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Alessandro Ventura da Silva
A cidade como personagem:
um estudo sobre passado e vanguarda na
Buenos Aires do escritor Jorge Luis Borges
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em História Social da Cultura, do
Departamento de História da PUC-Rio.
Orientadora: Profª. Flávia Maria Schlee Eyler
Rio de Janeiro
Setembro de 2007
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Alessandro Ventura da Silva
A cidade como personagem:
um estudo sobre passado e vanguarda na
Buenos Aires do escritor Jorge Luis Borges
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em História Social da Cultura do Departamento
de História do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio.
Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Profª Flávia Maria Schlee Eyler
Orientadora
Departamento de História
PUC-Rio
Profº Antonio Edmilson Martins Rodrigues
Departamento de História
PUC-Rio
Profª. Adriana Facina Gurgel do Amaral
Departamento de História
UFF
Profº João Pontes Nogueira
Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais
PUC-Rio
Rio de Janeiro, 21 de setembro de 2007.
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do
autor e do orientador.
Alessandro Ventura da Silva
Graduou-se em História na Universidade Federal
Fluminense em 2004. É autor de vários artigos em revistas
acadêmicas especializadas, alem de ter participado de
congressos no Brasil e no exterior.
Ficha Catalográfica
CDD: 900
Silva, Alessandro Ventura da
A
cidade como personagem : um estudo sobre
passado e vanguarda na Buenos Aires do escritor
Jorge Luis Borges / Alessandro Ventura da Silva ;
orientadora: Flávia Maria Schlee Eyler – 2007.
143 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em História)–Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2007.
Inclui bibliografia
1. História Teses. 2. História social da cultura.
3. Argentina. 4. Modernização. 5. Vanguarda. 6.
Borges, Jorge Luis. 7. Buenos Aires. 8. Passado. I.
Eyler, Flávia Maria Schlee. II. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Departamento de História.
III. Título.
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À Lully é claro...
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Agradecimentos
À medida que fui compondo o texto desta dissertação contraí inúmeras dívidas de
gratidão com pessoas das mais diversas latitudes. Pra começar esta seção, no
entanto, é preciso frisar que nenhuma delas pode ser comparada a Jean Baptiste
Lully.
Lully é especial não apenas por “Alceste ou Triomphe D’Alcide”, mas é também
pela serenidade, por sua leveza e paciência, sem as quais não poderia ter sido
possível esta dissertação. Ademais, Lully compôs o “inteirinho” cuja graça e
beleza sou eternamente grato. Para que esta seção não se transforme num
enfadonho name dropping, admoesto que por Lully deixarei de fora nomes de
peso como Heráclito e Wittgenstein.
Devo ao tema geral desta dissertação a duas importantes figuras. Membro da
banca examinadora, Professora Dra. Adriana Facina, talvez sem perceber, abriu-
me perspectivas não apenas no momento de orientação da monografia de final de
curso, mas sobretudo pelo que pessoalmente representa para minha formação uma
inesquecível disciplina em tempos de graduação na Universidade Federal
Fluminense: História das Formas e Artísticas e Literárias da América Latina. O
impulso inicial um tanto ingênuo, o de tentar discorrer sobre literatura como a
Professora Adriana discorria, coincidiu com a primeira leitura de Borges, em tom
audível e numa residência prazerosamente habitada: a “Alvitinho” devo minha
primeira leitura de “o Aleph” de Jorge Luis Borges. Daí em diante... Bem, resta-
me agradecer a estas duas pessoas nas quais muito me orgulho ainda estar ligado
de alguma forma.
Já na PUC foi fundamental o contato com os autóctones Murilo Sebe e Thiago
Florêncio. Quanto aos oriundi, D. Pinha e Eduardo serão os agraciados. Entre os
dois grupos situam-se Janaína Oliveira e Rômulo. Todos estes foram
fundamentais em conversas, indicações de leituras e demonstração de amizade.
Karina Vásquez foi preciosa nas conversações e no acesso que me franqueou à
Revista Punto de Vista, bem como a um importante livro de Beatriz Sarlo. A
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Gustavo Naves, agradeço a muitas das idéias proporcionadas pelos bate papos nos
cafés e nos corredores. Aos funcionários do departamento de história agradeço a
gentileza e presteza.
Devo muito ao Prof. Robin Lefére da Universidade Livre de Bruxelas pelos textos
enviados, leitura e interesse demonstrado. A Michel De Reymaeker, Blanche
Verhaegen e Hélène meus agradecimentos por tudo que fizeram por mim, pela
amizade, textos, jornais e revistas sobre o assunto e, naturalmente, por Lully.
Aos amigos Marcelo do Prado, Leonardo Lopes e Danielle Cristina, devo o
conforto de uma amizade afetuosa. Marisa e Josué foram imprescindíveis neste
momento final. A vocês dois agradeço a carinhosa acolhida, as conversas e a
generosidade revelada em mais de um ato. Obrigado mesmo!
Aos Professores Antônio Edimilson e Luiz Costa Lima pelas ricas indicações no
exame de qualificação.
Ao CNPq por tornar viável esta pesquisa.
Aos meus familiares, minha mãe e Elaine Ventura.
A minha orientadora Prof. Dra. Flávia Schlee Eyler, adorável, impecável em
todos os quesitos, devo a paciência, leitura atenta e encorajamento em todas as
etapas deste processo. Pertence a nós, Prof. Flávia, a felicidade de encontrar em
seu labor o equilíbrio de respeito e severidade necessários a confecção daquilo
que é tão caro em nossa formação. Esta dissertação possui a feição deste
venturoso relacionamento.
À tudo agradeço a Coline, mon petit chou, alfa e ômega dos agradecimentos.
Divisor de águas em minha vida...
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Resumo
Ventura, Alessandro da Silva; Eyler, Flávia Maria Schlee. A cidade como
pesonagem: um estudo sobre passado e vanguarda na Buenos Aires
do escritor Jorge Luis Borges. Rio de Janeiro, 2007. 143p. Dissertação
de Mestrado – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro.
Tema desta dissertação, o escritor Jorge Luís Borges nasceu em Buenos
Aires, centro político-financeiro e capital da Argentina no ano de 1899.
Remontando à aurora de seus escritos, o momento de largada de sua produção
literária coincide com um intenso processo modernizador em sua cidade natal.
Com efeito, frente a uma Argentina que cresce em escala alarmante, Borges em
1921 e aos 21 anos regressa a Buenos Aires após uma temporada de sete anos em
solo europeu. Ao chegar se depara com uma cidade profundamente distinta de
quando partiu: aumento populacional, imigração maciça e uma inegável
transformação no tecido físico da cidade e dos meios de transportes. Estas novas
características faziam parte do impulso modernizante que soprara na capital
portenha. Por seu turno, Borges engaja-se nas correntes vanguardistas do período
e do seu interior fazia ecoar tanto um tom de franco otimismo acerca das recentes
possibilidades de intervenção no panorama literário local, quanto numa clave
melancólica, um Fervoroso lamento poético sobre a abrupta transformação de sua
cidade Buenos Aires.Esta dissertação tem como objetivo analisar o movimento
literário do escritor frente às alterações que permitiram um alcance mais amplo
para sua prática vanguardista, assim como refletir sobre o sentimento de
perplexidade que se deu em seu retorno, ao perceber uma cidade alterada em seus
traços primordiais. Desta forma, o entusiasmo de vanguarda será discutido à luz
dos manifestos assinados pelo autor e seus textos programáticos de renovação
literária. Quanto a outra postura, será analisada pelo Réquiem produzido por
Borges em seu primeiro livro de poemas Fervor de Buenos Aires em que o
escritor dá ensejo ao movimento de irrealização de uma realidade percebida como
estranha com o fito de realizar seu imaginário.
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Palavras-chave
Argentina; Modernização; vanguarda; Jorge Luis Borges; Buenos Aires;
passado.
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Résumé
Ventura, Alessandro da Silva; Eyler, Flávia Maria Schlee (directrice de
dissertation). La ville comme personnage: une étude du passé et de
l’avant – garde dans le Buenos Aires de l’écrivain Jorge Luis Borges.
Rio de Janeiro, 2007. 143p. Dissertation de Maîtrise – Departamento de
História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Thème de cette dissertation, l’écrivain Jorge Luis Borges, né en 1899 à
Buenos Aires, centre politico-financier et capitale de l’Argentine. En reprenant le
début de sa production littéraire, on remarque que celui-ci coïncide avec le
moment d’un intense processus modernisateur dans sa ville natale.En effet, face à
une Argentine qui grandit dans des proportions alarmantes, Borges, en 1921,
revient à Buenos Aires après un séjour de sept ans sur le sol européen. En
arrivant, il sera confronté à une ville profondément distincte de celle qu’il a
quittée : augmentation de la population, immigration en masse et une inégale
transformation dans le tissu physique de la ville et des moyens de transport. Ces
nouvelles caractéristiques faisaient partie de l’impulsion modernisatrice qui
soufflait dans la capitale porteña. À son retour, Borges s’engage dans les courants
avant-gardistes du moment et y fait aussi bien éclore un ton de franc optimisme
quant aux récentes possibilités d’intervention dans le panorama littéraire local
qu’une note mélancolique, une fervente plainte poétique sur l’abrupte
transformation de sa ville, Buenos Aires.Cette dissertation a pour objectif
d’analyser le mouvement littéraire de l’écrivain face aux altérations qui ont
permis une portée plus ample à sa pratique avant-gardiste, ainsi que réfléchir sur
le sentiment de perplexité vécu à son retour, en voyant une ville altérée dans ses
traits primordiaux. De cette façon, l’enthousiasme de l’avant-garde sera discuté à
l’aide des manifestes signés par l’auteur, ainsi que ses textes « programmatiques »
de rénovation littéraire. Quant à l’autre posture, elle sera analysée à partir du
Requiém produit par Borges dans son premier recueil de poèmes Fervor de
Buenos Aires où l’écrivain laisse la possibilité au mouvement
d’ « irréalisation d’une réalité » perçue comme étrange avec l’intention de réaliser
son imaginaire.
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Mots-clés
Argentina ;modernisation ; avant-garde ; Jorge Luis Borges ; Buenos
Aires ; passé.
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Sumário
1. Introdução 13
2. O Fascínio da Urbe Moderna: Buenos Aires, a Cidade do
Espetáculo Cindido 18
3. Jorge Luis Borges e o vanguardismo entusisasta 51
4. Jorge Luis Borges e a cidade na poesia de Fervor de
Buenos de Aires 90
5. Conclusão 132
6. Referências Bibliográficas 135
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Empecé a buscar la tierra de mis sueños
desvanecidos cruzando el país del Sur al
Norte y del Este al Oeste, y descubrí una
Argentina cuyas bellezas se brindan a quien
las trata con cariño y amor.Estas pocas
imágenes son como un puñado de flores
recogido en un ignorado jardín cuyas
múltiples hermosuras dificultan la selección.
GustavoThorlichen, La Republica Argentina
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1
Introdução
Podemos dizer que nos anos de 1920 o ritual excêntrico da cidade de Buenos
Aires encorajou a prática das vanguardas em Jorge Luis Borges, assim como seu
refluxo. A partir da segunda metade do século XIX, com a consolidação do sistema
econômico capitalista no predomínio das relações comerciais, temos o advento de um
vertiginoso crescimento da Argentina refletida especialmente em sua capital, Buenos
Aires. Historicamente, seus interesses foram sendo pouco a pouco impostos sobre outras
regiões da Argentina. Na verdade, seu destino acabou por configurar-se na tão
famigerada batalha entre unitários e federalistas. Assim, após estas lutas intestinas,
Buenos Aires terminou por conquistar seu lugar de grandeza na história do país e pôde
finalmente adentrar no tão almejado processo modernizador.
Fatalmente, esta marcha é mais ampla. Num processo de modernização
deliberadamente polêmico, muitas capitais da América Latina engajam-se na
transmutação de seu casco físico e na conversão da atmosfera espiritual ao redor. São
metamorfoses em escala tão grandiosa que muito dos contemporâneos assistem ativa ou
passivamente como que perplexos a esta guinada poderosa. São transformações de toda
ordem: desbaratamento do passado representado nos edifícios coloniais, alargamento
das ruas transformando-as em avenidas, modernização das vias comunicacionais e
meios de transportes para citar alguns. Neste sentido, o caso buenairense é mais que
especial.
Impulsionadas por estatísticas otimistas quanto ao futuro do país, as elites
argentinas decidem como projeto não mais contribuir ao triste folclore político que
manchara seu passado no século XIX: uma história de caudilhos, militares, violência,
assassínio e, naturalmente, colonização. Um outro horizonte se descortinava. Um
otimismo urbano dilatava-se nas mais extravagantes teorias e tomava conta dos debates
em torno de qual compleição a Argentina deveria adotar. Assim, sendo possível uma
favorável oscilação deste pêndulo agourento, caberia ao Estado apenas o fomento na
criação de riquezas e fortuna que os diagnósticos de um futuro venturoso cada vez mais
iriam apontar.
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O admirável a se constatar nesta expansão, é o grau de desequilíbrio e
instabilidade gerados pela tentativa de materialização daqueles sonhos. As contradições,
inerentes em qualquer ser, grupo ou sociedade, são elevadas a patamares pungentes com
o processo modernizador da cidade de Buenos Aires. A cidade se transforma. Em sua
circulação, passado e futuro passam a ser encarados como moedas confusas. Nesta
ciranda plena de enlevo e sedução, passam a ter expressão o aleatório e o insólito, as
alegorias e complexidades, aglomerados de fatores que somados e diuturnamente
engendrados podem ser identificáveis no âmbito do pensamento de uma nova
modernidade.
Seguramente, logramos dizer que Buenos Aires como locus de um absurdo tão
rapidamente adquirido, passara então, a ser domicílio de um estranhamento sem
precedentes em sua história. Em crescente medida, este sentimento de estranhamento
estava associado a inúmeros fatores que permeavam a vida na cidade no seu alvorecer:
as incertezas sobre a significação de muitos fragmentos simultâneos; a perda por parte
de seus habitantes de saber interpretar a si própria e o entorno; a coexistência de
linguagens e de variadas mídias; a comunicação de grupos heterogêneos através do
espaço; o desenvolvimento de uma cultura da individualidade e nas formas de
violência.
1
De nossa parte, parece que a mais alta gradação de estranhamento estava
presente na cidade de Buenos Aires pelos elementos acima sublinhados. Eles serão
tratados através da presença maciça de imigrantes que ao desembarcarem na capital
portenha ao longo dos anos, especialmente na virada do século em diante, deram ensejo
a um novo mosaico numa cidade já em franco processo de mudanças. As conseqüências
advindas desta nova composição urbana, um verdadeiro batalhão de seres humanos que
abandonaram seus laços familiares para enriquecer ou “fazer a vida” e que alistaram-se
nas fileiras em busca de uma vida melhor, serão observados no primeiro capítulo da
dissertação, sob a forma de manifestação bastante comum deste sentimento de
estranhamento: os imperativos de ordenamento da nova horda produziu a moralização
do espaço vivencial público.
Como veremos, se é verdadeiro que os imigrantes contribuíram para compor
uma sociedade buenairense mais heterogênea, também não é menos verdade que
ajudaram a compor um novo elenco de imagens que, associados as novas comunicações
1
GOMES, R. C., Todas as Cidades, a Cidade: literatura e experiência urbana, p. 77.
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em jogo, alteraram sensivelmente o espaço citadino. Pretendemos com isso afirmar, que
as transformações rápidas tiveram de ser processadas tanto para o imigrante estrangeiro
quanto para o transeunte comum, habitante de Buenos Aires desde sempre. Deste modo,
as novas modulações em circuito tornaram quase ilegíveis os códigos herdados
propiciando a cidade símbolos poderosos que atestaram a existência de uma sociedade
cada vez mais rica e complexa.
Naturalmente, as alterações se dão em diversos níveis: individualidade
exacerbada pela contínua pressão por melhores postos de trabalho, novas tecnologias de
comunicação e transportes, entre outros. A escolha destas modificações para compor o
corpo do texto é tributária das diversas leituras sobre os projetos-processo de
modernização em Buenos Aires e suas conseqüências mais salientes. Mais de uma vez
nos sentimos tentados, dada a riqueza do assunto, a desviar o olhar para um outro
chamado, igualmente fecundo em temática, e que certamente poderia produzir uma
análise em outra direção. Ao vedarmos os ouvidos para o canto da sereia não é
improvável que poderíamos deleitar-nos com uma suave e bela melodia.
A alusão incidirá recorrentemente na orientação das formas que a modernidade
em Buenos Aires foi paulatinamente adquirindo e que assim passou a transformar a si
própria e aqueles que com a cidade tiveram contato. E mais, serão enfatizados os
aspectos que na modernização da capital portenha mais impressionaram o escritor Jorge
Luis Borges em seu retorno.
Com efeito, é lugar comum a difusão de algumas particularidades da biografia
do escritor Jorge Luis Borges. Sabe-se, portanto, que com 14 anos, ainda um
adolescente, Borges parte com sua família para uma estada de sete anos em solo
europeu. No regresso do escritor e sua família a cidade natal, percebe-se uma Buenos
Aires alterada em seus aspectos mais ostensivos. Uma idéia deste retorno é outro lugar
comum no que tange a vida do escritor: símbolos importantes de uma fascinante cidade,
quando Jorge Luis Borges retorna a Buenos Aires, estão de pé ou em vias de serem
construídos, ou até mesmo em processo de remodelação o Jardim Botânico, Zoológico
da cidade, Teatro Colón (la mejor acústica del mundo) dizem os portenhos, Casa
Rosada e o Edifício do Congresso Nacional Argentino. Estes locais são relevantes na
medida em que comportam os signos de boa parte da história moderna da cidade de
Buenos Aires. Embora não iremos nos deter mais sobre eles, o importante é perceber o
quanto foi alterado, ou ainda o quanto foi destruído para que tais logradouros surgissem
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e contribuísse para a perplexidade imaginária do início da carreira literária do nosso
jovem escritor.
Neste momento em Buenos Aires, procura-se perceber as intervenções como
sendo essencialmente urbanas e a sociedade que a compõe como detentora de várias
contribuições que a cultura ocidental lhe legou. Naturalmente, esta idéia ganha mais
força se não desdenharmos do papel desempenhado pela modernização e o
extraordinário crescimento da cidade, não se omitindo, é claro, a função que obteve a
imigração no sentido de incrementar essa intensa permuta.
No segundo capítulo veremos que o verdadeiro turbilhão de que a cidade de
Buenos Aires é lugar, como centro irradiador de cultura e lugar de cruzamentos, é que o
jovem Borges é incontestavelmente assaltado. Assim, como se fosse impossível evitar, a
sedução do escritor pelo impacto da nova cidade faz com que ela se torna receptáculo
para suas idéias e um favorável ambiente para a experimentação literária. O
desdobramento do segundo capítulo notará que há sempre uma busca de uma arte nova
e absoluta que substitua a falta de sentido das produções literárias anteriores: trata-se do
Borges das vanguardas. Nesta perspectiva, o escritor compactua com o otimismo
presente em mais de uma parte da vida urbana buenairense e apela para o esgarçamento
da relação autor-recptor presente na dedicação beligerante da confecção dos manifestos
murais. Borges subemete-se, entrega-se a esta atmosfera nova e passa a atacar
publicamente tudo aquilo que representava o passado em termos de literatura e estética.
Deste modo, veremos que a cidade de Buenos Aires com seu cosmopolitismo cada vez
mais extenso vai se transformando no lugar onde se procede a remodelação do passado
cultural. A forma escolhida pelo escritor não poderia ser mais pública que os manifestos
murais.
Certamente o conforto borgeano frente a expansão da cidade e suas
possibilidades de experimentação artísticas continha alguns riscos inerentes. Numa
exposição sumária, podemos dizer que o sentimento otimista, essa escancarada
liberdade franqueada pela cidade moderna e seus aparatos que encorajavam uma postura
aguerrida em nome do novo, forneceram coordenadas para que o escritor sentisse do
interior do seu labor as próprias vicissitudes da ambiência moderna materializadas na
angustiosa dimensão desta transitoriedade. Assim, o terceiro capítulo discorrerá sobre as
determinantes que fizeram com que Jorge Luis Borges produzisse seu primeiro livro de
poemas Fervor de Buenos Aires no seio da modernidade portenha. Refletiremos, então,
na direção de que sentindo uma profunda profanação de aspectos vitais de sua cidade
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nesta atualidade moderna, o escritor aparenta recorrer a sacralização de elementos
presente na antiga cidade antes do processo modernizador.
Representando o momento de largada da produção literária de Jorge Luis
Borges, a década de 1920 em sua cidade natal, Buenos Aires jamais sairá de seus temas
e contos. A finalidade do nosso procedimento é atestar como o contato com a urbe
produziu obras tão densamente complexas e marcadas por uma indeterminação típicas
de uma atmosfera em voltagem. Na verdade, há de pensar-se no redimensionamento da
categoria cidade, passado e moderno e como tais instâncias naquele início propiciou os
primeiros passos de um admirável escritor.
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2
O Fascínio da Urbe Moderna: Buenos Aires, a Cidade do
Espetáculo Cindido.
Quando o século XX eclodiu em Argentina trouxe consigo inúmeras
transformações e as mais diferentes modalidades de progressos técnicos. E, paralelo a
estas transformações e desenvolvimentos, havia uma série de questões propriamente
humanas, de rupturas e quebra de laços fraternos, que urgiam há muito serem
respondidas. No caso deste novo século que então iniciava, no interior daquilo que só
mais tarde se saberia como sendo sua turbulenta viagem, os mais recentes aparatos
técnicos e invenções, inovações de ampla latitude deram pouca contribuição para
resolução dessas questões. Na verdade, poderíamos começar a desdobrar nossa análise
desse início de século em Buenos Aires convergindo nossa investigação numa direção
marcadamente acusatória. O advento do horror materializado na execução sumária dos
indígenas e os desdobramentos para a imposição da cidade de Buenos Aires como
capital federal em 1881, representaram de fato, verdadeiro custo humano. Este processo
que à luz do tempo deixa a impressão, dada a relativa distância quando comparado com
os tempos atuais, de que foi paulatinamente conduzido por si mesmo forneceria
materiais eloqüentes para uma análise neste sentido.
2
Mas não obstante a importância desses acontecimentos, o que se pretende, é
verificar o quanto ao adentrar o século XX buenairense as questões que por razões
diversas não foram resolvidas e que, conforme dissemos estavam urgindo para que o
fossem, foi se acumulando a outras, o que certamente contribuiu para a exigência de
novas sensibilidades. Eventos que, como outras possibilidades de análise já
demonstraram, ganham relevância a medida que se percebe que os fatos se
desenrolaram numa direção absolutamente fascinante do ponto de vista histórico e
2
Para este assunto reporto-me por: DONGHI, T. H., Historia Contemporânea de América Latina;
BEIRED, J. L., Breve história da Argentina; ROMERO, L. A., Breve História Contemporânea de la
Argentina.
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cultural.
3
Neste sentido, a escolha da cidade de Buenos Aires após esses relevantes
reveses é mais que particular: dada as suas especificidades podemos caracterizá-la como
uma cidade marcadamente sui generis frente a outras cidades em Argentina, ou como
nos diz um geógrafo da cidade portenha Florêncio Escardó:
Ninguém se apresse a entender o que é uma cidade argentina ou a capital da
República. Não; é, sim, a capital dos argentinos e uma cidade do mundo na
costa do Prata. Não se parece com nenhuma das capitais da América que
encefalizam e miocardizam o país que as contém. Buenos Aires é Buenos Aires;
se define, sem enunciação possível, apenas pelo prestígio de sua presença.
4
É, pois, neste cenário de singularidade e turbulências, que a palavra vertigem
surge com palpável inevitabilidade. Com um mundo passando por um processo de
transformação veloz, Buenos Aires, capital Federal da República Argentina, aparece
como cidade espetáculo e vai conquistando seu lugar central no território em um país
cultural e economicamente periférico. De posse deste diagnóstico desanimador, que, no
entanto era (por que não?) passível de sensíveis alterações, ensaia-se a tentativa de
inserção do país no concerto das nações mais bem sucedidas do Ocidente. Assim,
Buenos Aires funcionaria como materialidade em Argentina e entre suas principais
concorrentes na América do Sul como a cidade que estava mais que pronta a fornecer ao
submundo do sul do continente o exemplo mais eficaz na produção de estatísticas
econômico-sociais que fossem menos tímidas e de caráter mais positivadas.
5
Umas das primeiras grandes transformações por qual passou a cidade portenha
data desde muito tempo. Por um esforço de reconstrução histórica poder-se-ia alçá-la
desde os tempos mais pretéritos. Último recanto da ingerência espanhola, um antigo e
obsoleto porto dava à cidade um aspecto quase místico. De fato, o impulso
modernizador que estava na ordem do dia a transformou em um lugar bastante
instigante: a exigência de se transformar o espaço físico deu ensejo a uma tradição
ambígua com contribuição de diversas comunidades e estilos culturais:
É ademais uma cidade da raça branca e de língua espanhola em uma medida
que nenhuma outra cidade do mundo pode reclamar. É uma cidade branca de
uma América mestiça. Nela um negro é tão exótico como em Londres (...) Seus
3
O elemento de fascínio e singularidade como outras atribuições usadas para denominar a experiência em
Buenos Aires da década de 1920 está marcado em vários estudos sobre a cidade e este período. Ver:
SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930; ESCARDÓ, F., Geografia de
Buenos Aires.
4
ESCARDÓ, F., Geografia de Buenos Aires, p.18.
5
ROSARIOS, O., América Latina: veinte repúblicas, uma nación, p. 13.
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20
homens e suas mulheres não possuem todos a mesma cor nem da pele nem do
cabelo, mas são brancos. Isto não constitui um privilégio, sobretudo do ponto
de vista decorativo, mas é uma boa possibilidade eugênica.
6
Ao longo dos anos, ao contrário dos traços de constância homogênea
sublinhados por Florencio Escardó, a cidade crescia granjeando novas cores,
esparramada que estava sobre a geografia pampeana que a cercava. O advento da urbe
babélica propiciou a perda de sua suposta homogeneidade alva. Com tons cada vez mais
criolo e cosmopolita do ponto de vista racial e étnico, a cidade parecia alheia aos
bulícios e sobressaltos causados pelas disputas entre unitários e federalistas, mesmo que
fosse dela e em seu interior que se desenrolassem as principais controvérsias sobre o
assunto. Por outro lado, embora o geógrafo admita não considerar a brancura da pele
dos cidadãos portenhos como um privilégio, assim mesmo deixa transparecer um ar de
vaidade quanto a “uma boa possibilidade eugênica”. Isto é, conforme Escardó, a
homogeneidade que a cidade de Buenos Aires era lugar antes da avalanche
modernizadora, estava visível na cútis e nos cabelos dos seus conterrâneos. Mas esta
reclamada homogeneidade veio a ser sensivelmente alterada com o advento do processo
modernizador. Esta linha de análise, cujo sentido é amplificado nas palavras de Juan
Sebreli:
A rua, de pátio familiar que era, passa a ser terra de ninguém, uma
encruzilhada, onde qualquer coisa pode ocorrer a volta de cada esquina. O
anonimato assegurado pela aglomeração e as inusitadas possibilidades de
ocultação e de segredo na grande cidade, similar nisto a uma selva
emaranhada, com todos os recovos, seus becos, seus esconderijos, são
condições favoráveis para uma vida mais múltipla, variada e perigosa, com
conflitos e antagonismos aguçados, com infinitas oportunidades para o drama e
para aventura.
7
Contudo, no alvorecer de um empreendimento inovador e até certo ponto
revolucionário, o que mais pesou foi a tradição e a herança de um passado coloniais
visíveis nos mais diversos traços. Segundo Elisa Radovanovic bastava passear pelas
ruas da cidade de Buenos Aires para poder ver de perto e sentir os traços daquilo que os
argentinos não mais queriam se recordar: a persistência de tetos de azotea, um número
sem fim de edifícios de pouca altura e a carência de espaços verdes. Enfim, uma cidade
que em seu desenho apresentava-se absolutamente desprovida de projetos urbanos,
6
ESCARDÓ, F., Geografia de Buenos Aires, p. 18.
7
SEBRELI, J. J., Buenos Aires, Vida Cotidiana y alienacion, p. 22.
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mesmo de modesta escala e que conforme a estudiosa do assunto Elisa Radovanovic, o
interesse de transformar a edificação de Buenos Aires:
Propulsam a desaparição da cidade chata em benefício da saúde pública, da
estética urbana e arquitetônica. Esses planos se centram em torno da
modificação dos antigos traços de feições coloniais, ao crescimento da altura
dos edifícios, assim como a necessidade de solucionar a irregularidade
arquitetônica vigente, a trama viária e a notória escassez de espaços verdes.
8
Por outro lado, a vida citadina foi adquirindo características para além do
contraditório. Com a metamorfose da urbe ultrapassando o aspecto físico, novas
posturas passam a ser assumidas pelos transeuntes e habitantes: ao invés da pegajosa
intimidade da vida do vizinho, como descreve Juan Jose Sebreli sobre a Buenos Aires
antes do impulso modernizador, a cidade ao multiplicar suas funções, se tornou mais
anônima e impessoal.
9
A atmosfera de perplexidade ganhava respaldo na transformação
em escala assombrosa do perímetro citadino, mas também na nova aglomeração que
passava a compor o mosaico da cidade transformada e, como diz Richard Sennett, na
falta de sentido que as pessoas faziam umas para com as outras.
10
Desde os erráticos imigrantes até o exemplar mais original do argentino a
angústia passava ser a mesma: aquele que está a meu lado num trem ou dividindo
ombro a ombro os apressados passos no mais novo empreendimento urbanístico, que
poderia ser uma diagonal, já não é o meu conhecido e tudo se torna mais inquietante, já
que o anônimo que compartilha das benesses e das ansiedades da vida moderna, não
mais é possível saber nada sobre ele.
11
O aparecimento em cena da aglomeração
populacional franqueou o anonimato como possibilidade aberta aos novos personagens
da urbe moderna. À expressão crescimento populacional para descrever o pelotão de
humanos que invadem a cidade de Buenos Aires acresce-se os novos papéis que
pareciam brotar como cogumelos esvaecendo assim a fronteira, outrora mais rígida
entre íntimo e público, formando insumos para uma vida secreta.
Esta é a trajetória trilhada pela urbe portenha. A cidade de Buenos Aires diante
de seu crescimento vê sendo aniquilada sua inocência e sossego aldeãos no caminho da
tão almejada modernização e cosmopolitização.
12
As transfigurações pelas quais
8
RADOVANOVIC, E., Buenos Aires Ciudad Moderna: 1880-1910, p. 89.
9
SEBRELI, J. J., Buenos Aires, Vida Cotidiana y alienacion, p. 21-22.
10
SENNETT, R., Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental, p. 264.
11
Ibid., p. 264.
12
ROMERO, J. L., Latinoamérica: las ciudades y las ideas, p. 321.
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22
atravessa a cidade deixavam em seus habitantes e transeuntes a forte impressão de que
estariam prontos a embriagar-se diante da nascente torrente de heterogeneidades. Assim,
o perímetro citadino buenairense surgia como forma de absorção das representações do
moderno e do cosmopolita com vistas a um novo rearranjo do passado:
Correlativamente, isso coincide com que Buenos Aires seja a única parte do
país que não é semi-colonial. Por que (Buenos Aires) é a sede dos
colonizadores, não dos colonizados. Sem embargo, Buenos Aires sendo de todos
não é de ninguém. É a cidade não possuída por excelência. Esta não possessão
é seu signo característico no físico, no psicológico e no estético.
13
Peremptoriamente, conforme a percepção de Escardó o espaço urbano
buenairense aparenta abranger a performance cênica ou mesmo teatral com o fito de
impessoalidade (Buenos Aires não é de ninguém). Aliado a isto, a pretensão de
exorcismo de um passado indesejável talvez com vista a um futuro mais soberbo
(Buenos Aires é a sede dos colonizadores, não dos colonizados). Desta forma, a cidade
portenha em seu rumo à modernização confiante, ia cada vez mais se assemelhando à
capital de um império imaginário. Após ter superado os conflitos intestinos, a cidade
parece ter-se investido de autoridade incontestável e coroada a si própria com a não
dissimulada ambição de conquistar o cetro continental:
14
Buenos Aires se transformou então, em um privilegiado cenário da civilização
ocidental, que aparece como uma intricada rede com superposição de
culminações e inícios, onde se desataram mecanismos, procedimentos e
problemáticas, antecipações de situações posteriores. Em um contexto
crescente de globalização, as transferências, mobilidades e intercâmbios, tanto
de idéias como de pessoas, produtos e serviços, alcançaram níveis inigualados,
originando situações e fenômenos complexos e contraditórios.
15
A mutação do espaço físico da cidade situa Buenos Aires num dos domínios de
estudos em que mais se repercutiu a modalidade destes novos processos em câmbio.
16
Evidentemente, para os habitantes e transeuntes sua percepção tornou-se intricada dado
que, enquanto fenômeno, ele revestia-se de características fantásticas para boa parte da
visão dos contemporâneos. Logo, uma definição completa, decisiva e segura que
13
ESCARDÓ, F., Geografia de Buenos Aires, p. 18-19.
14
GREMENTIERI, F.; VERSTRAETEN, X., Buenos Aires; arquitectura y Patrimônio, p. 11.
15
Ibid., loc. cit.
16
Há uma ampla literatura e estudos críticos sobre o assunto: Para Buenos Aires ver: SARLO, B., Una
Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930; SEBRELI, J. J., Buenos Aires, Vida Cotidiana y
alienacion. Para a vinculação de crescimento citadino e aparatos intelectuais: RAMA, A., A Cidade das
Letras.
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23
pudesse dar a platéia deste novo e por vezes estranho espetáculo algum antídoto que
representasse algo que fosse contra a sensação angustiante, nem sempre era possível. A
eclosão da ambiência metamórfica e arrebatadora que atravessava a moderna cidade de
Buenos Aires nem sempre se apresentava confortavelmente para seus habitantes. Neste
caso, além de ter de enfrentar-se com algo enigmático havia também uma carência de
nitidez ideológica, ou mesmo estilística nos projetos da cidade como um todo.
17
Isto
poderia perfeitamente significar para um observador mais atento tons de verdadeiro
ecletismo protéico e um dos exemplos mais notáveis do formidável crescimento da
Argentina a fins do século XIX e princípios do século XX.
18
Desta forma, a tentativa de
definição da cidade através de um ideal de representação de um conjunto de
características a ela atribuídas seria absurdo conforme diz Adrián Gorelik.
19
Assim, uma Argentina entusiasmada transformava a fisionomia de sua capital
como prova da visibilidade material da entrada de todos nos caminhos da civilização e
progresso infinitos. O esplendor argentino concretizado no fenômeno da metropolização
escandalosa esteve fortemente caracterizado por uma das suas peculiaridades mais
visíveis: a variedade e o desconhecido.
Estes dois elementos, aliados à posse de um diagnóstico animador forneceu aos
argentinos a possibilidade de espantar o fantasma de uma civilização de segunda mão
ou em termos mais claros “civilização de galho” proposta por Juan Bautista Alberdi.
20
Para tal, seus principais planejadores deram vazão a toda vontade de construção de
edifícios suntuosos, avenidas, prédios e espaços públicos que significasse na prática
uma postura contrária as avaliações de teor pessimistas e desencorajadoras. Na verdade,
este é o período em que a diversidade de estilos passou a caminhar de mãos dadas com
uma interpretação de cunho nacional ou regional das novas construções simbólicas.
21
Deste modo, com operações de adaptação, combinação e reinterpretação do passado
nestas novas edificações públicas, o resultado foi um verdadeiro arrebatamento frente a
17
ROSARIOS, O., América Latina: Veinte Repúblicas, uma Nación, p.15.
18
LUNA, F., Breve História dos Argentinos, p.14.
19
GORELIK, A., A Produção da Cidade latino Americana, p. 111.
20
Juan Bautista Alberdi, político, jurista e escritor argentino no século XIX. “Trata-se neste caso de uma
metáfora botânica “civilización de gajo” proposta por Juan Bautista Alberdi na Argentina do século XIX
diante do juízo generalizado de que” nessas terras nada de bom poderia nascer da raiz”. Reporto-me por:
GORELIK, A., A Produção da Cidade latino Americana, p. 111; PALERMO, V., Pensamento Político
Progressista no Liberalismo Argentino e Mexicano do Século XIX: Juan Bautista Alberdi e Justo Sierra.
21
É bastante fecunda a discussão sobre nacionalismos e regionalismos no período mesmo que não seja
nosso interesse aqui discuti-la. Vale lembrar, entretanto, que o caráter heterogêneo da cidade marcou
profundamente os debates sobre a “verdadeira argentinidade”. Em termos de costumes, variedades de
línguas e imigração tornou-se imperante debruçar-se sobre essas questões.
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24
estas transformações cuja parte mais sensível se traduziu no espanto dos transeuntes e
analisadores:
O conflito da modernidade suscitou o debate entre as formas do passado e do
presente. As repercussões da implantação do modelo no acionar da classe
dirigente tiveram sua crise posterior como efeito provável de sua deficiente
aplicação.
22
Como não é difícil de imaginar, estas transformações possuíam um forte apelo
de verniz estético. As leis que passaram a regular sobre a altura dos edifícios deixaram
em toda superfície da cidade uma marca que distava muito do retrato da antiga cidade
colonial. A estas medidas somam-se a promoção das praças e jardins públicos
arborizados cuja maior contribuição estava na alterada imagem que suscitava essas
novas passagens naturais. Além da função ornamental que deles emanava, esses
verdadeiros “retiros da natureza” em pleno núcleo nevrálgico da cidade, propendiam ao
habitante um sentimento do privilégio de descansar, passear, ou simplesmente entregar-
se ao abandono e admirar estes recantos verdes de rara beleza. A monotonia do amplo
tabuleiro da cidade colonial portenha ganhava a cada nova atividade com vistas a sua
modernização salubre, ares de importância e nobreza altiva:
...Prosperou o gosto pelos traçados de influência italiana, e nos arredores de
centro, as vilas neo renascentistas se enfeitavam com espaços abertos de espírito
mediterrâneo... Uma cuidadosa planificação e gerência do espaço público
através da Direção de Parques e Jardins permitiram aproveitar todos os vazios
urbanos para incorporar áreas verdes cuidadosamente desenhadas.
23
E cujo objetivo principal residia:
Na preocupação estética, seu critério sistêmico no tratamento de cada peça e do
conjunto, sua habilidade estratégica para definir harmonias com a arquitetura, a
escultura e o urbanismo, ou sua capacidade para integrar preexistências e
sintetizar diversas influências...
24
Esta predileção pela magnificência estética, ademais, foi fortemente favorecida
por um complexo de fatores que desde o histórico e cultural fizeram com que as
22
RADOVANOVIC, E., Buenos Aires Ciudad Moderna: 1880-1910, p. 93.
23
GREMENTIERI, F.; VERSTRAETEN, X., Buenos Aires; arquitectura y Patrimônio, p. 92.
24
Ibid., loc.cit.
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25
inovações se dessem na parte mais antiga da cidade.
25
Neste sentido, o centro da capital
buenairense se constituiu no foco principal das inovações de caráter estético, eclético e
inovador. Como nos afirma Margarita Gutman, nesta etapa de grandes e rápidas
transformações alguns edifícios históricos, aqueles cujos valores se preservavam de uma
demolição total, se tornaram objetos de remodelações diversas, especialmente os que
rodeavam a Praça de Mayo.
26
O tenso diálogo do passado com o presente com pretensões a um futuro de júbilo
e proeminência inauditas produziram algumas profecias não tão animadoras. E, por
outro lado, mesmo que alguns destes presságios se assemelhassem às profecias bíblicas
de caráter apocalíptico, não seria difícil imaginar que o rápido crescimento da urbe
produzisse prognósticos quanto a sua possível destruição. Um verdadeiro torvelinho.
Esta é a impressão marcante das transformações da urbe metropolizada e que, enquanto
tal, uma hecatombe catastrófica era mais que esperada.
Mas dentro de um senso planejador, a reestruturação do centro da capital com
seus edifícios majestosos e de esplendor quase exagerados, novas avenidas, diagonais,
parques e amplas praças possuíram uma função importante de integração social num
momento de fragmentação, mescla, quebra de valores e imigração intensa.
27
A particularidade Buenairense tem contornos de fascínio quando se tem em
mente que até mesmo um sentimento de inferioridade fazia parte da alma de seus
habitantes ensombrecendo-a, antes da empreitada modernizante. Bastante difundido em
América Latina, o traço de orgulho e presunção que se atribui aos argentinos pelas
presumidas glórias de seu país e beleza de sua capital, sobretudo aos portenhos,
historicamente se revela difícil encontrar indícios do atual sentimento, se verdadeiro,
naturalmente. Na verdade, segundo Margarita Gutman e Jorge Enrique Hardoy, a cidade
nem sequer aparecia nos mapas, diários e importantes livros confeccionados por
expedições de viajantes espanhóis e estrangeiros que passavam pela região. Ao longo de
sua trajetória, a cidade portenha perdia em importância para outras do continente como
25
Estamos diante de um período de saturação teórica. Na verdade, muitos elementos contribuíram para tal
efervescência: Reforma Universitária de forte apelo político, ampliação do mercado editorial, traduções
economicamente mais acessíveis de clássicos da literatura, política, estética entre outros, crescimento dos
índices de alfabetização e mais facilidade dos meios de comunicação. Ver: RAMA, A., A cidade das
Letras.; RAMA, A.; AGUIAR, F.; GUARDINI T. VASCONCELOS, S. (Orgs), Literatura e Cultura na
América Latina. Ensaios Latino Americanos.; SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires
1920 y 1930.
26
GUTMAN, M.; HARDOY, J. E., Buenos Aires: Historia urbana del Área Metropolitana, p. 146.
27
Mesmo que não seja nosso propósito analisa-lo, note-se também o forte apelo de cunho nacional que se
encontra bastante acentuado no período e que comporta várias manifestações, sobretudo às vésperas do
centenário da independência.
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26
Cuzco e Montevidéu. Em grande medida, este sentimento de inferioridade residia no
fato de que a cidade possuiu ao longo de sua jornada poucas condições de rivalizar com
cidades vizinhas, como Assunção que se oferecia cada vez mais como centro
indiscutível da vasta região do Rio da Prata.
28
Este cenário, no entanto, era passível de
transformação. Fatalmente, à medida que a cidade se modernizava ela foi angariando
desejos de ser decifrada. Esta mudança de cenário depois do furor modernizante, de
acordo com Richard Morse:
Uma nota de decadência, um alerta funesto soou tanto na cultura de cabaré do
tango quanto na cultura sofisticada dos literatos. Mais que outras cidades latino-
americanas, Buenos Aires compartilhava do ethos cosmopolitano do modernismo
ocidental, de modo que os lugares-comuns da história e da cultura regionais
assumiram uma feição mítica. A investigação perscrutou além da chamada
realidade, em um domínio de enigma ou paradoxo. O desafio central não era a
cognição, mas a decifração.
29
O verdadeiro senso de explosão que se deu em Buenos Aires trouxe à luz a
problemática do ordenamento, do cálculo e da organização para conter pelo menos em
algum grau, a fragmentação cada vez mais crescente da urbe babélica.
30
Os resquícios
que inscreviam Buenos Aires numa cidade colonial, negativamente hispanizada, além
de terem de desaparecer, a cidade teria também de fornecer à imagem de desordem
crescente um apelo de progresso fáustico e generosidade urbana. De alguma forma,
pode-se dizer que a fragmentação residia no diálogo surdo e simultaneamente complexo
das manifestações visíveis da persistência de traços do passado que muitas das vezes
serviam como referência e a intenção de um Éden futuro, radiante e inseguro por decidir
quase sempre se manifestar na forma virulenta do caótico e da sedução sem limites.
O primeiro planejamento moderno para a cidade se deu nas primeiras décadas
do século XX. O impulso encorajador se deveu a forte apreensão que se verificou às
portas da comemoração do Centenário da Revolução de Maio. As ruas de Buenos Aires
ganham neste período uma atenção mais que especial de seu intendente municipal, seus
planejadores urbanos, arquitetos e presidente da República.
31
Tem-se, desta forma, o
advento de uma intensa peleja para saber qual o melhor projeto para redesenhar todo o
traçado urbano buenairense. Verifica-se a gênese de uma ação racionalizadora que,
28
GUTMAN, M.; HARDOY, J. E., Buenos Aires: Historia urbana del Área Metropolitana, p. 25-26.
29
MORSE, R., As Cidades Periféricas como Arenas culturais: Rússia, Áustria, América Latina, p. 25.
30
RADOVANOVIC, E., Buenos Aires Ciudad Moderna: 1880-1910, p. 94-103.
31
Ibid., p. 93.
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27
visando instrumentalizar as posturas que deviam ser assumidas pelos transeuntes da
cidade, coincidiam com projetos de remodelação antigos que caminhavam na direção de
pensar nas conveniências de ruas mais largas, ou até mesmo a transformação das
mesmas em avenidas, diagonais e vias principais para melhor salubridade do perímetro
citadino.
Dentro desse espírito inovador, torna-se difícil imaginar todas as conseqüências
das transformações acarretadas pelo ideal liberal-moderno, mas de pronto, sabe-se que
este ideal atingiu diversos níveis e escalões do corpo social provocando desta forma
alterações das mais pungentes. À uma transformação econômica e uma vibrante
transformação social, junta-se uma verdadeira atmosfera confiante e eufórica às portas
da comemoração do centenário fortemente alavancada pelo crescimento de índices
positivos na esfera econômica. Este legado surge nas palavras de Félix Luna:
Os trinta anos que transcorreram entre 1880 e 1910 foram fundamentais para a
modelagem da argentina moderna. De algum modo somos todos herdeiros
daquela época. Os grandes edifícios públicos que se vêem em todas as cidades
da República (...) a afirmação das instituições fundamentais nas quais se faz
sólida a vida do país, desde a educação primária até a universidade...
32
Pode-se mesmo dizer que em Argentina estas metamorfoses provocaram
sentimentos de estranheza e perplexidade atravessando os mais diferentes campos da
vida social. Neste sentido, uma expressiva fração da comunidade buenairense que tinha
em mira dar uma resposta adequada a este singular período foi assaltada pela sensação
de que estavam em xeque vários dos outrora mais certos e confiantes paradigmas.
Assim, a tentativa de resolução dos conflitos na cada vez mais babélica Buenos Aires
passava pela investida em diagnósticos cuja precisão era, por sua vez, mais difícil. Esta
experiência, nas palavras de Angel Rama:
A mobilidade da cidade real, seu tráfico de desconhecidos, suas sucessivas
construções e demolições, seu ritmo acelerado, as mutações que os novos
costumes introduziam, tudo contribuiu para a instabilidade, a perda do passado,
a conquista do futuro. A cidade começou a viver para um imprevisível amanhã e
deixou de viver para o ontem nostálgico e identificador. Difícil situação para os
cidadãos. Sua experiência cotidiana foi de estranhamento.
33
32
LUNA, F., Breve História dos Argentinos, p.14.
33
RAMA, A., A cidade das Letras, p.97.
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28
Com a virada do século acompanhamos as singulares guinadas do ponto de vista
teórico que abarcam desde o plano histórico-sociológico até as artes com sua visão e
expressão do mundo que, se oferecia possibilidades de compreensão e sensibilidade a
este novo momento, também ofertava a sociedade as mais insidiosas e extravagantes
teorias.
34
Vislumbra-se, de igual maneira, a fecundação de explicações que disputavam
o consenso de qual o rumo a jovem nação Argentina deveria adotar. Mas singular, no
entanto, foi o sentimento de perplexidade a que todos estavam submetidos com o
advento da modernização da capital:
Já em 1890 se havia quebrado a imagem de uma cidade homogênea, mas trinta
anos são poucos para assimilar, na dimensão subjetiva, as radicais diferenças
introduzidas pelo crescimento urbano, a imigração e os filhos da imigração.
Uma cidade que duplica sua população em pouco menos de uma quarto de
século sofre transformações que seus habitantes, velhos e novos, deverão
processar.
35
Este sentimento encontra ressonâncias nas mais diversas latitudes. Este alcance,
inclusive, ganha expressão na literatura e nas artes já que em grande medida, a nova
vida citadina se tornou elemento essencial para a própria confecção das obras estéticas e
poderoso ingrediente de fomento a imaginação. Configura-se a perplexidade no sentido
de tentativa de compreensão dos novos rumos e da estranheza frente às novas
modalidades de se reconhecer frente a essas mudanças. Esta atmosfera carrega consigo
e desperta nos contemporâneos velhos e novos como diz Beatriz Sarlo o sentimento do
inverossímil, um verdadeiro sentir-se deslocado, ou talvez, o receio de não mais poder
corresponder às expectativas constantemente engendradas e reengendradas quase que
diuturnamente. O sentimento de perplexidade e torpor, o assombro diante da verdade
indelével de um reconhecimento não pleno dos fenômenos, adquire nesses termos um
estatuto bastante próximo do sentido de vertigem:
A cidade (Buenos Aires) se vive a uma velocidade sem precedentes e estes
deslocamentos rápidos não produzem conseqüências somente funcionais. A
experiência da velocidade e a experiência da luz modulam um novo elenco de
34
No plano geral, as teorias oscilavam entre dois paradigmas principais: de um lado temos a tentativa de
transplantar os modelos europeus de arquitetura política e, por outro, um combinado entre as
contribuições européias e as características propriamente nacionais a serem descobertas e definidas.
Quanto aos aspectos extravagantes de uma dessas teorias, veja-se por exemplo a frase na Avenida
Corrientes no centro da capital Argentina de Domingo Faustino Sarmiento, presidente, escritor do
clássico da literatura argentina “El Facundo” e teórico da nação argentina: “Nem negros nem índios, nós
(Argentina) somos uma nação decente”.
35
SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 17-18.
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29
imagens e percepções: quem tinha um pouco mais de vinte anos em 1925 podia
se lembrar da cidade da virada do século e comprovar as diferenças. Sem
dúvida, as coisas haviam mudado menos na floresta do que no centro.
36
Ou conforme a formulação de George Simmel:
As relações e os afetos do habitante típico da grande cidade são habitualmente
tão diversos e complicados e, antes de tudo, a concentração de homens tão
numerosa com os interesses tão indiferenciados que faz dessas relações e dessas
ações um organismo tão complexo que, sem a pontualidade mais exata nas
promessas e nas suas realizações tudo se desmoronaria em um inextricável caos.
37
Desta forma, a singularidade, própria de uma cidade em plena transformação
exponencia suas conseqüências em diversos e variáveis rumos. Ao tocar no funcional,
mas sem se deter nele, a experiência da cidade modernizada passa a demandar um novo
repertório de sensibilidades.
38
Assim, de nossa parte podemos considerar que a força
que jazia no reconhecimento das posturas e nos sujeitos que travavam relações mais
íntimas e cuja proximidade trazia conforto e custodiava uma ambiência prazenteira,
toma lugar um indivíduo órfão e desamparado que se debate buscando um frêmito de
autonomia. Ao mesmo tempo em que havia a ameaça da originalidade de sua antiga
existência face aos imperativos de um legado histórico e cultural que o poder da técnica
e do cálculo só faziam exacerbar.
Face aos inúmeros problemas do ponto de vista social, Beatriz Sarlo afirma que
é aos mais velhos e imigrantes que talvez se deva o mais agudo sentimento de
estranhamento, perplexidade e de surpresa.
39
Para estes, não é de se estranhar o fato da
modernidade lhes parecer muitas das vezes sob o olhar de uma verdadeira aventura,
quase sempre, claro, plenamente chafurdada com elementos de sofisticada crueldade.
Neste sentido, como também sublinha o estudioso dos fenômenos das cidades Lewis
Munford, habitantes em plena desorientação, uma persistente afluência de imigrantes,
mudanças freqüentes de domicílios, falecimento de limites reconhecíveis ou centro de
encontros comuns, tudo isso veio a reduzir os processos estabilizadores da vida de em
36
SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p.16.
37
SIMMEL, G., Philosophie de la Modernité, p. 238.
38
SARLO, B., op.cit., p.21.
39
Ibid., p.49.
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30
comunidade, em vizinhança
40
. Ainda nesta direção, a atmosfera de instabilidade era o
que mais gerava o sentimento de espanto segundo José Luis Romero:
Surpreendia-se dessas transformações que as faziam irreconhecível uma cidade
em vinte anos. Foi isso precisamente, que ao começar o novo século prestou a
imagem de América Latina um ar de irreprimível e ilimitada aventura.
41
Assim afirmava José Luis Romero no que concerne as transformações abruptas
no interior das cidades burguesas da América Latina da virada do século XIX para o
século XX. Ao se depararem com o advento do novo e do imponderável, os setores mais
senis da sociedade tendencialmente davam a esta experiência um sentido de perda e de
um imprevisível futuro. A dificuldade em não mais projetar com certeza estatística a
definição do porvir passou a condicionar as relações fazendo com que se abalassem os
antigos paradigmas de um tranqüilo desenrolar do passado até o presente e deste
presente até um futuro. Trata-se de um período de incertezas e desconfiança.
No capítulo ”As cidades Burguesas”, José Luis Romero caminha na direção de
pensar a radicalidade do fenômeno citadino nas sociedades latino americanas dentro do
acento da conjunção entre poder econômico e político aliada a desentronização de suas
classes privilegiadas que, segundo o próprio Romero, “destituíam a harmonia da estável
sociedade tradicional”.
42
Além disso, não deixa de ser de grande mérito a ênfase que o
autor dá ao aparecimento das possibilidades e as atividades inauditas e surpreendentes,
o que segundo Richard Morse, contribuiu para que o livro se tornasse um clássico na
matéria. Novas, inauditas que eram, essas atividades revestiram a sociedade de um
caráter absolutamente diferente da “grande aldeia” que era a fisionomia de boa parte das
cidades do sul do continente, epíteto bastante atribuído a Buenos Aires colonial. De
forma rápida, intensa, estes antigos territórios coloniais passaram a adquirir uma feição
tensa e inverossímil: a cidade se transformara em um conglomerado heterogêneo e
confuso:
O resultado não tardou a advertir-se, e o sistema tradicional das
relações sociais começou a modificar-se. Onde havia um sítio pré-
estabelecido para cada um começaram a aparecer uma onda de
aspirantes para cada lugar; e não eram somente os recém chegados
com vocação para aventura que destruíram a harmonia da estável
40
MUNFORD, L., A Cidade na História: suas origens, desenvolvimentos e perspectivas, p. 539.
41
ROMERO, J. L., Latinoamérica: las ciudades y las ideas, p. 247.
42
Ibid., p. 259.
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sociedade tradicional. Eram também os que já formavam parte dela
sem participar, como marginais, muito dos quais começavam a
incorporar-se por que possuíam atitude e aparecia a ocasião de que as
demonstraram.
43
E mais adiante;
De pronto o urbano patriciado descobriu, antes que ninguém, que sua cidade, “A
grande aldeia”, começava a transformar-se num conglomerado heterogêneo e
confuso, em que se perdiam pouco a pouco as possibilidades de controle da
sociedade sobre cada um dos seus membros, a medida que desaparecia a antiga
relação direta uns com os outros.
44
Todos esses complexos de componentes que à força do tempo foram se
adensando na experiência modernizadora de Buenos Aires ganham mais sentido se
avaliarmos o potencial da ênfase dada à morte das relações de proximidade.
Naturalmente, o advento do alvoroço modernizador trouxe consigo uns sem número de
atividades, novos ramos de profissões, possibilidades inusitadas de intervenção na arena
pública, radicalidade na alteração do espaço físico, novos estímulos e transformação da
visualidade. Nesta direção, a embriaguez do cenário talvez tenha tido como
correspondência não especulada o fato das pessoas se relacionarem de forma distante,
dificilmente de forma direta e espontânea, mas apenas em seu confronto solitário e
solidário com o turbilhão de que a rua, a grande artéria era lugar principal desta nova
platéia.
45
O elemento de não especulação deve-se, sobretudo, ao adensamento a patamares
ingovernáveis da capital argentina e sua transformação em território simbólico das
manifestações do efêmero e no locus onde a coletividade teria de enfrentar-se, de forma
apaziguada esperavam os planejadores, nos cafés, transportes públicos ou num simples
olhar de uma tumultuada avenida recém reformada. Esta nova multidão em cenário
43
ROMERO, J. L., Latinoamérica: las ciudades y las ideas, p. 259-260.
44
Ibid., p. 260.
45
Mesmo que seja uma interpretação de cunho pessoal ela não se encontra totalmente desprovida de
fundamentos já que podemos encontrar ressonâncias em outros estudos que tivemos acesso. De fato,
Beatriz Sarlo estudiosa da modernização em Buenos Aires dá eloqüentes pistas para uma interpretação no
mesmo sentido: SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930. Ver também:
SCHORSKE, C., Viena Fin de Siècle.; SENNETT, R., O declínio do homem público: As tiranias da
Intimidade.; SEVCENKO, N., Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos
frementes anos 20.
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passara a agir como que resguardando seu direito de não ser abordada levando desta
forma uma vida em sociedade que beirava a um alérgico contato ao outro.
De todo o exposto depreende-se que a vida na grande Buenos Aires não
garantira por si uma existência mais solidária nem favorecera a comunhão entre os
homens, essa nova multidão que passara a entrar em cena. A despeito de seu avultante
montante, esta nova multidão que adentrara o cenário urbano buenairense dificilmente
poderia ser considerada como totalidade, segundo a análise um tanto pessimista de
Florêncio Escardó.
46
Assim, como a Viena tratada por Carl Schorske, o habitante da
nova e tensa Buenos Aires caminhava de um edifício a outro, de um aspecto da vida a
outro experimentando as novas modalidades em processo.
47
A estabilidade residia
justamente neste consórcio de almas transitando, aparentemente desobjetivadas. A
angústia do isolamento e da falência do modelo das relações abertas, notoriamente mais
presentes na aldeia que era a antiga Buenos Aires, acentua-se com a diversidade e o
modelo intransigente dos planejadores urbanos:
A pontualidade, a confiança, a exatidão impõe a ele (o homem que vive na
metrópole) as complicações e as grandes distâncias da vida na grande cidade,
não somente em forte conexão com seu caráter financeiro e intelectual, mas
devem também colorir os conteúdos da vida e favorecer a desqualificação dos
impulsos e traços irracionais, instintivos e soberanos, que querem determinar a
forma da vida a partir deles mesmos, ao lugar de acolher do exterior como uma
forma universal, de uma precisão esquemática.
48
Nestes termos, ao habitante da recém transformada Buenos Aires consentiu-se a
oportunidade de experimentar as metamorfoses pela qual estava passando a antiga
cidade através dos planos de remodelação de seu tecido físico. Na verdade, desde a
virada do século XIX para o século XX, apesar das contradições que haviam se
manifestado durante a primeira presidência de Hipólito Yrigoyen, se viveu em
Argentina um período de relativa prosperidade.
49
Como foi demonstrado pelas palavras
semelhantes de Félix Luna, ensaiava-se na Argentina caminhar na direção de
instituições mais estáveis, com amplas reservas de capital consolidado e fazenda
solvente.
50
Desta maneira, e já que estas eram uma das exigências do momento, somente
a recuperação de uma imagem disciplinada e aberrantemente conservadora poderia
46
ESCARDÓ, F., Geografia de Buenos Aires, p. 19.
47
SCHORSKE, C., Viena Fin de Siècle, p. 54.
48
SIMMEL, G., Philosophie de la Modernité, p. 238-239.
49
GUTMAN, M.; HARDOY, J. E., Buenos Aires: Historia urbana del Área Metropolitana, p. 140.
50
LUNA, F., Breve História dos Argentinos, p.14.
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restabelecer os contornos de um país com um chão firme e que garantisse a adulação
dos créditos europeus.
51
Com esses rearranjos em concerto, a cidade portenha estava se transformando
em núcleo nervoso da ação reformista cujo húmus estava presente nos projetos de
melhorias propostos desde fins do século XIX e que perduraram até a segunda metade
do século XX. Neste sentido, a função atribuída ao passado vai adquirindo relevância a
medida que a versão prática dos projetos de reforma ia se aproximando da direção onde
ainda restavam os resquícios das antigas simbologias do passado colonial. Segundo
Elisa Radovanovic estes projetos afetaram principalmente:
O grande projeto transformador de Paris afetou globalmente a cidade. No
restante do mundo as imitações baseadas neste principal referente apenas
modificaram um setor da trama urbana. Nas capitais dos países latinos
americanos, como Buenos Aires, ao operar sobre os velhos cascos fundacionais
se destruiu o tecido que persistia do tempo colonial, desfigurando um dos
símbolos principais de sua identidade.
52
Esta relação com as identidades passíveis de serem forjadas foram especialmente
salientadas nos embates ideológicos e políticos que traziam a marca de uma aposta
argentina da civilização contra a barbárie.
53
Tais medidas visavam incluir o país, na
materialidade majestosa de sua capital, no conjunto de centros metropolitanos
comparáveis as grandes urbes modernas. Para que este evento se concretizasse era
preciso emprestar a fisionomia de Buenos Aires uma imagem menos antiquada e mais
hodierna.
De fato, o centro metropolitano da cidade de Buenos Aires entra num processo
de franca expansibilidade. Poderíamos certamente sem muito esforço, imaginar o
alvoroço que estas mudanças provocaram nos que tiveram alguma forma de acesso a
urbe reformada. A cidade, pelo frescor e vivacidade de suas novas construções,
começava a experimentar algumas sensíveis mudanças em suas características
urbanísticas e que, por sua vez, também veria os monumentos que não faziam parte da
cidade no passado surgirem com a força do seu majestoso esplendor. No curso destes
51
LUNA, F., Breve História dos Argentinos, p.14.
52
RADOVANOVIC, E., Buenos Aires Ciudad Moderna: 1880-1910, p. 61.
53
Civilização e Barbárie são dois extremos de um dos preceitos fundamentais da visão de Sarmiento
sobre o futuro da República Argentina. Sobre as políticas que traziam a marca desta aposta sarmientiana
Ver: VIANA, F., Argentina, Civilização e Barbárie: a história Argentina vista da casa rosada.;
LAMBERT, J., América Latina: estruturas sociais e instituições políticas.; SIMÕES, J. F. de O., Casa-
grande & senzala e Radiografía de la pampa: ensaios de interpretação nacional na América Latina.
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anos, a cidade de Buenos Aires ia aumentando seu conjunto de instituições,
monumentos, parques e jardins públicos e áreas de lazer.
54
Assim, a cidade portenha foi adquirindo um semblante inédito. Por toda urbe as
novas construções pareciam escritas em um idioma híbrido, como que atestando uma
realidade imaginária, de fantasia e sonhos, podemos dizer quase virtual, e onde a
heterodoxia das regras parecia ser sua distinção inauferível. Buenos Aires apresentava-
se aos olhos dos seus habitantes e transeuntes como uma cidade eclética e rica de
possibilidades. Por isso mesmo grande parte da sedução da cidade jazia nas
características pretensiosas da construção dos complexos de mosaicos em que se
transformara a urbe buenairense:
O país em seu apogeu permitiu a Buenos Aires o luxo de ser apoteótica e
decadente, brilhante e opaca de uma só vez. Suas insaciáveis pretensões
buscavam condensar a festa de Paris, o vodevil de Berlim e a voracidade de
Nova York... A capital européia da América não acusou o trauma de seus pares
ancestrais o que lhe permitiu continuar com a prática de em ecletismo irrestrito,
multiforme e já definitivamente institucionalizado.
55
Uma das maiores evidências que causa o efeito deste conjunto é a da aparente
evolução sensível na arte da construção. O século XIX se finda operando como que uma
suspensão com os modelos representativos que revelassem alguma forma de diálogo
com o passado colonial. Com efeito, Buenos Aires como centro espiritual da Argentina,
ao tentar lançar seu passado no ostracismo procurou oferecer mais que outras cidades no
interior do território ou mesmo do continente Latino Americano formas de beleza que
convidassem ao lazer ou que favorecessem a vaidade dos que desfrutavam de seu novo
aspecto risonho e longevo:
Com a revolução nos costumes de fins do século, o ritual começou a orgarnizar-
se de forma mais pomposa com os passeios da Rua Flórida, da Recoleta e as
Barrancas de Belgrano, e sobretudo o famoso “corso” de Palermo, as tardes de
quinta e domingos: quatro filas de carros indo e voltando em uma área de três
quadras pela atual Avenida Sarmiento, trocando em cada volta o local para que
todos pudesse cruzar inevitavelmente com todos. A cerimônia tinha suas regras
fixas: na primeira volta se saudavam, na seguinte fingiam não se verem e na
última se despediam.
56
54
RADOVANOVIC, E., Buenos Aires Ciudad Moderna: 1880-1910, p. 98.
55
GREMENTIERI, F.; VERSTRAETEN, X., Buenos Aires; arquitectura y Patrimônio, p. 15.
56
SEBRELI, J. J., Buenos Aires, Vida Cotidiana y Alienacion, p. 46.
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Notoriamente, a sensação de impacto causado por estes novos logradouros
residia no aspecto espetacular de suas novas construções. Em Buenos Aires, este
sentimento estava aliado a ilusão de um espaço gigantesco produzido por obra humana e
seu engenho, bem no núcleo nervoso de um denso conglomerado urbano. Todas essas
novas edificações, desde os parques públicos que dialogavam através das diagonais até
as novas ruas como a Avenida e Plaza de Mayo, entravam em consonância com os
edifícios do Congresso e Casas de governo e poderiam ser vistos como monumentos
que rendiam homenagens a si mesmas dadas tamanhas força e expressividade.
Os planejadores estavam especialmente cônscios da nova e imensa
funcionalidade destes projetos.
57
Ao se criar espaços públicos pensavam-se na questão
social representada pela nova aglomeração populacional. Ao tentar reestruturar esta
nova densidade, as construções alteraram a liberdade com que as pessoas poderiam se
reunir ou simplesmente transitar. Na verdade, com ou sem eficácia, estes planejadores
buscarão refrear ou ao menos arregimentar os grupos humanos cada vez mais
fragmentados e dispersos. Nas palavras de Elisa Radovanovic:
A renovação do setor central orientou a nova imagem da capital em um desenho
de corte modernizador, de cunho liberal e positivista imposto pelo poder.
O processo de modernização requeria a substituição da estrutura urbana
herdada do passado, apagando os traços daquela outra cidade de feição
hispênica que perdurava no branco de seus edifícios, em seu baixo perfil, nas
suas ruas estreitas, de dimensões quase coloquiais. Desde então as relações
entre os cidadãos e seu habitat se modificaram profundamente.
58
Desta forma, a capital argentina na figura dos seus ideólogos planejadores seguia
o desenrolar de seu destino legendário prevista na planificação de uma cidade singular.
Imaginando estar dando largos passos rumo a uma ordem de outro tipo, esses
planejadores se obstinavam em seus desafios, ao mesmo tempo em que as novas
projeções metropolitanas deformavam a percepção habitual de seus habitantes. Desta
forma, a redenção do país pertencia ao futuro, e só a eficácia de um presente moderno
poderia excomungar um passado colonial de atraso e de barbárie. De fato, no momento
57
Trata-se de um extenso conjunto de planejadores urbanos e políticos da cidade cujos projetos por mais
díspares que fossem tinham em comum o intento de revestir a capital do país de funcionalidade e “saúde”,
como um organismo vivo. Desta maneira, conformou-se com urgência a questão do crescimento
populacional destas décadas. Seus principais epígonos são, segundo Elisa Radovanovic: Torcuato Alvear,
principal inspirador do projeto de reforma do setor central da cidade de Buenos Aires; Eduardo Wilde, a
gestão presidencial de Julio Roca, Miguel Cané entre outros. Ver: RADOVANOVIC, E., Buenos Aires
Ciudad Moderna: 1880-1910, p. 94.
58
RADOVANIC, E., Buenos Aires Ciudad Moderna: 1880-1910, p.124.
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em que se agudiza o sentimento de perplexidade, a sensação de estranheza e contradição
era quase que inevitável, sobretudo na própria consciência dos que eram arrastados por
este intenso turbilhão:
Houve, portanto, uma generalizada experiência de desenraizamento ao entrar a
cidade ao movimento que regia o sistema econômico expansivo da época: os
cidadãos já estabelecidos anteriormenete viam desvanecer o passado e se
sentiam precipitados à precariedade, à transformação e ao futuro; os cidadãos
novos, pelo simples fato de seu translado da Europa, já estavam vivendo este
estado de precariedade, careciam de vínculos emocionais com o cenário urbano
que encontravam na América e tendiam a vê-lo em termos exclusivos de interesse
ou comodidade.
59
Vários fatores contribuíram para intensificar esta sensação. Além de uma cidade
em plena transformação, com avenidas mais amplas e um novo reordenamento da
espacialidade da urbe, Buenos Aires havia também que saber lidar com o crescimento
do número de imigrantes. Singularmente, tal fator a transformou numa cidade de feições
poliétnica e, junto com isso, o nascimento do imperativo de se conviver com patamares
de diversidade outrora praticamente impensáveis na aldeia portenha. Nesta direção, os
dados são realmente impressionantes.
Historicamente, após ter contribuído para dar uma resposta ao artificialismo da
idéia de América Hispânica com seus planos de dominação que retalhou os territórios
em Vice Reinos, após as incruentas guerras civis de fragmentação do pós
independência, a Argentina se via num problema de incorporação dos estrangeiros
60
. A
maciça presença de imigrantes já desde finais do século XIX fez com que nestes anos,
devido a política de imigração, a população argentina quadruplicasse seu número de
habitantes entre 1869 e 1914.
61
Com isso os desembarques ultrapassavam a duzentos
mil por ano e como conseqüência, Buenos Aires é alçada em meados de 1880 a cidade
com o maior número de habitantes da América Latina, tendo superado poucos anos
antes Rio de Janeiro e Cidade do México.
O antes e depois do processo de modernização se fez sentir em mais de um
aspecto. Cidades inchadas, apresentando problemas sociais de difícil solução faziam
59
RAMA, A., A cidade das letras, p. 97.
60
O interessante a pensar nesta referência é que após a derrocada espanhola na América, além da questão
dos estados nacionais surge a questão dos tão famigerados caudilhos que não é nosso propósito analisá-
los. De qualquer forma, com a maciça chegada dos imigrantes pelo menos a nível simbólico foi mais uma
vez adiada a idéia de unidade sem que houvesse representação de perigo. Ver: RIBEIRO, J. J.,O Brasil
Monárquico em face das Repúblicas Americanas, p. 161.
61
SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 18.
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parte do traçado característico em inúmeras delas. Nesta direção, algumas cidades
pareciam absolutamente desfiguradas, verdadeiros monstros. De acordo com Romero a
explosão urbana:
A explosão urbana modificou a fisionomia das cidades. Queixavam-se quem as
desfrutou antes, aprazíveis e sossegadas, mas, sobretudo, com uma infra estrutura
suficiente para o número de seus habitantes. Os invasores as desfiguraram e fizeram
delas uns monstros sociais que revestiram ademais, pelos mesmos anos, os
caracteres desumanos que lhe prestou o desenvolvimento técnico.
62
Neste cenário a cidade de Buenos Aires é mais cosmopolita que nunca. No
circuito de suas edificações recentes, parques e avenidas, a grande massa de estrangeiros
passara a compor também o novo teatro da urbe babélica: são agora notados pela
população nativa, pelos “argentinos autênticos”, o que evidentemente correspondia ao
seu contrário: a visibilidade entre argentinos e imigrantes era mútua. A diferença residia
na qualidade do olhar.
Segundo Luis Alberto Romero, havia além do impacto da visão da multidão por
si, a sociedade tradicional sentia o choque da audácia dos imigrantes que rompiam,
simplesmente pela presença física, a assepsia e higiene da cidade moderna. Com seus
costumes e hábitos de vestuário distintos dos nativos, esses imigrantes eram percebidos
desdenhosamente pelos setores da sociedade tradicional. Deste modo, aos estrangeiros
que ousavam não permanecer nos seus bairros periféricos e que por força das
necessidades saíam para trabalhar ao redor de Buenos Aires, eram pilheriados com os
mais criativos e maldosos ápodos. Dada a verdadeira corrida em direção ao ouro, não é
difícil imaginar que tais apodos estavam geralmente associados a sua origem ou a sua
mísera condição social.
63
Na verdade, como se tratava de um período de riquezas movediças e onde as
oportunidades iam sendo engendradas quase diuturnamente, a evidência inconteste de
inúmeras dificuldades era que nem todos conseguiam instalar-se nesta sociedade
comodamente. Não é difícil prever, entretanto, que para os imigrantes que deixaram em
terra longínqua uma história e relações pessoais, portadores do sonho de fazer um país e
serem recompensados por isso, fizeram com que a pressão por enriquecer tornar-se tão
62
ROMERO, J. L., Latinoamérica: las ciudades y las idéias, p. 329-330.
63
Ibid., p. 323.
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38
sufocante que muito poucos se abstiveram de tentar subir esta escada deslizante. Os
problemas sociais decorrentes desta situação naturalmente se avolumaram.
64
As cidades em que agruparam ingentes migrações rurais internas e às vezes
ainda maiores externas, começaram a mudar sob este impacto que desbordou as
planificações fundadoras e criou todo tipo de entorpecimento às comunicações,
complicadas além disso pelo funcionamento intermediador das cidades-portos
em uma economia exportadora-importadora vertiginosamente aumentada. Pela
primeira vez se presenciou, na curta duração de uma vida humana, à
desaparição ou transmutação dos decorados físicos que a acompanhavam desde
a infância.
65
Por esta via, pode-se dizer que a Argentina ao comungar do credo do progresso e
da modernização crescentes converteu o espetáculo urbano buenairense em algo que era
muito mais constituído de transtornos, que se avultava de forma avassaladora
resvalando o inadministrável, do que de respostas fundamentais. Com a entrada em cena
dos estrangeiros, a parte dos recursos que lhes era destinada, tíbia já no que se referia
aos nativos, insistia em não ser suficiente no que tange às questões mais básicas: como
habitação e serviços públicos emergenciais. Diante de tais perspectivas, os imigrantes
convocados ao enriquecimento, a “tentar a sorte” no deserto, eram lançados para além
da vociferante concorrência comum e universal, a uma outra de segundo tipo entre seus
pares, àqueles que eram simplesmente estrangeiros ou estrangeiros oriundos de uma
mesma localidade
66
. Naturalmente, o que estava posto em tela aumentava a dificuldade
de adaptação e dava incremento ao sentimento de estranhamento produzido por tais
adversidades:
Mas passaria muito tempo – ninguém podia dizer quanto – até que os imigrantes
descobrissem e aceitassem que tudo o que constituía a estrutura da sociedade
normalizada pertenciam também a eles. Entretanto suas atitudes estavam
presididas pela certeza de que tudo era dos outros: o grifo de água, o banco do
passeio, a cama do hospital, tudo era alheio e para tudo havia outro que tinha
melhor direito.
67
As inúmeras conseqüências dessa nova situação determinaram, para os
habitantes da Buenos Aires moderna, o contingente como ambiência constante e
64
ROMERO, J. L., Latinoamérica: las ciudades y las idéias, p. 323-324.
65
RAMA, A., A Cidade das Letras, p. 96.
66
Idéia similar expressada por Adorno em outro contexto. Ver: ADORNO, T., Mínima Moralia,, p. 26-
27.
67
ROMERO. J. L., op.cit., p. 333.
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inexaurível. Para esses moradores, residentes há muito ou recém chegados, o que
prevalecia era o sentimento de deslocamento próprio dos que se sentem numa atmosfera
em que não há mais nada que lhes fiancie a estabilidade e a serenidade de épocas
pretéritas. Deste modo, a crise gerada pela metropolização acelerada da cidade portenha
era ao mesmo tempo deslumbrante e desorientadora. Na verdade, há um sentimento de
incoerência espiritual, uma justaposição de mentalidades que não aderem à fusão
perfeita dentre da lógica da racionalidade que lhes eram propostas.
68
Como a multidão
se tornou mais extensiva, o corpo político estava cada vez menos em condições de
corresponder àquilo que seus membros pleiteavam. O que emerge conforme análise de
Nicolau Sevcenko sobre a modernização paulistana, é uma sociedade multifacetada e
alijada das condições que, se não estavam relacionadas à aspiração de uma vida
confortavelmente burguesa e mais confiante, requeria uma dimensão que desse conta do
esgarçamento contumaz da figura humana diante da multiplicação ciclópica das escalas
do ambiente urbano.
69
Verifica-se, então, toda uma gama de ações em prol de uma radical
transformação da imagem da cidade portenha. Na verdade, esses planos, mesmo que
fossem numerosos e variassem de objetivos, desde o século XIX tinham por destinação
a organização e controle do espaço físico da cidade. Estes se materializavam no
embelezamento da capital, nas construções imponentes, na extensiva arborização e
abertura de verdadeiros flancos urbanos cuja finalidade ajustava-se desde uma melhor
perspectiva visual até a higiene pura e simples. Esses fatores conjugados e confundidos
passaram a compor a união perfeita de ação racionalizadora pragmática e tradição
higienista que urgia aparecer desde muito tempo.
Conforme vimos dizendo, o viés científico orientado para uma direção
higinenista fazia parte dos principais projetos para a cidade desde o século XIX. Com a
solução das amplas diagonais e largas avenidas os urbanistas expandiam os corredores
para a passagem livre de vento e ar frescos, sempre muito bem vindos em casos de
adoção de medidas profiláticas para as cidades, ao mesmo tempo em que apresentava
medidas para a movimentação e circularidade de uma população cada vez mais
numerosa.
70
A circulação de pessoas e veículos, trens e as mais diversas atividades
68
ROMERO, J. L., La Experiência Argentina y otros ensayos, p. 105.
69
SEVCENKO, N., Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20,
p. 19.
70
RADOVANOVIC, E., Buenos Aires Ciudad Moderna: 1880-1910, 2002.
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surgiram no cenário buenairense e dá-lhes um ordenamento, e talvez mesmo um
sentido, se tornou uma necessidade imperiosa.
Quando a economia alcançou certo estágio de desenvolvimento, surgiu a questão
da circulação. A estrutura urbana tornou-se um obstáculo ao desenvolvimento
econômico. Na América do Sul, para acelerar a circulação de pessoas e artigos
através do sistema de transporte assim como para a saúde pública, o estado
interveio nestas cidades. Esta intervenção foi caracterizada pela renovação dos
bairros centrais nas maiores cidades.
71
Entretanto, uma das preocupações centrais residia no trato com os imigrantes:
A persistência do provinciano na vila se deve a fatores econômicos objetivos,
mas também se deve a um intento de conservação da comunidade de origem, a
um mecanismo de defesa frente a cidade e a sua diversidade de pautas e valores.
Talvez também possamos interpretar o enclausuramento nas vilas misérias como
uma resposta ao rechaço, as barreiras que o meio impõe. Faltam estímulos para
sair da vila, e se estruturam mecanismos de defesa, por rechaço do meio.
72
Neste sentido uma das dimensões que adquire enorme volume na Buenos Aires
da época é a questão da loucura e seus derivados. Observando uma sociedade que põe
em xeque inúmero de seus códigos espirituais, Hugo Vezzetti tem posto em relevo o
papel desempenhado pelas transformações e a inquietude que elas geram.
73
Culminando
muitas vezes numa espécie de não enquadramento das posturas adotadas pelos agentes
dum ambiente insólito e de rígida moral tradicional, os imigrantes se perceberam
fazendo parte de estatísticas psiquiátricas pouco animadoras.
Além do vertiginoso crescimento do número de estabelecimentos hospitalares
dedicado ao ramo, Hugo Vezzetti revela que dois terços do cada vez mais numeroso
contingente de internos são homens estrangeiros que possuem entre 21 e 40 anos. Na
verdade, a partir das últimas décadas do século XIX e nas primeiras décadas do século
XX, o recrudescimento do domínio positivista passa a vigorar com força de vendaval na
sociedade argentina e desenvolve-se sobretudo nos estudos profiláticos da loucura se
situando na massa de imigrantes e nos problemas derivados de sua inserção na
sociedade argentina:
O incremento das internações reflete, no nível de combate individual, a
profundidade da crise social que afeta as condições de vida e relação de vários
71
OUTTES, J., Disciplining Society through the City: The Genesis of city Planing in Brazil and
Argentina (1894-1945), p. 142.
72
MARGULIS, M., Migracion y marginalidad em la sociedad Argentina, p. 85.
73
VEZZETTI, H., La locura en la Argentina – Psiquiatria, Hospícios y Enfermos de Buenos Aires, p. 9.
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setores. A internação do discrepante – em termos sociais ou familiares – passa a
ser um recurso cada vez mais difundido, ao quais as próprias autoridades dos
hospícios procuravam por um limite.
74
Desta forma, a exposição dos fatos acima descritos não deve levar a conclusão
de que havia exclusão de qualquer ordem ou que apenas os estrangeiros de condições
sócio-econômica mais modestas eram vítimas do processo de desorientação na urbe
moderna. O fenômeno perturbador e de contradição não escolhia apenas os mais
suscetíveis economicamente. Tanto no que tange a composição etária quanto no que se
refere a amostragem por profissão, os números apresentados por estes estudos deixam
entrever que todos poderiam fazer parte do universo dos não adaptados e engrossar as
fileiras daqueles que necessitavam de ajuda médica e psiquiátrica. No caso buenairense,
já a partir da virada do século temos um aumento global do número de internos e uma
intensa criação de hospitais psiquiátricos (los loqueros como eram chamados) para dar
conta a esta nova demanda.
75
Um outro fator de importância é que embora segundo Hugo Vezzetti
predominasse as profissões de caráter manual como sapateiros, lavradores, cozinheiros e
carpinteiros e um número significativo de comerciantes, passavam também pelos leitos
hospitalares dos loqueros profissões de caráter mais nobres e intelectualizadas.
Militares, padres, advogados e médicos, entre outros, se tornaram pacientes assíduos
desses novos ambientes. O que, na verdade, deixa transparecer amplos vestígios do
alcance social das novas teorias e dos experimentos psiquiátricos na sociedade em
transformação.
76
Seguramente, um dos maiores vetores de explicação para a dilatada extensão
social das teorias psiquiátricas é seu apelo moral. Num ambiente polifônico como a
moderna cidade de Buenos Aires, aberto a inúmeras vozes e possibilidades, a profusão
das taxas de internos, bem como o crescente avanço das instalações hospitalares não
deixa de ser um elemento sintomático do período. Desta feita, verifica-se que a
explicação sobre os desequilíbrios comportamentais transformara a loucura citadina
num sinônimo muito próximo, quase perfeito dos vícios e dos maus hábitos. De acordo
com Joel Outtes a conjunção entre apelo moral e a assepsia da cidade, esta última
74
VEZZETTI, H., La locura en la Argentina – Psiquiatria, Hospícios y Enfermos de Buenos Aires, p. 9.
75
Ibid., p. 9-10.
76
Ibid., p. 10.
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muitas vezes vista como um organismo vivo, deveria apresentar resultados de um ser
saudável e, sempre que possível, poder muito bem respirar.
77
Portanto, como afirma Hugo Vezzetti, não é por acaso que o alcoolismo,
percebido como vício maldito, figura entre a principal causa de internação e inquéritos
nos registros policiais.
78
Paralelo a estes arroubos de apelo moral, instaura-se também a
ideologia de que a urbe buenairense como lugar das novas possibilidades e suntuosas
construções deveria ser desfrutada com refinamento e moderação. Com a transformação
da função médica numa espécie de pedagogia social ou quase de polícia, neste período
passa a ser condenado todo e qualquer comportamento considerado desviante e procura-
se estar atento a moderação de todos os excessos. Do mais ingênuo trago de bebida até a
ambição desenfreada por dinheiro e postos avançados na estrutura social, todas essas
posturas passaram a serem reconhecidos como fatores preponderantes da loucura e de
atuação não enquadrada
79
. Ao gerar o sentimento de estranhamento nos imigrantes, Juan
Carlos Portantiero afirma sobre as conseqüências resultantes desta política:
Foram tantos os que se encontravam no país como os que passaram como os que
passaram como andorinhas; e os que permaneceram não abandonariam jamais
sua erradicação, senão vicariamente, através de seus filhos. Esta imigração
culturalmente segregada e politicamente ausente, era a prova do fracasso de
uma decisão de “povoar o deserto” que na primeira década do século se
aproximava perigosamente de um problema policial
80
.
Nesta direção, Buenos Aires em particular, era vista como um mosaico do ponto
de vista étnico, racial e em termos de cultura. A cidade ia crescendo, parecendo adquirir
dimensões quase infinitas. Segundo Mario Margulis, parecia um tanto difícil para um
argentino tradicional observar outros hermanos egressos do interior do país, italianos,
judeus e espanhóis tendo que conviver lado a lado no coração da cidade já tão
transformada.
81
Com uma maior densidade populacional a crise da cidade aumentou. E,
em crescente medida, grande parte do problema estava no fato de que agora, com uma
crença absoluta no progresso incontível, os problemas eram muito mais subestimados
do que outrora, na antiga aldeia que era Buenos Aires. As vicissitudes da modernidade
77
OUTTES, J.,Disciplining Society through the City: The Genesis of city Planing in Brazil and Argentina
(1894-1945), p. 148.
78
VEZZETTI, H.,La locura en la Argentina – Psiquiatria, Hospícios y Enfermos de Buenos Aires”, p. 9.
79
Loc.cit.
80
PORTANTIERO, J. C., Nación y Democracia em la Argentina del Novicientos, p. 3.
81
MARGULIS, M., Migracion y marginalidad en la sociedad Argentina, p. 87.
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passaram a serem tão próximas e coexistentes que os buenairenses não se apressavam
em resolvê-las.
82
A cidade moderna oferecia um eterno hic et nunc, cujo conteúdo é a
transitoriedade, mas uma transitoriedade permanente – indivíduos únicos que
confluem por um momento antes de voltar a separar-se (...) Este enriquecimento
da sensibilidade exigia um preço terrível: alijar-se dos consolos psicológicos da
tradição, abandonar qualquer participação em um todo social integrado.
83
Com efeito, pode-se dizer que vertigem e torpor não são palavras
demasiadamente fortes para expressar a confusão que era experimentada pelo habitante
da Buenos Aires. Na verdade, podemos dizer que tal vertigem era acompanhada em
conjunto pelos sentimentos de entusiasmo e fascínio, simultaneamente sentidos. O novo
desenho da metrópole ao instituir o reto traçado operou uma transformação de cunho
mais que físico. Enquanto a cidade de Buenos Aires possuía características rurais a
própria atividade de contemplar as cercanias, de passear pela “grande aldeia”, pra se
valer de um vocabulário de como era chamada a Buenos Aires de outrora, produzia
resultados mais estáveis e inesitantes. É nesta direção que o grande projeto
transformador afetou globalmente a cidade buenairense. De fato, ao agir sobre os velhos
traços primordiais que residiam desde a fundação, aniquilou-se o que restava do tecido
colonial transfigurando um dos traços principais que fornecia explicações acerca das
origens do povo argentino.
84
De fato, muitos desses novos expedientes estavam conjugalmente relacionados a
um outro dado do período que iremos trata daqui por diante, assim como das suas
imediatas conseqüências: este expediente está representado pelo significativo aumento
da instrução formal e sua ressonância nos diversos setores da intelectualidade argentina
e especificamente buenairense.
Segundo Beatriz Sarlo na metade da década de 1930 as estatísticas sobre
analfabetismo em Argentina apontavam um patamar de 2,39 % para os sem instrução
que nasceram na Argentina em um quadro cujo número representava 6,64 % em termos
absolutos.
85
A riqueza destes dados reside naquilo que o incremento da instrução formal
propiciou para o nascimento e o avançar do que seria característico no período: a gênese
82
MARGULIS, M., Migracion y marginalidad en la sociedad Argentina, p. 86.
83
SCHORSKE, C.,La idea de ciudad en el pensamiento europeo: de Voltaire a Spengler, p.15.
84
RADOVANOVIC, E., Buenos Aires Ciudad Moderna: 1880-1910, p. 61.
85
SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 18.
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e a ampliação cada vez mais crescente do mercado de edição na região aliado ao
também cada vez mais extensivo número de leitores em potencial.
Verdadeiramente, estas novas possibilidades de acesso ao conhecimento, ainda
que acompanhadas de um nível não tão satisfatório de leitura compreensiva ou
interpretativa como requeria o mercado de profissões na incipiente economia capitalista
argentina, forneceu fôlego a um setor da economia cuja renovação e circularidade se
tornou bastante emblemático do período. A difusão da leitura de alguns livros e jornais
com alguma densidade significou a possibilidade, como diz Gutiérrez e Romero, de se
estar em condições de aceder a outro instrumento de conhecimento que não fosse a mera
experiência.
86
Nesta perspectiva, o deslocamento do ato de leitura de um grupo restrito
da sociedade passando a setores significativamente mais amplos, representou, sem
sombra de dúvida, uma maior universalidade das oportunidades.
A título de ilustração podem ser enlencados os novos periódicos muitos deles
vanguardistas como “Él Mundo”, “Crítica”, e “Martin Fierro”. Ou mesmo o
fenômeno representado pelo periódico “Claridad” que, ao longo dos anos, se tornou
uma empresa editorial moderna, ativa, dinâmica e, naturalmente no que tange a
dimensão econômica, bastante bem sucedida. Suas tiragens alcançaram os dez mil
exemplares e na década de 30 já estavam nos vinte e cinco mil.
87
Um número de
tiragens inegavelmente alarmante para os padrões da época:
Grandes linhas da cultura argentina se apresentam e se impõe nas revistas dos
anos vinte e trinta. Algumas delas vinculadas as editoras de “livros baratos”,
outras como porta vozes das rupturas estéticas ou como plataformas de
consolidação dos programas renovadores. A incidência dessas publicações nas
transformações culturais não pode ser medida apenas em termos de
exemplares vendidos (ainda que os 14.000 que declara Martín Fierro em
algum momento, incluso se se reduz a cifra em cinqüenta por cento não
desprezíveis), mas de repercussões no campo intelectual que logo alargam e se
chocam no espaço do público e as instituições, sem dúvida com uma
temporalidade e intensidade diferentes.
88
Deste modo, é correto conjecturar que a amplitude de perspectivas mais
prósperas somada ao otimismo da temporada modernizante certamente animou o
circuito editorial local. As publicações eram variadas e contemplavam em suas
classificações os mais diversos tipos de leitores. Necessariamente devemos incluir
86
SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 34.
87
Ibid., p. 19.
88
Ibid., p. 25.
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45
aqueles que possuíam algum poder financeiro para a aquisição deste novo bem. Beatriz
Sarlo aponta a ampla divulgação de periódicos leves com artigos breves e notícias que
não exigiam do leitor perguntas mais aprofundadas sobre um fato. Havia também
aqueles que poderiam ser consumidos durante uma viagem de trabalho, num rápido café
ou mesmo entre o intervalo das obrigações de trabalho, até as publicações e traduções
mais densas que comportavam ensaios filosóficos, sobre estética, política, arte e ficção
européia. Acerca disto nos diz ainda Beatriz Sarlo:
Armam a biblioteca do aficionado pobre; respondem a um novo público que, ao
mesmo tempo, estão produzindo, proporcionando-lhes uma literatura
responsável do ponto de vista moral, útil por seu valor pedagógico, acessível
tanto intelectual quanto economicamente. Estas editoras e revistas consolidam
um circuito de leitores que, pela ação do novo periodismo, está mudando e
expandindo-se: se trata de uma cultura que se democratiza desde o pólo da
distribuição e o consumo.
89
É insofismável, portanto, que as transformações que a modernidade buenairense
encerrava não se relacionavam apenas a um tino físico. Com a dilatação das referências,
presenciou-se uma nova espiritualidade, uma atmosfera de signos em alteração.
Aventuramos, entretanto, que num dado momento tornou-se mais nítida a percepção do
verdadeiro rebentar de fontes inauditas que, dada a inevitabilidade do advento, sua
existência real mesma, exigia dos partícipes uma perícia nem sempre passível de ser
lograda através dos meios seguros e tradicionais. Através do alargamento das
representações pelo novo repertório literário sucumbe em muito o ideal de uma
sociedade estática e de pouco movimento em termos sócio-culturais. Ao enriquecer o
imaginário com a reinserção de novos códigos, a sociedade moderna buenairense entra
em confronto direto com elementos constitutivos do corpo social antes da empreitada
modernizadora. Seus partícipes são levados a pensar a remodelação dos símbolos,
ícones de um passado que parece não mais responder às questões de uma cidade que
caminha em direção a um futuro cada vez mais incerto e contraditório:
A letra apareceu como a alavanca de ascensão social, da respeitabilidade
pública e da incorporação aos centros de poder; mas também, em um grau que
não havia sido conhecido pela história secular do continente, de uma relativa
autonomia em relação a eles, sustentada pela pluralidade de centro econômicos
que a sociedade burguesa em desenvolvimento gerava.
90
89
SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 19.
90
RAMA, A., A cidade das Letras, p. 79-80.
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Diante deste painel, a expansão dos meios de comunicação visando uma massa
de potenciais consumidores ávidos, ainda que muitos deles atônitos e confusos pelo
processo de modernização em curso, representaram um marco importante na nova
sensibilidade. Essas esferas tiveram de ser repensadas sob os estímulos recebidos de
fontes diversas.
Por outro lado, deve-se ter em mente o papel desempenhado pela nova indústria
dos já mencionados mercado editorial local, periódicos e revistas e sua conjugação com
a nascente indústria cinematográfica. Através desta aliança, os modelos de
comportamento, de visão de mundo, postura e ética do passado, sofreram um duro
golpe. Já que comummente se apresentavam de forma pouco dinâmica, estes modelos
foram impelidos dada a torrente de novidades, a rapidamente metamorfosearem-se.
Pode-se dizer que em Argentina o fenômeno cinematográfico alcançou
patamares de verdadeira loucura e status de febre nacional. Juan Sebreli sublinha que o
sentido de ilusão e entretenimento promulgado pelo recente aparato técnico fez com que
sua difusão, em números e em marcha, acompanhasse passo a passo a porcentagem das
regularidades de salas como o de países capitalistas centrais.
91
Já segundo Beatriz Sarlo
a década de 30 presenciou uma argentina com mais de mil salas de exibição das
películas e que, com o surgimento do cinema sonoro, abriram-se em pouco tempo mais
600 salas para que argentino se deleitasse com a mais nova modalidade de
entretenimento e distração.
92
De fato, não há como negar a profunda transformação do imaginário coletivo a
partir da conjunção dos meios de comunicação de massa escritos e mercado editorial
com a recém nascida indústria cinematográfica argentina. Assim sendo, os agentes
dessas relevantes balizas culturais julgavam dar tudo ao homem em termos de cultura
atualizada. Além disso, estas práticas passaram a funcionar como símbolos de uma
sociedade certa em seu rumo, mas que oferecia como contrapartida, a confusão de
muitas das suas convicções e valores mais caros:
Como seja, modelos de relações mais modernas são difundidos pelas revistas e
pelo cinema: as mulheres esportistas, condutoras de automóveis, empregadas em
trabalhos não tradicionais, se convertem em um lugar transitado do imaginário
91
Juan Sebreli discute não apenas a difusão do cinema em Argentina, mas também a apropriação por uma
classe para a produção de películas próprias. Ver: SEBRELI, J. J., Buenos Aires, Vida Cotidiana y
Alienación, p. 95-97.
92
SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p.54.
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coletivo, ainda que se recortem contra as persistentes imagens da menina do
bairro cujo horizonte se reduz ao casamento e a criança.
93
Destroçados, os grilhões que acorrentavam a eclosão e o desvelar dos novos
rumos tornaram-se, todavia, objetos das mais encarnadas discussões e material fecundo
para inspiração de artistas de diversas latitudes. Com o alvoroço cinematográfico e um
mercado de edição em crescimento pode-se imaginar as profundas alterações sofridas
em termos de comportamentos e latitudes culturais. O habitante da Buenos Aires de
baixos índices de analfabetismo encontrava-se com aquele que queria se divertir e ter
acesso a novos modelos de conduta cuja possibilidade concretização teria de ser
disputadas nas filas das salas de cinema da capital argentina. Isso certamente já compõe
um novo cenário. É deste modo talvez, que a cidade dá um dos passos mais largos em
direção a transformação dos novos hábitos no que tange a cultura. Com a modernização
crescente do centro urbano, a torrente de aparatos técnicos ensejou faculdades até então
despercebidas e que latejavam por aparecer.
Neste sentido, tanto a cidade mesma quanto as metamorfoses espiritualmente
experimentadas franqueou um leque de intervenções para artistas e intelectuais de
diferentes campos de atuação. Na verdade, tornou-se fascinante debater sobre a cidade e
seus problemas de densidade demográfica, as possíveis atividades e seu futuro.
Seguramente, parecia importar pouco que esse futuro se apresentasse na visão dos
interventores num verniz radiante ou sombrio: o movimento de expansão da cidade de
Buenos Aires exigia compulsoriamente recomposição de sensibilidades. Igualmente
fascinante foi poder prestar atenção, sempre que possível, nos novos símbolos em
profusão, autênticas cascatas de signos em movimento e poder pintá-los, redesenhá-los
segundo impulsos e percepções de um imaginário constantemente enriquecido pelo
mosaico humano que dia após dia adentrava a cidade de Buenos Aires, genuína Babel
ao sul do continente.
Isto posto, tendo havido desenvolvimentos extraordinários realizados pelas ações
estatais e pelas corporações, as situações dos estrangeiros tiveram de ser pensadas
diante deste novo marco, constituído pelo inchaço do perímetro urbano da cidade de
Buenos Aires. A cidade e seus arredores recebem nestas décadas a imigração massiva
de milhões de pessoas que agora passam a fazer parte desta nova cultura urbana. Neste
sentido, a fisionomia da cidade passa a ser resultado da fusão de múltiplas ondas
93
SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 22.
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imigratórias que confluíram para a cidade num lapso de tempo bastante reduzido cuja
densidade cultural era cada vez menos nítida.
94
Com efeito, esses imigrantes contribuíram para a nebulosidade, sombra,
atmosfera saturna e movimento frenético com que a cidade havia sido envolvida. A elite
argentina em ascensão, cada vez mais ciosa dos seus méritos, passou a perceber que
precisava estar cada vez mais atenta aos matizes sempre mais sutis da turba que invadia
a cidade. A imigração fomentada pelo estado significou o surgimento de inúmeras
pessoas – difíceis de classificar- ou como diz Richard Sennett, materialmente
semelhantes, mas ignorantes de suas semelhanças pelo afrouxamento das posições
sociais tradicionais.
95
De todo reembaralhamento da urbe babélica, da nova densidade populacional
absolutamente imprevisível nos mais acurados prognósticos, resultou que agora existia
um lugar para a confluência exponenciada desse verdadeiro batalhão de pessoas: o
centro de Buenos Aires. À multidão de argentinos que tentava proteger sua
personalidade do impacto brusco que se deu nas normas e pautas de relações, somava-se
então, aos imigrantes, severamente condenados como vagabundos, anti-higiênicos e
outras qualificações moralmente apelativas. Esta profusão de pessoas foram se
comprimindo ao centro e conformando um fenômeno social vivo, complexo e de
considerável alcance cultural.
96
A cidade ao se transformar em urbe moderna, babélica por excelência, já que do
nosso ponto de vista a confusão engendradas na cidade portenha se assemelhava
bastante ao mito bíblico no que se refere a incompreensibilidade, oferta a artistas,
pintores, arquitetos, escultores e literatos um amplo repertório de temas e imagens que,
de outro modo, certamente não teria a voltagem típica dos lugares em descoberta
permanente. Esta é a particularidade de inúmeros deles: Xul Solar, Robert Arlt, Oliverio
Girondo e Jorge Luis Borges. E é sobre este último que, do nosso ponto de vista, se dá a
radicalidade das intervenções de vanguarda, bem como um importante papel de reflexão
sobre o passado e o futuro da cidade, lugar que figurou entre os temas sempre presentes
em sua rica e vasta obra.
Ao se deparar com uma Argentina cujo panorama é permeado de mudanças que
o impactaram radicalmente, Jorge Luis Borges em 1921, aos 21 anos regressa a Buenos
94
MARGULIS, M., Migracion y marginalidad en la sociedad Argentina, p. 22-28.
95
SENNETT, R., O Declínio do Homem Público: As tiranias da Intimidade, p. 69.
96
MARGULIS, M., op.cit., p. 90.
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Aires após uma estação de sete anos em solo Europeu, primeiramente em Genebra, solo
Suíço em que o escritor completou sua formação escolar e depois na capital de Espanha,
Madrid, onde trava contatos com artistas vanguardistas. Ao regressar a cidade de
Buenos Aires da qual partiu com 14 anos se vê diante de um país e uma cidade
profundamente alterados em vários de seus elementos: um vertiginoso aumento
populacional, imigração maciça, uma inegável transformação dos meios de transportes e
transmutação fisica e na atmosfera de seu local de nascimento. Na verdade, trata-se das
transformações que estamos vendo desde o início desta dissertação.
Como se depreende do seu impacto, Jorge Luis Borges volta a Argentina, em
consonância com os ventos da modernidade buenairense, ecoando sua voz no meio
literário e passa a explorar bem ao gosto dos vanguardistas do início do século XX, a
vontade de renovação do panorama literário argentino ainda fortemente marcado por
persistentes manifestações de arcaísmos no que tange a estética e seus nocivos
correlatos para o sistema literário local.
97
Por outro lado, o escritor perplexo com as
mudanças operadas na capital argentina tematiza com afinco e sentimento de pesar um
dos termos que sempre revisitaria sua obra: a cidade de Buenos Aires.
É de se sublinhar, entretanto, como no caso da intervenção de Jorge Luis Borges,
que se trata de uma época marcada por rupturas em série, pela supressão de dogmas
seculares e que fornecia também aos seus interventores as mais dolorosas contradições e
entusiasmo latente. Num cenário de significativas ausências de referências confiáveis,
de limites mais precisos que pontuassem a construção íntima dos indivíduos, estar em
Buenos Aires era fazer parte de circunstâncias em que a passagem da mais dolorosa
tristeza até o estado de mais radiante euforia e vice e versa poderia se manifestar de
forma espontânea e imediata, quase imperceptível. Com isto e muito além da
particularidade de relações pontuais, esse poderoso conjunto de imagens alcança sua
concretude no cotidiano dos habitantes da cidade modernizada, densamente irrealizada
pelo escritor.
E, neste sentido, a especificidade da postura borgeana é que apenas o mais
inflamado sentimento de apego à cidade de Buenos Aires, o mais impetuoso “Fervor”
por ela e que, como afirma analogamente Raymond Willians
98
, ao mesmo tempo a mais
97
ALAZRAKI, J., La prosa narrativa de Jorge Luis Borges, p 123.
98
WILLIAMS, R., Tragédia moderna, p. 152.
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aguda percepção de beleza, poderia produzir de forma avessa, um sentimento de horror
tão extremo com a contrapartida da alegria do momento imediatamente anterior.
O escritor Jorge Luis Borges percebeu que é pois, neste homem moderno, em
que convergem as disposições de fincar pé no infinito, no ondulante, naquilo que se lhe
apresenta como escorregadio e fugaz, sem que lhe seja afastada a perspectiva de fazê-lo
com algum sentimento de certeza e esperança num futuro mais palpáveis. E é nesta
direção que a escrita borgeana se revela como uma valiosa reflexão dos tempos em que
as coisas visíveis não parecem ser o que realmente são.
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3
Jorge Luis Borges e o vanguardismo entusisasta.
Sua vida inquieta repousa
Aqui, Oliverio Girondo
Gesto feroz, olhar fundo
E estranho poeta em prosa.
Perseguindo novos temas
Ia, e lhe matou um bonde
Enquanto o guarda lia
Seu livro “vinte poemas”.
Aqui jaz, bem sepulto
Capdevila, neste ossuário;
Foi menino, jovem e adulto,
Mas nunca necessário.
Seus restos devem queimar-
se.
Para evitar desacertos:
Morreu para apresentar-se
Em um concurso de
mortos.
99
Cemitério de Martin
Fierro.
I
O escritor argentino Jorge Luís Borges viveu com sua família em Europa entre
os anos de 1914 – 1921. E, um dado um tanto jocoso, como pertencia a uma família que
se orgulhava de não ler jornais, é bastante difundida a pilhéria acerca da surpresa que
99
“Cemitério de Martín Fierro”. In: Martín Fierro, Buenos Aires, Ano I, nº. 2, 20 de Março de 1924.
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significou para os Borges a deflagração da Primeira Grande Guerra onde estavam
situados no meio do seu núcleo nervoso, a Europa dos anos de guerra. A estada se deu
primeiro em solo suíço e, desde 1919 em Espanha, onde se vinculou ao movimento de
vanguarda que se denominou de ultraísmo. Em termos gerais, praticamente duas cidades
monopolizaram a atuação e os primeiros contatos daquilo que seria a gênese de uma
carreira de escritor em Espanha: Sevilla e Madrid. Na verdade, se aquela desapontou o
jovem escritor ao perceber um caráter um tanto provincial em muitos de seus
intelectuais e fomentadores de arte, significou também segundo Emir Rodriguez
Monegal, o primeiro contato real de Borges com uma incipiente vida literária.
100
De
outra forma, ainda segundo as descrições de Emir Monegal, se Sevillla tinha algo de
desapontador e triste (ao menos visto retrospectivamente por Borges), Madrid significou
para o escritor o advento de uma verdadeira revelação pessoal: o encontro de Jorge Luis
Borges com o poliglota Rafael Cansinos-Asséns fundador do movimento ultraísta e que
teve enorme impacto sobre o escritor ainda segundo as palavras de Emir Monegal.
101
A experiência deste movimento (ultraísmo) para o escritor, que pode ser
caracterizado como uma particular versão espanhola das tendências vanguardistas
européias como o futurismo, cubismo, expressionismo, surrealismo entre outros
102
, foi
capital quando da chegada de Borges em solo argentino e sua conseqüente intervenção
de vanguarda sendo vista por críticos e estudiosos como uma das mais importantes nas
letras do país naquele momento. Conquanto tais assertivas sejam de difícil
comprovação, a verdade é que em contato com essa vanguarda espanhola se gestaram as
primeiras reflexões e experiências poéticas de Borges, publicadas em algumas revistas
ultraístas madrilenas. Essas práticas cobriam um longo raio cuja circunferência abarcava
desde publicações de poesias de teor ultraísta, textos críticos e programáticos até
discusões e traduções de poetas expressonistas alemães, conforme assegura Emir
Monegal.
103
100
MONEGAL, E. R., Jorge Luis Borges: A Literary Biography, p.158.
101
Há neste caso uma polêmica em torno da criação do movimento ultraísta em Espanha e em América
Latina. De um lado temos atribuído a criação do movimento a Rafael Cansinos-Asséns, de outro há a
atribuição (ou auto atribuição) do jovem poeta chileno Vicente Huidobro. Ver: MONEGAL, E. R., Jorge
Luis Borges: A Literary Biography, p. 159-160. Para a prática vanguardista de Vicente Huidobro: LIMA,
L. C., Sociedade e Discurso Ficcional, p. 324-331. Para os primórdios das vanguardas em América
Latina. Ver: PAZ, O., Os Filhos do Barro: do Romantismo à Vanguarda, p. 181.
102
A definição de ultraísmo além da especificidade acima descrita, possui também segundo Bella Jozef o
caráter de tendência esteticista e intelectualista que se radica na corrente da poesia pura. Ver: JOZEF, B.,
A Máscara e o Enigma: A modernidade da Representação à Transgressão, p. 162.
103
MONEGAL, E. R., Jorge Luis Borges: A Literary Biography, p.164.
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53
Ainda discorrendo sobre os tímidos passos do processo inciático do jovem
escritor, temos nos primórdios de suas experiências públicas literárias, um Borges que
se aventura na difusão do que considerava como característica essencial do movimento
de vanguarda em Espanha. Por esta via, o escritor dá ênfase aos conteúdos
programáticos elegendo as características de uma poesia que traduzisse as reais
necessidades do tempo e, simultaneamente, sublinhando seu caráter puro e dinâmico.
Bem típicos desses momentos de ruptura em que os textos programáticos aparecem
como compêndios dos novos princípios, vislumbra-se também na postura borgeana o
ataque à retórica anterior e o desejo de colisão, através de enunciados veementes, de
força e impressão quase bíblicas. O jovem Borges ainda em Espanha impregnado dessa
atmosfera vanguardista, enuncia também seu próprio programa poético:
Já cimentadas estas bases, exporei as intenções dos meus esforços líricos. Busco
neles a sensação em si, não a descrição das premissas espaciais ou temporais
que a rodeiam...Eu – note-se que falo de tentativas e não de realizações
satisfeitas – desejo uma arte que traduza a emoção desnudada, depurada dos
dados adicionais que a precedem. Uma arte que esquiva o dérmico, o metafísico
e os últimos planos egocêntricos ou mordazes.
Para isto – como para toda a poesia – exstem dois meios imprescindíveis: o
ritmo e a metáfora. O elemento acústico e o elemento luminoso.
O ritmo: não encarcerado nos pentagramas da métrica, mas ondulante, solto
redimido, bruscamnte truncado.
A metáfora: essa curva verbal que traça quase sempre entre dois pontos -
espirituais - o caminho mais breve.
104
Gesta-se dessa maneira, ainda no jovem escritor da década de 1920, uma
interessante particularidade daquilo que seria bastante presente em inúmeros
movimentos de vanguarda como um todo: a produção de uma obra que está em drástico
processo de ruptura com as caracterizações comuns com vistas ao purismo de sua
elaboração.
105
De tal forma imerso neste espírito empreendedor e, mutatis mutandis, a
despeito da característica que o programa estético enunciado por Borges possuirá no
futuro de0 disputa simbólica, ao mesmo tempo o escritor visa inventar uma tradição
cultural que dê conta das novidades deste novo cenário alargando o campo para novas
modalidades expressivas. Deste modo, e pelo menos a princípio, os esforços líricos que
Borges enuncia possuíam uma relação de dependência com o afastar-se de tudo aquilo
que envelheceu, ou seja, com tudo aquilo que representasse um passado literário recente
104
BORGES, J. L., Anatomia do meu Ultra [1921], p. 27.
105
JOZEF, B., A Máscara e o Enigma: A modernidade da Representação à Transgressão, p. 96.
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e ineficaz em termos de ressonância com os novos tempos. Sob esta insígnia é que se
costura o empolgante entusiasmo pelas mais novas tendências em literatura, mesmo que
plenas de contradições.
Por certo, todo este admirável hino ao ritmo e a metáfora ao qual Borges se
entrega com abandono juvenil parece estar fundado na captação de valores vitais aos
modernos movimentos de vanguarda. Assim, concebe-se em Jorge Luis Borges, ainda
no Velho Continente, a prefiguração de um tempo literário que ande pari passu com as
modernas questões do homem e da sociedade. O escritor portenho parecia acreditar no
êxito inconteste das construções metafóricas breves, na sua significação profunda, ou
ainda como diz Juan García Ramos no que se refere ao estudo da metáfora em Borges,
uma obra criativa pura.
106
Dificilmente significando uma contrapartida, ou mesmo negação das práticas
literárias em Espanha, o desenvolvimento de seus programas estéticos em Buenos Aires
será deveras grandioso. Desta forma, se em Espanha o desenrolar de suas inciativas
literárias davam-se em um ambiente cultural consolidado
107
, após o navio a vapor Reina
Victoria Eugenia trazer Borges e sua família de volta ao solo natal, o escritor além de
perceber uma cidade alterada em suas características físicas, encontraria também um
ambiente literário em efervescência. Assim, um dos aspectos mais salientes da postura
de Jorge Luis Borges em seu regresso se desenvolverá num desacato ante aos costumes
literários tradicionais, assemelhando-se fortemente a um irreverente movimento
iconoclasta:
(Paul) Groussac, (Leopoldo) Lugones, (José) Inginieros, Enrique Banchs são
gente de uma época, não de uma estirpe. Fazem bem aquilo que outros já
fizeram e esse critério escolar de bem ou mal feito é uma pura tecniquice com a
qual não devemos nos aqui onde rastreamos o elementar, o genésico.
Entretanto, é verdadeira a sua fama e por isso os mencionei.
108
Estas manifestações desenham o traçado da atitude corrosiva que o escritor foi
pouco a poucos adotando frente a outros movimentos estéticos. Tanto ao conferir
aspecto de literatura datada a escritores eminentes da literatura latino americana quanto
a ode ao elemento acústico e luminoso, imprescindíveis na nova poesia, Borges em
nome destas premissas tenta rearticular o panorama literário local fornecendo-lhe um
106
RAMOS, J. M. G., La Metáfora de Borges, p. 13-16.
107
RAMA, A.; AGUIAR, F.; GUARDINI T. VASCONCELOS, S. (Orgs), Literatura e Cultura na
América Latina. Ensaios Latino Americanos, p. 122.
108
BORGES, J. L., O Tamanho de Minha Esperança [1926], p.574.
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fôlego mais vivo e dinâmico. Ao conjurar os deuses do passado, o Jorge Luis Borges
vanguardista deixa claro a abertura que exprime o lançar-se numa irradiosa aventura.
Mas não é de outro lugar que da cidade de Buenos Aires que o escritor faz
irromper sua voz numa clave marcadamente aberta e empolgante. Por certo descortina-
se em Borges os motivos que tornam aqueles escritores filhos de uma época, a despeito
de sua fama: o atavismo de uma ligação com o passado cuja prática literária não oferta
ao presente momento nada de novo (fazem bem aquilo que outros já fizeram). Da
atitude do escritor depreende-se que o momento exigia novas sensibilidades, não é
difícil pensar. Desta forma, são estes fatos que, coabitados á percepção de um panorama
pulsante da urbe buenairense; cidade que passou a brindar aos artistas e intelectuais com
o fomento de suas novas atividades e estímulos de diversas ordens, que induziu
certamente Beatriz Sarlo a escrever sobre as vanguardas do período uma afirmação um
tanto quanto categórica:
A vanguarda é a forma de ruptura estética carcterística de um campo intelectual
consolidado e de um mercado de bens culturais relativamente extenso: por que
reacciona contra o sistema de consagração, as hierarquias culturais e a
mercantilização da arte, o surgimento da forma vanguarda tem como condições
a verificação do campo intelectual, a existencia de um público que a vanguarda
divide, e os mecanismos de um mercado frente ao que a vanguarda experimenta,
ao mesmo tempo, náusea e fascinação.
109
Tal é a moldura que incide na dedicação devotada pelo Borges vanguardista no
início dos anos 20. Esta incidência é esclarecedora na medida em que da chegada do
escritor em solo argentino, buenairense especificamente, se conforma nele a percepção
da cidade como que inserida num sistema onde existem dificuldades de percepção de
um desenho mais nítido de futuro e ausência contínua de regras que possam servir como
roteiro de condução mais segura para os homens.
110
Incide ainda uma vez mais, na
medida que a cidade de Buenos Aires é percebida pelo escritor como fonte profícua de
inesgotáveis paradoxos, estranhamentos e arena aberta a inúmeras possibildades de
intervenções. Neste sentido, a corrosão que reacciona contra o sistema de consagração
e hierarquias culturais que Beatriz Sarlo postula aos movimentos de vanguarda em
Argentina, termina por ajustar-se singularmente bem aos imperativos da conduta
dinâmica dos novos tempos da cidade de Buenos Aires que, ainda segundo a autora:
109
SARLO, B., Sobre la Vanguardia, Borges y el Criollismo, p. 3.
110
MONEGAL, E. R., Jorge Luis Borges: A Literary Biography, p.167-168.
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56
A conjuntura estética hegemonizada pela vanguarda não reclama a autonomia
em nome só da beleza, mas, fundamentalmente, da novidade. “O novo” é o eixo
que resolve a autenticidade. Não constitui um traço qualquer do programa, mas
que organiza e dá significação ao conjunto de reividicações. Por isso, por que
“o novo” é intransigente, a vanguarda esgrime um programa de máxima.
111
Esta disposição em promover a renovação estética nas artes já estava sendo
anunciada no horizonte artístico do período. Em literatura, desde muito, e alguns
conjecturam que desde o século XVIII, a literatura hispano americana carecia de uma
renovação que abalasse os fundamentos de suas bases, pois demasiado presas que
estavam ao que provisoriamente chamamos de ausência de substituição.
112
De acordo
com Jaime Alazraki, os literatos hispano-americanos referenciavam-se sempre nas
habituais figuras mitológicas, em que os exemplos do que seria uma excelência na
forma de escrever, passaram a figurar como entraves a reabilitação da sua
profundidade.
113
De posse deste discernimento, Ruben Darío, figura importante no modernismo
latino americano já reclamava da igualdade prosística presente na maioria dos escritores
situados no eixo de América Latina. Importantes precursores da renovação da prosa
castelhana, José Martí e o próprio Darío, inquietaram-se frente a este diagnóstico
desanimador. De início, como preceito de rearranjo das formas literárias, eles sugeriram
uma atitude de não imitação: primeiro, não imitar a ninguém, e sobretudo, a mim dizia
Ruben Darío. Ao mesmo tempo se conceberam como adversários ferrenhos do vulgar,
pois perplexos que estavam com a insípida prosa que o realismo de fim de século
deixara como legado. Inimigos do entusiasmo retoricista que consideravam gangrena da
literatura espanhola, os modernistas tinham como projeto a criação de uma prosa
virtuosa cujo ideal era a beleza eterna da arte.
114
Ao peso e ao hermetismo da velha
sintaxe, devia se contrapor segundo as premissas Darianas, a agilidade da oração breve,
o colorido plástico da frase nominal, a música de ritmos que haviam sido monopólios do
verso, de acordo com a análise de Alazraki. Sem falar na contribuição dos mais diversos
neologismos, renovação das palavras antigas, denominada no período de arcaísmo,
assim como o empréstimo de palavras que poderiam dar, à literatura de Latino América,
o frescor e a lubrificação que os diagnósticos de então há muito preconizavam. Desta
111
SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 98.
112
ALAZRAKI, J., La prosa narrativa de Jorge Luis Borges, p. 122.
113
Ibid., loc.cit.
114
Ibid., loc.cit.
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57
forma, segundo Bella Jozef, o modernismo cumpriu os cânones que havia fixado a si
mesmo; deu origem a uma prosa plena de cor e melodia; tudo concorria para a
configuração de um mundo em que os caracteres da arte ganhavam primazia. Estas
características ganham nas palavras de Bella Jozef:
A conexão das frases segundo a emoção, apoiada no adjetivo e no ritmo, livre e
subjetivamente, foi umas das principais características técnicas do estilo
modernista. A expressividade de cada escritor ficava assegurada ao substituir a
linha lógica da sintaxe tradicional. Em cada país, o Modernismo adquiriu
matizes próprios e bem definidos. O próprio Darío, intérprete das inquietações
continentais, havia aconselhado cada escritor a que procurasse a sua expressão
particular, dentro da orientação estética geral, tornando mais flexível o idioma,
capacitando-o a expressar a nova complexidade do presente.
115
O projeto de reforma, a procura por soluções estéticas já se revelara como
intento desde os modernistas em Argentina. No caso das vanguardas, foram gestadas no
seio de uma cultura urbana quando se observa uma profunda diversificação nos meios
de comunicação, emergência de novas linguagens e regimes sobrepostos de
historicidade. Ao lado destas inovações em termos de linguagem, há também uma nova
configuração do público, alfabetizado e mais numeroso conforme vimos sublinhando
desde o capítulo anterior. Este nova configuração do público revelou também uma
incrível capacidade de deixar ser capturado pelas novas modalidades expressivas
levadas a cabo pelos interventores do espaço público:
O desacordo entre ambos os planos – artístico e social – impunha a correção
dos padrões literários, para que obedecessem ao ditame da nova realidade. Com
isso, esta voltava a instaurar-se como mestra da criação: a cidade moderna era
agora para os vanguardistas o que fora a natureza para os pré-românticos.
116
Com efeito, a geração do que se chama em Argentina modernistas,
cronologicamente um pouco anterior a de Borges, já estava bastante determinada a
encontrar um ponto fixo em meio às transformações de que Buenos Aires era lugar e
palco principal. De fato, buscavam-se caminhos que pudessem garantir com alguma
115
JOZEF, Bella. História da Literatura Hispano Americana. Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1989,
p.112.
116
RAMA, A.; AGUIAR, F.; GUARDINI T. VASCONCELOS, S. (Orgs), Literatura e Cultura na
América Latina. Ensaios Latino Americanos, p. 112.
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chance de êxito a inserção da América Latina, representada na constelação dos seus
mais diversos estados nacionais, em um rol de países com uma literatura própria e dessa
forma poder fazer parte do concerto das nações cultas. A partir daí, ensaia-se a
configuração de um campo intelectual que, como diz Luiz Costa Lima referindo-se ao
caso brasileiro, pudesse possuir seu próprio centro de decisão.
117
Já no que tange a prática vanguardista borgeana, o caso de um escritor que
adquiriu fama e renome também pelo fato de suas obras literárias estarem repletas de
citações e associações das mais díspares, eruditas, ou a imagem de um escritor cego e
ávido por leitura, contribuiu, certamente, para a construção da imagem de irrealidade e
pureza que envolve ao escritor e boa parte de sua obra ficcional. Mas, por outro lado, ao
almejar como programa “uma arte que traduza a emoção desnudada, depurada dos
dados adicionais que a precedem”, Jorge Luis Borges, imerso na atmosfera de
vanguarda ultraísta, estrategicamente fomenta uma distinção frente a outras
manifestações literárias do passado que no seu cerne é absolutamente herdeira, ou pelo
menos dialogava de forma intensa com a ambiência de utopia esteticista que pulsava
nos mais diversos grupos vanguardistas nas cidades européias. Sendo um importante
vulto deste novo desenho, a postura borgeana ao requerer uma arte que se esquive do
dérmico, não dissente em nada da exemplar posição purista frequente em outros
movimentos de vanguarda do período.
118
Ora, longe de pretender que estas características sejam reconhecidas de forma
negativizada apenas pelo que se pode depreender do intercambio que Jorge Luis Borges
ensaiou com vistas aos movimentos de vangurdas similares, interessante, do nosso
ponto de vista, é ressaltar o caráter daquilo que Hans Ulrich Gumbrecht disse com
respeito as vanguardas históricas: um leque de artistas e autores que se auto-revestem de
uma suposta autoridade e passam a competir entusiasticamente partindo para a
conquista no campo das letras e das artes.
119
Deste modo, as manifestações
aparentemente subeversivas ou até mesmo revolucionárias encontráveis nos programas
117
LIMA, L. C., Dispersa Demanda: ensaios sobre literatura e teoria, p.23.
118
Embora não seja nosso propósito considerar a problemática do diálogo dos grupos de vanguardas em
Argentina com movimentos europeus e suas vinculações culturais, há uma interessante discussão acerca
das similitudes e diferenças estéticas e ideológicas tanto entre as capitais em América Latina quanto no
diálogo entre os dois continentes. Ver: VERANI, H., The Vanguardia and its implications.; VASQUEZ,
K., Redes intelectuais hispano-americanas na Argentina de 1920.; RAMA, A.; AGUIAR, F.;
GUARDINI T. VASCONCELOS, S. (Orgs), Literatura e Cultura na América Latina. Ensaios Latino
Americanos.
119
GUMBRECHT, H. U., A Modernização dos Sentidos, p. 19.
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e manifestos caminhava de mãos dadas com a tentativa de romper com o peso de uma
forte tradição literária cujo eixo principal deste rompimento segundo Angel Rama:
Esse tempo não transcorreu em vão, tanto para a consciência progressiva de si
que a América Latina vinha elaborando, como para a exacerbação da ruptura
postulada no processo cultural europeu, de tal modo que essa nova revolução
desenvolveria em terras americanas uma captação mais lúcida de sua
idiossincrasia e de sua herança peculiar junto a um aniquilamento mais
cortante, se é possível dizer, da tradição poética recebida.
120
O que nas palavras do Jorge Luis Borges vanguardista recebia esta forma de
tratamento:
Afirmo isto apesar da grande quantidade de moedeiros falsos da arte que nos
impõe ainda as enferrujadas figuras mitológicas e os imprecisos e longínquos
epítetos que Darío esbanjou em vários de seus poemas. A beleza rubeniana já é
uma coisa amadurecida e saturada, semelhante à beleza de uma tela antiga,
completa e eficaz na limitação de seus métodos e em nossa aquiescência em nos
deixarmos ferir por seus recursos previstos; mas por isso mesmo, é uma coisa
acabada, concluída, aniquilada.
121
No caso dos grupos de vanguardas em Argentina a que Borges se filia com
entusiasmo de verdadeiro militante, esta função ou mesmo a emergência de sua
possibilidade, ao menos em nível de algo pensável e factível, conecta-se com o advento
daquilo que, ainda conforme denominação de Hans Gumbrecht, da simultaneidade do
tempo histórico.
122
Como comungante do novo espírito buenairense, Borges partilha
com outros confrades vanguardistas o momento de cisão representado na instabildade
que significou a concomitância de passado, presente e futuro. Na verdade, era tamanha a
sensação de estranhamento que se impunha por parte desta ebulição que fomentar
respostas a esta ambiência passou a envolver a própra identidade da cidade.
Assim, podemos perceber que era esta a sensação experimentada por Jorge Luis
Borges em seu regresso à cidade natal, Buenos Aires. E isto, não apenas em virtude dos
incentivos tecnológicos que a cidade recebeu como lugar privilegiado. Ao lado do novo,
acresce-se uma situação política cada vez mais instável, fragilidade econômina e
conflitos sociais temperados por um volume crescente de imigrantes insatisfeitos. Na
verdade, a ambiência de inovação colossal se deu justamente pelo gesto largo
120
RAMA, A; AGUIAR, F.; GUARDINI T. VASCONCELOS, S. (Orgs), Literatura e Cultura na
América Latina. Ensaios Latino Americanos, p. 114.
121
BORGES, J. L., Ultraísmo [1921], p.108.
122
GUMBRECHT, H. U., A Modernização dos Sentidos, p. 19.
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representado pelos paradoxos e suas propriedades conseqüentes a patamares
lancinantes. As vanguardas, atentas e vigilantes, respiravam e engendravam novas
modalidades de expressão estética que dialogavam com esta nova ambiência ao mesmo
tempo que percebiam inúmeras das suas mais imediatas perplexidades num processo de
aparência palpitante. Ao discorrer sobre algumas caracteríscas do pensamento de
vanguarda e sua relação com outros domínios da sociedade do inicio do século XX,
Luiz Costa Lima afirma:
Importa-nos realçar esse fenômeno do afastamento do poeta, em busca de sua
expressão irredutível...Ou seja, a linguagem se converteu no centro a explorar e
sua conquista se media por sua ductilidade quanto ao que ignoram, desprezam
ou temem os servidores, voluntários ou involuntários, da sociedade estabelecida.
Como uma bola de neve, este processo cresce desde os românticos até o
aparecimento das vanguardas, nas primeiras décadas do século XX.
123
Nesta direção, a apresentação borgeana de seu programa poético é próspera
quando concertada com aquilo que foi produzido por seus companheiros mais velhos
não apenas no que tange a tentativa do uso da palavra impermeabilizada e não
contaminada pela imprecisão do uso corrente
124
, mas também quando visadas as
condições socio-culturais nas quais a produção e recepção de sua linguagem estética
estão inseridas. Nesta direção, de acordo com o que seriam os traços comuns dos
movimentos vanguardistas, Luiz Costa Lima ainda assevera:
A intelligentsia da época (das vanguardas) vivia uma espécie de variante
iluminista, da qual se afastara a intenção pedagógica, mas que mantivera seu
propósito de transformação radical. A vanguarda artística, científica ou política
se via na obrigação de elaborar uma linguagem mais precisa e refinada,
resistente às mistificações da própria fala e independentes da motivação
voluntária do agente, assim como formas de ação capazes de dinamitar o statu
quo. Quanto às massas, nenhum problema mais grave senão o de fazê-las
entender e seguir a direção aberta pela vanguarda.
125
No seio da intelectualidade buenairense, a dinamitação do statu quo, de fato,
estava em curso. Sendo assim, um dos resultados mais bem sucedidos deste
procedimento eclodiu na forma com a qual Borges se expressava em seus manifestos e
123
LIMA, L. C., Sociedade e Discurso Ficcional, p. 319-320.
124
Ibid., p. 326.
125
Ibid., loc.cit. [Grifo do autor].
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nos textos assinados nas revistas, jornais e periódicos de Buenos Aires. É singularmente
forte em seus manifestos a impressão deixada pela tom aguerrido prontamente assumido
pelo escritor na tentativa de transformação radical do panorama literário oferecido como
lêgado. Nestas condições, parecia ser natural o escritor tentar eliminar uma parte de um
passado embaraçante com vistas a um salto longínquo em direção ao que se cria ser o
futuro.
Em sua ênfase ao pensamento de vanguarda e a seu programa, em cuja diferença
queria matizar no que tange ao ultraísmo em Sevilha e Madrid, o escritor inicia sua
crítica elencando as característiscas do que era o Ultraísmo nestas cidades e o que o
movimento de adiquiriu de inovador em terras argentinas. Assim, configura-se ainda
uma vez mais o aspecto de pureza e limpidez almejados por grupos de vanguarda em
mais de uma parte. A busca da intemporalidade, de algo perene e eterno faz conjunção
com ataques, mais uma vez flamejados contra o passado literário do continente,
simbolizado mais uma vez ainda, na lendária prosa rubeniana e na eleição da metáfora
como elemento majestoso para marcar as diferenças de coordenadas entre os argentinos
e os espanhóis. É desta maneira que Jorge Luis Borges almejava que a fisionomia do
ultraísmo buenairense fosse vista por seus contemporâneos:
O Ultraísmo em Buenos Aires foi o anseio de alcançar uma arte absoluta, que
não dependesse do prestígio infiel das palavras e que perdurasse na perenidade
do idioma como uma garantia de beleza. (...) Nós, enquanto isso, sopesávamos
linhas de Garcilaso ( de la Vega), errantes e graves ao longo das estrelas do
subúrbio, solicitando uma arte límpida, que fosse tão intemporal quanto as
estrelas de sempre. Abominamos os matizes imprecisos do rubenismo e nos
inflamamos com a metáfora pela precisão que há nela, por sua algébrica forma
de correlacionar distâncias.
126
O tom francamente belicoso do escritor parece não se importar com
preocupações de tato “político” que se traduziriam em possíveis alianças que, se
estrategicamente costuradas poderiam render-lhe um lugar mais confortável nos círculos
literários de Buenos Aires. Mas o momento não era tão propício a estas ilusões.
Impondo-se de maneira aguerrida e combatente, Borges confecciona modalidades de
fliação em nome de temáticas diversas das que permeavam o ambiente intelectual
anterior. Portanto, em se tratando de Borges pode-se dizer com Miguel Bances que o
novo nesta clave foi haver levado até o limite o elemento crítico que subjaz na estética
126
BORGES, J. L., Comentários à Margem [1924], p. 470.
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moderna.
127
O olhar corrosivo do escritor ao postular uma garantia de beleza, ataca de
frontalmente a palavra (infiel) ou seu prestígio cujo objetivo primeiro é alcançar uma
arte absoluta. A modernidade borgeana revela-se na busca do novo como crítica radical
ao discurso moderno.
128
É claro que o fato de alimentar um sonho, por humilde que seja, de superação e
otimismo implica condenar ou rever tacitamente o ponto de partida. É daqui
que, sem nenhum temor ou hipocrisia, declaramos nosso amor por tudo o que
signifique uma análise ou uma nova rota. E estas se revelam indistintamente no
jovem e no velho. Declaramos, pois, que a nova geração não está limitada pela
fatalidade temporal e biológica e que, para nós, mais vale um ancião
batalhador e fecundo que dez jovens negativos e frívolos. Nunca foi tão justo
rotular uma nova geração como na hora presente.
129
No ventre da catarse vanguardista a intervenção de Borges se dá pela tentativa
de consagração do aqui e agora através da universalização potencial da capacidade de
seu auditório. É desta forma que o escritor portenho alarga o círculo restrito da
comunicação e dá ensejo a outras novas modalidades, podendo assim, depois de
esgarçar a situação dialógica face a face, extravasar sua sensação de incômodo com o
panorama da literatura em argentina do período e dar continuidade a euforia que a
ciranda efervescente de que Buenos Aires era lugar propiciava. Neste sentido, a postura
assumida pelo escritor compõe um pilar onde melhor se pode constatar a
ressemantização de universos em transformação permanente e a tentativa de forjar
respostas audazes, a altura que a coincidência de tempos exige.
130
Esta é a forma que se explica no Borges das vanguardas a dinâmica da negação.
Absolutamente sensível a atmosfera do período onde havia uma ambiência favorecedora
de projeções e rítmos mais lépidos, ousados mesmos. Nesta pespectiva, ocorre uma
forma de anatemização como demoníaco de tudo aquilo que significasse impureza ou
ruídos da linguagem. Assim posto, os inconvenientes de uma locução desprovida de
pureza, encontrava uma forma de confronto imediato no Jorge Luis Borges das
vauguardas com o aceno do primado do supra sensorial resguardando desta forma
condicionantes para seus projetos de transformação radical. É desta maneira que a
prática da utopia lúdica e aparentemente descompromissada, quase irresponsável das
127
BANCES, M., Una nota sobre las poéticas del vanguardismo latinoamericano, p. 23.
128
Ibid., p. 25.
129
BORGES, J. L., Proa [1924], p. 34.
130
RICOEUR, P., Teoria da Interpretação. O discurso e o excesso de significação, p. 42-43.
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vanguardas argentinas insere-se num processo de formação de conjunturas em que a
contrapartida negadora e visível encontra-se concretizada no fragmento rebelde ou
numa atitude anticonformista da expressão estética. Deste modo, os novos signos
exigentes de releituras não lograram desvincular-se da totalidade que é o fenômeno da
modernidade materializada em nosso caso, na postura de vanguarda em Borges e sua
cidade natal modernizada.
Ao se reconhecer nesta atualidade efervescente fomentos variados para uma
prática mais móvel e múltipla dos homens das letras, é que desde já verificava-se
também um caminhar na direção de uma atuação mais cosmopolita e menos provincial
no campo das artes. Por ora, não seria menos verdadeira a atestação de um maior grau
de cosnciência da comunicação entre o escritor e artista com seu público conforme
Antonio Candido
131
, com a coincidência bastante aproveitada de uma industrialização
crescente e índices mais otimistas quanto a instrução formal. Com Walter Benjamin
podemos dizer sobre o fenômeno de ligação, de reciprocidade com o novo e a
visibilidade de seus indícios, que segundo o autor, estavam presentes no inconsciente
coletivo.
132
Na verdade, trata-se de um período em que as modulações de cunho
estético, conduzidas até as últimas consequências, estavam ricamente compaginadas à
uma época, um locus , uma cidade, Buenos Aires, cosmópolis, na frase do modernista
Ruben Darío que não apenas serviu de palco para a eclosão dos modernos movimentos
artísticos de vanguarda, como efetivamente contribuiu para engendrá-los.
Como apresentação dos programas estéticos, o tom da melodia vanguardista
presente na assinatura dos manifestos era claro e rangia cordas sensíveis na emoção dos
leitores e mesmo de seus pares intelectuais. Estes manifestos programáticos, visados
como forma de arte pura, absolutamente isenta de qualquer mistura inoportuna, de
qualquer falsa grandeza observada na literatura do passado tornaram-se um caminho
inaudito para a exploração dos limites da latitude criativa do escritor.
133
Neste sentido,
passaram a estar em xeque os valores que dominaram por longos períodos o circuito
artístico e intelectual. A transformação radical que as vanguardas tinham em mira
acarretou que em suas estratégias de atração de público optassem pelo novo, chamando
131
CANDIDO, A., Literatura e Sociedade, p. 73-88. Para a mesma temática em América Latina
especificamente: RAMA, A.; AGUIAR, F.; GUARDINI T. VASCONCELOS, S. (Orgs), Literatura e
Cultura na América Latina. Ensaios Latino Americanos, p. 60.
132
BENJAMIN, W., Paris, capital do século XIX., p. 693.
133
VERANI, H., The Vanguardia and its implications, p. 116.
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a atenção para a necessidade de compreensão da imprescindibilidade que jaz na
necessidade de definir-se frente a presença de uma nova sensibilidade:
Martin Fierro sente a necessidade imprescindível de se definir e de chamar a
quantos são capazes de perceber que nos encontramos em presença de uma
NOVA SENSIBILIDADE e de uma NOVA COMPREENSÃO que, ao nos
conciliarem com nós mesmos, descobrem-nos panoramas imprevistos, e novos
meios e formas de expressão.
Martin Fierro aceita as consequencias e as responsabilidades de
posicionar-se, por que sabe que disto depende a sua saúde. Ciente dos seus
antecedentes, da sua anatomia, do meridiano em que camimha, consulta o
barômetro, o calendário, antes de sair à rua para vivê-la com seus nervos e com
sua vitalidade de hoje.
134
A gestualidade do manifesto de 1924, tensão vivida pelos resquícios de um
passado recente e um porvir a construir, declara fidelidade aos princípios dos novos
tempos lançando suas bases na exaltação de um instante. Por outro lado, estas novas
sensibilidades promulgadas pelo jornal mais popular da época
135
foram, certamente,
caminhadas na direção de depurar os canônes modernistas, sobretudo no que refere ao
afastamento dos exemplos fornecidos por uma das figuras mais lendárias da literatura de
hispano america: Ruben Darío e Leopoldo Lugones.
136
Os exemplos literários
fornecidos por estes escritores passaram a ser vistos como inexpressivos, ou mesmo
inadequados já que não surpreendiam frente a torrente de estímulos de que Borges e
seus confrades escritores estavam constantemente sendo submetidos.
Por sua vez, Oliverio Girondo no extrato anterior de Martín Fierro, manifesta-se
gracejosamente contra os aspectos que simbolizariam uma postura rígida frente aos
imperativos dos novos tempos: a impermeabilidade hipopotâmica do honorável público,
a aparência de funerária solenidade do historiador e catedrático, assim como a
incapacidade de algumas pessoas em observar a vida sem escalar as estantes das
bibliotecas.
137
Após estes rompantes burlescos, o aguerrido espírito martinfierrista,
exaltado com os instrumentos tecnológicos representativamente mais hodiernos
presentes na sociedade buenairense, mais adiante ainda em seu estilo cômico e bem
humorado contra ataca:
134
GIRONDO, O., Manifesto Martin Fierro, p. 115.
135
SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930.
136
Com respeito a Leopoldo Lugones, Borges chega a afirmar que suas metáforas eram tão visíveis que
obstruíam o que deveria expressar. Numa outra perspectiva, Borges admite que a literatura argentina
ainda se nutria deste escritor. Ver: JOZEF, B., História da Literatura Hispano Americana, p. 183.
137
GIRONDO, O., loc.cit.
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65
Martin Fierro sabe que “tudo é novo sob o sol”, se tudo for olhado com pupilas
atuais e expremido com sotaque contemporâneo.
Martin Fierro sente-se, por isso, mais à vontade num transatlântico moderno do
que num palácio renascentista, e sustenta que um bom HISPANO-SUIZA é uma
obra de arte muitíssimo mais perfeita do que uma liteira da época de Luís XV.
138
O extrato do manifesto é significativo já que com vários escritores filiados em
diversos campos deixa revelar uma verdadeira batalha de programas estéticos e visões
de mundo. Neste caso, chega a ser comovente a inflexão vibrante, perspicaz, veloz e
declaradamente marcada sob a inspiração do Manifesto Futurista de 1909 de Filippo
Tommaso Marinetti.
139
Mas a despeito das semelhanças com o manifesto europeu, a
apresentação de Martin Fierro é composta de forma que ressoe uma transcendência
temporal, uma atmosfera limite e derradeira, que é o lugar presente, parecendo dar um
ultimato aos que insistem em reverberar sobre o passado. À insígnia de Tudo é novo sob
o sol, está condicionada a moderna qualidade de enxergar com pupilas atuais e com
sotaque contemporâneo
140
aquilo que era vetado aos antepassados. Assim, os símbolos
recém adquiridos nos círculos das sociedades atuais, o ensurdecedor automóvel ou o
transatlântico, que passava a singrar os mares oceânicos com velocidade e conforto sem
precedentes ganhavam mais status artístico do que o antiquarismo representado nos
majestosos palácios da renascença italiana ou numa eventual preciosidade estética de
um objeto do período de Luis XV:
Martin Fierro vê uma possibilidade arquitetônica num baú innovation, uma lição
de síntese num radiograma, uma organização mental numa rotativa, sem que isto
o impeça de possuir – como as melhores famílias – um álbum de retrato, que
folheia, de vez em quando, para se decobrir através de um antepassado...ou rir
do seu colarinho e da sua gravata.
141
Neste sentido, pode-se afirmar que Borges tanto quanto seus pares vanguardistas
passaram a incorporar racionalmente os valores que jaziam no que podemos caracterizar
de ambiência citadina. Esta postura foi conduzida através de uma progressiva crítica aos
138
GIRONDO, O., Manifesto Martin Fierro”[1924], p.116.
139
Impressão confirmada também por Hugo Verani pela semelhança de idéias contidas nos dois
manifestos: ”Um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo que a Vitória de
Samotrácia” diz o manifesto. Manifesto do Futurismo extraído de: TELES, G. M., Vanguarda Européia
e Modernismo Brasileiro, p. 91. A respeito da coincidência de idéias Ver: VERANI, H., The Vanguardia
and its implications, p.117.
140
GIRONDO, O., loc.cit.
141
Ibid., loc.cit.
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66
pregressos paradigmas literários fundamentais. Assim, tanto os automóveis, navios
modernos e objetos reveladores do avanço científico como a radiografia faziam parte de
uma mesma moldura recente que lhes franqueavam o riso dos antepassados.
São estas conjunções que despontam no horizonte dos artistas e que passam a
transformá-los em interessantes personagens de intervenção cultural. De fato, a arena
em que a moderna cidade de Buenos Aires se metamorfoseia, passa com isso, a receber
destes artistas os mais diversos tratamentos, diagnósticos e análises. Neste sentido é
curiosa a imagem intensa, ultra moderna ao mesmo tempo que miserável da cidade
descrita por Roberto Arlt.
142
A esse respeito se posiciona igualmente a pincelada
geometrizada, repleta de imagens de edifícios modernos, automóveis e premonições de
um futuro possível nas colagens de hélices de helicópteros produzidas pelos quadros de
Xul Solar em contraste com a Buenos Aires de Borges e tantos outros.
143
De fato,
depreende-se que a cidade como portal mais visível das operações capitalistas
desenvolvidas em seu pleno vigor feroz funcionou também como élan anunciador de
novas tendências e aberturas para modalidades inauditas de intervenções. Muitas das
vezes estas modalidades assumiam a forma como diz Beatriz Sarlo de uma verdadeira
batalha da modernidade:
O capitalismo transformou profundamente o espaço urbano e complexificou seu
sistema cultural: isto começa a ser vivido não só como um problema senão como
um tema estético, atravessado pelo conflito de poéticas que alimentam as batlhas
da modernidade, algumas delas desenvolvidas segundo a forma vanguardista; o
realismo humanitarista se contrapõe ao ultraísmo, mas também se enfrentam
discursos de distinta funcão ( o perodístico e o ficcional, o político e o
ensaístico). A densidade cultural e ideológica do período é produto destas redes
e de intersecção de discursos com origem e matriz diferentes.
144
A significação profunda da tendência cultural argentina do período levada a cabo
pelas novas tecnologias e pelo vigoroso cruzamento do crescimento da orfeta de bens
simbólicos emprestava a experiencia dos homens de letras vanguardistas um caráter não
apenas de abertura, mas sobretudo de franca elasticidade e expansão. O universo
buenairense num processo de desembargada dilatação simbólica e material de seu
espaço propiciou uma renovação literária cujo gesto tradutor parecia evocar o direito à
142
SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 13-15.
143
Ibid., p. 50-62.
144
Id., Borges, un Escritor en las Orillas, p. 41-42.
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irrevrência, e mesmo à violência e ao extremismo, fornecendo assim, um interessante
painel dos acontecimentos recentes da cultura platina:
Mas há algo que distingue os movimentos de vanguarda dos movimentos
anteriores: a violência das atitudes e dos programas, o radicalismo das obras
(....) A violência e o extremismo enfrentam o artista com os limites de sua arte ou
do seu talento.
145
A revalorização e, de alguma forma, o usufruto consciente dos novos aparatos
modernos forneceu elementos para que a cidade, na visão destes interventores, surgisse
como um tesouro pleno de robustez e de sentido. Todos os estímulos fornecidos pela
urbe, seus acordes dissonates, polifônicos, o hibridismo que passou a colorir as novas
ruas milimetricamente calculadas, a heterogeneidade das ações artísticas cuja
exemplaridade instigante é a pluralidade das vozes, sugere uma imagem em que, pela
cidade dificilmente não se teria um impulso de atração mágica:
No terceiro andar de um casarão que abre as janelas para a Rua Flórida, nos
somaremos à artéria mais vital da cidade para, ao tomar-lhe o pulso, sentir as
mais leves alterações de seu ritmo.
Estamos onde deveríamos estar: em pleno centro, onde a cidade é mais atual e
mais vindoura. O subúrbio abusa de nossa ternura; nos aplaca com demasiada
freqüência; devemos desconfiar um pouco desse abandonar-nos excessivamente
a seu caráter fácil, demarcado, que nos impõe uma limitação.
146
Este verdadeiro estado de devaneio pela urbe moderna apresentava-se muitas das
vezes como num esforço inclemente de adesão aos mais novos valores e num senso de
fascinasção que as urdiduras da cidade modernizada requeria, como diz Walter
Benjamim no que tange ao viver a modernidade, uma formação heróica.
147
Um
otimismo atlético e de verniz olímpico predominava nas performances destes homens de
letras. Ao lado disso, uma alegria ingênua, vizinha da emoção infantil e nervosa se
revelou característica na ambiência artística que a cidade propiciava. Como sugere o
manifesto assinado por Jorge Luis Borges, era preciso não apenas estar em Buenos
Aires, mas em sua artéria mais vital, sentindo seu apelo em direção ao infinito ou a uma
direção qualquer como para que se sentissem mais envolvidos no processo que
cambiava a situação espiritual pública:
145
PAZ, O., Os Filhos do Barro: do Romantismo à Vanguarda, p.145.
146
BORGES, J. L., Martin Fierro 1926. A Direção [1924], p. 48.
147
BENJAMIN, W., A Modernidade e os Modernos, p. 12.
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Buenos Aires já é mais que uma cidadi, é um país e é preciso encontrar nela a
poesia e a música e a pintura e a religião e a metafísica que se harmonizam com
sua grandeza. Esse é o tamanho de minha esperança, que nos convida a todos a
sermos deuses e a trabalharmos na sua encarnação.
148
Borges convoca todos à sensibilidade. E o chamado a esta afetividade,
apreendida através do contato com a nova urbe, possui entre outras finalidades, o de
laureá-la liricamente, o que significará o desenvolvimento de seu canto sentimental pela
cidade, as vezes em forma de tema e, em outras vezes como comoção poética.
Certamente, surpreende o desembaraço e a largueza (ou o tamanho da esperança
borgeana) com que se descortina os atributos mais ignotos: de nossa parte, Borges
parece querer espiritualizar Buenos Aires (convite a sermos deuses e a trabalhar na
encarnação da cidadi). Num chamamento que tem a força divina como impulso
convidativo, Borges empenha-se, em uma postura total, a desvelar a cidade de Buenos
Aires como símbolo de imensidão e grandeza. Do fragmento do manifesto do autor,
deduz-se que para Jorge Luis Borges, em Argentina, é apenas em sua cidade natal
portenha que é possível encontar poesia, música, pintura, religião e metafísica. Na
verdade, estas categorias funcionavam em Buenos Aires como disse o crítico uruguaio
Angel Rama:
Não apenas a cidade mecânica dos futuristas, que mal arvorecia na América
Latina, mas principalmente esse instante de mudança representado pela
conjunção de setores sociais díspares, pela violenta aproximação entre as
tradições e as novas estruturas urbanas, pelo debate que se havia introduzido
nos segmentos médios da sociedade cujo poder era reinvindicado ou estava em
vias de consolidar.
149
No seio mesmo das rupturas com as figurações tradicionais, a postura
vanguardista de Borges sobrepuja as categorias consagradas. E, por este viés de
interpretação, a assinatura por Borges de seus manifestos oferece aos leitores e
partícipes o efeito, como diz Atonio Candido de que se sente a impressão de estar em
contato com realidades vitais, de estar aprendendo, participando, aceitando ou
148
A grafia da palavra Cidadi que em espanhol deveria ser Ciudad revela o aspecto anteriormente citado
da questão nacional no ambiente cultural buenairense. Esta forma de grafar as palavras insere-se num
contexto em que a construção de uma “verdadeira língua” está em debate. BORGES, J. L., O Tamanho de
Minha Esperança [1926], p.575.
149
RAMA, A.; AGUIAR, F.; GUARDINI T. VASCONCELOS, S. (Orgs), Literatura e Cultura na
América Latina. Ensaios Latino Americanos, p. 112.
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negando, como se estivesse envolvido nos problemas que eles suscitaram.
150
De fato,
este furor rumo a universalidade, a busca pelo mais alto grau de ressonância ensejará em
Borges o salto acima de toda modalidade conveniente que significou a abertura inaudita
para criação de um novo panorama artístico e literário:
Consideramos da nossa geração todos os jovens, não pelo fato de o serem, mas
porque, via de regra, a juventude tem como patrimônio essencial a inquietação e
o descontentamento. É a esse momento psicológico de equilíbro instável, no qual
todas as potências do espírito trabalham em atitude de superação e de otimismo,
que chamamos, por antonomásia, de patrimônio virtual da nova geração.
E mais adiante, no mesmo manifesto, Borges ainda completa seu esforço
programático:
Colocamos proa nas mãos de todos os espíritos jovens, e seja ela tão audaz como
o símbolo, a prístina amálgama dos sonhos e os desejos despertados de súbito
como uma música platônica, entre o fragor da maquinaria e o canto do ouro,
único hino que até agora levantava ao espaço a tensão da urbe.
151
Entendamos, pois, que o tema do novo em conjunção com a apoteose da cidade
modernizada adquire um conteúdo vital para os vanguardistas portenhos. Suas
possibilidades inauditas, exuberantes e plenas de frescor marcam a cidade de Buenos
Aires como lugar de confinamento social e topográfico onde estas práticas se
desenvolvem.
152
É no entorno da cidade que a escritura de vanguarda de Borges se faz
sentir realmente como amplitude dos canais expressivos e contribuição para subversão
das formas. Nesta direção, Borges se situa como vértice entusiasta de um novo
movimento no campo literário e passa a por em questão os processos de expressão
tradicionais.
153
Ou aquilo que de forma enfática afirmou Octávio Paz no que tange aos
movimentos de vanguarda e sua diferença com outros movimentos artísticos do
passado: a vanguarda hispano americana seria para paz uma transgressão aos cânones
de Madrid, assim como fugas do provincianismo americano.
154
Dessa forma, é mister sublinhar o elemento sedutor da prosa fervorosa que jazia
no interior deste espetáculo. Sob os umbrais da urbe modernizada o período em análise
foi fortemente marcado pela ascensão das vanguardas, que adotavam uma postura
ousada e bastante irreverente. Como a cidade de Buenos Aires passara a albergar
150
CANDIDO, A., O Discurso e a Cidade, p. 9.
151
BORGES, J. L., Proa [1924], p. 34.
152
CANDIDO, A., op. cit., p. 58.
153
GUIMARÃES, F., Simbolismo, Modernismo e Vanguarda, p. 17.
154
PAZ, O., Os Filhos do Barro: do Romantismo à Vanguarda, p. 181.
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inúmeros valores, deu-se que a partir de uma ruptura artística os jovens artistas visaram
promover as principais mudanças em termos de literatura e arte. A entronização de
determinados elementos (Sua Majestade, a metáfora), assim como a era dos romances
regionalistas, ficava evidenciado nos conteúdos dos debates, nos manifestos e
programas cujo fim era atravessado pelo entusiasmo das novas possibilidades e a
tentativa de deslocamento daquilo que representava o passado em termos de litaratura.
A atmosfera da produção literária e artística de forma geral dialogava intensamente com
a transformação que registravam na sociedade a que pertenciam.
A especulação prática de Borges, aliada aos entusiasmados Martinfierristas, auto
imbuídos em promulgar uma nova legislação estética e, subrepticiamente, a construção
de uma linguagem literária autônoma, oscilava num movimento pendular que ia desde a
negação do legado deixado pelos ícones da literatura modernista até o aproveitamento
das tradições que simbolizavam a pureza e autenticidade do verdadeiro espírito nacional
que visavam construir.
155
Na verdade, o aglomerado destes elementos simbolizam um contexto socio-
cultural deveras frutuoso. Se nos atermos sobretudo aquilo que concerne aos processos
espirituais, a extrema racionalização técnológica, francamente desenvoltos no período,
revelarão uma profunda ligação a um sistema social em que a linguagem é um elemento
imprescindível para a reatualização constante do imaginário. As vanguardas, ao
pressuporem uma nova linguagem irredutível, mais precisa e refinada como Luiz Costa
Lima destaca
156
, deixam entrever seu aspecto de sonho de transformação da linguagem
estética. Desta forma, pode-se depreender que a postura do Borges vanguardista incide
ferinamente no status quo literário representado pelos ícones de uma linguagem estética
que não mais correspondiam as oscilações de uma atmosfera citadina, absolutamente
mais fecunda do que a que os antigos deuses do panteão das artes, agora postos em
xeque presenciaram e conheceram.
157
Além disso, a perfídia contida nestes ataques
brutais eram frequentemente obscenos e não eram visitados por uma coerência
ideológica nítida a não ser no sentimento de total rejeição ao establishiment e as
tradições culturais.
158
155
Refiro-me ao movimento criollista e gaúcho que neste momento estava presente nas discussões sobre o
caráter nacional argentino mas que não é nosso propósito discutir.
156
LIMA, L. C., Sociedade e Discurso Ficcional, p.319.
157
As enormes diferenças entre as sociedades do século XIX e século XX em franco movimento de
modernização credencia-nos a pensar nas distintas possibilidades quanto ao uso de linguagens e
construção cultural.
158
MONEGAL, E. R., Jorge Luis Borges: A Literary Biography, p.187.
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71
II
Vejamos, pois, a simplicidade e até que ponto se estenderam as implicações das
posturas assumidas pelos jovens vangurdistas e como que se configuravam as modernas
tendências estéticas nas palavras de um correspondente de Martin Fierro, Gullermo de
Torre:
O novo é a metade da arte.
159
O desprendimento extremo da expressão é aqui própria de um movimento que
terá encontrado o impulso de seu funcionamento para muito além do contato e
conhecimento das importantes questões suscitadas no interior da urbe moderna. O ano
de 1920 é, para a vanguarda argentina, o marco onde se reverdecem os sonhos de
construção de uma mitologia urbana voltada imediatamente para o futuro.
160
Ademais,
uma predisposição espiritual às novas modalidades de exposição cunhou nestes jovens
de vanguarda a possibilidade de mútuo reconhecimento frente a empreitada a que
estavam se lançando: a transformação do panorama literário local. Assim pois, quando o
novo é a metade da arte, e apesar do caráter eclético de alguns grupos vanguardista, os
martinfierristas admitem tacitamente beberem do poder tonificante que jaz nesta
insígnia hodierna ao transformarem-na em síntese importante para a superação dos
limites estéticos impostos e fomentando a criação de outros paradigmas de literatura.
Mas no que tange ao espaço cultural da América latina, a agitação subsiste,
intensificada verbalmente pelo constante reescalonamento das figuras litarárias. Por
outro lado, sem possuir uma relação de sinonímia, em Buenos Aires se vivia horas de
especulação como a Paris sob o processo de modernização descrita por Walter
Benjamin.
161
Pelo exposto, o panorama desenhado pelo perímetro citadino descortina o
159
SARLO, B., Sobre la Vanguardia, Borges e el Criollismo, p. 5.
160
Ibid., p. 3-8.
161
BENJAMIN, W., Paris, capital do século XIX, p.701-702.
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significado da estratégia das vanguardas argentinas em sua busca por visibilidade ao
lado da vida mais intensa na urbe moderna. Com efeito, o advento de amplos setores
artísticos mais organizados provocou, certamente, a alta dos valores espirituais da arte.
Que no caso de Buenos Aires, nas palavras de Solis aparecia desta forma:
O progresso material que exibe a city portenha e certas zonas do norte da
cidade, o ritmo frenético da Rua Corrientes, a vida social e cultural em contato
com as vanguardas européias, junto a cultura marginal derivada da nova
pobreza, da mistura dos costumes e línguas dos imigrantes, assim como também
o submundo da ilegalidade e o delito se entrecruzam e justampõe-se de maneira
espetacular na Buenos Aires dos anos vinte.
162
Estas evidências tornaram indiscutível a apreciação da cidade de Buenos Aires
como espaço privilegiado do cruzamento que a modernidade engendrou. É desta forma,
certamente, que o tecido urbano buenairense corporificou um cenário de mudanças
radicalmente inesperado para seus contemporâneos. A nova configuração do perímetro
citadino empresta a fisionomia da urbe moderna características que de outra forma
dificilmente poderiam ser tão sedutoras: com as novas atividades e funções, Buenos
Aires parece atiçar seus habitantes a se posicionarem frente a esta ambiência poderosa.
Dito de outra forma, a cidade se torna o recinto onde mais visivelmente pode-se pensar
a cultura urbana em função dos entrecruzamentos que necessariamente se sucederam no
marco da cidade.
163
À confusão da sua circulação, investimentos em sua infra-estrutura, acrescem-se
também as novas modalidades de exibição, velocidades de comunicação e meios de
transportes até então inimagináveis de serem atingidas, imigração intensa e os
freqüentes confrontos com os nativos e a metamorfose radical operada no tecido físico
da cidade que, por recursos a aparatos técnicos cada vez mais sofisticados, se
apresentavam muitas vezes de maneira bastante ostensiva. Na verdade, toda esta
opulência passou a se difundir e a se generalizar em escalas gigantescas, de forma quase
brutal. Tendo em vista sua transformação e a relação frágil que manteve com o passado,
Buenos Aires é, desta forma, elevada à categoria de lugar onde se faz possível o rechaço
ou a defesa do moderno:
162
SOLIS, C., Las Aguafuertes Porteñas de Roberto Arlt : la outra cara de modernidad en Buenos Aires
de los años veinte y treinta, p. 8.
163
Ibid., loc.cit.
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73
Na argentina, a relação com o passado tem sua forma específica na recuperação
imaginária de uma cultura que se pensa ameaçada pela imigração e a
urbanização. No caso de Borges e outros vanguardistas portenhos se observa
claramente o movimento para outorgar ao passado uma nova função. E o debate
começa sobre o significado do passado: tem-se que fazer uma nova leitura da
tradição. Borges avança: tem que retomá-la e pervertê-la.
164
Buenos Aires cresceu, se densificou dando maior volume as suas atividades e
renovando o peso de suas atribuições em Argentina. Da mesma forma, as mudanças
experimentadas pela capital geraram simultaneamente vaidade, assombro, fascínio e
questionamentos nos habitantes e transeuntes. Ao lado disto, vemos franqueada uma
maior capacidade de intervenção no campo das letras e artes. Os debates acerca dos
mais diversos temas se desenvolviam ao redor de grupos diferentes na cidade de Buenos
Aires. Desde o nacionalismo até questões estéticas ou de políticas, era no centro político
em Buenos Aires que se dava o palco principal das discussões.
165
Jorge Luis Borges
chega a capital argentina em perfeito diálogo com as mudanças operadas no que se
referem a um alcance mais amplo da linguagem literária e, sobretudo no que tange ao
colóquio estabelecido com os processos globais de caráter estético, artístico e de
vanguarda.
Naturalmente, o recinto prático desta atuação foi o centro da capital cujas
transformações e reificação dos domínios tecnológico disponibilizou repertórios novos
de experimentações e maior visibilidade dos exercícios artísticos, muitos dos quais
irreverentes e bastante provocativos, sobretudo se tivermos em conta o horizonte
cultural anterior. Neste domínio, a cidade pareceu acolher uma ativa e vigilante espera
do diferente e inaudito como futuro palpável e desejável. Deste modo, o entendimento
do cruzamento se faz disposição para viver o novo, abertura a sua constante irrupção. E
que, quando damos a palavra à direção de Martín Fierro, estas disposições surgem desta
forma:
Mas nossa paisagem habitual há de ser menos restrita, mais heterogênea,
aquela onde se cumpra o milagre da coesão harmoniosa de tantos elementos
díspares e contraditórios. Aqui, na Rua Flórida, onde a cidade é como uma
síntese de si mesma e do país, pertinho do Porto para não esquecer nunca que
164
SARLO, B., Borges, un escritor en las Orillas, p. 48.
165
Id., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p.16.
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por ali, em grande parte, veio de longe nosso espírito e nosso sangue e para
onde fatalmente iremos para ser julgados, por aspiração ou gravitação.
166
Orbitando em volta da cidade os artistas empreenderam uma verdadeira
clivagem dos preceitos intelectuais que, embora ainda se mantivessem válidos no
circuito literário local, precisavam de alguma forma ser alterados. Diante desta
perspectiva cambiante, aqueles personagens, pressupostos ou mesmo sistemas de idéias
que pareciam não mais darem conta desta nova realidade espetacular, já que seus limites
eram absolutamente visíveis nos radares da intelectualidade buenairense segundo esses
artistas e escritores, foram rebaixados à condição de párias ou de verdadeiros animais
conforme a ácida demonstração do mesmo texto de Martin Fierro:
Ao mesmo tempo que teremos a satisfação de abrir de par em par as portas a
todos que nos derem sua amizade ou sua crítica, por mais impiedosa que seja,
contanto que bem cristalina e sincera, também poderemos batê-la no nariz das
intenções rasteiras e da futrica peçonhenta. Que lindo poder abrir a janela e
cuspir em silêncio nosso desprezo aos animais que não podem elevar-se até
onde estamos!
167
A conjunção estratégica entre furor iconoclasta e demonstração fraterna de
amistosidade desliza paulatinamente para a tentativa de renovação estética e promoção
dos novos valores intelectuais, assim como a criação de um ambiente cosmopolita,
determinado pelo cruzamento do exemplar mais fidedigno do argentino com as
contribuições legadas pela civilização ocidental:
A formação de um ambiente fecundo para a criação artística; revelar e divulgar
novos valores intelectuais; promover a renovação estética em todas as artes,
com a profunda determinação de colaborar eficientemente para o progresso da
cultura nacional; com o sentido argentino de hoje, ou seja, com a forte raiz
gaúcha e o sotaque genuíno da civilização ocidental da qual fazemos parte, e
dentro da mais pura tradição e das projeções que os organizadores da nação
quiseram dar ao nosso povo. Somos seu autentico fruto. Nosso nome, Martin
Fierro, é a divisa do espírito que impera nestas páginas; Martin Fierro, pois, e
de 1926.
168
166
BORGES, J. L., Martín Fierro 1926. A direção [1924], p. 48.
167
Ibid., p. 49.
168
Ibid., loc.cit.
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75
A tonalidade verdadeiramente retumbante do texto de Martín Fierro assemelha-
se com o que Carl Shorske declarou em seu livro Viena Fin de Siècle a respeito de
algumas manifestações arquitetônicas que passaram a fazer parte do cenário de
remodelação do centro da cidade de Viena: o estilo de Adão, isto é, nu e forte.
169
Para
estes círculos de jovens escritores, escrever é primeiramente questionar, repor em
questão os fundamentos.
170
E esta forma de questionamento serviu como senha para a
formação de outros círculos em torno da mesma temática: desorganizar para fornecer
uma nova dinâmica no interior daquilo que parecia um precário cinturão literário.
Ora, parece evidente que tais tentativas de reestruturação do sistema literário a
que Borges e os martinfierristas assinam estavam em perfeita consonância com um
cenário bastante conturbado em termos sociais, culturais e políticos. Notemos, pois que,
ao assumirem como tarefa primeira a recriação de um ambiente artístico e literário, os
vanguardistas buenairenses passaram a ter como premissa acreditar piamente nas
possibilidades de concretização de tais sonhos. É que, na verdade, ao insistirmos no fato
de tratar-se de uma atmosfera extraordinariamente vertiginosa, de câmbios vertiginosos
e que, como corolário óbvio, tem-se a queda dos antigos paradigmas e releitura dos
antigos cânones, as alternativas apresentadas, cujo um dos intentos era o preenchimento
das lacunas, estava em concerto com o que havia de mais inaudito no que se refere as
inquietações em diversos campos da vida social e não apenas em seu sítio cultural. Na
verdade, as diversas latitudes em que essas inquietações se manifestavam ganhavam
pleno vigor na cidade de Buenos Aires. Assim, não seria menos verdade que essa
efervescência serviu como pretexto de releitura em outros domínios da vida citadina:
Sem almejar visões globalizantes ou organizações definitivas das histórias da
literatura, as revistas culturais argentinas do século XX não deixaram de revisar,
diversas vezes, uma memória literária nacional à luz de critérios teóricos,
críticos e ideológicos que variavam segundo o momento histórico. Essas revisões
articularam diferentes espaços literários, por operações de inclusão e exclusão,
deslocavam obras e autores dentro de um sistema nacional, decretando seu
vínculo com esses sistemas ou sua ilegitimidade.
171
E mais adiante:
169
SCHORSKE, C., Viena Fin de Siècle, p. 63.
170
SOJCHER, J., La Démarche Poétique.Lieux et sens de la poésie contemporaine, p. 15.
171
OLMOS, A. C., Releituras de Borges. A revista “Punto de Vista” nos anos 80, p. 205.
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76
É evidente que nesses movimentos de leitura repercutem formulações
ideológicas, teóricas e críticas que vinculam essas reorganizações do sistema
literário nacional a uma práxis do presente que as revistas realizam como parte
de suas estratégias de intervenção no campo da cultura.
172
Assim posto, é portanto nesta direção que se encontra a imperiosa necessidade
de remoção da água estagnada das opiniões pretéritas e de se fazer conhecidos,
difundidos e propagados os novos valores, representantes simbólicos de uma Argentina
venturosa e triunfante em seu rumo, por mais audazes que estes se apresentem em sua
forma aparente. Deste modo, ao regressar e perceber uma cidade em ebulição, a resposta
produzida por Jorge Luis Borges em seu período vanguardista, materializada na
convicção do novo e da confecção de uma outra fisionomia para a literatura, estava em
concerto com as transformações que a sociedade buenairense deixava transparecer, bem
como a de suas mais inéditas possibilidades, e esse é o sítio preciso onde devem se
inscrever tais tentativas de renovação das letras hispânicas:
No ano exato em que começamos a organizar esta empresa desinteressada, cujo
objetivo primordial foi tentar a criação de um ambiente artístico, cumprir uma
ação depuradora, coordenar o espírito desorientado da juventude intelectual,
remover a água estagnada da crise de opinião, dar a conhecer os novos valores
e mostrar as tendências literárias e artísticas que despontam ou se definem em
nosso meio (por mais audazes que sejam), para cumprir nosso plano de difusão
de idéias e intenções modernas fazendo da revista um reflexo da alma argentina
de hoje, hão de nos permitir a indiscrição de decidir, finalmente, quem é Martin
Fierro.
173
De fato, este sucesso das práticas de vanguarda em Buenos Aires evidenciado
num dos casos mais proeminentes do período que é a revista Martín Fierro, por certo
tem haver com a característica de lata heterogeneidade do espaço público que, por sua
vez, ia se tornando mais vibrante e extensivo. Estas modalidades de intervenção
transformavam o centro da capital numa ágora, espécie de arena moderna em que se
debatiam as principais urgências e se multiplicavam os fermentos de uma disputa que ia
adquirindo densidade crescente à medida que a década de 1920 se arrastava. Fortemente
estimulada e propagada por esta revista, prosperava na cidade uma ambiência de mescla
172
OLMOS, A. C., Releituras de Borges. A revista “Punto de Vista” nos anos 80, p. 206.
173
BORGES, J. L., Quem é Martín Fierro? [1924], p. 38.
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77
e conflitos simbólicos onde diferentes grupos culturais realizavam suas batalhas em prol
de objetivos quase sempre controversos. Em uma ordem de sentido desafiante, Jorge
Luis Borges não reluta em engajar-se plenamente. Em manifestos de poder irresistível,
revelando-se zelosamente inabalável em sua lealdade vanguardista, o escritor aponta o
caminho em sua busca angustiada de uma totalidade, de um absoluto que substitua o
fracionamento e a falta de sentido das realidades estabelecidas.
174
Para dar curso a esta empreitada, tornou-se imprescindível a articulação entre o
espaço de experiência pretérito percebidos como um mundo longínquo e o significado
da montagem de uma nova estrutura de pensamento que favorecesse uma recepção
menos tímida por parte do público. Na verdade, dentro da lógica de reaproveitamento,
as experiências pretéritas não se configuravam como um todo desprezível. É desta
forma que o regresso de Borges a Buenos Aires surge para nós como universo de
alternativas francamente escancaradas, conflituosas e o entusiasmo do autor portenho
frente a algumas delas é a resultante mais visível do poder de sedução que jaz na
modernidade da urbe babélica: estimulados pela capitalidade de Buenos Aires, o
reescalonamento que os vanguardistas se empenhavam em instituir abriam frentes a
uma nova compreensão fazendo dos elementos que surgiam na cidade um dos seus
principais fomentadores:
O manifesto Martín Fierro tem todas as características próprias do gênero, até
pelo uso de certos vocábulos provenientes dos recentes avanços técnicos:
Hispano-Suíça, rotativa e radiograma, que não aparecem nem mesmo nas obras
de seu próprio autor.
Propõe uma nova compreensão para a nova sensibilidade, cortar com todo
cordão umbilical e arrancar as teias de aranhas tecidas pelo hábito e pelo
costume, mas não descarta a posse de um álbum de retratos que folheia de vez
em quando para se descobrir através de um antepassado.
175
A reciprocidade destes movimentos – o entusiasmo pela novidade e a reviravolta
nos hábitos e costumes – passam nutrir a carência e a arrogância que as noções de
progresso e modernidade não fazia mais que exacerbar. Estes escritores, se sentido
como filhos diletos dessa prerrogativa, encarnavam em suas performances o
desconfortável equilíbrio que permanecia numa modernidade como a buenairense:
passado, presente e futuro estavam tão intimamente imbricados que o próprio Borges
174
COVIZZI, L. M., O insólito em Guimarães Rosa e Borges, p. 57.
175
ALCALÀ, M. L., Os textos programáticos, p.23-24.
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encarou a modernidade de sua cidade natal em mais de uma frente: a postura
vanguardista e sugestivamente “avançada” frente aos postulados literários de seu
ambiente local e a forma poetizada em seu canto à cidade.
Eis-nos, portanto, perante uma sugestiva definição de modernidade. Para nós,
sua riqueza reside justamente na implicação que jaz no surgimento de um campo novo
em que as expectativas morais, éticas, estéticas e sócio-culturais vão pouco a pouco se
afastando das experiências acumuladas. Segundo Beatriz Sarlo
176
, com a modernização
de Buenos Aires não era incomum que uma necessidade de resposta passasse a ser
encarada como tarefa essencial. E esse traço, naturalmente, se acentua quando os
processos de metamorfoses sociais adotam a forma do desvario e do insólito. E é
precisamente nesses imbricados cenários que se verifica o dsejo de abertura, implicando
a integração de um tipo de imaginação crítica da leitura dos velhos textos
177
. É aí que
estão tantos os modernistas na importante figura de Ruben Darío, bem como um pouco
mais tarde a não menos importante figura de Jorge Luís Borges. Esses processos de
inversão e mudanças no cenário intelectual só foram possíveis frente a incrementada
capacidade de circulação que em Buenos Aires estava relacionada a determinadas
combinações:
No interior de uma sociedade que conhece a escritura, todo texto poético, na
medida em que visa ser transmitido a um público, é forçosamente submetido à
condição seguinte: cada uma das cinco operações que constituem sua história (a
produção, a comunicação, a recepção, a conservação e a repetição) realiza-se
seja por via sensorial, oral-auditiva, seja por inscrição oferecida à percepção
visual... O número das combinações possíveis se eleva, e a problemática então se
diversifica. Quando a comunicação e a recepção (assim como, de maneira
excepcional, a produção) coincidem no tempo, temos uma situação de
performance.
178
O propósito inicial de uma deliberada subversão constituiu o móvel comum da
atitude performática das primeiras vanguardas. São textos programáticos de
dissentimento frente aos antecessores imediatos que, por não viverem a ambiência de
uma cidade modernizada, dependeram de condições de recepção e de meio de
176
SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 28.
177
ZUMTHOR, P., A Letra e a Voz: A “Literatura” medieval, p.18.
178
Ibid., p.19.
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79
comunicação mais precários.
179
Deste modo, a escritura vanguardista portenha possui
características de um projeto polêmico e agressivo a serviço da ruptura da noção de
literatura até então vigentes. A rebelião é categorizada na virulência verbal e na
pulverização das convenções herdadas. Nesta direção o escritor portenho
prosseguimento:
Qualquer acontecimento, qualquer percepção, qualquer idéia nos exprime com
igual virtude; vale dizer, pode-se incorporar a nós... Superando essa inútil
obstinação em fixar verbalmente um eu vagabundo, que se transforma a cada
instante, o ultraísmo tende à meta primeira de toda poesia, isto é, à
transmutação da realidade palpável do mundo em realidade interior e
emocional
180
.
Desta forma segura, a vanguarda argentina ao realizar de maneira prática o
projeto de utopia vanguardista que, como conseqüência de suas atribuições exigiu a
criação de uma nova linguagem, pôde considerar-se, como dizem boa parte dos
estudiosos do assunto, como um modelo exemplar de vanguarda em termos de riqueza e
criação estrepitosa.
181
Um experimento consumado onde universalismo e nacionalismo,
produção textual, comunicação e recepção realizava-se por diferentes vias. Portanto, o
que Paul Ricoeur chama de dialética do par evento e significação resultara em
Argentina serem postulados de um círculo onde havia um estado de ressonância dado e
um perpétuo por fazer. Tais fatores correlacionados adquirem mais força se nos atermos
aos diversos conteúdos que Borges deu ensejo para fazer valer seu projeto de mudança
nas letras argentinas:
Não acredito tampouco na tradição. Essa palavra, usada com reverência em
muitos discursos, é atacada em outros. Eu, entretanto, acho que é tão indigna de
submissões como de ultrajes. É uma série de prudências para escrever, um
monte de observações não comprovadas cuja validade, no melhor dos casos,
nunca passaria de empírica. Por exemplo:
179
RAMA, A.; AGUIAR, F.; GUARDINI T. VASCONCELOS, S. (Orgs), Literatura e Cultura na
América Latina. Ensaios Latino Americanos, p.60.
180
BORGES, Jorge Luis. Ultraísmo [1921], p.112.
181
Há um tom de franco crédito em Jorge Schwartz no que tange as vanguardas argentinas e
especialmente ao grupo de Martín Fierro. A aprovação se dá em tons de divisor de águas que a vanguarda
argentina representou e na definição de um antes e depois nas manifestações culturais e artísticas da
América do Sul. Ver: SCHWARTZ, J. (Org.), Vanguardas Latino-Americanas, Polêmicas, manifestos
e textos críticos, p. 105-106. Para os aspectos distintivos das vanguardas em América Latina: PAZ, O., Os
Filhos do Barro: do Romantismo à Vanguarda, p. 148-181.
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80
É emocionante ouvir falar dos deuses gregos.
Não é tão emocionante ouvir de revólveres como de espadas.
Convém, de tempos a tempos, falar da lua.
182
A ironia contida na menção da fórmula certeira que é discorrer sobre os deuses
gregos e na conveniência de tempos em tempos falar da lua reside o sentimento de
insatisfação e a aposta em um outro tipo de linguagem. Por certo, Borges arrisca numa
nova atitude e nos novos meios de expressão sem desdenhar da idéia de que o risco de
experimentar algo novo se converta em encontro ideal entre a audiência e a sabotagem
de tudo aquilo que representa o velho e arcaico.
No caso de Borges essas estratégias se vinculam a uma maneira especial de
perceber a urbe buenairense em seu retorno e, somado a isso, a partir da produção de um
diagnóstico sobre sua própria posição no campo das letras em comparação com a
posição dos demais. Borges dá ensejo a um ritual infindável de entronização e
desentronização produzindo uma meditação extremamente complexa sobre a cultura
literária latino americana do presente. Como estratégia de alteração do panorama
ideológico, teórico e cultural, a postura transgressiva do escritor redesenha os contornos
deste cenário literário, enriquecida certamente, pela divagação, não tão precisa talvez,
daquilo que a experiência de leitura pode facultar aos que a ela podem ter irrestrito
acesso. Assim, o escritor vanguardista desfere suas setas contra o virtuosismo
lingüístico de matiz rubeniana
183
que pouco tem a dizer aos tão poucos que os ouvem
neste período de intensa saturação teórica:
O que fazer então? O prestígio literário está em baixa; os intelectuais temem se
deixar levar por palavras bonitas e inibem sua emotividade perante o menor
alarde oratório (...) o seu companheirismo veemente nos parecem longínquo e
legendário; os mais acérrimos partidários do susto clamam em vão por
derrocadas e apoteoses. Em que rumo aproar a lírica?
O ultraísmo é uma das tantas respostas à interrogação anterior.
184
182
BORGES, J. L., Página Sobre a lírica de hoje [1927], p. 79.
183
Segundo Bella Jozef o rubenianismo de Darío faz com que as coisas representadas fora da órbita
instaurada pela poesia tornam-se vazias de significado. As palavras (modelo das coisas ) fundariam um
universo distinto do real. Ver: JOZEF, B., A Máscara e o Enigma: A modernidade da Representação à
Transgressão, p. 94. Para a temática do afastamento das vanguardas dos princípios de Rúben Darío, Ver:
JOZEF, B., História da Literatura Hispano-americana, p. 183.
184
BORGES, J. L., Ultraísmo [1921], p.109.
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81
Borges retém a fórmula de intransigência marcada por um padrão
anticonvencional de crítica inscrevendo-se na postura daqueles vanguardistas que,
segundo Bella Jozef, pretendem realizar de forma simultânea o futuro no presente, como
se almejassem antecipar o curso da história.
185
Tendo como pano de fundo um
complexo cenário, isso não ocorre somente em Borges. Em um sentido amplificado, os
vanguardistas de Buenos Aires como que integrados ao seu tempo se concebiam como a
personificação de um futuro imediato, instantâneo e, ao mesmo tempo, como portadores
privilegiados da mensagem artística que derivava da compreensão e ultrapasse, ainda
que abstratamente, das condições sócio-culturais típicas dos tempos conturbados. Neste
sentido, o ultraísmo postulado por Borges como resposta às lacunas deixadas pela
produção literária anterior, extremiza a singularidade criadora pondo em relevo uma das
suas características inerentes que, ainda segundo Bella Jozef, se traduziria numa versão
estética cuja prática se radicaria na corrente da poesia pura.
186
As vanguardas em nosso continente descobrem um novo espaço e um novo tempo
para a literatura apresentando uma vontade comum de definição e expressão. E
essas conquistas articulam-se na linguagem, a partir da poesia dos anos vinte,
que enfatiza o visual, escreve os significantes no texto, e propões as bases de
uma sintaxe labiríntica, fazendo com que a configuração do poema, do texto,
seja a própria mensagem. Escrever um poema é construir uma realidade auto-
suficiente.
187
Assim, estas iniciativas nasceram em conjunto, ou melhor, foram regidas em
consonância à pressuposição da caducidade de uma literatura vista como passadista e
que não lograva mais obter êxito. Ademais, a posição vanguardista atribuíra ao passado
literário a incapacidade de forjar respostas que a presença de uma ambiência cultural
moderna exigia. De fato, a tendência foi de uma escrita de auto-corrosão livremente
manifestada nos atos em que tinham vez uma reflexão acerca não apenas do ofício do
escritor, mas também sobre a própria literatura. Esta postura em que está inscrita a
modernidade, segundo Bella Jozef:
185
JOZEF, B., A Máscara e o Enigma: A modernidade da Representação à Transgressão, p. 94.
186
Ibid., p. 162.
187
Ibid., p. 160.
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82
O modernismo hispano-americano inaugura na América a modernidade. A
vanguarda desenvolve alguns de seus aspectos e inicia seu processo de diluição
como crítica de toda a experiência poética anterior e do próprio poema. A
modernidade institui nova escritura e nova visão do mundo. Amplia o repertório
global do homem.
188
Nesta direção, absolutamente afinados como estavam com a orquestração
moderna da sociedade, arte e cultura, a falência de objetivos e funções atribuídas a
literatura passada e as suas modalidades de expressão, revela precisamente que não se
trata mais da mesma forma de discurso que até então cumprira as exigências de um tipo
específico de circuito cultural: escritores que, como numa comarca hermética,
produziam suas obras para o desfrute de um público produtor igualmente hermético
cujo traço comum eram se lêem, se pintarem e se esculpirem mutuamente. A crítica de
Borges se situa para além destes circuitos.
189
Neste sentido, vale ressaltar como se inscreve o novo dentro de um universo de
ressemantização, releitura dos antigos paradigmas das letras, sobretudo, quando as
intervenções estão inseridas na coincidência de vários fatores e circunstâncias que
asseguram multiplicidade e possibilidade de seu surgimento. De igual maneira, poder-
se-ia afirmar com Paul Zumthor ao se referir aos sistemas de circulação da “literatura”
medieval, que deveríamos auscultar os signos levando em conta a complexidade e
heterogeneidade das condutas e modalidades discursivas comuns tal qual se referem a
um sistema de representações e a possibilidade de interpretá-los.
190
Da mesma forma,
pode-se dizer que a complexidade encontráveis na Buenos Aires dos tempos de Borges
estendeu um véu novo de significantes cuja tentativa de auscultação deve sempre levar
em consideração o entrecruzamento das modalidades interpretativas.
Deste modo, as transformações operadas na sociedade buenairense marcaram
profundamente seus artistas e intelectuais passando a exigir dos mesmos um novo
repertório de sensibilidades e outras modalidades de intervenção. Neste caso, a atitude
performática de Borges ao se referir a tradição literária argentina parece não comungar
188
JOZEF, B., História da Literatura Hispano-americana, p.180-181.
189
Reporto-me pela diferença marcada por Angel Rama quanto a “cidade letrada” em que havia a
necessidade de formação de quadros e a “cidade modernizada” e a “cidade revolucionada”. As duas
últimas são marcadas por diferentes níveis de formação intelectual e aparatos de progresso. Ver: RAMA,
A., A cidade das letras, p. 43-44, 76-101, 126-156.
190
ZUMTHOR, P., A letra e a Voz: A “Literatura” medieval, p.22.
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do credo daqueles que pensam a poesia em termos de fórmulas seguras com o fito de
atingir um público cuja expectativa deve ser respeitada.
A idéia de performance é exacerbada quando Borges e os ultraístas oferecem à
Buenos Aires a sagração dos seus manifestos murais.
191
Esses manifestos filiam-se
claramente a uma tendência eclética que, além de condensarem uma pluralidade de
direções, aspiravam ser o “vértice de fusão” das escolas estéticas de vanguardas.
192
Todos estes cruzamentos resultam tanto mais significativos quando se observa o intento
histórico de realizar literariamente a idéia de utopia vanguardista em forma de
manifestos murais. Assim, liderados por Borges, um pequeno grupo afixa nos muros de
Buenos Aires dois manifestos iniciais que são as versões de 1921 e 1922 da folha mural
Prisma. Com esta nova modalidade de suporte os golpes deferidos por esses
vanguardistas nos pretéritos pressupostos literários atinge sua potencialidade
universalista. Ao contrário do que vinha ocorrendo até então, agora todos poderão ter
acesso às disputas intestinas do campo literário buenairense: dilata-se a lógica que
reside na dialética do autor-receptor
193
:
Os poetas só se ocupam de mudar de lugar as bugigangas ornamentais que os
rubenianos herdaram de Góngora... Quanta hipocrisia i quanta mentira nesse
manuseio de ineficazes i imprecisas palavras, quanto medo arrogante de
penetrar verdadeiramente nas coisas, quanta impotência nessa vanglória de
símbolos alheios! Enquanto isso, os demais líricos, aqueles que não ostentam a
tatuagem azul rubeniana, exercem um episodismo loquaz i fomentam penas
rimáveis que, esmaltadas de visualidades oportunas, venderão depois, com um
gesto de amestrada simplicidade i de espontaneidade prevista.
194
A radicalidade da lógica imposta à produção/meio textual, bem como a negação
da doutrina literária dos antigos coloca a questão proposta por Ricoeur. Pois, para além
do desconcerto que instaura, os manifestos, sobretudo na sua versão mais ostensiva, na
plenitude do seu caráter de evento público, como é a versão dos murais Prisma, traz a
tona uma performance cujo grau de alcance pretendido e realizado só se tornaram
possíveis frente ao esgarçamento de todas as coordenadas que guiavam os escritores do
191
Em termos gerais Paul Zumthor considera performance quando há coincidência do ato comunicativo e
do receptivo no tempo.Ver: ZUMTHOR, P., A letra e a Voz: A “Literatura” medieval, p.19.
192
SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 95-107.
193
RICOEUR, P., Teoria da Interpretação. O discurso e o excesso de significação, p. 41.
194
BORGES, J. L., Mural Prisma nº1 [1922], p.112.
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período: o Jorge Luis Borges dos Manifestos Murais Prisma eleva a potencialidade
máxima o advento da possibilidade do discurso enquanto evento.
Nesta perspectiva, os manifestos Borgeanos estão submetidos ao poderio do
arbítrio criativo que faz proliferar as conexões mais surpreendentes nesta época de
intenso intercâmbio. Borges amplia seus leitores, mas não mais na relação íntima,
resignada e intelectual que ele mesmo já nos ofertou como opinião
195
. Trata-se, na
verdade, da condução até o extremo daquilo que Paul Ricoeur denomina de auditório
universal. A prerrogativa vanguardista borgeana faz uso particular da noção de
manifesto que ultrapassa o conceito comummente utilizado de declaração pública ou
solene das razões que justificam certos atos ou que se fundamentam certos programas
de cunho estético, político ou religioso. Como portadores de tal novidade, os manifestos
em que Borges intervém na Buenos Aires modernizada só serão possíveis graças à
paulatina transformação, na verdade, da passagem de uma realização cultural inscrita no
processo de escrita ao estágio de discurso enquanto evento e, como corolário à
significação:
Embandeiramos as ruas de poemas, iluminamos com lâmpadas verbais os seus
caminhos, cingimos os seus muros com trepadeiras de versos: que eles, alçados
como gritos, vivam a momentânea eternidade de todas as coisas, i que a sua
beleza dadivosa i transitória seja comparável à de um jardim vislumbrando a
música esparramada por uma janela aberta i que enche toda a paisagem
196
.
Borges, através do que chamamos de exteriorização intencional,
197
se engaja
numa empreitada em que, primeiro predomina uma crítica a superficialidade, entendida
aqui como predomínio das sensações sem “profundidade”, sem constância num sistema
discursivo estruturado; e, também no sentido de predomínio de um regime de verdade
baseado na superfície, Borges rechaça a vitória alcançada pela beleza opaca obtida
através do manuseio conveniente das convenções legadas. E em segundo, mas não
menos importante, a tentativa de fixar o discurso por intermédio, talvez, de uma aguda
consciência da realização cultural que estava em curso. A consciência de ser parte de
195
As palavras de Borges são: “Ás vezes acredito que os bons leitores são cisnes ainda mais negros e
singulares que os bons autores... Ler além do mais, é uma atividade posterior a de escrever; é mais
resignada, mais atenciosa, mais intelectual”. In: BORGES, J. L., História Universal da Infâmia, p.11.
196
BORGES, J. L., Mural Prisma nº1 [1922], p.113.
197
É a constituição do par “evento-significação” própria dos diferentes estratos da fala e que torna a
inscrição do discurso possível graças a significação do evento lingüístico. Ver: RICOEUR, P., Teoria da
Interpretação. O discurso e o excesso de significação, p. 38-39.
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um momento singular proporciona ao escritor uma maior espetacularização de seu
evento, inscritos nas ruas embandeiradas de poemas e nos muros com trepadeiras de
versos. E é precisamente neste caráter de evento de discurso que se cruzam as
modalidades discursivas a que se refere Paul Ricoeur: A escrita pode salvar a instância
do discurso porque o que ela efetivamente fixa não é o evento da fala, mas o “dito” da
fala, isto é, a exteriorização intencional constitutiva do par “evento-significação”
198
.
Não é de maneira alguma gratuita que um dos procedimentos capitais da
intervenção de Jorge Luis Borges é o papel da destinação do discurso. Esse
procedimento ganha força se caracterizando por aquilo que podemos denominar de
teatralização da palavra
199
. Estabelecendo mecanismos de ruptura, inversão e trocas
com a visualidade das revistas murais, Borges exterioriza sua intenção transformando
em evento como diz Ricoeur não a fala propriamente dita, mas o dito a que a ela
pertence. Assim, esse dito da fala metamorfoseado em evento-sifnificação ganha
plenitude pela concretização verbal do elemento visual materializado nas revistas e,
sobretudo nos manifestos. Deste modo, no vigor de seu entusiasmo, Borges materializa
seu sonho utópico e vanguardista de eliminar entre os intelectuais, artistas, escritores e
transeuntes de Buenos Aires a distância entre o visível, o dito e o racionalizável.
Isto posto, soa-nos evidente que é principalmente nas revistas e manifestos que
esses artefatos dos quais Borges lança mão sejam os que provocam, nos leitores, um
efeito de sublimação da narrativa. De forma efetiva, conforme diz Ricouer ”o texto
subtrai-se ao horizonte finito vivido pelo seu autor. O que o texto significa interessa
agora mais do que o autor quis dizer, quando o escreveu”
200
. Nesse caráter de evento
do discurso, o mecanismo desconstrutor das narrativas e clichês poéticos dos
antepassados passam a significar para Borges apenas mais uma oportunidade para dar
autonomia a escrita diante desse auditório agora bem mais amplificado:
Pela segunda vez, perante a copiosa indiferença dos muitos, a voluntária
incompreensão dos poucos i a satisfação espiritual dos únicos, alegramos com
versos as vossas paredes.
198
RICOEUR, P., Teoria da Interpretação. O discurso e o excesso de significação, p 39.
199
Baseio-me em Wolfgang Iser quando aborda a questão do “discurso encenado” na literatura. In: ISER,
W., Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, 2002.
200
RICOEUR, P., op.cit., p. 41.
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Voltamos a crucificar nossos poemas sobre o acaso dos olhares.
Esta maneira de manifestarmos o nosso trabalho causou surpresa; mas a
verdade é que isto – quixotada, burla contra os comerciantes da arte, atalho
para a fama, o que quiserdes – é aqui o de menos. O importante são os nossos
versos.
201
A convergência de todas as características presentes na intervenção borgeana
citada peculiariza seu alcance verbal e torna significativa sua performance. Liberto das
malhas de uma situação dialógica, rompidos os diques que o prendia a uma relação face
a face, Borges exponencia as modalidades de leitura do manifesto pelo suporte material
que espiritualizou e tornou compreensível a todos os transeuntes através do
aproveitamento do léxico compartilhado por todos os membros da sociedade. A
indiferença de muitos lembrada por Borges em tom queixoso nos faz recordar da
pergunta e resposta dadas por Roland Barthes em O Prazer do Texto:Escrever no
prazer me assegura – a mim escritor – o prazer de meu leitor?” E Barthes nos fornece
um caminho para a resposta: “De modo algum. Esse leitor, é mister que eu o procure
(que eu o “drague”), sem saber onde ele está (...) Não é a pessoa do outro que me é
necessária, é o espaço “
202
. Assim, Borges em estado de entusiasmo pleno dá
prosseguimento ao que parece um inquebrantável vínculo vanguardista:
Fartos daqueles que, não contentes com vender, chegaram a lugar a sua
emoção i arte, prestamistas da beleza, dos que espremem a mísera idéia caçada
por casualidade, talvez roubada, nós, milionários de vida e de idéias, saímos
para presenteá-las nas esquinas, para esbanjar as abundâncias da nossa
juventude, desatendendo as vozes dos avaros de sua miséria.
Olhai o que vos damos sem reparardes em como
203
.
Diante de tal exposição, a criação artístico-literária de Jorge Luis Borges se
destina menos as pessoas (ao leitor pessoalizado), ao indivíduo ou até mesmo a
sociedade do que a uma direção. E nessa trajetória, a intervenção vanguardista borgeana
parece incessantemente querer dar provas de que deseja o leitor, esse leitor imaginário,
imprescindível vértice da luta entre direito de autor e direito de leitor e que fornece
201
BORGES, J. L., Mural Prisma nº2 [1922], p.114.
202
BARTHES, R., O Prazer do Texto, p. 9.
203
BORGES, J. L., op.cit., p. 115.
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todos os ingredientes necessários da dinâmica da interpretação e que tem na produção de
Borges um poderoso testemunho de seus efeitos.
Por ora, trata-se de um período fecundo de estudo e de dúvidas sobre a cultura
argentina em franca transformação. As revistas de vanguardas deste período funcionam
como plataforma das novas reorientações no campo literário. As críticas, os novos
critérios de teoria e rearranjo de obras do passado pela análise do presente se
desenrolavam em torno dessas manifestações, onde as revistas tinham um lugar de
destaque. A relevância das mesmas se dá na medida em que se imagina um corpo de
jovens escritores que, além de terem de conquistar seu lugar no campo das letras,
corroboravam para alçar na cidade, os debates mais importantes e que ultrapassavam as
questões de cunho estético. Criou-se, verdadeiramente, uma atmosfera em que tinha
lugar os debates mais ferrenhos sobre os mais diversos temas: urbanismo, paisagismo,
nacionalismo, artes pictóricas, literatura e política figuravam na urbe buenairense entre
as temáticas que figuravam em primeiro plano. Deste modo, é na cidade de Buenos
Aires onde se torna possível encontrar diversas tendências artísticas e intelectuais e,
com isto, essas multiplicidade de tendências deixam a impressão de ter sido rompido os
diques que impediam um reprocessamento do sistema literário que vigia até então:
Estas obras foram lançadas como foguetes, rápidas como centelhas, ao longo
dos anos 1920(...) Por que a sensação de abertura que todos viveram e a alegria
que lhes inspirou esta convicção de iniciadores aumentaram sua capacidade
inventiva, a instigação do imaginário, a descoberta da verdadeira realidade. Na
eclosão de revistas literárias que cobrem os anos de 1920(...) encontraremos
essa busca diligente que em alguns casos se afasta de qualquer demanda
intelectual que o meio pudesse propor.
204
É neste sentido que podemos afirmar que a singularidade do momento reside na
transformação advinda pelo processo modernizador e na concretização de possibilidades
de intervenção absolutamente inéditas que visavam abarcar um expressivo número de
pessoas.
Jorge Luis Borges, por seu turno, torna-se um intrépido militante desta animada
távola. E, talvez, seja esta uma das razões que pode-se dizer com Octavio Paz que se a
204
RAMA, A.; AGUIAR, F.; GUARDINI T. VASCONCELOS, S. (Orgs), Literatura e Cultura na
América Latina. Ensaios Latino Americanos, p. 116.
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história da poesia e da arte do século XX não seja mais rica em grandes obras do que a
do século XIX, neste quesito não há dúvida de que ela foi mais variada e acidentada.
205
Podemos acrescentar ainda: a arte de vanguarda hispano americana se revelou mais
virulenta, pendular e agressiva cuja pauta passou cada vez mais a afastar-se do porto
seguro representado pelo meridiano que era a Europa em termos de artes e na produção
de bens culturais.
206
Estando dadas as condições de recepção dos textos, Borges em coro uníssono
com os literatos de Buenos Aires amplia sensivelmente a capacidade de tratamento e
acolhimento perante o público, que por sua vez se tornava mais numeroso e com forte
tendência a renovação. A escrita, possuindo cada vez mais poder de veracidade nas
instituições nascentes, sobretudo se comparado com a palavra oral, vai ganhando
terreno próprio e se constitui numa das bases para a solidificação de um meio intelectual
mais autônomo e audaz.
207
A diversificação somada à heterogeneidade do ambiente,
fomentou o imaginário materializado na escalada de suportes para veiculação das novas
idéias de cunho estético e franqueou estímulos que ultrapassava em muito a relação
textual comum do leitor com seu espaço escolhido para as leituras. Assim, Borges
visando um porvir próspero para o campo literário argentino intervém com textos cujo
caráter é a plena manifestação de algo que ainda não ocorreu, de algo que simplesmente
está em estado virtual
208
. Essas manifestações, ainda que carregadas de veemência e
ironia, atribuem mais tino a empreitada em que o escritor se auto incumbiu, de ver e
anunciar, a partir dos mecanismos próprios da linguagem artística, as infinitas
possibilidades que jazem na performance de comunicação entre os seres humanos.
Borges com suas bandeiras e iluminações se dirige a sociedade, ou a toda comunidade,
tentando estender seu apelo de renovação até os mais longínquos confins das
probabilidades.
O alicerce da intervenção está no anseio visível de edificar contato direto com a
problemática atualíssima da destinação do discurso. Assim, o que ecoa das inscrições
dos manifestos murais Prisma é que a própria forma de seu aparecimento já significa
uma tremenda realização cultural. O advento resultante da possibilidade de ser visto a
205
PAZ, O., Os Filhos do Barro : do Romantismo à Vanguarda, p. 145-146.
206
Veja por exemplo a retumbante polêmica lançada em torno da questão: Espanha meridiano intelectual
da América hispânica. Ver: SCHWARTZ, J.; ACALÁ, M. L. (Orgs), Vanguardas Argentinas: Anos 20,
p. 101-122.
207
RAMA, A., A Cidade das Letras, p. 79-80.
208
RICOEUR, P., Teoria da Interpretação. O discurso e o excesso de significação, p. 37.
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longa distância, de denunciar o marasmo e a atmosfera de quietude literária através de
suportes inauditos já significa um caso particular de transformação da situação
interlocucionária. Desta forma possamos talvez melhor compreender seu impacto, o
choque provocado, a mudança de curso operada no cenário cultural platense e o sentido
da sua recepção nos transeuntes da cidade modernizada.
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3
Jorge Luis Borges e a cidade na poesia de Fervor de Buenos
de Aires.
Empiezo declarando que mis poemas,
pese al fácil equívoco, que motivable por
su nombre, no son ni se abatieron en
instante alguno a ser un
aprovechamiento de las diversidades
numerosas de ámbitos y parajes que hay
en la patria. Mi patria –Buenos Aires- no
es el dilatado mito geográfico que estas
dos palabras señalan: es mi casa, los
barrios amigables, y juntamente con esas
calles y retiros, que son querida
devoción de mi tiempo, lo que en ellas
supe de amor, de pena y de dudas.
209
Conforme temos insistido desde o segundo capítulo desta dissertação, o impulso
que caracteriza a criação da obra de vanguarda de Jorge Luis Borges foi marcado por
duas frentes distintas: o sentimento de diferença frente a seus antepassados escritores e
artistas cuja produção vanguardista da década de 1920 se deu, em crescente medida, na
direção daquilo que seria o novo frente as possibilidades de circulação de idéias de que
os esses antepassados imediatamente careciam. Nota-se, pois, conforme a terminologia
de Jaime Alazraki, um descompasso entre a literatura que ainda insistia em vigir, com
seus belos temas, mas opacos de conteúdo (essa seria a visão de muitos contemporâneos
vanguardistas) e a sociedade argentina de então.
210
Em outra frente, ou melhor, na perseverança da aliança desses dois impulsos, e
numa direção distinta, Jorge Luis Borges intervém com a criação de um novo mundo
engendrado pelo impacto das mudanças de que Buenos Aires era lugar. Mundo povoado
209
BORGES, Jorge Luis. Prólogo, p. 162-163.
210
ALAZRAKI, J., La prosa narrativa de Jorge Luis Borges, p.123.
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de elementos dos mais variados, típico de um autor que se orgulha das enormes
contribuições advindas das mais diversas fontes. Por esta via, Borges produz a partir do
que considera como sendo uma veracidade do seu cogito, por intermédio das
perplexidades de suas meditações, a criação de um universo em Buenos Aires bastante
particular.
Por outro lado, ainda não é demais lembrar, que a cidade natal do escritor,
Buenos Aires, modernizou-se, complexificou-se, estava inundada de imigrantes e novas
construções físicas. Estas mudanças propiciaram metamorfoses em que os partícipes
tiveram de forjar respostas para esta nova atualidade. Assim, Buenos Aires engajava-se
em seu destino, quase místico conforme se verá, e passou a aliciar inauditas alterações
espirituais sendo desta forma palco das principais transformações que a modernidade
impunha.
No curso da modernidade buenairense, fortemente impulsionada pela virada do
século XIX para o século XX, tentaremos pois, o entendimento do caráter incerto do
pensamento e postura borgeanas num período que já caracterizamos como pleno de
vigor e de inauditas possibilidades. Como vimos tentando demonstrar, a cidade
impregnada da veia modernizante fecunda no escritor portenho uma das suas imagens
mais apaixonadas, tanto no que se refere ao engendramento de uma militância
vanguardista quanto no queixume poético frente a uma cidade imaginária desaparecida.
Portanto, é esta a última representação que iremos explorar neste último capítulo: a
criação imaginária de Jorge Luís Borges sobre sua querida cidade natal, Buenos Aires.
A nosso ver, a construção imaginária da cidade ganha no escritor argentino ares de
verdadeira nostalgia, em que as mudanças pela qual a capital está passando tem na sua
escritura um capítulo privilegiado para o entendimento da sociedade argentina do
período, bem como de seu próprio sentimento sobre a urbe, concretizada em seu
compêndio poético denominado pelo autor de Fervor de Buenos Aires.
Deste modo, o ainda jovem escritor Jorge Luis Borges, parecendo obliterar os
modelos de recepção aos novos valores, aplica-se a criar de forma saudosa uma cidade
que não mais existe, mas é como se existisse
211
conforme o vocabulário de Wolfgang
Iser. Deste modo, podemos já depreender de seu prólogo a Fervor de Buenos Aires o
propósito e as inquietações contidas em seu primeiro livro:
211
ISER, W., Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, p. 957-964.
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De propósito pues, he rechazado los vehementes reclamos de quienes en Buenos
Aires no advierten sino lo extranjerizo: La vocinglera energía de algunas calles
centrales y la universal chusma dolorosa que hay en los puertos, acontecimientos
ambos que rubrican con inquietud inusitada la dejadez de una pobalción criolla.
Sin miras a lo venidero ni añoranzas de lo que fue, mis versos quieren ensalzar la
actual visión porteña, la sorpresa y la maravilla de los lugares que asumen mis
caminatas. Semejante a los latinos, que al atravesar un soto murmuraban
“Numen Inest”. Aquí se oculta la divinidad, habla mi verso para declarar el
asombro de las calles endiosadas por la esperanza o el recuerdo. Sitio por donde
discurrió nuestra vida, se introduce poco a poco en santuário.
212
Como é possível atentar, Jorge Luis Borges, já a partir de seu prólogo,
oportunizaria adentrar-nos num cenário de perfeição sagrada, quase mística, se não
existisse a possibilidade, continuamente renovada, daquilo que ameaça a felicidade
perfeita. Na assertiva do escritor “Aqui se oculta a divindade”, a natureza reflexiva do
autor confere ao seu prólogo um sabor de descoberta e de origem. Mas ao mesmo
tempo, e contrastando com este sentimento de júbilo, o reverso da medalha está naquilo
que é provocado pela turba dolorosa dos portos e a energia de algumas ruas centrais.
Nesta paisagem criada por Borges, até poderíamos acreditar termos encontrado a
divinização mais sublime materializadas nas reflexões advindas das caminhadas
solitárias do autor. Entretanto, a despeito de que se pode chegar aos poucos ao santuário
como ele mesmo afirmou, não resta dúvidas que dela o escritor está separado de maneira
definitiva. Borges parece enfrentar a experiência do desconcerto que, no entanto, não
pode mais renegar. Para o autor, a divindade está oculta. Nem todos conseguirão ter
acesso à surpresa e à maravilha das caminhadas de que o escritor demonstra possuir o
privilégio. Neste sentido, é preciso saber encontrá-las tanto nas imagens dolorosas das
falhas representadas pela imigração intensa e demografia crescente, que devido a sua
expansão poderosa provocou ruídos e arbitrariedades, quanto no cada vez mais
minguado sossego de uma cidade mais apaziguada oriunda de um imaginário tempo
inicial que já não pode ser mais restaurado. No poema Musica Pátria veremos como se
situa o escritor frente a ao passado:
Quejumbre mora
212
BORGES, J. L., Textos Recobrados 1919-1929, p. 164.
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Bordeando oscuramente ambas eternidades
Del cielo gigantesco y de las leonadas arenas,
Llevada con horror de alfanjes heroicos
A los límpidos prados andaluces
Desgarrándose como una hoguera por las malezas del
tiempo,
Entre los siglos escurriéndose
Quemando las vihuelas en llamaradas de jácaras
Hasta el milagro de la gesta de Indias
Cuando los castellanos
Saqueadores de mundos
Iban robando tierras de albur al poniente.
Desmelenada por la pampa,
Trasegada de guitarra criolla en guitarra,
Entreverándose con la pena
De avillanda gente quichua
Descoyuntándose con la insolencia del puerto,
Hecha otra vez picota de arrufianados vivires
Y humilladero de mujeres malas,
Ha logrado ahondar con tal virtud en nuestra alma
Que si de nochecita una ventana
La regala en sonora generosidad a la calle
El caminante
Siente como si le palparan el corazón con la mano.
213
A exumação do passado, a comoção e seu arrebatamento definem, de forma
profundamente singular, o suporte de validez da intuição borgeana sobre o momento em
que vive e que compara com os tempos pretéritos. A maneira por excelência que o
escritor encontra para representar o desatino de tal sina são as metáforas em tons
genuinamente trágicos. O tom trágico de Borges revela não apenas o tempo que
transcorreu, mas o escritor apresenta-o sobretudo, sob a forma de uma irreversível
distância dos mundos em perspectiva: os elementos ausentes no momento presente são,
por essa razão mesmo, convocados.
214
Como podemos perceber, no poema Pátria os resultados das tensões aparecem
muitas vezes na forma de uma aparição inclemente e selvagem. De fato, para evocar
poeticamente a atmosfera do mal, Borges enfatiza os períodos de conflito e tensão.
Assim, desde os diferentes matizes do céu e mazelas do tempo até os castelhanos
saqueadores de mundos e as mulheres más, Borges dá livre curso a uma problemática
que será bastante presente em vários de seus escritos posteriores: a questão da pátria, o
213
BORGES, J. L., Textos Recobrados 1919-1929, p.165.
214
ISER, W., Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, p. 961.
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que é ser argentino e, naturalmente, o papel desempenhado por sua cidade natal Buenos
Aires.
215
Mas esta operação é também marcada por uma força que Borges dificilmente
pode conter. Estela Canto, uma das musas do escritor sublinha a postura desta forma:
Os poentes desgarrados do pampa põe manchas avermelhadas nas casinhas que
se atrevem a se elevar no plano, marcando o tabuleiro interminável, que há de
traga-lo todo. Uma prisão infinita e cambiante como as ondas, as formas que
cremos idênticas repetições de outras formas, a extensão limitada por uma
geografia imposta. Tinha de querer a sua cidade; não tinha nada mais. Era o
mandado.
216
Nas palavras de Estela Canto, Borges é preso por uma força que não cabe a ele
controlá-la (Borges tinha que querer a sua cidade). É interessante de se notar que Estela
Canto e Jorge Luis Borges em Pátria exprimem-se por termos curiosamente análogos:
os poentes do pampa, céus gigantescos, planos longínquos, alguma tristeza e a idéia de
infinito. Além do mais, nada parece possuir um significado terreno, comum ou mesmo
material, inclusive a própria geografia é fruto de uma imposição. Nesta prisão
cambiante e infinita para usar os termos de Estela Canto, Borges não tinha escolha, ou
melhor, não tinha nada mais que sua cidade. O mandado já tinha sido expedido.
Por essa razão, em Borges, a plenitude imediata do sentimento de desconcerto
parece surgir como determinação de querer dispor ainda de uma última palavra. Frente a
possibilidade de consumação do esquecimento de um tempo “melhor”, cujo elo com o
processo de modernidade é indisfarçável, o ato de criação imaginária de uma aurora dos
tempos não tem nada de acidental.
217
Dentre as muitas conjecturas, Borges parece
querer assinalar que o processo desencadeado de modernização não nos permite à
festividades demasiadamente entusiastas, nenhuma comemoração antecipada desta
liberação duvidosa. Como queremos dá a entender, diante de uma atmosfera marcada
por desconcertos, o riso da celebração não poderia ser encarado no mesmo teor do
vanguardismo militante. Ou pelo menos, deveria sim, parece acenar o escritor portenho,
ser dosado o calibre de seu entusiasmo confiante. Assim, o escritor a partir de uma
difusa idéia de pátria como diz Julio Pimentel, marca importantes diferenças no novo
tabuleiro que é a cidade de Buenos Aires:
215
PIMENTEL, J. P., Uma memória do mundo: ficção, memória e história em Jorge Luis Borges, p. 87.
216
CANTO, E., Borges à contra luz, p. 53.
217
PIMENTEL, J. P., op.cit., p. 88.
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Um dos temas centrais de suas reflexões, Buenos Aires presta-se, a princípio, a
múltiplas percepções: é a vinculação possível à difusa idéia de borgeana de
pátria, quando referenciada por um lugar geográfico; é o resgate da infância;
são as rotas de observação das diferenças entre o subúrbio e o centro
europeizado; são os longos passeios pelas ruas guardadas na memória e por
esta reconstruídas numa reurbanização imaginária, que afasta a possibilidade
de que a Buenos Aires borgeana seja alterada pelas transformações efetivas
vividas pela capital argentina.
218
Naturalmente, se Borges apela a cidade é por que ela era experimentada como
aparecimento a uma só vez de algo descomunal e sedutor. Com efeito, tudo concorre
para supor, em Argentina, a singularidade desta nova capital. Buenos Aires cada vez
mais modernizada transfigura-se em palco privilegiado no cenário argentino onde os
acontecimentos dos mais variados matizes são irradiados para o restante do país.
219
Nela
ou em seu entorno, isto é, em seus arrabaldes e subúrbios, são produzidas temáticas e
polêmicas. Na década de 1920, período fecundo de produção de um imaginário da
cidade, franqueam-se inúmeras plataformas de debates, repertórios de discussões aos
escritores, artistas e intelectuais que aspiram à compreensão e ao entendimento do
processo de transformação por qual estava passando a capital argentina, bem como um
ávido interesse em intervir. Nesse sentido as possibilidades são enormes. Os debates
envolviam questões das mais variadas onde as questões sociais, linguísticas geográficas
e políticas ganhavam o primeiro plano
220
. A relação da cidade com o escrito, ganha nas
palavras de Lefere:
O sonho (de Borges) não é exatamente o de uma cidade provinciana, nem sequer
o de uma cidade de aldeia feita de bairros e gratamente arborizada. Por uma
parte, o bulício do centro resulta imprescindível na medida em que é condição
necessária para que se possa sonhar uma posição pessoal periférica e
criticamente distanciada.
221
218
PIMENTEL, J. P., Uma memória do mundo: ficção, memória e história em Jorge Luis Borges , p.128.
219
Ibid., loc.cit..
220
Neste sentido os dois estudiosos de Borges e sua relação com a cidade concordam que o processo de
modernização da cidade de Buenos Aires deu ensejo a discussões nos campos supra citados. Ver:
PIMENTEL, J. P., Uma Memória do Mundo: Ficção, Memória e História em Jorge Luis Borges, 1998;
SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930.
221
LEFERE, R, Primero fue el concepto, p. 66.
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O livro de poemas Fervor de Buenos Aires, então, traduziu e conferiu ao ardor
pelos tempos pretéritos uma variável visível da nostalgia do recomeço. Na verdade,
pode-se mesmo afirmar que a obra de Borges é elaborada a margem de suas verdadeiras
fontes, isto é, os primórdios da história da cidade. Talvez, Fervor de Buenos Aires deva
ser encarado na consciência mesma desta longitude. Borges parece falar solitário do
insólito destino que coube a sua cidade natal e, agregando os símbolos de uma difusa
idéia de origem numa linguagem plena de alegorias de que é o artífice, o escritor torna-
se, muitas vezes, enigmático e sombrio ao singularizar fervorosamente os encantos
perdidos de uma imaginária Buenos Aires antiga. Deste modo, frente a outras cidades
conhecidas pelo escritor, a Buenos Aires borgeana adquire, nas palavras de Júlio
Pimentel, o sentido de uma consagração religiosa obtida pelo evento do reencontro:
Após a distância dos anos europeus, a volta a Buenos Aires de que Fervor de
Buenos Aires – que em seu título já assume a homenagem de tonalidade quase
religiosa prestada à cidade – é palco insistente nas características peculiares da
cidade, aquilo que a distingue das cidades européias por onde Borges passou.
222
Desta feita, o retorno de Borges a sua cidade de nascença possui algo de ainda
mais particular. Neste sentido, é de se conjecturar que a condição desgarrada e
eminentemente solitária do escritor em seu retorno o tornou estranho a uma
possibilidade existencial confortável no seio da urbe modernizada. Esta prática, isto é, a
prática poética consumada de Fervor de Buenos Aires, em crescente medida contrasta
com seu entusiasmo de militância vanguardista. Em tais circunstancias, Borges decidiu
explorar o tema da vinculação eterna a uma cidade imaginária que pelas mãos do
escritor ganhará a concretude do disfarce de uma presença constante (sempre estive e
sempre estarei em Buenos Aires). Como uma espécie de salvaguarda do furor
vanguardista, Borges dá a entender que a modernização não pode apenas ser lida em
termos otimistas. Por esta via, Jorge Luis Borges, um verdadeiro crente da veracidade
de seu estado de torpor produz um feito poético que mescla, por sua própria condição de
recém chegado, uma consternação à luminosidade da imagem proporcionada pelo
período de efervescência moderna:
222
PIMENTEL, J., Uma Memória do Mundo: ficção, memória e história em Jorge Luis Borges, p. 136.
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O que se perde e se reivindica, é a experiência poética, espiritual e também
mística que supostamente permitiu esta cidade; isto é, uma experiência
essencialmente individual e, por isso mesmo, vertical. Nos deparamos portanto,
com uma idéia antiurbana da cidade, que questiona qualquer conceito
urbanístico e a noção da cidade mesma (se considerarmos que esta representa
um espaço social e político que propicia experiências coletivas). Se corresponde
com um pensar da cidade que não é racional ou conceitual mas afetivo: nutrido
de uma sensibilidade poética a maneira tradicional (romântica...) e
idiossincrásica e projetada em percepções e afetos que encarna a figura do
passeante borgeano. O fato de que este pensar seja apolítico não impede que
encubra um sentido político, variável segundo os contextos.
223
Por seu turno, Borges consegue por em evidência algo que é ao mesmo tempo
regional e cosmopolita. De tal forma imerso que estava num ambiente de rápidas
conversões, onde as alternativas de inovações estéticas, de engajamento e ativismo
político social estavam ao alcance das próprias mãos, Borges retorna a Buenos Aires e
se concebe como figura de proa nesse processo de construção de uma imagem da
cidade. Consequentemente, a posição de Borges marchava em colisão contra aqueles
que se posicionavam pelo esquecimento da celebração da mesma. Em um sentido lato,
pode-se mesmo afirmar que, como núcleo mais sensível e irradiador, Buenos Aires é
apresentada nas intervenções desses intelectuais e artistas como a síntese do que seria a
Argentina, e isso se dá em qualquer dos campos que estes intelectuais pertençam.
224
Assim, descortina-se em Fervor de Buenos Aires que, em Jorge Luis Borges no
próprio instante em que sua prática poética reflexiva e imaginária se depara frente a luz
da origem, ela precisa se arrefecer diante da distância que dela a separa: Buenos Aires
não é mais a pequena aldeia do século passado, mas transformou-se no lugar onde se
cruzam as modalidades do particular e do universal, certamente uma cidade mundo... A
cidade ganha visibilidade própria e é vista como o lugar de referência onde se misturam
as tendências de teor europeizante e também é o lugar onde é possível encontrar o mais
puro exemplar do argentino.
225
As transformações pela qual passa a cidade, em larga
escala de crescimento no período, deixam seus habitantes como que perplexos e
fascinados frente a essas mudanças imprevistas. Jorge Luis Borges também foi uma
223
LEFERE, R., Primero fue el concepto, p. 67.
224
No capítulo segundo de seu livro Sarlo discorre sobre três importantes escritores que pensam a cidade
extraindo das suas produções as respostas forjadas pelos intelectuais em Buenos Aires. Os escritores são:
Jorge Luis Borges, Oliverio Girondo e Robert Arlt. Ver: SARLO, B., Una Modernidad Periférica:
Buenos Aires 1920 y 1930.
225
PIMENTEL, J., Uma Memória do Mundo: ficção, memória e história em Jorge Luis Borges, p. 66-67.
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vítima de seu encanto. Diante de tal atmosfera, o escritor argentino projeta em sua
imaginação uma cidade mais tranqüila e amena, mas que, na verdade, já desapareceu ou
está em vias de desaparecer. No próximo fragmento extraído de Final de Año o
sentimento de paixão que Borges nutre pela origem deixa a sensação de que o escritor
contempla esta nova atmosfera como a angústia de uma longa espera:
...La altiplanicie de esta noche
y nos obligan a esperar
las doce irreparables campanadas.
La causa verdadera
es la sospecha general y borrosa
del enigma del tiempo;
es el asombro ante el milagro
de que a despecho de infinitos azares,
de que a despecho do que somos
las gotas del rio de Heráclito,
perdure algo en nosotros:
inmóvil
226
.
Em Pátria, as múltiplas perspectivas do escritor são inscritas em um processo de
percepção e lembranças que o vinculam a um passado diante de um processo acelerado
de mudanças.
227
Deste modo, surge a metáfora heraclitiana do tempo, dando expressão
e concretude a experiência de Borges em seu retorno. O rio de Heráclito outorgando
modalidades de expressão num lugar em que tudo transcorre de forma infinitamenete
mais rápida.
228
Simultaneamente sentidos, reflexão e meditação como afirma Robin
Lefere sobre Fervor de Buenos Aires, são produtos de uma inquietação metafísica pela
urbe modernizada.
229
Assim, o poema apresenta-se como uma expressão de seus afetos
sobre uma imaginária cidade de outrora transportados para o país inteiro
226
BORGES, J. L., Fervor de Buenos Aires, p. 30.
227
SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p.28.
228
ESCARDÓ, F., Geografia de Buenos Aires, p 109.
229
LEFERE, R., Pasión Gnoseológica y Poética Borgeana, p.623.
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É dessa forma que se evidencia em “Final de año” um enigmático tempo de
outrora que tem na imaginação de Borges um de seus mais afetuosos apelos. Percebe-se
que o receio da perda definitiva desse registro no tempo, tão caro ao escritor, aliadas a
clarividência do momento descrito como “assombro” e a descrição melancólica fincada
na expressão “a despeito de infinitos azares” faz com que em suas reflexões,
geralmente Buenos Aires apareça de forma marcadamente distinta do que era mesmo no
passado e no presente.
Nesta direção, no poema “Final de Año” a dimensão temporal ganha bastante
relevo. Em seu caráter polissêmico, o tempo da cidade que Borges conheceu antes de
sua partida para Europa ganha um perfil de verdadeiras transformações: a cidade se
metamorfoseou radicalmente e o apelo do escritor adquire, além do contorno estético,
dimensões francamente existenciais como afirma o artigo de Robin Lefere.
230
Destarte,
no poema Borges sentia o tempo e sua encarnação no presente lhe era apresentada não
como dádiva, mas sobretudo como obstáculo angustiante, obstáculo que significava
negar e aniquilar seu valor intrínseco e tentar, através de uma invenção imaginária de
uma cidade do passado, saltá-los espiritualmente. Regressar aquilo que é reconhecível,
não estranho.
231
Esta postura em Borges assume nas palavras de Julio Pimentel:
Produz o espaço do aceito e do inaceitável na produção textual; restringe o
movimento de idéias a mesmice da contínua e invariável repetição; rejeita a
diversidades de projetos e temporalidades; refuta a diferença histórica, universo
do possível...Borges nega a própria especificidade que busca, pois produz a
universalização de tudo que é específico, caracterizando-se mais pelo que
dissimula e oculta do que pelo que revela.
232
Na verdade, à medida que a década se arrastava, os intelectuais e artistas de
diversos matizes que se percebiam como que assaltados por esta intensa atmosfera
tornavam-se crescentemente determinados não somente a compreender esse vácuo
legado pela transformação abrupta, mas também tentados a ultrapassá-lo. De fato, para
que este empreendimento se concretizasse, se tornou bastante comum recorrer aos
repertórios de uma mitologia de tempos pretéritos.
233
Esta é a razão por que Final de
230
LEFERE, R., Fervor de Buenos Aires en contextos, p. 210.
231
Esta análise é compartilhada por dois importantes estudiosos de Borges neste período: Beatriz Sarlo e
Júlio Pinto Pimentel. Ver: SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930;
PIMENTEL, J., Uma memória do mundo: ficção, memória e história em Jorge Luis Borges.
232
PIMENTEL, J., Uma memória do mundo: ficção, memória e história em Jorge Luis Borges, p. 76.
233
SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 38-39.
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Año de Borges é um exemplo mais que eloqüente: empenhado em criar uma versão
lendária da cidade, a figura de Heráclito surge angustiosamente no poema como
impossibilidade de desprezo da dimensão temporal. É a sugestão imagética contida na
metáfora rio – tempo como se se perguntando da possibilidade de voltar duas vezes a
um mesmo período ou a uma mesma origem. Deste modo, como produto de um ato de
fingir, podemos dizer conforme Wolfgang Iser, que Borges em Fervor de Buenos Aires
dá ensejo ao processo de irrealização do real com o fito de concretizar seu
imaginário.
234
Por outro lado, se em Final de Año a cidade aparece como paixão, ela mesma
não constitui, em Borges, um fator apreciável de ordem social ou coletiva. Portanto,
vale lembrar que de acordo com Carlos Alberto Zito, o apelo borgeano pelas qualidades
que emanava da cidade só a ele cabia enxergar.
235
Conforme temos mostrado com
Robin Leefere, Borges aspirava a individualidade de seu relato.
Em Borges esta prática oferecia-se num sentimento íntimo e exclusivo, com um
leve toque de reserva. Deste modo, por mais que a cidade tenha se tornado matéria
fecunda de hinos e verdadeiros temas de análise por parte de escritores e artistas, a visão
borgeana almejava, sem sombra de dúvida a singularidade, que se materializava nas
diversas referências que Borges atribuía a sua cidade natal. Estas referências, por certo,
nem sempre são verdadeiras. O fenômeno que ocorre, ainda como diz Carlos Alberto
Zito, é que Borges recria a cidade que, por sua vez, reproduz o movimento inverso
recriando o autor.
236
Assim, o que torna a prática borgeana ainda mais particular é que
mesmo que a cidade tenha caído nas graças de poetas que celebraram com entusiasmo
suas ruas, escritores que realçavam seus costumes, pintores que transfiguram seus
bairros dando a Buenos Aires uma nova fisionomia, Jorge Luis Borges a partir de seu
livro Fervor, é o único a obter uma ressonância neste período.
237
234
ISER, W., Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, p. 955-984.
235
.Que se note o zelo de Jorge Luis Borges por sua cidade natal. Numa entrevista concedida a Maria
Esther Vázquez que pergunta se a Borges é muito importante sempre voltar a Buenos Aires, o escritor lhe
responde: “Mas sempre tenho sentido que há alguma coisa em Buenos Aires que gosto. Gosto tanto que
não gosto que outras pessoas gostem. É um amor assim zeloso. Quando tenho estado fora do país, por
exemplo nos Estados Unidos, e alguém disse de visitar a América do Sul, eu o incito a conhecer a
Colômbia, por exemplo, ou lhe recomendo Montevidéu. Buenos Aires, não. É uma cidade demasiado
cinza, demasiado grande, triste – lhes digo -, mas isso o faço por que me parece que os outros não tem
direito de gostar.” In: ZITO, C. A., El Buenos Aires de Borges, p. 54.
236
ZITO, C. A., El Buenos Aires de Borges, p. 24.
237
Ibid., p. 21.
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101
Buenos Aires teve muitos poetas que cantaram suas ruas e escritores que
recrearam seus bairros, mas sem dúvida foi Jorge Luis Borges o único que o fez
obtendo uma audiência universal. O prestígio obtido por sua obra em todo
mundo, logrou que a cidade de Buenos Aires alcançara na literatura o caráter
legendário da Praga de Kafka, a Dublin de Joyce, ou a Lisboa de Pessoa.
238
Assim posto, todos os emblemas que sobreexcedem na cidade imaginada por
Borges se enriquecem por estarem compaginados com a consciência de um tempo
pretérito, a cidade de outrora cuja contrapartida mais exuberante via-se na cidade nova,
modernizada e repleta de uma multidão alarmante para os padrões da época. Na
biografia de Borges, conhecido desde muito jovem como um caminhante contumaz, esta
nova Buenos Aires representava uma incógnita, abertura e expansão. Por esta razão,
pelo que viemos expondo até aqui sobre o regresso de Borges em 1921, não é difícil
aventurar a hipótese de que tanto no impulso de vanguarda do escritor quanto na sua
postura saudosista em relação a cidade, Borges parece aspirar uma restauração cujo
sentido último está no impacto causado pelo estranhamento de sua volta à cidade natal.
Na verdade, aquilo que podemos considerar como sendo uma verdadeira
cosmovisão borgeana, tentativa imaginária de criação demiúrgica de um outro universo
citadino aliada à consciência de um tempo que se perdeu, encontrou alta ressonância em
críticos de importância inclusive em solo brasileiro. Contemporâneo de Borges, Mário
de Andrade tentando explicar o que ele mesmo considerou como fenômeno que surgiu
no rio da prata nos contempla com a seguinte afirmação entusiasta:
Jorge Luis Borges, vivido muito anos de estranja, quando chegou na pátria já
igualado, se espantou com ela e se aplicou a cantar a realidade dela. Disso lhe
veio Fervor de Buenos Aires
239
E mais adiante o escritor e crítico paulista nos fala da sensação do contato com a
poesia borgeana:
Os versos dele que conheço são naturezas mortas naquele sentido tão lindo de
“vida silenciosa” que lhes dão os alemães. Jorge Luis Borges tirou dos estudos
238
ZITO, C. A., El Buenos Aires de Borges, p. 23.
239
ANDRADE, M. de, Literatura modernista argentina III, p.285.
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uma fadiga contemplativa e condescendente. Então diz: “El tiempo está
viviéndome..
240
.
De fato, a impressão extraída do pensamento de Mario de Andrade representa
uma das inúmeras sensações que se pode depreender no caso da Buenos Aires
imaginada por Jorge Luis Borges. Cidade inventada, imaginária, criada a partir do
impacto que a ausência dos anos passados em Europa lhe proporcionou. Este sentimento
de transformação temporal inaugura uma busca, em Borges, de uma linguagem poética
que ultrapasse os códigos herdados e demasiadamente gastos pela literatura argentina,
quiçá em América Latina.
241
Para além de tais códigos, a intervenção borgeana nas
letras visa, conforme queremos demonstrar, chamar atenção para a sensibilidade do
momento vivido, ou conforme adverte Lefere na mesma direção, algo que é para o
indivíduo a condição sine qua non da liberdade e da autenticidade.
242
A liberdade e autenticidade citadas por Robin Lefere como algo fundamental
certamente tem em mente dar conta das novas tensões que estavam surgindo na
sociedade buenairense depois do advento da modernização. Neste sentido, o contexto
cultural argentino, através do palco em que se transformou sua capital, deu ênfase aos
processos turbulentos de assimilação e intensa peleja intelectual. Desde os mais diversos
nacionalismos, em virtude da imigração massiva até questões de idioma (quem fala o
verdadeiro espanhol?) se tornaram objetos de intensa disputa
243
que, nas palavras de
Lefere:
É a época em que se exasperam as tensões entre patrícios e seus contrários,
entre tradicionalistas e progressistas, em que voltam ao primeiro plano as
encruzilhadas de corte sarmientiano (...) Borges se somou a ela (em parte quiçá
devido a sua condição de recém “retornado”) mas com vontade, explicitada e
teorizada em diversos ensaios...
244
Como temos sublinhado, trata-se, de fato, de uma nova paisagem urbana. O
advento da modernização dos meios de comunicação e transportes, imigração e
240
ANDRADE, M. de, Literatura modernista argentina III, p.285
241
LEFERE, R., Fervor de Buenos Aires en contextos, p. 210.
242
Ibid., loc.cit.
243
Deve-se notar que a problemática acerca do nacionalismo argentino embora importante e amplamente
discutida pelos estudiosos não contempla este estudo que versa sobre a literatura de Borges e a relação
com sua cidade natal.
244
LEFERE, R., loc.cit.
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metamorfoses no tecido físico da urbe, foram ingredientes suficientes para a colisão
desses processos nos costumes e nos hábitos acabando por oferecer, desta forma, uma
nova paisagem e uma série de mudanças para os intelectuais, da qual evidentemente
Borges se inclui. Ao longo de vários anos Borges regressa a Buenos Aires depois de
uma temporada em solo europeu. Os tempos são outros e este dado marcou diferença em
seu próprio impulso criador. De maneira que, tanto na vontade expressa de impugnar
uma literatura vista como passadista e esteticamente esgotada quanto na de rememorar
literariamente uma cidade que não mais existe, criando seu próprio universo, Borges se
mantém oscilando entre os dois paradigmas vigentes: o das vanguardas e sua busca pela
reformulação de uma concepção de literatura, muitas vezes concebida em nome do novo
e a tentativa de compreensão, bastante nostálgica, das perdas irreparáveis que a
modernidade engendrou. Nesses termos, Borges prossegue irrealizando a realidade, pelo
menos no sentido que parece compreender Beatriz Sarlo teórica e estudiosa do autor nos
diz que:
Em Borges se cruzam duas perspectivas: a que se interroga por uma cidade que
já não existe ( e que não existiu necessariamente como ele se recorda) e a que
imagina Buenos Aires segundo o ideologema básico das Orillas.
245
Talvez, os motivos que Beatriz Sarlo tem sublinhado sejam uma das razões para
a impressão de algo impenetrável e enigmático que o livro de poemas Fervor de Buenos
Aires deixa emanar. Da extração de seu pensamento sobre o escritor portenho, arremata-
se que a singularidade da modernidade borgeana repousa justamente na renovação
aventurosa que o conduz longinquamente a um universo desconhecido, a uma cidade
mítica. Ademais, as duas perspectivas citadas pela estudiosa coincidem com a
transformação da cidade em personagem, ou aquilo que Ary Pimentel confirma que
estaria na confusão e no imbricamento das duas perspectivas, simultaneamente sentidas
na percepção da cidade pelos literatos.
246
Assim, tanto a mitificação da cidade e a sua
transformação em ideologema traduzem a resultante deste período fecundo na Buenos
Aires modernizada.
Na verdade, Beatriz Sarlo não cansa de sugerir aquilo que entrega Borges ao
confronto inquietante com a urbe transformada: a extrema autonomia do escritor, a
245
Orillas, zona indeterminada entre a cidade e o campo. SARLO, B., Una Modernidad Periférica:
Buenos Aires 1920 y 1930, p. 46.
246
PIMENTEL, A., A invasão do Labirinto: a casa e a cidade na literatura argentina, p. 8.
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tentativa ansiosa de superação dos esquemas retos e angulosos da fisionomia da nova
Buenos Aires representa a expressão máxima de uma de um homem que se deparou com
a dependência espiritual e sentimental pela cidade que lhe foi cara.
247
Naturalmente, a
relação entre Borges e sua cidade natal havia sofrido diversas modificações desde o
advento de sua chegada. Pode-se ventilar que com a necessidade de confecção de
Fervor de Buenos Aires o escritor portenho certifica-se das potencialidades (que inclui o
estranhamento, que inclui o entusiasmo de vanguarda) causado pela urbe babélica:
Só se pode sentir nostalgia de algo que se perdeu. Em uma Buenos Aires
transformada pelos processos de modernização urbana, onde a cidade criolla se
refugiava em umas poucas ruas do bairro, e onde inclusive elas sofriam câmbios
que afetavam seu perfil físico e demográfico, Borges inventou um passado. O
fabricou com elementos descobertos ou imaginados na cultura Argentina do
século XIX, que tinha para ele uma densidade baseada não apenas nos livros
mas também numa espécie de tradição familiar. Mas ainda esses fragmentos e as
imagens evanescentes de seus ancestrais estavam ameaçados pelo tempo, pela
modernidade e pelo esquecimento.
248
Assim, o advento da modernização veio acompanhado de mudanças que, em seu
sentido mais profundo, afetaram as relações tradicionais, as formas de produção e
disseminação cultural, os modelos de comportamento. Desta forma, a postura de
inúmeros intelectuais como Jorge Luis Borges pode ser encarada como forma de dotar
de sentido às reações nem sempre assimiláveis de uma modernização desenfreada, de
criar mecanismo de organizá-las e preservar assim um norte quimérico.
Beatriz Sarlo nos diz ainda que na Buenos Aires da época se tornou bastante
comum a idealização de um místico passado citadino ao que se atribuiu traços de uma
sociedade mais integrada, orgânica, justa e solidária.
249
Em outras palavras, numa
atmosfera de transformação latente, as lembranças, lamentos e até mesmo a nostalgia
podem ser encarados como formas de remediar uma situação percebida como insólita do
ponto de vista de seus partícipes.
O desconsolo borgeano pelo exagero das gentes que compõe a nova Buenos
Aires e articula a função do real, controlado pelo passado definidor do presente,
uma função do irreal, em que a imaginação opera de forma conclusiva e retoma
os laços aparentemente perdidos com a face não evidente no presente.
250
247
SARLO, B., Borges, un escritor en las Orilla., p. 32.
248
Ibid., p. 83.
249
Id., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p.32.
250
PIMENTEL, J. P., Uma memória do mundo: ficção, memória e história em Jorge Luis Borges, p.132.
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Encaradas sob este ângulo, pode-se conjecturar que a inventividade imaginária
borgeana está a trabalhar em seus escritos citadinos, um átimo que seja, de compreensão
das novas contradições espirituais que, de forma cada vez mais contundente, projetavam
suas sombras sobre os debates argentinos do período. Com uma Buenos Aires
profundamente transformada, quase irreconhecível segundo o próprio Jorge Luis
Borges, o imaginário do escritor busca estabelecer uma salvaguarda que o auxilie a
resolver o conflito que jaz na perda e, por conseguinte, tenta a consecução de um projeto
de realização de uma cidade imaginária perdida que, ainda segundo Sarlo:
Afetados pelo câmbio, imersos em uma cidade que já não era a de sua infância,
obrigados a reconhecer a presença de homens e mulheres que, ao serem
diferentes, fraturavam uma unidade originária imaginada, sentindo-se distintos
em outros casos, as elites letradas hispano criollas, os intelectuais de Buenos
Aires intentaram responder, de maneira figurada ou retamente, a um
interrogante que organizava a ordem do dia: como impor (ou como aniquilar) a
diferença de saberes, de línguas e de práticas? Como construir uma hegemonia
para o processo em que todos participavam, com os conflitos e as vacilações de
uma sociedade em transformação?
251
No cruzamento do não reconhecimento, Buenos Aires aparece como um lugar de
confecção de identidades possíveis, já que é essa cidade que Borges elege
imaginariamente como lugar de plenos significados. Ideologias, políticas, estéticas se
enfrentam nesta arena de debate que tem Buenos Aires não apenas como cenário, mas
sobretudo como protagonista como diz Beatriz Sarlo.
252
Deste modo, Borges tem uma
forma de sentir a urbe, percebe-se que o aguerrido autor dos Manifestos de Vanguarda
nutre por ela inegável apreço e a transforma com Fervor de Buenos Aires em
personagem, em vitrine de sua pátria. Bella Jozef nos fala da relação de Buenos Aires
com o escritor portenho em termos de cidade berço, cidade sede. Para Bella Josef a
cidade representaria para Borges além de uma intuição do mundo numa contínua
procura metafísica, representaria também a totalidade de um mundo
253
:
São imaginistas de processos audazes. Elaboram novas perspectivas em relação
a urbe moderna, sob o impacto da modernidade ao lado da recuperação de um
251
SARLO, B., Borges, un escritor en las Orillas, p. 49.
252
Ibid., p. 48.
253
BELLA, J. , Jorge Luis Borges, p. 44.
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passado. Se as recordações vinculam Borges ao passado, seu projeto poético e a
retórica são renovadores.
254
E mais adiante:
Borges tem um modo de sentir a pátria – uma rua, um crepúsculo, a cidade de
Buenos Aires, berço e sede, a totalidade de um mundo.
255
Jorge Luis Borges então esquivou-se, desertou-se da incumbência da celebração
órfica, talvez até ingênua, da modernização e sua revelação avançada de domínio
tecnológico no tecido físico da cidade de Buenos Aires. Por esta via o então jovem poeta
Jorge Luis Borges cria imaginariamente uma cidade do passado com aparatos modernos
de escrita poética segundo a estudiosa do autor Bella Jozef.
256
Nesta direção, o escritor
percebeu, ou melhor, foi capaz de sentir, que o sentido pleno da modernização unilateral
emagreceu de forma singular o que podemos caracterizar nos termos de Octávio Paz
como a comunhão dos homens.
257
E se Paz estiver correto, o homem segundo uma de
suas definições é nostalgia e busca por comunhão.
258
Assim, na linha de Octavio Paz,
Borges parece tentar como poeta o esforço a escapar dos opostos que o atormenta numa
cidade onde a comunhão dos homens foi sensivelmente afetada pela persistência hostil
desta nova ordem cotidiana.
259
Ao mesmo tempo, depreende-se que no processo de intervenção imaginária
borgeana há sempre a tentativa de definição da atmosfera do passado, entendido quase
sempre de forma nostálgica ou crítica. Neste sentido, a poesia borgeana contém, se
refletida em profundidade analítica, o verdadeiro sentido de um equilíbrio precário,
como é possível perceber do extrato destacado de seu poema chamado Benares:
Falsa y tupida
como un jardín calcado en un espejo,
la imaginada urbe
que no han visto nunca mis ojos
entreteje distancias
y repite sus casas inalcanzables
(...) Y pensar
que mientras juego con dudosas imágenes,
254
BELLA, J. , Jorge Luis Borges, p. 44
255
Ibid., loc.cit.
256
Id., História da Literatura Hispano-Americana, p. 184-187.
257
PAZ, O., The Labyrinth of Solitude, p. 195-196.
258
Ibid., p.195.
259
Ibid., p. 196.
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la ciudad que canto, persiste
en un lugar predestinado del mundo,
con su topografía precisa ...y lentas alamedas
260
...
Resguarda-se, desta feita, o traspassar do sentimento de vacuidade imperecível
afetado em Borges e testemunhado em Benares, grito saudoso verbalizado através da
sensação de estranhamento causada pela incomunicação que a nova urbe buenairense
propiciava. Por esta via, a rota escolhida por Borges em Benares, a imaginada urbe
cujos olhos de Borges jamais viram, empresta a experiência do retorno de Borges a sua
cidade natal uma expressão pungente de perplexidade ante as mais inusitadas
manifestações da vida citadina. E é nesta nova paisagem, repleta de novos signos, que o
escritor dá início à teorização prática de uma nova forma de fazer ficcionalidade
baseada, inclusive, em pressupostos de seu programa de vanguarda anterior. Desta
forma, as metáforas que Borges faz pulsar na poesia de Fervor de Buenos Aires recebem
o tratamento prático do moderno impulso de vanguarda e o do lamento amargurado
pelas incertezas da urbe. Sendo assim, é possível enxergar na postura borgeana de
retorno uma forma de, como diz Jacques Rancière, dar sentido ao universo “empírico”
das ações obscuras e dos objetos banais.
261
De nossa parte, conjeturamos que o fidedigno canto de protesto de Jorge Luis
Borges visava assegurar que ao menos uma imagem da cidade do passado persistisse
intocada em algum lugar do mundo, no seu próprio imaginário talvez. Deveras, o
escritor compenetra-se na invenção de uma imagem imaculada da antiga cidade, com
suas casas inalcançáveis e que, de forma a preservar esta cidade imaginária da
densidade da metropolização crescente, conformou-a com características próprias de
uma silenciosa aldeia, distante da balbúrdia que significava o reformado centro da
cidade babélica. Sem embargo, a Buenos Aires imaginada por Borges em Benares
reuniria, ao contrário da ritmização intensa da urbe dos anos 1920, os predicados de uma
localidade onde se poderia desfrutar daqueles prazeres simples e raros como reza os
propagados credos estereotipados do que seria uma comunidade aldeã, isto é, um lugar
onde seria possível consagrar-se às ditosas amenidades cuja configuração ganhava a
forma de uma topografia precisa e de lentas alamedas. Esta vertente da imaginação
ganhou terrenos também nas análises de Carlos Zito:
260
BORGES, J. L., Fervor de Buenos Aires. Obras completas, p.40.
261
RANCIÈRE, J., A Partilha do Sensível: Estética e Política, p. 54.
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Em Fervor de Buenos Aires está a exaltação das coisas insignificantes, pobres
ou vestutas, que Borges torna fortemente significantes por meio de primeiros
planos, a maneira das películas expressionistas: um cartel desbotado, uma
figueira assomando sobre uma parede, o arco de um saguão, uma
balaustrada...que deixa ver o céu entre suas colunas.
262
Em nossos termos, certamente encontra-se nesta leitura do escritor feita por
Carlos Alberto Zito traços de uma imaginação fecunda que tenta encontrar consolo em
um passado longínquo e menos desorientador. Borges, o caminhante solitário, busca
refúgio na descrição dos prazeres que já não mais se encontram na Buenos Aires
modernizada ou pelo menos estão totalmente em vias de desaparescer. Com efeito, o
que concorre para a eclosão de tal sentimento não se encontra mais em Buenos Aires ou
em seu poderoso centro reformado: a imaginada urbe cujos olhos jamais viram passava,
seguramente, pela composição de uma cidade menos densa em termos demográficos e a
criação de um perfil que consolidasse as expectativas criadas em torno da mitologia de
uma cidade que se apresentasse sem discrepâncias de ordem política ou social.
Borges constrói uma paisagem intocada pela modernidade mais agressiva, onde
todavia ainda restam vestígios do campo, e os busca nos bairros onde descobri-
los é uma operação guiada pelo azar e a deliberada renúncia aos espaços onde
a cidade moderna já havia plantado seus marcos.
263
Na verdade, foi Beatriz Sarlo quem talvez primeiro tenha percebido o lado irreal
da cidade imaginária criada por Borges.
264
Segundo a autora, a cidade cantada pelo
escritor não possuía nem estrangeiros nem havia cenários para conflitos de qualquer
natureza. Quase bucólica, a Buenos Aires do escritor convidava ao recanto e silêncio
típicos de uma aldeia ou de um rincão a léguas de distância de qualquer coisa que se
assemelhasse a um centro metropolitano. Na verdade, a cidade louvada pelo ainda
jovem escritor Jorge Luis Borges estava a léguas de distância com qualquer coisa que
lembrasse a contemporânea Buenos Aires vivida pelo Borges poeta:
265
262
ZITO, C., El Buenos Aires de Borges, p. 97.
263
SARLO, B., Borges, un escritor en las Orillas, p. 36-37.
264
Id., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 43-45.
265
Há um tom de reprovação mesmo em uma pessoa bastante querida por Borges que á a pessoa de Norah
Lange: “Mas lhe alcanço uma reprovação: nos deu em seus livros uma Buenos Aires de muito sossego e
de domingo”. In: ZITO, C. A., El Buenos Aires de Borges, p. 103.
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Borges escreve um mito para Buenos Aires que, em sua opinião, a cidade estava
necessitando. De uma recordação que quase não é sua, opõe à cidade moderna,
esta cidade estética sem centro, construída totalmente sobre a matriz de uma
margem.
266
Assim, o processo de modernização da cidade de Buenos Aires surge como total
alastramento na escolha dos caminhos a serem trilhados, possibilidades incríveis de
atividades, inseridas num universo de diversos repertórios.
267
Desta forma, em seu
regresso a cidade natal, Jorge Luis Borges faz da criação imaginária de uma nova
Buenos Aires tema e matéria de sua produção poética. Com um número quase infinito
de alternativas, o escritor oscila na busca de material para a confecção de seu primeiro
livro de poemas Fervor de Buenos Aires e a prática vanguardista. De forma simultânea,
a imaginação Borgeana costura os instantâneos da cidade modernizada com elementos
visíveis na realidade, mas, como não se detém fixamente neles, o escritor elege seus
componentes fictícios dando desta forma asas para sua deliberada criação imaginária.
Em seu processo de criação imaginária, Borges tenta apaziguar seu desconforto
pela urbe babélica no próprio ato da criação poética, imaginando uma cidade em termos
mitológicos, resvalando ao sobrenatural. Efetivamente, a poesia de Fervor é o lugar
onde o escritor revela aquela irrealização que será bastante característica em sua obra
vindoura. Na confecção poética de Fervor de Buenos Aires sugere-se que esta
irrealidade conforma-se com a dificuldade do autor colher os elementos para a produção
de sua poesia já que a cidade imaginada, razão mesma do poema, desapareceu como é o
caso de Buenos Aires percebido pelo escritor. Assim, na preparação de seu imaginário
encontra-se aquilo que como diz Wolfgang Iser:
O texto ficcional contém elementos do real, sem que se esgote na descrição deste
real, então o seu componente fictício não tem um caráter de uma finalidade em
si mesma, mas é, enquanto fingida, a preparação de um imaginário.
268
Certamente, do exposto é possível depreender que a moderna cidade de Buenos
Aires e a réplica citadina imaginada pela ficção poética de Borges significam frutíferos
insumos para a prática do fingimento tão estudada por Wolfgang Iser. No caso
borgeano, atribui-se uma consciência para a prática do fingimento materializado na
266
SARLO, B., Un escritor en las orillas, p. 55.
267
Nos referimos ao processo que abriu inúmeras possibilidades nos diversos campos de atuação
conforme a literatura sobre o assunto. Ver: BERMAN, M., Tudo que é sólido desmancha no ar: a
aventura da modernidade.
268
ISER, W., Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, p 957.
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eleição das características que permaneceram no corpo do texto poético assim como no
desvelamento próprio de tal ato. Neste sentido, esta última operação geralmente está
submersa em conteúdos de natureza sentimental ou emocional.
269
Desta feita, podemos
ainda com Wolfgang Iser pensar a prática do fingimento borgeano ecoando ainda nas
suas próprias palavras:
Isto é altamente significativo para o texto ficcional. No ato de fingir, o
imaginário ganha uma determinação que não lhe é própria e adquire, deste
modo, um predicado de realidade; pois a determinação é uma definição mínima
do real. Na verdade, o imaginário não se transforma em um real por um efeito da
determinação alcançada pelo ato de fingir, muito embora possa adquirir
aparência de real na medida em que por este ato pode penetrar no mundo e aí
agir.
270
É sob este ângulo que Fervor de Buenos Aires pode funcionar como busca da
recomposição de uma identidade que se perdeu frente as mudanças que a cidade era
lugar. Simbolicamente, o livro de poemas sobre a cidade inscreve a postura borgeana
num raio de compreensão muito maior, talvez até social. Borges capta uma cidade em
seu imaginário e realiza uma nova leitura, elegendo Buenos Aires em material estético
por excelência numa atmosfera onde os argentinos estão carecendo de algo que os
referencialize.
271
E, na medida que o imaginário poético do escritor portenho vai
adquirindo determinação através do ato de fingir, pode através da sua ficção, penetrar no
mundo e compor uma nova finalidade que não pertencem a realidade transgredida:
272
À realidade, assim, são impostos exercícios de exorcismo de um presente em
grande parte indesejado... São sobrepostas alusões cifradas a uma temporalidade
passada, permitindo distinguir este passado como lugar de tradições e de fixação
de referências.
273
Está composto, pois, o cenário para a prática do exorcismo de um presente
indesejado, como também estabelecida a temporalidade para conferir ao mais distante
passado uma função inaudita: o tempo pretérito como lugar de tradições e fixação de
referências. Assim, como esse vibrante processo de alteração da fisionomia da cidade
dificilmente deixaria de propagar seu efeito no então jovem escritor recém chegado em
269
ISER, W., Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, p.958.
270
Ibid., p. 959.
271
PIMENTEL, J. P., Uma memória do mundo: ficção, memória e história em Jorge Luis Borges, p.101.
272
ISER, W., op.cit., p. 958-959.
273
PIMENTEL, J. P., op.cit., p. 122.
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sua a terra natal, recorrer a uma mitologia do passado significava estabelecer referências
neste espaço francamente transformado. Ademais, Borges encontrou através deste
processo, uma forma de tematizar sua cidade, seu sentimento por ela, tornando Buenos
Aires uma estrela singular na constelação das províncias argentinas.
Esta redefinição do passado surge em Fervor de Jorge Luis Borges como uma
forma determinada de tematização do mundo como diz Wolfgang Iser como sendo a
prática de todo autor.
274
Em seu ato de fingir o escritor teve de incluir em suas
consideraçãoes as ideologias políticas, estéticas e culturais que se enfrentavam neste
debate e que tinha Buenos Aires como cenário. Assim, transgredindo os limites de
temporalidades e espaço, Borges alista Buenos Aires como recinto privilegiado para a
configuração do imaginário simbólico:
Na definição desses lugares de inscrição dos sentidos de coletivo – o argentino,
o buenairense, o passado - Borges constitui territorialidades, inventa tradições,
constrói memória histórica, redetermina espaço e tempo, permitindo por
exemplo, localizar o argentino nos arredores de Buenos Aires, num mundo de
margens, de orillas, num tempo passado, não obrigatoriamente ocorrido.
275
Evidencia-se assim, uma carência que ao mesmo tempo o habita e o fecunda. O
que se conclui, é que ao mesmo tempo que a Buenos Aires de ficção se firma como
importante elemento na literatura borgeana, ela também, visivelmente, ganha um outro
corte: que é pela leitura real mas sem se esgotar nela, fazer ressoar esses apelos de uma
cidade fingida nos seus contemporâneos e nos do porvir. Jorge Luis Borges penetra no
mundo buenairense e aí age, como diz Wolfgang Iser:
A seleção é um ato de fingir, na medida em que por ela se assinalam os campos
de referência do texto, com a finalidade de serem transgredidos. (...) Ela se
mostra como “figura de transição” (Übergangsgestalt) entre o real e o
imaginário, com o estatuto da atualidade. Atualidade é a forma de expressão do
acontecimento, e a intencionalidade possui o caráter de acontecimento na
medida em que não se limita a designar campos de referência, mas os
decompões para transformar os elementos escolhidos no material de sua auto-
apresentação (Selbstpräsentification). A atualidade se refere então ao processo
pelo qual o imaginário opera no espaço do real.
276
274
ISER, W., Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, p. 960.
275
PIMENTEL, J. P., Borges, uma poética da memória, p. 122.
276
ISER, W., op.cit. , p. 963.
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Borges na escrita de Fervor vincula toda uma série de episódios que se
condicionam uns aos outros, até ao mais remoto passado onde apenas lá seria possível
encontrar uma pacata Buenos Aires encarnada em toda sua sublimidade. A intervenção
borgeana no real se dá na medida em que ao julgar compreender os desafios presentes
na sociedade da atualidade, seleciona, exclui, mescla e transforma a expressão manifesta
do evento modernizador em sua cidade como um acontecimento um tanto quanto
reprovador. O julgamento de Borges é daquele que percebe, finge e intervém. Na
medida em que para os argentinos havia inúmeras manifestações do inédito, do
transitório e do estranho, Borges talvez sentisse sua intervenção como algo de solidão
missionária. Todas as mudanças que sobrevieram na capital argentina produziram uma
vontade de intervenção nesta atualidade.
Sem dúvida, é este o sentido de transformação que tornam os argentinos carentes
de orientação, absortos e seguramente mais audazes. Aquelas modalidades que são
percebidas como mudanças abruptas são irradiadas para a nação como um todo ao
menos em nível de visibilidade. Desde que Buenos Aires se transformou em palco
principal dos embates sócio-culturais, as próprias leis e eventos políticos ali produzidos,
nesta recente capital, alça a cidade portenha a um estatuto que angariava um misto de
sedução e curiosidade.
Na verdade, ao se observar mais detidamente os diferentes caminhos trilhados
pelos “intérpretes” e interventores da realidade buenairense, conclui-se que os princípios
que norteavam as descrições dos artistas e intelectuais (especialmente os escritores)
eram utilizados em grande medida numa direção que visava a compreensão e algum tipo
de posicionamento frente às mudanças de caráter inédito. Como postura a ser assumida,
o contingente dos que praticavam tal ingerência era bastante volumoso para os padrões
do século anterior.
277
Deste modo, na tentativa de exorcizar os fantasmas advindos das
turbulências do processo modernizador, Jorge Luis Borges, nas palavras de Julio
Pimentel, apega-se ao passado e inventa seu próprio universo metafórico:
Um Borges embrenhado em constituir uma memória que sirva para conter os
fantasmas das mudanças conhecidas pela Argentina; um Borges que responde à
incerteza do tempo presente por meio do apego a um passado revisitado e
recriado em sua escritura, inventado por seu universo metafórico.
278
277
O escritor fala do número dos intelectuais que passaram a atuar nos grandes centros das cidades de
América Latina, fala-se mesmo em termos de verdadeiras falanges. RAMA, A.; AGUIAR, F.;
GUARDINI T. VASCONCELOS, S. (Orgs), Literatura e Cultura na América Latina. Ensaios Latino
Americanos, p. 114.
278
PIMENTEL, J. P., Borges, uma poética da memória, p. 122.
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Perceptivelmente, trata-se de um período de profundas ambigüidades e não
apenas na produção poética de Jorge Luis Borges. Assim, para percebermos o alcance
de quão dual é este momento, pode-se tentar sumariamente, colidir a experiência poética
borgeana com a de outros epígonos da intelectualidade argentina do período,
representado especialmente no sacro nome de Oliverio Girondo.
279
Restam poucas dúvidas, neste sentido, quanto a proeminência da exaltação do
presente modernizado, característica da obra de vanguarda de Oliverio Girondo de um
lado, e de outro o caráter incerto da tentativa borgeana de encontrar na irrealização
imaginária um fio condutor mais seguro por trás das vicissitudes moderna aplicada a
cidade. Por outro lado, ao mesmo tempo em que é possível atestar a existência de uma
prática poética que os mantém sob distância, ou talvez, sentidos distintos para a
percepção do mesmo evento, de igual maneira é possível testificar a existência de algo
que os unifica: afetados pelas transformações nasceu o sentimento de urgência em
recompor este heterogêneo universo referencial.
As transformações técnicas, as inovações em termos de atividades e imigração
massiva, para ater-nos apenas em alguns dos aspectos, fizeram surgir na capital
portenha inúmeros escritores que coroavam este momento com loas de agravo ou
descontentamento. George Waisman, ao discorrer sobre a cidade na literatura de
Roberto Arlt, a apresenta em termos de subjetividade, ou melhor, em termos de planos
apocalípticos visando a destruição da cidade moderna. Utilizando uma topografia
precisa, como afirma Waisman, Arlt põe em evidência as mazelas da cidade moderna
(as cidades são os cânceres do mundo,), mas não nega seu lado utópico de progresso.
Em se tratando de Buenos Aires, o que se ensaia por parte desses escritores e o
que simultaneamente os unem, é a forma pela qual se trabalha a transformação da cidade
bem como a eleição de lugares de referência. Já que o processo de modernização
cambiou de forma potente os locais que formavam parte do repertório de lembranças
infantis desses homens de letras, todos tentaram responder figurada ou mais diretamente
a relação que se mantinha com o passado e qual seria seu novo lugar:
279
De fato, inúmeros intelectuais se posicionaram frente as mudanças que afetaram o tecido físico da
cidade de Buenos Aires. Nesta linha, além de Oliverio Girondo e Jorge Luis Borges, não deixa de ser
interessante as posições de Roberto Arlt. Para este tema baseio-me em: SCHWARTZ, J., Vanguarda e
Cosmopolitismo na década de 20: Oliverio Girondo e Oswald de Andrade; ALBUQUERQUE, M. T., A
imagem da cidade na poesia inicial de Oliverio Girondo; WAISMAN, S., De la Ciudad futura a la
ciudad ausente: la textualización de Buenos Aires; ARLT, R., Los Lanzallamas; GIRONDO, O., Veinte
Poemas para ser leídos em el tranvía..
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Ante esta indecisão da urbe, onde as casas assumem um caráter temerário como
um implorar agressivo frente a enormidade da absoluta e sovacada planície,
desfilam grandemente os ocasos como maravilhosos navios verticais. Quem viveu
na serra não pode conceber esses poentes, pavorosos como chamas de carne e
mais apaixonados que um violão. Poentes e visões do subúrbio que ainda estão –
perdoa-me a pedanteria – em sua aseidad, pois o desinteresse estético dos
arrabaldes portenhos é mentira divulgadíssima entre nós. Eu, que enderecei meus
versos a contradizer esta espécie, sei bastante acerca do desvio que mostram
todos em elogios a desgarrada beleza de tão cotidianos lugares...
280
A denotação saudosa na essência de Buenos Aires está aqui especialmente
salientada. O desenvolvimento de seu enredo é de que o escritor está na solidão (o
desinteresse estético dos arrabaldes portenhos é mentira divulgadíssima) e, neste
estado, o assalta a recordação do passado e contra ela Borges não pode precaver-se, já
que está totalmente sozinho e à sua mercê. Em sua descrição, Buenos Aires surge como
um lugar encantado, com seus ocasos assemelhando-se a maravilhosos navios verticais.
Na verdade, a despeito que estes pavorosos poentes como carnes em chamas sejam
inconcebíveis, a urbe padece do mal de uma indecisão, segundo o escritor portenho.
Mas para por fim a este estado de coisas, Borges admoesta-nos que já endereçou seus
versos em louvor a estas belezas cotidianas. Já cumpri minha missão, parece-nos acenar
o Borges de Inquisiciones. De fato, resta assinalar que o papel da indecisão atribuído à
urbe é típico da atmosfera de mudanças que adentrou Buenos Aires nas décadas de
início do século.
Naturalmente, este processo ao tocar em elementos caros às recordações de
vários intelectuais e escritores, passou cada vez a ter grande peso o elemento de
subjetividade em cada participação. Por esta razão, pode-se mesmo dizer que
representando latitudes diferentes, em todos esses escritores, Jorge Luis Borges,
Oliverio Girondo e Roberto Arlt (e certamente em outros casos) vislumbra-se
confeccionar um repertório de elementos que possam traduzir o que seria comum a
todos frente as difíceis e irreparáveis perdas. Nesta direção, ao se tentar definir uma
fisionomia menos insegura para a cidade, podemos dizer com Julio Pimentel que:
Mais do que isso, é a produção, pela memória, de referências – de origem ou de
situação – para um conjunto de pessoas, que podem reconhecer na urbe algum
280
BORGES, J. L., Inquisiciones, p. 89.
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traço possível da identidade perdida no movimento de metropolização ocorrido
nas primeiras décadas deste século.
281
O que perpassa em suas preocupações, aquilo que é comum a ambos, é
responder, de forma eufórica ou saudosa às perplexidades produzidas pelas alterações
recentes da qual a cidade de Buenos Aires era palco privilegiado. É exatamente por isso
que se torna frisante a postura de Oliverio Girondo que, tal qual Marinetti lançava suas
odes ao processo de modernização, percebendo-o de forma positiva e, num sentido
amplificado, enxergava nesse processo a inserção da Argentina nos quadros das nações
cultas e modernas.
Por outro lado, nos deparamos com a postura de Jorge Luís Borges que buscava
na inventividade imaginária de uma cidade perdida e no repertório de um passado
longínquo o elo já não mais existente entre as diversas temporalidades: o processo de
modernização trouxe consigo a dificuldade de percepção de um desenvolvimento
tranqüilo entre passado, presente e futuro.
282
Fatalmente, é absolutamente improvável
que Borges esteja experimentando tais sentimentos com tranqüilidade e bem-estar:
A própria casa natal de Borges desaparecerá neste terremoto edilício que
sacudiu o centro da cidade nos primeiros anos do século. Em seu lugar, agora
com a numeração 838, há um local comercial.
283
Na verdade, se se admite que Fervor de Buenos Aires funcione como
contrapartida do furor vanguardista, o reconhecimento da singularidade do livro pode
está na descrição da extenuação da vida urbana, da redução da atmosfera da cidade a
automatismos, massificação e velocidades. Assim, o impacto borgeano sobre Buenos
Aires se desenvolverá numa linguagem que certifica a presença de um manancial
inesgotável, e que lhe permitirá projetar extensões imaginárias, onde enfim, poderá
transitar comodamente. Neste sentido, nas palavras de Jorge Schwartz a postura do
escritor se insere numa tentativa de reconstrução mítica, totêmica:
A metáfora de Buenos Aires, reconstruída por Borges, aspira a visão mítica,
totêmica. Recuperando o discurso histórico com a introdução de temas que
pertencem a tradição de Buenos Aires: seus cemitérios, estátuas, heróis,
ditadores, tradições gaúchas, Borges transfigura a história em mito. Assim, os
281
PIMENTEL, J., Uma memória do mundo: ficção, memória e história em Jorge Luis Borges, p. 129.
282
SCHORSKE, C., La idea de ciudad en el pensamiento europeo: de Voltaire a Spengler, p. 13-15.
283
ZITO, C. A., El Buenos Aires de Borges, p. 64.
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processos de repetição especular, da cidade como labirinto, visam chegar a uma
perspectiva unitária e eterna da urbe.
284
Assim posto, o raio da invenção poética de Jorge Luis Borges em Fervor de
Buenos Aires se inscreve na direção de tentar lançar suas sombras sobre o mundo
formulado e palpável transgredindo suas normas por força do emprego da prática de
irrealização do real.
285
A contestação mitológica do escritor diz muito a respeito da
cidade nova na medida em que ela é contrária a sua calma versão mítica. Havendo, pois
obtido a “revelação” totêmica de como era a Buenos Aires de outrora, Borges opõe-se à
cidade atual recusando sua face moderna e risonha através da transfiguração histórica
que permeia todo Fervor. Em sua apaixonada variante poética, Borges além de se
alienar de sua postura vanguardista deixa-nos a forte impressão de que parece assustar-
se que sua Buenos Aires tenha se tornado uma outra, certamente mais hostil e
inquietante. Neste sentido, a determinação em lançar-se pela causa de uma Buenos
Aires mítica, além da história, pode ser vista como imperioso subterfúgio a sua
condição de exilado frente a uma multidão de olhares opacos, estrangeiros e
transformação intensa.
Assim, seria fácil demonstrar que Borges oferece sua poesia como permuta entre
uma cidade mítica, sua deliberação historicamente transfigurada como nos diz Jorge
Schwartz
286
, pela consternação do mundo real e experimentado. A nosso ver, o escritor
embaralha as categorias de realidade e ficção através da invenção imaginária de uma
cidade que não existe, mas que ele supõe que tenha existido e, com isso, agudiza o
processo em que cidade-autor tornam um e outro seu mútuo reflexo. Além disso, Borges
dá livre curso ao desenrolar do fingimento tematizando o mundo com os restos de uma
cidade inexistente e elementos reais, selecionando aquilo que aos seus olhos deveria
estar presente e que cada vez mais, como num círculo infinito, revela o que daí foi
excluído. De nossa parte, no que se refere ao poema Fervor de Buenos Aires, podemos
mais uma vez retomar a palavra a Wolfgang Iser: os elementos presentes no texto são
reforçados pelos que se ausentaram.
287
Desta mesma forma, em Barrio Reconquistado o escritor dá mais uma vez
provas de seu processo de irrealização do real com o fito de realizar seu imaginário:
284
SCHWARTZ, J., Borges e Fernando Pessoa, p. 414.
285
ISER, W., Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, p. 958.
286
SCHWARTZ, J., loc.cit.
287
ISER, W., loc.cit.
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Nadie vio la hermosura de las calles
hasta que pavoroso en clamor
se derrumbó el cielo verdoso
en abatimiento de agua y de sombra.
El temporal fue unánime
y aborrecible a las miradas fue el mondo,
pero cuando un arco bendijo
con los colores del perdón de la tarde,
y un olor a tierra mojada
alentó los jardines,
nos echamos a caminar por las calles
como por una recuperada heredad,
y en los cristales hubo generosidades de sol
y en las hojas lucientes
dijo su trémula inmortalidad el estío
288
.
Verifica-se, desta feita, que Borges sente o impacto das metamorfoses operadas
nesta nova cidade. Percebeu com muito esforço, que Buenos Aires era uma nova cidade,
invadida e que cada vez mais se transformava em encruzilhada onde se viam elementos
de mescla imigratória, cultural e lingüística. Em “Barrio reconquistado” vislumbra-se
no imaginário borgeano aquilo que ninguém viu, que é privilégio seu: a formosura das
ruas de outrora cuja interrupção é descrita como pavoroso, como abatimento. O tempo
de céu esverdeado não existe mais. Jorge Luis Borges constata o absurdo da
modernidade buenairense e renuncia ver nela algo mais do que matéria e tema para seu
projeto irrealizador.
Neste encontro inesperado entre as seqüencialidades temporais – a do moderno e
a do antigo - as metáforas do escritor visam a compreensão da cidade que adquiria cada
vez mais visibilidade, já que era o cenário das maiorias das transformações no período.
Por esta via, o juízo de Borges rompe com o processo de modernização em curso e
desencadeia o processo de lembranças e nostalgia infantis.
289
Conduzidas com tamanho
fôlego, diante da carência de um vínculo causal direto, Borges produz uma narrativa que
perpassa imagens de lembrança pessoal e elementos oníricos:
Em Fervor de Buenos Aires o poeta ocupa uma posição de exterioridade, é um
narrador imparcial não de fatos – não se trata de uma poesia narrativa – mas de
objeto. A cidade é percebida como que através de um sonho ou uma lembrança.
288
BORGES, J. L., Fervor de Buenos Aires. Obras Completas, p. 26.
289
SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p.42.
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(...) há em resumo uma cidade de uma época passada totalmente despovoada.
Seus habitantes são mortos ou ausentes. Eles não estão presentes. Borges, na
sua tentativa de recuperação de uma Buenos Aires do inicio do século, cria uma
cidade artificial, irreal, uma cidade-museu já que o homem não vive lá.
290
Concebemos então, Fervor de Buenos Aires como resposta estética que pertence
ao mesmo agregado de perguntas e inquietações. Como reafirma Beatriz Sarlo, não é de
estranhar a obsessão que os textos borgeanos do período mantém com a questão da
origem.
291
Dessa forma, podemos então salientar aquilo que jaz como projeto no caso
borgeano: fruto de uma inquietação o escritor funda novas bases para a compreensão do
presente, forjando na literatura uma imagem inédita para a cidade. As letras surgem
como instrumentos de contraponto aos hábitos que foram esquecidos tornando-se uma
estratégia possível na literatura, já que ultrapassariam as diferenças nacionais e
lingüísticas. Portanto, a iniciativa de Borges é criar meios de recuperar um tempo
passado que gradativamente se perdeu, se diluiu frente aos artifícios modernos que
refutam as tradições e defendem a celebração imediata do novo.
292
É o entrelaçamento
entre perplexidade e ressentimento do qual discorre Cristina Grau que, num momento
de perturbação tornar-se-ia mais estreita a relação esquecimento – memória e que faz
com que Jorge Luis Borges sensivelmente extraia dessas mudanças algo de saudoso:
Na sua volta, a cidade deveu parecer-lhe muito maior, transformada pelas novas
construções, quase irreconhecível com seu novo urbanismo, suas ruas e suas
avenidas construídas no meio das casas baixas deste outro Buenos Aires
enfeitado pela lembrança. Ele ressente então a necessidade de fixar em imagens
durável o passado desta cidade para não perdê-la totalmente, o passado do fim
do século, de seu nascimento. É nessa época que aparece “Fervor de Buenos
Aires”
293
Assim posto, as imagens evocadas por Borges podem ser lidas como maneira ou
atitude que uma sociedade ou um setor dela adota frente a um passado cuja desaparição
é vista como irremediável. No caso do escritor portenho é fruto de uma reação. O
escritor argentino nutre com o passado uma relação de intensa afetividade ao que se
atribui os traços de uma sociedade menos confusa, mais orgânica e mais compacta.
Desta maneira entende-se melhor o “temporal unânime” do qual o escritor se refere em
290
GRAU C., Borges et l’architecture, p. 23.
291
SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p.45.
292
PIMENTEL, J. P., Uma memória do mundo: ficção, memória e história em Jorge Luis Borges.
293
GRAU C., op.cit., p. 19.
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Barrio Reconquistado. A imaginação de Borges tenta recriar aquilo que estava
desaparecendo, inclusive materialmente. Esta postura, segundo Nicolau Sevcenko,
encontra em Fervor de Buenos Aires um tom de verdadeira transformação
transcendental:
Borges, desse modo transformou, Buenos Aires no eixo simbólico do mundo, a
cidade transcendente, o modelo ideal de comunhão humana e da subsunção no
absoluto, a partir, no entanto, do registro pontual das presenças mais
comezinhas e banais da paisagens dos arrabaldes, do rio da Prata, do Porto,
dos imigrantes, dos vazios adjacentes.
294
Essa espécie de transcendetalismo e subsunção no absoluto que acreditamos ver
em Fervor de Buenos Aires, são aqueles em que o escritor parece exaltar-se a ponto de
esquecer de si, e se confundir na imagem criada da cidade. Já vimos como Borges não
tinha como deixar de cantar sua Buenos Aires em seu retorno como diz Estela Canto,
tratava-se de uma espécie de “chamado divino”; com Jorge Schwartz destaca-se seu
aspecto místico e totêmico acentuando ainda mais o elemento de espiritualização da
urbe; na visão de Beatriz Sarlo, o escritor através da estratégia de vinculação emcional
e familiar imiscui-se na cidade, que se transforma, dessa maneira em pátria de todos, ou
melhor, em eixo simbólico do mundo, como diz Nicolau Sevcenko.
Este expediente, que poderia chegar ao infinito atestam o caráter de solenidade
do escritor perante sua cidade natal. Lembremos, pois sua característica sobrenatural
desde a reinvidicação ovidiana na assertiva Numen Inest” no prólogo de Fervor até sua
aparição suntuosa representada no matiz de céu esverdeado, nas imagens de cristais e
na imortalidade do estio na poesia anterior de Barrio Reconquistado. Naturalmente,
esses esforços correspondem a um apetite de se estabelecer num lugar que se assemelhe
a um santuário , uma versão onírica onde o conflito borgeano tenta reconciliar-se nesta
representação imaginária:
Anuncios luminosos tironenado el cansancio
Charras algarabías
Entran a saco en la quietud del alma.
Colores impetuosos
Escalan las atónitas fachadas.
De las plazas hendidas
Rebosan ampliamente las distancias.
El ocaso arrasado
294
SEVCENKO, N., Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20,
p. 221.
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Que se acurruca tras los arrabales
Es escarnio de sombras despeñadas.
Yo atravieso las calles desalmado
Por la insolencia de las luces falsas
Y es tu recuerdo como un ascua viva
Que nunca suelto
Aunque me quema las manos.
295
Correspondendo ao desejo de estar numa cidade menos refratária, o universo
borgeano exigia a concentração de alguma normalidade baseada no emprego de uma
equação simples como vemos em Ciudad: menos anúncios luminosos em prol de uma
quietude de alma; um intenso sentimento de pesar igual a luzes falsas. No mais das
vezes, como no caso buenairense, o recrusdescimento dos fatores de fragmentação da
vida social levou os intelectuais a pensarem formas de fincarem elementos que
traduzisse a perspectiva daquilo que seria comum a todos cujo desaparescimento era
quase iminente. Por certo, esses elementos podem ser derivados duma perspectiva em
que resulte ser difícil saber lidar com diversos contrários simultaneamente. Neste
sentido, as luzes falsas e os estridentes anúncios luminosos faziam parte do novo
cenário buenairense. Os intelectuais menos entusiasmados sentiam esta presença de cor
e luzes como algo invasivo e devastador. Por esta mesma razão, nota-se que a poesia
borgeana está repleta de lamúrios contra este estado de coisas. Em contraste com o
mosaico de pesoas e as luzes falsas da cidade moderna, o escritor contrapões os
assombrosos poentes de coloração esverdeados, uma rua desconhecida e a
tranquilidade da cidade antes do processo modernizador.
Com efeito, Ciudad é um poema claro quanto as suas prentensões nostálgicas.
De fato, dificilmente deixar-se-ia de enxergar nele aquele sentimento de frustração
quanto ao otimismo que inundou Buenos Aires de falsas luzes e fachadas escandalosas.
Mas para além de tais conjecturas, Ciudad surge como sintoma de imcompatibilidade
com a nova urbe, o que certamente, faz com que o escritor o apresente como grito de
protesto contra o desatino atual, assim como necessidade imperiosa de superar a
desordem com a criação imaginária de uma nova cartografia. Jorge Luis Borges deixa a
entrever, no nosso ponto de vista, que o poema em Ciudad funciona abertamente como
lamento acompanhado de uma moralização do espaço buenairense:
296
295
BORGES, J. L., Textos Recobrados 1919-1929, p. 166.
296
GIRONDO, O., Veinte Poemas para ser leídos em el tranvía.
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O poeta jovem prefere a perambulação ao pôr-do-sol, quando o alvoroço da
cidade moderna começa a ser mais humano. Em poema após poema ele fala
sobre as praças e as árvores, as casas e pátios, os campos para os quais as ruas
se abrem. Ele vagueia e medita, ele sente e sonha, ele é superado por desejos e
alucinações. Uma indagação metafísica constante corre debaixo dos seus
passeios. Ele só acha refúgio na quietude...
297
Em outros termos, conjecturamos que dentre outros escritores buenairenses do
período, Jorge Luis Borges é o que mais radicalmente ilustra a potência caótica, a
carestia de fundamento, a densidade do vazio, aspectos apresentados na desolação
sombria dos seus versos. Desse ângulo, a Buenos Aires descrita em Ciudad parece
horrenda, quase mefistofélica, e o escritor aparenta encontrar refúgio no sentido de
interpretação metafísica de seus passeios como vaticina Emir Monegal.
298
Assim,
Borges parece desvalorizar o elemento de reconhecimento positivo da urbe
modernizada presente em outros comtemporâneos. Na verdade, sua significação
simbólica no poema de Fervor de Buenos Aires é desviada para a imagem mítica do
pretérito exorbitando o tempo presente e futuro imagetizados como negativos e tendo
nas lembranças, na invenção imaginária os tempos encantados da infância:
Atendido de amor y rica esperanza,
Cuántas veces he visto morir sus calles agrestes
En el Juicio Final de cada tarde!
La frecuente asistencia de un encatno
Acuña en mi recuerdo una predilecta eficacia
Ese arrabal cansado,
Y es habitual evocación de mis horas
La vista de sus calles,
El horizonte que se acurruca en los lejos,
Las quintas que interrumpe el cielo baldío,
La calle Pampa larga como un beso,
Las alambradas que son afrenta del campo
Y la dichosa resignación de unos sauces.
Paraje que arraigó una tradición de amor en el alma
No ha menester vanaglorioso renombre,
Ayer fue campo, hoy es incertidumbre
Para além do fato que Ciudad não figura entre as edições completas de Borges devido ao expurgo de seus
livros iniciais praticados pelo próprio autor, esta hipótese pessoal está baseada numa reflexão de Hans
Gumbrecht sobre a questão centro e periferia de seu livro. Ver: GUMBRECHT, H. U., Em 1926: vivendo
no limite do tempo, p. 317.
297
MONEGAL, E. R., Jorge Luis Borges: a literary biography, p.176.
298
Ibid., loc.cit.
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De la ciudad que del despoblado se adueña:
Bástale para conseguir las laudes del verso
Ser el sitio implorado de una pena.
299
Em Vila Urquiza descortina-se o sentimento de torpor do escritor portenho que
nos transmite uma noção de como há exasperação na condução daquilo que
repentinamente se transforma (quantas vezes vi morrer suas ruas rurais). Como para
alguns essas metamorfoses se introduzem nas sociedades de forma quase invisível,
muitos se vêem na contingência de não perder tempo e tentam prontamente fazer
ressoar algum tipo de lamento. Mas fatalmente, Borges estava ausente nesses anos.
Neste sentido, não é sem razão que Emir Monegal descreva a experiência de Fervor de
Buenos Aires em termos de retórica expressionista. Na verdade, Monegal fala mesmo de
tons apocalípticos e imagens cristãs nos poemas de Fervor de Buenos Aires, cuja
atestação podem ser apreciadas na imagem do julgamento final de toda a tarde na
poesia de Vila Urquiza.
300
Em Vila Urquiza, Jorge Luis Borges mais uma vez aparenta instalar-se de forma
incômoda em seu imaginário sítio solitário. No interior do turbilhão que a cidade de
Buenos Aires é lugar, o jovem Borges é incontestavelmente assaltado pelo desejo de
intervir na nova cidade forjando repertórios com os mitos imaginários do passado para
criação de seu espaço ideal intangível. É a desaparição percebida como irremediável diz
Beatriz Sarlo, que torna Jorge Luis Borges capaz de em Fervor de Buenos Aires
contribuir para a formação de uma mitologia citadina mais justa, menos estranha e mais
palpável:
Buenos Aires pode ser lida com uma olhada retrospectiva que focaliza um
passado mais imaginário que real de cidade hispano-criolla (e este é o caso do
primeiro Borges) ou descoberta na emergência da cultura trabalhadora e
popular, que é organizada e difundida pela indústria cultural...Isto começa a ser
vivido não apenas com o um problema mas como um tema estético, atravessado
pelo conflito de poéticas que alimentam as batalhas da modernidade.
301
Ou ainda de forma mais expressiva:
Quando Borges regressa de Espanha, em 1921, Buenos Aires entrava em uma
década de transformações vertiginosas: a cidade da infância coincidia apenas em
299
BORGES, J. L., Textos Recobrados 1919-1929, p. 168.
300
MONEGAL, E. R., Jorge Luis Borges: a literary biography, p. 176.
301
SARLO, B., Borges, un escritor en las Orillas, p. 41.
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parte com a que se estava construindo. Borges chega a uma cidade que deve
recuperar (como ele disse no momento), depois de sete anos de ausência:
recuperar, em uma Buenos Aires transformada, a cidade de suas recordações e
também recuperar essas recordações frente a um modelo que estava se
transformando. Borges devia lembrar o esquecido de Buenos Aires no momento
que este esquecimento começava a desaparecer materialmente. A experiência
encontra seu tom poético: a nostalgia de Fervor de Buenos Aires.
302
Fruto deste retalhado processo modernizador, o impacto sentido por Borges faz
com que o escritor adjetive negativamente a nova urbe de muitas maneiras: como “falsa
e densa”, “assombrosa”, “tempestuosa” entre outras. Mas a despeito do impacto
restritivo, esta negatividade não impediu que a cidade se tornasse receptáculo para suas
idéias e um favorável ambiente para a experimentação literária. Portanto, como tema
estético e tentativa de recuperação, conforme Beatriz Sarlo, a postura borgeana
propiciou uma visão insólita nos debates que aprofundariam a questão da identidade dos
argentinos. Deste modo, em Borges a criação mitológica da cidade de Buenos Aires é
elevada a categoria de personagem das suas tramas e passa a ser um dos temas centrais
de sua produção. Profundamente transformada desde sua partida para Europa, ao
regressar, uma outra Buenos Aires, a Buenos Aires de outrora, tem no escritor portenho
um dos seus paladinos mais convictos:
Las calles de Buenos Aires
ya son mi entraña.
No las ávidas calles,
incómodas de turba y de ajetreo,
sino las calles desganadas del barrio,
casi invisibles de habituales,
enternecidas de penumbra y de ocaso
y aquellas más afuera
ajenas de árboles piadosos
donde austeras casitas apenas se aventuran,
abrumadas por inmortales distancias
a perderse en la honda visión
de cielo y de llanura.
Son para el solitario una promesa
porque millares de almas singulares las pueblan,
únicas ante Dios y en el tiempo
y sin duda preciosas.
Hacia el Oeste, el Norte y el Sur
se han desplegado – y son también la patria- las calles:
ojalá en los versos que trazo
303
302
SARLO, B., Borges, un escritor en las Orillas , p. 25-26.
303
BORGES, J. L., Fervor de Buenos Aires. Obras completas, p.17.
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Seguramente um dos poemas mais significativos da colêtânea, nessa
representação as ruas de Buenos Aires são como entranhas, isto é, fazem parte do
universo mais íntimo do autor e o constitui. Em seu percurso imaginário a escritura
poética borgeana faz com que ele (escritor) e a cidade de Buenos Aires se confundam.
Percebe-se que desde então, o escritor ao longo de sua obra transita pelas ruas de
Buenos Aires, por seus encantos mais ocultos e a cidade ganha nova estatura em seus
debates sobre argentinidade, criollismo e tradição gauchesca.
304
Núcleo nervoso desse
momento, Buenos Aires passa a funcionar como plataforma para as idéias sobre
identidade dos argentinos e lugar onde Borges pode ensaiar a consecução de uma
comunidade literária frente ao caos estabelecido pela metroplização em curso.
305
Assim,
expresso em forma poética e não em inflamados manifestos, Borges parece entregar-se
a um sútil ceticismo em Fervor de Buenos Aires. Esta postura fervorosa indica também
a contrapartida da reação borgeana frente ao processo modernizador: as ávidas ruas e o
incomôdo da multidão do primeiro poema de Fervor de Buenos Aires de Borges
ofertam ao partícipes da modernização o seu mais ardoroso Réquiem:
O jovem poeta prefere perambular ao redor, ao pôr do sol, quando o alvoroço
da cidade moderna começa ser mais humano. Em poema após poema ele fala
sobre praças e as árvores, as casa e os pátios, os campos para o quais as
últimas ruas abriram. Ele vagueia e medita, ele sente e sonha, ele é superado
por desejos e alucinações. Uma constante indagação metafísica corre sob suas
andanças.
306
Neste Réquiem“As ruas” é o poema de abertura em Fervor de Buenos Aires. E
Fervor de Buenos Aires o primeiro livro de Jorge Luis Borges após o regresso a Buenos
Aires em 1921. Nesse canto começa a se gestar na imaginação borgeana um dos temas
mais característicos desse período e que se torna evidente em sua obra vindoura: as ruas,
o bairro, e o subúrbio com suas transformações; as aventuras de homens cuja bravura os
entregam a destinos fatais; os cuchileros que marcam presença em seus duelos
frequentemente manchados pela idéia de honra e lealdade. Assim, de nossa parte parece
insofismável os liames que conduzem o fingimento, o imaginário de Borges em Fervor
304
SARLO, B., Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, 31-67.
305
Refiro-me a idéia de que aquilo que preservava uma continuidade e senso de comunidade desde os
tempos em que Buenos Aires era uma pequena aldeia recebeu com a modernização um forte golpe.
306
MONEGAL, E. R., Jorge Luis Borges: a literary biography, p. 176.
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de Buenos Aires como um locus literário perpetuamente em construção para a
referência dos argentinos. De fato, esses lugares passam a funcionar como instâncias de
um imaginário possível dos termos de oposição e metamorfoses que a cidade sofre, se
tornando temáticas privilegiadas na literatura de Borges do período e do porvir.
No processo de transformação intensa, Buenos Aires surge, nas palavras de
Angel Rama, como as “cidades aluviais”
307
que emergiram depois da Primeira Guerra
desenvolvendo um processo de aceleração de ordem universal propiciadas pelos
impérios do momento (Inglaterra, França, Estados Unidos). Ao regressar a Buenos
Aires depois de um longo período em Madrid, Borges ensaia a consecução daquilo que
tanto o impactou na sua chegada: a cidade se transformara em desaguamento prático das
diversas crenças sobre progresso, futuro e modernização. Dessa forma, “As ruas”
inaugura as representações borgeanas dessa capital alterada e inicia sua resposta a
questão de qual é o mundo desejado, a cidade desejada.
Nesse sentido, a construção imaginária de Buenos Aires é importante dentro da
função que as capitais exercem como centros representativos da dinâmica de uma
ruptura, e não a Argentina em sua totalidade.
308
Borges foi testemunha de como sua
cidade se transformou e a própria possibilidade do escritor expor pela via da literatura
essa estranheza, é fruto dessa capitalidade que em Buenos Aires aparecia com muita
força.
Com efeito, pode-se conjecturar que “As ruas” se presta à imaginação de outras
possibilidades interpretativas. Uma das mais centrais se traduzem na confecção do
imaginário através das ruas, elemento bastante presente em vários poemas borgeanos da
coletânea de Fervor. Na tentativa de consagração de outros universos, na criação de
espaços diferenciados para responder a essa nova realidade, Borges transforma as ruas
de Buenos Aires na pátria dos argentinos como ele mesmo diz em sua poesia: y son
también la patria- las calles: ojalá en los versos que trazo.
309
Pretendeu-se, desta feita, compor imaginários através dos quais por mais que a
metrpolização tivesse imposto seu ritmo e alterado a fisionomia do tecido citadino,
esses lugares jamais deveriam ser olvidados e por sua vez pertenceriam ao repertório
imaginário dos portenhos. A Buenos Aires que Borges traz na memória através das ruas
e arrabaldes é tudo aquilo que imaginário e tradição se completam na tentativa de
307
RAMA, A.; AGUIAR, F.; GUARDINI T. VASCONCELOS, S. (Orgs), Literatura e Cultura na
América Latina. Ensaios Latino Amerericanos, p. 79.
308
Ibid., p.117.
309
BORGES, J. L., Fervor de Buenos Aires. Obras completas, p.17.
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formarem uma entidade única e na qual todos se referencializem. A estratégia adotada
por Borges de consagrar a si mesmo estes lugares esbarra na angústia da solidão, como
afirma Beatriz Sarlo. Desta forma, Jorge Luis Borges compartilhando o dividendo de
seu sentimento tenta juntar os resquícios daquilo que ele reconhecia como mundo
familiar e seu:
Nas imagens de seu universo cotidiano (tudo que é autenticamente poético,
Borges parte de sua própria experiência vivida, mesmo que ele coloque a
máscara da erudição, das citações literárias, dos fantasmas livrescos) culmina
uma poesia de Buenos Aires ou do mundo completamente destituída de intenção
folclórica. Isto ilustra uma sensação de felicidade que é impessoal por que como
bem compartilhou aquele dividendo, mas também a angústia que sente um
homem que é como os outros e ao mesmo tempo não é ninguém.
310
Assim, perderam-se os parâmetros identificadores e cria-se, nas palavras que
podem ser depreendias das análises de Emir Monegal, uma felicidade estranha. Jorge
Luis Borges sente intensamente o processo modernizador por qual passava as ruas de
Buenos Aires, que ele considera como suas entranhas. As ruas e avenidas de sua cidade
natal estão passando por um feroz processo de metamorfose e o escritor constata que já
não há mais referências, a não ser as que estão em vias de ser construídas. Tudo se
esvai. Borges põe em referência uma representação fragmentada do espaço territorial e
da unidade dos argentinos, o que acontece de forma paradoxal, pois os espaços
imaginariamente criados terminam por celebrar o fim de uma época tão cara ao escritor
e a muitos argentinos do período.
Por seu turno, o processo de transformação da cidade de Buenos Aires trouxe
consigo a destruição dos mitos argentinos que vinculavam estreitamente o futuro com o
passado e mediante tal quadro, acarretou como efeito quase imediato a autonomização
de duas instâncias: a do futuro entregue de todo a sua imprevisibilidade e, ao mesmo
tempo convertido em obsessão e a do passado que perde sua coerência organizativa e se
converte por completo em espaço patrimonial. Na verdade, aquela tão almejada antiga
convivência citadina, a nosso ver, jamais voltaria estar presente num cenário
ineditamente transformado como o buenairense, pois o passado já não funcionava como
parâmetro seguro para as ações futuras.
Se assim não fosse, o fingimento borgeano não instauraria a literatura como
principal motor da promoção do imaginário, como agente agregador e, sobretudo, como
310
MONEGAL, E., Borges par lui-même, p.40.
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promessa de continuidade. Vale ressaltar, que os escritos borgeanos se inscrevem numa
direção contrária a muitos dos intelectuais da sua época e, na contramão destes, passa a
celebrar em sua imaginação ficcional uma Buenos Aires do passado. Em seu processo
irrealizador, Borges apresenta a Buenos Aires do passado como algo inteiramente digno
de confiança, justamente por ser mais palpável do que a fisionomia sinistramente
risonha do futuro moderno, tanto pelo que apresenta de novo, veloz, e, sobretudo pelo
que tem de incerto. Assim, o escritor dá início a sua empreitada de construção de elos
com um passado que se configurou cada vez mais frágil frente a uma modernização que
Borges enxerga como diluidora de importantes vínculos. As mudanças já não são
impulsadas pelo movimento que asseguraria o deslizamento natural do passado ao
futuro pela mediação do presente. A iniciativa de Borges abre passo para uma relação
mediada entre o passado à custa de um futuro que se experimenta como imprevisível e
ameaçador.
Um outro poema significativo acerca da relação do escritor com a cidade de
Buenos Aires é “Rua desconhecida”, nele a interpretação de Buenos Aires aparece
tecida pela conotação duvidosa, impregnada de elementos que se esvaem no tempo. A
cor oscilante da tarde aparece juntamente com a sensação do que seu perdeu. Percebe-se
a atmosfera nostálgica, fruto do sentimento daquilo que era considerado como
reconhecível, e agora não é mais. Na metáfora bíblica do Gólgota, a cidade e as relações
que o escritor mantém com determinados lugares, espaços familiares, de outrora,
parecem caminhar para o seu fim. Buenos Aires se torna o espelho de outros lugares, na
qual o escritor, traduz em concreto sua percepção pessoal da cidade:
Quizá esa hora de la tarde de plata
diera su ternura a la calle,
haciéndola tan real como un verso
olvidado y recuperado.
Sólo después reflexioné
que aquella calle de la tarde era ajena,
que toda casa es un candelabro
donde las vidas de los hombres arden
como velas aisladas,
que todo inmeditado paso nuestro
camina sobre Gólgotas
311
.
311
BORGES, J. L., Fervor de Buenos Aires. Obras Completas, p.20.
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128
Desta maneira vemos o desenrolar de uma ampliação da dimensão do sentimento
de perda do escritor com a cidade. Mas tal fato não impede de que o escritor, na figura
do declamador engmático, manifeste seu afeto de maneira acintosa e sentida. O
sentimento de emoção provocado pela descoberta de uma rua até então desconhecida, é
projetado na própria rua, lugar de preservação dos tempos remotos. O sentimento
despertado pela descoberta faz ativar a recordação de um passado distante e perdido.
Mais do que cenário, a cidade é irreal (fazendo-a tão real como um verso esquecido e
recuperado) em “Rua Desconhecida”. De fato, torna-se cada vez mais inequívoca as
reflexões que víamos desenvolvendo anteriormente: ao irrealizar Buenos Aires, Borges
mistifica sua cidade natal e a transforma em protagonista da narrativa. Assim, no
Réquiem orquestrado pelo escritor ela torna-se sujeito da trama e provoca nele, a
reflexão antes inexistente e acentua a vinculação afetiva com a cidade.
Nos procedimentos poéticos em Fervor, a representação imaginária parece
assumir a função de permuta do real fortuito e arriscado da nova cidade e conservar nela
as bases da urbe lida por Borges. O universo citadino particular que Borges cria, tenta
compensar, ao menos parcialmente, a perda dos referenciais antigos com a restauração
imaginária de uma Buenos Aires que a modernização solapou. Esta restauração precisa
lidar com alguns elementos complexos: novo traçado urbano, imagens do moderno,
máquinas e assemelhados, e a presença acentuada de imigrantes. A maneira de Borges
exorcizar as manifestações do moderno é encontrar um espaço físico, costurado
evidentemente pela imaginação, que consiga se manter alheio às transformações.
Nesses ambientes, a ritmação do cotidiano era medida pelas pausas impostas
pelo estilo de vida, como os momentos de fruição do mate, por exemplo, e não
pelos relógios modernos. As referências esparsas aos imigrantes embutem
lamúrias de um mundo que está se esboroando, dando alento às queixas pela
perda de traços nativos. O jovem Borges assumiu uma postura lírica defensiva,
resistindo a tratar literariamente dos elementos modernos e cosmopolitas de
Buenos Aires, então em ritmo frenético de mudança.
312
Configura-se, então, um espaço geográfico imaginário que faz parte da “mobília
mental” borgeana. Na verdade, para Borges parece não importar tanto que a cidade
imaginada seja pouco verossímil aos olhos dos observadores: extrái-se da tal postura o
valor da ressonância, que a adoração pela Buenos Aires antiga refute a perspectiva de
transformação abrupta e afirme, pela ficcionalidade, a verdadeira e ainda que
312
MICELI, S., Jorge Luis Borges: história social de um escritor nato, p. 176-177.
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paradoxalmente irreal, face de Buenos Aires e da Argentina. Em suma, entre lugares e
temporalidades dissonantes, o Réquiem ficcional da autoria de Borges dá ensejo a
imaginação de uma Buenos Aires que priorize não o centro radicalmente alterado, mas
as caminhadas em seus arredores, os poentes, praças e subúrbios que conservam com
mais transparência os registros da cidade antiga e que o fazem sentir parte da genealogia
portenha. Este é o recurso praticado pelo autor de Fervor após seu regresso em Buenos
Aires depois de uma longa temporada:
...Causou-me surpresa descobrir que minha cidade natal havia crescido, se alastrara e
que agora era muito grande, quase infinita... Era mais que uma volta ao lar, era uma
redescoberta. Se nunca tivesse saído do país, fico imaginando se alguma vez teria visto a
cidade com o impacto que agora ela me proporcionava.
313
Contudo, a relação que Borges mantém com o passado é mais intensa quanto
mais volátil ela se apresenta. Em seu ato de fingimento, Borges cria uma cidade
hipotética através da expansão, repetição e supressão daquilo que o aflige. Mas ao
mesmo tempo em que Borges cria uma cidade imaginária tem consciência de que o
passado só pode ser capturado por via da literatura, não voltará jamais. Assim, a
convergência de todos esses atributos e eventos mesclados forma uma nostálgica
imagem tanto literária quanto do passado da nação argentina. De fato, Jorge Luis
Borges está plenamente consciente de que não há idade de ouro a restaurar. O que se
visa como projeto é a possibilidade de construção imaginária que na transformação em
curso se torne fundamental e eterno.
Os lugares que Borges recorda se percebe o tempo como história e como
presente: se por um lado a cidade é prova das transformações, por outro ela se converte
no sustento material que faz das mudanças um tema literário. Esta mesma cidade
atravessada pelas novas avenidas e cujo movimento se torna mais veloz pode ser negada
para buscar em seus contornos os lugares que a modernização ainda não chegou. São os
rincões que a poesia borgeana resgata sob a figura dos entardeceres, as ruas, lugares
onde a cidade resiste aos estigmas da modernização ainda que o bairro quase por
completo seja produto de uma intervenção modernizadora.
Borges em seu ato de fingir constrói uma paisagem intocada pela modernidade
em sua versão mais agressiva, onde ainda restam vestígios do campo, zonas marginais
que o escritor semantiza como a Buenos Aires de todos. Igualmente peremptória,
313
BORGES, J. L., Perfis: Um ensaio autobiográfico, p. 86.
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descobrir essa cidade se torna uma operação guiada pelo acaso, pelas andanças e que,
deliberadamente, o escritor renúncia os espaços onde a cidade moderna já havia
plantado seus ritos.
314
El arrabal es el reflejo de nuestro tedio.
Mis pasos claudicaron
cuando iban a pisar el horizonte
y quedé entre las casas,
cuadriculadas en manzanas
diferentes e iguales
como si fueran todas ellas
monótonos recuerdos repetidos
de una sola manzana.
El pastito precario,
desesperadamente esperanzado,
salpicaba las piedras de la calle
y divisé en la hondura
los naipes de colores del poniente
y sentí Buenos Aires.
Esta ciudad que yo creí mi pasado
es mi porvenir, mi presente;
los años que he vivido en Europa son ilusorios,
yo estaba siempre (y estaré) en Buenos Aires.
315
.
Quanto aos quatro últimos versos temos a a recepção um tanto quanto perplexa
de um estudioso da obra borgeana, Carlos Zito:
Esta frase impressiona por sua justeza premonitória. Sobretudo, se pensarmos
que quem a escreve tem ainda pela frente mais de quarenta anos de vida. O
escritor não duvida em afirmar que Buenos Aires era seu futuro, como se já
soubesse que – apesar de seu cosmopolitismo e suas múltiplas viagens por todo
mundo – essa cidade periférica do planeta seria o receptáculo de toda sua obra e
de toda sua vida.
316
A absoluta crença de se fazer parte de um passado agora inexistente. O impacto
e a nostalgia de ter percebido a destruição do mundo de que era parte constituinte antes
de sua partida para Europa. Na postura borgeana do período, é sintomática a oposição
irredutível entre o mundo do passado, isto é, a irrealidade dos lugares reconhecíveis,
314
MONEGAL, E., Borges par lui-même, p. 33.
315
BORGES, J. L.. Fervor de Buenos Aires. Obras completas, p. 32.
316
ZITO, C. A., El Buenos Aires de Borges, p. 53-54.
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palpáveis e o do presente, a qual o escritor concebe como uma realidade degradada e
dificilmente reconquistável.
Se entendermos a postura de Jorge Luís Borges do anos 1920, costurando um
imaginário ao tema da identidade dos argentinos não apenas como manifestação de uma
preocupação imediatista de busca de sistemas de identificação, mas também como
importante elemento de tentativa de explicação para o caráter paradoxal de todas as
formas de identidade, podemos perceber, de forma profunda, o quanto a memória do
escritor desenvolvida literariamente se torna um valioso testemunho para as
contradições do período.
Diante do triunfo da cidade sobre o campo, nas palavras de Angel Rama, ou seja,
no triunfo da polis civilizada contra a barbárie dos não urbanizados, que aliado ao
conceito de progresso propiciou todas as mudanças de que o escritor lamenta, entre elas,
fissura vulcânica, assim como a profunda alteração das relações sociais e a profunda
transformação de Buenos Aires, o discurso de Borges se funde dentro da mais pura
tradição anticosmopolita que tenta recuperar o passado de Buenos Aires através de seus
bairros periféricos, monumentos e outros elementos da tradição portenha, afim de que o
imaginário desta cidade funcione como muleta de um presente que já não se pode
sustentar, por que lhe falta a figura do futuro que Borges tenta ficcionalizar, irrealizar.
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5
Conclusão
Conforme vimos, a modernização pela qual passou a principal cidade
Argentina, Buenos Aires, ao invés de propulsionar uma maior unidade e segurança,
sugeriu níveis inesgotáveis de desintegração e reembaralhamento das relações
cotidianas. As mudanças operadas redundaram em questionamentos acerca da certeza
na crença em um progresso infinito. A difusão da idéia de que os ganhos pertenceriam
a todos, a modernização verticalizada, de cima para baixo, não encontraram uma
contrapartida política ou social, contribuindo ainda mais para a sensação de
estranhamento na nova urbe. De fato, as principais instituições argentinas do período
mantiveram-se absolutamente distantes do corpo da sociedade. Tal corpo enxergava
nos canais políticos poucas possibilidades de levar adiante suas reivindicações. Assim
também, o orgulho ostentado por uma metropolização cintilante esbarrava nas formas
literalizadas de expressão de lamento e perda de sentido.
As transformações ocorridas no perímetro urbano da cidade de Buenos Aires
franquearam o surgimento da problemática da relação do passado com o presente.
Representações simbólicas relevantes sobre o passado comum da cidade foram postas
em xeque em nome de um discurso racional cuja base era a confiança em poder varrer
os incômodos fantasmas de um tempo pretérito não tão bem sucedido.
Atmosfera inebriante, cuja percepção as vanguardas levaram à exaustão. Jorge
Luis Borges opta por construir a ligação entre o passado e a perspectiva do moderno.
Na verdade, percebeu que as possibilidades entre um passado circusncrito e um futuro
dilatado, o presente apareceria frequentemente em sua forma transitória e
imperceptivelmente breve. Assim, o escritor imbuído do espírito vanguardista
conduziu ao paroxismo as modulações de recepção de seus textos e impulsionou
publicamente as pelejas do campo intelectual: os manifesto e os murais.
Pelo exposto das características modernistas, não foi difícil constatar que a
empreitada em que se lançaram adoeceu por um defeito bastante característico
segundo Jaime Alazraki: a narração modernista funcionava mais como pretexto, que
permitia ao autor criar um mundo de impressões, um mundo de sons e ritmos, mas que
esquecia, em muito de seus momentos, dos próprios fatos que estavam romanceando
para extraviar-se em seus próprios devaneios de beleza e encanto. Conforme a crítica
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apontada indicou, a renovação modernista não está motivada por um afã de intensificar
o poder narrativo da prosa, mas está ancorada na tentativa de incrementar sua
capacidade de descrição ou como diz Jaime Alazraki “quietude e não movimento,
descrição, não narração. Este traço explica seu natural declive poético (do
modernismo), sua morosidade, suas demoras. Tudo devia se resumir em beleza”.
317
Com efeito, Borges lançou-se contra tais premissas. Reverenciou, como vimos,
uma arte que se esquivasse do dérmico, buscou uma linguagem pura e absoluta. Em
nome do novo, Borges promove uma contrapartida literária estabelecendo uma ruptura
nas letras em Argentina. O novo passa a ser lugar comum na literatura de vanguarda
borgeana e enseja os movimentos de sua postura moderna. Mas como observamos no
desenrolar desta dissertação, Fervor de Buenos Aires ofereceu a oportunidade de uma
outra perspectiva.
Nesse sentido, a forte imigração, fez com que a questão sobre a
heterogeneidade e homogeneidade da cidade aparecesse de forma urgente. Estes novos
personagens compuseram um capítulo importante na configuração da Argentina
moderna. É sinalizadora, então, a tentativa da imaginação em Jorge Luis Borges de
reaver, numa cidade imaginária, a ausência destes novos homens e mulheres. Na
invenção de uma cidade pretérita, estes imigrantes desapareceram e o escritor compôs
uma Buenos Aires de ilusão e fingimento. A estranheza provocada por uma cidade que
se moderniza a ponto de não ser reconhecida pelo escritor, revelou o quanto foi
preciso, para Borges, resgatar imaginariamente uma cidade antiga, longe dos bulícios
da Buenos Aires babélica. Buenos Aires, torna-se assim mais que a simples capital de
uma país. Lá é onde se percebem as transformações que serão irradiadas para toda
Argentina.
Em suma, boa parte da obra de Jorge Luís Borges da década de 1920 se revela
um testemunho para percebermos o quanto a sociedade estava tensionada, com o meio
intelectual vanguardista em verdadeira ebulição. E Borges, enquanto escritor, propõe
uma nova leitura destes tempos conturbados.
Que se compreenda, neste momento final, que este trabalho termina na
estratégia de desenvolver uma reflexão que ultrapassa este movimento. Seguramente,
em algum lugar, incerto ainda, pretende-se-á voltar ao tema de Borges e sua
vinculação com a ficcionalidade imaginária que, como não é difícil de prescrutar, está
317
ALAZRAKI, J., La prosa narrativa de Jorge Luis Borges, p 123.
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além do que aqui se disse. No geral, a função dessa dissertação é a de sinalizar e
aprofundar algumas hipóteses interpretativas que certamente aqui não se esgotoram.
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