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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
DEPARTAMENTO DE TEOLOGIA E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIAS DA
RELIGIÃO
CONTRA TODA AUTORIDADE E HIERARQUIA – BÍBLIA, TRADIÇÃO E
HERMENÊUTICA DA LIBERTAÇÃO NA AMÉRICA LATINA
JIMMY SUDÁRIO CABRAL
GOIÂNIA
2008
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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIAS DA
RELIGIÃO
CONTRA TODA AUTORIDADE E HIERARQUIA – BÍBLIA, TRADIÇÃO E
HERMENÊUTICA DA LIBERTAÇÃO NA AMÉRICA LATINA
JIMMY SUDÁRIO CABRAL
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós- graduação Stricto Sensu em Ciências da
Religião da Universidade Católica de Goiás
para obtenção do grau de mestre.
Orientador: Dr. Haroldo Reimer
GOIÂNIA
2008
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Para Jonas Rezende
AGRADECIMENTO
A Deus, a quem me dirijo no silêncio da mais sincera oração, pressentindo no calor de um
abraço humano, a incerteza de sua ausência.
Em tom de agradecimento e agradável submissão, me dirijo aos meus pais, primogenitores que
souberam dirigir-me com intenso amor aos extensos e intensos caminhos da vida, não
poupando esforços para me oferecer tudo que tenho e sou. Ela, que em gracioso e terno modo
de ser, foi me fazendo e refazendo nos interstícios de uma moldura ainda por completa. Ele,
que diante dos limites insignificantes das palavras expressadas e dos gestos apoucados, foi
me permitindo experimentá-lo nas poesias de Antonio Marcos, Pholhas e Roberto, que
construíram pontes entre nós, nas noites em que juntos descobríamos um pouco de nós
mesmos um no outro.
A minha querida irmã, Priscilla, e ao irmão que ganhei, Jonatas, pelo apoio e carinho sempre
dispensados
A minha família, dona dos laços que me enlaçam e não permitem que eu me perca na
imensidão de um mundo sem fronteiras que me invoca, seduz e encanta.
A Avelina, amiga querida e anjo da guarda.
Ao Prof. Dr. Haroldo Reimer, mestre, amigo querido e orientador dessa dissertação. Sábio
conhecedor de Jó, que em profunda paciência soube conduzir a confecção desse escrito, que
não teria nascido sem a influência de sua presença e erudição.
À Prof. Dra. Ivoni Richter Reimer, pela presença amiga e inspiração.
Aos companheiros do “Diálogo”, que regado a muito vinho e quitutes, possamos dialogar, Ad
multos annos!
A Osvaldo Luis Ribeiro, que soube despertar-me com as encantadoras faíscas de seu martelo,
me mostrando o longo caminho daqueles que tem comichões nos pés. Os tenho, tanto pés,
como comichões, e caminho, vale mesmo a pena à caminhada.
À Igreja Batista no Recanto do Bosque, que viveu comigo intensamente a dor e alegria de lutar
contra tradições e hierarquias que nos impedem de viver honestamente a liberdade que
pressentimos em Deus.
À Igreja Cristã de Ipanema, onde aprendi a amar a liberdade; A Edson Fernando, profeta da
beleza.
A kleisson, amigo querido, que viveu comigo a extensa caminhada de inanição noturna e
cultural que a ausência do Rio me ofereceu, ficando eu doente, de tanta saúde, nos recantos
provincianos e sertanejos de minha querida Goiânia. Os dias em sua presença fraterna se
tornaram melhores.
Aos amigos pastores, Agnaldo, Junior, Rodrigo, Mauricio, Eduardo, Ailton, Carlinhos, Pedro e
Lourival.
A minha lorinha Milena, primeira ovelha que buscou pertencencia no rebanho minguado desse
pastor confuso e sem cajado.
Aos queridos amigos Robson, Rudson, Mari, Rô e Alice.
RESUMO
CABRAL, J S. Contra toda autoridade e hierarquia: bíblia, tradição e
hermenêutica da libertação na América Latina. Dissertação de Mestrado
(Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências da Religião) –
Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2008.
A presente pesquisa procurou elucidar o lócus hermenêutico da leitura bíblica
realizada pelo movimento bíblico latino-americano da libertação. Afirma-se que
a hermenêutica bíblica latino-americana da libertação é reflexo de uma
profunda ruptura com uma hermenêutica bíblica da tradição cristã clássica que
reproduziu sistematicamente uma teocracia política e estruturas hierárquicas
de poder que tem lastros fincados em uma hermenêutica canônica das
escrituras que legitimou a conquista material e espiritual da civilização
ameríndia das Américas. A partir de uma instrumentalização canônica das
escrituras, que tem suas raízes em uma hierarquia formativa de bispos cristãos
que manipularam e instrumentalizaram as tradições bíblicas em vias de
elaborar uma certa imagem do saber e do poder, que forneceu as bases de
uma teocracia política e sacerdotal, promoveu-se um projeto teológico político
que se tornou o núcleo inspirativo do bélico expansionismo político e
missionário da cristandade ocidental. Esta tradição teológica política
determinou a leitura da Bíblia na América Latina, caracterizando-se como uma
reprodução de estruturas mentais que sacramentalizou um poder religioso
sacerdotal que foi determinante na destruição e demonização de toda estrutura
simbólica da religião nativa. Utilizada como instrumento de conquista espiritual,
a Bíblia se tornou, amiúde, um “monumento de barbárie”, lida e interpretada a
partir do poder de uma cristandade que se reproduziu em sistemáticas
investidas que buscam “converter” os indígenas e sua religião em nome da
Bíblia. Reagindo a esta hermenêutica colonial equivocada, o movimento
bíblico latino-americano da libertação elaborou uma profunda crítica das
tradições bíblicas e eclesiásticas, que, vinculadas ao poder político colonizador,
impôs um silêncio às camadas pobres e oprimidas que sobreviveram nos
“porões da opressão” de uma cultura teológica colonial. Expressões dos
gemidos de uma anti-conquista, a hermenêutica bíblica da libertação promoveu
um profundo questionamento de uma leitura bíblica a partir do poder, abrindo
brechas do controle das Escrituras pelo poder eclesial, empreendendo uma
árdua reconstrução histórica das raízes populares dos documentos sagrados
da tradição judaico-cristã, afirmando a partir de uma práxis de libertação os
novos caminhos da hermenêutica bíblica que buscou reconstruir as
experiências dos oprimidos da Bíblia. Desconstruindo cânones escriturísticos
que foram transplantados por uma tradição interpretativa colonial e
promovendo um des-empoderamento das Escrituras do poder eclesial, a
hermenêutica bíblica da libertação releu a Bíblia pelo reverso da história,
elaborando uma teologia bíblica a partir dos gemidos de resistência das
memórias oprimidas e apagadas da história.
Palavras-chave: Bíblia, Colonização, Hermenêutica, Libertação
Abstract
CABRAL, J S. Against all authority and hierarchy – bible, tradition and
hermeneutics of liberation in Latin America. Mastership Thesis (Post-
Graduation Program in Science of Religion) – Catholic University of Goias,
2008.
This present research tried to elucidate the hermeneutics locus of bible reading
organized by the liberation Latin American biblical movement. It's said that
biblical hermeneutics Latin-American of liberation is a reflection of an intense
breakage with a biblical hermeneutics of the classic Christian tradition that
reproduced systematically a political theocracy and hierarchy frames of power
which has its ballast entrenched in a canonic hermeneutics of the Scriptures
that legitimated the material and spiritual conquest of the Amerindian civilization
of the American continent. Due to the canonic instrumentalization of the
Scriptures, which has its roots in a formative hierarchy of Christian bishops who
manipulated and equipped the biblical traditions in order to create a certain view
of knowledge and power, which was used to raise a political and sacerdotal
theocracy, a political theological project was promoted and became the main
inspiration to the warlike political and missionary expansionism of western
Christianity. This political theological tradition determined the reading of the
Bible in Latin America, characterizing itself as a reproduction of mental
structures that turned sacred a sacerdotal and religious power which was
important in the destruction and demonization of all symbolic structure of the
native religion. Used as an instrument of spiritual conquest, the Bible became,
often, a "monument of cruelty", read and interpreted based on the power of a
Christendom characterized by its systematical attacks in order to "convert" the
indians and their religion in the name of the Bible. In reaction to this wrong
colonial hermeneutics, the Latin American biblical movement of liberation
developed a deep critique of the biblical and ecclesiastic traditions, which,
linked to the colonist political power, silenced the oppressed and the poor
people who survived in the "oppressed cellars" of a colonial and theological
culture. Crying expressions of an anti-conquest, the biblical hermeneutics of
liberation argued deeply about the biblical reading based on power, weakening
the control over the scriptures by the ecclesiastic dominion, attempting through
hard work a historical reconstruction of popular traditions of Jewish-Christian
sacred documents, affirming according to a liberation praxis the new ways of
biblical hermeneutics which tried to rebuild the experiences of the oppressed in
the Bible. , Unbuilding scriptural canons which were transferred by a colonial
interpretative tradition promoting an unempowering of the Scriptures from
ecclesial dominion, a biblical hermeneutics of liberation reread the bible by its
reverse history, elaborating a biblical theology from the groans of resistance of
the oppressed memories and excluded from history.
Keyword: Bible, Colonization, Hermeneutics, Liberation
SUMÁRIO
RESUMO
ABSTRACT
INTRODUÇÃO 9
1 CAPÍTULO I – BÍBLIA, TRADIÇÃO E COLONIZAÇÃO 17
1.1 O LÓCUS HERMENÊUTICO DA TRADIÇÃO
CRISTÃ OCIDENTAL CLÁSSICA 18
1.1 1 Tradição Sacerdotal Judaica e Tradição Cristã Ocidental 20
1.1.2 Sacerdócio e Autoridade na Cristandade Patrística 22
1.1.3. Deus, Pecado, Tradição e Poder Político – Tertuliano e
Santo Agostinho 25
1.1.3.1 A “regula fidei” de Tertuliano 26
1.1.3.2 A “hermeneutica auctoritas” e “universal” de Santo Agostinho 30
1.1.4 A Cristandade Medieval e as Colonizações:
a Formação de uma Identidade 41
1.2 A CRUZ E O HOLOCAUSTO: COLONIZAÇÃO DO CORPO
E DO IMAGINÁRIO INDIGENA E AFRICANO:
A FORMAÇÃO DA INDENTIDADE
LATINO-AMERICANA 50
2 CAPÍTULO II – EMANCIPAÇÃO E CULTURA PÓS-COLONIAL
NA AMÉRICA LATINA: A GÊNESE DE UMA TEOLOGIA
DA LIBERTAÇÃO COMO CRÍTICA DAS TRADIÇÕES E
DAS INSTITUIÇÕES 61
2.1 GERMES DE UMA CULTURA PÓS-COLONIAL
NA AMÉRICA LATINA 61
2.2 EMANCIPAÇÃO E CULTURA PÓS-COLONIAL NA AMÉRICA LATINA:
A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO 66
2.3 O MOVIMENTO BÍBLICO LATINO-AMERICANO:
TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO E CRÍTICA
DAS TRADIÇÕES NA AMÉRICA LATINA 88
3 CAPÍTULO III – A BÍBLIA À MERCÊ DA HISTÓRIA:
O LÓCUS HERMENÊUTICO DA MODERNIDADE 96
3.1 O RENASCIMENTO E A(S) REFORMA(S):
PISTAS DE EMANCIPAÇÃO 98
3.2 A CRÍTICA HISTÓRICA DAS TRADIÇÕES EM BARUCH
ESPINOSA: O TRATADO TEOLÓGICO POLÍTICO 109
3.3 A AFIRMAÇÃO DO MÉTODO HISTÓRICO-CRÍTICO 116
3.4 A EXEGESE MODERNA DIANTE DO PROBLEMA
HERMENÊUTICO E AS POSSIBILIDADES DO
CONHECIMENTO HISTÓRICO 121
4 CAPÍTULO IV – BÍBLIA, TRADIÇÃO E LIBERTAÇÃO: O LÓCUS
HERMENÊUTICO LATINO-AMERICANO 132
4.1 PAUTAS PARA UMA HERMENÊUTICA BÍBLICA
LATINO-AMERICANA DA LIBERTAÇÃO:
O LUGAR HERMENÊUTICO DA PESQUISA
BÍBLICA LATINO-AMERICANA 134
4.2 ÉTICA E POLÍTICA DA INTERPRETAÇÃO: A CONTRIBUIÇÃO
DE UMA HISTÓRIA SOCIAL DOS TEXTOS BÍBLICOS 138
4.3 DA PERIFERIA DO MUNDO PARA A PERIFERIA DOS TEXTOS:
HERMENÊUTICAS LATINO-AMERICANAS EM CAMINHOS
DE LIBERTAÇÃO 152
4.3.1 Escovando a História Bíblica a Contrapelo:
Milton Schwantes e a memória histórica dos empobrecidos 156
4.3.2 Política e Manipulação Teocrática: o exemplo do
Deuteronômio e a OHD (obra historiográfica deuteronomista)
e o escrito sacerdotal (P) 165
5 CONCLUSÃO 177
REFERÊNCIAS 181
9
INTRODUÇÃO
As Escrituras Sagradas judaico-cristãs tomaram um lugar elevado na formação
espiritual da cultura ocidental. Sua leitura foi objetivamente responsável pela
formação de mentalidades que “investiram esses escritos com o peso de suas
aspirações mais elevadas, esperanças mais extravagantes e medos mais
profundos”,
1
constituindo assim um elevado ethos cultural que tinha os seus
lastros fincados em um passado experimentado e recebido como ontológico e
estruturalmente vinculado a uma verdade revelada. Assim, a Bíblia dos cristãos
se tornou, na história da civilização ocidental, cânone de vida, norteando
pensamentos e ações que eram pautados única e exclusivamente pela lei de
Deus revelada, que foi tecendo a vida pública e privada dos homens e
mulheres ocidentais.
Quantos não foram os leitores(a)s que se enveredaram pelos labirínticos
caminhos das Escrituras, em busca de lastros e eixos norteadores da vida que
pudessem contribuir para a construção e manutenção de um mundo que é
facilmente desajustado pelos sopros cotidianos de uma história que se esvai
em sua constitutiva perecividade e ausência de ordem. Perecividade e
ausência de ordem que faz do ser humano esse “ser jogado”
2
, predestinado a
construir narrativas que ofereçam sentido e ordem, que coloquem as palavras
nos lugares certos, oferecendo uma linguagem capaz de dar respostas às
perguntas mais urgentes, provocadas por esse angustioso silêncio de um
mundo que se cala. Os escritos judaicos-cristãos se tornaram, assim, esse
lugar ontológico onde as dúvidas e angústias humanas se refugiam,
oferecendo bases para a formação de estruturas mentais fixas que organizam
a vida social da cidade dos homens. Homens e mulheres no Ocidente
“encontram nesses Escritos algo semelhante a uma presença que os introduz a
uma dimensão transcendente. Eles basearam suas vidas na Escritura – prática,
espiritual e moralmente”
3
, constituindo assim uma civilização que teve como

1
ARMSTRONG, A bíblia…, p.8
2
HEIDEGGER, Ser e tempo..., p.34
3
ARMSTRONG, A bíblia…, p.8
10
base a narrativa histórico-religiosa presente na formatação canônica da Bíblia
cristã.
A Bíblia também se tornou para nós latino-americanos um desses importados
que se fizeram importantes,
4
e nesses 500 anos de colonização continuada, a
Bíblia tem estado presente, fomentando a nossa percepção da realidade e
inspirando a construção do mundo da vida de muitos de nós que ainda
sobrevivem nesses tristes trópicos. A literatura latino-americana soube revelar
com auspícios de genialidade a trágica situação de um continente sub-
evangelizado pela colonização européia que só pode situar-se existencialmente
a partir de uma consciência fragmentada que “ficou prisioneira” da cruz e do
“santo sepulcro”
5
.
Evidentemente, a memória tem sua retórica de lugares comuns, de imagens
litúrgicas no pano de fundo – nos porões – que nos legou a aculturação
evangelizadora. Os reflexos condicionados do Novo Testamento funcionam a
todo vapor nas grossas camadas do sentimento religioso que é o verdadeiro
fermento de nossa cultura mestiça. Toda linguagem castelhana e guarani, ou
sua mescla, foi “evangelizada”, ficou prisioneira do Santo Sepulcro, entre os
miasmas da Redenção. Não temos como escapar.
6
Não temos mesmo como escapar. O genocídio religioso e cultural perpetrado
pela ação missionária e colonizadora possibilitou uma profunda e eficaz
colonização do imaginário dos povos e culturas indígenas, causando o que
talvez tenha sido o maior etnocídio da história da humanidade. A Bíblia está
assim fortemente relacionada à formação de um ethos religioso e cultural dos
povos latino-americanos, se constituindo também como cânon de vida de
milhares de homens e mulheres na América Latina.
A partir deste fato que a realidade constata, urge perguntar-se pelo lócus
hermenêutico que determinou a leitura da Bíblia na América latina. A partir de
que tradição, e com que óculos, a Bíblia foi lida, interpretada, e experimentada
pelo cristianismo instalado em terras latino-americanas. Instalada como
autoridade espiritual e social, a Igreja, representante de uma cristandade que
perpassou a historia do Ocidente, estruturou-se politicamente a partir de uma
leitura bíblica canônica que sustentou uma teocracia política que forneceu as
bases religiosas da ação colonizadora dos povos indígenas. Amasiada com a

4
SCHWANTES, Anotações..., p.16
5
BASTOS apud PAGÁN, p.61
6
Ibid, p.61
11
política de colonização das índias, a cristandade portuguesa e espanhola
propalou uma teocracia política que tem suas bases em uma leitura das
Escrituras que foi se configurando a partir do poder já nos primeiros séculos do
cristianismo. Com a formatação canônica dos textos bíblicos, sintetizados na
ação de uma hierarquia formativa de bispos cristãos que manipulavam e
instrumentalizavam as tradições bíblicas em vias de elaborar uma certa
imagem do saber e do poder
7
, os fundamentos da teocracia cristã foram sendo
elaborados e sistematicamente reproduzidos pelas estruturas de poder
hierárquicas da Igreja cristã, estruturando uma relação de poder que vai ser
determinante no processo de colonização dos povos latino-americanos.
Percebida como uma Sodoma entregue à perversidade e à idolatria,
distanciada da graça de Deus e conseqüentemente escrava de Satanás, a
América Latina se tornou o “vasto império do diabo”, e interpelava todo bom
cristão a lutar com todas as suas forças contras as hostes de Satanás que
estavam entranhadas na cultura latino-americana. A afirmação de uma
superioridade cultural e religiosa esteve constitutivamente presente na teologia
bíblica evangelizadora, que, contrapondo-se à cultura latino-americana a partir
de sua leitura das Escrituras, colocou a cristandade como detentora e guardiã
da revelação divina, pois, fora dela estão os pagãos que necessitam da cruz.
Afirmada por uma Igreja colonial, munida de uma teocracia sacerdotal fundada
em uma hermenêutica canônica das escrituras, a evangelização dos povos
autóctones promoveu uma contínua demonização da religião indígena,
proclamando uma teocracia sacerdotal que cristianizou os “pagãos” de uma
cultura onde “prosperava o escândalo”, e os homens estavam sujeitos à “lei
natural” de uma terra que era “centro da impiedade”, onde, mais do que
qualquer outro lugar, “fazia tanta falta a semente de Deus”
8
.
O presente trabalho tem como objetivo fundamental perguntar-se pelas raízes
de uma hermenêutica bíblica latino-americana da libertação, demonstrando sua
reação e emancipação de uma hermenêutica cristã clássica, que, reproduzindo
estruturas coloniais, estabeleceu-se como uma reprodução sistemática de
estruturas mentais de dominação que celebram um cortejo fúnebre das

7
CHAUI, Espinosa e a política, p.73
8
GARCIA MARQUES, Cem Anos..., p.83
12
tradições autóctones da América indígena, transformando a Bíblia em um
“documento de barbárie”
9
, instrumentalizado-a a com uma “hermenêutica
bíblica colonial equivocada”,
10
que reproduz mentalidades e cânones
escriturísticos que são, em sua origem, instrumentos de dominação.
A pergunta pelo lócus hermenêutico que constituiu a leitura da Bíblia no
Ocidente cristão, objetivamente reproduzido por uma cristandade colonial que
mantém as estruturas canônicas da teologia cristã clássica, é determinante
para a elucidação de uma hermenêutica bíblica da libertação na América Latina
que se estabeleceu como uma crítica das tradições e das instituições sociais e
eclesiásticas.
Começaremos nosso trabalho procurando elucidar as estreitas relações entre
Bíblia, Tradição interpretativa e Colonização. Estreitamente ligada ao processo
de hierarquização da Igreja cristã, a hermenêutica canônica das escrituras
lançou as bases de uma teologia política que procurou elaborar
sistematicamente as relações de poder e autoridade configuradas pela
afirmação de uma classe sacerdotal que se constituiu sobre um manto de
autoridade divina. Base de toda teocracia ocidental, a instrumentalização
bíblica e canônica de narrativas da Escritura hebraica referendou um poder
político religioso que vai ser determinante na formação dos papéis sociais e
nas relações de poder no Ocidente cristão. A partir desta hermenêutica
canônica das escrituras foi se estabelecendo uma compreensão da cristandade
como a ‘verdadeira religião’, representada exclusivamente por uma classe
sacerdotal que assimilou total e completamente a revelação divina. Firmados
em um núcleo central canônico das Escrituras, os ‘pais espirituais do Ocidente’
passam a sistematizar um projeto político teocrático fundado na supremacia do
poder religioso, que, apropriando-se de narrativas bíblicas da tradição judaica
sacerdotal, afirma-se como detentor de uma crença cristã católica que é a
única detentora de verdade. Como síntese desta elaboração teológica política
da tradição patrística está o pensamento de Agostinho de Hipona, que,
herdando já uma tradição de vinculação entre religião cristã e império romano,
lançou as bases de uma doutrina cristã ortodoxa, intransigente e iconoclasta,

9
BENJAMIM apud LÖWY, Walter Benjamim..., p.78
10
SCHWANTES; RICHARD, Bíblia: 500 anos..., p. 5.
13
que se tornou o núcleo inspirativo do bélico expansionismo político e
missionário da cristandade ocidental. As missões do século XVI tem, assim, na
tradição forjada por Agostinho, a síntese teológica política que edificou e
inspirou as grandes investidas missionárias nas Índias. Contrapondo-se às
diversidades de culturas entendidas como pagãs, a cristandade ocidental
européia assimilou profundamente o exclusivismo religioso da doutrina
agostiniana, que se tornou “texto oficial no mundo em expansão da
cristandade, ajudando a formar uma imagem mediante a qual a civilização em
desenvolvimento era conduzida pela mão de Deus”
11
.
Com lastros fincados nessa tradição política teológica que determinou a leitura
das Escrituras, a colonização portuguesa e espanhola foi pautada por esse
espírito missionário e iconoclasta que inspirou os levantes de soldados de
Cristo, que foram levados pela certeza apaixonada de que tinham posse da
verdadeira vida espiritual, totalmente possuídos pelas idéias religiosas de uma
cristandade bélica, conferindo um fundo religioso à carnificina que perpetrou a
destruição de toda civilização ameríndia das Américas.
Na América Latina, a Bíblia foi lida e recebida a partir deste lócus hermenêutico
da tradição cristã clássica, reproduzindo uma estrutura colonial que se afirmou
na destruição da religião dos dominados, que, possuídos pela ‘ação
demoníaca’, necessitavam da presença universal da cristandade e de seus
sacramentos, que eliminava, quando necessário, ao fio da espada, as ‘hostes
demoníacas’ da religião dos autóctones.
Nos 500 anos de evangelização e conquista espiritual da América Latina a
leitura da Bíblia se configurou em uma reprodução sistemática deste lócus
hermenêutico da cristandade, fundado na autoridade de uma hermenêutica
canônica e universal que afirma substancialmente o poder religioso sacerdotal
da Igreja, excluindo severamente expressões marginais de resistência das
religiões autóctones, reproduzindo, assim, esquemas de saber e poder como
repetição sistemática da tradição cristã clássica. Utilizada como instrumento de
conquista espiritual, a Bíblia se tornou, amiúde, um monumento de barbárie,
lida e interpretada a partir do poder de uma cristandade e por “seitas

11
GOUDSBLOM, A religião cristã..., p.34
14
fundamentalistas que continuam convertendo os indígenas, e destruindo sua
cultura e sua religião em nome da Bíblia”
12
.
Contra esta “hermenêutica colonial equivocada”
13
, elaborou-se na América
Latina uma hermenêutica bíblica da libertação que reagiu aos rascunhos
coloniais e às leituras a partir do poder que colonizaram a consciência religiosa
de um sem número de homens e mulheres latino-americanos. Decorrente de
um impetuoso vento de emancipação que varreu as periferias do mundo, a
teologia da libertação elaborada na América Latina elaborou as mais severas
críticas à tradição cristã ocidental, denunciando, com a fúria de uma
consciência emancipada, a realidade estratificada dos pobres latino-
americanos, que foram vítimas das duras conseqüências de um insólito
processo de colonização que foi responsável pelo genocídio econômico,
religioso e cultural de milhares de vidas. Expressão dos gemidos de uma anti-
conquista, a teologia da libertação promoveu uma profunda crítica das
tradições e das instituições eclesiásticas, que, vinculadas ao poder político
colonizador, impôs um silêncio às camadas pobres e colonizadas que
sobreviveram nos “porões da opressão” de uma cultura colonial. Esta
hermenêutica colhe das profundas experiências de uma leitura bíblica feita a
partir das bases populares, advindas dos métodos de educação popular
propostos pelo educador Paulo Freire, reconhecida como leitura popular da
Bíblia. Neste aprofundamento bíblico nasce a “experiência do povo pobre e
oprimido e carente da América Latina que foi começando a dizer coisas novas
e estranhas: que não pode ser verdade que Deus queira que as coisas sejam
assim; que Cristo possa ser usado como instrumento de exploração; que o
evangelho seja manipulado”
14
. A partir desses ventos renovadores a Bíblia é
redescoberta, e o movimento bíblico latino americano da libertação realizará
um crítico processo de releitura bíblica, lançando as bases hermenêuticas da
leitura bíblica na América Latina, identificando, assim, o lugar social dos novos
leitores: a periferia do mundo latino-americana. Sobre isto, nos ocuparemos em
nosso segundo capítulo.

12
SCHWANTES; RICHARD, Bíblia: 500 anos..., p. 5
13
Ibid, p.5
14
ASSMANN, O que é teologia..., p.10
15
A hermenêutica bíblica latino-americana da libertação caracteriza-se pelo
profundo questionamento de uma leitura bíblica feita a partir do poder,
esforçando-se “para abrir brechas no controle das Escrituras pelo poder
eclesial”
15
. Neste sentido, esta hermenêutica bíblica é herdeira de movimentos
de ruptura que nasceram no coração da Europa nos séculos XV a XIX -,
caracterizados pelos movimentos renascentistas e reformadores, que
inauguram uma desapropriação das escrituras do poder eclesiástico. Herdeira
desta tradição crítica, a hermenêutica da libertação tem como fundamento de
sua constituição a contribuição das ciências bíblicas, advindas do programa
crítico de emancipação cultural e religiosa gestado nas luzes dos séculos XVIII
e XIX (Aufklärung), que colocou a Bíblia sob os olhares da crítica e à mercê da
história. Assim, nosso terceiro capítulo buscará elucidar as bases
epistemológicas da hermenêutica bíblica latino-americana.
Nosso quarto e último capítulo buscará elucidar o lócus hermenêutico da
pesquisa bíblica latino-americana do movimento bíblico da libertação.
Expressão dos gemidos de uma anti-conquista que reage a uma hermenêutica
colonial, a hermenêutica bíblica da libertação vai situar-se a partir da tradição
dos oprimidos, buscando um olhar sobre as tradições bíblicas que rompe com
a carga dogmática da interpretação bíblica que caracterizou a historia da leitura
da Bíblia no Ocidente. Há uma dessacralização dos anseios teocráticos e
políticos que constituem as leituras bíblicas de uma hermenêutica cristã
clássica que legitimou os arroubos coloniais, erguendo instituições que se
mantiveram e se estruturaram no poder sob um manto de autoridade divina. A
partir de uma crítica histórica das tradições, a hermenêutica bíblica da
libertação devolveu a Bíblia à história, procurando aproximar-se das tradições
dos oprimidos e perceber os conflitos sociais e políticos que perpassam a
narrativa bíblica. Neste sentido, afirma um rompimento com uma hermenêutica
canônica das Escrituras, que determina o sentido do texto a partir de uma
harmonização das diversas tradições que compõem a narrativa bíblica. A
hermenêutica bíblica da libertação procurou acessar as realidades sociais de
onde emergem a variedade de tradições bíblicas, buscando as raízes sociais
dos textos, e descobrindo assim a “origem da teologia e do poder teológico-

15
PIXLEY, A bíblia não tem dono..., p.106
16
político cristão” que é resultado das apropriações canônicas e normativas das
Escrituras, realizadas a partir das “manobras astutas dos doutores da Igreja”
16
.
A partir de uma abordagem histórico-social das tradições bíblicas, essa
hermenêutica pode perceber as raízes históricas e políticas das tradições,
podendo, assim, emitir um juízo ético e político sobre os projetos apresentados,
afirmando assim, uma teologia bíblica da libertação como crítica das tradições
e das instituições.

16
CHAUI, Espinosa e a política..., p.45
17
CAPÍTULO I
BÍBLIA, TRADIÇÃO E COLONIZAÇÃO
O que o cristianíssimo burguês do século XX não perdoa a Hitler não
é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do
homem em si, é o crime contra o homem branco [...] é ter aplicado á
Europa procedimentos colonialistas que, até então, só se destinavam
aos árabes, aos cules da Índia e aos negros da África.
17
Na América Latina somos herdeiros de um massacre. Das atrocidades
do colonialismo seiscentistas cometidas contra nossos ancestrais herdamos
um passado ignóbil. Nossa memória dilacerada por uma carnificina nunca
antes vista foi sendo tecida nesses quinhentos anos de história de um estupro.
Como filhos abortivos enxertados numa tradição milenar, nos ensinaram, com a
cruz e a espada, a sermos cristãos. A história da salvação da cristandade
ocidental nos tomou de surpresa, e, no entanto, ainda não estamos salvos.
Somos cristãos. Aprendemos a tecer nossa história com esse passado
que não é nosso. Fomos tomados por ele. Uma tradição nos foi imposta e
diante do absurdo da existência ressignificamos nossas vidas com aquilo que
nos foi dado. A palavra se fez espada e aqui estamos.
A America Latina experimentou o genocídio de toda uma cultura
ameríndia e as atrocidades cometidas abriram uma ferida que jamais poderá
ser estancada. Aqui ressoam com toda força as palavras de Todorov, para
quem, “se a palavra genocídio foi alguma vez aplicada com precisão a um
caso, então é esse”. Nenhum momento da história humana revelou-se tão
perverso, aniquilando uma “população estimada em 70 milhões de seres
humanos” e sem nenhuma duvida, “nenhum dos grandes massacres do século
XX pode se comparar a essa hecatombe”.
18
O processo colonizador
proporcionou o holocausto de milhares de indígenas que foram vítimas de um
expansionismo missionário econômico e religioso que fez da colonização
européia das Américas no século XVI o maior genocídio da história da
humanidade.
19

17
FERRO, História..., p.14
18
TODOROV, A conquista..., p.129
19
TODOROV, p.6.
18
Sem entrar em detalhes, e para dar somente uma idéia global
(apesar de não nos sentirmos totalmente no direito de arredondar os
números em se tratando de vidas humanas), lembraremos que em
1500 a população do globo deve ser da ordem de 400 milhões, dos
quais 80 habitam as Américas. Em meados do século XVI, desses 80
milhões, restam 10. Ou, se nos restringirmos ao México: às vésperas
da conquista, sua população é de aproximadamente 25 milhões; em
1600, é de 1 milhão.
20
Somos definitivamente herdeiros desse massacre. A intuição de Tzvetan
Todorov de que “é a conquista da América que anuncia e funda nossa
identidade”,
21
necessita ainda mais de um significativo aprofundamento.
Considerados preparados pela plenitude dos tempos para serem libertos de
sua cultura e religião demoníaca, ou mesmo culturalmente virgens, páginas em
branco à espera de uma inscrição européia civilizada e cristã
22
, a civilização
ameríndia das Américas experimentamos a mais eficaz e mortífera colonização
do imaginário religioso da história.
Ao contrário do que imaginava Colombo, a assimilação da cristandade
não aconteceu sem fortes resistências. Os povos indígenas não eram “pessoas
que melhor se entregariam e converter-se-iam a fé crista pelo amor sem o uso
da força”.
23
Aqueles que resistiram à força e à intrepidez da palavra morreram
ao peso e à força da espada, que, impregnada de sangue dos ‘infiéis’, alargava
os limites de uma cristandade que, fundamentada por uma forte tradição
teológica e política, impulsionava ainda mais as investidas dos ‘filhos de Deus’
que em seu nome acumulavam ainda mais poderes, terras e riquezas.
1.1 O LÓCUS HERMENEUTICO DA TRADIÇÃO CRISTÃ OCIDENTAL
CLÁSSICA
A leitura canônica da bíblia hebraica e cristã sustentou uma lógica de
dominação que fundamentou toda reflexão teológica ocidental e foi matriz de
um grande projeto de dominação política e religiosa. A grande narrativa
ocidental tem também suas raízes em algumas porções das Sagradas
Escrituras da civilização judaico-cristã e em sua apropriação feita pela
cristandade européia. A tradição político-religiosa ocidental construiu uma

20
TODOROV, p.129.
21
TODOROV, p.6
22
TODOROV, p. 35
23
COLOMBO, Diários..., p.44
19
fundamentada narrativa histórico-teológica que, passando pelos primeiros pais
da igreja até os grandes nomes da teologia cristã na Idade Média, fez nascer
um forte entrelaçamento entre poder político e religioso, dando continuidade à
dominação religiosa presente nas tradições canônicas do Primeiro e Segundo
Testamento.
Existe uma profunda relevância em perceber as raízes da cosmologia
ocidental européia e a conseqüente influência religiosa, política e cultural dessa
cosmovisão no empreendimento colonizador. É interessante notar as raízes
religiosas e bíblicas da dessacralização do mundo presente na tradição judaica
canônica que possibilitou o nascimento de uma história religiosa, uma história
dos homens desvinculados da natureza e de um mundo dos deuses. A
mentalidade iconoclasta do judaísmo tardio e canônico proporcionou o lastro
para o desenvolvimento de uma história da salvação do cristianismo ocidental e
possibilitou o nascimento de um ocidente sensivelmente dessacralizado, tendo
na hierarquia político-religiosa cristã a única autoridade representativa do
sagrado.
Os escritos sagrados judaico-cristãos foram determinantes no processo
de formação da cristandade ocidental. Segundo Peter Berger, a religião
israelita possuiu como traços dominantes uma forte afirmação da
transcendentalização, historicização e racionalização da ética.
24
O Antigo Testamento postula um Deus que está fora do cosmos.
Esse cosmos foi criado por Deus, e eles se defrontam mas não se
permeiam. Encontramos claramente expressa aqui a polarização
bíblica fundamental entre o Deus transcendente e o homem, com um
universo inteiramente “demitologizado” entre eles.
25
O mito israelita da criação-queda presente nas tradições de Genesis 1-3
revela as raízes bíblicas de um Deus ocidental, transcendente e separado do
cosmos. A cristianíssima civilização ocidental teve sua história moldada pelos
escritos sagrados judaico-cristãos
26
, que por sua vez impregnou toda a
percepção do real do homem europeu e foi matriz determinante na construção
do seu mundo. A fundamental noção de um Deus transcendente, advinda de
porções das tradições sagradas da Bíblia Hebraica, constitui a realidade última

24
BERGER, O dossel..., p. 128
25
BERGER, p.130
26
BERGER, p.22
20
do ocidente
27
. As palavras do crítico literário Jack Miles são profundamente
reveladoras. Ele afirma:
De certa forma, somos todos imigrantes do passado. E assim como
um imigrante que retorna, depois de muitos anos, à terra onde
nasceu pode enxergar seu próprio rosto no rosto de estranhos, assim
também o leitor ocidental moderno, secular, pode sentir um tremor de
reconhecimento na presença do antigo protagonista da Bíblia.
28
A imagem de Deus revelada nas escrituras do Primeiro e Segundo
Testamento, percebidas a partir de uma leitura canônica dos dois testamentos,
teceu mentalidades e possibilitou a criação de uma teologia da história que
inspirou as investidas missionárias e colonizadoras da Europa ocidental. Não
há nada que se tenha impregnado com mais força na cultura ocidental do que
as tradições presentes nas páginas das escrituras judaicas e cristãs. O Deus
judaico-cristão foi o motor da história ocidental. A instrumentalização desse
personagem divino possibilitou o desvelo das mais pulsantes paixões do
humano, revelando as mais atrozes e pusilânimes formas a vontade de poder
presente nas representações humanas do sagrado que se fizeram
representantes do divino num amálgama e entrelaçamento perfeito entre poder
político e religioso.
A leitura canônica da Bíblia Hebraica inaugura no Ocidente a tríade que
estará nos fundamentos da civilização judaico-cristã: monoteísmo, sacerdócio e
poder político. Esta ‘santíssima trindade’ norteará a evolução política e religiosa
do ocidente cristão.
29
1.1.1 Tradição Sacerdotal Judaica e Tradição Cristã Ocidental
A herança sacerdotal do judaísmo advinda da centralização do poder
político e religioso que predominou no judaísmo do segundo templo lançou as
bases da hierarquia religiosa da cristandade ocidental. Temos nos escritos
canônicos do Primeiro Testamento as raízes de uma teocracia monoteísta
fundada no poder político e religioso.
30
O gradativo aumento de poder de uma
classe sacerdotal judaica e a criação de um javismo como afirmação de uma

27
MILES, Deus..., p.13
28
MILES, p.14
29
FINKELSTEIN, I. SILBERMAN, N. A Bíblia...; ESPINOSA, Tratado...; CHAUI, Espinosa...
30
Ver, GALAZZI, A teocracia...; FINKELSTEIN, I. SILBERMAN, N. A Bíblia...
21
religião monolátrica desencadeou uma série de intervenções sociais
possibilitadas pelo crescente poder político-sacerdotal. A Bíblia hebraica tem
na formatação político-ideológica das classes sacerdotais da tradição judaica
sua forma e tradição final.
O discurso teológico do judaísmo sacerdotal presente na Bíblia hebraica
e cristã lançou as bases da civilização cristã ocidental. O ideal cristão de um
Deus criador e transcendente, separado do cosmos, é sem nenhuma dúvida o
lastro político-religioso do Ocidente. O ethos religioso, político e cultural da
civilização ocidental têm na imagem de Deus a razão última de sua existência.
A estrutura patriarcal e colonizadora do ocidente europeu é um construto
teológico judaico cristão que tem no poder político-religioso da cristandade a
criação de identidades universais, que são vinculadas a um Deus
transcendente e patriarcal a partir das representações e intervenções político-
sacerdotais da cristandade européia.
Não se captou com a agudez e crítica suficientes a cumplicidade das
elaborações cristãs patriarcais com a manutenção e dominação de
mulheres e da exploração sem limites dos recursos naturais. Poucas
vezes tiramos as conseqüências reais da cumplicidade do
cristianismo colonial com a destruição de divindades indígenas
ligadas aos fenômenos naturais.
31
A cosmologia dos conquistadores europeus é fruto de um longo
processo de apropriação de tradições sacerdotais da religião de Israel que foi
sendo amalgamado com a reflexão filosófica dos pensadores gregos. As
categorias cosmológicas e antropológicas vigentes na Europa do século XVI
são fundamentalmente religiosas e têm também suas raízes na tradição dos
escritos sagrados do judaísmo canônico.
A concepção cosmológica predominante nas classes eruditas via o
mundo como uma obra de Deus. A elaboração dessa teoria foi o
resultado de um longo caminho de reflexão, com raízes na
cosmologia judaica, e acrescida pela explicitação filosófica dos
pensadores gregos.
32
A cristandade ocidental apropriou-se de todo legado das escrituras e
sistematizou um aparato de dominação legitimada no poder religioso que
perpassou toda história da civilização ocidental. A leitura das escrituras
canônicas do Primeiro e Segundo testamento cumpriu um papel fundamental

31
GEBARA, Teologia Eco feminista..., p. 19.
32
AZZI, Razão..., p.22.
22
nesse processo de legitimação religiosa como verdadeiro alicerce na formação
da Tradição Cristã Ocidental.
1.1.2 Sacerdócio e Autoridade na Cristandade Patrística
Um negligente ímpeto de poder sacerdotal demonstrou toda sua força já
nos primeiros anos da cristandade ocidental. As condutas dos guardiões da
santa doutrina que se enamoraram de Deus em profunda demência e vontade
de poder foram se revelando mais severas na medida em que o controle e o
poder político sobre a communio sanctorum foi se tornando mais vulnerável.
33
Representantes autorizados da tradição eclesiástica, os Pais da Igreja
se tornaram sem sombra de dúvidas os pais espirituais do Ocidente cristão.
Verdadeiros guerreiros da santa fé, defensores da verdadeira imagem da
divindade e intérpretes autorizados das tradições judaico-cristãs, esses
homens carregam consigo a real paternidade espiritual da civilização cristã
ocidental.
34
“Tradição cristã” e “Pais da Igreja” são representações políticas
temporais. Legitimadoras do poder religioso sacerdotal, foram fundamentais no
processo político e histórico-teológico do Ocidente. A própria noção de
patrologia tem sua origem num processo de legitimação do poder religioso
sacerdotal.
O termo, originário da palavra “Pai”, é utilizado pela primeira vez na
obra póstuma do teólogo protestante alemão J. Gerhard (t 1637)
(“Patrologia seu de primitivae ecclesiae christianae doctorum vita ac
lucubrationibus opus postummum”, Jena 1653). Trata-se de um
vocabulário surgido num contexto apologético e indica a “procura nos
Padres da Igreja de testemunhos a favor das crenças contestadas
pelos Reformadores e como resposta ‘ao apelo à antiguidade’ por
parte dos próprios reformadores.
35
O fundamento hierárquico e sacerdotal já presente nas escrituras
canônicas judaico-cristãs é funcionalizado pelos primeiros Pais da Igreja,
legítimos representantes de Deus, que, estabelecendo um continuum
hierárquico sacerdotal, afirmam as relações de poder que perpassaram toda
história da civilização judaico-cristã. Escrevendo aos Coríntios acerca do

33
Para o processo de hierarquização da Igreja Cristã já nos primeiros séculos da cristandade,
ver Ribla 32. Da autoridade a Hierarquia.
34
PAVODESE, p. 18.
35
PAVODESE, p. 21.
23
princípio hierárquico sacerdotal revelado nas tradições do Primeiro
Testamento, Clemente Romano afirma:
Se alguém refletir sobre cada uma dessas coisas com sinceridade,
reconhecerá a magnificência dos dons de Deus a Jacó. É dele que
procederão os sacerdotes e levitas todos, que servirão o altar de
Deus; dele, o Senhor Jesus, segundo a carne; dele, através de
Judas, os reis, príncipes e chefes. Por sua vez, os demais cetros de
Jacó também gozarão de não pouca honra, já que Deus anunciou.
36
A tríade “monoteísmo, sacerdócio e poder político” determina os papéis
sociais e as relações de poder nos primeiros séculos da cristandade que são
fundamentalmente desenvolvidas a partir da lógica canônica presente nas
escrituras judaico-cristãs: pecado-expiação e remissão. O pecado, espinha
dorsal de todo desenvolvimento histórico teológico da cristandade e de uma
tradição canônica judaica, funciona como pedra de toque, retroalimentando as
narrativas que estabelecem os papéis e as relações de poder entre sacerdote e
pecador. Os escritos de Clemente Romano, no século I da era cristã,
reproduzem os mecanismos de poder e centralização sacerdotal já presentes
no segundo templo de Jerusalém.
Nem por toda parte, irmãos, são oferecidos sacrifícios perpétuos ou
votivos, de expiação e remissão, mas só em Jerusalém. E mesmo lá,
não se oferece em todo lugar, mas só em frente ao santuário sobre o
altar, depois que a oferenda foi atenciosamente examinada pelo
sumo sacerdote e seus auxiliares acima mencionados. Os que
praticam algo contra o que agrada a sua vontade recebem como
castigo a morte. Vede, irmãos, quanto maior conhecimento com que
somos distinguidos, tanto maior perigo a que estamos expostos.
37
Uma apropriação de poder religioso ancorada nas tradições sacerdotais
judaicas legitima a sistematização de uma hierarquia religiosa representativa. A
tradição bíblica é funcionalizada com fins de legitimação teológica da hierarquia
religiosa. Já se percebe aqui a preocupação dos primeiros Pais sobre a
continuidade apostólica da tradição, que é conservada pela hierarquia.
38
Em
comentário às cartas de Santo Inácio de Antioquia, Dom Paulo Evaristo Arns,
afirma que, em suas curtas epístolas:
Inácio fala sessenta vezes de bispos, lembra vinte e duas vezes
presbíteros e menciona quinze vezes diáconos. Por aí se percebe a
grande preocupação de unir não só as comunidades àqueles que
lhes garantem a unidade, mas também unir a hierarquia entre si.
Poderíamos reassumir a afirmação de A. Michiels: ‘Basta lermos as
Cartas de Santo Inácio, para nos convencermos que esta hierarquia

36
CLEMENTE ROMANO, p. 41.
37
CLEMENTE ROMANO, p. 48.
38
INÁCIO, p. 18.
24
não datava da véspera; que nada inovava’. Sintomático nos parece o
fato de Inácio mencionar treze vezes a hierarquia tripartida, a saber,
bispos, presbíteros e diáconos, num só fôlego. Talvez estivesse aí a
marca autêntica do sacramento e da co-responsabilidade no
exercício das funções sacerdotais: ‘um é o altar, assim como também
um é o bispo, junto com seu presbitério e diáconos, aliás meus
colegas de serviço. E isso, para fazerdes segundo Deus o que
fizerdes.
39
Não é necessário muito esforço para perceber a lógica “pecado-
expiação e remissão” implicitamente fundamentada em uma leitura canônica
das tradições sacerdotais do Primeiro Testamento. As representações
simbólicas legitimam uma relação de poder que leva a uma unidade
hierárquica. As intervenções de Santo Inácio são motivadas por um contexto de
disputas religiosas nas quais a autoridade do bispo começava a ser
questionada, revelando uma fragmentação do poder político-religioso. Em carta
a Policarpo, Inácio procura fundamentar sua autoridade, afirmando sua posição
de superioridade concedida por Deus:
Atendei ao bispo para que Deus vos atenda. Ofereço-me como
resgate daqueles que se sujeitam ao bispo, aos presbíteros e
diáconos. Com eles me sejam concedido ter parte em Deus. Labutai
uns ao lado dos outros, lutai juntos, correi, sofrei, dormi, acordai
unidos, como administradores de Deus, como Seus assessores e
servos. Procurai agradar aquele cujo estandarte combateis, de quem
igualmente recebeis soldo. Que não se encontre desertor entre vós.
40
As expressões “sujeitar ao bispo” e “administradores de Deus” revelam a
lógica das relações de poder estabelecidas pelo bispo de Antioquia. A unidade
religiosa tem um pano de fundo moldado por fortes implicações políticas, pois
somente tem o poder o verdadeiro possuidor da vontade de Deus, e “tomar
conhecimento da vontade de Deus só se pode através do bispo, como também
será honrado por Deus quem honra ao bispo e presta culto ao diabo quem faz
algo às ocultas do bispo”.
41
“Monoteísmo, sacerdócio e poder político” é a
lógica de poder que vai determinar espaços e papéis, clarificando o lugar social
e a centralidade de um poder político-religioso que em toda a sua brutalidade e
força transformará uma quantidade nunca sonhada de ‘pagãos’ em uma nação
cristã. Os soldados do reino de Deus com suas espadas e penas criarão a todo
custo e força a “cidade de Deus” – descendente imediata do sangue dos
pagãos –, o germe da civilizada e cristianíssima civilização européia.

39
ARNS, apud INÁCIO, p.20
40
Ibid, p.87
41
Ibid, p.18
25
A lógica da cristandade, pecado-expiação e remissão, já profundamente
disseminada nos escritos sagrados da tradição judaico-cristã e que configurará
as relações de poder no Ocidente – monoteísmo, sacerdócio e poder político
é o pano de fundo sobre o qual se estrutura toda a cristandade ocidental,
desde seus primeiros Pais até os arroubos colonizadores no século XVI, onde
os ‘pagãos’ padecerão de uma carnificina considerada absolutamente
necessária aos desígnios de Deus.
1.1.3 Deus, Pecado, Tradição e Poder Político – Tertuliano e Santo Agostinho
Pecado e poder sacerdotal estão sensivelmente entrelaçados. As
abruptas intervenções religiosas na sociedade cristã ocidental estão
estreitamente relacionadas a esse eixo: Deus, pecado, tradição e poder
político. A resposta do moleiro Menochio dada ao inquisidor católico, retratado
no brilhante O queijo e os vermes, obra do históriador italiano Carlo Ginsburg,
nos dá o tom da imbricação entre poder político e religioso:
Ir confessar com padres ou frades é a mesma coisa que falar com
uma árvore. Se esta árvore conhecesse a penitência, daria no
mesmo; alguns homens procuram os padres porque não sabem que
penitências devem ser feitas para seus pecados, esperando que os
padres as ensinem, mas, se eles soubessem, não teriam
necessidade de procurá-los. Estes últimos deveriam se confessar à
majestade de Deus em seus corações e pedir-lhe perdão pelos seus
pecados.
42
A relação de poder fundamentada numa hierarquia religiosa da
cristandade ocidental revelou-se como um poderoso mecanismo de interdição
e supressão de tradições desamparadas de poder político. A hierarquia cristã
fundou uma espécie de imperialismo religioso que não conheceu fronteiras em
suas investidas políticas, impulsionada que estava pela obsessiva assimilação
da total verdade divina em uma Igreja hierárquica e sacramental, uma Igreja
sine macula nec ruga. Esta postura hierocrática dos primeiros Pais da Igreja foi
responsável pela criação de uma religião imperial, auto proclamada como
possuidora de uma compreensão espiritual mais elevada, capaz de reivindicar
um imperialismo cristão que estabeleceu a Igreja como agente de Deus para
converter e conquistar o mundo.
43

42
GINSBURG, O queijo…, p. 49.
43
RUETHER, Sexismo…, p. 33.
26
1.1.3.1 A “regula fidei” de Tertuliano
Entre os ardorosos defensores desse universalismo cristão está a figura
de Tertuliano. Jurista de tradição romana, nasceu em Cartago, no norte da
África, e está entre os baluartes da ortodoxia católica. Embora não considerado
Pai da Igreja, seu pensamento influenciou enormemente a síntese da ortodoxia
católica revelada nos escritos de Agostinho de Hipona. É, sem nenhuma
dúvida, “testemunha da vida e das instituições da igreja cristã”, e em “qualquer
abordagem que se faça da igreja primitiva, em suas instituições, lá se encontra
um texto de Tertuliano”.
44
Sua obra contribuiu sistematicamente para o
desenvolvimento da ortodoxia da igreja cristã e para sua definitiva
hierarquização e patriarcalização. Cartago era no século II o centro mais
importante de literatura e língua latina e a obra de Tertuliano se difundiu de
maneira precisa em todo o ocidente cristão.
45
A mentalidade greco-romana e
as injunções sacerdotais advindas das tradições canônicas do Primeiro e
Segundo Testamentos determinaram a reflexão desse teórico da ortodoxia em
suas elaborações teológicas, que referendaram um projeto hierárquico político
fundamentado na tradição.
O jurista está entre os mais ardorosos defensores da verdadeira fé. É
talvez o grande fundador da teologia latina com lastros fincados na autorictas.
Sua pena ágil combate com toda agressividade os não iniciados na vera
religione. No combate aos adversários fundamentou como jurista o argumento
da prescrição, proibindo o uso das Escrituras àqueles que não fazem parte da
verdadeira igreja apostólica.
Los herejes discuten sobre La Escritura; pero ésta prohibe la
discusión com ellos. Lo realmente verdadero es preguntar-se: A
quién pertenece la fe? De quién son las Escrituras? Por quién y a
quien há sido transmitida la disciplina por la que somos cristiano? La
respuesta es simple: Cristo envio sus apostoles, quienes fundaron
Iglesias em cada ciudad, y de éstas las demás Iglesias tomaron
luego el retoño de la fe y la semilla de la doctrina, como lo siguen
haciendo todos los días para ser constituídas como Iglesias. Por esta
razón éstas se tenían tambíén por iglesias apostólicas, puesto que
eran como retoños de las iglesias apostólicas. Los que sobre este

44
Colocar autor da introdução apud TERTULIANO, O sacramento do batismo, p.7.
45
TERTULIANO, O sacramento do batismo, p.71
27
fundamento edifican forman la única Iglesia fundada por los
apóstoles de Cristo.
46
Em um dos seus escritos, O sacramento do batismo, Tertuliano
direciona sua pena com toda autoridade contra os hereges:
Para nós existe um batismo, tanto conforme o evangelho do Senhor
como conforme as cartas do apóstolo (Paulo), porque Deus é um e
uma só a igreja nos céus. Com razão alguém poderia observar que
um mais competente trate dos hereges mais a fundo! Mas este
escrito dirige só a nós. Os hereges não participam de nossos ritos,
são estranhos porque privados de nossa comunhão. Não devo
reconhecer para eles o que é preceito para mim, porque nós e eles
não temos o mesmo Deus, nem um e mesmo Cristo. Por isso seu
batismo não é um, porque não é o mesmo. Porque não tem o
batismo da maneira certa, sem duvida não o tem, e o que não tem
não poderão enumerar. Assim também não o podem receber, porque
não tem.
47
O ideal de uma igreja verdadeira e universal possuidora de uma
compreensão espiritual mais elevada fundamentou a teologia do mestre de
Cartago. Sua apropriação das escrituras como propriedade da Igreja católica
revelava sua insistência na existência de uma regula fidei, capaz de
fundamentar a autoridade da hierarquia. Sua fé era fundamentada na
autoridade e na hierarquia “O Deus que Tertuliano amava é o juiz inflexível e
zeloso que estabeleceu o timor como base da salvação humana”.
48
Sua mentalidade patriarcal aumentou em elevadíssimos graus o
desprezo ao gênero feminino na tradição cristã. Dos mananciais da ortodoxia
cristã ocidental só Agostinho e depois Tomás de Aquino conseguiram superar o
jurista de Cartago, numa sistematização teológica do falocentrismo que
perpassou a história das mentalidades no ocidente. O uso canônico dos
escritos sagrados da Bíblia Hebraica e cristã foi fundamental no
desenvolvimento e sistematização de uma teologia patriarcal e falocêntrica que
sacramentou a minoridade de mulheres num mundo de homens feitos a
imagem e semelhança do Deus pai.
A lógica sacerdotal que estabeleceu as relações de poder na história
religiosa judaico-cristã ocupou um lugar fundamental na elaboração teológica
de Tertuliano. Em sua obra Do ornamento feminino, o sacerdote de Cartago
fundamenta-se na leitura de tradições bíblicas. Tertuliano faz uma apropriação

46
TERTULIANO apud ROPERO Lo mejor..., p. 28
47
TERTULIANO apud ROPERO Lo mejor..., p.58
48
CARVALHO, Tertuliano e a formulação do dogma cristão, p.12.
28
da tradição presente nos escritos do Novo Testamento, conhecidos e
legitimados pela ortodoxia cristã como a Carta do Apóstolo Paulo a Timóteo.
Esses textos são apresentados como legitimadores de sua teologia que coloca
o foco do pecado na mulher.
49
A mulher é considerada a porta de entrada do diabo; ela comeu do
fruto proibido, ela é a primeira transgressora da lei divina. Foi a
mulher quem persuadiu o homem, a quem o diabo não era valoroso o
bastante para atacar. A mulher destruiu a imagem de Deus, e por
causa disto, até mesmo o filho de Deus teve que morrer.
50
Pode-se estar diante de um fenômeno de longa duração, onde o poder
religioso sacerdotal, instrumentalizado e re-atualizado a partir dos recursos de
legitimação da tradição, interdita e sacramentaliza a posição de inferioridade de
grupos minoritários. A reflexão teológica de Tertuliano possui lastros políticos.
Seus escritos são frutos de enfrentamentos com grupos minoritários do(s)
cristianismo(s) originário(s). São todos elaborados numa perspectiva patriarcal
e se tornam mais severos na medida em que as expressões femininas vão se
tornando evidentes e confrontam o senhorio de uma instituição masculina e
sacerdotal. Representa também a postura aristocrática romana que concebia a
mulher apenas na esfera privada, não admitindo sua participação em cargos de
autoridade. As injunções falocêntricas tornaram-se mais detalhadas e
numerosas com o crescimento do movimento de mulheres na sociedade
51
, com
o objetivo de silenciar o feminino a partir das estruturas falocêntricas de uma
ortodoxia. Em sua obra O Sacramento do Batismo, Tertuliano procura legitimar
sua interdição do feminino em tradições paulinas do Segundo Testamento,
deslegitimando quaisquer tradições que não façam parte de sua tradição
apostólica hierárquica:
Mas a petulância da mulher, que já usurpou o direito de ensinar, não
se arrogue também o direito de batizar. Não! A menos que surgissem

49
O texto da carta de Timóteo pode estar sendo usado como instrumento de interdição da
mulher no papel de liderança das comunidades cristãs primitivas. Possivelmente acontece o
mesmo fenômeno de interdição feminina no séc. VI a.C, no período do pós-exílio em Israel: Ver
RIBEIRO, Osvaldo Luis. Interdição da mulher à intermediação do sagrado, através da
reformulação sacerdotal da antiga lei dos tabus dos humores genitais masculinos e femininos,
na Judá pós-exilica, texto apresentado no V Simpósio Nacional da Associação Brasileira de
História das Religiões, 2003. O autor afirma: “Levitico 15, na forma como se encontra, é o
resultado da intervenção sacerdotal sobre uma antiga lei dos tabus dos humores genitais
(tanto) masculinos (quanto) femininos, com objetivo de promover a interdição da liderança
feminina à intermediação do sagrado, fundamentando a estratégia na supervalorização e
sobrevalorização da menstruação sobre as demais indicações fisiológicas da lei”.
50
TERTULIANO, A moda feminina..., p.3
51
SCHUSSLER-FIORENZA, E. As origens cristãs a partir da mulher..., p. 89.
29
algumas novas bestas semelhantes à antiga. Aquela pretendia
suprimir o batismo; uma outra quer administrá-lo ela mesmo. E se
essas mulheres invocam os escritos, que erroneamente levam o
nome de Paulo, e citam o exemplo de Tecla para defender o direito
de ensinar e batizar, saibam que foi um presbítero da Ásia que
elaborou este escrito, como que cobrindo sua autoridade com a de
Paulo. Depois de reconhecida a fraude e tendo confessado que agiu
por amor a Paulo, foi deposto. De fato, como seria fidedigno que o
apóstolo desse à mulher o poder de ensinar e batizar, ele, que
com restrição permitiu às esposas que se instruíssem? Disse: devem
silenciar e perguntar a seus maridos em casa.
52
Tertuliano associa o feminino a elementos demoníacos e à
responsabilidade pela entrada de todo mal no mundo. Sua teologia busca
fundamentos nas tradições sacerdotais dos escritos sagrados judaico-cristãos
e reproduz conceitos platônicos das tradições gregas e judaicas helenistas
53
, a
fim de associar a mulher à corporeidade e interditá-la do ambiente sagrado.
54
Através da pena e da mentalidade jurista de Tertuliano, que entendia a
igreja como instituição pública e única, a cristandade ocidental tornou-se
monolítica, estabelecendo sua autoridade no poder temporal, representado por
uma hierarquia formativa que excluía as expressões femininas da igreja,
levando-as a se abrigarem em movimentos sectários.
O fundamento hermenêutico de Tertuliano encontra-se em uma leitura
canônica das escrituras judaico-cristãs e em sua compreensão da igreja cristã

52
TERTULIANO, O sacramento do batismo, p.64.
53
Quanto à influência de tradições helênicas no cristianismo primitivo, ver BOYARIN, Israel
Carnal. O mesmo afirma que as atitudes dos da Igreja em relação a sexualidade estão mais
ligadas ao judaísmo helenizado de Fílon e seus congêneres. As noções platônicas a respeito
do ser humano eram muito comuns ainda que não necessariamente universais entre os judeus
de língua grega. Este conceito de ser humano sem dúvida se tornou muito disseminado entre
os padres da Igreja, que propagaram metáforas para o corpo do tipo: túmulo, grilhões,
vestimentas, mascara feia, roupa de pele, habitação da alma. Nestas tradições, a mulher é
sempre símbolo de corporeidade e associada à alma. Para Boyarin é no judaismo de Fílon que
se deve encontrar as origens da Eva européia. Aqui é necessário observar a preocupação de
Boyarin em resgatar a tradição do judaísmo clássico diante da misoginia. Neste sentido, é
importante demonstrar que as tradições sacerdotais do judaísmo clássico são
fundamentalmente misóginas.
54
RUETHER, Muher Nueva..., afirma que a antropologia de Fílon e dos padres da Igreja
considera que o masculino e feminino são expressões da divisão do corpo e alma. Nesta
concepção, as mulheres são semelhantes ao corpo, e devem-se submeter ao governo da
razão (masculina). Considera-se que o princípio corporal (que é associado ao feminino) é tão
demoníaco em sua essência que o caminho à salvação exige a mortificação da vida física.
Para Ruether, o misoginismo está presente tanto na literatura grega como nos textos do Velho
Testamento e no judaísmo talmúdico. Estes textos explicam a maldade da mulher e busca as
origens do mal no mundo a partir de figuras femininas, tais como Eva e Pandora. A tradição
judia expressa sua misoginia em linguagem extraída da família patriarcal, e a tradição grega
vêm simbolizar a mesma em linguagem filosófica abstrata. Estas formas de hierarquização
patriarcal eram paralelas e começaram a se amalgamar no período helenístico. O cristianismo
foi herdeiro dessa fusão.
30
católica romana, que possuía sua autoridade na hierarquia apostólica, a única
com legitimidade na administração dos sacramentos. O eixo “Deus, pecado,
tradição e poder político” determina e dá lastro às suas reflexões teológicas.
Tertuliano apregoa um violento monoteísmo político e considera como
demônios todo o panteão de deuses da religião pagã de Roma. Avesso a
qualquer pluralismo presente no mundo religioso romano, se tornou
proclamador do verdadeiro Deus universal cristão, representado unicamente
pela igreja romana, receptáculo da fé e guardiã da revelação. Em sua Apologia
contra los gentiles em defensa de los cristianos, afirma:
Buscad otros dioses, puesto que los que creiais ser dioses ya
conocéis que son demônios. Pero, gracias a nosotros, vuestros
dioses no os revelan tán solo que ni ellos ni otros son dioses, sino
que os enseñan además, por immediata consecuencia, quien es el
verdadeiro Dios, si es preciso creer em Él y adorarle, conforme la fe y
doctrina de los cristianos lo prescribe.
55
Já se esboça nos escritos de Tertuliano a idéia de uma verdadeira
religião que norteará a hermenêutica auctoritas de Agostinho e impregnará no
Ocidente cristão uma verdadeira obsessão pela verdade divina, total e
definitivamente assimilada por uma igreja hierárquica e sacerdotal.
1.1.4.2 A “hermenêutica auctoritas” e “universal” de Agostinho
O senhor não prometeu [a Igreja católica] apenas aos Romanos, mas
sim a todas as nações do mundo. (Santo Agostinho)
Agostinho está entre os tentáculos da grande tradição da cristandade
ocidental. É sem nenhuma dúvida o maior artífice da ortodoxia cristã e talvez
tenha sido o primeiro grande teórico da Inquisição.
56
Representa o homem da
tradição que carregou nos ombros numa severidade paulina as “verdades da
fé” a ele confiadas. Brilhante teólogo cristão, foi responsável pela afirmação da
univocidade da doutrina cristã elaborando como nenhum outro uma profunda
síntese entre neo-platonismo e cristianismo. Seu ministério abrange a segunda
metade do século IV e início do V século. Sem nenhuma dúvida,

55
TERTULIANO apud ROPERO Lo mejor..., p.111.
56
BROWN, Santo Agostinho..., p.297
31
Entre todas as inteligências latinas em ação durante esse período,
nenhuma foi maior nem teve mais duradoura influência sobre as
gerações posteriores do que Agostinho de Hipona.
57
Foi um dos principais pensadores a sistematizar um projeto político
fundamentado no poder religioso que pudesse afirmar a autoridade religiosa da
cristandade diante da decadência e das acirradas disputas pelo poder no
fragmentado império Romano. Segundo Riolando Azzi,
Com a crise do império Romano, e a conseqüente volta ao mundo
agrário, novamente as concepções religiosas retomaram sua força. É
nesse período que vive Agostinho, nascido em Tagaste, na Numídia
proconsular, em 354. Após um longo percurso intelectual por
diversas filosofias e crenças religiosas, termina aderindo totalmente a
fé católica. A partir de então, sua preocupação será não só reafirmar
a supremacia do poder religioso ou mítico sobre o saber intelectual
ou filosófico, como também defender a crença católica como a única
detentora da verdade. Para isso o pensador católico fundamenta-se
na tradição judaica, em que a força do poder da carne sacerdotal foi
tão grande a ponto de transformar o patriarcalismo das tribos de
Israel num verdadeiro Estado teocrático.
58
As grandes convicções teológicas do Ocidente foram forjadas pela
intransigente pena agostiniana e suas lentes determinaram a leitura canônica e
doutrinária de grande parte das Escrituras Sagradas judaico-cristãs. Agostinho
representa uma síntese da grande tradição patrística que delineou o
pensamento teológico no Ocidente, criando um corpo teórico que estabeleceu
a compreensão cristã de muitas das questões que deram forma à sociedade
cristã ocidental.
59
Agostinho é, sem nenhuma dúvida, um pensador político. É herdeiro da
grande assimilação da religião cristã feita pelo Império Romano a partir das
ações políticas de Constantino. Diferente de Tertuliano, experimentou a síntese
entre religião cristã e império romano, tendo a seu serviço os vastos
empreendimentos de unificação realizados à força da espada dos exércitos
imperiais, em prol da unificação e expansão da religião cristã universal nos
quatro cantos do império. Agostinho é herdeiro das políticas expansionistas
político-religiosas e seu exercício de teólogo e pastor já experimenta os
benefícios das ações militares de Constantino contra os santuários pagãos.
Em 341 os últimos santuários locais eram fechados na Itália e
terminaram os sacrifícios tradicionais oferecidos aos outros deuses
em Roma. Constantino aumentou a pressão sobre os rivais do

57
IRVIN, História…, p. 291.
58
AZZI, Razão…, p.32
59
SALISBURY, Pais…, p. 27.
32
cristianismo fechando várias escolas de filosofia e patrocinando a
construção de mais igrejas. Até as formas tradicionais de magia e
adivinhação foram proscritas, embora tenham continuado a ser
praticadas em segredo. No começo do século, menos de uma em
cada vinte pessoas no mundo romano era cristã, mas no final do
reinado de Constantino quase uma em cada duas era membro de
uma igreja. A transformação fora rápida, embora o custo da
dominação imperial das igrejas muitas vezes se revelasse alto
demais.
60
Agostinho herda uma tradição de vinculação entre religião e império e
seu pensamento foi articulado a partir da manutenção do vínculo entre poder
sacerdotal e império romano. As medidas do império trouxeram à religião cris
uma sorte de privilégios e honrarias, e mesmo o clero cristão nas regiões
ocidentais governadas por Constantino começou a receber benefícios
especiais do tesouro imperial.
61
Essa vinculação possibilitou uma unidade
política da Igreja que, no início do século IV, era um grupo litúrgico e
teologicamente variado que não servia aos anseios de Constantino, o qual
almejava um cristianismo como um sistema unificado.
62
A união com o império trouxe consigo novas formas de dominação
imperial. As designações de bispos nas maiores sedes passou para a
responsabilidade do imperador. Os bispos que recebiam fundos do
império eram também onerados com novas responsabilidades
políticas. Um deles, Ósio de Córdoba, na Espanha, foi um dos mais
íntimos conselheiros do imperador. Pela primeira vez um bispo
cristão era chamado a aconselhar um imperador, cuja primeira
vocação envolvia empreender a guerra, introduzindo o bispo e o
amplo grupo da liderança eclesial mas a fundo das ambigüidades da
vida política do império. A tendência a integrar Igreja e Estado, e com
ela o modelo de domínio imperial sobre assuntos eclesiásticos,
continuou após a morte de Constatino em 337 com seus filhos que
lhe sucederam no trono... Constantino reconhecia a força estrutural
proporcionada pela liderança dos bispos em todo seu reino e o
potencial unificador da fé cristã entre os diferentes súditos do
império. Procurou fortalecer esses aspectos, garantido entre as
igrejas uma formulação unificada da doutrina e uma pratica cultual
unificada.
63
Após o Edito de Milão, Igreja e Estado se entrelaçam na comunhão entre
dois poderes. O império se tornara cristão e a Igreja se instalava e se integrava
nos espaços de poder e na grande estrutura do Estado Romano. Iniciavam-se
as grandes investidas contra os templos pagãos e a política romana e
eclesiástica começava a dar formas à unidade política e teológica da Igreja
cristã. Na África de Agostinho, os bispos se tornaram personalidades de

60
IRVIN, p. 229
61
Ibid, p.211
62
Ibid, p.211
63
Ibid, p.211
33
Estado, tornando-se influentes instrumentos de unificação, pois a aplicação de
leis imperiais sobre a repressão do paganismo e dos adversários cristãos
exigia uma constante colaboração entre os dois poderes.
64
O cristianismo se
tornou religião oficial do império e o evangelho seria agora propagado pelo
poder retórico da palavra e a força desmedida da espada.
Em 391, Agostinho foi ordenado ao sacerdócio e logo depois veio a ser
bispo da cidade de Hipona, na Africa. É neste período que redige sua obra A
Verdadeira Religião, dando início a sua laboriosa atividade de apologista e
defensor da única e verdadeira fé cristã. Neste período, as igrejas da África já
eram numericamente fortes e já exerciam claramente uma presença política.
65
A presença de Agostinho foi sem nenhuma dúvida fundamental e funcionou
como verdadeiro divisor de águas no combate ao paganismo e a heterodoxia
cristã no século IV. Se, no início do século, o imperador Constantino passou a
crer no Deus cristão que lhe concedeu suas vitórias militares e deveria ser
venerado no mundo inteiro, agora o bispo de Hipona encontrava alento no
exército imperial e justificava com veemência o uso da força contra hereges e
cismáticos para o “bem do evangelho”.
66
No início de 399, agentes especiais do império chegaram à África
para fechar os templos pagãos. Eclodiram tumultos religiosos: em
Sufes, cerca de sessenta cristãos foram mortos; na zona rural, as
turbas católicas mostraram-se tão violentas no “expurgo” de
santuários pagãos das grandes fazendas quanto tinham sido os
circunceliões. Agostinho e seus companheiros estiveram no centro
dessa tempestade. Em Cartago, ele pregou para as grandes
multidões, em meio a gritos de “Abaixo os deuses romanos”. Essa é
a primeira vez que o vemos, um amante da paz intensamente
sensível a violência, apanhando na agitação que sua certeza
apaixonada tanto contribuíra para provocar. Isso porque, mais uma
vez, a Igreja católica havia mostrado ser a única corporação da África
a contar com o reconhecimento legal do imperador: “Deveis saber,
meus amigos, como os murmúrios (dos pagãos) juntam-se aos dos
hereges e judeus. Hereges, judeus e pagãos passaram a formar uma
unidade contra nossa unidade.
67
Esse era o início das investidas missionárias desse servus Dei, que um
dia fora “um amante da paz intensamente sensível a violência”, até o funesto
momento em que no combate tornou-se possesso de uma “certeza
apaixonada” que dominará por inteiro a ele e a todos os servus Dei que

64
HAMMAN, p. 288.
65
IRVIN, p. 214.
66
Ibid, p.219
67
BROWN, p. 285.
34
levariam adiante essa obsessão pela conquista que contagiará toda civilização
cristã ocidental.
Agostinho de Hipona se tornou o grande teórico de um expansionismo
missionário político da cristandade européia. Sua hermenêutica auctoritas e
universal percebia como única a ecclesia catholica mater christianorum
verissima. Profundamente fortes eram suas convicções religiosas que
entendiam ser apenas uma questão de tempo para que os imperadores,
católicos devotos, decidissem recolher os desertores “espirituais” das fileiras da
igreja católica.
68
Peter Brown afirma:
O catolicismo de Agostinho refletia a postura de um grupo confiante
em sua capacidade de absorver o mundo sem perder a identidade.
Essa identidade existia independentemente da qualidade dos
agentes humanos da Igreja: apoiava-se nas promessas “objetivas” de
Deus, que se realizavam magnificamente na história , e na eficácia
“objetiva” dos sacramentos. Essa Igreja estava faminta de almas:
pois que comesse, e indiscriminadamente, se necessário. O grupo já
não tinha o compromisso de se defender da sociedade; antes,
postava-se pronto a cumprir o que considerava ser sua missão
histórica: dominar, absorver, conduzir um império inteiro. “Pede-Me, e
eu te darei as extremidades da terra por Tua possessão”. Não é de
admirar, portanto, que a Àfrica, que sempre fora a pátria de visões
bem articuladas e extremistas na natureza da Igreja como grupo na
sociedade, viesse mais uma vez, na época de Agostinho, a se tornar
o “campo de batalha da Europa” nesse ultimo grande debate, cujo
desfecho determinaria a forma assumida pela dominação católica do
mundo latino até a Reforma.
69
Agostinho elaborou uma teologia da história que perpassou a história
das mentalidades da civilização cristã ocidental. A elaboração de uma história
da salvação pela pena agostiniana determinou o espírito de um tempo e
determinou as formas de dominação e conquistas no interior da cristandade.
Sua visão de Igreja como herdeira de um testamento, com sua expansão
predestinada por Deus, prestes a tomar posse de uma vasta propriedade,
colocou-o à beira de uma guerra de conquista
70
, que trouxe trágicas
conseqüências. Sua hermenêutica auctoritas e universal da Bíblia hebraica e
cristã o levaram à intuição de que participava de uma mais elevada
compreensão espiritual que o levou a cometer (ele e toda a cristandade) as
mais dementes ações em nome de uma verdade que acreditava possuir. Em
sua incontestável genialidade, capaz de contagiar uma civilização, foi também

68
Ibid, p.275
69
Ibid, p. 265
70
Ibid, p.273
35
implacável em sua demência e obsessão, sendo capaz de defender o que
julgava ser a verdade objetiva com notável desconhecimento de sua própria
agressividade.
71
Sua convicção religiosa o levou para os lugares mais sombrios
da alma humana, revelando os obscuros sentimentos de um homem que se
imagina tomado pela verdade e luz divina. Sua leitura canônica da Bíblia foi
fundamental para a elaboração de sua teologia da história, acreditando ser
protagonista na história da ação de Deus para com todos os homens. Peter
Brown afirma que na leitura de sua Bíblia,
Agostinho passou a ver os acontecimentos que o cercavam como
parte de um processo inelutável, previsto mil anos antes de Davi, nos
Salmos, e pelos profetas de Israel. A Igreja católica espalhara-se
pelo mundo inteiro: estava escrito; realizou-se. O mesmo se deu em
relação aos imperadores romanos. Também eles haviam aprendido a
“servir ao Senhor com tremor e medo”, eliminando os inimigos de
Sua Igreja.
72
O eixo “Deus, pecado, tradição e poder político” instalou-se como núcleo
da fé e da teologia de Agostinho. O Deus que se revela ao homem pecador
através da religião católica que possui integralmente o programa de salvação
funda um poder político temporal detentor de um único corpo de ritos
salvadores. O Deus de Agostinho usa sua igreja para corrigir e proclamar o seu
evangelho, usando como instrumentos os imperadores cristãos que chegaram
ao entendimento da verdade para punir as impiedades e estabelecer a
verdade. Justificando as atrocidades e o massacre de hereges e pagãos, o
santo bispo afirma ser a morte da alma do pecador infinitamente mais dolorosa
do que a dor do corpo do homem mortal que é corrigido pela pedagogia da fé.
A massa dos homens guarda seu coração nos olhos, não no
coração. Quando o sangue jorra da carne de um homem mortal, todo
aquele que o vê sente repulsa; mas, quando almas decaídas da paz
de Cristo morrem nesse sacrilégio de cisma ou heresia [...] – uma
morte mais aterradora e mais trágica, uma morte mais verdadeira
que qualquer outra, para dizê-lo com clareza –, zomba-se dela, por
força do hábito.
73
Aqui se revela o primeiro teórico da inquisição e das colonizações da
cristandade, que cometerá a mais violenta carnificina e o expurgo dos templos
pagãos na América Latina, no intuito de também salvar as almas decaídas da
paz de Cristo que se encontravam em completa ignorância da verdade. A fé de

71
Ibid, p.256
72
Ibid, p. 286.
73
AGOSTINHO apud BROWN, p. 287.
36
Agostinho fundamenta-se na autoridade e na tradição da Igreja. Sua
hermenêutica auctoritas da Bíblia como obra canônica fundamentada na
tradição é o centro de toda a sua atividade teológica. Sua atividade apologética
contra os intelectuais, hereges e pagãos possui lastros fincados em sua
hermenêutica canônica e autoritária.
Agustín convertido sabe que lo que le separa esencialmente de su
anterior maniqueísmo es la fe nova. La fe es fe em la autoridad: ‘fides
qua creditur quod intelligimus debemus rationi, quod credimus
auctoritati, porque creer es fiarse de la autoridad’. La fe no es una
opinión, pero tampoco una evidencia de la ‘fides quae creditur’.
Aunque en los primeros escritos de Agustín no se hable de la
tradición, el concepto de tradición es el que da vigor a toda la
argumentación agustiniana. La ‘regula christianitatis’ es la respuesta
a la ‘fides manichaea’, con uma diferecia esencial: los católicos
tienen una Iglesia que garantiza los textos.
74
Como centro de toda a sua atividade teológica, a Bíblia hebraica e cristã
é afirmada como propriedade da Igreja e legitimadora de um poder religioso
sacerdotal. Afirmando sua hermenêutica canônica, Agostinho afirma:
En cuanto a las Escrituras canônicas siga la autoridad de la mayoria
de las Iglesias católicas, entre las cuales sin duda se cuentan las que
merecieron tener Sillas Apostólicas y receber Cartas de los
apóstoles.
75
A hermenêutica de Agostinho das escrituras canônicas lança as bases
de toda cristandade ocidental. Sua lente autoritária e suas profundas intuições
fundaram uma antropologia cristã que contagiou toda a história do pensamento
cristão. Sua leitura de tradições hebraicas do “mito da queda” de Gênesis 3
elevou profundamente a lógica que determinaria o eixo político religioso do
ocidente: “Deus, pecado, tradição e poder político”. Seu pessimismo
antropológico, fundamento de toda a sua teologia, vinculado à sua
compreensão de Igreja, sacramentalizou na cristandade a lógica sacerdotal,
pecado-expiação e redenção, processando uma justificação das mais
absolutas barbaridades e atentados contra a vida humana, que acompanhou a
história religiosa e política do ocidente.
A obsessiva afirmação de Agostinho de um pecado original como reação
radical às enérgicas discussões com seus adversários pelaginanos o armou de
um espírito bélico em defesa da fé verdadeira que foi fundamental na

74
MADRID, Obras completas..., p. 11.
75
Ibid, p.106
37
elaboração de sua teologia da história. Contra seus adversários afirma que
devem ser reunidos num lugar de penitência e condenados.
76
O que resta a fazer é que cada católico, de acordo com a capacidade
que recebe de Deus, refute essa epidemia e resista-lhe o espírito
prevenido. Quando se virem necessidade de retrucar, sem espírito de
controvérsia, são obrigados a lutar pela verdade, não há outro
caminho que instruir os ignorantes e assim redunde em utilidade para
a Igreja o que o inimigo tramou para sua ruína, conforme o que diz o
Apóstolo: É preciso que haja mesmo cisões entre vós, a fim de se
que se tornem manifestos entre vós aqueles que são comprovados.
77
A intuição do pecado original e a compreensão e defesa da tradição e
autoridade da Igreja é o lócus hermenêutico de toda reflexão de Agostinho.
Suas discussões contra seus adversários eram entendidas como inspiradas no
ideal de autoridade paulina extraída de sua leitura das escrituras, no
compromisso de se impor constantemente ao seu rebanho e a seus inimigos,
estava movido por um pavor objetivo das escrituras.
78
Agostinho estava
possesso pelo demônio de sua verdade. Nas palavras de Peter Brown:
Agostinho acreditava que a Igreja podia tornar-se co-extensiva à
sociedade humana como um todo: podia absorver, transformar e
aperfeiçoar os laços existentes das relações humanas. Ele tinha
profunda preocupação com a idéia de unidade fundamental da raça
humana. Deus fizera todos os homens a partir de um só, Adão, para
mostrar que “nada é mais dilacerado pela discórdia do que esta raça
humana, em seu estado falível, conquanto nada tenha sido tão
claramente destinado por seu Criador a viver em conjunto”. A idéia
de parentesco comum em Adão foi o molde em que Agostinho, na
meia idade, verteu sua preocupação contínua com a amizade, com
as relações verdadeiras entre os seres humanos. O sentimento
pungente da necessidade de recuperar a união perdida talvez seja o
traço mais característico da mística agostiniana da Igreja católica. A
igreja católica era um microcosmo da união restabelecida da raça
humana.
79
São carregadas de uma beleza salutar as intuições agostinianas da
unidade da raça humana. Revelam uma sensibilidade que o mestre de Hipona
deixou percorrer em grande número dos seus escritos. Mas seu encontro com
a verdade não o deixou perceber a potencialidade do seu pensamento. A
verdade para Agostinho estava somente contida na ecclesia catholica mater
christianorum verissima, a verdade era autoridade, da qual era legítimo
representante. Sua Igreja vivia a plenitude dos tempos, onde os grandes do
mundo se encontravam com a verdade, os imperadores se tornavam cristãos,

76
AGOSTINHO, A graça, p. 289.
77
Ibid, p.289
78
BROWN, p.255
79
Ibid, p.274
38
sua igreja estava pronta para dominar, transformar e aperfeiçoar o mundo
inteiro e levar a verdade aos cativos, nos quatro cantos da terra. Agostinho lia o
testamento do seu Deus, o de que Cristo e sua Igreja deviam herdar as
extremidades da terra como possessão.
80
Sua visão da Igreja a havia colocado à beira de uma guerra de
conquista. No pensamento Agostiniano, era possível ver sólidos
laços que se estendiam dessa instituição por toda a sociedade
romana. Os bispos já governavam grandes comunidades, e
Agostinho havia praticamente admitido que tais comunidades só
responderiam a uma certa dose de severidade. No fim do século IV,
era fácil um ideal desse tipo de autoridade ativa ultrapassar as
fronteiras das comunidades católicas propriamente ditas. Tentáculos
invisíveis – os sacramentos do batismo e da ordenação ministrados
no cisma pelos donatistas – já ligavam os cristãos remanescentes da
África a seu verdadeiro senhor, a Igreja católica.
81
O pensamento de Agostinho lançou as bases da cristandade ocidental.
Sua obra teológica determinou os lastros teóricos de uma teocracia que
perpassará o pensamento do homem medieval e moderno. Sua monumental
obra A Cidade de Deus forjou grande parte da mentalidade cristã ocidental e
talvez se possa afirmar que a sua teologia da história tenha determinado os
rumos do Ocidente. Impregnada de sua leitura dos textos sagrados da tradição
judaico cristã, sua obra potencializou o imaginário e as abstrações teológicas
do Ocidente cristão. A crença e criação de um mundo visível e outro invisível,
constituído e criado por Deus, é o cerne da teologia de Agostinho. Neste
sentido, cidade celeste e cidade terrestre estão profundamente imbricadas a
partir do mistério da Igreja constituída pela autoridade dos apóstolos para
administração dos sacramentos. Para o historiador Jean Delumeau:
A importância de A cidade de Deus na cultura ocidental foi tanta que
se pode mesmo detectar a influência desse livro essencial em obras
que remetem a ele de maneira explicita. Penso aqui na Via veriraris
[O caminho da verdade], um dos afrescos que Andrea de Firenze
pintou em 1366-8 nas paredes da capela dos Espanhóis na Santa
Maria Novella, de Florença, em que se lê em filigrana os temas das
duas cidades. Na parte superior da composição, o Cristo em glória,
os anjos e os santos acolhem os eleitos que chegam à porta do
paraíso; embaixo, cidade celeste e cidade terrestre estão imbricadas,
como queria o esquema agostiniano. A Igreja é simbolizada pela
catedral de Florença, então em projeto, pelo papa, bispos, clero e,
especialmente, dominicanos, a quem o edifício pertencia. No afresco,
os frades pregadores esforçam-se, por sua autoridade e seu
ensinamento, em desviar os humanos a uma só vez dos vãos
prazeres terrestres e da heresia. O caminho do paraíso passa pela

80
Ibid, p.273
81
Ibid, p.273
39
Igreja: essa era realmente a mensagem maior do livro de santo
Agostinho.
82
Toda estrutura teológica do pensamento de Agostinho fundamenta-se
em um profundo pessimismo antropológico. Seu pensamento estruturou grande
parte da antropologia teológica ocidental e suas brilhantes intuições inspiraram
genialidades da estatura de Blaise Pascal e Sigmund Freud. O ponto
nevrálgico do castelo teológico de Agostinho encontra-se no seu
reconhecimento de um pecado original. Absorvido pela sua leitura da narrativa
judaico-cristã de Gênesis 3, Agostinho coloca todo foco do seu pensamento
neste acontecimento, que – para ele – foi fundamental na história do homem.
Sua reflexão contagiou o pensamento de toda civilização cristã, “que colocou a
queda original no centro de suas preocupações e a compreendeu como uma
catástrofe que marcou o início da história”.
83
Este é o centro de toda teológica
cristã ocidental clássica.
No fim do século 2 e durante o século 3, Irineu, Tertuliano e
Orígenes, cada um a sua maneira, interrogam-se sobre o pecado de
Adão, que vai se tornar a preocupação essencial de Santo Agostinho.
Provável criador da expressão “pecado original”, o Bispo de Hipona
faz ao mesmo tempo uma sistematização e uma dramatização da
doutrina a esse respeito. A formulação que ele propõe contra Pelágio
e seus adeptos irá doravante exercer um papel decisivo na história –
e na vida cotidiana – da cristandade latina.
84
Aqui é fundamental perceber as raízes de uma teocracia política no
pensamento de Agostinho que, através do eixo “pecado-expiação e redenção”,
estabelecerá a tríade que norteará as mentalidades e as disputas de poder no
ocidente: “monoteísmo, sacerdócio e poder político”. Sua doutrina possui um
fundamental arranjo social que eleva consideravelmente o poder sacerdotal,
inaugurando na Roma cristã uma nova relação de poder que confere a Igreja
oficial e aos seus sacerdotes um elevadíssimo status de controle político.
Podemos certamente dizer, julgando as coisas a partir da noção de
“poder”, que a dramatização do pecado e de suas conseqüências
reforçou a autoridade clerical. O confessor tornou-se um personagem
insubstituível.
85

82
DELUMEAU, O que sobrou do paraíso..., p. 38.
83
DELUMEAU, O pecado e o medo..., p.464. Vol. I. De acordo com Delumeau, toda reflexão
religiosa de Pascal constrói-se a partir do pecado original, “porque sem isso”, perguntava
Pascal, “o que se dirá que é o homem? todo o seu estado depende desse ponto imperceptível”.
P.472. Uma belíssima introdução a antropologia de Pascal e sua relação com Agostinho, ver:
PONDÉ, O Homem Insuficiente...
84
Ibid, p. 465
85
Ibid, p.12
40
Fundamentando-se em tradições sacerdotais presentes em narrativas da
Bíblia hebraica, o bispo de Hipona constrói uma elaborada teologia da história
com um tom fundamentalmente político e sacerdotal. Para Agostinho, o
caminho do paraíso passa pela Igreja, a ecclesia catholica mater christianorum
verissima. Sua noção de história, fundamentada na existência de uma cidade
de Deus e uma cidade dos homens teve significativas conseqüências políticas.
Segundo Goudsblom,
a república e o Antigo Império romano constituíam entidades políticas
numa sociedade militar e agrária, que notavelmente, não possuía
uma classe sacerdotal forte. Não havia nada, na estrutura social
republicana e do Antigo Império, comparável à organização dos
administradores eclesiásticos emergentes no tempo de Agostinho.
Na falta de um forte estabelecimento de sacerdotes, uma onda de
secularização do pensamento pôde manifestar-se na era mais
primitiva, sendo novamente varrida a partir do fim do século IV a.D.
por um processo de sacralização, sob a influência da triunfante Igreja
cristã.
86
A cidade de Deus de Agostinho possui fortes implicações políticas. Sua
obra é escrita após o saque de Roma pelos visigodos, no ano de 410. Aqui
toda sua percepção da história é forjada a partir da sua imagem e percepção
de Deus. Para Agostinho é Deus quem conduz a história humana.
Grande parte da A Cidade de Deus constitui uma revisão completa
da história da Grécia e de Roma. Todos os conhecidos episódios são
revisados, mas aparecem num novo contexto, juntos com a história
de Israel, do modo como está registrado nos livros da tradição
judaico-cristã. Assim como Confissões descrevia a vida do próprio
Agostinho, no plano de uma psicologia moralizante do
desenvolvimento, A Cidade de Deus, resumia, numa síntese
teológica, a história de toda humanidade conhecida
87
.
Agostinho elabora uma teologia da história que vai ser normativa no
desenvolvimento de toda a cristandade ocidental. O cristianismo, personificado
pela Igreja, forjara as mentalidades daqueles participantes da cidade de Deus,
elaborando um expansionismo universal de um Deus que reinará sobre todos
os povos. A “cidade de Deus” de Agostinho tornou-se um texto oficial no mundo
em expansão da cristandade,
88
contribuindo na construção de mentalidades e
na formação de um ethos cultural exclusivista e expansionista da civilização
cristã ocidental.

86
GOUDSBLOM, A religião…, p.34
87
Ibid, p. 34
88
Ibid, p. 33.
41
As missões do século XVI encontram na grande tradição e na obra de
Santo Agostinho – manancial de espiritualidade da ortodoxia cristã – a síntese
teológica e política que edificou e inspirou as grandes investidas missionárias
nas índias. Para J. Delumeau, “o pessimismo agostiniano” e o grande debate
sobre o pecado original atingiram “sua mais forte coloração e sua mais ampla
audiência nos séculos XV e XVII na Europa” – período das colonizações – e
“tornou-se uma das preocupações principais da civilização ocidental”.
89
Passando rapidamente por uma das conseqüências mais trágicas dessa
teologia, J. Delumeau afirma que “até os índios da América foram batizados às
pressas para que na morte não fossem encontrar seus ancestrais no inferno”.
90
A civilização cristã ocidental foi toda ela edificada a partir da presença de
um Deus universal, exclusivista e expansionista da tradição cristã – que tem
sua síntese em Agostinho –, que no alargar de sua influência, passa de Deus
dos hebreus a Deus dos católicos, e a custos de muitos crimes e sangue
derramado, passará também a ser Deus dos povos latino-americanos.
1.1.4 A Cristandade Medieval e as Colonizações: a Formação de uma
Identidade
Ora, a Europa, acho, surgiu exatamente quando o Império
romano desmoronou.
91
(Marc Bloch)
A pergunta do históriador L. Febvre, que se indaga, “como, por quem,
por que se fez uma Europa, um mundo europeu? Às custas e com a ajuda de
que mundo anterior?” é de fundamental importância para percebermos a
gênese do espírito europeu das colonizações.
Com a queda do império romano no século V, o Ocidente perde toda sua
identidade e unidade política. Arruínam-se as instituições romanas, seu
organismo político se desagrega e desmorona diante das severas invasões dos
povos bárbaros. Rompem-se todas as barreiras políticas impostas pelo forte
Estado Romano e a unidade se desintegra, trazendo à cena profundas
contradições internas que eram amortizadas por uma unidade que se
consolidava a partir de uma armadura sólida de instituições políticas, militares,

89
DELUMEAU, O pecado e o medo..., p. 468
90
Ibid, p.468.
91
BLOCH apud FEBVRE, A Europa...,
42
fiscais e administrativas.
92
Somente no século IX, com uma civilização
completamente impregnada dos valores culturais das tribos germânicas que
saquearam Roma, o Ocidente, através das investidas de Carlos Magno,
ensaiará novamente uma unidade política. Essa unidade política terá sua
expressão no Império Carolíngio, que dará as bases políticas do Sacro Império
Romano Germânico. Para L. Febvre:
É a consagração política de uma profunda mudança de estruturas do
mundo do Ocidente, a integração oficial, reconhecida, pública, do
elemento nórdico na história do ocidente, e não mais como elemento
secundário e acessório, mas como um elemento fundamental e
determinante.
93
O Império Carolíngio ofereceu o primeiro formato válido para aquilo que
chamamos de Europa, a primeira forma política de um novo mundo que se
estende sobre todas as regiões que reconhecem no papa de Roma o vigário de
Cristo, o chefe da verdadeira Igreja.
94
Sobre a cabeça de Carlos Magno, o papa
de Roma colocou uma coroa que o sagrou imperador romano de um império
que não era romano,
95
identificando a fé cristã com o Império, que mais uma
vez oferecerá os lastros políticos da cristandade. Fora deste império, de acordo
com L. Febvre:
estão os infiéis, a gente de Maomé. Fora delas estão os pagãos,
esses eslavos que invadiram, num grande impulso, fazendo refluir os
germanos e também os finlandeses, que invadiram a grande planície
da Europa do Norte até o Elba, e que agora os súditos de Carlos
Magno e seus soldados se esforçam para rechaçar para o leste. Fora
delas estão os gregos, os bizantinos, os ortodoxos que, cada vez
mais, se agrupam em torno do patriarca de Constantinopla e o
opõem, como um papa do mundo grego, ao papa da romanidade. E
eis que explica, precisamente, a surpresa do ano 800, a coroa
imperial colocada pelo papa Leão na cabeça do rei dos francos.
96
Precursor da civilização européia, o Império Carolíngio não conseguiu
manter os lastros de unidade política do Ocidente europeu, pois mal a
civilização começou a se formar no quadro carolíngio, o império se rompe,
esmigalhando-se assim a Europa carolíngia.
97
Rompe-se assim toda unidade
política que começava a dar os fundamentos de uma civilização européia
unificada, experimentando uma significativa ausência de um substrato sócio-

92
FEBVRE, A Europa..., p. 81.
93
Ibid, p.90
94
Ibid, p.105
95
Ibid, p.116
96
Ibid, p.105
97
Ibid, p.93
43
político que pudesse edificar as suas bases sociais. Destituída de bases
políticas e sociais, a nascente civilização européia encontrou na tradição cristã
clássica um profundo lastro de unidade, e numa total dependência e
vinculação, configurou-se a partir dos pilares hierárquicos da cristandade.
Para não perecer, a civilização recorreu à religião, esse abrigo que o
político recusava. Ela se colocou inteiramente sob a proteção da
Igreja, tanto mais prestigiosa, tanto mais sedutora quanto, diante
dela, a sociedade laica nada edificava, nada de grande, nada que
pudesse contar, nada que pudesse, de longe, rivalizar com a Igreja
de Roma, essa Igreja que, antes do século 11, pode se dizer ainda a
Igreja de tudo o que tinha sido, outrora, o Império Romano, exceto as
partes já islamizadas, mas que desde o século 11, em seguida ao
cisma, se torna unicamente a Igreja do Ocidente
98
.
Neste sentindo, falar de Europa é falar de cristandade. A gênese de sua
identidade se encontra em sua total dependência de um ethos cultural e
religioso que se formou a partir da apropriação da tradição do cristianismo
clássico. A partir de uma história das mentalidades, podemos afirmar que a
Europa como um todo tem sua formação e modo de existir a partir da realidade
e presença do Deus da tradição cristã clássica. É toda edificada a partir desta
realidade. Com a total desestrutura do Império Carolíngio, a Europa se forma e
se identifica como tal a partir de uma fé comum, o cristianismo, vivido e
representado a partir de sua forma clássica, hierárquica e dogmática, no seio
de uma cristandade.
Na medida em que o império carolíngio é a Europa, eis que a Europa
chega ao fundo do abismo e não está mais unida, que não se sente
mais unida senão pela comunidade de suas crenças religiosas ou,
mais precisamente ainda, senão pela armadura dos bispados e dos
arcebispados que conformam suas diversas províncias.
99
Podemos afirmar, com relativa segurança, que a identidade européia,
sentida e vivida por grande parte de sua civilização, nasce como uma
abstração religiosa, uma teocracia política, que tem sua formatação no seio da
tradição da cristandade. Sua identidade é caracteristicamente vinculada à
religiosidade cristã proclamadora de um monoteísmo político. Não há uma
unidade sócio-cultural, política e econômica de raízes laicas, por isso “não
podia ter um rosto, vida, realidade enquanto não era nada, precisamente nada
além de uma forma, uma armação política sem substância econômica

98
Ibid, p.93
99
Ibid, p.151
44
verdadeira, um modo de falar e não um modo de existir”.
100
A Europa, no
século XIII de sua formação, não é Europa; é cristandade, se estrutura
totalmente em sua vinculação com a tradição.
Uma Europa que não tem unidade política certamente; uma Europa
cuja unidade vem toda de sua fé, de sua religião, cujos sinais e
símbolos ela apresenta ao estrangeiro, ao infiel, sobre as faces
brilhantes de suas moedas de ouro, o cristo benzedor do ducado, são
marcos de Veneza, são João Batista de Florença, santo Ambrosio de
Milão; uma Europa que é cristandade e que ela própria não se
denomina Europa.
101
Assim, a Europa tem na sua religião o núcleo central que dá as razoes
de sua superioridade. L. Febvre demonstra essa clara pertença ao verdadeiro
Deus e à verdadeira religião em sua analise das memórias do intelectual
europeu Philippe Commynes.
Estamos diante, realmente, de uma Europa e de um europeu ao
mesmo tempo, de um europeu orgulhoso de sê-lo, de um europeu
que considera que ser europeu é uma superioridade que permite a
um homem inteligente e culto desprezar tudo o que não é europeu,
tratar do alto e de longe as partes da Ásia e da África, como ele diz.
Por que ele é cristão? E o cristianismo é a verdadeira religião, a
verdade de Deus? Enquanto que os homens da Ásia e os homens da
África são infiéis ou pagãos, os sectários de Maomé, isto é, do
diabo? Sim, sem dúvida. Commynes é cristão. E Commynes
considera que por isso mesmo detém a verdade religiosa, que ele
conserva para si o verdadeiro Deus. Mas o orgulho de Commynes
por ser europeu é fazer parte de uma grande comunidade que se
basta a si mesma, e que de todas as comunidades humanas é a
mais invejável, a mais nobre, a mais civilizada, esse orgulho se apóia
em outra coisa. Esse orgulho é um orgulho ocidental (Ocidente
opondo-se ao Oriente). Esse orgulho dá provas de quê? De um
progresso decisivo realizado pela Europa, pela Europa que se
considera daí em diante superior a Ásia, a essa Ásia que durante
tanto tempo esmagou a barbárie com o peso de sua superioridade,
de seu poder, de sua cultura e de sua irradiação.
102
Podemos perceber esse orgulho e sentimento de superioridade ligado a
tradição cristã já em Agostinho. Sua percepção da realidade advinda de sua
intuição de um Deus universal que conduz a realidade humana fez com que
identificasse a civilização e o progresso ético com o advento da fé cristã.
Respondendo aos que acusam o cristianismo de ser o responsável pelo
enfraquecimento e fragmentação do Império Romano, o Bispo de Hipona diz
ser o cristianismo o único responsável pela civilização. Comentando sobre os

100
Ibid, p.156
101
Ibid, p.156
102
Ibid, p.151
45
elevados padrões éticos dos invasores, os quais os romanos consideravam
bárbaros, afirma:
Toda a devastação, carnificina, piilhagem, conflagração e toda
angústia que acompanhou o recente desastre de Roma estavam de
acordo com a pratica geral de guerra. Mas houve algo que
estabeleceu um novo costume, algo que mudou todo o cenário; a
selvageria dos bárbaros assumiu um tal aspecto de bondade que as
maiores basílicas foram escolhidas e reservadas para acolher as
pessoas que deveriam ser poupadas pelo inimigo. Ninguém deveria
ser violentamente usado ali, nem tirado ali. Muitos foram levados
para lá para libertação por inimigos misericordiosos; ninguém deveria
ser levado de lá para o cativeiro, mesmo por inimigos cruéis. Isto
deve ser atribuído ao nome de Cristo e à influência do cristianismo.
Quem não perceber isso é cego; quem perceber e não exaltar é
ingrato; quem tentar impedir que outro o exalte é louco.
103

Pode-se perceber aqui o início de uma associação entre cristianismo e
civilização que permeou a mentalidade de toda cristandade européia e cumpriu
determinante papel na ideologia das colonizações. Contrapondo-se às
diversidades de culturas entendidas como pagãs, a cristandade ocidental
européia proclamou a si mesmo como única possuidora de uma religião e
cultura civilizadas. Comentando a obra A Cidade de Deus de Agostinho, J
Goudsblom, afirma:
A Cidade de Deus é um livro admirável. Em virtude de sua erudição e
de seu argumento lúcido e habilidoso, tornou-se um texto oficial no
mundo em expansão da cristandade, ajudando a formar uma nova
imagem mediante a qual a civilização em desenvolvimento era
conduzida pela mão de Deus. Se as gerações posteriores se
consideravam mais cultas e de modos e costumes mais refinados
que seus ancestrais, podiam declarar, humildemente, ter devido esse
avanço especialmente à sua religião, ao cristianismo personificado
pela Igreja e por seus representantes, o clero.
104
As origens religiosas da Europa são demonstradas na sua total
dependência do cabedal doutrinário e teórico dos primeiros pais da Igreja,
sintetizado na tradição teológica de santo Agostinho, que se alastrou e foi
assimilado como doutrina canônica em toda idade média. O núcleo teórico
dessa tradição se sedimentou e serviu como lastro que orientou uma visão de
mundo do homem europeu e possibilitou uma unidade plástica, sem substância
real e econômica, completamente abstrata, nas palavras de Febvre, “um modo
de falar”, que se orienta pela fé fundada na tradição, nas abstrações

103
AGOSTINHO apud GOUDSBLOM, p.34
104
GOUDSBLOM, p.33
46
metafísicas dos primeiros pais, os pais espirituais do ocidente cristão. Aqui é
importante ouvir outra vez o históriador francês:
Eu chamo de Europa, simplesmente, uma unidade histórica, uma
incontestável, inegável, unidade histórica, uma unidade que se
construiu numa data fixa, uma unidade recente, uma unidade
histórica que aparece na história sabemos exatamente quando, uma
vez que a Europa nesse sentido, a Europa tal qual a definiremos, tal
como a estudamos, é uma criação da Idade média; uma unidade
histórica feita de diversidades, de pedaços, de entulhos arrancados
de unidades históricas anteriores.
105
Uma unidade histórica criada na idade média e edificada sob o núcleo
central da tradição, qual seja, o dogma da cristandade ocidental clássica,
sistematizado e pressuposto a partir do eixo de poder que perpassa a história
do Ocidente: Deus, pecado, tradição e poder político. Em uma palavra
definiríamos o que está no âmago do ser europeu: a cristandade. O sentimento
de pertença a essa tradição define a estrutura do ser e forma o ethos central de
toda a civilização européia. Os franceses, italianos, alemães, espanhóis,
portugueses, são conscientes de sua pertença à sua pequena pátria, mas
antes disso, são muito mais cristãos, todos eles convictos de sua pertença A
Cidade de Deus. Só se entendem como cidadãos de suas pequenas pátrias
porque foram tomados pela grandeza da tradição cristã.
Todos os homens do Ocidente bebem da mesma atmosfera do
cristianismo, todos foram tocados, levados antes de tudo pelas
grandes correntes que atravessam incessantemente a cristandade e
que incessantemente as engendram fora das fronteiras [...] A ação
poderosa de uma organização cristã, de um proselitismo cristão, de
uma devoção cristã, de um pensamento e de uma filosofia cristãs, e
até uma política cristã interna ao mundo do Ocidente (Europa e
papado) ou externa a esse mundo e levando-o a conflitos com o
Oriente ([ver as cruzadas]), durante toda a Idade Média, a ação
poderosa e múltipla de um cristianismo de fato totalitário entravou,
numa certa medida, a formação de pátrias nacionais sólidas.
106
Há um princípio teocrático e universalista que foi forjado no seio de toda
a tradição cristã clássica, com lastros fincados na leitura canônica das
escrituras e em uma hermenêutica canônica e universal presente nos primeiros
pais que tem sua força e expressão na obra de Santo Agostinho. O fundamento
teocrático que inspirou teólogos da idade média a defenderem a dominação
universal do papa e o expansionismo da Igreja se tornou o núcleo central da

105
FEBVRE, Europa..., p.159
106
Ibid, p.40-41
47
cristandade e cumpriu um papel fundamental no espírito das missões. Segundo
Hoffner,
a atitude do ocidente para com o problema dos infiéis e, com isso,
para com a questão colonial, só poderá ser compreendida, tomando-
se como ponto de partida esse universalismo.
107
Existe na Europa cristã um forte ideal de um “Orbis christianus”, que
perpassa toda a mentalidade ocidental,
108
um movimento espiritual que se
constitui em uma monarquia universal que tem em sua arquitetura a inspiração
sacerdotal que oferece um forte arranjo de poder social, uma hierarquia
religiosa que determina os destinos e as mentalidades da grande maioria dos
homens e mulheres no Ocidente:
Apesar de todos os recuos de fronteira, a cristandade foi e continuou
sendo o Império Romano, “o povo romano”. Essa convicção
continuou viva muito depois da Idade Média, pois mesmo o arguto
Thomasio Campanella (1568-1639), no início do século XVII ainda,
julgava que a “maioria dos católicos se inclinava para um Império
universal”. Tão forte era a influência dessa concepção na Idade
Média, mesmo fora e além das fronteiras, que os povos islâmicos
“como comprovam as fontes árabes” viam nas cruzadas, não “uma
questão cristã em geral, mas algo com caráter nacional de uma única
e grande família cristã das nações”. Realmente, no medievo o fosso
entre crentes e infiéis era mais largo do que, por exemplo, a oposição
entre gregos e bárbaros, ou entre escravos e livres na antiguidade.
Apesar dessa forte união íntima, o Ocidente cristão não pautou por
uma suficiente modéstia. “Orbis christianus” não se limitava em ser
defendido como algo próprio, e com tenacidade, mas, sob o ponto de
vista religioso e político, transformando-se em senha capaz de
conquistar o mundo. Por esse motivo a propagação do Reino de
Cristo era imposta aos imperadores e reis, como dever sagrado,
através do solene ritual litúrgico.
109
Esse universalismo cristão medieval impulsionou severamente as
colonizações, armando o espírito dos servus Dei, os soldados de cristo que se
asseveraram contra os pagãos. Para Agostinho, hereges, judeus e pagãos,
eram obstáculos à unidade cristã,
110
idéia que vai ser intensamente
potencializada na Idade Média e vai caracterizar a mentalidade dos escritores
pontifícios e imperiais que em seus escritos negarão o direito a existência de

107
HOFFNER, p.39
108
Ibid, p.46
109
Ibid, p.21
110
Ibid, p.286
48
qualquer estado pagão.
111
J. Höffner, escrevendo acerca de Egidio Romano
(1316), um dos vários escritores pontifícios da Idade Média, afirma:
Foi certamente Egídio Romano (1316), o mais total “agostinianista”
do “orbis christianus”, quem produziu a declaração mais radical sobre
os Estados pagãos que, todos, estariam sujeitos à Igreja. Foi
induzido a essa opinião por certas formulações de Agostinho. “Entre
os infiéis, eis uma de suas opiniões, não há nem reino nem realeza
em sentido próprio”. Pois cada infiel vive em inimizade com Deus e,
devido isto, retém injustamente tudo o que Deus lhe concedeu. “Ora,
recebemos de Deus os bens terrenos, a propriedade e o poder, pois
não há poder que não proceda de Deus”. Por conseguinte, ninguém
é “príncipe digno e autentico” que “não tenha renascido
espiritualmente pela Igreja e, caso haja cometido pecado mortal, não
tenha sido absolvido pelo sacramento da Igreja”. Em uma palavra:
“Depois da paixão de Cristo, não é possível haver verdadeiro Estado,
no qual a Santa madre Igreja não seja venerada e no qual Cristo não
domine como fundador e chefe”. Os pagãos não dispõem nem
mesmo de um direito particular de propriedade. Pagão algum é,
justamente proprietário “de sua casa, de seu campo ou de sua vinha
ou de outra coisa qualquer”. Pois, quem recusa a sujeitar-se a Deus,
também é justo que nada lhe seja sujeito. Vários empréstimos literais
da “Cidade de Deus” revelam quão forte é a dependência de Egídio
Romano de Santo Agostinho.
112
Entre os grandes estandartes desse Estado teocrático e universal
instituído na tradição pela cristandade está o Decreto Graciano (1139-1142),
que é considerado a mais importante compilação do direito de guerra medieval
cristão.
113
Nele se expressa claramente a história dos efeitos de uma tradição
na mentalidade religiosa e política de uma civilização. O Decreto Graciano
apropria-se de toda “ética bélica das tradições do Antigo Testamento, aduzindo
o testemunho dos padres da Igreja e dos papas”. Neste decreto, “percebe-se
quão decisivo foi o influxo de Agostinho no direito bélico da Idade Média”.
114
O
Decreto é totalmente assimilado pela idéia de uma “guerra sagrada”, realizada
sobre as “ordenanças de Deus”.
Em muitos casos o próprio Deus ordenou que se combatesse, no
Antigo Testamento. Josué e os Juizes, Saul e Davi travaram a
“guerra sagrada”, por ordem divina, para conquistar a terra
prometida. Do mesmo modo os Macabeus defenderam a fé pelas
armas. Para esclarecê-lo Graciano cita a clássica explicação de
Agostinho: “Sem dúvida é justa” a guerra “que Deus ordena”, pois em
Deus não há maldade; ele sabe o que cada um mereceu. Portanto,
capitães e povo não são propriamente as causas ou os causadores
de uma guerra assim, mas simples instrumentos de Deus. Além
dessa argumentação teológica, Graciano aduz outra emprestada ao

111
Ibid,p.60
112
Ibid, p.61
113
Ibid, p.65
114
Ibid, p.66
49
direito natural que, de novo, foi procurada em Santo Agostinho: a
guerra dos israelitas contra os amorreus foi justa, “porquanto a eles
lhes foi negada uma inofensiva passagem, que lhe cabia, conforme o
postulava o direito e a conveniência da sociedade humana.
115
A instrumentalização de narrativas das sagradas escrituras judaico-
cristãs demonstra que a Bíblia, lida e entendida dentro de uma estrutura,
religiosa e canônica, pode ser, como afirmou Mieke Bal, “o mais perigoso de
todos os livros, porque é dotado do poder de matar”.
116
E matou. Lida e
instrumentalizada por uma hermenêutica autoritária e universal, sedimentou um
universo político de dominação que perpassou a história das mentalidades no
Ocidente, justificando e legitimando as maiores demências e atrocidades que
uma civilização cega por sua verdade religiosa foi capaz de cometer.
Fundamentados em sua hermenêutica das escrituras, os pais espirituais do
Ocidente elaboraram uma sedimentada narrativa histórico-teológica que
perpassou e deu lastros para todas as ações militares e políticas da
cristandade ocidental.
O papel político dessa cristandade definiu os caminhos do Ocidente, e o
fez a partir de uma política interna que desenhou os insuperáveis limítes do
cristianismo Ocidental, que se caracterizou por um forte proselitismo
desempenhado na ação de numerosos grupos cristãos, como entre os
enumeráveis exemplos, os padres militares da Inácio de Loyola, configurados e
formados pela companhia de Jesus. A pátria do Ocidente foi e de alguma forma
continua sendo a cristandade, fundada e estabelecida por um cristianismo
político intransigente e totalitário, que tem no âmago de sua formação o espírito
bélico que arma, inspira e carrega o espírito das missões. Essas missões que,
parafraseando L. Febvre
117
foram sem nenhuma dúvida um belo negócio. Um
belo negócio que a fé ofereceu à cupidez, que o desinteresse ofereceu ao
dinheiro, que a religião ofereceu à política, justificando uma historia de
barbárie, uma carnificina que superou todos os holocaustos cometidos pelo
homo demens.

115
Ibid, p.66
116
CASTELLI, PHILLIPS, SCHWARTZ, A Bíblia…,p. 273
117
FEBVRE, Europa..., p.88
50
1.2 A CRUZ E O HOLOCAUSTO: COLONIZAÇÃO DO CORPO E DO
IMAGINÁRIO INDIGENA E AFRICANO: A FORMAÇÃO DA
IDENTIDADE LATINO-AMERICANA
De repente, de um só golpe, acabam-se os gritos e os tambores.
Homens e deuses foram derrotados. Mortos os deuses, morreu o
tempo. Mortos os homens, a cidade morreu. Morreu em sua lei esta
cidade de guerra, a dos salgueiros brancos e brancos juncos. Já não
virão para render-lhe tributo, em barcas de nevoa, os príncipes
vencidos de todas as comarcas. Reina um silêncio que atordoa. E
chove. O céu relampagueia e troa durante toda a noite chove. Se
empilha o ouro em grandes cestas. Ouro dos escudos e das insígnias
de guerra, ouro das máscaras dos deuses, penduricalhos de lábios e
orelhas. Pesa-se o ouro e cotizam-se os prisioneiros. De um pobre é
o preço, apenas, dois punhados de milho [...] Os soldados armam
rodas de dados e baralhos. O fogo vai queimando as plantas dos pés
do imperador Cuauhtémoc, untadas de azeite, enquanto o mundo
está calado e chove
118
.
A colonização espanhola e portuguesa das Américas tem lastros
fincados numa tradição religiosa e política de longa duração
119
, responsável por
um ethos religioso e cultural que perpassou toda a mentalidade do homem
cristão europeu. Esse imaginário religioso ocidental foi responsável pelo
espírito das missões, que com uma característica intrinsecamente bélica,
exterminou a totalidade de uma civilização indígena e africana nas Américas.
Respirando ainda os ares das cruzadas contra os árabes, na conquista da terra
santa, os cristãos ibéricos chegaram à América dispostos a conquistar como
soldados de Jesus, milhares de almas que se distavam da Cidade de Deus. O
espírito das missões fazia com que os soldados da conquista estivessem
convictos de que estavam lutando por Cristo, peleando pelo aumento da fé com
a gente Bárbara, plantando felizes augúrios da religião cristã e fazendo triunfar
universalmente a bandeira da cruz.
120
Na colonização portuguesa e espanhola se revelaram as estruturas da
cristandade européia impregnada nas mentalidades dos aventureiros
colonizadores. Um caráter proeminente de elevação espiritual era o mote que
impulsionava os levantes missionários, numa “certeza de posse da verdadeira

118
GALEANO, p.99
119
Para o conceito de longa duração na história, ver. Braudel, O mediterrâneo...
120
DREHER, A Bíblia..., p.82
51
vida espiritual que gerou em muitos homens aquele cruzadismo difuso que se
sublimava nas missões e se norteara muitas vezes para o Brasil como para
África ou para o Oriente”.
121
Nesse processo de dominação de consciências e
colonização de mentalidades, faz-se necessário perceber a intensidade em que
o homem europeu do século XVI fora possuído pelas idéias religiosas.
Portugal nascera da luta contra o mulçumano. A reconquista é a
subestrutura de sua história. O significado religioso do
empreendimento avivou o Cristianismo nas etnias hispano-
visigóticas, primeiros elementos da nacionalidade portuguesa. Um
catolicismo belicoso que se mantinha vivo, incorporando-se à própria
visão da ação. No século XVI predispunha a participação do país na
Reforma da Igreja Católica, garantindo uma peculiar receptividade.
Retomada da militância, reencontro com a história dos antepassados.
Nesta época Portugal dividiu com a Espanha a liderança na defesa
da ortodoxia
122
Com lastros políticos e teológicos, Espanha e Portugal nutriam-se da
grande tradição da ortodoxia cristã clássica que reproduziu um continuum
hierárquico sacerdotal, possuindo o espírito de todos os homens, que tomados
pela força de um imaginário religioso, se sentiam participantes de um mundo
do bem, identificado pelo Deus da cristandade, que lutava contra as forças do
mal, os agentes do demônio, infiéis, bárbaros e inimigos da santa fé católica.
123
Produto dessa sociedade cristã militante, o homem do século XVI
tivera plasmado no subconsciente, com maior ou menor intensidade,
uma série de imagens e conceitos. Entre eles, a consciência de um
mundo visível e outro invisível, constituído por Deus e por ele
governado. Nesse mundo encaixava-se o homem – projeção da
vontade criadora de Deus. Homem dotado de espírito e de liberdade,
capaz de decaimento, como também de retorno ao criador. Homem
consciente de que o caminho para a aproximação a Deus era
escalonado em sucessivos degraus da perfeição da virtude. Opondo-
se a Ele ficava a idéia do vício ligada à de um homem natural com
seus apetites para o alimento, a bebida, a luta, o jogo, a vanglória e
os excessos sexuais. Tudo isso implicava numa concepção de
justiça, com seus corolários de mérito, demérito, prêmio e castigo,
arrastando o conceito do valor medicinal das penas. Idéias
elaboradas pela teologia, reestruturada pela Escolástica restaurada,
que substantivavam o pensamento cristão do tempo. Pensamento
que avivava a consciência dualística dos planos natural e
sobrenatural do homem, hóspede provisório do mundo, tangido a
preparar seu fim eterno. Cristianismo: estimulo e critério de ação
124
.
A Igreja do século XVI, impulsionada pelas reações obscurantistas do
concilio de Trento, afirmava com severidade um “Orbis christianus”,
fundamentado numa hermenêutica universalista e na autoridade de uma Igreja

121
SIQUEIRA, p. 18.
122
Ibid, p.20
123
Para tanto, ver SIQUEIRA, cap.II.
124
Ibid, p.30
52
Una, Santa, Católica e Apostólica. A Contra Reforma católica propagandeou
uma unidade de caráter expansionista que deveria levar a cristandade aos
quatros cantos da terra, demonstrando a estreita relação entre fé e ação
colonizadora.
Católica e Apostólica. Com isso pusera a descoberto os fundamentos
teológicos da universalidade e do espírito missionário. Cristo
propiciara a redenção do gênero humano sem a colaboração deste,
mas exigira sua cooperação para que pudesse se salvar. O mistério
da catolicidade coincide com os mistérios dos desígnios
supranacionais de Deus sobre a história dos homens. A Igreja tomara
consciência que sua missão era a de unificar os homens no Corpo
Místico. Não podia manter-se fechada. Era de todos e para todos. O
fundamento eclesiológico da Obra Missionária está em sua
catolicidade essencial e em sua objetiva missão universal. A Igreja
deve pregar e tem o direito de ser escutada em todas as partes: aqui
o nervo da expansão missionária, segundo entendiam-no os padres
conciliares.
125
No processo de colonização européia dos povos latino-americanos, a
Bíblia, lida e interpretada a partir de uma hermenêutica canônica fundada na
tradição, foi usada como instrumento de legitimação na dominação e massacre
dos povos indígenas. A religião cristã clássica e a colonização européia são
faces de um mesmo projeto de dominação que em 500 anos consumou a
destruição de quase toda uma civilização ameríndia. O projeto colonizador
europeu conseguiu na América Latina apropriar-se de todo o potencial de
dominação presente no cânon das escrituras sagradas judaico-cristãs e na
grande tradição teológica da cristandade, proporcionando um massacre étnico,
econômico, cultural e religioso. A cruz e a espada desembainhada conferiram
autoridade ao ambicioso projeto de conquista, que travestido em profundo zelo
religioso e iconoclasta destruiu com violência todo o imaginário simbólico e
religioso dos povos colonizados.
126
O Deus irado e ciumento das tradições
deuteronomista e sacerdotal do Antigo Testamento
127
fez-se carne nas mãos
assassinas que degolaram milhares de idolatras e sua religião tida como
demoníaca.
Foi no tocante a religião que os espanhóis fizeram seu esforço mais
determinado para modificar a sociedade indígena. Isso porque muitas
características da religião indígena eram ofensivas do ponto de vista
do Cristianismo e porque o Cristianismo era considerado pelos
espanhóis a única religião verdadeira. Ocasionalmente os espanhóis

125
SIQUEIRA, p.27.
126
CROATTO, A destruição dos símbolos...
127
Ver cap. IV Política e manipulação teocrática – o exemplo do Deuteronômio e a OHD (obra
historiográfica deuteronomista) e o escrito sacerdotal (P).
53
estiveram propensos a usar a força para destruir templos e ídolos,
extirpar o sacrifício humano e outras práticas e punir os
recalcitrantes... Os esforços sérios e maciços de conversão tiveram
início na década de 1520 no México e se disseminaram rapidamente
pela América nativa nas pegadas dos exércitos da conquista. A
primeira tarefa dos missionários foi eliminar os indícios explícitos de
paganismo e remover ou reduzir o poder dos sacerdotes nativos, e
em sua maior parte essas medidas foram tomadas com sucesso
durante a primeira geração. Depois disso, os missionários
enfatizaram fortemente os dogmas essenciais, e os aspectos mais
visíveis, da religião cristã... Os missionários davam atenção especial
aos filhos de índios de classe alta, sabendo que estes se tornariam
os líderes da geração seguinte e no futuro estariam em condições de
exercer uma influência cristã sobre a comunidade. Segundo o
mesmo principio, os índios da classe alta que resistiam ao
Cristianismo ou retornavam, após a conversão, a formas pagãs de
adoração eram passíveis de severo castigo. Foram registrados
inúmeros casos de espancamento e prisão, e casos ocasionais de
execução por esses motivos.
128
O discurso bíblico teológico da cristandade missionária referendou o
projeto de colonização cristã européia, dando a ele um sentido que
ultrapassava os interesses socioeconômicos, transformando o processo
colonizador em uma atividade religiosa que pudesse suplantar todas e
quaisquer motivações. Há uma conquista justificada, “a espada e a cruz
marcham juntas na conquista e na espoliação colonial”.
129
O ideal de conquista
da terra prometida mais uma vez fez com que a terra se tornasse vermelha do
sangue dos infiéis. As cabeças pagãs oferecidas como holocausto levariam
mais uma vez o ouro e a prata para os suntuosos templos do Deus cristão, que
respirava os suaves sacrifícios sangrentos. Nas palavras de Galeano:
De prata eram os altares das igrejas e as asas dos querubins nas
procissões: em 1658, para a celebração do Corpus Christi, as ruas
da cidade foram desempedradas, da matriz até a igreja de Recoletos,
e totalmente cobertas com ouro e prata.
130
Impossível não perceber uma história dos efeitos
131
na mentalidade
européia ocidental, formada pela re-leitura e apropriação das tradições judaicas
presentes na Bíblia hebraica e nas elaborações teológicas dos primeiros pais
da Igreja, os pais espirituais do Ocidente, de quem a cristandade colonizadora
herdou o espírito bélico e universal das missões. Na mentalidade dos cristãos

128
GIBSON, p.285
129
GALEANO, p. 38.
130
Ibid, p.38
131
Para o conceito de historia dos efeitos, ver GADAMER, Verdade e Método...
54
conquistadores, “a América era o vasto império do diabo”,
132
e a conversão ou
massacre dos pagãos era um dever de todo bom cristão.
O demônio é realmente o inimigo pessoal de cada evangelizador, de
cada extipador; está nos huacas, nos ídolos, na alma dos índios, nos
oráculos dos caciques e bruxos, nos sonhos, em toda manifestação
religiosa autóctone. Expulso do velho mundo pela Igreja refugiara-se
nas Índias, reinando ali até a chegada dos espanhóis, segundo
Acosta. Em sua De natura novi orbis diz que “embora não seja
permitido compelir os súditos bárbaros ao batismo e á profissão
cristã, é licito e até conveniente afastá-los do culto idolátrico mesmo
por mal, isto é, destruir seus simulacros e templos, desterrar a
superstição diabólica que não só impedem a graça do Evangelho,
mas que também se opõem a lei natural”. Este principio é assumido
pelo primeiro concilio de Lima, que ordena a destruição das huacas:
“pois além de ser contra a lei natural, é grandemente prejudicial e
incentivo para se volverem os já cristãos com pais e irmãos infiéis, e
aos próprios infiéis é grande estorvo para se tornarem cristãos”. Em
1541 era feito o primeiro manual eclesiástico da extirpação por
sugestão do vigário geral de Cuzco, Luis de Morales; entre 1545 e
1549 era redigida uma Instrução, pelo arcebispo Loaysa do Peru,
sobre a prática da evangelização; uma das prioridades é a procura e
destruição dos monumentos religiosos dos aborígenes, bem como a
doutrinação, sobretudo em relação aos ritos funerários e ao culto
relacionado com elementos da natureza.
133
A extirpação da ‘idolatria’ dos povos indígenas estava também
estreitamente vinculada à sede pelo ouro, fazendo com que as propriedades
dos templos destruídos passassem para o poder da Igreja ou da coroa.
134
Como não poderia ser diferente no Ocidente, Deus, poder e riquezas – a lógica
da teologia deuteronomista
135
–, eram indissociáveis, demonstrando que a
“fanática missão contra a heresia dos nativos confundia-se com a febre que
provocava, nas hostes da conquista, o brilho dos tesouros do Novo Mundo”.
136
Segundo Marianne Mahn-Lot,
Sob o pretexto de que os huacas tinham um caráter idólatra, os
espanhóis se entregavam a pilhagens desavergonhadas dos
tesouros que estas encerravam. Os abusos foram denunciados com
indignação por Santo Tomás e por Las Casas que escreveu a esse
respeito o tratado De thesauris.
137
As atividades missionárias conferiam um aspecto combativo e
inspiravam a destruição da religião nativa. Nos Sermones de los Mistérios de
nuestra santa fé católica, Hernando de Avendaño, reflete claramente a
instrumentalização das escrituras sagradas no combate as religiões indígenas:

132
GALEANO, p.29
133
CROATTO, A destruição..., p.38
134
Ibid. p.34
135
Para a teologia deuteronomista ver: NAKANOSE...
136
GALEANO, p. 29
137
MAHN-LOT, p.95
55
Quem poderá contar os castigos que Deus impôs aos homens
porque antigamente adoraram os huacas? Ouvi, filhos, a Escritura
Sagrada diz que, quando os judeus adoraram o bezerro, Moisés, que
era seu caudilho, mandou que os levitas matassem a todos os que
tinham adorado a huaca e, sem reparar que eram seus irmãos e
parentes, mataram de uma vez 23.000 homens. O que você, índio,
diz disso? Se Deus mandasse matar todos os índios que adoraram a
huaca no Peru, quem ficaria com vida?
138
Não há necessidade de muito esforço para perceber a densidade
teológica dos textos do requerimiento que exortavam os infiéis a se
submeterem a fé cristã católica.
“se não o fizerdes, ou nisto puserdes maliciosamente dilação,
certifico-vos de que, com a ajuda de Deus, entrarei poderosamente
contra vós e vos farei guerra por todas as partes e maneira que
puder, vos sujeitarei ao jugo e obediência da Igreja e de Sua
Magestade, tomarei vossas mulheres e filhos e vos farei escravos, e
como tais venderei e disporei de vós como sua majestade mandar, e
tomarei vossos bens e farei todos os males e danos que puder”
139
Aqui se começa alinhavar o grande projeto de dominação cultural e
religiosa da tradição judaico-cristã Ocidental sob os povos das índias
colonizadas. A força da tradição religiosa cristã sobrepor-se-á as tradições
autóctones, proporcionando a criação de uma nova civilização que nascerá já
submetida à coerção da grande narrativa histórico-teológica da civilização
cristã ocidental. Na intenção colonizadora, alinhavava-se um processo de
colonização de consciências, transplantando para o novo mundo, uma nova
forma de percepção, um “transplante de toda uma cultura: maneiras peculiares
de ver e sentir a vida, a pautar-lhes o comportamento em relação ao criador e
as criaturas. Homens emersos de um complexo cultural europeu: o Barroco,
que na Península Ibérica se exacerbara confrontando-se com a originalidade
de sua formação espiritual”.
140
Em meados do século XVI, a maioria dos templos tinha sido
destruída no Tawantinsuyu. Segundo Cieza de León, conhecedor do
Peru, “aprouve a nosso Deus redentor que mereçam ter nomes de
filhos seus e estar sob a união de nossa santa mãe Igreja, pois é
servido que ouçam o sagrado Evangelho.... e que os templos destes
índios tenham sido derrubados...; os templos antigos, que geralmente
chamam guacas, todos já estão derrubados e profanados, e os ídolos
quebrados, e o demônio, como mau, lançado daqueles lugares... e
está posta a cruz. O gesto de implantar a cruz sobre as ruínas de

138
CROATTO, A destruição..., p, 32
139
Ibid,
140
SIQUEIRA, p.4.
56
antigos templos ou huacas tem um grande valor simbólico. Significa
apagar a memória anterior, ocupando seu espaço.
141
A força de uma conquista espiritual subtrai toda forma de resistência ao
projeto colonizador. Neste sentido cumpriram um papel fundamental as ordens
religiosas que foram destacadas para a afirmação do catolicismo no mundo,
como a Companhia de Jesus, que se uniu aos desígnios do Papado nas lides
pela restauração da Igreja.
142
Foram essenciais na propaganda fide nas novas
terras, fazendo com que D. João III ao sentir a necessidade de integrar o Brasil
na Igreja de Cristo, recorresse aos filhos de Santo Inácio de Loyola
143
.
Efetivamente, mandou embaixador a Roma para convencer os
jesuítas a integrarem-se “na empresa da Índia e em todas as outras
conquistas que eu tenho”, dizia ele. Aos 10 de março de 1540 D.
Pedro Mascarenhas escrevia ao seu Rei dando contas de sua
missão em que tinha tido pouco trabalho “porque com muito
contentamento aceitaram a jornada”. Na messe dos filhos de Santo
Inácio incluía-se o Brasil. Iniciava-se com os loiolanos, o
missionarismo sistemático da província de Santa Cruz que, pela
catequese, era incorporada à Reforma Católica, incluída no plano
tridentino. Para isso vieram os jesuítas para o Brasil, para fazer da
Colônia terra da Igreja Militante.
144
A força política dos vigários de Deus na América foi tão necessária
quanto às pólvoras e as espadas desembainhadas, que degolavam a massa
indígena ordenhadas nas “reduções”, as aldeias cristãs vigiadas, que
colocavam os índios sob o julgo permanente da Igreja e do Estado
145
. De
acordo com Haubert: "a submissão dos índios a Espanha requer que suas
comunidades sejam organizadas de forma a tornar essa submissão efetiva e
eficaz”.
146
Mas quando somente a palavra não é eficaz à submissão, a espada
da fé e a couraça da justiça devem exercer o papel de dominação entre os
indígenas. Nas palavras de um padre jesuíta, “Nosso Senhor optou por utilizar
o medo e o temor dos espanhóis para levar essa pobre gente a conhecê-lo e
servi-lo”.
147
Na ação missionária revela-se a força avassaladora de uma
dominação da consciência religiosa indígena, uma investida colônia que se dá
através de um processo de colonização de consciências, mentalidades
apropriadas por uma retórica religiosa.

141
CROATTO, A destruição..., p.34
142
SIQUEIRA, p.33
143
Ibid, p. 37
144
Ibid, p. 37
145
HAUBERT, P. 76
146
Ibid, p.76
147
Ibid, p.79
57
É necessário salientar as boas intenções missionárias de alguns grupos
religiosos, como os missionários da Companhia de Jesus, que impregnados
por sua convicção religiosa, procuraram com todas as suas forças amenizar os
sofrimentos dos indígenas da violência da colonização, agindo de maneira que
sempre que os imperativos conjugados do Evangelho e da evangelização
exigissem, seria proclamado os direitos dos índios em relação aos
espanhóis.
148
A orientação realista dos inacianos refletia feição profundamente
humana de sua maneira de serem cristãos. Suas constituições
insistiam sobre o espírito de caridade e de amor. Amor que consistia
mais nas obras do que nas palavras. Amor verdadeiro que exigia
entre amante e amado comunicações recíprocas de bens. Emergia
de sua doutrina espiritual a preocupação de ser bem concreto e
definido. Paginas dos “Exercícios” deixavam entrever claramente as
idéias de adaptação, acomodações, circunspecções, preferências
que se deviam respeitar. Dessa faculdade de adaptação às
circunstancias, de ajuste a todas as mentalidades, dessa sua
flexibilidade de acomodação, resultou a ação direta dos jesuítas em
todas as camadas sociais
149
Essas medidas jesuíticas permitiam aos índios que aceitassem
espontaneamente a soberania espanhola, usufruir de privilégios tais como a
isenção de tributos, e uma relativa liberdade diante do encomendeiro.
150
Essa
prática jesuíta foi responsável pelo cultivo de um ódio por parte dos pequenos
colonos por essa ordem religiosa que – supunha-se – servia pouco aos
interesses dos colonizadores. Mas a verdade é que as práticas religiosas da
Companhia de Jesus foram fundamentais e determinantes no processo de
colonização, submetendo – a partir de uma retórica religiosa – milhares de
indígenas à dominação espanhola.
Quando uma aldeia pagã aceita se submeter aos espanhóis e ao seu
Deus, os colonos não dão trégua enquanto os habitantes não são
distribuídos em encomienda. “O Evangelho arrasta uma verdadeira
peste em suas conquistas”, observa o padre Ruiz de Montoya; “mal
alcançaram pelo batismo a liberdade eterna, são lançados na
servidão e no cativeiro”.
151
A penetração da religião cristã no imaginário do colonizado agiu como
instrumento facilitador do projeto colonizador. A fundação de aldeias
missionárias estava estreitamente ligada ao processo de colonização e eram
diretamente controladas pelas autoridades coloniais. Essas reduções cumpriam

148
Ibid, p.83
149
Ibid, p. 88
150
Ibid, p.83
151
Ibid, p.82
58
um importante papel no agrupamento dos indígenas e em sua conseqüente
desarticulação cultural e religiosa fazendo com que esses agrupamentos se
submetessem a religião cristã e a seus representantes. A fundação dessas
reduções era acompanhada de um forte simbolismo religioso que honrava a
presença dos novos senhores que eram agora recebidos com a mais absoluta
devoção. Em um dos relatos, feito por um padre Jesuíta, o comandante
espanhol nomeia os líderes de uma redução:
Todos os índios e soldados espanhóis chegaram á praça a cavalo e
perfilaram-se de cada lado dela. O comandante estava diante da
igreja, eu a sua direita e o cacique Elebogdin à sua esquerda. Ele
pronunciou as frases habituais naquela circunstância, ou seja: ‘Eu,
Francisco Antonio de Vera y Muxica, entrego em nome de Sua
Magestade real a ti, Florian Paucke, e a Elebogdin, aqui presente, este
solo e estes terrenos em total propriedade, etc., e assim seja em nome
da Santa Trindade’. Durante todo o discurso, ele se inclinava para o
chão, arrancava, enquanto caminhava, tufos de relva e as dava para
mim para que eu as jogasse em direção ao céu.
152
Aqui a influência do Jesuíta se faz extremamente necessária, pois toda
autoridade concedida ao soberano espanhol é fundamentada na legitimação
religiosa já antes concedida ao missionário que já operou a colonização da
consciência religiosa indígena. Segundo Haubert:
Para marcar solenemente a tomada de posse da aldeia, o
missionário manda erigir uma grande cruz de madeira, muitas vezes
no mesmo dia ou no dia seguinte a sua chegada. Quando finalmente
a cruz domina as habitações dos pagãos, ele se descobre, ajoelha-se
diante dela e a beija com efusão, “para ensiná-los a curvar-se sob o
jugo suave de Jesus Cristo”. A seguir celebra o sacrifício da missa, e
os índios cristãos da escolta realçam a cerimônia com todo o fausto
permitido pelo despojamento naquelas regiões perdidas. As vezes, o
jesuíta tem a surpresa de ver todos os habitantes virem prosternar-se
atrás dele: é verdade que ele lhes garantiu que a partir daquele
momento a cruz afugentará todos os demônios, e os pagãos estão
convencidos de que finalmente não serão mais perseguidos por
maus espíritos. E, de fato, a convicção do missionário é tão forte e a
esperança dos índios tão tenaz, que varias vezes, segundo dizem,
eles param de fazer malefícios.
153
A retórica religiosa dos missionários cristãos marca o pano de fundo da
colonização que é perpassado pela disputa e dominação religiosa da tradição
cristã sob os povos indígenas. A colonização religiosa da cristandade européia
se alimenta da grande tradição conversionista e bélica que perpassa a
mentalidade religiosa judaico-cristã no Ocidente. A instrumentalização e leitura
da Bíblia a partir do lócus hermenêutico da tradição, que constituiu o núcleo de

152
Ibid, p.86
153
Ibid, p.84
59
poder da cristandade, referendaram e sedimentaram as estruturas de poder
que estiveram presentes durante o longo processo de dominação e
colonização dos povos latino-americanos.
Na América Latina, a Bíblia foi lida e recebida a partir desse lócus
hermenêutico da cristandade, o eixo de poder que sistematizou os papeis
sociais e legitimou as estruturas religiosas e políticas que cometeram um
verdadeiro etnocídio. A Bíblia como obra canônica foi recebida como
legitimadora de estruturas de poderes sedimentados, como substancialmente
responsável pelo desenvolvimento e afirmação do poder religioso sacerdotal da
Igreja, que por sua vez afirmava ser a única autoridade apta à leitura e
interpretação dos textos sagrados. A teologia e a leitura da Bíblia em terras
latino-americanas eram constituídas por uma repetição e reprodução
sistemática da tradição cristã clássica. Sua leitura configurou-se como “prisões
de longa duração”, idéias transplantadas que determinavam a vida religiosa e
cultural dos homens e mulheres latino-americanos.
As mesmas estruturas teológicas que possibilitaram o massacre étnico e
religioso dos povos ameríndios foram sendo assimiladas e reproduzidas pelos
novos cristãos e por toda estrutura eclesiástica, que foi sendo transplantada da
Europa para terras latinas, afirmando na vida dos povos colonizados a herança
cultural européia que legitimava teologicamente a manutenção de estruturas
sociais assimétricas e a total dependência dos povos latino-americanos a
intermediação religiosa e política da Igreja Católica.
O eixo hermenêutico da cristandade, Deus, pecado, tradição e poder
político, constitui-se o cerne de formação da identidade latino-americana,
transplantando uma história de dominação religiosa que perpassou a historia
do Ocidente, sendo aqui responsável pela assimilação e naturalização das
assimetrias de gênero, políticas, e sociais e também pela destruição e
massacre dos símbolos dos povos dominados, possibilitando um ethos cultural
constitutivamente assimétrico, herdado de uma cristandade que tem em sua
constituição uma hermenêutica canônica e autoritária dos textos sagrados da
tradição judaico-cristã. Aqui ressoam as palavras do literato português José
Saramago, para quem todo o Ocidente nasce edificado pela idéia de um Deus,
60
o Deus da cristandade, que por sua vez estende os seus domínios no ato de
colonização missionária das terras ameríndias. A América Latina nasce cristã e
estratificada, sob o domínio de uma cristandade hierárquica que legitimou os
maiores desmandos e atrocidades, reproduzindo uma estrutura de poder
político e religioso que constituiu a unidade do Ocidente.
Aqui se fundamenta a intuição de Tzvetan Todorov de que “é a
conquista da América que anuncia e funda nossa identidade
154
, pois toda a
estrutura política, religiosa e cultural é formatada a partir dos substratos
políticos dessa cristandade européia, elaborados e percebidos na historia da
interpretação do dogma da cristandade, núcleo central da tradição.

154
TODOROV, p.129.
61
CAPÍTULO II
EMANCIPAÇÃO E CULTURA PÓS-COLONIAL NA AMERICA LATINA: A
GÊNESE DE UMA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO COMO CRÍTICA DAS
TRADIÇÕES E DAS INSTITUIÇÕES
Quase 500 anos se passaram para que uma consciência emancipada da
tradição cristã clássica européia se delineasse e possibilitasse o surgimento de
um pensamento autóctone, com raízes fincadas na realidade de opressão e
colonização sofridas pelos povos latino-americanos. Sobre este processo e o
papel da leitura da Bíblia neste horizonte de emancipação escreveu o biblista
brasileiro Milton Schwantes:
Depois de 500 anos de conquista e colonização, os povos indígenas
da América Latina ainda estão vivos! Foram fundamentalmente as
religiões indígenas que permitiram que os povos resistissem e
sobrevivessem, muitas vezes apesar e contra a “evangelização
cristã”. A Bíblia, amiúde, foi utilizada como instrumento de conquista
espiritual. As religiões indígenas foram desprezadas ou ignoradas.
Ainda hoje muitas Igrejas e Seitas fundamentalistas continuam
“convertendo” os indígenas, destruindo sua cultura e sua religião, em
nome da Bíblia. Os indígenas, além de serem vítimas da colonização,
tiveram de sofrer uma hermenêutica bíblica colonial equivocada. Com
tudo isso também a própria Bíblia sofreu um processo interno e
externo de manipulação e corrupção. Depois de 500 anos é um
imperativo urgente ler a Bíblia de uma maneira diferente e com uma
hermenêutica libertadora.
155
As palavras de Schwantes são reflexos de uma profunda transformação
sócio-cultural que ocorreu na América Latina a partir da década de 1960,
desencadeando um processo de reflexão que procurou desnudar as trágicas
conseqüências do processo de colonização, contagiando praticamente todos
os setores da sociedade latino-americana. Um impetuoso vento de
emancipação sacudiu os varais de roupas velhas e desbotadas que cobriam os
corpos indígenas e negros dos trópicos, ressoando com seu zumbido que
perpassava os ouvidos da periferia do mundo, um réquiem definitivo ao Deus
da velha cristandade opressora.
2.1 GERMES DE UMA CULTURA PÓS-COLONIAL NA AMÉRICA LATINA

155
SCHWANTES, RICHARD, Bíblia: 500 anos..., p. 5.
62
Existe na América Latina uma longa tradição de movimentos de
emancipação e libertação que, desde o período colonial, reagiram aos sistemas
de dominação que legitimavam estruturas sociais assimétricas. No século XVIII
as instituições colonizadoras sofreram fortes resistências com a eclosão de
várias insurreições indígenas que reagiam ao sistema de opressão a que viam
sendo submetidos.
Em 1723 há uma violenta rebelião dos araucanos no Chile (que não
serão vencidos senão quando na ultima insurreição em 1880-1883).
Entre 1735 e 1750, João Santos Atahualpa dirigirá e inspirará
diversas insurreições de índios na Bolivia e no Peru. As revoluções
dos índios que trabalhavam nas minas têm um caráter tipicamente
social e anticolonial. Elas eclodem em quase todos os lugares onde
se extraíam minérios para a exportação. Em 1752 surge uma guerra
de quatro anos dos índios guaranis contra as autoridades espanholas
e portuguesas. Esses índios estavam organizados nas “Reduções”
dos missionários jesuítas. Ganharam a guerra, e é o único caso de
uma insurreição indígena vitoriosa. No século XVIII, há muitas
insurreições das quais participavam unidos índios e negros, mulatos
e mestiços, o que revela o caráter social e não puramente étnico
desses conflitos. São conflitos que surgem geralmente na estrutura
econômica e política do sistema de exploração colonial capitalista da
América Latina e amo mesmo tempo contra essa estrutura. Em 1780
estoura a mais importante guerra de libertação de toda a historia da
América, dirigida por José Gabriel Condorcanqui, cacique de
Tangasuca, chamado Tupac Amaru. A guerra dura de novembro de
1780 a 1783 e se estende aos territórios que constituem hoje o Peru,
Bolívia, Equador e o norte do Chile e da Argentina. O sentido dessa
guerra é posto em evidência nas palavras de Tupac Amaru, na
véspera de sua morte, diante enviado do vice-rei: “os únicos
conspiradores são vós e eu. Vós, como opressor do povo, e eu, por
ter tentado libertá-lo desta tirania”. A revolução de Tupac Amaru
revela essa posição antagônica e irredutível entre as massas
exploradas e o sistema de opressão, e como tal, ela permanece
como o símbolo de todos os movimentos de libertação na América
latina até os nossos dias.
156
Esses movimentos de libertação revelam uma dimensão social e política
que oferecia uma consciência de resistência aos sistemas de exploração e
opressão em que estavam submetidos os povos indígenas e africanos. Na
realidade estratificada dos povos latino-americanos, vítimas das duras
conseqüências da colonização espanhola e portuguesa, responsável pelo
genocídio econômico e cultural de milhares de vidas, começava já a se gestar
fortes rupturas e reações por parte dos povos explorados, cultivando já uma
consciência revolucionária que será os germes de toda revolta e emancipação
dos povos latinos. Um caso notável está nas insurreições e resistências

156
RICHARD, Morte da cristandade..., p. 44.
63
negras, que nos deixaram como legado uma forte tradição revolucionária,
reagindo intempestivamente contra os poderes de mandos coloniais já
sedimentados nas consciências dos povos colonizados. Entre os casos mais
notáveis está a organização da “República de Palmares”, uma confederação de
aldeias de escravos negros libertos que se estabeleceram entre 1630 e
1695.
157
A constituição do “Quilombo”, como método de organização
revolucionária, é uma conquista de nossa tradição libertaria latino-
americana. As insurreições de negros no Brasil serão ininterruptas
até 1888, data da abolição da escravatura neste país. Um fato
importante, esquecido pela história “liberal” da América Latina, é que
as idéias revolucionárias, republicanas e inspiradoras de
independência, foram cultivadas inicialmente na América Latina,
sobretudo por negros e mulatos, e especialmente em países como o
Brasil, Uruguai, Venezuela e nas Caraíbas. A conjuração dos mulatos
dirigida por Joaquim José da Silva Xavier, o Alferes Tiradentes, tem
um caráter paradigmático: em 1789 ela tentou impedir o envio do
ouro brasileiro para Portugal. O movimento se estende por todo o
estado de Minas Gerais, mas a 21 de abril de 1792 Tiradentes é
executado. A conjuração inspirou-se nas idéias das “luzes”. A
conjuração dos alfaiates, na Bahia, em 1798, teve o mesmo caráter.
Esse movimento popular, constituído sobretudo de mulatos,
proclamou a “Republica da Bahia” (“um governo republicano, livre e
independente, em que todos tinham possibilidade de acesso aos
postos e ministérios públicos, sem distinção entre crioulos e negros”).
Essa insurreição dos alfaiates é considerada pelos historiadores
como o movimento social mais claramente político da época
colonial.
158
O século XIX foi um século de lutas políticas pela independência
econômica e política da América Latina. Embora as grandes massas de
indígenas, negros, mestiços e mulatos, pertencentes aos setores pobres e
marginalizados não fizessem parte da agenda de libertação, pois a
independência foi uma ação caracteristicamente burguesa que servia aos
interesses políticos e econômicos de uma classe dominante que reivindicava
status de independência política da coroa espanhola e portuguesa, essas
camadas marginais foram responsáveis por fortes revoluções sociais, que
davam lastro às reivindicações políticas das camadas dominantes da
burguesia.
A conjuntura aberta em 1808 com as invasões napoleônicas da
Península Ibérica, que enfraqueceram a dependência colonial, abriu
possibilidades de libertação tanto para os setores crioulos
dominantes como para os setores dominados. As reivindicações
sociais das classes dominadas exprimiram-se também nessa

157
Ibid, p.45
158
Ibid, p.45
64
conjuntura e, em alguns casos, explodiu uma autêntica revolução
social, que precedeu, acompanhou ou seguiu a luta da alta burguesia
pela independência política. Freqüentemente essas lutas pela
independência fizeram-se sob os impulsos da revolução dos mais
desprovidos, ou se fizeram precisamente para dominar ou
estrangular essas pressões sociais populares revolucionárias (tal foi
o caso do México, onde a revolução popular de Hidalgo e Morales foi
liquidada pela própria independência política). Se a guerra de
Independência teve, portanto, em certos casos, um caráter social e
popular, isso se deveu a necessidade em que se encontrava a
burguesia crioula de subordinar um amplo setor do povo a seus
próprios interesses de classe como burguesia. Esse caráter social e
popular permanecia estranho e extrínseco à dinâmica própria da luta
pela independência política em relação à Espanha. Houve exceções:
tal é o caso de Artigas, no Uruguai, e em outros países, certos casos
individuais e em certos setores determinados das forças da
independência
159
.
Essas camadas marginais, representantes dos baixos estratos sócio-
culturais, representam a grande massa explorada de negros, indígenas,
mestiços e mulatos, que através de sua vivência concreta num mundo de
exploração e dominação, manifestaram o abismo existente entre dominantes e
dominados, conseqüente de um insólito processo de colonização que se
reproduziu e foi sistematicamente afirmado, após a independência, por uma
burguesia mercantil conservadora que procurou manter o velho modelo colonial
de economia no interior das novas formas políticas
160
. A independência dos
países latino-americanos aprofundou ainda mais as assimetrias sociais, pois o
rompimento com o passado colonial dava-se a partir da afirmação de uma nova
forma de colonialismo, travestido com os ideais liberais de desenvolvimento e
progresso. O novo ideal liberal, adotado pela burguesia mercantil dominante,
inebriada pelos valores de uma civilização européia, a partir da absorção de um
livre mercado voltado para fora, estabelecia um novo pacto colonial, que
aprofundava ainda mais a miséria das grandes massas, acarretando um
processo irreversível de dependência e subdesenvolvimento.
Uma forte reação a esse Estado liberal e desenvolvimentista se deu por
parte dos movimentos populares, que são embriões da sociedade civil latino-
americana e foram responsáveis por sedimentar as lutas de resistência e
inspirar os grandes movimentos operários
161
e os setores intelectuais que
serão fundamentais na afirmação de uma cultura pós-colonial. Durante o

159
RICHARD, Morte da cristandade..., p.61
160
Ibid, p.58
161
Para a formação do Movimento Operário, ver CANDIDO FILHO, O Movimento operário...
65
período de 1890 a 1930, forma-se em países como México, Brasil, Argentina,
Chile, Uruguai e Colômbia uma classe operária significativa, que foi
profundamente influenciada por correntes marxistas que penetraram nos
setores do movimento operário latino-americano.
162
O processo de
emancipação dessas bases populares foi se formando a partir de um
acentuado intercâmbio de uma cultura universal, que se alastra com a
presença de operários estrangeiros imigrados que fomentam os ideais
socialistas nas associações operárias e também por uma classe de intelectuais
que a partir do contato com as massas começam a se organizarem, fazendo
com que as primeiras organizações políticas de nível nacional e latino-
americano fizessem sua aparição.
163
Em 1864 tinha sido fundada a Associação Internacional dos
Trabalhadores (A.I.T), conhecida na história como a primeira
internacional, mas sua influência no continente é posterior... No
México, existe por volta dos anos 70 uma imprensa operária
abundante, da qual alguns títulos dizem bem do caráter deste
período: “O Socialista”, “A Greve”, “O Operário Internacional” etc. em
1872 funda-se o “Circulo dos Operários do México”, e em 1888 já se
publica a primeira tradução conhecida, em espanhol, do Manifesto
Comunista... Na Argentina, existe uma ligação estável e orgânica
com a A.I.T., mas trata-se especialmente de operários estrangeiros
imigrados. Já na década dos anos 70 existe, em Buenos Aires, uma
seção francesa, italiana e espanhola da A.I.T., cuja influência se
estende igualmente aos operários argentinos. No Uruguai, o
processo é semelhante. No Chile, a influência da A.I.T. é mais tardia,
embora seja nesse país que o movimento operário adquire, durante
este período, uma maior extensão e uma melhor organização, sob a
influência das idéias socialistas e marxistas. Duas instituições tiveram
uma importância especial: a Federação Operária do Chile (F.O.CH),
fundada em 1909, e o partido Operário Socialista (P.O.S), fundado
em 1912. É preciso ressaltar aqui a obra de um dos grandes líderes
operários latino-americanos: Luís Emilio Recabarren: 1876-1924. Um
interessante movimento operário desenvolve-se em Cuba, que
conheceu também uma importante emigração popular espanhola.
Todos esses núcleos do proletariado internacionalista e
revolucionário da América Latina, embora reduzidos, tem uma
enorme importância, pois é a partir deles que se desenvolverá, em
seguida, um movimento operário mais vasto
164
.
Fundamental para perceber as raízes de uma emancipação latino-
americana é atentar para a importância desse intercâmbio de idéias de
emancipação advindas de um velho mundo Europeu que gestou uma forte
tradição crítica e revolucionária, que, aplicada a uma realidade estratificada em
um profundo conflito de classes, possibilitou uma elaboração teórica e critica da

162
RICHARD, Morte da cristandade..., p.85
163
Ibid, p.85
164
Ibid, p.85
66
sociedade latino-americana. As contribuições do referencial teórico marxista
foram de fundamental importância para a construção de uma inteligentsia
cultural e pós-colonial na América Latina.
2.2 EMANCIPAÇÃO E CULTURA PÓS-COLONIAL NA AMERICA LATINA: A
TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO
A América Latina experimentou no século XX um forte arroubo de
emancipação que procurou evidenciar às profundas contradições sociais e a
situação de dependência econômica e cultural em que estavam submetidos os
povos latino-americanos. É importante perceber que a gênese de sua
emancipação é política e tem no processo de redemocratização dos países
latinos sua principal via de acesso e independência. A partir dos anos 1960
configura-se uma resistência intelectual caracteristicamente latino-americana,
fruto de uma longa gestação, que no Brasil, desde os anos 1920, foi se
desenvolvendo a partir desses germes de sociedade civil, apresentando novas
classes e camadas sociais que se apresentam no cenário político, dando assim
início aos primeiros conflitos sociais, representados nas lutas operárias e nas
agitações das camadas médias da sociedade.
165
Segundo Coutinho:
Esses embriões de sociedade civil, esses pressupostos de uma
autonomia da cultura, favorecidos ademais pela situação
internacional, apareciam de modo mais claro em 1945, com a
redemocratização do País. Fato significativo é que, pela primeira vez,
o Partido Comunista do Brasil, legalizado, torna-se um partido de
massas; e revela, na época, compreender melhor do que em 1935,
embora de modo ainda insuficiente, a importância da luta
democrática, do fortalecimento da sociedade civil nos combates pelo
socialismo no nosso País. Os sindicatos operários, embora
continuassem atrelados à tutela do Ministério do Trabalho, começam
a ter um peso crescente não só nas lutas econômicas, mas inclusive
na vida política nacional. Também as camadas médias buscam
formas de organização independentes, nos partidos e fora dos
partidos: escritores, advogados, jornalistas criam associações para a
defesa de seus interesses e ideais. Tudo isso amplia o campo da
organização material da cultura; uma ampla e muitas vezes fecunda
batalha das idéias começa a ter lugar entre nós. Há um acentuado
empenho social da intelectualidade, um maior comprometimento com
as causas populares e nacionais. A possibilidade de subsistir fora da
cooptação e do favor dos poderosos, graças à rede de organizações
culturais que se amplia (com a publicação de jornais independentes,
de revistas, com o aumento do numero de editoras, com uma
crescente autonomia das recém-criadas Universidades, etc.), permite
ao intelectual escapar mais facilmente dos impasses a que é levado

165
COUTINHO, Cultura…, p. 26
67
pela situação, pouco confortável em muitos casos, do “intimismo à
sombra do poder.
166
Herdeira dessa autonomia cultural que foi se configurando no processo
de redemocratização, essa resistência intelectual latino-americana procurou
elaborar uma reflexão emancipada das estruturas impostas pela colonização
européia, que fosse genuinamente gestada a partir dos interesses e das
carências de um continente famigerado que experimentou uma exploração e
dependência insólita desde seu descobrimento e colonização. Fundamental no
processo de tomada de consciência foi a contribuição das análises econômicas
e sociais do continente latino-americano, realizadas por sociólogos que
demonstravam as raízes de uma dependência econômica estrutural.
167
Não se pode pensar esse processo de emancipação da reflexão latino-
americana sem considerar as contribuições da história do pensamento
ocidental em suas matrizes e desdobramentos. Assim como não existe uma
reflexão filosófica puramente ocidental européia – pois essa depende
absolutamente de uma absorção de tradições fundamentais da filosofia grega
clássica – também na América Latina uma tradição de emancipação pós-
colonial é fruto de profundas transformações e desenvolvimentos no
pensamento europeu e suas conseqüentes apropriações e releituras feitas em
continente latino americano. As matrizes teóricas fundamentais do pensamento
pós-colonial têm suas origens num velho mundo que tem como aspecto próprio
de sua constituição os ideais de colonização. Uma reflexão pós-colonial nasce
no momento em que os colonizados reivindicam direitos em nome das idéias
do colonizador
168
.
As conseqüências históricas da revolução francesa, o
desenvolvimento do referencial teórico marxista nas ciências sociais bem como
a criação de uma tradição intelectual revolucionária ocidental européia afetou
diretamente o processo de formação de uma inteligentsia pós-colonial na
América Latina. Neste sentido cabe ressaltar aqui a observação de sociólogo
francês Edgar Morin:
Foi somente no século XIX que houve a abolição da escravidão,
enquanto o processo de descolonização generaliza-se depois de
meados do século XX. O paradoxo neste período da história humana

166
COUTINHO, p.30.
167
Aqui cabe mencionar a contribuição da CEPAL – Comissão Econômica para America Latina.
Grande contribuição foi dada pelos sociólogos Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, em
sua obra: Dependência e desenvolvimento...
168
MORIN, No cerne da crise…, p.65
68
tão cruel, é que as idéias, como a emancipação, tiveram como berço
os próprios países que exerciam a dominação. Por exemplo,
Bartolomeu de Las Casas, um padre espanhol, consegue convencer
o clero espanhol de que os índios da América têm uma alma, que
são seres humanos, ainda que o Cristo não tenha vivido no
continente americano... com o humanismo das luzes, desenvolve-se
a idéia segundo a qual todos os homens são iguais diante do
direito
169
No Brasil, as ciências sociais – em especial a Sociologia – foram se
formando a partir de intenso diálogo com as matrizes do pensamento
sociológico da França, Alemanha, Inglaterra e outros países, relacionando-se
diretamente com correntes de pensamento da sociologia mundial.
170
O próprio
ideal de emancipação, entendido como reflexão sistemática das conseqüências
da colonização e a realidade de dependência econômica e cultural dos países
latino-americanos, só se estabelece a partir de um intercâmbio de reflexões
que se fizeram possíveis com a absorção de uma cultura intelectual européia –
identificada já como cultura universal
171
– que não encontrou nenhuma
resistência de uma possível cultura autóctone. No caso da Europa – entendida
aqui como a cultura ocidental –, o processo de acumulação primitiva do capital,

169
MORIN, P.67
170
IANNI, p.19
171
O conceito de cultura universal, identificado com a cultura ocidental européia é sem
nenhuma duvida a discussão fundamental de uma epistemologia pós-colonial. O antropólogo
Claude Levi-Strauss, em um artigo escrito em 1970, “Raça e História”, p.231-270, faz o
questionamento sobre o fenômeno da universalização da cultura e civilização ocidental e se
pergunta se chegaremos a uma ocidentalização integral do planeta: “Primeiramente, a
existência de uma civilização mundial é um fato provavelmente único na história ou cujos
precedentes deveriam ser buscados numa pré-história longínqua, a respeito da qual quase
nada sabemos. Em seguida, uma grande incerteza reina sobre a consistência do fenômeno em
questão. É fato que, há um século e meio, a civilização ocidental tende, seja na totalidade, seja
por alguns de seus elementos-chave como a industrialização, a se espalhar pelo mundo; e que,
na medida em que as culturas procuram preservar algo de sua herança tradicional, essa
tentativa se reduz geralmente às superestruturas, isto é, aos aspectos mais frágeis e que
supostamente serão varridos pelas transformações profundas que se realizam”. É fato que
esse “universalismo” constitutivo no fundamento religioso europeu se apresenta com uma face
secularizada na modernidade. Na América Latina, é importante salientar que o que a reflexão
pós-colonial absorve e tem como fundamento de sua reflexão é o espírito critico e
revolucionário que se gestou na história do pensamento da civilização ocidental,
desencadeando uma espécie de revolução mundial. Neste horizonte de assimilação deste
espírito critico, afirmou o Pastor batista negro Martin Luther King: “Esta é uma época
revolucionaria. Por todo o planeta homens se revoltam contra antigos sistemas de exploração e
opressão e, longe das feridas de um mundo debilitado, novos sistemas de justiça e igualdade
estão nascendo. Os miseráveis da terra se levantam como nunca antes. Aqueles que viviam na
escuridão viram uma luz grandiosa. Nós, o Ocidente, devemos apoiar essas revoluções. É
triste perceber que ao conformismo, à complacência, a um medo mórbido do comunismo e a
nossa propensão para nos ajustarmos à injustiça, às nações ocidentais que deram origem ao
espírito revolucionário do mundo moderno tornaram-se agora o bastião anti-revolucionario”.
King, 2006. In Educação em direitos humanos...
69
segundo Marx e Engels, promoveu um intercâmbio universal,
172
uma universal
interdependência das nações e neste sentido as criações culturais de uma
nação tornam-se propriedade comum de todas; das inúmeras literaturas
nacionais e locais, nasce uma literatura universal.
173
A cultura universal, assim, não era algo externo, imposto pela força à
nossa formação social, mas algo potencialmente interno, que ia se
tornando efetivamente interno à medida que (ou nos casos em que)
era recolhido e assimilado por uma classe ou um bloco de classes
ligados ao modo de produção brasileiro. Nascido no momento em
que se forma o mercado mundial, e como conseqüência de sua
expansão, o Brasil – desde sua origem – já é herdeiro potencial
daquele patrimônio cultural universal de que falam Marx e Engels. A
história da cultura brasileira, portanto, pode ser esquematicamente
definida como sendo a história dessa assimilação – mecânica ou
crítica, passiva ou transformadora – da cultura universal (que é
certamente uma cultura altamente diferenciada) pelas várias classes
e camadas sociais brasileiras. Em suma: quando o pensamento
brasileiro “importa” uma ideologia universal, isso é prova de que
determinada classe ou camada social de nosso País encontrou (ou
julgou encontrar) nessa ideologia a expressão de seus próprios
interesses brasileiros de classe. Quando surgiu no Brasil a classe
operária, por exemplo, não foi nos mitos bororos ou nas religiões
africanas que ela foi buscar sua expressão teórica adequada.
174
Neste sentido se explica a importância de uma tradição intelectual do
pensamento ocidental como fundamental para o desenvolvimento de uma
reflexão crítica a partir de uma realidade de estratificação e colonização. No
Brasil, as condições históricas propiciam um ambiente fecundo para a
formação de uma intelectualidade pós-colonial nas ciências sociais, abrindo
fendas para o nascimento de uma cortante criatividade intelectual que a partir
de interesses próprios toma como ponto de partida o quotidiano e a realidade
de um continente famigerado devido às históricas investidas colonizadoras.
Aqui cabe mencionar o nome do sociólogo brasileiro Florestan Fernandes que
inaugura uma análise crítica da realidade social a partir do questionamento da
sociologia clássica e da adequação do referencial teórico marxista na análise
da sociedade brasileira.
175
A absorção dessa tradição crítica pelo pensamento
interessado de um intelectual que reflete a partir de um continente colonizado

172
Importante perceber a assimilação cultural e epistemológica na América Latina do
referencial teórico e critico das ciências humanas européias. A América Latina nasce moderna.
Segundo Pablo Richard, “A América Latina não nasceu de uma sociedade feudal, mas ela
nasceu como parte do processo de expansão do capitalismo mercantil”. Richard, p. 90.
173
COUTINHO, 2005, p.41
174
Ibid, p.45
175
Para introdução ao pensamento de Florestan Fernandes, ver IANI, Florestan Fernandes...
70
faz nascer com intensa profundidade uma reflexão pós-colonial nas ciências
sociais da América Latina. Neste sentido é acertada a afirmação de que
Foram as próprias condições sociais nas quais emergiram as
ciências sociais que as levaram a defrontar as diversidades,
desigualdades e antagonismos. A sociologia “se viu confrontada com
as contradições da sociedade de classes em expansão”. Para estar
em condições de apanhar tais contradições em suas condições,
causas e efeitos, precisou adaptar suas técnicas de observação, de
análise e de explicação a um padrão de objetividade que
incorporasse a negação da social.
176
As ciências sociais na América Latina – elaborada por intelectuais de
vertente marxista como Florestan Fernandes, que fundamentou o que se
chamou de sociologia crítica – procurou elaborar um referencial teórico de
análise da realidade que pudesse abarcar as contradições sociais e
econômicas dos regimes de classes estabelecidos na América Latina pelo
processo de colonização. O aspecto econômico, cultural e político se tornou
fundamental na observação empírica do cientista social situado na periferia do
mundo. Nas palavras de Florestan Fernandes, “os sociólogos da chamada
“periferia” do mundo capitalista desenvolvido devem dedicar-se, através dá
análise monográfica e da investigação comparada, ao estudo de regime de
classes”.
177
As transformações sócio-culturais na América Latina representavam um
enorme progresso político e cultural que se manifestava no cenário de
resistência formado por um aggiornamento intelectual que procurou refletir as
causas da dependência dos povos latinos e assim traçar novos rumos de
emancipação. A teoria da dependência, elaborada por sociólogos latino-
americanos, colocou em panos brancos os mecanismos de dominação que se
engendraram na vida cultural e econômica dos países da América Latina.
Todo potencial emancipatório adquirido e vivido na Europa com a
Revolução francesa e a plena reflexão crítica de emancipação adquirida pelas
duas ilustrações, que caracterizaram a reflexão intelectual da Europa moderna,
foram absorvidas em terrenos latino-americanos não somente como signo de
emancipação de uma burguesia moderna que se emancipava das tradições e
de um passado entendido como obscuro. Esta revolução do pensamento na
America Latina dá se também sob o signo da revolução dos explorados por

176
IANNI, p.30
177
FERNANDES apud IANNI, p.227
71
essa mesma burguesia moderna, realizando assim uma apropriação das idéias
dos dominadores pelos povos dominados, possibilitando o nascimento de uma
reflexão genuinamente latino-americana. Neste sentido, a tomada de
consciência no continente latino-americano se dá a partir do intercâmbio com
um saber universal, elaborado a partir de uma reflexão crítica que é reflexo de
um processo de emancipação que contagiou toda civilização ocidental,
despertando na América Latina a sua consciência de dependência dos países
desenvolvidos, que deixam às vistas as trágicas conseqüências do histórico
processo de colonização. O conceito de libertação e dependência se tornou o
eixo hermenêutico das abordagens políticas e culturais. A obra Dependência e
desenvolvimento na América Latina: ensaio de interpretação sociológica,
escrita com a contribuição do sociólogo brasileiro Fernando Henrique Cardoso,
marca um período de reflexão sobre a urgente necessidade de libertação de
um continente que caminhava para um processo “acelerado de
subdesenvolvimento e de acentuação das contradições entre uma minoria cada
dia mais rica e uma maioria cada dia mais pobre”.
178
Em 1950 a América Latina se encontra possessa de uma efervescência
cultural e política que se reflete em todos os setores da sociedade. O projeto de
libertação nacional e a fomentação dos partidos de esquerda atingem uma
parcela significativa da sociedade civil, que absorvida por um amplo processo
de politização e crÍtica cultural, articula-se em um projeto de construção de um
socialismo latino-americano no interior da dialética histórica da luta de classes
contra a dominação capitalista econômica, política e cultural.
179
A esse respeito
o teólogo católico João Batista Libânio afirma:
Pululavam, naqueles idos, movimentos revolucionários na cidade e
no campo. Capitaneava-os uma vanguarda adestrada com táticas de
guerrilha, inspirada na ideologia marxista, tendo como horizonte o
socialismo, e que se beneficiava das figuras simbólicas de Fidel
Castro, Che Guevara (+1966), Camilo Torres. Entre eles, estavam
Mir, Erp, Tupamaros, Sendero Luminoso, FARC, Ligas camponesas,
VPR, MR8 e outras tantas facções que assumiram a luta armada,
oriundas do PCB, PCdoB. No Brasil tal agitação provocou o golpe de
1964 com o recrudescimento repressivo com o AI-5 (1968). Naquela
época julgava-se possível a instalação do socialismo no continente
na esteira do amplo processo revolucionário socialista, como o
exemplo de Cuba parecia atestar. Os sindicatos urbanos e rurais se
nutriam de ideologias criticas ao sistema capitalista. No campo
pedagógico, Paulo Freire desenvolveu método popular de

178
RICHARD, Morte da cristandade..., p.95
179
Ibid, p.95
72
alfabetização de adulto articulado com conscientização política. O
movimento estudantil, especialmente na expressão da UNE, assume
com decisão as bandeiras nacionalistas em perspectiva libertadora.
Os estudantes contribuíram para a fundação de Centros populares
de Cultura, em vista de desenvolverem amplo trabalho de
conscientização dos próprios colegas estudantes e do povo em geral.
Criou se a figura do artista engajado, revolucionário. Faziam
representações teatrais às portas das fábricas, nas favelas, nas
associações de bairros, nos sindicatos com intuito político. Fervia
clima libertário no campo político e cultural, ao lado da reação
violenta da burguesia com golpes atrás de golpes (Argentina, Brasil,
Uruguai, Chile, etc.) e crescente onda repressiva sustentada pela
ideologia da segurança nacional.
180
Esses germes de emancipação contagiaram uma série de grupos
cristãos que se formaram no interior da sociedade latino-americana iniciando
um processo de amadurecimento político e cultural, uma forte cultura de
resistência, que teria como fruto genuíno o nascimento de uma Teologia da
Libertação na América Latina. No Brasil, movimentos como a JOC (Juventude
Operária Católica) e a JUC (Juventude Universitária Católica), se tornaram
mediadoras de uma reflexão cristã a partir de um engajamento e de uma
consciência social de classe.
181
O papel da base da Igreja católica será
fundamental.
Os milhares de cristãos, leigos ou membros do clero, militantes da
JUC e da JOC, religiosos e religiosas, intelectuais e sindicalistas,
ativamente engajados no combate de regime de excessão – cujo
peso era, no Brasil, bem maior que em outros países, como a
argentina –, que foram, sem dúvida, o “motor” da transformação da
instituição. Essa base militante da Igreja inclui também, a partir do fim
dos anos 1960, uma nova força, com peso decisivo: as Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs), impulsionadas por padres e religiosos(a)s
próximos ao cristianismo da libertação. As ordens religiosas
femininas são a força mais numerosa – existiam 37 mil freiras no
Brasil – e eficaz na promoção das CEBs nas comunidades urbanas
pobres. No fim da década de 1970, já havia dezenas de milhares
dessas comunidades de base, com alguns milhões de participantes,
em sua maioria mulheres das camadas populares. O sofrimento em
comum (a pobreza), a ajuda mútua e a esperança de salvação
coletiva são alguns aspectos da cultura político-religiosa das CEBs,
que corresponde bem ao típico ideal que Max Weber chamava de
“religião comunitária” (Gemeindereligiosität) baseada num
“comunismo de amor fraternal” (brürderlichen Liebeskomunismus),
inspirado por “profecias de salvação” e por uma ética de
reciprocidade entre vizinhos.
182
Movimentos de libertação e renovação silenciosamente fermentavam
dentro da Igreja Católica, preconizando já a profunda renovação que se daria

180
LIBANIO, A Teologia da Libertação..., p.37
181
RICHARD, Morte da cristandade..., p.147
182
LOWY, As esquerdas na ditadura militar..., p.310.
73
com a convocação do Concilio Vaticano II feita pelo Papa João XXIII. Há um
processo de politização da sociedade civil e uma profunda consciência de
classe. Essa consciência política vai contagiar parte significativa das esferas
sociais, proporcionando o nascimento de cristãos revolucionários, ligados aos
movimentos populares que possibilitaram uma leitura política e orgânica da
realidade latino-americana. O teólogo Pablo Richard afirma a respeito:
Nesse processo de amadurecimento político, orgânico e teórico dos
cristãos do continente, surgirá igualmente a teologia da libertação,
que permitirá aos cristãos superar o caminho fácil do dualismo (entre
pratica e consciência) e da ruptura voluntarista e, portanto,
superficial, com sua origem cristã, e engajar-se no caminho difícil que
exige, por um lado, a instauração de um julgamento critico sobre seu
passado cristão, deformado ideologicamente e estruturalmente pela
complexidade de um sistema alienante e opressor, e por outro lado, a
reelaboração de uma nova visão libertadora da fé, do evangelho e da
Igreja.
183
No mundo protestante, o ano de 1953 traria consigo a presença
revolucionária do missionário presbiteriano Richard Shaull, que, expulso da
Colômbia por ordens de uma hierarquia católica, influenciaria radicalmente uma
geração de pensadores cristãos. O pensamento de Shaull se situa neste
horizonte de emancipação política e cultural da América Latina e foi
determinante no nascimento da teologia da libertação. A força iconoclasta de
seu pensamento acerca das mazelas da colonização e do capitalismo será um
eixo decisivo para uma critica das tradições e das instituições que se
estabeleceram no poder e na dominação de corpos e consciências latino-
americanas. Avaliando a reflexão teológica na América Latina anterior à
década de 1950 e as contribuições do pensamento de Richard Shaull para o
desenvolvimento de uma hermenêutica latino-americana, o teólogo protestante
Julio de Santana afirmou:
A reflexão teológica durante a maior parte da história do cristianismo
na América Latina e no Caribe se caracterizou como exercício de
reprodução do pensamento dos centros a partir do qual se
desenvolveu a missão da Igreja. No caso do catolicismo romano,
desde o período da conquista e inícios da colonização, os
missionários tentaram fazer “tabua rasa” das crenças dos indígenas,
construindo um pensamento que se ajustava à crença dos
colonizadores. Tratava-se de uma expressão da religião cristã que
correspondia à época da expulsão dos mouros e judeus da Espanha,
bem como dos inícios da construção do império português. Este
espírito de conquista imperial reagiu veemente, com extrema
violência, contra o pensamento humanista que se desenvolveu na
Europa Ocidental até o final do século XV e principalmente contra a

183
RICHARD, Morte da cristandade..., p.145
74
Reforma Protestante, cujos adeptos na Espanha, foram sacrificados
nas fogueiras da Inquisição. O catolicismo que se desenvolveu na
América Latina até o século XIX foi conservador, propicio a uma certa
amálgama com as crenças dos indígenas. Influenciado pelos ares da
contra reforma católica que se sedimentou no concílio de Trento
(1546-1564), enfatizou a repetição dos conceitos do catolicismo
europeu. É verdade que houve algumas exceções. Entretanto, as
fontes da memória cristã foram ocultadas ao povo. A Bíblia foi
subtraída ao conhecimento popular. O protestantismo começou a ser
introduzido nestas terras do terceiro e quarto decênios do século XIX.
Não resta dúvida de que, conforme as modalidades predominantes
naqueles tempos, seguiu o modelo de reprodução desenvolvido pelo
catolicismo romano. Por exemplo, procurou fazer com que os crentes
lessem a Bíblia, mas a sua interpretação se fez de acordo com as
tradições e as formas de pensamentos dos missionários. Isso teve
importantes repercussões no campo da reflexão teológica: as
preocupações que a dominaram eram aquelas que motivaram os
grandes debates entre “liberais” e aqueles que depois começaram a
ser chamados de “fundamentalistas”. Por mais de um século não se
desenvolveu uma corrente hermenêutica latino-americana. A
situação teológica latino-americana começou a ser transformada a
partir da década de 1950. Não se trata aqui de analisar como esta
renovação ocorreu no catolicismo romano, que a partir de 1959
começou a viver um período de reformas importantes motivadas pelo
Papa João XXIII e o Concílio Vaticano II. Por outro lado, quando se
trata de compreender o caminho percorrido por uma minoria de
pensadores evangélicos que procuraram tornar presente o melhor do
pensamento protestante na América Latina, é inevitável referir-se à
influência e ao magistério de Richard Shaull.
184
Na década de 1950, por iniciativa de Richard Shaull se criou no Brasil
uma “Comissão de Igreja e Sociedade”, entendida como um organismo
ecumênico vinculado ao Conselho Mundial de Igrejas, que procurou realizar
uma reflexão teológica a partir dos interesses e realidades sociais da América
Latina. Um marco desse período foi a consulta realizada no Nordeste em 1962,
“Cristo e o processo revolucionário”, realizado na cidade do Recife - PE,
quando Shaull já não estava no Brasil, pois fora expulso pelas autoridades de
sua Igreja. Participaram dessa consulta nomes de destaque da sociologia e da
economia latino-americana, tais como Gilberto Freire, Celso Furtado, Paulo
Singer, Juarez Brandão Lopes.
185
Em 1966, em Genebra, Richard Shaull, publica sua Teologia da
Revolução
186
, abrindo os primeiros horizontes de uma Teologia da Libertação
na América Latina. Viviam-se anos conturbados em todo continente latino-
americano, conseqüentes de uma ação repressiva por parte partes dos

184
SANTA ANA, Fé e Compromisso..., p.104-105
185
CESAR, Igreja e Sociedade p.104-105.
186
SHAULL, R. Teologia da Revolução...
75
governos militares que instituíram regimes de “segurança nacional”
187
e
trataram de expulsar toda a inteligência revolucionária presente nos países da
América do Sul.
188
Entre 1965 e 1970, elaboraram-se na América Latina as
bases fundamentais da Teologia da Libertação. O historiador da Igreja, Martin
Dreher, afirma:
Nesses anos conturbados, porém, foi gestada teologia de maneira
muito séria... Desde 1965, alguns sacerdotes católicos se reuniam
em diversos países do continente: Gustavo Gutiérrez, Juan Luis
Segundo e Segundo Galileia, entre outros. Estes sacerdotes
formularam suas principais teses entre 1965 e 1970. Em Montevedéu
desenvolveu-se, na mesma época, o trabalho de ISAL (Igreja e
Sociedade na América Latina). Aqui a teoria da dependência e a
sociologia da libertação foram pesquisadas. O grande pensador
teológico desse grupo foi Richard Shaull, professor do seminário
teológico da Igreja Presbiteriana do Brasil, em Campinas, e desde
1962, professor em Princeton, nos Estados Unidos
189
.
Em 1969, um jovem teólogo latino-americano, discípulo de Richard
Shaull, elaborou em horizonte teológico as mais acirradas críticas à tradição
cristã ocidental e às estruturas de opressão e dominação por elas legitimadas,
dando início às genuínas e férteis reflexões da teologia da libertação na
America Latina. Em sua obra A Theology of Human Hope
190
, o teólogo
protestante brasileiro Rubem Alves soube absorver com auspícios de
genialidade todo desenvolvimento crítico do pensamento ocidental, que,
fundamentado por uma profunda consciência crítica e histórica, emancipava-se
de uma velha estrutura hierárquica que se firmava no seio da tradição ocidental
clássica, “forjando um novo homem, livre, que cônscio de sua dominação, não
está mais com sua consciência domesticada, pois inserido no seu presente
histórico, está decidido a libertar-se historicamente”.
191
Demonstrando o
espírito de emancipação que caracteriza sua teologia da libertação, assinala as
bases epistemológicas de sua reflexão.
O ponto de partida e o lócus das minhas reflexões são radicalmente
históricos. Não posso, pois, justificar in abstracto ou a priori as
reflexões que ofereço, porque elas brotam de uma situação que não
pode ser explicada em tal base. Minhas pesquisas teológicas não
pretendem ser, portanto, senão uma expressão de participação de
uma comunidade de cristãos que fazem todos os esforços para
descobrir de que modo falar fielmente a linguagem da fé no contexto
de seu empenho pela libertação histórica do homem (...). É da

187
Sobre o “Regime de Segurança Nacional” ver COMBLIN, A ideologia da segurança...
188
DREHER, Milton Schwantes...,p.15
189
Ibid, p.17
190
ALVES, Da Esperança...
191
Ibid, p.136
76
perspectiva do momento presente que eu tento achar um sentido
para o que está acontecendo. É a luz deste mesmo presente que eu
leio o meu passado. É este empenho no presente que fornece o
centro partindo do qual os horizontes do presente se fundem com os
do passado, oferecendo de tal modo o contexto para a exploração
dos horizontes do futuro.
192
Assimilando a tradição crítica e revolucionária, advinda de um
humanismo ocidental enriquecido pelas duas ilustrações e pelo pensamento
filosófico moderno, genial e criticamente absorvido pelo teólogo, Rubem Alves
realizou uma crítica a essa própria civilização cristã ocidental que, em sua
percepção, tornou-se prisioneira dela mesma. Segundo o teólogo Batista
Mondin,
analisando a situação histórica atual, Alves descobriu que a
humanidade – a inteira humanidade, não só a pobre e marginalizada
do terceiro mundo, mas também a rica e opulenta da Europa e dos
Estados Unidos – jaz esmagada sob o peso do poder econômico,
político, social e cultural, um poder violento e opressivo não mais posto
a serviço dos homens, mas apenas de si mesmo. A sociedade
racionalizada “abandonou a vida como valor ultimo, substituindo-a pelo
poder (...). Derrubou a lógica da vida, transformando-a num meio e
fazendo do poder um fim”. “O poder racionalizado, organizado, tornou-
se invisível como jamais se deu no passado e atingiu o mais alto grau
de eficiência que tangencia a invulnerabilidade de que fala a
História.
193
Vítima de um poder heterônomo religioso que perpassou a história da
civilização cristã ocidental, que fora responsável pela dilaceração de toda uma
cultura ameríndia que se tornou também vítima de um poder político-religioso
que a esmagava, Alves constatava que no advento da secularização (e a
conseqüente libertação do poder religioso) e do processo acumulativo de poder
político e econômico, a sociedade ocidental encontrou-se outra vez em estado
de heteronomia, esquecendo-se da vida como valor último, esmagada que
estava (e ainda está) por um poder econômico, político, social e cultural, que
substituiu, nesta sociedade racionalizada e secularizada, o papel heterônomo
da religião.
A reflexão de Rubem Alves não está inserida totalmente no horizonte
teológico da teologia da libertação clássica, elaborada caracteristicamente por
teólogos advindos da tradição católica romana, interessados de alguma forma
em situarem-se em uma tradição que tem nos escritos sagrados da tradição
judaico-cristã uma forma de lastro e inspiração. Esses teólogos da libertação,

192
Ibid, p.76
193
MONDIN, p.60
77
como ficará claro no decorrer deste capítulo, provocarão uma profunda e
consistente crítica da tradição teológica ocidental, elaborando uma espécie de
re-construção dessa mesma tradição, a partir de um lócus hermenêutico que
tem na teologia fundamental e nas ciências sociais e históricas as bases de
sua reflexão. Diferente da Teologia da Libertação Clássica elaborada na
América Latina, a Teologia da Libertação de Rubem Alves procurou com
profunda seriedade dialogar com as Teologias européias da “Morte de Deus”,
fenômeno intrinsecamente dependente da crítica moderna da religião.
194
Rubem Alves é radical em sua crítica das tradições, não encontrando
necessidade alguma na reconstrução de uma tradição religiosa que pudesse
dar lastros para sua teologia da libertação. Para Alves, escritos sagrados e
tradição teológica são artigos periféricos para a confecção de sua teologia, que
se move no universo da crítica religiosa da modernidade. Sua teologia é a
expressão de uma profunda radicalização do espírito protestante que se move
numa clara recusa de toda e qualquer estrutura metafísica.
195
Alves rompe com
toda tradição metafísica advinda das elucubrações teológicas dos pais
espirituais do Ocidente e da longa gestação de uma teologia fundamental no
ambiente da modernidade. Seu pensamento é fruto daquilo que ele mesmo
observou acerca das conseqüências da reforma protestante, fruto do advento
de uma nova forma de encarar o mundo.
A historiografia católica com muito acerto – nos anos pré-ecumênicos
– acusou a Reforma como contendo em si o germe da desintegração
da síntese medieval. E, logicamente, acrescentamos, culpada de
agravar aquele problema de habitação que a ciência criava para
Deus. A reforma apresentou a rejeição da peça central no arranjo
estrutural: a Igreja. Rejeitada a Igreja como mediadora da graça
celestial, rejeitou-se automaticamente, todo Universo que ela
sustentava. Não, não se tratava de uma heresia a mais: o mundo
inteiro desmoronava. O Deus do universo se desmoronava. O Deus
do universo medieval sofre uma metamorfose: de principio unificador,
que era para o santo, passa a ser problema, um desagradável
pesadelo para o novo homem que nascia então (...) se o universo
não é mais parte de uma estrutura sagrada, se a Igreja não tem mais
o direito de se proclamar em guardiã das estruturas da ordem
hierárquica, o mundo deixa de ser tabu. Ele é profano. Nada há nele

194
Importante perceber a observação de RICHARD, Morte da cristandade..., p.196: “Contra
esta teologia “progressista”, a teologia da libertação teve que defender aquilo que ultimamente
foi denominado de “interlocutor” da teologia. Este interlocutor não é o “mundo moderno”,
secularizado, cujo sujeito histórico é a burguesia; o interlocutor da teologia é o mundo
subdesenvolvido, cujas classes exploradas são o sujeito da libertação. A teologia da libertação
conseguiu tirar a teologia de sua polarização excessiva em torno do eixo “fé-ateismo”, “Igreja-
mundo”, para restituí-la ao eixo “opressão-libertação”.
195
MONDIM, p.62.
78
que impeça o exercício da liberdade humana para conhecê-lo e
dominá-lo.
196
Há uma radical desconstrução de todo castelo teológico da tradição cristã
clássica – que se fundamenta no eixo Monoteísmo, sacerdócio e poder político
e nos conceitos teológicos, pecado-expiação, remissão – solapando toda a
estrutura de um mundo hierárquico e religioso que determina o real e todo o
mundo da vida. Fundamental para a reflexão teológica de Rubem Alves é a
contribuição do principal cavaleiro da modernidade, Friedrich Nietzsche. Alves
afirma:
Nietzsche era, antes de mais nada um amante da terra, da vida, da
liberdade e da espontaneidade. Com a visão de profeta que o
caracterizou, ele pode perceber que a historia da civilização ocidental
era uma história de repressão. Segundo Nietzsche, isto significa que
a familiaridade com as raízes mais espontâneas da vida –
característica do estilo Dionisiano de vida foi reprimido pelo estilo
Apoliniano: o triunfo da forma, do limite, sobre a vitalidade e
espontaneidade. Toda sua obra é, assim, um protesto contra a
repressão e uma celebração da vida. É preciso que a terra seja
transformada num local de recuperação onde o homem possa ser
devolvido à que Norman Brown denominou o “sentido erótico da
vida”, ou seja, a libertação do corpo para uma relação de prazer com
o mundo todo que o cerca, mundo de cores, sons perfumes, gestos,
caricias. Ora, Nietzsche compreendeu que toda esta estrutura de
repressão que funcionou na civilização Ocidental estava
inseparavelmente ligada a uma estrutura religiosa. Em nome de Deus
nega-se a vontade, a espontaneidade; o ideal cristão é a obediência,
o camelo que aceita todas as cargas sem reclamar. Em nome de
Deus nega-se o tempo, porque o seu mundo é o mundo da
eternidade. Em nome de Deus nega-se a liberdade ao homem para
criar um futuro novo, porque todos os valores já haviam sido
codificados no passado. É por isto que ele anuncia o super homem
(que nenhuma relação tem com a ideologia nazista, como se tentou
fazer crer), o homem que terá coragem para afirmar a sua vida e sua
liberdade contra todas as estruturas de repressão que nossa
civilização criou. Ora, a coroa de toda a estrutura era o nome de
Deus. Graças a este nome a repressão se tornava sagrada e a
condição do oprimido se tornava em virtude. Conseqüentemente, a
“morte” deste nome trazia consigo mesmo o começo do fim das
estruturas de repressão. Elas perdem o seu caráter sagrado, e o
homem, até então na condição de camelo, esta livre para
transformar-se no leão que haverá de destruir o dragão que o oprime.
O homem se reconcilia com a terra e a fertiliza com o seu amor. É
por isto que para Nietzsche o anúncio da morte de Deus tem a
qualidade de uma “boa nova”, porque ela significa permissão para a
vida, para o mundo, para o futuro.
197
Rubem Alves foi sem nenhuma dúvida o teólogo que desenvolveu a
mais forte e contundente crítica das tradições no horizonte teológico latino-

196
ALVES, Deus morreu..., p.20
197
ALVES, Deus morreu..., p.30
79
americano. Sua teologia dialogou com profunda proficiência com as mais
importantes correntes do pensamento filosófico e teológico moderno,
possibilitando um profundo rompimento com as tradições metafísicas da
teologia cristã que se tornaram as bases dos empreendimentos missionários e
de todo desenvolvimento político e religioso de dominação no continente latino-
americano. Sua teologia mina as velhas estruturas hierárquicas e celebra a
morte do velho Deus da cristandade opressora que reprimiu toda civilização
ocidental e colonizou os corpos e as consciências dos homens e mulheres na
América Latina. O réquiem aeternan deo, que para Nietzsche soava como um
anúncio de boas novas, agora era proclamado como a mais límpida e
alvissareira esperança pela pena do teólogo protestante.
Sentimos como se um novo dia estivesse raiando ao receber as boas
novas de que o velho Deus morreu; nosso coração transborda com
gratidão, assombro, antecipação e expectativa. Por fim o horizonte se
apresenta novamente aberto a nós, muito embora ele não esteja
muito claro: por fim nossos navios podem se aventurar pelo mar
afora, para enfrentar qualquer perigo; toda a ousadia do amante do
conhecimento é permitida novamente; o mar, o nosso mar, está
aberto novamente.
198
Alves foi sensível às mais inquietadoras perguntas e aos mais profundos
anseios que a modernidade trouxe à existência humana. Sua teologia não é só
política, move-se a partir dos meandros labirínticos da existência humana, que
celebra a morte definitiva do Deus da cristandade e se move no abismo da
incerteza da existência, proclamando uma esperança que se funda no protesto
humano e na afirmação da liberdade contra todas as estruturas de repressão
religiosas e culturais. Dialogando com a força do pensamento iconoclasta do
teólogo protestante Dietrich Bonhoeffer, elaborou belíssimo parágrafo.
Está é uma fase histórica que nos está forçando a “abandonar um
falso conceito de Deus”. O ídolo que as gerações religiosas passadas
batizaram com o nome de Deus tem de ser esquecido e enterrado
para que o homem possa encontrar-se com o Deus vivo. Para
Bonhoeffer a morte de Deus – o fim do Deus da religião – foi
provocada pelo próprio Deus. O Deus vivo assassina o ídolo
usurpador. O que Deus nos ensina através de sua morte é “que
podemos muito bem viver sem ele”. Assim, se vamos criar uma nova
linguagem para articular a nossa experiência de Deus ela não terá
lugar algum para o Deus que faz milagres, o que resolve os nossos
problemas. Ao contrario: ela falará do Deus que “é fraco e totalmente
sem poder no mundo”, sendo esta única forma de sua presença e
seu auxilio. Assim, somos levados ao paradoxo de que a ausência de
Deus é a única forma de sua presença e sua morte a única

198
NIETZSCHE apud ALVES, Deus morreu..., p.29
80
expressão de sua vida. Crer em Deus é viver como se Deus não
existisse!
199
A teologia de Alves se move como radicalização de um espírito
protestante, “que depois de investigar por detrás das estrelas, descobre que
não há certezas eternas para ampará-lo”.
200
O desenvolvimento do seu
pensamento é sintomaticamente perpassado por categorias estéticas,
afirmando radicalmente “o sentido erótico da vida”. Este eixo hermenêutico é
fundamental para percebermos o desenvolvimento de sua reflexão, que
afirmou categoricamente a libertação do homem e de sua consciência, criando
uma teologia que tempos depois o teólogo denominaria de teologia ludo-
erótico-herética
201
, “como libertação do corpo para uma relação de prazer com
o mundo todo que o cerca, mundo de cores, sons, perfumes, gestos,
carícias”.
202
A teologia de Rubem Alves foi, e ainda é aquilo de mais genial gestado
no mundo protestante latino americano. Talvez tenha sido, na configuração da
teologia latino americana dos idos de 1970, quem tenha elaborado com mais
agudez e genialidade – absorvendo com criatividade particular todo espírito
crítico da modernidade ocidental – uma severa crítica das tradições,
dessacralizando qualquer empreendimento eclesiástico ou teológico firmado na
tradição. As reflexões de Rubem Alves se situam entre os pensamentos mais
iconoclastas forjados no seio da teologia da libertação latino americana.
O mundo católico romano latino-americano a partir da década de 1960
experimentava transformações profundas, como reflexo das diversas
experiências advindas de uma práxis concreta, num contexto de resistência

199
ALVES, Deus morreu..., p.32
200
ALVES, Deus morreu..., p.33
201
Titulo de sua conferencia no Fórum Internacional de Teologia Contemporânea FITEC –
2005, realizado na cidade de Mendes, Rio de Janeiro
202
ALVES, Deus morreu..., p.31. Alves sofreu severas críticas por parte de teólogos da
libertação clássicos, que o acusavam de elaborar um pensamento que não se movia no eixo
fundamental da teologia da libertação: opressão-libertação. O Teólogo J. M. Bonino afirmou:
“Alves se move, sobretudo, na área do pensamento norte-europeu e norte americano. Seus
interlocutores e suas referências culturais vêm quase todos desta esfera. Tende a usar a
filosofia da linguagem, em vez das ciências sociológicas ou políticas, como coordenadas de
sua construção teológica”. Apud MONDIN, p.61 Richard, ao citar a obra Religion, ópio o
instrumento de liberación, de 1969, afirma que esse livro é menos enraizado no movimento
histórico da teologia da libertação. RICHARD, Morte da cristandade..., p.55. Possuidoras de
uma parcela de razão, as críticas feitas ao pensamento de Rubem Alves pecam em não
perceberem as implicações políticas de sua teologia, que foi sem nenhuma dúvida a mais
contundente crítica a tradição teológica crista clássica.
81
política e cultural vividas por militantes católicos que estavam presentes nas
bases de uma Igreja popular. Impulsionadas pelas diretrizes do Concilio
Vaticano II, uma porção significativa das bases e da hierarquia Católica latino-
americana assumiu um papel de resistência política que se revelou com
profunda força na ação concreta de teólogos e pastores que efetuaram uma
corajosa análise critica da situação em que jazem as populações do continente,
uma situação de grande miséria, profunda ignorância e penosa sujeição política
e econômica, proclamando com firmeza, a urgência de tornar operante, em
nível político, social e cultural, o fermento libertador da mensagem cristã
203
. Em
1972, um teólogo católico peruano, dá ao publico o livro que lançaria as bases
da teologia da libertação clássica na América latina. Teologia de la Liberacion
de Gustavo Gutierrez é a expressão teológica, científica e orgânica de um
cristão comprometido e consciente das urgências de libertação dos povos da
América Latina. Numa séria tomada de consciência da necessidade de uma
critica das tradições religiosas, econômicas e culturais, como decorrência de
sua emancipação, Gustavo Gutierrez afirmou:
O homem contemporâneo começa a perder a ingenuidade diante de
seus condicionamentos econômicos e sócio-culturais; e cada vez
melhor conhecidas são as causas profundas da situação em que ele
se encontra. Atacá-las é exigência indispensável para uma mudança
radical.
204
Absorvido por uma profunda consciência histórica de libertação, advinda
de um espírito revolucionário que contagiou o homem ocidental, a teologia da
libertação se desenvolveu alicerçada no eixo hermenêutico opressão-
libertação
205
, assimilando um espírito crítico que foi gestado em oposição às
velhas estruturas políticas e religiosas que sempre foram sinônimos de
opressão para os povos latino-americanos. Consciente desse sentimento de
libertação, arraigado no homem moderno, elaborou-se uma teologia da
libertação em total contraposição às estruturas hierárquicas religiosas e

203
MONDIN, p.31
204
GUTIERREZ, p.52
205
A Teologia da Libertação nasce em oposição às teorias e modelos econômicos
desenvolvimentistas elaborados nos Estados Unidos para os países Latino Americanos na
década de 60. O modelo desenvolvimentista se caracteriza, sobretudo, por ocultar a relação
decisiva: dependência-libertação, mediante a idéia de um processo que, sem modificar
essencialmente a estrutura de dependência dessas sociedades, as coloca em estado de
subdesenvolvimento. Ver GUTIERREZ, cap.II.
82
políticas, procurando evidenciar as transformações do mundo moderno que
afetam profundamente o homem contemporâneo.
206
O homem latino-americano, ao tomar parte de sua própria libertação,
toma gradualmente as rédeas de sua iniciativa histórica e percebe-se
como dono do próprio destino; ademais, na luta revolucionaria liberta-
se de algum modo da tutela de uma religião alienante que tende a
conservação da ordem.
207
É contra essa religião alienante e hierárquica, herdeira da grande
síntese medieval que fincou raízes em terras latino-americanas, colonizando
corpos e consciências, legitimando os desmandos coloniais que são herdeiros
daquele espírito de conquista imperial que foi gradativamente gestado no seio
da Igreja crista ocidental, que se movem as urgentes reflexões dos teólogos da
libertação na América Latina. É uma profunda reação contra a reflexão
teológica de centro que não se orienta pelas reais necessidades dos povos
latino-americanos, e não possui a sensibilidade suficiente para perceber a
obscura situação de colonização econômica e cultural em que esses povos
estão submetidos. A Teologia da Libertação, na quase totalidade de sua
produção, procurou minar as bases de uma teologia hierárquica de dominação
que se desenvolveu na história do pensamento teológico ocidental,
manifestada objetivamente na ação truculenta das missões do século XVI e na
sistematização e reprodução desse pensamento durante toda a história dos
povos latino-americanos. Diferentemente da teologia de Rubem Alves e da sua
critica das tradições que nega qualquer empreendimento teológico metafísico

206
LÖWY, O Catolicismo Romano..., p.11 “A abordagem mais eficaz para dar conta do
aparecimento na América Latina do movimento social cristianismo da libertação e de sua
expressão teológica é aquela que parte da articulação ou convergência entre a mudança
interna e externa na Igreja em fins dos anos 50. A mudança interna diz respeito ao conjunto da
Igreja católica: é o desenvolvimento, desde a Segunda Guerra Mundial, de novas correntes
teológicas (Bultmann, Metz, Rahner, Congar, Chenu, Duquoc), de novas formas de
cristianismo social (os padres operários, a economia humanista do Padre Lebret), de uma
abertura crescente para as interrogações da filosofia moderna e das ciências sociais. O
pontificado de João XXIII e o Concilio Vaticano II vão legitimar e sistematizar essas novas
orientações, constituindo assim o ponto de partida para uma nova época na História da Igreja.
No mesmo momento, desenvolve-se na América Latina uma profunda mudança social: a
industrialização do continente, a partir dos anos 50 (sob o impulso do capital multinacional), vai
"desenvolver o subdesenvolvimento" (segundo a conhecida fórmula de André Gunder-Frank),
isto é, agravar a dependência, aprofundar as contradições sociais, estimular o êxodo rural e o
crescimento das cidades, concentrando em zonas urbanas um imenso "pobretariado". Com a
revolução cubana de 1959, abre-se na América Latina um período histórico novo,
caracterizado pela intensificação das lutas sociais, o aparecimento dos movimentos de
guerrilha, a sucessão dos golpes militares e a crise de legitimidade do sistema político. É a
constelação desses dois tipos de mudança que criará as condições de possibilidade para a
emergência da nova Igreja dos pobres, cujas origens são anteriores ao Vaticano II”.
207
GUTIÉRREZ, p.57
83
fundado na tradição, essa teologia vai buscar no diálogo crítico com porções
fundamentais da tradição judaico-cristã encontrar instrumentos que pudessem
proporcionar uma crítica interna das tradições, feita a partir da realidade dos
povos latino-americanos. Nesta perspectiva começava a se alinhavar o
nascimento de uma hermenêutica latino-americana da libertação, que pudesse
afirmar uma teologia cristã com raízes indígenas, negras e mestiças. Buscava-
se descobrir e instrumentalizar o potencial crítico de porções fundamentais
dessa mesma tradição judaico-cristã que pudesse contrapor-se como crítica
das tradições de dominação que se desenvolveu no seio da cristandade
ocidental e legitimou a colonização e o holocausto de milhares de vidas. Essa
teologia buscou alimentar-se com a resistência crítica da religião cristã popular
e absorveu-se de um forte espírito sacramentalista, dialogando profundamente
com os textos sagrados que pudessem dar lastros para uma teologia cristã de
homens e mulheres situados na periferia do mundo. Analisando a teologia de
Gustavo Gutierrez, o teólogo Batista Mondin afirma:
Colhe da sua imersão pastoral nos movimentos cristãos, uma
reflexão que ouve as aspirações de um continente de maioria cristã,
que adquire consciência do fato que a libertação de Deus não é uma
empreitada histórica que empalidece no passado, mas o chamado de
hoje, a passagem histórica do Senhor.
208
É para essa e através dessa grande massa cristã, gestada nos
movimentos populares, que nasce essa teologia da libertação, que é a mais
perfeita tradução e sistematização teológica dos gritos de dor de homens e
mulheres submetidos a mais profunda opressão na periferia do mundo. Para
Michel Lowi, o nascimento e sistematização dessa teologia no mundo católico
latino-americano é fruto das grandes transformações das bases da Igreja.
A teologia da libertação é apenas a ponta visível do iceberg, a
expressão espiritual sistemática de uma mudança profunda no seio
da Igreja e do povo cristão muito anterior à publicação das primeiras
obras dos novos teólogos. Leonardo Boff não se engana ao insistir
que a teologia da libertação é reflexo de e reflexão sobre uma práxis
preexistente. Mais exatamente, ela é a expressão — enquanto
sistema coerente de valores e idéias — de todo um movimento social
que atravessa a Igreja e a sociedade, a que se poderia chamar Igreja
dos pobres ou cristianismo da libertação. Esse movimento apresenta-
se como uma ampla rede informal, uma corrente vasta e diversificada
de renovação religiosa, cultural e política, presente tanto "na base",
nas comunidades, paróquias, associações de bairros, sindicatos,
ligas camponesas, como na "cúpula", nos bispados, nas comissões
pastorais, conferências episcopais nacionais ou regionais. Por razões

208
MONDIN, p.65
84
que ainda estão por determinar, esse movimento social desempenha
um papel determinante na Igreja e/ou no "povo cristão" de certos
países — principalmente no Brasil, no Peru e na América Central —
ao passo que noutros (como a Argentina e a Colômbia) é bastante
minoritário, senão isolado. Em todo caso, transtornou muito
profundamente uma Igreja que foi, durante séculos, segundo a
expressão de Gutierrez, "uma peça do sistema", uma força de
legitimação da ordem social vigente
209
É acima de tudo uma teologia que nasce da fé vivida nas comunidades
populares, que reage a toda estrutura de opressão que tem como figura
emblemática uma cristandade que foi responsável por legitimar as maiores
atrocidades e os mais absurdos desmandos contra uma população entregue
em sua mais absoluta miséria. Para Hugo Assmann,
210
essa teologia nasce de uma experiência do povo pobre oprimido e
carente da América Latina que foi começando a dizer coisas novas e
estranhas: que não pode ser verdade que Deus queira que as coisas
sejam assim; que Cristo possa ser usado como instrumento de
exploração; que o evangelho seja manipulado.
211
Assmann revela aquilo que é o núcleo central da teologia da libertação
clássica: a re-significação da tradição religiosa como instrumento crítico da
realidade. Essa sensibilidade para com a cultura e religiosidade popular é sem
nenhuma dúvida o grande mérito da Teologia latino-americana da Libertação e
vai ser responsável por uma profunda crítica interna das tradições da teologia
cristã clássica. Refletindo ainda sobre essa realidade sintomática da
religiosidade dos povos latino-americanos no período de desenvolvimento da
teologia da libertação, o teólogo brasileiro afirmava que
Na América Latina operam cerca de 175.000 comunidades de base.
Só no Brasil há 80.000. Aí se discute a frustração do povo
descobrindo-se na leitura da Bíblia, e na reflexão sobre o evangelho
um instrumental muito importante de reflexão sobre a realidade. É
bom, neste sentido, cortar de antemão qualquer idealismo abstrato

209
LÖWY, As esquerdas..., p.310
210
Hugo Assmann, junto com Gutierrez foi um dos principais teóricos da teologia da libertação.
Segundo LÖWY, As esquerdas..., “Asmann estudou em Frankfurt com Adorno e Horkheimer no
começo dos anos 1960. O que levou a aprofundar o estudo do marxismo foi a crise da
liderança da esquerda cristã e da Ação Popular. Asmann trabalhou de 1965 a 1969 no Instituto
de Teologia de São Paulo, onde colaborava estreitamente com os dominicanos. Procurado
pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), foi obrigado a se exilar em 1969. Seu
livro, Opresión-liberación, desafio a los cristianos é um marco fundador na história da teologia
da libertação. Inspirando-se na filosofia marxista da práxis, na teoria da dependência – versão
latino-americana atualizada do marxismo – e, sobretudo, nas experiências de luta no Brasil e
na América Latina, Asmann propõe uma ruptura radical com o “desenvolvimentismo” e um
compromisso dos cristãos com a práxis libertadora das classes oprimidas: “o aspecto
fundamental da fé é a praxis histórica”. A teologia da libertação se distingue da teologia
progressista européia pelo ponto de partida de sua reflexão: “a situação da América Latina
dominada”.
211
ASSMANN, O que é teologia..., p.10
85
de certos pseudo-revolucionários que nunca entenderam o que Darcy
Ribeiro expressou de maneira inteligente: a religião na América
Latina não é uma muleta, mas os pés com os quais o povo caminha.
O povo não tem, nas camadas mais pobres, outra linguagem para
começar a dizer a sua palavra, a não ser através de um processo de
reapropriação que explica a expropriação dos meios de produção
simbólica
212
.
Esse eixo hermenêutico fica claro na obra de um dos expoentes dessa
teologia, o então frei franciscano Leonardo Boff.
Os cristãos do continente participaram com outros na descoberta do
outro, das classes populares exploradas e de suas culturas do
silêncio. Reagiram diante dessa situação inserindo-se em um
processo de mudança e buscando uma sociedade mais justa e mais
fraterna. A própria encarnação e a práxis dentro desse contexto
despertaram-lhes a consciência e a ampliaram. Essa opção pelos
oprimidos e contra a forma de sociedade dominante deu-lhes outra
maneira de ser cristãos, abriu-lhes novas dimensões da fé e fê-los
ver de maneira diferente a Escritura e a Tradição.
213
Imbuído por um profundo diálogo com a tradição teológica, sua reflexão
procura a libertação de uma “teologia universalizante e ligada a uma práxis
sem crítica de seus pressupostos sócio-analiticos e históricos” que produziu
uma catequese e trouxe a presença de uma instituição eclesiástica “amasiada
e cúmplice da empresa colonizadora”.
214
Boff está entre os primeiros teólogos
latino-americanos que vislumbraram as conseqüências de uma hermenêutica
latino-americana,
215
que conseqüente de uma nova consciência histórica,
implicou “numa virada hermenêutica e na entronização de um novo estado de
consciência”, que oferecendo novos óculos, fazia com que conteúdos, sejam
da religião ou da política, ganhassem uma dimensão nova.
216
Refletindo sobre
as conseqüências históricas do empreendimento colonizador, teve como bases
de sua reflexão teológica, os gemidos da anti-conquista.
A historiografia oficial magnífica a Conquista e os Conquistadores;
não houve a história e os gemidos da Anticonquista, daqueles que
sofreram a violência e a depredação de tal forma inumana que em 50
anos de colonização ibérica se produziu uma hecatombe
demográfica que reduziu a menos da quinta parte a população
autóctone. O grande defensor dos índios o Bispo Bartolomeu de las
Casas escreve em 1552 na sua Brevisima relación de la destrucción
de las Indias os dois modos de comportamento dos conquistadores
com respeito ao índio: “um por injustas, cruéis, sanguinolentas e
tirânicas guerras. O outro, depois de terem morto a todos que
poderiam anelar, suspirar ou pensar em liberdade ou em sair dos

212
Ibid, p.11
213
BOFF, Teologia do Cativeiro..., p.30.
214
Ibid, p. 37.
215
Ver tbm, SEGUNDO, Liberacion...
216
BOFF, Teologia do Cativeiro..., p. 13.
86
tormentos que padecem, como senhores naturais e os homens
varões (porque comumente não deixam, nas guerras, em vida, senão
meninos e mulheres) é oprimi-los com a mais dura, horrível e áspera
servidão sob a qual jamais homens ou animais puderam ser postos”.
Não admira que um historiador moderno escreva em tom profético ao
relatar a história da fé cristã e a mudança social no Continente: “O
espanhol, o europeu se escandaliza porque os aztecas imolavam
índios contados ao deus Sol. Feitiçaria, magia, superstição,
sacrilégio!, gritavam os recém-chegados. E..., no entanto, os índios
que morriam nas comendas... os que entravam pela boca das minas
como se fora a boca de Moloch, os que nunca da “Casa de la
Moneda” de Potosí para não revelar os segredos, esses milhões de
índios imolados ao “deus ouro” (que depois serão francos, libras,
dólares ou rublos) do homem moderno europeu ( a idolatria do
dinheiro!) morrerão sem escândalo para ninguém. Os cristãos e seus
teólogos europeus, reunidos triunfalmente em Trento ou em torno da
Reforma, não viam nenhum pecado no facto natural econômico e
político da imolação de uma raça ao projecto do “estar na riqueza”.
217
Um aspecto fundamental na teologia da libertação que se desenvolveu a
partir da realidade das comunidades cristãs de base na América Latina foi seu
árduo processo hermenêutico de crítica e re-significação da teologia judaico-
cristã a partir do horizonte de vida e reais necessidades de uma massa de
homens e mulheres latino-americanos, que foram vítimas de uma das mais
bem sucedidas colonizações feitas ao imaginário religioso de uma civilização.
Neste processo de re-significação e crítica das tradições estão presentes as
bases fundamentais de uma hermenêutica latino-americana que procurou
desconstruir as bases ideológicas de uma interpretação dos textos sagrados da
tradição judaico-cristã que mantinham os lastros de uma estrutura hierárquica
representada pela cristandade ocidental. Como exemplo dessa virada
hermenêutica temos a obra do teólogo Juan Luis Segundo, Liberacion de la
teologia
218
, que propõe, de certa forma influenciado pela hermenêutica
existencial do teólogo alemão Rudolf Bultmann, um circulo hermenêutico para a
elaboração de uma teologia latino-americana da libertação. Segundo afirma:
Existen dos condiciones necesarias para lograr um círculo
hermenêutico em teologia. La primera es que las preguntas que
surgen del presente sean tan ricas, generales y básicas, que nos
obliguen a cambiar nuestras concepciones acostumbradas de la vida,
de la muerte, del conocimiento, de la sociedade, de la política y del
mundo em general. Sólo um cambio tal o, por lo menos, la suspecha
general acerca de nuestras ideas y juicios de valor sobre esas cosas
nos permitián alcanzar el nível teológico y obligar a la teologia a
descender a la realidade y a hacerse nuevas y decisivas preguntas.
La segunda condición está intimamente com la primera. Si la teologia
llega a suponer que es capaz de responder a las nuevas preguntas

217
BOFF, p.12
218
SEGUNDO, Liberacion...
87
sin cambiar su acostumbrada interpretación de las Escrituras, por de
pronto, termina el círculo hermenêutico. Además, si la interpretaçión
de la Escritura no cambia junto com los problemas, estos últimos
quedarán sin respuesta o, lo que es peor, recibirán respuestas viejas,
inservibles y conservadoras [...]. Estas dos condiciones suponem a
su vez cuatro puntos decisivos en el circulo. Primero: nuestra manera
de experimentar la realidad, que nos lleva a la sospecha ideológica;
segundo: la aplicación de la sospecha ideológica a toda la
superestrutura ideológica em general y a la teología em particular;
tercero: uma nueva manera de experimentar la realidad teológica que
nos lleva a la suspecha exegética, es decir, a la suspecha de que la
interpretación bíblica corriente no tiene em cuenta datos importantes,
y cuarto, nuestra nueva hermenêutica, esto es, el nuevo modo de
interpretar la fuente de nuestra fe, que es la Escritura, com los
nuevos elementos a nuestra disposición
219
.
Esta virada hermenêutica desnuda a real importância da religião cristã –
impregnada de forma visceral pela tradição na alma da mulher e do homem
latino-americano – que re-significada a partir dos gemidos de uma Anti-
conquista, revelou-se num poderoso instrumento de critica da própria tradição
colonizadora. A teologia da libertação na América Latina, neste sentido, vai-se
desenvolver em profundo diálogo com as fontes bíblicas da tradição judaico-
cristã e desenvolver na instrumentalização dessas tradições uma profunda
linguagem teológica como critica da realidade de opressão e colonização.
220
Este ponto é fundamental para responder à pergunta do teólogo
protestante Jürgen Moltmann, que questionou se o diálogo com “estes textos e
com este passado” não era simples submissão a uma tradição puramente
eclesiástica. Para Moltmann:
Surge um problema especial para a tradição e a liberdade cristã:
dentro dos limites da compreensão livre e possível da tradição e da
proclamação cristã como se poderá alcançar certo entendimento da
necessidade dessa proclamação? E como se chegará à necessidade
do entendimento e da apropriação precisamente desta tradição? Se
abrirmos o diálogo hermenêutico entre o texto cristão e o presente,
permanece a questão ainda não respondida nem suficientemente
considerada: por que dialogar precisamente com estes textos e com
este passado? Enquanto a teologia hermenêutica não responder,
viverá debaixo da tradição puramente eclesiástica que o texto lhe
apresenta. E assim, não deixa de ser, por outros meios, uma
continuação do tradicionalismo.
221
Duas questões aqui podem ser levantadas como fundamentais para uma
hermenêutica latino-americana da libertação dos textos sagrados judaico-
cristãos: a) a necessidade da crítica e desconstrução das bases traditivas que

219
Ibid,p.32
220
Um precioso texto é de Maximiliano Salinas. Dois modelos de leitura teológica da história
latino-americana. In: RICHARD, Raízes..., p.377-387.
221
MOLTMANN, p.39
88
deram lastros a toda narrativa de dominação da cristandade ocidental, b) e o
potencial crítico de uma religião popular que encontrou na religião cristã o
instrumento simbólico de resistência às estruturas políticas de dominação. É
neste horizonte hermenêutico que vai se desenvolver a significativa
contribuição do movimento bíblico latino-americano. Gestado no interior da
teologia da libertação na América Latina, como um subproduto desta, este
movimento vai reconhecer na Bíblia um livro que “se fez importante, ainda que
importado”
222
, fundamentando os fortes anseios de libertação dos povos latino-
americanos. Vislumbrando já a força desse processo de releitura bíblica na
América Latina, o teólogo Hugo Assmann afirmava já nos idos de 1980 que
“dentro de 20 anos nós teremos na América Latina uma tradição bíblica
diferente daquilo que significava a Bíblia na cultura norte americana, e
européia”.
223
Cumpriu papel fundamental nessa empreitada hermenêutica o
Movimento Bíblico Latino-Americano da Libertação, que demonstrou
claramente – e uso aqui as sábias palavras do biblista Milton Schwantes – que
“em meio aos embates pela libertação, religião e Bíblia são – ambas –
significativas, quando desvinculadas de seus respiros conservadores e seus
colonialismos da mente”.
224
2.3 O MOVIMENTO BÍBLICO LATINO-AMERICANO: TEOLOGIA DA
LIBERTAÇÃO E CRITICA DAS TRADIÇÕES NA AMÉRICA LATINA
A leitura da Bíblia na América Latina esteve durante toda a sua história
vinculada às estruturas ideológicas de dominação que reproduziram um
esquema de interpretação legitimador de assimetrias que estavam inseridas
numa tradição de longa duração que tem sua raiz no dogma da cristandade.
Realizada a partir de um lócus hermenêutico fundado na tradição da
cristandade católica romana, sendo assim expressão das seqüelas do
processo colonizador, ou mesmo reproduzida pelo fundamentalismo bíblico,
oriundo do protestantismo de missão dos países do Norte, a leitura da Bíblia
em terras latino-americanas sempre esteve por debaixo da tutela dessas

222
SCHWANTES, Anotações...,p.10
223
ASSMANN, p.11
224
SCHWANTES, Anotações..., p.16
89
instituições de mando e hierárquicas, absolutamente desvinculadas das
carências e da realidade dos pobres latino-americanos. Na contramão de toda
história interpretativa da Bíblia, veiculada pela tradição, e refletindo todo esse
processo de emancipação, nasce o Movimento Bíblico Latino-Americano da
Libertação que procurou, neste sentido, romper com uma tradição de longa
duração que determinou o lócus hermenêutico de leitura da Bíblia na América
Latina, que num bélico processo de colonização de mentalidades submeteu
toda uma civilização a um projeto histórico-teológico de vocação opressiva e
raiz sacerdotal, que instrumentalizado por uma instituição política e
eclesiástica, aniquilou de forma trágica e irreversível toda cultura religiosa
ameríndia, afirmando e submetendo uma civilização inteira a um “cristianismo”
que “penetrou em nosso continente sob o signo da opressão”.
225
Diante disso,
o Movimento Bíblico Latino Americano buscou submeter à tradição bíblica há
“um grande processo de purificação de suas expressões históricas”,
226
que
viesse assim possibilitar uma descolonização do imaginário religioso latino-
americano.
O cristianismo penetrou em nosso continente sob o signo da
opressão. Não apenas pelo fato que veio pela força, como religião do
conquistador, mas também pelo fato de que funcionou como uma
religião de opressão. Se o que origina a fé bíblica é uma experiência
de libertação que permite reconhecer Deus como “libertador”, a
América Latina não pôde ser evangelizada, pois nela Deus não pôde
ser “experimentado” como libertador (quando muito, por um desvio
daí decorrente, como salvador da alma para o céu ou de certos
pecados). Esse é um ponto decisivo. Em conseqüência, os
autóctones da América Latina ficaram com seus deuses opressores,
mas talvez menos opressores que o deus dos conquistadores...
Como autodefesa inconsciente, aceitaram formas cristãs para sua
cosmovisão tradicional. Desse modo, não se libertaram, mas pelo
menos proclamaram e ainda proclamam a sua miséria. Se a
evangelização (no caso, não poderíamos usar esse termo) não fez
com que a libertação fosse experimentada no plano econômico e
social, onde ela se dá de forma arquetípica e radical, então perdeu a
possibilidade de falar autenticamente do “Deus da libertação”. Assim,
para que a fé bíblica – em seu núcleo querigmático libertador – seja
crível para o homem latino-americano, ela precisa passar por um
grande processo de purificação de suas expressões históricas. E o
único modo de realizá-lo é através de uma nova experiência de
libertação.
227
É a partir desde signo de opressão-libertação que se dá o processo
operativo de leitura da Bíblia e a afirmação de uma hermenêutica latino-

225
CROATTO, Os Deuses da Opressão..., p.65.
226
Ibid, p.65
227
CROATTO, Os Deuses da Opressão..., p.66. Grifo meu
90
americana da libertação, que nasce a partir de uma interpretação da realidade
vital dos povos do continente latino-americano que agora experimentam e
percebem os textos bíblicos não com as amarras presentes nos óculos da
tradição, mas o fazem agora sob a ótica dos explorados. A hermenêutica
bíblica latino-americana da libertação não é neste sentido simplesmente mais
uma nova interpretação dos textos da tradição judaico-cristã, “mas supõe outro
processo”, que é a interpretação dos textos sagrados “a partir de determinadas
práticas ou acontecimentos”
228
que determinaram a vida e o destino de
milhares de homens e mulheres, a saber, o amplo processo de opressão e
colonização.
Essas novas possibilidades de leitura nascem a partir da ação de
exegetas orgânicos que refletem a partir dos anos de 1980 o processo de
emancipação crítica que se gestou nos países da América Latina. Importante
observar que a década de 1970 foi fundamental na gestação do movimento
bíblico latino-americano, que acompanhou um amplo movimento de re-
descoberta da Bíblia pelas camadas populares da sociedade. Com os pés
fincados nessa realidade de redescoberta nasce o movimento de leitura
popular da Bíblia, fruto de encontros populares e das celebrações nas
comunidades eclesiais de bases (CEBs), que buscavam uma correlação entre
leitura da Bíblia e a vida sofrida das comunidades das periferias latino-
americanas. No Brasil, fundamental para essa relação entre Bíblia e vida está à
figura do frei carmelita e exegeta Carlos Mesters,
229
um dos principais
inspiradores do movimento bíblico latino-americano. Para Mesters:
Esta leitura que os pobres fazem da Bíblia apresenta um novo
contexto que permite a exegese científica reencontrar-se com a sua
missão dentre da Igreja. Ou seja, ela oferece aos exegetas um
quadro novo dentro do qual é possível redescobrir qual deva ser o
“serviço da palavra” dentro da Igreja, mesmo o serviço daquele, cuja
vida se resume no estudo cientifico da Bíblia.
230
Neste período exercem uma grande influência as teses do educador
brasileiro Paulo Freire,
231
que contagiam uma geração de pensadores cristãos
que se encontram plenamente engajados num processo de resistência aos

228
CROATTO, Hermenêutica..., p.9.
229
Sobre Carlos Mesters ver: CAVALVANTE. T. A lógica do amor...; O método de leitura
popular da Bíblia...
230
MESTERS, Como se faz teologia..., p.10.
231
FREIRE, Pedagogia do oprimido...
91
mandos e dominação de uma cultura imperialista e eurocêntrica. O livro de
Carlos Mesters, Por trás das palavras – Um estudo sobre a porta de entrada no
mundo da Bíblia
232
, editado em 1974, marca a história da leitura da Bíblia na
América Latina e é sem nenhuma dúvida a primeira grande contribuição para a
hermenêutica bíblica latino-americana, lançando as bases de uma leitura
popular da Bíblia que possui um distintivo lócus hermenêutico: a opção
preferencial pelos pobres. Em 1978, por inspiração de Frei Carlos Mesters,
inaugura-se o CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) que desempenhou um papel
central no desenvolvimento da hermenêutica bíblica
233
, refletindo com muita
propriedade os fundamentos do método de aprendizagem da pedagogia
popular de Paulo Freire no processo de aprendizagem e leitura da Bíblia.
Pelo final da década de 1970, as bases hermenêuticas do processo de
releitura da Bíblia na América Latina já estavam postas. Gestava-se teologia
bíblica na periferia do mundo, empreendendo uma árdua reconstrução histórica
das raízes populares dos documentos sagrados de tradição judaico-cristã,
afirmando a partir de uma práxis de libertação os novos caminhos da
hermenêutica bíblica que buscava reconstruir as experiências dos oprimidos da
Bíblia. Em 1979 a biblista Elsa Tamez dá à luz a La bíblia de los oprimidos: la
opresión en la teologia bíblica
234
. Segundo Tamez:
La história que narran los distintos relatos bíblicos es una historia de
opressión e lucha, como lo es la historia de nuestros pueblos
latinoamericanos – en nuestra historia actual tambíen podemos
discernir la continuacíon de la revelación divina - . Por lo tanto,
creemos que reflexionar sobre opression-liberación no tiene que ver
com el tratamiento em sí de um tema bíblico más. Se trata del meollo
de todo el contexto histórico donde se desenvuelve la revelación
divina; y solo a partir de este centro podemos comprender los
significados de fe, gracia, amor, paz, pecado y salvación.
235
Implícito no texto da teologa Elsa Tamez está o pressuposto
hermenêutico fundamental que condiciona toda a leitura da Bíblia na América
Latina: a Bíblia como memória histórica dos pobres. Base de toda
hermenêutica teológica da libertação na América Latina, este eixo
hermenêutico promoverá uma mudança profunda nas ciências bíblicas
elaboradas em horizonte latino-americano. Em 1980, o teólogo Pablo Richard

232
MESTERS, Por trás das palavras...
233
SCHWANTES, Anotações, p.29
234
TAMES, E. La bíblia...
235
Ibid, p. 11
92
escreve um artigo simbólico, publicado em 1984 no primeiro número da revista
Estudos bíblicos, que trouxe como título de capa o título do artigo de Richard:
Bíblia: Memória histórica dos pobres. Assumindo radicalmente esse eixo
hermenêutico, Richard afirma que a “exegese e toda e toda explicação
cientifica da Bíblia só tem sentido quando se colocam a serviço desta primeira
leitura da Bíblia feita pelos pobres”.
236
De extrema importância neste artigo de Richard é o cuidado e crítica às
hermenêuticas fundamentalistas que funcionam como instrumento reificador de
consciências, usadas como instrumento de dominação, que em nome de um
texto sagrado e divino manipulam consciências e promove – como na ação
colonizadora –, uma espécie de colonização do imaginário, que desfaz toda
autonomia e consciência critica do individuo. Richard afirma:
Quando se absolutiza o texto bíblico, então se converte em lei e
instrumento de repressão da consciência histórica de um povo. Não
há pior dominação do que essa que se exerce em nome de um texto
“sagrado” e “divino”. O texto bíblico só é instrumento de libertação da
consciência religiosa quando lido a partir da história, mas uma
história de libertação, onde o homem é sujeito de seu próprio destino.
A absolutização do texto bíblico como palavra material e direta de
Deus é a máxima negação da história e do homem como sujeito de
sua própria história.
237
Richard afirma uma hermenêutica teológica que leve a sério o caráter
histórico da produção das tradições bíblicas, e assuma também a própria
historicidade do sujeito intérprete e sua consciência histórica. Rejeita toda e
qualquer abstração teológica universal que funcione como instrumento
heterônomo e coaja a afirmação de um sujeito que possui uma razão histórica
que se tornou soberana
238
e que se percebeu encerrado em uma tradição
teológica legitimada por um poder que nega sua própria consciência
emancipada. É neste horizonte que se instala uma consciência hermenêutica
latino-americana que busca através de uma crítica histórica das tradições,
reconstruír uma tradição que se emancipe de uma tradição colonial – que traz
como pano de fundo a conquista espiritual de uma civilização – resgatando
tradições de libertação de grupos oprimidos que possam oferecer um lastro
bíblico-teólogico na construção de uma teologia bíblica da libertação latino-
americana.

236
RICHARD, Bíblia..., p.20
237
Ibid, p.24
238
GADAMER, Hermenêutica v.II..., p.139
93
A hermenêutica latino-americana da libertação busca aproximar-se dos
textos sagrados judaico-cristãos procurando perceber os conflitos teológicos,
políticos e sociais que estão presentes no processo de formação dessas
tradições condensadas em textos. O interesse volta-se para o resgate de
elementos marginais da tradição bíblica que porventura pudessem ter sidos
cooptados num processo político e hierárquico presente na formação das
tradições canônicas. Entendidas como memórias populares, pressupõe-se que
essas tradições foram sendo assimiladas em narrativas canônicas oficiais,
perdendo assim seu caráter crítico e libertador. Trata-se na prática de uma
hermenêutica da suspeita que caracterizou o processo de recuperação
exegética das tradições bíblicas. Pressupondo as relações de poder e o
processo político na formação das tradições, Richard afirma ser a
hermenêutica da suspeita fundamental no processo de recuperação de
tradições.
Quando a tradição oral se fixava por escrito, corria-se o perigo de ela
ser manipulada e traída. Sobretudo porque esse processo de escrita
era realizado por sacerdotes e escribas, que normalmente
pertenciam às classes dominantes... Os levitas e sacerdotes
cumpriam a função de guardar as tradições e os testemunhos
bíblicos. Eram eles lidos diante do povo, nas festas religiosas, e o
povo podia assim verificá-los. Esse processo se tornou perigoso para
a memória histórica dos pobres, quando se uniram todos os
santuários populares no único templo de Jerusalém. A unificação dos
templos representa a unificação e fixação canônica das tradições
biblicas, com o subseqüente risco de manipulação por hierarquias
mais altas e maior poder cultural de dominação.
239
A exegese bíblica assume um claro papel orgânico na reconstrução das
tradições. O biblista latino-americano, instrumentalizado com as ferramentas
criticas do método histórico, assume-se como crítico das tradições
reconstruindo na perspectiva dos oprimidos uma tradição que se identifique
com o lugar social dos novos leitores: a periferia do mundo latino-americana.
Percebendo “a luta encarniçada que ocorre na produção e transmissão do texto
bíblico, a exegese deve descobri-la a partir da perspectiva do pobre”.
240
Assim
se forma o eixo hermenêutico de leitura da bíblia, que para Richard se dá a
partir de duas leituras.
A primeira feita pelos pobres e oprimidos... A segunda leitura, feita
por exegetas e eruditos. Essa segunda leitura deve-se pôr-se a

239
RICHARD, Bíblia..., p.27
240
Ibid, p.27
94
serviço da primeira, e a primeira deve ser a chave profunda de
interpretação da segunda.
241
M
unida com as ferramentas fundamentais da critica histórica essa nova
exegese bíblica latino-americana buscou revirar as tradições bíblicas pelo
avesso, rompendo assim com as interpretações da tradição que se serviam de
narrativas canônicas que silenciavam as memórias dos oprimidos e dos sem
voz, reconstruindo a partir de baixo, as memórias escondidas nos porões de
opressão de uma tradição canônica que tem como intrínseca vocação a
insistência em silenciar as vozes dos mais fracos.
Elaborou-se, neste sentido, na América Latina, uma pesquisa científica
da Bíblia que possuiu como intuição originária uma determinante opção pelos
pobres e silenciados, numa evidente pesquisa interessada que foi realizada a
partir dos reais conflitos latino-americanos, que, fundamentados numa exegese
científica, procurou resgatar e dar voz a grupos marginais das tradições
bíblicas do Primeiro e Segundo Testamentos. A chave desta leitura é sócio-
econômica, com o intuito de resgatar as origens materiais dos textos, buscando
assim uma relação com as reais condições de vida dos povos dessas
tradições. Resgatam-se vozes de resistência e gritos de protestos contra
estruturas de dominação que pudessem confrontar-se a leitura dos poderosos,
realizando uma tomada interessada de poder diante de uma história de
interpretação fundamentada numa tradição de fundo colonialista e ocidental. A
esse respeito testemunha o biblista Jorge Pixley:
Na América Latina estamos fazendo um questionamento deste tipo
de leitura da Bíblia a partir do poder, e o que pretendemos é
estabelecer a legitimidade de outra leitura, uma leitura a partir dos
pobres, das maiorias, dos fracos. Para atingir nosso objetivo nos
servimos da leitura acadêmica, que não deixa de ser outra leitura a
partir do poder. Fazemos isso para abrir brechas no controle das
Escrituras pelo poder eclesial. Mas nosso objetivo não é contrapor a
uma leitura a partir do poder eclesial outra a partir do poder da
academia. Antes, servindo-nos das técnicas da ciência acadêmica,
nos propomos construir com a leitura nas comunidades populares
outra leitura legitima da Bíblia a partir de um poder que ainda não é,
mas que com a ajuda de Deus um dia será.
242
Neste processo de emancipação e resignificação da tradição, como
processo de afirmação de uma hermenêutica bíblica latino-americana da
libertação, exerceu fundamental relevância a contribuição das ciências

241
Ibid, p.24
242
PIXLEY, A bíblia não tem dono... p.106
95
históricas e sociais que permitiram uma abordagem critica a partir dos baixos
estratos culturais, uma abordagem sócio-cientifica de reconstrução da tradição,
fundada em movimentos sociais populares de mudança que possibilitaram a
elaboração de uma exegese histórico-social das tradições bíblicas com lastros
de cunho emancipatorio e crítico.
243
Minavam-se na América Latina as brechas do controle das escrituras
pelo poder eclesial, num processo crítico de desconstrução e reconstrução das
tradições bíblicas judaico-cristãs, afirmando uma hermenêutica da libertação
que ampliou esforços para desconstruir uma sedimentada tradição cristã
ocidental, construída em quase 2000 anos de historia do cristianismo no
Ocidente, que é base fundamental do projeto histórico-teológico de dominação
da cristandade. Neste movimento crítico de reconstrução da tradição, buscam-
se as raízes sociais dos textos das escrituras, identificando-se com algumas de
suas porções, entendidas como memória histórica dos pobres e rejeitando
porções dessa mesma sagrada escritura que estão na origem de todo processo
de dominação, reconstruindo assim uma tradição identificada com os mais
profundos anseios latino-americanos.

243
SCHUSSLER-FIORENZA, E. Jesus..., p.25
96
CAPITULO III
A BÍBLIA À MERCÊ DA HISTÓRIA: O LÓCUS HERMENÊUTICO DA
MODERNIDADE
O desenvolvimento das ciências bíblicas tem fundamental importância
no processo de releitura das tradições bíblicas na América Latina. Seu
nascimento é decorrente do longo processo de emancipação intelectual e
revolucionária que varreu o Ocidente a partir do século XVI, oferecendo os
primeiros indícios de abalo da piedade teológica medieval que afirmou o árduo
processo de desempoderamento da Bíblia das estruturas hierárquicas da Igreja
cristã. A hermenêutica bíblica da libertação na América Latina é herdeira desse
processo de emancipação da tradição eclesiástica que foi gestado no Ocidente,
levando uma parcela de cristãos a “se aventurarem por um caminho que os
afastaria das certezas e das santidades do passado”.
244
O processo de
secularização abalou as bases e as estruturas hierárquicas da cristandade,
forjando um homem novo que gradativamente ia se desprendendo de uma
hierarquia medieval que controlava e determinava o sentido das escrituras.
A vida na Europa se secularizava lentamente, e a Reforma protestante,
apesar da intensidade de seu estímulo religioso, também secularizava.
Os reformadores diziam, como os conservadores, que estavam
retornando à fonte primária, à Bíblia, mas a liam a maneira moderna. O
cristão reformado devia postar-se sozinho diante de Deus, contando
apenas com a Bíblia, porém isso não seria possível sem a invenção da
imprensa, que permitia a todos os fiéis terem seu próprio exemplar das
Escrituras, e sem a difusão da alfabetização. Cada vez mais se lia a
Bíblia literalmente, à cata de informação, mais ou menos como os
protestantes modernizadores estavam aprendendo a ler outros textos.
A leitura silenciosa e solitária ajudaria a libertar os cristãos das formas
tradicionais de interpretação e da supervisão dos especialistas
religiosos. A ênfase na fé individual também contribuiria para fazer a
verdade parecer cada vez mais subjetiva – uma caracteristica da
moderna mentalidade ocidental.
245
O processo de ruptura experimentado no século XVI com o Renascimento e as
Reformas protestantes, “expressou muito dos ideais da nova cultura que
emergia do Ocidente”
246
, e abriu as portas do mundo sagrado da Bíblia para a
cultura científica, desencadeado pelo nascimento das ciências bíblicas que

244
ARMSTRONG, Em nome..., p.81
245
Ibid, Em nome..., p.86
246
ARMSTRONG, A Bíblia..., p.172
97
colocou os escritos sagrados da tradição judaico-cristã à mercê da crítica
histórica. O postulado reformador da sola scriptura inaugurou um processo de
secularização na leitura da Bíblia, fazendo com que essa leitura “não parasse
com os pais da Reforma, mas que tivesse continuidade e desembocasse numa
interpretação realmente histórica da Bíblia”
247
. O desenvolvimento da cultura
científica traria um definitivo rompimento “com a tutela da tradição ortodoxa”
248
,
colocando abaixo toda interpretação que se firmava nos dogmas e na tradição
eclesiática, fazendo emergir uma consciência histórica que inquiriria o passado
a partir de uma razão emancipada que postulava a necessidade crítica de
avaliação do passado e da tradição apresentada no texto bíblico.
A crítica histórica possibilitou uma avalanche na interpretação das
tradições bíblicas, colocando diante das tradições escriturísticas não um leitor
piedoso e submisso às tradições e aos dogmas da Igreja, mas um leitor
moderno que trazia em sua tradição interpretativa o postulado moderno da
dúvida e da crítica das tradições, fazendo com que as “vacas sagradas” (Bíblia,
tradição, autoridade) fossem retiradas “dos pedestais que as imunizavam
contra toda crítica”
249
. Surge assim
uma nova maneira de investigar o passado através de uma análise
crítica e criteriosa das fontes, dos documentos históricos (...). O
problema da crítica das fontes e da história traditiva tornou-se, na
exegese bíblica, o problema mais importante. A atitude crítica frente às
fontes literárias mostra que, a partir da época de Kant, o ser humano
assumiu uma nova posição diante da tradição literária, perguntando
pela autenticidade, veracidade, fidelidade das fontes.
250
A instância crítica se tornou assim o lócus hermenêutico de leitura da
Bíblia na modernidade, possibilitando uma avaliação histórica da tradição, que
permitiu uma operatividade interpretativa situada acima da autoridade e da
tradição eclesiástica que determinou a partir de uma hermenêutica canônica o
sentido de todo corpus bíblico. A hermenêutica bíblica moderna colocou as
tradições bíblicas à luz da história, situando a partir do método histórico-crítico
o lugar histórico em que as tradições bíblicas tomaram forma.
251
Situado na

247
VOLKMAN, A origem do Método..., p.19
248
Ibid, p.17
249
STEIN, p.5
250
DOBBERAHN, Sobre a História do Método..., p, 38
251
Ibid, p.10
98
tradição de emancipação das luzes da modernidade (Aufklärung),
252
o método
histórico possibilitou uma hermenêutica reflexiva capaz de avaliar os projetos
apresentados pelas tradições bíblicas, apresentando-se como uma
hermenêutica crítica capaz de emancipar-se de toda autoridade e tradição. A
partir da erupção de uma consciência histórica forja-se um projeto crítico
responsável por um processo de conscientização
253
capaz de afirmar um juízo
crítico e histórico das tradições, situando-se dentro de uma tradição de
emancipação (Aufklärung)
254
, que é também parte dos “gemidos da criação”,
255
que proclama “exigências de liberdade” diante de “instituições que se
convertem em estruturas de violência e dominação”
256
.
3.1. O RENASCIMENTO E A(S) REFORMA(S): PISTAS DE EMANCIPAÇÃO
A crítica humanística, responsável pela renovação espiritual de
significativa parcela da civilização ocidental, conduziu à exigência de um novo
universo de pensamento que, em meio ao mundo ortodoxo, ao mundo
rigidamente eclesiástico, fez irromper uma “paixão heróica pelo homem”, que,
possesso pelo novo espírito da crítica moderna, começou a se conscientizar de
sua força e de seu instrumental intelectual.
257
O espírito do Renascimento
possibilitou a emergência de uma nova consciência histórica ao homem
europeu e dois eixos fundamentais deram norte à reflexão do homem do
Renascimento: liberdade e conhecimento. Ernest Cassirer afirma:
A discussão teórica sobre a liberdade da vontade é introduzida pela
obra De libero arbítrio, de Lorenzo Valla... A crítica volta-se
primeiramente para os fundamentos morais e jurídicos do sistema
hierárquico. Através do ataque à doação de Constantino, já iniciada
por Nicolau de Cusa em sua obra De concordantia catholica, mas
empreendido agora com novas armas e com um rigor muito maior,
Valla demonstra de forma cabal a nulidade da pretensão jurídica da
Igreja à soberania secular. E a esta contestação jurídica dos
fundamentos da hierarquia corresponde a contestação ética que
Valla empreende em sua obra De professione religiosorum. Também
aqui o conteúdo religioso como tal não é diretamente tocado em
nenhuma passagem; não obstante, Valla posiciona-se
veementemente contra a pretensão de que tal conteúdo esteja
corporificado exclusiva ou preferencialmente numa única forma de

252
RICOEUR, p.107
253
STEIN, História…, p. 9.
254
RICOEUR, Interpretação…, p.145
255
Ibid, p.172
256
STEIN, História…, p. 8.
257
CASSIRER, Indivíduo..., p.130
99
vida e numa forma social particular. A essência da religião e da
devoção consiste de uma relação livre que se estabelece entre o eu,
o sujeito da fé e da vontade, e a divindade. A particularidade de tal
relação perde sua identidade, chega mesmo a ser aniquilada, se
essa relação é tomada no sentido de uma obrigação jurídica, exterior;
se se acredita ser possível elevar o valor de uma disposição
puramente interior ao se lhe agregar uma determinada conduta
exterior. Tal conduta não existe; não existe um fazer ou um deixar de
fazer que possa ser comparado à devoção, à entrega do ser, ou
possa elevar sua importância ético-religiosa: omnia dat, qui se ipsum
dat (quem se dá, dá tudo). Para esta concepção – orientada a partir
do sujeito, e não do objeto, a partir da “fé” e não das “obras” –, não
mais é possível que o elemento religioso seja oficialmente
representado, por assim dizer, por uma instância qualquer: non enim
in solid cucullatis vita Christi custoditur (não somente na gente
encapuzada a vida de cristo se guarda). Do momento em que se
liberta da estreiteza dessa hierarquia, o pensamento, assim como a
ação, adquire uma amplitude absolutamente nova
258
.
As profundas transformações espirituais do homem europeu, que por
sua vez possui uma natureza saturada de cristianismo e de hierarquia, moldam
um homem novo, capaz de perceber com olhos críticos os fiéis intérpretes de
uma religião clerical: “esses intérpretes das coisas divinas que estão sempre
prontos a acender-se com pólvora, tem um olhar terrivelmente severo, e numa
palavra são inimigos muito perigosos”
259
. As palavras de Erasmo de Rotterdam
revelam um espírito crítico, gestado numa vasta paisagem que se estende do
fim do século XIII até a aurora do século XVII,
260
que oferecia os primeiros
indícios aos abalos que sofreriam as estruturas hierárquicas de uma
cristandade que impregnava a alma da civilização ocidental.
Expressão de um período de transição, o Renascimento foi espelho das
transformações de uma estrutura mental religiosa, que, em processo de
mutação, foi gradativamente se desprendendo dos laços religiosos medievais,
esculpindo, inspirado na beleza artística dos clássicos da Antiguidade, um
homem emancipado de uma ortodoxia eclesiástica.
A revolução que se produzia nas inteligências era, em sua verdadeira
natureza, essencialmente religiosa: o homem, cessando de ser vítima
do pecado original, recobrava sua pureza primitiva e seu direito de
degustar livremente dos frutos do paraíso; apesar da proibição
antiga, promulgada por todas as Igrejas que se sucederam na
história, tinha direito sobre toda a árvore da ciência: inocência e
ignorância haviam deixado de ser sinônimos. Nem todos os
humanistas foram homens de grande caráter; entre eles houve
aqueles sem consistência e dignidade, hipócritas, aduladores e

258
Ibid, p. 131
259
ROTTERDAM, p. 3
260
DELUMEAU, A civilização..., p.20
100
parasitas, e sua ação educadora foi por isso apequenada; mas nem
por isso deixaram de produzir novos conhecimentos, nem foi
obstáculo para que abrissem escolas, nem para que representassem
a ciência contra os que, com São Paulo e Santo Agostinho,
recriminavam contra a “absurda fé.
261
O Renascimento semeou no Ocidente cristão essa tão outra bela face
da fé: a incredulidade. Proclamava-se o princípio crítico do livre exame do
passado a partir das fontes clássicas, colocando a razão como critério de
discernimento, que substituía as lentes embaçadas de um olhar que só era
capaz de enxergar o real a partir dos óculos pessimistas da tradição. A paixão
pelo conhecimento da cultura humanista e seu espírito crítico foram muito bem
representadas por figuras como Rabelais e Erasmo de Rotterdam. Sobre este
último, escreveu Lucien Febvre: “encontraremos la afirmación de que la
naturaleza humana es congenitamente buena”
262
. Afirma Febvre:
A grandes rasgos, el catecismo de los gigantes es precisamente el
catecismo erasmiano del Enchiridion, del Elogio y de los Adagios.
Pocos artículos y ninguna sutilidad teológica. Cristo en el centro de la
vida religiosa, Cristo y el Evangelio interpretado con buena fe. Entre
Dios y el hombre, ninguma mediación inútil: la virgen y los Santos,
colocados en el lugar que les corresponde, solo tienen un cometido
secundario y lejano. No hay pessimismo: la mácula del pecado
original está sabiamente atenuada; la confianza, proclamada en la
virtud própria, en la honestidad característica de la natureza humana;
el deber moral, em suma, puesto en primer plano... Abramos el
segundo Hyperaspitae de Erasmo, que apareció em septiembre de
1527, dirigido contra Lutero, del que Renaudeut escribió: “Nunca
antes la religión de Erasmo, su concepción de la gracia divina sabia y
liberalmente ofrecida a todas las almas, la repugnância instintiva de
sua razón y de su corazón ante la Idea luterana de un Dios feroz y
colérico había encontrado uma expressíon más humana” Y añade:
“Jamás el irracionalismo de Erasmo se habiá enfrentado más
diretamente al irracionalismo luterano”. Erasmo a poco de instalarse
em Friburgo, em 1529, encontraremos la afirmación de que la
naturaleza humana es congénitamente buena. Sin Duda la doctrina
Cristiana, Christiana philisophia, nos enseña las consecuencias de la
falta de Ádan y la inclinación al mal que se instalo em nosotros desde
entonces. Eso es cierto. Pero no vamos a acusar a la naturaleza
infantil más de lo que se merece: praeter meritum accusare naturam.
Esa naturaleza, por si mesma, se inclina al bien y no al mal. Y
Erasmo lo precisa. “El perro nace para cazar, el pájaro para volar, el
caballo para correr, el buey para arar; el hombre, para amar la
sabiduría y las buenas aciones”. Así puede definirse la naturaleza del
hombre: “una inclinación, uma propensión profundamente institiva
hacia el bien”.
263

261
RECLUS, p.112
262
FEBVRE, El problema..., p.221
263
Ibid, p.221
101
Esse espírito crítico dos humanistas do Renascimento que reagia à
síntese teológica da Igreja medieval foi de fundamental importância para o
movimento crítico de leitura da Bíblia que colocou as tradições bíblicas à mercê
da crítica histórica. Este espírito humanista da religião de Erasmo almejava
purificar o cristianismo, sujeitando todas as tradições à critica da razão e
proclamando uma religião individualista que proporcionasse aos fiéis um livre
acesso ao texto da Bíblia. Delumeau afirma a respeito:
O renascimento quis ser regresso às fontes; ora essa vontade
manifestou-se notoriamente – e talvez principalmente – no domínio
da fé. De Lorenzo Valla e Erasmo, passando por Lefèvre d’Étaples e
por Reuchlin, o humanismo cristão foi unânime no duplo desejo de
purificar a Escritura das traduções defeituosas e dar aos fiéis o
verdadeiro texto da Bíblia. Um ano antes de Lutero entrar em cena,
Erasmo exprimia este voto capital: “Eu desejava que todas as
mulheres simples lessem o evangelho e as epístolas de Paulo. Que
sejam traduzidos em todas as línguas! Que o lavrador cante
extractos ao empurrar a charrua, que o tecelão os cantarole a meia-
voz quando estiver a tear, que o viajante abrevie a estrada com
essas conversações”. Ora os humanistas iam, neste ponto, ao
encontro das aspirações profundas do seu tempo. Uma devoção
mais individualista que a do passado só podia desejar este contato
pessoal com a mensagem divina.
264
Erasmo de Rotterdam foi um desses vultos de emancipação e
genialidade do século XVI. O religioso agostiniano absorveu às escondidas os
clássicos latinos, poetas filósofos e eruditos, descobrindo sua forte vocação de
literato
265
. Expressou o espírito do Renascimento, gerador de um espírito crítico
e de relativismo
266
, e apagou com sua lucidez humanista as chamas do inferno
medieval, demonstrando com audácia e prodigalidade no século XVI que as
chamas diabólicas das narrativas dos evangelhos que proclamam um inferno
não passavam de retórica evangélica, e deveriam ser lidas como metáforas.
267
Entre 1516 e 1519 Erasmo edita sua edição crítica do Novo Testamento
grego. Filólogo erudito, o teólogo de Rotterdam oferece os primeiros caminhos
para uma leitura crítica da Bíblia, desvinculando, assim, os textos sagrados de
uma exegese medieval, feita a partir de pressupostos dogmáticos e mandos
eclesiásticos. Eram os inícios de uma crítica histórica da Bíblia, onde os textos
bíblicos eram revisitados em seus originais com o auxílio daquela que se
tornou a ciência por excelência do Renascimento: a filologia. Esta por sua vez

264
DELUMEAU, A Civilização..., p.146
265
FEBVRE, El Problema..., p.217
266
DELUMEAU, A Civilização..., p.46.
267
FEBVRE, El Problema..., p.223
102
promoveu o nascimento de uma verdadeira crítica textual.
268
A partir da edição
de Erasmo, a pesquisa bíblica começou a alçar rumos para uma crítica
histórica das tradições bíblicas. O pesquisador holandês Hans de Wit afirma:
Los comentários de Erasmo de Rotterdam (c.1446-1536) son un
buen ejemplo de cómo cambia la manera de interpretar el texto
bíblico. La visión de lo que es un texto cambia. El texto resulta
mostrar giras retóricas, peculiariedades gramaticales y literárias. ‘En
Erasmo una comprensíon retórica del texto toma el lugar de la
alegoresis medieval’, observa Débora Kuller (Kuller 1994:11ss). La
función retórica del texto llega a ser importante. Los grandes filósofos
clásicos, traducidos (del árabe) y redescubiertos por el Renacimiento,
hacen sentir su influencia. Intérpretes como Erasmo usan lo que
pueden de las observaciones de los autores clásicos sobre lá
retórica, la gramática y los aspectos literarios de textos. Em vez de
ser vehículo de sutilezas teológicas, el texto resulta tener referencia
social e histórica y um transfondo histórico. Ahora los intérpretes
quieren saber lo que realmente pasó. Se comienza a buscar la
intencion del autor (voluntas auctoris). Hay interes por los contornos
sociales, políticos y culturales de la época em que vivieron los
autores bíblicos.
269
O Renascimento descobre o caráter humano das escrituras e escancara
as portas para uma pesquisa cientifica da Bíblia. Desvinculado da tutela da
instituição eclesiástica, muda-se o estatuto do texto bíblico e o mesmo passa a
ser objeto também de pesquisa científica. Já pelos finais do século XVI
estabelece-se uma comunidade de intérpretes científicos das sagradas
escrituras espalhada por toda Europa, denominada de Respublica litterarum
sacrarum: comunidad de científicos de la Sagrada Escritura.
270
O século XVI
caracteriza-se pela erupção das gramáticas, a lexografia e grande tradução de
textos da Antiguidade. A interpretação de caráter filológico do texto bíblico
inaugura uma revolução na leitura da Bíblia agora gradativamente desvinculada
das instituições eclesiásticas. Em sua maioria, os exegetas do Renascimento
eram profundos conhecedores das línguas antigas e os textos bíblicos passam
a ser analisados através de todo aparato científico e filológico. A exemplo do
comentário crítico de Erasmo, ganha corpo a comparação do texto latino com o
texto grego – Lutero aprendera com Erasmo que metanoia, que a Vulgata
traduzia por poenitentiam agere (“faz penitência”), significava uma “reviravolta”
de todo o ser cristão, e não significava confessar-se – e o corpus bíblico
começa a ser problematizado, perguntando-se, assim, pela origem e

268
PELLETIER, p.25
269
DE WITT, En La dispersion…, p.84.
270
Ibid, p.83
103
autenticidade dos textos. A reconstituição histórica de um texto se torna regra
de interpretação, demonstrando interesse em reconstituir o sentido literal e
histórico, expressão de uma nova consciência histórica e filológica dos críticos
do Renascimento. Importante lembrar, segundo Pelletier:
Que esses trabalhos são estreitamente solidários da revolução que
introduziu no coração do século XV a invenção da imprensa, cujas
conseqüências não foram somente facilitar a reprodução e a
circulação dos textos. Na verdade, quando surge, em 1445, em
Mayence, a “Bíblia de quarenta e duas linhas” de Gutenberg, é de
certo modo uma nova Bíblia que faz sua aparição. Ao multiplicar de
modo inédito o texto bíblico entre novos grupos de leitores, a
imprensa revoluciona, na verdade, as leis de sua interpretação. Até
então as escrituras, reconhecidas como corpus Christi, haviam sido
mantidas e administradas pela instituição eclesial, que se forçava em
captar seu sentido num gesto quase sacramental, e em solidariedade
com as vozes das gerações anteriores que formavam a tradição. De
agora em diante, a Bíblia torna-se verdadeiramente um livro, quer
dizer, um objeto subtraído à oralidade da pregação e oferecido à
leitura particular. Uma situação que iria, um século mais tarde,
compor as relações complexas com a problemática escritural da
reforma.
271
Fundamental para a compreensão das transformações da leitura da
Bíblia desde o século XVI, decorrente de toda efervescência cultural da
Europa, foi essa novidade que abalou o ocidente cristão: as reformas
protestantes.
272
A nova doutrina da sola scriptura dos reformadores tornou
obrigatória a leitura da Bíblia em seus originais e desencadeou um compulsivo
processo de tradução dos textos bíblicos para as línguas vernáculas. Em 1522,
servindo-se do Novo Testamento grego de Erasmo, Lutero traduz a Bíblia para
o alemão, e, seguido de doze anos, em 1534, completou sua tradução do
Antigo Testamento.
273
Para Martin Volkmann, “não é possível entender o que
aconteceu com a pesquisa bíblica sem ter consciente na memória a novidade
desencadeada na Reforma em relação à Bíblia”
274
. Afirmando de forma
notável uma consciência da historicidade do texto bíblico, a Reforma
Protestante proclama a liberdade de avaliação crítica dos textos das Escrituras,
chegando ao âmago de sua literalidade, abandonando, assim, a prática de uma
exegese medieval que se firmava na tradição.
A hermenêutica dos reformadores rompe com o sentido quádruplo da
interpretação bíblica patrística e medieval e proclama a recuperação do sentido

271
PELLETIER, p.26
272
FEBVRE, Lutero...
273
ARMSTRONG, A Bíblia... p.163
274
DOBBERAHN, Sobre a História do Método..., p.41
104
literal do texto bíblico (sensus litteralis). Para Lutero e a exegese protestante,
sentido literal (sensus litteralis) e sentido espiritual (sensus spiritualis) estão
intimamente vinculados, na medida em que o sentido literal revelaria o sentido
espiritual das escrituras. Neste sentido, a exegese protestante funde em um
mesmo bloco o sentido literal e o sentido espiritual das escrituras.
275
Vale
salientar que a hermenêutica reformada, ainda que possua reflexos
renascentistas, não é totalmente possuída pelo espírito emancipado do
Renascimento e tem sua origem no conflito teológico acerca da indulgência e
da justificação, travado com a Igreja Católica Romana.
276
O principio da sola
scriptura protestante tem assim sua raiz num conflito histórico-teológico que
coloca em questão a autoridade humana e papal de perdoar pecados. Desse
conflito derivam as bases hermenêuticas da Reforma. A Bíblia é colocada pela
Reforma como única fonte de revelação e não há nenhuma instância superior
que determine seu conteúdo, pois ela é interpretada a partir de si mesma, pois
ipse per sese certíssima, facillima, apertissima, sui ipsius interpres (por si
mesma muito certa, fácil, aberta; ela é o seu próprio interprete).
277
Para Lutero,
“um simples leigo armado com a Escritura merece mais crédito que um papa
ou um concílio sem ela”
278
. Pelletier afirma:
O primeiro efeito da Reforma foi portanto subtrair o texto bíblico ao
seu controle tradicional. Em contrapartida – e fortalecido pelas
evoluções já evocadas –, surge um novo tipo de fiel. E assim também
um novo tipo de leitor, que tem acesso a Bíblia sem mediação, e que
se relaciona com ela em uma espécie de “testa ao texto”, para
retomar a expressão de um poeta contemporâneo. “Sola scriptura”,
declara Lutero. A Bíblia basta, e se basta a si mesma: de um lado,
todo o conteúdo da fé está aí formulado, de outro, é preciso
encontrar no interior do texto os recursos necessários para resolver
os problemas que podem se colocar.
279
Sola scriptura para os reformadores é uma confissão sacramental. Nela
se revela a alma de toda teologia cristã. Lutero manejava sua Bíblia usando
argumentos históricos e filológicos para encontrar a verdadeira doutrina que se
contrapunha a todos os papas e concílios. A escritura, e somente ela, possuía

275
PELLETIER, p.31
276
DOBBERAHN, p.41. Importante observar que esse questionamento da tradição é fruto das
contribuições do renascimento. Segundo Volkmann: “Isto acontece justamente na época do
humanismo quando, no século XVI, também surgiram as primeiras obras e pesquisas históricas
da Idade Média que duvidavam, por meio de análises detalhadas de documentos históricos, da
supremacia do Papa”. p.41
277
VOLKMAN, p.11
278
ARMSTRONG, A Bíblia... p.162
279
PELLETIER, Bíblia…, p.29
105
a autoridade de palavra divina. Em Lutero, sentido literal e espiritual se
confundem, e o segundo se sobrepõe ao primeiro, revelando o sentido místico
de sua interpretação, ainda sobremaneira carregada de uma mentalidade
medieval. Foi neste sentido que a Reforma afirmou o sentido literal das
escrituras, porque nele está contido o sentido espiritual e como conseqüência
disso, afirmou também a clareza das escrituras (claritas Scripturae), que não
precisava de nenhum concilio ou tradição para ser interpretada.
280
Para o
reformador, segundo Volkmann:
O logos da Bíblia em si tem de ser plenamente compreensível. Mas
em que sentido “plenamente compreensível”? No sentido científico
de um método histórico? Não! É da sua mensagem geral, ou seja,
cristológica salvadora, que irradia uma “força iluminadora” a qual
ensina a compreender até “trechos” filologicamente “escuros e
abstrusos”. Assim, o principio da claritas Scripturae Sacrae mostra
que Lutero viu na exegese histórica do sentido literal apenas um
instrumento, com o qual podiam-se denunciar interpretações
alienantes da Bíblia.
281
O sensus literalis era assim também uma forma de reagir ao fato de não
mais haver nenhum corpo autorizado para interpretar as escrituras, e os
reformadores logo perceberam o imbróglio político em que estavam envolvidos,
pois a cada momento novos grupos protestantes proliferavam-se, cada um
proclamando a veracidade de sua interpretação.
282
Diante disso observou
Lutero, o mais novo e auto-proclamado papa unificador da Alemanha,
perguntando, “quem dará à nossa consciência informação segura sobre quem
está nos ensinando a pura palavra de Deus, nós ou nossos oponentes? Deve
todo fanático ter direito de ensinar o que bem entende?”
283
. Cientes da
responsabilidade do controle institucional de uma nova cristandade que nascia
no interior da Europa, os reformadores logo perceberam que, após a rejeição
da peça central do arranjo estrutural da teologia clássica, a Igreja, guardiã das
escrituras, deveriam agora buscar um rearranjo estrutural de poder que
pudesse salvaguardar a estrutura hierárquica de interpretação, pois, como
bradou Calvino, “se todos têm direito de ser juiz e árbitro nessa matéria, nada
pode ser considerado certo, e toda a nossa religião estará cheia de incerteza”

280
DOBBERAHN, p.43
281
Ibid, p. 42
282
ARMSTRONG, A Bíblia..., p.173
283
LUTERO apud ARMSTRONG, A Bíblia..., p.173
106
284
. O sensus literalis é, neste sentido, o lastro dogmático dos reformadores
contra a Igreja Romana e toda a gama de intérpretes que se situa no espírito
individualista do Renascimento, que conheceu seus lampejos já no século XII,
demonstrado pela mente fértil do saudoso moleiro Menocchio de Carlo
Ginsburg.
285
Para Calvino, a exegese e o sentido literal são apenas uma fase
em todo processo de interpretação, pois a verdadeira intenção é elaborar o
significado dogmático do texto,
286
que acabou legitimando as fogueiras
inquisitórias de Genebra. Ambos, Lutero e Calvino, não foram profundamente
tocados pela lucidez erasmiana do Renascimento. O primeiro era um homem
medieval brilhante, mas atormentado pela religião e vivia constantemente em
estado de fúria contra todos aqueles que contrariavam seus princípios
religiosos: o papa, turcos, judeus, mulheres, camponeses rebeldes e cada um
de seus opositores teológicos.
287
O segundo era também um brilhante teólogo
sistemático, rígido, dogmático, mas com grande disposição em executar os
dissidentes de sua Igreja. Ambos estavam profundamente comprometidos com
questões eclesiásticas e não perceberam os ventos renovadores da revolução
renascentista.
288
Estavam os dois reformadores possessos pelo mesmo
espírito de Agostinho, invadidos por uma verdade disposta a ir à guerra,
armados com um arsenal contra Aristóteles e sua vontade livre, que como seta
diabólica, inspira as hostes humanistas, inimigos da cruz: “Erasmo, o seu livre
arbítrio, o seu moralismo, o seu cristianismo, oh! Blasfêmia! – bradava
Lutero”.
289
Avaliando os ventos transformadores da Reforma protestante, o teólogo
protestante Jonas Rezende observou a estrutura mental medieval que ainda
pairava como sombra sob a pessoa do reformador Martinho Lutero.
Lutero chega a Roma justo na efervescência cultural que ficou
historicamente conhecida como Renascimento. E esse momento rico
e revolucionário não foi sentido e captado por ele. Martinho Lutero
avaliou com muito cuidado tudo que pôde ver e teve as atitudes
previsíveis de um religioso típico da Idade Média. Talvez por isso, a
Reforma protestante não tenha sido mais funda e radical.
Representou apenas uma ação restauradora ou o retoque cosmético
e não a necessária seqüência da revolução que já varria o mundo

284
CALVINO apud ARMSTRONG A Bíblia..., p.173
285
GINSBURG, O queijo...
286
DE WIITT, p.81
287
ARMSTRONG, A Bíblia..., p.171
288
REZENDE, Deus..., p.17
289
FEBVRE, Lutero..., p. 73.
107
com a fúria incontida das mudanças absolutas, culminando por tudo
coroar com a verdadeira festa das conquistas culturais, como
sucedeu no renascimento.
290
Mas o fato é que a Reforma produziu uma transformação radicalmente
profunda, no que trata da leitura da Bíblia no Ocidente cristão, contribuindo
para uma reviravolta na história da exegese bíblica.
291
A compreensão de que
sem o sentido literal não se acessa o sentido espiritual do texto bíblico levou a
exegese protestante a agregar muito valor ao sentido histórico do texto, pois,
“sem e independentemente do sentido histórico literal não se tem o sentido
espiritual. Este último, por sua vez, é salutar; e unicamente ele, veiculado pelo
sentido histórico-literal, leva à fé”
292
. Os comentários exegéticos dos
reformadores possuem um valor inestimável para a história da teologia bíblica.
Hans de Wit afirma:
Sea como fuera la disputa de los Reformadores con los demás
intérpretes, debemos reconocer que en la Reforma nace una nueva
manera de acercarse al texto bíblico. Es difícil sobrestimar el valor de
los trabajos exegéticos que se producen en aquel entonces.
Comentários como los de Calvino son realmente nuevos. Es
impresionante ver cómo y cuánta disciplina y rigor metodológico se
toma, analiza e interpreta el texto bíblico. Mucho de lo que en la
hermenêutica y semiótica modernas se reinventa, recibe su primera
forma de expresíon en aquel tiempo. Exégetas como Calvino
valorizam y explotam tanto la gramática del texto, como su aspecto
referencial y su capacidad de generar uma nueva práctica.
293
A disciplina, o rigor metodológico, o anseio de encontrar o sensus
literalis da única fonte de fé e justificação, a Bíblia, fez dos reformadores
exímios exegetas de seu tempo, ainda que carregados de seus pressupostos
dogmáticos. A centralidade da Bíblia, afirmada na sola Scriptura dos
reformadores, conduziu a uma verdadeira avaliação crítica das escrituras pelos
teólogos reformados que deram passos adiante aos da Reforma, dando
continuidade a uma interpretação realmente histórica da Bíblia.
294
A reforma, com o postulado de que a Escritura é a única fonte de
Revelação, coloca-a como centro das atenções e desencadeia com
isso o surgimento da ciência bíblica. Tal concentração na Escritura
leva, por outro lado, a um posicionamento crítico frente à Escritura
que desembocará na análise histórico-crítica da Bíblia.
295

290
REZENDE, Deus..., p.17
291
DOBBERAHN, p.40
292
Ibid, p.40
293
DE WITT, p.82
294
VOLKMANN, p.19
295
Ibid, p.12
108
O desenvolvimento da crítica bíblica vai contribuir de forma concreta
para uma análise histórica das tradições bíblicas, enriquecendo profundamente
a teologia bíblica a partir do século XVII e XVIII. O surgimento do método
histórico-crítico possibilitou uma crítica dos documentos bíblicos, analisados
não em vista de estabelecer uma teologia dogmática e afirmar o establishment
da teologia clássica, colocando a crítica histórica como instrumento
fundamental para análise da Bíblia e perguntando-se pela realidade histórica
que está por trás dos textos bíblicos. Pelletier – em sua interessada obra que
insiste na retomada e importância da tradição dos “pais espirituais do Ocidente”
– avalia essa revolução nos estudos bíblicos, considerando os “perigos” da
afirmação do sentido literal dos textos bíblicos, que, desde o século XVI,
revolucionou a leitura da Bíblia e a colocou à mercê da crítica histórica. A
autora afirma:
Esta limitação da Bíblia ao seu sentido literal, que irá se acentuar,
mostrar-se-á também repleta de perigos, uma vez que o texto irá
encontrar as novidades trazidas pela prática filológica, o
desenvolvimento da ciência anteriormente evocado, o choque da
emergência de uma consciência nova da história. Esta última é na
verdade de suma importância, como prova o surgimento, a partir do
século XVI, de leituras que abordavam o livro antes de tudo como um
documento, memória do tempo dos hebreus, ou ainda daquilo que se
chama então de a “Republica dos Hebreus”. Assim, um autor como
A. Maës, que publica em 1574 a Josuae imperatoris Historia illustrata
atque explicata, interessa-se pelo relato bíblico como transformação
de arquivos, que se deverá permitir identificar sob o texto final. Essa
orientação documentária se manifesta ainda na maneira como
Castellion traduz e edita então a Bíblia em francês: curiosamente, ele
agrega ao texto canônico as Antiguidades judaicas de Flávio Josefo,
que virão completar a informação histórica fornecida pelas escrituras.
Mais tarde, no século XVII, o debate lançado por I. de la Péreyre em
torno da questão dos “pré-adamitas” abrirá uma janela para um
passado pré-biblico da humanidade, estremecendo, ao fazê-lo, as
representações clássicas do tempo, e a partir daí se tornará o
herdeiro dessa nova problemática. Simultaneamente, por outro lado,
a reflexão histórica tenderá desde o século XVI a se libertar da tutela
da teologia, a secularizar-se. J. Bondin (1529-1596) começa a
distinguir três níveis na história que designa por história divina,
historia naturalis e historia humana, abrindo assim a via da
autonomização desta ultima, a atrair para si progressivamente todo o
interesse. Também aí estamos no trajeto que levará, no século XVIII,
rumo à Ciência nova, de J.B. Vico (primeira edição datada de 1725),
que, unindo historia e filosofia, concluía: “O mundo civil é
inteiramente obra dos homens e em conseqüência disso devemos
saber encontrar seus princípios nas modificações de nosso espírito
humano”. portanto, se existe um sentido da história, como sugere o
109
fato de Vico conservar o conceito de Providência, será de agora em
diante como simples postulado do pensamento
296
.
A nova consciência histórica da modernidade vai demonstrar a
perecividade e historicidade das coisas humanas. A Bíblia, como produto desse
espírito humano, é agora entendida e lida como história dos homens no tempo,
passível, no entanto, de ser inquirida pela razão de um homem emancipado
das tradições.
3.2. A CRÍTICA HISTÓRICA DAS TRADIÇÕES EM BARUCH ESPINOSA: O
TRATADO TEOLÓGICO POLÍTICO
Baruch Espinosa, filho de família judaica que experimentara os
ininterruptos processos inquisitórios realizados por uma teocracia política
portuguesa e espanhola, que, nos séculos XV e XVI, forçou a conversão de
milhares de judeus, que foram denominados de cristãos novos (Portugal) e
marranos (Península Ibérica) foi um dos primeiros pensadores a perceber a
íntima relação entre política e textos sagrados e as profundas relações de
poder que perpassou o mundo teológico-político da tradição judaico-cristã.
297
Experimentou as turbulências e conflitos teológicos e políticos na Holanda do
século XVII, causados por teólogos ortodoxos e heterodoxos de tradição
judaica e cristã. Viu-se diante da cupidez humana que fez da Holanda do
século XVII mais um palco de disputas políticas e religiosas, que, inspiradas
em calorosos embates teológicos, mais uma vez transformou o evangelho no
embuste político que revela a sede de poder daqueles que se arvoram no
direito de serem os guardiões do nomen dei.
Duas guerras civis marcam o Século de Ouro holandês, ambas
açuladas pelo clero gomarista. A primeira delas começa em 1617, no
Sínodo de Dort, a partir de uma disputa teológica sobre o dogma da
predestinação. O grupo gomarista, sustentando Mauricio de Orange,
consegue destituir do governo os Regentes, defendidos pelo clero
arminiano: condena a prisão perpétua Hugo Grotius e o poeta Dirk
Camphuysen, e à morte o grande pensionário, Johan
Oldenbarnevaldet, decapitado em 1619, sob a acusação de alta
traição. Sobe ao poder a Casa de Orange. O clero gomarista
condena o cartesianismo, censura obras (como as de Hobbes),
queima livros e revistas, prende artistas e intelectuais, persegue as
seitas libertarias e libertinas, silencia os arminianos. Em 1648,
deveria ser assinado o Tratado de Westfália, que punha fim ao

296
PELLETIER, Bíblia…, p.31
297
ESPINOSA, Tratado...
110
conflito europeu como Guerra dos Trinta Anos. A burguesia precisava
da paz para desenvolver seus negócios e exigia a assinatura do
tratado; os orangistas, porém, que conseguiam poder e prestígio
justamente por meio de guerras, recusavam-se a assiná-lo, sendo a
isso forçados pelo Partido dos Regentes. Todavia, em 1650,
Guilherme de Orange II morre, deixando um herdeiro infante. Os
Regentes destituem a Casa de Orange, afastam o clero gomarista da
direção do Sínodo, transferem o posto de comandante-chefe das
forças armadas para o Grande Pensionário e elegem os irmãos Jan
de Witt para Grandes Pensionários, sob a hegemonia da província da
Holanda. O clero Gomarista, porém valendo-se de reivindicações
para que as gratificações e salários políticos não saíssem dos cofres
da igreja calvinista, recupera o poder no Sínodo de Dort e passa a
exercer pressão contra os De Witt. Nos púlpitos, acusa-os de
ateísmo e de pacto com o demônio e exige a condenação de obras
científicas, filosóficas e literárias que não estejam de acordo com a
ortodoxia calvinista intolerante. Nessa época, Espinosa verá, pela
segunda vez, alguém ser morto por defender idéias contrárias aos
poderes religiosos estabelecidos. Se a comunidade judaica levou
Uriel da Costa ao suicídio
298
, o clero calvinista, em 1668, excomunga
e condena a torturas e prisão perpétua um dos mais íntimos amigos
de Espinosa, Adriaan Koerbagh, que, depois de ter seus livros
queimados e de haver passado por torturas, morre na prisão, vitima
das doenças ocasionadas pelos maus-tratos físicos e sofrimentos
psíquicos.
299
Como reação a esses dogmatismos da religião, que perpassam a vida
do jovem de Amsterdã, Espinosa vai absorver todo espírito do racionalismo
crítico e vai se voltar para o estudo minucioso da Bíblia, procurando
desconstruir todo espírito de dogmatismo alicerçado em tradições teocráticas
baseadas na revelação, propondo uma interpretação histórico-crítica das
tradições bíblicas, que pudesse superar os preconceitos teológicos que
instrumentalizam a Bíblia com os fins de afirmar verdades de fé que

298
CHAUI, Espinosa..., p.19-20. “Uriel da Costa, um marrano que estudara direito e filosofia em
Coimbra e fugira de Portugal, abandonou o cristianismo para retornar ao judaísmo. No entanto,
foi submetido ao herem por afirmar que somente a Lei Escrita possuía valor sagrado e que,
nesta, não eram ensinados a imortalidade da alma nem os suplícios eternos; que Deus não era
um super homem colérico e voluntarioso, mas a força racional e amorosa que cria, governa e
harmoniza a Natureza; e que os preceitos divinos não eram senão as leis da Natureza,
distorcidos pelos farizeus e rabinos com a Lei Oral. O herem, em casos graves como o de Uriel,
significava a solidão, pois o enhermado era expulso do convívio com a comunidade, e essa
expulsão atingia suas atividades econômicas. Isso significava, para o excomungado, perder os
meios de sobrevivência, pois não poderia manter seus laços comerciais, que dependiam de
uma forte e intricada rede de relações familiares, comerciais e bancárias montada pelas
diferentes comunidades judaicas por toda a Europa e o Oriente. Para sobreviver, Uriel
precisava, portanto, suspender o herem. Para suspendê-lo, num caso que duraria anos, Uriel
foi obrigado a retratar-se perante a comunidade reunida na Sinagoga, submeter-se à flagelação
(quarenta vergastadas) e à humilhação pública (seminu, o corpo coberto de cinzas, deitado a
porta da Sinagoga para ser pisoteados por todos, conforme exigia o ritual). Desesperado com o
acontecido, Uriel se suicida algum tempo depois, deixando uma obra autobiográfica, o exemplo
de uma vida humana, na qual expõe e defende suas idéias. Espinosa desde os 8 anos,
acompanha esse longo e trágico episódio. Tem 15 anos quando Uriel comete suicídio.
299
CHAUI, Espinosa... p, 28-29
111
reproduzem estruturas de dominação com capa de piedade. Espinosa tinha
consciência do poder existente na instrumentalização das escrituras, que eram
por sua vez fundamento de um poder teológico-político cristão, resultado de
manobras astutas dos doutores da Igreja
300
em busca de poder e autoridade. A
profundidade de seu pensamento intui os jogos de poder de uma teologia
política cristã, que não é originalmente teocrática, pois entra em cena quando a
forma política já está instaurada – Jesus não foi fundador político de uma
nação e de um Estado, mas aquele que trouxe a relação puramente espiritual
entre a alma do crente e Deus, para homens que viviam em sociedades já
constituídas e em Estados já constituídos
301
– existindo uma separação entre
poder político e religioso.
302
Espinosa percebe o re-arranjo estrutural de uma
teologia política cristã que se apropria a partir de uma leitura e
instrumentalização da teocracia hebraica das tradições do Antigo Testamento –
lembremos de Agostinho e dos pais espirituais do Ocidente – reproduzindo um
eixo de poder político sacerdotal que proporciona os fundamentos de um poder
político e religioso no Ocidente. Esse re-arranjo teológico político se encontra,
como havemos dito, nas elocubrações teológicas e sistemáticas, ávidas por
poder religioso e político que se estruturam no interior da Igreja cristã e se
afirmam como tradições oficiais, manobrando uma unidade canônica da Bíblia
hebraica e cristã, que, por sua vez legitima uma unidade teológica sacramental,
em vistas da manutenção de um poder político, religioso e sacerdotal. Em
esclarecedor parágrafo, Chauí apresenta essa intuição espinosana.
Poderia parecer paradoxal que a história hebraica se tornasse objeto
de conhecimento especulativo por parte dos cristãos, porém, na
realidade, a diferença histórica entre as duas formações sociais é de
tal monta que o passado hebraico só pode reencontrar o presente
cristão na forma de um saber especulativo. Por esse caminho, o
Antigo e o Novo Testamento constituirão uma unidade para além da
semelhança ou da divergência de seus temas. Com efeito, ambos se
convertem em discursos do saber porque são a forma de garantir o
poder teológico-político. Essa situação, aliás, é idêntica tanto para os
cristãos como para os homens da diáspora. Nos dois casos, a
operação especulativa visa manter a autoridade teocrática, cuja
origem histórica implica, no entanto, a impossibilidade de sua
manutenção em sociedades ou em grupos sociais nos quais a
política e a religião não foram fundadas simultaneamente. Para os
homens da diáspora, a religião permaneceu depois que o Estado

300
CHAUI, Espinosa e a política..., p.45
301
Ibid,p.35
302
Ibid,p.37
112
pereceu. Para os cristãos, a religião surgiu desvinculada da
política.
303
A intuição de Espinosa deixa evidente o manejo teológico na
instrumentalização de uma teocracia hebraica como lastro de um poder
religioso político nos discursos teológicos europeus dos séculos XVI e XVII.
Vivendo em Amsterdã, uma das sete províncias protestantes do Norte da
Europa
304
, agora libertas da tirania monárquica espanhola,
305
Espinosa percebe
os profundos conflitos religiosos e políticos internos. Pululam seitas
protestantes, em virtude da tolerância religiosa que caracterizou o século de
ouro holandês, e uma ortodoxia calvinista intolerante dava passos cada vez
maiores para afirmação de um estado teocrático, revelando a profunda
vocação teocrática e a intransigência teológica que nascera na Genebra
reformada de Calvino. A forma dos teólogos de Roma dos seiscentos, que
reproduziam os ditames de uma teologia clássica que sustentava o poder de
dominação de uma Igreja hierárquica e sacramental, o lócus hermenêutico da
teologia cristã clássica se atualiza como reprodução de um agostinianismo
político com rosto protestante, revelando a fome de poder dos teólogos
calvinistas.
Empenhados em refazer segundo as normas das igrejas reformadas
o projeto de uma política teocrática, outrora levada a cabo pelos
teólogos de Roma, os discursos políticos europeus dos séculos XVI e
XVII, em tudo divergentes, possuem um traço comum: o recurso a
teocracia hebraica como modelo de boa sociedade a ser imitada
pelos cristãos. Ao realizar a interpretação da Sagrada Escritura,
Espinosa tem em mira o presente político e o desejo de dominação
teológica que o habita. Por esse motivo, um dos aspectos centrais da
crítica histórica espinosana consiste em demolir esse desejo de
imitação. Por dois caminhos o filosofo desmantela os alicerces do
discurso imitativo: por um deles, revela que a excelência política
hebraica está circunscrita a um espaço e a um tempo irrecuperáveis;
por outro, põe a descoberto a outra face da boa-sociedade hebraica,
isto é, a tirania oculta que presidiu a fundação política. Apresentado
as duas faces da política antiga, demonstra que a excelência é
inimitável e a tirania repetitiva, Espinosa denuncia o poder teológico,
que pretende repor na política dos cristãos o tema hebraico do povo
escolhido.
306

303
Ibid, p. 49 Neste horizonte se compreende uma obra como “A Cidade de Deus” de
Agostinho de Hipona, que fundamenta-se em grande parte na tradição judaica sacerdotal do
primeiro testamento.
304
Essas províncias fazem parte dos países baixos da Europa: Amsterdã, Utrecht, Bruxelas,
Delft, Haia, Leiden, Haarlem, Groningue.
305
CHAUÍ, Espinosa..., p.24
306
CHAUI, Espinosa e a política, p.61
113
Para Espinosa, na afirmação dessa teocracia cristã, os cristãos são
infiéis ao seu mestre, recusando assim a nova aliança e buscando a antiga,
pelo fato de nesta estarem religião e política intimamente entrelaçadas,
possibilitando o desejo de dominação, oculto no desejo imitativo, que afirma
uma eleição e uma conseqüente teocracia.
307
É contra essa teologia política
cristã que se afirma como lastro dogmático de uma teocracia que Espinosa
reage no seu Tratado Teológico-Político, afirmando ser a crítica histórica a
única capaz de desconstruir os cânones religiosos e políticos que sustentam
uma narrativa de dominação que coage as liberdades individuais e apresenta
uma leitura do real que determina a sociedade e a vida de indivíduos,
colocando os fiéis intérpretes da tradição como veículos de uma autoridade
posta em Deus. Enquanto uma constelação de grupos, cristãos papistas,
judeus, reformados, se voltam com seu olhar e pena dogmática para o texto
bíblico, “uma voz porém, destoa deste conjunto. Seus ecos causam
dissonâncias: Espinosa escreve o Tratado Teológico-Político, a mais
demolidora interpretação moderna da Escritura”.
308
Espinosa quer uma ciência
bíblica, e lança dessa forma as bases do moderno método histórico-crítico para
a interpretação das escrituras. Recorre à história e à filologia, e desenvolve um
dos primeiros projetos de desconstrução de dogmas teológicos da história da
leitura da Bíblia no Ocidente. Espinosa antecipa uma história social das
tradições bíblicas, procurando as estruturas sociais que estão por trás dos
textos bíblicos, tentando desvendar, com o auxilio de um aparato científico
histórico-filológico, os mecanismos políticos e sócio-culturais que causaram a
produção e formatação das tradições bíblicas que foram colocadas como
cânone político e cultural da sociedade cristã.
O trabalho histórico-filológico realizado no Teológico-Político (sic)
dedica-se à interpretação da essência singular de um ente singular e
passado (o povo hebraico e a religião hebraica), cujo presente só
existe na singularidade do documento a ser interpretado. Ora, tal
documento não é inofensivo. Pelo contrário, é erigido pelo mundo
ocidental como cânone da vida política, e a teologia que o
acompanha e o manipula sem cessar constitui o pano de fundo
necessário na elaboração de uma certa imagem do saber e do poder.
Cumpre, então, decifrar esse documento e indagar se as
representações construídas a partir dele servem para ocultá-lo ou se,
ao contrario, deixam-se justificar por ele – tal é a tarefa que se incube

307
Ibid, p.61
308
Ibid, p.73
114
o Teológico-político. Desvendar o caráter histórico do documento
implicará, de um lado, decifrar a maneira como o passado
experimentava a relação entre um povo determinado e seu deus, e
por outro, desvendar as representações que o presente constrói a
partir da autoridade conferida ao passado. Para fazê-lo, no entanto,
Espinosa afirma que não buscará a verdade contida no texto e sim
seu sentido [...]. A interpretação, sendo histórica, busca as imagens
determinadas que um corpo político determinado elaborou acerca da
autoridade e como e por que essa autoridade foi posta em Deus. Mas
não é só isso. Espinosa busca ainda as causas da permanência
temporal dessas imagens para além do contexto em que foram
produzidas e no qual tinham sentido. A interrogação espinosana
debruça-se sobre o enigma da preservação do passado em um
presente que lhe é estranho e que, por intermédio dessa
conservação, oculta a duração verdadeira do passado e oculta-se a
si mesmo como presente, manipulando o texto para exercer
autoridade cuja origem permanece escondida sob o manto de
autoridade divina. A arte interpretativa do teológico-político é sem
precedentes. Com efeito, as condições históricas buscadas por ele
estão presentes no próprio texto bíblico. Ao afirmar que sem o
conhecimento das circunstâncias que determinaram a redação dos
livros canônicos será impossível compreendê-los, Espinosa não
pretende, de modo algum, encontrar os fatos que causariam o
discurso, mas encontrar neste ultimo a historia que o produziu.
Assim, por exemplo, a determinação da autoria, data, local e
destinação de cada um dos livros sagrados é feita a partir da filologia,
do estilo, do tema tratado e dos fatos relatados. Dessa maneira,
compreende-se que o Pentateuco, considerando como o livro de
Moisés, estando redigido na terceira pessoa do singular e narrando a
morte de Moisés e os eventos que se sucederam a ela, não pode,
evidentemente, ser de autoria do fundador.
309
Espinosa procurou deixar evidente a historicidade das tradições bíblicas,
que, impregnadas do mundo da vida, são frutos de históricas transmissões e
interpretações de uma multiplicidade de autores
310
, imbricadas, portanto, de
conteúdos e paixões humanas. Com seu método crítico e histórico buscou
minar os fundamentos de uma teocracia, que, inspirada em tradições bíblicas,
é capaz de cometer dementes atrocidades, fazendo com que “idéias originadas
de pura especulação transformem-se em leis mediante as quais opiniões
divergentes são consideradas crime e, por isso, condenadas”
311
. Espinosa
reage contra os delírios de teólogos que, com sede de poder, buscam
transformar suas elucubrações em verdades atemporais. Teólogos como
aqueles inspirados nos delírios teocráticos de tradição agostiniana, “que
sonhavam que na Escritura se ocultavam mistérios profundíssimos, e nesse
delírio tudo atribuíram ao espírito santo, empenhando-se com todas as forças,

309
Ibid, p.23
310
ESPINOSA, Tratado...
311
Ibid, p.8
115
com o ímpeto da paixão em sua defesa”.
312
Seu Tratado Teológico Político
quer livrar o homem religioso de sua certeza apaixonada, essa paixão pelo
poder e pela verdade, raiz de todas as guerras. Quer livrar o homem dos
dogmatismos da religião, que, impregnada de preconceitos dos teólogos,
considerou documentos divinos, o que não passa simplesmente de ficção de
homens.
313
Espinosa desconstrói a idéia de uma lei divina, afirmada no
pressuposto de inspiração das escrituras e revelação como conhecimento da
vontade e do ser de Deus, afirmando apenas a existência da mera imagem de
um legislador divino,
314
que, sob o manto de autoridade divina, legisla a partir
de sua experiência histórica e sócio-cultural, que é determinante em suas
representações do divino, sendo assim impedido de falar de verdades
atemporais e eternas. Espinosa lança as bases da moderna crítica bíblica que
revolucionou os estudos bíblicos no Ocidente cristão, libertando a leitura da
Bíblia dos preconceitos dogmáticos da teologia. Com sua crítica histórica, lança
as bases de uma hermenêutica da suspeita, herdeira das luzes da
modernidade
315
, entregando a Bíblia à historia
316
, entendendo-a não mais como
uma unidade canônica, mas como uma coleção diversificada de tradições que
devem ser avaliadas minuciosamente, perguntando pelas “formas próprias de
cada livro: como foi recolhido na origem, em que mãos caiu, quantas versões
diferentes são conhecidas desse texto, que personagens deveriam admiti-lo no
cânon e, finalmente, como os livros reconhecidos como canônicos por todos
foram reunidos em um corpo único”.
317
Em 27 de Julho de 1656, Spinoza foi excomungado da sinagoga e
tornou-se a primeira pessoa na Europa a viver com sucesso fora do
alcance da religião estabelecida. Spinoza rejeitava a fé convencional
como “um tecido de mistérios” sem sentido; ele preferia obter o que
chamava de “beatitude” a partir do livre exercício da razão. Spinoza
estudou as origens históricas e os gêneros literários da Bíblia com
uma objetividade sem precedentes. Concordou com Ibn Ezra que
Moisés não poderia ter escrito o Pentateuco, mas foi adiante ao
afirmar que o texto era obra de vários autores diferentes. Havia se
tornado o pioneiro do método histórico-crítico que mais tarde seria
conhecido como Crítica superior da Bíblia.
318

312
NOGUEIRA, Método racionalista..., p.191
313
Ibid, p.91
314
CHAUI, Politica em Espinosa, p.119
315
DE WITT, p, 94
316
PELLETIER, p. 22.
317
Ibid, p.22
318
ARMSTRONG, A Bíblia…, p.183.
116
Espinosa foi uma das portas de entrada da crítica bíblica no Ocidente,
colocando abaixo todas as autoridades e hierarquias que se firmam nas
elucubrações teológicas sistemáticas que visam a manutenção de um poder
teocrático com lastros nas escrituras. A Bíblia se torna aquilo que é, um texto
entre outros, em meio a diversidade religiosa das culturas humanas,
impregnado de paixões e desejos humanos, capaz de revelar a mais bela e
também a mais medonha face desse homo religiosus que somos todos.
3.3. A AFIRMAÇÃO DO MÉTODO HISTÓRICO CRÍTICO
O método histórico-crítico devolveu a Bíblia à história. Os grandes
progressos da arqueologia e da história das civilizações antigas
proporcionaram um acesso da diversidade de culturas em que estavam
imersos os relatos bíblicos. A Bíblia na Modernidade passou a ser lida como
literatura.
319
En la Epoca de las luces, el texto llega a ser objeto. Se estudia el
texto científica e históricamente. Se examina el texto según las leyes
de la lógica. La Bíblia llega a ser objeto de esta estratégia de
sospecha y duda, tan importante en el quehacer cientifico de la
iluminación. La relativa ingenuidade del Renacimiento y de la
Reforma, y la mirada confiada hacia los textos, ahora son
reemplazadas por uma mirada crítica, analítica. Entre los analistas
surgen ahora preguntas por las lagunas, las incongruencias y las
duplicaciones de los textos. Los intérpretes comienzan a analizar lo
que, desde el punto de vista occidental y racional, se concibe como
contradiccíon. La confiabilidad (histórica) y la autenticidad llegan a
ser palabras claves en la investigación. Son ellas las que ahora
definen la interacción entre lector y texto. Los intérpretes perdieron su
ingenuidade! Em vez de ser reflejo confiable de la voz de Dios, el
texto bíblico comienza a sentirse como complejo, problemático. Se
comienza cuestionar su confiabilidad.
320
Assim, o desenvolvimento de uma análise cientifica da Bíblia
acompanha os progressos da crítica histórica, a fim de adaptar-se ao modelo
científico presente na mentalidade do homem moderno. Conseqüente do
espírito crítico que fora gestado no período do Renascimento e da Reforma, a
crítica moderna amplia esse espírito de emancipação em defesa da autonomia
do ser humano diante de toda e qualquer autoridade que não seja a razão.
321
Há um incomparável desenvolvimento das ciências bíblicas e o método

319
KONINGS, p.76
320
DE WITT, p.94
321
ZABATIEIRO, p.23
117
histórico-crítico vai se estabelecendo como critério de interpretação.
Profundamente influenciado pela concepção racionalista do iluminismo, nasce
com a principal preocupação de estabelecer-se como método histórico. Johann
S. Semler, considerado como um dos pais fundadores do método histórico
crítico, conclui que os escritos bíblicos devem ser analisados historicamente
com todo rigor e conseqüência, e não com vistas à edificação do leitor
moderno.
322
O “espírito da época”, isto é, a ascensão e o predomínio da
racionalidade e da “crítica” das fontes e o estabelecimento do próprio
método cientifico (R. Descartes, F. Bacon) fez surgir a necessidade
de uma interpretação dos textos (sagrados ou literários clássicos)
compatível com o mundo e o modelo racional e científico da época.
Pesquisadores como Turretini (1671-1737), Bengel (1687-1752),
Semler (1725-1791) passaram a definir a razão humana como
elemento decisivo no processo de interpretação das fontes,
delimitando-se em relação ao domínio dogmático da tradição
eclesiástica (católica) e do espiritualismo protestante. Suas
pesquisas ajudaram a criar uma visão mais complexa dos próprios
textos e do seu processo de transmissão, fazendo questionamentos
à sua confiabilidade histórica. Com isso, foi-se desenvolvendo uma
hermenêutica histórico-crítica; esta, na sua origem, busca criar
espaço de autonomia do ser humano frente às estruturas de poder
dogmático das igrejas.
323
Esses inputs da Modernidade favoreceram enormemente o progresso da
pesquisa bíblica, criando as bases para uma ciência histórica que permitiu uma
investigação crítica acerca do passado “através de uma análise crítica e
criteriosa das fontes e dos documentos históricos”.
324
Exerce um papel nesta
pesquisa o postulado fundamental da modernidade proposto por Emmanuel
Kant (1724-1804), que, com suas “críticas da razão”,
325
rompe definitivamente
com uma filosofia metafísica, lançando, assim, as bases da ciência moderna,
que promove uma nova postura diante de toda tradição literária, “perguntando
pela autenticidade, veracidade e fidelidade das fontes”.
326
Nos século XIX e XX, as bases do método histórico-crítico foram sendo
estabelecidas a partir do intenso intercâmbio com os avanços da ciência
moderna, que buscava uma representação da realidade fundamentada em
critérios racionais e científicos. Passa-se, então, a elaborar uma leitura

322
VOLKMANN, p.29.
323
REIMER, Hermenêutica..., p.1
324
VOLKMANN, p.37
325
KANT, Crítica da razão...
326
DOBBERAHN, p.37
118
científica da Bíblia, relacionada ao processo de desencantamento do mundo,
327
que é fruto de uma concepção integralmente histórica das coisas humanas que
foi desencadeado pelo nascimento de uma consciência histórica.
328
Uma
decisiva contribuição para a ciência histórica para a história das religiões se
encontra no pensamento do teólogo e historiador alemão Ernst Troeltsch, que
elabora – dando continuidade ao projeto historicista alemão do século XIX,
representado por nomes como David Friedrich Strauss (1808 – 1874)
Ferdinand Christian Baur (1792 – 1860) Albert Ritschl (1822 – 1889) e Adolph
von Harnack (1851-1930)
329
– uma forte crítica das tradições, a partir de uma
analise histórica fundamentalmente rigorista, elaborada pelo grupo que viria a
se tornar conhecido por “escola da história da religião”
330
. Com relação à crítica
histórica de Troeltsch, afirma Volkmann:
Trabalha basicamente com os seguintes princípios: A crítica, ou seja,
a atitude da dúvida metódica; a “chave para a crítica”: a anlogia em
todo acontecer histórico; a correlação, o mútuo interrelacionamento
entre todos os fenômenos da vida intelectual e histórica. Falando da
critica, Troelsch pensa em uma atitude, com que o historiógrafo
particulamente se familiariza. Em virtude da crítica, ou seja, da
dúvida metódica, a tradição aparece, de antemão, como incerta e
insegura. Valem apenas aqueles juízos acerca da história, os quais
passaram pelo processo de um rigoroso questionamento. Daí,
Troeltsch constata com razão que “ao aplicar a crítica histórica às
tradições religiosas, a postura interna em relação a elas e sua auto-
compreensão teve que ser mudada significativamente e,
efetivamente foi mudada. Foi mudada no sentido de que não mais a
tradição como tal aparece como o ponto fixo, como constante, mas
somente a postura crítica daquele que julga sobre a tradição.
331
Os pressupostos da crítica histórica da Modernidade afetaram
diretamente a leitura bíblica que se estabeleceu com a gradual retirada da
carga dogmática posta nos textos bíblicos pela tradição interpretativa da Igreja.
“A historicidade do texto bíblico foi assumida de forma crítica: por esta estar na

327
Para isso ver WEBER, Ética...; BERGER, O Dossel..., Cap. II.
328
Ver TROELTSCH, Sobre o Método...; VOLKMANN, DOBBERAHN, CÉSAR, Método
Histórico Critico..., p.61
329
Importante observar a critica ao fato de esta escola, que representa a “Teologia Liberal” do
séc. XIX, estar presa ao idealismo alemão de Hegel, instrumentalizando assim a crítica
histórica e a assimilando a um projeto filosófico idealista que proclama a ideologia alemã do
séc. XIX: “o protestantismo cultural”. Importante observar que o método histórico-crítico não se
resume as instrumentalizações histórico-teológicas praticadas pela teologia do século XIX-XX,
alçadas pela filosofia idealista (Adolf Von Harnack) e existencialistas (Rudolf Bultmann). Para
isso ver DOBBERAHN, O método histórico-crítico entre idealismo e materialismo...;
MAINVILLE, A Bíblia...
330
MATA DA, Ernst...
331
DOBBERAHN, p.61
119
história, o texto tem uma história, e explicar essa história do texto está na base
da pesquisa histórico-crítica.
332
Um dos importantes representantes da exegese
moderna que procurou acessar as tradições bíblicas munido de uma crítica
histórica das tradições foi o exegeta alemão Julius Wellhausen, que acessou as
tradições bíblicas do Antigo Testamento propondo uma desconstrução
canônica de sua redação final. Wellhausen afirma:
El A.T. representa la historia muy uniformemente a través de todos
sus libros. Pero esta representación de la história fue hecha después;
fue impuesta y su uniformidad exagerada. La nueva investigación ha
roto esa imagen. Debajo de una superfície uniforme se muestram
restos dispersos, de capas subyacentes, a los que se debe dar más
relieve para llegar a la verdad histórica. Desde Astruc, el análisis
literário ha reconocido el carácter roto, disperso de todo, y ha tratado
de ordenar la composición según sus partes originales. Desde De
Wette, la crítica histórica ha comenzado, a través de las
contradicciones que se encontraron, a hacer más fluida la imagen
cerrada de la historia. En el A.T. hay profundas contradicciones que
obligan a presuponer que ha habido un desarrollo en la história de la
religión de Israel y también en el culto mosaico.
333
Wellhausen representa o exemplo da forte influência exercida pela
crítica histórica na leitura da Bíblia e na afirmação do método histórico-crítico
como ferramenta fundamental no processo crítico das tradições. O método
histórico-crítico, como postulado crítico de interpretação da Bíblia na
Modernidade, tem como principal objetivo o acesso às realidades históricas
que compõem o texto bíblico. Este enfoque histórico, efetivamente, não
comporta vários métodos distintos, mas somente um, que se desenvolve em
várias etapas, as quais, por sua vez, mantêm estreita relação entre si.
334
A
exegese histórico-crítica tem por princípio a construção de uma arqueologia
literária, identificada com a constituição de textos antigos e a forma que os
autores utilizaram para expressar sua mensagem, sendo classificados como
“históricos” por clarificarem os processos dos diversos textos em seu contexto
histórico, usando critérios científicos tão objetivos quanto possíveis.
A principal preocupação do exegeta que faz uso desse instrumental é
desvendar as concepções teológicas das narrativas bíblicas em seu ambiente
histórico social, a fim de analisar as mentalidades presentes em um

332
ZABATIEIRO, p.24
333
WELLHAUSEN, J. Israelitsch – jüdische Religion, Tubingen, 1906 apud De Witt H. Em la
dispersión el texto es pátria, p.120
334
MAINVILLE, A Bíblia..., p.10
120
determinado recorte temporal, situando o texto no tempo, para que, com seu
auxílio, possa reconstruir historicamente a sociedade que está por detrás do
texto. Neste sentido, o instrumental histórico-crítico, na aplicação de seu
método, tem como funcionalidade em suas diversas etapas de crítica textual,
crítica das fontes, crítica dos gêneros literários, crítica da redação, história da
tradição, reconstruir o ambiente histórico em que foi produzido o texto e sua
interferência naquele ambiente.
Alicerçada pelo paradigma moderno, a exegese histórico-crítica
alcançou um forte status de objetividade em seu núcleo interpretativo,
reverberando e dando continuidade ao projeto historicista da historiografia
ocidental do século XIX. Entre as críticas dirigidas a essa exegese está a sua
profunda dependência de um paradigma moderno historicista, que caracteriza
o conhecimento científico da época, fundado por uma concepção positivista da
história que se fundamenta em um monismo epistemológico que reduz o
conhecimento aos aspectos estritamente racionais, desconsiderando a
historicidade dessa mesma razão e a multiplicidade de outros horizontes de
vida que estão presentes no processo de construção do saber científico. Estes
questionamentos entram em cena a partir da elaboração de uma hermenêutica
filosófica, que traz à cena os condicionamentos históricos pré-compreensivos
do sujeito que interpreta, dessacralizando o ideal de uma história de caráter
asséptico, objetivo e desinteressado. O compreender está vinculado a toda
uma existência que traz consigo seus pré-conceitos históricos. Essa é a
novidade que traz a nova hermenêutica filosófica.
Mesmo absorvida por esse monismo epistemológico da Modernidade, a
ciência histórica proporcionou um forte lastro teórico para a abordagem
histórica das tradições bíblicas. É neste sentido, de fundamental importância
reiterar que, uma abordagem histórico-crítica da Bíblia hebraica e cristã só se
tornou possível a partir de uma emancipação da razão histórica capaz de
emancipar-se de um universo passado e da tradição e submetê-los ao juízo da
razão histórica.
335

335
Sobre isso ver STEIN, História... Aqui se torna muito relevante a afirmação do historiador
brasileiro Arno Wehling que afirma: “A História, à época da Restauração, quando Ranke iniciou
sua obra de mais de sessenta anos (1824-86), não tinha uma definição precisa: oscilava entre
121
3.4 A EXEGESE MODERNA DIANTE DO PROBLEMA HERMENÊUTICO E AS
POSSIBILIDADES DO CONHECIMENTO HISTÓRICO
O problema hermenêutico surgiu diante de uma forte crise nos
paradigmas da ciência moderna. A publicação na Alemanha de Ser e
Tempo
336
, do filosofo Martin Heidegger (1889-1976), abalou intensamente os
fundamentos epistemológicos historicistas das ciências históricas,
representando enorme desafio para o trabalho cientifico.
337
Com Heidegger
potencializa-se uma tradição do pensamento ocidental que, desde Kierkegaard,
afirma o postulado central do pathos da existência. Há neste momento o que se
denominou chamar de a virada hermenêutica,
338
com o nascimento de uma
hermenêutica filosófica, em contraposição a um racionalismo científico que
dominou a cena intelectual européia nos duzentos anos que precederam a
publicação de Ser e Tempo. É sabido que,
desde Feuerbach e Nietzche, existe um movimento em filosofia que
prioriza a categoria da vida sobre a reflexão e a razão, acatando
qualidades cognitivas como sendo uma parte integral da vida e não
qualidades exclusivamente separadas. Tentativas filosóficas de fazer
sentido do homem e do mundo a partir de um ponto de vista teórico e
racional são criticadas porque a reflexão filosófica ignora o
pensamento pré-filosófico do “mundo-vida” e, conseqüentemente,
traz violência aos nossos relacionamentos diários do mundo. Nós
estamos envolvidos no mundo e encontramos o nosso caminho nele
antes de começarmos a filosofar. Na realidade, a perspectiva
filosófica sobre a vida é uma distorção, dependendo das formas de
pensamento não relacionados com o caráter real dos
relacionamentos humanos.
339
A filosofia existencial de Heidegger está na base de toda essa virada
hermenêutica do pensamento filosófico da modernidade. Há nela um profundo
questionamento da cientificidade que tem como pressuposto a tentativa de
elucidar todo real a partir de um método científico que determina aquilo que é

pensamento filosófico (o passado comprovado o postulado e a funcionalidade do processo,
como Vico, Herder ou Hegel), o exercício literário (como ensinavam os manuais da Ars
Histórica, do tipo Mably) e o levantamento das fontes (como fizeram os eruditos do
Renascimento e do Barroco, de Lourenço Valla a Mabillon e Muratori). Esta produção
intelectual voltada para o passado continuaria dispersa, entretanto pela filosofia, pela literatura
e erudição pura, não fosse o fenômeno externo global mais significativo da História do
pensamento europeu do século XIX, o Historicismo”. WEHLING, A invenção..., p.113
336
HEIDEGGER, Ser e tempo...
337
GADAMER, Hermenêutica v.II..., p. 151
338
Ibid, p. 227
339
LAWN, Compreender..., p.75
122
ou não a verdade, negando os aspectos não estreitamente vinculados ao
processo de racionalização humana. O pensamento de Heidegger procurou
“escapar da estreiteza da cultura cientifica e retornar a outros caminhos e
panos de fundo do ser humano”
340
, e assim, ultrapassar o processo de
compreensão elaborado pela cultura científica da modernidade. Para Hans-
Georg Gadamer,
a virada hermenêutica extende-se [sic!], assim, para além dos limites
da ciência moderna que é denominada pelo ideal do método. Desse
modo, ela descortina o lado inverso da cultura cientifica que domina
nossa civilização e entra em cena como a cultura das “humanidades”,
que também são denominadas ciências humanas ou ciências da
cultura, ao lado das ciências da natureza, abarcando em verdade a
totalidade de nossa configuração humana da vida. Ela serve a uma
tarefa que é colocada a nós todos, a saber, encontrar o equilíbrio
correto entre o poder do saber dominante e a sabedoria socrática do
não-saber em torno do bem (...). O Ocidente tomou o caminho da
ciência e submeteu por meio disso as formas de vida da humanidade
a uma reconfiguração, cujas conseqüências continuam sempre
impassíveis de serem visualizadas.
341
Heidegger, em Ser e Tempo, formulara a denúncia a estreiteza de uma
cultura científica que provocou, no Ocidente, uma forma de esquecimento do
ser,
342
decorrente de um unilateralismo científico que estava preso à idéia de
uma consciência transcendental alicerçada no conceito moderno cartesiano do
cogito que encobria as múltiplas realidades e possibilidades do ser em sua
facticidade histórica.
343
Heidegger afirmou que o processo de compreensão
não está vinculado unilateralmente a um cogito transcendental, como postulava
a filosofia moderna, mas sim há um processo no qual a historicidade humana
compromete todo processo de conhecimento. A existência humana carrega
uma série de elementos que são trazidos para o processo de compreensão, e,
neste sentido, em “toda compreensão ocorre uma pré-compreensão,
justamente aquela de estar presente como estar no mundo”.
344
Heidegger reafirma a dimensão histórica que faz que o homem deva
ser visto como Da-Sein, quer dizer, como um “ser presente”, um
existente. A condição humana é assim conhecida com referência a
esse “estar no mundo”, numa perspectiva em ruptura com a ontologia
clássica, uma vez que toma a existência humana como base
fenomenal da ontologia. Essa historicidade constitui, ao mesmo

340
GADAMER, Hermenêutica v.I..., p.43
341
GADAMER, Hermenêutica v.II..., p.40
342
GADAMER, Hermenêutica v.I..., p. 41
343
Ibid, p.41
344
PELLETIER, p.63
123
tempo, o horizonte de toda a teoria da compreensão. Dito de outro
modo, o “compreender” é certamente uma estrutura existencial do
Da-Sein.
345
O ponto fundamental desse horizonte hermenêutico se encontra na
negação de uma consciência transcendental, amparada pela filosofia kantiana,
que se pretende destituída das dimensões históricas que determinam o
horizonte de todo projeto cientifico. O conceito de Dasein (ser-em - existência)
que orienta a filosofia de Heidegger alerta as pretensões do saber científico ao
fato de este estar impregnado de interesses e preconceitos históricos advindos
de sua inerente pertença ao mundo. No processo heurístico da construção do
saber, “o tempo é conditio sine qua non de todo conhecimento histórico”.
346
O Dasein “no-mundo” compreende seu ser de uma certa forma. O
Dasein “percebe”, de certa forma, que sua pertença ao mundo é um
“fato”. Isto não quer dizer que o Dasein seja um ente simplesmente
dado; porém, isto indica que o Dasein já se encontra em uma rede de
significados e relações já firmadas. Este fato, por não ser algo
acabado e dado, como os demais entes o são, é chamado por
Heidegger de FACTICIDADE. Na facticidade, o Dasein se depara
com outros entes que não ele mesmo. Tais entes, por se inserirem
no “mundo” do Dasein, são chamados de entes intramundanos (...).
Na inter-relação ocupacional do Dasein com os demais entes, o
conhecimento racional-cognitivo é uma das possibilidades do Dasein
lidar com os entes intramundanos. Ocorre, porém, que o pensamento
moderno, especialmente, acreditou que o conhecimento racional se
dava a partir de um “deslocamento” do sujeito para o objeto. No
entanto, sendo o ser-no-mundo, o Dasein já está, de certa forma,
ocupado com os demais entes. O conhecimento é somente um modo
de ser no mundo. A relação Dasein-mundo já se encontra instaurada
antes de qualquer conhecimento, como um a priori, “porque conhecer
surgirá, antes de mais, como um comportamento ditado pela
preocupação. Todo saber será, à partida, interessado.
347
Estes questionamentos críticos buscavam minar o cientificismo
epistemológico que caracterizavam as ciências do século XVIII e XIX que se
julgavam livres de um condicionamento histórico, considerando-se capazes de
manterem-se “misteriosamente distante das vissitudes do tempo e dos
momentos, dos particularismos e da contingência ligados a condição temporal
do homem”
348
. Toda postura crítica e enérgica da nova hermenêutica reage ao
transcendentalismo da filosofia moderna, que, como Kant, “acreditava ainda em
poder falar do ponto de vista de um sujeito, que, embora finito, é algo estável, e

345
Ibid, p.62
346
ANKERMIT, Historicismo...,p.98
347
CABRAL, A Mãe…,p.57
348
PELLETIER, p.56
124
não submetido ao devir histórico”
349
. Para a nova hermenêutica, “a consciência
histórica é ela mesma histórica”
350
. O ideal de um agente de conhecimento
desvinculado de sua situação histórica e existencial, que proclama uma
pesquisa objetiva e desinteressada sofre um profundo abalo. A partir destes
pressupostos filosóficos, se assenta a nova hermenêutica, que vai ser
intensamente divulgada pelo filósofo e hermeneuta Hans-Georg Gadamer.
Gadamer foi um dos mais destacados discípulos do tentáculo da filosofia
moderna, Martin Heidegger. Sua obra fundamental, Verdade e Método
351
,
constitui-se entre as mais sólidas obras hermenêuticas realizadas em todo
século XX. Sua obra Verdade e Método fora precedida por um artigo escrito em
1949 que elencou a principal temática que vai absorver todo seu esforço na
formulação de uma teoria hermenêutica: os limites da razão histórica
352
.
Gadamer elabora em seu escrito o que considera a pergunta fundamental: “O
que é, contudo, a consciência histórica, esse novo sexto sentido do homem?
Ela traz para o homem uma ampliação grandiosa do seu mundo – em torno de
todos os mundos que já existiram e que ela compreende. Ou será que ela
significa muito mais justamente a perda do “mundo”, uma vez que ela ensina o
homem a olhar para o mundo com mil olhos?” “O que é esse mundo”, pergunta
Gadamer, “para o homem que sabe a si mesmo como finito e histórico?”
353
. O
hermeneuta possibilita assim o questionamento da objetividade cientifica da
modernidade na elevação da realidade desse homem que só conhece
historicamente. Para Gadamer, o projeto científico da modernidade fracassa
por desconhecer a radicalidade desta realidade que é a condição histórica do
homem. O autor afirma:
Nenhuma das ciências modernas, nem mesmo aquelas que
fomentaram tão poderosamente a nossa consideração da natureza e
a nossa instalação técnica do mundo equipararam-se em termos de
significação revolucionária à formação do sentido histórico por meio
da consciência histórica. Saber a si mesmo historicamente, ser com
consciência um ente condicionado, essa verdade do relativismo
histórico é de uma seriedade vital imediata e frutífera, se ela não é
pensada apenas academicamente, mas praticada politicamente. Ela

349
VATTIMO, G. Soffusi e debuli: cosi li preferisco. In: Attualità dell’ Illuminismo. Apud
PECORARO, Niilismo..., p.28.
350
GADAMER, Hermenêutica v.II..., p.144
351
GADAMER, Verdade e Método...
352
GADAMER, Hermenêutica v.II..., p.139
353
Ibid, p.139.
125
tensiona a existência histórica da humanidade até o
esgarçamento.
354
Gadamer procura levar o relativismo histórico às suas ultimas
conseqüências, reagindo à idéia de uma consciência reflexiva, conceito
fundamental da filosofia critica da Aufklärung, propondo uma absoluta
submissão a problemática da tradição, na qual, para o filosofo, todos os
homens estão emergidos. Gadamer procura propagar a tese de uma
“consciência exposta aos efeitos da história”
355
que coincide com as teses de
Heidegger acerca do Dasein, esse ser jogado na história,
356
imerso na tradição,
que o conduz a afirmar que o “ser homem encontra sua finitude no fato de
situar-se, antes, no seio das tradições”.
357
A partir destes pressupostos
hermenêuticos, Gadamer procura reabilitar, contrariando todo progresso
emancipatório da filosofia das luzes, conceitos como, “preconceito, tradição e
autoridade”
358
. Para o filósofo, é impossível escapar das malhas da história
em que o homem está imerso.
Não podemos nos subtrair do devir histórico, nos distanciar dele para
que o passado seja, para nós, um objeto... Estamos sempre situados
na história... Pretendo dizer que nossa consciência é determinada
por um devir histórico real, de tal forma que ela não possui a
liberdade de situar-se em face do passado. Por outro lado, pretendo
dizer que se trata de sempre retomar consciência da ação que se
exerce, sobre nós, de sorte que o passado, cuja experiência
acabamos de fazer, force-nos a tomá-la totalmente em mãos, a
assumir de certa maneira sua verdade
359
Neste sentido, a hermenêutica de Gadamer desacredita toda a
pretensão científica das ciências humanas que propalam uma espécie de
esclarecimento histórico a partir dos critérios metodológicos e heurísticos de
distanciamento firmados em uma ciência histórica. A pesquisa cientifica não
escapa à consciência histórica e por isso, o saber histórico não está em
condições de se libertar de sua própria condição histórica
360
. Gadamer
pergunta:
Mas o que significa, então, o ideal do esclarecimento histórico? Ele
leva realmente a sério a sua própria historicidade? Ele não acaba por

354
Ibid, p.139
355
RICOEUR, p.106
356
HEIDEGGER, Ser e tempo..., p.34
357
GADAMER, Verdade e Método..., p.260
358
RICOEUR, p.110
359
GADAMER apud RICOEUR, p.114
360
RICOEUR, p.116
126
pensar efetivamente a sua própria razão finita sob a ótica de Deus,
isto é, como a onipresença da história na compreensão? Com
certeza, ele se afasta da conseqüência de Hegel e não quer
“conceber” a história. Todavia, no ideal de compreensão ao qual
segue, ele projeta a si mesmo para uma onipresença que não
contesta, em verdade, a sua própria finitude histórica, mas a
esquece. Será que a infinitude da compreensão para a qual ele se
transpõe não é uma ilusão?.
361
Para o hermeneuta, o ideal de compreensão histórica não passa da
projeção de um tempo presente a um passado inabarcável, pois esse é sempre
percebido e recebe suas significações pela tradição da qual não se pode
escapar, pois “entre a ação da tradição e a investigação histórica forma-se um
pacto que nenhuma consciência crítica poderá desfazer.
362
Para a
hermenêutica filosófica do filósofo alemão, as ciências humanas estariam
submetidas a um círculo hermenêutico de interpretação (Heidegger), um
movimento circular transcorre entre o intérprete e o seu texto. O intérprete não
se encontra fora, mas dentro da vida, “não é apenas o contemplador teórico,
mas pertencente à totalidade da vida da qual participa”
363
. Aqui se impõe os
limites da razão e do conhecimento histórico, afirmando a radical historicidade
dessa mesma razão histórica, inaugurando uma pré-compreensão que está na
base de toda a interpretação. Para Gadamer, “ao lado do acontecimento
histórico-mundial que é a filosofia de Nietzsche, as formas acadêmicas nas
quais o problema filosófico do historicismo foi pensado desvanecem-se”.
364
A hermenêutica de Gadamer tem fundamental importância na
dessacralização deste intérprete desistoricizado e colocado fora do tempo, que
perpassou as orientações e perspectivas científicas modernas, principalmente
européias. Sua obra possibilita uma decorrente destranscendentalização de
uma consciência kantiana
365
, revelando o lugar onde se faz a pesquisa
histórica, onde os pés do pesquisador estão fincados, onde se pergunta,
objetivamente, pelo passado.

361
GADAMER, Hermenêutica v.II..., p.143
362
RICOEUR, p.117
363
GADAMER, Hermenêutica v.II..., p. 166
364
Ibid, p.141
365
O conceito é usado por Habermas, J. Postscript. In: Aboulafia, M. et al. (Eds.) Habermas
and Pragmatism. London: Routledge. 2002. p.227. apud SOUZA, Filosofia, Racionalidade e
Democracia..., p.31. ”Descentralizar” Kant significaria abrir mão da idéia de que há princípios
(exigências lógicas, critérios, categorias), a priori, invariáveis, presentes em todo ato de
conhecer, que constituiriam a estrutura cognitiva do sujeito e garantiriam o alcance universal e
incondicional do conhecimento.
127
O grande problema na hermenêutica filosófica de Gadamer é o efeito
nefasto de sua inconseqüente e absoluta negação do horizonte moderno crítico
e emancipatório da Aufklärung. Gadamer nega todo processo epistemológico
das ciências humanas e sociais, e desconsidera a instância critica presente em
uma abordagem crítica e histórica. Neste sentido abandona toda capacidade
crítica de tomada de consciência oriunda das luzes, como capacidade de juízo
crítico perante as tradições. O filósofo “orienta inevitavelmente a filosofia
hermenêutica para a reabilitação do preconceito e para a apologia da tradição
e da autoridade”.
366
A contribuição própria de Gadamer diz respeito, em primeiro lugar, ao
elo que ele institui, num nível até certo ponto puramente
fenomenológico, entre preconceito, tradição e autoridade; em
seguida, à interpretação ontológica dessa seqüência, a partir do
conceito de “consciência da eficácia histórica”; enfim, à conseqüência
metacrítica; esta consiste em dizer que uma crítica exaustiva dos
preconceitos – por conseguinte, das ideologias – é impossível, na
ausência do ponto zero de onde ela poderia ser feita.
367
O ponto central e, portanto, nevrálgico da hermenêutica filosófica de
Gadamer é sua negação do método científico. Para o hermeneuta, o
distanciamento metodológico conseqüente da própria aplicação do método
“põe fim ao nosso compromisso com o passado e, ao mesmo tempo, cria uma
situação comparável a objetividade das ciências da natureza”.
368
Gadamer
recusa a problemática que confia a um método o cuidado de identificar a
verdade de um texto
369
. É neste horizonte que deve ser entendido o título de
sua obra Verdade e Método, que deveria, segundo Ricoeur, ser traduzida por
Verdade ou Método
370
. Para Gadamer, “a verdade está fora do alcance do
método: ela é aquilo que foge aos nossos dispositivos metodológicos”
371
.
Ricoeur afirma:
Certa reabilitação do preconceito, da autoridade, da tradição, será
pois dirigida contra os critérios da filosofia reflexiva. Esta polêmica
anti-reflexiva contribuirá mesmo para conferir a esse arrazoado a
aparência de um retorno a uma posição pré-critica. Por mais
provocante – para não dizer provocador – que tal arrazoado seja, ele

366
RICOEUR, p.105
367
Ibid, p.105
368
Ibid,115
369
PELLETIER, p.65
370
RICOEUR, p.38
371
PELLETIER, p.65
128
é devido à reconquista da dimensão histórica sobre o momento
reflexivo. Pertenço à história antes de me pertencer a mim mesmo.
372
Gadamer nega uma concepção epistêmica e reflexiva capaz de elaborar
uma atitude de juízo sobre o real e o passado. Nega o processo emancipatório
crítico gestado no interior da modernidade que ofereceu ao homem a
possibilidade de emitir um juízo histórico sobre as hecatombes que sobrevêm
como “cadeias de eventos”, para usar a expressão de Walter Benjamim, onde a
opressão dos oprimidos é sempre e determinantemente a regra.
373
Há na
filosofia hermenêutica de Gadamer, uma tentativa de dissolução do projeto
crítico da luzes. Seu projeto hermenêutico coloca a tradição assumida acima do
juízo crítico da razão
374
, negando o papel de uma ciência crítica. Há nesta
hermenêutica uma tentativa de dissolução completa do cogito cartesiano e
kantiano, base estrutural das ciências modernas emancipadas da tradição.
Ricoeur faz uma fundamental leitura desse conflito de Heidegger e Gadamer
com a modernidade.
Numa perspectiva heiddegeriana, a única crítica interna que
podemos conceber como parte integrante do empreendimento do
desocultamento é a desconstrução da metafísica. E uma crítica
propriamente epistemológica só pode ser reassumida indiretamente,
na medida em que podem ser discernidos resíduos metafísicos
operando até mesmo nas ciências pretensamente positivas ou
empíricas. Todavia, essa crítica dos preconceitos de origem
metafísica não pode ocupar o lugar de um verdadeiro confronto com
as ciências humanas, com sua metodologia e com suas
pressuposições epistemológicas. Em outros termos, é a preocupação
lancinante com a radicalidade que nos impede de fazer o trajeto de
retorno da hermenêutica geral às hermenêuticas regionais: filologia,
história, psicologia das profundezas, etc. [...]. A hermenêutica de
Gadamer não está em condições de engajar-se a fundo nesse
caminho, não somente porque, como Heidegger, todo esforço do
pensamento está investido na radicalização do problema do
fundamento, mas porque a experiência hermenêutica, em si mesma,
evita lançar-se nos caminhos do reconhecimento de toda instancia
critica. A experiência fundamental que determina o lugar de onde a
hermenêutica faz sua reivindicação de universalidade contém a
refutação do “distanciamento alientante” que comanda a atitude
objetivante das ciências humanas. Por conseguinte, toda a obra toma
um caráter dicotômico que revela até mesmo no título: Verdade e
Método. A alternativa prima sobre a conjunção. É essa situação
inicial de alternativa, de dicotomia que, a meu ver, impede-nos de

372
RICOEUR, p.38
373
BENJAMIM, Tese VIII e IX apud LOWY, Walter Benjamim..., p.83-87. “A tradição dos
oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” no qual vivemos é a regra”. Tese VIII. “O anjo
da história tem de parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para o passado. Onde uma cadeia
de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa
escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés. Tese IX.
374
RICOEUR, p.125
129
reconhecer realmente a instância crítica e, por conseguinte, de fazer
justiça a uma critica das ideologias, expressão moderna e pós-
marxista da instância crítica.
375
Aqui é importante lembrar o conceito heideggeriano de verdade como
desvelamento do ser
376
, oposto da verdade enquanto método.
377
Para Ricoeur
essa dicotomia, assumida por Gadamer, impede a aceitação da instância
crítica das ciências humanas, rejeitando o diálogo com toda tradição
epistemológica das ciências humanas e seu caráter heurístico e empírico que
pressupõe uma necessidade de distanciamento metodológico. Há uma
enérgica negação de toda tradição moderna da Aufklärung, evitando lançar-se
nos caminhos do reconhecimento de toda instância crítica. A reabilitação de
conceitos como autoridade, tradição e preconceito reflete um conteúdo político
conservador de forte tendência anti-iluminista que estabelece um retorno a um
posicionamento pré-critico e não reflexivo. Gadamer nega uma filosofia crítica
que opere um juízo crítico das tradições, negando a legitimidade do método
científico das ciências humanas da modernidade que se estabelecem a partir
de um distanciamento crítico da tradição. Sua hermenêutica filosófica impede
a ação das ciências humanas de situar a instância crítica acima da autoridade
e da tradição.
378
É contra essa afirmação de total subserviência à tradição que se insurge
a hermenêutica crítica de Jürgen Habermas como uma crítica política da
hermenêutica,
379
afirmando, no horizonte de uma tradição situada na
Aufklärung, a necessidade de uma ciência social crítica como parte de um
projeto crítico de emancipação que situa a reflexão acima da coação
institucionalizada da tradição. Representante da escola de Frankfurt, Habermas
contrapõe-se a uma tendência pós-moderna de radical negação nietzschiana e
neo-heideggeriana da razão, afirmando a importância da emancipação critica e
reflexiva que saiba impor-se como crítica das ideologias.
Habermas re-estabelece e afirma a dignidade e importância da crítica
das ciências humanas, como crítica do próprio processo de racionalização que
varreu a Modernidade, bem como do processo de morte da razão que solapou

375
Ibid, p.133-134
376
HEIDEGGER, p.287-288
377
Ibid, p.282
378
RICOEUR, p.125
379
Ver HIGUET, A crítica...
130
a reflexão crítica no pós-guerra, identificando a razão às ideologias do
progresso que promoveram uma hibris no modo de ser ocidental, proclamando
um ideal científico que trazia consigo um projeto de dominação. Essa profunda
desconfiança da razão orienta-se por uma tradição que vem desde Pascal e
Kierkegaard e realiza uma profunda crítica à ideologia racionalista do
progresso.
A loucura das batalhas da Primeira Guerra Mundial, batalhas
centradas em aplicação pesada de material bélico que arrancaram da
guerra enquanto tal a sua derradeira honra, o abalo da fé liberal no
progresso em face do nacionalismo suicida dessa guerra, o
redespertar de novos movimentos religiosos e a redescoberta de um
antigo conjurador religioso, tal como Kiekegaard o foi, que
incorporava o pathos da existência em si – tudo isso teve também a
sua correspondência nas ciências: tivemos aí a crise dos
fundamentos da teologia, que conduziu por meio do comentário de
Karl Barth à epístola aos romanos à formação da teologia dialética, a
crise na economia que surgiu por meio das violentas transformações
econômico-mundiais do período de guerra e pós-guerra, a crise na
matemática que veio à tona com o intuicionismo de Brouwer e a crise
da física que teve lugar por meio da teoria da relatividade de Einstein
– não foi senão em vão que a confusão geral dos espíritos precisou
atentar para a mensagem de salvação da fenomenologia
husserliana.
380
Esses acontecimentos promoveram uma espécie de insurreição contra o
processo de racionalização que tomou a Europa nos seus duzentos anos de
modernidade, que instrumentalizou a razão moderna, esgotando, assim, seu
potencial crítico e emancipador, reduzindo-a a uma “estreita e conformista
razão instrumental, empirista, positivista, ideologicamente a serviço da
alienação e da dominação”
381
. Na esteira da tradição crítica da escola de
Frankfurt
382
, Habermas se esforça para reabilitar a razão em sua capacidade
crítica, uma razão crítica capaz de ser uma alternativa ao positivismo e ao
irracionalismo que varre o mundo em forma de nazismos, fascismos e práticas
anti-democraticas que se afirmam na maioria das vezes pelo uso da força.
383

380
GADAMER, Hermenêutica v.II..., p.149
381
SOUZA, Filosofia, Racionalidade e Democracia..., p.22.
382
Para Escola de Frankfurt ver CORTINA, Crítica...
383
SOUZA, Filosofia, Racionalidade... p.22. “Habermas preocupa-se com os precedentes
representados pela utilização nazista de Nietzsche e pelo nazismo de Heidegger, que, para ele,
só podem ser exorcizados por uma ética universalista e por uma política democrática, ambas
fundamentadas numa certa incondicionalidade da razão. Em relação ao “irracionalismo”, ele
não vai ao exagero – de George Lukács em Assalto à razão – de vê-lo por toda a parte, na
filosofia contemporânea, em tudo que não é racionalismo e Iluminismo (de tipo alemão). Mas
aparentemente, preocupa-lhe, sobretudo, o fato de que, na Alemanha, as posições políticas de
extrema direita, reacionárias e perigosamente chauvinistas, tem-se acompanhado, no plano
filosófico, de posições que repudiam o Esclarecimento e que retomam o Romantismo”.
131
Habermas não se rende ao conservadorismo político e irracional que
nega a capacidade de auto-reflexão e afirmação da razão diante da tradição.
Sua hermenêutica crítica “censura em Gadamer o irenismo que pode levá-lo a
ocultar o jogo de interesses que podem se inserir no ato de interpretação e
torná-lo muito pouco desinteressado”.
384
Habermas se orienta pela tradição
crítica das luzes, percebendo a importância da “destranscendentalização” do
sujeito,
385
como afirmação das lições aprendidas através da nova hermenêutica
e do pragmatismo. Em reação à subserviência à tradição de Gadamer, propõe
uma subversão crítica da tradição como crítica das ideologias, situando a
instância crítica acima do “preconceito” da consciência hermenêutica.
As ciências sociais críticas se dão por tarefa discernir, sob regulares
observáveis das ciências sociais empíricas, formas de relações de
dependência “ideologicamente fixas”, reificações que só podem ser
transformadas criticamente. Portanto é o interesse pela emancipação
que regula o enfoque crítico. Habermas chama esse interesse
também de auto-reflexão; ele fornece o quadro de referência para as
proposições criticas: a auto-reflexão, escreve no texto de 1965,
liberta o sujeito da dependência a poderes hispostasiados.
386
Habermas não nega o processo crítico gestado no interior da
modernidade e seu potencial crítico e emancipatório que é capaz de promover
uma iconoclasta crítica das tradições e das ideologias a partir da auto-reflexão
da razão. Ele se pronuncia a partir de uma tradição, a tradição da Aufklärung,
da libertação e emancipação, que, para Ricoeur, “penetra na mais
impressionante tradição, a dos atos libertários, a do Êxodo e da Ressurreição”
387
.

384
PELLETIER, p.70
385
HABERMAS, A volta do historicismo..., p.66. “Diferentemente de um observador, o
interprete é um participante, que, como um falante diante de uma audiência, tem de tomar
atitude performativa em relação a segundas pessoas. O interprete não pode mais assumir uma
perspectiva objetivante, de terceira pessoa, que pretenda estar de algum modo fora do domínio
dos objetos, e ser claramente distinta dos fenômenos que precisam ser interpretados. Como
Hans-Georg Gadamer explicou, o intérprete não compreenderia nada se não estivesse situado
no interior de um processo, no qual tanto o interprete como seu objeto estão, desde o começo,
aninhados. Desde quando não existe, para o intérprete, saída desse contexto, sua
interpretação não é menos uma manifestação da vida histórica do que aquilo que ele interpreta.
Isso se aplica igualmente aos padrões pelos quais as interpretações podem ser criticamente
avaliadas. Se existe um padrão qualquer, ele deve ser inerente à própria vida histórica”
386
RICOEUR, p.124
387
Ibid, p.145
132
CAPÍTULO IV
BÍBLIA TRADIÇÃO E LIBERTAÇÃO: O LÓCUS HERMENÊUTICO LATINO
AMERICANO
Fundamental para o desenvolvimento de uma hermenêutica bíblica
latino-americana da libertação é a contribuição das ciências bíblicas que
transformou, desde o Renascimento até a Idade Moderna, a leitura da Bíblia no
Ocidente. O instrumental histórico-crítico da exegese bíblica possibilitou uma
aproximação às raízes históricas das tradições bíblicas, desvendando o longo
processo de formação por que passaram os escritos bíblicos judaico-cristãos e
o pano de fundo histórico-ideológico que exerceu um papel determinante em
sua formação. A crítica histórica desvelou as relações entre história e texto,
buscando evidenciar os mecanismos políticos e sócio-culturais que estão por
trás da formatação canônica da Bíblia hebraica e cristã. De extrema
importância para uma crítica das tradições da teologia cristã clássica
(fundamentada em princípios canônicos da Bíblia como unidade teológica), a
crítica histórica exerceu um papel fundamental no desenvolvimento das
ciências bíblicas na América Latina, que procurou minar as bases de uma
teologia cristã clássica que possuiu (possui) como lastro fundamental uma
leitura canônica dos escritos sagrados da Bíblia hebraica e cristã.
388
É sabido que a história religiosa da cristandade no Ocidente tem sua
fundamentação nas narrativas canônicas do Primeiro e Segundo testamento
cristãos, lidos a partir de uma hermenêutica cristã clássica – apresentada no
primeiro capítulo – que possibilitou um construto teológico, a saber, uma
teologia da história cristã ocidental. As bases dessa teologia da história se
encontram no pensamento teológico sistemático dos pais da Igreja Cristã

388
Um exemplo simples de leitura canônica é BERKHOF, Princípios de Interpretação Bíblica...
Outro exemplo característico se encontra na hermenêutica reformada das escrituras, que
recapitula o eixo hermenêutico agostiniano, concebido como hermenêutica trinitária das
escrituras. Um clássico exemplo é a recente obra traduzida no Brasil de VANHOOZER, Há um
significado..., o autor perpassa toda historia da interpretação bíblica moderna e Pós-moderna e
retoma o principio hermenêutico baseado na autoridade canônica (Agostinho). A obra pode ser
classificada, usando a mesma classificação de Espinosa em relação à hermenêutica reformada
do séc. XVII: preconceitos teológicos que instrumentalizam a Bíblia com os fins de afirmar
verdades de fé que reproduzem estruturas de dominação com capa de piedade. Ver cap. III. A
crítica das tradições em Baruch de Espinosa – o Tratado Teológico Político
133
ocidental e têm no pensamento teológico do monge africano Agostinho de
Hipona sua mais brilhante síntese. Essas tradições canônicas são
fundamentais para o processo de colonização do imaginário latino-americano,
que, através de um processo de evangelização forçada, legitimou uma ação de
dominação que tem seus lastros fincados nas bases sacerdotais das
escrituras.
389
A estrutura canônica das escrituras sagradas se torna, assim, o
ponto nevrálgico de todo castelo teológico cristão ocidental e é a partir dela que
se assenta toda leitura histórico-teológica que possibilitou a elaboração de uma
história da salvação de cunho dogmático e sacerdotal.
A contribuição das ciências bíblicas para a exegese latino-americana da
libertação possibilitou a desconstrução de tradições sedimentadas, advindas de
uma formatação político-ideológica que legitimou estruturas hierárquicas de
poder e dominação que perpassaram a história política e cultural do Ocidente
cristão e foi raiz do amplo processo de colonização que submeteu a civilização
ameríndia do continente latino-americano. A crítica histórica permitiu uma
revolução na leitura da Bíblia, possibilitando uma dessacralização das tradições
bíblicas e um conseqüente des-empoderamento das escrituras do poder
eclesial, abrindo brechas no controle e no poder político-religioso das
estruturas eclesiásticas. Aplicada às tradições bíblicas, a crítica histórica
evidenciou que textos sagrados estão vinculados a estruturas sociais e são,
evidentemente, instrumentos de poder. Como textos sagrados, re-produzem
uma ordem social e interesses múltiplos. São elaborações humanas que
refletem estruturas de poder e relações sociais carregadas de intensos conflitos
ideológicos. É o conflito que se faz corpo no texto: vozes de dominação e gritos
de libertação se digladiam num emaranhado social que dá luzes a uma
diversidade de cantos e recantos que foram afirmados ou silenciados nos
recônditos do passado. Neste sentido, se torna impossível desconsiderar a
força da narrativa como determinante nas construções do “mundo da vida”
390
e
suas ordenações sociais.
A crítica histórica demonstrou que a Bíblia hebraica e cristã em sua
forma e redação final, é expressão de um construto ideológico feito a partir de

389
Para as bases sacerdotais das escrituras, ver GALAZZI, Teocracia...; CRÜSEMANN, A
Torá...; FINKELSTEIN, SILBERMAN, A Bíblia...
390
Para isso, ver GEBARA, Rompendo o Silêncio...
134
longos e significativos conflitos sociais. Expressão de uma força ideológica e
hierárquica, a Bíblia – em sua forma final e canônica – foi funcionalizada
estruturalmente num processo de silenciamento do múltiplo, que se apropria –
num processo de legitimação e re-significação – de uma diversidade de
tradições. As narrativas judaico-cristãs do Primeiro e Segundo Testamento são
narrativas plásticas que funcionalizam tradições múltiplas a serviço de um
construto ideológico patriarcal e monolítico que elabora uma metanarrativa,
uma espécie de história total, dos diversos judaísmo(s) antigo(s) e
cristianismo(s) originário(s) a partir de seleções e apropriações elaboradas
numa pretensa unidade teológica expressa no produto final canônico daquilo
que conhecemos como Bíblia hebraica e cristã.
A partir das contundentes contribuições das ciências bíblicas elaborou-se na
América Latina uma hermenêutica da libertação como crítica das tradições e
das instituições. O lócus hermenêutico latino-americano é herdeiro de um
amplo processo de emancipação crítica gestado no Ocidente, que deu inicio ao
rompimento com as estruturas hierárquicas representadas pelas instituições da
cristandade européia. Advindo de movimentos de ruptura que nasceram no
coração da Europa nos séculos XV a XIX –, caracterizados pelos movimentos
humanistas no Renascimento e as Reformas protestantes, que inauguram uma
desapropriação das escrituras sagradas das estruturas de poder eclesiástico,
por sua vez radicalizado pelo programa crítico de emancipação cultural e
religiosa gestado nas luzes do século XVIII e XIX (Aufhlärung) que colocou a
Bíblia sob os olhares da crítica e à mercê da história – o movimento bíblico
latino-americano da libertação herda esse programa de emancipação crítica
das tradições e elabora um contundente processo hermenêutico de releitura da
Bíblia em terras latino-americanas.
4.1 PAUTAS PARA UMA HERMENÊUTICA BÍBLICA LATINO-AMERICANA DA
LIBERTAÇÃO: O LUGAR HERMENÊUTICO DA PESQUISA BÍBLICA LATINO
AMERICANA
A teologia, a ética, e todo ethos cultural de uma civilização são
profundamente moldadas pela compreensão que essa civilização tem do seu
135
passado.
391
É essa evidência que nos chama atenção a nova hermenêutica,
demonstrando o caráter pré-compreensivo de toda elaboração teológica e
cultural. A crítica histórica, neste sentido, exerceu o fundamental papel de
crítica das tradições e das ideologias, criticando e desconstruindo uma história
dos efeitos que impregna as mentalidades coletivas, religiosas e culturais,
formando estruturas mentais, culturas opressivas e patriarcais, moldadas por
compreensões e visões de mundo antigas que determinam o comportamento e
práticas sociais dos grupos humanos.
As razões de uma hermenêutica bíblica da libertação na América Latina
se encontram na urgência de uma interpretação ética e política, na qual a
leitura da Bíblia se defronta com feridas históricas ainda não estancadas – e
que jamais cicatrizarão –, decorrentes de um insólito e histórico processo de
colonização cristã européia, que colonizou corpos e consciências latino-
americanas, submetendo milhares de povos indígenas e africanos a um projeto
político-religioso que provocou uma carnificina humana e cultural, dizimando,
fundados na idéia de uma religião universal que proclamou a assimilação da
verdade em sua totalidade, milhares de vidas humanas. Uma historia dos
efeitos da cultura e interpretação bíblica colonial na América Latina demonstra
a contundente negação dos valores nativos de uma religião indígena e africana
que foram enxergadas como expressão de um mal a ser abortado, sendo
colonizada por uma teologia cristã clássica que violentou a consciência
religiosa nativa, reduzindo seus símbolos a meras representações de povos
não civilizados, escravizados por uma religião demoníaca que deveria ser
eliminada. A colonização da consciência religiosa africana e indígena foi
absolutamente eficaz. Os indígenas e negros foram submetidos a um processo
ininterrupto de evangelização que foi responsável pelo nascimento de uma
falsa consciência nos povos dominados.
392
Sua religião, entendida como
expressão demoníaca, expressão da aberração cultural em que estavam
envolvidos, representava a barbárie e o atraso que deveriam ser deixados
definitivamente para trás, dando lugar às luzes de um cristianismo, sinônimo de
uma civilização imposta ao novo mundo. Símbolo da cristianíssima, civilizada e
bélica civilização que se apresenta, a Bíblia, canon sagrado da cristandade,

391
GADAMER, Verdade e Método...
392
Ao conceito de falsa consciência, ver FERRETI, Repensando o sincretismo...
136
lida e interpretada pelos teólogos da conquista, ajudou a fundamentar
teologicamente as posses e os domínios das novas terras conquistadas. No
processo de colonização, a Bíblia, junto com a cruz, se tornou o monumento
393
da civilização cristã. A Bíblia foi, assim, para os povos colonizados, um
monumento da barbárie.
394
A leitura da Bíblia na América Latina reproduziu de forma acentuada os
reflexos da colonização, reproduzindo uma história dos efeitos que determinou
a histórica manutenção de uma cultura ocidental européia, que fortaleceu a
afirmação de papéis sociais assimétricos, legitimando estruturas políticas,
religiosas e culturais que submetiam homens e mulheres a um processo
histórico de submissão e opressão, decorrentes de uma hermenêutica bíblica
colonial que naturalizou os projetos de dominação políticos, religiosos e
culturais.
395
O lugar hermenêutico da pesquisa bíblica na América Latina é a
realidade de opressão, que se traduz numa realidade de dependência política,
econômica e cultural de povos inteiros que sobrevivem em um continente que
sofre as conseqüências drásticas de um contínuo processo de colonização que
se reproduz sistematicamente numa história de 500 anos de dependência.
A hermenêutica bíblica latino-americana da libertação é de cunho crítico
emancipatório. Reage aos rascunhos hermenêuticos positivistas e
caracteristicamente existenciais da interpretação bíblica européia, que reproduz
– no primeiro caso – uma interpretação de cunho objetivista e positivista da
realidade
396
ou faz uma mera interpretação existencial relativista (Gadamer,
Bultmann, De Witt), tratando o texto como obra de arte, estabelecendo uma
mera produção de sentido. Neste sentido se estabelece em um diálogo frutífero
com a hermenêutica crítica emancipatória sócio-científica proposta por Jürgen
Habermas de crítica das tradições. A exegese latino-americana pode, neste

393
Para o conceito de monumento, ver BLOCH, Apologia...
394
Para o conceito de monumento de barbárie veja BENJAMIM, Sobre o conceito da história.
In: LOWY, Walter Benjamim...: “Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo
tempo, um documento da barbárie. E, assim como ele não está livre da barbárie, também não
o está o processo de sua transmissão, transmissão na qual ele passou de um vencedor a
outro”.
395
Ver CARDOSO, Hermenêutica feminista...
396
De muito significado é a afirmação do exegeta europeu Rainer Kessler: “Entrementes, há
tempo, já sabemos que o assim chamado leitor objetivo é na verdade o leitor branco masculino
com formação acadêmica, que em geral está situado na Europa central e na América do
Norte”. KESSLER, Tendências hermenêuticas..., p.51
137
sentido, afirmar junto com a exegeta feminista Elisabeth Schüssler Fiorenza,
sua apreciação do referencial teórico e crítico da hermenêutica de Habermas.
Com Jürgen Habermas, os estudos feministas insistem, opondo-se a
um programa hermenêutico, sociorracional e científico-positivista,
que questões de poder são centrais não somente como
compreensão da linguagem, da tradição e do cânon, mas também da
própria pesquisa sobre o Jesus Histórico. Habermas distingue três
formas básicas de conhecimento: a empírico-analítica, a
hermenêutica-histórica e a crítico-emancipatória. Buscamos o
conhecimento a fim de controlar situações sociais e os fatos da
natureza (conhecimento empírico-analítico), para compreender e
avaliar situações históricas (conhecimento hermenêutico-histórico) e
para alterar nosso conhecimento individual e coletivo da realidade
(conhecimento crítico-emancipatório), de modo que se possam
maximizar o potencial humano e as possibilidades de liberdade e
igualdade.
397
A hermenêutica bíblica latino-americana da libertação situou-se em uma
nova possibilidade de ler a Bíblia a partir das condições reais de vida,
398
o que
na América Latina afirmou-se como uma leitura das tradições bíblicas “a partir
dos pobres”. O problema hermenêutico foi potencializado para uma análise
contextual coletiva, sendo sensível às realidades históricas experimentadas por
grupos sociais inseridos em um contexto de exploração e opressão. Aqui cabe
ouvir as palavras do exegeta brasileiro Milton Schwantes:
Há muito que se questiona o postulado da objetividade da
interpretação exegética, afirmando-se seu caráter existencial. Essa
problemática exegética tradicional é aguçada e profundamente
reorientada em nossa realidade, resultando na pergunta: O que
significa se passamos a entender esta existência, que participa
decisivamente do processo hermenêutico, não como existência
individualmente angustiada, mas coletivamente oprimida e
espoliada?
399
Essa leitura encontrou um forte auxílio na exegese histórico-social, que
possibilitou um enorme enriquecimento da pesquisa bíblica, dando condições e
lastros científicos para se afirmar as escrituras como memória histórica dos
pobres.
400
O projeto histórico-teológico da hermenêutica latino americana da
libertação buscou encontrar as origens sociais dos textos.
401
Sensivelmente
influenciada pelo referencial teórico moderno crítico,
402
a hermenêutica latino

397
SCHUSSLER-FIORENZA, E. Jesus..., p.82
398
RICHARD, O fundamento...
399
SCHWANTES, A cidade..., p.76
400
RICHARD, Bíblia...
401
SCHWANTES, A origem...
402
Segundo Ricoeur a critica das ideologias é a “expressão moderna e pós- marxista da
instância critica”. RICOEUR, p.133-134.
138
americana pode situar-se num quadro epistemológico das ciências sociais num
projeto de re-construção crítica da tradição. Neste sentido pode superar o vazio
e a abstinência política e teórica da hermenêutica filosófica, afirmando a
possibilidade de uma abordagem crítica que submete o passado ao juízo da
razão histórica. Neste sentido, pode, usando a expressão de Walter Benjamim,
dar “um salto de tigre em direção ao passado”, a fim de “salvar a memória dos
oprimidos e nela se inspirar para interromper a catástrofe presente”, que é a
leitura colonial da Bíblia, que retroalimenta uma história de dominação e
subjugação históricas. Pode re-afirmar, dentro de uma tradição crítica da
libertação, “que o sujeito do conhecimento histórico é a própria classe oprimida,
a classe combatente”,
403
podendo “escovar a história a contrapelo”,
descobrindo tradições de resistências e libertação, lendo a história bíblica a
partir do ponto de vista dos vencidos, dos excluídos, dos párias.
404
A hermenêutica latino-americana da libertação, através do seu
engajamento sóciopolítico, encontrou na ciência histórica social seu lastro
epistemológico de crítica das tradições e das instituições, assumindo assim seu
papel orgânico de ciência interessada. Desvincula-se das tradições
hermenêuticas que assumem o papel de interpretação como um mero diálogo
(Gadamer) ou obra de arte, assumindo a possibilidade de uma ciência social
critica e emancipada (Habermas), que está à serviço da crítica e da libertação.
Assim, se recusa a participar do “cortejo triunfal”
405
de uma hermenêutica
bíblica colonial que insiste em ignorar os vencidos das terras ameríndias,
enveredando-se em suas liturgias de triunfo que alimentam a hierarquia de
príncipes e autoridades de uma cristandade. Leu-se a Bíblia ao revés dá
história; fez se teologia bíblica a partir dos pobres e oprimidos
4.2 ÉTICA E POLÍTICA DA INTERPRETAÇÃO: A CONTRIBUIÇÃO DE UMA
HISTÓRIA SOCIAL DOS TEXTOS BÍBLICOS
Uma história social das tradições bíblicas hebraicas e cristãs tem como
objeto as grandezas sociais que estão por trás das narrativas bíblicas judaico-

403
BENJAMIM, W. Tese XII. Apud LÖWY, Walter Benjamim..., p.108
404
LOWY, Walter Benjamim..., p.79.
405
BENJAMIM, Tese VII apud LÖWY, Walter Benjamim..., p.70
139
cristãs. Busca-se compreender as grandezas sociais da sociedade bíblica,
perguntando por suas estruturas econômicas e sócio-culturais determinantes,
como os modos de produção, constituição jurídica, instituições e estrutura
política,
406
desvendando assim os grupos de suporte social que estão refletidos
nos textos bíblicos.
Tendo origem nas academias de teologia européia na Alemanha do pós-
guerra,
407
uma história social do mundo bíblico foi também reflexo das
profundas modificações da disciplina da História que buscou refletir sob a ótica
de uma “nova história” as profundas transformações epistemológicas que
possibilitaram a afirmação de uma forte interdisciplinaridade.
408
A fundamental
renovação da historiografia francesa, representada pelo movimento dos
Annales
409
através de medievalistas como Marc Bloch, L. Febvre, Fernand
Braudel
410
, promoveu um forte impulso de renovação para a historiografia
mundial. O desenvolvimento da história social inaugurou também um profundo
rompimento com as abordagens positivistas do passado, que eram decorrentes
de um fervoroso liberalismo político sustentado por um empirismo e
individualismo metodológico, muito bem representado nas obras do historiador
das instituições Leopold Von Ranke.
411
A história social evidenciou a

406
KESSLER, História social..., p.2. Agradeço ao prof. Dr. Haroldo Reimer pela disposição do
paper do Dr. Rainer Kessler, que está em suas mãos em processo de tradução para fins de
publicação no Brasil. Kessler é catedrático de Antigo Testamento na Universidade de Marburg,
Alemanha. Para obra de Kessler em língua portuguesa ver KESSLER, Miquéias...
407
Segundo Kessler, uma contribuição fundamental, anterior ao movimento que produz uma
história social do mundo bíblico, é a obra “O Judaísmo Antigo de Max Weber”, escrita como
terceiro volume de uma “Coletânea de textos sobre a sociologia da religião”. Seu lugar
sistemático não é a ciência bíblica, mas a sociologia da religião. “A influencia da obra de Weber
sobre pesquisadores alemães do Antigo Testamento é profunda, mesmo que dificilmente isso
seja articulado pelos próprios autores. Especialmente Albrecht Alt e Martin Noth assumem o
interesse teórico pelas formações sociais e pelos seus desenvolvimentos e suas transições.
Mesmo teoremas isolados como a transumância dos semi-nômades criadores de gado
pequeno, da aliança tribal guerreira da época pré estatal, o peso do contraste entre cidade-
campo na época da monarquia ou a descrição do Israel pós-exílico como comunidade cultual
podem ser remetidos sem dificuldade a influência da obra de Weber”. p.10. Na América Latina,
eixos como aliança tribal guerreira, contraste entre cidade-campo, Israel pós-exílico como
comunidade cultual, serão amplamente destacados.
408
Ver BRAUDEL, Escritos...
409
Para o Grupo dos Analles, ver DOSSE, A História...
410
Para uma introdução a essas transformações da disciplina da Historia, ver LE GOFF,
PIERRE, Historia Novos Objetos...
411
KAYE, p.12. “esa metamorfosis historiográfica há sido también un reflejo de las
transformaciones mundiales en las estructuras socioeconômicas y políticas y en las actitudes
intelectuales ocurridas durante nuestro siglo. La historiografia tradicional demostraba su
incapacidad para comprender los procesos que, a través de guerras, revoluciones y
descolonización, habián resultado em la destruiccíon del monopolio social y político de las
elites tradicionales. Aquellos que los entendieron, lanzaron una profunda crítica frente al
140
importância de uma análise dos grupos sociais e sua influência sobre as
estruturas sociais de determinada sociedade
412
. Enriquecida já pelos arroubos
e transformações políticas simbolizados em uma Europa pós-68
413
, que
contribui para a afirmação do território político do historiador
414
, uma historia
social do mundo bíblico procurou perceber os reais conflitos e interesses que
estão presentes nas narrativas bíblicas, mapeando assim os grupos político-
religiosos que funcionaram como suporte de narrativas bíblico-teológicas.
Kessler afirma a este respeito:
A exegese mais recente de orientação histórico social não pergunta
somente pelo “lugar vivencial”, como já foi feito pela história das
formas mais antiga; ela pergunta pelos interesses, que se expressam
nos textos. Ela relaciona esta questão com o questionamento inverso
de como as concepções religiosas, expressas nos textos, por sua
vez, retroatuavam sobre o desenvolvimento social daquela época.
Com a sua pergunta pelos interesses expressos nos textos, este tipo
de exegese que opera de modo histórico-social pressupõe que exista
uma multiplicidade de interesses em uma sociedade, os quais
parcialmente se sobrepõem e parcialmente andam de modo paralelo,
mas que também se distanciam ou se contrapõem frontalmente. E
ela parte do pressuposto de que textos tem participação neste
emaranhado de interesses, mesmo que em regra não no sentido de
um simples reflexo de um determinado interesse em um texto
determinado. “Contraposições entre distintas afirmações da Bíblia
evidenciam-se... em regra como condicionados pelas origens sociais
diferentes dos respectivos textos”. Se se pergunta desta forma, então
o intricado de interesses deve ser evidenciado; deve-se procurar
pelas condições dos interesses diversos e também a alternância

obscurantismo histórico. En el caso britânico, E.H. Carr, en su ataque contra el empirismo y la
falsa objetividad contenido en Que es la história? (Londres, 1961), demolía la dicotomia entre
hechos e interpretación. O lo que es lo mismo, echaba abajo la piedra angular del edifício
positivista. Uno años antes, em 1952, aparecia Past and Presente, la revista britânica que más
há influido en las nuevas formas de plantear el debate histórico (...) el primer vínculo que en
realidad unió al grupo de historiadores aqui estudiados fue su intensa actividad política en el
partido Comunista britânico en la década posterior a la segunda guerra mundial (...) Romper,
en definitiva, con las interpretaciones empíricas dominantes. Eso es lo que explica, por
ejemplo, que Past and Present fuera subtitulada em sus primeros años “uma revista de historia
científica” y que en todos los trabajos de esos historiadores se pusiera desde el principio
énfasis em las experiências de resistência y rebelión de las clases desposeídas”. O texto de
Kaye é bem representativo, demonstrando as transformações da historiografia inglesa,
decorrente de mudanças políticas e sociais que promoveram uma forte consciência política no
fazer historiográfico. Aqui podemos falar, a semelhança da exegese histórico-social e da
hermenêutica latino-americana da libertação, de uma ética e política da interpretação, como
decorrente do surgimento de uma consciência histórica. Segundo o autor em seu prefácio, “he
escrito el libro para hacer patentes no sólo las aportaciones de estos historiadores a los
estudos históricos y a lá teoría social sino tambíen su importante contribuición a la formación
de una consciencia histórica democrática y socialista. Considero que su obra tiene
consecuencias acadêmicas y políticas.
412
KESSLER, História social..., p.3
413
Sobre a revolução política e cultural de Maio de 68 e sua profunda influência na
transformação das Ciências Humanas e Sociais, ver DOSSE, Historia e Ciências Sociais...;
HOLZMANN, PADRÓS, 1968...
414
Ver DOSSE, História e Ciências Sociais..., p.20
141
destes interesses em jogo e a dinâmica de suas transformações deve
ser reconhecidas (erfasst).
415
Na exegese de orientação histórico-social, vislumbra-se, além de uma
hermenêutica política, a afirmação clara de uma hermenêutica da suspeita.
Como conseqüência das transformações políticas e sociais que banharam a
Europa e contagiaram irremediavelmente o saber histórico, dando um “banho
de vanguarda no plano das ciências humanas”
416
, essa virada crítica da
pesquisa bíblica refletiu também os anseios e a sensibilidade de teólogo(a)s
europeus que intuíram a urgência e a necessidade de diálogo com setores da
teologia da libertação latino-americana, sendo também tomados pelo
sentimento de libertação que varria o mundo com fúria incontida, proclamando,
em uníssona voz com os teólogos latino-americanos, a morte de estruturas
religiosas e políticas de opressão, inquirindo com razão crítica e emancipada,
“verdades” cristalizadas por uma tradição que se indispunha aos ventos
renovadores soprados por um espírito libertador que era manifesto na(s)
periferia(s) do mundo. Segundo Kessler:
O ano de 1968 deu novos impulsos para a pesquisa bíblica na
Alemanha. Nisso, 1968 é um numero simbólico. É o ano em que na
Europa houve uma irrupção democrática sem precedentes; isso se
verificou na França, na Alemanha, mas também na Tchecoslováquia
socialista e em muitos outros países. É o ano em que nos Estados
Unidos o protesto contra a guerra do Vietnam chega ao seu ponto
maximo. É também o ano em que a Conferencia Episcopal Latino-
Americana, reunida em Medellín, proclamou a Teologia da Libertação
(...) surgiram muitos trabalhos que assumem a pergunta pela justiça
social e pela força libertadora da Bíblia. Certamente não é um acaso
que a exegese feminista e a exegese histórico-social muitas vezes
estejam intimamente relacionadas. Pois ambas buscam libertação.
417
Este movimento corre paralelo à revolução do fazer teológico realizado
pela teologia da libertação na América Latina. Em 1973, a obra de Gustavo
Gutierrez, Teologia de la liberación, é traduzida para o alemão
418
, estreitando
assim, o diálogo teológico sempre difícil, sufocado e quase sempre unilateral
entre norte e sul. Muitos biblistas europeus descobrem a crítica social dos

415
KESSLER, História social..., p.12
416
DOSSE, História e Ciências Sociais..., p.19
417
KESSLER, Tendências hermenêuticas..., p.57.
418
KESSLER, História social..., p.12; Ver tbm REIMER, Richtet auf das Recht!...;
SCHWANTES, Das Recht...
142
profetas
419
e a exegese histórico-social vai dando os rumos de uma teologia
bíblica da libertação, que se potencializa a partir de um diálogo frutífero com a
Teologia da Libertação na América Latina.
A exegese histórico-social é fundamentalmente necessária no
desenvolvimento de uma teologia bíblica da libertação, sendo o principal
acesso às grandezas histórico-sociais que funcionavam como grupos de
suporte de uma diversidade de tradições bíblicas que se expressam na
multifacetada história da religião de Israel e dos cristianismos originários. Tem
como pressuposto hermenêutico a diversidade de grupos que compõem o
campo político e sócio-religioso, expressado nas vozes que silenciam ou são
silenciadas no processo de composição das tradições, entendidas, assim, por
uma hermenêutica fundada na tradição, como canônicas e finais. Neste
sentido, afirma Kessler:
A interpretação bíblica histórico-social “atua no sentido contrário a
todas as tendências de encobrimento, de embelezamento
(Beschönigung) e de harmonização, encontráveis a qualquer tempo
na história da sociedade humana, e que também podem ser
encontradas em âmbitos da escritura bíblica; deste modo os reais
conflitos sociais de ontem e de hoje são mencionados e criticamente
são contrabalanceados em sua carga ideológica. As conseqüências
de uma tal interpretação bíblica histórico-social estendem-se até para
dentro de questões teológicas práticas, de modo que com um pouco
de exagero pode-se dizer que “a própria interpretação bíblica
histórico-social se evidencia como parte de uma teologia da
libertação”.
420
Entre os representantes de uma história social dos textos bíblicos na
Europa está também o teólogo alemão Frank Crüsemann, ex-catedrático de
Antigo Testamento na Escola Superior de Teologia Bethel, em Bielefeld,
Alemanha. Sua obra pode ser identificada no contexto cultural da Alemanha
pós-guerra que busca, em horizonte teológico, “uma nova elaboração e
conceituação da relação entre cristãos e judeus”
421
. Sua monumental obra, A
Torá – Teologia e história social da lei do Antigo Testamento, foi composta a
partir de fortes impulsos éticos, políticos e teológicos, buscando estabelecer
princípios inspirativos que norteiem as ações político-sociais a partir de uma
ética teológica – que quer “ser mais do que uma simples ramificação da ética

419
Ibid, p.12
420
Ibid, p.3
421
CRUSEMANN, A Torá..., p.9.
143
filosófica”
422
– que redescubra os princípios inspirativos “da lei no Antigo e no
Novo Testamento”
423
. Crüsemann afirma:
Evidencia-se uma surpreendente atualidade da Torá para problemas
atuais fundamentais. Lembro as discussões acerca dos juros e do
perdão de dividas dos países endividados do chamado terceiro
mundo, as exigências para a preservação do direito de asilo, a
reivindicação de tratamento igual para estrangeiros e fugitivos face
às crescentes diferenças sociais em nível mundial e à xenofobia
decorrente. Lembro os atuais conflitos em torno do descanso
semanal da comunidade e de toda a família, as sugestões de se
insistir um ano sabático face aos minguados novos postos de
trabalho e à necessidade de encurtar as jornadas de trabalho.
Lembro também o problema do direito, tanto do direito intra-
eclesiástico quanto do estatal, o qual ainda não está teologicamente
digerido e este direito positivo muitas vezes assume o papel da
antiga autoridade divinamente sancionada. Não por ultimo, lembro
ainda a necessidade inadiável de se proteger juridicamente de forma
nova animais e plantas e sua relação com toda a natureza, e acima
de tudo deixá-los vir a ser novamente sujeitos de direito. Acerca de
tais temas de nossa atualidade, existem na Torá princípios para uma
ética autônoma, não somente circunstancial, mas uma ética
biblicamente fundamentada. E tais problemas profundos, resultados
da historia de fracassos da teologia e da Igreja européias, ajudam a
transpor antigas e aparentemente intocáveis fronteiras como a
contraposição entre leis cerimoniais e leis morais (no que os
aspectos políticos da Torá sempre sucumbem por primeiro). Aqui
talvez baste ressaltar a proteção da própria vida diante da
intervenção humana, como vemos na proibição de derramar sangue
na Torá. Esta lei faz parte das chamadas leis de Noé, constituindo,
assim, regras humanas gerais (Gn 9,4)
424
.
Um dos grandes méritos de Crüsemann está em sua capacidade de
acessar as leis de Israel em seu ambiente político e histórico-social,
identificando nelas tradições de opressão ou libertação. Sua exegese histórico-
social coloca em evidencia as causas sociais que levaram a sociedade israelita
a confeccionar um código de leis jurídicas, morais, cultuais, que, por sua vez,
exerceu uma elevada influência na formatação da identidade social e religiosa
de Israel e do próprio Ocidente cristão. Para Crüsemann, as urgentes questões
sociais, vividas em determinado período da história de Israel, provocaram a
confecção de um código de leis sociais que reflete um forte apelo ético que
ressoa com muita força e propriedade ainda em sociedades contemporâneas.
Neste sentido, uma teologia bíblica encontra nesses textos inspirações éticas
que interpelam até mesmo sociedades contemporâneas, cegas a uma

422
Ibid, p.13
423
Ibid, p.13
424
Ibid, p.17
144
realidade de estratificação e opressão ecológica e social.
425
Refletindo sobre as
origens de algumas porções de leis no Deuteronômio, Crüsemann observa:
O que contribuiu mais [para a origem dessas leis] talvez tenham sido
as multidões de refugiados depois da queda do reino do Norte, a
formação de favelas em Jerusalém, a miséria social disseminada. No
século VIII, os profetas levantam a voz criticando a escravização de
israelitas livres, o roubo de terras e a violência física praticada pelos
poderosos, e o Código da Aliança, nas passagens correspondentes,
submeteu exatamente os mesmos problemas a regulamentações
jurídicas. Assim, agora, nos séculos VII e VI, Jeremias e Ezequiel se
queixam que a terra está cheia de falsidade e adultério – que
caracterizam a apostasia do Deus de Israel, junto com a injustiça
social.
426
A obra de Crüsemann está bastante relacionada com a exegese bíblica
histórico-social na America Latina, e seu interesse na crítica social dos profetas
guarda bastante semelhança com a exegese latino-americana, sendo também
sua teologia bíblica, fruto de um profícuo dialogo entre a produção teológica
européia e latino-americana. Como exemplo, pode se observar seu interesse
pela crítica profética do século VIII, pela monarquia e sua legislação, “onde um
grupo da elite judaica aparece claramente legislando por conta própria”
427
,
promovendo a opressão das pessoas mais fracas de Jerusalém. Crüsemann
afirma:
Is 10, 1-4a se trata de uma parte da crítica social de Isaías. O texto,
portanto, fala de acontecimentos em Judá, respectivamente em
Jerusalém, nas ultimas décadas do séc. VIII aC. Claro está que,
falando no plural, o profeta critica pessoas que são responsáveis por
procedimentos legais através do uso da escrita. Neste sentido, a
forma verbal de “escrever” (ktb pi.), a qual somente é documentada
aqui, deve ser entendida em sentido iterativo; trata-se, pois, de
procedimentos típicos. No texto, porém, não se utiliza o termo usual e
nem o título de funcionário “escrivão” (sõfer). Os que são
mencionados pertencem à camada dos proprietários judaítas (cf. p.
ex. a riqueza [kãbõd] mencionada no v.3), e eles próprios tiram
proveito das conseqüências sociais, mencionadas no v.2, pois as
“viúvas” tornam-se “seu despojo” (s elãlãm), e eles mesmos também
espoliam os órfãos (...). Para Isaias, estas leis são de tal ordem que
produzem desgraça (ãwen) (cf. Is 31,12; Mq 2, 1, etc.). O que se
escreve é somente necessidade e opressão (‘ãmãl). Estas palavras
que não fazem parte da linguagem jurídica são desdobradas duas
vezes no v.2. A expressão “a fim de” (l) permite reconhecer a
intenções dos causadores ou, em todo caso, as conseqüências das
determinações jurídicas. As pessoas socialmente fracas (dallim) são
por eles desviadas e afastadas (nth hif.) do processo legal (din), e
assim são roubadas (gzl) em sua justiça, respectivamente em suas

425
Sobre a sua influência na hermenêutica bíblica latino-americana da libertação, ver: REIMER,
RICHTER REIMER, Tempos de Graça...; REIMER, Toda a Criação...
426
CRUSEMANN, p.360
427
Ibid, p.41
145
reivindicações jurídicas (mispãt). O direito codificado por escrito,
neste sentido, portanto, o direito “positivo”, espolia o direito dos
fracos e pobres. O v.2b fala de viúvas, que se torna espólio de
escribas legais. Aqui talvez se pense em processos de escravização
e de espoliações de órfãos. Infelizmente, a relação entre o v.2 e o
v.2a não é clara. O destino das viúvas e dos órfãos é uma
conseqüência direta das leis ou é diretamente o resultado de que o
direito dos pobres é roubado? Na pesquisa a maioria das tentativas
de compreender o que exatamente se quer dizer aqui permanece
relativamente vaga. Muitas vezes, postula-se que se trata de
contendas sobre o direito de dívidas ou direito fundiário, através das
quais se aceleram ou se tornam mais efetivas a dependência social e
os caminhos do status de liberdade para a escravidão por dividas.
Mas também se pensou nos efeitos de impostos e tributos. Com
Schwantes, porém, deve se ressaltar o fato de que o sentido muito
preciso do v.2ª não deve ser diluído desta forma. As novas leis fazem
com que os mais fracos não tenham a possibilidade de reclamar os
seus direitos; “eles são excluídos da comunidade jurídica”.
Possibilidades jurídicas que até então eram direitos seus, são-lhes
tiradas através de roubo (gzl).
428
Outra grande contribuição de Crüsemann está em demonstrar a coexistência
de várias tradições conflitantes que foram harmonizadas em uma unidade
teológica e se tornaram produto final canônico na forma de uma Torá em Israel.
Para Crüseman, a pergunta fundamental nas discussões em torno da formação
do Pentateuco é “como e porque e através de que forças sociais a partir dos
vários e sucessivos livros da lei surgiu a Torá una, o Pentateuco uno, que se
tornou um cânon”
429
. Sua exegese histórico-social do Antigo Testamento
buscou acessar as grandezas político-sociais que estão por trás dessas
tradições, que produziram textos distintos, em épocas distintas, carregados de
uma teologia e história próprias, contradizentes entre si, e que foram
justapostos nessa unidade jurídica e religiosa que é a Torá.
Fruto de forças político-sociais que são justapostas, as tradições legais e
cultuais da Bíblia hebraica são frutos de um emaranhado processo de coalizão
de tradições. Sua análise da formação do Pentateuco demonstra uma junção
ocorrida em sua composição de leis advindas do direito social (deuteronomista
– com possível origem no século VII no contexto da reforma josiânica
430
) e
direito cultual (sacerdotal – com possível origem no exílio e pós-exílio
431
), num
processo de releitura teológica de uma tradição mais antiga, conhecida como
código da aliança (com possível origem em uma sociedade agrária no período

428
Ibid, p.41-43
429
Ibid, p.21
430
Ibid, p.283
431
Ibid, p.383
146
do tribalismo de Israel)
432
. Essas tradições estão vinculadas a instâncias
políticas e sociais de um variado período de Israel, representando ora forças
sociais e políticas de opressão, ora forças sociais e políticas de libertação. A
coexistência dessas tradições e o acesso histórico social são fundamentais
para uma leitura da Bíblia, compreendida a partir de um esforço hermenêutico
de uma teologia bíblica da libertação que busca avaliar criticamente as
tradições bíblicas. Uma contribuição fundamental da exegese histórico-social
está em perceber o projeto político religioso expressado nos textos de raízes
sacerdotais que estabeleceram um rompimento com tradições antigas em
Israel, determinando uma espécie de monopólio religioso fundamentado numa
teologia da expiação que inaugura um conflito religioso, revelando interesses
contraditórios que fundam uma nova compreensão teológica e que determina
privilégios a uma classe de sacerdotes.
433
Para Crüsemann, não há consenso
entre as correntes teológicas que claramente se opõem no Pentateuco,
revelando um contraste insuperável na disputa pela compreensão da santidade
do povo, ou dos privilégios da classe sacerdotal.
434
Crüsemann afirma:
Para expor este conflito, o melhor é começar com a narrativa
sacerdotal de Nm 16, que gira totalmente em torno desta questão. O
texto retoma claramente material mais antigo e provavelmente deixa
transparecer várias camadas, também sacerdotais. Mesmo assim,
não é apenas possível, mas também metódica e objetivamente
apropriado, lê-lo como unidade intencional. O capitulo começa com
Coré, Datã e Abiram, além de 250 representantes destacados do
povo, levantando acusações pesadas contra Moisés e Aarão: “Basta!
Pois toda a comunidade e todos os seus membros são santos, e
Yhwh está no meio deles. Por que, então, voz exaltais acima da
assembléia de Yhwh?” (v.3). O relato muito complexo que segue
deixa entrever que grupos diferentes com pretensões ou acusações
diferentes são aqui englobados. Eles também encontram um fim
diferente. De um lado há Datã e Abiram, que questionam diretamente
os direitos de liderança de Moisés, e se recusam a segui-lo e
levantam muitas acusações (v.12-14). Eles serão engolidos pela terra
(v.31-34). Com eles é engolido Coré, que aparece como líder de um
grupo de levitas que reivindicam a dignidade sacerdotal que lhes foi
vedada (esp. v. 8-11). Evidentemente, eles colocam em duvida a
diferença entre sacerdotes e levitas, fundamental para a teologia
sacerdotal. Por fim, há os 250 leigos, que são descritos como lideres
destacados do povo (v.2). eles exigem que, com base na santidade
do povo todo, sejam canceladas as prerrogativas de Moisés e Aarão
e, com isso, o sacerdócio (v.3; cf. v. 5). Como castigo, eles são
mortos por um fogo que sai do santuário (v. 35) (...). O
Deuteronômio, porém, equipara expressamente levitas e sacerdotes
em Dt 18,6ss, e concede a cada levita os direitos sacerdotais plenos;

432
Ibid, p.159
433
Ibid, p.487
434
Ibid, p.487
147
confere-lhes claramente menos privilégios materiais na partilha dos
sacrifícios e dízimos, e os submete totalmente ao controle do povo e
seus representantes (...). A santidade do povo é concretizada, em
oposição ao pensamento hierárquico sacerdotal (...). Á frente de toda
a narrativa do Sinai, no texto citado, se destaca a promessa de Ex
19,3ss. Deus trouxe o povo a si mesmo, como diz a primeira palavra
a Moisés no monte (v. 4). Se o povo ouvir sua voz e mantiver a
aliança, será sua propriedade (se gullah, v.5) e se tornará um reino
de sacerdotes (mamleket kõhanim) e um povo santo (gõy qãdõs,
v.6). A proximidade com Deus conseguida no êxodo se manifesta na
santidade e na condição de sacerdotes de todo o povo. Este texto é
inegavelmente deuteronomista, e esta recepção deuteronomista do
conceito sacerdotal de santidade é de importância especial (...).
Junto com a recepção, porém, a formulação contém ao mesmo
tempo a crítica do conceito sacerdotal. O povo se torna um “reino de
sacerdotes” (mamleket kohanim, v.6). A expressão indica
evidentemente que todos os israelitas se tornam sacerdotes e
exercem funções sacerdotais. A diferença dentro de Israel quanto ao
relacionamento com Deus, e com efeitos jurídicos tão fundamentais
como os conhecidos pelos textos sacerdotais, é questionada desta
forma nos primórdios. A posição como introdução aos
acontecimentos do Sinai mostra o peso que esta questão tem. Em Ex
24, aquilo que é formulado em 19,6 é concretizado na narrativa: o rito
realizado pelos jovens do povo como cerimônia da aliança
corresponde ao da consagração dos sacerdotes (Ex 29,20; Lv 8,
24.30). O povo como um todo é consagrado como sacerdotes; os
sacerdotes em si não têm nenhum papel.
435
A obra de Frank Crüsemann possui importância fundamental para as
pesquisas do Antigo Testamento, estando o teólogo entre os preciosos
interlocutores de exegetas do hemisfério sul que se esmeram na confecção de
uma teologia bíblica que possua traços objetivamente latino-americanos. Sua
contribuição como historiador da religião de Israel contribui decididamente para
uma teologia bíblica madura, situada em contexto de intensa busca de uma
interpretação ética e política, onde os textos sagrados da tradição de Israel são
acessados em seu contexto histórico-social, não em vista de uma teologia
dogmática dos textos sagrados, mas em perspectiva crítica. Como já foi dito,
seus impulsos estão situados no profundo diálogo cristão-judaico,
436
que busca
garantir ao judaísmo a validade plena de suas escrituras. Como muito bem
pontuou o teólogo brasileiro Haroldo Reimer, esta ética e política da
interpretação está preocupada
Em garantir ao judaísmo a validade plena de suas escrituras sem a
mediação pelo Novo Testamento e sem a adesão à fé em Jesus
Cristo. Trata-se aí de um debate teológico e hermenêutico em solo
alemão como conseqüência do holocausto de milhões de Judeus no

435
Ibid, p.487
436
Entre teolog@s que fazem parte dessa renovação dos estudos bíblicos em horizonte
histórico-social no Canon do Novo Testamento, figuram: FIORENZA, SCHOTTROFF...
148
período do nacional-socialismo (1933-1945) (...) tentam evitar uma
nova e constante expropriação do judaísmo de suas escrituras
sagradas (Torá, Profetas e Escritos), reconhecendo que as mesmas
têm um sentido próprio sem o crivo do Novo Testamento. Busca-se,
assim, assegurar a dignidade do outro justamente pela valorização
de sua alteridade.
437
Acessar os textos sagrados do judaísmo em seu contexto histórico-
social carrega consigo fortes implicações éticas e políticas, pois, evitando as
apropriações anti-judaicas que negam a qualidade e relevância teológica
destes textos no seio da religião judaica, impede uma apropriação sistemática-
teológica de uma teologia cristã que elaborou, aos moldes de Agostinho, uma
teologia da história que contribuiu para a subjugação e extermínio de
civilizações e culturas inteiras. Uma aproximação histórico-social, além de
possibilitar um profícuo diálogo religioso judaico-cristão, possui também
conseqüências muito positivas para hermenêutica latino-americana,
possibilitando uma assimilação cultural própria destes textos, sem a
intervenção e mediação de uma teologia dogmática cristã clássica. Reimer
afirma:
Embora o debate seja tipicamente alemão, o mesmo pode ter
algumas repercussões sobre o fazer teologia (bíblica) em solo
brasileiro e latino-americano. Também em nossa teologia deve-se
primar por um respeito à cultura e ao desenvolvimento cultural do
outro. Nosso problema não é o holocausto de judeus, mas a
constante expropriação e subjugação dos povos ameríndios e afro-
brasileiros. Em nossa hermenêutica e fazer teológico, o outro,
ameríndio ou afro-latino, etc., deve ter a presença assegurada com a
sua dignidade própria, também de suas tradições culturais e cultuais,
não devendo ser medido pelo critério neotestamentário. Deve haver,
isso sim, um diálogo, em que a messianidade de Jesus é um
elemento fundamental e enriquecedor do diálogo e não o critério
nivelador ou até anulador.
438
Entre os interlocutores da pesquisa bíblica histórico-social latino-
americana figura também o norte americano Norman K. Gottwald, que ofereceu
uma grande contribuição aos estudos das tradições do antigo Israel em
perspectiva histórica e sociológica. De fundamental importância para os
estudos bíblicos em perspectiva latino-americana, a hermenêutica bíblica
orientada pelas ferramentas históricas e sociológicas, pode demonstrar o
caráter estéril e ideológico dos acessos teológicos dogmáticos de grande parte
da pesquisa bíblica, que, ignorando os aspectos sócio-culturais determinantes

437
REIMER, Preâmbulo..., p.14
438
Ibid, p. 14
149
na formação dos textos bíblicos, aliena-os de sua mundanidade e
intencionalidades humanas, com fins de encontrar um autor sagrado, como
entidade isolada, estática, desvinculando-o de seu pano de fundo histórico e
social, podendo elaborar assim uma narrativa teológica de cunho essencialista,
que legitima verdades supranaturais, fundamentado assim um poderio
estruturalmente político-religioso de uma tradição, entendida como única e
infalível revelação de Deus.
439
A pesquisa bíblica possui, assim, um caráter
histórico-sociológico, e deve ser realizada, “compreendendo a religião como um
fenômeno social do ponto de vista institucional e simbólico, relacionado,
portanto, com todos os outros fenômenos sociais dentro do sistema pela lei das
relações internas”
440
. Gottwald está convencido de que “os resultados do
estudo humanista da Bíblia revestem profunda e imprescindível importância
para a exata compreensão do antigo Israel”, seu objeto de estudo, e toda a
forma do seu trabalho é, em parte, “o desenrolar do método humanístico-
histórico em relação dialética com o método sociológico de estudo”.
441
Dentre as contribuições de Gottwald para os estudos bíblicos latino-
americanos, está sua monumental obra As Tribos de Iahweh, na qual
apresenta um estudo de fôlego sobre a formação de Israel e suas tradições.
Produz uma ampla e bem documentada história social e cultural do movimento
israelita primitivo, identificando as causas materiais que levaram à constituição
de Israel como entidade religiosa e cultural. Em sua pesquisa, Gottwald resiste
às tendências em “objetivar o sistema de Israel como uma figura estática e
monolítica”, procurando demonstrar que as tradições de Israel desenvolveram-
se a partir de complexas interações humanas, sofrendo alterações e
conhecendo fortes tensões e conflitos.
442
Ponto fundamental de sua obra é a
tese de que Israel é parte da população de matriz cananéia, surgindo como um
sistema social em Canaã por etapas, como uma agremiação de camponeses
revoltados, se tornando “um composto eclético que atraía subclasses de toda
Canaã”, que “produziu uma emergência angustiosamente lenta de consciência
comum entre os povos oprimidos”, reagindo assim a um “feudalismo cananeu

439
Quanto a isso, ver acima a crítica de Espinosa à teologia calvinista do século. XVII.
440
GOTTWALD, O método sociológico..., p.54
441
GOTTWALD, As Tribos..., p.35
442
GOTTWALD, O método sociológico..., p.43
150
como também aos vestígios do imperialismo egípcio em Canaã”
443
. Gottwald
ainda afirma:
Israel foi uma mutação de grandes proporções dentro de Canaã, e
sua realidade mutante como sistema social não deve ser confundida
com uma identidade étnica monolítica, com uma identidade nômade
pastoril socioeconômica monolítica ou com uma identidade religiosa
monolítica como se, de algum modo, o significado mutacional de
Israel pudesse ser explicado vendo-o como um povo inteiramente
separado da herança não-cananéia, saindo do deserto, professando
uma divindade totalmente sobrenatural, independente e completo. No
meu modo de ver, toda a prova depõe contra a idéia de Israel como
uma entidade monolítica pré-estabelecida, como também que toda a
prova fala a favor da emergência eclética, sintética, de Israel no
turbilhão da civilização Cananéia. Os nomes próprios formalísticos de
seus inimigos compreendem-se da melhor maneira como rótulos
sobreviventes, de evolução e aplicação variadas para coletividades
sociopolíticas no embaralhado mundo de Canaã em que Israel surgiu
e do qual segmentos do próprio Israel foram constituídos.
444
A tese de Gottwald exerceu enorme influência sobre pesquisas bíblicas
latino-americanas, principalmente nas leituras do êxodo que se tornaram para
os biblistas latino-americanos um evento exemplar,
445
chave hermenêutica para
a leitura da Bíblia na América Latina. Entre os muitos influenciados pela obra
de Gottwald está o notável biblista Jorge Pixley, com sua História de Israel a
partir dos pobres
446
e seu comentário bíblico sobre o Êxodo.
447
A nova leitura
do êxodo, desvinculada de uma identidade étnica monolítica de Israel foi de
fundamental importância para a leitura da Bíblia em horizonte latino-americano.
A leitura histórico-social do êxodo, realizada por teólogos da libertação, que
possuem como chave hermenêutica de leitura da realidade a luta de classes é
que o mesmo se apresenta como um evento político. Não é a expressão de
dominação de uma cultura sobre a outra (israelitas sobre cananitas), nem
mesmo a conquista de um povo sobre outro, mas sim a insurreição de classes
oprimidas contra seus opressores. A chave hermenêutica de Norman Gottwald,
que exerceu influência sobre as leituras do êxodo na America latina, é que no
êxodo se manifesta uma revolução de caráter sócio-político, sendo expressão
de uma religião revolucionária. É impossível não perceber o potencial crítico
dessa tradição e a relevância dessa memória para povos de uma civilização
inteira que sobrevivem sob a opressão de um Egito moderno. No êxodo, a

443
GOTTWALD, As Tribos..., p. 497
444
Ibid..., p. 508
445
SCHWANTES, O êxodo..., p.9
446
PIXLEY, História de Israel...
447
PIXLEY, Êxodo...
151
partir da compreensão e brilhante contribuição da monumental As Tribos de
Iahveh, tem-se não um conflito étnico, que pode ser apreendido nas leituras
contemporâneas como justificativa de dominação de uma etnia sobre a outra –
como muitas vezes é lido na tentativa de legitimar os conflitos entre judeus e
palestinos – mas sim um conflito de classes, que se torna relevante na medida
em que um grupo empobrecido toma consciência de sua situação de opressão
e decide se revoltar contra estruturas políticas e religiosas de dominação.
Um destaque que pode ser feito na pesquisa de Gottwald diz respeito a
seu acesso as grandezas culturais do Israel pré-exilico e pré-estatal, que
permite perceber a variedade de tradições que compunham sua realidade
histórico-social. Pode já se perceber em sua obra a distância entre um projeto
sacerdotal nivelador presente em um javismo oficial e a multiplicidade de
formas da religião de Israel que tem sua forma e atuação independente deste.
Gottwald afirma:
Existem formas diversas de culto e de ideologia israelita e nem todas
eram nitidamente harmonizadas. Algumas eram bastante articuladas
e mais importantes para todo Israel do que outras formas que
propendiam a se tornar peculiariedades locais. O culto de Iahweh
tinha estrutura que envolvia ocasiões publicas de “adoração”,
análogas formalmente aos serviços de culto na religião ocidental
racionalizada; eram, porém, só mais ou menos análogas. As
atividades públicas do culto de Iahweh eram geralmente ao ar livre,
atraindo o povo à maneira de “festas nacionais”. Possuíam
linguagem especializada, porém admitiam muitas sublinguagens, e
incentivavam interesse amplamente instrutivo, intelectual e cultural,
que não conhecia absolutamente fronteiras limitadas por outras
esferas da vida comunal. Embora existisse, no antigo Israel, um
sacerdócio oficial levítico para aspectos particulares do culto
centralizado, todo adulto homem podia ser sacerdote enquanto
cabeça de família segundo a ocasião o exigisse. Alem disso, na falta
de sistema formal de educação, a transmissão e elaboração do
repertório cultural eram difundidas e distribuídas entre numerosos
desempenhos das funções por toda a estrutura da sociedade. Em
conseqüência, embora o culto, no antigo Israel, exercesse poderosa
ação centralizadora, focalizadora e ordenadora, não monopolizava as
esferas usuais da vida cotidiana. Pelo contrário, propendia a
estimular reflexão focalizada sobre as origens e significações da
experiência histórica e social de toda sorte no antigo Israel. Havia,
em resumo, um tráfego vital de duas direções entre a ação
sistematizadora do culto e a ação reflexiva de reunião e produção
das tradições nos diversos setores da sociedade israelita. Em
síntese, as tradições israelitas, embora modeladas pela perspectiva
javista decisiva, surpreendem pela sua minimização dos elementos
especificamente “sacerdotais” e “míticos”. Longe de restringir-se a
preocupações estreitamente religiosas, a ação da divindade é
considerada tipicamente eficaz nas vicitudes da comunidade total.
448

448
GOTTWALD, As Tribos..., p.83,
152
Um processo importante a ser destacado é o horizonte ideológico cultual
determinante no processo de assimilação, unificação e reconstrução das
tradições que criam uma versão canônica do passado de Israel se
estabelecendo como memória oficial.
449
Neste sentido, possui grande relevância
para a exegese latino-americana a ação historiográfica do deuteronomista que
promove uma ideologia oficial do culto israelita centralizado e firmado na
adoração de um Deus único. Uma história social dessas tradições oficiais, que
promoveram a afirmação e centralização do culto em Israel, teve um eco bem
acentuado na hermenêutica latino-americana, que percebeu esse processo
político-religioso de monoteização e centralização do culto não de forma
positiva, como estandartizado pelas tradições oficiais do Deuteronômio, mas
sim como uma violência contra os santuários periféricos que de alguma forma
distanciavam-se de uma ortodoxia cultual promovida pela centralização do
culto em Jerusalém.
450
Uma história social dos textos bíblicos possibilitou o
acesso aos conflitos políticos e ideológicos que se configuram no processo de
formação das tradições bíblicas oficiais e canônicas.
A hermenêutica latino-americana da libertação encontrou na exegese
histórico-social uma forte interlocução em seu processo de crítica das
tradições, podendo identificar uma possível origem social dos textos e das
tradições bíblicas, verificando na tessitura social as muitas vozes que emergem
no texto bíblico. Pode se afirmar com o biblista europeu Rainer Kessler que “a
interpretação histórico-social se evidencia como parte de uma teologia da
libertação”,
451
empreendida por biblistas que procuram situar sua interpretação
bíblica em horizonte ético e político. Entende-se, assim, a produção exegética
de teólogos como Frank Crusemann, Rainer Kessler, Elizabeth Schussler
Fiorenza, Luise Schottroff, como expressão de uma consciência emancipada
que intui os problemas similares de uma aldeia global,
452
somando suas vozes
aos gritos de libertação perpetrados nas periferias do mundo.
4.3 DA PERIFERIA DO MUNDO PARA A PERIFERIA DOS TEXTOS:
HERMENÊUTICAS LATINO-AMERICANAS EM CAMINHOS DE LIBERTAÇÃO

449
Ibid..., p.78
450
Quanto a isso ver NAKANOSE, Para entender o livro do Deuterônomio...
451
KESSLER, História social..., p.3
452
KESSLER, Tendências hermenêuticas..., p.59
153
A exegese bíblica histórico-social latino-americana da libertação nasce
como fundamento de des-construção de estruturas sedimentadas por uma
mentalidade existente no seio da teologia cristã clássica, que perpassa a
história da religião cristã no Ocidente – e das tradições canônicas da Bíblia
hebraica e cristã – englobando uma interpretação dos textos sagrados judaico-
cristãos que se afirma como normativa, num processo contínuo de exclusão de
tradições marginais que foram subtraídas numa espécie de erasio memoriae.
453
Buscou-se reconstruir a partir de baixo as memórias escondidas nos
porões da opressão de uma tradição canônica que é sustentada pelos
insistentes respiros conservadores e colonialismos de mente, que mantém o
texto bíblico nas prisões de um dogmatismo teológico que determina sua
função e sentido. Nisto se afirma uma hermenêutica configurada a partir de
elementos marginais que, apagados por um processo final canônico, se
tornaram invisíveis diante das tradições oficiais que determinaram o sentido no
processo de unificação e fixação canônica dos escritos bíblicos. A exegese
histórico-social abre, assim, espaço para a manifestação das muitas vozes da
tradição bíblica, que se expressam em uma diversidade de gêneros, contextos
e perspectivas, reagindo a uma compreensão monística da Bíblia que se impõe
em nome de uma ortodoxia canônica.
454
Há um processo de reconstrução da
tradição bíblica, que rompe com uma leitura da Bíblia realizada a partir do
poder, objetivando um novo olhar sobre o passado que recupere tradições de
libertação silenciadas e denuncie narrativas de opressão que foram
determinantes na formação de estruturas mentais opressivas de transfundo
colonial e patriarcal. Há, assim, no projeto de uma hermenêutica bíblica da
libertação: um esforço em recuperar a memória libertadora e heterodoxa da
Bíblia, num processo de reconstrução a partir das camadas de baixo das
sagradas escrituras; e um rechaço de memórias opressivas que legitimaram,
legitimam e mantém o poder de estruturas religiosas, políticas e culturais.
O movimento bíblico latino-americano da libertação não mediu esforços
no diálogo com essa diversidade bíblica com fins de confeccionar uma teologia

453
Para isso, ver KEEL, Do meio...; CROATTO, A deusa Asherá...
454
Ver FREYNE, WOLDE, As muitas vozes...
154
bíblica que pudesse contrapor-se aos anseios de dominação de estruturas
políticas e religiosas, que, em posse do texto bíblico interpretado por uma
hermenêutica canônica, proclamaram-se donos de uma verdade revelada e
justificaram as mais violentas formas de atrocidades. Neste contexto, com
muita propriedade, o biblista Jorge Pixley afirma:
A Bíblia foi usada na história da humanidade para fins muito opostos.
Com ela se legitimou a escravidão dos negros por serem
supostamente descendentes de Cam, o filho maldito de Noé. Com
ela também, em sentido contrário, alimentou-se a dignidade e as
ânsias de libertação dos negros escravizados na América,
especialmente nos estados sulistas dos EE.UU. Com a Bíblia se quis
demonstrar que os judeus são os assassinos de Deus e que devem,
por isso, ser eliminados da face da terra. Com ela também foi
justificada a nação de Israel em sua luta para estabelecer um
santuário para os judeus mesmo ao custo de despojar os palestinos
árabes, e em seu sucesso neste sentido muitos vêem o cumprimento
das profecias da Bíblia. Não há fim para os exemplos com os quais
se demonstra que a Bíblia é um livro com um potencial político
imenso, aparentemente inesgotável. Contudo, o poder da Bíblia não
é exercido se não houver uma instituição ou um movimento capaz de
canalizá-lo e utilizá-lo para seus próprios fins. No século IV a Bíblia
foi usada para legitimar o poder dos bispos das cidades imperiais –
Roma, Alexandria, Antioquia, Constantinopla e Jerusalém – e,
apoiando-se na legislação imperial, para ir tirando dos rabinos sua
capacidade de usar a Bíblia. Os rabinos, por seu lado, organizaram-
se primeiro em Jâmnia, no sudoeste palestino, depois em Tibérias e
finalmente na Babilônia para estabelecer um poder contrário que
pôde consolidar sob o amparo do império persa, que no século IV
servia de contrapeso ao império romano. Os bispos, sob a sombra de
Roma, consolidaram sua reivindicação de serem legítimos donos da
Bíblia, por um lado, ao passo que o colégio de Rabinos fez isto por
outro lado, no oriente do império romano e fora de seus limites sob a
sombra dos persas. Nesta luta entre associação episcopal e a
associação rabínica era disputada não somente a posse da Bíblia
mas também sua definição. Os bispos fizeram sua lista de livros
“bíblicos” a partir de um texto grego dos mesmos, e a ela
acrescentaram uma coleção adicional de Escrituras dos apóstolos
que adquiriram igual autoridade e chegaram a ser consideradas parte
da Bíblia, seu “novo testamento”. Os rabinos também definiram a
Bíblia, mas partiram de um texto hebraico de seus livros e o
suplementaram com coleções de debates rabínicos em hebraico e
aramaico que, embora não fossem incluídos na Bíblia, adquiriram
igual autoridade. Estes são o Mixná, a Tosefta e o Talmud. Uma vez
terminado este processo por volta do século V ou IV, cada grupo
podia reclamar a posse exclusiva da Bíblia e negar que seu rival
tivesse sequer uma Bíblia verdadeira, muito menos o direito de
fundamentar argumentos validos sobre sua Bíblia incorreta. Demos
mais um passo na definição do nosso tema. Para isso nos servimos
do tratado do jurista cartaginês Tertuliano, sua famosa De
praescriotione haereticorum, escrita no começo da carreira cristã do
autor, por volta do ano 200 d.C. Com um argumento cuidadosamente
montado ao longo de 44 capítulos, o hábil advogado africano alega
que os hereges não tem nenhum direito de usar a Bíblia pois não
lhes pertence. Cristo autorizou seus apóstolos, e somente a eles, a
pregarem sua mensagem. Assim, pois, a mensagem cristã, e a Bíblia
em que se apóia, pertencem aos apóstolos e àqueles aos quais os
155
apóstolos as confiaram, a saber, as igrejas constituídas pelos
sucessores dos apóstolos.
455
O panorama traçado por Pixley revela a dimensão política de uma
teologia bíblica canônica, orientada por uma postura exclusivista que visa à
manutenção de um establishiment religioso a partir de um processo de
empoderamento das escrituras sagradas. Manifesta-se nesta postura teológica
um projeto político teocrático, um desejo de dominação e tirania oculta –
segundo Espinosa
456
– manifestada no poder teológico de uma ortodoxia.
A hermenêutica latino-americana da libertação reage à história dos
efeitos de uma história da interpretação canônica, manifesta tanto no processo
de redação final do cânone das escrituras, como também em seu processo de
recepção que sedimentou e orientou a formação de estruturas mentais
ortodoxas que se firmam no interior das diversas confissões judaico-cristãs.
Afirma uma interpretação ética e política que suspeita do texto e de suas
intenções,
457
colocando em pauta as relações de dominação que perpassa a
vida de homens e mulheres saturados de “verdades” impostas sobre suas
vidas, estruturadas na afirmação de uma divindade patriarcal que naturaliza e
legitima opressões econômicas, culturais e de gênero. O problema ideológico é
levantado e posto na agenda da interpretação, expondo em panos limpos as
intenções e orientações de um texto que foi um dia imposto como sinônimo de
autoridade divina. Nesta agenda de interpretação, coloca-se como eixo
hermenêutico a vida dos empobrecidos latino-americanos, e temas como
classe, gênero e etnia passam a determinar a agenda de interpretação latino-
americana que expressa a realidade de “corpos sofridos, surrados, amantes,
letrados, indoutos e ávidos por libertação em meio a uma conjuntura sócio-
política de dominação global e generalizada”.
458
Pablo Richard afirma:
Na raiz de todo processo hermenêutico latino-americano está o pobre
como novo sujeito histórico. O pobre em sentido amplo: o operário, o
camponês, o índio, o negro, a mulher, os jovens, todos os
marginalizados e oprimidos do campo e da cidade. O pobre também
em sentido dinâmico: o movimento popular organizado e consciente.
Esse novo sujeito está emergindo lentamente, em processo
demorado, doloroso, persistente, que desafia o conjunto da

455
PIXLEY, As Escrituras..., p.106. Ver acima, cap. I. O lócus hermenêutico da tradição cristã
clássica.
456
Ver acima, cap. III. A crítica histórica das tradições em Baruch Espinosa – o Tratado
Teológico Político.
457
CARDOSO, Pautas...
458
RICHTER REIMER, I. Bíblia e hermenêutica..., p.33
156
sociedade. Esse novo sujeito histórico entra em contradição sempre
maior com o sujeito histórico dominador e opressor. Dá-se uma clara
ruptura política no terreno econômico, político, social, cultural e
ideológico com o sistema dominante. Forma-se também uma nova
consciência. Tudo isto é evidente e constitui o pressuposto básico de
nossa hermenêutica (...). Não se trata aqui de demonstrar a
existência do pobre como novo sujeito histórico. Este é para nós fato
evidente e irrefutável. O importante agora é demonstrar como esse
novo sujeito histórico está na raiz do processo hermenêutico, como a
nova interpretação bíblica que surge na América Latina tem
radicalmente o pobre como sujeito ou se faz na sua ótica.
459
Impulsionada pelas experiências de leitura popular da Bíblia, a reflexão
hermenêutica latino-americana estabelece uma ruptura político-teológica,
colocando o pobre como o novo sujeito histórico e hermenêutico.
4.3.1 Escovando a História Bíblica a Contrapelo: Milton Schwantes e a
memória histórica dos empobrecidos
As implicações de uma hermenêutica crítica da libertação para a leitura
da Bíblia foram muitas. O biblista brasileiro Milton Schwantes as evidenciou no
primeiro número da revista Estudos Bíblicos, com publicação em 1984,
afirmando o processo de ruptura com as interpretações canônicas do texto
bíblico. Em seu texto, Schwantes propõe uma interpretação de Gn 12-25, no
contexto de Elaboração de uma hermenêutica do Pentateuco
460
, e a faz
consciente da necessidade de uma interpretação histórico-social do texto
bíblico, afirmando seu caráter literário e histórico sem dar lugar para
alegorizações ou projeções teológico-sistemáticas. Ele afirma:
É evidente que passagens bíblicas devem ser lidas como o que são:
textos literários. Por exemplo, não é justo que se lhes atribua
conteúdos que nem mesmo estão expressos em suas linhas. Não
convém querer imaginar o que certo personagem pensou lá com
seus botões ao fazer certa afirmação. Tais psicologismos abrem as
portas a arbitrariedades sem fim. Convém ser cauteloso com
imaginações e inspirações. Leia-se o que está escrito! [...].
Permanece valida e necessária a pergunta pelo surgimento dos
textos. Literatura traz consigo as marcas de seu “lugar vivencial”.
Estas marcas ajudam a demarcar valor e sentido dos textos. Por
isso, a pergunta por sua origem não pode ser abandonada. É
irrenunciável, em especial também em vistas a metodologias que, ao
insistirem em demasia no resultado literário final, correm o risco de

459
RICHARD, Leitura popular..., p.9
460
SCHWANTES, Interpretação de Gn 12-25...
157
perder o sendo para a diacronia da vida e seus pressupostos
históricos.
461
Schwantes interessa-se em resgatar os aspectos histórico-sociais da
narrativa bíblica, o lugar social dos textos, identificando as vozes e os
interesses, atestando, assim, seu pano de fundo ideológico. Orientado-se por
suas opções hermenêuticas, busca encontrar as memórias populares das
camadas pobres de Israel que se encontram preservadas nas narrativas
bíblicas. Para Schwantes, o Pentateuco é constituído de pequenas perícopes,
unidades menores que são componente elementar de toda escritura.
462
Essas
pequenas unidades não são expressões típicas de instituições como o templo e
o estado, mas provêm de “pequenos organismos sociais, das microestruturas”,
famílias, clãs, que são microestruturas elementares na vida do povo.
463
A partir
disto, afirma:
A dinâmica social que produziu perícopes literárias deve integrar
nossa hermenêutica de reapropriação e atualização de tais escritos.
Se os dissociamos de suas origens, talvez corramos o risco de
entregá-los de mão beijada aos detentores do poder (...). Proponho
que, na leitura de Gn 12-25 que, afinal, é nosso alvo no contexto do
Pentateuco, se priorize a perícope como memória familial-popular, e
que se privilegie a hipótese de que, de sua fixação oral para sua
redação, a perícope não passou por alterações significativas.
464
Duas características importantes perpassam a pesquisa de Schwantes:
a) promove uma releitura e reapropriação da tradição bíblica a partir das
unidades menores, entendendo-as como expressão das camadas rurais e
empobrecidas de Israel; b) a oposição entre cidade e campo, onde o tributo e a
corvéia marcam as relações entre cidadãos e camponeses. O autor afirma:
Quando se lê a Bíblia, tributo e corvéia marcam as relações entre
cidadãos e camponeses. Os templos, nos quais as cidades tinham
tão grande interesse, devem ser entendidos nesse contexto:
recolhiam tributo através de seus ritos, de suas festas e de sua
ideologia. Todo ataque ao templo punha em xeque a instituição
fundamental dos setores dominantes do Estado. Por isso não é
nenhum caso que os que ameaçassem o templo (Jeremias, Jesus,
etc.) fossem perseguidos e sentenciados
465
As pequenas perícopes são, então, compreendidas como expressão
desse conflito entre campo e cidade, e nascem da tradição oral e na memória

461
Ibid. p.32-33
462
Ibid. p.36
463
Ibid. p.36
464
Ibid. p.35
465
Ibid. p.39
158
popular que se configuram antes do processo de transmissão escrita.
466
Aqui
vamos nos deter em sua reconstrução histórica da perícope de Gn 16, que
retrata o conflito entre Hagar e Sara. Schwantes situa neste capítulo as duas
vozes que disputam a hegemonia da narrativa, que tem a voz das camadas
empobrecidas silenciadas pela redação final. Aqui é importante deixá-lo dizer:
A mulher Hagar é escrava de mulher. Não é escrava do homem. Na
sociedade patriarcal (domínio do homem sobre a mulher) e
escravagista (domínio do senhor sobre o escravo), ela e seu filho
ocupam o último degrau da escala social (cf. Ex 23, 12). A situação
da escrava do homem não era tão precária (cf. Ex 21, 7s) como a
escrava da mulher. Ela é a etapa final da espoliação. Além de mulher
e escrava, ela é egípcia, estrangeira.[...]. A perícope nos apresenta
Hagar em vários estágios de um processo de aniquilamento: É
mulher! É escrava! É estrangeira! Tem as marcas do pelourinho! É
como se estivéssemos descendo as escadas dos porões da
opressão. Com seus ouvintes e leitores, a perícope faz uma incursão
aos porões da humanidade. Contudo, Hagar também percorre a
trajetória de saída dos porões. A saída se dá pela fuga que é
apresentada de modo bem positivo. A perícope apresenta-a como
ato consciente com objetivo claro: retorno ao Egito (...). A fuga de
Hagar é ato libertador, prática emancipatória (...). Além disso, Javé
prevê espaço histórico para Hagar, seu filho e, conforme o v.10, para
seus descendentes. Fala-se com simpatia da insubmissão de Hagar
e da rebeldia de seu(s) filho(s). A contestação não é reprimida, mas é
evocada como sendo da intenção divina. O Javé que ouve os
oprimidos promove entre eles a inquietação contestatória. Sua escuta
do clamor conduz à promoção da rebelião (...). Deus ouve a
opressão e promove os rebeldes. Hagar torna-se sujeito teológico!
Ao definir sua experiência com Deus (“tu és o Deus que me vê”),
apropria-se de uma função reservada a homens e grandes vultos.
Aqui uma mulher, escrava, estrangeira e maltratada é sujeito
teológico (...). Não pode haver dúvida quanto a autoria desta
perícope. Provém das escravas! É, pois, memória popular dos porões
do escravagismo e da opressão da mulher. Deve ser antiga, ainda
que seja difícil precisar a época. O código da Aliança (Ex 20-23)
talvez nos dê alguma pista. As leis sobre escravas e escravos do
final do período dos Juizes, no 11 século, são, em alguns aspectos,
favoráveis a tais pessoas (Ex 21, 2-11. 20.26-27). Segundo: A estória
popular da emancipação de Hagar, porém, foi acrescida de enxertos.
Estes quase sufocaram a estória original. Os acréscimos
introduziram uma revisão significativa (...). Os acréscimos entendem
a fuga como erro. Impõe submissão (v.9). Poder-se-ia explicar a
exigência de retorno a partir de Gn 21, 8s, onde Hagar se encontra
junto a Abraão: o retorno não passaria de uma necessidade literária.
Mas este não é o caso. Que os adendos não são acaso literário, já
mostra o v.9 (“sujeita-te sob sua mão”). Por fim, o texto conclui (VV.
15-16) atribuindo tudo ao homem Abraão, enquanto no v.2 seria de
Sara; Abraão também lhe dá o nome, enquanto que no v.11 isso era
direito de Hagar. É evidente que os acréscimos provêm dos
colecionadores das diversas perícopes. Estes colecionadores foram
homens. Conseqüentemente, temos duas camadas de Gn.16: a
pericope antiga proveniente de escravas e os acréscimos mais
recentes adicionados por homens. Por haver duas propostas sociais

466
Ibid. p. 36
159
divergentes, podemos contar com duas camadas literárias (...).
Portanto, Gn 16 não é uníssono. Apresenta duas vozes dissonantes,
das quais a segunda, por vontade de colecionadores, quer sobrepor-
se a primeira. A tarefa da hermenêutica bíblica consiste em ter
ouvidos para as duas propostas, diferenciando-as nitidamente. Se
não o fizer, isto é, se permanecer tão-somente no nível do texto final,
irá reforçar, no caso de Gn.16, a voz de dominação do homem. Se
diferenciar, poderá resgatar a estória emancipadora da escrava
Hagar, que, afinal está na origem deste capítulo. Por conseguinte, a
redescoberta dos textos como memória popular implica em crítica
bíblica, orientada no êxodo e na cruz.
467
O texto de Schwantes está entre os primeiros exercícios de uma
hermenêutica bíblica política da suspeita que proporcionou uma re-construção
de memórias de baixos estratos sociais que foram suprimidas por vozes
dominantes responsáveis pela manipulação e re-estruturação de narrativas
bíblicas. Em seu exercício exegético, vislumbramos a afirmação e contribuição
das ciências históricas, condensadas em uma exegese histórico-social do texto
bíblico como fundamental no processo de critica das tradições. Configurando-
se no horizonte da critica ideológica, sua exegese demonstra que a “ideologia
encontra-se no discurso de todo texto – no que o texto diz e no que ele não diz,
percebendo que o acesso hermenêutico deve ser político, comprometido com
as representações e o sentido do texto adquirido no processo de interpretação,
pois política e literatura (bíblica) encontram-se ligados inextricavelmente – em
outras palavras, ideologicamente.
468
O movimento bíblico latino-americano, representado aqui pela pena do
bíblista Milton Schwantes, afirma essa redescoberta da Bíblia, lida pelo revés
da história, demonstrando que essa mesma Bíblia, usada para acentuar
projetos de opressão, pode sim, fora dos eixos hermenêuticos de leitura a partir
do poder, ser memória subversiva, memória histórica dos pobres. Toda a obra
deste exegeta brasileiro pode ser lida nessa perspectiva, neste esforço
hermenêutico de uma teologia bíblica com rosto latino-americano. Sua tese
doutoral, realizada em Heidelberg, foi concentrada no direito dos pobres
469
,
num rico esforço em acessar as camadas populares e os empobrecidos da
periferia de Israel e seus direitos afirmados na lei e nos profetas.
470
Colocou
toda sua erudição exegética neste esforço de reconstruir as camadas

467
Ibid. p.45-48
468
CASTELLI, PHILLIPS, SCHWARTZ, A Bíblia…, p.276 -277.
469
SCHWANTES, Das Recht...
470
DREHER, Milton Schwantes..., p.17
160
populares, intuindo que nas unidades menores se encontrava a riqueza da
Bíblia
471
e por meio delas poderia se reconstruir essa tradição de resistência de
um povo pobre e oprimido. Experimentando essa força avassaladora e
profética da teologia da libertação, empenhou-se também na reconstrução da
profecia bíblica clássica, que do século VIII a.C nos interpela com sua
sensibilidade na luta pelo direito dos pobres.
472
Schwantes afirma:
A questão dos profetas é o reinado; no Estado está o foco de atritos.
Esta é a chave para a leitura dos profetas! Dizia H. Gunkel (1917):
“na verdade, o âmbito de sua (i.e., dos profetas) atividade foi à
política”. G. Fohrer (1972) agora constata: “a verdadeira critica ao
Estado encontra-se nos profetas” [...]. Não basta ler os profetas
meramente sob o pano de fundo do reinado. É indispensável
compreendê-los em sua incompatibilidade e em seu antagonismo à
dominação organizada no Estado monárquico do antigo Israel. Pois a
profecia crítica (Elias, por exemplo) e a profecia radical e
revolucionaria (Amós e Jeremias, por exemplo) só existem durante
os cinco séculos de reinado em Israel e Judá; o conteúdo crítico e
radical dos profetas está centrado na ameaça às instituições básicas
dominantes: corte, cidade, templo [...]. Podemos deduzir que eles
provêm basicamente dos pequenos vilarejos provincianos de
agricultores, lavradores, meeiros, pastores. Amós é de Tecoa, na
serra de Judá. Miquéias provém de Moresete-Gate na Sefelá. Naum
vem de Elcós, cuja localização até desconhecemos. Jeremias surge
da vila de Anatote. Urias é de Quiriate-Jearim. Elias veio de Tisbe.
Tudo vilarejos! E já que na fala profética pulsa vida sofrida destes
lugarejos, a espoliação de que sua gente é vitima (cf. por exemplo
Am 2.6-8; Mq 2.1-5), não há como evitar a conclusão de que os
profetas radicais estão ancorados nas condições materiais de miséria
da população dos vilarejos das centrais do “patriciado citadino” [...].
Nos profetas está presente a oposição aos dominantes, tanto em
retórica quanto em conteúdo; a tradição espiritual-intelectual provém
da sabedoria popular [...]. Os profetas radicais não têm seu lugar
social nas esferas e funções religiosas e teologais da elite, mas em
lutas populares e nos movimentos camponeses, dos quais
brotaram
473
A partir disso, a Bíblia se torna também memória histórica dos pobres.
As várias camadas que constituem o Pentateuco
474
são também frutos de lutas
e resistência popular de setores sociais empobrecidos que geravam e criavam

471
DE WITT, p.256. “Schwantes se encuentra en la buena compañia de otros muchos
exegetas. Recordemos cómo tambíen Gunkel y Wellhausen han subrayado el origen popular
de muchos relatos del Pentateuco. En la obra de Gunkel el término ‘popular’ es clave. Sin
embargo, valdría la pena analizar em qué medida la definición de ´popular´ de los exegetas
alemanes de aquel entonces (alrededor del 1900) coincide con la definición de los exegetas
latinoamericanos de ahora. Aquí es suficiente recordar que también Gunkel considera el libro
de Génesis como ´uma colección de sagas´, es decir uma coleccíon de historias que se
originaron en el ambiente familiar”.
472
Sobre isso ver: SCHWANTES, A terra não pode suportar suas palavras...; REIMER,
Agentes...
473
SCHWANTES, Profecia e Estado...
474
Sobre o Pentateuco, ver o rico volume em SCHWANTES, Pentateuco...
161
textos.
475
Da mesma forma, porções fundamentais de textos proféticos tem sua
origem em forma de panfletos organizados como memória profética nos
setores empobrecidos de Israel.
476
Essas camadas marginais são instrumentos
de re-significação da tradição que revela as relações político-sociais que foram
determinantes na redação do texto bíblico, sua gênese social e política, as
mentalidades e corpos envolvidos, demonstrando a vida que está registrada no
texto com suas interferências políticas sociais e culturais.
477
Assim, o projeto teórico-politico de uma hermenêutica bíblica da
libertação latino-americana assumiu a postura fundamental de sua opção pelos
pobres, procurando evidenciar os profundos antagonismos de uma sociedade
de classe no resgate das vozes oprimidas e silenciadas por estruturas de poder
político e religioso que se estabeleceram como normativas nas narrativas do
cânon hebraico e cristão. Procurou-se resgatar os grupos sociais
marginalizados que foram sujeitos de formação e transformação na história de
Israel e dos cristianismo(s) originário(s)
478
, resgatando grupos silenciados pelas
narrativas oficiais dos cânones israelitas e cristãos a partir de uma re-
construção, de uma história de baixo, porque se concentra na visão de mundo
de membros de classes subalternas, que dá voz a sujeitos antes silenciados
por uma narrativa e oficial.
Amadurecendo desde a década de 1980, o movimento bíblico latino-
americano colocou como eixo de interpretação a diversidade de sujeitos
empobrecidos e estabeleceu um processo de ruptura com uma interpretação
canônica dos textos bíblicos, promovendo um processo de desconstrução das
narrativas bíblicas como expressão de uma acirrada crítica histórica das
tradições. O processo de historicização das tradições bíblicas pode ser assim
identificado como o lócus hermenêutico da pesquisa bíblica latino-americana,
que afirma a necessidade de um espírito crítico na abordagem das escrituras,
colocando-a à mercê da crítica histórica, a fim de avaliar, a partir dos critérios
éticos e políticos de uma consciência histórica emancipada, os projetos
políticos religiosos e culturais representados nas tradições bíblicas. O texto do

475
SCHWANTES, A origem...; A memória popular...
476
SCHWANTES, Profecia..., p.114. ver tbm Profecia e organização...; REIMER, Richtet anf...
477
RIBEIRO, Hermenêutica...
478
Ver RICHTER REIMER, O poder de uma protagonista...; Maria nos evangelhos sinóticos...;
O belo as Feras...; FOLKES, Invisíveis e desaparecidas...
162
biblista Milton Schwantes, sobre Gn 16, torna-se, assim, bastante
representativo deste processo crítico de leitura bíblica, que abarca o potencial
hermenêutico de uma variedade de novos sujeitos culturais presentes na
America Latina, representando uma hermenêutica bíblica de classe, gênero e
etnia. A personagem Hagar – mulher, negra e escrava – identifica-se com o
novo sujeito histórico e hermenêutico da América Latina.
Neste processo crítico interpretativo de reconstrução das tradições, a
hermenêutica bíblica latino-americana se depara também com essa Bíblia que
não é tão somente memória de oprimidos, mas carrega em seu itinerário de
formação projetos de dominação que foram escritos e re-inscritos na história de
corpos de homens e mulheres, funcionando como norma normanda de
comportamentos religiosos políticos e culturais que se reproduziram e foram
afirmados por uma história interpretativa firmada no lócus hermenêutico de
uma tradição cristã clássica. Faz-se, assim, necessária a afirmação de uma
hermenêutica da suspeita no processo de re-construção histórica das tradições
bíblicas, percebendo os conflitos políticos e sócio-culturais que determinaram a
formatação canônica de determinada narrativa bíblica. Avaliando o processo de
reconstrução historiográfica do texto bíblico, a biblista Ivoni Richter Reimer
afima:
Há muitos jeitos de encobrir ou de fazer calar a história de pessoas.
Dois jeitos muito usados no passado e no presente é mencionar
alguém rapidamente e centrar-se, então, em pessoas e
acontecimentos aparentemente mais importantes. Muitas vezes
acontece também que pessoas não são mencionadas explicitamente,
mas encontram-se inseridas em coletivos, como por exemplo,
“sujeitos históricos”, “povo”, “multidão”, “crentes”, “discípulos”, etc. O
pior é quando algo ocorrido e seus sujeitos históricos, mulheres e
homens, nem sequer são documentados. Outro jeito, porém, mais
sutil e muito bem desenvolvido de encobrir história pode acontecer
justamente através da interpretação da história textualmente fixada.
A história interpretativa de um texto pode justamente encobrir a
história ou parte dela, na medida em que silencia sobre aspectos
dessa historia ou não mais pergunte seriamente pelo significado de
um determinado elemento dele e nela. Com o tempo e pela recepção
dessa interpretação vai-se injetando no texto ago que ele nem sequer
está afirmando. Reconstrução e releituras históricas devem, pois,
acontecer a partir da perspectiva de grupos oprimidos, levando
simultaneamente a história interpretativa muito a sério não só para
descobrir o motivo e o objeto dessa interpretação, mas também pelo
fato de essa história interpretativa muitas vezes receber uma força de
expressão mais forte do que o próprio texto! As vezes fica difícil ler
163
um texto por causa do peso da história interpretativa que se lhe foi
impondo e que, com força (quase que) dogmática, pesa sobre ele.
479
A crítica histórica desconstrói uma leitura bíblica que se orienta pela
tradição, possibilitando a crítica de projetos políticos e religiosos institucionais
fundados em narrativas bíblicas percebidas como a - históricas e desvinculadas
dos processos políticos religiosos que são desvendados por uma abordagem
histórico-social do texto bíblico. Desvendam-se as relações de poder que
tecem a narrativa, suas opções, o lugar de onde fala e porque fala, desvelando
as percepções de mundo e as intenções de determinado projeto político
religioso proposto pelas escrituras. O olhar hermenêutico d@ exegeta latino-
americano percebe o texto e suas muitas vozes, suas intencionalidades na
construção de narrativas que revelam suas opções políticas, seu lugar social,
suas concepções religiosas, que podem ou não, na medida em que são
recebidas, ser fomento de libertação ou opressão.
Os silêncios do não (poder) dizer, contido nas falas de narrativas claras
e límpidas que determinam como foi à história, maquiando com a força da
escrita canônica o passado de uma realidade social que fervilha conflitos e
revela realidades não tão harmônicas. As falas oficiais se dissolvem diante de
um olhar crítico que destrói as pretensões de narrativas que se apresentam
como verdade canônica sobre o passado, firmando-se o olhar nas brechas do
texto que se abrem e revelam corpos de homens e mulheres que se digladiam
em suas falas que são afirmadas ou silenciadas dependendo do contexto e da
história de quem tem em suas mãos o poder. Trata-se de – para dizer com W.
Benjamim – “redescobrir os momentos utópicos e subversivos” escondidos em
uma herança canônica e cultural, quebrando a “concha reificada de uma
cultura” teológica oficial, afim de que os oprimidos tomem “posse desse
molusco crítico-utópico”
480
.
Uma hermenêutica bíblica da libertação contempla um juízo ético e
político sobre as tradições, acessadas em sua realidade histórica e social,
apresentada a nós em forma de texto, e de texto bíblico. Desconstroem-se,
assim, as percepções essencialistas dos textos sagrados e se postula a
necessidade de um juízo histórico sobre as tradições apresentadas, não se

479
RICHTER REIMER, Reconstruir...
480
BENJAMIM, apud LÖWY, p.79
164
considerando nada normativo a não ser a vida, vivida e experimentada em sua
diversidade. Vidas que experimentam em seus corpos as conseqüências de
preconceitos de classe, gênero e etnia, e são subtraídas em nome de
“verdades” não encarnadas no cotidiano da vida que pulsa em variedade de
confissões, realidades e desejos. Com profunda propriedade, a teóloga
feminista Ivoni Richter Reimer afirma:
Pelo fato de um texto apresentar e ser produto de relações cotidianas
perpassadas por mecanismos de dominação e gênero, classe e etnia
e gerações é que nos propomos a desconstruí-lo para melhor
entendê-lo. No processo de desconstrução, o desafio é perceber e
analisar a circulação de poderes numa estrutura social e literária.
Este poder não precisa ser entendido como absoluto e estático. E
nós começamos a percebê-lo como um conjunto de forças que se
movem e que movimentam diversos sujeitos sociopolíticoculturais e
religiosos. Sendo assim, o poder também é exercido por mulheres
que resistem, sobrevivem e se articulam diante de outras circulações
e expressões de poder. É importante fazer esta análise de poder com
a categoria de gênero, porque ela também pergunta pela circulação
de poderes na confluência de gênero, de classe, de etnia e de
gerações. E é nesta complexidade relacional que se torna possível e
necessário desnaturalizar processos e mecanismos de opressão. E
junto com isto, podemos evitar uma leitura que torne mulheres,
crianças, pessoas negras, índias, escravas, idosas... somente vítimas
de um sistema. Dentro da circulação de poderes, podemos nos tornar
participantes de movimentos de resistência ou também nos tornar co-
participantes e coniventes com determinados processos de opressão
e subordinação. Aprendemos, então, que não basta desconstruir o
texto e apreender as suas camadas mais profundas nas relações e
circulação de poder. Torna-se necessário também vivenciar um
processo de reconstrução da história e participação de mulheres,
crianças, pessoas empobrecidas e marginalizadas que já não
aceitam passivamente o lugar a elas determinado e imposto. Elas
são sujeito histórico e hermenêutico. Elas se apropriam da herança
legada pelas ancestrais para a construção e organização de novas
relações que visam justiça e paz para todas as criaturas, começando
por elas, por nós mesmas! Por isso também se questiona o conceito
de autoridade bíblica enquanto corpo doutrinal e não relacional. Nós
obervamos que textos escritos numa dinâmica de opressão e
subordinação desencadeiam uma corrente interpretativa cujos efeitos
sempre se revelam catastróficos na história de mulheres, crianças,
pessoas escravas, empobrecidas e de outras etnias e culturas. Isto
vale para os mais remotos conclaves de perseguição a pessoas
heréticas desde o século I até o fechamento do cânon cristão,
passando pelas inquisições e matança de “bruxas” na Idade Média,
perpassando as práticas de conquista e colonização ameríndias... Os
efeitos desta história interpretativa estão presentes ainda hoje,
quando, em nome de Deus, poderes instituídos chamam e realizam
guerras “em nome da paz e da democracia”; quando poderes
instituídos proíbem a expressão e organização de grupos e vivências
construídos a partir de uma ética evangélica baseada na práxis de
Jesus e seu movimento que desestrutura relações patriarcais na
casa, nas instituições religiosas, na sociedade. Nós sentimos em
nossos corpos os efeitos tanto de textos quanto de suas
interpretações hierárquico-patriarcais, e é por isto que ousamos dizer
que Deus não está presente em todos os textos, mas que sem
165
dúvida ele ultrapassa este texto canonizado e está presente também
em outros textos, outras expressões religiosas, outras vidas.
481
Uma hermenêutica latino-americana da libertação respira os gemidos de
uma anti-conquista e se faz no olhar subversivo da crítica histórica que coloca
abaixo tradições que se firmam na manutenção de autoridades e hierarquias,
incapazes de perceber os odores, ardores e sentidos de corpos de homens e
mulheres que se reinventam em seus sentimentos religiosos e corporais.
Homens e mulheres latino-americanos que não mais admitem serem
determinados por narrativas canônicas que cortam como navalha na carne a
liberdade de reinventarem-se a si mesmos. Tolhimento da liberdade firmado na
interpretação de escrituras canônicas que determinou nos 500 anos de
colonização religiosa e cultural a forma e o conteúdo de suas aventuras
religiosas e corporais.
A hermenêutica bíblica da libertação, munida de uma exegese histórico-
social soube configurar-se como teologia política que tem em sua constituição
um absoluto compromisso com o real e com a história. Soube avaliar sua
prática junto aos empobrecidos e sua resistência aos opressores a luz da
escritura
482
, compreendendo e discernindo, em sua interpretação ética e
política das escrituras, as brechas de onde resplandeciam as luzes e os
momentos em que as luzes se ausentavam dessa mesma escritura.
4.3.2 Política e Manipulação Teocrática: o exemplo do Deuteronômio e a OHD
(obra historiográfica deuteronomista) e o escrito sacerdotal (P)
Muito ilustrativa de uma hermenêutica bíblica da libertação pode ser a
análise de uma exegese bíblica que se ocupou da análise da OHD (Obra
Historiográfica Deuteronomista) e do documento P (documento sacerdotal) que
é parte das composições canônicas do primeiro testamento.
483
Analisando o
processo de formação e redação do livro do Deuteronômio, Nakanose afirma
que “o processo de redação do Deuteronomio durou cerca de 350 anos: de

481
RICHTER REIMER, I. Bíblia e hermenêutica..., p.36-37.
482
SCHWANTES, Sofrimento...
483
Para uma introdução as fontes deuteronomistas e sacerdotais ver DE PURY, O
Pentateuco...; GOTTWALD, Introdução...
166
Jeroboão II até a reforma de Esdras (750 a.C a 400 a.C)”
484
. Assumindo seu
lugar interessado na pesquisa bíblica, Nakanose afirma que se orienta
metodologicamente “pelas teorias mais condizentes de estudo do
deuteronômio na América Latina, dada a sua realidade socioeconômica,
política, ideológica e religiosa”, afirmando, assim, a necessidade de verificar o
texto dentro do seu contexto histórico-social, a partir de uma hermenêutica da
suspeita.
485
Como nenhum texto é neutro, podemos suspeitar das informações
contidas nele a partir do estudo da sociedade que está por trás e do
cotidiano das pessoas que construíram a história em questão. Este
esforço nos colocará frente a frente como uso e abuso que se pode
fazer das leis da teologia e da religião, para justificar posições e
empreendimentos.
486
Nakanose investiga a ideologia cultual presente na narrativa
deuteronomista que formulou uma versão canônica do passado de Israel,
realizada a partir de um movimento histórico-religioso que determinou modelos
e práticas cultuais em perspectiva ideológica, promovendo uma centralização
religiosa e política do culto.
487
O processo de redação e afirmação de uma
ideologia cultual passa por um longo processo de silenciamento e
instrumentalização de tradições antigas. O autor afirma que esse processo de
redação passa por seis etapas:
1.1 Período pré estatal. A semente das leis mais antigas, presentes
no livro do Deuteronômio, certamente nasceu na terra fértil da vida
das famílias, clãs e tribos, no período pré-estatal. O espírito dessas
leis é fruto da experiência de escravidão, pobreza, miséria,
simbolizada pelo êxodo (Dt 24, 18. 22). Dentro desse sofrimento, o
povo clama a Deus; Deus ouve o clamor e “desce para libertar” (Ex
3,7). Deus não só liberta, como faz a aliança com o povo pobre, fraco
e maltratado, por pura gratuidade e amor (Ex 19). A experiência da
pobreza, libertação e aliança cria no povo uma grande sensibilidade
para com os pobres, órfãos e viúvas (Dt 14, 28-29) [...]. A liturgia era
a fonte de abastecimento da memória da libertação (Dt 16,1.3.6.12) e
do compromisso da aliança. Assim no coração da vida do povo, as
leis são preservadas como expressão de sua fé no Deus da vida e
em si mesmo [...]. com o passar do tempo, essas leis vão sendo
relidas e recebem acréscimos em duas dimensões: na linha profética
de defesa do pobre e oprimido e na linha do estado que se apropria
delas e as manipula segundo seus interesses [...]. o que nos chama
atenção é que a lei da centralização (Dt 12,5) distancia-se das

484
NAKANOSE, Para entender....
485
Ibid. p.176
486
Ibid. p.176
487
Ver GOTTWALD, As Tribos..., p.78-85. A pesquisa de Nakanose possui uma estreita
interlocução com a obra de Gottwald. O ultimo foi orientador de sua tese de doutoramento em
Nova York.
167
antigas leis que indicavam e possibilitavam diferentes locais de culto
(Gn 28.18; 35,14; Ex 20,24; 24,4; Js 24,26). 1.2. Reino do Norte –
metade do século VIII a.C. O reino do Norte ganha estrutura com
Amri (885-874 a.C) e seu filho Acab (874-853 a.C), que consolidaram
o sistema urbano (1 Rs 16,24) [...]. a política mercantilista,
implantada pela casa de Amri para manter a aristocracia das cidades,
vai produzindo um profundo conflito com os camponeses que reagem
através de grupos proféticos que carregavam a tradição efraimita, as
leis humanitárias da sociedade tribal; Elias, Eliseu, Miqueias de
Jemla (cf. 1Rs 22,1-28) e outros para sustentar e manter a esperança
do povo, esses grupos as leis de defesa do pobre no contexto de
aliança com o Deus da vida, Iahveh libertador. Temos então o
confronto de duas forças: o grupo efraimita profético com as leis de
defesa do povo massacrado e o grupo da corte que explorava o povo
[...] Em 841 a.C, Jeú (2Rs 9-10), chefe dos carros de guerra, apoiado
pelo movimento profético de Eliseu, promove uma sangrenta revolta.
Acaba com a dinastia de Amri, destrói os templos de Baal e assume
o trono (841-814 a.C). A primeira vista parece um triunfo total de
Iahweh, mas, na realidade, Jeú faz da religião javista uma força de
sustentação de Estado. A partir desse episodio, Eliseu e seu grupo
de sacerdotes e profetas levíticos passam a desenpenhar importante
papel na corte, tornando-se conselheiros do Rei (cf. 2Rs 13, 14-19).
A profecia institucionaliza-se. Através deles a tradição profética
efraimita, portadora do “protodeuteronomio” entra na corte, que se
apropria das leis aí contidas e as coloca em seu favor [...]. Com
Jeroboão II (783-743 a.C) temos o apogeu político e econômico de
Israel. Aumenta a diferença social. Cresce a classe urbana e rica às
custas do empobrecimento de grande parte da população, sobretudo
o campo, a maior vitima da injustiça e exploração (Am 2,6-16). Para
manter seus interesses socioeconômicos, Jeroboão II intensifica uma
política de centralização. O Estado precisa de produto do campo para
manutenção da corte, da cidade e do comercio. Para isso usa a lei da
centralização que obriga o povo a entregar seu produto num lugar
único que, no caso, é o santuário de Betel, chamado “o santuário rei”
(Am 7,13), em detrimento dos santuários populares do interior, como
Siquém. Este tipo de centralização necessita de um Deus oficial forte,
por isso a perseguição às outras religiões e a apostasia da fé em
Iahweh (2Rs 10,18-27; Dt 13,13-16). É provável que a lei de
centralização, presente no Deuteronômio, tenha surgido neste
contexto (cf. Dt 12). 1.3. Reforma de Ezequias. Na corte de Ezequias
havia escribas especialistas em sabedoria e leis do Oriente Antigo,
tal como no Egito e Assíria (Pr 25,1). Esse grupo, que mais tarde
recebe o nome de deuteronomistas, estava encarregado de legitimar
as reformas. Eles acolheram com muito interesse as tradições vindas
do Norte e as adaptam ao projeto da corte davidita. Na revisão das
leis do Deuteronômio e outras tradições, usam elementos três
elementos: a teologia davídica, a figura de Moisés como autoridade
da tradição do êxodo e o nome de Deus como autor e promulgador
da lei [...] o documento deveria ser depositado no templo e lido
periodicamente em publico, para fortalecer ainda mais a autoridade
do rei diante do povo. As leis de centralização, contidas no núcleo
antigo do Deuteronômio (Dt 12-26), vem ao encontro da proposta da
teologia davídica, cujo objetivo é dar sustentação ideológica ao rei. O
instrumento é o culto centralizado. 1.4. A reforma de Josias. Josias
rompeu a aliança com a Assíria e convocou novamente a nação a
refazer a aliança com Iahweh oficial no esquema contratual de
vassalagem, organizado pelos deuteronomistas. Dando continuidade
à reforma iniciada por Ezequias, Josias levou até as ultimas
conseqüências a centralização do culto. Fez de Jerusalém o centro
político-religioso. Destruiu o santuário de Betel e os santuários
168
javistas do interior, bem como os lugares de culto cananeus (cf. Dt
12; 2Rs 22-23). O “livro da lei” falsamente encontrado no templo (2Rs
22, 3-10), tornou-se a base das reformas [...]. A centralização
possibilita arrancar mais tributo dos camponeses, aumentar o lucro
das rotas, intensificar o comércio. Logo, os que mais lucraram com a
reforma josiânica foram a casa real, os sacerdotes sadoquitas da
corte, os comerciantes e o “povo da terra” [...]. Outro grupo
profundamente afetado com as reformas josiânicas foi o dos
sacerdotes levitas do interior. Eles tiveram seus santuários fechados
e destruídos e foram rebaixados a “clero” de segunda categoria na
organização do culto em Jerusalém (2Rs 23, 8-9). É importante
lembrar que os sacerdotes levitas eram os guardiões dos santuários
do interior, onde havia muito pluralismo religioso. Entre os nomes de
deuses e deusas venerados nesse santuário destacamos o nome de
Aserá (2Rs 23, 4b), que era adorado ao lado de Iahweh e que não
aparece nas criticas ferrenhas de Amós e Oséias! Como podemos
observar, a reforma josiânica foi um triunfo do javismo oficial sobre a
religiosidade popular. 1.5. Redação exílica. Temos a quinta etapa do
processo de redação do Deuteronômio, onde foram acrescentados
textos para explicar o motivo do exílio, as conseqüências e as
possibilidades de saída: o abandono da aliança de Iahweh, para
servir outros deuses (Dt 29, 25-26); a conseqüência é a ira ou a
cólera de Iahweh (Dt 29,20.24.27.28), sua recusa de perdoar
(Dt.29,20) e as maldições (Dt 29,20.27). Para os deuteronomistas, a
saída desta situação está condicionada ao arrependimento e à volta
a Iahweh, numa atitude de obediência e entrega. 1.6. Redação pós-
exilica. Temos a sexta etapa com os acréscimos (1,3;31,14-23;32,48-
52;34) que fazem do Deuteronômio uma espécie de “ponte” entre o
Pentateuco e a Historia Deuteronomista. E assim a elaboração do
Deuteronômio chega a sua fase final [...]. O conjunto do livro quer ser
um apelo à conversão ao Deus oficial, à sua lei e à unidade do povo
eleito, Israel, na sociedade teocrática de Neemias e Esdras. Tudo
isso faz do livro do Deuteronômio um dom de Deus oferecido a
Moisés como testamento no fim de sua vida. Os judaitas sempre o
tiveram em grande conta, tanto que Esdras fez dele o eixo para a
elaboração de suas leis sobre o puro e impuro e sobre a raça
eleita
488
.
A multiplicidade de tradições presentes na narrativa do Deuteronômio
demonstrada por uma abordagem histórico social revelou como um processo
de redação final foi capaz de harmonizar conflitos sociais e religiosos que
foram formatados a partir de um núcleo central fundamentado em um poder
político e religioso. Uma análise histórico-social fez-se se necessária na
desconstrução de cânones escriturísticos que subvertem memórias sociais que
são desmanteladas em um processo de apropriação e silenciamento por não
se adequarem ao establishment político-religioso que tem seu eixo
historiográfico estabelecido no poder. Desvenda-se, assim, o emaranhado de
interesses refletido nos escritos bíblicos, percebendo, como muito bem afirmou
Nakanose, como “leis da teologia e religião” podem “justificar posições e

488
NAKANOSE, Para entender... p.177-185.
169
empreendimentos”,
489
afirmando teologias teocráticas que buscam dar
sustentação ideológica a instituições políticas. Uma hermenêutica bíblica da
libertação se esforça em ouvir a voz dos empobrecidos, opondo a essa tradição
canônica e oficial da história uma tradição dos grupos oprimidos que foram
diretamente afetados pelas ações político-religiosas de estruturas hegemônicas
de poder que apresentam nas narrativas canônicas anseios teocráticos
fundados em uma teologia, um culto e um Deus oficial.
A teologia oficial do deuteronomista pode ser considerada como a
síntese de uma teocracia política da religião de Israel que promoveu um
banimento das múltiplas expressões religiosas que caracterizavam o culto
israelita anterior a tomada do poder do grupo deuteronomista. Este
empreendimento teológico-político proporcionou uma “avalanche de reformas
que provocou resistências nos grupos que foram afetados por elas”
490
,
promovendo uma profunda transformação na identidade religiosa israelita que
foi surpreendida pela mais intensa reforma puritana e anti-idolátrica de sua
história.
491
A reforma de Josias no século VII foi responsável pela radicalização
da ideologia religiosa deuteronomista, promovendo uma ideologização e
centralização do culto israelita que serviu aos interesses econômicos do Estado
centralizado de Israel.
492
Por causa dos dogmas de um livro de leis – ou de acordo com ele –,
‘descoberto’ por milagre no Templo de Jerusalém, ele iniciou uma
campanha a fim de desenraizar todos os traços de práticas religiosas
estrangeiras ou sincréticas, incluindo os ancestrais lugares elevados –
os altares ao ar livre – nas áreas rurais. Ele e suas hostes puritanas
nem mesmo pararam na tradicional fronteira ao norte de seu reino, mas
continuaram naquela direção até Betel, onde o odiado Jeroboão havia
estabelecido um templo para rivalizar com o de Jerusalém e onde
(assim relata a profecia de 1 Reis 13,2) um herdeiro de Davi, chamado
Josias, algum dia queimaria os ossos dos sacerdotes idólatras do
norte. O papel messiânico de Josias surgiu da teologia de um novo
movimento religioso, que mudou profundamente o que significava ser
israelita e que lançou as bases para o judaísmo e o cristianismo
futuros. Em última análise, aquele movimento produziu os documentos
nucleares da Bíblia; entre eles, o mais importante, o livro da Lei,
descoberto em 622 a.C., no décimo oitavo ano do reinado de Josias.
Aquele livro, identificado por muitos estudiosos como forma original do
livro do Deuteronômio, inflamou uma revolução nos rituais e uma
completa reformulação da identidade israelita. O livro continha as
características básicas do monoteísmo bíblico: a exclusiva veneração a
um único Deus em um único lugar; a observância nacional e

489
Ibid, p.176
490
Ibid, p.183
491
FINKELSTEIN, SILBERMAN, A Bíblia..., p.373
492
NAKANOSE, p.183
170
centralizada dos principais festivais e dos dias santificados do ano
judaico, Páscoa e Tabernáculos
493
.
A teologia deuteronomista é a ideologia religiosa que ofereceu as bases
canônicas da Bíblia hebraica e cristã e sustentou os empreendimentos políticos
teocráticos e sacerdotais da tradição judaico-cristã.
494
Sua hegemonia é
resultado de um complexo conflito socioreligioso que se configura na tessitura
social da sociedade israelita, onde a política centralizadora do Estado
determina o status e o lugar privilegiado de um grupo de suporte que mantém o
núcleo teológico deuteronomista. A narrativa histórico-teológica do
deuteronomista propaga um culto monoteísta centralizado e exclusivista e
promove uma enérgica campanha de purificação religiosa, ordenando a
“destruição de santuários rurais”, proclamando “o Templo de Jerusalém, com
seu santuário, altar, e os pátios internos que o circundavam no alto da cidade”,
como o “único e legitimo lugar de adoração para o povo de Israel”.
495
Os deuteronomistas buscaram aprofundar na instancia ideológico-
cultual a adoração a um único Deus. E para isto, não pouparam
nenhum esforço para moldar antigas tradições, recriar ethos diversos e
submetê-los a uma única tônica, construindo assim, uma visão de que
somente na adoção da antiga Aliança haveria sentido para a realidade
social de Israel (...). Pode-se dizer que o movimento deuteronomista
elaborou mecanismos de manutenção do sistema sócio-religioso de
Israel. Sua teologia é fruto de uma elaboração das elites dos chamados
corpos especializados de Israel. Os deuteronomistas atuaram para
estabelecer um monopólio simbólico, que passou pela tentativa de
exercer o controle sobre o Sagrado em Israel. Desta maneira, também
contribuíram para que determinadas instituições políticas e religiosas
viessem a assumir o status de validade suprema. Esta sistematização
teológica, resposta à “crise de plausibilidade em situações pluralistas”,
como camada culta judaica, configurou cognitivamente e
normativamente a sociedade de Israel
496
A ideologia religiosa deuteronomista perpassa a narrativa de todo o livro
do Deuteronômio e se tornou o eixo hermenêutico canônico de interpretação de
toda Bíblia hebraica, empreendendo um nivelamento de todas as
representações religiosas e culturais da multifacetada sociedade israelita ao
critério teológico unificador e intransigente de sua perspectiva teológica. A

493
FINKELSTEIN, SILBERMAN, A Bíblia..., p.371
494
Ver acima, A crítica histórica das tradições em Baruch Espinosa – o tratado teológico
político.
495
FINKELSTEIN, SILBERMAN, A Bíblia..., p.12
496
SANT’ANNA, Representações..., p.37
171
partir da ideologia deuteronomista constrói-se a moldura supra-estrutural da
maior parte das fontes das narrativas bíblicas do primeiro testamento
497
O Deuteronômio ostenta terminologia característica (que não é
compartilhada por nenhuma das outras fontes) e inclui condenação
intransigente da adoração a outros deuses, uma nova visão
completamente transcendente de Deus e a absoluta proibição da
veneração sacrificial do Deus de Israel em qualquer outro lugar que
não o templo de Jerusalém (...). O impacto do livro do Deuteronômio na
mensagem definitiva da Bíblia hebraica vai bem além de seus estritos
códigos legais. A narrativa histórica combinada dos livros que seguem
o Pentateuco – Josué, Juizes, Samuel 1 e 2, Reis 1 e 2 – está tão
hermeticamente relacionada ao Deuteronômio, sob os aspectos
lingüístico e teológico, que passou a ser chamada pelos estudiosos de
‘historia deuteronomista’ desde meados dos anos de 1940.
498
O grupo de suporte que está por trás da teologia deuteronomista lança
as bases do projeto canônico e unificador da religião de Israel, destruindo
santuários locais fora de Jerusalém, habilitando-se ao poder estatal na luta
anti-idolátrica e na extirpação da diversidade de cultos de Israel, levando as
últimas conseqüências, com seu zelo purificador e ortodoxo, sua ação de
extirpação, que tinha na aniquilação e morte dos idólatras, a sua ação mais
eficaz e extrema.
Se no meio de ti, em alguma das tuas cidades que te dá o Senhor, teu
Deus, for encontrado algum homem ou mulher que tenha feito o que é
mau aos olhos do Senhor, teu Deus, transgredindo o seu pacto, que
tenha ido e servido a outros deuses, adorando-os, a eles, ou ao sol, ou
à lua, ou a qualquer astro do exército do céu (o que não ordenei), e
isso te for denunciado, e o ouvires, então inquirirás bem; e eis que,
sendo realmente verdade que se fez tal abominação em Israel, então,
levarás às tuas portas o homem, ou a mulher, que tiver cometido esta
maldade, e apedrejarás o tal homem, ou mulher, até que morra (Dt17,
1-5).
O construto teológico deuteronomista é o pano de fundo que vai formatar
toda a base canônica da Bíblia hebraica. O Pentateuco, como forma final, tem
na teologia deuteronomista a linha de orientação de sua formatação canônica.
Como afirmou Nakanose, a teologia oficial do “Deuteronômio é uma espécie de
“ponte” entre o Pentateuco e a História deuteronomista “
499
, e esse material
teológico foi a base teológica que norteou a construção de uma narrativa
canônica judaico-cristã. O grupo sacerdotal da comunidade pós-exilica que
está por trás da redação final do Pentateuco, como grupo de suporte que
empenhou-se em estabelecer a compósita ideologia oficial presente na

497
Agradeço aos ricos e sugestivos apontamentos do Prof. Dr. Haroldo Reimer
498
FINKELSTEIN, SILBERMAN, A Bíblia..., p.27
499
NAKANOSE, p.188
172
redação final da Bíblia hebraica, fundou as bases da teocracia israelita,
acreditando que tinha o direito divino de determinar o caráter da ortodoxia
judaica.
500
A base dessa ideologia religiosa está na reconstrução da história de
Israel a partir do núcleo sacerdotal que mantém uma ortodoxia judaica que
exclui e extermina toda pluralidade religiosa israelita, entendida como origem
de todo o mal.
Essa redação é marcada pela teologia oficial, desenvolvida por
Ezequiel e seu grupo. Os elementos fundamentais dessa teologia são:
templo (Dt 31,11), terra (Dt 4, 38; 30,16), raça eleita (Dt 4, 37; 29,13),
lei do puro e impuro (Dt 7,1-16), teologia da retribuição, (Dt 7, 9-11).
Todos esses elementos são retomados e reforçados na ultima edição
da história, no pós-exílio, pelo grupo de escribas de Esdras para dar
respaldo a teocracia dirigida por sacerdotes e levitas. A observância da
lei (Dt 31; 32,45-47) ganha relevo no período de Neemias e Esdras,
funcionários da Pérsia: “todo o que não observar a lei de Deus – que é
a lei do rei – será castigado rigorosamente; com a morte ou o desterro,
com multa ou prisão” (Esd 7,26).
501
Os princípios fundamentais da teologia judaica sacerdotal do segundo
templo caracterizam-se pela radicalização do exclusivismo ortodoxo da teologia
deuteronomista que “produziu os documentos nucleares da Bíblia”,
502
sendo
retomados pela ideologia sacerdotal do segundo templo que desenvolveu, a
partir de vários acréscimos e revisões do documento deuteronomista, uma
teologia da história que tem seu eixo centrado no pecado e na retribuição
503
,
elevando o papel social de uma elite sacerdotal
504
que tomou o lugar de um
reinado davídico,
505
e colocou o templo como peça central do rearranjo social
da comunidade israelita.
506
Esta ideologia religiosa esteve intrinsecamente
entrelaçada com o contexto sócio-político do pós-exílio, que associou o poderio
da Pérsia com a proeminência social de uma elite sacerdotal, caracterizando
um “ato político bem calculado”, gerando, assim, “um sistema binário de poder”,
onde a política era determinada “por governantes indicados pela autoridade
persa” e a religião controlada por “uma elite sacertodal”.
507
A construção do
segundo templo de Jerusalém foi custeado com as rendas do Estado, que

500
Ibid, p.401
501
NAKANOSE, p.189
502
FINKELSTEIN, SILBERMAN, A Bíblia..., p.371
503
Sobre isso ver, TAMEZ, A teologia do êxito...
504
FINKELSTEIN, SILBERMAN, A Bíblia..., p.414
505
Ibid, p.408
506
Ibid, p.415
507
Ibid, p.415
173
também se encarregou de supri-lo com animais para o sacrifício.
508
O templo
se tornou, assim, o mecanismo religioso de poder que controlava a vida pública
e privada da comunidade israelita, colocando a “lei como um dom de Deus
oferecido”,
509
agindo como mecanismo centralizador do Estado que tinha como
seu principal instrumento de controle a ação dos sacerdotes que promulgavam
a “lei do Deus do céu”.
510
A teologia sacerdotal e deuteronomista é a principal fonte de inspiração
de todo monoteísmo moderno
511
e da teocracia da cristandade ocidental. A
formatação de sua narrativa canônica e oficial formou “as bases do judaísmo
do Segundo Templo e as da antiga cristandade”,
512
inspirando espíritos
investidos de ortodoxias e zelo religioso, embalados por um monoteísmo
político, monárquico e sacerdotal. Essa teologia que perpassa porções
significativas da narrativa canônica da Bíblia hebraica e cristã, proclamando um
Deus único, zeloso e sem misericórdia, exige o extermínio de toda
representação religiosa que não se adéqüe à teologia oficial centralizada no
templo. As conseqüências dessa teologia para a vida concreta do povo israelita
foi profundamente drástica, afetando a pratica de uma religião popular que se
distava da lógica retributiva e sacrificial da teologia do templo
513
. Para
Nakanose
A religiosidade popular dos agricultores era marcada pelo sincretismo e
pela participação comunitária. Uma de suas características era a festa,
que reunia famílias, vizinhos etc. (Dt 12,12). Ai havia espaço para
todos: mulheres, crianças, velhos e doentes. Com a consolidação do
estado, a religião oficial concentrou a manifestação religiosa no culto
realizado no templo, na cidade (Dt 16,11). O combate a religião popular
invadiu o dia a dia do povo. O estabelecimento do javismo oficial, que,
na sua origem, era religião de pastores, com fortes características
patriarcais, restringiu o espaço das mulheres. O povo perdeu o direito
de exprimir sua fé ao ver destruídos seus símbolos e limitados seus
espaços.
514
A manipulação política e teocrática representada na teologia
deuteronomista e sacerdotal reproduziu-se de forma acentuada na mentalidade
teológica do cristianismo ocidental – desde Santo Agostinho que assimilou toda

508
Ibid, p.402
509
NAKANOSE, p.185
510
FINKELSTEIN, SILBERMAN, A Bíblia..., p.416
511
Ibid, p.13
512
Ibid, p.397
513
Ver tbm CARDOSO, Ah... Amor...
514
NAKANOSE, p.191
174
teocracia judaica que é fundamento de toda obra Cidade de Deus e sua ação
contra os “pagãos”, que é núcleo da cristandade, até a teologia reformada do
século XVII e os arroubos colonizadores da teocracia européia da cristandade
que reproduziu acentuadamente “a diatribe bíblica contra os deuses” que
“usada profusamente em toda evangelização”, aniquilou toda cultura religiosa
amerindia
515
. Acertadamente Croatto afirmou:
A evangelização espanhola/portuguesa pretendia destruir o universo
simbólico religioso dos aborígenes, colocando em seu lugar um
cristianismo de aculturação hebraica e européia. Impunha-se a
destruição direta dos símbolos religiosos, materiais (huacas e objetos
de culto) e ideológicos (crenças), vividos nestas culturas. Mas o
problema de base não era a fé ou o modelo doutrinal, atraente ou
imposto, e sim o despojo e o genocídio que desintegraram boa parte
das comunidades originárias destas terras.
516
Na América Latina, o documento oficial que apresenta a teologia
deuteronomista e sacerdotal, assimilado sistematicamente por uma
hermenêutica canônica e pré-crítica da Bíblia, pode ser identificado como um
monumento de barbárie, que é pano de fundo de toda mentalidade que
autoriza uma corrente interpretativa que massacrou a diversidade de
experiências religiosas dos povos autóctones. Aqui é valido relembrar
Benjamim.
Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo,
um documento da barbárie. E, assim como ele não está livre da
barbárie, também não o está o processo de sua transmissão,
transmissão na qual ele passou de um vencedor a outro. Por isso, o
materialista histórico, na medida do possível, se afasta deste processo
de transmissão. Ele considera como sua tarefa escovar a história a
contrapelo.
517
O acesso às tessituras sociais de onde emergem as tradições bíblicas
tem fundamental importância para uma hermenêutica bíblica da libertação em
sua crítica histórica das tradições, pois busca perceber os conflitos de poderes
a partir da ótica dos oprimidos que têm seus corpos e consciências
subordinados a narrativas religiosas de opressão que legitimam investidas
políticas teocráticas e “desencadeiam uma corrente interpretativa, cujos efeitos
sempre se revelam catastróficos na história de mulheres, crianças, pessoas

515
CROATTO, A destruição..., p.34
516
Ibid, p.34
517
BENJAMIM Apud LÖWY, Walter Benjamim..., p.70
175
escravas, empobrecidas e de outras etnias e culturas”.
518
É contra este
“processo de transmissão” que “passou de um vencedor a outro”, de que nos
fala Benjamim, que uma hermenêutica bíblica da libertação realiza uma ação
de ruptura, tratando de “ir contra a corrente da versão oficial da história,
opondo-lhe a tradição dos oprimidos”, negando-se a participar do “cortejo
triunfal” que está presente em uma hermenêutica bíblica canônica, que
proclama com capa de piedade, “documentos da cultura que são, ao mesmo
tempo, e indissoluvelmente, documentos de barbárie que celebram a guerra e
o massacre”.
519
Aqui cabe lembrar outra vez a denúncia da teocracia feita por
Espinosa, presente na vontade de poder dos teólogos cristãos, que, em desejo
de imitação e tirania repetitiva,
520
buscam fundar uma teocracia em textos
escriturísticos da tradição hebraica.
Tal documento não é inofensivo. Pelo contrário, é erigido pelo mundo
ocidental como cânone de vida política, e a teologia que o acompanha
e o manipula sem cessar constitui o pano de fundo necessário na
elaboração de uma certa imagem do saber e do poder. Cumpre, então,
decifrar esse documento e indagar se as representações construídas a
partir dele servem para ocultá-lo ou se, ao contrário, deixam-se
justificar por ele – tal é a tarefa de que se incumbe o Teológico-político.
Desvendar o caráter histórico do documento implicará, de um lado,
decifrar a maneira como o passado experimentava a relação entre um
povo determinado e seu deus, e por outro, desvendar as
representações que o presente constrói a partir da autoridade conferida
ao passado (...). A interpretação, sendo histórica, busca as imagens
determinadas que um corpo político determinado elaborou acerca da
autoridade e como e por que essa autoridade foi posta em Deus. Mas
não é só isso. Espinosa busca ainda as causas da permanência
temporal dessas imagens para além do contexto em que foram
produzidas e no qual tinham sentido. A interrogação espinosana
debruça-se sobre o enigma da preservação do passado em um
presente que lhe é estranho e que, por intermédio dessa conservação,
oculta a duração verdadeira do passado e oculta-se a si mesmo como
presente, manipulando o texto para exercer autoridade cuja origem
permanece escondida sob o manto de autoridade divina.
521
Uma hermenêutica bíblica da libertação se afirma como crítica das
tradições e das instituições, realizando uma desconstrução de cânones
escriturísticos, numa reconstrução da história a partir das tradições dos
oprimidos. Estabelece-se, assim, como crítica histórica das tradições, tendo
como lócus hermenêutico uma interpretação histórica das escrituras que
“busca as imagens determinadas que um corpo político determinado elaborou

518
RICHTER REIMER, I. Bíblia e hermenêutica..., p.36
519
BENJAMIM Apud LÖWY, p.75
520
CHAUI, Política..., p.61
521
Ibid, p.23
176
acerca da autoridade e como e porque essa autoridade foi posta em Deus”
522
.
Trata-se de um árduo processo de desconstrução da ideologia canônica
presente no texto bíblico. Como muito bem afirmou a biblista brasileira Ivoni
Richter Reimer:
Pelo fato de um texto apresentar e ser produto de relações cotidianas
perpassadas por mecanismos de dominação e gênero, classe e etnia e
gerações é que nos propomos a desconstruí-lo para melhor entendê-lo. No
processo de desconstrução, o desafio é perceber e analisar a circulação de
poderes numa estrutura social e literária.
523
Uma hermenêutica bíblica da libertação processa uma ruptura com
hermenêuticas harmônicas e coloniais que reproduzem e sustentam narrativas
bíblicas canônicas, que, consolidadas, geram, alimentam e sacralizam
instituições. São instituições político-religiosas que determinam papéis sociais,
destroem santuários e símbolos religiosos não enquadrados em suas
projeções, consolidando uma religião hierárquica e intolerante que restringe os
espaços das multiformes expressões de fé e ultrapassa seu espaço social na
formatação de estruturas mentais que se reproduzem, fazendo com que o texto
se faça carne e habite nas tendas de posseiros dos pés pesados de verdades
divinas, sacerdotes de um Deus sanguinário, extirpadores de idolatrias, que
reproduziram, nas culturas autóctones da América indígena, a mesma
extirpação sistemática de seus símbolos religiosos – dogma do deuteronômio e
da cristandade.
É por essas e outras muito mais catastróficas histórias dos efeitos que
uma hermenêutica da libertação na América Latina se fez e se faz sempre na
urgência em dar voz e expressão aos corpos indígenas, negros, femininos e
empobrecidos que foram colonizados e ainda são sistematicamente silenciados
por hermenêuticas equivocadas que persistem em manter cânones
escriturísticos que sustentam teologias que ocultam um desejo de dominação,
poder e tirania teocrática, formatando corpos e consciências e reproduzindo
ortodoxias com ares espirituais e trinitários, com efeitos de trazer de volta as
velhas e desbotadas roupas já sacudidas dos varais latino-americanos por não
mais se adequarem aos corpos suados que celebram o réquiem do velho Deus
de uma cristandade que ainda não passou.

522
Ibid, p.61
523
RICHTER REIMER, I. Bíblia e hermenêutica..., p.36
177
CONCLUSÃO
A hermenêutica bíblica latino-americana da libertação respira os gemidos
de uma anti-conquista e configura-se dentro de uma tradição de emancipação
e libertação que se remete ao êxodo e aos movimentos de ruptura e libertação
que perpassaram a história religiosa do Ocidente. Move-se no interior de uma
tradição crítica e coloca-se diante da tradição bíblica, proclamando o postulado
da dúvida, desconstruindo dogmas e cânones escriturísticos que se mantêm
com um manto de autoridade divina reproduzindo estruturas políticas e
religiosas de dominação com capa de piedade. Talvez possamos afirmar como
Ricoeur, ao analisar a hermenêutica crítica de Jürgen Habermas, que a
hermenêutica bíblica da libertação faz parte de uma tradição que,
talvez seja justamente a da (Aufklärung) [...] a tradição da
emancipação, mais que a tradição da rememoração. A crítica também
é uma tradição. Diria mesmo que ela penetra na mais impressionante
tradição, a tradição da emancipação, a dos atos libertários, a do Êxodo
e da Ressurreição
524
.
A hermenêutica bíblica da libertação tem sua inspiração nessas
memórias subversivas que insistem em confrontar as instituições estabelecidas
que se convertem em estruturas de violência, proclamando uma verdade
canônica que oprime e silencia uma diversidade de expressões. O movimento
bíblico latino-americano procurou minar as bases sacerdotais e hierárquicas
que determinaram a leitura das Escrituras nesses 500 anos de evangelização
colonial na América Latina. Para isso armou-se contra os terríveis rostos do
cristianismo latino-americano, representados por uma cristandade e por seitas
fundamentalistas que reproduzem uma lógica canônica de dominação que
transformou o evangelho na dissimulação política e teocrática que impôs a cruz
e a espada a um sem número de homens e mulheres que tiveram sua
consciência colonizada por dogmas escriturísticos.
As Escrituras bíblicas tiveram papel central no cenário de dominação e
colonização do imaginário religioso latino-americano. Foi o mote do projeto
teológico político que afirmou um poderio religioso sacerdotal que impôs à
lógica canônica pecado-expiação e remissão – a teologia deuteronomista e

524
RICOEUR, Interpretação…, p.145
178
sacerdotal – com fins de legitimar ações políticas teocráticas fundadas na
hierarquia religiosa que estabeleceu as relações de poder no Ocidente –
monoteísmo, sacerdócio e poder político.
Como muito bem afirmou Karen Armstrong, “por terem as Escrituras se
tornado uma questão tão explosiva, é importante ter clareza quanto ao que elas
são e ao que elas não são”
525
. Em sua revisão crítica e releituras bíblicas, a
hermenêutica bíblica da libertação fez com que as “vacas sagradas” (Bíblia,
tradição, autoridade) fossem retiradas “dos pedestais que as imunizavam
contra toda crítica”,
526
desconstruindo cânones escriturísticos que foram
transplantados por uma tradição interpretativa elaborada com o único intuito de
afirmar relações de saber e de poder, que constituíram e ainda constitui a
hegemonia do poder teológico político das velhas e novas cristandades.
A hermenêutica da libertação promoveu uma historicização das
tradições bíblicas, avaliando a partir de uma interpretação ética e política, os
projetos apresentados nas narrativas bíblicas, proclamando um drástico
processo de “descolonização intelectual e espiritual”
527
, demonstrando que as
“articulações intelectuais de fé são construções humanas, com seus processos
contingentes de nascimento, desenvolvimento, mudança”
528
, e devem ser
colocadas diante do crivo crítico de uma razão emancipada que passou por um
profundo processo de descolonização intelectual e espiritual. O teólogo Batista
Luis Riviera Pagán demonstra muito bem as conseqüências deste processo de
descolonização intelectual e espiritual na produção teológica:
Isso implica um deslocamento do tortuoso juízo tradicional acerca da
ortodoxia e da heresia. Boa parte da história da doutrina cristã é uma
recordação lúgubre de censuras, condenações e anátemas,
acompanhada com excessiva freqüência de sentenças trágicas para os
declarados culpados de heterodoxia. Não foi porventura o próprio S.
Agostinho, que nos comove e enternece em suas Confissões, quem,
como bispo de Hipona, exigiu e justificou a repressão imperial contra
donatistas e pelagianos? Não são poucos os estudantes calouros de
teologia que se espantam ao descobrir que a grande disputa trinitária
do século IV tratou em grande parte da diferença entre homoousios e
homoiousios! Certamente, os clássicos escritores da matéria justificam
o debate acerca do famoso iota como expressão de uma distinção

525
ARMSTRONG, A Bíblia..., p.9
526
STEIN, História..., p.5
527
PAGÁN, L R. Racionalidade teológica..., p.53.
528
Ibid, p.52
179
fundamental entre quem está dentro e quem está fora da verdade
dogmática. Dessa maneira, a história da doutrina eclesiástica perde
sua historicidade humana e se transforma na revelação infalível do
Espírito Santo. A quem ainda estiver dentro desta mentalidade,
recomendo a leitura de Jorge Luis Borges, Los teólogos. É uma
excelente mostra da deliciosa ironia do grande escritor argentino,
expressa numa brilhante sátira sobre as controvérsias dogmáticas.
Sem chegar à peregrina conclusão de que o problema da verdade é
mera ficção, não cabe duvida de que toda consideração da história da
teologia deve prescindir das justificações clássicas dos anátemas e das
repressões eclesiásticas doutrinais. Parece-me acertada a sentença do
grande pensador judeu do final do século XVII, Baruch Spinoza: “Os
verdadeiros inimigos de Cristo são aqueles que perseguem as pessoas
de bem e amantes da justiça só porque discordam deles e não
compartilham dos mesmos dogmas religiosos”.
529
A Bíblia é com certeza um ”livro com um potencial político imenso”
530
e
a história de sua leitura na América Latina revelou capítulos trágicos. Lida e
interpretada a partir da tradição teológica cristã clássica, referendou
assimetrias e legitimou atrocidades que entraram para os mais desastrosos e
terríveis capítulos da história da humanidade. Se tornando cânone de vida de
muitos, sua interpretação esteve na maioria das vezes situada na perspectiva
dos poderosos, forjando mentalidades que reproduziram sistematicamente uma
lógica canônica que exclui um sem numero de expressões de fé que se
tornaram invisíveis a partir do ponto de vista dos conquistadores e
colonizadores.
O movimento bíblico latino-americano da libertação redescobriu a Bíblia
a partir dos corpos mestiços, negros, índios e empobrecidos da América Latina,
forjando uma teologia bíblica que tem os pés fincados no chão latino-
americano, colocando como o eixo hermenêutico os pobres e sua real
exploração que se mantém no ilimitado processo de naturalização da injustiça
humana presentes nos preconceitos de classe, gênero e etnia. Neste sentido, a
hermenêutica da libertação identificou-se com os pobres da Bíblia, com suas
lutas, dores e situação de opressão, construindo uma teologia bíblica a partir
destes gemidos de resistência, que protestaram contra as forças de dominação
política e religiosa que se asseveraram como canônicas e finais. Fez se, na
América Latina, teologia bíblica pelo reverso da história, dando “saltos de tigre”
em direção ao passado, “a fim de resgatar a memória dos oprimidos e nela se

529
Ibid, p.55
530
PIXLEY, A Bíblia..., p.105
180
inspirar para interromper a catástrofe presente”
531
, que reproduz
sistematicamente os “monumentos de barbárie” de uma cultura teológica que
ignora os gemidos dos oprimidos, fazendo das celebrações de um cristianismo
oficial latino-americano, um cortejo triunfal, conseqüente de uma hermenêutica
bíblica colonial que insiste em ignorar os pobres e vencidos das terras
ameríndias, enveredando-se em suas inconseqüentes liturgias de triunfo.
O movimento bíblico latino-americano promoveu uma árdua
reconstrução histórica dos documentos bíblicos, identificando-se com as
camadas populares que se expressam nas narrativas bíblicas, buscando a
partir de uma crítica histórica das tradições, reconstruir uma tradição
contraposta e emancipada de uma hermenêutica bíblica colonial que tem como
pano de fundo a conquista espiritual de toda comunidade nativa das Américas.
Reconstruiu-se, assim, uma tradição que tem suas bases alçadas nas
memórias de resistência dos deserdados da história, que se tornaram uma
“fonte formidável de inspiração, uma arma cultural poderosa no combate
presente”, que se armou em “sublevação revolucionária”
532
contra todas as
autoridades e hierarquias.

531
BENJAMIM, apud LÖWY, Walter Benjamim..., p.79
532
Ibid, p.121
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