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ANITA MARIA FERREIRA DA SILVA
A PRODUÇÃO DO SENTIDO DE METÁFORAS NO DISCURSO NÃO-
PROTOCOLAR DO PRESIDENTE LULA
Dissertação apresentada ao Programa de pós-graduação
em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, como parte dos requisitos para a obtenção do grau de
mestre em língua Portuguesa elaborada sob a orientação do
Professor Dr. Hugo Mari.
Pontifica Universidade Católica de Minas Gerais
Belo Horizonte
2006
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Dedico este Trabalho
Ao meu Pai, senhor dos sonhos
À minha Mãe, senhora da coragem
À Bela, à Maisa, ao Ita e ao Mira que me ensinaram o valor da fé
A Deus, ao Jadir, ao Cyro, ao Levi e à Paty que me ensinam,
todos os dias, o valor de amar e ser amada.
Agradecimentos
Ao Prof. Hugo Mari por me orientar na construção do meu conhecimento e na realização
deste trabalho. Agradeço por me ouvir, por compreender meu ritmo e me permitir buscar
soluções para os desafios propostos.
Agradeço a todos os Professores Drs. Hugo Mari, Maria de Lourdes Meirelles Matêncio,
Mário Alberto Perini, Milton do Nascimento, Paulo Henrique Aguiar Mendes, Vanda
Oliveira Bittencourt por me revelarem diferentes perspectivas a respeito do uso da Língua
Portuguesa.
Agradeço às secretárias da PUC Minas Berenice, Rosária e Vera pela dedicação e
seriedade no atendimento na secretaria.
Agradeço às secretárias da UFV Custódia, Meire, Margarida e Suely por todo o suporte
administrativo.
Aos colegas de trabalho do COLUNI.
Ao Programa de Pós-graduação em Letras da PUC Minas.
Ao Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Viçosa – CAP COLUNI.
À Fundação Arthur Bernardes – FUNARBE/UFV.
À CAPES pela bolsa de estudos concedida.
Aos queridos amigos que sempre estiveram ao meu lado, incentivando das mais diferentes
maneiras e que se reconhecerão neste espaço, particularmente, dedicado a eles. Em
especial à Das Dores, Neusa, Shirley e Silvana.
Resumo
Nesta dissertação propôs-se um estudo investigativo das produções e dos prováveis
sentidos políticos ideológicos dos enunciados metafóricos, no discurso não-protocolar do
presidente Lula. A partir da análise das condições de enunciação, de produção e de
formação discursiva, buscou-se compreender as construções metafóricas, seu
funcionamento e suas relações com as demais construções interativas nesse discurso. Na
primeira parte do trabalho, encontram-se os aspectos gerais teóricos metodológicos. A
segunda parte constitui-se de bases teóricas da Teoria da Enunciação, Formação Discursiva,
Teoria da Metáfora, Teoria dos Atos de Fala e alguns aspectos da Teoria do Enquadre.
Numa terceira etapa, os enunciados selecionados para o corpus da pesquisa são analisados
à luz das teorias, relacionadas acima, com vistas à identificação das construções,
regularidades e funções das construções metafóricas. Na quarta parte, a Teoria dos Atos de
Fala e da Teoria da Metáfora foram cruzadas, estabelecendo-se uma base de análise
alternativa para uma interpretação do sentido da metáfora como uma estratégia discursiva.
Finalmente, concluiu-se que o uso das construções enunciativas indiretas, primeiramente, é
feito para suprir a falta de palavras que expressem com exatidão o que o locutor quer
significar. E, segundo, que o uso destes enunciados, pelo Presidente, constitui uma maneira
de induzir o ouvinte a uma interpretação específica de seu dito indireto. Esse uso permite
ao locutor exercer um controle sobre o alocutário, de acordo com seus propósitos
ideológicos, frente a situação discursiva em que se encontra.
LINHA DE PESQUISA: Análise do Discurso
PALAVRAS-CHAVE: metáfora; análise do discurso; tática política.
ABSTRACT
In this dissertation it was proposed an analysis of the productions and the probable
ideological political senses of the metaphorical statements, in President Lula's non protocol
speech. Starting from the analysis of the enunciation conditions, of production and of
discursive formation, it was looked for to understand the metaphorical constructions, its
functioning and their relationships with the other interactive constructions in that speech.
In the first part of this work, there are the theoretical and methodological features. The
second is constituted of theoretical bases of the Theory of the Enunciation, Discursive
Formation, Theory of the Metaphors, Theory of the Acts of Speech and some aspects of
the Framing Theory. In a third stage, the statements selected for the corpus of this research
are analyzed from the underlined theories, seeking the identification of the constructions,
regularities and functions of the metaphorical constructions. In the fourth chapter, the
Theory of the Acts of Speech and the Theory of the Metaphor were crossed, settling down
an alternative basis for the analysis and interpretation of the sense of the metaphor as a
discursive strategy. Finally, it was ended that the use of the indirect constructions of
statements, firstly, is done to supply the lack of words that express with accuracy what the
announcer wants to mean. And, second, that the use of these statements, by the President,
constitutes a way to induce the listener to a specific interpretation of his indirect statement.
That use allows the announcer to exercise a control on the listeners, in agreement with his
ideological purposes, face the discursive situation in which he is inserted.
MAJOR AREA: Analysis of speech.
KEY-WORDS: metaphor; analysis of speech; political strategy.
SUMÁRIO
página
INTRODUÇÃO......................................................................................................11
CAPÍTULO 1 : ASPECTOS PRELIMINARES
1.1 Considerações gerais teórico-metodológicas..................................................... 15
1.2 Pressupostos teóricos ........................................................................................17
1.3 Seleção do corpus e da pesquisa .......................................................................17
CAPÍTULO 2 : QUADRO TEÓRICO
2.1 Processos enunciativos ..................................................................................19
2.1.1 O ato individual de enunciar .............................................................19
2.1.2 A enunciação sócio-interativa ........................................................... 24
2.2 Teoria do Enquadre ........................................................................................ 29
2.3 Teoria da Formação Discursiva de Michel Foucault e Michel Pêcheux........ 32
2.4 Teoria dos Atos de Fala: um jogo de intenções e estratégias .........................42
2.5 Teoria da Metáfora .........................................................................................47
2.5.1 A metáfora conceitual........................................................................47
2.5.2 O funcionamento da metáfora ..........................................................51
2.5.3 Metáforas e paráfrases .....................................................................59
2.5.4 Metáfora, ironia e os atos de fala indireto .......................................61
CAPÍTULO 3
O FUNCIONAMENTO DO DISCURSO POLÍTICO NÃO-PROTOCOLAR
3.1 Teoria do enquadre e a adaptação do modelo do discurso político não-protocolar
à luz da sociolingüística interacional....................................................................63
3.2 Processos enunciativos e a construção sócio-interativa do discurso político não-
protocolar..............................................................................................................73
3.2 As formações discursivas e as formações ideológicas ........................................79
3.3.1 O interdiscurso ..........................................................................................79
3.3.2 Das condições de produção .......................................................................80
3.3.3 Do funcionamento da formação discursiva ...............................................88
3.4 A análise dos enunciados metafóricos presentes no modelo de discurso não-
protocolar presidencial feita a partir da enunciação e da formação
discursiva............................................................................................................90
CAPÍTULO 4
A TEORIA DOS ATOS DE FALA E A TEORIA DA METÁFORA APLICADAS
A UMA POSSÍVEL CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS
4.1 Uma estratégia discursiva ...................................................................................96
4.2 A relação entre linguagem e ação ......................................................................100
CONCLUSÕES .........................................................................................................111
REFERÊNCIAS .......................................................................................................114
ANEXOS ..................................................................................................................116
Anexos
Anexo I ...................................................................................................... 1-2
Anexo I.b.................................................................................................... 3-5
Anexo II. ................................................................................................... 6-9
Anexo III.. ................................................................................................. 10-28
Anexo IIIb.................................................................................................. 29-31
Anexo IV .................................................................................................. 32-34
Anexo V .................................................................................................. 35-11
Anexo VI. ................................................................................................ 42-45
Anexo VII .. ............................................................................................. 46-50
Anexo VIIb............................................................................................... 51-52
Anexo VIII .............................................................................................. 53-57
Anexo IX ............................................................................................... 58
11
INTRODUÇÃO
Neste trabalho procura-se compreender a construção discursiva da metáfora, bem
como os seus efeitos de sentido decorrentes da enunciação em alguns discursos políticos
não-protocolares do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, proferidos no primeiro ano de
seu governo, 2003. Para tanto, tomou-se como base teórica a categoria teórica da Formação
Discursiva, a Teoria da Metáfora, a Teoria dos Atos de Fala e alguns aspectos da Teoria da
Enunciação e da Teoria dos Enquadre.
O objetivo desse trabalho é analisar o emprego dos enunciados metafóricos nos
discursos não-protocolares, identificando as possíveis relações desses com os demais
enunciados no jogo das estratégias interativas, de acordo com uma intencionalidade
orientada para a auto justificativa do discurso e da construção do ethos do enunciador.
Este estudo originou-se da hipótese de que o uso do enunciado metafórico,
presente no corpus em questão, constitui a realização de uma estratégia discursiva que visa
o próprio discurso. Ao utilizá-la, o locutor procura facilitar a interpretação de seu discurso
e, ao mesmo tempo, contribuir para a construção do seu ethos, que se revela no discurso
por meio de suas escolhas coincidentes com seus interesses político-ideológicos.
A verificação desta hipótese é feita, primeiramente, a partir do levantamento dos
traços característicos do discurso político não-protocolar, de acordo com a teoria sócio-
interativa do enquadre. Em seguida, busca-se compreender a construção do enunciado
metafórico e seu uso no discurso presidencial à luz da Formação Discursiva, da Teoria da
Metáfora e da Teoria dos Atos de Fala. Essas teorias, devido ao seu caráter sócio-interativo,
permitem que se desenvolva um processo inferencial sobre a intencionalidade do locutor.
Neste processo são analisados diferentes aspectos do discurso, com vistas à interpretação
de uma possível construção de sentido, considerando, principalmente, os pressupostos
12
enunciativos, a intersubjetividade, a cooperação mútua e a contextualização do encontro
face a face.
Assim, surgem indagações como: Qual a importância dos enunciados metafóricos
para o discurso não protocolar do Presidente Lula? Do ponto de vista teórico e prático, o
que a compreensão dos fatos discursivos explicita? Que condições de produção, que
formação discursiva são importantes? Quais são as construções metafóricas recorrentes e
quais são suas forças ilocucionais?
Os discursos que constituem este corpus foram selecionados a partir de uma
coletânea de discursos não-protocolares proferidos pelo Presidente Lula ao longo do ano de
2003, primeiro ano de seu governo, a qual foi conseguida junto à Radiobras e Folha de São
Paulo. Dentre esses discursos, foram selecionados aqueles que continham maior número
de construções de enunciados metafóricos, proferidos no período em que tramitavam, no
Congresso Nacional, para apreciação e votação dos congressistas os projetos do governo
de reforma tributária e reforma da previdência. Esses discursos apresentam construções
metafóricas com temas semelhantes; porém, com tipos de metáforas distintos, cuja
variação depende do público a que se direciona e do propósito do locutor, no momento do
discurso.
A apresentação deste estudo encontra-se dividida em 4 capítulos, abaixo
comentados.
No capítulo 1, destacam-se os aspectos teórico-metodológicos, a descrição do
processo de análise, a delimitação do corpus, os pressupostos teóricos e, ainda, a
justificativa, os objetivos e a hipótese desta pesquisa.
No capítulo 2, encontra-se o quadro teórico que sustenta este estudo. Primeiramente,
a Teoria da Enunciação, que apresenta um conceito de enunciado e de enunciação numa
abordagem sócio-interativa da função enunciativa. Em seguida, a Teoria do Enquadre, que
13
possibilita identificar as características do discurso político não-protocolar. Continuando,
a Teoria da Formação Discursiva de Foucault e Pêcheux, que apresenta o conceito de
formação discursiva e de ideologia. Em seguida, a Teoria dos Atos de Fala que apresenta
os traços lingüísticos de maneira contextualizada, aborda os conceitos de fala, de direção e
de ajuste da palavra e a realidade, a partir da atuação das forças ilocucionais sobre as
proposições. E finalmente, a Teoria da Metáfora mostra o funcionamento da construção
indireta do enunciado metafórico contribuindo enormemente para interpretação do mesmo.
No capítulo 3, é apresentada uma análise do corpus com base nas teorias
comentadas acima. Por meio dos estudos da Teoria do Enquadre, identificaram-se os traços
característicos do discurso político não-protocolar, onde se encontram inseridos os
enunciados metafóricos. À luz da Formação Discursiva e da Teoria da Enunciação,
analisaram-se as condições de produção dos enunciados metafóricos, as formações
discursivas, as formações ideológicas, a construção dos papéis enunciativos dos
participantes e a construção sócio–interativa do discurso. A aplicação dessas teorias na
análise dos enunciados metafóricos é de grande valia para a compreensão de seu uso no
discurso presidencial, uma vez que todas as abordagens são feitas considerando a fala em
interação.
No capítulo 4, é investigada uma possível interpretação de sentidos das construções
metafóricas do discurso presidencial não-protocolar tomada como uma estratégia
discursiva, a partir da Teoria da Metáfora e da Teoria dos Atos de Fala. Para tanto,
apresenta-se uma análise das construções metafóricas do discurso presidencial com base
nas teorias já mencionadas, o que possibilita enxergar estas construções como enunciados
que se realizam no interior do discurso, ligando-se aos outros e exercendo uma função
enunciativa específica face à situação do encontro.
14
Na conclusão apresenta-se, com base nos estudos e nas análises, uma possível
construção de sentido do enunciado metafórico. A compreensão deste suposto sentido se
dá a partir de uma, também suposta, função estratégica do enunciado metafórico no
discurso político não-protocolar, em que tanto o sentido como a função são criações do
locutor realizadas no momento da fala. São manifestadas, nesta seção, as considerações
finais das análises desenvolvidas neste estudo e apontadas possibilidades de novas
pesquisas.
15
CAPÍTULO 1
ASPECTOS PRELIMINARES
1.1 Considerações teórico-metodológicas gerais
Esta pesquisa tem como proposta analisar as construções discursivas do enunciado
metafórico, suas condições de enunciação, suas condições de produção, suas formações
discursivas e ideológicas, seus processos de inferência, bem como seus efeitos de sentido
no discurso político não protocolar proferidos pelo Presidente Lula no ano de 2003.
Esses discursos foram proferidos no período compreendido entre março/03 e
agosto/03, e dirigidos a um público heterogêneo composto por populares, trabalhadores de
fábricas e agricultores em diferentes localidades. Nessas ocasiões pôde-se observar, como
traço comum, o fato de o locutor falar espontaneamente, abandonando o discurso
protocolar. Durante esse período, esses discursos apresentaram como tema recorrente a
Reforma tributária e a Reforma da previdência e, indiretamente, a necessidade de se fazer
algum sacrifício, no presente, para que, no futuro, se possa receber a recompensa.
A insuficiência de tempo disponível impossibilitou a análise de todos os discursos
não-protocolares proferidos pelo presidente Lula em 2003, portanto, decidiu-se por se
fazer um corte no conjunto de todos os discursos, privilegiando-se o período em que a
construção dos enunciados metafóricos foi intensificada, o tema, o público a que se dirigia
e o suposto propósito discursivo.
A proposta de estudo apresentada tem como finalidade investigar a produção e os
prováveis sentidos político-ideológicos dos enunciado metafórico no discurso político
não- protocolar do Presidente Lula.
16
Pretende-se investigar como eles são construídos, suas regularidades, suas funções
discursivas e suas relações com os demais enunciados, no discurso em que se inserem.
Assim, a análise das condições político ideológicas e análise da enunciação têm como
objetivo apresentar uma visão ampla dos enunciados metafóricos dentro do discurso
político não–protocolar presidencial, no que se refere às condições de enunciação, de
produção e de formação discursiva.
A Teoria dos Atos de Fala, por sua vez, tem como objetivo mostrar como o locutor
age, lingüísticamente, em face da asserção e da promessa implícitas nas construções
metafóricas nesse discurso.
Os resultados dessas duas análises permitirão que o enunciado metafórico seja visto
como uma estratégia discursiva do locutor, construída de acordo com as condições de
produção sócio-históricas dos participantes, cuja função enunciativa é envolver os sujeitos
numa relação comunicacional, que se realiza na materialidade do discurso a serviço da
intencionalidade do locutor.
Sabe-se que o efeito perlocucional de um ato de fala não pode ser avaliado, porém,
acredita-se que o método que melhor interpreta os efeitos de sentido das construções
metafóricas, é aquele que as toma como um acontecimento discursivo, cujas condições
de produção têm base sócio-históricas, ou seja, que lhe atribui uma função enunciativa
ímpar.
1.2 Pressupostos teóricos
Este estudo tem com fundamentação teórica trabalhos de vários autores, cuja
contribuição direta e indireta teve grande importância para a sua realização.
17
Algumas teorias foram selecionadas devido à melhor aplicabilidade, segundo
os objetivos estabelecidos, como a Teoria dos Atos de Fala (AUSTIN, 1962,1990;
SEARLE, 2002; VANDERVEKEN, 1985); a Teoria da Enunciação (BENVENISTE,
1966,1988; BAKHTIN 1929,1997; a Teoria do Enquadre (GOFFMAN, 1981); os
fundamentos de Formação Discursiva FOUCAULT, 1969,2002; PÊCHEUX e FUCHS,
1995,1997 e PÊCHEUX, 1975,1997) e a Teoria da Metáfora ( SEARLE, 2002).
1.3 Seleção do corpus e da pesquisa
O corpus desta pesquisa constitui-se de discursos políticos não-protocolares feitos
pelo Presidente Lula no ano de 2003. Esses discursos foram escolhidos por serem
povoados por construções de enunciados metafóricos, objeto desse estudo, que visa
pesquisar a construção discursiva da metáfora e os seus possíveis efeitos de sentido
decorrentes da enunciação. O grande número de discursos, nesse formato, e a limitação
do tempo para a realização desta pesquisa, tornou necessário que se fizesse um corte no seu
conjunto, privilegiando os de conteúdos e temas semelhantes. A partir daí, procurou-se
selecionar as construções que apresentaram diferentes tipos de construções metafóricas.
Estas construções, ao serem analisadas como atos de fala, apresentaram-se como formas de
realização de forças ilocucionais assertivas e comissivas, as quais se dão de maneira
indireta através da construção metafórica.
As construções dos enunciados metafóricos são recursos discursivos de uso restrito à
língua falada, constituindo um importante traço do discurso não-protocolar do Presidente
Lula. À primeira vista, esses discursos apresentem um caráter dialogal, todavia isso não
ocorre, pois não apresenta a troca de turno ente locutor e alocutário, própria do diálogo.
Esse aspecto do discurso, ainda que não tenha sido abordado neste trabalho, constitui
18
importante assunto para estudos posteriores uma vez que a análise da língua falada é de
fundamental importância para a Análise do Discurso.
Esses discursos foram publicados por meio rádio, da TV e dos jornais, encontram-se
arquivados pela Radiobrás e são veiculados na internet através do seu site, uma das fontes
desse corpus.
19
CAPÍTULO 2
QUADRO TEÓRICO
2.1 Processos enunciativos
Neste capítulo, será feito um levantamento dos modelos de descrição do uso da
língua, a partir da enunciação, os quais são tomados como suporte teórico para a análise da
construção de sentido do enunciado metafórico. Para tanto, serão abordados os modelos
propostos por Benveniste e Bakhtin, respectivamente.
Enunciado é definido como:
unidade elementar do discurso, ele não é, em si, uma unidade, mas sim
uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e
que faz com que pareçam com conteúdos concretos, no tempo e no
espaço (FOUCAULT, 1996).
2.1.1 O ato individual de enunciar
Benveniste (1989), no texto O Aparelho Formal da Enunciação, comenta que, de
maneira geral, os estudos que se propõem a fazer uma descrição da língua em
funcionamento tomam como ponto inicial “um conjunto de regras que visam as condições
sintáticas nas quais as formas podem ou devem aparecer”. Postura da qual discorda, pois
vê aí uma confusão entre as condições de emprego da forma com as condições do emprego
da língua. Segundo o autor,
essas regras de emprego são articuladas a regras de formação indicadas
antecipadamente, de maneira a estabelecer uma certa correlação entre as
variações morfológicas e as latitudes combinatórias dos signos (acordo,
seleção mútua, preposições e regimes dos nomes e dos verbos, lugar e
ordem,etc.) (BENVENISTE, 1989:81).
20
Benveniste afirma também que as condições de emprego das formas da língua não
são idênticas às condições de emprego da língua, pois a “diversidade das estruturas
lingüísticas não se deixa reduzir a um pequeno número de modelos, que compreendem
sempre e somente os elementos fundamentais” (op. cit.: 82).
Em sua Teoria da Enunciação, o autor apresenta também um novo modelo de
descrição e de interpretação do emprego da língua, que tem como núcleo “a enunciação
[que é entendida como] colocar em funcionamento a língua por um ato individual de
utilização”. Para ele, a enunciação é o ato – tomado no sentido de processo – de produzir
um enunciado e o discurso é a manifestação da enunciação, ou seja, é a fala em si, cujo
conteúdo é o texto do enunciado.
A enunciação pode ser estudada sob diversos aspectos. Dentre eles, em primeiro
lugar, o autor destaca como “o mais perceptível e o mais direto”, a realização vocal da
língua. Segundo Benveniste:
os sons emitidos e percebidos [...] procedem sempre de atos
individuais. ... para o mesmo sujeito, os mesmos sons não são jamais
reproduzidos exatamente, e a noção de identidade não é
senão
aproximativa mesmo quando a experiência é repetida em detalhe. Estas
diferenças dizem respeito à diversidade das situações nas quais a
enunciação é produzida (op. cit.: 82-83).
O segundo aspecto da enunciação diz respeito à conversão individual da língua em
discurso. Para Benveniste:
(...) a questão (...) é ver como o “sentido” se forma em “palavras”, em que
medida se pode distinguir entre as duas noções e em que termos
descrever sua interação. É a semantização que está no centro deste
aspecto da enunciação, e ela conduz à teoria do signo e à análise da
significância (op. cit.: 83).
O terceiro aspecto consiste em “definir a enunciação no quadro formal de sua
realização” e é a base da teoria de benvenistiana, que procura definir os caracteres formais
da enunciação, a partir da manifestação individual que ela atualiza. A descrição deve
21
considerar, portanto, “o próprio ato, as situações em que se realiza e os instrumentos de sua
realização”.
O ato ou processo enunciativo abarca, simultaneamente, a apropriação da língua, a
produção do enunciado, a produção do discurso, a declaração do locutor e a implantação
do alocutário com objetivo de enunciar algo.
O processo da enunciação inicia-se com a necessidade do indivíduo de expressar a
sua relação como o mundo e de comunicá-la a outro indivíduo, para tanto, ele usa a língua
falada materializada em discurso, declarando-se locutor e implantando o Outro como
alocutário a quem reserva o direito de co-referir. “Ao instaurar o discurso, o locutor refere
e admite a possibilidade de o outro co-referir identicamente, no consenso pragmático que
faz de cada locutor um co-locutor” baseado no processo da inter-relação enunciativa.
Segundo Benveniste:
A condição mesma dessa mobilização e dessa apropriação da língua é,
para o locutor, a necessidade de referir pelo discurso, e, para o outro, a
possibilidade de co-referir identicamente, no consenso pragmático que
faz de cada locutor um co-locutor
(BENVENISTE, 1989: 83-84).
A inter-relação estabelecida entre o locutor, o seu referente e o alocutário constitui
o núcleo de “referência interno da enunciação”, por se tratar de uma relação, que num
“jogo de formas específicas cuja função é colocar o locutor em relação constante e
necessária com a enunciação” (BENVENISTE, 1989:84).
Os índices de pessoa da “relação EU-TU”, “produzidos na e pela enunciação”,
denotam o indivíduo que profere a enunciação, o locutor e o seu alocutário. Na estrutura
dialógica da linguagem são marcadores de subjetividade e figuram como origem e fim da
enunciação, em posição de parceiros.
a condição de diálogo é que é constitutiva da pessoa, pois implica em
reciprocidade – que eu me torne tu na alocução daquele que por sua vez
se designa por eu.(...) A linguagem só é possível porque cada locutor se
22
apresenta como sujeito, remetendo a ele mesmo como eu no seu discurso
(BENVENISTE, 1988:286).
a enunciação coloca duas ‘figuras’ igualmente e necessárias, uma origem,
a outra,fim da enunciação. É a estruturado diálogo. Duas figuras de
parceiros são altamente protagonistas da enunciação (BENVENISTE,
1989: 87).
Assim como os índices de pessoa “relação EU-TU”, os “indivíduos lingüísticos”,
tradicionalmente chamados pronomes demonstrativos, também são produzidos na e pela
enunciação, logo estão ligados ao locutor e ao alocutário. Por essa razão, a dêixis organiza
as relações espaciais e temporais de acordo com a intenção de referenciação do indivíduo
enunciador. A esse respeito o autor afirma:
Os pronomes pessoais são os primeiros pontos de apoio para essa
revelação da subjetividade na linguagem. Desses pronomes dependem
por sua vez outras classes de pronomes, que participam do mesmo status.
São os indicadores da dêixis, demonstrativos, advérbio adjetivos, que
organizam as relações espaciais e temporais em torno do “sujeito”
tomado como ponto de referência: “isto, aqui, agora” e as suas numerosas
correlações “isso, ontem, no ano passado, amanhã (BENVENISTE,
1989:245).
A instância enunciativa, constituída pelo paradigma das formas verbais, realiza-se
no interior do discurso em função do momento presente da enunciação. Ao enunciar, o
indivíduo atualiza sua existência e, ao mesmo tempo, cria a categoria do presente
discursivo:
a temporalidade é um quadro inato do pensamento. Ela é produzida, na
verdade, na e pela enunciação. Da enunciação procede a instauração da
categoria do presente, e propriamente a origem do tempo.(...) o homem
não dispõe de nenhum outro meio de viver o “agora” e de torná-lo atual
senão realizando-o pela inserção do discurso no mundo (BENVENISTE,
1989:85).
A ampliação contínua do presente “imprime na consciência o sentimento de uma
continuidade que denominamos “tempo”, portanto, este é inerente à enunciação”. Do
23
mesmo modo, a estrutura formal toma o presente como referências para se estabelecerem
outras, que se referem ao “que vai se tornar presente e o que já não o é mais”(op.cit.: 86)
No quadro formal da enunciação, o tempo verbal presente do indicativo constitui o
centro de referência interna, pois é a partir do seu uso que o enunciador marca sua
existência e enuncia seu mundo, razão primeira da enunciação.
Segundo Benveniste (1989), a “temporalidade é produzida na e pela enunciação,
dela procede a interação da categoria do presente e propriamente a origem do tempo”, ou
seja, o uso do tempo presente é o que possibilita ao enunciador atualizar sua existência ,
enunciando seu mundo, razão primeira da inserção do discurso no mundo. A partir do uso
do tempo presente é possível referir-se ao que já foi dito e ao que ainda não o foi, isto é,
referir-se ao passado e ao futuro respectivamente,.
Na enunciação, o uso das formas e suas respectivas funções sintáticas não podem
ser analisados apenas sob o ponto de vista lingüístico, pois elas formam uma rede de signos
que só têm sentido na enunciação em que se apresentam. O enunciador faz a escolha do
material lingüístico a ser usado de acordo com a sua intencionalidade enunciativa do
momento.
Assim, o locutor tem à sua disposição, por exemplo, a “interrogação”, para
provocar uma relação dialógica em que o alocutário é induzido a dar uma resposta; as
formas de “intimidação”, que exigem do alocutário uma reação ativa e imediata ao apelo
imperativo; e a “asserção” marcada pela entonação, que comunica uma certeza referente a
uma proposição. Além disso, de maneira menos categorizável, o autor cita ainda algumas
modalidades formais pertencentes aos verbos como os modalizadores e os modalizadores
frasais.
Assim a enunciação é diretamente responsável por certas classes de
signos que ela promove literalmente à existência. Porque eles não
poderiam surgir nem ser empregados no uso cognitivo da língua (...).
Além das formas que comanda, a enunciação fornece as condições
24
necessárias às grandes funções sintáticas. Desde o momento em que o
enunciador se serve da língua para influenciar de algum modo o
comportamento do alocutário, ele dispõe para este fim de um aparelho de
funções (op. cit.: 86).
Em resumo, a enunciação é um processo discursivo, único e subjetivo de
apropriação da língua por um locutor, que se dirige a um alocutário, com objetivo de
referir o seu mundo, no tempo presente, necessariamente o mesmo tempo do ato discursivo
em qualquer situação de uso da língua. O caráter dinâmico e imprevisível da enunciação
lhe confere unicidade a cada ato, e em cada realização discursiva.
2.1.2 A enunciação sócio-interativa
Bakhtin (1997), em sua investigação a respeito do objeto da filosofia da linguagem,
comenta os procedimentos definidos pelas teorias do objetivismo abstrato e do
subjetivismo individualista para análise da língua, tece críticas sobre essas teorias, aponta
as suas falhas e apresenta nova proposta de análise.
Segundo o autor, o objetivismo abstrato “aborda a enunciação monológica do ponto
de vista do filólogo da compreensão passiva”. Ele defende a tese de que a língua, como
“um sistema de formas que remete a uma norma”, é transmitida aos indivíduos como algo
pronto para ser usado. Dessa maneira, o objetivismo analisa a língua preocupando-se
apenas com a forma, isolando-a do seu uso, ignorando, portanto, a sua mutabilidade e a
evolução da língua; enfim, o caráter social da enunciação de acordo com Bakhtin:
... a língua não se transmite; ela dura e perdura sob a forma de um
processo evolutivo contínuo. Os indivíduos não recebem a língua pronta
para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal; ou
melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência
desperta e começa a operar (BAKHTIN, 1997:108).
O subjetivismo individual, por sua vez, considera o ato de fala o seu objeto de
pesquisa, contrariando os seguidores do objetivismo abstrato, toma-o como um ato
25
individual e procura analisá-lo e compreendê-lo, a partir da investigação das “condições de
vida psíquica individual do locutor”. Embora Bakhtin concorde com a teoria quanto à
valorização do ato de fala, ele discorda de esse ser tomado como um ato individual.
Bakhtin, por considerar ambas as teorias equivocadas, propõe uma nova teoria,
resultante da síntese dialética das duas correntes, em que elege a análise da enunciação ou
da expressão como objeto específico de pesquisa da língua por sua natureza social,
Assim, a prática viva da língua, a consciência lingüística do locutor e do
receptor nada tem a ver com um sistema abstrato de formas normativas,
mas apenas com a linguagem no sentido de conjunto dos contextos
possíveis de uso de cada forma particular (BAKHTIN, 1997:95).
O autor russo critica os adeptos do subjetivismo individual por esses defenderem a
enunciação monológica, isto é, a enunciação “como expressão da consciência individual”,
cuja origem se dá no interior do indivíduo e para onde se voltam as investigações que
buscam compreender a expressão que deve dirigir-se para o interior do indivíduo. Isso é
um equívoco, segundo o autor:
o conteúdo a exprimir e a sua objetivação externa são criados a partir de
um único material, pois não existe atividade mental sem expressão
semiótica. Conseqüentemente, é preciso eliminar de saída o princípio de
uma distinção qualitativa entre o conteúdo interior e a expressão exterior
(BAKHTIN, 1997: 112).
Bakhtin afirma que a atividade mental é estimulada pelo que ocorre fora do
indivíduo, no seu mundo concreto, onde os signos adquirem significação ao serem usados
efetivamente nas práticas de linguagem. Portanto, é a partir da observação do uso das
expressões que o indivíduo tem sua atividade mental organizada e a expressa
por meio da palavra, de acordo com os conhecimentos adquiridos nas interações com os
outros indivíduos de seu grupo social, ou seja:
26
o centro organizador [da expressão] e formador não se situa no interior,
mas no exterior. Não é a atividade mental que organiza a expressão, mas
ao contrário, é a expressão que organiza a atividade mental, que a modela
e determina sua orientação (op. cit.: 112).
A enunciação, fruto da inter-relação e da situação social, é facilitada pela interação
verbal dos participantes do ato de fala, responsáveis também pela forma e estrutura da
enunciação, assim definida por Bakhtin:
Com efeito, a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos
socialmente organizados e mesmo que não haja um interlocutor real, este
pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual
pertence o locutor. A palavra dirige-se a um interlocutor: varia se se tratar
de uma pessoa do mesmo grupo social ou não (...) não pode haver
interlocutor abstrato; não teríamos linguagem comum com tal
interlocutor, nem no sentido próprio nem no sentido figurado
(BAKHTIN, 1997:112)
A expressão independente de sua natureza apresenta dois aspectos básicos em torno
dos quais gira toda sua construção, segundo o autor, “o conteúdo (interior) e a sua
objetivação externa para outrem (ou também para si mesmo)”. O conteúdo é formado fora
do indivíduo, começa quando este percebe o mundo dos outros e ao mesmo tempo constrói
o seu, e esse é então expressado.
As posições de locutor e interlocutor merecem, também, destaque no quadro da
enunciação bakhtiniana. O locutor utiliza a língua “enquanto signo sempre variável e
flexível ao expressar-se, visando o ponto de vista do receptor”, que por pertencer à mesma
comunidade do locutor, procura compreender a enunciação e não descodificá-la apenas,
pois
É impossível reduzir-se o ato de descodificação ao reconhecimento de
uma forma lingüística utilizada pelo locutor como forma familiar,
conhecida – modo como reconhecemos, por exemplo, um sinal ao
qual não estamos suficientemente habituados ou uma forma de uma
língua que conhecemos mal. Não; o essencial na tarefa de
descodificação não consiste em reconhecer a forma utilizada, mas
compreende-la num contexto concreto preciso, compreender sua
contexto concreto preciso, compreender sua significação numa
enunciação particular (BAKHTIN, 1997:93).
27
A situação social é responsável, principalmente, pela ampliação, organização e
materialização da consciência. É a partir, grosso modo, do contato com a expressão externa
dos indivíduos, que a expressão interior do locutor passa a conhecer as relações dos demais
indivíduos entre si e suas relações com seus mundos. E ao internalizar esse conhecimento,
a expressão interior torna-se consciência, que se materializa em expressão externa. Embora
a consciência faça parte do ser como discurso interior, ela é também, essencialmente social,
pois “enquanto expressão material estruturada (através da palavra, do signo, do desenho,
da pintura, do som musical etc.), a consciência constitui um fato objetivo e uma força
social imensa”.
Ao assimilar e compreender seu mundo, o indivíduo assume, também, seus valores;
dentre eles está a ideologia, que diferente da consciência, não faz parte do ser, é construída
fora do seu mundo interior, determinada por “fatores sociológicos” a partir de suas inter-
relações sociais.
A ideologia e a consciência juntas pautam o discurso interior e as diferentes formas
de expressão do indivíduo, que são compatíveis com a sua situação social imediata,
determinadas pelo contexto social imediato. Esse, por sua vez, determina os interlocutores,
as formas e os modelos de enunciação das experiências, conforme afirma Bakhtin:
A atividade mental do sujeito constitui, da mesma forma que a expressão
exterior, um território social em conseqüência, todo o itinerário que leva
da atividade mental (o “conteúdo a exprimir”) à sua objetivação externa
(a “enunciação”) situa-se completamente em território social. Quando a
atividade mental se realiza sob a forma de uma enunciação, a orientação
social à qual ela se submete adquire maior complexidade graças à
exigência de adaptação ao contexto social imediato do ato de fala, e,
acima de tudo, aos interlocutores concretos (BAKHTIN, 1997: 117).
A materialização das expressões externas permite ao falante uma avaliação
consciente da eficiência dessas, ao mesmo tempo em que permite adaptá-las às situações
sociais, tornando-as mais definidas e estáveis. Isso só é possível em razão do processo
reverso das expressões sobre a atividade mental, que consiste em conscientizar o indivíduo
28
da importância das escolhas frente às diferentes situações sociais em que se encontra, pois,
na verdade, é “o nosso mundo interior que se adapta às possibilidades de nossa expressão”.
Bakhtin chama de “ideologia do cotidiano” a atividade mental, que por estar ligada
à consciência e ao auditório social, organiza e orienta as expressões externas usadas no dia-
a-dia. Expressões que, tendo a sua aceitação testada e comprovada, “cristalizam-se nos
sistemas ideológicos constituídos da moral social, da ciência, da arte e da religião”. A
ideologia do cotidiano funciona como um laboratório para as instituições ideológicas,
segundo o autor:
Aí justamente é que se acumulam energias criadoras com cujo auxílio
efetuam-se as revisões parciais ou totais dos sistemas ideológicos. A
estrutura da enunciação e da atividade mental a exprimir são de natureza
social. A elaboração estilística da enunciação é de natureza sociológica e
a própria cadeia verbal, à qual se reduz em última análise a realidade da
língua, é social. Cada elo dessa cadeia é social, assim como toda
dinâmica (BAKHTIN, 1997:122).
A enunciação é descrita como um fenômeno social e deve ser compreendida apenas
como uma parte do complexo sistema de comunicação entre indivíduos, que envolve o
sistema lingüístico formal, a situação extralingüística, a interação verbal e a não verbal
reunidos num contexto social particularizado, que se liga a outros tantos, numa rede
permanente de trocas e de evolução sócio-histórica de que fala Bakhtin em:
A estrutura da enunciação e da atividade mental a exprimir é de natureza
social. A elaboração estilística da enunciação é de natureza sociológica e
a própria cadeia verbal, à qual se reduz em última análise a realidade da
língua, é social. Cada elo dessa cadeia é social, assim como toda
dinâmica (BAKHTIN, 1997:122).
Em síntese a enunciação, para Bakhtin, é “tudo aquilo que, tendo se formado e
determinado de alguma maneira no psiquismo do indivíduo, exterioriza-se objetivamente
para outrem com a ajuda de algum código de signos exteriores”, ou seja, é um produto de
interação social orientada e revestida, desde a sua origem, por uma ideologia. Cada uma
29
das ocorrências enunciativas liga-se a outras, formando uma rede permanente de trocas e
de evolução, de um todo que é o complexo sistema de comunicação efetivo entre falantes.
O aspecto social da teoria bakhtiniana apresenta a interação como o princípio da
comunicação humana, esse, por sua vez, encontra-se também na base da comunicação face
a face apresentada pela sociolingüística interacional defendida por Goffman (2002), teoria
que enfoca especialmente a situação social do encontro, assunto a ser discutido, a seguir,
devido a sua importância para a compreensão do discurso não- protocolar presidencial,
corpus deste trabalho.
2.2. Teoria do enquadre
A busca da compreensão da complexidade do processo de comunicação na
interação face a face, dos papéis e das escolhas dos seus participantes tem sido
preocupação de lingüistas, antropólogos e sociólogos de todo o mundo.
Em seu artigo “A situação negligenciada”, Goffman (1964 apud GRACEZ e
RIBEIRO,2002:13) defende a tomada das variáveis sociolingüísticas da interação como
elementos essenciais para a análise da comunicação face a face e, logicamente, para a
compreensão mútua do encontro. Isto é, a interpretação e o estudo da linguagem só são
possíveis quando estes são tomados como parte da vida, da realidade de cada um de nós, e
não como “indicativo lingüístico por si só”.
Além de atentar para a estruturação formal e funcional do discurso, Goffman chama
a atenção para a análise da situação social como um cenário importante para a
interpretação do propósito dos falantes no jogo comunicativo. Esta é a instância em que os
participantes buscam pistas ao observar as escolhas, as regras de início e de término dos
encontros, observando o comportamento gestual, os sons, os olhares, as entonações, as
30
trocas de turnos, o foco de atenção e de colaboração ou de não colaboração dos
participantes, cujas presenças podem estar ratificadas ou não. Goffman propõe que estas
variáveis sejam estudadas como as partes que constituem o todo, de maneira
interdependente e contínua.
Esse todo, por sua vez, será enquadrado em um modelo de discursos já conhecidos
dos participantes que a partir de então, acionam mecanismos específicos de interação, isto
é, as expectativas ou “esquemas” para interpretar o dito.
Sobre os fundamentos teóricos da análise de “enquadre e esquema” o autor afirma:
A noção interativa de enquadre, então, refere-se á percepção de qual
atividade está sendo encenada, de qual sentido os falantes dão ao que
dizem. Dado que esse sentido é percebido a partir da maneira como os
participantes se comportam na interação, os enquadres emergem de
interações verbais e não-verbais e são por elas constituídos.
Os enquadres interativos de interpretação pressupõem maneiras de
comportamento. TANNEN E WALLAT (1987 apud GARCEZ &
RIBEIRO, 2002:188).
Esquemas de conhecimento são as expectativas dos participantes acerca
de pessoas, objetos, eventos e cenários no Mundo, fazendo distinção,
portanto, entre o sentido desse termo e os alinhamentos que são
negociados em uma interação específica.
TANNEN E WALLAT (1987 apud GARCEZ & RIBEIRO, 2002:189).
Na constante busca da melhor compreensão do discurso oral, Goffman (1979
apud.GARCEZ & RIBEIRO,2002:107) apresenta o conceito de footing como um
desdobramento do conceito enquadre.
representa o alinhamento, a postura, a posição a projeção’ eu’ de um
participante na sua relação com o outro, consigo próprio e com o discurso
em construção. (...) caracteriza o aspecto dinâmico do enquadre e,
sobretudo a sua natureza discursiva.
Os footings são introduzidos, negociados, ratificados (ou não), co-
sustentados e modificados na interação. Podem sinalizar aspectos
pessoais (uma fala afável, sedutora), papéis sociais (um executivo na
posição de chefe de setor), bem como intrincados papéis discursivos (o
falante enquanto animador de um discurso alheio) GOFFMAN (1979
apud.GARCEZ & RIBEIRO, 2002:108-109) .
31
Essa teoria possibilita a identificação dos traços característicos do discurso político
não-protocolar, que são de suma importância para a compreensão dos processos
discursivos dos discursos presidenciais.
Faz-se necessário estabelecer que o corpus mencionado, constitui-se de alguns
pronunciamentos feitos pelo Presidente Lula, em cerimônias oficiais, portanto protocolares
no que se refere a local, data e público. Todavia, estes discursos não são previamente
redigidos e seus proferimentos não seguem “as normas cultas de linguagem” de acordo
com orientação do Manual de Redação da Presidência da República (2002) e, nem, o
Presidente, segue as normas de conduta previstas pelo Protocolo do Cerimonial Público do
Decreto 70.274, de 9 de março de 1972, cuja obediência é sugerida pela Casa Civil.
Devido a isso, neste trabalho, optou-se por chamar os referidos pronunciamentos de
discursos políticos não-protocolares do Presidente Lula.
Assim, neste estudo, serão levados em consideração conceitos lingüísticos
contextuais como a pragmática e as forças ilocucionais das elocuções, subsidiando a
interpretação dos processos inferenciais do encontro conversacional do locutor, Lula, e
seus alocutários.
Esses conceitos e as suas interligações encontram-se mais bem exemplificados no
capítulo 3, em que é apresentada uma análise do discurso não-protocolar de posse do
Presidente Lula, proferido no parlamento em Brasília, no dia 2 de janeiro de 2003, em
cujas pistas e marcadores lingüísticos buscou-se interpretar os possíveis propósitos
conversacionais discursivos presidenciais.
A Teoria da Formação Discursiva de Foucault (1996) corrobora com a
interpretação dos processos inferenciais do encontro conversacional por conceber o
discurso como objeto de análise e o descreve como “um conjunto de práticas discursivas
que instauram os objetos sobre os quais enunciam, circunscrevem os conceitos, legitimam
32
os sujeitos enunciadores e fixam as estratégias que rareiam os atos discursivos”. Essa
afirmação resulta de sua preocupação em compreender e explicar o funcionamento dos
discursos das ciências humanas, enfatizando o enunciado, as formações discursivas e as
práticas discursivas.
O exercício da análise desses propósitos e dos possíveis sentidos das construções
metafóricas em estudo, será auxiliado pela teoria da formação discursiva de Foucault,
apresentada na próxima seção.
2.3. Teoria da Formação discursiva de Michel Foucault e Michel Pêcheux
Analisar o discurso é fazer desaparecer e reaparecer as contradições; é mostrar o
jogo que jogam entre si; é manifestar como pode exprimir-las, dar-lhes corpo, ou
emprestar-lhes uma fugidia aparência. (FOUCAULT, 1969).
Foucault (1987), em “A arqueologia do saber” rompe com a ordem clássica,
que via a história como um discurso do contínuo e estabelece uma nova forma de vê-la
como ruptura e descontinuidade. Para o autor, a história é feita da dispersão de elementos,
que compõem os discursos, resultantes de vários entrecruzamentos de conhecimentos, que
são agrupados nas práticas discursivas amparadas pelas formações ideológicas e, em
seguida, reagrupadas, formando os ‘grandes discursos’ como a “teoria”, a “ideologia” e a
“ciência”.
O objetivo de Foucault é estudar as relações históricas entre saber e poder, para isso,
ele investiga a formação discursiva a partir da descrição da dispersão dos elementos e
estabelecem regras que possibilitam identificar, nas práticas discursivas, as regularidades
de uma dada formação discursiva.
Em sua ‘teoria das formações discursivas’, Foucault baseia-se na história para
identificar o discurso, o sujeito e o sentido. Ele propõe um modelo de investigação da
formação do discurso, em que “as dimensões próprias do enunciado” são usadas como
33
pistas das formações discursivas. Dentre essas se destacam: “a forma de dispersão que
reporta regularmente aquilo de que se falam; o sistema de seus referenciais; o regime geral
ao qual obedecem os diferentes modos de enunciação; a distribuição das possíveis posições
subjetivas e o sistema que os define e preserve”. (GREGOLIN, 2004: 90).
O modelo foucaultiano estabelece as “regras de formação”, que identificam
elementos como: os objetos que aparecem, coexistem e se transformam num espaço
comum discursivo; os diferentes tipos de enunciação do sujeito que podem permear o
discurso; os conceitos em suas formas de aparecimento e transformação em um campo
discursivo, relacionados em um sistema comum; os temas e teorias, sistema de relações
entre diversas estratégias capazes de dar conta de uma formação discursiva.
Foucault busca compreender o sentido do discurso, tomando-o como um
“acontecimento” disperso e descontínuo, ao investigar as suas ocorrências e suas condições
hitórico-sociais, procurando estabelecer as possíveis relações destes acontecimentos com
outros tantos, que formarão a rede de saberes ou de discursos veiculados pelas práticas
discursivas. A esse respeito o autor afirma:
É preciso renunciar a todos esses temas que têm por função garantir a
infinita continuidade do discurso e sua secreta presença no jogo de uma
ausência sempre reconduzida. É preciso estar pronto para acolher o
discurso em sua irrupção de acontecimento, nessa pontualidade e
dispersão temporal... Não remetê-lo a longínqua presença da origem,
tratá-lo no jogo de sua instância (FOUCAULT, 1986:29)
A “formação discursiva”, portanto, é um conjunto de enunciados marcados pelas
mesmas regularidades, pelas mesmas “regras de formação”. A formação discursiva se
define pela sua relação com a formação ideológica, isto é, os textos que fazem parte de
uma formação discursiva remetem a uma mesma formação ideológica. A formação
discursiva determina “o que pode e deve ser dito” [a partir de um lugar social
34
historicamente determinado].“Um mesmo texto pode aparecer em formações discursivas
diferentes, acarretando, com isso, variações de sentido”(BRANDÃO,1994: 38).
Foucault compreende o enunciado como a unidade elementar do discurso, um
acontecimento único, que pode ser repetido, transformado e reativado, cujo sentido está
diretamente ligado à formação discursiva a que pertence, ou seja, ele pode aparecer em
enunciações distintas, porém com sentidos diferentes. A esse respeito ele afirma:
Em seu modo de ser singular (nem inteiramente lingüístico, nem
exclusivamente material) o enunciado é indispensável para que se possa
dizer se há ou não frase, proposição, ato de linguagem.(...) ele não é, em
si mesmo, uma unidade , mas sim uma função que cruza um domínio de
estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, como
conteúdos concretos, no tempo e no espaço (FOUCAULT, 1986:98-99)
Todo enunciado pressupõe outros, já que faz parte de uma série ou de um
conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros. Entrando em
redes, o enunciado se coloca em campos de atualização, podendo
integrar-se em certas operações e estratégias. A unidade do enunciado
pode manter-se inalterada, modificar-se ou apagar-se (FOUCAULT, 1986
apud. CARDOSO, 1999:37).
A enunciação é diferente do enunciado devido ao seu caráter singular, ocorre uma
única vez, em um dado momento, data e lugar. Cada vez que um enunciado é repetido
torna-se único pela enunciação. Como já afirmava Bakhtin, a enunciação é
“eminentemente social”, pois:
Enuncia-se sempre para alguém de um determinado lugar ou de uma
determinada posição sócio-histórica, valendo dizer que o tu também
ocupara uma determinada posição. Esses lugares são constitutivos da
enunciação (op. cit.:1999: 38).
35
Percebe-se, assim, que o discurso, em virtude do ao seu caráter dispersivo, é
perpassado por outros discursos ao mesmo tempo em que perpassam outros tantos, num
constante movimento, tanto interdiscursivo como transdiscursivo, que faz circular os
elementos pré-concebidos entre as formações discursivas.
Foucault (1996) apresenta o autor como elemento responsável pela neutralização da
dispersão, o elemento que dá unidade ao texto. Porém, declara que esse autor não deve ser
“entendido como o indivíduo que fala que pronunciou ou escreveu”, mas aquele que
selecionou os enunciados, na dispersão, visando a produção de sentidos de um discurso,
estabelecendo, assim, o “sujeito do discurso”.
Segundo o autor, o que torna a frase um enunciado é o fato de se identificar, com
auxílio das regras de formação discursiva, a posição de sujeito, que resulta das relações
entre os enunciados e a historicidade, ou seja, para produção de sentido os enunciados se
co-relacionam, produzindo discursos dentro dos espaços historicamente delimitados.
Além da formação discursiva, Foucault apresenta outros pontos interessantes em
sua teoria discursiva. Considera, por exemplo, o discurso um jogo estratégico de ação e
reação, de jogo de dominação e de desvencilhamento e de luta:
O discurso não é apenas o que traduz as lutas ou os sistemas de
dominação, mas é a coisa para a qual e pela qual a luta existe, o discurso é
o poder a ser tomado
(FOUCAULT, 1984:110).
O discurso é pensado como um conjunto de enunciados ou performances verbais
revestidas de funções enunciativas, que seguem os ditames das práticas discursivas
descritas como:
conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e
no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada
área social, econômica, geográfica ou lingüística as condições de
exercício da função enunciativa
(FOUCAULT, 1986: 136).
36
Seguindo essa linha de pensamento, o discurso é tomado como um jogo onde saber
e poder se articulam, pois quem fala, o faz de um lugar “institucionalmente” reconhecido,
o que dá “legitimidade” ao discurso e o torna veículo do saber e, conseqüentemente,
gerador de poder, cuja produção é controlada, selecionada, organizada e redistribuída por
meio de procedimentos dos diferentes centros de controle social.
Assim, Foucault afirma que as práticas discursivas são responsáveis pelo ‘saber’,
que é definido como o conhecimento daquilo que se pode falar. Enfim, conhecimento do
espaço em que se pode falar sobre o objeto do discurso em questão; conhecimento do
“campo de coordenação e de subordinação dos enunciados em que os conceitos aparecem,
se definem, se ampliam e se transformam; além das possibilidades de utilização e de
apropriação oferecidas pelo discurso”. FOUCAULT (1986 apud GREGOLIN, (2004:96).
Segundo Foucault, as práticas discursivas estabelecem que:
não se tem o direito de dizer tudo, (...) não se pode falar tudo em qualquer
circunstância (...) qualquer um não pode falar qualquer coisa
(FOUCAULT, 1996:9).
Assim, Foucault mostra as relações estabelecidas entre discurso, sujeito, história e
as práticas discursivas e justifica o fato do discurso sempre estar submetido ao que chamou
ordem do discurso.
Além desse autor, vários outros pesquisadores se interessaram pelos estudos da
teoria do discurso, dentre eles, encontra-se Pêcheux, cuja proposta é apontada, por muitos,
como contrária à teoria foucaultiana quando, na verdade, são complementares, segundo
Gregolin (2004:119).
As teorias diferem-se, principalmente, a respeito do modo de interpretação dos
pressupostos marxistas e se assemelham quanto à articulação entre o lingüístico e o histórico.
Pêcheux, numa primeira fase de seu trabalho, criticou severamente Foucault por
esse não inserir, em sua teoria da formação discursiva, as categorias clássicas do marxismo:
37
“a ideologia” e “a luta de classes”. Isso se evidencia quando ele, referindo-se ao enunciado,
afirma que “o sentido das palavras muda de acordo com a posição de luta de classes
daqueles que a empregam”.
Foucault, por sua vez, afirma que o sentido do enunciado muda de acordo com as
relações que ele estabelece com outros enunciados, numa relação interdiscursiva, que
determina o que é dito a partir de todo o “conjunto de formulações já-ditas e esquecidas”,
devido a isso a identidade do enunciado está submetida à enunciação.
A importância da interdiscursividade é um ponto de acordo entre Pêcheux e
Foucault, o que confirma que discordavam mais a respeito de ideologia do que a respeito
de teoria.
Assim, Pêcheux atribui ao interdiscurso a capacidade de “especificar as condições
nas quais um acontecimento histórico (elemento histórico descontínuo e exterior) é
suscetível de vir a inscrever-se na continuidade interna, no espaço potencial de coerência
próprio a uma memória”. Para melhor explicar a relação interdiscursiva o autor afirma:
o discurso se conjuga sempre sobre um discurso prévio, ao qual ele
atribui o papel de matéria-prima, e o orador sabe que quando evoca tal
acontecimento, que já foi objeto de discurso, ressuscita no espírito dos
ouvintes o discurso no qual este acontecimento era alegado, como as
“deformações” que a situação presente introduz e da qual pode tirar
partido (PÊCHEUX, 1993:77).
Pêcheux acredita que os sentidos discursivos são sempre determinados
ideologicamente e podem ser compreendidos por meio do estudo das regularidades
discursivas através da formação discursiva. Para tanto, empresta a teoria foucaultiana e, ao
redefini-la, acrescenta-lhe a noção de classes, numa tentativa de aproveitá-la em seu
quadro teórico baseado no marxismo althusseriano.
38
A teoria althusseriana implica na existência de formações ideológicas como base
para as formações sociais. A esse respeito o autor afirma:
As formações ideológicas são caracterizadas como elementos que atuam
como uma força que se confronta com outras forças, na conjuntura
ideológica característica de uma formação social num dado momento,
cada formação ideológica constitui assim complexo conjunto de atitudes
e representações que não são nem individuais e nem universais, mas
dizem respeito às posições de classe em conflito umas com as outras” (...)
as formações ideológicas assim definidas comportam necessariamente,
como um de seus componentes, uma várias ou várias formações
discursivas interligadas, que determinam aquilo que pode e deve ser dito
(articulado sob forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de
uma exposição, de um programa, etc.) a partir de uma posição dada em
uma determinada conjuntura. (ALTHUSSER, 1970 apud HAROCHE et
al., 1971:102
).
A força da ideologia constitui o centro da proposta defendida por Althusser, que
afirma que “a ideologia interpela os indivíduos como sujeitos” e pensa esse como um
elemento assujeitado à máquina discursiva. Esse pensamento sobre ideologia levou
Pêcheux a criar o método automático de análise de discurso, que mais tarde será
reinterpretado, ao compreender a ideologia como um bloco heterogêneo.
Dessa forma, surge uma nova maneira de pensar a relação do sujeito com a língua e
a ideologia que o constitui, considerando as relações entre ideologia e inconsciente,
promove-se a atenuação no assujeitamento, o que abre novas possibilidades para a análise
de discurso.
A partir desse novo olhar sobre a ideologia, Pêcheux passa a aceitar a contradição
existente no interior da ideologia como fator preponderante na investigação da formação
discursiva, reinterpreta também os conceitos foucaultianos e aproxima-se da história e da
dispersão. Assim,
uma ideologia não é idêntica a si mesma, ela não existe a não ser sob a
modalidade da divisão, ela não se realiza senão dentro da contradição que
organiza nela a unidade e a luta dos contrários (PÊCHEUX, 1977).
39
Pêcheux, a partir de então, reorienta sua metodologia de análise no sentido de
trabalhar as relações das formações discursivas e o exterior discursivo, investigando:
as invasões, os atravessamentos constitutivos pelos quais uma
pluraridade contraditória, desigual e interiormente subordinada de
formações discursivas se organiza em função dos interesses que colocam
em causa a luta ideológica de classes, em um momento dado do seu
desenvolvimento em uma formação social
(PÊCHEUX, 1977 apud
GREGOLIN, 2004:130).
Ainda a esse respeito, Pêcheux (1993) escreveu que é preciso entender esse
discurso silêncio e compreender o que se passa “nos espaços infraéticos que constituem o
ordinário das massas, especialmente em período de crise (...) se pôr na escuta das
circulações cotidianas, tomadas no ordinário do sentido.
À materialidade da formação discursiva Pêcheux chama de relação ideológica e, a
partir daí, tomou o discurso como o lugar da realização ideológica. Ele afirma que o
discurso é o lugar da articulação entre língua e ideologia, pois acredita que, embora a
língua seja a mesma, as escolhas e os usos diferenciam-se de acordo com a ideologia das
classes envolvidas. Num processo discursivo, embora a ideologia pareça homogênea, não o
é, pois encerra em si o burburio das contradições, cuja origem são as práticas discursivas
do interdiscurso.
Pêcheux procurando definir os elementos teóricos dos processos discursivos
concebe a enunciação como um processo social do discurso em que esse, por sua vez, é
tomado como uma forma de poder. Daí o interesse das pesquisar do autor em indagar a
respeito das condições de produção do discurso e dos papéis sociais dos participantes, isto
é, as condições empíricas dos interlocutores, como também seus lugares determinados no
imaginário social.
40
Pêcheux toma o enunciado como fenômeno lingüístico que deve ser definido em
referência ao mecanismo de colocação dos interlocutores e do objeto do discurso. A esse
mecanismo ele chamou de “condições de produção”.
Segundo Gregolin (2004), Pêcheux, ao falar dos elementos pertencentes às
condições de produção, apresenta o enunciador, o enunciatário e o referente como
bastantes para o estabelecimento do discurso.
Pêcheux (1969) propõe um quadro, em que apresenta um jogo de imagens entre os
protagonistas do discurso, considerando A e B interlocutores do discurso e, ao mesmo
tempo, A e B designam lugares determinados na estrutura da formação social. Esses
lugares se encontram representados, porém, transformados, ou seja, funcionam como
formações imaginárias, que designam os lugares que A e B se atribuem cada um a si e ao
outro, a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro. São as
chamadas regras de produção, que estabelecem as relações entre as situações
(objetivamente definidas) e as posições (representações dessas situações) existentes em
todo processo discursivo.
Acredita-se que a proposta dos quadros de representações imaginárias do sujeito
pode ser de grande auxílio para a análise da produção discursiva dos enunciados
metafóricos, no sentido de compreender a intencionalidade do locutor, as suas escolhas a
partir da situação interdiscursiva em que se encontra, no momento da fala, da posição que
imagina ocupar, bem como da situação interdiscursiva e posição imaginária do alocutário,
considerando as amarras da formação ideológica e das formações sociais .
41
Quadro 1 – Representação das formas imaginárias a partir dos lugares dos sujeitos nos
processos discursivos
Expressão que designa as
formações imagináveis
Significação da expressão Questão implícita cuja
‘resposta’subentende a formação
imaginária correspondente.
A – IA (A) Imagem do lugar de A para o
sujeito colocado em A
“Quem sou eu para lhe falar
assim?”
A IA (B) Imagem do lugar de B para o
sujeito colocado em A
“Quem é ele para que eu lhe fale
assim?”
B – IB (B) Imagem do lugar de B para o
sujeito colocado em B
“Quem sou eu para que ele me
fale assim?”
B – IB (A) Imagem do lugar de A para o
sujeito colocado em B
“Quem é ele para que me fale
assim?”
Fonte: Pêcheux (1997a, p.83).
Quadro 2 – Representação das formações imaginárias a partir do referente discursivo
Expressões que designam as
formações imaginárias
Significação da expressão Questão implícita cuja
“resposta” subentende a
formação imaginária
correspondente.
A –IA (R) “Ponto de vista” de A sobre R “De que lhe falo assim?”
B – IB (R) “Ponto de vista” de B sobre R “De que ele me fala assim?”
Fonte: Pêcheux (1997 a, p.84).
Segundo Orlandi (2003) nos quadros 1 e 2 são explicitadas as relações de sujeitos e
de sentidos que se encontram na origem das relações de linguagem, além de permitir que
se observe o mecanismo da antecipação, que consiste em o sujeito colocar-se no lugar do
interlocutor e ouvir suas próprias palavras. Dessa maneira o sujeito antecipa-se ao
interlocutor quanto a um possível sentido que as palavras venham a produzir no ouvinte.
Esse mecanismo permite orientar a argumentação do sujeito face ao efeito que deseja e
tenta produzir no ouvinte.
A antecipação está ligada às formações imaginárias, que por meio das projeções
permite a produção de imagens dos sujeitos, bem como do objeto do discurso, numa dada
conjuntura sócio-histórica.
Orlandi afirma:
42
O imaginário faz necessariamente parte do funcionamento da linguagem.
Ele é eficaz. Ele não ‘brota’ do nada: assenta-se no modo como as
relações sociais se inscrevem na história e são regidas, em uma sociedade
como a nossa por relação de poder (ORLANDI, 2003:42)
Assim, Courtine (1990), ao aproximar as abordagens de Foucault e Pêcheux a
respeito das formações discursivas, conclui que, nos processos discursivos, a reprodução e
transformação das seqüências discursivas se dão no interior das formações discursivas e,
devido a isso, o estudo do intradiscurso deve estar associado ao estudo do interdiscurso.
Esse autor atesta que para se compreender as relações de sentido do discurso o
analista necessita levar em consideração a “linguagem e a história, descrevendo a maneira
como se entrecruzam historicamente a materialidade discursiva, as formação discursivas,
os regimes de práticas e séries de enunciados e seu controle por princípios relacionados ao
poder”.Courtini(1990:17)(apud GREGOLIN, 2004: 186).
A análise da materialidade discursiva do corpus em questão, apóia-se na Teoria dos
Atos de Fala, apresentada a seguir, por esta enfatizar a fala-ação, a interação entre os
participantes e o referente, bem como as suas possíveis intencionalidades e efeitos.
2.4 Teoria dos atos de fala
2.4.1 Um jogo de intenções e estratégias
toda situação discursiva constitui-se de um falante, um ouvinte
e um ato de fala , SEARLE(2002).
O conceito de ato de fala está associado à necessidade de
mostrar como certas formas de linguagem se prestam à
estrutura de ações (...) que permeiam o nosso convívio social,
ora representadas, ora desencadeadas por arranjos lingüísticos,
construídos em razão de algum alcance prático específico.
Quando se deseja que certos fatos sejam realizados no futuro,
dão-se ordens, fazem-se promessas, fazem-se pedidos,
ou, simplesmente, manifesta-se uma intenção particular de
sua efetivação. Muitas vezes, reportam-se certos estados de
43
coisas já acontecidos, descrevendo e mostrando detalhes a
eles associados. Outras vezes, usa-se da linguagem para
comprometer os integrante de uma interlocução com o curso
de ações futura. (MARI, 1997:34-35).
Os enunciados metafóricos recortados de alguns discursos presidenciais do corpus
deste trabalho são tomados como atos de fala, a partir do conceito apresentado por Mari
(1997) que, ao lado de outros teóricos como Austin, Searle e Vanderveken, construíram a
base da orientação teórica desta análise.
Austin (1962,1990) foi quem, primeiramente, estabeleceu as definições para
os atos de fala, atribuindo aos performativos a capacidade de ligar aquilo que se diz e
aquilo que se faz, reservando aos constativos a tarefa de reportar um estado de coisas
enquanto forma lingüística.
Mais tarde, ele estabeleceu um conjunto específico de condições necessárias para a
realização de um ato, apontando duas dimensões: a primeira, refere-se à dimensão da
proposição, que engloba as relações sintático-semântica de propriedades lexicais e
condição de referenciação, ou seja, o plano locucional do autor. A segunda refere-se à
identidade dos locutores e às suas relações, reunindo as condições de sinceridade e as
condições preparatórias.
Austin (1990) afirma que os atos de fala se desdobram em ato locucional, o qual
“equivale a proferir determinada sentença com determinado sentido e referência, o que, por
sua vez, equivale, grosso modo, ao significado tradicional do termo”; o ilocucionário que
“tem uma certa força ao dizer”; e o ato perlocucionário que “ consiste em se obter certos
efeitos pelo fato de se dizer algo”.
Searle (1984) aperfeiçoa a análise dos atos de fala de maneira mais abrangente,
preocupando-se em descrever as construções de sentido das proposições e as suas
implicações diretas no desempenho de uma ação de linguagem. Ele estabelece a distinção
entre os marcadores da estrutura sintática da frase, do marcador proposicional e o do
44
marcador de força ilocucional, este indica os modos como é possível relacional um
conteúdo e o mundo, compreendidos como: o ponto assertivo, representação de um estado
de coisas como real; comissivo, comprometido com o falante em executar uma ação futura;
diretivo, tentativa de levar o ouvinte a fazer alguma coisa; declarativo, produção de um
estado de coisas em virtude da comunicação; expressivo, expressão de um estado
psicológico do falante a propósito de um estado de coisas.
Vanderveken (1985) afirma que cada força ilocucional da forma “ F(P)” se divide
em sete componentes: ponto ilocucional, modo de realização deste ponto, um conteúdo
proposicional, condições preparatórias, condições de sinceridade e dois graus de
intensidade, sendo um do ponto ilocucional e outro das condições de sinceridade. A partir
de então, a relação linguagem-ação passa a ser pensada, considerando-se a relação dos
componentes da força ilocucional e o conteúdo proposicional.
Na busca de maior clareza para a teoria dos atos de fala, Searle (1984) constrói
uma nova classificação a respeito da direção de ajustamento que orienta a linguagem em
relação à ação. Ele estabelece quatro possíveis direções de ajustamento:
- direção palavra-mundo – ocorre com os atos de fala orientados pela “força ilocucionária
assertiva que tem o propósito de comprometer o falante, o estado psicológico expresso é a
crença (que p) e o compromisso”;
- direção mundo-palavra - ocorre com os atos de fala orientados pela força ilocucional
diretiva que tem como propósito levar o ouvinte a fazer algo (em graus variáveis). O estado
psicológico de sinceridade é a vontade ou desejo. Ocorre também com a força comissiva
que tem o propósito de comprometer o falante (em graus variáveis) com alguma linha
futura de ação;
- dupla direção - ocorre com os atos de fala orientados pelas forças declarativas e tem por
objetivo ocasionar mudanças no mundo por meio do proferimento de declarações.Tanto se
45
ajusta a palavra ao mundo como o mundo à palavra. Quanto ao estado psicológico não há
condição de sinceridade;
- direção nula - ocorre com os atos de fala orientados pela força expressiva, tem como
propósito expressar o estado psicológico específico no conteúdo proposicional, não há
direção de ajuste, pois a verdade da expressão expressa é pressuposta.
Dessa maneira, constata-se que o ponto ilocucional é uma forma de ajustar o
conteúdo proposicional ao mundo, com vistas a garantir a satisfação do ato de fala.
Para Maingueneau (1998), o ato de fala “é a menor unidade que realiza, pela
linguagem, uma ação (ordem, solicitação, asserção, promessa...) destinada a modificar a
situação dos interlocutores. O co-enunciador só poderá interpretá-la se reconhecer o caráter
intencional do ato do enunciador”.
Desse modo, a participação efetiva do locutor e do co-enunciador estabelece a
função primeira do ato de fala, a interação entre os participantes, num processo complexo
que envolve o enunciado e a enunciação e seus desdobramentos no jogo.
Assim, falantes e ouvintes precisam ativar e relacionar dimensões comunicacionais
complexas, como os seus conhecimentos sobre processos enunciativos, os modos de
intervenção dos locutores no processo, bem como ter domínio dos fatos lingüísticos que se
associam às práticas de linguagem presentes na emissão mais simples de um ato de fala
independente de sua natureza.
É necessário ressaltar que mais importante que conhecer o significado literal das
palavras é conhecer as convenções de seu uso, que vêem revestidas das regras sintáticas e
semânticas de combinação, presentes tanto nos atos diretos como nos indiretos.
Os atos de fala dividem-se em diretos e indiretos e se diferenciam por apresentar,
no caso dos diretos, uma sentença cujo significado é exato e literalmente o que diz. Os atos
indiretos são constituídos pelas emissões mais complexas, como as alusões e insinuações,
46
onde as significações das emissões dos falantes e as significações das sentenças são
diferentes.
Nos atos de fala indiretos, o falante quer significar o que diz e quer, ainda,
significar algo mais. Trata-se de um ato ilocucionário realizado indiretamente através de
um outro ato, o que o torna complexo. O ouvinte compreende o outro significado possível
da sentença sem que o falante o tenha explicitado.
Os atos de fala indiretos atendem perfeitamente às exigências conversacionais de
polidez, uma vez que as regras da boa convivência sugerem que a forma imperativa deva
ser evitada. Isso remete ao que Brown e Levinson (1978) chamaram de “desejos de faces”.
A face positiva é mostrada quando se quer ser amado, compreendido, admirado etc.; e a
negativa, em que a face é escondida, quando não se quer ser controlado ou impedido pelos
outros. De modo geral, julga-se interessante que a face seja protegida. Nesse caso, a
polidez faz parte de um conjunto de estratégias da parte dos participantes do jogo
lingüístico para amenizar os atos de fala, que são potencialmente ameaçadores para sua
própria face ou para a dos interlocutores.
Searle (2002) declara que a realização de um ato de fala está baseada no fato de que
“o falante comunica ao ouvinte mais do que realmente diz, contando com informações de
base lingüística e não-lingüística, que compartilham, e também com a capacidade geral de
racionalidade e inferência cooperativa do ouvinte”, ou seja, a explicação desse fenômeno
requer conhecimento de bases compartilhadas, da teoria dos atos de fala e dos princípios
gerais de conversação.
Complementando esse modo de ver a interação dos falantes, Morgan (1991)
defende a convenção cultural do uso da linguagem como importante fator a ser
considerado para a compreensão de um ato de fala indireto. Para ele, a convenção de uso
deve considerar três tipos de elementos: a ocasião, o propósito e o significado.
47
Portanto, a construção dos sentidos se dá mediante a reinterpretação dos
significados, considerando tanto a convenção de uso como a convenção de linguagem, ou
seja, compreender o propósito da proposição e a ocasião em que foi usada.
Dessa maneira, essas afirmativas vêm reforçar a importância dos contextos que
envolvem os atos de fala a serem analisados, tornando infundadas as críticas à teoria.
A análise dos enunciados metafóricos, objeto desta pesquisa, tomará por base os
princípios teóricos apresentados anteriormente, dando especial ênfase às informações
lingüísticas e não-lingüísticas e aos atos de fala indiretos devido as semelhanças que esses
apresentam com as construções metafóricas. Serão observados todos os pontos
ilocucionários dos enunciados metafóricos, pois acredita-se que esses enunciados, em
razão da sua natureza discursiva indireta, podem abrigar mais de um ponto ilocucional.
Todavia, não será verificado nesta análise o grau de intensidade e o ilocucional
devido às características do corpus.
A Teoria dos Atos de Fala e a Teoria da Metáfora apresentam pontos semelhantes e
o cruzamento de ambas pode resultar em um avanço significativo da análise da construção
discursiva dos enunciados metafóricos, o que poderá ser observado no capítulo 4.
2.5 Teoria da metáfora
2.5.1 A metáfora conceitual
Desde a Antiguidade Clássica, a metáfora é tema de inquietação e destaque no uso
da linguagem. Aristóteles a descreve como um artifício que agrega um tom de esmero à
poética e de clareza à retórica. É o responsável pelo estabelecimento das dicotomias
literal/metafórico e das linguagens cotidiana/ literária.
48
Segundo Jonhson (1981), ao longo dos séculos, a metáfora perdeu seu valor
retórico persuasivo clássico, chegando a ser reduzida a simples adorno de linguagem. Isto
se deu em conseqüência da constante preocupação com a objetividade da linguagem
científica, no Ocidente, própria das correntes filosóficas dominantes como o Racionalismo
Cartesiano, o Empirismo, o Positivismo Lógico e a Filosofia Kantiana.
Assim, a linguagem ideal deveria ser clara, precisa, literal. Nela toda e qualquer
subjetividade deveria ser evitada, recomendação que, ainda hoje, é acatada por usuários
conservadores, principalmente, na modalidade escrita da língua.
Opondo-se a esse enfoque, muitos estudiosos, como filósofos, psicólogos, biólogos
e lingüistas, desenvolveram inúmeras teorias que, somadas, tornaram possível enxergar a
metáfora não mais como enfeite de linguagem, e sim como função cognitiva especial,
desenvolvendo uma teoria cognitiva da metáfora.
Dentre estes, destacam-se Lakoff e Johnson, que em 1970, publicaram “Metaphor
we live by”, apresentando sua teoria. Esta baseada nas demonstrações de Reddy (1979
apud LAKOFF e JOHNSON, 2002) sobre a conceptualização do mundo e, acrescida de
forte poder explicativo, tornou-se marco epistemológico, desencadeador de inúmeras
pesquisas no campo da cognição e emoção da linguagem, mudando o paradigma da
objetividade da verdade; enfim, uma nova possibilidade de conceber a objetividade, a
verdade, o sentido e a metáfora.
Para Lakoff e Johnson (2002), o processo de identificação de uma metáfora é
compreendido como produto da interação da informação dada com o já conhecido,
devendo envolver os conhecimentos lingüísticos do falante, as situações discursivas em
que a enunciação se dá e o conhecimento preexistente do sujeito conhecedor.
49
Ao descrever a idéia central da nova proposta, Ortony afirma:
a cognição é o resultado de uma construção mental. O conhecimento da
realidade, tem a sua origem na percepção, na linguagem ou na memória,
precisa ir além da informação dada. Ela emerge da interação dessa
informação com o contexto no qual ela se apresenta e com o
conhecimento preexistente do sujeito conhecedor. A orientação geral de
que o mundo objetivo não é diretamente acessível, mas sim construído a
partir de influências restritivas do conhecimento humano e da linguagem,
é o postulado essencial do enfoque relativista. (ORTONY, 1993 apud
LAKOFF e JOHNSON, 2002:13).
Em meio aos importantes pesquisadores que desenvolveram estudos sobre a
metáfora e cognição, destaca-se Reddy (1979) que, após rigorosa análise lingüística,
demonstra que a metáfora é um componente fundamental da conceptualização do mundo e,
portanto, faz parte da linguagem cotidiana. Em seu ensaio “The conduit metaphor”,
traduzido como “metáfora do canal” ou “metáfora do conduto”, o autor apresenta
resultados de seus estudos, feitos a partir da análise de enunciados lingüísticos, e explica
que os falantes da língua inglesa conceptualizam, metaforicamente, o conceito de
comunicação usando quatro categorias básicas:
(1) a linguagem funciona como um canal, transferindo pensamentos
corporeamente de uma pessoa a outra; (2) na fala e na escrita, as pessoas
inserem pensamentos e sentimentos nas palavras;(3) as palavras realizam
a transferência ao conter pensamentos e sentimentos e conduzi-los às
outras pessoas;(4) ao ouvir e ler, as pessoas extraem das palavras os
pensamentos e os sentimentos novamente (REDDY 1979:290 apud
LAKOFF e JOHNSON, 2002:16).
Embora o trabalho de Reddy represente marco importante e tenha aberto caminho
para novos estudos sobre as metáforas conceituais, de acordo com Lakoff e Johnson(2002),
ele apresenta falhas quando trata a maneira de pensar a comunicação como algo inflexível,
cujo sucesso é garantido pelo conhecimento e pelo uso correto e inconsciente dos
significados das palavras, desprezando o fato de que a comunicação resulta da construção
do sentido baseada nas experiências individuais compartilhadas.
50
Essa visão compartilhada da comunicação é explicada por Lakoff e Johnson (2002),
ao afirmarem que as expressões lingüísticas metafóricas não existem individualmente, mas
possuem várias outras metáforas conceituais adjacentes que lhe dão sustentação, formando
uma rede conceptual metafórica, que pode ser identificada nos enunciados, numa
ampliação da metáfora do canal.
Às metáforas observadas por Reddy:idéias (ou sentidos) são objetos, expressões
lingüísticas são recipientes
, comunicar é enviar”, Lakoff e Johnson acrescentaram outras
duas
: “mente é um recipiente (de idéias) e compreender é pegar”.
Dessa maneira, eles concluem que a metáfora do canal é mais que uma forma de
falar da comunicação, ela é também “uma forma de pensar e agir” em todos os momentos
da nossa comunicação.
A respeito do modelo de Reddy, estudos desenvolvidos por Lakoff e Johnson (2002)
demonstram que, na verdade, “representam uma parte da complexa rede que é a
comunicação”, isto é, uma rede composta por expressões lingüísticas governadas por
infinidade de outras metáforas conceptuais originadas nas infinitas interações dos
indivíduos e o mundo.
Para Lakoff, a metáfora, por ser princípio do pensamento, constitui uma das facetas
da capacidade humana de produzir sentido a partir da operação de categorização tomada
como reflexo da cognição humana. Segundo o autor, o falante e o ouvinte não manipulam
símbolos formais desprovidos de sentido, mas usam esses símbolos porque eles foram
construídos pela capacidade humana de categorização num processo sócio-cognitivo.
Para Lakoff e Johnson, o mais relevante é estudar a metáfora como fenômeno da
razão humana, cuja manifestação, na linguagem, deve ser vista como algo secundário.
Os resultados de pesquisas apresentados em “Metaphors we live by” representam
um marco fundamental para as pesquisas referentes à produção e recepção de sentido da
51
metáfora no processo discursivo, além de abrir espaço para novas indagações importantes
para a teoria da linguagem.
2.5.2 O funcionamento da metáfora
Em busca da compreensão do funcionamento da metáfora, à luz da Teoria dos Atos
de Fala, Searle, em “Expressão e significado (2002), afirma que a explicação do
funcionamento das metáforas depende de uma anterior a essa, ou seja, é preciso conhecer a
distinção e a relação entre o significado pretendido do falante e o significado das sentenças
e das palavras.
De acordo com o autor, o significado sentencial pode ser único, no entanto, este
nem sempre coincide com o significado do falante, que muda de acordo com suas
“possíveis intenções”. Exemplos disso são as ocorrências de uso da metáfora, das ironias e
dos atos de fala indiretos. O significado da sentença não se altera, o que muda é a intenção
do falante; portanto, não existem dois tipos de significado sentencial, o literal e outro
metafórico, conforme muitos afirmam.
No caso específico do uso da metáfora, o falante emite uma sentença; porém, deseja
“significar algo diferente dos significados das palavras e do significado da sentença que
emite” (Searle, 2002:122). Por sua vez, o ouvinte “compreende o significado da emissão
do falante, já que tudo o que ouve é uma sentença associada a significados de palavras e a
um significado sentencial” (idem:124). A grande questão que se apresenta é como explicar
o sucesso da comunicação nesse caso.
Searle acredita que a resposta dessa questão encontra-se ao estabelecer a distinção
entre as emissões intencionais do falante e as emissões literais e, para tanto, deve-se
considerar três características básicas:
52
- “Numa emissão literal os significados da sentença e do falante são os mesmos”
(idem:127);
- “O significado literal de uma sentença só determina um conjunto de condições de
verdade relativamente a um conjunto de suposições de base, que não fazem parte do
conteúdo semântico” (idem:127), ou seja, o falante deve determinar o contexto de sua
emissão, uma vez, que o conteúdo semântico não contém todas as informações
extralingüísticas;
- “A noção de semelhança desempenha um papel essencial em qualquer explicação
do que seja uma predicação literal” (idem: 128) Assim, para que o conjunto de condições
de verdade seja definido, as suposições de base precisam realizar-se explicitamente na
sentença. Se isso não ocorre, uma forma de identificá-lo é fazer uma análise a partir do
termo relativo por meio da noção de semelhança, considerando que a idéia de conjunto
exige que haja semelhança entre seus elementos, com respeito a pelo menos uma
propriedade.
O significado da emissão do falante pode ser interpretado basicamente de quatro
maneiras diferentes:
* Coincidindo com o significado da sentença ou literal;
* Como uma ironia em que, grosso modo, significa o oposto do que o falante diz;
* Como um ato de fala indireto em que o falante quer significar o que diz, mas também
pode significar algo mais;
* Como uma metáfora em que o falante diz S é P, mas quer significar S é R.
E é nessa última ocorrência, a da metáfora, que o autor se detém e explica que,
embora, o falante emita uma sentença do tipo “ S é P”, esse deseja que o ouvinte a
interprete comS é R”. Nesse caso, o significado da sentença e o significado das palavras
emitidas devem ser interpretados com sentidos diferentes do sentido literal.
53
Searle afirma que para a compreensão do processo de construção e interpretação da
metáfora é preciso, primeiramente, considerar:
* S: sujeito – refere-se a um ou mais objeto determinado;
* P: predicado – o significado literal dessa expressão com suas condições de
verdades correspondentes, mais a sua denotação, se houver.
* R: significado da emissão do falante.
Diferentemente da emissão literal, as condições de verdade da asserção referente a
um objeto metafórico “não são determinadas pelas condições de verdade da sentença ou do
termo geral”. Para interpretar uma metáfora, o ouvinte precisa de conhecimentos
compartilhados com o falante a respeito da língua, das condições da emissão, das
suposições de base e, principalmente, dos princípios e informações fatuais, que podem
auxiliá-lo a perceber o conjunto de condições de verdade mais úteis na identificação de R.
De acordo com Searle (2002), que “a metáfora é restrita e sistemática. Restrita no
sentido de que nem toda maneira como uma coisa nos pode lembrar outra, será uma base
para metáforas. Sistemática, no sentido de que elas devem e podem ser comunicadas ao
ouvinte pelo falante em virtude de um sistema compartilhado de princípios”, descritos a
seguir:
Princípio 1 – Coisas que são P são, por definição R”.
Se ao emitir S é P, o falante tem intenção que o ouvinte interprete S é R, logo, R
será uma característica que definirá P.
Ex.: [1] Zezinho é um Tio Patinhas. - [1’] Zezinho é um sovina.
S P S R
54
O personagem do desenho “Tio Patinhas” é conhecido por sua característica
marcante de ser sovina; portanto, ao ouvir a proposição o ouvinte, certamente, interpretará
a emissão do falante, em que, aparentemente, R significa “ sovina.”
Princípio 2 – “Coisas que são P são contigentemente R”.
“Pequenas variações do termo P podem produzir grandes diferenças nos termos Rs”.
Ex.: [2] Você, Eva, me lembra o mar.
Neste exemplo, pelo menos um aspecto do ‘mar’ pode ser usado para caracterizar
Eva; o contexto determinará qual será o mais apropriado.
Princípio 3Coisas que são P freqüentemente se diz ou se crê que sejam R,
ainda que o falante e o ouvinte possam saber que R é falsa de P.
Ex.: [3] Gil tem um nariz de tucano = grande; brilhante;
Em relação ao tucano, o ouvinte sabe que por tratar-se de um pássaro, esse, não
possui nariz, e nesse caso, a referência é feita ao bico do animal que é grande,
desproporcional ao tamanho do corpo da ave.
Princípio 4 – “Coisas que são P não são R, nem se parecem com coisas que são
R, nem se crê que sejam R; entretanto, é um fato de nossa sensibilidade, cultural ou
55
naturalmente determinado, que efetivamente percebemos uma conexão, de modo que P
se associe, em nossas mentes, às propriedades R”.
Ex.: [4] A inflação é um vírus = letal em alguns casos; de difícil controle etc.
As características mais marcantes do vírus como ser letal em alguns casos, ser de
difícil controle, atingir a todos independente de classe social, são associadas à inflação, que
tanto quanto o vírus é rejeitado por todos, embora todos saibam e não creiam que as
características da gripe sejam as mesmas da inflação, o que se faz é uma conexão mental
de conceitos.
Princípio 5 – “As coisas P não se parecem com as coisas R, e não se crê que se
pareçam com as coisas R; entretanto, a condição de ser P parece-se com a condição de
ser R”.
Ex.: [5] Lula, agora, é excelência.
Dentro da fábrica do ABC, onde Lula se diz um igual aos companheiros
metalúrgicos, chamá-lo de ‘excelência’ soa falso, pois, ali, ele não se parece com uma
autoridade; entretanto, o atual corte da roupa, a barba e o cabelo bem tratados, os
seguranças, e o fato de ele estar ao lado do presidente da empresa tornam-no parecido com
excelência para os companheiros que ali o aplaudem.
Princípio 6 – “Há casos em que P e R são idênticos ou têm significados
semelhantes, mas um deles, usualmente P , tem aplicação restrita e não se aplica
literalmente a S”.
56
Ex.: [6] Seu discurso estava muito engomadinho.
engomadinho aplica-se literalmente a roupas.
Nesse exemplo tem-se ocorrências de metáforas, em que P tem significado
semelhante a R, porque P tem aplicação restrita em [1] a roupas; portanto, não se aplica,
literalmente, a S em [1] .
O ouvinte, ao interpretar o sentido da emissão do falante, deverá fazer uma
construção indireta, em que procurará, primeiramente, o significado para P, cuja aplicação
é restrita e literal em “ roupa engomadinha” Ele constata que P=R não faz sentido, logo
procurará nova possibilidade de sentido para a emissão do falante. Então, tomará a
principal característica de “ roupa engomadinha” = estar rígida, sem flexibilidade e
aplicará à emissão do falante – “Seu discurso estava muito engomadinho ” = “O seu
discurso estava rígido, tenso”, esta aplicação não se encaixa perfeitamente a S; portanto, P
será semelhante a R e não idêntico como no princípio 1.
Princípio 7 – “Este não é um princípio distinto, mas um modo de aplicar os
princípios 1-6 casos simples que não sejam da forma ‘S é P’, e sim metáforas relacionais
e metáforas de outras formas sintáticas, como as que envolvem verbos e predicados
adjetivos”.
Ex.: [7] matou a charada, ontem ao entrevistar o mágico, ontem às onze e
meia.
Jô resolveu o enigma, ontem ao entrevistar o mágico, ontem às onze e meia.
Nesses exemplos tem-se um caso de metáfora relacional, em que a emissão literal
de dois sintagmas nominais circulando a emissão metafórica de um termo relacional. A
tarefa do falante é não passar “S é P” a “S é R”, mas passar de “S relação P S’” a “S
57
relação R S’”. "O ouvinte deverá encontrar uma relação R diferente da relação P, mas
semelhante a ela, sob algum aspecto. Para isso, se servirá dos princípios para fazer a
seleção mais apropriada”, fornecendo-lhes o aspecto sob o qual a relação – P e a relação
R poderiam ser semelhantes ou estar de alguma maneira associadas.
O exemplo [7] Jô matou a charada, ontem ao entrevistar o mágico,ontem às onze
e meia têm-se ‘’ e ‘matou’ como os sintagmas S e R, que devem ser relacionados à
metáfora, emissão do falante, para ser interpretada, pois o falante nativo conhece o
significado literal da expressão e percebe que nessa situação seu uso só é possível de
maneira metafórica. A partir daí, o ouvinte precisa saber quem é = S; nesse caso, a
expressão ‘ao entrevistar o mágico, ontem às onze e meia’ somada à situação
conversacional são pistas importantes para chegar a identificação de S = Jô Soares. Ao
mesmo tempo, procura-se reconhecer o significado do falante para ‘ matou a charada’, o
qual difere do literal que seria alguém se armar de um pedaço de madeira e desferi-lo sobre
outrem ou alguma coisa viva até que este esteja morto e o agente dessa ação teria triunfado
sobre o morto, como o caso de matar uma cobra. O ouvinte sabe que este significado não
se encaixa na situação em que se encontra, então, para chegar a R- o significado do falante,
estabelece relação indireta, em que S corresponde a e a relação P S’ corresponde a
matou a charada’. Nesse exemplo específico, o ouvinte se valerá do princípio 4 que
estabelece “coisas que são P não são R, nem se parecem que são R, nem se crê que sejam
R; entretanto, é um fato de nossa sensibilidade, cultural ou naturalmente determinado, que
efetivamente percebemos uma conexão, de modo que P se associe, em nossas mentes, às
propriedades R.” Assim, o falante espera que o ouvinte compreenda sua emissão por
entender que esse é capaz de estabelecer uma associação entre P e R, a partir de seu
conhecimento de mundo, em que aquele que mata um ser é tomado como o vencedor e
embora saiba que, na situação em questão, não há ninguém matando ninguém e não se
58
trata de domínio físico. Todavia, há domínio discursivo ou intelectual de e este é o
elemento de estabelece a relação RS’ . Seguindo esse raciocínio a emissão do falante
significa algo que está fora da emissão literal, logo um sentido possível para a emissão do
falante é “ Jô resolveu o enigma, ao entrevistar o mágico ontem às onze e meia”, em que S
relação PS’- matou a charada - passa a S relação RS’- resolveu o enigma - o que
caracteriza a metáfora relacional, segundo Searle.
Searle apresenta um último princípio, o oitavo, que por não se aplicar a esta análise,
não será abordado neste quadro teórico.
Ao explicar a predicação metafórica, o autor salienta que se o falante e o ouvinte
compartilham conhecimentos lingüísticos e fatuais para estabelecerem a comunicação por
meio de emissões S é P com intenção de significar S é R (sendo P diferente de R),
fatalmente, compartilham também as estratégias e os princípios necessários e suficientes
para interpretar uma emissão metafórica, para reconhecer uma emissão defectiva, quando
tomada literalmente, e para buscar a interpretação metafórica possível.
Comete-se, portanto, um grande equívoco ao interpretar uma emissão metafórica,
buscando seu significado na sentença por acreditar que a metáfora consiste numa mudança
do significado da sentença ou de seus itens lexicais. Ela foi nomeada, exatamente por sua
peculiaridade, ter seu significado fora da sentença, ser de domínio exclusivo do falante e se
realizar, somente, na partilha de conhecimentos entre o falante e o ouvinte.
Segundo o autor, as metáforas são usadas porque o falante não encontra em seu
repertório uma expressão literal, exatamente equivalente ao que ele quer significar. Em
determinados casos, uma criação metafórica pode cair no gosto popular e seu uso contínuo
pode levar à “morte” da metáfora, transformando-a em expressão literal da língua, são as
chamadas metáforas mortas. Essas podem ainda se tornar idiomatismo ou adquirir novo
significado diferente do original, num processo diacrônico de mudança semântica, temos:
59
embarcar no avião = entrar; mascarar os resultados = adulterar; juntar os trapos = casar-
se, etc.
Searle comenta, outra faceta da teoria da metáfora de Aristóteles, compreendida
como a teoria da comparação ou semelhança entre dois ou mais objetos (Henly, 1965,
apud SEARLE, 2002:136) e a teoria da interação semântica, sustentam que a metáfora
envolve uma oposição verbal (Beardsley,1962 apud SEARLE,2002:136) ou interação
verbal (Blacke, 1962 apud SEARLE, 2002:136). Para ele, a segunda teoria teria sido
criada para suprir ‘pontos fracos’ da primeira, porém, isso não ameniza em nada suas
falhas conceituais comentadas em:
não fazer distinção entre a tese de que o enunciado da comparação é
parte do significado e, portanto , das condições de verdade do
enunciado metafórico, e a tese de que o enunciado da semelhança é
o princípio da inferência, ou uma etapa, do processo de compreensão
com base no qual o falante produz e o ouvinte compreende a metáfora
(SEARLE,2002:136).
É importante ressaltar que a semelhança tem a ver com a produção e compreensão
da metáfora, não com seu significado. A produção e a compreensão das metáforas não
passam pela comparação dos objetos numa interação semântica das referências, elas se
realizam a partir de um outro plano, o da intencionalidade, isto é, um processo mental que
envolve o processo semântico, as crenças, os significados e as associações construídas pelo
falante.
2.5.3 Metáforas e paráfrases
A análise de uma emissão metafórica toma como objeto duas sentenças, uma
emissão metafórica do falante e uma emissão que expressa literalmente aquilo que o
analista penso que o falante quis significar no momento, comumente chamada de paráfrase.
60
Ex.: “Está ficando quente aqui” (emissão metafórica)
A discussão em curso está se tornando mais insultuosa”. (possível
significado do falante)
A construção da paráfrase origina-se de uma emissão metafórica e ambas
apresentam em comum as mesmas condições de verdade, e, aparentemente, uma poderia
substituir a outra sem maiores problemas, mas isso não ocorre. Quanto mais complexa a
construção metafórica mais incompleta parece a paráfrase. Isso ocorre por duas razões
básicas: a primeira, de acordo com Searle (2002), “freqüentemente usamos as metáforas
precisamente por não haver expressão literal que exprima exatamente o que queremos
significar”; e a segunda “a emissão metafórica veicula suas condições de verdade através
de outro conteúdo semântico, cujas condições de verdade não fazem parte das condições de
verdade da emissão”.
Assim, produzir numa paráfrase o que o falante quer significar, implica
movimentar-se de determinado conteúdo semântico para um segundo conteúdo, porém,
passando por um terceiro. Por sua vez, esse terceiro é de domínio exclusivo do falante,
fundamental para a compreensão da emissão pelo ouvinte, e desconhecido pelo analista. E
é nesse desconhecimento em que reside a impossibilidade de se reproduzir, com exatidão
literal, o que o falante tem intenção de expressar por meio da metáfora, e isso a torna não
parafraseável.
61
2.5.4 Metáfora, ironia e os atos de fala indireto
Ao comparar os princípios de fundamentos da metáfora com os da ironia e os dos
atos de fala indiretos, observou-se que em todos os casos, como na metáfora, o significado
do falante difere em algum aspecto do significado da sentença.
No caso da ironia, a emissão, se tomada literalmente, é inadequada à situação. Isso
leva o ouvinte a reinterpretá-la e perceber que a emissão significa o oposto de sua forma
literal. Como a metáfora, a ironia não requer nenhuma convenção extralingüística ou de
qualquer outra espécie. Os princípios de conversação e as regras gerais de realização dos
atos de fala são suficientes para prover os princípios básicos da ironia Searle (2002:177).
Nos atos de fala indiretos, o falante quer significar o que diz e, além disso, ele quer
significar algo mais. O significado da sentença é parte do significado da emissão; no
entanto, não o esgota.
Ex.: “Numa situação comum à mesa de jantar, alguém diz:
- Você pode me passar o sal?”
O ouvinte deverá utilizar os princípios da inferência para compreender a emissão.
Primeiro para reconhecer que se trata de ato de fala indireto, identificando que o contexto
não concebe uma pergunta sobre sua disponibilidade.
Nesse momento, ele é levado a procurar outro significado para a emissão e, por ser
conhecedor das regras dos atos de fala, infere que se trata de uma condição preparatória de
uma solicitação para que se realize o ato de passar o sal; o ouvinte conclui, portanto, que
esse tipo de pergunta é apenas uma forma polida de solicitar um favor culturalmente aceita
na situação em que se encontra.
Finalmente, Searle afirma que as metáforas são produzidas e compreendidas
devido aos esforços compartilhados do ouvinte e do falante. O ouvinte tem que fazer idéia
do que o falante quer significar, agindo de maneira cooperativa e disponibilizando seus
62
conhecimentos lingüísticos e extralingüísticos, num esforço para comunicar-se com o
falante que emite uma sentença, querendo que seja compreendida uma outra, e para tanto,
o ouvinte é obrigado a inferir a existência de uma terceira sentença, cujo conteúdo
semântico é pista para compreensão do que quer significar o falante.
63
CAPÍTULO 3
O FUNCIONAMENTO DO DISCURSO POLÍTICO
NÃO-PROTOCOLAR
3.1 Teoria do enquadre e a adaptação do modelo do discurso político não-protocolar à
luz da sociolingüística interacional
À luz da teoria sociolingüística interacional de Goffman (2002), são analisados e
interpretados os aspectos do fenômeno da interação face a face do encontro do Presidente
Lula com o público presente à cerimônia de sua posse, em 02/01/03, em Brasília, com
vistas a compreender as condições de produção dos enunciados metafóricos presentes no
discurso presidencial e os seus respectivos sentidos.
Nesta análise, foi considerada a conduta social dos falantes como fator relevante e
as variáveis lingüísticas na comunicação face a face. O exemplo tomado trata-se de um
discurso político, no qual o Presidente optou pela estratégia de falar com a platéia
espontaneamente, em detrimento do discurso escrito, em busca de, aparentemente,
estabelecer um clima de “conversa entre amigos”. Essa mudança de código é chamada
alternância metafórica , implica em:
troca de códigos enriquece a situação em curso(por exemplo, uma
conversa), permitindo alusões a mais de uma relação social dentro da
mesma situação(nesta conversa, somos amigos, confidentes e também
compartilhamos interesses específicos).Cabe ao analista entender e
depreender quais as “pistas contextuais” (de natureza sociolingüística)
que permitem aos participantes interpretar corretamente o valor social
dessas interações.
GUMPERZ e HYMES (1972,1986 apud
RIBEIRO e GARCEZ, 2002:45).
A alternância metafórica pode produzir mudanças no padrão do discurso
presidencial, conforme as salientadas nesta análise. Esse seu discurso, o Presidente teve
como finalidade saudar a platéia, após a cerimônia de sua posse. Observa-se a ocorrência
64
da alternância já na fase introdutória, pela maneira como cumprimenta os presentes: Meus
companheiros e minhas companheiras.
Essa saudação difere do discurso protocolar proferido na mesma data: Senhoras e
excelentíssimos senhores chefes de Estado e de governos visitantes e chefes das missões
especiais estrangeiras...
Percebem-se pistas evidentes de improvisação, o que provoca uma surpresa, uma
vez que o enquadre, até então conhecido, registrava outro modelo. Essa mudança
surpreendente pode ser vista, ainda, como estratégia argumentativa do discurso,
desenvolvida para servir ao interesse discursivo daquele momento.
Ao dispensar o modelo de discurso protocolar, em que considera apenas o falante e
o ouvinte modelos, e optar por um não-protocolar, que dá relevância à interação face a face,
o Presidente abriu mão das regras de comportamento que encerra o discurso oficial como,
saudar, sem exceção, todos os presentes e não se dirigir a ninguém pelo apelido etc. Além
disso, ele abriu mão também das regras da língua escrita, optando por padrões coloquiais.
Nessa análise, encontram-se inúmeras repetições de temas e de palavras,
construções de relativas sem as preposições antes dos pronomes relativos, construções
hiperbólicas, ausência de concordância, enfim, marcas lingüísticas da elocução que
somadas às condições sociais da interação face a face permitem interpretar o discurso
como não-protocolar, sob a ótica da teoria sociointeracional, por esta considerar como
essenciais as marcas lingüísticas e as pistas de interação face a face . A esse respeito
Goffman certifica:
Em um certo nível de análise, portanto, o estudo de afirmações que
podem ser grafadas e o estudo da fala são coisas diferentes. Em um nível
de análise, o estudo de turnos de fala e de coisas ditas durante o turno de
alguém são parte do estudo da interação face a face. A interação face a
face tem seus próprios regulamentos; tem seus próprios processos e sua
própria estrutura, e eles não parecem ser de natureza, intrinsecamente,
lingüística, mesmo que freqüentemente expressos por meios
lingüísticos.(GOFFMAN, 1964 apud RIBEIRO e GARCEZ, 2002:20).
65
É preciso que se preste atenção em todo o contexto que envolve a fala presidencial,
uma vez que essa, sempre ocorre dentro de um arranjo social, no qual ele exercita sua
própria capacidade e a do alocutário de reconhecer e de fornecer pistas na troca de turno,
além das pistas de manutenção de estabilidade de foco da atenção recebida. Do mesmo
modo, controla-se o nível do som e do espaçamento físico das pessoas presentes à situação
social, cujas participações não estão ratificadas no encontro.
Na fala do Presidente, as elocuções se submetem a restrições lingüísticas e são
completadas pelos gestos funcionais e sons, como as mudanças de entonação, sinalizando
mudança de postura ou de direcionamento.
Nesse discurso, observa-se que o Presidente, ciente da importância da interação
face a face, dedica a essa especial atenção, deixando a preocupação lingüística em segundo
plano, o que tem alimentado as críticas da mídia sobre seus discursos.
Lula dirige-se ao público que se encontra frente ao parlatório dando-lhe,
aparentemente, status de “coparticipantes suscetíveis à toda estimulação mútua que a
ocasião oferece”, o que não ocorre de fato devido à distância física que os separa da
tribuna. Portanto, esses compõem uma platéia, assim como o são os brasileiros que estão
em casa assistindo à TV ou ouvindo o rádio.
Ao iniciar seu discurso, o Presidente evoca seus partidários dizendo: “Meus
companheiros e minhas companheiras”. Em seguida saúda os Trabalhadores e
Trabalhadoras do meu Brasil, seu Vice-presidente José Alencar; a esposa do Vice
realçando uma relação de amizade ao dizer Minha companheira querida, dona Marisa,
esposa do Zé Alencar, usando o apelido Zé; e finalmente sua esposa Minha querida esposa
Marisa. Observa-se que, embora tenha feito uso das palavras minha, querida, companheira
e dona procurando diferenciar as esposas Marisa e Marisa, somente a expressão esposa do
Zé Alencar procurando evitar possíveis confusões, uma vez que as duas esposas têm o
66
mesmo nome – Marisa. Em razão disso, atualmente, a primeira dama tem sido referenciada
como Marisa Letícia, pois o uso de seu nome composto evita possíveis confusões.
Ao analisar o discurso, em relação aos cumprimentos, observa-se que o discurso
oficial apresenta uma hierarquia, ao citar em ordem de importância muitos os nomes e
cargos dos que se encontravam presentes:
Senhoras e excelentíssimos senhores chefes de Estado e de governos Visitantes e
chefes das missões especiais estrangeiras. Excelentíssimo presidente do Congresso
Nacional, senador Ramez Tebet. Excelentíssimo senhor vice-presidente da
República José Alencar. Excelentíssimo senhor presidente da Câmara dos
Deputados, deputado Efraim Morais, Excelentíssimo senhor presidente do
Supremo Tribunal Federal, ministro Marco Aurélio de Faria Mello. Senhoras e
Senhores ministros e ministras de Estado. Senhoras e senhores parlamentares.
Senhoras e senhores presentes a este ato de posse...(
Discurso do presidente da
República, Luiz Inácio Lula da Silva, após a posse, Parlatório do Planalto, em Brasília,
01/01/03)( Anexo I: 1)
.
Ao contrário desse, o discurso não-protocolar apresenta quebra de hierarquia, por
não obedecer essa ordem, além de não citar alguns dos presentes.
Esse ato pode ser interpretado como esquecimento ou ainda como vontade de
evidenciar aqueles que realmente lhe são caros naquele momento. Toda essa mudança de
modelo provoca discrepância no “esquema ou estruturas de expectativa daqueles que
participaram do evento, e que até aquela data estavam acostumados a ouvir discursos
formais em ocasiões semelhantes. O Presidente apresenta um discurso que não se
enquadra no modelo conhecido ou esperado até então. A novidade produz uma mudança
no enquadre ou na estrutura de expectativa dos ouvintes. Isso, conseqüentemente, provoca
mudança de footing: o discurso, agora é, na verdade, uma conversa espontânea, onde uma
das partes fala muito procurando manter a interação a partir do que vê; ao contrário do
outro modelo em que, na verdade, o ouvinte vê pouco e ouve muito.
67
Após os cumprimentos, a conversa toma ares de narrativa histórica, numa
estratégia que justifica seu comportamento, face à importância pessoal e histórica do
momento vivenciado.
Dirige-se à esposa e fala das derrotas sofridas, ao usar “s” refere-se a ambos,
particularizando os sofrimentos, e ao usar a expressão: “... um sonho que não é meu”
compartilha a realização de um sonho com “o povo deste país”, numa tentativa de
demonstrar humildade e reconhecimento; “povo” é mencionado pela primeira vez, como
terceira pessoa, parecendo tratar-se de um grupo separado dos presentes.
Passa, então, a ratificar a imagem de líder humilde, responsável e convicto.
Fazendo uso do “eu” fala de suas responsabilidades e certezas: Eu tenho consciência das
responsabilidades...; ... em nenhum momento vacilarei em cumprir cada palavra ...
Discursa, ainda, como candidato ao ratificar as promessas de campanha:
O que nós dizíamos, eu vou repetir agora, é que nós iremos recuperar a
dignidade do povo brasileiro. Recuperar a sua auto-estima e gastar cada
centavo que tivermos que gastar na perspectiva de melhorar as condições
de vida de mulheres, homens e crianças que necessitam do Estado
brasileiro... (Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, após a
posse, Parlatório do Planalto, em Brasília, 01/01/03)( ANEXO I: 1)
.
O Presidente promete recuperar a dignidade e a auto-estima do povo brasileiro.
Essa fala trata de um ato perlocucional, cujos efeitos não poderão ser traduzidos em forma
lingüística, uma vez que não há garantia de sua realização; portanto, seu efeito imensurável.
Essa proposição apresenta valor retórico de efeito incerto.
Em seguida, Lula retoma a narrativa histórica e, pela primeira vez, dirige-se à
platéia, usando o pronome “vocês”, exalta-a ao dizer: “Nós temos uma história construída
junto com vocês”. É importante ressaltar aqui que o “nós” refere-se, provavelmente, ao
Presidente e seu Vice, embora o que disse em seguida evidencia o Presidente e os seus
68
seguidores, pois a história diz que o vice não fazia parte desse grupo, por ter sido membro
de outro partido até o início da campanha presidencial.
O Presidente segue relembrando os “companheiros e companheiras” – termo
usado para referir-se aos seguidores de sua ideologia – que o antecederam e que
antecederam o PT, os que “morreram lutando por conquistar a democracia e as
liberdades”. Na tentativa de demonstrar seu contentamento e o quanto se sentia capaz para
assumir a chefia do Estado, opta pelo jogo de antítese para a construção de seu ethos.
Ele inicia posicionando-se com humildade; entretanto, o que faz, na verdade, é
exaltar-se de maneira hiperbólica ao afirmar:
Eu apenas tive a graça de Deus de, no momento histórico ser o porta-voz
dos anseios de milhões e milhões de brasileiros e brasileiras.
Eu estou convencido que hoje não tem no Brasil nenhum brasileiro ou
brasileira mais conhecedor da realidade e das dificuldades que vamos
enfrentar, mas, ao mesmo tempo, eu estou convencido e quero afirmar a
vocês que não tem na face da Terra nenhum homem mais otimista do que eu
estou e que posso afirmar que vamos ajudar este país. Eu não sou o
resultado de uma eleição. Eu sou o resultado de uma história. Eu estou
concretizando o sonho de gerações e gerações que, antes de mim, tentaram
e não conseguiram. (Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva,
após a cerimônia de posse, no Parlatório do Planalto, em Brasília, em 01/01/03) (ANEXO
I: 1).
Após apresentar-se como “o escolhido”, ele abandona a linha da narrativa histórica,
fala do momento atual, assumindo o papel de maestro chefe de um Estado presidencialista,
ao afirmar “eu vou fazer”. Ao dirigir-se à platéia, usa o pronome “vocês”, ao mesmo
tempo em que se refere ao “povo” em terceira pessoa, aparentando querer fazer distinção
entre ambos, dizendo:
69
O meu papel neste instante, [ ...] é dizer a vocês que eu vou fazer o que acredito.
Que o Brasil precisa que seja feito nesses quatro anos..Cuidar da educação,
cuidar da saúde, fazer a reforma agrária, cuidar da Previdência Social e acabar
com a fome neste país [...] eu quero assumir aqui nesta tribuna, na frente do povo,
que é o único responsável pela minha vitória e pelo fato de eu estar aqui hoje
tomando posse .
(Discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, após a cerimônia de
posse,no Parlatório do Planalto, em Brasília, 01/01/03) (ANEXO I: 1).
O Presidente assume, sua eleição como uma vitória pessoal, distanciando-se do
discurso do líder público, agora representante da maioria: “minha vitória”.
Desejando que fique clara sua intenção de trabalhar com afinco, declara de maneira
hiperbólica:
Como eu tenho uma agenda a ser cumprida [...] amanhã vai ser o meu primeiro
dia de governo [...] o presidente, o vice e os ministros trabalharão se necessário
24 horas por dia para que a gente cumpra aquilo que prometeu a vocês que nós
iríamos cumprir .(
Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, após a
cerimônia de posse , no Parlatório do Planalto, em Brasília, 01/01/03) (ANEXO I: 1).
Ele anuncia o término do discurso, mantendo o alinhamento inicial até o momento
em que se dirige a sua esposa, para fazer-lhe uma homenagem pessoal. Justifica-se
ressaltando a importância da esposa em sua vida pública, atitude não usual numa
solenidade oficial. Dessa maneira, provoca, novamente, uma quebra de footing, uma
alteração do enquadre e do esquema, uma vez que não é esperada essa atitude. Há,
portanto, mudança no gerenciamento do discurso ao dizer:
Eu quero fazer uma homenagem porque hoje nós estamos aqui, Marisa, [está]
Muito bonita, toda elegante, ao lado do marido dela com essa faixa, que nós
sonhamos tanto tempo. Entretanto para chegar aqui nós perdemos quatro eleições:
uma para governador e três para presidente da República. E, vocês sabem que a
cultura política do Brasil é só [render] homenagem aos vencedores. Quando a
gente perde, ninguém dá um telefonema para a gente pra dizer: “Companheiro, a
luta continua”. Às vezes, ela e eu decidíamos que a luta ia continuar porque não
tinha outra coisa a fazer a não ser continuar a luta para chegar aonde nós
70
chegamos. (Discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, após a cerimônia de posse,
no Parlatório do Planalto, em Brasília,01/01/03) (ANEXO I: 2)
Retornando aos agradecimentos, Lula dirige-se à platéia citando seus respectivos
estados de origem, inicia pelos estados da região Norte, em seguida cita os estados das
regiões Centro-Oeste, Nordeste, Sudeste e Sul. Faz ressalvas a companheiros especiais,
numa explícita manifestação de apreço:
companheiros de Brasília, mas também companheiros de Minas Gerais, Espírito
Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Santa Catarina ...” , “... quero dizer,
inclusive, ao povo do Rio Grande do Sul, aos meus irmãos de Caetés, minha
grande cidade natal, que se chamava Garanhuns , os companheiros de Goiás, ...
(Discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, após a cerimônia de posse, no Parlatório
do Planalto, em Brasília,01/01/03) (ANEXO I: 2)
No desejo de evidenciar a urgência e importância da campanha, cria uma
construção contraditória:
... porque isso não está escrito no meu programa, isso está escrito na Constituição
brasileira, está escrito na Bíblia, está escrito na Declaração Universal dos
Direitos Humanos.
(Discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, após a cerimônia
de posse, no Parlatório do Planalto, em Brasília,01/01/03) (ANEXO I: 2)
Se “isso” faz parte da Constituição, necessariamente, deveria fazer parte de seu
programa de governo, uma vez que o Presidente jurou cumprir e obedecer à Constituição
Brasileira.
Mantendo o alinhamento de espontaneidade, ele dispensa a platéia. A partir desse
ponto, o tratamento dado aos partidários, companheiros e companheiras, trata-a s, inclui
entre esses os chefes de estados e as demais autoridades presentes, que na abertura do
discurso, receberam tratamentos diferenciados.
71
Ele faz, novamente, ressalva ao enviar um abraço especial aos portadores de
deficiência física que estão sentados na frente deste parlatório.
O Presidente agradece à imprensa pela cobertura da campanha num tom de irônica
brincadeira:
Meus agradecimentos à imprensa... que tanto perturbou a minha tranqüilidade
nessa campanha e nesses dois meses (período pós-eleição) sem a qual a gente não
consolidaria a democracia no país.
(Discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
após a cerimônia de posse, no Parlatório do Planalto, em Brasília,01/01/03) (ANEXO I: 2).
Despede-se dos parlamentares e convidados estrangeiros, com os quais divide a
responsabilidade que assume, comportando-se como humilde governante:
Meu abraço aos deputados, aos senadores, meu abraço aos convidados
estrangeiros, dizendo a vocês que, com muita humildade, eu não vacilarei em
pedir a cada um de vocês, me ajudem a governar, porque a responsabilidade não é
apenas minha, é nossa, do povo brasileiro que colocou aqui .
(Discurso do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, após a cerimônia de posse, no Parlatório do Planalto,
em Brasília,01/01/03) (ANEXO I: 2).
Nessa proposição não ficou claro a quem está se referindo ao usar a expressão: ...
nossa responsabilidade..., a princípio, parece reporta-se a vocês (aos deputados, senadores
e visitantes), uma vez que já os havia citado anteriormente. No entanto, parece querer
incluir o “povo brasileiro” também como responsável. Nesse caso, o que se identifica é
uma construção deficiente que prejudica a interpretação. Dada a situação social pode-se
inferir que o Presidente referia-se a todos, a si próprio, aos parlamentares e ao povo, como
responsáveis pelo seu governo, numa fala perfeitamente condizente com o regime
presidencialista vigente.
Cria-se, portanto, uma contradição, no próprio discurso, num primeiro momento,
fala a respeito da responsabilidade de todos para governar o país, democraticamente. Num
72
segundo momento, afirmar: ...eu vou fazer o que acredito que o Brasil precisa que seja
feito nesses quatro anos..., aparentando um desejo de governar sozinho.
Ao encerrar o discurso, o Presidente chama todos de “companheiros” e estabelece,
assim, uma camaradagem, fazendo o uso de “até amanhã”, sugerindo um provável desejo
de um próximo reencontro: “ Muito obrigado meus companheiros e até amanhã”.
A provável insegurança, produzida pela situação discursiva, teria o induzido a
procurar se afirmar por meio de sua própria palavra. Isso se identifica em alguns traços
lingüísticos recorrentes ao longo de todo o discurso como o uso dos pronomes possessivos
meu e minha, que aqui, denotam uma manifestação de desejo de posse. Repetidas vezes,
também, foi usado o pessoal “eu” numa aparente necessidade de afirmação pessoal frente à
platéia presente, composta por simpatizantes e não- simpatizantes, prontos para aplausos e
críticas.
Dentre todas as repetições, uma provoca inquietação e até mesmo a sugestão de
estudos posteriores, trata-se do uso da dêixis sempre utilizada nas referências ao Brasil.
Apenas uma vez, o nome do país foi mencionado, nas demais falas foi referenciado pelas
expressões ...deste país...; ...este país...; ou ainda ...neste país..; sempre apontado como
espaço externo ao mundo do falante, num evidente distanciamento estabelecido pelo uso
da terceira pessoa.
Assim, constata-se que a compreensão das escolhas formais e da intencionalidade
discursiva de Lula, como locutor, demanda estudo das características do discurso político
não-protocolar, a partir da situação interdiscursiva do encontro, bem como estudo das
condições enunciativas de produção discutidas a próxima seção.
73
3.2 Processos enunciativos e a construção sócio-interativa do discurso político não-
protocolar
O discurso político não-protocolar diferencia-se do discurso político oficial por se
tratar da apropriação da língua em sua modalidade falada informal, apresentando
características próprias do jogo de linguagem interacional como o dinamismo, a
complexidade sintática e a explicitação do processo de sua construção. Porém, observa-se
que este discurso apresenta um menor grau de interação e de co-produção por ser dirigido
ao grande público, fisicamente distante e, portanto, com ínfimo grau de envolvimento e
resposta.
Benveniste (1989) afirma que a descrição da enunciação parte da relação ‘Eu-Tu’ e
deve considerar o consenso pragmático referencial, ou seja, considerar “o próprio ato, as
situações em que se realiza e os instrumentos de sua realização”. Nos excertos do corpus,
apresentados a seguir, procurou-se identificar esses elementos descritivos a saber: negrito
para as referências ao ‘EU e ao “TU” e sublinhados para as referências à dêixes.
Antes de mim, companheiros e companheiras lutaram. Antes do PT, companheiros
e companheiras morreram neste país lutando por conquistar a democracia e as
liberdades. Eu apenas tive a graça de Deus
de, no momento histórico, ser o porta-
voz dos anseios de milhões e milhões de brasileiros e brasileiras
.[...] Eu sou o
resultado de uma eleição
. Eu sou o resultado de uma história. [...] Cuidar da
educação, cuidar da saúde, fazer a reforma agrária, cuidar da Previdência Social
e acabar com a fome
neste país são compromissos menos pragmáticos e mais um
compromisso moral e ético que eu quero assumir aqui nesta tribuna
, na frente do
povo, que é o único responsável pela minha vitória
e pelo fato de eu estar aqui
hoje tomando posse. (Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, no
Parlatório do Planalto, em Brasília, 01/01/03) (ANEXO I.b: 3).
A partir do excerto do discurso presidencial observa-se, um tom dialógico com
largo uso do índice de pessoa e da dêixis; primeiro utilizado para assinalar a relação “EU-
TU” e o segundo, para marcar o tempo e espaço no processo da inter-relação enunciativa,
74
que só se realiza a partir da necessidade de o locutor comunicar ao outro o seu mundo, o
que se dá por meio da referenciação.
Todavia, à medida que se analisa o discurso, observa-se que o tom dialógico está
ligado às escolhas formais e de enquadre discursivo, e não à intenção do locutor de ceder o
turno, por se tratar de um discurso de posse.
Os sujeitos lingüísticos são estabelecidos pelo “EU” locutor, no caso, posição
ocupada pelo Presidente Lula:
ser o porta-voz; ... Eu sou o resultado de uma eleição. Eu sou o resultado da
história. Eu estou concretizando o sonho de gerações e gerações que, antes de
mim, tentaram e não conseguiram.
(Discurso do presidente da República, Luiz Inácio
Lula da Silva, no Parlatório do Planalto, em Brasília, 01/01/03) (ANEXO I: 1).
Ele fala a um “TU(s)”, no caso o público que o assiste e ouve, ao vivo, pela TV ou pelo
rádio, da satisfação de estar ali discursando pela primeira vez como presidente do país:
eu quero afirmar a vocês que não tem na face da Terra nenhum homem mais
otimista do que eu estou hoje e que posso afirmar que vamos ajudar este país. (...)
O meu papel neste instante, (...) é dizer a vocês que eu vou fazer o que acredito
que o Brasil precisa.
(Discurso do presidente da República, Luiz Inácio
Lula da Silva, no Parlatório do Planalto, em Brasília, 01/01/03) (ANEXO I: 1).
Em todo o discurso os pronomes, os advérbios e os adjetivos marcam o tom
subjetivo e denotam a intenção do locutor-“EU” de se colocar em evidência, ao se
apresentar ao “TU”, deixando este, quase exclusivamente, em posição de ouvinte e nunca
como co-locutor na enunciação
Antes de mim; o meu papel; antes de mim; [...] na frente do povo; aqui nesta
tribuna, na frente do povo; minha vitória
(Discurso do presidente da República,Liz
Inácio Lula da Silva, no Parlatório do Planalto, em Brasília, 01/01/03) (ANEXO I: 1).
O uso da expressão ‘aqui nesta tribuna, na frente do povo’, atualiza a posição histórica
do locutor, não apenas de situação física.
75
É importante ressaltar que o locutor posiciona-se fisicamente ao lado do seu
interlocutor, usando o plural nós e nossos quando se refere aos desafios a serem
enfrentados; no entanto, nas demais situações, ele posiciona-se como o escolhido,
conhecedor das necessidades do país e do povo:
não tem no Brasil nenhum brasileiro ou brasileira mais conhecedor da realidade
e das dificuldades que vamos enfrentar...[...] me ajudem a governar, porque a
responsabilidade não é minha, é nossa, do povo que me colocou aqui
. (Discurso do
presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, no Parlatório do Planalto, em Brasília,
01/01/03) (ANEXO I: 1).
Encontra-se, no excerto, uma segunda ocorrência do uso do vamos, porém, esta
apresenta como referente não o ‘nós = locutor + alocutário’, pois nesse caso, o locutor
refere-se a si próprio:
eu estou convencido e quero afirmar a vocês que não tem na face da Terra
nenhum homem mais otimista do que eu estou hoje e que posso afirmar que vamos
ajudar este país.
(Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, no
Parlatório do Planalto, em Brasília, 01/01/03) (ANEXO I: 1).
As relações espaciais e temporais, produzidas pela enunciação, estão intimamente
ligadas à subjetividade e intencionalidade dos interlocutores e, de acordo com o quadro
formal da realização enunciativa, a dêixis é tomada como elemento organizador do tempo e
do espaço.
Nesse discurso, o locutor emprega a dêixis, aparentemente, com a intenção de
enfatizar o importante momento que vivencia.
Nesses excertos, as expressões Antes de mim; ...Antes do PT”..; no momento
histórico são usadas para marcar a distinção entre o período anterior e o que se inicia;
neste país refere-se ao espaço físico, mas também a situação político-administrativa até
então praticada no país, que de acordo com este novo governo não é satisfatória; hoje; hoje
enfatiza a importância do momento presente; e no Brasil; na face da Terra; enfatiza a sua
76
competência atribuída ao seu conhecimento da realidade, numa referência indireta às
críticas que recebeu por ser um homem sem educação formal e, portanto, visto como
despreparado para o cargo de presidente. Na seqüência a expressão este país imprime um
certo distanciamento do locutor em relação ao país que aí está, dando a entender que este
não é o país que ele deseja. A expressão neste instante marca a solenidade do instante em
que o locutor fará uma promessa. O locutor enfatiza o curto tempo de que dispõe para
cumprir a promessa de realizar as mudanças que ele julga necessárias com nesses quatro
anos e com a expressão locativa neste país, refere-se à situação política do país no
momento atual. Finalmente, aqui nesta tribuna, na frente do povo enfatizam a
concretização da conquista histórica, o ato de promessa evidencia que, apesar de já estar
presidente, o locutor ainda possui resquícios do comportamento de candidato; finalmente
as expressões aqui...hoje sintetizam o valor da luta e da conquista .
O imediatismo e a unicidade da enunciação são garantidos pelo fato de que ela só
se realiza mediante o uso do presente e que, exatamente por isso, ela ao final do
proferimento já se tornou passado, grosso modo, uma enunciação tem a duração de seu
proferimento.
Portanto, quando o Presidente Lula diz Eu sou o resultado de uma eleição. Eu sou
o resultado de uma história. Eu estou concretizando o sonho de gerações e gerações que,
antes de mim, tentaram e não conseguiram ao usar o presente em asserções afirmativas faz
uma enunciação, que imediatamente ao seu final se tornou ação passada.
Benveniste (1985) diz que o locutor ao usar o ‘eu’ mais o presente do indicativo
deseja fazer mais que uma descrição, na verdade, seu proferimento torna-se um ato de fala,
isto é, o locutor faz ao dizer, ele se apresenta e se declara síntese da história ao dizer: Eu
sou o resultado de uma eleição. Eu sou o resultado de uma história e profere uma asserção
com teor preditivo de realização Eu estou concretizando o sonho de gerações e gerações
77
que, antes de mim, tentaram e não conseguiram. Assim, percebe-se que a análise
enunciativa considera o uso das formas e suas respectivas funções sintáticas, sob um ponto
de vista diferente do lingüístico por considerar, primordialmente, o sentido da suposta
intencionalidade de Lula no momento em que enuncia.
Esse modelo de análise permite que o locutor escolha para seu discurso o tom
assertivo que lhe permite comunicar suas certezas, nesta pesquisa, explicitadas como
núcleos de referenciação.
Todavia, para o sucesso dessa referenciação, o Presidente seleciona formas
lingüísticas que o auxiliam, de maneira enfática, na construção do sentido como descrições
nominais e modalizadores que se encontram nesse excerto:
antes de mim, companheiros e companheiras antes do PT , companheiros e
companheiras; apenas tive a graça de Deus; milhões e milhões; nenhum brasileiro
ou brasileira; não tem na face da Terra nenhum homem; o meu papel, neste
instante, com muita humildade, mas também com muita sinceridade,aqui nesta
tribuna, na frente do povo; minha; aqui hoje.
(Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, no Parlatório do Planalto,
em Brasília, 01/01/03) (ANEXO I.b: 4).
Percebe-se, por esse excerto, que o locutor constrói seu discurso obedecendo a uma
estrutura narrativa, em que esse traça uma síntese das lutas pela conquista, ao longo da
história, da democracia e das liberdades, e que ele, o Lula, é o eleito porque é conhecedor
da realidade e das dificuldades, portanto, o homem certo para fazer o que acredita que o
Brasil precisa que seja feita e que o povo deseja, já que é “o único responsável” por sua
posse que se efetua naquele instante.
Ao longo de toda a construção discursiva encontram-se traços do que Bakhtin
chamou de “síntese dialética entre o psíquico e o ideológico”, em que o locutor busca
influenciar o alocutário por meio do uso da palavra usada em seu benefício.
78
O Presidente faz um resgate histórico em que se insere, a princípio, de maneira
indireta “Antes de mim...”; “ Antes do PT...”, e à medida que se aproxima historicamente
do momento presente, faz crescer sua imagem, passando de “humilde porta-voz a resultado
de uma história”, com o propósito de ativar a memória do público das imagens de
incertezas e, ao mesmo tempo, imprimir nova imagem de esperança explicitada nas
promessas efetuadas.
Segundo a teoria de Bakhtin, a enunciação é sócio-interativa e é a partir do que
observa fora de si que o indivíduo forma sua consciência e apreende valores ideológicos
do grupo a que pertence. A partir daí, forma sua linguagem, que é coletiva, pois faz parte
do diálogo entre o ‘eu’ e o ‘outro’, entre muitos ‘eus’ e muitos ‘outros’.
Baseado nisso, percebe-se que, em seu discurso, o Presidente adota o modelo do
discurso comissivo, próprio de candidatos, cuja intenção é influenciar o público, embora já
esteja Presidente. O locutor se mantém fiel ao uso desse modelo discursivo durante todo o
primeiro ano de seu mandato, buscando mostrar-se conhecedor dos dois lados, o do povo e
o do governo.
O discurso é aparentemente, improvisado, modelado de acordo com a situação
vivenciada, recheado de expressões já surradas e, por conseguinte, de eficiência
comprovada. Ao proferi-lo, nesse momento de seu governo, o faz para ratificar a escolha
do povo, as suas promessas de campanha, o dialogismo e, ao mesmo tempo, se declarar
competente e merecedor do cargo que ocupa.
O Presidente, dessa maneira, contribui para a formação da consciência dos
alocutários, ao mesmo tempo em que mostra as vantagens sociais da ideologia vigente,
como algo a ser abraçado.
Assim, a interação entre o Presidente que se posiciona como sujeito e seu público,
se dá devido à natureza do evento, em que o locutor se serve do expediente de criar um
79
“representante médio do público” a quem se refere usando uma forma familiar, como a um
companheiro de luta, por quem espera ser realmente compreendido.
O Presidente Lula, consciente da heterogeneidade de seu público, dirige-se a esse
evocando os companheiros e companheiras referindo-se aos petistas; ora como vocês
referindo-se ao público presente; em outro instante, como brasileiras e brasileiras
referindo-se ao público que o elegeu; ou ainda, como povo referindo-se aos cidadãos do
Brasil de maneira mais abstrata e genérica, atendendo à uma necessidade que lhe foi
imposta por sua situação social e confirmando o que afirma Bakhtin “o nosso mundo
interior que se adapta às possibilidades de nossa expressão”.
Dessa maneira, Lula procura ampliar o alcance de sua fala, expondo seu ponto de
vista político revestido de sua ideologia, na busca de, por meio da interação, formar uma
rede de trocas e de evolução que se renova cada vez que é conectada, estabelecendo uma
rede interdiscursiva discutida na próxima seção.
3.3 As formações discursivas e as formações ideológicas
3.3.1 O interdiscurso
Todo enunciado se encontra assim especificado: não existe em geral,
enunciado livre, neutro e individual, mas sempre um enunciado fazendo
parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio
dos outros, apoiando-se neles e se distinguindo deles: ele se integra
sempre em um jogo enunciativo. (FOUCAULT, 1996:124).
A afirmação foucaultiana a respeito da relação entre os enunciados é tomada como
ponto de partida para a análise das condições de produção, da formação discursiva e da
formação ideológica do discurso presidencial.
80
O estudo da ligação discursiva entre os vários outros enunciados e o enunciado
metafórico, tema central deste estudo, permitirá a compreensão do uso das seqüências
discursivas, bem como a melhor interpretação dos possíveis sentidos pretendidos por Lula,
ao proferir seus discursos não-protocolares.
Ao descrever os enunciados que compõem o discurso presidencial, identificam-se
as suas regularidades, e as suas modalizações e estratégias discursivas presentes em sua
materialidade. A essa análise da materialidade, juntam-se a análise da formação discursiva,
da formação ideológica e das condições de produção para a interpretação do sentido do
discurso. Todavia, esses elementos encontram-se tão intimamente ligados
interdiscursivamente nas formações discursivas e ideológicas que se torna impossível
delimitar uma e outra, o que pode ser observado na análise apresentada a seguir.
3.3.2 Das condições de produção
O uso da linguagem de maneira significativa, isto é, a produção do discurso não-
protocolar do Presidente Lula atende às exigências mínimas da condição de produção
discursiva, que envolve o conteúdo, a platéia, o locutor e suas as posições imaginárias na
estrutura de suas formações histórico-sociais. Segundo essas condições, se estabelecem as
regras discursivas a que foi submetido o discurso a ser analisado.
Assim, busca-se identificar a posição imaginária em que se encontra o Presidente
Lula, pois “ quem fala, fala de um lugar a partir de um direito reconhecido
institucionalmente. Esse lugar que passa a ser verdadeiro, veicula saber institucional, é
gerador de poder” ( FOUCAULT, 1969) .
No recorte dos discursos presidenciais propostos para esta análise, identificaram-se
algumas posições imaginárias, que variam de acordo com as condições discursivas em que
se encontram, as mais freqüentes estão exemplificadas nos excertos :
81
Podem ficar certos de que não tem chuva, não tem geada, não tem terremoto, não
tem cara feia, não tem Congresso Nacional, não tem Poder Judiciário... só Deus
será capaz de impedir que a gente faça este país ocupar o lugar de destaque que
ele nunca deveria ter deixado de ocupar.
(Discurso do presidente da República, Luiz
Inácio Lula da Silva, na cerimônia de entrega dos troféus às instituições beneficiárias do
Programa Senai e premiação do Concurso Nacional de Criatividade para Docentes, no
Auditório da Confederação Nacional da Indústria, Brasília, 24/06/03) (ANEXO II:9).
O Presidente declara ter firmes propósitos, ser temente a Deus e acreditar ter
autonomia como chefe do Poder Executivo do Brasil, transparecendo, à primeira vista,
certo grau de prepotência por parte do locutor.
Essa interpretação torna-se menos autoritária se for contextualizada e assim,
percebe-se que o locutor, habitualmente, usa uma entonação exaltada. Ao discursar profere
palavras de forte efeito discursivo, para evidenciar sua confiança nas mudanças propostas.
Todavia, a má interpretação de sua postura lhe tem causado significativo desgaste político.
Porque estou mais consciente, mais maduro e mais calejado. Cheguei à
presidência do sindicato quase por acaso. Cheguei à Presidência da
República porque briguei muito por ela.
(Discurso feito na abertura do IV Congresso
do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, dia
26/06/03).( ANEXO III:12)
No encontro com sindicalista, o Presidente usou tom memoralísta numa tentativa
de se aproximar do público, apresentando-se como um ex líder sindical, que se encontra
numa fase de aprendizagem e moderação. Afirma isto justificando suas decisões
impopulares.
Eu quero cuidar do Brasil. Eu quero cuidar do povo brasileiro. Quero cuidar de
cada criança deste país como se estivesse cuidando do meu próprio filho...
(Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de
lançamento do programa de parceria entre os governos federal e do Acre, em Casa de
Chico Mendes, Xapuri, 29/06/03) (ANEXO IV:34)
82
O Presidente, nesse discurso, valeu-se do tom paternalista, aparentando atitude de
protetor de um povo ingênuo e carente, distanciando-se da função de chefe do Poder
Executivo, para a qual foi eleito.
Nos enunciados metafóricos, apresentados a seguir, tanto a posição discursiva
como a intencionalidade do locutor se revelam de maneira indireta. Esses enunciados
metafóricos pertencem aos discursos não-protocolares proferidos pelo Presidente, num
período em que ele discursou, mais intensamente, a respeito da necessidade de se aprovar e
efetuar a reforma tributária e a reforma da previdência, período marcado por manifestações
de insatisfação com as medidas tomadas pelo governo e sua equipe econômica.
Aparentemente, o locutor além de usar o discurso não-protocolar como parte do
jogo estratégico enunciativo, já comentado em 3.2, posiciona-se como conhecedor da
situação e, em tom fraterno e coloquial, procura persuadir a opinião popular a favor da
aprovação das reformas propostas ao Congresso Nacional, estabelecendo um jogo
discursivo de saber e poder que envolve signos de forte apelo emocional e popular como o
futebol, a família, a saúde e o trabalho:
Gosto de dar a família como exemplo. Todo mundo tem experiências de família. E,
como falar palavra difícil nem todo mundo entende prefiro usar as coisas do dia-
a-dia.
(Discurso feito na abertura do IV Congresso do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC,
em São Bernardo do Campo, dia 26/06/03).( ANEXO III:15).
Os enunciados são usados como estratégia discursiva do locutor com objetivo de
facilitar a empatia e estabelecer confiança entre Lula e o público, através do discurso.
Na busca de atingir o maior número possível de pessoas, dirige-se ao público, por
sabê-lo heterogêneo, o locutor vale-se de elementos que evocam experiências particulares e
universais, quando afirma:
83
dói mas cura; .... pai é melhor para um filho quando lhe dá uma
chinelada... ... eu tive que esperar nove meses ... Acho que a gente não
pode fazer tudo ... olha para o lado, vê o companheiro livre, passa a
bola ...tem que adubar, jogar água, regar sempre, p/ que a árvore cresça
forte e frondosa.
Essa estratégia, se analisada por outro ângulo, revela o ethos do locutor. À medida,
que tenta persuadir seu alocutário e se apresenta como conhecedor experiente dos
problemas e das soluções dos populares, desperta, nesses, a sensação de estar diante de um
dos seus, compartilhando angústias, expectativas e sonhos, como pode ser observado no
excerto:
Nós queremos é marcar todos os gols que acharmos que temos direitos de marcar
nesse país.
(Discurso do presidente da República,Luiz Inácio Lula da Silva, na XI Feira
Nacional de Doce, Pelotas, RS, 17/06/03)( ANEXO VI:43).
O uso da primeira pessoa do plural não se refere a um sujeito coletivo, mas ao
próprio locutor, que se posiciona como aquele que conhece, portanto, o guia.
Aos olhos do alocutário, Lula é um semelhante por meio quem se realiza, pois,
agora, ele ocupa a posição de comandante do governo, posição jamais ocupada por outro
popular, situação explicitada pelo locutor que, em tom amistoso, lembra como os
fundadores se referiam à legenda, época em que participou da criação do PT em 1980,
afirma:
Naquele tempo, a gente nem falava Partido dos Trabalhadores. Aqui a gente
aprendia a comer o ‘s’. A gente falava Partido do Trabalhadô, que é mais
charmoso, forte, mais gostoso.
(Discurso feito no IV Congresso do Sindicato dos
Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo - SP, em 26/06/03). (ANEXO III:14 ;
Anexo III.b;30).
As observações feitas, anteriormente, não seriam possíveis se os enunciados
metafóricos fossem analisados isoladamente, pois o discurso “é um conjunto de
enunciados” formando “um feixe complexo de relações” que compõem o jogo enunciativo.
84
Os enunciados metafóricos, analisados como parte de enunciações discursivas,
apresentam como tema central o destaque da importância de se ter paciência e saber
esperar pelos resultados de uma ação, como no excerto:
eu tive que esperar nove meses para nascer a criança e mais quase um ano para
falar papai.
(Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na XI Feira
Nacional de Doce, Pelotas, RS, 17/06/03).( ANEXO VI:36)
.
Uma análise cuidadosa desses enunciados em questão evidencia a inquietação do
Presidente, nesse momento político, possível de ser observada pelos inúmeros
pronunciamentos em um curto espaço de tempo e pela recorrência do tema paciência já
mencionado.
O Presidente, representante dos anseios do povo, segundo ele próprio, propôs ao
Congresso Nacional um projeto de lei ideologicamente contrário aos princípios do PT e
contrário às promessas que fizera por ocasião de sua campanha eleitoral.
De acordo com os planejamentos do governo, para que o país possa cumprir as
metas econômicas estabelecidas pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) seria
necessário que se faça uma reforma da previdência, para torná-la mais justa e sustentável;
seguida de uma reforma da tributária para aumentar a arrecadação.
Todavia a oposição vê essas reformas como nova forma de acarretar mais despesas
para os trabalhadores e aposentados. A respeito da reforma da previdência o locutor
justifica sua necessidade afirmando:
É um poço sem mina. Se a mina secou, e continuam tirando água, um dia a água
acaba.
(Trecho de discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, em
London School fo Economics and Political Science14/07/03) (ANEXO IX:58)
85
Segundo o locutor é importante que haja mais contribuição para que o sistema
continue funcionando bem, citou ainda o exemplo de Minas Gerais, que arrecada 10% do
que gasta.
Assim, percebe-se que o discurso é atravessado pela dispersão do sujeito, dentre as
várias possibilidades de posições subjetivas a serem ocupadas. Nesse discurso em especial,
o sujeito enunciador se apresenta, aparentemente, em franco conflito ideológico. Ele
transita de uma formação ideológica de candidato opositor a uma formação ideológica de
governante eleito de situação, atuando como conciliador que oscila entre o representante
do povo carente e esperançoso e o credor ávido por pagamento e afirma:
Estou cada vez mais convencido de que, neste mundo globalizado, o mundo do
trabalho precisa ser menos corporativo e cada vez mais político...
(Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, feito na abertura da Conferência da Organização
Internacional do Trabalho, em Brasília, 03/06/03)
(ANEXO VII.b;52).
Revela-se um estrategista cooperativo, cujo objetivo é promover a
aproximação de dois mundos antagônicos: o do governo economicista revestido de
populismo e o do alocutário credor, aqui iludido ao ser tratado como agente desse processo,
ao dizer:
Quantas vezes xinguei a direção da Ford e quantas vezes a direção da Ford deve
ter me xingado aqui dentro. O que aconteceu? Ficamos adultos, madurecidos, e
hoje estou aqui cumprimentando o Maciel [ Antônio Maciel Neto presidente da
Ford no Brasil] certo de que o que penso para a economia do país é o mesmo que
ele pensa.
(Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na solenidade da entrega
simbólica de 22 toneladas de alimentos para o Programa Fome Zero, em São Bernardo do
Campo SP, 29/0/03) (ANEXO VIII:56)
O locutor declara-se em comunhão com o pensamento de uma
multinacional americana montadora de automóveis no Brasil e ao mesmo tempo afirma
estar lutando pela causa dos metalúrgicos dos quais, ainda, se diz companheiro.
Observa-se que o sujeito discursivo situa-se entre dois campos discursivos
antagônicos que “se encontram em concorrência, se limitam reciprocamente em uma
região determinada no universo discursivo” (BRANDÃO,1994), de onde emerge o novo
posicionamento ideológico identificado no discurso presidencial, objeto desse estudo.
86
O discurso do locutor em questão é resultado do redimensionamento do papel do
sujeito, em face das novas práticas discursivas e das novas formações de saberes que o
assujeitam, isto é, da “dispersão do sujeito que reflete a descontinuidade dos planos ligados
pela prática discursiva, de onde fala o sujeito que pode, no interior do discurso, assumir
diferentes estatutos” (FOUCAULT,1969).
A nova postura do Presidente é percebida, quando se compara seus discursos feitos
na época de sua candidatura com os atuais, em cujos excertos encontram-se comentários
como: ... dói, mas cura ...; e no excerto: ... um pai é melhor para um filho quando dá uma
chinelada nele, relacionando o Bezentacil e a chinelada.
Às reformas tributária e previdenciária, são acrescidos de comentários como:
São os remédios de que o Brasil precisa. A reforma da Previdência não
mexe com o peão, não. Mexe com o setor público, para harmonizar e fazer
justiça social. Com gente que se aposenta com R$ 30 mil por mês na flor da
sua vida intelectual; Ao querer que um professor universitário se aposente
com 60 anos, não estamos querendo penalizá-lo, pelo contrário, nós
estamos querendo manter na universidade a inteligência brasileira que a
sociedade financiou. Queremos valorizar o profissional, queremos que ele,
no auge da sua capacidade intelectual, continue dando aula, da mesma
forma que nós não queremos penalizar um juiz ou qualquer outra pessoa.
(Discurso feito no IV Congresso do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São
Bernardo do Campo-SP, em 26/06/03). ANEXO III.b:29)
Anteriormente, nos tempos de campanha, assumira posição totalmente diferente a
respeito das possíveis mudanças da previdência:
Eles querem criar o limite de idade para que a classe trabalhadora
morra antes de se aposentar.
(Trecho de discurso feito por Lula em Aracaju 06/09/87 publicado pelo jornal Folha de
o Paulo em 21/05/03) (
ANEXO X :59).
87
sobre as taxas de juros:
Vou reduzir os juros, eliminar impostos sobre exportação e implantar setoriais
onde pecuaristas, frigoríficos e governo reúnam para discutir os problemas da
produção.
(Trecho de discurso veiculado pela TV, em rede nacional no dia 21/09/02, às
20h 30
).
O locutor transita de uma imagem de sindicalista e de candidato à presidência da
República combativo, incansável, acima de tudo, crente numa profunda mudança
ideológica dos rumos da economia praticada pela direita governista, a uma imagem de
Presidente da República de situação. Encontra-se, agora, Presidente eleito em contato com
experiências e discursos que não conhecia, passa por novas experiências e a novos
aprendizados, conseqüentemente está submetido a uma implementação de formação
discursiva, cuja conseqüência é imprevisível. Essa nova situação é comentada pelo locutor
ao dizer:
O tempo de ser sindicato apenas de contestação já passou – e eu possivelmente
tenha me notabilizado por isso. Agora, a história está a exigir tanto dos
trabalhadores como dos empresários uma ou outra cabeça, uma outra forma de
comportamento.
(Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na
cerimônia de lançamento do Fórum Nacional do Trabalho, 29/07/03). (ANEXO VII:49)
(ANEXO VII.b:52).
As construções dos enunciados metafóricos encontrados, no discurso do Presidente,
são resultantes de uma necessidade estratégica discursiva, num momento em que ele
precisa desempenhar um papel específico num jogo, em que é o parceiro cooperador, mas
que, na verdade, é o controlador dos rumos de um pretenso diálogo amigável entre
parceiros de luta pelo poder da palavra.
88
3.3.3 Do funcionamento da formação discursiva
Foucault (1979 apud BRANDÃO, 1994:39) ao falar a respeito do funcionamento
da formação discursiva, afirma que a paráfrase “é um espaço em que os enunciados são
retomados e reformulados” numa tentativa de se preservar a identidade dos enunciados. O
pré-construído, entendido como “objeto, representação, realidade é assimilado pelo
enunciador no processo do seu assujeitamento ideológico quando se realiza a sua
identificação, enquanto sujeito enunciador, como sujeito universal da formação discursiva”.
A esses tipos de funcionamento Orlandi (1984 apud BRANDÃO, 1994) contrapõe
um outro tipo, a polissemia que rompe com as fronteiras da paráfrase, “ ‘embaralhando’ os
limites entre diferentes formações discursivas, instalando a pluralidade, a multiplicidade de
sentidos”.
Baseado nas noções de pré-construído e polissemia, o uso dos enunciados
metafóricos, ou simplesmente, das metáforas pelo locutor, poderia ser visto como uma
alternativa de funcionamento da formação discursiva, em relação aos tipos de
funcionamento já conhecidos e apresentados anteriormente.
O uso de metáforas nos discursos presidenciais pode ser entendido como uma
intenção de o locutor fazer com que o alocutário interprete o sentido do discurso ouvido
exatamente como é planejado pelo locutor, assim, a compreensão do alocutário estaria sob
controle.
O locutor, ao ativar o conhecimento pré-construído do alocutário, aposta na sua
capacidade argumentativa e, aparentemente, abre o discurso para uma multiplicidade de
sentidos, mas, na realidade, não o faz completamente. Isso não ocorre, porque o locutor
oferece ao alocutário uma pretensa compatibilidade de elementos de memória discursiva,
criando atmosfera de aproximação, fundamental para que, via enunciado metafórico, o
alocutário interprete o sentido do discurso proferido, exatamente, como pretendido pelo
89
locutor. Na verdade, o locutor é o criador da metáfora, o locutor parte de uma primeira
relação, em que fala da produção de jabuticabas em meio inadequado, mas que devido à
perseverança e cuidados está produzindo frutos daqui a alguns dias eu vou encher vocês de
jabuticaba, porque tem muita jabuticaba que vai dar.
Em seguida, ativa a memória de seu ouvinte mencionando a situação da
economia nacional, que a seu ver está sendo cuidada, induzindo o alocutário a estabelecer
uma relação entre os dois comentários ao afirmar “...está acontecendo com o meu pé de
jabuticaba o que vai acontecer na economia nacional”. O ponto comum pretendido é o
“sucesso” ocorrido nos dois empreendimentos. Observa-se que, tentando assegurar o
sucesso de sua metáfora, o locutor explicita o sentido pretendido. Dessa maneira o locutor
detém o controle do referencial e do discurso.
Hoje estava andando com a Marisa – o Palocci não foi – e tem um monte de pé de
jabuticaba lá [no Palácio da Alvorada]. Estou desde janeiro naquela casa e a
gente vai no pé de jabuticaba e nunca tem jabuticaba, está sempre sem flor,
porque Brasília é muito seca, e o sol bebe a água antes de ela chegar na raiz. E
todo mundo sabe que jabuticaba precisa de água e sol. Colocamos lá um
gotejamentozinho. Hoje fomos lá e acho que daqui a alguns dias eu vou encher
vocês de jabuticaba, porque tem muita jabuticaba que vai dar.
Está acontecendo com o meu pé de jabuticaba e que vai acontecer com este país,
está acontecendo com o meu pé de jabuticaba o que vai acontecer na economia
nacional
. (Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na reunião do
Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, Brasília, 04/09/03.( ANEXO V:39)
Diante disso, o que se apresenta é um discurso, aparentemente dialogal, em que o
turno não é cedido, permanecendo, este, durante todo o tempo discursivo, sob o poder do
locutor que reproduz, transforma e controla o discurso.
O funcionamento da metáfora e a interpretação dos seus efeitos discursivos no
corpus deste trabalho serão discutidos no capítulo 4, a partir da Teoria da Metáfora de
Searle, em que são explicitadas as diferenças entre paráfrase, metáfora e atos de fala
indireto, noções fundamentais para esta análise.
90
3.4 Análise dos enunciados metafóricos presentes no modelo de discurso não-
protocolar presidencial feita a partir das teorias da enunciação e da formação
discursiva
Os estudos apresentados por Lakoff e Johnson (2002) demonstram que a metáfora
conceptual é um elemento fundamental do conhecimento humano e essencial para a
compreensão do mundo, da cultura e do próprio indivíduo. Essa constitui uma das facetas
da capacidade humana de produzir sentido, a partir da operação de categorização tomada
como reflexo da cognição. Segundo eles, o falante e o ouvinte não manipulam símbolos
formais desprovidos de sentido, mas usam esses símbolos porque eles foram construídos
pela capacidade humana de categorização num processo sócio-cognitivo. Esses autores
deixam isto claro quando afirmam:
fosse um dos cinco sentidos, como ver, ou tocar, ou ouvir, o que quer dizer
que nós só percebemos e experimentamos uma boa parte do mundo por meio
de metáforas. A metáfora é parte tão importante da nossa vida como o toque,
tão preciosa quanto (LAKOFF; JOHNSON, 2002: Posfácio).
Afirmam, ainda, que a comunicação resulta da construção do sentido e se baseia
nas experiências individuais compartilhadas.
Esta afirmação nos remete a Bakhtin que diz:
A experiência verbal individual do homem assume forma e evolui sob o
efeito da interação contínua e permanente dos enunciados individuais de
outrem. É uma experiência que se pode, em certa medida, se definir como
um processo de assimilação, mais ou menos criativo, das palavras de
outrem (BAKHTIN, 1999:296).
Portanto, o indivíduo ao observar o mundo concreto em que vive atua como co-
participante da construção de significação dos signos ao utilizá-los, efetivamente, nas
práticas discursivas.
Este uso da metáfora pode ser observado no discurso presidencial no excerto em
que diz: O rus da inflação voltou a ser, desde o final do ano passado, uma amea real
91
para o organismo econômico brasileiro (Discurso feito na reabertura do Congresso Nacional em
18/02/03). O uso de vírus está atribuindo à inflação as características de um organismo biológico
invisível, de difícil combate e causador de doenças.
O processo de assimilação da significação dos signos, a partir das palavras de
outrem, torna-se criativo e singular ao ser adaptado e usado no enunciado, o qual, na
enunciação é revestido por um significado e por uma intencionalidade que, a cada uso, lhe
conferem sentido novo e único; portanto, diferente de todos os outros que, até então, lhe
havia sido atribuído antes.
O locutor assume a posição de sujeito enquanto se vale da metáfora como auxílio
discursivo, ou seja, estabelece-se como aquele que atribui novo sentido a um enunciado já
significado, anteriormente, em outra enunciação, o que se observa quando o Presidente
disse:
Vocês todos já viram um jogo de futebol. Tem jogador que tem pressa, pega a bola,
não olha para o lado, dá uma ‘bicuda’ e não marca o gol. Tem outro que olha
para o lado vê um companheiro livre, passa a bola e marca o gol. Nós não temos
tempo de dar ‘bicuda’. Nós queremos é marcar todos os gols que achamos que
temos direito de marcar nesse país.
(Discurso feito pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na XI Feira
Nacional do Doce – FENADOCE, Pelotas RS, 17/06/03). (ANEXO VI:43)
O Presidente compara a tomada de decisão do governo em relação à busca da
solução dos diferentes problemas que afligem a população brasileira com uma situação de
jogo de futebol, atribuindo novo sentido para o jogador = governo; bola = decisão; bicuda
= modo de decisão; e gol = resolução dos problemas. Todo esse artifício tem como
objetivo sugerir que todos tenham paciência de esperar pelos resultados das ações do
governo.
Não se trata de um sujeito criador, mas de um sujeito criativo, um locutor que
significa o objeto lingüístico disponível em sua memória, usa-o a favor de sua
intencionalidade, junto aos sindicalistas a quem chama de companheiros, que se encontram
92
num congresso de sindicato, ao assumir a enunciação o Presidente marca seu ‘eu’ e
atualiza toda a sua potencialidade social e discursiva.
O locutor busca o objeto, na dispersão do interdiscurso em que se abriga, o mesmo
objeto que já foi usado por outros e, que, ainda, o será por tantos outros, em tantas outras
enunciações distintas. Dessa maneira as palavras jogador; bola; bicuda; e gol são usadas com
intenção diferenciada e ao mesmo tempo única cada vez que forem enunciadas.
Assim, a enunciação, facilitada pela interação verbal dos participantes do ato de
fala, no caso o Presidente Lula e os sindicalistas que formam a platéia, tem a sua origem na
inter-relação e na situação social, as quais são responsáveis por sua forma e estrutura.
No discurso presidencial percebe-se constante busca de aproximação com o
público ouvinte, aqui, considerados companheiros. O locutor procura aparentar franqueza,
quando tenta compartilhar conhecimentos e experiências pessoais valendo-se do seguinte
enunciado metafórico:
Todo mundo aqui já tomou Benzetacil [antibiótico injetável à base de penicilina,
cujo local de aplicação permanece dolorido por um longo período dificultando os
movimentos]. Dói, mas cura. O nego fica um dia mancando. Não pode sentar.
Senta só com a metade
(Discurso feito pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da
Silva, na Abertura do IV Congresso do Sindicato dos metalúrgicos , em São Bernardo do
Campo, em 26/06/03) (ANEXO III:22) (ANEXO III.b:29).
O locutor, aparentemente, tenta relacionar o ‘Benzetacil’ às reformas tributária e da
previdenciária. como soluções de que o país precisa para erradicar os problemas sociais.
Além disso, relaciona a ‘dor’ às possíveis dificuldades por que terão que passar os
trabalhadores, com vistas na solução dos problemas e de um futuro melhor para todos.
Esta análise considera, ainda, a Teoria das Formações Discursivas, cuja
contribuição se aplica às análises das relações dos enunciados metafóricos com os demais
93
enunciados do próprio discurso e das relações, desses, com outros discursos, ou seja,
relações do interdiscurso.
As expressões metafóricas, em questão, são chamadas de enunciados metafóricos,
porque como enunciados permitem que “as unidades de signos apareçam com conteúdos
concretos no tempo e no espaço” MACHADO (1981), e são metafóricos porque o processo
da referenciação se dá de maneira indireta, exigindo a ativação da memória discursiva, ou
seja, refere-se a um signo querendo referir-se a outro, explicita a relação interdiscursiva e
instiga o ouvinte a atuar de maneira cooperativa.
Essa memória discursiva é resultante da experiência de cada indivíduo, que ao
ouvir e produzir enunciados diversos, através das articulações das práticas discursivas,
apreende e aprende saberes, regras sociais, jogos estratégicos de linguagem, o valor do
poder da palavra e da luta por seu controle.
No excerto do discurso presidencial, abaixo, encontram-se traços das relações
discursivas construídas pelo locutor e, provavelmente, compreendida pelo ouvinte.
Hoje estava andando com a Marisa – o Palocci não foi – e tem um monte de pé de
jabuticaba lá [no Palácio da Alvorada]. Estou desde janeiro naquela casa e a
gente vai no pé de jabuticaba e nunca tem jabuticaba, está sempre sem flor,
porque Brasília é muito seca, e o sol bebe a água antes de ela chegar na raiz. E
todo mundo sabe que jabuticaba precisa de água e sol. Colocamos lá um
gotejamentozinho. Hoje fomos lá e acho que daqui alguns dias eu vou encher
vocês de jabuticaba, porque tem muita jabuticaba que vai dar. Está acontecendo
com o pé de jabuticaba e que vai acontecer com este país, está acontecendo com o
meu pé de jabuticaba o que vai acontecer na economia nacional. No Brasil, tem
um tipo de gente tão pessimista, que acho que nem filhos eles podem ter. Primeiro
porque não têm tempo de esperar o período de fertilidade da mulher, depois
porque não tempo de esperar nove meses para nascer, depois porque não têm
tempo de esperar um ano para aprender a falar papai, então ‘já que demora muito,
eu não vou ter’. Eu e a Marisa somos otimistas, enchemos a casa
(Discurso do
presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na reunião do Conselho de
Desenvolvimento Econômico e Social, Brasília, 04/09/03.( ANEXO V:39).
A relação do enunciado metafórico com os demais enunciados não se encontra
explicitada no texto, mas é estabelecida a partir da ativação da memória discursiva do
94
ouvinte, onde se encontram os conhecimentos pré-construídos a respeito do cultivo de
jabuticabas, do crescimento, da irrigação e, principalmente, a respeito do longo tempo que
leva para a primeira produção, o que demanda paciência. A partir daí, o ouvinte de posse
dos dados já conhecidos e dos dados novos, apresentados no discurso, poderá relacioná-los,
tomando como ponto de ligação o tempo de espera e a paciência exigidos para a colheita
do fruto, o que o levará a compreender o sentido do enunciado metafórico em meio ao
discurso em questão, bem como relacioná-lo aos demais discursos. Portanto, o
conhecimento pré-construído do locutor resulta das relações estabelecidas entre discursos
diferentes como o conhecimento a respeito do cultivo de jabuticabas, do clima da cidade
em que se encontra, da economia nacional, da fertilidade feminina, desenvolvimento
infantil. Além de conhecimento do público a que se dirige, conhecimento a respeito de
construção, da forma e da interação verbal enunciativa de discurso político.
Numa suplementação mutua das teorias de Bakhtin e Foucault, grosso modo, pode-
se afirmar que a experiência verbal do indivíduo é fruto da interação verbal nas práticas
discursivas que, por sua vez, são responsáveis pela formação de sua consciência e por sua
vez são responsáveis pela formação de sua consciência e por sua noção de ideologia, e
ambas constituem a base das formações discursivas.
Expandindo, ainda mais, nessa interação de teorias, pode-se certificar que as
metáforas têm origem também na interação verbal das metáforas, por seu caráter
conceitual essencial no processo cognitivo dos indivíduos.
Assim, os enunciados metafóricos utilizados nos discursos não-protocolares
presidenciais podem ser tomados como estratégias discursivas, cuja origem está calcada
nos conhecimentos compartilhados e nas relações dos participantes desse encontro, ou seja,
um discurso político com tom de conversa informal pretendida pelo locutor, em uma
situação específica, direcionado a um ouvinte co-construtor do significado e da ação.
95
Os enunciados metafóricos analisados como estratégias enunciativas, presentes nos
discursos presidenciais, serão discutidos e terão seu funcionamento explicado no próximo
capítulo, estabelecendo-se relação direta com a Teoria dos Atos de Fala sob o ponto de
vista de Searle, apresentado em Expressão e Significado (2002).
96
CAPÍTULO 4
A TEORIA DA METÁFORA E A TEORIA DOS ATOS DE FALA
APLICADAS A UMA POSSÍVEL CONSTRUÇÃO
DE SENTIDOS
4.1 Uma estratégia discursiva
Neste capítulo, são apresentadas as análises de alguns enunciados metafóricos
usados pelo Presidente Lula em seus discursos não-protocolares, dirigidos a populares,
durante o período de tramitação na Câmara dos Deputados dos projetos das reformas
tributária e da previdência.
A análise tem como base as noções de formação discursiva de Foucault (1969) e
Pêcheux (1997) e os postulados de Searle (2002) a respeito do funcionamento da metáfora,
para quem a compreensão do sentido do enunciado metafórico se dá de maneira indireta,
pois o falante diz algo querendo significar outra coisa que, possivelmente, o ouvinte é
capaz de compreender.
Assim, a análise do sucesso comunicacional do uso do enunciado metafórico, no
discurso presidencial, leva em consideração a possível intencionalidade de Lula, seus
conhecimentos a respeito do público ouvinte e da situação sócio-interativa do encontro.
Esta análise é auxiliada pelos princípios de fundamento da metáfora, apresentados
e discutidos por Searle (2002), “segundo os quais a emissão de ‘P’ pode fazer vir à mente o
significado de ‘R’s, de maneira que são peculiares à metáfora”.
Dentre os oito princípios apresentados o sétimo é o que melhor se aplica ao corpus
deste trabalho, por tratar-se da construção da metáfora relacional, uma construção
complexa em que “a tarefa do ouvinte não é passar de ‘S é P’ a ‘S é R’, mas passar de “S
97
relação P-S’” a “S relação R S-’”, ou seja, a relação estabelece-se de maneira indireta. .
Segundo a teoria searleana, esse tipo de construção metafórica constitui o sétimo princípio
e para computar R, na verdade, é necessária a aplicação dos princípios 1-6, condição para
se construir uma metáfora relacional.
Nesta análise, verificou-se que as relações são estabelecidas de acordo com o
princípio 4, em que embora as ‘coisas que são P não sejam R’, P é associado às
propriedades de R , por ser fato naturalmente determinado e detectado pela sensibilidade
do falante.
Os enunciados metafóricos apresentados, no capítulo 3, ilustram bem essa
construção da metáfora relacional, especialmente o excerto em que o Presidente fala a
respeito das “jabuticabeiras do palácio da Alvorada”:
Hoje estava andando com a Marisa – o Palocci não foi – e tem um monte de pé de
jabuticaba lá [no Palácio da Alvorada]. Estou desde janeiro naquela casa e a
gente vai no pé de jabuticaba e nunca tem jabuticaba, está sempre sem flor,
porque Brasília é muito seca, e o sol bebe a água antes de ela chegar na raiz. E
todo mundo sabe que jabuticaba precisa de água e sol. Colocamos lá um
gotejamentozinho. Hoje fomos lá e acho que daqui alguns dias eu vou encher
vocês de jabuticaba, porque tem muita jabuticaba que vai dar”. “Está
acontecendo com o pé de jabuticaba e que vai acontecer com este país, está
acontecendo com o meu pé de jabuticaba o que vai acontecer na economia
nacional. No Brasil, tem um tipo de gente tão pessimista, que acho que nem filhos
eles podem ter. Primeiro porque não têm tempo de esperar o período de fertilidade
da mulher, depois porque não tempo de esperar nove meses para nascer, depois
porque não têm tempo de esperar um ano para aprender a falar papai, então ‘já
que demora muito, eu não vou ter’. Eu e a Marisa somos otimistas, enchemos a
casa
(Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na reunião do
Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, Brasília, 04/09/03.( ANEXO V:39).
A primeira relação estabelecida é do tipo ‘S relação-P S’ presente em:
... Colocamos lá um gotejamentozinho. [...] acho que daqui alguns dias eu vou
encher vocês de jabuticaba, porque tem muita jabuticaba que vai dar...
Esse enunciado constitui o centro da proposição, dessa metáfora relacional
construída pelo Presidente, onde ele fala da dificuldade de se produzir jabuticabas, em
Brasília, comenta a demanda de tempo dedicada ao seu empreendimento, a produção de
98
jabuticabas: Estou desde janeiro naquela casa e a gente vai no pé de jabuticaba e nunca
tem jabuticaba, está sempre sem flor; em seguida, aponta a razão do problema (...)
porque Brasília é muito seca, e o sol bebe a água antes de ela chegar a raiz e como
solução do problema lista com detalhes as providências tomadas: E todo mundo sabe que
jabuticaba precisa de água e sol. Colocamos lá um gotejamentozinho. E, finalmente,
apresenta o resultado da empreitada: Hoje fomos lá e acho que daqui alguns dias eu vou
encher vocês de jabuticaba, porque tem muita jabuticaba que vai dar.
A segunda relação é do tipo: “S relação-R Sé estabelecida a partir dos resultados
apresentados na primeira parte, onde S é o problema, P as providências tomadas e R o
resultado final, ou seja, a busca da solução dos problemas envolve persistência de ações e
paciência para esperar pelo resultado. Isto é observado quando o Presidente diz: “Está
acontecendo com o pé de jabuticaba o que vai acontecer com este país, está acontecendo
com o pé de jabuticaba o que vai acontecer na economia nacional”. Percebe-se que o
Presidente estabelece uma relação entre as duas situações e tenta deixar claro, para seu
público o fato de ser um conhecedor da solução do problema econômico nacional. E que a
solução, desses, se dará através de uma seqüência de ações, cujo processo é longo,
podendo gerar inquietação, mas que tem sucesso garantido, a exemplo do ocorrido com as
jabuticabeiras. Portanto, os resultados serão alcançados se todos tiverem paciência, como
ele teve no episódio apresentado.
O Presidente, aparentemente, tomado pela ansiedade de ser compreendido, não
permite que o ouvinte faça inferências e estabeleça relações; por conseguinte, o falante já
apresenta a relação R, que é sintetizada numa pequena narrativa, usada para ratificar o que
já havia sido dito e também para explicitar os termos chave que associam os enunciados
paciência e otimismo: No Brasil, tem um tipo de gente tão pessimista que acho que nem
filhos eles podem ter. Primeiro, porque não têm tempo de esperar o período de fertilidade
99
da mulher, depois porque não têm tempo de esperar nove meses para nascer, depois
porque não têm tempo de esperar um ano para aprender a falar papai, então ‘ já que
demora muito, eu não vou’. Eu a Marisa somos otimistas, enchemos a casa.
Indiretamente, o Presidente fala dos problemas, reconhece as dificuldades
envolvidas, apresenta as soluções e, finalmente, por ser conhecedor do objeto em questão e
das várias etapas que envolvem o processo que levará aos resultados esperados, insiste em
pedir apoio para seu projeto de governo.
Lula, aparentemente, tem a intenção de levar seus ouvintes a associar à relação
literalmente demonstrada a ‘das jabuticabas’- S relação PS’ e a situação indiretamente
mencionada o crescimento econômico brasileiro – S relação RS’, e aí encontrar uma
propriedade que tenha a ver com as duas, mas que acima de tudo fale de uma terceira a
necessidade de se acreditar, ter paciência e esperar pelos resultados – relação R.
Assim, o ouvinte deve converter: PS’ em RS
S relação PS’ –“ ...vou encher vocês de jabuticaba” .
S relação RS’- ... vou mostrar a vocês resultados .
Acredita-se que, nos discursos presidenciais proferidos no período que compreende
este corpus, o locutor utiliza-se da construção metafórica como uma estratégia discursiva
com vistas a deixar claro para suas platéias a importância do projeto de lei que prevê as
reformas, tributária e da previdência.
Esse recurso discursivo é empregado sempre que o Presidente discursa para platéias
compostas pelas camadas mais populares da sociedade, pois de acordo com depoimento do
locutor ... como falar palavra difícil nem todo mundo entende prefiro usar as coisas do
dia-a-dia.
O Presidente, no papel de enunciador, faz a escolha dos elementos enunciativos,
bem como das estratégias que serão usadas em seu discurso, com base no conhecimento
100
lingüístico e factual que julga compartilhar com seus ouvintes. Essas escolhas servem à sua
intencionalidade que, entre outras coisas, visam controlar uma possível interpretação de
sentido por parte do seu público.
Os efeitos perlocucionais das estratégias utilizadas são imensuráveis. Sabe-se que
veicularam na mídia severas críticas e diversos comentários de estudiosos do assunto, o
que aparentemente levou a uma mudança de estratégia. No final do ano de 2003, o uso
desse expediente foi reduzido ou substituído em muitos casos.
Assim, faz-se necessário ressaltar que tanto a escolha, como a decisão de abandoná-
la, confirmam a importância dos papéis discursivos representados em cada situação
discursiva, bem como de se conhecer o que pode ser dito e a melhor forma de se dizer algo,
numa determinada enunciação conforme afirma Pêcheux (1997b).
4.2 A relação entre a linguagem e a ação
As construções dos enunciados metafóricos que constituem o corpus deste trabalho
são atos de fala, inseridos num processo interativo contextual, em relação ao qual
apresentam um conjunto de condições de sucesso. Uma análise com vistas à interpretação
dos possíveis sentidos dessas construções, deve iniciar-se identificando os marcadores
proposicionais e os marcadores de força ilocucional.
A Teoria dos Atos de Fala contribui para esta análise na medida em que auxilia a
compreensão do uso das forças ilocucionárias das construções e das possíveis inferências
que venham a ser feitas, considerando a situação discursiva, o propósito do falante e os
possíveis significados dos enunciados.
As construções dos enunciados metafóricos, em análise, constituem um caso
especial de atos de fala indiretos, pois são emissões metafóricas em que Lula diz uma coisa
101
com intenção de que seja compreendida uma outra, portanto, são construções cujo
sentidos são estabelecidos indiretamente. A exemplo dos atos de fala indiretos nas
construções dos enunciados, procura-se identificar as forças ilocucionárias, seus
componentes e suas relações possíveis condições de sentido, a partir das condições
enunciativas e das condições de ajustamento.
O tema dos discursos a que pertencem os excertos, analisados a seguir, é o aumento
dos impostos. O Presidente acredita que é necessário aumentar a arrecadação de impostos
para honrar os acordos firmados com o FMI, que, segundo esse órgão, proporcionará no
futuro o crescimento estável do país. Embora sejam medidas que requerem grande
sacrifício do povo, trata-se da atual bandeira defendida por Lula e sua equipe econômica,
especialmente, nesse período que precede esta importante votação no Congresso Nacional.
Os excertos a seguir apresentam como tema a necessidade de se ter paciência e de
esperar pelos resultados prometidos pelo Presidente e sua equipe econômica, embora o
tema seja recorrente, pode-se observar uma significativa variação nas relações entre os
componentes das forças ilocucionais e alguns conteúdos proposicionais.
É importante observar que, embora, o tipo de relação apresentado entre a
proposição e a emissão do falante, se encaixe num mesmo modelo, o modo de se
estabelecer as relações depende da forma de construção do enunciado e varia de um para o
outro.
A Teoria dos Atos de Fala vem, contribuir para a interpretação dos possíveis
sentidos para as emissões metafóricas de Lula, objetivo deste trabalho.
Assim, observa-se que Lula utiliza, em seus discursos, diferentes marcadores de
força ilocucionais ao estabelecer um jogo discursivo que envolve a contextualização, as
proposições, a subjetividade, a intencionalidade, a estratégia e sobretudo a tomada, o
controle e a manutenção do poder discursivo, observáveis nos exemplos a seguir:
102
todo mundo aqui já tomou bezentacil [antibiótico injetável à base de
pinicilina].Dói, mas cura. O nego fica um dia mancando. Não pode sentar. Senta
só com metade.
(Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva,na
abertura do IV Congresso Nacional dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo
SP,em 26/06/03) (ANEXO III.b:29).
O excerto apresentado, trata-se de um exemplo de enunciado metafórico
relacional, pois, se interpretado literalmente, não faz sentido dentro do discurso a que
pertence. O Presidente ao emitir esse enunciado, na verdade, deseja que seus ouvintes
interpretem algo diferente do significado de suas palavras, isto é, que interpretem o sentido
da emissões do Presidente, que pode ser explicado por meio das relações:
O ouvinte passa de S relação PS’ – Dói, mas cura (...) a
S relação RS’ - Haverá sacrifícios, mas recompensas.
A proposição, de acordo com a Teoria dos Atos de Fala, apresenta o ponto
ilocucional assertivo, uma vez que o Presidente posicionou-se como crente nos efeitos
colaterais e curativos do antibiótico injetável, pois, aparentemente, também já foi
submetido a essa medicação.
A possível experiência de Lula com o medicamento é percebida por meio do
conteúdo proposicional expresso lingüísticamente pelo uso das expressões afirmativas (...)
todo mundo aqui já tomou bezentacil [...] O nego fica um dia mancando. Não pode sentar.
Senta só com a metade (...), além disso, a expressão (...) Dói, mas cura. Essas constituem
a marca mais evidente da assertiva , em que o verbo no presente constata uma realidade já
conhecida, agora reportada pelo locutor que ajusta sua palavra ao mundo, para se servir
dela nessa situação comunicacional.
Ao servir-se dessa realidade, o Presidente confia na sua condição preparatória ,
fundamental nesse momento, que é a sua longa história de líder sindical, que por muitos
anos lhe conferiu o papel de depositário da confiança dos trabalhadores sindicalizados, o
103
papel de líder foi ratificado pela sua eleição e, ele continua atuando como tal, como aquele
que conhece o melhor caminho para os seus semelhantes.
(1) Ao proferir ‘dói, mas cura’, o locutor fala em tom de depoimento, o que lhe confere
credibilidade, portanto, sua atitude proposicional pode levar seu alocutário a acreditar que
ele é sincero e que diz a verdade.
O enunciado metafórico proferido por Lula apresenta ainda, neste contexto
político, o ponto ilocucional o comissivo, que pode ser identificado com uma promessa
se for observado o sentido metafórico da proposição. Ao afirmar (..) dói, mas cura(...), o
locutor está, na realidade, referindo-se às medidas econômicas propostas ao Congresso, as
quais exigirão sacrifício do povo; porém, elas trarão benefícios.
No caso da promessa, identifica-se que o locutor usa o verbo performativo
em terceira pessoa, portanto, usa a força comissiva de maneira indireta.
Assim, deixa para o alocutário, aparentemente, a possibilidade de inferir como
melhor lhe convier, mas, na verdade, aposta que sua credibilidade junto aos seus eleitores
fará com que, esses, o apóiem, pressionando os congressistas. Para tanto, o locutor se
apresenta como autor de um projeto passível de execução e que beneficiará a todos no
futuro, o que ratifica sua intenção de usar a força comissiva.
A coisa que eu mais queria na vida, quando casei com minha galega
(Marisa) era um filho. Ela engravidou logo no primeiro dia de
casamento, porque pernambucano não deixa por menos. Pois bem, eu tive
que esperar nove meses para nascer a criança e mais quase um ano para falar
papai
(Discurso do presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, na XI Feira
de Doce – FENADOCE , em Pelotas Rs, 17/06/03) (ANEXO VI:43).
104
O enunciado é metafórico relacional, pois o ouvinte deverá interpretar a emissão do
locutor em que a relação R é diferente da relação P, porém semelhante em algum aspecto.
S relação PS’ - (...) A coisa que eu mais queria na vida [...] era um filho, tive que
esperar nove meses para nascer [...] e mais quase
um ano para falar papai.
S relação RS’ - O povo deverá ter calma, pois a solução dos problemas econômicos
virá .
O excerto refere-se a um fato da vida pessoal do Presidente, ao reportá-lo, ele
utiliza-se da força ilocucional assertiva, porém, percebem-se também nuances de uma
força expressiva em A coisa que eu mais queria na vida... porque pernambucano não
deixa por menos, ...eu tive que..., ...e mais ... que marca seu empenho para realizar seu
sonho, ao mesmo tempo, marca sua paciência ao esperar pela concretização do sonho.
A condições preparatórias para a efetivação das forças ilocucionais são percebidas
pelas proposições, em que o locutor fala de experiências vivenciadas, com vistas a
mostrar-se como pessoa confiável e merecedora de credibilidade.
Nesse contexto político, essas proposições sinalizam, indiretamente, para
aconselhamento ou indução do alocutário a agir de acordo com a vontade do locutor, que
utiliza a construção metafórica, dada a sua maneira indireta de realização, característica
que está presente em todos os excertos desta análise, bem as condições preparatórias.
vocês todos já viram um jogo de futebol. Tem jogador que tem pressa, pega a bola,
não olha para o lado, dá um bicuda e não marca gol. Tem outro que olha para o
lado, vê um companheiro livre, passa a bola e marca o gol. Nós não temos tempo
de dar bicuda. Nós queremos é marcar todos os gols que acharmos que temos
direito de marcar nesse país.
(Discurso do presidente da República Luiz Inácio Lula
da Silva,
na XI Feira d Doce - FENADOCE , em Pelotas Rs, 17/06/03) (ANEXO VI:43)
105
O enunciado é metafórico relacional, pois a exemplo dos demais enunciados, aqui
apresentados, exige que o ouvinte interprete o sentido da emissão do falante de maneira
indireta, passando da relação S relação PS’ a S relação RS’, porém essa passagem se dá de
maneira especial. Antes de se estabelecer a metáfora, estabeleceu-se uma comparação, em
que o locutor compara o jogador que apresenta resultados positivos (...) o outro que olha
[...], [...] passa a bola e marca o gol com o jogador que não apresenta resultados
esperados (...) Tem jogador que tem pressa [...] dá uma bicuda e não marca o gol. Em
seguida estabelece uma segunda comparação dos jogadores vencedores com o suposto time
do governo e estabelece a relação S relação SP’ –
Nós queremos é marcar todos os gols que acharmos [...] marcar nesse país,
a partir dessa proposição, o ouvinte deverá inferir e encontrar a emissão S relação RS’ – A
equipe do governo quer acertar em todas as decisões que tomar com necessárias para o
país. Percebe-se que, para interpretar um possível sentido para a emissão do falante, o
ouvinte é chamado a fazer um esforço maior que nos outros exemplos apresentados.
O excerto apresenta como tema a necessidade de se saber agir no momento mais
adequado, estabelece uma comparação entre dois tipos de jogadores (...) o jogador que tem
pressa, pega a bola, não olha para o lado, dá uma bicuda e não marca o gol e (...) tem
outro que olha para o lado, vê um companheiro livre passa a bola e marca o gol, para
traduzir a crença do locutor nessa maneira de agir.
O enunciado é composto por duas partes, a primeira, “ (...) vocês [...] e marca o gol,
em que se realiza a força ilocucional assertiva com ajustamento do tipo palavra mundo em
que o locutor usa proposições para reportar um fato da realidade. A segunda, Nós não
temos [...] marcar nesse país sob força ilocucional comissiva com ajustamento mundo
palavra em que o locutor posiciona-se como aquele que mudará a realidade escolhe sua
linguagem, a partir da realidade desejada.
106
Na proposição Nós queremos é marcar todos os gols que acharmos que temos
direito de marcar o locutor usa verbos performativos e se posiciona como agente da ação
usando a primeira pessoa do plural, e manifesta assim, seu desejo de acertar, e dá um
caráter de urgência ao afirmar Nós não temos tempo de dar bicuda, marcando o modo de
realização da força ilocucional comissiva e, indiretamente promete ao seu alocutário agir
em prol do sucesso do país.
O uso da proposição Vocês todos já viram um jogo de futebol..., seguida do
comentário (...) bicuda (...), na abertura do enunciado, é uma maneira de anunciar que o
locutor tem conhecimento a respeito do assunto de vai tratar, o que é reforçado pela mídia,
que, freqüentemente, veicula fotos do Presidente jogando futebol com amigos. Tudo isso
credencia o locutor para manifestar sua opinião sobre o tema, além de fazer parecer sincera
sua fala.
Amparado por sua credibilidade, o locutor utiliza-a para, em sua construção
metafórica, tentar fazer com que seu alocutário acredite que o sucesso é resultado de
experiência e que, agindo assim, o governo atingirá as metas desejadas e prometidas.
Você pode estar com fome, mas se você plantou feijão, tem de esperar 90 dias.
Se plantou um pé de soja, tem de esperar 100, 110 dias. E quando a gente
planta, tem de adubar, jogar água, regar sempre, para que a árvore nasça
forte e frondosa e não morra com a primeira ventania ou com a primeira seca..
(Discurso do presidente da República ,Luiz Inácio Lula da Silva, na solenidade da
entrega simbólica de 22 toneladas de alimentos para o Programa Fome Zero) (ANEXO
VIII:55).
No enunciado metafórico relacional, em que a interpretação do sentido da emissão
do falante é feita de maneira indireta, em que o ouvinte deve passar da relação
S relação PS’- Você pode estar com fome [...] Se plantou [...] tem de adubar,
jogar água, [...] nasça forte [...] não morra [...] seca.
107
Para a relação S relação RS’ – O Brasil precisa resolver seus problemas sociais e
econômicos, se tomou decisões nesse sentido, deverá esperar e negociar as soluções, para
que no futuro os resultados sejam alcançados de maneira satisfatória e segura.
A primeira parte do enunciado é constituída de proposições em que se realiza a
força assertiva, pois o locutor reporta um fato natural., ao mesmo tempo posiciona-se como
conhecedor das práticas agrícolas que envolvem o plantio e manejo do feijão e da soja. O
uso do verbo no futuro do subjuntivo reporta uma ação no futuro, portanto trata-se de uma
predição (...) Se plantar um pé de soja, tem de esperar 100, 110 dias e a linguagem é usada
para reportar a realidade num ajustamento de palavra mundo.
Já a segunda parte do enunciado apresenta proposições em que se realiza a força
ilocucional comissiva, pois o locutor usa verbo no presente, mas a ação é futura, além disso,
ele integra o sujeito da ação futura (...) regar sempre para que a árvore nasça forte e
frondosa e não morra com a primeira ventania (...). A natureza é alterada pela ação do
agente, ou seja, pela ação do homem que (...) regar sempre a planta (...), portanto, a
realidade orienta a construção da linguagem.
O locutor se diz conhecedor do plantio, não que ele tenha trabalhado no campo,
mas por ter nascido na zona rural do interior pernambucano, segundo sua biografia.
De maneira indireta conhece a realidade, o que pode ser observado em: (...) para
que a arvore cresça [...] com a seca; fala da necessidade de irrigação, referindo-se à
água não apenas para as necessidades básicas humanas, mas projetando um futuro mais
promissor para a agricultura.
O locutor utiliza-se desse enunciado em diferentes discursos tanto na forma literal
como na forma metafórica, esta última lhe permitiu, de maneira indireta, tentar induzir o
alocutário a apoiá-lo no momento das votações das reformas no Congresso Nacional.
108
As escolhas discursivas do locutor demonstram a sua intenção de convencer seus
ouvintes de que suas decisões são as melhores para todos; porém, a falta de resultados
concretos tem contribuído para a diminuição da confiança dos eleitores no Presidente e na
sua equipe de governo.
Hoje estava andando com a Marisa – o Palocci não foi – e tem um monte de pé de
jabuticaba lá [no Palácio da Alvorada]. Estou desde janeiro naquela casa e a
gente vai no pé de jabuticaba e nunca tem jabuticaba, está sempre sem flor,
porque Brasília é muito seca, e o sol bebe a água antes de ela chegar na raiz. E
todo mundo sabe que jabuticaba precisa de água e sol. Colocamos lá um
gotejamentozinho. Hoje fomos lá e acho que daqui alguns dias eu vou encher
vocês de jabuticaba, porque tem muita jabuticaba que vai dar. Está acontecendo
com o pé de jabuticaba e que vai acontecer com este país, está acontecendo com o
meu pé de jabuticaba o que vai acontecer na economia nacional. No Brasil, tem
um tipo de gente tão pessimista, que acho que nem filhos eles podem ter. Primeiro
porque não têm tempo de esperar o período de fertilidade da mulher, depois
porque não tempo de esperar nove meses para nascer, depois porque não têm
tempo de esperar um ano para aprender a falar papai, então ‘já que demora muito,
eu não vou ter’. Eu e a Marisa somos otimistas, enchemos a casa
(Discurso do
presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na reunião do Conselho de
Desenvolvimento Econômico e Social, Brasília, 04/09/03.( ANEXO V:39).
Esse enunciado é metafórico relacional, pois a interpretação do sentido da emissão
do falante somente poderá ocorrer se o ouvinte estabelecer relações indiretas, em que
passa de “S relação PS” a “S relação RS”, onde o ouvinte deve passar de
(...) vou encher vocês de jabuticabas a (...) vou mostrar a vocês resultados (...).O
funcionamento desse tipo de metáfora, encontra-se explicado de maneira mais detalhada na
seção anterior.
No discurso feito a repórteres numa coletiva, em que o objetivo do Presidente foi o
de falar a respeito dos resultados das ações políticos administrativas do seu governo, bem
como das suas expectativas para o futuro do país. Portanto, o locutor apresentou-se como
responsável pelos resultados futuros: Colocamos lá um gotejamentozinho. Num ato
comissivo de promessa e desejo, em que utiliza verbos performativos no presente para falar
109
de suas ações futuras (...) acho que daqui alguns dias eu vou encher vocês de jabuticaba,
porque tem muita jabuticaba que vai dar.
O locutor faz o ajustamento entre a realidade e as palavras cuidando para que os
alocutários acreditem em suas intenções e continuem apoiando às suas ações.
O locutor constrói um enunciado, em que se posiciona como o agente entendido e
cuidadoso ao falar em tom de depoimento, usando, num primeiro momento, proposições
assertivas: Hoje estava andando com a Marisa [...] Hoje fomos lá com verbo no presente
e conteúdo de ação passada; portanto, o locutor posiciona-se como agente do processo.
Na primeira parte do enunciado, o locutor fala sobre os cuidados de que necessitam
as jabuticabas, apresenta, em suas proposições, alguns pontos que sinalizam que ele é
conhecedor do assunto que discute, por exemplo, (...) Brasília é muito seca, e o sol bebe a
água antes de ela chegar na raiz Todo mundo sabe que jabuticaba precisa de água e de
sol. Fala sobre o que deve ser feito pra solucionar o problema Colocamos lá um
gotejamentozinho, e acredita que tudo dará certo (...) daqui a alguns dias eu vou encher
vocês de jabuticabas, [...] dar. Dessa maneira apresenta-se como governante capaz, sincero
e apto para desempenhar seu papel de Presidente.
Aparentemente preocupado com uma possível interpretação distorcida de sua fala,
por parte dos repórteres, o locutor antecipa-se a eles e explica sua metáfora Está
acontecendo como o meu pé de jabuticaba o que vai acontecer com este país [...] com a
economia nacional.
O locutor, inseguro a respeito de uma indevida interpretação do seu dito, por parte
dos alocutários, cria uma segunda metáfora para explicar a primeira em que retoma o tema
recorrente da necessidade de esses terem paciência e de aguardarem os resultados das
decisões tomadas pelo governo.
110
Esta análise dos atos de fala a partir dos componentes da força ilocucional, permite
que, nos proferimentos, se identifiquem objetivamente marcas da intencionalidade do
falante e seu comprometimento com a verdade, de acordo com a situação enunciativa e
com seus propósitos. Esta análise contribui, ainda, como uma possível interpretação dos
sentidos das construções metafóricas presentes nos discursos presidenciais, um dos
objetivos deste trabalho.
111
CONCLUSÕES
Neste trabalho, procurou-se estudar a construção discursiva da metáfora, a partir
do seu emprego, enquanto intencionalidade do locutor, com vistas à uma provável
interpretação de seus efeitos de sentido, decorrentes da enunciação do discurso político
não protocolar do Presidente Lula. Para tanto, tomou-se, fundamentalmente, como suporte
teórico, elementos da Teoria da Enunciação, categorias da Formação Discursiva , Teoria
da Metáfora e Teoria dos Atos de Fala.
A compreensão dos prováveis sentidos dessas construções metafóricas exigiu que
se identificasse um conjunto de condições de verdades, a partir das condições de produção
e de conhecimentos compartilhados pelo Presidente e seus alocutários, que vão muito além
do conteúdo semântico.
A Teoria da Enunciação de Benveniste (1989) permitiu identificar a maneira pela
qual, o locutor, o Presidente Lula, dirige-se a seu público, instituído como alocutário, por
meio de discurso, aparentemente dialógico, enunciando sua competência, suas experiências
e expectativas como governante do país. Por outro lado, a Teoria Enunciativa de Bakhtin,
amplia a visão benvenistiana ao atribuir-lhe o caráter social, o que permitiu que se
identificasse, nos discursos de Lula, um locutor preocupado com seu desempenho frente ao
alocutário, que, querendo se fazer compreender, atenta para a situação social em que se
encontra e a partir dela desenvolve as suas estratégias discursivas, fonte das regularidades
analisadas.
É importante salientar que é no contexto social imediato da enunciação que Lula
produz, avalia e adapta a sua capacidade discursiva à sua intencionalidade, estabelecendo
ligação instantânea entre a demanda discursiva do momento da fala e sua memória
discursiva. Ao mesmo tempo mantém-se atento ao seu alocutário, procurando até mesmo,
112
em alguns momentos, antecipar-se a esse. Portanto, buscou-se na enunciação, vista como
“fenômeno social”, traços lingüísticos e não-lingüísticos de interação verbal e de interação
ideológica tomados como regularidades analisados neste trabalho.
No discurso de Lula, emergem um sujeito e uma ideologia que têm sido construídos,
desconstruídos e reconstruídos ao longo da história, a partir das determinações exteriores
das práticas discursivas. A partir dos quais, estabelece-se uma análise histórico-social
relacionando os conteúdos, os referentes, os posicionamentos subjetivos, bem como os
modos de enunciação, estabelecidos intencionalmente pelo Presidente, no momento da
enunciação. Nesta análise observou-se que o Presidente vale-se da construção interativa
imediata, em seus discursos, como expediente para obter o apoio de seus eleitores, em
meio a uma crise de popularidade, visando a aprovação no Congresso Nacional das
reformas propostas.
Em suas construções metafóricas, Lula diz algo pretendendo que seus ouvintes
compreendam outra coisa, diferente daquilo que disse, numa construção indireta. Estas
construções metafóricas são fenômenos da razão humana, segundo Lakoff e Johnson
(2001), cujo funcionamento é explicado pela teoria de Searle (2002).
Concluiu-se que a preocupação do Presidente Lula, em todos os seus
pronunciamentos, é se fazer compreender por seu ouvinte, e o uso de suas construções
enunciativas indiretas, à primeira vista, parecem um contra-senso. No entanto, observadas
à luz da Teoria dos Atos de Fala, percebe-se que as construções se tratam de estratégias
discursivas que servem duplamente à sua intencionalidade. Primeiro, são usadas para
suprir a falta de palavras que expressem com exatidão o que quer significar, isto é, que
traduzam sua intenção de ajustar a linguagem ao mundo e vice- versa, de maneira que a
sua auto-afirmação e suas promessas não sejam explicitadas, mas dispersas no jogo
comunicativo. Segundo, o uso desses enunciados pelo Presidente constitui uma maneira
113
de induzir o ouvinte a uma interpretação específica de seu dito indireto. O locutor estaria,
assim, exercendo controle sobre o alocutário, de acordo com os seus propósitos
ideológicos, frente à situação discursiva em que se encontra.
Ao finalizar este trabalho, observa-se que as propostas de realização do estudo e os
resultados das análises obtidos contribuíram para o aprendizado a respeito das teorias e de
suas aplicações nas análises discursivas, visando compreender as implicações histórico-
sociais, tanto na construção, como nos efeitos de sentidos dos discursos políticos não-
protocolares presidencial. Todavia, sabe-se que esta pesquisa só será significativa se for
adicionada aos muitos outros estudos a serem feitos, formando uma teia de saberes a
respeito desta área do conhecimento.
114
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VANDERVEKEN, Daniel. O que é uma força ilocucional? Tradução de João Wanderley
Geraldi. In: Cadernos de Estudos Lingüísticos, vol. 9. Université du Quebec à tris-
Rivières, 1985.
FOLHA DE SÃO PAULO. São Paulo, período referente ao corpus da pesquisa de janeiro
a dezembro de 2003.
117
Banco de Dados de São Paulo , http://[email protected]
Radiobras http://www.radiobras.gov.br
Anexos
Os discursos do presidente Lula, que constituem o corpus deste trabalho,
encontram-se listados e codificados, na tabela abaixo, para maior clareza no momento da
consulta.
Durante a seleção do corpus, observou-se que alguns discursos apresentados pela
Radiobras, supostamente transcritos seguindo a íntegra original, apresentam algumas
diferenças significativas em relação aos mesmos discursos veiculados pelo jornal Folha de
São Paulo, em cujas publicações se baseia este trabalho. Portanto, para que não ocorram
mal-entendidos, apresentam-se as duas versões a seguir.
DISCURSO DO
PRESIDENTE LUIZ
INÁCIO LULA DA
SILVA,
CÓDIGO/FONTE DATA PÁGINA
Após a cerimônia de
posse
Anexo I
Radiobras
01/01/2003 1-2
Após a cerimônia de
posse
Anexo I.b
Folha de São Paulo
01/01/2003 3-5
Na cerimônia de
entrega dos troféus às
instituições
beneficiárias do
Programa Senai
Solidário e premiação
do Concurso Nacional
de Criatividade para
Docentes
Anexo II
Radiobras
24/06/2003 6-9
Na abertura do IV
Congresso de
Metalúrgicos do ABC
Anexo III
Radiobras
26/06/2003 10-28
idem Anexo III.b
Folha São Paulo
26/06/2003 29-31
Na cerimônia de
lançamento de
programa de parceria
entre os governos
Federal e do Acre
Anexo IV
Radiobras
29/06/2003 32-34
Na reunião do
Conselho de
Desenvolvimento
Econômico e Social
Anexo V
Radiobras
04/09/2003 35-41
Na XI Feira do Doce Anexo VI 17/06/2003 42-45
Na cerimônia de
lançamento do Fórum
Nacional do Trabalho
Anexo VII
Radiobras
29/07/2003 46-50
idem Anexo VII.b
Folha de São Paulo
29/06/2003 51-52
Na solenidade da
entrega simbólica de 22
toneladas de alimentos
para o Programa Fome
Zero
Anexo VIII
Radiobras
29/05/2003 53-57
Na London School of
Economics and
Political Science
Anexo IX
Folha de São Paulo
14/07/2003 58
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31
32
33
34
35
36
37
38
39
40
41
42
43
44
45
46
47
48
49
50
51
52
53
54
55
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