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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E
CULTURA CONTEMPORÂNEAS
ANGIE BIONDI FIGUEIRA DE ABREU
CONFIGURAÇÕES DO GROTESCO NO DISCURSO VISUAL DA
PUBLICIDADE
Salvador
2007
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2
ANGIE BIONDI FIGUEIRA DE ABREU
CONFIGURAÇÕES DO GROTESCO NO DISCURSO VISUAL DA
PUBLICIDADE
Dissertação apresentada ao curso de Mestrado em Comunicação e
Cultura Contemporâneas da Faculdade de Comunicação da
Universidade Federal da Bahia para obtenção do grau de Mestre em
Comunicação.
Orientador: Prof. Dr. José Benjamim Picado Souza e Silva
Salvador
2007
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3
Biblioteca Central Reitor Macêdo Costa - UFBA
A162 Abreu, Angie Biondi Figueira de.
Configurações do grotesco no discurso visual da publicidade / Angie Biondi Figueira de Abreu .-
2007.
164 f. : il.
Orientador : Profº Drº. José Benjamim Picado Souza e Silva.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Comunicação, 2007.
1. Grotesco. 2. Grotesco na arte. 3. Publicidade. 4. Fotografia na publicidade. 5. Comunicação
visual. I. Picado, José Benjamim. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Comunicação.
III. Título.
CDU - 659.13
CDD - 302
4
À pequena Camila.
5
AGRADECIMENTOS
Ao meu companheiro e amigo Gustavo, por todo seu carinho e paciência.
A minha família, pelo constante apoio.
Aos meus “velhos” amigos Manuela, Isis, Messias, Cláudio, Andiara e Wladimir, pela
confiança e pelas palavras sinceras em todos os momentos. A nova e, não menos importante
amiga, Daniela Bracchi, pela troca de “figurinhas” de imagens publicitárias.
Aos meus companheiros de pesquisa e das tardes de terça, os “benjaminicos” André
“Betonnasi”, João, Jônathas, Júlio, Gustavo e Cristiano. Agradeço também aos colegas
Greice, Mário Barata, Rodrigo, Eduardo, Danilo, Sivaldo, Guilherme, Fábio e Tatiana pelas
proveitosas e divertidas conversas nos bancos da escola.
A Capes, pela concessão da bolsa.
Ao meu orientador Benjamim, pela dedicação e cuidado com que me auxiliou nesta jornada.
6
"Uma palavra nova é como uma semente fresca que se joga no
terreno da discussão. "
Wittgenstein
7
RESUMO
A presente dissertação tem como objetivo analisar as modalidades expressivas que o grotesco,
como um motivo visual, assume na publicidade. Com o referencial teórico de base, o estudo
tenta firmar o grotesco a partir de suas caracterizações em outros modos representacionais, ou
seja, como se manifesta em uma espécie de sistema de imagens na literatura e na pintura,
principalmente, através das perspectivas de Mikhail Bakhtin e Wolfgang Kayser. O propósito
é notar que, de um lado, a expressão do grotesco na publicidade é resultante de uma série de
operações ligadas aos modos de se compor a imagem, a partir do recurso a certos materiais
em sua porção figurativa, plástico-icônica. E, de outro lado, compreender que uma retórica do
grotesco se realiza através de certas relações que constituem a imagem enquanto uma espécie
de “centro de tensões” que estabelece as condições de sua recepção. Em boa medida, trata-se
de observar como os recursos próprios ao material fotográfico se articulam, não apenas como
elementos de organização da imagem, mas, sobretudo, como centros de construção de sentido,
próprios a um modelo de enunciação visual. Tentamos desenvolver algumas questões
necessárias ao entendimento desta relação entre motivo e imagem publicitária, levando em
conta os elementos de configuração e de leitura dentro de um contexto específico e que atende
a certas finalidades do seu tipo de regime discursivo. Para isso, buscamos estabelecer uma
espécie de esquema dos aspectos figurativos do grotesco em outros campos da arte visual, do
pictórico, sobretudo, que pudesse nos oferecer indicativos desta apropriação do motivo em
imagens e sua repercussão no contexto publicitário, de modo a compreender algumas
implicações e desdobramentos que se colocam na relação entre grotesco, imagem e
publicidade.
8
ABSTRACT
The present thesis has as its objective analyzes the expressive modalities that the grotesque, as
a visual theme, assumes in the publicity. As theoretical respects of base, the study probe to
firm the grotesque starting from their characterizations in other manners representatives, in
other words, as its shows in a type of system of images in the literature and in the painting,
mainly, through Mikhail Bakhtin's perspectives and Wolfgang Kayser. The purpose is to
notice that, on a side, the expression of the grotesque in the publicity is resulting from a series
of linked operations to the manners of composing the image, starting from the resource to
material rights in its figurative portion, plastic-iconic. And, on another side, to understand that
a rhetoric of the grotesque takes place through certain relationships that constitute the image
while a type of "center of tensions" that establishes the conditions of its reception. In good
measure, is observed as the own resources to the photographic material pronounce, doesn't
just like elements of organization of the image, but, above all, as centers of sense
construction, own to a model of visual enunciation. We tried to develop some necessary
subjects to the understanding of this relationship between theme and advertising image, taking
into account the configuration elements and of reading inside of a specific context and that its
assists to certain purposes of its type of discursive regime. For that, we looked for to establish
a type of outline of the figurative aspects of the grotesque in other fields of the visual art, of
the pictorial, above all, that could offer indicative of this appropriation of the reason in images
and its repercussion in the advertising context, in way to understand some implications and
unfoldings that they are put in the relationship among grotesque, image and publicity.
9
LISTA DE FIGURAS
Figura 1- Disponível em:<http://portal.saude.gov.br/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=16822>
Acesso em: 15 jan.2007. 13
Figura 2 - BRUEGHEL, Pieter. Os provérbios holandeses, 1559. Óleo em painel de madeira,
117.5 x 163.5 cm. Staatliche Museu. Berlim, Alemanha. Disponível em: < http://www.groupe-
kuru.org/imagesautres/brueghel.jpg>. Acesso em: 27 set. 2006. 30
Figura 3 -BRUEGHEL, Pieter. Gret, a louca, 1563. Óleo sobre painel de madeira,
117.4x162cm. Museu Mayer van den Bergh. Antuérpia, Bélgica. Disponível em:
<http://breughel.8m.net/cgi-bin/i/dullegriet.jpg>. Acesso em: 27 set. 2006. 32
Figura 4 - GOYA, Francisco. Saturno devorando seus filhos, 1820-23. Pintura mural a óleo.
146 x 81,4 cm. Museu do Prado. Madrid, Espanha. Disponível em:
<http://goya.unizar.es/InfoGoya/Obra/Catalogo/Pintura/616.html>. Acesso em: 27 set. 2006. 35
Figura 5 -GOYA, Francisco. O encantamento, 1797-98. Óleo sobre tela. 41x31cm.
Fundação Lazaro Galdiano. Madrid, Espanha. Disponível em:
<http://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/goya/goya.incantation.jpg>. Acesso em: 27 set. 2006. 37
Figura 6 -CALLOT, Jacques. Balli di Sfessania, 1622.Gravura. Disponível em:<
www.spamula.net/blog/i19/callot23-thumb.jpg> Acesso em: 13 jan.2007 41
Figura 7 – Disponível em: <http://www.brainstorm9.com.br/archives/cat_impressoprint.html>
Acesso em: 03 fev.2007. 42
Figura 8 - HOGARTH, William. A viela do gim, 1751. Disponível em:
<http://www.library.northwestern.edu/spec/hogarth/images/1.69.jpg>. Acesso em: 27 set. 2006. 46
Figura 9 – NÈGRE, Charles. The gargoyle of Notre Dame, 1851. The Metropolitan Museum of Art.
Disponível em:<http:// www.shareholder.com/BID/NEWSB/BID0108g.gif> Acesso em: 20 jan.2007 71
Figura 10 - WALKER, Evans. Torn movie poster, 1930. Disponível em
<http://thispublicaddress.com/tPA1/images/06_2002/evans15.jpg>. Acesso em: 12 ago. 2006. 73
Figura 11 - Disponível em <http://www.advesti.ru/images/ENEP_19030_0032457A.JPG>
Acesso em 15 de maio de 2004. 75
Figura 12 - Disponível em <http://www.diesel.com/sucessfullivingguides>
Acesso em 23 de novembro de 2004. 77
Figura 13 - Disponível em <http://www.cindysherman.com/art.shmtml>
Acesso em 18 de novembro de 2006. 79
Figura 14 - Disponível em <http://www.cindysherman.com/art.shmtml>
Acesso em 18 de novembro de 2006. 79
Figura 15 – Disponível em <www.adverbox.com/2005/11/axe.html> Acesso em 17 e agosto de 2006. 79
Figura 16 - Disponível em <www.adverbox.com/2005/11/axe.html> Acesso em 17 e agosto de 2006. 80
Figura 17 - Disponível em <www.adverbox.com/2005/11/axe.html> Acesso em 17 e agosto de 2006. 81
Figura 18 – Disponível em <www.blogeko.info/media/foiegrasFR2.jpg> Acesso em 20 de maio de 2006. 84
Figura 19 - Disponível em <www.blogeko.info/media/foiegrasFR2.jpg> Acesso em 20 de maio de 2006. 84
10
Figura 20 - Disponível em <http://www.tulipan.com.ar/home/index.php>
Acesso em 17 de junho de 2006. 85
Figura 21 - Disponível em <http://www.tulipan.com.ar/home/index.php>
Acesso em 17 de junho de 2006. 85
Figura 22 - Disponível em <http://www.tulipan.com.ar/home/index.php>
Acesso em 17 de junho de 2006. 86
Figura 23 - Disponível em <www.photo.fr/portfolios/pubs/photos/aids.jpg>
Acesso em 14 de agosto de 2004. 87
Figura 24 - Disponível em <http://www.brainstorm9.com.br/archives/cat_impressoprint.html>
Acesso em 11 de novembro de 2006. 88
Figura 25 - Disponível em <http://www.brainstorm9.com.br/archives/cat_impressoprint.html>
Acesso em 11 de novembro de 2006. 89
Figura 26 - Disponível em <http://www.diesel.com/sucessfullivingguides>
Acesso em 23 de novembro de 2004. 90
Figura 27 - Disponível em <http://www.diesel.com/sucessfullivingguides>
Acesso em 23 de novembro de 2004. 90
Figura 28 - Disponível em <http://www.diesel.com/sucessfullivingguides>
Acesso em 23 de novembro de 2004. 91
Figura 29 - Disponível em <http://www.diesel.com/sucessfullivingguides>
Acesso em 23 de novembro de 2004. 91
Figura 30 - Disponível em <http://www.diesel.com/sucessfullivingguides>
Acesso em 23 de novembro de 2004. 92
Figura 31 - Disponível em <http://www.diesel.com/sucessfullivingguides>
Acesso em 23 de novembro de 2004. 92
Figura 32 - Disponível em <http://www.diesel.com/sucessfullivingguides>
Acesso em 23 de novembro de 2004. 93
Figura 33 - Disponível em <http://www.erwinolaf.com/Pages/Adv_Frms.htm>
Acesso em 11 de novembro de 2006. 95
Figura 34 - Disponível em <http://www.erwinolaf.com/Pages/Adv_Frms.htm>
Acesso em 11 de novembro de 2006. 95
Figura 35 - Disponível em <http://www.erwinolaf.com/Pages/Adv_Frms.htm>
Acesso em 11 de novembro de 2006. 96
Figura 36 - Disponível em <http://www.erwinolaf.com/Pages/Adv_Frms.htm>
Acesso em 11 de novembro de 2006. 96
Figura 37 - Disponível em <http://www.erwinolaf.com/Pages/Adv_Frms.htm>
Acesso em 11 de novembro de 2006. 97
Figura 38 - Disponível em <http://www.erwinolaf.com/Pages/Adv_Frms.htm>
Acesso em 11 de novembro de 2006. 97
Figura 39 - Disponível em <http://www.erwinolaf.com/Pages/Adv_Frms.htm>
Acesso em 11 de novembro de 2006. 97
11
Figura 40 - Disponível em <http://www.ba-reps.com/artists/167/2355/nyt-cover-.jpg>
Acesso em 11 de novembro de 2006. 98
Figura 41 - Disponível em <http://www.ba-reps.com/artists/167/2355/nyt-cover-.jpg>
Acesso em 11 de novembro de 2006. 98
Figura 42 - Disponível em <http://www.ba-reps.com/artists/167/2355/nyt-cover-.jpg>
Acesso em 11 de novembro de 2006. 99
Figura 43 - Disponível em <http://www.ba-reps.com/artists/167/2355/nyt-cover-.jpg>
Acesso em 11 de novembro de 2006. 99
Figura 44 - Disponível em <http://www.diesel.com/sucessfullivingguides>
Acesso em 23 de novembro de 2004. 103
Figura 45 - TINTORETTO, Jacopo Robusti. A visita de Maria ao templo, 1552.
Pintura em tela, 429x480cm. S.M. dell’Orto, Veneza. Disponível em:
<http://easyweb.easynet.co.uk/giorgio.vasari/tintoret/tintor2.jpg>. Acesso em: 14 out. 2006. 106
Figura 46 - Disponível em <http://www.diesel.com/sucessfullivingguides>
Acesso em 23 de novembro de 2004. 108
Figura 47 - Disponível em <http://www.brainstorm9.com.br/archives/cat_impressoprint.html>
Acesso em 17 de junho de 2006. 110
Figura 48 - TERBORCH, Gerard. Admoestação do pai, 1654-1655. Pintura em madeira,
72x60cm.Gemäldegalerie, Berlim. Disponível em: <
http://commons.wikimedia.org/wiki/Image:Gerard_ter_Borch_d._J._016.jpg>. Acesso em: 14 out. 2006. 111
Figura 49 - Disponível em <http://www.brainstorm9.com.br/archives/cat_impressoprint.html>
Acesso em 17 de junho de 2006. 112
Figura 50 - Disponível em <http://www.erwinolaf.com/Pages/Adv_Frms.htm>
Acesso em 11 de novembro de 2006. 113
Figura 51 - Disponível em <http://www.erwinolaf.com/Pages/Adv_Frms.htm>
Acesso em 11 de novembro de 2006. 114
Figura 52 - Disponível em <http://www.brainstorm9.com.br/archives/cat_impressoprint.html>
Acesso em 17 de junho de 2006. 116
Figura 53 – TINTORETTO, Jacopo Robusti. Pieta, 1559. Óleo sobre tela, 227x294cm.
Galeria da Academia, Veneza. Disponível em:
<http://140.112.2.84/~theatre/course/th6_520/sty_16c/painting/tintoretto-1-08m.jpg>.
Acesso em: 14 out. 2006. 118
Figura 54 - Disponível em <http://image.guardian.co.uk/sys-
images/Media/Pix/pictures/2003/11/12/barnardo2roach.jpg> Acesso em 11 de junho de 2006. 119
Figura 55 - Disponível em <http://www.kunstikeskus.ee/trend/pilt/igal_pool_9/benetton_food_for_life_1.JPG>
Acesso em 11 de junho de 2006. 123
Figura 56 - Disponível em <http://www.brainstorm9.com.br/archives/cat_impressoprint.html>
Acesso em 17 de junho de 2006. 123
Figura 57 - Disponível em <http://www.texasdwi.org/jacqui.html> Acesso em 18 de outubro de 2004. 124
Figura 58 - ORLEY, Barend van. Retrato de Jehan Carondolet, 1542. Pintura em Madeira. 53x37cm.
Munique. 125
12
Figura 59 - Disponível em <http://www.brainstorm9.com.br/archives/cat_impressoprint.html>
Acesso em 17 de junho de 2006. 127
Figura 60 - Disponível em <http://www.brainstorm9.com.br/archives/cat_impressoprint.html>
Acesso em 17 de junho de 2006. 128
Figura 61 - Disponível em <http://www.erwinolaf.com/Pages/Adv_Frms.htm>
Acesso em 11 de novembro de 2006. 129
Figura 62 - Disponível em <http://image.guardian.co.uk/sys-
images/Media/Pix/pictures/2003/11/12/barnardo2roach.jpg> Acesso em 11 de junho de 2006. 132
Figura 63 - Disponível em <http://www.smoke-free.ca/warnings/warningsimages/brazil/lung-medium.jpg>
Acesso em 11 de junho de 2006. 133
Figura 64 - Disponível em <http://www.eastlothian.gov.uk/images/contentmanage/smoke-7218.JPG>
Acesso em 27 de outubro de 2006. 134
Figura 65 - Disponível em:<http://portal.saude.gov.br/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=16822>
Acesso em: 15 jan.2007. 134
Figura 66 - Disponível em <http://www.erwinolaf.com/Pages/Adv_Frms.htm>
Acesso em 11 de novembro de 2006. 135
Figura 67 - Disponível em <http://www.erwinolaf.com/Pages/Adv_Frms.htm>
Acesso em 11 de novembro de 2006. 144
Figura 68 - Disponível em <http://www.erwinolaf.com/Pages/Adv_Frms.htm>
Acesso em 11 de novembro de 2006. 145
Figura 69 - Disponível em <http://www.brainstorm9.com.br/archives/cat_impressoprint.html>
Acesso em 17 de junho de 2006. 147
Figura 70 - Disponível em <http://www.brainstorm9.com.br/archives/cat_impressoprint.html>
Acesso em 17 de junho de 2006. 148
Figura 71 – Disponível em:<http://www.adverbox.com/media/campaigns/2007/01/concordia1.jpg>
Acesso em: 05 fev.2007. 149
Figura 72 - Disponível em <http://www.brainstorm9.com.br/archives/cat_impressoprint.html>
Acesso em 17 de junho de 2006. 151
Figura 73 - Disponível em <http://www.anvisa.gov.br/imagens/tabaco/tabaco_cancer_laringe.jpg>
Acesso em 11 de junho de 2006. 152
Figura 74 – Disponível em:< www.adverbox.com/.../24/amnesty-international-8/>
Acesso em: 05 fev.2007. 153
Figura 75 - Disponível em:< www.adverbox.com/.../24/amnesty-international-8/>
Acesso em: 05 fev.2007. 153
Figura 76 - Disponível em:< www.adverbox.com/.../24/amnesty-international-8/>
Acesso em: 05 fev.2007. 153
13
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 13
1. O GROTESCO COMO UM MOTIVO VISUAL 24
1.1 Caracterizações do motivo grotesco: do figurativo ao plástico 29
1.1.1 Goya e o elemento plástico na composição do grotesco 34
1.1.2 Observações sobre a caricatura como recurso grotesco 39
1.2 A construção de um sistema de imagens do grotesco em Bakhtin e Kayser47
1.3 Considerações sobre o grotesco no contexto da comunicação mediática 53
1.4 Delimitando o objeto de análise 58
2. O MOTIVO GROTESCO NA PUBLICIDADE 62
2.1 Análise dos elementos internos da fotografia na formação do discurso
visual do grotesco 68
2.1.1 A personificação do grotesco e sua relação com a natureza bidimensional
da fotografia 68
2.1.2 A luz e a formação da ambiência plástica do grotesco 101
3. O GROTESCO E O IMAGINÁRIO DA COMUINICAÇÃO PUBLICITÁRIA
3.1 Enquadramento e espaço na formação do caráter testemunhal 121
3.2 A dimensão receptiva e o efeito de imediaticidade 139
3.2.1 O olhar de espreita 141
3.2.2 O olhar direto 150
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS 156
REFERÊNCIAS 162
13
INTRODUÇÃO
Numa breve indicação, podemos denominar “grotescas” imagens abjetas, repulsivas,
esquisitas, imagens que, de algum modo, causam um estranhamento ao olhar. Tomemos então
uma primeira imagem deste tipo na figura 1.
Figura 1: Peça 1
Fonte:
<http://portal.saude.gov.br/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=16822>
De imediato a reconhecemos como uma daquelas peças publicitárias que são colocadas atrás
dos maços de cigarro de uma campanha anti-tabagista promovida pelo Ministério da Saúde.
Uma imagem comum, facilmente encontrada, mas que não deixa de provocar este
estranhamento do qual mencionamos. Há certo “impacto” neste tipo de imagem, pois ela nos
parece dotada de certa “capacidade” de causar um desconforto, uma sensação um tanto
indefinida de um riso sarcástico ou um espanto. No entanto, o que se coloca como mais
intrigante em uma peça como esta é pensar como consegue produzir certo efeito, quais
elementos participam na produção de um pathos. O quê, afinal, é posto numa imagem que
possa causar certa mobilização do olhar.
A Figura 1 apresenta um feto colocado dentro de um recipiente, imerso em um líquido, ainda
em uma posição semelhante a que assume no útero materno. Podemos ver sangue ou resto
placentário em seu corpo, os pés e mãos retorcidos, a cabeça inclinada sobre um ombro,
14
porém, o que fica como um ponto de atenção mais premente na imagem não é ver um feto
simplesmente, mas vê-lo em um lugar deslocado do que seria “natural” ou mais próprio de
sua natureza, no ambiente propício aos meses de seu desenvolvimento. Ao invés disso, vemos
um feto em conserva, dentro de um recipiente. Esta “substituição” do seu ambiente natural
para um outro objeto comum põe certa “força” na imagem e reconhecer este deslocamento
proposto nos é um tanto perturbador.
No entanto, notar este tipo de imagem não se restringe apenas às reações que ela nos provoca,
mas implica em reconhecer duas instâncias que se colocam ao mesmo tempo: uma delas está
ligada ao motivo, ao tema sobre o qual a imagem se reporta, e a outra, se refere ao próprio
modo de conformar este tema visual, ou seja, de configurá-lo, de apresentá-lo em uma
imagem. Em boa medida, certas reações que esboçamos diante de uma imagem deste tipo
estão coligadas ao seu aspecto de configuração, ou seja, de certo modo de representação de
um motivo em uma imagem, neste caso, da figuração de um corpo ainda disforme dentro de
um recipiente; uma imagem “grotesca”
1
.
O grotesco, segundo Mikhail Bakhtin
2
, se traduz em um “sistema de imagens da cultura
cômica popular”, relacionado às expressões do corpo e da natureza como dois elementos
indissociáveis e em constante modificação. Em sua visão, o grotesco é regenerador, jocoso,
cômico, porém, em uma outra perspectiva contrastante, Wolfgang Kayser (2003) denomina o
grotesco como “o disforme e o abjeto” (mais próximo da imagem da Figura 1, por exemplo).
Quando atentamos para a publicidade, em geral, notamos que o tema grotesco se caracteriza
pela mistura de parte de objetos com corpos humanos ou com animais, pela exibição de
doentes, lesões, deformidades, teratologias, entre outros, mas estes elementos figurativos são
dispostos, em uma imagem, contando com um outro ponto específico: o uso de certos
1
Ao grotesco atribui-se intensa difusão no final do século XVI; os ornamentos cobrem fachadas de palácios,
invadem a arquitetura, as gravuras e também outros campos: na cerâmica, na tapeçaria, nas artes “menores” em
geral. Dentre seus adeptos, destacam-se os artistas Gaudenzio Ferrari, Signorelli, Filippino Lippi, Andrea di
Cosimo, Giuliano da Sangallo e, até mesmo, Michelangello. A partir da Itália, porém, o grotesco penetra em
países transalpinos e conquista os domínios das artes plásticas e mesmo da imprensa. Fica estabelecida desde
então a marginalidade do estilo grotesco em relação ao clássico, fixando-se as características da sua
representação: a monstruosidade, o informe, o híbrido (a mistura de domínios: animal/ humano/ vegetal), o
fantasioso sem limites, que por vezes provoca o riso de caráter crítico. Outras definições podem ser encontradas
em Carlos Ceia, s.v. "Grotesco", E-Dicionário de Termos Literários, coord. de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-
9, http://www.fcsh.unl.pt/edtl.
2
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento. O contexto de François Rabelais.
Universidade de Brasília: Hucitec, 1999.
15
recursos fotográficos que acentuam ou ressaltam o motivo trabalhado. Este motivo, então, é
disposto a partir de certa organização dos recursos próprios da fotografia (luz, cor,
enquadramento, etc.) e de certos protocolos do contexto no qual estão implicados, ou seja, em
um tipo de regime discursivo - o publicitário.
Nas imagens em questão, assim denominadas grotescas, nos interessa observar como estas
duas instâncias - o motivo e sua configuração - estão implicadas e como elas se relacionam
dentro do contexto publicitário. Aliás, pensar a própria inscrição de um tema, aparentemente
tão destoante dos enredos pelos quais a publicidade recorre para associar seus produtos ou
anunciar seus serviços, se constitui como um outro ponto de reflexão sobre o tipo de uso
destas imagens cada vez mais comuns atualmente.
O próprio modo de aplicar o termo “grotesco” carece de mais explicações, pois certa literatura
já considerava o grotesco como uma categoria estética, uma denominação para qualificar um
objeto a partir de seu efeito, fosse ele ridículo, espantoso ou asqueroso. Em nosso caso,
buscamos entender que o grotesco se apresenta para além de um efeito, mas também como
um modo de representação, como uma estrutura de formas plásticas e icônicas; como um
modelo figurativo. Daí considerarmos mais apropriado tomar o grotesco como um tema,
como um motivo visual, que tem implicações de efeito, porém que não se basta apenas por
eles para explicá-lo, mas entender que o grotesco é também da ordem de uma “construção”;
constitui-se sob certas formas e por certa articulação de elementos. E é compreender estes
modos de implicar o motivo em uma imagem publicitária, o que propomos investigar.
De início, estas inquietações, um tanto nebulosas, foram sendo modeladas por outras questões
teóricas que se puseram a partir de algumas leituras sobre o tema em outros meios de
representação, como a pintura e a literatura. Contudo, a relação do tema com a imagem
publicitária parecia reivindicar a compreensão de determinados aspectos de sua produção
propriamente visual. Não bastava identificar o motivo grotesco porque as imagens se
mostravam com certas variações entre si; algumas apresentavam um tipo de luminosidade
específica, outras exibiam um personagem deformado de modo muito próximo, como num
retrato em primeiro plano; cada qual com suas características distintas. Logo, esta tentativa de
compreender como as configurações do grotesco são produzidas em imagens publicitárias nos
fez enfrentar, ainda, uma outra questão - de que modo as imagens poderiam ser investidas de
um valor discursivo.
16
Se pudermos tomar a fotografia publicitária, por exemplo, como um tipo de representação
para entender o mundo e suas coisas, no mínimo, precisamos admitir que notamos tanto o quê
ela nos mostra (seus temas ou motivos visuais) quanto como ela nos mostra (através da
articulação de seus elementos internos; luz, plano, enquadramento, cores, etc.). Neste caso, a
publicidade tem uma trajetória, de certo modo, específica nestas apropriações. Porém, o que
parece ser muito exemplar da fotografia publicitária é também muito pouco explorado nos
seus estudos, mesmo a publicidade sendo um dos campos notórios na utilização dos
elementos propriamente internos de uma imagem para a obtenção de seus efeitos, pouco se
discute sobre a incidência de seus elementos como recursos imprescindíveis em suas
configurações, que, em boa medida, se restringe às análises semióticas
3
.
No entanto, certos pressupostos e noções advindas dos campos das teorias da arte ou mesmo
da estética se apresentaram, em alguns de seus tópicos, como componentes analíticos que
auxiliaram, em muito, no processo de investigação. Porém, antes de uma detenção exclusiva
do objeto em certos marcos metodológicos, predominantemente semióticos ou estéticos, que
“encerraria” a observação sobre o fenômeno em seus pressupostos, entendemos que firmar
certos parâmetros deveria ser algo colocado como uma reivindicação do próprio objeto
naquilo que ele apresenta como um problema de pesquisa; como uma questão de investigação
que necessita mobilizar certas vertentes que se complementam nesta sua relação entre um
motivo e a imagem, ou melhor, pelo seu modo de implicação em uma imagem. Isto nos
conduziu a uma leitura do objeto que se valeu de noções consideradas complementares entre
os ramos dos estudos sobre imagem.
O nosso esforço se detém, então, em enfocar os aspectos de formação entre os elementos
compositivos de uma imagem e suas operações discursivas (que convocam um tipo de
experiência e um posicionamento do olhar). Portanto, os aspectos formais que observamos
nas imagens não podem ser considerados “fiéis” a alguma abordagem metodológica em
particular, pois entendemos que eles podem ser apreendidos tanto numa perspectiva
semiótica, perceptualista, simbolista, enfim, onde se possam notar os pontos que rendam
contrapartidas possíveis à exploração do material de análise. E por isso é necessário
3
Consideramos que há uma produção relativamente intensa acerca dos processos de produção de sentido ligados
ao campo da comunicação visual que vimos, principalmente, nas investigações com certa inflexão da escola
greimesiana, que conta com os elementos plásticos como necessários à constituição de um valor propriamente
semântico da imagem.
17
estabelecer, de início, que a proposta de uma investigação sobre os aspectos estilísticos do
grotesco no discurso publicitário reivindica certas posições acerca do tipo de abordagem que
fazemos sobre a imagem.
Em primeiro lugar, reconhecemos que há um esforço maior em compreender os recursos
próprios à imagem, que se constituem como centros de construção de sentido, ou seja, em sua
possibilidade de serem observados não apenas como recursos técnicos necessários, mas como
portadores de um valor discursivo a partir de seus modos de organização ou articulação; e, em
segundo lugar, estabelecemos que a análise trata a imagem como elemento um tanto
desvinculado de uma ordem propriamente lingüística ou enunciativa, típica de certas vertentes
semiológicas muito aplicada ao estudo das imagens publicitárias, como aquelas que vimos
desde Barthes em seu ensaio “A retórica da imagem” (1964). A compreensão de uma
estrutura organizada na qual a imagem publicitária se manifesta como fato de discurso, nos
favorece, do ponto de vista de uma abordagem metodologicamente mais fecunda, a que
desenvolvamos um modo de analisar estes materiais, que caracteriza este tipo de regime
discursivo da imagem, como uma questão de interpretação de certos de seus operadores
icônicos e plásticos. Portanto, do ponto de vista da especificação dos aspectos de uma
estilística grotesca na imagem publicitária, isso implicará em uma valorização do plano das
formas da expressão das mensagens visuais.
No que diz respeito ao tipo de abordagem que fazemos da imagem, precisamos entender que,
em certa medida, consta de um outro ponto relevante em nossa pesquisa e que não é muito
comum como recorrência metodológica (se pudermos indicá-la assim) nos estudos sobre
imagem fotográfica. Para que nos detenhamos sobre como as imagens se investem de um
valor discursivo, sobre como elas são capazes de nos dizer algo, de construir certos mundos,
precisamos compreender a adoção de uma perspectiva em relação à análise das imagens
adotada aqui - a de que elas funcionam como “textos” visuais.
Compartilhando da noção de texto proposta por Umberto Eco (1984)
4
, entendemos que a
imagem pode ser observada como esta espécie de composto (conjunto) de elementos
articulados de modo a solicitar do espectador um modo próprio de ser “lido”. Portanto, a
imagem funcionaria como este “dispositivo” de leitura com suas instruções dadas para uma
4
ECO, Umberto. Conceito de texto. São Paulo: Edusp, 1984.
18
efetivação na recepção; partindo, do pressuposto do espectador como um tipo de “leitor-
modelo”, ou seja, aquele capaz de corresponder a certos “apelos” que são colocados no texto
com base em suas habilidades inferenciais e em certo “repertório” cultural. De modo que,
quando a publicidade dispõe de uma imagem grotesca já está implicada aí uma série de
“condições de leitura” para que seja reconhecida como tal, não pensando em um espectador
empírico, em certo indivíduo, mas em uma espécie de “modelo” de leitor.
Porém, adotar esta perspectiva nos faz pensar, por um lado, o que se requisita do público
destas imagens e, por outro lado, nos dispensa, em certo ponto de ter que firmar a base de uma
perspectiva analítica da imagem como estando necessariamente coligada às relações
contextuais que conduzem para uma vertente mais sociológica, histórica ou antropológica, já
que entendemos que a própria imagem faz suas solicitações ao espectador. No caso do
público, podemos afirmar que há uma necessária relação entre espectador e imagem regida
por um tipo de “cooperação” deste último, mas que se institui na base de um
“convencimento” ou de uma persuasão proposta pela própria mensagem. O espectador de uma
imagem publicitária é convocado nesta participação apenas para ser convencido pelas
operações textuais (visuais) que se colocam diante dele, antes, deve “aceitar” a proposta que
lhe é dada, naquilo que concebemos que participar seja tomado como um modo específico de
olhar; ou melhor, da imagem que se constrói para um tipo de olhar: aquele que exige um
posicionamento para a imagem bem como aquele capaz de “preencher” (a partir de sua
experiência) as lacunas
5
deixadas propositalmente na imagem.
No caso de uma imagem publicitária grotesca (como vimos na Figura 1), podemos notar que
há a proposição de um posicionamento específico do espectador para olhar este tipo de
imagem, pois a exploração de um motivo grotesco envolve tanto sua representação tópica
quanto seu modo de ser construído para a recepção. Portanto, os elementos se conformam na
imagem de modo a “indexar” o olhar do espectador no intuito de firmar uma espécie de
interação com ele, onde um tipo de “imaginário de comunicação” proposto pela mensagem
publicitária se estabelece. Assim, o leitor-modelo destas imagens é aquele que se posiciona de
acordo com um modo de ver (participar) que lhe é requisitado. No caso da compreensão
5
No tipo de abordagem que Gombrich faz acerca dos argumentos psicológicos nas análises de representações
pictóricas, ele comenta sobre a “capacidade projetiva” que o espectador tem para preencher certos espaços,
lacunas, ou mesmo identificar modelos, que são propostos na imagem como uma relação de complementaridade
necessária entre os dois pólos (imagem e espectador): GOMBRICH, Ernst Hans. Arte e ilusão - um estudo da
psicologia da representação pictórica. Tradução Raul de Sá Barbosa. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
19
destas imagens publicitárias sob certa perspectiva, há uma relação com certos conhecimentos
adjacentes que são necessários ao procedimento de leitura destas mensagens (aqueles mais
ligados a um tipo de “repertório cultural” do espectador), mas isso não significa que seja
condição predominante para a análise chamar em causa certas questões de uma recepção
empírica ou mesmo que se deva compreender em um entorno sociocultural ou histórico para
explicar a aplicação de seu tema.
No que diz respeito ao material visual é importante esclarecer, ainda, que o reconhecimento
de um motivo grotesco não se resume aos seus aspectos figurativos (ligado ao semelhante),
não está sempre pautado sobre a exibição de corpos deformados, de pessoas mutiladas, de
animais asquerosos, mas pode estar representado (inscrito visualmente) apenas por certa
“sugestão” - ou referência - e menos na relação de uma estrita semelhança icônica. Porém,
pode ser um dado remetido a certos traços perceptuais que o espectador mobilizará de suas
experiências anteriores, e que pode se dar, por exemplo, pela instauração de um “clima”
grotesco ou pela conformação de um ambiente grotesco, e, neste caso, está muito mais ligado
aos seus aspectos de remissão a um esquema perceptivo, convencionado, do que à replicação
direta do seu motivo figurativo em todos os seus aspectos morfológicos.
Estas noções são dadas ao espectador por inúmeros outros fatores e ocasiões, compondo uma
espécie de “gramaticalidade” possível a partir dos aspectos que se sedimentam nos “contextos
mentais” do espectador (compondo seus “esquemas mentais”
6
, conforme Gombrich aponta).
Portanto, não é exclusivo do seu contato com um equivalente figurativo do grotesco para
reconhecer que um outro seja da mesma ordem, mas ele pode estar reportado apenas por
certas implicações perceptivas ou convencionais
7
que sejam características (correlacionadas
6
O que Gombrich aponta como “esquemas mentais” é entendido como níveis de expectativas do receptor. Para
ele, mesmo as experiências mais prosaicas constituem uma espécie de repertório de convenções (culturais,
sociais, entre outros) ao qual o indivíduo está sempre recorrendo e baseando suas expectativas; o mesmo ocorre
no que se refere às experiências com representações visuais. De modo que, ver uma imagem é sempre observá-la
a partir de certos modelos já experimentados, comparando com certas propriedades, certas lacunas também,
enfim.
7
É preciso pontuar aqui que observamos a relação entre convenção e percepção como dois elementos
complementares das teorias estéticas advindas das correntes (aparentemente opostas) convencionalista (própria
ao tratamento semiótico) e perceptualista (expressiva dos estudos da percepção na representação pictórica,
caracterizada, sobretudo, em Ernst Gombrich), tal qual nos propõe Dominic Lopes em sua obra Understanding
Pictures (1996). Para Lopes, a questão da figuração que toma a semelhança como base de sua estrutura deve ser
superada (ou relativizada), pois para o autor, uma análise mais fecunda deste problema precisaria considerar os
elementos internos a partir de seus aspectos, ou seja, admitindo que seus caracteres apresentam valores
semânticos, o que faz reivindicar para eles, certa autonomia da figuração baseada unicamente na semelhança. Do
mesmo modo, o grotesco nas imagens não vai se caracterizar apenas por uma representação figurativa
semelhante à outra, mas pode se dar por conta da recorrência de certos aspectos plásticos, como a luz, por
20
com um esquema de traços eletivos do espectador) e que podem ser provenientes de inúmeras
outras circunstâncias e objetos.
Do mesmo modo, pouco nos diz o conhecimento das condições de produção de uma imagem;
se seus personagens são vitimas de fato ou se são atores, quem fotografou, se há manipulação
da imagem ou se são dados do real, enfim, toda esta gama de questões que predomina nos
estudos sobre imagem fotográfica em torno de semelhança e referente. Nossa pretensão é
preservar as configurações do grotesco e isso implica, basicamente, em uma valorização de
dois níveis de articulação da imagem: o motivo e o modo como ele é representado ou
“agenciado” (a partir de seus recursos figurativos e propriedades plástico-icônicas) para a
instância receptiva, sem qualquer menção ao verídico ou factual.
Resta ainda explicar de que forma tratamos a experiência com este tipo de imagens como
pertencente à ordem de um discurso. De que modo compreendemos que o defrontar-se com
imagens grotescas está baseado em uma determinante discursiva. Em primeiro lugar, esta
colocação nos faz desenvolver algumas questões necessárias à compreensão do modo como
pensamos a própria imagem (e seus elementos) neste encadeamento discursivo, sem
necessariamente remeter a análise a outras instâncias que não àquela que privilegia seu
próprio material. Reconhecemos que a experiência (o defrontar-se) com uma imagem não é
um dado exclusivamente singular, mas está posta em implicações com outras imagens, com
outras situações, contextos, leituras; e, deste modo, não há um “olhar inocente”. Assim, não se
constitui como uma experiência singular ou precisamente em uma relação estética “pura”,
independente, pois já se coloca como integrante de várias releituras dadas por regimes
textuais variados.
No nosso caso, a exploração do motivo grotesco não é um dado exclusivo da publicidade, mas
ele mesmo já é proveniente de outras apropriações narrativas, retóricas, pictóricas e, neste
sentido, podemos dizer que a imagem não se furta a uma relação estética, mas apresenta
também um valor comunicacional, que não se pode rechaçar, exatamente porque está coligada
num encadeamento discursivo. Portanto, o trabalho de compreensão de imagens em um
exemplo, na configuração de um ambiente grotesco, sem qualquer menção a corpos despedaçados, mutilados,
entre outros. Deste modo, seria impreciso considerar o objeto de análise apenas em sua condição convencional
ou puramente perceptiva, mas a própria noção de aspecto, em Lopes, sugere integrar o conjunto destes dois
modos de compreensão; daí sua noção de “aspectualidade” ser um elemento norteador para a observação de um
regime discursivo, neste texto, o publicitário, retórico.
21
regime discursivo como o retórico (publicitário) requer o reconhecimento destas relações
como um a priori, um pressuposto. Na publicidade, notar uma imagem grotesca é notá-la em
sua intertextualidade, sob apropriações, ou ainda, em seu caráter “semiogenético”
8
,
reportativo a outro tema ou estrutura visual, como classifica Fresnault-Deruelle (2006).
Para o autor, faz parte da leitura de imagens reconhecer que umas se reportam a outras, nem
sempre em sua integralidade, mas, por vezes, sob aspectos, e esta transitoriedade pode se dar,
inclusive, sob as variações dos meios, dos veículos. É como se pudéssemos formar uma
cadeia familiar de imagens, e que, ao mesmo tempo, nos faz reconhecer que as imagens
atendem a certos princípios de usos e funções; algo que ele classifica como iconographie
savante. Mas que, nem por isso, o estudo tende a buscar um quadro reportativo de uma
imagem à outra, como se fosse uma grade comparativa, iconológica antes, tenta se firmar na
detenção dos seus aspectos, daqueles elementos que podem ser reconhecidos como referência
ao grotesco; uma idéia de ação, um gesto, uma expressão. No entanto, Fresnault ainda nos
indica que os elementos de uma mesma imagem devem ser vistos em uma relação própria
entre si para constituir um sentido, como uma espécie de sinais visuais que portam valores
informativos, mas que só são válidos dentro de uma dada organização de uma imagem e que
também conformam o modo como devem ser vistas. Daí observarmos que, de acordo com o
tipo de grotesco dado numa imagem (conforme sua modalidade), há um modo específico de
recepção, de posicionamento do olhar do espectador para que a imagem “funcione”. Na
análise dos materiais visuais, a recorrência de aspectos notados na publicidade está, de certo
modo, imbuída de referências às imagens grotescas muito conhecidas no campo da pintura,
sobretudo, e que se notabilizaram ao longo do tempo, seja pelo emprego de um tipo de luz (ou
sombra), seja pelo esquema figurativo.
Na tentativa de dar conta de todas estas questões que comentamos até aqui, o texto
dissertativo contempla, então, duas partes. No primeiro capítulo tratamos do grotesco
enquanto um motivo visual, observando, sobretudo, o modo como repercute nos campos da
pintura e da literatura, principalmente, a fim de colher dados que possam nos indicar quais os
8
Fresnault-Deruelle toma o conceito de semiogênese do mesmo modo como foi cunhado por Michel Tardy. Um
aprofundamento desta noção pode ser encontrado em FRESNAULT-DERUELLE, Pierre. Pour l’analyse des
images. Disponível no site do Musée Critique de la Photographie de la Sorbonne <http://cri-image.univ-
paris1.fr/accueil.html.> Acesso em 26 de outubro de 2006.
22
elementos predominantes que se constituíram nas diversas configurações para
compreendermos como ele se estabelece na comunicação mediática contemporânea.
Pôr o grotesco como um motivo de representações nos permite notar certas variações no
tratamento dos elementos propriamente internos das imagens e que nos indicam
especificidades no tipo de composição figurativa, em seus traços icônicos e plásticos. De
modo que um exemplar deste percurso nos é dado pela observação do tema em dois
momentos precisos; um típico representante da Renascença, pelas imagens de Pieter
Brueghel, sobretudo, que trabalhava o motivo na base de uma exploração figurativa,
marcadamente no estilo de suas gravuras, e, que mantém como aspecto principal do grotesco
a antropomorfização; isto é, a mistura de dois domínios distintos; o inanimado e o humano. E
também de outro representante do barroco espanhol, Francisco de Goya, que se distingue,
sobretudo, pelo recurso de um tratamento plástico ao grotesco dado através da luminosidade,
principalmente.
Ao contrário de Brueghel, em Goya, o grotesco se manifesta para além de uma figuratividade
calcada na exibição dos personagens antropomorfizados, mas culmina em um componente
plástico; o que nos permite alargar um pouco mais a extensão de uma representação do
motivo, pois notamos, um pouco mais adiante, que o grotesco pode ser expresso pela
configuração de um ambiente específico e que é dado pelo tipo de tratamento da luz. Além de
estabelecer um conjunto de aspectos que participam das configurações grotescas em
diferentes momentos, como a um “repertório visual”, a análise destes pontos nos possibilita
ver como estes aspectos da imagem se colocam como recursos discursivos, implicando, por
sua vez, as condições de recepção.
No segundo capítulo, a análise contempla os materiais visuais, as peças publicitárias, que
trazem o motivo grotesco, mas desta vez, destacando e explicando como este motivo integra
três modalidades expressivas como categorias de análise. Em uma delas, vemos que o
grotesco é assumido pela personificação, como uma configuração que se instaura a partir da
atribuição de caracteres plásticos e expressivos de humanos aos objetos inanimados (e vice
versa), no qual nota-se uma evidência maior que é dada pela própria planificação fotográfica,
que põe uma relação de “equivalência” entre expressão e contexto das personagens, muitas
vezes criando uma espécie de situação. Cria-se uma impressão de unicidade ou de integração
entre os personagens justapostos em contextos, em situações visuais; o que constrói um
23
mundo ficcional que é ao mesmo tempo lúdico e estranho, como estratégia das peças. Na
segunda categoria, vemos a constituição de uma ambiência plástica do grotesco, que se
inscreve de acordo com o modo como o tratamento luminoso é empregado no espaço de cena
da imagem, onde os personagens também são colocados em certos cenários e situações que se
constróem para um olhar de esguelha, furtivo. E, em uma terceira categoria, o caráter
testemunhal do grotesco, que se manifesta pela exibição de seus personagens (ou parte deles)
como vítimas de algum tipo de fatalidade (moribundos, acidentados, bêbados, espancados), no
qual, o que ressalta o caráter grotesco é sua própria condição, que nos parece presenciada ou
testemunhada, através da imagem.
Não obstante, em todas as análises, demarcamos a repercussão que a organização destes
elementos tem na construção (ou na indexação) do olhar do espectador. De modo que,
conforme o tipo de representação fica evidenciado, nas imagens, que as peças se colocam
como uma espécie de jogo ficcional, cuja estratégia consiste em evocar o espectador para o
espaço de cena da imagem ou ainda, noutros casos, os personagens é que parecem se projetar
para fora dos limites do plano e se prostrarem à nossa frente. Tanto em um como noutro, a
impressão de interação, ou mesmo diálogo, é provocada. Portanto, para além de um efeito,
nos detemos no valor discursivo, retórico e propriamente comunicacional da imagem
publicitária.
Em todas as categorias analisadas, uma série de elementos salta à compreensão da estrutura
representativa do motivo grotesco, não só as propriedades internas das imagens: luz,
enquadramento, composição dos planos, personagens, gestos, espaço, etc., mas nosso esforço
se põe na detenção destes elementos como componentes dos aspectos estilísticos do grotesco,
seja através da personificação, da ambiência ou do testemunho. Em boa medida, buscamos
compreender como se dá a articulação necessária destes elementos todos para a produção dos
tipos de configuração do grotesco na publicidade e que caracterizam parte substancial dos
materiais visuais dentro de um dos campos da comunicação mediática em nossos dias.
24
1. O GROTESCO COMO UM MOTIVO VISUAL
Tomado em sua concepção de origem como um tipo de arte ornamental encontrado em Roma
no século XV, o grotesco se caracterizava pela desproporção das formas e pela mistura de
objetos, plantas, animais e corpos humanos
9
. Este tipo de arte (também denominado de
arabesco) é tomado de uma herança artística da antiguidade greco-romana, cuja referência
mais recorrente é aquela apropriada à denominação que advém do italiano grotta, conforme
sua descoberta em ruínas e cavernas em fins do século XV. Kayser designa o grotesco numa
relação muito estrita a este tipo de arte decorativa que misturava elementos vivos e
inanimados, mas enfatizando sua composição numa distorção de formas, da quebra de uma
simetria ou de uma ordem natural, mas que era lúdico e, sobretudo sinistro, estranho
10
.
Desde o marco de sua descoberta (em fins do século XV) até hoje, o grotesco adquiriu outros
contornos característicos e foi difundido entre as diferentes formas artísticas. As artes visuais,
a literatura, o teatro, se utilizaram do tema do grotesco como modalidade expressiva para
indicar, sobretudo, as angústias sociais que repercutiam nos estados contraditórios dos artistas
e no seu modo de apreensão da realidade. Porém, todo o esforço de compreender o grotesco,
ao longo de sua passagem histórica pelas artes, sempre incidiu muito mais na interpretação
relacionada às propriedades estéticas, visto como uma categoria estética, mas ainda assim nos
ofereceu poucas contrapartidas que pudessem indicar pistas para entender o grotesco como
um conceito ou como um modo de representação visual. Os estudos que colocaram o grotesco
como um objeto de investigação sempre tenderam para o campo da psicanálise, da estética ou
mesmo da sociologia, todavia, pouco favoreceram um olhar mais apurado em direção à
estruturação do objeto em seus aspectos representativos.
O próprio termo “grotesco” padeceu, durante muito tempo, de uma determinação teórica que
pudesse classificar o que se incluía em seu domínio. A priori, toda imagem que representava
uma mistura entre elementos de naturezas distintas (animados e inanimados) poderia entrar no
9
Mais tarde o uso deste estilo nas artes plásticas é tomado pela literatura alemã e francesa, principalmente, que
difunde o grotesco em suas obras ao se referir à antropomorfização como característica primordial, mas
permitindo uma série de outras atribuições complementares ao vocábulo. Uma recorrência aos aspectos
históricos desta arte e suas apropriações pode ser encontrada mais detalhadamente em KAYSER: O grotesco -
configuração na pintura e na literatura. São Paulo: Perspectiva, 2003.
10
Esta mesma concepção do grotesco baseada na ruptura do simétrico e nas desproporções das formas era
considerada por Bakhtin, porém a relação com seus efeitos era entendida de modo diferente de Kayser. Em
Bakhtin o grotesco era lúdico, mas carnavalesco, jocoso, criativo, natural e não sinistro ou estranho.
Aprofundaremos estas comparações entre os dois teóricos um pouco mais adiante.
25
rol do grotesco do mesmo modo seria assim classificado qualquer tipo de imagem que
provocasse abjeção ou espanto. Em sua obra Modern art and the grotesque (2003), Frances
Connelly, indica que a confusão conceitual do termo se explica, em grande parte, pelo
surgimento dos vários estilos de expressão artísticos que assimilaram o grotesco em sua
estrutura e que, ao mesmo tempo, o reinventava sob os rótulos do romantismo, simbolismo,
expressionismo, surrealismo. No entanto, estas imagens sempre eram vistas como uma livre
fantasia do artista, sem qualquer tipo de relação com uma outra leitura de mundo ou
possibilidade de ruptura com os cânones artísticos da época, pois eram sempre apartadas e
reduzidas ao cômico popular de baixa qualidade.
Muniz Sodré (2002) chega a reportar-se ao grotesco como um modo de representação
concernente ao bathos, uma “figura do rebaixamento” tomada da retórica clássica, que se
constitui pela mistura de elementos de naturezas distintas (animais, objetos e corpos
humanos), todos juntos em uma espécie de mutação que converge para o deslocamento tanto
das convenções de representação figurativa quanto dos valores estéticos e culturais opostos
(do refinado e do grosseiro, do superior e inferior, do belo e monstruoso, do trágico e do
cômico). As proporções de tamanho, forma e contornos são distorcidas, disformes e resultam
numa composição bastante peculiar do ponto de vista da estrutura de sua representação.
No que se refere a um efeito estético, o riso, o espanto, a abjeção e a repulsa conformam uma
espécie de quadro possível de reações. De modo geral, a representação grotesca é composta
por figurações estranhas e peculiares, seja observada em sua relação com a forma, seja pela
relação com seu efeito, e foi justamente esta “peculiaridade” que expandiu a noção de
grotesco para além dos domínios de uma classificação artística, entretanto também o conduziu
ao uso e apropriação na linguagem cotidiana, como um termo vulgar, geralmente imbuído de
juízos de valor. Porém, ao mesmo tempo em que o grotesco expandia seus domínios,
igualmente alargava seus limites de significação teórica, e deste modo muitas coisas poderiam
ser consideradas grotescas.
Nosso desafio se coloca, inicialmente, na seguinte questão: como, então, poderíamos
apreender o grotesco como um tipo de fenômeno presente na comunicação mediática
observando mais atentamente sua estrutura, tomando-o enquanto uma modalidade expressiva,
como um motivo visual?. Ou ainda, como analisá-lo enquanto um motivo apropriado por um
regime textual (como o publicitário), mas um tanto apartado dos pressupostos estéticos ou
26
axiológicos predominantes?. Se entendermos que o grotesco se manifesta para além de uma
aparência disforme que sugere espanto ou repulsa, resta-nos percorrer os aspectos que o
constituem enquanto uma forma de expressão, e ainda, compreender como pode funcionar
enquanto um “operador” textual, num tipo de regime discursivo das imagens. A partir destas
inquietações procuramos estabelecer aqui uma delimitação possível do grotesco enquanto um
tema visual e como foi configurado em certas modalidades expressivas, atentando para certos
aspectos representativos (figurativos ou plásticos), e, em seguida, buscamos verificar as
apropriações que a publicidade faz destes aspectos e que conformam visualmente o grotesco
dentro de uma estrutura discursiva.
Portanto, no primeiro momento desta investigação, tentamos localizar as características do
grotesco a partir de algumas obras que trabalharam sua temática em modos diferentes de
representação. Pinturas, gravuras e caricaturas compuseram uma base própria do estilo e
muitas de suas variações repercutem em uma “sedimentação” de certos “aspectos”
11
do
grotesco apropriados por outros domínios, como a publicidade, por exemplo. Por isso
precisamos resgatar alguns destes aspectos que nos permitam qualificar ou denominar o
grotesco para um reconhecimento de leitura nestas obras visuais. Se partirmos do pressuposto
de que a experiência visual constitui um fator decisivo para reconhecer um motivo através dos
seus aspectos referenciais (no caso, o grotesco), precisamos buscar alguns dos seus modos já
representados por outros meios, ao longo do tempo, necessários a esta identificação. Não
tomando a semelhança icônica como o único recurso necessário à constituição do motivo
específico, mas reconhecendo outros elementos como possíveis constituintes dos seus
aspectos, isto é, uma imagem grotesca não precisa ser reconhecida em todos os seus níveis de
figuração icônica, todavia pode ser assimilada pela articulação de certos elementos internos.
Para compreender melhor esta estrutura baseada na conformação de determinados “aspectos”
que nos permitem identificar um motivo, nos valemos da distinção que Dominic Lopes (1996)
faz de dois níveis fundamentais de toda imagem, uma vez que a representação visual é
formada por duas categorias que estão sempre correlacionadas - o motivo, como um tipo de
expressão ligado à realidade, uma “entidade do mundo real” ao qual a representação se
reporta, no nosso caso, o grotesco constitui este motivo (ou tema); e o conteúdo, relativo às
11
Empregamos este termo a partir das considerações de Dominic Lopes (1996), onde “aspecto” integra a relação
que existe entre um tema visual e a organização dos seus elementos internos. O conceito de aspecto é visto não
como uma simples aparência externa, um semblante apenas, mas pressupõe uma base formada pela relação entre
os elementos que estruturam uma imagem; elementos que podem ser tanto perceptivos quanto convencionais.
27
propriedades internas da imagem como cor, linha, luz, forma, ou seja, são os elementos que
conformam a produção da imagem propriamente dita ou ainda, integram a categoria do
“como” uma imagem se exibe.
Ora, a separação destes dois níveis da imagem nos permite observar tanto que um mesmo
tema pode ser constituído por combinações diferenciadas de elementos internos quanto
podemos notar que a articulação de certos elementos pode ser mais favorável à formação do
tema que outro. Não obstante, já que um motivo visual se firma na base de uma organização
própria de elementos internos, isto nos permite dizer que estes elementos participam do
reconhecimento de um valor semântico que a imagem nos apresente. A questão da
semelhança icônica não justificaria então, nem este valor semântico e nem o reconhecimento
do motivo por um receptor. Assim, é possível reconhecer uma imagem grotesca a partir de
certas relações, não com uma outra imagem grotesca igual e já vista (baseada estritamente
numa semelhança icônica do motivo), mas com modelos perceptuais ou convencionais que
foram resguardados a partir de outros contatos, das experiências do espectador, ou seja, de
certos “aspectos” que foram assimilados em outros contextos.
Outro ponto complementar a isto é recobrar que o grotesco participa como um “dispositivo
textual”, de leitura, segundo Eco. Graham Clarke, no início do seu texto The photograph
(1997), questiona o modo como lemos fotografias ou ainda em que sentido nos referimos à
noção de “olhar” fotos como um simples ato de reconhecimento. Para ele, o equívoco está em
atribuirmos o ato de ver como um reconhecimento passivo e não nos darmos conta de que o
ato constitui, de fato, uma leitura. Se a fotografia, portanto, é um texto visual, logo admitimos
que seu material (assim como qualquer outro texto) envolve relações e uma série de
implicações, ambigüidades e problemáticas que se põem entre os seus elementos constitutivos
entre si, seus códigos, seus níveis sintáticos e gramaticais, entre outros textos referenciais e
também com o leitor/espectador, enfim, em uma estrutura discursiva.
É partindo da observação destes elementos internos (do conteúdo) que indicamos alguns dos
aspectos de configuração do grotesco em seus modos de representação na publicidade.
Observar um motivo visual não se restringe, nesta perspectiva, em notar que o grotesco
produz certa reação afetiva apenas, mas identificar e compreender que há uma organização
dos seus elementos internos que o estrutura, que o constrói, que o conforma enquanto um
tema visual, assim há uma relação entre todas estas condicionantes que perpassam o campo da
28
produção do sentido propriamente dito: a organização interna dos elementos, o tipo de
representação visual, o meio expressivo. No entanto, para esta análise do motivo, não nos
interessa rever uma tradição histórica do grotesco, mas apenas recorrer a estes traços
característicos que conseguiram delinear suas modalidades a partir de certo aporte teórico que
nos permita indicar, com mais precisão, o objeto que tratamos.
Do contexto da crítica literária até alcançar autores contemporâneos buscamos as principais
caracterizações atribuídas ao grotesco, não no intuito de resgatá-lo em seus momentos
históricos, mas de observar a repercussão do motivo em algumas de suas modalidades
expressivas; como incide e como modula o grotesco, enquanto objeto, tomado agora pelo
campo comunicacional. A proposta de observar o grotesco no campo das artes visuais,
entretanto, não nos coloca com o objetivo de fazer análise de obras de arte (até porque muitos
dos seus elementos são negligenciados aqui, uma vez que seriam mais próprios aos estudos do
campo artístico), porém apenas compreender como certos aspectos da estrutura do grotesco se
põem em algumas destas imagens e que mais tarde são apropriados por outros campos. A
pertinência de observar o grotesco na crítica literária até à comunicação contemporânea é
justamente para tentar compreendê-lo a partir dos aspectos que foram sedimentados nos
diversos campos e como são recorrentes em certas manifestações atuais da cultura mediática.
Deste modo, destacamos, inicialmente, alguns traços característicos do grotesco em certas
obras de artistas pertencentes a diferentes fases estilísticas no intuito de esboçar uma espécie
de esquema que nos apresente seus aspectos recorrentes e suas variações. Partindo do
pressuposto de que a publicidade busca certas caracterizações já convencionadas do grotesco
ao longo do tempo e de seus deslocamentos de estilo artístico para configurá-lo como
modalidade expressiva, certamente mencionar alguns destes elementos em um quadro
comparativo nos permitirá analisar, com maior clareza, suas relações.
29
1.1 CARACTERIZAÇÕES DO MOTIVO GROTESCO: DO FIGURATIVO AO PLÁSTICO
A obra de Wolfgang Kayser, O grotesco (2003), nos apresenta uma perspectiva da figuração
grotesca em certas pinturas de Pieter Brueghel
12
como um típico representante deste estilo na
arte da Renascença
13
. Reconhecendo, a priori, as implicações que a célebre obra “O inferno
milenar”, de Bosch, repercutiu nas imagens de Brueghel, Kayser atribui a importância da sua
fidelidade ao estilo ponto suficiente para considerar sua indicação como um exemplar
legítimo de um modo de configuração grotesco.
Em duas de suas obras
14
, Os provérbios holandeses (Figura 2) e Gret, a louca, (Figura 3)
vemos que Brueghel representa o grotesco, figurativamente, mantendo certos traços básicos
do seu tipo como arte ornamental, isto é, privilegiando as distorções proporcionais dos
objetos, mas, principalmente, ressaltando a antropomorfização como elemento fundamental
nas imagens. No entanto, apesar da reconhecida repercussão das obras de Bosch em Brueghel,
se podemos indicar um ponto que os diferenciava (sem querer considerar uma oposição
expressa de um a outro), é o de que Brueghel nos parece retratar o grotesco fora de um
ambiente quimérico, fantástico, como resultante de uma livre fantasia do artista (como
mencionado anteriormente) antes, esboçava-o em ambientes familiares, típicos da vida
campestre da época.
Ainda que uma série de elementos recorrentes (objetos humanizados, corpos deformados,
pessoas desarticuladas, monstros) fosse observada em ambos, o que define um ponto
relevante nas obras de Brueghel, e destacado por Kayser, é a aproximação do tema visual à
vida cotidiana, onde a realidade do mundo é vista “com frio interesse”. Um pouco mais
adiante, vamos observar que esta mesma forma de apropriação de um motivo familiar, trivial,
passa a ser representado (figurativamente) como uma configuração grotesca, como se fosse
12
Kayser chama a atenção para os desentendimentos até então observados na autoria de algumas obras, sem
distinguir precisamente a que Brueghel se refere, pois alguns denominam Brueghel, o Velho (1525/30-1569)
para diferenciar do Brueghel, o jovem (1564-1638). Neste caso, também preferimos não discutir a legitimidade
autoral das obras.
13
Classificação temporal do estilo segundo Gombrich, que definiu a Renascença entre 1350 e 1650. In:
GOMBRICH, Ernest H. A história da arte. Tradução Álvaro Cabral. 16a. Edição. Rio de Janeiro: LTC Editora,
1999. p.660.
14
Estas obras representam exemplos clássicos do tipo de arte baseado em temas do cotidiano denominados
peinture de genre, que remonta ao estilo da arte setentrional e quatrocentista. Brueghel foi considerado o maior
dos mestres flamengos do genre, segundo Gombrich (1999, p.381).
30
feita uma “releitura” de um tema visual cotidiano
15
. De todo modo, o importante é notar que o
grotesco deixa de ser explorado como tema relacionado ao sobrenatural, com sentido místico,
fantasmagórico, mas parte de outro tipo de representação temática que o redefine como outra
“versão de mundo”, como outra possibilidade de leitura do mundo e das cenas cotidianas.
Vejamos a imagem a seguir (Figura 2).
Figura 2: Pintura 1 – Os provérbios holandeses, 1559. Óleo sobre painel de madeira,117.5 x 163.5 cm. Pieter
Brueghel.
Fonte: Staatliche Museu, Berlim, Alemanha.
Em um primeiro contato vemos a representação como uma cena, um recorte de um momento
trivial do dia daquelas pessoas, que parecem executar suas tarefas sob certo ritmo, cada qual
em sua ação. No entanto, na medida em que percorremos a imagem notamos certas
peculiaridades em cada um dos seus integrantes: todos são vistos em ações contrastantes para
uma cena corriqueira - uma mulher estrangula um homem no canto inferior esquerdo da
imagem, enquanto um homem atira a própria cabeça contra um muro, há pessoas
dependuradas em janelas e telhados, uma mulher parece cobrir alguém com um manto azul
com cabeça de animal, outro enterra um animal; há uma desordem predominante no tema que
nos é representada. O título da obra nos esclarece que a aparente desordem da pintura trata
dos provérbios cristãos que são figurados pelos afazeres de seus personagens como
componentes de um mundo às avessas.
15
Este ponto da relação entre o grotesco e o familiar será tópico da exploração do discurso visual da publicidade,
um pouco mais adiante.
31
O caos e a desordem representados fazem com que os personagens sejam considerados em
sua loucura e, ao invés de uma típica representação cristã, Brueghel oferece um fragmento da
realidade vulgar. A mudança de cenário que diferencia Brueghel de Bosch não é apenas um
elemento que os distancia, mas a representação de uma cena como a visão de um ambiente
prosaico da época. Em certa medida é uma espécie de leitura do grotesco numa outra ordem
conceitual, menos ligada aos moldes tradicionais que o relaciona ao místico, ao sobrenatural,
ao quimérico, ao infernal (como em Bosch), contudo aproximando-a do dia a dia e
configurando um tipo de grotesco mais “realista”, mais indicado a uma “cotidianidade” do
espectador, dado o ambiente familiar.
Neste caso, a própria relação entre título e imagem reitera uma idéia de extensão (ou talvez de
tradução) entre as ações do dizer e do fazer próprias da época. Na imagem, somos convidados
a contemplar, por uma visão panorâmica, num “plano geral”, as ações que se desenvolvem
alheias ao espectador, e este modo de dispor amplamente os motivos visuais poderia ser visto
como ponto de aproximação do grotesco nos estilos de Bosch e Brueghel. Cada personagem
encontra-se imerso em seu afazer, ignorando completamente a presença de um espectador.
A construção visual dá-se como se o objetivo fosse apresentá-lo a um olhar do grotesco sob
certa perspectiva, fazendo referência aos seus ambientes e cenas rotineiras: o trabalho no
campo, os pastores, os camponeses, os animais do rebanho; entretanto, entre eles também
perambulam outros animais, objetos espalhados de modo aleatório e em uma espécie de
câmara localizada no centro da imagem, podemos ver um ser monstruoso prostrado na parede
e que parece ouvir um camponês ajoelhado a se confessar. Assim também alguns dos
personagens vistos mais próximos têm as feições estranhas como se fossem bonecos, dadas as
deformidades do rosto. Contudo, não notamos expressões emocionais propriamente, todavia
seus rostos parecem máscaras sem uma expressão fisionômica muito acentuada, sem uma
coordenação direta com as ações que executam; não expressam medo, pavor ou angústia, mas,
ocasionalmente, indiferença pela aparente desordem de seu mundo. Ao mesmo tempo em que
se remete a estas figuras triviais de época em suas atividades, Brueghel também parece se
referir, ironicamente, aos mesmos ambientes cristãos retratados na história sagrada. No
entanto, é este olhar satírico sobre o comum que gera um estranhamento.
Em geral, ou os temas eram retratados com solenidade e reverência cristã ou eram
apresentados como o tormento infernal do castigo, onde o grotesco estava relacionado à
32
ordem apocalíptica, diabólica. Porém, o tipo de grotesco em Brueghel passa a ser investido
por uma natureza satírica, mordaz, que atualiza uma leitura de mundo. E é este ponto que nos
interessa reter para uma repercussão de um modo como o grotesco se estrutura visualmente na
publicidade: a ironia ou o sarcasmo com o qual uma cena trivial pode ser representada
constitui um dos pontos notáveis do motivo. Na publicidade, uma cena do cotidiano pode ser
construída de modo grotesco com base na mesma estratégia que vimos ao descrever uma
imagem de Brueghel: personagens aparentemente comuns, em cenários comuns, mas
executando ações controversas, desordenadas, que não condizem com a aparente trivialidade
da cena, pois o tema da imagem está baseado num jogo de inversão tipicamente irônico. O
que se constrói para ser visto “trivialmente” é tomado por um estranhamento em muitas das
peças publicitárias conforme o tipo de apelo da mensagem. Personagem, ambiente e atitude
são colocados inversamente ao que poderia ser uma representação natural do cotidiano, tal
qual a imagem da figura 2.
Figura 3: Pintura 2 Gret, a louca, 1563. Óleo sobre painel de madeira,117.4 x 162 cm. Pieter Brueghel.
Fonte: Museu Mayer van den Bergh, Antuérpia, Bélgica.
Já na figura 3, o grotesco se mostra um tanto diferente do exemplar anterior. Se em Bosch
16
parece haver a necessidade de um repertório simbólico próprio (cristão e mítico) que permite
tomar certas interpretações de sua obra, em Brueghel, o grotesco se desvela em um mundo
absolutamente comum. Ao contrário da presença de certos objetos, símbolos de alquimia ou
da cristandade em Bosch (bolas de vidro, meia lua, harpa), Brueghel se detém na
personificação dos objetos cotidianos. Kayser chega a mencionar que
16
Referência à notória obra de Hieronymus Bosch, O jardim das delícias terrenas, 1504 (Museu do Prado).
33
Brueghel não pinta visões ‘livres’ de mundos noturnos: seu traço peculiar é que, na
sua obra, o noturno, o inferno e o abismal – cuja riqueza de forma aprendera junto a
Bosch – irrompe em nosso mundo familiar e o põe fora dos eixos. (KAYSER:
2003, p.36).
E é este outro modo de retratar o grotesco que parece definir um marco decisivo quando
tratamos das apropriações deste tema em certas imagens, pois o grotesco é manifesto (e
reconhecido) aqui por um tipo de figuração típico, que lhe é próprio. Nesta outra imagem
(Figura 3), o diálogo com o estilo de uma figuratividade “boschiana” é mais evidente, mas
ainda assim podemos notar certos traços de organização e distribuição dos personagens
representados na paisagem que estão colocados de modo semelhante à imagem da figura 1.
Do mesmo modo, cada personagem permanece em sua ação, porém a “cena” parece
transcorrer de modo mais ameaçador para com eles e talvez por isso tal alheamento pareça
enfatizar aos atos desesperados de fuga do ambiente hostil.
O eco da figuratividade grotesca de Bosch preenche esta outra imagem (Figura 3) com
pedaços de corpos humanos misturados com partes de animais ou objetos, uma espécie de
caverna humanizada com olhos e uma boca escancarada, corpos caídos por todas as partes. De
todo modo, as imagens de Brueghel nos informam acerca de uma configuração grotesca que
não se delimita aos corpos figurados, mas também esboça um tipo de ambientação grotesco.
Por mais que nesta figura 3 haja uma tendência em aproximar o grotesco do sentido onírico,
do diabólico, do fantasioso, e menos relacionado ao modo de composição irônica do cotidiano
(como na Figura 2) segundo uma representação cristã, Brueghel nos indica uma possibilidade
de vermos o grotesco também pelo seu avesso, naquilo que supomos ser a composição ordeira
do cotidiano, como vimos na figura 2.
O que nos parece recorrente é que em ambos os exemplos, a figuração grotesca se baseia na
distorção como aspecto principal, seja pela inversão irônica de personagens e suas atitudes,
seja pela visualização de animados e inanimados como elementos mutantes. A mistura dos
dois domínios, a desproporção das formas, a distorção de um corpo com um objeto - tudo o
que é animado se mistura com o inanimado de modos diversos - constituem as características
do que temos denominado de figuração grotesca. É aqui que notamos a aparência na imagem
como o ponto importante neste tipo de grotesco, pois ele explora a apresentação direta, a
exibição da deformidade, da distorção, da agonia dos corpos. Apesar da aproximação com
Bosch fincada muito mais pela composição de um cenário, de um ambiente quimérico, nesta
34
imagem da figura 3, Brueghel explora esta exibição da personificação em várias
possibilidades. Se atentássemos minuciosamente para a imagem sublinharíamos cada uma
delas, porém esta ênfase na personificação dada na figura 3 aparece de modo similar em peças
publicitárias de nossa primeira categoria. Na próxima seção, veremos como a distorção das
formas e a antropomorfização tratada aqui se compõe como aspecto da personificação no
grotesco.
1.1.1 Goya e o elemento plástico na composição do grotesco
Podemos indicar traços característicos que redefinem o grotesco em um outro artista que
recorreu ao tema em muitos dos seus trabalhos: Francisco Goya, artista espanhol cuja obra
atravessa os séculos XVIII e XIX, e que, segundo Gombrich, se aproximava muito dos
mundos ficcionais retratados por um outro artista contemporâneo, William Hogarth. Gigantes,
monstros, cenas de massacre e violência marcaram um universo temático recorrente em suas
obras. Assim como Brueghel, sua leitura sarcástica da vida social da época conseguia
aproximar o espectador de certos ambientes familiares, ou ainda, reconhecer as imagens como
certas “cenas” dos fatos da história. No entanto, em algumas de suas imagens, Goya aludia
aos ambientes ressaltando uma diferença entre personagens e paisagens, e geralmente o que se
via era uma desproporção entre as paisagens urbanas e os gigantes e monstros que ali eram
retratados.
A presença de seres fantasmagóricos também compunha um elemento constante nas
representações do artista, mas o que nos ocorre na observação do grotesco em Goya não se
refere unicamente ao modo figurativo de suas representações, mas à articulação com
elementos plásticos, como a luz, sobretudo, para configurar um tipo de grotesco não mais
ligado exclusivamente ao modo de uma figuração tópica (de corpos deformados, pessoas
monstruosas, como vimos nas figuras 2 e 3), mas pela recorrência de uma ambientação
grotesca. Este aspecto em Goya é o da conformação de um “tom” sombrio que destaca suas
imagens e que não é atributo exclusivo de certos personagens que povoam seus temas, mas
que é proveniente, sobretudo, do tratamento da luz. Assim, à figuração grotesca soma-se um
componente plástico que conforma uma espécie de configuração semântica do grotesco, como
um dos aspectos principais que repercute em muitas das imagens grotescas recorrentes na
publicidade atualmente.
35
Talvez possamos até admitir que dentre os recursos da arte pictórica, Goya exaltou a luz para
atribuir-lhe também um valor dramático e expressivo. A luminosidade trabalhada por Goya
adquire um destaque próprio, define um jogo de contraste das cores, o contorno dos
personagens e também a indicação de uma profundidade; se estão próximos ou distantes do
olhar do espectador, sua indicação magnificada ou reduzida dos personagens, mas geralmente,
todos envoltos numa sombriedade (sobretudo quando retrata monstros) que conduz, ao
mesmo tempo, o olhar do espectador na configuração da imagem, pois sua luminosidade
determina uma espécie de “clima” grotesco. Portanto, o que nos interessa observar no
tratamento que as obras de Goya deram ao motivo do grotesco é tanto seu investimento num
componente plástico (a luminosidade) quanto sua capacidade de inserir, na construção da
imagem, um ponto implícito onde se localiza o olhar do espectador; recursos de estratégias
que são vistas no mesmo modo de tratamento do grotesco na imagem publicitária.
A luminosidade em Goya parece evocar o espectador para o “espaço de cena” da imagem,
induz a uma disposição e posicionamento do olhar; a distribuição de pontos de luz em certas
porções da imagem é que conduz este olhar do espectador para dentro, um tanto mais próximo
do objeto ou personagem. Tomemos o detalhe da pintura intitulada “Saturno devorando seus
filhos” (1820-1823) como exemplo (Figura 4).
Figura 4: Pintura 3 – Saturno devorando seus filhos, 1820-1823. Pintura mural a óleo, 146 x 81,4 cm. Francisco
Goya.
Fonte: Museu do Prado, Madrid, Espanha.
36
A criatura monstruosa é destacada em sua ação através do jogo de luz e sombra evidenciado
na imagem. A distribuição de luz que incide de cima para baixo destaca mais a porção
superior da criatura, possibilitando, assim, a ênfase na ação que executa: ela devora uma parte
do corpo de sua presa humana, de modo que toda a tensão se concentra na expressão deste
ato; uma boca escancarada, olhos esbugalhados, mãos cerradas que seguram de modo firme
como se puxasse para baixo o corpo estraçalhado. A luz exalta a porção superior da imagem,
focando mais intensamente a ação do monstro no momento em que transcorre. A imagem se
põe como uma impressão visual que se constitui para sugerir a “sensação” de uma violência
brutal com que se devora uma parte do corpo da presa. E, dada a desproporção entre o corpo
humano apreendido e o tamanho da criatura, podemos ver ainda uma parte de seus membros
inferiores dobrados, envolta em uma penumbra, indicando que o tamanho da besta é ainda
maior do que o que vemos.
Este jogo contrastante entre luz e sombra que define com rigor os destaques expressivos
(marcando uma fisionomia de violência e avidez no rosto da personagem, ao contrário do tipo
de feição do rosto visto em Brueghel) que se quer atribuir à imagem faz parte da composição
barroca e, sendo Goya um de seus representantes, não poderia se apartar de tal recurso.
Heinrich Wölfflin, em Conceitos fundamentais da história da arte, destacou estes recursos
aos quais observamos como componentes do aspecto plástico do grotesco. Primeiro, a nitidez
tratada como resultado da luminosidade intensa e uniforme que deveria revelar a perfeição de
linhas e contornos no estilo clássico passa a elemento secundário no barroco, pois a
composição pretende privilegiar a impressão visual do fortuito, do incompleto, do movimento
flagrado no instante representado. E, de fato, quando retomamos a imagem da figura 4,
mesmo em um detalhe, ela não indica uma composição para um olhar que se posiciona
comodamente a contemplar a imagem, mas um ver fugazmente uma parte do monstro que
parece surgir da escuridão, onde as condições de visibilidade são pouco definidas.
Outro ponto de observação é que a luminosidade constrói a noção de profundidade na
imagem, o que identificamos facilmente na figura 4, onde o monstro é destacado num
primeiro plano sob um fundo escuro, como se estivesse se projetando mais à frente, na
iminência de “sair” dos limites do quadro. Neste ponto, as observações de Wölfflin têm certa
repercussão em Arnheim quando comenta que a luz, também usada como estratégia de
sentido em Rembrandt, nos indica que apenas uma aproximação da imagem permite deter a
apreensão de um campo mais detalhado, de uma exploração mais detida dos objetos de cena
37
que compõe toda a imagem, como se fosse necessário “levar” o espectador ao espaço da
imagem. Os objetos vistos estão destacados pela luz sobre um fundo escuro, onde a luz incide
mais diretamente em alguns pontos que em outros, permitindo superar o “nível de claridade
média” dos demais objetos ao mesmo tempo atribuindo-lhes um destaque e projetando-os
para fora dos limites do obscuro, do local que os comportava.
Como Rembrandt obtém sua luminosidade vibrante? Já mencionei algumas das
condições perceptivas. Um objeto se apresenta luminoso não só em virtude de sua
capacidade absoluta, mas superando o nível de claridade média estabelecido por sua
localização num campo total. Assim o misterioso brilho de objetos mais escuros
surge quando são colocados em ambiente ainda mais escuro.
17
Assim também o uso das cores em Goya representa uma característica do estilo barroco ao
empregá-las para atribuir um sentido de unidade ou dispersão da composição, não mais
ligadas ao preenchimento dos contornos de um objeto, ou mesmo para destacar o “motivo
principal da tela”, mas para dar conta de uma relação entre as partes da imagem nas
correspondências entre os primeiros planos e os fundos ou mesmo dos personagens entre si
(numa integração). Daí a redução na diversificação das cores, pois elas são colocadas em uma
complementaridade entre as distâncias, além de servirem para ressaltar um caráter sombrio
que marca a imagem, já que a diversidade de cores só poderia ser vista em um ambiente mais
iluminado.
Figura 5: Pintura 3 – O encantamento, 1797-98. Óleo sobre tela, 41 x 3 cm. Francisco Goya.
Fonte: Fundação Lazaro Galdiano. Madrid, Espanha.
17
ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual. Uma psicologia da visão criadora. 7ªedição. São Paulo:
Pioneira, 2004. p.314
38
Nesta outra obra intitulada O encantamento (figura 5), Goya retrata animais voadores
juntamente com um anjo principal (ou demônio) em um céu noturno; humanos em miniatura
que se parecem com pequenos bonecos, mulheres com rostos ligeiramente deformados,
caricaturados, um homem aparentemente jovem com uma expressão assustada. A expressão
dos rostos constitui um aspecto marcante em Goya, a expressão atribuída aos personagens,
seja na sugestão de um olhar de riso perverso da bruxa que segura um humano, seja na
piedade com a qual a velha de roupas claras direciona as mãos ao ajoelhado, se põe do mesmo
modo que vimos a expressão voraz da besta da figura 4. Assim, a expressão é indicada como
um outro ponto importante na composição global da imagem, pois ele não é dado por acaso,
mas se coliga com outros aspectos trabalhados na imagem grotesca, e aqui é vista como
elemento deste determinante figurativo.
Nesta imagem (figura 5), Goya não só resgata alguns dos tipos característicos de uma
figuração grotesca, mas organiza estes elementos dentro de um quadro principal (no plano
mais próximo) a partir do destaque da luz incidente que conforma a imagem para o olhar.
Mais uma vez, toda a imagem parece envolvida por uma penumbra, cujos pontos de luz
auxiliam o olhar do espectador a “tomar” toda a imagem, fixando-se onde se condensa seu
“núcleo dramático”, como um “foco seletivo”, ao mesmo tempo em que “encontra” sua
posição ideal para olhar a imagem. Assim, a imagem já se constitui de modo a conformar um
ponto implícito onde se localiza o olhar do espectador; aliás, esta noção de conformação
perceptiva do olhar na instância da representação pictórica foi analisada por Gombrich
18
a
propósito da representação do drama visual grego, no qual, pelo princípio do “testemunho
ocular”, o artista não poderia incluir na imagem elementos que não pudessem estar presentes
no olhar. Portanto, esta relação entre a representação e o modo de olhar dado em Goya se
conforma como uma espécie de “pacto” necessário que se estabelece entre as instâncias da
enunciação (a imagem) e do enunciatário (olhar do espectador), como se o espectador
estivesse já acompanhando o percurso narrativo dado na imagem, seja testemunhando o deus
Saturno devorando um humano, seja testemunhando os demônios assustarem a um homem.
Porém, se em Brueghel tivemos uma imagem construída como uma “panorâmica”, onde tudo
se dava a ver de uma só vez, ou melhor, os vários acontecimentos eram vistos dentro de um
18
A análise sobre o princípio do testemunho ocular no estudo da representação pictórica pode ser encontrada
mais detidamente em Ernest Hans Gombrich. Standards of Truth: the arrested image and the moving eye. In: The
Image and the Eye: futher studies in the psychology of pictorial representation. London: Phaidon,, 1982.
39
mesmo e grande plano, em Goya, observamos que há uma imagem construída a um olhar
específico, mais particularizado, de modo mais singular, como se houvesse uma relação direta
de implicação do olhar do espectador no espaço da imagem, cuja cena se concentra em um
único acontecimento.
Ainda, na imagem da figura 5, mesmo dada a força expressiva de seus personagens, a
observação da luz como elemento estrutural da imagem parece surgir com mais intensidade e
que, articulado com certos recursos de sua figuração (a proporção do tamanho, a
expressividade do olhar, os traços de um rosto) constituem uma espécie de semântica do
grotesco em Goya, que não se restringe aos aspectos figurativos (estes mesmos já bastante
sedimentados desde sua origem), mas ao modo de sua configuração do olhar dado pela
articulação com elementos propriamente internos da imagem. Esta constituição de uma
ambientação grotesca para o olhar nos indica o recurso a uma qualidade plástica para
assegurar, também, uma forma narrativa, que adquire uma força de configuração maior em
Goya. Podemos dizer que o emprego da luz em Goya ambienta o motivo, é elemento de
reforço retórico e narrativo, dirige o percurso de leitura da imagem e acolhe o olhar do
espectador numa determinada posição, enfim, nos apresenta aspectos próprios de um modo de
configuração do motivo grotesco.
No entanto, o que nossa leitura tenta fazer, ainda que brevemente, é evidenciar estes aspectos
empregados em suas imagens que contribuíram para sedimentar certa configuração específica
do grotesco, aspectos estes que influenciam no modo de observar a apropriação do tema
dentro de uma “cultura visual”. De todo modo, o que tentamos estabelecer aqui são os
princípios pelos quais o grotesco se manifesta, seja de acordo com a replicação de certos
elementos estruturais da imagem (como a implicação da luminosidade como recurso ao
grotesco, por exemplo), quer seja pela própria figuração, isto é, pela exposição direta de
deformidades, distorções, pela mistura dos domínios, entre outros.
1.1.2 Observações sobre a caricatura como recurso grotesco
Partindo da observação de que os elementos internos repercutem na produção de uma
discursividade própria às imagens, o traço caricatural pode ser visto como um modo de
representação do grotesco muito relacionado ao recurso para uma produção cômica ou
bufona, onde a relação entre o grotesco e o cômico não é de oposição, mas de reversibilidade.
40
O que depreendemos, entretanto, é o tipo figurativo que concorre para a formação de um
caráter como um aspecto convencional, como um elemento “individualizador” de uma pessoa,
de um animal ou de uma coisa, ou seja, aquilo que constitui um tipo.
Neste recurso, a relação entre forma e caráter se coloca em um sentido complementar ou
extensivo na construção dos seus personagens. É como se o caráter dos personagens fosse
moldado pela forma que assume, seja como animal, seja como objeto, seja como homem; o
caráter é atribuído de acordo com o modo como ele se manifesta figurativamente, pode-se
dizer, como uma “fisiognomonia”. Na representação de um personagem grotesco, os traços de
animais ou objetos atribuídos a um homem, por exemplo, são sempre colocados para
estabelecer uma analogia muito perceptível entre eles, na qual suas qualificações morais e
seus valores estão relacionados ao destaque de tal forma física retratada. Trata-se de
reconhecer certo caráter de um personagem pela constituição da sua forma física, daí falar-se
em elemento ou “sujeito” caricaturesco, formado um caráter.
Desde o estudo das “cabeças grotescas” nos esboços de Leonardo da Vinci, há uma
diversidade de caricaturas do estilo como base de análise sobre expressões e fisionomias
humanas grotescas, em que a caricatura se desenvolveu como um tipo de desenho geralmente
usado em uma forma de tratar um grotesco satírico ao se referir ao cotidiano de cenários e
ainda mais de personagens. Assim, também, este modo de representação obteve suas
implicações reforçadas pela commedia dell’arte
19
, cujos espetáculos teatrais, do tipo
mambembe, representavam personagens locais caricaturados: o doutor arrogante, o padre
fanfarrão, a moçoila enganada. Este modo próprio de representar personagens cotidianos de
modo satírico abre uma outra perspectiva de configuração do grotesco através da utilização da
caricatura, não apenas pela utilização de certos traços morfológicos, mas, sobretudo, pela
relação deste aspecto com uma personalidade que se deseja atribuir ou destacar.
O que marcava uma peça teatral da commedia dell’arte era o recorte da realidade feito
ridículo, exagerado, caricatural, bufo. Estas características conformavam o mundo grotesco
19
Tanto Bakhtin quanto Kayser indicam a commedia dell’arte como o movimento que conseguiu difundir
efetivamente um estilo de representação teatral baseado no grotesco. Sua forma de apresentação estava
relacionada às manifestações populares conhecidas nas festas públicas e foi a partir deste tipo de arte que o
termo grotesco obteve as primeiras sistematizações teóricas nas obras de Justus Moser (1761) e Flögel (1788).
Muito da leitura de Bakhtin resguarda os princípios de análise destas obras, por vezes se constituindo como
verdadeira apologia ao grotesco cômico, Kayser, ao contrário, estabelece um distanciamento maior da visão
destes autores, mais influenciado pela crítica estética do renascimento, que renega o grotesco.
41
dos espetáculos regido pelo seu personagem central arlequim; uma espécie de narrador das
ações e ao mesmo tempo figura que transitava entre as realidades “verídica” e ficcional; ele
mesmo um personagem mutante (meio homem, meio boneco, o que escarnece e se compadece
com a mesma intensidade para com as cenas cotidianas dramatizadas). Do mesmo modo
foram surgindo outros personagens caricaturescos ao longo do tempo em diversas outras
formas narrativas.
No plano das artes visuais um mundo quimérico caricatural foi construído pela commedia
dell’arte e se difundiu pelas gravuras de Jacques Callot, que atribuiu à caricatura o elemento
articulador do grotesco teatralizado. As conhecidas estampas de Callot traziam máscaras
deformadas usadas pelos artistas em um esforço de consolidar o elemento antropomórfico do
grotesco pela mistura de partes de humanos com animais, o exagero dos traços, a utilização
das máscaras, certos movimentos corporais dos personagens, as indumentárias, entre outros.
Figura 6: Gravura 1 - Balli di Sfessania, 1622. Jacques Callot.
A figuração em Callot reitera a intensidade do que reconhecemos, nesta pesquisa, como uma
outra modalidade expressiva do grotesco: a personificação (ou antropomorfização), seja nos
contos literários, seja na publicidade, aparece aliada ao estilo satírico de representação da
realidade trivial (o mundo em desintegração, alheado), visto outrora também em Brueghel,
que consegue estabelecer as caracterizações básicas da natureza do grotesco pela via da
caricatura. Se pensarmos na publicidade como um destes outros meios representacionais do
42
grotesco, vemos que ele se apropria da caricatura com certa freqüência e está baseado nas
mesmas propriedades.
Neste caso, vale destacar que é muito comum observarmos, em peças publicitárias, a
construção de cenários ou de personagens caricaturescos e que, não obstante, se valem da
ironia ou da comicidade como recurso constituinte de suas mensagens. O jogo de inversão
irônico, esta transposição de características do que é humano ao inanimado (ou seu contrário),
a metáfora, a hipérbole, o exagero dos traços do rosto ou de partes do corpo para destacar uma
função anormal ou definir uma qualidade psicológica dos personagens. Isto permite que a
publicidade crie um “tipo” ou se valha do estereótipo como artifício do grotesco. É como se
pudéssemos traçar um esquema de aspectos figurativos que estão relacionados à
personalidade de cada um. Um sujeito com um nariz muito grande designa uma pessoa
curiosa demais, um “xereta”, do mesmo modo que um sujeito muito gordo indica um
indivíduo que se entrega à gula, um fanfarrão. Alguns destes aspectos figurativos constituem
tais estereótipos, como vemos na seguinte imagem (Figura 7).
Figura 7: Peça 2
Fonte: <http://www.brainstorm9.com.br/archives/cat_impressoprint.html>
43
Nessa peça (Figura 7), o personagem é caracterizado como um homem gordo que se entrega à
glutonaria e que está mergulhado em molho de macarrão. A expressão do seu rosto, o sorriso
e o modo como olha para a câmera (ao espectador) parece indicar seu contentamento e sua
satisfação por estar nesta circunstância. O jogo irônico da peça é, então, acentuado, por uma
máquina de lavar roupas no canto inferior, acompanhada da frase: Front Load Electrolux.
Tira as piores manchas. A caracterização do personagem como “o gordinho feliz” está
diretamente relacionada à brincadeira do local onde ele está colocado; dentro de uma grande
panela (ou prato) de molho de tomate. Sua forma física aliada à aparência de felicidade por
satisfazer seu apetite de um modo incomum, exagerado, não obteria o mesmo efeito jocoso e
de brincadeira da peça se o personagem colocado fosse uma pessoa magra, por exemplo. É
preciso reiterar que a seleção e o arranjo dos elementos de uma peça publicitária (o tipo e
expressão do personagem, o cenário, as cores predominantes, etc.) evidenciam a intenção do
anunciante e a produção de certo efeito; o cômico, neste caso.
No entanto, precisamos compreender que a caricatura não é o único aspecto morfológico do
grotesco, como vimos nas representações da commedia dell´arte, pois nem todo grotesco é
caricatural; outras formas de figuração são notadas com a mesma força. Para Kayser,
entretanto, uma representação caricatural é sempre satírica e se afirma pela apresentação de
uma idéia (ou de um juízo) de modo tendencioso, como uma advertência ou um ensinamento
representado ridiculamente. Porém, compartilhando da visão de Bakhtin, o grotesco pode
transitar tanto num campo satírico quanto cômico, pode abranger tanto um modo como outro,
tanto a sátira, propriamente dita, como a comédia.
Ao contrário, em Kayser, o grotesco tem, por base, apresentar um mundo próprio, “de lógica
própria”, como figuração de um mundo que é alheado, em desintegração, é paradoxal e
heterogêneo. O que Kayser propõe é um grotesco que só pode ser visto por nós como o
estranho, o ridículo, o abjeto; julgado a partir de nossos preconceitos e concepções
pessimistas do mundo, daí sua dificuldade em compreender a estrutura própria do grotesco
sem atribuir-lhe um sentido segundo de imediato, o da sátira. Ao contrário de Bakhtin, que
assiste ao grotesco como uma modalidade risível do mundo representado comicamente,
festivamente; onde o “riso é regenerador” porque une homem e natureza numa relação
complementar e harmônica, ao contrário, para Kayser, as representações grotescas do mundo
são estranhas e agônicas.
44
Para nós, é esta necessidade de observar o grotesco, principalmente a partir de suas
configurações, de seu modo estrutural, que nos faz compreender o modo como a caricatura
pode se constituir grotesca para integrar uma possível chave de leitura para entender certas
imagens. Independente de sua relação de efeito, o grotesco se manifesta, antes, através de uma
estrutura figurativa, morfológica (dada pela constituição de seus traços expressivos dos
personagens, pela construção dos cenários, etc.), e observamos este aspecto como mais um
ponto de desdobramento do motivo em nossa análise.
Gombrich, em Arte e ilusão (1986), observou que a caricatura de Töpffer distinguia os traços
em dois modos: os permanentes, como aspectos definidores de um caráter, de uma
personalidade, e os traços temporários, relacionados às diferentes expressões de emoção. Para
ele, a expressão caricatural tinha uma relação com um modo de representar uma
personalidade; a caricatura revelava um caráter. Daí a caricatura bem feita ou bem elaborada
precisaria, então, compreender este ponto de ligação entre os dois tipos de traços para causar
um efeito (do cômico ou da sátira grotesca). A necessidade da articulação dada pela caricatura
precisava compreender os traços, não ligados à replicação de todos os elementos de um rosto,
por exemplo, mas apenas conseguir condensar alguns traços singulares capazes de resguardar
a similitude com o rosto do personagem, por exemplo.
O cartum do jornal Le Charivari, de 1834, no qual Philipon representou o rosto do rei tal qual
uma pêra (poire, que em francês também significa tolo ou imbecil), se tornou exemplar
clássico para ilustrar a demonstração conceitual desta observação de Gombrich. No entanto,
quando pensamos no tipo de trabalho da commedia dell’arte devemos compreender que o que
se caricatura não é um personagem individual, mas uma espécie de gênero, de exemplar de
uma classe. Quando a commedia dell’arte caricatura uma figura humana ela o transforma em
personagem tipificado, ao mesmo tempo em que deixa de observá-lo em sua individualidade e
passa a retratá-lo como uma generalidade condensada num tipo. É precisamente este o ponto
central do grotesco num dos modos de suas configurações publicitárias; o modo como um
personagem é construído e colocado nas mensagens visuais de uma publicidade não é para
exaltar um indivíduo específico, a menos que seja esta a intenção explícita (como usar uma
celebridade, por exemplo), mas para representar um gênero, se reportar a uma classe, e mais,
atingir a um segmento de público.
Ainda que toda mensagem seja exposta em um modo de interação direta entre personagem e
público (como se dirigisse para alguém através do olhar direto, da proximidade do rosto, etc.),
45
o personagem de um cartaz, por exemplo, fala para um alguém como parte de um grupo, do
seu “público-alvo”. E as finalidades destas mensagens são inúmeras, desde anunciar um
produto a induzir uma mudança de hábito ou atitude. Tipificar ou caricaturar seus
personagens é uma estratégia usada para um reconhecimento necessário do público ao qual se
fala. Em Gombrich, no entanto, vimos que esta estrutura da caricatura não estava atrelada à
estrita semelhança icônica
20
, mas à “similitude”, que segundo o autor, é vista como esta
seleção de traços particulares colocada como elemento de identificação do objeto (rosto)
caricaturado:
Todas as descobertas artísticas são descobertas não de semelhanças, mas de
equivalências que nos permitem ver a realidade em termos de uma imagem e uma
imagem em termos de realidade. (...) O que experimentamos como notável
semelhança numa caricatura, ou mesmo num retrato, não é, necessariamente uma
réplica de qualquer coisa vista. Se fosse, qualquer instantâneo fotográfico teria
maior possibilidade de causar impressão como representação satisfatória de
pessoa conhecida.
21
A estrutura caricatural fica, então, baseada na equivalência e não na semelhança integral dos
traços; o trabalho do caricaturista, segundo Gombrich, era saber transformar seu objeto em
uma figura ridícula, mas que se parecesse com o original de modo “surpreendente”, apenas
para um reconhecimento. Seu trabalho era modificar os traços de expressão, geralmente pelo
recurso da hipérbole, constituindo um tipo, não se tratava de uma replicação fiel e completa
do personagem.
Um outro exemplo de configuração grotesca a partir da caricatura também pôde ser
encontrado nas estampas de gravuras de William Hogarth (1697-1764) – figura 8 -, que, assim
como Brueghel, observou as cenas cotidianas de modo grotesco e suas caricaturas foram
vistas por Gombrich como personagens de pequenas histórias de onde partiam lições e
advertências, como verificamos também nas mensagens publicitárias. A equivalência
estrutural entre um e outro é um notável recurso de configuração grotesca.
20
Deste modo, entendemos que Gombrich se refere à semelhança icônica como uma reprodução de todos os
traços figurativos, à reprodução fiel de uma figuração, ao passo que a similitude compreenderia apenas certos
traços seletivos.
21
GOMBRICH, Ernest H. Arte e ilusão - um estudo da psicologia da representação pictórica. Tradução Raul de
Sá Barbosa. São Paulo: Martins Fontes, 1986. p.302
46
Figura 8: Gravura 2 – A viela do gim, 1751. William Hogarth.
Pintaria essas histórias edificantes e exemplos de advertência de maneira tal que
quem visse a série de quadros entenderia todos os incidentes e as lições que eles
ensinavam. Suas pinturas, de fato, lembravam uma espécie de pantomima em que
todos os personagens tem uma tarefa determinada e esclarecem o seu significado
através de gestos e uso de atributos cênicos. O próprio Hogarth comparou esse
novo tipo de pintura à arte do dramaturgo e do diretor teatral. Empenhou-se em
realçar o que chamava o ‘caráter’ de cada figura, não só através da sua expressão
fisionômica, mas também por meio do vestuário e do comportamento.
22
Além das expressões fisionômicas da caricatura, os personagens eram marcados por um
conjunto típico de poses e trejeitos, além de indumentárias e cenários, o que conferia à
imagem certa característica de “teatralização”; daí Gombrich indicar sua aproximação com a
pantomima. Certa combinação destes elementos reforçava o tipo de caráter que os
personagens deviam representar grotesca e satiricamente. No entanto, resta ainda apontar que
a produção do efeito não estava reservada exclusivamente aos traços ou aspectos fisionômicos
que o artista conseguisse captar, mas, em boa medida, dependia da capacidade de interação
que conseguisse obter com o espectador, ou melhor, o efeito da caricatura contava com um
“leitor ideal”, aquele capaz de articular os recursos necessários para ativá-los ao nível da
leitura, mas que se coliga com a familiaridade destes motivos, ou seja, se relaciona
diretamente com um conjunto de saber cultural, mobilizando certo “repertório” da recepção.
Tomemos então dois destes “modelos” figurativos do grotesco colocados por Bakhtin e
Kayser.
22
GOMBRICH, Ernst H. A história da arte. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1999. p.462.
47
1.2 A CONSTRUÇÃO DE UM SISTEMA DE IMAGENS DO GROTESCO EM BAKHTIN
E KAYSER
Em uma posição diferenciada, porém um tanto complementar às observações de Kayser,
certamente o teórico que mais distanciou o grotesco de uma visão “negativa” que relacionava
o tema unicamente à ordem do sinistro ou do diabólico foi Mikhail Bakhtin na sua obra A
cultura popular na idade média e no renascimento
23
, não pela recorrência a uma idealização
mais sutil do fenômeno, mas por sua aproximação ao modo de manifestação da cultura
popular que se traduziu na obra de François Rabelais, principalmente.
Neste texto, Bakhtin apoiou a análise em três pontos referenciais da obra: as festas populares,
as obras cômicas ou bufonas e o vocabulário cotidiano, dos quais resgatamos apenas alguns
aspectos que compõem uma espécie de imagerie do grotesco, pois nos indicam certas
variações complementares à constituição propriamente teórica do grotesco como um tema
visual em Kayser, além de estabelecer uma demarcação dos “gêneros” grotescos que vimos
anteriormente, o cômico e a sátira, necessários à constituição de certo repertório visual do
grotesco. Em certa medida, contrapomos algumas observações em Bakhtin e Kayser no
intuito de estabelecer um “esquema” comparativo dos mesmos elementos vistos em um e
outro, opostos em certos pontos e muito similares em outros, apenas para enriquecer as
concepções acerca dos motivos grotescos.
Em primeiro lugar, Bakhtin avalia uma característica básica para o grotesco em qualquer
modalidade; a ruptura com os moldes do perfeito, do simétrico ou do harmonioso constitui
este elemento básico para uma representação grotesca. Quebrar as regras de uma hierarquia
ou os parâmetros dos ideais ou valores sedimentados e organizados conforme uma lógica,
segundo ele, “excludente e elitista”, típica de todo cânone artístico, é seguir a contramão
necessária ao grotesco. Daí se condensa toda a perspectiva de sua leitura de François
Rabelais. O próprio tipo de colocação do caráter grotesco é mais próximo de um sentido
burlesco, dada a crítica social que assume. O tom jocoso e do deboche é muito mais explícito
e se conforma como a linha de força do seu objeto, por isso a necessidade de Bakhtin em opor
dois modos de configuração do grotesco em uma demarcação histórica e de estilo; primeiro, o
caráter burlesco (denominado por ele de “grotesco realista”) proveniente da cultura popular e
23
A primeira edição brasileira foi da Hucitec/UnB em 1987, mas a citada aqui é da quarta edição, de 1999,
também pela Hucitec.
48
ligado ao aspecto da comicidade; segundo, a concepção do renascimento derivado da
burguesia (denominado “grotesco romântico
24
”) relacionado à sátira. A partir desta divisão, o
autor aponta os elementos diferenciadores que caracterizam cada um, de modo que o riso é
um primeiro elemento de análise que marca a diferença entre os estilos; no primeiro, o riso é
festivo, cômico, popular e regenerador (a ambivalência é regeneradora); no segundo, o riso é
satírico, formal e austero.
[...] o que é característico é justamente o fato de reconhecer que o riso tem uma
significação positiva, regeneradora, criadora, o que diferencia nitidamente das
teorias e filosofias do riso posteriores, inclusive a de Bergson, que acentuam de
preferência suas funções denegridoras.
25
Se ao grotesco realista cabe um caráter universal e coletivo, onde predomina uma idéia de
unidade e integração do “corpo individual” com o “corpo popular” e no modo como este
corpo é representado, onde a própria ligação com o rebaixamento dos valores para o plano
material e corporal é tomado como princípio de transformação neste tipo de grotesco, já o
grotesco romântico (modernista) se evidencia pelo caráter fragmentário, isolado, estranho,
apartado do convívio coletivo e tomado elemento solitário e individualista. O grotesco
romântico é satírico e obscuro, coloca o homem desligado da natureza coletiva isolando-o, e
este mesmo mundo retratado individual e sombrio é elemento estranho ao próprio homem,
onde o cotidiano passa a ser terrível e hostil, pois o riso se enfraquece.
Tanto quanto o riso, o tempo é outro elemento de análise que diferencia a constituição
representativa do grotesco nos dois estilos (e períodos). Bakhtin sublinha o tempo como idéia
de evolução e de movimento tratado no grotesco realista, daí seu caráter regenerador estar
figurado nas transformações e metamorfoses, pois se remete ao próprio tempo cíclico natural
da vida e da natureza. As desproporções e distorções dos corpos são vistos como passagens
naturais do tempo, que liga, harmoniosamente, todos os elementos vivos e não vivos.
A sucessão das estações, a semeadura, a concepção, a morte e o crescimento são os
componentes dessa vida produtora. A noção implícita do tempo contida nessas
24
Bakhtin considera que este vertente é seguida mais tarde pelos ideais artísticos do século XX observados no
expressionismo e surrealismo, que ele também denomina de “grotesco modernista”. É curioso observar que estas
mesmas concepções das fases artísticas são consideradas grotescas por Wolfgang Kayser, que dedica o capítulo
“O grotesco na época moderna” para intensificar a análise de certas obras literárias de dramaturgos italianos e
dos narradores alemães (principalmente Morgenstern) e nas artes visuais, pinturas de De Chirico e Salvador Dali.
25
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais.
Tradução Yara Frateschi Vieira. 4ªed. Hucitec/ Editora da Universidade de Brasília, 1999. p. 61.
49
antiqüíssimas imagens é a noção do tempo cíclico da vida natural e biológica.
26
(Grifo do autor)
O rebaixamento dos valores ao corporal e material é visto, assim, como condição necessária
para a transformação, pois o renascimento é uma outra chance de “voltar ao mundo”, dada
pelo tempo que se move e que transforma, ao contrário da noção de tempo tratada pelo
grotesco romântico definido como o estático e o “atemporal”. É nesta dicotomia do tempo que
as relações com o corpo e com a matéria se definem em Bakhtin, ampliando a caracterização
do grotesco proveniente da arte ornamental que se limitava à mistura de animais, objetos e
humanos. A cultura popular compõe a imagem do corpo e dos objetos ligada ao tempo cíclico
da natureza, vista através das imagens da gravidez, da parturição, da velhice, do crescimento
do corpo, do coito, do comer, do beber. As formas expressivas do corpo são perpassadas desta
noção regeneralizadora do tempo no grotesco realista, tratada de forma exagerada e cômica:
O corpo grotesco é um corpo em movimento. Ele jamais está pronto nem acabado:
está sempre em estado de construção, de criação, e ele mesmo constrói outro corpo;
esse corpo absorve o mundo e é absorvido por ele. (BAKHTIN, 1999, p.277).
No entanto, estes mesmos temas são investidos de um caráter desconcertante, estranho,
violento ou abjeto pelo viés satírico do grotesco romântico, uma vez que a noção de tempo se
esvazia, prevalecendo o estático e o que é destituído de vida, sem qualquer relação com a
natureza, mas figurado como um corpo vazio e inerte. Deste modo, o corpo e as coisas são
subtraídos à unidade da terra geradora e separados do corpo universal, que cresce e se renova
constantemente, aos quais estavam unidos na cultura popular. O grotesco romântico
representa corpos e coisas dispersos, individualizados, reduz o corpo à categoria de um outro
objeto qualquer, degradado, em decomposição, deformado, destituído de um caráter cômico e
visto em uma exibição horrivelmente grotesca. Segundo suas pressuposições, corpo e objeto
partilham da mesma categoria (matéria) porque pertencem à mesma concepção temporal. Este
modo de ver o corpo no grotesco romântico tão criticado por Bakhtin é o que notamos nas
observações de Kayser; aliás, o próprio Bakhtin chega a mencionar, em seu texto, uma crítica
direta a Kayser, quando afirma:
A concepção de Kayser, porém, não deixa lugar ao princípio material e corporal,
inesgotável e perpetuamente renovado. Tampouco aparecem o tempo, ou as
26
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais.
Tradução Yara Frateschi Vieira. 4ª.ed.Hucitec: Universidade de Brasília, 1999. p.22
50
mudanças, ou as crises, isto é, nada do que ocorre sob o sol, na terra, no homem,
na sociedade humana, e que constitui a razão de ser do verdadeiro grotesco.
27
Ao se referir às imagens do corpo humano em Rabelais, Bakhtin destaca a caracterização
típica do grotesco cômico popular; corpos disformes, exagerados, desproporcionais, vistos em
seus estados e condições naturais dos humanos (parindo, excretando, copulando, gestando);
Esse corpo aberto e incompleto não está nitidamente delimitado do mundo: está
misturado ao mundo, confundido com os animais e as coisas. É um corpo cósmico
e representa o conjunto do mundo material e corporal em todos os seus elementos.
(BAKHTIN, 1999, p.24).
Este tipo de corpo é o representado nas festas populares, nos carnavais, nas farsas e outros
espetáculos conhecidos da Idade Média. Porém, o mesmo corpo pode mostrar-se
abandonando pela condição natural e remetido à materialidade inanimada quando se constitui
como um corpo perfeito, acabado, plástico, completo, separado, individual, asséptico,
“depurado das escórias do nascimento e do desenvolvimento” (BAKHTIN, 1999, p.24),
incluído nos cânones estéticos na época do Renascimento. Em Kayser, a representação de um
corpo grotesco se dá apenas na medida em que misturam objetos, plantas, animais e partes
humanas, assim como se definiu na arte ornamental desde o século XV; ele não coloca corpo
e natureza numa relação harmoniosa e carnavalesca como Bakhtin. Kayser não concebe o
corpo grotesco numa passagem de tempo e estilo, mas preserva uma concepção de origem
aliada ao efeito estranho e insólito que esta junção pode propor. Não raro, Kayser sustenta que
o grotesco se manifesta tal qual uma representação fantasiosa, onírica e “delirante” ao modo
do sogni dei pittori
28
.
Por isso, elimina-se tudo o que leve a pensar que ele não está acabado, retiram-se as
excrescências e brotaduras, apagam-se as protuberâncias, tapam-se os orifícios, faz-
se abstração do estado perpetuamente imperfeito do corpo e, em geral, passam
despercebidos a concepção, a gravidez, o parto e a agonia. A idade preferida é a que
está o mais longe possível do seio materno e do sepulcro, isto é, afastada ao máximo
dos ‘umbrais’ da vida individual. Coloca-se ênfase sobre a individualidade acabada
e autônoma do corpo em questão. Mostra-se apenas os atos efetuados pelo corpo
num mundo exterior, nos quais há fronteiras nítidas e destacadas que separam o
corpo do mundo; os atos e processos intracorporais não são mencionados. O corpo
individual é apresentado sem nenhuma relação com o corpo popular que o produziu.
29
27
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais.
Tradução Yara Frateschi Vieira. 4ª.ed.Hucitec: Universidade de Brasília, 1999. pg. 43.
28
Expressão que se refere a um tipo de arte ornamental trabalhado pelos italianos no século XVI, muito usado
em afrescos e vitrais decorativos e que misturava plantas, animais, objetos, etc.
29
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade media e no renascimento. Op.cit.: p. 26.
51
Em certa medida, Bakhtin justifica o porquê das marionetes serem elementos preponderantes
vistos no grotesco romântico. A relação com o corpo extirpado do corpo coletivo, apartado do
mundo circundante, fundamenta um estranhamento óbvio do homem e sua imagem, do
homem com sua própria aparência, como se fosse possível existir uma espécie de força sobre-
humana e desconhecida que governa os homens e os converte em marionetes. Ao contrário da
cultura popular, que utilizava bonecos como personagens bobos e ingênuos que divertiam
pelo modo festivo e alegre com o qual eram retratados. A própria figura do espantalho ou do
diabo era vista como o avesso da seriedade formal dos costumes tradicionais cristãos, era o
arlequim brincalhão que fazia rir dos defeitos alheios.
Bonecos e marionetes passavam, no grotesco romântico, a representar um mundo
propriamente obscuro e lúgubre de personagens encerrados em uma dimensão estranha à vida
cotidiana. A expressão melancólica e fixa, seu caráter estático, acentuavam uma figuração
grotesca baseada numa concepção sinistra e lúgubre. Kayser também menciona a natureza
grotesca que se esboçava nos bonecos de cera imbuídos de vida em certos contos
dramáticos
30
, a semelhança figurativa dos bustos e bonecos com as pessoas era
minuciosamente relatada de modo tão extremo a ponto de causar pavor. A relação do homem
com os objetos (ou do homem com a natureza) não se traduzia mais em uma relação de
mutação regeneradora e natural, mas de uma relação complexa e tensa, pois ao mesmo tempo
em que se dissolviam as fronteiras entre o animado e inanimado propunha um deslocamento
de atributos de um para o outro (ou de um no outro), sem o sentido de coexistência natural
entre os dois domínios visto na cultura popular de Bakhtin, mas tratava-se de um
estranhamento constante. O grotesco em Kayser é da ordem do sombrio e do lúgubre, do
delírio e do fantástico; como vimos em Bosch, por exemplo.
A utilização das máscaras também foi um recurso diferenciado nos tipos de estilo grotesco
que seguia a mesma diferenciação de propósito. A alegre relatividade das identidades, a
crítica à singularidade, a possibilidade de alternâncias de expressões como simbolismo da
caricatura, do parodismo, da careta, da renovação, enfim, adquire, no estilo romântico, o
sentido da dissimulação, do engodo, do logro, da mera representação do horror num mesmo
modo que Kayser avalia este elemento. Porém, se para Bakhtin há uma distinção nítida no
tratamento e uso dos mesmos elementos nos dois estilos do grotesco, em Kayser esta oposição
30
O autor se refere principalmente às obras de Bonaventura e Jean Paul, ambos do século XVIII.
52
estilística não se aplica, uma vez que sua concepção do grotesco se detém em um sentido
único, que seria a “fase romântica” assim classificada por Bakhtin.
Por fim, o último elemento diferenciador dos estilos grotescos destacados por Bakhtin: a luz,
particularmente auroreal, primaveril e brilhante (típica do dia, da claridade) típica da cultura
popular, se torna elemento de ordem sombria, obscura, noturna por excelência, no estilo
romântico ou modernista. A luz é elemento tratado para a expressão jovial e alegre no
grotesco realista de Bakhtin tanto quanto para remeter ao assustador porque sombrio e lúgubre
no grotesco romântico.
Certamente outros elementos poderiam corresponder a um modo figurativo do grotesco além
dos que vimos até aqui nas proposições de Bakhtin e mesmo de Kayser, pontualmente. No
entanto, estas obras nos oferecem um espectro suficiente para sustentarmos a classificação do
que pertence ao rol do grotesco aplicado ao contexto publicitário. Através das descrições e
análises que distinguiam o grotesco cômico e popular do satírico e romântico burguês,
Bakhtin descortina as transformações que as relações sócioculturais de uma passagem de
época determinaram na manifestação de certos elementos - o riso, o corpo, as marionetes, a
máscara, a luz, o vocabulário, constituíram os tópicos de análise dos estilos na leitura de
Bakhtin e que, ainda hoje, conformam um sistema de imagens propriamente grotesco. Os
aspectos em torno do grotesco observados por Bakhtin assumiam uma preocupação de análise
sociológica e mesmo antropológica, dos costumes e modos de usos do grotesco encontrados
na obra de Rabelais, mas mesmo numa perspectiva diferenciada da qual observamos,
devemos reconhecer que os elementos destacados por ele, ainda hoje, repercutem nos modos
de configuração do que reconhecemos como grotesco.
Na publicidade, recorre-se constantemente a estes elementos figurativos que compõe uma
representação imaginária do grotesco: bonecos, máscaras, as deformidades do corpo, entre
outros. Porém, vimos que estes elementos são contextualizados em um modo muito mais
ligado à configuração de um grotesco romântico (segundo a classificação de Bakhtin), mais
próximo da concepção grotesca de Kayser, portanto, onde o recurso da sátira é o mais
empregado no “grotesco publicitário” que o viés cômico, pois o que predomina é o tema visto
em uma contextualização mais lúgubre e menos jocosa dos seus elementos. Dado que o
grotesco serve a certos propósitos da publicidade e, por isso, precisa relacionar o tema com
produtos ou serviços, é que a sátira se torna mais adequada na programação de um efeito
53
(moralizador, retórico), afastando-se da possibilidade da mensagem ser vista como uma
“brincadeira de mau gosto”, que simplesmente ri das deformidades ou distorções de outras
coisas ou de outras pessoas. Assim, observar o grotesco através da sátira (como esboçada
aqui) serve mais aos apelos e propósitos publicitários quando o grotesco é o tema visual.
Veremos como isto se exibe nas imagens das peças no capítulo seguinte.
1.3 CONSIDERAÇÕES SOBRE O GROTESCO NO CONTEXTO DA COMUNICAÇÃO
MEDIÁTICA
Apesar de nos defrontarmos constantemente com certos elementos figurativos grotescos nos
diversos meios de comunicação, uma literatura relativamente pequena foi encontrada,
constando análises que se debruçassem sobre a questão em quaisquer de suas interfaces. A
obra de Muniz Sodré O império do grotesco (2002) traz uma contribuição, sobretudo, quando
lança certas provocações sobre o grotesco em diferentes campos dos discursos mediáticos,
como na televisão, por exemplo. Através do posicionamento do tema em certos referenciais
teóricos do campo da estética, e em uma tentativa de compreender o grotesco como um
fenômeno “de massa”, Sodré também deixa clara a intensa proliferação do grotesco nos meios
mediáticos, seja participando diretamente de quadros fixos em programas de auditório na Tv,
seja pela exposição de algum flagrante específico de uma personalidade pública.
No entanto, apesar de inúmeras referências e exemplares, por vezes o texto padece de uma
análise mais “consistente” do grotesco em alguns de seus veios, assim também um esboço do
procedimento metodológico que classifica os diferentes tipos e gêneros do grotesco, propostos
pelo autor, é aplicado em um desnível entre os capítulos, muito recorrido na última parte (“Na
televisão”) e pouco mencionado nos demais. Entretanto, o texto nos fornece alguns
indicativos muito pertinentes que auxiliam a compreender a utilização do motivo e o modo de
sua manifestação nos meios mediáticos, como subsídios da articulação do grotesco na
publicidade. Naquilo que nos interessa, destacamos três observações acerca da apropriação do
motivo na comunicação mediática, mencionadas por Sodré em sua análise mais específica da
televisão, mas aplicáveis aqui de um modo mais geral para delimitar esta relação entre o
motivo e um meio.
A aproximação do autor à perspectiva de Bakhtin quanto a uma visão do grotesco ligada à
expressão de uma cultura popular, portanto, subversiva aos modelos estéticos canônicos de
54
cultura clássica e burguesa, permite um olhar menos preconceituoso (no entanto, mais crítico)
de certas manifestações grotescas. Primeiro, Sodré observa que a televisão passa a se
estabelecer como uma espécie de “substituto” sutil dos espaços públicos, da praça pública,
mais precisamente, como espaço historicamente legítimo das manifestações populares das
festas, folguedos, encontros religiosos e “conversas de fins de tarde”. Espaços públicos onde
certos elementos grotescos eram vividos e experimentados realisticamente, mas que passaram
a migrar para a televisão, como espaço de encenação por excelência.
Ao mesmo tempo em que o grotesco é apropriado para um meio de comunicação ele se
“descaracteriza” em certos aspectos para que possa se adaptar ao enquadramento do veículo e
de suas exigências, pois se havia uma possibilidade de se defrontar com o grotesco em suas
diferentes nuances em um espaço público (constituindo as tipologias do grotesco;
teratológico, escatológico, crítico, carnavalesco, entre outros), em um meio de comunicação
há uma redução deste espectro, pois nem todo grotesco pode ser visto na Tv, por exemplo; do
mesmo modo, podemos indicar seu uso na publicidade. E, mesmo o que dele se vê é
perpassado por um envoltório necessariamente comercial, publicitário, moralizador.
Segundo, a relação com a experiência do grotesco deixa de ser vivida para ser encenada, de
modo que se torna possível falarmos em certa “re-significação” do grotesco, mais próximo de
uma espetacularização, onde é visível o encadeamento da cultura popular com a cultura de
massa.
No auditório, como na praça, reedita-se a tensão presente na fronteira entre a
liberdade, senão a licenciosidade, das autônomas manifestações estéticas da massa
e as regras de natureza editorial. (SODRÉ, 2002, p. 111).
Esta mudança na natureza do grotesco, que Sodré denomina de “popularesco”, é como uma
adjetivação que se refere “à espontaneidade popular industrialmente transposta e manipulada”
pelos meios de comunicação em busca de audiência, principalmente, onde o grotesco é
reconhecido muito mais por um sentido paródico, da ridicularização anódina, que pela sátira
mordaz, crítica, inquietante, assumida outrora pela commedia dell’arte, por exemplo.
A própria colocação de temas grotescos em pequenos instantes televisivos reflete a utilização
do motivo apenas como artifício evocativo e de choque momentâneo para um público
espectador. Esta observação ainda ressalta, no caso da publicidade, o caráter teatralizado que
o grotesco assume neste tipo de contexto. Distante das manifestações que o caracterizavam na
55
cultura popular ou mesmo nas expressões artísticas representadas na fase intitulada
modernista (ou romântica), o grotesco se afasta de sua configuração ambivalente e, no campo
das mídias, se torna artifício de espetáculo. A festa, como um dos recursos do grotesco
exaltado na análise de Bakhtin, como espaço de relação temporal com as antigas festas
populares, celebrações de colheitas e outras manifestações que se davam alheias às
convenções de controle social e religioso, de espírito festivo, vocabulário cotidiano, subversão
de conceitos estéticos, passa agora a ser reconhecido, predominantemente, pela mediação de
programas de Tv, matérias de jornais e outros periódicos. Mais visto sob certos “anteparos”
(morais e estéticos) e menos vivenciado, conforme as adaptações dos veículos e seus
discursos. Notamos algo semelhante quando a publicidade se apropria do grotesco e usa o
motivo enquadrando-o conforme suas perspectivas, pressupostos e diretrizes previamente
estabelecidos. Daí porque trabalhar certo tipo de configuração grotesca ser mais adequado e a
escolha do uso de certos elementos ser mais cuidadosa.
Terceiro, Sodré aponta para uma espécie de “contrato de leitura”
31
, que se estabelece entre o
meio e seu público como um pacto simbólico implícito, que sustenta e define o quê do
grotesco pode entrar ou não “em cena”. Isto porque não faz parte do interesse (e da
conveniência) dos veículos de comunicação exibir o grotesco em todas as suas possibilidades
tipológicas, em todas as suas expressões figurativas; seja pelos compromissos comerciais
diretos que definem o consumo de produtos ou serviços, seja pelos meios que se reservam à
“preservação” de certas normas sócio-culturais e religiosas; considerando-se as diferenças de
sociedade e de perfil do público.
Neste caso, tanto o discurso televisivo quanto o publicitário se constitui baseado na
delimitação de um público e nas suas especificidades. Atrelado a este campo da produção está
o campo do reconhecimento, ou como indica Verón, há uma “gramática da produção” e
“gramáticas do reconhecimento”, e, por mais que não possamos descartar certo grau de
indeterminação inerente aos campo de reconhecimento, a publicidade, mais ou tanto quanto
outros meios, direciona e tenta diminuir ao máximo este possível “coeficiente de recusa” do
31
A evocação de Sodré sobre a noção de “contrato de leitura” é usada num sentido mais restrito do conceito
estabelecido por Eliseo Verón, Sodré utiliza mais como referência ao que o público aceita e compartilha junto
com o que se exibe nos veículos, ao passo que Verón observa a relação do receptor/ leitor com o suporte ao
longo do tempo, sua fidelização (naturalmente ligada às estratégias discursivas construídas ou adotadas pelo
suporte). Uma análise do conceito por ser observada mais profundamente em: VERÓN, Eliseo. L´analyse du
contrat de lecture: une nouvelle méthode pour les études de position des supports presse, les medias.
Expériences, recherches actuelles, apllications: Paris, Institut de recherches et d´études publicitaires, 1985,
p.203-230.
56
público receptor. É prudente não se atribuir seu pleno êxito, antecipadamente no entanto,
nosso esforço em compreender o grotesco em certas imagens tem uma pretensão diferenciada
e por isso não localizamos o êxito de uma peça ou de uma campanha a partir do seu resultado
efetivo do consumo, ou não, de produtos e serviços.
32
Certamente, este ponto ressaltado por
Sodré se limita ao relacionamento superficial entre meio e público quanto ao conteúdo do
tema exposto. No caso do grotesco, o trabalho pertinente ao campo de produção é propor
aspectos já bastante sedimentados das caracterizações grotescas no público; supostamente,
bastaria reconhecer o grotesco apenas pelo seu efeito e menos por sua estrutura.
É curioso observar que certos elementos das representações grotescas, aos quais Bakhtin
apontava, perdem ou mudam sua caracterização quando são apropriados por outros contextos,
por outros regimes textuais; no nosso caso. O corpo, por exemplo, constituía um dos
elementos mais pujantes nas representações, pois expressava, figurativamente, o tipo de
relação intrínseca entre o homem (indivíduo) e o corpo social, da natureza e do grupo de
classe próprios. O corpo grotesco apropriado por um meio massivo, como a televisão, destitui
esta relação natural e o representa numa condição individual, solitária, e, por isso, cruel, que
se esboça, como vimos anteriormente, em uma lógica do modernismo grotesco, segundo
Bakhtin. O aspecto agravante que se adiciona ao estilo modernista de tratar o grotesco,
atualmente, está no modo pelo qual esta representação é usada apenas como artifício para
obtenção de objetivos mercadológicos. Um corpo grotesco, na televisão, assume a
caracterização de um infeliz, de um desprivilegiado, de um sujeito marginalizado e,
sobretudo, de um excluído. Tal qual as aberrações expostas como espetáculos em circos,
feiras e praças públicas, o corpo grotesco feito indivíduo (ou classe) grotesco é colocado
como mercadoria exposta nos programas de Tv.
Desta apropriação resulta um “riso massivo” que agora aponta para os traços sociais; a
pobreza, a miséria e a exclusão, encarnados nas figuras do ignorante, do analfabeto, do
deformado, do homossexual, do moribundo, onde o grotesco choca e faz rir indiferentemente,
permite-se “encenar o povo e, ao mesmo tempo, mantê-lo à distância” (SODRÉ, 2002, p.140)
para que se permaneça na superfície dos efeitos. E, o que deveria ser considerado objeto de
32
Neste ponto, delimitamos a análise da recepção a partir da observação da própria imagem e não de um estudo
empírico da recepção. A posição de assumir a imagem como texto implica dizer que ela mesma faz suas
solicitações ao espectador, mas sem considerar seu perfil social, econômico ou demográfico; questão mais
observada nos estudos dos posicionamentos discursivos como proposto por Verón, no “Contrato de leitura”, por
exemplo.
57
indignação passa à naturalização do ridículo risível apresentado pelos veículos. Porém, esta
caricaturização do grotesco é diferenciada na publicidade. Enquanto na Tv assume-se a
expressão figurativa para um escárnio ou para um impacto do repulsivo, na publicidade esta
construção do grotesco é feita pela ironia e, por isso, muito mais atenuada.
No entanto, há uma modificação nesta perspectiva quando Sodré comenta sobre o grotesco no
cinema, sobretudo nos filmes italianos da década de 70 e o clássico de 1932, Freaks. Para ele,
esta cinematografia possibilita ao grotesco manifestar-se sob todas as suas formas. Os
exemplos que são trazidos pelo autor conseguem indicar os vários gêneros que são
construídos em seu quadro de categorias, de modo que as formas expressivas do grotesco
atingem proporções “inéditas”, cujas tramas apresentam um tipo de humor sarcástico e total
subversão dos cânones estéticos, traduzindo o que os estetas italianos denominaram de
disgusto. Se for possível separarmos o grotesco conforme o meio, no cinema, segundo Sodré,
sua representação pode ser extrema, sem qualquer traço de civilidade - escatologia, bizarrices,
cropologia, anomalias, aberrações, todos apresentados sem certas sutilezas de um meio como
o televisivo ou o publicitário.
Daí uma noção diferenciada do grotesco colocada conforme as determinações e conveniências
necessárias de natureza comercial, publicitária, política, moral. Pensamos que analisar o
grotesco como um tema apropriado pela publicidade pode nos esclarecer de que modo o
grotesco é configurado enquanto um tema visual, em um contexto mediático, e reconhecendo
o espectador como este “leitor ideal”, já implicado nas solicitações que a própria imagem
pode fazer. Um leitor que, de algum modo, reconhece o grotesco, pois já travou algum tipo de
contato com o tema que, ao menos, o possibilite identificá-lo, ainda que não compreenda
exatamente quais os elementos que o conduziram à tal associação. É sob esta perspectiva, um
tanto à parte destas noções específicas de um grotesco compreendido pelo viés sociológico,
muito demarcado nos estudos vistos até aqui, que partimos da admissão de que a imagem é,
para nós, tomada como um texto, e assim, investigar de que modo os elementos propriamente
internos da imagem, se investem de um valor discursivo, isto é, em que medida podemos
tratar das configurações do grotesco em certo medium como o publicitário. Porém, era preciso
demarcar este sistema de imagens definidos em outros campos para notarmos quais os
elementos recorrentes ainda hoje pelo discurso publicitário, pois, se a imagem publicitária
ocupa, na sociedade atual, um dos lugares desta experiência (mediatizada) comum, como
58
afirma Sodré, então, a fotografia publicitária é um instrumento que pode estabelecer esta
relação através da construção de discursos possíveis sobre estes mundos.
1.4 DELIMITANDO O OBJETO DE ANÁLISE
Dadas as caracterizações necessárias à identificação do grotesco e, observados sobretudo os
aspectos de suas manifestações expressivas nos campos da literatura e das artes visuais, que
de certo modo repercutem no grotesco enquanto objeto da comunicação mediática tratado
aqui, precisamos compreender agora como ele se estrutura dentro do nosso campo mais
específico de análise e de que maneira se desdobra a relação entre o motivo e o contexto no
qual se insere. Considerar o grotesco como um aspecto temático foi o ponto de partida deste
trabalho.
Inicialmente, a noção de contrariedade e de oposição que o tema provocava em sua inscrição
em um ambiente como o publicitário (voltado predominantemente para o belo, para o sedutor,
o harmonioso), começou a direcionar o olhar para outros aspectos que se desvelavam em
torno do grotesco e que ultrapassou sua condição temática observada à primeira vista. O que
se evidenciou foi uma relação de apropriação do grotesco pela publicidade, pois não se tratava
apenas de uma mera apresentação do tema em peças publicitárias com finalidade de chocar
um público espectador, mas de trabalhá-lo assimilando certas variações e características
convencionadas por outros campos, principalmente do pictórico.
As imagens que traziam o motivo grotesco apresentavam certas variações que apontaram para
a necessidade de agrupá-las e de classificá-las de acordo com os aspectos que as
caracterizavam. No entanto, esta organização dos materiais não obedeceu a critérios
rigorosamente preestabelecidos por nenhuma abordagem metodológica que “encerrasse” as
imagens sob certos “rótulos”, mas optou-se por observar as recorrências de aspectos que as
imagens traziam para que pudéssemos verificar estas diferenciações em sua manifestação.
Observar a recorrência dos aspectos foi um ponto importante para definir o corpus de análise
com o qual trabalhamos, ainda que a extensão do material publicitário que trazia o grotesco
como motivo visual fosse muito menos explorada dentre as tópicas predominantes na
publicidade. A partir deste trabalho de apreciação do material e de levantamento dos aspectos
recorrentes foi preciso, então, delimitar suas configurações, privilegiando os tipos de grotesco
59
a partir de suas representações; isso porque as várias tipologias do grotesco já indicadas (o
satírico, o cômico, o carnavalesco, o burlesco, o escatológico, dentre outros) não se
apresentam todas na publicidade. A publicidade não se apropria do grotesco em todas as suas
manifestações possíveis, como pode ser constatado com certa freqüência no cinema ou na
literatura, mas assimila uma ou outra ordem devido às exigências próprias de seu campo de
atuação. Portanto, nesta pesquisa, o grotesco satírico ou irônico e, por vezes, o cômico,
abrange um espectro satisfatório para a análise, já que são as principais formas assumidas pelo
campo publicitário.
Uma vez observados estes tipos de manifestação do grotesco, o próximo passo é tratar a
questão das diferenciações dentro destes tipos, as suas “ramificações”; compreender como
suas modalidades se expressam e como produzem seus efeitos. As representações do grotesco
na publicidade se constituem, assim, de três modos; num deles, a caracterização ambígua dos
personagens constitui a personificação como aspecto central da formação do grotesco. A
combinação entre os elementos de naturezas distintas, o humano e o inanimado, colocada em
diversas situações que destacam uma espécie de interação entre eles, ou ainda, inanimados
cuja acentuação de certas expressões marcadas pelos recursos fotográficos lhes confere uma
impressão de ser vivo, cujas modificações e ambigüidades resultam em impactos estéticos,
nos modos de leitura, nos modos de ver.
Na segunda modalidade o que se percebe é uma disposição de certos elementos internos da
imagem que compõe uma ambientação grotesca, e que não está necessariamente ligada à
figuração de objetos ou corpos bizarros, esquartejados, deformados, mas adquire uma
recorrência ao grotesco pela via de uma ambiência, de um cenário como espaço de
“encenação” (de teatralização) remetido às caracterizações da natureza do grotesco em sua
aparência noturna, lúgubre, sinistra. Por fim, o modo pelo qual o grotesco é assumido pela
figuração das personagens a partir de sua aparência “real”, onde o motivo grotesco é
representado pela via da indicação, da exibição das deformidades, das seqüelas físicas, pois
tem um caráter muito mais demonstrativo, quase “desvelado”, onde os recursos de
composição na imagem são menos artificiosos e mais ligados ao aspecto de uma
representação do personagem como se apresenta de fato, configurando um caráter
testemunhal do grotesco.
60
É claro que na formação de um ambiente grotesco ou de uma personificação há uma escala de
recursos usados na imagem fotográfica (luminosidade, contraste, enquadramento, entre
outros), que é maior e que dinamiza o trabalho de análise. Quer dizer, o esforço em refinar os
elementos é maior nestes tipos de modalidades expressivas do grotesco que os predominantes
naquele onde se observa uma exibição do motivo em uma personagem como se fosse
registrada na “vida real”, uma vez que sua representação deve ser mais demonstrativa, mais
direta, ou seja, deve enfatizar um caráter de testemunho. No entanto, isto não quer dizer que
ele seja “empobrecido” em seus recursos e por isso deva ser negligenciado; antes, admitimos
que seus elementos se articulam de um modo diferenciado, mobilizando outros aspectos. A
luminosidade, o contraste, o enquadramento, tudo isso pode ser considerado, na análise do
grotesco, de um modo mais fecundo numa modalidade que em outra, mas certamente em
todas entram em jogo outros dispositivos operacionais e textuais, na imagem.
Deste modo, nosso texto percorre três aspectos da caracterização do grotesco que se observam
na personificação, na ambientação plástica e no testemunho do grotesco. Nosso olhar
privilegia uma análise dos aspectos concernentes à imagem fotográfica numa perspectiva
textual, observando uma discursividade que lhe é própria através dos arranjos destes
elementos, ou seja, de sua estrutura interna. A análise destaca quatro elementos fotográficos
que, conforme sua articulação, conferem um valor discursivo à imagem, ou seja, compreender
como a natureza bidimensional da fotografia repercute num estado de personificação, como a
luminosidade constrói sua ambiência plástica, como o enquadramento caracteriza um valor
testemunhal e, por fim, o modo como o espaço é trabalhado nestas configurações do grotesco
como um todo.
Dada a escolha em observar o funcionamento destes aspectos como parte integrante das
estratégias que conformam um campo propriamente visual tomado pela publicidade, o texto
se ocupa em trazer à “linha de frente” os recursos fotográficos sem um aporte
necessariamente ligado às questões comerciais ou mesmo de veiculação dos materiais, tão
priorizado nas pesquisas publicitárias, antes, reconhecendo as bases de uma estruturação do
mundo visual amplamente sedimentado por uma espécie de “cultura das imagens” que de todo
modo nos faz experimentar ou participar desta realidade. Decorre daí, aliás, a dispensa de
chamar em causa certas informações “extratextuais” no material de análise (apesar de constar
todas as referências em anexo), uma vez que o estudo não tem por objetivo considerar o
61
campo de produção ou de veiculação destas imagens, mas apenas compreender como
configuram o grotesco como tema visual.
Não é precisamente o local de onde a fotografia foi produzida, quem são os personagens de
cena (se vítimas de fato ou atores) ou quem foi o fotógrafo para entender as estratégias de
leitura, pois admitimos que seu percurso já esteja dado na própria imagem, inclusive, suas
solicitações ao espectador. Além disso, a publicidade conta com nossa disposição para
“aceitar” aquilo que vemos; uma peça é construída para ser vista sem remeter a certas
elaborações muito “refinadas” ou reflexivas do leitor/espectador, a não ser pela sua
assimilação de marca, de produto ou de um reforço de valores ou hábitos e que qualifica um
material do tipo publicitário. Assim também entendemos que seu material visual atende a
certos protocolos e finalidades específicas, imediatas, objetivas, por isso certos dados de
informação contextual só estão presentes na composição de uma peça se eles obedecem a uma
destas funções na leitura. Compreendemos que uma estilística do grotesco se configura na
organização de caracteres plásticos e figurativos, pondo uma relação de equivalência entre
expressão e contexto dos personagens através da contextualização dos cenários, da
caracterização dos personagens, dos gestos, das atitudes expressivas, dentre outros aspectos
que analisamos.
No entanto, precisamos demarcar que a proposta de uma investigação sobre estes aspectos
estilísticos do grotesco no discurso publicitário reivindica certas posições acerca do tipo de
abordagem que fazemos sobre a imagem. Primeiro, há um evidente esforço em compreender a
organização dos recursos próprios à imagem que se constituem como centros de construção de
sentido, vistos em sua possibilidade de portadores de um valor discursivo (sobretudo na
publicidade, que se utiliza destes recursos muito apropriadamente); em segundo lugar,
precisamos estabelecer o modo como a imagem é tratada nesta análise, posto a partir de uma
perspectiva diferenciada dos estudos semiológicos (vista desde Barthes), isto é, desvinculada
de uma noção lingüística ou enunciativa, que compreendia a imagem estruturada a partir do
modelo da dupla articulação. Assim, a compreensão desta estrutura organizada na qual a
imagem publicitária se manifesta como fato de discurso nos coloca num tipo de abordagem
que privilegia os aspectos visuais a partir das suas propriedades internas, tendo os operadores
plásticos e icônicos como componentes dos modos de configuração do grotesco na
publicidade.
62
2. O MOTIVO GROTESCO NA PUBLICIDADE
Na primeira seção, vimos que o motivo grotesco era assumido por caracterizações próprias
nos campos da crítica literária e estética assim como nas artes visuais, expoente nas pinturas
de Bosch, Brueghel, Goya, dentre outros. No entanto, a assimilação do grotesco pelo campo
publicitário
33
nos indica um emprego mais restrito do tema, e também, mais específico, pois
se mostra condicionado pelo reconhecimento de um conteúdo visual a partir de um “lastro”
cultural médio. A publicidade recorre ao motivo grotesco a partir do que já se convencionou,
do que já se sedimentou como um tipo de imagem grotesca ao longo do tempo para um
público de modo geral. De certo modo, podemos dizer que o que há é a utilização de um
repertório próprio do grotesco na publicidade e que está relacionada, sobretudo, a uma
apropriação de seu tema a partir dos modelos já fundamentados pelas artes visuais, literárias,
teatrais.
O que observamos é que na base da recorrência ao motivo, a publicidade recorre a certos
recursos que remetem a um tipo de grotesco classificado e difundido pela arte pictórica (se
tratando mais detidamente das imagens), mormente, como uma busca pela utilização apenas
dos “aspectos convencionados” que permitam a um espectador posicionar-se em sua
“referência de leitura”, isto é, que seja possível ao espectador reconhecer os elementos visuais
que foram utilizados em uma peça publicitária como algo relacionado ao grotesco, já visto
anteriormente em um outro tipo de material visual qualquer. Este processo de codificação ou
de convencionalidade (de certos aspectos do grotesco que são tomados de certo contexto
artístico para o campo publicitário) pode ser explicado a partir das noções de Umberto Eco
quanto à formação de um léxico, de uma espécie de repertório.
Eco, em A estrutura ausente (1976)
34
, distingue códigos e léxicos a partir de sua relação
denotada ou conotada, respectivamente, de modo que os signos denotativos são estabelecidos
33
Neste texto, optamos por utilizar o termo publicidade, simplesmente para referenciar os materiais usados na
análise sem necessariamente classificá-los de acordo com certas terminologias, (como propaganda, publicity,
advertising, entre outros), mas nos valemos apenas de seu aspecto de veiculação a fim de evitar as freqüentes
controvérsias que os conceitos de publicidade e propaganda geram devido às apropriações e empregos
corriqueiros dos termos. Para o aprofundamento destas questões conceituais na área de publicidade e
comunicação organizacional indicamos duas obras onde observamos algumas considerações atuais e
complementares destas vertentes: SANTOS, Gilmar. Princípios da Publicidade. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2005 e KOTLER, Philip. Administração de Marketing. São Paulo: Atlas, 1998.
34
A obra data de 1976, mas o exemplar que utilizamos aqui é o da 7ª. ed./2ª. reimpressão, 2005.
63
por códigos e os conotativos são estabelecidos por “subcódigos” ou “léxicos” específicos.
Para exemplificar esta diferença, o autor propõe que qualquer um que tenha o conhecimento
do idioma italiano saberia identificar que a palavra cane significa cão, mas poderia ignorar o
fato de que se emprega esta mesma palavra, conotativamente, para expressar um “mau tenor”.
Do mesmo modo, vimos na apropriação do termo poire para designar uma caricatura do rei
Philipon num cartum e que relacionava tanto a palavra indicando a forma da fruta (pêra)
quanto sua extensão conotativa que significava “imbecil”, em um sentido figurado. O que Eco
nos indica nesta questão é que as relações entre códigos e léxicos podem ter significados
diversos conforme suas combinações; contudo, sua fixação é definida e depende das
correspondências culturais a que os códigos já estejam relacionados. Em um outro exemplo,
temos a imagem de uma vaca no pasto e uma lata de leite em pó ao lado em uma peça de
outdoor. A imagem indica, para nós, a relação entre a natureza, a vida saudável e outros
atributos de qualidade que estão ligados entre o animal no campo e o produto, mas
provavelmente para os indianos (povo que cultua a vaca como animal sagrado) esta
correspondência não se estabeleceria do mesmo modo, dado que o léxico é tomado de modo
diferenciado e está ligado às experiências e vivências culturais preestabelecidas.
O que a publicidade faz quando se apropria de certos aspectos do grotesco, já fundamentados
pelas artes, é tomá-los, enquanto léxicos, constituindo, então, uma espécie de repertório
visual
35
. O tipo de tratamento luminoso numa peça publicitária que representa uma caverna ou
um ambiente fechado, sombrio e obscuro, por exemplo, faz com que se restitua, para o
espectador, um tipo de experiência com este ambiente já visto em filmes, em um quadro, em
um livro, em um programa de Tv ou nos contos infantis. Mas a publicidade não precisou,
efetivamente, intitular de grotesco o ambiente representado na peça para indicá-lo ou para que
fosse reconhecido, pois conseguiu mobilizar certo léxico do espectador (baseado em suas
experiências prévias) a partir do uso de certo aspecto plástico (luz) na imagem. É neste
sentido que se pode falar, ainda, de uma cooperação entre obra e espectador, mas discutiremos
esta questão mais adiante, nas considerações de Gombrich.
35
Umberto Eco ainda estabelece outros níveis de codificação que conformam a comunicação visual publicitária;
o nível icônico, iconográfico e o tropológico, pelos quais o processo de identificação dos signos conotados e
denotados é possível de acordo com os artifícios retóricos. Para nós, a noção de léxico compreende, em um nível
básico, a formação de uma espécie de repertório visual “médio” do grotesco usado pela publicidade, por isso,
não tomamos todos os níveis observados pelo autor. Ver ECO, Umberto. A estrutura ausente - introdução à
pesquisa semiológica. 7º. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
64
Portanto, o que entra em jogo neste processo de apropriação publicitária em uma imagem do
grotesco é já um outro modelo convencionado pela arte pictórica, por exemplo, se
estabelecendo como uma espécie de assimilação segunda dos aspectos de uma imagem
grotesca, como um segundo “refinamento” de caráter muito mais geral, muito mais superficial
de suas propriedades, apenas para que um espectador médio possa remeter-se a um outro
sistema de códigos já sedimentado culturalmente, quer dizer, em torno dos seus “estereótipos”
já estabelecidos. Isto nos permite admitir que a publicidade não constrói um modo próprio de
utilizar o motivo grotesco, mas o faz na base de referências, de citações, pois vimos que o
tema do grotesco, em uma imagem publicitária, se dá como “aspecto”.
A seleção destes aspectos concernentes ao grotesco nas manifestações pictóricas é, então,
regida, na publicidade, pela disposição de certos recursos plásticos e figurativos, que,
arranjados de certo modo, configuram uma espécie de “repertório visual”, seja através de um
tipo de luminosidade, da noção de espaço em um ambiente, da dimensão dos personagens de
cena, das expressões ou indumentárias que marcam seus personagens, enfim, estes traços
visuais, quando resguardados numa imagem, firmam o estatuto do grotesco na publicidade
(cada qual será analisado mais profundamente nas próximas subseções deste capítulo). Neste
caso, ainda, a capacidade de reconhecimento e de leitura está “ancorada” em um sistema de
imagens baseado em códigos convencionados (portanto, de ordem cultural) e que se relaciona
com os denominados “códigos da expressividade”, isto é, tipos característicos dos traços de
cada artista e que, segundo Eco, já estão “sedimentados” por um determinado tempo:
[...] certo léxico do grotesco e do cômico se apóia em experiências e convenções
que remontam à arte expressionista, a Goya, a Daumier, aos caricaturistas do século
XIX, a Breughel e talvez aos desenhos cômicos da pintura dos vasos gregos. (ECO,
2005, p. 111).
No entanto, se pudemos observar as várias modalidades expressivas sob as quais o grotesco se
estabeleceu enquanto fenômeno visual e categoria estética, isso nos permitiu traçar uma
espécie de esboço de classificações: o grotesco satírico, o grotesco cômico, o escatológico, o
teratológico, o carnavalesco, conforme suas assimilações nas artes literárias, no romance
policial, na pintura do barroco espanhol; mas que, no campo publicitário, esta escala se
restringe. A apropriação do grotesco pela publicidade se estabelece na base de outros
protocolos necessários ao campo da comunicação mediática. O modo como observamos a
inscrição do grotesco (agora nos veículos de comunicação de massa), enquanto tema na
65
publicidade, mantém o intuito de exposição ao público, mas aqui não se trata de qualquer
modo de exposição e nem de qualquer tipo de público. Devemos, portanto, identificar os
elementos que constituem as estratégias discursivas do grotesco nas imagens publicitárias
considerando que o público já porta algum tipo de experiência com imagens deste tipo.
Trata-se de explorar, brevemente, uma extensão, um limite da apropriação do grotesco pela
publicidade e que está relacionado ao aspecto cultural. O tema do grotesco precisa ser
culturalmente localizado pela publicidade para que consiga estabelecer a noção comunicativa
neste processo. É preciso que o espectador já tenha, de algum modo, uma familiaridade com
este tipo de imagem que lhe possibilite reconhecer o grotesco aqui representado, pois a
publicidade conta com este repertório do grotesco já instaurado culturalmente.
Portanto, para compreendermos esta apropriação, precisamos delimitar que, primeiro, a
publicidade usa o grotesco do modo como este já se institucionalizou culturalmente em outros
tipos representacionais. Os “motivos” grotescos já vêm convencionados, por assim dizer.
Segundo, no que concerne às operações discursivas propostas pela publicidade há uma
segunda “triagem” deste grotesco, pois, de acordo com o tipo de finalidade publicitária (seja
comercial, seja institucional), o grotesco é trabalhado para um fim específico, é colocado
como tema para cumprir uma finalidade: relacionar um valor ao produto ou serviço anunciado
e deste modo persuadir o espectador. E, neste ponto, o grotesco é assumido pela publicidade
como um tema visual a partir de certos artifícios, certos recursos em relação aos seus outros
modos de manifestação já vistos, está inscrito sempre pelo recurso da ironia
(predominantemente) ou da comicidade; já que o tema é construído, ou ainda, configurado,
para se dirigir ao produto ou serviço ao qual está vinculado e não apenas para expor o motivo.
De modo que o tipo de representação do grotesco precisa ser suficientemente “legível”,
reconhecível, pois a própria natureza publicitária estabelece uma finalidade prática: a
mensagem deve ser assimilada e, por isso, “franca”, clara, e mais, aceita. O grotesco não pode
ser tomado aqui como uma representação figurativa totalmente repulsiva ou abjeta a ponto de
não “poder” ser visto numa peça publicitária, precisamos reconhecer que ele é da ordem de
uma construção imaginária, simbólica, é representado indiretamente pelos códigos
convencionados. Com isto não queremos dizer que ele tenha se firmado no campo das artes de
modo absolutamente abjeto ou cruel, mas apenas reconhecemos que seus contextos são
regidos por outros protocolos, diferentes do publicitário. O grotesco é tomado para servir a
66
certo propósito publicitário, e por isso ele precisa ser decodificado e assimilado pelo receptor
como uma mensagem que se refere a um produto, uma marca, um nome. Não podemos perder
de vista que o que analisamos é o grotesco como tema e o modo como as imagens
publicitárias recorrem a este tema para que possa ser devidamente inscrito ou aceito em certo
contexto. Portanto, de um lado temos o grotesco inscrito em uma função retórica, de outro, em
uma função comunicativa, e que, não obstante, se coligam às condições da recepção.
É necessário demarcar as três caracterizações pelas quais o grotesco é reconhecido como tal
no contexto publicitário. Em uma delas, o grotesco se apresenta como uma personificação,
dada pela combinação, pela mescla entre dois domínios de naturezas distintas, entre homem e
animal, homem e objetos, esta composição especial entre elementos inanimados (ou
irracionais) e expressões do ser humano que qualifica certo tipo de configuração de um
grotesco personificado. Nesta modalidade, o tema é tratado geralmente em seu aspecto
cômico, da brincadeira, da paródia. Consiste em ver uma coisa como se fosse outra, há um
quê do lúdico que não podemos desprezar nas imagens deste tipo. Aqui o grotesco é mais
engraçado, mais jocoso e, de certo modo, se aproxima mais da visão grotesca que vimos em
Bakhtin ao tratar do “realismo grotesco”.
Em outro tipo, notamos a configuração de um tipo de cenário, de uma ambientação grotesca,
a representação de um cenário em um ambiente grotesco, onde alguns recursos fotográficos
instauram uma modelação deste ambiente através da luminosidade, do espaço, da dimensão
dos objetos de cena, da fixação das poses dos personagens. Esta configuração recorre ao
motivo muito mais pela via de uma impressão de um ambiente, e não podemos esquecer que
grotesco vem do italiano grotta, que se remete à gruta, ao obscuro, onde os recursos da
imagem estão postos para uma dimensão de uma ambiência noturna, lúgubre, capaz de gerar
seu tipo específico de efeito. As imagens deste tipo apresentam um “tom” mais sombrio, mais
“sinistro” e também mais irônico, apartado da jocosidade predominante na personificação.
Para Bakhtin, seria um tipo nos moldes do “romantismo grotesco”, mais característico do
lúgubre.
E, em um terceiro modo de configuração predomina a exibição do motivo a partir dos
personagens aparentemente “reais” que compõem as imagens, o que marca seu valor é a
condição de testemunho das personagens com suas deformidades, das pessoas em estado
terminal de doenças, das suas marcas de violência, de acidentes, enfim, a exploração de
67
circunstâncias ou situações na qual o motivo grotesco é “declarado” em seu modo de
apresentação, ou seja, pela exibição supostamente direta de suas vítimas. Neste caso, os
recursos da imagem fotográfica são colocados de modo a valorizar e a destacar o elemento
figurativo principal, o personagem, pois a atenção é voltada para os detalhes de um corte, de
uma fisionomia moribunda, de uma lesão, de uma deformação física. Neste tipo de grotesco,
fica mais evidente o sentido de “advertência” da mensagem e por isso a exposição mais direta
da condição dos personagens. O foco das peças é direcionado para uma advertência sobre
certos hábitos, certos comportamentos das pessoas em geral, como por exemplo, “não beba e
dirija”, “o fumo causa câncer”. Aqui, a relação “causa e conseqüência” destes
comportamentos é exposta pelas seqüelas dos personagens, as imagens assumem um valor
metonímico e, por conseguinte, o choque e o espanto são mais característicos como reações.
Se na ambientação grotesca os aspectos são trabalhados para provocar uma sensação de um
espaço de cena, como se fosse possível estender este espaço até nós ou, de outro modo, nos
instaurarmos dentro deste espaço; por outro lado, quando o que se tem é uma imagem que
expõe um personagem grotescamente, como se fosse uma “vítima real”, então os recursos são
condicionados à clara exibição de suas situações expostas diante de nós, à frente de nossa
vista. Na personificação, diferentemente, os recursos fotográficos participam como agentes de
uma acentuação, de uma ênfase nos objetos e personagens de modo que pareçam animados ou
ao contrário, onde os animados nos pareçam inanimados. Vejamos, então, como estes
elementos da imagem se articulam para produzir um efeito em cada modalidade.
68
2.1 ANÁLISE DOS ELEMENTOS INTERNOS DA FOTOGRAFIA PUBLICITÁRIA NA
FORMAÇÃO DO DISCURSO VISUAL DO GROTESCO
Neste momento, nosso ponto de análise incide sobre o modo de funcionamento discursivo dos
elementos ditos “internos” de uma imagem fotográfica. O que queremos é fazer notar a
aplicação de certos elementos (ou recursos) próprios à fotografia que concorrem em uma
discursividade da imagem buscando sua associação com as modalidades do grotesco. Se
admitimos que a fotografia nos apresenta uma atividade organizadora, se é um “modo de
construir mundos”, precisamos compreender, em uma primeira instância, de que modo ela se
organiza para que repercuta no tratamento do motivo. É neste sentido que buscamos analisar a
disposição de quatro elementos fotográficos: bidimensionalidade, luz, enquadramento e
espaço, como os recursos principais da imagem que, em dada articulação, repercutem nas
configurações do grotesco. Reconhecemos que estes elementos estão organizados em certa
estrutura discursiva e informacional (que compõe o signo fotográfico) e por isso mesmo
reivindica aqui um estudo mais diferenciado de certas perspectivas (sociológicas ou
etnográficas) mais comumente adotadas nas análises que se valem do material fotográfico.
A partir da adoção desta perspectiva um tanto mais imanente, buscamos analisar a disposição
dos recursos fotográficos em uma dimensão discursiva, tendo como base o tema do grotesco.
Em outras palavras, se uma luminosidade específica instaura um sentido do grotesco através
da construção de sua ambiência, um outro tipo de luminosidade mais direta, mais uniforme,
nos apresenta, explicitamente, o motivo “encarnado” em suas personagens, por exemplo. De
todo modo, há uma organização destes recursos que confere um tipo de configuração
específica, seja pela luminosidade, pelo enquadramento, pelo espaço. Daí porque tentamos
compreender o grotesco privilegiando a porção plástico-icônica dos materiais, organizada
num tema visual, como um processo complementar, que afeta o plano da expressão e, por
conseguinte, o sentido.
2.1.1 A personificação do grotesco e sua relação com a natureza bidimensional da
fotografia
Um modo pelo qual o grotesco é encontrado em imagens publicitárias é dado pela
“atribuição” de qualidades, expressões ou atitudes tipicamente humanas aos seres inanimados
ou irracionais. O que notamos é que há uma relação “tensa” entre os personagens (ou objetos)
69
e o contexto no qual eles são representados, em uma fotografia publicitária, a partir de certos
componentes contrastantes. No entanto, esta “tensão” é necessária para conformar seu motivo
a partir da acentuação de certas expressões dos personagens atrelada à organização das
propriedades internas da fotografia. Quer dizer, um tipo de luminosidade específica, um
ângulo apropriado ou uma distância adequada, além de conferir certa “dramaticidade” aos
personagens, acentua ou minimiza certos aspectos que poderiam passar despercebidos, mas
que são necessários para a constituição deste pequeno mundo ficcional, estreitando, em certa
medida, a relação entre os limites da realidade e da representação.
No caso da personificação do grotesco ainda há uma caracterização de ordem morfológica que
está em jogo aqui; o humano e o inanimado são colocados conforme esta necessária relação
opositiva. Um ser inanimado parece carregar alguma expressividade de um rosto humano, por
exemplo, ou ainda, um ser animado pode ser visto como se fosse um manequim, um boneco,
diante do modo como sua postura foi fixada na fotografia. É este aspecto ambíguo, de
dubiedade, que marca a conformação do tema visto de modo mais lúdico, expõe a brincadeira
de ver um objeto como se fosse uma pessoa, ou vice-versa.
Em seu livro Transforming images (2000), Barbara Savedoff observa um aspecto que nos
parece fundamental para explicar esta espécie de “jogo” na imagem; trata-se da ambigüidade
como ponto decisivo para gerar um sentido, neste caso, do grotesco cômico ou satírico. Tendo
como foco de seu estudo as modificações possíveis e “estranhas” que os objetos podem
apresentar de acordo com as técnicas (simples ou elaboradas) fotográficas, para Savedoff a
imagem não só resgata uma memória sobre algo, não apenas preserva, mas também apresenta
um modo de ver. É neste “modo de ver”, que ela observa a fotografia a partir de sua relação
com a realidade das coisas em suas modificações e ambigüidades (as quais resultam em
impactos estéticos), onde faz referência a uma série de obras escultóricas e pictóricas que
apresentam a relação animados/inanimados vistos sempre em uma manifestação oposta à sua
natureza, onde a distinção ou a fronteira entre eles parece se “dissolver” nas imagens
conforme a utilização de certos recursos fotográficos.
No caso do grotesco, algo similar nos ocorre, pois nossa atenção incide sobre o modo como o
tema se estabelece a partir de uma organização estrutural da imagem, a partir de sua
70
modelação plástico-icônica, que põe em jogo seu próprio caráter de representação
36
como se
fosse realidade. Na publicidade, este jogo ambíguo que caracteriza a personificação como um
tipo do grotesco é usado apenas como artifício de uma programação de efeito; de uma
construção ficcional posta como uma “armadilha” ao olhar. A idéia não é “enganar” o
espectador, mas mostrar a ele o artifício da brincadeira, dar a ele apenas a impressão do que
vê como se fosse real. Assim como em um “faz-de-conta”, a intenção da imagem publicitária
não é representar o grotesco como uma visão do real, mas sim, articular o motivo grotesco
com seu modo de representação, como um recurso de imagem. Por ser uma imagem de
natureza publicitária não se trata de evidenciar o grotesco como um registro do real, porém
colocá-lo de modo a provocar uma “impressão visual”, daí a necessidade em exaltar o caráter
ambíguo, mas evidenciando seus artifícios, ressaltando, de certo modo, a artificialidade
própria da sua composição. A imagem publicitária se propõe como um “faz-de-conta”, pois só
funciona na medida em que se reconhecem os elementos que estão em jogo.
Para Savedoff, os artifícios deste recurso se põem por dois elementos principais; o gesto é
evidenciado como primeiro aspecto visível desta articulação ambígua entre o que pertence ao
domínio do real, do humano e o que é de ordem do material/inumano. Esta ambigüidade
gestual compreenderia os gestos, as atitudes ou as poses que não correspondem à sua
natureza, mas são fixadas como se fossem. Por exemplo, uma pessoa fotografada em uma
pose típica de um manequim de vitrine ou uma boneca que parece dirigir o olhar a uma pessoa
ou a um animal próximo a ela. Assim, os inanimados assumem expressões ou funções de
entes humanos, ou ainda, são investidos de uma ênfase maior que os supostos humanos
representados conferindo a impressão dúbia ao olhar do espectador. Ainda que seja possível
observar as diferenças entre o que é representado e o que não é, a disposição do representado
em certo contexto faz com que notemos uma interação entre eles.
A autora ilustra este aspecto a partir do que chama de “fotografia de representação” – como
em uma foto de Charles Nègre (1851), figura 9, onde vemos a pose de um homem ao lado de
36
Neste sentido, compartilhamos da mesma noção de realidade na imagem indicada por Jean-Marie Floch, onde
qualquer imagem apresenta apenas uma relação de semelhança com a realidade do mundo exterior, pressupõe
um “crédito de analogia” entre o material visual dado e as condições de um sistema de expressão e significação
no interior de uma cultura. Deste modo o real nas imagens é apenas a construção de uma referência, possui um
caráter reportativo apenas. Daí considerarmos o grotesco, na imagem publicitária, como resultado da produção
de um efeito de sentido de realidade, como uma prodão de uma “ilusão referencial”, como indica Floch. Um
aprofundamento desta questão na fotografia pode ser encontrado em FLOCH, Jean-Marie. Les formes de
l’empreinte. Périgueux: Pierre Fanlac, 1986.
71
uma estátua que também aparece fixada numa pose peculiar, de modo que, vistos juntos,
parecem interagir.
Figura 9: Foto 1 – The gargoyle of Notre Dame, 1851, Charle Nègre.
Fonte: The Metropolitan Museum of Art.
Esta mesma imagem pode nos oferecer indicativos para compreender um outro aspecto da
ambigüidade em Savedoff: a ambigüidade perceptual, destacada pela autora, se refere à
impressão que se dá aos objetos reais e inanimados como se fossem feitos do mesmo modo,
como se compartilhassem da mesma natureza física de origem pelo recurso da equivalência
tonal acentuado na fotografia. Feitos de pele ou de mármore, ambos são vistos do mesmo
modo, indiferentemente; a distinção entre eles se obscurece e o efeito é marcado pela
acentuação “confusa” gerada pela interação aparente entre o que é animado e o que é
inanimado, pois a distinção entre fotografia e representação é atenuada com o jogo das cores
(ou das texturas).
Um outro ponto destacável nesta ambigüidade é reconhecer que a própria bidimensionalidade
da fotografia reitera esta impressão de que homem e objeto parecem um tanto indistintos. O
que as cores, a textura ou um outro tipo de iluminação poderia “revelar” é atenuado aqui, pois
vemos num conjunto e, aliado à bidimensionalidade, os personagens parecem compartilhar da
mesma natureza inanimada (ou animada, no caso da estátua em pose). Nas imagens grotescas,
este recurso consegue dar conta do efeito que resulta em um estranhamento do olhar num
primeiro momento, e que é instalado tão logo somos capazes de recorrer a este
72
reconhecimento, pois se não “caíssemos” na armadilha proposta pela imagem, o efeito não
seria gerado. Assim, uma estilística do grotesco se configura na organização de caracteres
plásticos e figurativos de humanos como objetos inanimados (e vice-versa), pondo uma
aparente relação de equivalência entre expressão e contexto dos personagens através da
contextualização dos cenários, da caracterização dos personagens, dos gestos, das atitudes
expressivas, dentre outros.
A quietude, a planificação, e, fotografias em preto e branco, a limitação dos valores
monocromáticos, tudo contribui para disfarçar as diferenças entre pessoas e
representações. Este disfarce pode ser auxiliado por uma cuidadosa escolha de
ângulo, enquadramento e iluminação. A ambigüidade gestual pode ser realizada
pela justaposição da representação com situações ou pessoas de modo semelhante,
onde a representação aparece em correspondência com os arredores.
37
(Tradução
nossa)
Além dos recursos fotográficos que conformam esta caracterização, como o tom de preto e
branco, que “disfarça” aspectos de textura dos personagens deixando-os nivelados quanto à
sua natureza, Savedoff acrescenta um outro ponto a este “modo de ver”; neste caso, ela inclui
nossa tendência natural (ou convencional) de “antropomorfizar” objetos e coisas. Este
processo de antropomorfização responde ao mesmo que denominamos aqui de personificação.
Em certa medida, a justaposição entre os elementos humanos e materiais (inumanos)
dialogam entre si pelo fato de serem colocados juntos, próximos em um mesmo plano, de
modo que a dimensão física dos objetos fotografados, no enquadramento, permite reduzir, em
um primeiro momento, o objeto para os limites da imagem fotográfica ao mesmo tempo em
que amplia o objeto (ou magnifíca-o) ao espaço da imagem, como é o caso desta foto de
Walker Evans, Torn Movie Poster (1930), Figura 10.
37
SAVEDOFF, Barbara E. Transforming Images: how photography complicates the pictures. Ithaca: Cornell
University, 2000. p. 43.
73
Figura 10 – Foto 2: Torn Movie Poster, 1930, Walker Evans
Fonte: <http://thispublicaddress.com/tPA1/images/06_2002/evans15.jpg>
Para Savedoff, esta imagem apresenta um efeito “grotesco e perturbador” quando se observa a
imagem da mulher desenhada como se fosse, de fato, o rosto de uma pessoa visto em uma
interação com o elemento externo justaposto ao pôster; o papel rasgado, como se fosse
produzido pelas lágrimas que escorrem pelo rosto da personagem.
O efeito grotesco da fotografia do pôster de filme depende da equivalência do
objeto e sua representação, da mulher e da mulher-desenho, que a fotografia
permite. (SAVEDOFF, 2000, pg.51).
Figura 10 (detalhe)
A captura do detalhe do pôster (o rosto do casal em primeiro plano) e sua relação com o
espaço do suporte, com os limites da superfície fotográfica, conferem à bidimensionalidade
(ou planificação) o aspecto necessário para causar esta impressão ambígua. Podemos tomar a
imagem de um desenho como se fosse a imagem do rosto de um casal humano. Além de
haver certa “redução” dos objetos reais ao plano da representação, onde o espaço da imagem
se funde com o espaço exterior, há também a próprio plano bidimensional da foto que entra
74
como recurso reforçador deste efeito de ambigüidade. Então, o que se classificaria humano
por sua forma, tamanho e natureza, com a planificação (ou a bidimensionalidade) fotográfica
“perde” seus atributos naturais de movimento, de profundidade, de cor e passa a ter o mesmo
padrão visual de uma escultura, de um desenho, de uma representação qualquer, e é isto que
constitui uma chave possível para compreendermos de que modo funciona, na imagem, um
objeto ser tomado como uma pessoa e vice versa.
Vale observar também que, aliado aos aspectos plásticos, há um valor dramático e narrativo
em certas peças, pois a imagem fotográfica conta com uma característica própria ao
dispositivo, que é o de um recorte temporal da realidade
38
. Ao analisar a representação da
ação na fotografia, Picado
39
(2005) observa que os gestos e as atitudes corporais capturados
em uma foto, além de evidenciarem um sentido narrativo pela aproximação icônica a certos
protocolos pictóricos (retoma-se o gesto a partir de acentos próprios àqueles convencionados
pela arte pictórica) evidenciam uma relação com a natureza temporal da fotografia que
confere, ao recorte da imagem, uma capacidade de propor ao espectador uma impressão de
sucessão temporal. O que ocorreu antes, durante e depois daquele recorte se obtém através do
que denomina de “arresto” do tempo fixado na imagem. No caso da personificação no
grotesco não se trata de discutir as condições narrativas em uma fotografia, mas apenas notar
que o que atribui o sentido ambíguo é identificar, em uma imagem, esta justaposição de
elementos diferenciados e que foram fixados na foto.
O que é animado não se distingue do que não é, criando uma impressão de unicidade, pois
passam a ser integradas como se estivessem dentro de um mesmo estatuto ontológico,
compartilhando da mesma natureza. O fato de que a fotografia é uma imagem única,
capturada, permite assimilar dentro de um mesmo espaço (do plano visual), elementos
distintos como se fossem equivalentes, pois suas diferenças estão niveladas pelo aspecto
bidimensional da fotografia. Assim, a justaposição de seres de naturezas distintas num mesmo
38
Não subentendendo aqui um sentido discursivo submetido ao dispositivo enquanto aparato técnico, mas
reconhecendo que a base da oposição animado/inanimado é firmada por mais este aspecto temporal como uma
outra condição da ambigüidade fixada pela captura do instante, já que as propriedades que diferenciariam o que é
animado e inanimado estão niveladas no plano da segmentação de um recorte espaço-temporal. Outras
observações acerca do investimento narrativo às representações em fotografias, especialmente aquelas
trabalhadas em Robert Doisneau, podem ser encontradas em SCHNEIDER, Greice e PICADO, José Benjamim.
“Construção de mundos em fotografias de representações: supressão e ambigüidade em Robert Doisneau”. In:
Revista Significação, 22/1, 2004, p.59-78.
39
PICADO, José Benjamim. “Olhar testemunhal e representação da ação na fotografia”. In: Revista E-Compós.
Agosto, 2005. Disponível em <http://www.compos.com.br/e-compos>. Acesso em: out.2006.
75
plano é um tipo de recurso estratégico do grotesco muito encontrado na publicidade, mas
devemos assinalar que na fotografia publicitária o acaso não é um elemento que reitera esta
impressão ambígua, pois a publicidade nitidamente constrói, posiciona, arranja seus objetos e
personagens. O que na fotografia de Nègre (Figura 9) ou de Evans (Figura 10) parece ter um
dado de acaso, de coincidência, que reafirma o jogo ambíguo na imagem, na publicidade este
dado não ocorre, não participa do fazer fotográfico. Vejamos esta imagem.
Figura 11 - Peça 3
Fonte:<http://www.advesti.ru/images/ENEP_19030_0032457A.JPG>
Esta peça da Sisley (uma marca de roupa feminina), da Figura 11, traz uma imagem que
funciona neste mesmo modo opositivo que vimos observando. A interação entre a boneca e a
mulher, na imagem, é dada através da posição paralela de uma à outra, como se a boneca
estivesse logo atrás das pernas da mulher, que esboça um passo. A oposição fica ainda mais
marcada quando vemos os olhos da boneca, que parecem olhar atentamente em direção à
mulher (e que parece se despir), a qual não vemos por inteiro. Nós olhamos um objeto
inanimado “vendo” um ser animado que não é exibido (nem por inteiro e nem para nós) e,
segundo sua posição na imagem (de lado para nós e de costas para a boneca), não parece
saber o que acontece, mas é alvo do olhar de uma boneca. Nosso olhar é “fisgado” na direção
dos olhos de uma boneca que vê, como se fosse possível ser flagrada em sua atitude. Neste
caso, nosso olhar a personifica de acordo com o posicionamento da boneca no local da cena.
Na verdade, é o olhar da boneca que parece instaurar a direção da leitura desta imagem, da
direita para a esquerda, dela para a mulher à sua frente e de nós (espaço exterior) para ela
(boneca) dentro da imagem.
76
Outro ponto que marca a oposição entre elas parte da diferença entre a dimensão magnificada
das pernas da mulher em relação ao tamanho desproporcionalmente menor da boneca. Assim
também outros elementos adjacentes reiteram os contrastes. A indumentária de uma e de outra
define certa oposição; enquanto a boneca está vestida com um traje mais requintado, mais
luxuoso, em um estilo mais antigo e recatado, a mulher usa uma minissaia, sandálias de salto
alto e uma pequena bolsa preta na mão que apóia a cintura, compondo um estilo mais
despojado, “moderno” e sensual. Porém, o elemento mais destoante da imagem parece ser
mesmo a presença da mulher, uma vez que o cenário exibe certos elementos que transparecem
um estilo de época que interage muito mais com a boneca. Podemos constatar um piso
decorado, um tapete, a parede do local é dividida entre o que nos parece mármore com frisos
dourados e uma parte superior branca, duas peças ornamentadas de tapeçaria presas à parede,
um aparador de madeira com motivo entalhado e com um objeto (que parece de porcelana)
em cima, e, por fim, a metade de uma cadeira dourada com forro de assento azul. Tudo no
ambiente remete a um estilo antigo, luxuoso e sofisticado.
A luminosidade assume uma dimensão igualmente peculiar ressaltando os aspectos plásticos
dos objetos de cena; ela destaca o brilho do tecido acetinado das vestes da boneca, a
intensidade dos cabelos muito loiros da peruca, o detalhe dourado da cadeira, uma sensação
de maciez do forro azul de veludo, mas também destaca a forma das pernas alongadas da
mulher delineando seus músculos em uma pequena contração de um passo. Em um conjunto
e, diante da distância da personagem, uma primeira visada poderia nos levar a inferir a
presença de uma menina (ou de uma anã), mas a luz não reflete um brilho ou uma umidade
típica dos olhos humanos. Seu tamanho é muito desproporcional e a forma como a boneca
posiciona suas mãos também é outro aspecto indexador de sua natureza inanimada,
tipicamente de uma manequim de vitrine, enfim, quando atentamos para os detalhes, as
diferenciações se destacam com mais ênfase.
De todo modo, a personificação ainda é dada por uma atitude do olhar, deve-se a um modo de
ver. Ainda que a bidimensionalidade consiga instaurar seu efeito ambíguo, que personifique o
inanimado em animado, ou que unifique suas diferenças, tudo depende de um modo de ver, da
nossa atitude de olhar, aliás, ressaltado por Savedoff e comentado no início deste item. A
idéia consiste em fazer o espectador participar de certo clima lúdico, como num “faz-de-
conta”.
77
Figura 12 – Peça 4
Fonte:< http://www.diesel.com/sucessfullivingguides>
Esta peça da Diesel Jeans (figura 12) também traz aspectos muito semelhantes à imagem
anterior. Ela dispõe da diferença marcada pela dimensão que um objeto assume em relação ao
outro; aqui, o elemento humano (o homem) é visto por nós de costas, mas de frente para os
objetos, que parecem bibelôs de porcelana, e que o vêem. Todos os bibelôs; onças, tigres,
cachorros, palhaços, soldados, todos eles parecem expressar um olhar de baixo para cima,
vulnerável, de solicitação emotiva para com o homem a sua frente. Este, por sua vez, carrega
na mão direita um grande martelo e seus músculos dos braços contraídos parecem em uma
iminência de “avançar” sobre os bibelôs para destruí-los. Um dos palhaços visto na lateral
esquerda, logo abaixo da mão fechada do homem, parece estender as mãos espalmadas num
pedido de “auxílio” ou “piedade”. Parte dos desenhos que podemos ver na parede do cenário
também parece dialogar com o restante dos objetos, há um rosto que parece olhar para o
homem como se fosse uma testemunha do que está prestes a acontecer. E, mais uma vez, a
luminosidade parece incidir sobre a superfície dos objetos revelando a natureza de seus
materiais, mas destaca também um brilho característico dos bibelôs de porcelana, o que
parece reiterar sua condição de “vítimas”, frágeis, dadas as expressões emocionais que
parecem ter.
Faz parte do jogo irônico da peça marcar bem esta oposição entre o que os objetos são e como
eles são vistos, ao mesmo tempo em que estabelece a interação entre o homem e os objetos
pela proximidade que lhe é dada, pois estão colocados em uma situação que os integram.
Além disso, há a presença das calças sem corpos na parte inferior da peça. Como se trata de
78
uma peça publicitária, a luz também serve para destacar seu produto, aqui, a calça do homem,
posicionada bem a nossa frente no primeiro plano, é esta “isca” que parece desfazer a
“tensão” da cena, que desarma o jogo irônico e provocativo da peça, quando relacionamos o
produto e o que o texto da peça traz; o destaque para os bolsos e seus diferentes tipos
funcionais para guardar o que quer que seja.
Para Savedoff, o efeito (satírico) do grotesco que se obtém nas imagens fotográficas é
proveniente desta atribuição de caracteres plásticos e expressivos de humanos aos objetos
inanimados que se realçam e se evidenciam pela capacidade bidimensional da fotografia, e
que põe uma relação de equivalência entre expressão e contexto das personagens. Em muitos
casos, esta planificação ressalta e se corresponde com outras características do objeto
fotografado, como por exemplo, seu aspecto de imobilidade. Em certas fotos de esculturas, é
sua estaticidade que permite um traço assustador de animação. Mas “porque a equivalência da
escultura e de uma pessoa deveria ser mais evidenciada na fotografia, onde ambas são feitas
planas?” (SAVEDOFF, 2000, pg.65).
Savedoff comenta que a chave analítica é a compreensão da animação de esculturas; em
ambos, a animação pelo movimento tomado como iminente é dado pela fixidez da fotografia,
pela falta de cor, em certos casos, e pela nossa tendência de antropomorfizar objetos
selecionados pela nossa atenção. Na fotografia, o que é animado nos impressiona por sua
estaticidade; na fotografia, coisas e pessoas são vistas sem movimento e, mesmo quando um
movimento é sugerido, uma outra equivalência entre animado e inanimado pode ser criada,
como pode ser feita pela disposição de inanimados em um modo de interação com o contexto
ou ambiente no qual se apresenta ou mesmo pela atribuição de expressões fisionômicas dada
aos inanimados, como vimos nas figuras 13 e 14.
Este recurso também foi empregado em algumas das fotografias de Cindy Sherman, por
exemplo, onde ela consegue dispor de bonecos como se fossem pessoas em certas poses
eróticas ou como cadáveres “humanos”, vítimas de desastres. Neste caso, as poses são mais
contrastantes que as expressões, até porque a falta de expressão de um rosto (típica dos
bonecos) combinada a certas poses (próprias de uma pessoa) é que estabelece a tensão na
imagem, ou seja, explicitam a relação contrastante entre o que há de natural em um ser
animado e o que há de artificial em um ser inanimado, mas vistos numa ordem inversa.
79
Figura 13: Foto 3 – Sex Pictures, 1992, Cindy Sherman. Figura 14: Foto 4 – Disaster, 1987, C. Sherman
Fonte: <http://www.cindysherman.com/art.shmtml
Algo similar a este ensaio, no entanto, foi feito na campanha publicitária de um anunciante de
desodorante masculino. Bonecas do mesmo tipo foram colocadas em certos ambientes e com
certos trejeitos ou poses que favoreciam o modo próprio pelo qual deveriam ser vistas a ponto
de nos parecer mulheres em tais circunstâncias:
Figura 15: Peça 5
Fonte: <www.adverbox.com/2005/11/axe.html>
80
Figura 16: Peça 6
Fonte: <www.adverbox.com/2005/11/axe.html>
Nas figuras 15 e 16 podemos reconhecer uma boneca inflável de material plástico ou de
borracha como a personagem central das imagens. A primeira parece estar em um beco ou em
um canto de uma rua recolhendo algo num balde de lixo ao seu lado e conduz um carrinho de
feira (ou de supermercado) cheio de apetrechos que não estão muito nítidos a nossa vista,
provavelmente coisas coletadas de outros lixos. Ambas as bonecas estão despidas, a primeira
tem apenas um pano em volta de sua cabeça e a da figura 16 tem um pano azulado que cobre
da cintura às pernas. Dadas certas características que portam, o formato de seios, a boca
aberta, logo nos faz identificar a boneca como um artigo de sex shops. A ambiência noturna, a
baixa luminosidade, o aspecto sujo e sombrio do local, tanto numa como noutra peça ficam
evidentes.
Há certa sobriedade de cores nas imagens, que favorece uma aparência lúgubre, onde as
personagens são vistas mais por uma espécie de penumbra, um ver entre sombras e frestas de
luz, que de uma incidência global da luz na imagem. Na personagem da figura 16 algumas
sombras de grades se projetam no pano em suas pernas. Ambas parecem “desoladas”,
colocadas numa condição solitária de pobreza e mendicância. Uma parece “catar” coisas no
lixo, a outra “toca” violão no chão da rua em troca de algumas moedas em sua cuia. Ora,
sabemos que somente pessoas poderiam se encontrar em tais estados como os aqui
representados. Estas bonecas são vistas como se fossem mulheres que foram deixadas numa
condição desoladora, na sarjeta. Não só em certa condição econômica, financeira, mas como
81
produto descartável que são: bonecas com finalidades sexuais vistas em sua materialidade
física de objeto, mas que estão em posição de analogia com mulheres “de verdade”.
Esta personificação (da boneca inanimada por uma mulher) fica ainda mais explícita quando
nos detemos no ponto central da ligação entre tema e produto. O desodorante masculino Axe
é o responsável por esta situação: as personagens demonstram as conseqüências que o uso do
produto pode causar, o que é reafirmado através de seu slogan - “o efeito Axe”. Naturalmente
sabemos que se trata de certo exagero à relação consecutiva entre produto e seu uso, uma
estratégia publicitária com recurso retórico:
Figura 17: Peça 7
Fonte: <www.adverbox.com/2005/11/axe.html>
Aqui, na figura 17, a relação comparativa é ainda mais nítida, há uma evidente contraposição
irônica entre um homem idoso (mendigo ou morador de rua), que aquece as mãos em uma lata
de lixo (provavelmente com papéis queimando dentro) e a boneca. Ambos estão em pé, um ao
lado do outro, na mesma posição de direcionar as mãos acima da lata. O posicionamento
paralelo dos personagens favorece um olhar ainda mais apurado que distingue bem as
diferenças formais entre o homem e a boneca; a cor da pele e o brilho do corpo de plástico, a
expressão facial do homem e a rigidez inanimada da boneca, enfim. Em nenhum momento o
espectador é instado a ver uma mulher de verdade no lugar da boneca, o objeto foi usado em
sua própria condição material, não foi disfarçado para poder “enganar” o espectador, mas sua
utilização proposital visa mais a uma ambigüidade, tomar uma como se fosse outra, e não uma
pela outra. Quer dizer, propõe funcionar como um “faz-de-conta” e por isso o objeto
permanece enquanto tal, a brincadeira só funciona na medida em que se reconhecem os
elementos que estão em jogo:
82
[...] os objetos que subitamente ‘ganham vida’ através do processo fotográfico, são
originalmente estáticos, dotados de um certo volume, tridimensionais. A
ambigüidade, nesses casos, é construída principalmente a partir da supressão de
movimento (o que distingue, na vida real, esse objetos dos animados) e da
justaposição com situações que sugerem uma interação entre o mundo real e o
mundo da representação.
40
Esta mesma estratégia é usada pela fotografia publicitária, mas em uma referência ao sentido
do grotesco. O plano fotográfico condensa elementos de naturezas distintas no mesmo nível e
esta composição faz com que os elementos estejam todos integrados por uma dada
proximidade dos fotografados em situações inusitadas (a própria bidimensionalidade da
fotografia reitera isso) e, em certa medida, confere também um valor narrativo à imagem em
um sentido cômico ou mesmo irônico. Tanto quanto nas outras imagens, os personagens
parecem interagir com o contexto onde estão imersos; uma catadora de lixo num beco, uma
pedinte na rua, uma desabrigada em um local de refúgio qualquer. As características das
personagens se adaptam aos locais e ao modo como estão dispostas oferecendo uma cena, um
pequeno e breve “mundo” ficcional é formado aqui.
Outras oposições são marcadas na imagem pelos detalhes nos quais o homem está com uma
roupa escura contra uma parede ou um fundo claro (no qual projeta sua sombra), a boneca
despida com uma tonalidade clara da “pele” sobre um fundo escuro. Estas características
quando vistas em um paralelo reiteram o sentido opositivo “global” da imagem. Eles também
dividem o mesmo espaço, mas parecem alheios um ao outro, pois enquanto o homem lança
um olhar um tanto “vago” para a lata a sua frente e sequer se dá conta da presença de uma
boneca (ou de uma pessoa que fosse) ao seu lado. Se pudermos observar a boneca como uma
pessoa, seu olhar também parece numa outra direção, em um nível mais superior que a
posição da lata. Estes dois personagens pertencem ao mesmo espaço de cena apenas, porém
não se encontram entre si, há um distanciamento visível entre eles. E, ao mesmo tempo uma
“união”, não só por ocuparem um mesmo espaço, mas também por ambos estarem num
estado de fixidez, estáticos; a boneca, por sua própria natureza, e o homem por sua pose
“congelada” na fotografia, onde foi elidido seu movimento.
De todo modo, faz parte do jogo irônico das peças marcar bem esta oposição entre o que os
objetos são e como eles são vistos, ao mesmo tempo em que estabelece a interação entre os
objetos e os ambientes nos quais estão colocadas, em uma “situação” que os integra. Como se
40
SCHNEIDER, Greice. “O olhar oblíquo”. Salvador, 2005. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura
Contemporânea). Faculdade de Comunicação, Universidade Federal da Bahia, 2005. p.104
83
trata de peças publicitárias, o produto ou a marca advém logo abaixo, no canto inferior das
imagens, relacionando o anunciante e o que os textos trazem.
Um outro aspecto da ambigüidade é a redução das diferenças entre representação e objeto
físico pelo recurso da equivalência tonal, o preto e branco, as granulações, a luminosidade,
etc., que ocultam desvios ou divergências aparentes que as características naturais/reais
podem realçar; tanto o que é carne quanto o que é mármore se equivalem. Esta
indiferenciação dos materiais, humanos ou inanimados, oculta os traços e aparecem menos na
planificação fotográfica. Tais recursos fotográficos podem ser tomados como condicionantes
da ambigüidade; no entanto, alguns destes recursos também podem ser vistos na pintura;
contudo, nem sempre obtém o mesmo efeito e isto ocorre por que vimos uma associação
imediata com sua qualidade de ser construção; seus equivalentes são produções dos artistas,
suas construções não são apartadas facilmente deste seu aspecto, e sim, vistas como ficções
imaginativas de imediato. A diferença reside, portanto, em um modo de ler fotografias e
pinturas, ou seja, por convenção perceptiva
41
. “Por conta de sua natureza mecânica de
produção, a fotografia parece ter uma conexão especial com a realidade e uma independência
das intenções do fotógrafo” (SAVEDOFF, 2000, pg. 84).
Nas peças publicitárias que se valem de fotografias (manipuladas ou não) a ambigüidade se
instala quase que instantaneamente porque temos consciência de que, de algum modo, se trata
de um fragmento do real. Só depois começamos a questionar aspectos de manipulação na
imagem; mas à primeira vista ela nos impressiona por ser fotografia. Olhar para bonecas
como mulheres ou para um cão como um brinquedo é o que nos faz personificá-los
instantaneamente, apenas numa visão mais detida dos aspectos constituintes na imagem,
notamos suas diferenciações, ou seja, desvelamos seu jogo.
41
Contudo, outra observação nesta relação com as convenções perceptivas é o uso que se faz da imagem
fotográfica. De todo modo, sabemos que a fotografia é um “recorte” do real, ainda que seja um constructo; na
pintura, internalizamos, assimilamos a imagem conscientes da licença artística da criação. Daí observar as obras
de Magritte, por exemplo, como representações fantasiosas, onde o efeito de ambigüidade é minimizado. Na
fotografia, ainda que vejamos a imagem de um desenho ou de uma pintura, a impressão ou o efeito da
ambigüidade poderá ser causado porque a tomamos como fragmento de uma realidade; desde que associada aos
aspectos que permitam sua classificação ambígua, resguardada a relação objeto e contexto a partir de um
apagamento dos limites entre realidade e objeto ficcional que permite o efeito da ambigüidade.
84
Figura 18 : Peça 8 Figura 19: Peça 9
Fonte: www.blogeko.info/media/foiegrasFR2.jpg
Nessas outras peças (Figuras 18 e 19), a personificação se explicita a partir da colocação de
apetrechos sadomasoquistas em gansos, como se houvesse algum tipo de implicação entre
uma preferência sexual ligada ao desejo e a prática sexual instintiva própria aos animais. Os
gansos estão presos com correntes e faixas de couro pretas num local sombrio, escuro, do qual
só podemos ver uma parte do fundo da parede de tijolos e cimento, bem rudimentar, como se
fosse um porão ou algum lugar subterrâneo. O animal à esquerda (Figura 18) tem uma
mordaça presa em seu bico e o ganso à direita (Figura 19) tem uma venda de couro preta com
pontas de metal presa em seus olhos.
Os objetos que cobrem bico e olhos são usados nas práticas sexuais sadomasoquistas onde o
“sujeito” submete-se ao jogo de não falar ou não ver proposto pelo outro parceiro. Esta
privação de uma das “capacidades” do sujeito reitera o poder dominante que um tem pelo
outro numa relação sexual deste tipo, condicionando a vulnerabilidade de um à autoridade
violenta e prazerosa do outro, mas que, de um modo geral, esta prática é consentida ou
preferível por ambos. No caso da peça, a relação irônica reside em indicar o procedimento
“sádico” da produção do fois gras, onde o animal é super alimentado ao ponto da exaustão (e
hipertrofia) do fígado. A oposição na imagem reside na suposta “atitude” dos animais como se
estivessem “dispostos” a “consentir” com a provocação sádica, pois eles parecem assumir o
próprio local de pessoas que aceitam o sadomasoquismo. Em um deles (na Figura 18) o olhar
do animal se dirige à câmera, pode-se dizer, ao espectador, os animais são fotografados em
85
uma aparência “dócil”, de aceitação, não hostil para com os objetos que lhes aprisionam, pois
em nenhum momento estão agitados, batendo ou abrindo as asas ou em qualquer outro
movimento brusco.
Um outro aspecto relevante é a proximidade que os personagens assumem na imagem. Aqui
os animais são retratados, são destacados em sua posição e atitude de espera e de
disponibilidade para o outro, para aquele que os olha; os animais posam para a fotografia.
Assim também é perceptível que a posição do fotógrafo (tomado pelo olhar do espectador) é
levemente superior aos animais, e, este aspecto pode assumir também seu caráter de
submissão, pois o olhar do outro é direcionado a eles num nível de superioridade.
Figura 20: Peça 10 Figura 21: Peça 11
Fonte:< http://www.tulipan.com.ar/home/index.php>
Já as imagens da campanha de preservativos Tulipán, (Figuras 20 e 21) assumem a mesma
tensão opositiva própria à personificação vista até aqui. Os “casais” de esqueletos que as
peças utilizam intercalam riso e certa perplexidade, um “riso nervoso” como denomina Muniz
Sodré
42
, pela provocação em um limite do cômico. Os esqueletos são apresentados em
posições sexuais e, mais uma vez, o enquadramento e a distância envolvem os aspectos
principais que compõem a imagem em um modo específico de posicionar o olhar do
espectador. A impressão é a de que estão sendo flagrados em seu ato íntimo, como se não
tivessem consciência de que são vistos, pois estariam imersos num momento próprio, íntimo
de um casal.
42
SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. O império do grotesco. Rio de Janeiro: Mauad, 2002. p.56.
86
Figura 22: Peça 12
Fonte:< http://www.tulipan.com.ar/home/index.php>
A distância que os personagens são apresentados em relação ao olhar do espectador é
imprescindível nesta composição. O espectador está próximo o bastante apenas para ver, seu
olhar se constitui no espaço de cena sem ser notado pelos casais, como se constituísse um
flagrante, uma “espiada” às ocultas. Apenas na figura 21, a cabeça do esqueleto parece estar
voltada para o lado onde supomos estar a câmera ou o olhar do espectador.
De todo modo, os recursos se dirigem todos ao destaque dos personagens em sua ação, a
ambiência que se propõe como espaços “frios” (ainda que pareçam locais domésticos; um
quarto, uma lavanderia, uma sala) dada a predominância de um tom cinza pétreo, a economia
cromática, um fundo neutro, a luminosidade intensa e que se mistura à cor do ambiente, quase
uma extensão dele; tudo faz convergir a atenção para as cenas inusitadas protagonizadas por
esqueletos que fazem sexo. Facilmente relacionamos o esqueleto como figura simbólica da
morte e também o sexo como figura simbólica da vida. Um elemento morto dotado de vida ou
o mesmo efeito teria um elemento de vida considerado em um morto. Aliás, nos parece que
esta última implicação é a mais enfatizada pela imagem, pois o jogo de “encaixe” se completa
quando observamos a proximidade entre AIDS/morte e sexo/vida. Mas a morte como
propriedade, neste caso, conseqüência, da AIDS, também se reveste de certa ironia na peça,
que se dá para a programação de um hábito ou de um comportamento social “conduzido” pela
publicidade. Quem pratica sexo sem preservativo estaria fadado à condição de um morto, de
uma simples caveira, sem vida, sem identidade, sem individualidade. Talvez isso reitere a
87
condição do sexo apresentado em uma ambiência absolutamente fria, um tanto distinta do
modo como o sexo é tratado, com toda sua lascívia e qualidade passional típica dos desejos
carnais e retratados com o predomínio de “cores quentes” e um ambiente mais recluso, mais
íntimo; pelo menos esta é a forma mais reconhecidamente explorada do tema pela
publicidade.
No entanto, não podemos deixar de notar uma relação estrutural que perpassa as peças neste
tipo de categoria do grotesco - o efeito cômico, e por vezes irônico, obtido nestas imagens
encontra-se marcado pela justaposição de elementos aparentemente díspares. A oposição
destes elementos contrastantes, quando colocados em uma relação próxima, provoca uma
ruptura de sentido, pois “quebram” a expectativa do que seria natural encontrarmos. Em seu
texto “A historieta cômica” (1973)
43
, Violette Morin denomina tais aspectos de “elementos
disjuntivos” e, embora sua análise incida sobre a produção do efeito cômico em histórias em
quadrinhos e cartuns, consideramos adequado absorver esta noção apenas por observar um
caráter provocativo que a justaposição de elementos díspares causa no modo pelo qual vimos
tratando o motivo. Seja pela ironia, seja pela comicidade, a personificação no grotesco está
muito relacionada por esta idéia de uma “oposição semântica” dos elementos. Tanto mais
inusitada, tanto mais inesperada a combinação, mais tensa é esta justaposição e, por
conseguinte, seu efeito mais pungente.
Figura 23: Peça 13
Fonte:< www.photo.fr/portfolios/pubs/photos/aids.jpg>
43
MORIN, Violette. “A Historieta Cômica”. In: Análise estrutural da narrativa. (Seleção de ensaios da revista
Communications). Petrópolis: Vozes, 1973.
88
Outra configuração temática semelhante se apresenta nessa outra peça da campanha de luta
contra AIDS (Figura 23). A diferença é que há de fato uma personagem humana, uma mulher
em uma posição sexual com um esqueleto. A oposição está baseada entre as naturezas
distintas dos dois personagens, um vivo com um morto: a utilização de um esqueleto como
símbolo qualificado da morte numa posição sexual com uma mulher dotada de vida. O que
atribui certa peculiaridade a esta peça é a inserção de um pequeno texto e de um título “Aids
it’s a dead subject”, mas subject, em inglês, pode ser traduzido tanto como sujeito ou como
tema, motivo, tópico, deixando assim, a complementação do sentido afirmativo por uma
referência ou outra a cargo do espectador/leitor.
Nas imagens seguintes, o grotesco é visto de um modo um tanto diferenciado do que vimos
até aqui, pois observamos que a personificação se deu através da justaposição de objetos cujos
trejeitos e poses pareciam indicar animação ao inanimado, sem qualquer outra intervenção
figurativa nos personagens. Nas imagens seguintes (Figuras 24 e 25) os animais são vistos
como objetos, pois exibem partes do seu corpo feitos de material plástico.
Figura 24: Peça 14
Fonte:< http://www.brainstorm9.com.br/archives/cat_impressoprint.html>
Na imagem da figura 24, vemos um animal deitado sobre um pequeno colchão em meio a
outros objetos espalhados no local: uma meia, um carrinho de brinquedo, a cabeça de uma
boneca, cadeiras mais ao fundo, além de outros objetos que não conseguimos distinguir muito
bem, dada a falta de nitidez em algumas porções da imagem, seja pela proximidade, seja pela
89
distância. De todo modo, o que nos detém o olhar está situado no centro da imagem; um
cachorro sem uma de suas patas traseiras. Ao invés de um dos seus membros vemos uma
cavidade mais escurecida na parte de dentro, dando a impressão de que é oca; de fato, como
um brinquedo, caso contrário, veríamos osso, parte do músculo ou qualquer outro elemento de
constituição orgânica. Assim também a cor desta cavidade é semelhante a dos materiais
plásticos de brinquedos deixando a impressão de que a pata do animal é um membro móvel,
articulável. Logo à frente do animal, vemos a parte deste encaixe: a pata deslocada, estendida
no chão, como um outro corpo inerte.
O aspecto grotesco da imagem implica em uma espécie de jogo de inversões, de caráter
predominantemente irônico, e que consiste em apresentar a cena em seu caráter do inusitado.
Somos instados a ver um cão como se fosse um dos brinquedos ali dispostos; no entanto, o
cão se mostra como um ser vivo e que nos fita, como se pudesse nos indicar um suposto
estado de consciência sobre alguém que o observa em sua condição de “padecimento”.
Figura 25: Peça 15
Fonte: http://www.brainstorm9.com.br/archives/cat_impressoprint.html>
Assim também o caráter ambíguo das situações onde vemos os animais tanto na figura 24
quanto na figura 25 é explicitado em seu aspecto de excepcionalidade pelo modo como a
imagem toda evoca certo ar de familiaridade. A disposição dos objetos espalhados num canto
qualquer em um “quartinho do fundo” de uma casa, onde costumeiramente se deixam objetos
que não têm mais utilidade ou interesse e indicaria a evocação de certa trivialidade não fosse a
90
presença de um animal “esquartejado”. Do mesmo modo, na Figura 25 vemos um animal
jogado na rua junto com outros restos de brinquedos e coisas. Na barriga do cão notamos uma
peça que nos parece o local de encaixe das baterias, que faz certos brinquedos funcionarem.
Nestas duas peças da campanha, identificar a ambigüidade gestual ou perceptiva parece
complicado, pois a intenção de atribuir as duas naturezas (animada e inanimada) de uma só
vez aos personagens é dada de modo bastante confuso. Na Figura 25 até podemos ver um cão
como um brinquedo porque ele parece morto, dormindo ou quebrado, mas na Figura 24 há o
detalhe da perna de encaixe de um cão que está vivo e olha para a câmera, apela ao nosso
olhar. Neste caso, a personificação fica entre a fixação da pose e a interação com os outros
objetos ao redor, criando uma “situação”.
Figura 26: Peça 16 Figura 27: Peça 17
Fonte:< http://www.diesel.com/sucessfullivingguides>
Estas outras peças de campanha da marca Diesel também instauram esta mesma atribuição de
naturezas distintas ao mesmo tempo. Elas parecem jogar com um sentido muito ambíguo que
deixa dúvidas quanto ao reconhecimento de uma pessoa humana com uma cabeça de boneco
ou de um boneco como se fosse um humano. Esta dubiedade fica muito marcada entre a
completa falta de expressão na face das personagens, seu caráter “gélido” (indiferente e
inanimado) combinado aos corpos que são colocados em determinadas posições como
manequins “estilizados”. As personagens parecem que utilizam uma espécie de máscara
plástica, como se tivesse uma tez muito clara e sem qualquer marca de expressão típica de um
rosto humano (com saliências, marcas de acne, pêlos, rugas, entre outros).
91
Estes personagens posam na imagem de modo muito destoante das posturas de manequins, na
verdade eles parecem encenar ou demonstrar, para o espectador, certas atitudes ou hábitos que
os deixaram com tal aparência.
Figura 28: Peça 18 Figura 29: Peça 19
Fonte: <http://www.diesel.com/sucessfullivingguides>
Quando observamos os pequenos textos colocados na peça constatamos esta impressão: suas
poses estão colocadas com uma finalidade demonstrativa para que sejam vistos de um modo
específico. A campanha sugere “receitas” para uma vida mais longa e cada peça compõe uma
parte deste receituário da successful living ao modo da Diesel, que dispõe de pequenos textos
que complementam seu sentido irônico: “Não se mexa”, “inale oxigênio”, “acupuntura”,
“yoga”, “não tenha sexo”, “clone-se”, “beba urina”. Ao final dos textos, a peça nomeia cada
um dos personagens e indica seu ano de nascimento, todos do século XIX. Mas há outros
indicativos que reiteram esta impressão dúbia de pessoas ou bonecos, além da plasticidade de
suas faces destituídas de qualquer expressão - os personagens têm cabelo com aparência de
uma peruca, muito “armados”, seus olhos parecem vitrificados e sem a expressão de um olhar,
a estaticidade que assumem em suas expressões são reiteradas por suas poses coordenadas,
destacando mais uma vez o estado da imobilidade que personifica, reforçado pela
bidimensionalidade da fotografia.
É curioso observar que esta utilização das máscaras faz parte de uma imagerie grotesca
salientada por Bakhtin. Ao destacar as diferenciações de determinados aspectos grotescos no
realismo da cultura popular e no romantismo, o autor salienta que a máscara era uma
particularidade do grotesco vista como atribuição alegre das alternâncias da identidade na
primeira fase (do realismo), mas que teve seu sentido de representação totalmente “negativo”
na fase romântica, usada, então, para dissimular, enganar, esconder, e por isso perdeu o valor
92
jocoso do realismo. Nestas peças, a máscara se aproxima mais do sentido romântico,
subtraindo a individualidade e a ânima de seus personagens.
No Romantismo, a máscara perde quase completamente seu aspecto regenerador e
renovador, e adquire um tom lúgubre. Muitas vezes ela dissimula um vazio
horroroso, o ‘nada’. Pelo contrário, no grotesco popular, a máscara recobre a
natureza inesgotável da vida e seus múltiplos rostos.
44
Do mesmo modo Kayser se refere às máscaras como um elemento visual do grotesco porque
exprime a estranheza da junção entre matéria inanimada ao corpo humano. Para ele há um
efeito sinistro na especial troca de naturezas, onde “o elemento mecânico se faz estranho ao
ganhar vida; o elemento humano, ao perder vida”. (KAYSER, 2003, p.158)
No entanto, a ambigüidade se acentua em outros pequenos detalhes dos corpos de alguns
deles: vemos uma saliência óssea nas mãos (Figuras 27 e 28) ou na altura do pescoço (Figuras
30 e 31), uma pequena sombra que destaca uma contração muscular da coxa (Figura 32) ou da
axila (Figura 28). O modo de caracterização destes personagens foi criado para esconder,
apagar ou disfarçar qualquer traço de humanidade nos personagens, apenas estes pequenos
detalhes nos deixam entrever uma “pista” característica de um ser humano. Mas esta intenção
de apagar o máximo de evidências possível de um ser humano e apresentar um boneco a
qualquer custo neste jogo de ambigüidade se estabelece juntamente com outras articulações
próprias à composição fotográfica.
Figura 30: Peça 20 Figura 31: Peça 21
Fonte:< http://www.diesel.com/sucessfullivingguides>
44
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento - o contexto de François Rabelais.
Universidade de Brasília: Hucitec, 1999.p.35
93
Figura 32: Peça 22
Fonte:< http://www.diesel.com/sucessfullivingguides>
O sentido de estaticidade reiterado pelo plano fotográfico que elide o movimento, nos propõe
uma impressão confusa de ser humano numa pose, a iluminação que se prolonga na “pele”
plástica dos personagens e exibe certa unidade cromática, como se o ambiente se replicasse
nos corpos ou vice-versa, a proximidade com a qual os personagens são destacados na
imagem, são retratados e dispostos para serem vistos, contemplados em sua condição quase
“etérea”, de aparência perfeitamente plástica, sem tempo. Isto faz com que seja demarcada
uma unidade muito clara entre “o que se diz e o que se mostra”, onde os próprios textos
deixam entrever o tom irônico que assume a campanha, vista em um todo.
***
Observar a personificação como um tipo de categoria do grotesco requer que avancemos um
pouco mais na compreensão da estrutura que a conforma. Apesar da contribuição muito
específica de Savedoff sobre a identificação dos recursos fotográficos assimiláveis na
ambigüidade e que geram um efeito determinado, resta ainda notar que a construção de muitas
destas imagens é conformada por uma figura de estilo. Entram em jogo tanto os recursos
próprios da imagem fotográfica (o enquadramento, a tonalidade, etc.), quanto figuras de um
discurso retórico. Assim, podemos identificar que a metáfora constitui esta figura de estilo,
mas no modo como se comporta na imagem publicitária, isto é, como um operador textual,
requer que a notemos além de uma modalidade expressiva, mas também como um elemento
semiótico. Neste ponto, entendemos que a metáfora amplia um pouco mais a noção que vimos
desenvolvendo sobre a personificação no grotesco, pois ela (a personificação) pode ser obtida
94
tanto por uma ambigüidade proporcionada pela justaposição de objetos de naturezas distintas
(e onde os recursos fotográficos participam na acentuação desta construção), quanto pelo
recurso da metáfora e, neste caso, a personificação não é proveniente, apenas, dos usos dos
recursos fotográficos, mas também está associada à própria apresentação (ou exibição) do
motivo, onde os objetos (ou personagens) dispostos são vistos numa relação de analogia.
Umberto Eco, em Semiótica e filosofia da linguagem (1999), dispõe de algumas definições
tradicionais de metáfora; “figura pela qual se dá a um vocábulo um significado que não é o
seu próprio”, ou ainda, “transferência do nome de um objeto a outro por relação de analogia”,
mas, de fato, nos chama a atenção para sua dimensão pragmática como o ponto principal em
uma abordagem semiótica, pois para ele a metáfora não é apenas um recurso estilístico, mas
trata, principalmente, da estrutura dos remetimentos própria à compreensão sígnica. De modo
que compreender uma estrutura metafórica é notar que há uma relação proposicional entre
duas ordens de coisas naturalmente distintas; pondo-se em uma “relação de analogia”
45
o
sujeito, o objeto, o individual, e também o universal, o predicado. Assim, dois domínios
diferenciados, dotados de valores e características diferenciadas, podem ser vistos em uma
relação de equivalência por algum aspecto que os constituem semelhantemente, por elementos
que são reportáveis uns aos outros.
No entanto, Eco ainda nos aponta que este jogo de remissões (remetimentos) entre os
elementos distintos deve basear seu significado levando em conta seu valor conotativo, pois
uma metáfora pressupõe uma construção simbólica. Dizer que “fulano é um doce” não
significa ver as características de uma guloseima na pessoa, mas considerar que este alguém
parece dotado de certos atributos de delicadeza, de meiguice. A metáfora é uma aproximação
destes atributos que pertencem a ordens naturais diferenciadas.
A personificação no grotesco assume, em alguns de seus aspectos, este procedimento
metafórico quando põe em relação de analogia seres inanimados e animados, ou ainda, atribui
certos traços e características de animados aos inanimados (e vice-versa). Nas imagens
publicitárias esta construção não se põe de modo ambíguo (como vimos nos dois tipos de
45
Esta “relação de analogia” comentada por Eco pressupõe uma similitude entre coisas (objetos) de naturezas
diferentes e que são colocadas em um mesmo patamar de equivalência a partir do deslocamento ou transferência
de qualidades, atributos ou características de um ente ao outro. “A relação de analogia é precisamente a relação
metafórica” (ECO: 1999, p. 206).
95
ambigüidade explicitados por Savedoff), mas se exibe figurativamente, recorrendo ao uso da
metáfora.
Nesta campanha publicitária da Nicorette (produtos terapêuticos para combater o tabagismo),
por exemplo, o recurso da personificação se caracteriza pela colocação de um objeto
inanimado (o cigarro) como se fosse um ser vivo, aliás, vimos que esta mesma estrutura se
apresentou em muitas das peças anteriores, como a campanha da Axe (Figuras 15,16 e 17), do
preservativo (Figuras 20, 21 e 22) ou mesmo nos “manequins humanos” da Diesel (Figuras 26
a 32). Em todas elas, vimos que um objeto era colocado para ser visto como se fosse um
humano, onde gestos e poses eram os elementos principais desta estratégia. Já estas peças da
Nicorette, a seguir, trazem um cigarro humanizado gigante colocando-o como uma espécie de
“mascote azarão”, encontrado em diversas situações tragicômicas para demonstrar as
possibilidades de acabar com o agente maléfico do tabaco, caso a escolha do fumante não seja
a utilização do produto anunciado. O cigarro humano apresenta suas características
morfológicas muito próximas das humanas; as cinzas como um tipo de cabelo, um rosto
pintado de branco, os braços, as mãos, mas também suas expressões faciais conotam uma
natureza humana, geralmente de dor ou sofrimento, devido às situações inusitadas e
“traumáticas” nas quais se coloca em todas as peças (figuras 33, 34, 35, 36, 37, 38 e 39).
Figura 33: Peça 23 Figura 34: Peça 24
Fonte: <http://www.erwinolaf.com/Pages/Adv_Frms.htm>
Aqui sua construção é dada no intuito de estabelecer uma relação baseada em uma impressão
de “substituição” ou de “transferência” entre as propriedades morfológicas do cigarro e de
uma pessoa. Tal caráter peculiar assumido neste tipo de grotesco não só reconhece a
possibilidade de articulação entre os dois domínios (do material e do humano), mas por vezes
parece transitar entre eles com certa “naturalidade”, familiaridade: dá-se em “certo grau de
96
normalização”, segundo Eco, porém, na imagem, põe o olhar do espectador em um nível de
“estranhamento” para com as cenas que se apresentam.
Para Umberto Eco o processo metafórico se configura, então, nesta espécie de jogo de
transposições entre diferentes extensões (predicados), que alude às propriedades entre um
elemento e outro. O movimento que se define é, por si, o de um “transporte ou deslocação”
das propriedades entre os domínios conceituais diferenciados, como a uma “modalização
adverbial”, isto é, tomar um como se fosse outro. No caso desta campanha, tomar-se o cigarro
como se fosse uma pessoa, cuja presença é indesejável e passível de toda sorte de
acontecimentos desastrosos.
Figura 35: Peça 25 Figura 36: Peça 26
Fonte: <http://www.erwinolaf.com/Pages/Adv_Frms.htm>
É curioso notar que as peças também recorrem aos artifícios do estilo grotesco propriamente
bakhtiniano: um cigarro gigante é visto em uma série de situações cômicas, absurdas e
exageradas, rodeado de outros personagens igualmente caricaturais e em poses muito
peculiares. Na Figura 34, por exemplo, o cigarro humano é visto sendo esmagado por uma
balança sobre a qual uma mulher sorridente posa como que exibindo sua silhueta. Ao mesmo
tempo uma outra senhora muito gorda ao seu lado, olha com uma expressão “desconfiada”
para a exibicionista, assim como olha também um senhor que está com o jornal no colo. Em
quase todas as peças o cigarro aparece despedaçando-se com seus “órgãos” à vista, sempre
exposto ao ridículo aos olhos dos outros personagens que o rodeiam e também aos nossos,
como se fôssemos mais um dentre a “platéia”, incluídos no espaço de cena a observar aquelas
situações. Caretas e outras expressões fisionômicas dos personagens também são evidenciadas
em seu exagero burlesco, assim como o uso de certas indumentárias, penteados, cenários e
outras caracterizações.
97
Em uma breve comparação, Bakhtin observou também a personificação no uso de marionetes
teatrais como um dos elementos grotescos presente nas fases realista e romântica, onde, para
esta última, os bonecos eram tidos como expressão de um estranhamento do homem ao
mundo em seu redor, como exemplo do “sobre-humano”, e que convertia o que era familiar
em estranho, em insólito. Para ele, as marionetes “traçavam outras fronteiras entre os corpos
humanos e as coisas” (BAKHTIN, 1999, p.46).
Figura 37: Peça 27 Figura 38: Peça 28
Fonte: <http://www.erwinolaf.com/Pages/Adv_Frms.htm>
Figura 39: Peça 29
Fonte: <http://www.erwinolaf.com/Pages/Adv_Frms.htm>
No que se refere à leitura deste tipo de imagens, cabe ainda notar que estas imagens, por seu
lado, não podem ser vistas em uma relação metafórica pela simples justaposição de elementos
distintos. Não se trata da imagem como “depositário” de coisas diferentes, postas
aleatoriamente, mas numa articulação própria, como indicou Eco, onde os elementos se
contrastam (como figuras semânticas opositivas) e por isso estabelecem uma “tensão” entre si,
que constituem, para o receptor, como uma provocação. Deste modo é necessário, portanto,
mobilizar, na recepção, certo conjunto de “saberes enciclopédicos”, no caso da campanha da
Nicorette, por exemplo, é preciso que o receptor identifique a similitude que a peça deseja
propor entre o cigarro e uma pessoa (indesejável), e assim compreender as situações nas quais
o personagem é colocado. O mesmo podemos dizer das outras peças. Daí a necessidade do
98
reconhecimento de certas remissões para que se possa proceder à leitura de um jogo
metafórico (ou mesmo ambíguo) que se coloque em uma imagem.
Neste caso, o discurso publicitário pressupõe as relações já baseadas em hábitos e saberes
inferenciais de um público, relativos aos contextos da pragmática metafórica
46
, “Portanto,
entre as leis pragmáticas que regulam a aceitação das metáforas (e a decisão de proceder à sua
interpretação) há também leis socioculturais que marcam tabus, fronteiras [...]”. (ECO, 1999,
p.204). Estas demarcações socioculturais, por sua vez, já aparecem assimiladas pelo campo
publicitário. O modo como um elemento inumano é disposto em uma atitude humana não é
dado, na imagem publicitária, abruptamente (ainda que seus elementos pertençam a naturezas
distintas, sejam disjuntivos). A personificação no grotesco publicitário é sempre mais sutil,
suavizada ao olhar do público de modo geral. A leitura desta personificação, seja pela
ambigüidade fotográfica, seja em uma relação metafórica, no campo publicitário, precisa ser
aceita e assimilada com certa naturalidade ou, de algum modo, fazer menção às nossas
utilizações cotidianas. Vejamos o caso desta outra campanha.
Figura 40: Peça 30 Figura 41: Peça 31
Fonte: <http://www.ba-reps.com/artists/167/2355/nyt-cover-.jpg>
46
Eco ainda diferencia as noções de dicionário e enciclopédia como dois modelos estruturais do processo de
interpretação. A oposição de um ao outro diz respeito ao modo como se define o valor semântico dos termos, isto
é, a determinação dos significados como “conteúdos fixos” no modelo dicionário e, por isso nos parece uma
forma mais restrita, mais “engessada”, enquanto o modelo enciclopédico possibilita certa “flexibilidade” de notar
o significado porque o observa em sua condição de remetimento a outras ordens e, neste caso, a interpretação
não se restringe ao conteúdo apenas, mas contempla seus contextos relacionais. Eco discorre ainda mais sobre
outros aspectos que implicam nestas estruturas, mas que não consideramos aqui, em nosso caso, a explanação
destes modelos como figuras possíveis para compreender a noção de interpretação usada por Eco é suficiente
para dar conta da questão da leitura das imagens publicitárias que recorrem à metáfora como figura discursiva.
99
As peças de campanha da The New York Times Magazine (Figuras 40, 41, 42 e 43) trazem
alguns animais investidos de certas propriedades humanas, mas também nada nos impede de
relacionarmos aos “adjetivos” que comumente atribuímos àqueles que não possuem hábito de
ler. De todo modo estas propriedades de “deslocação metafórica”, como denomina Eco, estão
ancoradas por algumas características principais nestas imagens: a indumentária, o cenário e a
pose e que, juntas, de certo modo, parece implicar a “personalidade” de cada um deles. Em
todas as peças os animais estão vestidos com roupas triviais a quaisquer pessoas de uma
sociedade ocidental: vestido, suéter, fraque.
Os animais estão em poses típicas de retratos e todos dirigem o olhar à câmera, estão
conscientes do registro fotográfico e, conforme lemos o breve texto inserido na parte inferior
da peça (Figura 40) compreendemos que a pergunta que é feita tem a intenção de estabelecer
um diálogo com o leitor e de exaltar a relação metafórica em causa; you think I’m a smart
ass?, e complementa destacando em vermelho: Well maybe. Let’s comfort a few tests and see.
Logo abaixo, a inserção de uma chamada para uma matéria assinada que integra o exemplar;
How personality researchers are taking the measure of animals, and of us. By Charles
Slobert.
Figura 42: Peça 32 Figura 43: Peça 33
Fonte: <http://www.ba-reps.com/artists/167/2355/nyt-cover-.jpg>
Em todas as imagens, os retratados são exibidos como se estivessem em casa; os ambientes
domésticos são referenciados pelas paredes cobertas com papel decorativo, quadros, cortina,
uma janela com vaso de flores, bibelôs e outros objetos de decoração. Dada a combinação
entre as indumentárias e os ambientes nos quais estão colocados, podemos supor que
pertencem à determinada classe social e que assumem a posição de homens e mulheres com
100
família, como “chefes e donas de casa”. Outro aspecto que relaciona os animais como se
fossem humanos é a expressão de seus rostos - um burro com certo olhar direto, altivo, com
“lábios” entreabertos como se pronunciasse algo para quem o vê; um porco (Figura 41) com
traje social e um olhar de perfil, em uma posição mais alta para aquele que o olha (é curioso
notar que uma linha em sua testa que acompanha a sobrancelha do olho direito esboçando um
ar de “boçalidade”); uma vaca de perfil e que aparenta um sorriso “maroto” (Figura 42); uma
ovelha com a cabeça levemente inclinada para seu lado esquerdo e com ar de “timidez e
recato” (Figura 43), enfim. É como se as imagens esboçassem uma espécie de jogo entre
forma e caráter, isto é, o caráter fixado pela forma; o caráter moldado pela forma que o
assume, seja como animal, seja como objeto, seja como homem.
Eles são tomados de seus contextos convencionais para exibir um tipo específico de caráter
para encarná-lo; o caráter é revelado a partir do modo como ele se manifesta, pelo tipo que o
assume e pelo modo como é posto em relação com o contexto no qual se exibe, pode-se dizer
uma explicação ao modo da “fisiognomonia”. Elementos heterogêneos (o homem e o animal,
por exemplo) quando numa condição de analogia permitem observar que certas qualificações
morais estão relacionadas ao destaque de certa forma física; a aparência física aqui parece
“indexar” uma qualidade moral.
Esta estratégia foi explicada por Vladimir Propp quando buscava compreender a estrutura do
efeito de comicidade, mais especificamente, inscrita na estrutura das relações comparativas
entre homem e animais, mas reconhecendo que tal associação poderia extrapolar o domínio
do cômico e incidir numa sátira, ou criar uma “impressão de grotesco”:
[...] aqueles casos em que a comicidade surge do confronto de algumas qualidades
exteriores de sua manifestação, sendo que essa comparação era tal de modo a pôr a
nu as qualidades negativas da pessoa representada ou observada. Na literatura
humorística e satírica, assim como nas artes figurativas, o homem, na maioria das
vezes, é comparado a animais ou a objetos (...) É fácil notar que a aproximação do
homem com animais, ou a comparação entre eles, nem sempre suscita o riso, mas
apenas em determinadas condições.
47
(Grifo do autor)
Esta articulação entre as características destacadas compõe o jogo de deslocamento entre
animais e humanos contido na personificação e que conduz a leitura destas imagens. Estes
tipos de circunstâncias nas quais as diferenças são trabalhadas em uma “reordenação” de
47
PROPP, Vladímir. Comicidade e riso. Tradução Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas. São Paulo:
Ática, 1992. p.66
101
elementos e propriedades em outros contextos distintos dos convencionais conferem uma
outra ordem da leitura. Certa “subversão” de valores, dos aspectos simbólicos, enfim, pode
conferir tipos diferenciados de efeitos que vão desde o cômico, o bufo, o grotesco, a depender
do modo como seus aspectos são tratados numa imagem.
O estudo sobre as aplicações da personificação pode atender a diversas categorias estéticas,
neste caso, a estrutura metafórica que compreende a personificação se dirige a uma finalidade
do grotesco. Onde as diferenças estão dispostas em um patamar de correspondência a fim de
modelar um motivo visual e de gerar um efeito do disgusto
48
, ou seja, a desarmonia do gosto
gerada por uma figura do rebaixamento. Neste caso, além de uma colocação dos elementos
heterogêneos e díspares em um mesmo patamar, as imagens apresentam sua estrutura coligada
a um estilo retórico, que, segundo Sodré, se constitui como o de um “rebaixar” os aspectos
que conotam valores com carga simbólica diferenciada para um plano mais ligado ao terreno
que ao sublime, concretizando, portanto, o grotesco.
2.1.2 A luz e a formação da ambiência plástica do grotesco
Neste ponto, tomamos a luz como aspecto central de nossa observação sobre os elementos
constitutivos da imagem e como, muitas vezes, ela dispõe as outras unidades que compõem
uma fotografia mais especificamente. O que propomos estabelecer é a demarcação de um
aspecto plástico sobre o qual o grotesco se apresenta como tema das imagens publicitárias. Se
vimos, anteriormente, como o caráter bidimensional da fotografia repercute em um modo de
instaurar o grotesco através da personificação, neste item nos detemos na luz como um
recurso no qual o grotesco se caracteriza a partir de uma ambiência, que compartilha de uma
espécie de “construção cenográfica”, ou ainda, de uma “cena fotográfica”. De modo que o
espaço da imagem é tomado como espaço de cena, isto é, um local no qual se pode ver um
“fragmento” do acontecimento que se desdobra, como algo que ocorre diante de nossos olhos.
Para isso há uma conformação de coisas, objetos, pessoas, que parecem articuladamente
colocados em suas situações e a uma determinada distância, mas em prol de uma
luminosidade que “rege” esta configuração.
48
Conceito proveniente da estética italiana utilizada por Muniz Sodré para caracterizar o grotesco. In: SODRÉ,
2002, p.17
102
Um aspecto proposto pelo tipo de luz que observamos nestas imagens é mais próprio à idéia
de uma luminosidade, ou seja, do modo de empregar a luz a fim de produzir um determinado
efeito; neste caso, o do “acolhimento” do olhar e o da instauração de certo “clima” grotesco.
Ao mesmo tempo em que a luz nos posiciona no espaço de cena, que nos confere este efeito
de tridimensionalidade nos implicando na cena, como se ajustasse nosso corpo para espreitar
algo, ela também consegue criar, como a uma dimensão, uma sensação do grotesco, em uma
espécie de “clima” que é sugerido através do jogo de luz e sombra que é proposto nas
fotografias. Assim, falamos da luminosidade tomando-a como um elemento que trabalha a
imagem para uma dimensão de uma ambiência noturna, lúgubre, por vezes, “sinistra”, capaz
de gerar um tipo específico de efeito ao espectador.
Para a análise deste recurso nos valemos da perspectiva semiótica de Jacques Fontanille, onde
recorremos às quatro dimensões da configuração luminosa que indica: iluminação, destaque,
cor e matéria; consideradas não apenas como elementos de uma organização visual, mas
também como centros de construção do sentido concernentes a um modo de enunciação
propriamente visual.
O que nos é caro nas observações de Fontanille é o modo como o tratamento da luz apresenta
um valor discursivo na imagem, em certa medida, como sua análise tenta compreender a
relação entre os aspectos físicos (da luz) e perceptivos na instauração de um sentido
discursivo. Como sua grade analítica se oferece a propósito de um estilo greimesiano,
dispensamos aqui certas recorrências às categorias do que o autor chama de “formas de
dinâmicas tensivas”
49
para apreender, a partir das quatro dimensões comentadas, em uma
base conceitual aplicada pelo autor, como procede este valor discursivo da luz.
Em seu texto Sémiotique du visible (1995), Fontanille demarca, em uma primeira
aproximação, a distinção entre os quatro aspectos da configuração luminosa; os efeitos de
luminosidade, a partir da extensão dos modos de circulação e da relação específica entre uma
fonte emissora de luz e um alvo; os efeitos do destaque, de acordo com a concentração de luz
49
O autor dimensiona a análise a partir da categorização de quatro pólos opostos e tensivos entre si, aos quais
denomina de “modulações tensivas”; a partir da aplicação desta grade aos aspectos (luminosidade, destaque, cor
e matéria), o autor pode observar os contrastes e predominâncias destas propriedades e conferir como um valor
enunciativo é organizado em certa imagem. Para nós, cabe apenas tomar de empréstimo os aspectos referentes à
luz na base conceitual que o autor convoca. De todo modo, outras observações mais detalhadas do quadrado
semiótico podem ser encontradas em FONTANILLE, Jacques. Sémiotique du visible. Des mondes de lumière.
Première Édition. Presses Universitaires de France: Paris, 1995.
103
no espaço da imagem; os efeitos de cor (ou cromatismo) que estão relacionados às regiões
definidas e localizadas da imagem, e, os efeitos de matéria, relacionados à ocupação e difusão
da luz no espaço visível e que permite notar certas propriedades da aparência do objeto, como
volume, textura, entre outros.
De um modo geral, a ambiência do grotesco se organiza conforme a disposição da luz em
certas porções da imagem, deixando entrever apenas o que se deseja destacar; o espaço
visível, neste tipo de imagem, é sempre “reduzido” a uma extensão pequena e que está muito
mais ligada ao efeito de direcionamento do olhar do espectador pelo “caminho” previamente
definido na imagem. Do mesmo modo a concentração da luz em certas regiões da imagem
tem o intuito de revelar apenas o que se quer, neste caso, as imagens são fortemente marcadas
por uma penumbra que as envolvem em boa parte, pois a luz não preenche todo o espaço de
imagem, antes, se concentra em uma ou em outra porção. Também não há uma utilização de
cores contrastantes ou supersaturadas, como é comumente vista em outros tipos de imagens
publicitárias, as cores tem pouca variação tonal e muitas vezes são complementares à
tonalidade escura que predomina na imagem. Enfim, embora cada imagem apresente uma ou
outra variação na organização destes aspectos, ora privilegiando um mais que outro,
sublinhamos como cada imagem específica trabalha o recurso em prol de um efeito plástico
do ambiente grotesco.
Figura 44: Peça 34
Fonte: <http://www.diesel.com/sucessfullivingguides>
104
Na Figura 44, no que concerne à iluminação, notamos que a luz tem uma direção, ela incide
de cima para baixo sobre os objetos da cena, tendo uma luminária dependurada como
principal ponto emissor da luz, que foca e destaca o corpo da personagem em primeiro lugar e
se deixa “espalhar”, ou melhor, refletir, nos outros objetos de cena, propondo um
direcionamento do olhar: “A luminosidade repousa sempre sobre a representação vetorial de
um espaço onde se difunde uma intensidade entre uma fonte de luz que emite e um alvo que
recebe.” (FONTANILLE, 1995, p.31).
A iluminação, na imagem, atende a um sentido de direção, ela é “vetorializante”, propondo
um percurso do olhar; nesta peça, a luminária foca a personagem (e a ação que executa),
destaca-a em primeira instância e ela mesma determina o sentido do olhar no plano de
projeção, direciona, ao mesmo tempo em que determina o alvo principal da imagem; o
personagem em sua ação. Assim, podemos notar que se constrói uma espécie de espaço
disponível para aquilo que se reconhece como “plano visível” em um conjugado entre luz e
sombra que predomina em toda a imagem e estabelece uma direção de leitura de acordo com
as regiões (“plages”) que a luz incide. Esta combinação (luz/sombra) ainda nos apresenta
outras funções na imagem, já que modela a forma dos objetos, evidencia os contornos,
confere profundidade e amplia (ou reduz) a assimilação da cor nos objetos, de acordo com as
diferentes concentrações no espaço.
Neste tipo de imagem, os objetos da cena são destacados por um tipo específico de tratamento
da luz; a imagem é vista muito mais por uma penumbra que por um tipo de luz que preenche
toda a imagem. Esta diferença pode ser compreendida a partir da relação que se estabelece
entre a fonte luminosa representada e a construção da espacialidade. Neste ponto, podemos
dizer que as observações de Corrain
50
são complementares às de Fontanille. A autora discorre
sobre as duas modalidades de iluminação (externa e interna) conforme o tipo de espaço
(itinerante e radiante) na imagem. Segundo a autora, na espacialidade itinerante a luz externa
é a representada e difundida uniformemente (ou quase) por toda a imagem; a luz preenche
todo o plano da expressão e está pressuposta, como se fosse “inerente” aos corpos da imagem.
No espaço radiante ocorre o contrário, a luz é geralmente representada a partir de um objeto
difusor (uma vela, um castiçal, um canhão de luz) que delimita o espaço visível do plano. Em
outros casos, a luz é apenas um foco luminoso sem uma representação explícita, mas
50
CORRAIN, Lucia. “A espacialidade no quadro à luz noturna e a construção da intimidade”. In: Semiótica
plástica. São Paulo: Hacker, 2004. pp. 215-227.
105
implícita, porém refletida nos outros objetos da imagem que se quer destacar, onde a luz pode
ser proveniente do próprio objeto de cena posto na imagem.
Na Figura 44, uma luminária localizada na porção superior da imagem delimita o espaço
visível. A luz interna e o espaço radiante conformam a relação necessária para criar o
ambiente grotesco. A capacidade exploratória do olhar fica então “reduzida” aos limites
impostos pela luz sob a determinação de observar a imagem a partir do corte do
enquadramento que a luz define. Aliás, há uma relação entre o nome da campanha “The
Dark” e o próprio sentido do grotesco instaurado visualmente, pois vimos que grotesco se
refere à grotta. Assim, apenas uma aproximação da imagem, ou seja, a idéia de “entrar” na
cena permite deter a apreensão de um campo mais detalhado, de uma exploração mais detida
dos objetos que compõe toda a imagem. Só podemos observar aquilo que a luz emitida pela
luminária nos permite. Neste sentido a cena grotesca é um acontecimento, uma “abertura” de
mundo dada à vista apenas pelo instante em que as “cortinas” permanecem abertas.
Um outro ponto que devemos sublinhar é que os objetos visíveis (só estão visíveis) são
destacados pela luz sobre um fundo escuro. Aqueles nos quais a luz incide mais diretamente
superam o “nível de claridade média” que possui os demais objetos e esta possibilidade se dá
de acordo com a localização do objeto ao ponto emissor de luz. Assim, alguns objetos devem
ser vistos mais que outros, como numa estratégia proposta na imagem. Aliás, este mesmo
recurso já era utilizado por Rembrandt e também Goya, como vimos anteriormente:
Como Rembrandt obtém sua luminosidade vibrante? Já mencionei algumas das
condições perceptivas. Um objeto se apresenta luminoso não só em virtude de sua
capacidade absoluta, mas superando o nível de claridade média estabelecido por sua
localização num campo total. Assim o misterioso brilho de objetos mais escuros
surge quando são colocados em ambiente ainda mais escuro.
51
É curioso observar a implicação com a luz neste caso, pois ela emana do objeto para cumprir
uma determinada função, seja direcionar a leitura (varredura) da imagem e conferir
profundidade, seja “fixar” seu motivo através do recurso. A imagem da Diesel atende a estas
duas propriedades: tanto usa a fonte de luz para determinar uma possível direção de leitura
que vai do homem de costas (num primeiro plano) à fornalha, no fundo da cena, e depois
para as calças sem corpos na porção direita da imagem, e também consegue criar uma
51
ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual - uma psicologia da visão criadora. 7ªedição. São Paulo: Pioneira,
1992. p.314.
106
ambiência que é da ordem do grotesco. Wölfflin apresenta estas caracterizações da
luminosidade ilustrando bem sua aplicação na imagem “A visita de Maria ao templo” de
Tintoretto, na figura 45.
Figura 45: Pintura 5 – A visita de Maria ao templo, 1552. Pintura em tela, 429 x 80cm., Jacopo Robusti
Tintoretto
Fonte: S.M. dell’Orto, Veneza.
Tanto na peça da Diesel (Figura 44) quanto nesta imagem de Tintoretto (Figura 45), a luz
reconhece certa “autonomia”
52
(conforme propõe o Barroco), que não atende aos preceitos de
uma visibilidade perfeita ou que reproduz os detalhes de cor e forma de um objeto real, mas a
imagem aqui é preenchida “por um movimento da luz, que não deve coincidir, entretanto,
com as exigências da clareza material” (WÖLFFLIN, 2000, p.274), tão fortemente marcada
pelo estilo renascentista. Em ambos os casos, o tratamento luminoso define um caminho a ser
visto dentro da imagem, o uso da luz não privilegia todos os objetos, alguns foram feitos para
permanecer na obscuridade ou para revelar apenas certos traços, daí porque o predomínio da
obscuridade. O destaque da luz está em compor este espaço salientando o que é mais
importante nela, de onde é proveniente e para onde vai.
52
“O barroco rejeita esse grau máximo de nitidez. Sua intenção não é a de dizer tudo, quando há detalhes que
podem ser adivinhados” (Wölfflin, 2000, pg. 272). Esta observação de Wölfflin indica uma das diferenças que
assume o estilo barroco em relação ao renascentista a respeito do tratamento da luz. Para ele, o princípio da
clareza absoluta para a relativa representa uma ruptura dos marcos renascentistas que exaltavam a linha, a forma
e o contorno (o que ele denomina de estilo linear) submetendo a luz a mero elemento que possibilitava a visão de
um motivo. Com esta modificação no tratamento da luz, ela passa a definir uma pictorialidade, que é típica do
estilo barroco, ou seja, a luz é usada com outras finalidades, muito menos ligada à uma nitidez da imagem e mais
relacionada a produção de efeitos plásticos do movimento, da profundidade, da representação de certa
instabilidade nas condições do olhar (muito mais furtivo e menos explícito). Daí sua concepção de luz autônoma,
que “rege”, de certo modo, uma imagem.
107
Essa composição, de pujante energia espacial, constitui um bom exemplo do estilo
em profundidade, que opera basicamente com recursos plásticos; por outro lado, é
igualmente significativa para ilustrar a discrepância entre os acentos da imagem e
os dos objetos. É curioso que, apesar de tudo, a composição consiga apresentar uma
narrativa clara! A pequena Maria não fica perdida, afinal, em meio ao espaço.
Apoiada por formas discretas que a acompanham, e sujeita a condições que não se
repetem para nenhuma outra personagem do quadro, ela impõe sua pessoa e retifica
sua relação com a figura do Sumo Sacerdote. Assim forma-se o núcleo de todo o
conjunto, embora as duas personagens principais estejam separadas também pela
distribuição das luminosidades. Este é o novo caminho seguido por Tintoretto.
53
Outro ponto observado na Figura 44 é o destaque que é dado ao personagem e aos objetos que
se localizam logo abaixo da fonte de luz e que concentra o campo visível numa área
demarcada. Vemos com certa nitidez os objetos que se localizam logo abaixo da luminária,
pois a fonte parece banhar uma área mais ou menos triangular.
Figura 44 (detalhe)
O mesmo ocorre com a Figura 46, o canhão de luz acima concentra o campo da imagem nas
personagens logo abaixo da fonte de luz, mas como possui um tamanho maior, naturalmente,
a extensão da área que abrange também é maior. Do mesmo modo, a luz indica a direção de
leitura da imagem, vai do corpo deitado numa mesa cirúrgica às jaquetas jeans sem corpos
que vagam em um primeiro plano. Tanto na Figura 44, como nesta outra (Figura 46), a
obscuridade predominante na imagem só é “rompida” pelo azul do jeans, além do brilho
intenso que se põe na logomarca e que destaca o nome “Diesel” das peças.
53
WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da história da arte. 4º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p.
291.
108
Figura 46: Peça 35
Fonte: <http://www.diesel.com/sucessfullivingguides>
Tanto na Figura 44 quanto na Figura 46 dificilmente distinguimos bem quais as cores
utilizadas nas imagens. No geral, o que temos é um predomínio do preto que preenche a
imagem e a luz que incide sobre os objetos incorpora o azul (escuro) e uma ou outra gama de
tons pastéis, indo do bege ao ocre. Em um dado espaço luminoso, a articulação entre cor e
local é determinada pela proximidade ou afastamento do foco de luz. A cor seria, portanto,
resultante de uma modulação da intensidade luminosa no espaço da imagem. Tanto o azul da
calça da personagem da Figura 44 quanto das jaquetas das personagens da Figura 46 é
destacado, ou realçado, de acordo com sua localização em relação à fonte luminosa. Se os
outros objetos possuem uma saturação maior ou menor do bege, por exemplo, se mais escuro,
fosco, brilhante ou claro, não podemos distinguir com precisão porque não compartilham do
mesmo nível de iluminação. E, é claro que em se tratando de uma fotografia com finalidade
publicitária, o que está em destaque é o produto que ele anuncia; o blue jeans.
No entanto, a cor deixa entrever sua estreita relação com um outro componente de nossa
análise: a matéria, ou “luz-matéria”
54
, como denomina Fontanille. De fato, estes dois
elementos são complementares e estão interligados devido à localização do objeto em relação
à fonte de luz. Do mesmo modo que a cor se destaca conforme sua posição, assim também
54
Fontanille atribui à luz-matéria a propriedade do reconhecimento de certos aspectos táteis de um objeto, a
possibilidade de “ver” a superfície de certos objetos sobre os quais a luz incide e revela sua textura, seu volume,
suas granulações, enfim.
109
ocorre com a matéria; a partir da localização ela informa o volume, a textura, a profundidade,
ou seja, o tipo de “superfície” do corpo revelado pela luz. O nível de detalhes é maior
conforme sua posição, isto é, a luz-matéria permite a intervenção de outros modos sensoriais
no plano visível, possibilitando quase uma espécie de aspecto “táctil” dos objetos/ corpos na
imagem. Na Figura 44, por exemplo, a luz nos dá a ver um brilho do suor no dorso lateral
direito do personagem e que define uma musculatura enrijecida pelo esforço da ação que
executa. Do mesmo modo parecemos reconhecer a espessura densa que tem o líquido que é
retirado do abdômen da personagem na Figura 46, e, então, de posse de outras informações
que percebemos da imagem, inferimos que se trata de gordura, muito provavelmente. É esta
impressão que nos revela a textura das substâncias representadas, o resultado da capacidade
informativa que a luz-matéria determina sobre os objetos ou corpos nos quais incide.
Apenas quando nos aproximamos um pouco mais das imagens começamos a notar mais
atentamente outros componentes destes cenários. Começamos a explorá-los de acordo com o
que a luz nos permite - na Figura 44, braços e pernas já esquartejados, uma fornalha, um
brilho em um plástico preto que sugere o contorno de um corpo envolto dependurado de
ponta-cabeça. Na Figura 46, um corpo que é submetido a uma espécie de cirurgia (talvez
clandestina), parecendo pouco cuidadosa quanto aos aspectos de higiene (há recipientes
espalhados pelo chão, em cima de bancos e mesa), uma espécie de líquido espesso (gordura,
supomos) que é retirado do abdômen do paciente e que enche os recipientes. Podemos
constatar, portanto, que a luz goza de certa autonomia na imagem - e é através deste elemento
que o sentido do grotesco se instaura - pois nos oferece um ambiente como cenário, onde a
posição “teatralizada”, a pose artificial das personagens, confere algo de uma representação
cênica do grotesco, mas que só se completa através do efeito que a luz determina, criando
assim uma ambiência plástica. Seja flagrando um esquartejamento ou uma cirurgia
clandestina, os nossos olhos, os olhos do leitor, estão sempre dispostos em algum canto, em
alguma fresta possível entre o jogo da luz com a penumbra.
110
Figura 47: Peça 36
Fonte: <http://www.brainstorm9.com.br/archives/cat_impressoprint.html
>
Nesta outra imagem (Figura 47) a luz também está diretamente relacionada com a construção
deste espaço de cena. Há um tonel de lixo com fogo num local muito escuro que constitui o
centro da imagem. Através da chama podemos notar os poucos objetos dispostos ao redor.
Não distinguimos bem o tipo de local representado, mas aos poucos a associação entre os
objetos nos sugere um esgoto urbano ou algum local embaixo de uma ponte. Há um pequeno
canal com água (ou lama) que reflete um pouco a luz da chama, uma garrafa jogada neste
canal, as paredes são de um tom cinza (de concreto) e também há outros tonéis ao lado (um
deitado no lado esquerdo e outro de pé, mas que só vemos uma pequena parte superior de sua
abertura ao lado direito da imagem). Há alguém que tenta se aquecer perto da chama do tonel
principal; mas só conseguimos ver as mãos direcionadas ao objeto, não reconhecemos de
quem se trata, pois o personagem está totalmente envolto em um cobertor. Apenas as mãos
estão à mostra, mas quando as observamos melhor percebemos que não são mãos
propriamente humanas, mas deformadas e com garras, como se fossem patas de animais.
Mais adiante do tonel, em um plano posterior, outro personagem deitado coberto com um
pano e apenas os pés são vistos, mas desta vez a distância e a escuridão não nos permite
sequer distinguir se pertencem a um humano ou se são deformados como o do primeiro
personagem. A escuridão predominante acolhe o nosso olhar e nos posiciona entre os dois
outros tonéis do local. Nosso ponto de vista se instala precisamente neste ponto. Estamos
111
dentro da cena tentando desvelar (ou ver o máximo que pudermos) a identidade do
personagem que se protege do frio e dos nossos olhos, mas o que temos é apenas o que a luz
nos permite ver; sua função nesta imagem é construir o espaço de cena através do destaque de
seus objetos, tanto quanto demarcar o ponto implícito do nosso olhar. Não obstante, um ponto
equivalente com o modo barroco de emprego da luz sobre o motivo central de uma imagem,
segundo Wölfflin, é evidenciando apenas parcialmente o motivo da imagem, ocultando do
olhar mais que explicitando-o, para que possa ressaltar a dubiedade de sua natureza (e do que
vemos) e romper com a noção de nitidez total ou dos elementos todos dados à vista. Neste
caso, podemos notar esta similaridade estrutural do tratamento do motivo na análise que
Wölfflin faz de um quadro de Terborch, “A admoestação do Pai” (Figura 48), apenas para
ilustrar esta relação.
Figura 48: Pintura 6 – Admoestação do pai, 1654-1655. Pintura em madeira,
72x60cm, Gerard Terborch
Fonte: Gemäldegalerie, Berlim.
Wölfflin assinala a relação existente entre a luz do objeto (que emana da personagem central)
e o motivo da representação de modo oposto à arte clássica, onde um motivo jamais seria
ocultado, porém sua representação se daria explicitamente, clara e direta ao espectador. Em
Terborch, o ponto principal da representação é o modo como a personagem principal (de
costas para o espectador) acolhe as palavras do pai e não a própria menção das palavras do
pai.
Mas é precisamente nesse ponto que o pintor nos entrega à própria sorte: a moça,
em seu vestido de cetim branco, constitui, pela sua tonalidade luminosa, o principal
112
ponto de atração do quadro; não obstante, seu rosto permanece oculto.
(WÖLFFLIN, 2000, p.284).
O que ocorre no tratamento do motivo grotesco nestas peças é de fato similar a um modo
barroco de tratar o motivo (a partir da disposição do personagem central e sua relação com a
incidência da luminosidade); o foco da atenção não é explicitado, não é dado
“desveladamente” ao espectador, mas muitas vezes é apenas sugerido:
Se, por um lado, a arte clássica aspira à apresentação absolutamente clara do
motivo, por outro, o Barroco não pretende ser uma arte confusa, mas deseja
apresentar a clareza apenas como o resultado secundário e casual. Algumas vezes o
Barroco chega a brincar com o caráter sugestivo das formas dissimuladas.
55
Figura 49: Peça 37
Fonte:
<http://www.brainstorm9.com.br/archives/cat_impressoprint.html>
Esta outra peça da campanha Philips (Figura 49) também oculta seu personagem central, o
que marca ainda mais o sentido de “contrariedade” da peça, pois seu anunciante é uma
indústria de lâmpadas. O que podemos ver do personagem é apenas uma cauda que escapa
pelo cobertor que o envolve. A obscuridade continua a marcar todo o espaço da imagem
permitindo distinguir pouco do ambiente; apenas nos parece uma rua com sacos de lixo e
outras quinquilharias em volta. O ponto de luz (a lâmpada) que aparece na peça destaca, na
verdade, a frase que se encontra ao seu lado no canto inferior direito: “Bane os monstros de
debaixo da cama”.
55
WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da história da arte. 4ª.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.
284.
113
Mesmo quando temos um exemplo como o da imagem seguinte (Figura 50), onde o motivo
“crístico” da adoração é retratado, as diferenciações do tratamento podem observadas ainda
preservando certas nuances de um estilo barroco e que são apropriadas pela publicidade para
configurar um tipo grotesco. Nesta peça de um anunciante de roupas (marca Rifle) temos a
ilustração de um “Cristo” em meio a animais selvagens que está disposto em uma posição de
destaque na imagem; a luz brilhante que emana de sua cabeça reverbera na claridade intensa
da calça e das faixas em seus braços, ao invés de uma representação da auréola típica ou das
chagas de Cristo.
Tudo o que se pode ver na imagem é possível somente a partir da reflexão da luz da figura
central que banha os outros objetos de cena, tal qual a estrutura de outras imagens do “menino
deus”, o corpo emissor de luz é o próprio Jesus. Mesmo assim, o que conseguimos distinguir
na peça são apenas partes dos animais ao invés de vê-los todos integralmente. Em um plano
posterior em diagonal ao personagem central encontramos um outro personagem que se
destaca, pois está na parte externa do ambiente, visto pela abertura de uma porta que não
conseguimos ver muito nitidamente, dada a distância do personagem central (foco de luz).
Este último nos parece um pequeno monstro, mistura de homem e animal, sentado de modo
contrário em um porco. Mais uma vez a obscuridade preenche toda a imagem, a figura do
“Cristo” é destacada, mas ocupa a parte esquerda da imagem, a centralidade não é absoluta e
tem um destaque em profundidade criada, na verdade, por sua luminosidade:
Figura 50: Peça 38
Fonte: <http://www.erwinolaf.com/Pages/Adv_Frms.htm>
114
A obscuridade ainda é predominante e a luz que incide sobre os objetos incorpora uma
pequena variação de cor. Os acentos cromáticos se harmonizam com o sombreado e não são
colocados de modo “invasivo” na imagem, no entanto, são atenuados e suas variações são
graduais conforme a luz. De todo modo, estas observações demarcam os aspectos que regem a
luz em sua interação (e construção) com o ambiente configurado grotesco.
Nesta outra imagem da mesma campanha (Figura 51) também é trabalhada a luminosidade
conferindo o mesmo tipo de tratamento plástico à imagem. Com certas variações, a figura
feminina ocupa o lugar do personagem central do tema crístico, mantendo a mesma posição
da personagem masculina. Obedecendo a mesma frontalidade, o olhar direto ao espectador, a
posição das mãos espalmadas, a luz que emana da cabeça e que irradia mais fortemente pelos
objetos que estão mais próximos a ela. Com um acento onírico, fantasioso, na mistura de
olhos que voam e se espalham com outros objetos, esta imagem estranha nos oferece um
ambiente sombrio por onde vagam olhos de vários tamanhos e por todos os lados. Ao
contrário da figura 46, onde os animais se voltam todos para o personagem central, nesta outra
imagem, os olhos vêem tudo ao redor, inclusive o maior deles, localizado mais ao fundo da
personagem, no lado direito, parece dotado de um corpo, cuja cabeça é um olho gigante que
nos olha fixamente:
Figura 51: Peça 39
Fonte:<http://www.erwinolaf.com/Pages/Adv_Frms.htm>
115
Do mesmo modo que observamos o tratamento da luz em sua construção da ambiência
plástica, vale a pena render aqui algumas considerações comparativas à disposição deste
recurso numa configuração do grotesco em sua condição de testemunho e de personificação,
onde a utilização da luz difere em muito da conjugação com o sombreado que se apresenta
numa ambiência plástica do grotesco tanto quanto o barroco se opôs à arte clássica ao
empregar este recurso. Do mesmo modo, podemos dizer que os estilos da clareza absoluta e
da clareza relativa participam desta diferenciação entre os tipos de configuração grotesca,
como dois modos opostos destas formas de tratamento da luz e sobre os quais se
complementam os outros elementos constituintes das imagens.
Por outro lado, se para uma ambiência grotesca observamos alguns aspectos que decorrem da
parca iluminação, da penumbra e dos sombreados que se instauram na demarcação do campo
visível da imagem e de onde decorrem outros aspectos de sua formação discursiva, no
grotesco personificado ou no testemunhal, a luminosidade regencia, antes de tudo, a
apresentação total do seu motivo. O nível de expressividade do motivo é buscado pela
exaltação da nitidez das formas, nada escapa ou está oculto na imagem, o motivo se dá e se
oferece, e a luz funciona como um elemento “estabilizador”, que envolve o motivo, que o
evidencia e que o expõe:
Por mais que eventualmente o grau máximo de nitidez na representação dos
detalhes não seja alcançado - o que pode ocorrer em um quadro de conteúdo mais
rico-, jamais haverá resquícios indistintos ou confusos. Até mesmo a forma mais
vaga pode ser entendida de algum modo; sobre o motivo principal, entretanto,
incidem todos os esforços no sentido de uma visibilidade perfeita.
56
As imagens apresentam seus motivos sob uma luz intensa, em um nível de claridade alto para
que não haja possibilidade de dispersão do olhar, pois toda a atenção deve convergir para o
motivo. Retomemos a observação de Corrain quanto à classificação da luz externa no espaço
itinerante; a luz preenche todo o plano da expressão e está pressuposta, ela é inerente aos
corpos da imagem, “a fonte de iluminação situada em um espaço externo difunde sua luz de
maneira mais ou menos intensa sobre todo o representado, envolvendo silenciosamente a
coisa, fundindo-se numa invisível unidade com os corpos” (CORRAIN, 2004, p. 217).
56
WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da história da arte. 4ª.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
p.272
116
Figura 52: Peça 40
Fonte: <http://www.brainstorm9.com.br/archives/cat_impressoprint.html>
Vejamos como esta peça (Figura 52) se utiliza de uma luminosidade mais intensa para
destacar seu motivo. Aqui, a criança aparece deitada envolvida por um lençol branco, vemos
apenas sua cabeça, a parte superior do tronco e suas mãos. Seu rosto não apresenta uma
expressão enfática de sofrimento, apenas a perplexidade que parece “congelá-lo” nesta
imagem, estado este, reforçado pelo tipo de luz intensa e clara demais que se reflete em sua
face. Mais uma vez o destaque para o personagem retratado ocupa o lugar central da imagem.
Não há sombras e nem acentos cromáticos intensos, apenas o contraste entre o tom da pele
opaca da criança e o branco dos lençóis. A alvura dos tecidos que recobrem a criança nos
convida a olhá-lo em seu estado “etéreo”, de modo que, por um instante, compartilhamos com
ele esta estranha sensação de perplexidade, mas que se realiza mesmo a partir da associação
com outros elementos que fazem parte da peça. O texto (traduzido) “Eu vou doar hoje e
ajudar esta criança” na primeira página e o texto seguinte “Eu vou doar mais tarde”, onde, se
repete a mesma imagem na página seguinte, porém com a cabeça da criança completamente
coberta pelo lençol, sugerindo seu pronto falecimento, faz com que a perplexidade se
complete por inteiro.
117
Figura 52 (adaptação)
Nesta peça, além dos próprios recursos da imagem que dispõem de modo específico o
personagem central, eles se apresentam coligados a uma função que é típica do veículo, ou
seja, a de que é necessário, ao leitor, virar a página. A falta de expressão na face da criança,
sua palidez, seus olhos estáticos, todos estes elementos articulados ao tipo de iluminação, ao
enquadramento, à distância e tamanho da personagem, entre outros, parecem acentuar certo
grau de “expressividade” apelativa, emocional. Podemos dizer que os nossos olhos ocupam o
lugar do próprio canhão de luz (implícito na imagem) com sua intensidade luminosa
ofuscante, acima do seu paciente.
O texto e a relação que há com a disposição da imagem com as páginas do suporte impresso
complementam todo o sentido desta mensagem visual.
118
Figura 53: Pintura 7 – Pietá, 1559. Óleo sobre tela, 227x294cm, Jacopo Robusti
Tintoretto.
Fonte: Galeria da Academia, Veneza
Em contrapartida, podemos observar, brevemente, nos detalhes abaixo (Figura 53), a função
expressiva que uma luz ou sombra oblíqua, em uma penumbra (exemplos típicos da
ambiência grotesca) poderia render ao sentido dramático que Wölfflin analisa na Pietà de
Tintoretto:
Desconsiderando por completo todos os fundamentos plásticos, uma sombra
oblíqua projeta-se sobre o semblante de Cristo; não obstante, essa sombra deixa
entrever uma parte da testa e um segmento inferior do rosto, de inestimável valor
para a impressão do sofrimento. Igualmente significativa é a expressão dos olhos da
Virgem, que tomba desfalecida: toda a órbita dos olhos é preenchida por um único
sombreado, como se fora uma grande cavidade redonda.
57
Figura 53 (detalhe)
De modo contrário, nas imagens publicitárias que evidenciam o motivo, seu papel é exibir o
personagem (ou objeto) em determinada condição, apresentá-lo com a máxima nitidez aos
nossos olhos. A construção deste tipo de imagem exclui a possibilidade de que seja fortuita, já
que ela não foi concebida para ser casual e nem para que seja vista furtivamente, onde a luz
intensa determina este caráter funcional, como vimos na figura 52.
57
WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da história da arte. 4ª.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.
292
119
Figura 54: Peça 41
Fonte:<http://image.guardian.co.uk/sysimages/Media/Pix/pictures/2003/11/12/barnardo2roach.jpg>
Um tanto diferenciada da figura 52, esta imagem (Figura 54) também apresenta seu
personagem central banhado por uma luz intensa em lençóis brancos, mas suas
especificidades se dão em três aspectos principais: a magnitude que a criança assume pelo
enquadramento muito próximo, em uma posição diagonal que “corta” a imagem, a
luminosidade que lhe confere um brilho característico e sua expressão de choro. Além disso,
esta imagem joga com a sobreposição de elementos no intuito de gerar uma sensação de
repulsa e de asco, pois uma grande barata sai da boca do bebê.
Na parte superior da peça, o texto principal “Não há colheres de prata para crianças que
nascem na pobreza” complementa e especifica a intenção de mobilizar o espectador para a
mensagem que se quer fixar; chamar a atenção para a miséria na qual vivem as crianças
pobres. No entanto, a peça exibe a imagem de uma criança que não nos relaciona,
efetivamente, com as crianças que vivem em situação de pobreza. Os lençóis brancos, a
pulseira de identificação dos recém-nascidos nos hospitais, a robustez aparente do bebê e a
fralda não são elementos indexadores de sua condição de pobreza que a mensagem parece
querer transmitir. Não fosse a presença da barata que sai de sua boca, este elemento
“disjuntor”, certa sensação sequer poderia ser cogitada. De todo modo, não podemos
desprezar a função que a luz assume nesta imagem; ao contrário da figura 48, a luz confere
um tipo de informação diferenciada nesta criança, o brilho que se constata em seu corpo serve
para nos indicar uma qualidade táctil, pois o bebê ainda parece estar envolto na camada do
120
líquido placentário, como se vivesse seus primeiros instantes de vida, aspecto reiterado por
sua posição em diagonal que também sugere sua “chegada” à imagem.
O tratamento que a luz recebe nesta imagem também se distancia daquela da figura 48, nela, a
luz sugere uma situação de frieza, de falta de vida (daí seu tom etéreo) combinada com o
predomínio de uma gradação do cinza. Nesta, a luz é um clarão. Assim, mesmo que a luz se
apresente com certas diferenciações, com certas especificidades de sentido em uma imagem
ou em outra, em todas elas a função que estabelece é a de evidenciar o motivo. Enquanto na
construção de uma ambiência vimos que a luz instaura um conjunto de operações para a
ambiência do grotesco, se fixando em um patamar primordial (e fundamental) para a
produção do sentido, no grotesco de caráter testemunhal, a luz participa como elemento não
ativador, mas complementar à construção do sentido.
121
3. O GROTESCO E O IMAGINÁRIO DA COMUNICAÇÃO PUBLICITÁRIA
3.1 Enquadramento e espaço na formação do caráter testemunhal
Consideramos o enquadramento uma questão de angulação ou de posicionamento do
fotógrafo em relação ao tema fotografado e que se confunde com a própria disposição do
motivo num quadro, ou seja, o modo como um motivo está disposto na imagem, pois a
atenção aos aspectos de dimensão, proximidade/distância e o enfoque nos planos (abertos ou
fechados) constituem recursos importantes para a análise, uma vez que repercutem em uma
instância discursiva e implicam em condições de espectatorialidade.
Na análise, o enquadramento é observado a partir de duas noções específicas: uma, diz
respeito às distâncias que são empregadas ao plano visual, onde as projeções nos permitem
atribuir um sentido de proximidade ou distanciamento de acordo com os enfoques destes
planos (o close-up, plano americano, primeiro plano, etc.), mas que repercutem, também, em
uma situação espectatorial, portanto, o elemento é visto como uma estratégia discursiva e não
apenas como mero detalhe técnico de composição. A outra diz respeito ao modo de
organização da composição interna destes planos em seu caráter de “forma fechada”
(tectônica) ou “forma aberta” (atectônica), conforme as noções delfflin aplicadas às
análises dos estilos pictóricos, e que complementam o estado espectatorial, no sentido de um
“confronto” do sujeito com a imagem.
Em primeiro lugar, a admissão de que a composição de um plano possa se apresentar em uma
forma fechada (tectônica) pressupõe que a imagem (fotográfica, pictórica) possa dar a ver
uma parte de um mundo através de um quadro, de uma moldura, como uma abertura da janela
ao mundo exterior. Mas esta condição de mise en cadre determina uma realidade limitada em
si mesma, existe enquanto condição de representação emoldurada, tanto de acordo com os
limites que o quadro (seja de uma tela ou de um outro suporte impresso) lhe impõe, quanto
como realidade pronta e definida em si mesma. E, neste tipo de composição fechada, o
espectador é aquele que é posto a ver do outro lado da imagem, ou seja, do lado exterior da
imagem, “de fora”. Tanto que a recorrência aos planos mais fechados (primeiro plano e o
close-up) é mais freqüente neste tipo de composição.
122
Na composição aberta (atectônica), a imagem se evidencia como uma realidade que
“extrapola” os limites de um plano, onde há um quê de instabilidade nas condições do olhar.
A noção de um ver a realidade que se apresenta está mais ligada a uma situação de flagrante, a
um olhar fortuito (ou mesmo furtivo), ao invés de uma detenção de um “fragmento” da
realidade que está simetricamente organizado, como que “preparado” para o olhar. A
composição aberta engloba o espectador em seu plano, “arrebata-o” para seu espaço de cena
quando propõe uma visada instável de sua realidade, daí a desvalorização pela simetria e pela
composição perfeitamente central e equilibrada, pois a imagem não se encerra em si mesma,
mas solicita do espectador o preenchimento do que é sugerido, do que não está dado por
completo. A composição aberta se define como uma possibilidade de realidade vista, longe de
pretender se exibir como a única visão possível. Neste tipo de composição, os planos
privilegiam o desequilíbrio, a diagonal, o olhar em profundidade, os planos médio e geral,
mais abertos e mais “tensos”.
Wölfflin assinala bem a diferença entre estes dois tipos de composição para delimitar as
modificações de um estilo clássico (fechado, tectônico) para o barroco (aberto, atectônico),
aos quais nos valemos aqui para observar como o campo publicitário se investe de alguns
destes aspectos para empregar a uma estilística do grotesco, sendo que caracterizamos certas
apropriações do tipo testemunhal com influências muito próprias da composição tectônica
enquanto as imagens de uma ambiência se valem mais do tipo atectônico para criar seu efeito.
Podemos marcar estas propriedades traçando uma espécie de quadro comparativo entre as
imagens das peças sublinhando estas caracterizações próprias aos dois estilos, apresentando
como se colocam no grotesco testemunhal e indicando os contrapontos que vimos nas
imagens da ambiência grotesca ou personificada.
Uma imagem do grotesco testemunhal enfatiza a exibição do motivo. A nitidez é a instância
privilegiada e a proximidade do que se deseja destacar é intencional, pois não se deve ter
dúvidas do que se vê. Os planos fechados evidenciam as marcas, as deformidades e as lesões
deixando o espectador muito próximo à imagem, quase “tocando as feridas” que se
apresentam. Os detalhes adquirem uma dimensão quase magnificada para exaltar a
proximidade com o motivo em um tipo de enquadramento cujo plano é sempre fechado. É o
caso desta peça da Benetton (Figura 55), por exemplo, que traz uma mutação homem/objeto
como motivo da imagem privilegiando a “deformação” física com um enquadramento frontal
muito próximo.
123
Figura 55: Peça 42
Fonte: <http://www.cemcomunicacion.org/images/premio2_1999.jpg>
A composição fechada demonstra a preocupação de exibir o motivo de modo direto, sem
excessos, sem desvios; a imagem deve se completar em si mesma e o conteúdo deve estar
conformado aos limites do espaço. Nesta outra peça da Organização Médicos sem Fronteiras
(Figura 56), a proximidade exacerbada da parte de uma pele suturada adquire ainda um efeito
táctil, quase podemos “tocar” visualmente o corte mal costurado, aliás, naturalmente que o
jogo irônico perpassa a publicidade fazendo deste corte uma zona de fronteira entre Rússia e
Chechênia, como diz a peça. Em todo caso nos concentramos neste enfoque direto, plano e
fechado do motivo.
Figura 56: Peça 43
Fonte: < http://www.brainstorm9.com.br/archives/cat_impressoprint.html>
O contrário ocorre nas imagens de uma ambiência grotesca em afinidade com a estrutura
barroca da composição. A nitidez é o que se desvaloriza na imagem, a certeza não é o alvo da
fotografia, que prima pelo jogo do olhar furtivo, como vimos. Por isso seu motivo não se
conforma totalmente ao espaço da imagem, antes, extrapola seus limites de moldura,
124
deixando-se de algum modo incompleto. O recurso dos planos médio e geral, mais abertos,
são também os que provocam a oposição dos objetos enquadrados em certas situações. Os
personagens de cena são vistos sem um reconhecimento de um outro olhar, necessariamente,
mas quase sempre estão alheios ao espectador; a imagem se constrói neste sentido do fortuito,
do casual. Muito embora sejam postos para um olhar sim, mas o do voyeur, daquele que flagra
e vê às ocultas, e, neste sentido, seu olhar participa do jogo de completar o que não foi dado a
ver totalmente, totalmente diferente do que vemos nas figuras aqui.
A composição no tipo de enquadramento de um grotesco testemunhal obedece ao princípio de
uma ordenação simétrica (própria ao estilo clássico). Os personagens devem se apresentar de
modo ordenado para garantir o equilíbrio nas porções da imagem, localizados bem no centro,
ao mesmo tempo em que os outros elementos de composição participam harmonicamente; a
iluminação radiante distribuída de modo homogêneo, os contrastes cromáticos suavizados, o
motivo ocupando a porção central do plano, além do que os motivos também obedecem ao
princípio da frontalidade, da pose e do olhar direto para a câmera (straight photography), o
que reitera a intenção do mostrar desveladamente ao mesmo tempo em que estabelece um tipo
de “contato visual” com aquele que olha, pois o personagem se enquadra como se o motivo
reconhecesse sua ligação com “o mundo externo” através do olhar e tencionasse interagir com
ele. Daí toda a composição formal ligada aos cânones do retrato ser valorizada neste tipo de
imagem. Essa organização converge para criar o “efeito solene” de um retrato. Observemos
como as características indicadas acima se aplicam nos dois casos (Figuras 57 e 58) de modo
muito similar.
Figura 57: Peça 44
Fonte:
<http://www.texasdwi.org/jacqui
.html>
125
Figura 58: Pintura 8
Fonte:Retrato de Jehan Carondolet, 1542. Pintura em Madeira. 53x37cm. Munique, Barend van Orley.
A pose aqui constitui uma outra apropriação do “clichê” típico do retrato pictórico, algo que
Dominique Chateau
58
qualifica de protótipo pictórico, onde o retrato visto enquanto um
gênero da pintura, apresenta seus esquemas de utilização iconográfica, ou seja, a pose, a
frontalidade e olhar direto como elementos que se condensaram e se sedimentaram no gênero
e, não obstante, se apresentam de modo a estabelecer um “pacto”, uma correspondência com o
espectador, esta espécie de “segundo olhar”.
Na figura 57, por exemplo, vimos que o personagem posa para a fotografia e, tal qual nos
retratos do estilo clássico, notamos a postura determinada, a nitidez formal, a posição na
vertical ou em um sentido geométrico bem definido. Toda a força da imagem está em destacar
a “estabilidade” do retratado, sua postura firme a olhar o espectador. Já nas figuras 52 e 54
predomina sua condição de vítima, seu apelo registrado na foto. Faz parte deste tipo de
programação publicitária combinar, na fotografia, a composição formal na exibição do seu
motivo e o interesse social da mudança de um hábito ou de um comportamento, sendo que a
imagem de uma peça se investe de um valor similar ao da fotografia documental; declarar a
realidade através da exibição de seus personagens como “vítimas”.
58
CHATEAU, Dominique. Stéréotype, prototype et archetype à propos du portrait de Gertrude Stein de
Picasso. Disponível no website do projeto “Images Analyses” do Centre de Recherche Images et Cognitions
(CREC), da Universidade de Paris 1em <www. imagesanalyses.univ-paris1.fr/auteur-dominique-chateau-
26.html> Acesso em: outubro 2006.
126
Já a composição no tipo de enquadramento de uma ambiência grotesca, a proximidade com as
especificações do estilo barroco se acentuam; a conformação dos elementos privilegia um
ligeiro desequilíbrio, os objetos de cena não se organizam simetricamente ou, ainda que haja
simetria entre eles, o desequilíbrio fica por conta de outro elemento interno, seja a luz
incidente apenas em uma parte do motivo, seja o desequilíbrio na distribuição das cores pela
imagem, seja todo o motivo pendendo na diagonal. De todo modo os elementos se articulam a
fim de promover uma condição de instabilidade da imagem, e, por conseguinte, a posição
demarcada da frontalidade fica subsumida em prol de uma idéia de cena capturada em um
fragmento de ação.
A tendência principal está em não permitir que o quadro resulte num fragmento do
mundo que exista apenas por si e para si, mas em um espetáculo passageiro, do qual
o observador tem a sorte de participar somente por alguns instantes. (WÖLFFLIN,
2000, p.170).
A disposição dos objetos de cena também promove uma busca pela relação interdependente
entre eles a fim de ressaltar a importância de um momento dramático na imagem. Os objetos
não estão colocados de modo alheio ao fato principal da imagem, mas corroboram a
convergência de um sentido de ação, do fato que ocorre naquele momento em direção à
profundidade, por isso a recorrência aos planos médio e geral, pois é preciso enfocar o
personagem central em seu meio circundante, em uma situação, e o nosso olhar espreita
momentaneamente a imagem no que ela tem de fugaz.
O enquadramento apresenta diferenciações na relação “espaço-conteúdo”. As imagens no
grotesco testemunhal que evidenciam um motivo e os objetos de cena são organizados de
modo a dar um sentido de unidade a este motivo, de imagem encerrada em si mesma, vista no
máximo de sua integralidade, adequada e conformada a um espaço restrito, emoldurado. O
motivo está fixado como o eixo central da imagem e para ele converge toda a atenção, “a
imagem mostra-se em sua plenitude, exatamente porque é capaz de veicular ao observador
todo o essencial” (WÖLFFLIN, 2000, p.178). O limite da imagem é a própria moldura dos
retratos que aqui se completa com a base de fundo da peça, geralmente onde o texto e a
logomarca são colocados.
127
Figura 59: Peça 45
Fonte: <http://www.brainstorm9.com.br/archives/cat_impressoprint.html>
Esta relação “espaço-conteúdo” que o enquadramento compõe pode ser visto como o próprio
tema das peças da revista Time, onde a delimitação da imagem pode ser vista tanto a partir
dos limites da peça quanto a partir de um contorno vermelho enfocando o motivo em seu
detalhe como o quadro central da revista. Como se fosse um quadro dentro de um outro, em
um deles observamos que a proximidade do personagem se dá como se fosse um retrato do
perfil de uma criança famélica (Figura 59), no outro quadro, mais aberto, cujo limite da
fotografia é o limite da peça, o que vemos não é mais um detalhe, mas o personagem visto
dentro de um contexto.
Não vemos apenas uma cabeça, mas a cabeça de uma criança subnutrida que se arrasta pelo
chão seco e que observa sua sombra projetada no pano (ou na lona) e com a projeção da
sombra de uma outra pessoa logo atrás dela. Este jogo com a delimitação de um
enquadramento dentro de um plano é que faz nossa atenção se dirigir a um e a outro. A
unidade da imagem é uma quando tomamos os limites da imagem pelo contorno vermelho e
passa a ser outra quando o limite é o contorno da peça total.
128
Figura 60: Peça 46
Fonte: <http://www.brainstorm9.com.br/archives/cat_impressoprint.html>
Nesta outra peça (Figura 60) o contorno vermelho também delimita um foco; um rosto de um
menino de olhos fechados, mas quando observamos o plano mais aberto vemos que há um
corpo do menino (dormindo ou morto) sobre o solo e por onde passam várias pessoas ao
fundo que não se dão conta daquele corpo estendido. Na parte inferior da peça o slogan da
campanha Time; “se há uma história nisso, nós estaremos lá”, que reitera este jogo com a
disposição dos planos fechado e aberto que conferem um valor enunciativo diferenciado na
peça, pois chama a atenção para as diferentes leituras que podemos fazer de acordo com a
disposição do motivo num quadro mais fechado ou num outro mais aberto. Mudamos a leitura
conforme a ocupação do motivo no espaço, conforme o plano visual dado (que nos apresenta
aqui dois contextos diferentes ao mesmo tempo).
Ao contrário, nas imagens de uma ambiência grotesca o enquadramento exibe um motivo
numa certa visibilidade dada por um ponto localizado, o essencial também é mostrado, mas o
limite da imagem não coincide com os limites de uma moldura, ele não é plano e nem frontal.
Por vezes a imagem está colocada no fundo escuro como se estivesse afastada do nosso olhar,
como se ocorresse lá no canto fundo da imagem e sem a presença de linhas envoltórias que a
delimite, geralmente a obscuridade é o que envolve a cena, ou ainda, ela é dada em uma
angulação oblíqua que “recorta” certos objetos. Esta noção de “extrapolar” o campo do plano
faz com que o olhar do espectador seja provocado a completar o que “falta”, pois este
enquadramento também tem um efeito no espectador, na medida em que ressalta o caráter de
129
tridimensionalidade do campo visual dado conforme a distância e a profundidade que o olhar
assume na imagem. Para ilustrar este efeito observamos como o enquadramento é colocado na
figura 61, que nos oferece este posicionamento do olhar do espectador em um ponto entre os
baldes de lixo que estão em uma rua.
Figura 61: Peça 47
Fonte: <http://www.erwinolaf.com/Pages/Adv_Frms.htm>
Entre este espaço vemos um homem com uma espécie de avental jogar o lixo em um tonel
maior na rua. A luminosidade um tanto obscurecida reforça a pouca condição de visibilidade
para acentuar certo caráter de incerteza do que vemos. No lixo notamos apenas pedaços de
braços, o desenho de uma cabeça disforme na parte escura de um cartaz que derrete para fora
da lata, um cigarro gigante (personificado) com rosto e uma expressão sisuda que olha para o
outro lado da rua (contrário ao homem). Em um plano posterior mais ao fundo, num pequeno
espaço entre a rua e o beco onde ocorre esta ação, vemos um casal que passa andando. A
proximidade de um plano e a distância do outro nos indica de qual posição estamos vendo
esta cena, que compartilha do mesmo jogo confuso das imagens anteriores, onde a colocação
de certos anteparos (os baldes de lixo) de onde a fotografia foi tirada permite delimitar a
posição do olhar do observador.
Estas observações sobre o enquadramento reiteram um outro ponto de análise que
desdobramos em seguida: trata-se de sua participação no modo de construir as condições da
espectatorialidade, a combinação com os outros elementos destacados nos permite notar a
imagem fotográfica como uma “versão de mundo” sobre um determinado motivo. Pensamos
que a insurgência do grotesco enquanto um tema visual na publicidade reconhece a
130
apropriação de uma série de modos de aplicação e articulação dos elementos fotográficos
tributários dos esquemas e modelos pictóricos, sobretudo. O que regencia uma figuração
grotesca está dado pelo modo de articulação dos elementos internos de uma imagem (a luz, o
espaço, o enquadramento), onde a publicidade apenas acolhe seus moldes e replica-lhes em
uma outra finalidade a fim de fazer valer certos protocolos necessários ao contexto de uma
comunicação mediática.
Ao tratar da luminosidade como elemento discursivo da imagem, enfatizamos a relação entre
a representação da fonte luminosa (interna ou externa) e o tipo de espacialidade (radiante ou
itinerante) concebida a partir das observações de Lucia Corrain. Tomando esta relação como
ponto de partida para desdobrar a noção de espaço trabalhada nas imagens, podemos notar as
diferenciações deste elemento de acordo com o tipo de configuração do grotesco. Tanto na
construção da ambiência quanto em uma condição de testemunho ou de personificação, o que
se reconhece como o espaço visível de uma imagem se constitui, sobretudo, conforme a
estruturação da instância luminosa. Como estes recursos estão intrinsecamente colocados nas
configurações do motivo de modo muito similar estruturalmente, este item propõe
complementar o que vimos discutindo sobre o emprego da luminosidade, mas agora
apontando, mais diretamente, para sua relação na formação do espaço.
Assim, para criar uma ambiência, a luz se qualifica como agente representado internamente,
como aquele que delimita o plano visível e convoca a aproximação da visão no espaço
radiante no qual se constitui. Neste tipo de configuração do grotesco o espaço é revelado em
profundidade pelo tipo de tratamento que a luz recebe, de modo que há uma comunhão entre
estes dois elementos, vistos numa relação “interdependente”.
Na espacialidade radiante, a luz difunde-se em forma concêntrica e foca um restrito
campo de visão, cria, a sua volta, dois diferentes tipos de espaço: um englobado, no
qual domina a visibilidade e a tridimensionalidade do espaço representado, e um
englobante, capaz de solicitar uma visão aproximada.
59
Ao passo que em uma configuração grotesca do testemunho ou da personificação a luz é,
predominantemente, externa, totalizante, inerente aos objetos da imagem e expõe seus
motivos sem propor um percurso de leitura como vimos na ambiência grotesca, onde o espaço
do olhar é delineado por um movimento de luz (seus destaques aqui e acolá), mas sua
intenção é exibir um motivo, ao mesmo tempo em que toma parte do próprio espaço
59
CORRAIN, Lucia. A espacialidade no quadro à luz noturna e a construção da intimidade. In: Semiótica
plástica. São Paulo: Hacker, 2004. p.217
131
itinerante: “uma luz que, perdendo sua substancialidade que potencialmente lhe confere sua
fonte, se identifica com o próprio espaço” (CORRAIN, 2004, p.217). Se retomarmos um
exemplo qualquer do grotesco testemunhal, veremos que o espaço na imagem é o próprio
preenchimento da luz. No grotesco testemunhal, o espaço em profundidade é pouco
explorado, o que predomina é a colocação do motivo em uma condição plana, em um
primeiro ou primeiríssimo plano; luz e espaço modelam um ao outro em uma representação
do motivo que se dá paralelamente “à boca de cena”.
Wölfflin já observara esta diferença entre representação em plano e em profundidade ao
analisar a estrutura do espaço na arte clássica e no barroco. Enquanto o período clássico se
valia da representação em um só plano à frente do quadro, o barroco valorizava os efeitos de
profundidade a partir da relação que se esboçava entre os elementos dispostos pelo quadro, no
intuito de desvalorizar os planos e fazer com que o observador fosse impelido a ver até o
fundo da imagem. E neste caminho a luz é o elemento que conduz, ou ainda, o que cria o
espaço na imagem.
Parece-nos que a construção do espaço nas imagens que configuram os modos expressivos do
grotesco seguem esta mesma estruturação similar às noções outrora observadas por Wölfflin,
sendo, para a finalidade de uma ambiência, a utilização de um espaço em profundidade o tipo
mais explorado e, para uma personificação ou testemunho do grotesco, a caracterização de um
espaço plano, o tipo mais recorrente. Mas o que precisamos salientar, ainda, é que não se trata
apenas de uma exploração dos espaços de modo aparentemente aleatório, mas observamos
que há uma implicação direta entre o tipo de uso destes recursos e sua implicação semântica
do motivo.
A construção da ambiência através do espaço radiante assume a função de trabalhar a
profundidade para gerar o aspecto necessário de tridimensionalidade; onde o espaço
construído como tal parece “trazer” o espectador ao espaço onde se desenrola a cena, como se
ele participasse da imagem. Do mesmo modo, esta relação (entre a organização dos elementos
e seu valor semântico) se põe no grotesco testemunhal ou personificado, mas não na
impressão de fazer o espectador “adentrar” ao espaço da imagem, mas fazer com que os
personagens, ao contrário, pareçam desconhecer os limites da imagem e se colocarem diante
do espectador, sendo que a bidimensionalidade, neste caso, favorece esta impressão visual.
Então, precisamos notar que estes elementos todos se coligam para estruturar a imagem em
132
sua implicação semântica, mas também firmando sua base nas condições espectatoriais que se
pretende. Voltaremos a esta questão mais adiante.
Um outro ponto característico que podemos sublinhar no grotesco testemunhal ou
personificado é que geralmente se exibe um único personagem em primeiro ou primeiríssimo
plano, e como ocupam quase toda a imagem, o espaço de fundo se reduz em muito, como
ocorre com as imagens abaixo (Figuras 62, 63 e 64):
Figura 62: Peça 48
Fonte: <http://image.guardian.co.uk/sys-images/Media/Pix/pictures/2003/11/12/barnardo2roach.jpg>
Toda a ênfase é dada ao aspecto principal do motivo que se quer enfatizar: um corte, uma
deformação, um trauma físico. O espaço e o efeito de profundidade são menos explorados nas
imagens deste tipo de grotesco. Podemos dizer que nestas imagens participamos da cena
olhando-a, pois são elas que se postam à nossa frente, são elas que se dão à nossa vista. Basta
um olhar superficial, menos exploratório, para vermos toda a imagem, pois em geral elas
estão muito próximas dos nossos olhos.
O que reforça este aspecto é a dimensão que os personagens adquirem, eles são fotografados a
uma distância menor, logo, o tamanho das personagens é maior e, por isso, estão mais
próximos. Também não há um direcionamento para um fundo da imagem, e mesmo a relação
“figura-fundo” fica muito restrita; o que há é apenas uma sobreposição de um plano (o do
motivo) sobre outro plano neutro, sobre um fundo de cor escura ou neutra, colocado apenas
para destacar ainda mais o motivo à frente.
133
Figura 63: Peça 49
Fonte:<http://www.smokefree.ca/warnings/warningsimages/brazil/lung-medium.jpg>
Nas Figuras 62 e 63 vemos as personagens igualmente próximas - a criança da Figura 62 em
plano mais próximo, e um homem na Figura 63 em primeiro plano, ambos apresentam as
marcas de um trauma físico. A proximidade das personagens privilegia uma atenção mais
cuidadosa de suas marcas, seja a criança que aparece com algumas listras escuras sugerindo
marcas de maus-tratos ou o homem de perfil que exibe um extenso corte das costas ao
abdômen como uma cicatriz de uma cirurgia, aparentemente, recente.
Em ambos, a dimensão do motivo ocupa quase todo o espaço da imagem; vemos o fundo
apenas como uma cor branca (na Figura 62) e, o outro preto, na Figura 63. A luminosidade,
nestes casos, mais uma vez, foi usada apenas para destacar o motivo, sem uma relação direta
com a construção de profundidade. As peças veiculadas atrás dos maços de cigarro (Figuras
64 e 65) também apresentam a luz com esta mesma finalidade, explicitar as conseqüências do
fumo de modo muito direto.
134
Figura 64: Peça 50 Figura 65: Peça 51
Fonte: http://portal.saude.gov.br/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=16822
Na Figura 64, os pulmões são colocados numa tal proximidade que podemos notar a
superfície enrugada, seu caráter flácido, a cor intensamente modificada e escura. Os órgãos
são colocados em tal evidência ao olhar que é capaz de provocar certo asco, certa abjeção. Já
na construção da ambiência grotesca podemos observar que o efeito de profundidade é dado a
partir da relação entre a personagem principal e o local intensamente iluminado apenas a
partir de um ponto emissor de luz.
Como vimos, por exemplo, na Figura 44, onde o personagem aparece intensamente iluminado
pela luminária acima de sua cabeça e a luminosidade das chamas que sai da fornalha mais à
sua frente (e que o brilho refletido pelo serrote parece indicar a direção), no fundo da cena,
encostada na parede. Ao passear brevemente por dentro deste cômodo, uma série de objetos
dispostos pelo espaço faz com que os olhos explorem o ambiente no intuito de reconhecê-los;
o que está mais próximo ou mais distante, o que está mais ou menos iluminado, tudo
conforme sua localização no espaço (que é a mesma da luz), pois os objetos não se
apresentam enfileirados ou ordenados num único plano. O outro movimento que articula esta
impulsão para dentro da imagem é o da relação entre as calças sem corpo que “brilham” fora
do espaço de cena, nas bordas (conformada no espaço escuro da peça), com a colocação de
uma calça similar que veste o personagem central. A calça de fora da cena se liga aquela de
dentro promovendo o outro movimento de evocação e que, ao mesmo tempo, constitui o
135
espaço da imagem nesta relação figura-fundo. O mesmo efeito de profundidade é visto nesta
outra imagem da campanha da Diesel (Figura 66), mas nesta imagem a construção do espaço
ocorre da interação entre as personagens:
Figura 66: Peça 52
Fonte: <http://www.diesel.com/sucessfullivingguides>
O anão sentado, a mulher barbada e o gigante, mais ao fundo da cena, mantêm uma relação
com os personagens mais próximos (um homem gordo sentado e de perfil e o outro que está
acorrentado e em pé). Todos voltam o olhar para o anão, que é o foco dos outros personagens,
o qual parece receber um bolo da mulher barbada que o olha e ele a olha de volta; logo
conseguimos notar que se comemora algo para o anão. Logo atrás dele há uma luminária
fixada mais ao fundo, na parede, ao lado da pequena televisão. Outros objetos aparecem atrás
do pequeno homem sentado, o que reforça a noção da profundidade do espaço, cuja luz chama
a atenção para o fundo da cena. Nesse exemplo, a relação entre as calças na borda da peça
com os personagens de dentro da cena fica menos intensa porque as roupas não reproduzem
as formas de um corpo (como na Figura 44), mas elas estão estendidas e enfileiradas como
simples objetos de vestuário. Na outra peça da mesma campanha (Figura 66) esta relação
ficava mais nítida, pois as peças reproduziam o volume e a posição dos corpos que lhes
faltavam.
Esta organização dos personagens que promove a interação entre os que estão situados à
frente ou ao fundo (como nas peças da Diesel) foi observada como uma transformação do uso
136
do espaço plano (ou “planimétrico”) por Wölfflin como um artifício que sugere um
movimento:
Se pretendermos arrolar as transformações características, o caso mais simples a ser
analisado será a substituição das cenas com duas figuras dispostas uma ao lado da
outra, por cenas que apresentam duas figuras, obliquamente colocadas uma atrás da
outra [...] evitando-se que a justaposição das figuras produzisse a impressão de algo
plano.
60
Estratégia que, segundo ele, está muito mais ligada à provocação do sentido do movimento,
pois sugere uma “instabilidade” maior aos personagens de cena. A composição deixa de
transmitir uma estabilidade, uma “quietude” própria às imagens planas e passa a esboçar (ou
sugerir) um movimento iminente. Em todas as imagens relativas à ambiência grotesca esta
noção do movimento articulada pela interação entre os personagens e objetos de cena está
presente. Além disso, as imagens convocam nossa participação para observar, para
testemunhar o que se desenrola ali e, neste sentido, somos partícipes das cenas; uma vez que
nosso local já está dado neste espaço da imagem, nossa atitude é explorar visualmente todo o
espaço.
Um outro aspecto importante a notar nas imagens deste tipo de grotesco é que o gradiente
61
de claridade também cria a profundidade ou participa como agente complementar deste efeito.
E isso é garantido pela obliqüidade da luz, como nestas imagens a luz propicia uma ambiência
da penumbra, da obscuridade, devido à incidência lateral da luz; a textura, o volume e o
espaço são informações visuais dadas de acordo com esta obliqüidade do elemento luminoso.
Uma vez que a claridade da iluminação significa que uma dada superfície está
voltada para a fonte de luz, enquanto a obscuridade significa que está afastada, a
distribuição de claridade ajuda a definir a orientação dos objetos no espaço.
(ARNHEIM, 2004, p.302).
Não só a orientação no espaço, mas enriquece a visão dos objetos a partir das informações de
suas características. De acordo com sua localização, próxima ou afastada, sabemos se um
objeto tem certas propriedades físicas, táteis, de tamanho, dimensão, etc.
Um outro gradiente, o de tamanho, também é um aspecto que determina a informação do
espaço no campo visual. Quando os personagens se apresentam mais próximos, seu tamanho
60
WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da história da arte. 4ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
p. 103
61
O emprego do termo “gradiente” tomado por Arnheim tem o mesmo valor de “elemento” ou “propriedade
interna” que vimos tratando até aqui.
137
é maior, quando estão mais distantes do nosso olhar eles são menores; esta espécie de
ordenação dos objetos em perspectiva. Nas imagens da Diesel, por exemplo, este gradiente de
tamanho participa de modo oportuno, pois a distância tanto dimensiona os objetos no espaço
de cena quanto deixa uma intenção de dubiedade quanto ao acontecimento que é sugerido ali;
daí o “olhar de espreita” que marca a posição do espectador na imagem. Tudo é um jogo de
sugestão favorecido pela distância (como um tipo de elemento perceptual convencionado)
Notemos como Arnheim comenta este uso do gradiente de tamanho a propósito de uma
imagem e que tem uma semelhança estrutural com as figuras mencionadas acima:
Georges Seurat, em sua pintura mais conhecida, Uma Tarde no Grande Jatte,
organiza a dimensão de distância distribuindo figuras de tamanhos decrescentes em
todo o campo. Estas figuras não são ordenadas em fileiras, mas espalhadas
irregularmente por toda a superfície. Contudo, os vários tamanhos são
representados de maneira um tanto ampla de modo que uma escala contínua leva o
olhar da frente para o fundo.
62
A diferença aqui reside apenas na amplitude que o artista dá à sua imagem e que nas figuras
acima ela está delimitada conforme a designação da luz. As proporções e as distâncias entre
os objetos, que estão dispostos de modo irregular, se mantêm. De todo modo estas
informações podem ser vistas com freqüência em uma configuração do ambiente grotesco,
mas geralmente são subtraídas quando observamos as imagens de um grotesco do tipo
testemunhal. A planificação do motivo, a luz intensa e direta, a uniformidade do gradiente de
claridade, são aspectos que concorrem para uma desvalorização dos efeitos de profundidade,
atribuindo à imagem apenas seu caráter de exibição do motivo de modo plano, superficial,
“chapado”. E o próprio suporte fotográfico impresso, bidimensional, como vimos, reitera este
aspecto de planificação, muito característico da arte do retrato, aliás.
Arnheim ainda propõe uma relação “tensa” entre espectador e organização espacial, onde a
representação bidimensional se encerra em uma configuração fechada, plana; nada há para o
espectador além do plano frontal, dessa proximidade óbvia com o motivo da imagem. Para
ele a perspectiva central que condensa a representação no meio da imagem tem como
princípio a desvalorização do sujeito espectador; ela é realizável por si e para si, pois todas as
suas linhas estruturais convergem na representação central e não há qualquer menção a um
olhar autônomo, que se move, que percorre o espaço da imagem em diferentes ângulos; a
imagem continua se realizando lá, no centro. “Até esta altura podemos concordar com a
62
ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual – uma psicologia da visão criadora. 7ª.ed. São Paulo: Pioneira,
1992. p. 266
138
interpretação da perspectiva central, comumente aceita, como uma manifestação do
individualismo da Renascença” (ARNHEIM, 2004, p.282).
A centralização do mundo expressa, neste tipo de imagem, a concepção hierárquica da
existência humana que Arnheim indica na própria concepção visual da tela “Última Ceia” de
Leonardo da Vinci. Esta centralização nos é oferecida (de modo similar à intenção artística,
no caso da Renascença) como aspecto inquestionável, direto, pleno. De certo modo as
imagens que vimos do tipo testemunhal compartilham deste princípio organizador, já que se
postam como o discurso da advertência, o esclarecedor dos fatos e das realidades; o que
apresentam é dado como o absolutamente necessário e verossímil. Não há desvio de atenção;
“ela é isso” e “está lá”; o espectador é apenas o contemplador desta imagem, daí porque o
motivo ser exibido como um retratado, mostrando explicitamente suas lesões ou deformidades
físicas, e a condição testemunhal se articula tanto para o espectador quanto ao personagem (ou
vítima) da imagem, ele também uma testemunha de sua aparência. Ao contrário desta
condição, nas imagens de uma ambiência grotesca, o espaço é construído para “encaixar”,
para localizar o olhar do espectador, pois ele é convocado a assumir certa posição, um local já
“dado” dentro do espaço da imagem de modo a participar da cena.
139
3.2 A DIMENSÃO RECEPTIVA E O EFEITO DE IMEDIATICIDADE
Até aqui vimos observando de que modo as articulações entre os elementos internos de uma
imagem fotográfica refletem o tipo de apropriação que a publicidade faz do grotesco colocado
em suas modalidades. No entanto, precisamos nos debruçar ainda sobre um outro aspecto
desta apropriação, pois o contexto publicitário recorre a uma outra estratégia complementar e,
não menos impositiva de modelar, em certo ponto, o olhar do receptor. Dada numa condição
de discursividade, a imagem publicitária tem como objetivo principal ser captada de uma só
vez, mas esta “imediaticidade” requer a mobilização de princípios que devem estar ordenados
ao nível de uma estrutura (sintática e semântica), que favorece esta apreensão quase
“instantânea” da imagem pelo espectador. Neste caso, não nos referimos unicamente às
condições perceptivas, mas à “aderência”, ou melhor, “inclusão” do espectador no espaço
visual a partir de um posicionamento do olhar. Este dado faz com que consideremos o local
estrutural da recepção já implicado na forma discursiva de seus ícones visuais, de modo que
os elementos internos que trabalhamos foram colocados não apenas para uma ambientação ou
para certa figuração do grotesco, mas também para determinar sua condição espectatorial.
O efeito de retórica visual deste tipo de recurso na imagem publicitária é o de instaurar uma
espécie de dobra no interior da representação, que é, precisamente, o espaço em que a matéria
plástica e icônica da imagem passa a interpelar a recepção: certos autores se referem a este
fenômeno como uma espécie de “rompimento” do espaço próprio à imagem, enquanto mera
representação, incluindo em seus aspectos, a imediaticidade da presença do espectador,
transformado agora em uma espécie de testemunha da cena.
63
Fresnault- Deruelle (1993)
define este efeito como próprio à comunicação em abismo
64
como um tipo específico de
relação comunicativa usada, sobretudo, nos campos da publicidade e do fotojornalismo, e que
se estabelece entre o receptor e o material visual (que instancia o local do enunciador ou da
enunciação) e que se caracteriza pelo efeito de um “apagamento” dos traços da enunciação.
Indiferentemente ao efeito que as imagens da publicidade possam suscitar, o importante é
destacar que elas parecem induzir, no nível de sua recepção, uma espécie de efeito de
presença instantânea do objeto da representação.
63
Cf. Fresnault-Deruelle, Pierre. “Première Partie: crever l’écran”. In: L’Éloquence des Images. Paris: PUF (1993): p. 23-74.
64
Fresnault-Deruelle define a comunicação abîmée proveniente do conceito da arte da heráldica cujo significado
exprime a possibilidade de fazer um símbolo conter uma figura homóloga àquela que ele representa, como a um
brasão, por exemplo.
140
Advindo do campo das artes, como do teatro de Shakespeare, por exemplo, o recurso da
comunicação abîmée, da “vertigem abismal”, privilegiava, ao contrário, a exibição dos traços
da enunciação, onde o modo de representação era evidenciado apenas ao ponto de colocar o
enunciador em seu lugar mais visível e apropriado, o de condutor das ações narradas. No caso
da imagem publicitária, ao contrário, o propósito é o de instaurar uma espécie de
“instantaneidade” da relação entre a imagem e sua apreciação, do mesmo modo que os
operadores lingüísticos desta mensagem instituem uma espécie de intimidade conversacional,
no plano dos enunciados verbais, mas que, na imagem, não se configura numa relação de
“conforto” entre as duas instâncias; antes, demarca o espaço da imagem como um espaço de
tensão anunciada.
A imagem grotesca, por mais que esteja enquadrada pelos aspectos protocolares da
publicidade, que geralmente “amenizam” sua configuração, não deixa de se apresentar como
um elemento contrastante, provocador, tensionador de todo modo. E este atributo da imagem
se deve à sua concepção de instrumento mobilizador e evocativo da recepção, de onde
partimos de uma dada condição objetiva da espectatorialidade, “predefinida”, para notar que
este jogo no qual se vê o grotesco produz suas implicações estéticas e relacionais entre o
sujeito e o campo das imagens; nem sempre em uma situação de conformação do receptor,
mas de instrumento que evoca o olhar do espectador para dentro da cena e com ele
compartilha diferenças e estabelece novas relações.
Na medida em que as imagens publicitárias evidenciam este traço característico de se
constituir enquanto um espaço que evoca, que traz o espectador para dentro da imagem
através deste apagamento dos traços, como esta possibilidade de rompimento do espaço de
representação, neste momento, a imagem assume uma espécie de leurre, uma falsa ilusão da
realidade imediata, como uma propriedade constante e necessária, pois é preciso que o
espectador compartilhe da mesma dimensão imaginária a que se propõe a imagem.
A tensão que se estabelece está sempre ligada à referência externa do material (reconhecer
que são imagens dadas numa revista, num outdoor, etc.) e o apagamento destes traços é
apenas providencial e temporário. É este “pacto” que se configura em uma dada circunstância,
entre imagem e espectador, que se constitui num logro, em um simulacro necessário, ao
mesmo tempo em que os limites “somem” entre os espaços de representações para pôr em
jogo uma “experiência” afetiva dada por uma impressão visual.
141
Este “diálogo direto”, esta simulação de diálogo ou a colocação do espectador como
testemunha ocular da cena (previamente planejada no campo da produção) pode ser
observado pelo recurso da construção de uma imagem como este “corte no écran”, que parece
romper o limite que se estabelece entre uma representação, enquanto uma representação
publicitária, de mensagem mediática num suporte, nesta fixidez que a caracteriza e o
espectador. Se tomarmos este aspecto como uma estratégia, podemos notar como estas
modulações são tratadas na imagem grotesca a partir das operações num tipo de olhar
testemunhal
65
. Vejamos, então, como estas diferenças se operam conforme o tipo de grotesco.
3.2.1 O olhar de espreita
Entendemos que a relevância da análise semiótica da luz não é necessária apenas para
descrever suas propriedades físicas, mas apresentar como este elemento (em articulação com
os outros) pode gerar um efeito, onde estas articulações jogam tanto com atividades
perceptivas quanto enunciativas. Assim, uma outra observação pode ser feita a partir da
relação entre luz e espaço com um pouco mais de atenção: trata-se da localização implícita do
ponto de vista do observador.
Há um aspecto da retórica das imagens grotescas na publicidade que resta ainda inexplorado
pelas abordagens que privilegiam os aspectos textuais da representação visual: os elementos
que constituem muitas destas cenas são construídos em relação a um olhar que é indexado na
conformação mesma da imagem, como um dado para o qual ela se organiza. A imagem se
propõe como um prolongamento da visão constituindo uma espécie de ponto implícito da
cena no qual se localiza o próprio espectador. A imagem se constrói como um “dispositivo”
que visa restituir a dimensão testemunhal
66
com a qual sua cenografia se apresenta; ela
incorpora a ordem do testemunho como um aspecto decisivo de sua significação textual.
Para certos autores que procuram explorar os limites complementares entre o valor discursivo
das imagens e os aspectos plásticos e perceptuais de sua realização, o problema do “efeito de
testemunho” das representações visuais é um capítulo essencial desta exploração analítica às
65
Uma análise complementar à que se faz aqui também pode ser encontrada em BIONDI, Angie; PICADO, José
Benjamim. “Figuras da imediaticidade: olhar testemunhal e semiótica do grotesco na retórica visual da
publicidade.” Revista Famecos. PUC-RS. vol.31, 2006, p. 117-124.
66
Nos referimos à dimensão testemunhal ou do testemunho agora, não como uma modalidade específica do
grotesco, mas como a participação implícita do espectador já dada no espaço mesmo da imagem. O olhar do
espectador conformado ou, em jargão semiótico, “indexado” na imagem. Gombrich também se reporta a esta
denominação para designar a imagem dada em certas condições possíveis ao olhar, de modo que nada a mais
deve apresentar uma imagem além daquilo que pode ser visto, de fato, pelo olhar de um espectador.
142
funções textuais da imagem. Somos convocados a observar a imagem em um ponto localizado
implicitamente dentro dela de acordo com determinado enquadramento, com a perspectiva e
com a organização dos objetos de cena que estão dispostos na imagem, construindo (ou
replicando) de tal modo a idéia da distância e profundidade visual, a fim de que a recepção se
faça presente no espaço mesmo da representação.
A luminosidade assume também uma posição central na proposição dos movimentos da
recepção, pois além de propor uma espécie de jogo de tensões com elementos outros, como a
cor ou o enquadramento, por exemplo, para conferir às imagens um sentido grotesco, ela
também propõe o movimento de aproximação, de evocação do espectador para o espaço da
cena. Esta caracterização do posicionamento da recepção implicado na cena, entretanto, só é
vista em um tipo de configuração - o da ambiência grotesca, onde a imagem é muito mais
impregnada de um sentido “cenográfico”, teatralizado. Nosso olhar é colocado sempre como
aquele que “espreita” mais do que observa simplesmente, explicitamente. A própria
iluminação dura que marca os contornos e projeta sombras em um ambiente meio sombrio,
obscuro, nos convoca à cena como sujeitos que se aproximam para ver de um modo, digamos,
“sorrateiro”, silencioso, como alguém que flagra secretamente algo que não deveria ver.
O próprio modo como a luz destaca os objetos de cena estabelece a relação com o espectador,
provoca uma posição de interação com aquele que vê a imagem. É a luz que recorta, que
modela, que posiciona o espectador para a imagem e firma sua possibilidade de espaço
tridimensional; é a luz que dispõe o enquadramento da imagem. Trata-se de uma iluminação
dirigida, orientada sobre pontos ou aspectos dos corpos cuja gradação entre luz e sombra
marca um determinado aspecto e deixa evidente sua presença. Voltemos à imagem da figura
40 apenas para notar como estão colocados estes aspectos.
O tratamento dispensado à luz torna fundamental a configuração de um espaço como
grotesco, não apenas a partir da convocação do espectador para o espaço da imagem como
também sublinha esta atitude de “espreita” como algo próprio a um jogo fetichista; algo que
não deveria ser visto, mas que escapa por uma brecha sutil. Este jogo de ocultar revelando
convém ao grotesco quando a intenção é firmar uma espécie de relação tensa de cumplicidade
com o espectador, uma vez que sua finalidade é, sobretudo, envolvê-lo, ao mesmo tempo em
que estabelece esta espécie de “pacto” silencioso com o espectador. O espaço é marcado por
143
uma penumbra, a imagem é revestida por um aspecto sombrio e o destaque para as ações das
personagens sugere a impressão de um acontecimento que ocorre às ocultas.
Na figura 44, vimos que a parca visibilidade nos dá ainda a impressão de um lugar sujo, cheio
do que nos parecem ser pedaços de corpos espalhados junto com outros objetos que cobrem o
chão, outros que estão pendurados ou fixados pelas paredes do lugar representado. Em toda
sua obscuridade, podemos apenas ter uma impressão sobre os objetos ali dispostos, pois este
tipo de imagem conta com nossa disposição (do espectador/leitor) para ver nela o que apenas
nos parece ser “induzida” ou “sugerida” pela ambientação que a luz instaurou previamente,
aquilo que Gombrich designou de “princípio do etc”.
Tão logo nos instalemos no local da representação, tão logo somos “acolhidos” pelo ambiente
da imagem, os objetos que mal podemos distinguir passam a ser “certos” para nosso
reconhecimento. Podemos inferir que são pedaços de corpos humanos, por exemplo, ao invés
de cogitarmos a possibilidade de serem bonecos, manequins de prova e suas partes feitas de
plástico para servir de molde, simplesmente. Entretanto, sequer cogitamos esta possibilidade
inicialmente, pois o que nos decorre a partir desta imagem é, de fato, a sugestão de corpos
humanos, pois só em um segundo momento de observação é que percebemos que não há
sangue, vísceras ou qualquer outro indício de órgãos humanos. “Creio que tal ilusão é ajudada
pelo assim chamado ‘princípio do etc. ’, a suposição que tendemos a fazer de que ver alguns
elementos de uma série é vê-los todos”. (GOMBRICH, 1986, p.230). Este princípio ao qual
Gombrich nos atenta explica a ambigüidade que perpassa algumas das imagens vistas neste
tipo de modalidade grotesca.
Um tanto quanto diferenciada da noção de ambigüidade explicitada por Savedoff na sessão
anterior, aqui a tensão que se instaura, para o espectador, fica no limiar entre o ambiente e os
objetos (ou personagens), marcando uma aparente dualidade entre real e ficcional, entre um
estado de lucidez ou consciência e um estado onírico ou fantasioso. Em uma ou em outra, fica
ainda mais evidente a dubiedade dos personagens como humanos ou manequins de acordo
com certas posições ou atitudes, como é o caso da figura 67:
144
Figura 67: Peça 53
Fonte: http://www.diesel.com/sucessfullivingguides
Nesta peça (Figura 67), por exemplo, os personagens são vistos acorrentados pelos pés a
grandes blocos de pedra com as mãos atadas atrás das costas, submersos no fundo de rio, de
um lago ou de mar. Um deles (um homem de blusa preta que aparece mais à frente) parece ser
visto num movimento, onde o “debater-se” parece ser sugerido devido à posição um tanto
arqueada de seu corpo junto com a cabeça para seu lado direito, o pescoço como se estivesse
ainda contraído e logo acima de sua cabeça, bolhas de ar ainda estão presentes. No entanto, a
sugestão desta “pose” pode ser entendida como um movimento do homem no afã de se soltar
ou mesmo como a última pessoa que foi “atirada” ao fundo da água; diferente dos outros
personagens que parecem estáticos há certo tempo, sem qualquer resquício de vida ou
qualquer movimento. Nesta relação entre circunstância e personagem, a exploração do sentido
dúbio ainda está presente, pois qual seria mesmo a finalidade de se afogar bonecos
inanimados?
A situação na qual vemos estes personagens nos leva a crer que são humanos, de fato. E,
sendo assim, ficamos a observar vários cadáveres; estes corpos inertes dispostos ao nosso
olhar num tipo de espaço bem peculiar, ainda um tanto indefinido, mas de algum ponto
também mergulhado na água.
145
Figura 68: Peça 54
Fonte: <http://www.diesel.com/sucessfullivingguides>
O mesmo tipo de estranhamento e convocação do olhar ocorre ao notarmos a imagem da
figura 68. Apesar dos olhos estarem implicados na cena, o corpo se reserva a certa distância
dos personagens; uma atenção aos detalhes da imagem nos faz hesitar por um instante na
credulidade que temos para com ela (a imagem), como um modo de “querer crer” no que é
visto. Nessa imagem nos colocamos entre as folhagens observando o que seria uma cena
trivial de um casal de namorados, não fosse a presença de um boneco estranho entre o casal e
que nos fita sorrindo, como que “descobrisse” nosso olhar espreitando. De um modo geral,
podemos dizer que a imagem publicitária confere este tipo de apropriação específica como
uma estratégia para o uso do grotesco, onde sugere, numa primeira instância, um afastamento,
um estranhamento no espectador diante de sua temática, mas logo em seguida reivindica uma
aproximação, quase uma fetichização deste “estranho”. Há uma espécie de oscilação
programada entre um afastamento inicial, por conta do modo como o tema é figurado e
exposto e também uma aproximação (ou mesmo uma interação) com o espectador pelo modo
como o motivo está disposto na imagem. A aproximação aqui é resultado deste outro olhar
evocativo (o do boneco).
Somos novamente inscritos à cena na condição de testemunhas: entretanto, o efeito desta
construção não é o de replicar uma situação conversacional, mas o de efetivar a participação
da recepção na cena, o que faz da imagem uma espécie de símile de um testemunho ocular
(agora como uma espécie de flagrante visual). Estas imagens nos apresentam um modo de
construir a impressão do grotesco, não como aspecto estritamente temático da imagem, mas
146
como traço do modo de organização dos elementos da imagem para o olhar espectatorial:
neste sentido, o aspecto grotesco da cena que se nos propõe é exibido como um elemento da
modelação da imagem, desde seu interior, e o modo como esta realiza uma organização,
dimensiona a imagem fotográfica enquanto “cenografia”:
Tenhamos em conta que, ao transmitir esta experiência do testemunho ocular, a
imagem serve a um duplo propósito – ela nos mostra o que se passou lá fora, mas
também, por implicação, o que ocorreu ou poderia ter ocorrido a nós, física ou
emocionalmente. Nós entendemos, sem muita reflexão, aonde é que deveríamos
nos localizar, em relação ao evento representado, e em que momento devemos
compartilhar vicariamente como aquela testemunha ocular.
67
A luz combinada com espaço são, portanto, os elementos internos da imagem que integram
parte importante do regime discursivo aqui em jogo. Eles exercem uma função como agentes
ativadores (e complementares) da produção de sentido, que concorre no plano de sua
manifestação, juntamente com os demais elementos para a constituição do discurso
propriamente retórico e narrativo das imagens, pois tem uma finalidade específica aqui: a de
fixar o tema. O grotesco é representado através da ambiência promovida pelo tipo de
luminosidade e espaço empregados às imagens, que, neste caso, se relacionam diretamente
com o tema figurado. O grotesco observado aqui é muito mais da ordem de uma sensação, da
instauração de certo clima sombrio, do unheimlich
68
, que produz um efeito de estranhamento,
quase ‘sinistro’ às imagens, que a pura representação de certos objetos dispostos no espaço da
imagem.
Observemos esta peça publicitária de uma sociedade protetora de animais (Figura 69), e que
se organiza ao modo de uma cena à qual supostamente somos convidados a participar como
testemunhas.
67
GOMBRICH, Ernest Hans. “Standards of Truth: the arrested image and the moving eye”. In: The Image and
the Eye: futher studies in the psychology of pictorial representation. London: Phaidon, 1982. p. 254.
68
Tomamos a expressão de empréstimo do conceito freudiano sobre a representação do estranho, que é para Freud, elemento
de aparição do que já se conhece. Freud identifica em seu texto “O estranho” (1919) a variação semântica da palavra em
diversos idiomas, mas toma o significado alemão heimlich (doméstico) e unheimlich (o estranho), de modo que parte deste
ponto para combinar ainda ao conceito de Schelling, que pressupõe que estranho significa aquilo que deveria ter permanecido
oculto, mas veio à luz.
147
Figura 69: Peça 55
Fonte: <http://www.brainstorm9.com.br/archives/cat_impressoprint.html>
Um homem ajoelhado com as mãos aparentemente presas atrás das costas e que tem a cabeça
sustentada na parte superior de uma mesa com um corte que permite ver parte do seu cérebro
exposto. Ao lado da cabeça, dois macacos que, munidos de talheres, se servem deste cérebro.
O aspecto grotesco da imagem implica numa espécie de jogo de inversões, de caráter
predominantemente irônico, e que consiste em apresentar a cena, em seu aspecto inusitado ou
mesmo bizarro, mas através de certos índices de normalidade: assim sendo, temos uma
situação na qual os animais devoram um homem, mas estando dispostos em um tipo de
cenografia quase trivial, seja em seus aspectos de ambientação e iluminação, assim como na
atitude das personagens envolvidas. O caráter grotesco da situação fica como que
“neutralizado” em seu aspecto de fato excepcional, pelo modo como a cena evoca certo ar de
familiaridade. A disposição das personagens para a ação que executam parece transcorrer de
modo igualmente normal, sem qualquer menção de suspense, pânico ou horror entre eles, ao
contrário, o que se nos apresenta é uma parte do cotidiano destas personagens, mas é
justamente nesta cena trivial que nos tomamos de certa perplexidade pela imagem.
Uma parte do corpo humano serve de alimento para os macacos, os “miolos” que estão a
ponto de ser devorados pelos animais. Os macacos, por sua vez, demonstram certa
tranqüilidade em sua atitude, quase uma polidez, pois não usam as mãos e nem estão curvados
sobre uma presa devorando sua carcaça, como seria de se esperar, em se tratando de bestas; ao
148
contrário, eles manuseiam talheres para se servir de sua presa, numa atitude, podemos dizer,
própria aos humanos dotados de certa civilidade.
Nesta outra imagem da campanha (Figura 70) se configura a mesma espécie de jogo irônico
de inversões, com algumas variações de tratamento: de um lado, temos a mesma situação em
que os sinais que caracterizam a ação humana e a passividade animal se invertem
inadvertidamente; no plano comportamental, portanto, as personagens são apresentadas de
modo alternado. Diferentemente da primeira situação, entretanto, a cena não é apresentada em
seu aspecto de fato corriqueiro, o que lhe confere um aspecto de rudeza sem maiores
intermediações de suposta normalidade atribuída à situação:
Figura 70: Peça 56
Fonte: <http://www.brainstorm9.com.br/archives/cat_impressoprint.html>
É esta organização invertida dos valores (das atitudes) de cada um dos elementos
personagens, objetos, comportamento, que nos provoca o sentido de estranhamento do olhar,
que lhe confere o status de imagem grotesca. Tudo aquilo que parece típico em homens e
símios se exibe aqui em sinais trocados, de passividade, de urbanidade e polidez. Esta
provocação dos sentidos se complementa com uma sensação de perplexidade e nojo que a
atitude dos macacos suscita em nós: pois comer parte do cérebro de um homem nos é
completamente estranho, violento, abjeto.
Porém, o que estamos chamando de atitude aparentemente trivial na imagem apresentada é
construída de modo proposital. Tomar uma atitude humana por animais e a atitude “submissa”
149
do animal ser tomada pelo homem configura a inversão baseada no jogo irônico, que toma a
“contrariedade” como elemento de base do regime discursivo desta imagem. Tão logo
reconhecemos a referência da imagem como peça publicitária, portanto veículo de uma
mensagem específica, tão logo apreendemos o texto que arremata o significado da imagem
(“don’t treat others the way you don’t want to be treated”/ “não trate os outros do modo que
não quer ser tratado”) compreendemos a operação deste jogo semântico em sua mensagem
intencional, que responde pela instituição Humans & Animals (marca presente no canto
inferior direito da imagem).
Figura 71: Peça 57
Fonte:<http://adverbox.com/media/campaigns/2007/01/concordia1.jpg>
Esta outra peça (Figura 71) de uma organização para crianças carentes também se utiliza do
mesmo jogo de inversões como ponto principal da mensagem. Uma grande porca estendida
no chão e oito crianças nuas disputando suas tetas em busca de alimento. A peça, assim como
as demais, enfatiza seus personagens em uma situação: crianças mamando (ou tentando
mamar) em uma porca. Seus corpos sujos de terra, as crianças quase amontoadas umas sobre
as outras, sem roupas ou sapatos, um ambiente aparentemente rude. Ainda que seu tema, de
algum modo, nos restitua ao mito romano da loba que alimenta os irmãos Rômulo e Remo,
com o qual temos certa “familiaridade cultural”, esta peça se coloca de modo mais sarcástico
e com um tipo de apresentação da imagem mais pungente, pois é mais “rude” em seus
aspectos de ambientação e de exposição dos personagens.
150
Assim também, quase não notamos a presença da única frase que se localiza no rodapé da
peça, discretamente. Seu texto: “Se não as alimentarmos hoje quem fará amanhã?” nos
identifica o tipo de mensagem que o anunciante deseja expressar.
De todo modo, essas imagens jogam com esta relação de complementaridade que Fresnault-
Deruelle chama de “imaginário da comunicação”, ou ainda, de um simulacro da comunicação
onde a representação assume um duplo sobre si mesma para que consiga se colocar como a
própria enunciação para o espectador, como se não houvesse um ponto intermediário entre
eles, ou melhor, entre nós e a imagem.
3.2.3 O olhar direto
No entanto, se nas imagens publicitárias observadas acima, a disposição da representação
parecia nos localizar dentro do espaço de uma cena apresentada, em geral, como “coisa dada”
à visão, nas outras imagens que temos aqui (Figuras 72 a 76), as coisas se passam de modo
bem diferente: não se trata de nos dar a impressão de uma cena, mas de instituir uma espécie
de situação conversacional através da imagem; é o modo como o olhar da personagem centra
a recepção em relação à imagem que confere a este ícone seu aspecto de testemunho e de
estranhamento. Este olhar direto da personagem da fotografia inscreve um jogo em que se
simula uma conversação direta entre a personagem e o observador rompendo o esquema
enunciativo que reconhece a mensagem da peça publicitária como sendo a própria
intermediária do processo comunicativo. “De modo que a imagem discursiva joga bem, desde
seu interior e sob o signo falacioso da imediaticidade, com os signos da comunicação. O
abismo parece paradoxalmente anular as distâncias”. (FRESNAULT-DERUELLE, 1993,
p.30)
Este modo de “personalização” do enunciado visual parece suscitar uma reação do espectador
reconhecido na função fática, indicando-o a sair de um suposto estado de inércia daquele que
olha ou contempla uma imagem para dar lugar ao estabelecimento de uma recíproca deste
olhar; como um outro modo de interação que se esboça quando o espectador se reconhece
como o “alvo direto” deste olhar, pois a personagem da fotografia deixa clara esta intenção.
151
Do mesmo modo, quando vimos na Figura 57, por exemplo, a perplexidade momentânea que
corresponde à detenção da imagem em seus aspectos figurativos grotescos (um rosto
deformado e monstruoso que nos olha) dá lugar ao sentido de advertência que ela (a imagem)
se investe em um jogo de remissão do “antes e depois” da personagem. A pequena foto 3x4
exibe um momento anterior da modelo, na qual é vista com aparência normal, sadia, e uma
imagem maior, sucessiva ao fato (no caso, um acidente automobilístico), em uma imagem
atualizada da modelo (ou melhor, da vítima). A operação disposta na relação de causa e
conseqüência convoca a participação do espectador no sentido da reconstrução do percurso
que gerou tal resultado. Como num jogo de causa e conseqüência, a parte que cabe ao
espectador é reconstituir, imaginariamente, os acontecimentos, ainda que seja de modo geral.
O reforço em atestar a conseqüência (o resultado de tal acontecimento) pode ser englobado no
rol do efeito moralizador que assume o discurso publicitário aqui, sobretudo, através do modo
de interação que a personagem assume conosco; ela se dirige a nós em sua posição de vítima.
O texto que acompanha a imagem remete a este reforço de moldar um comportamento social;
“não beba e dirija”, diz a mensagem de rodapé do cartaz, mais uma vez, enfaticamente, e em
uma relação de trocadilho com o título “Bloody Mary” (Mary ensangüentada). O mesmo
ocorre com esta peça da Associação dos Alcoólicos Anônimos (Figura 72).
Figura 72: Peça 58
Fonte: <http://www.brainstorm9.com.br/archives/cat_impressoprint.html>
Ainda, é preciso notar que o modo pelo qual o olhar direto convoca a posição do espectador
está relacionado ao valor metonímico de que se reveste a imagem. Há uma correspondência
entre a apresentação da personagem como vítima e a causa do seu estado. Em boa medida,
toma-se a vítima para falar do tema da imagem (acidentes por embriaguez); a sua imagem
remete ao conteúdo da peça por uma condição de contigüidade. O mesmo tipo de jogo entre o
152
discurso visual e o enunciativo está presente nas imagens veiculadas em maços de cigarro, por
exemplo, na Figura 73.
Figura 73: Peça 59
Fonte: <http://www.anvisa.gov.br/imagens/tabaco/tabaco_cancer_laringe.jpg>
A exposição das vítimas em um estado de padecimento, de sofrimento por determinado
comportamento ou atitude, é tomada como se fosse uma referência direta do real. O olhar das
personagens está conduzido diretamente ao espectador, ele “fala” ao espectador na posição de
quem se dirige a ele, em um relato testemunhal de qualquer ordem; se prostra como a vítima
que apresenta suas seqüelas a um público. A disposição deste olhar diretamente lançado para
a recepção faz com que tenhamos a impressão de poder adentrar a dimensão ficcional (ao
mundo construído) da representação do mesmo modo que a personagem parece sair do espaço
da imagem e se colocar diante de nós. É como se a delimitação entre as duas dimensões fosse
mais porosa, mais volátil. Este mesmo modo de olhar o espectador para estabelecer um
contato foi usado numa campanha da Associação de Anistia Internacional (Figuras 74, 75 e
76).
153
Figura 74: Peça 60
Fonte: <http://adverbox.com/.../24/amnesty-international-8>
É como se personagem e espectador pudessem interagir, como se compartilhassem de uma
cumplicidade pela recíproca do olhar. É o próprio “logro da comunicação imediata”, a
condição da comunicação abîmée. Aqui é o presente, a atualidade da imagem que se funda no
“está ai” mais do que o “haver estado ali”, a condição temporal que se estabelece na imagem é
de um presente contínuo, pois reenvia simultaneamente ao passado do acontecimento
encarnado na personagem (nas marcas que apresentam).
Figura 75: Peça 61 Figura 76: Peça 62
Fonte: http://adverbox.com/.../24/amnesty-international-8
154
Um outro aspecto que podemos notar é que nestas peças as personagens posam para a
fotografia, ao passo que as outras (Figuras 69 e 70), por exemplo, sugerem “flagrantes” de
determinadas situações, nas quais as personagens parecem imersas cada uma em sua ação.
Tanto em uma característica quanto em outra, o que se evidencia é que há uma programação
do modo de olhar preestabelecida para cada uma delas, seja pelo flagrante, seja pela
reciprocidade. Naturalmente, este modo de compor a imagem para a recepção se constitui
conforme a intenção de base da mensagem (do tipo de anunciante) sobre a qual se estrutura o
motivo e o uso dos recursos da fotografia publicitária.
Nas imagens de uma ambiência grotesca que vimos, por exemplo, os elementos que as
constituíam se organizavam, geralmente, ao modo de um “flagrante”, para as quais, o próprio
fato de não haver quem olhasse para a câmera já era um dos recursos do qual se lança mão
para repercutir, com mais ênfase, o encerramento do mundo ficcional que se construiu e que
se desenrolava ali. Assim também, o modo de construção do seu enquadramento nos torna
tanto testemunhas quanto voyeurs destas cenas, ao passo que nessas últimas imagens (mais
próprias ao grotesco testemunhal), as personagens se dirigem explicitamente ao espectador
através dos seus olhares diretos para fora do plano, o que converte o problema do testemunho
visual em uma questão de cumplicidade e de compromisso mútuo com a ordem enunciativa à
qual a imagem se inscreve. O que se enfatiza ainda mais com o texto que a peça traz (“Isto é
tortura, não importa o que George Bush diga”), estabelecendo um diálogo direto com o
espectador e chamando a atenção para o objetivo principal da peça.
De fato há uma relação entre a pose e o olhar que cumpre uma função de indicativo
testemunhal, daí cada qual ser retratado, ser destacado em sua condição de padecimento para
que se estabeleça uma espécie de “pacto fiduciário” com o espectador baseado na
credibilidade que a situação da personagem lhe possibilita. Na verdade, sequer pensamos nos
indivíduos que nos fitam nestas imagens como sendo personagens ou modelos, mas como
figuras dotadas de uma densidade biográfica com a qual nos relacionamos em um nível
afetivo muito mais intenso do que o de personagens de situações ficcionais: sua presença tem
para nós, o valor de uma interlocução, ainda que construída como parte dos protocolos da
comunicação através das imagens (o mesmo recurso é muito próprio das imagens de políticos
em campanha).
155
No entanto, o que nossa observação sobre estes materiais nos demonstra é que há um modo
específico para dispor o espectador para a imagem. Seja através do recurso do olhar que se
projeta para fora do espaço da representação ou pelo flagrante, o modo como este elemento (o
olhar) é colocado em um estado de tensão arranjado com os demais elementos fotográficos (a
sensação de distância pela profundidade, o enquadramento, entre outros) nos indica o
imaginário de comunicação que se estabelece entre o espectador e uma imagem. É neste
sentido que a imagem parece se projetar para fora dos limites da representação, para fora de
todo suporte, como um traspassamento dos limites do plano representacional, colocando a
imagem em uma relação mais tensa com sua exterioridade, como se ela fosse um
prolongamento do seu campo visual, conforme nos indica Fresnault-Deruelle:
A fim de fazer o leitor/espectador que participa do mundo real aderir àquele da
representação, ou ainda, a fim de estabelecer um terreno de concordância entre o
mundo do discurso representado e o meu, a estratégia visual aqui desenvolvida
consiste em fazer que eu possa me inscrever na imagem de um modo o qual
descrevo agora: não fazendo mais que reatualizar, para meu corpo [...], a projeção
induzida pela construção de imagens clássicas (‘construção legítima’), eu me
restituo deste modo em um ‘antes da cena’ do qual o dispositivo cênico da imagem
constitui um prolongamento.
69
(Grifo do autor).
De um modo ou de outro, há uma articulação entre os elementos internos de uma imagem e
seu tratamento do motivo visual, por isso, podemos afirmar que a figuração do grotesco aliada
à retórica publicitária conforma estas imagens como uma impressão visual nas quais as
condições da recepção se colocam. Esta articulação entre uma configuração semântica do
grotesco e o modo como deve ser acionada pelo olhar constitui a indicação deste imaginário
de comunicação necessário a todos os tipos de imagens publicitárias que trabalham o motivo
do grotesco. Pensamos que o foco aqui é observar sob quais aspectos, recursos, artifícios o
grotesco começa a ser explorado pelo campo publicitário carregando uma espécie de
repertório possível do tema para o espectador. Saindo de um campo onde predomina quase
absolutamente a referência ao ideal e padrão de beleza vinculado aos seus produtos, há um
movimento que passa pela dimensão de uma construção deste repertório visual que assinala
um campo de estratégias possíveis para sua exploração. Pensamos que a emergência do
grotesco atravessa este momento.
69
FRESNAULT-DERUELLE, Pierre. Première partie: crever l’écran. In: L’Éloquence des Images. Paris: PUF, 1993. p.
29,30. (Tradução nossa).
156
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo principal deste trabalho foi identificar os modos pelos quais o motivo grotesco foi
utilizado na publicidade, em especial, na fotografia publicitária. O eixo central do trabalho
incidiu nas implicações e desdobramentos que a relação entre grotesco, imagem e publicidade
foram se colocando ao longo do percurso de análise. De início, um dos desafios foi identificar
o que se incluía no domínio do termo “grotesco”. A literatura a respeito do tema se mostrou,
muitas vezes, conflitante entre si em certos tópicos, dificultando a compreensão sobre um
conceito ou a definição mesma do grotesco, de modo que julgamos mais adequado identificar
o motivo através de suas caracterizações em certos ramos artísticos já bastante familiarizados
com o uso do tema, como a arte pictórica, sobretudo.
As leituras acerca do tema, principalmente no que concerne ao grotesco na arte pictórica, nos
ofereceram indicativos precisos dos elementos que participavam de uma espécie de sistema de
imagens, de uma imagerie do grotesco. Porém, notamos que suas perspectivas eram dirigidas
por determinações muito mais estéticas, como uma categoria, e um tanto afastadas de nossa
motivação propriamente comunicacional. O que nos interessava era observar o motivo
grotesco dentro de um tipo de regime discursivo específico – o retórico, publicitário. A
motivação era compreender como este tema era apropriado pelo universo publicitário. Deste
modo, precisávamos trabalhar estas referências, mas atentando para o grotesco não apenas
pelo efeito de repulsa ou de espanto que suscitava, mas observando quais os elementos
propriamente fotográficos que participavam e como eles estavam dispostos para certo tipo de
imagem, a fim de conformar uma espécie de repertório visual do tema. De um lado, buscamos
identificar o quê se incluía no rol do grotesco e de outro, notar quais os elementos que
participavam deste modo de compor o motivo.
Assim, notar as caracterizações do grotesco no campo das artes se mostrou uma estratégia de
estudo bastante fecunda. As representações do grotesco nas obras de Pieter Brueghel, por
exemplo, considerado por Kayser, um exemplar notável no uso do motivo grotesco na arte
figurativa, contribuíram em muito na identificação do primeiro aspecto grotesco numa
imagem: a personificação. Caracterização, aliás, muito arraigada aos moldes tradicionais do
grotesco como arte ornamental encontrado nas ruínas romanas (as grottas) em fins do século
XV.
157
A mistura de partes de corpos humanos com animais, plantas e materiais inanimados, ou
ainda, a atribuição de características humanas aos seres inanimados (e vice-versa) se
constituiu como uma das modalidades expressivas do motivo na publicidade. Na fotografia
publicitária, a personificação se constituiu, principalmente, pela justaposição de elementos de
naturezas distintas (animado e inanimado) aliada à própria natureza bidimensional do
material, que permitia criar certa “impressão visual” e assim sugerir a ambigüidade ao
espectador. Animados e inanimados pareciam compartilhar da mesma natureza, numa mesma
imagem. A sugestão que a imagem trazia servia aos propósitos de captar a atenção do
espectador para o tipo de “armadilha” que a ambigüidade propunha ao olhar. Ver um boneco
“dotado” de certa expressão fisionômica (e emocional), por exemplo, atendia ao jogo, muitas
vezes metafórico, que a personificação do grotesco intencionava.
Assim também, as pinturas de Goya nos chamaram a atenção para um elemento plástico – a
impressão da luz (o efeito de luminosidade), como componente essencial na conformação de
uma ambiência grotesca. Nesta modalidade, o motivo não estava atrelado apenas ao modo de
exibir um personagem disforme ou através de suas lesões, mas de mostrar um ambiente
evocando certo “clima”, valorizando o envolvimento do espectador em uma espécie de
“espaço de cena” armado, concebido de um modo específico e que é sugerido pelo tipo de luz
que “acolhe” o olhar do espectador. O emprego da luminosidade mostrou-se um tipo de
recurso que repercutiu na instauração da ambiência grotesca também aplicada à publicidade,
onde ressaltava os pontos principais de um personagem visto em uma situação violenta, abjeta
ou que, simplesmente, sugeria certa repulsa. O tipo de luminosidade (a luz “dura”, focada, em
contra-plongeé) servia tanto como dispositivo cênico, que compunha o cenário e dispunha os
personagens em suas atitudes, como envolvia o espectador em uma proximidade provocada,
como alguém que observa (à espreita) a cena que se desenvolvia.
Um fator decisivo para a produção disto que foi chamado de “clima” é a subordinação da luz
à espacialização tridimensional da imagem. Para que haja um “clima”, o espaço representado
na imagem deve figurar-se como algum em que o espectador poderia estar. O tipo de efeito de
tridimensionalidade produzido pela luz, portanto, mostrou-se um dos requisitos decisivos para
este tipo de figuração grotesca que se exibia nas peças. Os espaços definidos por este tipo de
iluminação foram, então, amplamente devedoras do barroco, como vimos desde Wölfflin.
158
No terceiro tipo de configuração do grotesco, vimos que certos aspectos muito próprios ao
gênero do retrato estavam implicados no que denominamos de modo testemunhal. Mais uma
vez, naquilo que regia a imagem, alguns elementos propriamente fotográficos serviram de
aporte ao discurso da publicidade. O enquadramento, o uso dos planos muitos próximos,
assim como o modo de “arranjar” os personagens com o olhar direto, a exibição do modelo
como alguém dotado de certa densidade biográfica (destacados como vítimas), entre outros
elementos, participaram de um modo de exibir suas deformidades, lesões e cicatrizes ao
espectador.
No caso da imagem publicitária, o propósito é o de instaurar uma espécie de
“instantaneidade” da relação entre a imagem e sua apreciação, do mesmo modo que os
operadores lingüísticos desta mensagem instituem uma espécie de intimidade conversacional,
no plano dos enunciados verbais. Se nos outros tipos de configuração grotesco a disposição da
representação parecia nos localizar dentro do espaço de uma cena apresentada, em geral,
como “coisa dada” à visão, neste modo do grotesco testemunhal as coisas se passam de modo
diferente: não se trata de dar a impressão de uma cena, mas de instituir uma espécie de
situação conversacional através da imagem. Notamos que o modo como o olhar da
personagem centra a recepção em relação à imagem é o que confere a este ícone seu aspecto
de testemunho e ao mesmo tempo de estranhamento. O que notamos foi que este tipo de olhar
direto dos personagens das fotografias inscreveu um jogo em que se simula uma conversação
direta entre a personagem e o observador rompendo o esquema enunciativo que reconhece a
mensagem da peça publicitária como sendo a própria intermediária do processo comunicativo.
Em todas as modalidades do grotesco vimos que a relação entre motivo e imagem nos
indicava uma série de operações que era colocada para seu processo de leitura. Apesar de
tratar do grotesco, a pesquisa não pretendia estabelecer os limites do tema ou mesmo delimitar
seu conceito, mas observá-lo a partir de um repertório que a própria publicidade estabeleceu
do tema. O motivo grotesco estava conformado ao modo de se compor uma imagem e os
recursos fotográficos se colocaram como agentes decisivos em cada tipo de configuração.
A caracterização dos personagens, a expressão, os gestos e as poses, a ambientação, tudo isto
estava arranjado, destacado, acentuado ou mesmo elidido, em uma imagem, pelos recursos de
enquadramento, luminosidade, cromatismo, angulação. Daí porque julgamos rentável propor
uma análise dos dispositivos retóricos da mensagem visual na publicidade, valorizando, em
159
especial, os aspectos mais ligados à modelação icônica do discurso visual. A abordagem
adotada destes elementos encontrou-se um tanto desvinculada de certas vertentes
semiológicas que concebem o valor comunicacional da imagem como uma decorrência da
submissão dos regimes plásticos e icônicos da representação aos padrões enunciativos do
segmento lingüístico da mensagem publicitária. Assim, em muitos casos, a referência aos
textos que compunham as peças (quando presentes) não foi destacada como fator
preponderante na análise, muito embora mencionadas e, em certos casos, integrada ao corpo
do texto. Porém, a análise esteve posicionada a favor de certa “autonomia” do campo da
significação da imagem em relação aos textos (vistos como agentes integrantes e não
determinantes do sentido discursivo).
Na fotografia, em especial, na publicitária, nenhum dos elementos em uma imagem é disposto
sem um propósito específico; todos eles estão arranjados e organizados conforme sua
finalidade. As modalidades do grotesco que vimos, atendem, cada uma, aos seus objetivos
próprios. No entanto, o que resulta de uma investigação que prima pela valorização da porção
plástico-icônica dos operadores discursivos na imagem publicitária, por outro lado, é notar
que a retórica do grotesco constitui a imagem como um espaço de tensão anunciada, ou seja,
como um ponto de implicação das condições de recepção. Deste modo, a análise não se daria
por completo se estivesse restrita à detenção das operações dos seus elementos
composicionais (ou internos) da imagem, mas, ao contrário, abrangendo também o lugar
estrutural da recepção inscrito no discurso dos ícones visuais. E que, de acordo com a
modalidade grotesca, colocava o espectador estava na condição de uma testemunha visual,
fosse pelo olhar furtivo, fosse pelo olhar direto.
Quanto à especificação do grotesco no contexto publicitário, resta ainda salientar que, diante
da revista do grotesco em alguns de seus modos representacionais, o estudo verificou que a
publicidade se apropria do motivo a partir de certas caracterizações já familiarizadas, já
convencionadas culturalmente. A publicidade não cria um novo modelo do motivo grotesco,
mas se vale de certos aspectos convencionados por outros campos. O público que identifica o
grotesco em uma peça publicitária, em algum momento, travou algum tipo de contato com o
tema visual. O que nos possibilitou afirmar, em certo ponto da análise, que a publicidade
dispõe do grotesco em uma espécie de repertório visual do motivo; buscando, nas imagens de
outros campos artísticos, certos aspectos convencionados através de um tipo de luz, de um
modo de enquadramento, de um modelo de personagem, enfim.
160
Em se tratando de um contexto midiático, que atende a certos protocolos mercadológicos, de
veiculação, editoriais, entre outros aspectos, a mensagem publicitária se consolidou para uma
instantaneidade, para uma leitura imediata e para uma finalidade muito pontual – anunciar
produtos e serviços de modo a interferir, ou melhor, persuadir o potencial comprador. Ainda
que seja através de um motivo como o grotesco, que apela para certo impacto ou reação do
espectador, esta finalidade de uma leitura instantânea da imagem perpassou todas as peças,
fosse para fins comerciais, fosse para campanhas de “esclarecimento” ou de advertência.
As três modalidades do grotesco foram concebidas de modo a reconhecermos o motivo e
reagir ao impacto, fosse pelo viés do cômico ou pela ironia, ou em alguns casos, mais por um
sarcasmo. É preciso reiterar, no entanto, que a exploração do grotesco pela publicidade atende
às suas finalidades mercadológicas (ou “ideológicas”, no caso da programação dos hábitos ou
comportamentos sociais) sim, que intenta persuadir, mas que estabelece um vínculo peculiar
com seu público alvo: aquele que choca pela ironia, que debocha das convenções estéticas
predominantes na própria publicidade, que provoca mostrando o avesso do que a publicidade
ratifica, em geral. Vale mais a exibição das idéias e sua incorporação nos materiais visuais
para captar o tipo de público que se deseja. O “mundo dos sonhos” do consumo é instigado a
fornecer outras formas de comunicar conforme seus tipos de públicos, seu target.
O marketing e a publicidade apostaram na estética para fortalecer a relação entre
a imagem de suas marcas e os consumidores. Na década de noventa, o grotesco
tornou-se um conceito forte e intrigante na moda e na publicidade. As imagens
chocantes, escatológicas e agressivas encontraram o seu nicho de mercado para
se desenvolver.
70
De todo modo, reconhecemos que algumas questões suscitam um aprofundamento mais
adequado de análise. O modo como um motivo visual é trabalhado pela fotografia foi
investigado aqui de maneira preliminar, além disso, o fato do material de análise responder a
um contexto publicitário faz com que certos aspectos desta relação sejam vistos por
pressupostos específicos de seu meio, de sua linguagem, típicos de seu regime discursivo. O
que, ao mesmo tempo em que oferece indicativos importantes para compreender o
funcionamento do próprio meio como gerador de discursos, também “engessa” a perspectiva
sobre o tema.
70
IAHN, Roberta Cesarino. O grotesco na publicidade. Revista Communicare. Edição 3.1, 2003.
161
Observar o grotesco, nesta pesquisa, auxiliou no entendimento da apropriação que a
publicidade faz dos seus temas, como recorta e como enfatiza os clichês acerca do tema
visual, mas também limita a condição de destacar o grotesco presente em outros âmbitos
discursivos. Isto por que o motivo deve servir ao condicionamento publicitário em suas
finalidades.
Uma outra possibilidade de desdobramento de análise é enfocar a relação motivo-imagem em
outros campos da fotografia, que não a publicitária. Há uma série de fotógrafos que
trabalharam o grotesco a partir de certos estilos artísticos, como o surrealismo ou o
expressionismo e que, eventualmente, podem ser notados inclusive em peças publicitárias,
mas que desconsideramos aqui por não ter como ponto principal deste trabalho a análise de
estilos ou gêneros artísticos. No entanto, a aproximação devida ao campo das artes, nesta
pesquisa, se deveu ao interesse em firmar uma espécie de sede metodológica da imagem
publicitária a partir de certos protocolos provenientes da história da arte e que, não raro,
permitiu desdobramentos com muitas das questões propostas na estética e na semiótica visual.
As leituras de Ernest Gombrich e Heinrich Wölfflin serviram, sobretudo, de aporte
metodológico complementar à noção de Umberto Eco, por exemplo, acerca da discursividade
da imagem.
Assim, reconhecemos que o contexto publicitário ainda nos renderia outras questões relativas
ao uso e funções destas imagens no que concerne ao tratamento com o suporte ou com o
próprio veículo, ou mesmo com a disposição das imagens no suporte, como possibilidade de
desdobramentos de análise. Outra possibilidade de investigação seria revisar o grotesco como
um conceito, buscando não apenas identificá-lo por suas caracterizações visuais (que em
nosso caso, foi mais adequado por se tratar de análise de imagens), mas partindo das
concepções dos teóricos que se ocuparam do tema. Contudo, pensamos ter avançado um
pouco mais nos desígnios de uma “pragmática” da imagem publicitária no que se refere, mais
especialmente, ao tratamento de um motivo, como o grotesco, na cultura visual hodierna.
162
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