral, a quantidade de mudas de pinus.
E4 “Eu considero! Porque
a gente sabe a realidade que está dentro
da sala de aula
, né! Não adianta uma pessoa que não convive com os
alunos... que não está por dentro, ali, de como como, andam as
crianças. Se uma pessoa que está por fora for t
entar fazer um
currículo, porque... às vezes, vai ficar fora daquela realidade. Então,
tem que ser... eu
acho que tem que ter ajuda desse professor que está
ali, o dia-a-
dia, com eles, sabendo qual é a necessidade de cada um,
de cada lugar.”
- A professo
ra considera sua participação porque conhece a
dinâmica da escola, a dinâmica dos alunos e as necessidades
da localidade.
100
E5 “Você tem que fazer,
tem que dar os conteúdos, mas adaptar à
sua realidade. Colocar eles no teu dia-a-dia. Você vai...
não pode
trabalhar coisas fora daquilo que você está trabalhando nas outras
disciplinas, também né! Então, você
tem que fazer uma
interdisciplinaridade junto com isso. Isso seria adaptação
, né! Você
não pode fugir daquilo que você está trabalhando nas outras
matérias. ...”
-
A professora entende adaptação como apresentação de um
conteúdo articulando-
o com outras disciplinas, ou seja, como
uma proposta interdisciplinar.
E6 Consigo! A maioria das vezes, eu faço adaptações
. Eu não
sou muito de trabalhar aquele, eh.
.. aquele negócio pronto, que está
ali no livro e você tem que seguir. Eu não sou assim. Eu prefiro
trabalhar coisas que eu vejo que são necessárias pra que eles
aprendam, do seu cotidiano.”
-
Na maioria das vezes, a professora faz adaptações nos
conteúd
os. Nestas adaptações prefere trabalhar assuntos que
considera necessários.
E7
“Hum, hum! Bom! Quando eu trabalho, por exemplo, histórias,
h
istórias em língua portuguesa, eu vou tentar fazer um gráfico, pra
ver uma tabela, e um gráfico colocando quais as preferências deles
.
Então, isso aí eu já estou adaptando na matemática, né!...”
-
A professora afirma que uma situação exemplar de
adaptação do conteúdo de matemática se dá quando trabalha
com estórias em língua portuguesa. A partir da estória,
constrói gráficos, destacando as preferências dos alunos.
101
SÍNTESE DA PESQUISADORA SOBRE A ENTREVISTA DE EDUARDA
Eduarda relata que o currículo serve como um parâmetro de trabalho e, como
tal, algumas adaptações, que visam à adaptação a sua realidade particular, tornam-se
necessárias. A adaptação é realizada em algumas atividades, tendo em vista as
necessidades da situação, sempre respeitando o conteúdo curricular. Como um
exemplo de adaptação, Eduarda sugere o desenvolvimento de um trabalho utilizando
os elementos internos e externos à sala de aula, como a formulação de questões
relacionadas ao número de cadeiras da sala de aula, ao número de animais de um
determinado curral, à quantidade de mudas de pinus existentes numa localidade. Por
conhecer a dinâmica da escola, a dinâmica dos alunos e as necessidades da localidade,
Eduarda considera importante a sua participação no processo de elaboração do
currículo da escola. Entende como adaptação no currículo de matemática a forma
utilizada para apresentar os conteúdos pela adaptação à realidade local em todas as
disciplinas, realizando uma interdisciplinaridade. Disse que, na maioria das vezes,
adapta os conteúdos, preferindo trabalhar assuntos que considera necessários para os
alunos. Uma situação exemplar de adaptação do conteúdo de matemática se dá quando
trabalha com estórias em língua portuguesa. A partir da estória, constrói gráficos,
destacando as preferências dos alunos.
FABIANA
DESCRIÇÃO
Com formação em Curso Normal Superior, a professora atua em escola rural há vinte e
cinco anos. Atualmente reside no meio urbano.
O currículo da escola, na sua opinião, é flexível no que se refere ao modo de
funcionamento de um documento que rege uma escola, determinando os direitos e
deveres dos professores, dos alunos, da direção, a influência de pais e comunidade,
bem como o conteúdo que é ensinado. Fabiana afirma ter participado da construção do
currículo de sua escola, participando de reuniões pedagógicas, em que foram revistos
os conteúdos trabalhados, e destacando a necessidade de serem incluídos temas que
estavam sendo desenvolvidos em outras escolas. Ela acredita que haja propostas de
reformulação do currículo atual e que esta reformulação está sendo feita pelos
diretores e supervisores das escolas. Como sugestão para a melhoria do currículo da
102
escola no meio rural, Fabiana destaca a necessidade de trabalhar mais a realidade do
meio, pois o meio rural mudou muito e não é mais considerado aquele local isolado do
mundo. Afirma, também, ser bom o conteúdo de matemática da sua escola, embora
algumas vezes este conteúdo pareça fugir do contexto para algumas crianças. Por outro
lado, ainda segundo Fabiana, no estágio avançado em que se encontram as tecnologias,
as comunicações deveriam ser normais em qualquer parte do planeta que a criança se
encontre. A maioria dos seus alunos são filhos de operários, estando constantemente
em contato com o meio urbano. Acha interessante adaptar o conteúdo de matemática
às especificidades do meio rural a fim de que as crianças valorizem mais o meio onde
vivem. Para Fabiana, não há muita necessidade de adaptar o currículo ao meio rural,
uma vez que este, assim como o meio urbano, busca o conhecimento. Além disto, com
a chegada da modernização do campo, já não se verifica a separação entre os meios
urbano e rural.
F(Professora) e E(Entrevistadora) estão sentadas na sala da diretora e encontram-se
uma de frente para outra. A pesquisadora conversa com a professora sobre o
questionário respondido e sobre a necessidade de complementá-lo com uma entrevista.
E: Bom dia! Eu gostaria de saber por que você escolheu ser professora numa escola
rural? Por que ser professora aqui, nesta escola?
F: Eu, na verdade, nunca quis ser professora. Eu procurei outros empregos, nunca
consegui. E acabei sendo encaminhada. Quando eu vim pra cá, encontrei as crianças e
eu me identifiquei com as crianças e fiquei pra ser professora. Eu não tenho
magistério, nada! Entrei por experiência e gostei. Acabei ficando daí, fui estudar.
E: Você, então, não tinha...
F: Nada! Nada de professora.
E: Nada?
F: É! As crianças... eu adoro crianças. Talvez foi isso. Eu tinha um problema assim
de... e as crianças... aquela espontaneidade e a inocência das crianças me ajudaram a
me livrar desse problema que eu tive. E eu fiquei. Adorei, porque eu já morei nessa
comunidade e eu acabei ficando aqui.
E: Você fala no questionário que participou da elaboração do currículo.
F: No início.
E: Ah! No início?
F: No início! Naqueles primeiros.
E: Ah! Naqueles primeiros. No atual, não!
F: Não! Daí, eles foram revendo, foram refazendo através da diretora, das escolas...
E: Mas você acha importante, você, como professora, participar do processo de
elaboração do currículo?
F: Eu acho que, se tem uma supervisora e uma diretora, até que não. Porque ela está
ciente do que os professores estão aplicando dentro da sala de aula.
E: Você acha que?
F: Necessário, necessário... Eu acho o seguinte: se a gente pega um conteúdo e
trabalha bem aquilo, aquilo vai embora. Eu trabalhei com o método Erasmo Pilotto e
pra mim aquilo era maravilhoso porque eu saía fora, preparava, tinha... guardava muita
103
sucata em casa, preparava material diferente e aquilo eh... fazia complementos
engajando uma coisa na outra e acho que vai muito do trabalho da professora, da
estratégia, do caminho que ela segue.
E: Como é esse método?
F: É antigo, era... tinha os livros, tinha as palavras-chave e eu caía fora das palavras-
chave, fazia dinâmica, brincadeira. E, daí, as crianças viam bem feitinho no livro. Ia
eliminando as etapas.
E: Nossa!
F: Era gostoso, tinha período preparatório, que as crianças... que era mais brincadeira.
Então, eu gostei, sabe! Agora, muitas professoras, hoje, falam assim: Ui! Como era
horrível aquele método Erasmo Pilotto! E eu não achava. Eu pensava: meu Deus do
céu, só eu que não achava que era... E era bom! Era bom trabalhar... tanto quando
começou também, o ciclo básico. Adorei o ciclo básico que, daí, nós deixamos
completamente e passamos a trabalhar sem livro didático, sem nada. Era livre! Mas
ficou muita coisa a desejar no ciclo básico no início, que nós chegávamos a trabalhar
mais na alfabetização e a matemática ficava, ciência e estudos sociais, naquela época,
muito levemente.
E: Aqui, no questionário, eu também fiz uma questão sobre o currículo da escola no
meio rural... se você daria algumas sugestões para melhoria.
F: Aqui, no nosso caso, eu não vejo a nossa região aqui um meio rural, porque eu vejo
assim, que o desenvolvimento da cidade está chegando perto de nós e aqui os pais das
crianças, a maioria é operário de firma de perto mesmo ou da cidade. Então, as
crianças, aqui, não estão eh... não têm lá... uns ou outros que estão na roça plantando
fumo. Não é o caso! E a maioria das crianças... o pai vive com um salário e eles têm
televisão, eles estão sendo assim, tipo, encaminhados pra tecnologia. Eles querem
aquelas coisas que na cidade tem. E mesmo eles perguntam pra eles escolherem,
porque eles vão pra cidade com o pai, com a mãe. Eles estão sempre... é comentário
dentro das cidades, sobre lojas, sobre mercado. Tudo eles têm conhecimento. Pedem,
por exemplo, pra trazer embalagem pra nós trabalharmos, por exemplo, eh... preços,
ml, validade, tudo aquelas coisas que vêm nas embalagens. Eles tranqüilamente
trazem.
E: Uh, uh!
F: Então, eles não estão fora da realidade urbana, os nossos aluninhos.
E: Quando eu pergunto se você acha interessante adaptar o conteúdo de matemática às
especificidades do meio, você diz que é interessante.
F: Seria interessante pra valorizar mais o meio rural no sentido de preservar o povo,
porque muitas vezes a tecnologia vem pro meio rural e acaba eh... estragando,
poluindo rios, como as firmas. A gente observa que muitas firmas vêm poluir rio eh...,
vêm pro desmatamento. E no caso seria, aqui, nós fazermos um trabalho mais de perto
pra preservar, cuidar do meio rural.
E: Mas será que a escola não teria uma função nisso, um papel? Será que o currículo
da escola não poderia eh...
F: Mas eu sou da opinião que sem a parceria com alguém mais firme é impossível
trabalhar. Nós temos parceria com a comunidade, mas teria que ter parceria, por
104
exemplo, com o Frigorífico, parceria com a Souza Cruz, com a AFUBRA, que tem o
trabalho deles, né, no meio rural.
E: Uma outra questão que fiz foi com relação à adaptação do conteúdo de matemática
à realidade do campo.
F: Eu não sei! Eu escuto, assim, as professoras se queixando que os aluninhos estão
indo pra outra série fracos em matemática. Eu procuro eh... e vejo, às vezes, que a
matemática está a desejar. A gente está dando muita ênfase à língua portuguesa, à
alfabetização e à matemática, não. Sabe! Eu me preocupo com isso. Não sei o que que
está acontecendo. Às vezes, a gente eh... dá uma coisa lá que, às vezes, não tem nada a
ver com o contexto da escola, das crianças ou da comunidade. Alguma coisa que não
está encaixando bem! Eu procuro, por exemplo, dar uma aula de... qualquer aula de
Ciências ou coisa assim e ali no meio misturar tudo, a matemática, tudo. Aproveitar o
momento e ir trabalhando. Esses dias, eu dei sobre higiene bucal, porque iriam aplicar
o flúor. Daí, desenhei as arcadas dentárias no quadro e os dentes de leite, depois, dente
permanente. Vamos, na primeira série, vamos contar. Quantos que deu? Dez em cima,
dez em baixo. Quanto será? Então, aproveitar os momentos pra trabalhar a
matemática. Só que ela fica muito mais no abstrato e, na hora do registro, vai no
registro da língua portuguesa e fica a desejar a matemática. Você não faz o registro, às
vezes, da matemática e isso fica muito, muito superficial, que eu sinto que a
matemática está fraca nesta escola.
E: Aqui!
F: É! Eu acho.
E: E você acha que é preciso fazer alguma mudança?
F: Eu acho que sim.
E: Como seria essa mudança?
F: É, eu acho assim, também, meio difícil, sabe! Porque depende do conteúdo que o
professor está trabalhando, a aula que ele prepara eh... dando ênfase à matemática. E,
às vezes, é falha da gente não dar ênfase. Vai muito do professor, sabe! Não dá ênfase
à matemática e de repente está achando, assim, que o aluno... “Ah! Lá em casa ele
aprende o calendário porque a mãe explica lá: Hoje é dia tal, tal” ... Não é assim, a
criança... a gente dá a tarefa e vê que tem criança que não se liga, por exemplo, no
calendário, que ajuda muito nos números. A gente trabalha lá a função social do
número. Os números que elas têm em casa, mas não é suficiente. Teria que ter, às
vezes, uns livros didáticos também! Eu parto muito pra fora do livro didático porque
daí chegar num livro didático como um apoio. Mas não é suficiente.
E: Eu observo, na sua fala, que você coloca que, aqui na escola, não é preciso fazer
adaptações, mas em alguns momentos você fala de adaptações. Por quê?
F: É a mudança, tem que... eh... 25 anos que eu dou aula aqui: Uma série nunca é igual
à outra. Então, se a gente ficar lá encalacrada, meninos do interior, as crianças não te
aceitam. Pra começar, as crianças não aceitam. Você tem que se atualizar no dia de
hoje e estar no que as crianças assistem, no que elas gostam, na realidade delas. Então,
as coisas tem que mudar e eu, às vezes, né, sinto muito. Eu gosto da alfabetização, da
matemática sinto meio perdida. Às vezes, já teve um ano aqui que a diretora disse: Ah,
pelos testes nós vamos ter que rever como você está dando essa matemática. E daí eh...
fica ... Eu, às vezes, sinto medo de me abrir, de pôr outras coisas. Muitas vezes é o
105
medo da gente trabalhar certas, certos temas que engajam matemática muito bem
trabalhada.
E: Aqui, eu pergunto, na última questão, o que faz você considerar isso uma
adaptação? Daí, você responde: não. O que significa esse não?
F: Eu acho assim: uma adaptação é você trabalhar sério aquilo dentro da escola, não
apenas uma aula que você dá diferente pras crianças, não é uma adaptação. Eu não
sinto que seja uma adaptação. Por exemplo, eu dou uma aula na matemática, muito
bem trabalhada, como, por exemplo, lá, nós trabalhamos o ml, o quilograma, trazendo
aquele material todo pra dentro da sala. Você trabalha bem! Chega na segunda série,
não é mais nada trabalhado assim, de uma forma de você pegar as crianças e ir lá no
mercadinho. Vamos fazer uma pesquisa de preço, uma lista. Fazemos uma lista.
Fazemos um catatau de coisas que a criança, assim, ela, a gente, a criança se entrega
pra aquela vivência, tipo, uma brincadeira. A gente está... a gente sente que as crianças
estão vivendo aquilo. Sabe, através do material, da sucata que eles trazem. Através do
passeio, lá! Do que foi visto. Até o ano passado nós tivemos, nós fomos comprar,
fizemos bolo, porque nós trabalhamos a pedagogia empreendedora e vimos que as
crianças se entregam naquilo. Mas, daí passam pra séries seguintes e aquilo fica muito,
assim, muito no abstrato, muito no semi-concreto. Daí, foge muito da criança. Porque
eu gosto de trabalhar muito o concreto na primeira série. Eu acho que é meio essencial
da criança pegar, contar, separar, classificar, mas, daí, nas outras séries não acontece
nada assim. Dá uma quebra. Então, eu não acho isso aí.... É isso que eu não acho que
seja... como você falou aí?
E: Adaptação?
F: Uma adaptação? Teria que haver assim um engajamento de uma turma, de uma
série pra outra, da maneira que vem sendo trabalhado, continua.
E: E adaptação no currículo. O que seria pra ti?
F: Seria você trabalhar realmente aquilo e levar a sério. Adaptar aquilo e realmente
sendo trabalhado. Às vezes, não adianta estar no currículo. A gente fez por alto aquilo
e aquilo não adaptou na criança, não foi adaptado. Foi muito superficial. Então não
mudou a mentalidade nem da criança, nem do professor e nem da comunidade. Eu
acho que adaptação é quando muda a mentalidade da própria escola.
E: Da própria escola?
F: É! Do geral, da comunidade.
E: E como é o aluno da escola do campo. Como que é o aluno, aqui, desta escola?
F: Eu não sei... esses alunos aqui são maravilhosos. Eu já acho as crianças, elas
bonitas. E eu me identifico com a primeira série porque eu vejo nos olhinhos da
criança aquela vontade doida de aprender, aquele brilho no olhar. É uma fase que
parece que abre uma flor. Abre uma flor, assim, na criança e eu tenho medo de matar,
de murchar essa flor. Porque a criança está apta, no caso da alfabetização, por
exemplo, ela vem mostrar uma letra pra você. Esse curso que eu estou fazendo, está
me abrindo muito. Eh... antes, eu não dava bola pra escrita da criança, eu não a
considerava, porque não estava corretamente certa, então, hoje, eu me abaixo, olho nos
olhinhos da criança e peço: leia o que você escreveu. A gente vê que ela escreveu com
relação a algo e dou uma dica para ela continuar cada vez mais. Eu vejo que a criança
quer aprender. Quem mata a criança é a própria professora.
106
E: E a matemática não é muitas vezes esquecida nesse processo?
F: É! A matemática é.
E: Por que é mais difícil?
F: Talvez a gente não está dando importância pra matemática. Quando vê, daí surge
problema lá na frente. A gente se assusta. Ou talvez não está na hora de aprender esse
numeral. Esse numeral é muito grande! Essas operações ou mesmo... E, eu sinto que
na maneira que eu fui ensinar a matemática, eu venho falhando com os aluninhos
porque talvez eu não gostava de matemática quando eu era criança. A professora me
deixava de castigo, com oito anos, na frente do quadro porque eu não sabia divisão.
Fui aprender divisão lá no ginásio. Então, eu fiquei assim! Talvez isso eu tenho
falhado com meus alunos: em não dar muita importância com a matemática. Eu acho
que cada pessoa tem uma, assim, se identifica com uma área. E você dá mais ênfase
àquela área apesar da importância. E a diretora sempre vem dizendo: “Oh, vamos olhar
melhor essa matemática”.
E: Você acha que é possível adaptar o conteúdo de matemática à realidade dessa
escola?
F: É!
E: É?
F: Eu acho que se fosse bem pensado, bem planejado, seria uma coisa maravilhosa. A
matemática se expande por tudo! Poderia se fazer um trabalho criativo, lindo, da
matemática, mas, às vezes, muitas vezes, a gente fica presa no livro didático. Fica
presa, preso nos conteúdos. Aqueles conteudinhos que tem que dar e é aquilo e está
bom e se acomoda, sendo que a gente poderia sair na comunidade, fazer uma pesquisa
de campo. E esse tipo de trabalho as crianças adoram. Fazer pesquisas, entrevistando
...
E: Usando os elementos daqui?
F: Usando os elementos aqui! Aqui, é maravilhoso trabalhar aqui a geografia, mas
envolve toda a matemática. Tem um morro, lá em cima, que você vai ver até que o
mundo é redondo. Se vê toda comunidade lá embaixo. Podia fazer pesquisa. Quantas
famílias? A matemática é maravilhosa, o problema é a acomodação da gente. A gente
tem que estar apaixonada pra fazer um trabalho bem feito. E, às vezes, a gente não
quer se envolver. Eu sempre fugi de fazer projetos porque do projeto eles exigem pra
apresentar lá na frente, e eu tenho trauma de público. Então eu procuro até esconder o
meu trabalho pra não ser levado adiante. Eu não gosto, porque isso já é uma coisa
pessoal, um trauma meu, pessoal, que eu não quero saber. Então, eu procuro fazer
legal, convive dentro da sala de aula. Matemática é uma coisa linda. Depende muito da
professora, da dedicação dela.
E: Eu agradeço! Eu não sei se você gostaria de falar mais algumas coisa sobre a
matemática, sobre seus alunos.
F: Eu só queria dizer uma coisa. A matemática, eu ainda vou ter uns anos pela frente.
Eu preciso melhorar a matemática. Eu olho pra mim mesmo e digo: “Oh, tua
matemática não está boa, não! Tuas aulas de matemática.” Mas eu estou num caminho
certo que é, cada momento que surge a matemática dentro das outras, eu estou
puxando pras crianças.
E: (O telefone toca e a professora atende.)
107
F: Eu não vejo aqui como um meio rural, porque há muita coisa de tecnologias, aqui!
Eu, quando era pequena, eu vivi na roça. Hoje não é mais assim. O meio rural está
oferecendo empregos pro pessoal. As chácaras estão virando pousada, parque
aquático... mudou muito. Não é mais a questão de o meio rural, o campo, a roça. Tem
pessoal daqui super inteligente. As próprias igrejas levam o pessoal assim, bem
desenvolvido, carros do ano, casas modernas, tem coisas que numa casa do meio
urbano não tem! Então, eu acho assim, que na nossa região aqui não dá... rural e
urbano pela comunidade que mora. Tanto que a comunidade aqui participa de muita
coisa lá, em Rio Negro.
E: Por isso que talvez você julgue não necessário fazer as adaptações?
F: Eu até acho necessário. É hoje, em dia, com o mundo globalizado, a criança esteja
aqui, esteja lá, ela está normalmente como se tivesse na sua casa. Por exemplo, nossos
aluninhos vão lá pra prefeitura. Eles se sentem bem lá. Não é como antigamente que,
eu lembro, a criança tinha medo de entrar num ônibus, ir pra lá. Lá ficava encolhida.
Não é mais assim. A criança está à vontade em qualquer meio, que é o mundo de hoje!
Está mudando e a criança já vem com a cabecinha bem mais avançada. Os aluninhos
nossos, as novas gerações, dá impressão que vem lá já preparado pra um quebra-
cabeça, pra pular qualquer parte do mundo. Não vejo separação do meio rural e
urbano.
E: Você acha que essa escola não é rural?
F: Não! Não! Não é questão de rural. É uma questão, assim, que está sendo, o que tem
aqui tem lá, pode ter, o que tem lá pode ter aqui, né!
E: Obrigada, então!
108
QUADRO 6 RECORTES DO DEPOIMENTO DE FABIANA E SIGNIFICAÇÃO DA PESQUISADORA
Recortes do depoimento Significação da pesquisadora
F1 “Eu acho que, se tem uma supervisora e uma diretora
, até que
não
. Porque ela está ciente do que os professores estão aplicando
dentro da sala de aula.”
-
Se houver uma supervisora e uma diretora na escola, é
desnecessária a participação da professora.
F2 “Aqui, no nosso caso, eu não vejo a nossa região aqui um
meio
rural, porque eu vejo assim, que
o desenvolvimento da cidade está
chegando perto de nós e aqui
os pais das crianças, a maioria é
operário de firma de perto mesmo ou da cidade
. Então, as crianças,
aqui, não estão eh.... não têm lá...
uns ou outros que estão na roça
plantando fumo. Não é o caso! E a maioria das crianças... o
pai vive
com um s
alário e eles têm televisão, eles estão sendo assim, tipo,
encaminhados pra tecnologia. (...)”
-
O desenvolvimento da cidade está chegando à região. Os
pais das crianças estão trabalhando na cidade, ou em suas
proximidades, como operários. Apenas alguns estão
plantando fumo.
F3 Seria interessante pra valorizar mais o meio rural
no sentido de
preservar o povo, porque muitas vezes
a tecnologia vem pro meio
rural e acaba eh... estragando, poluindo rios
, como as firmas. A gente
observa que muitas firmas vêm poluir rio eh...
vêm pro
desmatamento. E no caso seria, aqui, nós
fazemos um trabalho mais
de perto pra preservar, cuidar do meio rural.”
-
A adaptação no conteúdo de matemática é importante para
valorizar e preservar o meio rural e o seu povo. Como m
uitas
vezes, as firmas poluem os rios e promovem o
desmatamento, deve ser realizado um trabalho direcionado
para a preservação do meio rural.
F4 “Mas eu sou da opinião que sem a parceria
com alguém mais
firme é impossível trabalhar. Nós temos parceria c
om a comunidade,
mas teria que ter parceria, por exemplo, com o Frigorífico
, parceria
com a Souza Cruz, com a AFUBRA,
que tem o trabalho deles, né, no
meio rural.”
-
É necessário estabelecer parcerias com as firmas locais,
como o Frigorífico, a Souza Cruz
e a AFUBRA, a fim de
viabilizar as adaptações, que visam à preservação do meio
rural.
F5 “(...) Eu procuro eh... e vejo, às vezes, que
a matemática está a
desejar
. A gente está dando muita ênfase à língua portuguesa, à
alfabetização e à matemática, não. Sabe! Eu me preocupo com isso
.
Não sei o que que está acontecendo. Às vezes, a gente eh...
dá uma
coisa lá que, às vezes, não tem nada a ver com o contexto da escola,
- Algumas vezes, os conteúdos de matemática apresentados
estão desvinculados do contexto da escola, das crianças e da
comunidade. Além disto, algumas vezes, não se dá a devida
ênfase à matemática.
109
das crianças ou da comunidade (...)”
F6 “É, eu acho assim, também, meio difícil, sabe! Porque
depende
do conteúdo que o professor está trabalha
ndo, a aula que ele prepara
eh... dando ênfase à matemática
. E, às vezes, é falha da gente não dar
ênfase. Vai muito do professor
, sabe! Não dá ênfase à matemática e
de repente está achando, assim, que o aluno...”
- Depende muito da professora a concretiza
ção de uma
proposta de mudança.
F7 “Eu acho assim:
uma adaptação é você trabalhar sério aquilo
dentro da escola,
não apenas uma aula que você dá diferente pras
crianças, não é uma adaptação
. Eu não sinto que seja uma adaptação.
Por exemplo, eu dou uma a
ula na matemática, muito bem trabalhada,
como, por exemplo, lá,
nós trabalhamos o ml, o quilograma, trazendo
aquele material todo pra dentro da sala. Você trabalha bem! Chega
na
segunda série, não é mais nada trabalhado assim, de uma forma de
você pegar as crianças e ir lá no mercadinho (...)”
-
A adaptação é uma dinâmica de trabalho em que se utilizam
materiais manipuláveis, juntamente com outros recursos.
F8 “ Uma adaptação?
Teria que haver assim, um engajamento de
uma turma, de uma série pra outra, da
maneira que vem sendo
trabalhado, continua.”
-
Para haver adaptação, deveria existir uma continuidade de
trabalho de uma série para outra.
F9 “Seria você trabalhar realmente aquilo e levar a sério
. Adaptar
aquilo e realmente sendo trabalhado. Às vezes
currículo
. A gente fez por alto aquilo, e aquilo não adaptou na
criança, não foi adaptado. Foi muito superficial. Então não mudou a
mentalidade nem da criança, nem do professor e nem da comunidade.
Eu acho que adaptação é quando muda
a mentalidade da própria
escola.”
-
A adaptação no currículo ocorre quando muda a
mentalidade da criança, do professor e da comunidade, isto é,
quando muda a mentalidade da própria escola.
F10 “Eu acho que se fosse bem pensado, bem planejado, seria um
a
coisa maravilhosa
. A matemática se expande por tudo! Poderia se
fazer
um trabalho criativo, lindo, da matemática, mas, às vezes,
muitas vezes, a gente fica presa no livro didático (...)”
-
A adaptação no currículo de matemática implica um
trabalho independente do livro didático.
F11 “Usando os elementos aqui! Aqui, é maravilhoso trabalhar
aqui
-
Usando os elementos locais é possível desenvolver
110
a geografia, mas envolve toda a matemática.
Tem um morro, lá em
cima, que você vai ver até que o mundo é redondo
. Se vê toda
comunidade lá embaixo. Podia fazer pesquisa (...)”
pesquisas e relacionar à matemática.
F12
“(...) Eu, quando era pequena, eu vivi na roça. Hoje não é mais
assim. O meio rural está oferecendo empregos pro pessoal
. As
chácaras estão virando pousada, parque aquático... mudou muito.
Não
é mais a questão de, o meio rural, o campo, a roça (...) Então, eu
acho
assim, que na nossa região aqui não dá... rural e urbano,
pela
comunidade que mora. Tanto que a comunidade aqui participa de
muita coisa lá, em Rio Negro.”
- O meio rural está mudando. As chácaras estão se
transformando em pousadas, em parques aquáticos, deixando
de ser uma questão de meio rural, de campo e de roça.
111
SÍNTESE DA PESQUISADORA SOBRE A ENTREVISTA DE FABIANA
No caso de haver uma diretora e uma supervisora envolvidas no processo,
Fabiana considera desnecessária a sua participação no processo de elaboração do
currículo da escola. A professora observa que o desenvolvimento da cidade está
chegando àquela região. Os pais das crianças estão trabalhando na cidade, ou em suas
proximidades, como operários. Apenas algumas famílias permanecem na agricultura.
Fabiana acha interessante adaptar os conteúdos de matemática às especificidades do
meio no sentido de valorizar e preservar o meio rural e o seu povo. Como, muitas
vezes, as firmas poluem os rios e promovem o desmatamento, acredita que deveria ser
feito um trabalho para preservar o meio rural. Para tanto, acha necessário estabelecer
parcerias com as firmas locais como o Frigorífico, a Souza Cruz e a AFUBRA.
Fabiana observa que na prática escolar dá-se pouca ênfase à matemática. Algumas
vezes, os conteúdos apresentados estão desvinculados do contexto da escola, das
crianças e da comunidade. Assim, considera necessária uma mudança, apesar de não
saber como seria. Esta mudança depende muito de o professor querer executá-la. Para
Fabiana, a adaptação é uma dinâmica de trabalho em que se utilizam materiais
manipuláveis, juntamente com outros recursos. Para haver adaptação, deveria existir
uma continuidade do trabalho de uma série para a outra. Dessa forma, a adaptação no
currículo seria uma mudança de mentalidade da criança, do professor e da
comunidade, isto é, se concretizaria quando houvesse uma mudança de mentalidade da
própria escola. Acha necessário um trabalho independente do livro didático e que
possibilite a utilização de elementos locais. Fabiana relata que o meio rural está
mudando, as chacras estão se transformando em pousadas e parques aquáticos,
deixando de ser mais uma questão de meio rural, de campo ou de roça.
GABRIELA
DESCRIÇÃO
Com formação em Magistério, a professora atua em escola rural há quase cinco anos.
Reside, atualmente, no meio urbano.
112
O currículo da escola, na sua opinião, está voltado para a realidade local, seguindo os
PCNs, e é flexível. Gabriela observa que esse currículo prioriza o ser, visando a sua
autonomia, isto é, um ser participativo e atuante nos diversos momentos e realizações
da escola e da comunidade. Acredita ter participado da construção do currículo de sua
escola através de projetos de curto e longo prazo. Sobre as propostas de reformulação
do currículo atual, afirma que a escola segue as instruções da Secretaria Municipal de
Educação e, como esta passa por um momento de transição, acredita que as
reformulações sejam em nível burocrático. Não apresenta sugestões para a melhoria do
currículo da escola do meio rural, pois acredita que as sugestões estão inseridas na
proposta, bastando colocá-las em prática, e isso, na sua opinião, já está sendo feito. O
conteúdo de matemática na sua escola está voltado para o lúdico e para o concreto.
Gabriela concorda que este conteúdo seja importante para a população rural porque o
pessoal do campo, na sua opinião, é mais real. A professora afirma que é importante
fixar o aluno no seu meio, mas, para isso ser uma realidade, se faz necessário dar
subsídios e viabilidade. Afirma adaptar o conteúdo de matemática à realidade do meio
rural usando a história do aluno. Julga que isso seja uma adaptação porque adaptar é
partir do conhecimento real para o desconhecido de forma clara e harmônica.
G(Professora) e E(Entrevistadora) estão sentadas na sala da diretora e encontram-se
uma de frente para outra. A pesquisadora conversa com a professora sobre o
questionário respondido e sobre a necessidade de complementá-lo com uma entrevista.
E: Boa tarde!
G: Boa tarde, Deise!
E: Eu não sei se você está lembrada, mas há um tempinho você respondeu um
questionário para mim!
G: Ah, sim! Estou lembrada.
E: E nesse questionário havia algumas perguntas sobre o currículo e sobre o conteúdo
de matemática na sua escola.
G: Exatamente.
E: Você coloca que o currículo da sua escola está voltado à realidade local. O que
significa estar voltado à realidade local?
G: Bom! Eh... O que eu quis dizer é que, como os alunos aqui, eles vivem uma
realidade diferente da cidade, não é? Então, o currículo, ele é adaptado à comunidade,
ou seja, à realidade que o aluno vivencia, que é óbvio, né, não posso falar de repente
de... termos ou o que é usado na cidade pra um aluno que nunca... não conhece. Não
que os nossos alunos... os nossos alunos, aliás, eles conhecem, assim... Eu tinha uma
visão diferente de crianças da zona rural. Mas, aqui, os nossos alunos têm computador,
têm também celular, mas dentro da realidade, dentro daquilo que eles aprenderam com
os pais, né! Então, é isso mesmo. O que ele vive aqui, na realidade. Digamos... Vou
dar um exemplo: o trânsito. O trânsito aqui é bem diferente da cidade. Então, nós
estamo... Quando nós passamos, sobre o trânsito, nós não vamos colocar: “Oh! O
sinaleiro está ali.”. Eu vou falar o quê? “Oh! A vaca está passando. Então, vamos
esperar. A vaca passa primeiro.” E é mais ou menos assim. Um exemplo que eu posso
te dar mais...
113
E: Eu perguntei se tu tinhas participado da construção desse currículo. Pela sua
resposta, você participou.
G: Participei! A diretora, ela sempre pede assim, projetos a longo... de curto e a longo
prazos, né! Por exemplo, curtos são aqueles, assim, pequenos, que a gente quer um
tema, assim, que a gente trabalha. Então, é a partir desses projetos que ela deu... Ela
sempre está a par daquilo que porque ela, que ela... participa também de nossos
projetos, sempre, né! Ela é bem atuante. Aí, ela fala: “Ah, você põe aquele projeto
assim”. Eh... “Você poderia colocar os fatos, tudo, que daí eu vou colocar na proposta,
no currículo”. Então, é a partir daí. E, daí, ela senta também conosco, porque na gestão
anterior era assim, nós sempre tínhamos que ter um tema, do que a gente ia trabalhar
no mês vindouro, né! O mês... Como que a gente fala?
E: Posterior?
G: Posterior. Então, ela sentava conosco e dizia: “Oh! Qual tema que nós vamos
trabalhar, desenvolver no ano que vem?... através dos projetos... Qual o tema?”
Sempre voltado realmente, como eu disse, friso, voltado à nossa realidade. Então, a
partir desses temas, desse tema, o geral, nós desenvolvíamos a nossa proposta.
E: Isso, na gestão anterior?
G: Isso, na gestão anterior.
E: E nessa?
G: Não. Foi feita o ano passado também! Dentro da gestão anterior. Então, nessa, só
no final do ano que nós vamos elaborar um outro. Entendeu?
E: Esses projetos, hoje, nessa escola, continuam ou não?
G: Ahan, ahan! Por exemplo, eu sou professora de pré-escola, né! Sou voltada ao
lúdico, bem lúdico ou concreto, por isso que... até que uma das escolas que eu dei aí...
Estou falando do lúdico e do concreto... Antes de eu entrar, ter... Posso falar dentro da
matemática?
E: Sim!
G: Antes de eu entrar diretamente com os números, né, eu primeiro mostro, eu faço o
aluno perceber o espaço que ele está vivendo. O espaço da sala de aula, o espaço da
escola, o espaço das imediações próximas da escola. Ali, o aluno está aprendendo, ele
está vendo a paisagem, ele está vendo os pontos de referência. A partir dali, nós
retornamos à sala. Aí, eu trabalho, com eles, frente, trás, lado, né! Só que primeiro eu
falo: “lado da janelas, lado da porta”. Depois, eu passo pra lateralidade, lateralização,
dentro daquilo. O que eu sempre tenho em mente é mostrar pro aluno que tudo
depende do ponto de visão do aluno. Então, isso é primordial. Primeiro plano é
mostrar que tudo depende da primeira... Não tem aquele negócio estático. Tudo
depende do ponto de vista, tudo é relativo. E o aluno vai, ele vai conhecendo seu
espaço. A partir do momento em que ele conhece seu espaço, ele já pode eh... partir
pra um outro princípio, né, que ééé a percepção espaço-temporal. Aí, eu vou ensinar
nos dias da semana, né, nos dias do mês. Faço o calendário tanto coletivo como
individual. Aí, o aluno, ali, já vai vendo os números. Vou dizendo a utilização social
dos números, porque que ali são utilizados os números. E assim, a criança... mesmo
que ela não assimile no momento, mas ela está escutando, porque a criança de pré-
escola, ela não assimila assim, oh! O que é muito, muito novo pra ela não assimila. Ela
percebe alguma coisinha. Depois, eu vou desenvolvendo tanto o lúdico... Eu sempre...
114
Por exemplo, são os eixos de... Nós trabalhamos com eixos na pré-escola. Então, são
seis eixos: autonomia, identidade, eh... sociedade, natureza... Daí, tem a matemática, o
português, música, movimento, eh... entre outras, né! Então, o que que eu sempre
trabalho? O movimento com a criança. O corpo! A criança é o ponto de partida dela
mesma. Então, eu trabalho o corpo, o nome, quantas vezes tem o nome. Daí, eu
trabalho ooo, como se diz, ooo... o corpo da criança, as partes dos membros da criança.
Eu vou partindo e assim a gente vai desenvolvendo. Eu comecei agora, essa semana,
aliás, inclusive, né, eu dei umm, eu dei ummm, assiimm, um pouquinho, só início da
Páscoa, mas essa semana eu comecei assim. A criançada gosta muito de brincar, né!
Eu dei uma folha de jornal pra cada criança e trabalhei a higiene corporal e trabalhei
também, o esquema corporal. Essa folha serviu de... eh... primeiramente, de tapete.
Primeiro eles pegaram pra sentir a textura do jornal. Tapete! Aí, leque, porque estava
calor, comecei a desenvolver assim, né! Fomos tomar banho. Daí, eles amassaram
virou um sabonete. Virou uma toalha. Daí, virou um prato. Daí, virou um pano de
prato pra enxugar o prato. Daí, virou o travesseiro, a coberta. Daí, teve tudo! Daí, nós
fizemos uma... dividimos o tempo, assim, da criança, né! Eles tomaram banho. Em
todos os aspectos, em todas as idéias, entraram os assuntos de higiene, eh... a divisão
do tempo em casa, né, das atividades que são feitas, então, enfim... Depois, foi o
primeiro momento. Aí, essas bolas, esses jornais viraram bolas. As crianças
amassaram. Eu coloquei em cores, com verde claro, verde escuro, rosa claro, rosa
escuro eee um laranja lá! Eu cobri com papel crepom. Daí, eu trabalhei a relação
número e quantidade primeiro... Não estou ainda no número e na quantidade. Primeiro
eu trabalhei o movimento, né! Trabalhei ao vivo e manual com eles, pra tirar no alvo,
no outro dia, no outro momento. Eles pegaram a bola, cada um jogava pra acertar, e ali
nós fazíamos as contagens. Daí, no balde. Aí, nós contávamos. “Quantas bolas caíram
no balde? Quantas que ficaram fora do balde? Qual a equipe que jogou mais no
balde?” Depois, nós trabalhamos também eh... quais cores ficaram em maior número
no balde... menor número... Então, trabalhar menos e mais também! Daí, nós
trabalhamos classificação, né, de cores. E daí, também fizemos a seriação. Só ali foi
eh... segundo momento. Terceiro momento eu vou trabalhar, daí, vou fazer a relação
quantidade com eles. Vou trabalhar com dados. Esse dado vai ter cada parte uma bola,
né! Dados. Que ali a criança vai... E eu vou desenvolver assim, um número constante.
E: Você coloca que fazem adaptações, aqui, no currículo, né!
G: É! Exato.
E: É isso uma adaptação, isso que você está falando ou não? Ou adaptação só se dá
com projetos?
G: Faz muito tempo que eu respondi essas perguntas. Eu posso dar uma olhadinha?
E: Pode!
G: (Lê o que respondeu no questionário) Ah! Onde que está isso?
E: É que eu notei na sua fala que você fala de adaptação, né! Você acabou de falar que
tem que adaptar à realidade do aluno.
G: Exato! Ah, tá! Dentro da realidade. Isso seria uma adaptação.
E: Isso seria uma adaptação?
G: Seria, seria, seria adaptação. Exato!
E: Por que isso caracteriza uma adaptação?
115
G: Porque, a princípio, a bola é um objeto que a criança conhece. Eu não sei se isso
responde a tua pergunta. Eh... Você está falando no caso do rural, não é?
E: É!
G: Ah, ah! Não. No caso... a princípio, eu falei, comecei, no momento em que nós
trabalhamos as imediações do... nós trabalhamos o ... Lembra que eu te falei que... o
ponto de referência? Então! Nós trabalhamos a realidade local, né! No primeiro
momento, eu te falei sobre a percepção espacial. Então, a criança percebe o espaço
onde ela vive, depois disso, da sala de aula, nós vamos pro espaço maior, que é a
escola, e depois nós passamos pras imediações, né, nas imediações da escola.
E: Isso seria uma adaptação?
G: É! Seria uma adaptação.
E: Seria uma adaptação? Bom! Deixa eu prosseguir aqui. Você também dá sugestões.
Com relação às sugestões, eu pergunto se você acha importante o professor participar
da construção do currículo.
G: Eu acho! Porque, de repente, se houver um momento que o professor mesmo for
falar: “Ah... mas não sei o que...” For pedir alguma coisa, ele vai ter que pensar assim:
“Bom, mas eu participei?” Ou, então, dar uma nova sugestão. Se, por exemplo, eu não
me adaptei a determinada resolução, né, de alguma forma ou de outra, então, eu posso
dizer: “Não, eu não me adaptei. Eu fiz essa experiência e não me deu certo. Posso
sugerir uma outra forma de trabalhar?”.
E: No caso, você coloca que eh... numa das perguntas...
G: Certo!
E: Foram feitas sugestões para melhorar o currículo. Você coloca que a sugestão está
na proposta.
G: Já está na proposta.
E: Você acha, então, que está bom do jeito que está? É isso?
G: Eu acho que está muito bom do jeito que está, porque ela é flexível. É uma
proposta flexível.
E: E você compreende tudo o que está no currículo?
G: Olha! Eu não posso dizer que eu vivo assim... que nem um pastor, né, lendo de
cabo a rabo a proposta, sabe. Só, por exemplo, se eu tenho dúvida, alguma coisa, eu
tenho a diretora. Houve um momento em que eu tive dúvidas! A diretora falou assim:
“Você sabe onde está guardado! Vai lá e pegue.”
E: O que é o currículo?
G: O currículo é o norte pra gente... É uma forma da gente seguir, como se diz, não
seguir, como eu já falei, não é uma Bíblia, mas, daí, por exemplo: “Ah! Pôxa vida! Eu
estou sem...”. Vou dar um exemplo no meu jeitão mesmo: “ Meu Deus do Céu eu tô
cansada de dar determinado conteúdo pro meu aluno.” Ah! Eu vou no currículo porque
ali, no currículo, tem alguma outra forma de... digamos... até mesmo um... como se
diz? Até um novo conteúdo que seja, que possa... não que fuja do assunto, mas, de
repente, ele está ali e dentro da proposta, em outros projetos que foram lançados, né,
que foram mostrados, né, que uma outra professora também fez. Eu posso adaptar ao
meu trabalho.
E: O que você chama de currículo é o projeto político-pedagógico da escola?
116
G: Eu... é porque ali tem os conteúdos, sabe?
E: Isso...
G: Por exemplo, o currículo seriam os conteúdos das diversas áreas, né! Dentro da
proposta que... O que está dentro da proposta mesmo. Então, isso!
E: Eu perguntei se você concordava que o conteúdo de matemática é importante para a
população do meio rural. Você coloca que o pessoal do campo é mais real. Eu não
entendi! O que significa?
G: Risos! Não, não... que eu fale que eles são sinceros, assim... Não nesse sentido. É
que é real porque eles estão eh... eu digo assim, que as pessoas da cidade já são mais
teóricas, né! São mais teóricas e quando... Eu vejo por mim, eu sou assim, uma pessoa
assim, que sou... eu sou muito teórica. Quando vejo, quando eu estou num problema
assim, que eu preciso ser prática, eu fico totalmente sem norte.
E: O que tu chamas de teórica seria mais racional?
G: Não! Você assistiu o filme Tainá?
E: Já!
G: Então? Eu lembro bem da Tainá e daquele menino. Ele todo voltado a... sabe...
aquele tipo... sempre tem que ter um manual de instrução, e a realidade, às vezes, tem
aqueles momentos imprevisíveis, que a teoria não vai adiantar nada, né!
E: Ah, ah!
G: O menino tinha tudo: como se salvar da selva, como enfrentar uma serpente,
como...
E: Na prática?
G: Você viu na prática como ele... É isso que eu estou dizendo.
E: Então, você acha que o conteúdo seja importante porque ele é mais real para
criança?
G: Isso! Exatamente. A criança do campo, sabe. Ela... Sabe o que que é? É que a gente
tem uma visão assim: “Ah, porque o pessoal da cidade é inteligente, o pessoal do
campo é burro”. Porque fala mal, não sabe? Mas, pôxa vida! O que o pessoal do
campo conhece, o pessoal da cidade não conhece. Entendeu? É isso que eu quero
dizer. A gente não pode colocar... Fica assim uma caricatura se a gente for vir colocar
um aluno da cidade dentro de um aluno do campo. Fica horrível!
E: Então, você acha que é importante adaptar os conteúdos de matemática às
especificidades do campo?
G: Ahan, ahan! Só que tem um porém. Eu estou sentindo muita dificuldade, porque a
minha realidade não é essa.
E: Tu és da cidade?
G: Eu sou da cidade. Eu sou urbana. Então, pra mim está sendo difícil. Agora, não
mais! Esse ano já estou... Esse quarto ano que eu estou sendo mais... Porque, antes, era
uma colcha de retalhos os meus, as minhas aulas.
E: Você não entendia eles e eles não entendiam você?
G: Não! Eu entendia muito bem meus alunos. Eu não entendia como adaptar as
minhas aulas ao currículo, porque, primeiro, havia muita interferência do sistema.
Sempre um tema. Jogava um tema ali, se jogava um tema ali. Quando eu conseguia
pegar o fio da meada, jogavam um tema lá pra gente e a gente tinha que fazer um
117
remendo. Isso atrapalhava muito. Agora, já não. Agora eu estou conseguindo eh...
agora eu já sei trabalhar com as crianças de três anos, de... quatro a cinco anos.
E: Você coloca que adapta o conteúdo de matemática através da história do aluno.
Como que é isso? Fala um pouco disso para mim. Interessante!
G: Veja bem! Posso falar de um projeto que eu vou fazer agora?
E: Pode!
G: Eu vou fazer um projeto voltado às historinhas infantis, certo! Malba Tahan, “O
homem que calculava”, sabe? Então, eu quero colocar... eh... trabalhar dentro desse
livro de Malba Tahan. Então, o que eu faço? Por exemplo, agora, se eu for trabalhar a
matemática...
E: Tu tens o livro?
G: Não. Eu não tenho ainda. Eu tenho que pesquisar. Eu amo Malba Tahan. Se eu for
trabalhar a quantidade com os alunos eh... digamos, eu vou fazer aquele problema,
como se fala mesmo?
E: O enigma?
G: Isso! Vou trabalhar através de uma hipótese dos números. A criança vai trazer
alguma coisa de casa, vou pedir pra que a criança traga alguma coisa de casa.
E: Uma situação-problema?
G: Uma situação-problema em casa, e nós vamos resolver na sala de aula dentro do
material didático que eu preparei. Vou confrontar meu material com a história do
aluno, que ele vai trazer de casa, e nós vamos resolver esse problema. Mas dentro da
matemática. Você vê, é uma história que Malba Tahan conta, né? Ele conta só pra
gente resolver. E são histórias interessantíssimas. Prende a atenção do leitor.
E: Numa questão eu pergunto o que faz considerar isso uma adaptação? A questão diz
o seguinte: O que faz...
G: Ah! O que eu entendo de, como conceito de adaptação?
E: Daí, você coloca que adaptar é partir do conhecimento real para o desconhecido de
forma clara e harmônica. Partir do conhecimento real para o desconhecido. O
desconhecido é o que ainda não se conhece, mas que pode vir a ser conhecido?
G: Aquela é a teoria de Vygotsky, né? Então, a partir daí, a criança ela vai... a sua
bagagem. É a dialética, né! Ela traz a sua bagagem e nós adaptamos. Uma coisa que eu
não... que eu acho que a criança tem que... o aluno... porque o conhecer é você deixar
o seu eu do passado para partir pra um eu... É você isolar, matar o teu eu ignorante. Pra
ser um.... lógico! Qual que é a função social da escola? Então, eu já não concordo
assim: “Ah! Mas tem a linguagem formal e a informal”. Não, não! Se você está numa
escola, você tem que aniquilar aquela linguagem anterior: “Fumo, vortêmo e pedimo”.
Se eu estou na escola. Se não, eu não vou pra escola. Se eu não mudar, eu não vou. Eu
fico em casa.
E: No caso, aqui. Adaptar, pra ti, é?
G: Sair da ignorância.
E: E, mais do que isso, você fundamenta a sua adaptação em Vygotsky, é isso?
G: Exatamente. Vygotsky. Exatamente. Olha, eu sempre trabalho dentro das teorias de
Vygotsky, sabe? Porque, na pré-escola, a gente vivencia Vygotsky, vivencia a teoria
dele.
E: Não vivencia Piaget?
118
G: Não sou chegada no Piaget, nem um pouco, sabe! Piaget é muitoooo elite. Parece
que Piaget acha que só as crianças que têm um bom lar que aprendem. E não é assim,
pôxa! Eu gosto muito do Wallom também, na afetividade. Eu acho que Wallom e
Vygotsky são mais reais. Dentro da minha realidade, eles são mais reais, né!
E: Você gostaria de falar mais alguma coisa?
G: Eu gosto de dizer sempre que, às vezes, os meus alunos, às vezes, os trabalhos dos
meus alunos parecem tão esquisitos, mas é que eu tenho que ter a mão do aluno, tem
que ter a pincelada do aluno no trabalho, quer dizer, trinta por cento do professor e
setenta por cento do aluno.
E: Por que ser uma professora de escola rural, por que não ser uma professora de
escola urbana já que tu moras no meio urbano? Por que você se desloca de lá e vem
para cá?
G: Bom! A princípio, foi escolha da Secretaria. Depois, nossa! Eu não sei... eu amo
essa escola, ela é linda. Eu fiz uma poesia pra essa escola.
E: Qual é a poesia? Você tem?
G: Eu não lembro. Eu comparei a escola com uma menina moça, com o desenvolver
dela, sabe. Que ela se tornou uma mulher. E ela é o cartão postal daqui. Eu acho que
essa escola é o cartão postal da Roseira.
E: Agradeço a sua contribuição para essa pesquisa. Muito obrigada!
119
QUADRO 7 RECORTES DO DEPOIMENTO DE GABRIELA E SIGNIFICAÇÃO DA PESQUISADORA
Recortes do depoimento Significação da pesquisadora
G1 “Bom! Éh... O que eu quis dizer é que, como os alunos
aqui,
eles vivem uma realidade diferente da cidade
, não é? Então, o
currículo, ele é adaptado à comunidade, ou seja,
à realidade que o
aluno vivencia, que é óbvio, né, não posso falar
de repente de...
termos ou o que é usado na cidade pra um aluno que nunca... n
ão
conhece (...)”
-
O currículo da escola é adaptado à comunidade, ou seja, à
realidade do aluno. Os termos usados na escola devem se
aproximar do contexto local.
G2 Participei
! A diretora, ela sempre pede assim, projetos (...) Aí
ela fala: “Ah, você põe
aquele projeto assim”. Eh... você poderia
colocar os fatos, tudo, que daí eu vou colocar na proposta, n
o
currículo (...)”
- A professora participou da construção do currículo
construindo projetos, os quais a diretora sugere que sejam
incorporados no currículo da escola.
G3 “Posterior. Então, ela sentava conosco e dizia: “Oh! Qual
tema
que nós vamos trabalhar, desenvolver no ano que vem?...
através dos
projetos
... Qual o tema?” Sempre voltado realmente, como eu disse,
friso, voltado à nossa realidade.
Então, a partir desses temas, desse
tema, o geral, nós desenvolvíamos a nossa proposta.
- Eleito um tema voltado para a realidade local, desenvolve-
se a proposta.
G4 “Ah! Onde que está isso?” -
Demonstra dúvida, em alguns momentos, procurando no
questionário respostas, mas não as encontra
G5 “Exato! Ah, tá! Dentro da realidade. Isso seria uma adaptação.” -
Associa adaptação ao trabalho voltado para a realidade do
aluno.
G6 “Porque, a princípio, a bola é um objeto que a criança conhece
.
Eu não se
i se isso responde a tua pergunta! Eh... Você está falando no
caso do rural, não é?”
- Entende que as atividades que elabora são adaptações
porque, como na atividade descrita em que usa a bola, usa
objetos que a criança conhece, objetos da realidade.
G7
“ (...) a princípio, eu falei, comecei, no momento em que nós
trabalhamos as imediações do... nós trabalhamos o ... Lembra que eu
te falei que... o ponto de referência
? Então! Nós trabalhamos a
realidade local, né! No primeiro momento, eu te falei sobre
a
- Trabalha a partir da percepção espacial das crianças: Do
espaço em que a criança vive para a sala de aula; da sala de
aula para a escola; e da escola para as suas imediações.
120
percepção espacial. Então,
a criança percebe o espaço onde ela vive,
depois disso, da sala de aula, nós vamos pro espaço maior, que é a
escola, e depois nós passamos pras imediações
, né, nas imediações da
escola.”
G8 “Eu acho que está muito bom
do jeito que está, porque ela é
flexível. É uma proposta flexível.”
- O currículo está bom porque é uma proposta flexível.
G9 O currículo é o norte
pra gente... É uma forma da gente seguir
(...) Eu vou no currículo porque ali,
no currículo, tem alguma outra
forma de... digamos... até mesmo um... como se diz? Até
um novo
conteúdo que s
eja, que possa... não que fuja do assunto, mas, de
repente, ele está ali (...)”
- O currículo orienta o trabalho pedagógico da professora e
contém formas de se trabalhar um conteúdo.
G10 “Por exemplo
, o currículo seriam os conteúdos das diversas
áreas,
né! Dentro da proposta que... O que está dentro da proposta
mesmo. Então, isso!”
-
O currículo contempla os conteúdos das diversas áreas de
ensino.
G11 “(...)
O que o pessoal do campo conhece, o pessoal da cidade
não conhece. Entendeu? É isso que eu quero dizer (...)”
- Há um conhecimento próprio do campo que difere do
conhecimento urbano.
G12 “Ahan, ahan! Só que tem um porém. Eu estou
sentindo muita
dificuldade, porque a minha realidade não é essa.”
- Por ser do meio urbano, sente dificuldade em adaptar os
conteúdos às especificidades do meio rural.
G13 “Não! Eu entendia muito bem meus alunos. Eu
não entendia
como adaptar as minhas aulas ao currículo, porque, primeiro,
havia
muita interferência do sistema. Sempre um tema. Jogava um tema ali
,
se jogava um tema ali.
Quando eu conseguia pegar o fio da meada,
jogavam um tema lá pra gente e a gente tinha que fazer um remendo
.
Isso atrapalhava muito (...)
-
A professora não entendia como adaptar suas aulas ao
currículo porque havia muita interferência do sistema.
G14 “Uma situação-
problema em casa, e nós vamos resolver na
sala de aula dentro do material didático que eu preparei. Vou
confrontar meu material com a história do aluno, que ele vai trazer de
casa, e nós vamos resolver esse problema. Mas den
tro da
-
Adapta o currículo por meio do confronto entre a história do
aluno, a sua argumentação, e o material didático produzido.
121
matemática
. Você vê, é uma história que Malba Tahan conta, né? Ele
conta só pra gente resolver (...)”
G15 “Aquela é a teo
ria de Vygotsky, né? Então, a partir daí, a
criança ela vai... a sua bagagem. É a dialética, né!
Ela traz a sua
bagagem e nós adaptamos
. Uma coisa que eu não... que eu acho que a
criança tem que... o aluno... porque
o conhecer é você deixar o seu eu
do passado para partir pra um eu
... É você isolar, matar o teu eu
ignorante. Pra ser um.... lógico! Qual que é a função social da escola?
Então, eu já não concordo assim: “Ah! Mas tem a linguagem formal e
a informal”. Não, não! Se você está numa escola, você te
m que
aniquilar aquela linguagem, anterior:
“Fumo, vortêmo e pedimo”. Se
eu estou na escola. Se não, eu não vou pra escola. Se eu não mudar,
eu não vou. Eu fico em casa.”
- A criança tem conhecimentos prévios. Além disto, conhecer
configura-se numa transformação interna do sujeito.
122
SÍNTESE DA PESQUISADORA SOBRE A ENTREVISTA DE GABRIELA
Gabriela relata que o currículo da escola é adaptado à comunidade, ou seja, à
realidade do aluno. Defende que os termos usados na escola devem se aproximar do
contexto local. Acredita ter participado do processo de elaboração do currículo da
escola construindo projetos, cuja incorporação à proposta, ao currículo da escola a
diretora solicitava. Nestes projetos, elegia-se um tema voltado para a realidade para ser
trabalhado durante o ano letivo. Inicialmente, não consegue entender a pergunta da
pesquisadora. Mas, reformulada a questão, associa adaptação a realidade. Assim, as
atividades desenvolvidas com a bola passam a ser uma adaptação porque a bola é um
objeto que a criança conhece. Gabriela relata desenvolver um trabalho que utiliza a
percepção espacial da criança. A adaptação, no caso rural, seria partir da realidade
local, do espaço em que a criança vive para a sala de aula, da sala de aula para a escola
e da escola para as suas imediações. Gabriela considera o currículo uma proposta
flexível que contempla os conteúdos das diversas áreas de ensino, orientando o
trabalho pedagógico dos professores. Admite que há um conhecimento próprio do
campo que difere do conhecimento urbano. Assim, acha importante adaptar os
conteúdos de matemática às especificidades do campo. Por ser do meio urbano, sente
dificuldades em realizar estas adaptações. Gabriela relata que não entendia como
adaptar as suas aulas ao currículo, pois havia muita interferência do sistema, com a
imposição de temas de trabalho. Afirma que adapta o conteúdo de matemática à
história do aluno, isto é, confronta a história do aluno com o material por ela
produzido. Observa que a criança tem conhecimentos prévios e entende que conhecer
configura-se numa transformação interna do sujeito.
HELOÍSA
DESCRIÇÃO
Com formação em Pedagogia e com pós-graduação em Interdisciplinaridade em
Educação Básica, a professora atua em escola rural há mais de vinte anos. Reside,
atualmente, no meio rural.
123
Para Heloísa, o currículo da sua escola pode ser descrito como uma lista de conteúdos
enviados pela Secretaria Municipal de Educação, nos quais procura-se realizar
possíveis adaptações. A professora relata que, no ano de 2001, elaborou, juntamente
com sua colega, uma proposta pedagógica que não foi mais reestruturada por ter
havido uma diminuição do número de alunos da escola. Esse número, sendo inferior a
cem, descaracteriza a oficialidade da escola. Acredita que haja propostas de
reformulação do currículo atual, de 2004 para 2005. Sugere, para a melhoria do
currículo da escola no meio rural, a adaptação dos conteúdos à realidade do povo do
meio rural possibilitando reflexões sobre as fontes alternativas de renda no meio rural,
a valorização da cultura do povo que vive no meio rural, as conseqüências do êxodo
rural e as diferentes realidades de vida na cidade. O conteúdo de matemática na sua
escola, proposto pela Secretaria, envolve operações, números, geometria, situações-
problema e medidas. Concorda que este conteúdo seja importante para a população
rural e acrescenta que torna-se necessário acrescentar e adaptar conteúdos conforme as
diferenciações de uso no campo, como as medidas de terreno e outras unidades usadas
na região. Sugere também que sejam trabalhadas as equivalências: quanto de terreno
necessário para semear um saco de feijão e qual a produção normal esperada?
Considera, portanto, necessário adaptar o conteúdo de matemática às especificidades
do meio rural, pois a escola deve ser direcionada à população que a freqüenta. Afirma
adaptar o conteúdo de matemática à realidade do meio rural, apear de considerar isso
muito pouco, pois ainda falta conhecimento para fazê-lo. Procura criar situações de
trabalho que tratem daquela realidade. Entende que isso seja uma adaptação porque
fica mais fácil para o aluno compreender o conteúdo quando trata de questões
próximas à sua realidade, para, depois, dirigir-se a questões mais distantes.
H(Professora) e E(Entrevistadora) estão sentadas ao lado de uma árvore, onde os
pássaros cantam exaustivamente.
E: Bom dia!
H: Bom dia!
E: Na semana passada eu estive aqui, aplicando um questionário pra você. E, nesse
questionário, tinha algumas perguntas, existiam algumas perguntas, por exemplo,
sobre o currículo da escola. E algumas questões eu gostaria de estar aprofundando,
estar aprofundando hoje. Então, a pergunta que eu farei é a seguinte: no questionário
respondido você diz que recebe da Secretaria Municipal de Educação uma lista de
exercícios. Como é essa lista?
H: Eu recebo uma lista de conteúdos, né! Os conteúdos que devem ser trabalhados.
Esses conteúdos são separados por turma e por área, cada um que tem que trabalhar
naquela turma. Aí, tem que ser desenvolvido pela professora na sala.
E: Como que é? Que conteúdos tem nessa lista? Você lembra?
H: Sistema de numeração... em matemática, né?
E: É!
H: Nós estudamos frações, a geometria, operações... Operações! E todas elas devem
ser trabalhadas em situações-problema, né! Foi uma coisa que eu percebi lá! Que eu
escrevi situações-problema como conteúdo e não é, né! É metodologia, é como aplicar
esse conteúdo.
124
E: Você fala também de possíveis adaptações. Como são essas adaptações?
H: Eu procuro relacionar o conteúdo com o cotidiano dos alunos. Então, hoje ainda,
trabalhando operação, adição, a nomenclatura das parcelas, eu citei o pedido lá, da
mãe, né: “Quantas parcelas tem uma compra de supermercado?” São muitas parcelas!
Então, seria enumerar essas parcelas, que não é uma que a gente faz na escola. É uma
operação com muitas parcelas. Coisas do dia-a-dia. Aí, terreno, plantação! Nós
trabalhamos com a história do dinheiro no ano passado. Aí também está no dia-a-dia
deles.
E: O que é isso, adaptação? Você entende o que é adaptação?
H: Eu penso que adaptação seja, nesse caso, trabalhar puxado pra realidade da zona
rural, nesse sentido. Trabalhar a adição, a subtração, o sistema monetário. Vou
trabalhar.... Eles lidam com fumo! Trabalham no fumo. Então, quanto vende o quilo
do fumo? Qual é o movimento de uma caixa de fumo? Se... Trabalhar metro cúbico
relacionado com o trabalho no corte de madeira. Eles vendem esterco de frango, né!
Ali, aquela caixa que ele carrega pra levar de um lado pra outro, qual é a medida que
tem?
E: Também foi perguntado sobre a construção do currículo, né? Se você tinha
participado? Gostaria de saber se a proposta de 2001 contemplava alguma adaptação?
H: (Pensa por alguns segundos). Não! Não posso afirmar, agora. Porque lá acho que
foi dada mais ênfase ao conteúdo... conteúdo proposto... seguindo a orientação da
Secretaria Municipal. Aí, não foi, né! Nesse momento não se pensava em escola do
campo. Foi deixado pra adaptar, pra adaptar, na hora do trabalho. Está proposto pra
trabalhar operação, proposto pra trabalhar meio ambiente, proposto pra trabalhar
outras questões, mas não foi... na proposta não foi mencionado direto também pra se
trabalhar dirigido pra educação do campo. É amplo, né!
E: Por que você não participou mais na elaboração de propostas? Ao que consta você
participou na elaboração da proposta de 2001 e depois não mais participou. Por que
você não participou?
H: Porque, após 2001, foi sempre divulgada a idéia de que a nossa escola seria
desativada, porque o número baixo de alunos seria mudado pra Escola Duque de
Caxias. Então, como tinha menos de cem alunos, como tem a escola menos de cem
alunos... É! Ficou assim, que mais um pouco funciona e daqui a não sei quanto tempo
ela vai ser desativada pra ser nuclearizada junto da Escola Duque de Caxias.
E: Como você acha que devem ser as adaptações no currículo da zona rural quando
você diz que poderiam ser por meio de fontes alternativas de renda. O que é isso?
H: É trabalhar com as crianças que eles precisam procurar meio de sobrevivência no
campo mesmo! Não precisa ir pra cidade pra ter uma vida melhor. Porque não é só,
muito assim, eh... pouca fonte de renda no campo. Planta-se fumo, eh... trabalha-se no
reflorestamento, trabalha na agricultura, né! Mas não tem outra fonte de renda. Já
houve tentativas, mas fracassou. Tipo trabalhar com batata-salsa, mas aí decaiu.
Plantar cenoura, não houve mais continuidade. Aí, veio a criação de frangos, também,
que o pessoal trabalha, né! Trabalha com a avicultura. Mas ainda são poucas as fontes
alternativas de renda. O pessoal do campo tinha que descobrir outras formas pra
sobreviver no próprio campo.
E: Mas, como que se daria a adaptação nesse processo?
125
H: A escola tinha que ter estrutura; os professores, conhecimentos. Apoio, acho, não
sei... informação de como trabalhar, de como mostrar pra criança outro meio pra ela
viver. Outro... “Não, você pode descobrir essa profissão no campo”. Se pode estudar
lá, numa escola de nível profissionalizante, e voltar a trabalhar no campo. Procurar um
meio, uma linha que seja dirigida pro campo.
E: Você fala da valorização da cultura do povo. O que significa?
H: Significa que a gente não sente valorizado o conhecimento do povo do campo, a
forma de vida. Até o modo de falar, que é diferente, é muito, muita discriminação.
Então... Eu já participei até de locais assim que “Vocês da zona rural ficam pra lá e nós
somos da cidade”. Então, há uma discriminação. Como eu nasci no campo e continuo
vivendo no campo, eu percebo essa discriminação, mesmo que eu me esforce pra
superar, mas eu percebo pra mim, imagina pra aquelas outras pessoas que não tenham
formação. Eu já vive alguns anos na cidade, voltei! E aqui eu me sinto bem. Agora,
uma pessoa que vive aqui e sempre, sempre, o que ela conhece? O que ela... A
educação que ela tem é toda desvalorizada. Precisava ela saber que isso tem valor pra
se sentir valorizada.
E: Você fala também em diferentes realidades. O que é isso?
H: Diferentes realidades... Diferentes realidades, podem ser aplicadas entre cidade-
campo, que são bem diferentes, e entre campo e campo, porque na localidade que eu
nasci o povo vivia de uma forma, e aqui eles viviam bem de outra. São vinte
quilômetros que separam a localidade que eu nasci da localidade que eu vim trabalhar
e agora continuo morando. E nessa é bem diferente a realidade. Naquela época, lá já
plantava muito fumo, e aqui ninguém plantava fumo. Então, parecia dois mundos
diferentes. Aqui é beira de rio grande, né! O pessoal daqui sofre muito com enchente, e
na minha localidade, lá, que eu nasci, nunca tinha visto isso! Uma enchente de alagar,
de trancar as saídas do povo e tudo. Então, são diferentes realidades, e cada realidade
tem que adaptar. O povo dali tem que ser valorizado naquele ambiente que vive.
E: Você fala também em possíveis adaptações quando você diz: “deixar de mostrar só
o que é bonito”. O que isto significa?
H: Porque, oh! Eu percebo assim... No trabalho escolar que eles... “Você precisa
estudar”. “Você pode ser um médico”. “Você pode ser um advogado”. “Você pode ser
um dentista”. Não sei o quê! Só as profissões mais da cidade. Ninguém mostra que ele
pode ser um agricultor desenvolvido, ele pode ser alguém da pesca bem desenvolvido,
ele pode ser alguém da pecuária bem desenvolvido. Não mostra esse lado que ele pode
ser. Ou mesmo vai estudar, dar aula, vai ser um professor lá da zona rural e vai fazer
um bom trabalho. Não precisa fazer, estudar, se desenvolver, pra viver na cidade. E
mostra seu lado bonito. Não mostra que lá, na cidade, a competição por uma vaga é
enorme, não mostra que nem todos vivem lá, no centro, onde tem ônibus, onde tem
todas as condições boas de saúde. Tem gente que vive na periferia, nas favelas,
sofrendo muito. Então, isso! A escola não mostra. Os meios de comunicação
dificilmente mostram e, se mostram, ainda é de forma deturpada, né! Não tem essa! É
isso aí que eu entendo que tem que deixar de mostrar só o que é bonito na cidade e
mostrar o que tem de bonito no campo também. E que no campo se vive muito bem,
com muita tranqüilidade. E pode se desenvolver. Não é porque não saiu do campo que
precisa ficar... E mesmo quanto ao estudo, quem quer vai; quem quer permanecer no
126
campo vai, estuda e volta pro campo. E se a pessoa sai, estuda e tem vontade de
investir no campo, ela consegue melhorar o ambiente quando ela vive no campo.
E: De que maneira os conteúdos operações, números, geometria e medidas são
trabalhados aqui, na escola? De que maneira você trabalha isso?
H: Usando, no que é possível, material concreto, pra mexer, pra manipular, né. Usando
o livro didático também; quadro e giz, muito; conversa com o aluno; exercício no
caderno, também muito.
E: O que você chama de material concreto?
H: Material que pode manipular, contar, comparar. Tipo... material dourado é uma
representação do número. E as formas geométricas também: representação do círculo,
triângulo, os sólidos geométricos. Quando é, se eu vou usar pra ele na pirâmide, eu
peço... Tem umas pedrinhas assim, que têm forma de pirâmide, então dá pra catar uma
pedrinha, um tronco de pau, uma coisa assim, procurando no meio ambiente o material
pra trabalhar.
E: Além dessas adaptações que você cita no questionário, como, por exemplo, medidas
de terreno, equivalências, o que mais você acrescentaria?
H: (Pensa) Talvez, se fosse o caso, já que eu falei antes, as fontes alternativas de
renda. Pesquisas de quantas atividades poderiam se desenvolver no campo. Ano
passado, nós trabalhamos, na escola, muito a pedagogia empreendedora. Então,
trabalha-se os sonhos dos alunos. O que que você quer ser? O quê, que você vai fazer?
Só tem que finalizar o contexto. Ainda eu falava pra eles: “Vamos montar uma fábrica
de fazer aviões aqui, na nossa localidade?” Vender pra quem aviões? Então, não tem...
Tem que ser realista, tem que trabalhar com o que se tem, com o que se pode
aperfeiçoar na localidade. Não adianta sonhar demais e não conseguir realizar aquilo
ou realizar uma coisa sem chão!
E: Por quê?
H: Porque aí não vai chegar a lugar nenhum, né! Com a atividade... Com a fábrica de
aviões não tem pra quem vender, ela não vai nem fabricar, quanto mais evoluir ou dar
melhorias pra comunidade. Porque eu vejo que tem que investir naquilo que dá
melhoria. Então, nessa ampliação no currículo aí, eu deveria me aprofundar na minha
localidade, em que sentido que eu posso melhorar. Eh... Trabalhar com os alunos
naquela direção. Difícil! Porque precisa de ajuda, precisa de material, precisa de muito
estudo. Claro! Precisa de uma equipe estudando. Eu acho que uma ou duas pessoas só,
fica difícil pra achar uma saída.
E: Dando continuidade a essa tua pergunta, eu vou retornar um pouquinho. Por que
você julga necessário ter conhecimento para fazer as adaptações?
H: Porque, se eu quero uma melhoria, eu tenho que ampliar o conhecimento dos
alunos. Se eu ficar só no meu conhecimento, vai ser pouco. Então, o meu
conhecimento é... é a vida com eles. Aí, então, tem que outras pessoas me darem
apoio, outras pessoas mostrarem outras realidades também.
E: Que conhecimentos são esses?
H: Conhecimento da realidade, conhecimento de outras realidades, pra comparar e
conhecimento de como você poderia transformar essa realidade. A nossa realidade, no
caso.
127
E: Por que você considera que fica mais fácil o aluno compreender o conteúdo quando
se trata de questões próximas à sua realidade?
H: Pra isso, eu tenho um exemplo bem prático. Faz uns seis, sete anos que eu li uma
reportagem numa revista sobre computador. Eu li, li, li e não entendi nada. Eu voltava
e lia e não entendia nada, porque computador pra mim, naquela época, era uma coisa
muito de longe. Então, não adiantava eu conhecer, lá, aqueles vocabulários
relacionados ao computador na teoria, se eu não tinha nem noção na prática. Agora, se
eu voltar a ler aquela mesma reportagem, o meu conhecimento já é diferente porque
agora o computador já está um pouco mais perto. Um pouco mais perto no dia-a-dia.
Então, eu entendo! Com o aluno, também! Falar uma coisa pra ele lá de longe, que ele
não tem, não consegue mentalizar, ele não vai compreender. Agora, partindo da
realidade dali, ele pode construir um conhecimento e avançar.
E: O conhecimento de adaptação? Como que vocês ficaram sabendo da necessidade de
adaptar o currículo à realidade do campo?
H: Há muito tempo não se falava nisso, né! Em adaptar. Eu comecei leitura sobre o
assunto a partir do final de 2004. É muito novo isso aí, né! Final de 2004 que eu tive
contato que tinha assim, uma equipe, um grupo de pessoas pensando sobre a educação
do campo, que a educação do campo tem que ser valorizada, que a criança deve
conhecer, deve valorizar a cultura do campo e não só você ficar se preocupando em
estudar pra ser alguém na cidade. Pra ser um... Porque a vida do homem da cidade é
passada como o modelo pra vida do homem do campo. E, aí, é essa educação que
chega na escola. Aí, quando o pessoal vai todo... acontece o êxodo rural, aí, ninguém
entende o porquê! Mas é conseqüência da própria escola que incentivou a criança e
mesmo, se ela vai estudando, eh... já pra estudar a 1ª à 4ª série, tem que estudar na
escola da cidade, ela vai assimilando o modo de vida da cidade. E, aí, ela não tem mais
vontade de voltar para o interior. Então, a partir dessas leituras e da vivência também,
porque eu morava na cidade, eu não me adaptei, eu voltei pra zona rural e na sala de
aula eu sempre divulguei essa idéia pra eles: “Aqui é bom de viver, aqui vocês podem
se desenvolver, aqui mesmo”. Mas eu acho que é uma questão pessoal, não é uma
questão de educação municipal ou coisa assim. Essa, se eu passei a idéia, foi por
questão pessoal. Em documentos, só a partir de 2004, porque eu mudei de escola, fui
pra escola estadual. Se eu permanecesse na escola municipal como eu estava desde
antes, eu acredito que eu não teria acesso a esses documentos porque até antes não
tinha, não falavam. Falavam que tinha que nuclearizar a escola.
E: Você entende... na verdade, você tem clareza do que sejam essas adaptações no
currículo da escola do campo?
H: Acredito que não! Não tenho clareza assim. Mas eu ando buscando, ando lendo
bastante e quero, já pedi até pra participar em cursos, né, encontros que me dêem essa
clareza, porque, se não, eu fico pensando que estou fazendo e estou me enganando e
estou enganando as crianças também, né! Então, eu preciso de mais documentos, de
mais reflexão sobre o assunto.
E: Você acha importante discutir sobre as adaptações?
H: Com certeza! É importante! Discutir e contar com as pessoas, né, que pensem
igual, que pensem junto nesse tema.
128
E: O currículo pra ti o que é? É uma proposta pedagógica ou a proposta pedagógica
define o currículo ou a proposta pedagógica está dentro do currículo. O que é o
currículo? O que tu entendes?
H: O currículo... deve estar de acordo com a proposta pedagógica da escola. Se a
proposta da escola é trabalhar questões relacionadas ao campo, então ela inclui no seu
currículo questões relacionadas ao campo e, se a proposta pedagógica da escola já tem
outra visão no seu...
E: Então, o que é o currículo?
H: O currículo envolve os conteúdos, os objetivos, as metodologias, o tipo de
avaliação. Tudo isso faz parte do currículo.
E: Esse currículo, como que é?
H: A última visão de currículo que nós temos é o Currículo Básico do Paraná. Nós
trabalhamos por uma porção de ano. Aí, esse currículo básico foi substituído. Lá era
tinha mais... baseava-se mais em conteúdos. Aí, foi substituído, acho, que a partir de
2001, 2002 eh... do governo lá, governo federal. Eh... competências e habilidades. Aí,
nós não entendemos as tais competências e habilidades muito direito porque, aí, tinha
uma competência, uma habilidade tão abrangente que a gente não conseguia relacionar
com o dia-a-dia da criança, não tinha muita ligação com aquilo que queria mesmo da
criança.
E: E hoje, esse currículo, como é? É um currículo que vem da Secretaria?
H: Sim!
E: E não se discute ou se discute ainda?
H: Na nossa escola não se discute, talvez em outra se discuta. Mas na nossa não
porque na nossa chegou... só o item Conteúdos. Nós nem temos conhecimento de toda
proposta pedagógica, de todo o documento; tem só a parte de lista de conteúdos. Não
tem objetivo, nem metodologia, nem sobre avaliação, não vem nada. Vem da
Secretaria Municipal a lista de conteúdos. Trabalhem! Então, nós desenvolvemos do
nosso modo essa lista de conteúdos. Nós não temos conhecimento no documento de
onde saiu.
E: Esse documento não mostra nenhuma adaptação do conteúdo para a realidade do
campo?
H: Não! Nenhuma. Se for adaptar é... por conta própria. O currículo que nós
trabalhamos é tudo igual, não tem uma diferenciação assim... dirigida para escola do
campo.
E: Muito obrigada pela entrevista.
129
QUADRO 8 RECORTES DO DEPOIMENTO DE HELOÍSA E SIGNIFICAÇÃO DA PESQUISADORA
Recortes do depoimento Significação da pesquisadora
H1 Eu procuro relacionar o conteúdo com o cotidiano dos
alunos
. Então, hoje ainda, trabalhando operação, adição, a
nomenclatura das parcelas, eu citei o pedido lá da mãe, né!
“Q
uantas parcelas tem uma compra de supermercado?” São muitas
parcelas. Então, seria enumerar essas parcelas, que não é uma que
a gente faz na escola. É uma operação com muitas parcelas.
Coisas
do dia-a-dia! Aí, terreno, plantação
. Nós trabalhamos com a
história do dinheiro no ano passado. Aí também está no dia-a-
dia
deles.”
-
A professora procura relacionar o conteúdo com o cotidiano
dos alunos.
H2 “Eu
penso que adaptação seja, nesse caso, trabalhar puxado
pra realidade da zona rural, nesse sentido. Trab
alhar a adição, a
subtração, os sistema monetário. Vou trabalhar...
Eles lidam com
fumo. Trabalham com fumo. Então, quanto vende o quilo do
fumo? Qual é o movimento de uma caixa de fumo? Se...
Trabalhar
metro cúbico relacionado com o trabalho no corte de madeira. Eles
vendem esterco de frango, né
? Ali, aquela caixa que ele carrega
pra levar de um lado pra outro, qual é a medida que tem?”
-
Pensa que adaptação seja trabalhar articulado com a realidade
da zona rural, como trabalhar o metro cúbico relacionado
ao
corte de madeira.
H3 “É trabalhar com as crianças que eles precisam procurar meio
de sobrevivência no campo mesmo! ...
O pessoal do campo tinha
que descobrir outras formas pra sobreviver no próprio campo.”
- Acredita ser necessário desenvolver um
trabalho de
conscientização a partir do qual as crianças procurem meios de
sobrevivência no campo, descobrindo até mesmo outras formas
de sobrevivência.
H4 A escola tinha que ter estrutura; os professores,
conhecimentos. Apoio, acho, não sei... informação de como
trabalhar, de como mostrar pra criança outro meio pra ela viver
.
Outro... Não, você pode descobrir essa profissão no campo. ...”
- A escola deve ter estrutura, e os professores, conhecimentos,
para mostrarem às crianças modos de sobreviver no campo.
H5 “Significa que a gente não sente valorizado o conhecimento
do povo do campo, a forma de vida. ... o
que ela conhece? o que
-
Acredita que não são valorizados o conhecimento do povo do
campo e a sua forma de vida.
130
ela... A educação que ela tem é toda desvalorizada.
Precisava ela
saber que isso tem valor pra se sentir valorizada.”
H6 “... Diferentes realidades podem ser aplicadas entre cidade-
campo, que são bem diferentes, e entre campo e campo,
porque na
localidade que eu nasci o povo vivia de uma forma, e aqui eles
viviam bem de outra. São vinte quilômetros que separam a
localidade que eu nasci da localidade que eu vim trabalhar e agora
continuo morando.”
- Há diferentes realidades entre cidade-campo e campo-campo.
H7 “... Ninguém mostra que ele pode ser um agricultor
desenvolvido, ele pode ser alguém da pesca bem desenvolvido, ele
pode ser alguém da pecuária bem desenvolvido. Não mostra esse
lado que ele pode ser. O
u mesmo vai estudar, dar aula, vai ser um
professor lá da zona rural e vai fazer um bom trabalho. ...”
- Ninguém mostra que a criança do meio rural tornar-se um
agricultor ou um pecuarista bem desenvolvido. Não se mostra
que ela pode ser um professor da zona rural e fazer um bom
trabalho.
H8 “... Quando é, se eu vou usar pra ele na pirâmide eu peço.
Têm umas pedrinhas assim, que tem forma de pirâmide então vou
catar uma pedrinha, um tronco de pau, uma coisa assim,
procurando no meio ambiente, o material pra trabalhar.”
- Busca no meio ambiente materiais para trabalhar na sala
de
aula, como algumas pedras que apresentam formas de pirâmides.
H9 “... Porque
eu vejo que tem que investir naquilo que dá
melhoria. Então, nessa ampliação no currículo aí, eu deveria me
aprofundar na minha localidade, em que sentido que eu posso
melhorar. Eh... Trabalhar com os alunos naquela direção. Difícil!
Porque precisa de ajuda pra fazer isso. Claro!
Precisa estudo, uma
equipe estudando. Eu acho que uma ou duas pessoas, só fica difícil
pra achar uma saída.”
- Percebe que deve aprofundar seus co
nhecimentos para
promover melhorias no currículo. Além disto, acredita que para
que esta melhoria ocorra deve haver uma equipe estudando e
trabalhando junto.
131
H10 “...que a educação do campo tem que ser valorizada, que
a
criança deve conhecer, deve valorizar a cultura do campo e não só
você ficar se preocupando em estudar pra ser alguém na cidade.
Pra ser um... Porque a vida do homem da cidade é passada como o
modelo pra vida do homem do campo. ...”
- Uma vez que a vida do homem da cidade é passado como
modelo para o homem do campo, deve haver uma mudança no
sentido de que a cultura do campo seja valorizada.
H11 “Acredito que não! Não tenho clareza
assim. Mas eu ando
buscando, ando lendo bastante e quero, já pedi até pra participar
em cursos, né, en
contros que me dêem essa clareza, porque, se não,
eu fico pensando que estou fazendo e estou me enganando e estou
enganando as crianças também, né! Então, eu preciso de mais
documentos, de mais reflexão sobre o assunto.”
- A professora não tem clareza sobre o que sejam as adaptações
no currículo. Ela acredita que necessita de mais reflexões, mais
documentos sobre esse assunto.
H12
Conhecimento da realidade, conhecimento de outras
realidades pra comparar e conhecimento de como você poderia
transformar essa realidade.”
-
Para fazer adaptações, julga necessários conhecimento da
realidade, conhecimento de outras realidades para comparar e
conhecimento de como se pode transformar essa realidade.
H13 “... Aí,
nós não entendemos as tais competências e
habili
dades muito direito porque, aí, tinha uma competência, uma
habilidade tão abrangente que a gente não conseguia relacionar
com o dia-a-dia da criança
, não tinha muita ligação com aquilo que
queria mesmo da criança.”
- Talvez não tenha compreendido as competências e habilidades
por serem abrangentes demais.
132
132
SÍNTESE DA PESQUISADORA SOBRE A ENTREVISTA DE HELOÍSA
Heloísa relata que relaciona o conteúdo ao cotidiano dos alunos, afirmando
buscar no meio ambiente materiais para trabalhar em sala de aula, como pedras que
podem representar formas particulares de pirâmides. Pensa que adaptação seja
trabalhar articulado com a realidade da zona rural, como trabalhar o metro cúbico
relacionado ao corte de madeira. Heloísa considera necessário desenvolver um
trabalho de conscientização a partir do qual as crianças procurem meios de
sobrevivência no campo, descobrindo até mesmo outras formas de sobrevivência. Na
sua opinião, a escola deve ter estrutura, e os professores, conhecimentos, para
mostrarem às crianças modos de sobreviver no campo. Destaca as diferentes realidades
entre cidade-campo e campo-campo. Para Heloísa, o conhecimento do povo e a sua
forma de vida não são valorizados porque a vida do homem da cidade é passada como
modelo para o homem do campo. Destaca que ninguém mostra que a criança do meio
rural pode tornar-se um agricultor ou um pecuarista bem desenvolvido. Não se mostra
que ela pode se tornar um professor da zona rural e fazer um bom trabalho. Heloísa
percebe que deve aprofundar seus conhecimentos para promover melhorias no
currículo. Além de aprofundar seus conhecimentos, para promover estas melhorias
deve haver uma equipe estudando e trabalhando junto. Não tem clareza sobre o que
sejam as adaptações no currículo, necessitando mais reflexões, mais documentos sobre
esse assunto. Julga necessários, para fazer adaptações no currículo, conhecimento da
realidade, conhecimento de outras realidades para comparar e conhecimento de como
se pode transformar essa realidade. Talvez não tenha compreendido as competências e
habilidades por serem abrangentes demais.
ISABEL
DESCRIÇÃO
Com formação em Pedagogia, a professora atua em escola rural há quase dez anos,
tendo sempre residido no meio rural.
133
133
O currículo da sua escola pode ser descrito como um rascunho de uma proposta
pedagógica. Acredita, no entanto, que esta proposta está alguns anos defasada e fora da
realidade. Acredita não ter participado da elaboração desse currículo. Como proposta
de reformulação do currículo atual, destaca a necessidade de haver um currículo
específico para as escolas rurais, um currículo diferenciado, com conteúdos adequados
aos interesses e às necessidades da população do campo, direcionado a cada realidade.
Sugere para a melhoria do currículo da escola do meio rural: conteúdos com atividades
específicas para o meio rural, valorização do pessoal no campo, apoio e formação
diferenciada para os professores do campo, incentivo e atenção especiais para as
crianças do campo, sem discriminação. Acredita que o conteúdo de matemática na sua
escola seja adequado, mas afirma que seria necessário dar noções sobre as medidas de
hectare/alqueire e sobre preenchimento de notas das vendas dos produtos. Concorda
que esse conteúdo seja importante para a população rural pela necessidade de saber
dividir, somar, multiplicar, entre outros, para poder plantar, comercializar e tomar
decisões. Considera também necessário adaptar o conteúdo de matemática às
especificidades do meio rural porque talvez seja mais fácil para compreensão dos
alunos. As aulas poderiam acontecer muito mais na prática e poderiam ser externas à
sala de aula. Acredita adaptar, na medida do possível, o conteúdo de matemática à
realidade do meio rural através do uso de material concreto existente nas proximidades
da escola, usando também situações-problema com medidas e receitas com produtos
da agricultura ou da pecuária. Afirma que nem sempre é possível realizar o trabalho
devido a algumas inseguranças, tais como: o trabalho pode não dar certo, pode não
haver apoio, pode não haver suporte técnico, pode não haver auxílio ou, até mesmo,
não haver a conscientização da própria população do campo em relação a essas
adaptações.
I(Professora) e E(Entrevistadora) estão sentadas de frente a uma mesa grande
colocada na parte externa da escola.
E: Bom dia!
I: Bom dia!
E: Eu não sei se você está lembrada, mas, na semana passada, eu estive aqui aplicando
um questionário com você. E nesse questionário havia algumas perguntas sobre o
currículo, sobre o conteúdo e sobre a escola. Uma das questões tratava do currículo da
escola. E você coloca que o currículo é uma proposta pedagógica defasada e que está
fora da realidade. Por que você considera que o currículo da sua escola está fora da
realidade?
I: Eu coloquei de maneira errada, né! Não?
E: Não sei?
I: Fora da realidade porque faz algum tempo que foi feito. Então, eu acho que ela está
talvez eh... meio atrasada, não está atual.
E: É nesse sentido que tu entendes fora da realidade?
I: É... Não, não é fora da realidade. Talvez fora da realidade porque a proposta
pedagógica é uma só. Foi na época feita eh... assim, proposta pelo município, mas eu
acho, assim, que foi adequada à nossa realidade porque foi eu e a colega mesmo que
134
134
fizemos. Talvez eu coloquei, assim, fora da nossa realidade porque na época tinha
mais professoras, mais alunos, tinha pré-escola.
E: Ah, ah!
I: Não sei se eu esclareci?
E: É! Você, então, julga que o currículo seja a proposta pedagógica, é isso?
I: (Gesticula afirmativamente com a cabeça)
E: O currículo, então, foram vocês...
I: Não! Foi proposto pela Secretaria de Educação, né!
E: Mas a proposta quem fez? Foram vocês que criaram a proposta?
I: Fomos nós que...
E: E esta proposta está documentada aqui? Hoje existe essa proposta?
I: Não! Só rascunho.
E: Por que você não participou da elaboração do currículo? Você coloca aqui, numa
questão, que não participou da elaboração do currículo.
I: Aí fiquei meio na dúvida porque agora, este ano, foram mandados os conteúdos pra
serem trabalhados, pela Secretaria de Educação, né, que não é o mesmo da proposta
pedagógica.
E: Não! Você não participou, mas por que você não participou? Você sabe?
I: Não sei! Acho que foi mandado lá e... de lá, né!
E: Você acha importante participar?
I: Acho!
E: Por quê?
I: Por quê? Porque a gente vai adequar os conteúdos com a realidade daqui, da escola
e não, às vezes, trabalhar conteúdos que são impostos, né!
E: Você acha que existem conteúdos impostos, então, para vocês?
I: Ahan, ahan!
E: É! Você fala adequar o conteúdo à realidade aqui da escola. O que seria isso? O que
é adequar o conteúdo à realidade da escola?
I: É... Como estávamos falando em escola do campo, né, adequar os conteúdos com a
realidade daqui. Daqui, da região, digamos. Do campo.
E: O que você entende por adaptação no currículo do meio rural?
I: Trabalhar mais os conteúdos do meio rural, né! Como assim?
E: É! O que você entende por adaptações no currículo do meio rural?
I: É isso. Adaptar os conteúdos mais do campo com atividades, assim, mais
elaboradas, né, pra trabalhar esses conteúdos. Que a gente... Sei lá... com curso mais
direcionado a isso, pra gente também saber trabalhar.
E: Dê um exemplo?
I: Por exemplo, digamos, trabalhar com a primeira série sobre êxodo rural. Não sei se
é um conteúdo já de primeira série, mas, assim, mais leve que eles possam entender
isso. Ou...
E: De matemática?
I: Metros quadrados, medidas...
E: Como medidas?
135
135
I: Medir uma área, medir o quilo do feijão, do arroz. O cálculo, talvez isto é uma coisa,
assim, que a gente já faça! Às vezes, surge, assim, uma dúvida, você não sabe como
trabalhar a matemática ali! Pra eles, né!
E: Você ouviu esse termo adaptação de onde? Como você teve conhecimento da
necessidade dessas adaptações?
I: Eu já vi alguns documentos, né, sobre educação no campo.
E: E você tem claro o que é, o que vem a ser, como se fazem essas adaptações no
currículo?
I: Não!
E: É claro para você isso?
I: Não!
E: Você acha importante ser claro para você? Para poder fazer as adaptações?
I: Eu acho! Eu acho que é importante.
E: O que você considera como conteúdos adequados aos interesses e às necessidades
da população do campo além do alqueire, hectare, preenchimentos de notas do
produtor, que você cita no questionário?
I: (Gesticula negativamente com a cabeça)
E: Não entendeu a pergunta?
I: É o começo!
E: Porque é assim, você fala na questão...
I: É! Foi que eu respondi.
E: Que você considera importante que os conteúdos estejam adequados ao interesses e
necessidades da população do campo. E, daí, você cita como exemplo: trabalhar com
alqueire, hectare, trabalhar com o preenchimento de nota do produtor. A pergunta é:
além desses conteúdos quais seriam outros conteúdos que você julgaria adequado para
a população aqui do meio rural?
I: (Pensa!)
E: Eu não sei se você já respondeu? Talvez até você já tenha respondido, mas quais
outros?
I: A valorização deles no campo, não sei se chega a ser um conteúdo, mas... É de
matemática?
E: É que a pergunta é mais dirigida...
I: É dirigida à matemática. Agora que eu me toquei!
E: Não, tudo bem! Se você acha importante outro, pode citar, que daí, eu também
considero importante.
I: Lucro, prejuízo. Eh... A inflação, o dólar, essas coisas que a gente também nem tem
conhecimento, e eles têm que estar a par pra poder vender o produto. Que mais? Eh...
O cálculo mental. Que mais? Estimativa, né!
E: Teria mais algum outro?
I: Agora eu não me lembro! Mas, se eu pensar... É que eu demoro pra pensar.
E: Você diz adaptar, na medida do possível, o conteúdo de matemática à realidade do
meio rural. Por que na medida do possível?
I: Porque nem sempre a gente consegue, assim, ter idéias, digamos... de como
trabalhar aquilo. Às vezes, é bem mais fácil ficar no... ali, no livro, e trabalhar os
conteúdos ali do que adaptar.
136
136
E: O que é esse adaptar que você falou agora? Adaptar como?
I: Adaptar é, tipo, eu pegar o conteúdo e ir lá trabalhar e relacionar, né, o que você está
trabalhando com o que eles vivem.
E: Talvez você explique melhor agora. Você fala aqui: “usando material concreto
próximo da escola”. Talvez seria isso uma adaptação. Como é isso?
I: Digamos... Eu pegar o feijão, o milho, eh... as folhas do chão, palitinhos, pra
trabalhar dezenas. Deixa eu ver o que mais? Os terrenos que são perto, que você pode
ir lá medir. Eu acho que são esses. Deixa eu ver mais algum conteúdo. Eu acho que
são esses! A terra, a areia que você pode usar.
E: E o que faz você considerar isso uma adaptação?
I: (Pensa por alguns segundos)
E: O que te leva a acreditar que isso seja uma adaptação?
I: (Pensa por alguns segundos)
E: Alguém já escreveu sobre isso?
I: Acho que é a idéia que eu mesma criei, não sei...
E: Mas, o que te leva acreditar que isso que você me diz que é adaptação seja uma
adaptação?
I: Como é a pergunta?
E: Na verdade, assim, o que faz você considerar isso tudo o que você me disse ser uma
adaptação?
I: (Pensa por alguns segundos)
E: Porque, veja, você me diz que isso é adaptação, e eu te questiono! Mas o que te faz
acreditar que isso seja uma adaptação?
I: Será que isso é uma adaptação? Agora eu pergunto!
E: Porque se você for ver na lei de diretrizes e bases... Não sei se você leu, o que você
leu, não sei se existe alguma coisa definindo o que seja adaptação. Por isso é que eu
estou lhe perguntando. O que leva você a acreditar que isso tudo que você me fala é
uma adaptação?
I: Eu não sei te dizer. Sei lá! Eu acho que é o resultado que tem quando trabalho com
eles que é diferente do que ficar dentro da sala de aula.
E: Ah! O resultado é diferente. Que resultado? Em termos de avaliação? Resultado de
aprendizagem. É isso?
I: De aprendizagem. De, também, motivação.
E: A motivação implica que eles aprendam melhor, é isso?
I: É isso!
E: Você cita numa das questões que se deve valorizar o pessoal do campo,
principalmente com apoio aos professores do campo. Apoio, acredito que seja em
termos de qualificação profissional.
I: Isso!
E: É isso?
I: É!
E: Por que você acha que é importante a valorização do pessoal do campo?
I: Porque vejo, assim, que agora, agora nem tanto, mas ainda tem por aí. É porque as
pessoas do campo se sentem mais retraídas, desvalorizadas principalmente quando vão
na cidade fazer alguma coisa, ou escola. Eu, por exemplo, eu sofria muito quando fui
137
137
pra escola porque eu me sentia desvalorizada só porque eu era do campo. Tipo assim,
ter um apoio, mostrar o valor que tem o pessoal do campo, porque geralmente a gente
vê só a desvalorização e não a valorização.
E: Por que ser uma professora da escola rural? Por que não ser de outra escola?
I: No meu caso?
E: É!
I: Porque eu moro aqui. E porque eu gosto daqui. Eu não senti a necessidade de sair
daqui. A oportunidade apareceu aqui porque é meu lugar. Eu nasci aqui, eu gosto
daqui.
E: Agradeço a sua contribuição para essa pesquisa. Muito obrigada!
138
QUADRO 9 RECORTES DO DEPOIMENTO DE ISABEL E SIGNIFICAÇÃO DA PESQUISADORA
Recortes do depoimento Significação da pesquisadora
I1 Fora da realidade porque faz algum tempo que foi feita. E
ntão,
eu acho que ela está talvez, eh... meio atrasada, não está atual.”
-
A professora diz que o currículo está fora da realidade porque
não está atualizado.
I2 “É... Não, não é fora da realidade.
Talvez fora da realidade
porque a proposta pedagógica é uma só
. Foi na época feita, eh...
assim, proposta pelo município, mas eu acho, assim, que
foi
adequada à nossa realidade porque foi eu e a colega mesmo
que
fizemos. Talvez eu coloquei, assim,
fora da nossa realidade porque
na época tinha mais professoras, mais alunos, tinha pré-escola.”
-
Fora da realidade porque a proposta pedagógica é uma só para
todas as escolas. A proposta, construída pelas professoras, está
fora da realida
de porque houve mudanças na escola, mas o
currículo não contemplou.
I3 “Não! Foi proposto pela Secretaria de Educação, né!” -
O currículo foi proposto pela Secretaria Municipal de
Educação.
I4 “Não! Só rascunho.” - Essa proposta existe apenas no rascunho.
I5 “Aí fiquei meio na dúvida porque agora, este ano,
foram
mandados os conteúdos pra serem trabalhados
, pela Secretaria de
Educação, né, que não é o mesmo da proposta pedagógica.”
-
A professora tem dúvidas, mas acredita que não participou,
porqu
e os conteúdos foram encaminhados pela Secretaria
Municipal de Educação e diferem dos conteúdos da proposta
pedagógica.
I6 “Por quê? Porque a gente vai
adequar os conteúdos com a
realidade daqui, da escola
, e não, às vezes, trabalhar conteúdos que
são impostos, né!”
-
A professora considera importante sua participação na escolha
dos conteúdos porque acredita que pode adequa-
los à realidade
da escola.
I7 “É... Como estávamos falando em escola do campo, né, a
dequar
os conteúdos com a realidade daqui. Daqui, da região
, digamos. Do
campo.”
-
Adequar os conteúdos à realidade da escola consiste em
adequá-los à realidade da região.
I8 Trabalhar mais os conteúdos do meio rural, né! Como assim?”
- Entende adaptação no currículo do meio rural como trabalh
ar
mais os conteúdos do meio rural.
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I9 “É isso. Adaptar os conteúdos mais do campo com atividades,
assim, mais elaboradas
, né, pra trabalhar esses conteúdos. Que a
gente... Sei lá...
com curso mais direcionado a isso, pra gente
também saber trabalhar.”
-
Adaptação no currículo do meio rural é adaptar com
atividades que tratem dos conteúdos do campo. Para isso, faz-
se necessário cursos de formação que abordem as questões do
campo.
I10 “Por exemplo, digamos, trabalhar com a primeira série sobre
êxodo rural
. Não sei se é um conteúdo já de primeira série, mas,
assim, mais leve que eles possam entender isso. Ou..."
-
Um exemplo de adaptação seria, na primeira série, iniciar uma
discussão sobre o êxodo rural.
I11 Medir uma área, medir o quilo do feijão, do arroz. O cálculo
,
talvez isto é uma coisa, assim, que a gente já faça! Às vezes, surge,
assim, uma dúvida, você não sabe como trabalhar a matemática ali!
Pra eles, né!”
- Em matemática, trabalhar as medidas de áreas e os cálculos.
I12 “Eu já vi alguns documentos, né, sobre educação no campo.” -
A professora reconhece o termo adaptação porque já o viu em
alguns documentos sobre a educação do campo.
I13 “A valorização deles no campo
, não sei se chega a ser um
conteúdo, mas... É de matemática?”
-
Outro conteúdo a ser adaptado poderia ser o trabalho com a
valorização do homem do campo.
I14 Lucro, prejuízo. Eh... A inflação, o dólar
, essas coisas que a
gente também nem tem conhecimento, e eles têm que estar a par pra
poder vender o produto. Que mais? Eh... O cálculo mental
. Que
mais? Estimativa, né!”
-
Em matemática, trabalhar com as questões de lucro, de
prejuízo e com a moeda financeira, pois os agricultores
precisam comercializar os produtos. Além disto, trabalhar com
o cálculo mental e a estimativa.
I15 Adaptar é, tipo, eu pegar o conteúdo e ir lá trabalhar e
relacionar, né, o que você está trabalhando com o que eles vivem.”
-
Adaptar é estabelecer uma relação entre o conteúdo e o
ambiente no qual a criança vive.
I16 Acho que é a idéia que eu mesma criei, não sei...” -
A professora acredita que sua definição de adaptação é uma
criação sua.
I17 “Será que isso é uma adaptação? Agora eu pergunto!” - Tem dúvidas sobre isso ser realmente uma adaptação.
I18 “Eu não sei te dizer. Sei lá! Eu
acho que é o resultado que tem
quando trabalho com eles que é diferente do que ficar dentro da sala
-
Os alunos demonstram interesse em aprender quando a
professora trabalha de modo diferente com eles. Isto a leva a
140
de aula.” crer que este trabalho diferenciado seja uma adaptação.
I19 “(...)Tipo assim, ter um apoio,
mostrar o valor que tem o
pessoal do campo, porque geralmente a gente vê só a desvalorização
e não a valorização.”
- Deve-
se mostrar o valor do homem do campo e a sua
importância para toda sociedade.
141
SÍNTESE DA PESQUISADORA SOBRE A ENTREVISTA DE ISABEL
Isabel afirma que o currículo da sua escola está fora da realidade. Tal afirmação
é decorrente de todas as escolas possuírem a mesma proposta pedagógica. Admite ter
construído, em conjunto com sua colega, uma proposta pedagógica para a escola
existente apenas no rascunho. Não participou da elaboração do currículo oficial da
escola, pois este foi encaminhado pela Secretaria Municipal de Educação. Ademais,
acredita não ter participado do processo de elaboração desse currículo, porque os
conteúdos foram previamente definidos e diferem dos conteúdos da proposta
pedagógica. Acha importante participar do processo de elaboração do currículo da
escola porque pode-se, assim, propor uma adequação do currículo à realidade da
escola, isto é, à realidade da região. Entende por adaptação do currículo do meio rural
o trabalho predominante com os conteúdos do meio rural. Esta adaptação é feita com
atividades que tratem dos conteúdos do campo. Para isso, são necessários aos
professores cursos que abordem as questões do campo. Em relação aos alunos, um
exemplo seria, na primeira série iniciar uma discussão sobre o êxodo rural. Outro
conteúdo da adaptação poderia ser a valorização do homem do campo. Em
matemática, poderiam ser trabalhadas questões de lucro e de prejuízo e a moeda
financeira, pois os agricultores precisam comercializar os produtos. O cálculo mental e
a estimativa também são importantes. Isabel relata também que adaptar um conteúdo é
estabelecer uma relação com o ambiente no qual as crianças vivem. Criou essa
definição, mas tem dúvida se isso realmente é adaptação. Acredita que talvez seja
adaptação porque os alunos demonstram interesse em aprender e os resultados são
diferentes. Isabel observa que se deve mostrar o valor do homem do campo e a sua
importância para sociedade.
142
4.1.2 PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES
A partir da análise prévia dos depoimentos e posterior dos seus recortes, da
interpretação e da síntese da pesquisadora, buscou-se identificar elementos que
pudessem caracterizar uma primeira aproximação para uma compreensão mais geral.
A partir da leitura do recorte F7, percebe-se que a depoente entende como
adaptação uma dinâmica de trabalho em que se utilizam materiais manipuláveis. O
recorte D11 possibilita perceber outro entendimento de adaptação: a adaptação é uma
proposta que vem enriquecer a área rural, apesar de não estar no currículo.
A adaptação no currículo ocorre quando muda a mentalidade da criança, do
professor e da comunidade, isto é, quando muda a mentalidade da própria escola. Essa
idéia é apresentada no recorte F9.
O recorte B8 aponta para as condições para que se realizem as adaptações.
Neste recorte, a depoente afirma que as adaptações seriam possíveis a partir de um
trabalho mais profundo com projetos, envolvendo comunidade escolar, pais e
comunidade em geral.
Nos recortes H2 e I15, as depoentes revelam que a adaptação necessita de um
trabalho articulado entre o conteúdo e a realidade local.
A depoente H, no item 12, julga necessários o conhecimento da realidade, o
conhecimento de outras realidades para comparar e o conhecimento de como se pode
transformar essa realidade, para fazer adaptações.
A partir dos recortes I17 e H11, percebe-se que essas depoentes têm dúvidas
sobre o que sejam as adaptações no currículo.
A depoente G, no item 6, revela que entende que as atividades que elabora são
adaptações porque, usa objetos que a criança conhece, objetos da sua realidade.
A depoente I, nos itens 8 e 9, revela que entende por adaptação do currículo ao
meio rural um trabalho mais profundo sobre os conteúdos do meio rural. Destaca
143
também a necessidade de cursos de formação continuada para os professores para que
estes possam executar adaptações.
O depoente I, nos itens 10 e 14, entende como adaptação do currículo ao meio
rural uma proposta de trabalho que incorpora discussões sobre as questões do campo.
A depoente A, nos itens 11 e 14, destaca como possibilidade de adaptação do
currículo ao meio rural a abordagem de questões relacionadas ao contexto do campo.
Por meio do recorte H4, a depoente revela que a escola deve ter estrutura, e os
professores, conhecimentos para mostrarem às crianças modos de sobreviver no
campo.
A depoente B no item 1, revela que o projeto que visou à adaptação do currículo
na sua escola abordou questões referentes ao meio rural. Estabelecia-se uma relação
entre os conteúdos e o contexto local.
A depoente D, no item 8, revela a necessidade de as crianças conhecerem a fala
local e o significado atribuído aos termos locais como, a “braça” e o “cargueiro de
milho”.
As afirmações presentes nos recortes F3, H5 e H10 revelam que as depoentes
reconhecem a necessidade de se valorizar o povo do campo e a sua forma de vida.
Algumas vezes, os conteúdos de matemática apresentados estão desvinculados
do contexto da escola, das crianças e da comunidade. Além disto, algumas vezes, não
se dá a devida ênfase à matemática. Essa idéia é apresentada no recorte F5.
A depoente revela, no recorte G12, que sente dificuldade em adaptar os
conteúdos às especificidades do meio rural por ser do meio urbano. A afirmação no
recorte G11 revela que há um conhecimento próprio do campo.
A depoente E, nos itens 5 e 7, revela que entende por adaptação no currículo de
matemática a articulação do conteúdo desta disciplina com outras disciplinas. A
depoente D, nos itens 5 e 6, revela que entende por adaptação no currículo de
matemática as transformações ou substituições de conteúdos por situações mais
significativas, mais próximas do contexto das crianças.
144
A depoente A, nos itens 8, 9 e 10, procura atribuir sentido aos termos adaptação
e adequação. Sugere que signifiquem ou que remetam a mudança ou acréscimos de
conteúdos.
4.2 DESCRIÇÃO GERAL
Nessa etapa, busca-se tecer considerações relativas às primeiras aproximações
obtidas em análise prévia, na tentativa de estabelecer categorias, por meio de uma
análise horizontal, a partir das convergências e divergências encontradas.
4.2.1 COMPREENSÕES DAS PROFESSORAS DE ESCOLAS RURAIS
Apesar da dificuldade que algumas depoentes tiveram em apresentar uma idéia
sobre as categorias aqui levantadas, os relatos permitem identificar as seguintes
compreensões:
Categoria I: Entendimento sobre a adaptação
Um trabalho articulado com a realidade da zona rural.
Uma relação que se estabelece entre o conteúdo e o ambiente no qual as crianças
vivem.
Categoria II: Entendimento sobre a adaptação do currículo do meio rural
Um projeto envolvendo comunidade escolar, pais e comunidade geral.
Uma proposta que incorpora assuntos relacionados ao trabalho do homem do
campo.
Uma abordagem que busca conhecer os termos locais e entender os seus
significados.
145
Uma proposta que aborda mais os conteúdos do meio rural.
Categoria III: Entendimento sobre a adaptação do currículo de matemática do meio
rural
Uma transformação ou substituição de conteúdos por situações mais próximas do
contexto das crianças.
Uma articulação dos conteúdos de matemática com outras disciplinas.
Categoria IV: Entendimento sobre a adaptação dos conteúdos de matemática às
especificidades do meio rural
Abordar questões relacionadas a valores de terras e a medidas da região.
4.2.2 SUGESTÕES SOBRE AS ADAPTAÇÕES DO CURRÍCULO DO MEIO
RURAL
Categoria V: As adaptações do currículo do meio rural através de fontes alternativas
de renda
Quando perguntado para a depoente sobre as adaptações através de fontes
alternativas de renda, relata que as crianças precisam encontrar meios de sobrevivência
no campo. Afirma que são poucas as fontes alternativas de renda e que o povo do
campo deve descobrir outras formas de sobreviver no próprio campo.
146
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste capítulo, busca-se apresentar a interpretação que realizamos sobre as
compreensões das depoentes com base em leituras e observações prévias.
5.1 SOBRE O DEPOIMENTO DAS PROFESSORAS
As depoentes, em alguns momentos da entrevista, mostraram-se surpresas com
as perguntas. Talvez esta surpresa esteja relacionada à forma de abordagem adotada
pela pesquisadora ou aos termos utilizados no encaminhamento das questões.
Na tentativa de compreender os significados que as professoras atribuem à
adaptação no currículo de matemática do meio rural, buscou-se conhecer as relações
comuns entre os significados produzidos. Observa-se em alguns momentos uma certa
dificuldade em verbalizar sobre o termo adaptação/adequação. Essa dificuldade
aparente pode indicar a necessidade de maior interação com o termo e com seu
significado.
Algumas das respostas às questões das entrevistas possibilitaram uma forma de
reflexão crítica, originando um pensamento sobre o espaço escolar como espaço em
transformação, inserido num contexto histórico-social.
Parece existir um elo entre as compreensões reveladas em alguns itens que
compõem as categorias I e II. Por exemplo, algumas depoentes entendem adaptação
como uma proposta que aborda os conteúdos do meio rural, uma abordagem que busca
conhecer os termos locais e entender os seus significados ou até mesmo, um trabalho
articulado com a realidade da zona rural.
Algumas das depoentes revelam a necessidade de projetos específicos para o
meio rural (anexo 4), sempre buscando estabelecer relações entre os conteúdos e a
realidade dos alunos. Apenas uma depoente alerta para o fato de que o currículo da
escola não deve ser diferente por ser do meio rural.
147
Quando questionadas sobre a adaptação do currículo de matemática do meio
rural, apesar da dificuldade em responder a essa questão, destacam (categoria III) que
deve haver uma modificação de conteúdos, de modo a aproximá-los do contexto local.
Outra depoente destaca a necessidade de articulação dos conteúdos com as outras
disciplinas. Sugere-se, portanto, uma atenção para os conteúdos e para as metodologias
adotadas para o ensino de matemática.
Quando questionadas sobre as adaptações dos conteúdos de matemática às
especificidades do meio rural (categoria IV), revelam a necessidade de se abordar
questões relacionadas a valores de terras e a medidas agrárias. Manifesta-se, assim, a
necessidade de se conhecer os termos locais e os seus significados.
Observa-se, no decorrer das entrevistas, que as depoentes apresentam opiniões
unânimes sobre o fato de que o povo do campo e a sua forma de vida precisam ser
respeitas. O respeito se manifesta no reconhecimento de sua cultura e de seu povo.
Por meio da categoria V, sugere-se como uma adaptação do currículo do meio
rural a discussão de questões referentes às formas de sobrevivência no campo. As
crianças devem descobrir outras formas de sobrevivência no campo.
Observa-se, por meio das características que constituem as categorias I, II, III,
IV e V, que as adaptações no currículo de matemática do meio rural contemplam
aspectos metodológicos e aspectos relativos a cultura do meio rural. As características
metodológicas se manifestam na necessidade de mudança do conteúdo, e da forma de
abordagem desse conteúdo e a característica cultural, na valorização e no
reconhecimento dos termos locais.
Assim, os significados atribuídos às adaptações parecem refletir as experiências
e as percepções daqueles que vivem e/ou convivem no meio rural.
148
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152
ANEXOS
ANEXO 1 ENTREVISTAS COM AGRICULTORES
Protocolo de entrevista
Sujeito: AI
AI(Agricultor) e E(Entrevistadora) estão andando em direção a um galpão, onde se
encontram as folhas de fumo.
E: Bom dia!
AI: Bom dia!
E: Há quanto tempo trabalha com o fumo?
AI: Ah! Nós, não é tanto tempo porque... Três anos, né! Mas, eu bem disse, eu me
criei lidando com o fumo, né.
E: Ahan, ahan!
AI: Daí casemo, fumo pra cidade, tentemo a vida lá. Não deu certo! Voltemo de volta
pra cá.
E: E como é a plantação de fumo? É uma plantação simples? Como vocês fazem essa
plantação?
AI: Então, fizemos.. Vou te explicar desde o começo. Tá vendo aquelas bandeja lá?
E: Ahan, ahan!
AI: Pois é! Aquelas bandeja, a gente faz tipo de uns canteiros no chão, coloca com
água tudo... que é colocado lona preta, preparado com água. Daí é colocado nas
bandeja com substrato. Daí vem as sementinhas assim, que é... Elas são mínimas,
muito pequenininha. Mas, daí, eles colocam tipo de uma massa, né, pra ficar
maiorzinha, tipo um formato de uma semente de repolho, que é colocado numa
maquininha e é semeado por cima do substrato, naquelas bandeja. Daí é colocado na
água. Ali elas ficam por três meses, acho que três meses, né? Dá três meses até o
plantio. Na água. Daí, depois, é replantada na terra.
E: Quantas mudas cabem em cada bandeja?
AI: Duzentas mudas.
E: E quantas dessas bandejas são plantadas aqui?
AI: É doze mil pé. Dá o equivalente a vinte mil pé de fumo.
E: Vinte mil pés de fumo? E o lucro? Lucra vendendo fumo? É considerável o lucro?
AI: Ah! Isso vareia o tempo, né? Este ano nós tivemo muita pouca chuva, né? Nossa!
Nós tava no tempo de plantar o fumo e não chovia. Nós tava plantando com sol.
Nossa! Era um sofrimento... Daí não deu classe boa. Isso aqui, ainda, é um fumo mais
simples, né, das primeiras colheita, ainda. Ele é muito fino.
E: As professoras falaram que tem vários processos do fumo.
AI: Tem!
E: E quais seriam esses processos?
AI: Pois é! Daí, depois de plantado, daí ele é colhido e deixado nesta estufa. Aqui!
Amarramo umas varinha, ali!
E: Ali é feita a secagem?
153
AI: Secagem! Aqui ficam, mais ou menos, sete, oito dias, aqui dentro.
E: Sete ou oito dias?
AI: Até ficar totalmente seco.
E: Quantas bandejas vêm pra cá?
AI: Não! Daí é por vara. Aqui, mais ou menos, umas quinhentas varas.
E: Isso equivale a quantos fumos? Você tem idéia?
AI: Nossa! O quilo será que... Quanto de fumo daria? Oitenta quilo.
E: Oitenta quilos?
AI: É! Dia e noite, o fogo direto. Você tem que cuidar.
E: Porque senão, pode mofar. É isso?
AI: Porque, daí, não dá classe. Daí sai verde, sai preto. Quer ver? Vou te mostrar!
E: Isso aí é uma vara?
AI: É! Ela fica meia listrada aqui, ó! E a melhor classe que eles querem, tem que ser o
fumo bem pintado. Assim!
E: Ah! Tem que ser assim?
AI: Tem que ser pintado porque, se for muito pálido, ele não tem classe pra isso.
E: Ah, ah!
AI: O fumo tem que ser bem pintado. Por isso que a gente tem que classificar. Tira o
preto. O preto fora. O menos pintado, fora. E o bem pintadinho que é o melhor.
E: Este daqui, no caso, seria o melhor?
AI: É! Este daqui seria o melhor.
E: Ah, ah! Entendi. Quantas folhas cabem aqui?
AI: Ah! Essa base nós não temo.
E: Não tem essa base. E peso? Qual é o peso?
AI: Peso dela... Cada dez vara, dá na base de oito quilos.
E: Vocês têm uma média de pesagem?
AI: Temo. Daí, a gente desamarra ela, né. Que daí a gente marca o certo. Aqui! Nessa
ponta, a gente vai começar a amarrar. Então, a gente empilha lá! Se não, a gente não
vence...
E: Nós vimos o processo de classificação do fumo?
AI: Não! O processo de secagem. Pois é, então, depois das varinhas a gente desamarra
e coloca aqui, na pilha. Daqui, a gente vai classificando folhinha por folhinha, né.
Separando o ruim, o bom, o verde, né, que seria... Esse aqui é um fumo bom!
E: Todo esse é um fumo bom?
AI: Esse já é um fumo passado. Preto, né! Que tem menos... O comércio deles.
E: Nesta parte estão as bonequinhas de fumo?
AI: É, as manoquinhas feita.
E: Manoquinha?
AI: Manoquinha. Duzentos fardos dá mais ou menos, sessenta quilos.
E: Quanto tem aqui?
AI: Uns mil e quinhenta. Eu vou mostrar pra vocês como se faz um fardo, só pra vocês
terem uma idéia. Agora vocês me sigam que eu vou levar na frente...
E: Quantas manoquinhas a senhora está levando?
AI: Oito.
E: Oito manoquinhas?
154
AI: Ah, ah! É colocado os barbante, antes, né! E daí a gente vai colocando: oito pra cá,
oito pra lá e um vai socando, sabe? Vai socando, socando até chegar a essa altura.
Aqui!
E: Quantas cabem aqui, ao todo?
AI: Duzentas, né! Duzentas manocas, tudo.
E: Qual é o tamanho dessa caixa?
AI: Pois é?
E: É uma caixa padrão?
AI: É! Só que é prensado, daí. A gente coloca esse breque, aqui... e vai prensando
até... .
E: Ah, ah!
AI: Ocupa essa tábua, daí o breque e é prensado até ficar bem quadradinho. Padrão
que eles exigem, né!
E: Assim que vocês vendem?
AI: É! Assim que nós vendemo. Daí é colocado a etiqueta, a classe, o peso, daí vai...
E: E o transporte? Como é feito o transporte? Vocês levam ou eles buscam?
AI: Não! Eles vêm buscar. É marcado o dia, né, certinho. E a gente arruma porque o
fumo... Como esse fumo aqui, sabe? Ele tá meio úmido, não pode...
E: Quantos hectares de área são plantados? A senhora sabe?
AI: Quantos? Uns dezesseis litros.
E: O que é o litro? É uma unidade que vocês usam?
AI: Nós usamo.
E: Vocês sabem o que significa o litro?
AI: Não sei!
E: Mas é uma unidade que é usada aqui, na região?
AI: É...
E: Um hectare equivale a quantos litros?
AI: Dezesseis litros.
E: Dezesseis litros de terra. É isso?
AI: Sim!
E: É uma unidade de referência. Na região, seria essa a unidade padrão?
AI: É!
E: A Sousa Cruz, que é a empresa que compra o fumo, ela pede por hectares ou por
litros pra vocês?
AI: Por quantidade de terra.
E: Por quantidade de terra?
AI: É! Por terra.
E: Quantos pés ela pede assim, no mínimo? Ou não existe um mínimo?
AI: Não! A não ser que você pega, por exemplo, uma estufa nova pra fazer, né. Daí
você precisa de tudo, né. Precisa de tijolo... ela fornece tudo pra você.
E: Isso daqui foram eles que...
AI: Nós, aqui! Nós fizemo por nossa conta. Saiu tudo do nosso dinheiro.
E: Ah, ah!
AI: Mas, se você pega financiamento da Sousa Cruz, no mínimo, é trinta e cinco mil
pés de fumo que você vai ter que plantar pra repor pra Sousa Cruz.
155
E: Ãh, ãh!
AI: Daí é feita uma dívida de seis anos, né? Em seis ano, você paga essa dívida pra
ela.
E: Eles exigem um mínimo de plantio ao ano?
AI: Não! Daí, se você não tem a dívida com ela... Somente, por exemplo, que daí a
gente pega os insumo, né? Adubo... essas coisa... aí você planta quanto você quiser.
E: E quanto vocês plantam ao ano, se fosse fazer um cálculo médio?
AI: Uns vinte mil pé, né? Porque não adianta nós plantar, nós temo pouca gente. Só
nós dois.
E: E o seu filho? Ajuda na plantação ou não ajuda?
AI: Ah! Ele não ajuda.
E: Ele não sabe, então, fazer nem uma manoquinha?
AI: Ah, não! Pra ele, eu quero o estudo. Eu não quero que ele siga o nosso exemplo.
Eu quero que ele estude. Seja alguém na vida. Porque é muito sofrido aqui, na roça.
E: Então, aqui, a plantação é só fumo. Milho vocês não plantam?
AI: Plantamo. Consumo, mesmo.
E: Só pra consumo! Vocês sobrevivem basicamente do plantio do fumo. É isso?
AI: Ahan, ahan!
E: Eu estou vendo! Aqui fora tem galinhas. A senhora cria pra alimentação?
AI: Só pro consumo, mesmo.
E: Mas vender ovos, a senhora não vende?
AI: Não tem como.
E: E vacas, a senhora tem vacas?
AI: Tenho. Temos dois cavalos, duas vaquinhas. Até uma tá dando leite, agora.
E: Está fazendo queijo?
AI: Tá dando bem poquinho leite, não é vaca assim, como diz... Uma holandesa!
E: E vassoura? Vocês fabricam as vassouras?
AI: Não! Aqui não tem esse material pra fazer vassora.
E: O que é uma lageana?
AI: A lageana é um tipo de vassora que a gente usa.
E: Mas aqui não tem essa vassoura?
AI: Tem!
E: Ah! Tem? Ah, é essa a vassoura que vocês fabricam.
AI: É pra varrer pra fora, assim. O chão de terra, mesmo.
E: Que bacana. Aquele aparelho, lá! Pra que é?
AI: É a tessedera pra costurar os fio.
E: Ah! É ela quem faz...
AI: As varrinha, daí.
E: E quanto tem em cima da mesa? Existe uma média pra colocar ou coloca ao acaso?
AI: Ah, tá! Eu vou explicar pra senhora.
E: Aqui, a gente... Quando vem o fumo da roça, ele é que nem o dedo da gente, sabe!
O talo grosso. Daí é colocado uma camada, né. A gente coloca uma camada de fumo
em baixo, daí coloca essa varra em cima daquela camada e outra camada de fumo em
cima. Daí costura ela. Daí coloca nesses estaleiros que se chama moxador.
E: Isto é o moxador?
156
AI: Isso! Daí aqui... A gente vai enchendo até dar umas quinhenta varra, pra, daí,
colocar dentro da estufa.
E: Aqui dá quinhentas varras?
AI: Isso! E não pode ficar muito tempo no moxador, o fumo. Tem que ser rápido pra
fazer. No máximo dois dias, dois dias e meio.
E: Por quê? Estraga?
AI: Porque ele estraga. Vai murchando. Vai perdendo a qualidade, o fumo. Se colher o
fumo seco, sem orvalho, sem chuva, ainda você consegue segurar mais tempo. Agora,
se você colher um fumo molhado, ele começa a grudar, assim, um no outro e começa a
apodrecer. Daí é só jogar fora.
E: Então, tem um tempo pra tudo! Tem um tempo pra secar, tem um tempo pra
classificar, tem um tempo...
AI: Tudo tem um tempo.
E: É? Quais seriam esses tempos?
AI: O que mais... O que nós mesmo mais apuramo é quando ele tá na roça, né. Que o
nosso medo é... Deus o livre... se vem um vento ou como diz... um granizo... acaba
com o fumo. Você não colhe mais. Nada!
E: Quantos dias é a colheita do fumo?
AI: A colheita varia de dois meses a três meses.
E: Vocês colhem à mão?
AI: A mão.
E: Tem que ser a colheita à mão?
AI: Tem que ser a colheita a mão. Isso ainda não tem tecnologia pra colher... É porque
é tirado sabe... Cada pé de fumo... No máximo, ele dá é... vinte cinco a trinta folhas.
Dois pé. Então, a gente vai... Faz a primeira colheta: três, quatro folha. Passa todo
pedaço nesse ritmo, três, quatro folha. Colhe! Daqui a uma semana você vai ver o
fumo, lá. Se ele tiver meio amarelinho, você vai. Colhe de novo. Três, quatro folha.
Até o fumo ficar totalmente colhido. Umas dez colheta de fumo, cada vez.
E: E agora, vocês já estão na fase pra venda?
AI: É! Agora nós estamos na fase da classificação e vende.
E: E já fizeram tudo?
AI: Já!
E: E agora que vocês já estão finalizando... Já estão plantando?
AI: Ainda não.
E: Tem que esperar a terra descansar. É isso?
AI: Não! É por causa da geada. Enquanto não gia nós não podemo fazer os cantero
porque a geada mata.
E: Ah! Então tem uma época de plantio. Quais são as épocas de plantio do fumo?
AI: Mês de julho é semeado e lá pelo mês de outubro a gente transplanta ele pra terra.
E: Ah, ah!
AI: Por fim de novembro, começo de dezembro, já é colhido o fumo, daí.
E: Num ano dá três plantio, então?
AI: Não! Uma só. Uma saca só por ano.
E: Uma só?
AI: Uma saca só por ano. Só que é todo esse processo...
157
E: Nossa!
AI: ... que a gente faz!
E: O que é o preparo da terra para o plantio? Vocês preparam como? Passando o quê?
Adubo?
AI: Pois é! Primeiro é passado uma grade, né. Daí é semeado o verde, né. Que eles
fazem pastagem verde porque a terra fica com mais... Como se diz... úmida, né. Porque
só a base do adubo a terra não vai, né. Daí quando aqueles verde que é semeado tejam
na altura assim, mais ou menos, daí é arrado. Daí é feito um processo de... tipo...
adubação, né. Colocado adubo nas beras.
E: Fileiras.
AI: Ahan, ahan!
E: Quanto de adubo vai? A senhora tem idéia?
AI: O certo seria um saco de adubo pra mil pé.
E: É?
AI: Um saco de cinqüenta quilo pra mil pé. Esse seria o certo. Mas quase que ninguém
consegue porque sai muito caro. O adubo que é fornecido é muito caro.
E: É? A senhora não sabe o preço?
AI: (Sai para buscar uma nota.)
E: Essa nota o que é? É o preço do fumo?
AI: Isso daqui é quanto eu já tô devendo pra Sousa.
E: Mas já quitaram, né!
AI: E o preço do fumo, onde diz o preço do fumo?
E: Aqui!
AI: Cinco reais e quinze centavos.
E: Aqui! São as arrobas.
AI: Sessenta e quatro arrobas dá esse quilo aqui: dois mil, cento e quarenta e quatro.
E: Eles pagam isso pra vocês? O adubo que vocês gastam a Sousa Cruz paga?
AI: É!
E: Eles emprestam o dinheiro, depois vocês pagam?
AI: É que o BO tá cinco e cinquenta e nove. Daí vai outro junto. Esse aqui! O CO.
Já... esse é o preto BR 2.
E: São todos... tipos diferentes. A senhora pensou em sair do campo por quê?
AI: Saímo.
E: Por que saíram?
AI: Queria tentar a vida na cidade, né. Pra ver se era melhor que no campo.
E: E daí? O que a senhora constatou?
AI: Ah! Que não dá.
E: É pior?
AI: Pior, né. Porque o estudo é pouco, né. Eu só tenho até a quinta série. Pra mim
voltar estudar agora é meio difícil porque não sobra tempo, né. E, na cidade, o que eu
fazia? Eu era uma diarista. Trabalhava na safra do fumo daí também, lá na Sousa, né.
Que lá também tem o pessoal deles, né. Eu trabalhava lá, também.
E: E, com o que a senhora ganhava, dava pra manter a família?
AI: Mínimo.
E: E o seu marido trabalhava lá, na época?
158
AI: Era pedrero. Mas, assim como tem o serviço, assim acaba, né. Tem época que nós
ficava desempregado.
E: Então, a senhora aconselha a não sair do campo.
AI: Não! Eu quero ficar aqui.
E: O que é aqui?
AI: Aqui é o primeiro processo que nós fazemo com... Como diz... a psicina, né, pra
colocar as bandeja de fumo pra germinar.
E: Qual é o tamanho dessa piscina?
AI: Onze metro de comprimento e sessenta de largura.
E: Quantas bandejas cabem aqui? Duas a duas?
AI: É! Duas a duas.
E: Aqui tem estacas. Qual a distância entre as estacas?
AI: Um metro, mais ou menos.
E: Um metro...
AI: Daí é colocado um plástico preto, né. Todinho forrado, né. E daí é preenchido de
água... mais ou menos dez centímetros de água pra que as bandeja fiquem boiando, na
água. Daí, aqui é colocado as bandeja com sementinhas na água. Daqui quinze dias
elas já vão começar a germinar, né. A nascer. Daí é tirada as bandeja fora da água.
Preparado aquela água colocando um adubo especial na água, né, pra que as
sementinhas tejam força pra crescer porque senão, só no substrato, elas não vão
crescer.
E: Quantas bandejas cabem em cada piscina?
AI: Sessenta bandeja.
E: Sessenta bandejas equivalem a doze mil pés?
AI: É!
E: E sempre tem que fazer manutenção na piscina? Ou não precisa?
AI: Ah, tem que. Porque daí, né, elas vão crescendo. Quando elas tiver lá, mais ou
menos, com umas cinco, seis folha a gente tem que tirar elas da piscina, as bandeja,
com o fumo já grande tudo. E é colocado um... feito um negócio de tábuas assim, com
linhas de pesca, e ela é cortada.
E: É cortada?
AI: Tem que cortar até pertinho do coração da muda. Porque daí... Pra ela ir atrasando.
Pra ficar uma muda firme. Pra enfrentar o sol, qualquer coisa.
E: Você acharia interessante que na escola se falasse sobre o fumo?
AI: Pois eu acharia.
E: Sobre o plantio, sobre esses processos todos, a senhora acharia interessante?
AI: Eu acharia.
E: Você acha que isso é comentado na escola?
AI: Eu acho que ainda não é comentado, né. Mais é sobre milho, feijão.
E: Sobre o fumo?
AI: É bem poca. Daí eu tava olhando que quase do fumo não fala, né.
PI: (Comentário da professora que estava acompanhando a entrevistadora) Se
você for trabalhar a agricultura na quarta série, por exemplo, você pega o livro. Na
nossa região, o peso é o fumo, mas não fala do fumo, em nenhum momento. Então fica
difícil pro professor trabalhar com o aluno sem material. Porque eu sei do que eu vivi,
159
do que eu trabalhei quando era criança com o meu pai. Mas não é o suficiente. Que
nem os dados que você tá coletando de peso, de metragem, de quantidades de mudas...
Isso seria interessante pra eles conhecerem porque é o que talvez, no futuro, eles vão
trabalhar.
PII: (Comentário da professora que estava acompanhando a entrevistadora) Eu
quero dar uma experiência como professora de jovens e adultos. Na fazendinha, eles
lidam mais com o pinus. Então, na hora da aula de matemática, o que eu aprendi era
metro corrido. E o que eu tava trabalhando? Metro cúbico! Então eu tive que ir atrás.
Estudar, perguntar pro meu pai, que trabalha com lenha: o que é metro corrido? Entrei
na internet e ninguém sabia me explicar. Nem um engenheiro! Porque isso é da região.
Metro corrido, o que seria? Um metro cúbico é um metro e meio corrido, né. É a
realidade diferente. Então, a gente tem que estudar pra depois passar... Isso não vem
em livros. Então, por isso eu acho que as adaptações deveriam ser feitas nos livros. Pra
cada região é diferente.
PI: De risquinho... Aquilo servia pra medir o quê?
E: Como é?
PI: Aquele não era a medida de braça?
E: O que era? Uma ripinha?
PI: Era uma ripinha, mais ou menos, uns quarenta centímetros. Cheia de uns
dentinhos, assim. Era uma medida, só que eu não lembro pra que que o pai usava pra
medir aquilo. E eu não lembro nem o nome. Era um nome estranho.
AI: Já no nosso tempo... Tudo em quilo. Hoje em dia?
PI: É o que eu falei pra ela. Porque... que nem ele... Sabe tudo em litro, em hectare, né.
São informações que eu não sei. Mas, eu acho que as crianças, por morarem na
Roseira, por terem as famílias que trabalham na roça, não, talvez, saberem calcular...
mas, saberem pelo menos o que que é, né. Que falem em hectares e ficam olhando pra
nuvem.
TODOS: Risos!
E: Obrigada a todos por esta entrevista.
Protocolo de entrevista
Sujeito: AII
AII(Agricultor) e E(Entrevistadora) estão caminhando em direção a uma cobertura
de lona. A pesquisadora conversa com o agricultor sobre a importância de conhecer a
produção agrícola da região.
E: Bom dia! Como é o nome do senhor?
AII: Sorriso!
E: Seu Sorriso! É... Eu estou fazendo, aqui, uma visita pra conhecer um pouquinho da
realidade aqui, da região. Então, verificar o que que os agricultores plantam, qual é a
cultura predominante! Aqui, no caso seu, planta o quê?
AII: É! Cebola, repolho, batata-doce, aipim, milho, feijão, alface, propulis, couve-flor
e outras hortaliças, também, né! Principalmente aqui temos a cebola. já feitas em
bandejas, as mudas, né!
E: Então, o senhor trabalha basicamente com a horticultura, é isso?
160
AII: Cinqüenta por cento da renda é a horticultura.
E: E o outro cinqüenta por cento?
AII: Milho, feijão e cereais.
E: Então seria a agricultura de subsistência, né?
AII: É!
E: (A entrevistadora aproxima-se do local onde são plantadas as mudas) Quanto
têm aqui? Quantas bandejas?
AII: Tem aproximadamente oitenta bandejas.
E: Oitenta bandejas?
AII: Temos! Temos couve-flor, propulis, é... temos alface e cebola, em bandeja.
E: Quantas bandejas de cebola?
AII: De cebola, temos 46 bandejas.
E: Quarenta e seis? O que mais vende é a cebola; no caso, por isso é que tem mais
bandejas?
AII: É que a época do maior plantio, agora, é a cebola.
E: Ah! Cebola!
AII: Daí, então, a gente usa mais bandeja pra cebola agora. Daí depois, quando não for
época dela, daí a gente usa a bandeja em outra horrili...
E: E daí, no caso, as outras verduras? O senhor planta onde? Não aqui!
AII: Não! Daí a gente faz as mudas e leva pro campo, né! Leva pro campo! Embora
aquelas beterraba que estão ali, no barranco, foi feita as mudas aqui, e daqui foi levado
pro campo.
E: Ah, entendi! Quantas mudas chegam em cada bandeja? Geram, em torno, de
quantas?
AII: Duzentas e oitenta células. São essas! Temos células de duzentas e assim, como
couve-flor, beterraba, repolho, propulis, vai uma unidade cada célula. A cebola vai
cinco, seis unidades por célula.
E: Por quê?
AII: De uma bandeja já de duzentas células vai mil mudas. Elas fazem mais por
célula, daí abre elas, ao levar pro campo, elas rendem mais.
E: Ah! Então, por isso que vocês plantam cinco sementes de cebolas por célula. E
quantas vingam?
AII: Oitenta, noventa por cento.
E: (Apontando para uma célula) E aqui, por que não?
AII: Aí faltou semente!
E: E o senhor revende onde esse material?
AII: Rio Negro! E da horticultura, boa parte, aqui, na Roseira, né!
E: E o lucro é bom, aqui?
AII: Não é bom, mas é razoável!
E: E flores? O senhor planta flores, também?
AII: Flores é com a minha esposa e ela planta, também!
E: É para revender?
AII: Não!
E: É milho que o senhor também planta?
AII: É!
161
E: Quanto que o senhor planta de milho?
AII: É... cinco hectares.
E: E milho, é?
AII: Feijão!
E: Milho e feijão, cinco hectares cada um?
AII: Feijão, esse ano, foi três hectares. Agora, próximo ano, pretendemos fazer cinco
também, né! De feijão!
E: E revende ou é pra consumo aqui da casa?
AII: Pra consumo e noventa por cento pra revender.
E: Você acha que as crianças estudam... na escola... eles conhecem esse material?
AII: Não todos!
E: Não todos?
AII: Não!
E: Você acha importante que eles conheçam como se planta, como se utiliza, como se
replanta?
AII: É importante, principalmente pra quem vai entrar na atividade. Agora, pra aquele
que não interessa a atividade, daí é... daí eles levam no esporte. Daí...
E: Mas, a criança basicamente, aqui, da escola... que nem aqui, José de Lima, é uma
criança que de uma forma direta ou indireta conhece a agricultura.
AII: Conhecem porque muitos pais fazem fumo. Maioria conhece.
E: Mas, você acharia interessante desenvolver uma proposta de ensino envolvendo no
caso, aqui, a cultura de vocês. Vocês achariam importante que, por exemplo, a criança
aprendesse, por exemplo, matemática olhando pra essas células e fazendo cálculos e
estimando e verificando qual a porcentagem, qual é o lucro, qual é o prejuízo? ... que
muitas vezes tem prejuízo... Você acharia interessante?
AII: É interessante! Agora, qual é o lucro, qual é o prejuízo é difícil porque a
horilicula uma hora o custo é lá em cima e a produção, o produto, tá lá em baixo.
Depois o produto sobe, daí o custo fica baixo, né! Então ela anda muito assim, né!
E: Eles não utilizam isso na escola? Você acha que os professores não trabalham isso
na escola?
AII: Não! Não trabalham! Talvez alguma escola já fazem algumas plantaçõezinhas,
lá! Agora, como eles fazem a muda, eu não sei, né! Ali, na José de Lima, eles plantam
um pouquinho. Daí eu não sei como que eles fazem a muda, né! E atividades na
escola.
E: Por que aqui dentro é tão quente? Elas precisam de calor?
AII: É que esse plástico, ele passa o sol, né! É próprio pra horilicula, pra que passe o
sol.
E: Ah, entendi!
AII: Porque se não tiver sol, elas não germinam e não desenvolvem. Precisa de luz
solar.
E: Ah!
AII: Quando o substrato fica fraco, daí tem que jogar no vento por cima. Existe um
pozinho, joga um pozinho assim, elas já reagem.
E: (Observa a plantação de milho) Lá é a plantação de milho que o senhor fala?
AII: Isso! Isso!
162
E: Como é morar no campo? O senhor não troca o campo pela cidade, né?
AII: Olha! Hoje, em dia você tem a cidade no campo. Que antigamente... Geladeira,
televisão era só em Curitiba. Só na cidade. Hoje, com os programas de eletrificação
rural, o conforto que existia na cidade, hoje já tá no campo.
E: Mas, o senhor não deixaria aqui, a sua casa, as suas coisas, pra ir pra cidade, né?
AII: Eu vim pra cidade aqui!
E: Ah! Você veio da cidade para cá?
AII: Eu morava em Araucária, trabalhava em Curitiba e daí vim pro campo. Fiz curso
no SENAI, mecânica básica, né! Até... eu não gostava de química. Quando fiz
mecânica básica, daí é que comecei a gostar de química.
E: Bacana! E hoje, do campo, não sai! Que bom!
AII: Do campo, não!
E: Né! É uma realidade diferente, eu acredito. Não sei se você acha diferença da
cidade e do campo?
AII: O ar é mais puro, e o corre-corre do dia-a-dia já favorece. A gente pode pegar a
cidade de manhã e dar um descanso na hora do almoço e depois, a tarde, quando
refresca, a gente trabalha até a noite, né! Então, favorece porque trabalha a hora que
quer, né!
E: Você trabalha aqui dentro pela parte da manhã ou da tarde?
AII: Aqui? Pela parte da manhã que é irrigada, né! De manhã! E depois é largada,
depois nós vamo pro campo, né!
E: A sua esposa também ajuda no plantio?
AII: Ajuda! Até, essas partes da miudeza, maior parte é ela quem faz!
E: Quanto mesmo vocês plantam? É, vocês plantam cinco hectares de milho é isso?
AII: Cinco hectares de milho, três de feijão e três de horicultura.
E: E quanto que lucra, assim, de milho ao ano?
AII: O lucro é difícil dizer porque o custo é muito alto. Porque investe seis mil, quatro
mil é despesa, né! Daí, mais, já dá dois mil de lucro.
E: Mas, isso é o lucro anual, né?
AII: Anual! A horicultura dá trezentos reais por mês pra nós.
E: É?
AII: Então, já dá... dá mais de um salário mínimo, só a horicultura. Por isso, a gente
pensa, em ir pra cidade, daí não compensa ganhar um salário mínimo, um pouco mais,
sendo que aqui, cada cultura, se gerasse um salário mínimo, ele teria vários salários
mensais, né!
E: E você acha que a criança que nasce, cresce aqui, tem que ir morar na cidade?
AII: Eu acho que é a vocação de cada um! O êxodo rural não devia existir. Todo
mundo ir pra cidade, quem vai produzi? E lá, na cidade, onde eles vão trabalhar, né!
Às vezes não tem mão de obra pra todos, né! Então deveria haver mais incentivo, por
parte da administração pública, do governo, mais incentivo ao jovem do campo.
E: Você acha que falta esse incentivo?
AII: Falta! Falta incentivo! Porque pro jovem conseguir um financiamento... alguma
coisa... é muita morocracia. Ah! Pra ele conseguir, ele tem que ter terreno. Se ele vai
financiar cinco mil reais, ele tem que dependurar dez pra conseguir, né! O governo
163
ainda olha muito pouco pro jovens no campo iniciar suas atividades. O governo ainda
tá muito distante do campo.
E: Muito distante?
AII: Muito distante!
E: Você acha que a escola pode ajudar nesse processo de manter a criança, o
adolescente no campo?
AII: Pode! Com atividade na escola!
E: Como? Que tipo de atividade seria essa?
AII: Ah! Principalmente começar com as mudas, né! E... a criança pode começar
aprender a fazer as mudas em bandejas na escola e com ajuda de alguém que dê
orientação técnica, seja a EMATER ou agrônomo de alguma outra empresa, e depois
ela começa a fazer as atividades em casa. E o que se produzir na escola seja em
benefício de merenda escolar, e o que eles fazem em casa pode ser já iniciar o lucro
deles. Eu acho que seria o ponto de partida.
E: Você acha que as escolas fazem isso hoje? Investem?
AII: Eu não sei! Porque eu pouco visito as escolas, mas deveria ter um programa do
governo, seja o PRONAFIM ou alguma coisa assim nas escolas, né!
E: Quem desenvolveu essa cebola foi a Embrapa?
AII: A Embrapa!
E: Estão aqui em fase experimental, é isso?
AII: Ela está em pesquisa! Se produzir bem, nós vamos continuar plantando outros
anos. Se não aprovou, a Embrapa vai trabalhar novamente pra melhorar a semente.
E: Quantas sementes que eles mandaram?
AII: Duzentas gramas!
E: E quanto que gera? Quantas mudas?
AII: Oitenta porcento.
E: O senhor participa de encontros com os agricultores... o que que mais eles
comentam, assim, nesses encontros?
AII: Novas variedades e como baixar o custo de produção. Como produzir mais pra
sobrar mais dinheiro pro bolso.
E: E tem como fazer isso?
AII: Quando tudo ajuda, tem!
E: Tem?
AII: Quando a variedade ajuda, quando São Pedro também ajuda, pra que o clima seja
favorável... daí muita coisa tem, né! Quando nós fazemos dias de campo em Ponta
Grossa... a agricultura... projeto mais milho... mais feijão como sistema plantio direto,
né! Tem como baixar o custo. E na horicultura, usar muita matéria orgânica, né! Pra
não precisar muito produto químico! Ajuda a diminuir o custo também, né!
E: O senhor estudou na escola José de Lima?
AII: Não! Eu estudei na escola de Ribeirão Vermelho, né! Em Quitandinha!
E: O senhor tem até? Qual é a sua formação?
AII: Por freqüência eu só tirei a terceira série primária, não tirei nem o quarto ano
primário.
E: É!
164
AII: Depois, fiz outros cursos em Curitiba, né! Fiz exame de equivalência no Colégio
Estadual pra conseguir fazer curso no SENAI e depois estudei por freqüência. E por
freqüência no SENAI e por correspondência pelo Instituto Universitário Brasileiro. Eu
fiz parte do primeiro grau e parte do segundo... meio... meio recebendo, meio
mastigado, meio veio embolando, mas não tenho certificado de nada.
E: E seus filhos?
AII: Eles iniciaram na escola José de Lima, né! O primário, a primeira fase, até a
quarta série. Depois, na quinta série, foram no Colégio Estadual Vando do Amaral.
Hoje, um está no ensino médio, e outro no ensino fundamental.
E: E eles pretendem ficar aqui, no campo, ou eles querem ir embora daqui?
AII: Ainda, até hoje, não falaram nada. E eu também não dei nenhuma opinião pra
eles. Daqui quatro, cinco anos que eles vão ter condições de ver o que vão fazer.
E: Eles ajudam aqui, na plantação?
AII: Ajudam quando não vem muita tarefa. Quando sobra um tempinho, eles ajudam.
E: Eles gostam de ajudar?
AII: Gostam! Até, inclusive, existem algumas leis, algumas normas que... meio sobre
o trabalho de menor no campo, ou seja, qualquer outra atividade. Mas é muito melhor
no trabalho do que na rua, e não existe religião no mundo que eduque mais do que no
trabalho.
M: A gente não explora os filhos. Por exemplo, se eles trazem um trabalho da escola
pra fazer, a gente primeiro deixa eles fazerem aquilo. Faz o esforço possível pra dar o
material necessário pra eles estudarem e daí, na folga, na folga, no tempo livre, ao
invés deles estarem aí, na rua, aprendendo outras coisas, né, vão trabalhar com a gente.
Aprender a trabalhar. E ajudam na mão de obra, que a gente não tem, a mão de obra
disponível, é! E eles ajudam nessa mão de obra. Não é uma exploração do menor, mas
é um incentivo a eles trabalharem, aprenderem a trabalhar desde pequeno e não deixar
que eles aprendam coisas errantes, coisas que não faz bem pra vida deles, né!
AII: (Faz alguns riscos no chão com um pedaço de madeira.)
E: O que é isso?
AII: Aqui, aqui e daí muda pontalete, muda pontalete, acha é dez metros assim. Leva
ao quadrado, leva ao quadrado, já vem a diagonal, acertou a diagonal. Aqui dá o
esquadro de qualquer construção. Um primo meu foi fazer uma cancha na serrinha, ali.
Ele levou meio dia só pra tirar o esquadro. Eu usei o teorema de Pitágora pra fazer, ali,
com dez minutos ficou desse jeito, né!
E: Fale do Santos Dumont? Você poderia repetir para eu gravar?
AII: O pai do Santos Dumont falou pra ele que ele não sabia o que fazer. O pai dele
falou: “estude engenharia, que o futuro do mundo repousa na mecânica”. E ele estudou
a engenharia, fabricou o avião, né! E o Santos Dumont era muito inteligente em
geometria. O que é geometria? Estudo de linhas, pontos, ângulos, superfícies sólidas e
suas relações.
(Faz um círculo no chão com um pedaço de madeira) Isso aqui é o disco do toca-
disco. Aqui o eixinho que gira o disco. Aqui tá a primeira música. É doze de cada lado,
né! O disco gira numa velocidade só, né! Ou não?
Todos: (Risos)
E: Muito obrigada por sua entrevista.
165
Protocolo de entrevista
Sujeito: AIII
AIII(Agricultor) e E(Entrevistadora) estão conversando em pé, na frente da casa de
uma das professoras da comunidade de Lençol. A pesquisadora explica a necessidade
de compreender melhor a característica da região a partir de seus moradores.
E: Boa tarde!
AIII: Boa tarde!
E: O senhor trabalha na agricultura há muito tempo?
AIII: Eu sempre trabalhei!
E: Com o que o senhor trabalha? O senhor planta?
AIII: Tenho aviário! Planto milho, feijão e soja.
E: E, basicamente, o seu lucro sai basicamente do quê? Do aviário ou da plantação em
si?
AIII: A básica sai mais do aviário.
E: Qual é o tamanho do seu aviário?
AIII: Mil e duzentos metros quadrados.
E: E a plantação! O senhor planta?
AIII: Milho, soja e feijão.
E: Quantos alqueires de milho, o senhor planta?
AIII: Em torno... daí, de uns oito alqueires.
E: Oito alqueires! E soja?
AIII: Soja, uns vinte alqueires.
E: Existe só uma unidade, aqui, na região: “alqueire”? Ou vocês usam também o
“litro” como unidade de medida?
AIII: Nós usamos mais o hectare.
E: Mais hectare? Então, o cálculo é feito em produção.
AIII: Sobre hectare!
E: E o aviário? Como que vocês... O cálculo, em si, é feito como?
AIII: Eles fazem... Tem o preço básico agora. Não sei no momento como é que tá! Daí
é feito em cima da conversão alimentar.
E: O que é isso? Conversão alimentar?
AIII: Conversão alimentar é ver o que o frango consome. Tantos quilos x tem que
produzir tantos quilos de carne. Dessa forma, então, ele tem que produzir o máximo
possível de quilo de carne com menos ração, né! Pra obter um resultado bom!
E: E o senhor gosta de morar no campo?
AIII: Gosto!
E: Não pensa em sair do campo?
AIII: Não, não penso!
E: Nunca morou na cidade?
AIII: Não!
E: Como é a vida do campo?
AIII: Eu acho boa! Hoje também as condições evoluíram bastante. A tecnologia tá no
campo. Pra quem tem vontade de trabalhar e ver se administra bem no campo, tem
166
condições de conseguir uma boa renda, hoje em dia. Apesar das dificuldades que são
muitas, né! Sempre houve... Tem que ter mais ajuda, assim, do governo...
financiamento mais fácil, né! Mas dá pra se virar.
E: O senhor tem filhos que estudam nessa escola?
AIII: Nessa aqui? No momento, não!
E: Mas já teve?
AIII: Já tive três! E temos mais dois menores ainda, que vão passar pra cá ainda!
E: Você acha importante que os alunos tenham, na escola, fundamentos que falem do
campo? Conceitos que mostrem a vida do campo?
AIII: Acho importante! Daí nós temos a nossa escola aqui, início. Então, a
comunidade faz força pra segurar aqui, pra não se deslocar tão longe, né! É
importante. Faz crescer como comunidade também, né! Porque a gente deve de ser...,
lutar pra que a comunidade, né! Porque, se a gente não busca nada, a gente passa a ser
um povo fraco, que não busca alguma coisa de melhor pra que envolva a comunidade,
no crescimento, assim, como família, como comunidade e de ajuda e união, né!
E: Eu fiz algumas perguntas no início sobre a produção, né! Quando nós falamos em
produção, nós falamos em lucro, em gastos, em investimentos, em estimativas. Você
acha que isso poderia ser trabalhado na escola?
AIII: Poderia!
E: E que isso possa ser trabalhado em matemática, por exemplo, todos esse assuntos?
AIII: Eu acho que esses assuntos, por exemplo, é essencial pra nós na agricultura. E
estudar e colocar... Até pra nossas crianças! Porque, se eles vão ficar na agricultura,
eles vão ter interesse em fazer cálculo sobre aquilo, naquilo que eles estão, né!
E: Você acha, que hoje, a escola trabalha com isso tudo?
AIII: Eu não sei se tá sendo muito trabalhado. Eu acho que um pouco disso está sendo
trabalhado, mas eu acho que, no geral, não!
A entrevista é interrompida, em função da presença do caminhão que compra o
leite da comunidade.
167
ANEXO 2 QUESTIONÁRIO ABERTO
QUESTIONÁRIO DE PESQUISA
SOBRE O PROFESSOR
1) Formação:_________________________________________________________
2) Tempo de magistério: ________________________________________________
3) Tempo de magistério em escolas rurais: __________________________________
4) Você mora no meio urbano ou no meio rural: ______________________________
SOBRE A ESCOLA
1) Nome da Escola em que atua: __________________________________________
2) Como é a sua escola:__________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
_________________________________________________________________
SOBRE O CURRÍCULO
1) Como é o currículo da sua escola?
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
2) Como você participou da construção desse currículo?
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
3) Há propostas de reformulação do currículo atual? Quais seriam essas propostas?
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
168
4) Quais sugestões você daria para melhorar o currículo da escola no meio rural?
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
SOBRE O CONTEÚDO CURRICULAR ESPECÍFICO
1) Como é o conteúdo de matemática na sua escola?
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
2) Você concorda que este conteúdo seja importante para a população rural? Por quê?
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
3) Você considera necessário adaptar o conteúdo de matemática as especificidades do
meio rural? Por quê?
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
4) Você adapta o conteúdo de matemática a realidade do meio rural? De que forma?
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
5) O que faz você considerar isso uma adaptação?
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
169
ANEXO 3 CARTA DE CESSÃO
Rio Negro, de de 2005.
CARTA DE CESSÃO
Eu, _____________________________________________, RG _______________
SSP/____, declaro para os devidos fins que cedo os direitos da minha entrevista, dada
no primeiro semestre do ano de 2005, para a Prof. Deise Leandra Fontana usá-la
integralmente ou em partes, sem restrições de prazo e citações, desde a presente data.
Da mesma forma, autorizo o uso de terceiros, que podem ouvi-la e usar o texto final,
que está sob a guarda da professora acima citada. Abdicando direitos meus e de meus
descendentes, subscrevo a presente carta.
______________________________________________
170
ANEXO 4
Buscando compreender o significado de adequações no currículo de matemática
atribuído por algumas das depoentes, procura-se descrever os objetivos e a
metodologia de uma proposta de projeto desenvolvida em uma das escolas rurais
investigadas a partir da leitura do material impresso. Julga-se relevante essa descrição
na medida em que pode fornecer indícios de uma possível compreensão do que sejam
adaptações no currículo de matemática para escola no meio rural.
Contextualizando os Saberes Matemáticos
Sujeitos da Proposta: Dezenove alunos da terceira série do Ensino Fundamental de
uma escola localizada no meio rural.
Objetivo Geral da Proposta: Identificar os conhecimentos matemáticos e transformá-
los em objetos de estudo para compreender e intervir no mundo a sua volta,
estabelecendo conexões entre temas matemáticos e a vida quotidiana.
Antecedentes da Proposta: A professora responsável pelo encaminhamento dessa
proposta observava que as crianças apresentavam um certo desinteresse em relação à
aprendizagem da matemática. A partir dessa observação e outras resultantes de sua
prática pedagógica, resolve resignificar o ensinar e o aprender matemática através de
experiências pessoais dos alunos e da comunidade.
Descrição do Projeto: Uma das constatações realizadas pela professora refere-se às
condições socioculturais das famílias das crianças. No decorrer da proposta, observa
que uma grande parte das famílias apresenta pouca ou nenhuma escolaridade, o que
poderia justificar um certo desinteresse dos pais pela freqüência das crianças à escola.
Para os pais de algumas dessas crianças, a matemática da escola não atendia às
necessidades reais do dia-a-dia. Buscando tornar o processo pedagógico mais
171
significativo, a professora traz algumas experiências pessoais e experiências da
comunidade para sua sala de aula, o que, na sua opinião, favoreceria a formação de
uma rede de saberes relacionados à vida real.
Num primeiro momento, a professora resolve encaminhar aos pais das crianças
um questionário para verificar o conceito (ótimo, muito bom, bom, regular) que os pais
possam atribuir para a escola. A partir da leitura dos dados, houve um processo de
reflexão sobre as respostas obtidas e a elaboração de gráficos de barras. Dos dezenove
pais entrevistados, onze responderam que a escola era boa.
Num segundo momento, a professora solicita para cada uma das crianças que
tragam por escrito algumas informações sobre a ocupação de seus pais: o que cada um
faz, como faz, quanto lhe rendia este trabalho e qual a dificuldade matemática em
realizá-lo, caso houvesse. Durante a leitura dos relatórios, as crianças sugerem
conhecer a realidade de cada uma das famílias. A professora, percebendo que nem
todas as famílias poderiam, ser visitadas sugere um sorteio para a escolha das famílias.
O sorteio é realizado em comum acordo.
Numa das famílias visitadas, o pai da criança, que exercia a profissão de
pedreiro, estava, naquele exato momento, construindo uma casa. Relata a professora
que “o pai ficou muito contente com a visita e demonstrou para as crianças como fazia
a massa de concreto, quais as medidas que usava para a massa ficar no ponto (três
porções de areia para uma de cimento e água até dar o ponto). Mostrou também a
planta baixa da construção e como passava as medidas do projeto para a construção.
Explicou que a medida interna da casa é diferente da externa, devido à espessura das
paredes, que geralmente é de 20 cm. Mostrou os equipamentos de trabalho, explicou
que a altura do ponto de caimento do telhado deve ser medido 25% da largura da
casa”.
Na sala de aula, a professora reflete sobre as informações obtidas a partir de
perguntas que possibilitam perceber alguns dos conceitos matemáticos presentes na
conversa com o pedreiro juntamente com a percepção de como esse conhecimento é
adquirido. Para sistematizar as informações obtidas com o pedreiro, as crianças
172
realizam algumas medidas na sala de aula e representam com desenho e com maquete
a planta baixa da sala.
Na outra família visitada, a mãe da criança é uma costureira. Relata a professora
que “no início ela ficou meio tímida, envergonhada com a nossa presença, mas depois
soltou-se e mostrou para as crianças como fazia as medidas para que as roupas
ficassem ajustadas ao corpo da pessoa. Mostrou também como passava essas medidas
para o tecido e como fazia o corte”.
Na sala de aula, a professora aborda algumas questões com as crianças, dentre
as quais: “como a matemática está presente na vida daquela mãe e como utiliza esse
conhecimento para realizar o seu trabalho”. Para sistematizar as informações obtidas
com a costureira, as crianças confeccionaram um metro em tiras de papel e realizaram
algumas medidas, percebendo, a partir dessas, a necessidade dos múltiplos e
submúltiplos do metro.
A professora e as crianças visitam uma nova família. Desta vez, a casa de um
agricultor plantador de fumo. O objetivo inicial da visita consistia em observar os
canteiros de fumo e medi-los. Relata a professora que “o pai explicou para as crianças
a quantidade de fumo, como planta, quantas pessoas trabalham nos canteiros, quantos
trabalham na limpeza e cuidados com a planta, quem passa os agrotóxicos, os cuidados
que tem com os agrotóxicos, quantas pessoas trabalham na colheita, momento mais
trabalhoso e complicado”.
Para sistematizar as informações obtidas com o agricultor, a professora produz
uma reflexão com os alunos. Dentre as questões levantadas pela professora está a
preocupação com o uso de agrotóxicos para o meio ambiente e a necessidade do uso
de adubo orgânico. Destaca também os problemas causados, pelo tabagismo, à saúde.
Retornando ao objetivo inicial, a professora pede às crianças para explicarem como
fizeram as medidas dos canteiros e quais os conhecimentos matemáticos necessários
para elaborar um canteiro. As crianças afirmam que há a necessidade de conhecer a
medida dos lados, saber a quantidade de bandejas e a quantidade de mudas, concluindo
que a medida mais usada no dia-a-dia são as medidas de comprimento, não podendo
esquecer as medidas arbitrárias.
173
Num outro momento, as crianças visitaram uma granja de frangos. Relata a
professora que “a mãe da criança mostrou os pintinhos, como cuida deles, os tipos de
ração usada. Mostrou também uma tabela onde marca a quantidade de pintinhos
recebidos dizendo que nos primeiros meses morrem muitos pintinhos. O número de
pintinhos mortos, ela marca numa tabela e no final ela soma todos porque precisa dar
baixa do total. Os frangos são contados na hora da entrega e, para contar, são
colocados seis frangos em cada caixa. Contam as caixas e multiplicam pelo número de
frangos”. Uma dificuldade apresentada pela mãe para a realização daquela tarefa
consistia no preenchimento da nota fiscal na hora da entrega dos frangos.
Para sistematizar as informações obtidas na granja de frangos, a professora
pergunta aos alunos o que haviam aprendido. As crianças observam que para trabalhar
em uma granja faz-se necessário usar estatística, coletar dados e fazer cálculos. A
professora pergunta também sobre o conhecimento que faltava para que a mãe
realizasse suas atividades a contento e a dificuldade que tinha. No decorrer das
reflexões, a professora destaca a importância da nota fiscal para o agricultor e para o
município. A professora solicita que os pais dos alunos compareçam à escola para
aprenderem a preencher uma nota fiscal.
Um novo questionamento encaminhado pela professora refere-se a atividades
relacionadas com cálculos matemáticos. As crianças observam que os cálculos, na sua
grande maioria, são realizados em situações de compras e vendas. A professora
elabora com seus alunos a problemoteca, que passa a ser “um espaço reservado para
que as crianças possam ampliar seus conhecimentos, criar situações-problema e
principalmente desenvolver o espírito de pesquisa”. Relata a professora que “as
crianças pesquisaram e coletaram problemas de diversos níveis, tais como: charadas,
problemas não convencionais, piadas, gráficos, tabelas de jornais, revistas que foram
colocadas em caixas organizadas para serem lidadas de forma autônoma pelas
crianças, bulas de remédio, receitas médicas, propagandas, notas fiscais, panfletos de
lojas, panfletos de farmácias e tabelas de mortalidade de pintinhos das granjas da
localidade”.
174
Houve comparações de preços de mercadorias em ofertas de mercados e lojas,
de modo que os alunos perceberam a importância da pesquisa de preço pelo
consumidor. Observaram os preços à vista e à prazo e o juro embutido nessas
mercadorias. A professora questiona sobre a origem dos produtos, o local de produção,
a matéria prima utilizada. Relata a professora que conversou sobre “a importância das
indústrias para o progresso, como gerador de emprego para as pessoas, e como
surgiram as empresas relacionadas à produção artesanal e à produção industrial,
fazendo um resgate histórico e discutindo sobre as relações de trabalho antes e após a
revolução industrial”. No decorrer da proposta, a professora questiona “a importância
das indústrias e os problemas que surgiram com as indústrias e a tecnologia: a falta de
trabalho para as pessoas do campo, que foram substituídas pelas máquinas que fazem
em muito menos tempo o trabalho e com o mínimo de mão de obra”.
Utilizando o material trazido pelas crianças, a professora aborda algumas
questões sobre saúde com leituras de bulas de remédios e receitas médicas. Relata a
professora que “as crianças confeccionaram um comprimido e dividiram em partes
iguais, vivenciando o uso do remédio. Dividindo o dia também em frações, as crianças
perceberam que dividindo o dia a cada 8 horas teriam 3 partes do dia e que a cada um
terço do dia tomaríamos meio comprimindo, perfazendo o total de um comprimido e
meio diário”.
Dando continuidade à proposta, a professora traz o jornal para a sala de aula, o
que, na sua opinião, “significa trazer o mundo para a escola, pois ele propicia a
interação do aluno com grandes temas da atualidade e o acesso à informação, à qual,
no caso das escolas rurais, a criança só terá acesso a escola lhe proporcionar, pois para
a maioria das crianças o único meio de comunicação é o rádio. São poucos os que têm
televisão”.
A professora propõem então, que cada criança faça a leitura de uma reportagem
e identifique as idéias matemáticas contidas no texto escolhido. Uma das reportagens
escolhidas pelas crianças era do caderno do esporte e tratava da copa do mundo. A
professora propõem alguns jogos para as crianças: jogo de bolinhas, jogo da trilha,
jogo de bingo e jogos no computador. Com as representações dos classificados, as
175
crianças perceberam outras formas de representações gráficas. Relata a professora que
através dos classificados foi possível discutir “as diferenças entre o meio rural e o
meio urbano, pois, ao comparar a oferta de um terreno rural com 5000 m
2
e um lote
urbano com 600 m
2
, verificam quase o mesmo valor. Houve questionamentos, o
porquê dessa diferença, o que faz valer mais um lote de 600 m
2
que um terreno de
5000 m
2
, quais são as vantagens da vida urbana e quais dificuldades que enfrentam
aqueles que não têm casa própria, não têm empregos ou ganham salário mínimo, quais
as vantagens de viver no meio rural, quais suas dificuldades. O trabalho foi muito
interessante, pois a partir de um simples classificado muitos questionamentos e muitas
questões puderam ser abordados de maneira significativa.
As crianças levaram o assunto para seus pais, e alguns responderam que a maior
dificuldade que enfrentam é a falta de terra. Uns não têm terra e precisam arrendar
para plantar e com isso perdem uma parte do lucro. Outros têm pouca terra e não têm
como expandir e melhorar sua renda. Foram questões reais da comunidade que foram
levantadas e discutidas pelas crianças. Sabemos que não temos como resolver essas
questões, mas através do conhecimento poderão refletir buscando uma solução ou um
jeito de melhorar sua qualidade de vida”.
Avaliação dos resultados: Relata a professora que “ao dar direito ao acesso à escola,
os pais compreenderam a importância do estudo para melhoria da qualidade de vida
dos filhos, perceberam também através de incentivos a importância de acompanhar a
aprendizagem dos filhos, de estarem presentes e interessados nos momentos em que
são solicitados, não para ajudar nas tarefas, pois o aluno deve ter autonomia para
realizar as mesmas, mas no sentido de incentivar o filho a buscar formas para realizá-
las e principalmente motivá-lo a vir para a escola”.
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