É exatamente dos campos de extermínio e de concentração que partiremos
nesta dissertação
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para desmascarar os vínculos tornados perversos entre a
razão e a normatização da vida, sua dominação, já que tanto Adorno como
Bauman desenvolveram reflexões no sentido de ressaltar a função de cesura
que Auschwitz, em sua singularidade, desempenha para a história da razão e
civilização moderna, produzindo, assim, conseqüências para o espírito crítico
da cultura (Kulturkritik) na sociedade que, após Auschwitz, ainda mantém e
reproduz as condições objetivas que tornaram o terror nazista algo factível.
Esse campo de concentração e extermínio mais conhecido no mundo moderno
foi a chave de leitura por nós adotada nesta dissertação, no sentido de
compreender melhor o tipo de relação que pode ser estabelecida entre a
perspectiva sociológica de Bauman e o trabalho filosófico, mas também
sociopsicológico, de Adorno, como tem sido anunciado aos quatro cantos do
mundo por alguns comentadores da obra de Bauman (ainda que faltem a eles
o mergulho necessário na vasta obra adorniana). Mais especificamente, aquela
chave será nosso fio condutor no sentido de saber em que medida seu projeto
sociológico é capaz de levar adiante, como ele mesmo declara (1999a), a
tradição crítica desenvolvida pela Escola de Frankfurt e que tem no filósofo
Adorno seu principal representante, destacando, assim, as (des)afinidades
entre o pensamento de ambos.
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Embora Adorno e Bauman não façam distinção entre campo de extermínio e campo de
concentração, acatamos a sugestão de Agamben (1998) em distinguir um do outro. Conforme
ele (1998) nos ensina, os campos não são apenas concebidos como o lugar pura e simples da
morte, mas também como o espaço (campo de concentração) daquilo que as testemunhas
denominam de muçulmano: uma espécie de zumbi, literalmente um morto-vivo, um cadáver
ambulante que, em virtude do horror, humilhação e medo, foi ceifado de toda possibilidade de
consciência, personalidade e, para usar um conceito que é importante a Adorno, Agamben, e
em menor medida, a Bauman (nos laços que os unem a Benjamin), experiência (partilhável).
Mais do que um limite entre a vida e a morte, ele marca o limiar entre o homem e o não-
homem. Não deixa de ser surpreendente que, antes mesmo de Agamben, Adorno (2001a, p.
257) já nos chamava a atenção para o apagamento da linha de demarcação entre a vida e a
morte em Auschwitz, gerando uma “[...] uma situação intermediária, esqueletos vivos e em
estado de decomposição, vítimas que falharam em sua tentativa de suicídio, a gargalhada de
Satanás diante da esperança da abolição da morte”. Desde Auschwitz, então, temer a morte
significa temer algo muito pior do que a morte. Auschwitz é o teatro de uma experimentação
sempre impensada, na qual, além da vida e da morte, o judeu se transforma em muçulmano, o
homem em não-homem. Na leitura de Agamben, ele é a expressão da ambição suprema do
biopoder de realizar no corpo humano a separação absoluta do vivente e do falante, da zoé e
da bios, do não-homem e do homem, produzindo, assim, aquela fórmula que representaria
para ele a especificidade da biopolítica do século XX: não mais fazer morrer, não mais fazer
viver, mas fazer sobreviver. E nós só teremos compreendido Auschwitz quando tivermos
entendido quem é ou o que é o mulçumano. O campo de concentração é destinado à produção
do muçulmano; o campo de extermínio, à produção pura e simples da morte. Não é por acaso
que em Auschwitz os dois campos se tocam.
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