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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS E TECNOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENGENHARIA DE PRODUÇÃO
A GESTÃO DA COMPLEXIDADE DO TRABALHO DO COLETOR DE LIXO E A
ECONOMIA DO CORPO
RENATA CAMPOS VASCONCELOS
DEFESA DE DOUTORADO
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS E TECNOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENGENHARIA DE PRODUÇÃO
A GESTÃO DA COMPLEXIDADE DO TRABALHO DO COLETOR DE LIXO E A
ECONOMIA DO CORPO
RENATA CAMPOS VASCONCELOS
Defesa de doutorado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Engenharia de Produção da Universidade
Federal de São Carlos, como parte dos
requisitos para obtenção do título de Doutor
em Engenharia de Produção.
Orientador: Prof Dr João Alberto Camarotto
Co-orientador: Prof Dr Francisco de Paula Antunes Lima
Banca examinadora:
Prof Dr Nilton Luiz Menegon
Prof Dr Francisco José da Costa Alves
Profa Dra Ada Ávila Assunção
São Carlos
2007
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Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da
Biblioteca Comunitária/UFSCar
V331tm
Vasconcelos, Renata Campos.
A gestão da complexidade do trabalho do coletor de lixo e
a economia do corpo / Renata Campos Vasconcelos. -- São
Carlos : UFSCar, 2008.
250 f.
Tese (Doutorado) -- Universidade Federal de São Carlos,
2007.
1. Ergonomia. 2. Catadores de lixo. 3. Complexidade
(Filosofia). 4. Corpo. I. Título.
CDD: 620.82 (20
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)
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PROG RAM A DE PÓS-G RAD UAÇÃO EM ENGE NHAR IA DE PRO DUÇ Ão
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
DEPARTAMENTO DE ENGENHARIA DE PRODUÇÃO
Rod, Washington Luís, Km, 235 - CEP, 13565-905 - São Carlos - SP - Brasil
Fone/Fax: (016) 3351-8236/3351-8237 /3351-8238 (ramal: 232)
FOLHA DE APROVAÇÃO
Aluno(a): Renata Campos Vasconcelos
TESE DE DOUTORADO DEFENDIDA E APROVADA EM 29/06/2007 PELA
COMISSÃO JULGADORA:
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PPGEP/UFSCar
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aula Antunes Lima
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ProF D~ Ada Ávila Assunção
FM/UFMG
Dedico este trabalho aos garis.
AGRADECIMENTOS
Esta tese é o resultado de um trabalho de muitas mãos, pensamentos e idéias. Muitos amigos.
Agradeço ao Pedro da Gama, à minha querida aluna Ana Carolina Medeiros e ao Chico Lima,
sem os quais este trabalho realmente não seria possível.
Meu orientador Camarotto, pelo apoio.
Aos professores da banca examinadora, pela contribuição e disponibilidade.
Às equipes de coleta (garis e motoristas) da SLU, e também ao pessoal da psicologia do
trabalho da empresa (Marcelo Santos, Edmar Murta, Georgina Motta).
A todos os amigos e alunos que participaram de forma direta ou indireta neste trabalho.
Luciana Gama, pelas fotografias, aos meus alunos Raquel, Raoni, Augusto, e ao meu amigo
Serginho Gama, pela ajuda na coleta de dados; aos amigos Silvana Salomão, Clara, Tina e
Daniel Gama, Renata Kirkwood, Lúcia, Elizete, Regilena, Helenice Rêgo, Raquel Ottani,
secretária da pós-graduação do DEP, Tia Luzia, Tia Lé, Bené, Lourdes, Adriana Drumond e
as professoras da Saúde Coletiva, Rosalice, Manuela, Angélica, Daniel Azevedo, Márcia
Vallone, Luciana Rodella, Luciana Crespo, Soraia, minha homeopata, Adson, ao pessoal da
secretaria do ICBS da PUC, Raquel, secretária da pós-graduação da engenharia de produção,
minhas irmãs Paula e Rosana, à Anne Louise Fernandes, jornalista, ao Sérgio Gama e
Alexandra, aos meus pais e todos aqueles que me ajudaram de alguma forma.
Ao Marcelo Miranda, Márcia Braz, Beatriz, professores do colegiado do curso de fisioterapia
da PUC Minas, por sua disposição em me ajudar a terminar este trabalho.
Ao pessoal do PPCD (Programa Permanente de Capacitação Docente) da PUC Minas, que
financiou parte deste trabalho.
RESUMO
O presente estudo teve os objetivos de apresentar as características de um trabalho
complexo, demonstrar a gestão de tais elementos no cotidiano do trabalho, e relacionar esta
gestão com o uso social que se faz do corpo em trabalho. Para isso, estudou-se o caso dos
coletores de lixo domiciliar (garis), em uma região da cidade de Belo Horizonte. Esta tese foi
dividida em seis capítulos, a fim de corroborar a hipótese de que a arte do trabalhador para
lidar com a complexidade de seu trabalho é o elemento que propicia a regulação da sua carga
de trabalho. Entretanto, esta regulação pode ser limitada pelas características dos próprios
trabalhadores e também de seu trabalho, o que introduz a noção de “economia do corpo”.
Nesta tese apresentou-se o trabalho dos garis, o termo “regulação” foi diferenciado do termo
“economia do corpo”, e foram descritos certos aspectos de um trabalho complexo. A
metodologia da Análise Ergonômica do Trabalho (AET) e algumas de suas técnicas foram
utilizadas na coleta de dados. Algumas das “técnicas corporais” empregadas pelos garis no
trabalho foram apresentadas e analisadas conforme a complexidade de seu cotidiano. A gestão
das diversas variabilidades características do trabalho de coleta de lixo domiciliar foi
demonstrada e, na Discussão da tese, foi relacionada à economia do corpo. A noção de
economia do corpo foi aprofundada, demonstrando as características do trabalho que
possibilitam ou dificultam a regulação da carga de trabalho. Por fim, foram levantadas
questões para novas pesquisas, e sugeridas algumas recomendações ergonômicas para
melhorar as condições de trabalho dos garis. Sugere-se aos profissionais que se dizem
ergonomistas, procurarem compreender a realidade do trabalho dos sujeitos, antes de
prescreverem posturas e movimentos que consideram “corretos” ou “ideais”.
PALAVRAS-CHAVE: ergonomia, coleta de lixo, gestão da complexidade, economia do
corpo.
ABSTRACT
The present study had the objectives to present the characteristics of a complex work,
to demonstrate the management of these elements in the everyday job, besides relating this
management with the social use of own’s body in labor. To achieve these objectives, we
studied the case of the domiciliar garbage collectors (garis), in a region of Belo Horizonte,
Brazil. This thesis was divided in six chapters, to corroborate the hypothesis that the art of the
worker to deal with the complexity of his/her job is the element that propitiates the regulation
of workload. Therefore, this regulation can be limited by the personal characteristics of the
workers and also for their job, introducing the notion of “body economy”. This thesis
presented the refuse collector’s job, the term “regulation” was differentiated from the term
“body economy”, and some aspects of a complex work were described. The methodology of
the Ergonomic Work Analysis (EWA) and some of its techniques were used to get the data.
Some of the “corporal techniques” employed by the refuse collectors in their work were
presented and analyzed, according to the complexity of their daily work. The management of
the various characteristics of refuse domiciliary refuse collection was demonstrated and, in the
thesis discussion was related to “body economy”. The notion of “body economy” was
deepened, demonstrating the characteristics of the work that make it possible or difficultate
the regulation of the workload. Finally, questions for new researches have been raised, and
suggested some ergonomics recommendations to improve the conditions of the collectors
work. We suggest to the professionals who auto-intitulate “ergonomists”, should understand
the reality of subjects’ work, before prescribing postures and movements that they consider
“correct” or “ideal”.
KEYWORDS: ergonomics, refuse collect, complexity management, economy of the body.
SUMÁRIO
I.Introdução ............................................................. 11
I.1- A complexidade invisível do trabalho do gari
e a economia do corpo..............................................
11
I.2- Complexidade e ciências do trabalho ..........................
22
I.3- Complexidade em ergonomia.......................................
25
I.3.1- Sistemas simples, complicados e complexos.............................
26
I.4- As características do trabalho complexo..................... 28
I.5- Os objetos da complexidade, a gestão da
complexidade e sua relação com a variabilidade e a
competência...........................................................................
30
II. Justificativa, hipótese e objetivos....................... 38
III. Metodologia
III.1- O estudo da complexidade do trabalho dos garis,
pela prática da AET............................................................
45
III.2- Métodos e técnicas empregados................................. 49
IV- Resultados
IV.1. A demanda.................................................................... 61
IV.1.1- A caracterização da demanda................................. 63
IV.2. O trabalho prescrito e o trabalho real....................... 72
IV.2.1- A organização do trabalho do gari......................... 72
IV.2.2- O planejamento da coleta........................................ 74
IV.2.3- O fluxo do trabalho prescrito................................. 79
IV.2.4- Os jargões empregados pelos trabalhadores......... 82
IV.2.5- Os dois tipos de caminhão: PPT e Ford................. 82
IV.2.6- As fichas de descrição da atividade de coleta de
lixo domiciliar.......................................................................
88
a) A coleta realizada de “porta em porta”................................... 88
b) A coleta realizada com a estratégia de “redução”.................. 98
IV.2.7- Aprofundamento das fichas de descrição das
atividades................................................................................
A relação com a população
O trabalho coletivo
A estratégia de "redução"
A variabilidade das situações de trabalho e a gestão da
complexidade
111
IV.2.8- O questionário de Percepção................................... 139
IV.2.9- Análise das técnicas corporais dos garis na
realização da atividade..........................................................
145
A permanência do gari sobre o estribo do caminhão
As descidas e os saltos do estribo para o chão
A coleta dos sacos de lixo e os arremessos do lixo ao cocho do
caminhão
As subidas e saltos do chão para o estribo
A caminhada e a corrida durante a coleta
V. Discussão: A gestão da complexidade do trabalho dos
garis e a economia do corpo.................................................
183
VI. Considerações Finais ......................................... 222
VII. Referências Bibliográficas............................... 236
ANEXO A – Questionário de Percepção................ 243
ANEXO B – Figuras referentes às técnicas
corporais....................................................................
248
11
I. Introdução
12
I.1- A complexidade invisível do trabalho do gari e a economia do corpo
Esta tese traz dois conceitos principais que se contradizem: a caracterização da
complexidade de um trabalho considerado “braçal”, bem como a dificuldade da manutenção
da regulação fisiológica diante das exigências da regulação do andamento de um sistema, que
funciona de acordo com a necessidade da gestão de tal complexidade.
O conceito de regulação perpassa a fisiologia e a engenharia. O uso social que se faz
do corpo em trabalho, a economia do corpo passa a ser questionado: seria mesmo a economia
do corpo o andamento normal de um sistema? Se a economia do corpo relaciona-se com o uso
do corpo na sociedade, neste caso, mais especificamente o trabalho, é realmente possível
regular o andamento do sistema e regular a carga de trabalho?
Para demonstrar a complexidade do trabalho, sua gestão e as contradições entre a
gestão da complexidade do trabalho dos coletores de lixo domiciliar (garis) e o emprego
social que se faz do corpo, foi realizado um estudo de caso com os garis que fazem a coleta de
lixo domiciliar de uma região da cidade de Belo Horizonte.
Chamados de lixeiros pela população, os coletores de lixo têm sua carteira de trabalho
assinada como garis. A denominação gari teve origem na cidade do Rio de Janeiro, quando o
empreiteiro Aleixo Gary, em 1876, assinou um contrato para a limpeza da cidade. Era comum
os habitantes, quando incomodados por algum ambiente sujo, se manifestarem: “chama o
Gary”. A partir de então, o trabalhador da Limpeza Urbana passou a ser conhecido como gari
(SANTOS, 2004).
É possível observar diferentes formas de se coletar o lixo domiciliar. Em alguns países
como a França e Espanha, em geral os moradores depositam o lixo em containeres, e as
equipes geralmente formadas por dois coletores e um motorista acoplam os containeres na
traseira do caminhão, operando dispositivos que depositam o lixo dentro do baú. Também
pode-se ver a coleta de “porta a porta” em Amsterdan, na Holanda, em que os garis só podem
13
coletar caminhando, pegando dois sacos de lixo por vez (KEMPER et al, 1990; FRINGS-
DRESSEN et al, 1995). Em várias cidades do Brasil, a coleta de lixo domiciliar se dá com
equipes de três garis e um motorista, sendo que dois destes primeiros ficam sentados na
articulação entre a cabine e a carroceria do caminhão e revezam-se entre sentar-se e coletar o
lixo. Ao coletarem o lixo na porta das casas, os garis precisam arremessar o lixo para cima da
carroceria do caminhão, enquanto o gari que fica em cima vai ajeitando o lixo.
Conforme a Portaria 3214 do Ministério do Trabalho de 08 de junho de 1978, o
trabalho do gari é classificado como grau de insalubridade máxima, devido à manipulação de
materiais de risco, pela composição do lixo. Como se não bastasse o contato do gari com o
lixo domiciliar, os moradores depositam seringas com agulhas, vidros quebrados e outros
materiais pérfuro-cortantes, causando inclusive sérios cortes nas mãos.
Estudos sobre o coletor de lixo verificaram o acometimento de vários tipos de
doenças: comprometimentos respiratórios, doenças cardiovasculares, perdas auditivas
variadas e principalmente lesões osteomusculares, como hérnias de disco e outras patologias
na coluna, entorses, distensões, tendinites e tenossinovites. Como acidentes de trabalho, os
mais comuns envolvem cortes tanto nas mãos como nas pernas, fraturas e óbitos por
atropelamentos (ROBAZZI et al., 1992; SILVA, 1983; ROBAZZI e BECHELLI, 1985;
FRINGS-DRESSEN et al., 1995). Apesar de objetivar um levantamento do número de
acidentes de trabalho, tanto SILVA (1983) quanto ROBAZZI et al., (1992) focaram mais nas
partes do corpo lesadas que no tipo específico de cada um dos acidentes. Como possíveis
causas dos acidentes, os autores consideraram o fato de os garis trabalharem correndo e de
pegarem vários sacos de lixo por vez e o acondicionamento incorreto do lixo por parte dos
moradores, além do fato deles se chocarem contra o caminhão nas paradas bruscas
(ROBAZZI et al., 1992). Ambos falaram da necessidade de fiscalizações constantes da equipe
de segurança do trabalho com relação ao uso de equipamentos de proteção individual e o
14
treinamento para realização da coleta como possíveis diminuidores dos acidentes. No entanto,
nenhum dos estudos citados acima consideraram a complexidade do trabalho dos garis como
um fator a ser considerado nas causas dos acidentes. ROBAZZI e BECHELLI (1985)
chegaram a culpar os coletores pelos acidentes, ao citarem a “falta de atenção dos lixeiros na
execução de suas tarefas (p. 71)” como uma das causas dos acidentes de trabalho.
A pedido do governo da Holanda, a partir de 1990, pesquisadores da área de fisiologia
do exercício e da biomecânica têm estudado a carga física que este trabalho apresenta para os
coletores de lixo daquele país, sugerindo mudanças significativas tanto na organização do
trabalho de coleta, quanto nos dispositivos técnicos (KEMPER et al., 1990; FRINGS-
DRESSEN et al., 1995; LOOZE et al., 1995; KUIJER et al., 1999). Todos encontraram
dificuldades metodológicas para coletar dados em campo e em laboratório, devido a
elementos do trabalho real que não se consegue transferir para o laboratório. Apesar de tal
dificuldade e limitações, os autores procuraram demonstrar, por aferições do consumo de
oxigênio em laboratório, o quanto o trabalho dos coletores de lixo é pesado e desgastante.
Após várias propostas de mudanças, tais como acondicionamento do lixo em latões para sacos
plásticos, implementação de mini e grandes containeres, prescrição da coleta caminhando e
pegando no máximo dois sacos por vez (o que não foi obedecido pelos coletores),
conseguiram estabelecer a única mudança que envolveu a aprovação daqueles coletores: o
rodízio entre varrição, coleta e pilotagem dos caminhões (KUIJER et al., 1999). Foi também
após várias coletas que este último autor utilizou um questionário de percepção de
desconforto que foi aplicado aos trabalhadores para comparar a atividade antes e após a
implementação desta mudança, demonstrando a necessidade de os estudos da área de
fisiologia e biomecânica darem mais atenção à percepção do trabalhador quanto aos fatores de
sobrecarga e suas sugestões.
15
Há alguns anos, o registro profissional na carteira de trabalho dos garis de Belo
Horizonte constava a função de “braçal”. A palavra “braçal” revela um trabalho puramente
físico, um trabalho bruto, que exige do trabalhador somente o uso de seus braços e pernas, de
sua força física (SANTOS, 2004).
Os estudos em ergonomia evidenciaram a complexidade do trabalho em sistemas
considerados tecnologicamente complexos, tais como usinas nucleares, controle de tráfico
aéreo, onde predominam as dimensões cognitivas. Mas pouco se fala sobre a complexidade de
trabalhos considerados como “pesados” ou “braçais”, ainda que se tenha tornado lugar
comum dizer que todo trabalho é complexo. Assim, é necessário demonstrar que mesmo
trabalhos considerados como “simples” possuem características da complexidade. Também é
necessário demonstrar quais elementos caracterizam um trabalho como complexo e como os
trabalhadores gerenciam tal complexidade em seu cotidiano, respondendo às diferentes
racionalidades: da empresa, dos clientes e dos próprios trabalhadores. Além disso, é
necessário verificar a relação conflituosa entre as possibilidades e impossibilidades de
regulação da carga de trabalho, o desgaste do corpo implicado na gestão da complexidade do
trabalho, e as exigências sociais que eventualmente podem entrar em contradição com as
necessidades de regulação do corpo. Esta relação conflituosa introduz a noção de “economia
do corpo”, que associa carga de trabalho e processos de regulação.
A ergonomia, de modo geral, busca determinar os componentes físico, cognitivo e
psíquico da carga de trabalho, bem como sua repercussão sobre a saúde dos trabalhadores. As
três dimensões estão sempre presentes, sendo que uma delas pode prevalecer: enquanto a
dimensão física expressa-se pela quantidade e qualidade de esforço físico dispendido pelo
trabalhador na execução do trabalho, a dimensão cognitiva caracteriza-se pelas funções
perceptivas e mentais exigidas para a realização do trabalho, permeadas por tomadas de
decisão e microdecisões. A dimensão psíquica relaciona-se com o grau de realização
16
existencial ou sofrimento psíquico que o trabalhador é submetido, e reflete os componentes
psicológicos tais como desejo, angústia, afetividade, medo, presentes no trabalho ou
conseqüentes dele (ABRAHÃO, 1993; WISNER, 1987). No trabalho dos coletores de lixo
por exemplo, enquanto a carga física pode ser expressa pelo gasto energético ou pelo desgaste
articular ao caminhar e correr, ao saltar várias vezes do estribo do caminhão, ou arremessar o
lixo ao cocho do caminhão, a carga cognitiva relaciona-se às tomadas de decisão necessárias
para a ação. Assim, para coletar o lixo, o gari precisa planejar o roteiro que irá seguir sem ser
atropelado, sem se ferir com o próprio lixo, sem ferir os colegas ao arremessar o lixo. O gari
precisa ainda prever onde estará o caminhão ao pegar um lixo, para que ele possa se deslocar.
Tudo isso protegendo-se e protegendo os colegas. Quando o gari é proibido de realizar as
estratégias individuais e coletivas numa tentativa de regular a carga de trabalho,
desenvolvendo procedimentos de trabalho diferentes dos prescritos, ou quando a empresa
impõe mudanças de trecho ou de equipes de forma abrupta e autoritária, desconhecendo os
saberes contextuais e coletivos, a insatisfação dos garis expressa uma carga psíquica.
Nestas condições, é possível realmente regular a carga de trabalho? O que seria
regulação da carga de trabalho? Como conceituar a regulação? Mesmo reconhecendo a ampla
divulgação do conceitos de regulação em ergonomia, este conceito ainda seria pertinente para
dar conta dessas contradições que se manifestam no corpo do trabalhador?
A regulação é um termo que, em fisiologia, considera a “sabedoria do corpo” presente
nas interações entre os diferentes sistemas, compostos de células, tecidos e órgãos,
contribuindo para manter as condições constantes do meio interno do corpo, por diversos
processos de homeostase (GUYTON e HALL, 2002).
No trabalho, a regulação pode ser considerada como o ajuste das ações e movimentos
às normas e regras impostas para sua realização, mesmo quando estas normas são redefinidas
pelo próprio trabalhador (tarefa real). As ações são os componentes essenciais para a
17
realização das atividades, processos caracterizados por constantes transformações. As ações
encontram seus motivos e seu sentido na atividade em que se inserem, e respondem a
objetivos dados dentro de determinadas condições, e a maneira como os objetivos se
desenvolvem é uma das questões fundamentais da teoria da atividade (LEPLAT, 2006).
As ações, modos operatórios ou estratégias não são relativas apenas a objetivos
conscientes. A atividade corporal dos garis mostra que a transição entre os fins e as ações
comportam conflitos e impasses, que explicam o desgaste do corpo. Quando se estende a
noção de regulação para o campo do trabalho, é que se verifica a limitação deste conceito. Ao
se analisar os elementos heterogêneos subjacentes às técnicas corporais, pode-se considerar
uma fisiologia humana já conformada pelas normas sociais (LIMA, 2007).
Enquanto a regulação fisiológica está na constante tentativa do corpo em manter-se em
equilíbrio interno, inclusive interagindo com o meio externo, a regulação da atividade pode
ser considerada como a forma de o trabalhador agir, na tentativa de diminuir a distância (ou
écarts) entre os objetivos prescritos e as condições reais que ele dispõe para realizar seu
trabalho.
Assim, os trabalhadores, quando são os reguladores de um sistema, recorrem a
diferentes ações, modos operatórios e estratégias para atingir um mesmo objetivo (fenômeno
de vicariância), inclusive redefinindo constantemente os objetivos da tarefa em objetivos
próprios, com a intenção de manter o funcionamento do sistema (LEPLAT, 2006) do qual ele
também faz parte.
Os modos operatórios são considerados como as técnicas corporais compostas pelos
movimentos e gestos empregados na realização do trabalho, inclusive na concretização das
estratégias. Enquanto o termo movimento pode relacionar-se a um deslocamento de um
segmento corporal (flexoextensão da coluna, por exemplo), o termo gesto ou ação inclui uma
série de movimentos que possuem uma finalidade (elevar um saco de lixo para arremessá-lo
18
em seguida, por exemplo). Entende-se por “estratégia” como uma conduta mais ampla, o
resultado de um conjunto de modos operatórios, para se atingir um objetivo. Por exemplo, a
"redução
1
" é uma estratégia usada pelos garis com o objetivo principal de regular a carga de
trabalho. Já os movimentos corporais que cada gari emprega para fazer a "redução", seja
amontoando o lixo, seja coletando o lixo dos montes, bem como seu ritmo de trabalho e seu
estilo próprio de se movimentar, são considerados como seus modos operatórios, ou técnicas
corporais.
Apesar de não terem definido o termo “regulações”, GUÉRIN et al. (2001) procuraram
demonstrar que, quando um trabalhador não encontra margens de manobra suficientes para
modificar o trabalho a fim de manter o bom funcionamento do sistema (redefinição de
objetivos, meios de trabalho, resultados produzidos/esperados), as possibilidades de adaptação
do corpo às exigências do trabalho, ou seja, a tentativa de regulação das cargas de trabalho
pode ser dificultada e seu estado interno acaba sendo sobrecarregado, dificultando ou
impedindo os processos de regulação corporal interna.
A falta de autonomia é um dos aspectos que limitam as possibilidades de ação na
tentativa de se regular um sistema. A redefinição de objetivos e o emprego de diferentes ações
na tentativa de manter o equilíbrio de um sistema dependem das margens de manobra
possíveis para se agir.
Ao discutir que condições um indivíduo envelhecido dispõe para exercer sua atividade
profissional, MARQUIÉ (1995) define margens de manobra como a latitude que se dispõe
dentro de certos limites, como as possibilidades de ação dentro de certos constrangimentos,
para lidar com as exigências do trabalho. O aumento de tais possibilidades pode derivar de
uma atenuação dos constrangimentos e de uma melhor utilização das margens de liberdade.
1
Esta estratégia consiste da coleta de lixo em que o gari recolhe o lixo da porta das casas e forma montes de lixo
em determinados locais de cada quarteirão.
19
Dentre as redefinições que os operadores fazem de seus objetivos, regulação da carga
de trabalho, muitas vezes, não é prioridade. Na tentativa de responder às diferentes
racionalidades do trabalho, na tentativa de gerenciar a complexidade de seu trabalho, o
indivíduo pode procurar aumentar sua tolerância aos écarts
2
, aumentando sua carga de
trabalho. Quando os garis correm mais, estes não o fazem apenas para terminar o trabalho
mais cedo. Um gari pode aumentar o ritmo de trabalho para responder a uma exigência do
coletivo de trabalho. Além disso, ele nunca sabe o que irá acontecer naquele dia (se o
caminhão irá estragar, por exemplo, devido à manutenção precária dos equipamentos como
ocorre no caso estudado).
Apesar de possuir certa plasticidade, certa capacidade de adaptação, o corpo possui
limites de tolerância, e nem sempre consegue manter seu estado de equilíbrio. O trabalhador
utiliza-se de seu corpo procurando adaptar-se às exigências por vezes controversas da
atividade, cuja limitação está na impossibilidade de se adaptar a tais exigências e manter sua
saúde. Por mais que o corpo se adapte às altitudes elevadas, às temperaturas elevadas, sabe-se
que tal adaptação pode trazer conseqüências negativas para seu funcionamento no futuro
(McARDLE et al., 1998, GUYTON e HALL, 2002).
Se antes acreditava-se na regulação fisiológica do corpo como a possibilidade do
organismo humano de se adaptar a toda e qualquer exigência externa que pudesse causar
desequilíbrio interno, atualmente é mais evidente a limitação do organismo humano de
adaptar-se às exigências sociais. “Não há uma sabedoria social tal como há uma sabedoria do
corpo” (CANGUILHEM, 2005, p. 86). Ao criticar a comparação da sociedade com um
organismo, CANGUILHEM comenta que esta consideração só seria viável caso a sociedade
pudesse se auto-regular. Para ele, enquanto em um organismo a natureza de uma desordem é
2
Na regulação do funcionamento de um processo, o écart é a função entre a distância entre o resultado esperado
e o resultado efetivamente obtido. Um écart pode ser avaliado como a distância entre o comportamento
prescrito, o objetivo a atender e o comportamento efetivo do operador para dar conta do resultado esperado
(LEPLAT, 2006). Para corrigir esta distância o operador muitas vezes acaba por se sobrecarregar.
20
obscura, na sociedade a desordem, o abuso e o mal são mais claros que seu uso normal. A
injustiça se apresenta para a sociedade, bem como uma incapacidade de regulação. Enquanto
a regulação fisiológica está voltada para o equilíbrio dos meios internos de um organismo, a
sociedade se caracteriza por sua incapacidade de auto-regulação, mesmo que ela apele para
regulações, já que não há sociedade sem regras. Na sociedade, a regulação é sempre precária,
é sempre acrescentada, e seu estado normal seria mais a desordem e a crise do que a ordem e
a harmonia.
Mas seria o estado do corpo muito mais o da ordem e da harmonia, ou o homem
sempre esteve em um certo equilíbrio desequilibrado? Quem, em um dia da vida, em estado
consciente das normas sociais, não se queixa de algum desconforto, de algum desequilíbrio,
de alguma dor?
A noção de “economia do corpo” tenta dar conta das contradições entre os
mecanismos de regulação do corpo, da fisiologia, e das normas sociais em que o trabalhador
está inserido. Seu objeto é, mais propriamente, o corpo humano, a fisiologia já transformada
pelo uso social do corpo.
O termo “economia do corpo” é encontrado em diversos trabalhos da área de saúde
3
.
Entretanto, tais trabalhos não definem o termo, deixando a vaga idéia que a economia do
3
Uma rápida busca na Internet ilustra como o termo é usado sem ser conceituado, como uma palavra do senso
comum. Alguns exemplos:
BARATA, R.C.B. Epidemias. Cad. Saúde Pública. vol.3 no.1 Rio de Janeiro Jan./Mar. 1987. "Se as entranhas
da Terra, sob várias alterações, pelo vapores que exala, contaminam o ar, ou se a atmosfera está modificada por
algumas alterações induzidas por conjunções peculiares de algum corpo celeste, a verdade é que em um certo
momento, o ar é material cheio de partículas que são hostis à economia do corpo humano, assim como em outras
vezes ele está impregnado com partículas provenientes da desagregação dos corpos de diferentes espécies de
animais selvagens.”
OLIVEIRA, R. M. R. .A abordagem das lesões por esforços repetitivos/distúrbios osteomoleculares
relacionados ao trabalho - LER/DORT no Centro de Referência em Saúde do Trabalhador do Espírito
Santo - CRST/ES. [Mestrado] Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública; 2001. 143 p.
“Segundo Dejours (1988: 42), Taylor estava errado. O que parece correto do ponto de vista da produtividade é
falso do ponto de vista da economia do corpo. Pois o operário é efetivamente o mais indicado para saber o que é
compatível com a saúde. Mesmo se seu modo operatório não é sempre o mas eficaz do ponto de vista do
rendimento em geral, o estudo do trabalho artesanal mostra que, via de regra, o operário consegue encontrar o
21
corpo é a regulação, a homeostase, como se o corpo conseguisse sempre manter seu equilíbrio
interno, eventualmente “desregulando” e manifestando formas diversas de desgaste, porém
readquirindo seu estado de equilíbrio.
Apesar da constante tentativa de se promover uma regulação corporal é necessário
lembrar que a regulação possui limites determinados por fatores internos (características
fisiológicas pessoais que por si só causam doenças) e externos do meio ambiente ou sociais
como as exigências e condições de trabalho.
A economia do corpo pode ser considerada como a tensão entre as possibilidades e
limites da regulação fisiológica do corpo e as exigências sociais, neste caso, o trabalho que os
sujeitos realizam. Pela economia do corpo demonstra-se a heterogeneidade característica de
qualquer atividade, que engloba a contradição entre normas sociais e processos fisiológicos do
corpo.
A noção de economia do corpo abrange a contradição entre as técnicas corporais ou
modos operatórios empregados pelos trabalhadores para tentarem regular sua carga de
trabalho, enquanto lidam com a complexidade do trabalho, suas exigências e racionalidades.
MAUSS (1974), que considerava o corpo como o primeiro e mais natural objeto técnico do
homem, via uma técnica corporal como um ato tradicional e eficaz, que possui uma
finalidade, e também depende dos dispositivos técnicos usados em trabalho.
A economia do corpo vincula-se à complexidade do trabalho pelas tentativas de o
trabalhador gerenciar a complexidade de seu cotidiano, utilizando-se de diferentes modos
operatórios, cuja gestão se dá por tomadas de decisão mediadas pelo momento e pelas
melhor rendimento de que é capaz respeitando seu equilíbrio fisiológico e que, desta forma, ele leva em conta
não somente o presente mais também o futuro."
SILVA, M.A.M. De Homo Laborans a Homo Faber...Revista Técnica IPEP, São Paulo, SP, v. 6, n. 2,p. 9-21,
ago./dez. 2006. “Essa perspectiva, já visitada por Dejours (1992, p.127), implica que quanto mais profunda for a
divisão do trabalho mais restritos se tornarão seu conteúdo significativo e seu conteúdo ergonômico, isto é, os
gestos, a postura e os ambientes físicos e químicos que visam à economia do corpo em situações de trabalho.”
22
margens de manobra disponíveis. Assim, os trabalhadores utilizam-se de técnicas corporais ou
modos operatórios e de estratégias individuais ou coletivas de trabalho, dependendo do tipo
de solução a ser dada para resolver problemas que a complexidade cotidiana do trabalho
oferece. Esta gestão implica em tomadas de decisão que dependem de diversos fatores, tais
como a competência individual ou coletiva, o tempo disponível para se tomar uma decisão e
para agir, as possibilidades da ação e suas margens de manobra também relacionadas à
autonomia, e as possíveis conseqüências e riscos advindos da tomada de decisão.
É neste foco que os fisioterapeutas e outros profissionais da área da saúde devem
procurar compreender o trabalho e as limitações do uso do corpo. É necessário entender as
normas sociais do trabalho, o porquê do surgimento e adoção de certos modos operatórios e
estratégias, ao invés de se prescreverem gestos e posturas que não condizem com a realidade
do trabalho dos operadores. Neste sentido, esta tese procurou demonstrar e discutir como se
dá a economia do corpo no trabalho dos coletores de lixo da situação estudada, que tomam
decisões e atuam conforme as diferentes exigências e racionalidades de seu trabalho, em
confronto ou em conformidade com sua saúde.
Após uma demanda de se comparar a coleta com e sem a estratégia de "redução",
começou-se a verificar e caracterizar a complexidade do trabalho dos garis, bem como o
quanto a empresa desconsidera tal complexidade, dificultando a realização da coleta de lixo
ao proibir determinadas estratégias que amenizam a carga de trabalho dos garis.
Foram aplicadas algumas técnicas da AET (Análise Ergonômica do Trabalho) para a
realização desta pesquisa que durou dois anos e meio. Foram escolhidos os garis de uma
regional que ainda possui alguns coletores efetivados, visto que a empresa tem terceirizado
rapidamente os seus trechos e a maioria de seus serviços.
Assim, estudou-se como o gari responsável pela coleta de lixo domiciliar gerencia a
complexidade de seu trabalho, lida com as exigências cotidianas de seu trabalho, muitas vezes
23
contraditórias no que se refere à possibilidade (ou não) da regulação da carga de trabalho, cuja
importância levou a ampliar o conceito de regulação para o de “economia do corpo”.
Para se compreender a complexidade do trabalho é necessário demonstrar que
elementos podem caracterizá-lo como tal. Para isso é preciso conceituar os termos
“complexidade”, “complexidade do trabalho” e “gestão da complexidade do trabalho”, como
pode ser visto a seguir.
24
I.2- Complexidade e ciências do trabalho
Em uma de suas acepções usuais, o conceito de complexidade relaciona-se ao que
“abrange ou encerra muitos elementos ou partes; observável sobre diferentes aspectos;
confuso, complicado, intrincado; grupo ou conjunto de coisas, fatos ou circunstâncias que têm
qualquer ligação ou nexo entre si..." (HOLANDA, Dicionário Aurélio, 1986, p. 440).
A complexidade é definida por MORIN (1990, p.21) como um “tecido de constituintes
heterogêneos inseparavelmente associados”. A complexidade é efetivamente o tecido de
acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, imprevistos, que constituem o
mundo dos fenômenos. Nesta definição, certas propriedades (heterogeneidade, interações)
permitem distinguir o complexo do simplesmente complicado.
Como afirmam MORIN (2000) e LE MOIGNE (2000), tudo é complexo. Da mesma
forma, pode-se afirmar que todo trabalho (objeto de análise da ergonomia) é complexo. No
entanto é preciso justificar tal afirmação para fugir do lugar comum em que caem vários
ergonomistas, que apenas reafirmam este princípio sem demonstrar em que consiste a
complexidade específica de uma atividade.
Para efeito deste texto, o trabalho será considerado como uma prática social, seja ela
remunerada ou não, formalizada juridicamente ou não, que tem por finalidade a produção de
bens e serviços. A atividade será referida como os comportamentos, condutas, processos
cognitivos, tomados pelos trabalhadores para dar conta de um resultado esperado.
Consideraremos ainda que o trabalho é composto pelo trabalho prescrito e pela atividade
efetivamente realizada, cuja organização do trabalho também deve ser considerada, já que
suas regras também podem ser consideradas como fatores que influenciam positivamente ou
negativamente na gestão da complexidade.
“O complexo é aquilo que é tecido simultaneamente, então subtendidos
ordem/desordem, um/múltiplo, todo/partes, objeto/meio ambiente, objeto/sujeito,
25
claro/escuro. A complexidade se reconhece tanto por traços negativos quanto
positivos: de um lado, por incertezas, regressão do conhecimento determinista,
insuficiência da lógica; por outro lado, reconhece-se pelo tecido comum em que se
ligam o múltiplo e o uno, o universal e o singular, a ordem, a organização e a
desordem. A incerteza brota tanto do pólo empírico quanto do pólo lógico. Ela diz
respeito não apenas ao conhecimento dos fenômenos, da capacidade de predição. Ela
diz respeito mais ainda à natureza da realidade, e obriga a uma revisão das
evidências, aí compreendidos o tempo e o espaço. Assim, o reconhecimento da
complexidade desemboca no mistério do mundo (MORIN, 2000, p. 45).
“A questão da complexidade é complexa” (MORIN, 2000, p. 45). O autor considera
que a complexidade é uma noção a ser explorada, a ser definida. A cientificidade, a
falseabilidade são muito debatidos, mas a complexidade jamais foi posta em debate. Ela nos
aparece inicialmente como irracionalidade, incerteza, confusão, desordem. Primeiro a
complexidade desafia o conhecimento e de alguma forma, ordena-o a regressar. O complexo
surge como impossibilidade de simplificar “lá onde a desordem e a incerteza perturbam a
vontade do conhecimento, lá onde a unidade complexa se desintegra se a reduzirmos a seus
elementos, lá onde se perdem distinção e clareza nas causalidades e nas identidades, lá onde
as antinomias fazem divagar o curso do raciocínio, lá onde o sujeito observador surpreende
seu próprio rosto no objeto de sua observação” (p. 132).
É necessário correlacionar a complexidade com a ergonomia, antes passando por sua
relação com o trabalho. A relação da complexidade com a ergonomia envolve diversas
características, que podem enriquecer e contribuir com a qualidade das análises das
atividades.
TERSSAC e MAGGI (2004) consideram que o trabalho é um objeto complexo
porque:
1- O trabalho não é uma descoberta recente da humanidade, o que implica reencontrar o
vínculo entre o discurso sobre o trabalho e a forma que cada sociedade o descreve, o
pensa e o avalia.
2- O trabalho é um objeto multidimensional, podendo ser abordado de várias maneiras,
dependendo da dimensão considerada, seja ela econômica, psicológica ou social.
26
3- Trata-se ao mesmo tempo, de uma noção abstrata e de uma variedade de práticas, o
que impede um ponto de vista único e normativo: “o conceito genérico se desdobra em
uma grande variedade de experiências singulares” (p.87). Assim, o trabalho pode ser
definido pela análise das atividades, bem como pelas representações que os homens
elaboram e pelas idéias que eles têm de seu trabalho.
Além disso, o trabalho convoca um largo espectro de disciplinas, sendo que nenhuma
tem o monopólio desse objeto, ao mesmo tempo em que a produção de conhecimentos sobre
ele leve cada uma a especificá-lo como objeto e delimitar suas fronteiras. Ainda assim,
possibilitando a articulação e agregação dos diferentes conhecimentos gerados (TERSSAC e
MAGGI, 2004). Os autores não apenas justificam porque o trabalho é complexo, como
levantam a possibilidade da complexidade como o possível “enigma” ou problema central da
ergonomia. As ciências do trabalho não escapam a uma tradição de reflexão (tradição
complexa) sobre o trabalho. Esta reflexão tem, no discurso erudito, duas entradas possíveis:
uma reflexão sobre o trabalho como atividade exercida por homens e mulheres; outra reflexão
sobre o trabalho como fato social, que media a relação entre o indivíduo e a sociedade. Para
eles, a ergonomia parece particularmente ancorada nesta tradição de pensamento sobre o
trabalho, porque a complexidade é, simultaneamente, o resultado das análises que produz, e
ponto de partida da sua reflexão. “Ainda, se quisermos, o enigma a ser resolvido” (p. 88). Por
outro lado, porque a ergonomia não se apresenta como uma disciplina específica, mas como
“uma metadisciplina, que convoca outras disciplinas para resolver o enigma da
complexidade” (p. 88).
Mas a ergonomia poderia mesmo ser considerada como uma “metadisciplina”?
Entende-se por metadisciplina um aproveitamento de conhecimentos de diversas áreas
diferentes, numa tentativa de combiná-los. Entretanto o objeto central da ergonomia é a
27
atividade dos sujeitos em trabalho. Não se trata apenas de identificar “posturas incorretas ou
inadequadas” num estudo de biomecânica, ou de gasto energético em um estudo de fisiologia.
Trata-se de se estudar o porquê da adoção de determinadas posturas em um contexto de
trabalho, e não da prescrição de posturas consideradas como “corretas”, porém inadequadas à
realidade do trabalhador que realiza sua atividade. Os elementos organizacionais exercem
influência, possibilitam ou dificultam a gestão da complexidade, como será visto adiante.
I.3- Complexidade em ergonomia
A complexidade é um tema recorrente em estudos sobre sistemas produtivos,
abarcando relações inter-empresas, da organização e do trabalho. Fala-se assim, em sistemas
complexos, sistemas em rede, organizações complexas ou trabalhos complexos.
LEPLAT (2004) refere-se à relação da complexidade com a ergonomia comentando
diversos trabalhos, na tentativa de apresentar o tema, caracterizá-lo e discutir sua
epistemologia. Comenta que em ergonomia fala-se de sistema complexo, tarefa complexa,
situação complexa, problema complexo, dentre outros. Apesar de aparentemente todos
compreenderem o termo, seu sentido não é detalhado, nem caracterizado. Desta forma é
importante um aprofundamento nesta questão, inclusive para compreender sua importância
para a ergonomia. O autor comenta que a utilização deste termo depende de uma infinidade de
fatores e abordagens e levanta algumas questões sobre o tema (p. 58):
1- “O uso da noção de complexidade em ergonomia se justifica?
2- O que aprendemos ao acrescentar o qualificativo de complexo a um objeto de
estudo, no caso em relação à tarefa?
3- O que se quer dizer ao se qualificar uma atividade como complexa?
4- Como o agente gere a complexidade?
5- Quais as conseqüências desta gestão?
6- Que metodologias poderiam responder tais questões?”
28
Na tentativa de se responder algumas dessas questões, torna-se necessário diferenciar
alguns conceitos que surgem no decorrer de diferentes trabalhos, tais como sistemas simples,
complicados e complexos. Também é necessário identificar a relação da complexidade com a
atividade, com a variabilidade e com a competência do sujeito que trabalha. É necessário
refletir sobre a complexidade do trabalho para quem o prescreve e os efeitos desta
representação para o sujeito que gerencia a complexidade de seu trabalho.
I.3.1- Sistemas simples, complicados e complexos
VIDAL et al. (2002) diferenciam sistemas simples e complicados da seguinte maneira:
- Um sistema simples é perfeitamente descritível em termos de finalidade, fronteiras,
entradas, saídas e relação entre componentes ou subsistemas. Por exemplo, um
computador no plano do hardware.
- Um sistema complicado é de natureza simples, mas é integrado por um grande número de
combinações internas e externas, por um alto grau de subdivisões em sistemas e
componentes. Por exemplo, um avião de grande porte.
PAVARD e DUGDALE (2005) apresentam quatro aspectos que se apresentam em um
sistema complexo:
1) Interações não lineares entre agentes, sendo que os mesmos precisam tomar decisões
entre duas ou mais opções;
2) Comportamento variável dos agentes diante de situações previsíveis ou imprevisíveis,
que oscilam entre estáveis e críticos. Nem mesmo o agente percebe uma fronteira
nítida entre ambas as situações;
3) Necessidade de tomadas de decisão não convencionais e/ou conhecidas para se
resolver problemas antigos ou novos;
29
4) Surgimento de problemas desconhecidos (fenômeno de eclosão ou emergences).
LE MOIGNE (2000) afirma que algo pode ser caracterizado como complexo quando
não é totalmente previsível e não localmente antecipável. Os sistemas complexos, ao invés de
buscarem a previsibilidade, precisam adaptar-se a ocorrências não previstas ou não
programadas inicialmente.
Algumas características apontadas por LEPLAT (2004) têm relação com a
complexidade, tais como a competência do trabalhador, a opacidade ou transparência do
sistema sócio-técnico, a rigidez ou flexibilidade da gestão de diferentes aspectos da atividade.
Ao estudar catástrofes em tecnologias de alto risco, PERROW (1984) traçou um perfil
dos sistemas complexos diferenciando-os dos sistemas lineares. A interligação dos
componentes dos sistemas é uma das características principais que definem um sistema como
complexo, sendo que, num acidente, a atuação em uma falha pode causar novas falhas em
outros componentes do sistema, visto que existe uma compreensão limitada das reações do
sistema como um todo. Desta forma, esta complexidade não possui um padrão ótimo de
ações, sendo que estes sistemas não lineares dificultam a previsão de sua evolução e as
possibilidades de dominar sua complexidade.
I.4- As características do trabalho complexo
A complexidade do trabalho não decorre exclusivamente das propriedades dos
sistemas técnicos, mas das condições em que o operador vai desenvolver sua atividade,
inclusive suas próprias competências. Apesar desta diferenciação entre sistemas simples,
complicados e complexos, é necessário caracterizar alguns dos elementos que definem um
trabalho como complexo (já que nos trabalhos de ergonomia relacionados ao tema
30
complexidade não esclarecem quais seriam os elementos que caracterizam um trabalho como
tal), salientando que eles estão sempre em inter-relação, sendo difícil isolar cada um deles,
mesmo para fins didáticos.
Em qualquer trabalho surgem imprevistos (emergences). Cada imprevisto exige uma
uma solução num determinado prazo de tempo, geralmente o mais curto possível. Cada
tomada de decisão precisa responder a diferentes racionalidades (trabalhador, sistema técnico,
empresa, cliente). Entretanto, uma tomada de decisão envolve um risco, porque suas
conseqüências podem ser irreversíveis, para o trabalhador, para sua equipe e para o sistema.
Além disso, a representação que se tem de um mesmo fenômeno do sistema é diferente para
cada um dos atores envolvidos nele, pois as racionalidades (expectativas de resposta do
sistema) são distintas.
É preciso considerar que o trabalhador precisa trabalhar bem, “e” com rapidez, “e”
com segurança, “e” com qualidade, “e” com baixo custo... o que levou HUBALT (2004) a
afirmar que a dificuldade e a questão da competência concentram-se na conjunção “E”, cujas
regras operacionais não são jamais explícitas. Assim, “a atividade participa de uma criação,
de um processo de emergência de uma solução que não resolve nada definitivamente, mas que
o operador gerencia sob uma forma necessariamente contingente e mutável, o problema que a
exigência de produzir lhe coloca continuamente (p. 106)”. Os indivíduos gerenciam os
diferentes aspectos que compõem seu trabalho, seja coletivamente, seja individualmente. Esta
complexidade se transforma, evolui, apresenta sempre novas exigências para o operador.
Assim, quando os fatores envolvidos no trabalho não permitem a gestão desta complexidade,
ou quando o trabalhador não possui competência suficiente para lidar com as características
complexas de seu trabalho, pode ocorrer, por exemplo, uma sobrecarga de trabalho, até
mesmo acidentes catastróficos.
31
O objetivo neste trabalho, em relação ao tema complexidade, foi demonstrar em que
consiste a complexidade do trabalho dos garis, usando referências bibliográficas e aplicando
os conceitos gerais da complexidade para o trabalho dos garis. Estas características podem ser
agrupadas em três conjuntos, relativos ao sistema, aos resultados esperados e ao próprio
sujeito em sua atividade (Tabela 01).
Tabela 01: Características da complexidade do trabalho.
SUJEITO/ATIVIDADE SISTEMA RESULTADOS
Conhecimento
Informação
Constrangimentos temporais
Inter-relações do “E”
Experiência/ Competências
Tomada de decisão
Instabilidade
Imprevisibilidade
Rigidez
Reações em cadeia
Opacidade
Incerteza
Tempo de resposta
Modo degradado
Irreversibilidade
Gravidade das conseqüências
Multiplicidade de metas
A complexidade do trabalho do sujeito depende das propriedades do sistema técnico
(instabilidade, opacidade, etc) que ele opera, da sua competência para lidar com os
imprevistos num tempo de resposta esperado, ao mesmo tempo que precisa dar conta de um
resultado esperado com qualidade “e” com eficiência “e” com segurança “e” obedecendo as
normas da organização do trabalho, ou seja, respondendo a diferentes racionalidades, muitas
vezes controversas. A complexidade também dependerá de certas características dos
resultados, como a gravidade das conseqüências de suas ações e o grau de irreversibilidade.
Em alguns casos os erros são tolerados e podem ser fontes de aprendizagem, quando podem
ser corrigidos. Noutros, são inadmissíveis devido à gravidade e irreversibilidade dos efeitos.
Quanto mais rígido é um sistema, mais difícil se torna manobrar os imprevistos que
surgem continuamente. Desta forma, as conseqüências podem ser graves para o sujeito que,
32
procurando responder à racionalidade da empresa que espera um resultado, pode prejudicar a
si mesmo.
Mais que caracterizada por imprevistos, a complexidade de um sistema depende das
condições de tomada de decisão: autonomia, tempo para se tomar a decisão e agir, de forma a
gerenciar tal complexidade. O que pode tornar a atividade mais ou menos complexa são as
formas de gestão encontradas pelos sujeitos para gerenciar tais imprevistos sob pressão de
tempo.
I.5- Os objetos da complexidade, a gestão da complexidade e sua relação
com a variabilidade e a competência
Em ergonomia, a caracterização de um sistema como complexo só faz sentido quando
relacionada a quem interage com ele. É o trabalhador quem pode considerar sua atividade
como simples, complicada ou complexa.
LEPLAT (2004) apresenta dois grandes tipos de objeto da complexidade: a
complexidade da tarefa para o operador e a complexidade da tarefa para o ergonomista. Desta
forma, em ergonomia deve-se tomar o cuidado ao se caracterizar a complexidade de uma
tarefa, já que a visão sobre a mesma difere do observador/pesquisador para o próprio agente
da tarefa, o trabalhador. Considerando a complexidade da tarefa do ponto de vista do
trabalhador, considera-se que a complexidade pode ser relacionada com aspectos como: a
competência; a variabilidade das características que compõem o trabalho; a representação que
ele tem de seu trabalho; a possibilidade de gestão pelo operador diante das diferentes
variáveis e incertezas do trabalho.
Um outro objeto da complexidade que deve ser considerado pela ergonomia é a
complexidade da tarefa para quem a prescreve. A prescrição da tarefa pode estar subestimada
ou envolver diversos aspectos não previstos que, em sua realização, demandam gestão e
33
transformação por parte do executor, para que os resultados esperados pela empresa e pelo
trabalhador sejam atingidos. Assim, a comprovação da complexidade do trabalho também
explica o distanciamento entre o trabalho prescrito e o trabalho real.
Parece incompleto considerar apenas a complexidade da tarefa, já que a atividade e,
mais globalmente o trabalho também relacionam-se com a complexidade. Desta forma, serão
considerados três grandes objetos da complexidade em ergonomia:
1) a complexidade do trabalho para quem o realiza;
2) a complexidade do trabalho para quem o prescreve;
3) a complexidade do trabalho para quem o observa.
Para LEPLAT (2004), as análises ergonômicas do trabalho têm demonstrado que a
tarefa prescrita não é um modelo adequado para entender a atividade. Assim o agente define a
tarefa que ele quer executar, a “tarefa redefinida” (p.67). Esta redefinição traz um novo
conteúdo à noção de complexidade: sua gestão.
Os indivíduos gerenciam os diferentes aspectos que compõem seu trabalho, seja
individualmente, seja coletivamente. Esta complexidade se transforma, evolui, apresenta
sempre novas exigências para o operador.
Para TERSSAC e MAGGI (2004), as ações no trabalho se desenrolam em um
contexto estruturado por dispositivos, regras e normas que constituem seus constrangimentos.
Este universo de constrangimentos define um espaço de ação pré-definido, que pode ser
pertinente e levar os indivíduos a desenvolver suas ações sem questioná-lo ou, levar o
indivíduo a questioná-lo, caso este espaço de ação seja considerado muito constrangedor. A
ordem de ação do trabalho pode então ser definida. Entretanto, a ordem final será sempre
diferente.
34
Relatando que a gestão da complexidade somente pode ser considerada quando se
relaciona a tarefa com a atividade, LEPLAT (2004) comenta que o trabalhador gerencia a
complexidade de seu trabalho na procura de satisfazer tanto os objetivos materiais da
produção, como a racionalidade em relação a sua saúde e realização pessoal. Desta forma, a
complexidade é um dos fatores que condicionam a atividade e vice-versa, o que justifica a
importância da gestão da complexidade pelo agente. Além disso, a complexidade não é um
invariante da tarefa, já que a mesma é concebida de forma evolutiva. O operador então gere
esta evolução atribuindo o nível de complexidade que ele deseja, não necessariamente o nível
mais fraco.
Por exemplo, para lidar com os atrasos dos moradores na colocação de lixo nas portas
de suas casas, os garis encontram diferentes respostas. Ele poderia simplesmente pedir ao
motorista do caminhão para aguardá-lo. Mas dependendo do momento, ele fala com a equipe
para seguir com o caminhão, coleta o lixo do morador atrasado, corta caminho por conhecer o
trecho e encontra sua equipe mais a frente, sem atrasar o tempo de coleta. Nestas condições, o
gari não precisou correr atrás do caminhão e atendeu a necessidade do cliente, procurando-se
assegurar de que poderia contar com aquele morador quando precisasse dele.
Esta dinâmica do trabalho, característica da complexidade, poderia explicar a
dificuldade do ergonomista para representar o trabalho real, já que o mesmo não é estático e
os desafios surgem continuamente para o operador. Portanto, o trabalho também é complexo
para o ergonomista que o analisa, fato que demandaria um aprofundamento, amplamente
discutido no livro “A ergonomia em busca de seus princípios (DANIELLOU, 2004)”.
HUBALT (2004) relata que a ergonomia nasceu de uma descontinuidade que obriga a
se distinguir o que se solicita ao trabalhador, e o que esta tarefa, para ser realizada, demanda a
ele. Esta descontinuidade vem de um conflito de lógicas, sendo que a competência do
trabalhador está em encontrar meios de gerenciá-los, por meio de compromissos operatórios
35
que constituem sua atividade. Assim, a atividade participa de uma criação, um processo de
emergência de uma “solução” que não “resolve” nada definitivamente, mas que o operador
gerencia sob uma forma necessariamente contingente e mutável, o “problema” que a
exigência de produzir lhe coloca continuamente (p. 106).
Como há diferença entre sistema complexo e tarefa complexa, deve-se lembrar que a
consideração de uma tarefa como complexa dependerá da representação que o trabalhador
tem de sua tarefa e que a complexidade de um sistema tem relação com a variabilidade das
situações, com as incertezas advindas desta variabilidade. Assim, a competência do
trabalhador para lidar com tais características, bem como a possibilidade de sua gestão é que
vão definir se o trabalho é ou não complexo para ele. A relação entre variabilidade,
competência e possibilidade de gestão das decisões diante da variabilidade podem, direta ou
indiretamente, possibilitar ou dificultar a realização do trabalho, tornando-o mais ou menos
complexo.
Nota-se, desta forma, que complexidade e competência estão numa relação de co-
determinação, de forma que todo estudo da complexidade estará estreitamente associado ao
estudo da competência (LEPLAT, 2004). Para o autor, “competência e complexidade formam
uma díade privilegiada” (p. 73), sendo que toda teoria da competência encontra seu eco na
análise da complexidade e vice-versa. Assim, toda análise da tarefa deve ser relacionada com
o agente que a realiza, de forma que a análise da competência do agente deverá estar
associada às classes de tarefas que ele poderá tratar. Desta forma, esta análise conjunta da
complexidade e da competência “constitui um momento essencial da análise ergonômica do
trabalho” (p. 73).
Para ABRAÃO (2000), a competência dos trabalhadores está relacionada com sua
capacidade de regulação, ou seja, o indivíduo gerencia a variabilidade conforme as situações.
Quanto maior a variabilidade das situações, menor a possibilidade de antecipação. Desta
36
forma, quanto maior a competência do trabalhador, maior a possibilidade de lidar com as
incertezas presentes na atividade. Para a autora, a variabilidade da tarefa pode ser avaliada
segundo o número de exceções verificadas para o andamento normal de um sistema. A gestão
dessas exceções “preenche” a distância entre trabalho prescrito e trabalho real, incluindo
processos de natureza cognitiva (decisão, percepção, memória...).
Ao considerar a variabilidade como um aspecto da complexidade, deve-se considerar a
relação da variabilidade e dos freqüentes imprevistos com a tomada de decisão necessária
para resolver tais problemas. Então a complexidade também se apresenta na associação da
tomada de decisão com o constrangimento temporal e as possíveis consequências advindas
desta decisão. O risco, a sobrecarga de trabalho, a nocividade e a penosidade
4
são importantes
fatores a serem considerados pela ergonomia.
Desta forma, se a análise da complexidade da atividade expressa a distância existente
entre as exigências da tarefa e as possibilidades do operador, então a complexidade é uma
característica da relação do operador com sua tarefa. Assim, a complexidade pode ser um
instrumento útil para a ergonomia, em particular para a análise ergonômica do trabalho,
possibilitando ao ergonomista evidenciar aspectos fundamentais do trabalho, tais como a
distância entre trabalho prescrito e trabalho real, as estratégias utilizadas pelos trabalhadores
para responder às exigências da tarefa com eficácia, administrando os riscos, a segurança, a
carga de trabalho, bem como seus objetivos pessoais.
Além disso, é necessário compreender o uso social que se faz do corpo na gestão desta
complexidade, e suas consequências para a saúde do trabalhador, o que pode ser explorado ao
se observar a “economia do corpo”. O uso deste termo justifica-se para explicar as
contradições entre as possibilidades que os trabalhadores encontram para gerenciar a
4
Assunção e Lima (2003) diferenciam nocividade e penosidade.
37
complexidade de seu trabalho e as condições e limitações que o corpo pode apresentar para
lidar com as diferentes racionalidades do trabalho.
Para demonstrar a complexidade do trabalho dos garis, sua gestão e as limitações de se
regular a carga de trabalho no emprego do corpo em trabalho, esta tese foi dividida em seis
capítulos. Nesta introdução foi realizada uma breve apresentação do trabalho do gari, e
introduziu-se a noção de “economia do corpo”, bem como sua relação com o termo
“regulação”. Foi feita uma revisão de literatura sobre a complexidade e sua relação com o
trabalho, apresentando-se elementos que caracterizam um trabalho como complexo. O
segundo capítulo constou da justificativa deste trabalho, os objetivos e a hipótese da tese,
demonstrando-se a importância de se pesquisar a complexidade de trabalhos socialmente
considerados como “simples”. Discutiu-se a relação da gestão da complexidade do trabalho
com a economia do corpo, que engloba a contradição entre os mecanismos reguladores
fisiológicos do corpo e as normas e leis sociais, neste caso, do trabalho dos coletores de lixo.
No terceiro capítulo, descreveu-se os métodos e técnicas empregados para coletar os dados da
pesquisa, cuja corrente metodológica para a realização deste estudo de caso foi a Análise
Ergonômica do Trabalho (AET). No capítulo sobre os resultados (o quarto capítulo), os dados
coletados foram apresentados conforme a proposta metodológica: foram apresentados a
Demanda, o Trabalho Prescrito e o Trabalho Real, os resultados do Questionário de Percepção
de dores e desconforto osteomusculares, bem como uma Análise das Técnicas Corporais
empregadas no trabalho (Figuras também apresentadas no ANEXO B). A atividade também
descrita em Fichas de Caracterização da Atividade foi aprofundada, de forma que a
complexidade do trabalho dos garis foi evidenciada conforme a descrição da variabilidade das
situações do cotidiano. Os resultados da pesquisas foram discutidos no quinto capítulo: “A
gestão da complexidade do trabalho dos garis e a economia do corpo”. Por fim, o capítulo das
Considerações Finais apresenta um apanhado geral da tese conforme a problemática, a
38
hipótese e os objetivos da pesquisa, e também foram levantadas questões para pesquisas
posteriores. Este capítulo abordou determinadas limitações e dificuldades sobre os métodos e
técnicas empregados na pesquisa. Cada situação particular necessita do emprego de técnicas
específicas, inclusive que trazem surpresas ao pesquisador, devido à grande complexidade das
situações de trabalho estudadas.
Tanto a caracterização do trabalho dos garis como complexo, bem como o
entendimento de como se dá o uso do corpo no trabalho para dar conta de gerenciar a
complexidade do trabalho, justificam esta pesquisa, o que será aprofundado a seguir.
39
II. Justificativa, hipótese, objetivos
40
Em qualquer trabalho, o trabalhador precisa responder a diferentes racionalidades: de
um lado, as exigências da empresa e dos clientes, que esperam determinados resultados; de
outro lado, as exigências pessoais do trabalhador, que busca atingir os resultados esperados
pela empresa e pelo cliente, mas também busca economizar-se no uso do corpo e da mente.
Imprevistos surgem continuamente, e o trabalhador precisa gerenciá-los de forma a dar conta
dos resultados esperados, num espaço de tempo o mais breve possível. E não se trata apenas
de gerenciar tais imprevistos, já que uma tomada de decisão implica numa conseqüência,
positiva ou não, para o trabalhador, a equipe, a empresa ou o cliente. É também por isso que
se considera que a complexidade é relativa, ou seja, ela depende da representação que cada
trabalhador tem da sua atividade, bem como da experiência e das competências para lidar com
os diversos imprevistos que surgem no cotidiano de seu trabalho. Além disso, a resposta para
um dado problema nem sempre é a mesma, mais uma característica da complexidade.
Podemos verificar inclusive, o quanto a representação que cada sujeito tem de uma atividade é
importante no momento da redefinição de uma tarefa. Ao atribuir ou modificar uma tarefa,
um chefe não possui a mesma representação de seu subordinado quanto à sua complexidade
real.
Considera-se que a complexidade da tarefa tem relação com a atividade, e que a gestão
da complexidade também relaciona-se com a gestão da atividade. Desta forma, o agente não
visa apenas gerir a complexidade, mas se auto-gerenciar. Assegurar-se de determinada
condição de trabalho, tornar sua carga de trabalho aceitável ou possibilitar relacionamentos
agradáveis no trabalho são finalidades que modulam a gestão da complexidade ou modificam
sua natureza. Assim, a consideração das divergências existentes entre os objetivos pessoais e
os objetivos da tarefa introduz uma fonte de complexidade, de forma que o agente passa a
hierarquizar seus critérios e a estabelecer compromissos.
41
Existem diferentes estilos de gestão da complexidade, e esta gestão pode trazer efeitos
não desejados e prejudiciais para o indivíduo (LEPLAT, 2004). Desta forma, é função da
ergonomia pesquisar e analisar a atividade do ponto de vista da relação da tarefa com a
atividade para favorecer esta gestão, oferecendo ao trabalhador os meios de adaptação à
complexidade.
Considera-se a gestão da complexidade como a possibilidade de um trabalhador criar,
executar e aprimorar estratégias que conjuguem os objetivos pessoais aos organizacionais em
seu trabalho. No caso dos garis, esta gestão permite que os mesmos trabalhem de forma
menos desgastante, mesmo respondendo a valores sociais, organizacionais e pessoais. Além
disso, a complexidade é social e historicamente transformada, a partir da execução das tarefas.
A complexidade é transformada continuamente por sua gestão, que relaciona-se tanto com a
competência de quem a gerencia, quanto pela introdução de inovações tecnológicas.
Um bom exemplo para a gestão da complexidade do trabalho dos garis é a estratégia
criada e nomeada por eles de “redução”. Os quatro garis que compõem uma guarnição se
dividem em duas duplas. Uma dupla faz montes de lixo em cada quarteirão e outra dupla o
coleta acompanhando o caminhão. Com esta estratégia os garis correm menos, separam os
sacos plásticos contendo vidros, conversam e sensibilizam a população com relação à forma
de acondicionar o lixo.
No que diz respeito ao trabalho, o atributo de complexidade é comumente associado a
atividades com componentes predominantemente cognitivos, desenvolvidas em interação com
sistemas de alta tecnologia ou processos automatizados (indústria de processos contínuos,
aeronáutica, transporte ferroviário) (BAINBRIDGE, LENIOR e SCHAAF, 1993), ou a
atividades criativas para resolver problemas complexos ou tomar decisões arriscadas
(cientistas, executivos, professores, médicos, engenheiros, etc). Em poucos estudos
42
ergonômicos aparece a complexidade como algo inerente a atividades com predominância de
dimensões físicas, como no caso de trabalhos ditos "manuais" ou "braçais" (BOUYER e
SZNELWAR, 2005; MONTEDO, 2001). Quando muito, associam-se exigências de
habilidade a esportes de alto desempenho (BURTON, BROWN e FISCHER, 1984). Esta
pesquisa busca demonstrar que, também em trabalhos socialmente desvalorizados,
considerados simples, manuais ou "puramente físicos" há uma atividade complexa de gestão
de constrangimentos da situação de trabalho relacionados com a variabilidade da produção e
do ambiente e com o modo degradado de funcionamento dos equipamentos, com as normas
institucionais; e de objetivos conflitantes entre qualidade, tempo e economia de uso do corpo.
Estes constrangimentos requerem do trabalhador, ou do coletivo de trabalho, o
desenvolvimento de competências específicas, estratégias de regulação e tomadas de decisão.
Ao pesquisar a história da coleta de lixo em Belo Horizonte, SANTOS (2004) relatou
a quase inexistência de estudos sobre a atividade destes trabalhadores. O autor também
relatou que historicamente a carteira de trabalho do gari trazia a descrição de “braçal”, fato
que demonstrava o pensamento que a empresa tinha de um trabalhador que não precisava
pensar ao realizar o serviço de coleta de lixo, negando parte da complexidade deste trabalho.
Também verificamos que até 1998 o gari não realizava prova escrita nem havia exigência
mínima de grau de escolaridade, que atualmente é até a 4ª série do primeiro grau. O gari fazia
apenas um teste de corrida.
Tendo em vista a discussão sobre a complexidade, pode-se afirmar que o trabalho dos
garis é complexo. No cotidiano da sua atividade surgem novas situações a serem resolvidas,
administradas, relacionadas ao tempo determinado e curto para se pensar no problema, tomar
uma decisão e agir. Simultaneamente surgem mudanças globais no trabalho (exigências
organizacionais, terceirização e mudanças do trecho das equipes, troca entre os garis das
equipes), que podem ou não ser administradas e resolvidas por eles. Ainda, o surgimento de
43
determinadas imposições, que eles criam formas de se adaptar que não são permitidas, ou a
chefia prefere fingir que não vê sem reconhecê-las oficialmente, deixando a decisão a cargo
da gerência de cada regional, o que será demonstrado e discutido nesta pesquisa.
Diante da complexidade do trabalho e de suas exigências físicas e mentais, o gari
elabora modos operatórios buscando a manutenção de sua saúde física e mental, conjugando
as diversas racionalidades, enquanto gerencia a complexidade de seu cotidiano. Levanta-se a
HIPÓTESE de que o gari procura manter o andamento do trabalho, e simultaneamente tenta
regular sua carga física e mental, encontrando modos operatórios e estratégias que
correspondam às exigências de seu trabalho, exigências próprias e os limites de seu corpo.
Faz parte da arte do trabalhador, tentar responder às diferentes racionalidades enquanto
procura, mesmo de forma não consciente, amenizar a fadiga, evitar lesões e acidentes.
Entretanto, nem sempre é possível que esta arte que envolve o uso social que se faz do corpo
em trabalho, amenize sua carga. As exigências do trabalho também são fatores que limitam a
regulação biológica corporal (consideram-se as deficiências do corpo também como
elementos limitadores da regulação fisiológica). Desta forma, essa "economia do corpo" não
corresponde exatamente à regulação fisiológica que se traduz na "sabedoria do corpo" que
espontaneamente busca o equilíbrio e a homeostase. Ao se economizar para manter o ritmo
durante todo o trecho, o gari pode se expor a lesões localizadas (por exemplo, de pernas,
ombros, joelhos, coluna ...) e a acidentes. A atividade é complexa inclusive por que, no
âmbito do corpo, as dimensões são heterogêneas: ao realizar seu trabalho, o uso do corpo pelo
gari não tende a um equilíbrio harmônico, mas a um desgaste desequilibrado em função de
exigências externas mais ou menos constrangedoras (tempo, ritmo, trabalho coletivo,
qualidade, pavimentação das ruas, acondicionamento do lixo, design do caminhão etc.) e em
função de suas próprias escolhas (acelerar o ritmo para sair mais cedo, por exemplo). Faz
parte de sua criação, evitar que esses desequilíbrios momentâneos se transformem em
44
desgastes crônicos ou em acidentes. A noção de “economia do corpo” complementa a noção
de regulação, ao evidenciar os conflitos entre os mecanismos fisiológicos de regulação e os
processos sociais, geralmente considerados pela ergonomia pela mesma denominação de
regulação (ver LEPLAT, 2006). Desta forma, é preciso diferenciar o uso que se faz do termo
regulação, já que ele se encontra tanto em processos fisiológicos quanto sociais (aspectos
psicológicos, econômicos, políticos e éticos, individuais ou coletivos). É necessário explicar a
limitação dos mecanismos reguladores corporais diante das exigências produtivas, que
causam o adoecimento do corpo. A ergonomia evidencia as situações em que a manutenção
da produção é mantida às custas do desequilíbrio interno do corpo dos trabalhadores.
“Assim como a economia política procura explicar como a produção de riqueza
social também produz a miséria dos trabalhadores, a economia do corpo permite
explicar como a eficácia produtiva é acompanhada por patologias do corpo. A
regulação é, ao mesmo tempo, regulação homeostática, que busca manter um certo
equilíbrio, quando o trabalhador se poupa, se “economiza”, e desregulação social,
produzida por conflitos entre normas orgânicas e normas econômicas (LIMA,
2007)”.
A contribuição de se diferenciar os processos de regulação pode estar em se evidenciar
melhor como as normas sociais alteram os processos fisiológicos, dificultando a auto-
regulação da carga de trabalho pelo operador.
Conforme a discussão introdutória deste trabalho, sua justificativa e hipótese, esta tese
apresentou os seguintes objetivos:
Gerais:
- contribuir com a literatura sobre trabalho e complexidade, apresentando
elementos que caracterizam um trabalho como complexo, utilizando-se do caso
dos coletores de lixo domiciliar de uma regional.
- mostrar que o trabalho dos garis vai além do trabalho considerado como
“simples” ou “braçal”, e apresenta aspectos da complexidade, ou seja, é
complexo.
45
- levantar problemas que sejam ponto de partida para novas pesquisas sobre a
relação ergonomia, complexidade e economia do corpo.
Específico:
- mostrar como o gari gerencia a complexidade de seu trabalho no cotidiano,
procurando preservar seu corpo, lidando com as exigências da empresa, sua
realização pessoal e a manutenção de sua saúde, desenvolvendo processos
igualmente complexos de regulação no trabalho. Esta tese pretendeu
demonstrar que atividades sociais, como o trabalho, podem alterar os processos
de regulação biológica corporal, de forma que, ao serem gerenciadas, as
características da complexidade do trabalho podem sobrecarregar o
trabalhador, provocando o seu adoecimento. Esta constante tensão entre o
gerenciamento da complexidade do trabalho dentro de determinadas normas e
a tentativa de regulação corporal explicam-se pela economia do corpo.
46
III. Metodologia
47
III.1- O estudo da complexidade do trabalho dos garis pela prática da AET
Para a realização desta pesquisa foi feito um estudo de caso, cuja análise baseou-se no
trabalho dos garis, coletores de lixo domiciliar de uma regional específica.
Empregou-se a Análise Ergonômica do Trabalho (AET) como corrente metodológica,
cujas técnicas e métodos empregados dependem de cada situação estudada.
A AET parte de dois pressupostos básicos que são a participação do trabalhador no
processo da análise, bem como o estudo de campo em situação real. Desta forma, a AET tem
o estudo das atividades das pessoas como fonte principal de informações para o entendimento
dos aspectos que compõem o trabalho, ou seja: utiliza a análise da atividade como foco de seu
método para entender o trabalho.
O alvo de ação da ergonomia encontra-se na geração de conhecimentos sobre a
situação de trabalho, visando o melhoramento e a conservação da saúde dos trabalhadores, e a
concepção e o funcionamento satisfatórios do sistema técnico, do ponto de vista da produção
e da segurança (VASCONCELOS e CAMAROTTO, 2001).
A proposta da Ergonomia da Atividade (ANTUNES LIMA e JACKSON FILHO,
2004), é resolver e tratar os problemas das condições de trabalho a partir do “trabalhar” das
pessoas, sendo a participação dos trabalhadores fundamental neste processo. Ao discutirem a
ergonomia na sua prática de produção de conhecimentos, TERSSAC e MAGGI (2004)
relatam que é necessário afastar-se da concepção restritiva da ergonomia, que a reduz à
simples concepção de regras de trabalho mais confortáveis ou mais eficazes que as criadas
pelos especialistas do modelo clássico. A ergonomia traz a concepção, não apenas de regras
que correspondem às necessidades dos trabalhadores. Nem se baseia apenas em uma mudança
de regras da estruturação de trabalho, mas em uma mudança nas formas de regulação. Assim,
as práticas desenvolvidas pela ergonomia a levam (p. 93):
48
1) A buscar um acordo para intervir nas situações de trabalho: falar conjuntamente do
trabalho e de sua organização é uma obrigação da análise do trabalho, cujo acordo se
obtém por uma mudança de postura que leva os indivíduos a reverem suas alianças e
exclusões. Este compromisso particular que está na base de todos os estudos, parte de
diferentes pontos de vista e interesses, e a explicitação é a primeira etapa da análise do
trabalho.
2) A recusar “decretar” a verdade sobre o trabalho, construindo com os interessados uma
representação compartilhada do trabalho; a análise do trabalho não é imposta e revela a
insuficiência das prescrições. Este reconhecimento depende de um acordo entre as pessoas
envolvidas. Este acordo pode exigir também uma mudança de postura para que alguns
indivíduos revejam sua visão do trabalho, de forma a modificar sua estratégia.
3) A elaborar, em conjunto, soluções provisórias, afastando-se da visão normativa da
estruturação das atividades. A análise do trabalho auxilia na tomada de decisão, sendo que
os resultados da análise são “matéria prima” dos compromissos concluídos pelos atores
envolvidos (necessário lembrar que o ergonomista é também um ator neste processo). Se
os autores afirmam que a análise da atividade modifica o nível e a natureza da
contribuição dos diferentes atores, desestabilizando posições e incluindo atores, antes
excluídos dos processos de decisão, este trabalho ousa afirmar que a prática da AET causa
esta mudança.
DANIELLOU (2004) mostra a diferença entre AET e análise da atividade, sendo esta
segunda uma parte da primeira, ou seja: enquanto a análise da atividade estuda os
comportamentos, as condutas e os processos cognitivos utilizados para dar conta do trabalho
que é prescrito, a AET é mais global, já que se compõe, além da análise da atividade, da
análise dos fatores econômicos, técnicos e sociais, bem como da análise dos efeitos do
49
funcionamento da empresa sobre a população dos trabalhadores envolvida e da eficácia
econômica.
Desta forma a análise da atividade explica os fenômenos complexos que envolvem a
realização do trabalho pelo operador. Entretanto é necessário considerar que tais fenômenos
muitas vezes relacionam-se a eventos mais globais que compõem o trabalho deste mesmo
operador, e que sua complexidade deve ser evidenciada por uma abordagem também mais
global, possibilitada pela prática da AET.
Para WISNER (2004) a AET é uma ferramenta essencial de orientação da intervenção
ergonômica voltada para a análise da atividade. Para ele, “a característica essencial da AET é
de ser um método destinado a examinar a complexidade, sem colocar em prova o modelo
escolhido a priori” (p. 42). Apesar de se aproximar de métodos ascendentes (bottom up) como
a psicodinâmica ou a etnologia, a AET apresenta características próprias e é utilizada para
responder uma questão precisa e é orientada para a proposição de soluções operatórias. Para o
autor, a AET deve utilizar diversas abordagens convergentes no trabalho, necessariamente um
estudo apurado da atividade de trabalho. Para ele, a atenção voltada para o trabalho real no
seu nível mais apurado, encontra sua origem na busca dos fatos, o comportamentalismo. Além
disso, a AET tem como preocupação fundamental a palavra do trabalhador, bem como o
conhecimento da realidade do trabalho, “a qual resultam as arbitragens feitas pelos operadores
com relação aos constrangimentos aos quais eles estão submetidos, na perspectiva da
realização do objetivo que eles construíram, individualmente” (p. 52).
Se para HUBALT (2004), trabalhar é gerenciar a dinâmica de uma situação evolutiva,
trabalhar é gerenciar situações indeterminadas quanto ao seu possível fim, em termos de
confiabilidade, qualidade, segurança e saúde.
Evidenciar esta gestão é, sem dúvida, uma significativa função da ergonomia da
atividade, sendo a AET uma metodologia essencial para demonstrar a complexidade do
50
trabalho e sua gestão, bem como sua influência positiva ou negativa para a saúde do
trabalhador.
Nesta pesquisa, foi usada a expressão “complexidade do trabalho” e não apenas
“complexidade da atividade”. Esta diferença se fez necessária porque os aspectos
organizacionais também devem ser considerados numa análise ergonômica do trabalho, já que
influenciam na gestão da complexidade da atividade.
Por exemplo, a prescrição atual impede que o gari faça mais que duas horas extras por
dia e não reconhece oficialmente a estratégia de "redução". Porém, as freqüentes quebras do
caminhão, por falta de investimento em novos equipamentos, quando coincidem com os dias
em que há maior quantidade de lixo, atrasam o término da coleta. Se o gari não fizesse a
"redução" enquanto o caminhão estivesse em manutenção, a coleta demoraria ainda mais.
Além disso, a estratégia de redução diminui o desgaste do caminhão e, do ponto de vista do
gari, diminui consideravelmente a carga de trabalho, como será visto neste trabalho. Além
disso, o gari atualmente é obrigado a fazer uma hora de almoço. Entretanto, além de
ganharem ou receberem lanches e marmitas durante o trabalho, os garis relatam uma
impossibilidade de almoçar para continuar a correr logo em seguida.
Um outro exemplo é a obrigação de se fazer no máximo três viagens de sete toneladas
por dia e a proibição de se realizar a separação do lixo reciclável. O motorista só termina uma
viagem após preencher todo o espaço do baú do caminhão, que armazena por volta de oito
toneladas. Nos dias de maior quantidade de lixo, se os garis não separassem o lixo,
principalmente papelão, como no caso do Natal, os garis precisariam fazer mais que três
viagens.
Neste trabalho algumas estratégias que os garis utilizaram para lidar com tais
contradições também foram demonstradas, bem como a representação de diferentes atores
envolvidos no trabalho de coleta de lixo domiciliar.
51
Para demonstrar a complexidade do trabalho dos coletores de lixo, e como estes
trabalhadores gerenciam tal complexidade economizando o corpo, determinados métodos e
técnicas de pesquisa foram empregados conforme os pressupostos da metodologia da AET
(participação dos trabalhadores e estudo de campo em situação real), e seguiram as seguintes
etapas não lineares e simultâneas (VASCONCELOS, 2000; VASCONCELOS E
CAMAROTTO, 2001; GUÉRIN et al, 2001; DANIELLOU, 2004), sem aprofundamento das
três últimas citadas abaixo:
- constituição e análise da demanda;
- descrição e análise do trabalho prescrito;
- descrição e análise do trabalho real;
- confrontação entre trabalho prescrito e trabalho real;
- propostas de transformações e recomendações ergonômicas;
- implantação de melhorias;
- validação das recomendações e difusão dos resultados.
Apresentam-se então, os métodos e técnicas empregados que corresponderam à
situação estudada, bem como os objetivos propostos. A sugestão da continuidade do processo
de intervenção tem sido proposta para a empresa, o que é dificultado pelo processo de
terceirização da coleta.
III.2- Métodos e técnicas empregados
Conforme a hipótese e os objetivos deste trabalho, e segundo os pressupostos da AET,
foi realizado um estudo de caso com os garis III de uma regional de Belo Horizonte, em que
52
foram e serão aplicadas as seguintes técnicas, no período de maio de 2004 até novembro de
2006:
Coleta de dados em documentos da empresa
Vários documentos foram cedidos e xerocados dentro da empresa, para constituir e
analisar a demanda, para descrever o trabalho prescrito e a atividade, bem como confrontá-las:
- Estudo sobre a redução, realizado em 2003 e cedido pelo departamento de psicologia do
trabalho: pesquisa realizada com moradores e diferentes setores da empresa para entender as
representações sobre a estratégia de redução.
- Teste do caminhão compactador na coleta domiciliar com redução, feito em 2005, cedido
pela psicologia do trabalho; Apesar de não ser objetivo deste trabalho comprovar que o uso da
redução é melhor para os garis e para a empresa, à pedido da Psicologia do Trabalho, um
engenheiro da empresa acompanhou dois dias de coleta, no mesmo dia de duas semanas, de
forma que levantou dados para evidenciar o desgaste do caminhão, comparando a coleta com
e sem a redução, que foram: quantidade de uso do freio, da embreagem e tomada de força
(arranque), quilometragem rodada, tempo gasto na coleta e quantidade de lixo coletado e
transportado em toneladas.
- Intervenção Psicossociológica na Coleta / Levantamento Situacional, feito em 2002 pelos
psicólogos do trabalho da empresa. Este documento foi demandado pela ex-gerente de coleta
da regional estudada ao assumir este cargo e dá uma interpretação dos psicólogos do trabalho
sobre a atividade dos garis III da regional.
- Estrutura organizacional da empresa de 2005, conforme a Lei Municipal n.9011 de 1º de
janeiro de 2005, que está em vigor atualmente, cedido pela chefia dos recursos humanos da
empresa. Organograma atual da empresa, que passou por tr6es reformas desde 2000.
53
- Descrição do cargo de gari III, cedido pela chefia de recursos humanos. Este documento está
apresentado na seção que descreve o trabalho prescrito do gari III, responsável pela coleta de
lixo domiciliar. A atividade dos garis I e II não serão estudadas. Estes trabalham,
simultaneamente, na varrição e nas multi-tarefas (como capinas ou coleta de lixo em vilas e
favelas).
- Relatórios de atividades: relatórios de produtividade da empresa, de janeiro de 2005 a
janeiro de 2006, cedidos pela diretoria de planejamento.
- Ação Civil Pública n. 75/2005 do Ministério Público do Trabalho contra a empresa, cedido
pela chefia de recursos humanos. Esta ação mostra a situação da empresa com relação a
diversas mudanças que estão e ainda precisam ser feitas. Além de demonstrar a crítica
situação que a empresa se encontra com relação à segurança do trabalho dos garis e
motoristas, mostra também a obrigatoriedade de mudar o sistema de trabalho de tarefa para
jornada, e cumprimento de uma hora de almoço.
- Manual do Candidato do último concurso da empresa, em 1998, cedido pela chefia de
recursos humanos. Este manual mostra as exigências atuais para que o sujeito possa prestar o
concurso para gari III. No último concurso eles precisaram ter no mínimo a 4ª série do 1º grau
completas e realizaram provas de português e matemática, além de passar por exames
médicos mais apropriados, como teste ergométrico. Os garis que entraram antes desta data, a
maioria dos que estão nas regionais efetivadas, não faziam prova, apenas um teste de corrida.
- Mapas dos Roteiros de Coleta dos trechos, de 2005 e 2006, cedidos pela diretoria de
planejamento. Um dos roteiros foi acompanhado durante 2 semanas seguidas.
Entrevistas não estruturadas com diferentes atores da empresa
Para descrever o trabalho prescrito e entender as representações dos diversos atores
envolvidos com o trabalho dos garis, foram feitas entrevistas não estruturadas
54
(VASCONCELOS, 2000) com os seguintes funcionários: ex-gerente de coleta da regional
estudada, diretora de planejamento, diretor de coleta, chefe do departamento de recursos
humanos, psicólogos do trabalho. Tentou-se entender como o trabalho é planejado, prescrito e
fiscalizado, e como se dá a representação dos atores de níveis hierárquicos superiores, sobre
os modos operatórios e estratégias utilizadas pelos garis em seu trabalho. Após várias
tentativas, o atual gerente de coleta da regional não concedeu entrevista.
Observação do trabalho real e registro dos modos operatórios por filmagens e
fotografias
Os garis foram observados, filmados, fotografados e entrevistados durante a realização
de seu trabalho (GUÉRIN et al, 2001). Para aprofundar no estudo da atividade, várias
guarnições foram acompanhadas durante o período de dois anos e meio. Este
acompanhamento também se fez necessário para se constituir a demanda e para se formular
hipóteses que auxiliaram na escolha dos outros métodos empregados na pesquisa. Este pré-
diagnóstico é característico das pesquisas de abordagem qualitativa: o caso a ser estudado
precisa ser previamente acompanhado para que a escolha dos métodos a serem empregados
seja adequada (ALVES-MAZZOTTI e GEWANDSZNAJDER, 1999). Um exemplo para esta
evidência, é que após alguns meses de acompanhamento e observação dos garis em trabalho,
definiu-se o uso do programa Virtual Dub 1.6, que possibilitou a transformação das filmagens
em sequências de fotos, facilitando a ilustração das técnicas corporais empregadas pelos garis
em atividade. Esta decisão se deu para se descrever a atividade dos garis da forma mais
fidedigna, já que este é trabalho bastante dinâmico, portanto, difícil de ser ilustrado.
Após um ano de observações, escolheu-se uma equipe/guarnição para ser mais
acompanhada em um de seus dois trechos de coleta, com o objetivo de aprofundar a
complexidade presente no cotidiano destes trabalhadores, principalmente a gestão desta
55
complexidade. Esta equipe participou de seções de autoconfrontação individual e coletiva,
que serão discutidas adiante.
Além disso, a equipe foi acompanhada durante 2 semanas no mesmo trecho. Também
foram filmados durante uma parte deste trecho, o que nos permitiu verificar como os garis
gerenciavam a variabilidade de sua atividade.
É importante ressaltar, que na medida em que os garis foram se acostumando com a
equipe de pesquisa, os garis se soltaram mais, e foi possível ver algumas tomadas de decisão
em equipe e até alguns conflitos internos. Aos poucos os garis também passaram a realizar
estratégias que tinham receio de evidenciar, inclusive pedindo para que as fotos não fossem
apresentadas nesta tese.
Fichas de Descrição das Atividades
Tais fichas foram elaboradas para se descrever a atividade dos garis, após o
acompanhamento e observação dos mesmos em trabalho. A atividade dos garis foi dividida
em dois tipos de coleta: “de porta em porta”, com a estratégia de "redução". As fichas
permitiram dividir o trabalho dos garis em etapas, e foram ilustradas com as fotos dos garis
trabalhando. Depois foram mostradas para alguns garis que as corrigiram e compararam o
trabalho prescrito com o real.
Análise das técnicas corporais na atividade de trabalho
Um Relatório Cinesiológico e Biomecânico da Atividade dos garis também foi
confeccionado (VASCONCELOS, 2000), com o objetivo de descrever e analisar as técnicas
corporais que os garis utilizam para realizar o trabalho de coleta de lixo.
O emprego desta técnica pode auxiliar na etapa da Constituição e Análise da
Demanda, já que permite levantar hipóteses identificando a sobrecarga física de trabalho, que
56
poderiam ser complementadas e confrontadas pela análise dos dados epidemiológicos da
empresa. Fala-se “poderiam”, porque após várias tentativas junto à Medicina do Trabalho da
empresa, descobriu-se que este setor perdeu o controle dos dados epidemiológicos, inclusive
demandando-nos esta pesquisa. Quando se tem acesso a tais dados, estes podem ser
confrontados com o relatório cinesiológico e com o Questionário de Percepção de carga
física, que após serem apresentados aos trabalhadores, permitem priorizar as situações a
serem diagnosticas e transformadas. Além disso, o relatório cinesiológico pode auxiliar na
descrição da atividade, bem como, dependendo do modelo empregado e do tipo de trabalho
pesquisado, demonstrar que os trabalhadores utilizam a cognição mesmo nas atividades
repetitivas.
As técnicas corporais e os modos operatórios foram autoconfrontados coletivamente e
individualmente, como sugere WISNER (2004). A descrição das técnicas corporais foi
aprofundada com as seções de autoconfrontação. Além disso, alguns modos operatórios dos
garis foram confrontados com a prescrição da medicina do trabalho da empresa que parece
seguir as recomendações da Escola dos Fatores Humanos. O resultado desta análise foi
intitulado como Análise das técnicas Corporais na atividade de trabalho.
Assim compararam-se alguns modos operatórios dos garis com a prescrição da Escola
dos Fatores Humanos, demonstrando porque os modos operatórios devem ser estudados antes
de serem questionados ou até mesmo modificados. Ressalta-se que a modificação dos modos
operatórios se dá também pela mudança nos dispositivos técnicos, de forma que só faz sentido
transformar conforme a sugestão dos trabalhadores e após um tempo de verificação de seus
efeitos. Entretanto esta discussão sugere um trabalho específico, bastante aprofundado.
Verbalizações simultâneas
57
Este método consiste em entrevistar os trabalhadores durante a realização de seu
trabalho, ou seja: o observador realiza perguntas durante o trabalho de forma que o
trabalhador explica as ações que realiza (LANGA, 1998; GUÉRIN et al, 2001).
As verbalizações simultâneas podem empregadas para se compreender como (e
porque) os trabalhadores agem para dar conta dos resultados esperados pela empresa e por
eles também. Além disso, para serem aprofundadas, os resultados das verbalizações
simultâneas devem ser autoconfrontados pelos trabalhadores, auxiliam na descrição das
atividades e na confrontação entre o trabalho prescrito e o trabalho real, podendo evidenciar
os conflitos entre as diferentes exigências (pessoais e da empresa), bem como o conflito entre
as diversas representações sociais do trabalho pesquisado.
Entretanto este método tem algumas limitações: enquanto permite que o observador
compreenda o operador no próprio contexto da atividade, tornando as interpretações mais
precisas, este método pode prejudicar a atividade realizada ou ser impossibilitado pelo próprio
caráter do trabalho (GUÉRIN et al, 2001).
No caso dos garis, foi possível entrevistá-los enquanto caminhavam realizando a
estratégia de “redução”, que consiste em coletar o lixo nas portas das casas e formar montes
de lixo em determinados locais de cada quarteirão. Durante a coleta feita acompanhando o
caminhão, este tipo de entrevista foi mais difícil, de forma que as entrevistas de
autoconfrontação, utilizando-se relatórios escritos, filmes e fotos foram mais indicadas.
Autoconfrontação
Como as verbalizações simultâneas ficaram dificultadas durante o trabalho de coleta
com o caminhão em movimento, foi realizada a “autoconfrontação” (LANGA, 1998, p.103),
que GUÉRIN et al (2001) chamam de “verbalizações consecutivas” (p.168). Quando
58
realizadas utilizando as filmagens, as fotos e os relatórios, a autoconfrontação coloca o
trabalhador em situação de trabalho, observando suas ações, de forma que este pode
esclarecer, tanto para o ergonomista como para ele mesmo, seus comportamentos, suas ações.
Às vezes a autoconfrontação perpassa alguns processos conscientes utilizados pelo indivíduo,
que utiliza discursos como “... eu não sabia que eu fazia isso, deste modo...” (LANGA, 1998,
p.103). Ressalta-se que a autoconfrontação não se trata apenas de apresentar dados ao
trabalhador para colher seus comentários, já que a mesma permite uma elucidação de questões
através da construção de um “diálogo” entre dados da atividade, observador e observado. Para
WISNER (2004) a análise dos comportamentos pela autoconfrontação pode dar resultados
mais ricos, não apenas evidenciando os diversos modos de trabalhar, mas possibilitando as
descrições diferentes de comportamentos adaptados, em face das dificuldades que precisam
ser vencidas. Para se entender melhor a realidade do trabalho o autor recomenda que esta
técnica seja realizada em coletivo, individualmente e também com outros atores relacionados
ao trabalho investigado (chefes, responsáveis por métodos, pessoal da manutenção, etc). Além
disso, indica um cuidado importante, que é a observação sistemática da atividade e sua
gravação em vídeo, antes da aplicação desta técnica. Desta forma, a abordagem
comportamental que resulta em fatos objetivos é complementada pela abordagem subjetiva
possibilitada pela autoconfrontação, eventualmente completada pela interpretação coletiva. A
descrição e a análise de uma atividade dependem de fatos observados e relatados que foram
atuais, ou seja, fatos históricos que também devem ser atualizados (HUBALT, 2004). Desta
forma, a autoconfrontação pode contribuir para esta tentativa do ergonomista de representar a
realidade do trabalho pesquisado.
Utilizando dados já coletados, como relatórios, filmagens e fotografias, os garis
acompanharam a leitura, complementaram a descrição das atividades, confrontaram-nas com
59
o trabalho prescrito, corrigiram os relatórios e foram questionados sobre várias características
de seu trabalho.
Para a realização deste trabalho, foi feita uma autoconfrontação coletiva com todos os
garis da regional estudada. Foram feitas várias seções de autoconfrontação coletiva com os 4
garis de uma guarnição e também seções autoconfrontação individual. É necessário
evidenciar a dificuldade de se realizar tais seções com os garis, devido ao receio destes
trabalhadores de demonstrarem estratégias proibidas para a gerência. Entretanto, foi possível
parar com alguns garis após o término da coleta, já na regional, de forma que em coletivo e
individualmente, os garis verificaram suas próprias técnicas, bem como as técnicas corporais
dos colegas, além de explicarem diversas estratégias. Muito interessante também foi notar,
tanto em coletivo como individualmente, o caráter subconsciente das estratégias corporais
revelados pelas seções de autoconfrontação. Além disso, a autoconfrontação coletiva foi bem
recebida pelos garis, que se divertiam observando-se e observando os colegas, inclusive
demonstrando o quanto estavam se sentindo valorizados, vendo o quanto sua movimentação é
rica e interessante.
Questionário de percepção
O questionário de percepção proposto pela equipe de pesquisa Ergo&Ação
(DEP/UFSCar) foi adaptado e aplicado com alguns garis III da regional estudada (ANEXO
A). O objetivo deste questionário foi identificar as prevalências de desconforto e dores
osteomusculares, identificar quais momentos do trabalho de coleta os garis mais sentiam
como causadores de tais sintomas, e verificar a que estratégias os garis recorriam para
conseguirem trabalhar com as dores. Além disso, o questionário pretendia investigar quais
EPIs (Equipamentos de Proteção Individual) eram usados pelos coletores, quais eles não
gostavam de usar e porque ano usavam ou não gostavam.
60
A aplicação deste questionário foi prejudicada em dois momentos, como comentado
no fim da demanda. Os garis tiveram receio de responder o questionário, visto que a empresa
encontra-se em constante processo de terceirização dos trechos de coleta, e que os garis
parecem crer na ocorrência faltas por causa das dores osteomusculares como o principal
indicativo para a gerência transferir os garis dos trechos terceirizados como reservas de outras
regionais.
Apesar de os dados de prevalência de desconforto e dores não terem sido levantados,
foi possível identificar, pela fala dos poucos garis que responderam o questionário, algumas
técnicas corporais que eles usam para trabalhar com as dores, e ver quais os EPIs dificultavam
seu trabalho.
Entrevistas coletivas
Para aprofundar o entendimento sobre a atividade dos garis e confrontá-la com o
trabalho prescrito, foram realizadas entrevistas coletivas de forma não estruturada
(VASCONCELOS, 2000), com os todos os garis da regional estudada, e com os garis de uma
mesma guarnição. Então os garis relataram os problemas que estavam enfrentando naquele
momento de mudança organizacional e mudança de gerência, demonstrando a representação
que eles tinham e passaram a ter da empresa em que trabalham. Os garis também relataram
porque não trabalham como a medicina do trabalho “ensina”, confrontaram as hipóteses
levantadas pelo Relatório Cinesiológico e Biomecânico com o possível acometimento de
desconforto e dores osteomusculares e falaram dos acidentes que mais os acometem durante
seu trabalho. A entrevista coletiva não estruturada, feita com todos os garis e motoristas da
regional, também serviu para comparar sua percepção sobre o trabalho feito com e sem a
estratégia de "redução", de forma que demonstraram como esta estratégia diminui a carga de
trabalho e diminui o risco de acidentes.
61
IV- Resultados
62
IV.1- A demanda
63
A demanda inicial para este trabalho partiu da Psicologia do Trabalho da empresa,
visto que a diretoria de coleta não reconhecia oficialmente o uso de uma estratégia usada
pelos garis, a "redução", deixando a cargo dos gerentes de cada regional permitir ou não seu
uso.
A diretoria de coleta não acreditava na posição dos garis, e queria comprovar se o uso
da “redução” realmente demandava menor carga de trabalho para os mesmos e para o
motorista, além de diminuir a quilometragem rodada pelo caminhão e seu desgaste, durante o
trecho de coleta prescrito pela divisão de planejamento da empresa.
A demanda de se estudar a gestão da complexidade do trabalho dos garis ocorreu
devido às constantes situações de variabilidade, imprevistos e até mudanças organizacionais
que surgiram durante o acompanhamento do trabalho das equipes de coleta (ou seja, a partir
da representação da complexidade observada pelos ergonomistas). Também começou-se a
observar que algumas dessas ocorrências eram possíveis de administrar e outras que os garis
não possuíam autonomia para lidar. Essas últimas, geraram insatisfação por parte dos
trabalhadores de diferentes níveis hierárquicos, representações que estão apresentadas nos
resultados da pesquisa, características do estudo da complexidade. Além disso, em novembro
de 2005, mudou-se o sistema de trabalho por tarefa para jornadas de 8 horas com imposição
de 1 hora de almoço, o que causou grande conflito entre os atores envolvidos. Em outubro de
2006, vários trechos foram terceirizados e os garis foram remanejados para outras regionais
como garis reserva e o cumprimento de jornada de 8 horas e horário de almoço deixaram de
ser obrigatórios. As equipes que se mantiveram, tiveram seus trechos modificados. As
mudanças têm sido implementadas de forma abrupta e autoritária, demonstrando a
desconsideração, por parte da empresa, da complexidade do trabalho dos coletores, que
precisam se adequar e encontrar formas de pouparem-se no uso de seu corpo, procurando
evitar lesões e acidentes. Por fim, esta demanda também é justificada pela pequena quantidade
64
de pesquisas em ergonomia que estudam a gestão da complexidade de trabalhos socialmente
considerados mais simples, como no caso do coletor de lixo domiciliar, o gari III, bem como a
relação desta gestão com a economia do corpo.
65
IV.1.1- A caracterização da demanda
A empresa estudada
O serviço de limpeza urbana da cidade era terceirizado desde 1903, e não
acompanhava o crescimento populacional, principalmente das periferias. Esperava-se que o
pessoal que trabalhou na construção da capital mineira retornasse para seus estados de origem
após o término da mesma. No entanto isso não ocorreu. Mais que isso, uma cidade que foi
projetada no início do século para ter no máximo 200 mil habitantes, atingiu um total de 208
mil já no ano de 1938 (SANTOS, 2004). A Tabela 02 demonstra o crescimento populacional
de Belo Horizonte, desde a sua construção. A crescente industrialização a partir da década de
40 contribuiu ainda mais para o aumento populacional do município.
Tabela 02: Crescimento populacional de Belo Horizonte conforme
Anuário Estatístico de Belo Horizonte. Adaptado de SANTOS, 2004, p.25.
ANO POPULAÇÃO
1900 13.472
1910 33.245
1920 55.563
1930 116.981
1940 214.307
1950 370.000
1960 693.328
1970 1.235.030
1980 1.780.855
1991 2.020.026
2001 2.400.000
66
Em 1971 ocorreu uma tragédia na “Boca do Lixo” (Morro das Pedras), local onde o
lixo era despejado e onde moravam mais de 300 pessoas sobrevivendo daquele lixo. Em 16 de
novembro daquele ano, uma enchente provocou o deslizamento da montanha de lixo, matando
mais de 15 pessoas que ali viviam. Houve uma mobilização da população, exigindo da
prefeitura uma humanização dos serviços de limpeza urbana e uma solução para a destinação
final deste lixo. No ano de 1972 o município passou por um diagnóstico da situação da
limpeza urbana, feito por uma empresa de consultoria em engenharia sanitária do Rio de
Janeiro. Então, em agosto de 1973, foi criada a Superintendência de Limpeza Urbana (SLU),
conforme a Lei Municipal n. 2220. À empresa foram determinadas as seguintes funções:
coordenar, planejar, executar e fiscalizar os serviços de limpeza pública da cidade. A empresa
deixou claro seu caráter absolutamente técnico, que tentasse aproveitar o que houvesse de
mais moderno em termos de conhecimento sobre o assunto, além de ter uma estrutura baseada
na concepção de que a cidade iria continuar crescendo. Implantou-se também o aterro
sanitário, respeitando os parâmetros técnicos da época e proibindo a circulação de pessoas não
autorizadas no local. As condições de trabalho dos garis também melhorou, e acabou-se com
a exposição à fumaça que exalava da “Boca do Lixo”.
Atualmente a empresa é mista entre autarquia e prefeitura, histórico que tem causado
falta de investimentos em concursos e compra de equipamentos. A proposta inicial da
autarquia era prestar serviços apoiados em critérios técnicos, conforme princípios de
gerenciamento. A partir da implantação da primeira Reforma Administrativa (Lei n. 1284 de
30/12/2000), as atribuições do gerenciamento da limpeza urbana de Belo Horizonte foram
transferidas para a Secretaria Municipal de Limpeza Urbana (SLMU).
Foram feitas 3 reformas desde 2000, conforme relatou a chefe dos recursos humanos
da empresa. Disse que o resultado atual é a última reforma, de modo que a empresa tem uma
67
parte de administração direta (prefeitura) e outra indireta (enquanto autarquia), e
necessariamente existe uma interface entre ambas.
Além de confundir os funcionários da própria empresa com relação à estrutura
organizacional e às funções específicas de cada parte, para um dos psicólogos do trabalho da
empresa, esta reforma administrativa enfraqueceu sua dimensão técnica e fortaleceu sua
dimensão política. Ele relatou também que a partir de 2000 houve uma aceleração do processo
de terceirização dos serviços, proposta pela prefeitura. Desta forma, há uma ausência de
investimentos em manutenção e compra de equipamentos, bem como falta de contratação de
garis, problema visível para quem acompanha o trabalho dos coletores de lixo.
Atualmente a empresa é composta de 4 diretorias: operacional, planejamento e gestão,
jurídica e administrativo-financeira. Tem aproximadamente 1900 funcionários, sendo que em
1992 seu quadro total de funcionários era de aproximadamente 5000, conforme relatou a
chefe de RH.
A cidade é dividida em 9 regionais. Destas, quase todas estão com o serviço de coleta
terceirizado total ou parcialmente. As empresas terceirizadas são denominadas pela empresa
como “contratadas”, e atualmente são responsáveis por mais de 70% do serviço de coleta de
lixo domiciliar da cidade. Cada contratada possui garagem e oficina próprias, separadas de
cada regional da empresa. Em cada regional há funcionários da prefeitura e da autarquia.
Desta forma, a varrição é responsabilidade da prefeitura e a coleta de lixo domiciliar é
responsabilidade da autarquia.
Na empresa, o gari III insere-se na Divisão de Coleta da Seção de Operação, que faz
parte da Diretoria Operacional. É na Seção de operação que está localizada cada regional
(Figura 01).
Cada regional da cidade faz parte da Diretoria Operacional, que é dividida em dois
departamentos:
68
- departamento de tratamento e disposição de resíduos;
- departamento de serviços de limpeza, este dividido em três divisões:
- divisão de coleta, em que estão situadas as regionais ou seções de operação;
- divisão de coleta seletiva (feita por enquanto nos bairros de classe alta);
- divisão de manutenção de máquinas e equipamentos.
Figura 01: Representação da regional dentro da diretoria operacional.
Dentro da Seção de Operação, o gari III está subordinado ao gerente de coleta
domiciliar e possui um chefe direto, o motorista que é o líder da equipe (Figura 02). Uma
equipe, ou guarnição, é composta de 1 motorista e 4 garis, que possuem 1 ou 2 trechos fixos.
As equipes que possuem 2 trechos coletam em dias alternados para cada roteiro de coleta.
Diretoria
Operacional
Divisão
de
Coleta
Seção
De
Operação
(9 Re
g
ionais)
69
A empresa tem atualmente 906 garis, que se subdividem em gari I, II e III. O gari I
trabalha na varrição e capina, o gari II trabalha no que a empresa chama de multi-tarefas
(coleta de lixo domiciliar em vilas e favelas), e o gari III é o responsável pela coleta de lixo
domiciliar. Então a empresa tinha, em maio de 2006, 428 garis I, 178 garis II e 300 garis III.
A chefia de RH não sabe dizer quantos garis são terceirizados, relatando contratar tais
empresas pelo seu serviço, e apesar de ser responsável pela fiscalização das condições de
segurança dos mesmos. SANTOS (2004) relata ainda a necessidade de estudos que
aprofundem as condições de trabalho dos garis das empresas terceirizadas de Belo Horizonte.
Figura 02: Organograma representando os cargos dos funcionários
responsáveis pela coleta de lixo domiciliar, dentro da seção de operação.
O último concurso foi em 1998, então há 9 anos a empresa não contrata novos garis.
De acordo com o relatório de atividades da empresa referente a março de 2004, haviam 319
garis efetivados e 616 garis de empresas terceirizadas, o que representava quase 70% do
contingente total de trabalhadores (SANTOS, 2004, p.45), e que demonstra uma desconexão
entre os dados fornecidos pela chefia de RH e a pesquisa deste autor.
O gari III tem a faixa salarial maior que os garis I e II, que está por volta de R$ 329,21
e abono de R$ 56,00. Os outros dois, recebem R$ 283,00 mais 2 abonos: um complementa o
salário mínimo de 300 reais e outro de R$ 57,00. Todos possuem alguns benefícios, como
Gerente de
coleta
Motorista II
Gari III
Escriturários
70
vale lanche, vale refeição e passe de ônibus. Desde 2001, os garis podem pagar por um plano
de saúde familiar médico e odontológico, que é descontado na folha de pagamento. Também
há um auxílio educação para crianças excepcionais e auxilio creche para crianças de até 7
anos. Também contam com um auxílio funeral, no caso de morte de um dos pais, cônjuge ou
filhos. O gari também recebe um aumento de 10 por cento do salário a cada 5 anos, o
qüinqüênio. Conforme NR-15 da portaria 3214 do Ministério do Trabalho de 03/06/1978, o
trabalho de coleta de lixo domiciliar é considerado insalubre em grau máximo. O gari III
recebe R$ 120,00 mensais de insalubridade. Assim, conforme dados do RH, um gari III que
está na empresa há 15 anos, recebe por volta de R$ 520,00 mensais (dados referentes a abril
de 2006).
O gari é admitido via concurso público, e a exigência mínima e que ele tenha até a 4ª
série do ensino fundamental. Atualmente, é feito um exame médico admissional, em que o
gari III faz, além de outros exames médicos, um teste ergométrico. O objetivo deste teste é
verificar o condicionamento físico do indivíduo. O indivíduo hipertenso não pode ser gari III.
Antes deste último concurso o gari não fazia prova escrita, apenas um teste de corrida, o que
demonstrava, junto com o registro de “braçal”, que a empresa pensava que para ser gari era só
ter pernas e braços.
Como a empresa tem passado por vários processos de terceirização, os garis têm se
aposentado e aqueles que ficam são remanejados como garis reserva das regionais efetivadas,
ou passam a trabalhar num sistema de coleta em vilas e favelas. A chefia dos recursos
humanos se posiciona contra a terceirização de mais trechos das regionais e está aguardando a
autorização para a abertura de novo concurso. Manifesta uma preocupação mais específica
com o fato de os garis estarem envelhecendo e se aposentando.
A diretoria de coleta havia afirmado que não iria terceirizar mais nenhum trecho em
novembro de 2005, realizou mais uma grande terceirização de forma autoritária e repentina
71
em setembro de 2006. Desta forma, a regional estudada, que contava com 24 garis, conta hoje
com 12 garis. Os outros foram remanejados como garis reserva de outras regionais e os que
ficaram tiveram seus trechos modificados, com exceção de uma guarnição que manteve um de
seus trechos.
A regional estudada
A regional estudada, como as outras regionais, possui funcionários da administração
direta (prefeitura) e indireta (autarquia). A coleta de lixo domiciliar da regional estudada
contava, até outubro de 2006, com 6 guarnições de 24 garis III, mais 10 garis reserva. Devido
à terceirização de mais trechos, atualmente restaram 2 guarnições de 08 garis, mais 4 garis
reserva.
Os garis reserva são aqueles que foram remanejados dos trechos terceirizados. É
importante ressaltar que a empresa não possui dados de absenteísmo para cada regional, sendo
que o serviço de atendimento médico foi terceirizado para um convênio médico, o que
dificulta o acompanhamento do estado de saúde dos trabalhadores. Esta dificuldade é
agravada pela constante terceirização de trechos com remanejamento dos garis. Conforme
relato da médica do trabalho, quando ela consegue fazer uma lista dos garis de cada regional,
tudo muda abruptamente, prejudicando o serviço da medicina do trabalho.
A regional estudada foi escolhida para o aprofundamento deste trabalho porque era a
única regional em que a gerência reconhecia o uso da estratégia de "redução". Esta mesma
gerente demandou um Levantamento Situacional, feito em 2002, em que os psicólogos do
trabalho da empresa descreveram a atividade dos garis III, o que a fez reconhecer o uso da
estratégia de “redução” como benéfica para empresa e para os garis.
Quando a Diretoria Operacional começou a se reunir com os gerentes de coleta, houve
conflito entre a gerente desta regional com a diretoria, por causa do reconhecimento da
72
estratégia de “redução”. Após tal reunião, e a coincidência da mudança do sistema de tarefas
para jornada, houve protestos dos garis e da gerente que os apoiava. Esta acabou por pedir
transferência para outro cargo da empresa. Os garis estavam acostumados a ter reuniões
esporádicas com a gerente e tinham uma boa relação com ela. Um antigo gerente da regional
estudada ocupou o cargo. Apesar de permitir a estratégia de “redução”, o novo gerente age de
forma autoritária com os garis, o que tem causado a insatisfação dos garis com a empresa. Por
exemplo, quando há algum conflito interno devido a novas mudanças organizacionais, o
gerente ameaça que vai proibir a "redução". Sendo reconhecida apenas informalmente, o
gerente pode usar sua proibição como ameaça. Quando o sistema de tarefa foi mudado para
jornada, os garis foram obrigados a ficar na regional até o fim da jornada. Como eles se
sentiram entediados, organizaram um “sopão”, em que cada gari levou alguns ingredientes de
casa. Contaram que, quando o gerente os viu, desligou o fogo e proibiu a sopa. Quando os
garis foram filmados durante um mês, o mesmo gerente aproveitou o momento para dizer que
as filmagens da equipe de pesquisa em ergonomia iriam evidenciar a “catação”, a separação
dos recicláveis feita em trabalho, que também era proibida, porém tolerada pela direção. Até o
fim da coleta de dados, o gerente também não quis ceder entrevista para a equipe de
ergonomia.
Devido ao histórico de se pesquisar inicialmente a estratégia de “redução”, esta análise
acabou por limitar-se à realidade desta regional, já que a as regionais diferem bastante de uma
para outra. Não apenas o relevo da cidade é bastante diferente de uma regional para outra,
como também o trânsito, os trechos e roteiros prescritos, e até a relação dos garis com a
população. Também difere bastante a forma como cada gerente relaciona-se com os garis.
Assim, a AET acabou por ser realizada nesta regional específica, com o objetivo de estudar
como os garis economizam o corpo gerenciando a complexidade no cotidiano do trabalho de
coleta de lixo domiciliar.
73
IV.2- Trabalho prescrito e trabalho real
74
O trabalho prescrito está apresentado conforme o documento da empresa intitulado
“Descrição do cargo do Gari III” (p. 17 e 18). Apesar desta pesquisa estudar o trabalho do gari
que faz a coleta de lixo domiciliar (há garis III que fazem coleta do lixo hospitalar),
apresentaremos o documento inteiro:
“Descrição sumária (objetivo do cargo):
- desenvolver atividades operacionais de coleta de lixo domiciliar, hospitalar e
especial, para fins de transporte e destinação final.
Descrição detalhada (atribuições):
- coletar o lixo domiciliar, resíduos sólidos especiais, inclusive lixo hospitalar e
laboratorial, conforme programação estabelecida, para fins de transporte e
destinação final;
- recolher resíduos caídos no piso no ato da coleta, com uso de ferramental
apropriado, para manter a limpeza local;
- operar nos veículos especiais ou equipamentos compactadores de lixo e de resíduos
sólidos, para racionalização do serviço;
- executar o recolhimento dos containeres e caçambas estacionárias, operando os
equipamentos próprios e recobrindo-os com lona, quando necessário, para fins de
transporte e destinação final;
- coletar animais mortos de pequeno porte, utilizando ferramental adequado para a
limpeza local;
- preparar a carga uniformemente no veículo convencional, cobrindo com lona e
amarrando com corda, para contenção dos resíduos;
- dirigir-se até locais de destinação final, para auxiliar na descarga dos resíduos;
- auxiliar o motorista em caso de manobra do veículo, orientando-o para maior
segurança operacional;
- zelar pelo uso e guarda do ferramental específico, para evitar extravio e prejuízo
das atividades;
- executar outras tarefas, de acordo com as atribuições próprias de sua unidade
administrativa e da natureza do seu trabalho, conforme determinação superior;
Pré-requisitos e requisitos desejáveis:
- Aprovação em testes de avaliação médica (condicionamento físico).”
IV.2.1- A organização do trabalho do gari
O horário de entrada:
Os garis batem o ponto as 7:30 horas. Saem da garagem com o caminhão para fazer a
coleta por volta das 8:30 horas, horário considerado tarde pelos garis, já que chegam na
regional uma hora antes e relatam em meia hora coletarem em vários quarteirões e que,
75
quanto mais tarde saírem, mais tempo ficarão expostos ao calor e ao sol. Um gari relata sua
insatisfação com o horário determinado para a saída da regional:
“Em trinta minutos bate 5 ou 6 ruas! É tarde! Oito horas a gente tinha que tá na
rua.”.
O horário de saída:
Oficialmente as 16:20 horas, e ao sábado as 11:30 da manhã.
Até novembro de 2005 saíam quando acabava a coleta. Depois o sistema de trabalho por
tarefa foi substituído por sistema de jornada. Esta nova imposição, devido a uma Ação Civil
Pública Nro 72/2005, do Ministério Público do Trabalho, deixou os garis bastante insatisfeitos
com a empresa, primeiro porque sabem que os garis terceirizados cumprem jornada por tarefa.
Segundo por esta mudança ter coincidido com a mudança de gerente.
Devido à mudança do sistema de tarefa para jornada, os garis passaram várias semanas
sem ter o que fazer no período após o término da coleta. A nova gerência proibiu o almoço
coletivo e retirou a TV da sala que passavam a tarde. Após 4 meses o relógio de ponto
quebrou e os garis atualmente os garis saem da regional após o término da coleta. Além disso,
não são obrigados a fazer uma hora de almoço. Há permissão da diretoria de coleta que conta
que os garis tomam lanches leves para almoçarem na regional após terminarem a coleta. Para
os garis, o único aspecto negativo da quebra do relógio de ponto é não receberem mais horas
extras, geralmente quando o caminhão quebra.
Total de horas semanais:
Oficialmente os garis devem cumprir um total de 44 horas de trabalho por semana.
Entretanto a regional utiliza abonos para liberar os garis mais cedo.
76
IV.2.2- O planejamento da coleta
Historicamente, o setor de planejamento da empresa foi criado na década de 80, a
partir do 1º Plano Diretor de Limpeza de Belo Horizonte. Estabeleceu-se que este setor teria a
missão de planejar os serviços de limpeza urbana. As principais razões para a implantação
deste setor foram o estado de precariedade em que se encontravam os serviços oferecidos pela
empresa, bem como a necessidade de maiores eficácia e operacionalidade. As equipes de
coleta não possuíam roteiros fixos, os munícipes não sabiam quando a coleta seria feita na
porta de suas casas e os garis, que chegavam a correr trechos de 42 quilômetros por dia,
costumavam dormir no próprio caminhão. Precisavam correr bastante e rápido, já que os
trechos eram grandes e os motoristas precisavam manter um ritmo intenso.
Apesar de o planejamento ser feito sem a participação do gari, a implantação deste
setor melhorou significativamente suas condições de trabalho. O planejamento impediu que se
fizesse mais de 3 viagens diárias, e diminuiu consideravelmente a quilometragem dos roteiros
de coleta, que antes eram feitos pelo próprio motorista. Criou-se também a "redução"
planejada, a partir da "redução" que já era feita pelos garis, inclusive reconhecida pela
empresa, que deu este nome a esta estratégia, por verificar que ela diminuía a quilometragem
do itinerário do caminhão. Falaremos sobre a estratégia de "redução" mais a frente deste
trabalho.
Atualmente os roteiros feitos pelos garis efetivados não excedem 14 quilômetros. Já os
realizados pelas empresas terceirizadas atingem uma média de 18 quilômetros por dia. A
diretora de planejamento relata que os garis efetivados são mais velhos que os garis das
terceirizadas. Procuram então poupar os garis efetivados, o que demonstra um detrimento das
condições de trabalho para os garis terceirizados. Além disso, ficou estabelecido que a coleta
não pode ser feita com guarnições incompletas (menos que 4 garis), de forma que atualmente
77
os garis dos roteiros que foram terceirizados são atualmente os garis reserva dos trechos
efetivados.
O planejamento da coleta de todos os trechos e roteiros a serem percorridos é feita
pela Diretoria de Planejamento, que é subdividida em 3 departamentos:
- Departamento de projetos;
- Departamento de planejamento;
- Departamento de programas especiais.
Todos os motoristas precisam preencher um “diário de coleta” que indica dados como:
data, quilometragem diária, massa coletada, número de viagens, dentre outros, que são
estudados e registrados mensalmente pela seção de estatística, que faz parte do departamento
de projetos. Baseando-se nestes dados e nos mapas de cada trecho é que são definidos os
roteiros.
O motorista daquele trecho é convidado a acompanhar um cadastrador (seção de
cadastro) e um funcionário que participou do planejamento, para realizarem as mudanças
necessárias. A mudança dos roteiros depende da mudança do trânsito ou da sugestão do
motorista. Assim um cadastrador acompanha a coleta durante uma ou duas semanas e, junto
com o motorista, realiza as mudanças sugeridas e necessárias. Entretanto um fato interessante
acontece: quando o cadastrador acompanha a coleta, os garis não realizam várias estratégias
que são proibidas pela empresa, mas que diminuem a carga de trabalho para o motorista e
para os garis, aumentam a segurança, diminuem a quilometragem rodada e o tempo de coleta.
Além de planejar os trechos e roteiros, o departamento de planejamento tem a função
de fiscalizar se a guarnição está cumprindo os roteiros prescritos. Desta forma, os roteiros se
baseiam nos antigos e raramente mudam, exceto quando há mudança no trânsito das ruas e
avenidas ou quando diminuem o tamanho de um trecho.
78
Ao comentarem como o trabalho é planejado, os garis relatam que não participam do
planejamento:
“- Planejar detrás de uma mesa é muito fácil. O cara senta, pega o mapa e vai
planejando.
- Agora, quem coloca em prática somos nós, que estamos atrás do caminhão.
Num escutam nós também, né! Se chamassem pra uma reunião fazer o trecho...
Quem tem que fazer este planejamento somos nós que estamos na atividade.
- Por que não estão? (Entrevistador)
- Porque nós num temos oportunidade! Eles num dão.
- Eles chamam o motorista, né! (Entrevistador)
- Só depois que tá pronto. Tá pronto o mapa eles mostram.
Mas isso faz mais é pra prejudicar a gente. A gente trabalha muito tempo naquele
lugar ali, ce entendeu? Já tem aquelas coisas, faz isso é pra tirar docê mesmo.
Parece que é pra sacanear, sabe?
- E quando o planejamento vem com o mapa do roteiro todo que vocês têm que
seguir, vocês podem mudar este roteiro? (Entrevistador)
- Pode assim, quando tiver um cadastrador aí pode mudar, ele vai anotar e
passar pra eles.
- Mas no dia a dia naturalmente vocês mudam? (Entrevistador)
- Não. Igual eu tô te falando: no dia a dia num pode mudar não. Tem que fazer
aquele roteiro certo. Quando tem um cadastrador, ele vai levar pra eles, pra ver
se tá certo ou se não.
Mas na prática acaba tendo que mudar. Principalmente quando tem um
imprevisto, como hoje por exemplo (quebrou o caminhão), vai entrar 2 caminhão.
Agora na parte da tarde para acabar o trecho. Um vai pegar até a primeira
viagem e depois o outro, quer dizer, vai mudar, né!”
79
- Pela conversa que tive com o planejamento eu senti que vocês têm um certo
poder de negociação. O trabalho que é prescrito é diferente do trabalho que é
feito, né! (Entrevistador)
- Esse diálogo que você tá falando aí acontece depois que nós tivemos uma
grande superintendente que ajudou nós muito. O pouquinho que nós somos visto
pela comunidade e até mesmo aqui na empresa ... foi ela que ajudou nós muito.
Dra E K.
- E hoje quem é o superintendente? (Entrevistador)
- Ah! Rapaz, nós nem conhece direito. Num chegou a apresentar pra nós nem
chegou aqui no pátio e falou “eu sou a superintendente!”. Antigamente, até a
última vez, essa mulher que nós tamo falando tanto nela, chegou no pátio e falou
“eu sou a superintendente!”. Apresentou pra nós, todas as divisões. Agora não,
eu... se falar que eu conheço a nova, eu não conheço ela.
Antigamente todo que era nomeado encarregado, ou diretor ou qualquer coisa
que é hierarquia, todos eram apresentados. Hoje não tem isso mais não. Procê vê
o quanto nós perdemos a dignidade. Antes era apresentado, chegava, falava...
dava até pra trocar idéia. Hoje, cê viu!”
Mas a realidade é que a ex-gerente relata ter convidado os garis para participarem do
planejamento, sem saber do relato acima, que foi no mesmo dia, porém mais tarde que o
relato dela:
“...na reunião, quando eu fiz com cada pessoal o porque, que a gente tinha
solicitado esse trabalho já há um tempo, que agora o planejamento poderia estar
nos atendendo, então eu fui colocá-los a par... pra eles estarem até
contextualizados aí, eles mesmos, né, a questão do dia a dia do trabalho deles. E
foi até muito bem aceito, porque a questão da densidade demográfica, o trabalho
cresceu demais, tem muita gente mudando pra essa área e exatamente a área que
tá em obra, tá melhorando o projeto, né, pra eles terem um reflexo no dia a dia
deles positivo e coloquei / deixei em aberto, sabe? Essa questão no momento da
aprovação do roteiro, se eles gostariam de tá participando. Mas é engraçado!
Eles elegem o motorista. Bateu com o que é proposto aqui pelo planejamento.
80
Sabe? Eu reuni assim, separadamente com cada uma das equipes e todas tiveram
o mesmo pensamento. “ah! Num precisa da gente não! O motorista mesmo, é ele
que tá dirigindo, então ele mesmo, o que ele decidir lá e eles informam os garis.”
Porque eu reuni a equipe toda, né! Os cinco.”
Naquela semana o trabalho por tarefa havia sido mudado para jornada, então os garis
estavam revoltados com a empresa. Por este motivo eles falaram que nunca foram convidados
a participar do planejamento, que a empresa não está respeitando o gari e que agora eles não
têm mais a quem recorrer.
A ex-gerente desta regional, bem como a diretora do planejamento reconhecem que o
trabalho prescrito é diferente do real, mesmo porque a gerente já trabalhou no planejamento
antes:
“A minha opinião, até então, é que o nível de detalhamento do projeto de coleta é
imenso, porque a gente lida com muitas variáveis. E quando a gente trabalha um
projeto e depois cê vai e trabalha operacionalizando este projeto fica mais
evidente ainda, eh, a questão que o projeto é uma estimativa, né, seja em que área
for, importantíssimo, porque é um direcionamento...”
Apesar de ter sido falado em entrevista com o diretor de coleta que mais nenhum
trecho iria ser terceirizado, em setembro de 2006 metade dos trechos da foram novamente
terceirizados, e os garis foram remanejados como reservas de outras regionais. A queixa dos
garis de que as mudanças são colocadas de forma abrupta e autoritária é real, e demonstra o
desconhecimento da amplitude da complexidade do trabalho de coleta. Conforme relatou um
gari, as mudanças causam insegurança e eles precisam se adaptar continuamente, sentindo-se
insatisfeitos e desanimados com o trabalho:
“- Esses dias está tumultuado. A gente fica todo enrolado. Vamos ver se a gente
acostuma, né!
81
- Nós tamos assim: não temos salário, não temos respeito e nem dignidade. A
chefia em si impõe isso pra nós.”
Os garis demonstram como é penoso não saber das mudanças que os afetam
diretamente no trabalho:
“- Eu tava comentando até com ele aqui ó: fisicamente eu tenho vontade de
trabalhar mais uns cinco, seis anos. Mas psicologicamente, cada dia que vai
passando, a gente vai chegando e tem uma conversa, uma conversinha...”
“- O problema tá é aqui, num tá na rua, né!”
“- Não tá, num tá. Cê tá trabalhando bem, o pessoal gosta da gente, a gente gosta
de trabalhá... eu pelo menos gosto muito de trabalhá... mas só que, cada dia vai
ficando mais difícil de trabaiá. A gente fica preocupado, preocupação, será o que
vai acontecer com nós aqui, será que amanhã eu vou tar trabalhando, será que eu
vou trabalhar amanhã, será que... um fala que nós vai pra prefeitura, outro fala
que nós vai pra outro lado... aí a gente fica todo, a gente fica pensando... todo... o
que será de nós uma hora?
“- Minha esposa eu chego em casa ela pergunta: como é que foi seu dia? Ih!
Todo dia é uma coisinha a mais. A rua é o que compensa...”
IV.2.3- O fluxo do trabalho prescrito
O setor de planejamento prevê que a coleta deve ser realizada de porta em porta, com
o gari pegando o lixo das calçadas ou cestos e arremessando ou colocando dentro do cocho do
caminhão. Conforme o Decreto n. 1839 de 1976, o gari só deve coletar o lixo domiciliar que
tenha sido acondicionado em sacolas de supermercados ou sacos plásticos, mudança que se
deu gradualmente, devido à carência deste tipo de material no mercado. Conforme explica
SANTOS (2004, p. 44), consta no Regulamento de Limpeza Urbana do Município de Belo
Horizonte de 1998 o seguinte artigo:
82
“Entende-se por acondicionamento o ato de embalar em sacos plásticos ou em outras
embalagens descartáveis permitidas, bem como o de acomodar em contenedores ou
em recipientes padronizados os resíduos para fins de coleta e transporte.”
Esta mudança facilitou a coleta do lixo, mas aumentou as lesões causadas por
elementos pérfuro-cortantes, que antes eram acondicionados em latões de lixo. Atualmente, o
munícipe tem obrigação de acondicionar o vidro quebrado e objetos pérfuro-cortantes de
forma que fiquem seguros ao serem manipulados pelo gari. O gari não deve levar lixo
acondicionado em latões e bacias, nem pode levar entulhos. Restos de poda de jardins ou de
quintais podem levar no máximo 3 sacos por munícipe. Mas eles levam restos de pode, sacos
com entulhos e até móveis velhos, por estabelecerem uma relação de troca com a população:
uso do telefone em caso de emergência, para tomar água, por exemplo. O gari tem obrigação
de recolher o lixo que cai no chão na hora da coleta, apesar de a cidade contar com o serviço
de varrição. Além disso, conforme regra da empresa, o gari não pode estocar lixos recicláveis
fora do cocho.
Quanto à forma de coletar o lixo, o trabalho prescrito deveria acompanhar o seguinte
fluxo (Figura 03):
83
Figura 03: Fluxograma do trabalho prescrito. A letra V simboliza momentos em que o gari separa o lixo
reciclável, faz a compactação do lixo, ou realiza pausas.
Conforme a Figura 03, vê-se o ciclo básico da atividade de coleta de lixo domiciliar.
Conforme o trabalho prescrito, o gari deveria se deslocar acompanhando o movimento do
caminhão durante todo o roteiro. Ainda, conforme o trabalho prescrito, a permanência sobre o
estribo só deveria ocorrer quando o caminhão fizesse deslocamentos maiores dentro do trecho
ou no caminho entre a regional e o ponto de coleta. Também é responsabilidade do gari fazer
o que chamam de “prensagem do lixo”, que é a tarefa de compactar o lixo que está no cocho
para dentro do baú do caminhão. Há momentos em que os garis também separam o lixo
reciclável que deixam um tempo sobre o estribo e também aquele que já está dentro do cocho
do caminhão. Eles também realizam pausas para conversar com moradores, ingerir líquidos
ou tomar lanches. Também entram em estabelecimentos comerciais. Estas atividades estão
representadas na Figura 03 como letra V (variações no ciclo).
Salta do estribo
Desloca até o lixo
Pega organizando
nas mãos
Desloca até o
caminhão
Arremessa o lixo
Sobe no estribo
V
Permanence
sobre o estribo
84
IV.2.4- Os jargões empregados pelos trabalhadores
Antes da descrição da atividade de coleta é preciso demonstrar os principais jargões
usados pelos trabalhadores e descrever as partes dos caminhões.
- trecho ou roteiro: são as ruas, é o caminho prescrito pela Diretoria de Planejamento, que a
equipe (guarnição) precisa percorrer para realizar toda a coleta.
- viagem: é uma parte, uma subdivisão de um trecho.
- bater, bateção: significa pegar o lixo e jogar no cocho do caminhão.
- prensar: processo de compactar o lixo para dentro do baú do caminhão.
- guardados: são as remunerações em dinheiro, alimentos dentre outras trocas realizadas entre
os garis e os munícipes.
- catação: produtos recicláveis que são vendidos pelas guarnições.
- redução: estratégia planejada ou não, em que as equipes se dividem em duplas. Uma dupla
se desloca a pé fazendo montes de lixo em alguns locais de cada quarteirão. Depois a outra
dupla coleta o lixo dos montes.
- madrinhas e padrinhos: são os munícipes que aguardam os garis com água, sucos e lanches.
IV.2.5- Os dois tipos de caminhão: PPT e Ford
Historicamente a coleta de lixo domiciliar era feita por carroças. Depois passou a ser
feita em caminhões com a caçamba aberta. Então o gari que coletava precisava lançar o lixo
para o alto e o gari ficava dentro da caçamba precisava acomodar o lixo manualmente. O gari
que ficava embaixo costumava machucar os olhos com grande freqüência e o gari que ficava
na caçamba em contato direto com o lixo costumava beber e passar álcool no corpo na
tentativa de eliminar o cheiro que ficava impregnado em sua pele.
Para Santos (2004), nos relatos dos garis, a substituição dos caminhões alterou o modo
como realizavam o seu trabalho, eliminando de sua atividade as tarefas de “armazenar” o lixo
na carroceria dos caminhões e de despejar o lixo no aterro sanitário. Ambas as operações
passaram a ser realizadas pelos motoristas, que operam dispositivos mecânicos do caminhão.
Assim, a mudança produzida na atividade permitiu aos garis um certo distanciamento do lixo,
possibilitando-lhes realizar o trabalho sem se sujarem tanto, como acontecia, com os
85
caminhões antigos. Isso teve influência na sua auto-estima, na percepção de sua imagem, até
então, ligada à imagem do “homem sujo”.
“(...) hoje você não tem o contato direto com o lixo, você não tem. Você pegou o
saco, jogou lá dentro, o caminhão vem e tritura aquilo ali (SANTOS, 2004, p.
64).”
“A partir do momento que a “empresa” mudou os caminhões, né, trocando a
frota de caminhões, então você passou a não ter mais aquele contato com o lixo e
aí você já não suja tanto.(...) Aquele chorume que escorre (pela canaleta dos
compactadores), naquela época não tinha jeito de escorrer, né, a gente ficava
arrumando o lixo, aquilo ficava... Pro cê ter uma idéia, hoje, o gari na rua, ele
pode trabalhar com a roupa dois dias, três dias dependendo, antes você tinha que
trocar de roupa duas vezes por dia (SANTOS, 2004, p. 64).”
Depois a empresa investiu em um caminhão que, conforme o relato dos garis, parecia
um caminhão de concreto:
“Quando trouxe o caminhão novo pra cá, chamava de Cuquinha, parecia uma
betoneira. Ele era igualzinho a esses caminhões de concreto. Ele ia girando o lixo,
rodando e prensando. Já era bem melhor do que a gente ficar socando o lixo.
Porém, você não agüentava o barulho, fazia um barulhão danado. No final do dia
você ficava com o ouvido daquele jeito, mas já tava bem melhor. Depois dessa
frota, trocaram pelo PPT, né, do leme, que já melhorou bem. Aí foi melhorando...
e por último chegou os Ford, que tá aí. Quando eu falo que a SLU passou a ser
uma empresa, foi isso. Ela passou a te dar, te deu até mais condições de chegar na
população, ter mais contato com a população. Ocê foi mais aceito, né. agora você
chega perto de qualquer pessoa, parar, conversar, ela te ouvir... antes, a pessoa
saia correndo doce (SANTOS, 2004, p. 64).”
Atualmente a empresa utiliza dois tipos de caminhão. Os compactadores Ford e
PPT, sendo que o PPT é o mais antigo e só deveria ser usado como caminhão reserva, no caso
de quebra do Ford. Entende-se por caminhões compactadores os veículos com carrocerias
fechadas, contendo dispositivos mecânicos ou hidráulicos que possibilitam a distribuição de
compressão dos resíduos no interior das carrocerias.
Ambos os caminhões compactadores sofrem pequenas modificações conforme os
motoristas e os garis sugerem, o que caracteriza pequenas diferenças entre um caminhão e
outro do mesmo modelo (Figura 04).
O cocho do caminhão PPT possui um leme que compacta o lixo em constante
movimento. O acionamento e a trava do leme dependem da operação de três botões situados
dentro da cabine à esquerda do banco do motorista. O caminhão Ford é mais atual que o PPT,
cujo cocho possui um compactador que, teoricamente, só é acionado com o caminhão parado,
processo realizado pelos garis, após acionarem um botão que sinaliza dentro da cabine que o
cocho está cheio. Desta forma, apesar de o gari realizar a compactação do lixo, é o motorista
quem destrava a prensa.
Figura 04: Caminhões compactadores usados para a coleta de lixo domiciliar. O PPT à
esquerda e o Ford à direita.
Para o entendimento da descrição da coleta é necessário apresentar algumas das
diversas partes dos caminhões (Figura 05):
87
1. estribo: suporte em que os garis ficam em pé na parte traseira do caminhão.
2. beirada do cocho: parte superior ao estribo, também usada para apoiar os pés.
3. cocho: parte aberta posterior do caminhão em que o lixo é depositado.
4. corrimão: haste metálica em que os garis se seguram. Há um caminhão com dois
corrimões, um mais alto e outro mais baixo, a pedido dos garis mais baixos.
5. alça lateral ou corrimão
6. lâmina da prensa (leme no PPT)
7. giroflex: pisca alerta para as coletas feitas à noite
Há variações entre caminhões do mesmo modelo, tais como:
8. suporte para tábuas (direito e esquerdo), que são usadas como ferramenta para
auxiliar a coleta. Os suportes foram soldados nas laterais de alguns caminhões a
pedido dos garis. Os caminhões reserva não possuem tais suportes, nem
ferramentas complementares.
9. cabo de vassoura para pendurar a “catação”. Também são penduradas vassouras na
parte lateral do PPT, usadas como ferramenta para auxiliar a compactação do lixo
pelo leme. Os garis usam as vassouras empurrando o lixo para dentro do cocho do
caminhão.
Os caminhões possuem ainda:
- baú: caçamba do caminhão, onde o lixo é armazenado.
- alavancas da prensa: alavancas laterais, externas, posicionadas na parte lateral posterior
direita do caminhão. Usadas para compactar o lixo do cocho do caminhão Ford.
- botões de acionamento do leme: botões internos à cabine do motorista do caminhão PPT.
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- escudo: parte da caçamba do caminhão que empurra o lixo para fora do baú. Também move-
se para dentro do baú até o lixo preencher todo o baú do caminhão.
- a parte traseira de ambos os caminhões é levantada mecanicamente pelo motorista para que
o lixo seja descarregado e o baú seja lavado.
- há caminhão com um baú de metal posicionado na dianteira da caçamba. Este baú servia
para guardar luvas e capas de chuva. Mas enferrujou e atualmente guardam latas de
alumínio. Este permanece trancado com cadeado.
Figura 05: Apontamento das partes do caminhão compactador.
Como a coleta de lixo domiciliar está quase toda terceirizada e a empresa passou por
um processo de reestruturação, esta realiza poucos investimentos na compra de equipamentos,
1
2
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89
principalmente de caminhões. Desta forma, durante a coleta de dados foi observada uma
grande freqüência de “quebra” dos mesmos, o que tem influenciado no tempo total de coleta
diária de cada guarnição. Conforme relato dos motoristas:
“Pelo menos um caminhão da L (regional) quebra todo dia.”
Quando o caminhão quebra, os garis precisam aguardar que o motorista leve o
caminhão até a oficina que fica próxima ao aterro sanitário. Para não perderem tempo, os
garis realizam "redução" do lixo restante. Uma significativa dificuldade de se usar o caminhão
reserva está no fato deste não ser equipado com as ferramentas usuais que os próprios garis
colocam em seus caminhões.
90
IV.2.6- As fichas de descrição da atividade de coleta de lixo domiciliar
Para descrever a atividade dos garis utilizou-se como técnica a Ficha de Descrição da
Atividade. Para fins didáticos, a descrição foi dividida em 3 fichas diferentes:
- a primeira ficha (Tabela 03) descreve a coleta de “porta em porta”, quando não é feita a
estratégia de “redução”. Então esta primeira ficha descreve a coleta com os quatro garis
acompanhando o caminhão.
- a segunda e a terceira fichas descrevem a realização da estratégia de “redução”. A segunda
ficha (Tabela 04) descreve a atividade do gari que percorre as ruas a pé fazendo montes de
lixo em locais quase sempre pré-estabelecidos. A terceira ficha (Tabela 05) descreve a
atividade do gari que coleta o lixo proveniente dos montes.
As Fichas de Descrição da Atividade foram confeccionadas conforme as observações
do trabalho de diferentes equipes da regional estudada. Depois de confeccionadas foram
autoconfrontadas com os garis da regional, conforme comentado na metodologia. Esta
autoconfrontação foi também uma forma de aprofundar, enriquecer e validar a análise, além
de restituir as informações aos trabalhadores.
A descrição da atividade de coleta de lixo domiciliar
a) A coleta realizada de “porta em porta”
Neste tipo de coleta, os 04 garis “batem” o lixo ao mesmo tempo enquanto
acompanham o caminhão. Mesmo que a equipe mude o caminho prescrito no mapa do
planejamento, o lixo deve ser coletado em todas as ruas do mapa que indica o trecho. Apesar
de ser descrita a coleta de “porta em porta”, não foi possível ver, em nenhum dia, a coleta
realizada inteiramente sem a estratégia de “redução”, visto que em algumas partes do trecho
os garis separam-se durante alguns quarteirões realizando esta estratégia por vários motivos.
91
Entretanto, esta divisão foi necessária para fins didáticos. Dependendo da quantidade de lixo
no dia, o trecho pode ser subdividido em 1, 2 ou 3 viagens. Entre cada viagem o motorista
leva o caminhão para descarregar o lixo no aterro sanitário.
Tabela 03: descrição da coleta de “porta em porta”
Tabela 04: descrição da atividade do gari que faz a "redução"
Tabela 05: descrição da atividade do gari que “bate” o lixo dos montes da "redução"
Tabela 03: Ficha de descrição da atividade de coleta de “porta em porta”
Etapa e descrição da etapa
ETAPA 1
O motorista sai com o caminhão da regional por volta das 8:30 horas. Os garis sobem
no estribo e caminhão sai para iniciar a coleta. Os garis também sobem no estribo
quando o caminhão sai do pátio, já na rua. Os garis relatam que gostariam de sair mais
cedo para terminar o trabalho também mais cedo. Além disso dizem que se saíssem
meia hora antes ficariam menos tempo expostos ao calor e ao sol.
Os quatro garis sobre o estribo do caminhão.
Após subirem, os quatro garis ficam posicionados no estribo do caminhão em
92
movimento até o ponto inicial do trecho.
As guarnições se organizam com dois garis que ficam sempre do lado esquerdo e dois
sempre à direita do estribo. Os garis que ficam sempre do lado esquerdo geralmente são
os mais experientes: “Cê se sente responsável. Demais da conta!”
ETAPA 2
No início do trecho, o caminhão que estava em movimento diminui a velocidade, os
garis olham a rua e saltam do caminhão em movimento ou parado.
Antes de descer do caminhão, o gari assovia para o motorista diminuir a velocidade. Ou
não assovia, apenas salta.
Para saltar do caminhão, o gari se desloca para a lateral do estribo, inclina o corpo
diagonalmente, olha a rua e desce com o caminhão parado ou em movimento. Quando
salta com o caminhão em movimento já sai andando ou correndo para aproveitar a
inércia e não cair.
Quando o gari salta pelo meio do estribo, se protege um tempo atrás do caminhão e,
após olhar para onde ir e por onde ir, desloca-se para o local pretendido. O gari relata ter
que jogar o tronco para trás ao descer pelo meio do estribo: “Tem que jogar o corpo pra
trás pra dar seqüência, aproveitar”. Nas descidas é necessário jogar o corpo ainda mais
para trás, por causa do perigo de bater a perna no caminhão, caso o motorista diminua a
velocidade rapidamente.
93
Sobre o estribo o gari inclina o corpo lateralmente para olhar a rua
e antes de saltar pela lateral do estribo.
Ao descerem do caminhão, os garis desviam de carros ou pessoas e chegam correndo ou
caminhando até o lixo a ser coletado.
Ao alcançarem o lixo, fletem o tronco para frente se o lixo estiver no chão e o coletam.
Pegam uma certa quantidade de sacolas ou sacos e arremessam-nos à distância dentro
do cocho do caminhão. Quando não é possível arremessar o lixo à distância, por ser
pesado ou haver algum carro entre os garis e o caminhão, levam-no segurando-o mais
próximo do cocho para arremessá-lo e pegar mais lixo.
O motorista aguarda os garis, que fazem a coleta de porta em porta. Pára o caminhão
quando é necessário esperar os garis coletarem o lixo de edifícios. Ou mantém o
caminhão em movimento bem lento, enquanto os garis correm, arremessam o lixo ao
cocho do caminhão e correm ou caminham para pegar mais lixo seguindo o trecho.
94
Na figura acima o caminhão está parado enquanto os garis arremessam os sacos que retiram da
lixeira de um edifício. Além do arremesso do lixo ao cocho, vê-se que este caminhão possui dois
corrimões, e que um deles serve para pendurar os sacos com os recicláveis. Também são vistos
sacos sobre o estribo, cujo lixo ainda não foi separado.
Antes mesmo de arremessarem ou levarem todo o lixo de um ponto, gritam de várias
maneiras para o motorista arrancar o caminhão: “Foi, fui, fala comigo, tá rodando,
obedece, vai embora, pára não”.
Então, enquanto o motorista avança com o caminhão, os garis correm com o resto do
lixo até o cocho ou arremessam-no a uma distância de uns dois ou três metros. Depois
caminham ou correm em direção a outro local em que há lixo.
Há momentos em que os quatro garis estão prontos para lançar o lixo ao cocho, mas há
momentos em que precisam fazer uma fila para arremessar o lixo.
95
Gari aguardando os colegas despejarem o lixo de um latão, enquanto o gari à direita do cocho
separa os recicláveis.
Durante a coleta os garis gritam “carro” ou “moto” para alertar os colegas. Os ônibus
são chamados de “azulão e vermelhão”. Para avisar do perigo de caminhões gritam: “Ó
o pesado!”. O motorista também costuma buzinar para sinalizar algum perigo para o
gari. Os códigos são definidos para cada equipe.
Ao arremessarem um saco que contém latas de alumínio, muitas vezes jogam-no sobre
o estribo até que possam separar o lixo. Ou já separam dentro do cocho mesmo, em pé,
no chão, ou em cima do estribo, segurando com uma das mãos no corrimão.
Acondicionam o lixo reciclável dentro de sacos obtidos durante a própria coleta, que
penduram no corrimão do caminhão ou em cabos de vassoura que posicionam abaixo da
placa. Os sacos cheios são acondicionados na parte dianteira da caçamba do caminhão.
ETAPA 3
Dependendo da parte do trecho os garis fazem um revezamento entre a dupla. Neste tipo
de revezamento, o gari que estava descansando sobre o estribo desce para fazer a coleta,
e o gari que acaba de coletar sobe no estribo. Para eles este revezamento é automático e
explicam como o fazem reconhecendo uma foto como inadequada para descrever o
rodízio:
“Essa foto aí não é esse rodízio não. O do canto tá fazendo catação. Antes de subir, o
96
da lateral tem que descer.”
A figura acima é a foto inadequada para descrever o rodízio entre chão e estribo. Aqui
vê-se o gari da esquerda separando os recicláveis mas, apesar de parecer, não se pode afirmar que o
outro gari se prepara para saltar do estribo. À direita vê-se um gari correndo e arremessando
grande quantidade de sacolas ao cocho.
A estratégia denominada por eles como “rodízio” é feita entre as duas duplas: quando
um gari de uma dupla fica sobrecarregado de um lado, geralmente grita “pesou!”, e
alguém da outra dupla (ou ambos) se desloca para ajudar. O garis se referem a este
rodízio da seguinte forma: “Quando vê que um lado está mais pesado que o outro, um
colega atravessa pra ajudar.”
ETAPA 4
Quando o cocho do Ford está lotado, é necessário compactar o lixo para dentro do baú
do caminhão, processo que chamam de “prensar o lixo”. Então um gari aperta um
botão ou aciona uma das alavancas da prensa (dependendo do Ford). Esta operação
acende uma luz vermelha de alerta (que os garis chamam de campainha) interna à
cabine do motorista, para que as alavancas da prensa sejam destravadas. Há garis que
gritam para o motorista: “Liga a boca!” ou “Liga a chave!”.
97
A figura acima mostra as duas alavancas da prensa e o botão de aviso para o motorista, apontado
pela seta.
Para destravar as alavancas, o motorista pisa na embreagem e gira uma pequena
alavanca que fica no painel do caminhão.
Após o destravamento da prensa pelo motorista, um gari manipula duas alavancas: uma
que eleva a lâmina da prensa e outra que abaixa a lâmina e empurra o lixo do cocho para
o baú interno do caminhão, compactando o lixo.
Além de manipular as alavancas da prensa, o gari cuida para que o lixo não caia do
cocho quando a lâmina da prensa abaixa, ou um colega o auxilia com este cuidado.
Não há rodízio para a realização da “prensagem”. Conforme relatou um gari, o que está
próximo e vê que encheu o cocho faz a compactação:
“É o gari que tiver lá na hora.”
Comentando esta parte da atividade ao ler esta Ficha, um gari disse que “Este momento
é o tempo que eles têm pra descansar.”
Já o caminhão PPT, cujo leme funciona de um lado para outro durante toda a coleta, o
gari precisa ficar atento quanto ao possível travamento do mesmo. Conforme relata um
98
gari: “A gente tenta destravar. Se o leme tiver dentro do baú, ih, chorou! Vai pra
oficina.” Também possuem outras formas de avisar o motorista que o leme travou,
como “foi!” e “quebrou!”. Além disso, este leme costuma jogar o lixo para fora do
cocho. Então os garis empurram o lixo usando uma vassoura que fica pendurada na
parte externa do baú, próxima ao cocho. Quando encontram uma vassoura mais nova no
próprio lixo, trocam-na pela antiga.
ETAPA 5
Quando há algum beco sem saída, ou rua inacessível ao caminhão, os garis precisam
entrar, coletar o lixo de toda a rua e levá-lo até o caminhão que fica parado na esquina,
realizando a “redução planejada”, que eles não gostam de fazer por causa do aumento
da carga física de trabalho.
ETAPA 6
Os garis continuam o trecho entre caminhar (ou correr), coletar o lixo e arremessá-lo ao
cocho. Também sobem no estribo quando os locais de coleta estão mais distantes, até
que o motorista pare ou diminua a velocidade do caminhão novamente para que os garis
saltem do estribo cada vez que há lixo a ser coletado.
Na figura vê-se dois garis aproveitando para segurar o corrimão lateral enquanto caminham e dois
garis na direção do cocho para arremessar o lixo.
ETAPA 7
99
As guarnições fazem pausas para tomar ingerir líquidos ou comer.
Uma das guarnições quase não pára para comer, só para tomar água. Num dos filmes
um gari desta equipe comeu rapidamente uma banana enquanto os colegas coletam o
lixo de um monte. As “madrinhas e os padrinhos” geralmente aguardam os garis para
servir água, café e lanches.
Uma das diversas madrinhas servindo água gelada.
ETAPA 8
Ao fim do trecho, como fala animadamente um gari:
“Fechou a rota... é garagem.”
Então o motorista deixa os garis na regional e se dirige ao aterro sanitário, onde irá
descarregar o lixo e lavar o caminhão. Desde o segundo semestre de 2005 o caminhão
era lavado todos os dias. Mas os funcionários do aterro conseguiram que esta freqüência
caísse para três vezes por semana.
Algumas vezes um dos garis acompanha o motorista até o aterro. Ele acompanha o
motorista principalmente se a coleta passar das 18 horas, geralmente devido à quebra do
caminhão. Então não há funcionário suficiente no aterro para auxiliar o motorista a
descarregar o lixo. O gari auxilia o motorista na operação de abrir os tornos traseiros do
100
caminhão, de forma que a tampa traseira é elevada e o escudo do caminhão empurra o
lixo para fora do baú. Há caminhões em que este processo ocorre mecanicamente sem
necessidade de auxílio. Após a abertura da tampa traseira, o lixo é empurrado para fora
pelo escudo do caminhão. Depois o motorista passa uma vassoura no baú ou leva o
caminhão para ser lavado no próprio aterro.
ETAPA 9
Ao chegarem novamente na garagem, tomam banho, trocam de roupa e almoçam.
Alguns dormem, jogam baralho e conversam entre si, geralmente por esperarem o
horário de saírem para fazerem outras atividades.
b) A coleta realizada com a estratégia de “redução”
O termo “redução” foi dado pela equipe que fez o primeiro planejamento de coleta na
cidade, coordenada pela arquiteta Maeli Estrela, no início da década de 80. Segundo a
arquiteta, então Chefe da Divisão de Planejamento naquela época, os garis já realizavam esta
estratégia. Quando a divisão de planejamento notou que esta estratégia diminuía a
quilometragem rodada pelo caminhão, permitia a coleta em locais inacessíveis ao caminhão,
tais como becos e ruas com forte aclive, passou a usá-la oficialmente. Assim a estratégia
passou a ser denominada tecnicamente de “redução de itinerário”. Com o passar dos anos e
com a mudança das chefias, a estratégia foi proibida, exceto a “redução planejada”.
Atualmente a “redução” está sendo reivindicada pelo Setor de Psicologia do Trabalho como
estratégia a ser reconhecida oficialmente pela instituição. Conforme conversa com o atual
diretor de coleta, “estamos deixando algumas regionais fazerem a “redução” como uma
experiência, mas até agora não foi comprovado que coletar com redução é melhor”. A
estratégia é permitida por alguns gerentes de operação, chefes diretos das guarnições de cada
regional, que possuem autonomia de permitir ou não seu uso. É permitida pelo atual gerente
101
de coleta da regional estudada, entretanto este ameaça os garis de proibir o uso da "redução"
sempre que existe um conflito entre ele e os garis. Apesar do relato do diretor de coleta,
parece ficar claro que, com o acompanhamento do trabalho dos garis, já não há como proibir
oficialmente a realização da "redução".
Para realizar a "redução", um dos garis se separa da equipe, ou os 4 garis se dividem
em duplas. A "redução" pode ocorrer entre uma viagem e outra, enquanto o motorista leva o
caminhão para descarregar no aterro sanitário, ou então quando os garis se dividem para
coletar em quarteirões de difícil acesso ao caminhão, geralmente em subidas íngremes.
Assim, o gari que faz "redução" coleta os sacos de lixo na porta das casas e levando os
sacos para locais pré-determinados em cada quarteirão. Assim eles formam montes de lixo,
para depois serem coletados pelos outros garis da equipe.
A coleta com a estratégia de "redução" está representada no fluxograma abaixo
(Tabela 03). Há diferentes momentos de se realizar esta estratégia como será visto mais a
frente, na seção intitulada Aprofundamento sobre a Atividade de Coleta.
As etapas da atividade de coleta com a "redução" está descrita em duas fichas. A
primeira (Tabela 04) descreve a atividade do gari que faz a "redução" e a segunda (Tabela
05), do gari que “bate” o lixo dos montes.
Tabela 04: Ficha de descrição da atividade do gari que faz a "redução".
Etapa e descrição da etapa
ETAPA 1
Ao terminar a primeira parte do trecho, a primeira viagem, o motorista se dirige ao aterro
sanitário para descarregar o lixo do caminhão.
Dois garis iniciam a "redução" logo em seguida, ou descansam alguns minutos antes de iniciá-
102
la. Os garis que irão bater ficam descansando até a volta do motorista.
Os dois garis que vão reduzir dividem o trecho restante. O gari caminha pelas ruas do seu
trecho recolhendo o lixo de porta em porta.
A foto acima mostra o gari coletando sacos próximos a um cachorro que estava preso, porém o portão
estava aberto. O gari avisou a moradora apenas falando: “ó o cachorro!”
ETAPA 2
O gari passa em cada casa, segura as sacolas plásticas pelas alças e carrega de formas variadas
outros tipos de lixo e os leva da casa até o local que estabelece para fazer o monte, geralmente
do lado direito da rua. Se já há um monte do lado esquerdo, ele reduz ali mesmo. Quando já
há um monte em uma casa ou prédio, este é aproveitado como depósito de mais lixo: “se tiver
muito, já aproveita o pesado.” Ou então o gari não reduz ali, já que ali “o lixo já está
reduzido.”
103
Gari carregando sacolas em uma mão se dirigindo para outra casa em que vai coletar. Na figura ao lado o
gari já está com as duas mãos ocupadas.
Conforme relato de um gari, o lixo precisa estar sempre distante do corpo: “Não pode
abraçar o lixo. É errado. Se ele cortar, perfurar, nossa senhora!”
“Longe do corpo, tudo nos dedos. Se não der pra levar tudo, ele volta e pega o restante”.
Leva o máximo de lixo que consegue. Desta forma, vai recolhendo o lixo de uma ou várias
casas para se encaminhar ao local do monte de lixo. Segue em um certo ziguezague entre as
casas próximas e o monte que cria:
“É um ziguezague mesmo. Ele vai de um lado pro outro.”
Aqui o gari já carrega um monte de lixo amarrado pelo próprio morador
.
As latinhas de alumínio são levadas: “a gente leva na mão mesmo! Põe no bolso, debaixo do
braço...”
104
ETAPA 3
Muitas vezes algum munícipe o pára para conversar. Os moradores conversam assuntos
pessoais com os garis ou pedem-nos para levar algum lixo que não é responsabilidade da
coleta domiciliar, por exemplo, restos de móveis, podas ou entulhos.
Apesar de não ser responsabilidade da coleta de lixo domiciliar, a chefia estabeleceu que a
guarnição pode levar no máximo 04 sacos de poda por dia, por munícipe. Não podem levar
entulhos, mas levam porque estabelecem uma relação com a comunidade. Os garis levam
tudo, porque geralmente recebem os “guardados”, o dinheiro que complementa sua renda,
além de lanches e presentes. Também sabem que podem contar com aqueles moradores caso
precisem de algum socorro ou uso do telefone.
Moradora conversando animadamente com o gari.
Se for um dia de mais lixo (geralmente segunda ou terça-feira), combinam com o morador de
levarem uma parte, e no outro dia de coleta levam o resto. Numa das filmagens um morador
carrega seus sacos de poda até o cocho e depois auxilia os garis a coletar o resto do monte.
Algumas guarnições não levam este tipo de lixo. Em outras, alguns garis discordam entre si:
“A gente leva porque o morador tá mal acostumado. Os antigos levavam, agora a gente tem
que levar também senão dá rolo.”
105
ETAPA 4
Após finalizar alguns montes de lixo em um quarteirão, o gari vai até o próximo quarteirão e
inicia nova redução.
A sacola que deve ser coletada com cuidado por conter vidro quebrado é deixada a
aproximadamente um metro do monte. Há garis que exigem mais: “Tem que rasgar a sacola
para mostrar que é vidro. Se for caixa, é só destampar, deixar aberta.”
Uma sacola foi deixada mais à parte por conter vidro quebrado.
Quando ele considera necessário, bate na porta ou entra em um estabelecimento orientando a
forma mais segura de acondicionar o lixo, ou informando que não pode coletar entulho ou
muitos sacos de poda.
Há gari que quando se machuca chama o morador que acredita ser o responsável pelo lixo.
Um gari contou que abre o lixo todo até provar quem é o morador que deixou o pérfuro-
cortante mal acondicionado. A primeira coisa que fazem é lavar a mão em alguma torneira,
ligar para a regional que algum funcionário vai buscá-lo e levá-lo a um pronto socorro.
ETAPA 5
Às vezes os dois garis que fazem a "redução" se cruzam no trecho. Redefinem rapidamente o
106
trecho de cada um e continuam a "redução".
ETAPA 6
Alguns moradores ou donos e funcionários de bares já o esperam com garrafas de água
gelada, café ou lanches. Então eles costumam parar por alguns minutos para tomar água,
geralmente duas vezes enquanto fazem "redução".
ETAPA 7
Assim, o gari vai reduzindo até encontrar os colegas no fim do trecho. Ao reencontrá-los,
sobe no caminhão novamente e retorna para a regional. Há equipes em que o gari que fez
"redução" também encontra os colegas no meio do trecho e os auxilia na coleta dos montes.
Quando termina mais cedo, também costuma pedir carona em um ônibus, ou voltar a pé para
a garagem da regional.
Tabela 05: Ficha de descrição da atividade do gari que “bate” o lixo dos montes.
Etapa e descrição da etapa
ETAPA 1
Após coletar a primeira parte do trecho, ou seja, a primeira viagem, o motorista leva o
caminhão até o aterro sanitário para descarregar o lixo. Um gari o acompanha e outro
fica descansando. Ou então dois garis ficam descansando e o motorista sai sozinho. Os
outros dois garis que vão reduzir costumam descansar alguns minutos ou já saem para
realizar esta parte, dependendo do ritmo que pretendem manter para a coleta.
O gari que descansa geralmente fica sentado na calçada, na sombra, conversando, lendo
jornais, livros e revistas que retiram do próprio lixo. Ou então ficam conversando com
os moradores e funcionários de estabelecimentos comerciais, até que o motorista retorne
do aterro sanitário. Alguns também vão ao banco, quando próximo, durante este período
107
de pausa.
É comum ver os garis tirando o sapato, único modelo oferecido pela empresa.
Não há revezamento para quem vai acompanhar o motorista ao aterro. Raramente o gari
acompanha o motorista até o aterro ao fim da primeira viagem. Quando o acompanha
após a primeira viagem, vai por haver risco do caminhão quebrar a caminho do aterro e
ser necessário alguém para vigiar o caminhão.
ETAPA 2
Quando o motorista chega do aterro sanitário encontra com os dois garis que o
aguardavam ou, se tiver ido acompanhado de um gari, encontra o que estava
descansando.
Ambos sobem no estribo do caminhão e ficam no estribo até que o caminhão pare em
cada monte de lixo reduzido. Alguns garis não sobem no estribo quando vêem um
monte mais próximo do outro, geralmente quando há três montes num mesmo
quarteirão. Então costumam caminhar ou correr até o próximo monte. Alguns garis
também seguram no corrimão lateral do caminhão enquanto caminham. Se o monte
estiver do lado esquerdo de uma rua de mão dupla, o motorista encosta o caminhão do
lado esquerdo para proteger os garis. Se a rua for movimentada o motorista retorna
neste ponto do trecho para poder parar do lado direito da rua.
108
Na foto acima os garis já estão coletando o lixo reduzido em dupla. O gari da esquerda está
terminando de subir no estribo.
ETAPA 3
Quando o caminhão se aproxima do monte de lixo reduzido, os garis se deslocam para o
mesmo lado do estribo e se preparam para descer do caminhão.
Geralmente, antes mesmo de o caminhão chegar ao monte reduzido, os garis saltam do
estribo com o caminhão em movimento e se dirigem correndo até o lixo.
Os garis costumam saltar do estribo antes do caminhão chegar até o monte de lixo.
Também descem com o caminhão parado.
109
ETAPA 4
Coletam o lixo de todo o monte. Param em frente ao lixo, e após pegar cada lixo de uma
forma diferente o levam ou o arremessam ao cocho até acabar o monte.
As sacolas de supermercado e sacos maiores, porém mais leves, são arremessados ao cocho. Os mais
pesados são carregados ou arrastados e colocados no cocho.
Também fazem a “catação”: separam latas de alumínio e papel branco. O papelão e
outras embalagens de papel são entregues aos catadores de papel.
Na foto acima vê-se o gari fazendo catação, enquanto o colega termina a coleta do monte.
Quando o monte já está quase no fim, gritam “Foi” e outros sinais dependendo da
110
equipe, para o motorista arrancar o caminhão. Há motoristas que não permitem gritos,
principalmente na coleta do lixo reduzido. Então os garis acompanham o ritmo imposto
pelo motorista.
Algumas duplas terminam de jogar os últimos sacos já correndo atrás do caminhão em
movimento e em seguida sobem no estribo até o próximo monte de lixo. Dependendo
do motorista, o caminhão só é posto em movimento após o término de todo o monte.
Num dos filmes, o gari que fica do lado direito subiu quase todas as vezes com o
caminhão parado. Já o gari da esquerda esperou o caminhão entrar em movimento para
saltar no estribo.
ETAPA 5
Os munícipes atrasados ou que pedem para que coletem lixo não domiciliar costumam
pedir para que seu lixo seja levado.
Também aguardam os moradores atrasados com seu lixo, retornam para coletá-lo e até
auxiliam os moradores.
Muitos moradores varrem a calçada, apesar de haver varrição. Na foto acima o gari auxilia o
munícipe a colocar seu lixo numa sacola enquanto um gari faz a compactação do lixo e o motorista
os aguarda.
111
ETAPA 6
Enquanto o caminhão está em movimento, os garis se deslocam de um lado do estribo
para o outro, para saberem onde está o próximo monte. Da beirada do estribo olham se
ficou algum lixo sem ter sido reduzido por ter sido depositado após a passagem do gari
que fez "redução" naquela rua. Quando estão os dois sobre o estribo, os garis se
comunicam para avisar onde está o monte. Falam: “tá do lado de cá”, ou “tá do
mesmo lado”.
Quando há um lixo que foi depositado por um morador após ter sido feita a redução, um
dos garis pula do caminhão e o coleta, mesmo que tenha que atravessar a rua ou retornar
àquele ponto do trecho. Neste caso ele anda no estribo para a lateral que vai saltar,
assovia para o motorista diminuir a velocidade, olha a rua e salta do caminhão em
movimento correndo em direção ao lixo. Às vezes salta sem avisar o motorista, se a
velocidade do caminhão estiver mais baixa. Conforme relata um gari, comentando sobre
o lixo depositado após a redução, “até o motorista vê e automaticamente tira o pé do
acelerador. Ou dá um toque na buzina.” No caso desta guarnição, se o motorista vê um
lixo do lado direito, dá 2 toques na buzina. Do lado esquerdo dá 1 toque.
Nem sempre os dois ficam sobre o estribo. Na foto acima um gari observa a rua a sua direita
enquanto o colega arremessa uma sacola, à esquerda.
112
ETAPA 7
Quando combinam de coletar dentro de algum restaurante ou sacolão, entram, coletam
com o caminhão parado, às vezes estacionado. Recebem frutas, lanches e marmitas, que
muitas vezes acondicionam na própria cabine, até mesmo sobre a placa do caminhão.
Uma gráfica em que coletam o lixo imprime os cartões de natal que são entregues para a
população para pedirem o “Natal do gari”, além do papel branco.
A seta mostra o lanche colocado sobre a placa do caminhão.
ETAPA 8
Assim vão realizando a coleta até o fim do trecho, onde se encontram com os garis que
fizeram "redução" e voltam até a regional, em cima do estribo do caminhão.
113
IV.2.7-Aprofundamento das fichas de descrição das atividades
Algumas características mais gerais do trabalho de coleta demonstram a situação em
que os garis da regional estudada estão inseridos. Aqui aprofundaremos a relação dos garis
com a população, o trabalho coletivo, a estratégia de "redução” e a gestão das variabilidades
que surgem no cotidiano do trabalho de coleta.
A relação com a população
A guarnição estabelece uma relação com a comunidade. Coletam o lixo que não é
domiciliar, tais como restos de poda, barris, restos de móveis velhos, pedaços de madeira e até
sacos com entulho. Como comentado nas fichas de descrição da atividade, a chefia
estabeleceu que podem levar no máximo 04 sacos de poda por dia, por munícipe e não podem
coletar entulhos, alegando a possível quebra do mecanismo compactador do caminhão. Os
garis falam que o equipamento não quebra por causa da pequena quantidade que levam.
Contam animadamente que ajudando os moradores podem também contar com eles, quando
precisam usar o telefone, tomar água, usar o banheiro, etc.
“Outro dia nós jogamos foi uma sala completa. Foi tudo! ... fogão, sofá,
geladeira, estante, mesa de centro... tiramos de dentro da casa da mulher.
Máquina de lavar, alumínio, tiramos. Geladeira, congelador, motor, nós tiramos.
Até a fiação. Da geladeira só sobra a carcaça. O resto... vendemos tudo.”
Nos dias em que há mais lixo e não podem levar tudo, comentam que dividem o lixo:
“Se o morador não avisa, a poda fica. Se for na segunda e na terça-feira, resolve
na quarta, ou leva metade na segunda e metade na quarta.”
É com os moradores que os garis definem em que locais podem fazer a "redução". A
chefia proíbe a "redução" em um trecho a partir do momento em que um morador se queixa
com a empresa. Este também é um motivo para os garis estabelecerem uma boa relação com
114
os munícipes. Assim, quando há algum problema, é melhor para as equipes que o morador se
queixe diretamente com eles.
“Se o morador acha ruim, fala com a gente que a gente muda o lugar do monte.
Resolve com a gente mesmo.”
Apesar de muitos moradores estabelecerem uma relação amigável com os garis, há
moradores que não combinam nada e, como dizem os próprios garis, tentam enganá-los
colocando os entulhos no fundo dos sacos e o lixo domiciliar por cima. Quando puxam o saco
é que sentem o peso do lixo. Então eles decidem na hora se levam ou não aquele lixo.
“Tem uns que engana a gente! Coloca o entulho no fundo, o lixo em cima... cê
puxa o saco, o saco rasga!”
Há muitos moradores que têm muita afeição por eles. Nos dias de coleta são esperados
pelos “padrinhos e madrinhas” com garrafas de água gelada, café, suco e lanches.
Também contam histórias interessantes sobre sua relação com as pessoas da
comunidade. Um gari contou emocionado, que num dia de seu primeiro ano de trabalho,
acenou para uma criancinha na janela. Vendo que ela respondeu ao aceno do gari, a vizinha
logo avisou a mãe do menino autista. A partir daí, todos os dias de coleta, a mãe e o menino
esperavam a passagem do caminhão.
“Hoje o menino é um rapaz, já casou e tem até um filho! Fui o padrinho do
casamento dele, eu vou na casa dele, a família foi no meu casamento... somos
amigos!”
Outro gari contou, também bastante emocionado, que quando foram pedir alimentos
para cestas básicas e presentes (que chamam de “O Natal do Gari”), uma senhora mostrou sua
casa cheia de netos e disse que os filhos estavam desempregados, que nem ela tinha comida
115
em casa. Então as equipes fizeram uma grande cesta com alimentos e presentes, e entregaram
para a senhora:
“Cê precisava ver, Renata, os meninos pulando! Uma alegria! Aquela cesta deve
ter dado pra uns três meses!”
Quando mudam o gari de trecho, conforme relatam:
“Nossa... (silêncio) Quando me mudaram de trecho... (silêncio) É uma tristeza!
A gente já conhece o trecho, fazemos amizade com as pessoas... até conhecer tudo
de novo!”
Ainda, queixando-se de como está sendo feito o processo de terceirização dos trechos
e de como as decisões têm sido impostas pela chefia, um gari falou:
“O que a gente tá achando de respeito na rua, dentro da empresa num tá, né!
Igualzinho eles ficam gritando com a gente! Principalmente as crianças. Adora
brincar com a gente, brinca com a gente: “ô meu amigo!” em cima dos prédios
eles gritam, dando adeus...”
Há garis que parecem gostar de auxiliar os moradores. Alguns ficam todo o tempo
atentos às pessoas, principalmente aos idosos e crianças. Cumprimentam as senhoras,
paqueram as moças e ajudam os idosos a atravessar a rua.
O trabalho coletivo
A relação entre os 4 garis
Na coleta formalizada, feita com quatro garis batendo o lixo ao mesmo tempo, os dois
mais experientes ficam à esquerda do estribo. Relatam que esta divisão se dá por ser
116
necessário atravessar a rua para coletar o lixo, e que os mais experientes sentem-se
responsáveis pelos colegas.
Quando há algum gari que não está passando bem, ou o motorista diminui o ritmo ou,
os colegas trabalham mais intensamente para amenizar a carga do outro colega, o que é mais
freqüente. Os garis relatam como auxiliam os colegas que não estão passando bem:
“- O trabalho de vocês é considerado muito pesado. Vocês chegam a coletar
vinte e duas toneladas. O que vocês fazem com o corpo para conseguir
lidar?(entrevistador)
- A gente tem aquela superação, né! E o serviço tem que ser feito, querendo ou
não. Tem hora que dá até câimbra, né L? Tanto peso, né, tal... tem dia que..
amanhã eu tô ruim... eu vou trabalhar, mas eu comuniquei com eles, que eu tô
ruim. O dia que eles tão ruim eles vão colaborar com a gente. É coletivo.” (gari)
Rodízio:
Como comentado na Ficha de Descrição da Atividade, os garis fazem “rodízio” em
que, quando há mais lixo de um lado, o gari grita “pesou!”, e alguém da outra dupla atravessa
a rua para ajudá-lo.
Os garis relatam que há duplas de colegas que não gostam de ajudar:
“Tem gari que não atravessa, trabalha só de um lado”.
E até imitam os colegas, criticando-os:
“Tô fazendo a minha parte, os outros que se danem”.
“O X e o Y não gostam de ajudar. Gostam de ficar de um lado só.”
O revezamento
Enquanto um gari de uma dupla coleta no chão, o outro fica um tempo sobre o estribo.
Também revezam entre os quatro, sendo que fazem uma fila sobre o estribo e vão descendo à
117
medida em que um colega sobe. Em autoconfrontação coletiva, os garis disseram que “o
revezamento não é combinado, é automático”, e não conseguem descrever quanto tempo cada
um fica no chão coletando. Nota-se, pelas filmagens, que eles o fazem em ruas em que há
mais casas, e também em avenidas, quando coletam apenas do lado direito. Como disseram,
este momento de estar sobre o estribo serve para descansar um pouco:
“Cinco segundos que eu descansar já é suficiente pra repor um pouco de
energia.”
A comunicação da equipe
Os garis que ficam sobre o estribo ficam atentos à segurança dos colegas que estão no
chão:
“Tem que ficar na lateral pra ver a rua, o trânsito. Ele é os meus olhos quando eu
não tô podendo ver o trânsito.”
Nem sempre o gari que fica sobre o estribo está atento à segurança do colega. Há
momentos em que ele faz a “catação”. Então ele separa o lixo reciclável que está nas sacolas
sobre o estribo ou dentro do cocho do caminhão.
Sobre o estribo, às vezes precisam se comunicar para saberem onde está o próximo
monte de lixo a ser coletado. Então falam entre si: “lado de cá!”, ou, “do meu lado!”, e os
colegas se deslocam e se preparam para saltar do estribo. Os garis relatam como auxiliam e
protegem os colegas de acidentes com carros:
“Quem tá no estribo fica olhando pra cima e pra baixo para ver se vem carro.
A gente grita, né!
Aí te dá aquele alerta, pra você evitar de atravessar. Assim que o carro
atravessou aí ele desce.”
118
Durante a coleta os garis gritam “carro” ou “moto” para alertar os colegas. Os ônibus
são chamados de “azulão e vermelhão”. Para avisar do perigo de caminhões gritam: “Ó o
pesado!”.
Quando há quebra-molas, os garis também avisam:
“A gente fala: olha o quebra-mola! Tem que segurar mais firme que vai dar
impacto, entendeu? E amortecer as pernas.
Tem motorista que anda mais, outros que andam menos.”
Os garis também se protegem caso ocorram conflitos nas ruas, como o exemplo do
motoqueiro que passou quando ele estava coletando lixo da "redução":
“Passou entre o monte e eu. Eu falei “ô motoqueiro”
Ele comprou briga, xingou, seguiu. Xingou sem parar. Dei o número da SLU. O
motorista comprou a briga. O motoqueiro disse que o problema era dele comigo.
O motorista disse que comprou briga com o motoqueiro, comprou briga com ele
também.
A gente discute muito, sabe, mas o engraçado de tudo isso é a união. Mesmo que
eu não tivesse certo eles iam me tirar...”
A relação das equipes com os garis reserva
Quando um gari da guarnição falta, um gari reserva é recrutado pela gerência para
completar a equipe. A guarnição não escolhe o reserva. Os garis estabeleceram a “lei da
guarnição” de forma a evitar faltar nos dias pesados (segunda, terça-feira e após feriados).
Isso ocorre porque não gostam de trabalhar com os garis reserva. Relatam que a carga de
trabalho aumenta, que o gari reserva trabalha menos, não cuida direito da segurança dos
colegas, não respeita a população, não pode fazer "redução" por não conhecer o trecho e por
não participar da divisão da “catação”. Ou seja, ele fica mais tempo separando os recicláveis e
119
prensando o lixo, como se pode ver nas filmagens e nos relatos dos garis, que os chamam de
“bailarinos”:
“Os bailarinos... o bailarino é aquele que fica dançando dum lado pro outro do
estribo. Enrola, enrola, e quase nunca desce.”
Para os garis que já constituem a equipe, o gari reserva é considerado como um
problema devido a alguns motivos, como eles próprios relatam na entrevista coletiva com os
garis de uma guarnição:
“Quem é o reserva?(entrevistador)
Ah... O reserva... geralmente, eu vou ser sincero, eu num sei não mas o reserva...
Cê vai pegar uma coisa aí, você vai ver. É o seguinte: ele trabalha. Mas num é
todos que trabalha! Alguns faz o seguinte: fica mais pendurado no caminhão,
cata alguma coisa, e... os outros três que é efetivo do trecho que vai fazendo o
serviço. Mas num é todos os reserva que... tem uns que são bão... (gari)
Eles preocupam vocês. Porque vocês têm uma interação entre vocês, se tem uma
pessoa de fora... (entrevistador)
Fica assim, fora do clima... (gari)
A gente trabalha com atenção dobrada, por causa do reserva. Ele tá preocupado
em fazer outra coisa e nós preocupados em fazer o serviço e olhar trânsito, tem
que ficar sempre alertando: “cuidado olha o carro”. Isso é um hábito nosso. Tem
certos reservas que têm que ficar sempre gritando com eles.” (gari)
“E aí, quando eles viajam vocês ficam coletando com 2 reservas. Como é que é?
(entrevistador comentando sobre 2 atletas profissionais)
Ah, é complicado, né! Tanto faz se a gente faltar e se eles tiver coletando com
reserva. Isso aí é péssimo. Sobrecarrega o serviço da gente e eles também. (gari)
A gente supera né! Quem tem que correr é eu. Se eu preciso resolver alguma
coisa e tenho que faltar, então! A gente é obrigado a superar aquilo. (gari)
E vocês têm como decidir quem vai ser o reserva? (entrevistador)
Não. (gari)
120
Vocês gostariam de decidir isso? (entrevistador)
Gostaríamos, como gostaríamos! Geralmente tem um pessoa que se dá bem ca
gente e tem uma pessoa que num gosta...” (gari)
“Esse caso aí que você falou é o caso do reserva. Nós 4 temos um movimento de
comunicação. É esse gesto aí que dá pra ver aí ó: se vai pular, grita se invém o
carro, beleza. Só que com os reservas nós num temos esse hábito de fazer isso.
Nós protegemos ele. Nós gritamos com ele. E eles não, num são todos também.
Mas a maioria não tá nem aí. Se você falar “lá vem o carro!” eles xingam: “já
vi!”. Ou então quando tem quebra-mola: “eu já tenho mais de 6 anos aqui eu vou
cair agora?” . Então a partir de hoje a gente não te fala mais nada.” (gari
assistindo as filmagens)
Nota-se que o gari reserva fica à parte do resto da equipe. Num dos dias de coleta,
quando a prensa do caminhão quebrou, os garis combinaram com o motorista que iriam fazer
"redução" no resto do trecho enquanto aguardavam o retorno do motorista. Naqueles dias
estavam coletando com um gari reserva. Então, enquanto davam entrevista, o reserva
adiantou-se e, sem iniciar a "redução", passou de sacola em sacola separando as latinhas de
alumínio. Perguntamos se aquelas latas seriam divididas entre os cinco e eles disseram que o
gari reserva não divide a catação. Este mesmo reserva era para eles um “reclamão”, e não
respeitava a população. De um prédio, quando o caminhão ainda passava, alguém gritou “Ô
cheiroso!”. Os garis ficaram calados, mas o reserva xingou a pessoa de prédio. O mesmo
reserva xingou várias outras pessoas enquanto estavam sobre o estribo do caminhão a
caminho do trecho.
A condição de reserva se dá pela terceirização da coleta em várias regionais da cidade.
Como os demais trechos estão preenchidos, ficam sem ter para onde ir, restando-lhe a
condição de “reserva”. O gari sai da regional que foi terceirizada e se torna reserva em outra
regional, nos trechos que lhe sobram diariamente, no caso da falta de um colega. Essa
situação traz sofrimento para o trabalhador:
A gente fica aqui, a gente chega e não sabe aonde vai trabalhar e antes você tinha
lugar certo, o caminhão certo. Agora você fica aqui. “ Ah! agora você vai fazer
isso! Agora você vai fazer aquilo, lá”! Então, você fica sem saber o que vai fazer.
121
Então é muito ruim nesse ponto aí. A gente fica sem lugar. Aí fica assim, uma bola
de pingue-pongue (SANTOS, 2004, p.81).
Assim o gari reserva fica desprovido de equipe, não divide a catação e os guardados
com os colegas, não conhece os trechos, cada dia é levado para alguma função diferente e
estabelece uma relação de distância com os colegas. Para regular a carga de trabalho o
reserva, com exceções, corre menos e fica mais tempo sobre o estribo e fazendo sua própria
catação. Um estudo mais aprofundado sobre os garis reserva é encontrado em SANTOS
(2004).
A relação dos garis com o motorista
Segundo fala do mesmo, “o motorista tem quatro filhos”. Tem grande
responsabilidade pela segurança deles, é seu chefe direto.
A boa relação dos garis com o motorista é muito importante, principalmente sua
comunicação, porque além de coordenar o trecho a ser percorrido, o motorista avisa, com a
buzina, se há algum perigo ou imprevisto. Os motoristas desenvolvem códigos com a buzina
para se comunicar com os garis, e vice-versa. Numa guarnição, buzina com um toque
ligeiramente longo para os garis quando há algum carro. Noutra, dois toques significam que
há algum veículo passando, carro, caminhão, ônibus ou moto. Há motorista que avisa quando
há lixo que foi depositado após a redução dando um ou dois toques para avisar se o lixo está a
direita ou a esquerda.
Antes mesmo de arremessarem ou levarem todo o lixo de um ponto, gritam de várias
maneiras para o motorista arrancar o caminhão: “Foi, fui, fala comigo, tá rodando, obedece,
vai embora, pára não”. Há motoristas que não permitem nenhum grito, só o mínimo
necessário para se comunicarem entre si.
Muitas vezes o gari nem precisa gritar para o motorista seguir. Antes de terminar um
monte, o motorista que os observa pelos retrovisores arranca o caminhão. Apesar de haver
122
garis que se queixam do ritmo imposto pelo motorista, relatam que esta estratégia é feita para
ganhar tempo, agilizar o serviço, manter o ritmo. Para muitos garis, trabalhar devagar é pior,
mais cansativo. É necessário manter um ritmo que corresponda à dinâmica do trabalho, que dê
mobilidade diante do trânsito de automóveis e das pessoas.
Os garis reconhecem quem é o “bom” e o “mau” motorista. O “bom” motorista planeja
a jornada com os garis e decide o ritmo de trabalho com eles. Ele também permite a “catação”
e os guardados. O “mau” motorista impõe o ritmo, não negocia as decisões, não permite o uso
de determinadas estratégias.
O fato de usarem o assovio para que o motorista pare o caminhão, e gritarem “Foi”
para que o caminhão seja colocado em movimento novamente, demonstra que os garis de
algumas guarnições regulam o ritmo de trabalho com o motorista.
O motorista observa os garis praticamente todo o tempo, inclusive pelos retrovisores
direito e esquerdo. Devido ao ruído constante do caminhão e da rua, muitas vezes o motorista
precisa abrir a porta da cabine para se comunicar com os garis.
Os conflitos e discussões em trabalho
Após meses de convivência com uma equipe foi possível ver algumas discussões, por
exemplo, quando um dos trechos diminuiu, os garis foram avisados pelo motorista. Sem se
lembrarem da mudança, fizeram "redução" na parte antiga. Discutiram, mas logo já estavam
tranqüilos novamente. Outra vez brigaram com um colega porque ele não gostava de fazer o
rodízio, auxiliar o lado mais pesado.
Como contam, às vezes brigam seriamente. Mas resolvem no mesmo dia porque
precisam trabalhar juntos. A solução dos problemas da equipe no próprio trecho também faz
parte da “lei da guarnição”, sendo que só os problemas muito graves entre eles são levados ao
conhecimento da chefia.
123
Mesmo quando estão brigados, os garis relatam não deixar nenhum colega na mão.
Além de ficarem atentos pela própria segurança, ficam atentos com a segurança dos colegas.
Enquanto trabalhavam, houve um interessante episódio: um colega que estava descendo da
parte esquerda do caminhão quase foi atropelado por um motorista apressado. Não só o
motorista buzinou, como todos os colegas gritaram avisando: “Carro!!!” O gari segurou-se
no corrimão lateral e aproximou o corpo do caminhão. Após o trabalho o gari relatou que
ficou com o coração disparado, que levou um susto, e comentou a importância da proteção
recíproca entre os colegas.
A aprendizagem
Os iniciantes aprendem na prática. Para os garis, quinze dias é o tempo que o novato
tem pra aprender a função. As técnicas corporais, por exemplo, são ensinadas propositalmente
de forma errada: por exemplo, alguns experientes ensinam o novato a saltar do estribo com o
caminhão em movimento, porém, falam para o gari tentar parar o corpo quando saltar do
estribo. O gari que desce e tenta frear o movimento costuma cair. Também falam para o gari
iniciante tentar alcançar o caminhão nas curvas pelo lado oposto do estribo. Então o gari não
alcança o caminhão. Como relatam, “o gari aprende sofrendo”, ou “ele aprende caindo”.
Relatam que até ensinam algumas técnicas para o novato cair menos, mas para eles, é caindo
mesmo que o novato aprende.
A estratégia de "redução"
A decisão de realizar a estratégia de "redução" depende do trecho que os garis fazem,
se ali há mais ou menos lixo, se o lixo está mais ou menos concentrado em alguns pontos,
principalmente no caso de haver prédios. Não é regra geral, mas as guarnições que não fazem
a "redução" na segunda e na terça-feira explicam porque:
124
“É certo que dia de segunda e terça não tem jeito de reduzir”. “Porque a massa
de lixo aumenta né! Aí tem tanto lixo que já tá reduzido naturalmente... Não seria
viável... tenho que dá umas vinte braçada”.
“Se você reduzir, vai ciente que vai cansar mais”. “segunda e terça fica na
mesma”.
“...Não vai ser todo dia... se na segunda eu vou gastar 3 horas pra reduzir o
trecho, na quarta e na sexta vou gastar quarenta minutos.”
Nem sempre há um local pré-determinado no trecho para o início da "redução",
quando feita no começo da segunda viagem. Assim, apesar de as equipes tentarem terminar a
primeira viagem sempre no mesmo lugar, é quando o baú do caminhão está cheio que o
motorista vai ao aterro e inicia-se a "redução". Desta forma o início da "redução" dependerá
da quantidade de lixo naquele dia. Ou caso o caminhão quebre, os garis podem começar a
"redução" a partir dali, caso não retornem para a garagem da regional.
Apesar de algumas guarnições não fazerem “redução” nas segundas e terças por
considerarem que o lixo já esteja amontoado, devido à grande quantidade de lixo nas portas
das casas e prédios, há guarnições que fazem "redução" também nesses dias, porém em
momentos diferentes.
Por exemplo, no caso do que a guarnição chama de “inversão de trecho”, as equipes se
subdividem: às vezes um dos garis pega carona com outra guarnição, chega antes dos colegas
no início do trecho, toma café da manhã em uma lanchonete e inicia a coleta fazendo
"redução". Assim a “bateção” se inicia com três garis até que os colegas alcancem o gari que
já havia iniciado a coleta fazendo a "redução".
125
Em outro caso, há um trecho em que uma equipe realiza esta estratégia em algumas
avenidas, da seguinte forma: enquanto o caminhão segue a avenida, dois garis se separam da
equipe e fazem "redução" na contramão. Assim, quando o caminhão retorna ao fim da
avenida e passa para o outro lado desta mesma avenida, o lixo já está em montes. Então a
dupla que ficou no caminhão apenas coleta o lixo da “redução”, até que o caminhão encontre
a dupla que estava fazendo os montes para continuarem a coleta com a equipe completa.
Nas ruas muito íngremes para o caminhão subir, e logicamente para os garis, uma
dupla se separa da equipe e desce a rua fazendo a "redução", levando o lixo nas mãos até a
esquina de baixo, quando encontra o resto da equipe que já havia coletado em outras ruas do
trecho seguindo o caminhão.
Assim pode-se ver que todos os dias, de alguma forma, ocorre a "redução".
Interessante notar ainda que, nos momentos em que a redução é prescrita (redução planejada,
em que o motorista estaciona e aguarda os garis entrarem em algumas ruas para coletar o lixo
acumulando os sacos nas mãos), os garis se queixam do aumento da carga de trabalho, por
terem que caminhar muitos metros com o lixo na mão.
As equipes definiram algumas regras para a realização da estratégia de "redução":
- gari reserva não pode fazer "redução" por não conhecer os locais apropriados
para os montes, a não ser que ele já conheça o trecho;
- não podem fazer os montes no meio da calçada, embaixo de janelas, em frente a
garagens, muito próximo a estabelecimentos comerciais;
- não podem fazer os montes em esquinas para não atrapalhar o trânsito;
- se houver queixa da população é preciso encontrar outro local para os montes.
Então o gari pede permissão às pessoas que moram próximas aos locais
possíveis de se fazer a mudança.
126
As regras acima nem sempre são obedecidas, já que nos filmes pode-se ver, por
exemplo, lixo reduzido na porta de uma casa de esquina, inclusive sobre a calçada. De acordo
com os garis em autoconfrontação, isto pode ocorrer caso já haja lixo amontoado pelos
próprios moradores naquele local.
O monte de lixo é feito quase sempre do lado direito da rua para que os garis que
batem não precisem atravessar a rua. De acordo com os garis, o monte só não é feito do lado
direito quando não é possível colocar o lixo em alguma parte da rua deste lado, ou caso já
exista uma grande quantidade de lixo do lado esquerdo, de forma que aproveitam o monte
levando mais lixo para aquele local. Então o motorista costuma parar o caminhão na
contramão enquanto os garis coletam, caso a rua não seja movimentada, mesmo que seja de
mão dupla. Nas avenidas o motorista precisa retornar e parar à direita, o mais próximo
possível dos montes.
Geralmente o gari faz "redução" caminhando. Exceto quando a guarnição combina de
terminar a coleta mais cedo, para um colega resolver problemas pessoais. Neste caso ele reduz
caminhando bem rápido ou correndo, e diminui o tempo das pausas. Geralmente saem mais
cedo nos dias em que há menor quantidade de lixo, pois estabeleceram como regra que nos
dias mais pesados evita-se faltar para não mudar a estrutura da equipe, e o ritmo de trabalho
aumenta.
Durante a "redução" o gari tem mais oportunidade de conversar com os moradores. É
na redução que ele orienta o munícipe a acondicionar o lixo de forma mais segura para o gari,
combina coletar o lixo que não é domiciliar para manter a amizade com os moradores, ganha
presentes, ouve histórias.
Como a "redução" é feita do lado direito da rua, os garis que batem o lixo dos montes
sentem maior segurança, já que o motorista pára o caminhão perto dos montes. Quando o lixo
precisa ser amontoado na contramão, o motorista pára o caminhão na contramão também,
127
próximo ao monte. Se a rua for movimentada, o motorista passa depois para encostar na mão
da rua, próximo aos montes.
Os garis defendem o reconhecimento da "redução" pela empresa. Entretanto, apesar de
alguns gerentes terem permitido a realização desta estratégia, a diretoria de coleta insiste em
afirmar que não foram comprovados os benefícios desta estratégia nem para o gari, nem para
a empresa. Pelo contrário, a diretoria de coleta e a diretoria de planejamento afirmam que é
difícil aceitar a "redução" por causa das queixas dos munícipes com relação ao mal cheiro e
ao chorume (líquido proveniente do lixo), por interferir na credibilidade das campanhas sobre
os horários de coleta e por acreditar que a "redução" cause um aumento da carga de trabalho
para o gari. Afirmam ainda:
“Ao reduzir, o gari tem um dispêndio maior de energia, pois o movimento de correr
o impulsiona diminuindo o esforço no momento de jogar o lixo no caminhão
(Estudo sobre a “redução”, documento cedido pela empresa, 2003).”
A estratégia de “redução” sob o ponto de vista dos garis
Conforme relato dos garis, a “redução” traz diversas vantagens, que variam segundo
vários aspectos, que estão subdivididas abaixo para fins didáticos. Entretanto, é preciso
lembrar que a carga de trabalho contém aspectos mentais e físicos, cuja separação é difícil de
estabelecer (ABRAHÃO, 1993). Um exemplo dessa impossibilidade está no relato abaixo, em
que o gari demonstra porque prefere usar a estratégia de “redução”:
“Trabalho com “redução” é melhor porque evita acidente no trabalho, reduz a
necessidade de correr, é melhor pro corpo e pra mente, evita corte, evita cair.”.
O lado positivo da simplificação da tarefa: redução da complexidade
Quando usada pelos garis durante a jornada de trabalho, a estratégia de “redução”
possibilita a execução de praticamente uma ação, com o objetivo de execução da atividade.
128
Ao contrário, se durante uma jornada o gari não usar esta estratégia, mais ações por parte dele
serão exigidas para o mesmo fim. Atravessar a rua observando a passagem dos veículos para
não ser atropelado (e zelar pela segurança dos colegas), olhar para os locais onde está o lixo,
pegá-lo, observar no retorno para a via onde está o caminhão, arremessar o lixo sem atingir o
colega e perceber a arrancada do caminhão.
“Se você bate o reduzido, praticamente você vai efetuar uma ação só. Quer
dizer, o caminhão parou e você vai jogar o lixo pra dentro. O motorista vai tá
olhando o trânsito, vai tá sinalizando. O lixo... sem a redução... não.”
No caso de coleta sem “redução”:
“... Compete a quem? Ao grupo todo. Tanto o motorista quanto os garis vão ter
que fazer o quê? O caminhão vai andando e os coletor vai ter que pular vai ter
que olhar o trânsito vai ter que olhar o lixo vai ter que tá olhando o caminhão
correr. Aí que eu acho que o desgaste é bem maior, tanto mentalmente, quanto
físico”.
Neste caso, a simplificação do trabalho é positiva tanto para o gari que faz a “redução”
e quando para o gari que coleta os montes de lixo. Além disso, a “redução” melhora a
qualidade da coleta, visto que os garis não deixam lixo caído na rua, o que acontece quando
precisam arremessar os sacos com o caminhão em movimento e com o trânsito de carros.
Comparado com o trabalho prescrito, o trabalho feito com a “redução” permite mais
vantagens, que estão discutidas a seguir.
Segurança, prevenção de acidentes e diminuição da carga de trabalho.
Ao realizar a “redução”, o gari tem condições de separar o lixo perigoso, que contém
vidro quebrado ou outros elementos pérfuro-cortantes. Ele deixa os sacos com vidro mais
129
distantes do monte principal. O coletor sabe que aquele saco mais distante contém vidro e
toma mais cuidado. Quando o gari que faz os montes vê necessidade, entra na residência ou
em algum estabelecimento comercial e mostra a forma segura de acondicionar vidros
quebrados ou outros objetos perigosos. Desta forma, pode-se notar pela fala dos garis como é
mais seguro coletar o lixo domiciliar usando a estratégia de “redução”:
“É até estranho um gari chegar dizendo: “Nó... machuquei reduzindo”. Aí os
cara vai falar assim: “É lero lero”. Ninguém nem acredita”.
“É estranho porque é incomum machucar reduzindo”.
“O lixo tá parado ali. Cê tá vendo ele. Sabe... cê vê ele. Não, correndo não, cê
juntou daqui, juntou dali, pá... Aí corta mesmo... suponhamos, o caminhão tá em
movimento, cê vai pegar o saco e os caco tão tudo ali na alça, aí você pega. Em
movimento eu não vou parar, olhar sacola, não dá tempo...”.
“... é pelo ver e pelo ouvir né. Quando cê tá reduzindo você tem um contato maior
como lixo. Você pega o lixo aqui e leva lá pra frente, aí você ouve. Quando você
joga lá aí você ouve, pá... tem uma latinha lá dentro, tem vidro, aí separa tudo”.
Como já comentado, a “redução” geralmente é feita do lado direito da rua. Mesmo
quando feita do lado esquerdo, o motorista encosta o caminhão bem próximo ao monte de
lixo. Então o gari não precisa atravessar a rua para coletar.
“O caminhão tá na direita, né! Você corre em cima do passeio, né! Quem tá na
esquerda não, tá na contramão. Os carros vão tá vindo. Ele vai ter que
atravessar, olhar, pegar o lixo, olhar o caminhão atravessar. Às vezes nessas
troca de ação aí ele tá sujeito a ser atropelado...”.
130
Os garis relatam que a carga mental é menor com a “redução”. Sem “redução”
precisam ficar o tempo todo concentrados, já que é preciso ter muita atenção, principalmente
nos locais com trânsito mais intenso de carros e pessoas.
Além disso, o conflito com os motoristas diminui quando a “redução” acontece, pois o
motorista do caminhão permanece parado em cada local por um tempo mínimo, permitindo
que os motoristas o ultrapassem, já que os montes estão praticamente pré-determinados e o
gari permanece apenas na mão da via. Os garis relatam que, quando o caminhão está em
movimento na rua, fica mais difícil para os carros o ultrapassarem, então os motoristas dos
carros reclamam mais:
“Desgaste mental? Ah... Buzinação, xingação. Tá ligado! Você ter que ficar
concentrando assim. Isso acontece quando você pára no trânsito, o motorista
começa xingar, buzinar, sabe?... Então de ter um desgaste menor quando tem
“redução”.
Possibilidade de relações sociais com a comunidade
Os garis mantêm uma relação com a comunidade local intensificada quando fazem a
“redução”, e demonstram sua insatisfação ao serem transferidos de trecho por causa da
terceirização. Também consideram a parte inicial (primeira viagem) da coleta pior, pois têm
menos contato com a comunidade na parte dos trechos em que não fazem “redução”:
“Onde num reduz num dá nem tempo de conhecer o pessoal direito. A gente
conhece menos”.
“Quando não faz “redução” cê passa correndo, cê vai dá só um tchau. Às vezes
cê tá correndo, aí um grita: ‘ô colega’. Aí você vê um suco, um lanchinho. Aí cê
tá lá na frente e a senhora grita:’um lanche procês’. Aí o caminhão tem que dar
uma volta”.
“No natal tem presente, quando a gente precisa de alguma coisa é só falar! Hoje
a gente ganha muito menos, mas ainda tem tanta cesta de Natal!”.
131
Regulação da carga de trabalho
Algumas equipes fazem rodízio diário ou semanal entre as duplas que vão reduzir, ou
decidem na hora quem vai reduzir naquele dia, dependendo do estado de saúde de cada um.
Outras equipes não fazem rodízio entre “redução” e coleta (que chamam de bateção), de
forma que é sempre a mesma dupla que reduz e a outra que sempre bate o lixo reduzido. Por
exemplo, no caso de um gari que relata sentir muita dor nas pernas ao saltar do estribo.
Desta forma, a estratégia da “redução” também permite uma construção do trabalho
coletivo de forma a promover uma regulação coletiva do desgaste provocado pela atividade:
“Porque quando você reduz é mais fácil, então igual, por exemplo, eu tô
reduzindo e eles tão lá atrás batendo. Porque se nós quatro reduzir junto, quando
o caminhão chegar do aterro nós tamos junto. Mas é até pra evitar o desgaste,
né! Por exemplo, eu reduzo hoje e os dois ficam. Aí eu vou ter o benefício de
reduzir primeiro e vim embora e os dois vai ficar lá batendo”.
“De quarta a sábado todo mundo beneficia porque alterna sabe!... Eu acho que o
benefício é o conjunto. Não existe um benefício único não sabe! Mas se separar o
benefício é maior pra quem reduz. Eles vêm embora e quem bate fica lá
trabaiando. O desgaste não vai ter tanto. A guarnição toda vai beneficiar porque
eu vou ter o tempo pra eu ir lá juntar tranqüilo... os outros também vão trabalhar
tranqüilo porque eles vão pegar o lixo todo na direita, amontoadinho...”.
“A guarnição toda vai beneficiar. Porque eu vou ter o tempo pra eu ir lá juntar
tranqüilo sem o caminhão atrás de mim pra me apressar. Tá ligado! Tranqüilo...
assobiando... e os outros vão também trabalhar tranqüilo por quê? Eles vão
pegar o lixo todo na direita, amontoadinho, não vai ter o perigo de carro
atropelar, de cortar, de machucar sabe? Eu já separei tudo!... aí por isso que eu
te digo que o benefício vai ser o conjunto”.
132
Assim os garis também se dividem para regular o tempo da jornada de trabalho, como
no caso do gari que tem um compromisso naquele dia e precisa sair mais cedo. Ele faz a
“redução” e termina o trabalho mais cedo.
O trabalho de coleta de lixo domiciliar, quando realizado com a “redução”, possibilita
ao trabalhador uma liberdade maior de atender às suas necessidades básicas, como uso de
sanitários, tomar líquidos e ingerir alimentos, pois está sem o condicionamento mecânico que
é o caminhão.
A variabilidade das situações de trabalho e a gestão da complexidade
Ao invés da representação usual do trabalho dos garis como “simples”, a análise da
atividade permitiu evidenciar os elementos que caracterizam o trabalho de coleta de lixo
domiciliar como complexo, bem como os garis gerenciam esta complexidade em seu
cotidiano. Nesta gestão pode-se verificar algumas decisões que os permitem pouparem-se no
uso de seu corpo.
Acompanhados durante duas semanas, foi observada uma grande diversidade de
situações que modificam a atividade da equipe, evidenciando a complexidade do trabalho de
coleta. Alguns aspectos da variabilidade geral estão resumidos na Tabela 06, cujos dados
referem-se à primeira viagem de um trecho.
Tabela 06: A variabilidade no cotidiano de trabalho dos garis.
Data Dia da
semana
Ocorrências
28/08/06 segunda
-feira
- Dia frio
- Choveu aos 50 min de coleta, usaram sacos de lixo como capa
30/08/06 quarta-
feira
- Dia quente
- 1 gari reserva
- Caminhão reserva, acham pior
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- Após 1ª viagem só 1 gari fez “redução” porque o reserva não faz “redução” conforme
regra das equipes
- Não houve catação (separação de recicláveis) / proibição naquele dia
01/09/06 sexta-
feira
- Dia quente
- Ganharam livros escolares
- Não houve “redução” por causa do gari reserva
- 1 gari reserva
- Caminhão reserva
04/09/06 segunda
-feira
- Dia frio
- 2 garis reserva
- Caminhão original
- Fiscal / cadastrador: fizeram o roteiro prescrito
- Fizeram “redução planejada”, mas não a “redução” comumente feita devido a
presença do cadastrador
06/09/06 quarta-
feira
- Dia quente
- 1 gari reserva
- Fiscal / cadastrador
- Fizeram “redução planejada
- Ganharam TV e vídeo cassete.
08/09/06 sexta-
feira
após
feriado
- Dia frio
- Após feriado
- Coletaram com 5 garis
- Fiscal / cadastrador: roteiro prescrito
Além desses eventos mais ou menos freqüentes, outras fontes de variabilidade foram
identificadas:
A variabilidade da massa coletada: o lixo varia em sua quantidade diária, semanal,
mensal e dependendo das estações do ano. Cada vez que o baú do caminhão fica lotado é
necessário descarregá-lo no aterro sanitário da cidade e os garis precisam esperar a volta do
motorista. Então eles iniciam a segunda viagem antes do motorista: fazem a “redução”, para
não ficarem parados e para diminuir o tempo de coleta. Além disso, como visto acima, a
"redução" permite diminuir a carga de trabalho como um todo. É necessário menos
concentração com o trânsito, não há necessidade de atravessar as ruas correndo, o risco de
cortes diminui consideravelmente por deixarem os sacos com vidros quebrados à parte dos
montes, nem há necessidade de correr.
134
O tipo de lixo e sua forma de acondicionamento: o lixo varia bastante, conforme as
estações do ano, como por exemplo, mais restos de podas de jardins na primavera e mais
papel e papelão no Natal. Os garis coletam desde sacolas plásticas de supermercados até
grandes sacos, que precisam arrastar ou carregar em dupla. Apesar da proibição, os garis
também coletam móveis velhos, pedaços de madeira, latões e barris de vários tamanhos,
pneus velhos, restos de podas, sacos com entulho, dentre vários outros que aparecem a cada
dia.
Para reduzir o número de viagens, principalmente após os feriados em que há grande
quantidade de lixo, os coletores fazem a “catação” e entregam o papelão para os catadores de
papel que encontram ao longo do trecho. Desta forma, além de aumentarem a quantidade de
lixo que será reciclada, eles colaboram com os catadores de papel, inclusive fazendo amizade
com os mesmos, que muitas vezes os auxiliam no carregamento de sacos de lixo como forma
de gratidão e deixam o lixo mais organizado após separarem os recicláveis. Assim a coleta
termina mais cedo, visto que, diminuindo o número de viagens, diminui o tempo que ficarão
aguardando o motorista retornar do aterro sanitário.
O recolhimento de lixo não domiciliar, que poderíamos considerar que aumenta a
carga de trabalho devido à variabilidade do lixo, para eles é uma forma de estabelecerem uma
relação de troca e de segurança com a população, utilizando o telefone quando necessário (em
caso de acidentes, quebras do caminhão, dentre outras), usando o banheiro (que preferem usar
em pontos comerciais), ou tomando água, além de receberem lanches como forma de gratidão
dos moradores.
A ambigüidade desta relação está na forma inadequada que alguns moradores
acondicionam determinados resíduos, tais como vidros quebrados, agulhas, venenos, dentre
outros elementos perigosos. Neste caso, a "redução" tem um papel importante, já que, como
135
visto, o gari deixa as sacolas, que acredita conter elementos perigosos, mais afastadas do
monte.
A disposição do lixo nas ruas: Os garis conhecem os locais onde o lixo é depositado.
Entretanto, nem sempre os sacos são colocados pelos mesmos moradores todos os dias de
coleta. Desta forma, a quantidade e a disposição do lixo varia a cada dia. Além de terem
criado o sistema de “rodízio”, em que o gari que precisa de auxílio grita: “pesou!” para ser
auxiliado pelo colega da dupla do lado oposto, os garis também costumam se deslocar em
cima do próprio estribo para saberem onde há lixo. Assim eles procuram não deixar nenhum
saco sem ser coletado. Além disso, os garis já sabem que há lixo disperso, por exemplo, na
frente de uma casa em que o lixo foi depositado após um colega já ter passado fazendo
"redução", quando o motorista diminui a velocidade do caminhão. Sobre o estribo eles
observam em que lado o lixo está e avisam: “é meu, tá de cá!”, ou então “tá do seu lado!”. O
gari que decide coletar salta correndo em direção ao lixo, coleta, arremessa o lixo e salta sobre
o estribo novamente, tudo com o caminhão em movimento.
O peso dos sacos: quando um saco está muito pesado, os garis tomam duas decisões
possíveis: pedem ajuda a um colega ou arrastam o lixo até bem próximo ao caminhão e o
arremessam bem de perto do cocho. Comentam que muitos moradores costumam enganar os
garis, deixando o entulho no fundo do saco, sob lixos mais leves. Estes sacos rasgam quando
puxados, o que os obriga a utilizar os pedaços de madeira e vassouras que deixam como
ferramentas auxiliares da coleta. Também são auxiliados pelos colegas, de forma que
enquanto uns carregam o que restou dos sacos rasgados, outros varrem e levam o lixo do chão
para o cocho do caminhão.
136
Para saberem o peso do lixo, os garis relatam pegar por cima dos sacos. Se notarem
que um saco está muito pesado, pegam todos os mais leves e deixam os pesados para serem
coletados pelos colegas que chegam em seguida, conforme relata um gari:
“Eu meto a mão na sacola. E aperto com os dedos, né! Aí quando eu aperto
assim, a gente sente que a sacola já num veio. Tipo com um ímã na mão. Aí você
solta ela, e já pega uma mais leve, pro outro vir e pegar só ela.
“Quem chega depois já sabe. O lixo que fica tá mais pesado. Então toma mais
cuidado na hora de elevar o saco.”
O atraso dos moradores: os moradores esquecem frequentemente de colocar o lixo
na porta de casa, e quando escutam o som do caminhão, correm e chamam os garis. A decisão
de voltar e coletar o lixo daquele munícipe é certa, o que muda é como a equipe se arranja
para não atrasar a coleta. Num momento do trecho em que o caminhão já estava quase virando
a esquina, uma senhora chamou os garis. Um deles mandou a equipe seguir. Voltou, recolheu
o lixo daquela casa e ao invés de tentar alcançar o caminhão, cortou caminho por alguns
quarteirões do trecho fazendo “redução”, até encontrar os colegas mais a frente.
Ao serem questionados sobre o que fazem quando este evento acontece, os garis das
guarnições estudadas não comentaram fazer nada para prevenir uma ocorrência tão comum,
como gritar ou assoviar avisando que estão passando. Apenas disseram que fazem o que está
mais propício de ser feito, como uma resposta a esta ocorrência: pedir ao motorista para
esperar, mandar seguir e descer fazendo “redução”, falar que passa mais tarde com o
caminhão... decisões que dependem do local do trecho, daí a importância de conhecê-lo, e
decisões coletivas ou individuais que dependem das diversas variabilidades, pois tudo isso
pesa na decisão a ser tomada em segundos.
137
A variabilidade dos caminhões: Conforme comentado anteriormente, a coleta é feita
com 2 tipos de caminhão: o PPT e o Ford. O PPT é mais antigo, possui um sistema
compactador em forma de leme. O caminhão mais atual possui o compactador em forma de
prensa, que precisa ser controlada pelos garis e pelo motorista. Entre os mesmos modelos
existem diferenças que variam da disposição de algumas partes até a eficiência dos mesmos,
devido ao tempo de uso e modificações que foram feitas com base nas sugestões das equipes
que os utilizam. As guarnições usam vassouras, pás e pedaços de madeira como ferramentas
auxiliares que ficam presas nas laterais de alguns caminhões.
Como o leme do caminhão antigo (PPT) joga parte do lixo para fora do cocho lotado, os garis
precisam empurrar o lixo usando vassouras. Quando encontram uma vassoura mais nova no
lixo, trocam-na.
Quando o caminhão usual quebra (ocorrência comum) usam caminhões reserva. Como
estes são desprovidos das ferramentas usuais, os garis costumam usar o próprio lixo como
ferramenta para auxiliar a coleta quando o lixo rasga, como por exemplo, caixa de ovos ou de
sapatos.
Os garis também comentam que os caminhões reserva são piores que os usuais, os
compactadores são menos potentes, o estribo mais alto, variações que dependem de cada
veículo coletor. Além disso alguns garis acham o PPT mais barulhento, mas não se fala em
uso de protetor auricular. Para eles o protetor auricular aumenta o risco de atropelamento.
Como o caminhão compactador mais atual precisa ser acionado pela equipe, os garis relatam
que o tempo de fazer a “prensagem” do lixo é um tempo para descanso. O caminhão com
leme já não permite esta pausa.
Variabilidade do tempo: Em dias de chuva, como o estribo do caminhão fica
escorregadio, os garis seguram-se em uma faixa de pano, denominada por eles de “Tereza”.
138
Eles amarram este pano no corrimão principal do caminhão, com o objetivo de terem algo
firme para segurar quando pulam no estribo. Também jogam terra no estribo, quando este fica
engordurado e escorregadio.
A capa de chuva oferecida como EPI (Equipamento de Proteção Individual) é um
problema. Os garis relatam que não conseguem usar o capuz porque não vêem nem ouvem os
carros e motos passando. Além disso, não escutam o barulho de vidros dentro dos sacos de
lixo. Os braços também ficam sob as capas, em forma de poncho, o que dificulta a
movimentação dos braços. O capuz prejudica a visão e a audição, e também não é usado.
Então usam sacos de lixo que adaptam como capa, que permitem maior mobilidade corporal.
Após usarem os sacos de lixo podem jogá-los fora, sem necessidade de guardá-los no
caminhão. Com raras exceções, as capas de chuva ficam em casa ou nos escaninhos das
regionais.
Para suportarem melhor o calor, os garis cortam as mangas das camisas e assim
também lidam melhor com os arremessos dos sacos. Nos dias mais quentes tomam mais água,
apesar de não fazerem mais pausas. Geralmente tomam água de mangueiras e torneiras das
casas dos moradores. As madrinhas servem água gelada e lanches.
O filtro solar é considerado como um EPI pelos garis, sendo que muitos não gostam de
usar por acharem que suam mais no rosto, o que para eles dificulta o trabalho de coleta.
Apesar de não gostarem nem da capa de chuva, nem de usar filtro solar, raramente vê-se garis
sem os bonés oferecidos também como EPIs.
Variabilidade do piso: A variabilidade do piso causa quedas e entorses de tornozelo.
Mesmo conhecendo as ruas do trecho, relatam que não sabem quando surge um novo buraco
na pista.
“- Como fazem para prevenir de cair, pisar em falso?(Entrevistador)
- A gente tenta pisar certo, mas a gente pisa em falso. Muito.” (Gari)
139
- Igual ele falou, Deus que ajuda nós mesmo. Olha, tropeça, né! Mas aí a gente
tenta fazer o possível para não machucar muito.” (Gari)
Mais necessário seria e empresa responder aos diversos pedidos que os garis fazem
com relação ao fornecimento de mais modelos de sapatos, além daquele único fornecido
atualmente. Não só para dar mais segurança na hora de saltar do estribo ou correr, mas
também para dar mais conforto e proteger os pés dos freqüentes esporões causados não
apenas pelo piso, mas também pelo sapato.
A variabilidade do trânsito: além dos “rodízios” que ajudam a regular a carga de
trabalho, é coletivamente que eles se protegem no trânsito. Os relatos mostram porque é
importante a coesão da equipe no cuidado consigo e com o colega. Relatam ainda como fica
difícil trabalhar com um gari reserva:
“Quem tá no estribo fica olhando pra cima e pra baixo para ver se vem carro.
A gente grita, né!
Aí te dá aquele alerta, pra você evitar de atravessar. Assim que o carro
atravessou aí ele desce.”
Mesmo quando estão brigados, os garis relatam não deixar nenhum colega na mão.
Enquanto trabalhavam, houve um interessante episódio: um colega que estava descendo da
parte esquerda do caminhão quase foi atropelado por um motorista apressado. Não só o
motorista do caminhão buzinou, como um dos colegas gritou avisando: “Carro!!!” A palavra
“carro” é bastante utilizada, como não é de se estranhar. O gari se protegeu segurando no
caminhão e todos ficaram aliviados: “O L segurou no corrimão no atravessar da rua, o
caminhão protegeu.”
140
Os garis se comunicam com os motoristas todo o tempo em que precisam coletar
atravessando a rua. É comum observar motoristas apressados que não aguardam os garis
atravessarem a rua, e aqueles que diminuem a velocidade e logo arrancam sem esperar os
garis. Para evitarem os atropelamentos os garis param o movimento do corpo jogando o
tronco para trás, de forma a auxiliar esta parada brusca. E explicam:“É reflexo. Joga o corpo
pra trás e o corpo pára.”
141
IV.2.8- O questionário de Percepção
O Questionário de Percepção está apresentado no ANEXO A, cuja aplicação foi
dificultada em dois momentos: numa primeira tentativa, na época de constituirmos a
demanda, houve uma mudança abrupta de gerência e de decisões organizacionais (sistema de
tarefa para jornada, obrigação do cumprimento de uma hora de almoço, proibição de mais de
2 horas-extras). Nesta ocasião nenhum gari quis responder o questionário de percepção. Numa
outra tentativa houve uma terceirização surpresa de vários trechos daquela regional, sendo que
metade dos garis da regional foi transferida para outras regionais, para trabalharem como
garis reserva. Como os garis que restaram pensaram que um dos indicativos para a
transferência eram as manifestações de dores, apenas sete trabalhadores responderam ao
Questionário de Percepção.
O questionário deveria ser auto-aplicável, e sua aplicação trazia alguns objetivos
principais: verificar a prevalência de dores e desconfortos osteomusculares, e em que
momento do trabalho eles sentiam como ocasionadores de tais sintomas. Verificar quais EPIs
(equipamentos de proteção individual) eles deveriam usar, quais não usavam ou não gostavam
de usar e porque não gostavam de usar. O questionário tinha também como objetivo
importante verificar quais as técnicas corporais eles desenvolviam para conseguirem trabalhar
com as dores.
Entretanto os poucos garis que se dispuseram a respondê-lo o fizeram de forma
informal, pedindo inclusive que não fosse documentado. Então algumas informações foram
anotadas de forma superficial e um relato pôde ser gravado, e está transcrito abaixo, em que
um gari conta como consegue trabalhar com dores nos ombros.
“Pra não doer o ombro eu levo os cotovelos para trás, então o peso vai mais pras
mãos. Se eu levo o cotovelo um pouco pra frente, o peso tá mais no ombro, e
assim vai!”
142
“Arremessar mais de longe dói mais o ombro, quando o caminhão tá rápido e a
gente tem que arremessar de longe dói mais. De perto não, então quando eu tô
com dor eu tento arremessar sempre mais de perto.”
Também foi possível verificar algumas técnicas corporais antálgicas, que
possibilitavam o trabalho com dor, mas que acabavam por ocasionar outras dores em outras
partes do corpo. Consideraremos técnicas corporais antálgicas, como posturas ou formas que
os garis encontram para se movimentar sem sentir determinadas dores.
O principal dado foi que os garis contaram que, para trabalhar com as dores na base
dos pés causadas pelo esporão de calcâneo, eles costumam pisar mais com as pontas dos pés,
mas com o tempo começam a sentir dores nos joelhos (este fato está mais detalhado no
Capítulo V: discussão dos resultados).
De um modo geral, os dados do questionário mostraram os seguintes resultados, para
os sete garis que o responderam:
- faixa etária entre 27 e 49 anos.
- tempo de trabalho como gari III de 7 a 24 anos.
- quatro dos sete garis possuem outro trabalho.
- dois garis têm o segundo grau completo, e dois completaram o primeiro grau,
dois cursaram até a 7ª série e um fez até a 5ª série.
- os sete relataram a necessidade de mais modelos de sapatos, três não usam filtro
solar e nenhum usa a capa de chuva cedida pela empresa por causa do capuz que
atrapalha a visão e a audição. Todos relataram não usarem protetores auriculares
(nem fazem parte do conjunto de EPIs dos garis), também por prejudicarem a
audição;
143
- todos relataram a importância de se permitir a "redução" como forma de
diminuir a carga de trabalho, entretanto um gari comentou que apesar de fazer
"redução" cansa menos de uma forma “geral”, para ele bater o lixo da "redução"
cansa mais o ombro e a coluna lombar. Um dos garis relatou que para ele a
"redução" cansa mais.
Quanto à prevalência de dores e desconfortos osteomusculares verificaram-se os
segmentos abaixo, sendo que nenhum gari quis falar sobre dores na coluna, por terem receio
de serem transferidos de função:
- pé: um sente agulhadas nos pés direito e esquerdo, sendo que já perfurou os dois
pés com prego e que tem esporão de calcâneo;
- tornozelo: um sente dor no tornozelo direito (todos relataram já ter torcido o
tornozelo pelo menos uma vez);
- joelho: dois sentem dor nos dois joelhos (um gari sente dor insuportável e outro
gari sente dor leve);
- perna: um apresenta sintomas de dor na região posterior da perna, sugerindo
compressão do nervo ciático;
- um gari sentia dor na coxa e perna (foi indicado para um médico angiologista).
- ombro: dois sentem dor no ombro direito e dois no esquerdo (um gari sente dor
nos dois ombros, e ambos sentem dores insuportáveis);
Dentre as características da atividade que relataram causas dores e desconforto, os
garis relataram os seguintes aspectos:
- corrimão alto do caminhão e bater o lixo da "redução" cansam os ombros.
- piso calçado com pedras aumenta as dores nos pés (calcâneo) e nos joelhos.
144
- sacos pesados que pegam desprevenidos (moradores enganam os garis
colocando o entulho no fundo e lixos mais leves por cima dos sacos) “deslocam”a
coluna.
- bater cansa os ombros. "Redução" descansa no “geral”, mas cansa mais os
ombros e a coluna.
- impacto na hora de saltar do estribo do caminhão contribui com as dores nos
joelhos.
- o trabalho em si já é cansativo.
- arremessar o lixo dói os ombros.
Para conseguirem trabalhar com as dores e desconfortos, os garis tomam anti-
inflamatórios. Para diminuir a dor na base do pé o gari corre na ponta dos pés, mas esta
técnica causa dor nos joelhos. Todos relataram que depois que aquecem no trabalho as dores
diminuem ou param e só sentem novamente à noite. Os garis relataram que só recorrem a
algum serviço médico quando as dores estão insuportáveis e os impedem de trabalhar.
Dentre as características que os garis mais gostam em seu trabalho, eles relataram:
- trabalho em equipe; quase tudo; crianças na rua; amizade com a população;
acabar e ir embora; nada; correr tira o estresse, descontrai; orgulho do serviço.
Ao serem questionados o que menos gostam em seu trabalho, e como isso poderia
mudar/melhorar, ouviram-se os seguintes relatos:
- salário muito baixo; ser pressionado é ruim, não desenvolve; muita coisa;
empresa com raiva deles; falta de respeito com eles na empresa, desrespeito; lixo
mal organizado; vidros no lixo;
145
As sugestões mais faladas tanto na aplicação do questionário quanto nos relatos dos garis foi
mudar a gerência, parar de terceirizar os trechos e de impor mudanças repentinas, além de
mais modelos de sapatos. Muitos garis compram palmilhas de silicone, que deveriam ser
disponibilizadas pela empresa.
Além dos possíveis efeitos colaterais a curto, médio e longo prazos, o perigo do uso
dos anti-inflamatórios está no fato de os garis trabalharem com as lesões, podendo agravá-las
até ficarem irreversíveis. Como a empresa não conta com dados epidemiológicos, os serviços
médicos são terceirizados e a os serviços de fisioterapia geralmente ineficazes (eles comentam
que são tratados apenas com aparelhos de calor, conforme sua descrição, provavelmente
aparelho de ultra-som, que usados isoladamente sem técnicas de cinesioterapia não curam a
inflamação, e a volta ao trabalho sem melhoria das condições de trabalho ocasiona o retorno
das lesões), e os garis têm receio de falar sobre suas dores, fica difícil estabelecer medidas
para resolver este problema. Dentre os graves problemas que mostram o estado sucateado da
empresa, verificou-se pelo processo do ministério (Ação Civil Pública n. 75/2005 do
Ministério Público do Trabalho) do trabalho que há apenas um médico do trabalho para
acompanhar todos os funcionários da empresa, inclusive os garis das terceirizadas, e que há
um técnico de segurança do trabalho para cada duas regionais, inclusive as terceirizadas.
Além disso, há 6 anos não eram feitos exames de rotina com os funcionários da empresa, e os
garis nunca fizeram audiometria ocupacional.
Diante dos problemas citados acima, uma parte muito importante deste trabalho ficou
a mercê da realidade da empresa, que não coloca os garis na participação das decisões,
mudando-os de trecho e criando uma constante atmosfera de insegurança e insatisfação com o
trabalho.
146
Mesmo assim o questionário foi de suma importância, visto que trouxe evidências de
temor e a insegurança dos trabalhadores quanto ao seu futuro na empresa, além de sérios
problemas em que a empresa se encontra, inclusive dificultando o andamento de uma
transformação ergonômica.
147
IV.2.9- Análise das técnicas corporais dos garis na realização da atividade
Para se realizar esta análise, as etapas do trabalho descritas nas Fichas de Descrição da
Atividade foram caracterizadas de acordo com a análise cinesiológica e biomecânica: um
estudo das posturas, movimentos e gestos, ou técnicas corporais adotadas no trabalho de
coleta de lixo domiciliar. Muito se poderia falar das técnicas corporais empregadas no
trabalho dos garis. Num sentido mais amplo, MAUSS (1974) entende por técnicas corporais
as maneiras como as pessoas sabem servir-se de seus corpos. O autor que estudava o tema
desde a primeira metade do século dezenove, aprofundou seus estudos na Primeira Guerra
Mundial verificando a dificuldade que as tropas inglesas apresentavam para utilizar as pás
francesas para cavar. Estudou ainda as diferenças entre a marcha dos dois exércitos, passando
depois a obter conclusões sobre diferentes técnicas corporais de diferentes sociedades no
mundo. Para ele, toda técnica tem sua especificidade, sua forma, cujos movimentos corporais
dependem não apenas do desenvolvimento motor do ser humano, mas também da
aprendizagem e da imitação, estes por sua vez relacionados a certos valores estéticos ou de
objetivos de eficácia. As técnicas corporais também são influenciadas por “fatos técnicos” (p.
216), por exemplo, o modo de caminhar, que é influenciado pelo uso e também pelo modelo
de sapato utilizado.
A descrição das técnicas corporais dos garis em seu trabalho são aqui consideradas
como seus modos operatórios, que foram descritos nesta análise cinesiológica e biomecânica,
ao se descrever a movimentação dos garis na atividade de coleta de lixo domiciliar. Esta
análise apresenta os movimentos e gestos empregados no trabalho, de forma que serão
considerados tanto os movimentos puros (abdução de ombro, flexão de cotovelo, por
exemplo), bem como o conjunto de movimentos que constituem um gesto (coletar o lixo no
chão, arremessar o lixo ao cocho do caminhão, saltar do estribo do caminhão...). É certo que
nenhum movimento ou gesto é empregado aleatoriamente, sendo mais difícil separar cada um
148
deles para se descrever as ações e os comportamentos das pessoas na realização de suas
atividades. Por isso, neste relatório a distinção entre movimento e gesto não será feita de
forma rígida, visto que estes comportamentos são, antes de movimentos ou gestos, respostas
aos objetivos da tarefa, e sua singularidade depende de estilos individuais e coletivos.
Para a elaboração desta análise, as técnicas corporais foram incluídas aos outros dados
coletados sobre o trabalho de coleta e relacionadas com o tema “economia do uso do corpo”,
apresentado no capítulo da discussão da tese. As técnicas do corpo aqui descritas foram
autoconfrontadas com os garis (individualmente e coletivamente), utilizando-se das filmagens
realizadas em campo. Assim ocorreram seções de autoconfrontação em que os indivíduos
foram questionados sobre seus modos operatórios e comportamentos em trabalho, enquanto
observaram-se e observaram seus colegas (autoconfrontação coletiva).
É importante ressaltar que uma técnica corporal não se relaciona apenas com
movimentos de segmentos separados do corpo, não se deve pensar apenas num gesto
segmentado de “segurar-se no corrimão central e manter os joelhos relaxados”, ou “flexionar
a coluna e os ombros”. Todo o corpo é envolvido em um gesto. Em todos os casos, o tônus
muscular chamado “fisiológico” é característica importante do corpo que possibilita a
manutenção postural, e a interação entre o tônus e a sinergia entre os músculos possibilita a
realização de movimentos e gestos com determinada coordenação motora. Esta propriedade
do corpo, chamada de tônus muscular, é explicada por uma contração mínima e constante dos
músculos corporais. A sinergia muscular relaciona-se ao movimento coordenado do sistema
osteoneuromuscular, sendo que os músculos agem de forma conjunta (alguns acelerando e
outros freando determinados movimentos, por exemplo), com a finalidade de se realizar
determinados movimentos e gestos. Além disso, tanto a propriocepção como a cinestesia são
capacidades que influenciam na realização dos movimentos corporais. Enquanto a
propriocepção é a capacidade de um sujeito reconhecer a localização dos segmentos com
149
relação a todo o seu corpo sem a utilização da visão, a cinestesia relaciona-se à senso-
percepção dos movimentos dos segmentos corporais com relação ao meio externo. Estes,
dentre outras características do sistema corporal, podem ser considerados como algumas das
capacidades básicas necessárias para se conseguir movimentar e manter o corpo em equilíbrio
simultaneamente. Não se pode falar em cinestesia, propriocepção, tônus muscular e equilíbrio
sem pensar em alguns órgãos, tecidos e células essenciais para o funcionamento do sistema
osteoneuromuscular, tais como os Corpúsculos Tendinosos de Golgi, situados nos tendões
musculares, os fusos neuromusculares, situados ao longo da membrana da célula muscular, o
sistema nervoso central e periférico, o sistema cardiorespiratório, o digestivo, o endócrino...
Como não é possível aprofundar em todo este funcionamento sistêmico, esta análise limitou-
se à descrição dos modos operatórios dos garis em trabalho. Entretanto, é num sentido
sistêmico que a análise deve ser pensada, ou seja: é necessário saber que há todo um conjunto
de sistemas atuando em qualquer gesto, que envolve posturas e movimentos do corpo. Outra
questão a ser ressaltada é o fato de que o corpo possui uma geometria funcional e que os
movimentos podem ser limitados por sua biomecânica própria. Além disso, os gestos são
realizados de forma natural, ou seja: não se costuma pensar para se realizar determinado
gesto, a não ser que haja a necessidade de se planejar o conjunto de movimentos. As decisões
que são tomadas para se realizar uma ação motora são subconscientes, não se costuma pensar
numa técnica corporal empregada para determinado fim.
Muito ainda seria possível explorar das técnicas corporais, entretanto, este trabalho
não terminaria. À medida que são exploradas as técnicas corporais, novas observações surgem
continuamente. Apesar de tal limitação, esta análise procurou abordar alguns estilos e para
fins didáticos, a atividade de coleta de lixo domiciliar foi dividida conforme as etapas
apresentadas abaixo:
- A permanência do gari sobre o estribo do caminhão;
150
- As descidas e os saltos do estribo para o chão;
- A coleta dos sacos de lixo e os arremessos do lixo ao cocho do caminhão;
- As subidas e saltos do chão para o estribo;
- A caminhada e a corrida durante a coleta.
Os dados apresentados nesta análise foram relacionados aos outros dados apresentados
na tese. Esta relação apresenta-se na Discussão do trabalho, que foi conduzido conforme os
temas propostos: a relação entre a economia do uso do corpo e a gestão da complexidade do
trabalho de coleta de lixo domiciliar.
A permanência do gari sobre o estribo do caminhão
Como relatado na descrição das atividades, os garis permanecem sobre o estribo do
caminhão em movimento durante várias etapas do trabalho de coleta (Figura 06): por
exemplo, da regional até o início do trecho e a volta até a regional, ou mesmo quando o
motorista dá a volta em alguns quarteirões em que o lixo já tenha sido coletado havendo
necessidade de passar pela mesma rua para continuar o percurso do trecho. Durante a coleta
com "redução", os garis permanecem sobre o estribo entre um monte de lixo e outro, exceto
quando o gari caminha ou corre até o próximo monte.
151
Figura 06: Os quatro garis sobre o estribo do caminhão.
O caminhão chega a se deslocar vários quilômetros com os garis sobre o estribo, a
caminho do trecho, e chega a atingir 60 quilômetros por hora, além de circular em avenidas
com trânsito intenso.
Para permanecerem com segurança sobre o estribo durante os deslocamentos do
caminhão, os garis relatam que precisam se segurar no corrimão e que os joelhos precisam
ficar relativamente relaxados. Assim os joelhos podem variar a angulação da flexo-extensão e
o corpo acompanha os movimentos verticais leves ou bruscos do caminhão, quando passa
sobre irregularidades da pista, buracos e quebra-molas.
Além disso, antes de saírem da regional, foram vistos garis limpando o estribo com
papel para, conforme relataram, “tirar a oleosidade do estribo”. Quando chove jogam terra
ou areia para o estribo ficar menos escorregadio.
Durante o trajeto da regional até o início do trecho, alguns garis costumam fazer
exercícios de flexibilidade nos membros inferiores, que aprenderam em palestras de SIPATs
(Semana Interna de Prevenção de Acidentes de Trabalho). Alongam a porção anterior da
coxa, fletindo o joelho da coxa alongada, soltando umas das mãos e segurando o pé da coxa
alongada. Também fazem alongamento da cadeia posterior da perna: seguram o corrimão com
152
as duas mãos, posicionando a ponta do pé da perna a ser alongada na beirada posterior do
estribo e fletindo o quadril para frente, enquanto a outra perna fica mais a frente do estribo.
Alguns garis riem dos colegas que fazem alongamento sobre o estribo:
“Num adianta nada! Ele faz aquilo mais pra chamar atenção!”
Durante o trecho, o motorista dá várias voltas e realiza muitas curvas. Então os garis
que estão mais ao lado da curva inclinam o corpo para o lado que o caminhão vira (Figura
07). Os outros garis curvam-se menos, mas relatam manterem-se firmes no corrimão, e que os
garis que se inclinam fazem isso não só para se manterem equilibrados sobre o estribo, mas
também para verem se há lixo na próxima rua.
Figura 07: A postura ortostática do corpo em diagonal sobre o estribo serve para equilibrar o corpo nas
curvas, mas também para observar a rua.
Durante a coleta do lixo da “redução” que é feita com 2 garis, ambos permanecem nas
laterais do estribo com o corpo na diagonal do mesmo lado do estribo, de forma que possam
observar a rua, segurando-se no corrimão central e na alça lateral do caminhão. Na coleta
realizada com 3 ou 4 garis, o gari que está nas laterais também costuma manter esta postura.
153
Por exemplo, se o gari se posiciona à diagonal direita do estribo, mantém o peso mais sobre o
pé direito. Prova disso é que também costuma posicionar o pé esquerdo sobre a base do
cocho, flexionando o joelho esquerdo, de forma que o peso do corpo fica todo no pé direito.
Às vezes até ajeitam o lixo dentro do cocho com o pé livre ou separam o lixo reciclável. Mas
os garis não ficam todo o tempo nesta postura, já que também são vistos com o corpo na
vertical, variando entre a postura ortostática (em pé) vertical e a diagonal (Figura 07).
Vê-se também que, tanto o gari que fica sobre o estribo mantém o corpo na diagonal
quanto o gari que está no chão também mantém esta postura. Assim ele consegue observar a
rua enquanto se protege do trânsito atrás do caminhão. Geralmente o gari que fica do lado
direito do estribo precisa ficar atento para não ser atingido por galhos de árvore. O motorista
costuma desviar dos galhos, mas o gari parece também ter esta atenção: em uma das coletas
em que foram acompanhados e filmados de carro, um gari avisou de um galho à sua direita
acenando com o braço.
Quando está no meio do estribo, apesar de não poder ver a rua pela lateral do
caminhão, o gari parece reconhecer as ruas pelas imagens que passam à sua lateral. Num dia
de coleta, enquanto filmados, o gari que estava no meio do estribo nos avisou com
antecedência as curvas e entradas que o motorista iria fazer. Este fato parece demonstrar o
reconhecimento do trecho, que se dá pela referência da imagem dos locais por onde sempre
passam, e pela referência da memória que se tem do corpo com relação ao espaço, explorada
por BERTHOZ (1997), ao demonstrar como a memória de um caminho e de seus elementos
estimulam a região do hipocampo, no cérebro.
Os garis também se movimentam sobre o estribo. Por exemplo, quando revezam entre
a permanência sobre o estribo e a coleta no chão, os garis precisam se deslocar para um dos
lados do estribo para que haja espaço e para não serem atingidos pelos sacos que são
arremessados ao cocho pelos colegas. Quando o gari está sozinho sobre o estribo é comum
154
observá-lo se deslocando rapidamente de um extremo ao outro do estribo, a fim de verificar
em que lado há lixo. Assim ele decide quando e de que lado será necessário saltar.
Quando há quebra-molas, os garis relatam ser necessário segurar firme no corrimão e
manter os joelhos relaxados para que o corpo acompanhe os movimentos bruscos do
caminhão sem risco de quedas ou lesões:
“A gente fala: olha o quebra-mola! Tem que segurar mais firme que vai dar
impacto, entendeu? E amortecer as pernas.”
Os garis também colocam lanches ou outros objetos atrás da placa do caminhão. Como
se subissem uma escada, sobem no estribo, depois no cocho e acondicionam algumas
pequenas sacolas atrás da placa. Sobre o estribo, os garis também lêem alguns trechos de
revistas, embalagens de produtos e partes de jornais. É comum ver os garis guardarem
revistas, que provavelmente acham interessantes.
Como foi dito acima, sobre o estribo os garis também costumam separar o lixo
reciclável que encontram em várias sacolas. Estas são colocadas sobre o estribo até que as
latinhas sejam separadas por um gari que segura no corrimão e inclina o tronco para a lateral.
Algumas vezes os garis até ficam agachados em cima do estribo enquanto separam as latas,
segurando com uma das mãos no corrimão, parecendo ficar pendurado ali. O lixo das sacolas
que já estão dentro do cocho também é separado antes de ser compactado. Para isso, o gari
segura o corrimão com uma das mãos, inclina o tronco para dentro do cocho, pega as latinhas
e as coloca sobre o estribo ou as acondiciona em sacos maiores, geralmente retirados do
próprio lixo, que são pendurados no corrimão. Ao serem questionados sobre como descobrem
que há latinhas, os garis afirmam descobrir pelo barulho ao manipularem as sacolas, ao
sacudi-las ou quando elas batem no caminhão. Mesmo que eles não consigam descobrir
155
escutando o som da latinha na sacola, praticamente em toda a coleta há pelo menos um gari
rasgando as sacolas dentro do cocho do caminhão para encontrar latinhas e papel branco.
As descidas e os saltos do estribo para o chão
Além de saltar do estribo para coletar o lixo na porta das casas ou para coletar o lixo
reduzido, o gari também desce para pegar um lixo que tenha sido depositado com atraso pelo
munícipe. Desce também para conversar com moradores ou entrar em estabelecimentos
comerciais. Num dos trechos de uma das guarnições observadas, um gari saltou do estribo e
cortou caminho numa praça para alcançar o caminhão no quarteirão seguinte. Ele correu
rápido, chegando primeiro que o caminhão no local de coleta. Explicou que o ombro fica
cansado de segurar o tempo todo no corrimão do caminhão, por isso ele alterna entre a
permanência sobre o estribo e a corrida, o que é possibilitado também pelo conhecimento do
trecho de trabalho.
Em cima do estribo, antes de saltar do caminhão, o gari olha a rua e avisa o motorista
assoviando. Este olhar parece dar a noção de onde há lixo a ser coletado, se há carros, motos
ou pessoas no trajeto do caminhão até o lixo, bem como a distância do lixo que vai coletar. Às
vezes o gari nem avisa o motorista. Olha a rua e desce do estribo quando acha necessário, por
exemplo, para coletar um saco que vê durante o percurso. Conforme relataram, o motorista já
diminui a velocidade assim que vê o lixo, inclusive sabendo que um gari irá saltar para pegá-
lo.
Os garis descem do estribo com o caminhão em movimento ou parado. Quando saltam
com o caminhão em movimento, descem antes de chegar até o lixo a ser coletado e
aproveitam a inércia para não caírem. Se o caminhão estiver rápido, descem correndo e se
estiver lento, descem caminhando. Parecem calcular a distância em que descem para
chegarem exatamente onde querem, inclusive desviando dos carros estacionados e das
156
pessoas que por ali transitam, o que BERTHOZ (1997) chama de prever o movimento do
outro e de si mesmo.
Às vezes o gari tropeça ao saltar do estribo. Então, correndo, o tronco é fletido para
frente, bate rapidamente uma ou duas mãos no chão e continua correndo até se reequilibrar.
Para descer do estribo pela lateral, o gari caminha para o lado que vai descer do
estribo, por exemplo, à direita. Estende o cotovelo esquerdo do braço que segura o corrimão e
flexiona o cotovelo direito do braço que segura a alça lateral, posicionando o corpo
diagonalmente à direita. Então, ao ver que pode saltar, solta as mãos do corrimão e da alça
lateral ao mesmo tempo, ou a esquerda e depois a direita, ao mesmo tempo em que retira um
dos pés do estribo. Já salta caminhando ou correndo na direção que pretende seguir (para
coletar o lixo ou entrar em algum lugar). Há garis que pisam primeiro com o pé direito e
outros com o esquerdo. Um gari que desceu do estribo pelo meio e já caminhando para a
esquerda, desceu com a perna esquerda já aberta dando 7 passos até chegar num monte de
lixo. Do lado direito também. Então parece haver um padrão de descer com a perna aberta
voltada para o lado que vai coletar, a não ser aqueles que cruzam a perna atrás da outra para
descer (Figura 08).
Esta forma interessante de saltar aproveita a inércia e permite que o gari desça
correndo. Por exemplo, quando o lixo está do lado direito, o gari cruza o pé esquerdo atrás do
direito que está sobre o estribo; pisa no chão primeiro com o pé esquerdo já saindo correndo.
Quando quer alcançar um lixo à direita, por exemplo, dá o passo mais aberto e voltado para o
lado que pretende chegar.
157
Quando um gari que estava à direita do estribo viu um lixo entre um monte reduzido e
outro, caso comum, saltou do caminhão também cruzando a perna esquerda atrás da direita
pisando primeiro com o pé esquerdo, em seguida com o direito, de forma que desceu
correndo, já coletando uma sacola e arremessando-a, ao mesmo tempo em que subia no
estribo novamente.
É comum os garis que descem do centro do estribo permanecerem alguns segundos da
corrida atrás do caminhão, em frente ao cocho, para se protegerem do trânsito. Só após
observarem a rua é que se dirigem até o local desejado. Apesar desta estratégia proteger o
gari do trânsito de carros, se o motorista parar bruscamente o caminhão sem que o gari veja,
este costuma bater e ferir a perna no estribo. Por isso, nas descidas, os garis relatam que, ao
A
B
C D
Figura 08: A: gari prepara-se para saltar com o caminhão em movimento cruzando perna esquerda atrás da
direita enquanto observa o local em que vai saltar e correr. B: gari com os dois pés no ar, o esquerdo ainda
cruzado atrás do direito. C: gari pisa primeiro com o pé esquerdo no chão, iniciando a corrida,
aproveitando a inércia do movimento do caminhão para não cair. D: gari pisando depois com o pé direito,
continuando a corrida.
158
saltarem do estribo, é necessário manter o tronco levemente inclinado para trás de forma a
poder frear a corrida e saírem de trás do caminhão, caso o motorista precise parar
bruscamente. Para saírem rapidamente de trás do caminhão, seja em situação normal ou em
situação de freada brusca, o gari inclina o tronco para o lado que pretende seguir.
Quando o motorista pára o caminhão por algum motivo, conversar com algum
munícipe ou estacionar em algum estabelecimento comercial, por exemplo, os garis descem
com o caminhão parado, pela lateral ou pelo centro do estribo. Pisam com um dos pés, depois
o outro, saem andando na direção desejada.
Os garis relatam torcer o tornozelo com grande freqüência ao saltarem do estribo, por
“pisarem em falso” devido a buracos no piso, mesmo olhando com atenção. Todos os garis de
todas as guarnições entrevistadas relataram já terem torcido ambos os tornozelos pelo menos
uma vez ao descerem do estribo.
“A gente tenta pisar certo, mas a gente pisa em falso. Muito.”
“Igual ele falou, Deus que ajuda nós mesmo. Olha, tropeça, né! Mas aí a gente
tenta fazer o possível para não machucar muito.”
Todos os garis relatam já terem caído mais de uma vez ao saltarem do estribo. Um gari
relatou ter caído dentro de um bueiro, ou “boca de lobo” como eles mesmos denominam. Os
garis comentaram que possuem técnicas ou “macetes” para caírem menos, como descer
caminhando ou correndo conforme a velocidade do caminhão:
“Cair o gari sempre cai. Com os macetes ele cai menos. Mas cai.”
159
A coleta dos sacos de lixo e os arremessos do lixo ao cocho do caminhão
Ao saltar do estribo, o gari caminha ou corre na direção do lixo. Na seção anterior
foram vistos vários modos de descida do estribo que influenciam na forma de coletar o lixo,
que estão descritas abaixo.
Na coleta realizada de porta em porta o motorista diminui a velocidade do caminhão e
o gari desce do estribo em direção ao local de coleta caminhando ou correndo. Então ele pega
várias sacolas de supermercado com as duas mãos, olha para o cocho dando alguns passos em
sua direção e as arremessa bem próximo do caminhão ou a distâncias de 2 a 3 metros. Se
ainda houver lixo naquele local, volta, pega os outros sacos e realiza o mesmo procedimento.
Os sacos maiores e mais pesados são levados até o cocho. Se não houver mais lixo naquele
ponto, por haver pouco lixo ou por ter sido coletado por outro colega, sobe no estribo até o
próximo ponto de coleta. Também pode caminhar ou correr até o próximo ponto para
continuar a coleta.
São vistos sacos grandes sendo arremessados pelos garis. Um gari arremessou 2 sacos
pretos de uns 60 litros. Depois puxou mais 2 sacos que pareciam bem mais pesados
arrastando-os até mais próximo do cocho e colocou um por um dentro do cocho.
Conforme descrito nas Fichas de Descrição das Atividades, como as equipes se
dividem em duplas, quando há muito lixo de um lado, os garis pedem ajuda para os garis do
lado menos sobrecarregado, o que denominam de “rodízio”. Em algumas filmagens, vê-se que
o gari que passa para o lado da outra dupla para ajudar, aguarda o colega coletar e bate o lixo
que sobra. Nem sempre os colegas são ajudados, seja por também haver bastante lixo em
ambos os lados, seja por não quererem auxiliar os colegas, de acordo com seus relatos.
Quando uma dupla não costuma ajudar, a outra dupla não faz o rodízio intencionalmente, a
fim de sensibilizar a dupla que se recusa a ajudar.
160
Quando um gari deixa uma sacola cair ao correr na direção do caminhão, o colega que
vem atrás a coleta e a arremessa ao cocho. Às vezes eles nem abaixam para pegar o lixo que
cai no chão. Como já estão correndo em direção ao cocho, apenas chutam o lixo em direção
ao cocho.
Os garis sabem distinguir o peso dos sacos quando pegam nos sacos. Conforme
relataram, ao puxarem os sacos de um monte, os que não “aderem” facilmente nas mãos são
os sacos pesados. Então os que chegam primeiro nos montes pegam primeiro os sacos leves.
Desta forma, os garis que vêm em seguida já sabem que os que sobraram são os mais pesados,
decisão já combinada entre eles:
“Sente o peso da sacola porque não dá pra gente... eu meto a mão na sacola. E
aperto com os dedos, né! Aí quando eu aperto assim, a gente sente que a sacola já
num veio. Tipo com um ímã na mão. Aí você solta ela, e já pega uma mais leve,
pro outro vir e pegar só ela.”
“Igual esse caso que passou aqui, tem um saco de terra aqui. Ora que o C passar,
ele vai deixar 2 sacos. Os dois que passar vai pegá, já sabe que tá pesado.”
Este conhecimento permite ao gari preparar-se, corporalmente, para pegar um lixo
mais pesado. Então ele toma mais cuidado ao elevar o lixo, que pode ou não, ser mais pesado,
evitando possíveis lesões na coluna.
Durante os arremessos à distância, os garis precisam estar atentos para não atingirem
os colegas que estão sobre o estribo, nem serem atingidos pelas sacolas, como aconteceu com
um gari que mostrou uma grande cicatriz no braço. Por isso ele precisa escolher o lugar do
cocho em que vai arremessar. Os colegas em cima do cocho também abrem espaço para o gari
arremessar.
161
Os movimentos que o gari realiza com o corpo para pegar o lixo dependem de vários
fatores:
- do tipo de lixo (sacolas, sacos maiores como os de 50 litros ou mais, pedaços de
madeira, barris, dentre outros); da forma como é acondicionado; de seu peso;
- do local em que o lixo é acondicionado pelo morador (cesto, tambores, chão,
muros);
- da posição do gari com relação ao lixo e ao cocho do caminhão.
Dependendo do tamanho e do peso do lixo, o gari o arremessa ou o leva até o cocho,
sendo comum dois garis carregarem um saco pesado até o cocho juntos. O lixo que fica
acondicionado em barris, que foge às normas de acondicionamento também são carregados e
despejados no cocho, individualmente ou em dupla.
Nas portas das casas, o lixo costuma ser colocado no chão. O lixo da “redução”
também é colocado no chão, localização que determina movimentos de flexo-extensão da
coluna, e movimentos dos quadris e dos joelhos na direção do lixo e na direção do cocho,
quando arremessam o lixo (Figura 09). Quando o gari posiciona-se lateralmente ao cocho,
primeiro ele direciona o quadril para o lado do lixo que coleta. Depois direciona o quadril
para o lado do cocho do caminhão, iniciando um movimento de impulsão para o arremesso
que acontece em seguida.
A dinâmica de movimentação do tronco e membros superiores para coletar o lixo que
está no chão ocorre simultaneamente à movimentação da coluna e membros inferiores. O gari
flexiona a coluna e o quadril para a frente enquanto flexiona os ombros para alcançar o lixo.
Para arremessá-lo ao cocho sem sair do lugar, o gari gira o tronco para o lado do cocho
estendendo o quadril até uns 135 graus, sem atingir uma posição neutra da coluna, já que logo
flexiona a coluna novamente na direção das sacolas do mesmo local. Desta forma, o
162
movimento de rotação do tronco e da coluna para a direita e para a esquerda também
acompanham a seqüência de coleta seguida de arremesso.
Figura 09: Garis coletando o lixo em montes da "redução". Um deles arremessa o lixo de costas para o
cocho. Para coletar a coluna é flexionada para frente e há movimentação constante das pernas durante a
coleta e o arremesso do lixo. A foto da esquerda mostra o gari pegando o lixo. Na foto da direita, o gari da
frente movimenta o quadril da direita para a esquerda, iniciando o movimento de arremesso dos sacos
para o cocho.
Particularmente quanto à movimentação dos membros inferiores durante a coleta do
lixo no chão, é importante verificar que as pernas ficam constantemente abduzidas (abertas) e
mantidas uma um pouco mais a frente que a outra, no momento de pegar o lixo e arremessá-lo
ao cocho (Figura 09):
- Se o gari se posiciona de frente para o lixo, flexiona os dois joelhos mantendo os membros
inferiores abduzidos (pernas abertas), com uma perna levemente mais a frente que a outra.
Geralmente a perna que fica mais a frente é aquela que está mais próxima do lixo. Ao pegar
sacolas de supermercado, o joelho da perna da frente é fletido e o outro estendido, mudando
esta ordem quando as arremessa ao cocho. Após pegar as sacolas, o gari se volta para o
cocho e as arremessa ou as leva até o caminhão. Há gari que não flexiona os joelhos.
- No caso de o gari que coleta o lixo da “redução” ficar de frente para o monte e de costas
para o cocho, o movimento dos membros inferiores é o mesmo que para o gari que fica em
frente ao lixo e lateralmente ao cocho. Então a perna que fica mais atrás é a mais próxima
do caminhão e a perna da frente fica mais próxima do lixo. A coluna precisa girar nos
163
sentidos horário e anti-horário, enquanto o gari pega e arremessa as sacolas sucessivamente,
até terminar de arremessar e partir para os sacos maiores e outros lixos mais pesados, que
são carregados até o cocho.
- Se o gari se posiciona lateralmente ao lixo e ao cocho (lixo à direita e cocho do caminhão à
esquerda), o gari flexiona o joelho direito e estende o joelho esquerdo enquanto pega as
sacolas. Ao arremessar as sacolas esta angulação se inverte. O quadril acompanha o
movimento das pernas, de forma que flexiona acompanhando a flexão do joelho e vice-
versa, aproximando-se horizontalmente do lixo e depois do cocho, sucessivamente.
Ao serem questionados sobre a flexão da coluna para frente, os garis explicam a
importância desta dinâmica postural:
Eu queria saber, quais são as técnicas que vocês usam do corpo, pra
economizar o corpo. Então por exemplo, vocês abaixam a coluna várias vezes.
Existe alguma forma especial de abaixar a coluna? (entrevistador)
A gente não abaixa a coluna toda não. Tem hora que a gente vai só até a metade,
num vai até lá embaixo não, porque... fica cansado já, já tá... o que acontece,
desce só um pouco, porque de repente você pode agachar e num levantar mais.
(gari)
E por que vocês não descem daquele jeito que o pessoal da medicina orientou:
abaixar com a coluna reta, aproximar o lixo do corpo e depois de levantar
arremessar? (entrevistador)
Para você ver (mostrando): eu vou abaixar aqui. Se eu agachar aqui é o tempo de
eu já estar pegando aqui e... é a velocidade. É aquele negócio, é o tempo... é o
tempo que você já tá perdendo na hora docê arremessar o lixo, né! ” (gari)
164
Há outras diferentes formas interessantes de movimentar o corpo para coletar o lixo.
Por exemplo, ao coletar em vários montes de lixo da “redução”, um gari gira o corpo em
sentido horário enquanto coleta e arremessa as sacolas. Num dos montes que coletou, Ao
mesmo tempo em que girava o corpo, flexionava a coluna ao pegar o lixo e depois estendia a
coluna para arremessar o lixo. Então ele girou 3 vezes impulsionando os movimentos de pegar
o lixo no chão e arremessá-lo ao cocho, sendo que o último giro seguiu-se de uma caminhada
de dois passos largos para se aproximar de uma sacola deixada a uma distância de uns dois
metros do monte, no portão de uma casa. Ele coletou a sacola ainda girando o corpo, e
terminando o giro voltou-se para o cocho do caminhão, e arremessou a sacola enquanto
saltava no estribo do caminhão que já entrava numa curva.
Nas portas de prédios o lixo costuma ser acondicionado em cestos mais altos, de forma
que o gari não precisa flexionar a coluna lombar para frente, apesar de precisar elevar e
abduzir os ombros em ângulos entre 90 e 120 graus, dependendo da relação entre a altura do
gari e a altura do cesto (Figura 10). Há uma grande variabilidade de altura e modelos de
cestos. Entretanto, ao serem questionados sobre os cestos, foi unânime o relato que o melhor
mesmo seria não haver cestos, pois preferem coletar no chão. Porque o chão permite uma
movimentação mais livre, mais ampla, facilita a dinâmica do trabalho. Conforme os garis, os
cestos cansam os ombros e atrasam a coleta.
165
Figura 10: Garis coletando em cestos.
Vê-se lixo reduzido no chão e em cestos ao mesmo tempo, quando o gari já faz
"redução" próximo a um cesto que já continha lixo depositado por um munícipe, ou quando o
lixo de um prédio excede a capacidade do cesto.
Os modos operatórios para realização da coleta também variam com relação à
movimentação dos membros superiores, certamente bastante demandados neste tipo de
trabalho:
- Para coletar as sacolas plásticas do chão ou de cestos os garis abduzem e estendem os dedos
das mãos, ou seja, eles abrem as mãos. Então pegam várias sacolas, independente de ser
pelas alças (exceto ao fazer a “redução”) aduzindo e fletindo os dedos. Ao arremessarem,
relaxam os dedos deixando que os músculos flexores dos dedos façam uma contração
excêntrica de extensão.
- Para levar as sacolas até o cocho, há garis que unem as sacolas aproximando as duas mãos,
aduzindo e fletindo os ombros (fechando os braços), mantendo os cotovelos em flexão de
aproximadamente 30 graus.
166
Ao ser questionado sobre como conseguia trabalhar com dores nos ombros o gari
explicou que ao levar os cotovelos mais para trás, o peso fica mais nas mãos, amenizando a
carga nos ombros. Disse que também procura arremessar as sacolas mais de perto para evitar
as dores nos ombros. Ao diminuir a angulação de flexão de ombros arremessando mais de
perto, diminui também o impacto do tendão da porção longa do bíceps contra o acrômio
(MAGEE, 2002)
Os garis arremessam as sacolas de supermercado e sacos leves de diversas formas:
Como dizem: “cada um tem um estilo de lançamento”.
- Quando seguram o lixo nas duas mãos com os braços abertos e distantes do corpo, eles
mantêm os ombros abduzidos a uns 30 graus e levemente estendidos (braços um pouco atrás
do corpo), com os cotovelos fletidos a aproximadamente 30 graus. Assim pegam um
impulso e arremessam as sacolas ao cocho. Para isso, arremessam o lixo passando da
extensão para a flexão dos ombros (braço que estava atrás do plano frontal passa para a
frente), aduzindo ou abduzindo esta articulação, dependendo da localização do cocho em
relação ao seu corpo.
- Entretanto, este posicionamento dos braços para trás para pegar um impulso para arremessar
ocorre mais com o caminhão parado. Nota-se, pelas filmagens, que quando caminham ou
correm na direção do cocho, os garis não afastam os ombros para pegar impulso, de forma
que o movimento de caminhar ou correr impulsiona o arremesso, diminuindo a carga para
os ombros e facilitando o movimento. Este também é um fator que explica a importância de
os garis correrem para aproveitarem a inércia. Na Holanda, os ergonomistas que
prescreveram a coleta feita caminhando não consideraram a realidade dos coletores.
Focaram no gasto energético, mas não na necessidade de se aproveitar a velocidade dos
movimentos corporais para se arremessar o lixo (KEMPER et al., 1990; FRINGS-
DRESSEN, 1995).
167
- Se o gari está de costas para o cocho, que está a sua direita por exemplo, ele arremessa as
sacolas com o braço direito, abduzindo horizontalmente e rodando externamente o ombro,
além de estender o cotovelo direito (Figura 09). Se arremessa com o braço esquerdo nesta
mesma posição, costuma encostar o lixo que está nesta mão esquerda no lixo que está na
outra mão e arremessá-los juntos, de forma a equilibrar o peso nos dois ombros. Então o
ombro esquerdo é rodado internamente e aduzido horizontalmente, e o cotovelo passa de
extensão para flexão, enquanto o ombro direito é abduzido e rodado externamente e o
cotovelo realiza uma flexo-extensão. É importante relembrar que a coluna é rodada nos dois
sentidos enquanto o gari pega e arremessa o lixo.
- Há gari que apóia o lixo de uma mão sobre o lixo de outra mão. Por exemplo, ao pegar
vários sacos e unir as duas mãos, realiza uma grande abdução do ombro direito
(aproximadamente 145 graus com flexão total de cotovelo direito), enquanto o braço
esquerdo serve de apoio para o lixo. Então o gari se dirige caminhando ou correndo até o
cocho e arremessa o lixo já bem perto do cocho.
- Como pode ser visto na Figura 11, ao arremessar lateralmente ao cocho, há gari que gira o
corpo para o sentido oposto ao cocho (ver gari da direita), enquanto caminha em sua direção
pegando um impulso. Em seguida, girando o corpo no sentido do cocho, aproveita o
impulso e solta os sacos arremessando-os de perto. Neste caso os braços também
acompanham o movimento.
168
Figura 11: É comum o gari impulsionar o arremesso girando o corpo primeiro no sentido oposto ao cocho,
e depois caminhando ou correndo enquanto gira o corpo no sentido do cocho, impulsionando-se. Como
pode-se ver o gari da direita, que após arremessar o lixo, já inclina o tronco na direção que pretende
seguir, o que também sugere um planejamento prévio para onde irá seguir.
- Se os garis estão coletando com o caminhão em movimento e sem praticamente subir no
estribo, geralmente em ruas sem prédios em que o lixo fica na porta de cada casa, eles
costumam se aproximar do lixo, coletar os sacos, andar ou correr em direção ao cocho do
caminhão e arremessá-los a distâncias que variam conforme o peso que têm nas mãos.
Arremessam e já se dirigem para outro ponto.
169
- Um arremesso interessante foi de um gari que passou um saco de 50 litros que parecia estar
leve por trás do corpo com a mão direita e o arremessou com a mão esquerda a uma
distância de uns 3 metros do cocho que estava a sua esquerda, como se fosse um jogador de
basquete.
- Quando o lixo cai no chão, episódio comum, o gari que vem atrás pode pegar ou chutar o
lixo. Inclusive há equipes que se revezam diariamente na função de coletar o lixo que cai no
chão. Ou então o próprio gari que deixa o lixo cair chuta o lixo para dentro do cocho, como
pode-se ver na seqüência de fotos da Figura 12.
Às vezes os garis coletam sacos com restos de poda de plantas, que os moradores
entregam de dentro do jardim das casas. Uma moradora entregou um grande saco pela grade
do jardim. Um gari subiu na grade, pegou o saco e passou para um dos colegas. Numa das
guarnições, os garis coletaram 3 sacos de entulho que estavam na porta de uma casa. Houve
um caso em que um morador carregou seus sacos de poda e depois auxiliou os garis a coletar
outros sacos que estavam em montes da “redução”. Um senhor que havia varrido a calçada de
sua casa foi auxiliado por um gari a colocar o lixo em um saco. Os garis auxiliam a população
para poderem contar com os moradores caso necessitem de algum auxílio, como uso do
telefone.
É comum ver o lixo rasgar, principalmente em dias de chuva. Então os garis usam o
próprio lixo como ferramenta para auxiliar a coleta do lixo que cai no chão, como cartelas de
ovos e vassouras velhas. Quando o lixo rasga no meio da rua um gari costuma auxiliar o outro
(Figura 13).
170
Figura 12: Observando-se o gari da esquerda das figuras, nota-se que ele arremessa o lixo impulsionado
pelo leve afastamento dos ombros para trás e por uma breve corrida. Ao arremessar os sacos, um deles cai
no chão e é chutado para o cocho. À direita dele, um gari desce pelo meio do estribo também cruzando a
perna esquerda atrás direita, pisando no chão em seguida. Já o gari da direita, caminhando no chão,
acompanha o caminhão entrando num beco.
Ao arremessarem os sacos de perto do cocho, no momento em que um colega faz a
compactação do lixo, os garis costumam olhar para baixo a fim de não serem atingidos no
rosto pelo chorume (líquido proveniente do lixo). Entretanto, este cuidado nem sempre é
tomado, visto que isto aconteceu com alguns garis enquanto observados.
171
Figura 13: Um colega auxiliando o outro quando o lixo rasga.
“Redução”:
O gari que faz "redução" não precisa arremessar nem levar o lixo até o cocho do
caminhão. Ele coleta o lixo nas casas e cria 1, 2 ou 3 montes em determinados pontos de cada
quarteirão. Ele passa em cada casa, segura as sacolas plásticas pelas alças, e os sacos maiores
pelo nó. Mantendo o lixo sempre afastado do corpo, carrega de formas variadas outros tipos
de lixo (pedaços de madeira, pedaços de móveis velhos, etc) e os leva da casa em que coleta
até o local que estabelece para fazer o monte, geralmente do lado direito da rua. Leva o
máximo de lixo que consegue. Desta forma, vai recolhendo o lixo de uma ou várias casas para
se encaminhar ao local do monte de lixo. Segue em ziguezague pelas casas próximas ao
monte que cria. O gari sempre deixa o lixo que considera perigoso por conter vidro quebrado
um pouco afastado do monte, geralmente a 1 metro.
Um dos garis coleta da seguinte forma: aproxima-se do lixo flexionando a coluna para
frente, com um dos pés mais próximo do lixo a ser coletado. Primeiro enche a mão esquerda
de sacolas, sendo que usa a mão direita para colocar várias sacolas na mão esquerda. Depois
pega o resto de lixo com a mão direita. Este “resto” podem ser mais sacolas ou pode ser lixo
172
solto, como papéis e pequenas embalagens plásticas, que ele carrega como se levasse uma
bandeja.
Ele pode sair de um ponto com a mão direita cheia de sacolas e coletar em outra casa
com a outra mão vazia ou que tenha menos sacolas. Neste caso ele se abaixa flexionando a
coluna para frente ou agachando, coloca no chão as sacolas que já estão na mão sem soltá-las
para diminuir o peso nas mãos. Então ele pega mais sacolas pelas alças.
Para carregar o lixo com as duas mãos, o gari mantém os dois ombros abduzidos a
aproximadamente 30 graus. Se carrega mais peso de um lado, costuma fletir o cotovelo do
lado mais pesado e aproximar este ombro do corpo. Então a coluna fica fletida para o lado
mais leve e o ombro sem peso é que fica mais abduzido (Figura 14). É importante ressaltar
que a adoção de determinadas posturas e movimentos ocorrem naturalmente, o corpo se
equilibra naturalmente. Entretanto, nem sempre esta adoção reflete-se na diminuição da carga
biomecânica de algumas articulações. Um dos garis relatou sentir desconforto na região da
cintura escapular ao realizar os montes da "redução": mostrou a região do trapézio e pescoço
falando que sente cansaço e dor na região relatada.
Figura 14: Postura de um gari que faz "redução".
173
Quando há lixo diferente de sacos e sacolas, como pedaços de madeira e colchões
velhos, o gari costuma pegar este lixo onde houver uma pega e carregá-lo até o local
escolhido para o monte (Figura 15). Eles procuram manter o lixo sempre longe do corpo.
Figura 15: Gari fazendo os montes da "redução" pegando o lixo pela amarra feita pelo munícipe. Para
manter o lixo afastado do corpo, ele inclina a coluna para o lado oposto ao lixo.
As subidas e saltos do chão para o estribo
Os garis sobem no estribo com o caminhão parado ou em movimento. Com o
caminhão parado eles sobem como uma escada, geralmente segurando no corrimão central ou
lateral do estribo. Com o caminhão em movimento, eles saltam segurando-se ou não no
corrimão, seja na hora de saltar, seja no fim do salto.
Por exemplo, um gari que batia o lixo de montes da "redução" e tinha lugar fixo à
direita do estribo subiu praticamente todas as vezes com o caminhão parado. Segurava na alça
lateral com a mão direita impulsionando o corpo para cima e subindo o pé direito no estribo.
Em seguida, segurava o corrimão com a mão esquerda e depois colocava o pé esquerdo sobre
174
o estribo. Quando subia no estribo segurando com as duas mãos ao mesmo tempo na alça
lateral e no corrimão central, jogava o corpo para trás e para a direita enquanto subia no
estribo primeiro com a perna direita e depois com a esquerda.
Já seu colega da esquerda subiu praticamente todas as vezes com o caminhão em
movimento, durante toda a coleta dos montes de lixo da "redução". Ele terminava de
arremessar as últimas sacolas e se dirigia correndo para o lado esquerdo do estribo após o
caminhão ter sido colocado em movimento. Então segurava a alça lateral com a mão direita
impulsionando o corpo e saltando no estribo primeiro com a perna direita. Depois segurava a
alça lateral com a mão esquerda ao mesmo tempo em que passava a mão direita para o
corrimão central e, antes de colocar o pé esquerdo no estribo, seu corpo girava um pouco
afastando seu lado esquerdo do caminhão, de forma que a perna esquerda já havia sido
impulsionada cruzando atrás da direita e voltando, permitindo que o gari pisasse com o pé
esquerdo no estribo (Figura 16).
Figura 16: Perna esquerda cruzando atrás da direita enquanto o gari sobe no estribo segurando-se no
corrimão lateral com o caminhão em movimento.
175
Alguns garis reconheceram esta técnica corporal de descer ou subir do estribo com o
caminhão em movimento na autoconfrontação coletiva. Preferem esta técnica porque
aproveitam o embalo da corrida, o que facilita o salto par ao estribo.
Os garis também sobem no caminhão pelo meio do estribo. Numa subida, um dos
garis se aproximou do cocho correndo rápido e arremessou uma sacola que um colega havia
deixado cair na rua. Neste ritmo, subiu no estribo segurando o corrimão central primeiro com
a mão direita, pisou com o pé direito. Em seguida apoiou-se no cocho com a mão esquerda e
depois pisou no estribo com o pé esquerdo, após cruzá-lo atrás da perna direita devido à
inércia do movimento.
É comum os garis subirem aproveitando o movimento do arremesso. Neste caso, ele
só segura no corrimão após saltar sobre o estribo, como pode-se ver na Figura 17.
Apesar de conhecerem todo o trecho, não sabem exatamente onde há lixo naquele dia,
já que o depósito deste lixo depende dos munícipes. Então há momentos em que mal sobem e
já precisam descer rapidamente do estribo. Às vezes saltam no mesmo momento em que
subiram.
Há duplas que fazem um revezamento entre o lado direito e esquerdo do estribo na
hora de “bater” o lixo dos montes da "redução". A fim de compensar a carga nas articulações,
quando um dos garis se cansa, eles trocam o lado de realizar a coleta, variando a postura e os
movimentos de coleta.
176
Figura 17: Nesta série de fotos, o gari da direita aproxima-se correndo e sobe no estribo logo após
arremessar os sacos de lixo. Na seqüência ele arremessa, sobe no estribo primeiro com o pé direito e
depois segura no corrimão central.
A caminhada e a corrida durante a coleta
Os garis caminham ou correm dependendo de algumas situações:
- o ritmo imposto pelo motorista: há motoristas que decidem o ritmo do trabalho sem pedir a
opinião dos garis de sua guarnição. Também há aqueles que vão mais rápido e aqueles que
vão mais devagar conforme decisão de toda a equipe. Em dias em que alguém precisa sair
mais cedo, o motorista mantém um ritmo mais intenso. Independente do motorista combinar
com os garis ou não, os garis relatam que cada um tem um ritmo próprio:
“Tem motorista que anda mais, outros que andam menos.”
177
Os garis classificam os motoristas como “bons ou ruins” dependendo de sua
cooperação com os garis com relação ao ritmo de trabalho, além de valorizarem o fato de os
motoristas saberem lidar com a mecânica dos caminhões, que quebram frequentemente.
- Durante o trecho, independente de quererem sair mais cedo ou não, nas subidas o motorista
mantém um ritmo mais lento, porém constante, evitando parar o caminhão, principalmente
em ruas em que há mais casas do que edifícios. Ou então as equipes se subdividem e uma
dupla realiza a "redução" descendo os quarteirões mais íngremes, diminuindo a carga física
e prevenindo as paradas do caminhão devido aos grandes aclives. Em ruas com muitos
prédios, o lixo dos apartamentos geralmente fica acumulado em cestos. Então o motorista
precisa parar o caminhão na porta destes prédios e de outros locais cujos cestos ficam
cheios, enquanto aguarda a coleta feita pelos garis.
A corrida é intercalada entre momentos de caminhada, trotes e explosão, o que pode
auxiliar na regulação do gasto energético (GUYTON e HALL, 2002), tanto geral quanto em
determinados segmentos do corpo. Por exemplo, quando o motorista avança e o gari que fica
para trás precisa correr para alcançá-lo e arremessar o lixo, há um momento de explosão.
Entretanto, dependendo do trecho e da decisão do gari, há aqueles que deixam o caminhão
avançar e o encontram mais a frente do trecho, cortando caminho por outras ruas e realizando
"redução" caminhando, cujo ritmo dependerá de seu cálculo para encontrar a equipe mais a
frente do trecho. Ou então quando o gari prefere saltar do estribo e acompanhar o caminhão
trotando, ou seja, ele corre num ritmo mais constante durante alguns momentos. Já em outras
ocasiões o gari realiza pausas por diversos motivos:
- o ritmo de trabalho também é imposto pelo modelo do caminhão: com o caminhão PPT o
leme não pára de compactar o lixo. Então o gari precisa acompanhar o ritmo de trabalho
sem parar para compactar o lixo, como no caso do Ford. Entretanto, o leme do PPT empurra
178
o lixo para os lados direito e esquerdo, o que define o lado que o gari pode arremessar o
lixo. A pausa que o gari que faz a compactação do lixo no Ford não ocorre com o PPT.
Entretanto o leme joga lixo para fora do cocho, de forma que o gari precisa parar de
arremessar o lixo e empurrá-lo com uma vassoura para dentro do cocho. Já o processo de
compactação do lixo do caminhão Ford, exige que o motorista o pare. Desta forma, como
dizem os próprios garis, aquele é o momento de descanso para quem realiza esta operação e
para o gari que aguarda para arremessar mais lixo.
- O tamanho dos trechos: estes variam entre 10 a 16 quilômetros, o que permite que os garis
negociem o ritmo de trabalho com o motorista. Antes de a coleta ser planejada, havia
trechos de mais de 40 quilômetros, o que os obrigava a trabalhar em ritmo intenso, sendo
comum o gari ter que dormir no caminhão para recomeçar a coleta no dia seguinte.
Conforme o relato de um motorista, antes o caminhão costumava manter uma velocidade de
15 km/h. Atualmente pode ficar por volta de 6 km/hora.
- As subidas: conforme relatam os garis de uma guarnição, alguns preferem subir mais
depressa. É comum vê-los subir andando bem depressa ou correndo. Um gari comenta esta
preferência com relação a um dos trechos:
“Nós gosta que anda mais rápido mesmo (caminhão), pra subir, que a gente
acaba com aquele mundo lá, vira lá em cima, desce de novo...”
- As descidas: também é comum ver os garis correndo nas descidas. Aproveitam a inércia da
descida e o ritmo constante que o motorista coloca no caminhão. Mas precisam tomar
cuidado para não trombarem no caminhão caso o motorista pare bruscamente. Como foi
comentado acima, relatam manter o tronco para trás, caso precisem parar o movimento ou
se desviar. Também precisam ter cuidado com o trânsito dos carros, que geralmente descem
rápido.
179
Os garis se comunicam com os motoristas dos carros que ultrapassam o caminhão
praticamente todo o tempo em que precisam coletar de porta em porta. É comum observar
motoristas apressados que não aguardam os garis atravessarem a rua, e aqueles que diminuem
a velocidade e logo arrancam sem esperar os garis. Para evitarem os atropelamentos, os garis
param o corpo, jogando o tronco para trás, de forma a auxiliar esta parada brusca. E explicam:
“É reflexo. Joga o corpo pra trás e o corpo pára.”
Alguns garis quase não sobem no estribo durante as descidas. Geralmente descem
correndo, a não ser que haja um espaço maior entre o lixo de um local para outro. Neste caso
permanecem mais tempo sobre o estribo. Um gari explica porque não sobe no estribo durante
a coleta nas descidas, demonstrando não realizar tanto esforço quanto nas subidas ao descer as
ruas correndo:
“Tá com o corpo solto, então cê vai acompanhando o ritmo do caminhão.”
- No caso de coleta do monte da "redução", geralmente a dupla fica sobre o estribo do
caminhão entre um monte de lixo e outro, exceto quando dois montes estão próximos,
quando correm de um monte a outro.
Apesar de ser comum ver os garis se segurando na alça lateral do caminhão enquanto
caminham (Figura 18), esta técnica corporal não foi admitida por eles em autoconfrontação
coletiva, até que observaram as filmagens e fotos.
“Nos filmes a gente vê que vocês usam bastante o corrimão lateral. Por quê?
(entrevistador)
A gente não usa muito não... A gente usa, mas não ajuda muito não... quem mais
usa é ele (apontando para o colega). Ele usa o tempo todo. (Gari 2)
Ele descansa? (Entrevistador)
180
Não. (Gari 1)
E protege? (Entrevistador)
Também não. (Garis 1 e 2)
Mas é útil. (Garis 1 e 2)
Por quê? (entrevistador)
Porque quando você não consegue pegar nesse corrimão do meio, a gente pega
neste lateral aqui. Aí ajuda no salto. ” (Gari 1)
Apesar do relato acima, em autoconfrontação individual, a ajuda do corrimão é
relatada de forma diferente. Tanto na coleta do lixo da "redução" como na coleta de “porta em
porta”, há garis que preferem intercalar entre estar sobre o estribo ou correr e caminhar.
Conforme relatou um gari em autoconfrontação individual:
“É melhor ficar sendo meio puxado pelo caminhão do que ficar em pé no estribo,
de pés juntos e mãos pra cima”.
Além de se segurarem na alça lateral do caminhão durante a caminhada e corrida, os
garis também se protegem usando esta estratégia, ou seja: quando os garis estão no chão e o
caminhão faz uma curva para a direita, por exemplo, alguns garis se seguram na alça lateral
do mesmo lado e acompanham o movimento do caminhão. Mesmo os garis que não se
seguram no corrimão lateral procuram se dirigir para o mesmo lado da curva. Assim eles se
protegem dos carros que transitam e conseguem acompanhar o caminhão.
181
Figura 18: Garis segurando no corrimão lateral do caminhão enquanto caminham. Eles também
permanecem atrás do caminhão para se protegerem do trânsito.
Apesar de os garis terem receio de admitir algumas estratégias que poupam o corpo, é
coletivamente que eles relatam a importância da ajuda da equipe, principalmente quando há
algum gari que não está passando bem, e que avisa para os colegas que irá manter um ritmo
menos intenso:
“Eu falo com os colegas: hoje eu num tô bem, segura minha onda aí! Eles falam:
tá, beleza! E assim vai! Um segura a barra do outro .
Durante a coleta os garis também costumam se adiantar até o lixo antes do caminhão
(Figura 19). Nos filmes de uma das guarnições nota-se que geralmente há um ou dois garis
adiantados, que coletam os sacos e aguardam o caminhão passar para arremessarem o lixo.
Para eles, esta estratégia não á combinada, nem há um padrão:
“É natural. Num tem um padrão não. (Gari 1)”
182
Numa das ruas de um trecho, o motorista precisou esperar um senhor que saiu com o
carro de uma garagem e trancou seu portão com o carro na rua. Enquanto isso o motorista
encostou o caminhão mais à direita da rua para dar passagem a um carro, e os garis se
adiantaram. Coletaram o lixo que estava mais a frente, voltaram um pouco e o levaram até o
cocho. Desceram um pouco mais a rua armazenando o lixo nas mãos. Aguardaram o
caminhão mais a frente com as mãos cheias de sacolas de lixo até que o senhor tirou seu carro
e o motorista desceu novamente a rua enquanto os garis arremessaram o lixo armazenado.
Este evento durou uns 50 segundos.
Quando estão correndo, os garis inclinam o corpo naturalmente para direcionarem a
corrida. Tanto para saírem detrás do caminhão ao saltarem do estribo, como para mudarem a
direção da corrida, seja após o arremesso do lixo ao cocho, seja para desviar de algum carro
ou pessoa, etc (Figura 20), os garis inclinam o tronco para o lado e também para frente (pegar
impulso para arremessar o lixo) e para trás (para frear o movimento de corrida).
Figura 19: Dois garis se adiantam até o lixo antes do caminhão. O gari da esquerda desce correndo alguns
degraus e o gari da direita freia seu movimento para coletar uma garrafa que cai no chão. O gari do meio
aproveita a inércia da corrida para arremessar o lixo ao cocho.
183
Figura 20: Técnica corporal frequentemente usada pelos garis, que inclinam o corpo para mudar a
direção da corrida. Aqui o gari acabou de depositar o latão no chão e voltou-se em direção a outro ponto,
preparando-se para desviar do carro estacionado.
Os garis precisam responder de diferentes formas aos imprevistos que aparecem:
- Quando uma senhora chamou os garis de volta, para recolherem o lixo que esqueceu de
colocar pra fora, um deles correu, pegou o lixo e correu atrás do caminhão quase um
quarteirão. Numa outra casa, gari que voltou para coletar o lixo dentro do jardim de outra
senhora atrasada. Houve um breve momento de dúvida entre os garis, até que aquele que
voltou para atender a senhora avisou para o motorista seguir com o caminhão. Neste trecho, o
caminhão teria que subir e descer várias ruas. Então o gari cortou caminho pelo quarteirão de
baixo, e desceu a próxima rua que o caminhão passaria em seguida. Desceu fazendo
“redução” até reencontrar seus colegas vários quarteirões à frente. Apesar do atraso dos
moradores ocorrer com freqüência, as equipes não relataram possuir nenhuma estratégia para
evitá-lo, mas sim para resolvê-lo, sendo importante o conhecimento do trecho na solução a ser
tomada.
Durante o trabalho há momentos de pausas. Já coletando no trecho, quando o
caminhão precisa dar voltas, algumas vezes os garis descem do caminhão e conversam com
algum munícipe ou entram em algum estabelecimento comercial, como restaurantes,
mercados de verduras e frutas, bares e prédios. Costumam se alimentar com lanches rápidos e
184
tomar líquidos. A compactação do lixo, a espera dos sinais de trânsito fechados sobre o
estribo do caminhão, ou de carros saindo ou entrando nas garagens também são momentos em
que os garis param de coletar por alguns minutos.
A dupla de garis que faz “redução” controla seu ritmo de trabalho. Se a guarnição
combinar de sair mais cedo, trabalham andando rápido ou correndo. Há garis que trabalham
mais rápido porque preferem sair mais cedo, independente de combinar com a equipe ou não.
Mesmo em dias que nenhum gari tem pressa, os garis que fazem "redução" costumam adotar
um ritmo de caminhada rápida. Há guarnições que fazem um revezamento semanal entre a
dupla que faz os montes e a dupla que bate o lixo da "redução". Outras determinam uma
divisão fixa. Por exemplo, um gari que sempre faz “redução”, prefere esta função porque
relata ter varizes e sentir muita dor nas pernas quando salta várias vezes do estribo para
coletar de porta em porta.
Conforme comentado, há alguns aspectos (como o ritmo imposto pelo motorista, ou o
ritmo combinado entre as equipes) que determinam o ritmo da caminhada e da corrida.
Entretanto, o trabalho de coleta é intercalado por momentos de explosão e diminuição do
ritmo da corrida, ou por caminhadas seguidas de picos de explosão de corridas, e assim por
diante. Desta forma, é a gestão da complexidade do trabalho que determinam tais variações.
Há atrasos dos moradores na colocação do lixo na porta das casas e o fato de correrem atrás
do caminhão ou cortar caminho, dentre outras que dependem de cada momento, da situação.
Apesar desta descrição ser limitada e de muitos aspectos relacionados às técnicas
corporais surgirem à medida em que este estudo vai sendo aprofundado, espera-se que este
relatório contribua com a discussão da “economia do corpo” e sua relação com a gestão da
complexidade do trabalho de coleta, bem como para a proposta de novos trabalhos, que serão
apontados na discussão e nas considerações finais desta tese.
185
V- DISCUSSÃO
186
A gestão da complexidade do trabalho dos garis e a economia do corpo
A noção de economia do corpo foi introduzida neste trabalho, a fim de explicar o uso
social que se faz do corpo, e demonstrar a contradição existente entre a tentativa do
trabalhador em promover a regulação fisiológica, enquanto lida com as exigências
controversas do trabalho. O termo “economia do corpo” pode ser utilizado para complementar
o conceito de regulação:
- O conceito de regulação é usado como a manutenção do andamento satisfatório de
um sistema (produtivo ou fisiológico). Entretanto, é na tentativa de regulação de um sistema
produtivo que a regulação fisiológica acaba por encontrar seus limites. Quando responsável
pela regulação de um sistema, ao procurar gerenciar a complexidade de seu trabalho e
eliminar os écarts do sistema, o operador coloca sua regulação interna em segundo plano.
Apesar de o trabalhador mediar a relação entre o uso do corpo e as exigências do
trabalho (de forma consciente ou não), pela adoção de diferentes modos operatórios e
estratégias, muitas vezes o uso do corpo pode resultar no seu desgaste acelerado e no
adoecimento. Desta forma, é comum observar em ergonomia como o andamento dos sistemas
produtivos se dão às custas da degradação acelerada do corpo dos trabalhadores. Isto se
agrava quando o trabalhador é impedido de utilizar modos operatórios e estratégias, na
tentativa simultânea de manter sua integridade física e mental e de corresponder às exigências
da tarefa, gerenciando os imprevistos cotidianos com seus constrangimentos.
Para HUBALT (2004) o sujeito não arbitra igualmente entre os critérios que expõem
sua saúde e os que colocam em jogo a eficácia econômica da organização em que trabalha.
Esta relação conflituosa entre a regulação fisiológica e a regulação do sistema
produtivo explica-se pela economia do corpo, que consiste na relação entre todos os
elementos do trabalho e abrange tudo que implica no corpo do trabalhador.
187
A economia do corpo tem estreita relação com a carga do trabalho, que se compõe
tanto de aspectos físicos como mentais (cognitivo e psíquico). De uma dimensão
predominantemente física, em que a fisiologia e a cinesiologia estão fortemente relacionadas,
a carga de trabalho pode ser subdividida em global e local, sendo que ambas estão
intimamente ligadas. Por exemplo, de um ponto de vista localizado, não há como separar as
forças de cisalhamento em uma articulação como o joelho, das respostas fisiológicas de seus
tecidos à carga que lhes é imposta. Por outro lado, movimentos globais como a corrida na
atividade de coleta de lixo, envolvem tanto a carga articular local (quadris, joelhos,
tornozelos, etc), além de respostas fisiológicas locais nestas articulações, quanto respostas
fisiológicas globais, como o aumento da pressão arterial e do gasto energético do corpo como
um todo.
Um exemplo foi verificado na aplicação do questionário de percepção: para conseguir
trabalhar com as dores nos ombros, um gari relatou que, ao carregar os sacos de lixo nas
mãos, age da maneira descrita abaixo, demonstrando como o trabalhador descobre modos
operatórios antálgicos de trabalhar:
“Pra não doer o ombro eu levo os cotovelos para trás, então o peso vai mais pras
mãos. Se eu levo o cotovelo um pouco pra frente, o peso tá mais no ombro, e
assim vai!
“Arremessar mais de longe dói mais o ombro, quando o caminhão tá rápido e a
gente tem que arremessar de longe dói mais. De perto não, então quando eu tô
com dor eu tento arremessar sempre mais de perto.”
Os relatos acima demandam estudos de biomecânica e fisiologia aprofundados, visto
que tais modos operatórios podem vir a ser corroborados, principalmente a contida no
primeiro relato do gari. Com relação à técnica adotada no segundo relato, sabe-se que, quando
188
o indivíduo eleva os ombros, ocorre maior contato entre os componentes desta articulação,
mais especificamente entre a tuberosidade maior do úmero e a superfície anterior do acrômio
da escápula, o que causa uma compressão repetitiva do tendão da porção longa do músculo
bíceps, principal responsável pela flexão do ombro, verificada no movimento de arremesso
(LEHMKUHL e SMITH, 1989; MAGEE, 2002).
Para conseguir arremessar mais de perto, o gari costuma adiantar-se em direção ao lixo
antes do caminhão. Assim, quando o caminhão passa, ele já está esperando posicionado
próximo ao cocho do caminhão. Apesar de conseguir amenizar a carga para os ombros, é
necessário intensificar o ritmo da corrida, o que causa um gasto energético maior. Porém, se o
gari arremessa o lixo mais distante do cocho quando não está sentindo dor nos ombros (porém
aumentando este risco), ele precisa andar ou correr menos, além de ganhar mais tempo.
Os trabalhadores não costumam pensar para realizar tais técnicas corporais, o que fica
evidenciado nas seções de autoconfrontação desta e de outras pesquisas (LANGA, 1998;
GUÉRIN et al., 2001).
Conforme o relato de um gari, ao acompanhar o caminhão mesmo em partes do trecho
em que ele não tem sacos para arremessar, ele faz um revezamento entre ficar sobre o estribo
e correr acompanhando o caminhão. Ao subir no estribo ele descansa da corrida. Entretanto,
ele desce para correr novamente porque, para ele, “ficar se equilibrando sobre o estribo
segurando no corrimão cansa os ombros e as pernas”, então ele desce e corre um pouco,
revezando-se entre uma carga física local (determinados segmentos e articulações) e uma
carga física global (gasto energético). Esta técnica corporal foi revelada para ele em uma
seção de autoconfrontação, demonstrando o caráter subconsciente e não intencional de tal
estratégia, que pode inclusive passar a ser intencional, após tornar-se consciente.
Quando o gari segura sacos de lixo nas duas mãos, é comum ele equilibrar o peso do
lixo encostando os sacos ao aproximar as duas mãos de forma a não sobrecarrega um lado do
189
corpo. Ou aproveitar a velocidade da caminhada ou da corrida para arremessar o lixo ao
cocho. Ou então caminhar com o lixo nas mãos em direção ao caminhão girando o tronco na
direção contrária ao cocho.
Assim, o trabalhador procura regular sua carga de trabalho desenvolvendo técnicas
corporais ou estratégias de forma subconsciente, devido a alguma exigência do trabalho, ou
procura regular-se de forma intencional, quando ele aprende ou desenvolve conscientemente
determinadas técnicas corporais.
Como comentado anteriormente, além dos aspectos físicos da carga de trabalho, a esta
também relaciona-se a aspectos mentais. Assim, enquanto a tentativa de regulação da carga
fisiológica ocasionada durante uma corrida ou uma caminhada no trabalho de coleta de lixo,
ou a diminuição de acidentes como cortes, quedas e atropelamentos no trabalho fazem parte
da regulação da carga de trabalho de um ponto de vista físico, é inegável que estes aspectos
estão intimamente ligados à tentativa de regulação das cargas cognitiva e psíquica, sendo
difícil separá-los precisamente. Ao realizar a estratégia de "redução", o gari diminui a carga
cognitiva por não ser necessário prestar tanta atenção ao trânsito e resolver problemas em
curto prazo de tempo. Diminui também o risco de ocorrência de algum acidente, o que
diminui também a carga psíquica. Ele prefere manipular o dobro de lixo, a correr o risco de
ser atropelado ou de cortar-se durante a coleta feita de porta em porta com o caminhão em
movimento, tendo que observar o trânsito de carros e de pessoas enquanto ajuda a proteger
seus colegas. Ao mesmo tempo, apesar de sobrecarregar mais os ombros manipulando mais
lixo, o gari também corre menos, diminuindo o gasto energético.
Assim, o gari cria, aprende e aprimora estilos de arremessos dos sacos de lixo e até de
corridas que diminuem a carga fisiológica geral e nas articulações. Mas ele também brinca
com crianças e auxilia os idosos para tornar o trabalho de coleta mais prazeroso, como
publicou T.SANTOS (1999), ao verificar o lado alegre do trabalho dos garis de São Paulo.
190
Pode-se demonstrar que a regulação da carga de trabalho é possibilitada por estratégias
individuais e coletivas. Na primeira, o gari precisa olhar para o lixo a ser coletado ao mesmo
tempo em que observa o trânsito na rua, prevendo os movimentos dos carros e do caminhão
de lixo, para tentar definir qual será o ponto final de arremesso do lixo e para onde seguirá
após o arremesso. Tudo isso sem ser atingido pelo lixo arremessado pelos colegas, sem ser
atropelado, sem cair, sem trombar com os pedestres, inclusive adaptando-se rapidamente às
mudanças que ocorrem já no decorrer deste mesmo planejamento. Na segunda, a regulação da
carga de trabalho pode ser possibilitada por estratégias coletivas, sendo a coesão do grupo
extremamente importante para se responder aos resultados esperados, e de forma mais
prioritária, à segurança de cada um do grupo. Quando, por exemplo, os garis observam o
trânsito para advertir aquele que está coletando o lixo e vai atravessar a rua, até certo ponto
contribuindo com a segurança e amenizando a carga cognitiva e psíquica daquele que coleta.
Usa-se a expressão “até certo ponto” porque a segurança daquele que atravessa depende
principalmente da sua atenção. Caso ele não olhe a rua, mas escute os colegas gritarem, ele
ainda tem tempo de parar seu movimento para não ser atropelado. A importância desta coesão
é demonstrada também pela dificuldade de se coletar com um gari reserva, sendo que eles
procuram não faltar nos dias mais pesados:
“Fica assim, fora do clima... A gente trabalha com atenção dobrada, por causa
do reserva. Ele tá preocupado em fazer outra coisa e nós preocupados em fazer o
serviço e olhar o trânsito, tem que ficar sempre alertando: “cuidado olha o
carro”. Isso é um hábito nosso. Tem certos reservas que tem que ficar sempre
gritando com eles.”
“Esse caso aí que você falou é o caso do reserva. Nós 4 temos um movimento de
comunicação. É esse gesto aí que dá pra ver aí ó: se vai pular, grita se invém o
carro, beleza. Só que com os reservas nós num temos esse hábito de fazer isso.
191
Nós protegemos ele. Nós gritamos com ele. E eles não, num são todos também.
Mas a maioria não tá nem aí. Se você falar “lá vem o carro!” eles xingam: “já
vi!”. Ou então quando tem quebra-mola: “eu já tenho mais de 6 anos aqui eu vou
cair agora?” . Então a partir de hoje a gente não te fala mais nada.”
Para arremessar o lixo à distância, os garis precisam estar atentos para não atingirem
os colegas que estão sobre o estribo, nem serem atingidos pelos colegas que também
arremessam sacolas, como aconteceu com um gari que mostrou uma grande cicatriz no braço.
Por isso ele precisa escolher o lugar do cocho em que vai arremessar. Os colegas em cima do
estribo também precisam estar atentos e abrir espaço para o gari arremessar. Além de ser
extremamente importante este “movimento de comunicação” corporal (gestual) e verbal, o
gari precisa ter precisão em seus arremessos e nas previsões da movimentação dos próprios
colegas. Ao observarmos a precisão dos arremessos vemos que ele mira, e na grande maioria
das vezes acerta o local que ele mirou dentro do cocho do caminhão.
A coesão do grupo também tem relação com a confiança que se estabelece entre tais
profissionais. Pela própria fala dos garis, mesmo brigados eles sabem que vão se proteger
mutuamente.
Os garis se protegem mantendo constante atenção. Assim eles se cuidam e cuidam dos
colegas. Em cima do estribo ou no chão eles gritam avisando de carros, motos e outros
perigos. O motorista também buzina, possuem códigos para avisarem os garis de algum
perigo. Os garis recorrem a estratégias como frear seu movimento, comunicarem-se entre si e
com os motoristas dos carros, além de resguardarem-se atrás do caminhão.
É importante lembrar que as guarnições se organizam com dois garis que ficam
sempre do lado esquerdo e dois sempre à direita do estribo. Os garis que ficam do lado
192
esquerdo geralmente são aqueles mais experientes, e que mais atravessam as ruas para coletar
o lixo. Alguns relatam sentirem-se responsáveis pelos mais novos:
“Cê se sente responsável. Demais da conta!”
Ao relatarem porque preferem coletar fazendo "redução", os garis demonstraram como
consideram a carga de trabalho maior na coleta feita de porta em porta:
“... Compete a quem? Ao grupo todo. Tanto o motorista quanto os garis vão ter
que fazer o quê? O caminhão vai andando e os coletor vai ter que pular, vai ter
que olhar o trânsito, vai ter que olhar o lixo, vai ter que tá olhando o caminhão
correr. Aí que eu acho que o desgaste é bem maior, tanto mentalmente, quanto
físico.”
É necessário insistir na importância de se permitir a realização da "redução", que
diminui o risco de cortes e atropelamentos, visto que o gari faz os montes caminhando, e os
forma do lado direito da rua, colocando os sacos contendo vidros quebrados mais afastados do
monte. Assim, o motorista pára o caminhão ao lado do lixo e não há necessidade de atravessar
a rua para coletar, o que demonstra que a simplificação da tarefa pode ter um aspecto positivo,
inclusive ao se considerar uma mediação possível que o trabalhador faz, de forma
subconsciente, dos componentes físico, cognitivo e mental da carga de trabalho.
“Se você bate o (lixo) reduzido praticamente você vai efetuar uma ação só. Quer
dizer, o caminhão parou e você vai jogar o lixo pra dentro. O motorista vai tá
olhando o trânsito, vai tá sinalizando. O lixo sem a “redução” não.”
SANTOS (2004) demonstrou como é essencial a coesão do grupo de forma a haver
uma confiança entre os colegas no trabalho de coleta de lixo. LIMA (1996) relatou esta
confiança mútua pode estar prejudicada, ao estudar os conflitos sócio-cognitivos numa
193
atividade de inspeção de determinado produto, em que havia uma diferença no conhecimento
técnico das pessoas que inspecionavam sua qualidade. O autor demonstrou como as auxiliares
de produção de menor nível técnico eram negligenciadas pelas inspetoras e mecânicos com
relação a este conhecimento técnico, bem como elas conseguiam, devido a sua própria
experiência e ao coletivo de trabalho, utilizar parâmetros diferentes dos outros profissionais
para inspecionar o mesmo produto de forma eficaz, apesar do isolamento e das más condições
de trabalho. ASSUNÇÃO (2003) demonstrou como o trabalho coletivo auxilia na regulação
da carga de trabalho. Ao estudar trabalhadores de um restaurante universitário, a autora
demonstrou como o saber prático das trabalhadoras mais experientes que tinham LER fazia
com que fossem mais respeitadas e que obtivessem mais colaboração daqueles menos
experientes e sem disfunções osteomusculares. Assim, o gerenciamento da complexidade se
dava conforme as decisões das mais experientes, como aumento imprevisto de usuários
naquele dia, aproveitamento de alimentos ao mesmo tempo em que se exigiam cardápios
diversificados, etc. Simultaneamente a tais decisões, os trabalhadores se reorganizaram
funcionalmente, de forma que os menos experientes eram gerenciados pelas funcionárias mais
antigas, e as auxiliavam nas tarefas mais pesadas do ponto de vista da carga física de trabalho
(como carregamento de panelas e objetos pesados, mistura e movimentação dos alimentos nas
panelas), o que possibilitou a permanência das pessoas com LER no trabalho. Mais que isso,
sua presença era essencial para o andamento do trabalho, bem como para atingirem os
resultados esperados.
Numa revisão sobre regulação, LEPLAT (2006) considera que a regulação coletiva
implica numa coordenação entre as regulações individuais, que por sua vez dependem ao
mesmo tempo das características do objeto a tratar e das condições técnicas que se dispõe para
realizar o trabalho. O autor considera um grupo de trabalho como um “sistema auto-ativo”,
sendo que a atividade depende das características do grupo, das características da tarefa a se
194
cumprir, bem como da associação entre ambas. Nesta consideração, a composição e a
estrutura do grupo podem ser mais ou menos compatíveis com as exigências da tarefa. Do
ponto de vista da carga de trabalho, o autor comenta como o coletivo reorganiza internamente
as tarefas, de forma a re-estabelecer um equilíbrio nas cargas individuais, quando cada
trabalhador percebe a sobrecarga dos colegas. Entretanto, para que esta regulação coletiva
seja possível, é necessário que a equipe disponha de um certo grau de autonomia. Assim uma
equipe se auto-regula, podendo não somente redefinir seus objetivos, mas também os meios
de atingi-los, tanto pela repartição das tarefas entre os membros, bem como pela maneira de
tratá-las. Assim, esta auto-regulação coletiva é um fator de flexibilidade que permite ao grupo
adaptar-se às mudanças e imprevistos, inclusive enfrentando problemas de segurança em
casos de urgência. Para o autor, uma condição para o bom funcionamento destes grupos auto-
regulados está na possibilidade de cada membro ser informado de sua própria atividade e de
seus resultados, da atividade e dos resultados dos outros membros da equipe, bem como do
grupo como um todo.
Apesar de LEPLAT considerar esta necessidade de informação para os membros da
equipe, em uma pesquisa de observação participante, GATEWOOD (1985) demonstrou que
em um trabalho coletivo, a comunicação verbal nem sempre é necessária em condições
normais. Participando de uma equipe de seis membros em um barco para realizar a pesca do
salmão no Alasca, o autor verificou que cada membro da equipe possuía uma representação
diferente da rotina do trabalho coletivo. E apesar de conversarem muito pouco a respeito do
planejamento e da realização de suas atividades, a equipe atingia os resultados esperados.
Trabalhando como pescador iniciante, notou que, à medida que ele se familiarizava com o
trabalho, ficava mais difícil encontrar palavras para descrever sua rotina, o que o fez construir
uma representação subjetiva sobre sua rotina de trabalho difícil de ser representada de forma
sistemática. Verificou ainda que o conjunto das representações individuais é transformado
195
numa representação coletiva, difícil de ser apresentada de forma sistematizada e linear. As
representações diferentes e a ausência de conversas a respeito do trabalho não impediam a
ação coletiva, o que o fez acreditar que as ações falam mais que as palavras. Este conjunto de
representações permitia o andamento de um trabalho altamente sincronizado entre as funções
da equipe. Mostrou que nem todas as categorias cognitivas são lingüisticamente codificadas, e
que as diferentes organizações cognitivas individuais não impedem as ações coletivas. O autor
mostrou ainda que não se pensa as ações em palavras, e que um comportamento lingüístico
padronizado não necessariamente captura um fenômeno cognitivo das ações assumidas. Fazer
um mapa da organização coletiva e demonstrar a coordenação da seqüência de tarefas não
depende de entendimentos compartilhados do que está acontecendo. O desenvolvimento da
organização cognitiva do pescador vai além da necessidade de compartilhar significados, e
desenvolve-se pelos constrangimentos práticos de coordenar as ações entre os membros da
equipe.
Os garis recorrem a diversas estratégias coletivas de trabalho na tentativa de regular a
carga de trabalho. Os revezamentos entre os que coletam e os que ficam sobre o estribo
permitem um descanso mais generalizado. Entretanto, estar sobre o estribo exige realizar duas
funções: realizar a “catação”, fonte de grande variabilidade, e avisar o colega que vai descer
ou que está coletando no chão a respeito do trânsito de automóveis. O cuidado recíproco
diminui o risco de atropelamentos:
“Quem tá no estribo fica olhando pra cima e pra baixo para ver se vem carro.”
“A gente grita, né! Aí te dá aquele alerta, pra você evitar de atravessar. Assim
que o carro atravessou aí ele desce.”
Os rodízios, em que um pede ao outro para ajudar do lado mais pesado, regulam a
carga de trabalho para a equipe. O ritmo que o motorista impõe ao caminhão, quando
196
negociado com os garis, também ajuda a regular a carga de trabalho. Quando o gari está se
sentindo mais cansado ou com dores, ele pede aos colegas para ajudá-lo:
“A gente fala. Quando um não tá bem fala pros colegas. Quando eu tô mal eu
falo pros colegas: segura a onda pra mim hoje gente que eu tô... hoje eu num tô
legal.”
“A gente tem aquela superação, né! E o serviço tem que ser feito, querendo ou
não. Tem hora que dá até câimbra, né L? Tanto peso, né, tal... tem dia que..
amanhã eu tô ruim... eu vou trabalhar, mas eu comuniquei com eles, que eu tô
ruim. O dia que eles tão ruim eles vão colaborar com a gente. É coletivo.”
“É o dia a dia da gente mesmo. Tem que trabalhar... tem que ter raça. Não
adianta estar com dor ou sem dor... tem que fazer o serviço (risos)!”
O fato de o gari dizer que “o trabalho ter que ser feito, querendo ou não” é um bom
exemplo para se demonstrar uma contradição explorada pela economia do corpo. O sujeito
sabe que precisa realizar o seu trabalho, e não quer deixar a equipe coletar com um gari
reserva, apesar de não estar se sentindo bem. Se ele optar por ir trabalhar, recorre aos colegas
da equipe, na tentativa de colaborar como puder, mesmo sabendo que suas condições não são
boas naquele dia.
A estratégia de “redução” também é uma forma coletiva de regular a carga de trabalho.
Quando o gari faz “redução” trabalha com mais tranqüilidade, a carga mental diminui, o risco
de acidentes como cortes ou atropelamentos também é menor para a equipe.
“Trabalho com “redução” é melhor porque evita acidente no trabalho, reduz a
necessidade de correr, é melhor pro corpo e pra mente, evita corte, evita cair.”
197
“É até estranho um gari chegar dizendo: “Nó...machuquei reduzindo”. Aí os cara
vai falar assim: É lero lero! Ninguém nem acredita”.
“É estranho porque é incomum machucar reduzindo”.
“O lixo tá parado ali. Cê tá vendo ele. Sabe... cê vê ele. Não, correndo não, cê
juntou daqui, juntou dali, pá... Aí corta mesmo... suponhamos, o caminhão tá em
movimento, cê vai pegá o saco e os caco tão tudo ali na alça, aí você pega. Em
movimento eu não vou parar, olhar sacola, não dá tempo.”
“... é pelo ver e pelo ouvir né. Quando cê tá reduzindo você tem um contato
maior como lixo. Você pega o lixo aqui e leva lá pra frente, aí você ouve. Quando
você joga lá aí você ouve, pá... tem uma latinha lá dentro, tem vidro, aí separa
tudo”.
“De quarta a sábado todo mundo beneficia porque alterna, sabe!... Eu acho que
o benefício é o conjunto. Não existe um benefício único não, sabe! Mas se separar
o benefício é maior pra quem reduz. Eles vêm embora e quem bate fica lá
trabalhando. O desgaste não vai ter tanto. A guarnição toda vai beneficiar
porque eu vou ter o tempo pra eu ir lá juntar tranqüilo... os outros também vão
trabalhar tranqüilo porque eles vão pegar o lixo todo na direita,
amontoadinho...”.
“A guarnição toda vai beneficiar. Porque eu vou ter o tempo pra eu ir lá juntar
tranqüilo sem o caminhão atrás de mim pra me apressar. Tá ligado! Tranqüilo...
assobiando... e os outros vão também trabalhar tranqüilo, por quê? Eles vão
198
pegar o lixo todo na direita, amontoadinho, não vai ter o perigo de carro
atropelar, de cortar, de machucar sabe? Eu já separei tudo!... aí por isso que eu
te digo que o benefício vai ser o conjunto”.
Para saberem o peso do lixo os garis pegam por cima dos sacos. Se notarem que um
saco está muito pesado, pegam todos os mais leves e deixam os pesados para serem coletados
pelos colegas que chegam em seguida. Estes chegarão mais preparados para pegar um peso
mais elevado, tomarão mais cuidado ao manipular o lixo. Tal estratégia coletiva demonstra a
importância da coesão do grupo para se conseguir tomar cuidado ao elevar uma carga. Os
garis relataram esta estratégia em autoconfrontação coletiva quando tentavam explicar como
sentem o peso dos sacos de lixo ao coletá-los:
“Eu meto a mão na sacola. E aperto com os dedos, né! Aí quando eu aperto
assim, a gente sente que a sacola já num veio. Tipo com um ímã na mão. Aí você
solta ela, e já pega uma mais leve, pro outro vir e pegar só ela.” (Gari 1)
“Quem chega depois já sabe. O lixo que fica tá mais pesado. Então toma mais
cuidado na hora de elevar o saco.” (Gari 2)
Ao comparar a percepção dos entregadores de mercadorias mais experientes com os
novatos, LORTIE (2002) verificou como tais trabalhadores sentiam o peso das caixas e como
as equilibravam na hora de carregá-las. A autora verificou que os mais experientes
conseguiram utilizar determinados parâmetros, tais como o posicionamento inicial da caixa
nos dedos das mãos e no corpo, que os indicava a forma mais equilibrada para carregá-las
diminuindo o risco de queda das caixas e de acidentes, inclusive de possíveis lesões
osteomusculares. Algumas diferenças da atividade de tais carregadores para os garis são
interessantes: os diferentes pesos, formatos e formas de acondicionamento do lixo,
199
acrescentando-se a necessidade de decisão do corpo com relação ao seu carregamento de
forma segura, bem como o tempo curto para esta tomada de decisão, que imprimem grande
complexidade ao trabalho dos garis.
Quando o lixo está muito pesado os garis arrastam o lixo até perto do cocho ou pedem
ajuda aos colegas. Muitos moradores deixam entulho no fundo dos sacos, sob lixos mais
leves. Se estes sacos rasgam quando puxados, os colegas se ajudam, inclusive usando as
ferramentas que prendem em seus caminhões (vassouras velhas e tábuas de madeira que tiram
do próprio lixo).
Ao comparar os termos “regulação reativa” e “regulação antecipativa”, LEPLAT
(2006) comenta que após a ocorrência de um imprevisto, o trabalhador reage ao problema
procurando resolvê-lo. Quando o trabalhador não apenas aprende a responder àquele
determinado problema prevenindo-o, inclusive analisando outros problemas de ordem
parecida prevenindo-se, ocorre então uma “regulação antecipativa”. É assim que os garis vão
equipando os caminhões com tábuas, vassouras, caixas e outras ferramentas, a fim de
responder às diferentes eventualidades relativas ao lixo que manipulam.
Em dias de chuva, seguram-se em uma faixa de pano que amarram no corrimão dando
mais segurança sobre o estribo, que chamam de “Tereza”. E jogam terra sobre o estribo, que
fica engordurado e escorregadio. Os garis não gostam de usar a capa de chuva fornecida pela
empresa. O capuz impede sua visão e atrapalha a audição. Por isso usam sacos plásticos como
capas, que ganham da população ou levam nos caminhões. Preferem os sacos plásticos
também porque os retiram com facilidade e os renovam a cada dia, inclusive ganhando da
própria população. No calor tomam água das torneiras e são esperados pelas madrinhas com
água gelada. Muitos não gostam de usar filtro solar, preferem os bonés. Dizem que o rosto sua
muito com o filtro, o que causa desconforto e atrapalha a visão.
200
WISNER (1987) mostra uma interessante visão sobre a dificuldade que os
trabalhadores encontram para usarem os EPIs. Apesar da dificuldade de se adaptar os
dispositivos técnicos, muitas vezes os EPIs podem causar acidentes por dificultarem a
comunicação entre os trabalhadores ou impedirem que eles consigam escutar o som normal
das máquinas, por exemplo, aumentando o risco de acidentes. Para o autor, ao invés de
sobrecarregar os trabalhadores e arriscar sua segurança obrigando-os a usar EPIs, as empresas
deveriam dar prioridade à resolução dos elementos que causam o risco.
Os relatos dos garis demonstraram ainda como o conhecimento e a experiência levam
o trabalhador a encontrar formas de trabalhar que poupam o corpo. Esses conhecimentos
geralmente subconscientes, foram revelados quando mostravam como aliviavam a dor em
determinadas articulações e segmentos, durante a realização do trabalho de coleta.
Estudando as mudanças cognitivas e físicas que ocorrem com o trabalhador em
processo de envelhecimento, MARQUIÉ (1995) e LAVILLE (1989) verificaram que a
experiência é um fator fundamental, não apenas por aumentar o estoque de formas de resolver
os problemas do cotidiano, mas também porque o trabalhador cria, com sua experiência,
modos subconscientes de economizar o corpo lidando com seu envelhecimento, o que
LAVILLE (op cit) chama de criação de “modos operatórios econômicos” (p. 08). É necessário
compreender os efeitos das condições de trabalho com o envelhecimento, não somente das
capacidades de trabalho físico extremo, mas também moderado e repetido com o tempo.
Deve-se considerar a “inteligência do trabalho físico” (p. 08), deve-se estudar como a
experiência exerce um papel sobre a maneira de se utilizar o corpo e sua força física. A
experiência então é o ingrediente necessário para a adaptação do corpo envelhecido ao
trabalho.
201
MAUSS (1974) considerava o corpo como o primeiro e mais natural objeto técnico do
homem. Ele via uma técnica corporal como um ato tradicional e eficaz. Para ele é preciso que
a técnica seja eficaz para que seja transmitida, muito provavelmente de forma oral.
As técnicas do corpo podem então ser aprendidas, quando um gari se torna atleta e
aprende técnicas esportivas de corrida para um melhor desempenho, para diminuir o risco de
lesões osteomusculares, ou quando vê o relato do colega, explicando como ele consegue
diminuir a carga de trabalho mesmo sentindo dores e cansaço.
De forma subconsciente, as técnicas corporais também são criadas quase que
espontaneamente, com a experiência da realização do trabalho em resposta à complexidade
que lhe é própria, tais como o estilo de arremessar o lixo ao cocho do caminhão quase sem
errar, de diversas distâncias e de diferentes pontos de arremesso, a técnica de correr
sobrecarregando-se menos e sem ser atropelado, ou o estilo de saltar do estribo do caminhão
em movimento sem cair, e até mesmo a forma de utilizar o próprio caminhão para se proteger
do trânsito. O gari aprende também a se proteger atrás do caminhão após saltar do estribo, até
que o trânsito esteja livre e ele possa correr em direção ao lixo. Ele aprende também que
precisa tomar cuidado ao permanecer atrás do caminhão em movimento, já que o motorista
pode parar bruscamente e ele pode ser atingido, o que também foi verificado na pesquisa de
ROBAZZI et al. (1992) como um tipo de acidente. Ou então ele segura espontaneamente no
corrimão do caminhão ao caminhar, diminuindo a carga fisiológica e se protegendo do
trânsito. Às vezes ele é atingido no rosto, e evita olhar para o cocho para não ser atingido pelo
chorume que espirra das sacolas quando passa perto do cocho no momento da prensagem do
lixo.
ASSUNÇÃO (2003) relata que com a experiência os operadores vão adaptando suas
estratégias em função do seu custo físico. Para a autora, o trabalhador reflete sobre seus
sucessos e fracassos, construindo uma representação sobre os “pontos fortes e pontos fracos”
202
(p. 04), o que lhe permite diagnosticar as funções menos eficientes e frágeis diante das
solicitações físicas ou psíquicas da tarefa. GUÉRIN et al. (2001) consideram que redução da
utilização das “margens de manobra” acabam por sobrecarregar o trabalhador, diminuindo as
possibilidades de regulação.
Ao analisarem o aspecto psicológico do movimento de sujeitos realizando vários tipos
de trabalhos repetitivos, CLOT e FERNANDEZ (2005) verificaram que a gestão da
complexidade exige criações de modos operatórios sensivelmente diferentes em cada ciclo.
Desta forma, o impedimento desta criação aumenta o risco de acometimento de lesões
osteomusculares. A proibição da estratégia de "redução" é um bom exemplo para se explicar a
impossibilidade de criação de estratégias coletivas que permitem a regulação da carga de
trabalho. Na ausência da "redução", os garis ficam mais suscetíveis a acidentes e mais
cansados, tanto fisicamente como mentalmente.
Os garis também verificam que uma dificuldade de se realizar a “redução” está na
resistência dos cidadãos em função do acúmulo de lixo em frente às residências. Por isso eles
procuram negociar com os moradores os melhores locais para acumular o lixo, e incorporam
este princípio às “regras da redução”, como uma prescrição coletiva do trabalho. As “regras
da redução” descritas pelos garis funcionam como trabalho prescrito pelas próprias equipes de
coleta, sendo que algumas normas nem sempre são respeitadas. Apesar disso, as regras são
uma tentativa de se garantir a realização desta estratégia.
Quando o trabalhador precisa regular o andamento do trabalho, é necessário que
disponha de margens de manobra suficientes, certa autonomia e também certa competência
para resolver os problemas que surgem. Apesar disso, mesmo que o trabalhador disponha
destes elementos para resolver determinados problemas, há variabilidades que ele não pode
controlar e nem mesmo prever. Por exemplo, o gari não possui domínio de variabilidades
como o tipo de piso, o surgimento de bueiros sem tampas ou buracos, sendo então necessário
203
ter atenção constante e entregarem-se a tal imprevisibilidade, chegando ao extremo de relatar
que os acidentes ocorrem de qualquer jeito. Esta variabilidade causa quedas, distensões e
entorses de tornozelo. E os garis afirmam referindo-se aos freqüentes tombos e tropeços:
“... Deus que ajuda nós mesmo.”
Se por um lado, as imposições hierárquicas, a exigência dos clientes e as próprias
características da atividade (risco de quedas, cortes, atropelamentos, etc...) dificultam a
regulação da carga de trabalho, por outro lado, a própria atividade pode auxiliar nesta
regulação. Por exemplo, quando o gari pára a coleta para realizar a prensagem do lixo, ou para
conversar com algum morador ou comerciante, aproveitando este tempo para descansar um
pouco, como pode ser visto no relato de um gari comentando a filmagem de um colega
fazendo a prensagem do lixo:
“Este momento é o tempo que eles têm pra descansar.”
Ou então no caso das variações entre corridas de explosão e trotes, explosão e
caminhadas, dentre outras, que muitas vezes dependem da complexidade da atividade, mais
especificamente das decisões envolvidas na gestão desta complexidade.
Entretanto nem sempre o trabalhador poupa seu corpo, mesmo utilizando técnicas
corporais que minimizam o impacto do trabalho. A sobrecarga se dá por motivos pessoais e
coletivos, ou por exigências externas, tais como exigências de qualidade por parte da empresa
ou dos clientes. Por exemplo, para terminar o trabalho mais cedo, quando os motivos são
próprios dos trabalhadores e variam bastante, os garis costumam combinar um ritmo mais
intenso de coleta com o motorista e com os colegas da equipe. Mesmo utilizando as técnicas
que minimizam a carga física sobre o corpo ao adotarem estilos de modos operatórios
individuais menos impactantes, ou estratégias coletivas como os revezamentos sobre o
204
estribo, os rodízios entre os lados da rua e até a estratégia de "redução", a intensificação do
ritmo de trabalho para “aproveitar a velocidade” ou para “sair mais cedo” não permite evitar
uma lesão crônica. O fato de correr mais, diminuindo o número de pausas, impossibilita uma
troca metabólica eficaz nos tecidos, inclusive impedindo sua constante reconstituição
(GUYTON, 2002), ou aumentando-se a carga mental, devido à necessidade de mais atenção e
tomadas de decisão em tempo mais restrito, o que sugere um risco maior de acidentes.
Ao estudar os trabalhadores de um restaurante universitário, ASSUNÇÃO (2003, op
cit) observou que as trabalhadoras mais experientes e com LER reorganizaram as tarefas
internamente.Assim, os trabalhadores menos experientes passaram a realizar as tarefas que
elas não conseguiam devido às dores osteomusculares. No entanto, as trabalhadoras mais
experientes podiam gerenciar melhor a complexidade do trabalho no restaurante, o que as
tornava mais respeitadas e possibilitou a reestruturação das tarefas. No caso dos garis, eles
podem recorrer a estratégias coletivas: falam com os colegas quando não estão passando bem,
diminuindo seu ritmo de trabalho e sendo auxiliados por aqueles que estão em melhores
condições naquele dia. Ou realizam a estratégia de "redução", em que eles podem caminhar
com mais calma amontoando os sacos de lixo que serão coletados posteriormente.
Quando os indivíduos apresentam dores mais localizadas, como revelado na aplicação
do questionário de percepção, observou-se que nem sempre encontram meios eficazes de se
adaptar, de criar estilos, ou de conseguirem dispositivos que possam resolver seus problemas.
Por exemplo, quando o gari apresenta esporão de calcâneo, uma formação óssea reativa na
base posterior do pé, ele sente dor ao pisar no chão. Os garis relatam que o sapato
desconfortável e piso de paralelepípedos são os principais causadores desta afecção.
Para evitar a dor causada pelo esporão, o gari procura encontrar posturas e
movimentos antálgicos, descarregando o peso do corpo mais na ponta dos pés. Entretanto, e
conforme relato dos garis, essa transferência acaba por causar dores nos joelhos (MAGEE,
205
2002). Assim, os joelhos acabam sendo sobrecarregados pela constante semi-flexão, cuja
manutenção da contração do quadríceps faz com que seu tendão (o tendão patelar) comprima
a patela contra o fêmur. Esta compressão agrava-se com a repetição da movimentação dos
membros inferiores, causando uma inflamação na articulação entre fêmur e patela (ou rótula),
chamada de Síndrome Fêmuro-Patelar. Esta inflamação causa fortes dores na região anterior
do joelho à sua movimentação, dificultando a caminhada e a corrida. Este é um exemplo
típico de como o trabalhador tem dificuldade de se adaptar a exigências controversas da
situação de trabalho, de encontrar meios de economizar o corpo. Alguns garis chegam a
comprar palmilhas de silicone, que deveriam ser fornecidas pela empresa. A empresa oferece
apenas um modelo de sapato, apesar dos freqüentes pedidos dos garis de modelos mais
variados e mais confortáveis. Devido ao intenso processo de terceirização da coleta, a
empresa não investe em modelos mais confortáveis de sapatos. Pôde-se ouvir, inclusive, que o
processo de compra de sapatos novos demora até dois anos, e que não vale a pena investir
agora, já que em pouco tempo não haverá mais garis efetivados na empresa.
Então, quando não conseguem “enganar” a dor, recorrem a vários tipos de anti-
inflamatórios, que costumam tomar diariamente, durante vários meses, até anos. E preferem
trabalhar com dor a serem transferidos para outras regionais, visto que o absenteísmo devido
às dores osteomusculares é considerado por eles um parâmetro que a gerência utiliza para os
transferirem de regionais e de funções, seu maior receio. Como os garis não querem se tornar
reserva em outras regionais, não faltam ao trabalho e até conseguem trabalhar, por um tempo,
com as dores. Esta decisão é extremamente perigosa, porque eles mascaram as dores usando
os anti-inflamatórios, o que provavelmente agrava suas lesões, visto que eles passam a
conseguir realizar movimentos mesmo com os tecidos lesionados. Uma ruptura parcial ou
total do tendão do músculo supraespinhoso do ombro pode ser a conseqüência de uma dor,
cuja função é informar ao sistema nervoso a existência de uma lesão. Uma lesão irreversível
206
pode ser conseqüência de uma inflamação em um menisco desgastado que causa dores nos
joelhos, ou uma hérnia de disco lombar, que causa dores intensas nesta região da coluna.
Um outro exemplo de características da atividade que impedem o coletor de
economizar o corpo: todos os garis relatam já terem caído mais de uma vez ao saltarem do
estribo. Um gari relatou ter caído dentro de um bueiro, ou “boca de lobo” como eles mesmos
denominam. Eles comentam ainda que sempre há novos buracos que eles não sabiam até
caírem ou torcerem o tornozelo. Os garis comentaram que possuem técnicas ou “macetes”
para caírem menos ao saltarem caminhando ou correndo conforme a velocidade do caminhão:
“Cair o gari sempre cai. Com os macetes ele cai menos. Mas cai.”
SANTOS (2004) conseguiu explorar muito bem as técnicas corporais dos garis ao
saltarem do caminhão em movimento:
“O caminhão compactador ele tem um lado procê pular. Se ocê tá na esquerda, ou
se ocê tá na direita, tem um lado pro cê pular. Se ocê tá na direita, cê tem que levar
o corpo, levar a perna direita primeiro, pra depois cê saltar. A partir do momento
que ocê soltou o corpo, pulou, cê continua correndo e não pára. Porque se ocê
pular e parar, cê vai cair com certeza. Ocê primeiro dá uns três piques pra frente,
cê vai no embalo do caminhão... (p. 95)
“Eu já caí várias vezes. Só que até pra você cair, você tem que ter uma técnica pra
cair. O cara quando é treinado mesmo, ele não pode ter aquela... ocê vê que vai
cair, então você tá lá, então você tá preocupado, você tá com as duas mãos cheias
de lixo, ocê vê que vai cair, ocê não vai desistir de segurar o lixo? Não! Ocê tem
que soltar o lixo porque ocê vai cair e vai defender com a mão esquerda ou direita.
Mas tem cara que cai e não solta o lixo de jeito nenhum (p. 96).”
O autor mostra ainda como os garis precisam ter cuidado ao manipularem os sacos de
lixo (p. 98):
“Cê nunca pode afundar a mão nele de uma vez, porque se ocê afundar a mão,
pode ter um caco de vidro ali. Então não é bom pegar no fundo. Quando cê precisar
pegar no fundo, você pega só pra escorar, um pouquinho.”
“Você não pode chegar e bater a mão no saco de com força. Pode ter uma seringa,
uma injeção...”
207
Existe uma nocividade inerente à variabilidade do trabalho de coleta de lixo
domiciliar, cuja penosidade é subjetiva (ASSUNÇÃO e LIMA, 2003). Então os garis passam
a desenvolver e aprimorar técnicas que surgem conforme a complexidade do trabalho vai
exigindo sua gestão, sendo que o impedimento de tal criação diminui as margens de manobra
empobrecendo a atividade e aumentando o risco de lesões.
Ao comentar as estratégias individuais e coletivas de defesa em trabalhos perigosos,
DEJOURS (1992) mostra como os trabalhadores evitam falar sobre o medo enfrentando a
nocividade e o risco, muitas vezes arriscando-se ainda mais diante dos colegas.
Mesmo sabendo que pode cair num buraco novo, num bueiro destampado, ou mesmo
ser atropelado, o gari relata que o trabalho precisa ser feito. Deixa a penosidade de lado e
enfrenta a complexidade advinda da variabilidade e da nocividade do cotidiano:
“A gente tem aquela superação, né! E o serviço tem que ser feito, querendo ou
não...”
Nos estudos de BERTHOZ (1997) sobre a teoria da percepção do movimento, o autor
chega a considerar o movimento como um sexto sentido. Para ele, perceber é prever, é
decidir. As propriedades mais refinadas do pensamento e da sensibilidade humanos são
processos dinâmicos, relações ininterruptas, mutantes e adaptativas entre o cérebro, o corpo e
o ambiente. Pensamentos e sensibilidade são estados de ativação cerebral induzidos por certas
relações entre o mundo, o corpo, o cérebro hormonal e neuronal e sua memória de milhares de
aquisições culturais.
Ao realizar a atividade de coleta de lixo, o gari precisa tomar decisões em curto prazo
de tempo, relacionadas a vários fatores: ao próprio lixo (onde está, como pegar, se ele deve
levar ou arremessar ao cocho, que tipo de lixo coletar), ao trânsito de pessoas e veículos, à
catação (separação de recicláveis), aos atrasos dos munícipes com relação à colocação do lixo
208
na porta de casa. O gari precisa inclusive reajustar seu movimento diante das mudanças que
ocorrem após sua previsão: o motorista arranca antes, surge um carro, um colega atravessa
seu caminho. BERTHOZ (1997) demonstra como um predador precisa antecipar seus
movimentos e os movimentos da presa: é necessário calcular os vetores de movimento e a
velocidade de ambos, bem como as respostas e reações às mudanças que ocorrem nos
movimentos da própria presa após ter sido iniciado o movimento de caça. Apesar de
considerar a necessidade de muitos estudos, para ele não somente o cérebro, mas todo o corpo
tem este poder de prever para decidir.
O gari fica preparado para saltar do estribo quando há possibilidade de haver um saco
de lixo, mesmo após ter sido feita a coleta naquela rua (há ruas em que o caminhão passa
várias vezes para percorrer o trecho), e parece calcular onde estará o caminhão assim que
coletar aquele lixo que saltou para pegar.
Esta complexidade é expressada na própria fala do gari, ao comentar porque a
estratégia de "redução" diminui a carga e torna o trabalho de coleta mais seguro:
“O caminhão tá na direita né! Você corre em cima do passeio né! Quem tá na
esquerda não, tá na contra-mão. Os carros vão tar vindo. Ele vai ter que
atravessar, olhar, pegar o lixo, olhar o caminhão atravessar. Às vezes nessas
trocas de ação aí ele tá sujeito a ser atropelado.”
Uma técnica corporal bastante interessante é vista na corrida do gari. Ele costuma
inclinar o corpo para frente a fim de acelerar a corrida. Também inclina o corpo lateralmente
para mudar a direção da corrida, seja para se desviar de um carro, seja para desviar a direção
do movimento após o arremesso do lixo ao cocho. Após saltar do estribo, o gari também
costuma observar a rua e inclinar o corpo na direção que decide seguir. Para conseguir esta
inclinação do corpo é necessário iniciar a inclinação pela cabeça, o que BERTHOZ (1997)
209
explora referindo-se à importância do aparelho vestibular (ouvido interno) e sua relação com
o cerebelo. Estes órgãos são responsáveis pelo equilíbrio do corpo, tanto parado quanto em
movimento. Conforme explicam BERTHOZ (1997) e DANGELO e FATTINI (2000), os
movimentos da cabeça agitam a endolinfa, líquido do ouvido interno que estimula os órgãos
sensoriais que se conectam com o cerebelo dando informações aos receptores proprioceptivos
localizados nos tendões musculares e cápsulas articulares, produzindo uma resposta reflexa
que mantém o equilíbrio. Assim, o gari observa o ambiente, decide para onde seguir e inclina
a cabeça e o corpo, movimentando o seu centro de equilíbrio e conseguindo desviar-se
conforme a complexidade dos eventos no momento em que corre. Esta inclinação é muito
comum no motociclista, que inclinando a cabeça, joga o peso do corpo para um lado
inclinando também a moto, por sua vez o guidão, fazendo uma curva e direcionando-se para o
lado que pretende seguir. Mas também é possível notar que o gari planeja, antecipa seu
movimento, por exemplo, quando vemos nas técnicas do corpo (Figuras 11), que após
arremessar o lixo, o gari já gira o corpo e inclina o tronco na direção desejada. Antes mesmo
de olhar para a direção que vai seguir o gari observa se há carros se aproximando.
Ao comparar bartenders (profissionais que preparam coquetéis) novatos, graduados e
profissionais experientes, BEACH (1993) verificou que os símbolos mnemônicos verbais (que
auxiliam a memorização das receitas) são aos poucos substituídos por símbolos mnemônicos
visuais. O autor verificou que tais trabalhadores apropriam-se de sua atividade e passam a
memorizar as receitas conforme a posição das garrafas, copos e taças nos balcões e prateleiras
dos bares, demonstrando o quanto o conhecimento do ambiente é importante na execução da
atividade. O autor demonstrou como os trabalhadores exploram seu ambiente de trabalho, e
que tal exploração permite a realização eficaz da atividade. Ao tentar memorizar suas tarefas
em um trabalho coletivo de pesca de salmão, em uma pesquisa de observação participante,
210
GATEWOOD (1985) notou que sua forma de memorizar suas tarefas estava mais relacionada
com sua “dança” em volta do barco do que por tarefas descritas linearmente.
Os garis também exploram o ambiente em que trabalham, reconhecendo as ruas e
casas por onde passam mesmo sem observá-las atentamente. Os garis possuem uma imagem
das casas e prédios de seu trecho, o que fica claramente demonstrado quando nos indicavam,
sobre o estribo do caminhão em movimento, para que lado o motorista do caminhão iria
seguir, se ele iria parar, etc... Enquanto o bartender pode explorar um posto de trabalho
definido, o gari precisa explorar um ambiente mais amplo, que apesar de conhecido, é repleto
de novidades, cujas observações e ações devem ocorrer rapidamente: naquele ambiente
aparentemente igual, ele precisa verificar se há um carro passando, um animal ou uma pessoa
ultrapassando abruptamente seu caminho entre o caminhão e o lixo, entre o lixo e o cocho, se
há pessoas ou garis cruzando o vetor de seu arremesso ou se ele mesmo cruza o vetor de
arremesso de outro colega, se o caminhão estará no mesmo lugar ou o motorista avança com o
mesmo...
Pesquisas com animais e humanos mostraram o papel determinante da região do
hipocampo, no cérebro com relação à memória espacial, tanto de curto prazo, como a
memória de reconhecimento espacial, ou memória topográfica. Lesões na região do
hipocampo e regiões vizinhas do lobo temporal induzem a déficits de memória, tanto em
animais quanto em humanos (BERTHOZ, 1997). Ao demonstrar os resultados de algumas
pesquisas de neuroanatomia, BERTHOZ mostrou que a memória é influenciada pela
combinação de diversas modalidades sensoriais (visuais, acústicas, olfativas, etc) e pelo
interesse que o sujeito possui com relação a determinado caminho, sendo que o hipocampo
parece ter um papel associativo: por exemplo, uma pessoa encontra um casal, e em outro dia
se lembra de um deles pela imagem que tem guardada do episódio, do contexto em que os
encontrou (memória visual associativa). Não somente o estímulo visual tem um papel
211
importante na memorização de um trecho. No caso do gari, esta associação também pode
estar relacionada ao interesse que ele tem por determinados referenciais (o banco, a moça
bonita que trabalha em determinada loja, o cliente que não aceita a "redução", a criança que os
cumprimenta todas as manhãs, a casa que considera bonita, o restaurante em que troca
marmitas por serviços...). A memória também permite prever as consequências de
determinadas ações (BERTHOZ, op cit, Teoria de Rolls, p. 141-145). O hipocampo associa
propriedades que permitem relembrar um episódio, ou uma combinação de sensações, apenas
com uma parte da informação inicialmente memorizada. Por exemplo, certo dia Rolls
atravessava uma rua, quando uma bicicleta passou em cima de seu pé. As informações visuais
(a rua, a bicicleta que se aproximou pelo seu campo visual), proprioceptivas (a bicicleta sobre
seu pé), a ação motora (o conjunto de informações associadas ao fato de colocar o pé na rua),
acústicas (o grito do ciclista), constituem a configuração dos índices do episódio. Uma
semana depois, ele se prepara para colocar o pé em uma rua diferente. A situação contém
índices comuns para que ele se lembre do episódio da bicicleta. Ele pára seu gesto um
instante, porque um ônibus passa em alta velocidade, o que o impede de ser gravemente
acidentado. A memória do passado permite prever as conseqüências de sua ação. Esta teoria
pode servir para explicar o fenômeno de “remplissage” (preenchimento), que se entende pela
capacidade de se reconstruir episódios, formas, palavras, gestos, a partir de alguns elementos
da configuração dos índices. Assim, podemos não perceber a falta de uma letra em uma
palavra, ou a falta de um elemento em uma imagem. Aprofunda-se ainda na teoria da
remplissage perceptual, em que há a combinação de um repertório de representações internas
e índices do meio ambiente, como a capacidade do cérebro continuar a ver o mundo exterior
mesmo se nenhum dos sinais necessários estão mais presentes.
Desta forma, para se proteger ao saltar do estribo, ou o gari observa o ambiente antes
de saltar, ou utiliza uma estratégia freqüente: após saltarem do centro do estribo, permanecem
212
alguns segundos da corrida atrás do caminhão, em frente ao cocho, até observarem se podem
se dirigir até o local desejado. Apesar desta estratégia proteger o gari do trânsito de carros, é
neste caso que pode acontecer o seguinte acidente: se o motorista parar bruscamente o
caminhão sem que o gari veja, este pode bater a perna no estribo, ferindo gravemente suas
pernas. Por isso, os garis relatam que ao descerem desta forma do estribo, é necessário manter
o tronco levemente inclinado para trás de forma a poder frear a corrida e sair detrás do
caminhão. Além disso, o gari corre de forma a poder desviar o corpo logo após a decisão de
seguir na direção que pretende tomar. Além disso, como falado anteriormente, é comum o
gari inclinar o corpo e, caso seja necessário, mudar a direção da corrida inclinando o corpo
para outro lado. Assim, pode-se notar que uma técnica corporal pode levar a outras,
espontaneamente pela própria experiência vivenciada no cotidiano. Ou então as técnicas são
passadas por colegas, seja na prática da atividade, seja na autoconfrontação coletiva quando
seus comportamentos e modos operatórios são pesquisados pelo ergonomista.
Já algumas técnicas aprendidas ou desenvolvidas espontaneamente nem sempre são
assumidas. Por exemplo, o fato de segurarem-se com freqüência no corrimão lateral do
caminhão enquanto caminham parece demonstrar que, além de protegerem-se atrás do
caminhão, a caminhada fica mais leve. Quando este comportamento foi comentado com eles,
primeiro disseram que não fazem isso, demonstrando ser uma técnica subconsciente. Apesar
do relato acima, em autoconfrontação individual, a ajuda do corrimão foi relatada de forma
diferente. Há garis que preferem intercalar entre estar sobre o estribo ou correr e caminhar,
conforme relatou um gari:
“É melhor ficar sendo meio puxado pelo caminhão do que ficar em pé no estribo,
de pés juntos e mãos pra cima”.
213
Apesar de o trabalhador criar ou aprender técnicas para regular a carga de trabalho, é
comum que ele procure trabalhar mais intensamente, na medida em que ele aprende a lidar
com o próprio corpo no trabalho, por motivos próprios (terminar o trabalho mais cedo, por
exemplo) e até subconscientes ao recorrer à auto-aceleração (por exemplo, por perder a noção
de sua produtividade). Ele também intensifica o ritmo de seu trabalho devido a exigências
sociais (o coletivo querer terminar o trabalho mais cedo), podendo assim atingir um estado de
adoecimento, devido a uma sobrecarga geral ou localizada em segmentos específicos do
corpo.
Quando o lixo cai no chão é comum o colega que vem atrás chutar o lixo na direção do
cocho do caminhão (Figura 12). Num dia de coleta os garis deixaram uma bola murcha sobre
o estribo durante grande parte do trecho. Quando a bola caiu no chão, em pleno trânsito os
garis brincaram com a bola. Com destreza trocaram alguns chutes e finalmente arremessaram
o brinquedo ao cocho. Noutro dia eles trocaram chutes com o próprio lixo. Por esta
observação pode-se verificar que os garis desenvolvem uma habilidade corporal, uma destreza
de movimentos.
Ao coletar em vários montes de lixo da “redução”, um gari girava o corpo em sentido
horário ao mesmo tempo em que coletava no chão e arremessava as sacolas no cocho, como
se estivesse dançando. Num dos montes que coletou, ele girou três vezes realizando tal
movimento, sendo que o último giro seguiu-se de uma caminhada de dois passos largos para
se aproximar de uma sacola deixada a uma distância de uns dois metros do monte, no portão
de uma casa. Ele coletou a sacola ainda girando o corpo, e terminando o giro arremessou a
sacola ao cocho. Ao ver o monte de lixo chegando ao fim o motorista acelerou o caminhão
virando a esquina à direita. Então o gari terminou o último giro de corpo arremessando e
saltando no estribo do caminhão.
214
Esta destreza nos movimentos, esta eficiência de gestos tem uma relação com a
economia do corpo e pode ser vista por diferentes ângulos, sendo que aqui pode-se tentar
discutir dois deles:
- a eficiência dos movimentos e gestos em acordo com a manutenção do estado corporal e
com a diminuição do risco de lesões;
- a eficiência dos movimentos e gestos aumentando o risco de lesões.
Por exemplo, ao serem questionados sobre o modo como realizam as sucessivas
flexões do tronco para frente, na hora de pegar o lixo no chão, em contraposição ao modo
como os fisioterapeutas e outros profissionais da Escola dos Fatores Humanos recomendam
(agachar sem flexionar a coluna para frente e aproximar a carga do corpo antes de elevá-la),
um gari respondeu:
“Para você ver (mostrando): eu vou abaixar aqui. Se eu agachar aqui é o tempo
de eu já estar pegando aqui e... é a velocidade! É aquele negócio, é o tempo... é o
tempo que você já tá perdendo na hora docê arremessar o lixo, né!”
Ao estudar os modos operatórios de entregadores de mercadorias, LORTIE (2002)
verificou porque os trabalhadores não abaixam a coluna como recomenda a Escola dos
Fatores Humanos. Conforme o relato dos carregadores, a razão principal estava na
possibilidade de poderem reagir no caso de imprevistos, mais precisamente no caso de
possíveis acidentes. Por isso, além de flexionarem a coluna para frente, os carregadores não
agachavam, deixando sempre uma perna mais a frente que a outra. Os garis empregam a
mesma técnica corporal ao coletarem o lixo no chão, de forma que o movimento de retornar o
corpo em direção ao cocho fica mais eficaz, além de permitir deslocamentos rápidos em caso
215
de necessidade. Se por um lado a flexão da coluna para frente torna os movimentos mais
rápidos, por outro lado esta flexão pode sobrecarregar a coluna lombar. Entretanto, enquanto
o trabalho sem flexão de coluna aumenta a carga tanto nos discos quanto nos ligamentos que
os unem, o agachamento com a coluna reta não permite a velocidade desta dinâmica gestual,
além de sobrecarregar os joelhos e tornozelos.
Não se vêem pedreiros pegando telhas do chão e as arremessando para cima, nem garis
coletando o lixo da forma que, segundo a biomecânica, sobrecarrega menos a coluna lombar.
O movimento de elevação de carga prescrito pelos profissionais da Escola dos Fatores
Humanos desconsidera a dinamicidade destes trabalhos, inclusive as exigências do próprio
trabalho prescrito. Nota-se que tais profissionais focam-se na coluna lombar, mas se
esquecem que o movimento de agachar sucessivas vezes sobrecarrega os joelhos, diminui a
eficiência do movimento que parece aproveitar a inércia do conjunto corporal para realizar
aquele gesto específico, além de diminuir a possibilidade de deslocamentos rápidos para o
trabalhador reagir a qualquer possível causa de acidente.
Para responder aos objetivos da tarefa, nem sempre os trabalhadores conseguem
encontrar modos operatórios que auxiliam na regulação da carga de trabalho. Se o gari
procura arremessar o lixo mais próximo ao cocho com o objetivo (subconsciente ou não) de
poupar seu ombro lesionado, ele precisa estar sempre adiantado com relação ao caminhão, por
isso precisa correr mais. Além disso, se o gari encontra-se com o ombro lesionado, ele deveria
ser tratado, e suas condições de trabalho deveriam ser transformadas. Mas o mesmo gari tem
medo de ser transferido para outra regional e ser destituído de uma equipe e de sua relação
com a comunidade, pois, segundo seu receio, possivelmente se tornará um gari reserva em
outra regional.
Os ergonomistas holandeses que estudaram a carga fisiológica e biomecânica dos
coletores de lixo cidade de Haarlem, determinaram junto ao governo daquele país o
216
acondicionamento do lixo em sacolas plásticas (o lixo era acondicionado em latões)
(KEMPER et al., 1990). Em seguida, prescreveram aos garis de todo o país a coleta
caminhando e pegando no máximo 2 sacos de lixo por vez, além de não poderem coletar mais
que 6 horas por dia, sendo as outras duas horas da jornada divididas em pausas (FRINGS-
DRESEN et al., 1995; LOOZE et al., 1995). A carga fisiológica diminuiu, entretanto não se
falou na mudança do aspecto da carga biomecânica para a coluna, visto que possivelmente o
número de flexões aumentou, apesar de ter ocorrido uma diminuição no peso do lixo elevado.
Além do acondicionamento do lixo em sacos plásticos, estabeleceu-se também o
acondicionamento do lixo em containeres de diferentes volumes (1100 litros, 240 litros e 120
litros), que foram divididos conforme as características de determinadas partes de cada
cidade.
As tentativas de se diminuir a carga física de trabalho são relativas, visto que uma
mudança pode acabar por causar uma nova carga. Além disso, os pesquisadores enfrentam
grandes dificuldades metodológicas para coletar dados da área de fisiologia e biomecânica, já
que encontram, em campo, uma realidade bastante diferente do laboratório. Desta forma, há
uma grande quantidade de artigos da área da biomecânica e da fisiologia que estudaram o
trabalho, desconsiderando a fala do trabalhador, tanto no levantamento do diagnóstico, quanto
na sugestão, na criação e na validação de recomendações ergonômicas, o que torna os
resultados advindos de tais mudanças muitas vezes incompatíveis com a realidade do
trabalhador. Em nenhum dos estudos relatados acima leu-se a respeito da participação dos
coletores de lixo nas decisões ali tomadas para diminuir a sua carga de trabalho. Os autores
mostraram de forma discreta que a prescrição de não correr e de pegar no máximo dois sacos
de lixo por vez não estava sendo atendida. Verificaram que em cinco anos a quantidade de
lixo em Amsterdan aumentou em 10% (LOOZE et al., 1995). Foram necessários quase 10
anos de estudos para que, em 1999, KUIJER e seus colaboradores passassem a considerar a
217
opinião daqueles coletores, ainda que discretamente, após a implementação de um rodízio
entre coleta de lixo/varrição, coleta de lixo/pilotagem do caminhão, pilotagem do
caminhão/varrição. No artigo não fica claro se os coletores participaram na sugestão desta
mudança, mas mostrou que eles a aprovaram.
Apesar dos trabalhadores procurarem uma forma eficiente de se movimentar, há
situações em que a eficiência do gesto advinda da velocidade necessária confronta-se com a
possibilidade da prevenção das lesões. Como os próprios garis relatam, eles sentem dor de
qualquer forma. Então eles abaixam menos a coluna, como relataram em autoconfrontação,
que não resolve o problema. Ao se falar na implementação de dispositivos específicos para
que os moradores colocassem o lixo, os garis disseram preferir a coleta como está. Para eles, a
colocação de dispositivos de depósito do lixo diminui suas possibilidades de criação de
estratégias condizentes com os problemas a serem resolvidos diariamente.
O gari pega o lixo e já sai correndo para arremessá-lo ao cocho do caminhão
aproveitando a inércia, facilitando o arremesso e a corrida ao próximo ponto de lixo. Os garis
relataram abaixar menos a coluna na hora de pegar o lixo no chão. Então eles flexionam a
coluna até o limiar da dor, o que diminui sobrecarga na coluna lombar, mas não resolve o
problema do risco de lesar os discos intervertebrais lombares a longo prazo. A diminuição da
curva fisiológica lombar pela flexão do tronco para frente, associada à elevação repetitiva de
cargas, empurra os discos intervertebrais para a porção posterior das articulações vertebrais,
cuja rotação agrava ainda mais os riscos de lesão, visto que o movimento de rotação da coluna
sobrecarrega os ligamentos paravertebrais. Pensando-se num trabalhador que realiza a coleta
de lixo durante vários anos, o risco de ter pelo menos uma ocorrência de dor na região é
praticamente certo. Porém, sua coluna será sobrecarregada e o gari continuará querendo
aproveitar o tempo, como eles disseram ao relatar porque correm muito nas subidas: “pra
acabar logo”.
218
Por que acabar logo? Para ficar livre daquela carga imposta pela subida? Ou para
facilitar a subida? Seria pela incerteza do que irá acontecer naquele dia, por exemplo, o
caminhão quebrar e atrasar o tempo de coleta? Ou porque o coletivo decide acabar mais
rápido? Então a eficiência do movimento confronta-se com a vontade de acabar logo, o que
demonstra novamente que os trabalhadores, por motivos diversos, nem sempre poupam-se no
trabalho, mesmo procurando usar técnicas menos prejudiciais possíveis.
LEPLAT (2006) comenta que, apesar de o trabalhador receber informações corporais
sobre seu próprio funcionamento, principalmente do ponto de vista da carga física e da fadiga,
esta noção nem sempre é consciente.
Assim, apesar de sentirem cansaço, que é inclusive um dos fatores que advertem o gari
da necessidade de diminuir o ritmo de trabalho, nem sempre sentem dores. Estas se
manifestam antes e após a jornada de trabalho, quando os tecidos estão menos aquecidos e o
tempo de repouso possibilita a percepção de respostas neurofisiológicas de fadiga e de lesão.
Por isso, aqueles garis que não tomam anti-inflamatórios para conseguirem trabalhar com dor,
relatam que após um certo tempo trabalhando, ocorre um aquecimento e a dor desaparece
enquanto trabalham. Não foi encontrada nenhuma referência que explicasse realmente este
fato, entretanto, alguns efeitos do aquecimento nos tecidos corporais podem ser citados como
possíveis hipóteses para este efeito. A secreção de beta-endorfina observada em sujeitos que
realizam atividade física, bem como a distração da dor com a realização do trabalho podem
ser também consideradas como possíveis hipóteses para tentarem explicar este fato. Apesar de
não ser objetivo deste trabalho, alguns elementos podem ser comentados.
O aquecimento que ocorre com uma pessoa nos primeiros minutos do início de uma
atividade física gera efeitos fisiológicos gerais e específicos nos tecidos musculares e
articulares, tais como: Aumento da viscoelasticidade dos tecidos musculotendíneos,
provavelmente diminuindo a tração nos tendões; Maior fluxo sanguíneo local, à medida em
219
que o leito vascular local se dilata devido à necessidade de maior troca metabólica tecidual,
provavelmente retirando temporariamente os mediadores químicos responsáveis pelo
processo de reparação tecidual, que migram para os locais lesionados (McARDLE, KATCH e
KATCH,1998; NORKIN e LEVANGIE, 2001).
Uma outra teoria a ser aprofundada pelas pesquisas em neurofisiologia, é o aumento
dos níveis de beta-endorfina no organismo que se dá pela realização de seção de atividade
física. A beta-endorfina é um neurotransmissor endógeno semelhante à morfina. Ao ser
lançada na corrente sanguínea (o que acontece, por exemplo, como conseqüência imediata de
certos traumas físicos), seus efeitos principais, são diminuição da sensação dolorosa,
facilitação de sensações de relaxamento e bem-estar. Numa pesquisa com 84 mulheres
grávidas, HARTMANN et al. (2005) verificaram que os níveis de beta-endorfina aumentaram
significativamente no sangue, após realizarem 20 minutos de atividade aeróbica moderada em
bicicleta ergométrica. No entanto, em 1992, L. SCHUARTZ e KINDERMANN verificaram
que havia um incremento de beta-endorfina em atividades aeróbicas, apenas após 1 hora de
exercício aeróbico, sendo que o exercício anaeróbico aumenta os níveis deste
neurotransmissor mais rapidamente, podendo sua produção ter relação com a produção do
lactato, produto resultante do metabolismo anaeróbico. Há vários outros estudos que
relacionam a atividade física à produção de beta-endorfina no organismo, porém, todos eles
sugerem pesquisas mais aprofundadas, já que existem outras variáveis que influenciam nos
resultando, como por exemplo, o estado psicológico em que os sujeitos se encontram no
momento da pesquisa.
Observou-se também que as pessoas costumam recorrer intuitivamente a técnicas
psicológicas de controle da dor. Ao comparar indivíduos atletas com não atletas, AZEVEDO
e SAMULSKI (2003) verificaram que as pessoas recorrem a estratégias diversas para
tentarem controlar a dor e conseguirem realizar suas atividades. Essas técnicas também
220
chamadas de coping strategies, são usadas pelas pessoas tanto na tentativa de lidar ou
controlar a dor aguda ou crônica, sendo classificadas em alguns tipos principais, porém que
necessitam de uma linguagem mais padronizada: técnicas cognitivas, em que se redireciona o
foco para longe da dor, ou o contrário, quando se procura reinterpretá-la. As técnicas
comportamentais, que relacionam-se à tentativa de aumentar ou diminuir determinada
atividade, encontrar com os amigos, fazer uma caminhada, usar drogas ou álcool, de forma a
causar uma distração da dor.
Para verificar porque alguns garis param de sentir dor após iniciarem o seu trabalho é
necessário especificar não só o local das dores, mas também o tipo de lesão e sua localização
(tendínea, muscular, articular...). Um número pequeno de pessoas não é suficiente para
apontar hipóteses e conclusões, e também há necessidade de estudos que realmente
corroborem este fato comum, observado por pacientes, atletas, trabalhadores e profissionais
da saúde, porém difícil de ser encontrado na literatura.
É importante ressaltar que a adoção de determinadas posturas e movimentos ocorrem
naturalmente, o corpo se equilibra espontaneamente. Entretanto, a adoção de determinadas
posturas ou modos operatórios reflete-se na diminuição da carga biomecânica de algumas
articulações. Um dos garis relatou sentir desconforto na região da cintura escapular ao realizar
os montes da "redução": mostrou a região do trapézio e pescoço falando que sente cansaço e
dor na região relatada. Assim, as técnicas de regulação da carga física de trabalho tornam-se
mais conscientes quando os garis já sentem dor em alguma articulação ou segmento. Ao
responderem como conseguem trabalhar com as dores é que eles demonstram com mais
clareza como encontram formas alternativas de trabalhar sem dor, ou com menos dor. Quando
o gari relata levar o cotovelo para trás a fim de diminuir a carga no ombro que sente dor, ou
quando ele flexiona a coluna apenas até o limite da dor porque sabe que pode “travar” as
costas... O coletor então procura constantemente evitar lesões, em um limiar entre a
221
possibilidade da dor e a dor em si. Ele passa, após a experiência da dor, a ter um cuidado
consigo mesmo, e encontra modos operatórios para que aquela dor seja amenizada ou não
ocorra mais, o que nem sempre acontece.
Porque os trabalhadores recorrem à auto-aceleração, mesmo que não seja uma
exigência de seu trabalho? Por que querem fazer depressa se poderiam terminar no fim da
jornada? Por que o paradoxo entre a rapidez para se ter eficiência do movimento e a rapidez
pela vontade de acabar logo? Até que ponto a criação de estratégias coletivas de trabalho
servem para amenizar a carga?
No caso de trabalhadores de linha de montagem de materiais escolares que insistiam
em terminar mais cedo, mesmo sabendo que teriam que esperar a hora de bater o ponto
(VASCONCELOS, 2000), porque recorriam à auto-aceleração?
É claro que uma certa velocidade é necessária inclusive para facilitar o trabalho, como
no caso do impulso para arremessar o lixo ao cocho, o salto sobre o estribo com o caminhão
em movimento permitindo aproveitar a inércia da corrida. Mas por que terminar mais cedo?
Diante das dificuldades que estes profissionais têm passado com a organização do trabalho da
empresa, fica difícil explicar essa auto-aceleração. Sabe-se que certa velocidade, certo ritmo
de trabalho é necessário para se ter eficiência nos movimentos. Também há motivos pessoais
e coletivos para se terminar o trabalho mais cedo. Entretanto, o trabalhador escolhe diferentes
opções ao administrar sua carga de trabalho, como um cálculo, um balanço subconsciente ou
consciente, em que ele se prejudica em um aspecto, mas obtém resultados positivos por outro.
As equipes procuram não deixar nenhum lixo para trás, mesmo passando várias vezes
pelo mesmo ponto do trecho para se cumprir o roteiro. Este comportamento se dá também
porque, apesar de o horário de coleta em cada ponto do trecho ser planejado, este não condiz
com a complexidade do trabalho de coleta. Sabendo que podem adiantar ou atrasar o horário
de coleta, eles preferem pegar todo o lixo. Também procuram deixar o trecho o mais limpo
222
possível, por questão de estética e para não haver reclamação dos moradores com a empresa.
Quando os garis estão sobre o estribo com o caminhão em movimento e o motorista diminui a
velocidade, os garis já esperam que haja lixo em algum lugar a frente. Após observarem onde
está o lixo eles se comunicam, avisando onde está e quem deve saltar para coletar. Quando há
um ou dois garis sobre o estribo, estes costumam se deslocar rapidamente de um lado a outro
do estribo, também para verificarem se há lixo e onde ele está. Após observarem o trânsito,
saltam para o chão correndo, coletam o lixo, arremessam-no ao cocho e saltam novamente no
estribo.
Esta questão de estética e de valores é colocada por LIMA (1996), ao relatar o caso
das auxiliares de produção que, apesar das péssimas condições de trabalho, e de não terem
conhecimento técnico sobre o produto que inspecionavam, muito menos uma troca bilateral
de conhecimento com os mecânicos e inspetores da empresa, procuravam realizar seu trabalho
da melhor forma possível, o que acabava por sobrecarregá-las.
Muito ainda poderia ser aprofundado sobre a aprendizagem das técnicas corporais,
mais ainda sobre como se dão as decisões de se agir (e as ações em si, inclusive sem passarem
pela tomada de decisão) de determinadas maneiras, tanto no sistema nervoso central e
periférico, quanto no sistema osteomuscular. Por que os garis param de sentir dor após o
início do trabalho também é uma proposta de aprofundamento necessária.
Do ponto de vista biomecânico, vários estudos ainda podem ser feitos com relação aos
modos operatórios dos garis, seja com relação à eficácia dos movimentos e gestos, seja com
relação à carga física de trabalho. Entretanto todos esses estudos deveriam tomar em
consideração uma característica comum: a opinião do trabalhador em todas as pesquisas, o
que poderia ser possibilitado por seções de autoconfrontação, já que muitos desses processos
são subconscientes. Não se fala apenas na participação do trabalhador como sujeito da
pesquisa, mas como aquele indivíduo que percebe e planeja, que resolve problemas em função
223
da complexidade de seu trabalho, que responde continuamente, muitas vezes de forma
paradoxal, a diferentes racionalidades, e que deixa de priorizar, muitas vezes, a regulação de
sua carga de trabalho.
224
VI- CONSIDERAÇÕES FINAIS
225
Considerações sobre o objetivo e a hipótese da tese e levantamento de
questões para pesquisas posteriores
O trabalho do coletor de lixo é um trabalho pesado, nocivo e altamente insalubre.
Pouco se sabe a respeito da complexidade de seu trabalho, visto que a maioria das pesquisas
sobre o trabalho analisa atividades de componentes predominantemente cognitivos,
desenvolvidas em interação com sistemas de alta tecnologia ou processos automatizados
(indústria de processos contínuos, aeronáutica, transporte ferroviário), ou atividades criativas
para resolver problemas complexos ou tomar decisões arriscadas (cientistas, executivos,
professores, médicos, engenheiros, etc). Em poucos estudos ergonômicos aparece a
complexidade como algo inerente a atividades com predominância de dimensões físicas,
como no caso de trabalhos ditos "manuais" ou "braçais".
Esta pesquisa buscou demonstrar, que na atividade aparentemente simples esconde-se
uma complexa gestão de constrangimentos relacionados com a variabilidade da produção e do
ambiente, com o modo degradado de funcionamento dos equipamentos, com as normas
institucionais, e de objetivos conflitantes entre qualidade, tempo, segurança e regulação da
carga de trabalho. Estes constrangimentos requerem do trabalhador, ou do coletivo de
trabalho, o desenvolvimento de competências específicas, estratégias de regulação e tomadas
de decisão.
Foi objetivo deste trabalho, corroborar a hipótese de que os garis utilizam técnicas
corporais e estratégias individuais e coletivas para, simultaneamente, gerenciar a
complexidade de seu trabalho e regular sua carga de trabalho, enquanto lidam com uma série
de constrangimentos, redefinindo os objetivos de sua atividade. A regulação da carga de
trabalho nem sempre é prioridade para o gari que gerencia a complexidade de seu trabalho e
tenta responder a diferentes exigências (pessoais, coletivas, da empresa e dos clientes). Esta
tensão entre as diferentes racionalidades, explicam-se pela “economia do corpo”, que mostra a
226
contradição entre as possibilidades de regulação da carga de trabalho e as exigências e normas
sociais, muitas vezes conflitantes, que acabam por adoecer o trabalhador.
Na introdução desta tese apresentou-se o termo “economia do corpo”, que explica a
limitação da regulação fisiológica do corpo quando utilizado como instrumento regulador de
um sistema produtivo. Alguns termos foram conceituados, tais como trabalho, atividade,
modo operatório (ou técnica corporal), estratégia, regulação, carga de trabalho, complexidade.
Demonstrou-se que um trabalho é complexo quando apresenta determinadas
características interligadas, referentes ao trabalhador em atividade, ao sistema e aos resultados
da sua gestão. Assim, a gestão da complexidade envolve a competência do sujeito para lidar
com imprevistos, cuja tomada de decisão depende da autonomia, do constrangimento de
tempo e do possível risco resultante da ação (Tabela 01).
Tabela 01: Características da complexidade do trabalho.
SUJEITO/ATIVIDADE SISTEMA RESULTADOS
Conhecimento
Informação
Constrangimentos temporais
Inter-relações do “E”
Experiência/ Competências
Tomada de decisão
Instabilidade
Imprevisibilidade
Rigidez
Reações em cadeia
Opacidade
Incerteza
Tempo de resposta
Modo degradado
Irreversibilidade
Gravidade das conseqüências
Multiplicidade de metas
Para a realização desta pesquisa foi feito um estudo de caso, tendo a Análise
Ergonômica do Trabalho como corrente metodológica para o emprego de diversos métodos e
técnicas, a fim de se compreender a complexidade do trabalho dos garis, sua gestão e sua
relação com a economia do corpo.
227
Como resultados desta pesquisa, baseada na formulação da demanda, o trabalho
prescrito foi confrontado com a atividade. A atividade foi apresentada em Fichas de Descrição
da Atividade que foram aprofundadas para se demonstrar como os garis gerenciam a
variabilidade inerente de seu trabalho. Apesar de não mostrar a prevalência de dores e
desconforto, a dificuldade de se conseguir a colaboração dos garis para se aplicar o
Questionário de Percepção evidenciou o medo e a insatisfação dos trabalhadores com relação
à forma autoritária que a direção os tem tratado. Alguns garis que responderam ao
questionário também demonstraram algumas técnicas corporais que os possibilitavam
trabalhar sentindo dores, além de tomarem medicamentos por meses e anos, o que pode
agravar as lesões. A Análise das Técnicas Corporais também serviu para aprofundar no
entendimento da atividade e a discussão da relação entre a gestão da complexidade e a
economia do corpo.
O Capítulo da Discussão buscou corroborar a hipótese deste trabalho, relacionando-a
com os resultados e demonstrando como se dá a relação conflituosa entre a regulação do
andamento da coleta de lixo e a regulação da carga de trabalho do gari em seu cotidiano.
Demonstrou-se como a economia do corpo relaciona-se à carga de trabalho, que
apresenta aspectos físicos e mentais (cognitivos e psíquicos). Pensando no caráter
predominantemente físico do trabalho, verificou-se que a carga de trabalho pode ser global
(gasto energético) e local (carga de uma articulação ou um segmento corporal).
Viu-se ainda que a regulação da carga de trabalho tem uma co-relação com a
competência do trabalhador (conhecimento, experiência, habilidade) para resolver problemas
e regular sua carga de trabalho simultaneamente. Para se conseguir regular a carga de trabalho
e o andamento do trabalho, a “regulação reativa”, em resposta a um novo imprevisto, é aos
poucos substituída por uma “regulação antecipativa”, em que os trabalhadores se preparam
228
para imprevistos já conhecidos, que surgem conforme vão gerenciando a complexidade de
seu trabalho.
A regulação da carga de trabalho é então possibilitada tanto por estratégias individuais
e coletivas de trabalho, e depende da autonomia do grupo de trabalhadores para estabelecerem
objetivos próprios, que devem corresponder aos objetivos esperados pela empresa e pelos
clientes. Assim os trabalhadores vão criando, aprendendo e aprimorando as diferentes técnicas
corporais e estratégias que respondem continuamente a essas diferentes racionalidades.
No caso dos garis, as estratégias coletivas permitem uma regulação da carga de
trabalho, além de uma diminuição do risco de acidentes tais como cortes, quedas e
atropelamentos. No entanto essas estratégias coletivas dependem de certa coesão entre os
sujeitos das equipes, sendo necessário um conhecimento não apenas do ambiente em que
trabalham, mas também dos sinais que empregam em sua comunicação (gritos, assovios,
toques de buzina), além de uma confiança recíproca entre eles.
Há características da atividade que auxiliam na regulação da carga de trabalho, como a
prensagem do lixo, ou as necessárias conversas com os moradores, que são períodos de
descanso, e cuja amizade torna o trabalho mais agradável, viabilizam as pausas para água e o
uso do telefone em caso de urgência, além de permitir a negociação para realização da
"redução".
Entretanto, há características da atividade que dificultam a regulação da carga de
trabalho, tais como a variabilidade do piso, o surgimento de buracos e bueiros destampados, a
variabilidade do tipo de lixo, seu peso e sua forma de acondicionamento, a proibição de certas
estratégias e a obrigação de outras. O receio de serem transferidos de regional e de trecho, de
tornarem-se garis reserva, faz com que os coletores procurem menos o serviço médico da
empresa e trabalhem mesmo sentindo dores. Mesmo trabalhando com dores em determinadas
partes do corpo, muitas vezes os garis desenvolvem técnicas corporais que possibilitam a
229
realização de seu trabalho. Entretanto, algumas técnicas “antálgicas” nem sempre resolvem o
problema, causando novas lesões em outras partes do corpo, além de utilizarem anti-
inflamatórios durante longos períodos (até por anos), que disfarçam a dor e aumentam o risco
de agravamento das lesões, como comentado acima.
O trabalhador também escolhe entre regular a carga de trabalho ou agilizar o serviço
para sair mais cedo, cujas razões dependem dele ou de sua equipe. Então, quando os garis
decidem terminar o trabalho mais cedo, acabam por tornar o trabalho mais arriscado
aumentando a carga cognitiva. Além disso aumenta-se a carga física de trabalho, já que a
intensificação do ritmo de trabalho aumenta o gasto energético e o desgaste dos segmentos
corporais. Como esta escolha pode ser do trabalhador ou do coletivo, ele se apropria de seu
trabalho e estabelece objetivos próprios.
A criação, a aprendizagem e o aperfeiçoamento de técnicas corporais ou estratégias
podem ocorrer de forma consciente ou subconsciente. Ele pode criar espontaneamente uma
técnica corporal mais eficiente. Também pode aprender, por exemplo, a correr de forma
menos desgastante ao se tornar atleta profissional (o que ocorre com alguns garis), ou vendo
os colegas explicarem seus modos operatórios em seções coletivas de autoconfrontação.
Como observado em outras pesquisas (GUÉRIN et al., 2001; LANGA, 1998), a característica
subconsciente das técnicas corporais pode também ser revelada quando os trabalhadores se
vêem trabalhando em seções de autoconfrontação, quando eles ficam surpresos com o modo
como trabalham.
Os garis demonstram, a partir da discussão sobre seu próprio trabalho, o objetivo de
determinados modos operatórios ou estratégias realizados no cotidiano. Mostraram como
regulam a carga de trabalho, por exemplo, realizando rodízios entre os lados da rua,
revezamentos entre o chão e o estribo. Mostraram também como se protegem mutuamente,
como precisam ter constante atenção durante todo o trabalho. O trabalho coletivo que é
230
observado na coleta de lixo domiciliar é um dos elementos que possibilitam a regulação da
carga de trabalho. Para LIMA (1998, p.260), ao estudar a gênese social das LER, a saúde no
trabalho é fundada na ampliação do espaço de regulação da carga de trabalho individual que
ocorre no interior de uma atividade coletiva:
“Mas é a ação coletiva que propicia um espaço social em que o indivíduo
não se reduz à abstração das médias de produção e sua atividade à pura dimensão
temporal. É somente a interiorização, individual e coletivamente, da regulação da
atividade de trabalho, no caso em questão das formas sociais de uso do corpo, que
pode evitar que o capital continue a destruir a capacidade de trabalho dos indivíduos.
A peculiaridade da LER é que tudo se passa no interior do corpo dos trabalhadores,
sua prevenção não podendo então, se dar sem colocar em questão as formas sociais
de uso do corpo.”
Coletivamente, os trabalhadores vão redefinindo os objetivos e as funções entre cada
sujeito da equipe de trabalho, a fim de responder às exigências da tarefa e atenuar seu
desgaste. Certa autonomia para que esta redefinição seja feita é essencial para o andamento do
trabalho coletivo.
A estratégia de regulação da carga de trabalho mais defendida pelos coletores é a
"redução". Seu uso permite diminuir a carga de trabalho e o risco de acidentes (quedas, cortes,
atropelamentos). Apesar de positiva para a empresa e para o trabalhador, esta estratégia não é
reconhecida oficialmente pela empresa, deixando a permissão de realizá-la a cargo do gerente
de cada regional. Além de permitir a regulação da carga de trabalho, com a "redução" o
caminhão roda menos, o motorista também se sente beneficiado por usar menos o acelerador,
o freio e a embreagem, o trecho diminui, além de não haver a necessidade de observar os
quatro garis se deslocando entre os carros. A "redução" também permite que os garis
adiantem o serviço quando o caminhão estraga.
Apesar do desenvolvimento (subconsciente ou consciente) de técnicas corporais e
estratégias individuais e coletivas de trabalho, sabe-se que o envelhecimento e o desgaste
corporal são acelerados em trabalhos com alto grau de carga física de trabalho (MARQUIÉ,
231
1985; LAVILLE, 1985). Mesmo recorrendo a estratégias e modos operatórios na tentativa de
regular a carga de trabalho, o trabalho dos garis é pesado e cansativo.
Há profissionais da área de saúde que costumam prescrever modos operatórios que
consideram ser menos prejudiciais ao corpo. Entretanto, tais prescrições geralmente tendem a
focar em um segmento corporal em detrimento de outros, como a forma “correta e elevar uma
carga”, que prioriza a coluna lombar mas esquece da sobrecarga que o agachar causa aos
joelhos, sem pensar na dinamicidade dos movimentos, como viu LORTIE (2001), ao
confrontar, no Canadá, a Escola dos Fatores Humanos. Além disso, os “modos corretos” de
trabalhar desconhecem a realidade do trabalho, desconsideram sua complexidade. Os
trabalhadores são os sujeitos que explicam porque trabalham como trabalham. O
conhecimento técnico dos ergonomistas pode contribuir com a transformação das condições
de trabalho. Entretanto, é o sujeito que realiza a atividade que vai mostrar quais seriam as
condições ideais. Por isso, é importante que os profissionais que atuam em ergonomia
preocupem-se em escutar o trabalhador, tanto na formulação de um diagnóstico quanto na
elaboração de recomendações ergonômicas, tomando cuidado principalmente com relação à
sugestão de “formas corretas de trabalhar”.
Algumas questões importantes surgiram no decorrer da discussão deste trabalho:
- Por que os garis param de sentir a dor após começarem a trabalhar? Apesar de
bastante conhecido pelos profissionais da fisioterapia e de outros profissionais da área de
saúde, são diversos os elementos que podem estar implicados nesta ocorrência comum entre
os atletas e trabalhadores. Este fato merece ser pesquisado.
- Qual o limiar, para se ter eficiência nos movimentos, entre a velocidade e ritmo de
trabalho e a possibilidade de lesão?
- Por que os trabalhadores recorrem à auto-aceleração? Os garis, neste caso, correm
por motivos pessoais (quando um deles precisa sair mais cedo) que acabam por influenciar o
232
coletivo, a equipe. Além disso, os garis nunca sabem que imprevisto irá ocorrer naquele dia:
um acidente com algum colega da equipe, os caminhões são antigos e estragam toda semana.
Que outras razões explicam a auto-aceleração? Que outros motivos levam o trabalhador a não
parar, mesmo se sentindo cansado? Por que terminar mais rápido?
- Até que ponto as estratégias individuais e coletivas conseguem regular a carga de
trabalho e manter a saúde física e mental dos trabalhadores?
A economia do corpo é um termo que vem diferenciar o conceito de regulação,
demonstrando que o trabalhador responde a objetivos conflitantes entre a manutenção de sua
saúde e as exigências do trabalho. Assim, os garis são exemplo de trabalhadores que
procuram equilibrar-se, desequilibradamente, para responder a exigências pessoais e do
coletivo, enfrentando certos constrangimentos, que podem limitar as possibilidades de
regulação fisiológica de seu corpo.
“Se trabalhar é gerenciar a dinâmica de uma situação evolutiva, trabalhar é
gerenciar situações indeterminadas quanto ao seu possível fim em termos de
confiabilidade, qualidade, ou ainda, segurança e saúde (HUBAULT, 2004, p. 114).”
“Assim como a economia política procura explicar como a produção de
riqueza social também produz a miséria dos trabalhadores, a economia do corpo
permite explicar como a eficácia produtiva é acompanhada por patologias do corpo.
A regulação é, ao mesmo tempo, regulação homeostática, que busca manter um
certo equilíbrio, quando o trabalhador se poupa, se “economiza”, e desregulação
social, produzida por conflitos entre normas orgânicas e normas econômicas (LIMA,
2007).”
Considerações sobre as técnicas empregadas na pesquisa
As técnicas empregadas para a coleta de dados neste trabalho estão apresentadas na
metodologia. Dentre as técnicas apresentadas, algumas apresentaram certas dificuldades para
serem aplicadas.
As entrevistas simultâneas foram dificultadas pela dinâmica do trabalho dos garis,
demonstrando o quanto eles trabalham concentrados e o quanto o ruído dificulta sua
233
comunicação. Eles foram questionados apenas alguns minutos durante pausas para água, ou
antes do início da "redução". As seções de autoconfrontação tiveram então um papel
fundamental no esclarecimento dos garis a respeito de seu trabalho, apesar de terem sido
dificultadas pela insatisfação dos garis com relação à empresa e o medo de suas estratégias
serem evidenciadas e proibidas. Como a empresa encontra-se em constante processo de
mudança e a chefia é autoritária, alguns garis não quiseram participar da autoconfrontação.
Tiveram medo de que os dados coletados os prejudicassem ainda mais, ou então havia dias
que relatavam estar tão decepcionados com a empresa que preferiam não falar sobre seu
trabalho. Após dois anos de convivência com a equipe de ergonomia, uma guarnição passou a
ser mais acompanhada e permitiu ser filmada durante algumas semanas. Para tornar possível
as seções de autoconfrontação, após o término da coleta os garis voltavam para regional, e
alguns deles sentavam-se em frente à televisão enquanto assistiam a filmagem. Quando
apenas um gari se sentava, aproveitava-se para discutir seus modos operatórios e depois dos
colegas. Quando vários garis sentavam-se em frente à televisão, aproveitava-se para fazer
autoconfrontações coletivas. Para diminuir a atenção da gerência os garis sugeriram a
instalação da televisão na sala que usavam para conversar e jogar baralho, o que prejudicou as
gravações das seções de autoconfrontação. Notou-se também que é difícil parar o trabalhador
após seu trabalho, pois ele quer fazer outras atividades. É necessário que os trabalhadores
estejam engajados numa intervenção ergonômica. Neste caso, eles estavam insatisfeitos com a
empresa, não viam na pesquisa da ergonomia uma forma de melhorar suas condições de
trabalho por causa da rápida terceirização. Foi necessário muito tempo para que alguns
passassem a confiar na equipe de ergonomia, que viram na pesquisa a valorização de seu
trabalho.
A insatisfação com a empresa e o medo de serem transferidos também prejudicou a
aplicação do Questionário de Percepção. Os garis consideravam a manifestação das dores
234
como características básicas para a gerência realizar as transferências, que eram feitas
abruptamente. Muitos garis contaram que nem tiveram tempo para se despedir da comunidade
e dos colegas. Por isso recusaram-se a responder o questionário e omitiram suas dores. Como
a medicina do trabalho da empresa encontra-se há anos com dificuldades de acompanhar os
garis por causa da terceirização e do pequeno número de profissionais da área de segurança,
nem mesmo este setor tem conhecimento sobre o estado atual dos trabalhadores.
Foi possível entrevistar diferentes atores sociais da empresa, entretanto o gerente da
regional estudada não quis ao menos conversar com a equipe de ergonomia. Este mesmo
gerente disse aos garis que as filmagens dos ergonomistas seriam mostradas para a diretoria,
por isso eles pararam de realizar a catação. Foi durante um dia de filmagem, quando
perguntados por que não estavam fazendo a catação que os garis contaram o que haviam sido
informados.
Assim, as técnicas comentadas acima, bem como o entendimento do trabalho real dos
trabalhadores, dependem da disponibilidade dos trabalhadores para colaborarem com a
pesquisa em ergonomia. As entrevistas simultâneas são bastante dificultadas pela
dinamicidade da coleta de lixo, bem como pela exigência de constante atenção no trabalho.
As seções de autoconfrontação também dependem da disponibilidade e disposição dos garis
em auxiliar na compreensão de seu trabalho. O momento que os trabalhadores passam na
empresa, bem como o receio que eles têm de contar suas estratégias também devem ser
considerados.
235
Considerações sobre as recomendações ergonômicas para melhorar as
condições de trabalho dos garis
Dentre as sugestões que os garis deram para melhorar suas condições de trabalho, a principal
foi o reconhecimento oficial e a autonomia para realizarem a estratégia de "redução". A
possibilidade do uso da ré (motorista dar ré nos quarteirões em que é feita a “redução
planejada”), aquisição de modelos de sapatos mais confortáveis e variados, a compra de
caminhões novos, e a interrupção do processo de terceirização e de mudanças organizacionais
de forma autoritária e abrupta, também foram sugeridas. O gari pede “respeito”, uma palavra
bastante usada nas entrevistas.
“- O que seria um trabalho ideal, quais as características... (entrevistador)
- Olha, primeiramente a tranqüilidade, dar tranqüilidade pra gente trabalhá, né!
E respeito também, né!
- E segundo, eu acho que pra gente... até nós tivemos conversando lá no... eles
devia de fazer o seguinte: a respeito da bota. Devia ser pelo menos três tipos de
bota. Igual a luva. Hoje tem dois tipos de luva. Três, porque colocaram a
marronzinha também. Agora a bota tinha que ter pelo menos três tipos de bota.
Porque antigamente nós tinha umas botas muito boas. De couro! Agora só tem...
essa!”
“- Nós tamos assim: não temos salário, não temos respeito e nem dignidade. A
chefia em si impõe isso pra nós.”
“- Tá tirando nosso respeito. Então são várias coisas que têm dentro da empresa
que estão chateando a gente. Inclusive tem uns que gritam ah! Aqui não é desse
jeito, manda embora... quer dizer nós tamos sem respeito.
Nós tamos sem respeito nenhum. Antes nós tinha respeito, hoje num tem mais.
Entendeu?
O que a gente tá achando de respeito na rua dentro da empresa num tá, né!
Igualzinho eles ficam gritando com a gente! Principalmente as crianças. Adora
236
brincar com a gente, brinca com a gente: “ô meu amigo!” em cima dos prédios
eles gritam, dando adeus...
Agora tem umas certas atitudes com a gente: “quem manda sou eu” (imitando o
chefe) Peraí, num é assim não!
Respeitam mais que o chefe... é difícil.”
“O problema tá é aqui, num tá na rua, né!
Não tá, não tá. Cê tá trabalhando bem, o pessoal gosta da gente, a gente gosta de
trabalhar... eu pelo menos gosto muito de trabalhar... mas só que, cada dia vai
ficando mais difícil de trabalhar. A gente fica preocupado, preocupação, será o
que vai acontecer com nós aqui, será que amanhã eu vou tar trabalhando, será
que eu vou trabalhar amanhã, será que... um fala que nós vai pra prefeitura,
outro fala que nós vai pra outro lado... aí a gente fica todo, a gente fica
pensando... todo... o que será de nós uma hora?
Minha esposa eu chego em casa ela pergunta: como é que foi seu dia? Ih! Todo
dia é uma coisinha a mais. A rua é o que compensa...”
Ao invés de esperar dados quantitativos que comprovem o menor desgaste do
caminhão e economia de combustível, a diretoria de coleta deveria investir em compreender a
verdadeira contribuição da estratégia de "redução". Mesmo após várias pesquisas
comprovando os benefícios desta estratégia, a direção de coleta continua negando sua
importância e a gerência ameaçando proibir seu uso sempre que os garis questionam novas
decisões organizacionais impostas a eles.
Quanto ao único modelo de sapato, os coletores pediram uma variação nos modelos e
a adequação da segurança com o conforto. Pedem pelo menos três tipos de bota. Alguns garis
adquirem palmilhas de silicone para minimizar o impacto do calçado na base dos pés.
Entretanto a palmilha deveria ser adquirida pela empresa.
A compra de caminhões novos também foi sugerida pelos garis e também por alguns
motoristas. Como os caminhões estragam com freqüência, os caminhões reserva não possuem
237
as ferramentas usuais que os garis usam para auxiliar a coleta. Além de precisarem re-equipar
o caminhão reserva durante a coleta, a quebra dos caminhões geralmente atrasa o tempo de
coleta, o que faz com que as equipes imprimam um ritmo mais acelerado de trabalho,
aumentando o risco de acidentes.
Ao serem questionados quanto à mudança nos dispositivos de depósito de lixo, os
garis relataram preferir que o lixo seja depositado no chão, para que possam trabalhar mais
livremente, fazer "redução" e outras estratégias. Talvez uma forma menos desgastante para os
garis fosse a mudança na forma de acondicionar e coletar o lixo, como feito em outras
cidades. O acondicionamento do lixo em carrinhos diminuiria a necessidade de constantes
flexões na coluna e manipulação de diversas cargas. O gari poderia acoplar o carrinho na
parte traseira do caminhão, e um dispositivo iria elevar e inclinar o carrinho, depositando o
lixo no cocho. Este tipo de coleta traria algumas conseqüências que desafiam a ergonomia:
não seria necessário mais que dois garis para realizar esta operação e esta coleta possibilitaria
a separação do lixo, então não seria mais possível a realização da catação, que complementa a
renda das equipes; Entretanto, haveria uma diminuição no risco de acidentes (cortes,
atropelamentos, lesões).
Os garis aprendem a coletar o lixo na prática da coleta. Como contam, eles aprendem
caindo. Uma recomendação que poderia diminuir o risco de quedas e de outros acidentes seria
o treinamento prévio do serviço de coleta, tanto com relação aos riscos advindos da
manipulação do lixo, quanto com relação às técnicas corporais empregadas no trabalho.
BURTON, BROWN e FISCHER (1984) estudaram um modelo de instrução da prática
do esqui, chamado de paradigma do ICM (Increasiling Complex Microworlds). Este modelo
de instrução consiste em aumentar a habilidade do aluno incrementando o grau de dificuldade
das técnicas, em meio ambientes cada vez mais complexos. Neste paradigma, o aluno é
colocado em uma seqüência de “micromundos” (meio-ambientes manipulados) em que as
238
tarefas se tornam cada vez mais complexas, apesar de serem versões simplificadas da
habilidade final, a mais desenvolvida. O instrutor também modifica os equipamentos e dá ao
aluno uma tarefa que ele possa realizar com sucesso, utilizando formas simplificadas da
habilidade final. Modificando os equipamentos usados pelos alunos, manipulando os meio-
ambientes de ensino e utilizando técnicas de autoconfrontação (não se fala neste termo, mas o
aluno é filmado e suas habilidades e dificuldades são assistidas e discutidas com o professor),
os instrutores levam o aluno a focar o maior aspecto da habilidade, em um contexto de
aprendizagem de determinadas sub-habilidades.
Os garis das empresas de coleta terceirizadas também poderiam ser treinados pelos
garis mais experientes, durante um certo período, a fim de prevenir os acidentes que
geralmente ocorrem com a prática da coleta de lixo. Poderia se pensar em locais de
treinamento, em ambientes manipulados para a aprendizagem e o desenvolvimento de
habilidades necessárias à coleta de lixo domiciliar. Esta poderia ser uma forma de aproveitar a
experiência daqueles que trabalharam por muitos anos na empresa, ao invés de torná-los
reserva em regionais em que desconhecem os trechos, ou acelerarem seu processo de
aposentadoria.
Peças de teatro a serem apresentadas em escolas, bem como diversos tipos de
propagandas poderiam ser realizadas com mais freqüência, a fim de sensibilizar a população
com relação às formas seguras de acondicionar o lixo perigoso, e também com relação à
valorização da profissão de gari. Há 14 anos foi criado um grupo de teatro chamado “Até tu
SLU”, que faz parte da Gerência de Mobilização Social da Secretaria Municipal de Limpeza
Urbana. Este grupo utiliza a arte cênica como instrumento de sensibilização, revisão de
valores e participação social nos problemas relativos ao lixo, e nos programas de limpeza
urbana. O palco do grupo são as escolas, ruas, praças, parques, metrôs, ônibus, elevadores,
sinais de trânsito, escritórios, becos ou qualquer outro cenário urbano. Apesar da atuação do
239
grupo, ainda há necessidade de mais acesso a este tipo de trabalho, principalmente em prédios
e condomínios. Propagandas também são raras, é necessário acessar um público bem maior.
Conclusão
É necessário que os profissionais da área de saúde que se dizem ergonomistas prestem
mais atenção à realidade dos trabalhadores, ao invés de prescreverem posturas e movimentos
que consideram “corretos” ou adequados”. Sem falar naqueles profissionais que filmam e
fotografam as situações de trabalho, sem ao menos conversar com os trabalhadores sobre as
recomendações “ergonômicas” que acabam sendo impostas e prejudicam os trabalhadores. É
preciso pensar em que consiste a economia do corpo, até que ponto o trabalhador coloca sua
saúde em detrimento para responder às exigências de sua tarefa conforme suas margens de
manobra, assim como as informações que dispõe para resolver os problemas que surgem no
cotidiano, sua autonomia e sua competência para resolvê-los. É preciso analisar porque os
trabalhadores trabalham deste ou daquele modo. É necessário verificar, junto com os
trabalhadores, quais as dificuldades que enfrentam para dar conta dos resultados esperados e
suas sugestões, a fim de adaptar e melhorar suas condições de realização do trabalho.
Uma importante contribuição da ergonomia encontra-se, então, na verificação desta
tensão entre a tarefa que se prescreve e a atividade que se realiza. Nesta tensão encontra-se o
trabalhador que, por um lado, precisa cumprir uma tarefa, e por outro lado, precisa poupar seu
corpo para poder relacionar-se com sua família, alimentar seus filhos, e trabalhar nos dias,
meses e anos seguintes.
Atualmente, o melhor trabalho que se encontra é “um emprego”, o melhor emprego
que se tem é o que aparece. Se a fadiga nem sempre é consciente, certamente o trabalhador
tem consciência da fila de outros operários esperando para tomar o seu lugar. Então, em que
240
ponto está o poupar-se? Não há como manter a saúde diante do risco que se corre. Perder o
emprego é praticamente correspondente a ficar desempregado por muito tempo. Por isso, na
tensão entre regular a carga de trabalho e regular o andamento de um sistema, vence a
necessidade mais urgente. Como na prescrição do trabalho não existe sabedoria social, não há
justiça social, o trabalhador é o herói que se arrisca para cumprir a tarefa que lhe é imposta.
Como ensinou CANGUILHEM, “não há sabedoria social tal como há sabedoria do
corpo” (1997, p. 86-87). Na sociedade, a regulação social seria a justiça, o que não existe, já
que a justiça não é inerente à sociedade:
“Sábio é preciso tornar-se. Justo é preciso tornar-se. O sinal objetivo de
que não há justiça social espontânea, quer dizer, não há auto-regulação social, de
que a sociedade não é um organismo e que, por conseguinte, seu estado normal é
talvez a desordem e a crise, é a necessidade periódica do herói experimentada pelas
sociedades... Onde há sabedoria não se precisa do heroísmo, e quando o heroísmo
aparece, é porque não houve sabedoria... O herói é aquele que, uma vez que os
sábios não resolveram o problema, não evitaram que o problema se apresentasse, vai
encontrar, vai inventar uma solução. Naturalmente ele só pode inventar a solução em
situações extremas, só pode inventá-la no perigo.”
241
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248
Anexo A
Questionário de Percepção
249
TERMO DE CONSENTIMENTO
Nome da pesquisa:
______________________________________________________________
Responsável:
___________________________________________________________________
Informações aos trabalhadores: Os trabalhadores que participarem das atividades propostas
para a coleta de dados terão suas respostas estudadas para colaborar no estabelecimento da
relação “atividade desenvolvida no trabalho e sobrecarga de esforço no corpo/mente humana”
e “soluções para a diminuição deste esforço”.
Este estudo é bastante importante para que possamos conhecer quais as atividades realizadas
são mais desgastantes, necessitando de maior atenção na intervenção ergonômica e de como
realizar modificações mais efetivas (mudanças ambientais, de equipamentos, sistema de
produção, etc).
Eu, ____________________________________________, abaixo assinado, estou ciente que
faço parte da pesquisa. Contribuirei com dados ao responder um questionário, ao ter minhas
atividades registradas em filmagem e fotos e ao participar de discussões sobre minhas
atividades. Declaro estar ciente:
a) Do objetivo do projeto;
b) Da segurança de que não serei identificado e que será mantido o caráter confidencial
das informações que prestarei;
c) De ter liberdade de recusar participar da pesquisa.
Data:
____________________________________
250
Número: ________________ Obs: ________________________
LOCAL DE TRABALHO: _____________________ CARGO: _________________________
IDADE: _____________________________ OUTRO TRABALHO?
_________________________
FUMA?_______________ QUANTO TEMPO? ____________________ Qtos cigarros por dia? _________
HORÁRIO DE TRABALHO: entrada: _______________________ saída: _______________________
HÁ QUANTO TEMPO TRABALHA NA EMPRESA ? _________________________________________
HÁ QUANTO TEMPO TRABALHA NESTA FUNÇÃO ? ______________________________________
ESCOLARIDADE: ___________________________________
Questão 1:
Sem contar o almoço ou o café, você realiza pausas (descansa um pouco durante suas atividades)?
não sim
Caso sim, quantas vezes por dia?
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________
Questão 2:
Usa equipamento de proteção individual (EPI), ou vestimenta específica para sua atividade?
sim o
Quais? Óculos _____ Protetor auricular _____ Máscara _____ Luvas _____ Outros_____
Quais não usa e por quê?
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________
Questão 3 :
Você já teve algum desconforto (do tipo sensação de peso no corpo, formigamento, dor contínua,
agulhada/pontada) em alguma região do corpo nos últimos 6 meses?
sim não
251
Se sim, assinale na figura a(s) região(es) em que sentiu o(s) problema(s). Na tabela, marque com um X no
número da(s) região(es) assinalada(s), o tipo de desconforto e o quanto ele incomoda/grau de intensidade:
Graus de Intensidade
TIPO DE DESCONFORTO GRAU DE INTENSIDADE
REGIÃO
Peso
Formiga-
mento
Agu-
lhada
Dor
Leve Moderado
Forte
Insupor-
tável
01 – Cabeça
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
02 – Pescoço
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
03 – Ombro Direito
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
04 – Ombro
Esquerdo
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
05 – Coluna Alta
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
06 – Coluna Baixa
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
07 – Nádega Direita
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
08 – Nádega Esq.
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
09 – Braço Direito
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
10 – Braço Esquerdo
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
11 – Cotovelo Dir.
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
12 – Cotovelo Esq.
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
13 – Antebraço Dir.
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
14 – Antebraço Esq.
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
15 – Punho Direito
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
16 – Punho
Esquerdo
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
17 – Mão Direita
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
18 – Mão Esquerda
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
19 – Coxa Direita
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
20 – Coxa Esquerda
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
21 – Joelho Direito
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
22 – Joelho
Esquerdo
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
23 – Perna Direita
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
24 – Perna Esquerda
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
25 – Pé Direito
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
26 – Pé Esquerdo
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
27- Tornozelo
Direito
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
28- Tornozelo Esqu
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
CORLETT, E. M., et alli. 1976. Ergonomics 19(2): 175-182
Questão 4: Há quanto tempo você sente esse(s) desconforto(s)?
até 6 meses + de 6 meses até 1 ano + de 1 ano
Questão 5: Na sua opinião, das atividades que você realiza, qual a que mais contribui para
esse(s) desconforto(s) e em quais posturas elas são realizadas?
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252
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Questão 06: Como você faz para trabalhar com as dores e desconfortos?
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Questão 07: O que você mais gosta no seu trabalho? Por quê?
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Questão 08:
O que você menos gosta no seu trabalho? Por quê? Como isso poderia
mudar/melhorar?
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